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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ESPANTALHO / Michael Connelly
O ESPANTALHO / Michael Connelly

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

O repórter veterano Jack McEvoy é demitido do jornal onde trabalha há sete anos e tem mais 12 dias antes de juntar as suas coisas e ir para casa. Ele tenta fazer desse tempo um último momento para uma grande matéria.
Tentando aprofundar-se mais sobre uma matéria da sua autoria sobre uma a pessoa que foi presa pelo crime pode não ser o verdadeiro assassino e torturador. Como Jack McEvoy é um repórter inteligente, a sua mente dedutiva vai levá-lo a descobertas inesperadas.
Nessa busca ele volta a trabalhar com a agente do FBI Rachel Walling. Os dois trabalharam juntos e tiveram um breve envolvimento anos atrás no caso do serial killer conhecido como O Poeta. Esse envolvimento não terminou bem.
Juntos agora, poderão pôr as cartas na mesa e trabalhar nesse caso que pode acabar com as suas vidas.

 

 

 


 

 

 


UM: A Fazenda
Carver andava de um lado para o outro pela sala de controle, supervisionando a frente quarenta. As torres assomavam diante dele em fileiras perfeitas. Elas zumbiam
tranquila e eficientemente e, mesmo com tudo que sabia, Carver não podia deixar de se maravilhar com o milagre da tecnologia. Tanto em tão pouco espaço. Não um mero
riacho, mas um rio de dados veloz e caudaloso fluindo todos os dias. Crescendo diante dele em elevadas hastes metálicas. Tudo que ele tinha a fazer era ir até lá,
procurar e escolher. Era como garimpar ouro com uma ++bateia.
Só que mais fácil ainda.
Ele verificou os medidores de temperatura no alto. Tudo perfeito na sala dos servidores. Baixou os olhos para as estações de trabalho à sua frente. Seus três engenheiros
trabalhavam harmoniosamente naquele projeto. Uma tentativa de invasão obstruída pela habilidade e rapidez de Carver. Agora, o acerto de contas.
O pretenso intruso não conseguiu penetrar nos muros da fazenda, mas ele deixara suas impressões digitais por toda parte. Carver sorriu ao ver seus homens catando
as migalhas de pão, rastreando o endereço IP - o Internet Protocol - pelos nódulos de tráfego, uma caçada em alta velocidade rumo à fonte. Logo Carver descobriria
quem era seu oponente, para que empresa trabalhava, o que estava procurando e que vantagem esperava obter. E Carver faria uma retaliação que deixaria seu pobre adversário
esmagado, destruído. Carver não mostrava misericórdia. Nunca.
O alerta da gaiola de contenção zumbiu no alto.
- Telas - disse Carver.
Os três rapazes nas estações de trabalho teclaram comandos em uníssono, escondendo dos visitantes o que estavam fazendo. A porta abriu e McGinnis entrou com um homem
de terno. Carver nunca o vira antes.
- Essa é nossa sala de controle, e por aquelas janelas dá pra ver o que a gente chama de "frente quarenta" - disse McGinnis. - Todos os nossos serviços de colocação
estão concentrados ali. É principalmente ali que a gente vai guardar o material da sua empresa. Temos quarenta torres abrigando mil servidores dedicados. E, claro,
tem espaço pra mais. Espaço não vai faltar nunca.
O homem de terno balançou a cabeça, pensativo.
- A gente não liga pro espaço. Nossa preocupação é com a segurança.
- Eu sei, é por isso que entramos aqui. Queria que o senhor conhecesse Wesley Carver. Wesley faz um pouco de tudo por aqui. Ele é o nosso chefe de tecnologia, além
de ser nosso principal engenheiro de ameaça e a pessoa que projetou o CPD. Ele pode dizer tudo que o senhor precisa saber sobre segurança de colocação.
Mais um showzinho particular. Carver apertou a mão do engravatado. O outro foi apresentado como David Wyeth, do escritório de advocacia Mercer & Gissal, de St. Louis.
Soava a camisas brancas impecáveis e paletós de tweed. Carver notou que Wyeth tinha uma mancha de molho na gravata. Sempre que alguém vinha à cidade, McGinnis levava
para comer no Rosie's Barbecue.
Carver fez o show de praxe para Wyeth, detalhando tudo e dizendo tudo que o advogado grã­-fino queria escutar. Wyeth estava numa missão de due diligence & carne
grelhada. Ia voltar a St. Louis e relatar como ficara impressionado. Ia dizer aos colegas que, se a empresa queria acompanhar os avanços tecnológicos e os novos
tempos, esse era o caminho.
E McGinnis conseguiria mais um contrato.
Durante todo o tempo em que conversaram, Carver não parou de pensar no intruso que estiveram caçando. Lá fora em algum lugar, sem nem imaginar que o castigo vinha
a cavalo e galopando em sua direção. Carver e seus jovens discípulos iriam rapar suas contas bancárias, apagar sua identidade e plantar fotos de homens fazendo sexo
com garotinhos de 8 anos em seu computador. Depois ele instalaria um vírus que daria um pau na máquina do sujeito. Quando ele não conseguisse arrumá-la, chamaria
um especialista. As fotos seriam encontradas e a polícia, acionada.
O intruso não ia mais ser um problema. Outra ameaça mantida longe pelo Espantalho.
- Wesley? - disse McGinnis.
Carver acordou do devaneio. O engravatado fizera uma pergunta. Carver já esquecera seu nome.
- Como é?
- O senhor Wyeth perguntou se o centro de colocação já foi invadido alguma vez.
McGinnis estava sorrindo, já sabendo a resposta.
- Não, senhor, nunca fomos invadidos. Para ser honesto, houve algumas tentativas. Mas elas fracassaram, e as consequências foram desastrosas para os que tentaram.
O engravatado balançou a cabeça gravemente.
- A gente representa a fina flor de St. Louis - ele disse. - A integridade dos nossos arquivos e do nosso portfólio de clientes é de suma importância em tudo o que
a gente faz. Foi por isso que vim aqui pessoalmente.
Por isso e por causa do clube de striptease a que o McGinnis o levou, Carver pensou, mas não disse. Em vez disso sorriu, mas sem qualquer traço de simpatia. Achou
ótimo que McGinnis houvesse lembrado a ele o nome do engravatado.
- Não se preocupe, senhor Wyeth - disse. - Suas flores vão estar seguras nesta fazenda.
Wyeth retribuiu o sorriso.
- Era o que eu queria escutar - ele disse.

DOIS: O Caixão de Veludo

Todos os olhos da redação me seguiram quando saí do escritório de Kramer e voltei para minha baia. Os longos olhares tornaram longa a caminhada. O bilhete azul sempre
vinha às sextas, e todo mundo sabia que eu tinha acabado de ser mandado pro olho da rua. Só que ninguém mais chamava de bilhete azul. Agora era downsizing - redução
de pessoal.
Todo mundo sentiu um levíssimo estremecimento de alívio por não ter sido a vítima, e um levíssimo estremecimento de ansiedade porque ainda sabia que ninguém estava
a salvo. Qualquer um podia ser o próximo.
Não cruzei o olhar com ninguém quando passei sob a placa da seção de Metropolitano e voltei à área das baias. Entrei em meu cubículo e sentei na minha cadeira, sumindo
de vista como um soldado numa trincheira.
Na mesma hora meu telefone tocou. Olhei o mostrador e vi que era meu amigo Larry Bernard ligando. Ele fica só a duas baias da minha, mas se tivesse se aproximado
em pessoa, teria sido uma clara deixa para que os outros na redação se amontoassem em volta e perguntassem o óbvio. Repórteres funcionam melhor em bando.
Enfiei o headset e atendi.
- Fala, Jack - ele disse.
- Fala, Larry - eu disse.
- E aí?
- E aí o quê?
- O que o Kramer queria?
Ao invés de falar "Kreimer", o nome do assistente do chefe de redação em sua pronúncia correta, ele falou Crammer, ou seja, "Entuchador". Esse apelido fora dado
a Richard Kramer anos antes, quando era um pauteiro mais preocupado com a quantidade do que com a qualidade das notícias que fazia seus jornalistas produzirem. Outras
variações de seu nome completo ou parcial também evoluíram com o tempo.
- Você sabe o que ele queria. O cara me mandou embora. Estou na rua.
- Puta que me pariu, eles te deram o bilhete azul!
- Isso mesmo. Mas não esquece, a gente chama de "separação involuntária", agora.
- Você precisa ir embora agora? Deixa que eu ajudo você.
- Não, tenho duas semanas. Depois disso acabou meu prazo de validade.
- Duas semanas? Por que duas semanas?
A maioria das vítimas do downsizing tinha de se mandar imediatamente. Essa lei foi instituída depois que uma das primeiras vítimas da redução de pessoal teve permissão
para ficar durante o aviso prévio. Em seus últimos dias, as pessoas o viram pelo escritório segurando uma bola de tênis. Quicando, jogando, apertando a bola. Ninguém
percebeu que cada dia era uma bola diferente. E cada dia ele mandava uma bola pela descarga no banheiro masculino. Cerca de uma semana depois que ele foi embora,
o encanamento entupiu com consequências devastadoras.
- Eles me deram um tempo extra se eu concordasse em treinar a pessoa que vai entrar no meu lugar.
Larry ficou em silêncio por um minuto, considerando a humilhação de precisar treinar seu próprio substituto. Mas, para mim, duas semanas de pagamento eram duas semanas
de pagamento que eu não receberia se não aceitasse o combinado. E, além do mais, as duas semanas me dariam tempo para me despedir apropriadamente do pessoal da redação,
no ritmo que cada um merecia. Eu considerava ainda mais humilhante a alternativa de sair pela porta acompanhado por seguranças, levando nas mãos uma caixa de papelão
cheia de pertences pessoais. Eu tinha certeza de que ficariam de olho em mim para checar se eu não estava carregando bolas de tênis para o trabalho, mas não precisavam
se preocupar. Esse não era meu estilo.
- Então é isso? Isso foi tudo o que ele disse? Duas semanas e você já era?
- Ele apertou minha mão e disse que eu era um cara bonitão, que devia tentar a tevê.
- Caramba. A gente precisa encher a cara hoje à noite.
- Eu vou, pode ter certeza.
- Isso não tá certo.
- O mundo não tá certo, Larry.
- Quem vai substituir você? Pelo menos é alguém que está com o emprego seguro.
- Angela Cook.
- Já imaginava. Os tiras vão amar.
Larry era meu amigo, mas eu não queria ficar conversando sobre essas coisas com ele naquele momento. Eu precisava pensar nas minhas opções. Me endireitei na cadeira
e dei uma olhada por cima das divisórias de um metro e pouco da baia. Ninguém mais estava me olhando. Relanceei na direção dos escritórios envidraçados dos editores.
O de Kramer era no canto e ele estava atrás do vidro, observando a redação. Quando seus olhos cruzaram com os meus, ele desviou rápido e continuou esquadrinhando
a sala.
- O que você vai fazer? - perguntou Larry.
- Não pensei a respeito, mas vou começar agora mesmo. Para onde você quer ir, Bing Wang ou Short Stop?
- Short Stop. Eu fui ao Wang ontem à noite.
- A gente se vê lá, então.
Eu já ia desligar quando Larry soltou uma última pergunta.
- Só mais uma coisa. Ele disse que número você era?
Claro. Ele queria saber quais eram suas próprias chances de sobreviver a esse derradeiro assalto de enxugamento corporativo.
- Quando entrei lá, ele começou a falar que eu quase consegui e que foi muito duro fazer as últimas escolhas. Disse que eu era o 99.
Dois meses antes, o jornal anunciou que cem empregados seriam eliminados da equipe editorial a fim de cortar custos e manter os deuses corporativos felizes. Deixei
Larry pensar por um momento sobre quem poderia ser o número 100, enquanto voltava a relancear o escritório de Kramer. Ele continuava ali, atrás do vidro.
- Então minha dica técnica é manter a cabeça abaixada, Larry. O homem do machado ali atrás do vidro está procurando o número 100 bem agora.
Apertei o botão de desligar, mas continuei com o fone na cabeça. Esperava que isso pudesse desencorajar qualquer um na redação de se aproximar. Eu não tinha dúvida
de que Larry Bernard começaria a contar aos outros repórteres que eu fora involuntariamente separado, e sabia que eles viriam prestar as devidas condolências. Eu
tinha de me concentrar para terminar uma pequena matéria. O tema era a prisão de um suspeito num complô envolvendo um assassino de aluguel, descoberto pela Divisão
de Roubos e Homicídios do Departamento de Polícia de Los Angeles (DPLA). Depois eu poderia desaparecer da sala da redação e ir direto para um boteco brindar o fim
de minha carreira no jornalismo diário. Porque isso era o que ia acontecer. Não havia nenhum jornal disponível no mercado para um repórter policial com mais de 40.
Não quando existia um suprimento infinito de mão de obra barata - toda uma fornada fresquinha de jornalistas como Angela Cook, recém-saídos da USC, da Medill, da
Columbia, todos eles superligeiros na tecnologia e dispostos a trabalhar por praticamente nada. Como o próprio jornal de papel e tinta, meu tempo chegara ao fim.
O negócio era a internet, agora. O negócio eram os uploads de hora em hora para as edições on-line e os blogs. O negócio eram os tie­-ins televisivos e as atualizações
no Twitter. O negócio era desovar histórias no telefone em vez de usá-lo para ligar para a redação. O jornal matutino podia muito bem se chamar Diário Requentado.
Tudo o que aparecia ali já fora postado na web na noite anterior.
Meu celular zumbiu em meu ouvido e eu estava prestes a adivinhar que seria minha ex­-esposa, já devidamente informada na redação em Washington, mas a identidade
da chamada mostrou caixão de veludo. Tive de admitir que estava chocado. Eu sabia que Larry teria sido incapaz de espalhar a notícia com tanta rapidez. Contrariando
meu próprio bom senso, atendi a ligação. Como esperava, era Don Goodwin, autodesignado cão de guarda e cronista dos mecanismos internos do L.A. Times.
- Acabei de saber - ele disse.
- Quando?
- Agora mesmo.
- Como? Eu mesmo só fiquei sabendo há cinco minutos.
- Vamos lá, Jack, você sabe que eu não posso revelar. Mas o lugar tá grampeado. Você acabou de sair do escritório do Kramer. Entrou pra lista trinta.
A "lista trinta" era uma referência aos que haviam partido ao longo dos anos de downsizing do jornal. Trinta era um código de macaco velho para "assunto encerrado".
O próprio Goodwin figurava nessa lista. Ele trabalhara no Times e sua carreira de editor ia de vento em popa até o dia em que uma mudança de donos provocou uma mudança
na filosofia financeira. Quando ele objetou a fazer mais com menos, puxaram seu tapete e ele acabou entrando numa das primeiras levas de acordo. Isso fazia tempo,
quando ofereciam um dinheiro substancial para quem deixasse o jornal voluntariamente - antes que a corporação de mídia dona do Times entrasse com um pedido de falência
para salvar a própria pele.
Goodwin pegou sua grana e montou um website e um blog para cobrir qualquer coisa que acontecesse dentro do Times. Ele chamou o negócio de thevelvetcoffin.com, "o
caixão de veludo", um lembrete sinistro do que o jornal costumava ser: um lugar para se trabalhar com tanto prazer que você podia acabar se acomodando e ficar até
morrer. Com as mudanças constantes de donos e chefes, as dispensas, a equipe e o orçamento cada vez menores, o lugar estava mais para um caixão de pinho vagabundo.
E Goodwin vigiava para relatar cada movimentação e cada passo em falso rumo à queda.
Seu blog passava por atualizações numa base quase diária e era ávida e secretamente lido por todo mundo na redação. Eu não tinha muita certeza se o mundo além das
espessas paredes à prova de explosivos do Times sequer se importava. O Times estava seguindo o caminho de todo jornalismo e isso não era novidade. Até mesmo o todo­-poderoso
New York Times estava sentindo no bolso o baque causado pela mudança de foco da sociedade, que, em busca de notícias e publicidade, se concentrou na internet. O
negócio sobre o qual Goodwin escrevia e que motivara sua ligação resumia-se a pouco mais que reposicionar espreguiçadeiras no convés do Titanic.
Mas dentro de duas semanas, isso não faria mais diferença para mim. Eu ia seguir em frente e já estava com a cabeça no romance começado, feito nas coxas, que tinha
em meu computador. Eu queria parir aquela criança assim que ficasse em casa. Eu sabia que dava para espremer minhas economias por pelo menos seis meses e depois
disso daria para refinanciar a hipoteca da minha casa - o que, depois da recente queda no mercado imobiliário, poderia não ser muita coisa. Eu também podia executar
um downsizing no meu carro e economizar na gasolina, comprando uma daquelas latinhas de refrigerante híbridas que todo mundo na cidade estava dirigindo.
Eu já começava a encarar o pontapé que me pôs no olho da rua como uma oportunidade. Lá no fundo, todo jornalista quer ser um romancista. É a diferença entre arte
e artesanato. Todo escritor quer ser considerado um artista e agora chegara minha vez de tentar a sorte. O embrião de romance sobre o qual eu me debruçava em casa
- cujo enredo eu não conseguia sequer lembrar exatamente - era meu bilhete de loteria.
- Você se manda hoje mesmo? - perguntou Goodwin.
- Não, me ofereceram algumas semanas se eu concordasse em treinar minha substituta. Aceitei.
- Quanta nobreza desses filhos da puta. Será que não permitem que ninguém mais tenha dignidade hoje em dia?
- Olha, melhor do que sair com uma caixa de papelão. Duas semanas de pagamento são duas semanas de pagamento.
- Mas você acha justo? Quanto tempo ficou aí? Seis, sete anos, e só te dão duas semanas?
O que ele queria de mim era uma declaração raivosa para poder usar. Eu era um repórter. Sabia como funcionava. Ele queria alguma coisa saborosa para pôr no blog.
Mas eu não estava mordendo a isca. Disse a Goodwin que não tinha mais nada a acrescentar para o Caixão de Veludo, pelo menos não até que houvesse saído pela porta
em definitivo. Ele não ficou satisfeito com essa resposta e continuou tentando extrair algum comentário de mim, até que escutei o sinal de chamada em espera no ouvido.
Olhei o identificador de chamadas e vi um xxxxx na tela. Isso me informou que a ligação vinha da central operadora, não de alguém que tivesse meu número direto.
Lorene, a telefonista da redação que eu via trabalhando na cabine, podia ter dito que eu estava ocupado. Mas, como decidiu passar a ligação em vez de anotar o recado,
isso só podia significar que a pessoa a convencera de que o telefonema era importante.
Cortei Goodwin.
- Olha, Don, não tenho nada a comentar e preciso desligar. Tenho outra ligação pra atender.
Apertei o botão antes que ele pudesse insistir pela terceira vez que eu discutisse minha situação no emprego.
- Aqui é Jack McEvoy - eu disse, depois de atender.
Silêncio.
- Alô, aqui é Jack McEvoy. Em que posso ser útil?
Me chame de preconceituoso se você quiser, mas na mesma hora identifiquei a pessoa que respondeu como mulher, negra e sem instrução.
- McEvoy? Quando é que tu vai falar a verdade, McEvoy?
- Quem fala?
- Você tá contando mentiras no seu jornal, McEvoy.
Quem dera fosse mesmo meu jornal.
- Senhora, se fizer a gentileza de me dizer quem você é e qual a sua queixa, vou escutar. Se não, eu v...
- Agora tão dizendo que o Mizo é adulto e essa merda toda. Ele não matou garota de programa nenhuma.
Na mesma hora percebi que era uma ligação daquelas. Essas ligações em favor do "inocente". A mãe ou o namorado que tinha de me dizer como minha matéria estava errada.
Eu ouvia isso o tempo todo, mas agora não ia durar muito mais. Me conformei e tentei resolver do jeito mais rápido e educado possível.
- Quem é Mizo?
- Zo. Meu Zo. Meu filho, Alonzo. Ele não é culpado de nada e não é nenhum adulto.
Eu sabia o que ela ia dizer em seguida. Eles nunca são culpados. Ninguém telefona para dizer que você sacou a história direito ou que a polícia entendeu direito
e que seu filho, seu marido ou seu namorado são culpados das acusações. Ninguém liga para você da cadeia para lhe dizer que realmente cometeu o crime. Todo mundo
é inocente. A única coisa que eu não entendi naquele telefonema foi o nome. Eu não havia escrito sobre ninguém chamado Alonzo - eu teria lembrado.
- Será que é comigo mesmo que a senhora queria falar? Que eu saiba, nunca escrevi sobre nenhum Alonzo.
- Claro que escreveu. Seu nome tá bem aqui. Você disse que ele enfiou ela no porta-malas e toda essa escrotice do caralho.
Então me veio tudo de uma vez. O assassinato do porta-malas da semana anterior. Uma notinha de 15 centímetros, porque ninguém no jornal estava muito interessado.
Traficante juvenil estrangula uma cliente e enfia o corpo no porta-malas do carro dela. Era um crime inter-racial, mas mesmo assim o jornal estava pouco se lixando,
porque a vítima era usuária de drogas. Tanto ela como o assassino foram marginalizados pelo jornal. Quando você dá uma volta pelo sul de Los Angeles para comprar
heroína ou crack, o que acontecer, aconteceu. Não espere nenhuma simpatia da Gray Lady da Spring Street. Não tem muito espaço na "Dama Cinza" para uma coisa dessas.
Quinze centímetros numa das páginas internas é tudo que você vale e tudo que você ganha.
Eu me dei conta de que não sabia o nome de Alonzo porque nunca tinham me passado, para começo de conversa. O suspeito tinha 16 anos de idade e a polícia não fornece
nome em detenção de menores.
Folheei a pilha de jornais do lado direito da minha mesa até encontrar o caderno Metropolitano de duas terças passadas. Abri na página quatro e dei uma olhada na
matéria. Não era longa o suficiente para merecer assinatura no alto. Mas a redação tinha colocado meu nome embaixo, na última linha. Se não fosse isso, eu não teria
recebido a ligação. Que sorte a minha.
- Alonzo é seu filho - eu disse. - E ele foi preso faz dois domingos pelo assassinato de Denise Babbit, é isso mesmo?
- Já falei que isso tudo é um monte de merda escrota.
- Sei, mas é dessa matéria que estamos falando. Não é?
- Isso mesmo, e quando você vai escrever a verdade?
- A verdade sendo que o seu filho é inocente.
- Isso mesmo. Você entendeu tudo errado e agora estão dizendo que ele vai ser julgado como adulto e ele tem só 16 anos. Como eles têm coragem de fazer isso com um
menino?
- Qual o sobrenome do Alonzo?
- Winslow.
- Alonzo Winslow. E a senhora é a sra. Winslow?
- Não sou, não - disse ela, indignada. - Você vai pôr meu nome no jornal com uma porrada de mentira?
- Não, senhora. Só quero saber com quem eu estou conversando, só isso.
- Wanda Sessums. Não quero meu nome em jornal nenhum. Só quero que você escreva a verdade, só isso. Você acabou com a reputação dele chamando ele de assassino daquele
jeito.
Reputação era uma palavrinha mágica para deixar um jornalista em alerta quando era o caso de corrigir equívocos cometidos pelo jornal, mas eu quase dei risada enquanto
escaneava a matéria que havia escrito.
- Eu disse que ele foi preso pelo assassinato, sra. Sessums. Isso não é mentira. Isso está correto.
- Ele foi preso, mas não foi ele. O menino não ia machucar uma mosca.
- A polícia disse que a ficha dele começa aos 12 anos, por venda de drogas. Isso também é mentira?
- Ele andava pelas quebradas, é, mas isso não quer dizer que matou ninguém, não. Pegaram ele pra Cristo e vocês compraram a história do jeito que eles contaram.
- A polícia disse que ele confessou ter matado a mulher e enfiado o corpo dela no porta-malas.
- Isso é uma mentira do cacete! Ele não fez nada disso.
Não entendi se ela estava se referindo ao assassinato ou à confissão, mas não fazia diferença. Eu precisava desligar. Olhei meu computador e vi que tinha seis e-mails
à minha espera. Todos recebidos depois que eu saí do escritório de Kramer. Os urubus digitais circulavam. Eu queria encerrar aquela ligação e passar o problema e
tudo mais para Angela Cook. Ela que se virasse com todo esse bando de malucos, ignorantes e desinformados. Que fizesse bom proveito.
- Certo, sra. Winslow, eu vou...
- É Sessums, já falei! Tá vendo como tu sempre entende tudo errado?
Ela me pegou nessa. Parei um momento antes de falar.
- Desculpe, sra. Sessums. Anotei umas coisas aqui e vou dar uma olhada. Se tiver alguma coisa que eu possa escrever sobre isso, pode ter certeza de que eu ligo pra
senhora. Enquanto isso, desejo boa sorte e q...
- Não vai nada.
- Não vou o quê?
- Não vai ligar nada.
- Eu disse que ia ligar se eu...
- Tu nem pediu meu telefone! Não tá nem aí. É só mais um filho da puta enganador que nem todo mundo, e meu menino vai pra prisão por causa de uma coisa que ele não
fez.
Ela desligou na minha cara. Fiquei sentado sem me mexer por um tempo, pensando no que ela disse a meu respeito, depois joguei o caderno de Metropolitano de volta
na pilha. Baixei os olhos para o bloquinho diante do meu teclado. Eu não anotara coisa nenhuma e aquela mulher supostamente ignorante me pegara de calça curta nessa,
também.
Recostei na cadeira e examinei as coisas que havia dentro da minha baia. Uma mesa, um computador, um telefone e duas prateleiras entupidas de pastas, cadernos e
jornais. Um dicionário encapado em couro vermelho tão velho e gasto que a palavra Webster's sumira da lombada. Minha mãe dera para mim quando eu disse que queria
ser escritor.
Era de fato tudo que me restara após vinte anos no jornalismo. Tudo que eu levaria comigo ao fim das duas semanas que possuía algum significado era o dicionário.
- Oi, Jack.
Voltei de meu devaneio e ergui os olhos para dar com o rosto adorável de Angela Cook. Não a conhecia, mas a reconheci: a recém­-contratada de uma faculdade de primeira
linha. Era o que eles chamavam de mojo - uma jornalista móvel, ágil e capacitada a reportar direto do local por qualquer meio eletrônico disponível. Ela podia enviar
texto e fotos para o website ou a edição em papel, ou vídeo e áudio para a televisão e parceiros de rádio. Tinha treinamento para fazer tudo isso, mas na prática
era tão verde quanto se podia ser. Estava provavelmente recebendo quinhentos dólares por semana a menos do que eu, e na atual economia da imprensa, isso a tornava
um recurso inestimável para a empresa. Que se danem as matérias que seriam perdidas porque ela não tinha fontes. Que se danem quantas vezes ela seria engambelada
e manipulada pelos oficiais de polícia, que não deixavam escapar uma oportunidade quando viam uma.
Mas, de qualquer modo, o trabalho para ela provavelmente não passava de um tapa­-buraco. Depois de pegar um pouco de experiência e assinar algumas matérias decentes,
ela passaria a coisas maiores, uma faculdade de Direito ou a política, quem sabe um emprego na tevê. Mas Larry Bernard tinha razão. Era uma beldade, com cabelos
loiros, olhos verdes e lábios grossos. Os tiras iam adorar vê-la zanzando pelas delegacias. Não ia levar nem uma semana para se esquecerem de mim.
- Oi, Angela.
- O sr. Kramer disse para eu vir aqui.
Estavam agindo rápido. Eu havia sido mandado embora não fazia nem 15 minutos e minha substituta já estava batendo na porta.
- Vamos fazer o seguinte - eu disse. - Hoje é sexta­-feira, Angela, e eu acabei de ser mandado embora. Então vamos deixar pra depois. A gente começa na segunda de
manhã, ok? A gente pode se encontrar para o café e daí eu te levo pra conhecer Parker Center e algumas pessoas. Tudo bem por você?
- Tudo, claro. E eu, hmm, lamento, viu?
- Obrigado, Angela, mas não tem problema. Acho que no fim das contas vai ser o melhor pra mim. Mas se ainda estiver com pena, pode aparecer no Short Stop hoje à
noite e me pagar uma bebida.
Ela sorriu e ficou sem graça, porque ela e eu sabíamos que isso não ia acontecer. Dentro e fora da redação, a nova geração não se misturava com a velha. Principalmente,
comigo. Eu já era, e ela não tinha tempo nem disposição para se solidarizar com as fileiras dos derrotados. Ir ao Short Stop nessa noite seria como visitar uma colônia
de leprosos.
- Bom, quem sabe alguma outra hora - acrescentei rapidamente. - A gente se vê na segunda de manhã, ok?
- Segunda de manhã. Eu pago o café.
Sorriu e percebi que na verdade era ela quem deveria aceitar o conselho de Kramer e tentar a tevê.
Ela virou para ir.
- Hmm, ei, Angela?
- O que foi?
- Não chama ele de sr. Kramer. Isso aqui é uma redação de jornal, não um escritório de advocacia. E a maioria desses caras na chefia não merecem ser chamados de
senhor. Lembre disso e você vai se dar bem aqui.
Ela sorriu outra vez e me deixou sozinho. Puxei a cadeira para mais perto do meu computador e abri um novo documento. Eu tinha que produzir logo uma matéria de assassinato
antes de poder ir embora da redação e afogar minhas mágoas em vinho tinto.

Só três outros repórteres apareceram para o meu velório. Larry Bernard e dois sujeitos do caderno de esportes que provavelmente teriam ido ao Short Stop, independentemente
da minha presença. Se Angela Cook tivesse dado as caras, teria sido constrangedor.
O Short Stop ficava na Sunset, em Echo Park. Isso era perto do Dodger Stadium, então presumivelmente o lugar tirara seu nome da posição no beisebol. Também ficava
perto da Academia de Polícia de Los Angeles e isso fazia dele um bar de policiais dos velhos tempos. Era o tipo de lugar sobre o qual você podia ler a respeito nos
romances de Joseph Wambaugh, onde os tiras iam para ficar entre gente da sua própria espécie e com as garotas que não os julgavam. Mas esses dias ficaram muito para
trás no passado. Echo Park estava mudando. Estava virando moda em Hollywood e os tiras se amontoavam do lado de fora do Short Stop, perto dos jovens profissionais
que circulavam pelos arredores. Os preços subiram, e os tiras se mudaram para outros pontos de encontro. Objetos policiais ainda pendiam das paredes, mas qualquer
tira que parasse ali hoje em dia estava mal­-informado.
Mesmo assim, eu gostava do lugar, porque era perto do centro e no caminho da minha casa em Hollywood.
Era cedo, então preferimos ficar no balcão. Sentamos os quatro bem na frente da tevê; eu, depois Larry, e então Shelton e Romano, os dois caras do esporte. Eu não
os conhecia muito bem, então foi bom Larry ter ficado entre a gente. Eles passaram a maior parte do tempo conversando sobre um boato de que todo mundo que cobria
os esportes no jornal estava prestes a ser realocado. A esperança deles era conseguir algo com os Dodgers ou os Lakers, que eram as principais coberturas do jornal,
mas o futebol da USC e o basquete da UCLA também estavam valendo. Eram bons redatores, como a maioria dos repórteres de esportes tem de ser. A arte de escrever sobre
esportes sempre me impressionou. Nove entre dez leitores já sabem como sua matéria termina antes de ler. Eles sabem quem ganhou, provavelmente assistiram ao jogo.
Mas leem a respeito de um modo ou de outro, e você precisa encontrar uma forma de escrever com uma visão e uma abordagem que tornem o material revigorado.
Eu gostava de cobrir a página policial porque normalmente estava contando para o leitor uma história que ele não conhecia. Eu escrevia sobre as coisas ruins que
podem acontecer. A vida no limite. O submundo que a pessoa sentada na cozinha com sua torrada e seu café nunca viveu, mas sobre o qual quer saber. Isso me dava uma
certa pica, fazia com que me sentisse uma espécie de príncipe da cidade quando voltava para casa em meu carro, à noite.
E eu sabia, sentado ali bebericando uma taça de vinho tinto barato, que ia sentir mais falta disso do que de qualquer outra coisa no trabalho.
- Sabe o que me disseram? - perguntou Larry, virando a cabeça na minha direção, para guardar segredo dos caras de esporte.
- Não, o quê?
- Que na venda de um dos jornais de Baltimore, teve um cara que foi demitido e mandou, no último dia, uma matéria que depois descobriram ser completamente falsa.
Ele simplesmente inventou tudo.
- E saiu?
- Saiu, só ficaram sabendo quando o telefone começou a tocar sem parar no dia seguinte.
- Sobre o que era a história?
- Sei lá, mas foi tipo um enorme "foda-se" pra chefia.
Dei um gole no vinho e pensei a respeito.
- Na verdade, não foi - eu disse.
- Como assim? Claro que foi.
- Quero dizer que os editores dele provavelmente fizeram uma reunião, balançaram a cabeça e disseram "a gente se livrou do cara certo". Se você quer dizer "foda-se",
então precisa fazer alguma coisa que os leve a pensar que foi uma cagada deixar você ir. Que mostre pra eles que deviam ter escolhido outra pessoa.
- Sei, é isso que você vai fazer?
- Não, cara, vou simplesmente me mandar com calma essa noite. Vou publicar um romance e esse vai ser meu foda-se. Pra falar a verdade, esse é o título provisório.
Foda­-se, Kramer.
- Firmeza!
Bernard riu e mudamos de assunto. Mas, embora eu falasse sobre outras coisas, não parava de pensar no foda-se. Eu ficava pensando no romance que iria retomar e finalmente
terminar. Queria ir para casa e começar a escrever. Achei que talvez me ajudasse a superar as duas próximas semanas se eu tivesse um motivo para voltar para casa
toda noite.
Meu celular tocou e vi que era minha ex. Eu sabia que ia precisar enfrentar isso mais cedo ou mais tarde. Me afastei do balcão empurrando o banquinho e saí para
o estacionamento, onde estaria mais silencioso.
Em Washington eram três horas adiantado, mas o número na tela era o da mesa dela.
- Keisha, por que você está trabalhando a uma hora dessas?
Olhei meu relógio. Eram quase sete, quase dez, por lá.
- Estou atrás do Post numa matéria, esperando me ligarem de volta.
O céu e o inferno de trabalhar para um jornal da Costa Oeste era que o último deadline só chegava três horas depois que o Washington Post e o New York Times - os
principais concorrentes nacionais - tinham ido para a cama. Isso significava que o L.A. Times sempre tinha uma chance de não ficar para trás nas notícias ou de estragar
os furos deles. Ao raiar do dia, o L.A. Times podia estampar para os leitores uma matéria importante com as informações mais quentes e recentes. Isso também tornava
a edição on-line uma leitura obrigatória nos corredores do governo, a 5 mil quilômetros de Los Angeles.
Como uma das mais novas repórteres da redação em Washington, Keisha Russel ficara com o turno da noite. Ela era normalmente encarregada de ir atrás de matérias dos
outros jornais e verificar os últimos detalhes e acontecimentos.
- Que merda - eu disse.
- Não é tão ruim quanto o que eu soube que aconteceu hoje com você.
Balancei a cabeça.
- É, me cortaram, Keish.
- Fiquei muito triste, Jack.
- É, eu sei. Todo mundo ficou. Valeu.
Deveria ter ficado óbvio que eu estava na mira quando não me mandaram para a capital com ela dois dias antes, mas essa era outra história. Um silêncio surgiu entre
nós e tentei entrar na brecha.
- Vou retomar meu romance e acabar - eu disse. - Tenho um pouco de grana guardada e acho que consigo algum refinanciando a hipoteca da casa. Acho que dá pra aguentar
pelo menos um ano. Pra mim, é agora ou nunca.
- É isso aí - disse Keisha, fingindo entusiasmo. - Vai firme.
Eu sabia que ela encontrara o manuscrito um dia, quando a gente ainda estava junto, e havia lido, mas nunca admitira, porque se o fizesse, teria sido obrigada a
me dizer o que achou. Ela não teria conseguido mentir a respeito.
- Você pretende ficar em Los Angeles? - ela perguntou.
Essa era uma boa pergunta. O romance estava ambientado no Colorado, onde eu fora criado, mas eu adorava a energia de Los Angeles e não queria deixar a cidade.
- Ainda não pensei a respeito. Não quero vender a casa. O mercado continua uma bosta. Prefiro fazer um refinanciamento, se precisar, e esperar um pouco. De qualquer
jeito, é muita coisa pra pensar assim de repente. No momento, só estou comemorando o fim.
- Você está no Red Wind?
- Não, no Short Stop.
- Quem está aí?
Isso foi humilhante.
- Hmm, você sabe, a turma de sempre. Larry e uns caras do Metropolitano, um pessoal dos Esportes.
Levou uma fração de segundo para ela dizer alguma coisa e, com essa hesitação, ela entregou que sabia que eu estava aumentando as coisas, ou até mentindo deslavadamente.
- Você vai ficar legal, Jack?
- Vou, claro. É só que... Só preciso pensar com...
- Jack, desculpa, é uma das ligações que eu estava esperando.
A voz dela denunciava certa urgência. Se deixasse passar, podia acontecer de não ter outra.

- Atende aí! - eu disse rápido. - A gente conversa depois.
Desliguei o celular, agradecido por algum político em Washington ter me poupado do constrangimento maior de discutir minha vida com minha ex­-esposa, cuja carreira
alçava voo mais alto a cada dia, enquanto a minha afundava como o sol atrás da paisagem fumacenta de Hollywood. Enfiando o telefone de volta no bolso, eu me perguntei
se ela não acabara de inventar essa desculpa da ligação, numa tentativa de poupar a si mesma do constrangimento.
Voltei para o bar e decidi beber a sério, pedindo um Irish Car Bomb. Virei a bebida, e o Jameson desceu queimando como óleo quente. Fui ficando cada vez mais para
baixo conforme assistia aos Dodgers começarem um jogo contra os odiosos Giants, o rebatedor deles acertando tudo no primeiro inning.
Romano e Shelton foram os primeiros a pedir arrego e depois, no terceiro inning, até Larry Bernard já bebera o suficiente e tivera o suficiente daquela conversa
confusa sobre o futuro da imprensa escrita. Ele deslizou do seu banco e pousou a mão no meu ombro.
- Graças a Deus, antes ele do que eu - ele disse.
- O que foi? - eu disse.
- Podia ter sido eu. Podia ter sido qualquer um naquela redação. Mas você foi o escolhido porque ganhava uma grana preta. Você chegou aqui faz sete anos, o Mister
Bestseller e Larry King Live e coisa e tal. Superdimensionaram seu salário e daí você ficou na mira deles. Me surpreendi de ter durado tanto, pra falar a verdade.
- Tanto faz. Isso não melhora as coisas.
- Eu sei, mas eu tinha que dizer. Vou nessa. Você está indo pra casa?
- Vou tomar mais uma.
- Sai fora, cara, você já tomou demais.
- Só mais uma. Vou ficar legal. Se não, pego um táxi.
- Cuidado com o bafômetro, cara. Só faltava uma dessas pra você.
- Sei, o que é que eles vão poder fazer comigo? Me pôr na rua?
Ele balançou a cabeça como se eu houvesse apresentado um argumento e tanto, depois deu um tapa nas minhas costas, um pouco forte demais, e saiu lentamente do bar.
Fiquei sentado sozinho assistindo ao jogo. Na bebida seguinte, deixei pra lá a Guinness e o Baileys e fui direto pro Jameson com gelo. Daí tomei mais dois ou três
em vez de só aquele um. E pensei em como isso estava longe de ser meu fim de carreira do modo como eu tinha imaginado. Eu achava que, nessa altura da vida, estaria
escrevendo artigos de 10 mil palavras para a Esquire e a Vanity Fair. Que elas estariam vindo atrás de mim, e não eu atrás delas. Que teria chegado minha vez de
escolher sobre o que escrever.
Pedi mais uma dose e o barman fez um trato comigo. Ele só ia esguichar uísque no meu gelo se eu lhe desse as chaves do carro. Pareceu uma boa proposta e fechei negócio.
Com o uísque queimando meu couro cabeludo de dentro para fora, pensei na história de Larry Bernard sobre Baltimore e o derradeiro foda-se. Com um movimento da cabeça,
concordei comigo mesmo algumas vezes e ergui o copo em um brinde ao repórter que, em sobrevida, fizera aquele negócio das bolas de tênis.
E então outra ideia começou a queimar e cauterizou sua marca no meu cérebro. Uma variação do foda­-se de Baltimore. Uma ideia com alguma integridade e tão indelével
quanto um nome gravado à água-forte num troféu. Com o cotovelo no tampo do balcão, ergui o copo novamente. Mas, dessa vez, num brinde a mim mesmo.
- A morte é minha área - sussurrei para mim mesmo. - Ganho a vida com isso. Forjo minha reputação profissional em cima disso.
Palavras pronunciadas antes, mas não como meu próprio discurso fúnebre. Balancei a cabeça para mim mesmo e vi perfeitamente como ia ser minha saída. Eu escrevera
pelo menos mil histórias de assassinato no meu tempo. Agora escreveria mais uma. Uma história que ficaria como a lápide da minha carreira. Uma história que faria
com que não se esquecessem de mim depois da minha saída.

O fim de semana foi uma bruma de álcool, raiva e humilhação conforme eu me atracava com um novo futuro que não era futuro algum. Após um breve interlúdio de sobriedade
no sábado de manhã, abri o arquivo contendo meu romance em andamento e comecei a ler. Logo vi o que minha ex­-esposa devia ter visto muito tempo atrás. O que eu
deveria ter visto muito tempo atrás. Aquilo não tinha potencial nenhum, e eu estava enganando a mim mesmo se achasse que tinha.
A conclusão foi que eu teria de começar do zero se queria seguir por esse caminho, e só de pensar na ideia já me sentia fraco. Quando tomei um táxi e voltei ao Short
Stop para pegar meu carro, acabei ficando por lá. Fechei o lugar no domingo de manhã, assistindo aos Dodgers perderem mais uma e contando ebriamente a completos
estranhos sobre que merda completa eram o Times e todo o meio jornalístico.
Levou todo o tempo até a segunda de manhã para conseguir me aprumar. Entrei na redação 45 minutos atrasado depois de finalmente pegar meu carro no Short Stop e ainda
podia sentir o cheiro do álcool exalando por meus poros.
Angela Cook já estava sentada diante da minha mesa numa cadeira que pegara emprestada em uma das baias vazias. Havia um bocado delas, agora, desde que começaram
as vendas de controle acionário e os cortes de pessoal.
- Desculpe o atraso, Angela - eu disse. - Foi um fim de semana meio perdido. A começar pela festa na sexta. Você devia ter aparecido.
Ela sorriu timidamente, como que sabendo que não fora festa nenhuma, só um velório do eu sozinho.
- Peguei um café pra você, mas agora já deve ter esfriado - ela disse.
- Obrigado.
Peguei o copo que ela indicou e de fato estava frio. Mas o bom da cafeteria do Times era que você podia se servir de novo de graça - pelo menos isso eles ainda não
haviam mudado.
- Vamos fazer o seguinte - eu disse. - Deixa eu dar uma olhada se não tem nada acontecendo no editorial e aí a gente pode pegar outro café e conversar sobre o seu
trabalho por aqui.
Ela ficou esperando e eu me afastei das baias, seguindo na direção do editorial do Metropolitano. No caminho, parei na central de ligações. A central parecia uma
casinha de salva-vidas cravada no meio da redação, erguendo-se no alto, de modo que as operadoras tivessem visão de toda a enorme sala e pudessem ver quem estava
presente e livre para receber uma ligação. Me aproximei para que uma das operadoras olhasse para baixo e me visse.
Era Lorene, que estava de serviço na sexta anterior. Ela ergueu o dedo, sinalizando que eu esperasse. Passou rapidamente duas ligações e depois puxou o lado do headset
que estava no ouvido esquerdo.
- Não tenho nada pra você, Jack - ela disse.
- Eu sei. Quero perguntar sobre sexta­-feira. Você transferiu uma ligação pra mim no fim da tarde, de uma mulher chamada Wanda Sessums. Será que tem algum registro
do número do telefone dela? Esqueci de pedir.
Lorene pôs o fone de volta no lugar e atendeu outra ligação. Então, sem liberar o ouvido, disse que não tinha o número. Não escrevera em nenhum lugar na hora e o
sistema mantinha uma lista eletrônica só dos últimos quinhentos números que haviam chamado. Fazia mais de dois dias desde que Wanda Sessums me procurara e a central
recebia cerca de mil ligações diárias.
Lorene perguntou se eu ligara para o 411 a fim de tentar obter o número. Às vezes, a gente se esquece do ponto de partida mais básico. Agradeci e rumei para o editorial.
Eu já havia ligado para Informações em casa e sabia que não havia nenhuma Wanda Sessums nas listas.
A editora de cidade no momento era uma mulher chamada Dorothy Fowler. Era um dos cargos mais efêmeros do jornal, preenchido tanto por motivos políticos como práticos,
e que parecia ter uma porta giratória atrelada a ele. Fowler cobrira o governo com uma eficiência a toda prova e fazia apenas oito meses que exercitava seus talentos
profissionais comandando os repórteres de cidade. Eu lhe desejava toda sorte, mas achava quase impossível que ela se saísse bem, considerando todos os cortes nos
recursos e as baias vazias na redação.
Fowler tinha um pequeno escritório na fileira de vidraças, mas preferia permanecer como uma editora do povo. Em geral, era encontrada em uma mesa à frente da formação
de mesas em que todos os ases - os editores de cidade assistentes - ficavam. Isso era conhecido como balsa, porque todas as mesas haviam sido juntadas como uma espécie
de flotilha que usasse a força do grupo para rechaçar os tubarões.
Todos os repórteres de cidade eram designados a um ás como primeiro nível de direção e gerência. Meu ás era Alan Prendergast, o encarregado dos repórteres que cobriam
delegacias e tribunais. Por causa disso, ele chegava mais tarde, em geral lá pelo meio­-dia, já que as notícias envolvendo assuntos policiais e judiciais na maioria
das vezes aconteciam no final da tarde.
Isso significava que a primeira pessoa a quem eu me reportava no dia normalmente era Dorothy Fowler ou o vice­-editor de cidade, Michael Warren. Eu sempre fiz de
tudo para que fosse Fowler, porque ela ocupava uma posição mais alta e porque Warren e eu nunca nos demos bem. Isso talvez tivesse a ver com o fato de que, muito
antes de chegar ao Times, eu trabalhara para o Rocky Mountain News, de Denver, cruzara com Warren e competira com ele numa matéria importante. Ele havia agido na
ocasião de forma antiética e por isso nunca pude confiar nele como editor.
Dorothy estava com os olhos colados na tela e tive de chamar seu nome para conseguir sua atenção. Não havíamos conversado desde que eu recebera o bilhete azul, de
modo que, na mesma hora, ela ergueu os olhos para mim com uma expressão de solidariedade. A mesma que se reserva a alguém que está com câncer no pâncreas.
- Vamos ali dentro, Jack - ela disse.
Ela se levantou, deixou a balsa e foi na direção de seu escritório raramente usado. Sentou atrás de sua mesa, mas eu continuei de pé, porque sabia que era jogo rápido.
- Só queria dizer que vamos sentir muita falta sua por aqui, Jack.
Balancei a cabeça, em sinal de agradecimento.
- Tenho certeza de que a Angela vai pegar a manha rapidinho.
- Ela é muito boa e cheia de gás, mas não tem muitos recursos. Pelo menos não ainda, e esse é o problema, não é mesmo? O jornal deveria ser o cão de guarda da comunidade
e a gente está entregando ele na mão dos filhotinhos. Pensa no ótimo jornalismo que a gente já viu. As denúncias de corrupção, o bem do público. Quem vai fazer isso
agora, com todos os jornais do país se desmanchando? O governo? Claro que não. A tevê, os blogs? Esquece. Um amigo meu que cobriu a venda do controle acionário na
Flórida diz que, sem os jornais pra ficar de olho, a corrupção vai ser a nova indústria de crescimento exponencial.
Ela fez uma pausa, como que para ponderar sobre o triste estado das coisas.
- Olha, não me leve a mal. Só estou deprimida. Angela é ótima. Vai fazer um bom trabalho e daqui a três ou quatro anos vai dominar a área do jeito que você domina
hoje. Mas a questão é que, daqui até lá, quantas histórias ela vai deixar passar? E quantas nunca teriam passado por você?
Apenas dei de ombros. Essas eram perguntas que importavam para ela, porém não mais para mim. Em 12 dias eu estaria fora.
- Bom - ela disse, após um silêncio prolongado. - Desculpe. Sempre gostei de trabalhar com você.
- Bom, ainda tenho algum tempo. Quem sabe eu não descubro alguma coisa quente antes de sair.
Ela abriu um sorriso.
- Isso seria ótimo!
- Você sabe se tem alguma coisa acontecendo hoje?
- Nada importante - disse Dorothy. - Vi na overnote que o chefe de polícia vai se encontrar com líderes negros pra falar de novo sobre crimes de viés racial. Mas
a gente já se encheu disso.
- Vou levar Angela para Parker Center e ver se a gente encontra alguma coisa.
- Ótimo.
Alguns minutos mais tarde, Angela Cook e eu pegamos um novo café e sentamos em uma mesa na cafeteria. Era no primeiro andar, no espaço em que as antigas rotativas
haviam funcionado por tantas décadas antes de começarem a imprimir o jornal fora dali. A conversa com Angela foi formal. Havíamos sido brevemente apresentados seis
meses antes, quando ela era recém­-contratada e Fowler passou de baia em baia, apresentando o lugar. Mas desde então eu nunca trabalhei com ela em uma matéria, nem
almocei, nem tomei café com ela, ou tampouco a vi num dos pontos de encontro prediletos dos repórteres mais velhos na redação.
- De onde você é, Angela?
- Tampa. Estudei na Universidade da Flórida.
- Boa faculdade. Jornalismo?
- É, fiz o mestrado lá.
- Já cobriu a página policial alguma vez?
- Antes de voltar pro mestrado eu trabalhei dois anos em St. Pete. Passei um ano com a seção policial.
Dei um gole no café, bem o que eu precisava. Meu estômago estava vazio porque não conseguira engolir nada em 24 horas.
- St. Petersburg? Como são as coisas por lá, uma dúzia de homicídios por ano?
- Com sorte.
Ela sorriu para a ironia disso. Um repórter criminal sempre espera um bom assassinato para escrever a respeito. A boa sorte de um repórter é a má sorte de alguma
outra pessoa.
- Bem - eu comecei -, se a gente fica abaixo de quatrocentos por aqui, o ano está sendo bom. Muito bom. Los Angeles é o lugar pra se estar se você quer trabalhar
com crimes ou contar histórias de homicídio. Se você está apenas ganhando tempo até pintar uma outra área, provavelmente não vai gostar.
Ela balançou a cabeça em sinal negativo.
- Não estou preocupada com a próxima área. É isso que eu quero. Quero escrever reportagem criminal. Quero escrever livros sobre o assunto.
Ela parecia sincera. Parecia comigo - num passado muito remoto.
- Ótimo - eu disse. - Vou levar você para conhecer umas pessoas em Parker Center. A maioria, detetives. Eles vão ajudar, mas só se confiarem em você. Se não, você
não vai conseguir nada além de press release.
- Como eu faço pra conseguir isso, Jack? Que confiem em mim?
- Você sabe. Escrevendo reportagem. Sendo imparcial, sendo precisa. Você sabe o que fazer. A confiança é construída com base no desempenho. O que você não pode esquecer
é que os tiras nesta cidade têm uma rede impressionante. A notícia sobre um jornalista se espalha rápido. Se você for uma pessoa imparcial, todo mundo vai saber.
Se você foder com a vida de um deles, todo mundo vai ficar sabendo e você não vai mais conseguir entrar em lugar nenhum.
Ela pareceu constrangida com minha boca suja. Era melhor se acostumar, se queria lidar com os tiras.
- Tem mais uma coisa - eu disse. - Eles têm uma nobreza oculta. Os melhores deles, quero dizer. E se você der um jeito de pôr isso nas suas matérias, vai conquistar
eles pra sempre. Então procure pelos detalhes marcantes, os pequenos momentos de nobreza.
- Ok, Jack, vou fazer isso.
- Então você está no caminho certo.

Quando passávamos de um em um fazendo as apresentações na sede da polícia em Parker Center, caiu no nosso colo uma bela história de homicídio na Unidade de Abertos/Não
Resolvidos. O estupro e assassinato de uma mulher de idade por um rapaz de 20 anos fora elucidado quando o DNA da vítima, coletado em 1989, foi descoberto em arquivos
do caso e verificado junto ao banco de dados de crimes sexuais do Departamento de Justiça. O resultado bateu, o que eles chamavam de cold hit, um achado no arquivo
morto. O DNA coletado da vítima pertencia a um sujeito que, no momento, cumpria pena em Pelican Bay por tentativa de estupro. Os investigadores de arquivo morto
iam montar um caso e indiciar o homem antes que surgisse qualquer possibilidade de condicional. Não era nenhuma bomba, porque o cara já estava atrás das grades,
mas valia alguma coisa. As pessoas gostam de ler histórias que reforçam a ideia de que gente ruim nem sempre se safa. Principalmente quando a economia está na pior
e é fácil enveredar pelo cinismo.
Quando a gente voltou para a redação, pedi que Angela escrevesse a matéria - sua primeira na área - enquanto eu tentava rastrear Wanda Sessums, minha leitora raivosa
da sexta anterior.
Como não havia qualquer registro da ligação na central telefônica do Times e uma verificação rápida no auxílio à lista não encontrara nenhuma Wanda Sessums nos códigos
de área de Los Angeles, liguei em seguida para o detetive Gilbert Walker, no Departamento de Polícia de Santa Monica. Ele foi o inves­tigador­-chefe no caso que
resultou na prisão de Alonzo Winslow pelo assassinato de Denise Babbit. Acho que é o que se poderia chamar de telefonema no escuro. Eu não tinha qualquer relacionamento
com Walker, já que Santa Monica dificilmente surgia no radar das notícias. O lugar era uma cidade litorânea razoavelmente segura entre Venice e Malibu, com um problema
premente de sem­-tetos, mas nada sério em homicídios. O departamento de polícia investigava apenas alguns homicídios todo ano, e a maioria deles não era digna de
ganhar as páginas policiais. Com grande frequência, eram casos em que alguém tentava se livrar do corpo, como o de Denise Babbit. O assassinato ocorria em algum
outro lugar - como o extremo sul de Los Angeles - e os policiais locais ficam encarregados de dar um jeito na bagunça.
Meu telefonema pegou Walker na mesa dele. Sua voz soou bastante amigável até o momento em que me identifiquei como um repórter do Times. Daí esfriou. Isso acontecia
com frequência. Eu passara sete anos na seção policial e havia inúmeros tiras em vários departamentos em quem eu confiava como fontes e até como amigos. Num aperto,
eu conseguia abrir um canal de contato. Mas às vezes não dá para escolher quem vai ser seu canal. A moral da história é que você nunca consegue ter todo mundo jogando
a seu favor. A mídia e a polícia nunca estão em bons termos. A mídia vê a si mesma como o cão de guarda público. E ninguém, nem a polícia, gosta de gente observando
por cima do ombro. Havia uma brecha entre as duas instituições na qual a confiança sumira muito antes até da minha chegada. Consequentemente, isso tornava as coisas
difíceis para um repórter policial rejeitado e excluído que só precisava de uns poucos fatos para completar sua história.
- Em que posso ajudar? - disse Walker secamente.
- Estou tentando achar a mãe de Alonzo Winslow e imaginei que você talvez pudesse me ajudar.
- E quem é Alonzo Winslow?
Eu já ia dizendo Sem essa, detetive, quando me dei conta de que supostamente não tinha como eu saber o nome do suspeito. Havia leis sobre liberar o nome de menores
acusados de crimes.
- Seu suspeito no caso Babbit.
- Como você sabe esse nome? Não estou confirmando que está correto.
- Entendo isso, detetive. Não estou pedindo nenhuma confirmação. Eu sei que o nome é esse. A mãe dele me ligou na sexta e me disse. O problema é que ela não me deu
o número do telefone e só estou tentando retornar a...
- Tenha um bom dia - disse Walker, me cortando e desligando o telefone.
Recostei em minha cadeira de escritório, lembrando a mim mesmo que eu precisava dizer a Angela Cook que a nobreza previamente mencionada não se aplicava a todos
os tiras.
- Babaca - falei em voz alta.
Batuquei com os dedos na mesa até me ocorrer um novo plano - o que eu deveria ter empregado logo de cara.
Peguei uma linha e liguei para um detetive que era uma fonte no Escritório Sul do Departamento de Polícia de Los Angeles (DPLA), e que eu sabia que estivera envolvido
na prisão de Winslow. O caso tivera origem na cidade de Santa Monica porque a vítima fora encontrada no porta-malas de seu próprio carro em um estacionamento próximo
ao píer. Mas o DPLA ficou envolvido quando evidências na cena do crime levaram a Alonzo Winslow, um morador do sul de Los Angeles.
Seguindo o protocolo estabelecido, Santa Monica contatou Los Angeles, e uma equipe de detetives do Escritório Sul intimamente familiarizada com o terreno foi usada
para localizar Winslow, levá-lo sob custódia e depois entregá­-lo em Santa Monica. Napoleon Braselton foi um desses sujeitos do Escritório Sul. Então liguei para
ele e fui cem por cento franco. Bom, quase.
- Lembra da prisão de duas semanas atrás, por causa da garota no porta-malas? - perguntei.
- Lembro, era de Santa Monica - ele disse. - A gente só ajudou.
- Pois é, eu sei. Vocês levaram Winslow pra eles. É por isso que estou ligando.
- Ainda é o caso deles, cara.
- Eu sei, mas não consigo entrar em contato com Walker por lá e não conheço mais ninguém no departamento. Mas conheço você. E quero perguntar uma coisa sobre a prisão,
não sobre o caso.
- O que foi, alguma queixa? A gente não encostou a mão no moleque.
- Não, detetive, queixa nenhuma. Até onde eu sei, ele foi detido dentro dos conformes. É só que estou tentando descobrir onde fica a casa do garoto. Eu queria dar
uma olhada no lugar onde ele mora, talvez conversar com a mãe.
- Tudo bem, mas ele estava morando com a avó.
- Tem certeza?
- A informação que recebemos era de que ele estava morando com a avó. A gente foi o lobo mau batendo na porta da vovozinha. Nenhum pai à vista e a mãe indo e vindo,
morando nas ruas. Drogas.
- Ok, então vou conversar com a avó. Onde é o lugar?
- Você só vai dar uma passadinha pra dizer alô?
Ele disse isso em um tom de descrença e eu soube que era por eu ser branco e certamente nem um pouco bem-vindo no território de Alonzo Winslow.
- Não se preocupe, vou levar alguém comigo. A união faz a força.
- Boa sorte. Só não me venha ser baleado antes do fim do meu turno, às quatro.
- Vou fazer o possível. Qual o endereço, você lembra?
- Fica em Rodia Gardens. Peraí.
Ele pousou o telefone na mesa enquanto procurava o endereço exato. Rodia Gardens era um conjunto habitacional em Watts tão imenso que mais parecia uma cidade. Uma
cidade perigosa. O nome vinha de Simon Rodia, o artista que criara uma das maravilhas da cidade. As Watts Towers. Mas não havia nada de maravilhoso acerca de Rodia
Gardens. Era o tipo de lugar onde pobreza, drogas e crime imperavam em um ciclo recorrente por décadas. Inúmeras gerações de famílias vivendo ali, incapazes de sair
e se libertar. Muitos deles cresceram sem nunca terem ido à praia, entrado em um avião ou até mesmo visto um filme no cinema.
Braselton voltou e me forneceu o endereço completo, mas disse que não tinha número de telefone. Depois eu perguntei se ele sabia como a avó se chamava e ele me deu
o nome que eu já possuía, Wanda Sessums.
Na mosca. Minha leitora. Ou ela mentira acerca de ser a mãe do suspeito ou a polícia estava mal-informada. De um jeito ou de outro, eu agora tinha um endereço e,
com um pouco de sorte, em breve daria um rosto à voz que me repreendera na sexta anterior.
Depois de terminar a ligação com Braselton, me levantei da minha baia e dei um pulo no departamento de fotos. Vi um editor de fotos chamado Bobby Azmitia dispensando
tarefas e perguntei se não teria algum fotógrafo na rua, por perto. Ele baixou o rosto para seu registro de pessoal e disse o nome de dois deles que estavam em seus
carros à cata de alguma wild art - fotografias sem ligação com qualquer notícia em particular, que podiam ser usadas para emprestar um colorido a uma primeira página.
Eu conhecia os dois fotógrafos e um deles era negro. Perguntei a Azmitia se Sonny Lester estava livre para pegar a rodovia 110 comigo e ele concordou em me designar
o homem. Combinamos de ele me pegar na frente do saguão em 15 minutos.
De volta à redação, verifiquei como Angela estava se saindo na matéria da Unidade de Abertos/Não Resolvidos e depois fui até a balsa para conversar com meu ás. Prendergast
estava ocupado, redigindo o primeiro planejamento de matérias do dia. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ele disse, "Já recebi um slug da Angela".
Um slug e um lide de planejamento eram um título em uma só palavra para uma matéria e um parágrafo de descrição que eram colocados no planejamento global de matérias.
Assim, quando os editores sentassem em volta da mesa na reunião diária da redação, eles saberiam o que estava sendo produzido para as edições eletrônica e impressa
e poderiam discutir o que era uma matéria importante e o que não era, e como tudo seria arranjado.
- É, ela já pegou o jeito de como fazer - eu disse. - Só queria que você soubesse que estou indo pro sul com um fotógrafo.
- Atrás do quê?
- Ainda não tem nada. Mas pode ser que eu tenha alguma coisa pra contar mais tarde.
- Ok.
Prendo sempre me dava liberdade para agir. Não que isso ainda fizesse alguma diferença, agora. Mas até mesmo antes de eu virar uma vítima do downsizing ele sempre
fora adepto da abordagem da não interferência em lidar com os repórteres. A gente se dava muito bem. Ninguém passava ele para trás. Eu teria de prestar conta do
meu tempo e do que estava procurando. Mas ele sempre me dava uma chance de juntar a história toda antes de colocá-lo a par dos fatos.
Me afastei da balsa e fui para o vão do elevador.
- Tem trocado aí? - escutei a voz de Prendergast me chamando às minhas costas.
Acenei com a mão por cima da cabeça sem olhar para trás. Prendergast sempre falava isso para mim quando eu saía da cidade para ir atrás de uma história. Era uma
fala de Chinatown. Eu não usava mais telefone público - nenhum repórter usava -, mas a ideia era clara. Mantenha contato.
O saguão do globo era a entrada imponente do prédio do jornal, na esquina da First com a Spring. Um globo de latão do tamanho de um Volkswagen girava em um eixo
metálico no centro do lugar. Os inúmeros escritórios e postos avançados do Times ficavam permanentemente entalhados nos continentes em relevo, a despeito do fato
de muitos deles terem sido fechados por questões financeiras. As paredes de mármore eram adornadas com fotos e placas indicando os diversos momentos marcantes na
história do jornal, os prêmios Pulitzer conquistados e as equipes que os conseguiram, bem como os correspondentes mortos no cumprimento do dever. Era um museu orgulhoso,
tal como o jornal inteiro não tardaria a ser. Dizia-se que o prédio estava à venda.
Mas tudo que me importava eram os próximos 12 dias. Eu tinha um último prazo a cumprir e uma última matéria de homicídio para escrever. Eu só precisava que aquele
globo continuasse girando até lá.
Sonny Lester aguardava em um carro da empresa quando eu empurrei a pesada porta da frente. Entrei e lhe disse para onde estávamos indo. Ele fez uma ousada meia­-volta
para pegar a Broadway e depois tomou a entrada da rodovia assim que passou o prédio do tribunal. Logo estávamos na 110, a caminho do sul de Los Angeles.
- Imagino que não seja coincidência eu ter sido designado pra essa matéria - ele disse depois que nos afastamos do centro.
Olhei para ele e dei de ombros.
- Sei lá - eu disse. - Pergunta pro Azmitia. Eu falei pra ele que precisava de alguém e ele me indicou você.
Lester balançou a cabeça como se não acreditasse, mas eu não dava a mínima. Os jornais têm uma tradição forte e orgulhosa de combate à segregação e à discriminação
racial e coisas do tipo. Mas existe também uma tradição prática de usar a diversidade da redação em sua própria vantagem. Se um terremoto sacode Tóquio, mande um
repórter japonês. Se uma atriz negra ganha o Oscar, mande um repórter negro para entrevistá-la. Se a Patrulha da Fronteira encontra 24 imigrantes ilegais na traseira
de uma caminhonete em Calexico, mande seu melhor repórter que fale espanhol. É assim que você consegue a matéria. Lester era negro e sua presença podia me fornecer
segurança quando eu entrasse no conjunto habitacional. Era minha única preocupação. Eu tinha uma história para cobrir e não estava interessado em me mostrar politicamente
correto na situação.
Lester me fez perguntas sobre o que estávamos fazendo e lhe expliquei o melhor que pude. Mas até ali, eu não tinha muita coisa para dizer. Contei a ele que a mulher
que íamos encontrar se queixara comigo da matéria em que seu filho era considerado assassino. Eu esperava encontrá-la e lhe dizer que tentaria desmentir as acusações
contra ele se ela e seu neto concordassem em cooperar comigo. Não contei qual era o verdadeiro plano. Imaginei que era esperto o suficiente para acabar juntando
todas as peças e perceber sozinho.
Lester balançou a cabeça quando eu terminei e seguimos pelo resto do trajeto em silêncio. Entramos em Rodia Gardens cerca de uma da tarde, e o lugar estava tranquilo.
As aulas ainda não haviam terminado, e o comércio de drogas só pegava no breu de verdade depois de escurecer. Os traficantes, viciados e estupradores ainda estavam
todos dormindo.
O conjunto habitacional era um labirinto de prédios de dois andares pintados em dois tons. Marrom e bege na maioria dos edifícios. Verde­-limão e bege no resto.
Não havia paisagismo de espécie alguma para enfeitar a construção, pois arbustos e árvores podiam ser usados como esconderijo de drogas e armas. No todo, o conjunto
tinha a aparência de uma comunidade recém­-construída, em que o acabamento ainda estava por ser feito. Apenas a um olhar mais detido ficava claro que não era tinta
fresca que havia nas paredes e que aqueles prédios não eram novos.
Encontramos o endereço fornecido por Braselton sem dificuldade. Era um apartamento de esquina no segundo andar, com a escada no lado direito do prédio. Lester tirou
uma bolsa enorme e pesada de equipamentos fotográficos do carro e o trancou.
- Você não vai precisar disso tudo se a gente conseguir entrar - eu disse. - Se ela deixar você tirar uma foto, precisa fazer isso rápido.
- Não estou nem aí se eu não tirar foto nenhuma. Só não vou deixar minhas coisas no carro.
- Entendi.
Quando chegamos ao segundo andar, percebi que a porta da frente do apartamento estava aberta, atrás de uma tela de proteção com barras de ferro. Me aproximei e dei
uma olhada antes de bater. Eu não vira uma alma nos estacionamentos ou nos pátios do conjunto. Era como se o lugar estivesse completamente vazio.
Bati.
- Senhora Sessums?
Aguardei e logo escutei uma voz através da tela. Reconheci como a voz da sexta­-feira.
- Quem tá aí?
- É Jack McEvoy. A gente conversou na sexta. Do Times.
A tela estava imunda de anos de sujeira e poeira encrostadas. Não dava para olhar dentro do apartamento.
- O que você tá fazendo aqui, garoto?
- Vim conversar com a senhora. No fim de semana pensei bastante no que a senhora me disse.
- Como tu me achou?
Pude perceber, pela proximidade de sua voz, que agora ela estava do outro lado da porta de proteção. Através da sujeira da tela, tudo o que conseguia ver era sua
silhueta.
- Porque eu sabia que o Alonzo foi preso aqui.
- Quem é esse aí com você?
- Esse é o Sonny Lester. Ele trabalha comigo no jornal. Senhora Sessums, estou aqui porque pensei sobre o que a senhora falou e quero dar uma investigada no caso
do Alonzo. Se ele for inocente, quero ajudar a tirá-lo de lá.
Com ênfase no se.
- Claro que ele é inocente. Ele não fez nada.
- A gente pode entrar e conversar a respeito? - eu disse rápido. - Quero ver o que posso fazer.
- Pode entrar, mas nada de foto. Não senhor, sem esse negócio de foto.
A porta de grade abriu um palmo, eu levei a mão ao puxador e a abri até o fim. Na mesma hora, estimei que a mulher na entrada era avó de Alonzo Winslow. Parecia
ter cerca de 60 anos, com tranças tingidas de preto e grisalhas nas pontas. Era magra como uma vassoura e usava um suéter por cima do jeans, mesmo estando calor
para usar suéter. O fato de ter chamado a si mesma de mãe no telefone na sexta foi curioso, mas nada de mais. Eu tinha o pressentimento de que estava prestes a descobrir
que fora tanto mãe como avó do menino.
Ela apontou para um canto da sala, onde havia um sofá e uma mesinha de centro. Havia pilhas de roupas dobradas sobre praticamente toda a superfície disponível e
muitas tinham um pedaço de papel amassado em cima, com nomes escritos. Dava para escutar uma lavadora ou secadora em algum lugar do apartamento, e eu sabia que ela
tocava seu pequeno negócio ali na moradia fornecida pelo governo. Talvez fosse por isso que não quisesse fotografias.
- Empurra essa roupa pra lá e senta aí. Me diz o que tu vai fazer pelo meu Zo - ela disse.
Apanhei uma pilha de roupas dobradas no sofá, pus sobre a mesinha e sentei. Percebi que não havia uma única peça de roupa vermelha em todo o apartamento. O conjunto
Rodia era controlado por uma gangue Crips, e usar vermelho - a cor da gangue rival, os Bloods - podia ser perigoso.
Lester sentou do meu lado. Ele pôs a bolsa de equipamento no chão entre seus pés. Notei que segurava uma câmera na mão. Ele abriu o zíper da bolsa e guardou a câmera.
Wanda Sessums ficou de pé diante de nós. Ela ergueu um cesto de roupas sobre a mesinha; começou a tirar as peças e a dobrar.
- Bom, eu queria examinar o caso de Zo - eu disse. - Se ele é inocente como a senhora diz, então eu posso tirá-lo da prisão.
Continuei a usar o se. Continuei a vender meu peixe. Tomei o cuidado de não prometer nada que não pudesse cumprir.
- Assim, sem mais nem menos, vai tirar ele de lá? Quando o sr. Meyer não conseguiu nem uma audiência pra ele no tribunal?
- O sr. Meyer é o advogado dele?
- Isso mesmo. Defensor público. É um advogado judeu.
Ela disse isso sem qualquer sinal de antipatia ou preconceito. Disse quase com uma ponta de orgulho que seu neto estava à altura de conseguir um advogado judeu.
- Bom, vou conversar com o sr. Meyer sobre tudo isso. Às vezes, sra. Sessums, o jornal consegue fazer o que ninguém mais consegue. Se eu espalhar a notícia de que
Alonzo Winslow é inocente, o mundo todo presta atenção. Com os advogados nem sempre é o caso, porque eles vivem dizendo que seus clientes são inocentes, mesmo quando
não são. Como o menino que gritava lobo. Eles dizem isso com tanta frequência que quando tem um cliente que é inocente de verdade, ninguém acredita neles.
Ela me fitava com perplexidade e achei que estava se sentindo confusa ou vítima de uma tapeação. Tentei continuar a fazer as coisas andarem, para que ela não tivesse
oportunidade de se agarrar a nenhuma parte específica do que eu havia dito.
- Sra. Sessums, se vou investigar isso, vou precisar que a senhora ligue para o sr. Meyer pedindo para ele cooperar comigo. Vou precisar dar uma olhada nos arquivos
do caso e no que ele achou na publicação compulsória.
- Ele não publica nada. Só fica por aí mandando todo mundo ter paciência e esperar.
- Eu quis dizer publicação compulsória, é um termo legal. O Estado, ou seja, o promotor, é obrigado a entregar todos os documentos e evidências para a defesa ver.
Vou precisar dar uma olhada nisso tudo se quiser tirar o Alonzo da cadeia.
Agora ela parecia não estar prestando atenção no que eu dizia. Ela tirou a mão vagarosamente da cesta de roupas. Segurava uma calcinha vermelha minúscula. Manteve
a peça longe do corpo como se segurasse a cauda de um rato morto.
- Olha que garota estúpida. Não sabe com quem tá mexendo. Escondendo a roupa de baixo. Ela é uma idiota se acha que vai ficar tudo por isso mesmo.
Ela foi até o outro canto da sala, usou o pé para pressionar um pedal que abria a lata do lixo e jogou fora o rato morto. Balancei a cabeça, como que aprovando,
e tentei retomar a conversa.
- Sra. Sessums, a senhora entendeu o que eu disse sobre o material compulsório? Eu vou...
- Mas como é que o senhor vai explicar que meu Zo é inocente quando a história toda vem dos vermes e eles mentem mais que a serpente na árvore?
Levei um momento para responder, enquanto considerava seu uso da língua e a justaposição de gíria das ruas com uma referência religiosa.
- Quero juntar a história toda por minha conta e avaliar eu mesmo - eu disse. - Quando escrevi a matéria na semana passada, eu repeti o que a polícia me passou.
Agora estou verificando por mim mesmo. Se o seu Zo for inocente, eu vou saber. E vou escrever. Quando eu escrever, a notícia vai tirar ele de lá.
- Então tá certo. Com a ajuda do Senhor, tu vai trazer meu menino pra casa.
- Mas vou precisar também da sua ajuda, Wanda.
Mudei para o tratamento pelo primeiro nome, agora. Era hora de fazê-la pensar que estava participando daquilo.
- Quando o negócio é com meu Zo, sempre quero ajudar - ela disse.
- Ótimo - eu disse. - Vou dizer o que quero que você faça.

TRÊS: A Fazenda

Carver estava em seu escritório com a porta fechada. Ele cantarolava consigo mesmo e observava atentamente as câmeras e as telas divididas no modo multiplex - 36
imagens em cada. Ele conseguia esquadrinhar cada centímetro com elas, até os ângulos sobre os quais ninguém sabia. Com um toque de dedo no sensor térmico, ele arrastou
um ângulo de câmera até o modo tela cheia no enquadramento do meio.
Geneva estava atrás do balcão lendo um romance barato. Ele ajustou o foco, tentando ver o que era. Não conseguiu ler o título, mas pôde ver o nome do autor no alto
da página. Janet Evanovich. Ele sabia que ela havia lido diversos livros dessa escritora. Várias vezes a vira sorrindo consigo mesma enquanto lia.
Essa era uma boa informação de se ter. Ele iria a uma livraria e compraria um exemplar de algum livro de Evanovich. Daria um jeito para que Geneva o visse em sua
sacola quando entrasse pela recepção. Poderia ser uma forma de quebrar o gelo, levar a uma conversa e quem sabe algo mais.
Ele moveu remotamente as lentes e percebeu que a bolsa de Geneva estava aberta no chão, junto à sua cadeira. Melhorando a nitidez da imagem, ele viu cigarros, chicletes
e dois absorventes, junto com chaves, fósforos e uma carteira. Geneva estava naqueles dias. Talvez por isso se mostrara tão seca quando ele entrou. Ela mal o cumprimentou.
Carver olhou o relógio. Já passara da hora do intervalo que ela tinha à tarde. Yolanda Chavez, da administração, deveria entrar pela porta a qualquer momento e liberar
Geneva. Quinze minutos. Carver planejava segui-la com as câmeras. Não fazia diferença se ela saísse para um cigarro ou fosse ao banheiro urinar. Ele podia ir atrás.
Suas câmeras estavam em toda parte. Ele veria tudo que ela visse.
Bem no momento em que Yolanda entrava na recepção, alguém bateu em sua porta. Carver imediatamente apertou a tecla esc, e as três telas voltaram a exibir os gráficos
para três diferentes torres de servidores. Ele não escutara a cigarra da gaiola de contenção tocando na sala de controle, mas não tinha certeza. Talvez estivesse
tão concentrado em Geneva que nem havia percebido.
- Pois não?
A porta abriu. Era só Stone. Carver ficou irritado por ter saído de suas telas e por ter perdido a oportunidade de seguir Geneva.
- O que foi, Freddy? - perguntou, com impaciência.
- Eu queria perguntar uma coisa sobre as férias - disse Stone, em voz alta.
Ele entrou e fechou a porta. Aproximou-se da cadeira no outro lado da mesa de trabalho, diante de Carver, e sentou sem ser convidado.
- Na verdade, estou pouco me fodendo pras férias - disse. - Só falei isso pros caras lá fora ouvirem. Queria conversar sobre iron maidens. No fim de semana acho
que encontrei nossa próxima garota.
Freddy Stone era vinte anos mais jovem que Carver. Este o notara pela primeira vez quando espreitava sob uma diferente identidade em uma sala de bate­-papo sobre
iron maidens, as chamadas moças de ferro. Ele tentou rastreá-lo, mas Stone era bom demais para isso. Desapareceu na bruma digital.
Sem se deixar intimidar e ainda mais intrigado, Carver criou um site chamariz chamado www.motherinirons.com, e, como não poderia deixar de ser, Stone acabou entrando.
Dessa vez, Carver fez contato direto e a dança começou. Chocado com sua pouca idade, Carver mesmo assim o recrutou, mudou sua aparência e identidade e virou seu
mentor.
Carver o salvara, mas, quatro anos depois, Stone estava à vontade demais, e de vez em quando Carver achava difícil aturá­-lo. Freddy tomava muitas liberdades. Como
simplesmente ir entrando e sentando sem ser convidado.
- Sério? - disse Carver, numa entonação de descrença aplicada intencionalmente à palavra.
- Você prometeu que eu podia escolher a próxima, lembra? - respondeu Stone.
Carver realmente fizera a promessa, mas fora no calor do momento. Eles estavam passando pela rodovia 10, deixando a praia de Santa Monica. A janela estava aberta
e o ar marinho soprava em seus rostos. Ainda estava em êxtase e, estupidamente, falou para o jovem discípulo que ele poderia escolher a próxima.
Agora teria de mudar isso. Desejou poder apenas espiar Geneva, talvez pegá-la trocando aquele absorvente no banheiro, e deixar esse inconveniente para mais tarde.
- Você nunca cansa dessa música? - perguntou Stone.
- Como é?
Carver se deu conta de que começara a cantarolar outra vez, enquanto pensava em Geneva. Sem graça, tentou continuar a conversa.
- Quem você encontrou? - perguntou.
Stone abriu um sorriso e sacudiu a cabeça, como se mal pudesse acreditar em sua boa sorte.
- Uma garota que tem o próprio site pornô. Vou mandar o link pra você dar uma olhada, mas você vai curtir. Dei uma olhada na restituição de imposto dela. No ano
passado, ela tirou 280 mil só de gente pagando 25 paus por mês pra ver ela fodendo.
- Onde você encontrou ela?
- Dewey & Bach, contadores. As contas dela foram verificadas por uma tal de California Tax Franchise Board e os caras cuidaram do pepino. Toda a informação dela
está lá. Tudo que a gente precisa pra armar pra cima dela. Depois eu ainda dei uma olhada no website. Mandy For Ya ponto com. Uma gata maravilhosa, pernas perfeitas.
Bem como a gente gosta.
Carver pôde sentir o ligeiro tremor da expectativa em seu corpo. Mas não ia cometer um erro.
- Onde exatamente na Califórnia? - ele perguntou.
- Manhattan Beach - disse Stone.
Carver sentiu ganas de esticar o braço pelo tampo de vidro da mesa e, com uma das telas de plasma, golpear Stone na orelha.
- Você tem noção de onde fica Manhattan Beach? - ele perguntou, em vez disso.
- Não é lá pros lados de Lo Jolla e San Diego? Lá pra baixo?
Carver abanou a cabeça.
- Pra começar, é La Jolla. E não, Manhattan Beach não é perto disso. É perto de Los Angeles e não fica muito longe de Santa Monica. Então esquece. A gente não vai
voltar lá por um bom tempo. Você sabe das regras.
- Mas, Dub, ela é perfeita! Além do mais, eu já puxei os arquivos dela. Los Angeles é muito grande. Ninguém em Santa Monica vai ligar pro que acontece em Manhattan
Beach.
Carver balançou a cabeça enfaticamente.
- Você pode pôr os arquivos de volta. A gente simplesmente queimou Los Angeles por pelo menos três anos. Não interessa quem você encontre ou o quanto você esteja
se sentindo seguro. Não vou me desviar do procedimento. E mais uma coisa. Meu nome é Wesley, não Wes, e definitivamente não Dub.
Stone baixou os olhos para a mesa de vidro e pareceu arrasado.
- Vamos fazer o seguinte - disse Carver. - Eu vou trabalhar em cima desse negócio e encontrar alguém pra gente. Espera só pra ver, você vai gostar. Eu garanto.
- Mas era pra ser minha vez.
Agora quem ficava amuado era Stone.
- Você teve sua chance e estragou tudo - disse Carver. - Agora é comigo. Então por que não volta lá e vai trabalhar? Ainda está me devendo os relatórios de status
das torres 80 a 85. Quero tudo pronto até o final do dia.
- Tá, tá.
- Vai. E ânimo, Freddy. A gente vai estar na caçada outra vez antes do fim da semana.
Stone se levantou e virou para a porta. Carver observou-o ir, perguntando-se quanto tempo ia demorar até precisar se livrar dele. Permanentemente. Trabalhar com
um parceiro era sempre preferível. Mas no fim das contas, todos os parceiros ficavam muito à vontade e tomavam liberdades demais. Começavam a chamá-lo por um nome
que ninguém nunca tinha usado. Começavam a pensar que era uma parceria igual, com direitos iguais. Isso era inaceitável e perigoso. Só um dava as cartas. E essa
pessoa era ele.
- Feche a porta, por favor - disse Carver.
Stone fez como ele pediu. Carver voltou para as câmeras. Rapidamente, abriu uma câmera no alto da área de recepção e viu Yolanda sentada atrás do balcão. Geneva
sumira. Passando de câmera em câmera, começou a procurar por ela.

QUATRO: Trintão

Quando Sonny Lester e eu deixamos o apartamento de Wanda Sessums, o conjunto habitacional já estava acordado e em plena atividade. As aulas haviam terminado e os
traficantes e seus clientes zanzavam por ali. Os estacionamentos, parquinhos e gramados ressecados entre os prédios de apartamento iam ficando abarrotados de crianças
e adultos. O negócio das drogas aqui era uma operação de drive­-through com um arranjo elaborado: olheiros e aviões de todas as idades conduziam os compradores pelo
labirinto de ruas do conjunto, em direção a um ponto de tráfico que mudava continuamente ao longo do dia. Os urbanistas do governo, ao projetar e construir o lugar,
não faziam ideia de que estavam criando um ambiente perfeito para o câncer que, de um modo ou de outro, acabaria por destruir a maioria de seus moradores.
Eu sabia bem disso porque andara com a equipe de narcóticos do South Bureau em mais de uma ocasião, enquanto escrevia minhas atualizações semestrais sobre a guerra
do narcotráfico local.
Quando cruzamos o gramado e nos aproximamos do carro de empresa de Lester, andamos de cabeça baixa, com passadas decididas do tipo "estamos cuidando da nossa vida".
A gente só queria cair fora dali. Foi só quando estávamos quase no carro que eu vi um rapaz recostado contra a porta do motorista. O sujeito usava botas de trekking
com o cadarço desamarrado, calça jeans caída até a metade da cueca boxer com motivos azuis e uma camiseta branca tão imaculada que quase queimava a vista no sol
da tarde. Era o uniforme da facção Crips, que controlava o conjunto. Também conhecidos como facção BH, que ora queria dizer Bounty Hunters, "caçadores de recompensa",
ora Blood Hunters, "caçadores de sangue", dependendo de quem estivesse com a lata de spray na mão.
- E aí? - ele disse.
- Beleza - disse Lester. - Só voltando pro trabalho.
- Vocês tão com os vermes?
Lester riu como se isso fosse a melhor piada que tivesse escutado em uma semana.
- Não, cara, a gente é do jornal.
Fazendo ar de pouco caso, Lester pôs a bolsa do equipamento no porta-malas e então se dirigiu à porta em que o rapaz estava encostado. Ele não se moveu.
- A gente precisa ir, amigo. Dá uma licencinha aí?
Eu estava do outro lado do carro, perto da minha porta. Senti um nó no estômago. Se fosse acontecer algum problema, ia ser bem agora. Dava para ver outros caras
com o mesmo uniforme de gangue mais recuados, no lado ensombrecido do estacionamento, prontos para se aproximar se fossem chamados. Eu não duvidava de que todos
eles tinham armas, junto ao corpo ou escondidas nas proximidades.
O rapaz encostado no carro não se mexeu. Ele cruzou os braços e olhou para Lester.
- Tava falando sobre o que com a coroa lá dentro, amigo?
- Alonzo Winslow - eu disse, do meu lado. - A gente acha que ele não matou ninguém e estamos checando a história.
O rapaz desencostou do carro de modo que pudesse virar e olhar para mim.
- Ah, é?
Concordei com a cabeça.
- A gente tá checando a história. Acabamos de começar e é por isso que viemos conversar com a sra. Sessums.
- Então ela falou sobre a taxa.
- Que taxa?
- É, ela paga uma taxa. Todo mundo que tem negócio aqui paga uma taxa.
- Sério?
- Taxa da rua, cara. Qualquer cara de jornal que pinta por aqui pra conversar sobre Zo Slow tem que pagar a taxa da rua. Posso cobrar a sua, agora.
Balancei a cabeça.
- Quanto é?
- Hoje tá em cinquenta pau.
Eu podia pagar e depois deixar que Dorothy Fowler subisse pelas paredes. Enfiei a mão no bolso e puxei meu dinheiro. Eu tinha 53 dólares e rapidamente separei duas
de vinte e uma de dez.
- Toma - eu disse.
Fui até a traseira do carro e o rapaz se afastou da porta do motorista. Enquanto eu pagava, Lester dava partida.
- A gente precisa ir nessa - eu disse, conforme lhe estendia o dinheiro.
- É, precisa. Volta aqui e a taxa vai ser o dobro, jornaleiro.
- Tá bom.
Eu devia simplesmente cair fora depois disso, mas não consegui ir sem fazer a pergunta óbvia.
- Não faz diferença pra você que eu estou trabalhando pra livrar a cara do Zo?
O rapaz levou a mão ao rosto e esfregou o queixo como se estivesse ponderando seriamente sobre a questão. Vi as letras F­-U­-C­-K tatuadas nos nós dos seus dedos.
Meus olhos foram para sua outra mão, pendendo frouxa junto ao corpo. Vi um D­-A­-5­-0 tatuado na outra série de nós e tive minha resposta. "Foda-se a polícia." Com
um sentimento desses em suas mãos, não causava espanto que extorquisse de alguém que tentava ajudar um colega de sua própria gangue. Ali era cada um por si.
O menino riu e se afastou sem responder. Ele só queria que eu notasse suas mãos.
Entrei no carro e Lester deu ré. Me virei no banco e vi o rapaz que acabara de extorquir cinquenta dólares de nós executando o passo Crip. Ele se curvou e usou as
notas que eu acabara de lhe dar para fingir que estava dando um lustro rápido nos sapatos, depois endireitou o corpo e fez o arrasta­-pé de calcanhar­-dedão­-calcanhar­-dedão
que os Crips chamavam de seu. Os colegas na sombra o saudaram quando se aproximou.
Só senti a tensão em minha nuca ir embora quando estávamos de volta à 110 e rumando para o norte. Então tentei esquecer os cinquenta contos e comecei a me sentir
melhor conforme repassava o que havíamos conseguido com nossa jornada. Wanda Sessums concordara em cooperar inteiramente na investigação do caso Denise Babbit-Alonzo
Winslow. Usando meu celular, ela ligara para o defensor público de Winslow, Jacob Meyer, e havia dito a ele que, como responsável pelo réu, estava autorizando meu
acesso total a qualquer documento e evidência relacionados ao caso. Meyer concordou relutantemente em se encontrar comigo na manhã seguinte, entre uma e outra audiência
no centro de detenção juvenil, localizado no centro da cidade. Ele não tinha muita escolha, na verdade. Eu dissera a Wanda que, se Meyer não cooperasse, havia um
monte de advogados particulares que cuidariam do caso sem cobrar assim que soubessem das manchetes iminentes. As opções de Meyer eram trabalhar comigo e conseguir
algum holofote para si ou abrir mão do caso.
Wanda Sessums também concordara em me pôr dentro da Sylmar Juvenile Hall para que eu pudesse conversar com seu neto. Meu plano era usar o material reunido pelo defensor
público e me familiarizar com o caso antes de sentar para conversar com Winslow. Seria a conversa-chave do artigo que eu ia escrever. Eu queria saber tudo o que
havia para saber antes de me encontrar com ele.
Pesados os prós e os contras, fora uma boa jornada - apesar da taxa de cinquenta dólares - e eu comecei a pensar em uma forma de apresentar meu plano para Prendergast.
Então Lester interrompeu meus pensamentos.
- Eu sei o que você está fazendo - ele disse.
- O que eu estou fazendo? - eu disse.
- A mulher da roupa pode ser estúpida demais e o advogado interessado demais nas manchetes pra perceber, mas eu não sou.
- Do que você está falando?
- Você quer bancar o nobre cavaleiro branco que vai provar a inocência do garoto e tirar ele da cadeia. Mas está fazendo exatamente o contrário, cara. Está usando
todo mundo pra se inteirar do caso e conseguir todos os detalhes picantes, daí vai escrever uma história sobre como um menino de 16 anos vira um assassino frio.
Caramba, libertar um homem inocente é o maior clichê jornalístico hoje em dia. Mas entrar na mente de um jovem assassino desse jeito? Contar como a sociedade deixa
que esse tipo de coisa aconteça? É material pra Pulitzer, companheiro.
Eu não disse nada por alguns instantes. Fiquei frio. Só depois de pensar no que dizer em minha defesa eu respondi.
- Tudo o que eu prometi pra ela era que ia investigar o caso. O que acontecer, aconteceu, só isso.
- Conversa mole. Você está usando ela porque ela é ignorante demais pra perceber. O moleque provavelmente é tão estúpido quantoela e vai engolir tudo, também.
E a gente sabe muito bem que o advogado troca o moleque pelo nome dele no jornal. Você realmente tá achando que vai se dar bem nessa jogada, não tá?
Fiz que não com a cabeça e não respondi. Dava para sentir meu rosto ficando vermelho e virei para a janela.
- Ei, mas não tem problema - disse Lester.
Virei de volta, olhei para ele e examinei seu rosto.
- O que você quer, Sonny?
- Minha parte, só isso. A gente trabalha em equipe. Eu vou com você pra Sylmar e pro tribunal e faço todas as fotos. Você preenche a requisição de fotógrafo e põe
meu nome nela. E isso ainda deixa o pacote mais atraente. Principalmente pra inscrever.
Com inscrever, ele se referia ao Pulitzer e outros prêmios.
- Olha - comecei -, eu ainda nem falei a respeito disso com meu editor. Você está se precipitando. Não sei nem se eles...
- Eles vão adorar, e você sabe. Vão deixar você à vontade pra trabalhar nessa matéria e pode ser que me liberem também. Vai saber, pode ser que a gente ganhe um
prêmio. Eles não vão poder te chutar se você aparecer com um Pulitzer debaixo do braço.
- Você está falando de uma possibilidade remota, Sonny. Você é louco. Além do mais, já me chutaram. Tenho 12 dias e depois disso estou me cagando pro prêmio Pulitzer.
Vou estar bem longe.
Vi a surpresa em seus olhos quando contei da minha demissão. Então ele balançou a cabeça conforme processava a nova informação em seu presente cenário.
- Então esse é um adeus definitivo - ele disse. - Saquei. Você se despede com um foda-se. Uma história tão boa que eles vão ser obrigados a tentar um prêmio com
ela, mesmo depois que você já tiver se mandado.
Não respondi. Não pensei que eu fosse tão fácil de interpretar. Virei para a janela outra vez. A rodovia era elevada nesse ponto e dava para ver bloco após bloco
de casas aglomeradas umas sobre as outras. Muitas tinham uma lona azul presa em cima dos telhados velhos e cheios de vazamentos. Quanto mais para o sul você ia na
cidade, mais lonas azuis você via.
- Continuo dentro - disse Lester.

Estabelecido o pleno acesso a Alonzo Winslow e a seu caso, eu estava pronto para discutir a história com meu editor. Eu iria oficializar que estava trabalhando nela
e meu ás poderia lançá-la em seu planejamento de futuras matérias. Quando voltei à redação, fui direto para a balsa e encontrei Prendergast em sua mesa. Ele estava
ocupado teclando em seu computador.
- Prendo, você tem um minuto?
Ele nem ergueu os olhos.
- Agora não, Jack. Me encarregaram de montar o planejamento pra reunião das quatro. Você tem alguma coisa além da matéria da Angela pra amanhã?
- Não, estou falando de uma coisa mais a longo prazo.
Ele parou de digitar e olhou para mim, e eu me dei conta de que ficara confuso. A quanto longo prazo podia aspirar um sujeito com apenas 12 dias de trabalho?
- Não tão longo assim. A gente pode conversar mais tarde ou amanhã. Angela já entregou a matéria?
- Ainda não. Acho que ela está esperando você dar uma olhada. Será que dá pra você pegar isso agora? Quero pôr na rede assim que der.
- Eu cuido disso.
- Ok, Jack. A gente conversa depois ou você me manda um ­e-mail.
Virei e percorri a sala da redação com os olhos. Era do tamanho de um campo de futebol. Não sabia onde ficava a baia de Angela Cook, mas sabia que seria por perto.
Quanto mais nova a pessoa, mais perto da balsa eles a colocavam. Os rincões mais distantes da redação ficavam reservados aos veteranos, que supostamente precisavam
de menos supervisão. O lado sul, chamado de Parte Baixa, era ocupado por repórteres veteranos que ainda produziam. O lado norte era a Floresta Morta, onde ficavam
os repórteres que cobriam pouca coisa e escreviam menos ainda. Alguns deles tinham posições sacrossantas em virtude de ligações políticas ou prêmios Pulitzer, e
outros eram apenas incrivelmente habilidosos em manter a cabeça abaixo da linha de corte, de modo a não chamar a atenção dos editores­-chefes nem dos carrascos corporativos.
Por cima da divisória de uma das baias próximas avistei o cabelo loiro de Angela. Fui até lá.
- Como está se saindo?
Ela estremeceu, sobressaltada.
- Desculpe. Não tinha intenção de assustar você.
- Tudo bem. Eu só estava concentrada lendo.
Apontei para a tela do computador dela.
- Essa é a matéria?
O rosto dela ficou vermelho. Notei que prendera o cabelo atrás da cabeça e usara um lápis para segurar o penteado. Fazia com que parecesse ainda mais sexy do que
normalmente era.
- Não, na verdade é dos arquivos. É o artigo sobre você e aquele assassino que eles chamaram de o Poeta. Que negócio mais assustador.
Olhei para a tela com mais atenção. Ela puxara os arquivos de uma história de 12 anos antes. De uma época em que eu estava no Rocky Mountain News e competindo com
o Times numa matéria que se estendera de Denver à Costa Leste e depois voltou até Los Angeles. Era a maior história de que eu já tinha corrido atrás, o ponto alto
de minha vida jornalística - não, mais que isso, o ponto culminante de toda a minha vida -, e eu não queria ser lembrado de que ultrapassara esse ponto há tanto
tempo.
- É, foi bem assustador. Já terminou a matéria de hoje?
- O que aconteceu com aquela agente do FBI que foi sua parceira? Rachel Walling. Uma das outras matérias disse que ela foi repreendida por cruzar uma linha ética
com você.
- Ela continua por aí. Aqui em Los Angeles, pra falar a verdade. Será que dá pra gente cuidar da matéria de hoje? Prendo está esperando que a gente termine pra poder
jogar na rede.
- Claro. Já terminei. Só estava esperando você dar uma olhada antes de mandar pra editoria.
- Deixe eu pegar uma cadeira.
Puxei uma cadeira de uma baia vazia. Angela abriu espaço para que eu me sentasse a seu lado e li o artigo de 30 centímetros que ela escrevera. O planejamento de
notícias dera um espaço de 25, o que significava que provavelmente cortariam para 20, mas você sempre podia escrever um texto maior para a edição de web porque não
havia restrição de espaço. Qualquer repórter digno do próprio salário naturalmente iria além do planejamento. Seu ego determinava que a história e sua habilidade
em contá-la fariam com que a sucessão de editores que a lessem percebesse que era boa demais para ser qualquer coisa menor do que o que você havia entregue, independentemente
da edição em que deveria entrar.
A primeira coisa a fazer era cortar meu nome da assinatura.
- Por que, Jack? - protestou Angela. - A gente cobriu juntos.
- É, mas você escreveu. A assinatura é sua.
Ela esticou o braço até o teclado e pôs sua mão em cima da minha mão direita.
- Por favor, eu queria assinar uma matéria junto com você. É importante pra mim.
Olhei para ela sem entender.
- Angela, isso é uma matéria de 30 centímetros que eles provavelmente vão cortar pra 20 e enfiar num lugar qualquer dentro do jornal. Só mais uma reportagem de homicídio,
não tem a menor necessidade de dois repórteres.
- Mas é minha primeira história de homicídio aqui no Times e quero seu nome nela.
Ela continuava com a mão em cima da minha. Dei de ombros e fiz que sim.
- Você que sabe.
Ela liberou minha mão e eu digitei meu nome de volta na linha da assinatura. Ela então esticou o braço outra vez e voltou a segurar minha mão direita.
- O ferimento foi nessa?
- Hã...
- Posso ver?
Virei a mão para cima, expondo a cicatriz estrelada nas linhas da palma, entre o polegar e o indicador. Era o lugar onde a bala passara antes de atingir o rosto
do assassino que chamavam de o Poeta.
- Percebi que você não usa o polegar quando digita - ela disse.
- A bala cortou um tendão e fiz uma cirurgia para religar, mas meu polegar nunca funcionou direito.
- Qual é a sensação?
- É normal. Só que não faz o que eu quero que ele faça.
Ela riu educadamente.
- O que foi?
- O que eu quis dizer foi: como é matar alguém daquele jeito?
A conversa estava ficando esquisita. Que fascínio era esse que aquela mulher - aquela garota - tinha por homicídio?
- Hã, eu prefiro não conversar sobre isso, Angela. Faz muito tempo, e na verdade eu não matei o sujeito. Ele meio que fez isso consigo mesmo. Eu acho que ele queria
morrer. Ele próprio disparou a arma.
- Eu adoro histórias de serial killers, mas nunca tinha ouvido falar no Poeta até hoje, quando algumas pessoas tocaram no assunto na hora do almoço. Então procurei
no Google. Vou comprar o livro que você escreveu. Ouvi dizer que foi um best-seller.
- Boa sorte. Foi um best-seller há dez anos. Hoje em dia está fora de catálogo faz pelo menos cinco.
Percebi que se ela ouvira falar do livro na hora do almoço, então as pessoas estavam falando sobre mim. Conversando sobre o ex-autor de best-seller, agora repórter
de assuntos policiais com salário superdimensionado, recebendo o bilhete azul.
- Bom, aposto que você tem um exemplar pra me emprestar - disse Angela.
Ela me lançou um olhar suplicante. Examinei-a por um bom tempo antes de responder. Nesse momento, percebi que era uma espécie de viciada em assuntos mórbidos. Ela
queria escrever histórias de homicídio porque queria saber os detalhes que não aparecem nos artigos e nas reportagens da tevê. Os policiais iam amá-la, e não apenas
porque era uma beldade. Ela ia bajulá-los com sua atenção enquanto eles desembuchavam as descrições sujas e macabras das cenas de crime em que trabalhavam. Eles
confundiriam sua adoração pelos detalhes sinistros com adoração por eles.
- Vou ver se consigo encontrar um exemplar lá em casa hoje à noite. Vamos voltar a cuidar dessa matéria e enviar. Prendo vai querer ver a história na cesta assim
que sair pra reunião das quatro.
- Tudo bem, Jack.
Ela lançou as mãos para o alto, num gesto jocoso de rendição. Voltei ao artigo e revisei tudo em dez minutos, mudando só uma coisa. Angela fora atrás do filho da
mulher de idade que havia sido estuprada e morta a facadas em 1989. Ele ficou agradecido pelo fato de a polícia não ter desistido do caso e disse isso. Mudei sua
declaração sinceramente elogiosa mais para o alto, no primeiro terço da matéria.
- Estou puxando isso pra cá, assim o editorial não vai cortar - expliquei. - Uma citação dessas vai te render crédito com os tiras. É o tipo de sentimento vindo
do público que dá motivação pra eles, mas que eles nem sempre ouvem. Enfiar isso aqui em cima vai ajudar a construir a confiança de que eu estava falando.
- Ok, ótimo.
Depois fiz um último acréscimo, digitando -30- no fim do texto.
- Qual o significado disso? - perguntou Angela. - Já vi isso em outras matérias na cesta do editorial.
- É só uma coisa da velha guarda. Quando eu comecei no jornalismo, a gente datilografava isso no fim das matérias. É um código. Acho até que é um negócio que vem
desde a época do telégrafo. Significa fim de matéria, só isso. Não é mais necessário, só q...
- Ah, então é por isso que eles chamam a lista de quem é mandado embora de "lista trinta".
Olhei para ela e concordei com a cabeça, surpreso de que já não soubesse do que eu estava falando.
- Isso mesmo. E é um negócio que eu sempre usei, e como estou assinando a matéria...
- Claro, Jack, sem problema. Acho até meio que bacana. Quem sabe eu começo a fazer também.
- Avante com a tradição, Angela.
Sorri e me levantei.
- Você acha que está bem para verificar os relatórios policiais de manhã e dar um giro pelo Parker Center?
Ela franziu o rosto.
- Você quer dizer sozinha?
- Isso, vou ficar preso no tribunal numa coisa em que estou trabalhando. Mas provavelmente volto antes do almoço. Acha que consegue se virar?
- Se você acha que sim... No que você está trabalhando?
Contei a ela brevemente sobre minha visita ao conjunto de Rodia Gardens e sobre o rumo que a história estava tomando. Depois lhe garanti que não haveria problema
em ir a Parker Center sem mim após apenas um dia de treinamento.
- Você vai se sair bem. E com essa história no jornal de amanhã, vai ter tantos amigos por lá que não vai conseguir dar conta.
- Se você diz...
- Digo. Mas me liga no celular se precisar de alguma coisa.
Então apontei para o texto em seu computador, fechei o punho e bati levemente na mesa.
- Run that baby - eu disse. - Roda a belezinha.
Era uma fala de Todos os Homens do Presidente, uma das maiores histórias de jornalismo que já foram contadas, e percebi na mesma hora que ela não sacou. Bom, pensei,
se tem uma velha guarda, tem que ter a nova guarda.
Voltei para a minha baia e vi a luz de mensagem no meu telefone piscando num intervalo acelerado, significando que eu tinha múltiplas mensagens. Afastei da cabeça
a conversa estranha mas intrigante com Angela Cook e peguei o fone.
A primeira mensagem era de Jacob Meyer. Dizia que recebera um novo caso e que deveria comparecer diante do juiz no dia seguinte. Isso significava que teria de postergar
nossa reunião em cerca de meia hora, para as 9h30 da manhã. Por mim tudo bem. Isso me daria mais tempo para dormir ou me preparar para a reunião.
A segunda mensagem era uma voz do passado. Van Jackson era um repórter novato que eu treinara na área policial do Rocky Mountain News cerca de 15 anos antes. Ele
foi subindo na carreira e chegou ao topo, como editor de cidade, até que, alguns meses atrás, o jornal fechou as portas. Isso significou o fim de 150 anos de publicação
contínua no Colorado e foi um sinal ainda mais contundente da ruinosa economia jornalística. Jackson continuava sem encontrar um trabalho no meio ao qual dedicara
toda a sua vida profissional.
- Jack, é o Van. Soube da notícia. Nada bom, cara. Lamento. Me liga pra gente afogar as mágoas. Continuo em Denver, fazendo frila e procurando trabalho.
Houve um longo silêncio, no qual Jackson pareceu pensar em como me preparar para o que viria a seguir.
- Preciso abrir o jogo com você, cara. Não tem nada pra gente, por aí. Eu já estava me preparando pra começar a vender carros, mas os vendedores de carros também
andam se dando muito mal. Sei lá, mas me liga. Quem sabe a gente consegue se ajudar, trocar umas dicas ou qualquer coisa assim?
Toquei a mensagem outra vez e depois apaguei. Não havia pressa em retornar a ligação para Jackson. Não queria ser arrastado ainda mais fundo do que já estava. Eu
podia até ser mais um trintão no downsizing, mas ainda tinha minhas opções. Não queria perder o pique. Eu tinha um romance para escrever.

Jacob Meyer chegou atrasado para a nossa reunião na terça de manhã. Fiquei sentado durante quase meia hora na sala de espera da defensoria pública, cercado por clientes
do escritório custeado pelo estado. Gente pobre demais para poder pagar sua própria defesa legal e que acreditava que o governo que as estava acionando também ia
defendê-las. Estava logo ali, nos direitos garantidos pela constituição - Se você não puder pagar por um advogado, um advogado será designado a você -, mas isso
sempre me pareceu uma contradição. Como se tudo não passasse de uma espécie de crime organizado em que o governo controlava tanto o fornecimento quanto a demanda.
Meyer era um homem jovem que, pelos meus cálculos, não deixara a escola de Direito havia mais de cinco anos. E contudo lá estava ele, defendendo um homem ainda mais
jovem - homem não, uma criança -, acusado de assassinato. Ele chegou do tribunal carregando uma maleta de couro tão abarrotada de pastas que estava desajeitada e
pesada demais para carregar pela alça. Segurava-a sob o braço. Perguntou pelas mensagens à recepcionista e ela me apontou. Ele trocou a mala pesada para o braço
esquerdo e estendeu sua mão para apertar. Apertei e me apresentei.
- Vamos lá - ele disse. - Não tenho muito tempo.
- Sem problema. Por enquanto, não preciso de muito do seu tempo.
Segui atrás dele por um corredor muito apertado, por causa da fila de arquivos encostados contra a parede direita indo de ponta a ponta. Eu tinha certeza de que
aquilo era uma violação das normas contra incêndio. Era o tipo de detalhe que normalmente eu guardaria na gaveta para um dia chuvoso. Defensores Públicos Trabalham
em Armadilha Incendiária. Mas eu não estava mais preocupado com títulos ou com reportagens para os dias fracos. Tinha uma última história para escrever e ponto final.
- Aqui dentro - disse Meyer.
Entrei com ele num escritório coletivo, uma sala de seis por quatro, com mesas nos cantos e sólidas divisórias separando-as.
- Lar doce lar - disse ele. - Puxe uma dessas cadeiras.
Havia outro advogado, sentado na mesa em diagonal com a de Meyer. Puxei a cadeira da mesa vazia ao lado e sentamos para conversar.
- Alonzo Winslow - disse Meyer. - Uma senhora interessante a avó dele, não é?
- Principalmente em seu próprio território.
- Ela contou como estava orgulhosa de ter um advogado judeu?
- Contou, contou sim.
- Na verdade eu sou irlandês, mas não queria estragar a alegria dela. O que você quer fazer por Alonzo?
Puxei um microgravador do bolso e liguei. Era do tamanho de um isqueiro descartável. Estiquei o braço e pus sobre a mesa, entre nós.
- O senhor se incomoda se eu gravar?
- De jeito nenhum. Eu mesmo gostaria de ter um.
- Bom, como o senhor disse no telefone, a mãe de Zo está plenamente convencida de que os tiras pegaram o cara errado. Eu disse que ia verificar porque fui eu quem
escreveu a matéria em que a polícia fazia a acusação. A sra. Sessums, que tem a guarda legal de Zo, me deu acesso total a ele e ao caso.
- Ela pode ter a guarda legal, e eu vou dar uma checada nisso, mas o fato de ela conceder acesso total não significa nada em termos legais, e assim não significa
nada pra mim. O senhor compreende isso, não é?
Não era isso que ele havia dito ao telefone quando pus Wanda Sessums para falar com ele. Eu estava prestes a confrontá-lo sobre isso e sobre sua promessa de cooperação
quando vi que lançou um rápido olhar por cima do ombro, e me dei conta de que falava visando o outro advogado na sala.
- Claro - eu disse, em vez disso. - E eu sei que o senhor tem restrições quanto ao que pode me dizer.
- Contanto que isso fique bem claro, posso tentar trabalhar com o senhor. Posso responder suas perguntas até certo ponto, mas, nesse estágio do caso, não tenho liberdade
para entregar qualquer documento da publicação compulsória para o senhor.
Enquanto dizia isso, girou em sua cadeira para verificar se o outro advogado continuava de costas para nós e então rapidamente me estendeu um pen drive.
- Você vai ter que conseguir isso com a promotoria ou com a polícia - ele disse.
- Quem é o promotor indicado para o caso?
- Bom, era Rosa Fernandez, mas ela só pega casos envolvendo menores. Estão dizendo que querem que o rapaz seja julgado como maior, então isso provavelmente vai significar
uma mudança na promotoria.
- Você faz objeções a esse caso sair do tribunal juvenil?
- Claro. Meu cliente tem 16 anos e não frequenta a escola regularmente desde que tinha 10 ou 12 anos. Além de não ser um adulto por qualquer parâmetro legal, sua
capacidade mental e acuidade não chegam nem às de um menino de 16 anos.
- Mas a polícia disse que o crime tinha um grau de sofisticação e um componente sexual. Que a vítima tinha sido violentada e sodomizada com objetos estranhos. Torturada.
- Você está presumindo que meu cliente cometeu o crime.
- A polícia disse que ele confessou.
Meyer apontou o pen drive em minha mão.
- Exatamente - ele disse. - A polícia disse que ele confessou. Tenho duas coisas a dizer sobre isso. Minha experiência diz que se você enfia um garoto de 16 anos
num quartinho por nove horas, sem comida e sem se hidratar devidamente, mente pra ele sobre provas que não existem e o proíbe de ver quem quer que seja - avó, advogado,
qualquer um -, então, no fim, ele vai te dar o que você quer, se achar que isso finalmente vai tirar ele de lá. Além disso, é a questão do que exatamente ele confessou
que me preocupa. Nesse caso, o ponto de vista da polícia definitivamente é diferente do meu.
Encarei-o por um momento. A conversa tomara um rumo intrigante, mas muito críptico. Eu precisava levar Meyer a algum lugar onde pudéssemos conversar abertamente.
- Quer tomar um café?
- Não, não tenho tempo. E como eu disse, não posso entrar em detalhes sobre o caso. A gente tem certas normas por aqui e estamos lidando com um menor de idade -
a despeito dos esforços do estado em dizer o contrário. E, ironicamente, o mesmo Gabinete da Promotoria que quer processar esse menino como um adulto não vai pensar
duas vezes antes de acabar comigo e com o meu chefe se eu fornecer para o senhor qualquer documento do caso relacionado a um menor. Isso ainda não entrou no tribunal
normal, por isso as regras de privacidade para proteger um menor continuam valendo. Mas tenho certeza de que o senhor tem fontes no departamento de polícia que podem
fornecer o que você precisa.
- Tenho.
- Ótimo. Assim, se quiser uma declaração minha, eu diria que acredito que meu cliente - e, a propósito, não tenho a liberdade de identificá-lo pelo nome - é quase
tão vítima nessa situação quanto Denise Babbit. Claro que, em última instância, ela é a maior vítima, porque perdeu a vida de uma maneira horrível. Mas a liberdade
do meu cliente foi tirada, e ele não é culpado desse crime. Vou poder provar isso quando estivermos no tribunal. Se vai ser em um tribunal de menores ou não, não
faz muita diferença. Vou defender meu cliente com todo o empenho, porque ele não é culpado desse crime.
Fora uma declaração de palavras cuidadosamente escolhidas e exatamente dentro do que eu esperava. Mas, mesmo assim, parei para pensar. Meyer estava cruzando uma
linha ao me dar o pen drive e eu tinha de me perguntar por quê. Eu não o conhecia. Nunca escrevera uma matéria que o envolvesse e não havia a confiança que surge
entre repórter e fonte quando as histórias são escritas e publicadas. Então, se Meyer não estava ultrapassando um limite por minha causa, era por quem? Alonzo Winslow?
Seria possível que aquele advogado público com a pasta entupida de arquivos sobre clientes culpados realmente acreditava em sua própria declaração? Será que achava
mesmo que Alonzo era uma vítima, que era inocente de verdade?
De repente, me ocorreu que estava perdendo meu tempo. Eu tinha de voltar para o jornal e ver o que havia no pen drive. As informações digitais que eu segurava em
minha mão determinariam meus próximos passos.
Estiquei o braço e desliguei o gravador.
- Obrigado pela ajuda.
Disse isso com sarcasmo, dirigido ao outro advogado da sala. Acenei com a cabeça, pisquei para Meyer e saí.

Assim que cheguei à redação fui para minha baia, sem passar pela balsa ou procurar Angela Cook. Enfiei o pen drive na entrada USB do meu laptop e vi o conteúdo.
Havia três arquivos de texto ali. Estavam nomeados como RESUMO.DOC, DETENÇÃO.DOC e CONFISSÃO.DOC. O terceiro documento era muito maior do que os outros. Abri rapidamente
e vi que a transcrição da confissão de Alonzo Winslow tinha 928 páginas. Fechei, salvei uma cópia de segurança e suspeitei que, por estar nomeado como CONFISSÃO
em vez de, digamos, INTERROGATÓRIO, era um arquivo que fora transmitido a Meyer pelo promotor. Vivemos em um mundo digital e não me surpreendeu que uma transcrição
de nove horas de interrogatório de um suspeito de homicídio fosse transmitida da polícia para o promotor e do promotor para a defesa em formato eletrônico. Com um
número de páginas de 928, os custos de imprimir mais de uma vez um documento desses seriam muito grandes, sobretudo se considerarmos que isso era o produto de apenas
um caso em um sistema judiciário compreendendo milhares de casos diariamente. Se Meyer quisesse imprimir usando o orçamento destinado à defensoria pública, então
isso era com ele.
Depois de descarregar os arquivos no meu computador, enviei um e­-mail com os anexos para a sala de xerox do jornal, de modo que imprimissem para mim e eu pudesse
ter uma cópia física de tudo. Da mesma forma que prefiro um jornal em papel no lugar da versão eletrônica, gosto de ter uma cópia em papel dos materiais em que minhas
histórias estão baseadas.
Decidi ler os documentos na ordem, mesmo já estando familiarizado com as acusações e a detenção de Alonzo Winslow. Os dois primeiros documentos contextualizariam
a confissão que viria a seguir. A confissão depois daria o contexto para minha matéria.
Abri o relatório com o sumário. Presumi que seria uma descrição rápida dos movimentos da investigação que levaram à detenção de Winslow. O autor do documento era
meu velho amigo Gilbert Walker, que tão educadamente batera o telefone na minha cara no dia anterior. Não esperava grande coisa. O sumário tinha quatro páginas e
fora digitado em formulários específicos. Depois, foi escaneado para um computador a fim de criar o documento digital que eu agora tinha em mãos. Walker sabia, conforme
digitava, que esse documento seria examinado à procura de fraquezas e equívocos de procedimento por advogados de ambos os lados do caso. A melhor defesa contra isso
era reduzir o tamanho do alvo - detalhar o mínimo possível o relatório - e, ao que parecia, Walker se saíra bem.
A surpresa no arquivo, contudo, não foi a brevidade do sumário, mas a autópsia completa e os relatórios da cena do crime, além de uma série de fotos. Elas seriam
de imensa ajuda para mim quando eu escrevesse a descrição do crime em minha matéria.
Todo repórter tem o gene do voyeurismo. Antes de começar a ler, dei uma olhada nas fotos. Havia 48 fotografias coloridas tiradas na cena do crime. Algumas retratavam
o corpo de Denise Babbit como fora encontrado no porta-malas de seu Mazda Millenia 1999. Outras mostravam o corpo sendo removido, examinado na cena e depois finalmente
ensacado para ser levado dali. Havia fotos também mostrando o interior do carro e do porta-malas após a remoção do corpo.
Uma foto revelava seu rosto atrás de um saco plástico transparente, enfiado em sua cabeça e amarrado com força perto do pescoço com o que parecia ser um pedaço de
varal. Denise Babbit morrera com os olhos arregalados numa expressão de medo. Eu havia visto um número razoável de gente morta na vida, tanto pessoalmente quanto
em fotografias como essa. Nunca me acostumei com os olhos. Conheci um detetive de homicídios - meu irmão, na verdade - que me disse para não ficar tempo demais olhando
para eles, porque continuavam a persegui-lo muito depois de você ter parado de olhar.
Denise tinha esse tipo de olhar. O tipo que faz você ficar pensando em seus derradeiros momentos, imaginando o que ela viu, pensou e sentiu.
Voltei ao sumário da investigação e li tudo; realcei os parágrafos com informação que achei importante e útil e copiei em um novo documento que criei. Chamei esse
arquivo de VERSÃODAPOLÍCIA.DOC e peguei cada parágrafo que eu havia tirado do relatório oficial e reescrevi. O linguajar do relatório policial era empolado e carregado
de abreviações e acrônimos. Eu queria tornar a história minha.
Quando terminei, revisei o que fiz, vendo se estava acurado mas sem perder a força narrativa. Eu sabia que, quando finalmente escrevesse a matéria para publicação,
muitos desses parágrafos e blocos de informação seriam incluídos. Se eu cometesse um erro num estágio tão inicial, muito provavelmente ele acabaria se estendendo
à matéria publicada.
Denise Babbit foi encontrada no porta-malas de seu Mazda Millenia 1999 às 9h45 do sábado, 25 de abril de 2009, pelos policiais de patrulha do Departamento de Polícia
de Santa Monica, Richard Cleady e Roberto Jiminez. Os detetives Gilbert Walker e William Grady foram designados como investigadores­-chefes do crime.
Os policiais haviam sido chamados pela fiscalização de veículos, que encontrou o carro no lote de praia público perto do hotel Casa Del Mar. Embora o acesso ao lote
seja livre à noite, o lugar passa a ser pago das 9h às 17h todos os dias e qualquer carro que continue estacionado ali é multado se um cartão de estacionamento não
for comprado e deixado no painel. Quando o fiscal de estacionamento Willy Cortez se aproximou do Mazda para verificar o cartão, viu a janela aberta e a chave na
ignição. Havia uma bolsa de mulher à vista no banco do passageiro, e o conteúdo estava jogado ao lado dela. Percebendo que alguma coisa estava errada, ele ligou
para o DPSM e os policiais Cleady e Jiminez chegaram. Enquanto verificavam a placa para determinar quem era o proprietário do carro, eles notaram que o porta-malas
fora fechado deixando para fora um pedaço do que parecia ser um vestido feminino de seda. O porta-malas foi aberto, acionado de dentro do carro.
O corpo de uma mulher identificada como Denise Babbit, proprietária do veículo, estava dentro do porta-malas. Estava nua, e suas roupas - roupas de baixo, vestido
e sapatos - foram encontrados por cima do corpo.
Denise Babbit tinha 23 anos de idade. Trabalhava como dançarina em um bar de striptease de Hollywood chamado Club Snake Pit. Morava em um apartamento da Orchid Street,
em Hollywood. Tinha ficha na polícia por posse de heroína datando do ano anterior. O caso estava pendente, a conclusão do processo tendo sido adiada devido a um
projeto de intervenção pré­-tribunal que a incluiu em um programa de tratamento de drogas em regime aberto. Havia sido presa durante uma operação de tocaia do DPLA,
em Rodia Gardens, em que suspeitos foram observados pela polícia, disfarçada fazendo compras de drogas, e depois detidos ao deixar o ponto de tráfico.
Evidências de cabelo e fibras de tecido coletadas dentro do carro incluem inúmeros exemplares de pelo canino curto, pertencentes a uma raça desconhecida. Denise
Babbit não possuía cachorro algum.
A vítima fora asfixiada com um fio comum de varal, usado para amarrar o saco plástico em torno do seu pescoço. Havia também marcas de amarras em seus pulsos e suas
pernas, de quando a prenderam no momento do sequestro. A autópsia mostraria que fora repetidamente violentada com um objeto estranho. Lascas minúsculas encontradas
na vagina e no ânus indicavam que o objeto era possivelmente o cabo de madeira de uma vassoura ou de uma ferramenta. Nenhum sêmen ou fio capilar foi coletado como
evidência do corpo. A hora estimada de morte foi estabelecida entre 12 a 18 horas antes da descoberta do corpo.
A vítima trabalhara em seu turno da noite dentro da programação normal no Snake Pit, saindo do lugar às 2h15 da manhã, na sexta­-feira, 24 de abril. Sua colega de
quarto, Lori Rodgers, 27 anos, também uma dançarina no Snake Pit, contou à polícia que Babbit não voltou para casa depois do trabalho e em nenhum momento foi ao
apartamento da Orchid Street durante o dia, na sexta. Ela não apareceu para seu turno no Snake Pit nessa noite, e seu carro e seu corpo foram encontrados na manhã
seguinte.
Estimou-se que durante a noite anterior a vítima conseguiu um extra de trezentos dólares em gorjeta dançando no Snake Pit. Nenhum dinheiro foi encontrado em sua
bolsa, cujo conteúdo fora despejado dentro do carro.
A perícia descobriu que a pessoa que abandonou o carro da vítima com o corpo no porta-malas tentara sem sucesso remover evidências do carro, esfregando todas as
superfícies que pudessem apresentar impressões digitais. Maçanetas das portas, volante e alavanca de câmbio foram todos esfregados no interior. Na parte externa,
a tampa do porta-malas e as maçanetas também foram esfregadas. Contudo, os investigadores encontraram uma nítida impressão de polegar no retrovisor interno, presumivelmente
deixado ali quando alguém que dirigia o carro o ajustou.
Através de uma análise no computador e de uma comparação física, o polegar foi identificado por um especialista em impressões latentes como pertencendo a Alonzo
Winslow, 16 anos. Ele possuía um registro de detenção juvenil pela venda de narcóticos no mesmo conjunto habitacional em que Denise Babbit comprara heroína e fora
presa no ano anterior.
Uma teoria de investigação surgiu: após deixar seu trabalho nas primeiras horas da manhã, em 24 de abril, a vítima se dirigiu ao conjunto de Rodia Gardens a fim
de comprar heroína ou outra droga. A despeito de ser branca e de Rodia Gardens ter 98 por cento de sua população formada por negros, Denise Babbit estava familiarizada
e à vontade indo ao conjunto para arranjar drogas, pois comprara ali muitas vezes antes. Talvez até conhecesse pessoalmente os traficantes, incluindo Alonzo Winslow.
Podia ser também que tivesse um histórico de trocar sexo por drogas.
Porém, dessa vez foi sequestrada à força por Alonzo Winslow e possivelmente por outros indivíduos desconhecidos. Foi mantida em local desconhecido e sexualmente
torturada por seis a 18 horas. Devido aos elevados níveis de hemorragia petequial em torno dos olhos, aparentemente também havia sido sufocada repetidas vezes até
a inconsciência, e depois reanimada antes de ocorrer a derradeira asfixia. Seu corpo foi em seguida enfiado no porta-malas do carro e transportado por mais de 30
quilômetros até Santa Monica, onde o carro foi abandonado no estacionamento à beira-mar.
Com a impressão digital representando sólida evidência para a teoria e ligando Babbit a um notório traficante de drogas em Rodia Gardens, os detetives Walker e Grady
obtiveram um mandado de prisão para Alonzo Winslow. Os detetives contataram o DPLA a fim de pedir cooperação na localização e detenção do suspeito. Ele foi levado
sob custódia sem nenhum incidente no domingo de manhã, 26 de abril, e, após o longo interrogatório, confessou o assassinato. Na manhã seguinte, a polícia anunciou
a prisão.
Fechei o arquivo do sumário e pensei na rapidez com que a investigação levara a Winslow, tudo porque deixara escapar uma impressão digital. Ele provavelmente pensara
que os 30 quilômetros entre Watts e Santa Monica eram uma distância que nenhuma acusação de homicídio podia cobrir. Agora estava em uma cela para delinquentes juvenis
em Sylmar, desejando nunca ter tocado naquele retrovisor para se certificar de que não estava sendo seguido pela polícia.
O telefone em minha mesa tocou e, quando olhei, vi o nome de Angela Cook na tela de identificação de chamada. Fiquei tentado a não atender para manter a concentração
em minha história, mas sabia que a ligação pararia na mesa da central e quem quer que a pegasse diria a Angela que eu estava em minha mesa, aparentemente ocupado
demais para atender.
Não queria que isso acontecesse, então atendi.
- Angela, o que foi?
- Estou aqui em Parker e acho que tem alguma coisa acontecendo, mas ninguém me conta porra nenhuma.
- Por que você acha que tem alguma coisa acontecendo?
- Porque tem tudo que é repórter e câmera entrando no lugar.
- Onde você está?
- No saguão. Eu estava saindo quando vi um bando desses caras chegando aqui.
- E você já checou com o gabinete de imprensa?
- Claro que já. Ninguém responde.
- Desculpe, essa pergunta foi idiota. Hmm, vou fazer umas ligações. Fique por aí, talvez você precise fornecer algum apoio. Já ligo de volta. Os caras eram só de
tevê?
- Parece que sim.
- Você sabe como é o Patrick Denison?
Denison era o principal repórter de assuntos policiais e crimes do Daily News, a única competição impressa real que o Times enfrentava no nível local. Ele era bom
e de vez em quando arrumava uma exclusiva que me obrigava a ficar na sua cola. A pior vergonha para um jornalista é ter de correr atrás do furo de um colega. Mas,
nesse caso, eu não estava preocupado em ser furado por ele, não se as equipes de tevê já estavam no local. Quando você via repórteres de tevê em uma matéria, isso
geralmente significava que eles estavam se pautando pelo noticiário do dia anterior ou que haviam sido chamados para uma coletiva de imprensa. O noticiário televisivo
da cidade não conseguia um furo legítimo desde que o Channel 5 apareceu com a fita do espancamento de Rodney King, em 1991.
Depois de encerrar a conversa com Angela, liguei para um tenente na Divisão de Crimes contra a Segurança Pública para ver o que estava acontecendo. Se ele não soubesse,
então eu tentaria a Divisão de Roubos­-Homicídios e depois Narcóticos. Eu estava confiante de que, em pouco tempo, descobriria por que a mídia invadira Parker Center
e por que o L.A. Times era o último a ficar sabendo.
Fui transferido para o secretário civil que atende os telefonemas na Crimes contra a Segurança Pública e consegui chegar ao tenente Hardy sem maiores demoras. Hardy
estava havia menos de um ano no cargo e eu ainda procurava cair em suas graças, tentando lentamente conquistá-lo como uma fonte confiável. Depois de me identificar,
perguntei o que os Hardy Boys estavam armando. Eu gostava de chamar os detetives sob suas ordens de Hardy Boys porque eu sabia que, concedendo a propriedade do pelotão
ao tenente, eu massageava seu ego. A verdade era que ele não passava de um gerente de pessoal, e os investigadores sob seu comando trabalhavam com total autonomia.
Mas era parte do jogo de sedução e, até aquele momento, tinha funcionado.
- A gente está só esperando, Jack - disse Hardy. - Nada pra contar.
- Tem certeza? Ouvi dizer por outra pessoa aí no prédio que o lugar está cheio de repórteres de tevê.
- É, mas é por outro motivo. A gente não tem nada a ver com isso.
Pelo menos não ficáramos pra trás em uma matéria importante envolvendo a Crimes contra a Segurança Pública. Isso era ótimo.
- Que outra coisa? - perguntei.
- Você precisa conversar com o Grossman ou com o escritório do chefe. Estão dando a coletiva de imprensa.
Comecei a me preocupar. O chefe de polícia normalmente dava coletivas de imprensa para discutir coisas que já estavam no jornal. Normalmente ele mesmo passava as
coisas de antemão - assim podia controlar a informação e ganhar o crédito, se crédito lhe fosse devido.
A outra referência que Hardy fizera fora ao capitão Art Grossman, que era o encarregado das principais investigações de narcóticos. De algum modo havíamos perdido
um convite para uma coletiva de imprensa.
Agradeci rapidamente a Hardy pela ajuda e lhe disse que voltaria a falar com ele mais tarde. Liguei de volta para Angela e ela atendeu na mesma hora.
- Entra lá de novo e sobe até o sexto andar. Tem uma espécie de coletiva de imprensa de narcóticos com o chefe e Art Grossman, que é o comandante da Unidade de Narcóticos.
- Tá bom, vai ser que horas?
- Não sei ainda. Sobe logo pra lá, talvez ela já esteja acontecendo. Você não ouviu nada sobre isso?
- Não! - disse ela, na defensiva.
- Há quanto tempo você está aí?
- A manhã toda. Fiquei tentando encontrar algumas pessoas.
- Ok, sobe lá e depois eu ligo.
Depois de desligar entrei no modo multitarefa. Enquanto fazia uma ligação para a sala de Grossman, entrei na internet e verifiquei as notícias da CNS. A City News
Service operava uma rede de notícias virtual que era atualizada de minuto em minuto com informações fresquinhas da cidade dos anjos. As notícias criminais e policiais
eram maioria esmagadora, e o serviço funcionava principalmente para fornecer programação para as coletivas de imprensa e detalhes limitados de relatórios e investigações
criminalísticas. Como repórter policial, eu ficava de olho nele continuamente durante o dia, como um analista do mercado de ações que acompanha o Dow Jones rastejando
na parte de baixo da tela do canal Bloomberg.
Eu poderia ficar ainda mais conectado à CNS solicitando alertas de textos por e-mail e telefone, mas não era assim que eu funcionava. Eu não era um mojo. Estava
mais para um velhojo, e não queria toques e trinados assobiando constantemente na minha orelha.
Contudo, eu falhara ao não contar a Angela sobre essas opções. E com ela passando a manhã em Parker Center e eu correndo atrás do caso Babbit, ninguém recebera toques
nem trinados, e ninguém fizera a velha verificação manual.
Comecei a rolar a tela da CNS para trás, procurando qualquer coisa sobre uma coletiva de imprensa na polícia ou algum outro noticiário criminal. Minha ligação para
Grossman foi atendida, mas por uma secretária, que me disse que o capitão já estava lá em cima - ou seja, no sexto andar - para a coletiva de imprensa.
Assim que desliguei, encontrei uma curta sinopse na CNS anunciando a coletiva de imprensa para as 11 horas no auditório do sexto andar em Parker Center. Havia pouca
informação além de dizer que era para anunciar os resultados de uma grande operação antidrogas realizada durante a noite no conjunto habitacional de Rodia Gardens.
Na mosca. Sem mais nem menos, minha história de longo prazo estava fisgando lindamente uma notícia quente. A adrenalina invadiu meu corpo. Acontecia muitas vezes
desse jeito. A engrenagem diária das notícias fornecia a abertura para você entrar em uma coisa maior.
Liguei de novo para Angela.
- Você está no sexto andar?
- Estou, e ainda não começaram. O que é tudo isso? Não quis perguntar pra ninguém desse pessoal de tevê pra não ficar com cara de idiota.
- Tudo bem. Tem a ver com uma operação antidrogas em Rodia Gardens.
- Só isso?
- É, mas a coisa pode crescer, porque provavelmente é uma resposta ao assassinato de que eu te falei ontem. A mulher no porta-malas foi rastreada até esse conjunto,
lembra?
- Ah, é verdade.
- Angela, isso está ligado com o negócio em que eu estou trabalhando, então vou tentar ver se o Prendo compra a ideia. Quero cobrir porque isso vai ajudar a contextualizar
a minha matéria.
- Bom, quem sabe a gente trabalha junto. Vou pegar o máximo que eu puder aqui.
Fiz uma pausa, mas não longa demais. Tinha de ser delicado, mas decidido.
- Não, estou indo aí pra coletiva. Se começar antes de eu chegar, faz as anotações pra mim. E você pode passar elas pro Prendo pela web. Mas eu quero essa matéria,
Angela, porque é parte de uma matéria maior.
- Tudo bem, Jack - ela disse sem hesitação. - Não estou querendo roubar nada. O filho ainda é seu e a história é sua. Mas se precisar de qualquer coisa, é só pedir.
Eu agora achei que minha reação tinha sido exagerada e fiquei envergonhado por ter agido como um babaca egoísta.
- Valeu, Angela. A gente vê um jeito. Vou deixar o Prendo a par dessa história pro planejamento do dia e depois vou praí.
kkk
Parker Center estava em seus derradeiros meses de vida. O prédio caindo aos pedaços funcionara como centro de comando das operações policiais por quase cinco décadas
e já estava obsoleto havia pelo menos uma década. Mas servira bem à cidade, atravessando dois distúrbios públicos, inúmeros protestos civis e atentados contra a
segurança pública, e abrigara uma infinidade de coletivas de imprensa como a que eu estava prestes a acompanhar dali a pouco. No entanto, como sede operacional da
polícia, o local já ficara muito ultrapassado. Vivia entupido de gente. O encanamento estava arruinado e o sistema de aquecimento e ar condicionado se tornara quase
inútil. Não havia vagas de estacionamento suficientes, salas disponíveis ou celas de detenção. Havia algumas áreas notórias nos corredores e escritórios em que o
ar era viciado e rançoso. O piso de vinil apresentava saliências, e as perspectivas de a estrutura sobreviver a um grande terremoto eram duvidosas. De fato, muitos
detetives trabalhavam incansavelmente pelas ruas, perseguindo pistas e suspeitos por distâncias extraordinárias, de modo a ficar bem longe de suas salas quando O
Grande Tremor chegasse.
Um lindo substituto estava a semanas de ser terminado na Spring Street, bem ao lado do Times. Seria moderno, espaçoso e tecnologicamente avançado. Esperava-se que
servisse ao departamento e à cidade por mais cinco décadas. Mas eu não estaria mais na área quando chegasse a hora da mudança. Minha linda substituta é que viveria
para ver, e subindo pelo precário elevador até o sexto andar, eu cheguei à conclusão de que assim era para ser. Eu sentiria falta de Parker Center precisamente porque
eu era igual ao Parker Center. Antiquado e obsoleto.
A coletiva de imprensa já havia começado quando entrei no auditório ao lado da sala do chefe. Passei pelo policial uniformizado na entrada, apanhei uma cópia do
release com ele e me abaixei diante da fila de câmeras - uma cortesia relutante - junto à parede do fundo, então me sentei. Em outras ocasiões a sala estaria sem
uma única cadeira vaga. Hoje, por ser uma coletiva sobre uma batida antidrogas, houve pouco comparecimento. Contei a presença de cinco dentre as nove emissoras de
tevê locais, dois repórteres de rádio e mais um punhado de jornalistas da imprensa escrita. Vi Angela na segunda fileira. Estava com o laptop aberto no colo, digitando.
Presumi que estivesse conectada e alimentando a edição on-line mesmo com a coletiva em andamento. Era uma mojo em período integral.
Li o release para me inteirar mais rápido. Era um único longo parágrafo visando informar os fatos, os quais o chefe de polícia e seus principais agentes da Narcóticos
iriam esmiuçar com mais detalhes durante a coletiva de imprensa.
Após o assassinato de Denise Babbit, presumivelmente ocorrido em algum lugar no Conjunto Habitacional Rodia Gardens, a Unidade de Narcóticos do South Bureau, do
DPLA, conduziu uma semana de vigilância de alta intensidade sobre as atividades do tráfico no conjunto habitacional e prendeu 16 traficantes suspeitos em uma operação
durante a madrugada. Os suspeitos incluíam 11 membros de gangue adultos e cinco menores. Quantidades de heroína, crack e metanfetamina foram apreendidas durante
as batidas em 12 apartamentos diferentes no conjunto habitacional. Além disso, policiais e investigadores de Santa Monica, em conjunto com o Gabinete da Promotoria,
executaram três mandados de busca relativos à investigação do homicídio. Os mandados buscaram evidência adicional contra o menor acusado pelo homicídio, bem como
outros possivelmente envolvidos.
Tendo lido milhares desses folhetos ao longo dos anos, eu estava bem afiado em ler nas entrelinhas. Eu sabia que, quando não divulgavam as quantidades de drogas
apreendidas, era porque a quantidade era tão pequena que provavelmente seria constrangedor. E eu sabia que, quando o release dizia que os mandados buscaram evidência
adicional, então a probabilidade era de que nenhuma fora encontrada. Do contrário, eles teriam alardeado o fato de que mais evidência fora obtida na execução dos
mandados.
Tudo isso era de interesse apenas mediano para mim. O que manteve minha adrenalina fluindo foi o fato de que a operação antidrogas ocorrera como uma reação ao assassinato
e fora uma ação que sem dúvida instigaria alguma controvérsia racial. Essa controvérsia me ajudaria a vender minha matéria de longo prazo para meus editores.
Ergui o rosto para o tablado bem no momento em que o chefe passava a palavra a Grossman. O capitão subiu até o microfone e começou a narração que acompanhava uma
apresentação em PowerPoint da operação. Na tela à esquerda do palco, fotos de identificação policial dos adultos detidos eram mostradas, acompanhadas da lista de
acusações contra cada um.
Grossman entrou em detalhes sobre a operação, descrevendo como 12 equipes, de seis policiais cada, invadiram simultaneamente 12 apartamentos diferentes às 6h50 da
manhã. Afirmou que houve apenas um ferido e que foi um policial envolvido num acidente bizarro, um homem no lugar errado no momento errado. O policial corria pela
lateral de um dos prédios para cobrir os fundos quando o suspeito dentro do apartamento acordou com o som das batidas na porta da frente. Então o suspeito jogou
sua escopeta de cano serrado pela janela, para não ser pego em posse de uma arma ilegal. A espingarda acertou o policial na cabeça, nocauteando-o. Ele foi tratado
pelos paramédicos e seria mantido em observação até o dia seguinte em um hospital não divulgado.
A foto do bandido que me extorquiu cinquenta dólares um dia antes apareceu na tela. Grossman o identificou como Darnell Hicks, de 20 anos, e o descreveu como "chefe
de rua", com diversos rapazes mais jovens e meninos trabalhando para ele no tráfico. Senti uma ponta de alegria ao ver o rosto do sujeito ali no telão, e eu sabia
que ia colocar o nome dele no topo da lista de detidos quando escrevesse a matéria para o jornal do dia seguinte. Essa seria minha maneira de devolver o passo Crip
na cara dele.
Grossman levou mais dez minutos para falar sobre os demais detalhes que o departamento estava disposto a divulgar, então abriu a coletiva para perguntas. Um ou dois
repórteres de televisão se limitaram a jogar a bola para ele rebater, o que ele fez com a devida facilidade. Ninguém fez a pergunta incômoda enquanto eu não ergui
a mão. Ele me conhecia e sabia onde eu trabalhava. Sabia também que não ia ter bola ajeitada vindo do meu lado. Continuou a esquadrinhar a sala, provavelmente na
esperança de que outro palerma da tevê levantasse a mão. Mas estava sem sorte e não teve escolha a não ser parar em mim.
- Sr. McEvoy, alguma pergunta?
- Claro, capitão. Gostaria de saber se vocês estão esperando alguma reação mais violenta da comunidade?
- Reação da comunidade? Não. Quem vai se queixar por tirarmos traficantes e membros de gangues de circulação? Além do mais, tivemos enorme apoio e cooperação da
comunidade em relação a essa operação. Não vejo como poderia haver alguma reação nesse caso.
Guardei a frase sobre apoio e cooperação da comunidade no bolso de trás para mais tarde e retomei a linha de raciocínio ao responder.
- Bom, é de conhecimento geral que os problemas de drogas e gangues no conjunto Rodia existem há muito tempo. Mas o departamento só montou essa operação em larga
escala depois que uma mulher branca de Hollywood foi sequestrada e morta ao entrar lá. Queria saber se o departamento considerou como seria a reação da comunidade
a isso quando deu prosseguimento à operação.
O rosto de Grossman ficou vermelho. Ele relanceou rapidamente o chefe de polícia, mas este não fez o menor gesto de que iria responder, nem sequer ajudar Grossman.
Ele estava por conta própria.
- Nós não... hã, vemos desse jeito - ele começou. - O assassinato de Denise Babbit só serviu para focar a atenção nos problemas que existem ali. Nossas ações atuais,
e as detenções, vão ajudar a tornar a comunidade um lugar melhor para se viver. Não tem nenhuma reação violenta nisso. E não foi a primeira vez que conduzimos operações
de limpeza naquela área.
- É a primeira vez que vocês convocam uma coletiva de imprensa para falar a respeito? - perguntei, só pra deixá-lo numa saia justa.
- Não sei dizer - falou Grossman.
Seus olhos esquadrinharam a sala à procura de outra mão de um repórter, mas ninguém livrou a cara dele.
- Tenho mais uma pergunta - eu disse. - Com respeito aos mandados de busca envolvendo o assassinato de Denise Babbit, vocês encontraram o local onde ela foi supostamente
mantida e assassinada após seu sequestro?
Grossman estava preparado para isso fazendo o jogo do empurra.
- Esse caso não é nosso. Você vai ter que falar com a polícia de Santa Monica ou com o Gabinete da Defensoria sobre isso.
Ele pareceu satisfeito com a resposta e com a forma como me passou a perna. Não fiz mais nenhuma pergunta, e Grossman varreu a sala com o olhar uma última vez antes
de encerrar a coletiva. Fiquei perto da minha cadeira, esperando Angela Cook conseguir abrir caminho até mim. Eu ia lhe dizer que tudo o que precisava dela eram
suas anotações sobre os comentários do chefe de polícia. O resto eu havia acompanhado.
O policial uniformizado que havia me entregado o release na porta chegou até mim primeiro e sinalizou que eu fosse para a porta do outro lado do auditório. Eu sabia
que ela dava numa sala lateral na qual guardavam parte do equipamento usado para apresentar os gráficos durante as coletivas.
- O tenente Minter quer mostrar uma coisa para você - disse o policial.
- Ótimo - eu disse. - Eu queria perguntar uma coisa pra ele.
Ele passou pela porta e Minter estava ali à minha espera, sentado na ponta de uma mesa, as costas muito eretas. Um homem bonitão com um corpo em forma, pele suave
cor de café, dicção perfeita e um sorriso fácil, Minter era o encarregado das Relações Públicas com a imprensa. Era um trabalho importante no DPLA, mas a função
sempre me desconcertou. Por que algum tira - depois de receber treinamento, uma arma, o distintivo - ia querer trabalhar em relações públicas quando o real trabalho
policial envolvido nisso era zero? Eu sabia que o trabalho colocava você na tevê quase toda noite e estampava seu nome no jornal quase o tempo todo, mas não era
trabalho de tira.
- Ei, Jack - disse Minter para mim de um modo amigável quando apertamos as mãos.
Agi imediatamente como se fosse eu que houvesse convocado a reunião.
- Ei, tenente. Obrigado por me receber. Eu queria saber se você podia me arrumar uma foto de identificação do suspeito Hicks para a minha matéria.
Minter fez que sim.
- Sem problema, ele é maior de idade. Quer mais alguém?
- Não, provavelmente só ele. O pessoal não gosta de publicar fotos de identificação, então acho que o máximo que consigo é usar uma, se tiver sorte.
- Engraçado você querer uma foto de Hicks.
- Por quê?
Ele levou a mão atrás de si sobre a mesa e apanhou uma pasta. Abriu e me estendeu uma foto 8 x 10. Era uma foto de vigilância, com códigos policiais no canto inferior
direito, que me mostrava dando a Darnell Hicks os cinquenta dólares que ele me cobrara de taxa no dia anterior. Imediatamente notei como a foto estava granulada
e percebi que fora tirada de grande distância e em um ângulo baixo. Lembrando-me do estacionamento em que o pagamento fora feito, eu sabia que estivera no centro
do conjunto habitacional e que o único modo de terem tirado aquela foto era de dentro de um dos apartamentos em torno. Agora eu entendia o que Grossman havia dito
com apoio e cooperação da comunidade. Pelo menos um morador em Rodia lhe permitira usar seu apartamento como posto de vigilância.
Segurei a foto no alto.
- Você está me dando isso pro meu álbum de recortes?
- Não, só queria saber se você pode me dizer alguma coisa a respeito dela. Se estiver com algum problema, Jack, eu posso ajudar.
Ele estava com um sorriso falso na cara. E eu era inteligente o bastante para saber o que estava acontecendo. Ele queria me chantagear. Uma foto fora de contexto
como aquela podia certamente passar a impressão errada para um chefe ou um competidor. Mas devolvi o sorriso.
- O que você quer, tenente?
- Não queremos criar controvérsia desnecessária, Jack. Como no caso dessa foto. Ela pode ter vários significados diferentes. Por que você foi até lá?
A intenção era clara. Abandone a abordagem de reação violenta da comunidade. Minter e a equipe de comando acima dele sabiam que o Times pautava todos os veículos
noticiosos da cidade. Os canais de tevê e tudo mais iam atrás como uma boiada. Se o jornal pudesse ser controlado ou pelo menos contido, então o restante da mídia
seguiria na mesma linha.
- Acho que você não recebeu a circular - eu disse. - Estou fora. Ganhei o bilhete azul na sexta, tenente, então não tem nada que o senhor possa fazer por mim. São
minhas duas últimas semanas. Então, se quiser mandar essa foto pra alguém no jornal, mande pra Dorothy Fowler, a editora de cidade. Mas isso não vai mudar com quem
eu converso nessa história ou o que eu vou escrever. Além disso, será que o pessoal do Narcóticos no South Bureau sabe que vocês andam mostrando as fotos de vigilância
deles por aí desse jeito? Me parece perigoso, tenente.
Segurei a foto no alto para que ele pudesse ver e então continuei.
- Mais do que mostrar alguma coisa a meu respeito, ela mostra que sua equipe antidrogas montou uma campana dentro do apartamento de alguém em Rodia. Se isso vazar,
os Crips por lá vão começar uma caça às bruxas. lembra-se do que aconteceu na Blythe Street alguns anos atrás?
O sorriso de Minter ficou paralisado em seu rosto conforme eu observava seus olhos puxando pela memória. Três anos antes, a polícia conduzira uma operação similar
de tocaia e arrastão em um ponto de tráfico comandado por uma gangue latina na Blythe Street, em Van Nuys. Quando fotos de vigilância das vendas de drogas apareceram
na mão dos advogados que defendiam as pessoas detidas, a gangue na mesma hora deduziu de que apartamento as fotos tinham sido tiradas. Certa noite, uma bomba incendiária
foi jogada no apartamento e uma senhora de 60 anos morreu carbonizada em sua cama. Com isso, o departamento de polícia não conquistou uma atenção das mais favoráveis
por parte da mídia. Minter pareceu pausar e reviver esse fiasco.
- Preciso escrever - eu disse. - Vou passar nas Relações Públicas e pegar minha foto de identificação quando estiver de saída. Obrigado, tenente.
- Ok, Jack - disse ele, como de costume, como se os conteúdos implícitos de nossa conversa não houvessem existido. - Espero que a gente volte a se ver antes de você
ir embora.
Passei pela porta e voltei ao auditório da coletiva. Alguns dos cameramen continuavam por lá, guardando o equipamento. Olhei em volta à procura de Angela Cook, mas
ela não havia me esperado.

Depois de pegar a foto de Darnell Hicks, voltei a pé para o prédio do Times e subi para a redação no terceiro andar. Não me dei ao trabalho de me apresentar ao editor
porque já havia enviado um lide de planejamento sobre a história da batida de droga. Eu planejava dar uns telefonemas e enriquecer um pouco o texto antes de voltar
até Prendo. Tentaria, então, convencê-lo de que era uma história que merecia figurar com destaque na home page, assim como na edição impressa.
As 928 páginas da confissão de Winslow, bem como os demais documentos que eu mandara imprimir, estavam à minha espera na mesa quando eu cheguei. Sentei e tive de
resistir à vontade de mergulhar imediatamente na confissão. Mas empurrei a pilha de 15 centímetros de altura para o lado e fui para o computador. Abri o caderno
de endereços na tela e procurei o número do reverendo William Treacher. Ele era o líder de uma associação religiosa do sul de Los Angeles e nunca me desapontava
quando eu precisava de um ponto de vista contrário ao do DPLA.
Eu tinha acabado de apanhar o telefone para ligar para o Pregador Treacher, como era informalmente conhecido na sua congregação, bem como na mídia local, quando
senti uma presença pairando acima de mim e ergui o rosto para dar com Alan Prendergast.
- Você não recebeu o meu recado? - ele perguntou.
- Não, voltei e queria ligar logo pro Pregador Treacher antes que todo mundo também ligasse. O que foi?
- Queria conversar sobre a sua história.
- Não recebeu o lide de planejamento que eu mandei? Deixa eu fazer essa ligação bem rápido e pode ser que eu tenha mais coisa pra acrescentar.
- Não estou falando da matéria de hoje, Jack. Angela já está cuidando disso. Quero saber da sua história de longo prazo. Tenho uma reunião sobre futuras matérias
daqui a dez minutos.
- Peraí. Como assim, a Angela já está cuidando da matéria de hoje?
- Ela está escrevendo. Voltou da coletiva de imprensa e disse que vocês estavam trabalhando juntos nisso. Ela já ligou pro Treacher, também. Conseguiu coisa boa.
Preferi não dizer ali mesmo que não era para Angela e eu estarmos trabalhando juntos. A história era minha e eu havia dito isso a ela.
- Então o que você conseguiu, Jack? Tem relação com o negócio de hoje, não tem?
- Tem, mais ou menos.
Eu continuava pasmo com o gesto de Angela. Competição dentro da redação é comum. Eu só não havia esperado que ela tivesse a audácia de mentir para conseguir a matéria.
- Jack? Não tenho muito tempo.
- Tá. Isso mesmo, é sobre o assassinato de Denise Babbit, mas pela perspectiva do assassino. É sobre como Alonzo Winslow, de 16 anos de idade, foi acusado de assassinato.
Prendo balançou afirmativamente a cabeça.
- Você tem a mercadoria?
Por "mercadoria", eu sabia que ele estava perguntando se eu tinha acesso direto. Ele não ia se mostrar interessado em uma história com a polícia disse sendo atribuído
aqui e ali o tempo todo. Não ia querer ver a palavra supostamente em nenhum lugar do texto se fosse tentar arranjar-lhe um lugar no planejamento das futuras reportagens.
Ele queria uma história de crime, algo que fosse além das notícias básicas que todo mundo já sabia e que sacudisse o mundo do leitor com a dura realidade. Ele queria
amplitude e profundidade, as características marcantes de qualquer história do Times.
- Tenho uma linha direta. A avó do garoto e o advogado, e provavelmente vou ver o garoto amanhã.
Apontei a pilha de documentos recém­-impressos em minha mesa.
- E isso é o pote de ouro. A confissão de novecentas páginas. Não deveria estar comigo, mas está. E ninguém vai pôr a mão nisso.
Prendo balançou a cabeça num gesto de aprovação e vi que ele estava pensando, tentando bolar um jeito de vender a história na reunião ou de dourá-la um pouco. Ele
saiu da baia, agarrou uma cadeira próxima e trouxe para perto.
- Tenho uma ideia, Jack - disse quando sentou e se curvou em minha direção.
Ele estava falando demais o meu nome, e aquilo de se debruçar no meu espaço pessoal era incômodo e parecia completamente falso, já que nunca o fizera antes. Não
gostei do rumo que aquilo estava tomando.
- O que foi, Alan?
- E se a história fosse mais do que contar como um garoto se tornou um assassino? E se fosse também sobre como uma garota virou vítima de assassinato?
Pensei nisso por um momento e balancei a cabeça vagarosamente. E esse foi o meu erro, porque quando você começa dizendo sim, fica difícil pôr um freio e dizer não.
- Só que, quando eu dividir desse jeito o foco da história, isso vai me tomar ainda mais tempo.
- Não, isso não vai acontecer, porque você não precisa dividir o foco. Fica só com o garoto e arruma uma história boa pra cacete. A gente põe a Angela na vítima
e ela cobre esse ângulo. Depois você, Jack, junta as duas coisas e a gente tem uma matéria pra coluna um.
A coluna um na primeira página era reservada diariamente para a principal matéria do jornal. A história mais bem escrita, a de maior impacto, o projeto de longo
prazo - se a história fosse suficientemente boa, aparecia na frente, acima da dobra e na coluna um. Fiquei pensando se Prendergast sabia que estava me atiçando.
Em sete anos com o Times, nunca haviam me dado uma coluna um. Em mais de 2 mil dias na área, nunca havia recebido a melhor fatia do jornal. Ele me acenava com a
possibilidade de sair pela porta com uma coluna um como se fosse o cálice sagrado.
- Foi ela quem deu a ideia?
- Quem?
- Quem você acha? A Angela.
- Não, cara, acabei de pensar. Agora mesmo. O que você acha?
- Estou pensando quem vai cobrir a seção policial enquanto eu e ela estivermos nessa.
- Você dois podem se acertar quanto a isso. Como andaram fazendo. E eu provavelmente posso conseguir alguma ajuda do grupo de reportagem geral. Mesmo que fosse só
você nisso, eu não ia poder te liberar completamente.
Sempre que os repórteres dos assuntos gerais eram designados para trabalhar na seção criminal, as matérias resultantes costumavam ficar superficiais e tendendo mais
para a quantidade do que para a qualidade. Não era assim que se cobria a página policial, mas que diferença isso fazia pra mim? Só me restavam 11 dias e depois fim
de papo.
Não acreditei em Prendergast sequer por um minuto e não fiquei balançado com sua abertura da coluna um. Mas eu tinha inteligência suficiente para saber que a sugestão
dele - fosse mesmo sua ou de Angela Cook - podia levar a uma matéria melhor. E isso significava uma oportunidade melhor de fazer o que eu queria fazer.
- A gente pode chamar de "A Colisão" - eu disse. - O ponto em que os dois, assassino e vítima, se encontram e como chegaram lá.
- Perfeito! - exclamou Prendergast.
Ele se levantou, sorrindo.
- Vou sugerir isso na reunião, mas por que você e a Angela não sentam juntos e me trazem alguma coisa para o planejamento até o fim do dia? Vou dizer pra eles que
vocês vão entregar a história até o final da semana.
Pensei a respeito. Não era muito tempo, mas era factível, e eu sabia que podia conseguir mais dias se fosse necessário.
- Certo - eu disse.
- Ótimo - ele falou. - Preciso ir.
Ele foi para sua reunião. Escolhendo cuidadosamente as palavras em um e-mail, convidei Angela para se encontrar comigo na cafeteria e tomar um café. Não dei nenhum
sinal de que estivesse desconfiado ou irritado com ela, que respondeu imediatamente, dizendo que estaria lá em 15 minutos.
Agora que eu estava livre da matéria diária e tinha 15 minutos à minha disposição, empurrei a pilha de volta para o centro da mesa e comecei a ler a confissão de
Alonzo Winslow.
O interrogatório foi conduzido pelos detetives Gilbert Walker e William Grandy, no Departamento de Polícia de Santa Monica, começando às 11 da manhã, domingo, 26
de abril, cerca de três horas depois que Winslow fora levado sob custódia. A transcrição estava no formato pergunta­-resposta, com pouquíssimas descrições acrescentadas.
Era fácil e rápido de ler, e no início as perguntas e respostas eram bem curtas. Indo e vindo como pingue­-pongue.
Começaram por ler os direitos para Winslow e perguntaram se o rapaz de 16 anos os entendera. Depois, fizeram uma série de perguntas empregadas no início dos interrogatórios
com menores. Elas se destinavam a verificar até onde ele sabia diferenciar o certo do errado. Uma vez estabelecido isso, Winslow virava uma presa legítima.
De sua parte, Winslow foi vitimado pelo próprio ego e pelo erro mais antigo da cartilha humana. Ele achou que podia ser mais esperto. Achou que podia se safar levando
os dois na conversa e de quebra ainda conseguir alguma informação sobre a investigação. Então ele concordou prontamente em conversar - que garoto inocente faria
de outro modo? -, e eles o manusearam como se fosse um baixo de três cordas. To­-tum­-to­-tum­-tolo. E obtiveram em gravação toda explicação implausível e as mentiras
deslavadas.
Passei facilmente pelas duzentas primeiras páginas, percorrendo folha após folha em que Winslow negava saber qualquer coisa ou ter visto qualquer coisa ligada ao
assassinato de Denise Babbit. Então, numa conversa muito casual, os detetives desviaram o assunto para o paradeiro de Winslow na noite em questão, obviamente tentando
conseguir fatos ou mentiras na gravação. De um jeito ou de outro, isso ajudaria no caso - um fato era uma baliza que os ajudaria a se localizar durante o interrogatório;
uma mentira poderia ser usada como um porrete em Winslow quando fosse revelada.
Winslow lhes disse que estava em casa dormindo e que sua "moms" - Wanda Sessums - podia confirmar. Ele negou o tempo todo conhecer Denise Babbit, repetidamente rejeitando
saber qualquer coisa sobre seu sequestro ou assassinato. Ficou firme como uma rocha nisso, mas então, na página 350, os detetives começaram a mentir e a preparar
armadilhas para ele.
WALKER: Isso não vai funcionar, Alonzo. Você precisa dar alguma coisa para a gente. Não pode só ficar aí sentado dizendo não, não, não sei de nada, e imaginar que
vai sair sem mais nem menos pela porta. A gente sabe que você sabe de alguma coisa. A gente sabe, filho.
WINSLOW: Vocês não sabem porra nenhuma. Nunca vi essa garota que vocês estão falando.
WALKER: Sério? Então como é que a gente tem você num vídeo deixando o carro dela no estacionamento da praia?
WINSLOW: Que vídeo vocês têm?
WALKER: Da câmera no estacionamento. A gente te pegou saindo daquele carro e ninguém mais chegou perto até encontrarem o corpo ali dentro. A coisa toda está nas
suas costas, cara.
WINSLOW: Nah, não era eu. Eu não fiz isso.
Até onde eu sabia, pelos documentos da publicação compulsória que o advogado de defesa cedera para mim, não existia vídeo nenhum mostrando o Mazda da vítima sendo
deixado no estacionamento. Mas eu sabia também que a Suprema Corte dos Estados Unidos confirmara a legalidade de a polícia mentir para o suspeito se a mentira pudesse
ser razoavelmente identificável como tal por uma pessoa inocente. Ao derivar tudo da única evidência que eles possuíam de fato - a impressão digital de Winslow no
espelho retrovisor -, eles se atinham aos limites dessa diretriz e conduziam Winslow pela trilha que desejavam.
Uma vez, escrevi uma matéria sobre um interrogatório em que os detetives mostravam para o suspeito um saco plástico de prova contendo a arma usada no assassinato.
Não era a arma verdadeira do homicídio. Era uma réplica exata. Mas quando o suspeitou viu, admitiu o crime, porque imaginou que a polícia encontrara todas as evidências.
Um assassino fora preso, mas não me senti bem com isso. Não me parecia certo que representantes do nosso governo tivessem permissão de empregar mentiras e trapaças
- exatamente como os malfeitores - com plena aprovação da Suprema Corte.
Continuei a ler, passando rápido por mais cento e tantas páginas, até que meu celular tocou. Olhei a tela e percebi que continuara a ler e me esquecera do café combinado
com Angela.
- Angela? Desculpe, fiquei preso aqui. Já estou indo.
- Por favor, não demore. Preciso terminar a matéria de hoje.
Desci rapidamente a escada para a cafeteria no primeiro andar e me juntei a ela numa mesa, sem pegar café nenhum. Eu estava vinte minutos atrasado e vi que seu copo
estava vazio. Na mesa ao lado havia uma pilha de papéis com a impressão virada para baixo.
- Quer mais um latte?
- Não, obrigada.
- Ok.
Olhei em volta. Era o meio da tarde e a cafeteria estava quase vazia.
- Jack, o que foi? Preciso voltar lá pra cima.
Olhei diretamente para ela.
- Só queria dizer cara a cara que não gostei nem um pouco do modo como você passou por cima de mim, hoje. Tecnicamente essa área ainda é minha, e já falei pra você
que eu queria essa história porque ela serve pra matéria maior em que estou trabalhando.
- Desculpe. Fiquei tão empolgada quando você fez as perguntas certas na coletiva que voltei pra redação e exagerei um pouco as coisas. Eu disse que a gente estava
trabalhando nisso juntos. O Prendo me falou pra eu começar a escrever.
- Foi quando você sugeriu pra ele que a gente podia trabalhar junto na outra história também?
- Eu não sugeri nada disso. Não sei do que você está falando.
- Quando eu cheguei, ele me disse que a gente estava nisso junto. Eu ficava com o assassino e você com a vítima. Ele também me contou que a ideia foi sua.
Seu rosto ficou vermelho e ela balançou a cabeça de vergonha. Eu desmascarara dois criminosos. Com Angela foi fácil lidar, porque havia algo de honesto em suas mentiras.
Ela corria audaciosamente atrás do que queria. Foi Prendo quem me magoou. A gente trabalhava junto havia um longo tempo, e eu nunca o vira como mentiroso ou manipulador.
Imaginei que ele simplesmente estivesse tomando partido. Eu cairia fora em breve e Angela ficaria. Não precisava de um gênio para ver que preferia ela a mim. O futuro
estava com Angela.
- Não acredito que ele me caguetou - disse Angela.
- É, bom, acho que você precisa tomar cuidado em quem vai confiar dentro de um jornal - eu disse. - Nem seu próprio editor é garantido.
- Acho que sim.
Ela pegou seu copo e olhou ali dentro para ver se restara alguma coisa, mesmo sabendo que não. O que fosse necessário para evitar olhar para mim.
- Olha, Angela, não gostei do que você fez, mas admiro a determinação de você ir atrás do que quer. Todos os melhores repórteres que conheci são assim. E tenho que
dizer que sua ideia de fazer o perfil duplo de assassino e vítima é a melhor abordagem.
Agora ela me fitou diretamente. Seu rosto se iluminou.
- Jack, eu quero mesmo trabalhar nisso junto com você.
- O que eu quero deixar bem claro agora mesmo é que a matéria começou comigo e vai terminar comigo. Quando a parte de reportagem estiver terminada, sou eu quem vai
escrever. Entendeu?
- Claro, sem dúvida. Depois que você me contou no que estava trabalhando, eu só queria tomar parte nisso. Então me ocorreu fazer o ângulo da vítima. Mas a história
é sua, Jack. Você escreve e o seu nome vem primeiro na assinatura.
Examinei-a detidamente à procura de algum sinal de que estivesse dissimulando. Mas ela me fitou com sinceridade nos olhos quando falava.
- Tudo bem. Era só isso que eu queria dizer.
- Ótimo.
- Precisa de alguma ajuda com a história de hoje?
- Não, acho que está tudo em cima. E vai sair coisa boa daquela questão da comunidade que você levantou na coletiva. O reverendo Treacher afirmou que é mais um sintoma
de racismo no departamento. Eles criam uma força­-tarefa quando uma mulher branca que tira a roupa pra ganhar a vida e entope o corpo de drogas é morta, mas nem
se mexem cada vez que um dos oitocentos moradores inocentes do conjunto é assassinado pela gangue.
Parecia uma boa declaração, mas vinha da fonte errada. A realidade era que Treacher não passava de um pilantra oportunista. Nunca engoli essa história de que lutava
pela comunidade. Eu achava que lutava apenas por si mesmo, aparecendo na tevê e nos jornais para aumentar sua celebridade e usufruir dos benefícios que isso trazia.
Certa vez, eu sugerira a um editor uma investigação em cima de Treacher, mas fui rejeitado na mesma hora. O editor disse: "Não, Jack, a gente precisa dele."
E era verdade. O jornal precisava de gente como Treacher para dar voz ao ponto de vista contrário, proporcionar o comentário incendiário e manter as coisas pegando
fogo.
- Parece bom - eu disse a Angela. - Vou deixar você voltar pra essa história, então. Tenho que escrever um lide de planejamento pra outra matéria.
- Aqui - ela disse.
Empurrou para mim a curta pilha de papéis.
- O que é isso?
- Não é nada, pra falar a verdade, mas talvez te poupe algum tempo. Antes de voltar pra casa ontem à noite, fiquei pensando na história, depois que você me contou
no que estava trabalhando. Quase te liguei pra conversar mais a respeito e sugerir que a gente trabalhasse junto. Mas em vez disso, fui fazer uma pesquisa no Google.
Dei uma busca em "trunk murder" e descobri que existe um longo histórico de gente que acaba assassinada nos porta-malas dos carros. Muitas mulheres, Jack. E muitos
mafiosos, também.
Virei as folhas e olhei a do topo. Era uma história do Las Vegas Review­-Journal de quase um ano antes. Lendo o primeiro parágrafo, vi que era sobre a condenação
de um sujeito acusado de matar a ex­-mulher, pôr o corpo dela no porta-malas do carro e então estacionar na própria garagem.
- Essa é só uma história que parece um pouco com a sua - ela disse. - Tem outras aí sobre casos históricos. Tem uma local, dos anos noventa, de um cara do cinema
que foi encontrado no porta-malas do próprio Rolls­-Royce, estacionado na montanha acima do Hollywood Bowl. E achei até um website chamado trunk murder ponto com,
mas ainda está em construção.
Balancei a cabeça hesitantemente.
- Ah, valeu. Não tenho muita certeza de onde isso tudo pode se encaixar, mas é bom estar prevenido, eu acho.
- É, foi o que eu pensei.
Ela empurrou a cadeira para trás e pegou o copo vazio.
- Bom, ok, então. Vou mandar por e-mail uma cópia da história de hoje assim que estiver com ela pronta pra enviar.
- Não precisa fazer isso. É a sua história, agora.
- Não, seu nome também vai aparecer nela. Você fez as perguntas que deram a boa e velha amplitude e profundidade.
Amplitude e profundidade. O que todo editor espera. Os alicerces sobre os quais o Times se erguia. Inculcadas em você desde o primeiro dia, quando você entrava no
caixão de veludo. Dê às suas matérias amplitude e profundidade. Não conte simplesmente o que aconteceu. Diga o que ela significa e como ela faz parte da vida da
cidade e do leitor.
- Tudo bem, obrigado - eu disse. - É só me falar e eu dou uma lida rápida.
- Quer subir comigo?
- Ah, não, vou tomar um café e talvez dar uma olhada em todo esse material que você juntou.
- Divirta-se.
Ela me lançou um sorrisinho amuado, como se eu estivesse perdendo algo realmente bom, e depois foi embora. Fiquei observando-a jogar o copo de café em uma lata de
lixo e sair da cafeteria. Eu não tinha certeza do que estava acontecendo. Não sabia se eu era o parceiro ou o mentor dela, se a estava treinando para assumir meu
lugar ou se ela já o fizera. Meu instinto me dizia que, apesar de eu ter apenas mais 11 dias na função, era melhor ficar de olho bem vivo nela durante cada um deles.

Depois de redigir um lide de planejamento e mandar por e-mail para Prendergast, aprovei a história de Angela para a edição impressa. Então, encontrei uma baia desocupada
num canto da redação, onde podia me concentrar na transcrição de Alonzo Winslow e não ser interrompido por telefonemas, e­-mails ou outros repórteres. A transcrição
contava com minha plena atenção agora e, à medida que a lia, eu ia marcando com post­-its as páginas em que havia declarações significativas.
A leitura fluía rapidamente, a não ser nos lugares em que havia algo além do rápido pingue­-pongue do diálogo. A certa altura, os detetives inventaram um esquema
para conseguir uma admissão prejudicial de Winslow, e precisei ler o trecho duas vezes para entender o que haviam feito. Grady, aparentemente, apareceu com uma fita
métrica. Ele explicou para Winslow que queriam tirar uma medida da reta que ia da ponta de seu polegar até a ponta do indicador em cada mão.
Winslow cooperou e então os detetives anunciaram que as medidas, com 6 milímetros de variação, batiam com as marcas de estrangulamento deixadas no pescoço de Denise
Babbit. Winslow respondeu negando vigorosamente o envolvimento no assassinato e então cometeu um enorme erro.
WINSLOW: Além disso, a vagabunda nem foi estrangulada. O filho da puta amarrou um saco plástico na cabeça dela.
WALKER: E como é que você sabe disso, Alonzo?
Quase dava para ver Walker sorrindo quando disse isso. Winslow escorregara bonito.
WINSLOW: Sei lá, cara. Deve ter sido na tevê ou qualquer coisa assim. Ouvi em algum lugar.
WALKER: Não, filho, não ouviu, porque a gente nunca divulgou. A única pessoa que sabia disso era a pessoa que matou ela. Agora, você quer contar para a gente sobre
isso enquanto ainda podemos te ajudar ou quer se fazer de bobo e dançar?
WINSLOW: Estou falando, caralho, eu não matei ela daquele jeito.
GRADY: Então conta para a gente o que você fez com ela.
WINSLOW: Nada, cara. Nada!
O estrago estava feito e, dali em diante, era só ladeira abaixo. Você não precisa ser nenhum interrogador de Abu Ghraib para saber que o tempo jamais favorece o
suspeito. Walker e Grady eram pacientes e, conforme os minutos e as horas passavam, Alonzo Winslow finalmente começou a desabar. Era coisa demais confrontar dois
tiras veteranos que sabiam fatos sobre o caso que ele não sabia. Na altura da página 830 do manuscrito, ele começou a ceder.
WINSLOW: Quero ir para casa. Quero ver a minha mãe. Por favor, me deixa conversar com ela e eu volto aqui amanhã para falar de novo com vocês.
WALKER: Isso não vai acontecer, Alonzo. A gente não pode te deixar ir até saber a verdade. Se você quiser contar a verdade, aí sim a gente fala sobre você ir para
a casa da mamãe.
WINSLOW: Eu não fiz porra nenhuma. Nunca vi aquela vagabunda.
GRADY: Então como é que tem a sua impressão digital no carro todo, e como você pode saber que ela foi estrangulada?
WINSLOW: Eu sei lá. Não pode ser verdade esse negócio das minhas impressões. Vocês estão mentindo para mim, seus escrotos.
WALKER: É, você acha que a gente está mentindo porque você limpou aquele carro com o maior cuidado, não foi? Mas você se esqueceu de uma coisa, Alonzo. Esqueceu
do retrovisor! Lembra quando você arrumou o espelho para ver se não tinha ninguém te seguindo? É, foi aí. Foi aí que você fez a cagada que vai te enfiar numa cela
para o resto da vida, a menos que assuma a responsabilidade pelo que fez, seja homem e conte para a gente o que aconteceu.
GRADY: Ei, a gente entende. Uma garota branca bonita daquelas. Pode ser que ela tenha começado a bater boca com você, ou então quis negociar, uma trepada em troca
de um pico. A gente sabe como funciona. Mas alguma coisa aconteceu e ela foi morta. Se você contar para a gente, a gente pode te ajudar, pode até levar você para
ver sua mãe.
WINSLOW: Não, cara, você entendeu tudo errado.
WALKER: Alonzo, eu cansei de ouvir essa merda. Quero ir para casa. A gente já demorou demais nisso tentando te ajudar. Quero ir para casa jantar. Então ou você abre
o jogo agora de uma vez, filho, ou a gente te enfia numa cela. Vou ligar para sua mãe e avisar que você não vai voltar nunca mais.
WINSLOW: Por que vocês querem fazer isso comigo? Eu não sou nada, cara. Por que estão armando para mim desse jeito?
GRADY: Você armou para você mesmo, garoto, quando estrangulou a garota.
WINSLOW: Não fui eu!
WALKER: Deixa pra lá. Você pode contar isso para sua mãe do outro lado do vidro quando ela for te visitar. Levanta. Você vai para uma cela e eu vou para casa.
GRADY: Ele disse para levantar!
WINSLOW: Tá bom, tá bom. Vou falar. Vou falar o que eu sei e então vocês me deixam ir.
GRADY: Você vai falar o que aconteceu de verdade.
WALKER: E então a gente conversa sobre isso. Você tem dez segundos, e depois já era.
WINSLOW: Tá, tá, o lance é o seguinte. Eu estava passeando com a Fuckface e daí eu vi o carro dela perto das torres. Quando eu olhei, vi as chaves e vi a bolsa jogada
lá dentro.
WALKER: Peraí um minuto. Quem é Fuckface?
WINSLOW: A minha cachorra.
WALKER: Você tem uma cachorra. Que tipo de cachorra?
WINSLOW: É, mais para proteção. Uma pit.
WALKER: Que tipo de cachorro, como é o pelo?
WINSLOW: Ah, é marrom claro.
WALKER: Não, não estou falando da cor. É pelo longo?
WINSLOW: Não, o pelo dela é curto.
WALKER: Ok, onde é que a garota estava?
WINSLOW: Em lugar nenhum, cara. Como eu falei, nunca vi a mulher. Nunca vi ela viva, quero dizer.
WALKER: Aham, então é só uma historinha do menino e seu cãozinho, não é? E então?
WINSLOW: Então eu entrei e saí para dar um rolê.
WALKER: Com a cachorra?
WINSLOW: É, com a minha cachorra.
WALKER: Para onde vocês foram?
WINSLOW: Só fomos dar um rolê, cara. Pegar um ar.
WALKER: Tá bom, já chega. Cansei dessa merda. Agora chega, vamos embora.
WINSLOW: Peraí, peraí. Eu levei o carro para perto das lixeiras, tá bom? Nos fundos de Rodia. Eu queria ver o que tinha dentro do carro. Daí eu parei e olhei a bolsa.
Tinha tipo uns 250 dólares. Daí eu olhei o porta-luvas e o resto e depois fui ver o porta-malas, e ela estava lá. Mortinha, cara. Estava sem roupa, mas eu não encostei
a mão nela. E foi só isso.
GRADY: Então você está dizendo, e espera que a gente acredite, que você roubou o carro e a garota já estava morta no porta-malas.
WINSLOW: É isso aí, cara. Vocês não podem jogar isso também para cima de mim. Quando eu vi ela lá, foi uma merda. Fechei a tampa mais rápido que um filho da puta.
Tirei a caranga de lá e pensei em levar de volta para o lugar onde eu achei. Mas aí eu pensei que iam cair matando em cima dos meus parceiros, então eu me mandei
para a praia. Eu pensei, a garota é branca, vou colocá-la no pedaço dos brancos. Daí foi isso que eu fiz, só isso, mais nada.
WALKER: Quando você limpou o carro?
WINSLOW: Bem ali, cara. Como vocês disseram, eu esqueci do retrovisor. Caralho.
WALKER: Quem ajudou você a se livrar do carro?
WINSLOW: Ninguém me ajudou. Eu estava sozinho.
WALKER: Quem esfregou o carro?
WINSLOW: Eu.
WALKER: Onde e quando?
WINSLOW: No estacionamento, quando eu cheguei.
GRADY: Como você voltou para o seu pedaço?
WINSLOW: Andando, na maior parte. Eu andei a porra da noite toda até Oakwood e daí peguei um busão.
WALKER: A cachorra ainda estava com você?
WINSLOW: Não, cara, eu deixei ela com a minha namorada. É onde ela sempre fica, porque a minha mãe não quer o animal dentro de casa, com toda aquela roupa lavada
e tal.
WALKER: Então quem foi que matou a garota?
WINSLOW: Como é que eu vou saber? Ela já estava morta quando eu vi.
WALKER: Você só levou o carro dela e roubou o dinheiro.
WINSLOW: Pode crer, cara. É só isso que vocês têm contra mim. Eu admito isso.
WALKER: Bom, Alonzo, isso não bate com a evidência que a gente tem. A gente tem o seu DNA nela.
WINSLOW: Não, não tem nada. É mentira!
WALKER: É, a gente tem. Você matou ela, garoto, e vai se estrepar por isso.
WINSLOW: Não! Eu não matei ninguém!
E assim foi por mais quatrocentas páginas. Os tiras disparando mentiras e acusações contra Winslow e ele negando. Mas enquanto eu lia essas últimas páginas, rapidamente
me dei conta de uma coisa que saltou diante dos meus olhos como se fosse uma manchete de 72 pontos. Alonzo Winslow em nenhum momento afirmou que cometeu o crime.
Em nenhum momento ele disse que estrangulou Denise Babbit. Se tanto, ele negou dúzias de vezes. A única confissão na sua chamada confissão era a admissão de que
pegara o dinheiro dela e depois se livrara do carro com o corpo dentro. Mas daí a creditar o crime a ele era um salto muito grande.
Me levantei e voltei rapidamente para minha baia. Comecei a remexer a pilha de papéis em minha caixa de saída, procurando o release distribuído pelo DPSM depois
que Winslow foi detido pelo homicídio. Finalmente encontrei e me sentei para reler os quatro parágrafos. Sabendo o que eu sabia agora da transcrição, percebi como
a polícia havia manipulado a mídia para noticiar uma coisa que não era, de fato, verdadeira.
A polícia de Santa Monica anunciou hoje que um membro de gangue de 16 anos, do sul de Los Angeles, foi levado sob custódia pela morte de Denise Babbit. O rapaz,
cujo nome não pode ser divulgado devido à sua idade, estava sendo mantido pelas autoridades de menores em um centro de detenção em Sylmar.
O porta­-voz da polícia afirmou que a identificação de impressões digitais coletadas no carro da vítima após o corpo ter sido encontrado no porta-malas, no sábado
de manhã, levou os detetives ao suspeito. Ele foi conduzido a interrogatório no domingo, após ser detido no conjunto habitacional de Rodia Gardens, onde se acredita
que o sequestro e o assassinato aconteceram.
O suspeito enfrenta acusações de homicídio, sequestro, estupro e roubo. Durante a confissão aos investigadores, o suspeito disse que levou o carro com o corpo no
porta-malas para um estacionamento de praia em Santa Monica, de modo a desviar as suspeitas de que Babbit tivesse sido morta em Watts.
O DPSM gostaria de agradecer a ajuda do Departamento de Polícia de Los Angeles por trazer o suspeito sob custódia.
O press release não estava impreciso. Mas agora eu o encarava com todo cinismo e achei que fora cuidadosamente planejado para transmitir algo que não era preciso:
que houvera uma confissão completa do assassinato quando não chegara nem perto disso. O advogado de Winslow tinha razão. A confissão não se sustentava e havia uma
chance sólida de que seu cliente fosse inocente.
No campo do jornalismo investigativo, o Santo Graal talvez seja derrubar um presidente, mas no que diz respeito à humilde seção criminal, provar a inocência de um
homem culpado é tão bom quanto. Não importava o quanto Sonny Lester havia tentado denegrir o ofício no dia em visitamos Rodia Gardens. Livrar a cara de um garoto
inocente superava tudo. Alonzo Winslow podia ainda não ter sido julgado culpado de coisa alguma, mas para a mídia ele já fora condenado.
Eu tomara parte nesse linchamento e agora via que talvez tivesse uma chance de mudar tudo isso e fazer a coisa certa. Eu podia salvá-lo.
Pensei em uma coisa e procurei em minha mesa o material pesquisado por Angela sobre homicídios e porta-malas. Então lembrei que havia jogado fora. Levantei e saí
rapidamente da redação, descendo a escada para a cafeteria. Fui direto para o lixo que eu usara após examinar superficialmente as reportagens que Angela passara
para mim, do outro lado da mesa, como uma oferenda de paz. Eu dera uma olhada rápida e as jogara fora, achando naquele momento que não havia como histórias sobre
outros corpos em porta-malas terem qualquer relação com uma história sobre a colisão entre um presumido assassino de 16 anos de idade e sua vítima.
Agora, já não tinha tanta certeza. Lembrei coisas sobre as reportagens de Las Vegas que não pareciam mais tão distantes, à luz de minhas conclusões sobre a suposta
confissão de Alonzo.
Era um latão enorme. Removi a tampa e vi que estava com sorte. A pilha continuava no alto do lixo do dia e perfeitamente utilizável.
Ocorreu-me que, em vez de vasculhar uma lata de lixo, eu poderia simplesmente ter feito a mesma pesquisa no Google que Angela fizera, mas eu já enfiara meus braços
até a altura dos cotovelos e, agora, isso seria mais rápido. Levei as cópias até uma mesa para ler.
- Ei!
Virei e vi uma mulher muito gorda com uma redinha de cabelo me encarando com os punhos enterrados no amplo quadril.
- Você vai largar isso aí?
Olhei atrás de mim e vi que deixara a tampa do lixo no chão.
- Desculpe.
Voltei e pus a tampa no lugar correto; então decidi que seria melhor rever as reportagens na redação. Pelo menos os editores não usavam redinhas de cabelo.
De volta à minha mesa, eu folheei a pilha de papéis. Angela encontrara diversas reportagens sobre corpos em porta-malas. A maioria era antiga e parecia irrelevante.
Mas uma série de matérias no Las Vegas Review­-Journal, não. Havia cinco delas e, na maior parte, repetiam a mesma informação. Eram reportagens sobre a prisão e
o julgamento de um homem acusado de matar a ex­-esposa e enfiar o corpo no porta-malas de seu carro.
Ironicamente, as histórias haviam sido escritas por um repórter que eu conhecia. Rick Heikes trabalhara para o Los Angeles Times até sair em uma das primeiras vendas
acionárias do jornal. Ele mal descontou o cheque do Times quando foi empregado pelo Review­-Journal e continuava lá desde então. Segundo sempre ouvi dizer, ele se
deu muito bem no rival. O Times saíra no prejuízo, pois perdera mais um ótimo jornalista para a concorrência.
Esquadrinhei rapidamente as reportagens até encontrar aquela de que me lembrava. Era uma matéria sobre o depoimento dado pelo legista de Clark County.
Legista: Ex­-Esposa Mantida Presa e Torturada por Horas
Por Rick Heikes
Da equipe local do Review­-Journal
Os resultados da autópsia revelaram que Sharon Oglevy foi estrangulada mais de 12 horas após ter sido sequestrada. É o que testemunhou o legista de Clark County
quarta­-feira, no julgamento por homicídio do ex-marido da vítima.
Gary Shaw depôs pela promotoria e revelou novos detalhes do sequestro, estupro e assassinato. Disse que, segundo a autópsia, a hora da morte foi 12 a 18 horas após
uma testemunha ter visto Oglevy sendo forçada a entrar em uma van, em um pátio de estacionamento atrás do Cleópatra Casino and Resort, onde trabalhava como dançarina
no espetáculo exótico Femmes Fatales.
"Por pelo menos 12 horas ela permaneceu com seu sequestrador, e inúmeras coisas horríveis foram feitas com ela antes de ser finalmente assassinada", testemunhou
Shaw ao ser interrogado pelo promotor.
Um dia depois, seu corpo foi encontrado no porta-malas do carro do ex­-marido por oficiais de polícia, que haviam comparecido à sua residência em Summerland para
perguntar se ele fazia ideia do paradeiro da ex-mulher. Ele autorizou a polícia a dar uma busca no local e o corpo foi encontrado no carro estacionado na garagem
da casa. O casamento de ambos chegara ao fim oito meses antes, em um cáustico processo de divórcio. Sharon Oglevy tentara obter uma ordem de restrição proibindo
o ex-marido, um crupiê de 21, de se aproximar até 30 metros dela. Em sua petição, ela disse que o marido ameaçara matá-la e enterrar seu corpo no deserto.
Brian Oglevy foi acusado de assassinato em primeiro grau, sequestro e estupro com objeto desconhecido. Os investigadores afirmaram acreditar que ele havia guardado
o corpo da vítima no porta-malas de seu carro com intenção de enterrá-la posteriormente no deserto. Ele negou ter matado a ex-esposa e afirmou ter sido pego como
bode expiatório pelo assassinato. Está sendo mantido sem fiança afixada desde a prisão.
Shaw forneceu ao júri diversos detalhes escabrosos e macabros do assassinato. Disse que Sharon Oglevy foi estuprada e sodomizada repetidamente com objeto ignorado,
que provocou significativos ferimentos internos. Disse que os níveis de histamina em seu corpo estavam incomumente elevados, indicando que os ferimentos que levaram
seu corpo a gerar a substância química haviam ocorrido bem antes da morte por asfixia.
Shaw testemunhou que Oglevy fora asfixiada com um saco plástico sobre a cabeça, amarrado em torno do pescoço. Afirmou que diversas marcas de corda ou estrias no
pescoço da vítima e um nível elevado de hemorragia em volta dos olhos indicavam que ela fora asfixiada lentamente, e talvez levada a perder e recuperar a consciência
diversas vezes.
Embora o depoimento de Shaw tenha esclarecido grande parte da teoria da promotoria sobre como o assassinato ocorreu, ainda restam lacunas a serem preenchidas. A
Polícia Metropolitana de Las Vegas não foi capaz de determinar onde Brian Oglevy supostamente manteve e depois assassinou a ex­-esposa. Após a prisão, técnicos criminalistas
passaram três dias examinando sua casa e determinaram ser pouco provável que o assassinato tenha ocorrido ali. O acusado também não tem qualquer evidência que o
ligue a uma van, a qual, segundo testemunhas, foi usada para sequestrar Sharon Oglevy.
O advogado de Brian Oglevy, William Schifino, protestou diversas vezes durante o depoimento do legista, pedindo ao juiz que impedisse Shaw de argumentar e carregar
de opiniões pessoais os detalhes de seu depoimento. Schifino foi atendido algumas vezes, mas na maior parte o juiz permitiu que Shaw se expressasse livremente.
O julgamento prossegue hoje. Espera-se que Schifino apresente sua defesa em algum momento durante a próxima semana. Brian Oglevy vem negando ter matado a esposa
desde que o crime ocorreu, mas não ofereceu publicamente uma teoria sobre quem a matou e armou para que ele levasse a culpa.
Examinei as matérias de julgamento do Review­-Journal que vinham antes e depois da que eu acabara de ler, e nenhuma chamou minha atenção tanto quanto a reportagem
sobre a autópsia. As horas faltando, o saco plástico e a lenta asfixia eram descrições que batiam com o assassinato de Denise Babbit. E, é claro, o porta-malas do
carro era a coincidência mais forte de todas.
Empurrei a cadeira para longe da mesa, mas continuei sentado, ruminando. Poderia haver uma ligação aí ou eu estava me deixando levar por uma fantasia de jornalista,
vendo gente inocente sendo acusada de crimes que não haviam cometido? Teria Angela, a seu modo laborioso, mas ingênuo, tropeçado em algo que passava abaixo do radar
da lei?
Eu não sabia - ainda. Mas havia um modo de descobrir. Eu precisava ir até Las Vegas.
Me levantei e fui na direção da balsa. Eu tinha de informar Prendo e obter uma autorização de viagem. Mas quando cheguei lá, a cadeira dele estava vazia.
- Alguém sabe onde está o Prendo? - perguntei aos demais ases da balsa.
- Ele saiu pra jantar mais cedo - disse um. - Deve voltar daqui a mais ou menos uma hora.
Olhei o relógio. Eram mais de quatro, e eu precisava ir andando, primeiro para casa fazer a mala e depois para o aeroporto. Se não conseguisse um voo logo, iria
para Vegas de carro. Dei uma olhada na baia de Angela Cook e vi que estava vazia, também. Fui até a central de operadoras e ergui o rosto para Lorene. Ela puxou
o fone de ouvido para trás.
- Angela Cook avisou que ia embora?
- Ela disse que ia sair para comer alguma coisa com o editor, mas que voltava depois. Quer o celular dela?
- Não, obrigado, eu já tenho.
Voltei para minha mesa com a suspeita e a raiva crescendo dentro de mim em proporções iguais. Meu ás e minha substituta haviam saído juntos para repartir o pão,
e eu não fui informado nem convidado. Para mim, isso só podia significar uma coisa. Estavam planejando o próximo ataque à minha reportagem.
Por mim, tudo bem, concluí. Eu estava um passo gigante à frente deles e planejava continuar assim. Enquanto saíam para tramar seus esquemas, eu estaria longe, indo
atrás da verdadeira história. E chegaria lá primeiro.

CINCO: A Fazenda

Carver ficara ocupado o dia todo roteando e abrindo os últimos gateways, que permitiriam executar um teste de transmissão de dados desde Mercer & Gissal em St. Louis.
O trabalho tomara todo o seu tempo e ele só conseguira realizar suas tarefas de rotina bem perto do final do dia. Ele verificou suas armadilhas e uma onda de eletricidade
percorreu seu peito quando viu que prendera alguma coisa numa delas. O avatar de tela exibiu aquilo como um gordo rato cinza correndo numa roda, dentro da gaiola
rotulada TRUNK MURDER.
Usando o mouse, Carver abriu a gaiola e tirou o rato. Os olhos eram vermelho­-rubi e os dentes afiados brilhavam com a saliva azul­-gelo. O animal usava uma coleira
com uma etiqueta de identificação prateada escrita. Ele clicou na etiqueta e abriu a informação do rato. A data e a hora da visita haviam ocorrido na noite anterior,
pouco depois da última checagem de suas armadilhas. Um protocolo de internet de dez dígitos havia sido capturado. A visita a seu site www.trunkmurder.com durara
apenas 12 segundos. Mas era o suficiente. Significava que alguém em algum lugar digitara as palavras trunk murder numa ferramenta de busca. Agora ele tentaria descobrir
quem e por quê.
Dois minutos depois, a respiração de Carver ficou presa em sua garganta quando ele rastreou o endereço de IP até um provedor de internet. Havia boas e más notícias.
A boa notícia: não era um provedor descomunal como o Yahoo, com gateways de tráfego espalhados pelo mundo todo e cujo rastreamento significaria um consumo de tempo
dispendioso e infernal. A má notícia: era um pequeno provedor privado com nome de domínio LATimes.com.
O Los Angeles Times, ele pensou, sentindo alguma coisa em seu peito dar um nó. Um jornalista de Los Angeles entrara em seu website de assassinato em porta-malas.
Carver reclinou na cadeira e pensou em como iria cuidar do assunto. Ele estava com o endereço de IP, mas sem nome algum ligado a isso. Não dava nem para ter certeza
de que algum repórter fizera a visita. Há muitos não repórteres trabalhando em jornais.
Rolou sua cadeira para a estação de trabalho seguinte. Fez o login como McGinnis, tendo decifrado os códigos dele havia muito tempo. Entrou no site do Los Angeles
Times e na janela de busca do arquivo on-line digitou trunk murder.
Obteve três links para matérias contendo a expressão nas últimas três semanas, incluindo uma publicada no site nessa mesma noite e que ia entrar na edição da manhã
seguinte do jornal. Abriu primeiro a matéria mais recente na tela e leu.
Operação Antidrogas do DPLA Leva Indignação à Comunidade
Por Angela Cook e Jack McEvoy
Da equipe local do Times
Uma operação antidrogas em um conjunto habitacional em Watts provocou indignação em ativistas locais. Na terça­-feira, eles se queixaram de que o DPLA só deu atenção
ao problema no local habitado por minorias quando uma mulher branca foi supostamente assassinada ali.
A polícia anunciou a prisão de 16 residentes de Rodia Gardens, sob acusação de porte de drogas, e a apreensão de uma pequena quantidade de drogas após uma investigação
de uma semana. O porta­-voz da polícia disse que a operação de "tocaia e arrastão" ocorreu como uma resposta ao assassinato de Denise Babbit, 23, de Hollywood.
Um suposto membro de gangue de 16 anos, residente de Rodia Gardens, foi preso pelo crime. O corpo da vítima foi encontrado há duas semanas no porta-malas de seu
carro, em um estacionamento à beira-mar de Santa Monica. A investigação conduziu os detetives até Rodia Gardens, onde a polícia acreditava que Babbit, uma dançarina
exótica, costumava ir para comprar drogas. Em vez disso, ela foi sequestrada, mantida presa por várias horas e abusada sexualmente inúmeras vezes antes de ser estrangulada.
Diversos ativistas da comunidade questionaram por que os esforços de estancar o aumento do tráfico e dos crimes relacionados com drogas no conjunto habitacional
não ocorreram antes do assassinato. Eles observaram rapidamente que a vítima de homicídio no porta-malas era branca, enquanto os membros da comunidade são, na quase
totalidade, afro-americanos.
"Olha, vamos encarar a verdade", disse o reverendo William Treacher, líder de um grupo chamado South Los Angeles Minister, também conhecido como SLAM, "isso é só
mais uma forma de racismo policial. Eles ignoram Rodia Gardens e permitem que o lugar se torne um tumulto de drogas e gangues criminosas. Então essa mulher branca,
que enfia drogas no próprio corpo e tira a roupa para ganhar a vida, vai até lá, é assassinada e o que acontece? Uma força-tarefa. Onde estava a polícia antes disso?
Onde estava a força-tarefa? Por que é preciso um crime contra uma pessoa branca para chamar atenção para os problemas da comunidade negra?"
Um porta­-voz da polícia negou que a operação antidrogas tenha qualquer relação com as raças e disse que operações similares ocorreram em Rodia Gardens inúmeras
vezes antes.
"Quem vai se queixar da remoção de traficantes e membros de gangues das ruas?", perguntou o capitão Art Grossman, que dirigiu a operação.
Carver parou de ler a reportagem. Ele não pressentiu nenhuma ameaça contra si. Mesmo assim, aquilo não explicava por que alguém do Times - presumivelmente Angela
Cook ou McEvoy - havia inserido trunk murder numa ferramenta de busca. Estariam apenas sendo superzelosos, cobrindo todas as bases? Ou seria alguma outra coisa?
Ele olhou as duas matérias anteriores nos arquivos que mencionavam "assassinato" e "porta-malas" e descobriu que haviam sido escritas por McEvoy. Eram reportagens
recentes sobre o caso Denise Babbit, uma a respeito da descoberta do corpo, e a segunda - de um dia depois - sobre a detenção do jovem membro de gangue pelo crime.
Carver não conseguiu deixar de sorrir consigo mesmo conforme lia sobre o rapaz sendo preso pelo assassinato. Mas o bom humor não o levou a baixar a guarda. Buscou
McEvoy nos arquivos e logo encontrou centenas de matérias, todas relacionadas à criminalidade em Los Angeles. Era o repórter da seção policial. No fim de todas as
suas matérias, aparecia seu endereço de e-mail: JackMcEvoy@LATimes.com.
Carver depois inseriu Angela Cook na mesma ferramenta de busca e obteve muito menos reportagens. Ela trabalhava para o Times havia menos de seis meses e apenas na
semana anterior escrevera alguma matéria sobre crime. Antes disso, cobriu uma variedade de histórias que iam de uma greve de lixeiros a uma competição de quem comia
mais. Ela parecia não ter qualquer área específica até essa semana, quando assinou duas matérias em conjunto com McEvoy.
- Tá ensinando as manhas do trabalho pra ela - disse Carver em voz alta.
Ele adivinhou que Angela era nova e McEvoy mais velho. Isso a tornava um alvo mais fácil. Ele arriscou primeiro o Facebook, usando uma identidade falsa que havia
criado muito tempo antes, e de fato ela tinha uma página. O conteúdo não era aberto ao público, mas sua foto estava lá. Uma beldade com cabelo loiro até os ombros.
Olhos verdes e um beicinho ensaiado nos lábios. Aquele beicinho, pensou Carver. Ele podia mudar isso.
A foto era só de rosto. Ficou desapontado por não poder vê-la de corpo inteiro. Especialmente o tamanho e a forma de suas pernas.
Começou a cantarolar. Isso sempre o acalmou. Canções de que se lembrava dos anos sessenta e setenta, quando era um menino. Hard rock para mulheres dançarem e mostrarem
o corpo.
Continuou com suas buscas, descobrindo que Angela Cook abandonara uma página no MySpace alguns anos antes, mas nunca a deletara. Descobriu também um perfil profissional
em LinkedIn, o qual levava ao filão principal - um blog chamado www.CityofAngela.com, em que mantinha um diário atualizado de sua vida e trabalho em Los Angeles.
A última entrada no blog revelava toda a empolgação de Angela com a transferência para a área policial e criminal, e com o treinamento recebido pelo veterano Jack
McEvoy.
Carver sempre achava espantoso como os jovens podiam ser crédulos ou ingênuos. Eles não imaginavam que alguém pudesse ligar os pontos. Achavam que podiam expor até
a alma na internet, postando fotos e informação à vontade, sem esperar qualquer consequência. Do blog ele foi capaz de juntar toda informação que precisava sobre
Angela Cook. Sua cidade natal, a irmandade na faculdade, até o nome do cachorro. Ele descobriu que Death Cab for Cutie era sua banda favorita e a pizza em um lugar
chamado Mozza era sua comida favorita. Em meio a dados sem sentido, descobriu a data de seu aniversário e que ela só precisava andar duas quadras de seu apartamento
para comer sua pizza favorita em seu restaurante favorito. Ele a estava rodeando e ela nem sequer desconfiava. E cada vez estreitava mais o círculo.
Ele parou quando descobriu um post no blog de nove meses antes, com o título Meus Top 10 Serial Killers. Abaixo, ela listava dez assassinos em série que já eram
figurinhas conhecidas por sua sanha homicida em todo o país. O número um da lista era Ted Bundy - Porque eu sou da Flórida e foi lá que ele foi executado.
O lábio de Carver se curvou. Ele gostava dessa garota.
O alerta da gaiola de contenção soou, e Carver encerrou imediatamente a conexão de internet. Mudou as telas e viu McGinnis entrando, pela câmera. Carver girou na
cadeira e ficou de frente para McGinnis quando este abria a última porta para a sala de controle. Ele mantinha seu cartão magnético numa corda retrátil presa ao
cinto. Fazia-o parecer um idiota.
- O que você está fazendo aí? - ele perguntou.
Carver se levantou e empurrou a cadeira de rodinhas de volta para o lugar, na estação de trabalho vazia.
- Estou rodando um programa na minha máquina e queria só dar uma checada em uma coisa em Mercer & Gissal.
McGinnis não pareceu se importar. Olhou através da janela principal para a sala dos servidores, o coração e a alma do negócio.
- Como anda aquilo? - perguntou.
- Dando umas rateadas no roteamento - relatou Carver. - Mas vamos cuidar disso e estar prontos e rodando antes da data planejada. Talvez eu tenha que voltar lá,
mas vai ser uma viagenzinha rápida.
- Ótimo. Cadê todo mundo? Você está sozinho?
- Stone e Early estão lá no fundo, montando uma torre. Eu estou de olho nas coisas por aqui até meu turno da noite começar.
McGinnis balançou a cabeça em aprovação. A montagem de mais uma torre significava mais dinheiro.
- Alguma outra coisa aconteceu?
- Um probleminha na torre 37. Tirei os dados de lá até a gente conseguir descobrir. É temporário.
- Perdemos alguma coisa?
- Não que eu saiba.
- De quem é o blade?
- Uma casa de repouso particular em Stockton, na Califórnia. Coisa pequena.
McGinnis balançou a cabeça. Não era um cliente com quem tinha de se preocupar.
- E sobre a invasão da semana passada? - perguntou.
- Já cuidei disso. O alvo era Guthrie, Jones. Estão num litígio de cigarro com uma firma chamada Biggs, Barlow e Cowdry. Em Raleigh­-Durham. Alguém em Biggs, um
sabichão de segundo escalão, achou que Guthrie estava sonegando publicação compulsória e tentou checar por si mesmo.
- E?
- O FBI abriu uma investigação de pornografia infantil e o sabichão é o alvo primário. Acho que não vai estar mais por perto pra incomodar a gente.
McGinnis balançou a cabeça, aprovando, e sorriu.
- Esse é meu espantalho - ele disse. - Você é o cara.
Carver não precisava da opinião de McGinnis para saber disso. Mas chefe é chefe. E Carver tinha uma dívida para com o sujeito mais velho, por ter lhe dado a chance
de criar seu próprio laboratório e centro de dados. McGinnis o pusera no mapa. Não passava um mês sem que Carver não fosse cobiçado por algum concorrente.
- Obrigado.
McGinnis se dirigiu de volta à porta da gaiola.
- Estou indo pro aeroporto mais tarde. Tem uma pessoa chegando de San Diego, ele vem conhecer a empresa amanhã.
- Pra onde você vai levar o cara?
- Essa noite? Provavelmente pra comer uma carne no Rosie's.
- O de sempre. E depois o Highlighter?
- Se precisar. Quer vir? Você podia impressionar esse pessoal, sabe, me dar uma mão.
- A única coisa que vai deixar eles impressionados é a mulherada pelada. Não a minha conversa.
- Bom, é um trabalho duro, mas alguém tem que fazer. Vou parar de encher você, então.
McGinnis saiu da sala de controle. Seu escritório era na superfície, na frente do prédio. Era afastado e ele ficava ali a maior parte do tempo para receber possíveis
clientes e, provavelmente, manter distância de Carver. As conversas deles no bunker sempre pareceram um pouco tensas. McGinnis parecia saber que devia evitar ao
máximo essas ocasiões.
O bunker pertencia a Carver. O negócio era armado com McGinnis e a equipe administrativa lá no alto, na entrada. O centro de hospedagem de web, com todos os projetistas
e operadores, também ficava na superfície. A fazenda de colocação de alta segurança era sob a superfície, no assim chamado bunker. Poucos funcionários tinham acesso
ao subterrâneo, e Carver gostava que fosse assim.
Carver sentou de novo diante da estação de trabalho e ficou on-line mais uma vez. Buscou a foto de Angela Cook novamente e examinou-a por alguns minutos, depois
foi ao Google. Agora era hora de trabalhar em cima de Jack McEvoy e ver se fora mais esperto do que Angela Cook em proteger a si mesmo.
Digitou o nome na ferramenta de busca e logo uma nova emoção tomou conta dele. Jack McEvoy não tinha blog nem qualquer perfil no Facebook ou onde quer que fosse
que Carver pudesse encontrar. Mas o nome dele somou inúmeras ocorrências no Google. Carver achara, inicialmente, que o nome era familiar e agora sabia por quê. Uns
dez anos antes, McEvoy escrevera o livro definitivo sobre o assassino conhecido como o Poeta, e Carver havia lido o livro - inúmeras vezes. Ou melhor, McEvoy fizera
mais do que simplesmente escrever o livro sobre o assassino. Era o jornalista que havia revelado o Poeta para o mundo. Chegara perto o bastante para respirar o último
alento do Poeta.
Jack e o pé de feijão. Jack McEvoy, matador de gigantes.
Carver balançou a cabeça lentamente conforme estudava a foto de McEvoy na sobrecapa de um livro no site da Amazon.
- Bom, Jack - disse ele em voz alta. - É uma honra.

O cachorro de Angela Cook a entregou. O nome do animal era Arfy - segundo uma entrada de cinco meses antes em seu blog. A partir daí, Carver só precisou de duas
variações - de modo a corresponder à exigência de seis caracteres na senha - para chegar a Arphie e conseguir logar com sucesso na conta dela do LATimes.com.
Sempre havia qualquer coisa de estranhamente tantalizante em estar no computador de outra pessoa. O vício instigante da invasão. Provocava uma fisgada em suas entranhas.
Era como se estivesse dentro da mente e do corpo de outra pessoa. Ele era os outros.
Sua primeira parada foi o e-mail dela. Ele abriu e descobriu que ela mantinha um gerenciador limpo. Havia apenas duas mensagens não lidas e umas poucas que haviam
sido salvas depois de lidas. Não encontrou nenhuma de Jack McEvoy. As mensagens recentes eram do tipo como­-estão­-as­-coisas­-aí­-em­-L.A., de uma amiga na Flórida
- ele sabia disso porque o servidor era Road Runner, em Tampa Bay -, e uma mensagem interna do Times, que parecia ser uma sucinta comunicação com um supervisor ou
um editor.
De: Alan Prendergast <AlanPrendergast@LATimes.com>
Assunto: Re: colisão
Data: 12 de maio de 2009, 2:11 PM PDT
Para: AngelaCook@LATimes.com
Aguenta as pontas. Pode acontecer muita coisa em duas semanas.

De: Angela Cook <AngelaCook@LATimes.com>
Assunto: colisão
Data: 12 de maio de 2009 1:59 PM PDT
Para: AlanPrendergast@LATimes.com

Você me disse QUE EU IA escrever! ?

Angela parecia chateada. Mas Carver não sabia o suficiente sobre a situação para entender, então continuou lendo, abrindo a pasta de e-mails antigos dela, e deu
sorte. Ela deixara de limpar a lista de e­-mails velhos por vários dias. Carver rolou centenas de mensagens e viu diversas do colega e parceiro dela Jack McEvoy.
Carver começou pela mais antiga e seguiu em frente para as mais recentes.
Logo se deu conta de que eram todas inócuas, apenas comunicações básicas entre colegas sobre matérias e reuniões na cafeteria. Nada picante. Carver inferiu pela
leitura que Cook e McEvoy eram estranhos até bem recentemente. Havia uma certa rigidez ou formalidade nos e-mails. Tampouco abreviaturas ou gírias eram empregadas.
Ao que parece, Jack não conhecia Angela até ela ser transferida para a seção policial, e ele fora indicado para treiná-la.
Na última mensagem, enviada apenas algumas horas antes, Jack mandara para Angela um e-mail com um resumo de proposta para a reportagem em que estavam trabalhando
juntos. Carver leu ansiosamente e sentiu suas preocupações em ser identificado indo embora a cada palavra.
De: Jack McEvoy <JackMcEvoy@LATimes.com>
Assunto: slug colisão
Data: 12 de maio de 2009 2:23 PM PDT
Para: AngelaCook@LATimes.com

Angela, isso é o que mandei pro Prendo para o planejamento de matérias futuras. Me diga se quiser alguma mudança.
Jack
COLISÃO - No dia 25 de abril, o corpo de Denise Babbit foi encontrado no porta-malas de seu próprio carro em um estacionamento de praia em Santa Monica. Ela fora
atacada sexualmente e asfixiada com um saco plástico enfiado sobre sua cabeça, amarrado com uma corda de varal. A dançarina exótica com um histórico de problemas
com drogas morreu de olhos arregalados. Não demorou para que a polícia rastreasse uma solitária impressão digital, deixada no retrovisor interno do carro por um
traficante de 16 anos, membro de gangue de um conjunto habitacional no sul de Los Angeles. Alonzo Winslow, que amadureceu rapidamente no condomínio, sem conhecer
o pai e raramente vendo a mãe, foi preso e acusado como menor pela autoria do crime. Ele confessou seu papel à polícia e agora aguarda os esforços do estado em processá-lo
como adulto. Conversamos com o suspeito e também com a família, além daqueles que conheceram a vítima, e rastreamos essa colisão fatal de volta às suas origens.
230cm - McEvoy e Cook, c/arte por Lester
Carver releu o texto. Sentiu os músculos em seu pescoço começarem a relaxar. McEvoy e Cook não sabiam de nada. Jack, o matador de gigantes, estava escalando o pé
de feijão errado.
Exatamente como ele planejara. Carver disse a si mesmo para não esquecer de ler a matéria quando fosse publicada. Ele seria uma das três únicas pessoas no planeta
que saberiam o quanto estava equivocada - incluindo aquele pobre diabo, Alonzo Winslow.
Fechou a lista e abriu as mensagens enviadas de Angela Cook. Havia apenas a justaposição do pingue­-pongue com McEvoy e o bilhete para Prendergast. Tudo muito enxuto
e sem utilidade para Carver.
Ele fechou o e-mail e voltou ao browser. Rolou para baixo, vendo todos os sites que Angela visitara em dias recentes. Viu o trunkmurder.com, além de inúmeras visitas
ao Google e aos sites de outros jornais. Então viu um site que o deixou intrigado. Abriu o DanikasDungeon.com e foi brindado ckkkom um site holandês de sadomasoquismo
repleto de fotos de mulheres dominando, maltratando e torturando homens. Carver sorriu. Duvidava que houvesse um motivo jornalístico para a visita de Cook. Ele acreditou
obter um vislumbre dos interesses particulares de Angela Cook. Sua própria jornada pelo lado escuro.
Carver não se demorou ali. Pôs a informação de lado, sabendo que talvez fosse útil mais tarde. Em seguida, tentou Prendergast, já que sua senha parecia óbvia. Digitou
Prendo e conseguiu na primeira tentativa. Como as pessoas podiam ser estúpidas e óbvias, às vezes! Foi à caixa de correio e ali, no topo da lista, estava uma mensagem
de McEvoy, enviada apenas dois minutos antes.
- O que você está aprontando, Jack?
Carver abriu a mensagem.
De: Jack McEvoy <JackMcEvoy@LATimes.com>
Assunto: colisão
Data: 12 de maio de 2009 4:33 PM PDT
Para: AlanPrendergast@LATimes.com
Cc: AngelaCook@LATimes.com

Prendo, te procurei, mas você saiu pra jantar. A história mudou. Alonzo não confessou o assassinato e acho que não foi ele. Estou indo para Vegas hoje à noite para
amanhã sair atrás de umas coisas. Depois mantenho você informado. Angela pode segurar as pontas no editorial. Tenho trocado.
Jack

Carver sentiu um nó subir em sua garganta. Os músculos de seu pescoço se enrijeceram tensamente e ele se afastou da mesa com um repelão, caso precisasse vomitar.
Alcançou e puxou a lata de lixo sob a mesa; assim poderia usá-la, se necessário. Sua visão momentaneamente escureceu no campo periférico, mas então passou e ele
voltou a ver as coisas com clareza.
Chutou a lata de lixo de volta ao lugar e se inclinou para examinar a mensagem mais uma vez.
McEvoy estabelecera a conexão com Las Vegas. Carver sabia que só podia culpar a si mesmo. Ele repetira o modus operandi cedo demais. Havia se exposto e agora Jack,
o matador de gigantes, estava em seu encalço. Um erro crítico. McEvoy estava a caminho de Las Vegas e, com um mínimo de sorte, conseguiria somar dois mais dois.
Carver teve de parar por aí. Um erro crítico não tinha de ser um erro fatal, disse a si mesmo. Fechou os olhos e pensou por um longo momento. Isso trouxe sua confiança
de volta. Parte dela. Ele sabia que estava preparado para qualquer eventualidade. O esboço de um plano começou a se desenhar em sua mente, e a primeira ordem de
serviço era deletar a mensagem na tela diante dele, voltar à conta de Angela Cook e deletar também da caixa de correio dela. Prendergast e Cook jamais veriam a mensagem
e, com um pouco de sorte, nunca saberiam o que Jack McEvoy sabia.
Carver deletou a mensagem, mas, antes de fazer o logout, enviou um programa de spyware que lhe permitiria rastrear todas as atividades de Prendergast na internet
em tempo real. Ele ficaria sabendo para quem Prendergast enviava e-mails, quem o contatava e que sites visitava. Carver então voltou à conta de Angela Cook e rapidamente
fez a mesma coisa.
McEvoy era o próximo, mas Carver decidiu que isso podia ser deixado para depois - depois que Jack estivesse em Vegas e agindo por conta própria. Uma coisa de cada
vez. Ele se levantou e pôs a mão no leitor ao lado da porta de vidro da sala dos servidores. Assim que o escaneamento se completou e foi aprovado, a porta destravou
e abriu, deslizando de lado. Fazia frio na sala dos servidores, sempre mantida em frescos 17 graus. Seus passos ecoaram no piso metálico conforme caminhava pela
terceira fileira até a sexta torre. Com uma chave, ele destrancou a frente do servidor do tamanho de uma geladeira, curvou-se e puxou dois blades de dados de cerca
de 6 milímetros. Então fechou, voltou a trancar a porta e se dirigiu novamente à sua estação de trabalho.
Em alguns segundos, um alarme de tela zumbiu nas estações de trabalho. Ele digitou os comandos que introduziam o protocolo de resposta. Então, aguardou mais alguns
segundos e levou a mão ao telefone. Apertou o botão do interfone e teclou o ramal de McGinnis.
- Ei, chefe, você continua aí?
- O que foi, Wesley? Eu estava de saída.
- Temos um problema código três. Melhor dar uma olhada.
Código 3 significava "largue tudo e mexa-se".
- Já estou indo.
Carver tentou suprimir um sorriso. Não queria que McGinnis o visse sorrindo. Três minutos depois McGinnis veio pela porta, seu cartão magnético voltando a colar
no cinto. Estava sem fôlego de descer a escada correndo.
- Qual o problema? - quis saber.
- Dewey e Bach em L.A. acabaram de levar um bombardeio de dados. A rota toda entrou em colapso.
- Cristo, como foi isso?
- Não sei.
- Quem foi?
Carver encolheu os ombros.
- Não dá pra dizer daqui. Talvez tenha sido algo interno.
- Você já ligou pra eles?
- Não, queria contar pra você primeiro.
McGinnis ficou atrás de Carver, mudando o peso de um pé para o outro e olhando através das portas de vidro para os servidores, como se a resposta estivesse ali.
- O que você acha? - ele perguntou.
- O problema não está aqui, já chequei tudo. É no lado deles. Acho que vou precisar mandar alguém até lá pra consertar e reabrir o tráfego. Acho que o Stone pode
ir. Vou mandar ele. Depois a gente vê de onde veio e faz o que for preciso pra que não aconteça outra vez. Se for coisa de hacker, a gente frita os filhos da puta
lá no esconderijo deles.
- Quanto tempo vai demorar?
- Tem voo pra Los Angeles quase que de hora em hora. Vou pôr o Stone num avião e ele cuida disso amanhã cedo.
- Por que não vai você? Quero isso resolvido.
Carver hesitou. Queria que McGinnis continuasse a pensar que era ideia dele.
- Acho que Freddy Stone consegue resolver.
- Mas você é o melhor. Quero que Dewey e Bach vejam que a gente não fica de enrolação. Que a gente resolve. Quando tem algum problema, a gente manda nosso melhor
homem. Não um garoto. Leve Stone ou quem você quiser, mas quero que você vá.
- Vou sair agora mesmo.
- Me mantenha informado.
- Pode deixar.
- Eu também preciso ir até o aeroporto pra pegar aquele cara.
- É, o trabalho duro sobra todo pra você.
- Não precisa ficar esfregando na cara.
Ele deu uma palmada no ombro de Carver e voltou pela porta. Carver ficou sentado imóvel por alguns momentos, sentindo a pressão residual em seu ombro. Odiava ser
tocado.
Finalmente, ele se mexeu. Curvou-se em direção à sua tela e digitou o código para desligar o alarme. Confirmou o protocolo e então o deletou.
Carver sacou o celular e apertou um número na discagem automática.
- O que foi? - disse Stone.
- Você continua com o Early?
- É, a gente está construindo a torre.
- Volte aqui pra sala de controle. A gente está com um problema. Na verdade, dois. E vamos precisar cuidar disso. Estou bolando um plano.
- Já estou indo.
Carver fechou o celular com um estalo.

SEIS: A Estrada mais Solitária da América

Às nove da manhã, quarta­-feira, eu estava esperando diante da porta trancada dos escritórios de Schifino & Associates, no quarto andar de um edifício comercial
em Charleston, perto do centro de Las Vegas. Estava cansado e escorreguei as costas pela parede para sentar no piso lindamente acarpetado. Eu me sentia particularmente
miserável numa cidade que, por suposição, deveria inspirar o sucesso.
O início da manhã começara bastante bem. Depois de me registrar no Mandala Bay à meia­-noite, percebi que estava agitado demais para dormir. Desci para o cassino
e tripliquei os duzentos dólares que trouxera comigo nas mesas de roleta e de 21.
O aumento de meu aporte pecuniário, junto com a bebida de graça que tomei enquanto jogava, fez o sono chegar mais fácil quando voltei para o meu quarto. O rumo dos
acontecimentos tomou um dramático curso descendente a partir do momento em que soou o telefone para me acordar. O problema era que eu não havia pedido para ser acordado.
Era a recepção ligando para me dizer que meu American Express fornecido pelo Times fora rejeitado.
- Isso é absurdo - eu disse. - Comprei uma passagem de avião com ele ontem à noite, aluguei um carro na McCarran e não havia problema com ele quando me registrei
aqui. Alguém passou o cartão.
- Certo, senhor, isso é só um procedimento de confirmação. O cartão só é debitado às seis horas na manhã do checkout. Passamos o cartão e ele foi rejeitado. O senhor
poderia descer por favor e nos dar outro cartão?
- Sem problema. Eu queria mesmo acordar pra faturar um pouco mais do dinheiro de vocês.
A questão é que havia um problema, porque meus três outros cartões de crédito também não funcionaram. Todos foram rejeitados e fui forçado a descontar metade das
minhas fichas para sair do hotel. Assim que voltei ao carro que havia alugado, peguei o celular para começar a ligar para as companhias de cartão de crédito uma
por uma. Só que não pude fazer as ligações, pois meu telefone estava mudo, e não era questão de estar em uma área ruim ou sem cobertura. O telefone estava mudo,
sem conexão com o serviço.
Irritado e confuso, mas sem me deixar desanimar, rumei para o endereço de William Schifino que havia localizado. Eu ainda tinha uma reportagem para concluir.
Minutos depois das nove, uma mulher saiu do elevador e veio pelo corredor em minha direção. Notei uma leve hesitação em seus passos quando me viu no chão recostado
contra a porta de Schifino. Fiquei de pé e acenei com a cabeça quando ela se aproximou.
- A senhora trabalha com William Schifino? - eu disse, com um sorriso.
- Isso, sou a recepcionista. O que posso fazer pelo senhor?
- Preciso conversar com o sr. Schifino. Vim de Los Angeles. Eu...
- Tem hora marcada? O sr. Schifino só conversa com possíveis clientes se tiver hora marcada.
- Não tenho hora marcada, mas não sou um possível cliente. Sou um repórter. Quero conversar com o sr. Schifino sobre Brian Oglevy. Ele foi condenado ano passado
por...
- Eu sei quem é Brian Oglevy. Esse caso está sob apelação.
- Certo, sei, sei. Tenho novas informações. Acho que o sr. Schifino vai querer conversar comigo.
Ela parou com a chave a poucos centímetros da porta e voltou o olhar para mim, como que me medindo pela primeira vez.
- Tenho certeza de que vai - eu disse.
- Pode entrar e esperar. Não sei quando ele chega. Ele só tem audiência à tarde.
- Talvez a senhora possa ligar pra ele.
- Talvez.
Entramos no escritório, e ela me indicou um sofá em uma pequena sala de espera. A mobília era confortável e parecia relativamente nova. Tive a sensação de que Schifino
era um advogado bem-sucedido. A recepcionista foi para trás de sua mesa, ligou o computador e começou sua rotina de preparar o dia.
- Vai ligar pra ele? - perguntei.
- Assim que tiver um minuto. Por favor, fique à vontade.
Tentei ficar à vontade, mas não gosto de esperar. Tirei o laptop da minha mala e liguei.
- Vocês têm WiFi aqui? - perguntei.
- Temos.
- Posso usar pra verificar meu e-mail? Vai ser só por alguns minutos.
- Não, receio que não.
Fiquei olhando para ela por um momento.
- Como é?
- Eu disse que não. É um sistema de segurança, e o senhor terá que perguntar ao sr. Schifino sobre isso.
- Bom, será que pode perguntar a ele por mim quando ligar para dizer que estou aqui esperando?
- Assim que possível.
Lançou-me um sorriso de eficiência e voltou a seus afazeres. O telefone tocou e ela abriu um caderno de anotações. Agendou uma reunião para um cliente e lhe disse
quais os cartões de crédito aceitos pelos serviços legais prestados ali. Isso me lembrou minha própria situação com meus cartões de crédito, e peguei uma das revistas
na mesinha de centro para tentar afastar o pensamento da cabeça.
O nome da revista era Nevada Legal Review e era abarrotada de anúncios para advogados e serviços legais como transcrição e armazenamento de dados. Havia também artigos
sobre processos, a maioria lidando com licenças para cassinos ou crimes contra cassinos. Eu avançara vinte minutos numa matéria sobre um ataque jurídico à lei que
impedia bordéis de funcionar em Las Vegas e Clark County quando a porta do escritório foi aberta e um homem entrou. Ele acenou com a cabeça para mim e olhou para
a recepcionista, que continuava ao telefone.
- Um minuto, por favor - disse a recepcionista no telefone.
Apontou para mim.
- Sr. Schifino, esse homem não tem hora marcada. Disse que é repórter de Los Angeles. Ele...
- Brian Oglevy é inocente - eu disse, cortando-a. - E acho que posso provar.
Schifino me examinou por um longo momento. Tinha cabelo escuro e um rosto bonito com um bronzeado desigual, causado pelo uso de um boné de beisebol. Devia ser um
golfista ou um instrutor de golfe. Ou as duas coisas. Seus olhos eram penetrantes, e chegou rapidamente a uma decisão sobre mim.
- Então acho que é melhor me acompanhar ao escritório - disse.
Eu o segui até seu escritório, e ele sentou atrás de uma grande mesa, sinalizando que eu sentasse do outro lado.
- Você trabalha para o Times? - perguntou.
- Isso.
- Um bom jornal, mas tem um bocado de problemas ultimamente. Financeiros.
- É, os problemas são sempre os mesmos.
- Bom, como foi que você chegou à conclusão, lá em Los Angeles, de que meu cliente aqui é um homem inocente?
Ofereci a ele meu melhor sorriso de patife.
- Bom, não posso afirmar isso com certeza, mas eu tinha que entrar aqui pra gente conversar. Mas o que eu tenho é o seguinte. Tem um garoto por lá amargando a cadeia
por um homicídio que acho que não cometeu. Pra mim, os detalhes são muito parecidos com os desse seu caso Oglevy, pelo menos os detalhes que eu conheço. Só que meu
caso aconteceu duas semanas atrás.
- Então, se forem iguais, meu cliente tem um álibi óbvio e deve ter uma terceira parte agindo.
- Exato.
- Tudo bem, vamos ver o que você tem.
- Bom, eu esperava poder ver o que você tem, também.
- Muito justo. Meu cliente está na prisão e acho que não vai se preocupar muito com a prerrogativa advogado­-cliente a essa altura, não se minha troca de informação
puder ajudar no caso dele. Além do mais, a maior parte do que vou dizer está disponível nos registros do tribunal.
Schifino puxou suas pastas e começamos uma sessão de toma lá dá cá. Contei para ele tudo que eu sabia sobre Winslow e mantive um grau de reserva na empolgação conforme
avançamos pelos boletins criminais. Mas, quando passamos a uma comparação minuciosa das fotos de cena do crime, a adrenalina tomou conta de mim e achei difícil me
conter. As fotos do caso Oglevy não só batiam inteiramente com as de Babbit, como também as vítimas tinham uma semelhança espantosa.
- É incrível! - eu disse. - É como se fosse a mesma mulher.
Ambas eram morenas com grandes olhos castanhos, nariz curto e corpo longilíneo de dançarinas. Na mesma hora, me bateu uma sensação muito forte de que aquelas mulheres
não haviam sido encontradas aleatoriamente pelo assassino. Haviam sido escolhidas a dedo. Compunham algum tipo de modelo que fizera delas um alvo.
Schifino seguia por esse mesmo caminho. Ele apontava as fotos uma a uma, enfatizando as similaridades nas cenas de crime. Ambas as mulheres haviam sido sufocadas
com um saco plástico, amarrado ao pescoço com um fino cordão branco. Ambas colocadas nuas e de frente para o interior do carro, no porta-malas, e com as roupas simplesmente
largadas por cima do corpo.
- Meu Deus... Olha só isso - ele disse. - Esses crimes são absolutamente idênticos, e não precisa ser nenhum especialista pra ver isso. Vou dizer uma coisa, Jack.
Quando você entrou aqui, achei que seria a diversão da minha manhã. A piada do dia. Um jornalista miolo mole perseguindo uma história despirocada. Mas isso... -
Fez um gesto na direção das fotos dispostas lado a lado sobre a mesa. - Estou com a liberdade do meu cliente bem aqui. Ele vai sair!
Ele continuava de pé atrás de sua mesa, empolgado demais para sentar.
- Como isso foi acontecer? - perguntei. - Como deixaram uma coisa dessas passar?
- Porque os casos foram resolvidos com rapidez - disse Schifino. - Nos dois casos, a polícia foi conduzida a um suspeito óbvio e não procurou mais. Não procuraram
similaridades porque não precisavam. Tinham seus suspeitos e fim de papo.
- Mas como o assassino pensou em pôr o corpo de Sharon Oglevy no porta-malas do ex­-marido? Como é que ele ia saber onde encontrar o carro?
- Não faço ideia, mas isso não vem ao caso. A questão é que esses dois assassinatos são de um padrão tão semelhante que simplesmente não existe como responsabilizar
nem Brian Oglevy, nem Alonzo Winslow. Os outros detalhes vão se encaixar quando a real investigação começar. Mas, por enquanto, não tenho a menor dúvida de que você
está expondo um negócio grande aqui. Quer dizer, como saber se são só essas duas? Pode ter mais.
Balancei a cabeça. Não havia pensado nessa possibilidade. A pesquisa de Angela Cook só chegara ao caso de Oglevy. Mas dois casos formam um padrão. Podia haver mais.
- O que você vai fazer agora? - eu perguntei.
Schifino finalmente sentou. Girou de um lado para outro em sua cadeira enquanto considerava a questão.
- Vou redigir uma petição e dar entrada no pedido de habeas corpus. Essa informação nova é prova de inocência, e quero levar isso para um tribunal aberto.
- Mas eu não deveria ter esses arquivos. Você não pode mencionar.
- Claro que posso. O que não preciso é dizer onde consegui.
Franzi o rosto. Eu seria a fonte óbvia, assim que minha reportagem fosse publicada.
- Quanto tempo vai levar pra você entrar com isso no tribunal?
- Tenho que pesquisar umas coisas, mas até o final da semana dou entrada na petição.
- Isso vai estragar minha matéria. Não sei se vou estar pronto pra publicar até lá.
Schifino ergueu as mãos num gesto amplo e balançou a cabeça.
- Meu cliente está em Ely faz mais de um ano. Você sabia que as condições naquela prisão são tão ruins que, mais de uma vez, os prisioneiros no corredor da morte
desistiram da apelação e se ofereceram pra ser executados, só pra saírem de lá? Cada dia que ele continua lá dentro é mais um dia que passou da hora.
- Eu sei, eu sei. É só que...
Parei para pensar um pouco e não havia como justificar manter Brian Oglevy na prisão mais um dia sequer, só para que eu tivesse tempo de planejar e escrever minha
reportagem. Schifino tinha razão.
- Ok, então quero ficar sabendo no minuto que você entrar com a petição - eu disse. - E quero conversar com o seu cliente.
- Sem problema. Você tem uma exclusiva assim que ele estiver do lado de fora.
- Não, não depois. Agora. Vou escrever a reportagem que livrou ele e Alonzo Winslow. Quero conversar hoje mesmo. Como faço isso?
- Ele está em segurança máxima e, a menos que você esteja na lista, não vai conseguir ver ele.
- Você consegue me colocar lá dentro, não consegue?
Schifino sentava atrás do porta-aviões que ele chamava de mesa. Ergueu a mão para o queixo, pensou na questão e aquiesceu com a cabeça.
- Eu consigo colocar você dentro. Só preciso mandar um fax para a prisão dizendo que você é um investigador trabalhando pra mim, e você fica autorizado a se comunicar
com Brian. Daí eu escrevo uma carta a­-quem­-interessar­-possa pra você levar, e isso vai servir de identificação de que você está trabalhando pra mim. Se você trabalha
pra um advogado, não precisa de licença do governo. É só carregar a carta e mostrar no portão. Com isso, você entra.
- Tecnicamente, não trabalho pra você. Meu jornal tem regulamentos sobre jornalistas se fazendo passar por outra coisa.
Schifino levou a mão ao bolso e puxou seu dinheiro. Empurrou um dólar sobre a mesa para mim. Estiquei o braço entre as fotos de cena do crime para apanhá-lo.
- Aí está - ele disse. - Acabei de pagar um dólar. Você trabalha pra mim.
Isso não era aceitável, na verdade, mas não me preocupei muito, considerando minha situação no emprego.
- Acho que dá pra ser - eu disse. - Ely fica muito longe?
- Dependendo do jeito como você dirige, é a três ou quatro horas ao norte daqui. Fica no meio do nada, e chamam a estrada que vai pra lá de a estrada mais solitária
da América. Não sei se é porque dá na prisão ou se é por causa da paisagem que você atravessa, mas ninguém a chama assim sem um bom motivo. Eles têm um aeroporto.
Você pode pegar um sand jumper pra lá.
Presumi que sand jumper fosse o mesmo que puddle jumper, um teco­-teco. Balancei a cabeça, recusando. Eu havia escrito matérias demais sobre aviõezinhos que caíam.
Eu não voava em um deles a menos que fosse estritamente necessário.
- Vou de carro. Pode escrever as cartas. E vou precisar de cópias de tudo que você tem nos arquivos.
- Vou redigir as cartas e pedir para a Agnes começar a xerocar. Vou precisar de cópias do que você tem, pra petição de habeas corpus. Podemos dizer que foi o que
o meu dólar comprou.
Balancei a cabeça e pensei, "É, põe a metida da Agnes pra trabalhar pra mim. Vai ser ótimo".
- Deixa eu te perguntar uma coisa - eu disse.
- Fala.
- Antes de eu entrar aqui e mostrar tudo isso, você achava que Brian Oglevy fosse culpado?
Schifino jogou a cabeça para trás enquanto pensava.
- Extraoficialmente?
Dei de ombros. Não era o que eu queria, mas, que fosse.
- Se esse é o único jeito de você me responder, tudo bem.
- Ok, oficialmente, pode dizer que eu sabia que Brian era inocente desde o primeiro dia. Não tinha como ele ter cometido esse crime horrível.
- E extraoficialmente?
- Eu achava que ele era culpado até o último fio de cabelo. Era o único jeito de eu viver com o fato de que tinha perdido o caso.

Depois de parar no 7­-Eleven e comprar um celular pré­-pago com cem minutos de ligações, tomei a direção norte através do deserto pela Highway 93, rumo à Ely State
Prison.
A Highway 93 passava pela Nellis Air Force Base e depois se conectava com a 50 North. Não demorou para eu começar a entender por que ela era conhecida como a estrada
mais solitária da América. O deserto vazio dominava o horizonte em todas as direções. Cadeias montanhosas áridas, denteadas, estéreis, sem o menor traço de verde,
erguiam-se e sumiam conforme eu rodava. Os únicos sinais de civilização eram a pista de mão dupla e os fios de alta tensão, sustentados acima das montanhas por esqueléticas
silhuetas de ferro que pareciam gigantes de outro planeta.
As primeiras ligações que fiz com meu novo celular foram para as companhias de cartão de crédito, querendo saber por que meus cartões não estavam funcionando. Em
todas elas, obtive sempre a mesma resposta: eu havia informado o roubo do cartão na noite anterior, desse modo cancelando temporariamente o uso da conta. Eu fizera
isso via on-line, respondendo todas as questões de segurança corretamente e comunicando o roubo.
Não fez diferença eu dizer a eles que não havia informado nenhum roubo dos cartões. Alguma outra pessoa o fizera, e esse alguém tivera conhecimento dos números da
minha conta, bem como do meu endereço residencial, data de nascimento, nome de solteira de minha mãe e número do Seguro Social. Pedi que as contas fossem reabertas
e as atendentes o fizeram com a maior alegria. O único porém era que os novos cartões de crédito com os novos números tinham de ser emitidos e enviados para minha
casa. Isso levaria dias e, nesse meio­-tempo, meu crédito era zero. Estavam me fodendo de um jeito que eu nunca experimentara antes.
Em seguida, liguei para meu banco em Los Angeles e descobri uma variação do mesmo esquema, mas com um impacto mais profundo. A boa notícia era que meu cartão de
débito ainda funcionava. A má notícia era que eu não tinha dinheiro algum para sacar, nem na poupança, nem na conta­-corrente. Na noite anterior, eu usara o bankline
para passar o dinheiro da poupança para a conta-corrente, e depois fizera uma transferência do total para a Make­-A­-Wish Foundation, na forma de uma doação geral.
Eu estava quebrado. Mas a Make­-A­-Wish Foundation sem dúvida me adorava.
Desliguei e gritei o mais alto que pude dentro do carro. O que estava acontecendo? Havia histórias o tempo todo no jornal sobre identidades roubadas. Mas dessa vez
a vítima era eu, e eu estava achando difícil de acreditar.
Às 11, liguei para a editoria de cidade e descobri que a intrusão e destruição havia alcançado mais um grau. Falei com Alan Prendergast e sua voz estava tensa de
energia nervosa. Eu sabia por experiência que isso o fazia repetir as coisas.
- Onde você tá, onde você tá? A gente tem aquele negócio dos pastores e não consigo encontrar ninguém.
- Eu falei, estou em Vegas. Onde est...
- Vegas! Vegas? O que você está fazendo em Vegas?
- Você não recebeu o meu recado? Eu mandei um e-mail pra você ontem, antes de sair.
- Não recebi. Ontem você simplesmente desapareceu, mas não interessa. O que interessa é hoje. O que interessa é agora. Me diz que você tá no aeroporto, Jack, e que
vai estar de volta a Los Angeles daqui a uma hora.
- Na verdade, não estou no aeroporto e tecnicamente não estou mais em Vegas. Estou na estrada mais solitária da América, indo pro meio do nada. O que os pastores
estão fazendo?
- O que mais? Estão organizando a porra de uma manifestação em Rodia Gardens pra protestar contra o DPLA, e a história vai correr o país todo. Mas você está em Vegas,
e a Angela Cook não está em lugar nenhum. O que você tá fazendo aí, Jack? O que você tá fazendo aí?
- Eu falei no e-mail que você não leu. O lance é...
- Eu olho meu e-mail o tempo todo - cortou Prendergast. - Não recebi nenhum e­-mail de você. Nenhum e-mail.
Eu já ia dizer que ele estava errado, mas pensei nos meus cartões de crédito. Se alguém conseguia detonar meu crédito e limpar minhas contas no banco, então talvez
tivesse conseguido detonar meu e-mail também.
- Olha, Prendo, tem alguma coisa acontecendo. Meus cartões de crédito não funcionam, meu celular não funciona e agora você está me dizendo que o meu e-mail não chegou
pra você. Alguma coisa não está certa aqui. Eu...
- Pela última vez, Jack. O que você tá fazendo em Nevada?
Soprei o ar dos pulmões e olhei pela janela lateral. Vi a paisagem inóspita que não mudara em todo o tempo que a humanidade dominara o planeta, e que permaneceria
imutável muito depois que a humanidade houvesse partido.
- A história de Alonzo Winslow mudou - eu disse. - Descobri que não foi ele.
- Não foi ele? Não foi ele? Você tá falando do assassinato daquela garota? Do que você tá falando, Jack?
- É, a garota. Não foi ele. Ele é inocente, Alan, e eu posso provar.
- Ele confessou, Jack. Li isso na sua matéria.
- É, porque foi isso que os tiras disseram. Mas eu li a tal da confissão e tudo que ele confessou foi o roubo do carro e do dinheiro dela. Ele não sabia que o corpo
estava no porta-malas quando roubou.
- Jack...
- Escuta, Prendo, eu liguei o assassinato com outro assassinato em Vegas. Foi a mesma coisa. Uma mulher estrangulada e enfiada em um porta-malas. Ela era dançarina,
também. Aqui também tem um cara na prisão por causa disso, e ele é inocente. Estou indo ver ele agora mesmo. Vou ter que cobrir e escrever tudo isso até quinta.
A gente precisa publicar na sexta, porque depois disso todo mundo vai ficar sabendo.
Houve um longo silêncio.
- Prendo? Você tá aí?
- Estou aqui, Jack. A gente precisa conversar sobre isso.
- Achei mesmo que precisava. Onde está a Angela? Ela é que devia cuidar dos pastores. Quem está cobrindo a área hoje é ela.
- Se eu soubesse onde a Angela está, eu teria mandado ela e um fotógrafo pra Rodia Gardens. Ela ainda não chegou. Me disse ontem à noite, antes de ir pra casa, que
ia parar em Parker Center e fazer o giro da manhã antes de aparecer. O problema é que ela não apareceu.
- Provavelmente está por aí tentando conseguir alguma coisa sobre Denise Babbit. Você ligou pra ela?
- Claro que liguei. Liguei um monte de vezes. Deixei recado, mas ela não retornou. Provavelmente acha que você está aqui e está ignorando as minhas ligações.
- Olha, Prendo, isso é maior que a manifestação do Pregador Treacher, tá bom? Põe um repórter geral lá. Isso aqui é gigante. Tem um assassino por aí que passou completamente
batido pelos radares da polícia, do FBI, de todo mundo. Tem um advogado aqui em Vegas que vai entrar com um requerimento na sexta e desmascarar a história toda.
A gente precisa chegar antes dele e de todo mundo. Vou conversar com esse sujeito que está na prisão e depois eu volto. Não sei quando eu chego. Vai ser uma longa
viagem de carro voltando pra Vegas antes de eu conseguir pegar o avião. Com sorte, a minha passagem de volta ainda vai valer. Comprei antes que alguém cancelasse
meus cartões de crédito.
Outra vez silêncio.
- Prendo?
- Olha, Jack - ele disse, com calma na voz pela primeira vez nessa conversa. - Nós dois sabemos da situação e do que está rolando aqui. Você não vai poder mudar
nada.
- Do que você tá falando?
- Da demissão. Se você pensa que vai encontrar uma reportagem que vai salvar o seu emprego, acho que não vai funcionar.
Agora eu fazia silêncio enquanto a raiva subia por minha garganta.
- Jack, você tá aí? Você tá aí?
- É, estou aqui, Prendo, e minha única resposta pra você é vai tomar no cu. Não estou inventando essa história, cara. Isso tá acontecendo! Estou aqui no meio do
nada e não faço ideia de quem está fodendo com a minha vida, nem por quê.
- Ok, ok, Jack. Calma. Vamos ter calma, tá bom? Não estou sugerindo que você...
- Não tá o cacete! Sugeriu sim. Você acabou de dizer.
- Olha, não vou responder se você continuar falando comigo nesse tom. Será que dá pra gente conversar de um jeito civilizado, por favor? Um jeito civilizado.
- Olha, Prendo, tenho outras ligações pra fazer. Se você não quer a história ou acha que a história é inventada, então encontro alguém que vai pôr ela no jornal,
ok? A última coisa que eu esperava era que meu próprio ás fosse tentar quebrar as minhas pernas enquanto eu estou me fodendo aqui nesse vento do cacete.
- Não, Jack, não é nada disso.
- Acho que é, Prendo. Então vai tomar no cu, cara. Depois a gente conversa.
Desliguei o telefone e quase joguei pela janela. Mas daí eu lembrei que não tinha dinheiro pra comprar outro. Dirigi em silêncio por alguns minutos, tentando me
recompor. Eu tinha mais uma ligação pra fazer e queria parecer frio e calmo quando fizesse.
Olhei através da janela e observei as montanhas cinza­-azuladas. Achava a paisagem bonita de um jeito primitivo e rude. Geleiras haviam trazido à tona e recortado
aquelas montanhas 10 milhões de anos antes, mas elas sobreviveram e continuariam eternamente se projetando na direção do sol.
Peguei meu celular inoperante no bolso e abri a lista de contatos. Achei o número do FBI em Los Angeles e o digitei no pré­-pago. Quando a telefonista atendeu, pedi
para falar com Rachel Walling. Fui transferido e levou algum tempo para passarem a ligação, mas quando chamou, atenderam imediatamente.
- Inteligência - disse uma voz masculina.
- Quero falar com a Rachel.
Disse isso do modo mais calmo possível. Não pedi a agente Rachel Walling dessa vez, porque não queria que me perguntassem quem era e possivelmente lhe dar a chance
de rejeitar minha ligação. Tinha esperança de parecer um agente e de que meu telefonema fosse atendido.
- Agente Walling.
Era ela. Fazia alguns anos desde que escutara sua voz ao telefone, mas não havia dúvida.
- Alô? Aqui é Walling, em que posso ajudar?
- Rachel, sou eu. Jack.
Agora era a vez dela de ficar em silêncio.
- Tudo bem com você?
- Por que está me ligando, Jack? A gente concordou que seria melhor não se falar mais.
- Sei disso... Mas preciso da sua ajuda. Estou com um problema, Rachel.
- E espera que eu te ajude? Que tipo de problema?
Um carro me ultrapassou a pelo menos 120 por hora, me deixando com a sensação de que eu estava parado.
- É uma longa história. Estou em Nevada. No deserto. Estou atrás de uma história e tem um assassino à solta que ninguém ouviu falar. Preciso de alguém que acredite
em mim e me ajude.
- Jack, eu sou a pessoa errada e você sabe disso. Não posso ajudar. E estou no meio de uma coisa aqui. Preciso desligar.
- Rachel, não desliga! Por favor...
Ela não respondeu de cara, mas não desligou. Esperei.
- Jack... A sua voz está horrível. O que tá acontecendo com você?
- Não sei. Alguém está fodendo comigo. Meu celular, meu e-mail, minhas contas no banco... Estou dirigindo no meio do deserto e não tenho nem um cartão de crédito
funcionando.
- Pra onde você está indo?
- Ely, preciso conversar com um cara.
- A prisão?
- Isso mesmo.
- O que foi, alguém te procurou e disse que era inocente e você foi correndo, esperando mostrar pros tiras de verdade que eles estão errados outra vez?
- Não, nada a ver. Olha, Rachel, esse sujeito está estrangulando mulheres e enfiando no porta-malas de carros. Ele faz coisas pavorosas com elas e vem se safando
faz pelo menos dois anos.
- Jack, eu li as suas reportagens sobre a garota no porta-malas. Era um membro de gangue e ele confessou.
Senti um calor inesperado ao saber que ela havia lido o que eu escrevera. Mas isso não ia me ajudar a convencê-la.
- Não acredite em tudo que você lê no jornal, Rachel. Estou perto da verdade agora e preciso que alguém - alguém do lado da lei - dê uma investigada e...
- Você sabe que eu não estou mais na Unidade de Análise Comportamental. Por que me ligou?
- Porque posso confiar em você.
Isso provocou um longo silêncio. Me recusei a ser o primeiro a quebrá-lo.
- Como pode dizer uma coisa dessas? - ela falou, finalmente. - A gente não se vê há muito, muito tempo.
- Não importa. Depois do que a gente passou juntos, sempre vou confiar em você, Rachel. E sei que você pode me ajudar agora... E quem sabe compensar algumas coisas
você mesma.
Ela bufou de desprezo.
- Do que você tá falando? Não... Espera, não responde. Não faz diferença. Por favor, não me liga outra vez, Jack. Eu não posso ajudar. Então boa sorte e veja por
onde anda. Se cuida.
Ela desligou.
Segurei o celular em meu ouvido durante quase um minuto depois que ela desligou. Acho que tinha esperança de que mudasse de ideia, pegasse o telefone e me ligasse
de volta. Mas isso não aconteceu, e depois de algum tempo eu larguei o aparelho no console entre os bancos. Não tinha mais ligações para fazer.
Bem à frente, o carro que me ultrapassara desapareceu além do horizonte montanhoso. Me senti como se tivesse sido deixado sozinho na superfície da lua.

Como acontece com a maioria das pessoas que passa pelos portões da Ely State Prison, minha sorte não mudou para melhor quando cheguei ao meu destino. Fui admitido
na entrada dos advogados/investigadores. Apanhei a carta de apresentação que William Schifino escrevera para mim e mostrei-a ao chefe da guarda. Fui conduzido a
uma sala de espera e, durante vinte minutos, aguardei que alguém me trouxesse Brian Oglevy. Mas quando a porta abriu, foi o chefe da guarda quem entrou. Nada de
Brian Oglevy.
- Senhor McEvoy - disse o chefe, pronunciando meu nome errado. - Lamento dizer que hoje não vai ser possível.
De repente achei que havia sido desmascarado. Que descobriram que eu era um repórter trabalhando numa matéria, não um investigador para um advogado de defesa.
- Como assim? Estava tudo arranjado. Tenho a carta do advogado. O senhor viu. Ele também mandou um fax dizendo que eu viria.
- É, a gente recebeu o fax e eu estava preparado para receber o senhor, mas o homem que o senhor quer ver não está disponível no momento. Volte amanhã que você vai
ter sua visita.
Balancei a cabeça furiosamente. Todos os problemas do dia estavam prestes a ferver e transbordar e aquele guarda ia sair queimado.
- Olha, acabo de dirigir quatro horas desde Vegas pra ter essa conversa. Você tá me dizendo pra voltar e fazer tudo isso de novo amanhã? Não posso...
- Não estou dizendo para o senhor voltar para Vegas. Se eu fosse o senhor, iria até a cidade e ficaria no hotel Nevada. Não é um lugar ruim. Eles têm um salão de
jogos e um bar animado na maioria das noites. Pode pernoitar lá e voltar aqui amanhã de manhã. O seu homem vai estar pronto. Isso eu garanto.
Balancei novamente a cabeça, sentindo minha impotência em relação a tudo. Eu não tinha escolha.
- Nove horas - eu disse. - E o senhor vai estar aqui?
- Venho pessoalmente cuidar disso.
- Pode me dizer por que não posso ver ele hoje?
- Não, não posso. É uma questão de segurança.
Uma última vez, balancei a cabeça de frustração.
- Obrigado, capitão. A gente se vê amanhã.
- Estaremos aqui.
Depois de voltar para meu carro alugado, consultei o hotel Nevada em Ely no GPS e segui as instruções até chegar lá, em meia hora. Parei no estacionamento e esvaziei
os bolsos antes de decidir descer. Eu tinha 248 dólares em dinheiro e sabia que precisava separar pelo menos 75 dólares da gasolina para voltar ao aeroporto em Vegas.
Podia economizar na comida até chegar em casa, mas precisaria de mais 40 dólares para o táxi do aeroporto até minha casa. Então calculei que me sobravam uns cem
paus para o hotel. Dando uma olhada nos seis andares malcuidados, imaginei que isso não seria um problema. Desci, peguei minha bagagem e entrei.
Escolhi um quarto de 45 dólares a noite no quarto andar. Era arrumado e limpo, e a cama, razoavelmente confortável. Eram apenas quatro da tarde, cedo demais para
aplicar o que restava da minha fortuna em álcool. Então apanhei meu celular pré­-pago e comecei a devorar os minutos restantes. Primeiro liguei para Angela Cook,
tentando tanto o celular dela como sua mesa na redação, sem sucesso. Deixei o mesmo recado duas vezes, depois engoli meu orgulho e liguei de novo para Alan Prendergast.
Pedi desculpas por minha explosão de antes e pelos palavrões. Tentei explicar calmamente o que estava acontecendo e a pressão que eu vinha sofrendo. Ele respondeu
com monossílabos e disse que tinha uma reunião para ir. Eu disse a ele que lhe mandaria um lide de planejamento para a matéria revisada se conseguisse me conectar,
e ele disse que não precisava ter pressa.
- Prendo, a gente precisa pôr isso no jornal da sexta, senão todo mundo vai saber.
- Olha, eu conversei sobre isso na reunião de pauta. A gente quer ir com calma. Você está por aí atravessando o deserto, a Angela não dá notícia e, francamente,
a gente tá preocupado. Ela devia ter aparecido. Então o que eu quero que você faça é voltar pra cá o mais rápido possível. Aí a gente senta junto e vê o que tem
na mão.
Eu poderia ter ficado furioso outra vez por causa do modo como estava sendo tratado, mas alguma coisa mais urgente transpirou nas palavras dele. Angela.
- Vocês não receberam nenhum recado dela o dia todo?
- Nenhum. Mandei um repórter ao apartamento dela pra ver se ela estava lá, mas ninguém atendeu. A gente não faz nem ideia de onde ela esteja.
- Isso já aconteceu antes?
- Ela já ligou algumas vezes no fim do dia, dizendo que estava doente. Provavelmente ressaca ou coisa assim. Mas pelo menos ligou. Só que, dessa vez, nada.
- Olha, se alguém tiver notícia dela, me avisa, tá bom?
- Pode deixar, Jack.
- Ok, Prendo. A gente conversa quando eu voltar.
- Tem trocado aí? - perguntou Prendergast, a título de cachimbo da paz.
- Um pouco - falei. - A gente se vê.
Fechei o celular e pensei nesse negócio de Angela desaparecer. Comecei a me perguntar se havia algumllla ligação entre tudo aquilo que estava acontecendo. Meus cartões
de crédito, todo mundo sem notícia de Angela. Parecia um pouco forçado, pois eu não conseguia ver onde uma coisa se ligava à outra.
Passei os olhos pelo quarto de 45 dólares. Havia um pequeno folheto no criado-mudo dizendo que o hotel tinha mais de 75 anos de idade e chegou a ser o edifício mais
alto de Nevada. Isso foi na época em que a mineração de cobre fizera de Ely uma cidade próspera e ninguém ouvira falar de Las Vegas. Esses dias eram um passado remoto.
Liguei meu laptop e usei o WiFi gratuito do hotel para tentar entrar em minha conta de e-mail. Mas minha senha não foi aceita após três tentativas e fui bloqueado.
Sem dúvida quem cancelara meus cartões de crédito e meu serviço de celular também mudara minha senha.
- Isso é absurdo - eu disse em voz alta.
Incapaz de fazer contato externo, me concentrei no interno. Cliquei numa pasta no laptop e abri minhas anotações por escrito. Comecei a escrever uma narrativa resumindo
os eventos do dia. Levou bem mais de uma hora para completar o texto, mas, quando terminei, tinha cerca de 80 centímetros de reportagem. Uma reportagem boa e sólida.
Talvez minha melhor em vários anos.
Depois de reler e copidescar alguns trechos, percebi que o trabalho me dera fome. Então contei meu dinheiro mais uma vez e deixei o quarto, verificando muito bem
se a porta estava trancada quando saí. Atravessei um salão de jogos e parei no bar perto dos caça-níqueis. Pedi uma cerveja e um sanduíche de filé e sentei em uma
mesa do canto, com visão desimpedida das máquinas de extorquir dinheiro.
Olhando em volta, vi que o lugar tinha uma aura de desespero de quinta, e a ideia de passar mais 12 horas ali me deprimiu. Mas eu não estava diante de um tremendo
leque de oportunidades. Estava preso ali e continuaria preso até a manhã seguinte.
Verifiquei minha reserva de dinheiro outra vez e decidi que tinha o suficiente para mais uma cerveja e uma rodada nas máquinas de jogo. Me ajeitei numa fileira perto
da entrada e comecei a enfiar meu dinheiro numa máquina de videopôquer. Perdi as sete primeiras mãos antes de acertar um full house. Depois disso, consegui um flush
e um straight. Logo já estava pensando se não poderia me dar ao luxo de mais uma cerveja.
Outro jogador sentou a duas máquinas da minha. Mal o notei até ele decidir que apreciava o consolo da conversa enquanto perdia seu dinheiro.
- E aí, veio atrás de uma boceta? - perguntou, animadamente.
Olhei para ele. Tinha cerca de 30 anos e enormes suíças. Usava um velho chapéu de caubói no cabelo loiro ensebado, luvas de dirigir de couro e óculos espelhados,
mesmo num ambiente fechado.
- Como é?
- Dizem que tem uns bordéis perto da cidade. Eu queria saber qual dos dois tem as melhores bocetas. Acabei de chegar de Salt Lake.
- Não sei dizer, cara.
Voltei à minha máquina e tentei me concentrar em que cartas devia manter e quais trocar. Eu tinha o ás, três, quatro e nove de espadas junto com o ás de copas. Tento
o flush ou faço um jogo conservador, pegando o par e esperando um terceiro ás ou outro par?
- Pássaro na mão, cara - disse o Suíças.
Olhei na direção dele e o sujeito acenou com a cabeça, como que dizendo que não cobraria nada pelo sábio conselho. Dava para ver o reflexo da minha tela em seus
óculos espelhados. Tudo que eu precisava era de alguém me ensinando a jogar videopôquer. Fiquei com as espadas, deixei o ás de copas e apertei o botão de trocar.
O deus-máquina me deu outra carta. Era um valete de espadas e recebi sete para um belo flush. Maldita hora em que só apostei trocados.
Apertei o botão para receber meu dinheiro e escutei o melodioso som dos quartos de dólar deslizando para a bandejinha metálica. Joguei tudo num copo grande de plástico
e me levantei, deixando o Suíças para trás.
Levei minhas moedas para o guichê e troquei o dinheiro. Meu apetite para o jogo miúdo se fora. Eu ia investir meus proventos em duas outras cervejas e subir com
elas para o meu quarto. Dava para escrever mais um pouco, além de me preparar para a conversa do dia seguinte. Eu ia conversar com um homem que estivera na prisão
por mais de um ano, por um crime que eu estava convencido de que ele não cometera. Seria um dia maravilhoso, o início auspicioso do sonho de todo jornalista de libertar
um homem inocente de uma prisão injusta.
Enquanto eu esperava o elevador no saguão, fiquei com as garrafas meio escondidas na lateral do corpo, caso estivesse quebrando algum tipo de regra da casa. Entrei,
apertei o botão e fui para o canto. As portas começaram a se fechar, mas de repente uma mão enluvada se intrometeu, interrompeu o infravermelho e as portas voltaram
a abrir.
Meu amigão Suíças entrou. Ele ergueu um dedo para apertar o botão, mas então recuou.
- Ih, a gente tá no mesmo andar - ele disse.
- Maravilha - eu disse.
Ele foi para o canto oposto do elevador. Eu sabia que ele ia dizer alguma coisa e não havia para onde eu correr. Só fiquei esperando e ele não me decepcionou.
- Ei, meu velho, não quis cortar seu barato lá embaixo. Minha ex sempre dizia que eu falava demais. Talvez seja por isso que ela é minha ex.
- Não esquenta com isso - eu disse. - Tou precisando terminar um trabalho.
- Então tá aqui a trabalho, hein? Que tipo de negócio pode ter trazido você pra um lugar esquecido do mundo como esse?
Lá vamos nós outra vez, pensei. O elevador subia tão devagar que teria sido mais rápido pegar as escadas.
- Tenho um compromisso amanhã na prisão.
- Saquei. Você é advogado de um daqueles caras?
- Não. Jornalista.
- Hmm, escritor, hein? Bom, boa sorte. Pelo menos você volta pra casa depois, ao contrário daqueles caras lá dentro.
- É, sorte minha.
Me aproximei da porta quando chegamos ao quarto andar, um sinal claro de que, de minha parte, a conversa terminara e que eu queria ir para o meu quarto. O elevador
parou de se mover e pareceu um tempo interminável até as portas finalmente começarem a abrir.
- Boa noite - eu disse.
Desci rapidamente do elevador e virei à esquerda. Meu quarto era a terceira porta.
- Pra você também, parceiro - ouvi o Suíças dizendo atrás de mim.
Tive de trocar as garrafas de cerveja de mão para conseguir pegar a chave. Enquanto estava diante da porta, tirando-a do bolso, vi o Suíças vindo pelo corredor em
minha direção. Virei e olhei para o lado direito. Havia apenas mais três quartos depois e então a escada de saída. Tive o mau pressentimento de que aquele sujeito
acabaria batendo em minha porta no meio da noite, me convidando para descer e tomar uma cerveja ou sair para pegar uma boceta. A primeira coisa que planejei fazer
foi guardar minhas coisas, ligar para a recepção e trocar de quarto. Ele não sabia meu nome e não conseguiria me encontrar.
Finalmente consegui enfiar a chave na fechadura e abrir a porta. Olhei para o Suíças atrás de mim e fiz um último aceno de cabeça. Seu rosto se abriu num sorriso
estranho quando se aproximou.
- Oi, Jack - disse uma voz dentro do quarto.
Virei de repente para dar com uma mulher se levantando da cadeira junto à janela em meu quarto. E reconheci imediatamente Rachel Walling. Tinha uma expressão toda
eficiente no rosto. Percebi a presença do Suíças às minhas costas a caminho de seu quarto.
- Rachel? - eu disse. - O que você tá fazendo aqui?
- Por que não entra e fecha a porta?
Ainda pasmo com a surpresa, fiz como disse. Fechei a porta atrás de mim. De algum lugar no corredor, escutei outra porta sendo fechada ruidosamente. Suíças entrara
em seu quarto.
Cautelosamente, avancei pelo quarto.
- Como você chegou aqui?
- Senta aí que eu vou explicar tudo.

Doze anos antes eu tivera um relacionamento curto, intenso e, alguns poderiam dizer, impróprio com Rachel Walling. Embora eu tivesse visto fotos dela nos jornais
alguns anos antes, na época em que ela ajudou o DPLA a caçar e matar um homem procurado em Echo Park, eu não a via pessoalmente desde que nos sentáramos em uma sala
de audiências quase uma década atrás. Mesmo assim, não passaram muitos dias nesses dez anos sem que eu pensasse nela. Ela era um dos motivos - talvez o maior motivo
- por que sempre considerei essa época o ponto alto da minha vida.
Ela não acusava muitos sinais do tempo que se passara, embora eu soubesse que haviam sido anos difíceis. O preço de seu relacionamento comigo fora um período de
cinco anos em um escritório solitário em Dakota do Sul. Ela passou de uma psicóloga e caçadora de serial killers para investigadora de brigas com faca em bares de
reservas indígenas.
Mas ela escalou as paredes desse buraco e conseguiu um lugar em Los Angeles pelos cinco anos seguintes, trabalhando para uma espécie de unidade de inteligência secreta.
Eu havia ligado para ela quando soube, consegui entrar em contato, mas fui repelido. Desde então, eu vinha me mantendo a par de seus movimentos, sempre que possível,
de longe. E agora lá estava ela, diante de mim em meu quarto de hotel no meio do nada. Era estranho, às vezes, como a vida funcionava.
À parte a surpresa por sua presença, não conseguia parar de encará-la e sorrir. Ela manteve a fachada profissional, mas pude perceber seus olhos sobre mim. Não é
sempre que a pessoa se vê frente a frente com um amor tão antigo.
- Quem era esse com você? - ela perguntou. - Você tá com um fotógrafo nessa reportagem?
Virei e olhei para a porta.
- Não, estou sozinho. E não sei quem é o sujeito. Só alguém que puxou conversa comigo lá embaixo na sala de jogos. Foi pro quarto dele.
Ela passou abruptamente por mim, abriu a porta e olhou os dois lados do corredor antes de entrar de novo e fechar a porta.
- Qual o nome dele?
- Não sei. Não foi uma conversa de verdade.
- Em que quarto ele está?
- Também não sei. O que está acontecendo? Por que você entrou no meu quarto?
Apontei a cama. Meu laptop estava aberto e o texto impresso de minhas anotações estava espalhado, junto com as cópias dos arquivos do caso que eu obtivera com Schifino
e também com Meyer, além das matérias impressas por Angela Cook da pesquisa na internet. A única coisa faltando sobre a colcha era a transcrição do interrogatório
de Winslow, e isso só porque era pesado demais para eu ter carregado comigo.
Eu não havia deixado tudo esparramado sobre a cama daquele jeito.
- E você andou fuçando as minhas coisas? Rachel, eu pedi a sua ajuda. Não pedi pra você invadir o meu quarto e...
- Senta aí, tá bom?
O quarto tinha apenas uma cadeira, em que ela estivera me esperando. Sentei na cama, fechando o laptop com ar emburrado e juntando a papelada numa pilha. Ela continuou
de pé.
- Bom, eu mostrei as minhas credenciais e pedi ao gerente pra me deixar entrar. Disse a ele que a sua segurança podia estar em risco.
Balancei a cabeça, confuso.
- Do que você está falando? Ninguém nem sabe que eu estou aqui.
- Eu não teria tanta certeza disso. Você me contou que estava a caminho da prisão. Pra quem mais contou? Quem mais sabe?
- Sei lá. Contei pro meu editor e tem um advogado em Vegas que sabe. Só.
- William Schifino. É, eu falei com ele - disse ela, balançando a cabeça.
- Você falou com ele? Por quê? O que tá acontecendo, Rachel?
Ela balançou a cabeça outra vez, mas agora não em sinal de concordância. Balançou a cabeça porque sabia que tinha de me contar o que estava acontecendo, mesmo sendo
contra a cartilha do FBI. Ela puxou a cadeira para o meio do quarto e sentou de frente para mim.
- Tá bom. Quando você me ligou hoje, não falou coisa com coisa, Jack. Acho que você é melhor escritor do que contador de histórias. Mas no meio de tudo que você
me contou, a parte que ficou na minha cabeça foi o negócio dos seus cartões de crédito, conta do banco, telefone, e-mail. Sei que eu disse que não podia ajudar,
mas, depois que desliguei, comecei a pensar sobre isso e fiquei preocupada.
- Por quê?
- Porque você estava encarando tudo isso como se fosse uma inconveniência. Como uma grande coincidência, que por acaso calhou de acontecer enquanto você estava na
estrada trabalhando numa matéria sobre esse suposto assassino.
- Não tem nada de suposto quanto a esse cara. Mas você tá me dizendo que isso pode estar relacionado? Pensei sobre isso, mas não tem como. O cara que eu estou tentando
rastrear não pode nem fazer ideia de que estou aqui e à procura dele.
- Não tenha tanta certeza disso, Jack. É uma tática de caça clássica. Separar e isolar o alvo e depois se movimentar para matar. Na sociedade de hoje, separar e
isolar alguém implica afastar a pessoa de sua zona de conforto - o ambiente que ela conhece - e depois eliminar sua capacidade de entrar em contato. Celular, internet,
cartão de crédito, dinheiro - argumentou ela, enumerando com os dedos.
- Mas como esse cara podia saber sobre mim? Eu nem fazia ideia de que ele existia até a noite passada. Olha, Rachel, é ótimo te ver e eu espero que você fique por
aqui esta noite. Eu quero que fique, mas não estou engolindo isso. Não me leve a mal. Aprecio sua preocupação - aliás, como você chegou aqui tão rápido?
- Peguei um jato do FBI até Nellis e fiz eles me trazerem aqui de helicóptero.
- Meu Deus! Por que você simplesmente não me ligou de volta?
- Porque não dava. Quando você me telefonou, a ligação foi transferida pro local em que eu trabalho, fora dali. Não existe identificador de chamada nessas transferências.
Eu não tinha seu número e sabia que você provavelmente estava num pré­-pago.
- Mas o que os chefões do bureau vão dizer quando ficarem sabendo que você largou tudo e pegou um avião pra salvar a minha pele? Você não aprendeu nada em Dakota
do Sul?
Ela descartou minha preocupação com um gesto de mão. Algo nisso me lembrou nosso primeiro encontro. Também tinha sido num quarto de hotel. Ela me jogara de bruços
sobre a cama, depois me algemou e me levou preso. Não foi amor à primeira vista.
- Tem um detento em Ely que está na minha lista de interrogatórios há quatro meses - ela disse. - Oficialmente, estou aqui para interrogar o homem.
- Você quer dizer, tipo um terrorista? É isso que a sua unidade faz?
- Jack, não posso conversar com você sobre esse lado do meu trabalho. Mas posso dizer como foi fácil te encontrar e como eu sabia que não era a única pessoa no seu
rastro.
Fiquei gelado com essa expressão. No meu rastro. Coisas ruins pipocaram na minha imaginação.
- Ok - eu disse. - Me conta.
- Quando você me ligou hoje, disse que estava vindo para Ely, e eu sabia que só podia ser pra conversar com um prisioneiro. Então eu fiquei preocupada e decidi fazer
alguma coisa a respeito. Liguei pra Ely e perguntei se você estava lá; me disseram que você tinha acabado de sair. Falei com o chefe Henry e ele disse que a sua
conversa tinha sido adiada pra amanhã de manhã. Contou que tinha recomendado que você viesse para a cidade e ficasse no Nevada.
- É, o chefe Henry. Foi com ele que eu falei.
- É, bom, eu perguntei pra ele por que a sua conversa tinha sido adiada e ele me contou que seu cara, Brian Oglevy, estava em confinamento porque havia uma ameaça
contra ele.
- Que ameaça?
- Peraí, já chego lá. O diretor recebeu um e-mail hoje com uma mensagem dizendo que a IA planejava pegar o Oglevy hoje. Então, por precaução, puseram ele em confinamento.
- Ah, por favor, eles levaram isso a sério? A Irmandade Ariana? Eles não ameaçam todo mundo que não é membro? E Oglevy não é um nome judeu, também?
- Eles levaram a sério porque o e-mail veio da própria secretária do diretor. O problema é que não foi ela quem escreveu. Foi um autor anônimo que obteve acesso
à conta dela no sistema da penitenciária estadual. Um hacker. Pode ter sido alguém de dentro ou de fora. Não faz diferença. Eles consideraram o aviso legítimo por
causa do jeito como foi entregue. Puseram Oglevy em confinamento, você não conseguiu o encontro e mandaram você passar a noite aqui. Sozinho, num ambiente desconhecido.
- Ok, e o que mais? Ainda está parecendo muito forçado, pra mim.
Ela já começara a me convencer, mas agi ceticamente para que me contasse mais.
- Perguntei ao chefe Henry se alguém mais tinha ligado perguntando sobre você. Ele disse que o advogado pra quem você estava trabalhando, William Schifino, ligou
pra saber de você e foi informado da mesma coisa, que a conversa tinha sido adiada e que você provavelmente ia pernoitar no Nevada.
- Ok.
- Liguei pro William Schifino. Ele nunca deu esse telefonema.
Fiquei encarando-a por um longo tempo enquanto um dedo gelado percorria minha espinha.
- Perguntei ao Schifino se alguém além de mim tinha ligado perguntando sobre você, e ele me contou que tinha recebido um telefonema um pouco antes. Era de um sujeito
que dizia ser seu editor - ele usou o nome Prendergast - e que estava preocupado com você; queria saber se você tinha aparecido pra falar com Schifino. Ele disse
que você tinha passado por lá e que estava a caminho da penitenciária em Ely.
Eu sabia que meu editor não podia ter feito essa ligação, porque, quando falei com Prendergast, ele não havia recebido meu e-mail e não fazia ideia de que eu fora
para Las Vegas. Rachel tinha razão. Alguém andava na minha cola, e estava fazendo um ótimo trabalho.
Minha mente relampejou com pensamentos do Suíças e do trajeto no elevador com ele, depois do momento em que me seguiu pelo corredor até meu quarto.
E se ele não houvesse escutado a voz de Rachel? Será que teria continuado a andar ou teria me atacado por trás?
Rachel se levantou e foi até o telefone do quarto. Ela ligou para a telefonista e perguntou pelo gerente. Ficou em espera por alguns momentos antes que a chamada
fosse atendida.
- Isso, é a agente Walling. Continuo no quarto 10 e localizei o senhor McEvoy. Ele está bem. O que eu quero saber agora é se o senhor pode me dizer se tem algum
hóspede em um dos outros três quartos desse corredor. Acho que os números devem ser 411, 12 e 13.
Ela aguardou e escutou; então agradeceu o gerente.
- Só mais uma pergunta - disse ela. - Tem uma porta escrito SAÍDA no fim do corredor. Imagino que sejam as escadas. Onde elas vão dar?
Ela escutou, agradeceu outra vez e então desligou.
- Não tem ninguém registrado nesses quartos. As escadas vão dar no estacionamento.
- Você acha que aquele cara de suíças era ele?
Ela sentou.
- É bem possível.
Pensei nos óculos espelhados enormes, nas luvas de motorista e no chapéu de caubói. O matagal de suíças cobria praticamente todo o restante do rosto e distraía o
olhar de qualquer outra característica marcante. Eu me dei conta de que, se precisasse descrever o sujeito que me seguira, as únicas coisas que conseguiria lembrar
seriam o chapéu, cabelo, luvas, óculos e suíças - as características que você pode tirar ou mudar em um disfarce.
- Meu Deus! Não consigo acreditar em como eu fui estúpido. Como? Como foi que esse cara ficou sabendo de mim e depois conseguiu me encontrar? Não passaram nem 24
horas e ele já estava sentado do meu lado nas máquinas de jogo.
- Vamos descer e você me mostra em que máquina ele estava. A gente pode conseguir umas digitais.
Balancei a cabeça.
- Esquece. Ele estava de luva. Na verdade, nem as câmeras do teto lá embaixo vão ajudar grande coisa. Ele estava usando um chapéu de caubói e óculos escuros - todo
o aparato era um disfarce.
- Vamos ver o vídeo mesmo assim. Talvez tenha alguma coisa que ajude.
- Duvido.
Balancei a cabeça outra vez, mais para mim mesmo do que para Rachel.
- Ele sentou bem do meu lado.
- A fraude com o e-mail da secretária da prisão mostra que ele tem um certo nível de habilidade. Acho que, a essa altura, o bom senso manda considerar suas contas
de e-mail violadas.
- Mas isso não explica como ele ficou sabendo de mim em primeiro lugar. Pra violar o meu e-mail, ele tinha que saber sobre mim.
Dei um tapa na cama com irritação e balancei a cabeça.
- Bom, não sei como ele ficou sabendo de mim, mas eu realmente mandei uns e-mails ontem à noite. Tanto pro meu editor como pra outra pessoa que está na reportagem.
Contei para os dois que a matéria ia mudar e que eu estava seguindo uma pista em Vegas. Falei com meu editor hoje e ele disse que não recebeu nenhum e-mail.
Rachel balançou a cabeça convictamente.
- Destruindo comunicações externas. Isso levaria ao isolamento do alvo. Seu parceiro recebeu o e-mail?
- É parceira, e não sei se recebeu porque ela não está atendendo o telefone nem o e-mail, e não...
Parei de falar e olhei para Rachel.
- O que foi? - perguntou ela.
- Ela não foi trabalhar hoje. Não ligou pra avisar e ninguém consegue entrar em contato com ela. Até mandaram alguém pro apartamento dela, mas ninguém atendeu.
Rachel ficou de pé de repente.
- A gente precisa voltar pra Los Angeles, Jack. O helicóptero está esperando.
- E a minha conversa com Oglevy? E você disse que a gente ia dar uma olhada no vídeo das câmeras de segurança.
- E a sua parceira? A conversa e o vídeo podem ficar pra mais tarde.
Envergonhado, concordei e me levantei da cama. Hora de ir.

Eu não fazia a menor ideia de onde Angela Cook morava. Contei para Rachel o que sabia sobre ela, incluindo a estranha fixação com o caso do Poeta e o blog que me
disseram que ela tinha, mas o qual eu nunca lera. Rachel transmitiu toda a informação para um agente em Los Angeles antes de entrarmos no helicóptero militar e rumarmos
para o sul, em direção à base aérea de Nellis.
No voo para lá usamos protetores de ouvido, que nos poupavam do ruído do motor, mas impediam qualquer conversa que não fosse em linguagem de sinais. Rachel pegou
meus arquivos e se ocupou deles durante todo o percurso de uma hora. Observei-a fazendo comparações entre as cenas dos crimes e os relatórios de autópsia de Denise
Babbit e Sharon Oglevy. Ela trabalhava com uma expressão de completa concentração no rosto e fazia anotações em um bloco de papel amarelo que tirara de sua bolsa.
Passou um bom tempo olhando para as horríveis fotos das mulheres assassinadas, tiradas tanto na cena do crime como na mesa da autópsia.
Na maior parte do tempo, fiquei sentado em meu banco queimando os neurônios, tentando descobrir uma explicação para como tudo aquilo podia ter acontecido tão rápido.
Mais especificamente, como aquele assassino podia ter começado a me caçar quando eu mal começara a caçá-lo. Quando aterrissamos em Nellis, imaginei ter chegado a
uma conclusão e fiquei esperando uma oportunidade para contá-la a Rachel.
Fomos transferidos imediatamente para um jato à nossa espera, em que éramos os únicos passageiros. Sentamos de frente um para o outro e o piloto disse a Rachel que
havia uma ligação à sua espera no telefone de bordo. Afivelamos os cintos, ela apanhou o aparelho e o jato imediatamente começou a taxiar pela pista. Pelo interfone,
o piloto nos informou que pousaríamos em Los Angeles dentro de uma hora. Nada como o poder do governo federal, pensei. Isso é que era jeito de viajar - exceto por
um detalhe. Era um avião pequeno e eu não voava em aviões pequenos.
Rachel mais escutou do que falou na ligação, depois fez algumas perguntas e finalmente desligou.
- Angela Cook não está na casa dela - disse. - Não conseguiram encontrá-la.
Eu não respondi. Uma pontada aguda de medo e receio por Angela perpassou minhas costelas. Não aliviou em nada o fato de o jato decolar, cortando o ar num ângulo
mais acentuado do que eu estava acostumado a experimentar nos voos comerciais. Quase rasguei o braço da poltrona com minhas unhas. Depois de estarmos no alto em
segurança, finalmente abri a boca.
- Rachel, acho que eu sei como esse cara pode ter encontrado a gente tão rápido. Pelo menos a Angela.
- Então me conta.
- Não, você primeiro. Me conta o que você encontrou nos arquivos que eu tenho.
- Jack, não seja tão mesquinho. Isso agora é maior do que uma reportagem de jornal.
- Isso não significa que você não pode falar primeiro. Agora isso também é maior do que a mania que o FBI tem de obter informação sem dar nada em troca.
Ela se negou à réplica.
- Certo, eu começo. Mas, primeiro, tenho que parabenizar você, Jack. Do que eu li sobre os dois casos, eu diria que não tem a menor dúvida de que eles estão ligados
por um único assassino. O mesmo homem é responsável pelos dois. Mas ele escapou de ser notado porque nos dois casos um suspeito alternativo surgiu rapidamente e
as autoridades locais continuaram usando viseira. Nos dois casos, encontraram seu homem logo de cara e não verificaram outras possibilidades. Tirando, é claro, o
caso Babbit, em que o homem era um menino.
Me reclinei para a frente, sorrindo, confiante com seu elogio.
- E ele nunca confessou, como os tiras disseram para a imprensa - eu disse. - Tenho a transcrição lá nas minhas coisas. Um interrogatório de nove horas e o rapaz
nunca confessou. Ele falou que roubou o carro e o dinheiro, mas que o corpo já estava no porta-malas. Nunca disse que matou a mulher.
Rachel balançou a cabeça.
- Foi o que imaginei. Então o que eu fiquei fazendo com o material que você tem foi o perfil psicológico dos dois crimes. Procurando uma assinatura.
- A assinatura é óbvia. Ele gosta de estrangular mulheres com saco plástico.
- Tecnicamente elas não foram estranguladas. Foram asfixiadas. Sufocadas. É diferente.
- Certo.
- Tem alguma coisa muito familiar no uso do saco plástico e da corda em volta do pescoço, mas na verdade eu estava procurando uma coisa menos óbvia do que a assinatura
aparente. Eu estava procurando também ligações ou similaridades entre as mulheres. Se a gente achar uma ligação, a gente acha o assassino.
- As duas eram strippers.
- Isso é parte do caso, mas é meio amplo. E, tecnicamente, uma era stripper, e a outra, uma dançarina exótica. Tem uma ligeira diferença.
- Tanto faz. As duas mostravam o corpo pra ganhar a vida. Essa é a única ligação que você encontrou?
- Bom, como você deve ter notado, elas eram muito semelhantes na constituição física. Na verdade, a diferença de peso era de apenas um quilo e meio e a diferença
de altura, um centímetro e pouco. A estrutura facial e o cabelo também eram parecidos. O tipo corporal da vítima é um componente­-chave na hora de eles fazerem a
escolha. Um assassino oportunista pega o que vem pela frente. Mas quando você vê duas vítimas como essas, exatamente do mesmo tipo físico, isso mostra pra gente
que esse é um predador paciente, seletivo.
Parecia que ela tinha mais coisas a dizer, mas parou. Esperei, mas ela não continuou.
- O que foi? - eu disse. - Você sabe mais do que está me contando.
Ela explicou o porquê da hesitação.
- Quando eu trabalhei na Comportamental, a unidade estava começando. Os especialistas em perfil muitas vezes se reuniam e conversavam sobre a correlação entre os
predadores que a gente caçava e os predadores da natureza. Você ficaria surpreso de ver como um serial killer pode ser parecido com um leopardo ou um chacal. E o
mesmo se pode dizer das vítimas. Na verdade, quando se trata de tipos físicos, a gente muitas vezes relacionava as vítimas com tipos animais. Essas duas mulheres
a gente teria chamado de girafas. Elas eram altas e de pernas compridas. Nosso predador tem um gosto por girafas.
Eu queria escrever o que ela estava dizendo para poder usar mais tarde, mas receei que qualquer anotação ostensiva de sua interpretação dos arquivos fizesse com
que ela encerrasse a explicação. Então fiquei o mais imóvel que pude.
- Tem outra coisa - ela disse. - Nesse ponto, isso é só uma especulação da minha parte. Mas as duas autópsias atribuem as marcas em cada vítima a ataduras. Acho
que não é bem isso.
- Por quê?
- Deixa eu mostrar uma coisa.
Eu finalmente me mexi. Estávamos sentados um de frente para o outro. Soltei o cinto e fui sentar ao lado dela. Ela folheou os arquivos e puxou diversas cópias de
fotos das cenas dos crimes e das autópsias.
- Você está vendo as marcas deixadas acima e abaixo dos joelhos aqui, aqui e aqui?
- Estou, como se eles tivessem sido amarrados.
- Mais ou menos.
Ela usou a unha muito bem­-cuidada para traçar as marcas nas vítimas, à medida que ia explicando.
- As marcas são simétricas demais para derivarem de amarrações tradicionais. Além disso, se fossem marcas de ataduras, a gente também as veria em volta dos tornozelos.
Se você fosse amarrar alguém pra manter sob controle ou impedir de fugir, amarraria os tornozelos. Mas não tem marca nenhuma de ataduras nessas regiões. Nos pulsos,
sim, mas não nos tornozelos.
Ela tinha razão. Eu simplesmente não tinha visto até ela me explicar.
- Então o que provocou essas marcas nas pernas?
- Bom, não posso dizer com certeza, mas quando eu estava na Comportamental, a gente se deparava com parafilias em quase todos os casos. Nós começamos a categorizar.
- Você está falando de perversões sexuais?
- Bom, não era assim que a gente chamava.
- Por quê? Vocês tinham que ser politicamente corretos com serial killers?
- Pode parecer muito sutil, mas tem uma diferença entre comportamento pervertido e anormal. A gente chama os dois de parafilias.
- Ok, e essas marcas são parte de alguma parafilia?
- Podem ser. Acho que são marcas deixadas por tiras, correias.
- Correias do quê?
- Aparelhos ortopédicos para a perna.
Eu quase ri.
- Você deve estar brincando. Tem gente com tesão por aparelho ortopédico?
Rachel fez que sim.
- Tem até um nome. É chamado de abasiofilia. Um fascínio psicossexual por pessoas que usam algum aparelho ortopédico para se locomover. É verdade, tem gente que
sente tesão por isso. Tem até sites e salas de bate­-papo dedicados ao assunto. Eles chamam os aparelhos de irons, "ferros", e de calipers, "compassos de calibre".
Mulheres que usam esses aparelhos às vezes são chamadas de iron maidens, as moças de ferro.
Eu lembrei que, quando a gente estava atrás do Poeta, a habilidade de Rachel para traçar perfis psicológicos era tão perfeita que me deixava com vertigem. Ela fora
direto ao ponto naquele caso em mais de um aspecto. Era quase uma vidente. E eu fiquei fascinado com sua capacidade de pegar pequenas doses de informação e detalhes
obscuros e então extrair conclusões legítimas. Ela estava fazendo isso outra vez e comigo a bordo da montanha­-russa.
- E você teve um desses casos?
- É, a gente teve um caso na Lousiana. O sujeito sequestrou a mulher num ponto de ônibus e ficou com ela presa uma semana num barracão de pescaria perto de um boqueirão.
Ela conseguiu escapar e fugir através do pântano. Teve sorte, porque as outras quatro que ele pegou antes não conseguiram fugir. A gente encontrou no pântano os
restos parciais delas.
- E era um caso de basofilia?
- Abasiofilia - corrigiu ela. - Isso, a mulher que escapou contou pra nós que o homem a obrigou a usar aparelhos ortopédicos que eram amarrados em torno das pernas
e tinham ferros e juntas laterais que iam dos tornozelos até os quadris, e um monte de correias de couro.
- Isso é horrível - eu disse. - Não que exista um serial killer normal, mas aparelho pras pernas? De onde vem uma tara dessas?
- Ninguém sabe. Mas a maior parte das parafilias está enraizada na infância. Uma parafilia é como uma receita pra realização sexual de um indivíduo. É o que eles
precisam pra conseguir um orgasmo. Mas por que alguém precisaria usar um aparelho ortopédico ou fazer o parceiro usar é um mistério, mas começa bem cedo. Isso é
de conhecimento geral.
- Você acha que o cara dessa sua antiga investigação pode ser...
- Não, o homem que cometeu aqueles crimes na Lousiana foi condenado à morte. Eu testemunhei. E até o último momento, ele não falou uma palavra pra gente a respeito
daquilo tudo.
- Bom, acho que isso fornece a ele um álibi perfeito pra agora.
Eu sorri, mas ela não sorriu de volta. Continuei.
- Esses aparelhos são difíceis de achar?
- Tem compra e venda disso na internet toda hora. Pode ser coisa cara, com todo tipo de ajustes e correias. Quando você olhar no Google, procure abasiofilia e veja
o que consegue. A gente está falando do lado negro da internet, Jack. É o grande templo de culto, onde pessoas de interesses parecidos se encontram. Você pode achar
que seus desejos secretos fazem de você uma aberração, mas daí você entra na internet e descobre uma comunidade, aceitação.
Conforme ela dizia isso, eu me dei conta de que ali estava uma boa história. Uma coisa separada do caso dos assassinatos dos porta-malas. Talvez até um livro. Deixei
a ideia para mais tarde e prossegui no caso em questão.
- Então o que você acha que o assassino faz? Ele obriga a vítima a vestir um aparelho ortopédico e depois estupra? E o sufocamento, significa alguma coisa?
- Todo detalhe significa alguma coisa, Jack. Você só precisa saber como interpretar. A cena que o sujeito cria reflete sua parafilia. É mais do que provável que
não tenha a ver com assassinar as mulheres. Tem a ver com criar um cenário psicossexual que satisfaça uma fantasia. As mulheres são mortas depois simplesmente porque
ele deu o assunto por encerrado e não pode sofrer a ameaça de que elas vivam para contar a respeito. Minha suposição é de que ele chegue até a pedir desculpas quando
enfia o saco na cabeça delas.
- As duas eram dançarinas. Você acha que ele obrigava elas a dançar ou qualquer coisa assim?
- Mais uma vez, por enquanto tudo não passa de especulação, mas talvez seja parte disso. Pode ser. Mas a minha suposição é que tem a ver com o tipo físico. Girafas.
Dançarinas profissionais têm pernas compridas e musculosas. Se é isso que ele queria, então teria que procurar dançarinas.
Pensei nas horas que as duas mulheres passaram com seu assassino. O espaço de tempo entre o sequestro e a hora da morte. O que aconteceu nesse período? Seja qual
for a resposta, tudo levou a um fim horrível e apavorante.
- Você disse alguma coisa sobre o saco ser familiar de algum modo. Consegue lembrar como?
Rachel pensou por um momento antes de responder.
- Não, é só que tem alguma coisa nisso. Alguma coisa familiar. Provavelmente de outro caso, mas não consigo saber de onde, não ainda.
- Você vai jogar todos esses dados no VICAP?
- Assim que tiver tempo.
O Programa de Detenção de Criminosos Violentos era um banco de dados informatizado com detalhes de milhares de crimes. Podia ser usado para encontrar crimes de natureza
similar quando os detalhes de um novo crime eram inseridos.
- Tem mais uma coisa que precisa ser levada em consideração no procedimento do assassino - disse Rachel. - Em ambos os casos, ele deixou o saco e a corda do pescoço
nas vítimas, mas o que usou pra prender os membros - fossem aparelhos ou qualquer outra coisa - foi removido.
- Certo. O que isso quer dizer?
- Não sei, mas pode significar várias coisas. As mulheres ficaram obviamente restringidas de algum modo durante o cativeiro. Se foi com algum tipo de aparelho ortopédico
ou outra coisa, isso foi retirado, mas os sacos ficaram. Talvez seja parte de uma declaração, parte da assinatura dele. Talvez tenha um significado que a gente ainda
não faz ideia.
Balancei a cabeça. Eu estava impressionado com as deduções dela.
- Quanto tempo faz desde que você trabalhou em Ciências Comportamentais?
Rachel sorriu, mas então eu vi que minha intenção de elogiá-la provocara nostalgia.
- Faz um bom tempo - ela disse.
- A típica política do bureau - eu disse. - Pegam alguém que é bom pra cacete numa coisa e põem em outro lugar.
Eu precisava voltar a focá-la no caso e afastá­-la da lembrança de que seu relacionamento comigo lhe custara a posição que era a mais indicada para seu perfil.
- Você acha que se um dia a gente capturar esse cara vamos conseguir entender qual é a dele?
- Você nunca entende qual é a deles, Jack, de nenhum deles. Faz uma ideia, só isso. O sujeito da Louisiana foi criado num orfanato nos anos cinquenta. Um monte de
crianças de lá tinham contraído pólio. Um monte delas usavam aparelhos nas pernas. Por que isso virou a coisa que, quando adulto, deixava ele excitado e levou ele
para o caminho de um assassino em série é um mistério. Um monte de outros garotos foram criados naquele orfanato e não viraram serial killers. Dizer por que um deles
virou é pura especulação.
Olhei pela janela. Estávamos no deserto entre Los Angeles e Vegas. Tudo que se via do lado de fora era a escuridão.
- Acho que esse é um mundo doente - eu disse.
- Pode ser - disse Rachel.
Voamos em silêncio por alguns momentos antes que eu voltasse a virar para ela.
- Tem mais alguma ligação entre eles?
- Fiz uma lista de semelhanças e diferenças entre os casos. Quero examinar tudo isso melhor, mas por enquanto os aparelhos para pernas são os mais significativos
pra mim. Depois disso, você tem o padrão físico das mulheres e o método da morte. Mas tem que ter uma conexão em algum lugar. Uma ligação entre essas duas mulheres.
- A gente encontra isso e logo encontra ele.
- Isso mesmo. E agora é sua vez, Jack. O que você conseguiu?
Balancei a cabeça e ordenei rapidamente os pensamentos.
- Bom, tem uma coisa que não estava no material que a Angela encontrou na internet. Ela só me falou porque não tinha nada sobre isso pra imprimir. Ela disse que
encontrou as reportagens de Las Vegas e algumas das velhas reportagens de Los Angeles quando fez uma pesquisa na rede com a frase trunk murder. Ok?
- Ok.
- Bom, ela me contou que também achou um link em um site chamado trunk murder ponto com, mas quando entrou, não tinha nada. Ela clicou e apareceu um aviso de que
estava em construção. Então fiquei pensando, já que você disse que as habilidades desse cara incluíam fazer coisas na internet, que talvez...
- Claro! Podia ser uma armadilha de IP. Ele seria alertado sobre qualquer um navegando atrás de informação sobre assassinatos em porta-malas. Depois ele poderia
rastrear o IP e encontrar a pessoa que tinha procurado. Isso levaria ele até Angela e depois até você.
O jato começou a descer, novamente em um ângulo mais acentuado do que tudo que eu já experimentara em um voo comercial. Eu percebi que estava cravando as unhas no
braço da poltrona outra vez.
- E provavelmente ele quase teve um troço quando viu seu nome - disse Rachel.
Olhei para ela.
- Do que você tá falando?
- Do seu pedigree, Jack. Você foi o repórter que caçou o Poeta. Você escreveu o livro sobre isso. O autor do grande best-seller. Apareceu no Larry King Live. Esses
serial killers prestam atenção em tudo isso. Eles leem esses livros. Não, na verdade eles estudam esses livros.
- É muito bom saber disso. Quem sabe eu tenho oportunidade de autografar um exemplar pra ele?
- Aposto com você. Quando a gente pegar esse cara, vamos encontrar um exemplar do seu livro com ele em algum lugar.
- Espero que não.
- E aposto mais uma coisa. Antes de a gente pegar esse cara, ele vai fazer contato direto com você. Vai ligar, mandar um e-mail ou chegar em você de algum jeito.
- Por quê? Por que ele arriscaria isso?
- Porque assim que ficar claro pra ele que foi descoberto - que a gente sabe sobre ele -, ele vai tentar chamar atenção. Eles sempre fazem isso. Sempre cometem esse
erro.
- Sem apostas, Rachel.
A ideia de que eu tinha alimentado ou iria alimentar de algum modo a psicologia deturpada desse sujeito ou de qualquer outro não era algo em que eu queria pensar.
- Você está certo, não te culpo - disse Rachel, percebendo meu desconforto.
- Mas gostei de ouvir você dizer "quando a gente pegar esse cara", e não "se a gente pegar".
Ela balançou a cabeça.
- Não se preocupe, Jack. A gente vai pegar.
Virei e olhei outra vez pela janela. Dava para ver o tapete de luzes conforme deixávamos o deserto para voltar à civilização. Tal como a conhecíamos. Havia um bilhão
de luzes ali no horizonte, e eu sabia que todas elas agrupadas não seriam suficientes para iluminar as trevas existentes no coração de alguns.

Aterrissamos no Aeroporto Van Nuys e fomos para o carro que Rachel deixara ali. Ela pegou o telefone para informar que chegara e para ver se havia alguma coisa nova
sobre Angela Cook. Ficou sabendo que não havia. Desligou e olhou para mim.
- Onde está o seu carro? No LAX?
- Não, eu vim de táxi. Ele está em casa. Na garagem.
Eu não sabia que uma frase tão básica podia soar tão nefasta. Na garagem. Dei meu endereço para Rachel e partimos.
Era quase meia-noite e o trânsito na rodovia estava livre. Pegamos a 101, atravessando o fundo do San Fernando Valley, e depois o Cahuenga Pass. Rachel pegou a saída
na Sunset Boulevard em Hollywood e foi para oeste.
Minha casa ficava na Curson Avenue, uma quadra ao sul da Sunset Boulevard. Era uma região agradável, cheia de casas na maior parte pequenas, construídas para famílias
de classe média que já fazia muito tempo haviam sido expulsas pelos preços elevados. A minha era uma Crafstman pré­-fabricada de dois dormitórios, com uma garagem
separada para um único carro nos fundos. O quintal era tão pequeno que até um Chihuahua teria se sentido apertado. Eu comprara o lugar 12 anos antes com dinheiro
da venda do meu livro sobre o Poeta. Dividi todos os cheques que recebi com a viúva do meu irmão, para ajudá-la a criar e educar a filha deles. Já fazia um bom tempo
que eu não via um cheque dos direitos e mais tempo ainda que não via minha sobrinha, mas eu tinha a casa e a educação da menina para provar a existência desse período
da minha vida. Quando me divorciei, minha esposa não reivindicou nada da casa, uma vez que já era minha quando nos casamos, e agora restavam apenas mais três anos
de hipoteca antes que ela fosse definitivamente minha e de mais ninguém.
Rachel entrou com o carro e seguiu pela pista que conduzia aos fundos. Ela parou, mas deixou os faróis acesos. Eles iluminaram a porta fechada da garagem. Descemos
e nos aproximamos devagar, como técnicos em bombas perto de um homem com um colete de explosivos.
- Eu nunca tranco - eu disse. - Nunca deixo nada dentro que valha a pena roubar, tirando o carro, claro.
- Então você tranca o carro?
- Não. Em geral eu esqueço.
- E dessa vez?
- Acho que esqueci.
Era uma porta pivotante. Abaixei e a ergui, e entramos. Uma luz automática se acendeu no teto e ficamos encarando o porta-malas de meu BMW. Eu já estava com a chave
a postos. Apertei o botão e escutamos o fump da trava abrindo.
Rachel deu um passo adiante sem hesitação e ergueu a tampa do porta-malas.
A não ser por uma bolsa com roupas que eu pretendia deixar no Exército da Salvação, o porta-malas estava vazio.
Rachel estivera prendendo a respiração. Escutei-a vagarosamente soltando o ar dos pulmões.
- É - eu disse. - Achei que com certeza...
Ela bateu o porta-malas, furiosa.
- O quê, você ficou com raiva por que ela não está aí dentro? - perguntei.
- Não, Jack, estou com raiva porque estou sendo manipulada. Ele me levou a pensar de uma determinada maneira e esse foi meu erro. Não vai acontecer outra vez. Vamos,
vamos dar uma olhada na casa pra ter certeza.
Rachel voltou para o carro e desligou os faróis, e então entramos na cozinha pela porta dos fundos. A casa cheirava a bolor, mas era sempre assim quando ficava fechada.
Não ajudou o fato de terem bananas meio podres no cesto de frutas sobre o balcão. Fui na frente, acendendo as luzes por onde passávamos. O lugar parecia exatamente
do jeito que eu o deixara. Razoavelmente arrumado, mas com um excesso de pilhas de jornais sobre as mesas e no chão perto do sofá da sala.
- É um lugar legal - disse Rachel.
Verificamos o quarto de hóspedes, que eu usava como escritório, e não vimos nada de estranho. Enquanto Rachel seguia para meu quarto, contornei minha mesa de trabalho
e liguei o computador. O acesso à internet estava normal, mas eu ainda não conseguia acessar minha conta de e-mail no Times. Minha senha foi rejeitada. Desliguei
o computador com raiva e saí do escritório, encontrando Rachel no meu quarto. A cama estava desarrumada, já que eu não esperava nenhuma visita. O ambiente cheirava
a ar parado e fui abrir a janela enquanto Rachel verificava o closet.
- Por que isso não está numa parede qualquer, Jack? - ela perguntou.
Virei. Ela descobrira a moldura com o anúncio de página inteira que saíra de meu livro no New York Times. Fazia dois anos que estava guardado.
- Isso costumava ficar no escritório, mas depois de dez anos sem publicar mais nada, começou a me incomodar um pouco. Então enfiei aí.
Ela balançou a cabeça e entrou no banheiro. Parei de respirar, sem saber em que condições sanitárias eu o havia deixado. Escutei a cortina do chuveiro deslizando,
depois Rachel apareceu de novo no quarto.
- Você devia dar uma limpada na banheira, Jack. Quem é a mulherada?
- O quê?
Ela apontou o escritório, onde havia uma série de fotos em pequenas molduras de pé. Apontei uma por uma.
- Sobrinha, cunhada, mãe, ex-mulher.
Rachel ergueu as sobrancelhas.
- Ex­-mulher? Você conseguiu superar a minha perda, então.
Ela sorriu e eu sorri de volta.
- Não durou muito. Ela era uma repórter. Quando entrei no Times, a gente cobriu junto a seção policial. Uma coisa levou a outra e a gente se casou. Depois meio que
esfriou. Tinha sido um erro. Ela trabalha na redação em Washington, agora, e a amizade continua.
Eu queria falar mais, só que alguma coisa me fez resistir. Rachel virou e voltou pelo corredor. Eu a segui até a sala. Ficamos ali, olhando um para o outro.
- E agora? - perguntei.
- Não tenho certeza. Preciso pensar um pouco. Talvez seja melhor eu te deixar dormir um pouco. Você vai ficar bem aqui?
- Claro, por que não? Além disso, eu tenho uma arma.
- Você tem uma arma? Jack, o que você tá fazendo com uma arma?
- Por que as pessoas que andam armadas sempre perguntam isso pros civis que andam armados? Eu tenho desde o Poeta, viu?
Ela balançou a cabeça. Era compreensível.
- Bom, então, se você está bem, vou te deixar aqui com sua arma e volto amanhã cedo. Talvez até lá um de nós tenha uma nova ideia sobre a Angela.
Balancei a cabeça e percebi que, Angela à parte, esse era um daqueles momentos. Eu podia tentar pegar o que queria ou deixá-la ir embora como fizera havia tanto
tempo.
- E se eu não quiser que você vá? - perguntei.
Ela olhou para mim sem falar.
- E se eu nunca superei a sua perda? - perguntei.
Ela baixou o olhar.
- Jack... Dez anos é uma vida. Não somos mais os mesmos.
- É?
Ela voltou a olhar para mim e nos encaramos por um longo momento. Então eu me aproximei, pus a mão em sua nuca e a puxei para um beijo longo e firme que ela não
tentou repelir nem afastar.
Ela deixou o celular cair no chão. Ficamos agarrados em uma espécie de desespero emocional. Não havia nenhuma delicadeza naquilo. Tinha a ver com desejo, ânsia.
Nada amoroso, e no entanto tinha tudo a ver com amor e com a predisposição temerária de cruzar a linha em nome da intimidade com outro ser humano.
- Vamos voltar pro quarto - sussurrei colado em seu rosto.
Ela sorriu junto com o beijo seguinte, então, de alguma forma, demos um jeito de chegar ao meu quarto sem tirar as mãos um do outro. Tiramos nossas roupas com urgência
e fizemos amor na cama. Terminou antes que eu pudesse pensar sobre o que estávamos fazendo e no que poderia significar. Então ficamos deitados um ao lado do outro,
de costas, o dorso de minha mão esquerda acariciando delicadamente seu seio. Ambos respirando pesada e longamente.
- Ih, caramba - ela disse, finalmente.
Sorri.
- Você vai pro olho da rua - eu disse.
E ela sorriu, de novo.
- E você? O Times tem que ter algum tipo de regra sobre transar com o inimigo, não tem?
- Como assim "o inimigo"? Além do mais, eles me mandaram embora na semana passada. Só tenho mais uma semana lá dentro, depois acabou.
Ela subitamente se ergueu sobre o cotovelo e me fitou com um olhar preocupado.
- O quê?
- É isso aí, sou uma vítima da internet. Me avisaram do corte e me deram duas semanas pra treinar a Angela e cair fora.
- Meu Deus, que coisa horrível. Por que você não me contou?
- Sei lá. Não deu tempo.
- Por que você?
- Porque tenho um salário alto e Angela não.
- Que coisa mais idiota.
- Você não precisa tentar me convencer disso. Mas é assim que a imprensa funciona hoje em dia. É a mesma coisa em qualquer jornal.
- O que você vai fazer?
- Sei lá, provavelmente sentar naquele escritório e escrever o romance de que venho falando há 15 anos. Acho que a questão mais importante é o que a gente vai fazer
agora, Rachel.
Ela desviou o olhar e começou a acariciar meu peito.
- Espero que a gente não acabe por aqui - eu disse. - Não queria que acabasse.
Ela ficou sem responder por um longo tempo.
- Nem eu - disse, finalmente.
Mas foi só.
- No que você tá pensando? - perguntei. - Você parece sempre viajar e ficar ruminando em alguma coisa.
Ela olhou para mim com um sorriso enviesado.
- O quê, você é o psicólogo criminal, agora?
- Não, só queria saber no que você estava pensando.
- Pra ser sincera, eu estava pensando em uma coisa que um cara com quem eu saí há alguns anos falou. A gente teve um, hã, relacionamento, e não estava... funcionando.
Eu tinha minhas próprias encanações e sabia que ele continuava ligado na ex-mulher, mesmo com ela vivendo bem longe dele. Quando a gente conversou sobre isso, ele
me falou da "teoria da bala única". Você sabe o que é?
- Você quer dizer como no assassinato do Kennedy?
Ela deu um soquinho amigável no meu peito.
- Não, estou falando como no amor da sua vida. Todo mundo tem alguém em algum lugar. Uma bala. E se você tiver sorte na vida, vai encontrar essa pessoa. E quando
encontrar, quando levar um tiro no coração, daí não tem mais ninguém. Aconteça o que acontecer - morte, divórcio, infidelidade, seja o que for -, ninguém mais vai
chegar próximo disso. Essa é a teoria da bala única.
Ela balançou a cabeça. Acreditava nisso.
- O que você tá dizendo? Que ele era a sua bala?
Ela negou com a cabeça.
- Não, estou dizendo que não. Ele chegou atrasado. Eu já tinha sido acertada por uma outra pessoa. Alguém que veio antes dele.
Fiquei olhando para ela por um bom tempo, então pressionei-a na cama com um beijo. Depois de alguns momentos, ela pressionou de volta para se erguer.
- Mas eu preciso ir. A gente tem que pensar sobre isso e sobre tudo o que está acontecendo.
- Fica aqui. Passa a noite comigo. A gente acorda amanhã cedo e sai pra trabalhar no horário.
- Não, preciso ir pra casa ou o meu marido vai ficar preocupado.
Sentei na mesma hora, como um boneco de mola. Ela começou a rir e levantou da cama. Começou a se vestir.
- Isso não teve graça - eu disse.
- Teve sim - ela insistiu.
Desci da cama e comecei a me vestir também. Ela continuou a rir de um jeito meio descontrolado. No fim, eu também estava rindo. Enfiei as calças e a camisa e depois
saí pelo quarto procurando os sapatos e as meias. Achei tudo, menos uma meia. Finalmente, me ajoelhei no chão e procurei embaixo da cama.
E foi aí que as risadas pararam.

Os olhos mortos de Angela Cook me fitaram sob a cama. Involuntariamente, me joguei para trás sobre o tapete, batendo as costas contra a cômoda e fazendo o abajur
em cima bambear e cair no chão, espatifado.
- Jack? - gritou Rachel.
Apontei.
- A Angela tá debaixo da cama!
Rachel se aproximou rapidamente de mim. Estava vestida apenas com sua calcinha preta e blusa branca. Abaixou para olhar.
- Meu Deus!
- Pensei que você tinha olhado embaixo da cama! - eu disse, agitado. - Quando entrei no quarto, achei que você já tinha olhado.
- Achei que você tivesse quando eu estava olhando no closet.
Ela ficou de quatro, olhando sob a cama por um longo momento antes de virar para olhar de novo para mim.
- Parece que ela está morta faz mais ou menos um dia. Sufocada com um saco plástico. Está nua e completamente embrulhada em uma lona de plástico transparente. Como
se estivesse pronta pra ser transportada. Ou talvez seja pra impedir o cheiro da decomposição. A cena é muito dif...
- Rachel, por favor, eu conhecia ela. Será que dá pra não ficar analisando tudo nesse minuto?
Recostei a cabeça na cômoda e ergui os olhos para o teto.
- Sinto muito, Jack. Por ela e por você.
- Você sabe dizer se ele torturou ela ou só...?
- Não sei. Mas a gente precisa ligar pro DPLA.
- Eu sei.
- A gente vai dizer o seguinte, que eu trouxe você pra casa, a gente deu uma busca no lugar e encontrou ela. O resto fica de fora. Ok?
- Ótimo. Ok. O que você achar melhor.
- Preciso me vestir.
Ela se levantou e eu me dei conta de que a mulher com quem eu acabara de fazer amor havia desaparecido completamente. Era puro trabalho e eficiência, agora. Terminou
de se vestir, depois se curvou para examinar a parte de cima da cama de um ângulo lateral. Fiquei observando-a começar a catar fios de cabelo nos travesseiros, para
impedir que fossem coletados pela equipe de cena do crime que em breve entraria em minha casa. Fiquei sem me mexer esse tempo todo. Ainda dava para ver o rosto de
Angela de onde eu estava e eu tinha de me ajustar à realidade da situação.
Eu mal a conhecera e provavelmente nem gostava muito de Angela, mas ela era jovem demais e tinha a vida toda pela frente para morrer repentinamente daquele jeito.
Eu já vira um monte de cadáveres na vida e escrevera sobre um monte de assassinatos, incluindo o do meu próprio irmão. Mas acho que nada do que eu vi ou escrevi
antes, algum dia, me afetou tanto quanto ver o rosto de Angela Cook sob aquele saco plástico. Sua cabeça estava jogada para trás, de modo que se estivesse em pé
estaria olhando acima de mim. Seus olhos estavam abertos e apavorados, quase brilhando para mim da escuridão sob a cama. Era como se estivesse sumindo dentro das
trevas, sendo engolida por elas e tentando olhar para a luz pela última vez. E foi então que fez um último esforço desesperado por sua vida. Sua boca estava aberta
em um grito final, terrível.
Eu me senti como se estivesse, de algum modo, me intrometendo em alguma coisa sagrada só de olhar para ela.
- Isso não vai dar certo - disse Rachel. - A gente precisa se livrar dos lençóis e dos travesseiros.
Ergui o rosto para ela. Ela começou a tirar a roupa de cama e juntar tudo em um amontoado.
- Será que a gente não pode simplesmente contar o que aconteceu? Que a gente só encontrou ela depois q...
- Pensa um pouco, Jack. Se eu admitir uma coisa dessas, vou virar o alvo das piadas da minha equipe durante os próximos dez anos. Não é só isso, vou perder o emprego.
Desculpe, mas isso eu não quero. A gente faz assim e eles simplesmente vão pensar que o assassino tirou os lençóis.
Ela amontoou tudo junto.
- Bom, pode ser que tenha evidência do cara nos lençóis.
- Isso é pouco provável. Ele é cuidadoso demais e nunca deixou nada pra trás. Se houvesse alguma evidência nessa roupa de cama, ele mesmo teria levado. Duvido até
que ela tenha sido morta aqui nessa cama. Ela só foi embrulhada e escondida debaixo - pra você encontrar.
Ela disse isso sem a menor cerimônia. Provavelmente não havia mais nada nesse mundo capaz de surpreendê-la ou deixá-la horrorizada.
- Vamos, Jack. A gente precisa se mexer.
Ela saiu do quarto, carregando a roupa de cama e os travesseiros. Lentamente me levantei, encontrei a meia perdida atrás de uma cadeira e levei as meias e os sapatos
para a sala. Estava calçando-os quando escutei a porta dos fundos bater. Rachel entrou de mãos vazias e presumi que enfiara os travesseiros e lençóis no porta-malas
de seu carro.
Ela apanhou seu celular no chão. Mas em vez de fazer uma ligação, começou a andar de um lado para outro, perdida em pensamentos.
- O que você tá fazendo? - eu disse, finalmente. - Vai ligar ou não?
- Claro, vou ligar. Mas antes que isso aqui vire um inferno, estou tentando imaginar o que ele estava fazendo. O que ele planejava aqui?
- É óbvio. Ia jogar o assassinato da Angela nas minhas costas, mas foi um plano estúpido, porque não ia funcionar. Eu viajei pra Vegas e posso provar. A hora da
morte vai mostrar que não dava pra eu ter feito isso com ela e que é uma armação.
Rachel balançou a cabeça.
- Com sufocamento é muito difícil indicar a exata hora da morte. Mesmo se estreitarem pra uma janela de duas horas, ainda assim dá pra incluir você no cenário.
- Então o fato de eu estar num avião ou em Vegas não é álibi nenhum?
- Não, se eles não precisarem a hora da morte para o momento exato em que você estava naquele avião ou já em Vegas. Acho que o nosso cara é inteligente o bastante
para perceber isso. Era parte do plano dele.
Balancei a cabeça vagarosamente e senti um medo terrível começando a subir em mim. Percebi que poderia terminar como Alonzo Winslow e Brian Oglevy.
- Mas não se preocupe, Jack. Não vou deixar que ponham você na cadeia.
Finalmente ela levou o celular ao ouvido e fez uma ligação. Escutei-a falar brevemente com alguém que devia ser um supervisor. Ela não disse nada sobre mim, o caso
ou Nevada. Disse apenas que se envolvera na descoberta de um homicídio e que teria de interagir brevemente com o DPLA.
Em seguida ligou para o DPLA, se identificou, deu meu endereço e pediu uma equipe de homicídio. Depois forneceu seu número de celular e encerrou a ligação. Ela olhou
para mim.
- E você? Se precisa ligar pra alguém, melhor fazer isso já. Quando os detetives chegarem, provavelmente não vão deixar você usar o telefone.
- Certo.
Peguei meu pré­-pago e liguei para a redação do Times. Olhei o relógio e vi que já era bem mais de uma. O jornal já encerrara as atividades fazia tempo, mas eu precisava
informar alguém sobre o que estava acontecendo.
O editor noturno era um antigo veterano chamado Esteban Samuel. Era um sobrevivente, tendo trabalhado no Times por quase quarenta anos e evitado todas as grandes
mudanças, expurgos e trocas de regime. Conseguiu isso em grande parte mantendo a cabeça abaixada e ficando fora do caminho. Só aparecia para trabalhar lá pelas seis
da tarde todos os dias e a essa hora geralmente os carrascos corporativos e ceifeiros editoriais já haviam ido para casa. Longe dos olhos, longe do coração. Funcionava.
- Sam, é Jack McEvoy.
- Jack Mack! Tudo bem com você?
- Não tão bem. Tenho uma má notícia. Angela Cook foi assassinada. Uma agente do FBI e eu acabamos de encontrá-la. Sei que a edição matutina está fechada, mas talvez
você queira ligar pra quem for necessário ou pelo menos deixar um recado na overnote.
A overnote era uma lis ta de recados, ideias e matérias incompletas que Samuel juntava no fim do seu turno e então deixava para o editor da manhã.
- Meu Deus! Que horrível! Pobre menina.
- É, é horrível.
- O que aconteceu?
- Está relacionado com a reportagem em que a gente estava trabalhando. Mas não sei muita coisa. Estamos esperando o DPLA chegar.
- Onde você tá? Onde aconteceu?
Eu sabia que ele ia acabar perguntando isso.
- Na minha casa, Sam. Não sei até onde você sabe, mas eu fui pra Las Vegas ontem à noite e Angela tinha sumido hoje. Voltei pra casa à noite e uma agente do FBI
me escoltou e deu uma busca na casa. A gente encontrou o corpo debaixo da cama.
A coisa toda pareceu absurda quando eu disse.
- Você está sob ordem de prisão, Jack? - perguntou Samuel, a confusão transparecendo claramente em sua voz.
- Não, não. O assassino está tentando armar pra mim, mas o FBI sabe o que está acontecendo. Angela e eu estávamos atrás desse cara e de algum modo ele descobriu.
Ele matou Angela e então tentou me pegar em Nevada, mas o FBI já estava lá. De qualquer jeito, tudo isso vai estar na matéria que vou escrever amanhã. Volto assim
que acertar isso aqui e vou escrever para a edição de sexta. Tudo bem? Conto com você pra explicar tudo pra eles.
- Pode deixar, Jack, vou dar uns telefonemas. Mantenha contato.
Se eu puder, pensei. Dei para ele o número do meu pré­-pago e encerrei a ligação. Rachel continuava de um lado para outro.
- Isso não soou muito convincente - ela disse.
Eu concordei com a cabeça.
- Eu sei. Parecia um maluco falando. Estou com mau pressentimento em relação a isso, Rachel. Ninguém vai acreditar em mim.
- Vão sim, Jack. E eu acho que sei o que ele estava tentando fazer. Está tudo se encaixando, agora.
- Então me conta. Os tiras vão chegar daqui a um segundo.
Rachel finalmente sossegou, sentando na cadeira do outro lado da mesinha de centro. Ela se curvou para a frente a fim de contar sua história.
- Pra começar, ele está por perto. Nossas duas primeiras vítimas conhecidas estavam em Los Angeles e Las Vegas. O assassinato de Angela e a tentativa dele de chegar
em você foram em Los Angeles e numa parte remota de Nevada. Então eu deduzo que ele more num desses dois lugares, ou perto deles. Ele conseguiu reagir rápido e em
questão de horas chegou tanto em você como em Angela.
Balancei a cabeça. Parecia correto para mim.
- Agora, a capacidade técnica dele. A gente sabe pelo e-mail que ele mandou pro diretor da prisão e pelo modo como conseguiu atacar você em múltiplos níveis que
os recursos técnicos dele são muito avançados. Então, se a gente presumir que ele foi capaz de invadir sua conta de e-mail, daí podemos presumir também que ele invadiu
todo o banco de dados do L.A. Times. Se ele conseguiu se movimentar à vontade ali dentro, então teria conseguido acessar livremente tanto seu endereço pessoal como
o de Angela, certo?
- Claro. Essa informação tem que estar lá.
- E sobre sua demissão? Será que tem e-mails ou dados que ele pode ter rastreado?
Fiz que sim.
- Tenho uma tonelada de e-mails tratando disso. De amigos, pessoas em outros jornais, tudo o que é lugar. Contei pra algumas pessoas por e-mail, também. Mas o que
ele teria feito com tudo isso?
Ela balançou a cabeça como se estivesse anos-luz à minha frente e minha resposta se encaixasse direitinho no que já sabia.
- Tá, então o que é que nós sabemos? Sabemos que, de algum modo, Angela ou possivelmente você tropeçou num fio detonador e o alertou sobre a investigação.
- Trunk murder ponto com.
- Vou mandar isso ser checado assim que puder. Pode ter sido isso ou não. Mas de algum modo nosso cara foi alertado. A reação dele foi invadir o Los Angeles Times
e tentar descobrir o que vocês dois estavam tramando. A gente não sabe o que Angela tinha nos e-mails dela, mas sabe que você contou seu plano de ir pra Las Vegas
na noite passada por e-mail. Aposto que o nosso cara leu esse e mais um monte de e­-mails e concatenou o plano dele com o seu.
- A gente fica repetindo "nosso cara". Melhor dar um nome pra ele.
- No bureau a gente ia chamar ele de unknown subject, "elemento desconhecido", até saber exatamente com quem está lidando. Um Unsub.
Me levantei e olhei entre as cortinas da janela da frente. A rua estava escura lá fora. Nenhum tira, ainda. Fui até o interruptor na parede e acendi as luzes do
lado de fora.
- Ok, Unsub, então - eu disse. - O que você quis dizer com concatenou o plano dele a partir do meu?
- Ele precisava neutralizar a ameaça. Ele sabia que havia uma boa chance de que você não tivesse confirmado suas suspeitas ou conversado com a polícia, ainda. Sendo
um repórter, você tentaria manter a história em segredo. Isso operou a favor dele. Mas mesmo assim ele tinha que agir rápido. Ele sabia que Angela estava em Los
Angeles e que você estava indo pra Vegas. Acho que começou por Los Angeles, deu um jeito de sequestrar Angela, cometeu o assassinato e armou pra você.
Voltei a sentar.
- É, isso é óbvio.
- Depois ele focou a atenção em você. Foi pra Vegas, provavelmente dirigindo a noite toda ou pegando um avião pela manhã, e rastreou você até Ely. Não teria sido
difícil. Acho que era o sujeito te seguindo no corredor do hotel. Ia entrar em ação ali no seu quarto. Ele parou quando escutou minha voz, e isso até agora me deixa
confusa.
- Por quê?
- Bom, por que ele abortou o plano? Só porque ouviu que você tinha companhia? Esse cara não se acanha em matar gente. Que diferença faria pra ele se tivesse que
matar você e a mulher que escutou no seu quarto?
- Mas então, por que ele abortou?
- Porque o plano não era te matar e quem estivesse com você. O plano era você se matar.
- Ah, que isso.
- Pensa bem. Teria sido o melhor jeito para ele escapar de uma identificação. Se você aparecesse assassinado num quarto de hotel em Ely, haveria uma investigação
que levaria à elucidação dessa história toda. Mas se você fosse um suicida num quarto de hotel em Ely, então a investigação tomaria um rumo completamente diferente.
Pensei nisso por alguns momentos e vi onde ela queria chegar com aquilo.
- Um repórter é mandado embora, recebe a incumbência humilhante de treinar a própria substituta, tem poucas perspectivas para um novo trabalho - eu disse, recitando
uma ladainha de fatos verdadeiros. - Fica deprimido e suicida. Inventa uma história sobre um serial killer à solta por aí, agindo em dois estados como cobertura,
então sequestra e mata sua jovem substituta. Daí ele dá todo o seu dinheiro pra caridade, cancela seus cartões de crédito e foge pro meio do nada, onde se mata num
quarto de hotel.
Ela ficou balançando a cabeça durante todo o tempo em que dei a explicação.
- O que fica faltando? - eu perguntei. - Como ele ia me matar e fazer parecer suicídio?
- Você estava bebendo, certo? Foi para o quarto com duas garrafas de cerveja, lembro disso.
- É, eu só tinha bebido duas antes disso.
- Mas isso ia ajudar a montar o cenário. Garrafas vazias espalhadas pelo quarto de hotel. Quarto bagunçado, cabeça bagunçada, esse tipo de coisa.
- Mas a cerveja não ia me matar. Como ele ia fazer isso?
- Você mesmo já respondeu antes, Jack. Você disse que tinha uma arma.
Bang. Veio tudo de uma vez. Me levantei e fui até meu quarto. Doze anos antes, eu comprara um Colt Government Series 70 calibre .45, depois do meu encontro com o
Poeta. Ele continuava à solta na época, e eu queria me proteger de algum modo, caso ele aparecesse na minha frente. Eu guardava a arma em uma gaveta ao lado da minha
cama e só tirava uma vez por ano para praticar em um estande de tiro.
Rachel me seguiu até o quarto e me observou abrir a gaveta. A arma não estava lá.
Virei para Rachel.
- Você salvou a minha vida, sabia? Não resta dúvida, agora.
- Fico feliz.
- Como ele podia saber que eu tinha uma arma?
- Ela está registrada?
- Está, mas e daí, agora você vai me dizer que ele consegue penetrar nos computadores da ATF? Isso é forçar demais a barra, não acha?
- Na verdade, não. Se ele conseguiu entrar no sistema da prisão, não vejo por que não conseguiria chegar ao registro de armas do governo. E talvez seja só um dos
lugares onde ele poderia ter conseguido. Na época em que você comprou, deu entrevista pra meio mundo, do Larry King Live à National Enquirer. Alguma vez você anunciou
que possuía uma arma?
Balancei a cabeça, concordando.
- Inacreditável. Foi mesmo. Eu disse em algumas entrevistas. Eu esperava que a notícia se espalhasse e isso impedisse uma visita surpresa do Poeta.
- Aí está.
- Mas só pra você saber, nunca dei uma entrevista pra Enquirer. Eles fizeram uma matéria sobre mim e o Poeta sem minha colaboração.
- Desculpe.
- De qualquer maneira, esse sujeito não é assim tão esperto quanto a gente está pensando. O plano dele tinha uma grande falha.
- Qual seria?
- Eu fui de avião pra Vegas. A bagagem toda passa pelo controle. Eu nunca teria chegado lá com a arma.
Ela concordou.
- Talvez não. Mas acho que qualquer um sabe que o processo de escaneamento não é cem por cento garantido. Isso provavelmente preocuparia os investigadores em Ely,
mas não o suficiente pra fazer com que chegassem a outra conclusão. Toda investigação deixa uma ou outra ponta solta.
- Será que dá pra gente voltar pra sala?
Rachel saiu do quarto e eu a segui, relanceando brevemente a cama às minhas costas quando passei pela porta. Na sala, desabei no sofá. Tanta coisa acontecera nas
últimas 36 horas. Eu estava exausto, mas sabia que não teria descanso ainda por um bom tempo.
- Pensei em mais uma coisa. Schifino.
- O advogado em Vegas? O que tem ele?
- Procurei ele primeiro e ele sabia de tudo. Ele poderia revelar a mentira sobre o meu suicídio.
Rachel considerou isso por um momento e então balançou a cabeça.
- Isso pode ter deixado ele em perigo. Talvez o plano fosse assassinar você e depois voltar para Vegas e matar ele também. Daí, quando a oportunidade com você escapou,
não havia motivo para pegar Schifino. De qualquer maneira, vou avisar o escritório de Vegas para entrar em contato e cuidar da proteção.
- Você vai dizer pra eles irem até Ely e checar o vídeo do cassino onde eu fiquei com aquele cara?
- Vou fazer isso também.
O telefone de Rachel tocou e ela atendeu imediatamente.
- Só eu e o dono da casa - ela disse.
- Jack McEvoy. Um repórter do Times. A vítima era uma repórter, também.
Ela escutou por um momento e disse:
- A gente está indo agora mesmo.
Fechou o celular e me disse que a polícia estava na frente da casa.
- Eles vão se sentir mais tranquilos se a gente sair pra encontrar com eles.
Andamos até a porta da frente e Rachel abriu.
- Mantenha as mãos visíveis - disse Rachel para mim.
Ela saiu, segurando as credenciais no alto. Havia duas radiopatrulhas e uma viatura de detetives na rua. Quatro policiais uniformizados e dois detetives estavam
esperando na pista para a garagem. Os policiais uniformizados apontaram as lanternas em nossa direção.
Quando chegamos mais perto, reconheci os dois detetives da Divisão de Hollywood. Eles mantinham suas armas na lateral do corpo e pareciam prontos para usar caso
eu lhes desse um motivo justo.
Eu não dei.

Só cheguei ao Times pouco antes do meio­-dia na quinta­-feira. O lugar estava fervendo de atividade. Um monte de repórteres e editores iam de um lado para outro
pela redação como abelhas em uma colmeia. Eu sabia que era tudo por causa de Angela e do que acontecera. Não é todo dia que você vai trabalhar e descobre que sua
colega foi brutalmente assassinada.
E que, de algum modo, outro colega está envolvido.
Dorothy Fowler, a editora de cidade, foi a primeira a me ver quando surgi das escadas. Ela pulou de sua mesa na balsa e veio diretamente até mim.
- Jack, na minha sala, por favor.
Ela mudou de direção e se dirigiu à muralha envidraçada. Fui atrás, sabendo que todos os olhares na redação estavam outra vez sobre mim. Não mais porque eu era o
sujeito que recebera o bilhete azul do carrasco. Eles me observavam agora porque eu era o cara que podia ter assassinado Angela Cook.
Entramos no pequeno escritório e ela me disse para fechar a porta. Fiz como instruído e então sentei do outro lado da mesa, diante dela.
- Como foi com a polícia? - ela perguntou.
Nada de como vai, tudo bem com você ou lamento pela Angela. Direto ao ponto, era assim que eu gostava.
- Bom, vamos ver - eu disse. - Passei umas oito horas sendo interrogado. Primeiro pelo DPLA e o FBI, depois pelos detetives de Santa Monica. Me deram uma pausa de
mais ou menos uma hora e então eu tive que contar novamente a história toda pra polícia de Las Vegas, que veio pra cá só pra falar comigo. Depois disso me liberaram,
mas sem me deixar voltar pra casa, porque continua sendo uma cena de crime em atividade. Então pedi que me levassem pro Kyoto Grand, onde peguei um quarto e pus
na conta do Times, já que não estou com nenhum cartão de crédito funcionando, tomei uma ducha e vim andando pra cá.
O Kyoto ficava a uma quadra e o Times usava o hotel para hospedar repórteres de fora da cidade, novas contratações e candidatos a alguma vaga, quando havia necessidade.
- Muito bem - disse Fowler. - O que você contou à polícia?
- Basicamente, disse a eles o que tentei dizer a Prendo ontem. Descobri um assassino à solta que matou Denise Babbit e uma mulher em Las Vegas chamada Sharon Oglevy.
De algum modo, Angela ou eu mesmo disparamos um alerta em algum lugar e o cara ficou sabendo que a gente estava atrás dele. Então ele tomou as providências para
eliminar a ameaça. Isso incluiu matar Angela primeiro e ir a Nevada pra tentar me pegar. Mas eu tive sorte. Embora não tivesse conseguido convencer Prendo ontem,
consegui convencer uma agente do FBI de que a história era legítima, e ela viajou para Nevada e foi conversar comigo. A presença dela afastou o assassino de mim.
Se ela não tivesse acreditado e ido me encontrar, você estaria publicando uma reportagem de como eu matei Angela e fugi para o deserto pra cometer suicídio. Esse
era o plano do Unsub.
- Unsub?
- Unknown subject, um "elemento desconhecido". É como o bureau está classificando o autor do crime, por ora.
Fowler balançou a cabeça, perplexa, sem acreditar.
- Essa história é incrível. A polícia está de acordo com ela?
- Você quer dizer se eles acreditam em mim? Me deixaram ir, não deixaram?
O rosto dela ficou vermelho de vergonha.
- É só que é difícil pra mim aceitar tudo isso, Jack. Nada parecido nunca aconteceu aqui antes, nessa redação.
- Na verdade, os policiais provavelmente não teriam acreditado se isso tudo viesse só de mim. Mas eu fiquei com a agente do FBI na maior parte do dia de ontem. A
gente acha até que viu o sujeito em Nevada. E ela estava comigo quando eu cheguei em casa. Ela encontrou o corpo de Angela quando a gente estava dando uma busca
na casa. Ela me respaldou em tudo que eu disse pra polícia. E é provavelmente por isso que não estou conversando com você do outro lado do Plexiglas da cadeia.
A menção ao corpo de Angela trouxe uma pausa mórbida à conversa.
- Isso é simplesmente horrível - disse Fowler.
- É. A menina era doce e muito legal. Não gosto nem de pensar em como devem ter sido as últimas horas dela.
- Como ela foi morta, Jack? Da mesma forma que a garota do porta-malas?
- Bem parecido. Pelo menos foi o que eu achei, mas é capaz de só dar pra saber direito depois da autópsia.
Fowler balançou a cabeça sombriamente.
- Como estão conduzindo a investigação agora, você faz ideia?
- Estão montando uma força­-tarefa entre detetives de Los Angeles, Las Vegas e Santa Monica, e o FBI também está participando. Acho que vão centralizar tudo em Parker
Center.
- Será que dá pra confirmar isso e pôr numa das matérias?
- Dá, eu confirmo. Provavelmente sou o único repórter que eles vão atender no telefone. Quantos centímetros vocês estão me dando pra matéria?
- Hã, Jack, essa é uma das coisas que eu queria conversar com você.
Senti uma pressão no fundo do estômago.
- A matéria principal é minha, não é?
- A gente vai partir pras cabeças com esse negócio. Central e lateral na primeira e página dupla no miolo.
Três páginas do jornal. Era um bocado de espaço, mas precisou que um de seus próprios repórteres fossem assassinados para que isso fosse concedido.
Dorothy continuou o plano.
- Jerry Spencer já está trabalhando em Las Vegas e Jill Meyerson está a caminho da Ely State Prison para tentar conversar com Brian Oglevy. Em Los Angeles, estamos
com GoGo Gonzmart escrevendo a coluna lateral, que vai ser sobre Angela, e Teri Sparks lá no sul de Los Angeles trabalhando num artigo sobre o garoto acusado pelo
assassinato de Babbit. Já temos a arte sobre a Angela e estamos procurando mais.
- Alonzo Winslow vai deixar a detenção de menores hoje?
- A gente ainda não tem certeza. Com sorte, isso vai levar mais um dia e a gente vai ter isso pra rodar amanhã.
Mesmo que Winslow não ganhasse liberdade, a matéria seria grande. Repórteres do caderno metropolitano espalhados por todo o oeste do país e inúmeros jornalistas
locais escrevendo era algo que eu não via ser feito pelo Times desde os incêndios que assolaram o estado no ano anterior. Era empolgante tomar parte, mas não tão
empolgante se você considerasse a causa disso.
- Tudo bem - eu disse. - Tenho material pra contribuir com quase todas essas matérias e ainda posso amarrar e escrever a matéria principal.
Dorothy balançou a cabeça, hesitou e soltou a bomba.
- Larry Bernard pegou a principal, Jack.
Reagi rápido e ruidosamente.
- Que porra é essa que você tá me falando? Essa história é minha, Dorothy! Na verdade, minha e da Angela.
Dorothy olhou por cima de meu ombro para a redação. Suspeitei que minha explosão houvesse sido escutada através do vidro. Não me importei.
- Jack, se acalme e cuidado com a língua. Não vou deixar você falar comigo do jeito que falou com Prendo ontem.
Tentei ritmar minha respiração e falar com calma.
- Tá bom, peço desculpa pelo linguajar. Pra você e pro Prendo. Mas você não pode tirar essa história de mim. É minha história. Eu comecei, eu escrevo.
- Jack, você não pode escrever e sabe disso. Você é a história. Preciso que se encontre com Larry, para que ele possa entrevistar você e depois escrever. As telefonistas
anotaram mais de trinta recados de repórteres querendo te entrevistar, incluindo o New York Times, Katie Couric, até Craig Ferguson, do Late Late Show.
- Ferguson não é repórter.
- Não faz diferença. A questão é que você é a história, Jack. Isso é um fato. Agora, é claro que a gente precisa da sua ajuda e do que você sabe sobre tudo o que
está relacionado a isso, mas não podemos deixar que o tema de uma história superimportante também seja o redator dela. Você ficou sob custódia da polícia por oito
horas hoje. O que contou pra eles é a base da investigação. Como vai escrever sobre isso? Vai entrevistar você mesmo? Escrever na primeira pessoa?
Ela fez uma pausa para me deixar responder, mas não disse nada.
- Isso mesmo - continuou. - Não dá pra ser assim. Você não pode escrever, e eu sei que entende isso.
Me curvei para a frente e enfiei o rosto nas mãos. Eu sabia que ela tinha razão. Eu já sabia disso até mesmo antes de entrar na redação.
- Isso era pra ser minha saída em grande estilo. Tirar o rapaz da cadeia e sair por cima. Pôr o trintão no fim da minha carreira.
- Você ainda vai receber o crédito. Não tem como a história não ser sobre você. Katie Couric, o Late Late Show... Eu diria que isso é sair por cima.
- Eu queria escrever, não relatar pra alguém.
- Olha, vamos fazer desse jeito agora e depois a gente conversa sobre uma matéria em primeira pessoa, quando a poeira baixar. Prometo pra você, você vai poder escrever
tudo que quiser sobre essa história em algum momento mais pra frente.
Finalmente me recostei na cadeira e olhei para ela. Pela primeira vez, notei a foto colada na parede atrás dela. Era um still do Mágico de Oz, que mostrava Dorothy
andando pela estrada de tijolos amarelos com o Homem de Lata, o Leão e o Espantalho. Debaixo dos personagens, alguém escrevera com uma caneta especial:
VOCÊ NÃO ESTÁ MAIS NO KANSAS, DOROTHY
Eu havia me esquecido de que Dorothy Fowler viera para Los Angeles após trabalhar no Wichita Eagle, jornal de Kansas.
- Tudo bem, se você me prometer essa matéria.
- Prometo, Jack.
- Ok. Eu conto pro Larry o que eu sei.
Ainda me sentia derrotado.
- Antes de você fazer isso, preciso falar mais uma coisa - disse Dorothy. - Você se sente à vontade para ter suas palavras registradas por outro repórter? Quer consultar
um advogado antes ou qualquer coisa assim?
- Do que você está falando?
- Jack, quero ter certeza de que você está protegido. A investigação está em andamento. Não quero que alguma coisa que você diga no jornal possa cair na mão da polícia
e prejudicar você mais tarde.
Me levantei mas mantive a compostura e o controle.
- Em outras palavras, você não acredita em nada disso. Acredita no que ele esperava que você acreditasse. Que eu matei ela numa espécie de surto psicótico depois
que fui demitido.
- Não, Jack. Eu acredito em você. Só quero que fique protegido. E de quem você está falando?
Apontei para a redação do outro lado do vidro.
- De quem você acha? Do cara! O Unsub! O assassino que pegou Angela e as outras.
- Ok, ok. Entendi. Desculpe ter tocado nos aspectos legais disso tudo. Deixa eu pôr você com o Larry na sala de reuniões pra que vocês tenham um pouco de privacidade,
tá bom?
Ela se levantou e passou por mim ao deixar a sala para procurar Larry Bernard. Saí também e olhei em torno da redação. Meus olhos acabaram pousando sobre a baia
vazia de Angela. Fui até lá e vi que alguém havia depositado um buquê de flores embrulhado em celofane diagonalmente sobre a mesa. Na mesma hora, o embrulho transparente
de plástico me chamou a atenção, e me veio à cabeça o saco que ele usou para sufocá-la. Mais uma vez, vi o rosto de Angela desaparecendo nas trevas sob a cama.
- Licença, Jack?
Quase dei um pulo. Virei e vi Emily Gomez­-Gonzmart. Era uma das melhores repórteres da equipe do Metropolitano. Sempre correndo, sempre atrás de uma história.
- Oi, GoGo.
- Desculpe interromper, mas estou escrevendo a matéria sobre a Angela e queria saber se você podia me ajudar. E talvez dar uma declaração que eu possa usar.
Ela estava segurando uma caneta e um bloquinho de repórter. Comecei pela declaração.
- Hã, certo, mas eu não conheci ela de verdade - eu disse. - Estava começando a conhecer, mas pelo que vi, deu pra perceber que ela se tornaria uma grande repórter.
Tinha a dose certa de curiosidade, vontade e determinação de que um bom repórter precisa. Ela vai fazer falta. Quem sabe que matérias ela poderia ter escrito e que
pessoas poderia ter ajudado com essas matérias?
Dei a GoGo um momento para terminar de escrever.
- Está bom?
- Ótimo, Jack, obrigada. Você sugere alguém pra eu conversar na polícia?
- Não sei de ninguém. Ela mal tinha começado e acho que ainda não tinha conseguido causar impressão em alguém. Mas ouvi dizer que ela tinha um blog. Você já deu
uma olhada?
- Já, estou com ele, e tem alguns contatos lá. Conversei com um tal professor Foley da Universidade da Flórida e mais algumas pessoas. Nessa parte já deu. Só estava
procurando alguém local e de fora do jornal que talvez tivesse alguma coisa pra falar sobre ela mais recentemente.
- Bom, ela escreveu uma história na segunda sobre a equipe de arquivo morto pegando alguém por um homicídio de vinte anos atrás. Talvez alguém de lá possa dizer
alguma coisa. Tente Rick Jackson ou Tim Marcia. Era com esses caras que ela estava falando. Também tem o Richard Bengston. Fala com ele.
Ela escreveu os nomes.
- Valeu, vou dar uma olhada.
- Boa sorte, estou por aqui, se precisar.
Quando ela se afastou, eu me virei para a mesa de Angela e olhei as flores novamente. A glorificação de Angela Cook era a bola da vez agora, e eu tomava parte nisso
com a declaração que acabara de dar para GoGo.
Podem me chamar de cínico, mas não consegui deixar de pensar se o buquê de cravos e margaridas era uma demonstração legítima de pesar de alguém ou se a coisa toda
não fora montada para uma foto ser publicada na edição da manhã seguinte.

Uma hora mais tarde eu estava sentado com Larry Bernard na sala de reuniões, em geral reservada para as discussões de pauta. Espalhamos todo o meu material sobre
a enorme mesa e estávamos percorrendo passo a passo meus movimentos naquela história. Bernard se concentrava no trabalho. Ele era cuidadoso para compreender minhas
decisões e penetrante nas perguntas. Dava para perceber que estava empolgado por ser o principal repórter de uma matéria que ia percorrer o país, se não o mundo.
Larry e eu nos conhecíamos de longa data - a gente havia trabalhado junto no Rocky, em Denver. Se alguém ia se apossar da minha história, eu ficava contrariadamente
feliz que fosse ele.
Era importante que Larry conseguisse a confirmação oficial da polícia ou do FBI sobre as coisas que eu estava lhe contando. Então ao seu lado ele mantinha um bloco
amarelo em que escrevia uma série de perguntas que levaria mais tarde às autoridades, antes de escrever sua matéria. Por causa dessa necessidade de falar com a força­-tarefa
antes de redigir, Bernard agia de um modo superprofissional comigo. Quase não jogamos conversa fora, e eu gostei que fosse desse jeito. Não me restara muita conversa
para jogar fora.
Meu pré­-pago zumbiu no bolso pela segunda vez em 15 minutos. Da primeira vez, eu nem me dera ao trabalho de tirar e deixei para a caixa de mensagens. Larry e eu
estávamos no meio de uma questão­-chave da conversa e não quis ser interrompido. Mas fosse lá quem havia chamado, não deixara recado, porque não tocou nenhum sinal
do serviço do celular me avisando.
Agora o telefone zumbia de novo, e dessa vez eu o tirei para checar a identificação da chamada. A tela mostrou apenas um número, mas não reconheci imediatamente,
porque eu só ligara para esse número algumas vezes nos últimos dias. Era o celular de Angela Cook. O número para o qual eu ligara depois de descobrir que ela havia
desaparecido.
- Peraí, Larry, já volto.
Me levantei da mesa e saí da sala enquanto apertava o botão para atender. Fui para a minha baia.
- Alô?
- É o Jack?
- É, quem está falando?
- Aqui é o seu amigo, Jack. De Ely.
Eu sabia exatamente quem era. A mesma reverberação nasalada de deserto em sua voz. Suíças. Sentei em minha mesa e me curvei para a frente, isolando um pouco mais
a conversa de qualquer ouvido nas proximidades.
- O que você quer? - perguntei.
- Saber como você está passando - ele disse.
- Eu estou bem, mas não graças a você. No corredor do hotel em Nevada, por que você não agiu? Em vez de seguir o seu plano, você simplesmente foi embora.
Imaginei escutar uma risadinha baixa na linha.
- Você tinha companhia e eu não esperava por essa, Jack. Quem era, sua namorada?
- Mais ou menos. E ela estragou o seu plano, não foi? Você queria que parecesse suicídio.
Outra risadinha.
- Dá pra ver que você é bem esperto - ele disse. - Ou só está me contando o que eles contaram pra você?
- Eles?
- Não banca o idiota, Jack. Eu sei o que tá rolando. Não tem como esconder. Tem um monte de matéria sendo escrita pro jornal de amanhã. Mas vi que nenhuma delas
vai sair com seu nome, Jack. Como pode isso?
Dava para perceber que ele continuava navegando por dentro do sistema informatizado do Times. Imaginei se isso ia ajudar a força­-tarefa a rastreá-lo.
- Tá aí, Jack?
- Estou, estou aqui.
- E parece que você não tem nome nenhum pra mim, ainda.
- Como assim?
- Vocês aí não vão me dar um nome? A gente sempre recebe um nome. O Estripador de Yorkshire. O Estrangulador de Hillside. O Poeta. Esse você já conhecia, né?
- É, a gente tá dando um nome pra você. Estamos te chamando de Iron Maiden. Que tal esse?
Dessa vez não escutei nenhuma risadinha no silêncio que se seguiu.
- Continua por aí, Iron Maiden?
- Você devia tomar mais cuidado, Jack. Sempre posso tentar outra vez.
Dei risada na cara dele.
- Ei, não estou me escondendo. Estou bem aqui. Tenta outra vez, se tiver coragem.
Ele ficou em silêncio, então peguei mais pesado.
- Pra matar essas mulheres indefesas o cara precisa ser muito macho, né?
A risadinha voltou.
- Você é muito transparente, Jack. Tá lendo um roteiro?
- Não preciso de roteiro.
- Bom, eu sei o que você está fazendo. Vindo com ameaça pra cima de mim e esse papo garganta pra eu morder a isca e cair na armadilha. Espera que eu vá pra Los Angeles
e vá atrás de você. Enquanto isso, o FBI e o DPLA ficam na moita, prontos pra atacar e pegar o monstro num piscar de olhos. É isso, Jack?
- Se é o que você acha.
- Bom, não é assim que vai funcionar. Sou um cara paciente, Jack. O tempo vai passar, pode até demorar vários anos, e aí eu prometo que a gente vai se encontrar
cara a cara outra vez. Sem disfarce. Aí eu devolvo a sua arma.
Sua risadinha baixa voltou e fiquei com a impressão de que de onde quer que estivesse ligando, estava tentando manter a voz e a risada baixas para não chamar a atenção.
Não soube dizer se era um escritório ou um lugar público, mas ele estava se contendo. Tive certeza disso.
- Falando na arma, como é que isso seria explicado? Que eu fui de avião pra Vegas mas, de algum jeito, levei minha arma e me matei com ela? Parece uma falha no seu
plano, não é?
Ele riu abertamente dessa vez.
- Jack, você ainda não está de posse de todos os fatos, não é? Quando estiver, então vai compreender como o plano era sem falhas. Meu único erro foi a garota no
quarto. Por essa eu não esperava.
Nem eu, mas não ia dizer isso a ele.
- Então acho que não era tão sem falha assim, era?
- Eu posso dar um jeito de compensar.
- Olha, eu estou com o dia meio cheio por aqui. Por que você me ligou?
- Já falei, pra ver como você vai. Pra gente se conhecer. Agora vai haver sempre uma coisa que nos une, não é?
- Bom, enquanto você continuar na linha, posso fazer algumas perguntas pra matéria que a gente está escrevendo?
- Acho que não vai dar, Jack. Isso é entre mim e você, não seus leitores.
- Sabe, você tem razão. A verdade é que eu não ia dar o espaço pra você. Acha que vou deixar você explicar esse seu mundo doentio de merda no meu jornal?
Um silêncio pesado se seguiu.
- Você - disse ele, finalmente, a voz tensa de raiva. - Você devia me respeitar.
Agora eu dei risada.
- Respeitar você? Que tal, vai tomar no seu cu. Você matou uma garota que não tinha nada...
Ele me interrompeu fazendo um som parecido com uma tosse abafada.
- Você escutou isso, Jack? Sabe o que foi isso?
Não respondi e então ele fez o som outra vez. Abafado, uma sílaba, rápido. Depois fez uma terceira vez.
- Não sei, desisto - eu disse.
- Isso era ela, dizendo o seu nome dentro do saco plástico, quando já não tinha mais ar nenhum.
Ele riu. Eu não disse nada.
- Sabe o que eu digo pra elas, Jack? Eu digo, "Respira fundo e tudo vai acabar bem mais rápido."
Ele riu outra vez, uma risada prolongada e seca, e se certificou de que eu ia escutar do começo ao fim antes de desligar abruptamente. Fiquei sentado por um longo
tempo com o telefone ainda pressionado na orelha.
- Pssst.
Ergui o rosto. Era Larry Bernard me olhando por cima da divisória da minha baia. Ele achou que eu continuasse na linha.
- Quanto tempo vai levar? - sussurrou.
Tirei o celular do ouvido e cobri o bocal com a palma da mão.
- Só mais uns minutos. Já volto.
- Ok. Vou dar uma mijada.
Ele se afastou e, na mesma hora, liguei para Rachel. A ligação foi atendida após quatro toques.
- Jack, não posso falar agora - ela disse a título de olá.
- Você teria ganhado a aposta.
- Que aposta?
- Ele acabou de me ligar. O Unsub. No celular da Angela.
- O que ele disse?
- Não muita coisa. Acho que estava tentando descobrir quem você é.
- Como assim? Como ele ia saber sobre mim?
- Não sabia. Estava tentando descobrir quem era a mulher no quarto em Ely. Você estragou tudo com a sua presença e ele é curioso.
- Olha, Jack, seja lá o que ele disse, você não pode citar no jornal. Esse tipo de coisa só põe mais lenha na fogueira. Se ele ficar viciado em manchetes, vai começar
a acelerar o ciclo. Pode ser que comece a matar pelas manchetes.
- Não se preocupe. Ninguém aqui sabe que ele me ligou e não sou eu quem está escrevendo a história, então ele não vai ser mencionado. Vou guardar pra quando eu mesmo
escrever. Vou guardar pro meu livro.
Era a primeira vez que eu mencionava a possibilidade de fazer um livro baseado naquilo. Mas agora parecia inteiramente plausível. De um jeito ou de outro, eu ia
escrever a história.
- Você gravou? - perguntou Rachel.
- Não, eu não estava esperando.
- A gente precisa do seu telefone. A gente consegue rastrear a ligação e descobrir a torre de origem. Vamos ficar sabendo perto de onde ele está. Ou pelo menos estava
quando fez a ligação.
- Parecia um lugar onde ele tinha que falar baixo pra não chamar a atenção. Tipo um local de trabalho ou algo assim. Ele também cometeu um deslize.
- O que foi?
- Tentei jogar uma isca pra ele, deixar ele puto, e...
- Jack, ficou maluco? O que você tá fazendo?
- Não quis ser intimidado por ele. Então fui pra cima, só que ele pensou que eu estava seguindo um roteiro fornecido por vocês. Ele achou que eu estava intencionalmente
jogando uma isca pra que ele viesse atrás de mim. Foi aí que cometeu o deslize. Ele disse que eu estava jogando uma isca pra ele ir pra Los Angeles. Foi como ele
disse. Ir pra Los Angeles. Então ele está em algum lugar fora de Los Angeles.
- Isso é ótimo, Jack. Mas ele podia estar jogando com você. Dizendo isso intencionalmente porque realmente está em Los Angeles. Por isso que eu queria ter gravado.
Assim a gente podia analisar.
Eu não havia pensado no reverso da história.
- Bom, desculpa, nada de gravação. Mas tem mais uma coisa.
- O que foi?
Ela parecia tão abrupta e direta que fiquei imaginando se nossa conversa não estaria sendo ouvida.
- Ele invadiu nosso sistema aqui ou deixou algum tipo de spyware.
- No Times? Por que está dizendo isso?
- Ele sabia do planejamento de matérias pra amanhã. Ele sabia que eu não ia escrever nenhuma matéria.
- Isso parece o tipo de coisa que talvez a gente consiga rastrear - disse ela, animada.
- É, bom, boa sorte tentando fazer o Times cooperar. E além do mais, se esse cara for esperto como você está dizendo, ele sabe o que acabou de me dizer e sabe que
o grampo que plantou não pode ser rastreado, ou então vai simplesmente desligar o troço e cair fora.
- Ainda vale a tentativa. Vou pôr alguém do nosso escritório de mídia pra tentar conversar com o Times. Vale a pena tentar.
Concordei com a cabeça.
- Nunca se sabe. Pode ser o prenúncio de toda uma nova era de cooperação entre a imprensa e as forças da lei. Algo como você e eu, Rachel, só que maior.
Sorri e esperava que ela estivesse sorrindo também.
- Você é um tremendo otimista, Jack. Falando em cooperação, posso mandar alguém aí pra buscar o seu celular agora mesmo?
- Pode, mas que tal se for você?
- Eu não posso. Estou no meio de um negócio aqui. Já falei.
Eu não sabia como interpretar isso.
- Você está encrencada por aí, Rachel?
- Ainda não sei, mas preciso desligar.
- Mas está na força­-tarefa? Eles estão deixando você trabalhar nesse caso?
- Por enquanto, sim.
- Ok, isso é ótimo.
- É.
Combinamos que, dentro de meia hora, eu encontraria o agente que viria buscar o telefone na frente do saguão do globo. Agora era hora de nós dois voltarmos ao trabalho.
- Aguenta as pontas aí, Rachel - eu disse.
Ela ficou em silêncio por um momento e então disse:
- Você também, Jack.
Desligamos. E, de algum modo, com tudo o que havia acontecido nas últimas 36 horas, com tudo o que havia ocorrido com Angela e com as ameaças que eu acabara de sofrer
de um serial killer, uma parte de mim sentiu esperança e felicidade.
Eu tinha a sensação, contudo, de que isso não ia durar muito tempo.

SETE: A Fazenda

Carver observava atentamente as telas de segurança. Os dois homens no balcão da entrada mostraram distintivos para Geneva. Ele não conseguiu ver de que agência da
lei eles eram. No momento em que deu o zoom, os distintivos já haviam sido guardados.
Ele observou Geneva pegar o telefone e apertar três números. Sabia que estaria ligando para o escritório de McGinnis. Ela falou brevemente, depois desligou e indicou
aos dois homens que aguardassem num dos sofás.
Carver tentou conter a ansiedade. O impulso de lutar ou fugir disparava em sua mente enquanto ele repassava seus movimentos recentes e tentava ver onde poderia
ter cometido um erro, se é que cometera. Tudo estava seguro, disse para si mesmo. Ele estava seguro. O plano era bom. Freddy Stone constituía o único motivo de preocupação
- o único aspecto que podia ser considerado um elo fraco - e Carver teria de tomar as providências necessárias para que esse potencial problema fosse eliminado.
Ele observou no monitor enquanto Yolanda Chavez, a segunda em comando depois de McGinnis, entrou na recepção e apertou as mãos dos dois sujeitos. Eles mostraram
os distintivos rapidamente outra vez, mas então um deles pegou um documento dobrado no bolso interno de seu paletó e o apresentou à mulher. Ela examinou o papel
por um momento e o estendeu de volta. Sinalizou aos dois homens para que a seguissem e sumiram por uma porta no interior do prédio. Trocando as telas de segurança,
Carver pôde segui-los até a área administrativa.
Ele se levantou e fechou a porta de sua sala. De volta à mesa, pegou o telefone e chamou a recepção.
- Geneva, aqui é o sr. Carver. Eu por acaso estava olhando as câmeras e fiquei curioso sobre essas duas pessoas que entraram. Vi que estão usando distintivos. Quem
são eles?
- São agentes do FBI.
As palavras gelaram seu sangue, mas ele aguentou firme e permaneceu calmo. Depois de um momento, Geneva continuou.
- Disseram que tinham um mandado de busca. Não vi o papel, mas mostraram pra Yolanda.
- Um mandado de busca pra quê?
- Não tenho certeza, sr. Carver.
- Quem eles pediram pra ver?
- Ninguém. Só pediram pra falar com alguém encarregado. Liguei pro sr. McGinnis e a Yolanda veio recebê-los.
- Ok, obrigado, Geneva.
Ele desligou o telefone e voltou a se concentrar em sua tela. Digitou um comando que abriu uma nova série de ângulos de câmera, uma tela multiplex mostrando os quatro
escritórios particulares da chefia. Essas câmeras estavam ocultas em detectores de fumaça localizados no teto, e os ocupantes das salas não faziam a menor ideia
de sua existência. As imagens vinham acompanhadas de áudio.
Carver viu os dois agentes do FBI entrando no escritório de Declan McGinnis. Ele clicou o mouse nessa câmera e a imagem encheu a tela. Era uma visão de cima e angulosa
da sala, obtida por meio de uma lente convexa. Os agentes sentaram com as costas para a câmera, e Yolanda sentou do lado direito. Carver teve uma visão desimpedida
de McGinnis quando o CEO da empresa sentou depois de apertar as mãos dos agentes. Um era negro e o outro, branco. Identificaram-se como Bantam e Richmond.
- Fui informado de que os senhores têm algum tipo de mandado de busca? - perguntou McGinnis.
- Isso mesmo, senhor - disse Bantam.
Ele voltou a puxar o documento do bolso e o passou por sobre a mesa.
- Vocês estão servindo de host para um site chamado trunk murder ponto com e queremos que nos passem todas as informações que têm sobre isso.
McGinnis não respondeu. Estava lendo o documento. Carver levou as mãos à cabeça e passou os dedos pelo cabelo. Precisava saber o que havia no mandado e quão perto
haviam chegado. Tentou acalmar os nervos, lembrando a si mesmo que estava preparado para isso. Até mesmo esperava por isso. Sabia mais sobre o FBI que o FBI sabia
sobre ele. Podia começar ali mesmo.
Desligou a fonte e depois a tela. Abriu uma gaveta na mesa e puxou a pilha de relatórios mensais sobre as atividades dos servidores que sua equipe havia preparado
no começo da semana. Em geral, ele deixava aquilo tudo arquivado até que McGinnis os pedisse, e então mandava que um de seus engenheiros de servidores os entregasse
enquanto saía para fumar um cigarro. Dessa vez, ia fazer a entrega pessoalmente. Bateu com a pilha na mesa e alinhou as folhas, depois saiu e trancou o escritório.
Na sala de controle, informou Mizzou e Kurt, os dois engenheiros em serviço, onde estava indo; então passou pela gaiola de contenção. Felizmente, o turno de Freddy
Stone só começava à noite, pois ele nunca voltaria à Western Data. Carver sabia como o FBI operava. Eles pegariam os nomes de cada empregado e os jogariam em seus
computadores. Iriam descobrir que Freddy Stone não era Freddy Stone e voltariam para prendê-lo.
Carver não ia permitir uma coisa dessas. Tinha outros planos para Freddy.
Pegou o elevador e subiu para o setor administrativo de cabeça baixa, lendo a página de cima da pilha de relatórios. Mostrando pouco caso, ergueu o rosto ao sair
e viu pela porta aberta da sala de McGinnis que ele tinha companhia. Fez meia­-volta e se dirigiu à mesa da secretária.
- Entrega isso pro Declan quando ele estiver livre - disse. - Mas não tem pressa.
Virou para deixar o setor, na esperança de que seu movimento de meia­-volta houvesse atraído a atenção de McGinnis pelo vão da porta. Mas percorreu todo o caminho
até a entrada principal sem ser chamado.
Pousou a mão na maçaneta.
- Wesley?
Era McGinnis, chamando de seu escritório. Carver virou e olhou para trás. McGinnis estava atrás de sua mesa, acenando para que entrasse na sala.
Carver entrou. Acenou com a cabeça para os dois homens e ignorou Yolanda Chavez completamente, que ele considerava uma inútil, admitida apenas em nome da diversidade
racial. Não havia lugar para Carver sentar, mas tudo bem. Ser o único de pé ali lhe daria uma presença dominante.
- Wesley Carver, esses são os agentes Bantam e Richmond, do escritório do FBI em Phoenix. Eu já ia mandar chamar você lá no bunker.
Carver apertou a mão dos dois homens e repetiu educadamente seus nomes.
- Wesley acumula uma série de funções por aqui - disse McGinnis. - Ele é nosso chefe encarregado de tecnologia e projetou a maior parte do lugar. Também é nosso
chefe de ameaça. O que gosto de chamar de...
- Estamos com algum problema? - Carver interrompeu.
- Pode ser - disse McGinnis. - Os agentes estavam me dizendo que estamos abrigando um website que é do interesse deles e trouxeram um mandado em que eles são autorizados
a ver toda a documentação e os registros pertencentes à configuração e operação do host.
- Terrorismo?
- Eles me explicaram que não podem dizer.
- Quer que eu vá buscar o Danny?
- Não, por enquanto não querem conversar com ninguém na área de design e hospedagem.
Carver enfiou as mãos nos bolsos de seu guarda­-pó branco, porque ele sabia que isso lhe dava uma aparência de um homem de pensamentos profundos. Então se dirigiu
aos agentes.
- Danny O'Connor é nosso chefe de design e hospedagem - ele disse. - Ele devia ficar a par disso. Não estão achando que pode ser um terrorista ou qualquer coisa
assim, estão?
Ele sorriu diante do absurdo do que acabara de sugerir. O agente Bantam, o maior dos dois agentes, respondeu.
- Não, não estamos pensando em nada nesse sentido. Nossa missão no momento é investigar, e quanto menos gente envolvida, melhor. Principalmente nessa parte de hospedagem
da empresa.
Carver balançou a cabeça e seus olhos relancearam momentaneamente na direção de Yolanda. Mas os agentes não pegaram a deixa. Ela continuou na reunião.
- Qual é o site? - perguntou Carver.
- Trunk murder ponto com - respondeu McGinnis. - Acabei de verificar e é parte de um pacote mais amplo. Uma conta de Seattle.
Carver balançou a cabeça e manteve a postura calma. Ele tinha um plano para isso. Estava sempre na frente deles porque sempre tinha um plano.
Apontou para a tela na mesa de McGinnis.
- A gente pode dar uma olhada ou isso vai...
- Preferimos não fazer isso, por enquanto - disse Bantam. - A gente acha que pode alertar o alvo. Não é um site desenvolvido. Não tem nada pra ver. Mas acreditamos
que seja um site de captura.
- E a gente não quer ser capturado - disse Carver.
- Exatamente.
- Posso ver o mandado?
- Claro.
O documento voltara ao bolso de Bantam quando Carver subia do bunker. O agente tirou outra vez e o estendeu para Carver, que o desdobrou e examinou, esperando que
seu rosto não demonstrasse qualquer expressão. Precisou se controlar para ter certeza de que não estava cantarolando.
O mandado de busca era mais interessante pela informação que não continha do que pela que continha. O bureau contava com um juiz federal bastante cooperativo à mão,
isso parecia certo. Em termos muito gerais, o documento descrevia a investigação de um sujeito desconhecido utilizando a internet e transpondo fronteiras estaduais
para empreender uma conspiração criminal que envolvia roubos de dados e fraude. A palavra homicídio não constava em lugar nenhum do mandado. O documento pedia acesso
completo ao website e a todas as informações e os registros relativos à sua origem, operação e financiamento.
Carver sabia que o que eles tinham seria uma surpresa desagradável para o bureau. Ele balançava a cabeça conforme examinava o documento.
- Bom, a gente pode providenciar tudo isso - ele disse. - Qual é a conta em Seattle?
- See Jane Run - disse Yolanda Chavez.
Carver virou e olhou para ela, como que notando sua presença pela primeira vez. Ela captou a má vibração.
- O sr. McGinnis acabou de me pedir para olhar - ela explicou. - Esse é o nome da empresa.
Bom, pensou ele, pelo menos ela era boa para alguma coisa, além de servir de guia pelas instalações quando o chefe estava fora. Ele virou para os agentes, tomando
o cuidado de dar as costas para ela e cortá-la fisicamente da discussão.
- Ok, vamos resolver isso - ele disse.
- Quanto tempo deve levar? - perguntou Bantam.
- Por que vocês não dão um pulinho na nossa maravilhosa cafeteria e tomam um copo de café? Estou de volta antes que ele tenha esfriado o suficiente pra tomar.
McGinnis achou graça.
- Ele falou isso porque não temos cafeteria. Temos máquinas que esquentam demais o café.
- Bom - disse Bantam -, agradecemos a gentileza, mas temos que estar presentes na execução do mandado.
Carver fez que sim.
- Então me acompanhem e vamos pegar a informação de que precisam. Mas ainda tem um problema.
- Que problema? - perguntou Bantam.
- Vocês querem toda a informação que pertence a esse site, mas não querem envolver D e H. Isso não vai funcionar. Ponho minha mão no fogo pelo Danny O'Connor. Garanto
que não é um terrorista. Acho que a gente precisa mandar chamá-lo, se quer dar uma busca completa e conseguir tudo de que vocês precisam.
Bantam balançou a cabeça e levou a sugestão em consideração.
- Vamos dar um passo de cada vez. Traremos o sr. O'Connor quando houver necessidade.
Carver ficou em silêncio, agindo como se estivesse esperando mais, então fez que sim.
- Como preferir, agente Bantam.
- Obrigado.
- Vamos descer até o bunker, então?
- Claro.
Os dois agentes se levantaram, assim como Chavez.
- Boa sorte, senhores - disse McGinnis. - Espero que consigam pegar seus bandidos. Estamos dispostos a ajudar em tudo o que estiver ao nosso alcance.
- Obrigado, senhor - disse o agente Richmond.
Quando deixavam o setor administrativo, Carver notou que Chavez vinha junto atrás dos agentes. Carver ficou segurando a porta, mas quando foi a vez de ela passar,
ele a barrou.
- A gente assume daqui por diante, obrigado - disse.
Ele cruzou a soleira diante dela e fechou a porta atrás de si.

OITO: Lar Doce Lar

No sábado de manhã, eu estava no meu quarto no Kyoto lendo a reportagem de primeira página de Larry Bernard sobre a soltura de Alonzo Winslow da custódia juvenil,
mas tive de parar quando um dos detetives da Divisão de Hollywood me ligou. Seu nome era Bynum. Ele me disse que a casa fora liberada como cena de crime e devolvida
aos meus cuidados.
- Posso voltar?
- Isso mesmo. Pode ir pra casa, agora.
- Isso significa que a investigação está terminada? Quer dizer, tirando a prisão do sujeito, claro.
- Não, nós ainda temos umas pontas soltas que estamos tentando elucidar.
- Pontas soltas?
- Não posso discutir o caso com você.
- Bom, posso perguntar sobre Angela?
- O que tem ela?
- Eu queria saber se ela foi... Bom, torturada, essas coisas.
Houve uma pausa enquanto o detetive decidia até onde podia me contar.
- Lamento, mas a resposta é sim. Há evidência de violação com um objeto desconhecido e o mesmo padrão de sufocamento lento dos outros casos. Múltiplas marcas de
ataduras no pescoço. Ele a sufocou e reviveu repetidamente. Se isso foi um meio de fazer com que ela falasse sobre a matéria em que vocês dois estavam trabalhando,
ou só um jeito de se satisfazer sexualmente, não fica claro. Acho que vamos precisar perguntar para o próprio, quando o pegarmos.
Fiquei em silêncio, pensando no horror que Angela havia enfrentado.
- Mais alguma coisa, Jack? É sábado. Queria aproveitar o que me sobrou do dia pra passear com minha filha.
- Hã, não, desculpe.
- Bom, já pode ir pra casa agora. Tenha um bom dia.
Bynum desligou e continuei sentado, pensando. Chamar de "casa" parecia errado. Não tinha certeza se eu queria a casa de volta, porque eu não tinha certeza se continuava
a ser o meu lar. Meu sono - o pouco que restara dele - fora invadido nas duas últimas noites por imagens do rosto de Angela Cook, submerso na escuridão sob a cama,
e pelo som abafado de tosse tão habilidosamente implantado em minha mente pelo assassino. Só que no meu sonho tudo acontecia debaixo d'água. Os pulsos dela não estavam
atados e ela tentava me alcançar conforme afundava. Seu último gemido por ajuda subia numa bolha e, quando estourava com o som feito pelo Unsub, eu acordava.
Viver e tentar dormir no mesmo lugar eram coisas que, agora, me pareciam impossíveis. Abri as cortinas e olhei através da única janela de meu pequeno quarto. A vista
dava para o centro cívico. O lindo e imemorial prédio da prefeitura erguia-se diante de mim. Ao lado ficava o tribunal criminal, tão horroroso quanto a prisão para
a qual a maioria de seus frequentadores estava destinada. As calçadas e os gramados verdes estavam vazios. Era sábado e ninguém aparecia no centro nos fins de semana.
Fechei as cortinas.
Decidi ficar naquele quarto enquanto o jornal pagasse. Eu iria para casa, mas somente para pegar roupas limpas e outras coisas de que precisava. À tarde eu ligaria
para alguma imobiliária e tomaria as providências para me livrar do lugar. Se conseguisse. Vende-se: Bangalô em Hollywood, reformado e em ótimas condições, utilizado
por serial killer. Aceitam-se ofertas.
Meu celular tocou, me despertando do devaneio. Meu verdadeiro celular. No dia anterior eu finalmente conseguira fazer com que voltasse a funcionar. O identificador
de chamadas dizia NÚMERO PRIVADO, e eu aprendera a não deixar passar esse tipo de ligação.
Era Rachel.
- Oi - eu disse.
- Você parece desanimado. Qual o problema?
Que psicóloga. Fui interpretado na primeira palavra. Decidi não mencionar o que o detetive Bynum acabara de me contar sobre o torturado fim de Angela.
- Nada. É só que eu... nada. Como vão as coisas com você? Está trabalhando?
- Estou.
- Que tal fazer um intervalo e tomar um café, ou alguma coisa assim? Estou aqui no centro.
- Não, não posso.
Eu não a via desde que fôramos separados pelos detetives após a descoberta e a denúncia do corpo de Angela. Como tudo mais, a separação, embora de apenas 48 horas,
não estava me caindo muito bem. Fiquei de pé e comecei a andar de um lado para outro no quarto minúsculo.
- Então, quando vou ver você outra vez? - perguntei.
- Não sei, Jack. Tenha um pouco de paciência comigo. Estou sob a mira de todo mundo, aqui.
Fiquei envergonhado e mudei de assunto.
- Falando em ficar sob a mira, uma escolta armada viria a calhar.
- Pra quê?
- O DPLA disse que a minha casa foi liberada. Disseram que posso ir, mas acho que não consigo ficar lá. Só queria pegar umas roupas, mas é tétrico demais pra ir
sozinho.
- Desculpa, Jack, não posso levar você. Se estiver realmente preocupado, posso ligar pra alguém.
Comecei a perceber a situação. Isso já havia acontecido entre mim e ela antes. Eu tinha de me conformar com o fato de que Rachel era como um gato que voltou ao estado
selvagem. Ela ficava intrigada com o que podia acontecer e pairava ao alcance do toque, mas no último instante pulava para trás e se afastava. Se você forçasse,
as garras apareciam.
- Deixa pra lá, Rachel, só queria fazer você vir aqui.
- Desculpe mesmo, Jack, mas não dá.
- Por que você ligou?
Houve um silêncio antes que respondesse.
- Para dar notícia e pôr você a par de algumas coisas. Se quiser ouvir.
- De volta ao trabalho. Claro, manda.
Sentei na cama e abri um caderno de anotações para escrever.
- Ontem confirmaram que o site trunk murder que Angela visitou foi mesmo o fio detonador em que ela tropeçou - disse Rachel. - Mas, de resto, é só um beco sem saída.
- Beco sem saída? Achei que tudo fosse rastreável na internet.
- A localização física do site é uma empresa de webhosting em Mesa, Arizona, chamada Western Data Consultants. Os agentes foram lá com um mandado e conseguiram obter
os detalhes sobre a criação e operação do site. Estava registrado por intermédio de uma empresa em Seattle chamada See Jane Run, que registra, projeta e mantém inúmeros
sites com a Western Data. É meio que uma intermediária. A empresa não tem as instalações físicas onde os websites ficam hospedados em servidores. Isso é o que a
Western Data faz. A See Jane Run constrói e mantém websites para clientes e paga uma empresa como a Western Data para hospedar os sites. É como uma revendedora.
- Então eles foram até Seattle?
- Os agentes do escritório de Seattle estão cuidando disso.
- E?
- O site trunk murder foi arquitetado e pago totalmente via on-line. Ninguém na See Jane Run nunca viu o sujeito que pagou por ele. O endereço físico fornecido há
dois anos, quando os sites foram criados, era um lugar qualquer em SeaTac que não é mais válido. Estamos tentando rastrear isso, mas vai ser um beco sem saída, também.
O cara é bom.
- Você falou em "sites". Tinha mais de um?
- Isso mesmo, dois sites. O trunk murder ponto com foi o primeiro, e o segundo se chama Denslow Data. Esse foi o nome que ele usou pra criar os dois. Bill Denslow.
Criou os dois sites com um plano de cinco anos que pagou adiantado. Ele usou uma ordem de pagamento - impossível de rastrear além do ponto em que foi comprada. Mais
um beco sem saída.
Levei alguns momentos para escrever algumas anotações.
- Ok - eu disse, enfim. - Então Denslow é o Unsub?
- O homem se passando por Denslow é o Unsub, mas a gente não é tão idiota a ponto de achar que ele ia dar seu nome verdadeiro num site de internet.
- Então o que significa? D­-E­-N­-slow. É um acrônimo ou algo do tipo?
- Pode ser. A gente está trabalhando em cima. Até agora, não achamos nenhuma ligação. Estamos trabalhando no possível acrônimo e no próprio nome. Mas não achamos
nenhum Bill Denslow com algum tipo de ficha criminal que chegaria perto disso.
- Talvez seja só um cara que o Unsub odiava na infância ou na adolescência. Tipo um vizinho ou um professor.
- Quem sabe.
- Então pra que os dois sites?
- Um era o site de captura e o outro o PO.
- PO?
- Ponto de observação.
- Estou completamente boiando.
- Bom, o site trunk murder foi criado pra capturar o endereço de IP de qualquer um que visitasse o site. Foi isso que aconteceu com a Angela. Certo?
- Certo. Ela fez uma busca e foi parar no site.
- Isso. O site coletava os IPs, mas era construído de modo que os endereços fossem automaticamente repassados para outro ponto com. Esse se chamava Denslow Data.
É uma prática comum. Você tem um site onde sua identidade é capturada e enviada a um outro lugar, para receber propaganda. Basicamente é a origem do spam.
- Ok. Então agora o Denslow Data tem a identidade da Angela. O que aconteceu com ela nesse site?
- Nada. Ficou lá.
- Então como...
- Olha, esse é o truque. O Denslow Data foi construído com uma função completamente oposta à do trunk murder. Ele não pega nenhum dado dos visitantes. Está entendendo
onde isso vai chegar?
- Negativo.
- Ok, pensa do ponto de vista do Unsub. Ele criou o trunk murder ponto com pra capturar a identidade virtual de qualquer um que estivesse atrás dele. O único problema
é que se ele entrasse no site pra checar, então a própria identidade dele seria capturada. E é claro que ele podia usar o computador de alguma outra pessoa pra fazer
a checagem, mas mesmo assim isso ia ajudar a determinar a localização. Ele podia ser rastreado até um ponto bem avançado por causa do próprio site.
Balancei a cabeça, finalmente entendendo a armadilha.
- Sei - eu disse. - Então ele faz o endereço de IP capturado ser enviado para outro site sem mecanismo de captura e pode ver o que é sem medo de ser rastreado.
- Exato.
- Então depois que a Angela entrou no site trunk murder ele foi para o site Denslow e pegou o IP dela. Rastreou isso até o Times e imaginou que podia ser mais do
que mera curiosidade mórbida sobre assassinatos e porta-malas de carros. Ele invade o sistema do Times e isso o leva a mim, à Angela e às nossas matérias. Ele lê
meus e-mails e percebe que a gente achou alguma coisa. Que eu achei alguma coisa e estou a caminho de Vegas.
- Isso mesmo. Então ele bolou o esquema pra acabar com vocês dois com um assassinato-suicídio.
Fiquei em silêncio por um momento, digerindo isso mais uma vez. Tudo se encaixava, embora eu não gostasse do resultado final.
- Foi meu e-mail que provocou a morte dela.
- Não, Jack. Você não pode encarar desse jeito. Se teve uma coisa assim, o que selou o destino dela foi entrar no trunk murder ponto com. Você não pode se culpar
por um e-mail enviado pro seu editor.
Não respondi. Tentei deixar a questão da culpa fora da minha cabeça por um tempo e me concentrar no Unsub.
- Jack, você tá aí?
- Só estou pensando. Então isso tudo é completamente impossível de ser rastreado?
- Visto desse ângulo. Assim que a gente achar o cara e pegar o computador dele, vamos poder vasculhar a máquina e rastrear as visitas dele no Denslow. Isso vai ser
uma evidência sólida.
- Isso se ele usou o próprio computador.
- É.
- Não parece muito provável, com toda essa habilidade que ele já mostrou.
- Pode ser. Isso vai depender da frequência com que ele verificava a armadilha. Parece que ele chegou até Angela menos de 24 horas depois que ela visitou o trunk
murder. Isso é indicativo de uma rotina, uma checagem diária, e talvez indique que estivesse usando o próprio computador ou algum nas proximidades.
Pensei em tudo isso por um momento e recostei no travesseiro, fechando os olhos. O que eu sabia sobre o mundo era deprimente.
- Tem mais uma coisa que eu queria contar pra você - falou Rachel.
- O quê?
Abri os olhos.
- A gente descobriu como ele atraiu a Angela pra sua casa.
- Como?
- Você atraiu.
- Do que você tá falando? Eu estava...
- Eu sei, eu sei. Só estou dizendo que é como ele quis que parecesse. Encontramos o laptop dela no apartamento. Na conta de e-mail dela tem um e­-mail seu. Foi mandado
na terça à noite. Você dizia que tinha conseguido umas informações interessantes sobre o caso de Winslow. O Unsub, fingindo ser você, disse que era muito importante
e convidou ela pra sua casa pra ver.
- Meu Deus!
- Ela retornou o e-mail, dizendo que estava a caminho. Quando chegou à sua casa, ele estava esperando. Foi depois que você saiu pra Vegas.
- Ele devia estar espionando minha casa. Ele me viu sair.
- Você sai, ele entra e usa seu computador de casa pra enviar a mensagem. Então espera por ela. E depois que termina o serviço, segue você até Vegas pra completar
a encenação, matando você e fazendo parecer um suicídio.
- Mas e a minha arma? Ele entrou na casa e achou com muita facilidade. Talvez ele tenha ido pra Vegas de carro pra me seguir. Mas isso ainda não explica como eu
supostamente levei ela pra lá. Eu fui de avião e não registrei bagagem. Isso é uma falha e tanto, não é?
- A gente acha que ele pensou nisso, também.
Fechei os olhos com força outra vez.
- Me explica.
- Depois de atrair Angela, ele usou seu computador para imprimir um formulário GO! de envio de carga.
- Go? Nunca ouvi falar desse Go.
- É um concorrente pequeno da FedEx e outros. G­-O, com ponto de exclamação. Significa Guaranteed Overnight. Um serviço de entregas de um dia para outro, de aeroporto
para aeroporto. Um negócio que está crescendo agora, que as empresas aéreas limitam a bagagem e cobram por isso. Você pode baixar o formulário de envio pela internet,
e alguém fez exatamente isso no seu computador. Foi para um pacote enviado pra você mesmo no dia seguinte. Programado para retirada no depósito do McCarran International.
Nenhuma assinatura é exigida. Basta mostrar sua cópia do formulário de envio. Você pode deixar um pacote no aeroporto de Los Angeles até as 11 da noite.
Eu só conseguia balançar a cabeça.
- Foi assim que ele fez - disse Rachel. - Ele atrai a Angela e depois vai cuidar do envio. Angela chega e ele faz o que tem que fazer. Ele larga ela lá - se ela
já estava morta ou não a essa altura, não sabemos. Então ele vai pro aeroporto e deixa o pacote com a arma. Os pacotes domésticos da GO! não passam pelo raio­ X.
Depois disso, ele vai pra Vegas, de carro ou de avião, muito possivelmente no mesmo avião que você. De um jeito ou de outro, assim que chega lá, ele retira o pacote
e pega a arma. Depois segue você até Ely para consumar o plano.
- Parece tão cronometrado. Tem certeza de que dava pra ele ter pensado nisso tudo?
- É cronometrado e a gente não tem certeza, mas o cenário funciona.
- E quanto a Schifino?
- Ele foi informado, mas não parece correr perigo no momento, se é que corria. Recusou proteção, mas estamos vigiando, de qualquer maneira.
Fiquei pensando se o advogado de Las Vegas sequer imaginava como chegara perto de ser vítima de um crime horrível. Rachel continuou.
- Presumi que você teria me ligado se algum outro contato tivesse sido feito pelo Unsub.
- Não, contato nenhum. Além do mais, você está com o telefone. Ele tentou ligar de novo?
- Não.
- Como foi o rastreamento da chamada?
- A gente chegou numa torre de celular em McCarran. O terminal da US Airways. Duas horas depois da ligação pra você, tinha voos desse terminal para 24 cidades americanas
diferentes. Ele podia estar a caminho de praticamente qualquer lugar relacionado a essas 24 cidades.
- E quanto a Seattle?
- Não tinha voo direto, mas ele pode ter viajado para uma cidade com conexão e ido dali. Estamos executando um mandado de busca hoje que vai nos dar as listas de
passageiros de todos os voos. Vamos pôr os nomes no computador e ver o que conseguimos. Esse foi o primeiro deslize do nosso alvo e, com um pouco de sorte, ele vai
pagar caro por isso.
- Deslize? Como assim?
- Ele nunca devia ter ligado pra você. Nunca podia ter feito contato. Ele deu pra gente uma informação e uma localização. Pelo que a gente viu, é muito fora do feitio
dele.
- Mas era você quem queria apostar comigo que ele ia fazer contato. Por que ficou tão surpresa? Você tinha razão.
- É, mas eu disse isso antes de saber tudo que a gente sabia. Baseado no que a gente tem agora do perfil desse homem, acho que é muito pouco característico dele
ligar pra você.
Pensei nisso tudo por alguns momentos antes de fazer a próxima pergunta.
- O que mais o bureau está fazendo?
- Bom, estamos levantando o perfil de Babbit e Oglevy. A gente sabe que elas se encaixam no procedimento dele, e precisamos descobrir onde elas se cruzam e em que
ponto ele topou com elas. Também estamos procurando pela assinatura dele.
Sentei e escrevi assinatura no caderno de anotações; depois sublinhei.
- A assinatura é diferente do procedimento.
- Isso, Jack. O procedimento é o que ele faz com a vítima. A assinatura é o que ele deixa pra trás pra marcar território. É a diferença entre uma pintura e a assinatura
do artista marcando uma obra como sua. Você pode identificar um Van Gogh só de olhar pra um. Mas ele também assinava sua obra. A única diferença é que com esses
assassinos a assinatura não é tão óbvia. Na maioria das vezes, a gente só vê depois. Mas se der pra decifrar a assinatura agora, isso pode ajudar a chegar nele.
- É isso que vocês estão fazendo? Trabalhando nisso?
- É.
Mas ela havia hesitado antes de responder.
- Usando as anotações que você fez com base no meu material?
- Isso mesmo.
Agora quem hesitou fui eu, mas não por muito tempo.
- Isso é mentira, Rachel. O que tá acontecendo?
- Do que você tá falando?
- Eu estou com as suas anotações bem aqui, Rachel. Quando finalmente me liberaram, na quinta, pedi que me dessem todas as minhas pastas e anotações de volta. Eles
me deram as suas anotações, pensando que eram minhas. No seu bloco amarelo. Estou com elas, Rachel, então por que você tá mentindo pra mim?
- Jack, não estou mentindo. E daí que você tá com as minhas anotações, acha que não consig...
- Onde você tá? Nesse exato minuto. Onde você tá, exatamente? Fala a verdade.
Ela hesitou.
- Em Washington.
- Droga, vocês estão fechando o cerco em See Jane Run, não é? Eu vou já para aí.
- Não essa Washington, Jack.
Isso me desconcertou completamente, e então meu computador interno gerou um novo cenário. Rachel conseguira usar seu perfil do Unsub para voltar à função que queria
e para a qual era mais indicada.
- Você está trabalhando para a Comportamental?
- Quem dera. Estou no Quartel­-General de Washington para uma audiência no OPR segunda de manhã.
Eu sabia que OPR era o Office of Professional Responsibility, a versão do FBI para uma corregedoria.
- Você contou a eles sobre nós? Estão no seu pé por causa disso?
- Não, Jack, não contei nada sobre aquilo. É sobre o jato que usei pra Nellis na quarta. Depois que você me ligou.
Levantei de repente da cama e comecei a andar de um lado para outro novamente.
- Você só pode estar brincando. O que eles vão fazer?
- Não sei.
- Não interessa pra eles que você salvou pelo menos uma vida - a minha - e no processo trouxe esse assassino ao conhecimento das autoridades? Eles fazem ideia de
que soltaram ontem da cadeia um menino de 16 anos falsamente acusado de homicídio graças a você? Sabem que um homem inocente que passou um ano em uma prisão de Nevada
vai ser solto em breve? Você devia ganhar uma medalha, não uma repreensão.
Houve um silêncio, e então ela falou.
- E deviam dar um aumento pra você, Jack, não te mandar embora. Olha, aprecio o que você disse, mas a realidade é que tomei algumas decisões erradas e eles parecem
mais preocupados com isso e com o dinheiro que custou do que com qualquer outra coisa.
- Meu Deus! Se fizerem alguma coisa com você, Rachel, vai aparecer na primeira página. Eu vou queim...
- Jack, eu sei cuidar de mim. Você tem que se preocupar com você mesmo por enquanto, tá bom?
- Não, não tá nada bom. A que horas é a audiência de segunda?
- É às nove.
Eu ia alertar Keisha, minha ex. Eu sabia que não a deixariam entrar numa audiência pessoal a portas fechadas, mas se soubessem que havia uma jornalista do Times
zanzando do lado de fora, à espera dos resultados, talvez pensassem duas vezes no que iam fazer lá dentro.
- Jack, olha, eu sei o que você está pensando. Mas eu quero que você esfrie a cabeça e me deixe lidar com isso. É meu trabalho e minha audiência. Ok?
- Não sei. É difícil pra mim ficar sentado aqui quando estão tentando foder com alguém... alguém que é importante pra mim.
- Obrigado, Jack, mas se você realmente se sente assim em relação a mim, então preciso que fique fora dessa vez. Aviso sobre o que aconteceu assim que der.
- Promete?
- Prometo.
Abri a cortina outra vez e um jorro de luz entrou no quarto.
- Ok.
- Obrigada. Vai passar na sua casa? Se quiser, posso mandar alguém pra te esperar lá.
- Não, vou ficar bem. Eu falei aquilo por sua causa. Queria te ver. Mas se você não está nem na cidade... Quando chegou aí, falando nisso?
- Hoje de manhã, num voo noturno. Tentei adiar pra poder continuar no caso. Mas não é assim que o bureau funciona.
- Certo.
- Então estou aqui e vou me encontrar com meu agente de defesa pra repassar tudo. Na verdade, ele vai chegar daqui a um minuto e preciso organizar umas coisas.
- Tudo bem. Onde você está hospedada?
- Hotel Monaco, na F Street.
Encerramos a ligação depois disso. Fiquei na janela, olhando através dela, mas sem ver o que havia ali. Estava pensando em Rachel lutando por seu trabalho, a única
coisa que parecia mantê-la ligada ao mundo.
Percebi que não era muito diferente de mim.

NOVE: O Lado Escuro dos Sonhos

Carver observou a casa em Scottsdale da escuridão de seu carro. Era cedo demais para agir. Ele teria de esperar e observar até ter certeza de que era seguro. Isso
não o incomodava. Gostava de ficar sozinho e no escuro. Era seu lugar. Tinha sua música no iPod e o Rei Lagarto lhe fizera companhia a vida toda.
I'm a changeling, see me change. I'm a changeling, see me change.1
Esse sempre fora seu hino, a trilha sonora da sua vida. Ele aumentou o volume e fechou os olhos. Levou a mão à lateral do assento, embaixo, e apertou o botão para
se reclinar ainda mais.
A música o transportou de volta. Para além de todas as lembranças e de todos os pesadelos. De volta ao camarim com Alma. Ela deveria estar de olho nele, mas tinha
as mãos ocupadas com a linha e o bordado. Não podia ficar de olho nele o tempo todo e não era justo esperar que fosse assim. Havia regras na casa sobre mães com
crianças. A mãe era sempre a responsável, mesmo que estivesse no palco.
O jovem Wesley resolveu agir, enfiando-se entre as cortinas de contas tão silenciosamente quanto um rato. Era tão pequeno que só mexeu cinco ou seis fios. Então
seguiu pelo corredor, passando pelo banheiro malcheiroso, até o lugar de onde emanavam as luzes brilhantes.
Quando virou, lá estava o sr. Grable em seu smoking, sentado num banquinho. Ele segurava o microfone, à espera de que a canção chegasse ao fim.
A música era alta nessa ponta do corredor, mas não tão alta que Wesley não escutasse os aplausos - e parte das vaias. Esgueirou-se por trás do sr. Grable e olhou
por entre as pernas do banquinho. O palco estava banhado em luz branca brutal. Ele então a viu. Nua diante de todos os homens. A música pulsava através dele.
Girl, you gotta love your man...2
Ela se movia perfeitamente com a música. Como se tivesse sido feita exatamente para ela. Ele observava em êxtase. Não queria que a música cessasse. Era perfeito.
Ela era perfeita, e ele...
Ele foi subitamente agarrado pelo colarinho de sua camiseta e puxado para trás, de volta ao corredor. Conseguiu erguer o rosto e viu que era Alma.
- Seu menininho malcriado! - ela ralhou.
- Não - gemeu ele. - Queria ver minha...
- Agora não, não vai ver nada!
Ela o arrastou de volta pela cortina de contas para dentro do camarim. Jogou-o sobre a pilha de boás e lenços de seda.
- Você está encrenc... O que é isso?
Ela apontava para ele, o dedo direcionado embaixo. No lugar em que ele sentia umas sensações estranhas aparecendo.
- Eu sou um menino bom - ele disse.
- Com isso aqui, não parece - disse Alma. - Vamos ver o que tem aí.
Ela baixou a mão e a enfiou sob seu cinto. Começou a abaixar suas calças.
- Seu menino pervertido - disse Alma. - Vou mostrar pra você o que a gente faz com pervertidos por aqui.
Wesley estava paralisado de terror. A palavra com que ela o chamara. Não sabia o que significava. Não sabia o que fazer.
O som agudo de metal sobre vidro penetrou na música e no sonho. Carver pulou em seu banco. Momentaneamente desorientado, olhou em torno, percebeu onde estava e tirou
os fones de ouvido.
Olhou pela janela e lá estava McGinnis, parado na rua. Segurava um guia que descia até a coleira de um cãozinho qualquer. Carver viu o gordo anel de Notre Dame em
seu dedo. Devia ter batido na janela com ele, para chamar sua atenção.
Carver abaixou o vidro. Ao mesmo tempo, usou o pé para se certificar de que a arma que pusera no chão estava fora de vista.
- Wesley, o que está fazendo aqui?
O cachorro começou a latir antes que Carver pudesse responder, e McGinnis mandou que ficasse quieto.
- Queria conversar com você - disse Carver.
- Então por que não vamos lá em casa?
- Porque eu também tenho que mostrar uma coisa.
- Do que você está falando?
- Entra que eu levo você.
- Me leva aonde? É quase meia-noite. Não estou entend...
- Tem a ver com aquela visita do FBI. Acho que sei quem eles estão procurando.
McGinnis deu um passo adiante para olhar Carver mais de perto.
- Wesley, o que está acontecendo? O que você quer dizer com "quem eles estão procurando"?
- Entra logo que eu explico no caminho.
- E o que eu faço com ela?
- Pode trazer o cachorro junto. Não vai demorar.
McGinnis balançou a cabeça como que irritado com a coisa toda, mas então deu a volta para entrar no carro. Carver se curvou para a frente e rapidamente apanhou a
arma no chão e enfiou atrás do corpo, na cintura da calça. Teria de aguentar o desconforto.
McGinnis pôs o animal no banco de trás e sentou na frente.
- É ela - disse.
- Como? - perguntou Carver.
- É uma cadela, não um cachorro.
- Tanto faz. Ela não vai mijar no meu carro, vai?
- Não se preocupa. Acabou de fazer xixi.
- Ótimo.
Carver começou a se afastar da vizinhança.
- Sua casa fica trancada? - ele perguntou.
- Fica, eu tranco quando saio pra passear. A gente nunca sabe, com essa molecada da vizinhança. Todo mundo sabe que eu moro sozinho.
- Bem pensado.
- Onde a gente tá indo?
- Pra onde o Freddy Stone mora.
- Certo, então agora me diz onde a gente tá indo e o que isso tem a ver com o FBI.
- Já falei. Preciso mostrar pra você.
- Então me diz o que está indo me mostrar. Já falou com Stone? Perguntou onde diabos ele se enfiou?
- Não, não conversei com ele. Foi por isso que fui até a casa dele essa noite, pra ver se o encontrava. Ele não estava lá, mas encontrei outra coisa. O site de que
o FBI estava falando. Ele é o cara por trás desse negócio.
- Então assim que ele ficou sabendo que o FBI apareceu com um mandado, deu no pé.
- É o que parece.
- A gente precisa ligar pro FBI, Wesley. Não pode parecer que a gente está protegendo esse cara, independentemente do que ele estivesse fazendo.
- Mas isso pode foder com a empresa se sair na mídia. Vai acabar com a gente.
- A gente só precisa assumir a nossa parte - ele disse, enfaticamente. - Encobrir a verdade nunca funciona.
- Tudo bem. A gente vai pra esse lugar primeiro e depois liga pro FBI. Você lembra os nomes dos dois agentes?
- Tenho os cartões no escritório. Um se chamava Bantam. Lembro disso porque o cara era grande, mas se chamava Bantam, como na categoria bantamweight do boxe. Peso-mosca
ou peso­-galo.
- Certo. Agora eu me lembro.
As luzes dos prédios altos no centro de Phoenix espalhavam-se diante deles dos dois lados da rodovia. Carver parou de falar e McGinnis também ficou em silêncio.
O cachorro adormeceu no banco de trás do carro.
A mente de Carver vagou de volta à lembrança da música que ele evocara antes. Ficou pensando o que fizera com que ele atravessasse aquele corredor para espiar. Sabia
que a resposta estava entranhada nas profundezas mais escuras de sua alma. Em um lugar onde ninguém poderia ir.

1 Trecho da música The Changeling, da banda The Doors. A frase pode ser traduzida como "Eu sou um mutante, me veja mudar". (N. do T.)
2 Trecho da música Riders on the Storm, da banda The Doors. Ele pode ser traduzido como "Garota, você tem que amar seu homem". (N. do T.)

DEZ: Ao Vivo, às Cinco

Não saí do meu quarto de hotel no sábado, nem quando alguns repórteres do turno de fim de semana ligaram me convidando para uma happy hour no Red Wind. Estavam comemorando
mais um dia na primeira página com a matéria. A última reportagem foi sobre o primeiro dia de liberdade de Alonzo Winslow e uma atualização sobre o progresso da
busca do suspeito. Não me senti com grande disposição para comemorar uma história que não era mais minha. Eu também não ia mais ao Red Wind. Eles costumavam pôr
as primeiras páginas da seção A, do Metropolitano e de Esportes acima dos urinóis no banheiro dos homens. Agora tinham tevês de plasma e tela plana ligadas na Fox,
na CNN, no Bloomberg. Cada tela só contribuindo para o insulto, uma lembrança de que nosso trabalho estava morrendo.
Em vez disso, passei o sábado à noite no hotel e comecei a repassar as pastas e os arquivos, usando as anotações de Rachel como planta baixa. Com ela em Washington
e fora do caso, me senti desconfortável deixando o trabalho de perfil para agentes sem nome e sem rosto, estejam eles na força­-tarefa ou em um lugar tão distante
como Quantico. Essa era minha história e eu tinha de me manter à frente dela.
Trabalhei até tarde da noite, juntando os detalhes das vidas das duas mulheres mortas, procurando os atributos em comum que Rachel tinha certeza de que estavam lá.
Eram mulheres nascidas em duas cidades diferentes que haviam migrado para duas cidades diferentes em dois estados diferentes. Até onde eu podia dizer, nunca haviam
cruzado seus caminhos, excetuando a chance remota de que Denise Babbit houvesse ido a Las Vegas e por acaso visto o show Femmes Fatales no Cleopatra.
Seria essa a conexão entre os dois assassinatos? Parecia forçado.
Finalmente, esgotei as possibilidades dessa busca e decidi abordar tudo de um ângulo completamente novo. O ângulo do assassino. Em uma folha limpa do bloco de anotações
de Rachel, comecei listando todas as coisas que o Unsub teria precisado saber a fim de consumar cada assassinato no que dizia respeito a método, oportunidade e localização.
A tarefa se provou desanimadora e, por volta da meia-noite, eu estava exausto. Peguei no sono de roupa e tudo em cima da colcha, toda a papelada e as anotações em
volta de mim.
A chamada da recepção para me despertar às quatro da manhã estava tocando, mas me poupou de meu sonho recorrente com Angela.
- Alô - falei com a voz rouca ao telefone.
- Sr. McEvoy, sua limusine está aqui.
- Minha limusine?
- Ele disse que era da CNN.
Eu me esquecera completamente. O negócio fora marcado pelo departamento de relacionamento com a imprensa do Times na sexta­-feira. Era para eu aparecer ao vivo em
rede nacional num programa que passava das oito às dez nos domingos de manhã. O problema nisso era que oito às dez no horário da Costa Leste era cinco às sete no
da Costa Oeste. Na sexta, o produtor do programa não deixara claro em que parte do programa iam me usar. Então eu tinha de estar pronto para aparecer ao vivo às
cinco.
- Diga que desço em dez minutos.
Na verdade levou 15 para entrar a custo no chuveiro, fazer a barba e me enfiar na última camisa não amarrotada que me sobrara no quarto. O motorista não pareceu
preocupado e dirigiu vagarosamente rumo a Hollywood. Não havia trânsito e andamos num bom ritmo.
O carro não era uma limusine de verdade. Era um Lincoln Town Car, sedã. Um ano antes, eu escrevera uma série de matérias sobre um advogado que trabalhava na traseira
de um Lincoln Town Car enquanto um cliente dirigia para ele, como pagamento por seus honorários. Sentado no banco traseiro agora, a caminho da CNN, até que gostei.
Era um bom jeito de ver Los Angeles.
O prédio da CNN era no Sunset Boulevard, não muito longe da delegacia de Hollywood. Depois de passar por um posto de segurança no saguão, subi para o estúdio, onde
estava escalado para uma entrevista a distância de Atlanta, para a edição de fim de semana de um programa chamado CNN Newsroom. Fui conduzido por um jovem até a
área de espera dos convidados, que chamam de "sala­ verde", e encontrei Wanda Sessums e Alonzo Winslow já ali. Por algum motivo, fiquei chocado com a ideia de que
pudessem ter acordado tão cedo a ponto de chegar antes de mim - o jornalista profissional - ao estúdio.
Wanda olhou para mim como se eu fosse um estranho. Alonzo mal tinha os olhos abertos.
- Wanda, lembra de mim? Sou Jack McEvoy, o repórter. Me encontrei com a senhora na segunda passada.
Ela balançou a cabeça e estalou um par de dentaduras mal-ajustadas em sua boca. Não estava usando aquilo quando fui visitá-la em sua casa.
- Isso mesmo. Você é o homem que escreveu todas aquelas mentiras no jornal sobre o meu Zo.
Isso levou Alonzo a se empertigar todo.
- Bom, ele está livre, agora, não está? - eu disse rapidamente.
Avancei e ofereci a mão para seu neto. Ele a pegou meio hesitante e apertou, mas parecia confuso sobre quem eu era.
- Prazer em finalmente te conhecer, Alonzo, fico feliz que esteja livre. Sou Jack. Sou o repórter que conversou com a sua avó e começou a investigação que levou
à sua soltura.
- Minha avó? Do que você tá falando, caralho?
- Ele não sabe do que tá falando - acrescentou Wanda rapidamente.
De repente, entendi o equívoco da minha conduta. Wanda era a avó dele, mas vinha bancando sua mãe - ou "Moms", como dizia -, porque sua mãe de verdade vivia nas
ruas. Ele provavelmente pensava que sua mãe verdadeira era sua irmã, se é que a conhecia.
- Desculpe, me confundi - eu disse. - Bom, acho que vamos ser entrevistados juntos.
- Pra que vão te entrevistar, caralho? - perguntou Alonzo. - Eu é que passei a porra do tempo em cana.
- Acho que é porque fui eu que tirei você da cadeia.
- É mesmo? Engraçado, o sr. Meyer diz que foi ele quem me tirou da cadeia.
- Nosso advogado tirou ele - fez coro Wanda.
- Então por que o seu advogado não tá aqui na CNN?
- Ele tá vindo.
Balancei a cabeça. Isso era novidade para mim. Quando saí do trabalho na sexta, era para ser apenas Alonzo e eu no programa. Agora teríamos "Moms" e Meyer a bordo.
Concluí que isso não ia dar muito certo em uma transmissão ao vivo. Gente demais, sendo que ao menos uma delas seria motivo de problemas para os censores da transmissão.
Fui até a mesa em que havia uma cafeteira e me servi de um copo. Puro. Depois olhei a caixa de donuts Kryspy Kreme e escolhi o tradicional, coberto de açúcar. Tentei
ficar na minha e assistir à tevê presa no alto, que estava sintonizada na CNN e em breve transmitiria o programa semanal em que deveríamos aparecer. Depois de algum
tempo, um técnico chegou e começou a preparar o equipamento de som nos entrevistados; prendeu um microfone em nossos colarinhos e instalou um ponto eletrônico em
nossos ouvidos; depois escondeu toda a fiação sob nossas camisas.
- Posso falar com um produtor? - eu disse, calmamente. - Em particular?
- Claro, vou avisar a ele.
Sentei e aguardei; depois de quatro minutos escutei meu nome sendo chamado por uma voz masculina.
- Sr. McEvoy?
Olhei em torno e então me dei conta de que a voz viera de meu ponto.
- Isso, ele mesmo.
- Aqui é Christian DuChateau, em Atlanta. Estou produzindo o programa de hoje e quero agradecer por você levantar tão cedo para a transmissão. Vamos passar tudo
quando entrarmos no estúdio daqui a alguns minutos. Você precisa conversar comigo antes disso?
- Preciso, só um segundo.
Saí da sala­ verde e fui para o corredor, fechando a porta atrás de mim.
- Só queria ter certeza de que vocês estão com alguém bom no bipador - falei em voz baixa.
- Não entendi - disse DuChateau. - O que quer dizer com "bipador"?
- Não sei como vocês chamam exatamente, mas imagino que saiba que Alonzo Winslow pode ter só 16 anos, mas usa a palavra caralho quase com a mesma frequência com
que usamos os artigos definidos.
Houve um silêncio em resposta, mas não durou muito.
- Compreendo - disse DuChateau. - Obrigado pelo alerta. A gente tenta fazer uma pré­-entrevista com os convidados, mas às vezes não dá tempo. O advogado ainda não
chegou?
- Não.
- Parece que não estão achando o cara, e ele não está atendendo o celular. Minha esperança era que ele pudesse, hã, controlar o cliente dele.
- Bom, no momento ele não está aqui. E você precisa entender o seguinte, Christian: esse garoto não cometeu aquele assassinato, mas isso não quer dizer que seja
uma criança inocente, se entende o que estou dizendo. É um membro de gangue. É um Crip e, nesse exato momento, está pintando de azul sua sala­ verde. Está usando
jeans azul, camisa xadrez azul e uma bandana azul.
Não houve hesitação no fone dessa vez.
- Ok, vou cuidar disso - disse o produtor. - Se as coisas desandarem, você está disposto a aparecer sozinho? É um segmento de oito minutos com uma reportagem sobre
o caso, no meio. Tirando o vídeo e a sua apresentação, dá mais ou menos quatro minutos e meio, cinco, no ar com nosso apresentador do programa aqui em Atlanta. Acho
que você não vai ouvir nenhuma pergunta que já não tenha respondido sobre o caso.
- O que precisar. Estou pronto.
- Ok, daqui a pouco eu volto.
DuChateau desligou e eu voltei para a sala­ verde. Sentei no sofá encostado na parede oposta a Alonzo e sua mãe/avó. Não puxei conversa, mas ele acabou tentando
puxar conversa comigo.
- Você disse que começou essa coisa toda?
- É, depois que a sua... depois que a Wanda me ligou e me contou que não foi você.
- Por quê? Os brancos sempre cagaram e andaram pra qualquer merda que acontecesse comigo.
Dei de ombros.
- É só parte do meu trabalho. Wanda disse que a polícia errou e eu fui atrás pra descobrir. Encontrei outro caso igual ao seu e juntei as duas coisas.
Alonzo balançou a cabeça com determinação.
- Você vai levar o quê, um milhão?
- Como?
- Tão pagando pra você tá aqui? Não me pagaram nada. Pedi só uns dólares pelo meu tempo, mas não me deram porra nenhuma.
- É, bom, noticiário é assim. Em geral não pagam nada.
- Tão ganhando dinheiro em cima dele - fez coro Wanda. - Por que não pagam pro menino?
Dei de ombros outra vez.
- Bom, de repente vocês podiam pedir outra vez - sugeri.
- Isso aí, acho que vou pedir pra eles quando a gente tiver fazendo a entrevista ao vivo na tevê. O que os filhos da puta vão dizer, hein?
Apenas balancei a cabeça. Acho que Alonzo nem imaginava que seu microfone estivesse ligado e alguém no estúdio em Atlanta provavelmente estava escutando tudo o que
dizia. Um minuto depois de anunciar seus planos, a porta abriu e um técnico entrou na sala­ verde para me buscar. Quando saíamos, Alonzo exclamou às nossas costas.
- Ei, onde vocês tão indo agora? Quando a gente vai sair na tevê?
O técnico não respondeu. Caminhando pelo corredor, olhei para a cara dele. Parecia preocupado.
- Sobrou pra você contar que ele não vai aparecer na tevê? - perguntei.
Ele fez que sim.
- E só posso dizer que fico feliz por terem passado o detector de metal nele quando chegou. E não se preocupe, eu chequei, pra ter certeza - respondeu ele.
Sorri e lhe desejei boa sorte.

ONZE: O Solo Duro e Frio

O sol estava quase surgindo. Carver podia ver a linha denteada de luz começando a delinear a silhueta da cadeia montanhosa. Uma linda visão. Ele sentava em uma pedra
grande e observava a luz se insinuando enquanto Stone trabalhava diante dele. Seu jovem acólito dava duro com a pá e atingira o solo duro e frio que fica abaixo
da camada superior de terra solta e areia.
- Freddy - disse Carver, calmamente. - Quero que me conte outra vez.
- Mas já falei pra você!
- Então fala mais uma vez. Preciso saber exatamente o que vocês conversaram. Preciso saber o tamanho do estrago.
- Não tem estrago nenhum. Nada!
- Me conta mais uma vez.
- Caramba!
Ele enfiou raivosamente a pá dentro do buraco, produzindo com o impacto na rocha e areia um som agudo que ecoou através da paisagem deserta. Carver olhou em torno
para ter certeza de que estavam sozinhos. A distância, a oeste, as luzes de Mesa e Scottsdale pareciam um matagal incendiado ficando fora de controle. Ele levou
a mão às costas e segurou a arma. Pensou a respeito, depois decidiu esperar. Freddy ainda podia ser útil. Carver só ensinaria uma lição a ele, por ora.
- Conta mais uma vez - repetiu Carver.
- Acabei de dizer, ele teve sorte, tá bom? - disse Stone. - Só isso. E eu tentei descobrir quem era aquela vagabunda esperando ele no quarto. A que fodeu tudo.
- O que mais?
- Foi só isso. Eu falei pra ele que um dia ia devolver a arma pra ele, que ia entregar pessoalmente.
Carver balançou a cabeça. Até ali Stone dissera a mesma coisa cada vez que repassara a conversa com McEvoy.
- Certo, e o que foi que ele disse pra você?
- Já falei, ele não disse nada importante. Acho que estava era se cagando de medo.
- Não acredito em você, Freddy.
- Bom, foi isso que... ah, teve uma coisa que ele disse.
Carver tentou permanecer calmo.
- O quê?
- Ele sabe sobre o nosso negócio.
- Que negócio?
- Sobre os aparelhos. Esse negócio.
Carver tentou manter a ansiedade fora de sua voz.
- Como ele sabe? Você contou pra ele?
- Não, não contei porra nenhuma. Ele sabia. Só sabia, não sei como.
- O que ele sabia?
- Ele disse que o nome que ia dar pra nós era...
- Ele disse "nós"? Ele sabe que estamos em dois?
- Não, não, não quis dizer isso. Ele nunca disse isso. Ele não sabe disso. Disse que o nome que ia pôr no jornal pra mim, porque achou que fosse só eu, era Iron
Maiden. Que era assim que ia chamar a gente - quer dizer, eu. Acho que só estava tentando me deixar puto.
Carver pensou por um segundo. McEvoy sabia mais do que devia saber. Devia ter tido ajuda. Isso era mais do que acesso à informação. Era insight e conhecimento, e
isso fez Carver pensar na mulher presente no quarto, esperando. A mulher que salvou a vida de McEvoy. Carver agora pensou que talvez soubesse quem ela era.
- Já tá fundo o bastante? - disse Stone.
Carver deixou os pensamentos de lado e se levantou. Foi até a beirada da cova e apontou a lanterna para o fundo.
- É, Freddy, aí já dá. Põe o cachorro primeiro.
Carver lhe deu as costas enquanto Stone pegava o pequeno corpo do animal.
- Com carinho, Freddy.
Ele odiou ter de matar a cadela. Ela não fizera nada de errado. Era apenas uma perda colateral.
- Tá bom.
Carver virou. A cadela estava no buraco.
- Agora ele.
O corpo de McGinnis estava no chão ao pé da cova. Stone se esticou, agarrou os tornozelos e começou a entrar de costas, puxando o corpo para dentro. A pá estava
encostada na parede oposta do buraco. Carver agarrou o cabo e a tirou enquanto Stone seguia para trás.
Stone puxou o corpo para dentro. Os ombros e a cabeça de McGinnis caíram pela parede de um metro com um baque surdo. Com Stone ainda curvado para a frente, segurando
os tornozelos, Carver girou a pá no ar e desferiu uma pancada entre as omoplatas do rapaz.
O ar saiu com tudo de seus pulmões e ele caiu de bruços na cova, aterrissando cara a cara com McGinnis. Carver rapidamente se aproximou da cova e encostou a ponta
da ferramenta na nuca de Stone.
- Dá uma boa olhada, Freddy - ele disse. - Fiz você cavar esse mais fundo pra poder colocar você em cima dele.
- Por favor...
- Você quebrou as regras. Eu não mandei ligar pro McEvoy. Eu não falei pra conversar com ele. Eu falei pra você seguir as minhas instruções.
- Eu sei, eu sei, desculpa. Não vai acontecer nunca mais. Por favor.
- Eu podia me certificar de que não ia acontecer nunca mais agora mesmo.
- Não, por favor. Eu vou compensar por isso. Eu não vou...
- Cala a boca.
- Tá, mas eu...
- Eu disse pra calar a boca e escutar!
- Certo.
- Tá escutando?
Stone balançou a cabeça, o rosto a poucos centímetros dos olhos sem vida de Declan McGinnis.
- Lembra onde você estava quando te encontrei?
Stone balançou a cabeça obedientemente.
- Você estava a caminho daquele lugar escuro pra encarar dias de tormento sem fim. Mas eu salvei você. Te arranjei um nome novo, uma vida nova. Arranjei a oportunidade
de fugir daquilo e se juntar a mim pra irmos atrás das coisas que nós dois queremos. Eu ensinei como e só pedi uma coisa em troca. Lembra o que era?
- Você disse que era uma parceria, mas não uma parceria igual. Que eu ia ser o aluno e você o professor. Que eu tenho que fazer o que você disser.
Carver apertou a ponta de aço mais fundo no pescoço de Stone.
- E, apesar disso, olha a gente aqui. Mesmo assim você me decepcionou.
- Eu não vou deixar isso acontecer outra vez. Por favor.
Carver ergueu o rosto da cova e fitou as silhuetas das montanhas. A linha denteada agora ficava mais nítida, à medida que o céu ganhava tons alaranjados. Tinham
de terminar rapidamente.
- Freddy, você entendeu errado. Sou eu que não vou deixar acontecer outra vez.
- Deixa eu fazer alguma coisa. Deixa eu compensar você.
- Você vai ter a chance.
Ele recolheu a pá e se afastou da cova.
- Enterra eles, agora.
Stone virou e ergueu o rosto com hesitação, o medo ainda nos olhos. Carver estendeu a pá para ele. Stone se levantou e a pegou.
Carver levou a mão às costas e puxou a arma. Observou com enorme prazer os olhos de Stone ficarem arregalados. Mas então tirou o lenço do bolso da frente e começou
a limpar as digitais da pistola. Quando terminou, deixou-a cair na cova junto aos pés de McGinnis. Não ficou preocupado que Stone pudesse tentar pegá-la. Freddy
estava totalmente dominado e sob controle.
- Desculpe, Freddy, mas independentemente do que a gente vai fazer com McEvoy, não vamos devolver a arma pra ele. É arriscado demais ficar com ela por aí.
- Você é quem manda.
Exatamente, pensou Carver.
- Depressa, agora - disse ele. - A escuridão está indo embora.
Stone começou rapidamente a jogar terra e areia dentro do buraco.

DOZE: De Costa a Costa

Como eu havia imaginado, meu segmento no programa matinal só foi ao ar na segunda hora. Fiquei sentado por 45 minutos em um estúdio pequeno e escuro e aguardei enquanto
assistia à primeira metade do programa no monitor da câmera. Isso incluiu um quadro especial sobre Eric Clapton e o Crossroads, um centro de recuperação para viciados
que ele criou no Caribe. O segmento encerrou com uma imagem de Clapton, tocando uma versão blues de "Somewhere over the Rainbow", maravilhosamente comovente e auspiciosa
no que se refere à canção, mas truncada pela interrupção para um comercial.
Durante o intervalo, recebi o aviso de que faltava um minuto para a minha entrada e, pouco depois, eu estava ao vivo de costa a costa e além. O apresentador de Atlanta
me fez um pingue­-pongue de perguntas. Eu respondi com um falso entusiasmo que sugeria que nunca as escutara antes e que a história não estava aparecendo já havia
três dias no Times. Quando terminei e o programa passou à matéria seguinte, Christian DuChateau me informou pelo ponto eletrônico que eu estava liberado e que ele
me devia um favor por ter salvo o programa do quase desastre que teria sido Alonzo Winslow. Ele me disse que a limusine me levaria para qualquer lugar que eu desejasse
ir.
- Christian, você se incomoda se eu usar o carro pra fazer uma parada no meio do caminho? Não é demorado.
- De jeito nenhum. Tenho outra pessoa pra levar Alonzo pra casa, então pode usar o carro pelo resto da manhã, se quiser. Como eu disse, estou em dívida com você.
Isso me ajudou. Passei rapidamente na sala­ verde para pegar mais um café e encontrei Alonzo e Wanda por lá. Parecia que ainda estavam esperando que alguém fosse
pegá­-los no estúdio para entrevistá-los. Ninguém lhes contara que sua participação havia sido cancelada e pareciam ingênuos demais para perceber.
Decidi que não seria eu o portador das más notícias. Me despedi e dei para cada um meu cartão com o número do meu celular.
- Ei, vi você na tevê - disse Alonzo, apontando a tela plana com o queixo. - Maneiro pra caralho isso. Minha vez agora.
- Obrigado, Alonzo. Se cuida.
- Vou me cuidar assim que alguém me der meu milhão.
Balancei a cabeça, peguei outro donut para acompanhar meu café e saí da sala, deixando Alonzo à espera de seu milhão de dólares que jamais viria.
Assim que entrei no carro, expliquei ao motorista sobre a parada que precisava fazer e ele disse que já havia sido instruído a ir onde eu pedisse. Chegamos diante
da minha casa às 7h20. Fiquei sentado no carro, olhando para ela por quase um minuto e reunindo coragem de sair e ir até lá.
Destranquei a porta da frente e entrei, pisando na correspondência acumulada de três dias que havia sido enfiada pela fresta do correio. Nem chuva, nem neve, nem
fita amarela da polícia impediram meu carteiro de cumprir sua missão. Olhei rapidamente os envelopes e descobri que dois dos meus novos cartões de crédito haviam
chegado. Enfiei esses dois envelopes no bolso de trás e larguei o resto ali mesmo no chão.
Restos de materiais usados em cenas de crime estavam pela casa inteira. Todas as superfícies pareciam cobertas com pó preto de impressão digital. Havia também rolos
de fita vazios e luvas de borracha espalhadas por todo o chão. Ao que parecia, os investigadores e técnicos forenses achavam que ninguém voltaria lá depois que houvessem
terminado.
Hesitei só um segundo antes de seguir pelo corredor até meu quarto. Fiquei surpreso ao sentir um ar mais viciado ali do que no dia em que encontramos o corpo de
Angela. O estrado de molas, o colchão e a cama haviam sido levados e presumi que ficariam com eles para serem analisados, e depois como prova.
Parando um momento, examinei o lugar onde a cama ficava. Gostaria de dizer que nesse instante meu coração se encheu de tristeza por Angela Cook. Mas de algum modo
eu já passara desse estágio, ou então minha mente estava se protegendo, não permitindo que eu refletisse sobre essas coisas. Se pensei em algo, foi em como ia ser
difícil vender a casa. Se senti alguma coisa, foi a necessidade de cair fora dali o mais rápido possível.
Passei rápido ao closet, lembrando da reportagem que escrevera uma vez para o Times sobre uma empresa particular que oferecia serviço de limpeza em residências nas
quais assassinatos e suicídios haviam sido cometidos. Um negócio próspero. Concluí que precisaria desencavar essa matéria nos arquivos e ligar para os caras. Quem
sabe me dariam um desconto.
Puxei minha mala grande da prateleira no closet. Pus no chão e, quando abri, o cheiro de bolor invadiu minhas narinas. Eu não usava essa mala desde que me mudara
para a casa, havia uma década. Comecei rapidamente a enchê-la de roupas que compunham meu guarda­-roupa de sempre. Quando não cabia mais nada, desci minha mais do
que surrada bolsa de lona e a enchi com sapatos, cintos e gravatas - mesmo sabendo que não precisaria usar gravatas tão cedo. Finalmente, fui até o banheiro e esvaziei
tudo o que havia na pia e no armário de remédios dentro do saco plástico forrando o lixo.
- Precisa de ajuda?
Quase pulei na cortina do chuveiro. Virei e dei com o motorista que eu deixara no carro dez minutos antes, após dizer que levaria apenas cinco.
- Que susto, cara.
- Só queria saber se você precisava de... O que aconteceu aqui?
Ele estava olhando as luvas de borracha jogadas no chão e o enorme espaço vazio em que ficava a cama.
- É uma longa história. Se puder levar essa mala grande pra mim até o carro, eu levo o resto. Preciso ver uma coisa no meu computador antes de a gente ir.
Peguei minha raquete de raquetebol em um gancho na porta do quarto e segui atrás dele com a bolsa e o equipamento esportivo. Enfiei tudo no porta-malas ao lado da
mala grande e então voltei a entrar na casa. Notei que a vizinha do outro lado da rua estava perto de sua garagem, me observando. Ela segurava o Times na mão, entregue
em casa. Acenei, mas ela não retribuiu o gesto, e percebi que meus dias de vizinhança amigável haviam chegado ao fim. Eu trouxera escuridão e morte ao nosso lindo
bairro.
Outra vez dentro da casa, fui direto para o escritório. Quando entrei, vi na mesma hora que meu computador não estava mais em cima da mesa. Sumira, e me dei conta
de que a polícia ou o FBI haviam levado embora. De certo modo, saber que um bando de estranhos estaria fuçando em todos os meus trabalhos e arquivos pessoais, incluindo
meu desafortunado romance, me fez sentir exposto de um modo inteiramente novo. Eu não era o assassino à solta lá fora, mas o FBI tinha meu computador. Quando Rachel
voltasse de Washington, eu teria de lhe pedir que o recuperasse para mim.
Meus ombros afundaram um pouco e pude sentir que o exterior duro de que eu me revestira para suportar a volta para minha casa começava a desmoronar. Eu tinha de
sair dali ou os horrores do que aconteceu com Angela iriam se esgueirar outra vez em meus pensamentos e me paralisar. Eu precisava continuar em movimento.
Minha última parada na casa era a cozinha. Olhei dentro da geladeira e tirei todos os produtos vencidos ou perto de vencer, jogando tudo na lata do lixo. Despejei
as bananas da fruteira e joguei fora meio filão de pão que havia no armário. Depois fui até a porta dos fundos e pus o saco de lixo na lata maior que ficava junto
à garagem. Entrei novamente, tranquei e saí pela porta de entrada para o carro que me aguardava.
- Vamos voltar ao Kyoto - falei para o motorista.
Eu ainda tinha praticamente um dia inteiro pela frente e era hora de voltar ao trabalho.
Enquanto nos afastávamos, vi que minha vizinha voltara a entrar para a segurança de seu pequeno lar. Não consegui deixar de me virar e olhar através da janela traseira
para minha casa. Era a única casa própria que eu jamais tivera e nunca contemplara a possibilidade de não morar ali. Naquele momento, percebi que um assassino a
dera para mim e outro a tirara.
Dobramos a esquina no Sunset e a perdi de vista.

TREZE: Juntos Outra Vez

Carver se debruçava no computador enquanto Stone juntava as coisas que queria levar consigo. Entre uma e outra busca, Carver rasgava as páginas na caixa de reciclagem
de Stone. Ele queria deixar para o FBI algo que mantivesse seus agentes ocupados.
Parou tudo quando a foto e a história apareceram na tela. Deu uma olhada rápida, depois olhou do outro lado do galpão para Stone. Ele estava enfiando roupas em um
saco preto de lixo. Não tinha mala alguma. Carver pôde perceber que ele estava fazendo as coisas com cuidado e que ainda sentia um pouco de dor.
- Eu tinha razão - disse Carver. - Ela está em Los Angeles.
Stone largou o saco que estava arrumando e cruzou o piso de concreto. Olhou por cima do ombro de Carver para a tela do meio. Carver clicou duas vezes na foto para
ampliar.
- Essa é a mulher? - perguntou ele.
- Já disse - respondeu Stone -, tudo o que consegui foi uma olhada de relance quando entrei no quarto. Não cheguei a ver o rosto dela direito. Ela estava em uma
cadeira mais pro canto. Não tinha ângulo pra ver o rosto. Pode ser ela, mas talvez não seja.
- Acho que era ela. Ela estava com Jack. Rachel e Jack, juntos outra vez.
- Espera um minuto. Rachel?
- Isso, agente especial Rachel Walling.
- Acho... acho que ele disse esse nome.
- Quem?
- McEvoy. Quando ele abriu a porta e entrou no quarto. Quando eu estava chegando por trás dele. Eu ouvi ela. Ela disse, "Oi, Jack". E então ele disse alguma coisa
e eu acho que era o nome dela. Acho que ele disse alguma coisa como "Rachel, o que você tá fazendo?"
- Tem certeza? Você não falou nada sobre um nome antes.
- Eu sei, mas, quando você mencionou isso, minha lembrança voltou. Tenho certeza de que ele disse esse nome.
Carver ficou empolgado com a perspectiva de McEvoy e Walling estarem no seu rastro. Ter dois adversários daquele porte aumentava consideravelmente os riscos.
- Sobre o que é essa matéria? - perguntou Stone.
- É sobre ela e um tira de Los Angeles pegando o cara que eles chamavam de Bagman, o homem do saco. Ele cortava as mulheres e as colocava em sacos de lixo. Essa
foto foi tirada na coletiva de imprensa que deram. Dois anos e meio atrás, em Los Angeles. Eles mataram o Bagman.
Carver podia escutar Stone respirando pela boca.
- Termina de guardar suas coisas agora, Freddy.
- O que a gente vai fazer? Ir atrás dela, agora?
- Não, acho que não. Agora a gente senta e espera.
- Espera o quê?
- Espera por ela. Ela vai chegar até a gente e, quando chegar, vai ser nosso troféu.
Carver esperou para ver se Stone ia dizer alguma coisa, fosse para protestar, fosse para dar alguma sugestão. Mas Stone não disse nada, mostrando que aparentemente
retivera alguma coisa da lição aprendida na manhã.
- Como estão as suas costas? - perguntou Carver.
- Doendo, mas tá tudo bem.
- Tem certeza?
- Estou legal.
- Ótimo.
Carver desligou a conexão e se levantou. Levou a mão à parte de trás da CPU e desligou o cabo do teclado. Sabia que o bureau conseguia coletar DNA a partir dos pedaços
microscópicos de pele que caíam entre as teclas. Não ia deixar aquele teclado pra trás.
- Vamos acelerar e encerrar isso aqui - disse. - Depois, vamos arranjar uma massagem pra você e cuidar dessas costas.
- Não preciso de massagem. Estou legal.
- Não quero você sentindo dor. Vou precisar que esteja com força máxima quando a agente Walling aparecer.
- Não se preocupe. Vou estar preparado.

CATORZE: Um Movimento em Falso

Na segunda de manhã, eu continuei sincronizado no horário da Costa Leste. Queria estar a postos para agir quando Rachel ligasse de Washington, então acordei cedo
e entrei na redação às seis da manhã para continuar a trabalhar em cima do meu material.
O lugar estava completamente morto, nem um único repórter ou editor à vista, e fiquei com uma sombria sensação quanto ao que o futuro nos reservava. Houve um tempo
em que uma redação de jornal era o melhor lugar do mundo para se trabalhar. Um lugar fervilhando de camaradagem, competição, fofoca, tiradas cínicas e bem-humoradas,
uma encruzilhada de ideias e debates. Ali se produziam matérias e páginas vibrantes e inteligentes, que determinavam a agenda para o que era discutido e considerado
importante numa cidade diversificada e empolgante como Los Angeles. Agora, milhares de páginas de conteúdo editorial estavam sendo cortadas ano após ano, e em breve
o jornal estaria como a sala da redação: uma cidade fantasma em termos intelectuais. Em muitos aspectos, eu estava aliviado por saber que não estaria ali para ver.
Sentei em minha baia e, antes de mais nada, olhei a caixa de e-mails. Sexta passada minha conta fora reaberta pelos técnicos da redação, com uma nova senha. Durante
o fim de semana, eu acumulara quase quarenta e-mails, a maioria de estranhos reagindo às matérias sobre os assassinatos dos porta-malas. Li e deletei um por um,
sem disposição para perder tempo respondendo. Dois eram de pessoas afirmando serem serial killers elas mesmas, e me incluindo em sua lista de alvos. Guardei esses
para mostrar a Rachel, mas não fiquei muito preocupado. Um dos autores escrevera cereal killer e interpretei isso como um indício de que se tratava de um palhaço
ou algum débil mental.
Também recebi um e-mail furioso do fotógrafo Sonny Lester, me acusando de traição por não tê-lo incluído na reportagem, como eu disse que faria. Respondi com um
e-mail igualmente irritado, perguntando a ele de que matéria estava falando, uma vez que nenhuma das matérias sobre o caso levava minha assinatura. Disse que eu
fora preterido ainda mais que ele e sugeri que apresentasse qualquer queixa a Dorothy Fowler, a editora de cidade.
Depois disso, tirei as pastas com os arquivos e meu laptop da mochila e arregacei as mangas para trabalhar. Na noite anterior, eu fizera um bocado de progresso.
Completara meu exame dos relatórios sobre o assassinato de Denise Babbit e compusera um perfil do assassino, junto com uma lista abrangente de coisas sobre a vítima
que o assassino teria de saber a fim de cometer o crime da forma como cometeu. Eu estava na metade do meu exame do assassinato de Sharon Oglevy e ainda compilava
o mesmo tipo de informação.
Continuei a trabalhar imperturbável conforme a redação lentamente ganhava vida, editores e repórteres andando pela sala, copos de café na mão, para começar mais
uma semana de trabalho. Às oito horas parei para tomar um café e comer um donut; depois fiz uma série de ligações para as centrais de polícia, vendo se havia algo
interessante nas ocorrências da noite. Qualquer informação que pudesse me afastar da minha presente tarefa.
Satisfeito em ver que, por ora, tudo estava tranquilo, voltei aos arquivos. Estava terminando meu perfil do caso Oglevy quando o primeiro e­
ail do dia soou em meu computador. Ergui o rosto. O e­-mail era do carrasco, Richard Kramer. O bilhete era curto em conteúdo, mas longo em intriga.
De: Richard Kramer <RichardKramer@LATimes.com>
Assunto: Re: hoje
Data: 18 de maio de 2009 9:11 AM PDT
Para: JackMcEvoy@LATimes.com

Jack, aparece aqui quando der.
RK

Olhei por cima da divisória da minha baia para a fileira de salas envidraçadas. Não avistei Kramer na dele, mas de meu ângulo dava para ver sua mesa. Provavelmente
era lá que ele estava, esperando para me comunicar quem tomaria o lugar de Angela Cook na seção policial. Mais uma vez eu sairia por Parker Center escoltando um
jovem substituto, para apresentar o novo repórter às mesmas pessoas que haviam sido apresentadas a Angela apenas uma semana antes.
Decidi resolver logo o assunto. Me levantei e fui até o paredão de vidro. Kramer estava lá, digitando um e-mail para outro destinatário infeliz. A porta estava aberta,
mas bati antes de entrar. Kramer tirou o rosto do monitor e fez um sinal para que eu me aproximasse.
- Senta aí, Jack. Como estamos nessa manhã?
Peguei uma das duas cadeiras diante de sua mesa e me sentei.
- Não sei sobre você, mas acho que comigo tudo bem. Apesar dos pesares.
Kramer balançou a cabeça cuidadosamente.
- É, foram dez dias inacreditáveis desde a última vez em que você sentou nessa cadeira.
Na verdade eu me sentara na outra cadeira quando ele me informou que eu estava sendo cortado, mas não valia a pena corrigi-lo. Permaneci em silêncio, à espera do
que ele teria para me dizer - ou para nos dizer, se fosse continuar falando na primeira pessoa do plural.
- Hoje eu tenho uma boa notícia pra você - ele disse.
Ele sorriu e arrastou um grosso documento do canto da mesa para a frente e o centro. Baixou os olhos para o papel enquanto falava.
- Sabe, Jack, a gente acha que esse caso do assassinato do porta-malas deve ir longe. Pegando ou não o cara em pouco tempo, é uma história que vai render bastante.
Por isso, a gente acha que vai precisar de você, Jack. Curto e grosso, a gente quer que você fique.
Lancei-lhe um olhar inexpressivo.
- Quer dizer que eu não estou na rua?
Kramer prosseguiu como se eu não tivesse feito a pergunta, como se não tivesse me escutado pronunciar sequer um som.
- O que estamos oferecendo aqui é uma extensão de contrato de seis meses a começar no ato da assinatura - ele disse.
- Traduzindo, continuo na rua, mas só daqui a seis meses.
Kramer girou o documento e o empurrou através da mesa para que eu pudesse ler.
- É uma extensão padrão que iremos usar bastante por aqui, Jack.
- Eu nem tenho contrato. Como pode ser uma extensão se eu nem tenho um contrato, pra começo de conversa?
- Eles chamam desse jeito porque no momento você é um empregado e existe um contrato implícito. Então qualquer alteração nessa condição que seja combinada contraturamente
é chamada de extensão. Só a lenga-lenga legal, Jack.
Não falei para ele que contraturamente não era uma palavra. Eu fazia rapidamente uma leitura em diagonal na primeira página do documento quando levei um susto que
quase me fez cair da cadeira.
- Isso aqui vai me pagar 30 mil dólares por seis meses - eu disse.
- Isso, é o preço padrão das extensões.
Fiz as contas rápida e grosseiramente.
- Vamos ver, isso seria uns 18 mil a menos do que hoje eu ganho em seis meses. Então você quer que eu aceite menos pra ajudar você a ficar à frente dessa matéria.
E deixa eu adivinhar...
Peguei o documento e comecei a folhear.
- ... Aposto que não tem mais nenhum benefício médico, dentário, nem aposentadoria, com esse contrato. É isso mesmo?
Não consegui achar e deduzi que não havia cláusula sobre benefícios porque eles simplesmente não existiam.
- Jack - disse Kramer num tom conciliador. - Alguma coisa dá pra negociar do lado financeiro, mas você precisa arcar com os benefícios por conta própria. É assim
que vão ser as coisas daqui pra frente. É só a onda do futuro.
Deixei o contrato cair de volta na sua mesa e ergui o rosto para ele.
- Espera só até chegar a sua vez - eu disse.
- Como é?
- Você acha que isso para na gente? Nos repórteres e editores de texto? Acha que você é um bom soldado e que é só cumprir suas ordens que vai se safar no final?
- Jack, acho que não é a minha situação que estamos discut...
- E daí se é ou se não é? Não vou assinar isso. Prefiro tentar a sorte na fila do desemprego. E é o que eu vou fazer. Mas vai ter um dia que eles vão chegar pra
você e pedir pra assinar um desses. Aí você vai querer saber como vai pagar o tratamento dentário, os médicos, a escola e tudo mais pros seus filhos. E espero que
não se incomode, porque é só a onda do futuro.
- Jack, você nem tem filhos. E me ameaçar porque eu tenho é...
- Não estou ameaçando e não é essa a questão, Crammer. O que estou tentando mostrar pra você é q...
Fiquei encarando ele por um longo tempo.
- Deixa pra lá.
Me levantei e saí da sala dele direto para minha baia. No caminho, olhei o relógio e peguei o celular para ver se havia perdido alguma ligação. Nada. Era quase uma
da tarde em Washington, D.C., e eu ainda não tinha notícia de Rachel.
De volta ao meu cubículo, verifiquei o telefone da redação e o e-mail e tampouco havia qualquer mensagem.
Eu estava dando espaço a ela e, até aquele momento, me esforçara para não me intrometer. Mas eu precisava saber o que estava acontecendo. Liguei para o celular dela
e caiu direto na caixa de mensagens, sem tocar. Disse-lhe que me ligasse assim que pudesse e desliguei. Pensando na chance muito remota de que seu celular estivesse
sem bateria ou que ela se esquecera de ligar depois da audiência, liguei para o hotel Monaco e pedi seu quarto. Mas fui informado de que ela partira pela manhã.
O telefone em minha mesa tocou assim que pus no gancho. Era Larry Bernard, a duas baias de distância.
- O que o Kramer queria, contratar você de volta?
- É.
- O quê? Sério?
- Pagando menos, claro. Disse pra ele entuchar naquele lugar.
- Tá brincando, cara? Você tá na mão deles. Pra onde mais você pode ir?
- Só sei que não vou ficar trabalhando aqui com um contrato que me paga menos e tira todos os meus benefícios. E foi isso que eu disse pra ele. Mas bom, preciso
ir. Está dando uma checada na matéria?
- Isso, estou nela.
- Alguma novidade?
- Nada que tenham me contado. É cedo demais, de qualquer jeito. Ei, te vi no TiVo ontem, na CNN. Você foi bem. Mas achei que era para aparecer o Winslow no programa.
Por isso eu quis ver. Anunciaram ele no começo e depois ele não estava lá.
- Ele foi até lá, mas decidiram que não iam levar ele ao ar.
- Por quê?
- Pela tendência dele a usar a palavra caralho cada vez que abre a boca.
- Ah, é. Quando conversamos com ele na sexta, eu percebi isso.
- Difícil é não perceber. A gente conversa mais tarde.
- Peraí, onde você está indo?
- Caçar.
- O quê?
Desliguei o telefone em cima da pergunta, enfiei o laptop e as pastas na mochila e saí da redação pelas escadas. A redação podia, no passado, ter sido o melhor lugar
do mundo para se trabalhar. Mas não era mais. Pessoas como o carrasco e as forças ocultas agindo atrás dele tornavam o lugar ameaçador e claustrofóbico. Eu precisava
sair dali. Me senti como um homem sem casa nem trabalho para ir. Mas eu ainda tinha um carro, e em Los Angeles o carro era rei.

Tomei o rumo oeste, pegando a rodovia 10 no sentido litoral. Ia no contrafluxo do trânsito e rodava suavemente em direção ao ar puro do mar. Não sabia exatamente
onde estava indo, mas dirigia com determinação subconsciente, como se as mãos sobre o volante e o pé no acelerador soubessem o que meu cérebro não sabia.
Em Santa Monica, peguei a saída da Fourth Street e tomei o Pico Boulevard na direção da praia. Entrei no estacionamento em que o carro de Denise Babbit fora abandonado
por Alonzo Winslow. O pátio estava praticamente vazio e parei na mesma fileira, talvez até na mesma vaga na qual ela fora deixada.
O sol ainda não aquecera suficientemente a bruma marinha e o céu continuava nublado. A roda­-gigante no píer estava envolta em névoa.
E agora, José?, pensei com meus botões. Olhei o celular outra vez. Nenhum recado. Observei um bando de surfistas voltando do mar. Foram para seus carros e caminhonetes,
tiraram os trajes molhados e se lavaram com galões de água doce, depois enrolaram uma toalha na cintura, tiraram o calção de surfe e vestiram uma roupa seca sob
a toalha. O procedimento consagrado da arrumação surfista. Um deles tinha um adesivo em seu Subaru que me fez sorrir.
SERÁ QUE TODOS NÓS NÃO PODEMOS TER UMA PRANCHA?
Abri a mochila e tirei o bloco amarelo de Rachel. Após examinar as pastas e os relatórios, eu enchera diversas páginas com minhas próprias anotações. Folheei até
a última página e olhei o que escrevi.
O QUE PRECISAMOS SABER
Denise Babbit
1. Detalhes de prisão anterior
2. Carro - espaço do porta-malas
3. Onde fica o trabalho
4. Horários de trabalho - sequestrada depois do horário
5. Visual - tipo físico - girafa, pernas
Sharon Oglevy
1. Ameaça do marido
2. Carro dele - espaço do porta­-malas
3. Onde fica o trabalho
4. Horários de trabalho - sequestrada depois do horário
5. Visual - tipo físico - girafa, pernas
6. Onde fica a casa do marido
As duas listas eram curtas e quase idênticas, e eu tinha certeza de que guardavam a ligação entre as duas mulheres e seu assassino. Do ponto de vista do assassino,
tudo isso eram coisas que ele aparentemente precisaria saber antes de agir.
Baixei os vidros do carro e deixei entrar a maresia úmida. Pensei no Unsub e como chegara a escolher aquelas duas mulheres de dois lugares diferentes.
A resposta simples era que ele as vira. Ambas exibiam o corpo em público. Se ele estivesse à procura de características específicas, poderia ter visto tanto Denise
Babbit como Sharon Oglevy no palco.
Ou no computador. Uma noite antes, enquanto elaborava as listas, eu havia verificado e descoberto que tanto o clube de dança exótica Femmes Fatales como o Club Snake
Pit tinham sites exibindo fotos de suas dançarinas. Eram inúmeras fotos de cada dançarina, incluindo imagens de corpo inteiro que mostravam pernas e pés. Em www.femmesfatalesatthec
leo.com havia fotos das mulheres erguendo a perna na altura da cabeça. Se a parafilia do Unsub incluía aparelhos ortopédicos para as pernas e, como Rachel sugerira,
a necessidade de um corpo do tipo girafa, então o site teria ajudado na pesquisa da presa.
Uma vez escolhida a vítima, o assassino teria de pôr mãos à obra para identificar a mulher e preencher os demais detalhes nas listas. Talvez tivesse sido feito desse
jeito, mas meu palpite era que não. Eu tinha certeza de que havia alguma outra coisa em jogo, que as vítimas estavam ligadas de alguma outra maneira.
Me concentrei no primeiro item de cada lista. Parecia claro para mim que, em algum ponto, o assassino havia tomado conhecimento das pendências judiciais de cada
uma das vítimas.
Com Denise Babbit, ele certamente descobrira sobre sua detenção no ano anterior, por compra de drogas, e que a prisão ocorrera nas imediações do conjunto habitacional
de Rodia Gardens. Essa informação inspirou a ideia de deixar o corpo dela no porta-malas do carro em algum lugar próximo. Ele sabia que o carro poderia ser roubado
e levado dali, mas que, em última instância, seria rastreado de volta ao local. A explicação óbvia seria de que ela fora até lá outra vez para comprar drogas. Um
modo sutil de desviar a atenção dos verdadeiros fatos.
Com Sharon Oglevy, o assassino certamente descobrira os detalhes de seu divórcio. Em particular, tinha de ter descoberto a suposta ameaça feita pelo marido de matá-la
e enterrá­-la no deserto. Dessa informação sairia a ideia de enfiar o corpo no porta-malas de seu carro.
Em ambos os casos, os detalhes legais poderiam ter sido obtidos pelo assassino porque estavam contidos em documentos do tribunal, que eram abertos ao público. Não
havia nada em qualquer dos papéis em minha posse indicando que os arquivos sobre o divórcio dos Oglevy deviam permanecer em sigilo. E no que diz respeito a Denise
Babbit, processos criminais eram parte dos registros públicos.
Então me ocorreu. O detalhe que eu deixara passar. Denise Babbit fora presa um ano antes de sua morte, mas na época do assassinato o processo estava em andamento.
Ela se encontrava na situação que os advogados de defesa chamam informalmente de pee and see, "mijar pra ver". Seu advogado a inserira em um programa de intervenção
pré­-tribunal. Como parte de um tratamento sem internação contra as drogas, sua urina era testada uma vez por mês à procura de indícios de uso, e a justiça ficava
ostensivamente em compasso de espera para ver se ela endireitara sua vida. Caso sim, as acusações contra ela seriam retiradas. Se seu advogado fosse bom, ele conseguiria
até apagar a detenção de sua ficha policial.
Tudo isso não passava de minúcia da lei, mas agora eu via algo ali que negligenciara antes. Se o seu caso continuasse em aberto, ele ainda não teria entrado nos
registros públicos. E se ele não fazia parte dos registros públicos, disponível para qualquer cidadão por computador ou com uma visita ao tribunal, então como o
Unsub conseguiu os detalhes de que precisava para arquitetar o assassinato?
Pensei por alguns momentos sobre como responder a essa questão e concluí que o único modo seria obter a informação da própria Denise Babbit, ou de alguma outra pessoa
ligada diretamente ao seu caso - o promotor ou o advogado de defesa. Folheei os documentos da pasta de Babbit e encontrei o nome de seu advogado; então liguei.
- Daly and Mills, aqui é Newanna. Em que posso ajudar?
- Gostaria de conversar com Tom Fox.
- O sr. Fox está no tribunal essa manhã. Quer deixar recado?
- Ele volta na hora do almoço?
Olhei o relógio. Eram quase 11h. Ver a hora me deu mais uma pontada de angústia por não ter notícias de Rachel.
- Ele em geral volta na hora do almoço, mas não posso dar certeza.
Dei a ela meu nome e número e lhe disse que eu era um repórter do Times, pedindo para explicar a Fox que a ligação era importante.
Depois de fechar o telefone, liguei o laptop e inseri o cartão de internet no lugar. Decidi testar minha teoria e ver se eu conseguiria acessar os arquivos judiciais
de Denise Babbit via on-line.
Passei vinte minutos na empreitada, mas consegui catar muito pouca informação sobre a detenção e o processo de Babbit, tanto através dos serviços de acesso público
a dados legais do governo quanto pela ferramenta de busca legal particular que o Times assinava. Consegui, porém, achar uma referência ao endereço de e-mail do advogado
e redigi uma rápida mensagem na esperança de que ele recebesse o e-mail em seu celular e retornasse meu pedido de uma ligação o quanto antes.
De: Jack McEvoy <JackMcEvoy@LATimes.com>
Assunto: Denise Babbit
Data: 18 de maio de 2009 10:57 AM PDT
Para: TFox@dalyandmills.com

Sr. Fox, sou um repórter do Los Angeles Times trabalhando atualmente na matéria sobre o assassinato de Denise Babbit. O senhor já deve ter tido contato com um de
meus colegas sobre sua cliente Denise, mas preciso conversar o mais brevemente possível sobre um novo ângulo de investigação que estou adotando. Por favor, ligue
ou escreva assim que possível. Obrigado.

Jack McEvoy

Enviei a mensagem e sabia que tudo que eu tinha a fazer era esperar. Olhei a hora no canto da tela do computador e percebi que já eram mais de duas horas da tarde
em Washington, D.C. Era impossível que a audiência de Rachel houvesse durado tanto tempo.
No meu computador soou uma mensagem e, quando olhei, vi que já recebera um e-mail de Fox me respondendo.
De: Tom Fox <TFox@dalyandmills.com>
Assunto: RE: Denise Babbit
Data: 18 de maio de 2009 11:01 AM PDT
Para: JackMcEvoy@LATimes.com

Olá, não posso responder seu e-mail do modo adequado porque tenho um julgamento esta semana. Eu ou minha assistente, Madison, entraremos em contato assim que possível.
Obrigado.
Tom Fox
Sócio­ sênior, Daly & Mills, Counselors at Law
www.dalyandmills.com

Era uma resposta automática, o que significava que Fox ainda não vira minha mensagem. Fiquei com a sensação de que não teria notícia dele senão na hora do almoço
- se tivesse sorte.
No pé da mensagem, observei o link com o nome da firma de advogados e cliquei. Entrei no site, que alardeava confiantemente os serviços oferecidos pelo escritório
aos possíveis clientes. Os advogados da firma eram especializados tanto em direito civil como criminal, e havia um boxe marcado QUAL É A SUA QUEIXA?, em que o visitante
do site podia submeter as particularidades de seu caso a um exame e uma opinião gratuitos de um dos especialistas da firma.
Na parte de baixo da página havia uma lista com os nomes dos sócios dessa firma. Eu já ia clicando em Tom Fox para ver se conseguiria abrir um resumo biográfico
quando notei um link na parte mais inferior da tela.
Design e Otimização de Site por Western Data Consultants
Isso, para mim, foi como átomos colidindo e criando uma substância nova e preciosa. No mesmo segundo, eu soube que havia uma ligação. O site da firma de direito
estava hospedado no mesmo local dos sites­-armadilha do Unsub. Era muito coincidente para ser coincidência. As portas internas se abriram amplamente e a adrenalina
foi despejada em minha corrente sanguínea. Cliquei imediatamente no link e fui direcionado à homepage da Western Data Consultants.
O website oferecia um tour pelas instalações em Mesa, Arizona, que fornecia segurança e serviços nas áreas de armazenamento de dados, gerenciamento de hospedagem
e soluções compartilhadas com base na web - seja lá o que isso signifique.
Cliquei num ícone que dizia VEJA O BUNKER e fui direcionado para uma página com fotos e descrições de uma fazenda de servidores subterrânea. Era um centro de colocação
no qual os dados de corporações e empresas clientes ficavam armazenados, acessíveis a esses clientes 24 horas por dia mediante conexões de fibra óptica de alta velocidade
e provedores de backbone de internet. Quarenta torres de servidores perfeitamente perfiladas. O ambiente era revestido de concreto, monitorado por infravermelho
e hermeticamente selado. Seis metros sob a superfície.
O site vendia enfaticamente a segurança da Western Data. O que entra não sai, a menos que você peça. A empresa oferecia a grandes e pequenos empresários um meio
econômico de armazenar dados em segurança por meio de back-up imediato ou periódico. Cada toque de teclado no computador de um escritório de advocacia em Los Angeles
podia ser instantaneamente gravado e armazenado em Mesa.
Voltei aos meus papéis e achei os documentos que William Schifino me dera em Las Vegas. No meio deles, estava o processo de divórcio de Oglevy. Escrevi o nome do
advogado de Brian Oglevy em minha ferramenta de busca e obtive um endereço e número para contato, mas nada de site. Em seguida, inseri o nome do advogado de Sharon
Oglevy no campo de busca e, dessa vez, consegui um endereço, telefone e site.
Entrei no site de Allmand, Bradshaw & Ward e rolei até o fim da página. Lá estava.
Design e Otimização de site por Western Data Consultants
Eu confirmara a ligação, mas não as particularidades. As duas firmas de direito usaram a Western Data para desenhar e hospedar seus websites. Eu precisava saber
se as firmas estavam também armazenando seus arquivos de processos nos servidores da Western Data. Pensei em um plano por alguns instantes, então abri meu celular
para ligar para a firma.
- Allmand, Bradshaw and Ward, ao seu dispor.
- Por favor, gostaria de falar com o sócio­-gerente.
- Vou passar para a sala dele.
Aguardei, ensaiando minha fala e torcendo para funcionar.
- Escritório do sr. Kenney, o que deseja?
- Alô, meu nome é Jack McEvoy. Trabalho com William Schifino and Associates e estou montando um site e um sistema de armazenamento de dados para a firma. Andei conversando
com a Western Data, no Arizona, sobre os serviços deles, e eles mencionaram Allmand, Bradshaw and Ward como um dos clientes aqui em Vegas. Eu queria conversar com
o sr. Kenney sobre o que ele está achando do trabalho da Western Data.
- O sr. Kenney não está aqui hoje.
- Hmm. Sabe se tem alguma outra pessoa com quem eu poderia falar? A gente queria bater o martelo sobre isso ainda hoje.
- É o sr. Kenney quem cuida da presença na web e a colocação de dados da firma. O senhor precisa conversar com ele.
- Então vocês realmente usam a Western Data para colocação? Eu não tinha certeza se era só para homepage ou não.
- É, usamos, mas é melhor o senhor falar com o sr. Kenney sobre isso.
- Obrigado. Vou ligar de novo mais tarde.
Fechei o aparelho. Eu tinha o que precisava de Allmand, Bradshaw & Ward. Em seguida, liguei para Daly & Mills outra vez e usei o mesmo artifício, obtendo a mesma
confirmação indireta de um assistente do sócio­-gerente.
Achei que havia descoberto a ligação. As duas firmas de direito que haviam representado as duas vítimas do Unsub arquivaram seus casos com a Western Data Consultants,
em Mesa. Esse tinha de ser o lugar onde Denise Babbit e Sharon Oglevy cruzavam seus caminhos. Fora ali que o Unsub as encontrara e escolhera.
Enfiei todas as minhas pastas na mochila e liguei o carro.
A caminho do aeroporto, liguei para a Southwest Airlines e comprei uma passagem de ida e volta partindo do aeroporto de Los Angeles à uma da tarde e chegando a Phoenix
uma hora depois. Em seguida, reservei um carro alugado e estava pensando sobre o telefonema que teria de fazer para meu ás quando meu celular começou a zumbir.
A tela dizia NÚMERO PRIVADO, e eu sabia que era Rachel finalmente me ligando de volta.
- Alô?
- Jack, sou eu.
- Rachel, que demora. Onde você tá?
- No aeroporto. Estou voltando.
- Muda seu voo. Me encontra em Phoenix.
- O quê?
- Encontrei a ligação. É a Western Data. Estou indo pra lá agora mesmo.
- Jack, do que você tá falando?
- Eu explico quando a gente se encontrar. Você vai?
Houve uma longa pausa.
- Rachel, você vai?
- Vou, Jack, eu vou.
- Ótimo. Tenho um carro reservado. Troca de voo e me liga depois dizendo o horário de chegada. Vou pegar você no Sky Harbor.
- Ok.
- Como foi a audiência do OPR? Demorou bastante.
Outra vez, uma hesitação. Escutei o alto­-falante do aeroporto no fundo.
- Rachel?
- Eu saí, Jack. Não sou mais agente.

Quando Rachel apareceu na saída do terminal do Sky Harbor International, estava puxando uma mala de rodinhas em uma das mãos e carregando uma pasta de laptop na
outra. Eu esperava junto aos motoristas de limusines, todos carregando placas com os nomes dos passageiros que aguardavam, e vi Rachel antes que ela me visse. Ela
olhava de um lado para o outro à minha procura, mas sem prestar atenção no que havia diretamente à sua frente.
Entrei no seu caminho e ela quase trombou comigo. Então parou e relaxou um pouco os braços, sem soltar a bagagem. Era um convite óbvio. Dei um passo e a estreitei
em um abraço apertado. Não a beijei, apenas a segurei. Ela aninhou a cabeça na curva do meu pescoço e ficamos sem dizer nada por quase um minuto.
- Oi - eu disse, finalmente.
- Oi - ela respondeu.
- Dia longo, hein?
- Põe longo nisso.
- Tudo bem com você?
- Vai melhorar.
Me abaixei e tomei a alça da mala de rodinhas de sua mão. Depois a virei na direção da saída para o estacionamento.
- Por aqui. Já arrumei o carro e o hotel.
- Ótimo.
Caminhamos em silêncio e fiquei com o braço em torno dela. Rachel não me contara muita coisa pelo telefone, apenas que fora obrigada a pedir demissão para evitar
um processo por mau uso de fundos públicos - o jato do FBI que ela usara para ir a Nellis e salvar minha pele. Não quis pressioná-la para que me contasse mais, só
que mais tarde eu gostaria de saber os detalhes. E os nomes. A moral da história era que ela perdera o emprego por minha causa. O único modo de eu conseguir conviver
com aquilo era descobrindo algum jeito de consertar as coisas. E o único modo que eu conhecia para isso era escrever a respeito.
- O hotel é bem agradável - eu disse. - Mas só tinha um quarto. Não sei se você queria...
- Um quarto está ótimo. Não preciso mais me preocupar com esse tipo de coisa.
Balancei a cabeça e presumi que quisesse dizer que não tinha mais de se preocupar em dormir com alguém que era parte de uma investigação. Parecia que qualquer coisa
que eu dissesse ou perguntasse suscitaria pensamentos nela sobre o trabalho e a carreira que acabara de perder. Tentei mudar de assunto.
- E aí, você tá com fome? Quer comer alguma coisa, ir direto pro hotel...?
- E a Western Data?
- Liguei e marquei uma reunião. Disseram que tem que ser amanhã, porque o CEO não está lá hoje.
Olhei o relógio, eram quase 18h.
- E a essa hora eles já devem ter fechado. Então amanhã às dez nós vamos. A gente procura um cara chamado McGinnis. Parece que é ele quem dirige o lugar.
- Eles caíram na sua enganação?
- Não é uma enganação. Eu tenho a carta de Schifino e isso me torna legítimo.
- Você consegue se convencer de qualquer coisa, não é? Seu jornal não tem algum tipo de código de ética que impede você de exercer representação enganosa?
- Claro, a gente tem um código, mas sempre tem as áreas cinzentas. Estou indo disfarçado para obter informação que não pode ser obtida de nenhum outro modo.
Dei de ombros, como que dizendo "não é nada de mais". Chegamos no carro e guardei sua bagagem no porta-malas.
- Jack, quero ir pra lá agora mesmo - disse Rachel quando chegamos ao carro.
- Onde?
- Pra Western Data.
- Não dá pra ir sem hora marcada e a nossa hora está marcada pra amanhã.
- Ótimo, a gente não entra. Mas mesmo assim dá pra conferir o lugar. Só quero dar uma olhada.
- Por quê?
- Porque preciso de alguma coisa pra afastar minha cabeça do que aconteceu hoje em Washington. Ok?
- Tudo bem. Vamos nessa.
Olhei o endereço da Western Data no meu bloquinho de anotações e digitei o endereço no GPS do carro. Logo estávamos numa via expressa que ia para leste a partir
do aeroporto. O trânsito estava fluindo bem e chegamos a Mesa após duas mudanças de rodovia e vinte minutos de viagem.
A Western Data Consultants surgiu diminuta no horizonte na McKellips Road, no lado leste de Mesa. Era uma região esparsamente ocupada de armazéns e pequenas empresas,
cercada de arbustos e cactos de Sonora. Era um prédio de blocos de um andar, cor de areia, com apenas duas janelas localizadas uma de cada lado da porta de entrada.
O número ficava pintado no canto superior direito do prédio, mas não havia qualquer outra sinalização na fachada, nem em parte alguma da propriedade cercada.
- Tem certeza de que é aí? - perguntou Rachel ao passarmos pela primeira vez.
- Tenho, a mulher que marcou hora pra mim disse que não tinha placa nenhuma na propriedade. É parte da segurança - não divulgar exatamente o que eles fazem por aqui.
- É menor do que eu pensei que seria.
- Não esqueça que a maior parte é subterrânea.
- É verdade.
Alguns blocos depois do alvo, havia uma cafeteria chamada Hightower Grounds. Entrei para fazer a volta e então passamos outra vez pela Western Data. Dessa vez a
propriedade ficou do lado de Rachel e ela se virou em seu banco conforme olhava.
- Eles têm câmeras por toda parte - ela disse. - Contei uma, duas, três... seis câmeras do lado de fora.
- Câmeras dentro e fora, segundo o site - respondi. - É o que eles vendem. Segurança.
- Seja ela real ou aparente.
Olhei para ela.
- O que você quer dizer com isso?
Ela deu de ombros.
- Nada, na verdade. Só que todas essas câmeras impressionam. Mas se não tem ninguém do outro lado monitorando, então de que adianta?
Concordei com a cabeça.
- Quer que eu faça a volta e passe lá outra vez?
- Não, já vi o suficiente. Estou com fome, Jack.
- Ok. Onde você quer ir? A gente passou por uma churrascaria quando saiu da rodovia. Se não, aquele café lá é o único...
- Quero ir pro hotel. A gente pede o serviço de quarto e saqueia o minibar.
Olhei para ela e vi um leve sorriso em seu rosto.
- Parece um bom plano, pra mim.
Eu já inserira o endereço do Mesa Verde Inn no GPS do carro e só levamos dez minutos para chegar. Estacionei na garagem atrás do hotel e entramos.
Assim que chegamos ao quarto, nós dois chutamos os sapatos para longe e ficamos tomando rum Pyrat em copos longos, sentados lado a lado e recostados nos múltiplos
travesseiros sobre a cama.
Finalmente, Rachel soltou um suspiro longo e sonoro, que pareceu expelir muitas das frustrações do dia. Ela ergueu o copo quase vazio.
- Esse negócio é bom - disse.
Balancei a cabeça concordando.
- Eu já tinha tomado antes. Vem da ilha de Anguilla, no Caribe. Passei lá minha lua de mel - um lugar chamado Cap Juluca. Tinha uma garrafa desse troço no quarto.
Uma garrafa inteira, não essas garrafinhas de dose. A gente secou a garrafa numa noite. Tomando puro, igual agora.
- Não quero saber da sua lua de mel, viu?
- Desculpe. Estava mais pra férias, de qualquer jeito. Fazia mais de um ano que a gente tinha se casado de verdade.
Isso matou a conversa por algum tempo e observei Rachel no espelho da parede além da cama. Após alguns minutos ela sacudiu a cabeça, quando um pensamento ruim a
invadiu.
- Quer saber de uma coisa, Rachel? Eles que se fodam. É a natureza de qualquer burocracia eliminar as pessoas que pensam e agem por si mesmas, aquelas de que, na
verdade, eles mais precisam.
- Não estou nem aí pra natureza da burocracia. Eu era uma agente do FBI! O que eu vou fazer daqui pra frente? O que a gente vai fazer?
Gostei de ela ter enfiado aquele a gente no final.
- Vamos pensar em alguma coisa. Quem sabe podemos juntar nossas capacidades e virar detetives particulares. Já posso imaginar. Walling e McEvoy, Investigações Discretas.
Ela balançou a cabeça outra vez, mas enfim sorriu.
- Bom, obrigado por colocar meu nome em primeiro.
- Ah, não esquenta, você é a CEO. A gente usa sua foto nos cartazes, também. Isso com certeza vai atrair os clientes.
Agora ela riu com gosto. Eu não sabia se era o rum ou as minhas palavras, mas alguma coisa a estava alegrando. Pousei meu copo na mesinha de cabeceira e virei para
ela. Nossos olhos estavam a poucos centímetros de distância.
- Você sempre vai vir em primeiro pra mim, Rachel. Sempre.
Dessa vez foi ela quem levou a mão à minha nuca e me puxou para o beijo.
Depois que fizemos amor, Rachel pareceu revigorada, enquanto eu me senti exausto. Ela pulou da cama, nua, e foi até sua mala de rodinha. Abriu-a e começou a mexer
entre suas coisas.
- Não põe a roupa ainda - eu disse. - Será que não dá pra gente ficar na cama um pouco mais?
- Não, não vou me vestir. Trouxe um presente pra você e sei que está aqui em alg... Aqui.
Ela voltou para a cama e me deu uma pequena bolsa preta de feltro que eu sabia ser de alguma joalheria. Abri e havia uma corrente de prata com um pingente. O pingente
era uma bala prateada.
- Uma bala de prata? O que é isso, a gente vai caçar lobisomem ou qualquer coisa assim?
- Não, uma bala única. Lembra do que eu falei sobre a teoria da bala única?
- Ah... sei.
Fiquei envergonhado por minha tentativa fora de hora de bancar o engraçado. Isso era uma coisa importante para ela e eu passei por cima com minha tirada estúpida
sobre lobisomem.
- Onde você conseguiu isso?
- Tive um bocado de tempo livre ontem, então fui caminhar pelo bairro e entrei nessa joalheria perto da sede do FBI. Eles provavelmente conhecem a clientela que
têm na vizinhança, porque estavam vendendo balas como joias.
Balancei a cabeça e girei a bala nos dedos.
- Não tem nome gravado. Você disse que a teoria era de que todo mundo tinha uma bala por aí com um nome nela.
Rachel encolheu os ombros.
- Era domingo e acho que o gravador não estava trabalhando. Disseram pra eu voltar hoje, se quisesse alguma coisa escrita. Obviamente não tive chance.
Abri o fecho e estiquei os braços para pôr em torno do pescoço dela. Ela ergueu a mão para me impedir.
- Não, é sua. Comprei pra você.
- Eu sei. Mas por que não dá pra mim quando estiver com o seu nome gravado?
Ela pensou nisso por um momento e então baixou a mão. Pus a corrente em torno de seu pescoço e fechei. Ela me olhou sorrindo.
- Sabe de uma coisa? - perguntou.
- O quê?
- Estou morrendo de fome, agora.
Quase ri com a mudança abrupta de assunto.
- Certo, então vamos chamar o serviço de quarto.
- Quero um filé. E mais rum.
Pedimos e deu tempo para os dois tomarmos banho antes que a comida chegasse. Comemos usando o roupão de banho do hotel, sentados um de cada lado da mesa de rodinhas
que o garçom empurrara para dentro do quarto. Dava para ver a corrente de prata no pescoço de Rachel, mas a bala ficara enfiada em seu espesso roupão branco. Seu
cabelo estava úmido e completamente despenteado, e tudo o que eu queria era tê-la de sobremesa.
- Esse cara que falou pra você sobre a teoria da bala única era um policial ou um agente, não é?
- Policial.
- Eu conheço ele?
- Conhecer? Não tenho muita certeza se alguém conhece ele de verdade, incluindo eu. Mas, nos últimos anos, vi o nome dele em algumas das suas matérias. Por que você
quer saber?
Ignorei sua pergunta e fiz uma eu mesmo.
- Você deu um pé na bunda dele ou foi o contrário?
- Acho que fui eu. Eu sabia que não estava funcionando.
- Ótimo, então esse cara que você mandou passear está por aí, armado, e agora você está comigo.
Ela sorriu e balançou a cabeça.
- Isso não é um problema. Dá pra gente mudar de assunto?
- Tudo bem. Do que você quer falar, então? Quer enfim me contar sobre o que aconteceu hoje em D.C.?
Ela terminou de mastigar um pedaço de filé antes de responder.
- Não tem nada pra falar, de verdade - disse. - Eles me pegaram. Eu tinha enganado meu supervisor sobre o assunto em Ely, e ele autorizou o voo. Eles realizaram
uma pequena investigação, fizeram uns cálculos e disseram que eu usei 14 mil dólares em combustível Jet A e que isso constituiu malversação do dinheiro público e
um delito grave. Estavam com um promotor no corredor pronto para levar a coisa adiante se eu resolvesse brigar. Eu ia ser autuada ali mesmo.
- Isso é inacreditável.
- O negócio é que eu realmente tinha a intenção de ir para Ely, e isso teria resolvido tudo. Mas as coisas mudaram quando você falou sobre o sumiço de Angela. Eu
não cheguei nem perto de Ely.
- Isso é a burocracia da pior espécie. Preciso escrever sobre isso.
- Não dá, Jack. Foi parte do acordo. Assinei um contrato de confidencialidade, que já violei só de contar pra você o que acabei de contar. Mas se essa coisa chegar
ao jornal, provavelmente vão acabar me processando.
- Não, se a história for tão constrangedora que a única saída vai ser esquecer tudo e devolver seu cargo de agente.
Ela serviu mais uma dose de rum em uma das pequenas taças de conhaque que haviam sido trazidas com a garrafa. Pegou um cubo de gelo em seu copo d'água e o jogou
dentro da bebida, depois mexeu a taça na mão algumas vezes antes de dar um gole.
- Pra você, falar é fácil. Não é você que estaria apostando que eles vão me devolver o cargo ao invés de me jogar na cadeia.
- Rachel, não importa o quanto as suas ações tenham sido imprudentes ou até ilegais, salvaram a minha vida, e provavelmente a de um monte de gente. Tem o William
Schifino e todas as vítimas que esse Unsub nunca vai pegar agora que as autoridades sabem da existência dele. Será que nada disso conta?
- Jack, você não entende? Eles não gostavam de mim no bureau. Não era de hoje. Eles acharam que tinham conseguido me tirar do mapa, mas daí eu os obriguei a me transferir
de Dakota do Sul. Eu tinha um ás na manga e usei, mas eles não gostaram e nunca esqueceram. É como tudo na vida. Um movimento em falso e você está vulnerável. Eles
esperaram eu cometer o erro que me deixou vulnerável, e então agiram. Não importa quanta gente eu possa ter salvo. Não existe evidência de nada disso. Mas a conta
do combustível daquele jato? Isso é evidência.
Dei o braço a torcer. Não havia como consolá-la. Fiquei vendo-a tomar toda a taça de rum e depois cuspir o cubo de gelo de volta no fundo do copo. Então, ela serviu
outra dose.
- Melhor você tomar um pouco antes que eu mate a garrafa - ela disse.
Estendi minha taça sobre a mesa e ela serviu uma bela dose. Tilintamos os copos e dei um longo trago. Desceu suave como mel.
- Melhor tomar cuidado - eu disse. - Esse negócio sobe fácil.
- Eu quero ficar bêbada.
- É, mas a gente precisa sair daqui lá pelas nove e meia amanhã se você quer que a gente chegue no horário marcado.
Ela pousou a taça na mesa com muita força, ebriamente.
- É, e depois o quê? O que exatamente a gente vai fazer amanhã, Jack? Você sabe que não tenho mais distintivo. Não tenho nem arma, e você quer simplesmente ir entrando
no lugar?
- Quero ver como é. Quero saber se ele está lá. Depois a gente pode chamar o bureau, a polícia ou sei lá quem. Mas quem percebeu esse negócio fui eu e quero ser
o primeiro a entrar lá.
- E depois escrever no jornal.
- Talvez, se me deixarem. Mas de um jeito ou de outro, vou escrever sobre essa história toda. Por isso quero ser o primeiro.
- Só não se esqueça de mudar meu nome no seu livro, pra proteger os culpados.
- Claro. Como quer ser chamada?
Ela jogou a cabeça para trás e retesou os lábios, pensando a respeito. Ergueu o copo outra vez e deu um gole, então respondeu.
- Que tal agente Misty Monroe?
- Parece nome de estrela pornô.
- Ótimo.
Ela pousou o copo outra vez e seu rosto ficou sério.
- Mas chega de brincadeira. A gente entra lá e simplesmente pergunta quem é o serial killer?
- Não, a gente entra lá e age como possíveis clientes. Faz um tour pelo lugar e conhece o máximo de gente possível. Faz umas perguntas sobre segurança e sobre quem
tem acesso aos delicados arquivos legais que a nossa firma vai armazenar por lá. Esse tipo de coisa.
- E?
- E quem sabe alguém se entrega ou talvez eu veja o cara das suíças.
- Você reconheceria ele sem o disfarce?
- Provavelmente não, mas ele não sabe disso. Pode ser que ele me veja e tente fugir e então tcharam! - pegamos nosso cara.
Ergui as mãos com a palma voltada para fora, como um mágico que houvesse completado um truque difícil.
- Isso não soa como um plano, Jack. Parece mais que você está improvisando.
- Talvez sim, e talvez seja por isso que eu precise de você por lá.
- Não faço ideia do que você quer dizer com isso.
Me levantei, contornei a mesa e me apoiei em um dos joelhos junto dela. Ela já ia erguendo o copo para tomar mais um gole quando pousei a mão em seu antebraço.
- Olha, não preciso do seu distintivo nem do seu revólver, Rachel. Quero você lá porque se alguém naquele lugar fizer um movimento em falso, por menor que seja,
você consegue ler e a gente pega ele.
Ela empurrou minha mão para soltar seu braço.
- Olha, você está exagerando. Se você acha que eu sou capaz de ler pensamento ou q...
- Ler pensamento não, Rachel, mas você tem instintos. Você faz esse trabalho do jeito que o Magic Johnson jogava basquete. Com conhecimento e percepção da quadra
toda. Depois de uma conversa de cinco minutos comigo no telefone, você roubou um avião do FBI e viajou pra Nevada porque sabia. Você sabia, Rachel. E salvou minha
vida. Isso é instinto, e é por isso que eu quero você lá amanhã.
Ela me fitou por um bom momento e então balançou a cabeça tão sutilmente que mal pude notar.
- Ok, Jack - disse. - Então estarei lá.

Todo aquele rum puro não operou a nosso favor de manhã. Rachel e eu nos movimentávamos muito devagar, mas ainda assim conseguimos deixar o hotel com tempo mais do
que suficiente para chegar no horário combinado. Primeiro paramos na Hightower Grounds para injetar um pouco de cafeína na veia, depois demos meia­-volta e fomos
para a Western Data.
O portão de entrada do complexo estava aberto e estacionei no pátio próximo à porta da frente. Antes de desligar o carro, dei um gole no café e me virei para Rachel.
- Quando os agentes do escritório de Phoenix vieram aqui na semana passada, eles disseram do que se tratava?
- Não, contaram o mínimo possível sobre a investigação.
- Procedimento padrão. E o mandado de busca? Não explicava tudo?
Ela negou com a cabeça.
- O mandado foi emitido por um grande júri com poder irrestrito de investigar fraudes de internet. O uso do site trunk murder se enquadra nisso. Serviu de camuflagem.
- Ótimo.
- Nós fizemos nossa parte, Jack. Foram vocês que não fizeram a sua.
- Do que você está falando?
Notei que ela usou a palavra nós.
- Você quer saber se o Unsub, que pode ou não estar nesse lugar, tem consciência de que a Western Data talvez ganhe uma atenção maior. A resposta é sim, mas não
por causa de qualquer coisa que o bureau tenha feito. Seu jornal, Jack, quando relatou a morte de Angela Cook, mencionou que os investigadores estavam verificando
uma possível conexão com um site que ela tinha visitado. Vocês não deram o nome do site, mas apenas a concorrência e os leitores ficaram sem entender. O Unsub com
certeza conhece o site e sabe que, se a gente está de olho nisso, então talvez seja apenas questão de tempo pra nós juntarmos dois mais dois e aparecer por aqui
outra vez.
- Nós?
- Eles. O bureau.
Balancei a cabeça. Ela tinha razão. A matéria do Times estragara tudo.
- Então acho que é melhor a gente entrar antes que eles apareçam por aqui.
Descemos do carro e eu apanhei meu paletó esportivo no banco de trás, vestindo-o a caminho da porta. Eu estava usando a camisa nova que, um dia antes, comprara em
uma loja no aeroporto enquanto esperava o voo de Rachel. Estava com a mesma gravata pelo segundo dia. Rachel vestia o usual traje de agente - paletó azul-marinho
e blusa escura - e sua figura impressionava, mesmo que ela não fosse mais uma agente.
Tivemos de apertar um botão na porta e nos identificar por um interfone antes de sermos admitidos com um toque de cigarra. Havia uma pequena área de entrada e uma
mulher sentada atrás de um balcão de recepcionista. Presumi que fosse a pessoa que acabara de falar conosco pelo interfone.
- Estamos um pouco adiantados - eu disse. - Temos uma reunião marcada com o sr. McGinnis às dez.
- Certo, a sra. Chavez vai mostrar as instalações para vocês - disse animadamente a recepcionista. - Vamos ver se ela pode começar um pouco mais cedo.
- Não, nossa reunião é com o sr. McGinnis, o CEO da empresa. A gente veio de Las Vegas para encontrar com ele.
- Lamento, mas isso não vai ser possível. O sr. McGinnis teve um imprevisto. Ele não se encontra na empresa no momento.
- Onde ele está? Achei que sua empresa quisesse trabalhar conosco, e gostaríamos de falar com ele sobre nossas necessidades específicas.
- Deixem-me ver se consigo achar a sra. Chavez. Tenho certeza de que ela poderá discutir as suas necessidades.
A recepcionista pegou o telefone e digitou três números. Olhei para Rachel, que ergueu uma das sobrancelhas. Ela estava sentindo as mesmas vibrações que eu. Havia
alguma coisa errada ali.
A recepcionista conversou suave e rapidamente ao telefone e depois desligou. Ela ergueu o rosto e sorriu para nós.
- A sra. Chavez estará aqui em um segundo.
O "segundo" levou dez minutos. Uma porta finalmente se abriu atrás do balcão da recepção e uma jovem de cabelos escuros e traços morenos entrou. Ela contornou o
balcão e estendeu a mão para mim.
- Sr. McEvoy, sou Yolanda Chavez, assistente executiva do sr. McGinnis. Espero que não se incomodem em fazer o tour comigo.
Apertamos as mãos e apresentei Rachel.
- Nossa visita estava marcada com Declan McGinnis - disse Rachel. - Acreditamos que uma empresa do nosso tamanho e atuação mereceria a atenção do CEO.
- Claro, posso lhes assegurar que estamos muito interessados na sua empresa. Mas o sr. McGinnis não se sentiu bem e ficou em casa hoje. Espero que compreendam.
Olhei para Rachel e encolhi os ombros.
- Bom - eu disse. - Se pudermos conhecer as instalações mesmo assim, poderemos conversar com o sr. McGinnis quando ele estiver se sentindo melhor.
- Claro - disse Chavez. - Já conduzi o tour pelas instalações da empresa inúmeras vezes. Se puderem me dar dez minutos, vamos começar.
- Perfeito.
Yolanda Chavez balançou a cabeça, curvou-se sobre o balcão e apanhou duas pranchetas. Estendeu-as para nós.
- Primeiro precisamos de uma autorização da segurança - disse. - Se puderem assinar esses formulários, vou tirar uma cópia de suas carteiras de motorista. E da carta
de apresentação de que o senhor falou.
- Você precisa mesmo das nossas carteiras? - perguntei, protestando fracamente.
Minha preocupação era que nossos documentos da Califórnia chamassem a atenção, já que havíamos afirmado ser de Las Vegas.
- Lamento, mas é nosso protocolo de segurança. Exigimos o mesmo de qualquer um que venha aqui. Não fazemos exceções.
- É bom saber. Só queria ter certeza.
Sorri. Ela não. Rachel e eu entregamos nossas carteiras de motorista e Yolanda Chavez examinou para ver se não eram falsificações.
- Os dois são da Califórnia? Pensei qu...
- A gente acabou de ser contratado. Eu faço a maior parte do trabalho investigativo e Rachel vai cuidar da TI da firma - assim que reconfigurarmos nossa TI.
Sorri outra vez. Chavez me encarou, ajustou os óculos de aro grosso e pediu a carta do meu novo empregador. Levei a mão ao bolso interno do paletó e dei a ela. Yolanda
Chavez disse que voltaria para começar o tour dentro de dez minutos.
Rachel e eu ficamos sentados no sofá sob uma das janelas, lendo o formulário preso à prancheta. Era um documento bem direto, com boxes para marcar assegurando que
o visitante não era empregado de um concorrente, não tiraria fotos durante o passeio pelas instalações e não revelaria nem copiaria nenhuma das práticas de trabalho,
procedimentos ou segredos revelados durante a visita.
- Eles são bem sérios - eu disse.
- É um setor muito competitivo - disse Rachel.
Rabisquei minha assinatura na linha e datei. Rachel fez o mesmo.
- O que você acha? - sussurrei, de olho na recepcionista.
- Do quê? - quis saber Rachel.
- De McGinnis não estar aqui e da falta de uma explicação sólida. Primeiro foi um "imprevisto", agora está "em casa, doente". Ora, qual das duas?
A recepcionista ergueu o rosto de sua tela de computador e olhou direto para mim. Não sei se havia me escutado. Sorri e ela baixou o olhar rapidamente para a tela
outra vez.
- Acho que a gente devia conversar sobre isso mais tarde - sussurrou Rachel.
- Tá bom - sussurrei de volta.
Ficamos os dois sentados em silêncio até Chavez voltar à recepção. Ela nos passou nossos documentos e nós lhe demos as pranchetas. Ela examinou as assinaturas nas
duas.
- Conversei com o sr. Schifino - disse ela, despreocupadamente.
- Conversou? - eu disse, um pouco mais preocupado do que deveria.
- Sim, para verificar tudo. Ele quer que o senhor ligue assim que possível.
Balancei a cabeça vigorosamente. Schifino fora pego de surpresa pela ligação, mas devia ter endossado a história.
- Vamos fazer isso logo que terminarmos por aqui - eu disse.
- Ele está ansioso em tomar uma decisão e ver as coisas andando - acrescentou Rachel.
- Bem, se puderem me acompanhar, vou mostrar nossas instalações e tenho certeza de que tomarão a decisão acertada - disse Chavez.
Yolanda Chavez usou um cartão magnético para abrir a porta entre a área da recepção e o resto da empresa. Notei que havia sua foto nele. Entramos em um corredor
e ela se virou para ficar de frente.
- Antes de entrarmos nos laboratórios de design gráfico e de hospedagem de sites, deixem-me falar um pouco sobre nossa história e o que fazemos aqui - ela disse.
Puxei um bloquinho de anotações do bolso de trás e me preparei para tomar notas. Não foi uma boa ideia. Chavez apontou na mesma hora para o bloquinho.
- Sr. McEvoy, não esqueça o documento que acabou de assinar - ela disse. - Anotações gerais são permitidas, mas nenhum detalhe específico ou patenteado de nossas
instalações deve ser registrado do modo que for, incluindo anotações por escrito.
- Desculpe. Esqueci.
Guardei o bloquinho e sinalizei para que nossa anfitriã continuasse a apresentação.
- Demos início às nossas operações há apenas quatro anos. Focando crescente na demanda pelo armazenamento e gerenciamento seguro de grandes volumes de dados, Declan
McGinnis, nosso CEO e sócio fundador, criou a Western Data. Ele juntou alguns dos melhores profissionais disponíveis no mercado para projetar essas instalações modernas.
Temos cerca de mil clientes, desde escritórios de advocacia pequenos até corporações gigantes. Nossa empresa pode atender às necessidades de qualquer um em qualquer
lugar do mundo. Talvez seja de seu interesse saber que firmas de direito americanas são nossas clientes mais comuns. Em termos estratégicos, estamos projetados para
fornecer uma enorme variedade de serviços especificamente dirigidos e satisfazer as necessidades de firmas legais de qualquer tamanho em qualquer localidade. De
hospedagem na web à colocação de dados, somos uma one­-stop shop para sua firma.
Ela girou o corpo com os braços estendidos, como que abarcando o prédio todo, embora ainda estivéssemos em um corredor.
- Depois de receber fundos junto a vários grupos de investimento, o sr. McGinnis escolheu Mesa como o lugar para construir a Western Data. Procurou durante um ano
até determinar que área atendia melhor aos minuciosos critérios logísticos. Ele procurou um lugar com baixo risco de desastres naturais e de ataque terrorista, que
também contasse com ótima disponibilidade de energia, capaz de garantir à empresa máquinas funcionando 24 horas por dia, sete dias por semana. Além disso, e tão
importante quanto, havia a busca por uma localização com pontes de acesso direto para grandes redes com volumes maciços de banda larga e fibra escura confiáveis.
- Fibra escura? - perguntei e na mesma hora lamentei ter revelado não saber de algo que, na posição que eu supostamente ocupava, com certeza deveria saber. Mas Rachel
se adiantou e me salvou.
- Fibras ópticas ociosas - ela disse. - Em redes preexistentes, mas sem uso e disponíveis.
- Exato - disse Chavez.
Ela empurrou as portas duplas.
- Além dessas exigências específicas do local, o sr. McGinnis planejava projetar e construir instalações com o mais elevado nível de segurança, a fim de estar em
conformidade com os padrões de hospedagem HIPPA, SOCKS e S­-A­-S 70.
Eu aprendera minha lição. Dessa vez, apenas balancei a cabeça, como se soubesse exatamente do que ela estava falando.
- Apenas mais alguns detalhes sobre segurança e integridade das instalações - continuou Chavez. - Operamos em uma estrutura capaz de suportar um terremoto de sete
ponto zero. Não há qualquer elemento externo característico ligando a estrutura ao armazenamento de dados. Todos os visitantes são submetidos aos procedimentos de
segurança e monitorados permanentemente no local com gravações em vídeo arquivadas durante 45 dias.
Ela apontou para a câmera esférica, tipo cassino, localizada no teto acima. Ergui o rosto, sorri e acenei. Rachel me olhou feio, como que dizendo para eu parar de
me comportar como criança. Chavez nem percebeu. Estava ocupada demais fazendo sua explanação.
- Todas as áreas de segurança da empresa são protegidas por cartões magnéticos e escaneamento biométrico de mão. A segurança e o monitoramento são feitos do centro
de operações da rede, localizado no bunker subterrâneo anexo ao centro de colocação, ou "fazenda", como chamamos.
Ela prosseguiu e explicou os sistemas de resfriamento, energia e rede da empresa e os subsistemas de back-up e geradores de emergência, mas meu interesse se dispersou.
Havíamos entrado em um vasto laboratório onde mais de uma dúzia de técnicos estavam construindo e operando sites para a maciça base de clientes da Western Data.
Conforme andamos por ali, vi telas nas diversas mesas e notei os motivos legais recorrentes - balanças da justiça, o martelinho do juiz - que indicavam que eram
clientes de firmas de direito.
Yolanda Chavez nos apresentou um designer gráfico chamado Danny O'Connor, que era um supervisor no laboratório, e ele recitou uma fala de cinco minutos sobre o serviço
personalizado, 24 horas por dia, sete dias por semana, que teríamos se nossa empresa assinasse com a Western Data. Mencionou rapidamente que pesquisas recentes haviam
mostrado que cada vez mais consumidores estavam se voltando para a internet para atender suas necessidades, incluindo a identificação e o contato de firmas de direito
para representação legal de qualquer tipo. Eu o observei conforme falava, procurando algum sinal de tensão ou talvez preocupação com qualquer outra coisa além dos
potenciais clientes diante dele. Mas ele me pareceu normal e inteiramente sintonizado na tarefa de vender seu peixe. Também cheguei à conclusão de que era rechonchudo
demais para ser o Suíças. Eis uma coisa que você não pode fazer quando está usando um disfarce: diminuir sua massa corporal.
Olhei além dele para os inúmeros técnicos trabalhando em baias, na esperança de ver alguém nos lançando um olhar desconfiado ou talvez se escondendo atrás de sua
tela. Metade deles eram mulheres e, portanto, imediatamente descartáveis. Dos homens, não vi ninguém que pudesse ser o sujeito que fora a Ely para me matar.
- Antigamente as pessoas queriam o anúncio atrás das Páginas Amarelas - falou Danny para nós. - Hoje em dia, seu volume de negócios aumenta com um website incrementado
em que o potencial cliente pode fazer contato direto.
Balancei a cabeça e desejei poder dizer ao rapaz como eu estava tarimbado no modo como a internet mudara o mundo. Eu era uma das pessoas que ela deixara para trás.
- É por isso que estamos aqui - eu disse.
Enquanto Chavez fazia uma ligação em seu celular, passamos outros dez minutos com O'Connor, olhando uma variedade de sites para firmas de direito que eles projetaram
e hospedavam. Iam desde o modelo básico de homepage, contendo toda informação para contato, até sofisticados sites com fotos e perfis de cada advogado na firma,
históricos e press releases sobre casos de grande visibilidade, além de mídia interativa e vídeos de advogados dizendo aos interessados por que eles eram os melhores.
Depois de terminada a explicação no laboratório de design, Chavez nos conduziu, com seu cartão magnético, por uma porta e por outro corredor, que levava a um saguão
de elevador. Ela precisou do cartão magnético outra vez para chamar o elevador.
- Estou levando vocês agora para o que chamamos de "bunker" - ela disse. - Nossa knock room fica ali, além das instalações principais e da fazenda de servidores
dedicados a serviços de colocação.
Mais uma vez, não pude me segurar.
- Knock room? - perguntei.
- Network Operations Center - disse Chavez. - É o centro de operações de rede, o coração da nossa empresa.
Quando entramos no elevador, Chavez explicou que iríamos descer apenas um andar na estrutura, mas que isso totalizava uma descida de seis metros sob a superfície.
Era uma profunda escavação no deserto, visando tornar o bunker impenetrável tanto pelo homem como pela natureza. O elevador levou quase trinta segundos para descer,
e fiquei pensando se era lento assim para fazer os possíveis clientes pensarem que estavam viajando ao centro da terra.
- Tem escada? - perguntei.
- Sim, tem escada - disse Chavez.
Assim que chegamos ao fundo, o elevador abriu em um espaço que Chavez chamou de octógono. Era uma sala de espera de oito paredes, com quatro portas além da do elevador.
Chavez apontou para cada uma.
- A primeira porta guarda a knock room, a segunda, nossa sala do núcleo, onde está o equipamento de rede. Depois, temos as instalações do maquinário e nossa sala
de controle da colocação, que leva à fazenda. Vamos dar uma olhada no centro de operações de rede e no centro de colocação, mas só empregados com autorização irrestrita
de circulação podem entrar no "núcleo", como a gente diz.
- Por que isso?
- O equipamento é vital demais e grande parte do design é patenteada. A gente não mostra para qualquer pessoa, nem nossos clientes mais antigos conhecem.
Depois que ela deslizou seu cartão magnético pelo dispositivo de trava da porta do NOC, entramos em uma sala estreita que mal tinha espaço para nós três.
- Todos os pontos de acesso ao bunker passam por uma gaiola de contenção. Quando inseri meu cartão lá fora, disparei um som do lado interno. Os técnicos na parte
de dentro agora têm a chance de nos ver e acionar um travamento de emergência se concluírem que se trata de invasão.
Ela acenou para uma câmera no teto e então inseriu seu cartão pela trava da porta seguinte. Entramos no centro de operações de rede, que era levemente opressivo.
Eu havia esperado um centro de lançamentos da NASA, mas ali havia duas fileiras de estações de computadores com três técnicos monitorando múltiplas telas de computador,
que exibiam gráficos digitais e vídeos. Chavez explicou que os técnicos estavam monitorando energia, temperatura, largura de banda e todos os demais aspectos mensuráveis
das operações na Western Data, além das duzentas câmeras localizadas por toda a instalação.
Nada me pareceu sinistro ou ligado ao Unsub. Não vi ninguém ali que pudesse ser o Suíças. Ninguém esboçou qualquer reação após olhar para mim pela primeira vez.
Todos estavam mais para entediados com a rotina de potenciais clientes fazendo uma visita pela empresa.
Não fiz perguntas e aguardei impacientemente enquanto Chavez prosseguia sua ladainha de vendedora, fazendo contato olho no olho principalmente com Rachel, a chefe
de TI do nosso escritório de advocacia. Observando os técnicos, que deliberadamente evitavam prestar atenção em nossa presença, fiquei com a sensação de que aquilo
era tão rotineiro que se tornara quase um procedimento. Quando o cartão de Chavez acionava o alerta de intruso, os técnicos tiravam o jogo de paciência de suas telas,
fechavam os gibis e se punham em alerta antes que passássemos pela segunda porta. Talvez quando não houvesse visitantes no prédio, as portas da gaiola de contenção
fossem simplesmente abertas de primeira.
- Vamos para a fazenda, agora? - convidou finalmente Yolanda Chavez.
- Claro - eu disse.
- Vou passar vocês para nosso chefe de tecnologia, que dirige o centro de dados. Preciso sair e dar um rápido telefonema, mas volto em seguida e venho buscar vocês.
Vão estar em boas mãos com o sr. Carver. Ele também é nosso CTE.
Meu rosto deve ter revelado como eu fiquei confuso e prestes a fazer a pergunta.
- Chief Threat Engineer, o engenheiro­-chefe contra ameaças - explicou Rachel antes que eu tivesse oportunidade de abrir a boca.
- Isso - disse Chavez. - Ele é o nosso espantalho.

Passamos por outra gaiola e então entramos no centro de dados. Era uma sala fracamente iluminada, similar à do NOC, com três estações de trabalho e inúmeras telas
de computador em cada uma. Dois jovens sentavam em estações lado a lado, enquanto a outra estava vazia. À esquerda dessa fileira de estações havia uma porta aberta,
revelando uma pequena sala particular aparentemente vazia. As estações de trabalho ficavam de frente para duas grandes janelas e uma porta de vidro, a qual dava
para um espaço amplo no qual havia diversas fileiras de torres de servidores sob a brilhante iluminação do teto. Eu vira esse lugar no website. A fazenda.
Os dois sujeitos giraram nas cadeiras a fim de olhar para nós quando passamos pela porta, mas depois quase imediatamente voltaram ao trabalho. Aos olhos deles, isso
não passava de mais um showzinho para visitantes. Estavam usando camisas e gravatas, mas com o cabelo desalinhado e barba por fazer, podiam estar vestindo camisetas
e jeans.
- Kurt, pensei que o sr. Carver estivesse no centro - disse Chavez.
Um dos homens virou para nós. Era um rapaz espinhudo com não mais que 25 anos. Havia uma patética tentativa de barba em seu queixo. Era tão suspeito quanto flores
em um casamento.
- Ele foi até a fazenda pra verificar o servidor 77. Tem uma luz de capacidade que não faz sentido.
Chavez foi até a estação de trabalho sem uso e ergueu um microfone integrado à bancada. Apertou um botão na haste e falou.
- Sr. Carver, você poderia interromper o trabalho por alguns minutos para falar com nossos convidados sobre o centro de dados?
Não houve resposta por vários segundos, então ela tentou mais uma vez.
- Sr. Carver, está me ouvindo?
Mais tempo passou e então uma voz cheia de ruído finalmente foi ouvida no alto­-falante do alto.
- Sim, já estou indo.
Chavez virou para mim e Rachel e depois olhou o relógio.
- Bom, ele vai cuidar dessa parte da visita e eu volto para pegar vocês daqui a uns vinte minutos. Assim a gente encerra o passeio, a menos que vocês tenham perguntas
específicas sobre as instalações ou a operação.
Ela se virou para sair e seus olhos se detiveram por um momento em uma caixa de papelão sobre uma cadeira diante da mesa vazia.
- São as coisas do Fred? - perguntou, sem olhar para os dois técnicos.
- É - disse Kurt. - Ele não teve chance de pegar tudo. A gente encaixotou e estava pensando em levar pra ele. Esquecemos de fazer isso ontem.
Chavez franziu o rosto por um momento, depois virou na direção da porta sem responder. Rachel e eu ficamos de pé, esperando. Finalmente, pelo vidro, vi um sujeito
de guarda­-pó branco vindo por uma das passagens entre as fileiras de torres dos servidores. Era alto e magro e pelo menos uns 15 anos mais velho que o Suíças. Eu
sabia que dava para parecer mais velho com um disfarce. Mas parecer mais novo era difícil. Rachel virou e sutilmente me olhou com ar de interrogação, de qualquer
jeito. Disfarçadamente, balancei a cabeça. Não é ele.
- Aí vem o nosso espantalho - disse Kurt.
Olhei para o rapaz.
- Por que o chamam assim? Por que é magro?
- Porque é ele quem mantém todos os pássaros imundos e nojentos longe da plantação.
Eu ia perguntar o que queria dizer com isso quando Rachel mais uma vez veio em meu socorro.
- Hackers, trolls, vírus - ela disse. - Ele cuida da segurança na fazenda de dados.
Balancei a cabeça. O homem do guarda­-pó branco chegou na porta de vidro e levou a mão a um mecanismo de travamento que não dava para ver, à sua direita. Escutei
um clique metálico e, então, a porta deslizou para o lado. Ele entrou e fechou a porta atrás de si, verificando se estava travada de fato. Senti uma lufada de ar
fresco da sala dos servidores soprando sobre mim. Notei que à direita da porta havia um leitor eletrônico de mão - era preciso mais que um simples cartão magnético
para ter acesso à fazenda propriamente dita. Presa acima do leitor, havia uma caixa com tampa de vidro, contendo o que parecia ser um par de máscaras de gás.
- Oi, meu nome é Wesley Carver, chefe de tecnologia aqui na Western Data. Em que posso ajudá-los?
Ele estendeu a mão primeiro para Rachel, que a apertou e disse seu nome. Então virou para mim e eu fiz o mesmo.
- Yolanda deixou vocês comigo, então? - perguntou.
- É, ela disse que voltaria dentro de vinte minutos - eu disse.
- Bom, vou fazer o melhor que posso para não se aborrecerem. Já conheceram a equipe? Esses são Kurt e Mizzou, nossos engenheiros de apoio aos servidores do turno
de hoje. Eles mantêm as coisas funcionando enquanto eu faço a ronda pela fazenda e fico atrás das pessoas que acham que podem atravessar os muros do palácio.
- Hackers? - perguntou Rachel.
- Isso. Bom, lugares assim são como um desafio pra alguns caras, que ficam por aí sem ter nada melhor pra fazer. A gente precisa ficar em alerta constante, vigiando
o tempo todo. Até hoje nunca aconteceu nada. Enquanto formos melhores do que eles, não teremos problema algum.
- É bom saber - eu disse.
- Mas não é o que vocês vieram saber, não é? Já que a Yolanda me passou o bastão, deixa eu contar pra vocês um pouquinho do que temos por aqui, ok?
Rachel balançou a cabeça e sinalizou com a mão para que ele prosseguisse.
- Por favor.
Carver se virou e ficou de frente para as vidraças, olhando a sala dos servidores.
- Bom, esse é o verdadeiro coração e o cérebro dessa fera aqui de baixo - ele disse. - Como tenho certeza de que Yolanda explicou, armazenamento de dados, colocação,
doca seca, como quiserem chamar, é o principal serviço que a gente faz na Western Data. O'Connor e os meninos dele lá em cima, no andar de design e hospedagem, podem
até impressionar com o papo, mas isso aqui embaixo é o que só a gente e mais ninguém tem.
Notei que Kurt e Mizzou balançaram a cabeça um para o outro e trocaram um soquinho amistoso.
- Nenhum outro aspecto do mundo dos negócios virtuais cresceu tão exponencialmente quanto esse segmento - disse Carver. - Armazenagem segura e sem falhas e acesso
a registros e arquivos vitais da empresa. Conectividade avançada e digna de confiança. Isso é o que a gente oferece. Eliminamos a necessidade de construir essa infraestrutura
de rede privadamente. Oferecemos a vantagem de nosso próprio backbone de internet direto, de alta velocidade, energia ininterrupta. Por que construir isso na sala
dos fundos da sua firma quando se pode ter aqui, com o mesmo tipo de acesso e sem os custos ou o estresse de gerenciar e manter?
- A gente já ouviu bastante sobre isso, sr. Carver - disse Rachel. - É por isso que estamos aqui e é por isso que estamos conversando também com outras empresas.
Então será que poderia nos contar um pouco mais sobre o equipamento e sobre o seu pessoal? Porque é isso que vai pesar na nossa escolha. A gente não precisa ser
convencido a respeito do produto. Precisa ser convencido das pessoas a quem estamos confiando nossos dados.
Gostei do modo como ela estava se afastando da tecnologia e indo na direção das pessoas. Carver esticou um dos dedos, como se fosse argumentar.
- Exato - ele disse. - Sempre se resume às pessoas, não é?
- Normalmente - disse Rachel.
- Então me deixem mostrar rapidamente o que temos aqui e, depois, podemos ir até minha sala e falar sobre o pessoal.
Ele contornou a fileira de estações de trabalho, de modo a ficar diretamente diante das grandes vitrines que mostravam a sala dos servidores. Nós o seguimos e ele
continuou a explanação.
- Muito bem. Projetei o centro de dados para ser a última palavra em termos de tecnologia e segurança. O que vocês estão vendo aí na frente é nossa sala de servidores.
A fazenda. Essas torres enormes contêm aproximadamente mil servidores, dedicados e gerenciados em linha direta com nossos clientes. O que isso significa é que, se
vocês fecharem com a Western Data, sua firma vai ter o próprio servidor, ou mais de um, nessa sala. Seus dados não vão ficar misturados em um servidor com os dados
de nenhuma outra firma. Vocês vão ter seu próprio servidor gerenciado com um serviço de cem megabytes. Isso vai significar acesso instantâneo de qualquer lugar onde
vocês estiverem localizados para a informação armazenada aqui. Vai permitir backup periódico ou back-up imediato. Se necessário, cada letra teclada nos seus computadores
lá em... Onde vocês se localizam?
- Las Vegas - eu disse.
- Certo, Las Vegas. E qual é o negócio?
- Escritório de direito.
- Ah, mais uma firma de direito. Então, se necessário, cada toque do teclado feito em um computador da sua firma pode ser salvo instantaneamente e guardado aqui.
Em outras palavras, vocês nunca perdem nada. Nem um único caractere. O computador em Las Vegas pode ser atingido por um raio e a última palavra digitada vai estar
firme e forte aqui, a salvo.
- Bom, vamos torcer pra não chegar a tanto - disse Rachel, sorrindo.
- Claro que não - disse Carver, rápido e sério. - Mas estou apenas frisando os padrões do serviço que fornecemos. Agora, segurança. De que adianta salvar todos os
seus arquivos aqui se eles não estiverem seguros?
- Exato - disse Rachel.
Ela deu um passo à frente, aproximando-se do vidro, e ao fazê-lo passou adiante de mim. Dava para perceber claramente que ela queria assumir a primazia da ligação
com Carver, e por mim tudo bem. Dei um passo para trás e deixei-os lado a lado diante do vidro.
- Bom, estamos falando de duas coisas diferentes, aqui - disse Carver. - Segurança do equipamento e segurança dos dados. Vamos falar da segurança das instalações
primeiro.
Carver repassou um monte de coisas que Chavez já dissera, mas Rachel não o interrompeu. No fim, ele voltou ao centro de dados e forneceu alguma informação nova.
- Essa sala é completamente inviolável. Em primeiro lugar, todas as paredes, o piso e o teto são construídos com moldes de concreto armado de mais de meio metro
de espessura, com duas camadas de barras de ferro e uma manta emborrachada para proteger contra infiltrações. Essas janelas são de vidro laminado nível oito, resistentes
a impacto e à prova de bala. Você podia tentar quebrá-la com um tiro de espingarda de cano duplo que provavelmente só conseguiria se machucar com o ricochete. E
essa porta, o único jeito de entrar e sair, é controlada por um scanner de mão biométrico.
Ele apontou o dispositivo junto à porta de vidro.
- O acesso à sala dos servidores é limitado aos engenheiros de servidores e aos cargos de chefia, só. O scanner biométrico destrava a porta depois de fazer a varredura
e confirmar três leituras distintas: impressão da palma, padrão de veias e geometria da mão. Ele também verifica o pulso. Assim ninguém vai conseguir cortar minha
mão fora e usá-la para entrar na fazenda.
Carver sorriu, mas Rachel e eu não achamos graça.
- E se houver uma emergência? - perguntei. - Alguém pode ficar preso aí dentro?
- Não, claro que não. Do lado de dentro basta apertar um botão que abre a trava, e depois é só empurrar a porta. O sistema é projetado para manter intrusos do lado
de fora, não segurar gente dentro.
Ele me olhou para ver se eu havia compreendido. Fiz que sim.
Carver se curvou para trás e apontou os três medidores digitais de temperatura, localizados acima da janela principal da sala dos servidores.
- A gente mantém a fazenda resfriada a menos de 17 graus e dispõe de geradores de energia ininterrupta, além de um sistema de resfriamento de emergência. Quanto
à proteção contra incêndio, temos um esquema de três estágios. A gente tem um sistema VESDA padrão com u...
- VESDA? - perguntei.
- Very Early Smoke Detection Alarm. É um alarme ultrarrápido de detecção de fumaça, que funciona com detectores de fumaça à base de laser. Na eventualidade de um
incêndio, o VESDA ativa uma série de alarmes e depois um sistema químico de supressão do fogo, sem uso de água.
Carver apontou uma série de tanques de pressão vermelhos, lado a lado na parede do fundo.
- Lá estão nossos tanques de CO2, que são parte desse sistema. Se acontecer algum incêndio, o dióxido de carbono inunda o ambiente, extinguindo o fogo sem causar
mal nenhum aos equipamentos eletrônicos ou aos dados dos clientes.
- E quanto às pessoas? - perguntei.
Carver se curvou para trás mais uma vez, de modo a contornar Rachel e olhar para mim.
- Ótima pergunta, sr. McEvoy. O alarme em três estágios possibilita sessenta segundos para que qualquer pessoa dentro da sala dos servidores possa escapar. Além
do mais, nosso protocolo para a sala de servidores exige que qualquer um que entre ali porte consigo uma máscara para uma emergência WCS.
Do bolso de seu avental, ele puxou uma máscara de respirar semelhante às duas que estavam penduradas na caixa junto à porta.
- WCS? - perguntei.
- Worst­-Case Scenario - explicou Rachel. O pior cenário possível.
Carver enfiou a máscara no bolso novamente.
- Vejamos, o que mais posso dizer a vocês? Fabricamos nossos próprios suportes para servidores em uma oficina anexa à sala do equipamento, aqui embaixo no bunker.
Temos múltiplos servidores e equipamentos eletrônicos de reserva no estoque e podemos atender imediatamente qualquer necessidade de nossos clientes. Podemos substituir
qualquer parte de equipamento na fazenda uma hora após identificar um mau funcionamento. O que vocês estão vendo aqui é uma infraestrutura de rede nacional confiável
e segura. Vocês têm alguma pergunta sobre esse aspecto das nossas instalações?
Eu não tinha nenhuma, até porque, na maior parte das vezes, ficava boiando nas questões de tecnologia. Mas Rachel balançava a cabeça como se entendesse cada palavra
que estava sendo dita.
- Então, mais uma vez, tem a ver com as pessoas - ela disse. - Por melhor que seja a ratoeira, no fim das contas a importância está nas pessoas que fazem com que
ela funcione.
Carver levou a mão ao queixo e fez que sim. Estava olhando para a sala dos servidores, mas eu podia ver seu rosto refletido no vidro grosso.
- Por que não vamos até minha sala para conversar sobre esse aspecto das nossas operações?
Nós o seguimos dando a volta nas estações de trabalho para ir até sua sala. Ao passarmos, dei uma olhada dentro da caixa de papelão que estava na estação de trabalho
vazia. Parecia conter principalmente pertences pessoais. Revistas, um romance de William Gibson, uma caixa de cigarros American Spirit, uma caneca de café de Jornada
nas Estrelas cheia de canetas, lápis e isqueiros descartáveis. Também vi uma variedade de pen drives, um molho de chaves e um iPod.
Carver segurou a porta de sua sala e fechou depois que entramos. Sentamos nas duas cadeiras diante da mesa de vidro que ele usava como mesa de trabalho. Sobre ela,
havia uma tela de computador de vinte polegadas em um braço pivotante, que ele tirou da frente para poder nos enxergar. Uma segunda tela, menor, ficava sob o vidro
de sua mesa. Nela, via-se uma imagem em vídeo da sala dos servidores. Observei que Mizzou acabara de entrar na fazenda e andava por um dos corredores criados pelas
fileiras de torres.
- Onde estão se hospedando? - perguntou Carver enquanto nos ajeitávamos em sua sala.
- No Mesa Verde - eu disse.
- Bom lugar. Tem um ótimo brunch no domingo.
Carver sentou.
- Bom, agora podemos falar sobre as pessoas - disse, olhando diretamente para Rachel.
- Certo. Gostamos muito de conhecer as instalações, mas, francamente, não é por isso que estamos aqui. Tudo o que o senhor e a sra. Yolanda Chavez nos mostraram
está na página da empresa. Viemos, na verdade, para avaliar as pessoas que trabalhariam com os dados que vamos confiar a elas. Ficamos desapontados por não ter conseguido
conhecer Declan McGinnis e, francamente, um pouco aborrecidos com isso. Não recebemos uma explicação convincente para não termos sido recebidos por ele.
Carver ergueu as mãos, num gesto de rendição.
- Yolanda não tem autonomia para conversar sobre questões pessoais.
- Bom, espero que compreenda nossa posição - disse Rachel. - Viemos para criar uma base de relacionamento e a pessoa que deveria estar aqui não está presente.
- Absolutamente compreensível - disse Carver. - Mas como diretor da empresa, posso assegurar que a situação de Declan não afeta em nada nossa operação aqui. Ele
simplesmente tirou alguns dias de folga.
- Bom, isso é preocupante, porque é a terceira explicação diferente que recebemos. Não causa uma impressão muito boa.
Carver balançou a cabeça e soltou o ar ruidosamente.
- Se eu pudesse dizer mais alguma coisa, eu diria - afirmou. - Mas vocês precisam entender que o que vendemos aqui é confidencialidade e segurança. E isso começa
com nosso próprio pessoal. Se essa explicação não é aceitável, então talvez não sejamos a empresa que estão procurando.
Ele estabelecera um limite. Rachel recuou.
- Muito bem, sr. Carver. Então fale sobre as pessoas que trabalham para o senhor. A informação que pretendemos armazenar nesse lugar é de natureza muito delicada.
Como o senhor garante a integridade das instalações? Quando vi aqueles dois - como se chamam, engenheiros de servidor? Olhei para eles e tenho que dizer que me parecem
o tipo de pessoa de quem esse lugar deveria nos proteger.
Carver deu um largo sorriso e balançou a cabeça.
- Para ser honesto, Rachel - posso chamá-la de Rachel?
- Esse é o meu nome.
- Para ser honesto, quando Declan está aqui e eu sei que um possível cliente vem nos visitar, normalmente mando aqueles dois saírem pra fumar um cigarro. Mas a realidade
desse lugar e a realidade do mundo é que aqueles jovens são os melhores e os mais capazes quando se trata do trabalho. Estou sendo direto com você. Sim, não há dúvida
de que alguns de nossos empregados tiveram sua cota de hackers e delitos antes de vir trabalhar aqui. É assim porque, às vezes, é preciso uma raposa para pegar uma
raposa, ou pelo menos saber como ela pensa. Mas todo empregado aqui é cuidadosamente examinado em busca de fichas e tendências criminais, assim como para verificar
o conteúdo de sua personalidade e a constituição psicológica.
"Nunca tivemos um único funcionário que transgrediu os protocolos da empresa ou invadiu os dados do cliente sem autorização, se essa é sua preocupação. A gente não
só seleciona cada indivíduo na hora de empregar, como também observa com muito cuidado depois. Pode-se dizer que nós somos nossos melhores clientes. Cada toque de
teclado dentro deste prédio é salvo num back-up. Podemos ver o que um empregado está fazendo em tempo real ou já fez em algum momento. E adotamos como rotina fazer
as duas coisas aleatoriamente."
Rachel e eu balançamos a cabeça em sincronia. Mas sabíamos de algo que Carver não sabia ou estava habilidosamente ocultando. Alguém ali fuçara os dados dos clientes.
Um assassino espreitara sua presa nos campos digitais da fazenda.
- O que aconteceu com o sujeito que trabalhava ali? - perguntei, sacudindo um dos polegares na direção da outra sala. - Acho que disseram que o nome dele era Fred.
Parece que não está mais aqui e as coisas dele estão numa caixa. Por que ele foi embora sem levar os pertences pessoais?
Carver hesitou antes de responder. Dava para perceber que estava sendo cauteloso.
- Ainda, sr. McEvoy. Ele não veio buscar as coisas ainda. Mas vai, e é por isso que juntamos em uma caixa para ele.
Notei que continuava sendo sr. McEvoy comigo, enquanto Rachel passara ao tratamento pelo primeiro nome.
- Bom, ele foi mandado embora? O que ele fez?
- Não, não foi mandado embora. Saiu por algum motivo desconhecido. Ele não apareceu em seu turno na sexta à noite e me mandou um e-mail dizendo que pedia demissão
para tentar novos horizontes. Isso é tudo. Esses caras novos recebem uma procura enorme. Imagino que Freddy tenha sido seduzido por um concorrente. Nós pagamos bem
aqui, mas alguém sempre pode pagar melhor.
Balancei a cabeça como que concordando inteiramente, mas estava pensando no conteúdo da caixa sobre a cadeira e relacionando aquilo com outras coisas. O FBI aparece
e faz perguntas sobre o site trunk murder na sexta e Freddy desaparece sem nem voltar para buscar seu iPod.
E quanto a McGinnis? Eu estava prestes a perguntar se seu desaparecimento podia estar relacionado com o sumiço abrupto de Freddy, mas fui interrompido pela cigarra
da gaiola de contenção. A tela sob o tampo da mesa de Carver automaticamente mudou para a câmera da gaiola, e vi Yolanda Chavez voltando para nos apanhar. Rachel
se curvou para a frente, inadvertidamente dando uma nota de urgência à sua pergunta.
- Qual o último nome de Freddy?
Como se existisse um espaço de isolamento predeterminado a ser mantido entre eles, Carver se curvou para trás em uma distância igual à do movimento de Rachel. Ela
continuava se comportando como uma agente, fazendo perguntas diretas e esperando as respostas, porque o sangue do bureau continuava em suas veias.
- Por que quer saber o nome dele? Ele não trabalha mais aqui.
- Não sei. É só q...
Rachel ficou acuada. Não havia uma boa resposta para a pergunta, pelo menos do ponto de vista de Carver. A pergunta só lançava suspeitas sobre nossas motivações.
Mas tivemos sorte quando Chavez enfiou a cabeça pela porta.
- Então, como estamos indo por aqui? - ela perguntou.
Carver continuou olhando para Rachel.
- Está tudo bem - ele disse. - Tem mais alguma pergunta que eu possa responder?
Ainda na defensiva, Rachel olhou para mim e eu balancei a cabeça em um gesto negativo.
- Acho que nós já vimos tudo que precisávamos - eu disse. - Obrigado pelas informações e pela visita.
- É, obrigada - disse Rachel. - Suas instalações são impressionantes.
- Vou acompanhar os dois de volta até o térreo e deixá-los com um representante da contabilidade, se quiserem.
Rachel se levantou e virou para a porta. Eu empurrei minha cadeira para trás e me levantei. Agradeci a Carver outra vez e estiquei o braço por cima da mesa para
apertar sua mão.
- Prazer em conhecê-lo, Jack - ele disse. - Espero que a gente se encontre outra vez.
Balancei a cabeça. Eu havia conquistado um lugar na lista de primeiro nome.
- Eu também.

O carro estava quente como um forno quando entramos. Girei a chave rapidamente, pus o ar-condicionado no máximo e baixei a janela até o interior começar a refrescar.
- O que você achou? - perguntei para Rachel.
- Vamos cair fora daqui primeiro - ela respondeu.
- Ok.
O volante queimou minhas mãos. Usando só o canto da munheca esquerda, dei ré para sair da vaga. Mas não fui direto para a saída. Em vez disso, andei até o outro
lado do terreno e fiz a volta nos fundos do prédio da Western Data.
- O que você tá fazendo? - perguntou Rachel.
- Só queria ver o que tinha aqui nos fundos. A gente pode. Somos futuros clientes, lembra?
Conforme fazíamos a volta e nos dirigíamos para a saída, olhei de relance a parte de trás do prédio. Mais câmeras. E havia uma porta de saída e um banco sob um pequeno
toldo. Havia cinzeiros com areia dos dois lados do banco e ali, sentado, estava o engenheiro de servidores chamado Mizzou. Ele fumava um cigarro.
- A varanda dos fumantes - exclamou Rachel. - Satisfeito?
Acenei para Mizzou pela janela aberta e ele acenou de volta. Fomos na direção do portão.
- Achei que ele estivesse trabalhando na sala dos servidores. Eu vi ele na tela de Carver.
- Bom, quando o vício chama...
- Mas já pensou, ter que vir aqui fora, no auge do verão, só pra fumar? Você cozinha, mesmo debaixo do toldo.
- Acho que foi por isso que inventaram o protetor solar noventa.
Fechei meu vidro depois que voltamos à estrada principal. Quando finalmente perdemos a Western Data de vista, achei que estava seguro para fazer minha pergunta novamente.
- Então, o que achou?
- Acho que eu quase estraguei tudo. Talvez tenha estragado.
- Você quer dizer no fim? Acho que a gente se saiu bem. Yolanda Chavez chegou na hora H. Você só precisa lembrar que não anda mais com aquele distintivo que abre
todas as portas e faz as pessoas tremerem e responderem suas perguntas.
- Valeu, Jack. Vou me lembrar disso.
Percebi como eu devia ter soado insensível.
- Desculpe, Rachel. Não quis...
- Tudo bem. Sei o que você quis dizer. Só estou meio sensível porque você tem razão e eu sei disso. Não sou mais o que eu era há 24 horas. Acho que preciso reaprender
a mostrar um pouco de tato. Meus dias de intimidar com a força da carteirada chegaram ao fim.
Ela olhava pela janela, então não consegui ver seu rosto.
- Olha, nesse exato minuto, não estou nem aí pra sua diplomacia. O que achou da atmosfera lá dentro? O que achou de Carver e todo mundo? O que a gente faz agora?
Ela virou para mim.
- Estou mais interessada em quem a gente não viu do que em quem a gente viu.
- Está falando de Freddy?
- E McGinnis. Acho que a gente precisa descobrir quem é esse Freddy que foi embora e qual o problema com McGinnis.
Balancei a cabeça. Estávamos na mesma sintonia.
- Você acha que tem relação, o Freddy sair e o McGinnis não aparecer?
- A gente só vai saber depois que conversar com os dois.
- Mas como a gente encontra eles? Não sabemos nem o sobrenome desse Freddy.
Ela hesitou antes de responder.
- Eu podia tentar dar uns telefonemas, ver se alguém ainda conversa comigo. Tenho certeza de que, quando foram lá com um mandado na semana passada, obtiveram uma
lista com os nomes de todos os empregados. Teria sido procedimento padrão.
Achei que estivesse se iludindo. Nas burocracias da lei, quando você está fora, está fora. E isso provavelmente era mais verdadeiro no FBI do que em qualquer outro
lugar. O pessoal no bureau era tão rígido que nem mesmo policiais legítimos, com distintivo e tudo, tinham acesso. Achei que Rachel ia quebrar a cara se estava pensando
que seus velhos camaradas iriam fazer o que pedisse, rastrear nomes para ela e partilhar informação. Ela não tardaria a descobrir que estava do lado de fora, olhando
por um vidro de 15 centímetros de espessura.
- E se isso não funcionar?
- Aí eu não sei - ela disse, curto e grosso. - Acho que seria melhor partir pro bom e velho método de sempre. Voltar lá, ficar de plantão e esperar os amigos nerds
do Freddy encerrarem o expediente e irem pra casa. Ou eles levam a gente direto pra ele ou a gente pode tirar a informação deles com tato.
Ela disse isso com todo o sarcasmo, mas gostei do plano e achei que podia ser um jeito de descobrir quem Freddy era e onde morava. Só não tinha certeza se iríamos
encontrar o próprio Freddy. Minha sensação era de que ele se mandara.
- Acho um bom plano, mas tenho o pressentimento de que Freddy se mandou de vez. Ele não sumiu do trabalho, só. Sumiu da cidade.
- Por quê?
- Você deu uma olhada naquela caixa?
- Não, eu estava ocupada demais mantendo Carver ocupado. Era função sua olhar dentro da caixa.
Isso era novidade para mim, mas sorri. Foi o primeiro sinal, pelo menos que eu percebia, de que ela nos via como parceiros no caso.
- Sério? Era isso que a gente estava fazendo?
- Sem dúvida. O que tinha dentro da caixa?
- Coisas que ninguém deixaria para trás se estivesse apenas largando o trabalho. Cigarros, pen drives e um iPod. A molecada dessa idade não dispensa o iPod desse
jeito. Além do mais, é muita coincidência. O FBI aparece num dia e o cara some na mesma noite. Acho que não vamos conseguir encontrar ele por aqui em Mesa, Arizona.
Rachel não respondeu. Dei uma olhada nela de relance e vi sua testa franzida.
- O que está pensando?
- Que provavelmente você tem razão. E isso me faz pensar que a gente precisa chamar os profissionais. Como eu disse, eles provavelmente já sabem o nome dele e podem
rastrear rápido. A gente só está perdendo tempo e levantando muita poeira.
- Ainda não, Rachel. Vamos pelo menos ver o que dá pra descobrir hoje.
- Não estou gostando disso. A gente devia ligar pra eles.
- Ainda não.
- Olha, você descobriu a ligação. Aconteça o que acontecer, vai ser porque você ligou as coisas. O crédito vai ser seu.
- Não estou preocupado com o crédito.
- Então por que você tá fazendo isso? Não me diga que ainda é por causa da reportagem. Você ainda não superou isso?
- Você já superou a saída do bureau?
Ela não respondeu e olhou pela janela outra vez.
- O mesmo comigo - eu disse. - Essa é a minha última matéria e é importante. Além do mais, pode ser seu passaporte de volta. Se identificar o Unsub, eles vão devolver
seu distintivo.
Ela negou com a cabeça.
- Jack, você não sabe nada do bureau. Não existe segundo ato. Eu saí sob ameaça de processo judicial. Não entendeu? Eu podia achar o Osama bin Laden escondido numa
caverna em Griffith Park e nem assim iam me aceitar de volta.
- Ok, ok. Desculpe.
Andamos em silêncio depois disso e logo avistei uma churrascaria chamada Rosie's do lado direito. Era cedo para almoçar, mas a intensidade de posar como alguém que
eu não era durante aquela última hora me deixara faminto. Entrei.
- Vamos comer alguma coisa, fazer umas ligações e depois voltar para esperar Kurt e Mizzou saírem - eu disse.
- É isso aí, parceiro - disse Rachel.

QUINZE: A Fazenda

Carver estava sentado em sua sala, observando os ângulos das câmeras. Mais de cem enquadramentos do prédio e dos arredores. Tudo sob seu controle. No momento, ele
manuseava a câmera externa localizada numa das quinas superiores da frente do edifício. Erguendo e girando as lentes para ajustar o foco, ele podia ver os dois lados
da McKellips Road.
Não demorou muito para avistá-los. Ele sabia que voltariam. Entendia processos de pensamento.
McEvoy e Walling estavam estacionados junto ao muro do centro de guarda-móveis público. Observavam a Western Data ao mesmo tempo que ele os observava. A diferença
era que ele não dava bandeira.
Carver flertou com a ideia de deixá­-los cozinhando lá fora. Esperar mais tempo para lhes dar o que queriam. Mas então decidiu pôr as peças em movimento. Apanhou
o telefone e teclou três números.
- Mizzou, vem aqui um minuto, por favor. Está destrancada.
Pôs o fone no gancho e aguardou. Mizzou abriu a porta sem bater e entrou.
- Feche a porta - disse Carver.
O jovem gênio da informática fez como instruído e então se aproximou da mesa de Carver.
- O que foi, chefe?
- Quero que pegue a caixa com os pertences de Freddy e leve pra ele.
- Mas você não disse que ele tinha se mandado da cidade?
Carver o encarou. Pensou que um dia iria contratar alguém que não arrumaria problema com cada coisa que dizia.
- Eu disse que provavelmente sim. Mas isso não vem ao caso. Aquele pessoal que veio aqui hoje viu a caixa na droga da cadeira e percebeu que a gente precisou mandar
alguém embora ou teve algum problema de rodízio no turno. De um jeito ou de outro, não passa muita confiança pra alguém que pode virar cliente.
- Entendi.
- Ótimo. Então pega essa caixa, põe na traseira da sua moto e leva pro galpão dele. Você sabe onde fica, não sabe?
- Sei, eu já fui lá.
- Ótimo, então vai.
- Mas o Kurt e eu acabamos de abrir o 37 pra ver de onde era o aquecimento. Tem uma luz piscando.
- Ótimo, tenho certeza de que ele consegue terminar sozinho. Quero que você leve esse negócio.
- E depois vou ter que voltar pra cá?
Carver olhou o relógio. Sabia que Mizzou estava tentando ganhar o resto do dia de folga. Mal sabia ele que Carver já sabia que ele não ia voltar - não nesse dia,
pelo menos.
- Tudo bem - ele disse, fingindo frustração por ter sido pego de jeito. - Tira o resto do dia. Pode ir. Vai logo antes que eu mude de ideia.
Mizzou saiu da sala, fechando a porta atrás de si. Carver observou as câmeras ansiosamente, querendo captá-lo assim que chegasse à sua adorada motocicleta no estacionamento.
Ele pareceu levar uma eternidade para sair. Carver começou a cantarolar. Passou ao seu antigo modo de espera, a canção que permeara cada canto de sua vida até onde
ele era capaz de lembrar. Logo ele cantava baixinho seus dois versos favoritos e pegou-se repetindo-os cada vez mais rápido, em vez de prosseguir com a letra da
canção.
There's a killer on the road; his brain is squirming like a toad
There's a killer on the road; his brain is squirming like a toad
There's a killer on the road; his brain is squirming like a toad
There's a killer on the road; his brain is squirming like a toad
If you give this man a ride...3
Finalmente, Mizzou surgiu no enquadramento da câmera e começou a prender a caixa de papelão ao pequeno suporte de carga atrás do banco. Estava fumando um cigarro
e Carver percebeu que queimara quase até o filtro. Isso explicava a demora. Mizzou aproveitara o tempo para sentar no banco dos fundos do prédio e quem sabe bater
papo com seus colegas fumantes.
A caixa, enfim, foi presa à motocicleta. Mizzou arremessou a bituca do cigarro e enfiou o capacete. Abriu as pernas sobre a moto, deu alguns passos, ligou o motor
e foi embora pelo portão da frente.
Carver o seguiu durante todo o trajeto e então virou a câmera na direção do centro de guarda-móveis público do outro lado da rua. Viu que McEvoy e Walling haviam
visto a caixa e mordido a isca. McEvoy começou a andar com o carro para ir atrás.

3 Trecho da música Riders on the Storm, da banda The Doors. Ele pode ser traduzido como "Tem um assassino na estrada; seu cérebro está se contorcendo como um sapo
/ Se você der uma carona a este homem..." (N. do T.)

DEZESSEIS: Fibra Escura

Havíamos encontrado um lugar sombreado junto à parede de um centro de guarda­-móveis público. Mal tínhamos nos acomodado para o que poderia ser uma espera longa,
quente e infrutífera quando demos sorte. Um motoqueiro surgiu no portão de entrada da Western Data e seguiu rumo oeste pela McKellips Road. Era impossível dizer
quem ia na motocicleta porque o motorista usava um capacete fechado, mas Rachel e eu reconhecemos a caixa de papelão presa à traseira com cordas elásticas.
- Vai atrás da caixa - disse Rachel.
Religuei o carro e rapidamente tomei a McKellips. Seguir uma moto em uma lata­-velha alugada não era minha ideia de um bom plano, mas não havia alternativa. Pisei
no acelerador e rapidamente me aproximei a 100 metros da caixa.
- Não fica perto demais! - disse Rachel, alarmada.
- Não vou. Só estou tentando não perder de vista.
Ela se curvou para a frente nervosamente e pôs as mãos no painel.
- Isso não é nada bom. Seguir uma moto com quatro carros se revezando na frente é difícil; só com a gente vai ser um pesadelo.
Era verdade. Motos podiam costurar através do trânsito com facilidade. A maioria dos motoqueiros parecia ter um completo desprezo pelo conceito de faixas pintadas
na pista.
- Quer que eu pare pra você dirigir?
- Não, faz o melhor que der.
Dei um jeito de ficar na cola da caixa durante os dez minutos seguintes de um tráfego intenso, e então tivemos sorte. A moto pegou a entrada de uma via expressa
e tomou a 202 na direção de Phoenix. Não tive problemas em manter o ritmo. A moto mantinha uma toada estável de dez milhas acima do limite de velocidade e eu a acompanhava
duas faixas para o lado, a 100 metros de distância. Por 15 minutos de trânsito desimpedido, nós o seguimos conforme pegava a I­-10 e depois a North I­-17 para o
centro de Phoenix.
Rachel começou a respirar mais calmamente e até se recostou em seu banco. Achou que havíamos disfarçado a caçada bem o bastante para me pedir que ficássemos na mesma
faixa, a fim de que pudesse ver melhor o homem na motocicleta.
- É Mizzou - ela disse. - Dá pra saber pela roupa.
Olhei rapidamente, mas não pude dizer. Não guardara na memória os detalhes do que eu vira dentro do bunker. Rachel sim, e isso era uma das coisas que a tornavam
tão boa no que fazia.
- Se você diz. Mas o que acha que ele vai fazer?
Comecei a ficar para trás outra vez para evitar ser notado por Mizzou.
- Levar a caixa de Freddy.
- Sei disso. Mas por que agora?
- Pode ser a hora de almoço dele, ou então ele já terminou o trabalho do dia. Pode ser um monte de coisa.
Alguma coisa na explicação me incomodou, mas eu não tinha muito tempo para pensar a respeito. A moto começou a cruzar quatro faixas de interestadual na minha frente
e a se dirigir para a saída seguinte. Fiz o mesmo e fiquei atrás dele na saída, com um carro entre nós. Pegamos o semáforo verde e fomos para oeste pela Thomas Road.
Em pouco tempo estávamos em um bairro de galpões onde pequenos negócios e galerias de arte tentavam se estabelecer, em uma área que parecia ter sido abandonada pelas
fábricas havia muito tempo.
Mizzou parou diante de um prédio térreo de tijolos e desceu da moto. Eu parei no meio­-fio a uma quadra de distância. Havia pouco movimento e apenas alguns carros
estacionados nas imediações. Ficamos ali como... bom, como tiras numa campana óbvia. Mas Mizzou em nenhum momento olhou em volta para ver se estava sendo seguido.
Tirou o capacete, confirmando a identificação de Rachel, e o pendurou no farol. Depois desenganchou as cordas elásticas e tirou a caixa da traseira da moto. Então
carregou-a por uma grande porta de correr na lateral do prédio.
Pendurada numa corrente, havia uma pesada anilha de musculação. Mizzou a segurou e bateu com ela na porta, provocando uma reverberação que eu podia escutar a meia
quadra dali com os vidros levantados. Ele esperou e esperou, mas ninguém veio abri-la. Mizzou bateu outra vez, com o mesmo resultado negativo. Então caminhou até
uma janela grande tão suja que nem precisava de persianas do lado de dentro. Usou a mão para esfregar parte da sujeira e espiou. Não dava para perceber se vira alguém
ou não. Ele voltou até a porta e bateu mais uma vez. Então, num gesto impensado, segurou o puxador da porta e tentou deslizá-la. Para surpresa sua e nossa, a porta
rolou suavemente nas roldanas. Estava destrancada.
Mizzou hesitou e, pela primeira vez, olhou em torno. Seus olhos não se detiveram sobre o carro em que eu estava. Rapidamente voltaram à porta aberta. Pareceu chamar
o nome de Freddy; depois de alguns segundos entrou e fechou a porta atrás de si.
- O que você acha? - perguntei.
- Acho que a gente precisa entrar - disse Rachel. - É óbvio que Freddy não está lá, e vai saber se Mizzou não vai tentar trancar o lugar ou levar alguma coisa valiosa
para a investigação. É uma situação fora de controle e a gente precisa entrar ali.
Engatei o carro e andei a meia quadra restante até o prédio. Rachel descera e ia em direção à porta de correr antes mesmo de eu desligar. Desci e fui atrás.
Ela abriu um vão na porta suficiente apenas para entrar. Estava escuro ali dentro e levou alguns instantes para meus olhos se ajustarem. Quando isso enfim aconteceu,
vi que Rachel estava uns 5 metros à minha frente, andando para o meio do galpão. O lugar era amplo, com um telhado sustentado por colunas de aço espaçadas de 5 em
5 metros, aproximadamente. Divisórias de gesso haviam sido erguidas separando as áreas de moradia, trabalho e exercício. Vi o banco de supino com as hastes de ferro
de cada lado e entendi de onde viera a aldrava da porta. Havia ainda uma cesta de basquete e um espaço equivalente a pelo menos meia quadra para jogar. Mais adiante,
havia um guarda­-roupa e uma cama desfeita. Junto a uma das divisórias, estavam uma geladeira e uma mesa com micro-ondas, mas não vi nenhuma pia, fogão ou qualquer
coisa parecida com uma cozinha. Vi a caixa que Mizzou trouxera sobre a mesa perto do micro-ondas, mas nenhum sinal de Mizzou.
Alcancei Rachel ao passarmos por uma das divisórias e vi uma estação de trabalho junto da parede. Havia três telas em prateleiras acima de uma mesa e um PC debaixo
dela. O teclado, contudo, sumira. As prateleiras estavam cheias de livros de códigos, caixas de softwares e outros equipamentos eletrônicos. Mas ainda nenhum sinal
de Mizzou.
- Onde ele foi? - sussurrei.
Rachel ergueu a mão pedindo silêncio e foi na direção da estação de trabalho. Parecia examinar o lugar onde deveria estar o teclado.
- Ele levou o teclado - ela sussurrou. - Ele sabe o que nós pod...
Ela parou com o som de uma descarga sendo apertada. Viera do outro canto do galpão e foi seguido pelo som de outra porta de correr sendo aberta. Rachel levou a mão
a uma das prateleiras e apanhou um lacre plástico, do tipo usado para prender cabos de computador, depois segurou meu cotovelo e me fez contornar uma parede até
a área que servia de dormitório. Ficamos eretos, as costas contra a parede, esperando que Mizzou passasse. Dava para escutar seus passos se aproximando no piso de
concreto. Rachel passou diante de mim para ficar perto da quina da divisória. No exato momento em que Mizzou surgiu, ela se projetou adiante, agarrando-o pelo pulso
e pelo pescoço e girando­-o sobre a cama antes que ele se desse conta do que estava acontecendo. Ela o jogou com força no colchão, de bruços, e num movimento fluido
pulou em cima de suas costas.
- Fica quieto! - gritou.
- Espera! O q...
- Para de se debater! Eu disse, fica quieto!
Ela puxou suas mãos às costas e usou a correia plástica para prendê-las rapidamente.
- O que é isso? O que eu fiz?
- O que você tá fazendo aqui?
Ele tentou erguer o rosto, mas Rachel o empurrou de volta para o colchão.
- Eu disse, o que você tá fazendo aqui?
- Vim trazer as coisas do Freddy e tive que ir ao banheiro.
- Arrombamento e invasão de domicílio é crime.
- Não arrombei nada. E não invadi nada. O Freddy não liga. Pode perguntar pra ele.
- Onde ele tá?
- Sei lá. Quem é você?
- Quem eu sou não interessa. Quem é o Freddy?
- Como é? Ele mora aqui.
- Quem é ele?
- Sei lá. Freddy Stone. Eu trabalho com ele. Quer dizer, trabalhava... Ei, você! É a mulher que foi visitar a gente hoje. O que você tá fazendo, caramba?
Rachel desceu das costas do rapaz, já que esconder a identidade não fazia mais sentido. Mizzou se virou na cama e conseguiu erguer o corpo. De olhos arregalados,
passou de Rachel para mim e depois de volta a ela.
- Cadê o Freddy? - perguntou Rachel.
- Sei lá - disse Mizzou. - Ninguém sabe dele.
- Desde quando?
- Desde quando você acha? Desde que ele pediu as contas. O que tá acontecendo aqui? Primeiro o FBI, agora vocês dois. Quem são vocês, cacete?
- Esquece isso. Onde o Freddy pode ter ido?
- Sei lá. Como eu vou saber?
Mizzou de repente ficou de pé, como se simplesmente fosse sair andando e pegar sua moto com as mãos presas nas costas. Rachel o empurrou com violência de volta na
cama.
- Vocês não podem fazer isso! Acho que não são nem da polícia. Quero um advogado.
Rachel deu um passo ameaçador adiante. Falou num tom de voz baixo e calmo.
- Se a gente não é da polícia, o que te faz pensar que a gente vai te arrumar um advogado?
Os olhos de Mizzou se encheram de medo quando percebeu que havia se metido em algo do qual podia ser incapaz de sair.
- Olha - ele disse. - Vou contar tudo que eu sei. Só me solta.
Eu continuava recostado contra a divisória, tentando agir como se fosse apenas mais um dia no escritório e que às vezes, quando o serviço tinha de ser feito, as
pessoas acabavam sendo um dano colateral.
- Onde encontro o Freddy? - perguntou Rachel.
- Já falei! - choramingou Mizzou. - Não sei. Se soubesse, eu falava, mas não sei!
- O Freddy é um hacker?
Ela indicou a parede. A estação de trabalho ficava do outro lado.
- Tá mais pra um troller. Ele gosta de sacanear as pessoas, pregar peças, coisa assim.
- E você? Também já fez isso junto com ele? Não enrola.
- Uma vez. Mas não gostei de atrapalhar a vida das pessoas sem motivo.
- Qual o seu nome?
- Matthew Marsden.
- Certo, Matthew Marsden, e o Declan McGinnis?
- O que tem ele?
- Onde ele tá?
- Sei lá. Disseram que tinha mandado um e-mail avisando que estava doente.
- Você acreditou nisso?
Ele deu de ombros.
- Sei lá. Acho que sim.
- Alguém falou com ele?
- Não sei. Esse tipo de coisa tá acima da minha alçada.
- É só isso?
- É só isso que eu sei!
- Então fica de pé.
- O quê?
- Fica de pé e vira pra lá.
- O que você vai fazer?
- Eu disse, fica de pé e vira pra lá. Não interessa o que eu vou fazer.
Relutantemente, ele fez como ordenado. Se pudesse ter girado a cabeça 180 graus para não desgrudar os olhos de Rachel, ele o teria feito. Do jeito que foi, deve
ter chegado perto dos 120.
- Eu disse tudo que sabia - exclamou, desesperado.
Rachel se aproximou por trás e falou diretamente em sua orelha.
- Se eu descobrir que não foi nada disso, volto pra pegar você - ela disse.
Segurando-o pelo lacre plástico, ela o empurrou contornando a divisória até a parede da estação de trabalho. Apanhou uma tesoura na prateleira e liberou seus pulsos.
- Vai embora daqui e não conta pra ninguém o que aconteceu - ela disse. - Se contar, a gente vai ficar sabendo.
- Não conto. Prometo que não.
- Vai!
Ele quase escorregou no concreto polido quando se virou na direção da porta. Era uma longa caminhada e seu orgulho o abandonou quando chegou a 3 metros da liberdade.
Correu esse trecho final, abriu a porta e a bateu com tudo atrás de si. Cinco segundos depois, escutamos a motocicleta sendo ligada.
- Gostei daquele golpe de jogar ele na cama - eu disse. - Acho que já vi em algum lugar.
Rachel retribuiu com um sorriso muito sutil e voltou ao assunto.
- Não sei se ele vai procurar a polícia imediatamente, mas é melhor a gente não perder muito tempo por aqui.
- Vamos cair fora.
- Não, ainda não. Dá uma olhada por aí, vê o que dá pra descobrir sobre esse cara. Dez minutos e daí a gente se manda. Não deixa impressão.
- Maravilha. E como eu faço isso?
- Você é um repórter de jornal. Cadê sua caneta de confiança?
- Certo.
- Usa ela. Dez minutos.
Mas não precisamos de dez minutos. Logo ficou claro que o lugar fora varrido de qualquer coisa remotamente pessoal sobre Freddy Stone. Usando minha caneta para abrir
armários e gavetas, vi que estavam vazios ou contendo apenas utensílios de cozinha comuns e pacotes de comida. A geladeira estava praticamente vazia. O freezer continha
duas pizzas congeladas e uma bandeja vazia. Olhei dentro e debaixo da cômoda. Nada. Olhei sob a cama e entre o colchão e o estrado de mola. Não havia coisa alguma.
Até as latas de lixo estavam vazias.
- Vamos - disse Rachel.
Ergui o rosto quando olhava embaixo da cama e vi que ela já estava perto da porta. Debaixo do braço, carregava a caixa que Mizzou acabara de deixar. Eu me lembrava
de ter visto pen drives ali. Talvez os drives contivessem informação útil para nós. Fui rapidamente atrás dela, mas quando passei pela porta aberta, ela não estava
no carro. Me voltei e, de relance, vi que ela acabava de dobrar a quina do prédio e entrava no beco dos fundos.
- Ei!
Trotei até lá e virei também. Ela caminhava determinada pelo centro do beco.
- Rachel, onde você tá indo?
- Tinha três latas de lixo lá dentro - ela exclamou por cima do ombro. - As três estavam vazias.
Foi então que me dei conta de que ela ia na direção da primeira de duas lixeiras industriais Dumpster, que haviam sido empurradas em recessos nas paredes de lados
opostos do beco. Assim que a alcancei, ela me entregou a caixa de Freddy Stone.
- Segura isso.
Ela empurrou a pesada tampa de aço, que bateu ruidosamente contra a parede do fundo. Passei os olhos dentro da caixa e vi que alguém, provavelmente Mizzou, pegara
seus cigarros. Eu duvidava de que Freddy fosse sentir falta.
- Você verificou os armários de cozinha, não foi? - perguntou Rachel.
- Foi.
- Viu algum saco de lixo?
Levei um momento para compreender.
- Hã, tinha, tinha sim, uma caixa debaixo da pia.
- Pretos ou brancos?
- Hã...
Fechei os olhos para tentar visualizar o que eu vira no gabinete da pia.
- ... pretos. Pretos com cordão vermelho.
- Ótimo. Isso limita a busca.
Ela enfiou a mão na Dumpster, tirando coisas do lugar. Estava cheia pela metade e o cheiro era pavoroso. A maior parte do refugo estava solto, despejado diretamente
de recipientes de lixo. O que mais havia era entulho de obras de conserto ou reforma. O resto era lixo apodrecido.
- Vamos tentar a outra.
Atravessamos o beco até o outro recesso. Pus a caixa no chão e abri a pesada tampa da Dumpster. O cheiro era ainda mais inacreditável e, num primeiro momento, pensei
que tivéssemos encontrado Freddy Stone. Recuei e virei o rosto, soprando ar pela boca e pelo nariz para manter o fedor a distância.
- Não se preocupe, não é ele - disse Rachel.
- Como você sabe?
- Por que eu sei como cheira um corpo em decomposição, e é pior.
Voltei para perto da Dumpster. Havia diversos sacos plásticos no contêiner, muitos deles pretos e muitos deles rasgados e vazando coisas podres.
- Seus braços são mais compridos - disse Rachel. - Puxe os sacos pretos.
- Acabei de comprar essa camisa - protestei, conforme enfiava as mãos ali dentro.
Tirei todos os sacos pretos que ainda não estavam rasgados e revelando seu conteúdo e joguei no chão. Rachel começou a abri-los, rasgando de um modo que deixava
o que havia dentro no lugar. Como que realizando uma autópsia em um saco de lixo.
- Faz assim e não mistura os conteúdos de sacos diferentes - ela disse.
- Tá. O que a gente está procurando? Não sabemos nem se esse negócio saiu da casa do Stone.
- Sei, mas a gente precisa procurar. Alguma coisa pode aparecer.
O primeiro saco que abri continha, na maior parte, o confete de documentos retalhados.
- Achei papel picado, aqui.
Rachel olhou.
- Isso pode ser dele. Tinha um picador perto dos computadores. Separa aí.
Fiz o que ela mandou e abri o saco seguinte. Esse continha o que parecia ser lixo doméstico básico. Reconheci, na mesma hora, uma das caixas de comida vazias.
- Isso é dele. Tinha a mesma marca de pizza congelada no freezer.
Rachel olhou.
- Ótimo. Procura qualquer coisa de natureza pessoal.
Ela não precisava ter me dito isso, mas não objetei. Remexi cuidadosamente o refugo dentro do saco rasgado. Dava para ver que era tudo coisa de cozinha. Caixas de
comida, latas, cascas de banana e restos de maçã apodrecendo. Percebi que não era tão ruim quanto poderia ter sido. Havia apenas um micro-ondas no loft. Isso limitava
bem as opções e a comida vinha em recipientes muito higiênicos, que podiam ser hermeticamente fechados antes de serem jogados fora.
No fundo do saco havia um jornal. Apanhei-o com cuidado, achando que a data da edição talvez ajudasse a dizer quando o saco fora jogado na Dumpster. Estava dobrado
em quatro, do jeito que carregamos quando viajamos. Era a edição da quarta­-feira passada do Las Vegas Review­-Journal. O dia em que eu estivera em Vegas.
Desdobrei e vi que o rosto de um homem em uma foto da primeira página fora rabiscado com caneta preta. Alguém pusera óculos de sol, chifrinhos e o indefectível cavanhaque
no sujeito. Também percebi um círculo de café sobre a foto. O círculo obscurecia parcialmente um nome escrito com a mesma caneta.
- Achei um jornal de Vegas com um nome escrito.
Rachel ergueu o rosto imediatamente do saco em que estava mexendo.
- Que nome?
- Está borrado com uma mancha de café. É Georgette qualquer coisa. Começa com um B e termina com M­-A­-N.
Ergui o jornal e o virei de modo que ela pudesse ver a primeira página. Ela examinou-o por um segundo e vi um brilho de reconhecimento em seus olhos. Ela se levantou.
- É isso. Você encontrou.
- Encontrei o quê?
- É o nosso cara. Lembra que eu falei pra você sobre o e-mail para a prisão em Ely que pôs Oglevy em confinamento? Era da secretária do diretor para o diretor.
- Sei.
- O nome dela é Georgette Brockman.
Ainda de cócoras perto do saco aberto, arregalei os olhos para Rachel conforme juntei as peças. Só havia um motivo para Freddy Stone ter aquele nome escrito em um
jornal de Las Vegas em sua casa. Ele me seguira até Vegas e sabia que eu ia a Ely para conversar com Oglevy. Foi ele quem tentou me isolar no meio do nada. Ele era
o Suíças. Ele era o Unsub.
Rachel tirou o jornal da minha mão. Sua conclusão era a mesma que a minha.
- Ele estava em Nevada seguindo você. Conseguiu o nome dela e escreveu aqui enquanto invadia o banco de dados do sistema da prisão. Essa é a ligação, Jack. Você
conseguiu!
Fiquei de pé e me aproximei dela.
- Nós conseguimos, Rachel. Mas o que a gente faz agora?
Ela baixou o jornal ao lado do corpo e vi que uma tristeza cruzou seu rosto quando se deu conta de algo.
- Acho melhor a gente não encostar em mais nada. A gente precisa voltar e ligar pro bureau. Eles assumem daqui pra frente.

No que diz respeito a equipamentos, o FBI sempre pareceu pronto para tudo. Uma hora depois de Rachel ligar para o escritório regional, haviam nos colocado em salas
de interrogatório separadas em um veículo sem identificação do tamanho de um ônibus. Ele ficou estacionado diante do galpão em que Freddy Stone havia morado. Estávamos
sendo interrogados por agentes ali dentro, enquanto outros agentes do lado de fora ficavam no galpão e no beco, procurando mais indícios do envolvimento de Stone
nos assassinatos do porta-malas, além de pistas de seu atual paradeiro.
Claro, o FBI não os chamava de sala de interrogatório e teria objetado a que eu chamasse o trailer convertido de Guantánamo Express. Eles o chamavam de unidade móvel
de entrevista a testemunhas.
Minha sala era um cubo sem janelas com cerca de 3 por 3, e meu interrogador era um agente chamado John Bantam. O nome era uma injustiça poética porque Bantam era
tão grande que parecia encher todo o ambiente. Ele andava de um lado para o outro diante de mim, periodicamente golpeando a perna com o bloco de anotações amarelo
que carregava, acho que de modo a me fazer pensar que minha cabeça poderia ser o próximo destino.
Bantam me interrogou por cerca de uma hora sobre como eu estabelecera a ligação com a Western Data e sobre todos os movimentos que Rachel e eu fizéramos desde então.
O tempo todo segui o conselho que Rachel me deu pouco antes da chegada dos federais.
Não minta. Mentir para um agente federal é crime. No instante em que você mentir, você está no papo. Não minta sobre coisa nenhuma.
Então contei a verdade, mas não toda ela. Respondi apenas às perguntas que me foram apresentadas e não forneci qualquer detalhe que não fosse pedido especificamente.
Bantam pareceu frustrado o tempo todo, irritado por não ser capaz de fazer a pergunta certa. Um brilho de suor começava a se formar em sua pele negra. Achei que
talvez encarnasse a frustração de todo o bureau com o fato de que um jornalista fizera a conexão que eles haviam sido incapazes de fazer. De um jeito ou de outro,
ele não estava nada feliz comigo. A sessão passou de uma entrevista amistosa a um interrogatório tenso que parecia não ter fim.
Finalmente, cheguei ao meu limite e levantei da cadeira dobrável em que estava sentado. Mesmo assim, Bantam ainda ficava 15 centímetros acima de mim.
- Olha, já disse tudo o que eu sei. Tenho uma matéria para escrever.
- Senta aí. A gente não terminou.
- Essa conversa foi voluntária. Não é você quem me diz se terminou ou não. Já respondi todas as suas perguntas e agora você só fica se repetindo, tentando me pegar
numa contradição. Isso não vai acontecer porque eu só disse a verdade. Então, posso ir ou o quê?
- Eu podia prender você agora mesmo por arrombamento e invasão e por se passar por um agente federal.
- Bom, se você começar a inventar crimes, pode me prender por qualquer tipo de coisa. Mas eu não arrombei nem invadi. Segui o cara quando vi ele entrar no galpão.
Achamos que ele pudesse estar cometendo algum crime. E não me passei por um agente federal. O rapaz pode ter pensado que éramos agentes, mas nenhum de nós dois disse
ou fez qualquer coisa que pudesse dar essa ideia.
- Senta aí. A gente não terminou.
- Acho que já.
Bantam bateu com o bloco na perna e virou de costas para mim. Ele andou até a porta e então se virou.
- A gente precisa que você segure a sua história - ele disse.
Balancei a cabeça. Agora finalmente chegávamos ao ponto.
- Então esse é o motivo de tudo? O interrogatório? A intimidação?
- Não foi um interrogatório. Pode acreditar, se fosse, você ia perceber.
- Tanto faz. Não posso segurar a história. É um furo importante num caso importante. Além do mais, divulgar a cara de Stone na mídia pode ajudar vocês a pegar o
cara.
Bantam balançou a cabeça.
- Ainda não. A gente precisa de 24 horas pra avaliar o que temos aqui e nos outros locais. A gente quer fazer isso antes que ele saiba que estamos na cola. Depois
disso, não tem problema divulgar a cara do sujeito na mídia.
Recostei na cadeira dobrável, pensando nas possibilidades. Em princípio, eu deveria discutir qualquer trato de não publicar uma reportagem com meus editores, mas
eu estava acima disso tudo, agora. Essa era minha última matéria e quem ia dar as cartas era eu.
Bantam apanhou uma cadeira que estava encostada na parede, desdobrou-a e sentou pela primeira vez durante a sessão. Ele se posicionou diretamente diante de mim.
Olhei meu relógio. Eram quase quatro horas. Os editores em Los Angeles estavam prestes a entrar na reunião diária para planejar a primeira página do dia seguinte.
- Estou disposto a fazer o seguinte - eu disse. - Hoje é terça. Eu seguro hoje e escrevo amanhã pra edição de quinta. A gente mantém fora do nosso site e longe do
radar da imprensa até quinta de manhã e a história só vai estar na tela das tevês depois disso.
Olhei outra vez para o meu relógio.
- Isso daria a vocês pelo menos 36 horas.
Bantam concordou com a cabeça.
- Certo. Acho que vai funcionar.
Fez menção de se levantar.
- Espera um minuto, não é só isso. Olha o que eu quero em troca. Obviamente, quero exclusividade. Eu descobri esse negócio, então a matéria é minha. Nada de vazamento
e nada de coletiva de imprensa enquanto minha reportagem não estiver na primeira página do Times.
- Isso não é problema. A gente...
- Não terminei. Tem mais. Quero acesso. Quero ficar por dentro. Quero saber do que está acontecendo. Quero participar da ação.
Ele sorriu ironicamente e balançou a cabeça.
- Ninguém participa da ação. Se você quer participar da ação, então vai pro Iraque. A gente não inclui civis, principalmente jornalistas, nas investigações. Pode
ser perigoso e complicar as coisas. E, legalmente falando, ia comprometer um julgamento.
- Então não tem acordo e preciso ligar pro meu editor agora mesmo.
Enfiei a mão no bolso para pegar meu celular. Era um gesto dramático que, assim eu esperava, forçaria uma solução.
- Tá bom, espera um pouco - disse Bantam. - Não posso decidir uma coisa dessas. Senta aí que eu já volto.
Ele se levantou e saiu da sala, fechando a porta. Fui até lá e chequei a maçaneta. Como tinha adivinhado, a porta estava trancada. Peguei o celular e olhei o visor.
Dizia fora de serviço. O revestimento à prova de som do cubo provavelmente impedia a comunicação, e é possível que Bantam soubesse disso o tempo todo.
Passei mais uma hora sentado naquela cadeira dura, levantando ocasionalmente para bater com força na porta ou andar de um lado para outro pela sala apertada, do
jeito que Bantam fazia. O isolamento começou a funcionar comigo. Eu ficava olhando o relógio ou abrindo o celular, mesmo sabendo que estava fora de serviço e que
isso não ia mudar. A certa altura, decidi testar minha teoria paranoica de que viam e ouviam tudo o que eu fazia dentro da sala. Abri o celular e fui de canto em
canto, como alguém lendo um contador Geiger. No terceiro canto, fingi conseguir um sinal e comecei a teclar; depois agi como se estivesse conversando animadamente
com meu editor, dizendo-lhe que estava pronto para ditar uma reportagem sensacional sobre a identidade do assassino do porta-malas.
Mas Bantam não entrou correndo, e isso apenas demonstrou uma de duas possibilidades. De que a sala não estava grampeada nem tinha câmeras ocultas, ou que os agentes
lá fora me observando sabiam que meu celular estava bloqueado e que teria sido impossível eu ter feito a ligação que acabara de fingir que fizera.
Finalmente, às 17h15, a porta se abriu. Mas não foi Bantam quem entrou. Era Rachel. Fiquei de pé. Meus olhos provavelmente revelaram minha surpresa, mas minha língua
estava paralisada.
- Senta aí, Jack - disse Rachel.
Hesitei, mas voltei a sentar.
Rachel pegou a outra cadeira e sentou na minha frente. Olhei para ela e apontei o teto, erguendo as sobrancelhas interrogativamente.
- Isso, estamos sendo gravados - disse Rachel. - Áudio e visual. Mas pode falar sem medo, Jack.
Dei de ombros.
- Bom, alguma coisa me diz que você ganhou um pouco de peso desde a última vez que a gente se encontrou. Um distintivo e uma arma, quem sabe?
Ela fez que sim.
- Eu ainda não estou com o distintivo nem com a arma, mas estão providenciando.
- Não me diga, você encontrou Osama bin Laden em Griffith Park?
- Não exatamente.
- Mas foi readmitida.
- Tecnicamente, minha demissão ainda não foi assinada. O ritmo de tartaruga da burocracia, sabe como é. Sorte minha. A coisa foi revogada.
Me curvei para a frente e sussurrei.
- E o jato?
- Não precisa cochichar. O jato não é mais problema.
- Espero que tenha conseguido isso por escrito.
- Consegui o necessário.
Balancei a cabeça. Eu conhecia o script. Ela usara seus trunfos para conseguir um acordo.
- Então deixa eu adivinhar, eles querem que a pessoa que identificou Freddy Stone como o Unsub seja um agente, não alguém que acabaram de chutar do bureau.
Ela balançou a cabeça.
- Mais ou menos isso. Me chamaram pra tratar com você. Não vão deixar que participe das investigações, Jack. É uma receita para o desastre. Lembra-se do que aconteceu
com o Poeta.
- Isso foi antes, agora é outra história.
- Mesmo assim, não vai acontecer.
- Olha, será que dá pra gente sair desse cubículo? Não podemos fazer uma caminhada onde não tenha câmera nem microfone?
- Claro, vamos lá.
Ela se levantou e foi até a porta. Bateu com um padrão de dois­ e um e abriram imediatamente. Quando passamos ao estreito corredor que conduzia à dianteira do ônibus
e à saída, vi que Bantam estava atrás da porta. Dei uma batida no padrão dois e um.
- Se pelo menos eu tivesse sabido a combinação - eu disse. - Teria saído há uma hora.
Ele não achou graça no meu comentário. Virei e segui Rachel ao sair. Lá fora pude ver que o galpão e o beco continuavam um cenário de investigação febril do bureau.
Inúmeros agentes e técnicos iam de um lado para outro, coletando evidências, medindo coisas, tirando fotos, escrevendo anotações em pranchetas.
- Tem tanta gente aqui. Eles acharam alguma coisa que a gente não achou?
Ela sorriu maliciosamente.
- Até agora, nada.
- Bantam disse que o bureau estava investigando outros locais - no plural. Que outros locais?
- Olha, Jack, antes de a gente conversar, precisamos deixar uma coisa clara. Isso não é lugar pra civil e ninguém vai incluir você na investigação. Eu vou ser seu
contato, sua fonte, contanto que você segure a história por um dia, do jeito que propôs.
- A proposta era com a condição de acesso total.
- Esquece, Jack, isso não vai acontecer. Mas eu estou aqui, e em mim você pode confiar. Volta pra Los Angeles e escreve sua matéria amanhã. Vou contar tudo que eu
puder contar.
Afastei-me dela na calçada em direção ao beco.
- Viu, é por isso que estou preocupado. Você vai me contar tudo que puder contar. Quem decide o que você pode contar?
- Vou contar tudo que eu souber.
- Mas vai saber de tudo?
- Jack, o que é isso? Para com esses jogos de semântica. Não confia em mim? Não foi isso que você me falou quando ligou sem mais nem menos na semana passada, do
meio do deserto?
Olhei em seus olhos por um momento e então de volta ao beco.
- Claro que confio em você.
- Então isso é tudo de que você precisa. Volta pra Los Angeles. Amanhã pode me ligar de hora em hora, se quiser, e vou dizer em que pé estamos. Você vai ficar atualizado
até o momento em que a reportagem sair no jornal. Vai ser a sua história e de mais ninguém. Prometo.
Não disse nada. Fiquei olhando o beco, onde havia uma infinidade de agentes e técnicos dissecando os sacos de lixo pretos que a gente tinha encontrado. Estavam documentando
cada pedacinho de lixo e entulho como arqueólogos numa escavação egípcia.
Rachel foi ficando impaciente.
- Então estamos combinados, Jack?
Olhei para ela.
- É, combinado.
- Meu único pedido é que, quando você escrever, me identifique como uma agente. Não mencione minha exoneração nem que eles voltaram atrás.
- A exigência é sua ou do bureau?
- Faz diferença? Vai fazer ou não vai?
Concordei com a cabeça.
- Certo, Rachel, eu vou. Seu segredo está a salvo comigo.
- Obrigada.
Parei de olhar o beco e a encarei.
- Então, o que está acontecendo agora? E os outros locais que Bantam mencionou?
- A gente tem agentes também na Western Data e na casa de Declan McGinnis em Scottsdale.
- E o que o McGinnis tinha a declarar?
- Até agora nada. Não encontramos o sujeito.
- Sumiu?
Ela encolheu os ombros.
- Não sabemos se sumiu voluntária ou involuntariamente, mas desapareceu. E o cachorro dele também. É possível que tenha feito alguma investigação por conta própria
depois da visita dos agentes, na sexta. Talvez tenha chegado perto demais de Stone. Tem outra possibilidade, também.
- Que estavam nisso juntos?
- Sim, uma equipe. McGinnis e Stone. E onde quer que estejam, estão juntos.
Eu pensei um pouco e sabia que isso tinha precedentes. O Estrangulador de Hillside, na verdade, eram dois primos. E houve outras duplas de serial killers antes e
depois. Bittaker e Norris me vieram à lembrança. Dois dos mais abomináveis serial killers que já pisaram na face da terra, de algum modo, se conheceram e atuaram
juntos na Califórnia. Eles gravavam suas sessões de tortura. Um policial me deu uma fita de uma dessas sessões, que aconteciam na traseira de uma van. Depois do
primeiro grito de pânico e dor, desliguei o aparelho.
- Viu, Jack? É por isso que a gente precisa de tempo antes de a coisa pegar fogo na mídia. Os dois tinham laptops e levaram com eles. Mas eles também tinham computadores
na Western Data e estamos com eles. Tem uma equipe de EER vindo de Quantico. Eles vão chegar dentr...
- Equipe de quê?
- E­-E­-R. Electronic Evidence Retrieval, recuperação de provas eletrônicas. Estão no avião, agora. A gente põe eles dentro do sistema na Western Data e vê o que
descobre. E não esquece o que a gente já descobriu hoje. Aquele lugar é todo gravado, som e imagem. Os registros de arquivo também vão poder ajudar a gente.
Balancei a cabeça. Eu continuava pensando em McGinnis e Stone trabalhando juntos como um tag team de assassinos.
- O que acha? - perguntei a Rachel. - Acha que é um Unsub ou dois?
- Ainda não estou preparada para dizer com certeza. Mas acho que estamos falando de uma dupla, aqui.
- Por quê?
- Sabe o cenário que a gente imaginou naquela noite? Em que o Unsub vem pra Los Angeles, atrai Angela pra sua casa, daí comete o crime e viaja pra Vegas pra pegar
você?
- Sei.
- Bom, o bureau checou todos os voos saindo do aeroporto de Los Angeles e de Burbank para Vegas nessa noite. Só quatro passageiros dos voos noturnos compraram passagem
nessa mesma noite. Todos os outros tinham reserva. Os agentes rastrearam e conversaram com três deles e todo mundo estava limpo. O quarto, claro, era você.
- Ok, então ele pode ter ido de carro.
Ela negou com a cabeça.
- Ele podia ter ido de carro, mas pra que mandar o pacote pelo GO! de um dia pro outro se você vai de carro? Entendeu? O envio do pacote só faz sentido se ele fosse
de avião e pretendesse buscar depois, ou então se estivesse mandando pra alguém.
- O parceiro dele.
Balancei a cabeça e comecei a andar em um círculo conforme elaborava o novo cenário. Tudo parecia se encaixar.
- Então Angela entra no site da armadilha e alerta os dois. Eles leem o e-mail. Eles leem meu e­-mail. E resolvem que um vai pra Los Angeles cuidar dela e o outro
vai pra Vegas cuidar de mim.
- É assim que estou imaginando.
- Espere. E o celular dela? Você disse que o bureau rastreou a ligação que o assassino fez pra mim pelo celular dela até o aeroporto em Vegas. Como o celular foi
par...
- O pacote da GO! Ele enviou sua arma e o celular dela. Eles sabiam que seria um jeito de implicar você mais ainda no assassinato. Depois que você se suicidasse,
a polícia ia encontrar o celular dela no seu quarto. Quando as coisas não saíram conforme o planejado, Stone ligou pra você do aeroporto. Pode ser que só quisesse
conversar, ou quem sabe ele pensou que aquilo plantasse a ideia de que tinha um assassino por aí que saiu de Los Angeles pra Vegas?
- Stone? Então você está me dizendo que McGinnis foi pra Los Angeles pegar a Angela e que Stone foi pra Vegas me pegar.
Ela balançou a cabeça.
- Você disse que o sujeito com as suíças não tinha mais do que 30 anos. Stone tem 26 e McGinnis 46. Dá pra disfarçar a aparência, mas uma das coisas mais difíceis
de fazer sem parecer óbvio é disfarçar a idade. E é muito mais difícil parecer mais novo do que mais velho. Aposto que seu homem de suíças era Stone.
Fazia sentido pra mim.
- Tem mais uma coisa indicando que a gente está lidando com uma dupla nesse caso - disse Rachel. - Estava debaixo do nosso nariz o tempo todo.
- O que é?
- Uma ponta solta no assassinato de Denise Babbit. Ela foi enfiada no porta-malas do seu próprio carro e depois o carro foi abandonado no sul de Los Angeles, onde
Alonzo Winslow por acaso o encontrou.
- É, e daí?
- Mas se o assassino trabalhava sozinho, como ele saiu da zona sul depois que largou o carro? Era de madrugada, num bairro predominante de negros. Ele pegou um ônibus,
chamou um táxi, esperou na calçada? Rodia Gardens fica a mais de um quilômetro da estação do metrô mais próxima. Será que simplesmente foi andando, um branco num
bairro negro no meio da noite? Acho que não. Você não termina um assassinato bem planejado como esse com uma fuga dessas. Nenhum desses cenários faz muito sentido.
- Então quem deixou o carro dela tinha uma carona para sair de lá.
- É isso aí.
Balancei a cabeça e fiquei em silêncio por um bom tempo enquanto digeria toda aquela nova informação. Rachel finalmente interrompeu.
- Preciso voltar ao trabalho, Jack - ela disse. - E você precisa entrar no avião.
- Designaram você pra fazer o quê? Bom, além de cuidar de mim.
- Vou trabalhar com a equipe de EER na Western Data. Preciso ir pra lá agora e deixar tudo pronto.
- Eles fecharam o lugar?
- Mais ou menos. Mandaram todo mundo pra casa, exceto uma equipe mínima pra ajudar a manter os sistemas operando e auxiliar a equipe de EER. Acho que Carver ficou
no bunker e O'Connor no andar térreo, talvez mais alguém.
- Isso vai ser o fim da empresa.
- A gente não pode fazer nada. Além do mais, se o CEO da empresa e o jovem parceiro dele estavam cavando dados armazenados pra encontrar vítimas para os sonhos criminosos
deles, então acho que os clientes têm o direito de saber. O que acontecer depois aconteceu.
- É, acho que sim.
- Jack, você precisa ir. Falei pro Bantam que eu cuidava disso. Quem dera a gente pudesse se abraçar, mas agora não é hora. E quero que tome o maior cuidado. Volte
pra Los Angeles e fica em segurança. Qualquer coisa me liga, e, óbvio, me liga se ficar sabendo de alguma coisa sobre qualquer um dos dois.
Balancei a cabeça.
- Vou voltar pro hotel e pegar minhas coisas. Quer continuar com o quarto?
- Não, o bureau vai pagar um pra mim, agora. Quando sair do hotel, você deixa minha bolsa na recepção, por favor? Eu pego mais tarde.
- Ok, Rachel. E se cuida você também.
Quando me virei para voltar para o meu carro, levei a mão ao seu pulso e dei-lhe um aperto furtivo. Esperava que a mensagem fosse clara; estávamos juntos naquilo.
Dez minutos mais tarde, o galpão diminuía em meu retrovisor e eu voltava para o Mesa Verde Inn. Estava com o celular em espera numa chamada para a Southwest Airlines,
tentando agendar um voo de volta para Los Angeles, mas não conseguia me concentrar em nada além da ideia de que o Unsub era, na verdade, dois assassinos agindo em
parceria.
Para mim, a ideia de duas pessoas se conhecerem e agirem em uma mesma onda de sadismo sexual e assassinato mais do que duplicava a sensação de terror que essas coisas
sinistras evocavam. Pensei no termo que Yolanda Chavez usara durante a visita na Western Data. Fibra escura. Poderia haver alguma coisa tão profunda e escura na
fibra de um ser humano quanto o desejo de partilhar coisas como as que haviam acontecido com Denise Babbit e as outras vítimas? Achei que não, e só de pensar nisso
senti um calafrio no fundo da minha alma.

DEZESSETE: A Fazenda

Os três agentes que compunham a equipe de Electronic Evidence Retrieval do FBI haviam se incumbido das três estações de trabalho na sala de controle. Carver permanecia
andando às suas costas e ocasionalmente olhando por cima de seus ombros para as telas. Não estava preocupado porque sabia que só encontrariam o que queria que eles
encontrassem. Mas tinha de agir como se estivesse preocupado. Afinal, o que acontecesse ali ameaçava a reputação da Western Data e de seus negócios no país inteiro.
- Sr. Carver, o senhor precisa relaxar - disse o agente Torres. - Vai ser uma longa noite, e ficar andando de um lado pro outro aí atrás só vai fazer com que ela
fique ainda mais longa - para o senhor e para nós.
- Desculpe - disse Carver. - Só estou preocupado com o que tudo isso pode significar, entende?
- Claro, senhor, a gente entende - disse Torres. - Por que o senhor não...
O agente foi interrompido pelo som de "Riders of the Storm" vindo do bolso do avental de Carver.
- Com licença - disse Carver.
Ele tirou o celular do bolso e atendeu.
- Sou eu - disse Freddy Stone.
- Ei, e aí? - disse Carver, animado, fazendo um teatrinho para os agentes.
- Eles ainda não encontraram?
- Ainda não. Continuo por aqui, vai demorar um pouco.
- Então eu continuo com o plano?
- Você vai ter que jogar sem mim.
- Isso é o meu teste, não é? Preciso provar meu valor pra você.
Ele disse isso ligeiramente indignado.
- Depois do que aconteceu na semana passada, estou achando ótimo ficar de fora dessa.
Houve uma pausa e então Stone mudou de conversa.
- Os agentes ainda não descobriram quem eu sou?
- Não sei, mas não tem nada que eu possa fazer sobre isso no momento. O trabalho vem em primeiro lugar. Tenho certeza de que eu vou estar disponível na semana que
vem e daí você pode me rapar outra vez.
Carver esperava que o papo passasse por conversa de pôquer para os agentes que escutavam.
- Encontro você mais tarde naquele lugar? - perguntou Stone.
- É, na minha casa. Você leva as fichas e a cerveja. Até mais. Preciso desligar.
Ele encerrou a ligação e enfiou o telefone de volta no bolso. A reticência e a indignação de Stone começavam a deixar Carver preocupado. Dias antes, ele estava implorando
por sua vida; hoje não gostava de receber ordens. Carver começou a se recriminar. Devia ter encerrado tudo lá no deserto e jogado Stone no buraco com McGinnis e
o cachorro. Fim da história. Fim da ameaça.
Ainda podia fazer isso. Nessa mesma noite, talvez. Outra oportunidade de acabar com dois coelhos numa única cajadada. Seria o fim da linha para Stone e para um monte
de outras coisas. A Western Data não teria condições de sobreviver ao escândalo. A empresa iria fechar e Carver seguiria em frente. Sozinho. Como antes. Aprenderia
com as lições e começaria tudo outra vez em algum outro lugar. Ele era o Changeling. Sabia que podia.

I'm a changeling, see me change. I'm a changeling, see me change.

Torres tirou o rosto da tela e olhou para Carver, que se segurou. Será que começara a cantarolar?
- Noite de pôquer? - perguntou Torres.
- É. Desculpe a interrupção.
- Uma pena que vai perder seu jogo.
- Tudo bem. Vocês provavelmente estão me poupando cinquenta paus.
- O bureau está sempre pronto a ajudar.
Torres sorriu e o outro agente, uma mulher chamada Mowry, sorriu também.
Carver tentou sorrir, mas achou falso e parou. A verdade era que não havia nada que o levasse a sorrir.

DEZOITO: Chamado para Ação

Fiquei em meu quarto de hotel até tarde da noite, escrevendo a maior parte da minha reportagem para o dia seguinte e ligando seguidamente para Rachel. A história
era fácil de montar. Primeiro conversei a respeito com meu ás, Prendergast, e redigi um lide de planejamento. Enviei a nota e então comecei a trabalhar na reportagem.
Embora só fosse rodar na outra edição, eu já tinha os principais componentes bem à mão. Na manhã seguinte, eu juntaria os últimos detalhes e apenas montaria tudo.
Isto é, se me fornecessem mais algum detalhe. O que havia sido uma dose administrável de paranoia aflorara em algo maior quando minhas ligações de hora em hora para
o celular de Rachel não foram atendidas e as mensagens ficaram sem retorno. Meus planos para a noite - e o futuro - se chocaram com os rochedos da dúvida.
Finalmente, pouco antes das 11h, meu celular tocou. O identificador de chamadas dizia Mesa Verde Inn. Era Rachel.
- Como está Los Angeles? - perguntou.
- Los Angeles está ótima - eu disse. - Estou há um tempão tentando te ligar. Não viu meus recados?
- Desculpe. Acabou a bateria. Fiquei muito tempo pendurada nele. Acabei de chegar ao hotel. Obrigada por deixar minhas coisas na recepção.
A explicação do telefone sem bateria pareceu plausível. Comecei a relaxar.
- Sem problema - eu disse. - Em que quarto puseram você?
- 717. E você, voltou pra casa, afinal?
- Não, continuo no hotel.
- Sério? Acabei de ligar pro Kyoto e me passaram seu quarto, mas ninguém atendeu.
- Ah. Deve ter sido quando fui até o corredor pegar um pouco de gelo.
Fiquei olhando para a garrafa de Grand Embrace Cabernet que o serviço de quarto me trouxera.
- Então - eu disse, mudando de assunto -, só agora você finalmente encerrou o dia?
- Puxa, espero que sim. Acabei de chamar o serviço de quarto. Mas imagino que vão me ligar de volta se descobrirem alguma coisa na Western Data.
- Como assim, tem gente lá a essa hora?
- A equipe de EER continua por lá. Estão tomando Red Bull como se fosse água e trabalhando de noite. Carver está com eles. Mas eu não aguentei. Preciso comer alguma
coisa e dormir.
- E Carver vai deixar que fiquem trabalhando à noite?
- Acontece que o espantalho é uma coruja. Ele faz diversos turnos da noite toda semana. Diz que é o horário que rende mais, então por ele tudo bem ficar.
- O que você pediu pra comer?
- A boa e velha comida de sempre. Cheeseburger e batata frita.
Sorri.
- Eu pedi a mesma coisa, mas sem queijo. Nada de rum Pyrat ou vinho?
- Negativo, agora que voltei à diária paga pelo bureau, nenhum álcool é permitido. Não que não fosse cair bem.
Sorri, mas decidi voltar ao trabalho, antes de mais nada.
- Bom, quais são as últimas sobre McGinnis e Stone?
Houve uma hesitação em sua resposta.
- Jack, estou cansada. Foi um longo dia e fiquei naquele bunker durante as últimas quatro horas. Eu só queria comer meu jantar, tomar um banho quente e a gente podia
deixar o trabalho pra amanhã.
- Olha, Rachel, eu também estou cansado, mas lembra que eu só deixei você me tirar do caminho com a promessa de que ia me manter informado. Não tenho notícias suas
desde que saí do galpão, e agora você me vem com essa de que está cansada demais pra conversar.
Outra hesitação.
- Ok, ok, você tem razão. Vamos resolver isso logo. Tem boas e más notícias. A boa notícia é que a gente já sabe quem Freddy Stone é de verdade, e ele não é Freddy
Stone. Saber sua verdadeira identidade pode talvez nos ajudar a achá-lo.
- Freddy Stone é um nome falso? Como é possível que tenha passado pela tão decantada blindagem de segurança da Western Data? Ninguém checou as impressões do cara?
- O negócio é que os registros da empresa mostram que Declan McGinnis assinou autorizando a contratação. Então ele pode ter facilitado.
Balancei a cabeça. McGinnis podia ter levado o parceiro de crimes para dentro da empresa sem problemas.
- Então quem ele é?
Abri a mochila na cama e peguei um bloquinho e uma caneta.
- O nome de verdade é Marc Courier. Marc com c. A mesma idade, 26, com duas detenções em Illinois por fraude. Ele fugiu antes do julgamento, faz três anos. Eram
casos de roubo de identidade. Conseguiu cartões de crédito, abriu conta em banco, tudo como manda o figurino. A ficha dele indica que é um hacker muito capacitado
e um troll agressivo com longo histórico de invasões e ataques digitais. Um mau elemento, bem ali, no bunker.
- Quando ele começou a trabalhar na Western Data?
- Faz três anos, também. Parece que ele fugiu de Chicago e quase imediatamente foi parar em Mesa com o novo nome.
- Então McGinnis já conhecia ele?
- A gente acha que ele recrutou o cara. Sabe, sempre foi uma coisa surpreendente quando dois assassinos com gosto parecido se juntavam. A gente pensava, "quais as
chances de isso acontecer?" Mas a internet é uma situação completamente nova. É o grande cruzamento, pro bem ou pro mal. Com salas de bate-papo e páginas dedicadas
a todo tipo de fetiche ou parafilia imaginável, as pessoas com interesses semelhantes se encontram a todo minuto. Vamos ver isso cada vez mais, Jack, quando eles
saem da fantasia e do ciberespaço para o mundo real. Encontrar pessoas com opiniões parecidas ajuda a justificar essas opiniões. Encoraja. Às vezes, é um chamado
para a ação.
- O nome Freddy Stone pertencia a alguma outra pessoa?
- Não, parece que foi fabricado.
- Algum registro de violência ou crime sexual dos tempos em Chicago?
- Quando ele foi preso, há três anos, em Chicago, apreenderam o computador dele e encontraram muita pornografia. Me disseram que incluía alguns filmes de tortura
de Bangcoc, mas ele não foi acusado de nada. É muito difícil processar, porque os filmes trazem notas dizendo que são todos atores e que nada é real, mesmo sendo
bem provável que seja tortura e dor de verdade.
- E material com próteses de pernas, esse tipo de coisa?
- Nada do gênero apareceu, mas vamos atrás de tudo isso, pode acreditar. Se a ligação entre Courier e McGinnis for a abasiofilia, vamos descobrir. Se eles se conheceram
em uma sala de bate-papo sobre iron maidens, a gente vai descobrir.
- Como vocês ficaram sabendo da identidade de Courier?
- Através da impressão da palma, armazenada no leitor biométrico na entrada da fazenda de servidores.
Parei de escrever e verifiquei minhas anotações, procurando minha pergunta seguinte.
- Vai dar pra me conseguir uma foto policial de Courier?
- Olha o seu e-mail. Enviei uma antes de sair. Quero que você veja se ele parece familiar.
Puxei o laptop que estava em cima da cama e verifiquei minhas mensagens. A dela estava no topo. Abri a foto e fiquei olhando para a foto policial de Marc Courier
de quando fora detido, três anos antes. Tinha cabelo comprido escuro e um cavanhaque e bigode ralos. Parecia o tipo de sujeito que caía como uma luva ao lado de
Kurt e Mizzou, no bunker da Western Data.
- Pode ser o cara do hotel em Ely? - quis saber Rachel.
Examinei a foto sem responder.
- Jack?
- Não sei. Pode ser. Pena que não vi os olhos dele.
Examinei a foto mais alguns segundos e depois segui em frente.
- Então, você disse que tinha boas e más notícias. Quais são as más?
- Antes de se mandar, Courier plantou um vírus em seu próprio computador no laboratório da Western Data e nos arquivos da empresa. Os vírus apagaram quase tudo antes
que a gente descobrisse, hoje de noite. Os arquivos das câmeras de segurança sumiram. E um monte de dados da empresa, também.
- O que isso significa?
- Significa que não vamos ser capazes de rastrear os movimentos dele com tanta facilidade quanto a gente esperava. Quando estava lá, quando não estava, qualquer
tipo de ligação ou encontros com McGinnis, esse tipo de coisa. Trocas de e-mails. Teria sido ótimo se a gente conseguisse.
- Como isso passou despercebido de Carver e todos aqueles cães de guarda que deveriam estar a postos?
- A coisa mais fácil do mundo é o trabalho interno. Courier conhecia os sistemas de defesa. Ele construiu um vírus que driblou tudo.
- E quanto a McGinnis e o computador dele?
- Tivemos mais sorte nisso, foi o que me disseram. Mas eles começaram tarde da noite, então só vou saber mais a respeito quando chegar lá, amanhã de manhã. Uma equipe
de busca ficou na casa dele a noite toda, também. Ele mora sozinho, sem família. Ouvi dizer que encontraram umas coisas interessantes, mas a busca está em andamento.
- Interessantes como?
- Bom, não sei se você quer ouvir isso, Jack, mas encontraram um exemplar do seu livro sobre o Poeta na estante. Eu disse que iam encontrar.
Não respondi. Senti um calor súbito no rosto e no pescoço e fiquei em silêncio digerindo a ideia de que escrevera um livro que podia, de algum modo, ter servido
de cartilha para outro assassino. Não era, de maneira alguma, um livro de como fazer as coisas, mas certamente mostrava como os perfis psicológicos e as investigações
sobre serial killers eram realizadas pelo FBI.
Precisei mudar de assunto.
- O que mais descobriram?
- Ainda não vi, mas me contaram que ele tinha um jogo completo de aparelhos ortopédicos do tornozelo à coxa, projetados para mulheres. Tinha também material pornográfico
desse tipo de coisa.
- Meu Deus, que filho da puta mais doente.
Rabisquei umas anotações sobre os achados, depois folheei as páginas para ver se alguma coisa me lembrava de outra pergunta. Juntando o que eu sabia e vira e o que
Rachel estava me contando, teria uma tremenda matéria para o dia seguinte.
- Então a Western Data encerrou todas as operações, não foi?
- Praticamente. Quer dizer, os sites hospedados na empresa continuam funcionando. Mas a gente bloqueou o centro de colocação. Nenhum dado entra ou sai enquanto a
equipe de EER não completar a investigação.
- Alguns clientes, como os grandes escritórios de advocacia, vão ficar pês da vida quando descobrirem que o FBI está com os arquivos das firmas deles sob custódia,
não vão?
- Provavelmente, mas ninguém está abrindo nenhum arquivo do banco de dados. Pelo menos, não por enquanto. Por ora, só estamos mantendo o sistema sem alterações.
Nada entrando nem saindo. Elaboramos junto com Carver uma mensagem, enviada a todos os clientes para mantê-los informados. Dizia que a situação é temporária e que
Carver, como representante da empresa, estava observando a investigação do FBI e assegurando a integridade dos arquivos, blá-blá-blá. É o melhor que a gente pode
fazer. Se alguém quiser ficar pê da vida, paciência.
- E quanto ao Carver? Você já deu uma checada nele, não deu?
- Já, ele tá limpo, desde o Instituto de Tecnologia de Massachusetts. A gente precisa de alguém de confiança lá dentro e acho que é ele.
Fiquei em silêncio enquanto escrevia umas últimas anotações. Eu tinha mais do que o suficiente para escrever a matéria no dia seguinte. Mesmo se não conseguisse
entrar em contato com Rachel, eu tinha certeza de que minha reportagem ganharia todo destaque no jornal e teria repercussão no país inteiro. Dois serial killers
pelo preço de um.
- Jack, você está aí?
- Estou, só estou escrevendo. Mais alguma coisa?
- É só isso.
- Você tem tomado cuidado?
- Claro. Minha arma e meu distintivo vão ser devolvidos. Amanhã de manhã estou pronta pra ação.
- Aí você vai estar com tudo em cima.
- Vou. Será que a gente pode finalmente conversar sobre nós dois, agora?
Senti, subitamente, todo o peso da ansiedade atravessando meu peito como uma lança. Ela queria encerrar a conversa de trabalho para falar com franqueza sobre nosso
relacionamento. Depois de todos aqueles telefonemas sem resposta, achei que não vinha coisa boa para o meu lado.
- Hã, claro - eu disse. - O que tem a gente?
Levantei da cama, pronto para receber as notícias de pé. Fui até a garrafa de vinho e peguei. Eu estava olhando para o rótulo quando ela falou.
- Bom, eu não queria que a gente ficasse só nos negócios.
Me senti um pouco melhor. Pousei a garrafa e comecei a afrouxar a lança.
- Eu também não.
- Pra falar a verdade, eu estava pensando... Sei que isso vai parecer maluco.
- O que foi?
- Bom, quando me ofereceram o trabalho de volta, me senti tão... sei lá, orgulhosa, eu acho. Vingada, de certa maneira. Mas depois, quando voltei pra cá essa noite,
sozinha, comecei a pensar naquilo que você disse meio na brincadeira.
Não consegui lembrar o que era, então fui na onda.
- E?
Ela riu antes de responder.
- E, bom, acho que ia ser divertido se a gente tentasse.
Eu queimava a cabeça, me perguntando se isso tinha alguma coisa a ver com a teoria da bala única. O que foi que eu tinha dito?
- Você acha mesmo?
- Bom, não conheço nada do negócio, nem sei como conseguir os clientes, mas acho que eu ia gostar de trabalhar com você em investigações. Ia ser divertido. Já tem
sido.
Agora eu lembrava. Walling e McEvoy, Investigações Discretas. Sorri. Puxei a lança de meu peito e a enterrei com tudo no chão duro, reivindicando uma conquista,
como o astronauta que cravou aquela bandeira na lua.
- É, Rachel, tem sido ótimo - eu disse, na esperança de que minha pose de frieza mascarasse meu alívio interior. - Mas não sei. Você ficou bem chateada quando teve
que encarar a vida sem um distintivo.
- Eu sei. Talvez eu esteja enganando a mim mesma. A gente provavelmente vai acabar pegando só caso de divórcio, e com o tempo, isso detona o espírito de qualquer
um.
- É.
- Bom, é uma coisa pra gente pensar.
- Ei, eu não tenho nada em vista. Então a objeção não vai partir de mim. Só quero ter certeza de que você não vai cometer um erro. E está tudo de repente perdoado
com o bureau? Eles simplesmente devolveram seu emprego e pronto?
- Provavelmente, não. Vão ficar só esperando pra me pegar no pulo.
Escutei uma batida em sua porta e a voz abafada de alguém chamando, "Serviço de quarto".
- Meu jantar está aqui - disse Rachel. - Preciso ir.
- Ok. A gente se vê depois, Rachel.
- Certo, Jack. Boa noite.
Sorri quando desliguei o telefone. O depois ia ser antes do que ela pensava.

Após escovar os dentes e me olhar no espelho, apanhei a garrafa de Grand Embrace e guardei o saca­-rolhas dobrável, fornecido pelo serviço de quarto, em meu bolso.
Verifiquei se o cartão magnético estava comigo e saí.
A escada ficava bem diante de minha porta, e Rachel estava apenas um andar acima e algumas portas depois, então decidi não perder tempo. Empurrei a porta e comecei
a subir os degraus de concreto de dois em dois, dando uma relanceada rápida por cima do corrimão para o poço da escada até o térreo. Senti uma breve onda de vertigem,
recuei e continuei a subir. Virei no patamar do meio, imaginando quais seriam as primeiras palavras de Rachel quando atendesse a porta e me visse. Eu sorria ao subir
o lance de escadas seguinte. E foi então que vi um homem caído de costas junto à porta do corredor do sétimo andar. Ele usava calças pretas e uma camisa branca com
gravata borboleta.
Levou uma fração de segundo para eu me dar conta de que era o garçom do serviço de quarto, que antes levara meu jantar e a garrafa de vinho que eu estava segurando.
Quando pisei no último degrau, vi sangue no concreto, escorrendo sob seu corpo. Caí de joelhos perto dele e pousei a garrafa.
- Ei!
Sacudi seu ombro para ver se obtinha alguma reação. Nada aconteceu, e pensei que devia estar morto. Vi o crachá preso em seu cinto, confirmando meu reconhecimento.
EDWARD HOOVER, EQUIPE DE COZINHA.
Senti um novo sobressalto.
Rachel!
Fiquei de pé num pulo e abri a porta com tudo. Quando entrei no corredor do sétimo andar, puxei meu celular e apertei 911. O desenho do hotel era um amplo padrão
de U e eu me encontrava no alto do braço direito. Comecei a seguir pelo corredor, verificando os números nas portas. 722, 721, 720... Cheguei ao quarto de Rachel
e vi que a porta estava entreaberta. Empurrei sem bater.
- Rachel?
O quarto estava vazio, mas não havia nenhum sinal óbvio de luta. Pratos, talheres e batatas fritas de uma mesa de serviço de quarto jaziam no chão, espalhados. A
roupa de cama sumira e havia um travesseiro manchado de sangue no chão.
Eu me dei conta de que estava segurando o celular junto ao corpo e que havia uma voz distante falando comigo. Voltei para o corredor levando o telefone ao ouvido.
- Alô?
- Nove, um, um, qual é a emergência?
Comecei a correr pelo corredor, o pânico tomando conta de mim conforme eu gritava ao celular.
- Preciso de ajuda! Mesa Verde Inn, sétimo andar! Agora!
Fiz a curva no corredor central e captei por uma fração de segundo a visão de um homem de cabelo descolorido usando um paletó vermelho de garçom. Ele empurrava um
grande carrinho de lavanderia através de umas portas duplas, no lado oposto dos elevadores sociais. Embora só tivesse visto a imagem de relance, alguma coisa me
pareceu inusitada.
- Ei!
Aumentei a velocidade, venci a distância rapidamente e abri as portas duplas apenas alguns segundos depois de tê-las visto se fechar. Dei numa pequena área restrita
a funcionários e vi a porta de um elevador de serviço se fechando. Voei na direção da porta, o braço esticado, mas tarde demais. O elevador se fora. Recuei e olhei
para cima. Não havia números ou setas sobre a porta para indicar onde o sujeito estava indo. Voltei pelas portas duplas e corri para os elevadores de hóspedes. As
escadas, em qualquer ponto do corredor, estavam longe demais para serem consideradas.
Apertei o botão de baixo rapidamente, achando ser a escolha óbvia a fazer. Isso levaria à saída. Levaria à fuga. Pensei no carrinho de lavanderia e no homem curvado
para a frente que o empurrava. Havia qualquer coisa mais pesada que roupa suja ali dentro, disso eu tinha certeza. O cara estava com Rachel.
Havia quatro elevadores de hóspedes e tive sorte. Assim que toquei o botão, um sinal ecoou e as portas se abriram. Pulei dentro do elevador e vi que o botão do saguão
já estava aceso. Apertei repetidamente o botão de fechar e, depois de uma espera interminável, as portas se fecharam devagar e com suavidade.
- Calma, amigo. Já vamos chegar.
Virei e vi que já havia um passageiro ali dentro. O homem estava usando um crachá de alguma convenção com uma fita azul pendurada. Eu ia lhe dizer que era uma emergência
quando lembrei do celular em minha mão.
- Alô? Você continua aí?
Havia estática na linha, mas a ligação não caíra. Pude sentir o elevador começando a descer rapidamente.
- Estou, senhor. Já enviei a polícia. Pode me dizer...
- Escuta, tem um cara vestido de garçom tentando sequestrar uma agente federal. Liga pro FBI. Manda tod... Alô? Tá ouvindo?
Nada. Eu perdera a chamada. Senti o elevador parar bruscamente ao chegarmos ao saguão. O sujeito da convenção se espremia em um canto tentando parecer invisível.
Me aproximei das portas e passei entre elas quando ainda mal estavam abertas.
Dei em um recesso de elevadores contíguo ao saguão. Tentando me localizar em relação ao lugar onde o elevador de serviço estaria, dobrei uma esquerda e depois outra
esquerda por uma porta marcada restrita a funcionários, e entrei em um corredor dos fundos. Escutei ruídos de cozinha e senti cheiro de comida. Havia prateleiras
de aço inoxidável cheias de latas tamanho comercial, que continham alimentos e outro produtos. Vi o elevador de serviço, mas nenhum sinal do homem de paletó vermelho
ou do carrinho de lavanderia.
Será que eu ultrapassara o elevador de serviço na descida? Ou ele havia subido?
Apertei o botão para chamar o elevador.
- Ei, você não tem autorização para estar aqui atrás.
Virei rapidamente e me deparei com um sujeito em trajes brancos de cozinha e um avental sujo vindo em minha direção pelo corredor.
- Você viu um cara empurrando um carrinho de lavanderia? - perguntei rapidamente.
- Não vi nada disso na cozinha.
- Tem porão aqui?
O homem tirou da boca um cigarro que ainda não fora acendido, antes de falar.
- Não tem porão nenhum.
Fez um gesto com a mão segurando o cigarro. Percebi que estava saindo em sua pausa para fumar. Havia uma saída em algum ponto ali perto.
- Tem como sair daqui para o estacionamento?
Ele apontou além de mim.
- O depósito de carga fica... Ei, cuidado!
Comecei a me virar para trás na direção do elevador quando o carrinho de lavanderia trombava comigo. Fui atingido no alto da coxa, meu tronco girou e caí por cima
da borda. Pus as mãos para deter minha queda na pilha de lençóis e colchas ali dentro. Senti alguma coisa macia mas sólida sob a roupa de cama e sabia que era Rachel.
Empurrei meu peso para trás e voltei a me apoiar sobre os pés.
Ergui o rosto e vi o elevador fechando outra vez, conforme o homem de paletó vermelho mantinha a mão no botão para fechar as portas. Olhei seu rosto e o reconheci
da foto policial que eu vira um pouco antes nessa noite. Estava barbeado e loiro, agora, mas tive certeza de que era Marc Courier. Voltei a olhar para o painel de
controle do elevador e vi que a luz de um andar superior se acendera. Courier ia subir novamente.
Enfiei a mão dentro do carrinho e puxei a roupa de cama. Lá estava Rachel. Continuava usando as roupas com que eu a vira anteriormente nesse mesmo dia. Estava de
bruços, com os braços e as pernas atados às costas. Um cinto atoalhado de roupão do hotel fora usado para amordaçá-la. Seu nariz e sua boca sangravam profusamente.
Seus olhos estavam vidrados e distantes.
- Rachel!
Levei a mão à sua boca e abaixei a mordaça.
- Rachel? Você tá bem? Consegue me ouvir?
Ela não respondeu. O funcionário da cozinha se aproximou e olhou dentro do carrinho.
- O que tá acontecendo aqui, cacete?
Ela fora atada com correias plásticas para cabos de computador. Peguei o saca­-rolhas dobrável em meu bolso e usei a pequena lâmina de cortar o lacre para libertá-la.
- Me ajuda a tirar ela daqui!
Com cuidado, nós a erguemos do carrinho e a pusemos no chão. Abaixei ao lado dela e olhei com cuidado para ver se o sangue não estava obstruindo sua respiração.
Havia sangue encrostado nas narinas, mas a boca estava limpa. Ela levara um soco, e seu rosto começava a inchar.
Olhei para o cozinheiro.
- Vai chamar a segurança. E liga pro nove, um, um. Agora! VAI!
Ele partiu pelo corredor atrás de um telefone. Baixei o rosto outra vez para Rachel e vi que começava a acordar.
- Jack?
- Tudo bem, Rachel. Você está a salvo.
Estava com uma expressão assustada e ferida. Senti a raiva crescer dentro de mim.
Do fim do corredor, escutei o homem da cozinha gritando.
- Estão vindo! Os paramédicos e a polícia!
Não olhei para ele. Mantive os olhos em Rachel.
- Pronto, ouviu isso? A ajuda está chegando.
Ela balançou a cabeça e vi que seu olhar ganhava ainda mais vida. Ela tossiu e tentou sentar. Ajudei-a e então puxei­-a num abraço. Afaguei sua nuca.
Ela sussurrou alguma coisa que não pude entender. Recuei um pouco para conseguir olhá-la e pedir que repetisse o que dissera.
- Pensei que você estivesse em Los Angeles.
Sorri e fiz que não com a cabeça.
- Estava paranoico demais pra ficar longe da história. E de você. Eu ia fazer uma surpresa e aparecer com uma garrafa de vinho. Foi então que vi ele. Era o Courier.
Ela balançou levemente a cabeça.
- Você me salvou, Jack. Não reconheci ele pelo olho mágico. Quando abri a porta, era tarde demais. Ele me acertou. Tentei lutar, mas ele tinha uma faca.
Fiz sinal de que ficasse em silêncio. Não era necessário explicar nada.
- Escuta, ele estava sozinho? McGinnis estava junto?
- Só vi o Courier. Reconheci ele tarde demais.
- Não se preocupe com isso.
O homem da cozinha estava a alguns passos de distância no corredor, agora com outros sujeitos também em trajes de cozinha. Sinalizei para que se aproximassem e,
de início, nenhum deles se mexeu. Depois um deles avançou com relutância e os demais o seguiram.
- Chame o elevador pra mim - eu disse.
- Tem certeza? - perguntou um.
- Vai logo.
Curvei-me e mergulhei o rosto junto ao pescoço de Rachel. Segurei-a com força, aspirei seu aroma e sussurrei em seu ouvido.
- Ele subiu. Vou lá atrás dele.
- Não, Jack, fica aqui. Fica comigo.
Me endireitei e fitei seus olhos. Não disse nada até escutar o elevador se abrindo. Então ergui o rosto para o homem da cozinha com quem eu conversara no começo
de tudo. Havia o nome Hank bordado em sua camisa branca.
- Onde está a segurança?
- Vão chegar - ele disse. - Estão vindo.
- Ok, quero que vocês fiquem aqui com ela. Não deixem ela sozinha. Quando a segurança chegar, diga a eles que tem outra vítima na escada do sétimo andar e que eu
subi pra procurar o cara. Diz pra segurança cobrir todas as saídas e os elevadores. Esse cara subiu, mas vai ter que tentar descer.
Rachel começou a se levantar.
- Vou com você - ela disse.
- Não vai não. Você tá machucada. Fica aqui que eu volto logo. Prometo.
Deixei-a ali e entrei no elevador. Apertei o botão do 12 e olhei para Rachel mais uma vez. Quando a porta fechava, notei que Hank, o homem da cozinha, acendia nervosamente
aquele cigarro.
Era o momento de nós dois mandarmos as regras à merda.

O elevador de serviço subiu vagarosamente, e fui me dando conta de como o salvamento de Rachel se baseara na pura sorte - um elevador lento, minha permanência em
Mesa para surpreendê-la, a subida pela escada com a garrafa de vinho. Mas eu não queria ficar pensando no que poderia ter sido. Concentrei-me no momento e, quando
o elevador finalmente chegou ao alto do prédio, preparei­-me com a lâmina de 2 centímetros do saca­-rolhas conforme a porta se abria. Percebi que devia ter arranjado
uma arma melhor na cozinha, mas era tarde demais, agora.
A área de serviço no décimo segundo andar estava vazia, exceto pelo paletó vermelho de garçom que eu vira jogado no chão. Empurrei as portas de vaivém e entrei no
corredor central. Dava para escutar as sirenes se aproximando do lado de fora do prédio. Muitas sirenes.
Olhando dos dois lados, não vi nada e comecei a me dar conta de que a busca de um homem só em um hotel de 12 andares, quase tão amplo quanto alto, seria uma perda
de tempo. Entre elevadores e escadas, Courier tinha a seu dispor múltiplas rotas de fuga.
Decidi descer para reencontrar Rachel e deixar a busca para a segurança do hotel e a polícia que chegava.
Mas eu sabia que, ao descer, poderia cobrir pelo menos uma dessas rotas de saída. Talvez minha sorte prevalecesse. Escolhi a escada norte, porque era a mais próxima
do estacionamento coberto do hotel. E era a escada que Courier usara antes para esconder o corpo do garçom do serviço de quarto.
Segui pelo corredor, virei e então passei pela porta de saída. Primeiro olhei por cima do corrimão para o poço da escada. Não vi coisa alguma e escutei o eco de
sirenes. Já ia descendo quando notei que, mesmo sendo o último andar do hotel, a escada continuava mais acima.
Se havia um acesso para o telhado, eu precisava dar uma olhada. Subi.
A escada era fracamente iluminada por uma arandela em cada patamar. Cada andar era dividido em duas séries de lances de escadas, no costumeiro padrão de vaivém.
Quando cheguei ao patamar intermediário e me virei para subir a série seguinte de degraus, que levaria para o décimo terceiro andar, vi que o patamar superior final
estava atulhado com mobília do hotel. Prossegui até o último andar, onde a escada terminava numa enorme área de depósito. Havia criados-mudos empilhados uns sobre
os outros e até colchões, quatro deles apoiados numa das paredes. Vi pilhas de cadeiras, minigeladeiras, gabinetes de tevê de antes da era das telas planas. Lembrei-me
dos arquivos que eu vira no corredor da defensoria pública. Sem dúvida aquilo representava inúmeras violações dos códigos de prevenção de acidentes, mas quem iria
olhar? Quem um dia iria subir ali? Quem se importava?
Contornei um amontoado de luminárias de aço inoxidável e fui na direção de uma porta com um pequeno vidro na altura do rosto. A palavra telhado fora escrita ali
com tinta. Mas quando cheguei, descobri que a porta estava trancada. Empurrei a barra de segurança com toda força, mas ela não se moveu. Alguma coisa obstruíra ou
travara o mecanismo e a porta não cedia. Olhei pelo vidrinho e vi um terraço de cascalho estendendo-se atrás dos parapeitos de telha do hotel. Através de uns 40
metros de cascalho, pude ver a estrutura que abrigava a casa de máquinas do edifício. Mais além dela, havia outra porta para a escada do outro lado do hotel.
Me movi um pouco para a esquerda e me inclinei para mais perto da janelinha, de modo a obter uma visão ampla do telhado. Courier podia estar ali.
No momento em que fiz isso, relanceei um reflexo indistinto movendo-se no vidro.
Alguém estava atrás de mim.
Instintivamente, dei um pulo para o lado e virei ao mesmo tempo. O braço de Courier desferiu um golpe de cima para baixo com uma faca, que passou muito perto de
mim antes de se chocar com a porta.
Firmei os pés e então joguei meu corpo contra o dele, projetando o braço para cima e enfiando a lâmina do saca­-rolhas na lateral de seu corpo.
Mas minha arma era curta demais. Meu golpe acertara em cheio, mas não provocou ferimento suficiente para derrubá-lo. Courier gritou e golpeou meu pulso com o antebraço,
derrubando minha arma no chão. Então foi sua vez de desferir um golpe furioso contra mim, girando o braço. Consegui me abaixar, mas dei uma boa olhada em sua faca.
Tinha pelo menos 10 centímetros e vi que, se me acertasse, a luta estaria encerrada.
Courier desferiu outra estocada, e dessa vez aparei o golpe do lado direito e segurei seu pulso. A única vantagem com que eu contava era meu tamanho. Eu era mais
velho e mais lento que Courier, mas uns vinte quilos mais pesado. Enquanto mantinha a mão com a faca afastada, joguei o corpo contra ele outra vez, derrubando­-o
de costas entre a floresta de luminárias e contra o piso de concreto.
Ele se libertou durante a queda e deu um jeito de ficar de pé com a faca em posição. Agarrei uma das luminárias, usando o pé redondo como escudo e pronto para rechaçar
o próximo ataque.
Por um momento, nada aconteceu. Ele mantinha a faca em posição e parecíamos medir um ao outro, esperando para ver quem faria o movimento seguinte. Eu então ataquei
com a base da luminária, mas ele desviou com facilidade. Daí partimos para a briga outra vez. Ele tinha uma espécie de sorriso desesperado no rosto e respirava pesadamente.
- Onde você pensa que vai, Courier? Escutou as sirenes? Eles estão aqui, cara. A polícia e o FBI vão cercar tudo isso daqui a dois minutos. Pra onde você vai, depois?
Ele não disse nada, e eu investi com a luminária mais uma vez. Ele agarrou a base e lutamos momentaneamente pelo controle dela, mas empurrei-o contra uma pilha de
minigeladeiras e tudo foi ao chão.
Eu não tinha nenhuma experiência em briga de facas, mas meus instintos me diziam para continuar falando. Se eu distraísse Courier, então diminuiria a ameaça da lâmina
e possivelmente baixaria sua guarda. Então continuei a perguntar uma coisa atrás da outra, esperando meu momento.
- Cadê seu parceiro? Cadê o McGinnis? O que ele fez, mandou você cuidar do trabalho sujo sozinho? Como em Nevada, hein? Você perdeu sua chance outra vez.
Courier sorria para mim, mas não mordeu a isca.
- Ele só diz o que você tem que fazer? Como um mentor de assassinato ou coisa assim? Cara, o mestre não vai ficar nada feliz com você essa noite. Duas bolas fora,
cara.
Dessa vez ele não conseguiu se controlar.
- McGinnis tá morto, seu otário de merda! Enterrei ele no deserto. Igual ia enterrar aquela putinha depois que eu terminasse com ela.
Ameacei outra estocada com a luminária e tentei mantê-lo falando.
- Não dá pra entender, Courier. Se ele tá morto, por que você não fugiu de uma vez? Pra que arriscar tudo vindo atrás dela?
No exato momento em que ele abriu a boca para responder, ameacei golpear seu peito com a luminária e então acertei a base contra seu rosto, atingindo o queixo em
cheio. Courier cambaleou momentaneamente para trás e eu avancei rápido, jogando a luminária nele primeiro e depois lutando pela faca com as duas mãos. Nos chocamos
em um gabinete de tevê e caímos no chão, comigo em cima dele, brigando para tirar a faca.
Ele mudou o peso do corpo sob mim e rolamos três vezes, com ele terminando por cima. Eu segurava seu pulso com as duas mãos e ele empurrava meu rosto com a mão livre,
tentando me fazer largar. Finalmente, consegui torcer seu pulso em um ângulo doloroso. Ele gritou e a faca caiu com um ruído metálico no concreto. Com um cotovelo,
eu a empurrei na direção do poço da escada, mas a faca parou em cima da hora, balançando na beirada sob o guarda­-corpo azul. A 2 metros de distância.
Fui para cima dele como um animal, socando e chutando, impelido por uma fúria primitiva que nunca sentira antes. Agarrei uma orelha e tentei arrancá-la. Acertei
uma cotovelada em seus dentes. Mas a energia da juventude gradualmente levou a melhor. Comecei a me cansar rapidamente e ele deu um jeito de recuar um pouco e tomar
certa distância. Então, desferiu uma joelhada em minha virilha, que expulsou todo o ar de meus pulmões. Uma dor paralisante me atravessou e enfraqueceu a força dos
meus braços. Ele se libertou completamente e correu para pegar a faca.
Juntando minha última reserva de forças, fui meio rastejando, meio fazendo carga contra ele conforme me punha de pé. Eu estava machucado e exausto, mas sabia que
se ele pegasse a faca, seria o meu fim.
Joguei todo meu peso contra ele por trás. Ele cambaleou para a frente contra o corrimão, a metade superior do torso pivotando em torno. Sem pensar, abaixei, agarrei
uma de suas pernas e impulsionei-o de corpo inteiro por cima do corrimão. Ele tentou agarrar a barra tubular de aço, mas sua mão escorregou e ele caiu.
Seu grito durou apenas dois segundos. Sua cabeça bateu no corrimão ou na lateral de concreto do poço, e, depois disso, ele caiu em silêncio, seu corpo batendo de
um lado e do outro conforme descia por 13 andares.
Observei-o cair por toda a trajetória. Até que o impacto final, ruidoso, ecoasse por toda a trajetória de volta até mim.
Desejei poder dizer que sentia culpa ou até uma sensação de remorso. Mas senti uma espécie de alegria durante cada segundo de sua queda.

Na manhã seguinte, voltei para Los Angeles, recostado na janela do avião e dormindo toda a viagem. Eu passara a maior parte da noite no ambiente agora familiar do
FBI. O agente Bantam e eu nos vimos frente a frente outra vez na sala de entrevista móvel, por horas a fio, ao longo das quais contei e recontei a história do que
eu fizera na noite anterior e de como Courier acabou caindo 13 andares e morrendo. Contei a ele o que Courier dissera sobre McGinnis e o deserto e o plano para Rachel
Walling.
Durante a conversa, Bantam em nenhum momento abriu mão da pose de agente federal distanciado. Nunca disse obrigado por salvar a vida de sua colega de bureau. Apenas
ficou fazendo perguntas, às vezes em cinco ou seis diferentes momentos e maneiras. E quando finalmente terminou, informou-me que os detalhes relativos à morte de
Marc Courier seriam submetidos a um grande júri do estado para determinar se um crime fora cometido ou se minhas ações constituíam autodefesa. Foi somente depois
disso que mudou de postura e falou como um ser humano.
- Não sei o que pensar sobre você, McEvoy. Claro que você salvou a vida da agente Walling, mas subir lá atrás de Courier foi uma atitude errada. Você devia ter esperado.
Se tivesse, ele podia continuar vivo agora e quem sabe a gente conseguisse algumas respostas. Do jeito que está, se McGinnis morreu mesmo, a maioria dos segredos
foi embora naquele poço de escada junto com o Courier. É um deserto e tanto por aí, se entende o que eu quero dizer.
- É, bom, lamento sobre isso, agente Bantam. Mas eu vejo de outra forma. Se eu não tivesse ido atrás dele, ele podia ter fugido. E se isso acontecesse, vocês também
não teriam nenhuma resposta. Só mais corpos.
- Pode ser. Mas a gente nunca vai saber.
- Então, o que acontece agora?
- Como eu disse, a gente vai apresentar tudo isso diante do grande júri. Duvido que você tenha algum problema. O mundo não vai sentir muita falta de Marc Courier.
- Não estou falando de mim. Isso não me preocupa. Quero saber da investigação, o que acontece agora?
Ele fez uma pausa, como que considerando se devia me dizer alguma coisa.
- Vamos tentar recriar a trilha. É só o que dá pra fazer. Não acabamos o trabalho na Western Data. Vamos continuar por lá e tentar montar um cenário do que esses
homens fizeram. E vamos continuar à procura de McGinnis. Vivo ou morto. Só temos a palavra de Courier de que ele morreu. Pessoalmente, não tenho certeza se eu acredito
nisso.
Dei de ombros. Eu havia informado precisamente o que Courier dissera. Ia deixar com os especialistas a tarefa de determinar se era verdade. Se quisessem pôr uma
foto de McGinnis em todas as agências de correio do país, por mim tudo bem.
- Posso voltar para Los Angeles, agora?
- Você está livre para ir. Mas se lembrar de alguma coisa, ligue pra gente. E qualquer coisa a gente também liga pra você.
- Certo.
Ele não apertou minha mão. Apenas abriu a porta. Quando desci do ônibus, Rachel estava à minha espera. Estávamos no estacionamento da frente do Mesa Verde Inn. Era
perto de cinco da manhã, mas nenhum de nós dois parecia muito cansado. Os paramédicos a examinaram. O inchaço já começara a diminuir, mas tinha um corte feio, o
lábio machucado e um hematoma abaixo do canto do olho esquerdo. Ela se recusara a ser transportada para um hospital local para passar por mais exames. A última coisa
que faria a essa altura seria deixar o centro da investigação.
- Como você se sente? - perguntei.
- Estou bem - ela disse. - E você?
- Tudo bem. Bantam disse que eu posso ir. Acho que vou pegar o primeiro voo de volta pra Los Angeles.
- Não vai ficar pra coletiva de imprensa?
Fiz que não com a cabeça.
- O que eles podem dizer que eu já não saiba?
- Nada.
- Quanto tempo você acha que vai ficar por aqui?
- Não sei. Acho que até concluírem as investigações. O que só vai acontecer depois que a gente descobrir tudo que tem pra descobrir.
Balancei a cabeça e olhei o relógio. O primeiro voo para Los Angeles provavelmente demoraria mais duas horas.
- Quer tomar café em algum lugar? - perguntei.
Ela tentou franzir os lábios para repudiar a ideia, mas a dor frustrou o esforço.
- Não estou com fome. Só queria me despedir. Preciso voltar para a Western Data. Encontraram o filão principal.
- Que é qual?
- Um servidor não registrado que tanto McGinnis como Courier vinham acessando. Tem vídeos arquivados, Jack. Eles filmavam os crimes.
- E os dois aparecem nos vídeos?
- Ainda não vi, mas me disseram que não dá pra identificar muito bem. Estão usando máscara e filmaram de uns ângulos que mostravam mais as vítimas do que eles. Me
disseram que em um dos vídeos McGinnis está com um capuz de carrasco - como o que o Zodíaco4 usava.
- Você tá brinc... Peraí, o cara tinha que ter no mínimo 60 anos pra ser o Zodíaco.
- Não, não é isso que estão sugerindo - dá pra comprar o capuz em lojas de artigos cult em San Francisco. É só um sinal de quem eles são. É como ter o seu livro
no criado-mudo. Eles conhecem a história. E mostra como o medo desempenha um papel no procedimento deles. Apavorar as vítimas era parte do barato.
Pensei que não fosse preciso ser um agente especialista em perfis psicológicos para entender isso. Mas me fez pensar em como eram mesmo horríveis os últimos momentos
de suas vítimas.
Mais uma vez, me lembrei da fita de áudio da sessão de tortura que Bittaker e Norris gravaram na traseira da van. Não tive coragem de escutar. Eu quase não queria
saber a resposta da pergunta que ia fazer agora.
- Eles filmaram Angela?
- Não, ela foi recente demais. Mas tem outras.
- Você quer dizer vítimas?
Rachel relanceou por sobre meu ombro para a porta do ônibus do FBI e depois voltou a olhar para mim. Achei que pudesse estar contando coisas que não deveria, independentemente
do acordo que eu pudesse ter feito.
- Isso. Eles não olharam tudo ainda, mas tem pelos menos seis vítimas diferentes. McGinnis e Courier vinham fazendo isso havia algum tempo.
Agora eu não tinha tanta certeza de que queria ir embora. A questão era que, quanto maior o número de corpos, maior a reportagem. Dois assassinos, pelo menos seis
vítimas... Se havia alguma possibilidade de que a história ficasse maior do que já estava, então isso acabava de acontecer.
- E quanto aos aparelhos? Você acertou sobre isso?
Ela balançou a cabeça com gravidade. Era uma dessas ocasiões em que estar com a razão não era uma coisa boa.
- É, eles faziam as vítimas usarem aparelhos ortopédicos nas pernas.
Balancei a cabeça como que para afastar o pensamento disso. Chequei meus bolsos. Estava sem caneta e deixara o bloquinho em meu quarto.
- Você tem uma caneta? - perguntei para Rachel. - Preciso escrever isso.
- Não, Jack, não tenho nenhuma caneta pra te dar. Contei mais do que devia. No momento, esses dados ainda estão muito crus. Espere até eu conseguir ficar mais por
dentro de tudo, então ligo pra você. Você ainda tem pelo menos mais 12 horas até o deadline.
Ela tinha razão. Eu tinha um dia inteiro para montar a reportagem, e as informações iam chegar ao longo do dia. Além do mais, eu sabia que, quando voltasse à redação,
enfrentaria o mesmo questionamento da semana anterior. Eu era parte da história outra vez. Havia matado um dos dois sujeitos que eram o tema da matéria. O conflito
de interesses determinava que eu não poderia escrever a respeito. Ia sentar com Larry Bernard mais uma vez e dar para ele uma matéria de primeira página que ecoaria
pelo mundo todo. Era frustrante, mas, a essa altura, eu estava começando a me acostumar.
- Tudo bem, Rachel. Acho que vou subir e fazer as malas, depois vou pro aeroporto.
- Ok, Jack. Eu te ligo. Prometo.
Gostei da promessa antes de eu precisar pedir. Olhei para ela por um momento, querendo fazer um gesto de tocá-la e abraçá-la. Ela pareceu perceber. Deu o primeiro
passo e me estreitou firmemente em seus braços.
- Você salvou a minha vida essa noite, Jack. Acha que vai se safar só com um aperto de mão?
- Eu esperava que fosse mais que isso.
Dei um beijo leve em sua bochecha, evitando o lábio machucado. Se o agente Bantam ou quem quer que fosse estivesse observando por trás das janelas do centro de comando
do FBI, nenhum de nós se importou.
Levou quase um minuto para Rachel e eu nos separarmos. Olhei em seus olhos e balancei a cabeça.
- Vai escrever sua matéria, Jack.
- Vou... Se me deixarem.
Virei e segui na direção do hotel.

4 O Assassino do Zodíaco foi um serial killer que atuou no norte da Califórnia no final dos anos 60. Sua identidade nunca foi descoberta. (N. do T.)

Todos os olhares caíam sobre mim quando atravessei a sala da redação. A notícia de que eu matara um homem na noite anterior viajara mais rápido do que o vento no
deserto de Santa Ana. Muitos provavelmente achavam que eu vingara a morte de Angela Cook. Outros deviam pensar que eu não passava de uma espécie de viciado em adrenalina
que me punha em situações perigosas só pela emoção.
Quando me aproximei de minha baia, o telefone estava zumbindo e a luz da mensagem estava acesa. Pus a mochila no chão e decidi que cuidaria das ligações e dos recados
mais tarde. Eram quase 11 horas, então fui até a balsa para ver se Prendo já chegara. Queria resolver logo essa parte. Se era para entregar de bandeja minha informação
para outro repórter, que fosse imediatamente.
Prendo não estava, mas vi Dorothy Fowler sentada em uma mesa à frente da balsa. Ela ergueu o rosto da tela de seu computador e me olhou duas vezes antes de me ver
de fato.
- Jack, tudo bem?
Encolhi os ombros.
- Tudo bem, acho. Quando Prendo vai chegar?
- Provavelmente só depois de uma. Você está bem para trabalhar hoje?
- Você quer dizer se eu me sinto mal sobre o cara que caiu pela escada ontem à noite? Não, Dorothy, na verdade aceitei isso numa boa. Me sinto ótimo. Como dizem
os tiras, nenhum humano envolvido. O cara era um assassino que gostava de matar e torturar mulheres enquanto estuprava e sufocava elas. Não sinto remorso nenhum
com o que aconteceu com ele. Pra falar a verdade, espero que tenha ficado consciente durante toda a queda.
- Certo. Acho que dá pra entender.
- A única coisa que me incomoda nesse exato minuto é que provavelmente não vou escrever sobre essa história, certo?
Ela franziu o rosto e balançou a cabeça.
- Lamento dizer que não, Jack.
- Lá vem o velho déjà vu outra vez.
Ela estreitou o olhar em minha direção, como que se perguntando se eu me dava conta da frase sem sentido que acabara de dizer.
- Não fui eu que disse. Sabe o Yogi Berra? O jogador de beisebol?
Ela não sacou. Eu podia sentir os olhos e ouvidos da redação sobre nós.
- Deixa pra lá. Pra quem você quer que eu entregue meu material? O FBI já confirmou para mim que eram dois assassinos e encontraram vídeos deles com várias vítimas.
Pelo menos seis, fora Angela. Vão anunciar tudo isso numa coletiva de imprensa, mas sei de muita coisa que não vão dizer. A gente vai detonar com essa reportagem.
- Era exatamente o que eu queria escutar. Vou pôr você com Larry Bernard outra vez para a continuação. Está com suas anotações? Tudo pronto para começar?
- Só depende dele.
- Ok, deixa eu dar uma ligada e reservar a sala de reuniões outra vez pra que vocês possam começar a trabalhar.
Fiquei as duas horas seguintes passando para Larry Bernard tudo que eu tinha, entregando minhas anotações e narrando rapidamente os passos que eu dera. Larry depois
me entrevistou para escrever um boxe sobre minha luta corpo a corpo com o serial killer.
- Que pena que você não deixou ele responder a sua a última pergunta - ele disse.
- Do que você tá falando?
- No fim, quando você perguntou por que ele simplesmente não sumiu, em vez de ir atrás da Walling. Essa é a questão crucial, não é? Por que ele não fugiu? Ele foi
atrás dela e isso não faz muito sentido. Ele estava reagindo às suas perguntas, mas você disse que acertou ele com a luminária antes que ele pudesse falar.
Não gostei do questionamento. Era como se estivesse desconfiando da veracidade do que eu estava contando ou do que eu fizera.
- Olha, foi uma briga de faca, sendo que eu não tinha uma. Eu não estava entrevistando o cara. Estava tentando distrair ele. Se ele parava pra pensar no que eu dizia,
não pensava em enfiar a faca na minha garganta. Funcionou. Quando vi minha oportunidade, aproveitei. Levei a melhor e é por isso que eu estou vivo e ele não.
Larry se curvou para a frente e verificou seu gravador para ter certeza de que ainda estava rodando.
- Essa é boa de citar - ele disse.
Eu era um repórter havia mais de vinte anos e acabara de morder a isca de meu próprio amigo e colega de profissão.
- Quero fazer uma pausa. Quanto mais você precisa?
- Na verdade, acho que está bom - disse Larry, mostrando pelos seus modos que não sentia o menor remorso. Eram só negócios. - Vamos dar um tempo e eu repasso minhas
anotações e vejo se é isso mesmo. Por que você não liga pra agente Walling e vê se alguma coisa não apareceu nas últimas horas?
- Ela teria me ligado.
- Tem certeza?
Fiquei de pé.
- Tenho, tenho certeza. Pare de tentar me manipular, Larry. Eu sei como funciona.
Ele ergueu as mãos em sinal de rendição. Mas estava sorrindo.
- Ok, ok. Vai fazer sua pausa. Preciso mesmo escrever uns lides de planejamento.
Saí da sala de reuniões e voltei para minha baia. Peguei o telefone e verifiquei as mensagens. Tinha nove, a maioria de outros veículos querendo meus comentários
para suas próprias reportagens. O produtor da CNN, que eu poupara da ira dos censores alertando-o sobre a entrevista com Alonzo Winslow, deixou uma mensagem de que
me queria de novo no ar para uma cobertura sobre os últimos acontecimentos.
Eu cuidaria de todos esses pedidos no dia seguinte, depois que a matéria tivesse sido dada com exclusividade pelo Times. Leal até o fim, mesmo sem saber por que
eu deveria agir dessa forma.
A última mensagem foi de meu velho agente literário. Havia mais de um ano que não tinha notícias suas, e mesmo assim fora apenas para me contar que não conseguira
vender minha última proposta para um livro - um ano na vida de um detetive de arquivo morto. Seu recado era para me informar que já havia recebido ofertas para um
livro sobre os assassinatos do porta-malas. Ele me perguntou se a mídia ainda não batizara o serial killer. Disse que um nome sonoro ajudaria a propor o projeto,
comercializar e vender o livro. Queria que eu pensasse a respeito e que ficasse tranquilo enquanto ele corria atrás.
Meu agente estava por fora, sem fazer ideia de que eram dois assassinos, não um. Mas o recado fez ir embora qualquer frustração que eu pudesse estar sentindo por
não escrever a reportagem. Fiquei tentado a retornar a ligação para ele, mas decidi esperar até que me trouxesse notícias mais significativas. Daí comecei a bolar
um esquema em que lhe diria para fechar com uma editora só se prometessem publicar também meu primeiro romance. Se os editores estivessem realmente interessados
em meu livro de não ficção, então aceitariam o acordo.
Depois de desligar o telefone, virei para meu computador e olhei a cesta do editorial de cidade, para ver se as matérias de Larry Bernard estavam no planejamento
do dia. Como eu esperava, no topo do planejamento aparecia um pacote de três lides sobre o caso.
SERIAL - Um homem suspeito de ser um serial killer que tomou parte no assassinato de pelo menos sete mulheres, incluindo uma repórter do Times, morreu terça­-feira
à noite em Mesa, AZ, depois que um confronto com outro repórter do jornal provocou sua queda do décimo terceiro andar em um poço de escada de hotel. Marc Courier,
26, natural de Chicago, foi identificado como um de dois homens suspeitos de uma série de sequestros com motivação sexual e assassinatos de mulheres em pelo menos
dois estados. O outro suspeito foi identificado pelo FBI como Declan McGinnis, 46, também de Mesa. De acordo com os agentes, McGinnis era o CEO de uma empresa de
banco de dados, por meio da qual as vítimas eram escolhidas. A fonte eram os arquivos armazenados de escritórios de advocacia. Courier era subalterno de McGinnis
na Western Data Consultants e tinha acesso direto aos arquivos em questão. Embora Courier tenha alegado ao repórter do Times ter assassinado McGinnis, o FBI considera
seu paradeiro desconhecido. 120cm c/ foto policial de Courier BERNARD
BOXE SERIAL - Numa luta de vida ou morte, o repórter do Times Jack McEvoy enfrentou Marc Courier, que estava munido de uma faca, no último andar do Mesa Verde Inn,
antes de distraí-lo com as ferramentas de sua profissão: palavras. Quando o suspeito serial killer baixou a guarda, McEvoy levou a melhor e Courier caiu do poço
das escadas para a morte. As autoridades afirmam que o suspeito deixou mais perguntas do que respostas. 45cm c/arte BERNARD
DADOS - Eles os chamam de bunkers e fazendas. Se estabelecem em planícies e desertos. Passam despercebidos como os depósitos não identificados que enchem as ruas
industriais de toda cidade do país. Centros de armazenamento de dados são alardeados como econômicos, confiáveis e seguros. Eles armazenam arquivos digitais vitais
que permanecem a apenas uma teclada de distância, independentemente de onde seu negócio esteja localizado. Mas a investigação desta semana, sobre como dois homens
usaram arquivos armazenados para escolher, tocaiar e atacar mulheres, levanta questões sobre essa indústria, que vem conhecendo um crescimento explosivo em anos
recentes. As autoridades afirmam que a pergunta crucial não é onde ou como você deve armazenar sua informação digital. A questão é: aos cuidados de quem ela está
entregue? O Times descobriu que muitas empresas de armazenagem contratam os melhores especialistas para salvaguardar seus dados. O problema é que, às vezes, os melhores
especialistas são ex­-criminosos. O suspeito Marc Courier é um desses casos. 65cm c/arte GOMEZ­-GONZMART
Iam, mais uma vez, atacar em todas as frentes. A reportagem seria o carro­-chefe do jornal e a matéria referência sobre o caso. Todos os demais veículos de mídia
teriam de dar o crédito ao Times ou suar muito para fazer algo no mesmo nível. Seria um ótimo dia para o Times. Os editores já conseguiam sentir o cheiro do Pulitzer.
Fechei a janela e pensei no boxe que Larry ia escrever. Ele tinha razão. Havia mais perguntas do que respostas.
Abri um novo documento na tela e escrevi, da melhor forma que pude, a lembrança da conversa exata que eu tivera com Courier. Levei só cinco minutos, porque a verdade
é que não dissemos muita coisa.
Eu: Cadê o McGinnis? Ele mandou você fazer o trabalho sujo? Como em Nevada?
Ele: Sem resposta.
Eu: Ele é quem diz o que você deve fazer? Ele é o seu mentor em assassinato e essa noite o mestre não vai ficar muito satisfeito com o aluno. Você deu duas bolas
fora.
Ele: McGinnis tá morto, seu otário de merda! Enterrei ele no deserto. Igual ia fazer com a sua putinha depois que eu terminasse com ela.
Eu: Por que você não fugiu? Pra que arriscar tudo vindo atrás dela?
Ele: Sem resposta.
Quando terminei, reli umas duas vezes e fiz algumas correções e acréscimos. Larry tinha razão. Tudo se resumia à última pergunta. Courier estava prestes a responder,
mas usei a distração para pegá-lo de guarda baixa. Não me arrependi disso. A distração pode ter salvado minha vida. Mas, sem dúvida, eu queria ter obtido uma resposta
para a pergunta que fizera.

Na manhã seguinte, o Times acordou gloriosamente sob os holofotes da mídia nacional e me pôs em foco junto com ele. Eu não escrevera nenhum dos artigos que causara
tamanha agitação na imprensa de todo o país, mas era tema de dois deles. Meu telefone não parou de tocar e minha caixa de e-mails ficou lotada logo cedo.
Mas não respondi a nenhuma ligação nem e-mail. Eu não estava me esbaldando sob as luzes. Estava pensando. Eu passara a noite encafifado com a pergunta sem resposta
que fizera a Marc Courier, e independentemente do modo como encarasse aquilo, alguma coisa não fazia sentido. O que Courier estava fazendo ali? Qual era a grande
recompensa para um risco tão grande? Era Rachel? O sequestro e assassinato de uma agente federal certamente colocaria McGinnis e Courier no topo do panteão de criminosos.
Seu repertório mortal os tornaria nomes na ponta da língua. Mas era isso que eles queriam? Não havia indicação alguma de que aqueles dois estivessem interessados
em chamar a atenção do público. Eles haviam planejado e camuflado cuidadosamente os assassinatos. A tentativa de sequestrar Rachel não se enquadrava no histórico
que os levara até lá. Por isso, tinha de haver outro motivo.
Comecei a olhar para o problema de outro ângulo. Pensei no que teria acontecido se eu tivesse ido para Los Angeles e Courier houvesse sido bem-sucedido em pegar
Rachel e deixar o hotel.
Pareceu claro para mim que o sequestro teria sido descoberto pouco depois de ter ocorrido, quando o garçom do serviço de quarto não aparecesse de volta na cozinha.
Estimei que dentro de uma hora o hotel estaria fervilhando de atividade. O FBI teria tomado o hotel e a área adjacente, batido em cada porta e olhado embaixo de
cada pedra, na tentativa de achar e resgatar um dos seus. Mas a essa altura Courier estaria longe.
Ficava claro que o sequestro teria atraído todo o bureau e causado uma distração maciça da investigação de McGinnis e Courier. Mas ficou claro também que isso teria
sido apenas uma mudança temporária. Meu palpite era de que, antes do meio­-dia do dia seguinte, aviões lotados de agentes federais chegariam em uma exibição de força
e determinação. Isso lhes permitiria superar qualquer distração e empregar ainda mais pressão sobre a investigação, ao mesmo tempo mantendo um esforço sufocante
para encontrar Rachel.
Quanto mais eu pensava nisso, mais desejava ter dado a Courier a oportunidade de responder a última pergunta: Por que ele não fugiu?
Mas eu não tinha a resposta e era tarde demais para obtê-la diretamente da fonte. Então continuei a ruminar nisso até esgotar tudo que havia para pensar a respeito.
- Jack?
Olhei por cima da divisória de minha baia e vi Molly Robards, a secretária do assistente do chefe de redação.
- Oi?
- Você não está atendendo o telefone e sua caixa de e-mail está lotada.
- É, estou recebendo muito... tem algum problema?
- O sr. Kramer quer falar com você.
- Ah, tá.
Não me mexi, mas ela tampouco. Estava claro que recebera ordens de me buscar. Finalmente, empurrei a cadeira para trás e me levantei.
Kramer esperava por mim com um sorriso enorme e falso no rosto. Tive a sensação de que, fosse lá o que tivesse para me falar, não havia sido ideia sua. Tomei isso
como um bom sinal, já que suas ideias dificilmente prestavam para alguma coisa.
- Jack, senta aí.
Sentei. Ele endireitou algumas coisas em sua mesa antes de prosseguir.
- Bom, tenho boas notícias pra você.
Voltou a sorrir para mim. O mesmo sorriso que exibira quando me comunicara que eu estava na rua.
- Sério?
- A gente decidiu voltar atrás com seu plano de desligamento.
- Isso quer dizer o quê? Não estou demitido?
- Exato.
- E quanto ao meu salário e aos benefícios?
- Não muda nada. Fica como antes.
Era exatamente igual ao que acontecera com Rachel, que conseguira seu distintivo de volta. Senti uma onda de exaltação, mas depois caí na real.
- Então o que isso quer dizer, vão mandar alguém embora no meu lugar?
Kramer limpou a garganta.
- Jack, não vou mentir pra você. Nosso objetivo era enxugar cem vagas no editorial até primeiro de junho. Você era o 99 - bem perto.
- Então eu continuo com meu emprego e algum outro leva a machadada.
- Angela Cook vai ser a nonagésima nona vaga. Não vamos pôr ninguém no lugar dela.
- Isso é conveniente. Quem é o centésimo felizardo?
Girei na cadeira e olhei através do vidro para a redação.
- Bernard? GoGo? Collins...
Kramer me interrompeu.
- Jack, não posso discutir isso com você.
Virei outra vez de frente para ele.
- Mas em breve alguém vai ser chutado porque eu tenho que ficar. O que acontece depois que essa história esfriar? Vão me chamar aqui de novo e me pôr na rua outra
vez?
- Não estamos esperando outra eliminação involuntária de cargos. O novo dono deixou isso...
- E quanto ao próximo dono? E o que vai vir depois desse?
- Olha, não trouxe você aqui pra me dar um sermão. O negócio dos jornais está passando por sérias mudanças. É uma luta de vida ou morte. A questão é, você quer continuar
com seu emprego ou não? Estou oferecendo isso pra você.
Girei 180 graus de modo a ficar de costas para ele e de frente para a redação. Eu não ia sentir falta daquele lugar. Só de algumas pessoas. Sem me virar de volta
para Kramer, eu lhe dei minha resposta.
- Hoje de manhã meu agente literário em Nova York me acordou às seis. Ele disse que conseguiu pra mim um contrato pra dois livros. Duzentos e cinquenta paus. Eu
ia levar três anos pra ganhar a mesma coisa ficando aqui. E além disso, recebi uma proposta de emprego do Caixão de Veludo. Don Goodwin está começando uma página
de investigações no site dele. Serve pra informar o público, quando o Times deixa de fazer seu papel. Não paga muito mas paga. E posso trabalhar em casa - mesmo
que eu ainda não faça ideia de onde seja isso.
Fiquei de pé e virei outra vez para Kramer.
- Eu disse a ele que sim. Então obrigado pela oferta, mas pode me deixar como o número 100 na sua lista trinta. Depois de amanhã, eu me mando.
- Você aceitou emprego num concorrente? - disse Kramer, indignado.
- O que você esperava? Fui mandado embora, lembra?
- Mas estou voltando atrás nisso - apressou-se ele a acrescentar. - A gente já cumpriu nossa cota.
- Quem? Quem vocês demitiram?
Kramer baixou os olhos para sua mesa e sussurrou o nome da última vítima.
- Michael Warren.
Balancei a cabeça.
- Tinha que ser. O único cara na redação com quem eu não me bico e agora estou salvando o emprego dele. Podem contratar ele de volta, porque não quero mais ficar
aqui.
- Então quero que limpe sua mesa imediatamente. Vou chamar a segurança e pedir que acompanhem você até a saída.
Sorri na sua cara conforme ele pegava o telefone.
- Por mim, está ótimo.
Encontrei uma caixa de papelão vazia na sala da xerox e, dez minutos depois, eu a enchia com as coisas que queria levar da minha mesa. A primeira a entrar foi o
dicionário vermelho surrado que minha mãe me deu. Depois disso, não havia muito mais coisas dignas de serem guardadas. Um relógio de mesa Mont Blanc que, por algum
milagre, nunca fora roubado, um grampeador vermelho e algumas pastas contendo cronogramas e contatos de fontes. Era tudo.
Um sujeito da segurança me observou enquanto eu encaixotava as coisas, e fiquei com a sensação de que não era a primeira vez que o punham numa situação tão desconfortável.
Fiquei com pena dele e não o culpei, pois só estava fazendo seu trabalho. Mas ele ali, parado perto da minha mesa, era como uma bandeira hasteada. Logo, Larry Bernard
se aproximou.
- O que tá acontecendo? Você tem até amanhã.
- Não tenho mais. Crammer me mandou passear.
- Por quê? O que você fez?
- Ele tentou devolver meu cargo, mas eu disse a ele que fizesse bom proveito.
- O quê? Você recus...
- Eu tenho um novo emprego, Larry. Dois, na verdade.
Pus tudo o que havia para pôr na caixa. Era uma visão deprimente. Não muito para sete anos no lugar. Fiquei de pé, joguei a mochila sobre o ombro e peguei a caixa,
pronto para sair.
- E a reportagem? - perguntou Larry.
- A reportagem é sua. Você vai ter que se virar com ela.
- É, mas você é meu canal. Quem eu vou procurar pra me passar as informações internas?
- Você é um repórter. Vai descobrir como.
- Posso ligar pra você?
- Não, não pode me ligar.
Larry franziu o rosto, mas não o deixei no ar por muito tempo.
- Mas você pode me levar pra almoçar à custa do Times. Daí a gente conversa.
- Você é o cara.
- A gente se vê, Larry.
Fui na direção do elevador, o segurança a reboque. Dei uma esquadrinhada pela redação, mas tomei o cuidado de não cruzar o olhar com ninguém. Não estava a fim de
despedidas. Passei pela fileira de salas envidraçadas e não me dei ao trabalho de olhar para nenhum dos editores com quem eu havia trabalhado. Só queria cair fora
dali.
- Jack?
Parei e virei. Dorothy Fowler saíra da sala envidraçada assim que eu passei. Ela acenou para que eu voltasse.
- Você podia vir aqui um minuto antes de ir?
Hesitei e encolhi os ombros. Então dei a caixa para o segurança.
- Já volto.
Entrei na sala da editora de cidade e tirei minha mochila conforme sentava diante de sua mesa. Ela exibia um sorriso furtivo no rosto. Falou em voz baixa, como que
preocupada que o que fosse dizer pudesse ser ouvido na sala ao lado.
- Falei pro Richard que ele estava se iludindo. Que você não ia aceitar o emprego de volta. Eles acham que as pessoas são que nem marionete, é só puxar a cordinha
que elas obedecem.
- Você não devia ter tanta certeza. Eu quase aceitei.
- Duvido, Jack. Duvido muito.
Achei que fosse um elogio. Balancei a cabeça e olhei atrás dela para a parede coberta com fotos, cartões e clipagem. Ela pregara uma manchete clássica de um jornal
de Nova York na parede: "Corpo decapitado em bar de topless." Essa era imbatível.
- O que você vai fazer agora?
Passei a ela uma versão mais expandida do que contara a Kramer. Eu ia escrever um livro sobre minha participação na história de Courier­-McGinnis, depois ia correr
atrás do velho sonho de publicar um romance. Nesse meio-tempo, iria fazer parte do expediente em velvetcoffin.com e ficaria livre para cuidar das reportagens investigativas
de minha escolha. Não ia ganhar muito, mas seria jornalismo. Estava apenas realizando o salto para o mundo digital.
- Tudo isso parece ótimo - ela disse. - A gente vai sentir muito sua falta por aqui. Você é um dos melhores.
Elogios assim não me descem muito bem. Sou uma pessoa cínica e sempre à procura do interesse por trás das coisas. Se eu era assim tão bom, por que integrei a lista
trinta, para começo de conversa? A resposta só podia ser que eu era bom, mas não tão bom assim, e ela só estava passando a mão na minha cabeça. Desviei o rosto,
como faço quando alguém mente na minha cara, e voltei a olhar para o mural da parede.
Foi então que eu vi. Algo que me passara despercebido. Mas não dessa vez. Me curvei para a frente a fim de ver melhor, depois levantei da cadeira e me curvei sobre
a mesa.
- Jack, o que foi?
Apontei a parede.
- Posso ver aquilo? A foto do Mágico de Oz.
Fowler levou a mão à foto, soltou da parede e passou-a para mim.
- É uma piada de um amigo - ela disse. - Eu sou do Kansas.
- Eu sei - eu disse.
Examinei a foto, concentrando-me no Espantalho. A foto era pequena demais para que eu tivesse certeza absoluta.
- Posso usar seu computador pra ver uma coisa rapidinho? - perguntei.
Eu já contornava sua mesa antes que ela respondesse.
- Hã, claro, o que foi q...
- Ainda não tenho certeza.
Ela levantou e saiu da frente. Sentei em sua cadeira, olhei para a tela e abri o Google. A máquina dela era incrivelmente lenta.
- Anda, anda, anda.
- Jack, o que foi?
- Deixa eu só...
A janela finalmente abriu e cliquei em Google Imagens. Digitei Espantalho na caixa de busca e esperei. Havia fotos do adorável personagem do filme O Mágico de Oz
e desenhos do vilão Espantalho dos gibis do Batman. Havia inúmeras outras fotos e desenhos de espantalhos de livros, filmes e catálogos de fantasias para o Halloween.
Iam do benigno e amigável ao horrível e ameaçador. Alguns tinham olhos alegres e sorrisos e outros tinham olhos e bocas costurados.
Passei dois minutos clicando de foto em foto e ampliando. Examinei uma por uma das 16 que surgiram na tela, e todas tinham uma coisa em comum. Todos os espantalhos
eram feitos com um saco de aniagem sobre a cabeça, formando um rosto. Cada saco era amarrado em torno do pescoço com um cordão. Às vezes, uma corda grossa, outras,
um barbante comum do tipo que se tem em casa. Mas não fazia diferença. A imagem era consistente e combinava com o que eu vira nos arquivos que havia acumulado, assim
como na última imagem que eu tinha de Angela Cook.
Dava para perceber agora que, nos assassinatos, um saco plástico transparente fora usado para criar a face de um espantalho. Não um saco de aniagem, mas essa discrepância
com a iconografia não fazia diferença. A combinação era a mesma. Um saco sobre a cabeça e uma corda em torno do pescoço eram usados para criar a mesma imagem.
Passei à segunda tela. Mais uma vez, a mesma combinação. Agora as imagens eram um pouco mais antigas, voltando um século até as ilustrações originais no livro O
Maravilhoso Mágico de Oz. E então eu vi. As ilustrações estavam creditadas a William Wallace Denslow. William Denslow, como em Bill Denslow, como em Denslow Data.
Não restava dúvida de que eu encontrara a assinatura. A assinatura secreta que Rachel me avisara que estaria ali.
Fechei a janela e me levantei.
- Preciso ir.
Contornei a mesa e apanhei minha mochila no chão.
- Jack? - chamou Fowler.
Fui na direção da porta.
- Foi bom trabalhar com você, Dorothy.

O avião tocou pesadamente a pista do Sky Harbor, mas eu mal notei. Nas duas últimas semanas, eu me habituara de tal forma a voar que nem me dava mais ao trabalho
de olhar pela janela e torcer por um pouso seguro.
Eu ainda não ligara para Rachel. Eu queria chegar ao Arizona primeiro, de modo que, fosse lá o que acontecesse com minha informação, meu envolvimento estivesse incluído.
Tecnicamente, eu não era mais um repórter, mas ainda estava protegendo minha matéria.
O adiamento também me permitiu pensar um pouco mais no que eu descobrira e elaborar uma abordagem. Depois de pegar um carro alugado e chegar a Mesa, fui até uma
loja de conveniências para comprar um pré­-pago. Eu sabia que Rachel estava trabalhando no bunker na Western Data. Quando ligasse, não queria que visse meu nome
no identificador de chamadas e atendesse na frente de Carver.
Finalmente pronto e de volta ao carro, fiz a ligação e ela atendeu após cinco toques.
- Alô, aqui é a agente Walling.
- Sou eu. Não diz o meu nome.
Houve uma pausa antes que ela continuasse.
- Em que posso ajudar?
- Você está com o Carver?
- Estou.
- Certo, estou em Mesa e a uns dez minutos daí. Preciso que você me encontre sem que ninguém aí fique sabendo.
- Lamento, mas isso não vai ser possível. Do que se trata?
Pelo menos ela estava fazendo o jogo.
- Não dá pra explicar. Preciso mostrar pra você. Você já almoçou?
- Já.
- Certo, então diz pra eles que você precisa tomar um latte ou qualquer coisa que não dê pra tirar de uma das máquinas deles. Me encontra na Hightower Grounds daqui
a dez minutos. Anota os pedidos do pessoal aí, se for preciso. Dá um jeito de fazer eles acreditarem, sai logo e me encontra. Não quero chegar perto da Western Data
por causa do monte de câmera que tem em tudo o que é lugar.
- E você não pode me dar uma ideia do que se trata?
- É sobre o Carver, então não fica perguntando esse tipo de coisa. Pede licença e vai me encontrar. Não diz pra ninguém que eu estou aqui nem o que você vai fazer
de verdade.
Ela não respondeu e eu fui ficando impaciente.
- Rachel, você vai estar lá ou não?
- Tudo bem - ela disse, enfim. - Falo com você lá.
Ela desligou.
Cinco minutos depois, eu estava na Hightower Grounds. O lugar ganhara esse nome por causa da velha torre de observação do deserto que assomava atrás da cafeteria.
Atualmente, a torre parecia fechada, mas o topo estava repleto de repetidores e antenas de celular.
Entrei e dei com o lugar quase vazio. Havia apenas alguns fregueses parecendo alunos de faculdade, sentados solitariamente com laptops abertos diante de si. Fui
ao balcão e pedi dois copos de café, e então levei meu computador para uma mesa no canto, longe dos outros fregueses.
Depois de pegar os dois copos que pedira, acrescentei bastante açúcar e leite no meu e voltei para minha mesa. Olhei o estacionamento pela janela e não vi sinal
de Rachel. Sentei, dei um gole no café fumegante e me conectei à internet pela rede WiFi da cafeteria.
Quinze minutos se passaram. Chequei minhas mensagens e pensei no que eu diria para Rachel - se ela aparecesse. Eu estava com a tela de espantalhos aberta diante
de mim e pronto para começar. Li o recibo que me entregaram junto com os cafés.
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Amassei e arremessei na lata do lixo, mas errei. Depois de me levantar e jogar o papel ali dentro, abri meu pré­-pago e estava pronto para ligar para Rachel outra
vez quando finalmente a vi chegando no estacionamento e parando o carro. Ela entrou, me viu e veio direto até minha mesa. Estava segurando um pedaço de papel com
pedidos de café escritos.
- A última vez que me mandaram buscar café eu era uma agente novata numa negociação de refém em Baltimore - ela disse. - Eu não faço isso, Jack, então é melhor que
seja importante.
- Não se preocupe, é importante. Eu acho. Por que você não senta?
Ela sentou e, sobre a mesa, empurrei o copo de café preto para ela. Ela o ignorou. Estava usando óculos escuros, mas dava para ver a profunda linha púrpura sob seu
olho esquerdo. O inchaço em seu queixo sumira por completo e o corte em seu lábio estava escondido sob o brilho que ela passara. Só dava para ver se você olhasse
com atenção. Fiquei pensando se teria sido apropriado me curvar e tentar abraçá-la ou beijá-la, mas peguei a deixa de seu comportamento friamente profissional e
mantive distância.
- Ok, Jack, estou aqui. O que você está fazendo aqui?
- Acho que encontrei a assinatura. Se eu estiver certo, McGinnis foi só uma cobertura. Um bode expiatório. O outro assassino é o Espantalho. Só pode ser Carver.
Ela ficou me encarando por um longo momento, seus olhos não revelando coisa alguma através das lentes. Finalmente, falou.
- Então você entrou num avião, um cara que adora voar que nem você, pra vir até aqui e me dizer que o sujeito que está trabalhando do meu lado é também o assassino
que eu estou procurando.
- Isso mesmo.
- Acho bom que isso valha a pena, Jack.
- Quem ficou lá no bunker com Carver?
- Dois agentes da equipe de EER, Torres e Mowry. Mas esquece eles. Me diz o que está acontecendo.
Tentei contextualizar primeiro o que eu estava prestes a mostrar no laptop.
- Em primeiro lugar, fiquei incomodado com uma coisa. O que ele estava planejando quando tentou sequestrar você?
- Depois de ver o vídeo recuperado no bunker, não quero nem pensar nisso.
- Desculpe, escolhi mal as palavras. Não quero dizer o que ia acontecer com você. O que eu quero dizer é por que você. Por que se arriscar tanto indo atrás de você?
A resposta fácil é que isso ia criar uma distração grande da investigação principal. E isso é verdade, mas na melhor das hipóteses seria uma tática diversionária
temporária. Os agentes iam começar a chover no lugar às dezenas. Em pouco tempo, não ia dar nem pra passar por uma placa de "Pare" sem ser abordado pelos federais.
Fim da tática.
Rachel seguiu a lógica e balançou a cabeça concordando.
- Certo, mas e se havia outro motivo? - perguntei. - Tem dois assassinos por aí. Um mentor e um aluno. O aluno tenta sequestrar você por conta própria. Por quê?
- Porque McGinnis estava morto - disse Rachel. - Só sobrou o aluno.
- Ok, mas se isso é verdade, por que fazer a tentativa? Pra que ir atrás de você? Por que não sumir de uma vez por todas? Tem alguma coisa errada. Pelo menos se
a gente considerar do modo como vinha encarando isso. A gente achava que pegar você seria uma tática diversionária. Mas não era, na verdade.
- Então o que era?
- Bom, e se não fosse McGinnis o mentor? E se tentaram fazer com que parecesse que tivesse sido ele? E se ele foi só um bode expiatório e sequestrar você foi parte
de um plano pra proteger o verdadeiro mentor? Pra pelo menos ajudar ele a escapar.
- E quanto às evidências que conseguimos?
- Você está falando do meu livro na prateleira dele, os aparelhos e o pornô na casa? Isso não é meio conveniente demais?
- Essas coisas não estavam jogadas pela casa. Estavam escondidas e só foram encontradas depois de horas de busca. Mas deixa isso pra lá. Realmente pode ter sido
plantado. Estou pensando mais no servidor da Western Data que a gente achou cheio de vídeos.
- Pra começar, você disse que não dá pra identificar ele pelos vídeos. E quem disse que ele e Courier eram os únicos com acesso àquele servidor? A evidência não
podia ter sido plantada ali exatamente como o material da casa?
Ela não respondeu imediatamente, e vi que havia conseguido fazê-la pensar. Talvez já estivesse pensando que as coisas caíram muito facilmente em cima de McGinnis.
Mas então ela balançou a cabeça como se isso também não batesse.
- Ainda não faz sentido você dizer que o mentor é Carver. Ele não tentou fugir. Quando Courier estava tentando me pegar, Carver estava no bunker com Torres e...
Ela não terminou a frase. Eu, sim.
- Mowry. É, ele estava com dois agentes do FBI.
Observei seu rosto conforme processava o que eu disse.
- Ele teria tido um álibi perfeito porque dois agentes iam testemunhar por ele - ela disse finalmente. - Se eu desaparecesse enquanto ele estava com a equipe EER,
ele teria arrumado um álibi e o bureau ficaria praticamente certo de que eram McGinnis e Courier que haviam tentado me pegar.
Concordei com a cabeça.
- Isso teria deixado Carver não só acima de qualquer suspeita, como bem no centro da investigação.
Esperei apenas um segundo por sua reação. Quando não veio, pressionei.
- Pense um pouco. Como Courier sabia em que hotel você estava? A gente disse pro Carver quando ele perguntou, durante a visita. Lembra? Daí ele contou pro Courier.
Ele mandou Courier.
- E ontem à noite eu disse que estava voltando pro hotel pra pedir serviço de quarto e dormi.
Exibi a palma das mãos, como que mostrando que a conclusão era óbvia.
- Mas isso não é suficiente, Jack. Não leva à conclusão de que Carver seja...
- Sei. Mas isso leva.
Virei o computador para que ela pudesse ver a tela. Estava com as imagens do espantalho no Google. Ela se inclinou e olhou, depois puxou o computador para seu lado
da mesa. Teclou alguma coisa e começou a ampliar as imagens, uma por uma. Eu não precisava dizer nada.
- Denslow! - ela disse de repente. - Você viu isso? O ilustrador original do Mágico de Oz se chamava William Denslow.
- É, eu vi. Por isso estou aqui.
- Mas isso ainda não liga diretamente a Carver.
- Não importa. Tem fumaça demais por aqui, Rachel. E Carver está ligado a grande parte dela. Ele tinha acesso a McGinnis e Freddy Stone. Tinha acesso aos servidores.
A gente também sabe que ele tem as habilidades técnicas que temos visto ao longo desse caso.
Rachel digitava algo no laptop enquanto respondia.
- Ainda não tem nenhuma conexão direta, Jack. Isso podia facilmente ser alguém armando pra Carver. Consegui outra coisa. Procurei Freddy Stone no Google. Dá uma
olhada.
Ela virou o laptop de modo que eu pudesse olhar a tela. Havia ali uma biografia da Wikipedia com um ator do início do século XX chamado Fred Stone. A biografia dizia
que Stone era mais conhecido por criar pela primeira vez o personagem do Espantalho na versão de 1902 da Broadway de O Mágico de Oz.
- Viu? Só pode ser o Carver. Todos os raios da roda convergem pra ele no centro. Ele faz espantalhos com as vítimas. É a assinatura secreta.
Rachel balançou a cabeça uma vez.
- Olha, a gente checou ele! Estava limpo. O cara é tipo um gênio saído do Instituto de Tecnologia.
- Limpo como? Você quer dizer sem ficha na polícia? Não ia ser a primeira vez que um desses sujeitos operou completamente fora do radar das autoridades. Ted Bundy
trabalhava numa espécie de telefone vermelho do governo quando não estava por aí matando mulheres. Isso deixava ele em contato permanente com a polícia. Além do
mais, é nos gênios que a gente precisa ficar de olho, você mesma disse.
- Mas eu tenho um sexto sentido com esses caras e não percebi nada. Fui almoçar com ele hoje. Ele me levou pra churrascaria preferida do McGinnis.
Dava para ver a incerteza em seus olhos. Por essa ela não esperava.
- Vamos pegá-lo - eu disse. - Vamos pôr o cara na parede e fazer ele falar. A maior parte desses serial killers sente orgulho do que fez. Aposto que ele conta.
Ela ergueu o rosto da tela para mim.
- Pegá-lo? Jack, você não é um agente, não é um policial. É um repórter.
- Não sou mais. Saí acompanhado da segurança hoje com uma caixa de papelão no braço. A minha vida de repórter acabou.
- O quê? Por quê?
- É uma longa história e eu conto mais tarde. O que a gente vai fazer sobre o Carver?
- Não sei, Jack.
- Bom, a gente não pode simplesmente voltar lá com o cafezinho dele na mão.
Notei um dos clientes sentado algumas mesas atrás de Rachel. Ele tirou o rosto da tela de seu laptop, olhou para as tesouras do teto e sorriu. Então ergueu o punho
e mostrou o dedo do meio. Segui seu olhar até uma das vigas. Havia uma pequena câmera preta montada na viga, a lente apontada para as mesas do café. O rapaz voltou
a digitar em seu computador.
Levantei na hora; deixei Rachel e fui em sua direção.
- Ei - eu disse, apontando a câmera. - O que é aquilo? Onde vai essa câmera?
O rapaz franziu o nariz diante de minha estupidez e deu de ombros.
- É uma câmera ao vivo, cara. Vai pra toda parte. Acabei de receber uma mensagem de um cara em Amsterdã que me viu.
De repente caí em mim. O recibo. WiFi gratuito em qualquer compra. Visite nossa página na internet. Virei e olhei para Rachel. O laptop, com a foto de um Espantalho
em tela cheia, estava de frente para a câmera. Voltei e ergui o rosto na direção da lente. Pode chamar de premonição ou conhecimento de causa, mas eu sabia que estava
olhando para Carver.
- Rachel? - eu disse, sem desviar o rosto. - Você falou pra ele onde ia comprar o café?
- Falei - ela disse atrás de mim. - Falei que era logo ali, na mesma rua.
Isso foi a confirmação. Virei e voltei para a mesa. Peguei o laptop e o fechei.
- Ele está observando a gente - eu disse. - Precisamos ir.
Saí pela porta do café e ela veio logo atrás de mim.
- Eu dirijo - ela disse.
Rachel entrou com seu carro alugado pelo portão principal e foi a toda na direção da porta da Western Data. Ela dirigia só com uma das mãos, mexendo no telefone
com a outra. Parou o carro e descemos.
- Tem alguma coisa errada - ela disse. - Nenhum dos dois está respondendo.

Rachel usou um cartão magnético da Western Data para destravar e entrar pela porta da frente. O balcão da recepção estava vazio e passamos rapidamente à porta seguinte.
Quando entramos no corredor interno, ela puxou sua arma de um coldre que estava em seu cinto sob o paletó.
- Não sei o que está acontecendo, mas ele continua por aqui - ela disse.
- O Carver? - eu perguntei. - Como você sabe?
- Fui com ele no almoço. O carro dele ainda está lá fora. O Lexus prata.
Descemos a escada para a sala octogonal e nos aproximamos da gaiola que levava ao bunker. Rachel hesitou antes de abrir a porta.
- O que foi? - sussurrei.
- Ele vai saber que a gente está entrando. Fica atrás de mim.
Ela ergueu a arma e entramos juntos, depois rapidamente passamos à segunda porta. Quando chegamos do outro lado, a sala de controle estava vazia.
- Isso não está certo - disse Rachel. - Cadê todo mundo? E aquilo era pra estar aberto.
Ela apontou a porta de vidro que levava à sala dos servidores. Estava fechada. Esquadrinhei a sala de controle e vi que a porta da sala particular de Carver estava
entreaberta. Fui até lá e abri até o fim.
A sala estava vazia. Entrei e me aproximei da mesa de Carver. Encostei o dedo no touch pad e as duas telas se iluminaram. Na tela principal, vi uma imagem de cima
da cafeteria em que eu acabara de afirmar para Rachel que Carver era o Unsub.
- Rachel?
Ela entrou e eu apontei para a tela.
- Ele estava nos observando.
Ela correu para a sala de controle e eu fui atrás. Ela se aproximou da estação de trabalho do centro, pousou a arma sobre o tampo e começou a mexer no teclado e
no touch pad. Os dois monitores se iluminaram e logo ela abriu telas em modo multiplex divididas em 32 câmeras internas com imagens da empresa. Mas todos os quadrados
estavam pretos. Ela começou a pular de tela em tela e viu a mesma coisa todas as vezes. Todas as câmeras estavam escuras.
- Ele desligou todas as câmeras - disse Rachel. - O que...
- Espera. Olha!
Apontei um enquadramento de câmera cercado por diversos quadrados negros. Rachel manuseou o touch pad e pôs a imagem em tela cheia.
A câmera capturava uma passagem entre duas fileiras de servidores na fazenda. Caídos de bruços no chão estavam dois corpos, os pulsos presos às costas e os tornozelos
atados com correias plásticas.
Rachel segurou o microfone da mesa, apertou o botão e quase gritou.
- George! Sarah! Estão me ouvindo?
Ao som da voz de Rachel, as figuras na tela se mexeram e o homem ergueu a cabeça. Parecia haver sangue em sua camisa branca.
- Rachel? - ele disse, a voz ecoando fracamente de um alto­-falante acima. - Estou ouvindo.
- Onde ele tá? Onde tá o Carver, George?
- Não sei. Estava aqui agora mesmo. Ele acabou de pôr a gente aqui.
- O que aconteceu?
- Depois que você saiu ele foi até a sala dele. Ficou lá um pouco e quando saiu, rendeu a gente. Ele pegou minha arma na minha pasta. Trouxe a gente pra cá e mandou
deitar no chão. Tentei conversar, mas ele não disse nada.
- Sarah, cadê a sua arma?
- Ele pegou também - exclamou Mowry. - Desculpe, Rachel. A gente não esperava.
- Não é sua culpa. É minha. A gente vai tirar vocês dois daí.
Rachel liberou o microfone e contornou rapidamente a estação de trabalho, levando a arma junto. Aproximou-se do leitor biométrico e pôs a mão no scanner.
- Ele pode estar aí dentro esperando - avisei.
- Sei, mas o que eu vou fazer, deixar os dois lá?
O dispositivo completou a leitura e ela agarrou o puxador para deslizar a porta quando o fecho abrisse. A porta não se moveu. A palma de sua mão fora rejeitada.
Rachel voltou a olhar para o scanner.
- Não pode ser. Minha impressão foi inserida ontem.
Ela levou a mão ao scanner e começou o procedimento outra vez.
- Quem inseriu? - perguntei.
Ela olhou para mim outra vez e não precisou responder para que eu soubesse que havia sido Carver.
- Quem mais pode abrir essa porta? - perguntei.
- Ninguém que esteja deste lado. Só eu, Mowry e Torres.
- E os empregados aqui?
Ela se afastou do scanner e experimentou a porta outra vez. Nada.
- Estão com equipe mínima lá em cima e não tem ninguém autorizado a entrar na fazenda. A gente tá ferrado! Não tem como ent...
- Rachel!
Apontei a tela. Carver subitamente surgira no enquadramento de uma câmera operante na sala dos servidores. Ele parou diante dos dois agentes no chão, as mãos no
bolso de seu guarda­-pó, olhando diretamente para a câmera.
Rachel deu a volta rápido para olhar a tela.
- O que ele tá fazendo? - ela perguntou.
Não precisei responder, porque ficou claro que Carver estava tirando um maço de cigarros e um isqueiro descartável do bolso. Em um desses momentos em que a mente
libera uma informação inútil, eu me dei conta de que provavelmente eram os cigarros desaparecidos da caixa de pertences de Freddy Stone/Marc Courier. Enquanto olhávamos,
Carver calmamente puxava um cigarro do maço e o levava à boca.
Rachel apertou imediatamente o microfone.
- Wesley? O que tá acontecendo?
Carver levava o isqueiro à ponta do cigarro, mas parou quando ouviu a pergunta. Olhou outra vez para a câmera.
- Vamos deixar as delicadezas de lado, agente Walling. Estamos no fim da dança, agora.
- O que você tá fazendo? - ela exclamou, com mais veemência.
- Você sabe o que eu estou fazendo - disse Carver. - Estou dando um fim nisso. Prefiro não passar o resto dos meus dias sendo caçado como um animal e depois enfiado
numa jaula. Sendo exibido, levado pra interrogatório e pra conversas com psiquiatras e especialistas em perfil do bureau, que esperam aprender os segredos misteriosos
do universo. Acho que pra mim ia ser um destino pior do que a morte, agente Walling.
Ele ergueu o isqueiro outra vez.
- Não, Wesley! Pelo menos deixa os agentes Mowry e Torres irem. Eles não fizeram nada contra você.
- Isso não vem ao caso, não é? O mundo está contra mim, Rachel, e isso basta. Tenho certeza de que você estudou a psicologia disso antes.
Rachel tirou a mão do botão de transmissão e virou rapidamente para mim.
- Vai até o computador. Desliga o sistema VESDA.
- Não, melhor você! Não sei nada sobre...
- O Jack está aí com você? - perguntou Carver.
Fiz um sinal com as mãos para trocar de lugar com Rachel. Fui para o microfone enquanto ela sentava em uma cadeira e se punha a trabalhar no computador. Apertei
o botão e falei com o homem que assassinara Angela Cook.
- Estou aqui, Carver. Isso não precisa terminar desse jeito.
- Não, Jack, é o único jeito. Você matou mais um gigante. Você é o herói do momento.
- Não, ainda não. Quero contar sua história... Wesley. Me deixa explicar pro mundo.
Na tela, Carver balançou a cabeça.
- Algumas coisas não têm explicação. Algumas histórias são misteriosas demais pra serem contadas.
Ele acionou o isqueiro e a chama surgiu. Começou a acender o cigarro.
- Carver, não! Tem pessoas inocentes aí dentro!
Carver tragou profundamente, segurou, inclinou a cabeça para trás e exalou uma baforada na direção do teto. Ele tomara o cuidado de se posicionar bem embaixo de
um dos detectores infravermelhos de fumaça.
- Ninguém é inocente, Jack - ele disse. - Você devia saber disso.
Ele deu outra tragada e falou quase casualmente, gesticulando com a mão que segurava o cigarro, um pequeno rastro de fumaça azulada pairando no ar.
- Sei que a agente Walling e você estão tentando desligar o sistema, mas não vai dar certo. Tomei a liberdade de reconfigurar. Só eu tenho acesso, agora. E o dispositivo
de exaustão, que elimina o dióxido de carbono da sala um minuto após a dispersão, foi desligado pra manutenção. Eu tomei todas as providências pra que não houvesse
erro nenhum. E nenhum sobrevivente.
Carver soprou fumaça, mandando outra baforada na direção do teto. Olhei para Rachel. Seus dedos voavam pelo teclado, mas ela balançava a cabeça.
- Não consigo - disse. - Ele mudou todos os códigos de autorização. Não consigo entrar.
O som estridente de um alarme encheu a sala de controle. O sistema fora ativado. Uma faixa vermelha com 5 centímetros de altura cruzou todas as telas na sala. Uma
voz eletrônica, feminina e calma, lia em voz alta as palavras escritas na faixa.
"Atenção, o sistema de supressão de incêndio VESDA acaba de ser ativado. Todos os funcionários devem deixar a sala dos servidores. O sistema de supressão de incêndio
VESDA iniciará dentro de um minuto."
Rachel passou as duas mãos pelo cabelo e olhou com expressão desamparada para a tela diante de si. Carver soprava outra coluna de fumaça na direção do teto. Havia
um ar de tranquila resignação em seu rosto.
- Rachel! - gritou Mowry atrás dele. - Tira a gente daqui!
Carver voltou a olhar para seus prisioneiros e balançou a cabeça.
- Acabou - disse. - Este é o fim.
Nesse instante, um segundo toque do alarme me fez dar um pulo.
"Atenção, o sistema de supressão de incêndio VESDA acaba de ser ativado. Todos os funcionários devem deixar a sala dos servidores. O sistema de supressão de incêndio
VESDA iniciará dentro de 45 segundos."
Rachel se levantou e pegou a arma sobre a mesa.
- Se abaixa, Jack!
- Rachel, não, é à prova de bala!
- Isso é o que ele disse.
Ela fez mira segurando com as duas mãos e disparou três vezes contra o vidro diante dela. As explosões foram ensurdecedoras. Mas as balas mal arranharam o vidro
e ricochetearam loucamente pela sala de controle.
- Rachel, não!
- Abaixa!
Ela disparou mais dois tiros na porta de vidro, com o mesmo resultado nulo. Uma das balas ricocheteando voou contra a tela diante de mim, e a imagem de Carver desapareceu
quando se espatifou.
Rachel baixou a arma vagarosamente. Como que para enfatizar sua derrota, o alarme disparou outra vez.
"Atenção, o sistema de supressão de incêndio VESDA acaba de ser ativado. Todos os funcionários devem deixar a sala dos servidores. O sistema de supressão de incêndio
VESDA iniciará dentro de trinta segundos."
Olhei pelas janelas para a sala dos servidores. Canos negros corriam pelo teto em um padrão de grade e desciam pela parede do fundo até uma fileira de tubos vermelhos
de CO2. O sistema estava prestes a disparar. Iria extinguir três vidas, mas não havia incêndio algum na sala dos servidores.
- Rachel, a gente tem que fazer alguma coisa.
- O quê, Jack? Eu tentei. Não tem mais nada.
Ela pousou a arma com toda força na estação de trabalho e afundou na cadeira. Fui até lá, pus as mãos sobre o tampo e me curvei para ela.
- Você precisa continuar a tentar! Tem que ter uma entrada dos fundos no sistema. Esses caras sempre põem...
Parei e olhei para a sala dos servidores quando pensei em algo. E o alarme soou novamente, mas dessa vez mal escutei.
"Atenção, o sistema de supressão de incêndio VESDA acaba de ser ativado. Todos os funcionários devem deixar a sala dos servidores. O sistema de supressão de incêndio
VESDA iniciará dentro de 15 segundos."
Pelas janelas, não dava para ver Carver em parte alguma. Ele escolhera um corredor entre duas fileiras de torres fora do campo de visão da sala de controle. Seria
isso por causa da localização do detector de fumaça ou por algum outro motivo?
Olhei para a tela não danificada diante de Rachel. Mostrava um modo multiplex de 32 câmeras que haviam sido apagadas por Carver. Eu não pensara naquilo até então.
Numa fração de segundos, os átomos colidiram mais uma vez. Tudo ficou claro. Não só o que eu via diante de mim, mas o que eu vira antes - Mizzou nos fundos fumando
depois de eu tê­-lo visto na sala dos servidores. Tive uma nova ideia. A ideia certa.
- Rachel...
O alarme buzinou mais uma vez, agora por um período mais prolongado. Rachel ficou de pé e olhou através do vidro quando o sistema de CO2 disparou. Um gás branco
foi expelido violentamente pelos tubos no teto da sala de servidores. Em segundos as janelas ficaram enfumaçadas e inúteis. A descarga em alta velocidade gerou um
apito extremamente agudo que soou alto e bom som através do vidro espesso.
- Rachel! - berrei. - Me dá o seu cartão. Vou atrás do Carver.
Ela virou e olhou para mim.
- Do que você tá falando?
- Ele não se matou! Ele tem uma máscara e tem uma porta nos fundos!
O apito cessou e nós dois viramos para as janelas. Estava completamente branco dentro da sala dos servidores, mas o CO2 parara de ser expelido.
- Me dá o cartão, Rachel.
Ela olhou para mim.
- É melhor eu ir.
- Não, você precisa chamar o reforço e a equipe médica. Depois vai pro computador. Encontra a porta dos fundos.
Não havia tempo para pensar e considerar as coisas. Havia gente morrendo. Nós dois sabíamos disso. Ela tirou o cartão do bolso e me deu. Virei para ir.
- Espera! Leva isso.
Virei e ela me passou sua arma. Peguei sem hesitar, depois corri para a gaiola.

A arma de Rachel me dava a sensação de ser mais pesada do que a minha, pelo que eu lembrava. Ao atravessar a gaiola de contenção, ergui a pistola, verifiquei a ação
e mirei adiante. Eu não passava de um atirador com prática de uma vez ao ano no estande de tiro, mas sabia que estava pronto para usar a arma caso necessário. Passei
pela porta seguinte e entrei no octógono com o cano apontado para cima. Não havia ninguém ali.
Atravessei rapidamente a sala até a porta do outro lado. Eu sabia, graças ao passeio virtual que fiz pela web, que aquilo levava às salas grandes que abrigavam os
sistemas de energia e refrigeração da empresa. A oficina em que Carver e seus técnicos construíam as torres dos servidores ficava ali atrás, também. Meu palpite
era de que haveria ainda uma segunda escada.
Entrei na sala de instalações primeiro. Era um espaço amplo com equipamentos grandes. Um sistema de ar condicionado do tamanho de um trailer ficava no centro do
ambiente, conectado a inúmeros dutos e cabos no alto. Além dele, havia os geradores e sistemas de back-up. Fui até uma porta no canto esquerdo distante e usei o
cartão de Rachel para abrir.
Dei em uma sala de equipamento longa e estreita. Havia uma segunda porta na outra ponta e minha percepção sobre a planta do prédio me dizia que levaria à sala dos
servidores.
Andando rapidamente nessa direção, vi que havia outro scanner de mão biométrico do lado esquerdo da porta. Acima dele, estava uma caixa contendo os dispositivos
de respiração de emergência. Tinha de ser uma porta dos fundos para a sala de servidores.
Não havia como saber se Carver já efetuara sua fuga. Mas eu não tinha tempo de esperar para ver se ele passaria por ali. Virei e comecei a voltar. Atravessei rapidamente
a sala de instalações outra vez e cheguei a umas portas duplas do lado oposto.
Segurando a arma para o alto e preparado, abri uma das portas com o cartão e entrei na oficina. Essa era outra sala grande, com bancadas de trabalho nas paredes
direita e esquerda e um espaço maior no centro, onde uma das negras torres de servidor estava na metade da construção. A estrutura e as laterais haviam sido completadas,
mas as prateleiras internas para os servidores ainda não tinham sido instaladas.
Além da torre do servidor, vi uma escada circular levando à superfície. Só podia ser por ali que daria para chegar à porta dos fundos e à área dos fumantes.
Contornei rapidamente a torre e fui na direção da escada.
- Olá, Jack.
Assim que escutei meu nome, senti o cano da arma na minha nuca. Eu não vira Carver. Ele saíra de trás da torre do servidor quando eu passei.
- Um repórter cínico. Eu devia saber que você não ia engolir essa história de suicídio.
Sua mão livre segurou meu colarinho por trás e a arma permaneceu pressionada contra minha pele.
- Pode largar a arma agora.
Soltei a arma e ela caiu ruidosamente no chão de concreto.
- Imagino que seja da agente Walling, não é? Então por que a gente não volta e vai fazer uma visitinha? E vamos acabar com isso agora mesmo. Ou quem sabe eu acabo
com você e levo ela comigo. Acho que eu vou gostar de passar um tempinho com a agente...
Escutei o impacto de um objeto pesado contra carne e osso. Carver caiu batendo nas minhas costas e depois no chão. Virei e lá estava Rachel, segurando uma chave
inglesa industrial que pegara na bancada.
- Rachel! O que...
- Ele largou o cartão da Mowry na estação de trabalho dela. Segui você até aqui. Vamos. Vamos levar ele de volta pra sala de controle.
- Do que você tá falando?
- A mão. Ele pode abrir a sala dos servidores.
Abaixamos para segurar Carver, que estava gemendo e se mexendo vagarosamente no piso de concreto. Rachel apanhou sua própria arma e a outra que Carver segurava.
Vi uma segunda arma em sua cintura e a peguei. Pus em minha própria cintura e depois ajudei Rachel a arrastar Carver até que ficasse de pé.
- A porta dos fundos é mais próxima - eu disse. - E tem máscaras ali.
- Vai na frente. Rápido!
Caminhamos apressadamente, carregando Carver pela sala de instalações e pela estreita sala de equipamento depois dela. O tempo todo ele ficou gemendo e murmurando
palavras que não consegui entender. Era alto, mas também era magro, e seu peso não me sobrecarregava.
- Jack, isso foi muito bom, pensar na porta dos fundos. Só espero que não seja tarde demais.
Eu não tinha ideia de quanto tempo passara, mas estava pensando em termos de segundos, não minutos. Não respondi a Rachel, mas acreditei que havia boas chances de
chegarmos aos agentes a tempo. Quando nos aproximamos da porta dos fundos da sala dos servidores, escorei todo o peso de Carver e comecei a girá-lo, de modo que
Rachel conseguisse ajustar a mão dele no scanner.
Nesse instante, senti o corpo de Carver se enrijecer. Ele estava esperando por aquele momento. Agarrou minha mão e pivotou, deixando que o impulso me tirasse o equilíbrio.
Meu ombro bateu contra a porta quando Carver baixou a mão e buscou a arma em minha cintura. Agarrei seu pulso, mas era tarde demais. Sua mão direita se fechou em
torno da arma. Eu fiquei entre ele e Rachel, e subitamente percebi que ela não poderia ver a arma e que Carver ia matar nós dois.
- Arma! - gritei.
Houve uma súbita explosão seca junto ao meu ouvido, as mãos de Carver se soltaram de mim e ele desabou no chão. Um esguicho de sangue me atingiu conforme ele caiu.
Dei um passo para trás e me dobrei, com a mão sobre a orelha. O som era alto como um trem passando. Virei e ergui o rosto, e vi que Rachel ainda segurava a arma
em posição de disparo.
- Jack, você tá bem?
- Estou!
- Rápido, pega ele! Antes que a gente perca os batimentos.
Fiquei por trás de Carver de modo que pudesse passar meu braços sob seus ombros e erguê-lo. Mesmo com Rachel ajudando, foi uma luta. Mas conseguimos deixá­-lo de
pé e então eu o segurei sob os braços enquanto ela estendia a mão direita sobre o leitor.
Houve um estalo metálico quando a trava da porta desarmou e Rachel a abriu.
Deixei Carver caído no limiar, mantendo a porta aberta para permitir que o ar entrasse. Abri a caixa e peguei as máscaras. Havia apenas duas.
- Toma!
Dei uma para Rachel ao entrarmos na fazenda. A névoa na sala dos servidores estava se dissipando. A visibilidade era de cerca de 2 metros. Rachel e eu vestimos as
máscaras e abrimos as passagens de ar, mas Rachel tirava a dela o tempo todo para chamar seus colegas.
Ninguém respondia. Seguimos por um corredor central entre duas fileiras de servidores e tivemos a sorte de topar com Torres e Mowry quase imediatamente. Carver os
pusera perto da porta dos fundos, de modo a conseguir escapar rapidamente.
Rachel agachou junto aos agentes e tentou acordá-los. Nenhum dos dois reagia. Ela arrancou sua máscara e pôs na boca de Torres. Tirei a minha e pus na de Mowry.
- Você pega ele, eu pego ela! - berrou.
Cada um de nós segurou um agente sob os braços e os arrastamos de volta até a porta pela qual havíamos entrado. O sujeito comigo era leve e fácil de levar, e peguei
uma boa dianteira de Rachel. Mas minhas forças começaram a faltar na metade do caminho. Eu precisava de oxigênio.
Quanto mais perto chegávamos da porta aberta, mais ar entrava em meus pulmões. Finalmente cheguei à porta e arrastei Torres por cima do corpo de Carver e para dentro
da sala de equipamento. O solavanco da plataforma pareceu despertar Torres. Ele começou a tossir e a voltar a si antes mesmo que eu o pusesse no chão.
Rachel entrou atrás de mim com Mowry.
- Acho que ela não tá respirando!
Rachel arrancou a máscara do rosto de Mowry e começou os procedimentos de reanimação cardiorrespiratória.
- Jack, e ele? - ela perguntou sem se desconcentrar de Mowry.
- Tudo bem. Está respirando.
Fiquei ao lado de Rachel enquanto ela fazia o boca a boca. Não sabia o que fazer para ajudar, mas instantes depois Mowry teve um espasmo e começou a tossir. Ela
virou de lado e flexionou as pernas em posição fetal.
- Tudo bem, Sarah - disse Rachel. - Você está bem. Você conseguiu. Você está a salvo.
Ela bateu suavemente no ombro de Mowry e escutou a agente tossir um obrigado e depois perguntar sobre seu parceiro.
- Ele vai ficar bem - disse Rachel.
Fui até a parede oposta e sentei apoiando as costas. Eu estava acabado. Meus olhos vagaram para o corpo de Carver esparramado no chão perto da porta. Dava para ver
os ferimentos de entrada e de saída. A bala acertara seus lobos frontais. Ele não se movera desde que caíra, mas depois de alguns instantes achei ter visto um ligeiro
tique de batimento em seu pescoço logo abaixo da orelha.
Exausta, Rachel se aproximou e escorregou de costas pela parede ao meu lado.
- O reforço já vem. Acho que eu devia subir e esperar eles chegarem pra mostrar o caminho até aqui embaixo.
- Recupere o fôlego primeiro. Você tá bem?
Ela fez que sim com a cabeça, mas continuava a respirar pesadamente. Eu também. Observei seus olhos e vi que focaram em Carver.
- É uma pena.
- O quê?
- Que os segredos tenham morrido junto com o Courier e o Carver. Todo mundo morreu e ficamos sem nada, nenhuma pista do motivo de eles terem feito o que fizeram.
Balancei a cabeça lentamente.
- Tenho uma coisa pra te contar. Acho que o Espantalho ainda está vivo.

DEZENOVE: Bakersfield

Já se passaram seis semanas desde os eventos ocorridos em Mesa. Ainda assim, eles permanecem vívidos em minha memória e imaginação.
Estou escrevendo, agora. Todos os dias. Normalmente, encontro um café movimentado à tarde para sentar com meu laptop. Descobri que o silêncio monástico da vida de
escritor não serve para mim. Preciso lutar contra distrações e ruído branco. Preciso ficar o mais perto possível da experiência de escrever em uma redação agitada.
Ao que parece, sinto falta do burburinho das conversas de fundo, dos telefones tocando e do martelar dos teclados para me sentir confortável e em casa. Claro, isso
é um substituto da coisa real. Não há nenhuma camaradagem em uma cafeteria. Nenhuma sensação de "somos nós contra o mundo". Isso com certeza são coisas de uma redação
de que vou sentir falta para o resto da vida.
Reservo as manhãs para pesquisar meu tema. Wesley John Carver permanece em grande parte um enigma, mas estou chegando perto de quem e o que ele era. Enquanto ele
repousa em um mundo crepuscular de coma, na ala hospitalar do Metropolitan Correctional Center, em Los Angeles, eu fecho o cerco sobre ele.
Parte do que sei veio do FBI, que continua trabalhando no caso em Arizona, Nevada e Califórnia. Mas a maior parte do que consegui foi graças a mim mesmo e a inúmeras
fontes.
Carver era um assassino dotado de inteligência brilhante e uma visão aguda de seu próprio eu. Era astuto e calculista e capaz de manipular as pessoas penetrando
em seus desejos mais recônditos e sombrios. Ele espreitava pelos sites e salas de bate-papo, identificava potenciais discípulos e vítimas e então os seguia até suas
casas, rastreando-os pelas passagens labirínticas do mundo digital. Depois, buscava um contato casual no mundo real. Ele os usava ou matava, ou as duas coisas.
Ele vinha fazendo isso havia anos - muito antes de a Western Data e de os assassinatos dos porta-malas terem chamado a atenção de quem quer que fosse. Marc Courier
fora apenas mais um em uma longa lista de seguidores.
Mesmo assim, o histórico dos feitos sinistros cometidos por Carver não pode ofuscar as motivações por trás deles. Isso é o que meu editor em Nova York sempre me
diz, toda vez que conversamos. Eu devo ser capaz de contar mais do que apenas o ocorrido. Devo contar o porquê. A velha amplitude e profundidade outra vez, a que
sempre estive acostumado.
O que descobri até agora é o seguinte: Carver era filho único e nunca soube sequer quem foi seu pai. Sua mãe trabalhava em clubes de strip­-tease, o que mantinha
os dois viajando entre Los Angeles, San Francisco e Nova York durante sua infância. Era o que chamavam um bebê de camarim, esperando atrás do palco nos braços de
alguma babá, fregueses e outras dançarinas enquanto sua mãe se exibia sob os holofotes. Seu número era a atração principal, realizado sob o nome artístico de "L.A.
Woman" e dançado exclusivamente ao som da banda de Los Angeles mais catalisadora no rock da época, The Doors.
Há indícios de que Carver tenha sido abusado sexualmente por mais de uma das pessoas com quem era deixado nos camarins, e que em muitas noites ele dormia no mesmo
quarto de hotel em que sua mãe recebia os homens que pagavam para se deitar com ela.
O mais notável disso tudo foi que sua mãe desenvolvera uma doença óssea, sem nome mas degenerativa, que ameaçava seu ganha­-pão. Quando estava fora do palco e longe
do mundo em que trabalhava, ela normalmente usava aparelhos ortopédicos nas pernas, prescritos para fornecer apoio aos ligamentos e às juntas enfraquecidos. O jovem
Wesley era muitas vezes requisitado para ajudar a prender as tiras de couro em torno das pernas de sua mãe.
É um retrato sombrio e deprimente, mas não algo que necessariamente resulte em assassinatos em série. Os ingredientes secretos desse carcinógeno ainda estão por
ser revelados - seja por mim, seja pelo FBI. O que levou os horrores da criação de Carver a se espalhar no câncer de sua vida adulta permanece um mistério. Mas Rachel
adora citar para mim sua fala favorita de um filme dos irmãos Coen: Ninguém conhece ninguém, pelo menos não tão bem. Ela me diz que jamais saberemos o que fez Wesley
Carver seguir por esse caminho que ele escolheu.
Estou em Bakersfield hoje. Pelo quarto dia consecutivo, vou passar a manhã com Karen Carver e ela vai me contar as lembranças que tem de seu filho. Ela não o viu
nem falou com ele desde o dia em que partiu, aos 18 anos de idade, para o Instituto de Tecnologia de Massachusetts. No entanto, seu testemunho sobre a juventude
dele e sua predisposição a partilhar isso comigo me deixam mais perto de responder a questão do porquê.
Amanhã pego o carro e volto para casa, minhas conversas com a mãe do assassino em sua cadeira de rodas por ora estão encerradas. Tenho outra pesquisa a fazer e um
deadline para o livro acenando logo ali. Mais importante do que tudo isso, já faz cinco dias que não vejo Rachel, e a separação tem sido cada vez mais difícil de
aguentar. Tornei-me um adepto da teoria da bala única e preciso voltar para casa.
Enquanto isso, o prognóstico para Wesley Carver não é dos melhores. Os médicos que estão cuidando dele acham que nunca mais vai recuperar a consciência, que os danos
provocados pelo tiro de Rachel o lançaram em trevas permanentes. Ele balbucia coisas e às vezes murmura em sua cama­-prisão, mas nunca irá além disso.
Há quem defenda seu julgamento, condenação e execução mesmo nesse estado. E há quem chame essa ideia de bárbara, por mais hediondos que tenham sido os crimes de
que ele é acusado. Em uma manifestação recente diante do centro correcional em Los Angeles, uma multidão marchava com placas dizendo DESLIGUEM O ASSASSINO DA TOMADA,
enquanto as placas do grupo oposicionista diziam TODA VIDA É SAGRADA.
Fico pensando o que Carver acharia disso tudo. Acharia graça? Iria se sentir aliviado?
Tudo o que sei é que não consigo apagar a imagem de Angela Cook deitada na escuridão, os olhos arregalados de pavor. Acredito que Wesley Carver já foi condenado
no tribunal de alguma justiça maior. E que está cumprindo a prisão perpétua sem a possibilidade de condicional.

VINTE: O Espantalho

Carver aguardava na escuridão. Sua mente era uma confusão de pensamentos. Tantos que ele não sabia exatamente quais eram lembranças autênticas e quais eram inventadas.
Eles se infiltravam em sua mente como fumaça. Nada que permanecesse. Nada a que pudesse se agarrar.
Escutava as vozes ocasionalmente, mas não conseguia distingui-las com clareza. Eram como conversas abafadas em torno dele. Ninguém estava conversando diretamente
com ele. Estavam conversando em volta. Quando ele fazia perguntas, ninguém respondia.
Ele ainda tinha sua música, e era a única coisa que o salvava. Ele a ouvia e tentava cantar junto, mas em geral não tinha voz e só podia murmurar. Não conseguia
acompanhar.
This is the end... beautiful friend, the end...5
Acreditava que era a voz de seu pai cantando para ele. O pai que nunca conhecera, chegando até ele pela graça da música.
Como na igreja.
Sentia uma dose terrível de dor. Como um machado cravado no meio de sua testa. Uma dor incessante. Esperava que alguém pusesse um fim nela. Que o salvasse dela.
Mas ninguém vinha. Ninguém escutava.
Ele esperava, na escuridão.

 

 

                                                                  Michael Connelly

 

 

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