Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O ESPELHO DE PRATA
CORK, IRLANDA, 1847
CONNALL McGandley arrastava-se penosamente pelo campo envolto em neblina, com os braços cruzados sobre o peito, estugando o passo porque a luz do dia desaparecia. O ar frio trazia-lhe o cheiro doce de um lume de turfa à distância, e ele tentou não pensar naquele conforto. com o crepúsculo o nevoeiro aumentou, e ele tinha empenhado o casaco na cidade para comprar a miserável porção de milho que levava no saco pendurado ao ombro. Caminhava à fome desde o nascer do dia, na esperança de trazer algum alívio à família. Não havia trabalho em lado algum, e trocara o casaco por umas míseras mãos-cheias de milho-índio fornecido por um negociante, que correra com ele da loja após a transacção. Encontrara pouca coisa durante o trajecto, apenas os brejos silenciosos e desertos e os casebres abandonados de uma nação moribunda. A música da Irlanda, terra de canções, fora silenciada pela fome, e os únicos acordes que agora enchiam o ar eram os gemidos agudos por aqueles que morriam, o canto fúnebre que pressagiava a morte de alguém.
À beira da estrada, por detrás de uns muros de pedra calcária que serpenteavam pelo campo, uma mulher atravessava devagar um brejo húmido e frio, com as mãos e os joelhos no chão, respigando o que não tinha sido apanhado na última colheita, mastigando tudo o que era comestível. McGandley afastou-se. A cena era toda ela demasiado familiar. Não tardaria muito, a sua própria família ia arder com a febre da fome e morrer de exposição ao frio. O seu único filho já estava de cama com a febre tifóide.
Tinham passado dois outonos desde que a neblina viera do mar para cobrir a Irlanda como um manto. Quando o nevoeiro se levantou, apareceram os primeiros sinais perturbadores, as espigas dobradas nos campos como prenúncio da fatalidade da nação. No ano seguinte, o pulgão destruiu a quase totalidade da colheita de batata da ilha. A batata era tudo para os irlandeses pobres, mas mesmo nas melhores alturas a cultura da batata tinha uma existência precária.
Pouco tempo antes da última colheita, McGandley descobriu o pulgão na sua própria magra sementeira, as primeiras lesões nas folhas encaracoladas, o que o levara a cair de joelhos numa fervorosa prece. A família procedeu imediatamente à colheita e apanhou e vendeu o que pôde, alimentando os porcos com o que não servia para comer. Depois, devorou os porcos. Mas até os ossos dos porcos
- que tinham fervido, refervido e depois, esfomeados, roído haviam agora desaparecido, substituídos apenas pelo desespero.
Cinquenta passos mais adiante, emergindo do neveiro, uma carroça de madeira puxada por um cavalo estava atolada na lama à beira da estrada. Um homem atarracado de cabelo castanho-escuro encontrava-se enterrado na lama até à barriga das pernas, em frente do cavalo, puxando-lhe as rédeas e insultando o animal. O homem viu McGandley e levantou a mão.
- Ei, você aí! - O vapor expelido condensou-se diante dele.
- Tendes alguma coisa para comer? -- perguntou McGandley, aproximando-se.
O homem franziu o sobrolho.
- Fora da barriga, não. Dá-me uma ajuda? - apontou a carroça. -Vocemecê é inglês? - perguntou McGandley, parando e fitando sombriamente o desconhecido.
- Sou americano.
- Sorte a sua. Se fosse inglês, o seu pescoço era capaz de já estar cortado por esta altura. Talvez por mim próprio.
- Os Ingleses têm mandado dinheiro para auxílio contra a fome - disse o americano, fitando o homem com atenção.
- Ai têm? Digo-lhe uma coisa: mais valia mandarem caixões.
- Não há fome onde há comida. Os Britânicos roubaram-na toda. - O americano deu um passo na direcção de McGandley.
- Eu tenho dinheiro. Ajude-me a empurrar isto daqui para fora, e eu pago-lhe. Tenho de ir para o porto de Cobh. O meu clipper larga de madrugada.
O interesse de McGandley foi espicaçado. Desde que a fome começara, mais de um milhão de irlandeses tinha já emigrado.
- Voltais para as Américas?
O marinheiro compreendeu a intenção de McGandley e lamentou
ter falado.
McGandley não esperou pela resposta:
- Tende piedade do nosso triste destino e levai-nos convosco.
- Tem dinheiro? - perguntou o outro.
- Nem um tostão furado.
O americano abanou a cabeça.
- Não há lugar.
- No porão, homem.
- E levar também o vosso tifo e a cólera? Na. Há já um milhão de irlandeses nas docas.
McGandley coçou os piolhos da cabeça.
- Vocemecê podia embarcar a minha filha. É uma rapariga muito pequena.
- Não posso, homem.
- Podia se ela fosse sua mulher.
O americano cuspiu para o chão.
- Não preciso de mulher - disse ele, regressando para junto do cavalo. - Seja bom homem e dê-me uma ajuda. Eu pago-lhe pela maçada.
McGandley permaneceu firmemente imóvel, e o americano olhou em volta sem saber o que fazer. com a noite a cair e os bolsos cheios de dinheiro das passagens de barco que recebera como agente, não era altura para ficar encalhado. O cavalo era um banquete, e ele, um banco. Os esfomeados haviam de encontrá-lo.
- Uma mulher para tomar conta de si nessa viagem seria uma bênção - insistiu McGandley. - A minha filha é muito trabalhadora.
O americano continuou sem responder, e o estômago de McGandley deu um nó. Olhou para o marinheiro. Era um homem feio, com um rosto largo e avermelhado coberto por uma barba hirsuta, pelo menos uma década mais novo do que ele próprio e uns vinte centímetros mais baixo.
- Como é que vocemecê se chama, rapaz?
- Jak - disse o marinheiro, falando vagarosamente, com relutância de se abrir com o irlandês.
- Bem, então, Jak? Ela é uma moça encantadora. - Fixou os olhos nele sombriamente e acrescentou: - Um verdadeiro homem não recusava a oferta antes de vê-la.
O marinheiro esfregou a testa. Uma mulher seria uma bênção na viagem, e nos antros de Nova Iorque até podia transformá-la em fonte de receita.
- Ela não tem cólera nem tifo?
- É saudável, é.
- Se ela for desajeitada, deixo-a na doca.
Ignorando a ameaça, McGandley pousou o saco e preparou-se para desatolar a carroça. Esfregou o magro flanco do potro para o acalmar, inspeccionou as rédeas e os tirantes e depois examinou a carroça. As rodas de madeira com cintas revestidas de aço estavam enterradas no esterco pouco mais de quinze centímetros.
Agarrou nas rédeas de couro, desviou-se para o lado do cavalo e depois usou-as como chicote na anca do animal.
- Sai-me daí!
Os músculos do cavalo retesaram-se quando fez esforço para arrancar os cascos da lama. Avançando facilmente, o cavalo puxou a carroça para fora do atoleiro. Quando a carroça já estava na estrada, McGandley agarrou no saco de milho e depois entregou as rédeas ao marinheiro espantado.
- Porque é que essa maldita besta não se desatolou comigo?
Um sorriso sardónico atravessou o rosto de McGandley.
- Ó homem, se vocemecê estava em pé diante dele, como é que o pobre animal podia avançar?
O SOL ainda não estava abaixo do horizonte quando o americano deteve a carroça em frente da casa coberta de colmo de McGandley. McGandley apeou-se. Uma mulher pálida e com aspecto doentio saiu quando os ouviu aproximar-se. A seu lado, vinha uma jovem que sorriu ao ver o pai regressar.
- Pai!
McGandley não respondeu ao chamado da filha, e, ao ver o desconhecido, ela pôs-se atrás da mãe com um medo instintivo da indiferença do pai e do homem rude e lascivo que o acompanhava. A mãe não perguntou quem era o homem, mas observava a cena silenciosamente como se fosse espectadora de uma tragédia de um só acto.
- Vem cá, rapariga! - ordenou McGandley.
A jovem baixou a cabeça ao avançar. Tinha cerca de quinze anos, seios que despontavam, lábios sensuais e as maçãs do rosto altas e lívidas de fome. O cabelo comprido e avermelhado caía-lhe sobre o rosto sardento. Estava descalça e trazia um vestido de musselina desbotado e esfarrapado. Era bonita, conforme o pai anunciara, mais do que o marinheiro esperara ou imaginara. Ergueu timidamente o olhar para o homem e depois aproximou-se do pai.
- Como é que você lhe chama? - perguntou o marinheiro rudemente.
Quaye - respondeu o pai com brusquidão.
O homem limpou a boca com as costas da mão.
- Quanto é que você quer por ela?
- Uma passagem para as Américas para a moça - respondeu McGandley, olhando para os pés - e quaisquer moedas que tiverdes para nós.
O homem meteu a mão no bolso das calças e tirou para fora uma
mão-cheia de moedas.
- O que é que me diz a trinta moedas?
McGandley não partilhou da graçola do marinheiro.
- Ela comeu bem até há pouco tempo - resmungou ele. - Vai prestar bons serviços.
O homem não disse nada. Atirou as moedas para os pés de McGandley e depois voltou-se para Quaye.
- Anda daí, rapariga!
A mãe desviou os olhos transbordantes de lágrimas, mas não argumentou. De qualquer maneira, a filha estava perdida para ela. Quaye olhou para o pai, incrédula, mas a expressão dele era firme. Baixando-se para ela, olhou-a nos olhos e disse baixinho:
- Se vos lembrardes de quem sois, encontrareis o vosso caminho na vida. - Olhou para o marinheiro. - Agora, vai com o homem, Quaye. Ele é o teu marido agora.
- Só um momento - disse a mãe. Tirou do dedo uma aliança de prata e depois avançou e colocou-a no dedo da filha, dizendo-lhe em voz baixa: - Que encontres o amor um dia para a tua vida fazer sentido! - Depois, beijou-a no rosto suavemente.
O marinheiro levou Quaye até à carroça, levantou-a e depositou-a lá dentro, enquanto os pais olhavam silenciosamente. Sem mais palavras, o homem fustigou o cavalo, e a carroça desapareceu com a filha deles no meio do nevoeiro húmido e da escuridão.
- A mhathair ta me norbh - murmurou McGandley para a mulher - Mãe, estou morto!
Quaye nem uma única vez se virou para trás quando a carroça a levou de casa.
Passaram aproximadamente três meses desde que cheguei a Goldstrike. É um acampamento bárbaro. Esta semana, vi com os meus próprios olhos um homem a ser baleado dentro de uma barbearia, e o proprietário nem sequer parou de espalhar espuma na cara do cliente.
Tornei-me perito em cartas e consigo virar um ás tão bem como outrora virava as páginas da Sagrada Escritura. As cartas são mais lucrativas do que a pesquisa de minério e mais previsíveis do que Deus. Há mais ouro para sacar aos tolos do que em toda a cordilheira de montanhas, e estorquí-lo é consideravelmente mais fácil.
DIÁRIO DE HUNTER BELL, 29 DE MAIO DE 1857.
MINA DE GOLDSTRIKE, U T A H OCIDENTAL
31 DE MAIO DE 1857
O HOMEM de barba branca disse uma prece silenciosa quando as cartas foram distribuídas. Hunter Bell sorriu discretamente. Agradavam-lhe aqueles que esfregavam ícones ou faziam juramentos porque isso os assinalava como presas fáceis - na verdade, o póquer não é um jogo de sorte, mas de paciência e habilidade. Mesmo com cartas que não o ajudavam, ele sacava-lhes o dinheiro.
Na sua vida anterior, os domingos de Hunter Bell eram passados atrás do púlpito de uma pequena congregação presbiteriana em West Chester, nos arredores de Filadélfia, e as noites, passadas na companhia civilizada dos companheiros evangelistas, beberricando brandy em cálices de cristal enquanto discutiam as subtilezas do Evangelho. Agora, nas sombras iluminadas a petróleo do saloon Bucket o' Blood, a companhia de Hunter era bebida barata, mineiros, jogadores e mulheres ordinárias atraídas para aquela região longínqua. Não se lhe tinha apagado da memória que outrora, em sermões inflamados, ele pregara contra os homens que passavam as noites com whisky demoníaco e cartas de jogar, mas o covil do Diabo era agora a sua capela, e todos os domingos ele podia ser encontrado a recolher a dízima dos seus companheiros de batota.
Não era provável que Hunter fosse reconhecido pelos seus paroquianos de outrora. O cabelo crescera-lhe e caía pelos ombros em ondulantes caracóis louros. Os olhos, que tinham brilhado de zelo apostólico, estavam agora cercados pelas rugas das agruras da vida. Aparentava mais do que os seus trinta e quatro anos. Emagrecera, mas tinha os ombros e o peito musculados de manusear a pá numa mina quando as cartas não davam dinheiro. Mas se deixara de ter uma aparência apropriada para pregar de um púlpito, ela também não se adequava a uma mesa de jogo. Embora ocasionalmente falasse com voz arrastada, não era a sua pronúncia verdadeira, e de vez em quando o seu vocabulário revelava não condizer com as mãos calejadas e o rosto rude.
Os saloons de Goldstrike não fechavam a horas certas, mas sim por consenso dos clientes. O jogo daquela noite estendeu-se bem até de madrugada, porque os três homens com quem Hunter partilhava a mesa não tinham vontade de sair a perder. Hunter conseguira acumular a maior parte da fortuna dos parceiros, e agora estava em jogo quase tudo o que sobrava.
O homem sentado à frente de Hunter tinha cara de duende, com uma longa barba branca e um bigode esfiapado. Quase com sessenta anos, passara a vida à cata de ouro nas montanhas ou nas mesas de jogo e não o conseguira em nenhum dos lados. O homem grande à direita de Hunter chamava-se Thomas Cage. Vestia uma camisa de pele de búfalo e calças de ganga enfiadas nas botas. Tinha cabelo fino castanho e o rosto corado de embriaguez. O terceiro homem, chamado Marcus, era um californiano particularmente feio, com uma cicatriz profunda na ponta do nariz, no sítio onde uma faca quase lho arrancara.
Uma mulher gorda de cabelo negro, com sobrancelhas pintadas no rosto dissoluto, estava encostada à cadeira de Hunter, interessada na quantidade de ouro que ele amontoara. Trazia um vestido de baile de cetim cor-de-rosa que não crescera à medida da dona e se tornara nalgumas partes mais revelador do que a intenção inicial da costureira.
- Aposto mais cinco dólares - disse o velho, atirando uma moeda para o centro.
Todos o imitaram, excepto o californiano, que resmungou entredentes, fechando as cartas:
- Podia ter comprado uma mulher com o que já perdi.
- Uma cega - observou a mulher, trocista.
Foram distribuídas mais três cartas abertas. Cage tirou da boca o copo de whisky e voltou-se para o velho:
- Onde está Cárter esta noite? Nem parece dele perder uma oportunidade de jogar.
- Houve uma reunião de mineiros por causa do problema dele com os negros.
Hunter sabia de que é que o velho falava. Um grupo de negros libertados registara uma modesta concessão que tinha precisamente começado a dar lucro. Quando a notícia do sucesso se espalhou, um grupo de mineiros brancos, chefiados por Cárter, encetara um movimento para anexar as escavações, escorraçando os homens pela força das armas. Os negros tinham interposto recurso no tribunal. Era um processo controverso, visto que a assembleia era composta por homens brancos, conhecidos por maltratarem os índios e os chineses.
- Os malditos pretos deviam pôr-se a andar daqui para fora -
disse Cage, sorrindo.
- Você acha que um negro não tem tanto direito ao ouro como qualquer outro homem? - perguntou Hunter.
- Eles não têm qualquer direito de demarcar uma concessão. Não são gente - zombou Cage, olhando para Hunter.
Hunter empurrou um pequeno monte de moedas para o centro.
- Subo cinco. Não sabia que eles não eram gente.
- A Bíblia diz que não são. Desde que Caim matou o irmão.
Hunter olhou por cima das cartas.
- A Bíblia não sanciona a escravatura - disse ele. - Deus deu um sinal a Caim para sua protecção, não para sua condenação.
- É melhor para os pretos serem escravos - disse o velho. - Quando envelhecem, continuam a ter quem trate deles, mesmo que não sirvam para nada. No dia em que eu deixar de escavar trinta metros por dia, quero saber quem vai dar-me uma panela de feijões.
- Quero outra carta - disse Hunter.
Cage fez deslizar uma carta para Hunter e depois perguntou:
- Mas, afinal, como é que você sabe tanto sobre a Bíblia?
- Fui pregador.
Os três homens fitaram Hunter com desdém. Em Goldstrike, aquilo era o mesmo que confessar ser salteador ou advogado, pois todos eram tratados com igual desprezo.
- Imagino que Goldstrike seja solo fértil para um pregador! - disse Cage. - Há malandros em cada esquina. Só que um mineiro precisa tanto de um pregador como uma cobra de uma bengala.
- Eu não vim para pregar. Vim à procura de ouro.
- Que espécie de pregador é você? - perguntou o californiano cepticamente. - Você joga a dinheiro e mete-se na bebida.
- Um pregador falhado.
Subo cinco - disse Cage, atirando uma moeda para cima da
mesa. - Em minha opinião, todos os pregadores conspiram com o Diabo. Para que é que servia um pregador se não houvesse pecado?
- Eu acompanho os seus cinco dólares e subo mais dez – disse Hunter com um sorriso nos lábios.
Perante a aposta de Hunter, Cage abanou a cabeça.
- Você tem andado a fazer bluff toda a noite. Pregador ou não, nunca vi um homem mentir tão bem. Pago para ver os seus dez!
Relutantemente, o velho empurrou o resto do seu monte para a mesa.
Hunter olhou e depois sorriu ao pôr as cartas na mesa: três reis.
- Finalmente, tive uma mão!
O velho atirou as cartas para cima da mesa, e Cage murmurou uma série de blasfémias. Hunter não fez um movimento para agarrar no que ganhara. Vira uma vez uma mão excessivamente ansiosa ser cravada numa mesa por uma faca-de-mato.
- Mais alguma coisa, meus senhores?
- Não há mais nada para apostar - disse o velho, levantando-se da mesa. O californiano pôs-se igualmente de pé enquanto Cage olhava, incrédulo.
- Não posso perceber qual foi a batota que você fez - disse ele.
- Está a chamar-me batoteiro? - perguntou Hunter, olhando para o homem fixamente.
Quando os dois homens se enfrentaram, o velho e o californiano afastaram-se da mesa. O homem do bar viu o que ia acontecer e tirou uma espingarda de trás do balcão.
- Rebento a cabeça do primeiro que der um tiro aqui dentro.
Sem perder o contacto visual, Hunter tirou da cintura a bolsa de
pele de búfalo, recolheu os ganhos e depois colocou a bolsa a abarrotar no bolso do peito do casaco, expondo intencionalmente a pistola que trazia consigo.
- Serve mais uma rodada a todos - disse Hunter à mulher, deixando duas moedas em cima da mesa.
Depois, levantou-se, cumprimentou a mulher com o chapéu e saiu. No ar da noite ouvia-se uma cacofonia de grilos e, uma vez fora do saloon, ele respirou de alívio. A sua habilidade com a pistola era medíocre e nunca fora testada a sério. Desafiara Cage porque no Oeste a coisa mais certa para levar um homem a ser morto era revelar fraqueza.
Olhou uma vez mais para o saloon para se certificar de que não era seguido e depois dirigiu-se para a Pensão Orleães, onde estava hospedado. As ruas nocturnas não lhe eram desconhecidas. Não dormia bem e passeava muitas vezes à Lua da meia-noite, mesmo antes de chegar a Goldstrike. Mas especialmente em Goldstrike. Não confiava naquele lugarejo. Vivera numa dúzia de acampamentos desde que viera para o Oeste, e Goldstrike deixava-o muito ansioso. A vida ali não tinha grande valor.
Além disso, Hunter andava a pé porque já não tinha cavalo. Certa manhã encontrara o seu palomino morto. Aconteceu que a morte do cavalo coincidiu com uma série de ganhos consideráveis, e ele suspeitou de que o animal fora envenenado. Era o género de coisa que ele só esperava em Goldstrike, porque matar um cavalo era francamente vergonhoso. .
Chegou à pensão, envolta em escuridão, e entrou. A sala de jantar era debilmente iluminada por um candeeiro a petróleo quase a apagar-se. Adormecida por baixo dele, numa cadeira de balouço, estava uma rapariga linda de pele cor de mogno, com o cabelo preto e comprido pendente sobre o chão. Isabel Gayarre era filha do dono da pensão, Père Gayarre, um cajun irascível que raramente era visto, e quando visto era evitado.
- Isabel? - chamou Hunter, debruçando-se sobre ela.
Ela mexeu-se, pestanejou e depois abriu os olhos e sorriu ao vê-lo.
- Pregador, já é de manhã?
- Não, ainda é de noite. Devias estar na cama. - Ajudou-a a levantar-se e ela encostou-se a ele quando a levou pelo corredor até ao quarto dela. Parou à entrada da porta, mas não entrou, temendo que o pai os visse e interpretasse mal a sua intenção. Meio a dormir, ela voltou-se para o beijar, mas Hunter colocou-lhe um dedo nos lábios. - Boa noite, Isabel!
Ela beijou-lhe o dedo e sorriu ao fechar a porta atrás de si.
Hunter subiu as escadas para o seu quarto no piso superior. O cubículo obscurecido ecoava como uma serração com o ressonar dos companheiros de quarto, sete homens, mineiros pobres cujos bens de uma vida inteira estavam escondidos por baixo dos beliches. Tirou o casaco e escondeu os ganhos da noite na camisola interior, abotoando a camisa até acima à volta da bolsa. Pôs o chapéu de lado e nem se deu ao trabalho de tirar as botas quando se deitou para dormir.
A PENSÃO Orleães era um dos edifícios originais de Goldstrike: uma construção de dois pisos com um telhado inclinado e lareiras de pedra de ambos os lados. Tinha uma reputação razoável, mesas com toalhas de oleado e facas e garfos de qualidade superior. A pensão servia de casa e mesa a cerca de cinquenta homens, população que mudava numa base mensal.
O proprietário, Père Gayarre, era um cajun maneta, tão rápido com a pistola como de temperamento. Diz-se que "um cajun nunca morre, ele seca", e Gayarre parecia estar a caminho da secura completa, com o seu rosto enrugado como uma árvore de Jessé muito antiga. Gayarre vivera durante algum tempo com uma negra, como o provavam a pele cor de café e os olhos escuros da sua bela filha, Isabel. A mulher morrera quando Isabel ainda era criança, e agora, com dezassete anos, Isabel cozinhava e tratava do pai e também dos hóspedes.
Gayarre estava entre os melhores pistoleiros do território e nunca perdera uma luta armada, embora tivesse perdido um braço numa. Isso acontecera em Tulsa, onde um jovem arruaceiro de revólver fez propostas desonestas a Isabel. Quando ela o recusou, ele esbofeteou-a e chamou-lhe mestiça. O azar dele foi duplo, pois Gayarre estava ao alcance do ouvido e da pistola. O cajun perdeu um braço no duelo, mas o arruaceiro levou os seus dois para a sepultura.
Era visível que Gayarre amava a filha, e os mineiros tinham isso em conta. Se os novatos que vinham para a pensão se entusiasmavam com a cozinheira, era apenas durante o tempo que os hóspedes mais antigos levavam a explicar-lhes o estado das coisas. Hunter era o único homem em Goldstrike que passara algum tempo com Isabel, mas por iniciativa dela e não dele.
Isabel observava interessadamente Hunter desde o dia em que ele chegara. Era um cavalheiro com conversas delicadas e bem-educado. Os olhos dele brilhavam com uma chama de um mundo diferente que ela só podia imaginar. Hunter era um homem melancólico, e em certas noites, quando não conseguia dormir, sentava-se sozinho em frente da lareira de pedra com uma garrafa na mão e um livro no colo. Uma noite, Isabel foi ter com ele e sentou-se ao seu lado. Os olhos dele estavam tristes, e ela deu-lhe a mão. Nenhum deles disse uma palavra até o fogo se apagar e Hunter se retirar sozinho para o quarto, levando o livro com um retrato que metera entre as páginas. Um livro de sonetos e o retrato de uma menina. Não falaram daquela noite na manhã seguinte nem nunca, mas desde então ela não conseguia olhar para o rosto de Hunter sem sentir um calor percorrer-lhe o corpo.
HUNTER acordou sozinho no quarto. Os outros homens tinham saído com o nascer do Sol. Quando se sentou, tirou a bolsa da camisola interior e espalhou o seu conteúdo na cama. Nunca contava os ganhos à mesa de jogo, mas tinha-os avaliado em cerca de seiscentos dólares. Contando as moedas, viu que, mais coisa menos coisa, acertara. Outra jogada como a da noite anterior e estava pronto para partir.
Pôs-se de pé ao lado da cama e puxou o fato-macaco para cima. Depois, desceu a escada até ao piso de baixo. A sala de jantar estava vazia, à excepção de Isabel, que lhe sorriu timidamente ao mesmo tempo que afastava o cabelo preto da cara.
- bom dia, Pregador!
- Isabel - respondeu Hunter, inclinando o chapéu para a cumprimentar.
Ela enfiou-se na cozinha. Hunter pensou pela milésima vez que ela era muito bonita e abafou o pensamento rapidamente. Durante um certo tempo, considerara a hipótese de lhe permitir a entrada no seu coração, desejando desesperadamente alguém que abrandasse a solidão que o atormentava. Mas as paredes que construíra à volta do coração eram espessas, impenetráveis a belos olhos castanhos.
Sentou-se a uma mesa perto da lareira, e Isabel voltou logo com um prato de pãezinhos embebidos em molho de carne e uma caneca de alumínio com café puro.
- Chegou tarde. Deve ter tido um bom serão.
- Um serão excepcional - assentiu Hunter, empurrando a bolsa na direcção de Isabel para ela guardar juntamente com o outro dinheiro na caixa-forte da pensão. - Não devias ficar à minha espera.
- Estava preocupada, Pregador.
- Porque é que te preocupas comigo?
- Em Goldstrike, um homem que tem demasiada sorte às cartas muitas vezes não é popular. Nem vive muito tempo. - Como ele não respondeu, Isabel olhou para a janela. - Parece que vai chover hoje à noite. Acha que vão adiar a luta?
- Que luta?
Isabel foi à cozinha e voltou com um panfleto que entregou a Hunter. Ele leu-o em voz alta:
Venham todos! Venham todos! O famoso urso SANSÂO, matador de touros, vai enfrentar DALILA, o touro de morte mais feroz alguma vez saído de Espanha. Os cornos de Dalila não estarão embolados para prevenir acidentes.
- É uma exibição bárbara da selvajaria humana - disse Hunter, pousando a folha de papel.
Isabel sorriu. Hunter usava palavras que os outros mineiros nem sequer conheciam. Até uma censura lhe soava a poesia.
- Pensei que talvez pudéssemos ir juntos.
Hunter fitou o rosto ansioso. Havia falta de mulheres no acampamento e poucas mereciam um segundo olhar. Apesar da ameaça de Gayarre, nenhum homem em Goldstrike recusaria tal oferta. Contudo, ele vacilou. Isabel tocou-lhe na mão, olhando-o nos olhos com meiguice.
- ... ou podíamos encontrar-nos em qualquer outro sítio. Podia ler-me o seu livro.
Hunter ajeitou o chapéu enquanto considerava a proposta. Finalmente, perguntou:
- A que horas é a luta?
- Às cinco.
- Encontramo-nos na arena cinco minutos antes de começar.
Isabel sorriu e voltou para a cozinha. Hunter bebeu o café e
depois deixou a sala vazia, partindo para trabalhar na sua fraca concessão.
GOLDSTRIKE ostentava uma atmosfera carnavalesca. Quase toda a população das minas se juntara numa arena improvisada perto do centro da povoação para a luta urso-touro.
A arena tinha cerca de vinte metros de diâmetro, era circundada por tábuas de madeira grossa de três metros de altura e tinha bancadas corridas para os espectadores em toda a volta. Um grupo de mulheres da vida acotovelava-se a um canto na esperança de angariar clientela, mas de momento não pensavam no negócio, visto que até elas estavam imbuídas da atmosfera da competição. Uma banda de música composta pelos mineiros de Goldstrike desvirtuava o hino nacional, The Star-Spangled Banner, por entre a algazarra e o bater de pés dos mineiros impacientes.
Hunter subiu as escadas da arena. Como não encontrou Isabel, arranjou um lugar perto da entrada para esperar a sua chegada. Ao sentar-se, reparou que um homem do outro lado da arena apontava para ele, mas deu-lhe pouca atenção. Aquilo não era novidade. Nunca conseguira integrar-se na população do acampamento e sabia que as pessoas o achavam estranho.
No centro da arena, estava Sansão, o célebre urso-pardo. Perto da parede de madeira oposta a Hunter, sequestrado numa jaula, estava Dalila, um touro de seiscentos quilos que o anúncio dizia ser de ascendência espanhola. Na verdade, o mais perto que o touro estivera de alguma coisa espanhola fora o vaqueiro do Rancho Baccaro, em Provo, no Utah, que o trouxera no dia anterior.
com o aumento de intensidade do som da banda, o portão da jaula foi aberto, e o touro, irritado com a demorada prisão, saiu ao ataque, saltando com as costas arqueadas e atirando a cabeça à toa. Ao ver o urso, raspou com os cascos no chão, levantando uma nuvem de poeira. com um ar indiferente, o urso levantou a cabeça do chão para fitar o touro e depois voltou à sua posição primitiva, de lado. Para delícia da multidão, o touro baixou a cabeça e investiu contra o urso, abrindo-lhe o peito. O urso levantou-se e rugiu ferozmente, mas o seu ronco foi abafado pelo bramido da multidão à vista do sangue que corria pelo torso do animal.
O touro pavoneou-se orgulhosamente ao longo da circunferência da arena e depois tornou a atacar. Desta vez, o urso-pardo apanhou o touro e derrubou-o, aprisionando o frenético animal com as garras poderosas.
Hunter deu consigo a observar não os animais, mas a multidão, que fazia algazarra e ria com tanto gosto da situação difícil em que o touro se encontrava. Achando que, das duas partes, os humanos eram as criaturas mais brutais, Hunter levantou-se para voltar a procurar Isabel.
De repente, o touro libertou-se e fugiu para tão longe do urso quanto a arena permitia. Depois, deitou-se. Perdera toda a agressividade. O urso também perdeu o desejo de lutar e sentou-se sobre os quartos traseiros.
A multidão, descontente, começou a assobiar. Os promotores, que tinham prometido prazer, temeram pela própria segurança e rapidamente começaram a picar o touro com lanças compridas até ele se levantar de um salto, enquanto os espectadores mais próximos do urso atiravam ao animal garrafas vazias e pedras.
Justamente nessa altura, Isabel apareceu por detrás de Hunter e tocou-lhe no ombro. Hunter voltou-se. Isabel estava sem fôlego, com o rosto tenso de ansiedade.
- O que é que foi, Isabel?
- Venha comigo! - disse ela, agarrando-lhe na mão.
Ele seguiu-a até à entrada, onde se encontrava um appaloosa amarrado. Isabel falou em voz baixa:
- Ouvi um homem dizer que você tinha feito batota às cartas e que os vigilantes tencionam castigá-lo.
Aquilo provocou-lhe um arrepio. Hunter estava naquela terreola há menos de cem dias e já testemunhara seis linchamentos às mãos dos vigilantes.
- Conheces o homem?
- Era um homem alto. Disse que tinha jogado póquer consigo na noite passada.
- Cage - assentiu Hunter, amaldiçoando a sua estupidez. Thomas Cage era o chefe dos vigilantes de Goldstrike. Os vigilantes eram a lei em Goldstrike, e a sua justiça vogava facilmente ao sabor dos seus próprios caprichos.
- Disse que iam deixá-lo enforcado mesmo em frente da sala de jogo onde o venceu.
- Ele disse quando?
- Depois da luta, enquanto os espíritos estiverem exaltados e sedentos de sangue, para conseguirem angariar um grupo armado. Leve o meu cavalo, Pregador. Fiz um embrulho com o seu ouro que estava na caixa-forte e tudo o que estava no seu quarto. E embrulhei alguma comida.
- Vou pagar-te o cavalo - disse Hunter, fitando-a com gratidão. Contou cinquenta dólares em moedas de ouro e entregou-lhas. Ela agarrou-lhe na mão e não a largou. Ouviu-se um grito vindo da multidão, e Isabel olhou para a arena e depois para trás.
- Leve-me consigo, Pregador!
- Não posso, Isabel - disse ele, olhando para ela com tristeza. com os olhos cheios de lágrimas, ela tirou uma faca do corpete e
cortou um caracol do cabelo de ébano. Hunter fechou-o nas mãos, enquanto Isabel limpava os olhos.
- Adeus, Pregador.
Hunter abraçou-a, e Isabel encostou-lhe a cabeça ao ombro, depois afastou-se para trás vagarosamente. Ele largou-a e montou o cavalo.
- Não me esquecerei de ti, Isabel.
Isabel afastou-se. Ele espicaçou o cavalo, e quando já tinha desaparecido, Isabel murmurou:
- Deus o acompanhe, Pregador!
Os CÉUS tinham-se tornado cinzentos e, embora ainda não chovesse, relampejavam raios e ribombavam trovões. Nos arredores da povoação, Hunter apontou o cavalo a sul, preferindo as sombras do sopé das colinas à rapidez do deserto. Depois de meia hora de galope duro, os céus derramaram uma chuva miudinha que lhe agradou. Embora não tivesse dado por qualquer sinal de estar a ser perseguido, isso não era consolação. Alguns dos vigilantes eram bons pisteiros e tinham cavalos mais velozes que o de Isabel. A chuva ia tornar-lhes mais difícil seguirem-lhe o rasto, e os homens menos desejosos de segui-lo.
A chuva intensificou-se, ressaltando-lhe do chapéu e transbordando pela aba. Tirou o poncho do saco e enfiou-o pela cabeça. Retomando o caminho, aproximou-se das montanhas à procura de refúgio para a noite.
Havia outras razões, para além da chuva e dos vigilantes, para procurar abrigo. Estava nas terras dos Gosiute, e se atravessasse a montanha, havia de deparar com as suas cabanas de Inverno feitas de casca de cedro, se não com eles mesmos. Um homem solitário vagueando pelo território talvez fosse deixado em paz pelos Gosiute, mas não podia ter-se a certeza.
Cavalgando ao longo da recortada base rochosa das colinas, localizou uma fissura bastante grande na rocha. Desmontou e conduziu o cavalo até à boca da fenda, que abria para uma pequena caverna na rocha. Procurou um ramo de árvore e sondou a cavidade à procura de cobras cascavéis. Quando se certificou de que estava vazia, amarrou o cavalo a alguma distância dali e tirou-lhe a sela. Depois, cobriu o chão da caverna com a manta da sela. Pouco depois de rastejar para dentro da gruta, a chuva aumentou, mas o interior permaneceu seco. Na escuridão, Hunter tirou o caracol de cabelo de Isabel de dentro do bolso da camisa, desejando não estar só.
ERA SEMPRE o mesmo pesadelo que ensombrava o sono de Hunter, embora tivesse lugar em diversos cenários. Naquela noite, o sonho passou-se numa sala muito ornamentada, com sofás e cadeiras , de brocado rico. Não pareceu estranho a Hunter que a sala não tivesse tecto e estivesse exposta ao céu frio da noite.
Na companhia dele, estava uma mulher linda de lábios grossos e um rosto delicado com olhos amendoados e profundos. A pele luminosa era suave e clara como porcelana, e o cabelo castanho-escuro estava afastado da cara e preso com um gancho de marfim. Hunter e a mulher estavam juntos, deitados sobre um tapete persa.
- Tive tantas saudades tuas! - sussurrou ela com a face macia encostada à dele. - Está frio, meu amor. Abraça-me mais.
Quando Hunter abraçou a mulher, ela suspirou, contente, e o som invadiu-o como um hino. De repente, ele sentiu um calor nas costas.
- O sol - disse a mulher.
Ao falar, as primeiras luzes da madrugada afastavam o véu da noite. Olhando-a, ele viu que estava a ficar pálida, depois translúcida como cera. Abraçou-a com força.
- Por favor, não me deixes outra vez.
Tentou estender o corpo sobre o da mulher para a abrigar do sol mortífero, mas a pele dela ficou húmida com o calor da madrugada.
- ... lamento, meu bem-amado - disse, com uma lágrima correndo pela face abaixo como o pingo de uma vela. Também os olhos dela começaram a derreter-se numa escalada, até ela desaparecer e ele, soluçando baixinho, se levantar e ficar de joelhos. Debaixo dele restava apenas uma impressão, como uma sombra, no lugar onde ela estivera deitada e uma aliança de ouro. De repente, o ar foi penetrado pelo som de um choro de bebé. Ele levantou a aliança e, apertando-a, olhou para o Sol e gritou.
HUNTER acordou ao som do seu próprio grito. O céu tinha clareado, e o sol da manhã penetrava na caverna. Tinha os olhos húmidos. Enfiou a mão por baixo da camisa até encontrar o cordão que usava ao pescoço e acariciou a aliança de ouro que trazia pendurada. Saiu da caverna e escrutinou a paisagem deserta para os lados onde a cordilheira de Wasatch abraçava o vale de Salt Lake num crescente de pedra. Tentou determinar a distância que tinha percorrido para sul.
Ao fugir de Goldstrike, Hunter dera menos atenção ao lugar para onde ia do que ao lugar de onde vinha. Na verdade, era assim que ele vivia a vida. Abandonara tudo na sua fuga para o Oeste, tudo menos as recordações, às quais não podia escapar.
Hunter deixara a Pensilvânia há quatro anos, com a intenção de pôr a maior distância possível entre a sua vida anterior e ele próprio. Encaminhara-se para a costa oeste à procura de ouro em vez de Deus, levando consigo os poucos bens de que não conseguira separar-se: um livro de poesia, o seu diário e as provisões apenas suficientes para assegurar a sobrevivência. Viajando numa caravana de carroças no trilho Califórnia-Oregon, descobriu a verdade sobre a corrida ao ouro por intermédio de homens destroçados que vinham em direcção oposta.
As esperanças dos prospectores que sonhavam voltar para as famílias carregados de riqueza haviam-se desvanecido. O ouro fácil, esse minério apanhado ou peneirado no leito dos rios e dos ribeiros, desaparecera há muito. Agora, os homens lutavam e açambarcavam, morriam por miseráveis lotes de terra esgotada, e os únicos que enriqueciam eram os comerciantes.
Depois, vieram as grandes companhias com capital que levavam máquinas hidráulicas e dragas. Os mineiros deixaram de ser prospectores de ouro e passaram a ser empregados ao serviço de empresas do Leste cujos donos eram homens que nunca tinham posto os olhos no Oeste nem sujado as unhas com a sua terra.
O suicídio era comum. As prisões estavam cheias, a abarrotar, e os enforcamentos eram coisa banal. O jogo a dinheiro era uma epidemia, especialmente entre aqueles que menos dinheiro tinham. Hunter, que nunca fora além de um jogo de brídge entre cavalheiros, aprendeu as regras e as nuances do póquer e compreendeu que o sacerdócio o industriara bem nos princípios para ganhar às cartas: paciência e disciplina.
Hunter não tinha poiso fixo, como qualquer jogador bem-sucedido, quedando-se num acampamento apenas até os mineiros evitarem jogar com ele ou decidirem que ele fazia batota e ameaçarem linchá-lo. No seu caminho para sul, passando pelo Nevada, Hunter ouviu falar de Goldstrike, a próspera povoação mineira no deserto do Utah, e decidiu experimentar as suas mesas de jogo.
À sua chegada a Goldstrike, viu um homem a balouçar de uma corda pendurada num grande plátano. Considerou aquilo um mau presságio. Nesse mesmo dia, começou a planear a sua própria fuga, na esperança de o fazer com um aumento de capital tão grande quanto possível. Quando jogava, Hunter seguia religiosamente um estratagema simples: perder mais mãos do que as que ganhava, mas perder pouco e ganhar muito e deixar os ganhos acumularem-se, porque pode tosquiar-se um carneiro muitas vezes, mas só se pode esfolá-lo uma vez. Após três meses em Goldstrike, decidira fazer a sua matança - lã, sangue e ossos - e deixar a povoação tão depressa quanto possível. Os vigilantes apenas tinham apressado a sua partida.
À EXCEPÇÃO da necessidade de água, Hunter podia aguentar mais de uma semana com as provisões que Isabel lhe dera. A água era o problema de sempre. Já só lhe restava metade de um cantil e não tinha maneira de saber da existência de fontes no seu trajecto pelo Utah central. Era uma região cruel, pontuada por longos campos brancos de álcali e juncada de ossadas de animais. Muitos tinham morrido por falta de água naquele deserto, com as línguas negras e inchadas pela sede. Contudo, os Gosiute sobreviviam ali. Tinha de encontrar a sua fonte até ao cair da noite.
Montou e continuou a seguir a linha da cordilheira. Por volta do meio-dia, a água já se esgotara, e ele prosseguiu a cavalo debaixo de um sol a pique, desejando ardentemente nuvens e chuva. Chupava uma pedrinha para conservar a boca húmida. Quando o Sol começou a sua ansiada descida por detrás da cordilheira, Hunter avistou acima de si, numa saliência granítica, qualquer coisa balouçando ao vento, juncos, com as cabeças a espreitarem. Encaminhou o cavalo para o rebordo, atou-o a uma árvore e escalou o rochedo até à saliência, onde uma fonte brotava da montanha. Rastejando sobre o peito até à beira do leito do riacho, bebeu até o estômago quase lhe rebentar e depois deitou-se de costas sobre o rebordo de uma pedra lisa como um lagarto gigante.
Minutos depois, rebolou e desceu do rochedo, e conduziu o cavalo até um terreno pantanoso a um nível mais baixo, onde o animal podia alcançar a água. Enquanto o cavalo bebia, Hunter fez o reconhecimento do terreno à procura de um lugar para acampar.
Não encontrou qualquer caverna nem nenhum afloramento rochoso, por isso escolheu um terreno plano e foi apanhar lenha: ramos secos e retorcidos para o fogo e carrasca de pinheiro para improvisar uma cama a céu aberto. Depois, foi montanha abaixo com a carabina, e em menos de uma hora matou uma lebre, que levou para o acampamento.
Acendeu uma fogueira, esfolou o animal, depois espetou a carcaça num espeto de madeira e improvisou um assador.
Conforme a lebre cozinhava, os sucos escorriam e chiavam nas chamas, e apeteceu-lhe um dos pãezinhos de milho de Isabel para acompanhar a refeição. Pensou novamente em como apreciara a companhia da jovem. Ocorreu-lhe um verso do Génesis: "Não é conveniente que o homem esteja só." Perguntou a si próprio se as paredes que erigira em torno do seu coração estavam finalmente a tornar-se vulneráveis e que mais poderia acontecer se elas ruíssem.
Agarrando no espeto, tirou a lebre do lume e rasgou-lhe a carne com os dentes. Soube-lhe melhor do que esperava. Felicitou-se por ter encontrado aquele lugar para acampar e achou que podia simplesmente ficar ali algum tempo e viver da terra, como um homem da montanha. Nas suas viagens, encontrara raianos e interrogara-se se aquele tipo de existência lhe agradaria. Mas Hunter era mais um produto da civilização do que do deserto, e antes queria negociar uma refeição com palavras do que com as mãos. Por muito bom orador que fosse, nunca conseguira convencer um veado a ceder-lhe a sua carne.
Quando a noite caiu, Hunter arrastou um tronco para a fogueira e deixou-o arder enquanto se deitava a fitar as constelações no céu. Lembrou-se de quando a abraçava debaixo do manto celestial. Nessa altura, as coisas eram diferentes. As estrelas eram diferentes. Não eram um milhão de olhos divinos zangados a fuzilarem-no lá de cima. Foi o seu último pensamento antes de adormecer.
HUNTER acordou cedo. Voltou ao riacho e bebeu até se fartar, enfiando depois lá dentro a bolsa de água, o cantil e tudo o mais que pudesse conter água. Poderiam passar-se mais dois ou três dias até encontrar outra fonte.
Enquanto enchia o último recipiente, reparou numa coisa que não vira na obscuridade do crepúsculo da véspera: a terra junto da margem do riacho estava salpicada de centelhas amarelas. Levantou uma mão-cheia a pingar com uma areia preta salpicada. Por um momento, o coração bateu-lhe apressadamente e depois sorriu da sua ingenuidade. Para ser ouro, a quantidade era demasiada. Ele levara dias a extrair de uma tonelada de cascalho uma quantidade de ouro para encher um dedal, e aqui o minério amarelo estava espalhado por toda a parte, como se tivesse sido vertido da bolsa de um joalheiro.
Tirou do riacho duas pedras lisas, colocou uma das pepitas maiores em cima da pedra mais lisa e martelou-a com a outra. Para sua surpresa, a gravilha amarela era maleável, achatando-se com as pancadas. Virou o chapéu e depositou o ouro lá dentro. Depois, meteu ambas as mãos no riacho e tirou mais areia, revelando pepitas ainda maiores. Na hora seguinte, descobriu a maior pepita que vira desde que chegara ao Oeste - calculou que pesaria meio quilo ou mais.
Trabalhou no riacho todo o dia, e o seu apetite por comida foi substituído pela fome de ouro. À noite, enchera quase metade do chapéu de feltro.
Durante os dois dias seguintes, Hunter cavou à mão e à faca. Ansiava por uma peneira ou uma pá ou qualquer dos instrumentos que abandonara na sua fuga, mas a colheita revelou-se tão rica que ele não se queixou. Era como caçar um urso dentro de uma jaula, pensou.
A meio da manhã do quarto dia, enchera com ouro a bolsa e uma garrafa de whisky vazia. Troçou de si mesmo pelo frenesim. Não era provável que o ouro fosse fugir dali. O que tinha de fazer era registar uma concessão, arranjar ferramentas adequadas e tratar daquilo com eficiência. Para além de Goldstrike, o gabinete de avaliação de metais mais próximo era em Salt Lake City, que ficava a um dia e meio de distância.
Hunter talhou as suas iniciais no tronco de um pinheiro e depois deu trinta passos para leste. Cavou um buraco e escondeu uma parte do ouro para o caso de ser atacado por bandidos. O restante levava dentro da roupa e nos alforges. Demarcou um lote na montanha à volta do riacho, juntando pedras numa pirâmide onde enfiou um ramo de um carvalho anão. Fez uma pirâmide igual em cada um dos cantos da sua concessão.
Selou o cavalo, depois observou bem o terreno, memorizando os picos e os pontos conspícuos da cordilheira ao fundo. A história do Oeste estava repleta de relatos de minas de ouro perdidas, e ele conhecera mineiros que tinham passado as vidas em busca de algo que só haviam visto uma vez.
De repente, gritou como se estivesse diante de uma congregação invisível:
- Declaro solenemente a fundação de Belltown. - A sua voz foi levada pelos ventos sibilantes do deserto, ecoando no sopé da montanha. Ele olhou para o deserto abandonado que o rodeava e arrependeu-se. - Não - murmurou. - Isto está às portas de Deus. vou chamar-lhe Bethel.
Partiu pelo deserto em direcção a Salt Lake City.
SALT LAKE CITY era uma cidade movimentada de mais de nove mil habitantes, sendo a maioria deles mórmones, guiados para o Oeste por Brigham Voung. Embora os mórmones pioneiros tivessem levado mais de cem dias para chegar àquele vale, vindos do Missuri, tinha havido um grande progresso nas estradas, e agora uma diligência conseguia fazer a viagem em apenas duas semanas. A cidade era uma paragem natural para aqueles que se dirigiam para o Oeste e o negócio prosperava.
Hunter passara a anoite acampado no deserto e chegou à cidade mesmo antes do meio-dia, cansado e com fome. Parando num restaurante, pediu pão, legumes de conserva e uma cerveja. Tirou a bolsa discretamente e pagou com ouro. O proprietário olhou com inveja para o saco cheio.
- Tem aí uma boa quantidade de metal! - comentou.
Hunter fitou o homem, desconfiado, mas não respondeu e foi sentar-se à mesa. Partiu o pão e devorou-o, sempre observado pelo homem.
- Por onde andou a explorar? - perguntou o homem.
- A ocidente - respondeu Hunter secamente. Emborcou a cerveja a seguir à última côdea e depois limpou a boca com a manga da camisa. - Qual é o caminho para o avaliador de metais?
- É mesmo a leste daqui. Tem uma tabuleta à porta.
Hunter despediu-se com um aceno de cabeça. Quando ia a sair do restaurante, viu a sua própria figura reflectida no vidro de uma grande montra. Parou a fitar-se. Tinha um ar tão rude como o de qualquer outro homem no Oeste, e achou graça ao pensar que os seus paroquianos ficariam apavorados se o vissem.
Registar a concessão não foi difícil. Não tinham sido solicitadas quaisquer concessões num raio de quinze quilómetros de Bethel, que era considerada um baldio inabitável. Hunter reivindicou dez hectares em redor do riacho, desenhando de memória um mapa do terreno.
Depois de completada a burocracia, enrolou a escritura no bolso e saiu para ir arranjar provisões.
Estacionada para venda em frente da estrebaria, estava uma carroça de carga Owensboro que fizera a viagem para oeste. Depois de Hunter determinar que estava em condições, mandou o dono encher a parte de trás com feno enquanto ele ia inspeccionar o gado. Escolheu duas mulas e uma vaca Guernsey e depois comprou três porcos para matança, uma dúzia de galinhas Leghorn e um galo Leghorn.
Pagou ao dono da estrebaria, atrelou as mulas à carroça, prendeu o cavalo e a vaca à retaguarda e acondicionou os porcos e as galinhas em duas grades de madeira. Levou a caravana a cacarejar e a zurrar até à sua próxima paragem, deixando para trás o dono da estrebaria enriquecido a espalhar a notícia da sua boa fortuna.
Hunter distribuiu o seu ouro pelos proprietários de vários outros estabelecimentos ao carregar generosamente a carroça de provisões. Começou pela comida, comprando grandes sacas de farinha, trigo, cereais, feijões e batatas. Latas de caldo de carne, melaço, fermento e um pote de mel. Café em grão e chá, carne de porco e de vaca salgadas. Uma grade de maçãs secas. Seis garrafas de whisky.
Num armazém de tecidos, adquiriu um monte de cobertores de lã pesados. Uma tenda de lona. Uma barrica para armazenar a água da chuva. Uma caixa de pregos. Caçarolas e cafeteiras, um moinho de café e um bule. Uma cadeira de balouço e uma cómoda. Comprou um machado e um serrote, uma vidraça que embrulhou nos cobertores e ferragens para uma porta de vaivém.
Adquiriu pás e panelas, várias picaretas, uma enxó e uma caixa de dinamite. Comprou uma caçadeira e uma carabina da tropa, munições e uma pistola com gravuras florais no cano por gostar do seu equilíbrio ao pegar-lhe.
Acabou as compras e depois parou num restaurante e encomendou a primeira refeição requintada que saboreara desde S. Francisco: ostras na concha e creme de couve-flor. Mas não acabou a refeição. O seu paladar tinha-se habituado às coisas simples, como pão de milho, carne seca e feijões. Considerou a ideia, embora por pouco tempo, de passar a noite num hotel com uma tina de porcelana e a barba feita no barbeiro. Percebeu que algo mais mudara do que a sua simples aparência. Já não estava a adaptar-se à cultura do Oeste, tinha-se tornado parte dela. Duas horas antes do pôr do Sol, subiu para a carroça carregada e iniciou o caminho de regresso a Bethel.
OCULTAR um achado grande de ouro era como esconder um cadáver nas planícies do Vale da Morte: os abutres cercam o animal antes de ele exalar o último suspiro. Ainda Hunter não estava de volta ao acampamento, já a notícia do achado de Bethel tinha aberto caminho até aos jornais de Salt Lake City. Era uma história sensacional, um verdadeiro conto popular: um homem misterioso que surge do deserto com uma bolsa a abarrotar de ouro!
Num mês, mais de mil e seiscentos homens tinham invadido os sopés dos montes de Bethel. Delineou-se uma rua principal, primeiro com tendas de lona, depois com estruturas mais permanentes, quando foi trazida madeira para construção de Salt Lake City. A pensão de Bethel encheu-se completamente ainda antes de a sua tabuleta ter sido pendurada.
Os exploradores começaram a chegar das cidades próximas e dos estados vizinhos do Nevada, Idaho, Wyoming e Colorado. Eram na sua maioria homens brancos, mineiros pobres e vagabundos, embora apimentados com as mesmas raças que enxameavam todos os acampamentos mineiros do Oeste: mexicanos, chilenos, negros e chineses.
Os mais invulgares eram os chineses. Enquanto a maioria dos mineiros chegava sozinha a Bethel, os chineses apareciam em grupo, acotovelando-se em carroças apinhadas, com lanternas de papel oscilantes ou a pé, transportando os bens ao ombro, na ponta de varas de bambu. Caminhavam sob chapéus de abas largas feitos de vime, com os rabichos entrançados caindo até à cintura, e os seus passos eram acompanhados pelo bater das socas de sola de madeira.
Os imigrantes chineses já faziam parte da paisagem do Oeste, pois haviam para ali imigrado mais de cem mil deles. No entanto, ainda eram um espectáculo suficientemente peculiar para um homem ser levado a pousar a pá para os ver passar.
A FAMÍLIA Chang tinha vindo da província de Nanquim em 1853. Desembarcara em S. Francisco e, durante os quatro anos seguintes, havia peneirado cada vez mais para norte em busca de ouro, a caminho de Sacramento. Foi aí que a notícia da descoberta de Bethel encontrou os Chang. Deixaram a Califórnia na esperança de solo mais rico no Utah e, depois de chegarem, reclamaram a concessão do leito do riacho abaixo da concessão de Hunter Bell. Levou apenas um dia para a família construir um pequeno aglomerado de tendas e casas de colmo.
Hunter não andava a peneirar na semana em que os chineses se fixaram no terreno virado para a concessão dele. Estava a tratar de construir a sua cabana, tarefa quase impossível para um homem só. Três dias após a chegada deles, aproximou-se dos chineses para saber se estariam dispostos a ajudá-lo a troco de salário.
Chegado ao acampamento deles, deteve-se a observar os seus curiosos trabalhos. Os chineses tinham experiência anterior de canteiros inundados de arroz e conheciam métodos ignorados pelos exploradores brancos para desviar uma corrente de água do seu curso a fim de tornar acessível o seu leito rico. O pequeno grupo já iniciara a construção de uma barragem.
Era uma dúzia de pessoas ao todo, incluindo quatro mulheres e um garoto de cara redonda de cinco anos. A maioria deles usava calças largas e meias fortes até ao joelho. Quando Hunter avançou, o garoto gritou, e o grupo fitou ansiosamente o intruso. Um homem, mais novo do que os restantes adultos e o único que vestia calças de ganga e camisa de flanela, pousou a pá e aproximou-se de Hunter timidamente. Uma mulher foi buscar a criança e levou-a para uma tenda onde as outras mulheres se tinham reunido.
Hunter nunca tivera muito contacto com chineses. Eles isolavam-se, raramente entrando nos saloons ou jogando póquer. Não era por não apreciarem jogos de azar, visto que jogavam incessantemente sessões vociferantes de mah-jong, mas porque jogavam entre eles e mais por entretenimento do que por ouro.
O jovem aproximou-se uns metros e tirou o chapéu. Estava ladeado pelos outros homens. O mais velho disse qualquer coisa em chinês, e o jovem puxou um papel do cinturão e estendeu-o a Hunter. Ele leu o aviso: "Por este meio, é dado conhecimento que nós, os abaixo assinados, registámos noventa metros desta faixa de terreno e leito do rio para fins de exploração de minério em 1857 e 1858. ChangYan&Co."
- Eu não vim contestar a vossa concessão. Vim para saber se estariam dispostos a ajudar-me a construir a minha cabana. Pago-vos pelos vossos serviços. - Não obteve resposta. Hunter perguntou a si mesmo se algum deles falaria inglês. - Construir cabana - repetiu em voz alta, apontando para uma das casas de colmo deles.
O emissário voltou-se e falou em chinês. Depois de olhar fixamente para Hunter durante um momento, o mais velho acenou afirmativamente com a cabeça. O jovem disse com um sotaque carregado:
- Você paga-nos. Nós ajudamos a construir.
- Então, fala inglês!
- Falo um pouco.
- Como se chama?
- Chang Jya Lung. O meu nome americano é Sonny. Hunter estendeu-lhe a mão:
- Eu chamo-me Hunter Bell. - Receosamente, o homem apertou-lhe a mão, e Hunter prosseguiu: - Quanto levam?
- Quinze dólares.
Hunter franziu o sobrolho e esfregou o queixo.
- Isso é muito para um dia de trabalho.
- Para construir a cabana - retorquiu o outro.
- Então, não é suficiente - disse Hunter. - Pago vinte e cinco dólares.
O homem fitou-o com curiosidade e depois voltou-se para os outros homens e falou com eles. As expressões ansiosas suavizaram-se. As mulheres e as crianças saíram das tendas.
- O que é que você lhes disse? - perguntou Hunter.
- Disse-lhes o senhor homem honrado. - Hunter não respondeu ao elogio.
- Quando é que podem ajudar-me?
- Vamos agora.
Para sua surpresa, o grupo inteiro seguiu-o até à sua concessão. Sonny traduzia enquanto Hunter lhes mostrava onde tinha andado a cortar madeira, atrelando as mulas aos troncos e arrastando-os para o terreno. Três homens e todas as mulheres começaram a trabalhar, descascando os toros de abeto enquanto os restantes homens derrubavam mais árvores. Construíram um trenó rudimentar e arrastaram os troncos para o terreno, onde os juntaram num grande monte.
Na manhã seguinte, Hunter foi acordado pelo barulho dos chineses a tagarelarem na sua língua estridente. O grupo reunira-se para trabalhar e tinha surgido um desacordo. Sonny foi mandado falar com Hunter para explicar. Estavam preocupados com a orientação da cabana. Sonny explicou a necessidade defeng shui, ou seja, a construção da cabana em harmonia com a paisagem circundante. Queriam colocar a porta da cabana do lado contrário às instruções de Hunter não de frente para uma parede de rochas agrestes que certamente continham energia destrutiva. Os chineses mostraram-se tão preocupados que Hunter lhes fez a vontade.
Levaram dois dias a erguer as paredes e um dia e meio a fazer o telhado, cuja inclinação ficou em harmonia com o declive da encosta.
Hunter aproveitou as importações do número crescente de comerciantes de Bethel, a quem comprou tábuas aparelhadas e pregos de madeira para construir um soalho. O último acessório acrescentado à cabana foi uma porta de vaivém que Hunter fez usando as dobradiças que comprara em Salt Lake City. Agradou-lhe a facilidade com que a porta girava. Os chineses ficaram igualmente impressionados, e cada um foi, à vez, experimentar a porta.
Quando completaram a cabana, Hunter negociou com os chineses para continuarem a trabalhar para ele. Limparam então um renque de cedros, deixando um círculo de árvores às quais amarraram horizontalmente e com firmeza os troncos derrubados, fazendo assim uma cerca para os animais. Finalmente, construíram um estábulo e uma latrina.
Acabaram na véspera do sétimo dia, uma ironia que não passou despercebida ao pregador. No dia seguinte, a convite de Hunter, os chineses voltaram. Hunter matou um dos seus porcos, as mulheres assaram-no e festejaram em conjunto. Hunter pagou-lhes quarenta dólares em ouro e depois presenteou-os com a sua tenda, um garrafão de whisky e um pote de açúcar. Sonny entregou-lhe um recibo rabiscado referente ao pagamento. Antes de regressarem ao acampamento deles, os chineses penduraram sobre a porta de Hunter um estandarte vermelho escrito em caracteres chineses. Sonny traduziu: "Saúde, Felicidade e Longa Vida." Depois, largaram uma série de panchões que fizeram um eco estrondoso pelas colinas.
- Qual é o significado dos foguetes? - perguntou Hunter.
- Assustar e afastar os espíritos do mal.
- Para isso é preciso um poder maior que o da pólvora - comentou Hunter sardonicamente.
A cabana era suficiente para um homem só. Tinha uma janela de noventa centímetros de largura e uma lareira de pedra e tijolo com uma simples cornija de pinho, sobre a qual estava empoleirada toda a loiça de Hunter: dois pratos, uma caneca de folha e uma caneca de cerveja. Hunter construiu um pequeno alpendre com uma balaustrada de pinho e um banco. Depois, uma mesa apoiada sobre cavaletes e uma prateleira que planeava encher de livros.
Havia anos que Hunter não tinha casa própria. Fez umas cortinas e pregou-as por cima da janela. Em Bethel, comprou um armário de carvalho, um espesso colchão de sarja adequada ao fim e uma pele de búfalo. Construiu uma cama com grossos troncos de pinheiro, que planeava entalhar em belos torcidos durante o Inverno.
Só passada uma semana se deu por satisfeito com as suas instalações e voltou ao riacho para peneirar ouro.
QUANDO Quaye chegou a Bethel num dia sufocante de fins de Julho, não fez grande reparo, visto não a achar diferente de qualquer outra povoação do Oeste que conhecera nos últimos seis anos.
Vinha montada no cavalo atrás do marido, com a cabeça encoberta por uma touca, usada por insistência de Jak. Cobria-lhe as marcas dos espancamentos, demasiado recentes para terem desaparecido. As feridas mais profundas não as tinha no corpo.
Ironicamente, o Oeste brutal exigia melhor tratamento para as mulheres do que o Leste, e Jak aprendera a não bater em Quaye em público com receio de retaliações. Como a maior parte das pessoas que abusam dos fracos, Jak era um cobarde.
Jak prendeu as rédeas do cavalo à porta da pensão e lá dentro foram recebidos pelo dono. Quaye manteve-se atrás do marido, com a cabeça ligeiramente inclinada. O proprietário era da altura de Quaye, careca, com barba comprida. Quando os viu entrar, teve de se conter para não olhar para a jovem.
- Precisamos de instalação para dois - disse Jak.
- Desculpe, mas já tenho homens a dormirem no chão da sala de jantar - disse ele, apontando como prova para um monte de sacos-cama enrolados. - Sugiro que compre uma tenda no armazém.
- Precisa de uma mulher para cozinhar e fazer limpezas? - perguntou Jak com ar carrancudo.
- A ajuda de uma mulher é sempre precisa - disse o homem, fitando Quaye.
- Quanto paga?
- Um dólar e meio por dia. E comida para a senhora. - Jak conhecia o valor monetário da mulher.
- Pode contar com ela por dois dólares e meio e comida para ambos.
- Dois dólares e comida para ambos - contrapôs o homem, cofiando a barba. Jak parecia hesitante, e o homem acrescentou: - E pode arranjar sítio para dormir no estábulo. Não tenho lá animais desde que o meu cavalo morreu.
- Gastámos o nosso dinheiro todo para chegar até aqui - disse Jak.
O homem meteu a mão ao bolso e tirou algumas notas.
- Posso dar-lhe dois dias de ordenado adiantado se ela começar amanhã de manhã, meia hora antes do nascer do Sol.
- Ela cá estará - assentiu Jak, metendo o dinheiro no bolso. Quando saíram, Quaye continuou calada. Estava satisfeita com
o emprego. Tudo para a afastar dele.
- Preciso de uma bebida - disse Jak. - Vai dar de beber ao cavalo e depois vai ver onde ficamos.
- Tenho fome - disse ela.
- Depois de tratares do cavalo - disse ele, entregando-lhe vinte e cinco cêntimos -, podes comprar pão para ti.
Quaye recebeu a moeda, depois agarrou nas rédeas do cavalo e fez o que ele lhe disse.
JAK MORSE nascera de uma família pobre numa pequena barraca a uma hora de caminho de Macon, na Geórgia. O pai, Lucius Morse, era um homem supersticioso, dado a violentas explosões de humor, usualmente dirigidas contra Jak ou a mãe. Provavelmente, foi bom para Jak que Lucius tivesse desaparecido antes de ele fazer sete anos, embora fosse difícil imaginar que o rapaz pudesse ter-se tornado muito pior.
A mãe de Jak, Virgie Morse, era uma mulher austera e religiosa que sofria orgulhosamente em sinal de devoção. Nunca procurava proteger-se a si própria nem a Jak da violência do marido, visto que atribuía toda a desgraça à vontade de Deus. Não passava muito tempo com Jak, excepto para o disciplinar, o que fazia com grande severidade. Não era de surpreender que ele se tivesse tornado ruim.
Jak ainda não tinha dezoito anos quando a mãe contraiu tuberculose. Ele não sentiu obrigação de tomar conta da mãe doente, e certa manhã foi-se embora, deixando para trás as galinhas à fome e o tomate maduro por colher.
Depois de andar para oeste durante uma quinzena, mendigando comida e dormindo em palheiros, arranjou emprego como ajudante de um capataz de plantação, uma posição bem adequada ao seu temperamento. Os escravos em breve aprenderam a temê-lo, porque ele era tão sádico quanto preguiçoso.
Prosperou no lugar aproximadamente durante seis meses, até que se interessou por uma das escravas, uma jovem que ajudava na cozinha. Tentou abusar da rapariga assustada e foi apanhado por uma cozinheira, uma negra enorme chamada Miss Linnie que governava a casa. Jak não era adversário à altura dela. Ela deu-lhe uma sova, e ele fugiu sangrando, humilhado. Uma hora depois, voltou com uma arma e matou-a.
Embora não tivesse de responder por assassínio perante a lei local, a lei da plantação era outra história. O proprietário, tendo perdido o seu investimento numa escrava valiosa, mandou açoitar Jak até ele mal conseguir arrastar-se dali para fora.
Jak foi andando para norte até às docas nova-iorquinas, com esperança de encontrar trabalho num navio que estivesse de partida. Em vez disso, dedicou-se a explorar os bandos de irlandeses esfomeados que chegavam diariamente.
Os irlandeses mal sabiam o que iam encontrar no fim da viagem. Mal os barcos atracavam, bandos de homens saltavam por cima da amurada para o convés. Eram homens melífluos com falso sotaque irlandês. Esses bandidos eram empregados pelas tabernas e pensões para atrair os imigrantes para aqueles estabelecimentos, onde a maior parte do seu dinheiro lhes era extorquido. Jak não levou muito tempo a aprender a rotina.
Ao fim de meio ano deste ofício, percebeu que podia tirar maiores lucros trabalhando como intermediário de venda de passagens nos navios. Viajou para a Irlanda, e aquilo que fazia aos irlandeses em Nova Iorque passou a fazer com mais lucro em Cork. Depois de vender passagens para um navio, encaminhava os clientes para estabelecimentos imundos onde lhes davam uma tarimba e comida por preços exorbitantes até os navios estarem prontos para partir. A média da estada era de uma semana a dez dias.
As circunstâncias desesperadas dos irlandeses tornavam-nos excepcionalmente vulneráveis, e na última semana da sua estada na ilha Jak começou a vender passagens num navio inexistente. Estava envolvido nessa fraude quando deparou com Connall McGandley.
Na viagem de regresso à América, obrigou Quaye a viajar no porão, a não ser quando sentia desejo dela, até que a rapariga apanhou disenteria, sendo proibida de subir ao convés.
Em pouco tempo, Jak percebeu que Quaye era para ele um objecto que, devidamente explorado, podia assegurar-lhe o sustento e a bebida. Empregava todos os meios necessários para garantir que ela permanecia a sua besta de carga. Entre espancamentos frequentes, Jak recordava-lhe que ela lhe devia a vida, e, embora tivesse vindo a ganhar esperança de que ele lha tirasse, ela também acreditava nele.
Quaye aprendera a distanciar-se mentalmente quando era espancada, observando o corpo açoitado como um objecto inanimado, sem vida nem coração. Perdeu qualquer esperança na felicidade.
Na Primavera de 1851, quatro anos após a chegada de Quaye à América, Jak arrastou-a até à Califórnia. Teve pouco êxito na exploração do minério, mas se o seu sonho de riqueza fácil desaparecera, a sua vida de ócio não, visto que o fardo simplesmente passara do leito dos rios para as costas de Quaye.
QUAYE não tinha objecções a pôr às suas novas instalações. O tecto e as paredes do estábulo eram sólidos e proporcionariam mais isolamento do que uma tenda no Inverno que se aproximava. O dono da pensão emprestara-lhes uma pequena cama de campanha, que foi reivindicada por Jak, enquanto Quaye dormia num cobertor sobre a palha num dos curros, o que era preferível a ficar ao lado de Jak. Apreciava o facto de estar fora durante o dia quando Jak estava em casa, e em casa à noite quando Jak saía.
Enquanto Jak gastava no jogo e na bebida a maior parte do dinheiro que ela ganhava, Quaye levantava-se às 4 da manhã todos os dias e começava a preparar os pequenos-almoços e as lancheiras dos mineiros. Quando acabava, ia levar o almoço a Jak e depois voltava para limpar a cozinha e a pensão e preparar a refeição da noite para os hóspedes.
Quaye era estimada pelos mineiros, embora mantivesse as suas distâncias. Mesmo que Jak permitisse que ela se desse com as pessoas, ela não o teria feito. A vida ensinara-a a temer os homens.
Os mineiros davam-lhe gorjetas ocasionais, que ela guardava numa caixa de chá vazia na cozinha. Sonhava amealhar o suficiente para comprar um vestido. Alimentou o sonho até certa noite em que entrou e deu com Jak sentado na cama segurando uma garrafa quase vazia de brandy e com o rosto a brilhar de raiva. Tinha a lata aos pés e o seu conteúdo espalhado no chão de palha.
- O que é isto? - grunhiu ele com uma voz gutural.
- É dinheiro que eu guardei - respondeu ela timidamente.
Os olhos dele cintilaram com um brilho familiar, e ela percebeu que era demasiado tarde para alterar o curso dos acontecimentos.
- Andas a roubar-me? - perguntou Jak, dando um passo na direcção dela.
- Foi um mineiro que me deu de gorjeta - respondeu Quaye, não ousando fitá-lo. - Eu ia dizer-te ...
- Dizer-me! - repetiu ele, empurrando-a para um canto do celeiro. - E o que é que tu lhe deste em troca?
- Ele gostou dos meus cozinhados.
Jak levantou o punho, e ela encolheu-se instintivamente.
- Que mais lhe deste?
- Nada. Desculpa. Não devia ter escondido o dinheiro - disse ela, cobrindo o rosto com as mãos.
Ele agarrou-a pelo cabelo, puxou-lhe a cabeça para a frente e depois bateu com ela na parede. Começou a sová-la, lenta e determinadamente, enquanto ela tentava em vão proteger-se.
Jak continuou a bater-lhe até perder a vontade. Depois, virou-se e voltou à sua bebida. Quaye caiu a um canto. Não chorou alto porque ele também lhe bateria por essa razão. Quaye aprendera as leis de sobrevivência do seu mundo.
A PRIMEIRA neve de Bethel chegou a meio de Outubro num sussurro que cobriu o solo. Os mineiros começaram a armazenar comida e lenha e a remendar buracos nas tendas e nas cabanas. Três semanas depois, chegou o primeiro nevão forte, de mais de quinze centímetros. O solo tornou-se demasiado gelado para trabalhar com a picareta, e quer o riacho, quer a actividade dos mineiros foram congelando a pouco e pouco.
Era a época da hibernação, quando os mineiros ficariam dentro de casa durante semanas a fio, jogando cartas e conversando, consertando o equipamento, mas a maior parte das vezes apenas inventando maneiras de se aquecerem. Os mais infelizes eram os que viviam em tendas e abrigos escavados na encosta da montanha, que passavam as noites embrulhados em cobertores e alimentando as fogueiras e os dias reunidos no saloon à procura de calor.
A 6 de Dezembro, foram atingidos por uma nevasca, e durante três dias o vento uivou pela montanha como gemidos de um milhar de fantasmas.
A cabana de Hunter ficava numa encosta alta. A neve acumulou-se contra a parede virada a poente, até a linha da encosta seguir ininterrupta desde o chão até à cumeeira do telhado. Lá dentro, Hunter esperava. Deitava as cartas e praticava a prestidigitação, truques que nunca usava à mesa de jogo, mas que poderia usar sem receio de ser descoberto. Começou a entalhar os pés da cama, descascando a madeira, desbastando as extremidades para formar uma bola.
Pouco depois da meia-noite do terceiro dia, houve um intervalo na fúria da tempestade e a ventania parou. Hunter foi acordado por uma súbita acalmia. Acendeu o candeeiro a petróleo ao lado da cama e atravessou o quarto para pôr lenha na lareira, que estava a apagar-se.
Pegou na chaleira e foi à porta da cabana, emperrada pela neve acumulada. Meteu o ombro à porta e empurrou até conseguir abri-la. Atacado pela súbita invasão de ar frio, deteve-se na soleira a olhar para a paisagem imaculada. As nuvens tinham-se aberto por baixo da Lua, cujo brilho se reflectia no manto cristalino. com uma concha, encheu de neve a chaleira preta de ferro. Fechando a porta, voltou para a lareira, pô-la ao lume, depois encheu o recipiente para o café com os grãos. Pouco depois, evolava-se na sala o aroma do café. Hunter tapou o recipiente e serviu-se de uma caneca. O café era escuro e forte. Era uma extravagância rara, visto que se acostumara ao café dos mineiros, uma mistela coada obtida da fervura de uma cafeteira meio cheia de grãos.
Sentou-se na cadeira de balouço perto da lareira para escutar o silêncio. Raramente passava tais momentos sóbrio porque uma mente em paz era uma coisa arriscada. Mas não estava com disposição para beber, por isso foi buscar o diário - um caderno com uma encadernação de couro usada - , uma pena para escrever e um frasco de tinta. Aprendera que conseguia, ao registar os seus pensamentos, distanciar-se deles. Mergulhou a pena no tinteiro e começou a escrever:
Há silêncio agora, a nevasca parou. Penso em ambas, deambulando no reino das sombras da memória, por entre os estilhaços do meu coração despedaçado. Temo menos o inferno que deve estar à minha espera no além do que aquele que vivo na minha vida com as suas recordações.
Levantou a pena, matutando, a olhar para o lume. De repente, a tranquilidade da noite foi interrompida pelo rosnar de lobos. Hunter pôs o diário de lado. Provavelmente, a tempestade trouxera os lobos das regiões mais altas para atacarem o gado dos mineiros.
Calçou as botas e vestiu o casaco pesado, depois agarrou na carabina, inspeccionando o ferrolho ao sair para a neve, que lhe dava pelas coxas. Caminhando com dificuldade, deu a volta até às traseiras da cabana.
A sessenta passos de distância, estavam três lobos cinzentos. Tinham abatido alguma presa, e o animal que estava mais perto de Hunter rebocava-a com os dentes, enquanto os outros dois se pavoneavam, empertigados, ao lado da caça: um pequeno vulto preto mal visível por cima da neve. Hunter levou a carabina à cara e disparou. Um lobo caiu, contorcendo-se, e os seus companheiros, com os olhos brilhantes de âmbar, bateram em retirada quando Hunter se aproximou.
Para surpresa dele, a presa ainda estava viva. No intuito de acabar com o seu sofrimento, Hunter assestou a carabina e, dando um passo em frente, puxou o cão para trás. Depois, parou, baixando a arma. Não era um animal, mas uma mulher pequena estendida, inconsciente, na neve espezinhada, com a pele vermelha de frio. Não trazia casaco e estava descalça. Provavelmente, perdera os sapatos ao fugir dos lobos.
De repente, um lobo investiu da escuridão. Hunter agarrou na arma e fê-la girar, atingindo o animal. Depois, atirou-se para diante com a carabina e disparou. O lobo ganiu e desapareceu na escuridão. Hunter meteu a arma debaixo do braço e ajoelhou-se na neve sobre a mulher. Pegou-lhe pelos sovacos e recuou com o olhar fixo nas sombras negras que o seguiram na sua retirada.
Já dentro da cabana, deitou a mulher na cama e avivou a chama do candeeiro. Ela tremia, e os dentes chocalhavam-lhe por entre os gemidos. Hunter sacudiu-lhe a neve do corpo.
A mulher tinha sangue coagulado por cima do lábio e um dos lados da cara muito magoado. Apresentava equimoses por todo o corpo, como de espancamentos frequentes. O ombro era uma massa de sangue, com um pedaço de pele solta no lugar onde o lobo lhe rasgara a carne. Tinha as mãos e os pés vermelhos da geada, mas não acinzentados. Um tornozelo estava dobrado num ângulo estranho, provavelmente partido, mas a descoloração da pele dos pés inspirava maior receio.
Hunter dirigiu-se à lareira e mergulhou a caneca de café na panela da água. Achando-a demasiado quente, apanhou um bocado de neve que caíra do lado de dentro da porta, misturou-a na chávena com os dedos e voltou para junto da mulher. Derramou-lhe a água sobre os pés, esfregando-os suavemente ao mesmo tempo. Depois, foi ao armário buscar óleo de terebintina e de rícino e começou a massajar-lhe os pés com as essências. Quando a terebintina se evaporou, esfregou-lhe os pés com o óleo de rícino, depois descalçou as suas próprias meias de lã e calçou-lhas.
As tremuras intensificaram-se, e ele começou a temer que ela sofresse de hipotermia. Tirou um cobertor de lã da cadeira junto da lareira e levou-o para a cama. Cortou o vestido molhado com uma faca, deixando-a só de camisola interior, e envolveu-a no cobertor aquecido. Depois, colocou outros dois cobertores por cima dela. Expôs-lhe o braço ferido. Precisava de ser cosido.
Tirou uma agulha e linha do armário da louça e coseu-lhe a pele em ponto cruzado o melhor que sabia. Os gemidos aumentaram. Ele rematou os pontos e cortou a linha com a faca. Deitou whisky sobre a ferida horrível, que ficou muito vermelha. Depois, embrulhou-lhe o braço num pano de flanela.
De repente, ela começou a debater-se, tentando afastar os cobertores. Hunter deitou-se sobre ela, prendendo-a à cama. Um estranho paradoxo da hipotermia é que a vítima tenta rasgar as roupas, como se quisesse acelerar o processo.
A mulher era forte para a estatura, e ele precisou de todas as suas forças para conseguir manter-lhe os cobertores no lugar. Debateram-se assim durante alguns minutos, até que os membros da mulher se retesaram abruptamente. A respiração dela tornou-se quase imperceptível, e o rosto ficou acinzentado. Os braços ficaram azulados quando o fluxo de sangue foi interrompido nas extremidades.
Hunter percebeu que não lhe restava muito tempo de vida. Se a temperatura dela não subisse rapidamente, entraria em estado de choque, sofrendo uma paragem cardíaca. Despiu rapidamente a camisa e enfiou-se na cama com ela, apertando o corpo gelado de encontro ao seu e puxando os cobertores por cima das cabeças para criar uma tenda. O seu coração batia acelerado de medo, e ele falou com a mulher inconsciente:
- Não me fujas - disse. - Não fujas. Não a deixes morrer, meu Deus...
As palavras ecoaram com a súbita constatação aterradora de que já vivera aquela cena. Rogara a Deus, com o corpo comprimido contra a pele fria e húmida de uma mulher moribunda, de pele branca como cera. Como se não bastassem os pesadelos que Deus enviava a ensombrar-lhe o sono, mandava-lhe agora uma coisa igual àquilo de que ele fugira na noite em que ela, Deus e o seu coração tinham morrido.
A constatação encheu-o em igual medida de raiva e terror.
- Não vou dar-te essa satisfação. Não vai morrer outra nas minhas mãos. - Apertou-se mais de encontro a ela, depois colocou a boca sobre a dela e soprou-lhe para dentro, enchendo-lhe os pulmões de ar quente. Quando ela recomeçou a tremer, Hunter continuou até sentir a pele por baixo de si aquecer gradualmente.
O candeeiro apagara-se, deixando a cabana iluminada pela luz trémula de uma lareira em extinção. Hunter não teve noção de quanto tempo passou até os tremores acabarem, substituídos pelo erguer e baixar sereno do peito da mulher. Uma hora antes da madrugada, Hunter afastou-se dela e deixou-se ficar em cima do colchão, exausto. Desta vez derrotara Deus.
A MULHER ainda estava a dormir quando Hunter acordou. Um raio único de sol do meio-dia rompeu pela janela parcialmente obscurecida quando ele se sentou na cama a fitá-la.
Tinha um rosto de curvas graciosas e feminis, maçãs do rosto altas e pronunciadas e olhos de corça. Os lábios haviam readquirido a cor e eram grossos. Apesar das nódoas negras, o rosto era diferente dos rostos macilentos da maioria das mulheres daquela região. Fazia-lhe antes lembrar as raparigas do Leste, frescas e de pele clara. O cabelo comprido, castanho-avermelhado, empastado de sangue e sujidade, caía despenteado por baixo dela.
O fogo extinguira-se enquanto dormiam. Hunter levantou-se e foi lá pôr um tarolo novo com lenha miúda, e soprou as brasas incandescentes até brilharem e pegarem lume. Trouxe a cadeira de balouço para junto da cama e sentou-se. Debruçando-se, palpou a testa da mulher. Ardia em febre.
As pálpebras dela tremeram e depois abriram-se vagarosamente. Olhou para ele e depois para o vestido rasgado, amarrotado no chão, e em seguida voltou a olhar para ele, puxando o cobertor para cima até ao queixo. Ele sentiu um olhar de acusação.
- O seu vestido estava encharcado. Você quase morreu de frio. - A mulher não respondeu, fitando-o com desconfiança, e ele prosseguiu: - Não tenho remédio para a sua febre. Se não passar depressa, fervo sementes de algodão. - Depois de um momento de silêncio, disse: - É melhor eu examinar a sua perna.
Embora a apreensão ainda fosse evidente nos olhos dela, Hunter destapou-lhe a perna. Tinha o tornozelo esquerdo, tal como ele se lembrava, torcido num ângulo anormal. Tacteou-lhe suavemente a perna até sentir o lugar onde o osso se mostrava irregular e depois virou-lhe levemente o tornozelo. Ela retesou-se, mas não se queixou.
- Você partiu o tornozelo. Precisa de ser imobilizado - disse ele. Afastou-se e voltou com duas tabuinhas de madeira, tiras de tecido rasgado e uma garrafa com folhas de consolda misturadas com neve. Agachou-se ao lado dela. - Desculpe, mas isto vai doer um bocado.
com cuidado, puxou-lhe o tornozelo e depois, com um movimento rápido, deu-lhe um esticão para o alinhar. Ouviu-se um estalido. O rosto dela empalideceu com a dor, mas ela não emitiu qualquer som. Hunter acamou a neve e as folhas de consolda à volta do tornozelo. Colocou as talas de ambos os lados e começou a enrolar o pano firmemente à volta da perna.
- Acho que os lobos foram uma sorte. Eu não teria sabido que você estava à minha porta se não fossem os uivos deles. - Acabou de atar as ligaduras improvisadas e levantou-se. - Só daqui a uns dias poderá fazer força no tornozelo. Não sei como é que veio parar aqui no meio da nevasca e sem agasalho. - Depois de mais um momento de silêncio, prosseguiu: - Deve estar com fome. vou buscar-lhe qualquer coisa para comer. - Foi à despensa, encheu uma tigela de aveia, deitou-lhe água e deixou-a embeber durante um minuto antes de lha levar. - É papa de aveia.
A mulher não fez menção de pegar na tigela, por isso Hunter pousou-a à beira da cama. Embora estivesse acostumado ao silêncio da sua própria vida, não estava acostumado a ele quando tinha companhia.
- Acho que vai comer quando tiver fome - disse, para quebrar a tensão. Enfiou as mãos nos bolsos. - Bem, tenho trabalho para fazer.
Dirigiu-se à porta, vestiu o casaco, calçou as botas e saiu.
Hunter só voltou ao fim da tarde. Olhou de relance para a mulher quando entrou na cabana com um feixe de lenha nos braços. Deixou-a cair ao lado da lareira.
- Como é que se sente?
Ela continuava a não falar. A comida, ao lado da cama, tinha sido tocada, mas não havia desaparecido. Hunter aproximou-se. A ligadura do braço estava mais lassa, e ele deduziu que ela tinha tirado a faixa para inspeccionar o ferimento por si.
- O que é que fez aqui? - perguntou ele, estendendo a mão para ver. Quando levantou o braço, ela estremeceu. Hunter parou. Afastou-se dela. - Não precisa de ter medo de mim. Eu nunca lhe faria mal.
Afastou-se para longe da cama. Em silêncio, a mulher levantou a mão e tentou passar os dedos pelo cabelo emaranhado.
- Você tem lama no cabelo - observou ele. - Se quiser, eu lavo-lho.
Ela não expressou qualquer oposição, nem audível nem qualquer outra, portanto ele foi deitar água morna num alguidar pequeno. com uma caneca, derramou um pouco, primeiro sobre a parte de cima da cabeça dela e depois de cada um dos lados. Deixou a água escorrer e penetrar no cabelo e depois limpou devagar a terra e as ervas com um trapo.
Era um acto íntimo, e ela fechou os olhos. No fim, Hunter secoulhe suavemente a testa e o pescoço.
- vou arranjar-lhe qualquer coisa para vestir. - Voltou com uma camisa de flanela que pôs atravessada sobre a cama. - Agora, deixo-a. Há um bacio aos pés da cama.
Tinha acabado de voltar as costas quando ela falou:
- Porque é que não me deixou morrer?
Hunter voltou-se e olhou para ela, surpreendido, antes de responder:
- Bem, minha senhora, eu deixo a Deus a tarefa de matar. - A mulher pestanejou com a resposta. - Boa noite, minha senhora. - Afastou-se para o canto mais recôndito da sala.
HUNTER estendera o seu saco-cama a um canto da cabana entre sacos de juta com feijão e cevada. A madrugada ainda não despontara quando ele emergiu do cobertor de lã, foi até à lareira e espevitou o lume.
Começou a fazer o pequeno-almoço. Quaye acordou com o barulho do toucinho a fritar e o aroma forte que enchia a cabana. Seguiu-o com os olhos quando ele lhe preparou um prato com toucinho e ovos estrelados na gordura, que colocou ao lado da cama dela. Hunter trabalhava em silêncio, como quem tenta ganhar a confiança de um pássaro que não quer assustar. Entreolharam-se por um instante.
- Você é o Pregador - disse ela.
- É assim que me chamam?
- Fala-se muito de si na povoação - disse ela, fazendo que sim com a cabeça.
- O que é que se diz? - Ela não respondeu, e Hunter percebeu que estava amedrontada. - Não faz mal dizer o que ouve.
- Dizem que você vendeu a alma ao Diabo. - Embora Hunter sorri-se divertido, a mulher parecia ansiosa ao continuar: - Um homem na pensão diz que você matou a sua mulher na Pensilvânia e fugiu para o Oeste para escapar à forca.
O sorriso deixou o rosto de Hunter, mas embora a acusação o afectasse claramente, não fez qualquer esforço para a refutar.
- Eu sou da Pensilvânia - assentiu, sentando-se depois na cadeira de balouço.
- Foi pregador?
- Há muito tempo. Há uma vida. - Passado um momento, perguntou: - Como se chama?
- Quaye Morse.
- Quaye - repetiu ele lentamente. - Um nome invulgar.
- É irlandês.
- O que é que andava a fazer lá fora no meio da nevasca? - O rosto de Quaye tornou-se tenso, e Hunter perguntou a si próprio que vergonha podia haver em ser-se apanhado por uma tempestade. - Tem uma aliança no dedo. O seu marido deve estar ansioso. Mais logo, vou lá abaixo a cavalo e dou-lhe conhecimento do seu paradeiro. Onde é que posso encontrá-lo?
- Deve encontrá-lo a jogar cartas no saloon.
- Eu acharia que ele andava à sua procura.
- Ele pôs-me na rua durante a nevasca - disse Quaye, abanando a cabeça. Hunter inclinou a cabeça, sem perceber, e Quaye continuou mecanicamente, como se relatasse um acontecimento no qual não tomara parte. - Jak estava a beber muito e acabou-se-lhe o whisky. Mandou-me sair para ir buscar mais. Quando eu recusei por causa do mau tempo, ele espancou-me e depois expulsou-me de casa para o meio da neve sem agasalho. Não me abriu a porta. Todas as casas onde fui bater estavam barradas pela neve, e o vento era demasiado forte para me ouvirem. Estava enregelada! - Baixou os olhos e a voz esmoreceu-lhe. - Por isso, fugi para a montanha.
- Porquê a montanha?
- Não queria ser encontrada na praça pública.
Hunter não contara com tal explicação e ficou sem saber o que dizer. Acabou por se apresentar:
- Eu chamo-me Hunter.
- Se me deixar cá ficar só mais um dia, fico-lhe muito grata.
- Você não vai a parte alguma enquanto o seu tornozelo não se curar - disse Hunter. - A não ser que queira ficar coxa toda a vida.
Quaye matutou: Jak ia ficar furioso com ela por ter quebrado o tornozelo e não poder trabalhar. Mesmo que tivesse como certo uma tareia ao regressar, o melhor era deixar o tornozelo sarar.
- Preciso de coser o meu vestido - disse.
- Não tenho linhas em casa que cheguem para coser o vestido - disse Hunter, levantando-se. - E as suas botas foram à vida. compro-lhe o necessário na povoação.
O rosto dela ensombrou-se.
- Não tenho meios para lhe pagar.
- Não quero que me pague - replicou Hunter.
Quando ele voltou para o seu canto da sala, Quaye perguntou a si própria que espécie de pessoa seria ele.
Os DOIS DIAS que se seguiram passaram quase em silêncio. No domingo à tarde, Sonny Chang veio visitá-lo, acompanhado por Syau Lou, o garoto de cinco anos. A mãe do garoto, Hwa, estava por detrás dele, segurando-o pelos ombros. Hunter convidou-os a entrar.
Quaye observava a cena com interesse. Embora já tivesse visto chineses, nunca falara com nenhum e achava-os peculiares.
- Hwa quer que rapaz ser americano - disse Sonny.
Hunter interrogou-se sobre o que é que aquilo teria a ver consigo.
- Se ele nasceu na América, é americano - explicou.
- Ela quer você ensina filho dela ler inglês.
Hunter fitou o garoto com uma expressão que revelava uma dor estranha e profunda.
- Ele é demasiado novo - disse finalmente.
- Ele aprende agora e não fala inglês como chineses. Nós pagar.
Embora Hunter tivesse uma dívida de gratidão para com os chineses, não conseguiu aceitar.
- Peço desculpa, mas não posso - insistiu, abanando a cabeça. Sonny fez uma vénia.
- Eu desculpa incomodar, Mister Bell. - com a cabeça ainda inclinada, começou a recuar.
- Eu ensino-lhe - disse então Quaye.
Sonny ergueu o olhar, surpreendido. Não tinha reparado nela.
- Sua mulher? - perguntou.
- Não é minha mulher.
-Ah! - fez Sonny, baixando a cabeça com ar de entendedor.
- Não é o que pensas - disse Hunter.
- Se me deixar, eu ensino o garoto - repetiu Quaye, olhando para Hunter.
- O que é que ele pode aprender em apenas algumas semanas?
- Posso ensiná-lo todos os dias. Quando eu me for embora, ele pode ir à pensão. Eu ensino-o lá.
Sonny olhava de um para outro. Embora a expressão de Hunter mostrasse desaprovação, ele acabou por aquiescer.
- Ela vai ensinar o garoto.
- Sye, sye. Sye, sye - disse a mãe do miúdo, sorrindo e fazendo repetidas vénias como se a sala estivesse cheia de gente.
Depois de eles saírem, nem Quaye nem Hunter falaram um com o outro.
SYAU LOU voltou no dia seguinte precisamente ao meio-dia. Quaye não saiu da cama, mas virou-se para o lado, enquanto o garoto se sentava numa cadeira junto dela. Começou por escrever o alfabeto numa folha de papel e fê-lo repetir vezes sem conta. A lição prolongou-se por três horas. Hunter ficou sentado à mesa a limpar uma arma durante a primeira hora, depois saiu da cabana e não regressou antes de o garoto se ir embora. Naquela noite, ele perguntou-lhe se ela tencionava continuar a dar lições tão longas. Ela respondeu que sim, se ele deixasse. Hunter saiu, foi ao estábulo e voltou com uma corda. Pregou um prego na parede um pouco acima da sua cabeça, atou-lhe a corda, depois atravessou a sala, pregou outro prego, onde amarrou a extremidade oposta. Pegou em vários cobertores e pendurou-os por cima da corda, separando a cama do resto da sala.
- Agora, não precisa de se preocupar com a privacidade.
Ela não ficou surpreendida por ele parecer contrariado. Suspeitou de que aquilo tinha menos a ver com ela do que com a presença de Syau Lou, e ficou surpreendida, uma vez que ele gostava claramente da família Chang. Achou que ele simplesmente não gostava de crianças e deixou as coisas por aí.
Quaye orgulhava-se do seu aluno. Ao fim da primeira semana, podia apontar para qualquer letra que Syau Lou sabia pronunciá-la. Embora Hunter parecesse desaprovar as sessões, perguntava muitas vezes pelos progressos do garoto. E sorria sempre à criança, embora houvesse uma tristeza singular nos seus olhos.
Quaye suspeitava de que Hunter ouvia as suas lições, mas isso nunca foi mais evidente do que no dia de Natal. Quaye pedira a Hunter uma meia velha onde enfiou umas nozes e um chupa-chupa. Contou a Syau Lou a história do Natal e depois deu-lhe o presente. Depois de o garoto sair, Hunter ficou calado e sentou-se a olhar para a lareira. Quaye perguntou-lhe se ele estava bem, e ele limitou-se a responder:
- Não sabia que era Natal.
No DIA seguinte, quando Quaye concluía a lição, Sonny irrompeu pela sala dentro com os olhos esbugalhados.
- Mister Bell!
- O que é, Sonny? - perguntou Hunter, pousando o livro.
- Homens vieram dizer concessão pertence-lhes.
- Que homens?
- Homens brancos. Tiraram nosso papel e vão para a povoação com Lau Jung. Dizem têm reunião de mineiros só de homens brancos.
Hunter perguntou a si próprio por que razão é que os homens iriam roubar uma concessão no meio do Inverno.
- Como é que isso começou?
- Lau Jung foi comprar petróleo. Homens maus vêem ouro dele e seguem até nosso acampamento. Dizem nós temos de ir embora agora. Nós mostramos nossa concessão, mas eles tiram de nós. Levam Lau Jung. Disseram nós temos ele quando nossa carroça deixar povoação ou ele enforcado hoje à noite.
- Quantos homens eram?
- Seis homens.
Hunter franziu o sobrolho.
- vou ver o que posso fazer - disse.
- Syau Lou! - chamou Sonny em voz esganiçada para o outro lado da cortina. - Ni ma shang hweijya, ba!
O garoto apareceu logo, foi buscar o casaco e saiu da cabana apressadamente.
Quaye ficou sentada em silêncio por detrás da divisória enquanto Hunter enfiou um Colt no coldre e saiu. Ela ficou preocupada com o que poderia acontecer-lhe.
QUANDO os dois homens entraram na povoação, Sonny apontou para os cavalos dos homens amarrados à porta do saloon. À entrada, Hunter fez um gesto a Sonny para ele ficar lá fora.
Lau Jung estava amarrado a uma cadeira num canto do bar, com as mãos atadas atrás das costas. O nariz sangrava-lhe da pancada que levara. Um homem corpulento de rosto vermelho e cabelo ralo estava a tentar meter uma coisa à força na boca de Lau Jung. Hunter compreendeu que era o rabicho do chinês. Os ocupantes do saloon aplaudiam a barbaridade.
- Desamarrem-no - disse Hunter de arma em riste.
Os outros voltaram-se todos ao mesmo tempo, e tornou-se evidente que pelo menos parte do que Quaye dissera era verdade: eles temiam-no. Como ninguém se moveu, Hunter tirou do cinto a faca-de-mato e ele próprio cortou as cordas. Lau Jung levantou-se, vacilante. Hunter pegou-lhe por um braço e afastaram-se pelo meio dos homens. Ninguém fez um único movimento para os deter.
- Deixem a minha concessão em paz - avisou Hunter.
- Um amarelo não tem direito a nenhuma concessão - retorquiu o homem que tinha o rabicho na mão.
- A concessão não é deles. É minha. Comprei-a no Outono passado - disse Hunter, tirando do bolso o recibo que Sonny lhe passara quando da construção da cabana. - Tenho aqui o recibo da venda. Alguém o contesta?
- Porque é que os chinocas estão lá acampados?
- Trabalham para mim.
Embora roubar a concessão a um chinês fosse considerado jogo limpo, roubar terra a um branco era um assunto totalmente diferente.
Todos os homens recuaram e se sentaram, à excepção do da cara vermelha, que continuou de pé.
- Ele está a mentir. Eu mesmo vi o ouro dos chinocas.
Hunter olhou em redor friamente, até que um dos homens disse:
- Deixa lá, Jak. A concessão já foi registada.
- Jak Morse? - aventou Hunter, adivinhando a identidade do homem.
O desconhecido pareceu perplexo.
- O que é que isso lhe interessa?
- Você não me interessa nada - replicou Hunter. Depois, acrescentou suficientemente alto para todos ouvirem: - Não só mato qualquer homem que invada a minha propriedade como, se me chatearem, desvio o meu riacho na Primavera. Depois, logo vemos como é que se arranjam sem água.
com Lau Jung à frente, dirigiu-se para a porta, deixando para trás a sala silenciosa.
- Desvia para onde? - perguntou um mineiro.
- Irrigo o prado para fazer arrozais. Os meus amigos chinocas gostam muito de arroz.
Ao saírem do saloon, a cabeça de Lau Jung pendia de vergonha pela perda do rabicho. A expressão de Sonny revelava a sua angústia.
- Fica com nossa concessão? - perguntou ele finalmente. Hunter olhou para ele de semblante ainda sombrio devido ao encontro.
- Ouviu o que se passou lá dentro?
Sonny acenou a cabeça afirmativamente.
- É a única maneira de vocês conservarem a vossa terra. Vocês podem ficar com o que quer que tirem dela - respondeu Hunter.
- Eu percebo - disse Sonny, descontraindo-se.
Antes de saírem da povoação, pararam na drogaria, onde Hunter comprou linhas, um par de botas de senhora e, para os chineses, quatro caçadeiras. Sonny tomou a arma na mão e acariciou a coronha.
- Agora, nós conservamos distância homens maus.
- Não pense que faz alguma ideia de como se usa essa coisa disse Hunter peremptoriamente. - vou ter de vos ensinar a dispará-la. E depois precisam de praticar.
No SEU PRIMEIRO dia na cabana, Quaye vira na cornija da lareira os livros velhos e interrogara-se se haveria uma Bíblia Católica. Nos anos difíceis virara-se para a religião em busca de força. A princípio, Jak considerara a sua fé uma coisa pateta mas irrelevante. Porém, quando percebeu que a fé lhe devolvia o que ele lhe roubava, tratou de a eliminar da vida de Quaye: destruiu o terço dela, proibiu-a de ir à missa e, mais tarde, até de falar da sua fé. Ele não permitia uma Bíblia em casa.
Quando Hunter saiu, Quaye virou as pernas para fora da cama. Ao primeiro passo, a dor subiu-lhe pela perna acima. Agarrou-se à cadeira para se apoiar. Não sendo pessoa de ceder, ela atravessou a sala vagarosamente e chegou ao outro lado ofegante. Encostou-se à estante enquanto procurava por entre os livros.
Para surpresa sua, não encontrou uma Bíblia. Encontrou um pequeno livro de sonetos, folheou-o e depois levou-o consigo de volta para a cama. O livro mostrava sinais de ter sido lido muitas vezes. As folhas tinham perdido a cor nas bordas. Voltou a deitar-se e abriu-o. Na guarda, estava escrito com uma linda caligrafia:
Meu muito querido Hunter
És a minha luz e meu único sonho. És a minha fé e a minha religião, e eu deponho o meu coração no altar do teu amor.
Oh, querido marido, vê como a minha pena se esforça por murmurar aquilo que a minha alma deseja gritar. Assim, ofereço-te este livro e faço minhas as palavras de outrem: "A face do mundo todo mudou, creio/Desde que ouvi pela primeira vez os passos da tua alma..."
com toda a minha ternura e afecto, Rachel
Quaye perguntou a si própria que tipo de homem poderia fazer nascer tal devoção da parte de uma mulher. Mais misterioso ainda, onde estava a autora da dedicatória, que deixara sozinho o homem que amava? Este pensamento trouxe-lhe à ideia o boato do homicídio da mulher dele. Embora Quaye duvidasse da sua verdade, não conseguia explicar a estranheza da resposta estranha dele quando falara nisso.
Virou a página e começou a ler os sonetos. Algumas páginas adiante encontrou o retrato de uma menina com grandes olhos escuros e cabelo ondulado com canudos que lhe caíam sobre os ombros. Não havia dedicatória no retrato, mas junto dele estavam duas cartas, uma dobrada e a outra num envelope lacrado com um nome escrito: Hannah.
Ao princípio, Quaye não mexeu nas cartas, mas depois a curiosidade venceu-a. Não ia abrir o envelope lacrado, mas desdobrou cuidadosamente o papel frágil da outra.
12 de Fevereiro de 1856
Pastor Bell
Peço a Deus que a minha carta o encontre bem. Deus o abençoe pelo sustento que nos enviou recentemente. Sempre teve um coração generoso. Hannah está bem de corpo e espírito. O retrato mostra que Nosso Senhor a abençoou tanto com a beleza da mãe como com a grande alma do pai, e ambas são visíveis no seu porte.
Muitos esperam e rezam pelo seu feliz regresso ao nosso rebanho e ao seio da sua igreja.
Até lá, que a paz de Deus o acompanhe!
Irmã Folland
QUANDO Quaye ouviu a aproximação do cavalo de Hunter, tornou a dobrar a carta e meteu-a outra vez dentro do livro, pousando-o do outro lado da cama. Passado um bocado, Hunter entrou, pousou a arma em cima da mesa e foi ao barril da chuva buscar uma concha de água.
- Tem sede? - perguntou.
- Tenho.
Hunter despejou a água da concha numa caneca de folha e levou-lha com o saco das compras. Entregou-lhe a caneca.
- Encontrou Lau Jung? - perguntou ela. Hunter fez que sim com a cabeça.
.- Eles desistiram - disse em voz baixa, e Quaye fitou-o com admiração. - Syau Lou não vem durante o resto da semana - continuou Hunter. - A mãe está assustada. - Abriu o saco, de onde tirou um carrinho de linhas com uma agulha espetada. Depois, tirou um par de botas de couro pelo tornozelo, com uma dúzia de ilhós para os atacadores. - Trouxe a linha e um par de botas.
- Obrigada - agradeceu ela modestamente.
Quando ela acariciava as botas, Hunter viu o livro a seu lado. A expressão dele alterou-se.
- O que é que tem aí?
Quaye olhou para o livro e depois para ele.
- O seu livro de poesia - respondeu. A expressão dele assustava-a.
- Onde é que foi buscá-lo?
- Desculpe, não tinha intenção de coscuvilhar. Andava à procura de uma Bíblia. Achei que não se importava.
- Não tenho uma Bíblia - disse ele com secura. Quando deu um passo para diante, Quaye esquivou-se instintivamente, à espera de pancada. Por instantes, ele fitou a mulher amedrontada. Depois, sem uma palavra, devolveu o livro à prateleira.
O RESTO da noite foi passado sob tensão. Hunter sentia remorsos da sua exibição de fúria. Quaye regressou ao mundo do silêncio enquanto cosia o vestido metodicamente, antecipando a partida. Ele desejava que Syau Lou aparecesse, visto que a sua presença a fazia feliz.
Na manhã seguinte, Hunter fez o pequeno-almoço dela e depois, sem uma palavra, saiu da cabana. Voltou várias horas depois com uma caixa pesada e colocou-a em cima da cama ao lado de Quaye.
O que é? - perguntou ela. Levantou a tampa da caixa, revelando uma quantidade de livros. Passou os dedos pelas capas de pele gravada em relevo: O Monte dos Vendavais, O Paraíso Perdido, Moby Dick e uma nova edição do livro de poesia: Sonetos do Português. No fundo, estava uma Bíblia. Quaye abriu silenciosamente a capa, e os seus olhos marejaram-se de lágrimas.
- Sei que não teve má intenção ao mexer no meu livro. Desculpe tê-la assustado - disse ele. Hesitou e depois prosseguiu: - Talvez arranje um sítio para guardá-los escondidos de Jak quando regressar.
- São maravilhosos - assentiu ela. - Podia guardá-los na pensão. - Tirou-os da caixa e pô-los em cima da cama. - Já os leu todos?
- Leio praticamente tudo a que deito as mãos - assentiu ele com um aceno de cabeça. - Deixei uma biblioteca notável lá em West Chester.
- Você é de West Chester?
- Era lá que eu pregava - respondeu ele em voz baixa. Quaye pegou em O Monte dos Vendavais.
- Eu andava a desejar ler este, mas raramente posso dar-me ao luxo dos livros.
- Isso não me surpreende. Conheci o seu Jak - disse ele.
- Onde? - perguntou Quaye com um arrepio.
- No saloon. Foi um dos raptores de Lau Jung. - O medo espelhou-se no rosto de Quaye. - Ele não sabe que você está cá.
Quaye voltou ao livro. Começara a ler a primeira página quando ouviu estampidos ecoando pelas montanhas.
- Os seus amigos chineses estão a deitar foguetes.
- Não. Eu comprei-lhes armas para se protegerem. Mas eles não deviam ... - Parou a meio da frase, pondo-se à escuta.
Quaye manteve-se calada, escutando nem sabia o quê. Depois, ouviu também um ruído surdo e prolongado que cresceu de intensidade até parecer que o próprio chão começava a tremer.
- É um terramoto? - perguntou ela num tom abafado. Hunter abanou a cabeça.
- Avalancha.- O ruído continuou a aumentar, e ele esforçou-se por calcular a distância. - É a norte daqui. Perto dos chineses. Correu para a porta e, enfiando o casaco, desapareceu lá fora.
QUANDO HUNTER chegou ao acampamento dos Changs, a avalancha passara, deixando árvores derrubadas, virando carroças e enterrando parcialmente duas das tendas. Estava uma mula enterrada na neve até ao peito a zurrar. A família já se reunira fora das tendas e inspeccionava a devastação, completamente incrédula.
- Vocês estão bem? - gritou Hunter.
- Não estamos mortos, Mister Bell - disse Sonny, acenando com a espingarda.
Precisamente nessa altura, uma das mulheres começou a gritar:
- Syau Lou! Syau Lou!
- Filho dela não estar aqui! - exclamou Sonny de semblante alterado.
Dividiram-se imediatamente e partiram neve fora, tal como Hunter, que se associou à busca. Os gritos da mãe enlouquecida ecoaram na imensidade da região. Passaram mais de quinze minutos até Hunter localizar uma mancha de cor sobressaindo na superfície brilhante. Dirigiu-se para lá dificilmente, enterrado na neve quase até à cintura, e depois atirou-se para a frente, escavando freneticamente o gelo à volta da criança. Gritou por socorro. Na altura em que os outros chegaram, já uma perna da criança estava desenterrada, e os homens deitaram-se e cavaram. A mãe gemia em histeria.
Syau Lou estava inconsciente e ainda respirava, mas tinha os lábios e as pontas dos dedos azulados. Os homens ergueram o garoto da neve. Hunter embrulhou-o no seu casaco e depois, com a família a reboque, levou-o para a cabana. Colocou a criança ao pé da lareira. A mãe ficou junto, agarrada ao braço do filho. Os restantes reuniram-se à volta deles, olhando impotentemente. Quaye levantou-se e saiu de trás da divisória. Quando viu o corpo inerte de Syau Lou, cobriu a boca com a mão.
Tal como fizera com Quaye, Hunter colou a sua boca à da criança e começou a encher-lhe os pulmões com ar quente, mas a criança não aqueceu e, já com os lábios azuis, morreu. Um estertor escapou-lhe da garganta. Hunter, esgotado, deitou a criança no chão. Baixou a cabeça junto à da mãe da criança. Quaye viu que lhe corriam lágrimas pelo rosto.
- Como é que vocês dizem "Sinto muito" ? - perguntou Hunter a Sonny.
- Baú chyan - respondeu Sonny tristemente,
A mãe torcia as mãos, balouçando-se para trás e para diante, com o rosto transtornado de angústia.
- Baú chyan. Baú chyan - disse Hunter, baixando a cabeça.
O único ruído que se ouvia era o do crepitar da lareira. A família enlutada saiu logo depois, levando a criança morta. Hunter sentou-se silenciosamente perto da lareira com a cabeça sobre os joelhos.
- Eu não devia ter-lhes dado as armas - murmurou.
Quaye foi a coxear sentar-se perto dele. Durante algum tempo, nenhum deles falou. O fogo crepitava. Quaye limpou as lágrimas e depois disse:
- Eu não acreditava que pudesse vir a conhecer um homem como você. É um homem bom.
- Está enganada - contrapôs Hunter, segurando a cabeça entre as mãos. - Eu abandonei a minha alma juntamente com a minha vida e o meu sacerdócio.
- Ainda a tem. - Hunter não reagiu, e Quaye prosseguiu: - O que é que leva um homem a abandonar o sacerdócio?
- A alquimia do Demónio.
- Que raio de alquimia transforma o ouro em chumbo?
Hunter baixou a cabeça. Finalmente, suspirou.
- Há sete anos, eu formei-me no Seminário de Princeton. Os anciãos da Igreja confiaram-me uma pequena congregação nos arredores de Filadélfia. Enquanto servia como pastor, conheci uma jovem chamada Rachel. - Desde que saíra de West Chester, Hunter não voltara a dizer o nome dela em voz alta. - Rachel e eu casámo-nos. Passado apenas um ano, Rachel declarou que esperava um bebé. Ela desejava tanto um filho! Foi a época mais feliz da nossa vida.
Aproximadamente quatro semanas antes do esperado, Rachel entrou em trabalho de parto. Foi a meio da noite, e o bebé nasceu rapidamente. Não houve tempo para chamar a parteira. Depois, Rachel teve uma hemorragia. O sangue não parava. Eu nada podia fazer senão rezar. Prometi a Deus que lhe daria o que quer que Ele me pedisse se a poupasse a ela. - Baixou os olhos húmidos. Quando o sangue se lhe escoou do corpo, ela ficou branca como cera. Queixou-se de frio, e eu apertei-a contra mim para a conservar quente. Ao nascer do Sol, morreu-me nos braços. - Respirou profundamente e só voltou a falar passado algum tempo. - Algumas horas depois, uma das Irmãs da Congregação encontrou-nos. Tomou conta do bebé enquanto eu enterrei o meu coração no cemitério ao lado da igreja. Fui a casa, enfiei umas coisas num saco e nunca mais voltei.
- A menina cujo retrato está no livro é a sua filha? - perguntou Quaye, passado um momento.
- É linda, não é?- disse Hunter, erguendo os olhos molhados, e Quaye acenou com a cabeça afirmativamente. - Tem agora pouco mais de quatro anos.
Quaye tocou-lhe no braço. Hunter não sabia explicar a razão por que estava a partilhar esta parte de si próprio com aquela mulher. Mas não sentia desejo de lha esconder.
- Deus levou tudo o que eu tinha naquela noite.
- E portanto você está zangado com Deus?
- Acho que a minha zanga agora é mais um hábito do que um sentimento.
- Lamento - disse ela afectuosamente.
Ficaram os dois sentados em silêncio durante mais alguns minutos antes de Quaye se inclinar, o beijar na face e regressar à cama a coxear.
O FUNERAL teve lugar dois dias depois da morte da criança, e embora Quaye ainda tivesse dificuldade em andar, insistiu em estar presente. Hunter ficou satisfeito por ela o acompanhar. O desejo que sentia pela presença dela era mais do que uma necessidade crescente da sua companhia, era necessidade de algo mais profundo. Hunter não percebia se ela tinha o poder de sarar o seu coração ou se, quando ela lhe arrancara a verdade oculta da sua dor, ele próprio iniciara a cura. Não importava. Vieram-lhe à ideia as palavras do Evangelho de S. João: "Uma coisa sei, é que, havendo sido cego, agora vejo."
Achou que também notava algo de diferente nela. Olhara-a de relance várias vezes e vira-a a fitá-lo. Ela sorria-lhe e depois desviava timidamente os lindos olhos.
O céu estava coberto por uma neblina cor de aço cinzento, que mantinha as temperaturas abaixo da congelação. Tinha levado um dia para quatro homens com picaretas abrirem um buraco suficientemente grande para o caixão na terra congelada. Hunter segurou o braço de Quaye para a ajudar a descer até ao acampamento. Ao aproximarem-se, ouviram as etéreas escalas da flauta chinesa em contraste com o rufar de um tambor.
A família Chang estava reunida junto de um caixão feito de um tronco de árvore. À volta do caixão encontravam-se objectos de papel com a forma das coisas que a criança ia desejar no próximo mundo: dinheiro, casas e cavalos. Iam ser queimados em cima da sepultura, e o fumo levá-los-ia em direcção ao céu para se unirem ao espírito do garoto. Havia também fruta seca, vinhos e um frango. Na comida estavam espetados paus de incenso para levar a sua essência a caminho do céu.
A música parou. O pai avançou estoicamente de martelo na mão e pregou bem o caixão. Depois, as ofertas de papel foram queimadas pelo ancião, Lung Yan. As cinzas voaram quando o papel ardeu e se elevou no ar. Quando a última das ofertas desapareceu, Sonny dirigiu-se timidamente a Hunter:
- Mister Bell, o pai de Syau Lou pede senhor falar.
Hunter percebeu que o pedido lhe era feito como uma prova de respeito, porque, à excepção de Sonny, nenhum deles falava inglês. Tirou o chapéu antes de dar um passo em frente. Era a primeira vez que Hunter se encontrava junto a uma campa desde a morte de Rachel. Tomou fôlego.
- Estamos aqui envolvidos pelo Inverno: árvores nuas, o leito do rio silencioso. Nada é mais certo na vida nem na Natureza do que a morte. Talvez sejamos capazes de a aceitar porque temos fé na Primavera. Contudo, de certa maneira, parece-nos diferente quando a morte chega cedo. Sentimo-nos enganados. Algumas vezes, enraivecemo-nos. E nessas alturas dizemos a Deus: "Seja feita a minha vontade, e não a Tua", e esquecemo-nos da promessa da Primavera. - Fitou Quaye. - No frio do Inverno da nossa alma enterramos os nossos corações e arriscamo-nos a passar tanto tempo das nossas vidas a remoer a nossa perda e aquilo que não temos que nos esquecemos daquilo que ainda temos. - Voltou-se para os pais enlutados. - Lamento sinceramente a vossa perda. Syau Lou tinha uma boa mãe e um bom pai. E assim termino. - Hunter baixou a cabeça e deu um passo atrás, colocando-se ao lado de Quaye e voltando a pôr o chapéu na cabeça.
- Obrigada, Mister Bell - disse Sonny.
O caixão foi enterrado, depois Hunter e Quaye regressaram à cabana vagarosamente.
NAQUELA noite, Hunter sentou-se no banco do alpendre, embrulhado num cobertor grosso para se proteger do frio cortante. Algumas nuvens solitárias flutuavam pela frente da lua cheia. Quaye abriu timidamente a porta, hesitante em quebrar a solidão.
- O que você disse hoje no funeral foi lindo.
- Quer fazer-me companhia? - convidou Hunter, sorrindo tristemente. _
Quaye sentou-se junto dele. Hunter passou o cobertor à roda dos ombros dela. Ela aproximou-se mais dele até os corpos se tocarem ligeiramente. A respiração de Hunter condensava-se diante de si ao falar.
- Quando estávamos a construir a cabana, eu queria que a porta ficasse de frente para as minhas escavações. Os chineses insistiram para que ficasse virada a leste para haver um equilíbrio harmónico. Tive sorte em dar-lhes ouvidos, senão a esta hora estaria soterrado na neve.
- E eu também - disse Quaye, olhando para ele. - Nunca lhe agradeci capazmente por me ter salvo a vida. Desculpe, mas naquela altura não tinha a certeza de querer ser salva.
- Por que razão fica com ele? - perguntou Hunter depois de matutar um pouco nas palavras dela.
Quaye levou tempo a responder.
- É o meu destino.
- Isso não é resposta - comentou Hunter, franzindo o sobrolho.
- Não. Mas talvez seja tudo o que tenho.
- Já pensou em regressar à Irlanda?
- Não há qualquer possibilidade. Não serve de nada pensar em coisas que não podem acontecer.
- De que parte da Irlanda é você?
- Vim de Cork.
- Tenho ouvido dizer que em Cork o céu não manda chuva, chora.
- É uma terra linda e trágica - disse Quaye. - Antes da fome, a Irlanda era um lugar mágico para uma criança. À noite, o vento cantava uma canção de embalar por entre as árvores. - Olhou outra vez para ele. - E você já pensou na hipótese de regressar?
- Todos os dias - disse Hunter em voz baixa.
- E fica?
- Já vim demasiado longe para voltar para trás.
- Como é que pode estar demasiado longe quando tem alguém à espera?
Hunter baixou os olhos.
- Hannah está muito melhor sem mim. As Irmãs da Congregação estão mais aptas para a educar - disse ele sem convicção. - Como é que você foi viver com Jak?
- Foi durante a fome da batata. O meu pai tinha saído à procura de comida e encontrou Jak. Jak ofereceu-se para nos ajudar a todos a vir para a América, mas o meu pai não queria deixar a Irlanda. Por isso, ofereceu-se para me vender a Jak.
- Foi o seu pai que lhe contou isso?
- Não. Foi Jak.
- Acredita em Jak?
Quaye não respondeu imediatamente.
- Eu vi-o pagar ao meu pai.
- Isso não faz prova das palavras de Jak - disse Hunter, fitando-a com ar grave. - Se Jak conseguir convencê-la de que a sua existência era indiferente a quem lhe deu a vida, ele ganha a batalha de sujeitá-la aos seus caprichos. As nossas falsas crenças podem ser um grilhão para as nossas almas. Só quando nos agarramos a quem verdadeiramente somos é que podemos ser livres.
Quaye parecia abalada.
- Essas foram as últimas palavras que o meu pai me disse. Se eu me lembrasse de quem sou ...
- Não consigo imaginar o que passou pela cabeça do seu pai quando a entregou. É provável que ele soubesse que não havia outra maneira de lhe dar uma oportunidade de viver. - Olhou para a noite estrelada. - Nós não vemos as coisas como elas são realmente, apenas como acreditamos que são. Está escrito na Bíblia. Nós vemos sombriamente através de um espelho, mas nenhum espelho é tão escuro, acho eu, como o espelho no qual nos vemos a nós próprios.
- E quem somos nós?
Hunter olhou-a nos olhos meigos.
- Nós somos pessoas merecedoras, Quaye. Merecedoras da vida. Merecedoras do amor. Merecedoras da bondade. Não somos um erro de Deus nem da Natureza.
Quaye não queria que Hunter a visse chorar. Baixou a cabeça e puxou o cobertor acima do queixo.
- Se não conseguir sentir-se merecedora de amor - continuou ele - você vai continuar acorrentada para sempre. Não por Jak ou qualquer outro homem, mas pela sua própria percepção. - Hunter estendeu a mão, tocou na dela, e Quaye apertou-lha com força. O calor da mão dela transmitiu-lhe uma sensação mágica. "Que linda ela é!" pensou Hunter. De repente, compreendeu que estava a ser arrastado para fora do confinamento protector do seu coração emparedado e foi envolvido por uma estranha frieza. Retirou a mão da dela e a sua voz tornou-se impassível: - O seu tornozelo está a ir bem.
- Quaye não percebeu nem gostou da súbita mudança de atitude dele.
- Está quase curado, acho eu.
Hunter fez que sim com a cabeça, como se houvesse uma tácita compreensão das ramificações da resposta dela.
- Se o céu estiver limpo amanhã de manhã, eu vou-me ausentar.
- Ausentar? - perguntou Quaye, afastando-se dele no banco.
- Para Salt Lake City. O feno molhou-se com a nevasca e não há reservas na povoação. Conto demorar quatro dias. Se não nevar.
- Quer que eu esteja aqui quando regressar? - perguntou Quaye hesitantemente.
Hunter ficou silencioso por um breve instante e não olhou para
ela ao responder.
- Quero.
- Então, eu fico até essa altura - disse ela, levantando-se
e entrando na cabana a coxear.
Hunter olhou para as estrelas e, embora tentasse, não conseguiu pensar em nada a não ser nela.
HUNTER partiu na manhã seguinte de madrugada. Quaye ficara na cama, de olhos fechados, ouvindo-o preparar-se para a viagem. Antes de sair, ele aproximou-se e ficou ali, silenciosamente, a olhar para ela. Quaye abriu os olhos e viu-o.
- Vá com Deus - disse.
Ele sorriu-lhe, depois virou-se e foi-se embora.
Quando ouviu a porta fechar-se atrás dele, Quaye foi à janela vê-lo descer o caminho coberto de neve. Sentiu um aperto no coração quando o perdeu de vista, e percebeu então que as palavras dos poetas eram verdadeiras, que nem todas as dores são iguais e que podia, de facto, haver uma dor deliciosa.
Vestiu a camisa de flanela de Hunter e fez chá. Sentando-se na cadeira ao lado da lareira, começou a ler O Monte dos Vendavais, mas achou que não conseguia concentrar-se. Resolveu ler antes o livro de sonetos porque estava mais de acordo com o seu estado de espírito. Mas a poesia mudara para ela, deixara de ser uma linguagem estranha e era traduzida pelo seu próprio coração. Identificava-se com ela.
Quaye não acreditava que fosse possível sentir aquilo por um homem. Até então, imaginara o amor com uma espécie de curiosidade desprendida - como presenciamos a pompa e o esplendor da vida dos reis e das rainhas e perguntamos a nós próprios como seria ter essa vivência.
Uma hora depois, Quaye pôs de lado o livro e começou a arrumar a cabana. Começou por tirar os cobertores que dividiam a sala, dobrando-os e empilhando-os ao fundo da cama. Encheu a chaleira e juntou na lareira tudo o que achou que precisava de uma esfregadela. Enquanto trabalhava, percebeu que matutava sobre Hunter. Gostaria de saber tudo acerca da sua vida privada e imaginou-se parte dela. Mas Quaye aprendera que a mais cruel das virtudes era a esperança. Um muro de cinismo podia afastar a dor, mas a esperança abria esses muros e expunha o ser humano ao sofrimento. Não podia esquecer-se da realidade: no dia seguinte ao regresso de Hunter, voltava para Jak!
No terceiro dia da ausência dele, Quaye removeu a tala. O tornozelo estava pálido, mas o inchaço desaparecera. Apoiou cautelosamente sobre ele o peso do corpo. A dor não foi grande. Percebeu que estava suficientemente forte para poder regressar.
Naquela tarde, alguém bateu à porta, e do lado de fora um homem gritou o nome de Hunter. com um certo receio, Quaye abriu a porta a um homem alto e magro, bem barbeado e com cara arrapazada. Estava elegantemente vestido e usava um chapéu de coco cor de noz-moscada e um casaco creme. Atrás dele estava o seu cavalo com as rédeas seguras por um dos seus dois companheiros, que continuavam empoleirados nas montadas. Um deles estava também formalmente vestido, e o outro era um homem de aspecto grosseiro com um guarda-pó comprido castanho-amarelado. Trazia duas armas. Quando viu Quaye, o homem tirou o chapéu.
- Presumo que é Mrs. Bell. Queria falar com o seu marido.
Quaye não o corrigiu.
- Mr.BellfoiaSaltLakeCity.
- O meu nome é Joseph Wharton - disse o homem, entregando a Quaye um cartão-de-visita. - Os meus sócios e eu viemos da Califórnia para conversar com Mr. Bell. Quando espera o regresso dele?
- Espero que ele chegue até amanhã à noite.
- Nós voltamos nessa altura - disse o homem, voltando a pôr o chapéu na cabeça. - Há algum alojamento que nos recomende por
agora?
- O único lugar na povoação é a pensão.
- Importa-se que visitemos as escavações?
- Acho que não faz mal - disse ela, deitando um olhar preocupado aos outros dois homens.
- Desculpe o incómodo.
Os sócios desmontaram, e o trio encaminhou-se para o riacho e calha de lavagem do minério. Quaye fechou a porta e, por razões que não compreendeu, sentiu-se assustada.
Uma hora após os homens terem partido, começou a nevar. A temperatura baixou e a geada revestiu a janela. Quaye sabia que Hunter provavelmente começara a viagem de regresso a Bethel naquela manhã, o que a deixava ansiosa. Temia que ele fosse apanhado pela tempestade. Teve esperança de que tivesse voltado para trás.
A neve continuou por toda a noite, e na manhã seguinte a montanha e toda a Natureza estavam novamente silenciosas debaixo de um manto frio. Durante todo o dia, Quaye rezou, afligiu-se e esperou. Mas ele não chegou nem naquele dia, nem no dia seguinte. Era segunda-feira, e faltava apenas uma hora para o crepúsculo quando Hunter apareceu.
QUAYE ouviu o relinchar de uma mula e pela janela viu Hunter subir com a carroça até ao estábulo coberto de neve. Sentiu um nó de ansiedade no estômago.
Hunter também estava ansioso. Tinha desejado desesperadamente voltar para ela e fizera tudo por voltar na quinta-feira de manhã, mas a tempestade obrigara-o a voltar para trás. Ainda antes da primeira partida, passara várias horas a decidir-se por um presente adequado para lhe levar e acabara com três. Depois, retardado pelo temporal, acrescentara mais dois. Tinha feito a barba e sentia o rosto nu. Preocupava-o que ela pudesse não gostar de o ver assim.
No longo caminho pelo deserto, Hunter em pouco mais pensou do que na beleza dela. Não tinha a certeza se a imagem que levava em mente era da sua forma física ou do espírito que o corpo continha; se os seus olhos eram lindos devido ao feitio e cor ou devido à ternura que transmitiam.
Temia que ela pudesse ter aproveitado a oportunidade da sua ausência para se ir embora. Quando viu o fumo a sair da cabana, foi invadido pelo alívio. Puxou a carroça para dentro do estábulo e arrumou tudo. Já estava escuro lá fora quando entrou na cabana.
com os braços cheios de pacotes, atravessou a soleira da porta e fechou-a. Quaye estava sentada na borda da cama. Entreolharam-se em silêncio.
- Cheguei - disse ele, apercebendo-se imediatamente de que
era uma declaração escusada.
Quaye viu que ele tinha rapado a barba. Parecia um miúdo, pensou, sentindo vontade de tocar-lhe no rosto.
- Você fez a barba. Tem um rosto bonito.
Embaraçado, Hunter não respondeu ao elogio.
- Trouxe-lhe uns presentes - disse ele, colocando-os ao lado de
Quaye.
- É tudo para mim? - perguntou ela, levando a mão ao peito. Hunter confirmou com um aceno de cabeça e entregou-lhe aquele que estava por cima, uma latinha pintada à mão cheia de bombons, rebuçados de hortelã-pimenta e bolinhos de amendoim com açúcar. Quaye tirou um bolinho e partiu-o em dois. Ofereceu o pedaço maior a Hunter e meteu o outro à boca. Levantou a tampa da outra caixinha. Continha um ornamento natalício de vidro soprado.
- Já passou a quadra, mas achei que gostaria - disse Hunter. Quaye segurou a peça acima da cabeça para a examinar à luz do candeeiro. . ,
- É lindo! - comentou, voltando a metê-lo na caixa com todo
o cuidado.
O embrulho seguinte continha uma escova de cabelo. A pega era de marfim gravado e incrustada com três ametistas de cor púrpura.
- Oh! - exclamou Quaye, passando os dedos pelas pontas das
cerdas. ,
- Isto faz conjunto com a escova - disse Hunter, entregando-
lhe a outra caixa.
Quaye levantou a tampa e viu um espelho de mão elegantemente trabalhado em prata de lei.
- Um espelho! - Tirou-o devagarinho da caixa e olhou para ele como se nunca tivesse visto a sua imagem reflectida. - É lindo! - comentou finalmente.
- Acho que isso depende muito de quem está a olhar para ele - disse Hunter.
Quaye sorriu, encantada, ao colocar cuidadosamente o espelho dentro da caixa.
- Estou sem palavras.
- Ainda há mais um presente - disse ele, entregando-lhe uma caixa rectangular comprida embrulhada em papel.
Quaye rasgou o papel de embrulho branco, depois fitou, receosa, o seu conteúdo. Dentro da caixa, estava um vestido de cetim verde-escuro.
- Tem uma renda para ajustar ao corpete - explicou ele desajeitadamente. Coisas macias, coisas femininas, não existiam no seu mundo de peles de búfalo e lonas. Nem existiam no de Quaye. A vida dela era uma vida de necessidades. Fitou o vestido como se não ousasse tocar-lhe. Ergueu o olhar para ele.
- Onde é que eu ia vestir esta roupa?
- Trouxe vinho e bifes para o jantar. Talvez pudesse vesti-lo esta noite. Para mim.
O pedido agradou a Quaye.
- Gostava de tomar um banho antes de o vestir - disse ela. Tomar banho não era propriamente um ritual regular na vida do Oeste. Era até considerado por muitos como presunção. A tina estava encostada a um canto da sala, cheia de sacos de serapilheira com café e aveia.
- Eu vou preparar a tina - disse Hunter. - Você pode tomar banho enquanto eu preparo o jantar.
Enquanto esperavam que a água aquecesse, tornaram a pendurar os cobertores, isolando a tina do resto da sala. Hunter foi buscar um pedaço de sabão, depois foram à lareira, carregaram um caldeirão de água a fumegar e despejaram-no na tina. Ele experimentou a água.
- Está um bocado quente.
- Tenho a certeza de que vai ficar boa - disse ela. Desculpou-se com um sorriso e correu a cortina.
Hunter repôs a chaleira ao lume, depois acendeu uma vela e sentou-se para preparar o jantar.
Atrás da cortina, Quaye desabotoou a camisa de flanela e estendeu-a sobre a cama. Tirou novamente o espelho de prata da caixa de madeira. A luz vacilante do candeeiro fazia dançar a sua pele fina ao observar a sua imagem reflectida a olhar para ela própria como se visse uma desconhecida. Quaye sabia que os homens a achavam atraente, mas, tanto quanto se lembrava, a sua beleza traíra-a e ela não desejava de maneira nenhuma ser encantadora. Até aquele dia. Pela primeira vez na vida, desejou ser bonita aos olhos de um homem.
Entrou devagar na tina. O nível da água subiu até à beira quando fechou os olhos e se afundou dentro dela. Desejou que a água pudesse lavar todos os pensamentos terríveis que tinha acerca do seu próprio corpo, um baptismo para limpar tudo o que sofrera. Tudo o que era. De repente, ficou receosa. Se Hunter soubesse o que tinha feito, certamente a rejeitaria.
com Jak havia segurança - uma horrível e repugnante segurança. Hunter tinha-lhe dado vontade de viver quando a morte era algo muito mais seguro. Havia suavidade naquele homem, pensou. E talvez apenas isso fizesse o risco valer a pena. Seria possível aquele homem amá-la? Não podia acreditar nisso e, no entanto, ele não mostrara nada em contrário. Tratara o coração dela como se ele fosse um prémio de grande valor, algo de precioso. Tão delicado e tão translúcido como o ornamento que lhe dera.
Olhou para o anel que tinha no dedo e lembrou-se das palavras da mãe- "Que encontres o amor um dia para a tua vida fazer sentido!" Pela primeira vez, tirou a aliança de prata e passou-a de uma mão para a outra. . _
Saiu da tina, enxugou-se com uma toalha e depois enfiou-se no vestido novo. Gostou da maneira como o cetim lhe deslizava pela pele macia. Nunca usara um vestido tão elegante, um vestido de senhora. Ajustou a renda ao corpete e sentiu-o apertado na cintura, acentuando as linhas graciosas do seu corpo.
Quaye pegou na escova nova e escovou o longo cabelo até ele ficar macio e solto. Depois, levantou o espelho e examinou ansiosamente o rosto pálido. Beliscou as maçãs do rosto para lhes dar cor.
Quando ganhou coragem, levantou-se e ficou ali, escondida atrás dos cobertores.
- Estou pronta - disse.
Hunter estava acocorado junto do lume, picando os bifes com um garfo. Voltou-se e levantou-se devagar quando ela afastou os cobertores e avançou timidamente. Estava resplandecente com aquele vestido. O cetim verde ondulava com o seu andar e intensificava-lhe o verde dos olhos. Hunter olhou para ela, tomado pelo género de temor respeitoso com que se olha para o pôr do Sol e para as maiores criações de Deus.
- Está uma beleza!
- Obrigada por este vestido tão lindo! - disse ela, sorrindo-lhe reconhecidamente. - Faria qualquer pessoa bonita.
- A moldura não faz o quadro bonito. Por favor, sente-se. O jantar está pronto - disse Hunter, indo cuidar da carne novamente.
- A sua cabana tem sido um lugar de estreias. É a primeira vez desde que vim para a América que alguém me cozinha uma boa refeição.
- Bem, não é difícil. Sente-se aí e veja. - Quaye sorria quando se sentou à mesa. - Você limpou-me a cabana.
- Espero que não se importe.
- Eu estava precisado da ajuda de uma mulher - disse Hunter, abanando a cabeça. - Trouxe a garrafa de vinho para a mesa e depois tirou os bifes para os pratos de alumínio com os garfos. - Peço desculpa pelo meu serviço de jantar.
- Parece que não estava à espera de companhia este ano - disse ela simplesmente.
Hunter encheu os copos e sentou-se à frente dela, fazendo-lhe sinal para começar. Quaye cortou um pequeno pedaço de bife e mastigou-o muito compenetradamente.
- Para homem, é bom cozinheiro.
- Isso é um elogio? - riu-se Hunter.
Quaye acenou com a cabeça afirmativamente.
- Esqueci-me de lhe dizer que vieram uns homens à sua procura enquanto esteve fora.
- Que homens? - perguntou Hunter, de testa franzida.
- Deixaram um cartão. - Levantou-se e foi buscá-lo. - Estão hospedados na pensão.
Hunter examinou o cartão e a apreensão apagou-se-lhe do rosto.
- Talvez queiram comprar-me a concessão.
- E vendia-a?
Hunter bebeu um gole de vinho enquanto ponderava a resposta.
- Não. Quando é que eles vieram?
- Sexta-feira. Eu disse-lhes que você devia chegar no sábado. - Franziu as sobrancelhas ao pensar na ausência prolongada dele. - Tenho pensado nas suas palavras desde que partiu.
- O que é que pensou?
- Que você me faz sentir merecedora.
Não teve que explicar. Hunter estendeu a mão e pegou na dela. Quando baixou os olhos, viu a aliança. "É mais um anel do que uma aliança", pensou ele.
- Que anel é este. Nunca vi um igual.
- É um anel Claddaugh. Faz parte da tradição irlandesa há séculos. A minha mãe deu-mo no dia em que deixei a Irlanda. É tudo o que me resta dela. Jak quis empenhá-lo em Nova Iorque. Foi a única coisa em que consegui contrariar Jak.
- Ele desistiu?
Quaye baixou a voz:
- Eu disse-lhe que cortava a minha própria garganta se ele mo tirasse.
A resposta de Quaye deixou Hunter momentaneamente sem palavras. Voltou a olhar para o anel. Cuidadosamente gravado na prata, via-se um coração muito pequeno com uma coroa por cima e duas mãos a rodeá-lo.
- Estes símbolos têm algum significado?
- O coração representa o amor; as mãos, fé na amizade, e a coroa, lealdade.
- O que é que significa Claddaugh?
- É o nome da povoação onde o anel teve origem. Mas também lhe chamam uma aliança de casamento irlandesa. É passado de mãe para filha. Se é usado na mão esquerda com as mãos viradas para fora, significa que ainda se anda à procura. Se as mãos estão viradas para dentro, o coração de quem o usa está prometido. A minha mãe voltou-as para fora quando o colocou na minha mão. Significava que eu ia encontrar o amor em algum lugar. - Ergueu o olhar para Hunter. - E a aliança que você usa?
- Eu não uso nenhuma aliança - disse Hunter, mostrando as mãos para o provar.
- A aliança que usa no cordão ao pescoço.
- Como é que sabe? - perguntou ele, surpreendido pelo facto de ela saber.
- Na noite em que me trouxe para cá... quando me abraçou para me conservar quente.
- Lembra-se dessa noite?
- Lembro-me de parte. - Foi invadida por um acesso de timidez. - Senti a aliança entre nós. Vi-a uma vez quando você não trazia camisa.
- Era de Rachel.
Ela fitou os olhos de Hunter, mas nem tudo era sofrimento no seu olhar. Ela teve a sensação de que esse facto estava relacionado consigo.
- Como era ela?
- Era uma pessoa bondosa. Fez-me acreditar no divino. Eu nunca senti receio até... - Hunter parou, baixou os olhos para o lugar onde a mão dela descansava sobre a sua e onde o anel se encontrava.
- Não me disse o que significava usar o anel na mão direita.
- Se é usado na mão direita - disse Quaye, sentindo o seu olhar -, significa que há possibilidade de amor.
Hunter agarrou-lhe o queixo com a mão e virou-lhe o rosto para si. As suas bocas tocaram-se, suavemente a princípio, depois Hunter puxou-a para si. Quaye passara a vida a tentar guardar para si aquilo que podia da sua intimidade, mas agora queria render-se a este homem e à emoção que sentia naquele momento.
De repente, afastou-se. Fitou com olhos atormentados o rosto espantado dele, levantou-se e correu lá para fora. Hunter seguiu-a e encontrou-a no alpendre. Soluçava, com as mãos cobrindo a cara.
- O que é que foi, Quaye? - Ele tocou-lhe, mas ela retraiu-se. - É por ser casada? Uma aliança feita contra a vontade é inválida.
- Deixe-me, Hunter - disse Quaye sem levantar os olhos e com voz sumida e angustiada. - Por favor, deixe-me!
- Deixo-a se você quiser - replicou Hunter com um aperto no coração. - Mas tem de me explicar porquê.
- Eu não sou a sua bondosa Rachel. Não me conhece. Não conhece o meu lado obscuro.
- Mas vejo a sua alma. E o que vejo é puro e inocente. Então, não vê tão claramente como julga.
Hunter chegou-se mais para perto de Quaye para a abraçar, mas
ela afastou-se.
- Em si, vejo uma mulher melhor e mais próxima de Deus do que eu, com o meu seminário e os meus convénios, alguma vez cheguei a estar.
- Você não sabe - disse Quaye, levantando o rosto molhado de lágrimas. - Nós fazemos o que se espera de nós, Hunter. Por muito repugnante e desprezível que possa ser, nós deixamo-nos cair.
Aquelas palavras saíram como uma nuvem branca no ar de Inverno. Passado um momento, Hunter perguntou:
- O que é que receia que eu saiba?
Quaye olhou-o nos olhos resolutamente.
- Se eu lhe disser, que lugar vou ocupar no seu coração? Não sei, Quaye. Mas tem de ter fé em mim.
A cabeça dela baixou-se como se a verdade se tivesse tornado demasiado pesada para aguentar. Quando levantou os olhos, havia neles uma grande tristeza.
- Jak foi de uma crueldade inaudita quando chegámos à América. Batia-me por dá cá aquela palha, e às vezes sem qualquer razão. Quer estivéssemos em casa, quer na rua, batia-me apenas para me lembrar de que podia fazê-lo. - Tremia. Hunter quis confortá-la, mas ela não permitiu que ele se aproximasse. - Jak não conseguia arranjar trabalho. Não queria voltar a viajar. Não queria deixar-me. Dizia que os irlandeses trabalhavam por uma bagatela e que roubavam o trabalho aos verdadeiros americanos. Eu não sabia se era verdade, mas não interessava. Sentia-me demasiado fraca e amedrontada. De alguma forma, ele apoderou-se da minha vontade e tornou-se dono dela, sem eu poder fazer nada. Comecei a acreditar que merecia o que quer que ele me fizesse porque não tinha conseguido agradarlhe. Em Nova Iorque, mandou-me trabalhar numa fábrica enquanto ele gastava nos bares o dinheiro que eu ganhava. Depois do trabalho, eu fazia-lhe o jantar e esperava até ele voltar para casa. Uma vez, ele estava de mau humor e deitou fora o guisado do prato dele e disse-me para o comer do chão. Eu perguntei-lhe porquê, e ele agarrou-me pelos cabelos e fez-me ajoelhar, depois empurrou-me a cara para o chão e disse que era porque os cães comem do chão, e eu era uma cadela irlandesa. Tornou-me insignificante e depois odiou-me por eu ser insignificante.
Quaye soluçava. Quando fitou novamente os olhos de Hunter, havia uma expressão distante invulgar no olhar dela.
- Uma noite, Jak levou um desconhecido para casa. - Nesta altura, Quaye fez uma pausa e virou-se de costas para Hunter. - Jak mandou-me despir em frente do homem. Mas eu não conseguia. Ele ameaçou matar-me à pancada, e eu disse-lhe para me matar e acabar com aquilo. Jak atirou-se a mim e rasgou-me a roupa. Eu limitei-me a deixá-lo. Já não me importava, era como se eu tivesse saído do meu corpo. O homem pagara dinheiro a Jak para estar ali comigo, e Jak aceitou. Parecia que aquilo agradava a ambos. - As palavras saíam-lhe lentamente. - Levou outros homens. Não sei quantos. Tenho tentado esquecer ... mas eles ... - Quaye olhou para Hunter, atrás de si, e a escuridão dos olhos dela assustou-o. - Vê? Sou pecadora e indigna. Sabendo isto, quer estar comigo? ,
- A culpa pesa sobre a cabeça de Jak, não sobre a sua - disse ele, pegando-lhe a mão.
- Mas quer estar comigo?
Quando muito, aquilo que ela fora forçada a fazer só contribuíra para que Hunter desejasse ainda mais protegê-la e amá-la. Mas estar com ela? Só então compreendeu o peso das correntes que o ligavam ao passado; os certos e terríveis grilhões do medo, fortalecidos pelos seus sentimentos por ela.
Hunter não soube responder-lhe e, ao fitá-la silenciosamente, viu-lhe a luz dos olhos, a fraca luz do seu espírito renovado, vacilar e morrer E foi como se estivesse com Rachel outra vez no quarto às escuras. O terror do seu falhanço ao lado dela deixou-o impotente e imóvel. Quaye virou-se e voltou para dentro silenciosamente. Pela primeira vez na sua vida, Hunter sentiu-se verdadeiramente amaldiçoado.
HUNTER quase não dormiu. Antes da madrugada, saiu silenciosamente para ir à caça, em parte para evitar o angustiante silencio do sofrimento de Quaye. Sabia que a decepcionara no mais crucial dos momentos. Caminhando com dificuldade pela neve, pensou no que iria dizer quando voltasse à cabana e perguntou a si próprio se haveria alguma coisa que pudesse ser dita. Matou um peru-brayo, levou a ave para o celeiro e começou a depená-la, dando graças pela monotonia da operação como alívio para os seus pensamentos torturados.
O relinchar de um cavalo que se aproximava levou-o à porta do estábulo. Jak Morse vinha a subir o caminho coberto de neve.
- Bell! - gritou ele.
Hunter pegou na arma e dirigiu-se ao cavaleiro.
- Diz-se na povoação que você tem aqui uma irlandesa.
Hunter accionou o ferrolho da carabina.
- Não há aqui nada que lhe pertença. Agora, saia da minha propriedade, a menos que deseje ser cá enterrado.
Nenhum deles questionou a realidade da ameaça. Morse estava prestes a retirar-se quando a porta da cabana se abriu. Quaye não olhou para Hunter quando saiu para o alpendre com os braços cruzados para se aquecer. Trazia apenas o vestido com que fora encontrada, agora consertado, e as botas. Os dois homens olharam para ela.
- Vim para te levar - gritou Jak.
com a cabeça ligeiramente inclinada, Quaye começou a dirigir-se ao cavalo. Hunter não queria acreditar no que estava a ver. Pôs-se à frente dela e agarrou-a pelo braço, mas Quaye libertou-se sem olhar para ele.
- Aonde vai?
- Voltar aonde pertenço - respondeu ela calmamente.
- - Você não lhe pertence, Quaye. Merece mais.
- Ai sim?
- Não vê que ele representa o mal? Ele é cruel.
Quaye voltou-se para ele com um sorriso estranho, como se a última afirmação a divertisse.
- Oh, Hunter, você é de longe mais cruel do que Jak. Pelo menos ele nunca fingiu que gostava de mim. - Desviou-se e continuou em direcção ao cavalo.
- Quaye! - chamou Hunter.
Quaye não se virou para trás. Jak puxou-a para a garupa e olhou para Hunter com um sorriso arrogante. Quaye virou a cara a Hunter. Jak incitou o cavalo e voltaram para a povoação. Hunter ficou especado, incrédulo e com o coração a bater descompassado. Voltou para dentro e, raivosamente, arrancou os cobertores que faziam a divisória.
Tudo o que lhe comprara: os livros amontoados aos pés da cama, o vestido de cetim cuidadosamente dobrado ao lado da escova e do ornamento de vidro. Tudo estava nas caixas em que tinha vindo, excepto o espelho, que estava aos pés da cama. Partido.
QUAYE INVADIU a mente de Hunter por dentro e por cima e a toda a volta. Durante os dois dias seguintes, ele reviveu aquela noite. Lembrou-se do beijo e da maneira como ela lhe aquecera o mundo e sentiu a fria rudeza da sua ausência. Ele magoara-a profundamente, e agora expiava o sofrimento dela com cada um dos momentos atormentadores da sua solidão. Contudo, não era a sua própria perda que mais o angustiava, mas pensar naquilo para onde ele compelira Quaye a regressar.
Deitou-se ao trabalho para exorcizar os pensamentos com a labuta física. Derrubou duas árvores e cortou-as para lenha, rachando toro a toro até as calosidades das mãos começarem a empolar.
Ao segundo dia, quando o Sol se aproximava do zénite, ouviu ruídos de cascos e, de machado na mão, foi ver quem era. Estava na esperança de que, por alguma razão, pudesse ser ela. Para seu desapontamento, era um velho escarranchado numa mula cinzenta. Trazia um chapéu ordinário de abas largas e, por baixo do casaco, uma camisa de lã carmesim aberta no pescoço.
O homem parou.
- Vocemecê é Bell?
_ sou - respondeu Hunter, apoiado no machado.
- O meu nome é Jon Billings. Acabo de chegar a Bethel e ando à procura de trabalho. Sei que você não anda a peneirar agora, mas se me puder arranjar qualquer coisinha, na Primavera eu compenso-o.
- Tenho muita gente para me ajudar - respondeu Hunter sucintamente.
- Dizem na povoação que você tem chinocas a trabalhar para si.
- De onde é que você veio? - perguntou Hunter. Vim do Norte. Goldstrike.
- Também andei por lá a fazer prospecção.
- Como é que se deu?
- Vim para aqui.
O homem sorriu, tirou do bolso um charuto já começado e acendeu-o.
- A Sodoma do Oeste, é como os jornais chamam a Goldstrike. Está bem posto o nome.
- Conhece a Pensão Orleães?
- Agora, chama-se Pensão Red Eye. O cajun que era o dono, embebedou-se e desatou aos tiros num dos saloons. Prenderam-no por uma temporada e fizeram-no pagar o conserto do saloon. Teve de vender a pensão. O cajun ficou meio pateta desde o assassínio da filha.
Hunter olhou para ele, aturdido e incrédulo.
- O que é que aconteceu à filha dele?
- como é que era o nome dela? - O homem pensou por um momento e depois desistiu. - bom, um dos hóspedes matou-a a tiro.
- Isabel - disse Hunter.
- É isso mesmo. Mestiça. Dizem que era bonita como uma corça.
- Enforcaram o assassino?
- Não. O homem roubou-lhe o cavalo e deu às de vila Diogo antes de o apanharem. Dizem que foi um pregador que vendeu a alma ao Diabo. Os vigilantes encontraram-na. Oferecem uma boa recompensa pela cabeça do pregador, mas suspeito de que neste momento ele já deve estar no Yukon. - Hunter voltou as costas, e o outro insistiu:- Quanto ao trabalho ...
- Como eu lhe disse, não preciso de ajuda.
- Você arranja trabalho para um chinoca e para um branco não?
- Pode crer.
O homem voltou a meter o charuto na boca e puxou as rédeas da mula.
- Essa maneira de pensar pode meter um homem em sarilhos - ameaçou. Ele e a mula regressaram pelo caminho por onde tinham vindo.
HORAS DEPOIS, Hunter estava ainda sob o efeito do choque causado pela notícia da morte de Isabel quando três homens se aproximaram a cavalo. Quando chegaram à distância de voz, o mais alto dos três disse:
- Presumo que seja Hunter Bell.
- Eu, em contrapartida, não sei quem você é.
O homem desceu do cavalo e dirigiu-se a Hunter:
- Falei com a sua mulher mesmo antes da nevasca. - Mostrou o cartão-de-visita. - Chamo-me Joseph Wharton. Represento a companhia Mineira Comstock, de S. Francisco. Ouvimos falar da sua concessão. Mr. Barton, o nosso geólogo, examinou as suas escavações. Gostaríamos de trazer máquinas hidráulicas e explorar o filão até ao interior da montanha. Estamos preparados para lhe fazer uma oferta pela sua concessão.
- Faça.
- A Comstock oferece-lhe meio milhão de dólares e cinco por cento de acções na Companhia Mineira de Bethel.
Hunter ficou impassível perante o valor. Não por ter já extraído por si um quarto daquela quantia, mas porque o ouro parece insignificante a um coração destroçado.
- Não estou a pensar em vender.
- O senhor é um homem civilizado, Mr. Bell. O que é que um homem como o senhor faz num lugar destes?
- Como é que se faria a transacção?
- Podíamos depositar o dinheiro num banco à sua escolha. Ou podíamos pagar-lhe em notas, mas acho que isso não seria prudente, tendo em conta o ambiente.
- Preciso de tempo para pensar.
- Os nossos directores reúnem-se na quinta-feira. Eu gostava de lhes mandar a sua resposta por telégrafo no dia anterior - disse Wharton, regressando ao cavalo. - Estamos hospedados na Pensão de Bethel.
HUNTER LEVOU menos de uma hora a arrumar as suas coisas. Desde a sua chegada a Bethel tinha armazenado uma quantidade de ouro significativa: dois alforges de cabedal, pesando perto de dez quilos cada um Mesmo sem vender a sua concessão, era suficientemente rico para viver a sua vida sem precisar de tocar nas cartas nem na pá. Podia viver como um rei numa hacienda de quinhentos hectares no México.
Deixaria aos chineses a carroça, os animais e tudo o que não pudesse carregar consigo. O dinheiro da concessão seria enviado a Hannah. Ia passar pelo acampamento Chang para se despedir e depois à pensão fechar o negócio.
Sonny veio cumprimentá-lo à entrada do acampamento.
- Olá, Mister Bell. Vai a algum lado?
- Vou-me embora para o México - respondeu Hunter.
- Embora? Isso é mau - disse ele, abanando a cabeça, incrédulo. - vou dizer a outros.
Os Changs não esconderam a sua tristeza. A mãe de Syau Lou foi à tenda e obrigou-o a aceitar um colar de pedras de jade. Por insistência da família, sentou-se com eles para jantar, e quando saiu do acampamento, era demasiado tarde para encetar uma viagem. A rua estava escura quando se dirigiu à pensão, embora as janelas estivessem resplandecentes de luz.
Ao aproximar-se do edifício, voltou a pensar em Isabel. Embora achasse inquietante ter a cabeça a prémio, a notícia do assassinato dela enchia-o de raiva. Ela fora salvá-lo e pagara com a vida. Quando Hunter se lembrou do seu pedido para a levar com ele, sentiu que o sangue dela lhe pesava na consciência. Devido ao seu próprio medo, fugira dela. Precisamente como fizera com Hannah. Precisamente como fizera com Quaye.
Olhou a rua escura lá ao fundo, viu o saloon iluminado e depois olhou de novo para a pensão. Podia fugir. Podia deixar Quaye com o animal com quem agora vivia e esperar que, com o tempo e o álcool, a recordação que tinha dela se esfumasse.
Ou podia escolher a vida. Ocorreu-lhe que, com todos os seus estudos de Teologia, falhara no ponto fundamental da querença em que tinha jurado acreditar: a qualidade do coração de uma pessoa mede-se na sua vontade de escolher a vida em vez da morte. E fora nisso que ele falhara, porque escolher a vida é escolher desgosto mas também alegria, sofrimento mas também prazer. Quando Hunter enterrara Rachel, enterrara com ela o seu coração com medo de que ele pudesse sarar, sentir e crescer de novo. Quando fugira de West Chester, fugira não só do sofrimento da morte, mas também da própria vida.
Hunter decidira que os outros ficavam melhor sem ele, mas estava enganado. Deixara dívidas que outros iam pagar, e isso era algo com que não conseguia viver. Levou o cavalo pela rua abaixo até ao saloon.
Hunter estivera naquele saloon apenas uma vez, quando fora libertar Lau Jung. A sala tinha cerca de doze metros de comprimento e um longo balcão de mogno. Por detrás do balcão, havia um grande espelho com prateleiras onde se amontoavam garrafas de whisky e outras bebidas alcoólicas. Havia meia dúzia de mesas redondas na sala, mas só uma estava ocupada, com Jak e três outros homens sentados a jogar póquer. A mesa estava cheia de garrafas vazias. Jak virou-se para ver para onde os outros estavam a olhar e franziu o sobrolho.
- O que é que você quer?
- Venho jogar às cartas.
- Já há parceiros.
- Se ele tem massa, esta cadeira está vaga - disse o homem sentado ao lado de Jak, que, pela altura do monte de moedas que tinha à frente, parecia estar a ganhar.
Hunter tirou o casaco, sentando-se.
- Você é o Pregador, não é? Eu sou Jon. Hunter estendeu a mão.
- Hunter Bell. Não jogo há uns tempos. Mas tenho a certeza de que vocês me podem pôr a par.
Os homens entreolharam-se silenciosamente, gananciosos pelo monte de moedas que Hunter colocou em cima da mesa.
- O que é que vamos jogar?
- Póquer - disse o homem.
Hunter acenou para o homem do balcão.
- Traga-nos uma garrafa de whisky.
O empregado trouxe uma garrafa com um copo para Hunter. Hunter encheu os copos dos outros e depois o seu e bebeu um longo trago. O jogo decorria com rapidez. Tal como os homens tinham esperado o monte de Hunter foi diminuindo, e a maior parte dele estava agora do outro lado da mesa, junto de Jak. Jak não se lembrava da última vez que tivera tanta sorte, e chegou à conclusão de que, afinal de contas, Hunter não era mau tipo. Hunter continuava a beber, e o efeito do álcool era evidente para todos os que estavam à mesa.
- O Pregador não aguenta bem esta bebida - disse Jon.
- Provavelmente, bebi demasiado - assentiu Hunter, servindo-se de mais um copo. O jogo continuou até tarde, pois todos os homens foram ficando para a matança, esperando pacientemente a sua parte da caçada.
- bom, ainda bem que você veio - comentou Jak, bem-disposto por volta das 2 da manhã.
Hunter afastara o copo e agora bebia pela garrafa.
- Não me tenho safado lá muito bem, não.
- Você tem tanto que aprender sobre cartas como sobre mulheres - disse Jak.
- Explique lá - pediu Hunter, tirando a garrafa da boca.
- Bem você faz tudo mal. As mulheres são como os pretos. Se
não os desancamos, só nos dão trabalho. Não se lhes pode encher a
cabeça de livros, religião e coisas do género. Um homem que deixa a
mulher fazer tudo o que quer não é um homem, é um capão. - Us
outros riram-se. - É por isso que a minha mulher voltou a correr logo que a fui buscar. A posição da mulher é de costas. Ela só respeita o homem que a puser lá.
Hunter escondeu o seu desprezo examinando o monte de moedas que lhe restavam.
- Acho que tenho o suficiente para mais uma rodada. Vamos ver se consigo recuperar algum. Parece-me que sou eu a dar.
com ar satisfeito, Jak entregou-lhe o baralho e os homens puseram o dinheiro na mesa. Conforme as cartas deslizavam pela mesa, Jak olhava para a mão com ar impenetrável. Recebera três reis, a melhor cartada da noite. Na terceira rodada de apostas, os outros três tinham passado. Jak continuou a subir até Hunter empurrar o seu último ouro para o monte.
- Bem, parece que é tudo - comentou Hunter com ar desanimado.
- Estou disposto a aceitar um vale - disse Jak.
Hunter bateu com as cartas em cima da mesa, considerando a proposta, e depois perguntou:
- Tem uma pena?
- Arranja uma pena - gritou Jak para o homem do bar.
O outro trouxe papel e uma pena de aparo metálico. Hunter rabiscou um bilhete e depois empurrou o papel para Jak.
- Só sei ler números. Não entendo nada do que está nesse papel.
- É a escritura da minha concessão.
Jak olhou para o papel, incrédulo.
- O que é que eu aposto contra isso?
- A sua mulher.
Jak fitou-o, divertido e incrédulo, depois deitou um olhar aos outros. Riu-se nervosamente.
- Você quer a minha mulher?
- A minha concessão pela sua mulher.
- Já está farto das chinocas? - perguntou Jak com ar de gozo.
- Se não está interessado ... - disse Hunter, estendendo a mão para o vale, mas Jak pôs-lhe rapidamente a mão em cima.
- Não disse que não estava interessado. Vocês são todos testemunhas.
Hunter virou o papel e empurrou-o para ele.
- Escreva.
- Não sei ler e, c'os diabos, de certeza que não sei escrever.
- Eu escrevo por si. - Hunter escreveu os termos da aposta, mostrou o papel a Jon, que fez um sinal afirmativo com a cabeça, e depois voltou a empurrá-lo para Jak. -Agora, assine!
Jak fez um X e recostou-se na cadeira.
- Então, está feito. Abra o jogo. -Você primeiro - disse Hunter.
Um grande sorriso espalhou-se pela cara de Jak.
- Eu avisei-o. Você tem jogado como um burro. - Abriu os seus três reis. - Isto faz de mim um homem rico.
- Não, isto faz de si um homem solitário - disse Hunter com uma voz ríspida e os olhos de uma frieza sóbria. Revelou três ases.
- Até os burros têm sorte de vez em quando.
- Macacos me mordam! - disse um dos homens.
O sorriso de Jak desvaneceu-se. Hunter agarrou no vale da escritura e nas moedas e levantou-se.
- Quero-a na minha cabana antes do meio-dia. - Inclinou-se sobre a mesa com olhar feroz. - Se preza a sua patética vida ela que não leve marcas recentes no corpo. - Voltou-se e saiu do saloon.
O SOL ia alto num céu sem nuvens, e a neve derretia-se e escorria pela montanha abaixo em pequenas correntes de água quando Quaye subiu o sopé do monte até à cabana de Hunter. Faltava uma hora para o meio-dia quando empurrou a porta. Viera a pé desde a povoação, trazendo tudo o que possuía num pequeno saco de oleado. Hunter estudara mentalmente o que devia dizer, e a única coisa que tinha decidido era pedir desculpa. Estava a trabalhar o pé da cama quando ela chegou. Quando a ouviu lá fora, ele pousou a faca.
Quaye entrou e pousou o saco. O sol, incidindo por detrás dela, formava uma auréola em seu redor.
- Que direito tem você de jogar a minha vida? - perguntou, furiosa. Hunter não respondeu, e ela prosseguiu: - Achou que podia comprar-me?
- Eu não a comprei.
- Não, ganhou-me às cartas. Ao menos, Jak pagou-me com
dinheiro à vista.
- Eu não a comprei, só comprei a sua liberdade - repetiu ele, levantando-se devagar, com os olhos pregados nela. - Lamento o que fiz e, ainda mais, o que não fiz. Na noite em que a encontrei na neve, acreditei que Deus a tinha enviado para me atormentar. Para tornar a viver a dor que senti ao perder Rachel. - Baixou os olhos, irritado pelo embaraço. - Sei que a magoei. Se pudesse passar por tudo outra vez, não cometeria o mesmo erro.
Quaye fitou-o em silêncio.
- Eu não posso ser ela - disse finalmente.
- É a si que eu amo.
- Ama-me? Até quando? Até a dor da recordação voltar? E o que restaria de mim então?
- Eu não vou abandoná-la.
- Já abandonou, Hunter.
- Por favor, dê-me outra oportunidade.
Quaye baixou os olhos.
- Não posso. Então, liberte-me. Diga que não me ama. - Quaye começou a chorar. - É por isso que não posso dar-lhe outra oportunidade. Nunca amei nem temi ninguém tanto como a si. Preferia que me tivesse deixado morrer naquela noite!
Hunter inspirou profundamente e, com as palavras dela ainda atormentando-lhe o coração, foi até um canto da cabana. Inclinou-se sobre um monte de caixas de madeira e regressou com uma pequena bolsa de couro. Estendeu-lha.
- Tem aqui o suficiente para regressar ao Leste. Ou à Irlanda.
Quaye não lhe tocou. Limpou os olhos.
- Não posso ficar a dever-lhe.
- Quaye, eu mereço qualquer inferno que escolher para mim. Mas antes queria morrer mil mortes do que vê-la de volta com Jak. Peço-lhe ... não, imploro-lhe apenas uma coisa. Aceite este dinheiro e fuja para tão longe quanto puder. Faça-me apenas isto para aliviar o desgosto que vou sentir pelo resto da minha vida. Deixe-me ter a certeza de que não está com ele.
Quaye olhou para os olhos de Hunter. Agarrou na bolsa e voltou-lhe as costas. Parou indecisa por um momento, pegou no saco de oleado e saiu da cabana. Quando a porta se fechou, Hunter foi à despensa, agarrou no jarro de brandy e começou a beber.
HUNTER estava completamente vestido debaixo dos cobertores quando Sonny entrou. Estava na cama há quase três dias, bebera o jarro de brandy e mais duas garrafas. A sala tresandava a álcool e a voMitado. , ,
Sonny tinha ido alimentar gado quando reparou no cavalo de
Hunter no curral. Chamou e, não obtendo resposta, abriu a porta da
cabana. Viu o vulto de Hunter na cama e as garrafas.
- Mr. Bell beber demasiado.
- Não é suficiente.
Sonny foi à lareira reacender o lume que se apagara.
- Porquê o senhor não ir para México?
- Não vendi a mina. Mas podes ficar com o que eu te dei.
Sonny acendeu um fósforo e o lume pegou.
- Eu trago Lung Yan. Ele saber remédio chinês.
- Achas que tem alguma coisa para a melancolia?
- Melancolia - ecoou Sonny. De repente, os seus olhos esbugalharam-se. - Irlandesa?
- Sim - assentiu Hunter com um suspiro. - A irlandesa.
- Eu faço-lhe chá para cabeça má. - Sonny procurou entre as provisões de Hunter enquanto esperava que a água fervesse. De repente, sobressaltou-se com uma detonação.
- Hunter Bell! - gritou um homem.
Hunter permaneceu na cama sem se mexer, como se não tivesse ouvido o chamado. Sonny foi até à janela e afastou a cortina.
- Dois homens chegam - relatou Sonny. - O homem mau chega.
- Vai buscar a minha arma - pediu Hunter. - Está junto da prateleira. - Saltou da cama e sentiu uma vertigem. Ficou parado até a cabana concluir a sua pirueta e depois abriu a porta vagarosamente. Viu Jak na companhia de um homem grande de rosto sombrio e com uma arma à cintura. Pela reputação e pelo distintivo, Hunter reconheceu-o como sendo o xerife Ponds. Calçou as botas e saiu lá para fora. Jak apontava para o appaloosa que estava no curral.
- O que é que querem? - perguntou Hunter.
- É este o assassino, ladrão de cavalos - disse Jak. O xerife apontou a arma a Hunter.
- Bell, venho prendê-lo pelo assassínio de Isabel Gayarre.
- Isabel era minha amiga - disse Hunter de cabeça erguida.
- No dia em que Isabel Gayarre foi encontrada morta, você desapareceu de Goldstrike com o cavalo dela. Este appaloosa corresponde à descrição.
- É o cavalo de Isabel. Eu comprei-lho.
- com uma bala - interrompeu Jak abruptamente.
- Isabel ajudou-me a fugir dos vigilantes, e eles mataram-na por isso.
- Isso será julgado em tribunal - declarou Ponds - Agora, venha daí.
NÃO LEVOU mais de dois dias para a notícia da prisão do Pregador chegar a Goldstrike. Enquanto a maior parte das gentes comemorava a notícia, o assassino de Isabel, Thomas Cage, temia-a.
Cage matara Isabel quando soubera da sua cumplicidade na fuga de Hunter. Isabel era adorada na povoação, e Cage sabia que, se o pai dela ou mesmo algum dos seus próprios vigilantes se convencessem da culpa de alguém na sua morte, agarravam numa arma ou numa corda para resolverem o assunto. A povoação engolira a história de Cage acerca do crime do Pregador, e ele confiara em nunca mais voltar a vê-lo. Cage temia que Hunter pudesse apresentar provas da sua inocência e, consequentemente, inculpá-lo.
Era intenção de Cage que as provas de Hunter nunca fossem apresentadas. Apressadamente, convocou uma reunião de vigilantes.
Os vigilantes estavam entusiasmados com a notícia da captura de Hunter e apareceram aos molhos. Cage atiçou ao rubro a indignação deles.
- Tomem atenção ao que eu digo - avisou ele. - com a sua língua de demónio, ele vai arranjar maneira de safar-se.
A multidão concordou unanimemente que a única coisa decente a fazer era resolver o assunto pelas próprias mãos.
UMA HORA antes do crepúsculo do quarto dia de encarceramento de Hunter, o ajudante do xerife entrou apressado na Prisão de Bethel. Trancou a porta atrás de si, encetando uma discussão acesa com o xerife. Hunter inclinou-se para diante, contra as grades da cela, tentando determinar a fonte de agitação dos dois homens. Lá fora, ouvia-se o clamor de cavalos e homens a gritarem. Pelo volume do som, Hunter calculou que seria um ajuntamento de quarenta a cinquenta homens.
O xerife carregou duas caçadeiras, conservando por perto uma caixa de munições. Nenhum dos dois representantes da lei falou com os prisioneiros, mas estavam ambos claramente amedrontados. Hunter sentiu que aquilo tinha alguma coisa a ver com ele.
Depois de uma série de tiros, a multidão ficou de repente silenciosa e fez-se ouvir a voz de um homem dirigida à prisão:
- Abra a porta, xerife!
- Vocês, meus rapazes, voltem para Goldstrike - gritou o xerife em resposta. - Em Bethel, a lei é soberana.
- O Pregador pertence ao Comité de Vigilância de Goldstrike, xerife. Não saímos daqui sem um enforcamento.
Hunter apertou as grades da cela.
- Não podem fazer isso, rapazes. Agora, acalmem-se antes que
alguém saia ferido.
- Foi mesmo para isso que viemos - disse a voz. A afirmação
foi aclamada pela multidão.
- Ouçam, rapazes - continuou o xerife com uma voz carregada de tensão -, se querem um enforcamento, então eu mando-lhes Barberi. De qualquer maneira, ele vai ser enforcado amanhã de manhã.
Barberi era um mineiro de mau carácter que fora preso por matar um homem. Estava sentado no chão, encostado à parede do fundo da cela, agarrado a uma garrafa de whisky. Não mostrou qualquer emoção perante a oferta do xerife.
- Nós queremos o Pregador - gritou o homem.
Uma bala furou a porta e encaixou-se na parede, fazendo chover pedaços de estuque sobre o chão de pedra.
- De qualquer maneira, aquele pregador vai acabar por ser enforcado - disse o ajudante do xerife. - Podia deixar a tarefa aos vigilantes e poupava-nos uma data de papelada. Lave daí as suas mãos, xerife!
O xerife permaneceu em silêncio por instantes, e, depois olhou para Hunter e disse:
- Lamento sinceramente. Deus tenha piedade da sua alma!
- E da sua! - retorquiu Hunter.
O xerife virou-lhe as costas vagarosamente e gritou lá para fora:
- Casey e eu vamos sair. Não disparem!
Abriram então a porta e saíram, deixando a prisão aberta. Um bando de homens entrou como um enxame de vespas assanhadas. Aterrorizado, Hunter foi à porta da sua cela tentar tirar a chave, que estava enfiada na fechadura. Mas a porta foi forçada, e Hunter foi imediatamente atacado por uma dúzia de homens. Amarraram-lhe as mãos atrás das costas e depois empurraram-no para fora da cela.
Ainda antes de Hunter chegar à porta da prisão, foi-lhe passada ao pescoço uma corda com um nó bem apertado. Lá fora, Hunter reconheceu alguns homens entre a multidão. Havia uns vinte de Goldstrike, mas outros tantos eram de Bethel, arrastados para o linchamento pelo fervor dos vigilantes. O homem que chefiava a multidão era Thomas Cage. No meio dela, Hunter viu também Jak. O bando fez Hunter avançar aos pontapés e coronhadas.
Um plátano ressequido foi considerado uma forca apropriada, e a extremidade da corda de Hunter foi atirada por cima de um ramo forte três metros e meio acima do solo.
Cage avançou para ele:
- Ouvi dizer que te safaste bem por aqui, Pregador. É pena que não possas levar o dinheiro contigo.
- Tu vais arder no Inferno pela morte de Isabel - disse Hunter.
- É um bocado tarde para pregações. A morte dela recai sobre a tua cabeça, Pregador. Agora, podes escolher entre ser enforcado devagarinho ou confessares o assassínio e nós darmos-te um puxão e acabar logo com a coisa.
Hunter cerrou os dentes.
- És doido - opinou Cage. - De qualquer maneira, vais morrer.
Jak avançou e agrediu Hunter, deixando-lhe um fio de sangue a escorrer da boca.
- Disseram-me que há um mandamento acerca de cobiçar a mulher do próximo, Pregador. Quero que descanses em paz, sabendo que eu vou buscá-la outra vez.
Hunter cuspiu sangue.
- Nunca a encontrarás.
- Ela está na pensão há uma semana - disse Jak, sorrindo. - Faço tenções de ir buscá-la logo que acabarmos contigo.
As palavras de Jak deixaram-no doente. Porque é que Quaye não fugira? Baixou a cabeça e rezou silenciosamente: "Meu Deus, se os anos que passei ao Teu serviço me dão algum direito, faço-Te só um pedido - tira-me a vida, mas conserva Quaye em segurança, longe dele."
Nessa altura, um tiro de caçadeira sobressaltou o grupo. Os homens voltaram-se, deparando com todos os onze membros da família Chang, armados com machados, picaretas, quatro caçadeiras e duas das carabinas de Hunter.
- Soltem Mister Bell! - gritou Sonny. Apontou a espingarda a Cage, que levantou os braços e recuou.
- Calma, chinoca, nós só estamos a fazer cumprir a lei. - Deitou um olhar rápido aos homens e viu que alguns já estavam a preparar-se para empunhar as suas armas.
Observando tudo, Hunter percebeu que havia na turba demasiados homens, e o sentimento contra os chineses era demasiado exacerbado. - Não, Sonny - gritou. - Volta para casa. Leva-os daqui.
Os chineses permaneceram firmes, dispostos a não abandonar.
- Eu disse para se irem embora - gritou Hunter. - Eu matei a rapariga. Devo ser enforcado por isso. Vão-se embora! Dzou ba! Voltem para casa. "
Cage sorriu. Os chineses tinham feito aquilo que ele não conseguira. Confusa, a família baixou as armas.
Justamente nesse momento, soou outro tiro, e Cage agarrou-se ao peito, dobrou-se sobre os joelhos e tombou para diante de cara na neve. Jak correu para agarrar a extremidade da corda, mas um segundo tiro acertou-lhe e derrubou-o de costas.
- Mato o próximo que agarre aquela corda. - A voz com sotaque pesado vinha de um homem com um só braço montado a cavalo. Vagarosamente, trotou em direcção ao grupo com a pistola na mão e as rédeas seguras debaixo do coto do braço que lhe faltava. Hunter reconheceu o pai de Isabel, Père Gayarre.
Um dos vigilantes de Bethel, desconhecendo a proficiência do cajun, sacou da arma, mas Gayarre arrancou-lha da mão com um tiro. Depois, apontou o revólver para um homem debruçado sobre Cage, agonizante.
- Solta o Pregador!
O homem cortou rapidamente a corda com uma faca-de-mato, e Hunter tirou-a do pescoço.
Gayarre aproximou-se, com os olhos a chisparem vingança.
- O Pregador não matou a minha filha. Quem a matou foram os vigilantes. Eu devia dar cabo de vocês todos.
- Foi Cage - gritou um dos vigilantes de Goldstrike. - Já levou o castigo. - Os outros concordaram rapidamente e, deixando Cage deitado de cara para baixo na neve, dirigiram-se para os cavalos.
Quando a multidão dispersou, Hunter fez um aceno de cabeça a Gayarre, que se limitou a fitá-lo com o sofrimento no rosto. Hunter não significava nada para ele. Viera por Cage; o seu trabalho estava feito.
De repente, ouviu-se outro tiro. Hunter gritou e caiu para diante agarrado à barriga. No chão, por detrás dele, Jak segurava uma pistola fumegante. O cajun fez fogo, e Jak caiu para trás para nunca mais se levantar.
LUNG YAN estava sentado ao lado da cama de Hunter com a cabeça inclinada. O ancião da família Chang falava em voz baixa num mandarim melódico. A sala estava às escuras, e as brasas cintilantes do incenso em redor da cama lançavam uma luz estranha sobre o rosto do curandeiro.
A camisa de Hunter fora-lhe arrancada. Tinha uma cataplasma sobre o abdómen, no lugar onde a bala fora extraída, precisamente por baixo das costelas. A bala não atingira órgãos vitais, embora ele tivesse desmaiado devido à perda de sangue. Hunter acordou com o cheiro pungente do incenso. Lung Yan levantou a cabeça e falou. Sonny apareceu de repente ao lado do ancião.
- Como passar, Mister Bell? - perguntou.
- Então, não estou no além?! - perguntou ele sardonicamente. Sonny não compreendeu.
- Como é que estou? - perguntou então Hunter.
- Deixou de sangrar.
Hunter fechou os olhos.
- O senhor não matar rapariga? - perguntou Sonny subitamente.
- Não.
- Disse mentira para salvar nós. O senhor homem honrado.
- Há quanto tempo estou aqui?
- Dois dias.
- Falei?
- Falar da irlandesa - disse Sonny. - Ela vir. Segurar sua mão
na noite passada.
- Quaye? Onde está ela?
- Está lá fora. Eu buscar ela para si.
Minutos depois, Quaye ajoelhava-se ao lado da cama de Hunter, com a mão dele na sua. Tinha os olhos vermelhos de chorar.
- Porque é que não fugiste? - perguntou Hunter. Ela limpou uma lágrima e suspirou profundamente.
- Tu libertaste a minha alma, Hunter, mas acorrentaste-me
o coração.
Hunter apertou a mão dela, sorrindo.
- Finalmente, fiz qualquer coisa acertada. - De repente fez um esgar de dor. - Há quanto tempo é que estás aqui comigo?
- Eu ia ter contigo quando foste atingido.
- Quem me deu o tiro?
- Foi Jak. - Depois, acrescentou com emoção: - Morreu.
- Como é que o pai de Isabel soube que eu estava inocente? Foi um dos vigilantes que lhe disse.
- Um vigilante com consciência?
- Cage chefiava um grupo que tinha linchado um irmão dele.
Hunter fez que sim, compreendendo.
- Fui visto por algum médico? - perguntou.
- Foi o médico quem te pôs esta ligadura. Fez tudo o que havia a fazer. Depois, Sonny trouxe Lung Yan. - Ficaram silenciosos por algum tempo, e Quaye passou-lhe suavemente os dedos pelo cabelo.
- Agora, descansa, meu amor.
Sonny falava com Lung Yan em voz baixa e depois disse a Hunter:
- Nós deixamo-lo, Mister Bell.
Hunter levantou a mão com dificuldade e Sonny apertou-lha.
- Obrigado, Sonny, Sye, sye.
- Hou hwei vou chi - disse Sonny sem traduzir. Saíram os dois do quarto em silêncio.
- Eu falei contigo? - perguntou Hunter depois de eles saírem.
Quaye acenou com a cabeça afirmativamente.
- Foi uma vergonha?
Ela sorriu e acenou outra vez com a cabeça.
- Ao menos tu sorris - disse Hunter, respirando com dificuldade. - É estranho. Não sei se vou viver ou morrer.
- Vais viver - disse Quaye.
Hunter fez sinal que sim.
- Tenho sede.
Quaye ajudou-o a levantar a cabeça e a beber, depois pousou-lhe outra vez a cabeça na almofada.
- Que mais posso fazer?
- Fala comigo. Ajuda-me a esquecer a dor.
- Gostavas que eu te lesse?
- Sim, lê. Lê-me o nosso livro.
Quaye foi à prateleira buscar o livro de poemas dele. Abriu-o no vigésimo soneto.
Amada, minha amada, quando reparo
Que no mundo ainda há um ano estavas!
Tempo que sentado só aqui na neve fiquei
Sem ver pegadas; ouvir o silêncio em desamparo
Nunca a tua voz ... mas aro por aro Fui contando as minhas correntes, como se ...
Ainda não tinha acabado quando Hunter adormeceu. Quaye puxou o cobertor para lhe cobrir o peito, inclinou-se sobre ele e beijou-lhe os lábios.
No DIA seguinte, Hunter acordou pouco antes do meio-dia. Um raio de luz brilhava pela janela aberta, e quando Quaye passou em frente dele, Hunter achou que ela parecia um anjo. Sentou-se ao lado dele com uma tigela de sopa.
- Tens fome?
- Tenho.
Quaye mergulhou a colher na tigela e levou-lha à boca. Hunter fechou a boca sobre a colher, fez um esgar, engoliu e depois tossiu.
- O que é isto?
- É a sopa que Sonny trouxe - sorriu Quaye. - Garantiu-me
que te faz bem.
- Prefiro a bala - disse Hunter, abanando a cabeça.
- vou arranjar-te um caldo de carne - disse ela, sorrindo de
novo.
Quando ia a levantar-se, Hunter agarrou-lhe a mão.
- Não me deixes. - Ela voltou a sentar-se, e ele prosseguiu: Se eu sobreviver, há assuntos que temos de discutir.
- Que assuntos, meu amor?
- O nosso futuro.
- O nosso futuro! - repetiu ela - É estranho que isso me soe tão bem! Nunca foi coisa em que pensasse com algum desejo.
- Então, vou ajudar-te a pensar. vou ajudar-te a sonhar. - Agarrou-lhe na mão. - Vamos vender a nossa concessão e apanhar a primeira diligência para a Pensilvânia. Há lá um sítio parecido com o Paraíso, uma pequena povoação nas margens do rio Brandywme chamada Chadds Ford. As colinas são luxuriantes e há pomares de macieiras e pereiras que se estendem a perder de vista. Compramos uma casa com lustres de cristal e tapeçarias. E tem de haver uma harpa. Hannah vai aprender a tocar harpa e ter um grande quintal e um jardim murado para explorar. Terá um pónei, e vamos dar passeios pela montanha. Tu vais ter um coche e criados. vou dar-te tudo aquilo que sempre te negaram.
- E vou ter-te a ti?
Se me quiseres - respondeu Hunter, ficando de repente sério.
-- Fazes uma proposta dessas a uma viúva tão recente?
- Faço.
- És atrevido - disse ela, brincando. - Mas aceito.
- Eu sou uma pechincha. E não me levas só a mim, a Hannah também. Tens de nos ter a ambos.
- Sim, Hannah também. Seremos uma família.
A felicidade que não alcançarmos será compensada pela de
Hannah. E quando estivermos velhos e cansados, Hannah toca-nos harpa com os netos a gatinharem aos nossos pés.
Quaye suspirou.
- És um sonhador maravilhoso.
Hunter tentou puxá-la para si, mas o movimento magoou-o, portanto Quaye enfiou-se na cama ao lado dele. As bocas de ambos tocaram-se, e Quaye não desejava nada a não ser aquele homem.
- Entrego-te o meu coração, amor. Seguir-te-ei, seja qual for o sonho em que embarcares.
Hunter sorriu, roçando o nariz no dela.
- Tu és o navio que me faz embarcar em sonhos grandiosos. A
tua beleza brilha como uma estrela pela qual um barco pode navegar. Ou não navegar, ficando apenas à deriva em ondas tranquilas de total contentamento.
- E de que livro saiu isso?
- Apenas do meu coração - disse Hunter, sorrindo e beijando-a
na face. Depois, encostou-se para trás e gemeu baixinho.
- Tens de descansar. Descansa, meu amor. Eu aqueço-te.
Hunter puxou-lhe a cabeça para cima do peito quando se encostou na almofada, e Quaye ouviu-lhe o coração a bater devagar quando ele adormeceu de novo. Fechou os olhos e deixou a música do sonho embalá-la até adormecer também.
A tarde já ia avançada quando Hunter soltou um gemido, acordando-os a ambos.
- O que foi? - perguntou ela, agarrando-lha na mão. Hunter levou a mão dela até ao rosto. Ardia em febre. Quaye
levantou-se, mergulhou um trapo num balde de água que colocou junto dele e passou-lho suavemente pela testa. Ele abriu os olhos e fitou-a. Quaye viu neles algo inexprimível.
- Quaye! - chamou Hunter em voz muito baixa.
- Sim, querido?
- Agora, sei.
- O quê, meu amor?
- Se vou viver ou morrer. - Levou a mão ao estômago e pousou-a devagarinho sobre a carne quente. A pele à volta do ferimento estava inflamada e subiam-lhe pelo peito riscas vermelhas. - Desculpa.
Quaye apertou as mãos à volta das dele.
- Não, Hunter, por favor, não me deixes.
- É a vontade de Deus.
- Então, vou pedir-lhe a Ele. - Caiu de joelhos e baixou a cabeça.- Por favor, não o leves. Dou-Te tudo menos ele.
Hunter apertou-lhe a mão.
- Quaye - disse ternamente. - Aprende comigo. Reza para que seja feita a Sua vontade, não a nossa.
- Mas eu temo a vontade de Deus - argumentou ela com a mão a tremer e os olhos molhados.
- Não deves temê-la - retorquiu ele, passando a língua pelos lábios ressequidos. - Meu amor, traz-me a bolsa que está na prateleira.
Quaye levou-lhe a bolsa sem perceber porque ele a queria. Continha uma pena e duas folhas de papel. Uma estava usada, a outra, em branco. Hunter rabiscou qualquer coisa na folha escrita e depois entregou ambas a Quaye.
- Assim, a concessão fica em teu nome. Escreve o que eu te
digo.
- Hunter, agora não...
- Tens de ir à pensão falar com Mr. Wharton. Diz-lhe que tens
a concessão.
A expressão de Quaye endureceu-se.
- Não, não. Não digas isso. Vais ser tu a fazer isso quando estiveres bom...
- Tenho de falar agora, meu amor. Não há muito tempo. - As palavras dele atravessaram-na como punhais, mas, ao fitá-lo nos olhos, percebeu que devia obedecer. Ele levantou a mão e fez-lhe uma festa no rosto. - Tens de viver o nosso sonho, Quaye.
- Hunter ... - começou ela, contendo as lágrimas.
- Diz a Wharton que aceitas a oferta, mas que ele tem de proteger a concessão dos Changs. Ele tem de se comprometer por escrito.
Quaye escreveu as instruções, e ele prosseguiu:
- Manda-os depositar o teu dinheiro no Banco de Chester County. Tenho lá um amigo. Parley Smythe. Podes confiar nele.
Enquanto Quaye escrevia, as lágrimas caíam-lhe sobre o papel, esborratando as palavras. Começou a soluçar, e Hunter estendeu-lhe a mão.
- Não chores por mim. Eu sou um homem abençoado. Senti o verdadeiro amor por duas vezes na minha vida. É mais do que qualquer homem pode esperar.
Quaye segurou a mão dele contra o rosto, enquanto ele continuava:
- Tomas conta de Hannah, Quaye? Acabas o que eu não consegui começar?
- Sim - disse ela, baixando a cabeça.
- Quando ela for suficientemente crescida para compreender, dizes-lhe que o pai a amava? Há uma carta lacrada no livro de sonetos. Viste-a?
- Vi, e assim farei, meu amor - prometeu Quaye, pousando a cabeça no peito dele.
- Quero dar-te o meu nome. Gostava que nos casássemos. Parece-te patetice?
Quaye não conseguia falar, mas abanou a cabeça negativamente.
- Eras capaz de tomar o meu nome, perdendo-me logo a seguir? Quaye apertou-lhe a mão e disse:
- Perdendo-te um milhar de vezes. - Tirou a aliança Claddaugh e colocou-a na mão de Hunter. - Casa-nos. Deus honrará as tuas palavras.
Hunter fechou a mão sobre a dela e fitou Quaye ansiosamente.
- Minha doce Quaye! - Engoliu em seco. - Tomo-te como minha esposa e comprometo-me a receber-te nos laços sagrados do matrimónio. Tomas-me como teu esposo e comprometes-te a receber-me de acordo com os desígnios de Deus?
- Sim.
- Prometo diante de Deus ser teu esposo na alegria e na tristeza,
na saúde e na doença, até que a morte... - parou e fechou os olhos
- durante tanto tempo quanto o Deus misericordioso nos possa admitir na eternidade. - Olhou para a aliança voltou-a de modo a ficar com as mãos para dentro.
- É como a minha mãe disse - confirmou Quaye. - Nós realizámos o desejo dela.
Hunter apertou-lhe a mão.
- com esta aliança eu te desposo, em nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo. - Colocou-lhe a aliança no dedo. - Pela autoridade que me é conferida como ministro da Igreja de Jesus Cristo, eu nos declaro marido e mulher. Que o homem não separe aquilo que Deus
uniu.
- Meu marido! - murmurou Quaye. Enterrou a cabeça no ombro de Hunter, que a abraçou enquanto ela chorava. Depois, Hunter pôs a mão na cabeça de Quaye, passando-lhe os dedos por entre o cabelo ruivo. A voz tremeu-lhe quando começou a falar.
"Amo-te com um amor que me parecia perdido, como os meus santos perdidos. Amo-te com o murmúrio, os sorrisos, as lágrimas de toda a minha vida. E ..." - Começou a respirar com dificuldade.
Quaye levantou-lhe a cabeça e fitou-o, apavorada. Passaram vários minutos até ele acalmar. Ela encostou o rosto ao dele e depois, num sussurro, acabou o verso:
"... se Deus assim quiser, amar-te-ei mais ainda depois da
morte."
Não se ouviu mais nenhum som a não ser a respiração arquejante de Hunter e o fogo a crepitar na lareira. Quaye encostou o corpo ao dele, apertando-o, como se quisesse impedir a fuga da sua alma.
Horas depois, a meio da noite, o peito de Hunter dilatou-se, como se estivesse a ser empurrado por qualquer força fantasma, e ele caiu para trás e não respirou mais. Completamente sozinha, Quaye gritou o nome dele. Depois, caiu sobre o seu peito e soluçou como se estivessem a arrancar-lhe o coração.
O COCHE elegante deteve-se em frente do casarão de tijolo vermelho no fim da rua calcetada em West Chester. O cocheiro negro, de chapéu alto, saltou para o chão, abriu a porta da carruagem e deu a mão a Quaye para ajudá-la a sair. Trazia uma capa preta de cetim para se proteger da frescura primaveril.
- É esta a casa, minha senhora - disse o cocheiro.
- Obrigada, Morris - agradeceu Quaye. Era uma casa enorme com uma vista espectacular e um jardim com flores de cores vivas. Dois cupidos em bronze guardavam o caminho empedrado que dava acesso ao pórtico.
Quaye teve a sensação de se encontrar defronte de um santuário. Hunter vivera ali. O piso superior era a habitação do ministro da Igreja, enquanto o resto da casa era usado como orfanato.
Uma mulher corpulenta de cabelos grisalhos, usando um avental, abriu a porta e correu escadas abaixo para cumprimentar a sua visitante. O seu rosto largo de faces vermelhas arvorava um grande sorriso.
- Irmã Bell, eu sou a Irmã Folland - disse ela, abraçando Quaye. - Como foi a sua viagem? Deve estar exausta.
- Foi bastante tolerável, obrigada - agradeceu Quaye. - Viajar para leste é muito menos árduo do que para oeste.
A mulher ergueu o sobrolho.
- Porquê?
- Cada paragem está mais próxima da civilização do que a anterior, por isso uma pessoa sente-se constantemente abençoada.
- Como tem razão, minha querida! - assentiu a outra com um sorriso, pousando a mão nas costas de Quaye. - Estávamos ansiosas
por conhecê-la.
- Tanto quanto eu estava ansiosa por vos conhecer. Tenho fé que
os papéis estejam prontos.
- Sim, Irmã. Houve que resolver uns pormenores técnicos de somenos importância, mas Mr. Smythe, do banco, deu-nos uma grande ajuda. Ele foi sempre um grande amigo do ministro Bell.
- Foi realmente muito prestável - assentiu Quaye, baixando depois a voz: - Ela sabe da minha chegada?
- Não lhe dissemos nada. Achámos que era melhor para a criança a senhora conhecê-la primeiro. Só para o caso de haver alguma alteração de ... - escolheu a palavra cuidadosamente - circunstâncias.
- Não houve nenhuma alteração.
A outra sorriu de novo.
- Venha comigo, por favor, Irmã Bell.
Entraram, e Quaye foi conduzida a uma sala onde estava uma criança sentada no chão a brincar com uma boneca de trapos. Ergueu o olhar quando Quaye entrou, o que lhe provocou uma forte onda de emoção. Que era filha de Hunter estava evidenciado em toda a sua fisionomia. Mas a maior parecença com o pai eram os olhos, profundos e penetrantes como os de Hunter, fazendo o coração de Quaye dilatar-se de amor.
- Gostava de conversar com Hannah - pediu.
- com certeza, Irmã Bell.
Quando a outra saiu da sala, Quaye acocorou-se perto da menina.
- Olá, Hannah.
- Olá! - respondeu a criança, levantando os olhos timidamente.
- A tua boneca tem nome?
- O nome dela é Rachel - disse Hannah, abotoando com dificuldade o vestido da boneca.
Quaye sentou-se e ajeitou as saias à sua volta.
- Talvez eu possa ajudar-te a abotoar o vestido. - Hannah entregou-lhe a boneca, Quaye acabou de abotoar o vestido e depois devolveu-a. - Rachel é muito bonita.
- Como é que se chama? - perguntou Hannah.
- O meu nome é Quaye.
- Nunca ouvi esse nome.
- O meu nome vem de muito longe. Do outro lado do mar.
- A sua casa é do outro lado do mar?
- A minha casa é na povoação logo a seguir a esta.
Hannah mudou de ideias acerca do vestido e começou a desabotoá-lo.
- Como é a sua casa?
- É muito bonita. Tem colunas altas brancas e uma fonte. Tem
uma casa de hóspedes, estábulos e um jardim lindo.
- Eu gosto de flores - disse Hannah. - Miss Folland bateu-me porque eu apanhei as flores do canteiro.
- Há muitas flores do campo para tu colheres em minha casa -
disse Quaye, agarrando suavemente o braço da menina. - Gostavas de ir ver a minha casa, Hannah?
A menina não levantou os olhos, mas fez que sim com a cabeça.
- Rachel e Samantha podem ir?
- Sim. Samantha também é uma boneca?
- Não, Samantha é uma árvore - explicou a criança, abanando a cabeça.
Quaye sorriu de novo.
- Tenho de ver qual é o tamanho de Samantha.
- Pode ficar para jantar?
- Hoje, tenho de voltar para casa. Mas gostavas que eu voltasse
amanhã?
Hannah acenou com a cabeça afirmativamente, e Quaye olhou
a menina nos olhos.
- Posso abraçar-te?
Hannah fez que sim timidamente com a cabeça. Quaye deu-lhe um abraço muito apertado, com as lágrimas a correrem-lhe pela
cara abaixo.
- Porque é que está a chorar? - perguntou Hannah quando se
afastaram.
- Porque estou muito contente por te ver - respondeu Quaye. Beijou-a, depois levantou-se e saiu da sala.
A Irmã Folland encontrou-se com ela no corredor. Chega por hoje. Eu volto amanhã - disse Quaye.
- Acho que faz bem em levar as coisas com tempo.
- Eu sei o que significa ser levada de casa - explicou Quaye. Lá fora, dirigindo-se para a carruagem, Quaye reparou num pequeno cemitério à sombra do edifício. - É ali que Rachel está sepultada" Irmã Folland?
- Sim, minha querida.
- Importa-se que eu visite a campa dela?
- De maneira nenhuma.
Quaye encaminhou-se para o pequeno cemitério protegido por uma vedação. No canto a nascente, havia uma pequena lápide de pedra com o topo arredondado e uma cruz gravada por cima do nome:
RACHEL BELL
16 de Abril, 1832 - 1 de Agosto, 1853.
Quaye persignou-se e ajoelhou-se diante da lápide, com a cabeça ligeiramente inclinada em oração. Depois, ergueu o olhar e passou vagarosamente os dedos sobre as palavras gravadas na lápide.
- Sinto que és minha irmã, Rachel. vou fazer o meu melhor para criar Hannah. Não deixarei que ela se esqueça de ti nem dele.
Levantou-se e voltou para a carruagem. O cocheiro abriu a porta e ajudou-a a entrar. Subiu para o seu lugar e incitou os cavalos. A Irma Folland viu a carruagem diminuir à distância e depois foi cuidar das suas tarefas.
QUAYE PASSOU a fazer o trajecto diariamente para visitar Hannah. A partir da segunda semana, as duas passavam quase os dias inteiros juntas. Tal como Quaye se apaixonou pela menina, Hannah apaixo nou-se por ela. Instintivamente, a criança sentiu que, de alguma for ma, Quaye significava mais para ela do que a Irmã Folland e as outras senhoras.
Quaye ainda não sabia quando levaria a criança para sua casa, em
Chadds Ford. Não tinha pressa. Acreditava que havia de perceber quando chegasse a altura certa, porque sentia que havia a mão de Deus na sua missão. Não queria apressar Deus.
Numa manhã fresca de Junho, seis semanas após a primeira visita Quaye estava a plantar zínias no jardim da igreja com Hannah acocorada a seu lado. Enquanto Quaye revolvia a terra negra, Hannah mantinha-se invulgarmente sossegada, pensativa, como acontece às vezes às meninas de quatro anos. De repente, Quaye sentiu sobre ela o olhar preocupado de Hannah. Limpou a terra das mãos e puxou-a para si.
- O que foi, minha querida?
Hannah encarou Quaye de frente e perguntou:
- Quer ser minha mãe?
Um grande sorriso iluminou o rosto de Quaye, que abraçou a criança, chorando.
Nesse mesmo dia, as malas de Hannah foram feitas, e ela foi com Quaye. Pelo caminho, a menina ia observando pela janela da carruagem as matas densas, os campos bem cuidados e pomares de pereiras e macieiras de todas as variedades.
Ao fim de uma hora, a carruagem aproximou-se de uma casa magnífica num pequeno monte luxuriante, sobranceiro a vinte hectares de pomar. Era uma casa amarelo-clara com caixilhos brancos e persianas negras. Entraram pelo portão do jardim e deram a volta numa rotunda com uma fonte.
- Chegámos a casa - anunciou Quaye.
Quando a carruagem se deteve e Quaye foi ajudada a sair, Hannah correu para a porta. Lá dentro havia um lustre de cristal suspenso sobre uma escadaria curva. Do átrio, via-se uma grande sala de visitas com uma tapeçaria elaborada e uma harpa folheada a ouro ao lado de uma secretária de mogno. Na parede, estava um retrato inacabado de um homem jovem. Hannah olhou para o quadro.
- É o teu pai - disse Quaye.
Hannah fitou-o com atenção durante um momento, e depois Quaye agarrou-a pela mão e subiram a escadaria. A primeira porta do andar de cima dava para um quartinho com uma lareira de mármore.
- Este é o teu quarto - explicou Quaye.
No meio do quarto, havia uma pequena cama de dossel com cortinados de renda cor de marfim. Sobre a cama, em cima da colcha cor de pêssego, estava uma boneca de porcelana. Hannah avançou e pegou na boneca, apertando-a contra o peito.
A um canto, estava um espelho oval de corpo inteiro. Levando a boneca consigo, Hannah postou-se em frente dele a ver a imagem imitar o seu próprio movimento. Passado um bocado, olhou para Quaye.
- Aquela sou eu - disse em voz baixa.
Quaye abraçou Hannah por trás, fitou a imagem de ambas no espelho e depois apertou a criança contra si.
- Bem-vinda a casa, minha querida e doce menina - murmurou, talvez tanto para si própria como para a criança.
QUAYE ACREDITAVA que receberia um sinal quando chegasse o momento certo para falar a Hannah do pai. Quando Hannah tinha dezasseis anos, encontrou o espelho de prata partido com os poucos cacos que restavam, o colar de pedras de jade e o livro de poesia, e interrogou a mãe acerca deles. Quaye falou-lhe do pai e da mãe verdadeira e de um longínquo acampamento mineiro no Oeste chamado Bethel. Depois, deu-lhe a carta que Hunter escrevera. Hannah quebrou o lacre e leu-a em silêncio. Quaye abraçou-a enquanto ela chorava.
Tal como Hunter sonhara no passado, Hannah aprendeu a tocar harpa. Quaye sentava-se muitas vezes na sala ao pôr do Sol, deixando-se embalar pelas melodias seráficas. Em noites tranquilas de Inverno, Hannah deitava a cabeça no regaço da mãe, e Quaye lia-lhe passagens do diário de Hunter. Era nessas ocasiões que o sentiam mais perto delas.
No Verão do seu vigésimo primeiro aniversário, Hannah, tal como as suas duas mães, casou com um ministro da Igreja. Na manhã do casamento, Quaye tirou do dedo a aliança Clauddaugh e deu-a à filha como a sua mãe outrora lha dera a ela. Hannah e o marido mudaram-se para uma nova congregação no Massachusetts, onde ela deu à luz e criou três filhos.
Só depois de Hannah sair de casa é que Quaye voltou à Irlanda. Ao percorrer os caminhos da sua juventude, sentia a presença dos espíritos nos brejos silenciosos e ouvia o choro deles em cada brisa que atravessava os vales.
Veio a descobrir que aquilo que Hunter pensara acerca do pai era a pura verdade. O irmão morrera na semana da sua partida. Os pais tinham sobrevivido apenas mais um mês. Sozinha, debaixo da abóbada cinzenta do céu irlandês, ela ajoelhou-se, beijou as sepulturas deles e agradeceu-lhes a vida.
Depois, regressou a Chadds Ford. Viveu tempo suficiente para ver não só os filhos de Hannah mas também os netos. Embora Hannah nunca deixasse de implorar para ela se mudar para junto deles no Massachusetts, Quaye ficou nas margens do rio Brandywine, contente por passear sozinha no seu vale luxuriante e recordar o deserto onde encontrara o amor.
Bethel morreu. No princípio do século, o ouro desaparecera e as pessoas partiram, deixando atrás de si as estruturas de madeira da povoação e a recordação do que ali se passara. E, afinal de contas, talvez o nome de Bethel, dado à povoação por ironia, tivesse sido apropriado. Porque o que foi verdade para Hunter e para Quaye é verdade para toda a gente: a salvação do homem só ocorre no amor e através do amor. E onde há amor, aí está Deus.
Quaye morreu em casa em 1915. Pedira pouco para si própria nesta vida, e, ao morrer, não fez senão dois pedidos: ser enterrada junto ao marido no cemitério desértico e abandonado de Bethel e levar nas mãos o espelho de prata de lei.
Richard Paul Evans
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