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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ESPELHO NEGRO / Juliet Marillier
O ESPELHO NEGRO / Juliet Marillier

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Quando os pais de Bridei decidem mandá-lo viver com o druida Broichan, o jovem sabe apenas que abandona o lar para aprender as artes da guerra e da erudição. Não tem consciência de que no reino de Fortriu, devastado por lutas internas, um conselho de anciãos está secretamente a arquitetar um plano para garantir um futuro melhor em que ele desempenhará um papel central. Sendo o único rapaz a viver na remota casa do druida, Bridei cedo aprende a conviver com o medo e a solidão. Mas quando acorda a meio de uma noite de inverno gelada e encontra uma criancinha na soleira, recolhe-a e agradece aos deuses essa dádiva de uma companhia, sem perceber até que ponto esse gesto vai determinar o seu próprio destino e alterar perigosamente os planos do conselho.

 


 


CAPÍTULO UM


O druida estava à entrada, imóvel como uma figura esculpida em pedra escura, observando os cavaleiros a subirem a encosta. A noite estava a chegar. Para lá do bosque de carvalhos, via-se o brilho suave do Lago da Serpente. À luz do crepúsculo, as gralhas recolhiam, fazendo ouvir a sua linguagem entrecortada, secreta. Era Outono. A festa do Equinócio já passara. O ar estava azul, tão frio que custava a respirar.

Os guerreiros aproximaram-se da entrada e, uns a seguir aos outros, desmontaram. A princípio, parecia que não tinham trazido o rapaz. O druida escondeu um misto de desapontamento, frustração e ira. Foi então que Cinioch, o último a desmontar, disse:

— Toca a andar, rapaz, mexe-te — e Broichan viu o pequeno vulto a cavalo. Viera sentado atrás de Cinioch. Estava bem agasalhado por tecidos de lã. Os outros ajudaram-no a desmontar e fizeram-no avançar até ao druida, para uma verificação rigorosa.

Tão pequeno. Teria cinco anos, como dissera Anfreda na carta ao avisá-lo da sua escolha? Ainda era muito pequeno para ser enviado para Fortriu, que ficava tão longe de casa, e também era muito pequeno para aprender. O druida sentia a fúria aumentar. Esforçou-se por controlar a respiração.

— Eu sou Broichan — disse, olhando para baixo. — Bem-vindo a Pitnochie.

O rapaz levantou os olhos e examinou o rosto de Broichan, depois o manto escuro, o bordão de carvalho com desenhos intrincados e o cabelo preto, cheio de tranças pequenas, presas por fitas coloridas. Mas o rapaz tinha as pálpebras semicerradas; estava a dormir em pé. Gwynedd era longe, a duas luas de jornada.

O druida observou-o em silêncio a endireitar os ombros, a erguer o queixo, a respirar fundo e a franzir as sobrancelhas, concentrando-se.

— Eu sou Bridei, filho de Maelchon — disse o rapaz com voz pouco segura mas clara. Em seguida, respirando fundo novamente prosseguiu, esforçando-se por não dizer disparates: — Que a... A Que Brilha ilumine o teu caminho. — Olhou para Broichan. Tinha os olhos azuis como duas celidônias; via-se no olhar que tinha medo, era evidente, mas aquela amostra de gente não se deixava intimidar e, graças aos deuses, Anfreda ensinara ao filho a língua dos Priteni. A tarefa de Broichan seria mais fácil. Talvez, afinal de contas, ele não fosse demasiado novo apesar dos quatro anos.

— Que a Guardiã das Chamas aqueça o teu coração — disse Broichan, respondendo apropriadamente. O druida escrutinou as feições miúdas de perto. O queixo firme era o de Maelchon, assim como o porte altivo e aquela vontade de ferro que lhe mantinha os olhos abertos apesar do sono e lhe recordava as palavras certas naquele mundo estranho onde acabava de acordar. Os doces olhos azuis, os cabelos castanhos encaracolados, a testa franzida, eram de Anfreda. O sangue dos Priteni corria com força nas veias daquela criança. A mãe fizera uma boa escolha. O druida estava satisfeito.

— Vem — disse Broichan. — Vou mostrar-te onde vais dormir. Cinioch, Elpin, Urguist, bom trabalho. Tendes comida à espera lá dentro.

O rapaz seguiu Broichan em silêncio quando este entrou na casa sob os olhares curiosos dos servos e se dirigiu para o salão, onde estavam dois anciãos, Erip e Wid, e alguns cães enormes, perto da lareira. Os animais levantaram os focinhos e rosnaram. O rapaz hesitou, mas não disse nada.

Erip e Wid tinham em frente, sobre uma mesa, um tabuleiro de jogo e algumas peças esculpidas em osso. Os olhos de Bridei foram atraídos pelas sacerdotisas, guerreiros e druidas esculpidos em osso, todas do tamanho de um dedo mindinho. Hesitou.

— Bem-vindo, rapaz — disse Erip com um sorriso desdentado. Gostas de jogos?

Ele acenou afirmativamente.

— Nesse caso, estás aqui bem — disse Wid, coçando a barba branca. — Somos os melhores jogadores de Fortriu. Recantos do Corvo, Parte o Muro, Avançar e Recuar, somos peritos. És parecido com a tua mãe, miúdo.

Os olhos azuis do rapaz olharam, inquiridores, para o ancião.

— Chega — disse Broichan. — Anda comigo, rapaz. — Tinha de lembrar a Wid e a Erip que a educação do rapaz era da sua exclusiva responsabilidade. A nova vida de Bridei começava a partir dali; o rapaz caminharia sem o fardo de saber quem era. Teriam tempo para isso quando ele crescesse. Teriam uns dez, quinze anos, se os deuses lhes sorrissem. Broichan tinha de transformar a criança num homem, pronto a desempenhar o relevante papel que lhe cabia no futuro de Fortriu. A educação de Bridei tinha de ser perfeita. Na realidade, era uma vantagem ele ser tão novo. Quinze anos seriam à justa.

— Aqui é o teu quarto — disse Broichan, colocando uma vela em cima de uma prateleira. Bridei olhou para o quarto com a cama estreita, para a arca e para a pequena janela quadrada que dava para os vidoeiros sussurrantes e para uma mancha de céu escuro. — Pareces cansado. Dorme. Amanhã começamos a tua educação.

Em Pitnochie, as pessoas estavam sempre ocupadas. Bridei tornou-se especialista em evitar Mara, a governanta de rosto severo e Ferat, o cozinheiro sempre irritado, quando davam ordens às suas infelizes ajudantes, limpavam energicamente o pó ou viravam um carneiro no espeto. Também Wid e Erip estavam sempre a fazer alguma coisa. Além disso discutiam muito um com o outro, mas nunca se zangavam, simplesmente discordavam em muitas coisas.

Bridei também andava sempre ocupado. As aulas de Broichan eram difíceis. Começavam pelo conhecimento das plantas, das árvores e dos animais, e incluíam a prática disciplinada do silêncio e da concentração.

Bridei era uns anos mais novo do que os rapazes que iam para o bosque aprender a ser druidas, disse Broichan, mas já tinha idade suficiente.

Durante uns tempos, Bridei à noite não era capaz de adormecer e só lhe apetecia chorar. Porém, em breve começou a esquecer-se da mãe, do pai e dos irmãos mais velhos. As coisas pequenas ficaram: o cinto do pai, largo, de pele escura, com uma fivela de prata em forma de cavalo. Um perfume suave a violetas ou flores de jardim, que associava à mãe. Quando essas memórias começaram a desaparecer, recordava-se das palavras de despedida do pai: Obedece ao teu pai adotivo em todas as coisas. Obedece, aprende e não chores.

As estações passaram e Bridei seguiu à risca as instruções do pai. De certo modo, sentia-se satisfeito por poder corresponder às suas expectativas. Erip e Wid, que também desempenhavam um papel na sua educação, explicaram-lhe o que era a adoção: como ajudava as famílias a constituir alianças e como fazia dos rapazes homens fortes e mais úteis quando regressavam para casa. O jovem perguntou a Broichan por que razão a sua família escolhera a ele e não a nenhum dos irmãos.

— Porque tu eras o mais inteligente — disse o druida.

— Quando é que volto para casa?

Broichan fitou-o com os olhos escuros e impassíveis.

— Só os deuses é que podem responder a essa pergunta, Bridei — disse o druida. — Não te sentes bem aqui em Pitnochie?

— Sinto, meu senhor — respondeu o jovem, e dizia a verdade, porque gostava das aulas. Porém, às vezes perguntava a si próprio por que razão estava ali.

— Então não faças novamente essa pergunta.

Erip, o careca, e Wid, o nariz de falcão, rapidamente se tornaram amigos de Bridei. Ambos sabiam muitas coisas. Durante o primeiro Inverno, Bridei aprendeu o jogo com as pequenas figuras esculpidas. Wid ensinou-o a fazer um corvo, um veado e uma lebre com a sombra dos dedos na parede, colocando uma vela por trás. Estavam todos a rir-se das imagens quando Broichan, impassível, projetou uma imagem na parede que não podia ter sido feita com as mãos em frente de uma vela — qual seria o homem que, com dez dedos apenas, conseguia imitar um dragão cuspindo fogo, de asas a bater, perseguindo uma hoste de guerreiros aterrorizados?

Na Primavera, perto da festa da Harmonia, Broichan foi para a floresta rezar e meditar sozinho. O druida esteve ausente durante três dias e na sua ausência os dois idosos ensinaram ao filho adotivo de Broichan a engolir uma caneca de cerveja de um só trago. Da primeira vez, Bridei vomitou tudo nas lajes do chão e os cães é que lamberam a porcaria toda. O druida regressou com um brilho estranho nos olhos e com uma palidez que não era habitual. Broichan não falou do tempo em que estivera ausente. Porém, descobriu rapidamente o que acontecera na sua ausência. Na noite seguinte, quando Bridei chegou à sala para cear, Erip e Wid tinham desaparecido.

Bridei não se apercebia de que se sentia só. As palavras de despedida do seu pai significavam que ele tinha de aceitar o que lhe aparecesse pela frente; tinha de agüentar e seguir em frente. Erip e Wid eram amáveis, mas já não estavam ali. Tinha de aprender a lição, Broichan dizia que se aprendia com tudo.

As lições de Broichan eram, geralmente, acerca de padrões: os que podiam ser vistos, como os das folhas dos vidoeiros que inchavam lentamente e depois se abriam por completo, verdejantes, e a seguir ao Verão começavam a ficar castanhas e quebradiças; o modo como se enrugavam e depois se transformavam em esqueletos frágeis, perdendo-se depois no solo rico da floresta, alimentando a árvore a que tinham pertencido. O modo como as folhas novas esperavam, escondidas nas trevas, como num sonho que não pode ser explicado. Havia outros padrões por trás delas, encadeados uns nos outros, tão grandes e intrincados que Bridei sentia que só quando fosse mais velho é que os conseguiria compreender. Porém, agarrava-se a eles e escutava com atenção, concentrava-se no seu pai adotivo do mesmo modo que um animal jovem observa os seus progenitores, aprendendo as grandes lições: caça ou passarás fome, esconde-te ou serás apanhado, voa ou cairás.

No decurso daquele primeiro ano, a criança manteve-se sempre junto do druida alto e severo, ao longo de cada um dos rituais que marcavam a passagem das estações. Primeiro, Portal, o mais secreto de todos, a entrada no tempo das trevas, o tempo de descanso, quando a Mãe de Tudo lança grandes sombras sobre a terra, gela a erva e os lagos e as noites são tão longas que todos têm saudades do sol.

Na cerimônia do Portal, um animal foi imolado, para que todos vissem, em cima da velha pedra. Broichan não pediu ao seu filho adotivo que empunhasse a faca; ele próprio se encarregou disso, mas exigiu que Bridei assistisse a tudo sem pestanejar. O sangue do galo espalhou-se. O jovem não gostou do som que o animal fez ao morrer, apesar de o druida ter sido rápido. Mas aquele ritual era necessário. Mãe de Tudo assim o exigia, em toda a região de Fortriu. Depois, Broichan invocou os espíritos dos antepassados para o festim. A mesa tinha lugares que lhes eram destinados. Se fechasse os olhos, Bridei conseguia vê-los, sombras pálidas de guerreiros terríveis, de mulheres magras, e, aqui e ali, uma criança silenciosa.

A seguir foi o Solstício do Inverno, a festa da Que Brilha. Naquela cerimônia, a presença de Mãe de Tudo ainda era forte, mas a partir dali a sua influência diminuiria dia após dia já que o Sol cada vez aparecia mais cedo a leste. Em redor da casa foram pendurados pequenos ramos dourados com folhas de azevinho brilhante e bagas vermelhas como sangue; em breve a vida rebentaria, aqueles eram os primeiros sinais. Se, quando chegasse a noite do Solstício, A Que Brilha estivesse completamente cheia, isso mostraria que a deusa abençoava a casa e providenciava o seu sustento. Haveria colheitas exuberantes e cordeiros gordos; as árvores curvar-se-iam sob o peso dos frutos e os bebês novos medrariam. Ocorreu a Bridei que, apesar de Pitnochie ter cereais, ovelhas e árvores de fruto, não tinha bebês nem outra criança além dele próprio. Para Mara, a governanta, a casa de Broichan era uma casa de homens.

Depois do Solstício foram os outros festivais: a Dança das Virgens, sagrada para Todas as Flores, deusa das coisas que crescem: Harmonia, a festa do equinócio; Renascimento, sobre o qual Broichan não falava muito, exceto para dizer que em outros lugares, com outras pessoas, a festa tinha outro significado e que Bridei tomaria conhecimento dos pormenores quando fosse mais velho. No festival de Renascimento os dias eram quentes, as flores perfumavam o ar, as abelhas zumbiam, os pássaros cantavam e Broichan permitiu que os guerreiros visitassem a aldeia a sul de Pitnochie, privilégio que raramente lhe era concedido. Bridei nunca fora à aldeia. Broichan disse-lhe que não havia razão para que ele fosse além da casa e do jardim. Depois, foi a vez do Solstício de Verão, quando a Guardiã das Chamas estava no auge; o festival das colheitas da Reunião; e Medida, quando as trevas e a luz se equilibravam antes de o ano chegar ao fim, antes de um novo Portal. Bridei observava e aprendia, recordando todas as noites antes de dormir, na tranqüilidade do seu pequeno quarto, os rituais, praticando os movimentos compassados que Broichan empregava, tentando o lançamento do círculo, os cumprimentos e as despedidas solenes. A princípio, o pequeno aprendiz esforçava-se devido às palavras de despedida do pai, porque sabia que era o que esperavam dele. Porém, mais tarde, aprendia porque tinha sede, porque sentia um fascínio pelas coisas misteriosas e poderosas que Broichan lhe revelava. Quanto mais descobria, mais queria descobrir. Os rituais eram um bom exemplo. Não era apenas uma questão de fazer aqueles gestos. Broichan explicara isso desde o início. Bridei precisava, tanto quanto possível, de conhecer os deuses, amá-los e respeitá-los; e de compreender o verdadeiro significado dos festivais, de modo a que esse saber lhe ficasse profundamente inscrito no corpo, lhe corresse nas veias, estivesse presente na sua própria respiração. Esta aprendizagem durava a vida inteira, porque a busca de uma ligação mais pura entre carne e espírito, homens e deuses, este mundo e o Outro, era incessante. Segundo Broichan, era um mistério maravilhoso e terrível, e seriam de fato velhos antes de o compreenderem.

Na Primavera do sexto aniversário de Bridei, chegou Donal. Donal era um guerreiro com uns símbolos terríveis, azuis, desenhados nas faces e no queixo, e outros, em forma de anéis entrelaçados, sobre os músculos salientes do antebraço. Tinha os olhos muito juntos, um maxilar intimidante e uma maneira de sorrir que fez com que Bridei lhe sorrisse imediatamente. Montavam juntos, Bridei em Pearl, a pequena e mansa égua que Donal lhe trouxera, e o guerreiro em Lucky, um cavalo magro e malhado de uma cor estranha. Era uma escolha pouco vulgar para um cavalo de guerra, mas Donal achava que não; Lucky transportara-o ao longo de três batalhas com os celtas, uns patifes com cabelos cor de cenoura, e nem homem nem cavalo tinham ficado com um arranhão sequer. Bem, Donal ficara com um dente ou dois partidos e Lucky com um pequeno corte numa orelha, mas estavam ali os dois, sãos e salvos, cavalgando pelos bosques com o filho de um druida. Era sorte, ou não era?

— Filho adotivo — corrigiu-o Bridei.

— O que é isso?

— Broichan não é meu pai, está só a ensinar-me. Quando for maior, vou para casa — respondeu Bridei não muito seguro, mas sem conseguir imaginar o que o seu pai adotivo poderia querer mais dele.

— Ah sim? — foi tudo o que Donal disse. Poderia significar talvez sim, ou talvez não; era uma resposta segura, o tipo de resposta que assegurava que Donal ficaria mais tempo em casa do druida do que os dois anciãos.

— Quero ir a galope — disse Bridei, tocando nos flancos de Pearl com os calcanhares. Os dois companheiros mergulharam na sombra dos carvalhos ao longo da encosta por cima do lago. Era difícil para Donal, um homem alto em cima de um cavalo grande, igualar o passo de Pearl num terreno como aquele, e foi Bridei que o levou até um local onde a encosta se abria abruptamente num emaranhado de sarças e espinheiros. Os carvalhos cresciam na beira daquela fissura, mas, no interior sombrio, só havia árvores pequenas, difíceis de distinguir porque cresciam de lado, secas, esquisitas. O nevoeiro cobria a fenda apesar do dia límpido; sentia-se uma calma terrível, que inspirava medo.

— Onde estamos? — perguntou Donal, aproximando-se de Bridei, passando uma perna por cima do pescoço do cavalo e deixando-se escorregar para o chão, muito à vontade. — Estou com um mau pressentimento. É melhor não nos demorarmos por aqui.

— Há ali um caminho — disse Bridei. — Repara.

A trilha era difícil de distinguir porque os fetos e os arbustos quase o escondiam. A bruma pairava, mais baixa do que a altura de um homem, por cima daquele carreiro serpenteante, estreito, de terra batida: a fenda era artificial.

Donal hesitou.

— Já tinhas vindo aqui, rapaz? — perguntou ele. Bridei abanou a cabeça.

— Não gosto nada disto — resmungou o guerreiro, fazendo um pequeno sinal com os dedos. — Se formos por aqui, ainda damos com um grupo dos Boa Gente a querer divertir-se, e no dia seguinte acordamos num reino estranho, do qual nunca regressaremos.

— Só uma olhadela? — pediu Bridei, porque aquilo lhe parecia uma aventura. — O cavalo do jovem estremeceu e torceu as orelhas.

— Não se dá uma olhadela a um lugar destes — disse Donal, tenso, montando de novo. — Isto é uma daquelas portas de que se fala, tenho a certeza; olha para aquelas pedras, além, estão de guarda a qualquer coisa, foram colocadas ali por gente como tu e eu para impedir que outros entrem, ou é um aviso para que as pessoas como tu e eu não vão até lá. Vamos embora, rapaz.

Bridei não era teimoso; não lhe ocorreu desobedecer. Além do mais, era evidente que Pearl queria tanto ir para casa como Donal. No caminho de regresso, aquele vale escondido não saía da mente de Bridei, como um enigma por resolver.


Havia uma maneira boa e outra má de fazer perguntas ao druida. A má era fazê-las à mesa, o que equivalia a um franzir de sobrancelhas, um sorriso enigmático e o silêncio. Bridei estava a aprender que algumas perguntas nem sequer se faziam: perguntas sobre a sua mãe, por exemplo, ou sobre a razão de não poder ir à aldeia onde, segundo tinham dito os homens, havia rapazes mais ou menos do seu tamanho. Essas perguntas não tinham resposta. O local ideal para fazer perguntas era uma aula, e as perguntas tinham de estar relacionadas com o tópico do dia.

Felizmente, naquela fase da educação de Bridei, Broichan estava a lidar com encantamentos e magias caseiras. Bridei já sabia que havia três tipos de magia. A magia profunda, relativa à terra e ao céu, às correntes e às chamas, ao sonho lento e ao coração das coisas, era a que mais tempo levava a aprender e a mais conhecida. A grande magia, usada pelos feiticeiros mais poderosos e, às vezes, pelos druidas. A grande magia era perigosa; podia alterar o curso da guerra e derrubar reis. Já ia sendo rara. Finalmente, a magia da lareira, a que ele estava a estudar. A magia da lareira podia ser executada por qualquer pessoa desde que houvesse cuidado. Um pequeno erro e podia acabar tudo mal; um homem podia pôr tudo de pernas para o ar, por assim dizer, se não aplicasse apropriadamente o feitiço. As pessoas normais, como os aldeões, por exemplo, utilizavam-na para aplacar ou evitar as presenças más que saíam dos bosques em noites de lua cheia, ou que se agarravam aos barcos de pesca em dias de nevoeiro, no meio do lago.

O rapto de bebês, por exemplo. Todos sabiam que um recém-nascido não estava seguro enquanto não lhe fosse colocada uma chave por baixo da almofada no berço: aquele pequeno feitiço assegurava que os Boa Gente não levariam a criança, deixando no seu lugar um boneco feito de paus e de erva. A chave prendia a criança à casa. Ou as portas, que tinham que ser protegidas de espíritos metediços. Havia outras maneiras de o fazer, podia-se enterrar sal, ou umas ervas especiais, por exemplo, ou pregar pregos de ferro na madeira.

Broichan e o rapaz estudaram aquilo vários dias, e Bridei ficou a saber por que razão os arbustos de zimbro cresciam à entrada das casas, no Vale, e por que razão havia círculos brancos em frente das portas, no chão. Eram feitiços básicos e fáceis de executar, mas eram poderosos e eficazes. A floresta abrigava muitas formas de vida. Os lobos espreitavam os viajantes solitários; os javalis eram capazes de matar um caçador com as suas presas. Estas ameaças podiam ser resolvidas com bom senso e habilidade. As raposas apareciam nos galinheiros e as águias roubavam cordeiros. Uma boa vigilância e uma boa administração podiam manter a maioria daqueles perigos afastada. Os camponeses sofriam sempre algumas perdas; a natureza era assim, para que tanto os homens como os animais pudessem sobreviver.

Os animais não deviam ser subestimados, mas podiam ser controlados. Com os Boa Gente, a conversa era outra. Boa Gente. O nome era enganador. As pessoas utilizavam-no, segundo Broichan, para não os ofender.

— Eles têm outros nomes, sabes, Bridei? — disse o druida, muito sério, quando estavam ambos sentados num banco de pedra em frente das cinzas da lareira da noite anterior. A luz do dia começava a infiltrar-se, fria e pura, através dos vidros coloridos da janela redonda da sala do druida, desenhando padrões vermelhos, violetas e azuis nas lajes do chão. Bridei aconchegou a capa em redor do pescoço e enterrou as mãos nas suas pregas. O jovem não queria que o druida visse que estava a tremer de frio. — Nomes que eu não pronuncio fora de portas porque irritar aquela gente é convidá-la à maldade. Os seus nomes verdadeiros são... — disse Broichan, transformando a voz num sussurro — os Urisk, que moram na espuma por trás da queda de água e que seguem os homens à noite, chorando a sua solidão; os Tarans, espíritos de bebês que morreram no berço; ou os Anjos da Morte. Há muitos, todos diferentes e todos perigosos à sua maneira. Muitos são bons e nós damos-lhes nomes bons. Em si, já são uma proteção contra o mal.

Bridei acenou com a cabeça, esperando que o druida não o ouvisse a bater os dentes.

— Devem ser sempre respeitados — disse-lhe Broichan, muito sério. — Respeitados e temidos; não acrescento dignos de confiança porque eles não entendem o termo como nós. Os nossos conceitos de lealdade e confiança são, para eles, incompreensíveis. Os homens sensatos sabem que tais seres são importantes no esquema das coisas. Somos todos interdependentes, plantas e criaturas, pedras e estrelas, Boa Gente e humanos. Agora — disse Broichan, pondo-se de pé — levanta-te, fecha os olhos e diz-me quais foram os feitiços que viste e que protegem a minha casa de visitantes indesejados.

Bridei levantou-se. Não estudara aquilo, não fizera nenhuma visita de inspeção, não se preparara. Porém, o que se esperava dele era que observasse, que aprendesse, e sempre, em todos os momentos do dia. Com os olhos bem fechados, Bridei viu mentalmente a casa comprida, baixa, de pedra cinzenta, o telhado de colmo escurecido pela chuva e pelo gelo, os pesos de pedra seguros pelas grandes cordas; viu o espaço em redor, as plantas, os carreiros, depois as portas, as aberturas, as divisões, os cantos. O jovem enumerou tudo o melhor que pode: zimbro, fetos e alecrim, um carreiro de pedras brancas em círculo, uma caixa com pedras por baixo dos degraus da entrada. Três pregos na porta das traseiras, em triângulo. Grinaldas de folhas e espinhos por cima das portas, uma trança de alho.

— E? — perguntou Broichan.

Bridei hesitou. Depois respirou fundo e continuou: — A janela, aquela especial — é redonda como a lua cheia. Representa a bênção da Que Brilha. Os vidros são coloridos para que... os Boa Gente não vejam onde é a entrada.

— E?

— E... coisas normais, que não são mágicas. Mara deixa malgas de leite lá fora e Ferat deixa um pão por baixo das sorveiras bravas, para que os Boa Gente não façam mal às vacas e aos cavalos.

— Mais nada?

Uma pausa.

— Estamos sempre a aprender — disse Bridei. Era uma das frases preferidas do seu pai adotivo. — Mas por agora não me lembro de mais nada e tenho uma pergunta para fazer, meu senhor.

— Podes abrir os olhos, filho — disse o druida. Bridei pestanejou e viu, aliviado, que o seu pai adotivo estava a pôr lenha na lareira. Broichan acendia a lareira com facilidade; só precisava de dizer umas palavras em voz baixa e de estalar os dedos compridos. Os toros de pinho acendiam-se, pegavam e depois ardiam intensamente. O calor espalhava-se pela divisão, chegando aos dedos dormentes, ao nariz gelado e aos ouvidos doridos de Bridei.

— Senta-te, rapaz e faz lá a tua pergunta.

— Que quer dizer uma pilha de pedras brancas na beira de um carreiro? Quer dizer que podemos passar, ou não?

As suas mãos começavam a aquecer. Broichan deu um estalo com os dedos e um dos homens da cozinha trouxe-lhes um tabuleiro com papas de aveia, leite e um jarro de hidromel.

— Toma o pequeno-almoço, Bridei — disse o druida com um brilho distante nos olhos e com as sobrancelhas levemente franzidas. Diz-me uma coisa: Donal levou-te para lugares onde não devias ir?

Com uma colher de papas de aveia a meio caminho da boca, Bridei corou.

— Não, senhor. Eu é que o levei e não fomos pelo carreiro que tinha as pedras. Donal disse que era melhor não irmos, os cavalos estavam assustados. E disse-me que eu devia perguntar-lhe o que era aquilo.

— Antes de voltares lá, queres dizer? — perguntou Broichan, mas o druida não parecia zangado.

— Se não quiser, não volto, meu senhor. Conhece o local?

Broichan deitou um pouco de hidromel na sua caneca, ignorando as papas de aveia. O druida bebeu um gole, pensou e pousou o grande recipiente.

— Primeiro, quero fazer-te outra pergunta — disse ele.

Era evidente que a aula ainda não tinha terminado. Bridei pousou a malga no tabuleiro e esperou, imóvel.

— Tu és observador. Distingues logo o que protege a casa de intrusos. Quero que penses novamente na tua resposta e que desta vez não respondas à pergunta como uma criança que recita o que aprendeu, responde como um druida, com as tuas faculdades mentais.

Bridei pensou. O jovem não sabia qual era a resposta que Broichan queria. Talvez a pista estivesse na própria pergunta.

— Não são só os Boa Gente — disse ele, pensando nas possibilidades. — Há outras espécies de perigos, contra os quais não podemos usar feitiços.

— Continua — disse Broichan.

— Donal ensina-me a montar — disse Bridei, pensando em voz alta — mas também é uma espécie de guarda. Há muitos homens armados nas redondezas. Eu sei que o senhor conjura brumas e faz feitiços nas árvores para que eles se afastem, e também sei que traz sempre consigo uma faca escondida. Pouca gente aqui vem. Eu acho que existe perigo. O senhor raras vezes sai daqui, apesar de ser o druida do rei. Erip diz que o senhor é o homem mais infu... infru... influente de Fortriu.

— Que quer dizer isso? Influente?

— Consegue que as pessoas façam o que o senhor quer — tentou Bridei.

— Ah! — O som feito por Broichan parecia quase uma risada, mas de alegre não tinha nada. Bridei calou-se, preocupado por a sua resposta, aparentemente, ter desagradado ao druida.

— Quem dera que assim fosse — acrescentou Broichan, enchendo uma colher com papas de aveia e levando-a à boca. O druida fez uma careta à comida fria, em cuja superfície já se estava a formar uma película cinzenta. — Quem me dera que a sabedoria prevalecesse sobre a confusão e a ignorância, Bridei. Um druida, por mais influente que seja, não chega para curar as feridas de Fortriu.

Esquecido o pequeno-almoço, Bridei pensou nas palavras do druida.

— Mas o senhor consegue fazer fogo, mudar o tempo, e sabe muitas coisas, encantamentos e feitiços, plantas e animais — disse o jovem. — Não é mais poderoso do que qualquer homem? Não é mais poderoso do que qualquer rei?

Broichan fitou-o com os seus olhos escuros, de falcão.

— As tuas papas estão a ficar frias — disse ele. — Acaba de comer. Nem o mais bravo dos guerreiros vai para a batalha de estômago vazio. Isso é que Donal te devia ensinar.

Bridei já se estava a habituar à maneira de falar de Broichan. Engoliu as papas geladas e guardou os pensamentos para si próprio, suspeitando que o perigo não vinha dos Boa Gente com os seus truques e as suas coisas estranhas. O perigo vinha do mundo dos homens.

Bridei terminou o pequeno-almoço e deixou a sala sem uma resposta à sua pergunta. Quando chegou aos estábulos à hora marcada, a égua preta do druida, Sibel, esperava, selada, ao lado da pequena Pearl e do grande Lucky. Broichan e Donal, embrenhados numa conversa, calaram-se quando Bridei se aproximou.

— Leva-nos ao local de que falaste, rapaz — disse o druida. Mostra-nos as pedras, a bruma, a entrada. Aproxima-te com cautela. Aplica os teus ensinamentos. Não queremos perder-nos; podes deixar que o teu cavalo encontre o caminho, mas tens de o ajudar e não podes deixar de ouvir o coração da terra por baixo dos teus pés, assim como o que se passa por cima de ti e à tua volta. Tens de percorrer sempre a floresta como fazendo parte dela, Bridei, não como um intruso. Desse modo, não precisarás de feitiços. Vamos?

Estava uma bela manhã. O ar outonal era frio e seco; vinham aí as primeiras geadas. Os carreiros estavam cheios de folhas castanhas, douradas, avermelhadas, ocre, dispostas em pilhas relativamente grandes, como se fossem o tesouro acumulado por um dragão. Continuavam a cair à medida que a brisa agitava os ramos, ali um murmúrio amarelo, além uma lágrima tão vermelha como uma gota de sangue. Ouvia-se os cascos dos cavalos bater suavemente no chão. Bridei conseguia ver a nuvem provocada pela respiração de Pearl e também a sua, menor. O jovem sentia-se feliz por poder usar, finalmente, o seu chapéu de pele de ovelha.

Atento às instruções do druida, Bridei seguia com cuidado e olhava em volta. Havia coisas estranhas naquela floresta, apercebeu-se o jovem, coisas que pensava ver pelo canto do olho, mas que depois se perdiam quando olhava para elas. Manchas encarnadas que não eram folhas; movimentos súbitos que não eram pássaros. Arbustos onde no dia anterior só havia rochas cobertas de musgo; sons que pareciam gargalhadas, ou canções, em locais muito afastados das casas mais próximas. Bridei estremeceu. O nome Boa Gente era um nome amistoso, simpático, mas o que Broichan dissera deles nada tinha a ver com isso.

Os cavaleiros passaram por baixo de grandes carvalhos e pararam na orla de uma súbita fenda na encosta. Bridei desmontou. A pequena pilha de pedras continuava no mesmo lugar. No outro lado do carreiro estava outra, idêntica. Entre ambas, o carreiro íngreme, envolto no seu xale vaporoso, mergulhava nas profundezas do vale escondido.

Os outros dois cavaleiros desmontaram. Donal segurou nas rédeas. Broichan, protegendo os olhos com uma das mãos, observava Bridei, impassível.

— Agora, tu é que sabes, rapaz — disse o druida. — Interpreta os sinais e diz-nos o que devemos fazer.

— Continuamos — respondeu de imediato Bridei com o coração a bater descompassado, ao mesmo tempo excitado e temeroso. Pearl teve medo de continuar, da última vez, mas hoje não, está a ver?

— Mesmo assim — disse Broichan — deixamos aqui os cavalos à guarda de Donal. Os perigos de que ele nos pode proteger não nos vão seguir num lugar tão sobrenatural. Por outro lado, há certas forças nestes bosques que gostam muito de carne de cavalo e este vale envolto em bruma parece ser um lugar do seu agrado. A tua pequena Pearl estará mais segura aqui com um guerreiro de Fortriu do que lá em baixo, por mais vontade que tenha de te seguir.

Donal parecia satisfeito por ficar fora daquela expedição. Prendeu os três animais e em seguida sentou-se encostado ao tronco maciço de um carvalho com as pernas compridas esticadas por cima das raízes da árvore, parecendo descansar. Mas era uma ilusão; o olhar nos olhos semicerrados e a posição estratégica da faca, ao alcance rápido da mão, eram familiares a Bridei. Donal também lhe dera algumas lições que não tinham nada a ver com cavalos.

Enquanto descia o carreiro íngreme atrás do druida, Bridei tinha a sensação estranha de que as plantas rasteiras e os arbustos espinhosos se afastavam para ele passar; que o espesso tecido de vegetação decidira, naquele dia, permitir a entrada de intrusos. Perguntou a si próprio se aquilo se deveria a um feitiço de Broichan, porque sabia que o druida tinha um domínio considerável sobre as forças da natureza. Porém, não havia sinais de magia. Broichan caminhava muito simplesmente pela encosta abaixo, com muito cuidado, o bordão numa mão, a outra mão segurando a orla do manto para não tropeçar. Se estava a lançar um feitiço, não precisava de usar as mãos, nem de dizer nada. A magia, pensou Bridei, já estava lá.

O jovem não sabia ao certo o que ia encontrar: homens pequenos escondidos por trás de cogumelos venenosos, talvez, ou carantonhas, de dentes compridos, vindas do subsolo, ou os Urisk surgindo da bruma, de olhar triste e mãos estendidas. Porém, naquele momento, a única coisa que Bridei via era o vapor cinzento-azulado e o carreiro sempre a descer, mergulhando cada vez mais naquele universo espesso.

Finalmente, a descida cessou e, como que à mercê do feitiço de um druida, a cortina de bruma dissipou-se e os dois companheiros viram-se à beira de uma lagoa escura e profunda. Mais um passo e as suas águas teriam engolido o homem e o rapaz. Bridei quase perdeu o equilíbrio. Subitamente, Broichan ficou muito quieto. À medida que a bruma se desvanecia, a paisagem ia-se revelando: pedras atarracadas cobertas de líquen, espalhadas pela margem, como animais preparando-se para beber a água escura; uma trepadeira enrolando-se em tudo, as suas folhas em forma de flecha muito escura, as suas flores minúsculas, de um branco puro. Para além daquilo, a terra estava nua; não havia fetos, ou arbustos, nenhuma vegetação suavizava as margens da lagoa, ou orlava as rochas, exceto aquela trepadeira luxuriante que encontrava caprichosamente o seu próprio caminho. O silêncio era total. Não se ouvia um único pássaro, nenhum animal se agitava no solo, nenhuma mosca perturbava a superfície espelhada daquela lagoa escura. Parecia um outro mundo, um reino inexplorado pela mão humana, tão silencioso que Bridei ouvia o bater do seu próprio coração.

— Este buraco chama-se Vale dos que Caíram. — A voz de Broichan era um sussurro. Porém, naquele lugar silencioso, soou como um grito. — Conto-te a sua história a caminho de casa. Olha para a água, Bridei, chega-te aqui.

Bridei sentiu as mãos do druida nos seus ombros. O fato de Broichan estar atrás dele, sólido e forte, fê-lo sentir-se muito melhor.

O jovem olhou para as águas escuras da lagoa e para os seus próprios olhos, que refletidos, o fixavam. Também conseguia ver Broichan, severo e alto, com a sua capa negra, o seu rosto branco. E por trás de Broichan — Bridei fechou os olhos com força e voltou a abri-los. Teria mesmo visto? Um machado assobiando pelo ar, cintilando, mortal, e a mão do druida erguendo-se para o agarrar pela lâmina cortante, sangrenta e...

— Cuidado, rapaz — disse Broichan, segurando com força nos ombros de Bridei. — Não confundas uma visão com a realidade. Respira como eu te ensinei, lenta e firmemente. Aqui há muita coisa para ver e nem todos os olhos vêem as mesmas imagens. Na verdade, muitos vêem apenas a água, a luz e um peixe ou dois. O que é que te alarmou tanto?

Bridei não respondeu. Estava a olhar para a superfície da água porque nela via, agora, uma sucessão de imagens. A lagoa emitiu uma luz vermelha e prateada e mostrou-lhe uma batalha, não a sua totalidade, apenas algumas partes, as mais terríveis, que construíam o todo: homens gritando, homens com medo, homens incrivelmente corajosos que continuavam a lutar com os maxilares esmagados, com os membros partidos e os rostos a escorrer sangue. Homens com feridos e mortos às costas, tentando pô-los a salvo apesar da perseguição tenaz e vingativa do inimigo. Um pequeno cão fielmente de guarda ao corpo enroscado do seu dono, o pêlo manchado com o sangue do seu amigo e o olhar desolado. Uma mão decepada, uma cabeça sem corpo, jovem, furiosa, o filho de alguém, o irmão de alguém. O inimigo prosseguia como uma onda gigantesca gritando o seu triunfo, levando tudo na frente. Depois da sua passagem, Bridei viu o vale limpo de destroços humanos, vazio, à exceção de uma mágoa tão grande, tão profunda, que nunca mais ninguém o percorreu. Agora, era um reino de brumas e de sombras, morada de espíritos inquietos.

As imagens tornaram-se acinzentadas, escureceram ainda mais, desvaneceram-se e ficou apenas a água. Bridei respirou fundo; o jovem perguntou a si próprio se teria mesmo respirado enquanto olhava para a lagoa.

— O Espelho Negro — disse Broichan, libertando o seu filho adotivo e acocorando-se junto de uma das pedras gastas. Subitamente, Bridei apercebeu-se de que estas, sete ao todo, eram sábios antigos, vigiando aquele vale guardado pela bruma: os sete druidas.

— Ver-me-ás utilizar isto de vez em quando, mas não aqui; eu uso o que me pertence, que é de bronze e de obsidiana, e não o levo para fora das paredes da minha casa. Como viste, este local só admite quem quer, e raramente quer. Em princípio, tu poderias ver alguma coisa e por isso foste chamado. Podes dizer-me o que viste?

Bridei olhou para ele, surpreendido.

— Não viu?

— Eu vi o que vi — disse Broichan. — Não ouviste o que te disse? Pode ter sido a mesma coisa, ou talvez não. Diz-me o que viste.

— Vi uma batalha — disse Bridei, estremecendo. Subitamente, o jovem não queria falar do assunto, queria montar com Donal, que o Sol brilhasse, queria pensar apenas no pão e no queijo do jantar. — Foi horrível. Golpes, gritos, mortes. Sangue por toda a parte.

— Foi há muito tempo — disse Broichan no caminho de regresso. — Os netos daqueles guerreiros estão mortos e enterrados e as netas destes são hoje anciãs. O seu sofrimento terminou há muito.

— Foi uma injustiça — disse Bridei.

— Uma injustiça a coragem ser recompensada com a morte? Talvez, mas a guerra é assim mesmo. Como sabes que os que morreram eram os nossos, Bridei? Talvez os vencedores fossem os nossos e os corajosos vencidos os nossos inimigos. Que me dizes a isto?

Bridei não respondeu de imediato. O jovem nunca vira uma coisa tão horrível e tão doentia como aquelas imagens de carnificina e morte e esperava não voltar a vê-la.

— Não devia ter acontecido — disse ele finalmente. — Foi uma injustiça. O líder deles devia tê-los salvo. Devia ter retirado a tempo.

— Tê-lo-ias feito, se fosses tu o líder?

— Teria planejado as coisas como deve ser. Tê-los-ia salvo.

— Uma batalha não se trava para salvar homens, trava-se para se ganhar. Um líder sabe que perde guerreiros e os guerreiros contam morrer chegada a sua hora. Faz parte da natureza dos homens lutarem uns com os outros. Porém, tens razão, filho. As coisas podem ser mais bem feitas, muito mais e a chave está no planejamento. Ah, finalmente, chegamos. O passeio fez-me fome; pergunto a mim próprio se Donal tem qualquer coisa que se coma.

Donal, um veterano, não os desapontou. A sua bolsa de sela tinha pão escuro, queijo salgado e umas pequenas maçãs e eles comeram numa elevação por cima do Lago da Serpente, onde os cavalos podiam pastar. Broichan comeu frugalmente apesar da sua conversa acerca da fome; o druida era reservado em tudo.

— O Vale dos que Caíram — disse ele finalmente, olhando para lá das águas prateadas, na direção dos montes escuros no outro lado — foi, em tempos, um lugar de uma tal calamidade que as pessoas, desde então, olham para ele com deferência e repulsa. Houve lá uma batalha; isso já tu sabes.

— E morreram muitos homens — disse Bridei, perdendo abruptamente o apetite pela maçã estaladiça que estava a comer.

— Uma comunidade inteira — disse Broichan — pais, irmãos, maridos, filhos, homens de muitas aldeias, a norte e a sul do Grande Vale. Lutaram todos corajosamente; tu viste apenas o fim, os últimos momentos de um conflito que durou desde a semeadura à colheita. As nossas forças já estavam derrotadas; o inimigo tinha conquistado as ilhas ocidentais, as terras ao longo da costa e marchava para leste como uma praga, pareciam decididos a devastar o próprio coração de Fortriu, a só parar quando o último dos nossos guerreiros morresse. Viste o resultado. Os nossos homens caíram ali, até ao último. Quando o inimigo se foi embora apareceu outro exército, as viúvas, os órfãos, os velhos, para recolher os seus e enterrarem-nos. Depois, alguém ficou a guardar o local, mas ninguém sabe quem é. As pessoas dizem que, de noite, se ouve um cão a uivar.

— Um lugar bem triste — comentou Donal.

— O Vale dos que Caíram não foi apenas um cenário de morte e de derrota — disse Broichan — contém a essência dos homens de Fortriu que morreram naquele dia. Cada um daqueles guerreiros levava no coração o amor pela sua terra, pelos seus, pela sua fé. Não devemos, nunca, esquecer isso, apesar da tristeza das suas mortes.

— Meu senhor — perguntou Bridei — quem era o inimigo? Os olhos deles eram estranhos, assustaram-me.

Donal respondeu por Broichan, em tom amargo.

— Os Celtas, malditos sejam, aquela raça maldita do outro lado do mar. A invasão foi comandada pelo velho rei. Hoje, quem os governa é o neto, Gabhran. Rei de Dalriada. Bah! — Donal cuspiu no chão.

— Não passa de um intruso, sempre a meter-se onde não é chamado. Já nos chega um rei; não precisamos que aquele habitante dos pântanos venha aqui para nos roubar.

Broichan olhou de soslaio para o guerreiro e Donal calou-se.

— Não falemos de reis — disse suavemente o druida. — Bridei há de estudar esse assunto e há de ser ajudado por especialistas, mas mais tarde. Ele ainda agora começou a arranhar a superfície daquilo que deve saber.

Bridei pensou nas palavras do druida enquanto acabava a refeição e regressavam à casa pela floresta. O jovem queria fazer uma pergunta a Broichan, uma pergunta que lhe ocupava frequentemente os pensamentos. O seu pai adotivo dizia mais tarde, falava em futuro, em todas as coisas que Bridei tinha de aprender. Porém, Broichan nunca dizia porquê, o que seria de Bridei uma vez terminada a sua educação. Regressaria a Gwynedd, para a sua família, que já começava a esquecer? Tornar-se-ia num druida como Broichan, severo e alto, sempre a pensar em coisas sérias? Ou o druida queria dizer outra coisa qualquer? Talvez estivesse destinado a ser um guerreiro como os do Espelho Negro. O jovem estremeceu ao recordar as imagens que vira. Não podia fazer uma tal pergunta, assim sem mais nem menos.

— Diz-me uma coisa, Bridei — disse Broichan, interrompendo-lhe os pensamentos — sabes nadar?

A pergunta era totalmente inesperada. Porém, Broichan estava sempre a surpreendê-lo.

— Não, meu senhor, mas gostava de aprender.

— Ótimo. Vamos precisar dos serviços de Donal durante o Inverno, nesse caso, para que te possamos ensinar enquanto o tempo ainda está quente. E a remar, também. Ainda bem que não caíste na lagoa. As suas águas são muito frias e muito profundas.

— Obrigado, meu senhor. — Não havia mais nada para dizer. Se alguém caísse no Espelho Negro, teria de certeza mais em que pensar do que no risco de afogamento.

— Entretanto — disse o druida, preparando-se para subir mais uma vez para o seu cavalo — o Inverno é propício à aprendizagem dos números, dos códigos, dos jogos e da música e acho que Donal pode utilizar o salão para te treinar, para que sejas um pouco mais autônomo. Eu sou capaz de me ausentar durante algum tempo. Porém, fica descansado, que vou nomear outros tutores.

— Sim, meu senhor. — Uma coisa era certa, pensou Bridei. Não ia ter tempo para se aborrecer.

Anos mais tarde, Bridei perguntaria a si próprio se Broichan se teria esquecido de que o seu filho adotivo ainda não tinha seis anos. O jovem sentia-se inclinado a pensar que não. O druida, simplesmente, queria avaliar a sua capacidade de absorção de informação, de resistência, de obediência, e instituíra um programa intensivo. Os dias eram totalmente preenchidos. O jovem cavalgava com Donal, passava muito tempo a aprender a lutar com duas facas, com uma e com os punhos, a montar e a desmontar com rapidez, tal como vira o guerreiro fazer. De tarde, Broichan administrava-lhe os conhecimentos druídicos a começar pelo Sol, pela Lua e pelas estrelas, os seus percursos e significados, o alinhamento das pedras e os sinais mais antigos espalhados por Fortriu, entraram profundamente no estudo das divindades e dos espíritos, dos rituais e das cerimônias. Tal como o druida dissera, até ali ainda só tinham arranhado a superfície. À noite, Bridei adormecia com as lições enredadas e retorcidas na cabeça e com o corpo moído de cansaço. O jovem comia como um cavalo e crescia a olhos vistos. Algum tempo antes do Solstício do Inverno, Broichan ausentou-se para comparecer no conselho do rei. Os territórios dos Priteni estavam divididos em quatro partes: Fortriu, onde Pitnochie estava localizado, o reino de Circinn a sul, os territórios mais distantes dos Caitt e as Ilhas Pequenas. Quando Bridei perguntou onde se enquadrava Gwynedd, o reino do seu pai, no meio daquilo tudo, Broichan sorriu.

— Gwynedd é outra terra, Bridei — disse o druida. — O povo do teu pai não pertence aos Priteni. Não te lembras do tempo que demoraste a chegar aqui?

Bridei não disse nada. As suas recordações começavam a desvanecer-se.

— Haverá representantes de dois reis no conselho — disse-lhe Broichan. — As nossas terras estão divididas; foi um dia negro aquele em que Drust, filho de Girom, se tornou cristão e o seu reino de Circinn se separou de Fortriu. Aqui, no norte, fomos abençoados com um rei fiel aos antigos deuses. Drust filho de Wdrost, conhecido como Drust, o Touro, governa todos os territórios do Grande Vale. Quando dizem que sou o druida do rei, é de Drust, o Touro, que falam. Drust é um homem bom.

Bridei desejava que Broichan não se ausentasse. O seu pai adotivo não sorria muito; não brincava nem jogava como os dois anciãos que se tinham ido embora. Porém, Broichan sabia muitas coisas interessantes e estava sempre pronto para as partilhar. O druida ouvia quando Bridei queria explicar qualquer coisa, não era como Mara, que estava sempre ocupada, ou como Ferat, que nem sequer parecia ouvi-lo. Broichan tinha sempre tempo para Bridei e apesar de raramente o elogiar, o jovem aprendera a reconhecer uma certa expressão, de agrado, nos olhos escuros do seu pai adotivo. Bridei desejava que Broichan ficasse em casa.

Chegou o dia. No pátio, Sibel estava selado e pronto; quatro homens de armas seguiriam com o druida, como escolta. Donal ficaria em Pitnochie.

— Vou trabalhar muito, meu senhor — disse Bridei, antes de Broichan subir para o seu cavalo.

— Eu disse alguma coisa? — disse Broichan com um quase sorriso. — Eu sei que darás o teu melhor, filho. Não negligencies o trabalho intelectual em prol do treino físico. Agora, tenho de ir, adeus, Bridei.

— Boa viagem, meu senhor — disse Donal, segurando as rédeas de Sibel. — Eu tomo conta do rapaz.

— Adeus — murmurou Bridei, sentindo-se subitamente muito esquisito. Prometera ao seu pai que não choraria. O jovem assistiu à partida de Broichan rodeado pelos seus guardas, à sua passagem pelos carvalhos nus e pela margem do lago. Os quatro companheiros tinham uma longa jornada pela frente até Caer Pridne, a grande fortaleza de Drust, o Touro.

— Muito bem — disse Donal, tentando animá-lo. — Que tal as espadas, hoje? Tenho uma pequena, que és capaz de conseguir levantar com facilidade. Que te parece?

A lição de esgrima manteve Bridei ocupado durante algum tempo e enquanto durou não houve na sua mente lugar para outra coisa que não força, equilíbrio e concentração. Só na parte de tarde, quando o céu ficou mais escuro, se formou uma cortina de chuva e os seus braços começaram a doer em protesto contra o trabalho árduo da manhã é que Bridei sentiu a tristeza invadi-lo. Donal estava a fazer qualquer coisa com os homens de armas, Mara tratava da roupa, resmungando que não conseguia secá-la e Ferat estava danada com a lenha molhada. Não havia ninguém com quem conversar.

O pequeno quarto de Bridei era a seguir aos alojamentos de Donal e dos homens de armas. Porém, na prática, o guerreiro dormia geralmente no corredor, à saída do quarto do jovem, argumentando que os outros ressonavam e não o deixavam dormir. Pela minúscula janela, por onde mal cabia um esquilo, Bridei avistava uma nesga do lago por entre os ramos de um vidoeiro. Por vezes, o jovem conseguia ver a Lua através dela e deixava uma oferenda no parapeito: uma pedra branca, uma pena ou um talismã feito de ervas e plantas. Broichan ensinara-lhe a importância da lua, como aquele astro governava as marés dos oceanos e dos corpos dos homens, das mulheres e dos animais, ligando-os aos ciclos da natureza. A Que Brilha era poderosa, tinha de ser reverenciada.

Naquele dia não se via a Lua, apenas as nuvens e a chuva, como se fossem lágrimas de uma tristeza infinita. Bridei deitou-se na cama e olhou para a janela, um pequeno quadrado na parede de pedra. O jovem sabia o que Broichan diria: A autopiedade é uma perda de tempo e o tempo é precioso. Usa-o para aprender. Em seguida, o druida falaria da chuva, do seu papel nas estações e como o elemento da água era como a Lua nas suas variações. Havia uma lição para aprender em tudo o que acontecia, mesmo quando as pessoas se ausentavam e deixavam saudades. Porém, naquele momento, Bridei não queria aprender. Sem o seu pai adotivo, nada parecia estar certo em Pitnochie.

O jovem sentou-se de pernas cruzadas em cima da cama e recitou o conhecimento para si próprio até as pálpebras começarem a fechar. Em seguida, levantou-se e tentou equilibrar-se numa perna apenas, com um braço atrás das costas e com um olho fechado, o método que os druidas utilizavam para meditar. Em seguida, dobrou os cobertores cuidadosamente, de modo que os cantos condissessem na perfeição, tirou tudo o que tinha na arca e voltou a arrumar tudo de maneira diferente. Depois, limpou as botas e afiou a faca, mas ainda não eram horas de jantar.

Bridei foi até à janela e olhou para a chuva a cair. O jovem pensou no dia que passara e na expressão dos olhos de Broichan quando o druida se despedira, pensou no Vale dos Que Caíram, naqueles homens todos mortos antes do seu tempo e no futuro triste das suas famílias. Bridei perguntou a si próprio o que custaria mais: partir ou ficar.

O treino de combate de Bridei aumentou. Donal ensinou-o a agarrar um adversário, a imobilizá-lo, deu-lhe equilíbrio, força e velocidade e também o ensinou a cuidar das armas. Bridei aprendeu a usar o arco e a acertar no centro do alvo nove em cada dez vezes. Donal começou a afastar cada vez mais o alvo e a acrescentar graus de dificuldade, como uma distração no momento do disparo, por exemplo, ou ordenando-lhe subitamente que fechasse os olhos. As aulas nunca eram maçadoras. Devido às instruções cuidadosas do guerreiro quanto à limpeza e lubrificação das lâminas, manutenção das flechas e do arco, Bridei apercebeu-se de que aquele Donal comprido e esquisito era à sua maneira, tão disciplinado como o severo druida.

As tardes, que antes eram passadas com Broichan a recitar o conhecimento, ou a estudar os mistérios, eram agora passadas com os seus próprios esquemas e projetos. Bridei tinha estudado os elementos e fazia o possível para se recordar de tudo o que Broichan lhe ensinara, não só as palavras do conhecimento que por vezes ele não compreendia bem, mas também o seu significado escondido. As fases da Lua governavam as águas e as águas eram como as marés do espírito, fortes e flexíveis. A água significava tempestades, cheias, chuva para as sementeiras; significava lágrimas salgadas. A água podia rugir numa grande torrente, podia cair fragorosamente por um precipício abaixo, ou podia jazer imóvel e silenciosa, à espera, como o Espelho Negro. Depois, o fogo, poderoso e consumidor. O calor de uma lareira podia manter um homem vivo, mas a sua fúria também podia matá-lo. A dádiva especial de Guardiã das Chamas aos homens era o fogo no coração: a coragem, capaz de arder mesmo perante a morte. O ar estava frio, uma promessa de neve, e transportava o aroma dos pinheiros. O ar suportava o vôo das águias, bem acima do Grande Vale. Bridei compreendia o que as águas sentiam quando olhava para a extensão das terras de Fortriu em toda a sua grandeza. A sua terra. O seu lugar. A terra estava viva sob os seus pés, um corpo vivo, conhecedor, do qual tudo saía — os veados, as águias, os esquilos, os salmões brilhantes, os corvos de olhos vivos, os homens, as mulheres, as crianças e os outros, os Boa Gente. A terra é que o amparava e quando chegasse a sua hora, levá-lo-ia. A terra era capaz de fazer uma casa, ou abrir um trilho; a terra cobria o longo sono dos guerreiros. Até as coisas mais pequeninas tinham significado: um graveto queimado, uma pequena pedra branca, uma pena, uma gota de chuva.

Quando saía sozinho, Bridei tinha de obedecer a certas regras, podia trepar a Cicatriz da Águia desde que tivesse cuidado, podia percorrer os bosques até ao segundo rio, a sul, mas não se podia aproximar da aldeia ou aventurar-se a pé na floresta até ao Vale dos Que Caíram. Quando perguntava a Donal a razão, o guerreiro dizia simplesmente: “não é seguro.” Como o guerreiro, invariavelmente, era sensato e amável, Bridei aceitava as regras. O jovem suspeitava que a recusa tinha a ver com os Boa Gente. Além do mais, tinha sempre presente as palavras do seu pai: Obedece, aprende. Bridei percorria os trilhos, trepava as rochas e subia às árvores e até encontrou a toca de um texugo, um ninho de águia abandonado e uma queda d’água gelada com frágeis filigranas afiadas como facas, mas não encontrou vivalma.

Uma tarde, tudo mudou abruptamente quando regressava de uma caçada. Bem, não exatamente de uma caçada; o jovem transportava o arco a tiracolo e levava a sua faca no cinto, mas não era sua intenção usar uma coisa ou outra. Poucos dias antes matara um coelho, mas Donal estava presente. Para seu grande alívio, o tiro matara o animal imediatamente, não precisara de usar a faca. Bridei, que tinha muito tempo para pensar, sabia que podia ter sido diferente.

Naquele dia, levara as armas consigo porque fazia sentido, mais nada. Donal e os outros não andavam sempre com uma faca na bota? Tudo o que Bridei queria era subir até aos últimos vidoeiros e sentar-se nas pedras junto da grande queda d’água a que chamavam Véu da Dama a observar as águias. As montanhas já tinham um manto de neve e as águas do lago refletiam o tom cinzento-escuro do céu. Os chamamentos das aves eram lamentosos, ecoavam pela floresta, chamando e respondendo lugubremente. Talvez o frio as obrigasse a chamar assim; como encontrariam comida no Inverno, com as bagas enrugadas nos arbustos castanhos e as ervas amortalhadas por baixo da neve? Talvez se limitassem a chamar para engrandecer aquele espaço grandioso, vazio. No fim de contas, chegara a hora do Inverno; as criaturas selvagens sabiam-no tão bem como Bridei. O Inverno era a época em que a terra dormia, a época dos sonhos, a época da preparação para o que viria a seguir, uma das primeiras lições de Bridei. Era no Inverno que os rapazes da sua idade abriam a imaginação às vozes que nas outras estações se mantinham abafadas devido às diversas ocupações. Aprendia-se com tudo: especialmente com os sonhos.

O Véu da Dama não estava gelada; o seu caudal era demasiado pesado, demasiado aberto, não se deixava abraçar pelo gelo. Na base, as poças tinham cristais minúsculos e as plantas estavam geladas. Bridei trepou pelas rochas até ao topo. Por momentos, o jovem ficou a observar o céu, mas não viu nenhuma águia. O jovem praticou a posição numa só perna, perguntando a si próprio qual dos seus olhos veria melhor. Após algum tempo, os seus pés começaram a ficar dormentes e as orelhas a doer apesar do gorro de pele de ovelha e Bridei decidiu pegar na aljava e no arco e regressar a casa. Ferat devia ter bolos de aveia e o jovem tinha fome.

Num dos lados e abaixo da queda -d’água havia um maciço rochoso que demarcava a encosta; em redor cresciam arbustos de azevinho, escuros e de folhas lisas. Bridei tinha dado dois passos ao longo do carreiro na base das rochas quando ouviu um estalar muito leve, insignificante. O jovem parou, gelado. Havia algo ali perto por baixo das árvores, algo que também se imobilizara, algo que o seguia, que o espreitava. Um javali? Um gato selvagem? O coração de Bridei começou a bater com toda a força. Os pés do jovem queriam correr. Para o seu tamanho, Bridei era muito rápido; não levaria muito tempo a chegar ao dique de pedra que delimitava as terras de Broichan, onde havia um guarda. O seu corpo estava pronto, mas a sua mente disse-lhe que não. E se fossem os Urisk? Os Urisk não precisavam de correr, quando viam uma pessoa, se queriam essa pessoa, colavam-se a ela como uma sombra, por mais rápida que ela fosse. A única maneira de lhes escapar era por meio de um truque: ficar absolutamente imóvel. Desse modo, ficava invisível. Bridei era capaz de ficar muito tempo imóvel.

Então, o estalar do graveto transformou-se no som de um passo nada furtivo. O jovem virou-se e viu um homem todo vestido de castanho e cinzento, um homem difícil de localizar na floresta, ainda por cima no Inverno. O homem tinha um capuz com dois buracos para os olhos e um arco na mão. Enquanto Bridei olhava para ele, petrificado, o estranho colocou uma flecha no arco e preparou-se para o esticar.

Não havia tempo para correr nem um lugar para se esconder. Bridei decidiu que não gritaria nem pediria misericórdia porque era filho de Maelchon, um rei. O assaltante deu um passo em frente, apontou e puxou a corda. Bridei encostou-se à rocha, tenso, com o coração a bater como um tambor. O jovem sentia a rudeza da rocha por trás de si, as fendas e as rachas, mas também o musgo úmido. Uma parte da terra... O homem esticou o arco e Bridei recuou para o interior do maciço rochoso, para a segurança de uma gruta minúscula e estreita. O jovem recuou o mais possível, tentando ficar invisível, fora de alcance.

No exterior, o homem praguejou violentamente. Bridei esperou, tentando não se esquecer de respirar. Através da abertura, o homem meteu uma espada, procurando, brandindo. Bridei encostou-se ainda mais à rocha, fazendo-se ainda menor. A espada moveu-se, agressiva, mas parecia que o seu dono não conseguia manobrá-la como queria porque a abertura era demasiado estreita, de tal modo que Bridei perguntou a si próprio como conseguira passar por ela.

— Raios partam o miúdo do druida! — resmungou uma voz. Precisamos de fumo...

Então, Bridei ouviu outros sons e percebeu que o homem estava a apanhar gravetos, folhas, fetos, coisas que ardessem. A maioria devia estar molhada, mas Bridei vira as fogueiras de Broichan, que ardiam com um simples estalar de dedos e aproximou-se cautelosamente da passagem para tentar ver qualquer coisa. O homem estava mesmo a apanhar lenha com movimentos rápidos e resolutos. Não valia a pena pedir ajuda. Se aquele guerreiro tivesse uma pederneira, o fumo encheria o seu esconderijo muito antes de qualquer guarda chegar ali. Se não queria morrer naquele buraco, ou sair para a morte certa, Bridei teria de arranjar um meio de se salvar.

No espaço reduzido da pequena gruta, o jovem tentou colocar uma flecha no arco. As suas mãos tremiam e não havia espaço para puxar totalmente a corda do arco. Naquele momento, o homem estava de joelhos, talvez já estivesse a fazer fogo. Como alvo, estava demasiado baixo. A faca: Bridei podia usá-la como Donal e os outros faziam, lançando-a. Nunca tentara, mas não queria dizer que não fosse capaz. Bridei pousou o arco e levou a mão à bainha. Teria uma oportunidade, uma apenas, depois de o homem acender a fogueira e recuar para ver o resultado do seu trabalho. Uma oportunidade. Depois, teria de sair, com chamas e tudo. Talvez as folhas não ardessem. Talvez falhasse o alvo. Não, era filho de um rei, não falharia.

Um fio de fumo começou a erguer-se à entrada da gruta e um cheiro pungente entrou no pequeno espaço onde o jovem estava, fazendo-o quase tossir. O fio transformou-se numa fita, numa coluna, numa pequena nuvem e, subitamente, ouviu-se um estalar. O assassino vestido de cinzento pôs-se de pé e virou-se, expondo o dorso durante um longo momento. Bridei apontou, calculou e lançou a faca, ao mesmo tempo que ouvia o som de passos a correr e o grito de uma voz familiar. Ao mesmo tempo que a faca girava satisfatoriamente através da cortina de fumo, apareceu uma forma no campo de visão de Bridei, uma silhueta grande, furiosa, que caiu sobre o homem vestido de cinzento. O jovem deixou de ver um e outro. A faca tinha desaparecido. Bridei encolheu-se. As chamas crepitavam em frente da abertura, ouviam-se homens a gritar e metal contra metal. Em seguida, um gorgolejar e um suspiro. As chamas começaram a morrer; alguém pisava a fogueira. Bridei ouviu alguém dizer:

— Mataste-o.

A pequena gruta estava cheia de fumo; Bridei tinha os olhos e o nariz a arder e doía-lhe o peito de tanto tentar não tossir. O jovem fechou os olhos e os lábios com força. Havia algo de errado. Tinha morrido alguém. A sua faca matara alguém. Donal, provavelmente. Donal viera em seu socorro e em vez de esperar, como devia, Bridei lançara a faca sem olhar primeiro, sem calcular os riscos, como Donal lhe ensinara. Cometera um erro grave. O jovem começou a tremer e a chorar como um bebê sem conseguir parar.

Vozes no exterior.

— Está mesmo morto. Partiu o pescoço, o maldito.

— Mais valia tê-lo deixado vivo; fazíamo-lo falar, quem o mandou, quem é que lhe pagou. Por que é que...? Donal?

Em seguida, um som arrastado, o som de alguém a tentar levantar-se, mas sem o conseguir. Era cada vez mais difícil não tossir. Bridei precisava de fungar; o seu nariz parecia uma fonte.

— O que é isso? Estás a sangrar como um porco! O homem feriu-te?

— É só um arranhão. Vai atrás dos outros, despacha-te!

Passos, muitos, metal contra metal e depois o silêncio, ou quase; Bridei ouvia a sua própria respiração e os seus próprios soluços mas também ouvia a de outra pessoa. Donal estava vivo, mas estava em dificuldades.

— Bridei? — chamou o guerreiro, pouco mais do que um sussurro. — Onde estás, rapaz? Responde, raios te partam!

A voz de Donal era estranha, talvez estivesse zangado. Um guerreiro não se esconderia como um covarde, não teria atingido o alvo errado e não se poria a chorar. Bridei descobriu que não era capaz de se mover ou de falar.

— Bridei! — tentou gritar Donal. O jovem já conseguia vê-lo um pouco, um ombro, o velho colete de pele, a mão do outro braço a agarrá-lo e o sangue a escorrer-lhe por entre os dedos. — Bridei, maldito rapaz, se te deixaste matar, eu... eu... — A voz do guerreiro enfraqueceu; Bridei nunca o ouvira falar daquela maneira, como se a vida estivesse a esvair-se-lhe do corpo mais depressa do que a areia a escorrer por uma ampulheta.

O jovem esgueirou-se por entre as rochas, pisou o monte de folhas e gravetos e apareceu, pequeno e imóvel, ao lado de Donal. Tentou não ver a silhueta do outro homem jazendo a pouca distância com a cabeça num ângulo estranho. Donal estava sentado no chão; os seus olhos estavam fechados e o seu rosto estava da cor das papas de aveia da semana anterior. Havia muito sangue no ombro e no antebraço e o guerreiro tinha a faca de Bridei na mão direita.

— Peço desculpa — disse Bridei solenemente, fungando ao mesmo tempo com força. — Eu queria ferir o outro homem, o que me estava a tentar matar.

Os olhos de Donal abriram-se. A sua boca distendeu-se numa careta e o guerreiro quase se levantou, mas voltou a deixar-se cair com um gemido.

— Todas as Flores seja bendita! Onde estavas, seu maroto... ali? Como é possível? Nem um cachorro cabe ali, quanto mais um tipo grande como tu! Não acredito!

Era verdade. A abertura não parecia suficientemente larga para deixar passar um dos seus ombros, quanto mais o resto. Não admirava que o homem não o tivesse conseguido atingir com a espada... Bridei sentiu-se subitamente esquisito ao pensar na lâmina para cima e para baixo e deixou-se cair ao lado de Donal.

— Conta-me lá o que aconteceu. — A voz de Donal mudara de novo, parecia verdadeiramente zangada, mas Bridei sentiu que não era consigo. — Conta-me tudo, os pormenores todos, tudo o que viste.

— Tu estás a sangrar — disse Bridei. — Eu sei fazer um penso, Broichan ensinou-me. Primeiro, trato-te do ferimento e depois conto-te tudo a caminho de casa. Tens de pôr aí uma cataplasma de absinto e arruda, beber hidromel e ir para a cama cedo. Estou a dizer o que o meu pai adotivo diria.

Donal olhou para ele em silêncio.

— Desculpa se te feri — disse Bridei uma vez mais, sentindo o lábio inferior a tremer.

— Oh, tudo bem — disse Donal com a voz novamente constrangida. — O ideal é rasgar uma camisa ou duas. Terá de ser a tua, eu não consigo tirar a minha por causa do ombro. Mas tens de vestir imediatamente a jaqueta, está muito frio. E despacha-te, sim? O hidromel soa-me bem ao ouvido.


CAPÍTULO DOIS


Fora um erro, disse Donal. O tipo e os companheiros queriam fazer mal a Broichan, não a Bridei. Bridei sabia que havia ali algo de errado, vira a expressão dos olhos semicerrados do homem, vira os seus dedos esticarem a corda do arco. Broichan tinha inimigos. Um homem que é amigo de todos não precisa de guardas nem de fechaduras nas portas. Talvez aqueles atacantes fossem os inimigos do druida, mas era a ele que queriam matar. Por que razão, não sabia. O seu pai era um rei, era verdade, mas Gwynedd ficava muito longe, tinha os seus próprios conselhos, as suas próprias guerras, estava muito afastado dos reinos dos Priteni. Além do mais, o seu pai mandara-o para longe. Se tivesse alguma importância, a sua família não o teria deixado partir. Aquele ataque não fazia sentido.

O homem que Donal matara estava enterrado num canto do redil. Os outros, avistados pelos guardas de Broichan a partir dos seus pontos de vigia, tinham escapado para a floresta apesar da enérgica perseguição dos homens de armas do druida. O caso ficou sem explicação, a sua missão e origem um mistério. Donal amaldiçoou o tipo por o ter obrigado a matar; preferia tê-lo ferido um pouco e apertado com ele para conseguir a verdade de uma maneira ou de outra, mas era demasiado tarde; o homem vestido de cinzento só contaria a sua história aos vermes.

Bridei ficou proibido de sair sozinho, teria de levar, pelo menos, dois guardas e só quando fosse absolutamente necessário. As cavalgadas diárias foram reduzidas porque Donal andava muito ocupado. As trocas de palavras em voz baixa eram freqüentes e todos os homens andavam vigilantes. Mara resmungava por cima da tina de lavar roupa. Ferat praguejava enquanto depenava os gansos e Bridei aprendia palavras novas que não repetia. O jovem passava muito tempo no estábulo, tratando de Pearl e falando com ele porque o seu corpo quente e os seus olhos meigos eram uma boa companhia, aliás como todos os cavalos. As tardes eram passadas a estudar. Bridei tentava não reparar na solidão da casa, na sua pequenez, na sua falta de força, na sua quase impossibilidade de lutar, não pensar em Broichan e no tempo que faltava para o druida regressar à casa.

Na ausência do druida, a casa não observou o ritual do Portal para assinalar a entrada no tempo das trevas apesar de Fidich ter matado um carneiro, já que era necessário um sacrifício. Mara disse que mais tarde, no Lago da Serpente, haveria uma grande pira de troncos de pinho, de freixo e de carvalho. Bridei teria gostado de ir ver as pessoas saltarem a fogueira, como Mara lhe dissera que fariam. Porém, não valia a pena maçar Donal; sabia que a sua resposta seria negativa. Assim, tudo o que o jovem fez foi colocar nos degraus da cozinha uma tigela de hidromel e um prato de bolos de aveia. Em sinal de respeito, o jovem convidava os mortos a partilharem as oferendas da casa, dava-lhes as boas-vindas naquela noite em que as barreiras caíam e os mundos se fundiam. No dia seguinte, o hidromel e os bolos tinham desaparecido; o prato tinha apenas algumas migalhas.

A noite do Portal passara. Em breve chegaria o Solstício de Inverno. O conselho do rei há muito que devia ter terminado, mas não havia notícias de Broichan. As noites ficaram cada vez mais compridas. As candeias ardiam na cozinha e no salão durante o dia, iluminando uma casa sempre cheia de fumo porque a lareira estava sempre acesa, salvo quando estavam todos a dormir. Mara disse qualquer coisa sobre a fuligem e encomendou mais óleo. No seu pequeno quarto, Bridei deixava-se ficar debaixo dos cobertores com a candeia a arder na parede de pedra e tentava concentrar-se no conhecimento. Era como se o seu pai adotivo se tivesse ido embora para sempre. Quando regressaria Broichan?

Três dias antes do Solstício de Inverno, a neve caiu. O ar chamara-a desde manhã cedo; não havia engano, aquela calma, aquela sensação estranha e enganosa de calor, como se as nuvens suaves quisessem atenuar o abraço do Inverno apesar de estarem a tapar o Sol. Bridei estava na rua a ajudar os homens a mudar as ovelhas de um campo para outro. Os guardas mantinham-se vigilantes nas partes mais altas das terras de Broichan; as suas silhuetas robustas e as suas feições azuladas por causa do frio eram nitidamente visíveis sob os carvalhos nus na orla da floresta. No Inverno, os turnos de vigia eram mais curtos; havia sempre homens a entrar em busca de carne assada e de cerveja; outros a vestirem mais roupa, capas de pele, capacetes de pele, botas pesadas, prontos para mais uma batalha contra o frio. Ferat andava tão ocupado que não tinha tempo para resmungar. O homem tinha dois ajudantes, ambos demasiado aterrorizados com o temperamento do cozinheiro para fazerem outra coisa que não fosse trabalhar a toda a velocidade e rezarem para não cometerem qualquer erro.

A neve começou a cair quando as últimas ovelhas passaram para o outro campo, conduzidas pelos cães extremamente excitados. O trabalho de Bridei era sentar-se no muro de pedra, na abertura, e assegurar-se de que os animais eram devidamente separados. O lado agrícola dos negócios de Broichan era comandado por um homem chamado Fidich. Era evidente que o homem tinha sido guerreiro, em tempos, porque os desenhos que tinha no rosto eram quase tão elaborados como os de Donal e também tinha sinais nas mãos, curvas e espirais, desde os punhos às pontas dos dedos. Fidich tinha uns ombros fortes, uma expressão severa e uma perna direita que acabava logo a seguir ao joelho. O homem caminhava com a ajuda de uma muleta de freixo e conseguia percorrer o terreno difícil da herdade com uma rapidez incrível. Fidich vivia sozinho numa cabana num dos extremos dos campos murados. Não havia ovelha que parisse um cordeiro, ou porco que fugisse para um local proibido, que Fidich não soubesse. Porém, a falta da perna apresentava algumas dificuldades e por isso é que um rapaz no portão dava jeito.

— Muito bem, rapaz, foi a última! — gritou Fidich por cima dos latidos dos três grandes cães. Bridei fechou o portão e aferrolhou-o. As ovelhas que tinham ficado no outro lado, relegadas para um Inverno junto dos arbustos raquíticos, vivendo do que conseguissem encontrar, ficaram confusas, mas depois afastaram-se como se nada de anormal tivesse acontecido.

Primeiro, a neve mostrou a sua presença através de flocos isolados, caindo numa dança lenta, graciosa. Quando os homens, o rapaz e os cães começaram a descer a encosta a caminho de casa, os flocos transformaram-se em farrapos, pousando na lama gelada do carreiro. No lago, a encosta coberta de árvores começou a desaparecer por trás de uma nuvem baixa. O vento levantou-se e os pinheiros responderam gemendo. Quando Bridei e os seus companheiros chegaram a casa, os cães já tinham uma camada branca sobre os pêlos cinzentos hirsutos e o vento soprava com força. Virando-se para a encosta, Bridei não conseguiu ver o campo onde tinham estado a trabalhar, ou as ovelhas, ou os guardas a andarem de um lado para o outro. Estava tudo branco.

— Está a preparar-se uma das antigas — comentou Fidich. — Não vou ficar; tenho de chegar a casa enquanto consigo encontrar o caminho. Vai ser uma noite difícil para os rapazes que estão de vigia.

— É verdade — disse um dos homens. — Só um louco tentaria vir até aqui com uma tempestade destas; aposto que andaria em círculos e acabaria por se sentar para descansar. Nunca mais se levantaria. Tens a certeza que não ficas para comer uma bucha?

— Não, tenho de acender a lareira e os bolos de aveia estão à minha espera — disse Fidich, como sempre.

Até no salão, em frente da lareira, estava frio. Bridei não tinha pressa de ir para a cama porque sabia que o seu pequeno quarto estaria gelado. Estavam todos muito calados. Mara estava a coser à luz da candeia; Ferat estava sentado num banco a olhar, abstrato, para uma caneca de cerveja. A maior parte dos homens já tinha ido para os respectivos alojamentos. Donal estava sentado à mesa a trabalhar nalgumas flechas. Na sua frente tinha uma variedade de facas pequenas e outras coisas, penas, fio e madeira. O guerreiro assobiava por entre os dentes. Bridei sentou-se a seu lado, demasiado cansado para fazer outra coisa que não olhar.

A porta da cozinha abriu-se de repente, fazendo com que todos erguessem as cabeças. Uma rajada de vento entrou pelo salão adentro, fazendo com que o fogo crepitasse. Donal pegou na sua maior faca e levantou-se, ao mesmo tempo que os outros homens de armas corriam para bloquear a passagem entre a cozinha e o salão. Mara colocou o seu grande corpo em frente de Bridei, impedindo-o de ver fosse o que fosse.

— O que...? — foi tudo o que Ferat teve tempo de dizer antes de a porta se fechar violentamente e os homens de armas recuarem para deixar passar duas figuras, uma amparando a outra. Uma era Cinioch, que estivera de guarda junto do muro e a outra, pálida como a morte, de lábios azulados e coberta de arranhões e equimoses devido a uma longa corrida no escuro, era Uven, um dos homens de armas que viajara com Broichan até ao conselho do rei.

Bridei sentiu-se na obrigação de fazer qualquer coisa. O jovem foi buscar uma das capas penduradas junto da lareira da cozinha, encheu uma caneca de cerveja e colocou-a nas mãos trêmulas de Uven. Mara deu um pontapé na confusão de cães que rodeavam a lareira do salão. Donal aproximou o banco do fogo, ao mesmo tempo que os outros ajudavam o viajante meio gelado a sentar-se. Uven estava incapaz de falar; o seu corpo era percorrido por espasmos e a caneca tremia de tal maneira nas suas mãos que a cerveja se entornou. Finalmente, o homem conseguiu beber e um pouco mais tarde comer um pouco de papas de aveia a ferver, feitas por Ferat.

— Que bom — conseguiu murmurar Ferat, recuperando um pouco de cor. O homem olhou para Donal. — Mensagem — disse ele. — Urgente. Particular.

— Bridei — disse Donal — vai para a cama. Toca a andar.

— O que é que aconteceu? — perguntou o jovem, apercebendo-se da falta de força da sua voz, alta e irregular. Uma boa criança não desobedecia a uma ordem e ele considerava-se uma boa criança. Porém, tinha de saber a verdade. — Trata-se de Broichan?

Todos olharam para ele em silêncio e Uven murmurou:

— O tempo escasseia, Donal.

— Bridei — disse Donal, acocorando-se e fixando o jovem — isto é assunto de homens e tu ainda não és um homem. Há de ser, um dia, e bem grande, mas até lá ajudas melhor Broichan se fizeres o que te dizem. Pega na tua vela e vai para o teu quarto. Depois de saber o que se passa, vou ter contigo e conto-te tudo. Prometo.

O jovem deitou-se e esperou. Os cobertores amenizavam um pouco o frio do quarto, mas não o que sentia na alma, mais áspero do que o do Inverno. Broichan estava morto. Não havia outra explicação para tanta urgência, tanto segredo! Donal pensava protegê-lo ao dar-lhe a notícia com gentileza. Porém, não seria nenhuma novidade. O que estava a acontecer era apenas a parte seguinte do mesmo velho padrão. Tem-se uma coisa, gosta-se dela e subitamente, desaparece. Talvez fosse melhor nem sequer gostar. Bridei perguntou a si próprio se Broichan teria olhado para os olhos do assassino, se vira os seus dedos a esticar a corda do arco. Broichan devia ter enfrentado a morte tranquilamente, pensou ele. Existe ensinamento em tudo, teria ele dito. Uma corrente de ar fez tremer a chama da vela; as sombras treparam pelas paredes, não de veados, águias e lebres, antes de fantasmas, visões, recordações do Outro Mundo. Talvez o druida estivesse entre elas. Bridei não choraria. Mandá-lo-iam embora para Gwynedd, certamente. Por mais que tentasse, não conseguia imaginar-se longe dali.

Algum tempo depois, Donal bateu-lhe à porta e sentou-se calmamente a seu lado na cama estreita. À luz da vela, os desenhos do seu rosto ganhavam vida própria, como manifestações de um mundo espiritual. Bridei esperou pelas palavras de que estava à espera.

— O teu pai adotivo está metido em sarilhos — disse Donal. — Doente e longe de casa.

— Doente? — Bridei sentiu a esperança a acordar dentro de si, em algum lugar, uma chama minúscula fazendo o possível para não se apagar.

— Muito doente, Bridei; não te vou mentir. Parece que alguém tentou matá-lo com umas ervas. Mas ele está a se recuperar. Sabes como é, um druida é o seu melhor médico. Porém, não pode ficar onde está; temos de ir buscá-lo.

— Temos?

A expressão severa de Donal suavizou-se. O guerreiro olhou diretamente para Bridei.

— Eu e alguns dos rapazes. É uma viagem muito longa, Bridei; até à costa, perto da corte do rei, em Caer Pridne, ida e volta. Temos de partir antes que a neve tome conta de tudo.

— Eu podia ajudar — disse Bridei, endireitando os ombros num esforço para parecer mais alto.

— Eu sei, rapaz e também sei que, se deres um passo fora das fronteiras de Pitnochie, Broichan despede-me assim que souber. Se te queres ver livre de mim...

— Só quero que não te vás embora — disse Bridei num murmúrio.

— De fato — disse Donal — quero dizer-te uma coisa. Não posso levar Lucky e ele fica com saudades minhas quando me ausento. Preciso que o escoves, que lhe contes uma anedota ou duas para que ele não se sinta muito infeliz. Far-me-ás um grande favor. Eu sei que é difícil.

Bridei acenou com a cabeça. Havia um certo consolo nas palavras do guerreiro.

— E se não voltares? — o jovem não conseguiu deixar de perguntar.

— Não voltar? — Donal ergueu as sobrancelhas, espantado. — Eu, Donal, herói de mais batalhas do que os dedos que tu tens nas mãos e nos pés? É claro que volto! Que estás a dizer? Que não sou capaz de dar conta do recado? — Bridei viu a sombra de um sorriso no rosto do guerreiro apesar das palavras duras.

Bridei olhou para Donal e abanou a cabeça. Um momento mais tarde o jovem estendeu a mão e o guerreiro apertou-a com firmeza.

— Nós vamos trazê-lo são e salvo, Bridei, dou-te a minha palavra.

— Donal?

— Sim, meu rapaz?

— É muito difícil envenenar um druida. — O jovem e Broichan eram capazes de identificar as ervas pelo cheiro com os olhos vendados. O druida nunca errava.

Donal acenou severamente com a cabeça.

— Também já pensei nisso.

— Quem o poderá ter feito?

— É o que tenciono descobrir — disse Donal. — Mas cada coisa a seu tempo. Broichan recuperará melhor em casa contigo a seu lado e nós a vigiarmos. Deixo a casa nas tuas mãos, Bridei. Reza pelo teu pai adotivo. Achas que és capaz?

— Sim — murmurou Bridei. O jovem conseguiu não chorar quando Donal se despediu, conseguiu assistir de olhos secos à partida do seu amigo, de madrugada, com mais quatro homens, bem agasalhados e armados até os dentes. Se, porém, chorou depois de Donal desaparecer, sozinho no seu quarto, só ele e as sombras o podiam dizer.


Solstício do Inverno: as águas do lago escuras como tinta, os montes azulados sob o céu sombrio, os ramos dos pinheiros curvados sob o peso até não poderem mais, a neve caindo no chão numa avalancha de pó e os galhos retrocedendo, fortes, elásticos. As ovelhas agrupadas ao redor umas das outras em busca de calor. O fumo saindo da chaminé, erguendo-se preguiçosamente e ficando a pairar por cima da casa; os cães, relutantes em sair pela manhã. A água da vala meio gelada e Fidich quebrando o gelo com um bordão para que o gado pudesse beber.

Bridei ajudara a alimentar as ovelhas presas no redil. O jovem fizera uma visita aos porcos e passara algum tempo no estábulo alimentando Pearl e contando umas anedotas a Lucky. As piadas não eram lá muito boas, mas Lucky parecera ficar satisfeito. Pearl estava inquieto: talvez sentisse que o tempo era de mudança. Naquela noite, o mundo daria novamente a volta na direção da luz, apesar de ser difícil de acreditar com um dia daqueles.

Apesar da ansiedade por Broichan e pelos homens que tinham ido buscá-lo, as pessoas da casa compreendiam a importância daquela noite. Os homens tinham cortado um pesado tronco de carvalho e tinham-no levado para junto da lareira. Bridei, acompanhado por dois guardas, apanhara uma boa provisão de ramos de azevinho, de hera e de gravetos de pinheiro. Com a ajuda de Mara, o jovem fizera uma série de grinaldas e as portas ficaram todas com a sua coroa. Ferat salpicou o grande tronco com hidromel e com farinha e Bridei engalanou-o com fiadas de folhas brilhantes de hera. Ao fim da tarde, apagaram o fogo, colocaram o tronco cerimonial na lareira e reuniram-se todos em redor dele, ao frio. As luzes foram todas apagadas; a casa ficou na escuridão com exceção de uma única vela. Franzindo o sombrolho, muito concentrado, Bridei presidiu ao ritual apesar de não se recordar das palavras todas. O jovem contou a história do Solstício do Inverno, a que dizia que a deusa embalara nos braços toda a noite um ancião ferido até ele se transformar numa criança de cabelos dourados e voar para o céu, que o Sol saíra da escuridão e que a esperança renascera. A vela foi apagada. Em seguida, Fidich fez faísca com a pederneira, acendeu uma mecha e pôs um pavio a arder. Com aquilo, acenderam um pequeno pedaço de madeira carbonizada, restos do tronco do Solstício do ano anterior. Em breve, o velho tronco dava vida ao novo e o calor espalhou-se pelo salão. Bridei deu a volta ao círculo, pondo fim ao ritual e em seguida todos se descontraíram e gozaram o resto da noite.

Ferat sorria quando apareceu com a comida, cerveja e hidromel, os bolos e os queijos cuidadosamente armazenados. Mara encheu um cesto para os infelizes que estavam de guarda. Uven, recuperado, já ia na terceira caneca de cerveja. O som das conversas, o cheiro dos cozidos de Ferat, os risos e as piadas deram à casa uma nova vida, refletindo o ritual a que tinham assistido. Bridei, porém, ficou subitamente cansado; o jovem bebericou o hidromel com água que lhe deram, mordiscou o seu bolo e, sub-repticiamente, deu-o ao cão mais próximo.

— Boa noite — disse ele para ninguém em particular, mas como um dos homens estava a contar uma história e todas as pessoas estavam a rir, ninguém o ouviu. Também ninguém reparou que o jovem foi para o seu quarto, enrolou-se nos cobertores e, de costas para a festança que ia no salão, adormeceu, a conclusão ideal para um dia longo e cansativo. Porém, a Mãe de Tudo ainda não terminara o seu trabalho. Antes de afrouxar o seu abraço sobre a terra, queria dar uma última oportunidade a Bridei, uma mudança ao mesmo tempo difícil e espantosa. Naquela noite de Solstício, a vida do jovem ia sofrer uma transformação mais profunda do que alguém poderia imaginar.

Bridei acordou sobressaltado, com o coração a bater. O jovem não se recordava de ter sonhado, apenas que lhe parecera urgente acordar. A casa estava silenciosa. Através da pequena janela quadrada, a Lua olhava para dentro do quarto, o seu brilho azulado transformando aquele pequeno quarto vulgar num palácio maravilhoso, num reino de superfícies ilusórias e sombras secretas. Silêncio total; até se ouviriam os passos de um rato, tal era o silêncio. No entanto, algo o chamava, algo lhe puxava pela mente, algo vital, urgente.

Tremendo, Bridei afastou os cobertores, colocou a sua curta capa por cima da camisa de noite e, abrindo a porta com o máximo cuidado, percorreu descalço o corredor até o salão.

Na lareira, a lenha ainda ardia alegremente; o tronco do Solstício duraria uns bons sete dias. Mara dormia placidamente numa cadeira com a boca ligeiramente aberta e o xale em redor dos ombros. Dois homens de armas, Elpin e Uven, estavam estendidos em dois bancos perto do fogo e os cães estavam deitados no assoalho entre eles. Os animais levantaram as cabeças quando Bridei passou por eles e depois voltaram a adormecer.

A cozinha estava vazia; Ferat tinha ido para a cama depois de deixar tudo pronto para o dia seguinte. O brilho do fogo seguia Bridei, contornando a sua pequena sombra no chão de pedra, na sua frente. Ao aproximar-se da porta da rua, a sombra subiu para a parede, assumindo uma forma improvável, alta e torta. O pesado ferrolho de ferro estava fechado, coisa que Mara fazia geralmente depois da saída do último turno de guardas. Durante o dia, a porta ficava sempre desaferrolhada porque havia sempre gente a entrar e a sair na casa de Broichan. O frio entrava pelas frinchas; Bridei sentia-o nos dedos dos pés. O jovem estremeceu novamente. Aquele algo, fosse ele qual fosse, que o acordara e o levara até ali naquela noite fria de Inverno, estava a dizer-lhe que devia sair. Lenta e cuidadosamente, Bridei puxou o grande ferrolho e abriu a pesada porta de carvalho. A neve cobria tudo, o silêncio era total e o luar era azul, maravilhoso. A paisagem parecia mágica. Os escuros troncos de carvalho pareciam velhos druidas, estóicos e fortes, ao frio; os graciosos e esbeltos vidoeiros pareciam espíritos da floresta, sonhando com as belas capas verde-prateadas que a Primavera lhes daria para tapar a sua nudez. Ao longe, o lago brilhava como um espelho de prata polida, mostrando à Lua a sua imagem encantadora, remota e sábia.

Estava um frio de rachar. Os pés do jovem começavam a ficar dormentes. Provavelmente, estavam a ficar azuis. Bridei olhou para eles e lá estava o que o levara até ali. Num dos degraus, bem ao lado de um dos seus pés descalços, estava um pequeno cesto parecido com o que Mara utilizava para ir buscar lenha. Porém, aquele não era feito de vime de salgueiro. Aquele era feito de toda a espécie de coisas: de penas, de ervas, de frágeis esqueletos de folhas, de pequenos ramos com bagas vermelhas, de casca, de picancilho e de flores que não deviam existir no meio do Inverno. O cesto estava forrado com penugem de cisne e tinha duas asas feitas de junco entrançado, com pedras furadas entrelaçadas. Aquele cesto não era de fabricação humana e a silhueta que estava no seu interior era... muito pequena. Extremamente pequena e, provavelmente, devia estar cheia de frio. Bridei ajoelhou-se, mal se atrevendo a respirar enquanto a Lua iluminava aquele presente, como que mostrando-lhe o que acabava de lhe dar. A silhueta minúscula parecia estar a dormir, tinha uma espécie de gorro forrado de pele branca na cabeça e estava tapado até ao queixo com um cobertor de muitas cores. O seu rosto era branco como a lua, tão pálido como a pele de uma lebre de Inverno. Os bebês não deviam ser encarniçados e feios? Aquele tinha delicadas pestanas escuras, uma boca cor-de-rosa e um olhar solene. Bridei ficou a olhar para ele, fascinado. Um irmão. Um pequeno irmão. Nunca mais estaria sozinho. Com o coração a bater, o jovem levantou-se e olhou para o disco prateado no céu. As suas mãos moveram-se em sinal de reconhecimento e reverência; era evidente que estaria em dívida com ela para sempre.

— Obrigado — murmurou ele, fazendo uma vênia como o seu pai adotivo lhe ensinara. — Eu olho por ele, prometo. Juro pela minha vida.

Bridei estendeu um braço para pegar no cesto e parou. O bebê estava acordado. Os seus olhos, olhando para ele muito sérios, brilhavam como a lua, eram incolores, mas tinham todas as cores. Eram olhos de sonho, profundos como um poço, sem fim, como uma história mágica. Talvez fossem azuis, mas como nenhum outro azul do mundo. A pequena personagem mexeu-se e uma mão, do tamanho de uma bolota, saiu do cobertor e estendeu-se para algo invisível.

— Olá — disse Bridei, debruçando-se para meter de novo o braço da criatura debaixo do cobertor porque, se ele próprio estava a tremer de frio, não estaria o miúdo a sentir o mesmo? A mão minúscula agarrou-se ao seu dedo, com força.

O coração de Bridei estava a comportar-se de modo estranho, como se quisesse saltar-lhe do peito.

— Prometo que ficarás aqui em segurança.

Só depois de levar o cesto e o seu ocupante para dentro de casa e de fechar a porta é que Bridei se lembrou que tinha de agir rapidamente. Aquela casa era um lugar de ordem e disciplina, um lugar onde tudo estava sintonizado com a vida de Broichan e com a sua personalidade. Nenhum dos que vivia ali, Mara, Ferat, Donal ou os outros, falava de uma provável família. Nem sequer Fidich, que vivia na sua própria casa tinha mulher, ou filhos para aprenderem as lides do campo. A casa de Broichan não era lugar para crianças. Aquele recém-nascido não seria recebido de braços abertos. Na verdade, seria, muito provavelmente, mal recebido porque não havia dúvida que o presente fora-lhe dado por eles, pelos Boa Gente. A Lua guiara-os até à porta de Bridei. Enquanto uma criança enjeitada seria aquecida, alimentada e entregue a um casal qualquer sem filhos de uma das aldeias dos arredores, um filho da floresta não teria a mesma sorte. Bridei sabia o que as pessoas diziam; um tal presente era considerado uma maldição, não uma bênção.

Ainda bem que já tinha alguma instrução druídica. O cesto estava no chão da cozinha, oval, escuro. O rosto da criança era um círculo branco, translúcido, como se transportasse alguma da luz do Luar. Os olhos estavam abertos e seguiam Bridei enquanto o jovem percorria a divisão, à procura. Uma chave, precisava de uma chave para fazer um talismã que, supostamente, manteria a criança a salvo, em casa. Se fizesse com que não o roubassem, não faria também com que os da casa quisessem ficar com ele? O jovem rezou para que assim fosse. Tinha de haver uma chave algures. Tinha de se despachar; se o bebê começasse a chorar e alguém acordasse, voltaria a pôr o cesto na rua e o seu pequeno irmão morreria gelado, como ia acontecendo com Uven. Depressa, tinha de parar de andar de um lado para o outro e usar a cabeça, como diria Broichan... Bridei imobilizou-se e concentrou-se. Uma chave, vira uma chave pequena, com um palhetão retorcido na ponta... Sim, a caixa dos temperos, o precioso cofre de teixo de Ferat tinha uma chave e o jovem sabia onde a cozinheira a escondia — mesmo por trás do jarro do óleo. Bridei tirou-a do gancho e, movendo-se silenciosamente com os pés descalços, colocou-a no interior do cesto, entre o cobertor e a penugem. A chave ficou no fundo escondida, secreta. Ninguém mandaria o bebê embora.

O que Bridei mais queria era esconder o precioso presente no seu quarto, onde ninguém o veria. O jovem não conseguia deixar de olhar para as feições minúsculas e perfeitas, para os olhos estranhos ao mesmo tempo inocentes e inteligentes, os pequenos dedos, delicados como pétalas. Porém, o seu quarto era muito frio. Além do mais, Bridei sabia que os recém-nascidos, tal como os cordeiros, precisavam de muitos cuidados. Tinham que ter sempre leite quente. Como é que se arranjavam no Inverno? Devia haver muitas outras coisas que ele desconhecia. O jovem levou o cesto para o salão e pousou-o no chão perto dos cães adormecidos. Um dos animais rosnou suavemente e Bridei mandou-o calar.

Bridei estendeu as mãos para o cesto com cuidado, como se fosse pegar em ovos, e tirou o bebê, quente e que não pesava mais do que um coelho. A criança tinha uma espécie de capa forrada com pele e por baixo um vestido de lã tão bem tecido, tão delicado, que devia ser teia de aranha, ou de lanugem de cardo. A parte de baixo do bebê estava envolta num volumoso e prático pano de lã. Apesar de estar molhado, Bridei não sabia o que havia de fazer visto que não tinha um substituto. Assim, o jovem pegou no bebê ao colo, embalou-o um pouco e os dois olhos límpidos e estranhos fixaram-no, como se estivessem a decidir o que pensar dele. Do gorro tinha-se escapado um caracol, negro como o carvão, que lhe caía sobre uma das sobrancelhas.

— Fica descansado — disse Bridei em voz baixa. — Eu não te abandono, conto-te uma história todas as noites e mantenho-te a salvo dos Urisk, prometo.

Talvez os Boa Gente tivessem enchido a barriga do bebê de leite antes de o deixarem à disposição da Lua. De qualquer modo, só quando o sol de Inverno, com a sua luz fraca, começou a iluminar o soalho do quarto através das frinchas da porta é que ficou com fome e começou a chorar, acordando instantaneamente a casa. Os cães começaram a ladrar, os homens grunhiram e espreguiçaram-se e Mara, com uma mão na cabeça, levantou-se lentamente e deu dois passos em direção ao local onde Bridei acordara em sobressalto com o bebê a chorar nos braços, junto da lareira. Os olhos perspicazes de Mara olharam para o pequeno e estranho cesto, para a penugem de cisne, para o pequeno vestido forrado a pele. Em seguida, fixaram o recém-nascido, que já parecia um bebê como qualquer outro, esfomeado, mas com uns olhos notáveis, pálidos, límpidos, as mãos delicadas e o caracol por cima das sobrancelhas. Então, Mara olhou para Bridei. O jovem apertou o bebê contra o peito. Era melhor que não tentassem tirar-lhe o irmão mais novo.

Mara fez um movimento antigo com os dedos, repelindo o demónio Atrás de si, os homens fizeram o mesmo.

— Corvo Negro, salva-nos — disse ela, acocorando-se. — Que andaste a fazer, Bridei? Dá-me cá isso.

Bridei agarrou-se ao bebê com força.

— Não percebes? Usa a cabeça, rapaz. Não vês o que isso é? Pensa no que o teu pai adotivo diria. Dá-mo, depressa. Quanto mais tempo ficar dentro destas quatro paredes, pior será para todos nós. Com Broichan quase a morrer e longe de casa, só nos faltava mais isto.

Elpin estendeu os braços para pegar na criança. A sua expressão era a de uma pessoa forçada a tocar em algo repulsivo, ou perigoso; como uma víbora, por exemplo.

Bridei afastou-se.

— Ele só quer leite — disse ele por cima do barulho. Quem diria que uma coisa daquele tamanho era capaz de tanta algazarra? O jovem sentia os gritos vibrantes através do frágil corpo da criança. — Shhh, shhh, pronto, já passou — murmurou Bridei.

— Leite, ha? — disse Mara. — Onde é que achas que vamos arranjar leite a meio do Inverno, com as vacas e as ovelhas só pele e osso? — perguntou ela com as mãos nas ancas, sólida como um cão de guarda ao ver aproximar-se um intruso.

— É melhor pô-lo onde estava e já — disse Elpin. — Dizem que, se fizermos isso, os... os Outros vêm e levam-no outra vez. Se não ficarmos com ele muito tempo, claro.

— Está muito frio lá fora — disse Uven com ar duvidoso. — O bebê é muito pequeno.

— Que se passa aqui? — Ferat tinha sido acordado pelo barulho e aparecera com os cabelos desgrenhados e com o olhar de um homem que está cheio de dores de cabeça. — De onde é que isso veio, rapaz? Deixa-me ver... pronto... — Com um gesto hábil, o cozinheiro tirou a criança dos braços de Bridei e aproximou-se da lareira do salão para o poder examinar melhor. O homem parecia saber o que estava a fazer; após um escrutínio às feições vermelhas e enrugadas, o cozinheiro pôs o bebê de encontro a um dos seus ombros, deu-lhe umas pequenas pancadas na base das costas e, miraculosamente, o choro parou, transformando-se numa série de soluços queixosos.

— Está cheio de fome — disse Ferat. — E cheira mal que se farta. Mara, arranja uns panos lavados, sim? Rapaz, vai avivar a lareira da cozinha, precisamos de água quente.

Os outros, mudos, olhavam para ele. Não estavam a reconhecê-lo.

— Vamos embora, toca a andar — ordenou Ferat, já com a sua voz habitual. — O bebê está cheio de fome! Que diria Broichan se soubesse que a superstição e a imaginação nos fizeram tratar um bebê pior do que um cordeiro? Que vergonha!

— Isso é muito bonito — disse Mara — mas como é que o vamos alimentar? Além disso, não sei se Broichan concordaria. Não está certo, não acredito que estejas a pensar... ?

Bridei tossiu para aclarar a voz.

— Fui eu que o encontrei. Se o meu pai adotivo ficar zangado, eu assumo a responsabilidade, mas não podem pôr outra vez o bebê lá fora à neve. Ele morre.

— A mim parece-me mais uma garota, não parece nada um rapaz — disse Ferat, sempre a dar pancadinhas no traseiro do bebê. — Apesar de nascerem todos muito feiinhos, Mara é capaz de ter razão. Vejam como ela é pálida, agora que deixou de berrar? Pestanas compridas como as de uma vitela e uma boca que parece um botão de rosa. Parece saída de uma história; acho que é um belo presente. Mara dir-vos-á se é uma rapariga quando lhe mudar os cueiros.

— Eu? — retorquiu Mara, irada, mas colocou o bebê em cima da mesa e tirou-lhe os panos sujos. Ferat tinha razão, era uma rapariga. Bridei ficou sem saber o que pensar.

Lavada e com cueiros limpos, que Mara lhe arranjara, a criança ficou nos braços da governanta enquanto Ferat fazia o que podia com água quente e mel. Pouco tempo depois, a minúscula rapariga mamava a mistura num pano enrolado mergulhado previamente numa tigela e começava a acalmar-se. Uven e Elpin observavam; nenhum deles parecia ter que fazer. Ferat, na cozinha, chamara os seus ajudantes e tratava do pequeno-almoço enquanto falava.

— Isso não a vai manter calada durante muito tempo — disse ele por cima do barulho dos tachos e das panelas. — Cinioch não disse que tinha uma prima que tinha acabado de perder um bebê, sabes quem é, aquela que foi para Ilha Negra para se casar e cujo marido morreu ainda ela estava prenha. Ela está na aldeia na margem do lago, foi para casa da irmã para parir. O bebê não medrou; enterraram-no um dia ou dois depois. Não me lembro do nome da rapariga.

— Brenna — disse Uven. — Uma coisinha muito tímida. Triste história.

— É verdade — disse Mara — muito triste, mas útil no fim de contas. Quer dizer, se ficarmos com esta. — A governanta franziu o sobrolho na direção do bebê mais uma vez no colo de Bridei, ao mesmo tempo que lhe espremia mais umas gotas de água com mel para dentro da pequena boca. Os olhos da criança olharam para ela, muito claros.

— Uven! — gritou Ferat. — Onde está Cinioch?

— De guarda.

— Está bem. Come qualquer coisa, então, e vai ter com ele. Diz-lhe que venha falar comigo assim que puder. Precisamos de uma ama; quanto mais tarde, pior. Pode ser que Brenna seja o que precisamos.

— Só se for maluca — resmungou Mara. — Amamentar um desses?

Bridei, porém, sentiu que as palavras da governanta não eram totalmente sentidas porque, senão, por que se daria ao trabalho de alimentar o bebê e de acenar encorajadoramente com a cabeça cada vez que a criança engolia? O pequeno cesto permanecia vazio junto da lareira com a chave bem escondida no interior. Era verdade o que Broichan lhe dissera. Por vezes, a magia caseira era a mais forte de todas.

O dia pareceu muito longo. Cinioch tomou o pequeno-almoço à pressa e partiu para o lago. A princípio, o bebê manteve-se tranquilo, mas mais tarde desatou a chorar, de tal maneira que acabou por perder as forças. Não havia meio de a criança beber a água com mel. Bridei pegou nela e, por sua vez, deu-lhe umas palmadas na base das costas. À medida que o dia ia avançando, o bebê ia ficando mais pesado. Os seus soluços angustiavam o jovem.

Ao princípio da noite, Cinioch regressou com uma jovem pálida, embrulhada em xales por causa do frio, o nariz e os olhos vermelhos, as feições engelhadas e a tremer apesar da quantidade de roupa. Porém, assim que viu a criança nos braços de Ferat, tirou a capa, o xale, deu três passos, pegou no bebê e levou-o ao peito.

— Pobrezinha — murmurou ela, e o bebê respondeu com um soluço débil. — Vou levá-la para um canto sossegado, se mo mostrarem — acrescentou a jovem. — Esta coisinha está esfomeada, mas nós vamos já tratar do assunto. Enquanto as mulheres iam para junto da lareira do salão, Bridei ficava na cozinha e momentos depois a voz do bebê deixava de se ouvir, substituída por sons de sucção, desesperados. Finalmente, o silêncio. O jovem deixou sair um grande suspiro; Ferat, mexendo a sopa, acenava com a cabeça, satisfeito.

— É melhor acrescentarmos um pedaço de carneiro ao espeto — disse o cozinheiro. — As mulheres, quando estão a amamentar, comem como cavalos. O teu pequerrucho vai ficar bom, rapaz, vais ver.


No bosque, em frente da casa de Broichan, enquanto o dia morria, duas silhuetas conversavam.

— Pronto — disse a primeira. — Ele levou-a para dentro, ninguém a veio pôr cá fora outra vez e o choro parou. A miúda tem cá uns pulmões!

— Ganhei a aposta — disse a outra. — Eu disse-te que eles ficavam com ela.

— Obra de Bridei, sem dúvida. Aquela criança é esperta para a idade, para um humano. Um feitiçozito qualquer que o druida lhe ensinou, sem dúvida... Se não, não teriam ficado com ela. Devem ter percebido logo ao primeiro olhar que a miúda era dos nossos.

O outro olhou para ele de soslaio.

— E não é. Mas pronto, passámos a nossa responsabilidade para A Que Brilha. Acabou-se.

O primeiro deu uma risada cristalina.

— Não me parece. Isto ainda agora começou. Aqueles dois têm um longo caminho pela frente, longo e difícil, e nós vamos estar sempre por perto. Todos nós queremos o mesmo fim para isto, até o druida. É claro que o método utilizado vai deixá-lo surpreendido.

— Vamos para casa. A noite foi longa. Estou farto destes humanos. São tão tolos, tão lentos de compreensão.

— A noite mais longa — disse solenemente o primeiro. — Noite de lua cheia, noite de mudança, o começo de uma grande jornada.

— A jornada de Bridei.

— Dele, dela e de todos nós. Caminhamos para uma nova era, nem mais nem menos. No entanto, os pés que percorrem o caminho são pequenos. Esperemos que não vacilem. Esperemos que não falhem.


A magia parecia estar a aguentar-se. Brenna instalou-se, comportando-se como se pertencesse à casa há muito tempo. A jovem tinha um feitio calmo e um olhar triste, o que não era de admirar numa viúva de apenas dezenove anos que tinha perdido o seu primeiro filho à nascença. Mara recusou-se a partilhar o seu quarto com ela, declarando que não tencionava acordar sempre que a criança chorasse para mamar. Assim, Ferat mandou os seus assistentes limparem um pequeno armazém e Brenna instalou-se com os seus poucos pertences com carente gratidão. Durante a noite, o bebê dormia a seu lado, não na sua estranha cama feita com magia da floresta, mas num berço de carvalho com ramos e folhas esculpidos na cabeceira e nos pés. O fazendeiro Fidich, surpreendera todos aparecendo uma manhã com ele, dizendo, timidamente, que era a sua contribuição para o bem-estar da enjeitada. Mara murmurara algo acerca de queimar o velho para que a sua influência desaparecesse por completo antes que Broichan regressasse. Bridei tratou de o levar para o seu quarto numa ocasião em que a governanta estava ocupada com qualquer coisa e agora jazia no interior da sua arca, sempre com o seu talismã-chave.

Ferat não ficou nada contente quando, um dia, precisou de condimentos e não conseguiu abrir o seu pequeno cofre. O cozinheiro deitou as culpas para os seus ajudantes, amaldiçoando-os enquanto tentava abrir a caixa com uma faca, arranhando a madeira. Quando viu que o conteúdo estava intacto, acalmou-se miraculosamente. Como cozinheiro, Ferat considerava aquela colecção de noz-moscada, canela, cardamomo e pimenta infinitamente mais preciosa do que a caixa polida que a albergava e reconheceu de má vontade que o desaparecimento da chave teria sido acidental; quem se daria ao trabalho de a roubar e deixar a caixa? O cozinheiro parecia outro homem desde a chegada do bebê.

— Ela precisa de um nome — dissera Bridei no segundo dia, enquanto comiam no conforto do salão aquecido. Brenna devorava um generoso pedaço de carneiro com bolinhos de massa que Ferat lhe servira, ao mesmo tempo que embalava o bebê num braço. Este estava acordado, as suas pequenas feições estavam calmas e os seus olhos límpidos observavam a ama por trás das generosas pestanas pretas. Apesar de estar a ser bem alimentada, as suas faces continuavam tão pálidas como no primeiro dia; a sua compleição era branca como o leite. A pequenina chorava muito pouco, o que não era de surpreender visto que as suas principais necessidades se limitavam à comida e Brenna tinha a situação controlada. De fato, agora que estava a obter todo o leite de que necessitava, não parecia precisar mais do seu irmão mais velho. Bridei sabia que não devia ter ciúmes. O jovem sentou-se no banco ao lado de Brenna; de vez em quando, olhava para o bebê, o bebê olhava para ele, Bridei sabia que a pequenina o reconhecia e que compreendia a promessa que lhe fizera à luz do luar. Talvez não precisasse dele naquele momento, mas quando precisasse, ele estaria presente.

— Devíamos dar-lhe um nome — repetiu ele, com ele já no pensamento, um nome adequado à sua palidez, aos seus cabelos escuros como o carvão e aos seus olhos muito especiais.

— Ah — disse Mara — agora queres um nome? Ficas a saber uma coisa. A esta espécie de crianças não se dá o nome da mãe, ou da avó.

— Por que não? — perguntou Bridei.

— Porque não é um dos nossos — disse Mara. — Provavelmente, nem devemos ser nós a dar-lhe um nome. Se calhar já tem um, esquisito, como a gente que o deixou aqui. Que Corvo Negro nos proteja! — acrescentou ela, fazendo um sinal com os dedos.

Brenna falava pouco, quase só para dizer por favor e para agradecer. A sua voz era suave, quase apologética.

— Que nome gostarias de lhe dar, Bridei? — perguntou ela ao jovem.

Bridei tocou com um dedo no queixo frágil do bebê; a pequena estendeu as mãos pequeninas e a sua boca distendeu-se no que poderia parecer um sorriso.

— Tuala — disse ele firmemente — um nome antigo, de uma história. Significa princesa do povo. Broichan há de gostar.

— Mas não há de gostar de ouvir crianças a chorar pela casa, ainda por cima doente — disse Mara secamente. — Princesa, ha? Pobrezinha, não há de ser grande princesa se ficar aqui conosco. Só se for princesa da pocilga.

— É um nome bonito — murmurou Brenna.

— Sim — disse Uven. — Fica-lhe bem. Pára com isso, Mara. Estás tão embeiçada pela criança como nós.

Assim, a enjeitada recebeu um nome, a casa de Broichan ficou com mais duas residentes e Bridei, lembrando-se de que o seu pai adotivo estivera perto da morte, aplicou-se ainda mais nos estudos num esforço para que Broichan não ficasse desapontado, mesmo que não ficasse contente com as duas residentes extras. Era difícil treinar as artes de combate sem Donal; assim, o jovem ajudava Finich nas lides do campo. De tarde, aperfeiçoava a arte de contar histórias, ocasião em que a pequenina tinha tendência para estar acordada e Brenna, que ainda se cansava com facilidade após o seu recente parto e a morte do bebê, deixava de boa vontade Tuala com Bridei e retirava-se para o seu minúsculo quarto para descansar.

O jovem já sabia muitas histórias porque as histórias estavam na base da sabedoria druídica com as suas interpretações, os seus símbolos, os seus códigos. Sempre que contava uma, o seu significado parecia diferente. Bridei não contava a Tuala histórias de batalhas, de sangue, de monstros, fantasmas, mortes ou desgostos antigos, contava-lhe histórias engraçadas, tolas, fermentadas com episódios de feitos heróicos e sonhos tornados realidade. Quando não se recordava de alguma coisa, inventava. Tuala era uma ouvinte excelente. A pequenina estava cada vez mais calma e ouvia-o com atenção. Os seus olhos brilhantes seguiam o movimento das suas mãos quando ele ilustrava um acontecimento dramático; a sua vozinha contribuía com um gorjeio aqui, um guincho ali. Algumas histórias, no entanto, punham-na a dormir. Quando assim acontecia, Bridei transformava a história numa canção e cantava-a em voz baixa, ao mesmo tempo que balançava o berço. O jovem não sabia onde as aprendera, apenas que não fora Broichan que lhe ensinara.

Hee-o, wee-o

fiandeira vem, fiandeira vai.

Tece uma teia fina e delgada

Para envolver a minha princesa

Hee-o, wee-o

Penas do corvo mais negro

Penas do cisne mais branco

Agasalhai o meu querido bebê

Hee-o, wee-o

folhas do sabugueiro, do vidoeiro e do teixo

Fazei uma grinalda

Para coroar os cabelos da minha amada.

Ao adormecer, Tuala parecia sorrir.


O druida chegou num dia claro. O vento frio, soprando de nordeste, empurrava as aves na sua frente. Os viajantes tinham-no nas costas ao passarem pelo caminho que rodeava o lago escuro, que serpenteava pelo meio dos carvalhos e que ia dar à casa de Broichan. Bridei sentia um nó no estômago devido ao nervosismo. Havia muito que esperava aquele dia; na verdade, fizera uma marca, todas as noites, na parede de pedra do seu quarto, até ao dia em que Broichan e Donal, supostamente, estariam de regresso. Porém, naquele momento, a sua ansiedade misturava-se com o medo. E se o seu pai adotivo lançasse um simples olhar ao bebê e decretasse a sua partida? Ninguém se atrevia, nunca a desobedecer a Broichan. As pessoas da casa não tinham exatamente medo dele. Simplesmente, o druida era poderoso e sábio, tinha sempre razão.

Naquele dia, no entanto, Broichan não parecia nada poderoso. O druida caminhava pelo carreiro acima pesadamente apoiado no seu bordão, com Donal de um lado e um tipo chamado Enfret do outro. O druida parecia ter encolhido, parecia menos alto e menos largo do que Bridei se lembrava e estava pálido, quase tão pálido como Tuala, cuja pele tinha a cor da lua. Porém, uma coisa não mudara: os olhos escuros de Broichan chamejavam, ferozmente inteligentes.

— Bem-vindo a casa, meu senhor — disse Mara, quando os viajantes chegaram à porta principal. A mulher sorria, o que era raro.

— Bem-vindo, meu senhor — repetiu Ferat por trás dela. — É bom ver-vos a pé. Donal, Enfret — disse o cozinheiro, acenando com a cabeça para os dois homens. Mais abaixo, no carreiro, os outros homens de armas caminhavam ao lado de um cavalo bem carregado.

— Deveis querer uma boa caneca de cerveja e uma bucha, sem dúvida — acrescentou ele. — O dia está frio.

O leve toque de nervosismo no tom de Ferat não se comparava com a boca seca, a paralisia e a ansiedade de Bridei, de pé ao lado de Mara. Naquele momento, Tuala estava no quarto de Brenna a mamar. O jovem rezou para que a pequenina não emitisse qualquer som; pelo menos enquanto o seu pai adotivo tivesse aquele aspecto severo e cansado, pelo menos enquanto não conseguisse pensar no que havia de dizer.

— Bridei! — saudou Donal com um largo sorriso, avançando para dar uma grande palmada no ombro do seu jovem amigo. Bridei devolveu-lhe o sorriso, sentindo a sua angústia a abrandar um pouco; tinha ali o seu aliado, finalmente. — Cresceste, rapaz. Vede como ele está grande e forte, meu senhor!

Broichan olhou para o jovem com os seus olhos escuros, o rosto pálido e os longos cabelos grisalhos. As suas feições tinham mais rugas do que nunca e continuavam de tal modo a ser comandadas pela disciplina que era impossível adivinhar o que lhe ia na mente.

— Bridei — disse ele, muito sério. — Sinto-me feliz por estares bem. Tenho a certeza que prestaste atenção aos teus estudos.

— Sim, meu senhor. — Depois da chegada de Tuala, Bridei decidira comportar-se como os adultos, fazer parte de uma casa concentrada nas necessidades e exigências de um ser minúsculo. Naquele momento, abruptamente, voltava a ser uma criança. — Fiz o possível.

— Não esperava menos. Agora vou para os meus alojamentos por um bocado. Donal, ajuda-me, sim? Não, não preciso de nada — disse ele com um gesto levemente irritado, pouco habitual, na direção de Ferat e de Mara — Talvez água. Os homens, porém, agradecerão o que lhes derdes; foi uma longa viagem. O perímetro continua a ser guardado? Quantos homens estão no muro norte?

Já estavam no interior da casa e Broichan continuava a fazer perguntas enquanto caminhava na direção dos seus alojamentos, sempre apoiado no braço de Donal.

— Eu vou verificar tudo, meu senhor — disse Donal calmamente. — Vinde, agora estais em casa, podeis descansar. Deixai esses assuntos conosco.

— Descansar, descansar — murmurou amargamente o druida. — Há duas luas que não faço outra coisa. Não me posso dar a esse luxo. Os dias passam e não consigo pensar. Tempo, é tudo o que peço, tempo suficiente... malditos intrometidos.


Como todos os bebês, Tuala dava a conhecer a sua presença quando tinha necessidade. A voz infantil explodiu subitamente num protesto que a voz suave de Brenna tentou acalmar imediatamente. Pouco depois, Broichan apareceu no salão com umas manchas violetas sob os olhos, os nós dos dedos brancos agarrando com força no bordão e parou diante de todos sem dizer nada. Do pequeno quarto onde estavam a pequenina e a ama não vinha agora qualquer som. À mesa, Donal e os homens que o tinham acompanhado estavam, também eles, espantados. Bridei estivera a contar-lhes as novidades com Ferat e Mara a assistirem, ambos decididos a deixarem o jovem arcar com a tempestade.

Parecia que Broichan não ia fazer a pergunta e, assim, Donal fê-la pelo druida.

— Digam-me que não estou a ouvir a voz de uma criança — disse ele. — Tens um segredo que não nos queres contar, Mara? — Como piada, não tinha graça nenhuma. Ninguém, sequer, sorriu.

Mara olhava para Bridei, assim como Ferat. O silêncio instalou-se. Um momento mais tarde, Brenna, com a criança nos braços, corada e com os cabelos em desordem porque também estivera a dormir, apareceu na soleira da porta e estacou, olhando para onde o druida estava, alto e severo.

Bridei pôs-se de pé.

— Meu senhor — disse ele com a coragem que conseguiu reunir — esta é Brenna. E o bebê é a Tuala. Eu ia contar-vos...

— Traz aqui a criança.

O tom de voz de Broichan era tal que Brenna, corando ainda mais, avançou sem hesitar e estendeu a criança para que o druida a examinasse. Os olhos escuros deste semicerraram-se. Das dobras do xale saiu a pequena mão de Tuala, qual flor, numa espécie de saudação e a pequenina emitiu um gorjeio que podia significar qualquer coisa. A boca de Broichan cerrou-se. O druida escrutinou o bebê de perto sem lhe tocar.

— Muito bem, Bridei — disse ele finalmente com voz neutra. — Ouvirei as tuas explicações em privado. Vamos — disse ele, virando-se e afastando-se. Bridei apressou-se a segui-lo. Nas suas costas, ninguém disse uma palavra.

Os aposentos de Broichan não eram o domínio confortável de um rico proprietário de terras, se bem que o druida fosse, de fato, um homem de recursos. O quarto era uma divisão que estava de acordo com o que ele era na verdade: um estudioso, um místico, um filósofo. A sua disciplina, a sua clareza de espírito, a sua paixão pelo saber, estavam patentes naquele espaço ordenado, naquele santuário privado. A única pessoa que ali entrava quando Broichan estava ausente era Mara. As prateleiras de pedra tinham filas de jarros, de garrafas, de cadinhos e de frascos cada um no seu devido lugar, cada um brilhando à luz das velas e das chamas da pequena lareira — uma concessão à sua doença porque o druida estava habituado ao frio. Broichan tentava permanentemente controlar o corpo com a mente. A enxerga tinha cobertores de lã e roupa branca lavada, mas era estreita e dura: Bridei sabia que os pequenos confortos existentes naquele espaço tranquilo se deviam mais a Mara do que ao próprio Broichan. Havia uma mesa de carvalho e dois bancos. Os pergaminhos estavam armazenados numa armação e o material de escrita, as penas de ganso e os frascos de tinta estavam numa prateleira à parte. Junto da pequena janela estava pendurada uma trança de alhos. Aqui e ali viam-se ervas secas penduradas, exalando uma fragrância doce e umas bagas secas numa tigela indicavam que Broichan já tinha tentado começar a trabalhar. Mara talvez conseguisse fazer com que ele descansasse, mas não seria fácil. A capa do druida estava devidamente pendurada num prego; as botas estavam junto da lareira. O quarto estava impecável; não se via um grão de poeira.

Broichan fechou a porta depois de Bridei entrar e colocou-se junto da mesa, onde apoiou as mãos. Bridei enfrentou o seu pai adotivo absolutamente imóvel, uma coisa em que era bom, mesmo quando o coração ameaçava saltar-lhe do peito, como naquele momento. O jovem abriu as mãos, tentando descontrair-se e fez o mesmo com as feições.

— Deixa-me que te diga o que estou a ver. — A doença não mudara a voz do druida, que soou profunda e poderosa, como um sino. — Estou a ver uma criança que não tem nada que estar no interior das quatro paredes de uma habitação humana; uma criança cujos olhos visionários emitem perigo a cada piscadela. Vejo a gente robusta desta casa a olhar para esta criança com expressões de carinhosa indulgência. E vejo uma jovem que está aqui sem o meu convite.

— Eu...

Broichan ergueu ligeiramente uma das mãos e as palavras de Bridei morreram-lhe na boca.

— Ainda não acabei — disse o druida calmamente. — Vejo mais uma coisa: vejo o meu filho adotivo, um rapaz que prometeu portar-se bem durante a minha ausência, que prometeu fazer o que eu lhe pedi. — Os seus olhos, escuros como a meia-noite, fixaram-se em Bridei. Era cada vez mais difícil manter a imobilidade. Parecia que Broichan já tinha decidido. Tuala sairia daquela casa ao anoitecer, morreria de frio e de fome na floresta, choraria, choraria, mas ninguém iria em seu socorro. Não. Bridei cerrou os punhos com tanta força que as unhas se lhe cravaram nas palmas das mãos. Concentra-te. Lembra-te. Estamos sempre a aprender. O jovem manteve-se imóvel, respirou profundamente como lhe tinham ensinado, enfrentou o olhar do druida e, subitamente, apercebeu-se de que aquele interrogatório não era a propósito de Tuala e dos Boa Gente, era a propósito da sua pessoa, mas não o que fizera, antes por que razão o fizera. Tudo o que tinha a fazer era fornecer a explicação correta, que se condisesse com o modo como Broichan via o mundo. Podia fazê-lo, tinha apenas de manter-se calmo como o próprio Broichan e falar, falar, não como uma criança, antes como um druida.

— Meu senhor — começou ele — Tuala — o bebê — apareceu aqui à meia-noite do Solstício. A lua, a brilhar através da minha janela acordou-me. Saí da cama, abri a porta da rua e ela estava nos degraus.

O druida franziu o sobrolho.

— E onde estavam os outros membros da minha casa enquanto tu vagueavas durante a noite?

— Estavam a dormir, meu senhor. Foi depois do ritual.

— Estou a ver. Continua.

— Eu... eu senti que era uma dádiva, meu senhor. Uma dádiva para... — não para mim, quase disse o jovem — para todos nós. Um sinal de confiança. A Que Brilha quis que ficássemos com Tuala, que a salvássemos.

— Bridei — o tom de voz de Broichan era severo — não me digas que foste louco ao ponto de não reconheceres a criança. As crianças humanas não têm aqueles olhos, aquela pele, ou aquela expressão solene e inteligente. Ela não é nenhuma rapariga da aldeia; ela é um dos Boa Gente.

— Sim, meu senhor — disse Bridei, apercebendo-se de que era a primeira vez que alguém lhe dizia aquilo com tantas palavras. — Mas ela tinha frio. Se a deixasse lá fora, morria.

Seguiu-se uma pausa.

— Uma criança humana não teria sobrevivido, certamente — reconheceu Broichan.

— Sim, meu senhor — disse Bridei, fazendo um esforço para imitar o tom calmo e pausado do druida. — Eu sei que Tuala pertence aos Boa Gente. Eles trouxeram-na para aqui com um objetivo. A Que Brilha acordou-me para que eu a encontrasse. Foi de propósito. Era suposto ficarmos com ela. — Bridei não conseguiu evitar que a sua voz vacilasse um pouco. — Tuala é um bebê muito bom, meu senhor, quase nunca chora. E não tem para onde ir.

— Imagino que ela apareceu aqui dentro de alguma coisa? Num cesto?

— Sim, meu senhor.

— Onde está? — perguntou Broichan em voz monótona. Bridei sentiu os olhos a picar; o jovem cerrou os dentes.

— Responde-me. — A voz do druida parecia um dobre a finados.

— Está no meu quarto — respondeu Bridei num sussurro.

— Vá buscá-lo.

Bridei não olhou para os outros, não podia, enquanto se dirigia ao seu quarto e regressava com o pequeno berço debaixo do braço. Apesar disso, reparou neles, imóveis, como se fossem feitos de pedra, a olhar:

Donal com as suas feições muito sérias, estupefatas, Enfret e os outros homens de armas totalmente surpreendidos, Ferat ansioso, Mara carrancuda e a suave Brenna com o bebê nos braços: Tuala, que se tornara rapidamente no centro em redor do qual tudo girava. Era tão pequenina...

Com passos de chumbo, Bridei regressou ao quarto do seu pai adotivo. O jovem tinha dificuldade em controlar os pensamentos, de tal modo eles se atropelavam na sua mente. Tuala só tinha a ele, mais ninguém. Os outros só gostavam dela por causa do talismã e assim que Broichan o anulasse esquecê-la-iam. A sua gente queria-a tanto como a sua própria família — não tinha notícias dela desde que chegara àquela casa. Porém, tinha o seu pai adotivo, Donal e os outros. Tinha um lar. Tuala não tinha nada.

Bridei aproximou-se da porta. Podia pedir, claro; podia chorar e pedir como uma criança que era. Seria fácil chorar; o jovem sentia as lágrimas no canto do olho enquanto olhava para o cesto feito de folhas e de erva que tinha nas mãos, para as estranhas flores de Inverno sempre frescas, para as pedras entretecidas nas pegas. Quem seria capaz de derrotar a magia de um druida? A chave continuava escondida no fundo, a única hipótese de sobrevivência de Tuala. Bridei engoliu em seco. As lágrimas seriam pura perda de tempo; pedir seria sinal de fraqueza. Um druida escuta argumentos racionais, lógicos, comprovativos.

Broichan estava junto da pequena lareira. A sua expressão não traía fosse o que fosse.

— Põem-no em cima da mesa — disse o druida.

Bridei fez o que lhe ordenava. O cesto parecia muito pequeno; Tuala tinha crescido.

— Meu senhor, posso falar? — perguntou o jovem.

O silêncio de Broichan pareceu ser um indicativo de consentimento.

— Espero que não desfaça o feitiço — disse Bridei, esforçando-se por parecer confiante apesar de lhe tremer o lábio. — Eu sei que acha que fiz uma coisa errada e lamento se o irritei. Porém, não lamento ter trazido Tuala para dentro de casa e não lamento ter feito o feitiço para a manter a salvo. Tenho a certeza de que agi bem. Tenho a certeza absoluta.

Broichan suspirou. O druida estendeu um braço na direção do cesto minúsculo, percorrendo as suas linhas mas sem lhe tocar.

— Bridei — disse ele após alguns momentos — tu ainda és muito novo, apesar de falares como falas, não sabes nada sobre o mundo dos homens; não sabes nada das dificuldades por que passamos para evitar que a nossa terra caia no caos, das estratégias que têm mais a ver com os atos irreflectidos dos da nossa espécie do que com as maquinações dos Boa Gente. Para lá do Vale existe um reino, cujas franjas tu ainda nem sequer tocaste. A tua educação começou ainda agora rapaz. E é muito importante; tão importante que não podemos permitir que nada interfira com ela. Eu não me posso dar ao luxo de ficar doente; a minha casa não se pode dar ao luxo de perder tempo com uma criança, especialmente uma criança que transporta nos ombros tanta incerteza. Dar abrigo ao Outro é convidar o perigo, Bridei, é convidar o inesperado.

Bridei engoliu em seco.

— Um homem deve aprender a lidar com a surpresa, meu senhor — conseguiu ele dizer. — Pelo menos, é o que Donal diz. É importante, em combate.

Os lábios de Broichan retorceram-se.

— Os Boa Gente têm poderes muito mais perigosos do que um súbito joelho na garganta, ou um pontapé bem colocado no tornozelo — disse o druida. — Esta criança pode parecer muito doce e inofensiva. Porém, não sabes o que será quando crescer. A sua influência pode minar tudo aquilo por que eu luto... — Broichan calou-se, como se tivesse dito mais do que tencionava.

— Meu senhor — disse Bridei. — Eu trabalho até não poder mais, estudo tudo o que quer que eu estude, faço tudo o que quiser...

— Pára imediatamente. — Os olhos de Broichan brilhavam perigosamente. — Eu não faço acordos com crianças. Cuidado com as palavras que dizes porque podem ser um fardo terrível quando te esqueceres da sua solenidade. E se eu te disser que quero que queimes o cesto e que devolvas a chave ao seu proprietário? Que me prometes, então?

O rosto de Bridei corou, não de vergonha, mas de ira, uma ira involuntária misturada com qualquer coisa ainda pior, o sentimento de que irritara o seu pai adotivo. Para ele, a opinião do druida significava tudo, ou quase tudo.

— Eu cumpro a minha promessa — disse ele, sentindo, para seu horror uma lágrima a correr-lhe pela face. — Eu não sei o que quer eu seja: um druida, um guerreiro ou um estudioso, mas sei que tenho de estudar e estudarei tudo o que me mandar; mais ainda, se possível. Meu senhor... Eu quero que Tuala fique em Pitnochie. Por que não pode ela ficar? Foi A Que Brilha que a trouxe.

Seguiu-se um silêncio prolongado. Broichan virou-se para o fogo, a mão a descansar na parede ao lado da lareira. O quarto estava silencioso. O pequeno cesto continuava em cima da mesa. Uma ou duas das suas penas tinham caído em cima da superfície polida da madeira.

— Eu posso ensinar coisas a Tuala — disse Bridei. — Números, histórias, canções. Posso ensiná-la a andar a cavalo. Nos meus tempos livres, claro.

— Claro — disse Broichan, severamente. O druida continuava a olhar para o fogo. — Não gosto nada disto, Bridei. Não estava à espera desta recepção — disse ele, virando-se e sentando-se à mesa cuidadosamente, como se fosse um ancião. Bridei reparou na palidez do seu rosto, no modo como os seus punhos se cerravam, como se tivesse dores.

— Meu senhor?

— Sim, Bridei, o que é? Dá-me um pouco de água, sim?... Obrigado, rapaz.

— Não vai morrer, pois não? Eles não...?

Pelos lábios do druida passou o fantasma de um sorriso, que logo desapareceu.

— Todos nós morremos, Bridei, mas não, os meus inimigos não conseguiram. Eu também fiz uma promessa, uma promessa que exige de mim mais quinze anos neste mundo, talvez vinte, e tenciono tirar o melhor partido possível deles. Não me posso distrair. Não me posso desviar do meu caminho e arranjar problemas de que não necessito, assim como não espero que os que partilham a minha casa comigo o façam.

— Eu só fiz o que a Lua me pediu — disse Bridei. — Deixei entrar um Pedacinho de floresta. Não se lembra? Um dia, disse que tudo está ligado. O Vale, as criaturas, as coisas que crescem! Se magoamos uma delas, as restantes enfraquecem. Salvar Tuala foi uma coisa boa, boa para todos nós.

— Estou a ver que te ensinei bem — murmurou Broichan. — Portanto, criamo-la, como uma raposa órfã, e depois soltamo-la?

— Não, meu senhor. Criamo-la e deixamos a porta aberta.

Broichan bebeu um pouco da água que Bridei lhe dera. As suas sobrancelhas estavam franzidas e havia rugas profundas que lhe iam do nariz aos cantos da boca cerrada. Inesperadamente, os lábios esticaram-se e o druida deu uma risada.

— Se eu quisesse que fosses um místico, Bridei, ter-te-ia mandado para a floresta, onde aprenderias muito mais — disse o druida. — Apesar disso, tu já falas como um druida.

Bridei esperou. O seu coração continuava a bater com força, mas num dos seus cantos a esperança começava a tremeluzir.

— Dá-me a chave — disse abruptamente Broichan.

Não era possível prever o que o druida ia fazer. Com o coração a bater novamente com toda a força, Bridei avançou, meteu a mão no pequeno cesto, tirou a chave e colocou-a na palma estendida de Broichan.

— Agora, pega no cesto.

Bridei pegou no cesto e colocou-se ao lado da lareira como se tivesse nos braços a própria Tuala. O jovem sentia as lágrimas muito próximas, prontas a sair, inundando-lhe as faces e demonstrando que não passava de uma criança, incapaz de evitar os atos dos poderosos, mesmo quando eram terrivelmente errados.

— Um homem não chora, Bridei — comentou Broichan, como se fosse capaz de ler os pensamentos de Bridei. A chave continuava na sua mão aberta. — Pelo menos sem uma boa razão.

— Não, meu senhor — murmurou Bridei. O jovem sabia o que ia acontecer: não contente em queimar o berço de Tuala, a sua herança, a única ligação com a sua gente, Broichan ia obrigá-lo, a ele, a fazê-lo, como castigo pelo que fizera.

— Doem-me os ossos — disse Broichan. — Sobe para o banco, rapaz. Põe o berço na prateleira de cima, a seguir às caveiras dos ratos. Cuidado. Mara já vai ter muito trabalho comigo, não precisa de tratar ainda por cima dos teus ossos partidos. Pronto. Desce.

Bridei obedeceu. Pelo menos, não seria queimado. Porém, a questão da chave mantinha-se. Os olhos do rapaz viram os longos dedos de Broichan fecharem-se sobre o pequeno objeto de ferro e meterem-no na bolsa que tinha no cinto.

— Muito bem — disse Broichan. — Isto fica comigo a partir de hoje, o que significa que a responsabilidade é minha, assim como as decisões. Se no futuro achar que a devo mandar embora, fá-lo-ei Bridei, e não quero discussões. Não vivi estes anos todos e aprendi o que aprendi sem conseguir antecipar de certo modo o futuro e tomar as devidas decisões. A intuição diz-me que a criança representa uma ameaça para nós. Por outro lado, suspeito que é demasiado tarde para nos livrarmos dela. A chave e o cesto podem separar-se, por agora. A chave devia ser devolvida e o cesto devia ser queimado, mas duvido que isso fizesse com que a nossa gente mudasse a sua atitude para com a criança. Não há dúvida de que a aceitaram, a princípio, por causa do feitiço que tu fizeste. Porém, como ela está cá em casa desde o Solstício, desconfio que Tuala já teve tempo para fazer os seus próprios feitiços. Se a mando embora, arranjo lenha para me queimar; crio a discórdia, quando é essencial termos aqui um santuário para que possas aprender. E para que eu possa sarar. Os meus inimigos, desta vez, foram espertos, quase me mataram. Porém, não voltará a acontecer.

— Foi veneno? — perguntou Bridei. Apesar da alegria inesperada que sentia por ter ganho a batalha, o jovem não se esquecia de que a luta ainda não acabara, uma luta que quase custara a vida a Broichan.

— Foi uma coisa extremamente sutil, com um pouco de beladona. Uma combinação quase imperceptível ao gosto e ao olfato. O homem pensou ser esperto. Talvez demasiado esperto. Poucos têm a habilidade e os conhecimentos para fazer uma tal poção.

— Sabe quem foi? — perguntou Bridei, quase sem respirar.

— Mais ou menos. Vou estar vigilante daqui para a frente. Muito bem, eu ia entrar em meditação quando a voz da criança me perturbou. Tuala tem bons pulmões. A chave fica comigo, Bridei, não te esqueças nunca. O futuro dela não está nas tuas mãos, está nas minhas.

— Sim, meu senhor e...

— O que é, meu filho?

— Obrigado por a deixar ficar e... sinto-me muito feliz por estar de regresso a casa. Agora que está em Pitnochie, vai melhorar. — O jovem não tentou abraçar o seu pai adotivo, nem dar mostras de qualquer outro gesto de afeto. Com Broichan, muito simplesmente, não se faziam coisas daquelas. Bridei esperava que as suas palavras e o seu rosto tivessem dito ao druida como estava contente por não ter tido necessidade de desafiar abertamente o seu pai adotivo. Bridei sabia que nunca teria permitido que o cesto fosse parar ao fogo, nunca teria permitido que Tuala fosse posta ao frio e à neve, teria lutado por ela com unhas e dentes como um animal selvagem a defender as suas crias. Ao fazê-lo, teria ido contra tudo o que o seu pai adotivo lhe ensinara.

— Vai-te embora — disse Broichan. — Algo me diz que nos vamos arrepender deste dia. Espero sinceramente estar enganado.


CAPÍTULO TRÊS


— Não me apanhas! — gritou Tuala, ao mesmo tempo que Pearl passava a correr por entre os troncos cinzentos e brancos dos vidoeiros como uma sombra.

Era bem verdade, pensou Bridei, perseguindo-a no seu cavalo. Bae fora um presente de Broichan no seu décimo primeiro aniversário e Tuala reclamara imediatamente Pearl para si própria. Quase não fora necessário ensiná-la a montar. A pequenina tinha uma vivacidade estonteante, uma leveza que transportava consigo para toda a parte. As pessoas desviavam o olhar e quando voltavam a olhar ela já não estava onde deveria estar. Na casa de Broichan já todos estavam habituados. Ninguém se preocupava com a possibilidade de Tuala se perder ou se meter em sarilhos. Era como se a pequenina transportasse consigo os seus próprios feitiços de proteção.

Apesar disso, Tuala usava um disco ao pescoço, tal como Bridei. Broichan insistira. Aqueles discos de osso, com sinais gravados que honravam A Que Brilha e que pediam a sua bênção, eram um testemunho solene da aderência da casa aos costumes dos antepassados. Usar um disco daqueles era uma honra, uma prova de confiança. As pessoas da casa não tinham ficado surpreendidas quando Broichan dera a Bridei o seu próprio talismã. A concessão de um talismã a Tuala, cujo papel na casa estava por definir fora, porém, inesperada. Porém, jogava um jogo que estava para além da compreensão das pessoas normais e não havia dúvida de que sabia o que estava a fazer. Bridei achava que Tuala não precisava de um disco da lua. Para o jovem, era evidente que a pequenina tinha a força e a proteção da Que Brilha desde a noite do Solstício, quando a encontrara à sua espera, metida no cesto de penas de cisne e banhada pela luz do luar. Mais de seis anos se tinham passado, mas a sua pele continuava a ter aquela palidez estranha, translúcida, e os seus olhos continuavam a ter aquela tranquilidade límpida e solene.

Se a Lua tivesse uma filha, pensou Bridei, seria muito parecida com Tuala.

— Anda! — gritou ela, mais longe, à sombra dos vidoeiros cheios de folhas.

Bridei tocou com os calcanhares nos flancos de Bae e o cavalo correu em perseguição de Pearl. A Primavera ia avançada, não havia nuvens no céu e os dois jovens iam a caminho de Estrela da Águia.

A habilidade natural de Tuala para montar permitia-lhe dispensar a sela e as rédeas e a jovem agarrava-se à égua como se o animal fosse uma extensão de si própria. No entanto, Bridei esforçara-se, fiel à sua promessa. O jovem montava Bae na perfeição e o cavalo, um belo baio com uma mancha branca na testa, era rápido e obediente. O animal e o cavaleiro seguiram os movimentos rápidos da cauda prateada de Pearl, o som débil dos seus cascos, o rosto branco e os cabelos negros da pequena amazona, desviando-se das árvores de casca pálida, trepando as veredas, contornando as pedras cobertas de musgo e passando a vau ribeiros pouco profundos até chegarem à base da subida íngreme que ia até ao topo da Cicatriz. Quando lá chegaram, Pearl pastava num tufo de erva junto da maciça parede de rocha e Tuala não se via em lado nenhum.

Não era necessário prender os cavalos; ambos conheciam o percurso e não se perderiam. Bridei desmontou e começou a trepar. Tuala devia estar longe; a jovem parecia um esquilo a trepar. O topo da Cicatriz da Águia era um maciço rochoso muito grande, talvez fosse apenas uma rocha monumental, ou talvez fossem muitas; as suas fendas e rachas, os seus lugares secretos eram o lar de muitas criaturas, Bridei, ao longo dos anos, conseguira explorar apenas alguns deles. Sempre que subia até ali, o caminho parecia-lhe sempre ligeiramente diferente. Talvez a rocha gostasse de brincar, tal como os carvalhos em redor da casa do druida. Segredos da terra, que não eram para ser partilhados com os mortais: aquele lugar estava cheio deles.

O jovem gostava de estar no topo de Cicatriz da Águia, onde se sentia profundamente o passado, sob os pés; o Grande Vale estendia-se na sua frente, encostas íngremes envoltas no manto púrpura e verde dos pinheiros e no lenço mais leve dos vidoeiros, abrigando a longa e cintilante fita do Lago da Serpente. Naquele local, Bridei sentia-se entre a terra e o céu, sentia o coração da rocha por baixo dos pés e o sopro do vento no rosto, sentia-se uma águia.

Naquele dia, Tuala chegara antes dele e ficara de braços abertos, ao mesmo tempo que dizia para si própria: Fotlaid, Fidach, Fib, Circinn Caitt, Ce... Fortrenn, Fotlaid... — os nomes dos sete filhos de Pridne, de quem os Priteni descendiam. As sete casas, ou tribos, tinham os seus nomes. Fora Bridei que lhe ensinara e a jovem assegurava-se de que não se esqueceria deles. Tuala colocara-se no topo da rocha mais alta, num ponto que não era maior do que uma tigela de papas de aveia. Bridei avistou a sua pequena silhueta contra o pálido céu de Primavera, os cabelos negros flutuando ao vento, os olhos cheios de luz. Por trás dela estava a escarpa íngreme virada a sul. As pessoas chamavam-lhe Mergulho do Morto. Ainda bem que Tuala não tinha vertigens. A jovem girava, girava, como se imaginasse que o mundo é que girava à sua volta.

— Pára, Tuala — disse Bridei suavemente. — Estás a pôr-me tonto. — O jovem subiu para as rochas planas, mesmo por baixo dela.

A jovem parou instantaneamente, tal como o jovem esperava, e ficou imóvel, em perfeito equilíbrio, solene e firme. Bridei é que se sentia ansioso, como se estivesse a perder o equilíbrio.

— O que é que estás a fazer, afinal? — perguntou ele com uma calma estudada. — A tentar voar?

Tuala desceu do seu pináculo e sentou-se ao lado dele de pernas cruzadas. A jovem usava uma longa túnica simples, de lã, e por baixo umas calças para poder montar. Estas tinham pertencido a Bridei; era difícil imaginar que já fora daquele tamanho.

— Eu gostava de poder voar — disse Tuala. — Às vezes, penso que consigo.

Bridei estava a desembrulhar a comida que tinha levado consigo: grossas fatias de pão de aveia e ovos cozidos. O jovem passou o odre de água a Tuala.

— Se tencionas tentar — disse ele — talvez seja melhor pores-te em cima de um banco, ou de um barril, em vez de no topo de uma montanha.

Tuala olhou solenemente para ele.

— Sei que não cairia — disse ela. — Pelo menos, acho que não.

— Tu és uma rapariga, não és um pássaro — respondeu Bridei.

— Às vezes, sou um pássaro — disse a jovem, prendendo o cabelo atrás da orelha com uma mão muito branca.

— Que queres dizer?

— Em sonhos. A Lua nasce, acorda-me e eu vôo através da floresta. É tudo prateado; está tudo vivo e à espera.

Bridei não respondeu. Tuala aparecera em Pitnochie havia tanto tempo que, por vezes, o jovem quase se esquecia de que ela era... diferente. Então, a jovem dizia coisas como aquela.

— Picar, cravar as garras, comer — disse Tuala, abstracta, mordendo um pedaço de pão. — Planar, caçar. Depois, a Lua põe-se e fica tudo escuro outra vez.

— Nos sonhos é diferente. — Não era grande coisa, como resposta, e Bridei sabia-o. — Tens de ter mais cuidado. Imagina se cais e... e partes uma perna. Só voltarias a montar Pearl depois do Verão. — Não lhe diria que vários homens tinham morrido quando desciam de Cicatriz da Águia. Ela pouco mais era do que um bebê, comparada consigo. — Promete-me que serás mais sensata, Tuala.

— Prometo.

A resposta foi quase instantânea; infelizmente, pensou Bridei, a idéia de sensatez de Tuala era diferente da sua.

— O que é que gostavas de ser? — perguntou-lhe Tuala.

— Que queres dizer?

— Que ave gostavas de ser, se pudesses?


— Uma águia — disse Bridei imediatamente. — Planaria sobre o Grande Vale e veria tudo, vigiaria tudo. Tu serias um corvo, com os cabelos dessa cor.

Tuala abanou a cabeça.

— Uma coruja — corrigiu-o ela, muito séria.

— Sabias que as corujas vomitam os ossos, as patas e os bicos das vítimas? As caudas, os pêlos e...

Tuala deu-lhe um pequeno empurrão.

— Estou a comer — disse ela. — E as águias, que até roubam cordeiros? Mara disse-me que, uma vez, houve uma águia que até roubou um bebê.

— Faz parte do equilíbrio da natureza — disse Bridei. — Alguns dão a vida para que outros possam sobreviver. Se respeitarmos isso, tudo faz sentido.

Os dois jovens comeram em silêncio, escutando os sons da vida selvagem do Vale: os gritos das aves por cima das suas cabeças e dos outros animais no solo, o sussurro das árvores à passagem do vento, o restolhar furtivo de algo no interior de uma fenda da rocha. Mais longe ouvia-se um som mais doméstico, Fidich chamando os cães e estes a responderem. O fazendeiro andava nas colinas a inspeccionar os cordeiros.

— Sabes uma coisa, Tuala? — Bridei passou-lhe um ovo acabado de descascar e pegou noutro. — Quando eu era pequeno, como tu, não podia vir até aqui acima sozinho. Broichan não me deixava.

— Eu não vim sozinha — disse Tuala. — Tu vieste comigo.

— Sim, claro, mas então eu não te tinha a ti, nem nenhum irmão mais velho para tomar conta de mim.

Tuala abriu a boca. Bridei sabia que ela ia dizer-lhe que era capaz de tomar conta de si própria, muito obrigada.

— Mas não era por causa disso — continuou ele, rapidamente — Naquele tempo era perigoso andar pelos bosques. Havia inimigos. Uma vez, tentaram matar-me. E também tentaram matar Broichan. Nesse tempo, eu só saía acompanhado por dois guardas.

— Como é que tentaram matar-te? — perguntou Tuala com os olhos muito abertos.

Bridei começou a sentir-se arrependido de ter iniciado aquele tópico da conversa.

— Oh, não foi grande coisa — disse ele, muito depressa. — Talvez seja melhor voltarmos...

— Com uma espada? Com um feitiço? Tentaram apanhar-te numa armadilha?

— Com uma flecha — disse Bridei.

— Mataste-os?

— Não. Donal é que os matou. Não quero falar sobre o assunto.

— Por que é que tentaram matar-te?

— Não sei. Nunca ninguém me disse. De qualquer modo, já passou. Foi há muito tempo. Fosse qual fosse o perigo, já passou. Costumava haver cinco guardas no muro do lado norte e agora só há um. E podemos sair. Por isso, considera-te com sorte.

Tuala olhou para ele muito séria.

— Tu é que te podes considerar com sorte — corrigiu-o ela. — Podias ter morrido e eu não estaria aqui.

Bridei estremeceu.

— Não foi a sorte que me salvou naquele dia — disse ele, recordando-se. — Foi outra coisa.

— Donal?

— Ele ajudou, isso é certo, mas houve outra coisa. Foi como se a terra se tivesse aberto para me esconder. Até Donal achou estranho.

— A terra salvou-te — disse Tuala com a sua voz límpida. — Protegeu-te para que pudesses continuar.

As palavras da jovem provocaram um arrepio na espinha de Bridei. O jovem fez uma pilha com as cascas dos ovos e não disse nada.

— Já passou, Bridei — disse Tuala, como se fosse ela a mais velha e ele o mais novo.

De regresso a casa, Bridei conduziu os dois cavalos para o estábulo e tratou de Bae, ao mesmo tempo que Tuala fazia um trabalho aceitável, esfregando o pêlo de Pearl. A jovem tinha de se pôr em bicos dos pés para chegar ao pescoço do animal; felizmente, Pearl pareceu compreender a situação e baixou a cabeça para que a criança lhe escovasse a crina.

— Que pena ela não poder fazer o mesmo por ti — comentou Bridei, olhando para os caracóis de Tuala, emaranhados pelo vento. À saída para o passeio, a jovem tinha os cabelos devidamente penteados pelas costas abaixo, mas estes pareciam ter vida própria. A quantidade de fitas que a jovem perdia era motivo de brincadeira. Tuala afastou os cabelos do rosto com as duas mãos.

— Queres que trate disso? — perguntou Bridei.

Tuala colocou-se junto do jovem, de costas voltadas para ele. A jovem meteu a mão na bolsa do seu cinto, tirou um pequeno pente e colocou-o nas mãos de Bridei. Não eram preciso palavras; o ritual já era antigo.

— Está quieta. — Bridei tinha habilidade para aquela tarefa porque estava habituado aos cavalos. O jovem sabia como pentear os cabelos de Tuala sem a magoar. Quanto à criança, mantinha-se perfeitamente imóvel, quase como se estivesse gelada, uma pose que ele próprio se esforçara por conseguir através do controle da respiração, da meditação e da força de vontade, mas que Tuala conseguia sem o menor esforço. Os seus dedos trabalharam sistematicamente, penteando os longos cabelos que iam até à cintura.

— Tens uma fita? — perguntou ele, sorrindo. Tuala abanou a cabeça com uma expressão pesarosa.

— Perdi-a.

— Deixa estar, que eu tenho uma — disse o jovem, metendo a mão na algibeira e tirando uma fita amarela, das muitas que guardava para ocasiões semelhantes. Tuala deixava-as por toda a parte. Bridei atou a fita com força em redor dos cabelos da jovem e fez um laço que ficou parecido com uma borboleta. — Pronto. Aguenta-te assim durante um bocado, caso Broichan te veja.

— Está bem, Bridei.

Depois do regresso de Broichan da corte do rei, onde quase morrera, as coisas tinham mudado em Pitnochie. Continuava a haver um certo número de homens de armas que patrulhavam os limites das terras do druida e que o escoltavam sempre que ele se ausentava. Porém, eram menos e o número de outro tipo de gente aumentara. Brenna ficara; o seu temperamento suave e tranquilidade natural contrabalançavam o volátil Ferat e a severa Mara. Fidich tornou-se visitante frequente, sentando-se timidamente na cozinha e falando com quem estivesse por perto acerca da tosquia, da ordenha ou dos muros. Aquilo não era normal porque, habitualmente o fazendeiro retirava-se logo para a sua pequena cabana assim que o dia terminava, aparentemente satisfeito com a sua solidão. Donal reparou, friamente, que as visitas de Fidich incluíam, geralmente, uma conversa breve com Brenna, apenas algumas palavras, perguntando-lhe se ia bem e trocando com ela as pequenas notícias do dia.

Fora preciso muito tempo para que Brenna perdesse o olhar triste que tinha. Tuala tinha ajudado; as exigências da pequenina tinham-na obrigado a esquecer os seus problemas. No entanto, era cada vez mais evidente que as visitas frequentes de Fidich estavam a devolver a cor às faces de Brenna. Ambos eram tímidos. Talvez, com o tempo, saísse dali alguma coisa.

Havia outra presença. Pouco depois de Broichan ter regressado a casa ainda doente do envenenamento. Bridei entrara uma noite no salão à hora do jantar e encontrara os dois anciãos, Erip e Wid, aninhados a um canto e debruçados sobre um tabuleiro de jogo tal como na primeira noite, quando chegara a Pitnochie. O jovem cumprimentara-os, espantado.

— Pensei que nunca mais regressariam!

Erip, o gordo, o careca, dera uma risada, ao mesmo tempo que movia subtilmente um pequeno guerreiro no tabuleiro, provocando um silvo de aborrecimento por parte de Wid, o alto, o da barba branca.

— Quem, nós? — respondera Erip. — É preciso mais do que um druida do rei para nos manter longe daqui, rapaz. Andámos a viajar, mais nada. Bem, bem, o que tu cresceste. O que é que o Ferat te tem andado a dar de comer, tomates de boi...? — O ancião calara-se, talvez por ter avistado Mara no outro lado da sala. — Bem, não interessa. O que interessa é que estamos aqui para ajudar na tua educação Bridei.

— Ah! — respondera o jovem, perguntando a si próprio qual seria a sua especialidade para além dos tabuleiros de jogo e da bebida.

Os dedos de Wip tinham pairado por cima de uma pequena sacerdotisa de pedra.

— Erip é especialista em geografia — dissera ele. — Territórios, linhas de costa, tribos e chefes tribais. O meu campo é a estratégia: ver o que vai na mente dos homens, saber o que eles querem antes de eles próprios saberem. Espero que estejas preparado para trabalhar arduamente, Bridei — dissera o ancião, pegando na sacerdotisa, colocando-a noutro ponto do tabuleiro e erguendo as sobrancelhas para Erip com uma expressão cuidadosamente maliciosa.

— Malditos comandantes — resmungara Erip, olhando prolongada- mente para o tabuleiro e erguendo depois as mãos, derrotado. Estão sempre adiantados.

Erip e Wid tinham-se instalado como se nunca dali tivessem saído. Agora, seis anos mais tarde, os dois homens continuavam alojados no fundo do aquartelamento dos homens, engordavam cada vez mais com os cozinhados de Ferat e tinham provado que eram capazes de ensinar, para além de se meterem em sarilhos.

De fato, o tempo disponível era escasso. As lições começavam logo a seguir ao pequeno-almoço e continuavam até o Sol se pôr sem contar com as vigílias noturnas, que faziam parte do método de ensino de Broichan, com os ocasionais rituais ao amanhecer e com os estudos posteriores e anteriores às lições, efectuados durante os tempos livres de Bridei. O termo tempos livres era uma anedota, na verdade. Por vezes, depois do jantar, o jovem só tinha tempo de contar uma história a Tuala antes de adormecer, completamente exausto. No entanto, Bridei contava sempre uma história à sua pequena irmã. As histórias faziam parte da promessa que lhe fizera. Bridei sabia o que era estar na cama às escuras, à espera do sono, sem uma história que o acompanhasse nos sonhos. O jovem tivera muitas noites assim e habituara-se a elas. Porém, jurara a si próprio que Tuala nunca se sentiria tão só.

Quando se levantava, de madrugada, Bridei trabalhava com Erip e depois com Wid. Cada vez mais, à medida que o conhecimento de Bridei sobre o reino de Fortriu se intensificava, as suas montanhas e vales, os seus lagos e rios, as suas baías e ilhas, os dois homens ensinavam-no juntos e as suas aulas transformavam-se em discussões acesas a três vozes porque os dois anciãos encorajavam Bridei a dar a sua contribuição. Com Erip o jovem aprendia a história dos Pritnei, as linhagens reais, a natureza dos seus vizinhos e dos seus inimigos. Os do norte descendiam dos sete filhos do antepassado original, Pridne. O nome Priteni vinha dele, um nome que abarcava todos os habitantes de Fortriu, os de Circinn a sul e os dos territórios desconhecidos no norte distante, a tribo selvagem conhecida pelo nome de Caitt. Nas ilhas para lá da costa norte vivia um povo que se chamava a si próprio Folk, muito simplesmente. Os Folk também eram do sangue dos Priteni e eram fortes em virtude do seu isolamento, tinham o seu próprio rei e o seu próprio governo.

Fortriu e Circinn tinham sido um reino único, unido pelo amor aos velhos deuses, forte e confiante, mas a situação alterara-se aquando da eleição do último rei porque os chefes tribais não tinham conseguido chegar a acordo quanto ao candidato. O reino dividira-se com o cristão Drust, filho de Gkom, conhecido como o Javali, a subir ao trono do reino sulista de Circinn e Drust, o Touro, guardião das velhas tradições, a subir ao trono de Fortriu, que se estendia desde a fortaleza de Caer Pridne e de Grande Vale, no nordeste, até à última linha de defesa contra os celtas, a sudoeste. A agitação era constante entre estes dois reinos.

As aulas de Wid tinham a ver com jogos de poder, conselhos, leitura de expressões e gestos dos políticos, coisas que podiam ou não ser ditas em determinadas companhias, coisas difíceis de testar em Pitnochie. Era fácil adivinhar em que estava Fidich a pensar, por exemplo, enquanto bebia uma caneca de cerveja e fazia de conta que não estava a olhar para Brenna, ou com que sonhava Donal enquanto polia a sua espada e assobiava uma velha marcha.

— Preciso de praticar — protestou Bridei. — Estamos sempre a falar de assembleias e de conselhos de reis, mas tudo o que eu vejo é esta casa e esta herdade. Como é que eu vou aprender como deve ser se fico aqui fechado toda a vida? — Bridei não costumava queixar-se, obedecia sempre àqueles que respeitava. Porém, a manhã fora longa.

— Toda a vida? — perguntou Wid com as sobrancelhas em arco — Um ancião de... o quê? Doze anos? Podes ter a certeza que vais ter uma hipótese, em breve. Se Broichan não te deixar viajar, há de trazer-te aqui um pedaço do mundo para tu veres. Talvez ainda não, mas em breve. Tem paciência. Ele tem as suas razões.

— Wid? — disse Bridei.

— Sim, meu rapaz?

— Tenho estado a pensar. O que é que eu vou ser quando isto tudo acabar? Quando a minha educação acabar? Vou ser um estudioso? Um conselheiro? Não devia conhecer um pouco o meu povo de Gwynedd? Suponho que hei de voltar um dia para a corte do meu pai.

— Talvez — disse Wid com um pequeno sorriso. O jovem já lhe tinha feito aquelas perguntas, mas não daquela maneira, tão direta. Havemos de falar de Gwynedd, de Powys, o seu vizinho e de outras terras ainda mais distantes, mas, para ti, Fortriu é mais importante. E a educação de um homem nunca acaba. Já devias saber isso.

— Mas eu não sou de Priteni — disse Bridei. — Não quero parecer desrespeitoso, gosto de aprender o conhecimento e a história do norte, mas...

— A tua mãe era de cá — disse Wid calmamente.

— A minha mãe? — Bridei estava espantado; há muito que não pensava nela. — Ela era de Fortriu? Então talvez eu tenha família aqui, tios, tias e primos. Por que é que Broichan não me disse? O que é que sabes dela?

— Muito pouco — respondeu Wid, começando a enrolar e a atar os pergaminhos. — O nome dela era Anfreda, é a única coisa que te posso dizer. Não te lembras?

Bridei ficou alguns momentos em silêncio. Finalmente, disse:

— Eu tinha quatro anos quando vim para aqui. Na verdade, não me lembro de ninguém. Talvez do meu pai, um pouco, mas dos outros não.

— Mestre Broichan pode dizer-te mais.

— Ele não fala dela. Creio que não sabe.

— Paciência — disse Wid — tudo tem o seu tempo. Vamos ver o que se passa com o nosso jantar?

Depois das aulas da manhã era a hora de Donal. Bridei tornara-se competente com a espada e o bordão, eficiente com as facas e era capaz de despistar um perseguidor dissimulado. O jovem melhorara a perícia com o arco, de tal modo que a única diferença para Donal era que tinha de usar um arco menor. Bridei aprendera, no decurso das incursões de Verão às águas geladas do Lago da Serpente, a nadar o suficiente para ser capaz de nadar para terra em caso de acidente a bordo de um barco qualquer em que estivesse a navegar e sabia remar perfeitamente. Assim que teve tamanho suficiente para passar de Pearl para Bae, aprendeu a saltar, a deslizar de lado na sela, a apanhar um objeto qualquer do chão e a lançar uma lança a galope. Bridei gostava das aulas de Donal; o tempo passava depressa. O jovem gostava de ter oportunidade de treinar com alguém do seu tamanho, mas a aldeia continuava proibida. Tanto Donal como Broichan diziam que continuava a não ser seguro ir até lá.

Por vezes, Donal acabava a aula mais cedo e Bridei tinha algum tempo livre antes da aula com o seu pai adotivo, a parte mais custosa do dia. Esses momentos eram-lhe preciosos. Tuala estava à sua espera, imóvel, à sombra dos carvalhos, na orla do relvado onde Donal e ele praticavam o manejo da espada, ou empoleirada num muro de pedra perto do estábulo, enquanto os dois praticavam com as facas e os bordões. A jovem levava-o a ver cogumelos curiosos que tinha encontrado, ou contava-lhe qualquer coisa que ouvira de Brenna, ou demonstrava-lhe ainda como tinha ensinado um dos cães a ir buscar uma bola que ela lançava. Pelo seu lado, Bridei falava-lhe um pouco do que aprendera na parte da manhã: reis e tribos, batalhas e grandes viagens. Em seguida, cedo demais, eram horas de ir ter com Broichan. Tuala não podia assistir às aulas do seu pai adotivo, estas tinham lugar nos alojamentos do druida e ela estava proibida de entrar neles.

— Broichan não gosta de mim — disse ela a Bridei um dia, quando estavam sentados à sombra dos carvalhos, vendo Fidich a cortar lenha junto do estábulo. Não era uma queixa, era apenas uma declaração de fato.

— Ele não está habituado a crianças — disse-lhe Bridei. — Não sabe falar contigo, mais nada. As coisas melhorarão à medida que fores crescendo.

— E tu?

— Eu o quê?

— Ele está habituado a crianças. Tu estás aqui desde pequenino, ele fala contigo, ensina-te e deixa-te entrar no quarto especial dele.

— Quando eu tinha a tua idade não me deixava entrar. Tens de lhe dar tempo.

Tuala abanou a cabeça.

— Ele não gosta de mim. Se gostasse, também me ensinava. Brenna diz que eu preciso de aprender a coser e a cozinhar, mas o que eu quero é aprender o que tu aprendes: quero saber coisas sobre o mundo.

Bridei evitou dar-lhe a resposta óbvia: Tu és uma rapariga. Se bem que fosse verdade, não lhe parecia de modo nenhum a resposta certa. Nem nos seus pensamentos mais fantasiosos conseguia vê-la a coser e a cozinhar.

— Eu ensino-te o mais que puder — disse-lhe o jovem. Tuala torceu um talo de erva entre os seus pequenos dedos.

— És capaz de me ensinar a vedar?

Bridei sentiu-se subitamente gelado, apesar de não saber bem porquê.

— Que sabes tu sobre a arte de vedar? — perguntou-lhe ele.

— Sei que Broichan veda com um espelho de bronze. Sei que as mulheres sábias e os druidas são capazes de o fazer. Conseguem ver o que está a acontecer. E o que aconteceu. Gostava de tentar. Acho que era capaz. — Havia uma nota estranha no tom da sua voz.

— Para quê, Tuala? — Bridei pensava saber qual seria a resposta. A jovem inclinou a cabeça; as cortinas de cabelo lustroso caíram-lhe para o rosto, quase escondendo o pequeno rosto.

— Para os poder ver — murmurou a pequenina.

— Quem?

— Os que me deixaram aqui. A minha família. Acho que era capaz de os ver.

Bridei sentiu um baque no coração.

— Agora, nós é que somos a tua família — disse o jovem gentilmente.

— Tu és — concordou Tuala, erguendo para ele uns olhos tristes — Mas Broichan não. Ele não me quer aqui.

— Ele disse...?

— Não é preciso dizer. Bridei, ensinas-me?

— Como? Ele tem o espelho fechado à chave e... bem, tenho a certeza que não me deixaria. É uma arte secreta, é precisa muita preparação e pode ser perigoso se a coisa for feita de modo errado. Ele podia ensinar-te, mas eu não. Só tentei umas duas vezes e a coisa não correu muito bem. Broichan disse que não tinha importância. As outras disciplinas é que são importantes.

Tuala ficou em silêncio durante alguns momentos. Os seus dedos teciam um minúsculo cesto de erva. Finalmente, a pequenina disse:

— Este conta a meu favor. Vou ter que ensinar a mim própria.

Bridei franziu o sobrolho.

— Tem cuidado. Já te disse que é perigoso, como todas as artes mágicas. De qualquer modo, não tens um espelho.

— Acho que sou capaz de arranjar um — disse ela, colocando o cesto minúsculo entre as raízes do grande carvalho. — Vais chegar atrasado à aula.

De regresso a casa, o jovem sentiu que ela estava a observá-lo, se bem que tivesse ficado onde estava, à sombra das árvores. Por vezes, preocupava-se com Tuala. Ora andava pelos bosques como uma coisinha selvagem, ora falava como uma avó. No entanto, só tinha seis anos. Com sorte, no dia seguinte já andaria interessada com outra coisa qualquer e a idéia de vir a ser vidente já lhe teria desaparecido da cabeça.

Broichan estava à sua espera.

— Vieste a correr — observou o druida.

Bridei tentou normalizar a respiração. Não pediria desculpa. De fato, não estava atrasado. O jovem não queria entrar numa discussão sobre como passar os seus tempos livres.

— Sim, meu senhor — disse ele após um momento, com voz firme e respirando com normalidade.

— Senta-te — disse Broichan.

Bridei sentou-se no banco oposto ao seu pai adotivo, no outro lado da mesa de carvalho, em cima da qual estava uma série de hastes de vidoeiro, cada qual com uma marca diferente esculpida. Bridei teve o cuidado de não os mudar de lugar, representavam um presságio.

— Diz-me o que vês. — A voz de Broichan era profunda e ressonante, um som pleno de mistério e autoridade. O rosto do druida estava calmo, como sempre, os olhos estavam encovados e os cabelos, entrançados, caíam-lhe pelos ombros. O jovem viu madeixas grisalhas.

Bridei estudou as hastes de vidoeiro. O jovem começara a estudar aqueles sinais muito cedo; por ocasião do seu primeiro Verão em Pitnochie, o seu significado básico já lhe era familiar e naquela ocasião já sabia que havia tantas maneiras de os interpretar como estrelas havia no céu. Um intérprete qualificado não procurava apenas descobrir um significado, procurava seleccionar o que era relevante entre uma miríade deles.

— Procura uma resposta para uma pergunta especial? — perguntou ele a Broichan, examinando a disposição das hastes, os locais onde se interceptavam e os que tinham ficado por cima ou por baixo dos outros. Evidentemente, a pessoa que as tinha lançado é que estava mais bem posicionada para interpretar o padrão; não havia dúvida de que Broichan já o tinha feito.

O druida acenou com a cabeça.

— A pergunta é complexa e a resposta, por seu turno, tem muitas ramificações. Como tu a vais ver em termos mais simples, pode ser que tenhas uma resolução simples. A pergunta foi acerca de líderes e lealdades, uma pergunta difícil sobre o próprio Fortriu.

Bridei pensou durante algum tempo, focando e desfocando a visão nas pequenas hastes de vidoeiro, tentando ver para além do padrão de linhas e símbolos que marcavam as suas superfícies pálidas.

— Vejo dois animais — disse o jovem — um touro e um javali, cada um com os seus. Inimigos vindos de Leste e de Sul, atacando-os e tentando meter-se entre eles. Porém, há aqui uma haste que se junta aos dois. Uma águia. A águia mantém-nos juntos, ligando as duas partes. E vejo aqui uma outra meio escondida, por baixo. A sombra.

— E?

— Um movimento inesperado e tudo pode cair: o javali, o touro e a águia.

— Deixando apenas a sombra — disse Broichan, muito sério. E, sozinha, a sombra não consegue nada. Obrigado, Bridei; podes meter as hastes no teu saco e enquanto o fazes, testemos a eficácia das lições de história do teu tutor. O simbolismo, aqui, é óbvio. Digamos que reflecte os anos vindouros, os próximos dez, talvez, ou quinze. Como interpretas esta imagem de touros e javalis?

— O touro deve ser o nosso rei, Drust, filho de Wdrost, porque o touro é a sua insígnia; Erip disse-me que as pedras que rodeiam a sua grande fortaleza têm quase todas a sua imagem. O javali é Drust, filho de Girom, monarca de Circinn, o que quer dizer que as duas tribos que se vêem no presságio são os dois reinos dos Priteni: nós, os de Fortriu, que seguimos a verdadeira fé dos nossos antepassados, e os do Sul, os cristãos.

— Assediados por inimigos, ambos — disse Broichan, meditativo.

Sim, até uma criança via. Circinn tem dificuldade em defender as suas fronteiras contra a barbárie vinda de Sul. Quanto a nós, enfrentamos vaga após vaga de celtas, decididos a conquistar cada rocha, vale, lago e rio a que chamamos nossos. No entanto, somos um povo forte, Bridei, um povo sofredor. Que significado dás à água que anula a distância tão tenuamente? Os chefes tribais dos Priteni têm ideias próprias e os seus reis também são teimosos. Unir o javali e o touro parece-me tão improvável como emparelhar dois veados selvagens e esperar que eles trabalhem em equipa.

As hastes de vidoeiro já estavam metidas no seu saco de pele de cabrito. Bridei apertou-o com um cordão de pele e colocou-o na prateleira. Mais acima, um berço minúsculo, murcho e desbotado, na sombra. O jovem sentou-se e apoiou o queixo numa mão, pensativo. A resposta tinha de ser muito bem pensada, ou mais valia ficar calado.

— Penso que — disse Bridei — para Fortriu, o mais importante é a águia. É um bom símbolo, para um rei, melhor do que o touro, ou o javali, se bem que estes sejam fortes à sua maneira. A águia voa acima de tudo: sobrevoa o Grande Vale, para lá do Vale até às ilhas ocidentais, para norte até às terras dos Caitt e para sul até Circinn. A águia consegue sobrevoar os reinos governados pelos dois reis; a sua visão é total, forte e indivisível. Ou deve ser. Não quero parecer desleal ao rei Drust, claro.

— Não — disse Broichan suavemente — e se estivesses noutra companhia, sei que não dirias o que disseste. Não há dúvida de que Wip te avisou para os perigos da má interpretação. Aqui, em Pitnochie, entre amigos, podes falar livremente. Os teus sentimentos são admiráveis, Bridei. Todos nós gostaríamos de ver os Priteni unidos como antes de o flagelo da nova religião ter varrido o Sul e ter envenenado a mente de Drust, o Javali. Agora, claro, temos dois reis, dois reinos e duas fés. Isto enfraqueceu-nos muito e a tua águia não altera o fato de este cismo ter alterado a nossa capacidade de resistir a incursões Amadas. Os celtas instalaram-se a Oeste; já existe uma nova geração nas aldeias onde moraram os nossos avós e as botas deles pisam solo sagrado para nós. Cada vez que nos atacam aproximam-se mais um pouco. Seremos capazes de deter uma ofensiva maior? Duvido. Viste a sombra da sua crueldade no Vale dos Que Caíram, Bridei. Não podemos permitir que cheguem ao Vale; não podemos permitir a repetição daquele morticínio de homens bons, a poluição da nossa terra. Infelizmente, os nossos reis mostram relutância em se sentar à mesa do conselho. Por que o fariam? Um continua leal à antiga doutrina de Fortriu, mas o outro é um traidor à fé que o viu nascer.

— A águia — disse Bridei — significa mais do que eu disse. Os homens que morreram, os que vi no Espelho Negro naquele dia, o meu pai adotivo disse que eles nunca tinham deixado de acreditar em Fortriu, mesmo depois de saberem que iam morrer. Eu acho que a águia é isso, a ligação no presságio: a faísca que temos cá dentro, que faz de nós uma parte desta terra, o que recebemos dos nossos antepassados, o que damos aos nossos filhos, fazendo-nos fortes mesmo quando perdemos, fazendo de nós parentes uns dos outros, quer sejamos do Norte ou do Sul e seja qual for a nossa fé. Talvez, se todos se lembrassem disso, pudéssemos enfrentar o invasor, se ele vier outra vez. Naquele dia, no Vale dos Que Caíram, não compreendi, ainda era uma criança.

— No número de anos, sim — disse Broichan, olhando para Bridei com uma expressão estranha. — E ainda és. Muitos homens ver-te-iam como uma criança, mesmo agora.

Bridei sentiu as faces corarem. O jovem não disse nada.

— A tua interpretação do presságio, porém, foi a de um homem — disse o seu pai adotivo. — O cerne da questão, claro, reside na religião. Se a nossa terra cair às mãos do invasor, será porque aquele fraco de Circinn abriu as fronteiras aos missionários que pregam a doutrina da cruz. Se nós também fizermos o mesmo, Bridei, talvez mereçamos desaparecer. Se virarmos as nossas costas à sabedoria dos nossos antepassados, merecemos sobreviver?

— Meu senhor, não acreditais que o nosso povo é capaz disso, pois não? — protestou Bridei. — Pôr de lado a Mãe de Tudo, A Que Brilha e a sabedoria que governa cada escolha que fazemos nas nossas vidas? Aqui, no norte, somos fiéis à nossa fé. Drust, o Touro, nunca fará como o outro rei, permitir que o seu povo abandone os velhos costumes. Erip até disse... — O jovem parou.

— O que é que Erip disse?

— Que o rei Druste ainda observa o sacrifício do Portal. No Poço das Sombras. Ele disse que enquanto as mulheres sábias forem até à costa em vigília à Mãe de Tudo, o rei faz uma oferta ao Que Não Tem Nome, a força mais sombria de todas, que mora para lá e por baixo do Outro Mundo. Um sacrifício com carne viva.

— Erip disse isso?

Insinuou que Wip disse-lhe que certas coisas não deviam ser ditas em voz alta, mesmo quando na companhia de amigos.

— Tanto Erip como Wip têm razão. Devias tirar isso da tua mente, por agora. Em breve terás outros assuntos com que te ocupar. Vamos ter visitantes no Solstício de Verão.


— Por isso — disse Bridei a Tuala alguns dias mais tarde — tenho de pôr em prática tudo o que aprendi.

Era o fim do dia e os dois jovens estavam sentados num canto sombrio do salão, tentando não chamar a atenção para que ninguém mandasse Tuala para a cama.

— Tudo — continuou ele. — Esta gente que vem aí é gente que anda pela corte; inteligente, sutil, manhosa. Muitas vezes, aquilo que dizem que querem de nós não corresponde à verdade. Muitas vezes, o que dizem não é o que querem dizer. É uma gente interessante. Gente que conhece o mundo. Broichan diz que é uma oportunidade que eu tenho de pôr em prática o que Erip e Wip me ensinaram.

— Um exame — disse Tuala, acenando sabiamente com a sua pequena cabeça. — Um julgamento.

Bridei franziu o sobrolho.

— Não diria tanto. Eles são amigos de Broichan, tanto quanto sei. É mais uma oportunidade.

— Um teste — repetiu Tuala, não se deixando abalar.

— Bem, talvez, mas vai ser bom ver outros rostos por aqui.

Tuala não respondeu. A jovem andava muito calma. Havia dias que não havia excursões solitárias ao bosque em busca de flores selvagens escondidas, de ninhos de tordos ou de cogumelos. Subitamente, Bridei recordou-se de que, desde que se sabia que teriam visitantes em Pitnochie, Tuala passava a maior parte do tempo perto de casa, ou do pátio, esperando por ele como uma pequena sombra silenciosa.

— Está tudo bem contigo? — perguntou ele, apercebendo-se da sua excitação e antecipação.

Tuala acenou com a cabeça e não disse nada. A jovem estava abraçada a si própria, como se estivesse cheia de frio. Os seus olhos adquiriram uma expressão longínqua que não era usual, mas que também não era rara, como se tivessem segredos que um rapaz vulgar não podia aspirar a partilhar.

— Tens a certeza?

Outro aceno.

— Se alguma coisa te perturba, deves dizer-me — disse ele, pouco convencido.

— E digo, Bridei — respondeu a jovem num tom de voz baixo, remoto.

— Estás cansada. Tens umas olheiras enormes. Que tal uma história e depois vais para a cama? — Tuala dormia agora no quarto minúsculo que pertencera a Brenna e que antes disso era um pequeno armazém. Finalmente, Mara cedera e partilhava agora de boa vontade o seu quarto com Brenna, mais uma mudança surpreendente que ocorrera em Pitnochie depois da noite do Solstício de Inverno.

— Sim, por favor — respondeu Tuala, aproximando-se, encostando- se a ele e descansando a cabeça na manga da túnica dele.

— Então está bem — disse Bridei. — Mas não adormeças antes de eu acabar.

— Sim, Bridei. — A voz da jovem estava mais quente, mas havia algo no modo como ela se agarrava ao braço do rapaz, como uma trepadeira trepando por uma árvore, que deixou Bridei pouco à vontade.

— Qual é a história que queres?

— Aquela em que me encontras à luz do luar — sussurrou ela.

— Outra vez? — Bridei contara-lhe aquela história tantas vezes que se tornara num ritual.

— Hmm.

— Era uma vez um rapaz...

— chamado Bridei...

— que pensava estar sozinho. A sua vida não era muito má, na verdade; tinha um lugar para dormir, o suficiente para comer e estava a ser educado. Porém, faltava-lhe algo e nem sequer Bridei sabia o que era.

— uma família...

— Sim, mas ele só soube isso mais tarde. Bridei era bom rapazinho. Fazia os trabalhos de casa, esforçava-se e tentava agradar a toda a gente. Então, na noite do Solstício de Inverno, tudo mudou.

— A Lua apareceu na sua janela.

— Sim, A Que Brilha acordou-o e ele saiu à rua apesar de estar muito frio... — tanto que até a coruja estava escondida...

— tanto que as lágrimas dos Urisk se transformavam em gelo no momento em que lhes saíam dos olhos...

— tanto que as árvores tremiam...

— tanto que as orelhas e o nariz de Bridei começaram a doer no momento em que ele abriu a porta da rua; tanto que gelava os dedos dos pés se ele fosse suficientemente louco para sair descalço, mas foi o que Bridei fez. Quando ele olhou para baixo, para ver se os dedos dos seus pés ainda lá estavam, viu o que a Lua lhe tinha deixado.

— Um bebê.

— Exatamente; um pequeno bebê muito estranho, todo enrugado, tão feio como uma maçã velha...

— Não era nada!

Bridei riu-se.

— Estava só a ver se estavas a ouvir. Não, o bebê era lindo, a espécie de bebê que só A Que Brilha deixaria como presente na noite do Solstício de Inverno. O bebê estava num pequeno berço feito com coisas da floresta: tufos de erva, folhas de árvores...

— penas de corvo, penas de coruja...

— azevinho...

— bagas verdes, teias de aranha...

— e pedras com buracos, entretecidas nas pegas...

— Bridei?

— Hum?

— Onde está o berço? — A jovem nunca lhe fizera aquela pergunta.

— Estava guardado — respondeu ele, não mentindo, mas relutante em dizer a verdade pura. Bridei nunca lhe falara na chave nem no feitiço que fizera para fazer com que ela conseguisse um lar. — Mas agora já deve estar desfeito; no fim de contas, foi há seis anos.

Tuala acenou com a cabeça.

— Continua — disse ela.

— Portanto, Bridei pegou no cesto com o bebê lá dentro e meteu-o dentro de casa.

— Porque estava muito frio na rua.

— Muito, muito frio. Bridei manteve o bebê quente até os outros acordarem, depois chegou Brenna, o bebê ganhou um lar e Bridei nunca mais ficou só.

— Tinha uma família — disse Tuala com um grande bocejo.

— É verdade — concordou Bridei — e agora são horas de ir para a cama. Até amanhã. Bons sonhos, Tuala.

A jovem desprendeu-se do braço dele e levantou-se a esfregar os olhos.

— Toca a andar — disse ele. — Estás a dormir em pé.

— E se naquela noite o céu estivesse cheio de nuvens? — perguntou ela subitamente. — Nunca me terias encontrado.

— Mas não estava.

— Sim, mas podia ter estado.

— Nesse caso, quem te pôs à porta não te teria posto.

— Eles não quiseram saber de mim. Ter-me-iam deixado enregelar, como os pássaros que caem das árvores no Inverno.

— Quiseram, sim — disse ele, fixando-a. A expressão da jovem era alarmantemente vazia; não era um olhar adequado ao rosto de uma criança. — Por isso é que te entregaram a mim, para que tomasse conta de ti. Porque sabiam que podiam confiar em mim e por isso é que eu te estou a mandar para a cama, para que durmas o suficiente. Toca a andar, eu levo-te.

A noite do Solstício do Verão seria de lua cheia, o que era uma conjunção auspiciosa. À medida que o festival se aproximava, a casa de Broichan começava a sofrer mais uma metamorfose. Os hóspedes esperados eram quatro: três homens e uma mulher. Como amigos pessoais do druida, não poderiam ficar alojados com os homens de armas. O celeiro de paredes de barro foi limpo o melhor possível — os ratos não desapareceram — e os homens instalaram-se, deixando os seus alojamentos para os visitantes masculinos. Erip e Wid queixaram-se dos ossos e das costas e foram dispensados de se mudar. Bridei, para sua delícia, ficou a um canto do celeiro, perto de Donal. O seu pequeno quarto seria cedido à Mulher Sábia de visita, de nome Fola. Os que conheciam a sua reputação, chamavam-lhe Fola a Feroz, mas de maneira a que Broichan não ouvisse.

Na cozinha, um domínio sempre em movimento, o passo ainda ficou mais rápido. Ferat queria que as oferendas da sua mesa reflectissem a condição de Broichan de druida mais antigo e de proprietário de terras de importância considerável. Do lago vieram as trutas para serem fumadas; das caves saíram os queijos; fizeram-se chouriços de sangue; a carcaça de um novilho foi salgada; planeou-se a confecção de pudins e a caixa dos condimentos ficou mais leve.

Preparando-se para a visita, os tutores de Bridei tornaram-se exigentes. Onde antes havia quase sempre tempo para um passeio, para um jogo, para uma troca de notícias, não havia agora tempo para nada senão para estudar, para comer e para dormir.

Tuala observava e escutava. A jovem era especialista em não dar nas vistas, misturava-se com as sombras como se estivesse realmente noutro lugar qualquer. A pequenina colocava-se à sombra dos carvalhos enquanto Bridei e Donal praticavam com os bordões. As feições tatuadas de Donal e a capa de pele davam-lhe um aspecto feroz, mas Bridei, com os cabelos castanhos atados num rabo-de-cavalo e os olhos azuis semicerrados, constituía um verdadeiro desafio para o seu tutor. O jovem quase conseguiu derrubar Donal com um golpe rápido do bordão ao nível do joelho, mas este conseguiu esquivar-se no último momento, bloqueando o golpe e contra-atacando. Bridei oscilou, tentou equilibrar-se e conseguiu. Mestre e aluno apertaram as mãos, sorrindo. O assalto terminara, mas Tuala não se mexeu. Naquele dia não haveria tempo para conversar com Bridei, no dia seguinte também não e nem no outro a seguir. Broichan ia mandar chamar imediatamente o seu filho adotivo e mantê-lo-ia ocupado até à hora de jantar. Aquilo era de propósito, para evitar que ela pudesse dizer a Bridei que se ia embora. Não era justo. Broichan devia saber que ela não diria ao jovem; ele é que a obrigara a prometer. Não havia necessidade de lhe roubar aqueles pequenos presentes, aqueles pequenos períodos de tempo com Bridei, não havia necessidade de lhe roubar aquele tesouro.

Tuala tinha medo de pouca coisa. A jovem gostava de todos os animais, até dos ratos que havia no celeiro e dos pequenos insectos no telhado de colmo; não tinha medo das aranhas e dos morcegos e respeitava os animais mais perigosos, como os lobos, as serpentes e os javalis. Broichan, porém, enchia-a de terror profundo, a jovem ficava entorpecida, gelada, muda, sempre que o druida olhava para ela. Tuala era muito bem capaz de ir sozinha para o bosque, era capaz de trepar à mais alta das árvores, escalar a rocha mais íngreme; estava habituada a atravessar com passos pequenos e confiantes o campo murado onde estava o touro cobridor, de grandes cornos. Os cães eram amigos devotos de Tuala e os homens de armas gostavam dela. Mara tolerava-a; Brenna atendia às suas pequenas necessidades com ternura firme. Ferat era uma fonte certa de bolos de mel, se bem que, como dizia o cozinheiro, Tuala não comesse mais do que uma carriça.

Porém, com Broichan era diferente. Não era que ele falasse muito com ela. A maioria das vezes, o druida agia como se ela não estivesse ali. Porém, a jovem sentia o seu desagrado; sentia que ele não confiava nela. A jovem sentia a sua força e isso metia-lhe um medo terrível.

O druida mandara chamá-la depois de anunciar pela primeira vez que teriam visitantes. Brenna levara-a à presença de Broichan depois de uma penteadela rápida e da passagem de um pano úmido pelo rosto. Era a primeira vez que Tuala entrava nos aposentos privados do druida. O quarto estava cheio de coisas interessantes, mas o bater do seu coração dizia-lhe que não podia olhar para elas como devia ser. Bridei saíra a cavalo com Donal e estariam fora todo o dia. A jovem desejou que o seu irmão estivesse ali com ela.

Brenna mantinha-se de pé com as mãos atrás das costas. Tuala encostou-se o mais possível às suas saias, tentando fazer-se invisível. O druida estava de pé junto da lareira, alto, muito alto no seu manto negro. Os seus olhos eram tão escuros como dois abrunhos e a boca era fina, como se ele estivesse zangado, ou com dores. Tuala vira Donal cerrar a boca daquela maneira quando Ijicky lhe dera um coice sem querer e lhe fizera um alto na canela do tamanho de um ovo. O quarto estava iluminado por uma série de velas; a sua luz fazia brilhar misteriosamente as garrafas nas prateleiras, revelando coisas que pareciam serpentes, formas enrugadas com rostos de duende ou quantidades enormes de lesmas verdes e gordas. Também havia frascos de pedra tapados, utensílios de ferro e recipientes de argila cozida. O cheiro a ervas era pungente. Tuala começou a dizer algarismos para si própria para afastar o terror. A jovem já sabia contar até cinco: Bridei ensinara-a.

— ...família no Vale? — disse Broichan, mas Tuala perdera a maior parte da frase.

— Sim, meu senhor — respondeu Brenna, parecendo um pouco nervosa. — A minha mãe e a minha tia — a mãe de Cinioch — vive em Cumeeira de Carvalho, no cruzamento para Cinco Irmãs.

— Um lugar isolado — comentou Broichan. — Tanto melhor. Tuala olhava para as mãos dele; os dedos eram longos e ossudos e havia um anel de prata com a cabeça de uma serpente num deles. A serpente tinha olhos verdes. A jovem pestanejou e pareceu-lhe que a serpente lhe respondera.

— Como se porta a criança? — perguntou o druida, fixando subitamente Tuala, perscrutando. A jovem encostou-se a Brenna, mas não havia maneira de escapar àquele olhar. Se o fizesse, seria um sinal de fraqueza. Assim, tinha de aguentar, ser corajosa, como Bridei. Tuala não desviou o olhar.

— Porta-se bem, meu senhor. — Brenna não pareceu ficar preocupada com a pergunta e afastou Tuala um pouco para que a jovem pudesse ser inspeccionada. — Tuala é muito calma, nunca faz asneiras. Toda a gente gosta dela.

— Hum — disse Broichan, meditativo. — Não deixa de ser quem é: diferente, chama a atenção e neste momento não nos podemos distrair.

— Por causa dos visitantes, meu senhor? — Brenna estendera o braço para pegar na mão de Tuala; o calor era reconfortante. — Eu consigo mantê-la afastada enquanto eles estiverem aqui. Ela pode dormir comigo e com Mara...

Broichan silenciou-a com um gesto de mão erguida.

— Não é o fato de ela poder perturbar os meus hóspedes que me preocupa. O que me preocupa é a interrupção de Bridei.

O insulto atingiu o coração de Tuala. A jovem não sabia o que significava interrupção, mas parecia-lhe uma coisa má e seria incapaz de fazer mal a Bridei. Bridei era a família dela.

— Eu nunca... — começou ela, mas fechou logo a boca perante o olhar de Broichan.

O druida falou com Brenna como se não houvesse mais ninguém no quarto.

— Estás despedida desta casa até à lua nova a seguir ao Solstício de Verão. Vais visitar a tua mãe e levas a criança contigo. Ferat arranja-te um cesto de comida, um presente para a tua família. Não precisas de me agradecer, mereceste-o. A criança não pode sair de casa da tua mãe e tem de ficar lá dentro com muito juízo. Não quero ouvir histórias acerca dela pelo Vale afora. Conto com a tua discrição, Brenna. Ouvi dizer que temos noivado daqui a pouco tempo?

As faces pálidas de Brenna ficaram da cor de uma romã.

— É verdade, meu senhor — murmurou ela. — Fidich fazia tenção de falar convosco depois disto tudo. Da visita, quero dizer...

— Nesse caso, digo mais qualquer coisa, para além das instruções. Se tudo correr como planejado, quero ver-te bem instalada, com alguns melhoramentos, na cabana de Fidich, que de momento é pouco confortável. Se não... — O druida não acabou a frase. — Tenho a certeza que compreendes a necessidade de cautela neste assunto.

— Compreendo sim, meu senhor — disse Brenna. — Quanto mais não seja para bem de Tuala. Quando quereis que a gente vá?

O druida franziu o sobrolho.

— Infelizmente, neste momento não posso dispensar Cinioch para te escoltar, mas assim que não precisar dele podeis ir. Mara está a par das minhas intenções neste assunto, assim como Ferat e Donal, mas mais ninguém deve saber. Estamos entendidos?

— Sim, meu senhor — respondeu Brenna. — Mas...

— Mas o quê? Suponho que as instruções são claras.

— Meu senhor, Tuala e Bridei são muito chegados. Não se pode dizer uma coisa a um sem que o outro saiba no dia seguinte.

A boca de Broichan transformou-se de novo numa linha fina.

— Nesta casa existe uma prioridade — disse ele — que é a educação de Bridei. O que vai acontecer aqui no Solstício de Verão é crucial para o futuro dele. Não pode haver distrações. Vais para casa da tua mãe, levas a criança contigo e assim que estiverdes a caminho eu informo o rapaz. Será um teste à sua maturidade. Até à hora da partida, não quero ouvir falar mais do assunto. Estamos entendidos?

— Sim, meu senhor — disse Brenna. — Não direi uma palavra, prometo. Mas...

— Podes ir. — Broichan virou-lhe abruptamente as costas e ficou a olhar para a lareira apagada.

— Sim, meu senhor. — Tuala sentiu o alívio na voz de Brenna; mão na mão, as duas dirigiram-se para a porta. O coração da pequenina continuava a bater com toda a força. O que ouvira era muito mau, muito mau. Iam mandá-la embora e não poderia dizer nada a Bridei. Como era possível? Ela dizia-lhe sempre tudo.

— Deixa a criança.

Sobressaltada com a súbita ordem, Brenna largou a mão de Tuala e, após um momento, debruçou-se, prendeu-lhe uma madeixa atrás da orelha e murmurou:

— Porta-te bem — antes de sair rapidamente porta fora, fechando-a atrás de si.

Subitamente, o quarto pareceu muito maior e muito escuro. A silhueta alta do druida erguia-se acima de Tuala como uma sombra, como um espectro, como um feiticeiro saído de uma das histórias de Bridei.

A jovem podia ver a serpente do anel a olhar para ela; a sua língua bifurcada saía e entrava-lhe da boca. Tuala esperou com as mãos atrás das costas para que Broichan não visse que tremiam. Depois do que lhe pareceu uma eternidade, o druida virou-se mais uma vez para ela e sentou-se num banco. Tuala já não precisava de levantar tanto a cabeça para olhar para ele. A expressão severa do druida não mudara.

— Fala — disse ele. — Percebeste alguma coisa do que eu disse? A boca de Tuala ficou subitamente seca e a sua língua inchada, estranha. A jovem não conseguia dizer uma palavra e tinha absoluta necessidade de fazer uma necessidade, mas não tinha coragem de pedir àquele homem. Tuala conseguiu acenar com a cabeça.

— Então diz.

— Eu... eu... — Tuala estava incapaz de falar. Era como se lhe tivessem feito um feitiço, um encantamento de silêncio, no pior momento possível.

Broichan suspirou.

— Que o Corvo Negro me proteja das crianças — disse ele. — Vamos lá a ver se a pessoa se entende. Já te ouvi falar muitas vezes. Eu sei que és capaz de falar e de entender, mas vou-te explicar com a maior simplicidade possível. Tu vais-te embora e se fores obediente e fizeres o que Brenna te disser, pode ser, repito, pode ser que voltes a esta casa quando as visitas do Solstício se forem embora. Ah, vejo que compreendes; os teus olhos dizem-no com clareza. E também vejo que te importas. É evidente que vês esta casa como o teu lar; mais nenhuma casa em Fortriu te teria recebido.

— Sim, meu senhor. — A voz de Tuala era um sussurro, parecia o vento a passar pela erva seca.

— Sabes de que trata a educação de Bridei?

Um aceno de cabeça.

— Não me parece, pelo menos na totalidade. O meu filho adotivo não pode ter a sobrecarga de uma rapariga que lhe ocupa tempo e lhe distrai a mente do caminho penoso e real para o qual se está a preparar. Bridei vai passar a estar mais tempo com outras pessoas, aqui em Pitnochie e noutros lugares. Se eu vier a saber que te metes no caminho dele, farei com que saias daqui para sempre. Compreendeste?

A jovem tremia como vara verde, atingida por algo muito forte, que não conseguia evitar: ira ou terror, ou talvez as duas coisas.

— Sim — disse ela, apesar de não ter entendido bem as palavras, mas consciente do seu significado.

— Tu não és nada a Bridei — disse Broichan. — Foi a sua amabilidade que permitiu que viesses para esta casa, pelo menos durante algum tempo. Mais nada.

Tuala respirou fundo e cerrou os punhos atrás das costas.

— Bridei é a minha família. — A sua voz soava muito baixo naquele quarto tão grande. — Eu não conto mentiras à minha família.

Broichan abanou a cabeça, muito sério.

— Isso não é verdade. A tua família, se a tens, vive lá fora, na floresta. Bridei é um rapaz de bom coração que teve piedade de ti, como teria de um cordeiro órfão. Bridei não é teu parente.

— Nem seu!— gritou Tuala, perdendo as estribeiras por causa da dor. Broichan esperou um momento antes de falar novamente.

— Bridei é meu filho adotivo — disse ele em tom neutro. — Foi-me confiado por razões que tu não podes compreender.

Aquilo exigia uma resposta.

— E eu fui confiada a ele — murmurou Tuala. Era bom que ele acabasse com aquilo rapidamente e a mandasse embora, ou ela desgraçar-se-ia e deixaria uma poça no chão e então ele acabaria por acreditar que ela não passava mesmo de uma criança.

Os olhos de Broichan semicerraram-se.

— A Lua deixou-me aqui — disse Tuala. — Mostrou-lhes o caminho quando eles me trouxeram. A Lua acordou Bridei e ajudou-o a encontrar-me. A Que Brilha encarregou-o de olhar por mim. Eu é que sou a família dele. Eu. — A jovem mordeu o lábio, lutando contra as lágrimas.

— Escuta-me, Tuala. — Era a primeira vez que Broichan dizia o nome dela. A jovem já tinha perguntado a si própria se ele se lembraria de qual era. — Tu sabes o significado da palavra destino?

A jovem acenou com a cabeça.

— Diz-me qual é.

— Diz nas histórias — respondeu Tuala. — As que Bridei me conta quando vou para a cama. Destino é quando as coisas acontecem. Batalhas, viagens, casamentos e reinos. Lutar contra dragões, encontrar tesouros, descobrir segredos.

Broichan olhou para ela, muito sério; os seus olhos tinham perdido alguma da sua ferocidade enquanto a jovem falava.

— Estou a ver que Bridei tem cuidado da tua educação — disse ele. O druida tinha as longas mãos entrelaçadas no colo; Tuala viu a pequena serpente de prata a erguer a cabeça, olhando para ela.

— Eu gostava de aprender mais — arriscou ela, encorajada por ter conseguido responder satisfatoriamente à pergunta. — Sobre as estrelas, as tribos e outras coisas que Bridei está a aprender. Ele não me pode ensinar tudo, anda sempre ocupado.

Os lábios do druida apertaram-se.

— No teu caso, muita educação só pode levar à infelicidade — disse ele. — Seja qual for a vida que te espera, não precisas deste tipo de conhecimento. É melhor dedicares-te às artes domésticas e ter esperança num bom casamento e isso pode arranjar-se no devido tempo.

Tuala ficou silenciosa. A jovem sentiu que nas palavras do druida havia um grande insulto, mas não sabia exatamente qual. O sentimento de dor, porém, era inquestionável.

— Tuala — disse o druida — aproxima-te. Senta-te aqui junto de mim. Deves estar a pensar, suponho, por que razão falei em destino. Tu vês Bridei como teu amigo, como teu companheiro de brincadeiras porque, no fim de contas, ele, em muitos aspectos, é um rapaz, apesar de já ter doze anos e tu seres ainda quase um bebê. Não fica mal a um rapaz sentir compaixão pelos fracos, mas só até certo ponto. É muito bom um rapaz ser obediente aos costumes antigos, agir de acordo com o que ele pensa ser um pedido da Que Brilha. Porém, não penses que ficaste em Pitnochie simplesmente porque Bridei desejou que a casa te desse abrigo. Tu ficaste porque eu decidi não te mandar embora. Tu não és um dos nossos e nunca serás. O teu destino está inteiramente nas minhas mãos, Tuala. Nunca te esqueças. Nos meus planos para o futuro, o único que conta é Bridei. Se pensas que estás em dívida para com ele, se desejas que ele viva a vida o melhor possível, então terás de fazer o que eu digo. Bridei tem um destino. Compete-me, a mim, assegurar que ele seja educado correctamente; que nada nem ninguém se meta no futuro planejado para ele.

Tuala engoliu em seco.

— Então, por que razão ainda aqui estou? — coaxou a jovem, sentindo a garganta a arder, o que a obrigava a falar quando o silêncio seria mais seguro. — Se sou má para ele, por que me deixou ficar?

— Não estás a ouvir o que eu estou a dizer — disse Broichan. — Por uma questão de dever: o dever do rapaz para com os deuses, como nós o entendemos. Numa decisão destas, nós pesamos os argumentos e chegamos a uma situação de compromisso. Eu não posso pôr de parte a história do teu aparecimento aqui, do envolvimento da Que Brilha. Aceito a convicção do meu filho adotivo, de que tem uma certa obrigação. Na verdade, até seria perigoso menosprezá-la. O que tu tens de compreender é que se gostas do rapaz e se queres que ele consiga ir o mais longe possível, tens de seguir as minhas instruções e as minhas instruções, neste momento, são que vás para casa de Brenna por uns tempos e que não digas nada a Bridei. Ele ficará ao corrente de tudo em seu devido tempo.

A pequena serpente começou a mover-se através da mão de Broichan. O druida não parecia aperceber-se. O animal silvava, a língua bifurcada em miniatura saía da sua pequena boca. Tuala colocou a sua própria mão aberta junto da do druida, muito maior, e a serpente passou para a sua palma, fixando-a com os seus pequenos olhos verdes. Apesar do seu tamanho, era pesada e transportava em si o calor do corpo do druida. Tuala teria sorrido para a sua graciosidade, para a sua perfeição, não fora o sentimento, qual pedra fria, que sentia no coração.

Broichan também olhava para a serpente. A sua expressão não mostrava surpresa. O druida disse:

— Isto basta para demonstrar com uma clareza espantosa a tua Diferença. Tu cresceste entre nós e pensaste ser aceite, não há dúvida, mas esta casa pertence a um druida, minha filha. O que acontece aqui não é um reflexo da conduta ou atitudes do mundo dos homens. À medida que fores crescendo, isto tornar-se-á cada vez mais claro para ti. É muito possível que Bridei, inocente como era, não te tenha feito nenhum favor ao recolher-te naquela noite. O seu ato de compaixão afastou-te, efetivamente, dos dois mundos: do reino da tua verdadeira família, o mundo da magia e do mundo dos mortais, ao qual nunca poderás pertencer. De fato, o desejo dele de te providenciar um abrigo privou-te de um verdadeiro lar.

— Não! — gritou Tuala, pondo-se de pé, e a pequena serpente, assustada, enroscou-se em redor do seu pulso. — Bridei nunca faria nada para me magoar! Nunca faria uma coisa má, é impossível!

Broichan olhou para ela. O druida estendeu uma mão e a serpente passou para o dedo dele e transformou-se novamente num anel de prata. Os olhos verdes transformaram-se de novo em vidro, olhando sem ver para a pequena silhueta de Tuala.

— E tu nunca farias nada para o magoar — disse o druida calmamente. — Nunca farias nada que o prejudicasse, pois não, Tuala? Faz o que te peço, então. Agora e no futuro. É melhor para Bridei e é melhor para todos.

Tuala olhou para ele em silêncio. Por momentos, o druida parecera-lhe amigável, alguém com quem poderia falar, alguém capaz de ter coisas interessantes para lhe dizer. No entanto, abruptamente, Broichan voltou a ser quem era e ela sentiu-se enganada. O seu medo regressou, roubando-lhe a capacidade de falar.

— Tens de me prometer — disse Broichan.

— Prometo. — Parecia que o mundo lhe tinha saído do corpo, apesar de todos os seus esforços para o manter dentro de si. — Se assim quer, eu vou. E não digo nada a Bridei.

— Ótimo. De fato, não tens outra hipótese.

— Mas não lhe vou mentir — disse Tuala, incapaz de se conter. Eu não digo mentiras e a Bridei muito menos.

Broichan sorriu ligeiramente.

— Nesse caso tens de ter muito cuidado com o que dizes — disse ele. — Sabes o que acontecerá se cometeres um erro, Tuala. Acredita no que te digo. Eu não possuo o grau de compaixão do meu filho adotivo. Se vejo um inimigo, seja sob que disfarce for, ataco imediatamente, antes que ele tenha tempo de me causar qualquer dano. Bridei ainda não aprendeu a necessidade de agir assim.

Tuala sentiu frio. O druida parecia estar a dizer que ela era má; que não devia ser amiga de Bridei. Aquilo era errado, tão errado que ela não compreendia como podia haver quem pensasse daquele modo. Bridei era a melhor pessoa do mundo. A própria Que Brilha não ordenara que Tuala fosse para junto dele, para que fosse a sua família? A jovem olhou para os olhos encovados de Broichan e sentiu um arrepio.

— Eu não sou um inimigo — murmurou ela.

— Ainda não — disse Broichan.


CAPÍTULO QUATRO


Apesar de saber que era pouco provável, Bridei viu-se a antecipar uma chegada como as que ocorriam nas velhas histórias, os hóspedes chegando a Pitnochie com belas roupas, homens de armas, acompanhantes e cavalos carregados de pertences. O jovem pensou nos estandartes, nas armas brilhantes, nas sedas e nos adornos.

Porém, os quatro visitantes chegaram com austeridade, separados por alguns dias e cada um com o seu estilo próprio. Donal andava a testar a capacidade de Bridei para seguir pistas e mantinha-o na floresta havia quatro dias, da alvorada ao anoitecer. Quando regressaram a casa, com as pernas a doer, cansados e com os estômagos a protestar, Tuala não estava em lado nenhum que se visse. Devia estar a dormir, sem dúvida, perdendo-se assim a oportunidade de uma história. No fim de contas, ainda bem. Bridei duvidava de que conseguisse arranjar a energia suficiente. Provavelmente, adormeceria antes de a princesa olhar, sequer, para o sapo. Tudo o que lhe apetecia era comer qualquer coisa e ir para a cama. O jovem já estava a dormir quando a sua cabeça atingiu a palha da esteira ao lado de Donal, no celeiro. Na manhã seguinte, os hóspedes começaram a chegar a Pitnochie.

A recepção não foi grande coisa. O que Broichan fazia, fazia-o com discrição, com um olho na proteção da sua privacidade e na preservação dos seus interesses. O primeiro a chegar foi um homem de meia-idade, seco e duro de aspecto, de cabelos grisalhos cortados curtos e com um rosto no qual as responsabilidades tinham aberto muitas rugas. Os seus olhos, porém, eram vivos, inteligentes, cinzentos como o cabelo, assim como o traje de lã: nada de sedas ou peles. O homem chegou com dois acompanhantes, uns tipos grandes, sólidos e a sua bagagem era constituída por um par de sacos atados às selas dos cavalos dos seus guardas. Os três homens vinham bem armados. Bridei sabia o suficiente para reconhecer uma boa espada quando a via e para apreciar um machado de guerra bem afiado. Como os dois guardas ficaram alojados no celeiro com os homens de armas de Donal, havia possibilidade de comparação. O nome do nobre era Aniel, conselheiro da casa do rei Drust. Bridei sabia que não devia fazer muitas perguntas, mas tinha dificuldade em conter-se. Havia tanta coisa que queria saber.

À hora do jantar falou-se dos celtas e da ameaça a ocidente. Bridei estudara detalhadamente a situação com os seus tutores; fizera mapas na areia, com pedras e gravetos, imaginara exércitos dispostos na parte de cima e de baixo do Vale, aprendera coisas acerca do inimigo e a história das suas incursões destrutivas. A imagem que tinha na cabeça, porém, tinha pouco a ver com os estudos. Desde que os vira no Espelho Negro que os conhecia, não como um inimigo com quem era preciso combater e lidar, como outro saqueador local qualquer, mas como a força que procurava extinguir a chama que ardia no coração de todos os filhos de Fortriu. Eram fortes, cruéis e não tinham escrúpulos. Naquele dia longínquo, no Vale dos Que Caíram, tinham matado homens em fuga, tinham-nos dizimado sem piedade. Bridei nunca se esqueceria das imagens que vira.

Tuala não apareceu ao jantar e Brenna também não. Bridei não ficou surpreendido; Broichan achara que Tuala era demasiado nova para se sentar àquela mesa, naquela companhia, sem dúvida, e tinha-a mandado para a cama mais cedo, com Brenna para lhe fazer companhia. Era uma pena, realmente. Tuala teria gostado de ouvir porque Aniel conhecia o mundo e Tuala gostava de saber coisas. Além do mais, não iria ter uma história antes de adormecer, mais uma vez.

Broichan estava à cabeceira da mesa. À sua direita estava Aniel e à sua esquerda Bridei, um lugar difícil porque, sempre que Bridei levantava os olhos da comida, dava de caras com uns olhos cinzentos e perspicazes. Era evidente que estava a ser examinado e o jovem sentia que aquela situação se iria repetir quatro vezes antes de a visita ficar concluída. Os dois guardas estavam colocados por trás de Aniel, de pé, e um deles levou à boca um pedaço de comida de cada prato antes de o seu senhor começar a comer. Ainda bem que Ferat estava ocupado na cozinha; teria ficado profundamente ofendido. Quanto a Broichan, limitou-se a erguer as sobrancelhas ao ver aquele sinal de desconfiança. Bridei lembrou-se de que o seu pai adotivo quase morrera uma vez envenenado, à mesa de um amigo. Um homem tinha de aceitar que havia perigo em toda a parte.

A seguir estavam sentados Erip e Wid e mais abaixo Donal, Uven e o resto dos homens. Mara tivera pena de Ferat e, de rosto impassível, ajudava a transportar os pratos de e para a cozinha.

— Foi uma sorte chegar aqui a tempo — dizia Aniel. — A minha missão a Circinn foi longa e árdua e o desafio não veio apenas do mau estado das estradas nem dos caprichos do tempo. Aprendi a lidar e a contar com as duas coisas. O que me demorou foi a recepção que me fizeram e a teimosia dos meus anfitriões. Devo dizer que não estou morto por regressar a Caer Pridne. Uma breve estadia em Pitnochie é bem-vinda. Espero recuperar as minhas forças antes de dar as más notícias ao rei.

— Portanto, Drust, o Javali, não se deixou comover? — perguntou Wid, com a boca cheia de pão.

Aniel sorriu secamente.

— Mostrou-se Inflexível, sim, mas não tem grande força de vontade. Os seus conselheiros servem-no mal; envenenam-lhe a mente com falsos relatórios, assegurando, assim, que ele se mantenha contra qualquer reconciliação com o nosso povo. Drust tem doninhas fedorentas como conselheiros. Talvez, no seu coração, ainda haja uma chama da verdadeira linhagem real, mas falta-lhe a força para a alimentar e assim os seus conselheiros fazem com que as decisões sirvam os seus próprios interesses. Não admira que a fé cristã tenha ganho raízes em Circinn. A corte é corrupta, o rei vacila, baniu as mulheres sábias e despediu os druidas. Se ainda existem alguns rituais naquele reino, e eu tenho razões para acreditar que não foram totalmente proibidos, a sua observância é secreta, clandestina.

— A fé continua a existir, portanto — disse Wid, tirando um pedaço de carne da barba. — Enquanto existir uma brasa por baixo das cinzas, basta um ligeiro sopro para reacender a chama.

— É preciso fazer com que o fogo não se apague por completo acrescentou Erip.

— Quanto a isso — disse Broichan, que se mantivera silencioso durante a maior parte da refeição — há muitas estratégias em curso, como sabemos. Um homem aqui, outro ali, homens que conseguem atravessar rapidamente terreno difícil e passar mensagens com clareza. Porém, eu gostava de ter mais qualquer coisa. Um aliado na própria casa do Javali seria útil.

— Um espião na fortaleza dos missionários cristãos dava jeito aventurou-se a dizer Donal. — Descobrir o que fazem, como se infiltram e quem são os seus amigos. A maior parte dos clérigos vêm de Erin, segundo ouvi dizer. Gostaria de saber se eles têm aliados em Dalriada. Se assim for, podemos ser atacados pelos dois lados.

— O rei de Circinn quererá pressionar a paz com os celtas? — perguntou Bridei, incapaz de ficar calado mais tempo.

Aniel olhou para ele.

— Broichan disse-me que tu sabes que nós falamos aqui livremente, uma coisa que seria impensável fora da casa de um amigo de confiança — disse ele. — Gostaria de responder à tua pergunta com um não inequívoco, Bridei. Drust, o Javali, não tem governado Circinn como o reino merece. Um homem que abandona a fé dos seus antepassados e deixa que o seu povo vire as costas a tudo o que está certo não é digno de confiança, seja ou não rei.

— Infelizmente precisamos dele — disse Broichan. — Ou dos soldados dele, pelo menos. Os chefes tribais de Circin podem ter atraiçoado o seu juramento à Guardiã das Chamas, mas não se esqueceram da importância de manter os seus bem treinados guerreiros. Isso é certo: as suas próprias fronteiras a sul estão longe de ser seguras. Britons aqui, Angles ali; parece que todos querem um pedaço da nossa terra. Para montar uma ofensiva contra Dalriada, o nosso rei precisa das forças do norte, mas também precisa das de Circinn.

— É verdade — disse Aniel, cruzando os braços. — Discuti esse delicado assunto com Drust, o javali, ou tentei, mas não vejo grandes possibilidades. A atmosfera não foi nada cordial. Ele precisa de forças consideráveis na fronteira do sul, reconheço. Apesar disso, esperava que ele estivesse preparado para começar a planear o futuro.

— Eu estava à espera, pelo menos, de um acordo para que nos pudéssemos reunir em conselho — disse Broichan.

— Fiz o possível.

— Ninguém duvida, meu amigo — disse o druida. — O rei enviou-te porque tinhas grandes hipóteses de influenciar Circinn. O fato de os teus esforços não terem conseguido um acordo é a prova do estado desesperado em que estamos.

— Se os celtas decidem atacar nesta estação, ou na próxima, só conseguiremos aguentar até um determinado ponto — disse Donal amargamente — e pode não ser o ponto que queremos. Eu gostava de ver uma ofensiva bem planeada, não uma simples retaliação. Fica-me atravessado na garganta o fato de a nossa própria gente não levantar um dedo para nos ajudar.

— Todos nós queremos os celtas fora daqui — observou Aniel. Porém, expulsar Gabhran e as suas forças para Erin é um grande desafio, um objetivo a que aspiramos. Não será conseguido tão cedo, com a nossa terra amargamente dividida como está. Expulsar a fé Cristã e reconquistar os corações do povo de Circinn para os verdadeiros costumes é capaz de ser um desafio ainda maior. Enquanto as terras dos Priteni não estiverem novamente unidas, não penso que seja possível.

Seguiu-se uma pausa. Britei até sentiu que era capaz de ouvir as pessoas a pensar.

— Meu senhor? — aventurou-se ele.

— Sim, meu rapaz? — O olhar cinzento de Aniel era agudo. Tal como Broichan, era um homem para quem as palavras vãs não faziam sentido.

— Pergunto a mim próprio — se o sul não nos quer ajudar nesta luta contra Dalriada, por que não procuramos outros aliados? Poderíamos começar — o rei poderia começar — a planear o futuro, pelo menos.

— E quais são os aliados que tens em mente? Os amigos de confiança são poucos e estão longe nos dias que correm como, sem dúvida, os teus tutores te disseram.

— Sim, meu senhor. — Britei debatera várias vezes aquele assunto com Erip e Wid e não particularmente longe. — A tribo das Ilhas Pequenas, que se chama a si própria Folk, muito simplesmente. Eles são bons em combate, segundo me disseram, e são nossos parentes. Podíamos perguntar-lhes. Eu sei que nem sempre fomos aliados, mas talvez o conseguíssemos com reféns. E... — hesitou o jovem.

— Continua, rapaz.

— E os Caitt — disse Bridei, esperando que o conselheiro do rei não se risse.

Aniel ergueu um sobrolho.

— Já agora mais vale arranjar um exército de gatos selvagens comentou ele. — O antigo nome deles reflecte a sua verdadeira natureza. Quem, no seu perfeito juízo, se atreveria a cruzar aquela fronteira como emissário? Bem se podia dar por feliz se regressasse inteiro e sem uma mensagem de agradecimento.

— Mesmo assim — disse Bridei, contente por Aniel não se ter rido dele — sabemos que são da nossa raça, seguem os velhos costumes do Sol e da Lua e são lutadores. São combatentes ferozes e dedicados. Ninguém lhes ameaça as fronteiras. Talvez, sejam ou não gatos selvagens, tenham algo para nos ensinar.

— Esse argumento é bom — disse Aniel — mas é falso. A natureza do território deles é que os salva de uma invasão. Exceptuando os despenhadeiros e os abismos a noroeste, o Grande Vale, comparado com a terra deles, parece uma pradaria.

— Além disso — acrescentou Wid — como já disse a Bridei, os Caitt estão tão divididos como nós. Como não têm invasões para lhes aguçar os dentes, combatem uns contra os outros, príncipe contra príncipe, chefe tribal contra chefe tribal, tribo contra tribo. Seria preciso um líder extraordinário para fazer daquela gente uma força coerente. Um líder que, infelizmente, não temos.

— O rei Drust, o Touro, não seria capaz? — perguntou Bridei. — No silêncio que se seguiu, o jovem percebeu que fizera uma pergunta a mais.

— É tarde — disse Broichan ao seu visitante — a tua jornada foi longa. Podemos falar em particular em frente de um jarro de hidromel, talvez, mas depois vais querer retirar-te.

Aniel ignorou-o por completo.

— Jogas, Bridei? — perguntou ele. — Corvo que chega e vem, talvez, ou Bater contra a parede?

— Sim, meu senhor.

— Ótimo. Temos tempo para um jogo antes de irmos para a cama, se o meu anfitrião o permitir. — Os olhos inteligentes encontraram os do druida durante um momento e Broichan inclinou a cabeça num gesto de consentimento. Segundo as leis da hospitalidade, não podia fazer outra coisa. — Não há nada como um desafio mental para terminar o dia. — acrescentou Aniel, pondo-se de pé. — Vai ser bom para ti teres um oponente diferente, que te dê luta. Se quiseres, claro.

Bridei hesitou ligeiramente, imaginando Tuala acordada, sozinha e inquieta, desejando ouvir a sua história. Ultimamente, a jovem parecia diferente; algo a preocupava, algo que ela escondia. Aquilo preocupava Bridei porque não tinham segredos um para o outro. Broichan olhava para ele. Broichan, pensou ele, conhecia-o demasiado bem. Aquilo era, na verdade, um desafio. Durante aquela série de visitas, cada palavra sua seria pesada, cada decisão medida. Por que razão, não sabia. A única coisa que sabia era que era importante, tão importante que não se podia dar ao luxo de dar um passo em falso.

— É uma honra jogar convosco, meu senhor. — Bridei foi buscar o tabuleiro e colocou-o em cima de uma pequena mesa enquanto Erip ia buscar as peças de osso e Donal e Uven os bancos. Terminada a refeição, os homens de armas, sozinhos ou aos pares, retiraram-se, pela cozinha, para o seu abrigo temporário no celeiro. Donal ficou, sentado no banco junto da parede, e Broichan instalou-se na sombra, perto da lareira. A uma distância discreta de Aniel, um dos guardas permanecia, vigilante.

O jogo foi demorado. À medida que ia progredindo dos primeiros assaltos para manobras mais sérias, que envolveram a perda do porta-bandeira, do campeão e do sacerdote, tornou-se evidente para Bridei que, apesar de ter conseguido anteriormente derrotar Erip e Wid, e não havia dúvida de que os dois anciãos eram bons estrategas, ia precisar de muito mais subtileza e astúcia para vencer o conselheiro do rei. Apesar das palmas das mãos molhadas e, por vezes, do bater do seu coração, Bridei estava a gostar da luta. Porém, o rosto pálido de Tuala e os seus olhos sombrios não lhe saíam da cabeça. O jovem prometera-lhe que iria ter com ela todas as noites para lhe contar uma história. Àquela hora já devia estar a dormir. Era evidente que não devia estar acordada; já passava da meia-noite. Tinha de se concentrar...

— Ah — disse Aniel suavemente — se eu fizer este movimento, e este, penso que o teu chefe tribal é apanhado na armadilha. E já não tem o druida para lhe arranjar uma saída.

Chegado àquele ponto, Bridei tinha Erip de um lado e Wid do outro a murmurarem-lhe sugestões. Broichan não se movera nem abrira a boca.

Concentração. A posição parecia perdida: o seu druida capturado e a maior parte dos seus homens de armas fora do tabuleiro. O seu chefe tribal estava orgulhosamente só, do tamanho do dedo mindinho de um homem e cercado quase por todos os lados pelos guerreiros de osso de Aniel. Nos cantos do tabuleiro, as mulheres sábias, dele e do inimigo, observavam a situação. As mulheres sábias eram personificações da deusa, da Que Brilha... A Que Brilha, fazedora de caminhos, descobridora de futuros...

— Uma situação insustentável — disse Aniel. — Mais vale aceitares a derrota, Bridei. Tu jogas muito bem e ainda só vais, no fim de contas, no teu décimo ano de vida, segundo me diz Broichan, mas suponho que já passa da hora de ires para a cama.

Aquilo era um insulto, se bem que expresso de modo muito amável. Tens de deixar passar os insultos, era uma das lições de Donal. Quando um adversário em combate grita coisas como filho de uma porca gorda, ou selvagem, não te podes irritar, ou levas com uma lança na barriga antes de teres tempo de estalar os dedos. Tens de deixar passar e continuar. O que queria dizer, segundo Donal, que se devia gritar em troca algo como cabelos-de-cenoura, ou violador-de-mulheres e espetar-lhe primeiro a lança.

Portanto, olha cuidadosamente para o tabuleiro e pensa nas mulheres sábias. A tua, pequena e solene no seu vestido com capuz, feito de osso, tão branco como a Lua. No lado oposto, ou quase, a de Aniel, idêntica exceto na cor porque as suas peças tinham um tom suave, um tom de terra castanho-dourado devido à origem do osso. Erip e Wid tinham caído num silêncio total.

Bridei fez avançar a sua Mulher Sábia em direção à outra. Erip susteve a respiração e Wid assobiou baixinho.

— Um movimento de sacrifício — observou Aniel. — Tens a certeza? A Que brilha, descobridora de caminhos.

— Eu só faço um movimento pela certa — disse Bridei.

— Custa-me muito fazer isto. — Aniel pegou na sua peça e fê-la avançar para atirar com a pequena sacerdotisa de Bridei para fora do tabuleiro. — Por vezes, este jogo chega a faltar ao respeito aos deuses. Esperemos que eles tenham sentido de humor. Penso que acabou.

— Ainda não — disse Bridei, estendendo a mão para mover uma peça insignificante, um soldado desconhecido, para o quadrado à esquerda. — Penso que o vosso chefe tribal não tem saída, agora.

Aniel semicerrou os olhos. Erip e Wid aproximaram-se ainda mais. Era verdade. Fosse qual fosse o movimento do conselheiro do rei, o resultado só seria um: o chefe tribal de Bridei atiraria com a Mulher Sábia do seu oponente para fora do tabuleiro e, no movimento seguinte, o seu humilde lanceiro liquidaria o chefe tribal de Aniel, vencendo o jogo. Bridei esperava que Aniel não ficasse ofendido e que Broichan não ficasse aborrecido. A julgar pelas suas expressões, Erip e Wid estavam contentes.

Nas feições tranquilas de Aniel apareceu um olhar carregado, a juntar às muitas rugas da sua fronte já aborrecida. O conselheiro do rei olhou para o tabuleiro como qualquer jogador no momento da derrota, procurando um fator esquecido que lhe permitisse ainda chegar ao triunfo. Aniel olhou para Bridei e, um momento mais tarde, desatou a rir.

— Não fiques desesperado, rapaz, não te vou morder. Já fui derrotado, mas nunca por um miúdo da tua idade, confesso. Muito bem, muito bem mesmo. Devo estar mais cansado do que pensava. Diz-me, como é que preparaste o golpe? Foi um movimento invulgar; legal, claro, mas fora das regras convencionais do jogo.

— Foram Erip e Wid que me ensinaram a jogar. Aprendi os lances todos com eles. — Bridei lançou aos seus tutores um olhar de reconhecimento respeitoso. — Por vezes, sou capaz de ir mais longe do que o que me ensinam. Quer dizer, isto não é só um jogo, pois não? É o mundo real, só que em ponto pequeno: guerreiros, líderes e deusas, e as coisas que acontecem na vida real ajudam a formar uma estratégia. Ou ao contrário. Lembrei-me que A Que Brilha é a iluminadora dos caminhos, a portadora de dádivas inesperadas e subitamente vi o lance, mais nada. Obrigado pelo jogo, meu senhor.

— O prazer foi meu — disse Aniel suavemente. — Jogarei novamente contigo quando tiveres quinze anos. Se praticar todos os dias, talvez seja capaz de te vencer. Vem, meu amigo — disse o conselheiro, levantando-se e dirigindo-se ao silencioso Broichan — conversemos um pouco e vamos depois dormir. Tens aqui um rapaz que promete muito.

— Sim — disse Broichan, não dando a entender se concordava com o conselheiro em relação a Bridei ou em relação à hora de dormir.


No dia seguinte, Donal programou o tiro ao arco como primeira tarefa do dia e Bridei não teve tempo de procurar Tuala como era sua intenção, para lhe pedir desculpa por não lhe ter, mais uma vez, contado uma história. A lição de tiro ao arco transformou-se num desafio porque um dos guardas de Aniel tinha fama de ser um bom arqueiro e queria prová-la contra quem quisesse. Quando soube, Ferat mandou-Lhes o pequeno-almoço em cestos cobertos: pão de cevada fresco, mel numa caneca e fatias de carneiro frias do jantar do dia anterior. Os seus assistentes fizeram uma segunda viagem por causa da cerveja. Ninguém se podia queixar da hospitalidade.

Alguns dos homens não estavam presentes, claro, porque o perímetro da propriedade de Pitnochie tinha de estar permanentemente guardado, mas a maioria estava, desejosa de se juntar à competição. Os alvos foram colocados e os arqueiros dispararam aos pares. Um a um, os vencidos eram eliminados. À medida que o torneio ia prosseguindo, os alvos iam ficando menores e mais difíceis. A multidão de espectadores aumentou à medida que os vencidos iam aumentando; também se tornou mais barulhenta com a excitação. O guarda de Aniel, Breth, era muito bom. O homem era alto e tinha ombros largos, estava na força da vida e vê-lo preparar-se, esticar o grande arco de madeira de teixo, apontar e disparar era uma maravilha. Era como observar um animal selvagem a cair sobre a presa, ou um barco a correr à frente do vento. Até ali não tinha falhado uma única vez o alvo, mas Donal também não, assim como Enfret e Bridei.

Fidich, atraído, abandonara o que estava a fazer e encarregara-se dos alvos. Erip e Wid tinham-se aventurado e eram espectadores; os homens de armas tinham-lhes ido buscar uns barris vazios para se sentarem, mas os dois anciãos passavam a vida a levantar-se e a gritar como os restantes quando uma seta atingia o alvo. Mais tarde, Aniel e Broichan, sempre com o guarda-costas do conselheiro atrás, como uma sombra, apareceram a alguma distância para assistir. Bridei olhou de relance na direção dos carvalhos onde Tuala devia estar sentada como sempre que ele e Donal praticavam no pátio, perto do estábulo. Porém, a jovem não estava lá e Bridei ficou preocupado.

— É a tua vez, Bridei — disse Enfret.

Daquela vez, o alvo era uma pinha colocada em cima do muro, no extremo do campo, a uma distância de trezentos passos. Ainda bem que as ovelhas estavam nas pastagens de Verão, mais acima.

Bridei colocou uma seta no arco, esticou, apontou semicerrando os olhos e largou a corda. Um silvo, o som de uma pequena pancada e a pinha desapareceu do muro.

— Grande tiro, rapaz — disse Breth. — Gostaria de poder dizer que sou o teu tutor. O arco também é menor e mais fácil de esticar.

— É claro que é menor, e tem menos força — observou Donal friamente. — Usavas um arco grande quando tinhas a idade dele?

— O tipo não se lembra — troçou Enfret. — Foi há muito tempo.

— A última parte do torneio devia ser apenas para homens — disse Breth. — Não vim para aqui para competir com crianças. Só com homens, com arcos do mesmo tamanho. Só assim é que é justo.

— Tens medo que o rapaz te vença com aquele arco pequeno? perguntou Uven. — Vá lá, dá ao rapaz uma hipótese.

Fidich estava a colocar um alvo novo, uma colher de prata, brilhante segura por um fio preso a um ramo baixo de um carvalho solitário. O Sol reflectia-se no metal brilhante, atingindo os olhos do arqueiro. A brisa fazia o objeto oscilar.

Breth foi o primeiro a disparar e atingiu o fio, que era o resultado desejado. A colher caiu e alojou-se entre as raízes do carvalho. Todos aplaudiram, até Donal; fora um tiro formidável. Fidich voltou a prender a colher ao fio.

Enfret disparou a seguir e falhou. A sua seta cravou-se, vibrando no tronco da grande árvore. O arqueiro murmurou qualquer coisa em voz baixa; não uma praga, notou o jovem, mas um pedido de desculpas. Um homem não devia intrometer-se de ânimo leve com os poderes de um carvalho.

Donal disparou a seguir. A seta fez a colher rodopiar na ponta do fio, mas não caiu.

— Agora é contigo, Bridei — disse ele.

Bridei sabia que era capaz. Depois, seria outro alvo e depois outro e a determinada altura, ou humilhava Breth, vencendo, ou Breth seria o vencedor e ele seria o galante vencido. Todos o desculpariam por causa da sua juventude. Na verdade, não era justo. Bridei olhou para o local onde estava Broichan, pálido no seu manto escuro, observando ao lado de Aniel. Talvez fosse melhor, pensou o jovem, não vencer. Breth era um hóspede, um homem com uma reputação a defender. Seria uma vergonha perder publicamente, com o seu companheiro e Aniel como testemunhas. A sua satisfação momentânea compensaria a derrota humilhante do outro? Além do mais, Breth tinha razão. O seu arco era mais fácil de esticar. Por outro lado, era muito feio mentir e perder de propósito era a mesma coisa que mentir. Tuala saberia. Apesar dos seus seis anos, a pequenina tinha o dom de nunca mentir. No entanto, Tuala não estava ali, o seu local favorito, à sombra da sua árvore favorita, estava vazio.

Bridei esticou o arco. A brisa, favorecendo-o, amainara; o alvo estava quase estacionário. Toda a pessoase calara. Bridei olhou para Donal, à espera de um qualquer sinal. Os lábios do guerreiro esticaram-se levemente num pequeno sorriso e a sua cabeça abanou tão levemente que ninguém se apercebeu. Podia querer dizer: É melhor falhares, mas também podia querer dizer: O problema é teu, não me peças que te ajude. Não interessava. Bridei sabia que tinha razão. Não se conseguia a lealdade de um homem, não era possível fazer com que ele fizesse o que devia fazendo-o parecer fraco aos olhos dos amigos. Por vezes, sabia bem ganhar, mas outras não. Era preciso saber quais eram os desafios vitais e os que podiam ser sacrificados em prol de um bem melhor. Bridei apontou para a colher de prata como se estivesse a apontar para um raio de luar por entre a folhagem escura de um carvalho e libertou a corda. A seta atingiu a colher com um som metálico e caiu no chão, junto da árvore. O vento voltou a soprar quase imediatamente, tornando o alvo praticamente invisível no meio do restolho das folhas, mas era possível ver que o fio estava intacto.

— Pouca sorte, Bridei! — disse Erip. — Foi quase!

Donal, que estava a par das leis da hospitalidade, foi o primeiro a felicitar Breth e a sugerir que voltassem a competir noutro dia, talvez com espadas, ou novamente com os arcos, ou ainda em combates de luta livre. Os outros homens aproximaram-se, dando grandes palmadas nas costas do visitante. Breth sorria, sentindo o orgulho salvo, apertando uma mão aqui, dizendo uma piada ali. O torneio fora bom e o rapaz portara-se bem tendo em conta a idade. Um futuro grande arqueiro. Donal era um excelente tutor.

Depois de todos terem abandonado o local, Bridei e Donal começaram a juntar as setas e a desmantelar os vários alvos.

— Bridei? — perguntou Donal.

— O que é?

— Terás disparado abaixo das tuas capacidades?

Bridei já tinha a resposta preparada, consciente de que lhe fariam. Donal conhecia-o demasiado bem para acreditar naquele tiro falhado.

— Serias capaz de encorajar um aluno teu a fazer algo errado? perguntou ele.

— Depende — respondeu Donal.

— A minha resposta é igual.

— Pode ser a diferença entre a vida e a morte, um dia — observou o guerreiro. — Para ti, não para o outro.

— Se fosse uma questão de vida ou de morte, não teria falhado — disse Bridei. — No entanto, se fosse uma questão de orgulho a coisa seria diferente. Nesse caso, teria de tomar uma decisão.

— Hum — disse Donal, arrancando uma seta do chão e acrescentando-a às que já levava. — Eu não teria feito o que tu fizeste. Não teria sido capaz.

— Não tiveste que o fazer. De qualquer maneira, falhaste — disse Bridei, rindo.

O sorriso de Donal mais parecia uma careta.

— Espera até aquele Breth ver do que eu sou capaz com um cajado. Nem vai perceber o que lhe acertou na cabeça. E agora toca a andar: as aulas não acabaram só porque o conselheiro do rei está cá. Aqueles dois malandros devem estar à tua espera com uma dose de história obscura. Põe-te a andar.

— Donal?

— Sim?

— Tens visto Tuala? Nós temos andado ocupados, mas ela ontem não apareceu ao jantar nem na noite anterior e também não tenho visto Brenna. E hoje de manhã também não a vi.

— Quanto a isso — disse Donal uns momentos depois — a miúda não está em Pitnochie. Foi visitar a família. Brenna levou-a.

Bridei estacou. O tom de voz de Donal era casual e a resposta fora demasiado fácil.

— Visitar a família? — repetiu o jovem, tentando tirar algum sentido daquilo. — Que família? A família de Tuala está aqui. Qual é a idéia de Broichan?

— Calma, rapaz. Broichan deu umas férias a Brenna, uns dias para ir ver a mãe à Cumeeira de Carvalho, mais nada. Tuala foi com ela e levaram Cinioch como escolta. Já lá devem estar.

— Ele mandou-a embora — disse Bridei, apercebendo-se de que tinha os punhos cerrados e tentando descontrair-se, mas não conseguindo evitar que a ira fosse aumentando. Não admirava que Tuala andasse calada e triste. Não admirava que parecesse guardar um segredo qualquer. Que ameaça lhe fizera Broichan para a silenciar? — Devias ter-me dito — acrescentou o jovem.

— E quebrava a promessa que fiz ao teu pai adotivo? Ele pediu-nos para não te dizer nada, Bridei, até Tuala estar bem longe. A seu tempo, ele ter-te-ia dito, se tivesses esperado.

— Porquê? — perguntou Bridei. — Por que a mandou ele embora?

— Para que não te distraísses em frente dos hóspedes. Estas visitas são muito importantes, Bridei. O teu pai adotivo quer que causes boa impressão. Não cerres os dentes dessa maneira, pões-me nervoso.

— Ela estava triste, não queria ir.

— Tuala disse isso? Não podia, ou podia? Desconfio que Broichan a obrigou a não dizer nada. Ela só tem seis anos, Donal. Sem uma história, ela não consegue adormecer. O escuro mete-lhe medo.

— Brenna está com ela.

— E vai perder a festa do Solstício de Verão. Vai perder o ritual.

A boca de Donal torceu-se.

— Se calhar, era o que Broichan queria. Deixa lá, Bridei, o assunto tem pouca importância, é uma coisa de nada nos planos do teu pai adotivo. Bridei?

Bridei já ia a caminho de casa. O jovem queria saber tudo; o seu pai adotivo devia-lhe pelo menos aquilo. Maldito Broichan e os seus esquemas misteriosos! Não se tratava uma criança como se fosse uma coisa descartável. Não se mandava uma criança embora assim, sem mais nem menos, para que ela se sentisse só e assustada. Especialmente, não se obrigava uma criança a esconder segredos dos amigos. Iria ter com Broichan e diria o que tinha a dizer e se o seu pai adotivo não gostasse de ouvir, tanto pior.

Com a raiva a esvaziar-lhe a mente, com excepção das palavras que ia dizer, Bridei caminhou em direção a um dos cantos da casa. Subitamente, o jovem parou. Em frente da porta estava um grupo de cavaleiros, seis, que deviam vir de leste, escondidos do seu campo de visão por causa dos vidoeiros entre a casa e o caminho que ia dar ao lago. Broichan estava a dar-lhes as boas-vindas; Aniel estava próximo, com um dos seus guardas. Os recém-chegados eram guerreiros, tinham os rostos tatuados com símbolos de guerra. Os homens estavam vestidos como qualquer homem de armas em trânsito, com capacetes de pele, couraças, capas de feltro, túnicas resistentes, calças azuis escuras, botas de montar flexíveis e manoplas. Todos eles estavam armados e traziam um cavalo de carga pouco carregado. As suas montadas eram sólidas e vivas.

Um dos homens, alto e de cabelos encaracolados, tinha desmontado junto dos degraus e estava a falar com Broichan. O guerreiro interrompeu o que estava a dizer quando Bridei apareceu.

— Ah, este deve ser o teu filho adotivo. Os meus cumprimentos, Bridei! O meu nome é Talorgen de Raven’s. É um prazer conhecer-te, finalmente. Eu fui amigo da tua mãe até ela meter na cabeça casar com Maelchon e ir para sul.

Outra vez a sua mãe. Bridei apertou a mão do homem. Talorgen tinha um sorriso tão desarmante que era impossível não sorrir também e não lhe dar as boas-vindas de boa vontade.

— Eu tenho um filho da tua idade — continuou Talorgen. — O nome dele é Gartnait. Desenrasca-se com o arco e a espada, mas não é tão inteligente como tu. Pelo menos é o que tenho ouvido dizer.

— É pena não o terdes trazido convosco, meu senhor — disse Bridei.

— Noutra ocasião — disse Talorgen. — A mãe dele queria-o em casa e é difícil discutir com ela.

— Vem — disse Broichan. — Vou mostrar-te os teus aposentos. Os teus homens ficarão no celeiro com os meus. Bridei, importas-te de os levar ao estábulo e pedir a Donal para os instalar? — Os olhos escuros do druida perscrutavam o rosto do seu filho adotivo.

Era evidente, pensou Bridei, que o seu rosto ainda espelhava a raiva que sentia, se bem que os modos amigáveis de Talorgen a tivessem amenizado. O jovem devolveu o olhar e manteve-o durante alguns momentos para se assegurar de que Broichan compreendia que ele estava zangado e por que razão. Em seguida, Bridei virou-se para os homens de Talorgen e conduziu-os ao estábulo e depois ao celeiro. O que tinha a dizer tinha de esperar.

Ao anoitecer daquele dia chegou o terceiro hóspede de Broichan. Quando Bridei pensava em druidas, geralmente imaginava o seu pai adotivo, o único da espécie que conhecia: um homem de mente incisiva e inteligência assustadora, um homem cujos poderes terrenos eram contrabalançados por um respeito profundo pelos mistérios. O jovem ouvira falar de outra espécie de druidas, a espécie que aparecia nas velhas histórias, habitantes das profundezas das florestas, homens tão embebidos no conhecimento, em tal harmonia com a magia que pareciam loucos aos olhos do mundo exterior, como se estivessem com um pé neste mundo e outro no outro. Uist era um daqueles druidas e chegou montado numa égua branca como o leite, que andava com um passo delicado, dançante, ao mesmo tempo que agitava a cauda acetinada. Uíst tinha cabelos brancos, selvagens e entrançados como os de Broichan, mas não com tanta perfeição; as tranças tinham penas, gravetos, sementes e escapavam-se delas tufos de cabelo, formando uma auréola em redor da cabeça. O homem tinha um cheiro almiscarado, como se fosse um animal da floresta. Era difícil descrever as feições de Uist porque a cor dos seus olhos estava sempre a mudar, o rosto ora era uma coisa ora era outra, como se o druida estivesse permanentemente a fazer pequenos ajustes para que nunca ninguém se recordasse dele. Uist parecia velho, mas mantinha-se direito e descontraído, uma das mãos segurando um grande cajado de vidoeiro com a pedra polida na ponta, verde clara, sarapintada como um ovo de galinha castanha, e três penas brancas atadas por baixo com um fio prateado. O seu traje flutuava; agitava-se de modo estranho quando Uist se mexia, como se o tecido tivesse vida própria, para além da do seu proprietário. Aqui e ali estava rasgado, como se o druida tivesse andado pelo meio do tojo. A égua, porém, não tinha quaisquer arranhões. O seu pêlo brilhava.

Uist não fez qualquer tentativa para conversar fosse com quem fosse, nem cumprimentou qualquer membro da casa, salvo o seu anfitrião. Quando lhe ofereceram uma cama nos alojamentos dos homens, com Talorgen e Aniel, disse que o seu único teto, há muito tempo, era a copa dos carvalhos e as estrelas, que passaria as noites na floresta e que só toleraria os dias no interior da casa de Broichan se fosse absolutamente necessário. O druida tinha necessidade das mãos da Mãe de Tudo por baixo de si e os olhos da Que Brilha a olharem para ele. Se não, teria de sair de Pitnochie no espaço de dois dias, ou ficaria maluco.

— Queres dizer, mais do que já és — comentou Talorgen com um sorriso e as sobrancelhas hirsutas do velho druida franziram-se.

A observação pareceu a Bridei muito pouco cortês, mas Uist limitou-se a dizer:

— Meu amigo, eu abandonei a tua espécie de sociedade há anos e não tenho saudade nenhuma. A música, talvez, mas à parte isso, as cortes dos reis não me atraem. A vida ao ar livre agrada-me e agrada àqueles que me sussurram ao ouvido durante a noite. Mas podes ficar descansado; não vou uivar à lua.

Bridei estava à espera do momento ideal para apanhar Broichan sozinho. Porém, assim que o jantar terminou, o seu pai adotivo e os três hóspedes retiraram-se para os aposentos de Broichan e este fechou a porta com firmeza. Furioso ou não, o jovem não podia interromper aquele conselho privado. Mais tarde, Talorgen saiu, instalou-se junto do fogo e em breve Donal, Uven e dois outros homens discutiam com ele a situação com os celtas, o que fez com que todos mudassem a posição das facas, das canecas e das tigelas em redor da mesa num plano estratégico, uma expedição para lá das ilhas, escorraçando os invasores para Erin, a terra daqueles descrentes. Talorgen combatera recentemente contra as forças de Gabhran; o seu território de Fonte do Corvo ficava a oeste de Pitnochie, muito mais perto das aldeias inimigas. O nobre tinha informações acerca das posições actuais dos celtas que Donal desconhecia e o que ele contou sobre as escaramuças ferozes dos seus homens com as forças avançadas deles deixou toda a gente petrificada. Quando a reunião terminou, as candeias estavam a apagar-se e era hora de todos irem para a cama. Parecia que Bridei deixara passar a hora de falar a sós com o seu pai adotivo. Porém, ao passar pelos aposentos de Broichan para ir buscar uma vela antes de ir para o celeiro, o druida abriu a porta e saiu.

— Tu tens qualquer coisa para me dizer — disse Broichan. Aquilo não era uma pergunta.

A ira de Bridei não era tão feroz como antes. Talorgen dissera-lhe que podia aparecer em Fonte do Corvo assim que Broichan lhe desse autorização e a perspectiva de viajar para longe de Pitnochie e poder pôr em prática as suas técnicas de combate com Gartnait, o seu filho, era tão excitante que a sua disposição melhorara. Porém, não esquecera a injustiça nem a necessidade de uma confrontação.

Não havia mais ninguém por perto e Broichan tinha fechado a porta, deixando os seus influentes hóspedes no interior do quarto.

— Mandastes Tuala embora — disse Bridei, usando a técnica que o seu pai adotivo lhe ensinara para manter a voz calma e o corpo descontraído, apesar de sentir a cólera a regressar. — Eu percebi que ela se sentia infeliz e vós proibiste-la de me dizer fosse o que fosse. Não foi justo.

Broichan esperou em silêncio, olhando firmemente para o seu filho adotivo.

— Creio que mereço uma explicação — disse Bridei. Broichan não disse nada. Os seus silêncios eram enervantes, mas ao longo dos anos de educação Bridei aprendera a lidar com eles.

— Por que razão está esta gente aqui? — perguntou ele, decidindo que era preciso uma pergunta direta. — Por que razão não podem ver Tuala? Tendes vergonha dela?

Broichan cruzou os braços.

— Estás zangado — observou ele. — Controla a respiração. Disciplina os olhos. Tens de aprender a esconder esses sentimentos porque numa sala de conselho não é nada bom mostrá-los.

Bridei achava que estava a controlar perfeitamente os seus sentimentos. Pelo menos não estava a gritar e atirar coisas como Ferat fazia às vezes.

— Importais-vos de responder às minhas perguntas? — perguntou o jovem.

Os meus hóspedes estão aqui para te conhecerem, para te observarem e para avaliarem o que aprendeste até agora. É da maior importância que lhes mostres as tuas melhores qualidades. Tuala regressará quando eles se forem embora. Não é apropriada a presença, neste momento, de uma rapariga nesta casa. Tuala não pertence aqui.

— Tuala faz parte de Pitnochie — disse Bridei. — Tanto como eu. Qualquer coisa passou pelas feições pálidas de Broichan. Bridei não percebeu o que era.

— Pensava que já eras um homem, Bridei — disse o druida. Esta noite demonstraste que continuas a ser uma criança. Vai para a cama. Este assunto é trivial e tu vais precisar de toda a tua energia nos dias que se seguem. Não se fala mais no assunto. — Com aquelas palavras, Broichan abriu a porta, entrou para o quarto e a conversa terminou. Era profundamente insatisfatório, mas Bridei sabia que não conseguiria mais nada do seu pai adotivo.

Deitado no celeiro, rodeado de homens a ressonar, Bridei contou mentalmente uma história, silenciosamente, sentindo que estava, de certo modo, a cumprir a sua promessa, apesar de Tuala não ter hipótese de o saber. Era uma vez...


Brenna dissera-lhe:

— Não vás para lá dos arbustos de azevinho. Não quero andar à tua procura pelo bosque, está cheio de lobos.

Porém, Tuala não conseguia obedecer. Aquilo, ali, era diferente; não era justo. A casa era pequena, fumarenta e a mãe de Brenna olhava para ela com olhos semicerrados, desconfiados. A tia de Brenna ainda era pior. Evitava o olhar de Tuala e estava o tempo todo a fazer aquele sinal com os dedos, um sinal que significava que ela pensava que Tuala era uma coisa má, uma coisa malvada. A própria Brenna também se sentia subjugada. A sua mãe não aprovava a hipótese de ter Fidich como genro sem aquela perna e por ele tratar das terras de outro homem e não as suas. Na primeira noite, Brenna chorara na cama.

A única coisa igual era a floresta. Ali, em Cumeeira de Carvalho, a caminho dos picos chamados Cinco Irmãs, as árvores envolviam a cabana como uma capa. O pai de Brenna tinha vivido como madeireiro, cortando árvores e transportando os respectivos troncos ao longo do lago numa barca. O homem morrera na floresta quando, por acidente, um freixo lhe caíra em cima. Tuala achou que era justo, mas não disse nada.

Os irmãos de Brenna tinham seguido a profissão do pai, até que tiveram a oportunidade de vender os seus serviços ao rei Drust, o Touro, como soldados. Um bom machado podia servir para muitas coisas. A partir de então, a casa passara a ter apenas mulheres e, com a chegada de Tuala, palavras iradas e azedume. Todas as manhãs, assim que terminava o magro pequeno-almoço, Tuala saía e ia para um local onde as folhas escuras e espinhosas do azevinho faziam uma cortina, escondendo a casa dos bosques. A jovem sentava-se ali um bocado a observar até ter a certeza de que Brenna já não andava à sua procura e então escapava-se, com cuidado para não rasgar a saia ou prender os cabelos nos espinhos. Mais acima, a jovem encontrara um pequeno buraco por entre as raízes de um velho carvalho, uma árvore semelhante à sua favorita, em Pitnochie. Quando se metia nele, ficava do seu tamanho exato e era como se fizesse parte da árvore e a árvore parte dela. Se escutasse com atenção, quase conseguia ouvir um coração a bater, forte e profundo; uma voz imensa, lenta, velha, que lhe dizia coisas sábias e maravilhosas. Que coisas teria visto aquela árvore ao longo daqueles anos todos naquela encosta, firme, com as suas raízes, dando sombra às pequenas plantas com a sua grande copa? Quantos animais teria alimentado, a quantos viajantes teria dado abrigo? Aquela árvore devia ter assistido a inúmeras histórias de amor, de expedições, de viagens, histórias de grandes batalhas, vitórias gloriosas, derrotas amargas: aquela árvore antiga guardava tudo na sua memória monumental e murmurava-o a Tuala quando a jovem se escondia no meio das suas raízes. Por vezes, por trás da narrativa do carvalho, a jovem discernia outras vozes mais altas, etéreas e trocistas, ou baixas e furtivas, restolhando, e tentava calá-las.

À noite, Tuala contava a si própria as histórias que a árvore lhe contara enquanto Brenna soluçava. Não estava certo. Nada daquilo estava certo. Porém, Tuala sabia que tinha de ser boa, acontecesse o que acontecesse. Se não se portasse bem, Broichan não a deixaria regressar e teria de ficar naquele lugar para sempre, um lugar onde ninguém era feliz e onde não tinha Bridei.

Brenna fora muito firme quanto à questão de ela não ser vista por ninguém. Tinham efectuado a viagem de manhã cedo, sem esperar pelo nascer do Sol e Tuala levava uma capa com capuz para esconder o rosto. A cabana de Cumeeira de Carvalho raramente tinha visitantes porque estava num local isolado. No entanto, Brenna fora muito clara.

— Broichan disse que ninguém te pode ver. Eu não posso exigir que fiques dentro de casa, seria demasiado para uma criança de seis anos. Porém, não podes falar com estranhos. Nem uma palavra, compreendes? Se vires alguém, entras imediatamente. É muito importante, Tuala. Se atrais as atenções, ficamos as duas metidas num grande sarilho.

— Está bem, Brenna — disse Tuala sem convicção, reparando nas olheiras por baixo dos olhos vermelhos da jovem. — Eu porto-me bem.

No terceiro dia, Tuala estava no seu local habitual, acocorada entre as raízes do carvalho com um ouvido encostado à base do tronco, escutando de olhos fechados. A voz lenta e profunda da árvore entrava-lhe na mente. Então, subitamente, a jovem tomou consciência de que algo mudara. Tuala abriu os olhos.

Havia outra coisa qualquer sentada no mesmo lugar, alguém pouco maior do que ela, vestida de cinzento, encapuzada, uma silhueta silenciosa, sombria, sentada um pouco mais longe, confortavelmente encostada a um pequeno arco de raízes emaranhadas. Fosse quem fosse, aparecera sem fazer ruído. Tuala sentiu um arrepio. Seria um dos Boa Gente, um dos que a deixara à porta de Bridei a meio da noite? Enquanto olhava, imóvel, a silhueta virou a cabeça para revelar o rosto de uma anciã, não um rosto semelhante ao de Wid, todo enrugado, antes um rosto pequeno, forte, de nariz adunco e olhos tão escuros como contas de obsidiana polidas. Tuala não conseguia perceber se era uma mulher ou outra coisa qualquer. Fiel à promessa que fizera a Brenna, manteve a boca fechada.

— Bom dia — disse a estranha.

Parecia indelicado responder com o silêncio. Tuala acenou com a cabeça.

— Um ótimo local para escutar: ainda bem que o descobriste. E é um ótimo local para uma viajante descansar os pés. Não te importas de o partilhar comigo, pois não?

Tuala abanou a cabeça.

— Tu és cuidadosa — disse a estranha. — Compreendo. Permite que me apresente. O meu nome é Fola. Não sou da tua espécie; suponho que deve ser óbvio. Porém, não fugiste.

Tuala sentiu um baque no coração. Não sou da tua espécie... aquilo queria dizer que aquela mulher era um dos habitantes da floresta, um daqueles seres manhosos que deixavam vislumbrar uma mão branca ou o batimento de uma asa, a sombra de uma capa leve como uma teia de aranha ou uns cabelos prateados e que depois, quando uma pessoa olhava outra vez, desapareciam como se nunca ali tivessem estado Não; não podia ser. Ela tinha vindo da floresta, ela era um dos Outros Aquela mulher, Fola, pertencia ao mundo dos homens e pensava ter tropeçado numa criança pertencente aos Boa Gente. A necessidade de uma explicação assomou aos lábios de Tuala: Eu vivo com os humanos, vivo na casa de um druida, mas a jovem engoliu-a.

— Não falas, hoje? — perguntou Fola calmamente. — Suponho que me compreendes, apesar de tudo. Eu tenho muitas coisas interessantes para dizer; faz parte do meu trabalho ensinar aos jovens tudo o que sei e que posso. O mundo está a mudar rapidamente. Se não falarmos das coisas, esquecemo-nos delas.

Tuala acenou novamente com a cabeça. A jovem ouvira aquele mesmo argumento da boca de Bridei. O jovem dissera-lhe que, no sul, muita gente já não respeitava os deuses; que as pessoas não queriam saber da sabedoria dos antepassados.

— Aqui, na floresta, não sabes essas coisas, suponho — continuou Fola, cruzando as pequenas mãos nos joelhos. Para uma mulher adulta ela era notavelmente pequena; tão pequena que chegava a ser perturbador. Em Pitnochie, eram todos maiores do que Tuala, até Bridei.

— A História é preciosa; os rituais são preciosos. Se não quisermos saber da História e dos rituais, deixamos de saber quem somos disse Fola. — Se não quisermos saber dos nossos antepassados, das histórias, ficamos à deriva, sem identidade. Que idade tens, criança? Talvez a pergunta seja estúpida; vocês não contam o tempo como nós.

Tuala ergueu uma mão aberta, cinco dedos, e o polegar da outra mão.

— Ah. Seis anos. Uma idade excelente. Com um ano, ainda conseguimos ouvir a magia da terra, do céu e do oceano nas suas formas verdadeiras e puras; com mais um, começamos a compreender as coisas de outra maneira: a lógica, o discernimento, os números, a linguagem e os sinais. Ou podemos, se formos humanos e nos derem oportunidade. Os meus alunos mais novos não são mais velhos do que tu. Estou a ver que estás interessada; os teus olhos brilham. Gostavas de aprender coisas?

Tuala acenou vigorosamente com a cabeça. As suas mãos estavam enclavinhadas uma na outra. Aquilo era excitante; mal podia esperar para contar a Bridei.

— Se, ao menos... — disse Fola, pensativa. — Se, ao menos, houvesse lugar para ti, o que não aprenderíamos, tu e eu... Nunca tentaria tal coisa, claro. Não tenhas medo. Não há nada mais cruel do que afastar uma criança daquilo que ela conhece e ama apenas porque acreditamos que é o melhor para ela. Os meus alunos estão comigo porque querem. Só podemos aprender se empenharmos o nosso coração. É claro, algumas pessoas dizem que a educação de uma rapariga é um desperdício.

— Não é nada! — disse abruptamente Tuala, recordando que a recusa de Broichan quanto às suas aspirações a deixara profundamente ferida. — Eu queria aprender e podia ter aprendido. Erip e Wid não se importavam, mas não me deixaram! — A jovem fechou a boca com força, mas era demasiado tarde. Quebrara a promessa que fizera. Falara com uma estranha.

Algo nas suas palavras fizera brilhar o olhar de Fola.

— Quem é que não te deixou? — perguntou ela cuidadosamente. — Podes dizer, querida, eu não faço mal a ninguém.

— Broichan — sussurrou Tuala. Seguiu-se outra pausa. Então, Fola perguntou:

— E quem é esse Broichan? O teu pai?

Tuala abanou a cabeça.

— Não, é o pai adotivo de Bridei. Bridei está a ser educado, passa o dia todo a aprender, mas quando perguntei a Broichan se eu também podia, ele ficou zangado comigo. Ele disse que o que eu tinha de saber era cozinhar e coser, mas eu não sou boa nessas coisas. Não é justo.

— Em que coisas é que és boa?

— Não sou boa em desporto, nem na luta. Bridei aprende as duas coisas: ele é o melhor arqueiro de Pitnochie. Eu sou boa amazona. Bridei ensinou-me. E tenho a certeza que era capaz de fazer o que disse — rituais, história, números e línguas. O que eu quero é sentar-me ao lado de Bridei enquanto Erip e Wid lhe ensinam coisas. Não faço barulho. Não interrompo nada. Mas Broichan não me deixa. Bridei tenta ensinar-me coisas, mas anda tão ocupado que não tem tempo.

— Interessante — disse Fola. — Ter-me-ei enganado a teu respeito? Acerca do que és?

Com relutância, Tuala abanou a cabeça.

— Mas é evidente que não vives nos bosques.

Tuala abanou novamente a cabeça, apercebendo-se de que já tinha dito mais do que devia. Porém, a anciã não achava. Talvez Fola não fosse quem dizia ser. Talvez fosse um inimigo tentando apanhá-la numa armadilha. Não tinham tentado matar Bridei uma vez, havia muito tempo?

— Como é que te chamas, pequena?

— Tuala. — Já não fazia diferença.

— Um nome esplêndido, um nome de princesa. Creio que esse tal Broichan se enganou a teu respeito. Os homens são propensos a isso, mesmo os mais inteligentes. Diz-me uma coisa: Se vives em Pitnochie, que estás a fazer aqui sozinha a meio caminho de Cinco Irmãs, em território de lobos?

— Também está sozinha em território de lobos — respondeu-lhe Tuala.

— Eu sou crescida e sou responsável pelos meus atos. Só respondo perante os deuses — disse Fola calmamente. — Tu, segundo acabas de me dizer, tens seis anos e não és o duende que eu pensava que eras, és um membro da casa de um druida. Diz-me uma coisa, ele mandou-te embora?

Um aceno de cabeça.

— Pois, já percebi. Um problema. Ele recebeu-te, não se importou de quebrar as regras, mas tornar o assunto público é outra questão. Os homens são assim, escravos das convenções.

Havia um ponto que tinha de ser esclarecido.

— Não foi Broichan que me recebeu, foi Bridei. A Que Brilha mostrou-lhe o lugar onde eu estava.

Fola escutava atentamente.

— Bridei — disse ela pensativamente. — O rapaz?

Tuala acenou com a cabeça.

— Ele é maior do que eu — disse ela — e é muito bom em tudo. Broichan disse que eu o atrapalhava, que lhe perturbava a educação.

— Ai disse? Bem, talvez tenha uma certa razão. Portanto, ficas aqui até depois do Solstício de Verão, não é?

— Como é que sabe? — perguntou Tuala. — E como é que sabe que Broichan é druida?

— Sou uma Mulher Sábia, Tuala. A minha função é saber coisas. E agora — disse ela, pondo-se de pé e agitando a sua longa capa cinzenta — tenho de ir. Espero que os lobos não tenham fome. Ah, tenho aqui uma coisa que é capaz de te agradar. Onde é que ela está? — Ela tinha um saco atado com uma corda. — Está aqui — disse a Mulher Sábia, metendo a mão numa bolsa e tirando-a com uma coisa felpuda, cinzenta e inegavelmente viva. — Encontrei-o no caminho disse Fola. — Eu já tenho um gato, Shade, que não está para aturar usurpadores. Vais gostar deste; é uma gata e tem uma risca, o que demonstra que é independente.

Tuala olhou para o pelo suave do animal, para o seu nariz cor-de-rosa, para os grandes olhos, estranhos, e apaixonou-se. A jovem estendeu os braços e apertou o gatinho, sem qualquer tipo de luta, apesar do tempo que estivera preso no saco, contra o peito. A cauda do pequeno animal parecia uma escova de pêlos longos e sedosos.

— Ela não é uma gata do campo, é selvagem, é uma criatura da floresta — disse Fola. — Creio que ela gosta de ti, tal como gostou de mim. Cada um com o seu igual. E agora tenho de ir; Pitnochie ainda é longe.

Tuala, absorta a olhar para o seu presente inesperado levou um momento a reagir.

— Pitnochie? Vai para Pitnochie?

Fola acenou com a cabeça, curvando os lábios num pequeno sorriso.

— É verdade. Conheço muito bem o teu druida, mas ainda não conheço o rapaz, o filho adotivo dele. Quanto a ti, foste uma surpresa total. Tens alguma mensagem para ele?

Tuala tinha muitas. Para Bridei: Tenho saudades tuas. Tenho saudades das histórias. Para Broichan: Quero ir para casa. Não podia enviar nenhuma delas. Segurando no gato com uma mão, Tuala meteu a outra na bolsa do seu cinto e tirou uma fita em tempos azul mas que agora estava desbotada. Os seus cabelos estavam livres e caiam-lhe pelos ombros abaixo.

— Importa-se de dar isto a Bridei? Mas não quando Broichan estiver presente, ele não quer que eu lhe mande mensagem nenhuma.

— Dou-lhe, só?

— E diga-lhe que eu sou feliz aqui.

— És capaz de mandar a esse teu amigo uma mensagem falsa? — Perguntou Fola. De repente, a Mulher Sábia pareceu-lhe mais alta e a sua expressão severa, tão severa como a de Broichan.

Tuala não disse nada. Encostada ao seu peito, a pequena gatinha sentia-se quente e confortável; o animal ronronava e a jovem sentia a sua vibração em todo o corpo.

— Tu não és nada feliz; basta olhar para ti e a tua amiga também sente — disse Fola. — Tu não queres estar aqui, queres ir para casa. Tu não queres cozinhar nem coser, queres ser uma estudiosa. Por que é que as coisas não são o que deviam ser?

— Eu não quero que ele se preocupe comigo — disse Tuala, muito séria. — Só porque eu me sinto triste não é razão para ele também estar. E... — Não, guardaria aquilo para si, custasse o que custasse. Não podia falar da promessa que fizera a Broichan, da qual dependia todo o seu futuro em Pitnochie.

— Muito bem — disse a Mulher Sábia, guardando a fita e colocando o saco às costas. — Eu digo-lhe que estive contigo e que tu me disseste para lhe dizer que pensas nele e que estás ansiosa por regressar a casa. Um compromisso, honesto. Eu não entrego mensagens falsas.

— Obrigada — disse Tuala, enquanto Fola se debruçava para pegar no bordão que tinha ficado entre as raízes do carvalho. A jovem reparou que o pau de salgueiro se ergueu sozinho e que se aconchegou na mão da Mulher Sábia. — Obrigada pela gata e obrigada pela mensagem. Lamento se... — hesitou ela, sem saber como transformar os seus pensamentos em palavras.

— Lamentas se me julgaste mal? Lamentas se pensavas que eu era outra pessoa? Não peças desculpa por isso, Tuala. É bom ser cuidadoso. Além disso, eu também me enganei a teu respeito. Toma bem conta desse animal, é raro e pode ser-te útil, um dia. Adeus. Que A Que Brilha ilumine o teu caminho, pequena.

— Que a Mãe de Tudo te ampare — respondeu Tuala. O costume das antigas despedidas fora uma das primeiras coisas que Bridei lhe ensinara.

Fola sorriu.

— Espero voltar a ver-te, um dia.

— Também eu — murmurou Tuala, sabendo que era pouco provável enquanto o seu futuro dependesse de Broichan. A gatinha mexeu-se. A jovem olhou para ela, afagou-lhe a cabeça com os dedos e quando olhou novamente para cima a Mulher Sábia tinha desaparecido, como se não tivesse passado de um sonho.


Do alto do carvalho, dois pares de olhos tinham seguido a cena com interesse. Um dos pares era luminoso, líquido, o seu proprietário tinha cabelos prateados, estava muito ligeiramente vestido e era, indiscutivelmente, uma fêmea. O outro par de olhos era redondo e castanho e pertencia a um rapaz de faces coradas cuja figura estava coberta de hera e de fetos. Nenhum deles pertencia à espécie humana.

— Ela cresceu depressa — observou a rapariga. — Está forte, é inteligente e sábia, tal como calculamos.

— Este encontro foi fortuito — comentou o rapaz. — Teria sido melhor se tivesse acontecido mais tarde. Há de chegar o tempo em que o medo da influência desta criança, por parte do druida, ultrapassará a sua lealdade para com A Que Brilha. E a Mulher Sábia quer a rapariga, sabe que ela é forte e reconhece o seu potencial.

— Estás a ir demasiado depressa — disse a rapariga com um movimento dos seus cabelos brilhantes. — Tuala ainda é uma criança, assim como Bridei. Ambos devem ser testados rigorosamente e durante muito tempo. O futuro que espera o rapaz exige a maior autodisciplina, a maior devoção aos deuses e, mais importante, a capacidade de tomar decisões e de confiar nelas.

— O papel de Tuala vai ser igualmente difícil — disse o rapaz. Ela não é feliz; já foi posta à prova e não foi obra nossa.

— Aquilo? — troçou a rapariga. — Uma pequena viagem na companhia da ama? Não sejas tão mole! Espera até esta coisinha ser mulher; nessa altura é que a vamos pôr à prova. Bridei tem de provar que é digno da confiança da Que Brilha; Tuala tem de igualar a força dele. Serão ambos postos à prova, foram escolhidos, não podem defraudar a deusa.

O rapaz ficou silencioso durante alguns momentos, empoleirado no ramo mais alto da árvore e balançando as pernas. No chão, Tuala sentou-se de pernas cruzadas com a pequena gata nos joelhos, uma silhueta minúscula no meio das velhas raízes do carvalho.

— Hum — murmurou ele. — Mais cedo ou mais tarde, Broichan acaba por mandá-la definitivamente embora. Quando estiver a morrer, o druida vai chorar lágrimas amargas por causa disso.

A rapariga virou os olhos pálidos para ele.

— Acha-o assim tão cego?

— Nisto, em particular, é. O pensamento dele está todo em Bridei, na sua preparação.

— Ainda bem — disse a rapariga. — Não falta muito tempo. Vamos! Não é preciso ficarmos aqui mais tempo. Tuala há de regressar ao bosque, aos lugares secretos. Não o pode evitar, está em seu sangue, tal como em nós. Podemos tirar partido disso. O apelo do sangue é a chave da força.

— Talvez — disse o rapaz com um último olhar para o solo. A pequena silhueta estava de regresso aos arbustos de azevinho com o seu novo tesouro cuidadosamente aninhado nos braços.

— Vamos! — disse novamente a rapariga, e com um clarão súbito e um bater de asas prateadas os mensageiros da Que Brilha desapareceram.


CAPÍTULO CINCO


— Finalmente, juntos — disse Broichan. — Os cinco homens estavam reunidos nos seus aposentos com o guarda-costas de Aniel, Breth, no lado de fora da porta e a casa toda em silêncio. No exterior, a Lua brilhava numa noite de Verão cheia de murmúrios de pássaros e brisas suaves; ainda faltava um dia ou dois para que A Que Brilha atingisse a sua plenitude e o Solstício de Verão aproximava-se a passos largos. Naquela noite, a atmosfera do santuário do druida era de conspiração, pesada. Havia muito que os cinco homens esperavam aquele conselho.

— É verdade — disse Aniel, sentado à mesa de carvalho, com um pergaminho, uma pena de ganso e o respectivo tinteiro na sua frente.

— E é melhor aproveitarmos a oportunidade porque não tenho dúvidas de que eu, pelo menos, estou a ser observado pelos meus adversários, o mesmo se passando com Broichan. Se a notícia da nossa reunião chega aos ouvidos errados, perdem-se anos de esforços e o empreendimento corre risco. Continuo a dizer que isto podia ter sido feito abertamente desde praticamente o princípio, talvez na corte, com o apoio público do rei Drust.

— Todos nós sabemos qual é a tua opinião, Aniel. — Fola estava de pé em frente da lareira e a sua silhueta era recortada pelas chamas. O seu olhar fulminante era o mesmo que utilizava para devastar os seus estudantes mais recalcitrantes. — Se acreditas no que dizes, não é preciso perderes tempo a falar no que as coisas podiam ter sido, concentra-te antes no presente e no futuro. Além disso, nem tu nem Broichan têm o monopólio do risco, podes ter a certeza. No fim de contas, eu sou uma tutora das filhas do poder. Diz-me uma coisa: Eu ainda não tive tempo de conhecer o rapaz visto que fui a última a chegar. Dá-me o teu veredicto, se já o tens. O olhar presunçoso de Broichan justifica-se?

— Fola, a Franca — troçou Talorgen. — Quanto a mim, gostei do que vi. O jovem Bridei já fala como um homem, fluentemente e com prudência, fala com conhecimento de causa, não tem medo de entrar em debate e conhece as suas limitações. Além disso, é muito bom com o arco.

Aniel sorriu secamente.

— Ele sabe quando deve ganhar e quando deve perder — disse o cavaleiro. — Com o tempo, acredito que conseguirá conquistar os corações dos homens. Porém, ainda é novo. O seu comportamento ainda é enganador. As lições do próximo ano deverão ser mais duras. As decisões que tomará quando for adulto serão muito difíceis; Bridei terá de desenvolver a força moral suficiente para as tomar sem pestanejar.

No exterior, uma ave predadora deu um grito alto que ecoou por toda a floresta. As chamas da lareira crepitaram e Fola desviou-se para permitir que o seu calor atingisse os homens porque, apesar de se estar no Verão, os aposentos de Broichan continuavam frios.

— Uist? — perguntou Fola, erguendo as sobrancelhas.

O velho druida estava junto da janela estreita a olhar para o exterior, como se só pudesse sobreviver se uma parte de si próprio continuasse livre dos limites de uma habitação de pedra e colmo. Quando se virou para os restantes, o seu olhar era vago e estava desfocado.

— É uma viagem difícil para um simples rapaz — disse ele calmamente. — Uma jornada de muitas curvas e viragens, de facadas nas costas, de falsos amigos e aliados desleais. A honestidade, a nobreza de espírito, o talento e a compaixão ajudá-lo-ão. O rapaz conhece os poderes antigos, ama-os e respeita-os. Os homens respeitá-lo-ão por isso. Segui-lo-ão como um rebanho. Suponho que o resultado destes anos de planejamento agrada a todos. Porém, Bridei pagará um preço alto. Nem o mais forte homem de Fortriu suportaria o futuro que antevejo para ele. Recordai-vos disso porque quando chegar a ocasião ele precisará de todos os amigos que tiver. — Uist virou-se novamente para a janela; do seu traje caiu uma chuva de pequenas partículas que caíram no chão bem varrido do quarto.

— O meu filho adotivo tem força para enfrentar o futuro, seja ele qual for — disse Broichan com voz profunda e segura. Uist não respondeu.

Uns momentos mais tarde, o chefe tribal Talorgen tomou novamente a palavra.

— O Solstício de Verão vai ser um teste. Talvez os deuses nos digam se o rapaz é digno do futuro que traçamos para ele. Chegada a ocasião, muitos reclamarão. Se temos a certeza de que Bridei é o escolhido, temos de planear o que se segue. A sua educação tem sido boa, é óbvio, a julgar pela maneira como ele fala. Porém, o rapaz precisa de novas oportunidades...

— A sua educação está nas minhas mãos — disse Broichan, num tom que não admitia réplica. — Concordamos quando tomamos a decisão. Eu é que determino quais as oportunidades que Bridei deve aproveitar e quando.

— Talorgen tem razão — disse Aniel, fixando Broichan. — Tens o rapaz escondido há tempo suficiente e falas como se este assunto te dissesse exclusivamente respeito. Este conselho é constituído por cinco membros. Nenhum de nós deve ser posto de parte. Partilhamos as responsabilidades; partilhamos as consequências do nosso esquema, boas ou más e, como equipa que somos, temos de ser todos a instituir as dificuldades e as compensações. O rapaz tem de aprender a pensar por si próprio. Donal disse-me que Bridei nunca foi a uma das aldeias, ou ao lago, ou a casa de outros rapazes da mesma idade e educação e terá de o fazer para vir a ser um condutor de homens. Tu não estás a educar um futuro druida, meu amigo, estás a educar um futuro rei.

As palavras de Aniel caíram num ambiente silencioso, pleno de esperança e de perigo.

— Além disso — acrescentou Fola, muito animada — terá de ser visto na corte. Não para já, mas dentro de alguns anos. Drust tem de o conhecer. Os favores do rei só fortalecerão as suas hipóteses. Existem outros jovens de sangue real, Carnach de Thorn Bend, por exemplo. Não vamos a lado nenhum com um candidato desconhecido, por mais capaz que seja.

— Sentemo-nos — disse Broichan — e bebamos um pouco de hidromel. — O druida olhou para o conselheiro do rei, Aniel, cujo olhar e expressão eram circunspectos.

— Dá-me a tua opinião sincera. Quanto tempo temos? Mais cinco anos? Sete?

Aniel tossiu para clarear a voz.

— Pelo menos isso — disse ele. — Menos, apesar das capacidades do rapaz, é impossível. A saúde do rei é razoável; Drust sofre com o frio no Inverno e respira com dificuldade, mas se não acontecer nenhuma calamidade, vive outros sete anos, pelo menos. Talvez mais, se os deuses nos sorrirem.

— Rezemos por isso — disse Fola, virando as suas feições enrugadas para Broichan, que a fixou com os seus olhos escuros e impenetráveis. — Drust precisa de ti na corte, velho amigo — continuou a Mulher Sábia. — Ele tem saudades dos teus sábios conselhos.

— Há outros, tão capazes como eu — disse Broichan secamente. — Entre eles, Aniel; haverá alguém mais bem qualificado? Drust pode muito bem passar sem mim.

— As hipóteses de manter as facções sob controle e de conseguir alguns progressos na frente ocidental seriam bem maiores se estivesses ao lado dele — observou Aniel. — Ele confia em ti; sempre confiou porque sabe que o teu poder te vem dos deuses. A mim, tolera-me, muito simplesmente.

— Nesse caso, tens de fazer com que ele mude de atitude. — Havia um tom de aspereza na voz de Broichan e a boca de Aniel cerrou-se. — Jurei dedicar quinze anos da minha vida a esta tarefa e vou cumprir a jura que fiz. Se for preciso, dar-lhe-ei mais anos ainda. As ansiedades de Drust são uma coisa. A outra, o futuro de Fortriu, a sobrevivência do nosso povo, estamos aqui a discuti-la, esta noite.

— Isso é tudo muito bonito — comentou Talorgen — mas oxalá os celtas não nos ataquem no espaço de dois anos, ou quatro, ou cinco. Quanto tempo vamos ter que esperar pelo nosso novo rei, ao mesmo tempo que o velho enfraquece cada vez mais e os nossos inimigos se aproximam? A tua presença na corte daria novo alento a Drust. Talvez a tua influência conseguisse que Circinn se aproximasse e se sentasse à mesa do conselho. Talvez pusesse em causa aqueles que procuram subtilmente desestabilizar o governo do rei e agarrar as oportunidades para eles próprios. O rapaz podia ir contigo para Caer Pridne. Eu compreendo que precisaria de protetores, mas trataríamos disso.

— Os protetores não afastaram o veneno dos meus lábios na última vez que me aventurei na corte de Drust, o Touro. Os protetores não evitaram que os assassinos entrassem nos meus bosques. Neste momento, tenho mais efetivos, a segurança é melhor, mas os tempos vão perigosos. O rapaz é jovem; jovem e inocente, não tem consciência do futuro que tem pela frente. Eu escondi-lhe a verdadeira identidade da mãe. Bridei aplicar-se-á com mais intensidade se não tiver de sentir nos ombros o peso daquilo que esperamos dele. Acredita que não é apropriado expô-lo neste momento aos perigos da corte.

Os outros quatro elementos do conselho estavam com os olhos postos nele.

— O que eu acredito — disse Aniel sem rodeios — é no inacreditável até agora: Broichan, o mais desligado dos homens, gosta do seu filho adotivo e quer ficar com ele durante mais algum tempo. Esses pensamentos podem ser perigosos, meu caro druida; podem intrometer-se entre os nossos objetivos comuns.

— Vamos, vamos — disse Uist sem se virar — Não nos podemos dar ao luxo de ter sequelas entre nós. Fola, sugeriste um compromisso. Concordemos com ele e deixemos que os deuses escolham por nós de uma vez por todas.

Fola cruzou as suas pequenas e asseadas mãos na sua frente, em cima da mesa.

— Muito bem — disse ela. — Bridei fica aqui mais uns anos porque é verdade, ele ainda é muito novo. Porém, daqui para o futuro, poderá ter visitas. Talvez os filhos de Talorgen possam vir aqui passar um Verão. Não haveria perigo, certamente. Bridei poderá sair de vez em quando com a devida proteção, evidentemente. O rapaz deve poder assistir aos festivais nas aldeias, ouvir um pouco de música e gozar a companhia de outras pessoas. Só Corvo Negro sabe o tipo de vida familiar que lhe arranjaste nesta casa de gente tão obstinada. A mãe de Bridei teria ficado horrorizada. Já lhe deve ter custado muito separar-se dele, ter de escolher. Anfreda nem compreendeu a importância da fé, do poder dos velhos costumes na união dos Priteni e na manutenção da sua força. Ela deu-nos o filho com mais hipóteses de levar a cabo a grande tarefa: o mais inteligente, o mais forte, aquele em cujas veias o seu sangue corre com mais força, com mais pureza. Porém, ela é mãe: deve ter sofrido imenso. Suponho que ela terá pensado que ele seria educado na companhia de outras crianças, ou nunca o teria deixado sair de casa.

Broichan manteve-se em silêncio.

— Dentro de um ano ou dois mandá-lo-ás passar uns tempos a Fonte do Corvo — continuou a Mulher Sábia. — Então, ele já será um adolescente, a precisar de um período em casa de um chefe tribal. Dreseida é parente da mãe dele; ela recebê-lo-á com alegria, estou certa. Por essa ocasião, já lhe terás falado da sua linhagem e do seu futuro. A partir de então, Talorgen poderá apresentá-lo na corte, juntamente com os seus próprios filhos. Desse modo, o rapaz não atrairá tanto as atenções indesejáveis. É claro que, entretanto, passará algum tempo aqui. Seria uma estupidez passar sem os ensinamentos de Erip e Wid. Não sei como conseguiste arrancar aqueles dois malandros ao seu exílio auto-imposto, mas não podias ter feito melhor.

Broichan olhava para a lareira, como se não a estivesse a ouvir.

— Estás preocupado — disse Talorgen. — Equipa-o com conhecimentos mentais e físicos e dá-lhe bons guardas. Donal é o melhor de todos: é claro que ele vai com o rapaz. Eu forneço outros, discretamente. A presença de Bridei em Caer Pridne será simplesmente como amigo dos meus filhos. Creio que conseguiremos evitar atrair as atenções.

— Se soubéssemos quais são os inimigos a temer e os que temos apenas de vigiar, seria muito mais fácil. Quando chegar a hora, haverá muitos candidatos ao trono. Cada um deles terá os seus apoiantes. Cada um deles será vulnerável.

— Ainda falta muito para isso — disse Fola. — Temos muito tempo para fazer planos. Por agora, estamos de acordo?

— Esperemos até ao Solstício. — Se Broichan tivera um momento de incerteza, desaparecera; o seu tom de voz era de comando. — Se os deuses falarem, se confirmarem aquilo que nós achamos ser verdadeiro, far-se-á como dizes.

— E se não? — perguntou Aniel, arqueando as sobrancelhas.

— Se não, devolvo-o ao pai — disse Broichan suavemente. — E agora retiremo-nos; falaremos novamente amanhã. Sei que Talorgen pretende sair de madrugada a cavalo. O meu filho adotivo mantém-no ocupado o tempo todo. Boa noite, meus amigos, que A Que Brilha ilumine os vossos sonhos.

Cada um dos homens fez as suas despedidas de cortesia. Fola, porém, continuou sentada à mesa de carvalho e ao ver o seu olhar, Broichan fechou a porta depois de os outros saírem e sentou-se na sua frente.

— Então? — perguntou ele. — Desagradei-te de algum modo?

A expressão de Fola sugeria uma pergunta.

— Desagradar? Não, velho amigo. No entanto, acrescentaste uma surpresa a uma outra que tive no caminho para cá. Houve referências, esta noite, ao isolamento de Bridei, à sua falta de companhia numa casa de homens e mulheres adultas.

— E?

— Não é verdade, pois não? — perguntou a Mulher Sábia, servindo- se do jarro de hidromel, enchendo uma caneca e passando-a ao druida. — Não existe apenas uma criança na fortaleza do enigmático e poderoso Broichan, em tempos mago e conselheiro do rei. Existem duas.

Broichan franziu muito ligeiramente o sobrolho. O druida manteve- se silencioso.

— Como é que ela veio aqui parar? — perguntou Fola suavemente. Ouvi uma história acerca da Lua e o Solstício de Inverno.

— Quem te contou? — O tom do druida era gelado.

— Não interessa. Deves-me uma resposta. A educação de Bridei não é teu privilégio, meu amigo, por mais que o desejes. É nosso; foi-nos dado pelos deuses, aos cinco. Os membros do nosso conselho não devem mentir uns aos outros.

— Eu não menti.

— Escondeste a verdade, o que vem a dar no mesmo. Trata-se de um assunto que pode afetar o futuro do rapaz. Devias ter-nos dado conhecimento mais cedo. Ela já cá está há seis anos, segundo penso. O comportamento definitivo de uma criança pode determinar-se num espaço de tempo menor. Por que ficaste com ela aqui? O sentimentalismo nunca fez parte da tua natureza; a compaixão não é a maior das tuas qualidades.

O druida sorriu friamente.

— És muito franca, Fola, como sempre.

— Não vejo por que não o hei-de ser contigo. Tu és suficientemente forte para ouvir a verdade.

— Diz-me como é que ouviste falar da criança. Ela não está cá, agora. Não a podes ter visto.

— Queres negociar isto? Queres uma troca de informações? — perguntou Fola, franzindo o sobrolho, chocada.

— Atrever-me-ei a isso com Fola, a Furiosa, a olhar para mim desse modo? Foi um simples pedido. A minha casa está proibida de falar no assunto, tal como noutros. Preciso de saber quem quebrou a promessa. Não pode haver desobediência em Pitnochie.

— Essa regra também se aplica às crianças? — perguntou Fola.

— Todos devem obedecer. Não pode haver quebra de disciplina — disse Broichan. Depois de uma pausa, o druida continuou: — Que estás a dizer? Que encontraste a rapariga? Que Tuala falou contigo?

— A mesma, seis anos de idade, cheia de saudades, lutando com quantas forças tem — disse a Mulher Sábia, cruzando os braços em cima da mesa. — Passei pelo lugar para onde tu a mandaste. Ela não fazia tenção de quebrar a promessa, Broichan. A pequena aguentou-se muito bem. Deu-me um bocado de trabalho fazer com que ela me contasse a história.

— Será punida — disse o druida. — O lugar dela na minha casa já de si é precário. A rapariga pode ser nova, mas já compreende o castigo para a desobediência.

— Que é? — O tom de Fola não revelava nada dos seus pensamentos.

— Esta casa não lhe dará abrigo se não seguir as regras impostas.

— Eras capaz de a mandar... para onde?

Broichan franziu o sobrolho.

— Tu percebeste quem ela é, sem dúvida. A história é verdadeira: a rapariga foi deixada à minha porta na noite do Solstício de Inverno, uma noite de lua cheia. Bridei acordou e meteu-a dentro de casa. Ele acredita que A Que Brilha lhe confiou a criança, e a nós; que a deusa a entregou aos nossos cuidados. O rapaz conseguiu o acordo do pessoal da minha casa por meio de um truque de magia caseira. Quando regressei de Caer Pridne, ela já era o coração da casa, não a pude mandar embora.

— Um problema — observou Fola em voz baixa. — Bebe o teu hidromel e não estejas tão irritado. Compreendo o que sentes e também compreendo as tuas dificuldades. Não fui tutora de raparigas estes anos todos para nada. É evidente que a rapariga está muito ligada a Bridei e não há dúvida que ele sente o mesmo, baseado na convicção de que os espíritos o nomearam como seu protetor. O fato de lhe teres negado a companhia de outras crianças fortaleceu, evidentemente, os laços. Os dois vêem-se como irmão e irmã; precisam um do outro visto que nenhum deles tem família.

— Como pai adotivo dele — disse Broichan com a voz tensa — fiz o possível por guiar e apoiar o rapaz. Ele tem os melhores tutores e uma casa onde não lhe falta nada.

— É triste — observou Fola — tu acreditares que isso basta. Por que mandaste Tuala embora? Ela parece ser uma criança calma e educada, uma criança que não te causaria embaraços, nem sequer neste momento, quando estás na companhia de quatro assustadores estranhos.

— Isso não é bem assim. Ela é o que é e aí é que reside o dilema, eu respeito os deuses; não desobedeço À Que Brilha se, por acaso, a teoria de Bridei estiver correta. Eu ensinei-o a respeitar todas as formas de vida e a ver todos os seres vivos como parte de um todo. Por isso é que Tuala ficou. Teria sido uma coisa simples se Bridei fosse mesmo meu filho, destinado a ser um mago ou um guerreiro. Porém, ele não é meu filho. Bridei é filho de uma princesa dos Priteni e o seu destino é liderar o nosso povo como um verdadeiro rei. Ele é o nosso candidato. Quanto é que pensas que custou a Anfreda prometer-nos um filho para este objetivo, mesmo antes de ela deixar Fortriu e ir para uma terra distante? O caminho de Bridei tem sido planejado, passo a passo; todas as curvas devem ser controladas. Se o seu futuro não for determinado pelo nosso conselho de cinco, será a ruína e a nossa pobre terra nunca mais se unirá de novo na prática da antiga fé. Concordo que a rapariga parece inocente, mas é um elemento imprevisível neste empreendimento, o único fator alheio ao nosso controle. Tu conheces a natureza caprichosa dos Boa Gente. Não nos podemos dar ao luxo de permitir que ela se insinue nos nossos planos como um fio deformado e retorcido numa tapeçaria perfeita.

— No entanto — disse Fola, em tom neutro — não tens para onde a mandar. Quem ficaria com ela? Não podes bani-la sem trair a confiança da Que Brilha. Não a podes mandar embora sem perder o amor e o respeito do teu filho adotivo! Não admira que franzas tanto o sobrolho.

— Sinto que a criança é perigosa. Ela ainda é pequenina, mas já tem algo: uma força para além do óbvio. A rapariga tem medo de mim, não gosta de mim, é evidente no seu comportamento. Sinto que, tal como um animal selvagem meio domesticado, só está à espera da ocasião propícia para morder a mão que a alimenta. Um animal assim pode minar os nossos planos. Se ela influenciar Bridei, fica com capacidade de o desviar do seu caminho.

— Talvez ande aborrecida — disse Fola.

— Aborrecida? — exclamou o druida com um tom de espanto na voz. — Impossível. Aqui, ninguém tem tempo para isso.

Fola olhou para ele.

— Meu caro — disse ela — eu sinto uma certa simpatia por Bridei e por Tuala ainda mais porque a tua atitude diz-me que não percebes nada de crianças. Nunca foste novo? Já te esqueceste do que significa sermos postos de lado, sentirmo-nos sós, ser-nos negado o que os outros recebem por direito? Ou apareceste assim, já adulto, capaz de lidar com o que o destino te apresenta?

Broichan não respondeu.

— Eu não gosto de acordos e negociações — disse a Mulher Sábia bebendo o resto do hidromel da sua caneca. — Apesar disso, talvez te possa propor algo que resolva o teu dilema, ao mesmo tempo que me tira dos ombros a preocupação quanto à educação destas duas crianças.

— Diz lá.

Fola pôs-se de pé.

— Ainda não. Primeiro quero falar com o rapaz, para ver se a minha intuição está certa. E vou esperar até depois do ritual do Solstício. Talvez, até lá, já tenhamos uma resposta dos deuses. Nessa ocasião, voltarei a falar contigo.

— Tencionas discutir o assunto com os outros companheiros, entretanto? Saber quais são as suas opiniões quanto à minha incapacidade como pai adotivo?

Fola fez uma pausa antes de responder.

— Já vi que toquei num nervo sensível; desculpa, nunca pensei que tivesses essas coisas, velho amigo. Por agora, a coisa fica entre nós. Quanto à tua incapacidade, só a julgarei depois de falar com Bridei.


A manhã fora agradável. Fora até à Cicatriz da Águia a cavalo com Donal, com Talorgen e com o segundo guarda de Aniel, cujo nome era Garth, e tinham feito uma corrida no regresso, durante a qual Bridei e Bae se tinham portado muito bem. Talorgen ganhara com a sua égua robusta, de pernas fortes. Em seguida, tivera uma aula com Erip e Wid, durante a qual os dois tutores lhe tinham falado dos símbolos do parentesco e à qual o conselheiro Aniel e o druida Uist tinham assistido. Nenhum deles conseguira manter-se em silêncio; as teorias e as contradições tinham-se acumulado, uma das aulas mais interessantes a que Bridei assistira.

Em seguida, o jovem fora até aos carvalhos e sentara-se à sua sombra durante um bocado. Parecia-lhe ser a atitude correcta apesar de Tuala estar ausente e só regressar depois do Solstício. Se se sentasse tranquilamente no seu lugar preferido, pensou Bridei, talvez a jovem sentisse a sua presença apesar de estar em Cumeeira de Carvalho. O local tinha aquela magia. A Mãe de Tudo era a terra, o seu corpo sustentava e ligava tudo que vivia nele. Se se sentasse no meio das raízes dos carvalhos, como se fosse a própria Tuala, e pensasse no modo como a árvore descia até ao coração da Terra, talvez os seus pensamentos pudessem viajar de uma parte do corpo da Mãe de Tudo para outra, de Pitnochie até ao pequeno local da floresta onde Tuala também se sentava e sonhava. Não te preocupes, disse-lhe ele, vais regressar em breve. Com os olhos fechados, o jovem era capaz de ver o seu pequeno rosto ansioso e os seus grandes olhos, estranhos.

— Estou sempre a encontrar gente jovem à sombra das árvores — disse uma voz enérgica. — O que quer dizer, não sei. Tu és o Bridei, não és? Quando cheguei, ontem à noite, já te tinhas ido deitar.

Bridei pôs-se em pé de um salto, sacudiu a poeira e acenou com a cabeça delicadamente, cumprimentando a anciã.

— Peço desculpa — disse ele — não a vi chegar. Sim, o meu nome é Bridei.

— O meu é Fola; livro-te do embaraço de teres de perguntar. Geralmente, estou em Banmerren, onde tenho um estabelecimento onde as jovens aprendem tudo sobre a deusa. Tenho uma mensagem para ti — disse a Mulher Sábia, tirando do interior do manto uma fita azul, muito desbotada, e colocando-lhe numa das mãos.

— Oh — disse o jovem, reconhecendo-a instantaneamente; atara os cabelos de Tuala com ela, vezes sem conta. — Passou por Cumeeira de Carvalho?

— O meu ofício obriga-me a percorrer o Vale todo.

— Tuala está bem?

— Claro. Por que não havia de estar?

Havia várias respostas para aquela pergunta: Porque ainda é pequena, porque não se queria ir embora, porque tem medo de Broichan, porque não é capaz de adormecer sem uma história.

— É muito longe — disse Bridei. Fola sorriu.

— Tens sido treinado por um homem com um talento especial: o de não responder às perguntas — comentou ela. — A tua irmã parecia estar de boa saúde. Evidentemente, tem saudades tuas, se bem que não o tenha dito. Creio que ficará feliz por regressar a Pitnochie.

Bridei acenou com a cabeça e meteu a fita na algibeira.

— Ela não é mesmo minha irmã — disse o jovem.

— Não?

— Não exatamente. Somos os dois filhos adotivos de Broichan.

Fola sorriu.

— Desconfio que Broichan não vê as coisas desse modo — observou a Mulher Sábia.

Bridei não disse nada. Aquilo era, provavelmente, mais um teste — um teste ainda mais difícil porque não era possível saber, com aquela anciã de nariz afilado e olhos vivos, qual a resposta certa. Uma coisa era certa, não toleraria que o seu pai fosse criticado apesar de ter mandado Tuala embora.

— Talvez não — disse ele cautelosamente. — De qualquer maneira, somos. Eu vim para aqui mandado pelo meu pai, para ser educado. Tuala veio enviada pela própria Que Brilha.

— Para ser educada?

— Com um objetivo — disse Bridei. — Eu estou a tentar ensiná-la. Ela já sabe contar até cinco, sabe muita coisa acerca dos rituais e também sabe muitas histórias. Porém, quase nunca tenho tempo.

— Eu falo com Broichan — disse Fola secamente. — A situação é ridícula. Ela deve partilhar as tuas aulas. Provavelmente, não perceberá a maior parte, mas será melhor do que nada.

A sua confiança era impressionante. Bridei duvidava que Broichan concordasse, mas não o disse.

— Tuala gostaria muito.

— Eu sei, mas agora diz-me uma coisa, Bridei. Eu sei como a encontraste, sei que compreendes as suas origens, o que é e de onde veio. No entanto, não sei se compreendes bem como as coisas se poderão tornar difíceis para ela, mais tarde. Pensa. Pensa como será quando ambos forem crescidos. Pensa no mundo em que terão de viver. O que é que ela vai fazer? Como será a sua vida?

Bridei não estava a perceber bem o que a Mulher Sábia queria dizer.

— Aqui, em Pitnochie, toda a gente gosta dela — disse o jovem, sabendo que não era exatamente verdade. Não era possível associar a Broichan a palavra gostar. — Ela, aqui, é feliz. Tuala pertence a Pitnochie.

— Tu não vais viver aqui para sempre, Bridei. Um dia, serás um homem, seguirás o teu caminho. A mim, parece-me que és, para esta rapariga, o centro do mundo. Que será dela sem ti? As pessoas desconfiam dos Boa Gente. Tuala não terá uma vida fácil no mundo dos homens.

— Que quer dizer? — perguntou Bridei, desconfiado. — Também vai dizer que a devia ter deixado na neve? Não estou para ouvir isso outra vez — disse o jovem, subitamente irado.

— Eu não te estou a perguntar nada — disse calmamente Fola. — Pensa no que te disse. Não te estou a julgar. Tudo o que eu quero é uma resposta.

Bridei respirou profundamente, tentando afastar a ira e olhou para os olhos penetrantes da Mulher Sábia.

— Tuala é forte — disse ele — capaz de escolher o seu próprio caminho. A vida dela será o que ela quiser que seja.

— E tu?

— Eu? Eu ajudo-a, protejo-a e faço o possível para que não se sinta só. Como um irmão, apesar de não o ser.

— Estou a ver. E a tua vida? E se o teu caminho te afastar e não puderes assumir essa responsabilidade pela tua irmã, apesar de ela não ser verdadeiramente tua irmã?

Bridei franziu o sobrolho.

— O meu pai adotivo ainda não me disse o que pretende de mim. É claro que posso ter de me ausentar — Talorgen disse que eu posso ir passar uns tempos em Fonte do Corvo — mas por essa ocasião Tuala já será mais crescida. E quando formos mais crescidos poderemos ter a nossa própria casa. Terá de ser perto da floresta; Tuala precisa de ter as árvores por perto.

— Hum — disse Fola com os lábios torcidos num sorriso desconfiado. — Eu tenho tendência para esquecer a idade que tu tens, Bridei. Broichan educou-te de maneira a falares e a ouvires como um estudioso. Só ocasionalmente me apercebo do rapaz por trás dessa eloquência e me apercebo do que realmente és: um rapaz. Diz-me uma coisa, o que é que tu queres ser? Qual é o futuro que desejas?

A única maneira de responder àquela pergunta era com a verdade.

— Juntar novamente os reinos dos Priteni — disse Bridei, simplesmente. — Fazer com que Circinn faça novamente parte de Fortriu. Trazer de volta a velha fé para que possamos todos, como deve ser, honrar os nossos antepassados. Expulsar os celtas e conseguir a paz. Quero fazer isso.

— Mais nada?

O jovem levou alguns momentos a descobrir que a Mulher Sábia estava a brincar. O jovem sentiu-se corar.

— E se Broichan te mandar para casa, para outro lado?

— Suponho que parece uma coisa demasiado grande; nem sequer sei por onde começar! É uma tarefa para um grande líder. Comprendo que se ria de mim, mas como perguntou, eu respondi honestamente. Esta ambição devia estar na mente e no coração de todos os homens e mulheres de Fortriu. Todos nós devíamos senti-la.

Fola acenou com a cabeça.

— Eu não me estava a rir de ti, meu filho — disse ela. — Saúdo a tua coragem e os teus ideais e rezo para que consigas atingir os teus fins. Agora, quero que me respondas a outra pergunta.

Até ali, a conversa tinha sido difícil. Bridei nem queria adivinhar o que se seguiria.

— Diz-me — disse Fola — e se Broichan te mandar para casa, para Gwynedd?

O horror estampou-se no rosto de Bridei. A Mulher Sábia sabia alguma coisa que Broichan não lhe dissera?

— Finalmente, ficaste sem palavras depois de teres respondido ao meu interrogatório com muita inteligência. Pergunto a mim própria por que razão?

— Ele disse isso? — conseguiu articular Bridei. — Ele vai mandar-me para casa?

A Mulher Sábia olhou para ele como uma coruja, solenemente.

— Não queres saber da tua família?

O jovem engoliu a primeira resposta. A minha família está aqui, a minha família é constituída por Broichan, por Donal e por Tuala.

— É claro que quero — respondeu ele polidamente.

— Não acredito — disse Fola. — A tua expressão diz-me que estás a ser cauteloso. Aliás, és sempre cauteloso, salvo quando a conversação toca num assunto muito importante. Então, o teu rosto muda, os teus olhos brilham e deixas de falar como um ancião, ou um druida confuso, e mostras quem na realidade és. Para ti, Fortriu e o Vale é que são importantes; A Que Brilha e, claro, a criança que a deusa te entregou. Já não te lembras de Gwynedd. Há quanto tempo estás em Pitnochie — sete, oito anos? Duvido que te lembres, sequer, dos rostos dos teus pais.

Bridei baixou a cabeça.

— Deves ter-te sentido muito só — disse ela em voz baixa.

— Passou-se bem.

— Hum. Mas trataste de te assegurar de que o mesmo não aconteceria com ela. Sim ou não?

— Groichan é um bom pai adotivo. O melhor.

— E tu és um filho leal. Um filho adotivo leal. Muito bem, Bridei, portaste-te muito bem; ele educou-te às mil maravilhas nesse tipo de luta. A. tua pequena irmã também é perita, apesar de ser pouco maior do que um rato. Sabes que o ritual do Solstício é uma espécie de teste, não sabes? — perguntou ela, virando subitamente para ele os seus olhos argutos.

— Sei — disse Bridei. — mas não sei exatamente com que fim. Vou fazer o melhor possível e esperar que os deuses me mostrem o caminho.

— Não tenho dúvidas de que o farão — disse a Mulher Sábia.


Tuala sabia o que era o Solstício de Verão. Bridei ensinara-a a olhar para o Sol à medida que o dia se aproximava, como calcular a sua posição a partir de um ponto, uma árvore ou uma pedra, por exemplo, até ao dia em que o seu nascimento recuasse, fazendo com que a sua viagem no céu fizesse um arco menor. A vigília era feita durante três dias e cada um deles tinha o seu próprio ritual. Em Pitnochie, Broichan presidiria às cerimônias solenes, coadjuvado por Bridei. Ali, em Cumeeira de Carvalho, o reconhecimento da viragem do ano era ligeiro. Havia uma nascente, perto da cabana, e iam até lá ao fim do dia, quando o trabalho terminava, as duas mulheres mais velhas, a mais nova e Tuala com o pequeno gato, Mist, umas vezes nos seus calcanhares e outras correndo à frente, vendo-se apenas a sua cauda acima da vegetação rasteira. A água corria por entre as pedras e ia dar a uma pequena lagoa redonda, sobre a qual os sabugueiros estendiam os seus ramos longos e fungiformes. Cada uma das mulheres atou neles um pedaço de pano colorido — Tuala teria feito o mesmo, mas perdera novamente a fita do cabelo e não tinha mais nada. A jovem e Brenna juntaram algumas pedras brancas perto da água. Todas rezaram à deusa uma oração simples e até na ocasião a mãe e a tia de Brenna o fizeram com rostos azedos e olhos severos. Tuala nunca vira gente tão triste, tão zangada. Havia muitas razões para sorrir, mesmo quando uma pessoa se sentia só: o Sol a nascer, a maneira como os fetos se agrupavam em redor das rochas cheias de musgo, o cheiro húmido da pequena clareira, o murmúrio da voz da deusa...

— Posso ficar aqui mais um pouco? — perguntou a jovem a Brenna. — Só um bocadinho? Daqui vê-se a casa; prometo que não me demoro.

As duas mulheres mais velhas já se afastavam. Brenna hesitou.

— Prometo — disse Tuala outra vez, tentando parecer a criança mais obediente do mundo.

— Está bem — disse Brenna. O seu rosto parecia mais alegre. aproximava-se a data em que Cinioch a levaria para casa, finalmente os seus olhos já quase não estavam vermelhos. A jovem sorriu ligeiramente.

— Tens-te portado bem, Tuala. Tem cuidado; não molhes a roupa.

— Sim, Brenna.

De fato, não era a primeira nem a segunda vez que Tuala se deslocava àquele local, acompanhada apenas por Mist. Desde a manhã em que descobrira acidentalmente que vedar era uma coisa extremamente simples e que quase não precisava de treinar que a pequena lagoa a chamava e ela passava muito tempo debruçada sobre as suas águas sombrias, tal como fazia em Pitnochie, quando se aninhava nas raízes do velho carvalho. A primeira vez, procurara peixes. Porém, antes de ter oportunidade de ver se havia alguns, aparecera uma imagem na superfície, árvores, céu e caminhos na floresta. Não era um reflexo porque o que estava a ver era o monte sobranceiro a Pitnochie e no meio da pequena lagoa estavam Bridei e o seu cavalo, galopando na direção de Estrela da Águia. Tudo o que tinha a fazer, para manter a imagem, era ficar imóvel e. respirar lenta e profundamente. Não era nada difícil.

Depois de visitar o local várias vezes e olhar para a lagoa em ocasiões e dias diferentes, Tuala começou a ver imagens que a deixaram preocupada. A jovem via coisas que não pertenciam ao tempo presente, que já deviam ter acontecido havia muito tempo ou que ainda estavam para acontecer. Era uma pena Bridei não estar ali com ela; tinha tantas perguntas para lhe fazer. Por que razão as pessoas eram tão cruéis umas para as outras; por que razão lutavam e discutiam umas com as outras, por que se zangavam? Não podiam resolver as questões de outra maneira? Quem eram os guerreiros de cabelos ruivos que estava sempre a ver na água, olhando friamente para os mortos? O jovem que via, o que tinha cabelos castanhos encaracolados e cujo rosto brilhava de coragem, era mesmo Bridei, já crescido? Se era, por que razão nunca se via a si própria? Seria normal, quando se estava a vedar, ter aquela sensação estranha, uma espécie de formigueiro, como se estivesse a ser observada por seres invisíveis, silenciosos?

Lá estavam eles, outra vez. Tuala sentia-os: um anel de olhos fixos nela, um círculo de seres. A jovem não conseguia ver nada para além de um brilho difuso no ar, uma ligeira perturbação. Os seus olhos diziam-lhe que não estava ali ninguém. No entanto, sentia que não estava só. Quando se debruçou sobre a pequena lagoa, sob o sabugueiro com as fitas de lã e de pele atadas nos seus ramos, oferendas dos viajantes ao longo de muitas estações, sentiu que eles se debruçavam a seu lado, no lado oposto, por trás de si, seguindo cada um dos seus movimentos, respirando com ela, como se fossem um corpo único.

— Quem sois? — sussurrou Tuala, quase zangada. — Por que não vos mostrais?

A jovem não obteve resposta, ouviu apenas uma pequena brisa e depois o silêncio.

A imagem na água mostrou-lhe Pitnochie ao meio-dia porque se via a casa de Broichan no meio dos carvalhos e as águas do Lago da Serpente brilhando ao Sol, abrigado pelos montes arborizados. A jovem viu Fidich a trepar uma vereda íngreme à sombra de uns pinheiros, até onde estavam reunidas umas pessoas. Tuala conhecia aquele local. Chamavam-lhe Amanhecer das Três Colinas porque havia ali um carvalho solitário, uma árvore venerável que recebia na sua copa os primeiros raios do Sol nascente. Broichan e Bridei deviam ter ali passado as três noites anteriores de vigília, marcando o local onde a Guardiã das Chamas apareceria no horizonte.

Nas rochas do topo estava formado um círculo; as pessoas da casa de Broichan estavam todas ali reunidas. A jovem viu Broichan, alto e solene no seu traje escuro, com uma faca ritual de osso e prata na mão. O druida usava uma grinalda de folhas de carvalho nos cabelos entrançados. A sua expressão provocou um arrepio em Tuala.

A jovem conhecia algumas pessoas, mas outras não. Tuala viu Mara, Donal, Ferat e a maior parte dos homens de armas, mas viu também outros guerreiros que nunca tinha visto antes, com os rostos tatuados e os corpos cobertos de cicatrizes. A jovem também viu um druida vestido de branco com uma série de gravetos nas mãos e também reconheceu Fola, a anciã; Fola transportava uma tigela de bronze com água que depositou na parte ocidental do círculo.

Tuala aproximou-se um pouco mais da superfície da lagoa. Mist aninhou-se no seu peito com a cauda enrolada e com os olhos fixos na água imóvel. Talvez estivesse a ver uma imagem felina qualquer.

As imagens desenrolavam-se como uma dança solene; Broichard dando uns passos com a ponta da sua adaga cortando o espaço; em cada quarto do círculo, a sua voz proferia as palavras rituais de reconhecimento e saudação. A água era salpicada em cada quarto; o fumo dos gravetos a arder subia na atmosfera, uma purificação ritual. Em seguida, Tuala viu a Mulher Sábia a avançar a partir de norte, a localização ritual da terra. Fola não parecia pequena e inofensiva, parecia forte e poderosa, a personificação da própria Mãe de Tudo. A Mulher Sábia ergueu os braços e lançou um desafio: Quem és tu? Por que estás aqui? Dignos! Tuala não ouvia nada; nenhum som perturbava a tranquilidade da pequena clareira. Porém, a jovem conhecia as palavras; as lições de Bridei tinham sido tão minuciosas quanto possível.

Três dos homens presentes saíram do círculo e avançaram. Um era o druida vestido de branco, um homem idoso com uns olhos claros e penetrantes e uns cabelos brancos como a neve todos emaranhados e entrançados com sementes, gravetos e folhas. Nas mãos, o ancião segurava uma pena tão branca como o seu traje.

— A luz do Sol ilumina as mentes — disse ele — e torna o caminho mais claro. Guardião da Chama, deixa que os nossos olhos vejam a verdade.

O homem que falou a seguir era um guerreiro alto, direito, com as feições tatuadas de azul, símbolo da sua profissão. Os seus olhos eram penetrantes e os seus modos confiantes. O guerreiro tinha na sua frente uma flecha cujas penas da cauda pertenciam à grande águia.

— A luz do Solstício é a luz da coragem. — O seu tom cortante percorreu o ar frio do topo do monte. — Guardião da Chama, tu dás-nos força, para que sejamos homens. A tua glória ardente inspira os nossos atos de valor. Somos, por tua causa, verdadeiros filhos de Fortriu.

O terceiro homem transportava um osso; Tuala não percebia que espécie de osso era, mas era longo e claro, talvez o osso de uma perna. O homem tinha olhos cinzentos e traje cinzento; o seu rosto tinha muitas rugas e a testa estava franzida, como se tivesse muitas preocupações.

— Guardião da Chama — disse ele com dignidade — com o teu calor alimentaste os Priteni desde os tempos anteriores à história, desde o tempo em que os avós dos nossos avós caminhavam pelo Vale. Na tua vida está a nossa vida. Na tua sabedoria está a nossa sabedoria. Saudamos o teu esplendor.

Depois daquelas palavras, o silêncio prolongou-se. Tuala compreendeu que cada homem e cada mulher dizia interiormente as palavras secretas de inspiração e também as pronunciou, sentindo o seu poder no mais íntimo do seu ser. Os observadores ocultos continuavam presentes, um círculo de presenças invisíveis em redor da lagoa. Pelo canto do olho, Tuala pensou ver mãos pálidas, rostos sombrios, trajes esverdeados e cinzentos feitos de folhas de salgueiro e de penas sedosas, asas prateadas e longos cabelos, tudo em cambiantes de um azul incrível. Os olhos deles eram o espelho dos seus: sem cor e claros, tão claros como o gelo. A jovem não desviou o olhar, tinha de segurar a imagem na superfície da água porque acabara de ver Bridei, que avançava a partir da base da Amanhecer da Três Colinas segurando uma vela acesa. O coração de Tuala bateu com mais força. O jovem parecia muito sério, muito concentrado, como se sentisse que os deuses ficariam desagradados se ele desse um passo errado ou se enganasse nas palavras. Bridei parecia cansado, tinha olheiras. Devia ser da vigília. Broichan obrigava sempre o seu filho adotivo a ficar acordado na véspera do Solstício. Bridei mordia o lábio, nervoso. Tonto; era evidente que não cometeria um único erro. Era evidente que os deuses não se zangariam. Bridei estava nas mãos da Mãe de Tudo; o Guardião da Chama ardia no seu espírito. A Que Brilha escolhera-o. Ele era Bridei, fazia sempre tudo bem.

O jovem iniciou um percurso em espiral a partir da orla do círculo, sempre com a vela a arder nas mãos firmes. Os seus cabelos encaracolados, castanhos como a casca de um carvalho, estavam atados na nuca; os seus olhos reflectiam o azul do céu, quentes e brilhantes e os seus passos eram firmes. Em redor de um dos pulsos, o jovem tinha uma fita azul desbotada. Tuala sorriu; desejava tanto estar junto dele, fazer parte daquele ritual. Naquele momento, de certo modo, estava com ele; Bridei levava-a no pulso. A jovem esperava que Broichan não se zangasse por causa da fita.

Os passos de Bridei levaram-no ao meio do círculo onde estavam o seu pai adotivo e a Mulher Sábia, lado a lado. Bridei ergueu os braços com a vela, bem alto.

— Esta é a chama da esperança e da promessa de justiça e paz em toda a Terra! — proclamou ele. Não havia qualquer tom de nervosismo na sua voz, que soou clara, como um sino; o seu som provocou um arrepio em Tuala apesar de a jovem a ouvir apenas com ouvidos de vidente, capazes de ouvir o silêncio. — Invoco o poder do Guardião da Chama, invoco a força da nossa Mãe Profunda, a Terra e invoco a portadora das marés, A Que Brilha! O Sol triunfou; hoje, ele atinge o seu zénite. A sua vida acordou-nos e fertilizou a Terra por onde caminhamos. Começa agora a sua longa retirada. Guardemos a sua luz para iluminar o nosso caminho. Que cada um de nós seja uma chama a arder; que cada um de nós continue em frente irradiando a verdade.

Broichan devia falar a seguir, mas antes que o druida pudesse abrir a boca ouviu-se um bater de asas, uma grande agitação no céu e do leste apareceram duas águias. Planando nas correntes térmicas do Grande Vale, formavam um par perfeito, ora flutuando ora batendo as asas com movimentos lentos e poderosos, até que se aproximaram do local por cima do qual o rapaz se mantinha direito e orgulhoso com a chama da esperança nas mãos. Broichan não disse uma palavra; enquanto as aves voavam em círculo em redor do pico rochoso na sua dança simétrica, Tuala viu, profundamente espantada, que o druida tinha as faces cheias de lágrimas. As duas aves sobrevoaram o rapaz três vezes e depois pousaram, as duas ao mesmo tempo, num dos ramos mais altos da Amanhecer das Três Colinas. As duas águias dobraram as suas grandes asas e imobilizaram-se vigilantes. O Sol tocou nos cabelos encaracolados de Bridei, tornando-os vermelhos como as folhas de uma faia no Outono; os raios do meio-dia banharam o topo do pico, como uma bênção.

Então, sem uma palavra, Broichan tirou a vela ao seu filho adotivo e acendeu uma pequena fogueira com os gravetos que o velho druida trouxera consigo. Tuala sabia que naquele monte de gravetos estava representada toda a floresta: o carvalho, o freixo, o pinheiro, o sabugueiro, o azevinho, a sorveira-brava, cada uma das árvores fortalecendo a magia daquele dia. A grinalda de carvalho que Broichan tinha na cabeça foi usada por todos os que estavam presentes no círculo, coroando todos por um breve momento, cada um deles renovando, em silêncio, o seu voto aos deuses.

Finalmente, a grinalda regressou às mãos do druida. Broichan ergueu-a no ar por um momento e lançou-a às chamas. Tuala engoliu em seco; a jovem sabia que aquele momento chegaria, mas sentiu-se chocada, como se aquele gesto significasse a morte dos sonhos. Porém, não era. Todos juntaram as mãos para dizer a velha prece da paz. As chamas ergueram bem alto nos céus do Grande Vale os seus focos, mais alto do que a mais alta das árvores, mais alto do que o vOo das águias, para lá das nuvens, até ao reino da Que Brilha, até ao Sol que dava a vida e cuja força aquela reunião comemorava.

Em seguida, o pão e o hidromel foram abençoados. Fola e Broichan carrilharam em primeiro lugar a comida sagrada e depois Bridei dividiu-a pelos presentes, juntamente com o líquido cor de âmbar. Donal deu uma palmada no ombro de Bridei, fazendo com que o jarro de hidromel oscilasse. Erip e Wid sorriam como se tivessem ganho um prémio. Debruçada sobre as águas da pequena poça, Tuala reparou que as feições impassíveis de Broichan já não tinham qualquer lágrima. Se calhar, imaginara. Se calhar, aquilo não estava a acontecer, se calhar era um talvez. Vedar era uma coisa delicada. No entanto, a jovem viu o orgulho nos olhos do druida seguindo o seu filho adotivo em redor do círculo de pessoas e pensou ver o mesmo orgulho nos outros rostos, incluindo o da Mulher Sábia.

— Tuala!

Era Brenna, chamando-a. A jovem bloqueou o som, aproximando-se mais da água. A seu lado, Mist continuava imóvel como uma estátua, olhando para a superfície imóvel. Em redor da pequena lagoa, pelo canto do olho, Tuala viu que os observadores ocultos continuavam presentes.

Terminada a festa, o círculo desfez-se. As pessoas reuniram os seus pertences e iniciaram a longa descida em direção a casa. No topo do carvalho solitário, as duas águias continuavam imóveis. Porém, quando Bridei iniciou a descida, as duas aves ergueram-se nos ares e sobrevoaram-no diversas vezes. Naquele lado do monte as árvores eram mais grossas, aglomeravam-se nas ravinas, cobriam as vertentes, enchendo tudo com folhagem e agulhas verdes e por baixo delas cresciam os fetos e os azevinhos. No entanto, as águias têm uma visão extraordinária, são as rainhas dos predadores e à medida que a imagem mudava e tornava a mudar, Tuala via que os dois grandes animais pareciam escoltar Bridei, proclamando o seu dia, como se o jovem fosse um mago das velhas histórias, ou um rei novo ascendendo ao seu trono. As duas aves continuaram a sobrevoá-lo enquanto ele descia por entre os bosques de vidoeiros e entrava na escuridão dos pinhais; continuaram presentes enquanto ele passava por baixo dos carvalhos veneráveis e por entre os sabugueiros inclinados que ladeavam o regato e a lagoa. Por cima da casa do druida, voaram em círculos enquanto ele saía da floresta, junto do muro onde os guardas de Broichan estavam de guarda. Em seguida, com um grito que fez arrepiar Tuala as águias afastaram-se para oeste e saíram da imagem da superfície das águas. A jovem viu Bridei virar-se para o seu pai adotivo e dizer algo, sorrindo, mas não conseguiu ouvir as palavras.

— Tuala!

Eram horas de regressar. A jovem não queria que Brenna se aborrecesse, a sua ama já tinha muito com que se preocupar. Tuala pôs-se de pé e estendeu os braços para pegar no pequeno gato. Em redor da pequena lagoa ouviu-se um restolhar, um som que parecia um silvo, talvez umas palavras: nósss... um de nósss... Então, abruptamente, os observadores desapareceram.

Naquela noite, acordada enquanto Brenna dormia a seu lado, Tuala murmurou para si própria uma história. Mist era bom ouvinte; a sua presença pequena e quente na semi-escuridão da noite de Verão tornava a solidão mais suportável.

— Sabias que os Priteni têm dois reis, Mist? Ambos têm um símbolo diferente, gravado na pedra das suas grandes casas, para que toda a pessoasaiba qual é qual, Drust, o Touro e Drust, o Javali. — Os dedos de Tuala afagaram o pelo sedoso do gato; aconchegado no cobertor fino, Mist ronronava de tal maneira que todo o seu corpo vibrava. Porém, não vou falar-te deles. Vou falar-te de um outro rei. Esta história é uma história que talvez venha a acontecer, tal como as imagens da lagoa. Este rei chamava-se Bridei e o seu símbolo era a águia...

A história era linda, cheia de aventuras, coragem e esperança, uma história que falava do destino e que pareceu a Tuala profundamente verdadeira, tal como as antigas histórias de amor. A única coisa errada era que, por mais que tentasse, não encontrava um lugar nela para si própria.


CAPÍTULO SEIS


Na verdade, tinham sorte. Tuala lembrava-se de o dizer a si própria todas as estações, todos os anos, ao ver Bridei afastar-se a cavalo para mais uma visita a Fonte do Corvo ou para mais um retiro na floresta com o velho druida, Uist, porque também fazia parte da educação que Broichan determinara para o seu filho adotivo. Tinham-se passado mais de seis anos desde que fora mandada para Cumeeira de Carvalho, a época a que a jovem chamava o Verão das Águias. Tuala vira Bridei passar de criança séria, muito direita, a jovem de olhar perspicaz e despedira-se dele tantas vezes que lhes teria perdido a conta não fora o talismã que escondia no seu pequeno quarto na casa do druida, em Pitnochie, um fio duplo muito forte, entretecido de um modo especial. A sua história, dela e de Bridei, estava naquele objeto: as duas partes do fio tinham pequenas separações, correspondentes a cada período de ausência, e um nó delicado para cada reencontro imensamente desejado. O seu comprimento correspondia ao tempo das suas vidas, os dois caminhos que divergiam e se juntavam e que, apesar de separados, permaneciam, na sua essência, unos e indivisíveis. Se bem que pequeno, era um objeto poderoso; Tuala fazia o possível para que ninguém o visse, nem sequer o próprio Bridei.

À medida que os anos passavam, a jovem crescia, mas mais cuidadosa, mais vigilante apesar de os seus privilégios na casa de Broichan se terem expandido porque continuava a sentir, sempre, que o druida não gostava dela. Desde que a mandara embora pela primeira vez, Broichan nunca mais lhe falara do assunto. O druida não tinha necessidade. A jovem sentia-o na sua expressão fechada, no seu tom de voz frio, na distância que punha entre a sua pessoa e o presente da Que Brilha que ele nunca aceitara.

Sim, tinham sorte. Broichan podia tê-la mandado embora para sempre, podia ter levado Bridei para a corte e ficado lá, podia ter-lhe negado os estudos, salvo o pouco que ela conseguia apanhar. Miraculosamente, no dia em que regressara de Cumeeira de Carvalho, Tuala encontrara o caminho aberto na sua frente. Erip e Wid foram autorizados a sentá-la ao lado de Bridei, a dar-lhe trabalhos e assegurarem-se de que a jovem os completava. Tuala apanhara a oportunidade com todas as suas forças, sem perguntar a razão da mudança de atitude de Broichan. Bastava-lhe que a porta tivesse deixado de estar fechada; a jovem aplicara-se com a intensidade de uma exploradora em busca de novas descobertas.

À medida que o tempo passava, a sua vida mudava. Brenna tinha-se casado e mudado para a nova casa do seu marido. Agora, ela e Fidich eram os pais orgulhosos de duas crianças e Brenna dividia o seu tempo entre a herdade e a família. Quanto a Erip e Wid, tornaram-se, não só tutores de Tuala nas disciplinas de história, geografia, reis, símbolos, tradição e narrativas, mas também seus amigos firmes. As lições tinham lugar informalmente, mesmo quando Bridei estava ausente. Cada vez mais o jovem se movia num círculo mais largo e estava ausente desde o Renascimento até ao Solstício de Verão, ou desde o Portal da Dança das Virgens, o festival que comemorava a chegada dos primeiros carneiros. Não fora a paciência e a amabilidade dos dois anciãos e as concessões feitas por Broichan, que lhes permitiam e à sua pequena aluna sentarem arraiais em frente da lareira, logo de manhã com os respectivos pergaminhos e penas, e a vida teria sido, sem dúvida, bem triste. Quando Bridei estava ausente, Tuala sabia que ficava sem uma parte de si, uma parte tão vital para a sua existência como os olhos, os ouvidos ou o bater do coração.

O Inverno iria ser particularmente difícil. Bridei ia para Fonte do Corvo, com Talorgen e a sua família e Tuala sabia, porque o vira na água, que a possibilidade de haver guerra, mortes e dor era grande. A visão mostrara-lhe Bridei com um olhar que nunca vira antes, um olhar que significava que ele vira algo que esperava nunca mais voltar a ver, mas com o qual tinha de se confrontar vezes sem conta. A jovem vira homens chacinados e sangue por todo o lado, ouvira, com os ouvidos da mente, um grito de uma dor indescritível, um som que lhe tinha feito ranger os dentes e pedir aos deuses para que acabassem com ele, depressa, antes que enlouquecesse. Porém, não dissera nada a Bridei.

Tuala sabia que aquelas visões não eram a verdadeira imagem do futuro. Usá-las como base de planejamento de qualquer tipo de acção era um grande risco. Bridei já era um homem: tinha dezoito anos. Era indubitável que teria de entrar em combate, enfrentar a morte como todos os homens, quer ela a tivesse visto, quer não. Tuala não podia, de modo nenhum, segurar o momento em que aquela terrível sombra lhe entrava nos olhos; a única coisa que podia fazer era estar em casa quando ele chegava, ouvi-lo e confortá-lo porque era a detentora dos seus medos mais secretos e a guardiã dos seus sonhos.

Despediram-se em Cicatriz da Águia. Tornara-se muito difícil arranjar tempo para estarem sozinhos porque Broichan tinha cada vez mais visitantes em Pitnochie, pessoasempre a chegar e a partir. Naquele momento, o hóspede era Talorgen e o seu filho Gartnait, um jovem esgalgado e sardento que se tornara amigo íntimo de Bridei, mas não de Tuala. Gartnait via-a como uma criança, ainda por cima uma criança estranha. O jovem visitante arreliava-a por causa dos seus silêncios, do seu ar solene, da sua estranha palidez e dos seus grandes olhos de coruja. Gartnait fazia-o a brincar, mas Tuala nunca sabia o que responder, ao mesmo tempo que lhe parecia não valer a pena; de que serviria, senão para reforçar o pouco à-vontade que sentia em casa do druida por causa da sua diferença? A jovem não queria sentir-se à parte, queria integrar-se. Erip e Wid nunca se tinham sentido incomodados pelo que ela era e pelas coisas que fazia sem pensar, como mover os pequenos reis e as pequenas sacerdotisas no tabuleiro sem lhes tocar, ou fazer com que a luz colorida que entrava pela janela redonda se transformasse numa dança de insectos minúsculos brilhantes, como jóias que se dispersavam numa chuva de poeira. Nessas ocasiões, Erip tossicava, Wid afagava a barba branca e acenava com a cabeça, e os dois continuavam com a lição sobre as ervas tradicionais, a astronomia, os reis ou as rainhas. Tuala recordou os reis e as rainhas, sentada com Bridei em cima das pedras no topo da Cicatriz. Era o Outono. O jovem ia partir outra vez e o ano estava a escurecer.

— Bridei?

— Hum? — respondeu o jovem, olhando para oeste, para o Vale, talvez à procura de águias, talvez procurando o trilho que iria percorrer em breve, quando fosse para Fonte do Corvo.

— Se tivesses ficado em Gwynedd, um dia serias rei — disse ela.

Os olhos azuis viraram-se abruptamente para ela, brilhantes e perspicazes.

— Não é tão simples como isso — disse ele.

— O teu pai é o rei de Gwynedd — observou Tuala. — Erip disse-me que a maneira como os reis são escolhidos aqui é diferente. Não os elegem por serem filhos de mulheres reais, como entre os Priteni, com candidatos de cada uma das sete casas. Em Gwynedd e em Powys, o filho do rei pode ser coroado. Se tivesses ficado lá, podia acontecer-te. E ainda pode, se regressares a casa.

Durante alguns momentos, Bridei não disse nada.

— A minha casa é em Pitnochie — disse ele, finalmente. — E a tua. Eu costumava pensar que era o que Broichan queria: educar-me e depois mandar-me outra vez para Gwynedd. No entanto, se isso acontecesse, nunca seria rei no meu país. Já não me lembro dos meus irmãos, mas sei que tenho dois, mais velhos. A sua pretensão seria mais forte do que a minha; cresceram ambos ao lado do meu pai. Além disso, Broichan não me mandou para lá.

— Nesse caso, quais são os projectos dele para ti? — De fato, Tuala já sabia a resposta; os sinais eram evidentes desde o dia em que Bridei transportara a chama do Solstício de Verão e as águias o tinham sobrevoado. Porém, a jovem não tinha a certeza se Bridei o sabia, mesmo naquele momento. A estratégia de Broichan era profunda, sutil e atingia um período de muitos anos. Tuala fora forçada a admitir que o druida tinha razão em esconder o seu plano de mestre de quem tentasse impedi-lo, em protelar a revelação da verdade ao jovem em cujos ombros ele depositava as suas esperanças. Ignorante do peso da expectativa, Bridei percorrera o caminho da sua juventude com mais leveza e aprendera com mais liberdade. Sem o fardo do conhecimento do seu futuro, estivera ao abrigo das maquinações dos que buscavam o poder e posição, dos que tinham as suas próprias peças no tabuleiro.

— Sou capaz de adivinhar — disse Bridei. — Broichan não me fala da minha mãe, mas eu descobri que ela é parente da mulher de Talorgen, lady Dreseida, e. lady Dreseida é prima do rei Drust. Dependendo da natureza exata do parentesco, o assunto pode ter algumas possibilidades. Eu seria um estudioso muito pobre se não as reconhecesse depois das lições de genealogia de Erip e de Wid, mas sou novo e nunca tentei ser líder de homens. Penso que o mais provável é Broichan querer que eu desempenhe um papel semelhante ao seu como conselheiro do rei. Não como druida, claro, antes como Aniel faz, viajando, negociando, tentando estabelecer tréguas e os respectivos termos. Conselheiro do rei. Talvez, também, guerreiro; um homem deve ser muitas coisas.

— Ainda és um pouco novo para seres conselheiro do rei Drust disse Tuala com voz monótona. As faces de Bridei coraram e a jovem lamentou imediatamente as suas palavras apesar de corresponderem à verdade.

— Haverá outros reis depois dele. Eu sou um homem, Tuala, não sou nenhuma criança. Desempenharei o meu papel.

Tuala manteve-se calada, sentindo-se, profundamente magoada, a mensagem silenciosa: Eu sou um homem e tu ainda és uma criança. Não podes compreender. Aquilo era injusto; ela compreendia perfeitamente, desde criança, desde que não era capaz, sequer, de manter os cabelos atados com uma fita. E já era uma mulher apesar da sua pequena estatura e do corpo franzino. Faria treze anos no Solstício do Inverno. Já tivera as regras três vezes e observava, maravilhada, as outras mudanças do seu corpo, sinal de que as marés da Que Brilha fluíam nela, tal como nas profundezas do oceano. No entanto, não podia dizer aquilo a Bridei, claro, porque no fim de contas ele era o seu melhor amigo, o melhor do mundo, era um rapaz e havia coisas que não se diziam a um rapaz.

— Tuala?

— Hum?

— Somos capazes de estar fora durante o Inverno todo. Parece que vai haver uma campanha contra os celtas na Primavera para reconquistar o território de Galany’s Reach, onde está a Pedra Mágica. Talorgen é capaz de nos deixar ir com ele como guerreiros, Gartnait e eu. — Os olhos de Bridei brilhavam; era como se o jovem já estivesse a ver os estandartes e as armas a brilhar ao Sol, o estrepitar dos cascos dos cavalos, a vitória gloriosa. Tuala estremeceu.

— Não fiques assim — disse Bridei. — Terei de entrar em combate, mais cedo ou mais tarde. Se não fosse Broichan, já o teria feito.

— Vou ter saudades tuas. Ainda falta tanto tempo para a Primavera.

— Eu também vou ter saudades tuas, Tuala. Assim que puder, regresso, prometo. Nessa altura, terei imensas coisas para te contar.

Tuala acenou com a cabeça. O que Bridei dizia era verdade, indubitavelmente; o jovem falava com ela como nunca falara com outros, livremente, com o coração nas mãos, sem segundas intenções e teria muito para lhe dizer, notícias nascidas de lágrimas, de fúria, de dor e de raiva.

— O que é que se passa, Tuala? O que é que te preocupa? Eu volto sabes? Eu volto sempre a Pitnochie. — Franzindo o sobrolho, preocupado, ele aproximou-se e rodeou os ombros da jovem com um braço. Para ela, aquilo era estranho; não era o habitual, Tuala costumava encostar-se a ele quando queria ser consolada e oferecia em troca um abraço. Aquilo era estranho, diferente.

— Não é nada. — A jovem afastou-se e pôs-se de pé. — Quando partes? Quero mostrar-te uma coisa.

— Ainda tenho algum tempo, mas não muito. O que é?

— Anda comigo. É um pouco longe, para oeste. Tenho de te mostrar. Porém, quando chegaram ao local, o local especial e secreto que ela

descobrira um dia quando deambulava sozinha pela floresta, Bridei deteve o seu cavalo, mas não desmontou.

— Para ali, não — disse ele, subitamente branco como a cal. Não deves ir para ali, Tuala. Vamos para casa.

Tuala ficou espantada.

— Porquê? Que queres dizer? Eu já estive ali muitas vezes. É ali que eu vejo... — A voz da jovem morreu perante as recordações de traição, sangue e morte.

— Onde vês o quê? — perguntou Bridei, desmontando. Seguindo um padrão estabelecido, Tuala montava Blaze, o velho pónei do jovem, enquanto este montava Snonfire, um cavalo com uma longa crina e uma longa cauda, robusto e seguro, cinzento-claro, como uma sombra nos montes, no Inverno. De fato, Tuala era tão franzina que teria podido continuar a montar a sua amada Pearl, mas estava velha e preferia passar os dias no estábulo ou no campo a ver passar o tempo.

— Onde te vejo — murmurou Tuala, desviando o olhar. — Assim, sei onde estás, o que fazes e onde vais.

Bridei ficou em silêncio durante alguns momentos. Finalmente, disse:

— Há visões terríveis naquela lagoa, Tuala. Broichan dá-lhe o nome de Espelho Negro. Eu só lá fui uma vez e chegou. Uma rapariga da tua idade não devia sujeitar-se a tais influências. Broichan não gostaria e eu também não gosto.

— Que idade tinhas quando olhaste para o Espelho Negro?

Bridei não respondeu.

— Seja como for, não é só isso. Não é só saber onde estás e se estás em segurança. É... outras coisas.

— Que coisas? — perguntou Bridei, cada vez mais inquieto; Tuala apercebeu-se ao ver como o jovem agarrava nas rédeas de Snowfm.

— Não te posso dizer aqui. Temos de descer ao pequeno vale.

— O Vale dos Que Caíram. — Bridei pronunciou o nome em tom ameaçador. — Houve aqui um massacre, há muito tempo. Este lugar está cheio de más recordações, de morte.

— E de vida. Vamos, Bridei. — Sem ver se ele a seguia, Tuala começou a descer pelo carreiro, por entre a vegetação espessa. A bruma do vale subiu ao seu encontro. Uns momentos depois, a jovem ouviu os passos de Bridei atrás de si.

Ao chegarem à margem da lagoa, a bruma dissipou-se, revelando as formas arqueadas das escuras pedras druídicas e das trepadeiras que envolviam as margens com as suas folhas luxuriantes. A luz era difusa, esverdeada, provocando reflexos na superfície da água e tornando-a aqui escura e profunda, ali pouco funda e brilhante, com minúsculos peixes nadando velozmente como setas logo abaixo da superfície.

Tuala sentou-se de pernas cruzadas junto da água.

— Não olhes — disse Bridei. — Por que não te ficas pela bola de bronze? Podes fazer isto sempre que quiseres. Por que razão vens aqui? Isto é... — O jovem calou-se. Um momento mais tarde, Tuala sentiu-o junto de si, suficientemente perto para sentir o seu calor, mas sem lhe tocar, a única coisa humana no Vale dos Que Caíram.

Para Tuala, aquilo era natural. A jovem sabia que, para as outras pessoas, até para o próprio Bridei, e até para Broichan, especialista na magia, a arte da vidência era difícil, difícil de aprender; que a capacidade de cada um nem sempre podia ser posta em prática e que as visões nem sempre apareciam. Para ela era completamente diferente e a jovem acabara por compreender, com relutância, que o fato tinha a ver com a sua origem, com o que era: diferente; um dos outros. Aquilo deixava-a pouco à vontade, mas a dádiva em si tornava-a feliz, abria-lhe uma janela para o mundo, para lá de Pitnochie, para lá do Grande Vale, para lá do presente. Tuala era capaz de conjurar uma imagem numa gota de chuva, num barril de água, num jarro de hidromel. Porém, não conseguia encontrar tanta maravilha e terror como no Espelho Negro. Bridei tinha razão; o vale e a sua lagoa escondida tinham recordações profundas, uma história de morte, sangue e coragem para além da imaginação. Mais ainda, o Espelho Negro mostrava-lhe o que estava ou não para acontecer, advertia-a, mostrava-lhe profecias, fornecia-lhe orientação e era onde moravam os Boa Gente. Finalmente podia ver os seus, cara a cara, e perguntar-lhes por que a tinham abandonado sem uma palavra. Talvez tivesse sido por vontade da Que Brilha, ou talvez tivesse sido, muito simplesmente, uma brincadeira. Se Bridei não tivesse acordado naquela noite, teria morrido de frio. Quanto mais crescia, mais aquilo se lhe metia na cabeça.

A lagoa não lhe mostrou a imagem de nenhuma batalha, mostrou-lhe o ritual do Solstício de Verão vezes sem conta, as pessoas todas reunidas em Amanhecer das Três Colinas e uma criança de cabelos castanhos percorrendo o caminho em espiral em direção à luz. Porém, aquilo estava para acontecer. A criança era pequena, não tinha mais de seis anos. O homem que presidia à cerimônia, que traçava o círculo e dirigia as orações não era Broichan, era Bridei; não era um druida vestido de escuro, era um homem na flor da idade, de ombros largos, alto e bem-parecido, com olhos azuis muito brilhantes e uma longa trança cor de avelã. A Mulher Sábia que falava pela Mãe de Tudo não era a Fola de nariz de falcão, era uma sacerdotisa nova, esguia como um vidoeiro, pálida, de olhos claros e com cabelos negros que lhe caíam pelas costas, por cima do austero traje cinzento. Os olhos das duas personagens estavam sempre a encontrar-se, mas quando o ritual acabava e o hidromel e o pão eram divididos, a mulher ao lado de Bridei era outra, uma rapariga cuja silhueta bem modelada tinha um belo vestido e a capa forrada de pele de uma fidalga, uma rapariga que usava uma pequena grinalda de flores no cabelo e um sorriso no rosto que se destinava unicamente ao belo homem que inclinava a cabeça com familiaridade para ouvir as suas palavras. O rapaz que tinha transportado a vela estava a seu lado, uma versão miniatura do seu pai. Tuala viu rostos familiares: Ferat, Mara, Fidich e Brenna com os seus filhos. Donal não estava, nem Erip, ou Wid. Tuala não via Broichan, mas via-se a si própria, depois do ritual terminar, sozinha sob o Amanhecer das Três Colinas, com o rosto na sombra e olhar de criança abandonada. Tuala viu-se a si própria a virar-se e a dirigir-se silenciosamente para o abrigo dos vidoeiros, deixando a família de Pitnochie nas suas alegres comemorações.

As lágrimas caíam-lhe pelas faces; não faziam parte da visão, eram reais. Bridei estava junto de si com os olhos presos no Espelho Negro.

Tuala não conseguiu olhar de novo. A jovem fechou os olhos, desejando que as imagens lhe saíssem da cabeça. Não podia esquecer-se de que aquilo podia, muito simplesmente, não acontecer, podia ser apenas um talvez. Tudo era possível. As pessoas podiam sempre percorrer qualquer caminho desde que o desejassem ardentemente. No fim de contas, estava ali, não estava? Crescera na casa de um druida, fora-lhe dada uma educação, crescera quase como uma criança humana.

Tinha de afastar a possibilidade daquele futuro; tinha de pensar que aquelas imagens eram possíveis, mas era difícil. Eles estavam ali, Tuala sentia-se rodeada pelo restolhar dos seus movimentos leves, pelo insidioso sussurro das suas vozes estranhas... Nós... um dos nossos... regressa para junto de nós... Nunca se tinham mostrado totalmente em todos aqueles anos. Talvez não confiassem nela; talvez não confiassem em ninguém. No entanto, estavam sempre ali, reunidos em redor da lagoa, sussurrando-lhe ao ouvido, roçando-lhe o braço, o rosto, murmurando a sua própria interpretação das suas visões. Vem, diziam as suas vozes suaves, vem para junto de nós. Aqui podes ser uma rainha...

— Eu não sou um dos vossos — retorquiu ela. — Eu sou uma rapariga normal e vivo com os humanos. Sou de carne e osso, não flutuo pela floresta murmurando mentiras e pregando partidas.

— Ahhh... — Suspiraram as vozes. — Ele pregou-te uma partida quando te acolheu. Ele afastou-te da família e do lar... Vem para junto de nós... Nós precisamos de ti... Nós amamos-te...

— Como é que eu posso regressar? Nem sequer vos vejo! — respondeu Tuala, sussurrando furiosamente. — E não me amais, isso é outra mentira. Abandonastes-me na neve. A minha vida é com os humanos, não preciso de vós!

As vozes sussurraram em coro, vindas de uma dúzia de lugars.

— Tu precisas... oh sim, precisas... É por isso que vens a este lugar, uma vez e outra... Tu precisas de nós...

Bridei mexeu-se e estendeu os braços. Abruptamente, os seres da floresta desapareceram, como se de um simples fôlego tivessem regressado à terra a que pertenciam.

— Estiveste a chorar — disse Bridei, surpreendido. — O que é que se passa? O que é que viste?

— Estou bem — disse Tuala, esfregando as faces. — E tu? O que é que viste?

A expressão do jovem era carrancuda e os seus olhos estavam muito sérios.

— A mim, o Espelho Negro só mostrou uma imagem — disse ele pondo-se de pé. — Eu não queria vir aqui hoje. Apesar disso, ainda bem que vim, porque vou entrar em combate contra os celtas, na Primavera, e isto serviu para me encorajar ainda mais. Temos de expulsar o inimigo do Vale para sempre, em nome dos bravos que morreram aqui. Será um ato de vingança, pura e final. Ainda bem que me trouxeste aqui, Tuala. Lamento que a tua visão te tenha feito chorar. Não gosto nada de te ver triste.

— Estou bem — disse ela mais uma vez, se bem que não fosse verdade e estivesse consciente de que Bridei sabia. — Por vezes, o Espelho Negro mostra-nos coisas tristes, mas com um propósito.

— Querias mostrar-me mais qualquer coisa? — perguntou ele. A gentileza da sua voz e o modo amável como inclinou a cabeça para ela recordaram a Tuala a visão que tivera, fazendo-a sentir-se ainda pior.

— Não — disse ela. A sua intenção era falar-lhe das presenças sobrenaturais que a seguiam cada vez mais, algures entre a matéria e as sombras. Tuala sentia necessidade de pôr em palavras o desejo de descobrir coisas sobre a sua verdadeira família, as razões do seu abandono à porta de Broichan e o que esse fato poderia significar no seu futuro. A jovem também sentia necessidade de falar a Bridei no medo que a possível descoberta lhe provocava. E se descobrisse a sua verdadeira identidade e descobrisse que não pertencia de todo ao mundo dos humanos? E se a descoberta a afastasse para sempre da única pessoa do mundo que lhe interessava? Porém, poderia continuar a sua vida na ignorância?

— Tens a certeza?

— Tenho. Está a fazer-se tarde; se calhar, Donal anda à tua procura. Devíamos ir.

— Tuala?

— O que é?

— Se se passasse alguma coisa tu dizias-me, não dizias?

— Não se passa nada.

— Preocupas-me — disse Bridei. — Não gosto de te deixar, especialmente quando estás assim.

— Assim como?

— Triste. Ansiosa. Como quando Broichan te mandou para Cumeeira de Carvalho, quando eras pequena. — O jovem estendeu uma mão e limpou-lhe as lágrimas das faces com os dedos. Ao sentir o gesto, leve como uma borboleta, Tuala sentiu algo dentro de si, algo que nunca sentira antes. Fechou os olhos por um momento. Tinha de ser forte, por mais miserável que se sentisse. Ele não tinha outra hipótese senão partir; bastava-lhe que Bridei pensasse em si enquanto estivesse ausente. Além do mais, continuava com aquela fita azul atada no pulso, levava-a sempre consigo quando se ausentava de Pitnochie.

— Eu só estou triste porque te vais embora, mais nada — disse ela. — Contigo longe, tenho de responder às perguntas todas de Wid e de Erip, em vez de só a metade.


Havia quatro grandes lagos ao longo da grande fissura que era o Grande Vale, todos eles ligados entre si por canais estreitos. Era possível atravessá-los de barco desde a costa norte, perto da fortaleza real de Caer Pridne, até às ilhas, a oeste, a remos ou à vela, transportando o barco pelas margens dos canais, lineares e salpicadas de rochas. Cada lago tinha o seu nome particular e carácter único. O Lago da Serpente estendia-se desde o estuário, a norte, e para além da casa de Broichan. O Lago da Serpente era negro e profundo; nas suas águas moravam sombras de antigas presenças. Os homens que pescavam nele usavam amuletos nos pescoços e regressavam sempre a terra antes do anoitecer.

A sul do Lado da Serpente ficava o menor dos quatro, Lago da Donzela, onde começava o caminho que ia dar a Cinco Irmãs. A subida era íngreme, mas fazia-se bem. Os viajantes podiam admirar os vales cobertos de bruma, os canais meio escondidos, as encostas cobertas de árvores e as rochas escarpadas. O local era habitado por lobos; as pessoas não iam a Cinco Irmãs sozinhas, a não ser que não tivessem amor à vida. Alguns conseguiam passar incólumes, eram tocados pela mão da Que Brilha, ou seguiam como guerreiros escolhidos pela Guardiã das Chamas, e os animais selvagens respeitavam-nos, sentiam-no no próprio sangue. Por vezes, os veados até se ofereciam a tais viajantes como sustento e à noite os lobos uivavam enquanto eles se aqueciam ao calor de uma fogueira na imensidão dos montes escuros. O caminho ia dar ao oceano, a oeste, e às ilhas. Estas pareciam animais marinhos em descanso, rodeadas por águas brilhantes no Verão e açoitadas por ventos e marés no Inverno.

No outro sentido, para sul, passando por Lago da Donzela, estava Lago Mágico. Lago Mágico era um lugar misterioso. Ouviam-se tambores nos montes e, por vezes, trompas, uma recordação fantasma do que ali se tinha passado em tempos recuados. Aquelas margens solitárias tinham sido, não havia dúvida, cenário de uma batalha, vitória ou derrota, cujos sons de dor e desafio se tinham tornado parte da memória profunda de Lago Mágico. As suas águas tinham testemunhado as vidas de muitos homens; as pedras e as árvores guardavam esse testemunho no seu silêncio.

Nas encostas a leste de Lago da Donzela estava Fonte do Corvo lar do chefe tribal Talorgen, da sua mulher Dreseida e dos seus quatro filhos, três rapazes e uma rapariga. As posses da família eram substanciais, Talorgen tinha a sua própria força armada, fabricantes de armaduras, ferreiros, servos para tratarem dos cavalos e alimentarem um pequeno exército. O chefe tribal tinha rendeiros cujas herdades lhe providenciavam os produtos de que necessitava; gado, peles e lã. Em troca, Talorgen dava-lhes proteção e profissão aos seus filhos como homens de guerra ou aprendizes de qualquer ofício. O chefe tribal era muito respeitado e a sua mulher não lhe ficava atrás. Como prima direita do rei Drust, nas suas veias corria o sangue real dos Priteni.

Fonte do Corvo estava numa posição estratégica no flanco de Descanso de Corvo, a vista alcançava um vale escondido, para lá de Lago da Donzela. A sudoeste, para lá da extensão misteriosa de Lago Mágico, situava-se Lago do Rei, grande e largo, que se abria finalmente para o mar, a oeste. Águas perigosas e costa perigosa: ali estavam situadas as fortalezas dos celtas. Ao longo da costa oeste de Fortriu, a partir daquele ponto, para sul, até às velhas fronteiras e para norte, até às terras selvagens dos Caitt, os intrusos tinham ganho posição e nem com grande esforço por parte dos Priteni, de Drust, o Touro, e de outros reis antes dele, tinha sido possível expulsar aquele parasita. A sul era mais do que uma posição. O auto-proclamado rei de Dalriada construíra uma fortaleza num lugar chamado Dunadd e estabelecera colonatos nas proximidades, assim como nas próprias ilhas. Os celtas sentiam-se em sua própria casa.

A posição de Fonte do Corvo era perfeita para sortidas ao território de Dalriada, ao mesmo tempo que colocava Talorgen em risco de ser espiado e os seus homens eram alvo de ataques sempre que se aventuravam em missões, disfarçados. Bridei estava consciente de que o perigo, em Fonte do Corvo, era maior do que em Pitnochie. Era a partir dali que os Priteni podiam atacar e provocar danos profundos.

Se as coisas corressem como Talorgen e os outros chefes tribais esperavam, Pedra Mágica regressaria no Verão à posse de Fortriu. Então, a Guardiã das Chamas entoaria cânticos e A Que Brilha dançaria de alegria no céu, por cima do Vale. Toda a gente estava esperançada numa vitória.

Já com dezoito anos, dois homens, portanto, Bridei e Gartnait desempenhavam o seu papel patrulhando as fronteiras de Fonte do Corvo. Geralmente, Donal ia com eles, ou um dos homens de Talorgen, devidamente escolhido. Fazia sentido serem três. Um tal número podia mover-se a coberto dos bosques e manter-se em contacto por meio de sinais sutis como o pio de uma coruja, ou o restolhar de um esquilo. Se o pior acontecesse e um deles fosse ferido, um dos restantes poderia tratar dele enquanto o último iria em busca de reforços.

Estava um dia frio de Outono, o ar doía ao entrar nos pulmões. Das bocas de Bridei e de Gartnait saíam nuvens de vapor enquanto os dois jovens se moviam silenciosamente ao longo da orla superior da floresta de pinheiros com os olhos e os ouvidos alerta. Naquele dia eram apenas os dois porque os homens mais idosos estavam em conselho com um chefe tribal recentemente chegado a Fonte do Corvo, um homem de cujo apoio Talorgen necessitava para vencer. Donal também fora requisitado, assim como o terceiro homem que geralmente os acompanhava. De fato, Gartnait e Bridei preferiam fazer a patrulha sem mais ninguém a acompanhá-los. Os dois jovens tinham-se tornado muito amigos, mas também rivais desde o primeiro Verão em que o esgalgado e sardento Gartnait passara pela ordeira casa de Pitnochie. Era difícil dizer quem se sentira mais deslocado, se Gartnait naquele mundo de estudiosos, rituais e magia, ou Bridei, no Verão seguinte, no meio das disputas barulhentas, brincalhonas e ferozes daquela família de Fonte do Corvo, com os dois irmãos mais novos e uma irmã com quem lutar, para além do próprio Gartnait. Dreseida, a sua mãe, era a pessoa mais difícil de todas com os seus olhares perspicazes e as suas perguntas inesperadas. No primeiro Verão, Bridei tivera saudades de Pitnochie, da disciplina severa de Broichan, da ordem, da inteligência viva e sentido de humor dos dois anciãos. Acima de tudo, tivera saudades de Tuala porque como não a sentia a seu lado, pequena e silenciosa com os seus olhos vigilantes de coruja, não podia exprimir os seus pensamentos mais profundos, tinha de os deixar acumularem-se na mente. Naquele Verão, os seus sonhos tinham-no deixado perturbado.

Agora, porém, já estava habituado a Fonte do Corvo. O jovem aprendera a rir-se das piadas, se bem que não tivesse desenvolvido a habilidade de as dizer. Bridei sabia que não teria adquirido a perícia suficiente como guerreiro para poder participar na empresa da Primavera seguinte se não tivesse tido Gartnait como parceiro no processo de passagem de rapaz a homem. Os irmãos mais novos de Gartnait olhavam agora para os dois jovens com outros olhos. Com Ferada a questão era outra. Bridei sentia que a irmã de Gartnait confiava tanto nele como a mãe. As mulheres da casa de Talorgen eram difíceis de compreender, num momento sorriam e eram corteses, no outro mostravam-se ofendidas, faziam perguntas a que ele não podia responder, ou remetiam-se a um silêncio gelado. Não era de admirar, pensou Bridei enquanto rastejava ao longo dos restos de uma antiga muralha de pedra, que nunca soubesse o que lhes dizer. Não tinha prática. As únicas mulheres em Pitnochie eram Mara, que mais parecia um grande cão de guarda, e a tímida Brenna. Tuala não contava, era uma criança. Se ficasse alguma vez em Caer Pridne, por ocasião de uma das estadias do rei, talvez conhecesse algumas damas da corte e aprendesse a maneira de se conduzir na sua presença. A perspectiva não lhe agradava nada.

Um assobio minúsculo: Gartnait mais à frente, fazendo-lhe sinal de que havia perigo. Bridei franziu o sobrolho. Por uns momentos, o jovem não ouviu senão o vento nos pinheiros, ou o canto distante de um pássaro. Bridei não conseguia ver o amigo, mas sabia que ele estava a uns cem passos mais à frente, junto das primeiras árvores, tão imóvel quanto ele. O jovem sentiu o seu coração a bater com força e forçou-o a abrandar o ritmo, ao mesmo tempo que tirava o arco e lhe punha uma flecha, cada movimento um ritual, equilibrado e cuidadoso. À sombra daqueles pinheiros, os trilhos ficavam rapidamente sombrios porque por entre os troncos maciços dos mais antigos habitantes da floresta erguiam-se os seus descendentes, altos, esbeltos, procurando também eles a luz. Um homem podia esconder-se por baixo deles. Também se podia esconder nos maciços rochosos, por baixo dos troncos caídos cobertos pela vegetação, por baixo das plantas que cobriam algumas fendas ou numa súbita ravina estreita. Descobrir um homem naqueles bosques era muito difícil; as forças de Talorgen, incluindo Bridei, tinham treinado noite e dia naquele terreno.

Era possível que Gartnait tivesse visto um gamo ou um porco selvagem. Naqueles dias, na expectativa da guerra, os guerreiros andavam tão tensos que se atiravam a uma sombra qualquer, dando depois de caras com as hastes de um veado ou com as presas de um javali.

Bridei ouviu de novo o assobio; uma simples nota, breve e premente. Com ele, um movimento mais abaixo, entre os fetos, e uma cor que não fazia parte dos castanhos, cinzentos e verdes dos bosques; a imagem pálida do rosto de um homem que logo desapareceu por se ter escondido atrás de uma planta qualquer, um arbusto, uma árvore caída, um conjunto de pedras. O guerreiro era ágil. Um momento mais tarde, Bridei viu Gartnait passar a toda a velocidade e desaparecer por trás de um maciço de pinheiros.

Tinham falado sobre aquilo muitas vezes, tinham treinado situações parecidas com os homens mais velhos, especialmente com Donal. Naquele dia, porém, eram apenas os dois e nenhum tinha uma verdadeira experiência de combate. Bridei moveu-se para a direita, para o flanco oposto a Gartnait. Entre os dois, haviam de fazer sair aquele intruso da toca. Evidentemente, enquanto avançava com o arco na mão, movendo-se silenciosamente no solo atapetado de agulhas de pinheiro, Bridei pensava que aquele tipo podia muito bem estar a conduzi-los a uma armadilha. Podia muito bem estar um grupo emboscado mais à frente. Tinha de prosseguir com cuidado, deixar um espaço entre os dois e não anunciar a sua presença senão quando soubesse qual a intenção do inimigo. O objetivo era capturá-lo, não matá-lo. Os espiões tinham informações; tinham que o apanhar vivo.

Bridei e Gartnait sabiam, após vários anos de treino em conjunto, que cada um ultrapassava o outro em determinadas disciplinas. Gartnait não tinha a perícia de Bridei com o arco e este não podia medir-se com o seu amigo de grandes pernas em corrida e também não possuía o instinto natural que o amigo tinha para as atividades que tivessem a ver com a água. As pessoas diziam, a brincar, para aborrecimento de Dreseida, que o filho mais velho de Talorgen descendia da Tribo das Focas. Gartnait não tinha a afinidade de Bridei com os animais, a sua habilidade para conseguir o que queria do seu cavalo, o seu dom com os cães ou os gatos. E ninguém em Fonte do Corvo conseguia caminhar pela floresta tão silenciosamente como Bridei. Um talento, segundo observara Dreseida no seu modo seco, que só se podia dever a uma educação druídica. Era verdade. As primeiras lições de Broichan estavam profundamente alojadas na mente do jovem: viaja sempre pela floresta como se fizesses parte dela, bridei, não como um intruso.

Os seus pés não faziam qualquer som, pelo menos nenhum detectável pelo ouvido humano. O jovem caminhava como um animal da floresta, com prudência e segurança, sentindo cada aresta, cada buraco, cada raiz, folha e pedra como se os seus pés fossem extensões do que estava por baixo deles. Os seus ouvidos estavam sintonizados com o menor dos sons e os seus olhos atentos ao menor sinal que pudesse trair uma presença estranha, algo que não pertencesse ao ambiente.

Bridei sabia onde estava Gartnait; o som ligeiro de uma bota na carpete de agulhas de pinheiro e a mínima deslocação de ar revelavam a posição do seu amigo. Além do mais, tudo o que estavam a fazer obedecia a um padrão do qual ambos se lembravam, tal como se lembravam das canções da sua infância, quase instintivamente, algures no bater dos seus corações, no pulsar do seu sangue. Os dois jovens desceram o monte um de cada lado até chegarem perto do local onde o inimigo se escondera.

Um terceiro homem ter-lhes-ia dado jeito. Salvo aquela hipótese, era evidente que tinham de esperar porque Bridei se tinha apercebido de que a sua presa estava escondida num buraco existente entre algumas rochas onde uma árvore caída, com os ramos fendidos ainda cheios de agulhas, lhe fornecia uma barreira natural e um excelente esconderijo. Tentar um assalto àquela posição segura seria uma loucura, talvez um suicídio. Um homem sozinho, escondido num lugar daqueles, era capaz de se defender durante algum tempo e provocar bastantes danos. Dois ou mais podiam durar tanto quanto lhes permitisse o seu armamento. Se tinham uma boa provisão de flechas ou de facas de lançar, podiam abater os dois atacantes. Fora uma boa escolha, mas não o suficiente; o inimigo estava, de fato, numa ratoeira, num espaço com apenas uma saída e se Bridei e Gartnait conseguissem ficar de guarda o tempo suficiente, o seu adversário acabaria por mostrar-se. Então, apanhá-lo-iam. Ou a eles. Bridei esperava que não fossem mais de dois. O sucesso naquela empresa era vital. Não se tratava apenas da captura de um espião, um golpe contra os miseráveis celtas, era uma oportunidade, se tivessem sucesso de ser aceites como homens; como guerreiros, merecedores de uma inclusão na elite de Talorgen.

Gartnait estava à vista e fez-lhe sinal de que era da mesma opinião. Os dois jovens instalaram-se com as armas prontas, um de cada lado ligeiramente acima do buraco. Dali não podiam ser vistos. Os únicos sons na floresta eram o gorjear de um regato, o suspiro da brisa nas árvores e o restolhar dos animais.

Era fácil ficar imóvel e em silêncio para Bridei, habituado como estava à disciplina da sua educação. Para Gartnait era mais difícil. À medida que a sua vigília prosseguia e o homem ou homens escondidos não se moviam nem faziam qualquer som, Bridei via o seu amigo a mudar o peso de uma perna para a outra, aliviar a pressão sobre o punho da faca ou a esboçar um bocejo. Porém, o silêncio mantinha-se. Quanto mais tempo aquilo durasse, mais probabilidades havia de que aparecesse mais alguém antes que acontecesse alguma confrontação. Se qualquer dos homens de armas aparecesse, o padrão mudaria. As probabilidades de serem feridos ou mortos diminuiriam. Por outro lado, perderiam a hipótese de fazer aquilo sozinhos, provando assim, finalmente, o seu valor. Bridei sentia-se perturbado pelos seus pensamentos porque sabia que não eram dignos de um guerreiro experimentado, para quem a estratégia era mais importante do que as ambições pessoais. Que ninguém apareça até acabarmos.

O inimigo foi o primeiro a quebrar o silêncio: ouviu-se uma palavra em surdina, indistinta, com um sotaque áspero, que fez Bridei suspender a respiração. O tipo falava na língua de Dalriada. O seu primeiro adversário decidira dar o primeiro passo.

Gartnait com a faca em riste, olhou para Bridei com as sobrancelhas erguidas. Agora? Bridei abanou a cabeça: Ainda não. Então, com as mãos, fez uma série de sinais que o jovem esperava que Gartnait compreendesse. Mão em cutelo na garganta e a negativa: não. Apontando para Gartnait, para si próprio e depois indicando onde saltar sobre a presa. Punhos juntos, como se estivessem atados: Agarrá-los, atá-los. Não havia tempo para mais, mas Gartnait, com as sardas a sobressaírem numa súbita palidez, mostrou com um ligeiro aceno que tinha compreendido.

A distância era muito curta para poder utilizar o arco. Seria um combate corpo-a-corpo com as facas. A boca de Bridei secou; a sua respiração tornou-se difícil de controlar. E se o inimigo não se deixasse apanhar com facilidade? Tinham que evitar uma luta prolongada porque tinham que minimizar os danos no inimigo, de modo a que ele pudesse dar as informações que tinha: com sorte, as posições de Gabhran, o seu armamento, as suas forças, os seus planos. Um espião era como um tesouro e um tesouro devia ser manuseado com cuidado, mesmo por um jovem que nunca lutara contra um verdadeiro inimigo. O coração de Bridei batia com toda a força; o sangue corria-lhe nas veias a toda a velocidade. Todo o seu corpo estava tenso. O jovem usava as técnicas que Broichan lhe ensinara, abrandando a respiração e acalmando os pensamentos. Chegado o momento, teria de estar na posse de todas as suas capacidades, ou arriscar-se-ia a regressar para junto de Talorgen, de Donal e das restantes pessoas de Fonte do Corvo com a história de uma oportunidade perdida. Quem estaria disposto, então, a levá-los numa expedição maior, com mais responsabilidade?

Ouviu-se uma ligeira tosse vinda do esconderijo, um som quase tão sutil como os seus sinais; um instante mais tarde emergiram dois homens, que desataram a correr através do terreno difícil. Gartnait partiu em sua perseguição. Bridei embainhou a faca, pegou no arco, colocou uma flecha na corda e disparou no espaço de tempo que demora um fôlego. O jovem já se notabilizara naquilo. A primeira flecha apanhou um dos homens no ombro, fazendo-o cambalear antes de desaparecer entre os pinheiros; a segunda apanhou o outro na perna. Em seguida, Bridei desatou também a correr. Gartnait conseguira apanhar um dos adversários e lutava com ele no chão. O jovem praguejava enquanto tentava tirar as armas ao homem e o seu oponente parecia devolver os insultos na sua própria língua. Bridei parou. A sua presa, o homem com a flecha no ombro, desaparecera como que por magia. Bridei apontara com precisão; o tipo devia estar enfraquecido e com dores. Porém, ainda devia estar capaz de usar uma faca e demora apenas um momento sair de um esconderijo e rasgar a garganta de um homem. Bridei susteve a respiração, tentando ouvir qualquer som para além das pragas furiosas do prisioneiro de Gartnait e dos epítetos do próprio Gartnait, que tentava a todo o custo atar os pulsos do tipo. O jovem afastou aquela algaraviada utilizando uma das técnicas de Broichan, sintonizando os ouvidos para um único som, uma respiração, um suspiro de agonia. Bridei usou o nariz como um animal predador, tentando apanhar o cheiro do medo. Lá estava ele, o inimigo, não muito longe por baixo dos fetos, acocorado, à espera. À espera que Bridei se aproximasse mais um pouco... à espera de poder atacar...

Um passo em frente, decisivo e corajoso, com o arco pronto, a flecha perfeitamente alinhada.

— Levanta-te! — gritou Bridei. — Com as mãos acima da cabeça! Sai para onde te possa ver, ou trespasso-te o coração!

Silêncio.

— Não duvides da minha pontaria — disse Bridei, sentindo que o seu tom era autoritário. — Queres experimentar? — Quando não obteve resposta, o jovem largou a flecha, rezando para que ela acertasse onde ele queria; provavelmente, não havia mais de dois palmos entre ele e o ferido a julgar pelo som da respiração.

Bridei ouviu a flecha a alojar-se na madeira — chack!— e sentiu-se aliviado por ter calculado bem e não ter morto o homem. Um momento mais tarde, o seu inimigo pôs-se de pé com uma mão na cabeça e com o outro braço ao longo do corpo, inútil. O sangue saía-lhe do ombro da túnica e escorria-lhe pela camisa abaixo. O seu rosto estava branco como a cal, os seus dentes estavam cerrados de dor e os seus olhos mediam friamente o jovem.

— Sai daí! — ordenou Bridei, fazendo ao mesmo tempo um gesto de cabeça visto que era pouco provável que o prisioneiro compreendesse a língua dos Priteni. O celta obedeceu, afastando-se três passos de Bridei e ficando à sombra dos pinheiros. O homem fixou o seu captor e, com precisão, cuspiu-lhe no rosto.

Bridei respirou profundamente. O jovem não levantou a mão para tirar a saliva das faces.

— Vira-te — ordenou ele.

O outro ergueu as sobrancelhas como que a indicar incompreensão. A sua expressão tornara-se branda, tranquila. Na verdade, dava a impressão que o homem achava aquilo tudo um pouco ridículo. O tipo era jovem, pensou Bridei, talvez não fosse mais velho do que ele, se bem que os seus olhos parecessem os de um homem mais velho.

— Vira-te! — ordenou Bridei em tom cortante, fazendo um gesto com a faca e tirando a corda que trazia no pequeno saco.

O inimigo virou-lhe as costas. Um momento mais tarde, quando Bridei lhe tentava atar os pulsos, o pé do homem ergueu-se e embateu com força na canela do jovem, ao mesmo tempo que o braço bom lhe assentava pesadamente nas costelas. Desequilibrado e sem fôlego, Bridei fez a única coisa que podia: agarrou o outro pelo braço ferido, fez com que o seu próprio peso arrastasse o seu oponente para o chão e depois, após uma dolorosa luta no solo, imobilizou-o de costas e encostou-lhe a faca ao pescoço.

— Faz isso outra vez e parto-te o outro braço — disse Bridei, arquejando. — Gartnait! — Apesar da desvantagem do ferimento, o celta estava pronto para outro truque e outro ainda, o homem não estava disposto a desistir. Bridei podia ver a determinação nos seus olhos: não tinham o menor sinal de medo.

— Ata-lhe as mãos! — disse ele quando Gartnait apareceu com o seu oponente aparentemente amarrado e complacente porque já não se ouviam quaisquer gritos.

Gartnait fez o que Bridei lhe pedira. O prisioneiro torceu-se, tentando libertar-se.

— Pára com isso, miserável! — gritou Gartnait, dando-lhe um soco no ouvido e apertando a corda com tanta força que esta entrou na carne dos pulsos. Bridei encolheu-se, imaginando a dor no ombro ferido. O rosto do homem nem sequer se mexeu.

— O outro tipo consegue andar? — perguntou Bridei ao amigo. É melhor pormo-nos a andar. Pode haver mais por aí.

— Pus uma mordaça no meu. É melhor fazeres o mesmo ao teu.

— Tu já fizeste barulho que chegue para atrair eventuais reforços — observou secamente Bridei. — Vai buscar o teu homem; eu trato deste. E obrigado.

Gartnait sorriu.

— Não tens de quê. Hás-de ter oportunidade de me devolver o favor.

Gartnait tinha um pouco de sangue numa das faces — não era seu — e um olhar que Bridei nunca vira antes. O jovem não o conseguia decifrar, mas sentiu um arrepio. Sem desviar o olhar, sentiu o olhar do seu prisioneiro. Bridei atou a outra ponta da corda na própria mão, prendendo o tipo a si como um cão. O jovem encostou a faca às costas do celta.

— Toca a andar — ordenou ele, iniciando a marcha de regresso a Fonte do Corvo.

Na sua pegada, Gartnait conduzia o seu prisioneiro de forma desastrada porque o ferimento na perna significava que este não podia andar sem ajuda. Bridei abrandou o passo para não se afastar demasiado e parecer querer reclamar unicamente para si o crédito da missão. Tinham feito um bom trabalho; Talorgen teria de reconhecê-lo. Donal também ficaria impressionado, à sua maneira. Por que razão, então, Bridei se sentia pouco à vontade, com os nervos em franja, com a mente fixa em algo que não estava certo? Teriam ficado mais inimigos escondidos, prontos a atacar? Certamente que não; o momento ideal para uma emboscada tinha passado. Tentariam os dois prisioneiros escapar novamente, dessa vez com sucesso? Dificilmente; o prisioneiro de Gartnait estava diminuído, as suas feições estavam pálidas, a sua perna estava de momento inutilizada; aquele só voltaria a correr dali a muito tempo. O prisioneiro de Bridei deixara de lutar, se bem que o seu olhar não fosse o de um homem derrotado. Aquele tipo não tinha cabelo ruivo e as feições largas e pálidas comuns a todos os homens de Dalriada. O jovem guerreiro tinha rosto longo, cabelos escuros e era musculoso. Podia ser um guerreiro de Fortriu se tivesse o rosto tatuado. Todos os homens de armas de Priteni ostentavam as suas cicatrizes de batalha com orgulho, juntamente com os seus sinais de origem, os animais e os símbolos do seu parentesco. Após a campanha da Primavera, Bridei e Gartnait teriam também merecido as primeiras decorações guerreiras. A pele daquele homem não tinha quaisquer padrões e era aquele fato, mais do que qualquer outro, que o tornava um estranho naquele local.

Apesar do ferimento, que continuava a sangrar, o prisioneiro caminhava normalmente, com os olhos fixos na sua frente e as costas direitas. Bridei não conseguia afastar o sentimento de que ele próprio estava a ser espiado. Quando se crescia com um druida como tutor, aprendia-se a observar os homens com subtileza, a interpretar a respiração, a menor mudança no olhar. Acima de tudo, os olhos do homem é que eram desconcertantes, pareciam os olhos dos assassinos do Espelho Negro, o exército que varrera o Vale dos Que Caíram e que levara tudo na sua frente. Aqueles olhos eram desprovidos de piedade e esperança; viam apenas a missão que tinham pela frente e o desejo de a levar a cabo. Seria difícil derrotar um exército com aquele olhar e seria, pensou Bridei com um arrepio, quase impossível de comandar. Homens daqueles lutavam sem a consciência da sua própria mortalidade. Mataria sem a consciência da humanidade do inimigo. Na verdade, um inimigo terrível.

Quando atingiram a muralha em redor dos pátios interiores de Fonte do Corvo, o prisioneiro de Gartnait apoiava-se pesadamente no ombro do seu captor e parecia quase inconsciente. O outro caminhava tão direito como um rei, com um sorriso retorcido. Talorgen e Donal não demoraram a aparecer. O conselho fora interrompido com a notícia daquela captura.


Era o que Bridei queria. Os homens reunidos em redor felicitando-os e enquanto os prisioneiros eram levados, vários dos homens comentaram que talvez fosse possível arrancar-lhes informações-chave Os olhos de Talorgen mostravam um respeito surpreendido e os de Donal um orgulho reprimido. No entanto, durante o resto do dia e da noite, a mesma incerteza continuava a perturbar Bridei. O jovem não conseguia identificar a sua causa. Era uma maldição, por vezes, ter sido educado por um homem como Broichan. Gartnait fora ensinado a lutar, a conduzir-se devidamente na companhia de outros homens e mulheres, a montar, estava a aprender a dirigir o domínio do seu pai. Bridei, pelo contrário, aprendera outras coisas mais sutis: como olhar e ouvir, estar preparado para uma eventual surpresa, como interpretar a disposição de um homem e, por vezes, os seus pensamentos a partir de um simples gesto, um pestanejar infinitesimal dos seus olhos. Bridei aprendera a interpretar tudo o que via, o bom, o mau, o triunfante e o humilhante. Naquele dia, o brilho dos olhos de Gartnait mostraram-lhe a sua alegria e o sucesso de ambos; as suas faces coradas disseram-lhe que o jovem ansiava pela aprovação do pai. Bridei recebeu as felicitações de Talorgen tal como o amigo, com uma inclinação de cabeça cortês e o comentário de que, sem a ajuda de Gartnait, teria perdido o seu homem. Porém, o que Bridei viu e que Gartnait não viu foi a ligeira hesitação na voz de Talorgen, a ligeira torcidela do lábio, como se o que tivessem feito, por mais corajoso e engenhoso, não fosse o que parecia. Mais tarde, Bridei reparou que Cenal, uma miserável sombra de homem cujo trabalho era supervisionar o interrogatório dos prisioneiros, desaparecera durante um tempo considerável depois da sua chegada e que ao mesmo tempo que se ouviam certos sons, sugerindo que os procedimentos habituais estavam a ser utilizados, só se ouvia uma voz a gritar para lá do pátio dos cavalos e teve a certeza que não era a voz do seu prisioneiro.

Aquilo tinha uma explicação, evidentemente. Havia uma certa vantagem em separar os prisioneiros, fazendo-os jogar um contra o outro. Porém, o pouco à-vontade de Bridei não se esvaiu à medida que o dia ia avançando e os sons vindos da cabana eram substituídos por soluços, grunhidos e, finalmente, pelo silêncio. Que podia fazer? Não era possível ir ter com um homem poderoso como Talorgen e pedir-lhe explicações, especialmente quando as suas dúvidas se baseavam num pressentimento vago.

À hora do jantar, Talorgen mencionou que os prisioneiros tinham morrido durante o interrogatório e que tinham conseguido arrancar-lhes alguns fatos úteis. As suas mortes tinham sido, de algum modo, prematuras; pelo que Cenal lhe dissera, os ferimentos infligidos pelas flechas de Bridei e subsequente perda de sangue tinham-nos enfraquecido, reduzindo assim a sua resistência à pressão.

Espero que não tenhas tido mão pesada demais? — perguntou Talorgen ao seu interrogador sentado na mesa ao lado.

— Não, meu senhor. Eu sou um profissional. — Nas feições simples de Cenal apareceu um olhar ferido. Bridei pousou a sua faca, perdendo abruptamente o apetite pelo tenro pedaço de carne. O jovem não fez qualquer comentário; não teria ficado bem. Talvez não devesse ter ferido os prisioneiros daquela maneira. Porém, naquele momento desejou tê-los morto. Toda a pessoasabia que qualquer celta, suficientemente louco para se deixar apanhar nas terras de Talorgen, era objeto de tortura; supostamente, os chefes tribais de Gabhran faziam o mesmo aos espiões dos Priteni. No entanto, era diferente quando um guerreiro apanhava outro, lutava com ele, o prendia a uma corda, lhe olhava para os olhos e via o sangue a correr do seu ferimento. Era diferente quando esse mesmo guerreiro entregava o prisioneiro para ser torturado até à morte. Bridei recordou as feições do celta, tão implacáveis como uma estátua de pedra. Não só o homem de cabelos pretos não tinha revelado quaisquer segredos, como morrera sem emitir um único som. Bridei tinha a certeza, o que significava que quando Talorgen dissera que ambos os prisioneiros tinham revelado informações úteis, estava a mentir.

Só havia uma pessoa com quem Bridei podia falar sobre aquele assunto, que era Donal. O jovem tinha de esperar por uma oportunidade; o jantar era uma refeição que se prolongava, a família sentada na mesa superior e o pessoal da casa enchendo as outras, enormes, no grande salão, enquanto os homens de armas aquartelados em Fonte do Corvo, preparando-se para a campanha da Primavera seguinte, ocupavam os bancos ao longo das paredes. Os cães rosnavam, os archotes fumegavam e a cerveja corria.

Como mentor e guarda-costas de Bridei, Donal sentava-se à mesa da família. Bridei tentou encontrar o seu olhar para lhe assinalar que queria falar com ele mais tarde, mas Donal estava a debater estratégia com Talorgen e foi lady Dreseida que pareceu desejar falar com Bridei. Com os cabelos negros perfeitamente atados na nuca e ornamentados com uma fiada de pérolas e os dedos cheios de anéis descansando com alguma elegância em cima da mesa, a dama debruçou-se para a frente, fixando-o com um olhar interrogativo. As suas perguntas eram sempre imprevisíveis, deixando-o sempre pouco à vontade; o jovem aprendera que, fossem quais fossem as respostas, ela achava-as sempre insatisfatórias.

— Com que então, Bridei, tornaste-te num herói. Imagino que Broichan ficaria muito orgulhoso de ti.

Bridei abriu a boca para responder, mas a irmã de Gartnait, Ferada, foi mais rápida do que ele.

— Broichan é um druida, mãe. — A sua voz era trocista, muito parecida com a de Dreseida, tal como o seu porte, a maneira como erguia a cabeça, como uma rainha, e a sua aparência imaculada, com cada cabelo no seu lugar e sem uma única ruga no vestido. Ferada era mais nova do que Gartnait. Apesar disso, um homem não podia olhar para ela sem ver a mulher formidável que ela seria um dia. — Os druidas não querem saber de feitos de armas nem de atos de coragem. Se Broichan estivesse aqui, teria perguntado a Bridei se ele tinha aprendido alguma coisa ao perfurar dois homens com as suas flechas, trazendo-os depois para sofrerem a tortura às mãos dos rufiões do pai. Não é verdade, Bridei?

Seguiu-se uma pausa silenciosa, durante a qual Ferada se apercebeu de que as conversas e os risos à sua volta tinham morrido enquanto falava, de modo que as suas últimas palavras foram ouvidas por todos os que se sentavam na mesa superior, incluindo o seu pai. As suas faces coraram.

— O que Ferada diz é verdade — disse Bridei rapidamente, sentindo o incómodo silêncio. — O meu pai adotivo teria ficado mais interessado na lição a tirar da experiência, não na própria ocorrência. Apesar disso, os druidas preocupam-se com feitos de armas; ainda não há muitos anos, Broichan combateu ao lado do rei Drust contra as forças de Dalriada. Faz parte do papel do druida de um rei aconselhá-lo nas coisas da guerra: lançar presságios, fazer predições, determinar a melhor ocasião para avançar ou retirar, ajudar o rei nas suas decisões e conjurar a boa vontade dos deuses.

— Ferada pode ter dito a verdade — observou Talorgen, franzindo o sobrolho na direção da sua filha — mas lamento que não consiga controlar a língua.

Os lábios de Ferada cerraram-se e a jovem pestanejou.

— Mesmo assim — acrescentou a sua mãe — a tua filha merece uma resposta, por mais deselegante que a pergunta tenha sido. — Dreseida virou os olhos perspicazes para Bridei, ao mesmo tempo que arqueava as sobrancelhas.

— Que pergunta? — disse Gartnait, perplexo. — Ela não fez pergunta nenhuma.

Talorgen estava a olhar para Bridei, tal como Donal.

— É verdade — disse Bridei, muito calmo — mas a pergunta estava lá, subjacente. A pergunta de Broichan teria sido: que lição se pode tirar do que aconteceu hoje?

— E? — acrescentou prontamente Gartnait. Era evidente que o jovem não tencionava dar resposta nenhuma.

— A resposta não é fácil. — Bridei sentiu um desejo profundo de estar em casa, em Pitnochie, onde o dia tinha muitos momentos de silêncio para a mente poder contemplar perguntas como aquela, onde havia espaço para ouvir as vozes dos deuses, onde as pessoas se sentavam em silêncio e o deixavam raciocinar à vontade. O jovem precisava de Broichan; tinha saudades de Wid e de Erip; tinha saudades de Tuala e da sua profunda imobilidade. — Gostaria de não me pronunciar sobre este assunto. Não tenho a sabedoria do meu pai adotivo. Este foi o nosso primeiro encontro com o inimigo.

— Que correu muito bem — disse Talorgen.

— E muito corajoso — acrescentou Donal, mas havia uma pergunta no seu tom de voz.

Bridei sabia que devia dizer mais qualquer coisa, se bem que preferisse guardar os pensamentos para si próprio. Pelo menos por causa de Gartnait tinha de continuar a fingir que tinha sido um triunfo irrefutável. Maldita Ferada; era intrometida e demasiado inteligente, o que não era bom para o seu futuro.

— Fiquei surpreendido por o inimigo ter um rosto humano — disse ele calmamente. — Fiquei perturbado porque tudo no passado do nosso povo nos leva a hostilizar os celtas até ao dia em que consigamos expulsá-los das nossas costas. Ainda tenho de aprender a sentir desse modo. Com tempo, conseguirei. No campo de batalha não se pode ter tais escrúpulos. Hoje vi a coragem. Cenal dir-nos-á, suponho, que essa mesma coragem foi evidente até ao fim.

Felizmente, Talorgen não pareceu achar impróprio o discurso de Bridei.

— Talvez — disse o chefe tribal —, mas não agora, com as mulheres e as crianças presentes. A guerra é um assunto brutal. Vós ainda sois jovens; isto foi apenas um aperitivo do que está para vir. Acredita no que te digo, todos nós começámos com essas sensibilidades, mas acabámos depressa com elas. Se não o fizéssemos, não estaríamos aqui. Falemos de outros assuntos. As coisas vão mudar; a campanha da próxima Primavera será significativa. Assim que começarem as hostilidades, Fonte do Corvo deixará de ser um lugar seguro. Dreseida irá com a família para a corte de Drust. — Talorgen olhou para Ferada, que tinha recuperado a compostura e que olhava para ele com um olhar de desafio. — Lá, aprenderás a dominar-te, filha — disse o chefe tribal com alguma suavidade. Toda a pessoasabia que ele gostava que os seus filhos expressassem as suas opiniões, mesmo que o resultado, ocasionalmente, fosse embaraçoso. Na verdade, o chefe da família fora ouvido a comentar que se Gartnait se interessasse tanto pelos negócios de Fortriu como a irmã, poderia vir a ser mais do que um simples guerreiro.

— Ficarás alojada em casa das mulheres sábias, em Banmerren continuou Talorgen — onde poderás tirar proveito do excelente ensino que elas providenciam às raparigas de nascimento nobre. A minha mulher ficará na corte com as suas parentes; os rapazes também. Talorgen não podia ter deixado de sentir o silêncio tenso de Gartnait e de Bridei; os seus lugares ainda estavam por definir. E se os dois jovens estivessem incluídos naquela palavra “rapazes”?

Donal tossicou.

— Broichan deu-me autorização para te incorporar na campanha contra os celtas, Bridei — disse ele. — Ele não fica feliz com a situação, mas sabe que chegou a hora; na verdade, já não era sem tempo. De fato, ele contribuiu com uma pequena força, por isso vamos ver velhos amigos, Uven e Cinioch entre eles. Suponho que Talorgen vai deixar que Gartnait cavalgue a teu lado; provastes o vosso valor como equipa, hoje.

Talorgen sorriu.

— Serão os dois muito úteis. Ficais avisados: a coisa não vai ser como a captura que fizestes hoje, um combate corpo-a-corpo equilibrado. A guerra é uma coisa suja, cruel e perigosa. Um homem bem formado não deixa de se sentir enojado com ela. Porém, é necessária, pelo menos enquanto a escumalha dos celtas andar neste mundo. Eles poluíram as nossas costas e devastaram as nossas terras. Já chega. A maré vai mudar na Primavera, há uma nova esperança para os Priteni e para o rei. Se conseguirmos reconquistar Galany’s Reach, a esperança será restaurada. Depois, outras se seguirão e vós fareis parte delas.

— Se continuas a sorrir assim, Gartnait — observou Ferada — ainda ficas sem queixo.

Gartnait virou-se para ela sempre a sorrir, incapaz de esconder a sua satisfação. Quanto a Bridei, os seus sentimentos eram mais confusos do que esperava. Ser aceite, finalmente, como homem e guerreiro, era bom, aquecia-lhe o coração. Porém, depois daquele dia, o jovem não sabia se seria capaz de compreender totalmente o seu significado. As imagens do Espelho Negro não lhe saíam do pensamento, plenas de dor e confusão, plenas de coragem terrível, como a daquele jovem cuja morte ele provocara. No entanto, aquele homem era um espião, o inimigo, igual aos guerreiros de olhos inexpressivos que tinham matado indiscriminadamente, em tempos. Como era possível combater com tais dúvidas?

— Não é justo — disse o irmão mais novo de Gartnait, Uric, um rapazinho explosivo de sete anos de idade, batendo com o punho na mesa com tal violência que os pratos e as facas saltaram. — Assim, nunca havemos de ter idade suficiente para ir para a guerra! Ir para a corte? Para o pé de um bando de velhos a murmurar pelos cantos, mais nada, e de pessoas sempre a dizer-nos para estarmos calados?

O olhar de Talorgen virou-se para contemplar o seu filho mais novo. Este, ao olhar para o pai, calou-se.

— É verdade — acrescentou Bedo, um ano mais velho e ligeiramente mais sério. — Em Caer Pridne temos de nos portar sempre bem. Preferíamos ficar aqui, onde está a ação, pai. Podíamos ajudar. Podemos fazer muitas coisas. Se Gartnait pode ficar, por que é que nós não podemos?

— Havias de ser de grande utilidade — disse Gartnait em voz baixa, ao mesmo tempo que dava uma cotovelada nas costelas do irmão.

— Tu não fazes idéia do que se trata, Bedo. — O tom de voz de Ferada regressara à sua habitual superioridade tranquila. — Gartnait e Bridei são homens. Tu ainda és uma criança. Gartnait e Bridei podem estar mortos quando a Primavera chegar ao fim. Já pensaste nisso? Dá-te por feliz por ainda seres novo. Há de chegar a tua vez. E se achas que é injusto, experimenta ser uma rapariga.

— Não falemos mais de injustiças — disse a mãe de ambos pondo-se de pé. — Farás como o teu pai manda, mais nada. E agora são horas de ir para a cama. Ferada, tenho umas coisas para tu fazeres, deixemos os homens com as suas conversas sobre guerra.

Mais tarde, Bridei encontrou Donal sozinho junto do muro norte a olhar para a encosta escura do monte e para a linha difusa e pálida do Lago da Donzela. Era evidente que Donal estava à sua espera; depois de tanto tempo como tutor e estudante, e depois como amigos, compreendiam-se os dois na perfeição. Durante uns momentos, os dois homens permaneceram em silêncio, escutando os pequenos sons da noite.

— Sobre o que aconteceu hoje — aventurou-se Bridei.

— Hum?

— Talvez eu esteja a imaginar coisas. Não podia dizer nada em frente de Talorgen, seria uma tolice. À primeira vista foi uma boa captura, conseguimos dois prisioneiros úteis. Porém, há algo que não joga.

— Ah sim?

— Sobre o homem que Gartnait capturou, não sei, mas o meu não era dos que cedem facilmente à tortura. O tipo podia estar a sangrar, mas não era o suficiente para o matar. Eu apontei com cuidado; aponto sempre. Por isso, porque procederam eles assim? Era mesmo necessário?

— Diz-me tu — disse Donal.

— Tenho pensado muito no assunto — disse Bridei. O jovem manteve a voz baixa; havia gente a passar. — Sinto que aquele homem podia ter sido de alguma utilidade. Provavelmente, não falaria, mas devia ter algum valor, nem que fosse como refém. Teria sido preferível curá-lo e mantê-lo sob custódia. O que Cenal fez foi...

— Desumano? As coisas são o que são, Bridei. Não existe lugar para escrúpulos quando os espiões aparecem à porta de um homem. Aquela gente não se preocupa com boas acções quando apanha um dos nossos. Os métodos deles meter-te-iam nojo.

— Foi cruel — disse Bridei, não se deixando desencorajar. — Cruel e, desconfio, sem qualquer sucesso, por mais que Talorgen diga. Por que um tal caminho? Talorgen não é estúpido nem cruel. Há aqui algo que ele não nos diz.

Donal acenou com a cabeça.

— Talvez. No entanto, a não ser que lhe perguntes, desconfio que nunca saberás o que é.

— Não achas — disse Bridei, dando voz aos seus mais profundos receios — que isto pode ter sido tudo montado?

— Que queres dizer com isso, montado?

— Quero dizer, a fingir, para que Gartnait e eu pudéssemos passar no exame sem ficarmos mesmo em perigo. Uma emboscada falsa, os dois homens a agirem como se pertencessem ao inimigo, o fato de estarem sozinhos. Aborrece-me que Broichan ande sempre tão preocupado com a minha segurança. Quando eu era criança, tudo bem, parecia que havia alguém que queria atingi-lo atingindo-me a mim, mas agora sou um homem. Não te sentes frustrado por teres que estar sempre junto de mim, tu ou outro guarda qualquer, por teres que dormir no outro lado da porta do meu quarto, por seres meu guarda-costas em vez de meu amigo? A mim, parece-me que, apesar de Talorgen dizer que sou um homem, a proteção que o meu pai adotivo instalou diz-me que ainda sou uma criança para ele, que tenho de ser protegido do perigo. Talvez o triunfo de hoje tenha sido o triunfo de uma criança, engendrado pelos mais velhos.

— Eu sou teu amigo, Bridei — disse Donal com voz calma.

— Eu sei; melhor não poderia arranjar. Porém, algum dia terei de andar por meus próprios pés.

— Vou-te dizer uma coisa — disse Donal. — O corpo que vi sair da cabana de Cenal, esta tarde, não era falso.

O frio apertou novamente o coração de Bridei, como se tivesse acabado de ver um fantasma.

— Corpo? Que homem era?

— Um tipo com uma ligadura na perna. Não sei nada do outro; não fiquei por ali à espera que fossem buscar o outro. Os tipos são escumalha, Bridei. Não merecem que os pises, sequer. Não devias perder o teu tempo com eles.

Bridei ficou silencioso.

— Quanto aos rapazes e aos homens — disse Donal, colocando uma mão no ombro de Bridei — tu vais desempenhar o teu papel na campanha como guerreiro entre guerreiros; uma coisa que tens de enfrentar, tu e Gartnait. Porém, Broichan faz bem em te proteger. Talvez ele tenha as suas razões. Suponho que tens o direito de lhe pedir, depois de a campanha terminar. Acho que chegou a hora de ele te dizer mais qualquer coisa. Quanto a mim, faço o que me mandam. Eu sei que achas que não precisas de vigilância, mas precisas. Afinal de contas, és filho de um rei.

— Estamos muito longe de Gwynedd — disse Bridei.

— Mesmo assim. Quando a Primavera acabar, talvez as coisas mudem. Até lá, tens de me aturar.

Bridei olhou de soslaio para o guerreiro tatuado; a expressão de Donal era ilegível à luz difusa.

— Não tenho queixas a fazer — disse o jovem calmamente. Sem ti junto de mim não teria aguentado isto. Para mim, tu és um pouco de Pitnochie, ajudas a fazer com que as coisas tenham sentido, mas quando for para entrar em combate, quero estar ao mesmo nível dos outros homens, quero ter as mesmas hipóteses e correr os mesmos riscos. Não quero que te concentres na minha proteção, quero que te concentres no inimigo. Não sei que instruções Broichan te deu, mas espero que respeites a minha vontade.

— Não me digas. — Não era possível saber o que Donal queria dizer com aquilo.

— Hoje morreu um homem por causa do que eu fiz.

— E mais morrerão quando partires para a guerra, dos teus e do inimigo. Vais sentir a tua faca a entrar no coração de um homem. Vais ver a expressão nos seus olhos enquanto o trespassas com a tua lança, ao mesmo tempo que ouves o tipo a chamar pela mãe. A primeira vez custa mais, mas nunca é fácil; nunca te habituas. Tens de te lembrar do que eles fizeram, os miseráveis. Tens de ter sempre presente na tua mente o mal que eles infligiram na nossa terra, as violações das nossas mulheres, o incêndio das nossas aldeias, a destruição dos nossos lugares sagrados. Mantém esses pensamentos vivos e a tua mão não hesitará, em nome da liberdade.

— E hoje?

— Atira isso para trás das costas. Pergunta a ti próprio se terias tantas dúvidas se tivesses visto Gartnait esta manhã com a garganta cortada. Tu fizeste o que devias. Fizeste o que um homem deve fazer e isso é que interessa.


Algo que Ferada dissera perturbava os pensamentos de Bridei, distraindo-o da preparação para a guerra. Na Primavera, Gartnait e Bridei podem estar mortos. O jovem sabia, claro. Com ou sem proteção, o jovem sabia que podia morrer trespassado pela lança de um celta, ou por uma flecha certeira. Porém, não era a perspectiva da morte que o perturbava. O que o perturbava era a possibilidade de morrer sem saber a verdade, ou se o futuro para que Broichan o tinha preparado com tanta assiduidade era aquele de que suspeitava cada vez mais. Bridei não queria esperar, como Donal sugerira, pela Primavera para perguntar a Broichan. Podia ser demasiado tarde na Primavera.

Era embaraçoso. Não podia fazer a pergunta a Talorgen, como amigo de Broichan, sem primeiro aflorar o assunto com o seu pai adotivo. Dreseida era capaz de o informar, mas o jovem sentia relutância em lhe perguntar. Os seus modos deixavam Bridei pouco à vontade, agia como inimiga sem razão aparente. A dama responder-lhe-ia, se lhe perguntasse, mas não sem uma série de outras perguntas cujo objetivo estava para além da sua compreensão.

Havia outra via e o jovem aproveitou-a chegada a ocasião. Uma manhã, antes de o dia de trabalho começar, Bridei dirigiu-se à horta em busca de um pouco de solidão. O local era tranquilo, cheio de odores de ervas, com um pequeno tanque ao centro e com sebes a dividir os canteiros das diversas plantas. Não havia muitos locais em Fonte do Corvo onde ele pudesse estar sozinho durante alguns momentos; a meditação era praticamente impossível. Até naquele pequeno santuário corria o risco de ser interrompido por Uric ou Bedo correndo atrás de um cão, ou alguém com uma faca e um cesto em busca de salsa para uma empada.

Bridei sentou-se num banco de pedra por uns momentos, tentando pôr os pensamentos em ordem. A captura: o celta, o olhar tranquilo e o ar de superioridade; a batalha que se avizinhava. Broichan e os seus planos. Bridei pensou na sua família em Gwynedd, tão longe, a família que esquecera por completo. Durante algum tempo, achara que Broichan o educaria e que depois o mandaria de volta para Gwynedd, para viver a sua vida entre o seu povo. Era por aquela razão que a maioria das famílias nobres mandava os seus filhos para longe: para alargarem os seus horizontes, para que pudessem contribuir mais tarde como conselheiros, como sábios ou como guerreiros. Como filhos de reis. Bridei desconfiava que os seus irmãos já deviam ser guerreiros experimentados, cavalgando orgulhosamente ao lado do pai. Ocorreu-lhe que talvez tivesse outros irmãos mais novos, dos quais não sabia nada. Uma irmã, talvez. Era estranho ter pensado naquilo porque nunca poderia gostar tanto de uma irmã como de Tuala. Bridei sorriu. A sua coisinha selvagem já tinha quase treze anos e não conseguia pensar nela sem se lembrar da primeira noite: a luz do luar, a neve, os seus pés gelados e o momento em que vira o presente notável da Que Brilha; o melhor momento da sua vida. Nunca deixaria de se sentir grato por ele. Quanto à sua própria família, parecia cada vez mais distante à medida que os anos passavam. No entanto, gostaria de os poder ver de vez em quando, especialmente o seu pai. Quando a batalha terminasse, talvez Broichan o deixasse viajar. Talvez. A não ser que tivesse razão quanto aos verdadeiros planos do druida.

— Bom dia — disse Ferada, aproximando-se com um pequeno livro numa mão e segurando a saia com a outra, evitando assim a erva molhada. O seu vestido, do mesmo tom avermelhado do seu cabelo atado na nuca com um nó complicado, estava perfeitamente engomado. Apenas se via um caracol fora do lugar, numa das têmporas, acentuando a palidez da sua pele. Bridei levantou-se.

— Não te levantes — disse Ferada, sentando-se a seu lado. — Também andava à procura da mesma coisa. Paz e tranquilidade. Uric cometeu um crime terrível, perdeu uma das pedras da sorte de Bedo e a casa ficou transformada num campo de batalha. Apeteceu-me afastar de toda a gente, especialmente da minha mãe.

Bridei sorriu.

— Compreendo perfeitamente o que queres dizer.

Ferada abriu o livro, mas o seu olhar não se dirigiu para as páginas de pergaminho, manuscritas na perfeição. A jovem olhou para os canteiros ordenados iluminados pelos primeiros raios dourados do sol da manhã, os que tinham plantas e os que estavam nus. Nestes, um bando de pássaros procurava saborosas minhocas.

— Por vezes, penso — disse ela — se será o sangue real que a faz ser assim. Parece que nunca nada está bem. Nunca estamos à altura do que ela quer de nós. Desculpa — acrescentou apressadamente Ferada. — Não devia falar assim contigo, Bridei, não é justo. Tu não tens nada a ver com as nossas dificuldades; nós é que temos de resolver os nossos problemas.

— Eu estou sempre disposto a ouvir — disse Bridei. — Não faço juízos antecipados, não estou em posição de o fazer já que cresci longe da minha própria família.

— Obrigada. — Era evidente que Ferada não queria continuar a falar naquele assunto.

— Posso fazer-te uma pergunta?

— Claro, Bridei.

— Gostaria que me dissesses exatamente qual é o parentesco entre a tua mãe e a minha e entre a minha mãe e o rei Drust.

Ferada olhou para ele.

— Esses anos todos de educação e não sabes?

Bridei sentiu corar as faces. O jovem sabia que Ferada era honesta, mas o tato não fazia parte das suas qualidades.

— Sinto que me esconderam deliberadamente muita coisa. Porém, quero saber, penso que é importante descobrir antes de partir para oeste.

— Hum — observou Ferada, olhando para ele de perto. — Portanto, queres saber se poderias ter sido rei quando estiveres a morrer no campo de batalha às mãos de um celta qualquer?

Seguiu-se um breve silêncio.

— Qualquer coisa como isso — disse Bridei.

— É muito simples — disse Ferada. — A minha mãe e a mãe do rei Drust são irmãs, o que quer dizer que o meu sangue e o dos meus irmãos é real pela linha feminina. Por mais horrenda que a perspectiva seja, sou obrigada a reconhecer que os meus três irmãos serão pretendentes ao trono quando o rei Drust morrer. Espero fervorosamente que ainda faltem muitos anos; o rei não é velho. Não consigo imaginar Uric no trono. Bedo, pelo menos, é capaz de juntar dois pensamentos quando quer. Quanto a Gartnait — disse ela encolhendo os ombros e revirando os olhos — é o menos provável de todos. Odiaria. É claro que há muitas mais possibilidades. Os filhos de sangue real estão espalhados por todos os reinos dos Priteni.

Bridei esperou.

— Quanto a mim, significa um casamento muito especial visto que os filhos que eu tiver serão, por sua vez, potenciais pretendentes. Não posso casar com qualquer um. Tem de ser um chefe tribal ou outro homem de grande estatuto, de preferência do interior dos territórios dos Priteni. É claro que, se receber uma proposta de outro país, é aceitável desde que o pretendente seja um rei. Foi o que aconteceu com a tua mãe.

— Estás a par da história dela, nesse caso?

Ferada sacudiu ligeiramente a cabeça perfeitamente penteada.

— Claro. Esses assuntos são da maior importância para a minha mãe. Ela está sempre a falar deles. Na verdade, surpreende-me que não tenha aproveitado uma ocasião qualquer para te explicar tudo.

— Talvez tenha pensado que eu sabia. Contas-me, Ferada?

— O parentesco da tua mãe é mais antigo, tem a ver com a avó de Drust. Anfreda descende da irmã dessa dama.

O jovem esperou.

— Pela linha feminina, Bridei, tu também és um potencial pretendente ao trono. Já supunhas, claro.

Bridei não podia responder. Supor era uma coisa, tomar conhecimento, subitamente, de que as suas suspeitas tinham fundamento, era outra. A sua cabeça começou a andar à roda e o seu coração desatou a bater com toda a força. O jovem começou a respirar profundamente.

— Anfreda era muito próxima deles — disse-lhe Ferada. — Pelo menos é o que a minha mãe diz. Anfreda era a favorita de Drust e da mulher; o meu pai conhecia-a e Broichan também porque naquele tempo estava na corte. Maelchon foi a Caer Pridne para discutir umas incursões ao norte do seu próprio domínio; alguns soldados dos Priteni tinham sido contratados como mercenários pelo seu inimigo e ele queria por termo àquilo. Maelchon ficou mais tempo do que tencionava e quando regressou a Gwynedd levou Anfreda com ele como esposa. Tal como eu disse, foi uma coisa aceitável. As mulheres de sangue real, por vezes, casam-se fora das tribos dos Priteni. É uma boa idéia porque fortalece a linhagem real. Por isso é que tu estás aqui e eu sou obrigada a considerar-te, mas apenas marginalmente, melhor como potencial monarca do que Bedo.

— Oh. — Bridei sentiu-se um pouco deslocado ao ouvir aquilo. Porquê?

— Tu tens muito de estudioso — disse Ferada rudemente. — Pensas muito e és bom demais.

— Estou a ver — disse Bridei.

— A mim, parece-me — disse Ferada — que, para seres rei, devias ter uma pele mais espessa, em vez de tanta imaginação. E uma data de bons conselheiros. Drust, o Touro, tem-nos, de certeza.

— Bem — disse Bridei — ainda faltam muitos anos para a eleição e, tal como disseste, os pretendentes serão muitos.

— Sete, se cada uma das casas de Pridne apresentar um. O rei de Circinn, Drust, o Javali, vai procurar acrescentar Fortriu ao seu próprio domínio. Ele quer que os dois reinos sejam cristãos. Pelo menos é o que o meu pai diz.

Bridei sentiu um arrepio, uma premonição das mudanças terríveis que se avizinhavam.

— Os chefes tribais de Fortriu nunca permitirão que isso aconteça — disse o jovem ameaçadoramente. — A Guardiã das Chamas nunca o permitirá.

Ferada olhava curiosamente para ele.

— Hum-hum — disse ela. — Depende, não achas, de como estivermos divididos. A chave é essa. Um líder, um país, uma fé. Suponho que é o que Circinn quer. A não ser que Fortriu consiga a mesma união, não conseguiremos guardar o nosso próprio reino.

Bridei sorriu.

— Acho que devias ser conselheira real, Ferada.

A jovem pôs-se de pé num salto e olhou-o de sobrolho franzido.

— Não te armes em condescendente comigo! — gritou ela.

— Eu não quis...

— Chega! Não tentes desculpar-te; és tal e qual o meu pai — quando a conversa atinge um determinado ponto e ele olha para mim e diz: “Tu não passas de uma rapariga, a tua opinião não interessa!”

— A sério, eu...

— Não te atrevas, Bridei!

O jovem ficou a vê-la afastar-se muito direita, emproada.

— Enganas-te a meu respeito — disse ele calmamente, mas sem saber se Ferada o teria ouvido.


CAPÍTULO SETE


A princípio, as mudanças foram tão ligeiras que Tuala mal se apercebeu delas. O Inverno do seu décimo terceiro aniversário foi particularmente rude e o mau gênio andava à solta no isolamento de Pitnochie. Quando Ferat grunhia em resposta aos seus bons-dias, Tuala achava que aquilo significava que ele estava com dificuldade para acender a lareira. O stock de lenha estava no mínimo e o vento, soprando pela chaminé abaixo, dificultava-lhe os esforços. Quando Cinioch não queria falar com ela depois do jantar, ela achava que ele estava preocupado com o conflito que se aproximava porque Broichan aconselhara os seus homens de armas a juntarem-se ao desafio que ia ser feito a Dalriada na Primavera, o que significava perdas de sangue e mortes. Mara andava brusca e distante, mas nada que a surpreendesse. Broichan era o centro do seu mundo; para os outros tinha pouco tempo.

No dia em que Fidich impediu Tuala de visitar a cabana onde ele vivia com Brenna e os filhos é que a jovem percebeu que o mau humor geral se devia ao gelo de um Inverno muito duro. Naquele dia, Tuala sentiu algo ainda mais frio, a consciência de que tinha sido posta de lado, no lado de fora de uma barreira e que nunca mais poderia entrar novamente. Por que razão, não sabia, não fizera nada que ofendesse fosse quem fosse. No entanto, tinham mudado todos.

— Desculpa — murmurou Brenna, apanhando Tuala quando a jovem regressava a casa, depois de Fidich lhe ter dito que já não era bem-vinda na sua pequena casa. — Ele está preocupado com as crianças, mais nada.

— Com as crianças? Que queres dizer? — perguntou-lhe Tuala, desconcertada.

— Desculpa — disse Brenna de novo, com uma expressão de desculpa no rosto. Fidich já se afastava a coxear pelo carreiro afora com o filho mais velho pela mão e com os cães nos calcanhares. — Eu sei que não queres causar mal nenhum, mas...

— Mas o quê? — Tuala sentiu uma calma terrível, uma premonição do que estava para acontecer.

— São as histórias. Os homens andam preocupados com as histórias: a da mulher-coruja, a do Xale Branco e outras. Têm medo e o medo alimenta o medo. Eu tentei dizer a Fidich, ele é bom homem, mas a coisa está-lhe metida na cabeça, está metida na cabeça de todos...

— O quê? O que é que ele tem metido na cabeça?

Brenna, porém, limitou-se a murmurar:

— Desculpa, Tuala — e afastou-se.

De regresso a casa, pareceu-lhe que todos evitavam olhar para ela, Ferat cortando as ervas muito concentrado, os seus dois assistentes ocupados com a lareira — as mãos de um deles mexeram-se e fizeram um gesto, um sinal de afastamento do mal, quando ela passou — Mara dobrando roupa com os lábios enrugados em sinal de desaprovação e com o olhar distante. Como habitualmente, Broichan estava nos seus aposentos. Por vezes, saía, mas com Bridei ausente a sua interação com a casa era sóbria e restringia-se ao essencial. Talvez, pensou Tuala, estivesse apenas à espera do regresso de Bridei, tal como ela. Era raro Broichan falar com ela e a jovem sentia-se feliz por isso porque o medo que sentia dele não diminuíra à medida que ia crescendo. Um relance daqueles olhos negros ainda tinha o poder de a deixar muda; uma palavra de crítica podia encher-lhe o coração, num instante, com uma mistura paralisante de fúria e terror.

A decisão de Fidich forçou Tuala a fazer um inventário e a jovem apercebeu-se de que aquilo já vinha acontecendo havia algum tempo, manifestando-se de diversas maneiras: um sutil afastamento do seu lugar habitual à mesa; a remoção de alguns cobertores de lã do seu quarto sem uma explicação e a sua substituição por uma coisa mais grosseira, como uma manta de cavalo; a proibição de montar Bae, mesmo num dia bonito, se bem que frio, quando o cavalo raramente fazia exercício e o súbito silêncio quando Tuala entrava numa sala, como se as pessoas tivessem estado a falar dela na sua ausência.

A jovem pensou naquilo tudo, mas não conseguiu chegar a uma conclusão. Se Bridei não estivesse ausente, ninguém se atreveria a ser tão pouco amável. Se Bridei não estivesse ausente, o olhar de Broichan seria diferente, Ferat sorriria e os homens de armas voltariam às histórias de guerra e de fadas em redor da fogueira. Bridei fazia com que a casa tivesse outra vida. A jovem ansiava pela Primavera, para que Bridei regressasse da guerra.

Tuala ainda se podia virar para alguém em busca de conforto. As suas lições continuavam. Eram mais pequenas porque Erip andava doente. O ancião tinha uma farfalheira no peito e estava mais magro, um fenômeno espantoso num homem cuja característica principal era o seu sorriso permanente. Broichan fazia-lhe uma poção, na qual os odores a noz-moscada e a mel não escondiam o traço de algo amargo e forte, uma erva druídica específica para aquela doença. Esperava-se que aquilo fizesse com que o ancião melhorasse chegado o fim do Inverno. Erip ficava sentado à lareira com um xale grosso em redor dos ombros magros; o homem recusava-se a ir para a cama, dizendo que era a mesma coisa que admitir a derrota e, se tinha de morrer, morreria a ensinar. Wid dizia que a verdade era que ele havia de morrer a discutir e Erip respondia, tossindo explosivamente, que tanto fazia de uma maneira como de outra.

A conversa sobre a morte afligia Tuala. O olhar de Wid ainda a preocupava mais porque enquanto o ancião barbudo obrigava o seu velho amigo a beber o remédio, ou o envolvia melhor no xale, ou trocava com ele um gracejo, ela via a sombra irremediável da morte nas suas feições enrugadas. Os dois homens eram muito amigos. A jovem não sabia nada da sua vida, das suas origens, por que razão se tinham instalado em casa de Broichan, por que razão pareciam não possuir parentes, ou uma casa. Qual era a fonte do seu profundo conhecimento? Como teria sido a sua vida para serem ambos tão ricos intelectualmente? Erip e Wid nunca falavam daquelas coisas: quando lhes perguntavam qualquer coisa, mudavam de conversa. Tuala perguntava a si própria se descobriria algum dia.

Naquele dia, Mist estava enroscada nos joelhos de Erip, arranhando com as garras a lã do seu xale e ronronando profundamente. Apesar de adulto, continuava a ser um gato pequeno. O seu corpo cinzento era metade do de qualquer outro gato. Como caçador de ratos, há muito que conquistara o seu lugar em Pitnochie.

Tuala sentou-se num banco ao lado de Erip. As aulas, no Inverno, eram sempre à lareira; não havia outro local suficientemente quente.

— Que vamos aprender hoje? — perguntou Wid, estendendo as longas mãos manchadas para as chamas; a jovem podia ouvir os nós dos dedos a estalar. Devia ser duro ser idoso no Inverno.

— Conhece a história de Amna do Xale Branco? — perguntou Tuala. — Ouvi falar dela. Também ouvi falar de uma sobre uma mulher-coruja. Pode contar-me? — A jovem tentou parecer desinteressada como se não passasse de uma curiosidade da sua parte. A maneira como os dois homens olharam para ela disse-lhe que não se deixavam enganar com facilidade.

Erip tossicou e instalou-se mais confortavelmente.

— Por vezes, as crianças pedem para ouvir uma história e quando ela acaba, elas percebem que afinal não queriam ouvir a verdade que ela encerra. Suponho que compreendes o que quero dizer?

Tuala sentiu novamente um arrepio, o sopro gelado de um futuro incerto.

— Preciso de saber uma coisa — disse ela. Os deuses fossem louvados por aqueles dois anciãos; com eles, pelo menos, não havia necessidade de fingir.

— Nesse caso, vou começar — disse Erip — e aqui o meu amigo acaba. Era uma vez um tipo chamado Conn, um fabricante de cerveja, o melhor fabricante de cerveja deste lado do Lago da Serpente e muito popular entre os locais precisamente por isso. O homem não bebia mais do que devia, fazia o possível para que as pessoas tivessem o melhor produto e era conhecido por ser um homem sensível e prático, um homem incapaz de loucuras. — Erip parou para tossir. Cada vez lhe era mais difícil respirar depois daqueles espasmos e a sua mão tremia quando pegou na caneca de água que Tuala lhe estendia.

— Tem a certeza que quer continuar? — perguntou ela. — Wid pode contá-la...

— Disparate — retorquiu Erip, com uma voz que mais parecia o restolhar das canas secas no Outono. — Deixar de contar histórias é o mesmo que deixar de respirar. Onde é que íamos?

— Um homem muito prático.

— Ah sim. Um homem muito prático, prestes a casar e a assentar. Conn arranjou uma namorada, filha de um fazendeiro, arranjou uma pequena casa e tudo parecia um mar de rosas. O pai da rapariga era rico. Como dote, a jovem levava para o casamento um saco de prata e três campos. Uma noite, já tarde, Conn, que tinha ido visitar uns amigos, regressava a casa por um atalho, um carreiro por baixo de uns choupos que passava junto de um ribeiro orlado de fetos. A Lua estava cheia. Conn estava a fazer uma tolice ao ir por ali, qualquer um dos anciãos da aldeia lhe podia ter dito. Conn sentia-se feliz e talvez se sentisse confiante devido àquele sentimento, porque devia estar consciente dos avisos sobre aquele lugar. Por isso, seguiu alegremente pelo carreiro afora e quando chegou à margem do ribeiro, viu-a.

— Amna? — perguntou Tuala.

— Sim, mas não sabia quem ela era. Tudo o que ele viu foi uma criatura adorável que ele nunca teria sido capaz de imaginar, uma rapariga pálida como uma pérola, que brilhava à luz do luar, com cabelos tão longos como um fluxo de sombras suaves e com apenas um xale branco a tapar a sua nudez. A rapariga tinha uma mão na boca, como que surpreendida por um homem se ter aventurado por aquele caminho de noite. Bastou um olhar para que a namorada se desvanecesse da mente de Conn.

— Conn seguiu a rapariga do xale branco pelo ribeiro acima e entrou na floresta — disse Wid, prosseguindo a história enquanto Erip se encostava na sua cadeira e fechava os olhos. — O que aconteceu entre eles naquela noite não cabe a um velho como eu contar a uma jovem impressionável como tu, Tuala. Basta dizer que Conn ficou diferente. Na manhã seguinte, Conn chegou a casa e em vez de regressar ao seu ofício de cervejeiro e de se preparar para o casamento, ficou à porta a olhar para a floresta e a sonhar com Amna. Conn ficou naquela posição dia e noite e não fabricou uma gota de cerveja desde a Dança das Virgens até ao pino do Verão. Sempre que A Que Brilha ficava cheia ele desaparecia por baixo dos choupos e quando regressava de manhã o seu rosto vinha sem cor e cansado e os seus olhos cheios de um deleite selvagem próximo da loucura, como se tivesse saboreado algo raro e maravilhoso.

— Todos lhe disseram — disse Erip — a mãe, o avô, a namorada com os olhos rasos de água, os mais velhos da aldeia. Era evidente que Conn tinha sido enfeitiçado por uma mulher dos Boa Gente. Conn tinha de quebrar o feitiço, ou morreria. Porém, Conn não os ouvia. Sempre que a Lua ficava cheia ele entrava em êxtase e nos intervalos aqueles que o amavam viam-no murchar de saudade, até ficar pele e osso. Que queria Amna dele? Ninguém sabia. Outros homens já a tinham avistado junto da lagoa, a brancura do xale eclipsada pela finura da sua pele cor de pérola, as sombras profundas da noite menos profundas do que os seus belos cabelos. Outros homens tinham tido o bom senso de baixar os olhos e seguir em frente, mas Conn não.

— Que aconteceu? — perguntou Tuala, pensando que os homens eram bem tolos para se deixarem apanhar assim; era evidente que Conn devia ter percebido que a sua vida estava a ser destruída e devia, muito simplesmente, ter dito não a Amna.

— A história é muito triste — disse Wid. — A família de Conn tentou intervir. Uma noite de lua cheia, caíram em cima dele e amarraram-no, de modo que ele não pôde ir ter com ela, pensando que, ao interromper o ritual, quebrariam o feitiço, fazendo assim com que ele recuperasse os sentidos. As pessoas disseram que, naquela noite, ouviram os gritos de Amna na floresta, gritos que faziam gelar o sangue. Aquilo não era uma rapariga a chamar pelo seu amante, era o uivo de um animal selvagem pela sua presa.

— Conn salvou-se?

Erip abanou a cabeça.

— Não nos devemos meter com os Boa Gente assim sem mais nem menos. Uma pessoa como Broichan é capaz, talvez, mas não gente simples como as pessoas da aldeia. Conn amaldiçoou-os a todos durante toda a noite, ao mesmo tempo que tentava libertar-se e depois disso proibiu-os a todos de entrarem em sua casa. Conn esperou até A Que Brilha ficar cheia outra vez e foi ao encontro do seu amor. Na manhã seguinte, os seus familiares e amigos encontraram-no com o rosto metido na lagoa, morto. A princípio, pensaram que ele se tinha afogado. Porém, quando o viraram, viram que estava branco como a cal, sem pinta de sangue. As marcas dos dentes dela estavam no pescoço dele.

Tuala estremeceu.

— É uma história horrível. — Horrível e nada proveitosa; aquela história não tinha nada a ver com ela. — E a outra, a da mulher-coruja?

Wid olhou severamente para ela.

— Parecida com a primeira — disse o ancião. — Um homem arrastado para os bosques, desta vez pelo que parecia ser uma coruja branca, um animal raro e belo. Durante o dia, a coruja transformava-se em mulher e consentiu em ser mulher do homem desde que ele respeitasse a sua diferença e se afastasse chegada a hora da mudança. Durante um certo tempo foi uma história feliz. Ela deu-lhe filhas e ele não perdeu o desejo que tinha por ela, tornou-se apenas descontente com o que tinha, queria o conforto do calor dos braços da sua mulher durante a noite, enquanto dormia. O homem começou a pensar que não era pedir muito. Com o tempo, o seu desejo de a tornar humana, uma coisa que ela nunca poderia ser, levou-o a segui-la à floresta numa noite de lua cheia e assistiu ao momento extraordinário em que ela mudava de forma. Nesse momento, perdeu-a para sempre. Este homem não morreu como Conn, vagueia pelos carreiros da floresta eternamente chorando a mulher que nunca mais terá.

Seguiu-se um silêncio. Tuala tinha consciência de que as duas histórias estavam ligadas. No entanto, por mais que tentasse, não conseguia compreender a relação com a súbita frieza em seu redor. No fim de contas, todas as pessoas sabiam que ela era filha da floresta, todas as pessoas sabiam desde o momento em que entrara em Pitnochie. No entanto, tinham-na recebido bem. Tinham-lhe sorrido, tinham-lhe contado histórias e tinham-na tratado como amiga.

— O que é, miúda? — A voz áspera de Erip era amiga e, de repente, Tuala sentiu-se à beira das lágrimas.

— Fidich — murmurou ela. — E Ferat, e os homens de armas... Eles afastaram-se de mim. Eu já não faço parte de Pitnochie. Fidich disse que eu já não posso ir ver Brenna e as crianças. E Brenna disse-me que os homens estão preocupados por causa das histórias de Amna e da mulher-coruja, mas nada disto faz sentido. Por que razão têm medo de mim agora, se nunca tiveram? É evidente que eu nunca faria mal às crianças... — disse a jovem, desatando a chorar.

Wid inclinou-se para a frente, oferecendo-lhe um lenço.

— Faz como te ensinamos — disse ele calmamente. — Pensa. As histórias falam de homens seduzidos por mulheres dos Boa Gente, homens sugados por uma força tão forte que os tornou incapazes de resistir, nem sequer quando eram conhecidos por serem sensatos, como Conn.

Tuala fez o que lhe pediam, pensou, mas não sentiu melhoras.

— Pergunta a ti própria — disse Erip, afagando gentilmente o gato — por que razão toda a gente parece ter mudado. Quanto a mim, sinto-me na obrigação de dizer que Wid e eu não mudamos; nós os dois estamos, penso, para além desse fenômeno particular. Já pensaste que pode ter sido outra pessoa a mudar?

Tuala olhou para ele durante muito tempo.

— Está a falar de mim? Isto tem a ver comigo, com o fato de eu estar a crescer? Mas... — A jovem calou-se, reconhecendo que o ancião estava a falar precisamente dela. Pensando bem, a atitude fria das pessoas para com ela datava do tempo em que o seu corpo começara a mudar, arredondando aqui e enchendo ali, dando-lhe as formas e o ritmo de uma mulher. Como criança, fora aceita em Pitnochie apesar de todas as diferenças, mas como mulher os que tinham sido seus amigos andavam em bicos dos pés na sua presença, como se ela fosse um ser perigoso. Tuala não conseguia acreditar que as pessoas pensassem que ela, como mulher, era a mesma espécie de criatura que Amna do Xale Branco!

— Deve estar enganado — disse ela — Amna era de uma beleza irreal, era a espécie de mulher que enlouquece os homens, que só existe nas histórias. Não acredito que as pessoas possam pensar... — Aquilo era impossível. Tuala não conseguia acreditar que estavam a ter aquela conversa.

— Olha para o espelho, miúda — disse Wid. — O que vires agora verás cem vezes mais no próximo Inverno e mil vezes mais um ano depois. Os homens aperceberam-se e têm medo. As mulheres são mais sensatas, mas também estão desconfiadas. É triste, mas é verdade; tu já tens catorze anos e a partir de agora terás sempre essa sombra sobre ti, por mais que tentes ser um dos nossos.

Tuala ficou sem palavras. Não podia ser verdade. A jovem não era nenhuma beleza, não se interessava pelos homens nem pelas coisas que eles e as mulheres faziam na privacidade dos seus quartos. A idéia de Ferat, Fidich e os outros pensarem nela daquela maneira provocava-lhe vômitos. Tuala não conseguia conceber aquilo.

— E vós? — perguntou ela. — Vós ainda sois meus amigos. Não mudastes. E Broichan? Esse não muda nunca. A explicação não pode ser essa.

Erip recomeçou a tossir e apareceu-lhe sangue na mão que levara à boca. Levou algum tempo até o paroxismo desaparecer. Finalmente, o ancião acalmou-se.

— Como já disse — a sua voz era um fio — somos talvez muito velhos, já ultrapassamos a idade dessas loucuras. Ou talvez nos tenhamos apaixonado por ti quando eras deste tamanho e nos enchias de perguntas, e se calhar ainda te vemos assim: o pequeno tesouro de Bridei, uma dádiva rara do Solstício. Quanto a Broichan, a sua percepção é muito especial. Não tenho dúvidas de que ele te vigia desde o princípio e que pondera continuamente as oportunidades e perigos que tu representas.

Tuala acenou com a cabeça. A jovem recordava-se de cada palavra que Broichan lhe dissera, muitos anos antes, quando a mandara para Cumeeira de Carvalho. Não havia dúvida de que a considerava uma ameaça desde o primeiro dia.

— O que hei de fazer? — perguntou ela aos dois anciãos. Os dois idosos olharam para ela em silêncio.

— Espera e sê paciente — disse Wid. — Tens pela frente tempos bem difíceis.

— Prepara-te para a mudança — acrescentou Erip. — Tens de ser corajosa, Tuala.

— Se Bridei estivesse aqui não fazia mal — disse a jovem em voz baixa; as palavras saíram-lhe contra vontade.

Wid abriu a boca para dizer qualquer coisa; a jovem viu Erip abanar a cabeça como que para calar o amigo e Mist, inquieta, saltou do colo do ancião e debandou na direção da cozinha. Como se tivessem sido chamados, os três cães acordaram do seu sono por baixo da mesa e, subitamente, deixou de haver tranquilidade no salão.

— A solidão pode ser difícil de suportar — disse Wid pondo-se de pé. — Um amigo é a coisa mais preciosa do mundo, Tuala. Não preciso de te dizer isso, a ti ou a Bridei. Vamos buscar um pouco de sopa para este velho amigo, sim? Começa a ficar parecido com um espantalho e não podemos permitir isso. Creio que vi Ferat com um osso de presunto; o cheiro era prometedor.


O Inverno passou e os dias começaram a ficar maiores, mas a Mãe de Tudo pouco fazia para aliviar o seu abraço implacável. O gelo continuava nos lagos e a neve cobria a casa de Broichan. Os homens resmungavam quando a caminho do seu turno de guarda e a roupa secava na lareira da cozinha, enchendo a casa de um odor pungente. Os cães saíam com relutância; Mist passava a maior parte do tempo no colo de Erip, em frente da lareira ou, mais tarde, na sua cama, enroscado na dobra dos seus joelhos. O velho intelectual deixou de ter forças para se erguer da enxerga e para se aventurar fora do seu quarto, pretendendo que em breve estaria melhor. Puseram-no no quarto de Bridei; Wid estava sempre junto dele, dando-lhe água ou a poção de Broichan, limpando-lhe a testa, contando-lhe histórias como se de uma criança se tratasse. Mara queimava ervas aromáticas junto da sua porta e lavava-lhe a roupa suja. Tuala tentou ajudar, mas vedaram-lhe a entrada no quarto. Mara assumira o controle; só entrava quem ela dizia. A mulher decretara que demasiados visitantes ainda enfraqueciam mais o ancião. Wid, lutando com a sua própria dor e exaustão, não tinha forças para discutir, mas deixou Tuala entrar uma ou duas vezes, em ocasiões em que a governanta estava ocupada noutro lado da casa. As mãos de Erip estavam tão frágeis que os seus dedos pareciam gravetos secos e a sua voz era apenas um murmúrio. Tuala pensou ver uma nova luz nos seus olhos, um brilho que já não pertencia ao mundo dos mortais, antes a um outro cheio de promessas de paz. Era como se a sua mente invocasse uma história nova e estivesse à espera da ocasião ideal para a começar a contar. A jovem segurou-lhe na mão, engoliu as lágrimas e quando Mara regressou, escapou-se como uma sombra.

A jovem pedia delicadamente que a deixassem entrar, dizendo que era amiga de Erip, que ele a mandara chamar, que podia ser útil.

— Não és precisa, Tuala — dizia Mara.

— Toca a andar, miúda — dizia-lhe Ferat em tom mais ou menos amável e com um olhar entre o impaciente e o pouco à vontade. O cozinheiro, pelo menos, parecia sentir-se culpado por trair alguém que fora uma criança encantadora, uma amiga. Porém, era evidente o seu desconforto quando a jovem estava presente.

Para o fim, Tuala estava reduzida a Mara.

— Por favor, ele é um velho amigo. Por favor, deixe-me entrar.

— Erip é amigo de todos nós — disse Mara. — Não és aqui precisa. Põe-te a andar e leva o animal contigo. — Mara quis tirar o gato da cama, mas Mist ferrou os dentes e as garras nos dedos da governanta e continuou no lugar onde estava, enroscado nos cobertores de Erip. O próprio Erip estava demasiado fraco para protestar e Wid dormitava numa cadeira, cansado da longa vigília. Em silêncio, Tuala retirou-se.

Durante um curto espaço de tempo, a jovem ficou sozinha no pequeno quarto, olhando para a parede. Aquilo não podia estar a acontecer; não podia, era impossível. Por que razão não a deixavam entrar? Por que não a deixavam despedir-se de Erip? Ela era um deles, fora criada com eles, recebida naquela casa e fora educada pelo ancião que estava a morrer debaixo do teto que os abrigava a todos. Maldita Amna do Xale Branco. Maldita mulher-coruja. Aquilo era uma loucura, não tinha nada a ver com ela.

Subitamente, Tuala sentiu uma necessidade premente de fazer qualquer coisa. Pegando na sua capa e metendo os pés nas suas pesadas botas, a jovem saiu para a rua. O frio entrou-lhe nos pulmões, magoando-os no momento em que saiu da cozinha; o ar gelou-lhe a pele. Porém, tinha de se afastar o mais possível de Mara, de Ferat, de Fidich, de Uven, de Cinioch, dos olhares desconfiados de todos aqueles que tinham sido seus amigos. Não tencionava pedir para levar Bae, não queria ouvir uma recusa. Podia muito bem andar. Chegaria ao Vale dos Que Caíram e ali exigiria algumas respostas.

À medida que ia crescendo, Tuala ia-se apercebendo de que possuía talentos vedados às outras pessoas. A jovem apercebera-se muito cedo de que devia manter tais capacidades escondidas porque, se as mostrasse, só sublinharia o fato de que era diferente e ela não queria ser diferente, queria pertencer a Pitnochie. Erip e Wid estavam a par de algumas coisas que ela era capaz de fazer, assim como Bridei. Porém, a maior parte, e a facilidade com que podia dispor delas, eram apenas do seu conhecimento.

Teria sido melhor, disse ela para si própria com alguma amargura enquanto seguia pelo trilho com dificuldade, sob os carvalhos nus, com as botas mergulhadas na lama e nas folhas podres, se nunca tivesse praticado tais artes secretas, se tivesse fingido, mesmo para si própria, que não tinha nenhum poder. Talvez tivesse perdido a perícia, talvez se tivesse esquecido como se fazia, como invocar imagens de rainhas, dragões e gigantes a partir de um raio de luz entrando por um vidro colorido; como atrair um esquilo para fora da toca, saudá-lo e o pequeno animal compreender; como fazer uma boneca com canas, erva e cascas de sementes, um cesto ou um colar, coisas que tinham um poder verdadeiro. Talvez tivesse perdido a capacidade de ler os sinais na floresta, sinais deixados pela outra espécie, os Boa Gente. Então, nunca os encontraria, por mais tentada que se sentisse a procurá-los. Os arranhões sutis na casca de uma árvore ou num seixo, a erva ligeiramente torcida ou algumas folhas amontoadas eram mensagens e, apesar de nunca lhe terem ensinado o seu significado, Tuala sempre as tinha compreendido. Os que faziam aqueles sinais continuavam a evitá-la. As sombras avistadas de relance e as vozes sussurrantes estavam cada vez mais perto. A jovem sabia que as mensagens eram para si. Eles estavam a chamá-la; queriam que ela regressasse para junto deles, ao contrário dos humanos. Talvez conseguisse um lar com eles. Era uma hipótese; uma hipótese impossível. Se fosse para o mundo deles, teria de deixar Bridei. Separar-se dele era impossível. Seria como dividir-se a si própria em duas.

Profundamente mergulhada nos seus pensamentos, Tuala percorreu a longa distância entre a casa de Broichan e o vale escondido quase sem se dar conta. A bruma estava espessa naquele dia; a jovem mal podia ver os próprios pés enquanto descia o carreiro íngreme na direção do pequeno lago. O vapor parecia fechar-se atrás de si, um cobertor sufocante, opressivo. Algures, nos bosques, um cão uivou, um som de pura desolação.

Tuala acocorou-se na orla do Espelho Negro. A princípio, a jovem não sentiu o frio porque a caminhada tinha-a aquecido, mas pouco depois o nariz, as orelhas, os dedos das mãos e dos pés começaram a ficar dormentes e a doer-lhe. Os seus dentes tremiam. Cometera uma loucura; estava muito longe de casa e ninguém sabia para onde tinha ido. Provavelmente, não se ralavam, pensou Tuala. Se não regressasse, Mara, Ferat e os outros ficariam contentes, era menos uma preocupação; deixariam de ter dentro de casa uma sedutora do Outro Mundo para lhes levar os homens novos. Aquilo era tão estúpido que a jovem nem conseguia abarcá-lo. Ela própria uma espécie de beleza sobrenatural? Tuala lançando feitiços para enlouquecer os homens de desejo? Era razão para rir não fora a terrível realidade do seu significado; ter-se-ia rido da situação se Erip e Wid, cujo bom senso era evidente, não lhe tivessem dito que era o que as pessoas sentiam. O lha para o espelho, tinham dito eles e foi o que ela fez, debruçando-se sobre as águas imóveis do lago, não em busca de visões ou prodígios, mas em busca do seu próprio reflexo.


Não parecia estar diferente. O seu rosto era oval, as sobrancelhas escuras arqueadas, os olhos grandes e claros, talvez azuis se fosse possível dar-lhes uma cor, pareciam ter dúvidas e tinham sombras em redor; a jovem estivera a chorar por Erip, por Wid e um pouco por si própria. O nariz era direito, a boca pequena e bem desenhada, cor-de-rosa. A pele era pálida. Tuala tinha de confessar que, naquele aspecto, pelo menos, era parecida com a Amna da história porque a sua pele sempre fora branca e transparente, como se A Que Brilha lhe tivesse emprestado os seus raios. Os seus cabelos eram negros como o carvão, longos e lustrosos apesar de raramente os pentear. Os cabelos também a faziam parecer a rapariga da história, mas ainda era jovem, tivera as primeiras regras pouco tempo antes e nem queria pensar no que Amna teria feito com o seu amante à luz do luar. Amna fora uma sedutora, uma mulher sensual e apaixonada. Como era possível pensar que ela, Tuala, tinha os mesmos poderes daquela perigosa criatura nocturna?

As roupas práticas de Tuala, próprias para andar ao ar livre, a capa, o xale, a túnica e a longa saia, por cima de umas botas grossas, escondiam as suas formas; a rapariga que olhava para ela na superfície da água escura podia ser uma qualquer. Porém, quando olhou melhor, a imagem mudou e a jovem viu-se a si própria, chocada, sem qualquer roupa a cobri-la, sem a mínima vergonha, com os braços erguidos, os seios redondos como duas pequenas luas, com dois mamilos cor-de-rosa; os contornos da cintura delicada, as ancas arredondadas, as coxas esbeltas, expostas para quem as quisesse ver. Até o novo e pequeno triângulo preto, entre as pernas, era visível. Horrorizada, Tuala cruzou os braços para esconder o corpo, apesar de estar totalmente vestida. No Espelho Negro, a sua imagem nua virava-se, sorria, acenava e a jovem reconhecia, com o coração nas mãos, que qualquer homem era capaz de achar aquela criatura cor de pérola, ébano e rosa, sedutora. Tuala viu a sua própria inocência na visão e o perigo que ela representava.

— Vai-te embora — murmurou Tuala, com as lágrimas a caírem-lhe pelas faces. — Não te quero ver! Não foi para isto que vim aqui! — A jovem fechou os olhos com força, tentando afastar a sua própria imagem.

— Tens medo de enfrentar a verdade? — perguntou alguém à sua esquerda. — Nem parece teu.

Os olhos de Tuala abriram-se. Aquela voz não era sutil, sibilante, como as que ouvira antes naquele local. Aquela voz era confiante e real, a voz de uma mulher de carne e osso. A jovem só teve tempo de pestanejar e apanhar de relance uma figura encapuzada a seu lado, tão perto que lhe poderia ter tocado, mas então ouviu uma segunda voz. Tuala deu um salto e virou-se para o outro lado.

— Além disso — observou a segunda personagem — a vista é agradável, não o podemos negar. Uma imagem bela. Se um homem olhasse para ela, desejaria descobrir se a de carne e osso não seria mais bela ainda.

A voz pertencia a um jovem. A pele de Tuala ficou toda arrepiada ao ouvir as suas palavras; a jovem era capaz de imaginar o que Donal, Bridei, ou até Broichan, diriam se soubessem que ela cometera a loucura de ir até ali em pleno Inverno, sozinha, sem dizer nada a ninguém. A jovem imobilizou-se e tentou respirar lentamente, obrigou-se a si própria a observar, tal como Bridei lhe tinha ensinado. A seu lado não estava um verdadeiro homem, não era mais alto do que ela própria e os seus cabelos desgrenhados, selvagens, tinham um tom esverdeado. Aqui e ali, as madeixas pareciam gavinhas, folhas, heras. Os olhos eram castanhos- escuros e redondos, como os de uma coruja. Decididamente, não era um homem, se bem que o seu sorriso lhe fizesse recordar Erip nos seus melhores dias.

— Estás a tremer — disse ele e Tuala sentiu, ao virar-se, o peso suave de uma capa a envolver-lhe os ombros, uma coisa feita da lanugem do cardo, frágil e insubstancial, mas que a tornou instantaneamente tão quente como um gato enroscado em frente de uma lareira. A rapariga, que enfrentou calmamente o olhar de Tuala, era um pouco mais alta do que o rapaz, se àquilo se podia chamar rapaz, e os seus cabelos eram longos e prateados, entrançados cuidadosamente com folhas secas, fios cintilantes, teias de aranha e minúsculas bagas brancas. A sua capa, com capuz, era cinzento-azulada e esvoaçava em seu redor como o fumo azul de uma fogueira. O seu aspecto era jovem; a sua pele era branca, tão branca como a de Tuala, e a sua silhueta era esbelta, graciosa.

— Tu sentes o frio; não é de admirar. Cresceste entre os humanos; o tempo deles é mais curto e passa com mais violência. O teu corpo já está habituado aos padrões deles. Vieste para junto de nós mesmo a tempo.

As palavras que Tuala tinha preparadas para uma ocasião daquelas desapareceram abruptamente. A jovem desejara tanto aquilo, até tinha ensaiado as perguntas: Quem sou eu? Quem é que me abandonou e porquê? Naquele momento, receosa das respostas, não as conseguia fazer. Finalmente, Tuala disse:

— Por quê agora? Porque vos mostrastes agora? Eu vim aqui vezes sem conta; vi visões no Espelho Negro, fui provocada por outras criaturas da vossa espécie, sempre meio escondidas. O que é que mudou? — À medida que falava, a resposta aparecia-lhe na mente, a mesma que já tinha ouvido dos humanos: Tu mudaste.

— Os que encontraste aqui antes de nós não eram da nossa espécie — disse o Homem-Folha — eram inferiores a nós. A floresta é habitada por muitas espécies. Esses que viste de relance, nunca te deixarão ver a sua verdadeira forma, pelo menos enquanto tiveres um pé no mundo dos druidas, dos heróis, dos reis e dos conselheiros.

— Um pé? — não conseguiu Tuala deixar de perguntar. A jovem achava que o que sentia não era medo, apesar da estranheza das duas aparições, achava que era espanto por, finalmente, elas terem decidido revelar-se, e uma cautela que lhe vinha das histórias que conhecia. — Eu vivo em Pitnochie; pertenço à casa de Broichan. Ninguém sabe de onde venho. Posso muito bem ser uma rapariga recém-nascida abandonada. Posso muito bem ser uma rapariga humana normal. — Devia perguntar-lhes imediatamente, gostaria de ter a coragem suficiente. Sabeis quem sou? As risadas detiveram aquelas palavras antes de ela as conseguir dizer em voz alta. O som daquele riso ecoou pelo pequeno vale como o som das sementes secas no interior das vagens, provocando um arrepio na espinha de Tuala.

— Normal? — troçou a rapariga. — Acreditas tanto nisso como nós. Tu és uma das nossas, és filha da floresta. Existe magia em cada cabelo da tua cabeça, em cada ponta dos teus dedos. Diz-nos por que vieste aqui hoje, Tuala. Diz-nos por que razão vieste à nossa procura.


O rapaz acocorou-se; as suas roupas, tal como os seus cabelos, pareciam uma extensão da vegetação, verdejantes, emaranhadas. O jovem cheirava levemente a folhas podres. Com dedos longos e nodosos, o rapaz bateu no solo num gesto convidativo; a rapariga da capa cinzenta ajoelhou-se. Tuala sentou-se de pernas cruzadas, alerta. Se precisasse de fugir, queria estar pronta para o fazer instantaneamente. O seu coração batia com toda a força; as possibilidades eram muitas, tinha de estar preparada para elas todas.

— Eu vim aqui à procura de respostas — disse ela — e as perguntas não são as mesmas que vos faria antes, se tivesse a oportunidade. As pessoas mudaram; os que eram meus amigos passaram a ter medo de mim, começaram a ficar desconfiados e estranhos. Os meus tutores disseram que é por... porque, como mulher, eu sou um perigo. A jovem engoliu em seco. — Como a Amna do Xale Branco — acrescentou ela com relutância — e agora o meu amigo está a morrer e eles não me deixam segurar-lhe na mão para me despedir. — Tuala estava a fazer um grande esforço para não chorar; era importante manter a situação sob controle. Mais tarde teria ocasião para chorar à vontade.

— Amna, hum — disse o Homem-Folha. — As mulheres humanas inventam histórias para evitar que os homens se percam, sabias?

Tuala olhou para ele. As faces do rapaz eram tão castanhas e tão brilhantes como duas castanhas.

— Inventam? — repetiu ela. — Estás a dizer que a história foi inventada? E a da mulher-coruja, também?

— Talvez sim — disse o homem — ou talvez não.

— Isso não ajuda nada — retorquiu Tuala. — Eu preciso de respostas. Tenho de ser capaz de mostrar às pessoas que não sou uma ameaça para elas. Tenho de as convencer de que... — A sua voz desvaneceu-se; aquilo era demasiado embaraçoso.

— Que não desejas os homens? — perguntou a rapariga, pondo o capuz e metendo as mãos na manga da capa; os seus dedos estavam cheios de anéis feitos de vegetação, de várias formas e feitios, e com pedras pálidas. — Isso não interessa, Tuala. O perigo, tal como eles o vêem, vem de os homens te desejarem, a ti. Eles evitam-te porque acham que é perigoso, a partir de agora, olhar para ti ou tocar-te. Eles acham que a tua proximidade pode ser uma sentença de morte. Nós conhecemos a tua história, foste acolhida por Bridei. Então, ele era uma criança e não sabia o que estava a fazer. Quando o druida soube, era demasiado tarde. Agora, não pode permitir que fiques em Pitnochie. Se o fizer, o perigo de morte é real: a morte da sua visão. Pelo menos é o que ele acredita.

Tuala sentiu o coração gelar.

— Mas tu disseste que a história de Amna foi inventada e, de qualquer modo, eu não sou assim. Eu fui criada como uma rapariga humana, vivo a minha vida como uma rapariga normal. Não faço mal a ninguém. — O futuro que Tuala desejava incluía-a a ela, a Bridei e a Pitnochie; como poderia ser de outra maneira?

Nenhum dos seus companheiros disse uma palavra. No silêncio que se prolongou, Tuala ouviu o eco das suas palavras e reconheceu que pareciam infantis, demasiado simples. Era demasiado tarde para soluções fáceis. Nunca mais voltaria a ser criança.

— Como é que sabeis isto tudo? — perguntou-lhes ela, finalmente, se bem que a resposta estivesse na sua frente, nas águas imóveis do Espelho Negro. — Que tendes vós com isto tudo?

A rapariga da floresta sorriu, um sorriso estranho, no qual a tristeza e a resignação eram temperadas por uma gentileza que parecia quase relutante.

— Surpreendes-me, Tuala — disse ela. — Não fazes a pergunta que mais te aflige. Essa pergunta não é a resposta a esta?

Tuala não respondeu. Aquelas duas criaturas, pertenciam aos Outros; eram tão diferentes dela como um animal selvagem. Se eram da sua espécie, preferia que não fossem, não queria saber.

— Bem — disse a rapariga com um suspiro — ainda não mereceste o direito à resposta, por isso não te posso dar, mesmo que a soubesse. A verdade fica para mais tarde, quando deres mostras de que podemos confiar em ti. Há de chegar a ocasião em que precisarás tanto de nós que farás tudo para saber. Quanto à razão de sabermos o que sabemos, temos-te vigiado, a ti e a Bridei. A nossa vida é mais longa do que a dos homens, mas isso não quer dizer que não nos interessemos por druidas e por reis, por batalhas e por lutas, ou pelo governo de Fortriu. Vêm aí grandes mudanças e o teu amigo está no centro delas, ou vai estar. Desconfio que tu sabes isso.

Tuala acenou com a cabeça, mas não disse uma palavra. Já em criança estava a par do futuro que Broichan planejava para o seu filho adotivo.

— Que papel tencionas desempenhar nos grandes acontecimentos que se avizinham? — perguntou o Homem-Folha brutalmente. Essa é a pergunta que deves fazer a ti própria porque pode ser que Pitnochie venha a ser fechada para sempre.

— Pára — disse Tuala, levando as mãos às orelhas, mas continuou a ouvir; afinal de contas, tinha ido ali em busca de respostas e respostas era o que estava a obter, apesar de não serem exatamente as que queria.

— Broichan está perante um dilema — disse a rapariga da floresta.

— Ele não pode, muito simplesmente, abandonar-te. As convicções de Bridei têm mais valor para ele do que pensas. O druida do rei tem um fraco, que é o afeto que sente pelo rapaz. Além disso, Broichan é totalmente leal aos deuses; não quer cair em desgraça perante A Que Brilha se expulsar a sua filha. Felizmente para ele, existe uma solução. Se eu fosse Broichan e eu pensasse como os humanos, sentir-me-ia satisfeito por tu teres chegado onde chegaste. Agora, a única coisa que lhe falta é arranjar-te um marido. Desse modo, pode ver-se livre de ti respeitavelmente, sem ofender ninguém.

— Não fiques com esse ar horrorizado — disse o Homem-Folha, lambendo os lábios com uma língua longa e esverdeada. Aquela visão provocou um arrepio em Tuala. — É uma coisa normal para as raparigas, assim que têm as regras. Não tens estado a tentar convencer-nos de que és uma rapariga humana normal? É claro que é capaz de ser difícil encontrar-te um noivo. Qualquer homem que saiba a história de Amna do Xale Branco só te quer se for louco. Porém, um viúvo solitário, um tipo mais velho, é capaz de ficar convencido se tiver um vislumbre dessa pele delicada, dessa figura. Além disso, Broichan é um homem de posses; pode oferecer um bom dote por ti. Aposto que é capaz de se livrar de ti no Solstício de Verão. Quer dizer, se tu não quiseres optar pela outra opção, a que nós te oferecemos.

Tuala sentiu vontade de vomitar.

— Bridei nunca o deixará fazer uma coisa dessas — murmurou ela. O homem voltou a sorrir.

— Bridei anda muito ocupado com outros assuntos — disse ele, e fez um gesto na direção da lagoa, onde apareceram instantaneamente umas imagens. — A vida e a morte são assuntos que vão influenciar, não só o seu futuro, mas também o futuro de Fortriu. Se tudo correr de acordo com os planos de Broichan, o destino de Bridei vai levá-lo para longe de ti. Vê por ti própria.

— Não quero olhar — disse Tuala, ouvindo o tremor da própria voz. — Tu és capaz de manipular essas imagens, mostrar-me apenas o que queres que eu veja. Não me podes obrigar a olhar.

— Por que é que vieste aqui, senão para o ver? — Perguntou suavemente a rapariga. — Por que há de passar tanto tempo neste lugar solitário, senão para estares perto dele, quando ele está longe? Quando estas águas mostram o seu rosto, tu não consegues deixar de olhar.

Tuala curvou a cabeça. Eles tinham razão: ir ali com aquele frio, percorrer aquele caminho todo e não ver Bridei, quando sabia que a sua imagem esperava por ela na superfície do Espelho Negro estava para além das suas forças. A jovem, porém, sentiu um certo embaraço quando se debruçou sobre a água uma vez mais. A sua nudez aparecera, pálida e estranha, pouco tempo antes, na superfície escura e a jovem sentia-se inquieta por olhar novamente para aquela mesma superfície em busca de uma imagem do seu amigo de infância. Tuala sentia que havia ali algo de errado, não acreditava, nem por um momento, que os seus companheiros do Outro Mundo não mudariam nem distorceriam a mensagem do Espelho Negro para os seus próprios fins. No entanto, tinha de olhar.

A jovem viu vislumbres rápidos, que desapareciam antes de ter tempo de os absorver: Bridei cavalgando ao lado de Gartnait, os dois forçando as montadas numa rivalidade mutuamente escondida. Aquilo não surpreendeu Tuala. A jovem observara demasiadas vezes o filho de cabelos ruivos de Talorgen durante os Verões que ele passara em Pitnochie. Por baixo das suas feições desajeitadas, Tuala vira algo mais: o desejo apaixonado de igualar Bridei em força e habilidade visto que sabia nunca poder igualá-lo em conhecimento. A jovem vira o desespero de Gartnait tentando provar o seu valor perante o seu pai e compreendera o que Bridei não compreendera: que o seu companheiro bonacheirão tinha uma grande ambição no coração. Para um rapaz como Gartnait, a facilidade com que Bridei aprendia tudo era difícil de aceitar. Gartnait não sabia nada dos longos tempos de solidão, as horas de paciência e de autodisciplina. O jovem não sabia o que significava ser afastado de casa com a tenra idade de quatro ou cinco anos sem perceber porquê.


A imagem mudou e Tuala viu Bridei a lutar com outro homem, uma luta de vida ou de morte, com facas. A imagem durou apenas um momento. Em seguida, Bridei sozinho, de noite, a olhar na escuridão para a chama de uma vela solitária que deixava ver os seus olhos sombrios, a ruga na testa, a boca cerrada.

— Ele precisa de mim — murmurou Tuala.

Em seguida, já não era noite, era dia, ele estava sentado num banco ao lado de um lago com peixes e tinha uma rapariga junto de si. A jovem tinha cabelos ruivos e sardas, como as de Gartnait, nas faces e no nariz delicado, estava vestida como uma dama, com os cabelos seguros por uma fita bordada, uma madeixa artisticamente solta por cima de uma orelha e usava um vestido encarnado e castanho, orlado com o mesmo verde e azul da fita do cabelo. Os seus pés estavam metidos em finos sapatos de pele. A rapariga estava sentada ao lado de Bridei e parecia tão solene como ele enquanto o escutava atentamente. Bridei inclinou polidamente a cabeça e ela disse algumas palavras erguendo o rosto para ele. Com as suas feições agudas, a jovem era bonita, um pouco como uma raposa. Tuala podia ver, pelos olhos de Bridei, que o jovem a admirava.

— Está mesmo bem para ele — observou secamente o Homem-Folha, ao mesmo tempo que a imagem se fracturava e dispersava. A filha de uma família amiga, de sangue real, rica e apresentável e um ano ou dois mais nova do que ele. Ele tem de partir primeiro para a guerra, claro; tem de provar o seu valor no campo de batalha na Primavera. Mas já se vê mesmo como a coisa vai acabar. Ele sente-se à vontade junto dela.

— Ele precisa de mim. — Tuala tremia apesar do calor da estranha capa em que estava envolta. — Ele tem de regressar a casa. — Nenhuma rapariga elegante de sangue real sabia ouvi-lo como ela, sabia arrancar um sorriso àquele rosto solene como ela, estar perto quando ele lutava com as grandes questões que o preocupavam como ela, e muitas coisas mais. Nenhuma visão deslumbrante a poderia convencer do contrário. Aquilo só significava que ninguém compreendia os laços que os uniam; ninguém, senão ela e Bridei.

— Não, Tuala — disse a rapariga da floresta. — Ele já abriu as asas; serias capaz de cortar as asas a uma águia?

— Uma águia não pode voar sempre — disse Tuala, tentando manter uma voz confiante. — Precisa de descansar para que possa continuar depois com coragem. Para isso, ele precisa de mim.

— Tens certeza? — perguntou o Homem-Folha. — Não seria melhor seguires o teu caminho e utilizares os teus próprios talentos? Ainda agora começaste a descobrir quem realmente és.

— Bridei já não precisa de ti. — A voz da rapariga era doce como o hidromel, suave como a de uma mãe. — A vossa foi uma amizade de infância, que vos foi muito útil. Esses tempos passaram. Ele seguiu em frente e tu deves fazer o mesmo.

— Parece que tens medo dos planos que Broichan tem para ti — disse o homem — mas tens de fazer o que ele quer. Escolhe o outro caminho. Foi por causa dele que vieste aqui ter conosco. Não negues. Sabes muito bem que o teu caminho está na floresta. Nós ajudamos-te a encontrá-lo. Abrimos-te a porta para que possas entrar.

— Levamos-te para casa. — A voz da rapariga parecia um instrumento do outro mundo, melodioso, soando sobre as águas escuras. Tuala sentiu um arrepio. Aquilo era um feitiço, era o que era, um encantamento, uma armadilha; a jovem desconfiara do Homem-Folha com os seus sorrisos astutos e os seus olhares libertinos, mas a rapariga, bela e suave, era mais perigosa. Fora louca em ter deixado que aquilo acontecesse, ter deixado que aquela voz suave e aquelas visões insultuosas a influenciassem. As suas mãos ergueram-se para tirar a capa dos ombros. O seu corpo ficou tenso, pronto para fugir. Só precisava de se levantar e correr; conhecia o caminho pelo carreiro acima, ao longo da orla do vale e depois à sombra dos vidoeiros, dos carvalhos e dos azevinhos, de regresso às terras de Broichan e à segurança. Aqueles dois não a seguiriam assim que ela passasse para lá das pedras brancas à entrada do Vale dos Que Caíram. Pelo menos, era o que esperava.

Porém, se fugisse, saberiam que as suas palavras a tinham atingido, saberiam que tinham conseguido, finalmente, assustá-la. Não lhes daria aquela pequena vitória, depois de a terem magoado com os seus comentários cruéis. Aqueles dois não eram os únicos capazes de distorcer as imagens de uma visão para ilustrar um determinado ponto. Tuala respirou fundo e olhou de novo para as águas do Espelho Negro. A jovem fixou a mente na Que Brilha; imaginou o disco cor de prata da Dama e invocou a imagem de uma mulher alta e bela com um bebê nos braços. A água brilhou, agitou-se e ficou novamente imóvel. Na sua superficie apareceu a imagem de Bridei em criança, pequeno, descalço, com os pés azuis do frio a verem-se por baixo da camisa de noite, de pé na soleira da porta, a meio da noite. O jovem olhou para baixo. O espelho não mostrou o que ele estava a ver, apenas a mudança maravilhosa no seu rosto, um rosto demasiado solene, demasiado circunspecto para uma criança que devia ter estado a pensar em dias de sol, em brincadeiras e na família. Na água, Bridei ajoelhou-se, olhou e os seus olhos encheram-se subitamente de luz e as feições pequenas encheram-se de alegria. O jovem pôs-se de pé, olhou para cima e A Que Brilha olhou para ele, tocando-lhe no rosto com um raio prateado. Tuala não conseguiu ouvir o que ele estava a dizer, mas reconheceu o significado das suas palavras no seu coração; uma promessa profunda, uma afirmação de responsabilidade. Bridei debruçou-se para pegar no que estava aos seus pés e sorriu. O seu olhar era diferente, um olhar que se destinava unicamente a ela. A imagem desvaneceu-se e desapareceu.

Subitamente ficou tudo silencioso no Vale dos Que Caíram, tão calmo que era como se o tempo tivesse parado enquanto o Espelho Negro reflectia aquela visão. Tuala pestanejou, esfregou os olhos e olhou para a esquerda e para a direita. Estava só. Tão sutil e silenciosamente como tinham chegado, os seus companheiros do Outro Mundo tinham-se ido embora. A sua Visão desagradara-lhes, era evidente. A jovem não compreendia bem a sua atitude; afinal de contas não eram leais À Que Brilha? Talvez tivesse sido a sua teimosia a afastá-los, ou talvez esperassem que ela lhes desse as mãos e os seguisse para a floresta naquele mesmo dia, para nunca mais regressar ao mundo dos mortais. A jovem nem sequer lhes perguntara os nomes.

A chuva começou a cair e transformou-se rapidamente num aguaceiro, ensopando-lhe a capa, o xale e a túnica. Tuala tapou a cabeça com o capuz e continuou a andar. As suas botas começaram a ficar pesadas devido à lama. Há muito que a jovem desejava que os Boa Gente se manifestassem e lhe começassem a dar algumas respostas. Finalmente, tinham-no feito, mas ela aprendera pouco. Talvez eles tivessem para ela uma espécie de lar. Abrimos-te a porta para que possas entrar, tinham-lhe dito. Gostaria de saber o que significavam aquelas palavras, mas apenas se tivesse a garantia de que poderia regressar e já tinha ouvido suficientes histórias para saber que tal passo era possível. Se passasse para o outro mundo, ficaria apanhada para sempre, ou ficaria lá um dia ou dois, comendo e dançando, para regressar depois e descobrir que a sua família tinha morrido havia mais de duzentos anos. Além do mais, não iria para lado nenhum sem Bridei e o caminho de Bridei era no mundo dos humanos, dos druidas, dos reis e das guerras. Tuala não acreditava, por mais raparigas parecidas com raposas que lhe mostrassem, que alguém a pudesse substituir na vida dele. Pertenciam um ao outro, era muito simples.

A jovem chegou a casa depois do escurecer, cheia de frio, molhada e exausta. Quando saiu de sob os carvalhos a patinhar na lama e com a capa saturada de água em redor dos ombros, viu os rostos pálidos dos homens de armas de guarda reunidos em redor de uma pequena fogueira virarem-se para ela e desviarem-se rapidamente logo a seguir.

A porta da cozinha estava fechada. Tuala bateu nela com as mãos geladas. A jovem pensou na imagem que vira na lagoa, uma criança naquele mesmo local, olhando para baixo, para um bebê abandonado na neve na noite do Solstício de Inverno. Tuala esperou com o corpo a tremer de frio. Bridei não estava ali para a deixar entrar. A jovem ergueu a mão para bater novamente, mas antes de o fazer o ferrolho foi levantado e a pesada porta abriu-se. Tuala viu a luz de uma lanterna, o calor da lareira, o semblante carregado de Mara e entrou.

— Erip está muito mal — disse a governanta, correndo novamente o ferrolho. — Tira essa roupa encharcada e dá-me. Depois, podes ir ter com ele.

— Está mesmo muito mal? — perguntou Tuala com os dentes a tremer. O súbito choque do calor da lareira estava a deixá-la fraca e tonta. Mara cerrou os lábios.

— Vai ser uma longa noite — disse ela. — Vai vestir roupa seca e tira já essas botas. Vais sujar o chão todo da cozinha. Ferat mata-te.

Tuala descalçou as botas enlameadas, agarrou na vela acesa que ela lhe estendia e correu para o seu quarto. A jovem despiu-se a tremer, esfregou-se num pano seco e vestiu roupa seca, um vestido de lã e um velho xale que pertencera a Brenna que estava pendurado num prego na porta. Tuala pegou nas roupas molhadas e regressou à cozinha, sentindo-se de algum modo grata a Mara. Não se podia dizer que aquela mulher enorme fosse uma pessoa amável, mas era, pelo menos, consistente. Erip: como pudera estar tanto tempo fora quando o seu amigo estava às portas da morte?

Mara pegou nas roupas encharcadas sem qualquer comentário e começou a pendurá-las por cima da lareira. Junto às chamas estava um pote de sopa e em cima da mesa de pedra onde Ferat trabalhava estava uma malga a fumegar, com um naco de pão ao lado.

— Come — disse Mara. — Não me posso dar ao luxo de também te ter a ti doente, ainda por cima por teres decidido ir sozinha para a floresta com este tempo. Come, aquece-te.

— Disse que eu podia entrar — disse Tuala, depois de ter comido a sopa quase toda. — Isso quer dizer que as regras mudaram outra vez?

— Regras? A única regra que eu cumpro é a do bom senso. Não tem pés nem cabeça encher o quarto minúsculo de um velho com uma data de gente. O doente fica exausto, mas não sou eu que mando. Não é graças a mim que podes lá entrar, é graças a ele. Foi ele que pediu.

— Não deve ter sido a primeira vez — sentiu-se Tuala na obrigação de dizer. — Ele está muito fraco, mais nada. Eu disse-lhe.

Mara olhou para ela, mas não disse nada.

No pequeno quarto de Bridei, com a pequena janela quadrada no alto da parede, Erip estava encostado a uma série de almofadas. O ancião suportava melhor a situação naquela posição. Naquela noite, a farfalheira no seu peito estava pior do que nunca, era claramente um sinal de morte. Wid estava a seu lado com as mãos longas e nodosas no colo e com uma expressão calma. A luz das candeias espalhadas pelo quarto iluminava-lhe o nariz adunco, a barba grisalha e os olhos encovados. Aos pés da enxerga, alto e imóvel no seu manto longo, estava Broichan.

Tuala parou na soleira. Os olhos do druida viraram-se para ela, impassíveis, como sempre.

— Oh... — disse ela, sem saber ao certo se devia dar uma explicação, pedir desculpa ou pedir para ficar, mas consciente de que estava ali a pedido do seu velho amigo.

— Entra — disse Broichan em tom grave, apontando para um pequeno banco junto da enxerga, ao lado de Wid. Tuala engoliu o que ia dizer, apercebendo-se subitamente de que quem a chamara fora o druida. Broichan era o único capaz de dar ordens a Mara. Tuala aproximou-se da cama de Erip e pegou-lhe numa das mãos. A jovem não olhou para Broichan. Talvez, se mantivesse os olhos afastados, ele não se apercebesse da sua covardia. Tuala não conseguia aguentar-se na presença dele, nem sequer naquela ocasião, sem se sentir novamente com a idade de cinco anos e totalmente aterrorizada.

Erip estava a dizer qualquer coisa com uma voz rouca.

— Lá fora... chover — disse ele a custo. — Rapariga maluca...

Tuala acenou com a cabeça, tentando evitar as lágrimas. Não podia chorar naquela ocasião; o seu amigo tinha de partir com esperança, com alegria e com amor.

— Sim — disse ela em voz baixa — fui dar um passeio e fui apanhada por um aguaceiro. Devia ter secado o cabelo, mas quis vir ter consigo imediatamente. Mara disse que eu podia vir. — A jovem continuou sem se virar, sentindo, no entanto, que os olhos de Broichan a fixavam intensamente.

— Estivemos a contar umas histórias — disse Wid — e a cantar umas canções. Estivemos a recordar os velhos tempos.

Tuala olhou para ele e sentiu que a dor que lhe marcava as feições nos últimos dias tinha abrandado um pouco apesar da iminência da morte. Talvez as histórias os tivessem ajudado a ambos. Quanto a Broichan e ao seu papel naquele minúsculo quarto, Tuala não fazia a mínima idéia. O druida parecia ser o tipo de homem que nunca tinha amigos.

— Onde foste? — perguntou ele abruptamente, como um gato saltando sobre um rato.

Tuala fez um esforço para respirar devagar, tal como Bridei lhe ensinara.

— A um lugar na floresta onde posso... onde vejo imagens do que pode vir a acontecer.

— Olha para mim, Tuala.

A jovem virou o rosto para o druida; os seus olhos escuros fixaram-se nos dela. Naquela noite, Broichan estava pálido; as rugas que lhe desciam do alto do nariz até à boca pareciam mais profundas.

— Que espécie de imagens? Imagens sobre quem? Sobre ti?

A jovem não lhe queria falar daquilo, não lhe queria dizer nada. O Espelho Negro e as suas verdades eram secretas, privadas. Falar delas seria partilhar um segredo e Broichan era a última pessoa a quem ela se confessaria. O druida era a pessoa de quem ela mais desconfiava. Além do mais, se lhe contasse o que tinha acontecido naquele dia, talvez não conseguisse evitar dizer-lhe com quem tinha estado na lagoa.

— Eu não procuro nada em especial — disse ela, escutando o seu próprio tom de voz empertigado, consciente de que estava a dar a entender que estava a mentir. — Procuro apenas o que está para vir em geral. — Tuala não conseguiu aguentar o olhar do druida. A jovem olhou para as próprias mãos, agarradas com toda a força à de Erip.

— Diz-me a verdade — disse Broichan. — Exijo isso, pelo menos, da parte de uma criança que foi criada em minha casa. Aprendeste essa habilidade com Bridei, não aprendeste? Não acredito que ele não te tenha transmitido alguma sofisticação.

Erip começou a tossir e a tentar respirar e durante algum tempo todos tentaram ajudá-lo no que parecia ser uma batalha perdida. O corpo do ancião estava demasiado fraco para aquela luta terrível. Finalmente, os espasmos cessaram; o ancião voltou a respirar com alguma normalidade, mas sempre com dor. Havia sangue nos lençóis. Wid chegou-lhe uma caneca de água; debilmente, Erip abanou a cabeça. O ancião estava a tentar dizer qualquer coisa; tinha os olhos vermelhos e febris virados para Tuala.

— Bridei... — murmurou ele.

— É verdade — disse Wid, olhando para o druida. — O que Broichan te queria perguntar, Tuala, nos seus modos sinuosos de druida, era se a tua ida à floresta tinha tido a recompensa de algumas notícias do nosso rapaz. Erip sente-se triste por o seu aluno preferido não estar em casa; Bridei também há de ter pena de não estar neste momento em Pitnochie. Se tiveste alguma imagem dele, e se não te importasses de nos falar dela, Erip ficaria muito feliz. Nós sabemos que deve ser muito difícil para ti.

Não seria difícil, pensou Tuala, se aquele homem não estivesse a olhar para mim com aqueles olhos cheios de ódio. Sem ele, só com os meus dois amigos, diria tudo alegremente. Apesar de todo o seu pouco à vontade, Tuala sabia que tinha de falar do que vira, pelo menos alguma coisa.

— Vi-o. — Aquilo saiu num sussurro. Tuala clareou a garganta e tentou encontrar um tom de voz mais confiante. — Num combate corpo-a-corpo; cavalgando com Gartnait; conversando com uma rapariga que eu acho que era irmã de Gartnait. As imagens pareciam ser de agora; a estação era o Inverno e Bridei estava como quando se despediu de mim a última vez.

— Ele estava bem? Feliz? — perguntou Broichan com um tom de voz novo. Tuala desconfiou que as notícias eram mais para ele do que para Erip.

— Pareceu-me. — A jovem recordou a imagem que omitira, a de Bridei durante a noite, preocupado com um problema grave qualquer. Contra a sua vontade, a jovem disse: — Ele quer voltar para casa.

Seguiu-se um pequeno silêncio. Finalmente, Broichan disse:

— Como é que sabes?

— Vi-o no rosto dele. Ele tem... um pressentimento. — Dissera o que não devia, mas por mais que Broichan insistisse, não diria mais nada.

Erip suspirou. Os dedos do ancião apertaram os dela como uma folha seca, uma planta suave e insubstancial, como se já tivesse começado a desistir do seu corpo e estivesse prestes a iniciar a sua viagem para o reino dos espíritos.

— Obrigado — disse ele, e fechou os olhos.

— Ele não pode regressar enquanto a incursão de Talorgen não terminar. — O tom de Broichan não admitia réplica. — E a incursão só terminará no Verão se tudo correr como planejado. O rapaz tem de ter coragem. Que mais é que viste? Uma luta, disseste. Uma batalha? Uma batalha grande?

Tuala olhou para ele.

— Não vi nada disso — disse ela. — Só vi uma luta entre Bridei e outro homem. Ambos tinham facas, e sei que ele está bem.

— Como é que sabes?

— Se ele estivesse ferido, eu saberia. Não preciso de olhar para o Espelho Negro para saber isso.

— O Espelho Negro — repetiu Broichan calmamente. Portanto, tu vais ao Vale dos Que Caíram. Porquê? O que é que tu vês que não possas ver mais perto de casa? Segredos? Gente?

— Nada que vós não consigais ver, meu senhor, tenho a certeza. A vossa perícia nesta arte deve ultrapassar a minha, a mim ninguém ma ensinou. — Na verdade, há muito que a jovem perguntava a si própria por que razão ele nunca a interrogara sobre o assunto. Broichan era druida de um rei, afinal de contas; era capaz, certamente, de invocar visões muito mais poderosas do que as dela. — Eu disse a Erip que Bridei parecia estar bem, que tem saudades de casa e dos amigos. Ele ficou satisfeito. É a verdade, mas não digo mais nada.

Seguiu-se um silêncio àquelas palavras, um silêncio durante o qual Tuala esperou que Broichan a mandasse embora do quarto. O fato de o ter enfrentado tinha-a enchido de suores frios. O druida, porém, não disse nada e quando finalmente ela se aventurou a olhar, ele estava muito simplesmente aos pés da enxerga a olhar para Erip com uma expressão distante, com o pensamento noutras coisas completamente diferentes. Naquele momento, Tuala recordou uma coisa que a rapariga da floresta lhe dissera. O druida do rei tem um ponto fraco, o seu afeto pelo rapaz. Era possível que as perguntas de Broichan tivessem pouco a ver com a sua estratégia e planos, ou com o fato de não gostar dela e muito com uma coisa muito simples: o amor e ansiedade de um pai pelo seu filho ausente. Para Tuala, aquilo era uma revelação, quanto mais pensava na hipótese, mais ela lhe parecia plausível e quanto mais plausível, mais lhe parecia possível ver Broichan como um homem e não como um poder terrível, esmagador.

— Alguma vez te falamos — disse Wid — de quando ensinamos Bridei a beber cerveja como um homem?

Tuala sorriu; ouvira aquela história vezes sem conta.

— Foi assim...

Depois daquela, seguiu-se outra e depois outra história. Tuala contribuiu com algumas da sua lavra, histórias infantis que Brenna lhe contara, histórias de animais maravilhosos e heróis corajosos contadas por Bridei noite após noite antes de ela adormecer, provavelmente aprendidas com aqueles dois estudiosos. De madrugada, depois de Erip já estar para lá das histórias e de Tuala e Wid estarem exaustos de tanto falar, Broichan começou a recitar as suas orações. A voz do druida era baixa, mas ressonante e forte ao invocar a bênção da Que Brilha e da Guardiã das Chamas e, finalmente, um pedido à Mãe de Tudo, guardiã da grande porta pela qual iria passar aquele intelectual velho e cansado. Tuala chorou, mas Wid não, se bem que a luz da alvorada que entrava pela pequena janela deixasse ver o brilho das lágrimas por derramar nos seus olhos. A respiração de Erip era quase inexistente, fazendo apenas erguer muito levemente o seu peito e tremer muito ligeiramente os seus lábios abertos. Os seus olhos estavam fechados. Tuala segurava-lhe numa mão e Wid noutra.

— Um espírito altruísta, forte e generoso — disse Broichan. Um homem cuja viagem foi longa; que percorreu muitos caminhos e que aprendeu com tudo o que viu, o bom e o mau. Fiel aos ensinamentos dos antepassados, apesar de os tentar esconder quando lhe convinha. Fiel às tarefas que iniciava em nome dos deuses. Um bom tutor. Recebei-o acima de tudo por isso, porque um bom tutor é raro. Um bom tutor sabe, não só como fazer um intelectual, mas também como fazer um homem. Facilitai-lhe a passagem porque foi um homem amado e porque amou, mas não vos esqueçais que o seu primeiro amor foi sempre a verdade. Pega-lhe pela mão; guia-o, Mãe de Todos, até ao abrigo dos sonhos. Deixa-o descansar um pouco e dá-lhe sonhos agradáveis nesta jornada. A ti, Mãe Misteriosa, pedimos isto para o nosso querido amigo. Honrá-lo-emos e recordá-lo-emos contando as suas histórias.

Fosse pela oração solene do druida do rei, ou pela sua bondade para com um bom ancião, a Mãe de Tudo deixou que Erip passasse pela porta com suavidade, como qualquer alma mortal. Não houve qualquer paroxismo final, nenhuma luta horrível por ar. O ancião exalou o último suspiro e imobilizou-se. Tuala levou a mão frágil aos lábios e depositou-a em cima do peito imóvel. Wid depositou a outra em cima da primeira. Tuala, Broichan e Wid permaneceram em silêncio enquanto os pássaros cantavam em coro no exterior, ao mesmo tempo que a luz da madrugada, pálida e clara, entrava pela pequena janela do quarto de Bridei, em cujo parapeito descansavam os talismãs que o jovem ali deixara antes de partir para Fonte do Corvo: três pedras brancas e a pena acastanhada de uma águia. Tuala apercebeu-se de que havia gente da casa no lado de fora da porta, que já ali devia estar havia algum tempo: Mara, Ferat, um dos rapazes da cozinha, Uven e um homem de armas.

— Foi-se embora, — disse Mara posteriormente. — É melhor descerem todos para tomar o pequeno-almoço; Erip não quereria que passassem fome por causa dele. Ele sempre gostou de comer. Depois, eu venho lavá-lo e prepará-lo. Brenna ajuda-me. Precisamos todos de dormir um pouco; Erip não se importa de esperar.

Sepultaram Erip num dólmen no alto do monte, perto do Amanhecer das Três Colinas. A chuva esperou até que a cerimônia terminasse. Depois, todos beberam cerveja, comeram pudim de frutos secos e ervas aromáticas do stock especial de Ferat e contaram histórias sobre Erip e a sua estadia em Pitnochie. Devido à ocasião, Broichan ficou no salão com os outros, mas contribuiu com pouco e Tuala achou que a sua presença silenciosa e vigilante punha toda a gente pouco à vontade.

A jovem ficou sentada toda a noite ao lado de Wid, silenciosa a maior parte do tempo. A sua única tentativa para contribuir para a reunião foi a história de uma brincadeira que Bridei tinha feito a Erip e de como o velho tutor lhe tinha devolvido, mas foi recebida com um silêncio total, como se ela não tivesse o direito de falar, não tivesse o direito de se considerar amiga de Erip. Wid riu-se em voz baixa e deu-lhe uma pequena palmada no ombro. Dos outros, a jovem recebeu apenas uma desaprovação fria.

No dia a seguir ao ritual do funeral de Erip chegou um visitante: o velho druida desgrenhado, Uist, que estivera em Pitnochie no Verão em que Tuala fora mandada para Cumeeira de Carvalho e que passava ocasionalmente pelo Vale nas suas viagens misteriosas. O velho cumprimentou Broichan como por ocasião da sua visita anterior, numa demonstração de total menosprezo pelos bons costumes, mas honesta, sem dúvida. Uist visitou o dólmen e disse umas orações que ninguém compreendeu. Em seguida, Tuala apercebeu-se de que Uist não ia ficar em Pitnochie e que Wid também não. Este apareceu no salão com a sua capa e um pequeno saco de couro ao ombro e aquele, que acabava de regressar da sua visita ao dólmen, disse:

— Estás pronto?

Na rua, o frio era terrível; as encostas por cima de Pitnochie estavam envoltas numa bruma pesada que cobria também as águas do Lago da Serpente. Aqui e ali, o tronco de um grande carvalho, cheio de musgo, surgia misteriosamente do vapor branco acinzentado. Não era dia, ou estação, para um ancião andar pela floresta.

— Está na hora — anunciou calmamente Wid, pegando no cajado que descansava habitualmente junto da lareira. O ancião olhou para Tuala e a jovem leu nos seus olhos a verdade sobre o que parecia ser uma terrível e súbita traição. A jovem percebeu que, se ele ficasse, a sua dor seria insuportável. Para sobreviver, tinha de partir, tal como Erip.

— Tenho tanta pena que se vá embora — disse ela docemente. Os outros estavam perto e ela não podia dizer exatamente o que sentia, não podia dizer como era cruel perder o único amigo que lhe restava. — Gostaria que me tivesse dito, mas compreendo. — A jovem conseguiu sorrir quando se pôs em bicos dos pés para dar um beijo em cada uma das faces do seu velho amigo. — Que A Que Brilha te acompanhe.

— Sê corajosa, pequena — disse Wid. — Que a Guardiã das Chamas te aqueça o coração. Voltaremos a encontrar-nos, não tenho dúvida. Espero que tenhas oportunidade de demonstrar a excelente educação que recebeste do velho e de mim. — Os seus lábios tremiam.

— Hei de fazer com que se orgulhem de mim, prometo — disse Tuala, arvorando uma expressão confiante e forte. Porém, enquanto os via afastar, com o misterioso Uist todo vestido de branco na frente e com a figura alta e barbuda do seu velho tutor nos seus calcanhares, a jovem sentiu, enquanto a bruma os engolia, um frio terrível no peito. Tinham-se ido todos embora. Agora estava verdadeiramente só.


CAPÍTULO OITO


A Pedra Mágica era considerada a mais impressionante das pedras que assinalavam os antigos territórios dos Priteni. Maior do que um homem, tinha figuras esculpidas em ambos os lados, sutis e graciosas. A face norte contava a história de um grande conflito; no topo, um rei e os seus guerreiros avançavam para o combate, o monarca em cima de um robusto cavalo e os seus homens atrás com as lanças em riste, os cabelos longos caindo-lhes pelos ombros e os olhos fixos no horizonte. No centro estava representado o encontro dos Priteni com os seus inimigos; ali, o rei trespassava o peito de um adversário com a sua lança. Na base podiam ser vistas as cabeças dos inimigos espetadas em paus e os seus corpos dispostos em fila. A seu lado, um cão devorava um ganso. Talvez cada rei tivesse um daqueles animais no seu emblema.

A face sul da grande pedra tinha um padrão menos formal — um tributo bárbaro e alegre aos deuses, todas as espécies de animais existentes nos reinos dos Priteni: o lobo, o veado, a raposa, o texugo, a marta, o rato, a enguia, o salmão, o touro, o javali e o carneiro, todos distribuídos pela superfície da face da pedra numa maravilhosa demonstração de vida. Nos lados oriental e ocidental da Pedra Mágica viam-se grandes serpentes entrelaçadas, misturadas aqui e ali com rostos sorridentes de homens, mulheres e animais.

Bridei nunca a tinha visto. A Pedra Mágica estava longe, a oeste, onde o Lago do Rei se abria para o mar, e os celtas tinham assumido o controle da encosta onde ela estava há gerações e gerações. Broichan tinha-lha descrito:

— É uma verdadeira maravilha, Bridei; não apenas por ser uma escultura perfeita, mas também por ter em si a história do nosso povo e o mistério dos nossos antepassados.

Erip dissera a Bridei, mais tarde, que os pequenos e estranhos rostos num dos lados eram um toque pessoal do escultor, a sua contribuição especial; em todas as obras de arte, dissera ele, era possível, se se olhasse com atenção, descobrir provas da necessidade do artista de se livrar das regras estabelecidas. As suas palavras tinham provocado uma discussão acesa com Wid. Bridei recordava-se dela e sorriu. O jovem imaginou os dois tutores em Pitnochie, imersos em debates filosóficos. Ainda bem que tinham Tuala para ensinar; a jovem era inteligente e manteria os dois malandros ocupados. Bridei sentiu-se melhor ao imaginar os três em frente da lareira, contando histórias, jogando ou discutindo história. Saber que a vida continuava em Pitnochie e que esperava por si era como saber que tinha uma âncora a que se agarrar, ou que o seu espírito continuava forte mesmo depois de ver coisas inimagináveis ou enfrentar riscos desconhecidos.

Não era que Bridei sentisse medo. O jovem fora ensinado a enfrentar qualquer situação, a medir as oportunidades e os perigos, a tomar uma decisão e a agir de acordo com ela. Os anos de tutoria de Broichan tinham assegurado que ele responderia desse modo, fosse qual fosse o acontecimento; Talorgen comentara, quando Bridei começara o seu treino com os guerreiros de Fonte do Corvo, que em questões de estratégia e avaliação o filho adotivo de Broichan tinha pouco a aprender. Por outro lado, nenhum jovem, por mais prometedor que fosse, sabia do que era capaz antes de entrar pela primeira vez em combate. A pequena escaramuça, durante a qual Bridei e Gartnait tinham aprisionado cada um o seu espião, era uma coisa. Uma batalha a sério, era outra.

Talorgen ensinara-os bem. Os dois jovens tinham tomado parte em longas expedições num clima capaz de gelar o mais robusto dos homens; tinham passado fome, tinham sofrido a exaustão, a ira e o aborrecimento. Bridei achava que estavam prontos para uma coisa a sério, mas também sabia que era provável nunca estarem realmente prontos.

Ajudava ter Donal por perto. Donal dizia-lhe a verdade, preparava-o para o melhor e para o pior.

— Lembra-te do que te disse uma vez — disse Donal quando estavam juntos, saboreando um momento de paz, num intervalo dos intermináveis exercícios. Em breve partiriam e não havia tempo para grandes descansos. — A primeira vez é sempre muito mau, pensas no tipo que vais matar, no nome dele, se tem mulher e filhos, se tem medo, etc. Mesmo assim, espetas-lhe a faca porque, se não o fizeres, fará ele a ti. Depois, aprendes a abstrair-te, deixas de fazer perguntas como, por exemplo, tenho mesmo que fazer isto? Não pensas neles como homens iguais a ti, pensas neles como o inimigo, uns celtas malcheirosos com as mãos manchadas com o sangue dos teus compatriotas e com almas negras como a noite. Então, não tens a mínima dificuldade em matar um filho, um marido, um pai; matas para destruir a desgraça de Fortriu. Não há outra maneira, Bridei. É estranho eu dizer isto, mas a melhor maneira de combater não é com o coração, ou com a barriga, é com a cabeça. Cabeça fria, limpa, sem preconceitos. Não é uma morte, é uma execução.

Bridei recebeu aquelas palavras em silêncio.

— Acredita no que te digo — disse Donal — não te podes dar ao luxo de ter escrúpulos. É por isso que treinamos vezes sem conta com as espadas, as lanças, as facas e as mãos nuas — para que, quando chegar a ocasião, não hesitemos. Ajuda a afastar o medo, também, se souberes os movimentos tão bem que és capaz de os fazer a dormir. Não olhes assim para mim, Bridei. Tu vais ter medo. Todos nós temos. Até Talorgen.

Bridei olhou para ele de relance.

— Pensei que tu não tinhas — observou ele. — Donal, vencedor de mais batalhas do que dedos eu tenho nas mãos e nos pés. Não foi o que me disseste uma vez?

Donal sorriu.

— Duvido que acredites nisso quando me vires em combate — disse ele. — O medo é bom se tirares partido dele. Mantém-te atento, à espreita.

— Creio que não vou ter medo — disse Bridei. — Creio que vou ser capaz.

— Não tenho dúvidas — disse Donal. — Mas vais ver coisas de que não gostas, coisas difíceis de aceitar. Nada prepara um homem para a morte dos seus amigos nem para os atos de selvajaria que são o pão-nosso de cada dia daqueles celtas. Essas coisas podem ficar na tua cabeça durante muito tempo.

Bridei não fez a pergunta, limitou-se a olhar para o companheiro.

— Aprendi a abstrair-me — disse Donal calmamente. — Fecho as recordações num canto da cabeça. Por vezes, elas conseguem sair. Por vezes, sonho com elas, mas poucas vezes. Um homem não se pode dar ao luxo de sonhar muito se quiser ser útil como guerreiro.

Não era a primeira vez que Bridei pensava no fato de Donal, um homem na meia-idade, não ter mulher ou filhos. Quando se falava em tais assuntos, o guerreiro tinha o hábito de se calar. Bridei aprendera a não lhe fazer quaisquer perguntas.

— Eu vou estar contigo, rapaz — disse Donal — mas não esperes que a coisa seja fácil.

— Eu não sou louco — retorquiu Bridei, sentindo-se corar.

— Eu não disse que eras, limito-me a dizer que um druida é capaz de te ensinar muitas coisas, coisas para além da compreensão de um homem simples como eu, mas não te prepara para isto, e o treino de combate ministrado por Talorgen e por mim também não. É só para que saibas.

— Eu sei — disse Bridei, pensando no Espelho Negro. — Os deuses mostraram-me.

— Os deuses mostram-te relances, imagens, sombras — disse Donal. — Em combate vês sangue, membros arrancados, cabeças feridas, mulheres por terra de braços e pernas abertos onde os canalhas as deixaram, crianças esmagadas, casas incendiadas, para além dos cheiros e dos sons. Pior ainda, os teus camaradas transformam-se subitamente em estranhos. Essa é a parte mais difícil.

A voz de Donal mudara. Bridei olhou para ele.

— Que queres dizer com isso?

Donal cruzou os braços. Os seus olhos, muito juntos, assumiram um olhar distante.

— Talvez não aconteça — disse ele. — Talvez consigas passar por tudo escudado pelo sopro dos deuses. Seria bom. Estou a ouvir Elpin a chamar por nós; chegou a nossa vez de lançarmos as lanças. Vens?

Atravessaram o Vale em grupos de dez, partindo de Fonte do Corvo assim que as folhas começaram a aparecer nos ramos dos vidoeiros. Para trás ficou uma pequena força para guardar as propriedades de Talorgen; a sua família já tinha ido para a segurança da corte.


O exército de Talorgen aproximava-se dos cem homens quando iniciou a marcha, uma força, por escolha do seu líder, constituída principalmente por homens a pé, apesar de também levarem cavalos de carga com as provisões e algumas montadas, permitindo assim a rápida troca de mensagens quando o terreno era apropriado. Tinha-se discutido sobre aquela situação: se o problema da forragem não ultrapassaria a utilidade dos animais, com os quais um homem tinha mais visibilidade, alcance e velocidade. Havia uma outra divergência respeitante à utilização dos lagos; os homens e as provisões podiam ser rapidamente transportados de barco à vela, ou em jangadas, evitando assim marchas longas e cansativas que esgotavam as energias dos homens e lhes baixavam o moral. O argumento em contrário dizia que os barcos eram avistados pelos espiões no alto dos montes por cima dos Lagos Mágico e Rei; deixaria de existir o elemento surpresa se utilizassem a via aquática. Além do mais, o transporte dos barcos entre os lagos era tão cansativo como a marcha em si.

Finalmente, decidiram-se pela marcha, lenta, através dos caminhos mais escondidos. Os pequenos grupos progrediam separadamente, acampando próximo uns dos outros mas de forma independente, apagando os respectivos rastos o melhor possível e aproveitando as rochas e as árvores junto da água para se esconderem. O frio era permanente, os homens ficaram encharcados depois do primeiro aguaceiro que encontraram e Bridei habituou-se ao cheiro das botas molhadas, da lã encharcada e do suor de tantos corpos juntos. Sempre que possível, comiam o que encontravam pelo caminho para poupar as provisões que os cavalos transportavam.

Tinham partido pouco depois do festival de Harmonia, a marcha prolongava-se e alguns dos homens já começavam a dizer que nunca chegariam a tempo do Renascimento. Quando era possível, os dias de marcha eram longos, mas o clima nem sempre lhes sorria e havia ocasiões em que a bruma ou a chuva lhes tolhia dolorosamente o passo. Uma doença, que provocou vómitos e disenteria, atrasou-os durante muitos dias na margem sul de Lago Mágico, fazendo-os perder dois homens que foram enterrados com uma breve cerimônia antes de prosseguirem. As noites sucediam-se aos dias e estes novamente àquelas; as refeições eram tomadas em silêncio, os homens pareciam sombras em redor das fogueiras.

Bridei contava os dias fazendo umas incisões num graveto de vidoeiro que guardava no seu saco. Os dias eram passados a marchar e as noites a tentar dormir. Foram enviados batedores, que regressaram sem terem avistado o inimigo. Gartnait dizia, resmungando, que a marcha era demasiado lenta, que mal podia esperar para pôr as mãos no pescoço de um celta e que não teria a contemplação que tivera da primeira vez. Donal disse-lhe para se calar e ele calou-se. Na noite anterior, só tinham conseguido apanhar dois coelhos e os estômagos queixavam-se.


Num determinado ponto, quando Bridei achou que deviam estar perto da ponte que assinalava o extremo norte de Lago do Rei, Talorgen convocou os diversos grupos para um conselho. A força que tinha partido com cerca de cem homens aumentara à passagem pelo Grande Vale e tinham agora mais dois chefes tribais: Morleo de Longwater, alto, escorreito, de barba escura e Ged de Abertornie, um homem flamante e sempre bem-disposto, dado às roupas vistosas, com padrões elaborados, riscas e quadrados. Cada um dos líderes tinha trazido a sua própria força. Os homens de Ged tinham adoptado o modo de vestir do seu chefe e Donal comentara, em voz baixa, que os celtas vê-los-iam mal chegassem a meio de Lago do Rei porque brilhavam como contas com aquelas roupas amarelas e verdes.

O conselho foi simples; havia vários líderes, mas todos sabiam que o comando pertencia a Talorgen a mando do rei Drust e de todo o Fortriu e que, chegada a ocasião, as decisões tinham de ser tomadas com rapidez e eficiência, a uma só voz. Depois de conferenciar com Ged, Morleo e com os seus homens de confiança, incluindo Donal, Talorgen dirigiu-se às forças em presença. Os homens estavam reunidos numa clareira natural onde havia um pequeno maciço rochoso. No local corria um ribeiro, o que fazia com que o terreno parecesse uma esponja, mas era o único espaço aberto suficientemente grande que permitia que todos vissem o seu líder. Bridei ficou na retaguarda com Gartnait, perguntando a si próprio como se sentiria se Talorgen fosse o seu pai. O jovem supunha que, como o seu pai Maelchon era rei, também devia haver ocasiões em que ele devia falar às suas tropas, exortando-os a ter coragem e gostaria de assistir a um momento daqueles. Bridei não sabia se Gartnait tinha orgulho no seu pai. O filho de Talorgen parecia que não tinha nada na cabeça para além da ansiedade pelo combate com os Gaels.

— Somos um exército forte — dizia Talorgen — corajoso e moralizado, mas a luta que se aproxima não é do gênero de carregarmos todos juntos sobre o inimigo, esmagando-o com a força do nosso assalto inicial. Gabhran de Dalriada conhece o terreno. — À menção daquele nome, os homens assobiaram num ato de desaprovação. — Os homens dele estão espalhados pelo que foi em tempos o nosso próPrio território.

— E que voltará a ser nosso! — disse alguém, e outras vozes se lhe juntaram, apoiando-o.

— Em Galany’s Reach, onde se ergue a Pedra Mágica, existe agora uma aldeia fortificada. Os nossos espiões dizem que não é muito forte. Uma guarnição de trinta homens, talvez, mas mais se já sabem da nossa vinda. Também há lá pessoas normais, mulheres, crianças, artesãos, escravos.

— Escumalha — resmungou alguém.

— Uma força como a nossa é capaz de a tomar com facilidade. Porém, como julgo que todos compreendem, defendê-la depois vai ser mais difícil. Aquele monte e o vale abaixo dele eram as terras de Duchil de Galany, um dos nossos chefes tribais mais corajosos. Duchil morreu durante o último combate contra os Gaels. — Talorgen curvou a cabeça por momentos. — Os que sobreviveram foram expulsos, vivem no exílio desde então. Fokel, filho de Duchil, estará conosco com os seus guerreiros.

Um par de homens saudou aquelas palavras com alguns vivas; a maioria ficou silenciosa. Talvez — pensou Bridei, tivessem ouvido dizer, tal como ele, que Fokel era conheciddo por ser um homem mau, selvagem e imprevisível.


— Sabemos — disse Talorgen — que podemos tomar a aldeia e o monte. Também sabemos que no momento em que as nossas forças emergirem dos bosques para atravessar a ponte, em Cataratas da Raposa, as sentinelas passarão palavra sobre a nossa aparição. Pouco depois, todas as fortalezas saberão e a notícia chegará pouco depois ao seu rei em Dunadd. A rapidez da sua resposta depende da dispersão ou concentração dos seus homens de armas. As informações que temos não são boas nesse aspecto. Creio que seríamos capazes de aguentar Galany’s Reach durante uma lua, no máximo. Provavelmente, acabaríamos por ficar cercados pelas forças de Gabhran no alto do monte. Vou ser franco convosco, homens. Esta missão é simbólica; um aperitivo do que vai acontecer às forças de Dalriada. Avançamos, atacamos, recuamos. Destruímos-lhes a guarnição e levamos reféns: o líder, mulheres e crianças. Em seguida, retiramos.

Para Bridei, aquilo fazia sentido. Se fosse líder, faria exatamente a mesma coisa. Erip e Wid tinham-lhe falado da longa história daquela guerra. Os três tinham analisado exaustivamente as grandes batalhas sangrentas entre Fortriu e Dalriada, os avanços heróicos pelo Vale fora, as retiradas, as vitórias e as derrotas. Para Bridei, era evidente que uma força como a de Talorgen nunca conseguiria aguentar um território tão vasto como aquele durante muito tempo. Sem o apoio dos exércitos de Circinn, Fortriu nunca conseguiria expulsar os Géis. Aqueles homens, porém, não tinham a sua educação. O seu desejo de vingança era grande; as suas energias estavam fixadas nos Gaels. Ouviu-se um coro de protestos.

— Retiramos? Nós não estamos aqui para retirar!

— O quê? Deixar que aquela escumalha fique com as terras que nos roubaram? Nem pensar!

— Eu digo que devemos dar cabo deles!

Morleo de Longwater, ao lado de Talorgen, ergueu uma mão e os gritos transformaram-se em murmúrios.

— Esta missão — disse ele com gravidade — é um sinal para eles de que somos fortes, rápidos e inteligentes; que o nosso número está a crescer e que as nossas alianças são fortes; que não esquecemos as baixas que infligiram ao nosso povo. Ergamos o estandarte de Drust, o Touro, e com ele os de Fonte do Corvo, de Longwater e de Abertronie — disse ele, virando-se para Ged e acenando com a cabeça. Ergamos também as estrelas e a serpente, os símbolos antigos de Galany’s Reach.

— Depois — disse Ged, vistosamente vestido — faremos uma cerimônia, talvez o ritual de Renascimento, ou outro. Iremos para o topo do monte em redor da Pedra Mágica e consagrá-la-emos uma vez mais aos nossos deuses: à Guardiã das Chamas, à Que Brilha, à Mãe de Tudo e à bela Todas as Flores. Faremos com que os prisioneiros a testemunhem. Em seguida, libertamos um ou dois para que contem tudo a Gabhran e aos seus chefes. Depois, retiramos. Mais tarde, regressaremos com um exército com que estes Gaels nunca imaginaram.


Os guerreiros rugiram, satisfeitos; Ged tinha um tom de voz agradável e a simplicidade do seu discurso tinha tocado fundo no coração dos homens. Bridei não aplaudiu. O seu pensamento estava naquele exército, uma força suficientemente grande para varrer da face da terra a ameaça de Dalriada; o exército que não poderia existir sem a ajuda de Circinn. Só quando o reino dividido dos Priteni se unisse no objetivo comum é que uma tal empresa seria possível. O jovem reparou no?s olhos brilhantes dos homens, nas suas expressões orgulhosas e sentiu que os seus pensamentos estavam no ano seguinte, ou no outro. aqueles guerreiros estavam cheios de esperança, acreditavam que a vitória estava próxima. Talvez aquele fosse o estado de espírito ideal na véspera de uma batalha.

Prosseguiram na manhã seguinte, dessa vez com os chefes respectivos, Talorgen, Ged e Morleo, se bem que um ou dois dos homens tivessem amigos num grupo ou noutro, mas à noite juntavam-se em redor da fogueira a comer um carneiro assado — mais tarde o fazendeiro seria compensado — ou uma truta bem gorda. Contavam-se histórias e cantava-se, mas sempre em voz baixa. O tempo melhorou; Talorgen ordenou dois dias de descanso e os ramos mais baixos dos amieiros e dos salgueiros engrinaldaram-se com roupas a fumegar sob o calor fraco do sol da Primavera.

Já não estavam longe da ponte de Cataratas da Raposa. O exército não prosseguiria enquanto as forças de Fokel não chegassem. Aquele bando de guerreiros exilados vivia nas montanhas perto de Cinco Irmãs, uma região sinistra e marginal e, pelo que Bridei ouvira, aquele chefe tribal e o seu pequeno grupo de homens dedicados tinham desenvolvido um temperamento de acordo com a terra em que viviam. Bridei perguntou a si próprio se Fokel ficaria satisfeito com um raid daqueles ao seu território ancestral, pelo qual o seu pai lutara e morrera. O jovem comentou o seu pensamento com Donal quando estavam acocorados na margem do ribeiro, tentando tirar a sujidade das roupas.

— Não digas isso em voz alta — murmurou Donal — apesar de ser verdade. Talorgen gostaria de deixar Fokel de fora disto, se queres saber. Porém, não pode. Trata-se da terra dele, do seu lar. Talorgen não podia deixar de lhe falar na expedição! Foi um risco calculado, provocou-lhe muitas noites sem sono, mas são mais homens, e bons.

— Hum — disse Bridei. — A questão que se põe é: a quem vão eles obedecer? — O jovem sentia-se cada vez menos à vontade, concordava com os planos de Talorgen, faziam sentido dado o número e a posição do inimigo, aprovava a idéia de um ritual em Galany’s Reach porque o papel dos deuses devia ser reconhecido e honrado em todas as campanhas. Porém, sentia-se pouco seguro. De que valeria aquela vitória simbólica se os estandartes de Fortriu fossem rasgados no momento em que as forças de Talorgen se afastassem? De que valeria comemorar o Renascimento se a Pedra Mágica ia continuar em território inimigo, insultada, talvez até desfigurada? A cerimônia seria suficiente para demonstrar o respeito pelos poderes antigos? Bridei sentia que não.

— É claro — observou Donal, torcendo uma peça de roupa de cor indefinida — Drust usará os reféns para conseguir concessões de Gabhran, se puder. Se conseguirmos capturar um chefe tribal importante, ou um seu parente, será bom. Talorgen é um bom estratega. Estás com dúvidas, Bridei. O que é que te preocupa? Estás com escrúpulos outra vez?

— Estou só a pensar. — Bridei pendurou a sua roupa no ramo de um salgueiro, achando que ao cair da noite estaria praticamente seca. O jovem encostou-se a uma rocha cheia de musgo, observando os homens desfrutando aquele período de descanso: alguns pescavam, outros dirigiam-se, para o topo do monte com os seus arcos e respectivas aljavas e outros entregavam-se a pequenas tarefas domésticas. Alguns dormiam enrolados nos seus cobertores.

— A pensar em quê? — perguntou Donal distraidamente. Bridei, porém, não lhe respondeu. Na sua mente formava-se um

plano, tão louco que nem ele próprio acreditava nele. A idéia era maluca, das que nasciam da emoção, não da avaliação dos riscos e das hipóteses. No entanto, ela estava ali, grande, pouco plausível e louca: um ato simbólico que faria com que a história de Fortriu soasse como um grande sino de esperança.

— Não — murmurou o jovem para si próprio. — Não, não me parece.

— O quê? — disse Donal.

— Tu estiveste em Galany’s Reach, não estiveste? — perguntou-lhe Bridei. — A que distância fica da margem do lago? És capaz de me desenhar um mapa aqui, na areia?

Tuala prometeu a si própria e À Que Brilha que dali para a frente seria forte. A jovem lembrou-se que Bridei fora para aquela casa quando era muito pequeno, que não tinha amigos ou família, mas que conseguira sobreviver perfeitamente. Bridei até se tinha tornado amigo de Broichan. Na verdade, se a sua educação tivesse sido diferente, talvez tivesse mais facilidade em sorrir. Porém, não havia dúvida de que Bridei aproveitara as oportunidades e Tuala tinha a obrigação, por ele, de tentar fazer o mesmo.

Erip morrera e Wid fora-se embora. Já não tinha tutores. Mara tornara claro que não queria Tuala por perto. A cabana de Brenna era território proibido e os homens não falavam com ela. Que havia de fazer? Era uma loucura tentar ir novamente ao Vale dos Que Caíram com o frio que estava e com os movimentos vigiados por um ou outro membro da casa, como se ela fosse subitamente transformar-se numa espécie de feiticeira e lançar-lhes um feitiço.

Havia momentos em que Tuala desejava fazer aquilo mesmo e perguntava a si própria o que aconteceria, mas continha-se. Uma coisa era exercitar um pouco tais poderes na presença de amigos como Erip e Wid, outra era empregá-los diante daqueles que já a temiam, seria o mesmo que chegar lume a lenha seca.

A jovem praticou na relativa privacidade do seu quarto, utilizando uma pequena tigela de bronze que encontrara na despensa. O recipiente era estranho, tinha pés em forma de garra e asas em forma de cabeça de dragão. Recordando os preceitos dos seus tutores, incluindo Bridei, Tuala tentou aperfeiçoar as suas capacidades e encontrar novos meios de as utilizar. Qual era o objetivo de tais atividades, senão aprender? Assim, a jovem praticou a invocação de imagens relacionadas com um tema, ou um elemento de um todo, como a linhagem real, o antigo conhecimento dos símbolos ou a própria Pitnochie: os segredos e as recordações existentes nas paredes espessas, os tapetes, as divisões escuras e fumarentas. Aquela casa conhecera muita gente, chefes tribais, famílias inteiras e outros druidas como Broichan, se bem que desta espécie houvesse poucos. O percurso deste fora bem invulgar; habitara durante muitos anos na corte, desempenhando o papel de conselheiro do rei e movendo-se no círculo dos homens de negócios. Mais tarde, regressara a Pitnochie, mais como proprietário rico do que como líder espiritual. As aparências iludiam; Tuala não precisava de olhar para as imagens na água para saber que Broichan era as duas coisas ao mesmo tempo e muito mais.

Estar sentada durante muito tempo em frente da tigela fez-lhe doer o pescoço e os olhos. Por vezes, as visões faziam-na entristecer e por vezes davam-lhe volta ao estômago. A jovem nem sempre conseguia retirar uma lição do que via. O corpo estropiado de uma criança; homens esvaindo-se em sangue e outros tentando, em vão, salvá-los; um pequeno cão aninhado contra o seu dono morto: que diziam aquelas imagens, senão que o mundo era cruel e que a humanidade transportava consigo as suas próprias tragédias? A jovem já sabia aquilo; não precisava que a água lhe mostrasse aquilo vezes sem conta. Por vezes, sonhava com aqueles mesmos sinais e presságios durante a noite, com a tigela vazia e metida numa caixa. Quando aquilo acontecia, parava durante algum tempo. Bridei avisara-a de que o uso excessivo de certas capacidades da magia podia levar à obsessão e à loucura. Uma grande parte da arte residia na capacidade de saber quando parar.

Tuala tinha consciência de que estava a ficar cansada. O sono não aparecia com facilidade e os sonhos eram um emaranhado de olhos fixos em si, de mãos tentando agarrá-la, de facas espetadas no coração, cordas em redor do pescoço e gente partindo para não mais regressar. Muitas vezes, nem sequer lhe apetecia comer. À mesa era como se não existisse, os olhos das pessoas deslizavam por ela e os seus comentários excluíam-na. O único que olhava para ela de frente era Broichan e as suas feições severas pareciam ligeiramente desaprovadoras ou avaliadoras, o que a inquietava ainda mais porque lhe diziam que o druida estava a planear qualquer coisa.

À medida que a estação avançava, os dias iam ficando mais claros e Tuala começou a ir novamente até à floresta. A distância até ao Vale dos Que Caíram parecia-lhe maior e as pernas doíam-lhe. O frio dos primeiros dias de Primavera fazia-lhe doer o peito e cada exercício de respiração era um esforço. Como tudo mudara, pensou ela enquanto descansava encostada ao tronco coberto de musgo de um vidoeiro. Como pudera deixar-se arrastar para aquele estado de espírito miserável, ao ponto de nem sequer ser capaz de olhar em volta e ver as coisas com que ela e bridei se tinham maravilhado na infância? Era tudo tão belo: o rasto nítido de um animal da floresta, talvez uma doninha, ou uma marta; o esqueleto intrincado de uma folha seca ainda presa no ramo de uma árvore à medida que, pouco a pouco, o tempo lhe retraía a substância, deixando apenas uma recordação delicada. As diversas cores pálidas do tronco de um salgueiro; as primeiras campainhas nos seus buracos abrigados; o grito de uma ave de rapina no céu e a súbita retirada dos pequenos animais para a proteção da vegetação. Como pudera esquecer a magia daquelas coisas de todos os dias? Que se passava consigo?

Naquele dia, o Vale estava sombrio. A luz da Primavera não conseguia penetrar nele por completo; a folhagem húmida e o vapor jaziam sobre a escuridão das águas da lagoa. As formas dos sete druidas surgiam, curvadas sob as suas capas de musgo; Tuala imaginou que as vira tremer. Algures, no mais recôndito da sua mente, uivava um pequeno cão, um som lamentoso que lhe fez doer o coração, acordando a sua própria tristeza.

Tuala sentou-se numa pedra. A jovem dissera a si própria que não ia olhar para a água naquele dia, que ia apenas ver se os seus dois estranhos visitantes voltavam a aparecer, fazer-lhes algumas perguntas e regressar depois a casa. Tuala sentia-se demasiado cansada para as visões do Espelho Negro; o seu senso comum dizia-lhe que o seu poder seria esmagador naquele dia.

A jovem esperou durante muito tempo, até as costas lhe doerem por estar sentada muito quieta e a cabeça por pensar dezenas de vezes nas razões prováveis do seu não aparecimento. Evidentemente que não podiam ser invocados porque eram criaturas do Outro Mundo; quem pensava ela que era? Talvez os tivesse ofendido quando utilizara o Espelho Negro para ver apenas imagens da sua escolha. Talvez tivessem desistido por ela ter deixado de aparecer. Talvez a estivessem a castigar; no fim de contas, recusara a sua oferta.

— Apareçam, apareçam — murmurou ela. — Eu não quero muito; apenas uma resposta ou duas. — Porém, o tempo passava, no céu o Sol aproximava-se cada vez mais do fim do dia e Tuala percebeu que eles não iam aparecer. Já estava ali havia muito tempo; tinha de se ir embora, ou seria apanhada pela escuridão.

Só uma olhadela rápida, disse ela para si própria, uma olhadela, para que a deslocação não tivesse sido em vão. Manteria a situação controlada e pararia a tempo. Se o visse, um vislumbre apenas, uma única imagem, teria valido a pena.

Bridei sentado a uma mesa na companhia de outros homens; Donal à sua esquerda, instantaneamente reconhecível pelos grandes maxilares, os olhos muito juntos e as tatuagens azuis no rosto. Na imagem, Bridei também tinha a face direita tatuada, sinal da sua masculinidade recente, mostrando que combatera e sobrevivera. Gartnait, sentado no outro lado, tinha um padrão semelhante, mas tinha também os sinais da sua estirpe, sinais que eram tatuados nos jovens de boas famílias, juntamente com os outros. Na face esquerda, enquadrando o brasão do guerreiro, o filho de Talorgen tinha tatuado o cão e o escudo do clã do seu pai e por cima o crescente e a vara quebrada, sinal da linhagem da sua mãe: o sangue real dos Priteni.

Todos eles estavam alegres, relaxados, Donal brincava, Gartnait bebia cerveja e ria e até Bridei sorria ligeiramente enquanto os ouvia, se bem que os seus olhos estivessem sombrios. Havia outros homens à mesa, homens que Tuala não conhecia, alguns vestidos de pele, feltro e lã grosseira, a vestimenta dos guerreiros, outros com roupas mais ricas, aqui e ali algumas capas tingidas de vermelho, alguns cintos com fivelas de prata e cabelos entrançados. Havia carne em cima da mesa, um quadril de veado, do qual já pouco restava, e a lareira estava acesa. Era evidente que festejavam uma vitória.

Um dos homens propôs um brinde. Tuala não conseguia ouvir as vozes, mas a disposição e objetivo da reunião era evidente. Todos se puseram de pé. Um homem alto disse umas palavras formais, os outros ergueram as respectivas taças e beberam.

A jovem sentiu a dor um instante antes de a ver; um nó na garganta e uma dor no coração. Na água, Bridei deixava cair a sua taça e levava as mãos à garganta, o seu rosto subitamente cinzento, os seus olhos esbugalhados, horríveis, grotescos, e a boca aberta. Durante alguns momentos, ninguém reparou; estavam todos a gritar, a beber, entusiasmados com a patuscada. Tuala não conseguia respirar; os seus punhos estavam fechados com tal força que as unhas se lhe enterraram nas palmas. Façam qualquer coisa, depressa, depressa...

Donal viu e agiu com a velocidade de um relâmpago, afastando os outros com os braços e obrigando Bridei a sentar-se, ao mesmo tempo que pedia espaço e ajuda. Gartnait estava imóvel, em choque, simplesmente a olhar. Tuala não suportava continuar a olhar, mas também não conseguia afastar os olhos. Algures, à distância, a jovem ouviu a sua própria voz a gritar como a de uma criança a ser violentada: Não, não, não...

Não é nada agradável a visão de um homem a morrer envenenado. Felizmente, a imagem passava depressa. Tuala viu Donal a tentar, as suas feições agradáveis contorcidas pelo desespero: a sua luta para fazer com que Bridei vomitasse o que quer que fosse enfiando-lhe os dedos pela garganta abaixo, despejando-lhe água salgada na boca cheia de espuma e a mistura a cair no chão, sujando as roupas de Bridei. A tentativa para o pôr de pé e obrigá-lo a andar, infrutífera quando o jovem começou a ter convulsões, fazendo com que o seu corpo parecesse o de um boneco desarticulado. Finalmente, esgotadas todas as tentativas, amparando-o enquanto Bridei exalava o último suspiro e, chorando, fechando-lhe os olhos, acariciando-lhe a face com a sua mão áspera mas gentil, tentando encontrar palavras e não as encontrando.

Enquanto as imagens se desvaneciam e desapareciam, Tuala deixou-se cair com o rosto no solo frio e as suas mãos fincaram-se na terra como duas garras. Do seu peito saiu um lamento parecido com o de um animal ferido, um som de que ela nunca se imaginaria capaz. A sua força rasgou-lhe a garganta e despedaçou-lhe o coração; a dor era demasiada, não a conseguia suportar. A jovem soluçou e gritou, abandonando-se furiosamente. Por cima da voz da sua própria dor Tuala continuava a ouvir o uivo solitário quase constante naquele local: o lamento de um pequeno cão. Era como se o animal estivesse mesmo junto de si; como se chorassem ambos a mesma dor.

A jovem só queria que a terra a engolisse; como poderia continuar depois daquela visão? Apesar daquele sentimento, alguns momentos depois Tuala levantou-se sempre a soluçar, sacudiu a terra das roupas e sentou-se com a cabeça entre as mãos, obrigando-se a pensar como Erip e Wid a tinham ensinado a fazer. A batalha tinha terminado, tanto Bridei como Gartnait tinham os rostos tatuados: aquela visão não era do presente, era do futuro porque um grupo tão grande de guerreiros não podia chegar ao território dos Gaels senão por ocasião de Harmonia. Pelo menos fora o que Wid dissera. Se partissem demasiado cedo encontrariam neve, rios demasiado cheios, névoas espessas e quedas de pedras. Bridei não estava morto, sentiria se estivesse, senti-lo-ia no coração, instantaneamente. Aquela coisa horrível ainda não acontecera, ainda era possível evitá-la.

Tuala pôs-se de pé, sentindo-se tonta e fraca. Broichan; tinha de dar a notícia a Broichan. Já perdera demasiado tempo a chorar, tempo que não se podia dar ao luxo de perder. A jovem apertou a capa contra si, cerrou os dentes e desatou a correr.

Do seu poleiro num dos ramos mais altos de uma árvore por cima do Vale dos Que Caíram, os dois viram-na correr.

— Ela ainda é muito nova — observou o rapaz vestido de hera — para sofrer tanto.

— Quando chegar a casa ainda vai sofrer mais — disse a rapariga. Broichan vai tratar disso. Com este druida a ajudar, a nossa tarefa fica simplificada.

— As coisas não estão nada fáceis para Tuala.

A rapariga virou os olhos brilhantes para ele.

— Tem de ser. — O seu tom era frio. — Estes dois têm que ser postos à prova. Têm que ser fortes, tanto um como o outro. Têm que ter a noção do dever e da lealdade, do amor e da determinação. Eras capaz de entrar em combate com a tua arma mal temperada? Eras capaz de construir uma casa com madeira verde?

— Eu sei — disse o rapaz. — Custa-me assistir, mais nada. Ela é boa. Quando estiver tudo dito e feito, passa a ser nossa.

— Boa? — troçou a rapariga. — De que serve isso, se foge às responsabilidades ao primeiro sinal de adversidade? Tuala tem um caminho difícil pela frente. Temos de fazer com que ela desenvolva a resistência suficiente para o percorrer, tal como exige A Que Brilha.

— E o rapaz?

— O caminho de Bridei está marcado. Só precisamos de continuar a vigiá-lo. Na devida altura, os deuses destinar-lhe-ão o teste final; talvez desempenhemos um papel nesse teste, mas ainda não chegou a ocasião. Por agora, ele vai enfrentar o teste dos homens.

As imagens terríveis permaneciam na mente de Tuala, dando-lhe asas. A jovem chegou quando o Sol se estava a pôr. Na cozinha, Ferat e os seus ajudantes estavam ocupados com um pesado pedaço de carne no espeto, mas viraram-se para a ver passar a correr com os cabelos a taparem-lhe os olhos. Mara estava a pôr a mesa no salão. Quando Tuala passou por ela e foi bater à porta de Broichan, a governanta começou a dizer algo com voz áspera, mas a jovem não lhe ligou. Não havia espaço na sua cabeça senão para aquela imagem, o terrível futuro sombrio que tinha de alterar a todo o custo. Quando Broichan não lhe respondeu, Tuala abriu a porta e quase caiu no interior do quarto.

— Tenho de lhe dizer... Bridei... — arquejou ela. — Tem de... — A jovem percorreu o espaço com os olhos e calou-se, sentindo uma dor no peito devido à longa corrida ao frio.

Broichan não estava sozinho. O druida estava em frente da pequena lareira com uma caneca de cerveja na mão e a seu lado estava outro homem, um estranho, de constituição forte e bem parecido, talvez um dos proprietários de terras locais ou um chefe tribal menor. O homem olhou para ela com uma curiosidade indisfarçável e com alguma surpresa. Tardiamente, Tuala tomou consciência da lama que as suas botas tinham deixado no chão limpo, nos seus cabelos desgrenhados e no modo como as suas mãos agarravam no xale, como duas garras.

Provavelmente, tinha os olhos arregalados. A única resposta de Broichan foi erguer as sobrancelhas. O seu autocontrole sempre fora notável.

— Pe... peço desculpa — conseguiu ela dizer, inclinando ligeiramente a cabeça para o estranho; fossem quais fossem as circunstâncias, tinha de cumprimentar apropriadamente aquele homem. — Que a luz da Que Brilha vos receba nesta casa. Peço desculpa por interromper, mas tenho de falar convosco, meu senhor — disse ela, virando-se novamente para Broichan — por favor, tenho de vos dizer... é Bridei, ele corre um perigo terrível...

— Chega, Tuala. — A voz do druida era profunda e calma.

— Mas eu...

— Chega. — Broichan virou-se para o seu hóspede. — Peço desculpa pela interrupção, Garvan. Concedes-me uns momentos para tratar disto?

— Certamente — disse o visitante, pousando a sua caneca em cima da mesa e saindo do quarto, não sem lançar um olhar de agrado para Tuala. A porta fechou-se.

— Sê breve — disse Broichan. — Breve, coerente, que valha a interrupção. Esperava que pudesses causar melhor impressão em Garvan. Depois disto, ele vai pensar que não passas de uma loba jovem. Diz lá ao que vens.

Tuala não sentia medo dele nem compreendia o verdadeiro sentido das suas palavras.

— Vi... na água... vi Bridei mas não agora, depois da batalha. Eles estavam num banquete e alguém lhe envenenou a bebida e... — Não podia dizer aquilo daquela maneira. Como podia transformar uma notícia daquelas em meia dúzia de palavras? Tuala pensou que o seu coração ia rebentar de angústia. O quarto começou a andar à roda, as velas a dançar e os estranhos objetos nas prateleiras começaram a misturar-se; o mundo estava ao contrário, nada estava como devia ser.

— Senta-te. Aqui. — Broichan aproximou-a de um banco, fê-la sentar-se e deu-lhe um pouco de cerveja. Em seguida, o druida ajoelhou-se na sua frente e os seus olhos escuros encontraram os dela, intensos, interrogadores. Broichan estava muito pálido; o seu olhar era, talvez, a imagem do dela. — Conta-me — disse ele.

— Eles mataram-no — murmurou ela com a caneca a tremer-lhe na mão, de tal modo que a capa ficou cheia de cerveja. — Vi-o morrer. Donal, Gartnait, os outros, não conseguiram salvá-lo. Ele... ele... foi horrível...

— Bebe — disse Broichan, tocando ligeiramente na caneca da jovem. — Agora, conta lá outra vez. A imagem não era do tempo presente? Tens a certeza?

Tuala acenou com a cabeça.

— Já vos disse. Era mais tarde, depois da batalha. Gartnait tinha as tatuagens de guerreiro e de família no rosto e Bridei só tinha as de guerreiro. Ainda há tempo para impedir isto. Tendes que o impedir.

— Bebe mais um pouco. Agora, respira fundo. Correste muito para me dizeres isso.

Tuala sentiu as lágrimas a aproximarem-se dos olhos. A jovem fungou e esfregou os olhos como uma criança.

— Portanto, a coisa recomeça — disse Broichan. O druida levantou-se e sentou-se em frente da rapariga. — Tuala, eu sei que o teu talento neste campo tem pouco a ver com o que aprendeste; é uma coisa natural e, como tal, talvez não seja uma coisa segura. Por outro lado, o que lhe falta em controle sobra-lhe em força. Compreendes, certamente, que as visões do Espelho Negro nem sempre nos mostram uma imagem exata do futuro, não representam uma verdade simples.

Tuala olhou para ele.

— É evidente que sei. Se a imagem fosse verdadeira, não poderíamos fazer nada. Bridei morreria por mais que fizéssemos, mas trata-se de uma possibilidade e não podemos deixar que aconteça.

— Claro que não. Felizmente, basta uma simples precaução para que essa tragédia não aconteça. Vou fazer com que ela seja posta em campo, se bem que demore um pouco; tenho de enviar uma mensagem a Fonte do Corvo e o caminho deve estar tapado pela neve para os lados de Lago da Donzela. O que me preocupa mais é a ameaça à segurança de Bridei. Se um assassino tenta envenená-lo uma vez, tentará uma segunda, ou uma terceira. Se o veneno não for eficaz, ele há de arranjar outro meio.

— Quer dizer que Bridei vai ser mesmo assassinado? — A voz de Tuala era apenas um fio.

— Não — disse Broichan. — Não posso permitir que isso aconteça. Precisamos de Bridei. O futuro dos Priteni depende dele.

— Eu sei — disse ela, se bem que percebesse, pelo olhar do druida, que as suas palavras não eram para ela. — Isso quer dizer que ele... não vai entrar em combate? Ele pode regressar a casa? Aqui não corre perigo, certamente.

— Regressar a casa? — Broichan pareceu ficar espantado com a sugestão; era como se ele se tivesse esquecido dela, ao mesmo tempo que na sua mente se desenvolvia um esquema qualquer. — Estás a falar em Pitnochie? Não pode ser, pelo menos antes do fim do Verão. Além disso, ele vai entrar em combate na Primavera; tem de provar que é um homem. Depois, creio que chegou a hora de retomar o meu lugar no mundo dos negócios. Foi um exílio longo. Drust vai ter o seu druida de volta, pelo menos durante algum tempo.

— Durante algum tempo? — perguntou Tuala, tentando tirar algum sentido das palavras do druida, ao mesmo tempo que engolia o amargo desapontamento contido nas suas palavras.

— O tempo que for preciso — disse Broichan, olhando novamente para ela, dessa vez com olhos críticos. — Isso significa que também vai haver mudança para ti. Não podes ficar em Pitnochie enquanto eu estiver fora. O pessoal não aguenta; já há hostilidade que chegue. Vai, limpa-te, muda de roupa e veremos se consegues causar melhor impressão ao jantar.

Finalmente, Tuala compreendeu e ficou horrorizada.

— Não é preciso ficares assim — disse Broichan. — Garvan é bom homem, é rico, tem uma situação estável. Será bom para ti. Além disso, não se importa de casar contigo, ou não se importava antes de tu entrares aqui como um elfo dos bosques. Tu tens poucas hipóteses, Tuala. Provavelmente, esta é a melhor de todas.

A jovem ficou mais uma vez sem palavras. O antigo terror, esquecido devido à necessidade irresistível de partilhar a notícia desesperada, reclamava-a novamente.

— Não te preocupes — disse ele, não compreendendo. — Não deixarei que aconteça qualquer mal a Bridei. Agora, vai; espero que mostres ao meu hóspede que és capaz de ser uma dama quando é necessário. Podes conversar conosco ao jantar e demonstrar a tua educação. Creio que Garvan te vai achar muito interessante. E Mara que faça qualquer coisa ao teu cabelo.

A jovem já ia a sair quando ele disse:

— Tuala?

A jovem esperou sem se virar.

— Fizeste bem em vires dar-me a notícia.

Pelo tom de voz, Tuala percebeu que o druida fizera um grande esforço para dizer aquelas palavras. Em seguida, acenando com a cabeça, a jovem saiu do quarto.

O jantar foi uma provação. Tuala sentiu que estava a ser mostrada, a ser inspecionada, como se fosse uma bezerra premiada num mercado de fazendeiros. Apesar das tentativas do visitante para esconder a evidência, desviando a conversa para tópicos gerais, seguros, a jovem sentia o interesse nos seus olhos e o seu reflexo na atitude de todas as outras pessoas sentadas à mesa. Naquela noite, o grupo de convidados era menor do que habitualmente: Broichan e Garvan, ela, Mara e quatro homens de armas, todos veteranos e de meia-idade. Os outros estavam a comer na cozinha de onde, sem dúvida, escutavam tudo. Provavelmente, contavam os dias que faltavam para que Garvan a pusesse em cima da sua carroça e a levasse, um bom investimento para o futuro, jovem, rica e educada. Quanto mais Tuala pensava, mais o medo era substituído pela ira. Como se atreviam a vendê-la assim? Como se atrevia Broichan a tomar aquela decisão sem sequer lhe perguntar como se sentia? Mais doloroso ainda, como se atreviam a fazer aquilo enquanto Bridei estava ausente, sem saber? Ninguém compreendia?

Tuala percebia muito bem que Garvan estava a fazer o possível. O homem não tinha culpa de ser disforme e de ter um rosto que mais parecia ter sido esculpido a partir de um nabo. Garvan fez-lhe perguntas sobre os seus tutores, falou na mudança de estação, nos símbolos de família e até pareceu, surpreendentemente, um especialista no assunto. O homem fazia um grande esforço para não olhar para ela. Tuala tinha vestido uma saia lavada e uma túnica, tinha penteado e entrançado os cabelos; Broichan fora estúpido ao pensar que ela procuraria a ajuda de Mara para uma tarefa tão íntima. Enquanto passava o pente pelas madeixas emaranhadas, Tuala não conseguiu deixar de pensar em Bridei fazendo-lhe aquilo mesmo em criança e perguntando-lhe, com um sorriso na voz, o que fizera à fita. A sua ausência fazia-lhe doer o coração o tempo todo.

Broichan disse que o vinho, naquela noite, era importado da Armórica e permitiu que ela bebesse um pouco. A bebida subiu-lhe à cabeça e fê-la pensar nos verões passados, ela e Bridei subindo à Cicatriz da Águia, galopando através da floresta, tentando pescar trutas no lago. Desaparecera tudo; se Broichan conseguisse o que queria, casaria antes de Bridei regressar novamente a casa. As mãos da jovem fecharam-se, com força. No seu íntimo começou a acordar algo perigoso, algo como uma pequena chama. Tuala começou a ouvir na cabeça um pequeno murmúrio: Mostra-lhes. Enfrenta-os. A jovem pestanejou, espantada. Era evidente que não ouvira aquela voz; à sua volta, as conversas continuavam. Era estranho; juraria que a voz era conhecida, que pertencia ao Outro Mundo. Aquele jovem, que parecia feito de ervas e outras coisas do bosque, tinha aquela maneira de falar. Porém, as palavras pareciam ter saído do seu interior, como se fizessem parte dos seus próprios pensamentos.

— Devíamos acabar a noite com uma ou duas histórias — sugeriu Broichan. Aquilo era muito incaracterístico; era evidente que o druida estava a tentar fazer o papel de bom anfitrião. — Importas-te de contar uma, Garvan? Aposto que sabes muitas devido ao teu trabalho.

Garvan pareceu um pouco desconcertado.

— As minhas mãos contam as histórias por mim — disse ele corando um pouco. — Eu não tenho, como vós, o dom da palavra. Porém, tenho a certeza que Tuala aprendeu muitas. A sua educação parece ter sido notável. Talvez ela nos queira contar alguma.

Garvan olhou para ela quase com timidez. Talvez pensou ela, ele tivesse apanhado a mesma doença dos outros homens, o medo de que ela o apanhasse na armadilha com os seus terríveis estratagemas. Malditos. Malditos, todos eles. Mostra-lhes. Conta a tua história e mostra-lhes.

Broichan já ia a abrir a boca, talvez para apresentar uma desculpa em seu nome.

— Claro — disse Tuala docemente. Era como se fosse outra pessoa qualquer a falar. A jovem sentia-se absolutamente calma e lembrou-se de uma história nova, completa e perfeita, uma história que revelaria a sua força e que seria um teste para o ouvinte. — Primeiro, porém, dizei-me qual é o vosso ofício, meu senhor. Dissestes que as vossas mãos contam as histórias por vós. Que quer isso dizer?

— Sou pedreiro.

— Um pouco mais do que isso, meu amigo — disse calmamente Broichan. — Ele é um pedreiro e um artista de grande categoria, Tuala; os nossos antepassados falam através dele.

— Dás-me uma grande honra — disse Garvan, olhando para as suas grandes mãos em cima da mesa.

— Nem por isso — disse Broichan. — O teu trabalho não está exposto na corte do rei de Fortriu? Não consigo imaginar um ofício mais ligado ao que há de mais sagrado na nossa terra do que o teu.

— Salvo o das mulheres sábias, ou dos druidas — disse Garvan, sorrindo. — Espero que tenhas ficado satisfeita, Tuala.

— Digamos que a história que vou contar é sobre um pedreiro.

Tuala fora treinada para contar histórias sobre heróis e magia, monstros e demandas. A daquela noite seria diferente: diferente de tudo o que os seus tutores lhe tinham ensinado. — Chamar-lhe-ei Nechtan. Este Nechtan era um homem solitário, orgulhoso e muito bom no seu ofício. Em tempos tivera uma esposa, mas ela morrera e os seus filhos tinham-se alistado no exército do rei; nenhum deles tinha mostrado interesse em aprender o ofício do pai. Nechtan trabalhava o dia todo com o malho, o cinzel e as mãos nuas, extraindo segredos da pedra, corujas misteriosas, touros orgulhosos, estranhos animais marinhos, lanças, escudos, homens a cavalo a caminho da guerra. Durante o dia, o pedreiro ficava imerso em sonhos e transformava-os em formas maravilhosas, eternas. Durante a noite, o pedreiro ficava acordado, imerso na maior das solidões. Durante a noite, os sonhos eram substituídos por um grande desespero. Então, Nechtan sentiu uma grande ansiedade, mas sem saber porquê.

— Ora, acontece que na Primavera Nechtan teve de viajar porque tinha uma encomenda do rei e precisava de visitar a corte para discutir os pormenores. O tempo estava bom; os dias eram frios e límpidos, os pássaros pousavam nos amieiros e nas aveleiras, as folhas tentavam desabrochar nos ramos nus e o chão estava atapetado de neve. Quando ficou demasiado escuro para continuar a viagem, Nechtan acampou junto de um ribeiro, acendeu uma pequena fogueira no interior de um círculo de pedras e instalou-se para dormir, enrolando-se no cobertor. Nechtan estava habituado ao frio; o fato de passar a noite na floresta não o incomodava. Porém, não conseguiu dormir, o sono não havia meio de chegar. O pedreiro ficou acordado naquela noite enluarada, todo enroscado para se manter aquecido enquanto a pequena fogueira se transformava em cinza que esvoaçava sob a brisa fria da noite. Nechtan desejava, ansiava por qualquer coisa cujo nome não sabia. Fosse o que fosse, ansiava por ela com o corpo, o coração e a alma; sem ela murcharia como as bagas deixadas a secar no ramo de uma sorveira-brava.

— “Homem?” — disse uma voz ao seu ouvido. Na sua frente, mesmo no outro lado da fogueira, estava uma figura curvada, envolta numa capa cinzenta, talvez uma anciã, mas era difícil dizer.

— “Quem és tu?” — perguntou Nechtan, pensando na única espécie de gente que era possível encontrar àquela hora e naquele local à luz da lua. — “Que queres?”

— “Uma lareira como deve ser, uma casa como deve ser, estarás melhor lá do que sozinho.” — disse a figura e Nechtan, levantando-se, viu que era mesmo uma anciã e que o seu dedo ossudo lhe fazia sinal para a seguir.

— “Estou muito bem aqui, obrigado” — disse ele o mais polidamente possível, se bem que não fosse exatamente verdade. Porém, o pedreiro lembrou-se, devido às histórias que ouvira na infância, dos perigos de obedecer a pedidos daqueles. Por outro lado, estava cada vez mais frio e uma lareira como deve ser e um telhado por cima da cabeça era uma perspectiva bastante atraente.

— “Uma lareira acesa, uma cama quente, sono tranquilo para uma cabeça cansada” — resmungou a anciã, começando a caminhar na direção das árvores. Nechtan, porém, hesitou; e se a seguisse e ela o levasse para um reino perigoso, para lá do mundo conhecido? Poderia nunca mais regressar; e tinha uma encomenda do rei.

— “Mãos suaves, doce abraço, consolo do espírito, descanso abençoado” — disse a voz da anciã. O pedreiro mal a via. — “Mãos suaves, doce abraço, consolo do espírito, descanso abençoado”.

— “Espera!” — gritou Nechtan e, pegando nos seus pertences, correu aos tropeções atrás da anciã ao longo do carreiro difusamente iluminado pela lua.


Tuala fez uma pausa. Os seus ouvintes estavam todos em silêncio. Broichan olhava para ela severamente e Garvan estava inclinado para a frente, muito atento. Mara enrugou os lábios e disse:

— Esse Nechtan era louco. Não há dúvida de que nunca mais regressou ao tempo e ao local de onde saiu.

Os homens de armas olhavam para tudo menos para a contadora. No entanto, era evidente que estavam absorvidos na história; nenhum deles se mexera desde que Tuala começara.

— A anciã levou-o para uma pequena cabana toda coberta de roseiras bravas — continuou a jovem. — Lá dentro, o ambiente era quente e confortável, na lareira estava um pote de sopa e em cima de uma mesa pequena e torta estava um jarro de cerveja, quase como se alguém estivesse à sua espera. À lareira estava outra figura encapuzada, essa envolta em várias camadas de roupa, de modo que Nechtan não podia distinguir as suas formas. Porém, o pedreiro viu duas mãos brancas, encantadoras, suaves e graciosas e o rosto que se virou na sua direção era o de uma mulher, um rosto bem agradável. A parte mais agradável era a boca, a boca mais bonita, mais sedutora que Nechtan vira em toda a sua vida. Como escultor que era, o pedreiro tinha olho para a beleza. Os lábios não eram demasiado finos nem demasiado cheios; eram vermelhos, tão doces como uma baga madura e as suas curvas pareciam ter a forma perfeita. Ao olhar para aquela boca, Nechtan quase se esqueceu de onde estava e quem o tinha conduzido ali, mas só quase.

— “A bênção da Que Brilha para a tua lareira” — disse ele com um ligeiro tremor na voz. — “A anciã disse que eu podia entrar para me aquecer. É muito amável da tua parte.”

A mulher sorriu. A sua boca adquiriu uma covinha num dos cantos, os seus olhos ficaram mais brilhantes e as suas mãos estenderam-se para o jarro da cerveja e para uma caneca para o servirem, mas não conseguiu chegar à mesa. A anciã, resmungando para si própria, aproximou-se e serviu ela o pedreiro.

— “Peço desculpa” — disse a mulher mais nova. — “Não posso andar; a minha amiga Anet, que te trouxe aqui, tem de fazer a maior parte das coisas por mim. Senta-te, por favor, bebe e aquece-te. Depois, tenho uma proposta para te fazer ou, se preferires, um desafio. Tu és um homem inteligente, consigo lê-lo nos teus olhos. Por isso, deves saber que atravessaste uma fronteira esta noite para me visitares.

A caneca que Nechtan tinha na mão parou a meio caminho da boca.

— “Podes beber à vontade” — disse ela. — “Neste momento já estás no nosso mundo, mas não te prenderei aqui contra a tua vontade, e Anet também não. Aquilo que um homem decide fazer em minha casa é da sua única responsabilidade.” — A mulher suspirou e Nechtan sentiu naquele suspiro um reflexo da sua própria tristeza secreta, um vazio no coração que ele daria tudo para não ter. O pedreiro levou a caneca aos lábios e bebeu, olhando para ela por cima da borda.

— “Nechtan” — disse a mulher — “é esse o teu nome. Um construtor de coisas belas; coisas fortes, bonitas. Por que é que um homem assim, um homem com um ofício e uma posição na vida, um homem com casa própria e que goza dos favores do rei, tem tanta tristeza nos olhos?

— “Não sei” — murmurou Nechtan, olhando para ela e pensando que aquelas mãos brancas e aquela boca deliciosa seriam capazes de o levar a um desespero ainda maior se não tivesse cuidado. — “Diz-me, dama, já que sabes o meu nome, qual é o teu?”

Ela sorriu e Nechtan viu que a tristeza do seu sorriso lhe era familiar.

— “Tenho muitos nomes” — disse ela — “como, por exemplo, Báculo, Roda da Vida ou Cara-Metade. Não é por acaso que me visto assim; ninguém pode saber como sou por baixo das minhas roupas, salvo aqui a Anet, que trata de mim.”

— “Eu dava-te outro nome, se me permitisses” — disse Nechtan. O pedreiro corou ao aperceber-se da sua ousadia; que pensaria a dama de tanto descaramento?

— “Qual?” — perguntou ela docemente.

— “Ela” — disse Nechtan. — “O nome de um cisne porque me fazes lembrar esse animal, pálido e distante, de uma beleza para além da compreensão dos humanos. Perdoa-me, não te conheço, não devia falar assim...”

— “Ela” — repetiu a mulher, e o nome ficou suspenso no ar da pequena cabana fumarenta, doce como uma promessa. — “É... aceitável...”

A mulher esperou enquanto ele comia uma malga de sopa e se aquecia à lareira. Em seguida, fez-lhe a proposta. Ela disse que tinha o poder de lhe retirar a solidão e suavizar a tristeza. Se ele quisesse ficar com ela, viver naquela cabana e partilhar a sua cama de noite, garantir-lhe-ia um sono tranquilo e os dias livres para que pudesse regressar ao seu próprio mundo e continuar a praticar o seu ofício.

— “Porque vejo” — disse ela — “que, se desistisses desse ofício, murcharias e morrerias antes de chegada a tua hora. Fica comigo durante um ano e um dia e terás trabalho honesto enquanto houver sol, ao passo que, sob a luz do luar, terás noites tão doces que não terás espaço na alma para a tristeza.

— “Mas, dama... Ela...” — disse Nechtan, sentindo as faces a corar e o desejo a crescer — “tu disseste... desculpa-me... tu disseste que ninguém podia ver a tua verdadeira forma. Como podes receber um homem nos teus braços e na tua cama com essa restrição?

— “Não precisas de me ver despida” — disse Ela muito séria “nem de me apertar contra ti para que a magia funcione. Acredita no que te digo, não sentirás o desejo de ver o que se esconde por baixo das roupas que uso.”

— “Nesse caso, como...?”

— “Confia em mim, pedreiro, e aceita a minha oferta. Dormirás descansado.”

Nechtan ficou silencioso. A sua mente estava cheia de perguntas por fazer.

— “Não acreditas em mim” — disse Ela, deixando descer sobre os olhos claros as longas pestanas. — “Ou não confias em mim. Fica esta noite, só esta noite, e mostro-te que estou a dizer a verdade.”


Tuala fez uma pausa; em redor da mesa o silêncio era absoluto.

— Dizei-me — disse ela. — Que achais que Nechtan devia ter feito?

Broichan não lhe respondeu. A jovem pensou que talvez tivesse conseguido o impossível, talvez o tivesse emudecido de surpresa.

— Nunca se devia ter metido naquela situação — disse Mara bruscamente. — Um artesão, uma pessoa de posição, tinha obrigação; foi um louco em ter seguido a anciã, foi um louco ao aceitar beber da taça da mulher e ainda foi mais louco ao aceitar a oferta. Pelo menos, devia ter perguntado o que ela queria em troca. Penso que ele devia ter dito não, agradecido polidamente e continuado a viagem imediatamente. Não existe lugar para tristezas secretas como as dele na vida de um homem. Ele devia aceitar as coisas e contentar-se com o que tinha.

— Mas ele não pode fazer isso, pois não? — atreveu-se a perguntar um dos homens de armas.

— É claro que não — disse outro. — As histórias não são assim. Basta um homem olhar para uma mulher como ela e fica perdido para sempre. Provavelmente, ele mete-se na cama com ela, tira-lhe a roupa apesar de ela lhe pedir o contrário e descobre que está junto de um monstro.

Seguiu-se mais um período de silêncio. Tuala esperou.

— Como artista — disse Garvan — ele sabe que os desígnios dos deuses nunca são óbvios. Como homem que trabalha a pedra, compreende a beleza que existe na libertação dos sonhos das formas que os restringem. Nechtan não tem outra hipótese senão concordar com a oferta da mulher; sente que aquilo pode ser o que procura há muito tempo e que não encontra. — O pedreiro olhou de relance para Tuala com uma pergunta nos olhos.

— Exatamente — disse Tuala, surpreendida com a resposta. — Ele ficou e aconteceu como Ela tinha prometido. O pedreiro dormiu com ela, mas não a abraçou, nem lhe tirou as roupas com que ela escondia o corpo e ela fez magia; a sua habilidade e doçura acordaram em Nechtan um fogo que ele não sabia que possuía, nem durante os anos em que fora casado, nem por ocasião dos encontros fortuitos com mulheres ao longo da sua viuvez. A voz doce de Ela, a sua percepção, a sua gentileza e a sua bondade acalmaram-lhe o espírito; ele sentiu que podia dizer-lhe tudo e que ela compreenderia. De dia, Nechtan regressava ao mundo dos mortais e continuava a praticar o seu ofício. De noite, regressava a correr para junto de Ela, ansioso pelo que ela lhe oferecia apesar da crescente familiaridade porque a sua presença era sempre fresca, sempre nova, um mundo maravilhoso sempre com tesouros por descobrir. Nechtan deixou de ter noites flageladas por sombras e desespero; passou a ter noites doces e depois um sono profundo. Passou-se um ano e um dia e nem uma única noite desse período de tempo Nechtan passou fora da cama da sua nova amante, o que tornava difícil o exercício do seu ofício, por vezes; um pedreiro tem de estar livre para poder viajar, ir onde as encomendas o chamam, mas como tinha ajudantes, conseguiu desenvencilhar-se porque já não conseguia dormir sem ela. Então, Ela perguntou a Nechtan o que ele queria fazer.

— “Vejo” — disse ela — “que, apesar de sermos felizes juntos e já não te sentires só, existe uma nova tristeza nos teus olhos. Que te perturba, meu querido?”


Tuala percorreu a audiência com os olhos.

— O que é que ele lhe disse? — perguntou-lhes a jovem.

— Ele quer ver-lhe o corpo — disse um homem de armas de olhos afastados. — Aborrece-o que ela tenha aquele segredo. Isso acontece em muitas histórias; a curiosidade vence sempre e depois tudo corre mal.

— É verdade — disse outro. — Se um dos... Boa Gente... impõe uma regra dessas, nenhum homem deve ir contra ela. Se o fizer, a coisa acaba mal, mas nas histórias está sempre a acontecer.

— Provavelmente, tira-lhe a roupa enquanto ela está a dormir e espreita — disse Mara — e Ela desaparece mais a anciã e a cabana confortável, e ele fica como estava antes, entregue à tristeza e à solidão.

Tuala esperou.

— Não — disse Garvan. O pedreiro parecia estar a pensar na resposta. — Não, penso que não. É claro que ele teria gostado que ela lhe mostrasse o corpo, mas se ela não o podia fazer era porque ainda não confiava nele. Porém, não era essa a causa da sua inquietação. Ele disse-lhe que o que mais queria, acima de tudo, era ser capaz de lhe proporcionar o mesmo prazer que ela lhe dava com tanta generosidade noite após noite sem procurar nada em troca senão a sua companhia. Nechtan desejava curar-lhe as feridas, do mesmo modo que ela curara as suas. O pedreiro queria que ela lhe dissesse como poderia fazê-lo; queria que ela lhe dissesse o que desejava para se sentir feliz. — Garvan olhou para Tuala, subitamente hesitante. — Pelo menos, seria o que eu faria, se tivesse o teu dom da palavra.

— Uma boa resposta, meu amigo — comentou Broichan com um ligeiro sorriso.

— Parece uma resposta honesta — disse Tuala algo surpreendida. — Tendes uma melhor, meu senhor? — Algo a tornava corajosa naquela noite, talvez a voz interior que tinha invocado de maneira tão improvável aquela história.

— Não — disse Broichan. — Pergunto simplesmente a mim próprio como é que esse tipo arranjou tempo e energia para exercer o seu ofício quando tinha a cabeça cheia de sentimentos, ansiedades e sensibilidades. Sinto-me inclinado a concordar com Mara e dizer que ele a devia ter deixado sozinha quando ainda tinha tempo. Suponho que, no fim, vamos descobrir que essa Ela estava enfeitiçada, que o pedreiro descobriu a maneira de quebrar o feitiço e que ela se transformou novamente numa mulher direita e bela. Histórias simples para pessoas simples; o padrão é sempre o mesmo.

Tuala sentiu que havia um desafio naqueles olhos e naquelas palavras cínicas.

— A Que Brilha não é previsível — disse ela. — Os seus ciclos podem ser constantes, mas é ela que comanda as marés que desperta nas mentes e nos corpos das suas criaturas. Quando Ela ouviu a resposta de Nechtan, os seus olhos encheram-se de lágrimas. O pedreiro desejou tomá-la nos braços e consolá-la, mas respeitava os limites que ela lhe pusera. Melhor ainda, Nechtan pensava desde o princípio que preferia aquele casamento estranho a perder aquela que se tornara a sua melhor amiga, o seu alívio, a alegria do seu coração. Assim, limitou-se a estender a mão, a acariciar-lhe as faces e a beijar-lhe, lavando-lhe as lágrimas.

— Naquela noite, noite de lua nova, ela deixou que ele a despisse. Fosse o que fosse que lhe revelou, não fez com que a casa desaparecesse numa nuvem de fumo, não fez com que ela e a velha Anet se desvanecessem nem fez com que o pedreiro se fosse embora. Na verdade, os que viram Nechtan nos anos que se seguiram, comentaram que ele se tornara sonhador de tanta felicidade. Quanto às imagens que esculpia, tornaram-se cada vez mais estranhas à medida que as estações se sucediam umas às outras, os touros, os javalis e os gansos substituídos por animais curiosos que não eram uma coisa nem outra e os padrões eram tão intrincados que pareciam mudar quando uma pessoa olhava para eles: espirais e labirintos sem fim nem princípio. Esta história é um pouco como aqueles padrões. Nechtan levou Ela a visitar os cisnes do Lago da Donzela e ela partilhou com ele os seus segredos mais íntimos. Os dois amantes gozaram com a alegria um do outro. É tudo o que sei, ou que decidi contar.

Silêncio de novo, que foi quebrado por um dos homens de armas num protesto:

— Chegou ao fim? — Perante o ultraje daquele fim abrupto, o homem parecia ter-se esquecido de ter cuidado com a contadora. — Mas, afinal de contas, qual era o segredo dela? Como era por baixo daquelas roupas?

— Talvez fosse bela, talvez fosse feia — disse-lhe Tuala. — A questão não é essa.

— Sem que saibamos se era uma das duas coisas, a história não pode acabar — disse Mara. — Uma história precisa de um fim, tens de explicar o segredo que ela encerra.

Tuala não comentou. Provavelmente, nenhuma daquelas pessoas tinha compreendido o sentido da história. O fato de ela não ser parecida com as outras deixava-os com um sentimento de desconforto.

— Esta história não teve nada a ver com feitiços ou beleza. — O comentário de Broichan surpreendeu Tuala; a jovem não esperava, de modo nenhum, o seu apoio. — Teve a ver com escolhas — acrescentou o druida.

— É verdade — disse Garvan. — Não precisamos de saber se Ela era uma deusa ou um monstro; o que interessa é que Nechtan demonstrou que dava valor às carências dela, tanto quanto às suas. Dessa maneira, o pedreiro conquistou a confiança dela. Era o que ele mais queria e mais precisava, claro.

— É muito possível — disse Tuala — que por baixo das roupas o seu corpo fosse tão belo como as suas mãos e o seu rosto. Ela pô-lo à prova e ele passou.

— Que lição é que devemos tirar da história? — perguntou Broichan, nunca se esquecendo daquilo que era.

Tuala respirou fundo.

— A lição a tirar é que A Que Brilha espera que as suas filhas tenham a liberdade de poder escolher. Felizmente, Nechtan compreendeu-o e foi recompensado. Tal como Ela, eu sou filha dela e tenho de poder escolher livremente. Estou aqui sentada esta noite a contar a minha história porque é o que esperam de mim; é assim que demonstro a minha gratidão pela lareira e pelo lar que me foram dados. Contar uma história é uma coisa, mandarem-me embora porque a minha presença se tornou incômoda é outra. — A sua voz tremeu; se era de raiva ou de súbito terror, a jovem não sabia. — Desejo-vos boa noite; não quero interromper por mais tempo a vossa reunião. Que A Que Brilha ilumine os vossos sonhos. — A jovem virou-se para Garvan. — Destes boas respostas — disse ela. Aquele cumprimento era justo; o pedreiro surpreendera-a com a sua inteligência. Era uma pena ela não ter o menor desejo de casar com ele.

— Boa noite, Tuala — disse Broichan. A jovem não fazia idéia do que o druida pensava daquilo tudo.

Naquela noite, a jovem lutou contra o sono, consciente de que os sonhos lhe trariam novamente aquela visão sombria de Bridei a cair, a morrer, as suas feições queridas desfiguradas por uma dor indescritível. Tinha de confiar em Broichan. O druida evitaria a sua morte, parecera-lhe seguro de que enviaria um aviso a tempo. Tinha de acreditar que seria assim. As imagens do Espelho Negro podiam ser mudadas quando o que mostravam pertencia ao futuro; um homem ou uma mulher podia provocar a mudança. Tinha de ser assim porque já lhe tinham mostrado um futuro no qual Bridei casava com uma mulher de cabelos ruivos e tinha um filho e um outro no qual a sua vida era cruelmente curta. Talvez aquelas visões fossem uma espécie de escolha. A sua escolha. Se queria que ele vivesse, tinha de aceitar o seu atestamento. A deusa estaria a dizer-lhe que o devia deixar ir?

Tuala tinha lágrimas nos olhos. Também havia mais qualquer coisa, uma coisa que ficara no seu íntimo no dia em que se despedira de Bridei. Quando os dedos dele lhe tocaram naquele dia, ela soube, sem se aperceber verdadeiramente, que o que havia entre ambos tinha mudado para sempre. Tuala sentou-se na cama e colocou os braços em redor dos joelhos, na escuridão. Garvan era bom homem, parecia amável, cortês, atencioso, mas não podia casar com ele. A jovem amara Bridei desde o princípio como irmão, melhor amigo, companheiro inteligente, de tal modo que o jovem lhe parecera sempre uma parte de si mesma. Agora, porém, amava-o como uma rapariga ama um rapaz, como Nechtan amava Ela, com o coração, com o sangue a ferver nas veias, com angústia, lágrimas e alegria. No fim de contas, estava certo. Tuala tinha mudado e, ao mudar, o seu mundo mudara com ela.


CAPÍTULO NOVE


Na manhã seguinte, Broichan mandou chamá-la. Garvan já se tinha ido embora; Tuala ouviu Mara dizer a Ferat que a partida precipitada do pedreiro era, sem dúvida, uma resposta à história que ouvira na noite anterior e ao olhar no rosto da contadora.

— Porque era visível — disse Mara num murmúrio — aquela sedução do Outro Mundo, o perigo. Nunca imaginei que a miúda fosse contar aquela história. Devias ter visto os olhares dos homens. E eu a pensar que ela é tão inocente como outra rapariga qualquer da mesma idade.

No entanto, quando Tuala chegou ao quarto de Broichan e se colocou na sua frente com as mãos atrás das costas e o coração a bater, não foi para receber uma reprimenda por ter afastado o pretendente ou um castigo por tentar seduzir os homens de armas com a sua história.

— Garvan pediu para falar contigo em particular. — Broichan estava no seu lugar habitual, de costas para a lareira. Esta estava apagada e o quarto estava cheio de pequenas correntes de ar. A figura alta do druida estava vestida de escuro; os seus olhos estavam fixos em Tuala, tão intensos como os de um falcão. — Recusei o pedido dele; não me pareceu apropriado. Não te queres casar com ele, ou não te queres casar, muito simplesmente?

Tuala engoliu em seco.

— É muito cedo — conseguiu ela dizer. — Não me sinto pronta para o casamento.

— Tu já estás em idade de casar, Tuala — disse Broichan. Na tua idade, já muitas raparigas têm a aliança no dedo e são mães um ano depois de casarem. Talvez precises de mais explicações, de mais confiança... Podias falar com Mara sobre o assunto. Por outro lado, da história notável que decidiste contar ao meu hóspede sugere... — Os modos do druida tornaram-se tímidos, como se o tópico o ultrapassasse.

— Eu sei o que é partilhar a cama com um homem — disse Tuala rudemente. — Não se cresce numa herdade sem se aprender uma série de coisas básicas. Meu senhor, eu não me quero casar com Garvan nem com outro homem qualquer. Se vos desagrado, lamento. Destes-me um lar e sei que estou em dívida para convosco. Sei que não queríeis que eu tivesse vindo. Não me esqueci do que dissestes há muito tempo acerca de o meu lugar em Pitnochie depender unicamente de vós, mas quero ficar, tenho de ficar. Tenho de estar aqui quando Bridei regressar a casa.

— Não podes ficar — disse Broichan. — Já não és bem-vinda entre o meu povo. A mudança aconteceu sem que eu pudesse fazer fosse o que fosse. Agora, eu próprio me vou mudar; na verdade, devo fazê-lo o mais depressa possível a bem de Bridei. E tu tens de te ir embora.

— Para onde? — Tuala cerrou os punhos atrás das costas e tentou manter a voz calma. Durante um momento, a raiva foi mais forte do que o medo. — Arranjastes outro pretendente?

— Não preciso. Garvan ficou preocupado com a hipótese de tu teres interpretado mal as razões da sua súbita partida. Ele disse-me que a oferta mantém-se e que tu é que tens de decidir: um ano ou dois, se for preciso. Garvan é um homem extraordinariamente generoso; generoso até à loucura, dirão alguns. Ele pediu-me que te dissesse que não quer nenhum dote e que não prometeu nada em troca da tua mão; o que tu disseste sobre “seres vendida” não tem fundamento. Garvan quis que soubesses.

— Estou a ver.

— A escolha, portanto, é tua. Ontem à noite pareceu-me sentir uma certa ligação entre ti e Garvan, quanto mais não seja pela tua interpretação da história. — Broichan olhou para ela de sobrancelhas erguidas; parecia que estava à espera de um comentário.

— Eu não me quero casar. — Tuala sentiu um frio gelado a percorrê-la. — Não quero ir-me embora daqui.

— Não tens escolha. Quer consideres a hipótese deste casamento no futuro, quer não, não poderás ficar em Pitnochie. No entanto, tens outra opção, uma opção que se tornou possível com a chegada de um mensageiro de Fonte do Corvo esta manhã.

— De Fonte do Corvo? Qual é a mensagem? Bridei está bem?

— Não diz respeito a Bridei — disse Broichan — mas podemos presumir, pela falta de notícias, que ele está bem. O mensageiro trouxe um pedido para que Pitnochi providencie hospedagem a lady Dreseida e à sua família durante uma noite ou duas, que estão em viagem para a corte de Drust, onde vão ficar até que o conflito termine. A dama vem assim que o tempo o permitir. Quando ela chegar eu já terei partido, mas Mara trata de tudo.

Lady Dreseida e respectiva família. A Rapariga Raposa. E Broichan partindo à pressa para a corte depois de tanto tempo... O druida devia estar preocupado com a segurança de Bridei, não apenas com a guerra e com as consequências da sua visão, mas também com os acontecimentos posteriores. Tuala esperou pelo que se seguiria.

— A ocasião permite que possas ter uma boa escolta — disse Broichan — o que quer dizer que podemos, se necessário, seguir o outro caminho que se abre para ti. Não é o meu preferido e a história que contaste ontem à noite aumentou as minhas dúvidas.

— Que caminho?

— Há muito tempo, Fola, a Mulher Sábia, disse que tinha um lugar para ti no seu estabelecimento de Banmarren quando atingisses uma determinada idade. Ela queria que os teus primeiros anos de ensino fossem ministrados aqui; o que Erip e Wid te podiam ensinar era superior à educação que a maioria das raparigas de boas famílias recebe. Talvez não te tenhas apercebido de como foste privilegiada nesse aspecto.

— Eu sei que estou em dívida para com eles.

— Banmerren fica na costa norte, na baía, perto de Caer Pridne — disse Broichan. — O estabelecimento é isolado, de acordo com a natureza do ensino que ministra. Compete a Fola e aos seus tutores decidir se uma jovem com as tuas origens pode desempenhar os deveres sagrados de uma serva da Que Brilha. Uma vez aceita, não precisas de regressar a Pitnochie. E não precisas de te casar, claro. As condições devem agradar-te.

Tuala ficou confusa, sem saber o que dizer.

— Não mencionei isto antes porque — disse o druida — porque tinha dúvidas, dúvidas sérias. Fola é uma amiga cuja sabedoria eu tenho em grande conta. No entanto, receio que possas ser... explorada, os teus talentos e capacidades, aliados à tua educação pouco usual, não te vão arranjar amigas. Além disso, transportas contigo um perigo: se esses teus talentos não forem guiados convenientemente e com rigor, podes provocar estragos.

Para além do sentimento de perda iminente, Tuala sentiu-se ultrajada. As palavras subiram-lhe à boca: Nesse caso, por que não me ensinaste? Quem melhor para me treinar nos mistérios do que o druida do rei? A jovem engoliu-as. Era demasiado tarde.

— Talvez não te tenhas apercebido do impacto que a tua história de ontem à noite provocou — disse Broichan. — Eu acho que não te apercebes de muitas coisas, Tuala. A tua vinda para o mundo dos mortais foi uma coisa muito pouco sensata.

— Tenho mesmo que ir embora? Não posso ficar aqui e...? — E o quê? Ficar e pôr-se debaixo dos pés de Mara? Ficar e aterrorizar os homens todos de Pitnochie apenas por existir? Tuala recordou-se de uma coisa: uma rapariga pequena e solitária confessando-se a uma anciã pouco maior do que ela, uma criança com uma esperança desesperada na voz: Eu quero aprender, mas eles não me deixam. Depois, a dádiva inesperada das aulas de Erip e de Wid. Parecia que o plano a longo prazo de Fola era igual ao de Broichan.

— Na minha opinião, farias melhor se casasses com Garvan — disse Broichan. — A sua proteção assegurar-te-á um lar, no qual serás sempre bem recebida. A sua influência conseguir-te-á respeito e segurança. Noutro lado, penso que sofrerás o mesmo que sofres agora em Pitnochie.

— Quando é que eles chegam? — perguntou Tuala com a voz entrecortada. — Lady Dreseida e os outros? E quando é que eu parto?

Broichan suspirou.

— Quando o tempo estiver bom — disse ele. — Virão de barco pelos lagos acima, com homens para os transportar quando não puderem navegar. Se a tua escolha for essa, é bom que comeces a tratar de tudo. Mara sabe o que é preciso.

— Não me parece que possa fazer outra coisa — disse Tuala, sentindo uma dor no peito. — Não posso, sequer, ficar até ao Verão?

— Seria uma loucura não aproveitares a escolta dos guardas de Dreseida. A filha dela também vai para o estabelecimento de Fola; para além de treinarem raparigas para sacerdotisas, na escola de Fola também educam as raparigas das famílias nobres. Não devemos perder a ocasião. Não posso prescindir de nenhum dos meus homens. Quanto a mim, vou partir imediatamente porque preciso de falar urgentemente com Drust e não sigo as vias dos homens normais.

Aconteceu mais cedo do que ela esperava: um longo período de tempo seco e a chegada de quatro barcos com a dama Dreseida, a sua filha de cabelos ruivos e dois rapazes pequenos muito barulhentos, juntamente com uma montanha em miniatura de bagagem e uma corte de guardas de feições severas. A presença de lady Dreseida pareceu encher a casa; até Mara se encolheu perante o seu olhar penetrante. Se Broichan ainda estivesse em Pitnochie, talvez as coisas tivessem sido diferentes, mas como não estava, Tuala retirou-se para dentro de si mesma. A jovem respondia às perguntas com murmúrios e em breve fugia para os bosques quando achava que se aproximava uma nova inquisição. Os pequenos Uric e Bedo, apesar dos gritos e das correrias, eram mais fáceis de tolerar do que as mulheres da família de Talorgen. Quando os rapazes faziam perguntas, faziam-no por simples curiosidade.

— É verdade que foste encontrada por baixo de um pilriteiro? perguntou Bedo.

— Não. Fui deixada à entrada da porta, abandonada.

— És muito branca, mais branca do que tu nunca vi.

— Sou assim.

— Ferada diz — disse Uric, baixando a voz — que tu não és humana. Ela diz que tu és filha dos tu-sabes-quem.

— Sou uma rapariga normal — disse-lhe Tuala. — Faço as coisas que as raparigas normais fazem.

Uma pausa.

— Bridei nunca nos disse que tinha uma irmã. — O tom de Bedo era ligeiramente acusador.

— Eu não sou irmã dele. Simplesmente, crescemos juntos. Somos amigos. — Uma palavra tão pequena como aquela, amigos, não parecia adequada como explicação, mas o pequeno pareceu aceitar a resposta.

— A mãe diz que vais para Caer Pridne conosco.

— É verdade. Não vou para Caer Pridne, vou para a escola de mulheres sábias.

— E o que vais ser, uma Mulher Sábia?

Um sopro de ar frio passou por Tuala; a jovem recordou a visão que tanto a perturbara, ela própria vestida de cinzento, uma estranha, enquanto Bridei sorria para a sua mulher e segurava o filho pela mão.

— Não sei — disse ela.

— Sabes fazer magia? Feitiços e essas coisas?

A resposta ideal para aquela pergunta era uma negativa, pura e simples, mas Tuala achou que não lhes podia mentir.

— Depende daquilo a que vós chamais magia — disse ela.

— Se quisesses, eras capaz de me transformar noutra coisa qualquer? Num tritão ou num sapo?

— Não tenho a certeza — disse Tuala, atrapalhada. — Queres que tente?

O terror apareceu no pequeno rosto de Bedo; o jovem ficara branco como a cal.

— Ela está a brincar, parvo. — O tom de Uric sugeria que o rapaz não estava totalmente convencido das suas palavras.

— Talvez noutra ocasião — disse Tuala.

— Aquele gato é teu? — perguntou Uric, olhando para onde Mist se estava a lavar junto da lenha empilhada; era uma boa oportunidade para mudar de assunto. — Ele morde?

Bedo segredou qualquer coisa ao ouvido do irmão.

— É verdade? — perguntou Uric. — É teu familiar?

Subitamente, Bedo corou e desviou o olhar.

— Tal como eu — disse Tuala — Mist é um gato perfeitamente normal, não se importa de ser acariciado desde que gentilmente. Oh, Mist; outro amigo que ficaria para trás. A memória de Tuala era boa. A jovem não se esquecera de algo que Fola lhe dissera quando lhe dera o gatito: Mist não tolerava intrusos. O animal ficaria melhor ali no seu território com os ratos para se alimentar. Porém, dormir à noite sem o seu calor, a certeza de que não estava só, seria mais difícil de suportar.

Tuala tinha planejado para si própria uma tarefa para aquela última noite em Pitnochie, noite de lua cheia, algo que tinha de fazer já que não estaria presente quando Bridei regressasse. Infelizmente, os rapazes tinham sido instalados no velho quarto de Bridei e na mesma cama estreita, o que tornava a coisa mais difícil. A jovem não queria atrair as atenções. Dreseida intimidava-a; os olhares penetrantes de Ferada e os seus comentários alarmavam-na e irritavam-na. O porte altivo das suas cabeças, os seus vestidos imaculados e os cabelos perfeitamente penteados pareciam fazer troça das suas roupas simples e ar desalinhado. Por mais que penteasse os cabelos, havia sempre caracóis por cima das orelhas ou em frente dos olhos. Tuala tinha fitas a mais na algibeira em caso de necessidade. Talvez os rapazes tivessem razão; talvez tivesse um ar selvagem, por mais que tentasse parecer o contrário. Talvez nunca deixasse de ser um dos Outros.

Tinha de fazer um encantamento naquela noite, sob o olhar da Que Brilha. A jovem planejara entrar no quarto de Bridei enquanto todos dormiam e realizar o ritual como parte de uma longa noite de vigília. Agora, era impossível. No entanto, pensou Tuala, as crianças adormeciam profundamente depois de um dia de grande atividade. A parte mais vital ainda podia ser feita se tivesse cuidado.

Tuala esperou no seu quarto, à escuta, enquanto soava pela casa a sequência normal de sons noturnos. As vozes chegavam-lhe do salão, os guardas de lady Dreseida contavam histórias à lareira com os homens de Broichan que tinham ficado para proteger Pitnochie enquanto os restantes se tinham juntado ao exército de Talorgen. A dama e a sua filha também deviam estar no salão, mas os rapazes já deviam estar deitados. Tuala ouvira as suas vozes no quarto de Bridei. Naquele momento, porém, já não as ouvia, os rapazes deviam ter adormecido. Na cozinha, os ajudantes de Ferat lavavam os tachos e os pratos do jantar. A voz resmungona do cozinheiro acompanhava o ruído. Era cada vez mais difícil recordar-se de Ferat como o homem que ensinara uma pequena rapariga a fazer coelhos, sapos e pequenos homens com bocados de pão e que andara com ela à roda, segurando-a com os seus braços fortes e fazendo-a gritar de excitação; o homem que a ouvira com orgulho recitar o primeiro poema de cor e se rira das suas piadas inocentes.

O ranger da porta do alojamento dos homens; botas a passar. Pouco depois, homens a ressonar. Os homens trabalhavam muito. As visitantes caminhavam como as damas que eram, com passos suaves, a caminho do quarto cedido por Mara; enquanto ali estivessem, a governanta dormiria no quarto de Broichan. Aquilo impressionara Tuala; uma tal perspectiva parecia-lhe extremamente alarmante. O druida não se manifestaria através de uma sombra de si próprio, com os seus olhos penetrantes e palavras acusatórias? E se as coisas no interior dos frascos começassem a mexer-se durante a noite? O fato de Broichan estar em Caer Pridne não fazia qualquer diferença.

A cozinha já estava silenciosa. Ferat e os seus ajudantes tinham acabado e tinham ido deitar-se. Os passos lentos e pesados de Mara ouviram-se a atravessar o salão. Ouviu-se um leve crepitar: a governanta estava a apagar a lareira. Mais passos. Mara a caminho da cozinha para ver se a da cozinha também estava apagada. A governanta devia estar a olhar para tudo com os seus olhos de águia, em busca de sinais de desordem — poeira nas lajes do solo, uma colher fora do lugar, uma capa caída no chão. Em seguida, ouviu-se o som metálico do ferrolho maciço a ser colocado no seu lugar, cerrando a porta até os guardas da noite chegarem na manhã seguinte para tomarem o pequeno-almoço. Os passos de Mara ouviram-se de novo em sentido contrário, fizeram uma pausa no salão — em que estaria ela a pensar? Estaria a imaginar Broichan na corte do rei? — e dirigiram-se para o quarto do druida. A porta abriu-se e fechou-se. Silêncio total, salvo o ronronar de Mist, enroscado no cobertor áspero, junto dos joelhos de Tuala.

Depois, mais um período de espera. Não havia o perigo de adormecer; a importância do que havia a fazer era demasiado grande. Tuala ensaiou tudo mentalmente até ter a certeza de que estavam todos a dormir, imersos nos seus sonhos. Então, a jovem vestiu a sua saia e a sua túnica preferidas, um traje leve de lã com uma orla bordada a azul que tinha pertencido a Brenna e que lhe ficava um pouco grande, mas que era a sua primeira roupa de mulher a sério, um presente da sua ama antes de Fidich a ter proibido de aparecer na cabana. A jovem sabia que Brenna tinha passado muito tempo, um tempo precioso, a alterar a saia e a túnica para que lhe ficassem melhor. As roupas cheiravam levemente a alfazema; Brenna mostrara-lhe como colocar ervas secas no meio da roupa para a manter a cheirar bem e apesar de a jovem não ser muito arrumada, nunca se esquecia de ter sempre algumas folhas na arca. O aroma fê-la sentir-se mais perto da floresta, mais perto do mundo selvagem das plantas e dos animais, um mundo muito mais seguro do que o dos homens. Tuala deixou os cabelos livres, limitando-se a penteá-los e a deixá-los cair pelas costas abaixo, uma cascata negra que lhe chegava à cintura. A jovem tirou os chinelos. Os pés descalços faziam menos barulho. Ao pescoço colocou o disco lunar que usava sempre e sentiu-o quente contra a pele. Tuala saiu do seu quarto sem um som e encaminhou-se na ponta dos pés para a porta do pequeno quarto de Bridei.

Esta estava aberta; talvez os rapazes tivessem medo do escuro e precisassem da luz das candeias que ardiam no corredor para lhes vigiar o sono. Tuala passou pela abertura e entrou no quarto. Os dois rapazes dormiam. Uric estava enrolado no seu cobertor com as pernas encolhidas, os braços cruzados no peito e a cabeça enterrada na almofada.

Bedo ocupava o seu espaço e metade do do irmão. O seu cobertor estava no chão. Tuala pegou nele e cobriu-o. O rapaz não se mexeu. Os raios pálidos da Que Brilha entravam pela janela minúscula; a deusa encaminhava-se para a mancha de céu escuro que se avistava através da abertura e, quando ela aparecesse na sua totalidade, Tuala tinha de ter tudo pronto. As oferendas de Bridei continuavam no peitoril, mas Tuala viu que alguém lhes tinha mexido. Os rapazes são criaturas curiosas e aqueles dois tinham examinado, sem dúvida, a pena de águia e tinham brincado com as pedras brancas. Não tinha importância; o toque de uma criança inocente não faz mal às coisas sagradas. Tuala colocou os talismãs como Bridei os deixara e depois, metendo a mão no pequeno saco que trouxera, começou a acrescentar os seus, cada um com umas palavras especiais. Um graveto carbonizado, branco numa das pontas e cor de carvão na outra:

— Chama que se inflama, chama que renasce Livro de Fortriu, o escolhido...

Uma pena, não uma pena de águia flamante, mas sim uma pena suave, branca, de coruja, uma ave invernal:

— Sopro da promessa, asas da vida Báculo antigo, banido...

Tuala tirou um pequeno frasco tapado do saco, desrolhou-o e borrifou o peitoril da janela uma, duas, três vezes.

— Floresce, dá, sutil, livre Limpa e faz toda a gente honesta...

Finalmente, um punhado de terra rica e escura, tirada do chão da floresta. A jovem colocou-o gentilmente ao lado dos outros talismãs.

— Anciãos que te seguram fortemente Clothedin spiritpure and bríght; o povo vê a luz ...

A Que Brilha deslizava no céu lentamente, aproximando-se da janela, emoldurada pelo velho rebordo de pedra, deixando que a sua luz caísse sobre as oferendas e sobre o rosto pálido de Tuala, que olhava para ela enquanto murmurava os seus encantamentos. Seguiu-se a parte mais importante, a parte que a jovem tinha de dizer antes que se fosse embora de Pitnochie para sempre. A deusa tinha de compreender como aquilo era crucial. Se Tuala não estivesse ali à espera de Bridei, alguém teria de estar; alguém que o ouvisse, que o vigiasse, que o amasse pelo que ele era e não por aquilo em que se tornara. Sem ninguém que o vigiasse, o fardo tornar-se-ia demasiado pesado. Tuala sabia-o no fundo do seu coração; não precisava de procurar quaisquer visões na água.

A sua mão entrou novamente no pequeno saco e tirou o último objeto: a história dela própria e de Bridei por concluir, os tempos juntos, os tempos separados, os reencontros alegres e as despedidas terríveis. Se tivesse os poderes da deusa, pensou Tuala amargamente, entrançaria os dois fios, mantendo-os assim indivisíveis para sempre. Porém, a jovem não era um ser sobrenatural. Por mais filha da floresta que fosse, os poderes que possuía não passavam de uma habilidade para fazer magia caseira, o gênero de magia que qualquer um podia fazer se se concentrasse devidamente, pequenos feitiços de eficácia e perigo limitados. Tuala nunca seria capaz de transformar uma criança num tritão, mesmo que quisesse e não podia proteger Bridei de um futuro de solidão, dificuldades e escolhas terríveis se fosse afastada dele para sempre. A Que Brilha, porém, podia e Tuala considerava-se filha da Lua, das sombras do Inverno, da neve sob os carvalhos, do gelo cintilante sob a luz fria e dos ramos nus dos vidoeiros sob o céu nocturno. Portanto, a oração mais solene tinha de ser dita enquanto a deusa punha os olhos na sua filha pequena e pálida; enquanto A Que Brilha virava o seu olhar imparcial para o que se passava no lado de dentro da pequena janela. Enrolando o fio nas mãos, Tuala murmurou as palavras.

— Escuta-me, Mãe Resplandecente, escuta a tua filha. Invoco o teu poder, o teu amor, a tua pureza brilhante. Através de ti invoco a Guardiã das Chamas, símbolo da verdadeira coragem e invoco a bela Todas as Flores, que lança o seu olhar gentil sobre tudo o que vive e respira na terra. Por teu intermédio invoco a Mãe de Tudo, guardiã das histórias antigas, guardiã da tradição dos Priteni desde os tempos antes dos tempos.

A Lua olhava para ela, silenciosa. O único som que se ouvia no pequeno quarto era a respiração fraca dos dois rapazes adormecidos.

— Não peço nada para mim. Se é teu desejo que eu abandone este lugar e te sirva como Mulher Sábia, assim seja. A tua vontade não tem discussão. É para Bridei que peço a tua ajuda. Tu conheces o destino que o espera e eu vejo nele caminhos capazes de enlouquecer o mais sensato dos homens, traições que lhe despedaçarão o coração, perigos em cada esquina e uma solidão capaz de gelar o mais caloroso dos corações. Sem mim, quem o aconselhará? Sem mim, como poderá ele chorar? Só, o seu fardo será demasiado pesado. Nenhum líder pode carregar um fardo tão pesado. Porém, ele tem de o carregar e eu tenho de me ir embora. Já não tenho lar.

A Que Brilha começava a afastar-se da janela, prosseguindo a sua jornada.

— Peço-te, por isso — disse Tuala, lavada em lágrimas — que tomes este encargo nas tuas mãos, Grande Deusa, Mãe Resplandecente, iluminadora de todos nós. Sabes que ele vai ser rei; sabes a força que ele tem e também sabes aquilo a que se pode chamar uma fraqueza. Bridei está sempre pronto a compreender a mente e o coração do seu adversário, tem um espírito aberto que o fará hesitar até no momento de deixar cair a espada da justiça. Ampara-o, Dama Brilhante; consola-o no escuro da noite, quando o seu coração se sentir inseguro. Quando a sua mente estiver ensombrada pela dúvida, embala-o nos teus braços e dá-lhe descanso. Peço-te em nome de todos os deuses, em nome de tudo o que é sagrado...

No seu cinto, Tuala tinha uma pequena faca; pousando o fio, a jovem pegou na arma e ergueu-a para cortar uma madeixa espessa de cabelos negros, deixando uma clareira na fronte. Faltava apenas uma parte e depois, se o ritual tivesse sido celebrado na perfeição, A Que Brilha dar-lhe-ia um sinal e ela saberia, por mais triste que se sentisse e por mais gelado que estivesse o seu coração, que Bridei ficaria sob a proteção da deusa. A jovem ergueu ambas as mãos e respirou fundo para o encantamento final.

— Que estás a fazer?

Tuala virou-se com os braços ainda estendidos. A rapariga que estava atrás dela abriu muito os olhos e estremeceu. A faca estava apontada na direção do seu peito. Tuala engoliu em seco e baixou os braços.

Ferada aproximou-se da cama em duas passadas, qual espírito de vingança com os pés metidos nuns chinelos leves e vestida com um roupão bordado, os cabelos ruivos pelas costas abaixo.

— Diz-me! — sibilou ela. — Que estás a fazer no quarto dos meus irmãos? Por que tens essa faca na mão?

Tuala não conseguia controlar as batidas do seu coração nem a respiração. A Que Brilha já se tinha afastado da janela e o ritual ainda não tinha chegado ao fim. A jovem tentou mandar mentalmente a Rapariga Raposa embora: Vai-te embora, depressa, para eu poder acabar e salvá-lo, mas a rapariga de cabelos ruivos ficou ali na sua frente com a boca cerrada e os olhos brilhantes de desconfiança.

— Então? — exigiu Ferada. — Fala.

— Eu não quero fazer mal aos teus irmãos. — Tuala não conseguia manter a voz firme. — Além disso, este quarto não é deles, é de Bridei. Esta casa é minha, não é tua. Posso ir onde muito bem me apetecer.

Os lábios de Ferada curvaram-se num pequeno sorriso gelado.

— A minha mãe não vai ficar impressionada com esses argumentos quando eu lhe disser que te encontrei aqui a meio da noite com uma faca na mão — disse ela. — Se queres que ela te inclua na nossa comitiva quando regressarmos a Caer Pridne, e eu devo dizer que a idéia não a entusiasma nada, tens de fazer melhor do que isso.

A Lua estava a sair do campo de visão de Tuala; faltava muito pouco tempo.

— Por favor — disse Tuala por entre os dentes. — Por favor, deixa-me acabar. Podes ficar a ver; verás que não estou a fazer nada de mal. Tenho de fazer isto agora, enquanto a Lua está a olhar pela janela. Tenho de fazer isto antes de me mandarem embora.

Algo no seu tom de voz fez com que a expressão de Ferada mudasse, se bem que os seus olhos continuassem desconfiados. A rapariga de cabelos ruivos aproximou-se da cama onde dormiam os seus dois irmãos.

— Continua, então — disse ela secamente.

Era difícil recomeçar o ritual; difícil acalmar o coração enfurecido, engolir as lágrimas, abrandar a respiração. Aquilo tinha de ser feito como devia ser, ou não funcionaria. Bridei sempre frisara a importância dos rituais; o imenso privilégio que era fazer com que os deuses ouvissem e vissem.

— Ofereço este talismã de mim mesma — disse Tuala, colocando a brilhante madeixa no peitoril, ao lado dos outros objetos. — O resto deixo ao cuidado do fogo. Que a Guardiã das Chamas, protetora dos guerreiros, conheça também a minha total lealdade. E ofereço isto. — Um corte rápido com a lâmina na palma da mão direita, rápido, antes de poder pensar duas vezes — Ferada deixou sair um pequeno grito de sobressalto — e a jovem deixou que o sangue caísse sobre os talismãs colocados em cima do peitoril. — Deste modo, demonstro a minha reverência pelos antepassados, que durará enquanto o sangue me correr nas veias, enquanto o ar passar pelo meu corpo, enquanto os meus pés andarem pelo mundo dos homens; enquanto o meu coração souber distinguir a verdade.

A Que Brilha tinha desaparecido quase por completo; uma mera lasca da sua forma encantadora na janela, se bem que a sua luz pudesse ser vista nas formas despidas dos vidoeiros.

— Tu sabes que ele é sábio, forte e bom — murmurou Tuala — mas também é humano, assaltado por medos, atormentado por dúvidas, aberto à tristeza mais profunda. Peço-te, já que não posso estar junto dele para o ajudar, que não o deixes enfrentar os tempos sombrios que se aproximam sem um amigo verdadeiro. Peço-to em nome dos laços que nos unem e que tu criaste, Mãe de Tudo...

A jovem podia ter dito mais, mas a presença de Ferada tornava-o impossível. Na verdade, dizer mais teria sido, não só perturbador, como perigoso. Tuala meteu a faca no cinto e agarrou no pequeno saco, tentando deter a hemorragia. A jovem fez uma vênia à Lua que se afastava do seu campo de visão; então, as coisas começaram a ficar enevoadas e Tuala sentou-se subitamente aos pés da cama. Os dois rapazes continuavam a dormir, imperturbáveis.

— Que os antepassados nos protejam! — exclamou Ferada em voz baixa, ajoelhando-se ao lado dela. — Não estava nada à espera disto. Deixa-me ver a tua mão — precisa de um unguento e de uma ligadura...

— Não é nada. — As feições agudas de Ferada iam e vinham; Tuala tinha um zumbido na cabeça. — Estou bem e o que eu estava a fazer acabou. Podes ir-te embora.

Ferada ergueu as sobrancelhas bem desenhadas.

— Não me pareces nada bem. Além disso, não te vou deixar aqui com Uric e Bedo. Anda comigo, eu arranjo-te uma ligadura, a mãe tem algumas...

— Não! Não acordes ninguém. Eu estou bem, vou-me deitar... — Tuala pôs-se de pé, mas as tonturas regressaram e as paredes começaram a andar à roda. A jovem vacilou.

— Rapariga estúpida — disse Ferada. — Onde é o teu quarto? As duas jovens chegaram rapidamente aos aposentos de Tuala. Esta não tencionava deixar a Rapariga Raposa entrar na única parte da casa de Broichan que lhe pertencia, nem naquela noite nem nunca.

— Obrigada — disse ela, o mais firmemente que conseguiu. Boa noite.

— Nem pensar. — Ferada tinha afastado a cortina que fazia de Porta daquele pequeno espaço e olhava para o interior escuro. — Não consegues tratar sozinha desse ferimento. Além disso, tenho umas perguntas a fazer-te.

— Eu não preciso de ti e não te quero junto de mim. — A dor na mão e as tonturas tornavam Tuala mais rude do que desejaria, mas também a percepção de que A Que Brilha não lhe dera um sinal, um reconhecimento de que ouvira as suas preces e aceitara as oferendas. A interrupção da Rapariga Raposa tinha provavelmente, arruinado o ritual. A deusa ficara zangada e poria Bridei e ela própria à deriva, à parte, sem amigos.

— Paciência — disse Ferada, pegando numa candeia que ardia em cima de uma prateleira de pedra perto da porta e entrando com ela no quarto da jovem. — Por todos os antepassados! Eu pensava que o quarto de Bridei era pequeno, mas este parece mais um armário. Que estranho. Não olhes para mim com esses olhos. Sabes muito bem que, se eu contar à minha mãe o que vi, ela recusar-se-á a levar-te para Banmerren, mas, se calhar, é o que tu queres. Talvez não queiras ir.

As sobrancelhas arquearam-se outra vez; à luz da candeia, os olhos de Ferada eram intensos.

— Não tens nada com isso — disse Tuala, consciente de que não conseguiria vencer uma guerra de palavras com aquela jovem confiante. Quantos anos teria a Rapariga Raposa — quinze, dezasseis? Não devia ser mais velha do que ela, porém estava a mundos de distância.

— É aqui, não é? — perguntou Ferada. — Onde guardas as roupas... aqui? — A jovem abriu a arca de Tuala.

— Tu não queres ir mesmo para a escola de Fola, apesar de ser a única hipótese de fugir ao casamento e vires a ser alguém. Preferes apodrecer em casa de Broichan enquanto esperas pelo regresso do teu irmão. Não acredito. — Sempre a falar, Ferada encontrou um pedaço de pano, tirou a faca do cinto de uma Tuala muda, cortou um bocado e começou a tratar do ferimento com dedos ágeis. — Tens alguma pomada? Ótimo, aqui... só um pouco. Agora, basta ligar. Não sei se sabes, mas há centenas de raparigas que eram capazes de matar para conseguirem um lugar em Banmerren! Fola não aceita uma qualquer.

Tuala sentiu-se tentada a responder. Ela aceitou-te a ti, não aceitou. Porém, não valia a pena. Além do mais, a mãe de Ferada era prima do rei. De acordo com as lições de genealogia de Erip, Tuala estava consciente dos privilégios e responsabilidades de um tal parentesco.

— Se não for, tenho de me casar — disse ela calmamente. Ir para Banmerren é melhor do que casar com um homem que não ame.

— Amor? — troçou Ferada. — O amor não tem nada a ver com casamento. Se fosse a ti, dava-me por feliz por o meu pretendente ter cabeça, tronco e membros. A minha mãe diz que os homens podem ser moldados. O amor é coisa das histórias. Não tem nada a ver contigo, comigo ou com a maioria das raparigas de Fortriu. O melhor que nos pode acontecer é conseguirmos assumir algum controle. — Por breve momento, Ferada pareceu diferente, como se o exterior intimidante e competente albergasse uma rapariga inteiramente diferente.

— Eu queria escolher — disse Tuala. — Mas quem escolheu foi Broichan. — Aquilo não era exatamente verdade, mas não lhe podia dizer.

— Por quem estavas a rezar? — perguntou Ferada. — Pelo teu irmão?

Tuala não respondeu.

— Penso que ele não precisa dessa devoção toda — disse secamente Ferada. — Sempre me pareceu muito capaz. Tem falta de humor e é um pouco bronco, talvez, mas é capaz. Se fosse a ti, deixava de me preocupar com ele e continuava com a minha vida. Sê realista, Tuala. Banmerra é uma grande oportunidade para ti. Quer dizer, para onde há de ir senão para lá?

O fato de aquilo ser verdade não melhorava o seu estado de espírito.

— É engraçado — continuou Ferada. — Bridei nunca fala de ti. Só soube da tua existência por Gartnait. Creio que estás a perder o teu tempo.

Tuala esperou um pouco, respirou fundo e só depois é que respondeu.

— Gostava de me deitar — disse ela polidamente — se não te importas. Obrigada por me teres ligado a mão. Agradecia-te que não dissesses nada a lady Dreseida. Ele não falou em mim porque o que existe entre nós é especial, precioso, não é para ser partilhado por ninguém.

Ferada olhou para ela de perto com os olhos semicerrados, como se estivesse a tentar resolver um quebra-cabeças.

— Hum — disse ela. — Ela vai acabar por saber quando os rapazes tiverem de explicar aquela confusão de cabelos e de sangue no peitoril da janela.

— Não te estou a pedir que mintas — disse Tuala.

— Veremos — disse Ferada. — Sabes, isto pode tornar-se interessante. Começo a pensar que mandar-te para Banmerren é um pouco como meter um gato abandonado numa gaiola com uma matilha de cães selvagens.

— Os gatos têm garras.

— A sério? Havia de ser lindo. Penso que é melhor a mãe não saber disto. Pelo menos por agora.

Tuala levou uma mão à boca para abafar um bocejo.

— Não exageres — disse Ferada. — Ficam a faltar umas respostas, mas podem esperar. Boa noite, Tuala.

— Que A Que Brilha te ilumine os sonhos. — A jovem sabia que até num momento daqueles tinha de ser cortês.

A cortina ergueu-se e caiu. O som dos passos desvaneceu-se. Tuala ficou mais uma vez só. Colocando um xale pelos ombros, a jovem sentiu a dor na mão subir-lhe pelo braço acima, ao mesmo tempo que as lágrimas lhe começavam a cair pela face, quentes e amargas. Mist dormia. Era impossível saber o que ia na mente do gato. As suas garras contraíam-se de vez em quando; talvez estivesse a sonhar com ratos. Quanto a Tuala, os seus pensamentos estavam fixados em algumas coisas que a Rapariga Raposa dissera, coisas que eram mentiras, mentiras horríveis. Ele não é bronco. Ele é a melhor pessoa do mundo, conta histórias maravilhosas e está sempre pronto a ouvir. Os deuses amam-no. E eu não estou preocupada com ele, estou a tratar do futuro dele... Alguém tem de o fazer e ele só me tem a mim.

Aqueles pensamentos não pareciam melhorar a situação; as lágrimas eram cada vez mais, demasiadas para as poder limpar. A jovem fez um esforço para se manter em silêncio; não podia permitir que a Rapariga Raposa, ou outra pessoa qualquer, a ouvisse a chorar. E se A Que Brilha não tivesse aceitado as oferendas? E se Bridei tivesse que cumprir o seu destino sozinho? Ele não vai estar sozinho, lembrou-lhe uma voz interna. E a visão, o Solstício de Verão em Amanhecer das Três Colinas? Ele não está só, pois não? Quem pensas que era aquela do cabelo ruivo e do vestido elegante? Uma mulher digna de um rei, mais nada.

Tuala deitou-se, fechou os olhos com força e tapou os ouvidos com as duas mãos. Porém, a voz continuou, impossível de calar, a voz insidiosa, íntima do Homem-Folha, um dos da sua raça, determinado a abrir-lhe a mente para a sua própria loucura. Era ela, não era? Muito conveniente. E se não quer saber do amor para nada, que interessa se o acha um chato? Ele vai ser rei e isso é que interessa.

Finalmente, Mist acordou, ou quase, subiu para a cama, deu três voltas e deitou-se encostado ao pescoço de Tuala. Mais tarde, extenuada por tanta tristeza e com a mão ligada em cima do pêlo suave do animal, Tuala rendeu-se ao sono.


O vento devia ter sido forte durante a noite, um vento caprichoso, em círculos. Quando Bedo olhou pela janela para ver como estava o dia, reparou que a pena de águia tinha desaparecido. O jovem ficou desapontado; tinha planejado, em segredo, metê-la na sua bagagem antes de seguir viagem. O rapaz olhou em volta; não estava no chão nem em cima da cama, no meio dos cobertores amarrotados. Depois do pequeno-almoço, Bedo foi ver na rua, mas também não a viu. No peitoril, o vento deixara apenas as três pedras brancas.

Na manhã seguinte partiram para Caer Pridne, levando consigo a rapariga. Os cabelos de Tuala estavam esquisitos; tinham sido cortados grosseiramente ao nível das orelhas e estavam algo parecidos com os de Bedo, se bem que menos bem penteados. A jovem ia muito calada. A sua boca era uma linha fina, como se estivesse a tentar não chorar. Tuala não olhou uma única vez para a casa do druida e para os carvalhos.


O homem de Broichan tinha partido antes de o seu senhor ter deixado Pitnochie, equipado com um pequeno saco, os meios adequados para se defender e uma mensagem para Talorgen na cabeça. Esta não era complexa: tinha apenas duas partes. Primeira, o velho, Erip, tinha morrido e a notícia tinha de ser dada ao rapaz com serenidade. Segunda, doravante o rapaz tinha de ter um provador. Era fácil.

O mensageiro estava acostumado a cobrir grandes distâncias com rapidez, mesmo com mau tempo. Era suposto apanhar o exército em marcha no espaço de mais ou menos doze dias, talvez menos se não chovesse. O homem sabia como evitar os lobos, os obstáculos e os espiões de Dalriada; era capaz de passar dias com rações escassas e pouco sono.

Porém, não estava à altura da rocha escorregadia por cima do Lago da Donzela. O tempo estava úmido e quando ia a passar por um carreiro estreito, bem acima da água, ouviu um resmungar inequívoco que se transformou rapidamente num rugido violento de pedras a rolar. O homem aguentou-se, agarrando-se o mais possível aos acidentes do terreno, rangendo os dentes e pedindo à Mãe de Tudo que o poupasse, que a sua hora ainda não chegara. O tumulto cessou; pequenas pedras rolaram pela encosta e só pararam na massa de cascalho, no fundo. Afinal, a sua hora ainda não soara. O mensageiro pestanejou para afastar a poeira dos olhos, respirou fundo, feliz por ter sido poupado. Doía-lhe uma das pernas; olhando para baixo, para determinar a gravidade do ferimento, ficou sem pinta de sangue. Uma rocha maciça tinha ficado entalada na parede rochosa onde procurara abrigo. Entre ela e a falésia, estava a sua perna, presa até à coxa. A fronte do mensageiro encheu-se de suores frios. Aquele olhar simples disse-lhe que a perna estava esmagada; nunca mais sairia dali.

O homem tentou, durante algum tempo, soltar-se com as mãos, batendo na rocha com uma pedra e utilizando a faca que tirou do saco que tinha às costas, deixando a pedra cheia de riscos desesperados. Ainda tinha comida para muitos dias e água para três. A princípio, racionou tudo muito bem a pensar num salvamento. Porém, ninguém apareceu. Quando a água acabou, pensou em pegar na faca e cortar a perna enquanto ainda tinha forças e depois... e depois o quê? Sangraria até morrer, rastejando por caminhos apenas conhecidos dos texugos, dos esquilos, das martas e dos besouros, mas, pelo menos seria rápido. No entanto, a faca estava mal afiada e não teve coragem para tentar.

No dia seguinte à ração de água acabar, choveu. O mensageiro lambeu-a da rocha que o tinha preso, espantado com o seu próprio instinto de conservação. A mensagem tinha-se-lhe varrido da memória; esquecera tudo menos a dor, o frio e o desespero. Naquela noite, quais mensageiros da morte, apareceram os lobos.


Chegados àquele ponto já não havia nada a fazer. Parados, olhando na direção de Galany’s Reach, viram fumo, uma bandeira a flutuar por cima da aldeia e viram que os Gaels estavam prontos para os receber; os espaços por trás e por baixo do baluarte, de chuços afiados, estavam cheios de arqueiros. No topo do monte, mesmo àquela distância, a silhueta da Pedra Mágica recortava-se contra o céu, guardada por sorveiras bravas. Atraía o olhar e dava calor ao coração.

— Não são assim tantos — disse Talorgen com os olhos semicerrados. — Foi por isso que se fecharam ali, em vez de nos enfrentarem. Vamos agir como o planejado. Estão todos prontos? Morleo? Ged? Foirel?

Grunhidos de assentimento. As tropas de Ged, resplandecentes nas suas roupas multicoloridas, iriam para o flanco direito, as de Morleo para o esquerdo e a força principal atacaria os portões. Logo atrás dos homens de Talorgen ia o pequeno bando de Foirel. Bridei vira os olhos perigosos do seu líder, o seu ar de energia mal contida, como se estivesse quase a explodir. O armamento considerável de cada um dos mal-encarados seguidores de Foirel não contribuía para diminuir o seu mal-estar. Aqueles homens pareciam mais uns juizes arbitrários do Outro Mundo do que outra coisa. Talvez não quisessem, sequer, olhar o que iam atacar, senão no fim. A sua proximidade não era nada tranquilizadora.

O conselheiro do rei, Aniel, enviara os seus dois guarda-costas pessoais em nome de Drust, o Touro. Garth, um deles, avançou, transportando o estandarte do rei e os outros ergueram bem alto os símbolos de cada um dos chefes tribais presentes: Longwater, Abertornie, Fonte do Corvo e a antiga bandeira de Galany. Talorgen ergueu no ar um punho fechado e gritou:

— Fortriu!

O orgulho fez correr mais depressa o sangue nas veias de Bridei, como se tivesse sido tocado pela própria Guardiã das Chamas. O jovem ergueu a sua própria voz em resposta, tal como os outros:

— Fortriu! — e os Priteni avançaram para o combate.

A aproximação fazia-se através de um vale largo por onde corria um rio que ia desaguar às vastas águas do Lago do Rei. O solo era pantanoso e as botas dos atacantes enterravam-se na lama. Não havia onde se protegerem senão alguns arbustos e algumas árvores enfezadas acima das margens do rio. Quando se aproximaram da água, os portões da aldeia abriram-se e o inimigo saiu ao seu encontro. Afinal não era a defesa desesperada de um posto avançado, era um contra-ataque bem planejado, exército contra exército; alguém dera boas informações aos Gaels e eles tiravam partido delas.

— Quantos? — gritou Bridei a Donal, que o seguia como uma sombra, de lança na mão.

— Muitos — disse Donal. — Vamos conseguir. Eles vão tentar atrair-nos até ficarmos ao alcance dos arqueiros. Talorgen vai contê-los, isto se o louco do Foirel não carregar primeiro. Fica perto de mim, Bridei. Não saias da minha vista.

Até, pensou Bridei, até no calor da batalha a mão de Broichan chega até mim, como se eu fosse uma criança. Quando terei a oportunidade de demonstrar que sou um homem?

Então, a seu lado, na sua frente e atrás de si, os homens começaram a correr, a gritar, e o dia enlouqueceu. Os gritos pareciam trombetas aos seus ouvidos; o seu coração, que já batia com toda a força, adquiriu o ritmo de um tambor, as suas pernas transportaram-no para a frente no meio daquela vaga de corpos e então, abruptamente, as flechas começaram a cair e os homens levaram com elas nos olhos, nas gargantas ou nos ombros, havia corpos sob os seus pés, capas e elmos ensanguentados, mãos agarrando um olho ou um membro. O jovem não podia parar para os ajudar, continuava a ser transportado pela onda, as fileiras já menos espessas, a sua própria voz gritando asperamente por cima do estridor: “Fortriu! Fortriu!”

Depois das flechas foi a vez das lanças; Donal espetando a sua num tipo e este estrebuchando como uma truta; Gartnait no meio de umas silhuetas, esbracejando, praguejando e trespassando o coração de um homem com a sua adaga. Os seus olhos, estranhos, exaltados, como se estivesse na presença de um deus. Um homem grande, Breth, procurando o espaço de um outeiro cheio de arbustos rasteiros e utilizando o seu arco para matar firme e friamente um inimigo e depois outro.

Fica perto?, pensou Bridei. Donal devia estar a brincar. O jovem subiu o outeiro, aproximou-se de Breth, preparou o seu arco e começou a disparar cuidadosamente; o menor erro de cálculo e a flecha atingiria um dos seus camaradas em vez de um dos Gaels.

— Para sul — disse-lhe Breth. — Além, por trás dos homens de Ged! Estás a ver? Dispara para lá para dares cobertura a Foirel.

Dali era possível ver o que Foirel estava a fazer, se bem que na pressão da batalha tudo parecesse fortuito, se reduzisse a um simples homem avançando com uma grande faca ou a outro com uma lança trespassando um adversário. Na base do outeiro, o combate prosseguia: uns sobreviviam, e continuavam, outros morriam. Do alto da pequena elevação, Bridei viu que as forças de Talorgen estavam a progredir com mais dificuldade; tinham acabado de passar o rio, enfrentavam um grupo bastante grande de celtas e muitos homens de ambos os lados jaziam de borco ou estremeciam, os seus gemidos afogados pelos gritos de exortação ou de insulto, o tinir das lâminas ou o assobio das flechas.

Ged e Morleo faziam pouco melhor. As suas forças, de certo modo mais longe da muralha da aldeia, suportavam o peso do trabalho dos arqueiros. Do lugar onde estavam, não podiam ver Foirel e o seu pequeno grupo de guerreiros. Foirel levara os seus homens rio acima e agora regressavam pela margem oposta em ziguezague, utilizando os arbustos que cresciam na margem como cobertura, aproximando-se cada vez mais do caos junto dos portões.

Seguindo as indicações de Breth, Bridei disparou uma e outra flecha, tentando apanhar os celtas no meio da multidão, os que estariam no caminho de Foirel quando este atacasse na direção da muralha. Era uma loucura; exatamente o que se esperava de um homem como Foirel. Provavelmente, os seus homens seriam trespassados antes de atingirem as posições inimigas. No entanto, o homem que Bridei acabava de matar com uma das suas flechas não os veria chegar. O tipo que Breth atingiu num olho também não, nem aquele, nem aquele...

— Sempre disse que eras um bom arqueiro — disse Breth, apontando e disparando de novo.

— Quantas flechas tens? — perguntou-lhe Bridei.

— Duas. Toma uma.

Os dois homens dispararam e atingiram dois celtas. Em seguida, voltaram a descer a encosta e entraram no pesadelo. Donal não se via em parte nenhuma; Gartnait também desaparecera na confusão. Talorgen, na sombra de Garth, usava a sua espada com efeitos devastadores. O senhor de Fonte do Corvo era um verdadeiro líder, estava na linha da frente com os seus homens. As forças de Ged, com as suas túnicas coloridas cheias do seu sangue e o do inimigo, estavam na outra margem do rio e progrediam pelo monte acima. Subitamente, para lá da massa agitada de homens em luta, aconteceu algo. Do interior da paliçada de chuços aguçados surgiu uma luz brilhante, um crepitar áspero e começaram a ouvir-se vozes de mulher, gritando. Os homens de Foirel tinham pegado fogo à aldeia. A sua aproximação a coberto da vegetação tinha-os posto à distância de tiro; as flechas incendiárias tinham feito o resto.

Os arqueiros nos espaços superiores correram, desertando dos seus postos; apagar o fogo era mais urgente. No solo, corajosamente, os celtas mantinham as suas posições. Talvez os gritos de aflição fossem das suas mulheres e dos seus filhos encurralados no interior do silo, na casa de curtumes ou nos aquartelamentos onde se viam pessoas a correr com baldes, rapazes demasiado pequenos para combater e mulheres com sacos e cobertores. Os homens continuavam o combate com os rostos tensos enquanto o fumo cobria o campo de batalha, manejando as espadas, as lanças, erguendo os estandartes manchados de sangue numa atmosfera misteriosa, rosa, dourada e cinzenta.

Bridei não levara consigo uma lança; o jovem tinha uma espada curta, uma faca e o arco agora inútil a não ser que conseguisse uma nova provisão de flechas. Tornara-se impossível ver o que estava a acontecer, saber o que os líderes queriam fazer. Os homens limitavam-se a avançar na direção do topo do monte, fazendo o possível para não serem mortos, travando uma batalha desesperada após outra. Bridei fazia uso da espada e da adaga. Na sua frente estava um jovem guerreiro, um celta, com as entranhas de fora e o rosto pálido de terror. Bridei nunca pensara ser capaz de cortar a garganta a um homem num gesto de piedade, mas fê-lo sem hesitar, murmurando ao mesmo tempo uma prece aos deuses em que o jovem, provavelmente, acreditava:

— Guardai a sua alma.

Após um longo período de tempo, muito longo, durante o qual o seu corpo se limitou a ferir, cortar e esquartejar, ao mesmo tempo que os olhos lhe ardiam devido ao fumo, ao suor, às lágrimas e a garganta lhe doía de tanto gritar, tornou-se evidente que a maré do combate estava a mudar. No alto, através da cortina cinzenta, via-se um brilhante halo de fogo e, recortados nele não se viam os celtas de Galany’s Reach numa implacável posição de defesa, viam-se os guerreiros selvagens de Foirel com os dentes arreganhados e as longas facas serrilhadas, caindo por trás em cima do inimigo como fúrias vingadoras. A visão era terrível; o fato de estarem do lado de Bridei não a tornava menos alucinante. O bando de Foirel levava tudo na frente, lutava com a eficiência selvagem dos predadores da floresta, a dos grandes felinos, talvez, indiferentes no momento em que as suas bocas se fechavam sobre os pescoços das suas presas, conscientes apenas do cheiro do sangue.

Bridei viu-se a si próprio no meio daquele massacre, trocando golpes de espada com um guerreiro espadaúdo de Galriada enquanto a seu lado Foirel mantinha preso um inimigo torcendo-lhe o braço atrás das costas e forçando-o a ajoelhar-se na sua frente. Foirel colocou a sua faca em frente dos olhos do celta. O adversário de Bridei era um homem sólido com um elmo de pele na cabeça, com uns cabelos tão vermelhos e tão selvagens como o fogo que lhe devorava a casa e a família. Bridei viu no seu rosto cansado que ele já não queria saber. Porém, continuava a combater; ambos mais altos e mais largos do que Bridei, a sua única vantagem era a agilidade da sua juventude.

Na mente de Bridei estava o incêndio; a necessidade de salvar as mulheres e as crianças antes que fosse demasiado tarde. Talorgen devia dar a ordem, devia mandar homens para o combater. Se não o fizesse, morreriam todos e os Priteni provariam que não eram menos bárbaros do que os seus inimigos...

— Ah! — arquejou Bridei, sentindo uma dor na coxa; a espada do seu oponente tinha-lha rasgado, o sangue escorria e o jovem cambaleou. O celta ergueu novamente a sua espada e apontou para o pescoço. Bridei não parou para pensar. O jovem atirou-se para o lado, virou-se e trespassou o adversário. Este nem teve tempo de pestanejar. O guerreiro caiu para a frente com um olhar surpreendido no rosto, ao mesmo tempo que a espada de Bridei lhe entrava ainda mais no peito.

Bridei ajoelhou, respirando com dificuldade. O jovem virou o cadáver e arrancou-lhe a espada cheia de sangue. Em seguida, limpou-a na erva suja. No mesmo instante, viu um homem levantar-se por trás de Foirel, que estava dobrado, um homem em cujas mãos estava uma moca com pregos, pronta a descer sobre a cabeça do chefe tribal.

Bridei deu um salto. O seu corpo foi de encontro ao de Foirel e ambos caíram fora do alcance do celta. A moca caiu e atingiu o prisioneiro, o mesmo que enfrentara momentos antes a ponta da faca do chefe tribal. A arma já não era necessária: a moca esmagara-lhe o crânio. Bridei estava em cima de Foirel, com o rosto na lama e no sangue do campo de batalha. O jovem respirou fundo, sentiu o coração a bater e estendeu uma mão para Foirel. Atrás de si, o celta que matara um companheiro com a sua moca, jazia no chão com o corpo trespassado por nada menos do que três lanças.

— Que o Corvo Negro nos salve! — disse Foirel, pondo-se de pé e pegando na adaga que deixara cair. — Louco! Enlouqueceste por completo?

Bridei olhou para ele. O jovem não sabia o que dizer. A batalha parecia afastar-se deles; através do fumo espesso, Bridei via pequenos grupos de homens ainda presos nos seus pesadelos privados, mas o movimento parecia ser na direção do topo do monte, na direção da aldeia a arder; podia ouvir a voz profunda de Morleo a gritar ordens e podia ver o estandarte branco de Fortriu com os símbolos reais a azul, bem alto, no meio dos homens aos gritos.

— Não viste a faca na minha mão? Estiveste quase a levar com ela na garganta! — disse Foirel, metendo a arma no cinto e dando um pontapé no celta. — Quem é que te ensinou a combater? Outro louco?

Bridei sorriu.

— Um homem chamado Donal, tão louco como tu.

— Como é que te chamas, rapaz? — Foirel não era um homem amigável; o seu rosto era selvagem, desconfiado e perigoso, mesmo em momentos de repouso. No entanto, pareceu a Bridei que o chefe tribal não tinha ficado desagradado apesar das suas palavras.

— Bridei, filho de Maelchon. Sou filho adotivo de Broichan, o druida do rei.

— Broichan, é? — Os olhos de Foirel semicerraram-se. — Talvez isso explique tudo. Não foi sorte, foi um risco calculado. Estou a ver que é melhor vigiar-te, jovem Bridei.

— Meu senhor — disse Bridei, fazendo uma vênia cortês. Foirel desatou a rir, espantando o jovem.

— Boas maneiras e atos de bravura no campo de batalha! Deves ser único! Tens a certeza que não te queres juntar aos guerreiros selvagens de Cinco Irmãs, rapaz? Não te dês ao trabalho de me dares uma resposta delicada — não há dúvida de que o teu druida tem outros projetos para ti. Toca a andar. Parece que a coisa acabou e eu quero estar no interior daquela paliçada antes que os homens entrem lá todos; temos de apagar um incêndio e restaurar a ordem.

O chefe tribal começou a subir a encosta, olhando por cima do ombro enquanto o fazia. Um momento depois, Bridei seguia-o. A batalha parecia ter terminado e o jovem sentia-se esquisito.

— Fico a dever-te um favor, filho adotivo de druida — disse Foirel. — Avisa-me quando precisares. O chefe tribal de Galany paga sempre as suas dívidas.

Bridei sentiu-se inclinado a responder com um não foi nada cortês, ou um não é preciso, mas limitou-se a acenar com a cabeça. Aquilo era um pacto entre homens; não aceitá-lo seria um insulto.

Mais tarde, Bridei pensou que o mais duro não fora a batalha; esta passara-se num nevoeiro de frenesim, de acção caótica, de decisões tão rápidas que não tivera tempo de pensar no seu significado, num vendaval de tempo, de corações a bater, de respirações ofegantes, de corpos divididos entre os suores frios do terror e o êxtase do outro lado do medo. O que vira continuava-lhe na mente, algures, e regressaria a dobrar nos seus sonhos. No meio daquela bruma, vira tudo e continuara, muito simplesmente.

O mais duro foi depois da batalha, quando o ritmo do coração abrandou e a respiração estabilizou. Então, a mente recordou tudo e os olhos começaram a ver. Então, caminhando pelo que restava da aldeia de Galany’s Reach, Bridei reconheceu o verdadeiro resultado da guerra.

Os homens de Morleo estavam a apagar o incêndio, tinham deitado abaixo uma longa secção de chuços a arder e demolido as cabanas por trás; a água chegava em baldes que passavam de mão em mão; outros batiam com ramos e outras coisas nas chamas, ou atiravam-lhes com pazadas de terra. Aqui e ali, alguns cobertores tapavam algumas formas estendidas no solo; no extremo de um daqueles cobertores o jovem viu um pé nu. Os homens de Talorgen também já tinham chegado; Bridei viu um jovem com quem treinara com a cabeça entre as mãos, atormentado por espasmos violentos, como se estivesse com uma sezão. A seu lado, acocorado, o grande guerreiro Breth, consolando-o com voz calma. A chuva, ligeira, começou a cair; em breve, o incêndio estaria dominado. Os homens de Morleo continuaram a trabalhar ordeira e disciplinadamente.

Os guerreiros de Ged estavam no lado de fora dos portões, acabando com os últimos opositores. Um grupo de homens de Talorgen percorria o campo de batalha em busca dos seus próprios feridos. Alguns já deviam estar a evacuar as mulheres, as crianças e os velhos, a vigiar os prisioneiros e a acabar com os últimos focos de resistência.

Bridei seguiu Foirel pelos portões escancarados e entrou numa aldeia misteriosamente escurecida pelo fumo, pelo ar cheio de cinza e de escória em brasa. A possibilidade de o incêndio recomeçar era grande apesar da chuva; se bem que algumas casas fossem de pedra, outras não passavam de cabanas de barro e canas e já ficara demonstrado que a paliçada podia arder com ferocidade. Os espaços entre as duas coisas eram estreitos, de terra batida; aqui e ali, as galinhas cacarejavam histericamente e os porcos acrescentavam-lhes os seus grunhidos sonoros. As vozes das mulheres já não se ouviam, nem as das crianças, apenas os gritos dos homens de Morleo combatendo o incêndio e os sons mais distantes, mais mortais vindos do exterior da paliçada, onde os maridos, os pais, os filhos e os irmãos de Galany’s Reach continuavam a morrer. Aquilo não podia ser. Que dissera Donal? Não penses. Se vires o teu inimigo como um homem como tu, não conseguirás espetar-lhe a faca nas entranhas. E se não conseguires fazer isso no calor da batalha, perdes, tu é que morres. Por isso, esquece os filhos, os irmãos e os pais. Pensa apenas no inimigo. Lembra-te que eles roubaram a Pedra Mágica e que merecem morrer.

Bridei guardou aquelas palavras até chegar a uma bifurcação.

— Vai pela direita que eu vou pela esquerda — disse Foirel. — Procura sobreviventes. Isto é capaz de reacender, com ou sem Morleo. Se encontrares alguém, manda-os lá para fora enquanto é tempo. Se o chefe tribal deles ainda estiver vivo, é meu. — Para o caso de haver quaisquer dúvidas quanto àquelas palavras, Foirel sorriu ferozmente e fez um gesto com a mão em cutelo através da garganta. Em seguida, o chefe tribal seguiu pelo carreiro da esquerda e desapareceu no meio do fumo.

O carreiro parecia deserto. Bridei avançou cuidadosamente com a espada na mão, consciente de que uma patrulha como aquela devia ser feita por quatro homens ou, pelo menos, por dois: um para atirar com as portas abaixo, outro para o cobrir e dois à espera de armas na mão. Sozinho, não ia fazer aquilo. O jovem limitou-se a bater nelas com o punho da espada e a gritar:

— Cá para fora! Depressa! Fogo! — agradecendo silenciosamente ao seu velho tutor Wid pelas poucas palavras da língua dos celtas que ele lhe ensinara.

Nem sinal de vida. Onde havia apenas cortinas coçadas a tapar as entradas, o jovem afastava-as e olhava lá para dentro, perscrutando o interior sombrio em busca de crianças escondidas ou mulheres comprimidas umas contra as outras. Porém, não encontrou nada. Bridei continuou com o coração apertado, uma sensação que tinha pouco a ver com o fato de estar sozinho num local onde celtas bem armados podiam estar à espera, escondidos, e muito com os instintos de uma mente e de um corpo treinados por um druida. Havia algo de errado ali; o jovem sentia-o.

Bridei contornou uma esquina e viu-se num espaço aberto, um local de reunião em redor do qual se aglomeravam algumas casas modestas. Por cima daquilo tudo continuava o halo do incêndio, mas o jovem viu uma ameixieira em flor e junto dela uma cruz de pedra com umas letras entrelaçadas. Bridei ouviu vozes de homens rindo-se, falando na sua língua e viu uns movimentos meio escondidos pela cortina de fumo. Bridei continuou a andar, passou pela cruz e parou abruptamente.

As mulheres e crianças que se tinham escondido naquelas pequenas cabanas estavam todas juntas encostadas a uma parede, comprimindo-se umas contra as outras para escapar aos guerreiros em semicírculo e de armas em riste. Uma jovem mãe apertava contra o peito um bebê a chorar, o seu rosto contorcido pelo terror e pela raiva. Uma anciã, acocorada, tinha uma criança a chorar em cada braço. As outras estavam em silêncio, pálidas. Bridei não queria acreditar no que estava a ver. Os homens que as tinham conduzido para ali e as tinham na ponta das lanças não eram os guerreiros selvagens de Foirel, os únicos capazes, julgava ele, de uma coisa daquelas. Aqueles homens não tinham as roupas coloridas de Ged, nem pertenciam às forças de Morleo de Longwater, todos eles ocupados a apagar o incêndio. Aqueles homens eram guerreiros de Talorgen e apesar de as suas armas estarem apontadas para aquele amontoado de prisioneiras, não estavam a olhar para elas. Não longe dali, dois guerreiros Priteni tinham encostado uma jovem a uma parede e um terceiro, com o traseiro nu, tentava desajeitadamente levantar-lhe a saia. Atrás dele havia mais, observando a cena com sorrisos nos rostos.

Bridei sentiu-se ultrajado; os seus dedos apertaram o punho da espada e o jovem abriu a boca para rugir nem ele sabia bem o quê, uma série de maldições, uma ordem, algo a que aqueles homens não prestariam atenção visto que ele era jovem, desconhecido e sem experiência. Um instante mais tarde, os ensinamentos de Broichan, juntamente com os de Donal, vieram à tona e o jovem viu-se possuído por uma calma fria. Bridei avançou de arma na mão.

— Por tudo o que é sagrado — disse ele, sentindo na voz um eco da força que Broichan conseguia nos grandes rituais, uma profundidade que não era apenas humana. — Em nome da Que Brilha e do juramento que fizestes, servindo o vosso rei corajosamente, largai essa mulher imediatamente! — Bridei avançou na direção do guerreiro meio nu e ergueu a espada. — Sai! Isso é um ato de um guerreiro de Guardiã das Chamas? Vós dois, largai-a!

O homem recuou, corado de vergonha ou de frustração. Os outros dois largaram a mulher e ela deixou-se cair no chão, ao mesmo tempo que levava as mãos ao rosto, como se o gesto a tornasse invisível.

— Quem pensas tu que és? — perguntou um dos homens. — Um chefe tribal autonomeado?

— Esta gente é escumalha — disse um outro. — Para que servem, senão para isto?

— É verdade — disse o primeiro. -Já passou muito tempo, filho de druida, mas tu não percebes nada, suponho. Ainda mal saíste dos cueiros. Se fosse a ti, via e aprendia...

— Chega! — A voz de Bridei era agora mais baixa, mas algo nela fez calar os homens. — Sabeis muito bem que o que estais a fazer é errado. Estais a troçar da bravura dos vossos camaradas no campo de batalha; é uma vergonha para os que caíram em combate. A Que Brilha vê isto com horror; não podeis dizer que lutastes em nome dela se cometeis um crime como este. — O jovem estendeu uma mão à mulher acocorada no chão, pensando ajudá-la a pôr-se de pé. Esta levantou a cabeça e cuspiu na sua direção com os olhos brilhantes de raiva. O jovem perguntou a si próprio quantos teriam abusado dela com os outros a assistir, talvez a sua mãe, talvez os seus filhos, se não tivesse chegado a tempo.

— Não tocareis mais nesta gente; as ordens de Talorgen era para fazer prisioneiros, não abusar deles — disse Bridei. — Estais demasiados aqui, mais do que os necessários para escoltar esta gente para espaço aberto. Fazei-o sem provocar mais danos e podeis ter a certeza de que vou dar parte disto ao vosso chefe. Se acontecer mais qualquer coisa a estas mulheres, ele saberá a quem deitar as culpas.

Ouviu-se alguma agitação vinda da parte de trás das cabanas. Quando Bridei se virou, viu dois homens a emergirem, arrastando um celta. Os dois homens vinham a rir, trocando obscenidades entre si. O prisioneiro era uma rapariga de doze ou treze anos, uma criança escanzelada, vestida com umas roupas disformes. Um dos homens mantinha um dos seus braços dobrados atrás das costas e o outro agarrava-a pelos longos cabelos pretos. A cortina de fumo escondia-lhe as feições; mesmo assim, o seu aspecto, o seu porte e o seu modo de andar provocaram um arrepio em Bridei. Sem perceber bem as palavras, o jovem percebeu o sentido das piadas. O rosto da rapariga estava branco como a cal e os seus olhos estavam arregalados de terror. Uma súbita recordação de Tuala atingiu o coração de Bridei, ameaçando desanimá-lo por completo; que mundo era aquele em que entrara subitamente?

— Libertai-a! — gritou ele e, avançando, usou o punho da espada para dar um golpe terrível no braço de um dos homens. O tipo gritou e largou os cabelos da rapariga. Quando o outro começou a protestar, o punho esquerdo de Bridei apanhou-o no queixo; um golpe perfeito, treinado vezes sem conta com Donal. O homem recuou e a prisioneira ficou subitamente liberta. A jovem virou-se, pele e osso e cabelos no ar e fugiu para de onde tinha vindo. Bridei olhou novamente para os dois homens e viu que aquele cujo braço quase partira, um dos miseráveis que maltratara a criança era Gartnait, filho de Talorgen; Gartnait, o seu amigo.

Não havia necessidade de palavras; provavelmente, Bridei nem conseguiria dizer fosse o que fosse naquele momento. Os homens de Foirel estavam a chegar à praça. Ao vê-los, as mulheres empalideceram ainda mais e escudaram as crianças com os próprios corpos. Aqueles guerreiros tinham um aspecto feroz; cada um dos seus movimentos respirava perigo. Foirel deu ordens breves; todos os homens, incluindo os de Talorgen, lhe obedeceram. As prisioneiras foram escoltadas com as armas a uma distância discreta, mas sempre desembainhadas; dizia-se que as mulheres de Dalriada eram capazes de lutar com a mesma ferocidade dos homens. Qualquer uma delas podia, a qualquer momento, fugir, pegar numa faca e ferir alguém! No meio da cortina de fumo, os guerreiros afastaram-se e misturaram-se com os outros. O próprio Talorgen apareceu, dizendo-lhes que o incêndio estava quase apagado e que os chefes tribais dos celtas tinham sido feitos prisioneiros, recordando-lhes que não haveria pilhagem e que os que não eram guerreiros não seriam incomodados. Os homens acenaram com a cabeça, todos; os seus rostos não davam indicação de que havia ali um homem inocente, ali um violador de mulheres, acolá um combatente corajoso, ainda acolá um tipo que pensara em molestar uma criança. À superfície eram todos iguais. Só os deuses sabiam o que lhes ia nos corações.

Naquela noite, enquanto as forças de Talorgen se juntavam em redor das fogueiras, a exaustão sobrepondo-se à euforia da vitória, aos ferimentos e à perda de muitos camaradas no campo de batalha, Bridei sentiu o desejo imenso de regressar a casa, de subir a Cicatriz da Águia e olhar através do Grande Vale com o Sol no rosto, o vento no cabelo e sem outro som que não os gritos das aves no céu, por cima da sua cabeça. Tuala estaria com ele, pequena e calada, a seu lado. O jovem beberia a beleza daquele lugar, a sua liberdade selvagem, o seu encanto perfeito. Então, seria capaz de contar a sua história e choraria. Ela ouvi-lo-ia com os seus olhos grandes e sábios e teria as palavras certas para o consolar. Então, talvez compreendesse aquilo tudo.

— Está tudo bem, Bridei? — Donal aproximara-se silenciosamente e sentara-se a seu lado de pernas cruzadas, rilhando um osso. Depois da marcha forçada pelo Vale abaixo com rações escassas, aquilo era um festim. Os homens tinham espichado a cerveja que havia nos barris que encontraram na aldeia, mas a alegria era pouca. Os corpos dos camaradas caídos esperavam os respectivos funerais, tapados com cobertores. Os inimigos jaziam amontoados com ramos de árvores e fetos empilhados em redor dos membros desarticulados. Na manhã seguinte seria acesa uma nova fogueira.

Bridei acenou com a cabeça, não confiando nas suas próprias palavras.

— Não está, não — disse Donal. — Demora um bocado. Tal como te disse, a primeira vez custa mais. Os homens andam a falar de ti.

Bridei cerrou os lábios. Gartnait já falara com ele sobre mal-entendidos e da captura de uma prisioneira que Bridei tinha injustamente interpretado de outro modo. À conversa seguira-se, com alguma inconsequência, algo entre um pedido e uma ameaça. Talorgen não ficaria a saber de nada por Bridei, ou as coisas entre os dois nunca mais seriam as mesmas. Bridei virara-lhe as costas. Que poderia dizer? Dissesse ou não a Talorgen, as coisas nunca mais voltariam a ser as mesmas. O som da voz do amigo provocara-lhe náuseas. Imaginava o que os outros homens não andariam a dizer dele: um tipo arrogante armado aos cucos. Quem pensa ele que é, emissário pessoal da Guardiã das Chamas? Quanto aos comentários anteriores, sobre mulheres e o que ele fizera ou não com elas, não permitiria que o afectassem. A sua atitude em relação às coisas da alcova era impossível de explicar, mesmo aos seus amigos e os homens daquele tipo achá-lo-iam um louco. Só Donal sabia a verdade visto que tinham sido necessárias explicações para evitar embaraços.

Donal conhecia muitas mulheres, uma em cada aldeia ao longo do lago, e algumas delas tinham amigas. Em vez de declinar convites, Bridei pusera os pontos nos is por ocasião do seu décimo quarto aniversário. O jovem lembrava-se muito bem da ocasião. Tinham regressado de um passeio a cavalo pela floresta nos arredores de Pitnochie e estavam no estábulo a tratar de Lucirji e de Snowjlre. Não havia mais ninguém presente. Donal convidara-o a ir à aldeia mais próxima para conhecer uma jovem generosa, desejosa de ensinar certas coisas a Bridei, coisas que ele estava na idade de aprender. O convite fora feito com alguma hesitação; era evidente que Donal não queria forçar a nota.

— Obrigado — lembrava-se Bridei de ter dito em tom algo formal — mas não posso. Ainda não.

— Não podes? — repetira Donal. — Que estás a tentar dizer-me rapaz?

Bridei fizera um esforço para não corar, embaraçado, apesar de estar na presença do seu melhor amigo.

— Não é o que pensas. Eu não sou demasiado novo para... isso, nem quero que penses que não tenho disposição para essas... atividades.

— Mas?

— Fiz um voto. Uma promessa. A Guardiã das Chamas. Teve a ver com... — O jovem não conseguira ser mais preciso; a questão tinha a ver com conjecturas, com suposições, com o que ninguém, em Pitnochie, estava preparado para lhe dizer. — Tem a ver com a melhor preparação possível do meu futuro. — Aquilo era verdade, apesar de só parcialmente. — Eu acho que tenho de ser, ao mesmo tempo, profundamente leal aos deuses e autodisciplinado. Quer dizer, o mais perfeito possível. Fiz o voto solene de que só me deitaria com uma mulher na noite do meu casamento. Que só o faria no leito conjugal. Pareceu-me um gesto de respeito para com A Que Brilha visto que todas as mulheres são um reflexo da sua pureza e também para com a Guardiã das Chamas, que dá valor à força e ao autodomínio nos homens. Por isso, como vês, não posso ir contigo à aldeia.

— Estou a ver — dissera Donal, aparentemente surpreendido. E quem é que te ouviu a pronunciar esse voto?

— Os deuses, mais ninguém.

— Não me digas. — Donal recomeçara a escovar Luciry e não regressara ao assunto.

— Disseram-me que salvaste hoje, pelo menos, uma vida. — A voz de Donal trouxe de novo Bridei ao presente. — Dizem que, se não tivesses sido tu, Foirel de Galany’s Reach não estaria aqui esta noite para reclamar a terra pela qual o seu pai morreu. Foste muito corajoso, Bridei. Como é que está a perna?

Bridei olhou para o membro ferido. O ferimento fora limpo e ligado pelo médico do próprio Talorgen. O jovem não se recordava bem de como o recebera.

— Ele não vai reclamá-la — disse ele. — Ou, pelo menos, só o vai fazer durante um dia ou dois; depois, vai ter de regressar. Vai ser difícil para ele: vir até aqui e ter que voltar para trás.

Donal olhou de relance para ele.

— Vamos celebrar uma cerimônia — disse ele. -Já está decidido. Uma vitória simbólica, uma nova consagração aos deuses.

— Acho que não o devíamos fazer — disse Bridei. — Pelo menos agora, depois do que aconteceu. A Que Brilha deve estar a olhar para o que aconteceu aqui hoje com dor e vergonha.

Se aquilo o surpreendeu, Donal não o deu a entender, nem lhe fez quaisquer perguntas.

— Mesmo assim — disse ele — vai haver uma cerimônia. Um símbolo de vitória, de esperança. Por mais que tenhas visto e penses o que pensares, os nossos homens combateram com coragem, Bridei, combateram e muitos morreram em nome de Fortriu e de Drust, o Touro. O pai de Foirel combateu e morreu, juntamente com muitos outros, quando os celtas atacaram Galany’s Reach pela primeira vez. Apesar do que sentes, não podemos ir-nos embora assim, sem mais nem menos, como se o sacrifício dos nossos camaradas fosse motivo de vergonha.

Seguiu-se um silêncio.

— Além disso — disse Donal — parece que tu tens uma solução. Uma solução maluca, mas Foirel é um tipo meio maluco. Vais apresentar-lha?

Bridei não respondeu. Naquele mundo estranho em que entrara já não havia, parecia-lhe, lugar para esquemas heróicos, para gestos destinados a fazer bater o coração. Naquele mundo estranho, as trevas caminhavam e tinham rostos humanos.

— Bridei — disse Donal. — Diz-me o que tens. Não é o que eu pensava, pois não? Não foi a batalha, foi outra coisa qualquer. Diz-me o que foi, filho.

— Eu não sou uma criança — disse Bridei em tom cortante. — Eu resolvo os meus próprios problemas, está bem? És a minha ama, porventura? — O jovem enterrou a cabeça nas mãos ao mesmo tempo que ouvia o som petulante das suas próprias palavras, tornando-as numa mentira.

— Sou teu amigo. — A voz de Donal era calma; não havia nela qualquer tipo de julgamento.

— Os homens, alguns deles — disse Bridei — estavam... fui dar com eles na aldeia, antes de os homens de Foirel lá chegarem. Eles estavam... eles estavam a assustar as prisioneiras, a ameaçá-las e...

— É melhor contares-me tudo, agora que começaste.

— Estavam a tentar violar uma mulher. Eu vi. Se não os tivesse impedido, tê-lo-iam feito. E... — Não, mais não. Já chegava.

— Quem? — sibilou Donal. — Reconheceste-os? Diz-me os nomes deles.

Bridei engoliu em seco. O jovem reconhecera vários rostos, mas era o de Gartnait que lhe vinha repetidamente à memória, os seus olhos sem qualquer tipo de vergonha, ou pena, antes irados, rancorosos, desafiadores. A voz de Gartnait, desculpando-se e pedindo-lhe para não o envergonhar em frente do pai.

— Foram os homens de Talorgen — disse o jovem. — Não digo os nomes deles. É demasiado tarde para remediar o mal e as prisioneiras já estão bem. — Os homens de Ged tinham tomado conta delas e das crianças; Estavam na aldeia sob custódia até a questão dos reféns se resolver. O chefe tribal inimigo estava à guarda dos homens de Foirel, preso com correntes. Os guerreiros tinham sido mortos; os que não tinham morrido em combate tinham sido sumariamente executados. Tentar levar tantos guerreiros para o Vale seria demasiado arriscado e libertá-los estava fora de questão.

— Mas devias — disse Donal com ar muito sério. — Talorgen exigi-lo-ia. Sabes muito bem que ele não gosta de quebras de disciplina. Não lhe interessa se se trata de mulheres, no fundo não são melhores do que os homens.

Durante alguns momentos, Bridei não disse nada. Parecia haver uma pergunta no ar.

— Talorgen não quererá estes nomes em particular — disse finalmente o jovem. — Fui muito claro quando lhes disse que lhe diria tudo se acontecesse alguma coisa às prisioneiras. E digo, podes ter a certeza.

— Ah sim?

— Sim. Disse-o e faço-o. Porém, espero não ter de o fazer. Donal?

— Hum?

— Eu fiz alguns inimigos, hoje. Aqueles homens ficaram ressentidos comigo. Os nossos próprios homens.

— Teriam ficado na mesma se o caso tivesse acontecido com Ged, com Morleo ou com o próprio Talorgen. Os tipos não vêem uma mulher há muito tempo, Bridei. Suponho que acham que é um direito que lhes assiste, uma espécie de saque.

— É uma atitude estranha verem uma mulher apenas como um objeto que serve apenas para se satisfazerem. Eu acho que é um insulto À Que Brilha, que simboliza as mulheres no que elas têm de mais puro.

Donal olhou para ele com ar trocista.

— Os homens não têm todos a tua disciplina druídica — observou ele — nem o teu autocontrole. Normalmente, os homens são pessoas simples, Bridei. Vêm as coisas a preto e branco. É muito mais fácil.

— Em combate, talvez — disse Bridei, recordando a calma fria que o transportara pelo monte de Galany’s Reach acima, a sequência automática de movimentos ofensivos e defensivos que o tinham tornado, durante algum tempo, numa ferramenta de guerra, eficiente e apaixonada. — Porém, não é modo de vida. Os homens que vivem assim, vivem afastados dos deuses. Se eu fosse líder, não quereria ser seguido por homens assim.

— Eles obedeceram-te — disse Donal. — Se pararam é porque te obedeceram.

— Obedeceram-me contrafeitos, com olhares cruéis e palavras de troça.

— Tu és novo, o que torna as coisas piores. Alguns homens não gostam de ouvir a verdade da boca de um rapaz, seja ele o que for.

Os dois companheiros permaneceram mais um pouco juntos enquanto as fogueiras iam morrendo e os homens se instalavam para dormir, exaustos e com as barrigas cheias. Aquela conquista fora uma vitória para os Priteni; a notícia espalhar-se-ia por toda a Dalriada, fazendo entrar o medo no coração do inimigo. Ocorreu a Bridei que talvez a guerra fosse sempre aquilo. Talvez a mais triunfal, a mais pura e a mais nobre das vitórias fosse, de certo modo, uma derrota.

Mais tarde, depois de Donal ter adormecido a seu lado, Bridei viu um homem a subir a encosta na direção da aldeia com um archote na mão. O jovem embrulhou-se na sua capa e seguiu-o. O outro trepava firmemente, utilizando o carreiro em espiral que ia dar ao topo onde se encontrava a grande pedra flanqueada pelas suas guardiãs, as árvorés. A subida era íngreme, mas era uniforme, sem grandes pedras nem arbustos. Quando Bridei atingiu o topo, viu o outro de pé em frente da Pedra Mágica, a luz do seu archote revelando os padrões intricados de conflitos, triunfos e mortes. Aquilo podia ser uma representação dos acontecimentos daquele dia.

O jovem aproximou-se suavemente de Foirel e anunciou a sua presença; fazê-lo em silêncio seria o mesmo que receber uma faca nas costelas. Bridei avançou e os dois homens ficaram lado a lado enquanto que o archote revelava a história dos antepassados de Foirel, os verdadeiros guardiães de Galany’s Reach.

— Pensei que nunca mais veria isto — disse Foirel com a voz algo entrecortada. — Que os deuses nunca mais me dariam a oportunidade de contemplar aquilo por que o meu pai, os meus tios e tantos outros parentes meus morreram. Eu tinha três anos quando os celtas conquistaram a nossa terra; demasiado novo para compreender o significado da perda. Pega aqui no archote. Mostra-me o outro lado.

Em silêncio, os dois homens deram a volta ao monólito, na verdade uma coisa maciça, imponente, mais alto do que o mais alto dos homens e com quase dois metros de espessura. Devia estar profundamente enterrada no solo, perto do coração da Mãe de Tudo. Bridei e Foirel observaram as gravuras turbulentas no lado sul, animais da terra e do oceano, dos rios, dos montes e das planícies, do subsolo, das grutas e do céu aberto. A imaginação de Bridei levou-o até ao topo de uma colina de onde podia ver o vale em toda a sua magnificência, como uma águia, e sentiu bater sob os pés o coração de Fortriu. Apesar de não ser sua intenção dizê-lo, apesar de os acontecimentos do dia lhe pesarem, de tal modo que não havia espaço na sua mente para praticamente mais nada, disse-o:

— Devíamos levá-la conosco.

— O quê? — Era evidente, pelo tom, que Foirel não percebera.

— Não podemos deixar a pedra aqui; seria o mesmo que admitir a derrota. Sabemos que não podemos aguentar Galany’s Reach com as forças que temos; é impossível, mas podemos levar a pedra conosco, para um lugar onde os celtas não lhe possam tocar.

— Tu és mesmo louco — disse Foirel com a testa e os braços encostados à superfície fria da pedra como se, com a sua proximidade, pudesse absorver o seu poder ancestral. — Nunca ouvi uma coisa mais louca. És algum herói mítico com a força de cinquenta gigantes? Já viste o tamanho disto, o seu peso? Ou tencionas fazer uso da magia druídica? — Apesar das suas palavras, o archote revelou uma mudança nos olhos de Foirel; algures, na sua escuridão, surgira uma centelha, uma excitação, uma certa loucura.

— Não só. Tenciono fazer uso de outros meios mais práticos, também — disse Bridei calmamente. — Vai dar trabalho e não temos muito tempo, mas temos muitos homens, se conseguirmos convencer Talorgen e os outros chefes, e eu sei como fazê-lo.


CAPÍTULO DEZ


— Bem — disse Fola —, chegaste, enfim. És tão pequenina, custa a acreditar que tenhas catorze anos, mas como Broichan diz que sim! Bem-vinda a Banmerren, filha.

— Obrigada, minha senhora — disse Tuala, fazendo um esforço para parecer calma. A entrada naquela casa estranha, de paredes de pedra, com raparigas espantadas a olhar para ela, fora difícil e ainda mais difícil fora ouvir a voz intimidante de Dreseida, a primeira a entrar no santuário de Fola: “Trazemos-te esta criança estranha de Pitnochie.” Naquele momento, Ferada e a mãe tinham ido ver a zona onde as raparigas nobres ficavam alojadas, aquelas cuja educação nada tinha a ver com esoterismo.


Tuala viu-se perante a Mulher Sábia e uma antipática mulher de meia-idade que respondia pelo nome de Irethra. Apesar de se sentir miserável, a jovem não deixou de reparar na tranquilidade do local, nas pedras aveludadas dos edifícios, nos nichos com pequenas figuras aqui e ali, todas diferentes, cada uma delas surpreendente, nas trepadeiras e nas curiosas candeias trabalhadas.

— Podes tratar-me por Fola. Aqui, não ligamos muito a cerimônias; somos todas iguais perante A Que Brilha. Sentes-te feliz por estar aqui, Tuala?

Aquela pergunta difícil surgira do nada.

— Estou grata pela oportunidade, minha se... Fola. — Era esquisito tratar a Mulher Sábia daquela maneira, como se fosse uma familiar. Apesar de pequena, Fola parecia-lhe maior e mais imponente do que quando a vira pela primeira vez: os seus cabelos, descobertos, eram longos e grisalhos, enrolados num grande carrapito na nuca; em redor do pescoço, por cima do vestido cinzento e macio, Fola usava um disco lunar, preso por uma fivela que parecia uma garra, a um pequeno fio.

Os olhos da Mulher Sábia eram os mesmos, escuros, intensos, o seu sorriso era quente. Por trás de si, numa prateleira de pedra, estava um gato escuro como a noite, enorme; as suas orelhas esfarrapadas e o seu focinho cheio de cicatrizes pareciam as de um guerreiro tatuado. O animal olhou para Tuala através de uns olhos amarelos semicerrados.

— E...? — perguntou Fola.

Tuala olhou fixamente para ela.

— Trabalharei arduamente — disse a jovem —, e farei o possível para aprender o maximo. Fico em dívida para contigo, assim como estou em dívida para com os que me ensinaram antes.

— Não estás a ser totalmente honesta comigo, filha — disse Fola. — Eu sei que vais trabalhar arduamente. As que não estão preparadas para o fazer não poderão ficar em Banmerren. Irethra velará por isso — disse a Mulher Sábia, olhando para a mulher a seu lado de braços cruzados. Esta torceu os lábios no que parecia ser um sorriso. — Se tens reservas, Tuala, é melhor dizeres-me agora. Aqui, em Banmerren, somos todas servas da Que Brilha; de corpo, coração, mente e espírito.

Tuala curvou a cabeça.

— Eu sou filha dela — disse a jovem. — Sirvo-a em tudo o que faço. Se ela deseja que eu seja sacerdotisa, farei o possível e o impossível para o ser, mas não pedi para vir para aqui. A escolha não foi minha. — As imagens surgiram-lhe na mente: Pearl no estábulo mordiscando-lhe o pescoço, inconsciente de que era a última vez; Mist miando por trás da porta fechada, como se soubesse que o estava a abandonar; a Lua através da pequena janela e a pena de águia no peitoril. A jovem olhou para a silenciosa Irethra, que lhe devolveu o olhar, impassível.

— Podes ir, Irethra — disse Fola. — És capaz de pedir a Odha um pouco da infusão de hortelã dela e um pouco de mel? Obrigada.

Irethra saiu com as costas muito direitas, numa atitude desaprovadora.

Fola suspirou.

— Irethra está encarregada das alunas mais novas — disse. — É a minha principal assistente. Senta-te, Tuala. A viagem foi muito longa. Lady Dreseida falou-me dela. Como a sua filha também vai ficar conosco durante algum tempo, ficas com alguém conhecido por perto, o que já é alguma coisa.

Tuala acenou ligeiramente com a cabeça.

— Porém — continuou Fola —, penso que o olhar de desespero que tens não se deve aos dias cansativos a cavalo e através dos lagos. Sinto que, até agora, disseste a verdade, mas também sinto que há mais qualquer coisa.

— Era suposto ser eu a escolher — replicou Tuala a custo. — Afinal foi ele.

Fola esperou um momento e depois disse:

— Ele? Broichan?

Tuala anuiu, sentindo-se miserável.

— Ou vinha para aqui ou casava com um homem cujo rosto parece um nabo. Peço desculpa, não é justo. Ele parecia ser bom homem, mas eu não me quero casar e também não queria...

— Não querias vir para Banmerren? — perguntou Fola suavemente.

— Sair de Pitnochie — disse Tuala num murmúrio. — Ele não compreende. Eu preciso de estar lá.

Ouviu-se alguém a bater à porta. Um momento depois, entrava uma rapariga com um pequeno tabuleiro. A jovem usava o mesmo vestido azul das outras raparigas de Banmerren. Tuala vira muitas raparigas a atravessar às pressas o jardim ou concentradas em pergaminhos, em recipientes ou em punhados de ervas. Algumas tinham vestidos verdes, mas apenas as mais velhas, como Irethra ou a própria Fola, usavam os vestidos cinzentos das mulheres sábias. A rapariga pousou o tabuleiro e saiu em silêncio. O gato espreguiçou-se e saltou da prateleira para investigar o que a visitante trouxera.

— Estou a perceber. — Fola levantou o pequeno bule do tabuleiro, encheu duas minúsculas chávenas com a infusão aromática, acrescentou-lhes um pouco de mel e entregou uma a Tuala. Não tendo encontrado comida, o gato perdera o interesse e lambia-se.

— Eu sou obediente À Que Brilha — disse Tuala. — Amo-a. Por que havia de ir contra a sua vontade? Porém, não acredito que ela quisesse que eu saísse de Pitnochie. Se isto era intenção dela, servi-la como Mulher Sábia, por que razão fez com que Bridei me encontrasse há tantos anos atrás? — A jovem calou-se.

Fola bebericou tranquilamente a infusão.

— Suponhamos que Broichan se enganou — disse ela. — Temos de ter em mente que Broichan não é conhecido por se enganar; os seus objetivos podem parecer obscuros, por vezes, mas geralmente ele e os seus esquemas não estão ao alcance dos mortais normais. — Era difícil perceber se ela estava ou não a brincar. — Por outro lado suponhamos que A Que Brilha não quer que tu sejas sua sacerdotisa. Se assim é, então o que é que tu achas que ela quer para ti?

Tuala manteve-se teimosamente em silêncio.

— Quem me dera saber — disse Fola, pousando a chávena no tabuleiro.

— Bebe, filha; dá-te ânimo. Broichan é conhecido por dizer às pessoas que há sempre algo a aprender em tudo o que fazemos, vemos ou ouvimos, mesmo quando estamos desesperados. Aqui, em Banmerren, vais aprender alguma coisa e espero que nós também; nunca tivemos aqui uma filha da floresta. Não vai ser fácil para ti. Vai ser um desafio, mas aposto que vais gostar. Bebe. Em seguida, vou pedir a Irethra que te vá mostrar o lugar onde vais dormir. Podes descansar um pouco antes do jantar. Com o tempo, tenho a certeza que A Que Brilha nos dará a conhecer os seus intentos.

Seguindo Irethra, Tuala passou por um corredor, pelo refeitório, pelo salão de estudo e foi dar a uma arrecadação onde uma rapariga lhe entregou uma pilha de roupa — um vestido azul e outras coisas —, enquanto a fixava intensamente. A jovem voltou a passar pelo jardim, reparando ao passar nalgumas raparigas que tratavam de uma horta, remexendo a palha com forquilhas e atando umas videiras, ao mesmo tempo que ouvia umas vozes puras, cantando um hino à virgem Todas as Flores. De uma porta aberta, saía um aroma de pão fresco.

O recinto de Banmerren situava-se no interior de uma muralha, que o delimitava e isolava do mundo exterior. A única entrada que Tuala conseguia ver era aquela por onde tinha entrado — um pesado portão de ferro com uma enorme tranca. No exterior, havia um local que ela teria gostado de explorar, um local tão diferente dos montes rochosos e do manto florestal de Pitnochie como uma gaivota de uma coruja. A jovem vira-o de relance, um areal vazio e para lá deste, o mar sussurrante. Do interior daquelas muralhas não era possível vê-lo.

Várias raparigas, com saias finas e túnicas de cores diferentes, não com os vestidos azuis, estavam sentadas num banco no jardim, falando umas com as outras. Viraram-se todas ao mesmo tempo para olhar luala quando esta passou quase a correr para conseguir acompanhar a passada firme da sua impaciente guia. A jovem ouviu os murmúrios e as risadinhas reprimidas, mas não conseguiu ouvir as palavras. Uma outra, que estava sentada sozinha, sorriu-lhe, um sorriso meigo num rosto notável apesar dos olhos cinzentos, serenos. Os seus cabelos pareciam ouro puro sob a luz do Sol e caíam-lhe pelas costas. A jovem usava um vestido claro com um toque de azul na gola e nos punhos. Tuala fez-lhe um sinal de cabeça cortês. Retribuir-lhe o sorriso seria demasiado para o estado de espírito em que se encontrava.

— Por aqui — disse Irethra. A mulher tornara várias vezes claro que não tinha tempo a perder e que não gostava de ser ama-seca daquela recém-chegada especial. Tuala sentia-se tão deprimida junto dela como em Pitnochie nos dias anteriores à partida. — Fola diz que vais dormir na torre. Há algum tempo que está fechada. Talvez seja melhor. As outras vão desconfiar de ti, mas suponho que tu sabes disso.

A mulher conduziu-a por uns íngremes degraus de pedra até o exterior, ao longo de uma passagem estreita e perigosa, e mandou-a entrar num pequeno quarto cuja porta estava praticamente ao mesmo nível do topo da muralha exterior de Banmerren. O espaço era muito escuro. Quando as duas mulheres entraram, ouviu-se o som de pequenos passos a fugir.

— Vais precisar de uma vela — disse Irethra. — Quando fores jantar, pede uma na cozinha.

— Quando...?

— Quando a campainha tocar. Veste o vestido azul. Só daqui a muito tempo é que vestes o verde. Se o vestires. Mais alguma coisa?

Tuala pigarreou. No quarto, havia uma armação de madeira com um colchão de palha; a jovem não viu nem lençóis nem cobertores, nem nenhuma lareira.

— Posso...?

— Fala! — exclamou Irethra. — Tenho mais que fazer. Suponho que estás habituada a que as pessoas andem à tua volta a fazer tudo por ti. Aqui não há nada disso. Fazemos todas o que temos de fazer, seja qual for o nosso nascimento.

— Um cobertor — disse firmemente Tuala, decidindo que não se deixaria intimidar. — Dois, se for permitido; estou a ver que não há lareira. Eu vou lá embaixo buscá-los, não é preciso...

— Mais alguma coisa?

— Por enquanto, não — respondeu Tuala polidamente.

— Vais ter de esperar; a arrecadação está fechada e toda a gente está ocupada. Fala nisso outra vez depois de jantar. E agora, se não te importas, tenho de dar uma lição. — Irethra girou nos calcanhares e saiu.

Tuala deixou cair o saco em cima da esteira e envolveu-se melhor na capa. Certamente que não lhe seria possível descansar; estava tanto frio que, ao respirar, surgia-lhe perante a boca uma pequena nuvem de vapor. Aquele quarto parecia-lhe demasiado estranho para lhe ter sido designado. Havia ali muitas raparigas e entre as divisões que vislumbrara durante a volta forçada que fizera, vira vários quartos grandes com esteiras umas a seguir às outras. A jovem tinha a certeza de ter visto lareiras com a sua provisão de turfa, prontas para serem acesas. Tuala esperara ficar alojada junto das outras raparigas, viver em comunidade com elas, tal como os homens de armas em Pitnochie. Talvez aquele isolamento servisse para sublinhar mais ainda a sua diferença. Na verdade, apesar do tamanho minúsculo do quarto, Tuala sentia-se aliviada por ficar sozinha. Os seus olhos habituaram-se gradualmente à escuridão. O quarto tinha uma espécie de janela aberta, uma mera fresta entre as pedras. O frio entrava por esta, transportando consigo um cheiro de sal: devia vir do mar. A jovem ouviu o grito das aves, vozes ásperas e estranhas, diferentes das das carriças, dos tordos, das corujas e dos corvos. Aquelas aves eram viajantes, as suas vozes falavam de longas jornadas sobre águas perigosas. Com o tempo, aprenderia a compreendê-las.

Ouviu-se novamente um restolhar e um ligeiro arranhar. Era evidente que partilharia o seu quarto com os ratos. Mist teria gostado do local. As lágrimas picaram-lhe os olhos; não as deixaria cair. Mist tinha um lar, muita comida e pessoas que seriam boas para ele. Mist passaria bem sem ela. Tuala sofreria mais do que ele, sentiria falta da sua presença consoladora na cama fria. No Inverno, seria muito duro dormir naquela torre. Talvez fizesse parte do treino. Talvez devesse aceitar o frio e não pedir cobertores. Afinal, os druidas faziam-no, eram capazes de suportar o frio, o calor, a água profunda e o ar vazio. Penduravam-se metidos em peles de boi e esperavam por sonhos proféticos. O que eram algumas noites desconfortáveis comparadas com aquilo?

Um pouco de água teria sido bom para lavar a sujidade da viagem das mãos e do rosto. Paciência. Tremendo de frio, Tuala desfez a trouxa e começou a tirar os seus escassos pertences. Havia uma arca no quarto, antiga, pesada, cheia de teias de aranha. A jovem fez o possível por não as incomodar, visto que estas já lá estavam. Mara metera-lhe na trouxa uma muda de roupa, dois lençóis, meias quentes e uma camisa de noite. No interior da trouxa, também estava a saia e a túnica que usara para contar a história de Nechtan, o pedreiro, e da sua amante misteriosa, Ela. Para além de mais duas peças iguais e em bom estado, semelhantes em estilo, mas mais simples. A tremer, Tuala tirou o vestido que usara na viagem e vestiu o vestido azul, atando-o em redor da cintura com a faixa a condizer que encontrara no pequeno monte de roupa que lhe tinham dado. Não tinha hipótese de ver como lhe ficava, mas pareceu-lhe razoável. A jovem suspeitava que era o menor que havia em Banmerren. As raparigas que vira pareciam todas alarmantemente altas e bem feitas para a idade, muito próxima da sua, pareciam mulheres jovens. Uma coisa eram os homens de Pitnochie que a viam como uma espécie de sedutora misteriosa; era psicológico. Outra era ver-se junto daquelas raparigas; parecia uma criança.

Depois de arrumar as roupas, Tuala tirou da trouxa as coisas mais pequenas que empacotara à parte, onde estariam longe dos olhares predadores dos irmãos de Ferada. A sua faca especial; a sua coleção de penas apanhadas do chão da floresta; as fitas de cabelo, as que conseguira encontrar antes de partir de Pitnochie. Já não precisava delas. Tuala cortara de qualquer maneira os cabelos ao nível do queixo com a faca e atirara com as madeixas para a lareira de Broichan. A Que Brilha já estava a par do encarceramento da sua filha para bem dos deuses e do futuro de Fortriu; com aquele pequeno sacrifício, Tuala dava-o também a conhecer à Guardiã das Chamas, guardiã e inspiradora dos guerreiros. Se algum deles aceitava as suas oferendas, ela não o sabia. No fim de contas, estava ali e tudo lhe parecia mal.

As fitas: verde, da cor da erva, azul, da cor do céu, encarnada, da cor do sangue, amarela, da cor do Sol. Quando era pequena, as pessoas, em Pitnochie, davam-lhas. Os homens de armas saíam numa expedição e passavam por um mercado qualquer. Ferat comprava duas todos os Verões a um vendedor ambulante. Brenna encontrava algumas que lhe pertenciam ou fazia-as com restos de tecido. Aquelas fitas eram recordações de casa; representavam Bridei a penteá-la com mãos cuidadosas e uma pequena graçola; representavam os bolos de aveia de Ferat e a roupa lavada de Mara; representavam as histórias de Uven e de Cinioch, e o ronronar de Mist, enroscado nas pernas de Brenna. Aquelas fitas representavam um lar que deixara de existir; representavam um amor que nunca existira. Tuala meteu-as na arca.

O vestido azul era mais quente do que as suas roupas, mas não o suficiente para afastar o frio. No exterior, as nuvens tinham tapado o Sol e o vento soprava frio e forte do lado do mar. Quando soaria a campainha para o jantar? É claro que Tuala podia descer a escada, e tentar não reparar nos olhares espantados das outras raparigas, não ouvir as suas risadas mal reprimidas e comentários sussurrados. Sentar-se-ia na relva, talvez meditasse um pouco. Sentiria menos frio. Se as raparigas a maçassem, ignorá-las-ia. Tuala sorriu. Estava a enganar-se a si própria se pensava que seria possível. A julgar pelas instruções inadequadas de Irethra, a sobrevivência em Banmerren dependia da rápida aprendizagem das regras e da certeza de que as cumpriria. Era estranho; claro, um estabelecimento daqueles tinha de ter um código de comportamento, mas a falta de flexibilidade ou a falta de compreensão eram coisas que Tuala nunca esperaria encontrar numa escola dirigida por Fola. A recordação que tinha da Mulher Sábia, na floresta, era a de alguém que não só sabia as regras, como sabia quando quebrá-las.

As mãos de Tuala acariciaram o último objeto da sua trouxa: o cordão que contava a sua história e de Bridei. Parecia que os dois fios estavam destinados, a partir dali, a ficar separados para sempre. Fora tola em pensar que poderia ser de outro modo; em acreditar, no mais profundo do seu coração, que poderia ser de outro modo. Tuala transformou o cordão numa bola e escondeu-o na camisa de noite dobrada. Fechou a arca e saiu. O frio era o mesmo mas, pelo menos, conseguia ver o céu. As nuvens que tapavam o Sol por cima de Banmerren passariam mais tarde pela floresta de Pitnochie e ensombrariam as águas do Lago da Serpente. Talvez, antes de se dispersarem, avistassem o exército de Talorgen marchando ao longo do Vale para enfrentar os ferozes guerreiros de Dalriada. Talvez se voltassem a cruzar com o Sol, e um jovem de cabelos castanhos encaracolados e olhos azuis muito brilhantes olhasse para elas com saudades de casa. Talvez.

Se virasse à direita na passagem estreita logo à saída da porta, desceria as escadas e iria dar ao jardim, seguindo ao longo da muralha coberta de musgo. Para a esquerda, a passagem estreita continuava até atingir um telhado inclinado de madeira e depois outro trecho da muralha que circundava Banmerren. Junto daquela barreira, encontrava-se um velho carvalho; os seus ramos passavam por cima da muralha, o tronco era enrugado e cheio de nós, e as raízes um emaranhado de arcos, curvas e vãos, espalhando-se por uma extensão de terreno antes de penetrarem profundamente o coração da terra. A Primavera ainda estava no seu início; os ramos escuros tinham folhas pequenas. Os ninhos do ano anterior continuavam nos ramos altos, sinal de que aquele gigante dava abrigo, todos os anos, a muitas espécies de aves.

A copa do carvalho não chegava ao telhado de madeira. Era preciso percorrer um trecho de muralha com três passos de comprimento e um palmo de largura para a atingir. A altura era considerável; uma queda resultaria, na melhor das hipóteses, nalguns ossos partidos. Tuala prendeu a saia do vestido na faixa da cintura, abriu os braços e, sob os seus pequenos pés, percorreu a distância com cuidado. Nunca tivera medo das alturas.

Utilizando as mãos e os pés, Tuala chegou a um ramo em forquilha suficientemente grande para a suportar de costas para o tronco musgoso, os pés juntos num dos ramos, de frente para o que se avistava para lá de Banmerren, do outro lado da muralha. Seria possível trepar até ao cimo da muralha se o quisesse fazer, já que a árvore estendia generosamente os seus ramos em todas as direcções. Era provável que a campainha para o jantar tocasse quando ela estivesse a meio caminho e chegasse atrasada logo no primeiro dia. Não precisava de se aventurar mais; a árvore dava-lhe abrigo, suportava o seu pequeno corpo com os ramos antigos e fortes. Se estivesse quieta e abrisse os ouvidos do espírito, com o tempo começaria a murmurar-lhe as suas histórias.

Tuala conseguia avistar uma baía grande, clara, uma extensão de terreno a leste e uma fortaleza. Os estandartes flutuavam sobre as muralhas de pedra, brancos com símbolos azuis. Do alto, devia ser possível olhar para o mar, ver a aproximação de possíveis atacantes e preparar a defesa. A fortaleza também tinha muros de terra e valas; semicerrando os olhos, Tuala conseguiu ver pequenas figuras. Caer Pridne: fortaleza de Drust, o Touro, monarca de Fortriu. Ficava tão perto. Dreseida já lá devia estar com os dois filhos, junto dos amigos, sem dúvida, feliz por a longa viagem ter terminado. Dreseida só ficara em Banmerren o tempo suficiente para que a filha se instalasse porque os homens — com excepção dos druidas — não podiam entrar no recinto, e Tuala não conseguia imaginar Uric e Bedo esperando pacientemente a mãe do lado exterior das muralhas.

Caer Pridne. Contavam-se histórias estranhas acerca daquele local. Aliás, Erip e Wid tinham insinuado histórias demasiado estranhas para poderem ser contadas. Existia aí um poço muito fundo onde se realizavam cerimônias sombrias. Os seus tutores não lhe tinham dito mais nada.

Se os estandartes estavam a flutuar, significava que o rei Drust estava na fortaleza, ao mesmo tempo que no Grande Vale os seus guerreiros combatiam contra os Celtas. Broichan também se encontrava em Caer Pridne, tendo retomado a sua função de druida do rei, um lugar que ele abandonara durante longos anos para permitir que Bridei crescesse e se transformasse num homem. Parecia que para onde quer que Bridei fosse, Broichan o seguia como uma sombra. Podia não estar ao lado do filho adotivo no campo de batalha, mas esperava-o na corte. Por instantes, a jovem imaginou Bridei com uma idade madura, os caracóis grisalhos e um velho Broichan sempre por perto, controlando-o, manipulando cada jogador no seu jogo pessoal e prolongado. Fola falara nos seus esquemas. Tuala fechou a mente àquela visão futura, não fosse surgir nela uma certa mulher de cabelos ruivos. Os druidas não sabiam tudo. Nem sequer a mais rígida das auto-disciplinas, ou o mais profundo dos conhecimentos, eram capazes de ultrapassar os deuses.

A estadia de Tuala transformou-se numa rotina de refeições, de estudos, de trabalhos domésticos, de sono. A jovem descobriu, depois de arranjar a coragem para perguntar, que todas as raparigas tinham uma almofada e dois cobertores e que, como ela estava na torre e não tinha lareira, devia ter direito a três. Aprendeu o significado das campainhas e obedecia-lhes quando se lembrava. Por vezes, quando estava nas árvores, ou quando se encontrava em transe perante uma poça de água ou uma bacia de água suja, Tuala perdia a noção do tempo, absorta num mundo diferente. Nesses momentos, Irethra nunca perdia a ocasião de a repreender.

— O que queres dizer com isso, não ouviste tocar a campainha? Onde estavas, noutro lugar? — As palavras de Irethra faziam-lhe doer os ouvidos. Apesar de se esforçar para ser como as outras, Tuala não conseguia escapar às suas origens. Por mais discreta que fosse, continuava a ser diferente e os comentários não ajudavam. — A campainha ouve-se em todos os recantos da casa e do jardim, Tuala. Da próxima vez, espero que não te atrases e que estejas pronta.

— Sim, Irethra. — Em Pitnochie, a jovem achara Mara uma mandona. Comparada com aquela tutora irascível, a governanta de Broichan era amável e razoável.

Os padrões diários eram fáceis de seguir. Levantavam-se todas cedo. As alunas faziam as tarefas domésticas por turnos, desde ir buscar água ao poço até preparar as refeições e servi-las, lavar o soalho, cortar lenha, acender as lareiras, coser e remendar roupa. Tais tarefas eram um complemento dos estudos; as que não tinham trabalhos para fazer num dia específico, praticavam as técnicas que Irethra ou as outras lhes ensinavam: preparar bálsamos e tinturas a partir de ervas, ensaiar as palavras e os movimentos de um ritual, interpretar as estrelas e, as que tinham aptidão, aprendiam línguas, a escrita e a leitura. Banmerren tinha uma pequena biblioteca. Como complemento, a arte dos presságios, da adivinhação e da profecia era apresentada às alunas de vestido azul. O estudo sério daqueles aspectos da arte era, principalmente, um assunto para as mais velhas, as que tinham atingido um determinado nível de competência e compreensão. Tuala gostava das mais velhas. Só havia sete, e tinham um olhar tão calmo e uns modos tão agradáveis que a faziam desejar ser uma delas, não apenas uma principiante num grupo de raparigas tagarelas que mal distinguiam geografia de genealogia e astronomia de aritmética. Habituada às lições intensas, por vezes inflamadas dos seus velhos tutores, Tuala remetia-se ao silêncio durante as aulas. A sua presença atraía as atenções; a jovem não queria ver as sobrancelhas erguidas e os sorrisos trocistas que as suas perguntas provocariam.

Assim se passaram duas Luas e chegou-se ao Verão. Tuala descobriu que a melhor aula do dia era história, razão pela qual as filhas de famílias nobres assistiam juntamente com as que procuravam ser servas da Que Brilha. Tuala nunca imaginara que ficaria contente com a presença da Rapariga Raposa mas, pelo menos, Ferada era honesta; a filha de Dreseida não pertencia à espécie de rapariga sempre com risadinhas ou com segredinhos. Tuala apanhara Ferada, logo nos primeiros dias em Banmerren, a observá-la ao jantar, ocasião em que as raparigas nobres se sentavam numa única mesa e as outras em três mesas longas, sob o olhar perspicaz das mais antigas. Durante as refeições, Tuala sentava-se sempre sozinha. As outras deixavam um espaço em aberto, como se ela tivesse uma doença contagiosa, o que significava que o pão nunca lhe chegava às mãos; por vezes, a jovem nem comia. Tuala, uma rapariga que sempre tivera o apetite de um pássaro, não deixava que isso a deprimisse. Pelo menos, tirava-lhe a necessidade de pensar no que dizer, mas era evidente que Ferada se sentia preocupada.

A jovem olhava para Tuala com as suas elegantes sobrancelhas franzidas e trocava comentários com a rapariga a seu lado, a que tinha olhos amistosos e cabelos que pareciam uma cascata dourada. Esta era interessante. Tuala descobrira que o seu nome era Ana, que era uma refém real das ilhas do norte e que estava sob a custódia do rei Drust, servindo de penhor para que os seus parentes não atacassem as costas de Fortriu. Totalmente inocente, Ana deixara para trás a sua terra e a sua família. Há quatro anos que a jovem dividia a sua vida entre Banmerren e Caer Pridne, afastada de tudo o que amava. Era pouco mais velha do que Tuala. Dizia-se que sempre que saía do interior das muralhas de Banmerren, Ana era acompanhada por um grupo de quatro guardas corpulentos para o caso dos seus parentes decidirem que a sua liberdade era mais importante do que o perigo de desafiar o rei Drust. Na corte, Ana andava sempre rodeada de homens armados. O rei das Ilhas Pequenas era primo de Ana, e o seu estatuto era inferior ao do monarca de Fortriu. Nos seus quatro anos como refém, não houvera qualquer tentativa para a libertar. Tuala não sabia como aquela jovem de cabelos dourados conseguia ser tão serena, e ter aquele ar tão tranquilo.

Quando da primeira lição de história, Ferada sentou-se ao lado de Tuala e Ana no outro, e a partir dali as três jovens passaram a sentar-se sempre juntas. Durante aquela hora, Tuala fingiu que não estava sozinha em Banmerren. Uma das raparigas vestidas de verde, Derila, era quem conduzia a aula, uma alternativa agradável para as perguntas ásperas e comentários mordazes de Irethra. Derila era inteligente e justa. Queria que todas as alunas participassem e lidassem positivamente com os seus erros. Nas aulas de Derila nunca havia silêncio.

Ferada também era inteligente. A sua mão erguia-se em resposta a todas as perguntas; se discordava de um determinado ponto, discutia com convicção. Tuala começou a refazer a idéia que tinha dela.

Ana também tinha talento para aquela disciplina. Menos dada a disputas, agarrava-se à sua idéia, aprendia com facilidade e era o tipo de aluna que acordava cedo para estudar enquanto as outras ainda dormiam. Ana era capaz de bordar e recitar simultaneamente a história dos reis dos Folir, sem errar em nenhuma das coisas. Era capaz de desenhar mapas num tabuleiro cheio de areia, sabia quais as estrelas que davam boa sorte e as que pressagiavam uma vida de luta, sabia cantar e tocava harpa.

Quanto a Tuala, durante a aula de história não tinha medo de falar. Um dia, a jovem respondeu cuidadosamente a uma pergunta, depois a outra, e disse o que sabia sobre os símbolos do parentesco e o modo como eles eram utilizados nas esculturas das pedras, dependendo se pertenciam a Circinn ou a Fortriu. A explicação levou algum tempo porque o assunto era complexo, muitas vezes discutido com Wid e Erip. A classe ouviu-a, muda, tal como Derila. A partir dali, a tutora pedia muitas vezes a Tuala algumas elucidações e por vezes ficava a falar com ela depois da aula. Não era como nos velhos tempos em Pitnochie, mas era bom.

A adivinhação, porém, era o oposto. Aquela disciplina não era estudada pelas raparigas nobres; durante aquelas sessões podiam andar a cavalo visto que tinham as suas montadas pessoais no estábulo da herdade, no exterior das muralhas. Os guardas de Ana nunca andavam longe; ficavam aquartelados na herdade quando se encontravam em Banmerren. Quando o tempo estava inclemente, as raparigas nobres sentavam-se a bordar e a conversar. Por norma, as conversas que Tuala ouvia tinham como principal assunto rapazes das suas relações.

Tuala e as suas colegas mais novas reuniam-se numa sala fria, sob o olhar de Irethra, com uma tigela de bronze em cima da mesa. Irethra explicava-lhes os rudimentos.

— Provavelmente, não verás mais do que o teu próprio reflexo... é normal... tens de focar a mente...

Tuala olhava para uma mancha na parede que tinha mais ou menos a forma de um cão, para os arranhões nos bancos, para os riscos no chão e para as mãos juntas da rapariga a seu lado.

— Concentra-te... não te distraias... respira lenta e firmemente como eu te ensinei...

Odha, pálida devido à tensão, estava inclinada sobre a tigela que outra rapariga enchera com a água de um jarro colocado sobre a mesa. Tuala olhava para os chinelos de feltro de Odha, para as dobradiças da porta, para o gato de Fola, Sbade, sentado ameaçador a um canto, para qualquer coisa que a fizesse afastar a vista daquela superfície trêmula cheia de segredos, para qualquer coisa que a impedisse de revelar que era capaz de ver.

— Respira, Odha. Concentra-te... Liberta a mente...

Uma longa espera em silêncio. Por fim, Odha endireitou-se com alguma ansiedade no rosto.

— Não consigo ver nada — disse ela, desanimada.

— Esta técnica é uma dádiva da Que Brilha — explicou Irethra, muito pouco carinhosa. — Nas tuas orações, fala com ela e procura a sua sabedoria; há de vir com o tempo, quando ela achar que estás pronta. O nosso ofício não se aprende num dia, ou numa estação, ou num ano, mas com disciplina e uma prática rigorosa. Isto não é um teste, filha, é apenas o começo. Tuala! — O tom da sua voz tornara-se áspero, gelado.

Tuala sobressaltou-se.

— Sim, Irethra?

— Estou a ver que achas esses riscos no chão muito fascinantes; talvez no lugar de onde vens as pessoas não se preocupem com certas coisas. Estás aqui para aprender, não para sonhar. Ou talvez aches que eu não tenho nada para te ensinar? Que sabes tudo?

Ouviu-se uma série de risadinhas rapidamente reprimidas pelo olhar que Irethra lançou à sua volta. Tuala olhou para as próprias mãos. A jovem não queria mentir; sentia que A Que Brilha esperava que ela dissesse sempre a verdade naquela casa de Mulheres Sábias.

— Creio que não devia estar nesta aula — disse ela calmamente. Não se ouviram quaisquer risadinhas. Em sua substituição, olhos e bocas abertas, horrorizadas. A língua de Irethra era universalmente temida; ninguém se atrevia a desafiá-la. Além disso, como principal assistente de Fola, Irethra era conhecida como a própria fonte da sabedoria. O fato das suas aulas serem suportadas, em vez de desfrutadas, não fazia diferença.

— És capaz de ter razão — disse Irethra com secura. — Algumas alunas nunca chegam a conseguir dominar a arte da adivinhação. As imagens que surgem na tigela estão-lhes vedadas. No entanto queremos que, pelo menos, tentem. Os teus tutores é que decidem se tens aptidão ou não. As que não têm talento dedicam-se a outras tarefas.

— A esfregar o chão — murmurou alguém.

— Eu não quis dizer isso — começou Tuala, desesperada, fazendo um enorme esforço para se manter calma, mas incapaz de se calar perante o olhar daquela mulher, que a queria colocar ao nível de uma coisa qualquer que se esmaga com a sola do sapato. — O que eu disse foi que preferia não fazer isso aqui, na aula... prefiro fazê-lo sozinha, com orações e o ritual apropriado...

O olhar de Irethra voltou a alterar-se; havia algo nos seus olhos que era verdadeiramente alarmante.

— Terei ouvido bem? — O seu tom de voz não estava de acordo com o olhar; era suave. — Tu, uma aluna nova, uma filha da floresta que veio para aqui por bondade da nossa sacerdotisa principal, estás a tentar dizer-me como devo conduzir as minhas aulas?

Tuala sacudiu a cabeça. A raiva e a angústia misturavam-se-lhe no coração. A jovem enfrentou o olhar de Irethra, fazendo o possível para que a água brilhante não se cruzasse com a sua visão.

— Não — respondeu ela no tom mais polido que conseguiu encontrar. — Eu não sou Mulher Sábia nem tutora, mas ensinaram-me a amar os deuses e a observar os seus rituais. Estudo esta disciplina desde criança. Tenho a certeza que sabe o que é apropriado para as suas alunas. Tudo o que posso dizer é que, para mim e para outras pessoas da minha casa, esta prática sempre foi algo de solitário, um ritual entre a vidente e os espíritos. — Aquilo não era inteiramente verdade; olhara para o Espelho Negro ao lado de Bridei e cada um vira a sua própria visão. Porém, Bridei era uma parte de si própria, e ela dele; era diferente. — Peço autorização para sair da sala; quero praticar sozinha. Também posso esfregar o chão, se achar que é apropriado.

Durante alguns momentos, Irethra olhou para ela. De seguida, a Mulher Sábia afastou-se e a tigela ficou à vista, a água imóvel refletindo a luz de duas velas colocadas sobre a mesa próxima. As imagens dançavam na sua superfície, atraindo Tuala contra a sua vontade. O silêncio era total.

— É a tua vez — murmurou suavemente Irethra. — Diz-nos o que vês, rapariga selvagem.

As coisas tinham ido longe demais. A água chamava-a. A visão seduzia-a, tinha de olhar. Tuala aproximou-se. A tutora, as alunas, as velas, a sala silenciosa e as paredes de pedra dissolveram-se quando o seu espírito entrou em transe.

Uma mulher alta atravessou o espelho, a própria Que Brilha, vestida de prata e com um rosto tão radiante que Tuala não o conseguia fixar, não conseguia ver-lhe as feições ou a expressão, mas sabia que eram incomparavelmente encantadoras, e plenas de uma suave compaixão. Num ombro, empoleirava-se uma coruja de olhos redondos e lustrosos, de plumagem branca, imaculada. A deusa transportava nos braços uma criança vestida de peles brancas como a neve. A Que Brilha segurava nela com ternura, como se fosse a coisa mais preciosa do mundo. A deusa desvaneceu-se e, no seu lugar, surgiu uma cena tão estranha que, durante alguns momentos, Tuala não conseguiu perceber o seu significado. A visão mostrou-lhe uma atividade frenética, homens a cortarem árvores e a transformarem os troncos em toros polidos. Homens a mexerem em cordas, fabricando uma rede, ou arreios. Homens cavando a terra. Homens à beira da água construindo uma enorme jangada. Homens de guarda, como se esperassem um ataque. A jovem conhecia alguns deles: Donal junto dos que trabalhavam com cordas, Enfret de guarda, Gartnait, o irmão de Ferada, encostado a um muro sem fazer nada, olhando apenas com uma expressão trocista. Em seguida, uma visão terrível: um enorme monte de corpos a arder. Tuala, como vidente, mordeu o lábio ao ouvir as mulheres aos gritos, despedindo-se desesperadamente dos maridos, dos irmãos, dos pais, dos filhos. Parecia que a batalha terminara; Fortriu vencera. Porém, que estavam os homens a fazer?

Então, por fim, surgiu Bridei na imagem. A jovem sentiu lágrimas nos olhos ao vê-lo. Vivo, são e salvo. O jovem estava no cimo de uma colina, com o vento fustigando-lhe os cabelos, dando ordens que alguns homens se apressavam a cumprir. Bridei parecia tão alto, tão solene, tão homem.

Mais escavações. Espantosamente, parecia que estavam a soltar uma enorme pedra do solo, puxando-a com cordas, até que o monólito caiu em cima de uns troncos que funcionavam como rolos. Enquanto a jovem olhava, perplexa, para as imagens, a pedra maciça desceu colina abaixo com os homens correndo a seu lado, mudando os rolos de trás para a frente, outros fazendo força nas cordas para abrandar a velocidade da descida. A seu lado, Bridei incitava-os, encorajando-os, alterando o ângulo do enorme monólito para que pudesse ser de novo erguido, certamente uma tarefa hercúlea, mesmo com tantos homens. Um homem de expressão selvagem ao lado de Bridei, paradoxalmente com lágrimas nos olhos. Uma marcha lenta, esgotante, os homens agarrados às cordas e puxando agora em terreno plano, ao mesmo tempo que outros continuavam a mudar os pesados rolos de trás para a frente. Por fim, a margem do lago e uma transferência complicada com madeiras em forma de calço, grandes alavancas e cordas grossas, a pedra passando da margem para uma espécie de ninho em cima duma jangada. Tuala perguntou a si própria se aquilo não se iria afundar sem deixar rasto. Se os deuses não iriam punir aqueles homens de rortriu pelo que parecia ser um ato ultrajante, apesar do objeto lhes pertencer por direito. Porém, com um coro de vivas — era espantoso como aqueles homens tinham fôlego para algo mais do que um suspiro —, a Pedra Mágica flutuou aninhada na sua cama de cordas, tal como a jangada flutuou nas águas agitadas do que parecia ser o Lago do rei no extremo ocidental do Grande Vale. Talorgen deu uma palmada no ombro de Bridei, felicitando-o. Donal estava junto deles, as tatuagens deformadas pelo orgulho. Gartnait não estava à vista.

Bridei sorria. Tuala conhecia aquele pequeno sorriso e sabia, pela sombra nos seus olhos e pela palidez do rosto, pelas articulações dos dedos das mãos fechadas que, para ele, aquela dupla vitória tinha algo de derrota, de insucesso. A campanha terminara e iam regressar a casa. Os homens iam regressar a casa e Bridei necessitaria de falar, de dizer o que o atormentava, o que lhe toldava o espírito, o que lhe confundia os pensamentos e lhe apertava o coração. O jovem não conseguia confiar aqueles segredos a Donal, pelo menos, na sua totalidade, e não permitiria que Broichan lhe visse as lágrimas. Bridei precisaria dela e ela não estaria presente.

Mais tarde, Tuala não teve a certeza se a imagem desaparecera por sua vontade ou se se desvanecera por si própria. A jovem permaneceu a olhar para a água durante muito tempo, já não como vidente, mas também ainda não como ela própria. Então, uma voz disse:

— Ela está a chorar.

Irethra, em voz baixa, cautelosa, respondeu:

— Silêncio. Uma das coisas que tens de aprender é a não perturbar uma pessoa em transe. É preciso dar tempo a que a imagem desapareça, dar tempo a que a pessoa regresse a si. — Em seguida, após um período de espera: — Tuala?

A jovem pestanejou. As velas tremeluziram e o círculo de rostos surgiu, rostos jovens, fixos, de olhos abertos de espanto. Tuala sentiu-se fraca, enjoada. Há já muito tempo que não o via, e agora aquilo...

— Senta-te — indicou-lhe Irethra. — Odha, vai buscar água. Vocês, dêem-lhe espaço. Respira lentamente, Tuala.

Shade, o grande gato, escolheu aquele momento para se levantar e saltar para o banco, ao lado de Tuala. O animal encostou a cabeça à jovem, ronronando e ela estendeu uma mão para lhe afagar o espaço entre as orelhas. A carícia era reconfortante. Dava-lhe o que a fala humana não lhe podia dar, trazia-lhe o seu mundo de volta.

— Bebe isto — disse Irethra, metendo-lhe uma malga de água nas mãos. — Meninas, têm muito a aprender com o que acabam de presenciar. Quanto mais não seja, assistiram ao perigo que é fazer esta experiência sem assistência. Não se deve fazer isto. Tanto o corpo como a mente pagam uma fatura muito elevada. Enquanto não atingirem um certo nível, devem ter sempre uma acompanhante. — A tutora virou de novo a sua atenção para Tuala. — Com que então — observou ela — estavas a dizer a verdade. O que é que viste? Diz-nos.

Não valia a pena protestar; uma recusa só atrairia ainda mais as atenções. Irethra não desistiria enquanto não obtivesse uma resposta.

— Penso que as imagens eram atuais, ou recentes — respondeu Tuala. — É claro que, por vezes, as imagens são do que pode vir a acontecer, ou do que pode ter acontecido. Nem sempre é possível ver o que queremos ver. Às vezes, não conseguimos respostas. Outras vezes, as respostas estão lá, mas escondidas. Vi relances dos homens do rei Drust. Como sabe, eles partiram em campanha com o chefe tribal Talorgen na esperança de reclamar o território de Galany’s Reach, onde se encontra a Pedra Mágica.

A audiência estava completamente silenciosa, à espera de mais.

— Pareceu-me que eles venceram a batalha. E... estavam a mover a pedra, a arrancá-la do chão com cordas e madeira, e a levá-la para uma jangada para a transportarem para Fortriu. — A jovem não falou na Que Brilha e também não falaria em Bridei.

Irethra franziu a testa.

— Como é possível uma criança como tu ter esse tipo de visão? perguntou ela. — Que sabes tu desses assuntos?

— Mover a Pedra Mágica? — inquiriu Reia, espantada. — Essa pedra não é mais alta do que um gigante e mais grossa do que o pescoço de um touro? Como é que eles conseguiram?

Tuala viu de novo as feições jovens e determinadas de Bridei. Os olhos brilhantes, nos quais a consciência da presença dos deuses nunca estava distante. Com o líder adequado, os homens são capazes do impossível.

— Fizeram-no com magia druídica e com inteligência — disse.

— Hmm — murmurou Irethra. — Que história estranha, pouco verossímil. Porque haviam eles de fazer uma coisa dessas quando as pedras são colocadas num determinado local como símbolos da descendência do nosso povo dos sete filhos de Pridne? As pedras simbolizam o território e o sangue. Tirá-las do local é um insulto aos deuses, é um mau presságio. Quem decidiria uma coisa dessas após uma vitória em combate?

— Eu compreendo as razões — replicou Tuala. — O ato em si parece estranho, pode provocar um desequilíbrio na estrutura da nossa terra, mas Galany’s Reach pertence agora a Dalriada. Fortriu perdeu aquele território há anos. As forças de Talorgen não podiam aguentá-lo; está demasiado afastado das nossas próprias fortalezas. Esta campanha não teve o propósito de reconquistar o território de Galany’s Reach, foi um ataque simbólico. Um aviso do que poderá acontecer se Dalriada pensar em se expandir na direção do Vale. Trazer a pedra é um ato de coragem e de imaginação. Difícil, cansativo, inspirador. Deve ter sido motivo de orgulho para os nossos homens e deve ter desestabilizado o inimigo. Pelo menos — disse a jovem, apercebendo-se de que estava a dizer mais do que tencionava —, é o que penso.

— Como é que tu sabes isso tudo? — perguntou uma das raparigas. — Batalhas, territórios e tudo o mais?

— Está a inventar tudo — disse outra com a mão a tapar a boca.

— Tive excelentes tutores — retorquiu Tuala. — Tive sorte.

— A sorte faz parte — interrompeu Irethra num tom cortante —, e fazer bom proveito dessa mesma sorte é uma vantagem. Depois há o talento natural. Meninas, estou a ouvir a campainha. Toca a andar para o refeitório. Não corras, Odha, não estás a morrer de fome.

Irethra e Tuala ficaram sozinhas na sala, conscientes de que ainda havia mais para dizer.

— Peço desculpa — disse Tuala, sincera. — Tentei não olhar, mas às vezes acontece. As visões estão na água à minha espera.

Irethra respirou fundo.

— É óbvio que aprendeste esta técnica antes de vires para Banmerren. Quem te ensinou? Broichan?

Tuala ter-se-ia rido se não estivesse tão nervosa.

— Os meus tutores ensinaram-me muitas coisas, mas não me ensinaram isto. Nunca me ensinaram as artes dos druidas ou das Mulheres Sábias. E Broichan nunca me ensinou nada. Exceto a ter medo. Ele achava que eu não precisava de instrução.

— Dir-se-ia — observou Irethra, despejando a água da tigela no jarro — que, no que diz respeito à adivinhação, ele tinha razão. Queres dizer com isso que aprendeste isto sozinha? Que és capaz de invocar estas visões sem qualquer técnica, simplesmente através da força da vontade?

— Oh, não! — exclamou Tuala, chocada. — As imagens são-me enviadas pelos deuses, não são apenas invocadas. Por vezes, é possível submetê-las ou moldá-las com a mente, fechar algumas e fortalecer outras. — Tuala fizera aquilo mesmo quando os Boa Gente tinham tentado encher-lhe o espelho com imagens que ela não queria ver. Então, invocara A Que Brilha e a deusa mostrara-se na água límpida.

— Eu penso que, se a vidente quiser saber algo, talvez fazer uma interpretação do futuro, os deuses moldam as imagens de maneira a ajudar. Pelo menos, é o que a experiência me diz.

— Estou a ver. — Irethra parecia espantada, confusa. As suas mãos ágeis taparam a bacia com um pano, cobriram o jarro e uniram-se quando a Mulher Sábia se colocou em frente de Tuala. A jovem pôs-se respeitosamente de pé.

— Tuala — disse Irethra.

— Sim?

— Penso que é melhor não falarmos abertamente sobre esta aula com as raparigas. Se elas te fizerem perguntas sobre o que aconteceu, dá-lhes uma resposta curta, mais nada. Não te deixes arrastar para discussões complicadas, nem tentes demonstrá-las. Estas raparigas são principiantes e vulneráveis. Compreendes?

— Claro. De qualquer modo, elas não me perguntam, não me falam. — Seguiu-se um breve silêncio.

— Teremos cometido um erro ao deixar-te ficar sozinha? — perguntou Irethra.

— Oh, não! — Tuala ficou horrorizada perante a perspectiva de ir para uma das camaratas e ficar rodeada de raparigas aos segredinhos dia e noite. A torre era sua, era o seu local, seguro, silencioso. O carvalho era o seu refúgio, o seu pedaço de Pitnochie naquele território diferente. A pessoa que tivera a idéia de a colocar na torre demonstrara sabedoria e bondade. — Sinto-me bem onde estou. A torre é ideal para mim.

— Talvez — disse Irethra. — Podes ir. Amanhã, em vez de vires a esta aula, vais ter com Fola. Ela queria saber dos teus progressos e chegou a hora de lhe dizer alguma coisa. Vou informá-la que vais ter com ela. E agora vai, ou perdes o jantar.

Tuala já se encontrava junto à porta quando Irethra lhe disse:

— Achas que é verdade? Eles trouxeram mesmo a Pedra Mágica?

— Suponho que saberemos quando os homens de Talorgen chegarem — disse Tuala, voltando a ver mentalmente o rosto de Bridei, e consciente, no seu coração, de que a visão fora um registo verdadeiro e exato do que acontecera. Uma outra imagem sobrepôs-se àquela recordação: um homem agarrado à própria garganta, sufocando até à morte. Nas imagens que acabara de ver, Bridei ainda não tinha o rosto tatuado. Broichan, porém, prometera-lhe ação. O jovem já devia ter um provador e guardas extra. Apesar de tudo, só queria ver Bridei de regresso a Pitnochie são e salvo.

— Suponho que sim — disse Irethra. — Se for verdade, pode ser um bom presságio para o futuro dos Priteni. Muito bom. — O tom de voz mudou. — Toca a andar — disse ela. — Tenho mais que fazer.


Na manhã seguinte, enquanto as outras se dirigiam para a aula, Tuala esperava à entrada dos aposentos de Fola. Shade também estava do lado de fora da porta. A jovem tinha-o visto antes no jardim atrás dos pássaros. Naquele momento, estava sentado, com as orelhas espetadas e com a cauda a abanar, impaciente por entrar. O gato possuía a sua rotina, tal como todas as pessoas em Banmerren e não gostava muito de a quebrar. Porém, a porta de Fola estava fechada; no interior, podia-se ouvir a voz da Mulher Sábia, cadenciada e calma. Tuala inclinou-se para afagar Shade. As muitas cicatrizes de antigos combates tornavam-lhe o pêlo áspero e gasto. Olhando para ela com olhos céticos, o animal ronronou.

A porta abriu-se abruptamente e a rapariga que saiu do quarto teve de estender os braços para evitar cair sobre Tuala e o gato, e estatelar-se ao comprido no chão.

— Oh... Peço desculpa... — balbuciou Tuala, estendendo a mão para a amparar.

A rapariga, arregalando os olhos, hesitou. Tuala lembrava-se vagamente de a ter visto durante os primeiros dias em Banmerren; magra, de rosto solene, sempre muito sossegada. Qual era o nome dela? Morna? Morva? Havia algum tempo que não a via nas aulas. Pensando bem, Tuala tinha-a visto no jardim com as outras, ou sentada a uma mesa durante muito tempo. Talvez tivesse estado doente. Os seus olhos eram muito estranhos. A jovem virou-se e desapareceu como uma sombra, não em direção à área comunal, antes em direção aos aposentos das mulheres. Só depois dela se ter afastado é que Tuala se apercebeu de que Morna não usava o vestido azul das raparigas mais novas, usava um vestido branco como a neve.

— Entra, Tuala. — O tom de voz de Fola não dava qualquer indicação de qual o seu estado de espírito. Shade já entrara e sentara-se no banco ao lado da Mulher Sábia, andando em círculos em cima de uma almofada. Tuala perguntou a si própria se o animal se teria alguma vez atrevido a sentar-se nos joelhos da dona. Talvez fosse pouco digno para ambos.

— Irethra falou-me do que aconteceu ontem — continuou Fola —, e do teu pedido para não praticares a adivinhação com as outras. Surpreendeste-a.

— Lamento... Tentei dizer-lhe...

— Se calhar, não fui justa contigo e com Irethra. Para mim, não foi surpresa; raramente me engano e detectei algo em ti quando nos encontramos pela primeira vez, algo que se materializaria e que seria poderoso e perigoso ao mesmo tempo. Esperei muito tempo, até te receber em Banmerren, enquanto os teus tutores em Pitnochie te davam uma educação muito para além daquilo que oferecemos neste estabelecimento de raparigas. Podia ter avisado Irethra e as outras, mas pareceu-me melhor deixar que as coisas fossem correndo durante algum tempo para ver o que pensavas de Banmerren e o que Banmerren pensava de ti.

Tuala não disse nada. Aquilo parecia-se com os jogos estratégicos de Broichan, jogos com pessoas. A jovem lembrou-se que Fola e o druida do rei eram velhos amigos.

— Achas que a tua visão foi uma imagem recente? Um reflexo da verdade? — A voz da Mulher Sábia soava com um tom de ansiedade, o mesmo tom que Tuala sentira na voz de Irethra. Ambas tinham apreendido o verdadeiro significado da visão da jovem.

— Sei que foi — respondeu Tuala.

— Sabes? — perguntou asperamente Fola. — Isso é arrogância, filha. Nós só sabemos quais são as intenções dos deuses quando estes portentos se tornam realidade.

— Sei. Sei porque Bridei entrava nela, e quando ele aparece eu nunca me engano. A não ser que seja uma visão do futuro, que pode ser alterado. — A jovem estremeceu. Se não fosse pelo envio rápido daquela mensagem por parte de Broichan e o futuro poderia ser bem triste.

Os olhos de Fola tinham-se semicerrado.

— Bridei. Tu não falaste a Irethra de Bridei. Pelo menos, ela não me disse nada. Qual é o papel dele no meio disso tudo?

Tuala mordeu o lábio, subitamente relutante em dizer mais, mesmo a alguém que sempre lhe parecera uma pessoa amiga.

— Eu não lhe quero mal, Tuala — disse Fola. — Aliás, é precisamente o contrário. Tal como Broichan, eu estou comprometida com o futuro de Bridei. Podes confiar em mim; estou a dizer-te a verdade.

— Era ele que estava a comandar a operação de transporte da Pedra Mágica para o Lago do rei — explicou Tuala. — Foi tudo obra dele. Todos os outros o seguiram, guerreiros e chefes tribais. Foi ele que os inspirou, que acordou neles a chama da Guardiã das Chamas. Creio que os homens se vão lembrar disto durante muito tempo.

Fola acenou com a cabeça.

— Broichan vai ficar muito satisfeito — disse ela. — E o rei também. Vivemos tempos interessantes, muito importantes.

— Fola?

— Sim, minha filha?

— Tenho tentado trabalhar muito desde que vim para aqui. Tenho tentado, tal como prometi. Peço desculpa se fiz com que Irethra se zangasse.

Fola olhou em silêncio para a jovem durante alguns momentos.

— Irethra não está zangada — disse ela. — Talvez um pouco contrariada consigo própria por não ter percebido isto antes, mas nada que tenha a ver contigo. Tal como eu, ela gosta de alunas talentosas, que são raras. Pedi aos teus tutores que me enviassem um relatório sobre os teus progressos. Irethra recomendou que tivesses lições à parte em todos os ramos da arte que ensina, com ela ou comigo. Derila disse-me que os teus conhecimentos de história, geografia e política são excepcionais. Ela preferia que continuasses na aula dela visto que algumas das raparigas nobres são bastante inteligentes e todas teriam a ganhar com debates inflamados.

Tuala sacudiu a cabeça.

— Derila está a gostar — disse Fola, sorrindo. — Ela diz que esta é a melhor colheita de alunas que alguma vez teve. Tens feito amigas, Tuala?

— Amigas. — Tuala não sabia bem o significado da palavra, estava rodeada de raparigas tão diferentes que até pareciam de um outro mundo. — Nem por isso. A Rapariga... Ferada senta-se junto a mim e Ana tem sido amável. Elas são filhas de chefes tribais e eu sou... o que sou. Penso que nunca poderemos ser amigas. Quanto às outras, bem, elas olham para mim, riem-se e dizem segredinhos umas às outras com a mão em frente da boca, mas não faz mal. Já era assim em pitnochie antes de vir para aqui.

Algo na sua voz, ou no seu rosto, fez com que Fola se aproximasse, perscrutando-a.

— Que queres dizer, Tuala?

A voz de Tuala saiu irregular apesar dos seus esforços para a controlar.

— Tornei-me indesejável. Broichan nunca me quis em Pitnochie, mas os outros gostavam de mim. Até que comecei a crescer. Começaram a ter medo de mim. Uma coisa estúpida, mas não o pude evitar. Foi então que Broichan me disse que eu tinha de partir.

— E o teu amigo? Bridei? Ele tem medo de ti, agora que és uma mulher?

Tuala olhou para ela, sentindo-se ultrajada.

— A pergunta é razoável — prosseguiu Fola calmamente. — De fato, muito apropriada visto que esse jovem está na idade em que pode ser muito vulnerável a esse respeito.

— Ele não está em Pitnochie — disse Tuala, piscando os olhos para afastar as lágrimas. — E é claro que não tem medo de mim. É claro que não. Conosco, as coisas são diferentes...

— Diferentes como?

Tuala cerrou os lábios. Aquilo não era justo; era cruel. Ninguém o podia compreender exatamente, ninguém senão ela própria e Bridei. Ninguém senão A Que Brilha, que os juntara muito tempo antes, no Solstício de Inverno.

— Deixemos isso por agora visto que te perturba — disse Fola. — Talvez tenhas vindo para aqui na altura ideal. Quanto ao outro assunto, vamos alterar os teus dias de trabalho para que possam encaixar-se nas aulas que vais passar a ter comigo de manhã, em vez de assistires às aulas de Irethra. Vais continuar a assistir às aulas de Derila. Penso que só terás a ganhar com isso. As raparigas nobres regressarão à corte assim que Talorgen vier para Caer Pridne. Se as tuas visões forem tão exatas como pensas, pode ser que isso aconteça dentro de pouco tempo. Depois, pode ser que Derila peça a tua ajuda para ensinar algumas das outras raparigas, se concordares.

Tuala ficou a olhar para ela.

— Creio que elas não gostarão. Provavelmente, ainda me detestarão mais.

As sobrancelhas de Fola ergueram-se.

— Mas como é ao serviço da Que Brilha, vais fazê-lo mesmo assim, não vais? — perguntou ela.

— Vou, Fola. Broichan dizia permanentemente que estamos sempre a aprender, apesar de estarmos acima daqueles que nos consideram inferiores, diferentes.

— Também quero — disse Fola — que fales a Ferada e a Ana sobre alianças através do casamento, sobre o que as espera como filhas de chefes tribais e o porquê daquilo que se lhes pede.

— Mas...

Fola silenciou-a com um olhar.

— Sei que tu sabes tudo sobre o assunto. Em teoria. A descendência real, a importância dos laços entre as sete casas, etc. Este assunto não pertence às conversas das raparigas da tua idade, mas acredita que o futuro é regido por ele.

— Se assim o desejas, mas não percebo por que razão.

A Mulher Sábia olhou intensamente para Tuala durante alguns momentos.

— Suponho que é normal saberes porquê — disse ela. — Sentir-me-ia mais descansada se aceitasses a idéia de que estar em Banmerren é bom para ti, que podemos ensinar-te algo que valha a pena.

— Eu não quis dizer... — Fola ergueu uma mão.

— Nem eu; mas já me deste pistas suficientes quanto ao teu estado de espírito, Tuala. Creio que desejas um futuro como sacerdotisa da Que Brilha, ou como estudiosa, ou como tutora, por mais aptidão que tenhas, e tens. Tu falas muitas vezes em Pitnochie com um tom de voz que vai muito para além da nostalgia que afeta a maior parte das alunas. Tu não falas muito de Bridei. Porém, quando falas, sinto que ele está permanentemente nos teus pensamentos.

Tuala não disse nada. A jovem não sabia o que Fola pretendia com aquilo nem a sua relação com o que a Mulher Sábia lhe perguntara antes.

— É muito importante que percebas a importância da oportunidade que te foi oferecida, Tuala — continuou Fola, muito séria. — Fala com Ana e Ferada. Pensa nas tuas outras opções, que talvez sejam menos do que imaginas. Pensa na vida que tens aqui e no seu significado. Sei que vivemos encerradas entre quatro paredes, mas a sua proteção dá-nos uma liberdade especial, uma liberdade de pensamento e de espírito muito especiais. Eu não duvido do teu amor pela Que Brilha, minha querida, só quero que vejas as coisas sob determinadas perspectivas.

— Sim, Fola, eu falo com as raparigas nobres.

— Ótimo. Agora, podes ir. Irethra disse-me que gostas de estar na torre. Não preferes ficar com as outras? Talvez elas te aceitem melhor!

— Talvez, mas acho que não gostaria. Gosto de ver o céu e estou habituada ao silêncio, a estar sozinha.

Fola anuiu.

— E gostas de árvores — disse ela. — Lembro-me de te ver escondida nas raízes de uma árvore, há muito tempo. Muito bem, toca a andar. Estou ansiosa por trabalhar contigo. Espero que aprendamos as duas uma com a outra.

O que parecia uma coisa simples para a Mulher Sábia exigia, de fato, uma certa coragem. Manter-se isolada, excluída, podia ser visto como uma questão de orgulho da sua parte. Aproximar-se das raparigas nobres fora do contexto da aula de história era tentar ser admitida num círculo a que não pertencia, um convite à humilhação.

Ana e Ferada tinham levado a sua ração de pão e queijo para o jardim. As duas raparigas sentaram-se no seu local habitual, um banco de pedra à sombra de uma pereira, juntamente com outras alunas. As duas jovens podiam representar duas manifestações diferentes da virgem Todas as Flores: Ferada o Outono com o seu vestido castanho avermelhado, os cabelos ruivos presos no alto da cabeça, e as feições vincadas suavizadas pelas sardas nas maçãs do rosto e no nariz. Ana era a Primavera com os caracóis claros caindo-lhe em cascata sobre os ombros, com a túnica tradicional e a saia direita do povo das ilhas, de cor creme com a bainha em tom de miosótis. Num dos ombros, um alfinete de prata prendia-lhe o xale. A jóia tinha a forma de um animal marinho, meio cavalo, meio foca, meio outra coisa: um dos símbolos antigos da linhagem das Ilhas Pequenas. Ao ver as duas jovens Tuala sentiu, enquanto pensava no que lhes dizer, que havia algo que as diferenciava das outras. Se era o sangue nobre, o resultado da educação ou o toque especial da deusa, não sabia, mas as duas raparigas tinham um ar encantador, poderoso — apesar das suas reservas em relação à Rapariga Raposa — e, de certo modo, bom. Tuala apercebeu-se de que Ferada estava a olhar para ela.

— Senta-te aqui junto de nós, Tuala — disse Ana com a sua voz doce e melodiosa. — O Sol está tão quente hoje; acho que a Guardiã das Chamas está contente com Fortriu. — A jovem afastou-se para arranjar espaço no banco. Ferada permaneceu onde estava com uma expressão algo divertida. Quando Tuala se aproximou, as outras raparigas levantaram-se sem uma palavra, e afastaram-se.

— Peço desculpa — disse Tuala — não queria...

— Shhh — murmurou Ana. — Senta-te. Não se preocupe com elas, não passam de um bando de raparigas parvas. Ah! — acrescentou triunfalmente quando Tuala se sentou entre as duas. — Perdeste, Ferada!

Tuala olhou duma para a outra, e as faces de Ana coraram ligeiramente.

— Uma aposta — disse Ferada. — Quanto tempo levaria até arranjares coragem para te sentares junto a nós. Infelizmente, aqui em Banmerren, não temos muito em que apostar. Vou ter que lavar os cabelos da Ana, logo à noite. De qualquer maneira, é uma coisa que fazemos uma à outra desde que aqui estamos.

A Rapariga Raposa parecia quase humana. Era surpreendente. A jovem sempre se mantivera distante, excetuando as aulas de história.

— Ouvi dizer que vais para a corte — arriscou Tuala. — Quando o teu pai regressar.

Ferada sorriu.

— É inevitável — disse ela. — Ficamos aqui algum tempo, encerradas nestas quatro paredes, e algum tempo em Caer Pridne, sorrindo para os homens que as nossas famílias acham convenientes. Na verdade, não sei o que será pior.

— Mas vais ver a tua família — replicou Tuala, surpreendida. — A tua mãe e os teus irmãos mais novos.

Ferada ergueu as sobrancelhas.

— Tu terias pressa de ver Uric e Bedo se eles fossem teus irmãos? Rãs na cama, gritos e guinchos quando estou a tentar estudar, piadas sobre os rapazes de quem gosto?

Tuala sorriu contra vontade.

— Pensei que eram dois rapazes simpáticos — disse ela. — A mim, fazem-me rir.

— Não ameaçaste transformar Bedo num tritão? Foi o que ele me disse.

— Creio que disse algo no gênero — replicou Tuala. — Ele devia saber que eu estava a brincar.

Ana riu-se.

— Deve ser bom ter irmãos mais novos — observou. — Eu só tenho irmãos mais velhos. E uma irmã. — Repentinamente, a jovem tornou-se muito solene. — Deve ter onze anos. Provavelmente já se esqueceu de mim.

— Hmm — murmurou Ferada, partindo um pedaço de pão e atirando-o a um tordo que saltitava na relva. — Os irmãos mais velhos podem ser uma preocupação. Não concordas, Tuala?

— Não sei — respondeu Tuala. — Não tenho irmãos, ou irmãs. Na sua mente surgiu a imagem das duas personagens da floresta, a rapariga de cabelos como uma teia de aranha e os caracóis anelados, e o rapaz cheio de nozes, bagas e hera. Se a sua família era constituída por gente daquela, não admirava que as outras raparigas olhassem para ela de lado.

— Ah, isso é que tens — exclamou Ferada. — Tens Bridei. Um irmão adotivo.

Seguiu-se um curto silêncio.

— Preciso de te perguntar uma coisa — disse Tuala.

— Pergunta — retorquiu Ferada, interessada. Surgiu-lhe um brilho especulativo nos olhos.

— Fola quer que eu saiba coisas sobre... o vosso futuro. Casamentos e alianças.

— Porquê? — perguntou Ana, espantada. — Fola sabe que as aulas de história servem para isso. Além disso, tu já sabes mais do que nós todas juntas.

— Não é isso que ela quer — disse Ferada. — O que ela quer é saber as coisas que as tutoras não ensinam.

— Não estás a falar... — As faces de Ana voltaram a enrubescer. Ferada sorriu trocista, olhando de lado para a amiga.

— Duvido que Fola queira que nós te digamos coisas sobre a alcova — disse ela secamente. — O que ela quer é que nós te falemos do que é esperado de nós e de outras como nós. Não será?

Tuala anuiu.

— Foi o que ela disse. Eu sei que são ambas de sangue real, que lady Dreseida é prima do rei Drust, por parte da mãe, e que Ana é parente afastada da linhagem que governa as Ilhas Pequenas. Isto quer dizer que um dia os vossos filhos serão pretendentes ao trono, e que, por isso mesmo, não podem casar com qualquer um.

— O que limita as nossas escolhas — replicou Ferada sombriamente. — Dá-te por feliz por poderes ficar em Banmerren, Tuala. É verdade que ficas afastada do mundo exterior, mas é melhor do que seres uma égua parideira de sangue real. Pode parecer uma espécie de poder, muita coisa depende de nós, mas não é verdade. Os homens é que tomam as decisões. Nós não passamos de parideiras.

— Não é assim tão mau — disse Ana. — É uma vida privilegiada comparada com a vida dura da mulher dum camponês, ou de uma serva.

— Como podes dizer isso? — perguntou Ferada, sentindo-se ultrajada. — Tu és uma prisioneira, estás na corte de Drust há uma série de anos, não podes ir a lado nenhum sem ser rodeada de homens armados. Há quanto tempo não vês a tua família?

Ana olhou para as mãos.

— Há muito tempo — respondeu. — Eles não vêm cá. Suponho que o meu primo tem medo de deixar aqui mais reféns. A minha família tornou-se condescendente. Suponho que era isso que Fortriu queria.

— Pareces sempre tão calma — arriscou Tuala, escolhendo as palavras com cuidado. — Como se não te importasses de ser prisioneira.

— Não vale a pena queixar-me — disse Ana. — A princípio, sentia-me triste. Triste e assustada, sentia umas saudades enormes da minha irmã. Porém, o rei e a rainha têm sido sempre muito amáveis. Além disso, ajuda um pouco passar aqui algum tempo, em Banmerren. Eu gosto de aprender, gosto da companhia das outras raparigas, em especial de Ferada.

— E não tens de ter os guardas sempre à tua volta — comentou Ferada secamente.

— É verdade — concordou Ana. — Há ocasiões em que a proibição dos homens entrarem neste santuário, exceto os druidas, é bem-vinda.

— Ana? — perguntou Tuala.

— Hmm?

— E se o teu primo... se ele...? — Era terrível dizer aquilo. A questão parecia, de fato, inimaginável.

— Essa pergunta é difícil — respondeu Ferada. Ana juntara as mãos no colo e os seus olhos cinzentos tinham ficado sombrios.

— Se o primo dela decidir deixar de ser obediente? E se ele decidir atacar Drust, o Touro, ou aliar-se a um inimigo como os Celtas, por exemplo? Não gostaria nada de arriscar uma resposta, salvo para dizer que, se eu fosse refém, sentir-me-ia muito menos confiante do que Ana.

— Penso que não me matariam — disse Ana em voz baixa. — Porém, suponho que é possível. Se não estivessem preparados para cumprir essa ameaça, não valia a pena manterem-me aqui em Fortriu. É difícil acreditar que é uma possibilidade, a rainha Rhian sempre foi muito boa para mim.

— Tu estás a salvo enquanto o teu primo acreditar que as coisas correm bem — observou Ferada. — Ainda bem que ele não te visita. Se ele visse como és tratada em Caer Pridne, perceberia imediatamente.

— Eu aceito a minha condição — disse Ana. — A nossa linhagem dá-nos importância, não só como éguas parideiras, como a minha amiga diz, mas também como peças no jogo estratégico da política. Há muito tempo que sei disso. É provável que o meu tempo como refém esteja a chegar ao fim. Já estou em idade de casar e é provável que o rei Drust me queira ligar a um chefe tribal perigoso, ou a um reizinho qualquer que ele queira aplacar. Depois, suponho que há de arranjar novos reféns.

— Como é possível sentires-te tão calma? — exclamou Ferada. Por vezes, estas coisas irritam-me tanto que sinto vontade de gritar, mas uma dama não pode fazer uma coisa dessas. Temos tanto para dar, podíamos fazer tanta coisa! Porém, como somos quem somos, não podemos escolher.

— Shhh! — sussurrou Ana. — Que Irethra não ouça o que estás a dizer. Ela acha que isso é um insulto aos deuses. Temos de aceitar a vida como ela é, Ferada. Temos de percorrer o nosso caminho.

— Hmm — disse Ferada com um sorriso trocista. — Voltando à tua pergunta, Tuala, nós vamos regressar à corte para mais uma série de apresentações a homens que as nossas famílias acham convenientes. Não há muito por onde escolher. Têm de ser de elevado nascimento, ricos, têm que ter um bom carácter e ser praticantes da antiga fé de Fortriu. Por outras palavras, têm que ser pais dignos de um futuro monarca. Por mim, ainda não encontrei nenhum com categoria suficiente para me tocar, quanto mais para me fazer o que um marido faz com a mulher. A maioria olha para mim de alto a baixo, como se estivessem a olhar para um pedaço de carne. Não conseguem evitá-lo.

— Não é bem assim — contrariou-a Ana, franzindo o sobrolho — Entre eles há homens de valor.

— De valor! — Ferada deu uma risada trocista. — Quem precisa de homens de valor? Não interessa. Sei muito bem que não podemos escolher. Se pudéssemos, diria aos meus pais que não quero ninguém. Faria como Fola.

— Pode ser uma vida bastante solitária — arriscou Tuala. Ferada olhou para ela com curiosidade.

— É estranho dizeres isso. Não gostas de estar sozinha? Passas a vida a fugir para a torre. Talvez Fola seja como tu. Talvez ela goste de estar sozinha com os seus pensamentos.

— As mulheres sábias têm a companhia dos deuses — retorquiu Ana. — Isso quer dizer que nunca estão sós.

— Por vezes, falamos aos deuses e eles não nos respondem — disse Tuala. — Quando isso acontece, a sensação de solidão é muito grande. — A jovem pensou em Bridei, e no seu olhar sombrio e rosto pálido, tenso. Nem os deuses nem os homens lhe poderiam dar as respostas que ele queria.

— O que é, Tuala? — A voz de Ana soava preocupada. — O que é que se passa?

— Nada. — Tinha de guardar os pensamentos para si mesma com maior cuidado. — Quando é que te casas? Broichan queria que eu me casasse. Só vim para aqui porque...

— Ele já tinha um pretendente para ti? — perguntou Ferada. Quem? Diz-nos!

— Um homem chamado Garvan. Um escultor. Eu não me quis casar com ele. Não me quero casar com ninguém.

— Nesse caso, vieste para o lugar certo — observou Ferada.

— Garvan — espantou-se Ana. — Estás a falar no famoso Garvan, o que esculpiu as pedras de Caer Pridne? Ele deve ser muito velho.

— Não sei se é famoso, pode ser que seja. Broichan falou em encomendas para o rei. Pareceu-me velho. Talvez trinta.

— Nós nunca nos poderíamos casar com um escultor — disse Ferada —, por mais famoso que fosse. Só nos podemos casar com chefes tribais ou com os filhos deles; por vezes, com reis de outros países. As mulheres de sangue real nunca ficam em casa. Suponho que é uma espécie de escape. Olha para Bridei.

— O que é que tem Bridei? — Tuala tentou parecer desprendida.

— Foi o que aconteceu com a mãe dele, casou com o rei de Gwynedd, foi para o país dele e teve alí os filhos. Em Gwynedd, Bridei tem irmãos mais velhos, é claro. Certamente que um deles há de suceder ao pai. Bridei é um pouco como Ana: foi separado da família por razões de Estado. É claro que pode casar comigo, ou com Ana, tem as qualificações necessárias. O único inconveniente é ser pretendente ao trono. É preferível o rei casar com alguém que não tenha sangue real, evitando assim que os seus filhos lutem uns contra os outros no futuro. Casar com uma mulher do mesmo sangue, mesmo uma prima afastada, concentraria demasiado poder numa só família. A linhagem ficaria diminuída.

— No entanto, as hipóteses são de que Bridei nem sequer avance com o seu nome chegada a ocasião. Há outros mais velhos, mais experientes. Um ou dois até são muito respeitados. O teu irmão adotivo nunca será candidato e por isso mesmo, não pode ser considerado como um provável marido para nós. Sou forçada a admitir que a perspectiva até é boa. A vida com ele seria demasiado solene, mas pelo menos não é um imbecil, como muitos. Broichan educou-o no amor aos deuses e a ter maneiras impecáveis.

— Acha-o demasiado solene? — perguntou Ana. — Alguns homens não riem com facilidade, o que não é mau. É melhor do que um homem que ri demasiado, por tudo e por nada.

— Ana gosta dele — murmurou Ferada a Tuala, erguendo as sobrancelhas. — Ela viu o teu irmão à distância, há dois anos, quando Talorgen levou os rapazes à corte. Disse que ele era bonito.

— Não disse nada — disse Ana, voltando a corar. — Nem sequer o conheço.

Tuala sentiu uma necessidade urgente de mudar de assunto.

— Os teus irmãos também são pretendentes ao trono — ripostou a jovem, virada para Ferada.

— Bem, sim — respondeu Ferada com um sorriso. — Tecnicamente, como filhos da minha mãe. Porém, Uric e Bedo ainda têm muito que crescer, e Gartnait é um inapto. Gosto muito do meu irmão mais velho, mas ele não tem as qualidades necessárias. Falta-lhe o essencial para ser um verdadeiro líder. Há uma coisa que sou obrigada a reconhecer. O merecedor e bastante aborrecido Bridei dá mostras cada vez maiores de ser um bom líder à medida que vai ficando mais velho. O meu pai nunca pensaria em considerar Gartnait como pretendente ao trono. De fato, dizem que Fortriu vai ter que tomar uma decisão dentro de dois Verões, no máximo. Drust está doente. Ouvi Irethra dizê-lo. Pouca sorte para os meus irmãos. Quando chegarem à idade adulta, Fortriu já terá um novo rei, jovem.

— Talvez não tão novo quanto isso — disse Ana. — Não te esqueças de que cada uma das sete casas dos Priteni avança com um pretendente, e é possível que alguns sejam de meia-idade. Alguns dos meus parentes poderiam apresentar-se porque são do mesmo sangue, mas duvido que o façam se a eleição for dentro de pouco tempo. A minha situação impede-o.

— É verdade — admitiu Ferada. — Os chefes tribais que irão fazer a seleção, escolherão um que já tenha experiência como líder. Alguém como o primo direito de Drust, Carnach, que é novo mas muito respeitado e poderoso no seu território. E leal. Creio que podemos pôr de lado Bridei e os meus irmãos. Se os seus nomes forem anunciados, as pessoas rir-se-ão. A maior ameaça vem de Circinn. De Drust, o Javali. Vai ser a sua oportunidade para unir as duas coroas, juntando assim os dois reinos sob a bandeira da fé cristã.

— Que A Que Brilha nos proteja desse horror — murmurou Ana.

— Achas que Drust, o Javali, é capaz de reunir o número suficiente de apoiantes? — perguntou Tuala, chocada. — Os chefes tribais que o apoiam serão suficientes?

— Será à justa — replicou Ferada. — Vêm aí tempos interessantes, perigosos. Se colocares perante um grupo de homens uma tal perspectiva de poder, tudo pode acontecer. — A jovem virou-se para Tuala.

— Está um belo dia para andar a cavalo. Queres vir conosco, Tuala? Tenho a certeza que somos capazes de fazer com que passes despercebida. — A jovem levantou-se com um brilho malicioso nos olhos.

— Não, obrigada — respondeu Tuala. — Tenho de... preciso de...

— Tudo bem, Tuala — disse amavelmente Ana. — Não queres quebrar as regras. Por vezes, Ferada torna-se um pouco rebelde, em especial quando fica fechada muito tempo, como um gato enfiado numa jaula. Espero que tenhas ficado satisfeita com as respostas que te demos.

— Sim, eu...

— Acontece que — prosseguiu Ferada — de certo modo, a coisa é tão má para os rapazes como para as raparigas. Os rapazes que podem ser pretendentes ao trono, também têm que cumprir determinadas regras. Também lhes escolhem as mulheres como escolhem os nossos maridos, não por nascimento, antes porque uma esposa real tem de ser perfeita, tem de estar para além de quaisquer censuras. Imagina essa pressão em cima de ti. Serias apenas a sombra do teu marido, o teu único papel seria refletir a sua glória como representante humano da Guardiã das Chamas e símbolo das aspirações de Fortriu. Tudo o que fizesses seria examinado de perto. Não terias vida própria.

— Certamente que se amasses esse marido — alvitrou Ana — não teria importância, pois não?

— Ouçam o que ela diz — troçou Ferada — com a sua conversa de amor! Não percebo como consegues sonhar com isso quando tudo indica o contrário. Vamos embora, estamos atrasadas. Diverte-te com o que vais fazer, Tuala. — Com um trejeito dos lábios, Ferada girou nos calcanhares e Ana seguiu-a.

Tuala encaixou-se nos ramos seguros e fortes da árvore, aproximando-se assim do coração da Terra. A copa espalhava-se, verde e fresca sob o calor do Sol. Ana dissera que a Guardiã das Chamas sorria a Fortriu. Podia muito bem ser. Tinham a Pedra Mágica e o país teria, em breve, um novo rei. Apesar das palavras de Ferada, Tuala estava optimista.

Não procuraria visões na água. Ela sabia que o que surgisse na água só serviria para a atormentar. Desta vez, não seria a imagem da Rapariga Raposa, Ferada, em adulta com um belo vestido sorrindo para o marido, ao mesmo tempo que este educadamente inclinava a cabeça na sua direção para ouvir o que ela lhe dizia. Não, desta vez seria a imagem de Ana. Tuala sentiu o coração gelar. Era indiscutível que o futuro rei de um país devia ter uma noiva a condizer com a sua pessoa. Não poderia assumir responsabilidades tão terríveis se não tivesse uma esposa capaz de o apoiar totalmente. Bridei não seria aceite pelos seus aliados e possíveis adversários, se não fizesse um casamento digno do seu povo e dos deuses. Tuala estava consciente de tal fato. A jovem vira Ferada como uma hipótese possível, mas pusera-a de parte porque a Rapariga Raposa nunca seria escolhida. A Que Brilha interviria antes que Bridei se aliasse a uma rapariga que o achava aborrecido, que nunca o amaria como ele merecia ser amado. Porém com Ana a questão era outra. Ana era jovem, bela, inteligente, de sangue real, doce e boa. Doía-lhe pensar nela. Ana gostava de Bridei e ele sem dúvida, gostaria dela. Como poderia não gostar? A jovem era absolutamente perfeita, a escolha ideal. Era fácil imaginar Bridei a confiar em Ana, tal como fizera consigo, contando-lhe os seus problemas os seus dilemas, partilhando com ela a sua luta para decidir o que fazer. Eram perfeitos um para o outro. Quase como que um desígnio dos deuses.

Não choraria. Engoliria as lágrimas. Se aquilo ajudasse Bridei, se fosse para o bem do futuro de Fortriu, então seria ideal. E se o seu coração ficasse despedaçado, seria um pequeno preço a pagar por um bem maior.

Tuala ergueu os joelhos e envolveu-os com os braços. Sentia um frio interior, muito pouco consentâneo com o Sol brilhante daquele dia. Provavelmente, nunca mais voltaria a ver Bridei. Nunca mais. Provavelmente, passaria o resto da vida no interior das muralhas de Banmerren ou noutra casa de Mulheres Sábias de Fortriu. Se amava mesmo A Que Brilha, como sempre pensara que amava, seria uma vida abençoada, uma vida de serviço dedicado, de pureza e força. Podia ensinar. Aliás, a oportunidade já se lhe oferecera.

Apesar de se esforçar, as lágrimas começaram a cair-lhe pelo rosto. Tuala sentiu uma terrível saudade de casa, dos bosques, dos carvalhos, da lareira, dos rostos enrugados e bondosos de Erip e Wid, animando-a. Da amizade de Brenna, dos resmungos de Ferat e da força autêntica de Donal. Das afirmações de Mara, do cheiro a roupa lavada e dos bolos de aveia acabados de sair do forno. A jovem ansiava por aquele mundo. Queria cavalgar Blase através da floresta, com Bridei a seu lado montando Snonfin e com o dia todo pela frente, cheio de coisas maravilhosas para descobrir. No entanto, Tuala sabia que aquilo não bastava, já não queria que Bridei a amasse como a uma irmã, queria... queria o impossível.

Não podes voltar atrás, dizia uma voz na sua mente, a mesma que lhe murmurara a história de Nechtan e de Ela ao ouvido. Não havia ninguém em cima da árvore, apenas ela e um pássaro ou dois. Porém, a rapariga teia de aranha e o Homem-Folha continuavam com ela, uma parte de si própria que não conseguia ignorar, nem sequer ali, em Banmerren, tão longe de casa. Não podes voltar atrás. Não àquele mundo. Aquela era a voz da rapariga e Tuala quase conseguiu ver a silhueta graciosa, imaterial, por entre os ramos, com os anéis de prata e o vestido leve, a pele translúcida e os cabelos brilhantes. Mas o nosso mundo está à tua espera. O teu mundo, Tuala, o mundo a que pertences. Tens de vir para casa, para junto dos teus. Não tens lugar nesse mundo. Nenhuma corte de reis, ou santuário te pode guardar durante muito tempo. Tal como os animais da floresta, não podes estar fechada. Mais cedo ou mais tarde terás que fugir.

Tantas lágrimas, disse o Homem-Folha e Tuala sentiu uma carícia, como se um pequeno ramo se estendesse para lhe limpar o rosto. Era, ao mesmo tempo, doce e perturbador. Conosco, não terás motivo para chorar, pequena. Estarás rodeada de amor. As corujas, os texugos, as lontras e os veados serão teus amigos. Beberás da madressilva e dançarás à luz da Lua. Viverás os teus dias sem medo ou tristeza, e só terás bons sonhos. Deixa isso tudo para trás, não foste feita para esse mundo. Vem para casa. Volta para a floresta. Nós mostramos-te o caminho...

Estavam a tentá-la com tanta ternura... Porém, tinham-na abandonado quando bebê sem pensar duas vezes. Estariam a obedecer à Que Brilha? Ou não passara de um jogo cruel? Apesar das suas dúvidas, havia tanta ternura no tom de voz do Homem-Folha que, se estivesse naquele momento no Vale dos Que Caíram, Tuala teria estendido uma mão, deixando que ele a levasse sob as árvores para a terra de que falava, para o reino onde a sua verdadeira família a esperava, e onde todas as suas perguntas teriam uma resposta. Porém, não estava no Vale dos Que Caíram. Estava em Banmerren empoleirada no alto de um carvalho e aquelas vozes não eram reais, saíam de dentro de si mesma, uma manifestação que pouco tinha a ver com Ana, com Bridei ou com o fato de no dia seguinte ter uma aula privada com Fola, para a qual se deveria estar a preparar. Esfregando as faces com as mãos, Tuala passou da árvore para a muralha, trepou para o telhado, equilibrando-se nas pedras estreitas e regressou ao quarto frio. Ajoelhou-se no chão de pedra e fechou os olhos. Respirando lentamente, Tuala dirigiu os pensamentos para A Que Brilha poderosa, compassiva e sábia. Se não conseguisse encontrar a verdade na oração, então estaria verdadeiramente sozinha.


CAPÍTULO ONZE


Doía-lhe tanto a cabeça que parecia que ia rebentar. Continuou a andar, cada passo uma martelada no cérebro. As árvores, as rochas e as encostas flutuavam à sua volta, as suas formas distorcidas por uma névoa de dor. Aquilo não era nada. Tinha de continuar porque ao anoitecer chegariam a casa, a Pitnochie. Poderia, por fim, descansar, e partilhar a angústia, o sentimento de culpa e os erros, e talvez a dor de cabeça e o frio que sentia no coração abrandassem um pouco.

Donal estava morto. Não morrera como desejara, em combate, mas num ato cruel, assassinado a sangue-frio. Donal bebera pela taça de outro homem e morrera nos braços de Bridei, o seu corpo sacudido por convulsões. Bridei nunca se considerara capaz de odiar, mas odiava com uma fúria cega quem fizera aquilo. Se descobrisse as suas identidades, puni-los-ia da mesma maneira que eles tinham punido o seu amigo leal, estrangulá-los-ia com as próprias mãos e ficaria a vê-los contorcerem-se até à morte como Donal arquejara, esbracejara, lutara com a morte como guerreiro que era. Donal era um homem bom, um homem corajoso, honesto. O alvo não era Donal. O alvo era Bridei.

Acontecera no dia em que Gartnait e ele tinham recebido as tatuagens de guerreiros, na Fonte do Corvo, no regresso a casa. Havia um homem em casa de Talorgen que fazia aquelas incisões na pele das faces e do queixo com agulhas finas e pigmentos coloridos; doeu, mas foi uma dor boa, e Bridei e Gartnait tinham ficado sentados juntos enquanto as tatuagens lhes eram feitas nos rostos, símbolos da sua participação numa grande batalha pelo seu rei. Depois, falaram tranquilamente dos tempos passados, renovando a amizade que quase se perdera na aldeia escurecida pelo fogo de Galany’s Reach. Gartnait apresentara de novo a sua explicação, com um pedido de desculpas. Bridei aceitara-as, e mantivera as suas dúvidas para si mesmo.

Quando terminaram de fazer as tatuagens, houve um festim. Apesar da senhora da Fonte do Corvo estar ausente, o pessoal de Talorgen assou grandes pedaços de carne, arranjou-se cerveja e até se confeccionaram alguns doces. Depois da marcha pelo Grande Vale até ao Lago da Donzela, os homens estavam esfomeados e saborearam deliciados a refeição. Foirel de Galany partira. Era sua responsabilidade levar a Pedra Mágica até um determinado local onde seria de novo enterrada, no território de Fortriu, longe do alcance das garras dos Celtas. A pedra estava no Lago do rei. Os homens de Foirel tinham de arranjar um método de a colocar em terra, um desafio que poria à prova a sua força e coragem. Não fora muito difícil fazer rolar aquele penedo por um monte abaixo, um desafio que os faria exercitar a sua força e engenho. Porém, as encostas íngremes e estreitas do Vale exigiam algo mais do que simples engenho. Falava-se em pedir a ajuda de alguns druidas.

No festim, a cerveja correu livremente. Os brindes, as histórias, as risadas e as anedotas sucediam-se. Os jarros passavam de mão em mão, as taças eram deixadas aqui e ali em cima da mesa, entornavam-se, esvaziavam-se, eram trocadas e voltavam a encher-se. Ninguém soube quem encheu a taça de Bridei. Quem o fizera teve pouca sorte. De fato, Bridei bebera muito pouco durante toda a noite e só comera alguma coisa por cortesia. As tatuagens doíam-lhe, a cabeça doía-lhe, a batalha e o resultado desta não lhe saíam da cabeça. O jovem dormira pouco nas noites em que acampara sob as árvores. A taça de Donal estava vazia. Em vez de ir buscar um jarro para lhe voltar a encher, Bridei dera-lhe a sua, consciente de que não beberia mais.

— Toma.

Então... então... Bridei fechou os olhos, mas a imagem continuou presente em toda a sua realidade brutal. O jovem lembrava-se de todos Os pormenores, de todos os momentos... Não demorara muito tempo. Fosse o que fosse, era poderoso. Todos tentaram, desesperadamente, fazer com que Donal vomitasse o veneno, tentaram fazer com que ele andasse, mas os espasmos foram aumentando. As suas costas arquearam-se, os membros agitando-se violentamente e os olhos quase lhe saltavam das órbitas. Donal emitia ruídos horríveis, sons animalescos.

Não demorara muito tempo. A um momento terrível seguira-se outro e depois mais outro, cem, mil momentos de horror até que, por fim, Donal desfalecera nos braços de Bridei com o sangue e o vômito sujando-lhe a roupa, o chão, os bancos e os tapetes. Donal não voltara a falar depois da garra lhe apertar a garganta, dissera apenas num murmúrio de angústia: “Bridei!” e morrera sem se despedir.

Pitnochie. Pensar em Pitnochie. Pensar em casa. Aqueles pensamentos, pelo menos, continuavam fortes e certos: os velhos carvalhos, os vidoeiros sussurrantes, a herdade com os seus campos murados e a pequena cabana de Fidich. A casa, baixa e dissimulada entre as árvores. Broichan, severo e sábio, capaz de encontrar ensinamentos em qualquer história, por mais lúgubre e cruel que fosse. Erip e Wid, sempre risonhos e sábios depois de uma longa vida. E Tuala... deuses, como ansiava que Tuala lhe segurasse a mão, o escutasse e lhe dissesse que tudo voltaria a ficar bem...

Chegaram a casa de Broichan antes do entardecer, subindo a colina sob os carvalhos, um destacamento menor dos homens que tinham travado a batalha de Galany’s Reach. A maior parte regressara a casa, mas Talorgen e o filho dirigiram-se à corte com Ged de Abertornie e um contingente razoável de homens de armas que incluíam os dois guarda-costas de Aniel, Breth e Garth. Ao lado deste seguiam os homens da casa de Broichan que também tinham entrado em combate: Elpin, Enfret e Cinioch. Urguist não regressara. Tinham-no deixado a dormir nas margens do Lago do rei, coberto por um manto de terra.

Por ordem de Talorgen, Breth e Garth tinham permanecido sob as ordens de Bridei, escoltando-o tal como Donal fizera, embora Bridei se tivesse recusado a deixá-los provar a sua comida. Parecia-lhe algo de ultrajante um homem morrer por sua causa, como se ele tivesse mais valor do que qualquer outro homem. Bridei vira um homem morrer por si, não queria ver mais nenhum.

Foram todos bem recebidos, mas a casa parecia muito calma e perceberam de imediato que Broichan não estava. Para surpresa e desgosto de Bridei, tinha regressado a Caer Pridne para exercer o seu dever, deixando instruções para que Bridei seguisse para a corte com Talorgen porque chegara a ocasião para conhecer, por fim, o rei Drust, o Touro. Ferat sorriu abertamente, admirando as tatuagens de Bridei.

— Ora vejam. Sim senhor, grande homem!

Mara foi menos loquaz, mas não evitou um sorriso ao vê-lo em casa são e salvo.

Em seguida, e rapidamente, os viajantes deram as más notícias antes que lhes fizessem demasiadas perguntas. A batalha fora ganha, mas tinham existido perdas. Urguist caíra corajosamente e um outro velho amigo não regressaria a casa. Foi o próprio Bridei a dar a última notícia, consciente da sua importância. Donal fizera parte, tal como Bridei, daquela casa. A sua morte seria muito sentida.

— Pobre homem — murmurou Mara. — Foi uma morte triste para um guerreiro. Tempos terríveis, estes. Ainda bem que os dois velhos nos deixaram. Isto tê-los-ia afetado muito.

— Erip e Wid? Não estão cá? Esperava vê-los... — Algo nos olhos de Mara deteve Bridei.

— Broichan mandou um mensageiro — disse Mara olhando para Talorgen. — A vós, senhor. Há muito tempo.

— Não recebi nenhum mensageiro — replicou Talorgen. — Que notícias é que ele levava?

— Mais uma morte. O velho, Erip, morreu no Inverno. Um frio terrível. O peito dele já não estava bom. Enterramo-lo no monte. Wid partiu com os druidas.

— Ides, certamente, querer que os homens se instalem — disse Ferat. — Ficai uma noite ou duas, dai descanso aos cavalos. Deixai-me mostrar-vos...

— Onde está Tuala? — perguntou Bridei. Uma sensação inquietante abatia-se sobre ele ao ouvir a notícia de cada ausência, de cada perda. Era como se tivesse outra vez quatro anos e lhe tivessem tirado tudo.

Seguiu-se um curto silêncio.

— Foi-se embora — disse Mara sem entoação. — Há muito tempo. Bridei olhou para ela e a governanta estremeceu visivelmente.

— Está naquele estabelecimento no norte, a escola para mulheres sábias. Banmerren — prosseguiu Mara. — Tuala teve a sorte de poder ser sacerdotisa da Que Brilha, uma estupenda oportunidade para uma pessoa como ela. Foi para lá com a vossa família, meu senhor — disse ela, virando-se para Talorgen. — Veio mesmo a calhar. Broichan ficou aliviado.

Bridei preferiu ficar calado. Na verdade, o jovem nem sequer sabia se seria capaz de dizer fosse o que fosse. O coração parecia ter-se esquecido de bater.

— Obrigado pela hospitalidade — agradeceu Talorgen perante o silêncio estranho que se seguiu. — Na realidade, estamos um pouco cansados. Os homens agradecem a comida que lhes puderes dar e um recanto quente para dormirem. Não vos incomodaremos durante muito tempo. Ged e eu temos de estar em Caer Pridne o mais cedo possível.

— Não dais trabalho algum — disse Ferat. — Dai-nos algum tempo e servir-vos-emos um jantar digno de reis. — Vendo alguns rostos familiares, o cozinheiro gritou: — Enfret! Cinioch! Bem-vindos a casa! Elpin, meu rapaz! Que notícias me trazes?

Sozinho no seu antigo quarto, Bridei tentou controlar-se. Era um homem: tinha dezoito anos, era um verdadeiro guerreiro e era filho adotivo do druida do rei. Já não era a criança que ficava acordada de noite a olhar para a Lua, esperando que lhe contassem uma história para afastar as sombras. Já não era o rapazinho que se escondera nas rochas enquanto a espada de um assassino procurara selvaticamente o seu corpo. Era Bridei, filho de Maelchon. Trouxera a Pedra Mágica de Galany’s Reach e conquistara a amizade de guerreiros e chefes tribais. Foirel de Galany jurara-lhe lealdade até à morte, Ged de Abertornie dera-lhe de presente uma capa aos quadrados e às riscas verdes, laranja e encarnado. Morleo convidara-o a passar um Verão em Longwater, onde as trutas eram tão grandes como pequenas focas. Era um homem.

Era um homem, doía-lhe a cabeça e tinha os olhos cheios de lágrimas. Era um homem, e o seu melhor amigo morrera perante os seus olhos porque lhe oferecera uma bebida. Bridei deu um murro na parede junto da pequena janela quadrada, onde ainda se encontravam as três pedras brancas como oferenda aos deuses. Pousou a testa na mão e fechou os olhos. Por que não conseguia chorar, nem sequer ali naquele quarto com a porta fechada, onde ninguém o podia ver? Por que não conseguia falar com Gartnait, ou com Talorgen? Por que precisava dela ao ponto do corpo lhe doer, como se fosse um vazio a pedir para ser preenchido? Que se passava com ele? E por que razão ela se fora embora? Como lhe pudera fazer aquilo? Tuala amava A Que Brilha e A Que Brilha sempre lhe sorrira. Percebera-o no momento em que a deusa lhe mostrara o local onde ela estava naquela noite gelada. A lógica dizia que era razoável, desejável, até. O seu coração gritava não.

As pessoas mudavam de vida, ele sabia-o muito bem. Partiam e nunca mais regressavam. As coisas eram assim, a vida era assim. Mas Tuala não. Tuala não podia partir. Não podia abandonar Pitnochie. Não o podia deixar sozinho. Não estava certo. Se ela não estivesse a seu lado, como poderia ser o que queriam que ele fosse, o que os deuses esperavam que ele fosse?

Bridei encostou a testa à pedra fria, junto à janela, mas não lhe foi de grande ajuda. A cabeça latejava-lhe, parecia um tambor. Era como as recordações de guerra. Uma mulher tratada como um objeto de vingança. Um jovem guerreiro enroscado sobre si mesmo como uma criança, tremendo de choque. Uma criança aterrorizada. Corpos a arder, gritos terríveis, lamentos desesperados. Donal... e Erip, o seu velho amigo, o sábio sorridente, malicioso, careca... Pela espada da Guardiã das Chamas, era certo que a sua cabeça se abriria ao meio, se a dor se prolongasse por muito mais tempo. Por que não conseguia chorar? Por que razão as lágrimas não caíam?

No peitoril da janela estava um cabelo, preso por baixo de uma das pequenas pedras brancas. A brisa fê-lo esvoaçar. Bridei pegou nele e o fio finíssimo enroscou-se-lhe em redor da mão como se tivesse vida própria. Era dela, de Tuala. Ela estivera ali antes de partir. Estivera ali de vigia, talvez despedindo-se. Teria desempenhado Broichan algum papel naquela história? Teria sido ele que a mandara embora, daquela vez para sempre? Bridei levou os dedos ao talismã que continuava a usar no pulso, uma fita tão desbotada e fina que a qualquer momento se podia partir. Por que permitiste que isto acontecesse?, perguntou ele À Que Brilha apesar do seu rosto não ser visível para lá da pequena janela. Estava a anoitecer e nas longas noites de Verão a sua imagem era apenas uma sombra pálida no céu a escurecer. Por que a levaste para longe de mim? A imagem do corpo retorcido e das feições deformadas de Donal regressou-lhe à memória. Donal morrera por ele. Bridei deixou-se cair na cama e fechou os olhos. Tinha de continuar, era preciso. Fora treinado para resistir, para lutar, para ser forte. Iria a Caer Pridne e Broichan responderia às suas perguntas: sobre Tuala e sobre si mesmo.

— Ainda não lhe disseste? — perguntou Aniel, fixando Broichan, com os seus olhos cinzentos e as mãos elegantes pousadas em cima da mesa. Estavam reunidos numa divisão em Caer Pridne, o salão de uma das casas menos importantes no interior das muralhas da fortaleza de Drust, de frente para o mar que ia de Fortriu às Ilhas Pequenas e mais além. O encontro seria breve. Aquele conselho mantinha-se secreto havia muitos anos porque raramente acontecia e efectuava-se sempre em locais diferentes. Os assuntos eram secretos e perigosos, estavam a tornar-se cada vez mais insistentes e eles tinham decidido encontrar-se assim que Talorgen regressasse à corte. O chefe tribal ainda tinha calçadas as botas de montar. Drust, o Touro, estava doente. Dizia-se que o Portal seguinte seria o último do rei. Tinham menos de um ano talvez apenas uma estação, para colocar as peças nos seus lugares e fazer a última jogada vital. Houvera uma tentativa de assassinato. Não fora a primeira mas fora, certamente, a mais audaz.

— Quem me dera que Bridei pudesse tomar parte nesta tentativa sem o peso de tantas expectativas sobre os ombros. — O tom de Broichan era calmo, como sempre, mas havia cansaço nos seus olhos. Chegou a hora da verdade, concordo. Porém, ele acaba de chegar. Deve estar cansado depois desta viagem desde Pitnochie. Falo com ele amanhã. Hoje ainda deve estar a chorar a perda do amigo. Imagino que se sente responsável, por mais ilógico que pareça. Ele sabe, claro. Bridei é muito inteligente, demasiado astuto para permitir que a verdade óbvia lhe escape por mais tempo, por mais cuidados que eu e os tutores dele tenhamos tido para não sermos específicos em relação ao seu parentesco e ao seu significado.

— Devias ter discutido isto com ele há muito tempo — disse Talorgen. — Ou permitido que eu o fizesse. Bridei podia ter começado a preparar-se para o que parece agora iminente. Não temos muito tempo. O rapaz tem de ser apresentado a Drust.

— Amanhã à noite, de fato — replicou Aniel — Um jantar comemorativo. O rei quer felicitar-te, meu amigo, e aos guerreiros que te acompanharam. Ele já ouviu histórias sobre o jovem cujo engenho permitiu arrancar a Pedra Mágica às mãos do inimigo. Drust está ansioso por conhecer o rapaz. A história devolveu-lhe alguma luz aos olhos.

— Nesse caso, Broichan tem de falar com Bridei imediatamente e sem demora. — Talorgen bateu com os dedos na mesa e franziu o sobrolho. — O rei sabe quais são as origens do rapaz; sabe que ele é um pretendente potencial. Precisamos que Bridei faça uso de toda a sua inteligência e que mantenha os olhos bem abertos. Se o assassínio pôde ser cometido na minha própria mesa, na Fonte do Corvo, também nos pode ter seguido até à segurança de Caer Pridne. Breth e Garth têm que estar vigilantes.

— Mas não às claras. — Fola mantivera-se calada até ali. — Creio que precisamos de mais qualquer coisa. Não precisamos só de quem guarde o nosso candidato de uma faca nas costas antes de termos hipótese de o apresentar, precisamos de alguém que evite a ameaça à nascença. Pelas minhas contas, são sete os pretendentes à coroa. Aposto que só um deles é capaz de cometer um assassínio. Talorgen falhou completamente nos seus esforços para descobrir a identidade do executante, quanto mais do mandante. O que impede esse homem de tentar dia e noite até à Primavera, ou enquanto Drust for vivo? Bridei precisa de guarda-costas, ninguém o pode negar, mas também precisa de proteção especial, de um investigador com talentos especiais, um homem sem escrúpulos, que seja capaz de descobrir a verdade e que se sirva da sua própria faca sem hesitação, se for necessário.

Aniel abriu os lábios num sorriso gelado.

— És mal empregue em Banmerren, Fola — disse ele.

— Eu conheço o homem certo para isso — retorquiu Broichan. Drust terá de o libertar para esse propósito. Porém, como vou pedir esse favor ao rei? Terei de lhe dizer a verdade.

Aniel ergueu as sobrancelhas.

— Não dizes sempre a verdade ao rei? — perguntou o conselheiro, trocista.

Num dos cantos, Uist deu uma risada explosiva. Os outros olharam para ele espantados. Quase se tinham esquecido da presença do velho druida.

— Existe sempre uma espécie particular de verdade para os reis — disse Uist, olhando para eles das sombras com os seus olhos brilhantes, inconstantes. — A que os seus conselheiros querem que eles saibam. A meu ver, não precisais de lhe dizer nada. Um olhar apenas e Drust reconhecerá o rapaz pelo seu porte, pelo seu olhar, pela sua maneira de falar. O mesmo que os outros homens vêem. Este jovem é um rei em potência, a única escolha possível para Fortriu. Drust dar-vos-á tantos homens perigosos e armados quantos quiserdes.

— Só precisamos de um — disse Broichan. — Um especial.

— O assunto tem de ser tratado com cuidado — replicou Talorgen. Sabes muito bem o que aconteceu quando os dois se encontraram.

— São ambos homens, capazes de resolver os seus problemas. Quanto a Drust e ao banquete a que fizeste menção, penso que devemos dar uma palavra ao rei. Não queremos que se fale dele e que haja apostas quanto às suas hipóteses. Por que pensam que o mantive longe de tudo duramte todo este tempo? É uma vantagem. A falta de diversões tolas permitiu que ele se tornasse forte no amor aos deuses, puro, corajoso e resoluto.

— O mundo em que ele tem de viver é este — disse Aniel. — Um mundo de jogos de poder, de maquinações, de mentiras e meias verdades, de implicações e incertezas. Um mundo sombrio. Quando lhe deres a notícia formal, ele tem de entrar nesse reino e continuar forte.

— Será suficientemente forte — retorquiu Broichan. — Desde que foi para Pitnochie que a sua vida é orientada nesse sentido. O material é bom. Catorze anos de preparação rigorosa tornaram-no perfeito. Não nos vai deixar ficar mal.

Fola tossiu ligeiramente. Os quatro homens viraram-se como um só para onde a Mulher Sábia estava sentada, tranquila e imóvel no seu vestido cinzento e leve.

— Tens alguma reserva? — A voz de Broichan soava irritada.

— Quero só fazer um comentário. O fardo que vai recair sobre uns ombros tão jovens é muito pesado. Também tenho muita esperança em Bridei. A mim, parece-me que os deuses respiram por intermédio dele, mas lembro-vos que não nos podemos esquecer do preço a pagar na pressa de nos congratularmos a nós próprios.

— Preço a pagar? — repetiu Broichan. — Que queres dizer?

— Que talvez não seja o que ele queria se tivesse tido a hipótese de escolher. Que a vida de um rei é tudo menos fácil. A vida de um rei é um caminho solitário, como Uist nos disse uma vez. Um caminho de escolhas impossíveis, de pressões constantes. Bridei vai aceitá-la. Não tenho dúvida de que os deuses lhe murmuram ao ouvido, mas não podemos esperar que ele a aceite com alegria.

— Dá-me a tua opinião honesta, Broichan — disse Talorgen. Tu também, Aniel. Tendes estado perto do rei nestes últimos tempos. Tivestes oportunidade para avaliar a situação. Sinceramente, quanto tempo lhe resta? Toda a gente fala do Portal que irá ser realizado a mais de uma estação de distância. Se os deuses quiserem, Drust estará conosco mais uma vez por ocasião desse ritual sombrio; parecerá estranho vermos outro homem ajoelhar junto do Poço das Sombras. Diz-me com franqueza. Drust sobreviverá a outro Inverno?

Aniel olhou de relance para Broichan, Broichan devolveu-lhe o olhar. Os seus olhos escuros eram ilegíveis.

— Seria um ato de misericórdia — comentou Aniel calmamente —, se não sobrevivesse. Ouvi-lo a tentar respirar no ar gelado de Inverno é ouvir a própria dor. Se a Mãe de Tudo for misericordiosa, levá-lo-á para o seu seio por ocasião do Solstício.

— Estou a ver — disse Talorgen. — Nesse caso, temos de nos apressar, meus amigos. Quando as aves de rapina sentem uma fraqueza na sua presa, apressam-se a atacar com as garras de fora. Temos de proteger o velho rei e o novo. O manto tem de mudar de ombros, pelo menos em espírito. Temos de fazer com que a chama que ardeu durante os tempos de trevas não se apague.

— Muito poético — observou Uist —, mas algo confuso. Fola, vou contigo até Banmerren. O caminho é longo para uma mulher sozinha. Não que eu seja grande protector, mas as pessoas olham para mim e tendem a fugir rapidamente, não vá eu transformá-las em gansos ou em porcos. Assim que te devolver em segurança à tua fortaleza de mulheres, estou a pensar em ir até Circinn. Precisamos de algumas informações daqueles lados. Se o que dizes é verdade, se os deuses tencionam levar-nos Drust no espaço de uma estação ou duas, duvido que o seu homónimo do sul permita que a sucessão se efectue sem protestos. Com um pouco de sorte, um druida vagabundo, que parece de certo modo pateta, pode passar despercebido. Em devido tempo, vos darei notícias.

— Tem cuidado — avisou-o Aniel. — Pensas que o teu traje te protege, mas nas terras de Drust, o Javali, não querem saber da velha fé. Não querem saber nem a respeitam. Será melhor visitares apenas as aldeias mais isoladas. Mantém-te afastado da corte. O rei de Circinn pode tratar-te com algum civismo, mas os conselheiros dele são autênticas doninhas, impiedosos e astuciosos.

— Vamos, Fola — disse Uist, ignorando o aviso. — Um passeio à beira-mar vai fazer bem aos nossos velhos ossos. Deixemos estes homens tortuosos e gozemos a canção das ondas e das gaivotas durante algum tempo. A não ser que não queiras ser vista na companhia de um velho louco como eu?

— Não me importo — replicou Fola levantando-se. — Broichan, não me perguntaste pela tua filha adotiva.

Broichan olhou para ela sem expressão. Era evidente que a Mulher Sábia o apanhara desprevenido.

— Estás a falar de Tuala — disse ele um momento depois. — Como é que ela está? — O seu tom de voz era desprovido de inflexão.

— Muito bem. Coopera, demonstra capacidades notáveis e aplica-se muito.

— Ainda bem — respondeu Broichan, como se a conversa o aborrecesse. Era evidente que respondera por cortesia e porque havia outras pessoas presentes.

— Também se sente profundamente infeliz, profundamente só, e está cheia de saudades de casa.

Seguiu-se uma pausa.

— Não é raro, suponho, nas tuas alunas recém-chegadas — disse Broichan. — Estou certo que és capaz de resolver tão bem essa situação como todas as outras. Tuala teve a hipótese de fazer um bom casamento. Tolamente, não o quis aceitar. Sendo o que é, devia agradecer de joelhos a tua bondade.

— Casamento — murmurou Fola, abstrata. — Devia ter... o quê?... doze, treze anos por ocasião da proposta?

A sala foi percorrida por uma corrente de ar. Aniel e Talorgen pegaram nas respectivas capas e prepararam-se para partir, pretendendo assim dar a entender que aquilo não lhes dizia respeito. Uist escutava, impassível, com os olhos brilhantes tão curiosos como os de um corvo.

— Idade suficiente — disse Broichan. — As raparigas casam muitas vezes com essa idade, não casam? Por que estamos a falar disso, Fola? Temos um acordo. A felicidade da rapariga, ou a falta dela, não faz parte dele. Esse assunto não é importante. É irrelevante. Além disso, tenho de ir. Se fico aqui mais tempo, a minha ausência torna-se notada. — O druida passou pela Mulher Sábia com o manto escuro a esvoaçar, abriu a porta de carvalho e desapareceu.

— Hmm — murmurou Aniel — Tens uma arte que mais ninguém tem em Fortriu, Fola. Só na tua presença é que este homem perde o controle. Quem é essa rapariga? Broichan nunca mencionou uma filha adotiva. O assunto tem alguma importância, ou disseste aquilo unicamente para o vexar?

— Ouviste o que ele disse. O plano é dele, na sua mente a rapariga não tem qualquer importância. Estás pronto, Uist? Vamos, saímos pelas traseiras. Com o nosso talento, somos capazes de passar despercebidos. Adeus, Aniel, Talorgen. Estarei de volta por ocasião do Portal.

— Mandai-me uma mensagem em caso de urgência. Se não, ocuparei o meu lugar com as minhas alunas sem importância.

— Tenho um pressentimento — disse Aniel ao chefe tribal da casa do Corvo, enquanto passeavam ao longo do caminho de ronda de Caer pridne, parando aqui e ali para olhar para o mar como se nas suas cabeças não houvesse outra coisa senão o desejo de apanhar ar fresco. — Quero saber se também o tens.

Talorgen esperou com os olhos fixos no horizonte para lá do qual se encontravam as Ilhas Pequenas, lar dos papagaios-do-mar, das focas, e de um rei cujos parentes poderiam muito bem candidatar-se ao trono de Fortriu se tivessem coragem. Havia muitos rapazes e homens de sangue real por onde escolher: demasiados, daquela vez. Porém, os deuses só sorriam a um.

— Tem a ver com o envenenamento. Morreu um homem no teu salão. Por sorte, não foi Bridei. Pelo que disseste, as únicas pessoas presentes eram tuas, de Ged e de Morleo... homens em quem confiamos, homens por quem os respectivos chefes tribais se responsabilizam. A tua própria casa foi cuidadosamente verificada. Os meus guarda-costas. Uma mão-cheia de homens de Broichan, comprovadamente leais desde a infância de Bridei. Ninguém podia ter violado a tua segurança. Pelo menos, foi o que me disseste e eu não tenho razões para desconfiar de ti. Portanto, o ataque foi perpetrado por um ou mais dos nossos. Há um traidor nas nossas fileiras.

— Penso exatamente o mesmo.

— Como Bridei se distinguiu em combate, vamos ter mexericos e conjecturas. As pessoas sabem que ele é filho de Maelchon. Anfreda casou há muitos anos com o rei de Gwynedd e fez a sua vida longe de Fortriu, mas há de haver quem se lembre dela. Dentro de pouco tempo toda a gente na corte perceberá que Bridei tem direito a candidatar-se ao trono.

— Estás a dizer que haverá outras tentativas de assassinato?

— Penso que é muito provável — disse Talorgen —, e imagino que Broichan pensa o mesmo. O trilho que percorremos é estreito, meu amigo. Por um lado, este jovem tem de brilhar, tem de impressionar e convencer os poderosos de Caer Pridne de que é o melhor candidato. Por outro, quanto mais aparente se tornar a sua força, mais os nossos inimigos tentarão afastá-lo da competição. Temos de estar vigilantes.

— Continuas sem saber quem perpetrou o ataque que tirou a vida a Donal?

— Não faço a mínima idéia. Interroguei todos os homens que estavam presentes, verifiquei a disposição de todos cinco vezes, mandei um ervanário tentar identificar a substância usada. Nada feito. Outra coisa que sabemos acerca do nosso adversário: é esperto.

— Talorgen? — O conselheiro do rei baixara a voz até esta se transformar num sussurro.

— Hum?

— Nem quero acreditar. Tremo só de pensar na possibilidade, mas vou fazer a pergunta na mesma. Existirá no nosso círculo restrito quem não seja o que parece? Depois deste tempo todo, terei errado em alguém?

Talorgen manteve-se em silêncio durante alguns momentos.

— Seria terrível — disse ele de maxilares cerrados. — Um tal traidor, se for descoberto, bem pode rezar. Nós os cinco temos poder suficiente para vencer o mais forte dos homens. Quem se atreveria a desafiar Broichan? Não sei, meu amigo. Temos de rezar. Pedir à Guardiã das Chamas que proteja o rapaz.

— E temos de arranjar toda a ajuda possível. Conseguir os serviços do assassino do rei já é um bom começo.

— Uma criança — disse Fola, virando-se para o seu velho amigo Uist.

Os dois companheiros atravessavam a praia que fazia uma curva em redor da baía entre o promontório da fortaleza de Caer Pridne e a península arborizada de Banmerren. A maré estava vazia. Uist tirara as sandálias e enterrava, satisfeito, os pés descalços na areia fina. Atrás de si, a égua branca do druida caminhava calmamente sem necessidade de cabeçada ou brida. Fola debruçou-se para apanhar uma concha. O seu exterior delicado, rosado, quebrara-se, revelando o interior em espiral. Um minúsculo e misterioso animal marinho fizera dela, em tempos, a sua casa.

— Não é uma criança, é uma jovem. Deve ter uns catorze anos pelas minhas contas. Estou preocupada com ela.

— A mesma que mencionaste, que fez o nosso amigo afastar o olhar e cerrar os maxilares? Lembro-me do velho tutor, Wid, mencionar essa aluna de modo deliberadamente vago. Quem é ela?

— Suponho que já não é segredo. A rapariga é filha dos Boa Gente. Está em casa de Broichan desde a primeira infância. Ela e Bridei cresceram juntos.

Uist assobiou. O druida parou de andar e olhou para os pés a enterrerrar-se na areia, ao mesmo tempo que a água os cobria e lhe molhava a bainha do manto.

— Broichan nunca falou dela.

— Suponho que ele esperava que ela se fosse embora.

— E não foi porque, aposto, ela está contigo em Banmerren, o que a afasta convenientemente de Pitnochie e de Caer Pridne. Suponho que o problema estava na ligação entre os dois. Não podiam ser amigos, não é assim? Porque ficou Broichan com ela, afinal? Um homem como ele devia ter percebido que era perigoso.

— Ficou com ela porque respeita os deuses — replicou Fola. Broichan põe sempre a vontade deles à frente da sua, apesar da sua vida estar totalmente virada para este plano. Também ficou com ela porque Bridei o quis. Broichan adora aquele rapaz. O amor... complica os nossos jogos, velho amigo. Insinua-se, desfaz os planos mais cuidadosos e desmoraliza o mais disciplinado dos corações. Gostava que conhecesses esta rapariga e me desses a tua opinião, não como homem, mas sim como servo da Que Brilha. Nunca pensei dizer isto, mas pergunto a mim mesma se o nosso conselho não corre perigo graças à dedicação de Broichan à causa. Não quero acreditar que o seu zelo o tenha feito afastar-se da vontade da deusa. Esta criança, esta jovem quer desesperadamente regressar a Pitnochie apesar de saber que não é bem-vinda. Há algo que a chama, algo maior do que ela própria. Sou capaz de ver o que lhe vai no coração e sinto que é algo perturbador. Ela vira para mim aqueles olhos estranhos e eu vejo A Que Brilha.

— Intrigas-me — disse Uist — e alarmas-me. Quando for a Banmerren, aproveito e tenho uma pequena conversa com ela. Como vai a outra rapariga?

A expressão de Fola endureceu.

— A preparação tem sido dura. Morna estará pronta por ocasião do Portal. Como sempre, é difícil. Difícil para todos.

— Podes utilizar alguns preparados — observou Uist, muito sério. — Suponho que os conheces. As ervas podem aprofundar-lhe o transe. As infusões purificam-lhe o corpo, preparando-a para se desligar melhor deste mundo e entrar no outro com mais facilidade.

— Conhecemos alguns. Temos tentado protelar o seu uso, até uma data mais próxima do ritual. Depende da rapariga. Algumas são fortes e conseguem-no sem ajuda, ouvem a voz dos deuses e vão em frente de boa vontade. Se alterarmos a mente ou o corpo com ervas e poções, arriscamo-nos a diminuir a sua efetividade, o que seria cruel. Até agora, ainda não vi uma única candidata que dê esse passo final sem algum receio.

— Bem, passarei algum tempo com a tua escolhida — disse Uist — Dar-lhe-ei os conselhos que puder. Porém, a outra rapariga é que me intriga. Nunca conheci uma filha dos Boa Gente em carne e osso. Ela é muito bela, como as mulheres das histórias?

Fola sorriu.

— És demasiado velho para me fazeres essa pergunta — replicou ela. — Tuala é Tuala. Não é preciso dizer mais nada.


Era intenção de Bridei confrontar o pai adotivo assim que chegasse a Caer Pridne e exigir explicações para um certo número de assuntos: a morte de Donal; a traição de Tuala; a decisão de esperar tanto tempo, escondendo a verdade acerca dos seus planos, até ele próprio ter reconhecido a sua natureza. Depois, a necessidade de proteção, como se fosse uma criança, quando já tinha as suas tatuagens de guerreiro. O fato de Donal estar perto de si é que o matara. Quem se seguiria — Breth, o guerreiro de ombros largos e olhar perspicaz? Garth, com o seu sorriso doce e braços poderosos? Era tempo de Broichan começar a tratar Bridei como o homem que ele era e de lhe dizer a verdade.

O druida do rei apropriou-se antecipadamente das exigências do seu filho adotivo. Os dois homens encontraram-se nos aposentos de Broichan no interior das muralhas da fortaleza onde Bridei ficaria também alojado com os seus dois guarda-costas, enquanto permanecesse na corte. O jovem estava cansado depois da cavalgada desde Pitnochie. Vira Snonfm nos estábulos do rei, comera uma refeição rápida com os dois guardas e fora procurar o pai adotivo. Breth e Garth tinham ficado a arrumar o equipamento no quarto. Bridei encontrou Broichan na sua pose habitual, perante uma lareira apagada e, aparentemente mergulhado em pensamentos profundos. O quarto era muito parecido com o do druida em Pitnochie: as ferramentas do seu ofício estavam em cima de prateleiras ou penduradas nas traves; os pergaminhos e os materiais de escrita estavam perfeitamente ordenados. Uma prateleira ao fundo, com um cobertor por cima, parecia ser o seu habitual local de dormida. Bridei viu-se a si mesmo a desejar que houvesse um colchão de palha, pelo menos, no outro quarto. As suas últimas noites tinham sido perturbadas por sonhos e a dor de cabeça ainda não desaparecera.

— Meu senhor?

— Bridei. Bem-vindo, meu filho.

Bridei avançou e ofereceu um abraço rápido e firme. Sentiu a magreza do pai adotivo por baixo do manto negro. Bridei afastou-se e observou as rugas novas no rosto do druida, assim como as novas madeixas cinzentas nos cabelos entrançados.

— Espero que estejais bem?

— Estou suficientemente bem, Bridei. A vida na corte já me agradou mais. É claro que não diria isto em frente do rei Drust. Ele precisa de mim e eu sirvo-o. Os deuses assim o exigem. Pareces cansado. Sei que houve perdas. Lamento. Talorgen disse-me que o mensageiro que te enviei nunca chegou com as notícias de Erip. Também... Não interessa. O velho morreu em paz, rodeado de amigos.

— Donal não morreu em paz. Morreu em vez de mim. Fui eu mesmo que lhe pus a taça nas mãos. — Com um esforço, Bridei conseguiu manter a voz baixa.

— Senta-te, filho. Temos de falar. Sabes muito bem que não foi a primeira vez que te tentaram matar, ou a mim. Penso que agora o inimigo é novo, mas o motivo é o mesmo. Suponho que não precisas de me perguntar por que razão alguém te tentou matar.

Bridei não disse nada.

— Diz qualquer coisa.

— Não vos cabe a vós dizer, meu senhor?

Broichan suspirou e sentou-se em frente de Bridei com a mesa de trabalho entre os dois.

— Penso que podemos dispensar esse “meu senhor”, agora que somos os dois homens — disse ele calmamente. — Trata-me pelo meu nome, se não te importas. E agora conta lá. Dizem que és um herói. O homem que imaginou e levou a cabo o plano engenhoso de roubar a Pedra Mágica ao inimigo, mesmo nas suas barbas. Talorgen também me disse que te portaste muito bem em combate e que depois te comportaste com frieza e maturidade. Pelo tom, desconfio que o que ele queria era que fosses filho dele. Portanto, portaste-te melhor do que esperávamos, arranjaste aliados e amigos, e não ofendeste nin guém. A tua história já corre pelo Vale fora, estás a tornar-te numa lenda. A Guardiã das Chamas sorri-te. No entanto, alguém tentou matar-te. Porquê?

— Sabes muito bem porquê. Porque sou filho da minha mãe.

— Ah! — Broichan inclinou-se para trás com as mãos na nuca — Há quanto tempo percebeste isso?

— Há muito tempo. Wid e Erip foram-no evitando cuidadosamente durante as aulas de genealogia. O modo como eles rodeavam a questão da minha ascendência alertou-me para o seu possível significado. Não me lembro do nome dela. Para uma criança, o nome da sua mãe é simplesmente mãe. Por fim, perguntei a Ferada e soube que a minha mãe é prima do rei pelo lado feminino. Drust tem outros parentes mais próximos, primos diretos. Carnach de Thorn Bend é um deles e lady Dreseida outro. Espero que Drust, o Touro, não nos deixe em breve. Porém, se isso acontecer, eu sou um dos que pode candidatar-se ao trono. Suponho que foi para isso que fui preparado.

— Porque razão não me confrontaste mais cedo, Bridei?

— Se estivesse enganado, seria demasiada arrogância da minha parte. Seria presunção. Não tenho as qualidades necessárias para reclamar a pretensão.

Broichan sorriu.

— Salvo que és ao mesmo tempo filho de Maelchon e filho do sangue real dos Priteni — disse o druida. — Combina isso com a preparação que te demos e o resultado é um rei em potêncial. A tua mãe ficaria orgulhosa.

Algo no tom de voz do druida atraiu a atenção de Bridei.

— Conheceste-a, não conheceste? — perguntou o jovem. — A minha mãe?

— Conheci. Oh, se conheci!

Bridei não se enganara. A voz mais suave, a mudança quase imperceptível nos olhos escuros.

— Fala-me dela. Não me lembro de nada.

— Anfreda era... excepcional. Inteligente, alegre, esbelta, com uns cabelos brilhantes, castanhos, e um sorriso capaz de fazer parar o coração de um homem. De fato, despedaçou muitos corações quando decidiu casar com Maelchon e viver longe de Fortriu. Ele era um homem perfeito, mas impulsivo. A mim, parecia-me... não interessa. Há muito da tua mãe em ti, Bridei. Possivelmente, de Maelchon também.

Bridei não se atreveu a perguntar, O teu coração foi um dos que ficou despedaçado quando partiu? Broichan estava, certamente, acima das fraquezas humanas.

— Vai acontecer dentro de pouco tempo, não vai? — perguntou ele calmamente. — Dizem que o rei está muito doente, que é capaz de não aguentar todo o Inverno.

— É verdade. Temos muito que fazer e pouco tempo para o conseguir. Vais conhecer Drust amanhã. A tua candidatura não pode ser feita enquanto ele não morrer e não começar o processo formal, mas os candidatos vão começar a mostrar as garras a partir de agora. Estamos à espera de uma delegação de Circinn e essa é, provavelmente, a maior ameaça. Com os outros, podemos bem. Alguns podem ser comprados com prata ou com incentivos; outros podem ser persuadidos, por outros meios, a apoiar-te em vez de se apresentarem como candidatos rivais. À parte tu próprio, há duas possibilidades vindas da casa de Fortrenn, a mais provável das quais será Carnach. Será muito melhor se o norte apresentar apenas um candidato forte. Se os chefes tribais de Fortriu estiverem divididos, não poderemos derrotar Drust, o javali, que terá, provavelmente, o apoio dos chefes tribais das regiões do sul.

— E as Ilhas Pequenas?

— Esses têm dois ou três de sangue real, mas desconfio que os Folir vão ficar de fora desta vez. Temos conosco uma refém real e eles devem estar a pensar na sua segurança. Drust mostrou visão quando ficou com a rapariga por ocasião de uma visita que eles fizeram a Caer Pridne há alguns anos. Vais conhecê-la. A rapariga regressou à corte.

— Achas que o assassino estava a soldo de Circinn? Que Drust, o Javali, quer juntar Fortriu a Circinn?

Broichan abanou a cabeça.

— Quase de certeza que a última está correcta. Nenhum rei digno desse nome deixaria passar a oportunidade e o Javali está rodeado de conselheiros ambiciosos, mas assassinato? Penso que não. Ele é o pretendente por direito, não precisa de recorrer a esses meios e não te conhece. Duvido que te visse como um rival sério. Por enquanto.

— Nesse caso, quem...?

— Não sabemos, o que quer dizer que terás que me obedecer em tudo o que disser respeito à tua liberdade pessoal, Bridei. Eu sei que não gostas, que até a presença de Donal te irritava, por vezes, apesar de ser teu amigo, mas vais ter que contar com a presença constante de Breth e de Garth, vais ter quem te prove a comida e vais ter outro homem. Mandei chamá-lo para te conhecer. Deve estar a chegar.

— Não preciso de mais um guarda-costas.

— Aqueles que velam pelos teus interesses acham que precisas. — Bridei abriu a boca para contestar, mas depois pensou melhor e manteve-se calado. Havia outra pergunta que precisava de fazer antes que o outro guarda, fosse ele quem fosse, aparecesse e lhes tirasse a privacidade.

— Tuala não estava quando cheguei a Pitnochie — observou sentindo dificuldade, dessa vez, em fixar o olhar em Broichan, receoso do que poderia ler nele. — Disseram-me que ela tinha ido para a escola de Mulheres Sábias de Banmerren, para se tornar serva da Que Brilha.

Broichan cruzou as longas mãos.

— É verdade — disse o druida. — Foi devidamente escoltada e com tudo o que achamos necessário.

— Quando a mandaste embora da primeira vez — alvitrou Bridei, tentando manter a voz controlada — foi porque não a querias em Pitnochie, porque era um embaraço para ti. Desta vez foi o mesmo? Obrigaste-a a ir-se embora?

Broichan olhou para ele em silêncio, as feições pálidas calmas, e os olhos escuros desprovidos de qualquer emoção.

— Não, Bridei — respondeu ele, por fim. — Tuala é que quis ir para Banmerren. Aliás, fez uma ótima escolha.

Bridei sentiu um frio súbito a percorrer-lhe a espinha. As palavras do pai adotivo refletiam a verdade pura. Tuala fizera o que ele nunca achara possível. A jovem cortara abrupta e completamente os laços que os uniam, como se tivesse morrido.

— Estou a ver — disse ele asperamente.

— É uma honra servir A Que Brilha — observou Broichan. — Os dois velhotes achavam que ela tinha imenso talento e que seria uma excelente tutora. Apesar das diferenças, espero que ela se sinta em casa no estabelecimento de Fola.

Casa, pensou Bridei. A sua única casa era em Pitnochie.

— Espero que sim — conseguiu dizer. Naquele preciso momento ouviu-se um som vindo da entrada. Broichan olhou naquela direção.

Pôs-se de pé, virou-se e ficou gelado. Depois recordou o treino de Donal. Levando a mão à faca, o jovem lançou-se pelo quarto fora em direção à porta. Na mesma fração de segundo, na mão do homem surgiu uma adaga e no seu rosto um sorriso, um rosto que Bridei vira antes e que não esquecera.

— Alto!

Bridei parou de imediato com a faca a dois metros do punhal do outro. O olhar divertido do homem transformou-se num olhar de irritação e depois de alarme. Broichan não fazia muitas vezes uso da magia. Quando o fazia, as pessoas ficavam a saber por que razão ele se tornara o druida do rei. Broichan era temido e respeitado em Fortriu e em Circinn. O druida limitara-se a erguer um pouco a mão, e a apontar para os dois homens com o dedo que tinha o anel em forma de serpente. Bridei ficou à espera, incapaz de se mover, ouvindo os batimentos do próprio coração. O jovem olhou para o outro homem, que estava igualmente imóvel devido ao feitiço do druida, e que olhava para ele com a mesma intensidade hostil.

— As minhas desculpas — disse Broichan, não parecendo nada arrependido. — Antes que se atirem um ao outro, é preciso explicar certas coisas. Chegaste cedo, Faolan. O meu filho adotivo responde como um guerreiro deve responder, ao ver um inimigo num local a que não pertence. Bridei, contrariamente às aparências, este homem é um dos nossos. Vou desfazer o feitiço e vós os dois baixem as armas e sentem-se, enquanto explico o que se passa. Em lados opostos da mesa, e mantenham-se calados até eu acabar.

O druida estalou os dedos. Os dois homens conseguiram mover-se de novo. Bridei necessitou de todo o seu auto-controle para não continuar o ataque.

— Este homem é um espião! — protestou o jovem. — É um celta! Conheço-o, capturei-o eu mesmo! Mas... — Bridei calou-se. O homem chamado Faolan embainhou a faca, dirigiu-se para a mesa e sentou-se. — Era suposto ele estar morto — disse Bridei, sentindo que estava a dizer uma tolice e perguntando-se se as suas dúvidas, naquele dia na fonte do Corvo, não seriam acertadas. Talvez a coisa tivesse sido montada apenas para permitir que ele e Gartnait conseguissem aquela pequena vitória sem correr verdadeiros riscos. Não. Uma coisa era certa. — Ele é celta — repetiu o jovem. — Ouvi-o falar a língua. Como um nativo. Que está ele aqui a fazer? Pensei...

— Não ouviste o que eu disse, Bridei?

— Peço desculpa, meu senhor... Broichan.

— Faolan é, de fato, celta de nascimento e criação, e está ao serviço do rei Drust há muitos anos. O que aconteceu entre os dois na Fonte do Corvo foi uma infelicidade. Tem de ser esquecido, atirado para trás das costas. Faolan vai ser a tua sombra, vai proteger-te, procurar os teus inimigos onde Breth e Garth não podem ir. Faolan tem ouvidos em todas as portas, um pé em todos os exércitos. Com ele a teu lado, talvez te safes. Isto se fizeres o que ele diz.

Bridei olhou para o celta, que examinava as próprias unhas com uma expressão de desdém.

— Porque razão estava ele no bosque com um homem que Talorgen mais tarde torturou até à morte? Porque razão estavam a tentar fugir e a falar naquela língua? Porque razão me disseram que ele tinha morrido?

— Eu falo mais ou menos a língua dos Priteni e não sou estúpido — disse Faolan, erguendo as sobrancelhas. — Creio que posso muito bem falar por mim próprio.

— Nesse caso, fala! — exigiu Bridei.

— Eu estava de regresso de uma missão e trazia comigo um homem que tinha informações. Ele pensava que estávamos os dois a reunir fatos sobre as forças de Talorgen. Era minha intenção levá-lo até a um ponto em que seria apanhado. Acontece que estavas de guarda naquele dia. Podia ter sido outro qualquer.

— Estás a dizer que já nessa altura trabalhavas para Talorgen?

— Para Drust. Talorgen conhece-me.

— Podia ter-te morto! — Bridei estava espantado, sentia-se insultado, humilhado.

— Exageras as tuas capacidades, se acreditas nisso — troçou Faolan, parecendo um tanto aborrecido. — Atraíste a atenção sobre mim de um modo que não me agradou nem agradou a Talorgen, o que reduziu a minha eficácia na região da Fonte do Corvo. Os conselheiros de Gabhran acreditam que eu trabalho para eles, ou que trabalhava, o que me permitia percorrer Dalriada de um lado a outro e ter acesso aos conselhos dos Celtas. Infelizmente, quanto mais homens me conhecem, incluindo os nossos, menos eficácia tenho como espião. Daí a decisão de Drust de me fazer regressar à corte para esfriar um pouco as coisas. Agradeço-te por isso e por isto. — Faolan arregaçou a manga da túnica e revelou uma feia cicatriz no antebraço. — Felizmente continuo a poder pegar numa arma, senão terias ganho um inimigo perigoso.

— Peço desculpa — disse Bridei educadamente — mas parece-me que já o tenho.

— Não te guardo rancor — replicou Faolan. — Desde que me paguem regularmente. Porém, tens razão. Disseram-me que tens inimigos. É por isso que estou aqui.

Bridei virou-se para o druida.

— Por que me mentiu Talorgen? — perguntou o jovem. — Por que me deixou acreditar que este homem tinha morrido?

— Pergunta-lhe — disse Broichan. — Suponho que lhe convinha, e a Faolan também, que quanto menos pessoas soubesse a verdade, melhor.

— Mas... — Bridei engoliu o que ia dizer.

— Se te sentiste culpado, és tolo — interrompeu-o Faolan rudemente. — Começa a simpatizar com os teus inimigos e perdes a batalha antes dela começar. Ainda bem que me contrataste, meu senhor.

— Sim — disse Broichan. — A tua falta de escrúpulos é tão conhecida como a tua capacidade e a tua discrição. Precisamos de ti. Bridei, tens de aceitar a situação.

— O que é que ele vai fazer?

— Faolan trabalha sozinho. Contratamo-lo partindo do princípio de que ele fará o trabalho, segundo as suas próprias regras. Explicámos-lhe porque razão precisas de proteção e a natureza dos que procuram fazer-te mal. Ele explicar-te-á o que deseja de ti.

— Ele fica aqui comigo? Vai seguir-me por toda a parte apesar de Garth e Breth estarem a fazer um excelente trabalho? Apesar de eu já não ser uma criança que precisa de um cão de guarda para afastar as sombras?

Broichan fez girar o anel de prata no dedo.

— Consideravas Donal um mero cão de guarda? — perguntou ele calmamente.

Extraordinariamente, Bridei sentiu lágrimas nos olhos. Parecia que a criança não estava assim tão distante da superfície apesar das tatuagens guerreiras.

— Donal era meu amigo.

Nem Broichan nem o celta responderam. Deviam saber, pensou Bridei, que Faolan nunca seria amigo de ninguém.

— Eu tenho certos talentos — respondeu Faolan. — Posso proteger-te. O fato de não gostarmos um do outro não é para aqui chamado.

— Peço desculpa — disse Bridei —, mas pergunto a mim próprio qual será a tua credibilidade na corte, um homem de Dalriada no coração de Fortriu. É verdade que a tua aparência não sugere de imediato as tuas origens, mas as pessoas devem certamente perguntar por que razão um homem que anda sempre armado não tem tatuagens guerreiras no rosto. Além disso, assim que abres a boca, o sotaque denuncia-te. — O jovem olhou para Broichan. — Dizes que este homem pode ir onde Breth e Garth não podem, que tem um pé em todos os exércitos. Como é isso possível quando se torna rapidamente evidente que é um celta?

Faolan esboçou um ligeiro sorriso.

— O quê? — perguntou em ar de troça. — O rei de Fortriu confia em mim e tu não? Exerço o meu ofício há muito tempo, Bridei. Sou especialista em todas as suas facetas. Uma delas é a capacidade de desaparecer, de me misturar com as pessoas, tanto entre os Priteni como nos salões do rei Gabhran de Dalriada. Tenho um nome diferente em cada lugar, uma aparência diferente. Cada um instantaneamente olvidável. O sotaque varia, não vi razão para o mudar hoje. Quanto a Caer Pridne, o rei tornou claro que eu estava aqui sob a sua proteção, celta ou não celta. Sou conhecido dos mais íntimos do rei. Se chegarem visitantes estranhos, faço de maneira que não me vejam. Ah, sim, uma pequena correcção. Eu não pertenço a Dairiada. Trabalho por um preço. A minha lealdade dura tanto tempo como a missão de que me encarregam.

— Estou a ver. — Bridei achava aquilo muito pouco tranquilizador. Era o mesmo que dizer que o homem estava pronto a mudar de campo por um saco de prata mais pesado.

— Portanto — perguntou Faolan —, levas-me até junto desses teus dois guardas para eu ter uma conversa com eles? Vou precisar de verificar os teus alojamentos e arranjar algumas coisas.

— Segue-me — respondeu Bridei, fazendo um esforço e mostrando-se cortês. Era evidente que não tinha escolha.

— Bridei — disse Broichan atrás do jovem —, este é o caminho que decidimos seguir. Com Drust é o mesmo. Terás que aceitar protetores, conselheiros, homens que te adularão servilmente, e ou que não hesitarão em te espetar uma faca nas costas. Acredita, um homem como Faolan é uma boa companhia. Ele provou o seu valor mais de cem vezes.

Tuala, pensou Bridei. Tuala partira para sempre. Tuala estava encerrada entre quatro paredes. Tuala estava num local onde os homens não podiam entrar. Tuala preferira viver sem ele. Não fora por aquela notícia e teria lidado com a questão de modo controlado, não teria dado àquele celta a impressão de que era uma criança petulante. Quando Faolan entrou nos seus aposentos, e se tornou evidente que Breth e Garth aceitavam sem quaisquer dúvidas que a partir daquele momento passava ele a mandar, Bridei manteve-se silenciosamente à porta com os dedos na fita que usava no pulso. Enquanto afagava a sua suavidade familiar, as pontas desgastadas cederam por fim, e o pequeno pedaço de tecido caiu-lhe na mão. Talvez fosse um sinal. Mesmo que ela não tivesse decidido deixá-lo, mesmo que ela tivesse decidido ficar a seu lado, que vida seria a de uma rapariga cujo ser estava em sintonia com os carvalhos, os vidoeiros, as sorveiras-bravas, os mochos, as lontras e os veados, com as águas difusamente brilhantes do Lago da Serpente e com o pico solitário de Estrela da Águia? Que alegrias teria a vida na corte para uma rapariga que adorava histórias, sonhos e silêncios? Rodeada de guardas e cortesãos, de assassinos e conspiradores, quanto tempo sobreviveria a sua flor selvagem? Esperar que ela ficasse a seu lado sabendo — como ele suspeitava que acontecia há muito tempo — qual seria o seu futuro, seria pedir-lhe que murchasse e morresse em nome de uma promessa feita entre duas crianças. Tinha de a esquecer. Tinha de continuar sozinho. Os deuses assim o exigiam.


CAPÍTULO DOZE


— Veste o verde — disse Dreseida. — E arranja o cabelo de outra maneira, com mais suavidade. Não te podes dar ao luxo de parecer demasiado sumtuosa, nenhum dos homens se atreverá a aproximar-se de ti.

— E que me interessa? — respondeu a filha, ao mesmo tempo que vasculhava a pequena arca, afastando uma a uma as jóias que ia encontrando.

— Não seja tola, Ferada. Sabe muito bem porque razão está em Caer Pridne. Tem de compreender a importância da reunião desta noite e de todas as que se seguirem na corte. Tens dezesseis anos. Se deixar isso para mais tarde, as oportunidades começarão a faltar, passando para raparigas mais novas e mais frescas. Quero que fale com Bridei esta noite.

— Não tenho outro remédio, ele é amigo de Gartnait.

— Não seja obtusa. Sabe muito bem o que eu quero dizer. Fala com ele, seduza-o, encoraje-o a confiar em ti. Broichan anda a tramar qualquer coisa e eu quero saber o que é.

— Bridei não é estúpido, mãe, perceberá imediatamente. Quando falava com ele na Fonte do Corvo era sempre sobre História, política ou outros assuntos eruditos. Não me importo de fazer isso, será sempre melhor do que os olhares e os esforços trapalhões dos outros para tornarem a conversa interessante.

— Ferada.

Ferada imobilizou-se, um par de brincos de prata em forma de golfinho a meio caminho das orelhas. O tom de voz da mãe exigia obediência imediata.

— Sim, mãe? — O coração da jovem parecia um tambor.

— Vai fazer o que eu mando. Preciso dessas informações. Compreende o que te estou a dizer?

— Sim, mãe.

— Fale com ele. Com suavidade. Use uma certa sedução. Fale de Broichan. Quero saber o que aqueles dois tencionam fazer daqui até o Inverno. Para onde vão e com quem vão encontrar. Vigie os olhos de Bridei quando lhe perguntar.

— Mãe, eu...

— Nem parece tua, essa desatenção, Ferada. Tens de compreender que, se não cumprir com os meus desejos, falhas na tua obediência aos deuses, o que limitará muito as tuas hipóteses futuras. Aproxima-se a eleição do rei, uma oportunidade para exercer alguma influência, desempenhar um papel que contribua para o futuro do país. Nós, as mulheres, raramente temos uma oportunidade destas e eu quero aproveitá-la ao máximo. Para isso, preciso de informações. Infelizmente, não posso aproximar-me de Broichan ou do seu filho adotivo. Tens de o fazer por mim. Vigiar-te-ei de perto e espero ver progressos.

— É a mesma coisa que... é a mesma coisa que ser um objeto de aluguel — replicou Ferada amargamente, incapaz de conter as palavras —, como se não tivesse qualquer valor. Eu sou sua filha, não sou uma ferramenta.

— És uma mulher — disse Dreseida secamente. — Desempenha bem o teu papel e poderás exercer um certo poder. Isto é apenas o primeiro passo.

— O jogo não é meu. — A voz de Ferada tremia. — O jogo é seu e eu não gosto dele. Quem me dera ter ficado em Banmerren.

— Tu vais fazer o que eu mando. Não me desafies. Não te esqueças que a escolha do teu futuro marido está nas minhas mãos. O teu pai fará o que eu lhe disser. Sê uma filha obediente e talvez eu te dê alguma liberdade de escolha.

— Suponho que não está a pensar em Bridei. A mãe nunca gostou muito dele.

Creseida deu uma gargalhada desconsolada.

— Não disseste uma vez que ele não tinha sentido de humor? Vamos esperar mais um pouco. Caer Pridne vai estar cheia de chefes tribais por ocasião do Solstício de Inverno. Se te portares bem, poderás escolher à vontade.


Tuala via os archotes em redor da baía, uma linha dupla iluminando o crepúsculo de Verão, demarcando o caminho ao longo do promontório até aos portões da fortaleza do rei. Havia mais na muralha tripla de Caer Pridne. A fortaleza de Drust parecia um palácio das histórias antigas. Uma comemoração. O velho druida, Uist, falara dela e Fola confirmara-a. Um festival para comemorar a vitória, o reconhecimento da coragem e do triunfo. Bridei estaria presente. Tuala sabia que ele regressara são e salvo porque Uist lho dissera, sem que lho perguntasse. A jovem agradecera-lhe a notícia com a maior das calmas. Pelo menos, assim pensara. Era cada vez mais evidente que não desempenharia qualquer papel no futuro de Bridei, que a sua amizade só aumentaria o seu afastamento. Por isso, mais valia fingir que não se importava. Talvez, se continuasse a pensar que tivera sorte por ter ido para Banmerren e que a vida como intelectual ao serviço dos deuses era vantajosa, acabasse por acreditar.

Uist fora portador de boas e más notícias. Wid estava bem e retirara-se para a floresta para passar algum tempo em meditação e oração. Tuala esperava que ele não tivesse muitas saudades dos cozidos de Ferat. Quando Uist lhe deu as más notícias, a jovem quase perdeu o controle de si própria. Donal tinha morrido. O corajoso companheiro de Bridei e amigo de todos em Pitnochie, incluindo ela própria, morrera envenenado numa comemoração. Tuala sentira um nó no estômago, a sua visão tornara-se realidade se bem que ao contrário, o acontecimento terrível que a fizera correr através da floresta como um veado assustado e pedir a Broichan que a ajudasse. A alteração fora muito ligeira, uma caneca de cerveja passara da mão de um homem para outro, e a vida de Bridei fora poupada, mas o seu amigo pagara um preço demasiado alto. A jovem sabia o que Bridei devia estar a sentir: culpa, tristeza, o peso de um fardo demasiado pesado. Se pudesse, pelo menos, estar com ele... Ele estava em Caer Pridne, perto da baía, tão perto mas ao mesmo tempo tão longe, como se estivesse noutro país. Bridei não podia, como qualquer outro homem, à excepção dos druidas, visitá-la. Tuala agradecera amavelmente as notícias a Uist e mantivera uma expressão calma.

Isso acontecera na noite anterior. Esta noite era diferente. Durante o dia, mantivera-se ocupada o mais possível. Como as raparigas nobres tinham regressado à corte, Derila dividira a sua classe em duas e Tuala passou a actuar como tutora das mais novas, raparigas quase da sua idade, um desafio. Todas elas invejavam o seu novo estatuto de tutora, a sua juventude, a sua pele pálida e os olhos estranhos. Ao mesmo tempo, a diferença fascinava-as. As raparigas apreciavam as coisas que ela era capaz de fazer. Com alguma relutância, Tuala mostrara-lhes alguns truques, os jogos de luz, as pequenas transformações que fazia na floresta, quase sem pensar, desde pequena. Gostavam de aprender a escutar os pensamentos de um esquilo, de uma coruja ou de uma carriça. Gostavam das histórias que se podiam ouvir no coração de um velho carvalho. Tuala mostrava-lhes o suficiente para as manter interessadas. A parte histórica da aula era passada com ansiedade, à espera da recompensa daqueles segredos que ela não se importava de partilhar. As raparigas não se sentavam a seu lado à hora das refeições. A situação não mudara. Porém, já não se riam dela.

Terminado o longo dia, Tuala estava agora sentada no alto da árvore e olhava ao longo da costa para Caer Pridne. Alguns dos archotes estavam em movimento. Talvez fosse um cortejo em direção ao grande salão de Drust, o Touro. Diziam que a entrada era imponente. Havia pedras esculpidas, oito de cada lado, em frente umas das outras, uma das coisas mais belas de Fortriu, dissera-lhe Erip. Qualquer homem ou mulher que se aproximasse da corte de Drust seria recebido por aquela monumental afirmação de poder. Tuala não conseguia ouvir nada. A fortaleza estava demasiado afastada. Talvez houvesse trompas a tocar, tambores a soar, cânticos. Para alguns haveria, certamente, histórias. A da Pedra Mágica rivalizava com qualquer outra em heroísmo e engenho. Também aquilo, na verdade, acontecera. Fola dissera-lhes que seria assim. Finalmente, Bridei começava a trilhar o seu próprio caminho.

Tuala estremeceu. Até as noites de Verão em Banmerren podiam ser frias, quando o vento soprava do mar. Tinha de regressar. Era uma loucura permanecer em cima depois do escurecer. A Lua estava em quarto minguante, e ela podia escorregar e cair. Talvez não caísse. Talvez voasse. Em criança sempre sonhara conseguir voar.

Olhou uma última vez para a fortaleza. Observou a extensão de areia iluminada pela luz dos archotes. Não era assim tão longe. Para uma criança que crescera a correr pelas colinas acima de Pitnochie, não era longe. Num dia bom, uma pessoa podia ir até lá e regressar sem ninguém dar pela sua falta. O problema era que não podia sair dali, nem ela nem nenhuma das que usavam vestido azul. As raparigas nobres tinham a liberdade de se deslocar entre a escola e a corte em determinadas ocasiões, e de montarem a cavalo. As outras só podiam sair quando iam em busca de ervas sob a vigilância rigorosa de Luthana, que supervisionava os trabalhos de jardinagem e de costura. Por ocasião do Portal, as mulheres sábias iriam a Caer Pridne para comparecer a uma cerimônia solene. Questionada sobre o significado de tal acontecimento, Irethra fora pouco esclarecedora. Um ritual para os homens, conduzido pelo druida do rei, e simultaneamente outro para as mulheres, conduzido por Fola. As mais velhas iriam com as que usavam vestidos cinzentos. As restantes teriam de esperar até terem idade para usar os vestidos verdes.

Tuala gostaria de testar a sua teoria naquela noite. Atirar-se do alto da muralha para ver se cairia no solo, em baixo, com os ossos partidos, despedaçada, ou se voaria como uma coruja através da escuridão até às muralhas de Caer Pridne para espreitar o banquete do rei. Em vez disso, regressou ao seu quarto na torre. Tinha que ser forte. Tinha de pensar em Bridei e não em si própria. Era inteiramente verdade: tinha sorte. Podia ser o que Fola queria que ela fosse, levaria simplesmente algum tempo. Bridei teria outros junto de si para lhe escutar os medos, partilhar os seus sonhos, manterem-se a seu lado, como ela nunca poderia estar devido ao que era. Com o tempo, o jovem aprenderia a confiar neles. Ana, por exemplo. Bridei veria Ana no banquete daquela noite, e Ferada. Falaria com elas com os seus olhos azuis e brilhantes, fixando-as enquanto lhes explicava qualquer coisa e fazendo gestos para ilustrar o que dizia. Ana responder-lhe-ia com a sua voz doce e grave e Bridei inclinaria a cabeça delicadamente para a ouvir... Tuala enterrou a cabeça na almofada, fechou os olhos com força e puxou o cobertor por cima da cabeça. A jovem abandonara a tigela de bronze porque as suas imagens a atormentavam, mas elas tinham vida própria, entravam-lhe cruelmente nos sonhos.

— Ela começou a duvidar do que em tempos era claro e límpido como a água — observou a presença de cabelos prateados empoleirada num ramo alto, invisível para o gênero humano. — O olhar dela é triste.

— Mas não duvida do amor da Que Brilha — disse o seu companheiro —, e isso é consolador nestes tempos de solidão.

— A tristeza pode ser demasiado grande. Maior do que o que ela sente por Bridei, maior do que a voz no seu coração e o apelo para a longa tarefa que tem pela frente.

— O apelo é da Que Brilha. Foi a própria deusa que deu vida a esta criança — observou o jovem coberto de hera —, e que nos mandou colocá-la à porta de Bridei. Se Tuala preferir ficar em Banmerren, vai contra os intentos da nossa Grande Mãe.

— Ser sacerdotisa é um ato de obediência à vontade da deusa.

— Todos aqueles que conhecem Tuala no mundo dos mortais, incluindo Bridei, sabem que é assim. Como é que a rapariga vai saber que A Que Brilha tem outro caminho para ela?

— De fato, ela tem poucas hipóteses de escolha, não pode lançar-se da muralha e voar até Caer Pridne. Tuala fará sempre o que acha que será melhor para Bridei, mesmo que isso a afaste dele.

— Bem — retorquiu a rapariga, passando uma mão descuidada pelos caracóis cintilantes —, ela ainda é uma criança, uma criança que foi expulsa de casa. Creio que temos de fazer com que o teste seja ainda mais difícil.

— Mais difícil para quem? — perguntou o rapaz.

— Para Bridei. Tuala está desanimada, deprimida, está pronta a considerar a outra hipótese, a hipótese que existe, não apenas fora da casa das mulheres sábias, como para lá do mundo dos humanos. Vamos tentar esse caminho. Vamos aliciá-la o mais possível. Vamos aliciá-la de tal modo que ela vai ter que responder: através do sangue que partilhamos.

— E se ela seguir em frente? E se ela passa para a outra margem e vê que não pode regressar?

— Não segue.

O rapaz vestido de hera estremeceu.

— Estás muito confiante — disse ele. — Olha que é muito perigoso.

A rapariga anuiu com os olhos luminosos subitamente muito sérios.

— Fortriu tem de ter um verdadeiro líder — disse ela —, um líder capaz de unir os reinos dos Priteni em redor dos deuses antigos e em sintonia com as antigas raças do país, especialmente a nossa. A nova ordem, no sul, espalha-se furiosamente, pisa indiscriminadamente os locais sagrados, desaloja os druidas e as Mulheres Sábias, queima e destrói os lares dos animais da floresta. A deusa precisa de Bridei.

— E Bridei precisa de Tuala.

— O meu plano assegurará que ambos estejam prontos para o que os espera.

— Pareces muito segura. Há que pensar nas excentricidades da espécie humana. As suas intrigas e jogos de poder têm a capacidade de destroçar os planos mais bem arquitectados.

— É verdade, Bridei ainda tem muito que sofrer, tanto por parte dos humanos como por parte dos deuses, perante os quais terá de provar que é digno da sua confiança. Eu confio nele. A luz da Guardiã das Chamas brilha no seu espírito, mas ainda tem muito que andar. O seu caminho está cheio de sombras e nem todas são nossas.


Caer Priden brilhava de tanta luz. Os archotes ardiam ao longo dos caminhos de ronda, iluminando as pedras esculpidas com estranhas criaturas. Estas tinham sido esculpidas com delicadeza mas tinham, simultaneamente, captado toda a sua força muscular e virilidade. O grande salão de Drust erguia-se sobre o promontório, rodeado pelas muralhas altas de Caer Pridne. A fortaleza tinha três níveis, cada um deles com uma muralha de pedra alternada com madeira. As valas triplas eram uma barreira adicional contra qualquer ataque. No interior das muralhas, vivia uma comunidade inteira dedicada à manutenção da corte do rei e ao apoio da sua casa. No lado oeste, entre quebra-mares de pedra, havia locais para a ancoragem de barcos. Uma escada ia dar a um portão de ferro. Para lá deste ficava a estrada, uma via larga de terra batida, naquela noite iluminada por tições colocados no alto de postes. Os homens que chegavam a pé ou a cavalo eram recebidos por um formidável grupo de guardas, colocados em frente dos portões duplos que impediam a entrada na fortaleza. Drust era poderoso, mas também era cuidadoso. Fora eleito rei numa época em que o sangue fervia entre os chefes tribais dos Priteni e os nobres se tinham dividido por causa da sucessão.

O sul, cada vez mais influenciado pela fé cristã, quisera Drust, filho de Girom, conhecido como o javali, um homem que seguia a nova fé. e que encorajava os missionários desejosos de a espalharem. O norte ficara sob o poder de Drust, filho de drost, dedicado aos antigos costumes e à proteção das fronteiras de Fortriu. Broichan apoiara Drust, o Touro. Como poderia não o fazer? Por seu lado, Drust, o Javali, tinha fortes e leais apoiantes. Assim, os nobres tinham ficado divididos. O voto de desempate de Fola, a Mulher Sábia, fora rejeitado pelos chefes tribais de Circinn visto que uma tal participante poderia tomar o partido da magia pagã para submeter as mentes dos homens à sua vontade.

Após algum tempo de tumultos e caos, atingira-se um compromisso amargo. Até então, apenas um rei governava as terras dos Priteni, desde o Grande Vale, a norte, até à muralha romana, a sul. O rei das Ilhas Pequenas submetia-se à lei daquele monarca mais poderoso. Os Caitt, claro, eram um povo à parte. No entanto, os territórios entendiam-se. Quando era necessário, trabalhavam em conjunto. Depois da dissolução da assembleia de nobres, a terra dos Priteni ficara dividida em dois reinos. Fortriu, governado por Drust, o Touro, e a sul o reino de Circinn governado por Drust, o javali. Toda a pessoasabia, se bem que fosse segredo, que ambos tinham concordado em reclamar o território do outro em caso da morte de um deles. Não admirava que houvesse, naquele momento, tantos guardas à entrada de Caer Pridne.

Bridei entrou no salão discretamente seguido por Breth e Garth. Já começara a reparar, agora que era obrigado a ser seguido por aquelas duas sombras, que havia outros homens com uma proteção semelhante. Broichan não. O druida sempre andara sozinho, mas Aniel, o conselheiro do rei, tinha um guarda-costas novo que podia ser visto perto do elegante nobre de cabelos grisalhos, e que tentava passar despercebido. Havia outros no salão com a mesma expressão, a expressão de homens sempre alerta, mas tentando, ao mesmo tempo, passar despercebidos. Geralmente eram homens robustos, vestidos com simplicidade e que rondavam os cantos das salas. Evidentemente, havia outras espécies de proteção. O rei Drust tinha Broichan. A presença do druida do rei devia ser, ou era, o suficiente para evitar quaisquer atacantes. Era do conhecimento comum que tais homens tinham imenso poder, que eram capazes de invocar as forças que quisessem para os ajudar. Um druida podia invocar a Guardiã das Chamas e fazer com que um homem suasse e ardesse até ser consumido pela febre; podia invocar A Que Brilha, pedindo inundações ou vagas avassaladoras. Só outro mago se atreveria a desafiar um tal homem.


No entanto, pensassem as pessoas o que pensassem, Broichan era um mortal e, por isso mesmo, era vulnerável. Bridei nunca mais se esquecera da noite, muito tempo antes, durante a qual recebera a notícia de que o seu pai adotivo fora envenenado. O jovem recordou-se da sua própria desolação e da bondade de Donal. Alguém tivera a inteligência de se insinuar junto do druida do rei. Seria o mesmo que perseguira o pequeno Bridei na floresta com o arco e a espada? Nunca ninguém Lhe dissera. Talvez ainda ninguém soubesse, ninguém senão aqueles que queriam mal ao druida do rei e ao seu filho adotivo. Tornava-se cada vez mais evidente que Broichan dissera a verdade. A partir dali seria sempre assim, sempre guardado de perto, sempre consciente de que os seus inimigos estavam prontos a atacar. Se um fosse detectado e eliminado, logo outro tomaria o seu lugar.

Drust, o Touro... Bridei perguntara muitas vezes a si próprio como é que este seria. Talvez o rei tivesse um ar maciço, forte e sólido, como o animal que escolhera como símbolo. Talvez fosse majestoso e resplandecente, como se transportasse consigo a chama da Guardiã das Chamas. O rei de Fortriu era, no fim de contas e de certo modo, a personificação daquele deus. O seu papel especial nos rituais acentuava-o. Talvez fosse um desapontamento. Talvez Drust fosse uma caricatura, um pobre homem agarrado com todas as forças à vida e ao poder. Dizia-se que ele teria sorte se conseguisse durar todo o Inverno.

O salão estava cheio de homens e de mulheres, alguns sentados às três grandes mesas, outros amontoados nos espaços entre elas. O ar vibrava com os risos e as conversas. Algures, mais longe, era possível ouvir música sobrepondo-se acima daquele barulho: uma gaita-de-foles, um tambor ou uma harpa. Cheirava a carne assada e ervas, e estava muito calor. Na grande lareira, ardiam grandes troncos. Astuciosamente, a ventilação desta era feita através de uma estrutura de pedra, mantendo o salão relativamente livre de fumo. Bridei reparou que o movimento das pessoas parecia uma dança ou um jogo, um complicado jogo de estratégia com regras diferentes. Bem preparado por Broichan, o jovem tentou identificar alguns homens, homens influentes contra os quais fora avisado. O tipo excepcionalmente alto com cabelos cor de cobre até aos ombros devia ser Carnach, primo do rei e um potencial candidato. A ser vigiado. O homem de ombros largos que conversava com Talorgen era, provavelmente, outro candidato, Wredech, da casa de Fidach. Talorgen possuía informações acerca de Wredech que talvez fossem úteis. O homem tinha de ser cuidadosamente trabalhado. Onde estavam os conselheiros do rei?

Bridei olhou para o canto mais afastado do salão e lá estava o rei Drust, sentado a uma mesa mais pequena perpendicular às outras e instalada sobre um estrado. O seu cabelo negro tinha madeixas grisalhas, assim como a barba bem tratada. As suas feições distinguiam-se por um nariz em forma adunco e por umas sobrancelhas espessas que lhe enegreciam os olhos, olhos que perscrutavam a sala mesmo quando se inclinava para escutar Broichan, sentado a seu lado. Claro que não era possível avaliar um homem com tanta rapidez, mas Bridei sentiu que havia poder até no dedo mindinho do rei, autoridade em cada um dos seus pestanejares, no modo como ele se sentava direito, régio, descontraído, mas ao mesmo tempo, atento. Na inteligência dos seus olhos negros, frios como o aço, no maxilar forte, na economia de gestos. No modo como Broichan o escutava e na inclinação da cabeça do druida. Se o rei estava mesmo doente, não parecia. Havia uma ruga entre as sobrancelhas, uma tensão na boca que talvez indicasse a presença da dor, suprimida pela vontade, mas mais nada.

A multidão mexia-se, passava, agrupava-se e reagrupava-se. Havia mulheres no salão: depois da longa preparação para a guerra, da marcha até Galany’s Reach e do penoso regresso a casa, custava-lhe a acreditar que estavam ali. Lady Dreseida, com um vestido prateado e preto, conversava com um grupo de mulheres elegantemente vestidas, com penteados muito elaborados, entrançados e enrolados. Gartnait estava com a irmã, Ferada. A jovem apercebeu-se do olhar de Bridei e fez um gesto com a cabeça, sem sorrir. Bridei devolveu sobriamente o cumprimento. Ferada era uma rapariga estranha, inteligente e voluntariosa, com uma ira dentro de si que a tornava combativa. As conversas com Ferada eram geralmente interessantes, mas pouco descontraídas. Gartnait, por melhor companhia que fosse na caça ou em treino de combate, não sabia conversar. Ferada era capaz de seguir a maioria dos tópicos. Conversar com ela na Fonte do Corvo era sempre um descanso depois dos infindáveis dias de preparação para a guerra. No entanto, não desejava a sua companhia naquele momento. Geralmente, Ferada dava a impressão de que estava, de certo modo, a troçar dele. Que, na verdade, desprezava todo o mundo. Aquilo perturbava Bridei porque lhe parecia que só havia um mundo e que, se tinha defeitos, as pessoas não se deviam queixar deles, mas dar passos para o mudar.

A filha de Talorgen. — Aniel, o conselheiro do rei, aparecera ao lado de Bridei, ao mesmo tempo que o seu guarda-costas fazia uma Pausa para falar com Breth.

— Vais conhecê-la, suponho. A rapariga ao lado dela é Ana, a refém de Drust das Ilhas Pequenas, uma excelente rapariga. Arranjou-se maneira de as duas passarem algum tempo aqui juntamente com outras, e a rapariga está a gostar muito porque é muito tranquila, muito senhoril. Também é extremamente bonita, não achas?

Vindas do reservado e prudente Aniel, aquelas palavras eram surpreendentes. Bridei apercebeu-se do olhar sério de Ana, da tez pálida dos cabelos dourados caindo-lhe em cascata pelos ombros, e a tristeza voltou a apoderar-se dele. Não conseguia afastar a imagem de Tuala girando no topo de Cicatriz de Águia, as madeixas flutuando ao vento como um estandarte. O jovem não respondeu.

— Mais tarde, não te esqueças de falar àquelas duas jovens — disse Aniel, imperturbável. — Deves fazê-lo. Mais um passo que deves dar. Estás a ver o tipo magro à direita do rei? Um homem perigoso. Tharan é um dos meus colegas conselheiros. Extremamente influente e um feroz apoiante do candidato da casa de Fortrenn, que tem grandes aspirações. É pura perda de tempo tentar fazê-lo mudar de idéia. A seguir a ele está Eogan, outro conselheiro, muito próximo do rei e possuidor de alguma flexibilidade de pensamento. Uma aproximação tua é capaz de ter mais sorte do que uma minha, ou de Broichan. Nós os dois não somos universalmente admirados. A mulher pequena é a mulher de Drust, Rhian de Powys. Tem sido uma excelente apoiante, mas é pouco provável que desempenhe qualquer papel depois dele morrer. O irmão dela, Owain, é insignificante. Parece que nos vamos sentar. Depois do jantar, o rei vai decerto chamar alguns dos homens para receberem pessoalmente os seus agradecimentos. Tu vais ser um deles. Estás preparado?

— Penso que sim, meu senhor.

— Ótimo. Estou a ver que te vestiram bem. Isso também é importante. Rico, mas sem ostentações. Com o tempo desenvolverás o teu próprio estilo.

Bridei não podia responder sem, possivelmente, ofender o conselheiro. Faolan é que escolhera aquelas roupas por ordem de Broichan, e o jovem sentia-se estranho com elas depois de tantos dias e noites a caminhar, a trepar, a comer e a dormir sempre com a mesma túnica, as mesmas calças, a mesma roupa interior, as mesmas botas. Aquela lã macia, fina, o cinto com a fivela de prata e a capa cuidadosamente adornada não pareciam pertencer-lhe. Lavara o corpo e o cabelo. Para o efeito, encontrara água quente no seu quarto, juntamente com um pedaço de sabão que cheirava a rosmaninho. Depois de secos, os seus caracóis castanhos tinham ficado indomavelmente frisados, e Bridei tivera que passar pela humilhação de deixar que Garth lhe fizesse uma pinça na nuca.

— É um mundo novo para ti. Aprende depressa. Não tens muito tempo. — Em seguida, o conselheiro desapareceu. Esperava-o um lugar na mesa real, perto do rei.

Bridei sentou-se com a família de Talorgen, Gartnait à sua direita e Ferada à sua esquerda. A alarmante lady Dreseida sentou-se à sua frente. Naquela noite, o provador era Garth. Bridei não o conseguira evitar. O guarda-costas estava atrás do jovem, quase encostado à parede. Breth estava estrategicamente um pouco mais afastado, aparentemente muito divertido com os amigos. No entanto, não bebeu nem comeu, atento aos convidados, às entradas no salão, aos cantos sombrios e ao que estes poderiam esconder. A técnica de Faolan era diferente. Antes, Bridei reparara nele várias vezes, sempre pelos cantos, sempre à escuta. O espião passava de um grupo para outro com tanta discrição que as pessoas mal reparavam nele. Provavelmente, o celta ouvia cada conversação significativa, cada pequena conspiração, cada comentário. Naquele momento, estava sentado no meio de um grupo de homens que Bridei não conhecia e parecia estar a comer e a beber tranquilamente, muito calado. A rapariga dos cabelos dourados estava sentada na mesa alta. A jovem era de sangue real, parente do rei vassalo das Ilhas Pequenas. Era o seu lugar.

— A minha amiga Ana — disse Ferada secamente, seguindo o olhar de Bridei. — Bonita, não é?

— Ouvi dizer que é uma refém. Tão nova. Suponho que é mais nova do que tu. Deve ser uma situação difícil.

— Ela tem mais ou menos a mesma idade de Tuala, a tua irmã. Sim, Ana tem muitas saudades de casa. Em Banmerren é uma coisa normal, mas Ana é uma daquelas pessoas que tira partido de tudo, nunca se queixa.

A mão de Bridei descansou na bolsa que lhe pendia do cinto. Não enfiaria a mão na bolsa para tocar no objeto que se encontrava no seu interior. A sua primeira intenção fora atirar com a fita para a lareira: Um ato de sacrifício à Guardiã das Chamas, uma promessa de que seguiria o caminho que se abria à sua frente por mais perdas que uma tal decisão representasse. Porém, guardara-a.

— É uma rapariga muito bonita — disse Bridei, reparando no Pequeno sorriso de Ana, enquanto escutava algo que o conselheiro Eogan dizia, e no rosa delicado com que as suas faces se cobriram. — Também estás muito bonita esta noite, Ferada. Os brincos ficam-te bem. — A boa educação não exigia menos. Além do mais, mesmo que ela troçasse do seu comentário, estava a dizer a verdade. As sardas no nariz de Ferada suavizavam-lhe as feições agudas, e o penteado era de certo modo diferente, não a fazia tão formidável.

— Todas nós — disse ela, olhando para o prato — fizemos um esforço. Faz parte da grande representação que são as nossas vidas na corte. — A jovem cortou uma fatia de carne e ficou a olhar para ela — Estou a ver que tens um provador — comentou.

Bridei sorriu.

— Ordens de Broichan.

— É estranho. Os provadores não são só para os homens poderosos e influentes? O meu pai não tem nenhum.

— O amigo de Bridei morreu envenenado — observou Gartnait, com a boca cheia de carne. — Não sabias, Ferada?

— Se fosse eu — replicou Ferada —, não quereria que morresse mais nenhum amigo.

Bridei pousou a faca, subitamente sem apetite.

— Estúpida — exclamou Gartnait, olhando para a irmã do outro lado de Bridei.

— Valham-me os deuses. Desculpa, Bridei — murmurou Ferada, brincando com umas migalhas de pão. — Falemos de outra coisa, sim?

Bridei não disse nada. O jovem não tinha jeito nem inclinação para aqueles jogos, em especial com a dama Dreseida ouvindo atentamente toda a troca de palavras do outro lado da mesa. Além disso, apercebeu-se que havia realmente algo de que queria falar. Queria fazer algumas perguntas a Ferada respeitantes a Banmerren, de onde ela viera pouco tempo antes. Não as podia fazer naquele momento com Dreseida a ouvir e os outros por perto. A dor provocada pela deserção de Tuala era muito recente, estava em carne viva. Reconhecia que era muito vulnerável naquela área, e tinha de ser cuidadoso para não ser atacado.

— Depois de uma estação ou mais ao ar livre — disse ele —, é agradável ter comida tão boa e cerveja. Verás que não somos grande coisa como conversadores. Lamento.

Ferada deu uma breve risada.

— Da parte do meu irmão isso não é novidade — replicou ela, Gartnait fez-lhe uma careta. — Tu, por outro lado, não podes usar essa desculpa, assim como não pareces estar a comer, com ou sem provador. Penso que gostas tanto da vida na corte como Tuala de estar em Banmerren.

Bridei respirou fundo, lentamente. Fixou a mente na Que Brilha, impecável, calmo, sereno. A sua educação druídica, com as suas técnicas de equilíbrio e concentração, ajudavam-no muito naqueles momentos.

— Suponho que a transição possa ser difícil, mesmo para um guerreiro experimentado como o teu pai — disse ele calmamente. — O mundo da guerra, com noites ao ar livre e jantares em movimento, faz com que isto pareça... artificial.

— O mundo é o mesmo — observou Ferada, pousando a sua taça. — A guerra na corte é que é diferente, mais nada. Se pudesse escolher, eu preferia as noites ao ar livre e os jantares em movimento.

Gartnait olhou para ela com o sobrolho franzido. Era desconfortável estar sentado entre os dois. Bridei não se lembrava daquela antipatia no Verão que passara na Fonte do Corvo.

— Não aguentavas dois dias — disse Gartnait. — Não fazes idéia do que aquilo é.

— Eu... — Ferada ergueu-se ligeiramente na cadeira, as faces muito coradas.

— A tua irmã tem uma ótima noção de estratégia — interrompeu Bridei rapidamente. — Falamos muitas vezes sobre estas coisas na Fonte do Corvo. Ferada não tem culpa de, por ser mulher, não poder experimentar em primeira-mão o sangue e a crueldade, a coragem e o sacrifício por que os homens passam em tempo de guerra, mas tenho a certeza que compreende o seu significado, tal como outra rapariga qualquer. Porém, tens razão, Gartnait, ninguém pode apreender a verdadeira natureza da guerra sem tomar parte nela. A guerra faz vir a tona o melhor e o pior nos homens.

Seguiu-se um pequeno silêncio entre os três, ao mesmo tempo que em redor as pessoas continuavam a rir e a conversar, as facas batendo nos pratos, e os jarros tilintando contra as canecas.

— Bem dito, Bridei — disse Dreseida, muito séria. — Pelo que tenho ouvido, tu és considerado um herói. Espantoso, logo na tua primeira batalha. — A dama tinha o dom de transformar um cumprimento num insulto.

— Houve muitos homens corajosos, minha senhora — respondeu Bridei em tom neutro. — Alguns morreram e outros ficaram gravemente feridos. O meu papel na batalha foi pequeno.

— Não me estou a referir à batalha. É evidente que todos desempenharam o seu papel nela. O que aconteceu depois é que te tornou famoso: o homem que roubou a Pedra Mágica bem nas barbas dos Celtas. Notável. É difícil imaginar uma sequência de acontecimentos que ilustre melhor o prestígio que conseguiste e a maneira como ganhaste a confiança dos teus camaradas. Se o que Gartnait diz é verdade, eles adoram-te.

Bridei sentiu as faces coradas.

— Se Gartnait disse isso, exagerou. Na ocasião, pareceu-me que não havia outra coisa a fazer. Valia a pena agarrar a oportunidade, foi um ato do agrado dos deuses. Houve muitos homens que contribuíram: Foirel de Galany, Ged de Abertornie, Talorgen. Limitei-me a oferecer os conhecimentos que tinha. A educação que tive é que tornou possível a remoção da pedra, a sua passagem para o lago e o seu transporte pelo lago acima, mais nada.

— Foi, de fato, um mais nada substancial — comentou Ferada, pela primeira vez num tom de voz sem malícia. — Um grande feito. Além disso, a idéia foi tua. Se não fosses tu, não teria acontecido. Pelo menos, foi o que o pai disse. — A jovem olhou para a mãe e calou-se.

— Obrigado — disse Bridei. — Aprendi muito. Aprendi que, por vezes, o risco vale a pena e aprendi a dar valor à camaradagem entre os homens. Estou grato aos deuses por isso. Espero que Foirel tenha conseguido levar a pedra até ao local onde ela se erguerá orgulhosamente mais uma vez. Quando regressarmos a Galany’s Reach, já não será para conseguir uma vitória simbólica, será para erguer lá o nosso estandarte para sempre. Aquela terra é nossa e há de ser reconquistada.

Dreseida estava a olhar para ele com os olhos semicerrados. Era evidente que estava a preparar uma das suas perguntas provocadoras.

— Meus senhores! Minhas senhoras!

As conversas esmoreceram. A música vacilou e desvaneceu-se. A voz pertencia a um dos guardas de Drust, um homem escolhido pelo seu peito em forma de barril e voz de trompa.

— Silêncio, vai falar o rei! — bradou.

Drust levantou-se. Bridei reparou que ele deixara uma mão pousada na mesa para se poder apoiar. A sua voz, no entanto, era forte e firme.

— Bem-vindos, todos — disse ele. — Estendo especialmente a minha mão àqueles que regressaram de Galany’s Reach com a honra de uma vitória contra os Celtas de Dalriada. Pelos homens que pereceram por esta causa nobre, oferecemos uma oração para que tenham uma jornada rápida e pacífica para o reino para lá do véu. Que durmam profundamente nos braços da Mãe de Tudo e que acordem para um novo dia cheio de promessas. Por ocasião da festa da Medida, honrá-los-emos. — O monarca baixou a cabeça por breves momentos. Os homens e as mulheres presentes no salão fizeram o mesmo. Toda a gente menos Faolan, claro. Bridei viu de relance o celta sentado com os braços cruzados e a expressão habitual de divertimento no rosto. Aquele homem estava ao serviço de Drust? Por todos os deuses, devia ter qualidades raras para se permitir mostrar um tal desprezo no próprio salão do rei.

— As mulheres e os filhos dos que pereceram não passarão privações — continuou o rei —, e os feridos receberão as atenções dos meus próprios físicos na medida do possível. Este salão sente-se honrado por receber esta noite dois dos líderes desta grande expedição: Talorgen da Fonte do Corvo e Ged de Abertornie estão conosco, e receberão os meus agradecimentos pessoais sob a forma de presentes. Em devido tempo, espero que Morleo de Longwater e Foirel, filho de Duchil de Galany e verdadeiro chefe tribal daquelas terras a oeste, possam vir a Caer Pridne para receber a minha gratidão. Saúdo os feitos dos guerreiros que combateram sob a liderança destes grandes chefes tribais. A Guardiã das Chamas sorri-vos. O deus delicia-se com os atos dos bravos e presta honras aos corações corajosos. A Que Brilha olha para vós com amor. Peço a todos que assistam ao grande ritual que vamos celebrar aqui em Caer Pridne. Que cada um de vós, à vez, use a coroa dos sonhos e continue a percorrer o mesmo caminho com o fogo da inspiração dos deuses a iluminar-vos.

Os homens deram vivas aos berros. Os pés bateram com força no chão e os punhos nas mesas. Bridei descobriu que tinha lágrimas nos olhos. Consciente do olhar de Ferada e, pior ainda, do da sua mãe, controlou a respiração e não as deixou cair.

— Avança, Talorgen, meu amigo. Ged, avança com ele. Que Corvo Negro nos acuda, homem, quem é que te faz as roupas? Trazes mais cores contigo do que um arco-íris. — O comentário do rei foi recebido com uma gargalhada geral. Ged, sorridente, atirou com a capa multicolorida por cima dos ombros e ajoelhou-se ao lado de Talorgen. Ninguém se colocava de pé perto do rei sem que lhe fosse dada autorização.

Drust afastou-se da mesa. O monarca enfrentou as pessoas ali reunidas com a figura alta e escura de Broichan um pouco atrás, como uma sombra, e Aniel a seu lado com um pequeno cofre nas mãos. Perto deles pairavam dois guarda-costas, flanqueando os dois homens ajoelhados. Um terceiro estava por trás da mesa e havia outros nos cantos do estrado. Drust não corria riscos. Se aquelas precauções eram necessárias, pensou Bridei, o que aconteceria quando a delegação de Cirdnn chegasse para apresentar a sua candidatura? E os outros pretendentes? O local ficaria repleto de grandes homens fortemente armados, fingindo que não estavam a fazer nada de especial. Se não fosse um assunto tão sério, daria vontade de rir. Bridei pensou que gostaria de contar o caso a Tuala.

— Levantai-vos, Talorgen, Ged. Somos velhos amigos. Agradeço-vos do fundo do coração. Conseguistes uma grande vitória para Fortriu, um feito que permanecerá vivo durante muito tempo através de canções e histórias. Em nome do amor, da gratidão e do orgulho da Guardiã das Chamas, dou-te isto, Talorgen. — Aniel tirou do cofre uma bracelete de ouro torcido, grossa como uma corda. — Para ti, Ged, isto, para prenderes essas capas chocantes. — O presente era um alfinete de ouro em forma de pena. Bridei não conseguia ver os pormenores, mas parecia ter várias placas ovais de esmalte incrustadas, o que o fazia brilhar como um arco-íris. Sorrindo, Ged prendeu-o de imediato à capa que tinha sobre os ombros. Parecia que aquele poderoso rei tinha um belo sentido de humor.

— Obrigado, meu senhor rei — disse Talorgen, fazendo uma vênia.

— Dás-nos uma grande honra — acrescentou Ged.

— Sentai-vos aí. Na mesa — convidou o rei. — Ainda vamos ouvir música e algumas histórias. Parece que temos uma canção nova. Diz respeito a um jovem e à deslocação de um objeto incrivelmente grande por terrenos incrivelmente difíceis. O meu bardo levou dois dias e duas noites para a compor. Tal feito inspirou-me o espírito e deliciou-me o coração. Eu não conheço o homem que o concebeu e que vos levou à sua execução, mas já o amo. Avança, Bridei, filho adotivo do meu druida.

O coração de Bridei bateu com força. O jovem esperava uma coisa daquelas, mas não tão cedo. Para ele, ser honrado logo a seguir a Talorgen e a Ged era tão pouco apropriado que era quase ridículo.

Não tinha quaisquer palavras preparadas, mas esperava lembrar-se de algumas.

Bridei ajoelhou-se perante o rei e sentiu a presença de Drust como uma força, um calor quase tangível. O fogo da Guardiã das Chamas ardia, poderosa, no seu representante na terra. Quando o rei lhe colocou uma mão na cabeça, abençoando-o, o jovem sentiu um arrepio percorrer-lhe todo o corpo.

— Levanta-te, Bridei — disse Drust. — Nós os dois somos parentes. És parecido com a tua mãe, mas também tens alguma coisa do teu pai. Se bem me lembro, Maelchon era um grande homem, um grande líder, que não se deixava enganar com facilidade. No entanto, não teve a vantagem de uma educação druídica, não foi criado no amor aos deuses antigos nem à bela terra de Fortriu. Tenho um presente para ti, jovem. Sei que Ged te deu uma capa, mas não a tens contigo esta noite.

Pelo canto do olho, Bridei viu o sorriso aberto de Ged e o sorriso trocista de Talorgen.

— Não, meu senhor. — Se tivesse entrado no salão com aquela peça de vestuário, teria sido o centro das atenções.

— Não faz mal — disse Drust. — Este alfinete fica bem numa capa qualquer; eu próprio te vou pôr. — Enquanto a corte em peso olhava em completo silêncio, o rei tirou um alfinete de prata do cofre que Aniel lhe estendia e prendeu-o à capa de Bridei com as próprias mãos. O objeto tinha a forma de uma ave com as asas abertas e os seus olhos eram duas pedras azuis. Uma águia em vôo: a chama de Fortriu.

— Bom trabalho, meu filho — continuou Drust serenamente. Estamos todos orgulhosos de ti. Ouvi dizer que perdeste um amigo há pouco. Vem, senta-te a meu lado, poderás contar-me essa história triste. Depois, quero que me contes o teu feito. Broichan assegurou-me que a Pedra Mágica não poderia ter sido deslocada sem a ajuda de feitiços druídicos. Ele e Aniel fizeram uma aposta nesse sentido. Eu não. A minha mulher não gosta dessas coisas. — Drust sorriu para a rainha, sentada à mesa, que lhe devolveu o sorriso com uma covinha ao canto da boca. — Vem, junta-te a nós. — O monarca ergueu a voz mais uma vez, dirigindo-se à corte reunida. — Comei, bebei, diverti-vos com a música, meus amigos e o meu bardo que se prepare. — Após as palavras do rei tudo se tornou mais fácil para o jovem, o fato de ser primo de Drust tinha de chegar ao conhecimento das pessoas mais cedo ou mais tarde mas não significava, necessariamente que a circunstância faria dele um pretendente à coroa. Os candidatos tinham que ser filhos de uma princesa de sangue real e Drust escolhera cuidadosamente as palavras, não pronunciara o nome de Anfreda. Era possível que, para os que já tinham bebido muito, ou para os que não tinham inteligência ou não estavam interessados, o estatuto de Bridei como potencial candidato permanecesse desconhecido durante mais algum tempo. Porém, após as palavras do rei, o jovem passava a ser uma figura pública, quer quisesse, quer não.

Drust era um homem amável, inteligente e um bom ouvinte, mas não era possível contar a história da morte de Donal com todos os pormenores. Bridei só poderia contá-la na totalidade a uma pessoa visto que as lágrimas lhe cairiam pelas faces. O jovem limitou-se a alguns fatos e o rei, com os olhos semicerrados, passou rapidamente para as roldanas, as alavancas, as jangadas, os rolos e as circunstâncias em que um grupo tão diferente de homens, cansados de uma longa marcha e desejosos de regressar a casa antes da chegada de reforços de Dalriada, conseguiram levar a cabo uma tarefa cuja grandeza só se equiparava à sua aparente loucura.

Explicar devidamente a odisséia exigiu o uso de facas, de malgas e de taças. O rei seguiu cada passo com grande interesse. Quando Bridei terminou, Broichan e Aniel declararam que tinham ganho a aposta. Aniel disse que podia ser tudo explicado pela força das alavancas e do equilíbrio. Broichan declarou que, sem a intervenção da Guardiã das Chamas na elevação inicial da pedra e a boa vontade da Que Brilha, que permitira que uma coisa tão pesada flutuasse, a deslocação teria sido impossível. Tinham sido ditas orações, sem dúvida, e invocações enquanto os homens puxavam pelas cordas. Os deuses tinham sorrido ao seu filho e ao seu plano fantástico. Os deuses queriam que a Pedra Mágica passasse para as mãos dos Priteni, que continuavam fiéis à sua fé.

— E Foirel ficou encarregado de a levar para Lago Mágico — disse Drust, abstrato, com o queixo barbudo apoiado numa das mãos. Também foi bem pensado, Bridei.

— Pareceu-me sensato deixá-la nas mãos dele, meu senhor rei. O povo dele perdeu quase tudo quando os Celtas lhe usurparam as terras. Foirel não queria sair de Galany’s Reach depois de, por fim, ter pisado novamente aquele solo ancestral. Foirel é um líder; pode ter a reputação de ser impetuoso, mas é suficientemente inteligente para reconhecer que não podia ficar isolado, longe do posto avançado mais próximo. Os homens dele, porém, não são tão inteligentes. Sem um objetivo preciso, uma demanda, teria sido difícil obrigá-los a regressar. Se tivessem ficado, teriam sido massacrados com a chegada dos reforços de Gabhran. A Pedra Mágica permitiu-lhes retirar com o orgulho intacto. — Bridei apercebeu-se de que Drust não era o único a olhar para ele; todos os outros, sentados à mesa do rei, seguiam atentamente as suas palavras.

— Suponho que discutiste essa teoria com Talorgen e os outros chefes tribais?

Bridei sentiu corar as faces, como uma criança apanhada a mentir.

— Não exatamente, meu senhor rei. Tenho a certeza que estavam todos conscientes da delicadeza do momento. Se a questão fosse abordada abertamente, Foirel de Galany poderia sentir-se insultado, pareceria que eu é que sabia o que era melhor para ele. Foirel é um homem excelente e eu respeito-o.

— Hmm — murmurou Drust, encostando-se para trás. A mesa era uma confusão de facas e de taças, aqui e ali uma côdea ou um osso representando um objeto qualquer da história. — Broichan, tens aqui um jovem muito pouco comum.

— Obrigado, meu senhor rei. — Se o druida parecera surpreendido antes, naquele momento a sua expressão era normal, ilegível. Broichan tanto podia estar a sentir orgulho como não estar a sentir absolutamente nada.

— Estou a ver que já puseste Faolan a trabalhar — disse o rei em voz mais baixa, olhando para Bridei. O celta sentara-se na cadeira que o jovem deixara vaga e parecia tentar entabular uma conversa com lady Dreseida. A expressão da dama era glacial.

— Sim, meu senhor.

Algo no tom de Bridei atraiu a atenção do rei.

— Não o julgues mal, Bridei — disse Drust. — Não encontrarias melhor. Por que imaginas que eu durei tanto?

Aniel tossiu.

— É claro que tenho conselheiros excelentes — acrescentou Drust —, é um druida excepcional, se bem que tivesse preferido afastar-se durante muitos anos. Não te deixes enganar pelos modos de Faolan, Bridei. O homem é um verdadeiro especialista.

— Preocupa-me — disse Bridei com alguma hesitação — o fato de ele trabalhar contra o seu próprio povo. Por que decidiu ele espiar para Fortriu? Por que decidiu viver entre gente que o despreza? Peço desculpa, meu senhor rei — disse o jovem, apercebendo-se de que Broichan estava a olhar para ele —, pela minha rudeza. Sei que ele vos tem servido bem.

— E também te servirá a ti enquanto precisares dele. Não subestimes os seus serviços. Valem mais do que cem alfinetes. Não aprofundes demasiado os seus motivos e não lhe faças perguntas sobre o passado: esse está enterrado. O homem é uma arma, uma ferramenta, eficiente e mortal. Tira partido dele e não lhe faças perguntas.

— Sim, meu senhor rei.

A cerveja quente com ervas voltou a correr, juntamente com bolos de mel, e a música ouviu-se de novo. As conversas generalizaram-se; Broichan afastou-se com Talorgen e Tharan; o rei chamou Ged para junto de si e Bridei viu-se ao lado de Ana, a rapariga dos cabelos dourados, que se tinha mantido até ali completamente silenciosa.

— As minhas desculpas — disse-lhe ele, um pouco atrapalhado. Se a jovem fosse como as mulheres da família de Gartnait, pô-lo-ia no seu devido lugar com as palavras apropriadas. — Aquilo foi uma falta de cortesia. Os homens têm o costume de pressupor que as mulheres não estão interessadas em determinadas conversas. A tua amiga Ferada já me disse que isso não é verdade. O meu nome é Bridei, filho de Maelchon.

— O meu é Ana, da Ilhas Pequenas, cujo rei é meu primo.

Bridei acenou com a cabeça.

— Ferada disse-me. Deve ser muito difícil para ti.

— Já estou habituada — disse ela, brincando com a franja do cinto. — Por vezes, sim, é difícil, mas o rei Drust permite-me certas liberdades.

— Disseram-me que passas algum tempo em Banmerren. Estás a ser educada lá?

Ana sorriu, fazendo com que o seu rosto já bonito adquirisse um encanto deslumbrante.

— É verdade — disse ela. — É claro que Ferada, eu e as outras raparigas de sangue nobre não estudam as disciplinas esotéricas, como a adivinhação ou as profecias. Estudamos o conhecimento das ervas, o que pode ser útil. Não aprendemos os rituais na sua totalidade, apenas a parte que a mulher de um chefe tribal pode ser chamada a desempenhar e temos uma tutora de história e de política muito boa. A tua irmã! — Ana olhou para o rosto de Bridei; os seus grandes olhos fixaram os dele e a sua expressão mudou — Tens saudades dela — disse ela docemente.

Bridei olhou para as mãos. Devia estar cansado; não devia ter deixado abrir a guarda daquela maneira. O jovem aprendera a dissimular os sentimentos com um mestre. Talvez fosse da dor de cabeça, que desaparecera quando o rei lhe tocara na cabeça e que estava a regressar, latejando como um tambor. Bridei não disse nada.

— Eu entrego-lhe qualquer mensagem que me dês — disse Ana. — Dentro de pouco tempo regressamos a Banmerren. Penso que Tuala gostará de ter notícias tuas. Apesar de ir bem nos estudos e de as tutoras gostarem muito dela, creio que se sente muito só.

Era impossível não perguntar.

— Falas muitas vezes com ela? Ela é tua amiga? — Ana continuava a brincar com o cinto.

— Tuala não faz exatamente amigas. Ela fala comigo e com Ferada, que já conhecia antes de ir para Banmerren. Deram-lhe um pequeno quarto na torre, só para ela. A mim, pareceu-me esquisito, pareceu-me que estavam a tentar demonstrar que ela é diferente de nós, mas Tuala não se importa, tem um carvalho bem do lado de fora da porta e de vez em quando trepa para cima dele. Penso que nessas ocasiões está a pensar em Pitnochie. Tuala é uma rapariga incomum, parece um animal selvagem.

— São boas para ela? — Bridei não queria fazer a pergunta que desejava. Só Tuala lhe podia falar das razões que a tinham levado a entrar para Banmerren, virando-lhe as costas.

Ana começou a responder, mas depois calou-se. O bardo do rei sentara-se com a pequena harpa nos joelhos, perto da mesa. Chegara a hora de a heróica história da Pedra Mágica ser contada com todo o seu esplendor. Bridei viu-se a si próprio a esperar fervorosamente que o seu nome fosse mencionado o menor número de vezes possível. Na ocasião fora um ato de generosidade, unira os homens e mantivera a mente ocupada; mantivera os sonhos sombrios afastados. Porém, não via razão para que o que fizera fosse imortalizado. As pessoas faziam o que tinham que fazer e, se corria bem, era aos deuses que deviam agradecer.

Para seu alívio, apesar do seu nome aparecer na história, a ênfase ia para o rei Drust, sob cujo estandarte se desenrolara a aventura contra os Celtas: Drust, a personificação terrena do mais heróico dos deuses guerreiros, a Guardiã das Chamas. Talorgen também aparecia, juntamente com Ged e os seus guerreiros multicoloridos, Morleo de Longwater e Foirel de Galany. A pedra era descrita poeticamente e as suas inscrições interpretadas.

O bardo do rei tinha uma voz poderosa e suave; os seus dedos longos tangiam as cordas da harpa evocando umas vezes um prodígio, outras o terror, outras o mistério e outras o patético com a perícia de um profissional e a sensibilidade de um verdadeiro poeta.

Quando a história acabou, a corte reunida aplaudiu ruidosamente e depois pediu mais música. As gaitas-de-foles soaram, agudas, os tambores começaram a marcar o ritmo e as pessoas afastaram as mesas, preparando-se para dançar.

Ferada aproximou-se com a mãe logo atrás. Era evidente que iam em busca de Ana, que se levantou. Era preciso tomar uma decisão: só os deuses sabiam quando teria uma nova oportunidade!

— Toma — disse Bridei, olhando em redor para ver se Broichan não estaria a olhar para eles e tirando a fita azul da bolsa. — Por favor, dá-lhe isto.

Ana recebeu o objeto e meteu-o por baixo do cinto, escondendo-o. A jovem olhou novamente para ele com uma pergunta nos olhos.

— Se pudesses guardar segredo... Suponho que este tipo de comunicação é proibido — disse Bridei em voz baixa.

— Não tens nenhuma mensagem? — perguntou Ana.

Ferada parara para falar com o pai. Dreseida percorria a multidão com o olhar, atenta à agitação provocada pelos casais colocando-se em linha ao longo do salão.

— Diz-lhe que respeito a decisão dela. — Parecia uma coisa fria, formal; não era, de modo nenhum, o que lhe ia no coração. — E que espero que seja feliz. Nunca pensei que A Que Brilha a chamasse. — O jovem parou; já era demasiado.

Ana acenou levemente com a cabeça, ao mesmo tempo que Ferada a levava para dançar. O momento passara.

Mais tarde, quando estavam todos deitados e o brilho branco e dourado da Lua se espalhava por cima de Caer Pridne, Bridei passeava pelo caminho de ronda, perto dos aposentos de Broichan. A dor de cabeça não lhe permitia adormecer, ou sequer ficar quieto; tinha de pedir uma poção qualquer a Broichan no dia seguinte, se bem que desconfiasse que nem a mais potente o aliviaria.

O jovem ouviu um som quase inaudível atrás de si. Bridei girou com a faca subitamente na mão, alerta.

— Muito bem — disse Faolan, saindo da sombra para a luz do archote. — Pensei que te ia apanhar a sonhar. Tens o hábito de passear sozinho de noite? Onde estão os teus guarda-costas?

— A dormir. Disse-lhes que fossem descansar. Breth está à porta do meu quarto, não está a mais de quatro passos. Pode chegar aqui em dois momentos.

— Um momento é o tempo suficiente para que uma faca se enterre no teu coração — disse Faolan. — És pouco cuidadoso, mas não pensei que fosses tolo.

— Irrita-me passar a vida a fugir das sombras. Apesar disso, hei-de aprender, com o tempo. O rei Drust é um bom exemplo.

— Drust teve excelentes protetores. — Faolan encostou-se à muralha ao lado de Bridei. Poucos archotes estavam acesos; estava tudo calmo salvo o som do mar a bater suavemente nas rochas do ancoradouro. A Lua iluminava palidamente a praia e as águas escuras como tinta da baía. — E tu também vais ter, mas vais ter que aprender a seguir os seus conselhos se quiseres viver tanto tempo como ele.

Bridei não podia permitir que tanta presunção passasse despercebida.

— Tu és um homem novo — disse ele. — Deves perceber, certamente, o que é viver assim, limitado, sempre acorrentado por aqueles que procuram a minha segurança. Eu fui educado por um druida, estou acostumado a estar só, estou habituado à solidão. Estou habituado a passear pela floresta sem ser incomodado. Como hei de saber qual é a vontade dos deuses se não posso ouvir as suas vozes? Como hei de ouvi-los se não posso ficar sozinho? Como hei de ser quem tenho de ser sem isso?

— Não estou minimamente qualificado para responder a essas perguntas — disse Faolan —, mas sempre te digo que houve gente que conseguiu resolver o problema. Existem diversas pessoas que têm muita confiança em ti. Se vieres a ser rei, poderás fazer as tuas próprias regras. Poderás dispensar os meus serviços; eu só fui contratado para te proteger até essa ocasião. Estou-me nas tintas para as divindades que te murmuram ao ouvido. A única coisa que me interessa é desempenhar bem o meu trabalho e não posso permitir que tu o ponhas em causa correndo riscos estúpidos.

Bridei não respondeu. Na verdade não podia, visto que foi assaltado por nova dor. O jovem pensou que a sua cabeça se ia abrir ao meio. Com um grande esforço, conseguiu evitar vomitar em cima dos pés de Faolan.

— O que é que se passa? — O celta aproximara-se e perscrutava o rosto de Bridei. — Estás ferido? Bebeste demais? Não, bebida não pode ser, mal tocaste na cerveja. Tens dores? Estás com uma dor de cabeça?

Bridei sentiu um arrepio a percorrer-lhe o corpo.

— Estou habituado — disse ele num murmúrio. — Durmo pouco. Isto passa.

— Uma droga qualquer. Distração. Trabalho árduo. Ou uma mulher — disse Faolan, contando pelos dedos. — Há quanto tempo não estás com uma mulher? Pode-se arranjar uma.

— Não. — Bridei esperava não ter que explicar nada. Faolan era o último homem a quem confiaria as razões do seu voto de celibato, o voto a que jurara obedecer até ao dia do seu casamento.

— Nesse caso, suponho que vamos ficar aqui a conversar até de manhã — disse Faolan. — Pelo menos, sentemo-nos, sempre ficamos mais confortáveis. É isso mesmo, senta-te aqui. Há quanto tempo é que tens essas dores de cabeça?

O tom de voz do celta era quase amigável. Evidentemente, fazia parte do seu trabalho conquistar a confiança dos outros.

— Desde a batalha de Galany’s Reach. Talvez antes.

— E qual é a razão? Será possível ser uma consequência do envenenamento? Algo sutil, de efeito retardado?

— Duvido. Suponho que em breve saberemos, Breth ou Garth hão de ter as mesmas dores.

— Tu não gostas de demonstrar fraqueza.

Seguiu-se um silêncio.

— Fui treinado para revelar o menos possível — disse Bridei. — Como deves imaginar, suponho, é útil.

— Percebo-te muito bem — replicou Faolan tranquilamente. — Não tens ninguém em quem confiar. Nem sequer no teu druida confias. Já sabes o que significa ser rei.

— Shhh — sibilou Bridei.

— Achas que diria uma coisa destas se pudesse ser ouvido? Nisso, pelo menos, podes confiar em mim. Não tenho o menor desejo de ouvir os teus pensamentos mais íntimos, estou apenas interessado em te curar dessa maleita. É minha responsabilidade manter-te vivo e em perfeitas condições até ao Solstício de Inverno.

— Nesse caso, deixa-me só — disse Bridei, incapaz de esconder o cansaço.

— Sozinho com as estrelas — observou Faolan, divertido. — Isso cura-te as dores de cabeça? Eu volto para o meu lugar, Bridei, para a sombra. Não saias desta parte do caminho de ronda; não te posso perder de vista.

— Tencionas ficar acordado toda a noite?

— O meu sono ou a falta dele deve ser a última das tuas preocupações. Reza, medita, sonha faz o que quiseres, mas fica onde te possa ver. Quanto aos espaços abertos e à voz dos deuses, suponho que, com o tempo, há de ouvi-las. Se não, suponho que terá sido tudo em vão.


CAPÍTULO TREZE


Tinham acampado na sua árvore. À medida que o Verão se tornava num Outono frio e áspero, as suas formas podiam ser avistadas, por vezes, no meio da copa verde, esquivas como esquilos, uma cinzenta, como uma teia de aranha e a outra vermelha como uma baga e castanha como uma noz. Mais ninguém as conseguia ver. As duas personagens estavam ali exclusivamente por causa de Tuala.

À noite, quando a jovem se instalava num ramo à luz do luar, sonhando com Pitnochie, instalavam-se a seu lado, a rapariga espalhando as saias prateadas e o rapaz confundindo-se com as sombras e a textura da árvore, tal era a forma do seu corpo e a natureza do seu vestuário, cascas de árvore, folhas e fetos.

— Tendes nomes? — perguntou-lhes Tuala uma noite, cansada de, mentalmente, lhes chamar rapariga da floresta e Homem-Folha.

— Não temos nomes iguais aos dos humanos — disse a rapariga com uma risada cristalina. — A ti, chamam-te Tuala. Que nome é esse? Para já, não faz jus à tua beleza; deviam ter-te dado o nome de coruja branca, ou o nome daquelas flores brancas que se agarram tenazmente às fendas dos penhascos. Tuala: isso é nome de mulher importante, nome de mulher de rei.

Tuala não lhe disse que, provavelmente, Bridei o escolhera precisamente por aquela razão. Nas canções da sua infância, ele chamava-lhe muitas vezes princesa.

— Perguntei por uma questão de facilidade, para que me possa dirigir a vós como vós vos dirigis a mim.

— Os humanos dar-nos-iam nomes de acordo com o que vêem — disse o rapaz. — Para a minha companheira, Teia, Salgueiro, Névoa. Para mim, talvez madressilva.

— Teia e Madressilva. Dois nomes bonitos.

— Servem — disse a rapariga. — Agora, diz-nos lá o que aprendeste hoje?

— Agora, Irethra também aparece nas minhas aulas privadas. Mostrei a ela e a Fola como faço mexer as coisas sem lhes tocar. Irethra queria que eu fizesse mais; até agora, só o tenho feito com objetos pequenos, as peças de um jogo, uma faca ou um pente, quando é preciso. Ela perguntou-me se eu era capaz de fazer mexer um objeto sem o estar a ver; se eu era capaz de manipular a sua velocidade de deslocação. Se tinha importância o seu tamanho, ou o seu peso. Ela queria que eu tentasse no exterior, com barris ou pedaços de ferro.

— E tu tentaste?

— Fola disse que não.

O rapaz, Madressilva, franziu o sobrolho.

— Não aprendeste nada. Revelaste os teus segredos.

— Isso não é bom para ti — disse Teia. — Ainda não percebeste por que razão essa gente te tem aqui? Estão a usar-te. Um dia destes, consegues pôr um barril em cima de uma carroça e no seguinte atiras uma barra de ferro pelo ar em termos de esmagar o crânio de um homem, ou de uma mulher. Um dia destes, crias imagens muito bonitas de borboletas e flores com efeitos de luz e no seguinte provocas um raio que deslumbra um homem enquanto outro lhe atravessa o coração com uma lança. És louca se pensas que te trouxeram para aqui para aprender.

— Estamos sempre a aprender.

— Ah. Repetes o ditado favorito do druida. Suponho que sim. Por isso mesmo, devias ter aprendido hoje que a nossa espécie é facilmente explorada pelos humanos se lhe permitirmos.

— Não acho...

— Não — disse Madressilva. — Não achas, mas devias. Este lugar não é para ti. Tens olheiras e estás mais magra do que uma galinha meio morta de fome.

— Fora de Pitnochie, definhas — disse Teia docemente. — Deixa que te levemos para casa.

Tuala fez um esforço enorme para não chorar.

— Pitnochie já não é a minha casa — replicou ela. — Pelo menos, Ela e Irethra gostam que eu esteja aqui; posso contribuir com alguma coisa; posso servir A Que Brilha; estou a progredir como tutora; as raparigas começam a confiar em mim; posso fazer a minha vida em Banmerren.

— Disparate — disse Teia. — Tu odeias isto. Além disso, não estamos a falar de Pitnochie. Ninguém te quer lá. Vem para casa conosco. Nós não temos tristezas nem sofremos de solidão; não sentimos o dedo da morte.

Tuala estremeceu e embrulhou-se mais no xale. Ana entregara-lhe a mensagem. Bridei devolvia-lhe a fita, o talismã que usava junto à pele desde o dia da partida. As palavras que a acompanhavam eram frias e corteses, a espécie de palavras vindas de um rapaz que seria, um dia rei de Fortriu. Bridei respeitava a sua decisão, esperava que ela fosse feliz. O seu significado era nulo, salvo que ele não a impediria. Aquelas palavras eram a confirmação de que tomara a decisão certa. Bridei não precisava dela; arranjaria outra para caminhar a seu lado.

A última parte da mensagem era diferente. Nunca pensei que A Que brilha te chamasse. Talvez estivesse a iludir-se a si própria, mas aquilo soava-lhe a infelicidade. Se o pudesse ver, falar-lhe, olhá-lo nos olhos, saberia o seu estado de espírito. Tuala ansiava tanto por aquilo como uma mulher esfomeada anseia por pão fresco ou por água límpida em caso de sede: a verdade nua e crua vista nos olhos de um amigo que não é capaz de mentir. Se tivesse hipótese de ler o que lhe ia na alma, talvez se pudesse afastar com mais facilidade.

— Não posso ir convosco, sussurrou ela. — Teria de deixar muitas coisas para trás. Não acredito que não haja nada para mim no mundo dos humanos. Mesmo que não possa ter... mesmo que a vida não venha a ser o que eu desejo, ir convosco, passar a fronteira para um reino tão diferente, um local de onde nunca poderei regressar... seria demasiado final. Seria como cortar os últimos laços que me ligam às coisas de que gosto.

Teia riu-se de novo, um som cristalino. Era espantoso como mais ninguém em Banmerren o conseguia ouvir.

— Gostar — repetiu a rapariga. — Gostas muito dessa palavra, Tuala. No nosso mundo há muitas coisas boas, belas. Todos gostariam de ti; serias a princesa cujo nome tens há muitos anos. A Que Brilha olha para os nossos dois mundos da mesma maneira, minha irmã. Atravessa a fronteira e continuarás a gozar da sua benevolência eternamente, terás uma vida livre, sem cuidados, ao contrário da que tens neste mundo. Nunca mais te preocuparás com pessoas que querem que faças truques e lhes reveles os teus segredos. Nunca mais terás de ver aquele que pensas amar junto de uma determinada rapariga, uma rapariga que tem uns cabelos que parecem uma cascata dourada. Nunca mais pensarás nessas coisas assim que passares para o nosso mundo; até te vais rir por te teres preocupado. Sabias que quando um dos nossos casa com um humano perde a imortalidade? Quem escolhe a morte se pode ter a vida eterna?

— Não quero ouvir mais nada. Já vos disse vezes sem conta. Vou ficar aqui em Banmerren. A deusa quer que eu seja uma Mulher Sábia. A minha escolha está feita. — Com uma dor no coração, Tuala apercebeu-se de que quanto mais pronunciava aquelas palavras menos se sentia inclinada a acreditar nelas.

— Por que é que não fazes uma experiência? — Madressilva estendeu uns dedos nodosos para lhe tocar num joelho, mas Tuala afastou as pernas.

— Não faças isso! Que queres dizer com isso, uma experiência?

— Ele mandou-te uma mensagem — disse Teia, de pé, a sua silhueta esbelta recortada contra a Lua, os braços graciosos abertos por cima da cabeça e descansando num ramo mais alto, o vestido de teia de aranha flutuando, os pequenos pés brancos bem firmes. — Manda-lhe também uma. Se te sentes infeliz, diz-lhe. Experimenta. Se falhar, ficarás a saber que tinhas razão. Então, terás que aceitar a verdade e nós levamos-te para a floresta. Não tens saudades do verde e do silêncio?

— É proibido — disse Tuala. — Ele arriscou-se muito quando deu a fita a Ana; as raparigas que estão a ser treinadas para ser sacerdotisas não podem ter contatos com o mundo para lá destas muralhas, a não ser que Fola ou Irethra o autorizem. Posso metê-lo em sarilhos. Além disso, ele não me pode levar para casa, tem de ficar em Caer Pridne.

— Se ele achar que não vales o risco — disse Teia descuidadamente — nem sequer te responde. Tens de fazer com que a mensagem seja sutil. Ele conhece-te bem. Manda-lhe algo que mais ninguém consiga interpretar. Desse modo, nem ele nem tu correrão perigo.

— Por que me estás a sugerir isso? — Aqueles dois não eram de confiança; seguiam as suas próprias e impenetráveis regras.

— Porque sabemos que não virás conosco senão quando a tua mente estiver satisfeita — disse Madressilva, pondo-se de pé no ramo ao lado de Tuala. — Tens de pôr os pontos nos “is”, tens de saber a verdade nua e crua: que não contas na vida dele; que a vida dele continua sem ti; que, de fato, o fardo que tu representas não o ajudará a cumprir o seu destino. Alguma vez um rei de Fortriu casou com uma filha dos Boa Gente? Além disso, que outra coisa havias de ser? Que mulher te toleraria em sua casa, esgotando a energia do seu marido distraindo-o permanentemente? Não estás à espera que Bridei sacrifique a hipótese que tem de ser rei por tua causa? É claro que, como é um jovem bem-educado, não o dirá do mesmo modo que eu, mas tu conhece-lo, compreenderás a sua mensagem. É o melhor que tens a fazer; tiras-nos a todos desta angústia. Sê audaz. O rei Drust apanhou outra constipação; não dura muito mais tempo.

As duas personagens não gostavam de despedidas. Uma última observação, normalmente calculada para magoar e desapareciam no meio das folhas iluminadas pelo luar como pequenas nuvens de fumo, deixando Tuala sozinha com os seus pensamentos. Naquela noite foi a mesma coisa; desapareceram num abrir e fechar de olhos e na mente da jovem ficou a mensagem, como se Tuala a tivesse planejado, na qual dizia a Bridei onde e quando a poderia encontrar mas em termos que mais ninguém compreenderia. Pelo menos, assim esperava. Em Ana podia confiar. Quanto às palavras cruéis acerca de noivas e reis, faria de conta que não as tinha ouvido. Com o coração a bater que nem um tambor, Tuala arrancou uma folha seca do carvalho e regressou à sua torre.

Antes da estação começar a escurecer, aproximando-se da época do Portal, Drust adoeceu novamente. As noites eram frias; os homens de guarda tremiam nos seus casacos de pele de ovelha, nas suas capas forradas de pele e nos seus chapéus de feltro e as lareiras estavam sempre acesas nos quartos de pedra cheios de correntes de ar de Caer Pridne. A tosse do rei ouvia-se nos corredores como um grito rouco de morte, como uma emanação do próprio Corvo Negro. Drust tinha sempre as faces coradas num rosto desprovido de qualquer cor; a rainha Rhian, permanentemente com as feições agradáveis franzidas de preocupação, vagueava pelo aposento tentando, com as próprias mãos, evitar que as correntes prejudicassem ainda mais a saúde do seu real marido. Dizia-se que só a magia de Broichan o mantinha ainda vivo.

Porém, Drust não era nenhum fracote. O monarca não se aguentara tanto tempo no poder por desistir em tempos difíceis. O rei mudou o seu centro de operações para um pequeno quarto que podia ser aquecido convenientemente e mandou colocar potes de água a ferver perto da lareira, em cuja água flutuavam as folhas esmagadas de algumas ervas curativas, o funcho e a calaminta. O rei bebeu uma infusão de nozes esmagadas e mel, mas não conseguia esconder o seu apetite de pardal. Em redor do quarto multiplicavam-se os amuletos: pedras brancas para A Que Brilha em conjuntos de três, cincos e setes; um colar de pequenos homens de palha, cada um com uma grinalda de folhas outonais na cabeça minúscula e um cinto encarnado e dourado: filhos da Guardiã das Chamas, cujo calor gerava colheitas fartas; por cima da porta estava uma coroa de folhas verdes e junto da lareira uma trança de alhos. Bridei recordou-se de Pitnochie e das lições de Broichan sobre amuletos de proteção. Não respondas como uma criança, responde como um druida.

Naquele momento, o jovem podia responder como um druida. O rei estava a morrer. A Mãe de Tudo aproximava-se com os braços estendidos; aqueles amuletos não impediam o seu avanço. Talvez o retardassem durante uma Lua ou duas, mas não mais. A verdade estava nos olhos de Drust e o rei enfrentava-a sem medo. O monarca só queria ter a certeza de que o seu reino não descambaria para um caos de rivalidades, desafios e jogos de poder assim que fechasse os olhos.

Como moscas pairando sobre um animal a morrer mas que ainda respirava, os nobres do sul tinham descido sobre Caer Pridne. Drust, o javali, não fizera a viagem. No seu lugar tinham viajado os seus dois principais conselheiros e um padre cristão, um gesto de insolência sem precedentes. Caer Pridne nunca alojara um cristão e não tinha desejo de o fazer; quem seria suficientemente louco para ofender os deuses com o rei às portas da morte? Infelizmente, o fato de o irmão Suibne — um celta, portanto duplamente indesejável — fazer parte de uma delegação real, exigia que ele fosse principescamente alojado e com toda a cortesia. Os rostos mostraram sorrisos e as vozes esconderam ? ressentimento. Os três homens receberam um quarto Ótimo com uma antecâmara privada onde o homem podia levar a cabo os seus rituais estranhos longe do olhar das pessoas leais aos deuses. O que tinha de ser vigiado, disse Broichan ao seu filho adotivo, era o conselheiro-mor de Circinn, um homem chamado Bargoit. O homem era de falinhas mansas, tinha poucos escrúpulos e ao longo dos anos tinha conseguido dobrar Drust, o Javali, à sua vontade. O outro, Fergus, era dominado por Bargoit. O que um decretava, o outro apoiava. Os três homens tinham chegado cedo. O druida esperava que eles não falassem a muitos ouvidos e não provocassem demasiados danos. Quanto ao padre, se àquilo se podia chamar padre, a sua presença era um insulto. Broichan suspeitava que Drust de Circinn fizera um mau serviço à sua candidatura ao trono do norte. Bastava olhar para o irmão Suibne para que qualquer nobre de Fortriu pensasse no que aconteceria se as duas partes do reino caíssem nas mãos de Drust, o Javali. Os que eram leais aos deuses nunca o escolheriam.

O tempo passou rapidamente. Bridei viu os seus dias preenchidos com conversas crípticas, trocas de palavras sussurradas nos corredores, manobras delicadas com um ou outro homem influente. A princípio, a conselho de Broichan, fez de jovem inocente, tranquilo e bem-educado, parco e simples nos seus comentários. As pessoas sabiam, claro. Se não tinham percebido, na noite em que Drust lhe dera o alfinete da águia e a sua bênção, que o filho adotivo do druida de Pitnochie era um pretendente genuíno ao trono, ficaram a perceber pouco depois. Todos o avaliavam. À vez, Bridei começou a lidar com todos, tratando com cada um de acordo com o grau de ameaça que representavam e a probabilidade que havia de mudarem de ideias. Se uma parte dele ansiava por mudar de caminho, um caminho que o levaria a Pitnochie e a uma vida sossegada de intelectual, não permitia que o seu pensamento se demorasse nele. Como verdadeiro filho de Fortriu, Bridei não podia recusar o que, cada vez mais, parecia ser um chamamento dos deuses. Se fosse rei, concretizaria o grande sonho confessado a Fola; trabalharia para curar o reino dividido dos Priteni. A perspectiva era ao mesmo tempo assustadora e poderosamente encorajadora.

Era costume cada uma das sete casas oferecer apenas um candidato e daquela vez pareceria que seriam menos de sete; as tribos do sul, em particular, não apresentariam candidatos próprios visto que Drust, o Javali, era, com efeito, senhor daqueles territórios. A linhagem real provinha da casa de Fidach, cuja terra-mãe ficava no Grande Vale, mas como a descendência era pelo lado feminino e as princesas de Fidach tinham casado com chefes tribais de todas as partes do reino dos Priteni e não só, havia pretendentes válidos em cada uma das sete casas.

Parecia que, daquela vez, as Ilhas Pequenas não iam apresentar pretendente. A presença de Ana na corte de Drust e a possibilidade de outros membros da mesma família serem também tomados como reféns limitava a sua ambição. Dizia-se também que os chefes tribais daquelas ilhas, que eram vassalos de Drust, o Touro, tinham tido uma espécie de garantia. A refém real casaria com o novo rei se este não fosse ainda casado, o que engrandeceria o estatuto da sua família e aproximaria o seu primo do nível do monarca de Fortriu. Como resultado, seguir-se-iam acordos comerciais e outras vantagens. Alguém fora inteligente.

A casa de Caitt era imprevisível. Bridei chegara a acreditar que seria possível uma aliança com aqueles selvagens do norte, mas Broichan fê-lo desistir da idéia. Tinham-se passado gerações desde que os Caitt tinham apresentado um pretendente ao trono de Fortriu. Ninguém esperava surpresas daquelas bandas. Quanto ao futuro, Bridei tinha os seus próprios planos. Os Caitt tinham sangue Priteni e eram fortes. Se fosse rei, começaria, pelo menos, a explorar uma hipótese de uma aproximação.

Dos dois parentes mais próximos de Drust, o ruivo Carnach era o pretendente mais forte. O homem falava bem, era capaz e estava a reunir um bom número de homens influentes, entre eles Tharan, o conselheiro do rei. Aniel dissera que Tharan era perigoso. Havia algum trabalho para ser feito naquele campo.

Wredech foi deixado à mercê de Talorgen. Seria necessária alguma pressão, não muita, para persuadir aquele primo de Drust, o Touro, de que seria sensato da sua parte deixar cair a candidatura devido a uma questão de gado que tinha desaparecido misteriosamente e a uma bolsa de moedas de prata que tinha mudado de mãos mesmo nas barbas de Drust. Se o papel de Wredech naquilo tudo fosse tornado público, como seria se ele se declarasse interessado na candidatura, seria desacreditado perante os seus pares e perderia o gado, incluindo um belo touro que já tinha coberto diversas vacas. Por outro lado, se apoiasse o candidato favorito de Talorgen, nada seria dito e até poderia haver um aumento de unidades na manada de Wredech.

As propostas de Talorgen não foram feitas às claras, todas ao mesmo tempo, foram feitas com subtileza, tirando partido das fraquezas do homem. Bridei não podia fazer outra coisa senão mostrar-se amistoso e respeitoso para com Wredech quando se conheceram, evitando conversas sobre parentesco e gado.

Não pôde evitar os conselheiros de Circinn, Bargoit, Fergus e o padre cristão. Bargoit era mesmo perigoso: a insinuar era um mestre, fazia perguntas difíceis, recorria habilidosamente a evasivas e atacava inesperadamente. Bridei sentiu-se sobrecarregado; a dor de cabeça era mais ou menos constante e não contribuía nada para a sua concentração. O jovem não pediu uma poção a Broichan. O druida andava muito ocupado, passava os dias e as noites à cabeceira de Drust, fabricava remédios queimando ervas poderosas, dizia orações e, provavelmente, fazia o papel de amigo e companheiro porque os dois homens tinham passado muito tempo juntos até Bridei ir para Pitnochie.

A princípio, o jovem pensara que nunca se habituaria aos seus três guarda-costas. Porém, na atmosfera carregada da fortaleza sobrepovoada, começou a achar a presença constante de um ou outro daqueles grandes homens muito tranquilizadora. Se Garth, ou Breth, estavam a seu lado, vigilantes, Bridei podia concentrar-se noutras coisas como debater com o irmão Suibne a natureza dos homens e dos deuses ou num jogo de Corvo que chega e vem com o perspicaz conselheiro Tharan perante uma audiência tensa constituída por Aniel e pelos dois conselheiros de Circinn. Bridei sabia que estava numa montra; os seus guardas asseguravam que ele não precisaria de se preocupar com uma possível faca nas costas.

Faolan deixou que Breth e Garth partilhassem a responsabilidade da vigília. O celta não estava ocioso. Reunia informações, investigava o passado dos pretendentes, falava com os servos e os escravos e examinava secretamente os alojamentos dos visitantes enquanto estes estavam ocupados noutros locais. Durante a noite, ficava de guarda quando Bridei não conseguia adormecer. Se descansava ou não, ou quando, não era possível saber. O celta não aparentava sinais de cansaço.

As jovens tinham regressado a Banmerren algum tempo antes e deviam estar a regressar à corte. Tuala continuava no pensamento de Bridei. À noite, o jovem ia para o caminho de ronda, olhava para a Lua e imaginava-a com o vestido cinzento de sacerdotisa, com uma malga de bronze cheia de água na mão por ocasião do ritual do Solstício de Verão, ou olhando para um conjunto de pétalas brancas por ocasião de Harmonia. Bridei pensava nela a olhar para a água da malga de bronze, os seus olhos estranhos abertos para um mundo que estava para além da sua compreensão. O jovem imaginava-a a rir, os cabelos esvoaçando ao vento; as suas mãos conheciam intimamente aquela cabeleira porque os seus dedos tinham-na entrançado mais vezes do que conseguia lembrar-se. Bridei pensava na promessa que lhe fizera e que fizera o possível por cumprir. Tuala já não era uma criança, não precisava das suas histórias para afastar o desconhecido. Tuala tinha mais ou menos a idade de Ana; já era uma mulher e afastara-se dele. A Que Brilha tocara-a em criança e voltara a estender a mão, chamando-a. Haveria serviço mais puro para os deuses do que o do druida, ou da Mulher Sábia? Não podia querer-lhe mal! No entanto... no entanto...

— Bridei?

— Hmm?

— Vamos ter uma folga amanhã — anunciou Faolan do seu canto escuro junto dos degraus da escada.

— O quê?

— O tempo está seco. Não sei qual é a tua opinião, mas eu estou farto disto. Levamos dois cavalos, cavalgamos ao longo da praia, procuramos uns lugares selvagens que mencionaste e descansamos. Nem reis, nem conselheiros, nem sacerdotes, nem druidas. Que achas?

— Nem Breth nem Garth? — Faolan não sorriu.

— Eles também merecem. Tens-me a mim; não precisas deles.

— Portanto, não vais ter folga.

— Eu nunca tenho folga, Bridei, mas, pelo menos, é uma mudança. Soava-lhe bem; notavelmente bem. Afastar-se da coroa durante um dia inteiro era uma perspectiva maravilhosa.

— Já disse a Broichan — disse Faolan. — Vou arranjar umas rações para levarmos. Tens de estar pronto muito cedo.

— Sabes — observou Bridei — custa-me a acreditar que tenhas tomado esta iniciativa. Tu não és a espécie de homem que tira uma folga quando há assuntos urpessoas para atender. Se há mais qualquer coisa, preferia que me dissesses.

Durante alguns momentos, Faolan não disse nada.

— Podemos fazer isto mais do que uma vez — acabou por dizer.

— Podemos estabelecer um padrão. Pode ser útil.

— Para quê?

— Para atrair um ataque — respondeu o celta friamente. — Não amanhã; uma vez dada a indicação sobre onde podemos ser encontrados em certos dias e em determinados momentos.

— Que maravilha. Supostamente, vou cavalgar alegremente para os montes e levo com uma flecha no coração.

— Pensei que eras o melhor arqueiro de Fortriu — disse Faolan em tom brejeiro. — Não deixes que a coisa te aborreça, Bridei. Eu sei o que estou a fazer. Caer Pridne está tão cheia de guarda-costas que ninguém se atreve a fazer seja o que for. Os teus adversários estão à espera de uma oportunidade e nós vamos dar-lha.

— Estou a ver.

— Amanhã não há perigo. Amanhã podes escutar a voz dos deuses para alegria do teu coração.

— O passeio a cavalo é bem-vindo. Obrigado. — Na verdade, com ou sem assassinos, Bridei sentia saudades da liberdade de poder passear pelas florestas e pelas charnecas, pelas montanhas e pelos vales com os olhos e os ouvidos bem abertos para as maravilhas do mundo selvagem. Em Caer Pridne, os seus olhos estavam fartos de ornamentos e de rostos mentirosos, de conversa fiada, de murmúrios e apartes sibilados. Não montava a cavalo com um companheiro desde a morte de Donal...

— O que é?

Maldito Faolan; era demasiado rápido.

— Nada. Vou ver se durmo um pouco. Boa noite. Que A Que Brilha vele pelo teu sono.

— Boa noite, Bridei.

Parecia que Faolan estava decidido a cansá-lo. Talvez o celta pensasse que um dia de actividade lhes permitiria ter uma boa noite de sono, mas Bridei crescera a fazer grandes expedições na floresta, em Pitnochie. O jovem sentia-se em casa na floresta, em sintonia com os seus ritmos desde criança e o fato de poder ser assim libertado fez com que se sentisse como nunca se sentira nas manobras mais difíceis ou nos jogos de corte mais sutis de Drust. A dor de cabeça não desapareceu, mas ia e vinha. A dúvida ainda o perseguia, mas encontrar-se à sombra dos grandes pinheiros, olhando para um grande pântano de sal sobrevoado por milhares de aves, uma massa cinzenta, bege e branca erguendo-se no ar como uma roda e descendo para se alimentar, era recuperar algo daquela maravilha secreta que sempre lhe aquecia o espírito quando percorria os despenhadeiros e os vales de Pitnochie, sozinho ou na companhia de alguém em quem confiava.

Faolan não procurou encher o grande silêncio com conversa inútil; a sua presença era discreta, eficiente, aceite. Os dois companheiros aqueceram primeiro os cavalos e depois puseram-nos a galope ao longo da areia molhada, desde Caer Pridne até Banmerren. Não era uma corrida, mas era como se fosse. Snonftre aproveitou a oportunidade para se exercitar depois de tantos dias parado.

No extremo ocidental da baía, as muralhas do estabelecimento de Fola erguiam-se no meio de um xale de vegetação verdejante e de um grupo de pinheiros que faziam daquele promontório uma espécie de refúgio, não uma fortaleza. Os portões eram de ferro e estavam fechados. Não era possível ver o que existia para lá deles porque havia uma parede logo a seguir, provavelmente para deter os olhares curiosos, como o seu. A regra que proibia qualquer homem, salvo um druida, de entrar naquele reino sagrado para A Que Brilha era bem conhecida. Só o pensamento era suficiente para ofender a deusa. Para um homem pretendente ao trono de Fortriu, era uma ofensa, um sacrilégio e uma tolice. A lealdade de um rei aos deuses tinha de ser total. Bridei, como homem extremamente inteligente que era, sabia-o bem. O coração, porém, batia-lhe com força, desejoso de deitar abaixo a muralha, de a encontrar, de saber a verdade.

O jovem não via o carvalho que Ana mencionara, não sabia em que lado daquele recinto fechado estaria a torre com um pequeno quarto. Junto do recinto da escola havia um conjunto de edifícios: estábulos, um celeiro e uma grande casa de habitação de um só andar. No interior dos campos murados viam-se ovelhas a pastar e para lá deles um carreiro que ia dar aos terrenos que eram invadidos pelas marés. Bridei era capaz de imaginar Tuala naquele cenário em busca de conchas com os cabelos ao vento, as saias puxadas para cima, os pequenos pés descalços deixando pegadas tão delicadas como as de uma andorinha-do-mar na areia pálida...

Os dois companheiros passaram pelas muralhas, dirigiram-se para oeste através das dunas e dos terrenos alagados, atravessaram pântanos e charnecas e pararam para olhar para além de um banco de areia que atravessava uma baía límpida onde, naquela manhã, um bando de gansos se agitava na água e em terra como um tecido vivo. As vozes dos animais enchiam aquele lugar remoto com a sua música estranha, lembrando que o ano estava a chegar ao fim; visitantes de Inverno, cuja estadia em Fortriu ia do Portal a Dança das Virgens, antes de irem passar o Verão a outras regiões com outros climas.

— Falta pouco mais de uma Lua para o ritual — disse Bridei com os olhos nos movimentos dos gansos, um padrão maravilhoso, semPre a mudar.

— Hum — disse Faolan. — Conseguirá Broichan manter o rei vivo até lá?

Bridei estremeceu.

— Espero que sim.

— Dizem que Drust se está a aguentar com esse propósito — disse o celta. — Os pulmões dele estão a dar as últimas; a luta para conseguirem respirar é terrível. O rei quer presidir à cerimônia uma última vez; pagar o seu tributo ao Que Não Tem Nome antes de passar para lá do véu.

— Não se fala dessas coisas em voz alta.

— Eu não sou um de vós.

— Mesmo assim. Se vives entre nós e aceitas a nossa prata para pagar os teus serviços, deves prestar atenção a essas proibições. Mencionaste um deus cujos rituais são sombrios e secretos. O fato de os mencionarmos já é perigoso.

Faolan olhou para ele com curiosidade.

— Suponho que já te apercebeste de que, no próximo ano e nos muitos que se lhe seguem a responsabilidade da observância particular deste ritual cai sobre os teus ombros?

— Já. Não é coisa que me faça hesitar. Os deuses chamam-nos de acordo com a nossa posição na sociedade. Se os amamos, como é obrigação de todos os filhos e filhas de Fortriu, devemos obedecer. Não é preciso dizer mais nada. Porém, ainda não sou rei. Neste momento, sou um de muitos candidatos possíveis.

— Sabes em que consiste o ritual?

— Não ouviste o que eu disse, Faolan?

Silêncio. Faolan pôs-se de pé e dirigiu-se para os cavalos amarrados a uma árvore.

— Hoje não podemos ir até às tuas montanhas adoradas — disse ele — mas aqui existem belas charnecas, suaves outeiros, ondulações de terreno e um rio para passar a vau se decidirmos ir para o interior. Continuamos?

— Locais ideais para uma emboscada? Buracos onde se podem esconder assassinos contratados?

— Talvez, mas como já te disse, hoje é dia de folga, dia de passeio. Esperemos que o tempo seco se mantenha para o podermos repetir.

Os dois companheiros prosseguiram até o Sol atingir o zénite, deram liberdade aos cavalos na charneca e passaram cuidadosamente o rio a vau; em tempo de chuva, com muita água, a travessia devia ser bastante difícil. Finalmente, chegaram a um cenário de montes verdejantes e vales estreitos cobertos de árvores. Os dois cavaleiros atravessaram uma ponte de pranchas cobertas de musgo sobre um ribeiro gorgolejante, cavalgaram ao longo de um dos tais vales estreitos até ele se alargar, transformando-se em campo aberto. Mais abaixo via-se um bosque de árvores altas, ulmeiros nus e grandes carvalhos vestidos com as suas cores outonais. Bridei tocou no pescoço de Snonftre, detendo-o e Faolan fez o mesmo ao seu. À sombra das árvores, abrigados, em segredo, estavam três dólmenes, cada um rodeado por um anel de pedras erectas.

— Este lugar pertence à deusa — murmurou Bridei, desmontando. O jovem era capaz de sentir a respiração da Que Brilha em cada canto do santuário; havia ali uma tranquilidade especial, a tranquilidade dos lugares selvagens, uma espécie de serenidade profunda e um aviso poderoso. — Como homens, não nos podemos aproximar mais — disse ele.

Faolan desmontou.

— Mesmo assim, ficamos aqui um bocado — disse o celta. — Onde não podemos ir, outros vão. Recua um pouco, para ali, para o alto, onde nos podemos proteger melhor.

— Que queres dizer com isso, outros vão?

Faolan já conduzÍa as duas montadas para trás de uns arbustos. O espião tirou um pacote do alforge e instalou-se numa pedra lisa. Faolan era celta e era, portanto, surdo às vozes dos antigos deuses de Fortriu. Possuído por uma necessidade urgente de sair daquele lugar, um lugar de mulheres, Bridei estava, no entanto, consciente de que o dia ia a meio, que ainda tinham que regressar e que estava cheio de fome.

— Estava a falar a sério — disse o jovem, sentando-se ao lado do celta e aceitando uma fatia de queijo e um naco de pão de cevada. Mais perto, não. E devemos ir-nos embora assim que acabarmos de comer. Ainda bem que vi isto. Já tinha ouvido falar deste santuário. Aquelas câmaras são muito antigas, foram construídas pelos nossos antepassados. Gerações de mulheres conduziram aqui os seus rituais e ofereceram orações à deusa na sua tripla forma. Os homens não devem pisar o solo destes dólmenes. Mesmo que não o soubesse, senti-lo-ia nos meus próprios ossos.

— O que interessa — disse Faolan, mastigando firmemente é que um homem tem de comer. A tua deusa, certamente, não nos proibiria de o fazer. Temos muito tempo. Tenho hidromel neste frasco. Bebe.

O Outono ia avançado, mas ali, naquela encosta por cima do santuário, o Sol estava quente. Os cavalos pastavam, contentes. Faolan estava tranquilamente sentado, descontraído. A comida era excelente e o hidromel de grande qualidade; Bridei suspeitou que era do stock pessoal do rei. A sua dor de cabeça era quase imperceptível. Uma espécie de paz, que quase tinha esquecido, apoderou-se do jovem, uma sensação de profundo contentamento que só sentia ao ar livre e, mesmo assim, só raramente. No fim de contas, era a mais pequena das criaturas na imensa e maravilhosa tapeçaria das coisas vivas; as suas preocupações eram diminutas perante a sua grandeza, existia eternamente, forte e segura. O coração dos deuses batia em cada ave, em cada folha castanho-dourada que caía dos ramos altos dos carvalhos, em cada gota de orvalho, grão de areia, cada seixo, cada cascata, cada lago e cada pico rochoso, o mesmo que batia no seu peito. Ali, naquele santuário, sentia o seu ritmo firme, ligando-o intimamente à vida do Vale e à terra-mãe de Fortriu, da qual seria em breve o líder. Encostado a um ulmeiro, Bridei fechou os olhos. O desaparecimento da dor de cabeça era uma bênção, uma dádiva.

— Bridei!

O tom alertou-o instantaneamente; era um aviso, tornando imperativo o silêncio. Os olhos do jovem abriram-se. A sombra tinha-se alterado, o Sol movera-se mais para ocidente. Bridei estivera a dormir durante algum tempo; os seus membros estavam dormentes. Estremecendo, o jovem tentou levantar-se. Faolan estava a espreitar por entre os arbustos. O celta tinha um dedo nos lábios. Seguindo o seu olhar, Bridei viu que não estavam sós. Um grupo de mulheres encapuzadas movia-se por entre as velhas pedras inclinando-se aqui e ali enquanto outras caminhavam um pouco mais longe, na margem do pequeno ribeiro. O jovem fechou os olhos com força e virou-se.

— O ritual terminou — murmurou Faolan. — Já podes olhar. Só te acordei depois de estar tudo acabado. Elas estão de partida, conversando e procurando ervas.

— Isto não está certo; é uma falta de respeito — murmurou Bridei. — Espiar mulheres... não. Por que me trouxeste aqui? Não quero ver isto. — Porém, algo nele exigia ser ouvido, algo que ele tentava reprimir: Se calhar ela está ali, tão perto... Se não olhar agora ela vai-se embora e depois será demasiado tarde...

— Serias capaz de me mentir? Eu acho que tu queres olhar. Eu não sei qual daquelas raparigas é a amiga cuja ausência fez com que olhasses para as muralhas de Banmerren como se fossem uma barreira defensiva a ser tomada de assalto, mas creio que me posso deitar a adivinhar. Ela é uma criatura rara e pequena, com uma pele da cor da neve e cabelos tão negros como as asas de um corvo?

Bridei não conseguiu manter os olhos fechados e a cabeça virada. O jovem olhou e viu-a instantaneamente na margem do ribeiro onde várias raparigas apanhavam caules de uma planta que desabrochava no Outono e os metiam em cestos de verga. Tuala estava um pouco afastada das outras, tinha tirado a capa e tinha-a deixado perto, no chão. A jovem tinha um braçado de flores numa das suas pequenas mãos e olhava para ele como se não soubesse o que era, como se não soubesse exatamente o que estava a fazer. Os caracóis negros tinham escapado da fita e caíam-lhe sobre as delicadas feições numa confusão selvagem... Os seus cabelos, os seus belos cabelos longos tinham sido cortados, quase só lhe davam pelos ombros. Quem teria feito aquilo? Fazia-a parecer diferente, mais velha. Mais velha... Tuala usava uma simples saia e uma túnica, azul como a capa e com um cinto cinzento. Só se passara um ano desde que a vira pela última vez? A simplicidade rígida do vestuário servia apenas para revelar que ela já não era a criança franzina quando do seu último encontro. Tuala continuava esbelta e pequena, mas a sua silhueta adquirira curvas sutis e contornos doces; um poema delicado de feminilidade. No entanto, Tuala continuava a ser ela própria, desde os lábios cor-de-rosa, às sobrancelhas em forma de asa e à cascata de cabelos sedosos e indomáveis.

Entre as outras raparigas, Tuala parecia uma coruja jovem no meio de um bando de pombas.

Bridei devia ter feito um som qualquer, pequeno. Só Corvo Negro sabia o que Faolan lhe estava a ver no rosto. O jovem ergueu ambas as mãos para o esconder; naquele momento, era como se não tivesse sido treinado por Broichan. Auto-controle? Bridei sentia-se como se o seu coração lhe fosse saltar do peito, pronto a sair de trás do arbusto e corrrer pela encosta abaixo para... para quê? Para as aterrorizar? Para cometer um sacrilégio e ofender os deuses? Para Pedir a Tuala que deitasse fora uma vida de paz ao serviço da Que Brilha para o acompanhar numa vida de conspiração, guarda-costas permanentes e facadas no escuro?

— Temos de esperar. — Faolan puxou-o para trás e obrigou-o a sentar-se em cima da pedra onde estivera antes. — Seria desastroso para o teu futuro se fosses visto aqui. Temos de esperar até elas se terem ido embora. Só então podemos montar e falar sobre o assunto. Tu choraste. Ela é uma criatura muito sedutora, é evidente. Nas histórias da minha terra aparecem muitas mulheres como ela, ao mesmo tempo belas e perigosas.

Bridei fez um gesto, indicando a sua intenção de cortar a garganta do celta se ele não parasse de falar. Abaixo do lugar onde se encontravam, as mulheres, avistadas através do arbusto, reuniam as suas ferramentas, as suas capas e iniciavam ordeiramente, em fila, o longo caminho de regresso a casa. Contra a sua vontade, Bridei mexeu-se para ver melhor, uma última vez. Tuala seguia no fim da fila sozinha, enquanto as outras seguiam aos pares. A jovem estava sempre a olhar para trás; uma mão esbelta ergueu-se e afastou os cabelos dos olhos, mas estes caíram-lhe novamente em cima da testa, desafiadores. Os seus olhos estavam sombrios, como se também ela andasse com o sono perturbado.

— Não te mexas — disse Faolan em voz baixa. — Deixa-a ir. Já percebi que ansiavas por isto, o que explica muita coisa. Deixa-a ir. Se fizeres alguma coisa neste momento, será a tua ruína.

O celta tinha razão, porém a dor que Bridei sentia no coração, uma dor que se espalhara por todo o seu ser, dizendo-lhe que avançasse, agora, agora, antes que ela desaparecesse da sua vista para sempre, porque não conseguia estar tão perto e não lhe falar, não lhe tocar... Bridei ficou quieto e silencioso enquanto Tuala descia pela margem do ribeiro e desaparecia. O jovem continuou quieto e silencioso até que à dor que sentia no coração se juntou uma dor profunda nas têmporas. O que suspeitara era verdade; Broichan não tinha cura para aquela doença.

Finalmente, Faolan levantou-se e foi soltar os cavalos. Já podiam regressar à corte.

Durante algum tempo, os dois companheiros seguiram em silêncio. Bridei foi o primeiro a quebrá-lo.

— Isto foi mais um pouco da tua estratégia calculada? Fazer-me chorar na tua frente para que possas relatar a minha fraqueza aos senhores que te pagam? Sabias que aquelas mulheres iriam estar ali?

— Sim e não — disse Faolan. — Chegaram-me algumas informações sugerindo que Fola poderia sair com as suas alunas assim que o tempo estivesse seco. Certos rituais devem ser celebrados numa preparação para o Portal. Além disso, disseram-me que as alunas, como parte do seu treino, têm que apanhar ervas. Na ocasião, eu não sabia o dia exato. Nesse ponto, foi uma intervenção dos teus deuses. Eles são complexos contigo, Bridei.

— Porquê? Qual é o teu interesse nisto? O problema é meu, não tem nada a ver com o que estamos a fazer em Caer Pridne.

— Não? Eu tento descobrir a origem da tua doença; faz parte do meu trabalho. Um homem que é atacado por dores de cabeça, um homem que não consegue dormir senão aos poucos e que é atormentado por pesadelos, acabará por não conseguir desempenhar o papel que o espera. Tu disseste-me que não precisavas de uma mulher; que isso não te ajudaria. O que eu vi hoje sugere que estás enganado.

Bridei cerrou os dentes, furioso. A sua cabeça batia como um tambor de guerra.

— Não fales dela assim — disse o jovem. — Estás a depreciá-la. Ela é a minha maior e mais antiga amiga; é mais minha amiga do que qualquer outra pessoa, ainda era uma criança quando a vi pela última vez e agora é o que tu vês: uma Mulher Sábia, uma filha da Que Brilha, chamada pela própria deusa. Tuala não é nenhuma encantadora da floresta enviada para me tentar, como as fadas das histórias, nem uma mulher vulgar. Tuala é... — O jovem parou. Quanto mais falava dela, maior era a dor.

— Foi criada em casa de Broichan. É tua irmã.

— Não, irmã não; somos muito mais chegados do que isso. Somos duas partes de um todo: medula e concha, pétala e caule, gaita e palheta, harpa e corda. — Bridei esperava uma reação que não veio.

Os dois cavaleiros continuaram em silêncio até que, à distância, as muralhas de Banmerren puderam ser avistadas de novo, ao longo da praia, para lá das formas indefinidas da fortaleza do rei. Os dois companheiros tinham feito um percurso que, dissera Faolan, não se cruzava com quaisquer carreiros. O que era preciso era estabelecer um padrão, mas para atrair os espiões dos homens influentes, não um grupo de Mulheres.

— Muito bem — disse Faolan abruptamente, detendo a sua montada — Que queres fazer?

— Não percebo.

— Tenho a certeza que percebes. O dilema é o seguinte: um homem que precisa de estar em forma, rapidamente, porque o destino do reino depende dele. Um homem com um problema por resolver. Um problema que não pode ser resolvido a não ser que ele viole as regras. Porém, ele não as pode violar porque tem medo de ofender alguém: o seu pai adotivo, o rei, os deuses. Por isso, pergunto-te novamente: Que queres fazer?

— Estás a dar-me uma possibilidade de escolha? Tu, um homem pago para me livrar do perigo? Um homem que segue todos os meus passos?

— Dá-me um plano estratégico — disse Faolan. — Se eu o aprovar, vamos em frente.

— Um plano. Para ires contar tudo a Broichan, ao homem das moedas de prata. — Bridei ouviu o tom da sua própria voz e sentiu vergonha, mas naquele momento pareceu-lhe a única coisa a dizer.

Faolan suspirou.

— Eu sou dono de mim mesmo apesar das moedas de prata. Um homem tem de comer. Isso não faz com que tenha que obedecer cegamente. Neste momento, Broichan anda muito ocupado. O rei exige a sua atenção permanente. Além disso, pelo que sei, os druidas não são especialistas em coisas do coração. Penso que não precisamos de lhe dizer nada por enquanto. Para mim, é evidente que precisas de ver a rapariga sozinho, falar com ela, dormir com ela, se for preciso — pensando melhor, a coisa poderia tornar-se mais complicada ainda, por isso é melhor não — e resolver o caso de uma vez por todas. Tu tens uma série de desafios pela frente. Ela está no interior daquelas muralhas e talvez não te queira ver; quem sabe o que se passa na mente de uma mulher? Tu tens inimigos. Ninguém pode saber senão eu. Arranja um meio. Põe-o a prova e depois diz-me. Mas não te demores, temos pouco tempo.

Bridei tossiu para clarear a voz. O jovem ficara momentaneamente sem palavras. Provavelmente, aquilo fazia parte de outro esquema qualquer.

— Isto não tem nada a ver com assuntos de alcova, como acabas de dizer tão friamente — disse ele. — Tuala é... era... uma criança; não está certo...

— Estás enganado — disse Faolan. — Olha para mim e diz-me que não sentiste desejo quando olhaste para ela, para a sua pele cor de pérola e para os seus olhos sonhadores. O que é que tu queres, afinal? É um assunto do coração, mais nada.

Não havia resposta para aquilo. Era e não era. O jovem precisava tanto dela como as árvores precisavam da chuva, como as flores precisavam do sol. Bridei ansiava por ela como os salmões ansiavam pelo rio onde desovavam; suspirava por ela como uma criança que suspira por um amigo do coração e queria-a como um homem queria uma mulher. A intensidade do seu desejo físico chocava-o; fazia-lhe bater o coração com toda a força. A jovem não podia ser uma amante ocasional ou uma amante; Tuala não. Bridei queria a jovem para sua mulher e era impossível. Tuala tornara-o claro, para além de Broichan, de Aniel e dos outros. A Que Brilha levara-lha.

— Eu amo-a — disse ele simplesmente.

— Hum. Queres dizer com pureza, honradamente, com nobreza? Essas coisas?

— Suponho que não compreendes.

— Não tenhas dúvidas. Continuemos; é melhor chegarmos a Caer Pridne ainda de dia. Quero que nos vejam. Trata do teu plano, que eu trato do meu. Se os teus deuses te visitarem esta noite, pede-lhes que mantenham o bom tempo. Não quero andar a cavalo com chuva.


A manhã do Portal. Faltavam poucos dias para que a Lua estivesse cheia, mas o tempo estava húmido e ventoso; o rosto da Que Brilha não seria visto sobre Caer Pridne naquela noite, por ocasião do ritual mais sombrio que acontecia por baixo de terra, no Poço das Sombras. Bridei dormira pouco. O jovem sentia-se tenso como um arame esticado, os seus nervos estavam discordantes, as suas sensações amplificadas. A sua cabeça estava cheia de pensamentos, de ideias, de perguntas sem resposta. Para além do dilema pessoal, tinha o ritual daquela noite. Bridei sabia mais ou menos como ele seria conduzido no Poço, baseado em coisas que ouvira na corte e no que Wid e Erip lhe tinham mais ou menos dito. O jovem estremeceu ao pensar na noite que o esperava. Havia deuses e deuses. A Guardiã das Chamas estava no seu coração, era a divindade da luz, da coragem e da força, que recompensava os homens pelo seu valor e que não esperava em troca outra coisa senão lealdade e propósito; venerava A Que Brilha pela sua beleza e sabedoria; respeitava a Mãe de Tudo do mesmo modo que uma criança respeita um ancião, com amor e receio. Porém, com o deus que os homens iam honrar naquela noite, a questão era diferente. O que aquele deus exigia era terrível, repelente, um teste de obediência que exigia uma força de vontade para além do normal. Na verdade, Bridei não sabia se seria capaz de assistir e manter a compostura. Porém, tinha de o fazer, era mais um teste. Se queria ser rei, tinha de o fazer.

Os outros, Carnach, Wredech, já o deviam ter presenciado como parentes próximos do rei. Drust, o Javali, devia tê-lo conduzido antes de abraçar a fé cristã; os seus conselheiros, tendo virado as costas aos costumes antigos, provavelmente não compareceriam. Para Bridei, seria a primeira vez. Ao passar pelo quarto de Broichan, o jovem viu o druida ajoelhado, sozinho, de frente para a parede, os olhos profundos distantes e os braços abertos numa posição de súplica. O quarto, praticamente às escuras, estava iluminado por uma única vela. A sombra de Broichan aparecia, distorcida, enorme, na parede de pedra. Bridei recordou-se do dia da sua chegada a Pitnochie; do tamanho sombrio do seu pai adotivo, da sua presença poderosa, couraçada.

O jovem ficou a observar a cena durante alguns momentos. Broichan não se mexeu uma única vez, totalmente concentrado. Finalmente, Bridei afastou-se com o silencioso Garth logo atrás e foi à procura de Gartnait, sentindo que precisava naquele dia de uma actividade dura, que lhe afastasse da mente os pensamentos sombrios: um pouco de luta livre, talvez, ou um combate com cajados. Porém, Gartnait estava inesperadamente ocupado. O filho de Talorgen estava sentado ao lado do escriba do rei a escrever algumas cartas.

— Desculpa — disse Gartnait. O seu sorriso triste estava de acordo com o seu olhar; ambos incaracteristicamente sem vida. — A minha mãe acha que a minha educação tem algumas falhas e arranjou-me um horário. Talvez arranje algum tempo livre mais tarde.

— Eu vou ter contigo — disse Bridei, retirando-se. Era estranho. Lady Dreseida conhecia certamente o seu filho e devia saber que o escriba do rei estava a perder o seu tempo. Gartnait não nascera para ser intelectual. O herdeiro da Fonte do Corvo nascera para outras coisas; era um poderoso nadador e um fervoroso adepto da espada e do cajado, montava bem. Gartnait nunca conseguiria ler ou escrever, nunca conseguiria apreender a história ou a filosofia. Bridei comparava as suas tentativas para partilhar o que sabia com Gartnait e com Tuala. Tuala era uma esponja, como se tivesse nascido para aquilo. Gartnait, simplesmente, não estava interessado. Quando uma pessoa se sente aborrecida, não aprende. Gartnait e o escriba tinham pela frente dias bem inúteis.

Faolan não estava em lado nenhum. O tempo estava demasiado húmido para andar a cavalo, demasiado frio fosse para o que fosse, exceto para os guardas que estavam de vigia no passeio de ronda. O único lugar onde havia alguma tranquilidade era o seu próprio quarto, o que significava permitir que a sua mente pensasse no ritual que se aproximava. A figura silenciosa e imóvel de Broichan no quarto ao lado não ajudaria nada.

Foram para o salão. Breth já lá estava com um grupo de homens a lançar facas a um alvo de madeira, uma efígie toda olhos e cabelo, pintada de vermelho: um celta, obviamente. Junto da lareira estava outro grupo, e sentado à mesa um grupo diferente, ocupado com tabuleiros de jogos. Algumas mulheres ouviam o bardo do rei, cantando uma ária triste ao som da harpa e outras conversavam entre si. Bridei tornara-se especialista na identificação de tais grupos e sabia quais devia evitar e de quais se podia aproximar. Talorgen observava os lançadores de facas, assim como Carnach, o primo do rei, com alguns dos seus homens e o conselheiro Tharan. Aniel não se encontrava no salão; o rei estava doente e precisava de apoio para se preparar para a noite que se aproximava. Não havia sinal da rainha, nem do seu irmão. Porém, entre os homens à lareira, falando em voz baixa, estavam os dois emissários de Circinn. Bargoit, o dos olhos frios, fazia as despesas da conversa, enquanto o mais velho, Fergus, ouvia e acenava com a cabeça. O cristão, Suibne, sorria amavelmente e batia com o pé no chão ao ritmo da harpa, como se não estivesse naquela fortaleza um rei a morrer. Bridei fez um esforço para não se deixar irritar. Tinha de aproveitar a oportunidade; tinha de desviar o problema que tendia a ultrapassar, até, na sua mente, o ritual daquela noite. O pequeno pacote continuava, seguro, na bolsa que tinha à cintura. Não recebera mais nenhuma mensagem, nada, senão o que Ana lhe metera na mão ao Passarem pelo corredor, no dia em que as raparigas tinham regressado mais uma vez de Banmerren. Apenas aquilo: um pedaço de pano atado com uma fita verde e, no interior, uma folha seca de carvalho e um seixo branco. Tuala era inteligente. Quem mais poderia interpretar aquilo senão um druida ou uma Mulher Sábia? Quem reconheceria o seu significado senão uma criança criada em casa de Broichan?

A mensagem especificava, claramente, o quando e o onde de que Faolan necessitava.

Bridei passara em revista todos os argumentos. O jovem jurara a si próprio, depois do dia em que estivera nos antigos dólmenes, que não a procuraria, não podia fazê-lo e ela não o desejava. Tuala escolhera Banmerren. A jovem não lhe responderia. Bridei não podia duvidar da sabedoria da Que Brilha. Se se tornasse rei e se Tuala concordasse em ser sua mulher, estaria a condená-la a uma vida infeliz. Na corte, a jovem seria objeto de mexericos, de murmúrios, talvez, até, de ódio. Ninguém confiava nos Boa Gente. Como poderia um deles ser aceite como rainha de Fortriu? Bridei pensara e voltara a pensar naquelas verdades enquanto esperava, com o coração a bater, pelo regresso de Ana.

A jovem refém olhara-lhe para o rosto com curiosidade enquanto lhe metia o pequeno pacote na mão. Bridei afastara-se imediatamente com um murmúrio de agradecimento; o seu coração comportava-se de maneira inconstante e o jovem sentira as faces coradas; apercebera-se então do que sempre soubera desde que vira Tuala junto do ribeiro naquela tarde, tão solene e doce, tão maravilhosamente mudada mas, no entanto, sempre a mesma. Tinha de a ver apesar dos riscos. Ser descoberto no interior das muralhas de Banmerren seria deitar fora a hipótese de se tornar rei; seria um insulto à deusa. Tinha de fazer o que Faolan sugerira: ensaiar um plano e pô-lo à prova. Tuala mostrara-lhe o caminho com aquela pedra e aquela folha, uma mensagem tão clara como quaisquer palavras: o carvalho na noite de Lua cheia. Só faltavam quatro dias, faltava pouco, vê-la-ia de novo, poderia tocar-lhe, falar-lhe... não, estava a pôr o carro à frente dos bois. Primeiro teria de se esgueirar de Caer Pridne com Faolan, percorrer a baía e chegar a Banmerren sem serem vistos à luz do luar. Tinha de levar uma corda. Tuala estaria à sua espera, tinha a certeza, chegasse a que horas chegasse. Não poderia ficar muito tempo, mas tinha de ir...

Não podia pensar naquilo naquele momento. Bargoit cessara a sua narrativa e estava a olhar para Bridei com os braços cruzados numa expressão de desafio. A seu lado, Fergus, o outro conselheiro, assumira uma postura semelhante. Se os dois homens queriam uma espécie de debate, estava à sua disposição. Se queria ter resultados, no fim, tinha de tirar partido de todos os encontros.

— Vai lançar facas, se quiseres — murmurou ele a Garth.

— Prefiro ficar de olho neles; é muito fácil, num espaço como este, uma faca falhar o alvo e atingir alguém inesperadamente. Vais falar com aquele miserável de rosto comprido, de Circinn?

— O plano é esse. Fica calado, se tencionas ficar comigo. Temos de fazer de conta que somos bem-educados.

— Para um tipo que expulsa as Mulheres Sábias e que instala estranhos desprezíveis como aquele Suibne?

— Exatamente, Garth. O tipo é um dos nossos, quer gostemos ou não dele.

— Silencioso como um túmulo. É a minha divisa.

— Lindo menino.

A conversa percorreu inúmeros tópicos, mas nunca foi mencionado o triste fato de que Drust, o Touro, estava a morrer, ou a inegável verdade de que Fortriu iria precisar, em breve, de um novo rei. Os dois contendores começaram em território neutro, falaram de pesca, de caça e das oportunidades que existiam no Grande Vale em oposição às terras mais dóceis de Drust, o Javali. Circinn também tinha montes, se bem que não rivalizassem com os picos elevados e nus de Cinco Irmãs ou as montanhas sempre nevadas a ocidente. A fortaleza do próprio Drust, o Javali, estava no topo de uma antiga montanha, perto do monte sagrado destino de peregrinações desde os tempos anteriores à memória: a mãe, era assim chamado. As Mulheres Sábias já não trepavam pelos flancos ossudos da mãe, nem velavam no seu pico por ocasião do Portal ou da Medida. Os missionários cristãos tinham acabado com aquele costume. As casas da deusa, em Circinn, tinham sido fechadas uma a uma e as Mulheres Sábias tinham sido expulsas. Bridei perguntou a si próprio se as pessoas ainda subiriam secretamente lá acima, sozinhas ou em grupos furtivos. O jovem virou os seus pensamentos para o tópico que estava em discussão: que caça podia ser encontrada nas encostas arborizadas daquela região.

— Tu caças o veado? — perguntou Bargoit. — É um bom passatempo para um jovem da tua idade.

— Eu fui criado por um druida — disse calmamente Bridei. — Participei em caçadas na Fonte do Corvo. Porém, o meu conhecimento dos animais selvagens baseia-se na compreensão de que partilhamos o mundo, não que devemos persegui-los e matá-los. Em Pitnochie, a nossa mesa tinha, normalmente, produtos da herdade. E peixe, claro. Os vales escondidos a norte do Lago da Serpente são o lar de algumas das melhores trutas que alguma vez honraram a mesa de um homem.

— Hum — disse Bargoit. — Dizem que as terras de Morleo, em Longwater, são ricas em lagos e em rios. Tu combateste com ele em Galany’s Reach, não combateste? Qual é a tua opinião sobre o homem?

— Penso que Morleo é um líder admirável — disse cuidadosamente Bridei; aquele tópico era mais complicado. — Franco, flexível, respeitado pelos seus homens.

— E Ged?

— É um homem valente e amado.

— Disseste que Morleo é flexível. Um homem que adere tão firmemente aos velhos costumes pode ser chamado assim. Vós viveis todos no passado. Não admira... — Bargoit pareceu pensar melhor no que ia dizer a seguir. As suas súbitas reticências eram mais do que um pequeno artifício.

— Não admira o quê? — Bridei não podia deixar escapar aquilo. Os outros escutavam: o conselheiro Fergus, companheiro de Bargoit, um pouco mais longe o padre cristão, Tharan, o conselheiro de Drust, o Touro e o ruivo Carnach, um pretendente ao trono.

— Não admira que a vossa vitória em Galany’s Reach tenha sido uma coisa efêmera — disse Bargoit rudemente. — Quem, senão quem vive no passado, faria um gesto daqueles, tão caro? Uma estação totalmente perdida, perdas pesadas, casas e herdades negligenciadas. Para quê? Uma conquista momentânea, insignificante. A remoção simbólica de uma pedra com uns sinais crípticos gravados, um animal ou dois, uns corpos sem cabeça pintados em fila! Não ganhastes terreno e não conseguistes prisioneiros úteis. Um miserável chefe tribal, mais nada, pelo que me dizem. Não é maneira de conduzir uma guerra. Desse modo, Fortriu nunca conseguirá expulsar os invasores. Quando derdes por isso já os Celtas estão de novo em cima de vós, queimando as vossas casas, devastando as vossas herdades, chacinando as vossas crianças e violando as vossas mulheres.

Era preciso manter a calma. A alguns metros de distância, Talorgen estava pálido como a cera, de maxilares cerrados. Bridei usou um dos padrões de Broichan para dominar a respiração, abriu os punhos e tentou esquecer a dor de cabeça.

— Esses comentários intrigam-me — disse ele suavemente, aproximando-se de um banco e esperando parecer descontraído. — Posso.

— Senta-te; continuemos a nossa discussão. Breth, importas-te de pedir a alguém que nos traga cerveja? Ora bem — disse o jovem, debruçando-se na direção do outro —, pelo que sei, Circinn também tem os seus problemas. Inimigos diferentes, os Anglos e outros mais a sul, uma quantidade de tribos ferozes cujas incursões nas vossas terras exigem muitos homens armados estacionados naquelas partes. Uma conta pesada para a corte ou para os chefes tribais que mantêm esses postos avançados. Não me atrevo a provocar aqui uma contenda infantil perguntando-te se, pelo vosso lado, vos aventurastes para sul numa tentativa de recuperar os territórios perdidos. Não te vou perguntar se as vossas vitórias são simbólicas ou reais. Digo apenas que um homem sábio não vê o seu domínio aos pedaços, como se acreditasse que é capaz de compreender o todo de um areal examinando um simples grão de areia, ou uma floresta examinando uma simples folha. Eu sigo a fé dos deuses antigos; sou-lhes leal em tudo porque eles são o pilar, o coração vivo de Fortriu. Isso não quer dizer que esteja agarrado ao passado, Bargoit. Eu estou, ao mesmo tempo, agarrado ao passado e ao futuro. Os meus olhos estão abertos para qualquer oportunidade, para qualquer desafio, para qualquer ameaça, mas não estão cegos às manifestações do espírito. As duas coisas seguem de mãos dadas. Um homem não pode ter uma vida boa sem o sopro dos deuses nas suas costas, sem os seus murmúrios ao ouvido. Acusas-nos de vivermos no passado. Isso não é correcto. Nós transportamos o passado conosco. O passado corre-nos nas veias, bate nos nossos corações. O passado fortalece-nos; transporta-nos corajosamente em direção ao futuro.

Seguiu-se um pequeno silêncio. O padre, o irmão Suibne, tossiu, como quem pede desculpa.

— Falaste bem — disse o cristão. — Não admira que os homens te sigam. Mesmo assim, esses deuses de que falas não passam de sombras. Se eles te chamam para atos como o que vai acontecer esta noite, então as vozes que ouves são manifestação do Demónio, murmúrios maléficos. Deves afastar-te deles e caminhar na direção da luz. Só existe um único caminho que não é esse, cruel e mortífero. Como podes...

— Shhh — sibilou um círculo de vozes horrorizadas. Suibne calou-se, mas não por muito tempo.

— Os teus deuses governam pelo medo — disse ele. — O único deus verdadeiro é um deus de amor, de perdão, de alegria. Se confiares n’Ele, não precisarás de apaziguar as tuas divindades sombrias com atos de violência que te enchem de desassossego.

— Aqui, tu és um hóspede — disse o conselheiro do rei, Tharan. Ele e mais alguns tinham-se aproximado durante o discurso de Bridei e o ancião dirigia-se ao irmão Suibne num tom capaz de silenciar o mais corajoso dos homens. — O rei ofereceu-te a hospitalidade do seu salão como é obrigado, aliás, visto que vieste com os emissários de Drust, o Javali. Nós aceitamos a tua presença. Porém, nenhum de nós permitirá que violes tão flagrantemente os nossos costumes antigos. Essa violação coloca-nos a todos em perigo. Quando falas em voz alta deste ritual e daquele em cuja honra ele é celebrado, ofendes cada um dos seus fiéis. A lei é essa, foi-nos inculcada ainda no colo das nossas mães. Não voltarei a falar do assunto, salvo para dizer que, se quebrares o silêncio sobre isto, arriscas-te a atrair o castigo do deus, não só sobre ti, mas sobre cada homem aqui presente, seja ele de Circinn ou de Fortriu. Espero não ter que dizer mais nada.

Suibne nem sequer teve a graça de corar ou murmurar uma desculpa. O homem abanou ligeiramente a cabeça e levou a mão à cruz que usava ao pescoço.

— Fortriu está cheio de homens que estão cheios de palavras observou Bargoit com as sobrancelhas ligeiramente levantadas. — Jovens, homens na flor da idade, anciãos. Todos eles tocam a mesma música. Os tempos são de mudança, meus amigos. Nós os do sul, abraçámo-la; o nosso povo cada vez se vira mais para a nova fé.

— Isso não é totalmente verdade — disse Carnach, o primo do rei.

— As minhas terras estão na fronteira norte de Circinn. Frequentemente, ouço histórias de pessoas deslocadas, de Mulheres Sábias expulsas das aldeias, de homens de fé com as suas casas confiscadas, de lugares antigos de culto arrasados para darem lugar a templos cristãos. Tais histórias não falam de uma transição pacífica para a nova fé sob a liderança de Drust, o Javali. Eu, pelo menos, não quereria um homem assim para meu rei.

As palavras do primo do rei eram quase uma afirmação clara do que se estava verdadeiramente a discutir; um quase muito pouco confortável. Drust, o Touro, ainda vivia. Naquela noite, iria presidir ao ritual do Portal, uma cerimônia onde as sombras dos que tinham partido regressavam e a mão estendida da Mãe de Tudo estava a pouca distância.

— É um erro — disse calmamente Bridei — assumir que, só porque uma coisa qualquer é velha, já não presta. Devemos aprender com os mais antigos. Devemos aprender com o passado. Como podemos, de outro modo, ter sabedoria? Eu devo muito aos tutores que estiveram presentes na minha infância, anciãos veneráveis, ambos, exemplos vivos de tudo o que um homem tem de bom: sabedoria, coragem, humor, fé. Os velhos costumes são o coração e o espírito de Fortriu. Se os pusermos de lado ficamos como uma concha vazia. Se os pusermos de lado, faremos de uma terra viva uma casca morta, desprovida de significado.

— Este jovem, tal como ele disse — observou o conselheiro Fergus, virado para Bargoit —, foi educado por um druida, nem mais nem menos do que Broichan. Não nos devemos mostrar surpreendidos por Bridei se exprimir deste modo. Um homem assim expressa-se por meio de metáforas e responde a uma pergunta com outra pergunta. A mente dele segue caminhos muito afastados dos das pessoas normais como nós.

— Bridei apenas expressa a verdade que existe em todos nós. Aquelas palavras tinham vindo, inesperadamente, do enluvado Tharan, o homem que Aniel dissera ser perigoso. — Sejam quais forem as nossas diferenças, os verdadeiros homens de Fortriu partilham as mesmas lealdades e as mesmas aspirações. Nós amamos os deuses e amamos a terra que nos foi confiada antes de o tempo ser tempo. Nem sempre nos amamos uns aos outros; está na natureza do homem discutir, lutar pelo poder. Apesar disso, aqui no norte, pelo menos, o nosso objetivo é um só: aceitar a vontade dos deuses e afastar o inimigo das nossas costas.

— Não foi o que se viu na vossa última incursão, pelo que me dizem — disse Fergus. — Uns poucos de Celtas mortos, uma presença momentânea na aldeia de Galany’s Reach e uma retirada discreta. Não se pode dizer que tenha contribuído para expulsar o inimigo. Quanto aos velhos deuses, devem ter chorado de vergonha, certamente, ao verem a grande pedra arrancada do solo e transportada aos ombros de homens através de metade do país. Não foi um insulto ao vosso folclore? Além disso, os teus atos não estão de acordo com o que dizes, Tharan. Onde estavas enquanto tudo isto decorria? Suponho que em Caer Pridne, aquecendo as mãos à lareira.

O grupo de homens junto da lareira era agora maior; o diálogo atraíra a atenção de muitos deles. Bridei viu uma expressão de profunda ofensa e de raiva nas feições correctas de Talorgen. O jovem viu o queixo de Tharan retorcer-se, sinal de que o conselheiro mais perigoso de Fortriu não era imune a insultos. Carnach, o primo do rei, olhava para Fergus com olhos furiosos, abertamente e Bargoit mantinha as sobrancelhas levantadas. O padre cristão tinha-se afastado para ouvir a música do bardo.

— Isso é injusto e tu sabe-lo muito bem — disse Bridei rudemente. O jovem não esperava, entre tanto homem, erguer-se em defesa de Tharan, mas sentiu-se obrigado a falar. As palavras de Fergus tinham sido ultrajantes e não podiam passar sem uma resposta. — Os teus colegas conselheiros combatem contra os Anglos? Deixam o teu rei sozinho? Duvido. Tharan está sempre ao lado direito do rei; os conselheiros do Touro sempre o serviram bem e sabiamente. Um bom monarca compreende o valor de um tal apoio, de uma tal amizade. É verdade que Tharan, Aniel e Eogan nem sempre estão de acordo, mas isso só contribui para fortalecer o papel que desempenham, permitindo que o rei pese as possibilidades e esteja aberto a ideias. Os nossos conselheiros não vão para a guerra; temos chefes tribais, como Talorgen aqui presente, que controlam essas expedições, homens especialistas em incursões, em defesa e que sabem lidar diariamente com guerreiros. Um rei não atira com toda a sua força para as partes mais longínquas do seu reino, tem de pensar no que fica para trás. Quanto à nossa empresa, valeu a pena. Talorgen liderou-nos com honra e propósito. Nunca foi nossa intenção reclamar aquele território porque ainda não chegou a hora. Procuramos testar as águas para o futuro, encher os corações dos nossos inimigos de medo. Matámos cem homens de Dalriada, ou mais. Trouxemos um refém de algum significado, que está agora preso na fortaleza de Foirel. Quanto à Pedra Mágica, nenhum homem põe em dúvida os desígnios dos deuses. O tempo dirá se a sua ira descerá sobre nós por um ato sacrílego, como tu sugeres. Tudo o que posso dizer é que, quando levámos a cabo aquele feito, pareceu, a todos, que a Guardiã das Chamas nos sorria. Todos nós sentimos o seu amor, tal como sentimos o calor do sol; a sua boa vontade susteve-nos e trouxe-nos de regresso a casa sãos e salvos. O poder dos deuses está para além da nossa compreensão; está para além dos insultos baratos daqueles que troçam das nossas empresas e se riem dos nossos camaradas que derramaram o seu sangue no campo de batalha.

— Isso é tudo muito bonito — disse Bargoit, abrindo as mãos num gesto conciliador. O conselheiro do sul tinha à sua volta um círculo de homens zangados. — No entanto, os teus argumentos sofrem de alguma falta de lógica, jovem. Falaste antes em coisas poéticas: grãos de areia, folhas e coisas assim. Se é tão importante um homem ver a nossa terra como uma entidade única, um todo indivisível, nesse caso precisamos de um governante, de uma corte, de um rei! De uma fé! Se acreditas mesmo nisso, jovem Bridei, estou de acordo contigo. Nós, os de Circirin e vós, os de Fortriu, somos um único povo, apesar de nos esquecermos de vez em quando.

— E os Caitt também — disse Bridei calmamente. — Também os incluirias num reino unido, claro?

— Os Caitt? — sibilou Fergus. — Aqueles bárbaros?

— Do sangue dos Priteni — disse Talorgen, que se colocara logo atrás de Bridei. — Falaste em lógica. Levemos isto para a sua conclusão inevitável. O reino devia ser só um: Fortriu, Circinn, as Ilhas Pequenas e o território dos Caitt. Reinos diferentes mas unidos sob um único rei e uma única fé. Não é difficil imaginá-lo. No tempo do meu pai, Bargoit, e no tempo do teu pai, era assim. Os territórios dos Priteni eram um só reino. Foi a decisão de Drust, filho de Girom, de admitir missionários da fé cristã no sul, que dividiu a nossa pátria. Advogas agora o regresso à sua primeira forma? Não encontrarás argumentos contra entre os homens de Fortriu.

Bargoit sorriu ao de leve.

— Eu não advogo nada disso, como tu bem sabes. As velhas práticas desapareceram de Circinn e nunca mais regressarão. Porém, existe outra maneira, aberta a todos nós, se Fortriu decidir avançar em vez de recuar.

— Fortriu nunca virará as costas aos seus antigos deuses. — Bridei sentiu um arrepio na espinha, como se o Inverno tivesse chegado subitamente. — O nosso rei ainda vive e nós pedimos aos deuses que o preservem para nos liderar nas estações que se seguem. Eu também gostava de ver a nossa terra unida sob um único líder. Na verdade, acredito que é a única maneira de assegurarmos as nossas fronteiras, tanto a oeste com os Celtas como a sul contra os Anglos. Acredito que é o nosso único caminho se quisermos ser fortes nestes tempos de mudança. Um tal líder não confiaria mais nos seus conselheiros do que deveria. Um tal líder não expulsaria druidas nem baniria Mulheres Sábias. Um verdadeiro rei não cospe nos rostos dos deuses. Pelo menos é no que eu acredito. Um tal líder seria forte e bom, firme na sua fé e pronto a muitos sacrifícios para que o seu povo seguisse em frente com esperança e propósito. Drust, filho de Wdrost, é esse homem. Nós amamo-lo e honramo-lo. E ele ainda está vivo. Levar esta conversa, como tendes feito, para um futuro para lá dele, ofende-nos. Porém, sois nossos hóspedes. Por isso, ofereço-vos cerveja e sugiro que falemos doutros assuntos. Se bem me lembro, começamos com uma discussão sobre pesca, uma conversa não só respeitosa para o nosso anfitrião, como mais segura. Tendes apanhado alguns grandes, ultimamente?

Os homens de Fortriu riram-se contra vontade. Eram todos peritos e começaram, rapidamente, a falar do tamanho e da qualidade das trutas que se encontravam nos diferentes lagos e qual espécie era a melhor. Bargoit, de lábios cerrados, não contribuiu.

— Bem feito — murmurou Talorgen ao ouvido de Bridei um pouco mais tarde, depois de terem saído do agrupamento. — Cumpriste uma série de objetivos rapidamente, incluindo um, pelo menos, que me surpreendeu. Conseguiste que Tharan concordasse publicamente contigo. Temos de continuar a trabalhar nesse sentido.

Bridei acenou com a cabeça, ao mesmo tempo que um súbito cansaço se apoderava dele. Num certo sentido, Talorgen tinha razão; havia muito a ganhar ali, e havia muito a perder. Aqueles homens eram poderosos. Quando chegasse a escolha do candidato, as suas vozes é que contariam. No entanto, ao falar, Bridei tinha-se esquecido da questão essencial enquanto escolhia as palavras e o tom exatos. O jovem não pensara no seu próprio futuro, apenas na necessidade de dizer àqueles homens o que lhe ia na mente e no coração. Talorgen equivocara-se que aquilo fora um lance calculado em busca de apoio.

— Tharan falou de amor a Fortriu — disse ele. — Carnach também. Nisso, pelo menos, os homens de Fortriu estão de acordo.

— Mas o sul tem mais gente — disse Talorgen. — Circin vai mandar vinte chefes tribais à votação quando chegar a ocasião. O processo permite-lhes toda uma Lua para chegar aqui. A não ser que rezemos por um tempo particularmente mau, estarão aqui todos. Vamos ter que trabalhar arduamente, ou Fortriu não poderá apresentar uma frente unida contra eles. Nós só queremos um candidato, mais nada. Temos muito que fazer. Pareces cansado, Bridei.

— Quando estou no meio deles, parece fácil — disse Bridei —, é como se os deuses me dissessem o que dizer. Porém, depois, quando estou só, lembro-me de que sou apenas um homem, que há outros pretendentes, prontos a lutarem contra mim. Aos olhos dos chefes tribais, sou novo e inexperiente, não sou ninguém. Investistes muito em mim: tu, os teus amigos, Broichan em particular. Eu não quero deixar-vos ficar mal, não quero deixar ficar mal os deuses.

Talorgen olhou para ele com curiosidade.

— Se pensássemos que seria assim, Bridei, não teríamos perseguido este objetivo até ao fim e parece-me que esse fim está mais próximo do que imaginávamos.

— É verdade; ouvi dizer que a saúde do rei está cada vez pior.

— Drust não estará muito mais tempo conosco. Aniel está à cabeceira dele com a rainha. Os deuses são misericordiosos; vão ver o nosso rei cumprir o ritual uma última vez e depois, acredito, chamá-lo-ão. O Inverno vai ser muito frio.

Bridei não disse nada. O jovem pensou no poço profundo, mais frio do que qualquer Inverno e na voz do deus sombrio chamando.

— Ele aguenta a cerimônia — afirmou Talorgen. — A vontade de Drust é muito forte. Vai ser uma prova dura. Estás preparado para isto, Bridei?

— Tenho de estar. Talorgen acenou com a cabeça.

— Até Broichan o detesta, mas tem de ser feito. É uma parte do que nós somos; uma coisa sombria, mas temos de aceitá-la. Devias descansar um pouco. A noite vai ser longa.


CAPÍTULO CATORZE


O Sol não se mostrara durante todo o dia. As nuvens baixas, estendiam-se de norte a sul e de leste a oeste, cheias de chuva. De vez em quando, aliviavam-se, deixando cair um dilúvio sobre os telhados de Banmerren, aguaceiros trovejantes que escorriam do colmo e se perdia em cem regatos através dos jardins inundados de onde até os patos tinham retirado, procurando abrigo por baixo de um arbusto. No interior do recinto amuralhado, o dia parecia um crepúsculo e quando, por fim, o Sol se pôs, algures por trás das nuvens, a noite caiu abruptamente, como se o deus secreto estivesse impaciente por receber o que lhe era devido.

O carvalho estava quase totalmente despido; a chuva fazia poças nos buracos entre as suas raízes expostas. A luz da candeia de Irethra iluminou os montes de folhas douradas, avermelhadas e acastanhadas a apodrecerem por acção da humidade, reclamadas pela terra, para que a alimentassem até à estação seguinte. O barulho da chuva apagava todos os outros sons. Tuala seguiu a mulher mais velha ao longo do corredor coberto e entrou no edifício principal onde, na divisão central, estava uma lareira acesa e onde a lenha ardia aos repelões, como se estivesse consciente do poder daquele dilúvio. O fogo estaria extinto chegada a hora do ritual; as presenças esperadas na cerimônia eram conhecidas por não gostarem de luz.

A casa estava silenciosa. A chuva deixara de ser um rugido quase impossível de suportar; era um rufar distante quando a porta foi fechada. As raparigas, que geralmente recebiam de braços abertos a oportunidade de falar da casa e das amigas, partilhar dezenas de pequenos segredos guardados, estavam, naquela noite, invulgarmente solenes.

Antes do anoitecer, tinham visto Fola sair de Banmerren com a cabeça curvada por causa da chuva, seguida por uma procissão de mulheres encapuzadas em direção a Caer Pridne. Dizia-se que Fola não gostava do Portal. Dizia-se que a Mulher Sábia preferia celebrar os rituais em locais próprios da deusa: ali, no interior daquelas paredes, na grande praia, mais abaixo e no interior dos três dólmenes. Porém, não em Caer Pridne, um reino de homens, de poder e de trevas antigas. Não aquela espécie de cerimônia, na qual o papel das mulheres era ao mesmo tempo um raro privilégio e a mais profunda das vergonhas. Porém, Fola obedecia aos deuses. A Mulher Sábia obedecia a todos, mesmo àquele cujo nome não devia ser pronunciado. Assim, dirigiu-se para a fortaleza acompanhada das suas mulheres, todas elas sacerdotisas, menos Irethra, que tivera que ficar para velar pelas raparigas mais novas; todas as mais velhas, as que vestiam de verde, a tutora de história Derila e os seus pares. Nenhuma das mais novas; as que usavam vestido azul ainda não podiam aprender a celebrar aquele ritual e não podiam, evidentemente, comparecer àquele ato. Odha desafiara Irethra algum tempo antes.

— Por que é que nós não podemos ir? Estamos aqui para aprender, no fim de contas. Além disso, queremos ver Caer Pridne, as pedras-touro, a corte do rei e tudo o mais.

O rosto de Irethra mudara; ficara extremamente tenso.

— O assunto está fora de discussão, Odha. Devias ajoelhar-te perante A Que Brilha e agradecer-lhe do fundo do teu coração por não teres que ir a Caer Pridne esta noite. A tua vez há de chegar, se não te mandarmos antes para casa por seres estúpida, antes de chegares, sequer, a usar um vestido verde.

— Mas...

— Nem mais uma palavra.

Agora, estavam reunidas em frente da lareira. Ninguém dizia nada. Todas escutavam a chuva e evitavam os olhares umas das outras, imersas nos seus próprios pensamentos. Tuala quisera passar a noite na sua torre, sozinha, abraçando mentalmente Bridei enquanto ? jovem testemunhava o ritual, desejando que ele tivesse força de espião e firmeza de propósito no mais sombrio dos testes. No entanto, ethra obrigara-a a ir com elas para casa. Na torre estava frio e o elhado deixava entrar água. Tuala tinha de se juntar às outras; fariam todas juntas.

As raparigas estavam familiarizadas com o Portal. Todas as casas, todas as aldeias, todas as comunidades o observavam. A Mãe de Tudo era honrada, as luzes apagavam-se e os espíritos dos que tinham partido eram bem-vindos; o frio, aumentado pelas correntes de ar, assinalava a espiral de dança daquelas sombras entre os vivos à frente, atrás, em volta, tocando numa face ou numa mão com dedos gelados, numa boca tremente com lábios glaciais. Broichan sacrificava sempre um animal ao deus, geralmente um cordeiro outonal ou uma galinha. A primeira vez em que fora autorizada a ficar acordada para o ritual, Bridei dissera a Tuala para tapar os ouvidos e fechar os olhos quando se chegasse àquela parte, mas ela espreitara e depois desejara não o ter feito. Depois das oferendas era a vez das orações, a partilha de comida ritual e o acender de uma única vela: a esperança era restaurada e o caminho em frente miraculosamente iluminado mesmo em tempos de trevas e de morte. Tuala sabia o que era aquilo; tinha-o feito em criança. O carvalho estava a dormir; não havia sinais de verdura, nenhuma sugestão de vida senão nas suas profundezas, nas lentas histórias ditadas pelo seu coração, na estranha e maravilhosa transformação das folhas em estrume, alimentando o seu lento crescimento. Entretanto, os homens e as mulheres descansavam enquanto o caminho em frente se formava de novo, algures no labirinto secreto dos seus sonhos.

O Portal era assim em Pitnochie, na Fonte do Corvo, em todos os recantos de Fortriu. Em Caer Pridne, porém, era diferente. O promontório onde se erguia a fortaleza do rei albergava um lugar profundo, uma fenda escura, sagrada para o mais antigo dos deuses, um deus cujo nome não podia ser pronunciado, de tal modo era temido entre os Priteni. Ao longo de inúmeras eras, os reis de Fortriu desciam ao Poço das Sombras por ocasião do Portal para celebrar o ritual especial exigido pela divindade. Era necessário; a história provava que era extremamente cruel. Wid e Erip tinham falado de um determinado monarca que não fora capaz de seguir a cerimônia até ao fim; sob o seu comando, o poço fora selado e o seu acesso fechado. A princípio, tudo parecia na mesma. Depois, porém, o reino foi atormentado por estações terríveis: três anos sem Verão. O céu ficava coberto por uma névoa dia sim dia não; a Guardiã das Chamas quase desapareceu dando à terra apenas um pouco de luz e nenhum calor. A Que Brilha retirou-se para trás do seu véu e não olhava para a terra que não lhe obedecia. As colheitas mirravam antes mesmo de crescerem dois palmos, a fome e a doença devastaram Fortriu. As pessoas morriam aos milhares e os sobreviventes enlouqueciam por falta de comida e depois prostravam-se, desesperadas, pedindo aos deuses que fossem misericordiosos. No quarto ano de escuridão, a Mãe de Tudo levou o rei para o seu regaço e os chefes tribais de Fortriu escolheram um novo monarca. No Portal seguinte, os homens de Caer Pridne reuniram-se mais uma vez no Poço das Sombras, a cerimônia desenrolou-se mais uma vez de acordo com a sua forma antiga e os verões regressaram.

Os Priteni levaram muito tempo a recuperar daquelas estações terríveis; como pode um homem viver no terror permanente de uma vida em perpétua sombra? O sentimento entrara na memória colectiva do povo. No sul, para lá da muralha romana, dizia-se que o pesadelo durara ainda mais porque às estações terríveis se tinham seguido epidemias e os poucos que tinham sobrevivido aos anos de fome e doença não tinham força nem vontade de recomeçar a longa tarefa de fertilizar de novo os campos e as pastagens.

Tuala sabia que a observância geral teria muito em comum com a versão que Broichan representava em Pitnochie. No entanto, seria algo diferente: ao ritual do rei só assistiriam homens e o modo como ele era conduzido era secreto. As Mulheres Sábias de Banmerren não desceriam ao poço, tinham um determinado dever a cumprir e depois ficariam de vigília na praia abaixo da fortaleza até ao nascer do Sol. A noite seria particularmente dura; A Que Brilha escondera o seu brilho, talvez envergonhada com o que ia ser feito para aplacar o mais antigo dos deuses. As mulheres regressariam a casa molhadas, cheias de frio e tristes. Outra coisa não seria possível!

Tuala olhou para a lareira. A jovem perguntou a si própria se as outras não saberiam o que ia acontecer naquela noite ou se estariam apenas a fingir porque a verdade era demasiado amarga. Entre os dois, Erip e Wid tinham-lhe dado pistas suficientes ao longo dos anos. O que Tuala não sabia, adivinhava. Morna, a rapariga de tez pálida e de olhos estranhos, saíra atrás de Fola com uma capa cinzenta de capuz como se fosse já uma sacerdotisa; era impossível, Morna ainda era muito nova e só estava mais ou menos há um ano em Banmerren. Morna saíra com um ar estranho como se, na sua mente, não caminhasse ao longo de um carreiro enlameado sob um céu ameaçador, antes ao longo de outro totalmente diferente, sozinha com os deuses e os espíritos.

A noite foi passando; a lareira tentava permanecer acesa. Nenhuma das raparigas se despediu e foi dormir para o conforto da sua cama. Daquela noite, os cantos escuros eram demasiados nos quartos, havia demasiadas sombras estranhas. Em vez disso, uma a uma, as jovens encostaram-se às paredes, assentaram as cabeças nas mesas ou estenderam-se em cima dos bancos. Quando a hora do ritual se aproximou apenas Irethra e Tuala estavam acordadas, sentadas à lareira.

— Tuala?

— Sim?

— Vi-te a adivinhar; vi o poder das imagens que consegues invocar. Por que é que deixaste de fazer uso dessa técnica? Eu pensava quando te dispensei da minha aula, que desabrocharias; esperava poder, juntamente com Fola, ensinar-te a dares a esse talento o melhor uso possível. Porém, nunca mais te vi com uma tigela de bronze.

— Penso que é capaz de ser... perigoso. Muitas vezes, sinto-me perturbada com o que vejo.

— O olho do espírito não se abre para que a vidente possa ser consolada, abre-se para que ela aprenda — disse Irethra. — É suposto ficarmos perturbadas; é suposto aceitarmos o esgotamento do corpo e do espírito depois das visões. Esconder um talento assim, especialmente quando ele é grande, é uma desobediência à deusa, é rirmo-nos dela e tu estás aqui em Banmerren ao seu serviço. Uma boa filha de Fortriu não obedece À Que Brilha em tudo?

Tuala não disse nada.

— Diz-me uma coisa. — Irethra inclinou-se para a frente com os cotovelos nos joelhos; à luz das chamas viam-se os seus olhos inquisidores, as pequenas rugas em redor da boca, os cabelos bem penteados.

— És capaz de invocar o que queres na água? És capaz de controlar essa dádiva? Se desejasses, serias capaz de ver o que está a acontecer neste momento em Caer Pridne?

Subitamente, Tuala sentiu um frio terrível; era como se estivesse na entrada do Poço das Sombras, vacilando por cima de um quadrado de água negra como tinta.

— Por vezes, consigo — murmurou a jovem — e por vezes a deusa envia-me outras imagens. Penso que, se olhasse esta noite, veria o rej e o poço. Porém, é proibido as mulheres assistirem ao ritual.

— Não estaríamos a assistir — disse suavemente Irethra. ? Estaríamos apenas a ver algo que se parece com a realidade. És capaz de invocar uma visão? És capaz de a partilhar?

— Não sei. — Tuala tremia. A sugestão de Irethra alarmara-a e mais alarmante ainda era a compreensão de que era exatamente o que ela queria fazer, ansiava por fazer para poder partilhar com Bridei aqueles momentos terríveis passo a passo.

— Se déssemos as mãos — disse Irethra — e se uníssemos as nossas vontades, talvez a deusa nos concedesse a mesma visão. Tu tens um talento natural muito grande. Eu tenho prática desta arte e tenho ferramentas para a manter sob controle. Juntas, somos capazes.

Tuala olhou para ela. Irethra era uma Mulher Sábia, tinha obrigação de saber que era proibido. Era evidente que era um pouco diferente de assistir pessoalmente ao ritual secreto, algo que uma mulher não podia fazer, mas espiar aquele ritual era irritar os deuses, arriscar uma possível represália. No entanto, a jovem queria fazê-lo. O seu desejo aumentava à medida que pensava na possibilidade. Bridei estava lá. Se fizesse aquilo, poderia vê-lo, poderia mantê-lo são e salvo nos seus pensamentos enquanto ele suportava o desenrolar do ritual.

— Fola não aprovaria — disse ela.

— Com o tempo, acabaria por aprovar. — A voz de Irethra era quase sussurrada, como que para não acordar as outras alunas, mas era também confiante. — Os teus talentos fascinam-na. Ela trouxe-te para aqui, desconfio, não para que te possamos ensinar, mas para que tu nos possas ensinar. Acredita, se Fola não tivesse que passar a noite na praia a tremer de frio, estaria aqui ao nosso lado a olhar para a tigela. Fazes? Está quase na hora.

Tuala não disse nada. A jovem pôs-se de pé quando Irethra se pôs de pé e foi buscar um jarro de água enquanto a tutora preparava a tigela de bronze. A água agitou-se e imobilizou-se. A jovem segurou nas mãos de Irethra, que estava no lado oposto da mesa, para que pudessem estar de frente uma para a outra com a tigela no meio e as duas mulheres debruçaram as cabeças sobre a superfície da água. Ao lado ardia uma vela; os rostos das raparigas adormecidas viam-se, pálidos, na sombra. Tuala sentiu o seu coração a bater mais devagar e a sua respiração tornou-se mais lenta. Então, a deusa chamou-a e fê-la mergulhar na escuridão.

Uma procissão; as Mulheres Sábias aproximando-se de Caer Pridne já sem a chuva a cair, Fola com os cabelos prateados caindo-lhe pelas costas abaixo. A seu lado caminhava outra mulher. Não, uma mulher não?, uma rapariga, uma rapariga de rosto branco como a cinza, de olhar vazio, com cabelos aos caracóis até à cintura e com um antigo vestido branco como a neve por baixo da capa cinzenta de Mulher Sábia. Morna: aquela que desaparecia subitamente das aulas para ser vista de relance novamente mas como uma sombra, aparecendo e desaparecendo, a rapariga cujos olhos não pareciam ver outra coisa senão sonhos. No outro lado de Fola seguia Luthana, especialista em ervas uma mulher que passava os dias a cavar, a podar, a mexer em caldeiras a ferver. As mulheres chegaram aos portões de ferro de Caer PridneTuala viu as pedras-touro alinhadas ao longo do caminho, umas lajes formidáveis nas quais as imagens dos animais se viam difusamente à luz dos archotes. Talvez o escultor daquelas coisas tão belas tivesse sido Garvan, o homem que ela não conseguira surpreender com a história de desejo e auto-controle. Garvan, de quem seria mulher naquele momento se não tivesse escolhido o caminho da Que Brilha.

As Mulheres Sábias esperaram em silêncio. Morna imóvel e pálida entre as duas mulheres mais velhas e as sacerdotisas de Banmerren atrás delas em fila dupla, com as cabeças descobertas e as mãos cruzadas no peito. Fola e Luthana não adoptavam aquela pose; ambas agarravam num dos pulsos frágeis de Morna como se a rapariga pudesse desaparecer se não estivesse assim presa. Morna olhava em frente, para lá dos portões. Aquele, pensou Tuala, era o olhar de uma mulher cega, a rapariga não sabia se o que estava na sua frente era belo ou feio, uma coisa maravilhosa ou um objeto de terror. Irethra apertava com força as mãos de Tuala. A jovem estava habituada a invocar sozinha as suas visões; fazê-lo na companhia de outra pessoa que não Bridei sempre lhe parecera uma coisa muito errada. Quando os Boa Gente tinham olhado por cima do seu ombro para o Espelho Negro, sentira-se irada e ressentida. Naquela noite, porém, a presença de Irethra era bem-vinda e tranquilizadora, quente.

Na água, o tempo parecia passar; as nuvens rodopiavam e rolavam no céu negro. A chuva começou a cair, mas as mulheres deixaram os capuzes descidos e as cabeças nuas. Finalmente, os homens apareceram no outro lado dos portões, uma fila dupla de guerreiros à cabeça, três vestidos de negro: Broichan ao centro com muitas tranças pequenas nos cabelos escuros à moda druídica, os seus olhos escuros autênticos buracos num rosto que mais parecia uma caveira devido a luz incerta da Lua velada e dos archotes. À sua direita caminhava um homem seco, grisalho, de lábios cerrados e olhos argutos. À esquerda de Broichan estava um homem mais alto, de olhos duros e de aparência severa. Dois guardas retiraram os ferrolhos e abriram de par em par os grandes portões.

Seguiu-se uma troca de palavras: Broichan falou e Fola respondeu. Uma sequência formal de perguntas e respostas. Com o ouvido do espírito e o conhecimento do ritual, Tuala percebeu o seu sentido.

— Porque estás aqui?

— Para emendar o que está errado. Para devolver o que foi tirado. Para nos empenharmos de novo.

— Que ofereces!

— Pureza. Obediência. Sacrifício. A renúncia perante a essência do deus.

— A oferenda é ideal?

— É ideal. — Fola curvou a cabeça.

— É total — disse Luthana, largando a mão de Morna e afastando-se na direção do fim da fila. Por sua vez, cada uma das mulheres de Banmerren avançou e apresentou a sua declaração ao druida; ao deus sombrio, cujo representante naquela noite era Broichan.

— E pura.

— Está cheia de luz.

— E completa.

— E de livre vontade.

— E jovem.

— E obediente.

— E sábia.

Todas as mulheres se retiraram depois de terem falado, ficando apenas Morna no lugar onde estava, silenciosa, imóvel, com Fola a seu lado, pequena e muito direita. Em seguida, a Mulher Sábia tirou a capa dos ombros estreitos da rapariga e esta ficou perante o homem com o seu vestido branco como a neve, uma figura delicada, frágil, à luz dos archotes. Apesar da chuva e da mordedura do vento frio, Morna mantinha-se absolutamente imóvel.

— E perfeita — disse Fola novamente, colocando-se na frente de Morna. Fola era uma mulher pequena. Teve que se pôr em bicos dos pés para aproximar o rosto do da jovem. A Mulher Sábia beijou Morna na testa, uma despedida formal, e afastou-se. As feições de Morna permaneceram impassíveis. A jovem ia entrar num mundo diferente.

— E boa — disse Broichan e, avançando, tocou no ombro da rapariga.

Nos seus olhos não havia qualquer luz, nenhum reconhecimento fosse do que fosse. Morna atravessou os portões de Caer Pritne nos calcanhares do druida e estes fecharam-se, deixando Fola e a sua Mulher Sábia no exterior.

Tuala teve um sobressalto; sentiu, mais do que viu, tal como Irethra. A água agitou-se e imobilizou-se.

As mulheres sábias estavam na praia, envoltas nas capas enquanto o vento as açoitava, dando às suas formas o aspecto de aves, morcegos, animais das profundezas da floresta ou manifestações de Corvo Negro que não eram nem uma coisa nem outra. Fola formara um círculo com elas. Não era um ritual; as mulheres não faziam qualquer tipo de saudação, não rezavam nem faziam determinados movimentos permaneciam em silêncio, sem se tocarem, como um conjunto de pedras eretas numa planície sombria; como um bosque de pequenas árvores num vale secreto. O vento soprava, fazendo voar a areia em redor; emaranhando-lhes os longos cabelos grisalhos, brancos, ruivos, louros; chicoteando-lhes as roupas e enregelando-lhes os corpos. A espuma salgada seguia-se à areia; a chuva caía, misturando-se com as lágrimas. Tuala viu que até Fola chorava. As mulheres não se mexiam; ficariam de vigília até de manhã.

A imagem agitou-se e dissipou-se; a água na tigela escureceu e permaneceu com aquele tom durante algum tempo. O único ponto de luz era o reflexo da vela, lutando contra as pequenas correntes de ar que percorriam a divisão. O som das raparigas a dormir, firme, suave, reconfortante, ouvia-se.

Um brilho pálido na água: o vestido branco de Morna e o seu rosto murcho. O transe continuava, provocado talvez por orações, jejum, ervas, solidão ou infusões. No interior de Caer Pridne decorria uma procissão, não uma mera fila dupla de guerreiros, antes uma assembleia maior, se bem que os archotes fossem poucos. Aquele deus gostava da escuridão; aqueles homens levavam apenas a luz necessária para poderem ver onde pisavam. Morna seguia no meio deles como um espectro, na sombra da figura escura do druida do rei. A procissão prosseguia em espiral, seguindo os caminhos de ronda e subindo as escadas íngremes, passando de um nível para outro. Quando chegaram ao pátio superior, os guerreiros formaram um grande círculo com a rapariga vestida de branco e o druida no centro. Ouviu-se uma trompa de som grave. Tuala não soube dizer se o som estava na sua mente ou se fora transportado pelo vento desde a fortaleza do rei até Banmerren. Um som parecido com o de um animal ferido. As portas abriram-se; um grupo de homens emergiu do interior da fortaleza. Todos eles tinham trajes negros; todos eles tinham rostos sombrios. Um deles distinguia-se dos restantes: o rei, sem dúvida, se bem que não usasse coroa, ceptro ou jóias, apenas o traje negro idêntico aos dos seus companheiros. A sua identidade estava no seu rosto, um rosto descarnado, cinzento e uns olhos brilhantes de febre e dor, uma boca cerrada, umas feições que proclamavam a sua autoridade através de uma máscara de morte. A força de vontade de Drust era formidável. O monarca olhou através do pátio para Broichan e o druida caiu de joelhos. Todos os presentes lhe seguiram o exemplo; todas as cabeças se curvaram. O momento era de coragem total; uma demonstração de verdadeira majestade.

Então, durante algum tempo, a água mostrou apenas vislumbres. Fola, Derila, Luthana, imóveis, firmes perante o açoite do vento e do frio. Homens novamente a andar ao longo do topo do monte e descendo depois na direção de uma pequena entrada secreta. Os guerreiros recuando e os archotes enfiados em suportes. Apenas alguns prosseguiam pela entrada estreita e profunda, descendo para o coração do monte. Tuala conseguia ver os seus rostos, iluminados à vez ao passarem pelo archote colocado no topo de uma escadaria incrivelmente íngreme. Lá estava o rei, estóico, voluntarioso, com a dor escrita nas feições. Os seus conselheiros seguiam-no. Em seguida, a jovem viu Broichan, o seu rosto uma autêntica máscara, e Morna com o seu vestido branco e olhos sem vida. Talvez a jovem não se apercebesse de nada, não compreendesse nada, ou talvez soubesse tudo, compreendesse e aceitasse a viagem para um reino onde A Que Brilha a saudaria com a sua bondade e a Mãe de Tudo a receberia nos seus braços numa promessa de paz. Tuala esperava, desejava, rezava para que fosse o caso.

Em seguida viram-se outros homens, entre eles um alto de cabelos ruivos, Talorgen e o seu filho. E Bridei; Bridei estava entre eles vestido com um manto comprido e negro, os cabelos pelos ombros e uma fita estreita e verde atada em redor do pulso. Tuala não olhou para mais nada. A jovem sonhou que os seus pensamentos chegavam até ele, que o seu amor o cingia. Bridei estava com uma dor de cabeça; Tuala reconheceu o fato pela expressão da sua boca, pelas suas mãos estendendo-se para tocar nas paredes, pela ruga na testa. Bridei andava a dormir pouco; tinha olheiras e estava mais magro. No entanto, o jovem caminhava direito, com firmeza e não permitia que a sua mente vagueasse, vigiava os outros: o rei, os conselheiros e Broichan. Especialmente Broichan.

A água na tigela começou a mudar. Tuala olhou e viu que se estavam a formar alguns cristais de gelo, gelando a superfície, e sentiu um frio que lhe fez gelar o nariz e as orelhas. No entanto, a sala ainda retinha algum calor da lareira; o gato, Shade, dormitava junto das brasas, enroscado sobre si mesmo e as raparigas dormiam pacificamente cobertas apenas com as respectivas capas. O frio pertencia à visão. O gelo vinha diretamente do santuário secreto do deus: o Poço das Sombras.

Os homens continuaram a descer os degraus iluminados difusamente por velas acesas no último archote. A luz vacilante revelou uma superfície lisa, de pedra, um tecto abobadado. No fundo da escadaria, uma câmara cujo chão não era de terra ou de rocha, antes de água escura. Fria; mais fria do que o toque do gelo no espinheiro-alvar, mais fria do que o vento áspero que sopra nas montanhas, mais fria do que o beijo da morte nos lábios de um homem morto. Em redor do poço, uma plataforma suficientemente grande para suportar um homem de pé; um a um, o rei, os guerreiros e os conselheiros colocaram-se nela, perto da água. No lado oposto à escadaria o rei e o druida e, entre eles, Morna. Entre aqueles homens vestidos de negro, a rapariga brilhava difusamente à luz das velas, como se fosse uma manifestação menor da própria Que Brilha. A água era mais escura do que a noite; nem o vestido branco da rapariga nem as pequenas chamas das velas se reflectiam naquela superfície proibida.

O coração de Tuala começou a bater com toda a força, apesar dos esforços da jovem para o acalmar. As suas mãos estavam encharcadas em suor, de tal modo Irethra se agarrava a elas. Onde estava Bridei? Ah, ali, perto do rei Drust. Broichan ensinara bem o seu filho adotivo. O jovem não mostrava a dor de cabeça. Outros, porém, não conseguiam disfarçar o mal-estar. O homem alto, ruivo, parecia que ia desmaiar; outros mostravam sinais de frio e embrulhavam-se ainda mais nas capas e um outro, de olhar duro, não disfarçava a repulsa que sentia.

O ritual era breve e simples. Tuala compreendia as razões de tal fato. A câmara do deus sombrio não era um lugar onde um homem são gostasse de estar muito tempo e, por isso, a cerimônia não incluía orações, demoras, oportunidades para aprofundar a sua natureza e significado e oportunidades para se começar a duvidar.

Broichan falou: palavras rituais acompanhadas por gestos e uma sequência de sinais que Tuala desconhecia. Talvez fosse um encantamento druídico. No fim, Broichan abriu os braços, deu um grande grito e as trevas começaram a reunir-se à sua volta erguendo-se da água, do ar frio, das pedras, tornando-o altíssimo, mais velho do que o tenpo e repleto de um poder implacável, esfomeado. Tuala mal conseguia respirar; os rostos dos homens mostravam espanto, medo, como o dos animais selvagens apanhados numa armadilha, à espera do golpe fatal do caçador. Broichan gritou novamente numa língua que Tuala não compreendia. Em seguida, agarrou num ombro de Morna, no outro lado o rei fez o mesmo e os dois homens entraram na água até aos joelhos com a rapariga entre eles.

— Reza para que ela não recupere os sentidos até a coisa estar feita. — O murmúrio de Irethra era trêmulo e a voz era terrivelmente fria. — Reza para que a deusa não lhe acorde o olhar antes do fim.

Tuala viu o rosto de Bridei, jovem, gelado, os seus olhos esgazeados; o do rei, onde o dever lutava com a dor. Nas feições severas de Broichan havia algo de demasiado terrível para se poder contemplar porque naquele momento o deus cujo nome não se podia pronunciar estava no seu corpo, o poder estava em cada parte do seu ser: não o poder vivo e vibrante da Guardiã das Chamas, não o eterno fluxo das marés da Que Brilha nem a profunda sabedoria da Mãe de Tudo, antes uma energia sombria que fluía e para lá daquelas, uma coisa secreta, terrível que fazia com que os olhares dos homens se desviassem mas que ao mesmo tempo os atraía contra a sua vontade porque a fúria horrível daquela divindade se reflectia em cada um deles, profundamente escondida.

As costas de Morna debruçaram-se e o seu rosto inclinou-se para a água quando a jovem ajoelhou entre os dois homens, o rei e o druida. Os seus longos cabelos caíram para a frente, a um dedo da superfície escura. Morna continuava imóvel; aquiescente. Tuala prendeu a respiração.

No exterior, na encosta do monte, a trompa soou outra vez, um gemido, uma nota violenta de sofrimento chamando o deus. A oferenda estava pronta. Então, rápido como uma flecha no coração, Broichan colocou a mão no pescoço de Morna e mergulhou-lhe a cabeça na água. No outro lado, Drust fez o mesmo, mas com menos força; o homem, doente, não tinha a força do druida que, naquela noite, tinha a força de um deus. Tuala sentiu o coração na garganta. Os seus olhos ficaram rasos de água. Não houve luta. Morna ficou imóvel na estreita saliência, o vestido branco flutuando à sua volta, os cabelos negros espalhados pela água escura, o rosto invisível sob a superfície. A mão de longos dedos do druida apertava o seu frágil pescoço. Broichan e o rei agarraram a jovem pelos braços, segurando-a afogando-a, matando-a, num ato de perfeita obediência.

Tuala esquecera-se de respirar; diante dos seus olhos havia luzes, ia perder a visão, queria que ela se fosse embora, queria...

— Ah! — disse Irethra, prendendo a respiração. A pose de Broichan tornara-se estranha. A sua mão, em contraste com os cabelos negros de Morna, era muito branca. O corpo da jovem estava rígido; os dois homens tentavam mantê-la naquela posição. Subitamente, o rei começou a tossir violentamente. Drust tapou a boca com uma mão, ao mesmo tempo que tentava manter o equilíbrio na estreita saliência. Broichan era o único que mantinha a rapariga na sua posição, com o rosto debaixo de água. Drust afastou a mão da boca. Os dedos estavam manchados de sangue. A seu lado, Broichan emitiu um pequeno som e o seu pé deslizou na pedra lisa da orla do poço. Ouviu-se um som de água agitada. Morna sentira finalmente o toque gelado da Mãe de Tudo e lutava com todas as suas forças. Meio acocorado na beira do poço, Broichan resmungou algo em voz baixa e Drust ergueu os olhos num apelo urgente àqueles que, devido ao parentesco, podiam assisti-lo.

— Ajudai-me — disse Drust em voz alta e olhando para Bridei. Tuala sentiu o coração gelado. A jovem, fechando os olhos, quase largou as mãos de Irethra, mas não conseguiu. Aquilo tinha de ser partilhado em todo o seu horror e grandeza; os deuses assim o exigiam. Bridei deu a volta ao poço, tão cuidadosamente como um gato. Os outros homens encostaram-se à parede para o deixar passar. Quando chegou junto de Drust, Bridei ajoelhou e, amparando o rei com um braço, manteve-o equilibrado enquanto Drust pressionava mais uma vez com o braço para baixo. Não demorou muito mais tempo; a água era muito fria. Não demorou mais do que o tempo que leva a contar duas vezes os dedos das mãos e dos pés; não mais do que o tempo que leva a arrancar uma folha de rosmaninho ou a atar uma fita. Talvez um pouco mais; era necessário ter a certeza que a coisa estava mesmo feita, que o sacrifício fora completo e perfeito, que o deus ficara satisfeito. Finalmente, os dois homens retiraram Morna da água, inerte e branca, e o rei, pondo-se de pé com a ajuda de Bridei, abençoou o seu rosto branco e colocou-lhe as mãos no peito.

Um dos homens, um tipo grande que estava perto de Broichan, tomou Morna nos braços para a levar para fora daquela câmara profunda. O druida ergueu os braços mais uma vez, as mangas caindo e revelando fila após fila de pequenas tatuagens, não as tatuagens dos guerreiros, antes os símbolos sutis da casta druídica, animais e ervas, pedras eretas e estrelas distantes, em espiral através da pele pálida, aqui e ali com palavras escritas na língua secreta da irmandade, como se fossem filas de árvores minúsculas e misteriosas. O druida gritou uma vez mais, um som profundo e áspero. Tuala pensou ver a gruta iluminar-se e nas paredes e no tecto abobadado do Poço das Sombras viram-se gravuras, sinais do deus inscritos pelos antepassados, um reflexo dos padrões nos braços do druida, ligando-o intimamente às forças que moravam ali, no coração da terra, do mesmo modo que nos recessos mais íntimos das almas dos homens. Tuala sentiu um arrepio terrível ao ouvir aquele grito e rangeu os dentes. A jovem sentiu tremer as mãos de Irethra.

O som morreu. A procissão recomeçou lentamente, subindo os degraus que iam dar ao ar livre. O homem grande levava facilmente nos braços o corpo de Morna. A jovem era leve, muito leve; fora para Banmerren vinda do oeste, os seus pais tinham sido mortos por ocasião de uma incursão de Dalriada e ninguém mais quisera ficar com ela; uma rapariga pacífica que só queria agradar; era o que Tuala se lembrava de ouvir dizer. Bridei caminhou ao lado do rei, amparando-o firmemente pelo ombro. Drust parecia cansado de morte; os seus olhos brilhavam de febre e viam-se-lhe os ossos. No entanto, continuava a caminhar como um rei, de costas direitas e a cabeça bem direita. Quanto a Bridei, parecia calmo, impassível. O jovem era forte; Tuala nunca pensara que ele seria capaz de aguentar aquilo. Os homens olhavam para ele e ela viu respeito nos seus rostos, invejoso, talvez, mas real; olhavam para ele como se o jovem fosse o homem que eles desejariam ser se tivessem coragem. A sua expressão não revelava nada; Bridei era um modelo de controle. Nada, mas não para Tuala. A jovem conhecia-o como se conhecia a si própria, leu-lhe a dor nos olhos; sentiu a sua dor de cabeça como se fosse sua; sentiu o bater do seu coração, a culpa, a repulsa; reconheceu a marca do deus sombrio e não pôde fazer nada para a banir.

— Acabou — disse Irethra com uma voz estranha, libertando as mãos de Tuala. Tinha acabado, realmente; a tigela de bronze não tinha mais nada senão água límpida. A sala estava muito fria e muito calma. Tuala pestanejou e esfregou as lágrimas, viu Irethra fazer o mesmo e ouviu respirar áspera e profundamente. Num círculo silencioso, as alunas, brancas como a cal e de olhos muito abertos, rodeavam-nas. Tal como um grupo de crianças acordadas subitamente de um pesadelo demasiado terrível para ser contado, olhavam, mudas, para as que lhe tinham dado forma. Naquele momento, Tuala viu as consequências da sua desobediência; olhara para onde não devia ter olhado; entrara onde as mulheres não podiam entrar. Como uma pedra atirada para um poço em descanso, o seu ato poderia provocar ondas que chegariam longe. Quem poderia saber qual seria o possível castigo daquele deus sombrio? No entanto, não estava arrependida. Irethra foi a primeira a recuperar a voz.

— Odha, espevita o fogo. Deira, traz lenha do cesto. As outras, acendam algumas velas. O ritual acabou, pelo menos para nós. Vamos dormir aqui esta noite, todas juntas à lareira. Tira daí esse gato, está a tirar-nos o calor que resta. Precisamos de pão, de mel e de uma infusão de ervas para nos ajudar a descansar. Finalmente, algumas perguntas, mas não muitas. Não sei o que vistes, mas quero dizer-vos uma coisa. As visões da tigela aparecem e formam-se segundo a vontade da deusa. Se vistes imagens que vos perturbaram, foi por terdes olhado quando não devíeis. — As mãos de Irethra estavam cerradas uma na outra. Tuala sentiu que a tutora falava sem a consciência de que as únicas culpadas eram elas, mais ninguém. Depois, porém, viu o brilho nos olhos de Irethra e percebeu que era uma extraordinária demonstração de presença de espírito. Os olhos da tutora tinham consciência e tinham medo. — Concentrai-vos na obediência — continuou Irethra. — Todas nós aprendemos a obedecer em Banmerren; mesmo as mais velhas e mais sábias devem curvar-se à vontade dos deuses.

— Quero ir para casa. — Aquela voz trêmula podia pertencer a qualquer uma delas; a sua mensagem era evidente.

— O que és tu — disse Irethra com voz forte, uma manifestação de força de vontade — uma serva da Que Brilha ou um bebê chorão. Tuala, leva as mais novas à cozinha para beberem um soporífero; se não souberes qual escolher é porque Luthana não tem feito o seu trabalho. Quanto às outras, não ouvistes o que eu disse? A lareira, Odha. A lenha, Deira. Fola e as outras hão de ter frio quando regressarem e hão de vir cansadas. Como estamos acordadas à mesma hora das corujas e dos ouriços-cacheiros, preparemos-lhes as boas-vindas.

Respirar: profundamente, firmemente, lentamente. Contar ritmadamente, uma canção para acompanhar. Hee-o, wee-o, pena do corvo mais negro...


Tinham chegado aos aposentos do rei onde a rainha Rhian, de olhos secos e melancólicos estava pronta para receber o seu exausto marido. O seu irmão, Owain, não comparecera no ritual visto que era de Powys e leal aos rituais do seu povo, mas estava ali para segurar no braço de Drust e ampará-lo. A respiração do rei parecia um ferro a raspar gelo, o sussurro de folhas secas levadas por um vento de Outono. Drust virou-se, finalmente, e saudou toda a gente com um aceno de cabeça. Os seus olhos, ferozes como os de um touro de combate, não permitiam expressões de preocupação nem ofertas de apoio.

— Acabou, mais uma vez — disse o rei em voz baixa. — Obrigado — disse ele, olhando para Bridei. — O caminho é solitário. Tudo o que sou, dou-o aos deuses e a Fortriu. — Os seus olhos mexeram-se novamente; o seu olhar iluminou-se ao ver a figura rechonchuda da sua mulher, cujas feições doces não conseguiam esconder totalmente o seu desespero. — Tive muita sorte — disse Drust em tom diferente. — Tive sorte com os amigos e tive sorte com a família. A confiança dos deuses é uma dádiva maravilhosa e um fardo terrível. Um homem não pode transportá-lo sozinho. Desejo-vos a todos boa noite, apesar de o sono não chegar facilmente numa noite como esta. Que A Que Brilha ilumine os vossos sonhos.

— Que a Guardiã das Chamas ilumine o teu acordar — foi a resposta, vinda de muitas vozes ao mesmo tempo: a de Aniel, a de Tharan, a de Broichan, a de Bridei e as dos parentes mais próximos do rei, a do ruivo Carnach e do robusto Wredech, o homem do gado. A porta fechou-se. Drust, o Touro, desapareceu.

Bridei tinha comido pouco, a dor de cabeça tirava-lhe o apetite, apesar disso, o jovem dobrava-se e vomitava no pequeno espaço por trás dos degraus do caminho de ronda com os intestinos retorcidos, cerrando os dentes, levantando-se e dobrando-se de novo até à última gota de bílis e de água. A determinada altura, Bridei reparou que Faolan estava junto dele com um pano úmido na mão, segurando-lhe na cabeça, oferecendo-lhe água que não lhe ficava no estômago mais do que o tempo que demorava a engoli-la. Finalmente, a coisa pareceu acalmar e ele sentou-se nos degraus a tremer convulsivamente por baixo do cobertor espesso que o celta lhe deixara cair em cima dos ombros. Um pouco mais tarde, Garth apareceu com uma infusão a ferver e Breth com pão duro que os outros comeram, mas Bridei não. Os três ficaram ao lado dele durante aquelas horas sombrias, dizendo e falando pouco.

Aqui e ali, nos caminhos de ronda ou nos pátios, no interior das muralhas de terra, outros grupos de homens agrupavam-se em silêncio ou falavam em voz baixa. As lanternas acenderam-se; iniciou-se uma espécie de vigília, um turno de guarda para afastar as sombras. Naquela noite, não havia um único homem capaz de enfrentar os seus sonhos. A luz saía da câmara do rei através das fendas das persianas. O som da tosse de Drust ouvia-se na perfeição; a memória da sua coragem estava em todos os corações. Algures, num canto tranquilo qualquer, alguém devia estar a abrir uma campa. As escolhidas não regressavam a Banmerren.

Algum tempo antes do nascer do sol, Bridei conseguiu mexer-se, se bem que sentisse as pernas estranhamente fracas e a cabeça tonta. O jovem pôs-se de pé e olhou para os três homens: Breth, com os seus olhos perspicazes, escondendo um bocejo; Garth, com o seu rosto agradável cinzento de cansaço; Faolan, magro, escuro, cujo sorriso habitualmente meio divertido fora substituído por outra coisa qualquer, uma expressão que Bridei, demasiado cansado, demasiado doente e demasiado triste, não conseguiu interpretar.

— Obrigado — disse ele simplesmente. — Vou-me deitar — e foi-se embora, esperando que as suas costas estivessem tão direitas e os seus passos tão firmes como os de Drust. Bridei, porém, não foi imediatamente para o quarto que partilhava com Breth e Garth; a luz de uma vela, vinda dos aposentos de Broichan, atraiu-lhe o olhar e o jovem fez uma pausa em frente da porta aberta.

A princípio, parecia que não estava ninguém dentro da câmara. O local onde, na manhã do Portal, o druida se ajoelhara numa pose de força e obediência, estava vazio. Num nicho ardia uma vela. A cama estreita e dura, com o seu cobertor dobrado cuidadosamente, estava desocupada. As prateleiras tinham os mesmos jarros, garrafas, sacos, tigelas e cadinhos; as tranças de alho continuavam penduradas nas vigas e em cima da mesa de pedra estava um conjunto de gravetos esculpidos, sinal de que houvera ali um augúrio. Bridei virou-se para continuar o seu caminho em direção ao seu quarto para dormir até de manhã. O jovem sabia que não dormiria. No entanto, faria de conta, pelo menos os outros poderiam descansar.

Um pequeno som prendeu-o à porta do druida; a respiração entrecortada de um homem lutando consigo próprio. Broichan estava de pé junto da janela estreita. As suas mãos, cerradas uma contra a outra de tal maneira que até os nós dos dedos estavam brancos, estavam encostadas ao corpo. O druida não tirara o manto negro que usara durante a cerimônia. O druida estava encostado à parede, imóvel, com a cabeça descansando na pedra fria. Bridei nunca lhe vira aquele olhar. A máscara desaparecera por completo; a culpa, a confusão, a dor e o sofrimento eram evidentes e nas austeras faces do druida a luz da vela deixava ver traços de lágrimas.

Bridei fora tratado, naquela noite, com cortesia por outras pessoas, com constrangimento, com verdadeira amizade. O jovem não podia fazer menos por Broichan. Tal como elas, Bridei acreditara que o seu pai adotivo era uma criatura de certezas poderosas, para além das fraquezas dos homens normais, a sua mente rodava apenas em volta de conspirações e planos, de conhecimento e magia druídica; pensara que no coração de Broichan não havia lugar para outra coisa que não o amor pelos deuses. Naquele momento, Bridei reconheceu que estava errado. Durante aqueles anos todos, desde a chegada confusa a Pitnochie, desde o primeiro relance para aquela figura alta e remota que lhe iria moldar o futuro, nunca pensara em Broichan como um homem. Nunca lhe passara pela cabeça quão solitária podia ser a sua existência.

— Estou aqui — disse ele em voz baixa entrando no quarto, pegando na vela para acender uma candeia em cima da mesa e deitando água numa taça. — Vem, senta-te, bebe, já acabou tudo. — Mas não disse: Por agora. Por esta vez.


— Ainda bem — disse Fola — que estas raparigas são apenas noviças. Se tivessem visto tudo, como parece ser o caso com vós as duas, estaria com uma revolta nas mãos, este local estaria vazio e A Que Brilha estaria amargamente ofendida. Em que estáveis a pensar? Estes segredos estão proibidos até às mais sábias de nós; O Poço das Sombras não é um lugar onde as mulheres possam entrar. Expôr as crianças assim... Faltam-me as palavras, Irethra. Como serva da deusa, uma sacerdotisa experiente e dedicada, é impensável teres cometido um erro destes, apesar de ter sido Tuala a influenciar-te.

Irethra tinha os lábios cerrados e os olhos vermelhos.

— A culpa não foi de Tuala — disse ela. — A idéia foi minha. Eu é que a pressionei.

— A responsabilidade e a culpa devem ser partilhadas entre as duas — disse Fola, olhando da sua assistente para Tuala. As duas estavam em frente da Mulher Sábia nos aposentos privados desta, envergonhadas perante a sua desaprovação. Se Fola se sentia esmagada pelo papel que desempenhara no ritual da noite anterior, não parecia. As suas costas estavam direitas e as suas feições calmas. Os olhos, porém, estavam frios. — Não interessa quem foi a investigadora e quem foi a seguidora. Não interessa quem foi a tutora e quem foi a aluna. Sois ambas inteligentes e capazes. Cada uma de vós possui os seus talentos únicos. Cada uma de vós conhece os desejos da Que Brilha e está aberta à sua voz. Cada uma de vós é culpada. Cada uma de vós deve sofrer as consequências do seu terror.

— Queres que eu abandone Banmerren — disse Irethra numa voz sem tom. — Já não sirvo para ensinar, não mereço passar os meus dias ao serviço da deusa.

Fola suspirou. Ao olhar para ela através de um véu de tristeza e confusão, Tuala reparou na rede de rugas do rosto da Mulher Sábia, da falta de cor da pele em redor dos olhos e apercebeu-se de que Fola era realmente idosa, talvez tão idosa como Uist, o druida, esmagada pelas próprias dúvidas. Entregar Morna daquela maneira na fortaleza, deixá-la passar os portões e esperar a noite toda na praia consciente do que estava a acontecer no coração da terra devia ter sido uma coisa terrível. Só uma mulher fiel a toda a prova aos deuses seria capaz de a ultrapassar e regressar ao dia-a-dia intacta. Aqueles dois eram fortes, muito fortes. Tuala sentia que não seria capaz de obedecer daquela maneira. Todos os seus sentidos estremeciam com o que tinham presenciado na noite anterior, apesar de achar que fora um ato necessário.

— Tuala!

— Sim, minha senhora?

— Eu não me tornei numa pessoa diferente só porque desobedeceste hoje, só porque foste tola. Chama-me pelo meu nome. Tu és uma de nós. Ou estarei enganada? Se calhar, pelo que se passou ontem, cometi um erro grave ao trazer-te para Banmerren. O teu dom é perigoso; tenta as pessoas a procurar conhecimento para lá do que é permitido. Esse dom é uma ferramenta para os ambiciosos, para os que desejam o poder. — Irethra encolheu-se perante o olhar da Mulher Sábia. — Não devias concordar com isso, Tuala, sabendo aquilo de que eras capaz.

Tuala lamentava alguma coisa do que ocorrera, pelo menos. No entanto, a jovem não conseguia dizer as palavras de desculpa que lhe eram exigidas.

— Fala — disse Fola — Irethra mencionou o castigo apropriado para si própria e expressou arrependimento. O que é que tu tens para dizer?

Tuala respirou fundo.

— Nós erramos ao fazer aquilo enquanto as raparigas estavam a dormir — disse ela. — O fato de nunca termos imaginado que elas acordariam, não é desculpa, eu sei. Mas não devias mandar Irethra embora. Ela é uma tutora excelente. O seu talento seria mais bem aproveitado aqui, remediando o mal provocado pelo que as raparigas viram, fazendo-as compreender o que viram e como isso está ligado ao folclore dos deuses.

Seguiu-se um breve silêncio.

— Eu não te pedi que comentasses a situação de Irethra — disse Fola.

— Não, minha... não, Fola.

— Penso que falta qualquer coisa no teu discurso. Tu lamentas o fato de as raparigas se terem envolvido. É um alívio ouvir isso, pelo menos era o que eu esperava de ti. Porém, sinto que há um mas nesse teu arrependimento!

Tuala cerrou os dentes. Tinha de dizer a verdade, mesmo que o resultado fosse a sua expulsão; mesmo que, no fim, Bridei fosse lá e ela já lá não estivesse. Para onde iria?

— Eu não lamento o ato em si — disse ela, ao mesmo tempo que ouvia Irethra prender a respiração. — Sempre acreditei que as visões Que A Que Brilha me revela são as que ela quer que eu veja. Ela dá-me para que eu possa encontrar o meu caminho, para que eu possa guiar os outros. Por vezes, sinto que algumas imagens aparecem por que eu as invoco, porque as quero, mas não acredito que uma rapariga humana seja capaz de fazer uma coisa que A Que Brilha proíbe. A deusa é demasiado poderosa para se deixar enganar assim, sem mais nem menos. O que eu vejo na água determina o meu caminho e o de outros do meu conhecimento. Ontem à noite, por exemplo. A deusa mostrou-me o ritual porque queria que eu o conhecesse.

— Metes-me medo, minha filha. E Irethra? — Tuala hesitou.

— Suponho que com ela acontece o mesmo; foi A Que Brilha que enviou a visão, não fui eu que a invoquei, nem Irethra. Tu falaste de poder, do mau uso de um dom. Isto pode muito bem ter sido uma lição.

Fola sorriu cruelmente.

— A sério? Se isso é verdade, parece que Irethra aprendeu com ela, ao passo que tu não.

— Irethra e eu somos diferentes e a lição também é diferente para ambas.

— Estou a ver. Isso pode querer dizer que, se uma rapariga humana não pode invocar imagens proibidas a uma vidente, tu não és, portanto, uma rapariga humana. Será possível estarmos a lidar com algo que não imaginávamos?

Tuala teve uma sensação estranha, como se estivesse ali no quarto iluminado por uma candeia e noutro lugar qualquer ao mesmo tempo; uma sensação gelada de isolamento, como se estivesse totalmente sozinha.

— Aquilo foi uma visão da Que Brilha — disse ela num murmúrio.

— Eu sei que foi. A deusa guia-me os passos desde o dia em que me depositou em Pitnochie, ainda bebê. Não é A Que Brilha que provoca as trevas, é aquele que exige dos homens atos como o que a visão nos mostrou; tais atos são capazes de despedaçar o mais forte dos corações e destruir a vontade do mais forte.

— Silêncio, filha — disse Fola com a voz a tremer. Por fim, as consequências do Portal podiam ser vistas nos seus olhos. — Aqui, não falamos dessas coisas. As imagens que viste não são para os olhos de uma mulher, especialmente uma inocente como tu. Por que havia a deusa de revelar uns segredos tão amargos a uma criança como tu. Com que propósito?

Tuala ficou muda. Para ela, a verdade era evidente: Bridei. Porém, não a diria. A Que Brilha estava a jogar um jogo muito difícil: dava a Tuala as ferramentas de que a jovem precisava para ajudar aquele que ela amava e, ao mesmo tempo, colocava uma parede entre os dois, uma parede que não era a mera barreira de pedra e terra que encerrava Banmerren, antes uma muralha contra os costumes, a esperança, a história e o protocolo, muito mais difícil de deitar abaixo. Talvez Fola estivesse a dizer a verdade. A visão da noite anterior teria sido uma coisa deformada, retorcida, invocada das trevas, para lá do reino dos deuses?

— Isto exige alguma ponderação — disse Fola. — Irethra, vou pensar no teu futuro. O que se passou vai alterar o teu futuro. O que aconteceu pode vir a alterar o teu caminho, de um modo ou de outro. Por agora, continuarás conosco. As crianças precisam de orientação; precisam de explicações daquelas em quem confiam; é a tua oportunidade para me mostrares que és realmente de confiança. Não abuses dela, ou sairás para sempre de Banmerren. E agora vai.

Irethra fez uma pequena vênia. O seu rosto estava pálido; era do conhecimento geral que ela aspirava, aliás esperava, governar Banmerren um dia, depois de Fola. A partir daquele momento, até o seu lugar como tutora estava em risco. Tuala permaneceu imóvel quando a tutora passou por ela com as feições rígidas e abandonou a sala.

— Quanto a ti — disse Fola num tom ligeiramente diferente — mostraste uma certa compreensão, uma certa compaixão, tal como a própria Irethra, e eu agradeço à deusa por as duas possuírem ainda um pouco de sabedoria interior. Tu sabes que eu não estava presente no Poço das Sombras; na verdade, ainda bem que não estava e espero que este meu desejo se prolongue por muitos anos. Quem compareceu foi Drust. O papel que eu desempenhei aflige-me, é um tormento; invejo a força e a certeza de Broichan. Tuala, eu não quero que me contes o que viste, sei muito bem o que procuravas. Encontraste o que querias?

Tuala acenou com a cabeça e não disse nada.

— Nesse caso, diz-me — disse a Mulher Sábia com olhos perspicazes apesar de não ter dormido — qual foi o papel de Bridei? Não fiques assim, minha filha. A tua expressão é transparente, sei muito bem o que te vai na cabeça. O jovem ficou horrorizado? Ou foi um modelo de controle, como o seu pai adotivo? Conta-me.

— O rei Drust precisava de ajuda e quando o... quando eles... Broichan não conseguiu sozinho e o rei começou a tossir e a tentar respirar. Drust virou-se para alguns dos homens, suponho que para os parentes mais próximos porque a regra é essa, tal como Wid me disse... Mais ninguém pode tocar no... ninguém pode... O único que o ajudou foi Bridei — Tuala ouviu a doçura da sua própria voz ao pronunciar o nome do jovem, uma revelação perigosa dos seus sentimentos secretos.

— Estou a ver — disse Fola num tom pesado, um tom que era uma declaração importante, o reconhecimento de uma mudança.

— Bridei ajudou o rei calmamente e sem hesitações. O rosto dele não revelava quaisquer sentimentos.

— Broichan foi sempre um grande tutor. — Fola suspirou e descansou o queixo nas mãos. — Estou cansada, Tuala; vou seguir o conselho de Luhana e descansar um pouco. Podes ir.

— Também... também vou ser castigada?

— Provavelmente, quem precisa de castigo sou eu por te ter aqui presa — disse Fola em voz baixa. — Porém, sim, tens de ter um castigo qualquer; foi uma loucura pôr daquela maneira as raparigas em risco. Deixas de dormir na torre. De qualquer modo, é fria demais no Inverno. Traz as coisas para baixo; vais dormir com as outras na camarata.

Tuala sentiu-se empalidecer. Não podia ser; ainda não; antes da Lua cheia, não...

— Por favor, não — começou ela.

— Podes ir, Tuala. — A voz era suave, mas implacável. — Traz as tuas coisas para baixo hoje. E que Irethra remedie o mal que fez; as raparigas vão aceitar as explicações dela mais depressa do que as tuas, atrevo-me a dizer.

— Eu...

— Não ouviste o que eu disse?

Ao ver o olhar de Fola nas suas feições fortes, um olhar que mostrava, finalmente, toda a angústia e exaustão da noite anterior, toda a culpa e responsabilidade de uma vida inteira de promessas, Tuala engoliu o protesto e saiu. As regras não interessavam, assim como as portas fechadas e as tutoras vigilantes. Quando fosse Lua cheia, ele iria ter com ela e ela estaria à espera.


— Desenrasca-te — disse Dreseida em tom cortante. — E despacha-te; preciso de ver Gartnait assim que acabarmos a nossa conversa. Ele não está a fazer progressos nenhuns.

— Não pode, mãe. — Ferada estava nos alojamentos das mulheres, em Caer Pridne, a olhar para os olhos ferozes da mãe, uns olhos que lhe faziam lembrar um animal selvagem e que a faziam sentir a presa. — A mãe sabe muito bem que ele não é um intelectual. Ele não é capaz de se lembrar desse tipo de informações. Não percebo por que razão o obriga...

— Nesse caso, tens tu que tentar mais, Ferada, preciso da tua ajuda, preciso da tua lealdade total. Já te disse que um chefe tribal de Fib foi ter com o teu pai por causa de uma aliança? Uma aliança através do casamento? Como é que ele se chama? Coltran, Celtane?

— Cealtran — disse Ferada, ameaçadoramente, revendo na memória o nariz imponente, vermelho, do chefe tribal recém-chegado à corte. A barriga de Cealtran gingava quando ele andava e os seus olhos pequenos estavam afundados em bolsas de gordura pálida. O homem devia ter cinquenta anos; Dreseida devia estar a brincar.

— Ele é velho, mãe, é do Sul e é cristão. O pai nunca...

— Como já te disse muitas vezes, a decisão é minha. O teu pai tornou-o bem claro. Existem outras possibilidades, claro, desde que não esperemos muito tempo. Ana tem tios e nem todos eles são casados. A rainha tem primos jovens em Powys. E que tal os chefes tribais dos Caitt? Tens muitas possibilidades pela frente, se bem que todas elas longe de casa. E agora, explica-te. Tu sabes como funciona a coisa, Ferada. Faz o que te digo, não fales disto em lado nenhum, nem ao teu pai, aos teus irmãos ou às tuas amigas, isto se conseguires alguma coisa e terás hipótese de escolher um marido. Não te peço muito, minha filha, apenas algumas informações. Só tens de representar um pouco. Para uma rapariga esperta como tu não deve ser difícil.

— Mãe... Gartanait e tudo... é para quê? O que é que a mãe pretende?

— Se pensas que te vou responder, estás muito enganada. Nem pareces minha filha — disse Dreseida. — Este lugar está cheio de espiões. Uma pessoa só está segura no seu quarto. Vem aí uma eleição. Não é para já porque Drust surpreende-nos a todos agarrando-se à vida mais do que nós acharíamos possível, mas dentro em breve, muito em breve. Eu procuro tirar partido do pouco poder que tenho como mulher, para conseguir um resultado satisfatório. Não interessa Se não posso votar. Os homens são extremamente maleáveis, Ferada. temos de aprender as técnicas. E agora, diz-me: Que soubeste?

Não muito. Como já disse, tive poucas oportunidades de falar con Bridei antes de regressar a Banmerren.

— E a rapariga, a irmã dele? Alguns sinais, mensagens? Ela fala de Bridei? E acerca de Broichan? Dos planos dele?

— Não, mãe. Tuala é muito calada; nunca fala do que sente.

— Preciso de mais qualquer coisa, Ferada. Pensa em Cealtran a levar-te pela mão para casa dele para lhe aqueceres a casa. O tipo quer herdeiros. Montes deles.

Ferada encolheu os ombros.

— Tuala mandou uma mensagem — disse ela sinistramente. — Ana foi a portadora.

— Foi Ana que te disse? Qual era a mensagem? Ferada abanou a cabeça.

— Ana não falou dela, mas eu vi-a. A mãe pediu-me para espiar, no fim de contas. Tuala enviou a Bridei um pequeno pacote com uma folha e uma pedra lá dentro. Mais nada.

— E uma fita.

— Suponho que estava atado com uma fita — disse Ferada, surpreendida. — Como é que sabe?

O sorriso de Dreseida era fino e os seus olhos tinham um ar duro.

— Aprendi a observar. O jovem usa uma fita no pulso, tal como o favorito de uma dama, se bem que todos os homens sabem que Bridei nem sequer se aproxima das casas de prazer, nem nunca dá atenção a rapariga nenhuma; algumas pessoas dizem em voz baixa que ele prefere rapazes, mas Gartnait disse-me que não vê sinais disso. Bridei parece ser tão casto como um monge cristão. Só por isso dá para pensar se ele será a pessoa adequada para personificar a Guardiã das Chamas. É suposto um rei ser viril. Não percebo por que o levam a sério como candidato, mas dizem que ele tem apoiantes. Claro, o rapaz foi criado por Broichan, o que explica tanta estranheza. Ele já usava uma fita, mas estava quase a desfazer-se. Agora, usa uma nova, verde seca e eu vi essa fita a atar os cabelos compridos de uma certa criaturinha selvagem do nosso conhecimento. O seu significado é evidente: diz-nos que a rapariga feiticeira não é irmã dele, é o amor dele. Tens de estar alerta a todos os pormenores, Ferada, se queres ser uma boa informadora.

Ferada cerrou os lábios.

— A mensagem — disse a mãe da jovem. — Que significa? Uma folha, uma pedra? Que espécie de folha?

— Que diferença faz? Uma folha de carvalho, suponho. No lado de fora da janela de Tuala, na torre, há um carvalho enorme que se estende pela muralha fora.

— Ah.

— Mãe, eu...

— Que espécie de pedra? Pequena, imagino. Preta, branca, cinzenta? Suave, rugosa, redonda, comprida?

— Penso que era branca. Mãe, não gosto disto. Por que é que a mãe...?

— Vais fazer o seguinte. Procura Bridei. Ele fala contigo, já vi; ele gosta da tua vivacidade. Sê uma mulher, para variar. Usa o vestido azul e o alfinete de prata. Ele deve andar perturbado por causa do Portal. Se o que teu pai contou sobre o que aconteceu estava correcto, o rei descarregou um fardo pesado sobre os ombros dos seus parentes naquela noite e parece que, dos três, Bridei foi o que se portou melhor. Ouviste falar no que aconteceu.

Ferada estremeceu.

— Oficialmente, não, mas não é possível ficar surda aos mexericos. Ana e eu conhecíamos aquela rapariga, Morna. Falámos com ela, partilhámos pão. Aquilo mudou o que eu sentia por Banmerren, por Fola; encheu-me a cabeça de perguntas sem resposta.

— Davas uma boa companheira para Bridei. O protegido de Broichan também está sempre a fazer perguntas. Encontra-o; escuta-o. Deixa-o falar. Ganha-lhe a confiança. Aproxima-te dele o mais que puderes; usa tudo o que tens, Ferada. Eu preciso de uma oportunidade e tu podes conseguir-ma.

— Que oportunidade?

— Mais tarde. Tudo a seu tempo.

— Mãe?

— O que é? Despacha-te; já te disse, tenho outros assuntos a tratar.

— Parece-me — arriscou Ferada — que o que aconteceu durante o Portal demonstra a força de Bridei, a sua coragem, a sua auto-disciplina; mostra que vai ser um forte candidato. Algumas pessoas dizem que isto, só por si, o tornou a única hipótese; que Carnach pode juntar os seus apoiantes a Bridei em vez de se candidatar ele próprio.

— Quais pessoas? Quem é que anda a dizer isso? — Dreseida parecia uma serpente a sibilar.

— Se calhar, quem deve ouvir não sou eu — disse Ferada. Um instante mais tarde, a mão cheia de anéis de Dreseida atingiu a jovem na face, deixando-lhe um vergão vermelho.

— Tu achas que o teu irmão é um tolo — disse Dreseida — mas ele podia muito bem ensinar-te o significado da palavra lealdade. Não me voltes a falar nesse tom. Se pensavas que eu ia deixar uma insolência dessas passar sem retaliação, então és incapaz de olhar de frente para o teu futuro. Faz com que Bridei se torne teu amigo. Sê o seu confidente. Especialmente, quero que saibas quais são os seus movimentos; quais as incursões planeadas fora das muralhas de Caer Pridne. Despacha-te, porque o tempo escasseia. E é melhor fazeres qualquer coisa ao teu rosto, ou afugentarás o rapaz, o que seria muito desvantajoso para todas nós.

Broichan ensinara-o melhor do que qualquer um deles imaginava: máscaras, espelhos, truques, encantamentos e disfarces. Bridei fazia demonstrações diárias das habilidades que aprendera, não só ensinadas pelo seu pai adotivo, mas também ensinadas por Erip com o seu amor pelo folclore e por Wid, que era capaz de avaliar um estranho apenas com um olhar. A corte passou a reconhecer Bridei como um homem sutil, profundo, inteligente, engenhoso, capaz de se aguentar perfeitamente nos seus jogos perigosos. Porém, as pessoas sabiam muito menos acerca das suas outras capacidades, as aprendidas anos antes em Pitnochie, coisas que só um druida era capaz de ensinar.

Faolan não gostava do plano de Bridei para entrarem em Banmerren. Uma capa de disfarce, conseguido com o uso da magia, não constituía, para ele, uma proteção infalível. Resumindo, o celta não acreditava que Bridei pudesse fazê-lo, e disse-o rudemente.

— Vamos ser vistos no momento em que sairmos porta fora. Que estás a tentar fazer? Queres que eu perca o meu emprego?

— Não vamos ser vistos. A capa engana; só um druida seria capaz de a detectar. Evidentemente, tomaremos outras precauções, manter-nos-emos a coberto das dunas e seguiremos sempre vigilantes. Confia em mim.

— Disseram que eras louco quando decidiste deslocar a Pedra Mágica — observou Faolan. — As pessoas fizeram o que lhes pediste, apesar de tudo. Muito bem, vamos tentar. Como tencionas passar por cima da muralha?

— Com uma corda. Levo-a aqui.

— Como é que...? Confia em mim, Faolan.

— Hum. Vai ter que ser tudo muito rápido. E não nos podemos distrair. Entrar, sair e regressar a Caer Pridne sem que ninguém nos veja. Eu manifestei a intenção de atrair a atenção para a nossa saída a cavalo para oeste, mas não podes ser visto em Banmerren. Os homens estão proibidos de entrar no interior daquelas muralhas, como muito bem sabes. Se fores apanhado a violar a regra, a tua candidatura não vale um caracol. Um rei tem de ser puro, perfeito e obediente. Não vai atrás de mulheres à meia-noite para um lugar onde não tem nada que estar.

— Eu não vou atrás de mulheres como tu estás a dizer tão cruamente — disse Bridei. — Eu vou visitar uma amiga. Além disso, lembro-te que a idéia foi tua.

Os lábios de Faolan torceram-se numa espécie de sorriso.

— Não finjas que não é o teu desejo — disse o celta. — Até dói ver o que te vai nos olhos. No entanto, não te esqueças, quando estiveres nos braços dela, da razão por que vais lá: tirar o assunto da cabeça de uma vez por todas.

Nos braços dela, pensou Bridei; não aconteceria, se bem que a idéia de lhe tocar, de a abraçar, de a beijar não lhe saísse da cabeça. Não só não seria capaz de lhe tocar, como não conseguiria encontrar as palavras certas quando a encontrasse. Tuala era uma sacerdotisa. A escolha fora sua. Não tinha nada para lhe oferecer senão uma vida infeliz, uma vida de confinamento no interior das muralhas de uma fortaleza. Seria como fechar uma borboleta numa pequena caixa e esperar que ela ficasse satisfeita. Não lhe podia pedir tal coisa; seria uma demonstração de egoísmo. No entanto, ela enviara-lhe uma mensagem, enviara-lhe a fita.


Lua cheia: as areias da baía de Banmerren brilhavam palidamente sob os raios de luz da deusa e o mar banhava-as incessantemente, obediente ao seu chamamento. O ar estava límpido e frio. Os dois homens seguiam cuidadosamente a coberto dos arbustos. Os seus movimentos eram praticamente invisíveis, tal o feitiço de Bridei: um encantamento que funcionava, não fazendo-os desaparecer, porque o jovem não tinha tais poderes, mas fazendo com que as suas silhuetas se confundissem com o que os rodeava; uma rocha, a areia pálida, uns caniços, uns gravetos, alguns troncos castanho-esverdeados. Ninguém os vira Sair pela comporta; os guardas não tinham sido alertados, apesar de os dois companheiros terem deixado, certamente, pegadas na areia antes de se terem posto a coberto das dunas.

Faolan levava duas facas no cinto; Bridei levava um rolo de corda. O coração do jovem batia de modo estranho, como se tivesse acabado de fazer uma corrida; nenhuma disciplina druídica conseguia forçá-lo a um ritmo menos violento. A mente de Bridei formava as palavras que queria dizer e eliminava-as sucessivamente. Espero que estejas bem. como se fosse um estranho, formal, sem qualquer significado. Amo-te. Proibido; a verdade. A verdade perigosa. Ele sabia, não eram precisas palavras. Porque me deixaste? Egoísmo; petulância; a presunção de que ela se devia sentir culpada por obedecer às ordens da Que Brilha. Não podia dizer aquilo. Vem comigo, agora, preciso de ti... Mostrando-lhe com as mãos, com a boca, com o corpo, como a necessidade era grande, uma coisa capaz de o devorar se não fosse satisfeita. Aquilo, acima de tudo, não podia dizer. Aterrorizaria a amiga do seu coração, afugentá-la-ia para sempre. Bridei tinha pouco para lhe oferecer; se tivesse cuidado com as palavras, com os gestos, conseguiria, pelo menos, conservar a sua amizade apesar da separação. Que lhe poderia dizer, então? Que lhe restava que pudesse dizer?

Chegaram à base das muralhas de Banmerren. Bridei sabia onde ficava o carvalho: o plano que apresentara a Faolan era perfeito em todos os pormenores. O celta não era homem que partisse mal preparado para uma missão, seguia as suas próprias regras apesar de ir onde os outros tinham medo de ir, calculava os riscos. O seu plano era impecável e a sua execução teria de ser sem falha; não admirava que o seu preço fosse tão alto.

Estavam por baixo da árvore. Os ramos nus podiam ser vistos por cima da muralha, rígidos e fortes à luz fria do luar. Bridei emitiu um pequeno assobio, o chamamento de uma ave nocturna, e esperou. A resposta chegou uns momentos depois, o inimitável chamamento de uma coruja. Tuala. O jovem assobiou outra vez apenas para se certificar, ao mesmo tempo que tirava o rolo de corda do ombro e se preparava para a lançar. O pio da coruja ouviu-se mais perto, como se a jovem tivesse avançado mais no ramo, aproximando-se da muralha.

— Esta rapariga é meio gato? — murmurou Faolan. — Não tens medo que ela caia e parta o pescoço? A altura é grande.

Na mente de Bridei apareceu uma imagem de Tuala empoleirada no topo de Cicatriz de Águia, girando como um cata-vento e recitando com a sua voz clara: Fortrenn, Fotlaid, Fidach, Fib, Circinn, Caitt.

— Não cai — disse o jovem. — Preocupa-te antes comigo. — Bridei olhou novamente para cima e pensou vê-la, uma silhueta pálida no topo da muralha, uma nuvem de cabelos escuros; fez um gesto, esperando que ela compreendesse e segurando numa ponta da corda com uma mão, lançou-a com a outra.

Tuala falhou: A sua mão esticou-se, mas a corda caiu no solo. Bridei lançou-a de novo. Faolan perscrutava a costa, os arbustos, o carreiro.

— Lembra-te — murmurou o celta — despacha-te. — Nada de despedidas longas.

Bridei lançou novamente a corda e sentiu-a presa no topo. O jovem conseguiu ver, difusamente, a pequena silhueta de Tuala puxando-a e prendendo-a a um ramo, pronta para ser trepada por um homem forte.

— Põe-te a andar — sibilou Faolan. — Não te afastes; se formos descobertos, tenho de ter a possibilidade de te tirar daqui rapidamente. Se ouvires o meu sinal, vem imediatamente. Ainda é longe daqui a Caer Pridne. Mantém sempre os pés encostados à muralha enquanto trepas...

Um pouco mais tarde, com a respiração ofegante, Bridei atingiu o topo e sentou-se escarranchado, algo desajeitadamente, no alto da parede estreita. Olhando para baixo, o jovem viu um jardim na penumbra e, mais longe as paredes de pedra de uma casa. A única luz era a da Que Brilha. Tuala tinha recuado para um ramo do carvalho. A jovem olhou para ele com olhos solenes de coruja, com os cabelos suaves em redor do pequeno rosto, com a sua silhueta doce tão agradável aos olhos de Bridei como no dia em que a vira nos dólmenes, o dia em que se apercebera de que ela se tinha transformado numa mulher. O jovem olhou para ela. Apesar de bom estratega e de se ter transformado num bom cortesão, Bridei ficou sem palavras. Se Tuala pudesse ouvir o seu coração, pensou, se pudesse sentir a necessidade que tinha de chorar, de gritar, de cantar, de explodir, saberia a verdade, não precisaria de falar.

— Vieste — disse Tuala. — Tenho pouco tempo; não posso estar aqui.

— Nem eu — disse Bridei. — Tenho um homem à minha espera, em baixo. Podemos...? — O jovem estava numa posição precária, consciente do vazio de ambos os lados da parede, nunca possuíra o sentido instintivo de equilíbrio de Tuala.

— Não podemos entrar — disse a jovem. — Fiz uma coisa errada e agora a torre está fechada. Vem para aqui, para a árvore. Ficas mais seguro.

Bridei olhou para o espaço: a distância não era grande, mas estava escuro e a queda era muito grande. Os ramos do carvalho não lhe pareciam mais seguros do que a parede estreita.

— Não tenhas medo, Bridei — disse Tuala. A voz fina e límpida transportou-o de regresso à infância: até em criança ela tinha aquela certeza, aquela segurança interior que o fazia acreditar sempre nela. — Agarra a minha mão. — A jovem aproximou-se com os pés bem firmes no ramo e um braço estendido na direção dele.

O jovem estendeu um braço, agarrou a mão dela e empoleirou-se no ramo. Bridei olhou para ela; ela devolveu-lhe o olhar com uns olhos tão claros como o luar, tão profundos como um lago, tão doces como o orvalho de uma manhã de Primavera. Bridei sentiu o aperto da sua mão em todo o corpo. O desejo percorreu-o, arrebatado, perigoso. O jovem largou a mão da jovem e sentou-se desajeitadamente no local onde o ramo grosso se unia ao tronco.

— Eu... — começou ele.

— Eu... — disse Tuala ao mesmo tempo.

— Tu primeiro — disse ele, perguntando a si próprio se iriam ambos perder a ocasião; se conseguiriam dizer o que tinham a dizer.

— Esperei tanto tempo para te poder dizer — disse Tuala docemente — e agora não tenho palavras depois do que aconteceu no Portal, depois do que foste obrigado a fazer.

Bridei ficou horrorizado.

— Como é que soubeste?

— Vi. Na água; tinha de ver. Fola ficou zangada e com razão. Bridei, aquilo foi... foi uma coisa terrível. Horrível e cruel. Tu foste muito forte. Não admira que o rei estivesse cansado.

— Ele está preso à vida por um fio. Ninguém esperava que ele sobrevivesse tanto tempo. Tuala?

— Hum?

Bridei desejava que ela se aproximasse mais. Tuala estava fora de alcance, encostada a um galho novo com os joelhos dobrados por baixo da saia e os braços a rodeá-los. O seu cabelo tinha crescido; estava mais comprido, o suficiente para poder ser atado com uma fita no pescoço. Alguns caracóis emolduravam-lhe o rosto. Bridei olhou para as sobrancelhas excêntricas, em forma de asa; para o pequeno nariz, delicado; para a boca doce. As suas mãos pareciam saber, sem necessidade de se mexerem, o que era acariciar as suas faces pálidas, o seu nariz delicado, percorrer as suas curvas suaves com paixão e reverência; o seu corpo dizia-lhe que seria maravilhoso dar-lhe prazer...

— Ias perguntar-me alguma coisa? — perguntou Tuala. Bridei regressou ao presente.

— Tu sabes, não sabes? O que vai ser o meu futuro? — Tuala acenou com a cabeça.

— Desde pequena que sei.

— Nunca me disseste nada.

— Era melhor cresceres sem saber. Era melhor se descobrisses em devido tempo. É um fardo muito pesado.

Bridei não respondeu de imediato.

— Não sabia que podia ser tão pesado — disse ele finalmente — até presenciar o Portal. Fiz o que exigiam de mim; Drust precisava de mim, respeito-o e amo-o como meu rei e como representante da Guardiã das Chamas na terra, mas não sei se o conseguirei fazer todos os anos, enquanto reinar. Eu sou leal aos deuses, como todos os filhos de Fortriu devem ser. É meu desejo governar bem. Mas... por vezes, sinto que não me devia apresentar como pretendente, Tuala. Este ritual é aterrorizador, repelente. Digo estas palavras cruas sob o olhar da Que Brilha e espero que ela perdoe. Se o rei de Fortriu tem de celebrar este ritual para apaziguar Aquele Cujo Nome Não Se Diz, então talvez o rei não deva ser Bridei, filho de Maelchon. Vi o que a cerimônia fez a Broichan, um homem que eu sempre acreditei ser insensível. Ele ficou desfeito, envergonhado, envelheceu. É um fardo demasiado pesado. Desculpa, não vim aqui para te falar disto.

Tuala estava a olhar para as próprias mãos.

— Não o queres partilhar comigo? — perguntou ela.

Bridei ouviu o tom cuidadoso da pergunta, o esforço para a tornar neutra e sentiu vontade de chorar.

— Não é justo — disse ele. — Tu agora és uma Mulher Sábia, foste chamada pela Que Brilha; vives o dia-a-dia consciente do amor da deusa. Não precisas do peso da minha incerteza.

— Há de encontrar alguém, Bridei. — A voz de Tuala era muito baixa. — Alguém mais adequado, mas eu hei de ser sempre tua amiga.

As palavras da jovem pareceram-lhe um golpe final, demolidor; uma sentença de morte. A distância entre ambos pareceu-lhe subitamente vasta, profunda, inatingível. Tuala desligara-se; Bridei sentiu-o na sua voz. A Que Brilha colocara um obstáculo intransponível entre ambos.

— Minha amiga — conseguiu ele dizer. — Espero que sim, porque vou deixar de te ver, agora que escolheste o caminho da deusa. Ela deu-te uma grande honra; vais ser feliz em Banmerren, tenho a certeza. — Que os deuses lhe valessem, parecia que estava a falar com uma pessoa qualquer, formal, afetado. A cabeça começou a doer-lhe.

— Bridei?

— Sim?

— Tu tens de ser rei. Tens de dar o passo em frente. Tem de ser. Eu vi, Broichan viu e Fola também, penso. Tem de ser.

— Creio que não consigo. Sem ti não consigo.

— Eu sei que o Portal foi uma coisa muito má; cruel, terrível, e também sei de outras coisas: da batalha, de Donal. Coisas tristes, coisas lamentáveis. Gostaria de ter estado junto de ti para as partilhar contigo. No entanto, tu tens de continuar com coragem, como até aqui, aliás. Isto há de ter uma solução, tenho a certeza, uma solução aceitável para os deuses e para os homens. Sei que há de encontra-la. Promete-me, Bridei. Promete-me que segues em frente.

O jovem abriu a boca e voltou a fechá-la. Bridei não conseguia olhar para ela. A voz de Tuala tornara-se subitamente quente como nos velhos tempos, as palavras vibrantes e provocadoras. Que quisera ela dizer com aquilo de encontrar alguém? Como poderia haver alguém e não ela? Tuala devia saber que a amava.

— Promete-me — repetiu Tuala e naquele momento ouviu-se um assobio vindo da base da muralha: Faolan avisando Bridei que eram horas de regressar. Já?

— Prometo — disse ele, olhando para ela.

Tuala sorriu. Que os deuses o ajudassem, como era possível ver aquele sorriso e não a abraçar, satisfazendo um desejo louco, como outro rapaz qualquer, um rapaz que não soubesse nada de disciplina druídica? Não conseguia desviar o olhar! Nunca mais a veria. Porém, não lhe podia tocar, cometeria uma grande injustiça. Tinha de a colocar num canto da sua mente, um lugar à parte, ir-se embora sem lhe tocar, deixá-la pura, sã e salva no interior daquelas paredes, uma serva da deusa, ilesa das provações sombrias, dos perigosos jogos de poder do seu próprio futuro. Outra coisa seria puro egoísmo da sua parte.

— Tenho de ir — disse ele, e viu o sorriso da jovem a desvanecer-se. Os seus olhos, por um instante, tornaram-se nos de uma criança sozinha na escuridão, com medo de adormecer.

— É melhor assim — disse Bridei, mas a tentativa para controlar a voz não teve qualquer sucesso; as palavras saíram-lhe num sussurro estrangulado.

— Se é o que queres, Bridei.

— Tenho de ir. Faolan está à minha espera. Eu...

— Tem cuidado ao descer; toma, segura na minha mão...

— Não, eu consigo...

De certo modo, no ramo que fazia de ponte para a muralha, tornou-se impossível não se tocarem apesar de ele se tentar afastar antes de perder o controle por completo, fazendo tábua rasa dos ensinamentos de Broichan. Tuala estava mesmo ao seu lado, mão na mão. O jovem parou, respirando com dificuldade, lutando com todas as suas forças contra o desejo, que o percorria, mais forte do que a lógica, mais forte do que o bom senso, mais poderoso do que a vontade da deusa... quase...

— Assim não — murmurou Bridei. — Assim não...

— Bridei.

Tuala pôs-se em bicos dos pés num equilíbrio perfeito e colocou-lhe a mão em concha no rosto, cobrindo-lhe as orgulhosas tatuagens. Bridei sentiu o polegar da jovem a afagá-lo suavemente; viu o seu olhar, um olhar que desmentia a frieza do tom de voz anterior. A mão dele cobriu a dela. Sem o conseguir evitar, Bridei levou a palma da mão de Tuala aos seus lábios, ao mesmo tempo que ouvia o seu súbito soluço, um eco do que lhe ia no coração.

Em baixo, na sombra, surgiu uma luz. Alguém percorria o carreiro com uma lanterna, talvez procurando alguém.

— Depressa! — sibilou Tuala. — Depressa! Não te podem encontrar aqui!

Bridei aproximou-se da beira. A sua mão continuava na dela; os seus dedos pareciam não conseguir soltar-se. No último momento, o jovem virou-se, ela ergueu o rosto para ele, os olhos muito brilhantes, a boca entreaberta, sedutora, tão encantadora como uma rosa de Verão e a pele translúcida à luz da Que Brilha. Em baixo, os passos aproximavam-se.

— Adeus — disse ele, vacilante, e virou-se. Tinha de ser; não podia fazer outra coisa, era a segurança dela que estava em causa.

— Bridei. — Um murmúrio. — Eu não estava a falar a verdade. Tive tantas saudades tuas...

Bridei sentiu as duas mãos da jovem no rosto, puxando-o. Um momento mais tarde, a boca dela encontrou a dele algo timidamente, algo desajeitadamente, mas oh, quanta doçura. Bridei sentiu-se morrer apesar do fogo que sentia no corpo, que lhe dizia que estava bem vivo, mais vivo do que alguma vez estivera. O jovem agarrou-se a um ramo, quase se esquecia de onde estava, tão alto que um simples passo poderia provocar a morte. Os seus lábios abriram-se; o beijo prolongou-se fazendo-o sentir algo semelhante a uma tortura, uma tortura que ele desejaria prolongar até se transformar em algo mais, algo de que precisava desesperadamente ao ponto de sacrificar tudo... mas não a segurança e a reputação de Tuala... Tinha de a deixar. Se fosse encontrado ali, Tuala perderia o lugar que tinha em Banmerren e o seu próprio futuro ficaria em risco. Bridei afastou os lábios, ouvindo o som irregular da sua própria respiração e sentindo o mesmo na de Tuala. A mão da jovem agarrou-se à dele com força.

— Na próxima Lua — murmurou ela. — Adeus, Bridei. Tem cuidado.

— Tu também — conseguiu ele dizer, e largou-a. A jovem esperou acocorada junto do topo da muralha enquanto ele descia. Quando Bridei chegou ao solo, a corda seguiu-o. Bridei olhou para cima, mas Tuala já tinha desaparecido. O jovem ficou sozinho com a Lua, com o silencioso Faolan e com o bater desordenado do seu coração.


Os Boa Gente não precisam de falar para se entenderem. Para Luthana, a Mulher Sábia idosa que ralhara com Tuala e a escoltava agora para dentro de casa com a candeia a balouçar indignadamente na mão, o carvalho não tinha ninguém senão aquela aluna desobediente de rosto branco e cabelos negros, aquela rapariga estranha que parecia determinada a quebrar as regras e a esticar a boa vontade das suas superiores até ao limite. Porém, elas estavam lá: as criaturas conhecidas de Tuala sob os nomes de Madressilva e Teia, ela com um vestido feito de teias de aranha e com cabelos prateados qual colar de gotas de orvalho e ele com um traje feito de tudo o que a floresta tinha, gravetos, folhas, musgo e fetos. As duas criaturas estavam acocoradas num galho do carvalho e conversavam sem emitir qualquer som.

— Finalmente, a jornada continua. Viste o que ela fez? O aspecto dela, o modo como lhe tocou, como lhe ofereceu os lábios? A nossa pálida criatura, finalmente, transformou-se numa mulher, apesar do seu caráter distante. Tenho medo que as coisas se tornem fáceis demais para Bridei.

— Achas? Ele não pode escolher as duas coisas, Tuala e o reino. Irá pôr o dever para com Fortriu à frente dos desejos do seu coração? Como é que ele vai reconciliar as duas coisas?

— Tem de encontrar o caminho. O teste é esse. Tem de dar provas de que é um homem sério, não só perante os homens e as mulheres, como perante os antigos poderes. Perante os deuses. Ele sabe. E perante nós.

— Vai esquecer tudo.

— Talvez. Por isso mesmo, temos de o lembrar. Fortriu precisa dele. Mais ninguém nos pode levar em frente.

— Mas ele precisa dela. Isto é um enigma. Eles nunca a aceitarão. E Broichan?

Madressilva sorriu trocista.

— Broichan brinca com todos, movendo-os como peças num tabuleiro à sua vontade. Fá-los saltar. O druida não é o único a conhecer o jogo e talvez o ache mais complexo do que alguma vez sonhou. Creio que é capaz de perder...

— Para quem?

Madressilva virou os olhos cor de lama para os luminosos e enigmáticos da sua amiga.

— Veremos — disse ele. — Os deuses reservam um último teste para o rapaz. Mais tarde, perto do fim. Entretanto, nós vamos desempenhar o nosso papel. Vamos fazer dançar estes dois.

Teia riu-se, uma gargalhada breve, alta, como que uma campainha.

— Esta gente deixa-me frustrada. São tão cegos. Pobrezinhos... Pergunto a mim próprio quanto a amará ele? Irá persegui-la, mesmo quando A Que Brilha não se atrever a mostrar o rosto? Irá ele manter-se forte, mesmo perante aquele que respeita e ama como um pai?

— Em breve saberemos — disse Madressilva, encolhendo os ombros. — Drust não vai ficar muito mais tempo neste mundo; eles já se estão a juntar, de facas na mão. Tolos. O rapaz brilha no meio deles, como uma estrela. Porém, tem de enfrentar o teste final. Achas que ela nos viu?

— Ela sabia que a estávamos a vigiar — disse Teia, atirando para trás os seus brilhantes cabelos. — Para já, fizemo-la refrear as palavras; fizemo-la acautelar os olhares, mas o amor brilhou através dos seus pequenos esforços para se mostrar fria; a sua tentativa para se convencer a si própria de que ele ficaria melhor com uma princesa qualquer de cabelos sedosos e de que ela ficaria bem por trás das muralhas de Banmerren foi patética. Em todo o caso, parece mais segura do que ele.

— Claro — disse Madressilva. — Ela é um dos nossos.


CAPÍTULO QUINZE


O Inverno deu a conhecer energicamente a sua presença varrendo Caer Pridne com ventos gelados e encharcando-a com chuva persistente. Não era possível sair a cavalo; só os que tinham assuntos da maior urgência é que se aventuravam ao ar livre. O comportamento de Faolan não era muito diferente do seu habitual distanciamento frio, mas o celta estava a ficar cada vez mais impaciente. Bridei, habituado à menor alteração da sua voz, compreendia a sua frustração. O plano de Faolan para atrair o inimigo e forçá-lo a um ataque fora destruído por uma coisa tão simples como o clima. O espião vagueava pelos corredores de Caer Pridne; podia ser encontrado a escutar intensamente a conversa ociosa dos escravos da cozinha, dos trabalhadores remendando o colmo dos telhados ou das crianças brincando com uma bola durante uma breve paragem do dilúvio. Está a imaginar um plano novo, pensou Bridei. Entretanto, alguém, algures, planeia matar-me.

Bridei tentava manter a mente concentrada no que, inevitavelmente, iria acontecer em breve. O rei Drust aguentara mais uma Lua desde o Portal, mas o fim estava próximo e estava a chamá-los, um a um, ao quarto onde passava os dias embrulhado numa capa, tentando respirar apesar do calor do fogo e do cheiro das ervas. Drust despediu-se de todos: palavras de reconhecimento, de orientação, de amizade ou de gratidão. Por vezes, o reconhecimento simples de que o seu futuro ia mudar por vontade dos deuses que governavam as suas vidas e a vida de Fortriu.

Com aquela perda iminente, Bridei perguntava a si próprio como era possível continuar a pensar em Tuala: em cada movimento que ela fizera, em cada palavra que pronunciara, nas coisas por dizer que vira nos seus olhos. Acima de tudo, na carícia da sua mão. A sua mente recordava-lha vezes sem conta: os seus próprios esforços desajeitados para lhe dizer o que lhe ia no coração, o seu falhanço patético em se expressar, as palavras que ela murmurara no fim, o fato de ter correspondido ao seu beijo — ah, a recordação do beijo, tão doce — quando sabia que não devia tentá-la a abandonar o santuário por as suas hipóteses serem tão pequenas para lá das suas muralhas. A deusa não queria aquela pequena e rara criatura para si? Porém, Tuala dissera: Na próxima Lua, e ele não conseguira murmurar: Não, não posso, não devo. Não fora capaz de lhe dizer não; iria ter com ela, com ou sem Faolan. O que resultaria do seu ato, não sabia. A única coisa que sabia era que o risco seria terrível. Então, a eleição do novo rei estaria no auge e os seus movimentos estariam vigiados. O instinto dizia-lhe que não devia ir. Porém, tinha de ir; Tuala estaria à sua espera. Tinha de ir; todo o seu ser lhe dizia que tinha de ir. Tuala estava nos seus pensamentos dia e noite, de tal modo o seu corpo lhe dizia que não podia passar sem ela. A situação era doentia; devorava-o, seguia-o durante o sono, enchia-lhe o tempo com sonhos perturbadores, nos quais a seguia pela floresta sozinho, na escuridão, consciente de que, se não a encontrasse, nunca mais a veria; consciente de que ela lhe fugia, procurando atravessar uma fronteira que ele não poderia atravessar; consciente de que não a devia perseguir se o seu desejo era ser rei; consciente de que, sem ela, não era um homem completo. O jovem fazia o possível para que as visões desaparecessem, mas elas não lhe obedeciam.

Bridei dizia a si próprio que a culpa era sua; que nunca devia ter ido a Banmerren; aprendera à sua custa a razão da existência das regras que mantinham os homens afastados dos santuários da deusa. Porém, não podia mudar as coisas. Não podia ter deixado de comparecer àquele encontro e voltaria a repeti-lo. Da próxima vez, diria o que tinha a dizer. Diria o que lhe ia no coração; pedir-lhe-ia que regressasse com ele, que fosse sua mulher. Fora aquele o seu erro. Não lhe dissera; não lhe dera a oportunidade de escolher. Tuala continuava a ser a mesma; compreendera-o logo de início. Parecera-lhe, pelas suas palavras murmuradas e pelo seu beijo, que a jovem diria sim, mas não tinha a certeza. Se ela dissesse não, teria de aceitar e continuar sozinho, sem saber exatamente como o conseguiria.

Por fim, uma manhã, Bridei também foi chamado. Havia muito tempo que Drust não saía do pequeno quarto para onde a doença o tinha atirado e Bridei ficou espantado com a aparência do? rei, só pele e ossos, pálido, com uma pele que parecia pergaminho.

A divisão estava desconfortavelmente quente; a rainha Rhian tinha o rosto corado e o seu irmão Owain, vestido apenas com uma camisa e umas calças, suava em bica. Drust tremia, embrulhado numa capa de lã e com um espesso cobertor em cima dos joelhos. A seus pés, um cão, ansioso.

— Meu senhor — disse Bridei, não permitindo que o seu rosto mostrasse o que sentia, cumprimentando o monarca com uma vênia formal e o tom cortês exigido por uma ocasião daquelas. — Mandastes chamar-me?

— Aproxima-te. Senta-te. — Drust fazia um esforço para ver todos os pretendentes, para lhes dizer o que tinha de ser dito enquanto tinha voz.

Bridei sentou-se. À sua volta, a rainha e as suas ajudantes moviam-se com a eficiência de gente há muito acostumada a tratar de um doente. Os lençóis eram mudados, os recipientes esvaziados, a lareira atiçada, as infusões preparadas. Porém, tais ajudantes eram tão discretas que Bridei bem podia estar só com o rei. Os olhos de Drust brilhavam; no seu corpo devastado ardia uma vontade de ferro.

— Carnach — disse Drust. — Fala com ele. Oferece-lhe uma... posição. Confiança... estatuto...

Bridei acenou com a cabeça.

— Trabalharemos juntos — disse ele. — Eu falo com ele. E Tharan?

Drust esboçou um sorriso que lhe transformou as feições, fazendo-o parecer uma caveira, e Bridei reprimiu o instinto de fazer um sinal de proteção com a mão. Corvo Negro andava por perto, era possível ouvir o bater das suas asas negras.

— A decisão pertence a Carnach — disse o rei. — Carnach é dono de si próprio. Se Carnach não ficar, ele também não fica. Se Carnach seguir a teu lado, Tharan... não tem outra hipótese senão... segui-lo. Tharan sabe... lembra-se do... Portal...

Bridei hesitou.

— Meu senhor...

O olhar de Drust parecia perfurá-lo, tão forte como uma espada.

— Tu és capaz — disse o rei. — Tens de ser capaz.

Tornou-se impossível Bridei dizer o que necessitava de dizer: que achava que não conseguiria, ano após ano, Inverno após Inverno; que o peso de uma morte como aquela era demasiado, que duvidava ser capaz de continuar o mesmo; que não era desobediência aos deuses, era fraqueza. Perante aquele moribundo, cujo espírito irradiava através dos seus olhos vermelhos, as palavras de Bridei ficaram por dizer.

— Ameaça principal... sul... Bargoit. — Drust suspirou e bebeu um pouco de água de uma caneca que a sua mulher lhe estendeu. Certifica-te... números...

Bridei acenou com a cabeça.

— Se Carnach se juntar a mim, havemos de conseguir os votos necessários — disse ele. — Aniel está a tratar disso e Broichan também.

— Ah, Broichan... fez um bom trabalho contigo, meu filho... o meu druida... longos serviços, leais... Fortriu... melhor dádiva... tu...

O rei estava cansado. A sua respiração era curta, dolorosa apesar do calor, do vapor saído dos potes que ferviam na lareira e do odor pungente das ervas.

— Espero ser digno da vossa confiança, meu senhor e rei. — Que A Que Brilha o ajudasse, nunca seria um rei como Drust, forte, obediente, um verdadeiro condutor de homens.

— Uma... coisa — disse o rei com um fio de voz. — Mulher... escolhe bem... faz toda... diferença. — Drust virou os olhos demasiado brilhantes para Rhian. A rainha estava ajoelhada à lareira, mexendo algo numa pequena panela. A doçura do seu olhar, a sua expressão sombria, a antecipação da sua partida iminente, revelavam que aquele monarca poderoso era, por baixo da sua couraça exterior, um homem mortal e vulnerável. — Não te preocupes com o sangue — disse Drust. — Não te preocupes com a linhagem... com o dinheiro... Procura alguém capaz de caminhar a teu lado... toda... diferença...

— Sim, meu senhor — disse Bridei, mas não disse: Eu sei. Já a encontrei, mas não sei se a poderei ter.

— Vai — disse Drust — filho da... Guardiã das Chamas...

— Adeus, meu senhor rei. Que os deuses te concedam uma jornada segura. Creio que Fortriu nunca mais terá um rei como vós.

— Nada de lágrimas. Por mim... não. Novo rei... novo caminho... mais brilhante, melhor... vôo da... águia... Sê forte, Bridei.

Bridei não conseguiu dizer mais nada. O jovem fez uma vênia e quando Drust começou novamente a tossir e Rhian e Owain se apressaram a ajudá-lo a endireitar-se, a limpar-lhe o sangue do rosto devido aos espasmos, Bridei abandonou o quarto, passou pelos guardas e saiu para o caminho de ronda onde caminhou durante muito tempo, esquecido da chuva.

Mais tarde, durante a manhã, uma figura esbelta subiu os degraus e caminhou na sua direção. O seu cabelo, tonsurado, flutuava ao vento. Parecia que o irmão Suibne também vagueava pelos caminhos de ronda imerso em pensamentos. Bridei esboçou um cumprimento cortês. Apesar do sacerdote cristão representar ideias que detestava, ensinamentos que tinham levado à divisão dos Priteni e à destruição dos lugares sagrados no sul, o jovem fora obrigado a reconhecer, ao longo do tempo que Suibne passara em Caer Pridne, que o tipo era inteligente, profundo e possuído de um sentido de humor retorcido, mundano. Se Suibne não fosse o que era, talvez pudessem ser amigos.

Suibne colocou-se ao lado de Bridei com os braços cruzados em cima do parapeito, olhando para o mar. A nortada agreste varria a água cinzenta, transformando-a numa confusão de cristas espumantes.

— Lamento as notícias acerca do rei Drust — disse o sacerdote com voz calma. — Disseram-me que está a despedir-se. Tenho rezado por ele.

— A que deuses? — perguntou Bridei, consciente da sua indelicadeza mas incapaz de se calar.

— Só há um Deus, Bridei. — O sacerdote sorria; não era a primeira vez que tinham aquela discussão. — Um Deus que te pode oferecer muito se te virares para Ele. Vejo nos teus olhos que estás perturbado, confuso. Suponho que tens a mente cheia de problemas, de decisões difíceis, de questões urpessoas.

— Viste isso tudo nos meus olhos? Supões demasiado. Esta manhã fui convocado pelo rei. Estou triste por vê-lo partir, mais nada.

— E?

Suibne parecia-se um pouco com Broichan. Bridei sentiu-se desconfortável com a comparação.

— É verdade — disse o jovem — as coisas vão mudar, vêm aí tempos difíceis. Um líder como Drust não se substitui com facilidade. Sugeres que eu olhe para a cruz em busca de respostas. Não vale a pena tentares converter-me à tua fé. Eu fui educado no amor pelos deuses antigos. A única coisa que quero é ver as terras dos Priteni unidas na prática dos rituais antigos, leais À Que Brilha e à Guardiã das Chamas. Eu sei que, interiormente, és bom homem, mas não posso aprovar a tua presença em Caer Pridne nem a tua influência em Circinn. Os da tua fé espalharam a devastação entre o nosso povo; fracturaram o nosso reino e enfraqueceram a nossa capacidade de defesa.

— Ah — disse Suibne, com os olhos brilhantes de interesse.

— Mas se Fortriu se virasse para a fé cristã, como Circinn faz neste preciso momento em que estamos aqui a conversar, os dois países estariam unidos à sombra da mesma cruz. A doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo baseia-se no amor, na paz e na tolerância. O nosso livro sagrado ensina-nos a amar o próximo. Quando os homens se viram para o verdadeiro Deus, ficam unidos pelo amor. Deixa de haver necessidade de exércitos ou de fronteiras.

— Em princípio, esse é um grande sentimento — disse Bridei. — Diz-me, e os Celtas? O povo de Dalriada segue a sua própria crença; no centro de Galany’s Reach, a aldeia que nós atacámos na Primavera passada, há uma cruz. Os Celtas são conhecidos como os combatentes mais selvagens que os nossos guerreiros alguma vez encontraram; são cruéis; não compreendem o significado da palavra misericórdia. Como concilias tu esse estado de espírito com a doutrina do amor?

Suibne sorriu.

— As tuas perguntas são um reflexo do teu passado, Bridei; foste bem ensinado, penso. Coloca-te no lugar do rei Gabhran de Dalriada. Para um celta, o teu povo é que é selvagem, pagão, recalcitrante e perigoso: um obstáculo no caminho da conquista do norte e no estabelecimento do mesmo domínio de que me falaste uma vez: um reino, um povo, uma fé.

— Sob a bota de um invasor? Isso seria uma fantochada. Uma tal unidade, se assim se pode chamar, só seria conseguida se todos os homens e mulheres de Fortriu fossem chacinados. Conquista do norte? Seria uma vitória conseguida à custa do sangue dos Priteni, à custa de chacinas e destruição.

Suibne não tentou discutir.

— Com o líder adequado — disse o sacerdote — não teria de ser assim. Com um rei liberal, a paz poderia ser conseguida através de negociações.

— Estás a ser a voz de Drust de Circinn? Ou de Bargoit?

— De nenhum deles. Limito-me a afirmar que a tolerância e a indulgência podem levar longe um homem, ou o seu reino. É preciso um grande líder para levar a cabo uma obra assim. Um homem de qualidades extraordinárias.

— Estás a falar de Drust, o Javali?

— Estou a falar de um futuro distante, de uma paz que pode ser conseguida se alguns homens de bom coração depuserem as armas e abrirem os seus espíritos à luz de Deus.

Bridei estava confuso com a expressão do rosto do clérigo; era quase como a de Broichan quando o druida entrava em transe em frente do padrão de um presságio ou de um recipiente de adivinhação. O jovem não sabia que os cristãos estavam sujeitos a visões do Outro Mundo.

— Nunca me viraria contra os deuses do meu povo — disse ele calmamente.

— Mesmo um deus que exige um assassínio? — perguntou Suibne.

— Não quero falar disso. É proibido.

— Mas pensas. Esse assassínio estará sempre na tua mente, estação após estação, ano após ano, ritual cruel após ritual cruel; atormentará a tua consciência e entristecerá o teu espírito. Aderir a isso não é leal, Bridei. É loucura. Não acredito que um homem como tu, um homem destinado a fazer coisas grandes e importantes, possa estar de acordo com uma coisa tão bárbara.

— Destinado a fazer coisas grandes e importantes? O conselheiro religioso de Drust de Circinn fala assim de mim? Estás a brincar, certamente.

— Estou a falar de homem para homem, Bridei. Espiritualmente, tu és um homem de paz, vejo-o perfeitamente nos teus olhos. Além disso, és jovem; quem sabe o que nos reserva o futuro? Quem sabe o que o futuro reserva a Fortriu? Rezemos para que os chefes tribais dos Priteni votem sabiamente. Muita coisa pode mudar durante a vida de um rei.

Bridei não precisou de ir à procura de Carnach. Carnach encontrou-o mais tarde, no mesmo dia, e sugeriu que fossem até um canto tranquilo para conversar sem serem perturbados. Sem serem perturbados não significava que tivessem de estar sós visto que ambos eram pretendentes ao trono. Os dois homens encontraram-se nos estábulos, onde era fácil um homem fingir que estava a mostrar um cavalo a outro que o queria comprar; era espantoso como se podia conversar enquanto se observavam os cascos ou os dentes de um animal. Breth mantinha-se vigilante a uma certa distância. O guarda-costas pessoal de Carnach, um tipo alto e barbudo, estava encostado na soleira da porta, fazendo de conta que estava descontraído.

— Falaste com o rei? — Carnach foi directo; não havia tempo para etiquetas e Bridei recebeu bem a rudeza do ruivo.

— Esta manhã. E tu? Carnach acenou com a cabeça.

— Tens uma proposta para mim?

— Tenho. E tu vais sugerir algumas modificações; estou pronto para as ouvir.

— Começa lá, então. — Apercebendo-se do olhar de relance de Bridei para o guarda barbudo, o ruivo prosseguiu: — Gwrad é de confiança, tal como o teu homem, ou não o terias trazido contigo. Fala.

Bridei lançou um conjunto de propostas em que tinha estado a trabalhar havia algum tempo com a assistência de Aniel, tendo em conta o estatuto de Carnach, o seu passado e a localização das suas terras ancestrais na fronteira com Circinn. Carnach ficaria encarregado da segurança ao longo do Rio Thorn, uma corrente que mergulhava através do centro do país e que circundava a grande cadeia montanhosa que separava Fortriu, a noroeste e Circinn, a sudeste. Todos os chefes tribais da região seriam seus vassalos e seriam obrigados pelo rei a fornecer homens se Carnach os exigisse. Mais ainda, seria um dos conselheiros pessoais do rei, um estatuto que lhe daria um lugar especial na corte se assim o desejasse. Carnach desempenharia um papel critico nas decisões futuras quanto ao modo de agir contra o invasor, fosse ele celta, Anglo ou outro desconhecido qualquer. Haveria outros incentivos: a fortaleza de Carnach levaria os melhoramentos que ele exigisse — muralhas exteriores, barreiras de terra, tudo o que Carnach achasse apropriado à sua posição elevada e tudo por conta do rei. Haveria também a possibilidade de um casamento, se Carnach o desejasse. Havia jovens de sangue nobre na corte, raparigas muito belas. Bridei apresentou as suas propostas o mais friamente possível, consciente, o tempo todo, do grande sacrifício que estava a pedir ao seu pretendente rival.

— Estou a ver — disse Carnach também friamente. — Defesa das fronteiras. Queres que eu faça o trabalho árduo por ti.

— Por mim não, comigo. É disso que se trata, de trabalho em conjunto. A fronteira com Circinn é vulnerável. Não gosto nada de pensar na possibilidade de entrar em guerra com o nosso próprio povo, mas as diferenças entre nós tornaram-se-me claras aquando da chegada de Bargoit e dos seus lacaios. Se mantivermos a fronteira forte, conseguiremos resistir, não só ao seu desejo de poder, como ao avanço na nova fé. Se conseguires defender o Thorn, poderemos virar as nossas atenções para oeste. Eu tenciono ter um grande número de conselheiros. Algumas das minhas escolhas vão desconcertar os homens mais velhos e mais conservadores da corte. Seria um privilégio ter-te entre eles, Carnach. Tu tens o respeito do rei Drust e o de muitos homens em cujas opiniões eu confio, entre eles Aniel e Talorgen.

— E Broichan?

— Broichan não sabia bem para que lado cairias, mesmo depois do Portal. Eu disse-lhe que contava que tu, pelo menos, me ouvisses. Reconheço que és um homem de bom senso e sei que amas Fortriu.

— Mas não teria feito aquilo no Portal. Bridei não disse nada.

— Diz-me — continuou Carnach — e se eu te fizesse uma contraproposta? Se te apresentasse uns termos parecidos, o suficiente para retirares a tua candidatura?

— Podes apresentá-la. Eu ouço-te; seria uma descortesia da minha parte não o fazer. Porém, não retirarei a minha candidatura. Eu sei que tenho de seguir em frente. A Guardiã das Chamas exige-o.

— Hum. — Carnach quase sorria. — Eu não preciso de uma mulher. Tenho uma rapariga em casa; assim que souber o resultado da eleição, casamo-nos. Ela não é de sangue real, mas agrada-me. Mais duas coisas: quero os serviços do escultor do rei durante um Verão, quero erguer os meus sinais de família na encosta por cima da minha casa. Posso esperar se mo garantires. Suponho que Garvan vai estar ocupado mais ou menos durante um ano.

— E a outra coisa?

Carnach parecia um pouco embaraçado.

— A minha mulher — a minha futura mulher, quer dizer — gostaria de estar numa posição que me permitisse dar-lhe um presente especial visto que ela não tem jóias nem outras coisas. Talvez alguma prata e os serviços de um bom joalheiro? Eu sei qual é o desenho que quero, espirais e cães; ela gosta muito de cães. E talvez também alguma para a minha mãe.

— Será possível, certamente — disse Bridei. — Quanto a Garvan, vamos apresentar-lhe a questão. Ele decidirá o que fazer primeiro. Vai haver trabalho para ele aqui, claro; isto se... — A voz do jovem desvaneceu-se. Bridei tinha uma idéia sobre Caer Pridne e sobre o futuro, uma idéia que se estava a formar na sua cabeça desde a noite em que vira Tuala e lhe dissera adeus sem conseguir dizer o que lhe ia no coração. Porém, era muito cedo para falar dela. Ainda não era rei.

— Certamente — disse Carnach, não compreendendo o sentido das palavras do jovem. — Não nos podemos precipitar. Bem, preciso de algum tempo para pensar nisto. Tenho de falar com algumas pessoas, com Tharan em particular. Penso que te posso dar uma resposta ainda esta noite. Os termos da tua proposta são razoáveis. Não franzas o sobrolho, Bridei. Com o tempo, descobrirás que sou de confiança e que ninguém toma decisões por mim. Ao consultar o conselheiro do rei, limito-me apenas a ser prudente. Não é fácil desistir da hipótese de vir a ser rei.

— Desculpa — disse Bridei. — Leva o tempo que quiseres.

— A areia escorre rapidamente na ampulheta — disse Carnach sobriamente. — Vi Drust esta manhã, tal como tu. Se quisermos chegar a um acordo enquanto ele ainda é vivo, terá de ser antes de a Guardiã das Chamas se pôr no horizonte mais uma vez. Gwrad trar-te-á a resposta antes disso.

Assim aconteceu. Quando, naquela noite, as pessoas se reuniram para jantar em Caer Pridne, Bridei ficou a saber que a pretensão ao trono de Fortriu estava limitada a dois homens: ele próprio, jovem, desconhecido, inexperiente, e Drust, filho de Girom, o rei cristão de Circinn, que queria governar os dois reinos. Salvo alguma surpresa, como por exemplo uma candidatura por parte dos Caitt, o cenário estava pronto. Carnach aceitara os termos; fora acordado entre os dois homens que o acordo seria mantido secreto até à apresentação formal dos pretendentes para que a facção de Circinn pudesse continuar a acreditar que os votos de Fortriu estavam divididos e que o seu homem seria o vencedor provável. Wredech fora persuadido a limitar-se ao gado e à obscuridade relativa; estava fora da corrida.

A rainha e o seu irmão não compareciam havia alguns dias à refeição da noite; o estado de Drust exigia a presença constante de uma ou de outro e, nos intervalos, ambos dormiam por turnos, exaustos. Naquela noite, não eram os únicos ausentes: Broichan, Aniel, Tharan, Eogan e vários dos seus guarda-costas não se viam em lado nenhum. Bargoit estava presente com Fergus e o irmão Suibne. Bargoit espantara toda a gente no Poço das Sombras; ninguém acreditava que ele seria capaz de testemunhar o ritual depois de expressar tanta repulsa pelo que considerava uma prática bárbara e nojenta. À saída, dissera pouca coisa. Bridei tinha as suas próprias ideias acerca do assunto. Bargoit não podia ser banido do poço; era um emissário do rei de Circinn e, como tal, podia entrar livremente nos lugares secretos dos homens de Fortriu. O folclore não dizia nada acerca dos Cristãos. Na verdade, ninguém sabia ao certo se o apoio declarado por parte de Bargoit às mudanças no território de Drust, filho de Girom, marchava ao lado da sua decisão de se baptizar. As palavras do irmão Suibne tinham perturbado Bridei. O jovem perguntou a si próprio se seria possível um homem de Fortriu renunciar aos antigos deuses. Evidentemente, Bargoit era um estratega. Quando os representantes de Circinn chegassem em força, o conselheiro de Drust, o Javali, regalá-los-ia com um relato do que se passara no Poço das Sombras, enfatizando os papeis desempenhados pelo influente e perigoso Broichan e pelo seu filho adotivo que era, nada mais nada menos, do que uma mera ferramenta do druida. Bargoit contaria detalhadamente o que vira: os seus braços abertos, mantendo a cabeça da rapariga debaixo de água. Bargoit daria a entender que testemunhara o assassínio de uma inocente.

O salão estava quase silencioso. As conversas faziam-se em voz baixa; as pessoas comiam frugalmente. O bardo do rei olhava para a cerveja com a mão no queixo enquanto a sua harpa jazia, silenciosa, no interior do saco a seu lado. Quando lhe tangesse novamente as cordas, seria para cantar um lamento.

Bridei viu Dreseida com a testa ligeiramente franzida, olhando para Gartnait. Ferada parecia pálida e distante e Ana pouco à vontade. Eram tantos os ausentes à mesa do rei que ela estava praticamente sentada sozinha. Gartnait conversava com o pai. Bridei sentou-se entre Garth e Ged de Abertornie, enquanto Breth se colocava atrás do jovem para lhe provar a comida. Até Ged parecia deprimido naquela noite. O chefe tribal comia a empada de carneiro sem dizer uma palavra. Estava toda a gente à espera.

Os pratos tinham sido tirados havia pouco tempo quando Broichan entrou no salão. Algo no seu rosto fez calar os presentes.

— O nosso bom rei partiu — disse simplesmente o druida. — A Mãe de Tudo levou-o para lá do véu. Um ato de misericórdia. Bebei à sua memória; contai histórias dos seus grandes feitos; celebrai a sua coragem. Amanhã, ao anoitecer, celebraremos os rituais fúnebres.

— Depois, começa o espectáculo — resmungou Ged. — Espero que estejas pronto, Bridei. Uma Lua e depois a assembleia. Caer Pridne vai transformar-se num local de doidos. Que A Que Brilha nos proteja.

— Faremos o possível para que tudo corra ordeiramente — murmurou Bridei. — Em nome dele. Drust foi um grande rei, valoroso e forte. Que os deuses lhe garantam uma boa jornada.

— Uma coisa é certa — disse Ged, olhando através do salão para Bargoit. — Ainda bem que ele não vai assistir a isto.

De acordo com os desejos do rei e sob a impassível supervisão de Broichan, foi construída uma grande pira na praia e Drust, o Touro, partiu para a sua última viagem pelo fogo e pela água. A chuva parou mesmo a tempo da cerimônia. Em seguida, Broichan lançou os gravetos de vidoeiro, consultou A Que Brilha e declarou que, devido à estação, o prazo para a assembleia seria alargado, mais sete dias, para permitir que os chefes tribais de Circinn tivessem tempo para fazer a difícil viagem de Inverno. Seguiu-se alguma hostilidade à sugestão; por que não encurtar o prazo, aumentando as hipóteses de maioria de Fortriu? Vozes mais sábias, entre elas a de Aniel, acalmaram os dissidentes. Restringir o tempo de viagem seria o mesmo que dar azo a Circin para declarar a eleição inválida e abrir a porta a mais um longo período de conflito. Os sete dias adicionais eram uma medida inteligente e vantajosa.

O prazo adicional significava que os candidatos apresentariam a sua candidatura ao trono no Solstício de Inverno, uma conjunção auspiciosa. Cada um dos pretendentes compareceria perante a corte e apresentaria as suas credenciais. Se algum dos candidatos não chegasse a tempo a Caer Pridne, seria substituído por um representante. Sete dias mais tarde, a assembleia reunir-se-ia e far-se-ia a votação. Na eleição anterior, os chefes tribais de Circinn tinham sido doze e os de Fortriu outros tantos, incluindo o representante das Ilhas Pequenas. Era provável, mas não certo, que os números fossem os mesmos se os votantes chegassem dentro do período combinado. Se fosse necessário um voto de desempate, chamariam Fola, a Mulher Sábia.

— Isso é inaceitável — disse Bargoit quando Broichan anunciou aquele detalhe crucial. — Dá vantagem a Fortriu. Se a Mulher Sábia tem direito a voto, também o irmão Suibne aqui presente tem como conselheiro religioso de Drust.

O irmão Suibne sorriu vagamente e não disse nada. O seu comportamento sugeria o profundo desejo de estar noutro lado qualquer.

— Além disso — acrescentou Fergus, o outro conselheiro sulista — todo sabem que Fola pertence-te, Broichan. Tu a tens no bolso. O voto dela é o teu voto.

Seguiu-se algum burburinho no salão, centrado em redor de Ged de Abertornie.

— Isso não é correto — disse Aniel com uma expressão maliciosa. — Conhece-la mal se pensas que ela pertence a qualquer homem. Eu sei que este problema provocou algumas dificuldades na última eleição. A tua observação, portanto, tem alguma razão de ser.

— Dê-se o voto a ambos — disse Ged. — Ao cristão e à sacerdotisa. Por que não?

— De fato, não serviria para nada. Os números continuariam empatados — disse Bargoit, irritado.

— Posso falar? — perguntou Bridei, pondo-se de pé. — Falais como se o voto de cada homem já fosse conhecido; como se os nossos chefes tribais não pudessem mudar de opinião. Estaremos todos tão acomodados que não temos espaço nas nossas mentes para compromissos e idéias novas? Se é assim, o processo de apresentação dos candidatos sete dias antes da votação não vale a pena. Para que precisa um homem de sabeirais sobre um determinado pretendente se vota apenas com espírito partidário? Ouçamos o que os candidatos têm para nos dizer, o que eles pensam poder oferecer-nos. Pode não ser necessário um voto de desempate. Se for, podemos muito bem confiar na experiência de homens como Broichan e tu próprio, Bargoit, para que a decisão seja tomada a tempo. — Seguiu-se algum burburinho e um acordo relutante. Restava saber se adeririam todos chegada a hora.

Ao longo dos dias que se seguiram, Bridei trabalhou arduamente Aviando mensageiros, consultando os seus conselheiros, fazendo planos e tentando aceitar a espantosa possibilidade de, em menos de uma estação, poder vir a ser o mais poderoso dos poderosos do reino. Por vezes, a perspectiva metia-lhe medo: medo de tropeçar e cair, de desiludir Broichan, de desiludir o rei Drust, de desiludir os deuses. Cada vez mais, porém, quando rezava, sentia o calor da Guardiã das Chamas no espírito e a sua voz murmurando-lhe ao ouvido: Vai em frente, meu filho. Sê forte. Ao mesmo tempo, sentia que as suas hipóteses de escolha desapareciam à medida que os dias passavam. Não se desobedecia impunemente aos deuses. Ninguém se podia esquivar ao seu grande chamamento. Se a Guardiã das Chamas o achava o melhor homem para a imensa tarefa de reunificar os Priteni, Bridei tinha de dar o melhor de si; tinha de dedicar a sua vida àquela missão e queria fazê-lo. Apesar do seu desejo por uma vida tranquila, por espaço, por solidão, a necessidade de levar a cabo aquela demanda ardia-lhe na mente como uma chama. No entanto, no seu coração só contavam os dias que faltavam até à Lua cheia seguinte. A perspectiva de ver novamente Tuala agigantava-se, fazendo com que não conseguisse concentrar-se como devia na tarefa de cortejar alguns homens e aplacar outros. A dor de cabeça era constante; já quase se esquecera do que era passar sem ela.

Apesar de tudo, Bridei percorria os degraus daquela dança de possibilidades, consciente de que o futuro de Fortriu e do seu povo dependia da justeza dos seus instintos e da capacidade de outros para atravessar com rapidez e segurança os grandes desfiladeiros e os profundos vales no Inverno. Os rios corriam cheios; se nevasse, alguns caminhos ficariam bloqueados. Os cavalos só podiam ser utilizados nas partes mais fáceis da viagem, como a extensão de terra que ia da boca do Lago da Serpente a Caer Pridne. Além do mais, o tempo escasseava. Ainda bem que Bridei enviara os seus mensageiros mais cedo. Broichan ajudara-o; uma adivinhação, levada a cabo com fumo depois de um dia de jejum predissera o dia da morte de Drust com uma exactidão que reflectia na perfeição os intentos dos deuses. Bargoit devia ter feito algo semelhante. Talvez o cristão, Suibne, tivesse os seus próprios métodos para prever o futuro. Em breve se tornava evidente que os doze representantes de Circinn já tinham percorrido uma boa distância desde as suas fortalezas a sul. Muito antes do fim do prazo estabelecido já eles começavam a chegar à corte: gelados, cansados e prontos para uma guerra de palavras. Os apoiantes de Drust, o javali, estavam preparados para discutir finalmente o seu caso em voz alta com os do norte. Suibne começou por conduzir um serviço religioso diário no quarto atribuído a Bargoit. Broichan não mostrou em público que a cerimônia o ofendia profundamente, mas mandou um homem passar em frente da porta de Bargoit com um recipiente de água com sete pedras brancas lá dentro. Daquele modo, talvez a boa influência da Que Brilha impedisse que aquele ritual estranho poluísse a casa do rei. Por vezes, era o próprio Broichan que passava pela porta segurando uma tigela de barro com gravetos a arder aos quais juntara um pó de ervas de proteção cujo aroma punpessoase misturava com o fumo purificador. À noite, o druida ajoelhava-se na sua câmara escura e rezava em silêncio durante muito tempo.

Quando a Lua ficou cheia, Bridei invocou o encantamento que lhe dava proteção contra os olhares dos curiosos, saiu de Caer Pridne pela comporta e dirigiu-se para Banmerren. A Que Brilha estava tapada por nuvens pesadas. O jovem desconfiava que, quando chegasse a meio da baía, estas abrir-se-iam e deixariam cair em cima da sua cabeça uma torrente de água. Bridei pensou em Tuala, sozinha na árvore despida. Não a deixaria lá; se ela concordasse, levá-la-ia consigo naquela noite. A jovem não podia ter frio, não se podia sentir só, com medo. Não a podia deixar sozinha, sem amigos. Levá-la-ia... Podia ficar com a família de Gartnait, certamente que seria aceitável... Não, tinha de afastar aqueles pensamentos. Estava a ir depressa demais, estava a fazer suposições que não tinha o direito de fazer. A escolha teria de ser de Tuala.

Por todos os deuses, um homem precisava de ter olhos de gato para ver naquela noite tão escura. Ao longe, ouvia-se o ribombar dos trovões, algures para norte. O ar estava abafado, antecipando uma tempestade. O seu coração sentia o mesmo, o medo e o maravilhoso misturavam-se, sentia que algo ia mudar. Ia vê-la... Ia perguntar-lhe... Ia saber...

Bridei escondeu-se por trás dos arbustos baixos que guarneciam as dunas e retraiu-se metendo subitamente um pé num buraco; tinha de ter mais cuidado. Os seus pensamentos estavam a torná-lo descuidado; caminhava como se fosse um estranho, um intruso. Que saudades de casa... Que saudades de Pitnochie, que saudades do Vale no Verão com as árvores cheias de folhas e os ribeiros com as margens cheias de fetos, o seu restolhar, a sua vida secreta, os seus picos nobres e os céus vastos, vazios. Se pudesse regressar com a sua querida amiga a seu lado, mão na mão, a sua cabeça desgrenhada no seu ombro... o calor do seu corpo contra o seu...

Bridei fez um esforço para regressar à noite, ao carreiro, à distante silhueta sombria da longínqua península onde as muralhas escuras de Banmerren mal se viam. Fora difícil escapar a Faolan, mas essencial: não podia falar daquela noite ao celta. Um homem que acreditava que uma simples visita bastava para resolver aquilo, não compreendia a sua complexidade. Faolan não podia saber quanto dependia da decisão de Tuala. De uma maneira ou de outra, teria feito o possível para que aquela expedição não tivesse lugar.

Bridei achava que tinha feito de modo a levar as pessoas a pensarem que aquela era uma noite como outra qualquer. Algures, entre a hora do jantar, com Garth a fazer de provador, e a hora de ir para a cama, ocasião em que Faolan assumia o papel de vigilante das noites sem sono de Bridei, conseguira fugir a ambos servindo-se da pequena magia que Broichan lhe ensinara. A sua habilidade com aquelas artes era bem fraca em comparação com a do seu pai adotivo; o encantamento de dissimulação durou pouco mais do que o tempo necessário para atingir as dunas, mas naquela noite não precisava de mais. Só um louco deambularia por ali com uma tempestade a aproximar-se. Um louco... Se calhar, o louco era ele. E se Tuala não estivesse lá? E se lançasse a corda e ela caísse uma e outra vez? Pior ainda, a jovem podia ouvi-lo e recusar-se a vê-lo. Tuala tinha-o beijado, mas era nova, talvez demasiado nova para compreender o que a carícia tinha despoletado nele...

Um raio surgiu no céu iluminando a praia, as dunas quais montículos nevados e os arbustos varridos pelo vento. A escuridão desceu novamente sobre ele quando o trovão estalou, ensurdecendo-o. Um momento mais tarde, os homens surgiram do nada. Bridei teve um sobressalto. O jovem levou a mão à faca, rodopiou mesmo sentindo as mãos a agarrá-lo, três homens pelo menos, um por trás e um de cada lado. A chuva começou a cair, súbita e violenta. Os dedos de Bridei agarraram na faca. O homem atrás de si estava a puxá-lo para o solo enquanto outro tentava meter-lhe qualquer coisa na boca... Bridei golpeou selvaticamente, ouviu um grito de dor e sentiu cair a faca quando algo duro e pesado lhe esmagou o pulso. Um relâmpago; o jovem ouviu gritar, talvez o seu próprio nome. Um instante mais tarde, Bridei sentiu um golpe na cabeça e o mundo escureceu.

O quarto parou de andar à roda: tapeçarias suavizando as paredes de pedra, uma candeia em cima de uma arca a um canto, uma pessoa debruçada sobre uma prateleira, deitando água quente numa taça. Um aroma pungente; uma das infusões de Luthana, preparada com ervas curativas e amarga. Algumas vozes começaram a chegar aos ouvidos de Tuala, vindas de algures. A voz de Fola, calma.

— Ela não pode ficar aqui depois disto. Se ela continuar a persistir neste tipo de comportamento, arriscamo-nos a perdê-la.

A silhueta junto da prateleira virou-se. Era a própria Luthana, com as suas feições bondosas. A anciã tinha uma taça na mão. A memória recomeçou a funcionar; Tuala virou o rosto na almofada.

— Vamos, minha filha, tens de beber. Apanhaste um frio terrível; isto vai dar-te forças e ajudar-te a pensar. Anda lá, Tuala, eu sei que estás acordada. Levanta-te; deixa-me ajudar-te...

Não valia a pena beber; não valia a pena, sequer, tentar. Já nada fazia sentido. Que estava a fazer A Que Brilha? Aquela que iluminava os caminhos obscurecera o seu mesmo em frente dos seus pés, tirara-lhe a hipótese de ter um futuro brilhante e bom, como sempre acreditara ser possível. Tuala sempre acreditara, sempre, mesmo nos momentos mais desesperados, quando as pessoas de Pitnochie lhe tinham virado as costas, quando cortara os cabelos e passara as preocupações para com Bridei para as mãos da deusa, quando Broichan a mandara embora, que a vida seria possível ao lado do jovem, uma vida durante a qual o seu amor lhe daria força para a grande tarefa de que os deuses o tinham incumbido. Apesar de tudo, sempre se agarrara àquela idéia. Por que outra razão A Que Brilha a teria colocado à porta de Bridei, assegurando-se de que seria o jovem a encontrá-la? Por que outra razão permitira a deusa que ela tivesse uma educação que mais nenhuma rapariga de Fortriu podia ter? Estavam os dois ligados; ligados Por laços sagrados e por um amor que crescera maravilhosamente a partir de uma devoção inocente e de uma familiaridade infantil Para outra coisa forte e profunda, uma coisa tumultuosa e temerária, a Paixão entre um homem e uma mulher. Tuala sentira-o quando pegara na mão de Bridei, quando os seus lábios tinham procurado os dele com uma fome que brotara nela como uma nascente de Primavera e acreditara que Bridei também o tinha sentido apesar do seu constrangimento. As suas palavras tinham sido substituídas pelo beijo.

Porém, o jovem não regressara. Tuala esperara a noite toda até que, de madrugada, Irethra a encontrara triste e ensopada, agarrada aos ramos nus do carvalho a tiritar de olhos cerrados, as lágrimas misturadas com a chuva. A jovem não se conseguia mexer; fora necessário arranjar uma escada e mandar subir duas das raparigas mais velhas, as mais ágeis, para a ajudar a descer. Depois, a escuridão total. Tuala pensava que tinha dormido um pouco; não fazia idéia de onde estava; não havia quartos como aquele, pequeno, na área das alunas, em Banmerren. Não interessava. Nada mais interessava. Bridei não aparecera. Estava enganada. Bridei não a amava senão como um irmão. Bridei decidira continuar sem ela; ou talvez Broichan tivesse decidido por ele. Broichan não decidia tudo?

— Muito bem, filha — disse Luthana, levando a taça aos lábios de Tuala. — Tudo. Daqui a pouco vais comer um pouco de sopa. Não abanes a cabeça, ou ainda entornas tudo. Tens de comer. Quase te perdíamos. Não troces da decisão da Mãe de Tudo de te deixar viver mais um pouco. Isso, muito bem. Agora, descansa. Daqui a pouco Fola vem falar contigo.

— Quanto...? — Tuala mal conseguia falar; o seu corpo estava trémulo, fraco, como o de uma criança ao frio. — Quanto tempo...?

A expressão de Luthana era perspicaz, piedosa.

— Estiveste muito doente, Tuala. Fizeste uma coisa muito estranha; não compreendo o que te levou a um comportamento tão sem sentido. Fazias bem se procurasses a sabedoria da Que Brilha e lhe pedisses orientação.

Tuala fechou os olhos. A Que Brilha? Não. Talvez a deusa lhe tivesse iluminado o caminho, tivesse sorrido à sua filha com amor, mas deixara de o fazer. Quem saberia o que ela queria?

— Por favor — murmurou Tuala, quando a Mulher Sábia se pôs de pé. — Há quanto tempo estou aqui, assim?

— Três dias — disse Luthana. — Sempre cheia de febre; preocupaste-nos muito, mas o pior já passou. Se fizeres um esforço para comer e fizeres o que Fola te mandar, poderás sair da cama dentro de um dia ou dois.

— Onde...?

— Estás nos alojamentos das mulheres sábias, Tuala. Fola achou que seria melhor. As mais novas já tiveram quebras que chegassem para o Inverno todo, como tu sabes muito bem. Aqui, podemos ter-te debaixo de olho. E agora descansa um pouco. Fola virá ter contigo depois.

Ter-te debaixo de olho. Mal traduzido, aquilo queria dizer: Impedir que faças outra vez a mesma coisa. Pouco interessa se era uma espécie de prisioneira. Nada mais interessava, de fato. Sem Bridei, não valia a pena. Sem o seu amor e sem o amor da Que Brilha, a vida tornava-se tão insignificante que deixava de valer a pena. O mais simples, provavelmente, era encolher-se naquele pequeno quarto, fechar os olhos e desejar desaparecer. Luthana não conseguiria obrigá-la a comer...


O tempo passou. Os dois personagens dos Boa Gente estavam com ela no pequeno quarto silencioso, tal como tinham estado no alto da árvore, fazendo comentários, lisonjeando-a, tentando persuadi-la e analisando friamente a situação.

— Tal como eu esperava. — A voz de Teia, leve, trocista, mas algo suave. A compaixão não fazia parte da natureza dos Boa Gente. No entanto, aquelas duas figuras tinham, de certo modo, ganho amizade a Tuala. Se não, por que estariam ali? — Ele deseja-te, ou desejava, quando veio da outra vez; viu-se perfeitamente, mas o desejo dos homens esgota-se rapidamente. Um momento de arrebatamento, um momento de reflexão e na Lua seguinte lá vão eles em busca de uma presa mais apropriada. Aquela rapariga, Ana, por exemplo. Não restam dúvidas de que Bridei viu o erro que cometeu e virou a sua atenção para ela.

Tuala não disse nada; não tinha energia para protestar. Antes, teria lançado aquelas palavras cruéis à cara da rapariga da floresta, mas naquele momento acreditava nelas.

— Estás triste — disse Madressilva, instalando-se aos pés da cama. O rapaz não era mais pesado do que um gato. — Não é de admirar. Pensavas que ele te poria à frente do trono. Estavas enganada. Pensavas que tinhas aqui um refúgio, ou um segundo refúgio. Também estavas enganada; Fola já não te quer aqui. Transformaste-te numa responsabilidade, és imprevisível, um perigo para as tuas colegas e para ti própria. Se decidires ficar toda a noite na rua durante uma tempestade e morrer de uma pneumonia, Broichan tem de ser avisado e Bridei também. Apesar de ter decidido que um rei não pode casar com uma mulher dos Boa Gente, não quer dizer que Bridei não queira saber de ti. Se morresses, ele ficaria muito zangado, a tua morte provocaria uma fractura entre ele e um certo druida muito influente. Fola não quer ser responsável por isso. Ela não quer ser responsável por ti, agora que as coisas se estão a dificultar.

Iam mandá-la embora, pensou Tuala vagamente. Para onde? Para onde?

— Bem — disse Madressilva, animando-a — pelo menos ainda tens aquele tipo, Garvan. Ele não disse que esperava o tempo que fosse preciso? Parece que vai ter de esperar menos do que pensava. Neste momento, ele está na corte, à espera de prováveis encomendas do novo rei. Águias de pedra, suponho.

Garvan; o grosseiro Garvan com as suas grandes mãos. Tuala imaginou-se a seu lado, dirigindo a sua casa, partilhando a sua cama, criando os seus filhos... Não queria pensar na hipótese, era impossível... Hipóteses... Subitamente, deixara de as haver. Limitava-se tudo àquele quarto, àquela cama, àquelas paredes... àquele dia...

— Olha para ali! — A voz de Teia ouviu-se, límpida como um sino. — Alguém andou a riscar a pedra com uma faca. E aqui, mais. Que estranho. É como se tivesse estado aqui um prisioneiro e tivesse contado os dias.

— Muitos dias, desde Dança das Virgens até ao Portal — disse Madressilva suavemente. — Os dias de uma vida inteira. A cela é aconchegada. Uma rapariga pode viver aqui durante muito tempo num conforto relativo. Mesmo assim, Morna deve ter-se sentido muito só; só e assustada. Como pode uma pessoa preparar-se para uma coisa daquelas? Estas linhas, gravadas na pedra, devem tê-la ajudado; o seu próprio ritual, ordenado e seguro, num mundo subitamente escuro e irreal. Como elas se devem ter sentido atormentadas enquanto a alimentavam, a treinavam, a aprontavam. Como os seus sonhos as devem ter torturado enquanto a rapariga ficava aqui sozinha com a sua vela e a sua pequena faca, gravando uma longa litania de dias. Pergunto a mim próprio por que terão elas escolhido este mesmo quarto para ti, Tuala? Pergunto a mim mesmo qual será o plano delas?

— Não quero saber — murmurou Tuala. — Nada mais me interessa.

— Exatamente — disse Madressilva. — Dorme bem. Fala com Fola. Nós voltamos mais tarde. Ao contrário de ti, temos um plano. Penso que o vais aprovar. É muito superior a um casamento desesperado e muito melhor do que ficar onde não és desejada. Bons sonhos, Tuala. — E desapareceram; Shade, o gato, ao passar pela porta, eriçou o pêlo, subitamente alarmado. Tuala ficou acordada a olhar para as marcas na parede, riscos desesperados, patéticos, simples e ordenados. No que pensaria Morna ao fazê-los, noite após noite? No que teriam pensado todas aquelas raparigas ao longo dos anos, preparando-se para um Portal após outro? Tantas vidas jovens desperdiçadas; tanta beleza e vitalidade perdidas no poço do deus sombrio, atiradas fora para alimentar uma fome que nunca estava satisfeita. Aquilo não podia continuar! Bridei não podia fazer parte daquilo! O jovem não podia viver com aquilo se ela não estivesse a seu lado!

Shade saltou para cima da cama e pousou pesadamente nos joelhos de Tuala. O gato deu três voltas e instalou-se, arranhando o cobertor. A sua presença era confortável; fê-la pensar em Mist. Mist na floresta à caça de martas; Mist na cozinha, depositando orgulhosamente um rato aos pés de Ferat. Mist nos joelhos de Erip, aquecendo o sono irregular de um velho doente. Mist fechado; Mist miando, protestando por Tuala deixar Pitnochie pela última vez...

Tuala sentiu que não precisava de ouvir Fola; já sabia o que a Mulher Sábia lhe ia dizer. Comportamento impróprio de uma serva da deusa... Nem sequer precisava de esperar que Madressilva e Teia lhe falassem do seu grande plano; não era preciso ser muito inteligente para adivinhar o que era. Estava decidida. Não podia ficar naquele pequeno quarto com o seu triste recorde de vidas perdidas, de anos de solidão e desespero. Banmerren ficaria fechado para ela; mesmo que não ficasse, não poderia continuar naquele santuário com Bridei tão perto e casado com outra. Pitnochie não a receberia de braços abertos; não poderia viver em casa de Broichan. Não casaria com Garvan porque não o amava e casar sem amor era profundamente errado. Concordar não seria justo para Garvan nem para ela. Portanto, daria o passo que até ali nunca se atrevera a dar; confiaria na sua própria gente, nas criaturas esquivas cuja presença traquina, incómoda, se tornara mais ou menos constante durante a sua estadia em Banmerren. A viagem de regresso ao Grande Vale era longa e estava-se no Inverno. Não interessava; Teia e Madressilva arranjariam uma maneira. Tuala ia para casa.

— Quando é que ele fica bom? — perguntou Aniel. — Quando é que ele está pronto?

— Falas como se não pensasses noutra coisa senão na guerra que estamos aqui a disputar, como se não quisesses saber dele — disse Talorgen com ar cansado, passando uma caneca de cerveja ao conselheiro e enchendo uma outra para si. Estavam ambos sentados na antecâmara dos alojamentos de Broichan, local habitual de reunião para determinados homens nos últimos dias. — Ele está entre a vida e a morte. — É melhor não fazeres essa pergunta a Broichan.

— Disseram-me que ele estava melhor — disse Aniel. — Se Bridei estivesse a morrer não seria tão brusco. Uist diz que ele está melhor se bem que não perceba muito bem como é que os nossos amigos druidas sabem; a última vez que me deixaram ir vê-lo, o rapaz estava inconsciente, tal como o trouxeram, mas mais magro. De vez em quando, mexe-se, dizem, e é possível fazê-lo comer qualquer coisa, ou beber um pouco de água. O rapaz diz coisas sem nexo; coisas antigas, misturadas. Suponho que um druida sabe interpretá-las. Esperemos que ele regresse para nós tal como estava. O futuro do nosso reino depende dele.

— Não podia ter melhores assistentes. Entre as ervas de Broichan e os encantamentos de Uist, juntamente com os esforços dos seus devotados guarda-costas, é impossível não melhorar. Bridei inspira confiança; quase lhe podemos chamar amor. A centelha do monarca já brilha nele. O que é preciso é pô-lo bom antes da apresentação das candidaturas e a tempo da eleição.

— Ah sim — disse Aniel, sorrindo. — A eleição. Estou convencido que vamos ter algumas surpresas... Aquele Faolan é carrancudo e taciturno, mas é competente; tem o miserável preso e parece que é possível ligá-lo a Drust, o Javali, ou aos seus conselheiros. Agradeçamos a Uist por isso. A sua pequena estadia em Circinn, juntamente com a sua memória espantosa, permitiu-nos identificar o homem. Evidentemente, a gente de Bargoit vai tentar desacreditar Uist como testemunha quando tornarmos a tentativa de assassinato pública.

— Não vai ser difícil. Uist é conhecido por ser algo excêntrico; alguns são até capazes de o achar um pouco maluco. Os seus pensamentos estão a um nível diferente dos dos homens normais. Quem, senão um maluco, decidiria regressar de Circinn sozinho em pleno Inverno?

— Isso não tem importância. As pessoas vão reconhecer a verdade. Além disso, Faolan fará falar o prisioneiro: quem lhe pagou para seguir Bridei e para o eliminar antes da apresentação das candidaturas.

— Onde está esse candidato a assassino? Devia, também, ser interrogado sobre a primeira tentativa, quando foi envenenado um homem à minha própria mesa.

— Não está em Caer Pridne. Faolan tem-no escondido.

Aquele celta é um tipo ativo. Os outros, segundo sei, estão enterrados nas dunas.

— Que outros? — perguntou Aniel com as sobrancelhas levantadas, numa surpresa trocista.

— Hum — disse Talorgen, abstracto. — Temos a certeza de que Bargoit não sabe nada dos nossos planos?

— Oh, deve desconfiar. No fim de contas, os assassinos não apareceram para lhe dar contas. Além disso, sabe que Bridei continua vivo; a não ser que pense que a nossa história de uma doença se destina a encobrir a busca desesperada de um novo candidato, mas é pouco provável, temos Carnach. Sempre é melhor do que um sulista.

— Estou morto por que Bridei abra os olhos e comece a dizer coisas com sentido — disse Talorgen. — Nisso estou totalmente de acordo contigo, meu amigo. O Solstício de Inverno está quase a chegar; ele está inconsciente há muito tempo, o que não é nada bom para o corpo e para a mente. Não o queremos fraco e incapaz e não queremos um substituto. Bridei é um grande orador, tem o dom da palavra. Os discursos dele, apesar de simples, agitam os espíritos dos homens. Apesar disso, um de nós tem de estar preparado para falar por ele.

— Broichan vai querer esse privilégio — disse Aniel.

— Broichan? Não seria nada sensato. Broichan tem muitos inimigos e é temido. Seria bem melhor um homem mais franco.

— Tu? — perguntou Aniel, retorcido.

— Não. Só o faria se não houvesse mais ninguém. Ged, talvez? Alguém bateu à porta e Carnach entrou, dobrado, para não bater com a cabeça no lintel. Carnach era o homem mais alto de Caer Pridne, ultrapassando até Breth.

— Como é que ele está? — perguntou o ruivo.

— Na mesma. Melhor, segundo dizem. Esta espera é desesperante. Estávamos a discutir o assunto dos substitutos.

— Eu faço isso — disse Carnach, sentando-se ao lado de Talorgen e servindo-se de uma caneca de cerveja. — Penso que vai provocar algum impacto. Levanto-me e em vez de fazer o que todos esperam, quer dizer, anunciar a minha própria candidatura e expor as minhas qualidades, digo aos votantes reunidos que estou ali para apresentar Bridei como futuro rei de Fortriu; Bridei que, disseram-me, está ausente apenas porque o seu principal rival tentou assassiná-lo antes de ele poder apresentar a sua candidatura. Vai provocar uma impressão forte Atenção, preferia que fosse o próprio Bridei a levantar-se e a falar. Todos nós queremos isso. Aquele Bargoit miserável! Gostava de lhe pôr as mãos no pescoço e apertar com força.

— Não és o único, acredita — disse Aniel. — Mas vamos apagá-lo com palavras, não com atos. Drust, o Javali, assinou o seu destino quando ordenou esta tentativa de assassinato. Os deuses sejam louvados por Faolan.

— De certo modo — disse Talorgen — as tuas palavras parecem-me pouco apropriadas. Creio que os deuses não têm nada a ver com a presença do celta.

Uist estava sentado à cabeceira de Bridei, limpando-lhe a testa com um pano húmido e estudando as linhas e as sombras das feições inconscientes onde nada parecia viver. No entanto, Bridei respirava; entre cada inalação e exalação parecia decorrer uma eternidade, como se passar de um ponto a outro exigisse uma força tremenda. Eram os deuses, talvez, que o levavam a decidir viver. O jovem jazia assim, numa inconsciência profunda, havia muitos dias. As breves vezes que parecia querer acordar eram perturbadas por visões sombrias; as palavras que proferia estavam para além da compreensão até de um druida.

Uist e Broichan tinham sido, de certo modo, pouco honestos nas informações dadas aos outros dois homens, apesar de serem amigos de confiança. Nem Aniel nem Talorgen sabiam como aquilo os esgotava; como estavam perto do desespero. As feições de Broichan estavam descarnadas, exaustas. Garth estava a dormir num banco encostado à parede, coberto com uma capa, enquanto Breth aquecia água para lavar o jovem inconsciente. Os guarda-costas de Bridei não deixavam entrar os servos de Caer Pridne; só os mais íntimos podiam visitar o seu líder derrotado. Por trás da porta, o guarda-costas de Aniel vigiava; o pessoal de Talorgen estava um pouco mais longe, no caminho de ronda. De Faolan, nem sinal. O celta andava muito ocupado. Apesar disso, regressava todas as noites à cabeceira de Bridei, mais uma presença silenciosa, mudando também ele os lençóis, preparando as infusões, erguendo o paciente e lavando o seu corpo cada vez mais magro; permanecendo acordado enquanto os outros dormiam, todos menos os dois druidas vestidos de negro, Broichan com os seus olhos sombrios e Uist com o seu traje branco e os cabelos cor de neve, que não pareciam ter sono. Os dois homens ficavam de pé, meditando, ou de joelhos com os olhos abertos, sem verem, escutando as vozes murmuradas dos deuses. De manhã, Faolan saía sem uma palavra sequer.

— Ele vai acordar em breve — disse Broichan, aproximando-se para olhar para o seu filho adotivo. — Pergunto a mim próprio o que lhe terá passado pela cabeça? Quando confiei a sua segurança a Faolan, nunca esperei que o celta se arriscasse tanto. Atrair um ataque, sim, mas não se coloca o homem que se protege numa posição tão perigosa. Se não tens aparecido com o teu bordão, meu amigo, quem sabe se Faolan não teria caído também, não capturando, assim, nenhum dos assassinos?

— Uma coincidência feliz — disse Uist com um sorriso críptico.

— Quem diria que a minha égua me levaria àquele local naquele momento preciso? Gostei muito do meu relâmpago; o meu bordão ainda estremece quando seguro nele. Até Faolan ficou alarmado. Mas não por muito tempo; o tipo é mesmo competente, tal como nos disse Drust. Bridei devia ficar com ele.

— Ele arriscou a vida de Bridei deixando-o sair assim sozinho, de noite, e armado apenas com uma faca. Podíamos tê-lo perdido.

Algo na voz de Broichan fez o velho druida fazer uma pausa. Uist olhou para o rosto do outro e sorriu novamente.

— Por vezes, penso no que será — disse ele calmamente — ser pai de muitos filhos. Tantos momentos de terror; tantas pequenas tristezas, tantas ansiedades. Sinto-me duplamente feliz por ter abraçado o caminho dos deuses e nunca me ter casado. Não que não me tivesse sentido tentado, há muito tempo. Fola era uma rapariga deliciosa, tão pequenina e determinada. Um pouco como aquela tua filha adotiva, qual é o nome dela?

— Tuala. — Sobre as feições de Broichan desceu uma máscara, proibindo outras perguntas. Porém, Uist também era druida.

— Fola não te mandou um mensageiro há algum tempo, logo a seguir ao ataque de que Bridei foi vítima? O que é que ela queria? Passaste aos outros essas notícias?

— Ela sabe que o meu filho adotivo está doente. A mensagem dela era pessoal.

— Estou a ver. — Uist não perguntou que tipo de mensagem pessoal exigia um cavaleiro com aquele tempo inclemente. — Evidentemente — continuou ele — estás ciente de que qualquer informação que possa estar relacionada com o nosso plano não pode ser classificada de pessoal, por mais privada que te pareça. Se tem a ver com essa rapariga, Tuala, pode estar relacionada com Bridei e Bridei é o centro do nosso plano. Não te esqueças do que combinámos, nós os cinco; não te esqueças do nosso juramento de total honestidade.

— Era pessoal.

Alguém bateu à porta; Aniel espreitou.

— Tivemos visitantes — disse ele. — Tharan e Eogan. Expressaram o seu pesar por Bridei ainda estar inconsciente e disseram-me, de certo modo indiretamente, que temos o seu apoio visto que Carnach está fora da corrida. Tharan não o disse por estas palavras, claro; Carnach feriu o orgulho do seu mentor com esta decisão. No entanto, achei que estava a ser verdadeiro.

Broichan acenou com a cabeça.

— Ótimo — disse ele. — Eu detesto esse teu amigo conselheiro, mas sei que podemos confiar nele, sei que porá os interesses de Fortriu à frente de tudo o mais. Esta tentativa para assassinar Bridei só serviu para nos unir ainda mais contra o sul. Apesar disso, ainda não temos apoios que cheguem. E o tempo escasseia cada vez mais.

— Bridei tem tudo controlado. — Para sua surpresa, fora Breth, o guarda-costas, que falara do lugar onde estava sentado, à lareira. — Ele há de conseguir esses apoios.

— Espero que tenhas razão — disse Aniel secamente. — Neste momento, Bridei não está em posição de controlar seja o que for. Rezo aos deuses para que fique bom a tempo e que possamos confiar no seu plano.

— Ele vai ser rei — disse simplesmente Breth. — É claro que podeis confiar nele.

— Portanto — disse Dreseida, andando de um lado para o outro no soalho coberto de palha dos alojamentos das mulheres — a rapariga fugiu de Banmerren. Desapareceu na floresta. Suponho que, mais cedo ou mais tarde, era inevitável. Ela nunca devia ter entrado para a irmandade de Fola; foi um erro. Tinha de voltar, foi superior às forças dela.

— Voltar? — perguntou Ferada. — Voltar para onde?

— Para lá do nosso mundo: para o lugar de onde veio. Para junto dos da espécie dela. Para nós, as notícias não são boas, não podemos tirar partido da rapariga. Esperava que a devoção dela pelo irmão adotivo, e dele por ela, nos desse uma oportunidade... Como é que está Bridei? O que é que se diz?

Ferada olhou surpreendida para a mãe.

— Por que havia eu de sabeirais do que a mãe? Acabo de regressar de Banmerren. Tanto quanto sei, Bridei está a melhorar, mas continua demasiado doente para poder receber visitantes. Pelo menos foi o que Ana disse; ela tentou ir vê-lo, mas não a deixaram entrar. Se quer saber notícias, por que não pergunta ao pai?

— O teu pai é uma autêntica lapa no que respeita a este assunto — disse Dreseida. — Porém, ouvi o suficiente para me deixar preocupada. Parece que tinhas razão, filha. Afinal de contas, parece que o candidato ideal não vai ser o óbvio. Eles querem avançar com Bridei, isto se ele recuperar a tempo. Bridei, aquele intelectual de falinhas mansas, sempre com a cabeça nas nuvens. O peão de Broichan. Não consigo acreditar! O sangue daquele rapaz é fraco. O pai dele é de Gwynedd, um estrangeiro; a mãe dele é prima afastada de Drust, o Touro. Como é que um mestiço pode ter a força suficiente para servir como rei de Fortriu? Isto é obra de Broichan. Os druidas têm poder a mais. Aquele homem devia ter sido detido antes de a sua influência ter começado a corromper os outros. Os outros, que tinham obrigação de sabeirais. É lamentável. É mais do que lamentável. — Dreseida torcia as mãos e andava de um lado para o outro como uma fera numa jaula.

Ferada tossiu nervosamente.

— Mas, mãe... Eu concordo que é um pouco surpreendente Carnach ter concordado em apoiar a pretensão de Bridei, em vez de o enfrentar. Mas faz sentido, se pensarmos bem. Nós precisamos de um candidato forte do norte, não dois ou três, se queremos derrotar Drust, o Javali. É verdade, como disse, que Carnach é o candidato óbvio. Ou era. Dizem que Bridei tem cada vez mais apoios, que crescem a cada dia que passa. A sua honestidade, a sua coragem e o seu dom da palavra são muito admirados. Além disso, o rei Drust, o Touro, gostava dele. Isso é conhecido e deve contar a seu favor.

O olhar que a mãe virou para ela fez Ferada engolir em seco. A jovem imobilizou-se, perguntando a si própria que pecado cometera daquela vez; qual seria o castigo.

— Muito bem, Ferada — disse Dreseida, batendo as palmas. Ferada apercebeu-se de que a mãe tentava devolver a calma às feições tensas e aos olhos furiosos. Para um estranho, a atitude era convincente. — Uma pequena mudança de plano. Só temos alguns dias antes da chegada de Drust, o Javali, e de a coisa começar a sério. Quando Bridei estiver suficientemente recuperado, tu vais criar uma oportunidade para falar com ele em particular. Pode ser hoje, ou amanhã, mas não mais tarde.

— Mas, a mãe sabe que a guarda em redor dele é apertada. Ainda por cima agora, com a eleição tão próxima e Bridei ainda tão doente.

— Pára de protestar e ouve o que eu digo. Por todos os deuses, por vezes pergunto a mim mesma por que razão as pessoas te acham inteligente. Tenho uma tarefa para ti. Desta vez não são confidências, ele deve estar muito cansado para isso. Apenas uma visita, só tu e Bridei, sozinhos, juntos. Sê gentil, sê encantadora, sê rapariga, se conseguires. Quero que lhe dês uma... não quero chamar-lhe uma poção de amor, parece um pouco rude, mas, de fato, é o que é. Arranjas uma oportunidade para estar sozinha com Bridei e deitas-lhe isto na água ou noutra bebida qualquer. Assegura-te de que os olhos dele estão fixos em ti quando a beber.

— O quê? — Aquilo era tão inesperado que Ferada pensou que estava a ouvir mal.

— Pensa, Ferada. Bridei ou Cealtran. Um jovem saudável, que tu toleras bem, ou um pote de banha velho com mãos curiosas. Eu sei qual escolheria.

Ferada ficou sem palavras.

— Podias ser rainha — disse Dreseida suavemente. — Chega como poder, para ti? É fácil. Eu tenho aqui um anel, uma insignificância, com uma pequena tampa; pode-se esconder dentro dele alguns grãos de pó e depois pode-se deixá-los cair numa caneca de cerveja, ou de água sem levantar suspeitas. Eles deixar-te-ão entrar. Cora, sorri, bate as pestanas. Convence os guardas de que estás apaixonada. Assegura-te de que é Breth, ou Garth, quem está de serviço e não aquele celta miserável.

— Mas, mãe, isso não faz sentido. A mãe nunca gostou de Bridei; sempre deu a entender que o desprezava. Sempre achou que ele não tem vontade própria. Por que há de querer que a sua filha case com ele?

— Responde-me a uma pergunta, Ferada — disse Dreseida muito docemente. — O que é que eu te disse acerca do casamento, vezes sem conta, quando eras criança? Por que razão se casa uma mulher? Em que é que se baseia uma mulher quando escolhe um marido?

— Estratégia. — O tom de Ferada era amargo. — Nós casamos por uma questão de poder. Por uma questão de influência.

— Rapariga bonita. — Dreseida sorriu, fazendo estremecer a filha. — Se, contra todo o bom senso, Bridei for eleito rei, eu tenho de o aceitar, mas só se a minha filha for rainha. Está bem, ele é um chato, prefere os livros e as orações à companhia e conselho dos poderosos. Não interessa. Bridei é um homem. Pode ser influenciado. Até Broichan pode ser influenciado. Por isso, vais fazer o que te peço. A não ser, claro, que prefiras Cealtran.

Ferada engoliu em seco, ao mesmo tempo que tentava, desesperadamente, encontrar palavras para responder. Estranhamente, a sensação que sentia naquele momento era de alívio.

— Eu... A mãe sabe que eu não me quero casar, mas se tiver que o fazer, prefiro não depender das poções das velhas para conseguir um parceiro. Por que é que o pai não pede a Broichan que pense no assunto? Seria um casamento vantajoso. De fato, o pai falou várias vezes nessa hipótese.

— Não temos tempo para isso. — A voz de Dreseida era fria. Quero resolver já o assunto. Quero ter a certeza. Quando o rapaz estiver suficientemente bom para poder ver os amigos, vais fazer o que te mando. E vais ficar muito caladinha. Será melhor para ti se parecer que Bridei te escolheu porque te admira e porque acha que serás uma boa rainha para Fortriu. Nesse aspecto, a tua conversa sobre as poções das velhas está certa.

— De certo modo — disse Ferada — sinto-me um pouco encorajada pela sua decisão. Preferia não me casar com Bridei. Aliás, preferia nem sequer me casar. Porém, a mãe aliviou os meus receios num ponto. pensei — cheguei a pensar — não, apercebi-me de que estava a ser to?la. Evidentemente, a mãe não seria capaz de colocar Gartnait como Pretendente ao trono? Seria demasiado cruel!

Enquanto a filha falava, Dreseida virara as costas. Ferada não pôde ver o rosto da mãe. A voz, quando a ouviu, era fria como o ferro.

— O anel está em cima da mesa, ali, junto da vela. Leva-o. Usa-o. Se não fizeres isto, Ferada, acredita, a tua vida deixará de valer a pena. Conto contigo.

— Isto não pode esperar até Bridei estar totalmente recuperado? Talvez depois da eleição? Não estou a ver...

— Ferada. — Aquele tom outra vez; o tom que lhe provocava arrepios na espinha.

— Sim, mãe?

— Vais fazer isto agora. No espaço de dois dias, se possível. Engana-te e o que te espera será muito pior do que o velho Cealtran, prometo-te.

— Mãe... — Ferada respirou fundo. — Isto é... parece-me errado...

— Chega! — A voz de Dreseida parecia um chicote; Ferada, contra a sua vontade, encolheu-se. — Não te atrevas a criticar-me! Acredita, o tempo passa. Provavelmente, eu sou a única na corte que compreende o que está em jogo. Agora que Drust morreu, sou a que tem o sangue mais puro: Eu e os meus. Dá-te por feliz por não te exigir mais nada, Ferada. E não penses em desafiar-me, porque não duvides que serei a vencedora. E agora vai.

— Está bem, mas...

— Vai!

— Sim, mãe.


A viagem foi dura e cansativa. Tuala pensava que seria rápida com Madressilva e Teia como guias; aquelas criaturas não podiam mudar de forma à vontade, deslizar sobre os campos gelados, mergulhar nos lagos mais profundos, voar como as andorinhas, ao sabor das correntes, sobre o Vale? Se era da espécie deles, por que razão não podia fazer o mesmo entre Banmerren e Pitnochie com a mesma facilidade com que passara do telhado da torre para a árvore sem se preocupar com o perigo? Por que não podia ser como uma coruja da floresta, um salmão do rio, um veado, uma lebre, um animal qualquer, livre? Porque não; pelo menos por enquanto.

— Passaste muitos anos entre os humanos — disse Teia. — NóS avisámos-te. Enfraqueceste; a tua vontade diminuiu e a tua magia diluiu-se. Algum tempo no reino de lá e tudo voltará ao normal. Entretanto, vais ter de caminhar. Nós vigiamos-te.

Porém, enquanto progredia obstinadamente em direção ao Vale, passando as noites em telheiros ou em medas de feno encharcadas, comendo pão bolorento, a única coisa que conseguira surripiar antes da fuga de Banmerren — através de uma janela minúscula enquanto as suas vigilantes oravam, para cima da árvore, para a parede e descendo depois, provando que era, de fato, algo mais do que humana porque fechara os olhos, imaginara que era uma coruja e saltara — Tuala apercebeu-se de que os seus companheiros continuavam tão esquivos e imprevisíveis, quando a sua presença podia significar a diferença entre a vida e a morte para ela, como em tempos mais fáceis. Por vezes, caminhavam a seu lado, encorajando-a com palavras amáveis, com canções e histórias. Por vezes, a jovem acordava de madrugada entorpecida, gelada, desanimada e descobria que estava só. Quando tal situação acontecia, Tuala confiava nos seus sentidos para encontrar o caminho certo e abençoava as lições de geografia de Erip, do Sol, da Lua e das estrelas. Com a educação que tivera, dificilmente se perderia.

Depois da última Lua cheia, Tuala decidira deixar de se preocupar fosse com o que fosse. Porém, algumas coisas continuavam a preocupá-la. O tempo estava a ficar mais frio e nevava ligeiramente de vez em quando, o que fazia com que tivesse saudades de uma fogueira. As suas botas estavam ensopadas e os seus pés estavam cheios de bolhas. Por que razão Teia e Madressilva não tinham frio? Quando regressavam, acomodando-se a seu lado na palha por trás de um chiqueiro, o único refúgio que conseguira encontrar, fazia-lhes aquela pergunta e recebia uma resposta familiar.

— Tu estiveste muito tempo entre os humanos. As tuas tendências adquiriram o padrão deles. Quando chegarmos a casa, recuperas rapidamente. Lá não há calor nem frio; em casa não há dor.

— Mas... — arriscou novamente Tuala — o significado pode não ser esse. Talvez eu tenha frio, esteja cansada e tenha fome porque não sou uma de vós. Talvez seja humana, como Bridei. — Pronunciar aquele nome era ao mesmo tempo doce e angustiante: um feitiço de amor e de perda.

— Ah! — troçou Madressilva, instalando-se confortavelmente na pala. — Não voaste da muralha de Banmerren? Uma rapariga humana teria partido o pescoço.

— Nesse caso, talvez eu seja metade de cada, o resultado de uma União entre um da vossa espécie e um humano.

— Se assim fosse, saberíamos — tranquilizou-a Teia. — Uma coisa dessas é rara. Pensa em Amna do Xale Branco. Ela nem sequer se deu ao trabalho de conservar aquele Conn miserável mais do que uma noite de cada vez e no fim deu cabo dele. A fraqueza dele enojava-a. Como seria possível uma pessoa como ela querer um filho dele? Se o tivesse, não o deixaria à porta de um humano qualquer, envolto em cobertores por causa do frio. Amna detestava o homem, ele não conseguia satisfazê-la. A sua última preocupação seria a sobrevivência do filho dele.

— Mas tu disseste... Madressilva é que disse... que a história de Amna não era verdadeira — protestou Tuala. E a mulher-coruja? Essa tinha filhos. Pode acontecer. Além disso, seja eu o que for, os meus pais não me quiseram. Se pertenço à vossa espécie, se a minha mãe e o meu pai eram Boa Gente, por que não ficaram comigo? Não, ficai, respondei à minha pergunta! Por que não respondeis? Não mereço a verdade, se vou convosco? E se eu atravesso a margem de que falais e descubro que lá também ninguém me quer?

— Acreditas nisso? — perguntou Teia com voz fria. — Queres que te deixemos aqui? Queres passar o resto da vida entre os humanos que te trataram tão injustamente, com tanta indelicadeza? Para onde é que ias?

— Não é isso que eu quero — murmurou Tuala. — O que eu quero é saber quem sou. E quero sentir calor, estar seca. A viagem parece tão longa.

— Hum — disse Madressilva, olhando para ela com os seus olhos redondos, estranhos. — Quanto ao frio, não posso fazer grande coisa. Se acendermos uma fogueira, as pessoas da herdade aparecem aí para ver se lhes roubamos uma ovelha ou duas. Há quanto tempo estamos em viagem? Três dias? Quatro?

— Quatro — disse Tuala, desconsolada. — E ainda nem sequer chegamos ao Lago da Serpente. É quase Lua nova e penso que vai nevar.

— Sim — disse Madressilva — Um homem a cavalo conseguiria percorrer mais depressa a distância, claro, com uma conjunção feliz do tempo e da Lua, mas precisaria de uma montada de qualidades excepcionais. Quanto a nós, não viajamos de qualquer maneira. Cada um segue o seu caminho muito particular e calcula o tempo que vai demorar. Não te podemos levar num abrir e fechar de olhos, que é o que os druidas fazem, segundo parece, mas podemos, a partir de agora, viajar mais depressa. A Lua nova ajuda muito.

— Não ajuda, não — disse Tuala. — A Lua nova quer dizer que não podemos viajar de noite, a não ser que queiramos tropeçar num lodaçal ou cair num lago e servir de alimento às serpentes.

— A Lua nova é a altura certa para terminarmos a nossa viagem disse Teia. — A Lua nova calha no Solstício de Inverno, uma conjunção de grande significado, quase tão grande como a da noite em que foste encontrada à porta de Broichan, uma visão de luz e esperança. Nessa ocasião, A Que Brilha revelou a sua verdadeira beleza, o seu poder radiante; desta vez, ela esconde o rosto do mundo dos homens e do nosso ao mesmo tempo que a estação muda. Quem sabe o que pode acontecer numa noite assim? Em Caer Pridne, os pretendentes ao trono vão levantar-se e proclamar as suas intenções. O teu amigo vai estar entre eles; uma certa donzela estará perto dele, sorrindo-lhe, aplaudindo-o. Nós estaremos nos bosques acima de Pitnochie; estaremos junto do Espelho Negro. Basta um passo, um único, e ficarás para sempre livre dessas preocupações humanas. No nosso reino terás resposta para todas as perguntas...


CAPÍTULO DEZESSEIS


— Ferada — disse Ana gentilmente — creio que estás a coser isso à tua saia.

— Oh. — Ferada olhou para o seu trabalho, resmungou uma praga muito pouco própria de uma dama e começou a desfazer os pontos com os lábios cerrados. As duas raparigas estavam sentadas à luz de uma candeia porque os dias escureciam cedo e as nuvens obscureciam o rosto da Guardiã das Chamas, que ardia baixo e com pouca intensidade naquela época do ano, próxima do Solstício de Inverno. O bordado de Ana era requintado: um padrão de flores minúsculas de cor creme, cada uma com uma orla azul, estreita.

— O que é que se passa? — perguntou a jovem, observando os movimentos impacientes das mãos de Ferada puxando o fio e quase rasgando o tecido. — Estás preocupada com qualquer coisa, é óbvio. Pareces exausta. Ainda estás a pensar no Portal?

— Tenho de estar, não tenho? — O tom de Ferada era ameaçador. — Depois do que ouvi, não sei se desprezo Fola por permitir que aconteça uma tal atrocidade, ou se a admiro pela sua total obediência aos deuses. Ainda não me decidi. Um ritual destes só podia ter sido imaginado por homens. Como é possível uma mulher no seu perfeito juízo aceitá-lo? Não acredito como A Que Brilha pode permitir que ele continue ano após ano. É um pecado.

— Shhh. — Ana olhou em volta, nervosa, como se os deuses estivessem mesmo atrás dela à escuta. As duas raparigas estavam sozinhas naquele quarto, nos alojamentos das mulheres, mas a qualquer momento podiam entrar outras. Havia muitas mulheres em Caer Pridne naquele momento, à espera, com os seus maridos, da apresentação dos candidatos, da assembleia, do anúncio da nova estrutura do poder. Muita coisa seria decidida nos dez dias que se seguiriam. A estação era propícia à arte do bordado, da roca e do tear. No entanto, as mulheres mais velhas preferiam o grande salão com a sua grande lareira, a sua música e as suas conversas interessantes. Em épocas como aquela, de mudança, as mulheres eram transmissoras muito úteis de informações e tinham uma considerável influência sobre os seus maridos visto que tinham bons ouvidos e uma grande capacidade de persuasão.

— Aceito que possas pensar desse modo — continuou Ana — mas não o deves dizer em voz alta.

— Começo a perguntar a mim mesma por que não. — Ferada arrancou o último fio e cortou com os dentes a ponta puída. — Começo a perguntar a mim mesma se acredito em alguma coisa para além do fato de os homens e as mulheres serem motivados pela ganância e pela luxúria do poder.

— Ferada! — Ana baixou o seu trabalho e olhou para a amiga, alarmada. — Isso que estás a dizer é terrível. E o amor? E o desejo de ajudar os outros? E a melhoria de vida do teu povo e da tua terra?

Ferada ergueu as sobrancelhas.

— Em tempos acreditei nisso tudo — disse ela. — Se tu ainda estás agarrada a esses ideais, fico feliz por ti. Suponho que te dá esperança, uma coisa de que precisas se vais ficar aqui como refém até alguém te deixar voltar para casa.

— Estás a ser muito cínica — disse Ana calmamente. — E, lá no fundo, não acreditas no que estás a dizer. Há muitos homens e mulheres de valor, bons, altruístas. E Bridei?

As mãos de Ferada fizeram um movimento seco e bruto e a jovem estremeceu quando a agulha lhe picou um dedo.

— Anda lá — disse Ana. — Diz o que tens a dizer.

— Tenho de o ver, mas não o deixam ter visitas.

— Hum — disse Ana. — Também eu; como te disse, ordens de Aniel. Uma de nós tem de entrar no quarto. Uma de nós tem de lhe dizer.

Ferada olhou para ela.

— Acerca de Tuala — disse Ana. — Acerca do que lhe aconteceu. Ele vai querer saber assim que estiver melhor.

— Mas... — Ferada franziu o sobrolho e torceu as mãos. — Broichan não lhe terá já dito? Fola enviou-lhe um mensageiro.

A expressão de Ana era severa.

— Sim; tenho a certeza que Broichan sabe que Tuala fugiu. Como Pai adotivo, é sua responsabilidade mandar gente atrás dela para a tentar encontrar. Porém, não sei se dará a notícia a Bridei. A apresentação dos pretendentes é daqui a três dias e Bridei continua doente, pelo menos é o que toda a gente diz, e ele ficaria muito preocupado se soubesse que Tuala desapareceu, que se foi embora a meio do Inverno e que ninguém sabe para onde. Broichan vai querer que Bridei esteja no seu melhor para a apresentação.

— Mas tu, se puderes, diz-lhe — disse Ferada.

— Tu não?

— Não sei. — O tom de Ferada, habitualmente confiante, estava diferente. — A única coisa que sei é que tenho de vê-lo e não sei como.

Um grupo de mulheres entrou no quarto, falando em voz baixa: a rainha Rhian, pálida mas composta e três damas de companhia. Todas elas traziam consigo cestos de costura. As duas raparigas levantaram-se e baixaram as cabeças educadamente.

— Continuai, minhas queridas — disse Rhian, sentando-se num banco junto da pequena lareira. — Só estávamos à procura de um lugar tranquilo; o salão está cheio de gente, a maior parte a dizer disparates. Pelo menos, é o que me parece. Tenho uma notícia que é capaz de vos interessar. Aniel disse-me que Bridei está melhor; que se sentou e mostrou algum interesse por uma sopa quente; foi assim que ele disse. Graças aos deuses. Foi há tanto tempo; não me lembro de uma doença prender um homem saudável à cama durante tantos dias. Foram quê? Dez? Doze?

Os deuses queiram que Bridei melhore o suficiente para poder falar na apresentação. Soubemos que o rei de Circinn só está a um dia de viagem e que vai apresentar a sua pretensão ao trono em pessoa.

Ana olhou para Ferada e esta devolveu-lhe o olhar. As duas raparigas tinham tido a mesma idéia. Ana acenou levemente com a cabeça, como se quisesse dizer: Vai lá tu.

— Minha senhora — arriscou Ferada. — Tenho a certeza que Bridei recuperaria muito melhor se o visitásseis. Para ele, a opinião do rei estava acima de tudo. Acredito que ele se sentiria muito encorajado se... — A voz de Ferada desvaneceu-se no que pareceu ser um ataque de timidez. Ana reprimiu um sorriso.

Os olhos da rainha Rhian semicerraram-se, perspicazes.

— Estás a pedir isso como amiga da família? — perguntou ela.

— E como amiga pessoal — disse Ferada, corando sem recorrer a qualquer artifício. Fazer uma sugestão daquelas a uma rainha era mais arrojado do que o que era permitido pelas praxes da corte.

— Estou a ver — disse Rhian, olhando para Ferada e depois para Ana. — E vós ides querer ir, suponho.

Ferada olhou para as mãos.

— Gostaria muito. Só por um momento; eu sei que ele tem estado muito doente.

— As duas? — As sobrancelhas da rainha ergueram-se.

— Oh não — disse Ana muito depressa. — Ferada pode ir sozinha; quer dizer basta ir uma de nós. Não me importo de esperar até Bridei estar completamente restabelecido.

— Hum — disse Rhian. — Vale a pena tentar só para ver se consigo passar pelo formidável exército de guarda-costas que eles reuniram. Não sei o que é mais intimidante: os guarda-costas ou os druidas. Muito bem, Ferada. Talvez amanhã, depois do pequeno-almoço. Eu mando chamar-te. Serve assim?

— Sim, minha senhora. — Ferada fez o possível por parecer uma rapariga apaixonada, de olhos baixos e com as mãos entrelaçadas com força. A jovem sentiu no dedo o peso incómodo do anel que a mãe lhe dera; a tampa de esmalte verde, com a sua mola intrincada, escondendo no interior o pó castanho de aspecto inofensivo. — Obrigada.

— Não tens de agradecer — disse Rhian. — Não percebo por que razão não pedes simplesmente ao teu pai; ele passa lá metade dos dias. É verdade que nos assuntos do coração os pais não são de grande ajuda. Talvez seja preciso ser rainha para passar pela porta de Broichan. Veremos.

— Faolan... — dizia Bridei. — Chamar Faolan... agora... procurá-lo...

— Deixa-te estar deitado — ordenou Broichan. — Breth foi à procura dele. Por mais urgente que seja, pode esperar até comeres qualquer coisa, descansares e recuperares.

— Mensagem... tenho de enviar...

— Bebe isto. — A voz de Broichan era calma e profunda. O druida colocou um braço por trás dos ombros de Bridei, levantando-o e amparando-o. Os seus dedos longos levavam uma caneca aos lábios do doente.

Bridei bebeu um gole e cuspiu explosivamente; Broichan permaneceu imóvel enquanto o líquido se espalhava pelo cobertor.

— O que é isto? Não posso... dormir... não dormir... Faolan...

— Faolan só acrescentará a voz dele às nossas. — Uist estava aos pés da esteira com os olhos claros, instáveis, assentes em Bridei enquanto o jovem tentava libertar-se dos cobertores e pôr os pés no chão. — Tu não estás em estado de fazer outra coisa que não seja descansar, especialmente se tencionas fazer a tua própria apresentação. O tempo escasseia; compreendo como te sentes, mas é no teu próprio interesse...

— Escasseia — disse Bridei, olhando para o velho druida. — Escasseia como? Quanto tempo... assim?

— Desde a última Lua — disse Broichan, erguendo novamente a caneca. — Bebe, Bridei. O teu sono tem sido muito perturbador. Precisas disto.

— Não! — A caneca voou quando a mão de Bridei varreu o ar com uma violência que surpreendeu os dois druidas. — Não, não vou beber isso! Quanto tempo? Quantos dias? O que é que eu tenho?

— Treze — disse Uist, observando-o de perto.

— O quê?

— Chiu, Bridei — disse Broichan. — Ainda há tempo. Temos três dias até à apresentação. Se ainda estiveres fraco, Carnach concordou em apresentar-se como teu substituto...

— O que é que eu tenho? — Bridei conseguiu pôr os pés no chão, tentou levantar-se e caiu sentado na cama quando os joelhos não aguentaram o peso do corpo.

— Não te lembras de nada? — perguntou Broichan, sentando-se num banco; na antecâmara não se ouvia qualquer som de vozes de homens.

— Nada... desde a Lua cheia. — A voz de Bridei transformara-se num sussurro. Os seus olhos brilhavam intensamente. — O que...?

— Foste atacado, tal como Faolan tinha previsto — disse Broichan com voz firme. — A idéia foi mal concebida, cheia de riscos. Deixar-te sair sozinho de noite, com aquele tempo... Mas o celta, como sabemos, não é homem que siga as regras estabelecidas, nem se arrisca a não ser que esteja seguro do sucesso. Tu foste atacado por três homens. Faolan não estava longe. Um foi capturado. Os outros dois foram mortos. Por pouco não era demais para o teu defensor. Felizmente, Uist estava por perto e ajudou na captura. Mais felizmente ainda, reconheceu o homem que Faolan capturou por o ter visto em Circinn. O tipo falou; estava ao serviço de Bargoit. Suspeitamos que este atentado contra a tua vida, além de outros no passado, foi encomendado por Drust, o Javali.

— Apercebes-te do que isto quer dizer, suponho — disse Uist. Temos provas suficientes para desacreditar o teu rival. Se tiveres tantos apoiantes como ele, apresentaremos isto como argumento decisivo. Faolan conseguiu o que os homens mais poderosos de Fortriu não conseguiram; a tua vitória.

— Se Bridei tivesse sido morto, não serviria de nada — comentou Broichan.

— Treze dias — disse Bridei, abstrato, como se não tivesse ouvido nada. — Treze dias?

— É verdade — disse Uist — estiveste inconsciente, ou meio inconsciente, esse tempo todo. Levaste uma pancada muito forte na cabeça. Espalhamos o boato de que estiveste com um fluxo, o que explicará a tua fraqueza quando te levantares. Os teus guarda-costas têm feito um trabalho excelente, têm conseguido manter toda a...

— Muito bem — disse Bridei, levantando-se mais uma vez com um enorme esforço, necessitando de se apoiar nas costas de uma cadeira para se manter direito. — Roupas... sair... Faolan...

— Não. — As mãos de Broichan nos seus ombros forçaram Bridei a sentar-se novamente na cama; os olhos escuros do druida tinham uma expressão de comando. — Não podes ser visto nesse estado. Não podes aparecer em público até a tua mente estar totalmente restaurada. Fartaste-te de murmurar, de chorar, de gritar, de discursar em sonhos durante este tempo todo. Agora, tens de descansar. Faolan vem daqui a pouco; se achas que é essencial, fala com ele. Agradece-lhe porque o que ele fez funcionou a nosso favor. Entrega-lhe as mensagens que quiseres. Depois, toma o soporífero e dorme para que amanhã possas estar melhor.

Tinha de ter paciência. Paciência enquanto a sua cabeça desbobinava imagens e o seu corpo resistia às suas tentativas para o pôr a trabalhar; não tinha força para pegar, sequer, numa caneca e as suas pernas recusavam-se a ampará-lo mais do que um simples passo, antes de se transformarem em geleia. A dor de cabeça transformara-se numa coisa nova, um martelar monótono que se parecia mais com cólera do que com dor. Tuala... Tuala na árvore, à sua espera... talvez a noite toda ao frio, à chuva... treze dias, treze dias inteiros sem uma única mensagem... ela devia ter pensado... devia ter acreditado...

— Bridei. — Faolan chegara, finalmente. O celta demorara muito tempo; já devia ter escurecido, o Sol já se devia ter posto, passara-se mais um dia, perdera-se outra oportunidade. Os druidas estavam à lareira, falando em voz baixa. O celta estava à porta com uma capa pesada em volta dos ombros, como se tivesse regressado de um lugar qualquer. Faolan estava pálido; o seu olhar estava invulgarmente sério.

— Vem... — murmurou Bridei. — Aproxima-te...

Faolan aproximou-se da cama; sentou-se num banco de costas para os druidas, tapando Bridei. Aquele era um dos seus talentos: o celta tinha a habilidade de compreender muita coisa sem que lhe dissessem nada. Broichan e Uist não viam o jovem. Por outro lado, era sabido que os druidas ouviam muito bem.

— Broichan? — chamou Bridei.

— Sim?

— Eu quero... falar com Faolan... a sós. Tu e Uist... ar fresco... muito tempo... a tratar de mim...

— Nem por sombras... — começou Broichan a dizer, calando-se logo a seguir abruptamente. Um momento mais tarde, o druida seguia Uist para a antecâmara e a porta fechava-se nas suas costas.

— Espantoso — observou Faolan. — Pensava que ninguém era capaz de dar uma ordem àquele homem.

— Só outro... druida — disse Bridei.

— Por que... disseste que foste tu? O plano... ataque? Porquê?

— Ah. Devia calcular que seria a tua primeira pergunta. Pareceu-me... apropriado. Preferias que tivesse dito a verdade?

— Que... verdade?

— Que ias visitar uma certa dama num lugar proibido e que te tinhas esquecido de dizer aos guardas.

— Sabias?

— Vi-te na vez anterior, não te esqueças: os olhos brilhantes de estrelas, os pés a flutuar, os sintomas habituais. Pensei que serias suficientemente louco para tentar novamente na Lua seguinte. Evidentemente, não me disseste nada; sabias que não te deixaria ir. Já tinha as minhas suspeitas quanto à origem do provável ataque.

— Que estás a dizer, Faolan? Que lhes disseste onde me podiam encontrar? Que foi graças a ti que eu... que eu não pude...

— Que não pudeste vê-la? Esse assunto é mais importante do que o trono de Fortriu? Não estamos todos enganados a teu respeito, pois não, Bridei?

Bridei abanou a cabeça e arrependeu-se imediatamente porque a dor de cabeça regressou, batendo-lhe persistentemente nas têmporas.

— Enganados, não... mas não compreendem... Faolan?

— O que é?

Bridei pensou ver, através da névoa da dor e do cansaço, um novo olhar na expressão do celta. Ninguém podia chamar brando a Faolan; contudo, havia nele uma certa franqueza que dizia que as coisas entre eles estavam diferentes. Bridei esperava que o seu instinto não tivesse desaparecido com a doença.

— Tenho de lhe mandar uma mensagem — disse o jovem. Agora, imediatamente. Ela está à espera... muito tempo... Não deve saber por que razão...

Faolan sorriu.

— Uma mensagem a Banmerren? Penso que não. Sabias que só faltam três dias para te apresentares diante de toda a gente e proclamares a tua candidatura? Os assassinos que eliminamos não eram os teus únicos inimigos. Este lugar está cheio de homens poderosos, homens do sul; Drust, o Javali, é esperado em Caer Pridne amanhã. Eles só estão à espera de uma oportunidade para desacreditar quem se lhe opuser. Estou a falar de Carnach, porque muita gente pensa que ele é pretendente e estou a falar de ti. O risco é muito grande.

Bridei tentou agarrar o pulso do celta; a sua mão tinha tanta força como a de um bebê.

— Tem de ser — disse ele. — Prometi... — Faolan franziu o sobrolho.

— Prometeste o quê?

— Que... seria... responsável. — A fraqueza percorreu-lhe o corpo como um fluxo, uma maré, retardando-o, paralisando-o, procurando destruir-lhe a vontade. — Que... estaria lá... quando ela...

— Bridei — disse Faolan suavemente — não posso fazer nada esta noite. Se estivesses em ti, saberias que é assim. Amanhã falamos outra vez. Penso que deves deixar de pensar no assunto. Depois de uma boa noite de sono, talvez te apercebas que é melhor assim. De outro modo, não arriscas apenas o teu próprio futuro, arriscas também o dela. Acho que é melhor beberes a poção de Broichan. Quando ele te der, bebe-a. Tiveste pesadelos, sabes? Bem maus.

— Tive...?

— Não consegui interpretar a maior parte; os druidas devem ter percebido qualquer coisa, mas eu não. No entanto, pronunciaste um certo nome várias vezes. Isso percebi.

Bridei fechou os olhos.

— Preciso dela — murmurou o jovem, odiando a sua fraqueza.

— Chiu — disse Faolan. — Espera até amanhã de manhã. Não te apercebes, mas passaste um mau bocado. Quase te perdemos. Tenho de ir. Os teus protectores devem estar à espera, impacientes.

— Tu disseste... ouviste... pesadelos. Tu... aqui?

— Os turnos noturnos fazem parte do meu trabalho — disse Faolan sem entoação. — Estive aqui, sim. Uma das noites não, tive que levar o meu cativo para um lugar seguro, mas as outras estive, nem sempre por vontade de Broichan. Penso que ele te queria só para ele. Tenho de ir; esta capa está ensopada.

— Põem-na... à lareira. Fica... só um bocado... — Bridei sentiu que não podia continuar sentado. O jovem encostou-se na almofada, frustrado com o seu estado de fraqueza, mas também desejoso de cair num sono sem sonhos.

— Pés para cima — disse Faolan, e aconchegou-lhe os cobertores.

— Engraçado... tu... enfermeira...

— Já te disse, pagam-me — disse Faolan, tirando a capa e colocando-a num banco junto da lareira. — Para fazer com que malucos como tu vivam o suficiente para atingir o que lhes está destinado. Limito-me a fazer o meu trabalho.

— Isso... não... pagar... isso... amigo...

Ao ouvir aquilo, Faolan calou-se. Através dos olhos meio fechados, Bridei observou o rosto do celta, pelo qual passava rapidamente uma sequência de emoções notáveis: surpresa, tristeza, algo fantástico como a humildade e depois, abruptamente, a falta de expressão com que Faolan habitualmente escondia tudo o que sentia. O espião sentou-se à cabeceira de Bridei a olhar para a parede. Algum tempo depois, os druidas regressaram com o soporífero, Bridei bebeu-o e adormeceu.


A Que Brilha transformara-se numa unha; estava-se perto da noite do Solstício e da Lua nova. Era estranho como tudo estava a mudar.

Tuala já não sentia fome, ou sede, no entanto tinham-se passado vários dias desde que comera o último pedaço de pão. A jovem sabia que estava cansada e que havia algo de errado com os seus pés, mas não conseguia tirar as botas para ver o que se passava. Parecia não ter importância. Apesar de doridos, os pés continuavam a andar firmemente pelos carreiros lamacentos da floresta. As suas mãos estavam cheias de frieiras; Tuala envolveu-as no xale encharcado e ignorou a dor. Não tinha importância; estava a abandonar aquele mundo, ia-se embora. Na verdade, sentia que já tinha, provavelmente, um pé na outra margem; que já tinha entrado no reino secreto. Não só podia passar sem comer como começara a ver coisas, coisas estranhas que nunca tinha visto antes na floresta acima do Lago da Serpente, criaturas nas árvores a olhar para ela; em todos os galhos, em todos os ramos, algo fixava os olhos estranhos e luminosos na rapariga que caminhava em baixo; por baixo de cada arbusto, no interior da vegetação emaranhada, viam-se pequenos rostos enrugados, de orelhas compridas, de cabelos espetados, de narizes pontiagudos, todas as espécies de rostos, com olhos vivos parecidos com contas, curiosos. Algo estava sempre a correr no carreiro à sua frente. A jovem ouvia, mas não via nada. Sempre que subia, ouvia uns passos seguindo-a. Vozes sutis chamavam-na, misteriosas, na bruma do dia de Inverno. Tuala! Tuala! Irmã, vem para casa!

À medida que se aproximavam do lago e de Pitnochie, tornava-se cada vez mais difícil encontrar abrigo. A jovem ficou reduzida a escavar um buraco no leito de folhas podres e a apanhar os fetos que conseguia encontrar para se tapar e tentar afastar o frio. Quando chegasse ao Espelho Negro, assim que atravessasse verdadeiramente a fronteira, nunca mais sentiria frio. Enroscada por baixo de um carvalho maciÇo, Tuala pensou que valeria a pena só para deixar de tremer.

— Já falta pouco. — Madressilva estava sentado num cepo, totalmente à vontade apesar do frio do anoitecer. A Lua estava tão indisttinta que o Homem-Folha estava reduzido a uma silhueta sombria, escura no escuro. Tuala pensou naquilo. Se era um dos Boa Gente, não seria também capaz de encontrar o caminho de noite, como aqueles pareciam ser capazes? — Mais um dia ou dois — anunciou Madressilva — e estará tudo terminado.

— Pergunto a mim própria o que estarão eles a fazer em Caer Bridne — disse Teia, passando os dedos longos pelos cabelos prateados que continuavam lustrosos mesmo na escuridão. — Não te sentiste tentada a olhar para a água, Tuala? Para ver o que Bridei está a fazer?

— Não. — Era mentira. Procurara vislumbrá-lo quando os seus companheiros do Outro Mundo se tinham ausentado e estivera junto de uma poça de água sob um céu cheio de nuvens. A jovem aproximara-se, esperando que a deusa lhe mostrasse as imagens. Tuala rezara, respirara lenta e profundamente, fizera o possível por limpar a mente e abrir o seu olho de vidente. A água mantivera-se obstinadamente igual a si própria: uma poça de água refletindo nuvens cinzentas. Nem uma única imagem aparecera na superfície apesar de Tuala ter ficado a olhar para a poça até as costas lhe doerem e sentir cãibras nas pernas. A Que Brilha virara-lhe as costas; abandonara a sua filha. Tuala não queria olhar outra vez; se aquela janela lhe estava fechada para sempre, preferia não saber. Se a água lhe recusava os seus segredos, nunca mais o veria. Nunca.

— Por que havia eu de procurar essas visões? Não me disseste vezes sem conta que esta era a melhor solução? Bridei deve estar a preparar-se para reclamar o seu direito ao trono. Broichan deve estar a prepará-lo, mais nada. Não disseste que seria no Solstício de Inverno?

— Disse. No Solstício, os candidatos avançam e declaram as suas intenções. No Solstício, tu regressas ao reino a que pertences. Um resultado satisfatório; com a educação que recebeste, vais gostar.

— Tenho frio — resmungou Tuala, abraçando-se a si própria e cerrando os dentes. — Está a nevar. — E estava; os flocos brancos caíam por entre os grandes ramos nus do carvalho.

— Só mais dois dias — disse Teia. — Não é muito. Encontramo-nos no Espelho Negro. — Com aquelas palavras, a criatura desapareceu antes de Tuala ter tempo de pestanejar. Madressilva fizera o mesmo sem uma única palavra.

— Não... — começou Tuala a dizer, debilmente. — Ficai... — A jovem fez um esforço, parou e começou a respirar lentamente; era capaz, podia muito bem continuar sozinha. Já tinha estado sozinha antes. A situação não era nova. Poria muito simplesmente um pé a frente do outro e chegaria ao fim.


Bridei insistiu em levantar-se e vestir-se. O jovem fez um esforço, foi até à antecâmara, sentou-se a uma mesa e cumprimentou todos aqueles que entraram para perguntar por ele: Aniel, Talorgen e Carnach acompanhado por Tharan, o que era, de certo modo, surpreendente. Bridei achou que se tinha desenvencilhado bastante bem. Pouco depois, Breth e Garth despediram os visitantes e ficaram a vigiar Bridei enquanto ele comia papas de aveia com mel. O jovem sentiu-se uma criança mimada e disse-o.

— Goza enquanto podes — disse Breth, sorrindo. — Agora, o que tu precisas é de cama; um homem não recupera de uma coisa destas num abrir e fechar de olhos. Eu ajudo-te...

Garth, que estava junto da porta, tossiu.

— Mais visitantes — disse ele calmamente. — Damas, desta vez.

— Já chega...

— Não pode recusar estas.

A rainha Rhian entrou de cabeça erguida, usando um traje cinzento pombo da melhor lã, apropriado para aquele período de luto. Atrás dela entrou Ferada, filha de Talorgen, com um vestido azul, um alfinete de prata num ombro e os cabelos ruivos entrançados no alto da cabeça, formando uma coroa.

— Ah — disse a rainha, sorrindo. — Estou a ver que já és capaz de te sentar a uma mesa, Bridei. Ainda bem; pelo que me têm dito, esperava ver-te prostrado a dizer disparates. Não, não te levantes; nós não nos demoramos. Oh, quase me esquecia do nosso pequeno presente, Ferada. Tenho a certeza que Bridei pode pedir a um dos seus homens que o vá buscar — Garth, nos meus aposentos está um pequeno pote com uma bela sopa de galinha; vai lá, fala com a minha criada, se não te importas, que ela lhe dará. Fui eu que a fiz. Por pouco apetite que tenhas, Bridei, vais gostar, é extremamente fortificante. Vai lá, jovem! — A rainha sorriu e Garth obedeceu sem uma palavra.

Rhian sentou-se em frente de Bridei e fixou-o com os seus bondosos olhos azuis. Ferada ficou por trás dela, torcendo as mãos.

— Um pouco de hidromel? — A rainha olhou de relance para oreth e este desapareceu no outro quarto; se o guarda-costas tencionava arrancá-la dos aposentos de Broichan, não conseguira encontrar as palavras necessárias face àquela investida de boa vontade.

— E agora diz-me, Bridei — inquiriu Rhian —, estás mesmo melhor? Estiveste doente muito tempo, coisa rara num jovem tão saudável.

— Estou melhor, minha senhora. Espero estar totalmente recuperado por ocasião do Solstício.

— Ah, sim, o Solstício de Inverno... Tens pouco tempo, mas o que interessa é que estejas bom por ocasião da assembleia. O meu marido pensava muito bem de ti, Bridei. Tens de fazer o melhor possível, deves isso à sua memória. Não te esqueças. — Nos seus olhos brilhou uma lágrima, mas Rhian era uma rainha; a face continuou seca.

— É muito amável da vossa parte, minha senhora. Foi uma grande perda, muito triste. Nunca conseguirei ser igual a ele, mas darei o meu melhor, prometo-vos.

— Hmm-hmm. — A rainha permaneceu silenciosa durante alguns momentos enquanto Breth, que regressara com o hidromel, punha o jarro e três canecas em cima da mesa. — Tenho a certeza que darás, meu filho. — Que os deuses te inspirem. Estamos em tempos de grandes mudanças; mudanças assustadoras. Temos todos que ser fortes. Muito bem — disse a rainha, pondo-se de pé de repente, como se se tivesse lembrado de qualquer coisa. — Preciso de dar uma palavrinha a Broichan. Ele está? — perguntou ela, olhando para Breth. Sem esperar por uma resposta, Rhian dirigiu-se à porta interior, bateu e entrou. O guarda-costas, com uma expressão de alarme nas feições, correu atrás dela.

Ferada pegou no jarro de hidromel e encheu duas canecas. Bridei estava espantado com a mudança operada na jovem. Ferada sempre lhe parecera uma rapariga equilibrada, confiante, que o fazia sentir estranho e pouco à vontade. Naquele momento, a jovem estava pálida, indecisa; as suas mãos tremiam, desajeitadas, enquanto punha de parte o jarro e colocava uma das canecas na sua frente. O jovem, porém, não ia perder tempo com aquilo; tinha de aproveitar a oportunidade rapidamente, antes que os outros regressassem.

— Ferada, preciso que me leves uma mensagem a Banmerren. És capaz?

A jovem olhou para ele sem expressão; parecia que não tinha compreendido as palavras.

— A Tuala. É urgente. Levas?

Ferada continuava com a sua caneca na mão; as suas mãos tremiam tanto que o hidromel entornou-se.

— A Tuala... oh...

— Diz-lhe o que aconteceu. Que tenho estado doente desde a noite de Lua cheia; que não pude... — Por todos os deuses, que tinha a rapariga? Não era imaginação o seu estado de agitação; o rosto dela estava branco como a cal, as sardas sobressaíam e os lábios formavam uma linha fina, de tal modo estavam cerrados. Algo não estava bem. Tinha de a pôr à vontade. Só de pensar em beber o hidromel dava-lhe volta ao estômago, mas se desse um gole ou dois e fizesse de conta que não se passava nada, talvez ela se descontraísse e o escutasse.

O jovem estendeu a mão para a caneca, mas sem ele saber como, a mão de Ferada deu um encontrão na sua e a caneca que ela lhe enchera entornou-se na mesa de pedra.

— Oh! — gritou Ferada, estendendo a mão para endireitar a caneca.

Bridei conseguira evitar o pior, afastando o jarro da poça de hidromel. Evidentemente, ninguém, no quarto interior, ouvira a pequena agitação; a voz da rainha ouvia-se no outro lado da porta, viva e alegre.

— O que se passa, Ferada? — perguntou Bridei à jovem, vendo que ela empalidecera ainda mais. — Que aconteceu? Passa-se alguma coisa com Gartnait?

— O quê? Por que havia de se passar alguma coisa com Gartnait? — A sua voz tremia. Ferada fez uma tentativa fútil para limpar a saia, onde o hidromel escurecera o tecido azul, tornando-o cinzento, com um lenço minúsculo. — Bridei, tenho de te dizer uma coisa. — A sua voz transformou-se num sussurro. — É a propósito de Tuala. Ela fugiu.

— O quê?

— Bridei, estás a magoar-me.

O jovem apercebeu-se de que estava de pé, que estava a agarrar com força nos ombros de Ferada e que a jovem estava a gemer de dor.

— Desculpa — disse ele, libertando-a, ao mesmo tempo que o seu coração batia com toda a força e com toda a velocidade. — Fugiu? Para onde? Quando?

— Logo a seguir à Lua cheia. Uns dias depois. Ninguém sabe para onde.

Bridei sentiu um frio terrível.

— Que queres dizer com isso, ninguém sabe? Elas têm que saber!

— Não sabem. Uma noite, ela simplesmente desapareceu. Fola mandou uns homens da herdade à procura dela, mas eles não a encontraram nem viram quaisquer sinais dela. Depois, Ana e eu viemo-nos embora. Nunca mais soube nada.

Bridei sentiu-se tonto; por onde começar, fazer que perguntas, fazer o quê? Treze dias, estivera inconsciente durante treze dias, enquanto ela...

— Por que não me disseram? Por que é que ninguém me disse nada? — Tanto tempo; tão longe; tinha de ir, imediatamente...

— Provavelmente, sabiam que ficarias preocupado — disse Ferada, tentando secar a mesa com o lenço encharcado. — Eles querem que estejas nas melhores condições quando da apresentação.

— Que se dane a apresentação! Este tempo todo sozinha, no Inverno — em que estavam a pensar? Que está Broichan aqui a fazer quando — Pitnochie, ela deve ter ido para Pitnochie. Ele podia ter ido atrás dela, podia tê-la encontrado... Se ela conseguir chegar a Pitnochie, está salva e eu posso ir buscá-la...

— Eu penso que ela não queria continuar em Banmerren — disse Ferada. — Ela dizia que elas não a queriam lá; quando lá estive, ela pareceu-me muito infeliz. Eu acho que se ela tivesse podido ficar em Pitnochie, nunca teria decidido ir para Banmerren. Não sabias?

As vozes que se ouviam no quarto interior estavam a aproximar-se da porta; a rainha vinha a sair.

— Diz-me — sibilou Bridei. — Depressa!

— Broichan obrigou-a a escolher. Casar com um homem que lhe tinha feito uma oferta, ou ir para Banmerren. Ela não se queria casar. Banmerren era o menor dos males. Ela nunca quis sair de Pitnochie. Bridei, tenho de te avisar — tens de ter cuidado...

— Que homem? — As palavras sairam de um lugar frio no interior do seu corpo, um lugar onde não havia lugar para o perdão.

— Garvan, o escultor. Tuala disse que ele era bom homem, mas que não podia... Ela acreditava que a deusa tinha escolhido por ela. Antes de deixar Pitnochie ela... ela...

— Ela o quê? Depressa.

— Ela cortou o cabelo, fez um corte na mão e fez um feitiço de proteção para ti. Ela não queria ir-se embora de Pitnochie, não queria ir para Banmerren, mas já não há lugar para ela em casa de Broichan. Se Tuala foi para casa, não foi para casa do druida.

Bridei olhou para a jovem; Ferada devolveu-lhe o olhar com uma expressão sombria.

— Que vais fazer? — perguntou ela.

— Procurá-la — disse Bridei. — Encontrá-la antes que seja tarde. És capaz de me dar cobertura? — A sua capa estava ali e a um canto estava um par de botas de Garth. A hipótese era muito pequena; talvez tivesse apenas uma. Se algum deles fosse alertado, Breth, Garth, Faolan, Broichan... Broichan, que lhe tinha mentido, Broichan, que o tinha traído... seria detido. Aquela gente só pensava na apresentação, na assembléia, no grande plano que estava quase a dar frutos, não pensava numa rapariga na neve, vagando sozinha nas profundezas do Inverno totalmente sozinha, sem amigos. Bridei sentiu um nó no estômago. — Diz-lhes que Faolan veio ter comigo; que estamos reunidos e que eu regresso por volta do meio-dia.

— Como é que tu...?

Bridei não esperou para ouvir as palavras da jovem. O tempo era precioso; era uma questão de vida ou de morte. Fazendo um esforço sobre-humano, o jovem pegou nas botas, atirou com a capa por cima do ombro e saiu para o caminho de ronda. Em seguida, invocando o feitiço de encobrimento, dirigiu-se para os estábulos.


No seu quarto, em Banmerren, Fola estava sozinha com uma tigela de bronze na sua frente, em cima da mesa. A Mulher Sábia acabava de sair de um transe prolongado. As visões na superfície da água tinham desaparecido, mas Fola continuava imóvel, procurando no mais profundo do seu ser a voz da deusa, uma luz que lhe revelasse o caminho a seguir. A aceitação era lenta, lenta e dolorosa. Estavam enganados, ela e Broichan. Tinham permitido que a ambição, o orgulho e a autoconfiança lhes toldassem a capacidade de discernimento. Não tinham prestado atenção ao que A Que Brilha tornara claro desde o princípio: que o impensável devia ser aceito, que o impossível tinha de ser encarado ou tudo falharia e os seus esforços sairiam frustrados. Era difícil de engolir; era uma humilhação. Tão simples, tão óbvio; porém, não tinham visto, os dois, tão dedicados aos deuses, ambos celibatários, dedicados a uma vida de obediência, de ensinamento e autodisciplina. Ambos sem amor e sem filhos. Finalmente, Fola estava senhora da verdade. Talvez já o estivesse, no íntimo, quando encontrara Tuala pela primeira vez à sombra dos carvalhos, uma verdade minúscula, intensa, transbordando de sentimentos e tentasse escondê-los. Quanto a Broichan, talvez não conseguisse aceitar. O seu plano era perfeito, cada elemento, cada pormenor perfeitamente calculado, quinze anos da sua vida sacrificados; quinze anos dedicados à grande causa da unidade de Fortriu: a criação do reino perfeito, a moldagem do líder que transportaria aquele abençoado reino para a luz.

Se Broichan não se curvasse, se não aceitasse que o seu edifício tinha sido construído sobre fundações defeituosas, tudo estaria perdido. Se Broichan se achasse mais perfeito do que a deusa, talvez merecessem perder.

Fola começou a voltar a si, mexendo os dedos das mãos, dos pés, alterando a respiração, pestanejando, espreguiçando-se. Finalmente, a Mulher Sábia fez uma vênia com as mãos juntas e virou-se para deitar a água da tigela no jarro. Em seguida, chamou Luthana, foi buscar a sua capa. Acompanhada da ervanária, atravessou os portões de Banmerren e dirigiu-se para Caer Pridne através da areia varrida pelo vento.


Tinha de escolher. Snonfm, atento, à espera, pronto, numa antecipação de uma bela cavalgada, semelhante à que Bridei e Faolan tinham efetuado através da charneca até aos três dólmenes. Snonfm era forte e estava desejoso de correr, mas não suportaria aquela longa corrida através da escuridão invernosa. Luciry, de quem Bridei não conseguira separar-se; Luciry, o cavalo alto, malhado, o cavalo mais feio dos estábulos reais... A montada de Donal era resistente, era um corredor de fundo; melhorara com a idade. Os encarregados dos estábulos tinham-no exercitado regularmente, estava em boas condições. Luciry não era conhecido pela sua velocidade apesar das suas pernas compridas. Depressa, depressa, tinha de escolher; a qualquer momento, qualquer um dos interessados desconfiaria e a busca começaria. Aparelhar um cavalo, um cavalo qualquer e partir... Junto da soleira da porta, uma sombra branca mexeu-se: Spondrift, a égua de Uist, o animal sobrenatural com o seu pêlo cor de neve, perfeito, a crina sedosa, a cauda que parecia uma cascata e os olhos estranhos, tão fluidos e manhosos como os do próprio druida. A égua olhou para Bridei mudando de uma mão para a outra, como que a querer dizer: Anda lá, decide-te. Aquela égua era muito rápida, nunca se cansava... Aquela égua era capaz de ir onde os cavalos normais não podiam ir, com neve ou com chuva, incólume através da floresta ou do pântano, sempre no mesmo passo até Pitnochie.

Bridei conseguira ir até ali controlando o seu corpo fraco com uma enorme força de vontade. No entanto, estava muito fraco e a mente não podia fazer tudo. O jovem abriu a porta. Era necessário subir para uma espécie de banco e dali para um parapeito para chegar ao pescoço da égua; uma proeza desajeitada. Bridei inclinou-se para a frente com as mãos no pescoço de Spindrift e murmurou-lhe ao ouvido:

— Leva-me para casa.

O jovem esperava que o animal compreendesse. Precisaria de todas as suas forças para conseguir manter-se em cima da égua e continuar a respirar; mal conseguiria guiá-la. Não levara nada consigo; nem comida, nem água, nem qualquer arma, nem fosse o que fosse. Nem tempo. Tinha de partir imediatamente, antes de ser descoberto, e esperar que aquele animal raro conseguisse deixar para trás os melhores que os seus vigilantes conseguissem arranjar. Em algum lugar na sua mente, continuava a eleição, os homens e as mulheres que dependiam dele, a questão do destino. Porém, tudo aquilo estava no interior de uma bolota, de uma noz, ultrapassado pelo peso do seu medo, da sua fúria, da sua necessidade ardente de encontrar rapidamente o seu amor, depressa, antes de o perder para sempre.

— Vamos — murmurou Bridei e, rodopiando, num sobressalto, graciosa como um cisne em vôo, a égua saiu de Caer Pridne disparada em direção a sudoeste, em direção ao Grande Vale. Um vulto pálido na escuridão do Inverno, a égua galopava com a confiança de um animal que se sabia protegido por poderes mais antigos do que o tempo e não deixava uma única marca atrás de si, no solo macio.


Estava um frio de rachar no caminho de ronda, no lado de fora dos alojamentos das mulheres. Ferada comprimiu-se por trás dos degraus com a capa por cima da cabeça e cruzada no peito, escondendo o fino vestido azul, o belo alfinete de prata e o odiado e pesado anel. Já estava ali havia algum tempo, sem ser vista por ninguém. Em algum lugar, na barriga, a jovem sentia um peso enorme, como que uma pedra enorme; talvez fosse medo. Medo de uma bofetada da mãe; medo dos olhos da mãe. Medo do que estava para vir, para ela, para todos. Doíam-lhe os dedos; roera as unhas até ao sabugo e roera a pele do indicador até fazer sangue. No entanto, apesar daquele sentimento de pavor, no seu coração havia algo diferente, algo bom e novo. No fim das contas, não fizera o que lhe tinha sido ordenado. Talvez fosse realmente uma poção de amor, como Dreseida lhe dissera. Talvez. Ferada queria acreditar que era verdade; queria, mais do que tudo, que fosse verdade, apesar de improvável. No entanto, vira o olhar no rosto de Dreseida, sabia a força que a mão da sua mãe tinha, do que era capaz a sua fúria. Por que razão queria Dreseida que Bridei se apaixonasse por ela? Antes, nunca quisera o filho adotivo de Broichan para marido da filha e não o queria como rei. Se Bridei tivesse bebido aquele hidromel, Dreseida teria transformado a sua própria filha numa assassina.

Talvez não fosse verdade. Talvez fosse apenas a sua imaginação. A sua mãe era uma mulher de linhagem impecável e muito inteligente. O seu pai era honesto, justo, admirado por todos; era amigo de Broichan. Que não seja verdade, pensou Ferada. Que não passe de um sonho mau. Porém, não conseguia deixar de pensar noutra ocasião, quando Donal morrera em vez de Bridei, no salão da sua própria casa, na Fonte do Corvo. Donal morrera envenenado. Teria sido um servo que, por lealdade ou por medo, matara por ordem da sua senhora?

Estava a fazer-se tarde e não podia ficar ali o resto do dia. Bridei já devia estar longe e a sua mãe devia estar à espera de um relatório. Teria de lhe dizer... Teria de lhe dizer a verdade, pensou Ferada sinistramente, pondo-se de pé e alisando a saia do vestido. A partir dali, diria sempre a verdade e se as pessoas não gostassem, pior. A jovem tremeu convulsivamente. Ali sozinha, ditas em voz baixa, aquelas intenções pareciam-lhe muito bonitas. A coisa seria diferente quando tivesse de enfrentar os olhos penetrantes da sua mãe, a sua língua viperina, a sua mão pesada. Não interessava; fá-lo-ia. Mas primeiro... Com dedos trêmulos, Ferada tirou o anel e sopesou-o na palma da mão durante um momento; entre as pedras do caminho de ronda havia uma fenda profunda, com musgo de ambos os lados. Ferada meteu nela o anel e ouviu-o cair mais abaixo, onde ficou a descansar, invisível. Em seguida, pôs-se de pé e entrou.

Gartnait e Dreseida estavam na câmara destinada à família. Dreseida e Ferada dormiam nos alojamentos das mulheres, juntamente com os rapazes menores. Talorgen e Gartnait dormiam nos dos homens. Porém, como família nobre e parente do rei, tinham algumas divisões para seu uso exclusivo; o lugar onde estavam era o seu principal local de encontro. Quando Ferada entrou, a mãe e o filho calaram-se.

— Bem, bem — disse Dreseida suavemente. — Surpreendeste-me, filha. Parece que a tua missão resultou. Nunca pensei que fosses capaz.

Ferada sentiu um nó no estômago; olhou para Gartnait, para a mãe e novamente para Gartnait.

— O quê? — perguntou ela. — Não compreendo...

— A história que foi posta a circular diz que Bridei piorou subitamente. — A voz de Dreseida era calma, mas os seus olhos tinham uma excitação que enjoou Ferada. — À hora do pequeno-almoço, está sentado e recebe visitas; antes do meio-dia, está mais uma vez indisposto, a porta está fechada e os guarda-costas não deixam entrar ninguém. Diria que vai haver uma declaração dentro de pouco tempo. Se o nosso jovem amigo recebeu a última visita da Mãe de Tudo, Broichan não vai conseguir mantê-la em segredo depois do Solstício. Vão precisar de outro candidato ou Drust, o Javali, avança e fica com tudo.

— Mas... — protestou Ferada; havia algo errado ali, aquilo era um pesadelo. — Não foi...

— Foste esperta, filha, muito esperta. Ouvi falar na visita da rainha. Foi um disfarce perfeito. Rhian é tão nobre e honesta, ninguém desconfia dela. Bom trabalho, minha querida.

Ferada respirou fundo.

— Portanto, não era uma poção de amor — disse ela, pensando a toda a velocidade.

As sobrancelhas de Dreseida ergueram-se extravagantemente; os seus lábios torceram-se.

— Ora vamos, Ferada. Não acreditaste nisso, pois não?

Ferada olhou para o irmão. Gartnait estava pálido, tinha os dentes cerrados e as mãos atrás das costas. A jovem sabia exatamente o que ele estava a sentir; como ela se sentiria se tivesse levado a cabo a missão de que fora incumbida.

— Ele é o teu melhor amigo — murmurou ela.

— Está no meu caminho — disse Gartnait em tom insípido. Sempre esteve. — Era como se estivesse a repetir uma lição memorizada.

— No teu caminho para quê? Nunca serás rei. E Carnach, Wredech, qualquer um dos primos de Ana? O pai nunca pensou...

— Cuidado com a língua! — avisou Dreseida, e Ferada calou-se, mantendo os olhos nas feições febris do irmão. Gartnait devia saber; devia saber que não valia a pena. Que lhe dissera Dreseida para o levar a acreditar naquilo? — O teu irmão tem-se esforçado. Além disso, é meu filho. Está pronto.

— Mãe — disse Ferada, consciente de que tinha de lhes dizer mas incapaz de o fazer. — Porquê? Porquê? Odeia Bridei assim tanto?

Dreseida sorriu cruelmente.

— A ele não. À mãe dele. Anfreda levou o que me pertencia, roubou-me a oportunidade; roubou-me o futuro. Era uma pretensiosa, andavam todos em cima dela, como se ela fosse uma cadela no cio. Era nojenta a perspectiva de ver um filho dela no trono de Fortriu. Enoja-me.

— Ficou com o que era seu? Que quer dizer com isso? Está a falar de Maelchon?

— Ele ia fazer uma oferta por mim; foi ele que me disse. Teria sido rainha. Ele era um homem poderoso, um verdadeiro líder. Como mulher dele, teria gozado de uma influência enorme. Então, apareceu ela a doce Anfreda, e ele nunca mais olhou para mim.

— Mas a mãe casou com o pai.

— Casei — disse Dreseida por entre os dentes cerrados. — E tenho o meu filho, e o meu filho é que vai ser o rei de Fortriu, não o filho dela. Tal é a vontade dos deuses.

Havia algo no rosto dela que assustava Ferada mais do que qualquer ameaça, qualquer bofetada.

— Mãe — perguntou ela —, já pensou no que isto vai fazer a Gartnait? Temos menos de dois dias até às declarações. Ele nunca fez um discurso formal na vida. Não lhe pode fazer isto. É cruel e injusto.

— Eu sou capaz — disse Gartnait em tom cortante. Ferada ouviu o desespero no seu tom de voz, apesar do ar de confiança, e o seu coração chorou por ele.

— Eu vou falar por ele no Solstício — disse Dreseida firmemente. Os substitutos são permitidos e eu sou de sangue real. Vou apresentar a pretensão de Gartnait de uma maneira que nem Broichan poderá recusar. Tudo o que Gartnait terá de fazer será levantar-se perante a assembléia, dizer um discurso preparado antecipadamente e estar presente na votação. Eu não sou estúpida, filha.

— Não, mãe. — Ferada viu o irmão arrastar um pé no chão, fazer tenção de dizer qualquer coisa, pensar melhor e fechar a boca. Tinha de lhes dizer. Jurara dizer a verdade... Tudo o que lhe apetecia fazer era fugir e esconder-se como uma criança assustada. — Mãe — disse ela, com esforço —, não me parece que Gartnait queira ser rei. E não me parece que venha a ser.

— Que tolice é essa? É claro que quer...

— Mãe, eu não dei a poção a Bridei. Ele não está a morrer; foi à procura de Tuala. Eu dei-lhe a notícia do desaparecimento dela e ele foi-se embora.

O rosto de Dreseida mudara de modo alarmante durante o seu discurso; estava distorcido de fúria. A sua voz soou mortalmente calma.

— Diz isso outra vez, Ferada e diz-me que não é verdade. Lembra-te, enquanto vai falando, do que te disse exatamente acerca das consequências da tua desobediência.

— Eu não estou preparada para ser uma assassina, nem sequer pela melhor das causas. Por uma causa sem esperança como esta, então, nem pensar. Gartnait não tem estofo de rei, até uma mulher cega é capaz de ver. Bridei regressou a Pitnochie. Não vai estar aqui por ocasião das apresentações. Porém, como muito bem disseste, não tem importância porque os substitutos são aceitos. Talvez o pai fale por ele.

Dreseida deu um passo em direção à filha. O braço recuou, preparando-se para uma bofetada monumental; Ferada prendeu a respiração e esperou imóvel, sem pestanejar.

— Não, mãe. — Gartnait prendeu o braço da mãe, impedindo-a de bater na filha. — Assim, não. — O jovem olhou de relance para Ferada. — É melhor ires. Deixa isto comigo. E fecha a boca para o bem de todos. Já provocaste demasiados danos.

Ferada fez uma pausa à entrada e depois, ao ver a expressão no rosto da mãe, desapareceu.

Depois de Ferada ter saído e da porta se ter fechado, Dreseida olhou para o filho e disse:

— A tua irmã desiludiu-me. Tu és meu filho. Chegou a hora de provares que és alguém, de lhes mostrares o que podes ser.

Gartnait engoliu em seco e endireitou as costas.

— Eu encontro-o. Farei com que a mãe se orgulhe de mim.

Dreseida acenou com a cabeça.

— Terás de ser rápido; parece que a vantagem dele é grande. Tens de ir imediatamente e quando tiveres oportunidade, a coisa tem de ser bem feita e sem ninguém ver. Tem de ser impecável. Compreendes? Nada nem ninguém te poderá acusar.

— Sim, mãe. Já provei que sou guerreiro; não se esqueça. Sei o que hei de fazer.

— Vai, então.

— E as apresentações? Eu não vou estar...

— Ainda bem, talvez, que vais estar ausente; fornece-me a justificação para falar por ti. É claro que tens de regressar a tempo da assembléia. Nove dias; é suficiente. Com sorte, apanha-o antes de ele chegar a Pitnochie. Ele tem estado doente; isso vai atrasá-lo. Pode haver outros em perseguição dele. Tem cuidado.

— Adeus, mãe. Farei o melhor por si, prometo.

Dreseida suspirou e pousou uma mão no ombro do seu filho.

— Adeus, Gartnait. Vai com cuidado. Que os deuses te protejam.

— Que A Que Brilha a proteja até ao meu regresso.


No lado de fora do alojamento de Broichan estavam dois guardas de rosto severo: Gwrad, que estava geralmente ao serviço de Carnach, o primo do rei, e um outro homem cujo rosto cheio de cicatrizes e orelhas proeminentes o identificavam como Imbeg, o homem de Tharan. Os dois homens barraram a passagem a Fola até a Mulher Sábia erguer a voz o suficiente para fazer com que Talorgen saísse para investigar. Pouco depois, no quarto interior de Broichan, os cinco conspiradores reuniam-se uma vez mais: um conselho secreto já não tão secreto porque a mudança da guarda devia ter alertado Caer Pridne, pelo menos, para um acontecimento pouco comum.

Fola sentou-se na esteira vazia, sem lençóis ou cobertores. Os quatro homens estavam de pé. De todos, apenas Uist parecia tranquilo, uma silhueta branca na sombra, à lareira. Aniel tamborilava com os dedos na mesa; Talorgen andava de um lado para o outro; Broichan, o imperturbável Broichan, torcia uma fita verde nos dedos longos como se a quisesse fazer em tiras e o seu rosto parecia uma caveira devido à tensão.

— Como é que soubeste? — perguntou o druida antes mesmo de ela se sentar.

— Como é que eu soube o quê? — inquiriu Fola em voz calma.

— Que ele desapareceu. Que foi levado apesar de me terem assegurado que os guardas eram especialistas, que não deixariam ninguém aproximar-se...

— Não podes culpar Breth e Garth — acrescentou Aniel. A lealdade de ambos não está em causa. Além disso, ainda não sabemos o que aconteceu...

— O nosso inimigo raptou-o; talvez, até já o tenha morto. — A voz de Broichan tremeu. — Que outra coisa há de ser? Como é que eles deixaram que isto acontecesse? Não estava ninguém de guarda?

— Broichan.

Ao ouvirem a voz de Fola, todos se calaram.

— Bridei não foi raptado. O rapaz vai a caminho de Pitnochie à procura de Tuala.

Ninguém disse uma palavra. As mãos de Broichan imobilizaram-se; a fita ficou entre elas, suspensa.

— Vi-o na água. Uma visão verdadeira. Vim aqui para te dizer que alguém vai ter que falar por Bridei no Solstício. Na ocasião, ele estará bem longe de Caer Pridne, numa missão por conta própria.

— Não! — exclamou Broichan, dirigindo-se para ela e fixando-a com os seus olhos escuros. Fola devolveu-lhe firmemente o olhar. — É impossível! Bridei está comprometido com isto. Ele obedece à Guardiã das Chamas em tudo. Ele não era capaz...

— Foi capaz. Já vai a caminho; a filha de Talorgen deu-lhe a notícia e ele foi atrás dela.

— Que notícia? — perguntou Talorgen, franzindo o sobrolho. — O que é que Ferada sabia?

Fola olhou para ele.

— Que Tuala fugiu — disse ela. — Ainda não sabias?

— Estás a dizer que Bridei tenciona ir a Pitnochie a cavalo? — perguntou Aniel. — Ele estava muito fraco por causa do ferimento e da doença que se lhe seguiu. Ele mal podia andar, quanto mais fazer uma viagem a cavalo tão perigosa, ainda por cima com este tempo. Bridei deve ir devagar, pode ser apanhado, trazido de volta...

— Vai ser difícil apanhá-lo — disse Fola olhando para Uist, que lhe devolveu o olhar com olhos brilhantes. — Se a minha visão não me enganou, Bridei levou uma égua especial.

— Há quanto tempo é que a rapariga desapareceu? — perguntou Talorgen. — Compreendo que Bridei se sinta angustiado. Foi montada uma busca?

A expressão de Fola ficou subitamente muito severa. A Mulher Sábia fixou o olhar em Broichan como se o druida fosse um aluno que tivesse cometido uma falta imperdoável.

— Diz-lhes — disse ela — porque parece que a mensagem que te mandei urgentemente, há catorze dias, não passou dos teus ouvidos. Conta-lhes como a tua filha adotiva fugiu de Banmerren de noite, sozinha. Conta-lhes como a minha gente andou à procura dela e não a encontrou. Diz-lhes para onde pensas que ela foi, por que razão e explica aos teus amigos de confiança por que não deste a notícia a Bridei quando ele voltou a si, dizendo-lhe ao mesmo tempo, para o tranquilizar, que tinhas mandado homens atrás dela para o golpe ser menos brutal. Anda lá, Broichan. Entre nós, a verdade faz parte do código; somos um conselho de cinco, obrigados, por confiança mútua, a partilhar quaisquer informações que sejam pertinentes para a causa. Conta-lhes.

— A égua — disse Broichan, como se não a tivesse ouvido. Deixaste que ele levasse Spindrift. Isto é obra tua... — O druida virara o olhar feroz para o colega de cabelos brancos; a sua voz era tão cortante como uma faca. — Aquele animal não aceita ninguém na garupa sem o teu consentimento! Como vamos apanhá-lo a tempo se é ela que o leva? Traíste-me... — Broichan deu um passo em direção a Uist e ergueu as mãos, talvez para agarrar o outro pelos ombros e abaná-lo, talvez para o castigar fisicamente porque o ar em redor dele parecia habitado pelo silvo e crepitar de um feitiço. Os olhos de Uist reviraram-se, enganadores. Os seus dedos apertaram o bordão encostado à parede e uma luz prateada pareceu brilhar na sua ponta, onde estava alojada a pedra em forma de ovo.

— Parai, os dois — disse Fola, irritada. — Nós não somos crianças. Isto tem sido conduzido muito mal; está errado desde o princípio. O papel de Tuala é primordial e eu só o percebi agora, quando pode ser demasiado tarde.

— Que queres dizer? — perguntou Broichan. — Tuala não faz parte dos nossos planos. Ainda bem que ela se foi embora. Não é preciso iniciar uma busca; não vale a pena. Tu sabes quem ela é. Esses argumentos, uma viagem longa, o tempo, são irrelevantes no caso dos da espécie dela. Tuala deve ter ido para junto dos Boa Gente. Era inevitável. Temos de nos preocupar é com Bridei; com mais ninguém.

— Uist — disse Fola — desconfio que estás a par desta pequena dificuldade há mais tempo do que eu; de outro modo, a tua égua não se teria prestado. Talvez o meu amigo aqui compreenda melhor se a coisa for contada por outro homem.

— Eu conheço alguma coisa da história da rapariga — disse Uist, voltando a encostar o bordão à parede. — Tuala foi deixada à porta de Broichan no Solstício de Inverno, numa noite de Lua cheia e foi encontrada por Bridei. A rapariga foi educada por sábios em casa de um druida. Depois, foi enviada para Banmerren para que a sua educação fosse completada. Eu conheci-a. Tuala é uma rapariga notável, sábia, solene, tem uma doçura natural e uma beleza que eu não tenho o privilégio de ver desde que pus pela primeira vez os olhos em Fola, quando ela tinha dezesseis anos.

Fola resfolegou, trocista.

— Continua — disse Aniel, irritado. — Precisamos de Bridei aqui; diz-nos o que havemos de fazer.

— Eu vou buscá-lo. — O tom de Broichan era de comando. — Não é preciso envolver mais ninguém.

— Nós somos um conselho de cinco — disse Talorgen severamente. — É melhor não o esquecermos. Uist, acaba o que estavas a dizer.

— Perguntei a mim próprio por que razão A Que Brilha a tinha colocado perante um caminho tão difícil. Tuala é boa rapariga e ama o nosso amigo, isso é evidente, apesar dos esforços que faz para o esconder quando fala dele.

— Ama-o? Como irmã?

— Não, Aniel, não como irmã, mas com a devoção apaixonada de alguém que, em devido tempo conta ser sua amada, sua amante, sua mulher. Com a dedicação de alguém que o acompanhará em todos os desafios do governo. E ele também a ama; não passei estes catorze dias à sua cabeceira, na companhia dos seus sonhos? Bridei precisa desta rapariga. Sem ela, o nosso rei perfeito falhará.

— Disparate! — A indignação de Broichan era quase palpável. Um homem normal ter-se-ia encolhido perante o seu olhar. Os seus companheiros olharam simplesmente para ele com expressões que iam da preocupação ao reconhecimento horrorizado. Broichan era falível. O druida do rei cometera um erro e naquele momento, a não ser que fossem dados os passos necessários, o jogo estaria perdido. — Ela é filha dos Boa Gente! Nunca será aceita como rainha! Bridei será motivo de chacota!

— Ele não é suficientemente forte para se aguentar? — perguntou Fola. — Pensas assim tão mal da tua própria criação? Queres perder o jogo? Achas que ele cede perante a desaprovação de uns poucos cortesãos de vistas estreitas? Ele é forte, Broichan, muito forte. E ela também. Juntos, acredito que seguirão em frente sob a proteção do amor dos deuses. Acredito que formarão um par poderoso, capaz de mudar este país.

— Confesso que acho isto um pouco estranho: um deles como mulher do rei — disse Aniel, abstrato. — Persuadir a corte de que é uma boa idéia vai ser um desafio, mas confio no teu discernimento, Fola. Que fazemos?

— Deixar ir Bridei — disse Fola. — Deixá-lo entregue a si próprio para que a encontre e a traga com ele.

— Perdeste o juízo? — gritou Broichan, deixando cair o punho em cima da mesa. — Bridei está doente, está confuso. Passou muitas noites com pesadelos; não admira que tenha agido de modo tão irracional. Já te esqueceste que foi precisamente uma coisa igual a esta que o levou ao estado em que se encontra? Fazer uma tal viagem sozinho é convidar a um ataque. Além disso, como é que se vai defender se está demasiado fraco para dar dois passos? Tenho de ir atrás dele.

— Nem tu conseguirás segui-lo com facilidade — disse Uist. Spindrift só se deixa encontrar se quiser. É por isso que ela não pode ficar confinada aos estábulos.

— Nesse caso, vou para Pitnochie e espero lá por ele. — Broichan tirara uma capa de um prego e, subitamente, o seu cajado, um belo cajado de carvalho escuro com muitos sinais pequenos esculpidos, estava nas suas mãos. — Viajarei rapidamente; não irei pelos caminhos dos homens. Farei com que o rapaz ganhe juízo. E trago-o a tempo da assembléia. Um de vós terá de falar por ele no Solstício. A rapariga tem-no mais preso do que eu pensava; quem sabe por que caminhos o levará se a deixarmos influenciá-lo à vontade? Deuses, para quê isto, agora? Parece que a tua filha desempenhou um papel qualquer nisto tudo, Talorgen. O melhor é obrigar Ferada a dobrar a língua antes que provoque mais sarilhos.

Talorgen empertigou-se e os seus punhos cerraram-se.

— Broichan. — Fola pôs-se de pé e colocou-se entre os dois homens. — Não vás. Bridei ficará melhor se o deixares seguir sozinho. Ele há de regressar a tempo da assembléia; e não esqueceu o futuro para que foi preparado por ti. Não confias no teu próprio filho?

Ninguém a corrigiu. Após alguns momentos, Broichan disse:

— Nele, confio, mas nela não. Desde o primeiro momento que vi que ela era a cara do inimigo. Sabia que ela se intrometeria. O meu erro foi deixá-la ficar em Pitnochie, permitir que ela se insinuasse junto dele...

— Falas como um amante ciumento — disse Fola bruscamente. Pergunta a ti próprio por que razão o fizeste; por que razão não puseste o bebê fora de casa. Terá sido por amares o rapaz e não o quereres fazer infeliz? Ou terá sido porque, no íntimo, reconheceste que era a vontade da Que Brilha?

— Enquanto perdemos tempo com discussões inúteis — retorquiu Broichan friamente —, Bridei cavalga sozinho pelos campos cobertos de neve, confuso e doente. Não aturo mais isto.

— Vais, apesar dos nossos conselhos?

— Vou e farei o possível para que os nossos esforços não tenham sido em vão. Vou e trago o nosso futuro rei. — O druida saiu impetuosamente do quarto com as tranças esvoaçando por cima dos ombros vestidos de negro e a longa capa flutuando atrás como uma nuvem de tempestade. Os outros ficaram a olhar uns para os outros, em silêncio.

— Numa coisa, pelo menos, ele tem razão — disse finalmente Aniel. — Bridei corre o risco de ser alvo de um ataque, planejado ou fortuito. Devíamos, pelo menos...

— Faolan — disse Talorgen. — Ele encarrega-se do assunto, melhor do que qualquer outro nessas circunstâncias. Vou mandar Gwrad chamá-lo. Eu sei que me vais dizer para o deixar sozinho, Fola, mas tens de concordar que um protetor não é demais.

— Curvo-me perante a opinião de um guerreiro.

— Quem é que vai falar por ele no Solstício? Concordamos com Carnach?

Ouviu-se um batimento na porta e, para sua surpresa, era Ferada com Gartnait atrás de si, este com uma expressão apologética no rosto. Os quatro conselheiros olharam para os dois jovens. A filha de Talorgen era conhecida pela sua aparência imaculada, pelo seu modo de vestir elegante, pelo seu porte excelente, um espelho da sua mãe. Naquele momento, os seus cabelos estavam despenteados e o rosto tão pálido como o de um cadáver, com exceção dos olhos, que estavam encovados e vermelhos. A saia do vestido estava manchada. Ferada tinha um xale em volta dos ombros e apertava-o na frente com tanta força que os nós dos dedos estavam brancos. A jovem tremia como se tivesse estado na rua durante muito tempo. Fola soltou uma exclamação de consternação e Talorgen avançou para a filha, alarmado.

— Ferada! Que se passa?

— Pai — disse Ferada com a voz distorcida devido a um longo choro. — Preciso de falar contigo em particular. Tenho uma coisa para te dizer.


CAPÍTULO DEZESSETE


Nevara durante a noite. Quando chegou junto da margem do lago, passando por baixo dos pinheiros espessos, Tuala ouviu o som suave das pinhas a caírem no solo. A jovem não sabia há quanto tempo caminhava, perdera a noção do tempo. As suas botas estavam cheias de pequenos detritos e a saia pegava-se-lhe às pernas. O seu bafo fazia uma nuvem no ar frio; as orelhas doíam-lhe e o nariz escorria-lhe. Estava quase lá. Aqueles pinheiros altos, aquela encosta atapetada de branco e aquela extensão de água escura eram-lhe familiares; as vozes das aves, gritando lá no alto, acima da copa das árvores, desejavam-lhe as boas vindas a casa. Casa... que rica casa... sem frio, sem fome, sem dor... sem morte... Não conseguia imaginar. Imortalidade: um estado que os homens desejavam, uma dádiva impossível, impossível de sonhar e nunca alcançada... O que os Boa Gente lhe tinham oferecido. No entanto, naquele momento, não significava nada. Tudo o que ela queria era uma lareira, umas meias secas e vê-lo de novo só mais uma vez, só mais uma vez antes do fim...


O druida estava à porta olhando para o alto do monte, para nordeste. Broichan sabia que a rapariga estava a chegar, que estava nos limites das suas terras. Ele próprio viajara desde Caer Pridne de diversas maneiras, primeiro como um célere cão de caça, depois como uma lebre de pêlo branco e por fim como uma coruja das neves voando através dos bosques de Pitnochie até à sua porta da frente, onde as asas se tinham transformado numa capa negra e o corpo da ave no corpo de um homem, antes de entrar e pregar um susto tão grande a Mara que a governanta deixara cair uma tigela cheia de cebolas. Broichan não vira Bridei no caminho, mas passara por cima de Tuala e pousara num ramo para observar o seu progresso obstinado e miserável; reparando que ela falava consigo própria como se a longa viagem solitária lhe tivesse começado a perturbar o juízo. Naquele momento já devia estar perto de Pitnochie; em breve avistaria a casa. Tinha de se assegurar de que nunca a alcançaria. Broichan ergueu os braços e fechou os olhos. Respirando profundamente, o druida invocou um antigo feitiço de dissimulação.

Quando viu que estava de acordo com o que desejava, entrou e aferrolhou a porta apesar de ainda ser dia. Fizera o que tinha de fazer para proteger o seu filho da influência perniciosa que procurava prejudicá-lo. Cumprira a sua responsabilidade perante os deuses. Nada nem ninguém se interporia no caminho daquele rei perfeito.

Tuala atingiu o fim de uma curva e lá estavam os campos murados, a cabana de Fidich e as árvores que escondiam a casa do druida. As ovelhas amontoavam-se no caminho, na parte abrigada do redil. As silhuetas castanhas dos patos viam-se sob os arbustos, junto do lago gelado. A sua casa... A jovem podia ver os carvalhos junto dos quais se sentara tantas vezes à espera que Bridei terminasse as suas lições. Tuala podia ver o pátio onde ele e Donal tinham praticado as suas intrincadas danças de guerra; podia ver a casa, a casa de Broichan, onde se sentara à lareira com os dois tutores e aprendera matérias misteriosas e encantadoras, divertidas e solenes... Onde, sentada num banco ao lado de Bridei, escutara uma história... E ali, na soleira da porta, que encontrou ele... Um bebê... Tuala esfregou os olhos; não queria chorar, chorar era sinal de fraqueza e, se queria fazer aquilo, fá-lo-ia com coragem e dignidade. A casa... faltava pouco... estava frio; os seus ossos parecia que se tinham transformado em gelo, não conseguia parar de tremer... O Espelho Negro, tinham eles dito antes de a abandonarem. Encontramo-nos no Espelho Negro. Devia continuar, então, pelo monte acima, para oeste, para poder chegar antes do anoitecer. Não conseguiria encontrar o caminho de noite, com a Lua nova. Não podia perder tempo. Mas... para lá daquela porta estava a lareira de Pitnochie, abrigo, calor, roupas secas, provavelmente uma sopa quente e pão acabado de cozer. O fato de não a quererem não devia ter importância. Mara era uma pessoa de bom senso. As boas-vindas não seriam calorosas, mas Mara, pensou Tuala, dar-lhe-ia, pelo menos, calor e roupa seca antes de a pôr novamente na rua. O pensamento da lareira fê-la tremer de cansaço. Uma visita rápida não devia ter importância. Não precisava de durar muito tempo. Tuala hesitou um pouco e depois desceu por entre os carvalhos sem folhas na direção da porta da cozinha.

Não havia sinal de guardas, nem marcas de botas na neve macia. A porta estava aferrolhada com uma barra de ferro, nova, pelo lado de fora. Tuala ergueu uma mão frágil para bater e baixou-a. A jovem estava em cima de um monte de neve, na soleira da porta onde fora encontrada num cesto tecido com penas de cisne. Tuala recuou e olhou para cima. Não se viam colunas de fumo no telhado; naquele dia, tão frio, o mais frio de todos, a lareira não tinha sido acesa. Olhando através dos campos para a casa de Fidich, a jovem reparou que do telhado de colmo também não saía qualquer fumo. Tuala deu a volta à casa de Broichan, tentando espreitar pelas poucas janelas abertas nas espessas paredes de pedra e de barro. Todas elas estavam fechadas; o interior devia estar tão escuro como a noite. Devia haver candeias acesas; por que não a lareira?

Só a minúscula janela do quarto de Bridei é que estava aberta, mas estava demasiado alta para poder espreitar. Voltando à porta, Tuala bateu, desejando subitamente acordá-los a todos como naquelas histórias assustadoras, em que o mundo muda enquanto o herói dorme, e quando este acorda encontra o que o rodeia totalmente vazio. Ou naquelas em que uma rapariga entra num reino onde o tempo anda mais devagar, e quando regressa a casa todos os rostos familiares já morreram há muito. O local estava estranhamente silencioso, como se tudo tivesse retido a respiração. A jovem bateu novamente; não obteve resposta. Talvez tivesse batido devagar. Tuala encontrou um pau e usou-o para bater repetidamente nos sólidos painéis de carvalho. A jovem bateu uma, duas, três vezes. O som ecoou nas árvores cobertas de neve e nos bosques silenciosos. Não estava ninguém em casa.

Tuala foi até ao celeiro. Ali, pelo menos, havia sinais de vida, as ovelhas encostavam-se umas às outras em busca de calor e um pequeno pássaro caçava insetos numa pilha de madeira podre. Talvez os homens estivessem lá dentro, tratando dos cavalos ou do outro gado. Pearl devia estar ali, e Blaze... Porém, o celeiro também estava fechado, as grandes portas duplas estavam fechadas a cadeado; espreitando por uma frincha, Tuala não viu homens nem cavalos, nenhuma ovelha, nenhum cão nem nenhuma galinha no espaço vazio. Com o coração tão frio como os braços e as pernas, envolveu-se mais ainda na capa, afastou-se de Pitnochie e dirigiu-se para a floresta onde aos grossos carvalhos escuros se juntavam os vidoeiros pálidos e prateados e os azevinhos espinhosos com as suas bagas brilhantes. Não passes para lá dos azevinhos, Tuala... De onde tinham vindo aquelas palavras? Voltara a ser uma criança para precisar de amas, para fazer tudo o que Broichan queria? Já era uma mulher e iria para onde quisesse. Deixaria aquele mundo onde não tinha lugar, passaria para o reino a que sempre pertencera... nunca mais teria frio... Mas, oh, vê-lo só mais uma vez, só mais uma, um vislumbre apenas, não precisava de mais nada...

Pareceu decorrer muito tempo, se bem que o Sol quase invisível estivesse a meio da sua jornada quando ela seguiu cuidadosamente pelo carreiro estreito que ia dar ao Vale dos Que Caíram. Os pés escorregaram na superfície lamacenta. Os braços abriram-se em busca de equilíbrio, as mãos procuraram freneticamente apoio e Tuala sentiu os espinhos de uma roseira a entrarem-lhe nos dedos já feridos. O incidente fê-la derramar as lágrimas que jurara não derramar. Fungou, limpou as faces com as costas das mãos e seguiu aos tropeções pelo carreiro fora.

O pequeno vale estava deserto. A lagoa estava escura e silenciosa; as pedras antigas jaziam agrupadas, em silêncio, aninhadas por baixo dos respectivos mantos de musgo. As trepadeiras tinham-se espalhado ainda mais desde a sua última visita e agora cobriam uma das sete pedras druídicas com a sua folhagem exuberante. Não havia sinal de Teia ou de Madressilva. Não havia sinal de ninguém.

Tuala deixou-se cair na orla do Espelho Negro. Só lhe restava esperar e esperar que as duas criaturas fossem fiéis à sua palavra. Teia e Madressilva tinham dito que se encontrariam com ela ali e que a conduziriam através da margem, mas não tinham dito quando.

Talvez aquilo quisesse dizer que devia ficar sozinha, numa espécie de vigília, naquele antigo lugar de verdade. Não desejara uma visão daquele que amava? Uma última imagem, para poder levar algo consigo para o outro mundo? Não conseguia imaginar que, uma vez no outro lado, não conseguisse lembrar-se dele. Tinha de tentar, apesar de na última vez o dom a ter deixado ficar mal. Sentar-se quieta, respirar profundamente, abrir o olho do espírito e encontrá-lo. Encontrá-lo...

O dia passou. Tuala pairava para lá do frio, para lá do cansaço, quase para lá do mundo onde estava sentada de pernas cruzadas em cima das pedras, olhando para a água fria. Na fenda profunda que abrigava a lagoa nada se mexia. Nenhuma ave pulava de ramo em ramo procurando o pouco alimento permitido por aquela estação pobre, nenhum inseto pairava por cima da água escura; nenhum peixe, procurando abrigo, perturbava a superfície imóvel. Não aparecia nenhuma imagem; nenhuma. Parecia que não havia outra coisa a fazer senão ficar sentada, respirar e esperar. Sentada até lhe doerem as costas; respirar ainda mais devagar porque fazê-lo normalmente naquele ar era encher os pulmões de gelo; esperar até que, finalmente, eles tivessem pena e aparecessem. O Sol já estava a pôr-se; o dia aproximava-se do fim e o pequeno vale ficara sombrio e estranho. A cabeça de Tuala inclinou-se; as suas pálpebras estavam a fechar-se, não podia continuar acordada...

Tão abrupta como a chama de um archote, a cor espalhou-se sobre a superfície da água. Tuala pestanejou e levantou a cabeça; aquele pequeno esforço pôs-lhe o coração a bater com toda a força. A jovem olhou para a lagoa.

Ele estava de pé no meio do grande salão, sem dúvida em Caer Pridne. As suas roupas eram ricas, longe dos trajes vulgares dos tempos de Pitnochie. Bridei estava vestido de azul: uma túnica e umas calças de lã e, por cima, uma capa curta, suave, cinzento-escuro, entrançada na orla e presa com um alfinete de prata com a forma de uma águia em vôo. Os seus cabelos castanhos encaracolados estavam entrançados na nuca. Ah, os seus olhos, tão brilhantes, tão cheios de esperança e coragem, como se fosse a própria Guardiã das Chamas, o portador dos sonhos de Fortriu! Aqueles olhos eram mais azuis do que o mar profundo; mais azuis do que o céu no Verão; tão azuis como as pétalas de uma violeta. Havia gente à sua volta, alegre, talvez dando-lhe os parabéns. Lá estava Broichan com as suas feições, habitualmente impassíveis, cheias de um orgulho mal disfarçado; lá estava Talorgen, sorrindo, e a Rapariga Raposa vestida de verde, muito elegante, e Gartnait, com os seus turbulentos irmãos mais novos. Muitas outras pessoas oferecendo as mãos a Bridei, dizendo palavras que Tuala não podia ouvir mas que ela reconhecia: Muito bem, Bridei! Sabíamos que eras tu, desde o princípio! Que dia feliz!

Tuala viu-o virar-se ligeiramente, estender uma mão e sorrir docemente. Bridei era parco em sorrisos; as pessoas raramente os viam. Um momento mais tarde, lá estava ela: Ana das Ilhas Pequenas, com os seus cabelos prateados pelas costas abaixo, o seu vestido branco, o belo rosto de pele macia e faces rosadas, olhando solenemente para Bridei como se ele fosse o único homem no mundo. Bridei segurou-lhe na mão; ela disse uma palavra ou duas; ele respondeu. Tuala apercebeu-se do brilho dos seus olhos. Bridei ergueu a outra mão e acariciou gentilmente o rosto de Ana. No seu punho não havia qualquer adorno. A fita verde tinha desaparecido.

Quando a imagem se desvaneceu, deixando Tuala vazia, sem nada que lhe interessasse, ouviu-se uma voz do alto do carreiro, na orla do vale.

— Vem! Aqui para cima! Segue-me!

Tinha de fazer mais uma coisa; um último ritual, pequeno. Com dedos dormentes, Tuala meteu a mão na bolsa que tinha à cintura e tirou o pequeno talismã de corda, o registo da sua velha amizade com Bridei. Depois de terem estado afastados muito tempo, os dois cordões tinham-se juntado uma última vez, como se tivessem nascido para ser um só. Lua cheia... Depois, tinham-se separado novamente, iniciando jornadas separadas. Os cordões tinham quase atingido o seu fim natural e começavam a ficar puídos. Tuala fechou a mão com força em redor do pequeno talismã, cerrou os dentes e atirou-o para o meio do Espelho Negro. Apesar do seu pequeno peso, o objeto afundou-se como uma pedra, provocando uma série de pequenas ondas.

— Vem! Sobe! — chamou a voz. Não era possível saber se era a voz tipo campainha de Teia, o tom mais profundo de Madressilva ou as duas coisas ao mesmo tempo. O som era estranho, misturado, um lamento triste, sobrenatural, como o latido de um pequeno cão abandonado. Tuala já tinha ouvido aquele som naquele local.

A jovem conseguiu levantar-se, apesar de ter demorado mais tempo do que devia. Os seus pés obedeceram-lhe e subiram lenta e irregularmente o carreiro íngreme. As suas mãos agarraram-se ao que lhe aparecia; sem o suporte dos arbustos espinhosos não teria conseguido. Quando atingiu o topo, Tuala arquejava. A luz começava a desaparecer, mesmo ali; não poderia continuar durante muito tempo.

— Vem! Segue-me! Mais para cima! Mais para cima! — Parecia um coro. Tuala não conseguia vê-los. O som obrigou-a a avançar, a partir dali por um caminho novo que subia aos ziguezagues por entre as árvores, primeiro através de um paul lamacento, depois por um carreiro estreito totalmente atapetado por folhas podres e finalmente por uma vereda íngreme e escorregadia, cheia de pedras cobertas de musgo. As palavras Não posso estavam algures na sua mente, mas as vozes eram insistentes, irresistíveis; estava quase na altura de aquela dor desaparecer... Se conseguisse aguentar mais um pouco, só mais um pouco, em breve nada mais interessaria...

— Mais alto! Mais alto! Mais! Mais!

Trepando, rastejando, arrastando-se, deixando marcas de sangue nas pedras, esgravatando com os pés em busca de um apoio que não conseguia sentir, Tuala lutou desesperadamente para chegar ao topo de Cicatriz de Águia.

— Parece estranho dizer isto — disse a criatura conhecida pelo nome de Madressilva, comunicando à sua maneira com a companheira — mas acho isto um pouco... cruel. Sinto uma certa simpatia por esta rapariga.

Teia riu-se.

— Isto é um teste — disse ela. — É necessário. Estes humanos não prestam para nada. Uma barriga vazia, um arranhão, uma noite sem dormir? Não aguentam nada.

— Esta é boa rapariga. E do nosso sangue. Não vejo necessidade de lhe prolongar o sofrimento.

Teia abanou a cabeça; as mechas de cabelo brilhante dançaram, enviando raios de luz difusa pela encosta abaixo, na direção dos carvalhos nus.

— Isto vai fazê-la pensar; vai fazê-la ponderar; vai fazer com que nunca mais se esqueça de onde veio, ou de quem é.

— Ela não sabe quem é — observou Madressilva.

— Não, mas vai sentir. Quando for velha e estiver a sonhar à lareira com o neto nos joelhos, vai sentir e contar esse sentimento numa história. Vai guardar esse sentimento no coração.

— Isso se não morrer de frio, de solidão e de desespero.

— Esta gente é tão fraca, tão imperfeita, tão frágil. Pelo menos, não está a chover.

— Não lhe podemos arranjar companhia? — perguntou-lhe Madressilva. — Bastava uma pequena.

— O quê, estás como os homens, tornaste-te sentimental ao ver esta rapariga passar por um pequeno inconveniente? — O tom de Teia era de troça. — Também caíste vítima das angústias do amor?

— Amor? Dificilmente. Mesmo assim, acho...

— Faz o que quiseres — disse Teia encolhendo os ombros. Bridei vem aí; em breve estará em Pitnochie, ele e a égua sem par. Foi uma boa escolha; o velho tem um pé em cada mundo, mas vê tudo. Só Spindrift podia ter trazido o rapaz a tempo. Porém, Bridei traz um companheiro; um homem que usa uma máscara de amigo para esconder um rosto de traidor. A coisa vai começar...

— Começar? — repetiu Madressilva. — Começou com uma criança, um bebê e o olhar frio da Que Brilha. E se falhar? E se ele não entender nada?

Teia virou os olhos grandes e brilhantes para ele.

— Esperemos que não — disse ela, muito séria. — Um líder como Bridei raramente se encontra entre os humanos. Uma companheira como Tuala não tem preço. Se ele falhar hoje, creio que Fortriu está perdido.


Bridei sentia a fraqueza em todos os membros; o ferimento e o longo tempo de inconsciência tinham-lhe tirado as forças. Pelo contrário, a dor de cabeça desaparecera miraculosamente, deixando-lhe a mente clara, como não a sentia havia muito tempo e Spindrift, a égua, comprovara as esperanças que depositara nela. O animal encontrara o caminho por si próprio através de diversos terrenos, aparentemente sem se cansar. O seu único defeito era parar de vez em quando ao abrigo de uma parede de rocha ou de um grupo de pinheiros, obrigando-o a desmontar para que descansasse um bocado. Spindrift não dormia de pé, como Snoufire ou Luciry, deitava-se a seu lado, aquecendo-o com o seu corpo.

Bridei estava impaciente, sentia que não tinha tempo para descansar. Tuala desaparecera havia muito tempo, talvez já tivesse chegado a Pitnochie e tivesse continuado... para onde? O pensamento fê-lo estremecer porque quanto mais pensava no que Ferada lhe dissera e no modo como as coisas tinham acontecido, mais acreditava que Tuala decidira deixá-lo e partir para um reino onde não poderia segui-la. Bridei não fora ter com ela na noite de Lua cheia. Tuala esperara por ele e ele não aparecera. Se Ferada dissera a verdade, Pitnochie também rejeitara a sua pequena filha da floresta. Finalmente, a jovem fugira de Banmerren. Tuala nunca quisera ser serva da Que Brilha. Tuala quisera... quisera o que ele quisera e ele não percebera, cego que estava para tudo menos para si próprio; percebera tudo mal e agora, se não a encontrasse rapidamente, perdê-la-ia para sempre.

Bridei irritava-se a cada paragem, consciente, ao mesmo tempo, de que precisava de descanso e de calor. Sem Spindríft, não podia continuar; a pé, não conseguiria encontrar Tuala a tempo, a não ser que ela esperasse por ele em Pitnochie... Bridei achava que ela não o faria. Se o melhor que Broichan conseguira fora oferecer-lhe um casamento com um estranho, ou uma vida fechada entre quatro paredes, o druida do rei, provavelmente, não a receberia de braços abertos em sua casa. Bridei cerrou os dentes. Broichan... Broichan tinha-lhe mentido. Dizer que Banmerren fora escolha de Tuala era uma coisa, mas omitir o fato de que a outra escolha possível seria o casamento com Garvan era esconder cruelmente a verdade. Broichan deixara-a fugir, sozinha, e não lhe dissera nada. O druida nunca gostara da dádiva da Que Brilha naquele Solstício de Inverno. O seu procedimento era uma traição pura e simples. No espaço de instantes, o seu pai adotivo tornara-se um estranho: um homem que não confiava nele e em quem não podia continuar a confiar.

Era dia. Tinham parado duas vezes para dormir. Bridei achou, pela posição do Sol tapado pelas nuvens, que a tarde ia avançada. À medida que se aproximavam de Pitnochie, escolhendo o caminho íngreme pela margem do lago, Spindrift ia ficando cada vez mais inquieta, torcia as orelhas, virava a cabeça, abanava a cauda. Bridei estava consciente de que não tinha qualquer arma, nem sequer uma faca para se defender; saíra de Caer Pridne sem nada. Donal teria ficado muito mal impressionado.

Bridei ouviu o que alertara a égua: som de cascos atrás de si, um cavaleiro a aproximar-se. O jovem pesou as possibilidades: um assassino, mais um, pago pelos partidários de Circinn; o próprio Broichan, procurando apanhar o seu filho adotivo desobediente e forçá-lo a regressar à corte. Não; se Broichan decidira persegui-lo, fá-lo-ia como um druida, não como um homem normal. Um dos seus guarda-costas, Breth ou Garth. Ou Faolan, mais provavelmente. Faolan tinha de merecer o seu salário e, para isso, o seu protegido tinha de estar em Caer Pridne para a assembléia, não ali, naquilo que o celta considerava ser, certamente, uma causa perdida. Faolan tinha a capacidade e a resistência para o seguir daquela maneira, para estar ali naquele momento. Spindrift parou e virou a cabeça na direção do recém-chegado. Bridei chamou a si as forças que lhe restavam. Com ou sem arma, não se deixaria apanhar sem luta.

O cavaleiro apareceu: um jovem sardento, alto, de cabelos ruivos. As suas feições pouco atraentes estavam pálidas, totalmente exaustas. O cavalo tremia e revirava os olhos, como se estivesse no limiar da resistência.

— Gartnait! — exclamou Bridei; o seu amigo era a última pessoa que esperava ver ali. — Como é que, em nome dos deuses, me apanhaste?

— Digamos que dormi pouco — disse Gartnait, parando o seu cavalo ao lado do de Bridei. — Mudei de montada em Três Montanhas da Quinta e outra vez em Borda de Água. Que perseguição... Essa égua é rapidíssima. Bridei, pareces esgotado. O que é que...

— Por que vieste? — O tempo passava. Bridei não queria companhia; uma vez em Pitnochie, não sabia em que direção seguir. — Por que me seguiste?

Gartnait franziu o sobrolho.

— Nem parece teu, Bridei, receber assim um amigo. Estava preocupado contigo. Um homem não sai assim da cama onde está doente e vai atrás sabe-se lá de quê sem dizer nada aos amigos, sabes? Especialmente se é pretendente ao trono. Em que estavas a pensar?

— Deves saber — disse Bridei. — Ferada sabia. O trono pode esperar; tenho de encontrar Tuala e o tempo escasseia. Se queres vir comigo, segue-me, mas não se trata de ir até Pitnochie e levá-la. Ela não vai estar lá, penso que deve ter ido para um lugar secreto, no bosque.

— Um lugar secreto — repetiu Gartnait, ao mesmo tempo que a égua recomeçava a andar e o seu cavalo a seguia. — Perigoso?

— Não do modo que pensas. É isolado.

— Nesse caso, vais precisar de um amigo. Não me agradeças por quase me ter matado para te conseguir apanhar.

— Obrigado — disse Bridei firmemente; o simples fato de ter que falar já lhe parecia uma pura perda de tempo e de energia. — Não havia necessidade.

Havia gente em Pitnochie, se bem que menos do que nos velhos tempos. No exterior do celeiro via-se uma pequena silhueta rodeada de algumas crianças e alguns cães: Fidich e as suas muletas, inspecionando algumas ovelhas. Os guardas estavam na mudança de turno, um acontecimento inesperado e feliz.

— Mantém-te a coberto das árvores — disse Bridei a Gartnait. — Não faço idéia do que farão quando me virem, mas o tempo escasseia e eu tenho de ir ao Espelho Negro sem demora.

— O Espelho Negro? — perguntou Gartnait enquanto os dois levavam os cavalos para debaixo dos pinheiros, onde não poderiam ser vistos da casa nem do pátio.

— Um lugar onde tenho de ir. Um dos covis dos Boa Gente; um vale estreito onde, em tempos, aconteceu uma batalha terrível, os guerreiros de Fortriu foram massacrados por Celtas. Se ela veio para aqui, deve lá estar.

— Porquê? — perguntou Gartnait sem expressão. A sua voz parecia estranha.

— Ela costumava lá ir em busca de respostas, quando estava preocupada ou se sentia só. Existe lá uma lagoa escura, na qual algumas pessoas conseguem ver imagens... Tuala deve ter ido para lá.

— Hum — disse Gartnait, e continuaram em silêncio, mergulhando na floresta onde a luz do Sol só difusamente conseguia entrar. A folhagem estava molhada e o solo coberto por um manto espesso de folhas em decomposição, escuro, libertando um cheiro pungente sob os cascos dos cavalos. Um vapor frio rastejava por entre as árvores, junto às raízes entrelaçadas, subia e envolvia os troncos. Sob os ramos retorcidos, a bruma envolvia de tal modo o terreno que Bridei não via dois palmos diante do nariz. Finalmente, o jovem desmontou e seguiu com a mão no pescoço de Spindrift. Atrás de si, Gartnait fez o mesmo.

— Aqui — disse Bridei. — É este o carreiro que vai dar ao Vale dos Que Caíram. — Naquele dia não havia pedras brancas. Não interessava; continuaria, com ou sem Boa Gente. Talvez ela estivesse um pouco mais à frente, a um grito de distância... Bridei não gritou. — É melhor deixarmos aqui os cavalos — disse ele a Gartnait. — Isto é muito estreito para eles. Se quiseres, podes vir.

— Bridei...

Bridei não esperou para ouvir o que o amigo tinha para lhe dizer. O jovem já descia a escorregar pelo carreiro precário, roçando com os braços pela vegetação e respirando com dificuldade. Algo se apoderara dele, uma sensação de urgência, como se uma voz o chamasse, como que desafiando-o: Aparece e luta conosco! Prova que és um homem! Mostra-nos do que és capaz! Bridei cerrou os dentes e continuou a descer. Tuala, Tuala... Nada mais lhe interessava. Sem ela, não conseguiria. Como era possível Broichan não compreender aquela evidência? E Faolan? E toda a gente? Tinha de a encontrar... Tinha de a impedir... Bridei praguejou quando algo lhe passou sob os pés, quase o fazendo tropeçar: um animal pequeno, cinzento, desaparecendo na floresta.

— Que Corvo Negro nos proteja! — exclamou Gartnait. — O que era aquilo?

O gato de Tuala, Mist; Mist rugindo aterrorizado, ou perseguindo o mesmo que ele.

— Depressa! — disse Bridei, apressando-se pelo carreiro abaixo na direção da lagoa.

O jovem apercebeu-se imediatamente de que Tuala não estava no Espelho Negro. Talvez tivesse estado, mas naquele momento a lagoa estava sob as garras de um frio profundo e fechada num silêncio impenetrável; o frio era suficiente para fazer parar o coração e gelar a respiração. Bridei fez uma pausa junto da água escura, atento. Teria ela estado ali? Havia sinais no solo, marcas de botas pequenas e de patas de gato. Onde estava ela? Para onde tinha ido? Era quase noite. Como encontrá-la numa noite sem Lua?

— Lamento — disse Gartnait, por trás de si, ao mesmo tempo que as suas mãos se fechavam no seu pescoço e apertavam com força. Bridei cambaleou, sentindo o coração a bater com força e tentou libertar-se dos dedos que lhe apertavam a garganta, ao mesmo tempo que ouvia o ar a chiar-lhe nos pulmões. Quase, tão perto, e agora aquilo. Em nome dos deuses, o que era aquilo..? Gartnait tinha a vantagem do seu lado, era mais alto, estava mais forte... um torno em redor do seu pescoço... não conseguia respirar, estava tudo a escurecer... Donal, que faria Donal... Bridei fez força para a frente, desequilibrando os dois. Um instante mais tarde, o jovem caía na água gelada do Espelho Negro e, sempre agarrado ao seu pescoço, Gartnait caía com ele.

Bridei sentiu-se sufocar. Sentindo-se sufocar, o jovem esbracejava, tentando sobreviver. A água era mais fria do que outra qualquer, mesmo em tempo de Inverno, estava a gelar-lhe o sangue nas veias. Gartnait, como nadador mais forte, estava a conseguir mantê-lo submerso... Não tinha tempo, não tinha tempo... Bridei continuou a lutar por tudo o que interessava realmente, pela lealdade de Brethe e pela bondade de Garth, pela amizade estranha e relutante de Faolan, pela lareira de Pitnochie e pelos estandartes que flutuavam sobre o carro de batalha de Galany’s Reach, pelos olhos fortes e ferozes de Drust Touro, e pelo corpo torcido de um guerreiro tatuado... pela disciplina de Broichan e pelos longos anos de aprendizagem... até por aquilo, por Tuala... acima de tudo, por Tuala... Deuses, Gartnait era tão forte! Nunca se apercebera de quão forte...

— Porquê? — conseguiu dizer Bridei quando as mãos do seu adversário abrandaram por momentos o aperto. — Porquê?

O jovem não obteve resposta; vislumbrou apenas o rosto branco de Gartnait, os olhos cegos de fúria de Gartnait e depois as mãos a apertarem outra vez.

— Desculpa — disse Gartnait num sussurro entrecortado, mergulhando a cabeça de Bridei na água.

Estava a afogar-se... ia morrer... os pulmões doíam-lhe e tinha a cabeça cheia de visões emaranhadas e distorcidas... Em algum lugar, debaixo da água, Bridei ouviu um cão a ladrar...

Estava debaixo da terra, envolto pela escuridão, enroscado sobre si próprio como um bebê adormecido. Por cima de si, as raízes dos grandes carvalhos prosseguiam a sua lenta e minuciosa jornada através do solo em busca de nutrientes, enquanto em redor delas seguia uma miríade de criaturas minúsculas, escaravelhos, vermes, formigas e larvas... As suas pequenas escavações, as suas câmaras minúsculas, corredores e armazéns minavam o subsolo, um mundo invisível por baixo da encosta arborizada, da extensão relvada, do paul coberto de urze... Estava soterrado... encurralado... Tuala...

— Esquece o corpo, confia na tua mente. — Bridei ouviu a voz de Broichan, profunda e forte. — Aplica o que aprendeste.

— Está tudo bem, Bridei — disse a voz límpida de Tuala, fazendo-o quase chorar. — Tu és capaz.

Pensar... Pensar na Mãe de Tudo, em cujos braços estava aninhado, nos quais todos se aninhariam mais cedo ou mais tarde, fosse o rei de Fortriu, uma criança abandonada, a grande águia ou o menor dos animais subterrâneos. A deusa recebia-os a todos; a todos concedia um determinado espaço de tempo, uma determinada oportunidade. Quando achava que era suficiente, tinha início o sono eterno. Porém, para ele, a hora ainda não chegara. Mãe de Tudo, em cujo colo estava a descansar, são e salvo, aconchegado... aconchegado, finalmente... As suas mãos eram fortes, os braços compridos, desde os vales ocidentais à praia da fortaleza do rei, desde os montes arredondados de Circinn aos picos áridos do noroeste... A única; o seu amor existia em cada canto do grande reino de Fortriu, que precisava dele...

Não vou pedir para viver, rezou Bridei em silêncio. Entrego-me nas tuas mãos. Deixa-me encontrá-la. Estou decidido a seguir em frente; decidido a liderar. Não faço concessões. Não sou louco a ponto de me atrever a pôr à prova a boa vontade dos deuses. Amo. Confio. Deixa-me seguir em frente...

Bridei sentiu a água à sua volta e animais estranhos e maravilhosos a nadar, bolas coloridas com membros delgados; peixes gordos e atarracados com olhos protuberantes; ou compridos, delgados e guarnecidos de espinhos; um ser parecido com um monstro das ilhas e um pequeno cão branco com cauda de salmão. Todos eles nadavam em círculos à sua volta numa dança flamante, por cima, por baixo, em redor, deslumbrando-lhe os olhos e seduzindo-lhe os sentidos. O jovem não via Gartnait. O seu amigo não parecia tê-lo seguido para aquele reino. Porém, havia mais alguém presente. Na superfície, por cima de si, nadava uma rapariga, lutando para se manter a flutuar ao mesmo tempo que o pesado vestido cinzento a arrastava para o fundo. Os seus pés pequenos e pálidos davam pontapés cada vez mais fracos à medida que o frio e o cansaço lhe tiravam as forças. Os seus braços moviam-se debilmente na água... a rapariga estava a afundar-se, a afogar-se... Uma grande mão surgiu vinda de cima e empurrou-lhe a cabeça ainda mais... os seus olhos arregalaram-se... os cabelos escuros flutuavam-lhe em redor das feições como um conjunto de algas graciosas...

— Não! — gritou Bridei, mas a água transformou-lhe as palavras em bolhas inúteis. O jovem deu um safanão com os pés e esticou os braços. Ela estava ali, ali mesmo, a duas braçadas de distância, podia salvá-la... O seu pé estava preso, não podia mover-se... Bridei olhou para baixo lentamente por causa do peso da água. Algo o estava a prender, um conjunto de algas emaranhadas, um pedaço de rede, um pedaço de corda... — Tuala! — gritou ele, e as bolhas de ar subiram para rebentar junto do seu rosto a afogar-se. — Tuala!

— Põe em prática o que te ensinamos — disse a voz do careca e gordo Erip. — Água. Marés. Fluxo e refluxo.

Fluxo e refluxo... A Que Brilha... Bridei fechou os olhos, imaginou a forma cheia, redonda e majestosa da deusa, tal como a vira no Solstício de Inverno, olhando placidamente para os campos de Pitnochie. Tão encantadora, tão boa, tão sábia. A Que Brilha não deixaria a sua filha partir daquela maneira, cruelmente; não lhe cortaria o caminho tão cedo. — Amei-a como bebê —, disse ele, e as bolhas transportaram as suas palavras silenciosas em direção à luz. — Amei-a como rapariga pequena, Amei-a como amiga do coração. Amo-a como mulher e amo-a como tua filha.

— Olha em volta — sussurrou-lhe ao ouvido a voz de Wid. — Observa, rapaz, observa...

Peixes rápidos como flechas, algas à deriva, rochas escuras no fundo, lama macia... ali, junto do seu pé, enrolada em redor da sua bota, uma corda, um cordão, prendendo-o... Bridei estendeu um braço, agarrou e puxou... O pequeno cordão ficou-lhe na mão e o jovem nadou para a superfície. Já podia alcançá-la... Onde estava Tuala? Para onde a tinham levado?... Em algum lugar, acima da superfície, ladrava um cão...

Bridei atingiu a superfície e sentiu o calor, viu o brilho da luz enquanto os seus pés pisavam solo firme. O cão estava ali, sem cauda de peixe, com quatro pernas, branco e hirsuto, na sua frente como que a guardá-lo, com uma voz demasiado grossa para um tamanho tão diminuto. Bridei já o tinha visto antes numa visão, muito tempo antes, velando um guerreiro caído no campo de batalha. À sua volta, o fogo rodopiava, tremeluzia, pulsando grandes ondas de calor. Era como se estivesse a rugir no interior do coração da Guardiã das Chamas. Tuala. Para onde tinha ela ido? Para o interior do fogo? Para lá do espaço e do tempo, numa jornada que ele não podia partilhar? Não podia ser. Ele era Bridei, filho de Maelchon, criado em casa de um druida, destinado a ser o líder de Fortriu, não permitiria que a levassem. O jovem encheu os pulmões de ar, lentamente, metodicamente, como Broichan lhe ensinara. Em seguida, olhou para o pequeno cão e o cão olhou para ele. Então, como um só, entraram no fogo.

Não era exatamente dor; era como se estivesse a despir a pele, a carne, as veias, os músculos, os ossos... a mente, o coração... tudo consumido no calor branco da purificação, tudo sacrificado à vontade dos deuses... salvo uma única coisa, a essência, a coragem, o espírito que existia bem fundo em cada filho de Fortriu, em cada filha, tornando-os irmãos de sangue para sempre... O núcleo, a semente, o âmago, que os faria continuar, sempre. Fossem quais fossem as perdas, fosse qual fosse a dor, aquela força assegurava que nunca seriam derrotados... — Fortriu —, arquejou Bridei, ao mesmo tempo que as chamas o crestavam. — Fortriu... — e sentiu o pulsar do fogo como se o seu peito fosse um tambor de guerra e fosse o deus a bater nele com força, soando como um furioso desafio. — Fortriu! Fortriu!

A sua boca estava aberta e os maxilares frouxos. Havia gravetos e folhas em frente do seu rosto. Bridei tinha frio. As suas roupas estavam encharcadas e alguém lhe fazia pressão nos flancos com mãos cruéis, apertando-o ritmicamente, magoando-o, deuses, como estavam a magoá-lo, por que não paravam, não sabiam que já estava morto, três vezes morto, ou quatro?... Um líquido amargo subiu-lhe à garganta, saiu-lhe pela boca e sentiu-se sufocar:

— Chega, Gartnait... já chega...

A pressão cessou. Um par de mãos apertou-lhe os ombros, virando-o de lado. Então, alguém tentou tirar-lhe as roupas, a túnica, a capa que ainda parecia estar a usar. Alguém dizia:

— Raios te partam, Bridei, ajuda-me um pouco, sim? Tirar isto, depressa, e isto... Se eu acreditasse em deuses, estaria agora a agradecer-lhes, homem...

A voz tinha um sotaque Gaélico, não pertencia certamente a Gartnait. Bridei viu-se subitamente apoiado nos cotovelos e a olhar para um céu onde o Sol se estava a pôr. Um pequeno cão lambia-lhe o rosto com grande entusiasmo. Um cão de verdade, de carne e osso. Tê-lo-ia libertado da sua longa velada? Cem anos de espera...

Bridei tentou sentar-se. Uma túnica seca foi-lhe metida pela cabeça abaixo, quente, seca, contra a pele fria e úmida. Um momento mais tarde, alguém lhe pôs pelos ombros uma capa de lã e o jovem agarrou-se a ela. Quem teria sonhado que uma coisa tão simples poderia ser o melhor dos presentes? Bridei virou a cabeça.

— Não olhes para ali — disse Faolan, que estava de ceroulas. — Está lá um homem morto.

Bridei olhou; na orla do Espelho Negro estava Gartnait deitado de costas, com os cabelos ruivos quase dentro de água e os olhos abertos.

— Não consegui salvá-lo — disse Faolan. — Já estava morto quando o pesquei. Quanto a ti, ainda és mais louco do que eu pensava. Que raio aconteceu aqui?

Bridei não respondeu. O jovem estava a olhar para o pequeno objeto que tinha na mão, um talismã feito com dois fios de corda, unidos num padrão complicado.

— Tuala... — suspirou ele. — Onde está Tuala? Viste-a? Ela está aqui? — Os olhos do jovem perscrutaram as rochas, a margem, o carreiro cheio de erva, a superfície escura da água.

— Nem sinal. Apenas aqui o nosso amigo e tu, a flutuar. E o cão. Foi ele que te tirou da água. Para onde é que ele foi? — perguntou Faolan perscrutando a paisagem envolvente. — Não interessa — disse ele. — Os cavalos não estão longe; temos de te aquecer antes que seja noite. Não tenciono perder a minha bolsa de prata só porque decidiste dar um mergulho no Solstício de Inverno.

— Tuala — disse Bridei, brincando com o talismã, como se aquela atividade o pudesse ajudar. — Tuala... tenho de a encontrar... mas onde? Para onde a levaram?

— Bridei — disse Faolan em tom calmo e amável, como se estivesse a falar com uma criança — Gartnait está morto. Tu quase te afogaste e eu acabo de te dar a maior parte da minha roupa. É quase noite. Temos de ir para Pitnochie. Agora. Os cavalos estão à espera. Vamos.

No alto do carreiro o cão ladrou, alto e aflitivamente.

— Temos de te tirar deste ar gelado, depressa. Vamos embora, Bridei. Encosta-te a mim.

— Ar — disse Bridei. — Terra, água, fogo... e ar. O ar é o teste final. Ar, asas, voo... a águia... voando, caindo... oh, deuses... — O jovem pôs-se em pé de um salto e correu na direção do carreiro e Faolan, praguejando, seguiu-o.


— Mais alto! Mais alto! — diziam as vozes à sua volta, agudas, inevitáveis. — Sobe! Sobe! — Estava tão escuro que mal conseguia ver o chão que pisava. Doíam-lhe as mãos e os pés mal conseguiam transportá-la. Porém, algo a forçava a avançar, uma força grande demais, a que não conseguia resistir. Estava na hora de passar para o outro lado. Estava na hora de deixar as coisas más para trás.

Em criança, escalara Cicatriz de Águia sem pensar duas vezes, tão ágil como uma marta, mas agora era diferente. Os seus pés escorregavam, fazendo-lhe vibrar o corpo; as mãos estavam escorregadias por causa do sangue, não se podia agarrar às rochas com elas; o peito doía-lhe, de tanto arfar, tal como os maxilares, de tanto cerrar os dentes. Onde estavam Madressilva e Teia? Por que não tinham aparecido, como prometido, para a ajudar? Não havia sinal deles; apenas as vozes, cantando, chamando, estridentes, fazendo-lhe doer os ossos do crânio. Para cima, sempre para cima: um passo hesitante, um apoio frágil, a respiração entrecortada. Não tinha outra hipótese; tinha de continuar.

Finalmente, Tuala atingiu a laje de pedra no topo da Cicatriz, o lugar onde duas crianças se sentavam lado a lado no Verão, partilhando uma refeição frugal na companhia silenciosa uma da outra. O Verão... aquele tempo solarengo, aquela felicidade simples que parecia agora uma coisa de sonhos, uma coisa desaparecida havia muito, que estava muito longe, inatingível. Tuala deixou-se cair. As suas pernas estavam demasiado cansadas, não podiam continuar.

— Para cima! Para cima! — gritaram as vozes. — Mais alto! Mais alto! Não havia mais nenhum lugar para onde ir. Mais nenhum senão para o pequeno pináculo rochoso onde estivera, em criança, girando, girando ao vento, enquanto Bridei fingia não ter medo que ela caísse.

— Para cima! Para cima!

A jovem fez um último esforço e subiu para o ponto mais alto da rocha. Tão pequeno; não se lembrava de ser tão pequeno, ou tão alto. Por baixo de si, a Cicatriz caía na direção da escuridão. Por cima, os últimos vestígios de luz do dia sobressaíam num céu sombrio, da cor do sono, da cor dos olhos da Mãe de Tudo.

— Ahhh... — suspiraram as vozes, ao mesmo tempo que Tuala permanecia equilibrada, a tremer de frio, com os braços cruzados, tentando aquecer. — Agora... chegou a hora... Anda... Avança...

— Avança? Para onde? — Os dedos da jovem agarraram-se ao tecido da capa; os seus pés moveram-se ligeiramente na superfície molhada da rocha. Tuala nunca tivera medo das alturas; na verdade, nunca compreendera a razão de um tal medo. Naquele momento, porém, ao olhar para baixo, para o abismo sombrio, sentiu um nó no estômago e uma forte dor de cabeça. Avança... Que queriam eles dizer com aquilo?

— Agora, Tuala! — disse a voz de Teia, delicada mas insistente, não um convite, antes uma ordem. — Sabes que és capaz. Faz o que fizeste por nós em Banmerren. Fecha os olhos, estende os braços e voa! Voa, minha irmã, vem ter conosco! Esquece o cansaço! Deixa a dor e a tristeza para trás! Agora, Tuala, agora!

Não tinha importância, pensou vagamente Tuala. Quem se importaria se ela caísse? O mundo continuaria na mesma, quer se transformasse na coruja da sua imaginação, voando no céu noturno, atravessando a fronteira invisível da terra dos sonhos, quer caísse nas rochas no fundo do abismo, não passaria de mais uma coisa quebrada, estatelada. Acontecesse o que acontecesse, Bridei continuaria sem ela. Mais tarde, dir-lhe-iam, ele derramaria uma lágrima ou duas e esquecê-la-ia. Bridei ia ser rei; não teria tempo para pequenas tristezas. Tuala respirou fundo, fechou os olhos com força e abriu os braços.

Algo lhe roçou os tornozelos, suave, como uma pena, mas insistente e real, desequilibrando-a.

— Ah! — disse ela, vacilando em cima da rocha. Tuala abriu os olhos e procurou equilibrar-se. Ao mesmo tempo, Mist saltava-lhe para os braços e arranhava-lhe as mãos. A dor foi pior do que tudo, como que o último golpe, a última traição por parte dos que amara e em quem confiara. Mist agarrou-se; as suas garras penetraram mais ainda. Deuses, como doía...

— Agora, Tuala! — gritaram as vozes. — Agora, agora! Voa!

A jovem não conseguia mexer-se. Imóvel, gelada, com o vento noturno a sacudir-lhe a capa, os pés escorregando na rocha e as garras do gato penetrando-lhe nas palmas das mãos, Tuala descobriu a verdade. A jovem sentia; a dor, a tristeza, o medo de cair, o terror do desconhecido; conseguia sentir aquilo e também o outro lado: a lareira, os festins de pão de aveia e de maçãs secas, o riso retorcido dos anciãos e o sorriso de Bridei... Bridei... As carícias de Bridei... o beijo de Bridei... Tuala apertou com mais firmeza o corpo quente do gato e aconchegou-o ao peito. A jovem adorava aquilo. A dor, o medo, a sabedoria e a alegria faziam parte dela, significavam que estava viva, significavam que era humana. Fosse o que fosse, viesse de onde viesse, pertencia àquele mundo, não ao outro.

— Então, Tuala? — gritou Teia, e Tuala pensou que era capaz de discernir, na orla da sua visão, o vislumbre de um brilho que não era daquele mundo, um raio colorido; a jovem ouvia pedaços de uma música maravilhosa, uma canção, parecida com as que faziam doer o coração. A jovem pensou sentir um aroma doce no ar, como quando os perfumes das flores de Primavera se misturavam, atravessando os prados do Vale nas asas da brisa. As coisas boas estavam ali, antes da fronteira... Que tolice deitar tudo fora só porque... só porque...

— Vem, Tuala — chamou Madressilva num tom mais baixo, gentil, sedutor, quente, cheio de promessas. — Um único passo, mais nada. Sabes que é melhor para ele, que é melhor para ambos... Vem para casa, querida irmã...

Tuala fechou os olhos. Mist... Não podia levar Mist consigo. A jovem pousou o gato no solo, a seus pés, endireitou-se e abriu mais uma vez os braços.

— Ótimo, Ótimo — murmurou Madressilva. — Fecha os olhos e segura na minha mão...

— Tuala!

O coração da jovem desatou a bater; a cabeça doeu-lhe. As lágrimas cegaram-na.

— Tuala, não me abandones! Amo-te!

A voz do jovem chegou-lhe distorcida pelo terror, mas Tuala percebeu instantaneamente. Bridei estava ali. Afinal, não a abandonara. A jovem virou a cabeça e perscrutou a escuridão. O vento fustigou-lhe a roupa, insistentemente, com força. Tuala vacilou. Cair naquele momento, quando o milagre acontecia, seria demasiado cruel...

— Agarra a minha mão. — Aquela voz não era de Madressilva, era de um estranho estendendo-lhe o braço, agarrando-lhe as duas mãos, ajudando-a a descer do pináculo para a segurança relativa da rocha plana. As mãos do homem eram quentes e fortes; Tuala agarrou-se a elas com o corpo a tremer. Quando encontrou a própria voz, começou a soluçar como uma criança aterrorizada.

— Bridei? — disse ela.

O outro homem deu um passo atrás e lá estava Bridei abraçando-a, o seu coração batendo de encontro às suas faces, os seus lábios de encontro aos seus cabelos. Bridei arquejava, talvez estivesse a chorar; a jovem sentiu-o estremecer, desesperado. O seu abraço foi igual; as sensações que a percorriam eram fortes demais, não tinham nome, não faziam sentido. Tudo o que interessava era que estava viva e que ele estava ali. Tuala enterrou o rosto na túnica de Bridei, sentiu as mãos do jovem nos cabelos e ouviu-o sussurrar num tom que nunca utilizara antes:

— Tuala... Tuala...

Apesar de áspero e irregular, soava como uma oração. Após alguns momentos, o outro homem tossiu.

— Bridei — disse ele, e Tuala apercebeu-se de que Bridei estava gelado e que o outro homem não tinha nem túnica, nem jaqueta, nem capa para o proteger do frio daquela noite de Solstício. Estranhamente, aos pés de Bridei estava sentado um cão pequeno, muito educado. — Temos de ir — continuou o estranho. — A tua dama está em tão mau estado como tu. Agradeço aos meus patrões por me terem contratado para te proteger apenas a ti porque só de pensar em ter que aquecer os dois deixa-me um pouco atarantado. Toca a andar para os cavalos imediatamente. Precisamos de uma lareira e de roupas secas. Sois capaz de descer?

Tuala sentiu que o estranho estava a falar com ela. A jovem abriu a boca para dizer que sim, era evidente que sim, mas quando tentou pôr um pé à frente do outro, começou tudo a girar e só o braço de Bridei a impediu de cair. Mist já tinha descido; o pequeno cão branco continuava pacientemente sentado com os olhos fixos em Bridei. A sua silhueta pálida parecia, na escuridão, a luz difusa de um farol.

— Eu... — começou a dizer Bridei, mas o seu companheiro cortou-lhe a palavra pegando em Tuala ao colo e iniciando a descida.

— Tu não vais fazer nada. Aqui, quem manda sou eu, pelo menos até regressarmos a Caer Pridne. Toca a andar para os cavalos e deixa a dama comigo. Terás muito tempo quando chegarmos a Pitnochie. Anda lá, Bridei, estás exausto, embora te esforces por mostrar que não. Ninguém espera que exibas a força da própria Guardiã das Chamas. Pelo menos por enquanto.

— Pitnochie... — murmurou Tuala ao colo do estranho. — Não está lá ninguém... tudo fechado...

— Agora já está — disse o homem. — E há de haver uma lareira acesa, comida e camas quentes. Deixai tudo conosco, minha senhora. Dentro em pouco estareis em segurança.

Tuala fechou os olhos, submetendo-se ao luxo inimaginável de não ter de tomar decisões. No fundo do carreiro estavam três cavalos à espera.

— Luciry — murmurou Tuala, sorrindo ao ver o familiar pêlo malhado e as formas angulosas do velho amigo de Donal.

— É verdade, Luciry — disse o homem que a transportava, erguendo-a para cima de uma égua branca, um animal encantador que se manteve imóvel enquanto Bridei era ajudado a montar, os seus braços rodeavam a cintura de Tuala, puxando-a para si e o outro saltava para cima de Luciry, segurando nas rédeas do terceiro cavalo.

— E...? — perguntou o outro homem, olhando de relance para Bridei.

— Amanhã de manhã. Mando cá uns homens buscá-lo. Temos de levar Tuala imediatamente, ela está completamente gelada e também está ferida.

— Para não falar de ti próprio, que quase te afogaste e que tens um golpe na cabeça. Vamos, então, mas com cuidado; está escuro como breu.

O animal que a transportava e a Bridei parecia pertencer mais ao outro mundo, pensou Tuala enquanto desciam vagarosamente, ao mundo cuja música e luz, cujas maravilhas e segredos vislumbrara apenas por um momento, antes de o poder do seu próprio mundo a ter feito recuar. A jovem continuava a ouvir as vozes, não iradas, desapontadas ou acusatórias, como seria de esperar, antes cantando uma canção de reconhecimento e despedida, uma espécie de saudação na qual não se ouvia outra coisa senão o seu nome e o dele e uma melodia sem palavras.

Afinal de contas, a noite não estava tão sombria que não conseguissem encontrar o caminho de Pitnochie. O pequeno cão trotava na frente, silencioso. A sua silhueta pendular parecia transportar consigo a sua própria luz, guiando os cavaleiros com segurança até eles atingirem a orla da floresta e verem, mais abaixo, os archotes, os guardas e a casa de Broichan à sombra dos carvalhos, com o seu telhado de colmo e o fumo a sair pela chaminé. Não havia neve nos degraus; não havia ferrolho de ferro na porta. Quando se aproximaram da entrada, a porta abriu-se de par em par e a luz quente saiu na sua direção, acompanhada por vozes e pelos latidos excitados dos três cães de Pitnochie. O pequeno cão não fugiu, ficou entre o cavalo branco e o perigo, decidido. Então, quando Bridei deslizou da égua e pegou em Tuala, uma forma escura apareceu à porta, a sua silhueta recortada pela luz dourada da lareira e da candeia acolhedora. Broichan observou em silêncio o seu filho adotivo pegar em Tuala ao colo, transportá-la através da soleira e entrar em casa.

O calor, o barulho e os odores fizeram andar à roda a cabeça de Tuala; abruptamente, a jovem tomava consciência da sua exaustão, das dores em todo o corpo, da necessidade urgente de beber água. À sua volta, a confusão era total; a única certeza era os braços de Bridei, segurando-a enquanto a levava para o salão e a sentava num banco como se fosse uma cesta de ovos, cuidadosamente. De Broichan, a jovem não ouviu um único som.

— Cinioch, acompanha Brenna à cabana e traz roupa seca para Tuala, aqui não há nada suficientemente pequeno. Mara, precisamos de água quente, ela está gelada. Também precisamos de algumas coisas aqui para Faolan, ele deu-me a roupa quase toda dele...

Olhando em volta, Tuala viu que a casa estava enfeitada para aquela época do ano. Havia grinaldas por cima das janelas e das portas, folhas luxuriantes e bagas escarlates; junto da lareira um grande tronco, pronto para a cerimônia e para o reacendimento das outras lareiras da casa. Um aroma rico, a carne assada e a pudim de frutos vinha da cozinha; era evidente que sempre tinha havido gente em casa e nos pátios em redor, preparando o ritual. O celeiro vazio, os campos desertos, as janelas fechadas tinham sido um truque, uma visão, para a afastar de Pitnochie e encaminhá-la para o Espelho Negro. Teria sido obra de Teia e Madressilva? Por que teriam sido tão cruéis? A não ser que tivesse sido tudo um truque, a adulação, a sedução, a longa e solitária viagem. Talvez tivesse sido um teste... um teste de lealdade...

— Bridei — estava a dizer Faolan — deixa-te disso, sim? Tu é que precisas de roupas secas e água quente.

— Tem razão — disse Broichan, finalmente, acordando o velho medo de Tuala. O druida desprezava-a; não a queria ali. Nada mudara. A jovem enterrou o rosto no peito de Bridei odiando a sua própria fraqueza e sentiu os braços dele em seu redor, apertando-a enquanto se sentava no banco a seu lado. — Não sei o que se passou, mas a minha casa providenciará calor e abrigo a todos — disse o druida. As mulheres tratam de Tuala. Quanto a ti, Bridei, fazeres uma viagem destas no teu estado não foi um ato nada racional. Tu não estás bem. Tens de comer, beber e descansar. Deixa as decisões para os outros, pelo menos por agora. Amanhã temos muito tempo para pôr a conversa em dia.

Bridei não se mexeu.

— Estou a falar a sério, Bridei. Mara trata de Tuala. Podes descansar e recuperar.

— Eu já não sou nenhuma criança. — A voz de Bridei era fria, controlada: a voz de um homem, de um líder. No salão, o silêncio foi total. — Temos umas contas para ajustar que não podem esperar. Mara! Deixo Tuala ao teu cuidado e ao de Brenna, por agora. Faolan, quero que fiques tão perto delas quanto o permita a decência. Que nem um só cabelo dela sofra, que não seja pronunciada uma única palavra desagradável na sua presença. Que todos saibam que, dentro de sete dias, me apresentarei como pretendente ao trono de Fortriu. A partir deste momento, Tuala está sob a minha proteção. Tratá-la-eis com cortesia, respeito e amor. Devíeis sentir vergonha por eu precisar de vos dizer isto. — Os seus braços largaram gentilmente a jovem, mas a mão de Tuala continuou na sua. A jovem viu um círculo de rostos surpreendidos, salvo o de Mara; Mara já estava a colocar uma pilha de roupa a aquecer à lareira e a espantar os cães — quatro. A governanta olhou para a figura impassível de Faolan.

— E este, quem é? — perguntou ela. — Nesta casa nunca houve lugar para celtas e não vejo por que há de ser diferente a partir de agora.

— Faolan é meu amigo — disse simplesmente Bridei. — Faolan trata dos meus assuntos. Podes confiar nele. E agora...

Libertando a mão de Tuala, o jovem sorriu-lhe docemente.

— Não me demoro — murmurou ele. Em seguida, Bridei atravessou o salão na direção de Broichan. O esforço foi impressionante; Tuala, retendo a respiração, apercebeu-se da dificuldade que o jovem tinha em caminhar firmemente e com as costas direitas. Doente? Doente de quê? Teria Faolan falado realmente de um golpe na cabeça?

— Vem — disse Bridei ao seu pai adotivo e os dois homens dirigiram-se para os aposentos privados de Broichan. A porta fechou-se.


— Diz-me — pediu Tuala ao celta, enquanto a atividade recomeçava, frenética, à sua volta. — Que se passa com ele? Que aconteceu?

— Banho primeiro, perguntas depois — disse Mara com voz cortante, ao mesmo tempo que o barulho de potes vindo da cozinha indicava que Ferat regressara para preparar a festa do Solstício. — E não só não gostamos de ter celtas vendo mulheres a despirem-se no meu salão, como, em tais ocasiões, não gostamos de ter qualquer espécie de homens. Toca a andar daqui para fora! Uven, leva este tipo aos alojamentos dos homens e arranja-lhe qualquer coisa para vestir, parece um rato meio afogado. O que é que andaram a fazer? A pescar serpentes do lago? Toca a andar!

— Ouviste o que ele disse. — O tom de Faolan era neutro.

— Ouvi e não é necessário. Eu sei muito bem o que está certo e o que não está, sempre soube. É um insulto o rapaz pensar que não pode confiar em mim.

— As coisas mudaram — disse o celta. — Terás que te habituar.

— Talvez não tenham mudado tanto assim — resmungou Mara, olhando para a porta interior. — Toca a andar, todos. Não quero homens aqui; só quando eu disser. Que Corvo Negro nos salve, Tuala, que andaste a fazer? Estás mais magra do que uma galinha depenada e quanto às botas... Brenna, ajuda-me aqui, sim? Cinioch que vá buscar a roupa. Ferat! Essa água quente, vem ou não vem?

Tuala olhou de relance para o celta que continuava plantado no meio do salão, impassível e de braços cruzados.

— Não te preocupes — disse-lhe ela. — Podes ir. Eu fico bem. E obrigada. Pareces ser um amigo leal de Bridei.

Faolan acenou com a cabeça. Sem dizer nada, o espião girou nos calcanhares e seguiu Uven.

— Não se pode ensinar boas maneiras a um celta — observou Mara. — E de onde é que veio aquilo? — O pequeno cão tinha-se desembaraçado dos cães grandes e estava agora aos pés de Tuala, olhando para ela com olhos brilhantes.

— De muito longe — disse Tuala, lembrando-se das visões no Espelho Negro, suas e de Bridei. — De muito, muito longe. Creio que Bridei o libertou de uma obrigação terrível.

— Hum — disse Mara, enquanto Ferat e os seus assistentes apareciam com um grande panelão de água quente e alguns jarros. Ouvem-se latidos de cão no bosque, todas as noites. Dizem que duram há cem anos. — A governanta olhou duvidosamente para o animal.

— Penso que ele não volta a latir — disse Tuala. — Penso que, finalmente, chegou em casa.


CAPÍTULO DEZOITO


— Não vou perguntar — disse Bridei —, porque razão a mandaste embora outra vez de Pitnochie, nem por que razão lhe quiseste arranjar um casamento enquanto eu estive fora. Não vou perguntar por que razão, quando soubeste que ela tinha fugido, não utilizaste todos os meios para a encontrar. Não precisas de me dizer por que não me disseste que ela se tinha perdido; por que razão me mentiste. Nunca compreendi por que razão não gostas de Tuala. Para mim, é evidente que ela tem a bênção da Que Brilha, que percorre um caminho de luz e que só nos pode trazer o bem. Tu és o druida do rei. Os deuses estão em teu coração e o seu conhecimento corre em teu sangue. Tudo o que sei, aprendi contigo! Não compreendo como nunca conseguiste reconhecer a verdade acerca de Tuala. Para mim, é um mistério. Desapontaste-me, Broichan, e acordaste em mim desconfianças perturbadoras. Pergunto a mim próprio se te terás realmente apercebido de que já não sou uma criança, que me transformei num homem. Pergunto a mim próprio se não reconhecerás que um homem que mais cedo ou mais tarde vai ser rei é capaz de pensar por si mesmo.

— Senta-te, Bridei.

Recusar seria infantil; além do mais, o senso comum dizia a Bridei que as suas pernas não agüentariam muito mais tempo. Era evidente que o sucesso da sua missão, desde a cavalgada terrível até Cicatriz de Águia até o momento em que tivera Tuala nos braços, se devera à notável Spindrift e, no fim, a Faolan. Bridei sabia que estava fraco e exausto. No entanto, fora treinado para se controlar, e treinado pelo melhor. Naquele momento, o que tinha pela frente era um desafio e não tencionava perdê-lo.

— Muito bem — disse Broichan, sentando-se à mesa em frente do jovem e deitando hidromel em duas canecas. — Espero que me ouças, apesar dessa tua conversa de não procurar explicações.

— Não quero nenhuma. Nenhuma fará sentido. Ela estava ao nosso cuidado; foi-nos confiada pela deusa. Sabias o que ela significava para mim. Com as tuas maquinações, com a tua inação, fizeste com que Tuala quase se tivesse perdido para sempre. Provocaste-lhe desgosto e dor. Se estás à espera de perdão, vais ficar desapontado. Se estás à espera de compreensão, és louco.

Broichan suspirou.

— Bridei — disse ele —, tens sete dias até à assembléia. As tuas palavras anteriores dizem-me que não esqueceste esse fato, se bem que as tuas ações impetuosas sugiram que perdeste algum do seu significado. Sete dias, Bridei. Estamos no Inverno. Drust, o javali, já deve estar em Caer Pridne a seduzir, a bajular, a subornar, virando os homens contra ti, reunindo apoios para a sua causa. A cada dia que passas fora da corte, a influência do teu oponente aumenta. A eleição não espera por nós. Tens de regressar a Caer Pridne o mais depressa possível. Tens de estar lá, ser visto e ouvido, trabalhar os corações e as mentes que ainda podem ser trabalhados. Vir para aqui foi uma loucura. Ficar aqui mais tempo do que o necessário pode ser a morte das nossas esperanças. A morte do futuro de Fortriu.

Bridei ficou silencioso durante alguns momentos a olhar para as mãos, descontraídas em cima da mesa. O jovem não tocou no hidromel.

— Um exagero — disse ele. — Há mais candidatos com valor.

— Isso é pouco sincero da tua parte, Bridei. Carnach fará a tua apresentação como substituto, não em seu nome. É minha opinião, e dos meus amigos, que o único pretendente, para além de ti, será Drust, o Javali. Ambos sabemos, sabemos todos, que tu és o candidato da Guardiã das Chamas. Esta situação está a ser preparada há quinze anos; o seu planejamento é muito anterior. O país precisa de ti. O povo de Fortriu precisa de ti. Reconheço que precisas de algum tempo de descanso, para recuperares as tuas forças. Um dia, dois, não mais. Depois, temos de regressar à corte.

Bridei não disse nada.

Broichan tamborilou com os dedos na mesa. A sua expressão não mudou.

— Temos a questão de Tuala. Compreendo a tua posição. Dou-te a minha palavra de que poderá ficar aqui o tempo que for necessário. Quanto ao futuro dela, acho que não é altura de pensarmos nisso. Ela teria feito melhor se tivesse ficado em Banmerren, onde tinha um lugar. A sua fuga fez-nos perder um tempo precioso. Não interessa; Tuala pode esperar. Depois da assembléia, quando fores rei, trataremos do assunto.

— Não tenciono perdê-la de vista — disse Bridei.

— Ela não pode ir para a corte conosco. — O tom de Broichan era brusco. — Tuala não será aceita. Bastará um olhar para todas as pessoas verem que tem sangue dos Boa Gente. Que pensarão os votantes de Circinn? Até os nossos a vêem com desconfiança. Por que imaginas que ela teve de sair de Pitnochie?

— Penso — disse Bridei lentamente, pesando cada palavra — que essa desconfiança só existe se a permitirmos. A tua gente ama-te e respeita-te. Teria bastado uma palavra ou duas da tua parte para que essa desconfiança tivesse desaparecido. Em vez disso, mandaste-a embora. Roubaste-lhe o único lar que ela alguma vez conheceu. As tuas preocupações não têm qualquer valor para mim. Não regresso a Caer Pridne sem Tuala.

Seguiu-se um curto silêncio.

— Lamento, Bridei. Compreendo os laços que existem entre vós e sei que as qualidades de Tuala são admiráveis: inteligência, sutileza, lealdade e encanto físico, que pode fazer com que um homem jovem esqueça o que é correto na escolha de uma... parceira. — Broichan disse a última palavra com evidente repugnância. — Deixa-me ser franco contigo. Não sei qual é o papel que tencionas dar à rapariga na corte e sei que não vai ser o de irmã. Talvez se possa arranjar alguma coisa. Podia arranjar-se um alojamento, não em Caer Pridne abertamente, mas...

— Chega. — Bridei manteve a voz controlada apesar da fúria que sentia. — É evidente que não me fiz entender. O que eu quis dizer é que vou me casar com Tuala e com mais ninguém. O assunto está fora de discussão. A minha decisão está tomada.

— Oh, Bridei — suspirou Broichan. — Ainda és tão novo, tens o futuro pela frente, cheio de oportunidades. Esta não é, certamente, uma delas, filho. Um rei de Fortriu não casa com uma filha dos Boa Gente. Ficas sujeito ao ridículo, acorrentado, coxo. A influência dela pode tornar o teu percurso perigosamente imprevisível. Não podemos permitir isso.

— Podemos? — Bridei respirou fundo, manteve as mãos imóveis e uma expressão calma.

— Os teus conselheiros. Se bem que nunca diga nada abertamente, Talorgen sempre esperou que fosse possível uma aliança entre ti e a filha dele. Ela é perfeitamente apropriada: é inteligente, tem apresentação, não é feia e é de sangue real. Além disso, é irmã do teu melhor amigo.

— Eu respeito e admiro Ferada. Sempre admirei, mas não tenciono me casar com ela. — Bridei viu Gartnait afogado, com os olhos vazios virados para o céu e estremeceu.

— Aniel — continuou Broichan — sugeriu a refém real, Ana. Ana é muito bela e, aparentemente, um modelo de amabilidade e cortesia. Seria uma excelente escolha. Mas há mais. Bridei, eu compreendo que um jovem está sempre sujeito a impulsos fortes, a paixões que a Guardiã das Chamas desperta. Não tenho dúvidas de que chegou a altura de arranjares uma esposa.

— Mas não Tuala.

— Certamente que não. O fato de teres pensado, sequer, nessa possibilidade, significa que estás a troçar da tua educação.

— Estou a ver. A decisão de não a escolher não significa que estou a troçar da Que Brilha? Foi a deusa que colocou Tuala a meu cargo há muito tempo, numa noite do Solstício de Inverno. Não te importa essa circunstância?

Seguiu-se uma pausa.

— Tal como te disse, não faltará nada a Tuala. — Os dedos de Broichan brincaram com a taça de hidromel. — Não precisas de casar com a rapariga para cumprir a promessa que fizeste de tomar conta dela.

— Acho que preciso. Eu acredito que A Que Brilha a trouxe para Pitnochie por uma única razão: para que, se eu me tornasse rei de Fortriu, tivesse uma companheira perfeita a meu lado, uma companheira que me dará força nas dificuldades que me esperam no caminho. A deusa mandou Tuala, como minha amiga do coração, para que, nesta grande missão que me espera, eu não falhe nem hesite. Eu amo-a e ela ama-me. Um druida não compreende uma coisa tão simples?

— Bridei — disse Broichan —, tu estás extremamente cansado, ainda estás fraco e desconfio que não comes desde que saíste de Caer Pridne. Acredita, é melhor deixarmos isto para amanhã. Melhor ainda, para depois da assembléia. Uma decisão destas não deve ser tomada às pressas. Se não queres deixar Tuala aqui, tudo bem, ela pode ir para Banmerren até a questão do trono estar decidida. É vital que concentres todas as tuas energias na eleição. Não nos podemos dar ao luxo de nos distrairmos. Não penses nisto agora. Fola toma conta da rapariga até termos tempo...

— Não — disse Bridei. — Eu não posso esperar. Tuala quase morreu esta noite por causa da tua falta de compreensão, porque pensava estar completamente só no mundo. Eu fui testemunha do que te aconteceu no Portal, vi o preço que tens de pagar, sei que deve ser muito caro. Diz-me, a tua vida foi sempre assim, disciplinada, leal, nunca aprendeste o que é o amor?

— Isso não é amor — disse Broichan, com uma voz subitamente tão dura como o ferro — é uma ilusão. Tu não te vais casar com Tuala. Como rei, não podes.

Bridei fixou os olhos escuros e impenetráveis do seu pai adotivo.

— Nesse caso, não serei rei — disse ele calmamente.

Os olhos mudaram. Era evidente que Broichan, nos seus sonhos mais impossíveis, nunca imaginara aquilo.

— Que estás a dizer, Bridei?

— Tuala será minha mulher. Não alterarei a minha decisão porque sei que não posso continuar sem ela. Parece que me estás a dar a escolher: Tuala ou o reino. Eu não desisto dela, Broichan. Se decidir que o custo deste teu sonho de quinze anos é demasiado caro para mim, terás que arranjar outro homem para teu fantoche. Sem ela, não consigo.

— Não sejas ridículo. É evidente que consegues! — O druida pusera-se de pé, com o rosto branco como a cal.

— Deixa que te repita — disse Bridei. — Sem ela, não serei candidato. Espero ter sido suficientemente claro. Eu sou um homem, Broichan. Cresci e sou muito bem capaz de tomar as minhas decisões. Nunca perdi de vista o destino que preparaste para mim. Acredita que não desisto de bom grado, mas o que disse, faço. Se recusares aceitar o meu casamento, Tuala e eu ir-nos-emos embora e faremos a nossa vida noutro lugar qualquer, longe da limitação dos poderosos. Nada do que faças ou digas me fará mudar de idéia.

— Não acredito nisto...

— Pensa no que fizeste a Tuala. Foram as tuas ações irrefletidas que provocaram esta situação. A minha obediência só dura até eu ver as expressões a alterarem-se nos rostos daqueles em quem eu acreditava. Não perdôo o que lhe fizeste. Não perdôo as tuas mentiras. Porém, não tomo esta decisão para te punir. Eu quero o trono, Broichan. Trabalhei para ele. Acredito que é a vontade dos deuses; sei que sou o melhor homem para o cargo e sei que, se for eleito, não conseguirei sobreviver sem ela. É por essa razão que não me afasto se tu e os teus aliados apoiarem a minha escolha. E agora, vou fazer o que sugeriste: vestir roupa seca, comer e descansar. O ritual do Solstício do Inverno está quase a começar. Estamos na estação do despertar, uma época de nascimento e luz nova, os dias crescem até a Guardiã das Chamas atingir, uma vez mais, o seu zênite radiante. Uma noite auspiciosa. Como disseste, é preciso algum tempo para tomar uma decisão. A tua, quero eu dizer, porque a minha está tomada.

— O que é que queres? — O tom de Broichan era constrangido.

— O teu apoio em tudo. Que não apóies apenas a minha escolha, que mostres a tua amizade e cortesia e que faças com que o resto da corte faça o mesmo. Que não fales mal dela, que não ajas contra ela. Que a tua verdadeira atitude em relação a este assunto não se torne conhecida fora deste quarto.

— Se eu recusar, tu...

— Saio de Pitnochie e de Fortriu com Tuala a meu lado. Nunca mais me verás.

— Estás a falar a sério!

Bridei pôs-se de pé.

— Se eu for rei, tenciono ter um certo número de conselheiros — disse ele —, e tu serás um deles. O que aconteceu aqui não diminuiu a minha gratidão pelos anos que devotaste à minha educação, pela sabedoria que partilhaste comigo, pelas oportunidades que me deste. No entanto, nunca mais confiarei em ti. Um rei deve escutar os seus conselheiros e tomar, depois, as suas decisões. — Bridei inclinou polidamente a cabeça e abandonou o quarto. Atrás de si ficou o silêncio total.

O ritual do Solstício de Inverno daquele ano não teve a sua vitalidade habitual. Broichan disse as orações como se a sua mente estivesse noutro lugar. A cerimônia do fogo foi breve: era importante manter o salão quente visto que três dos presentes sofriam os efeitos de uma longa exposição ao frio do Inverno. No ponto da cerimônia em que eram feitas perguntas e obtidas respostas, Broichan olhou para Bridei e este, calmo e sereno, desempenhou o seu papel há muito aperfeiçoado sob a orientação exata do druida. No fim, quando estavam todos em círculo para proferir as palavras de bênção, Tuala ocupou o seu lugar ao lado de Bridei, mão na mão. A um canto da sala, Faolan observava tudo com uma expressão séria.

Seguiu-se um ótimo festim, mas nem Bridei nem Tuala conseguiram comer muito. Um pouco de sopa e um bocado de pão pareceu-lhe suficiente e a cerveja e o hidromel que lhes serviram ficaram intactos. Os dois jovens falaram pouco; ficaram sentados lado a lado no banco onde, em crianças, se tinham acotovelado ouvindo e contando histórias de magia e mistério. Naquela noite iniciava-se para os dois uma nova história, maravilhosa e prometedora, que duraria a vida inteira. Os dois jovens só tinham olhos um para o outro.

O tronco do Solstício de Inverno ardeu, vivo. Em frente da lareira, Mist dormitava enroscado e, junto dele, dormia o cão branco com a cabeça pousada nos pés de Bridei e as orelhas mexendo-se de vez em quando. Talvez, nos seus sonhos, ainda estivesse de guarda no vale solitário onde, muito tempo antes, guerreiro amado, fora morto por um machado de Dalriada.

As pessoas começaram a retirar-se. Havia um lugar para Tuala nos aposentos de Mara e Bridei tinha o seu velho quarto, mas nenhum dos jovens parecia decidido a sair dali. Finalmente, depois de Mara ter aferrolhado a porta, apagado tudo menos uma candeia e olhar por cima do ombro antes de sair, Broichan levantou-se e foi em silêncio para o seu quarto.

Perto da lareira havia uma cadeira grande de carvalho esculpido, com um grande espaldar. Bridei instalou-se nela com Tuala nos joelhos e com um cobertor a cobri-los. Por baixo, as mãos moviam-se, acariciavam, criavam uma seqüência de surpresas deliciosas. As faces de Bridei estavam coradas; os olhos de Tuala estavam brilhantes. Talvez fosse bom estarem os dois demasiado cansados para desejarem mais do que aquelas explorações delicadas de uma proximidade recém-descoberta. Num banco encostado à parede mais afastada, Faolan estava deitado de costas, por baixo de uma capa. Provavelmente, não dormia. O celta nem ali deixava Bridei sem guarda.

— Tenho uma coisa para te perguntar — murmurou Bridei. Porém, não sei se consigo; se disseres não, não só me despedaças o coração, como me farás fazer figura de tolo em frente de toda a gente.

— Não vou dizer não, Bridei. — A mão da jovem acariciou gentilmente o peito de Bridei por baixo da camisa limpa que tinham dado ao jovem.

Bridei engoliu em seco.

— Tencionava perguntar-te antes... Queria perguntar-te... Queres ser minha mulher, Tuala? — O seu coração batia com toda a força; era espantoso como, depois de tudo aquilo por que passara, se sentia aterrorizado.

— Quero, Bridei. — A voz da jovem era meiga e precisa; mudara pouco desde os tempos de criança.

Bridei inclinou a cabeça e beijou-a; o beijo dela foi, indiscutivelmente, o beijo de uma mulher. Após alguns momentos, ele afastou os lábios.

— Compreendes o que isto quer dizer? — perguntou-lhe ele. — Se eu for eleito, serás rainha de Fortriu. A vida de uma rainha é muito diferente; é solitária, difícil.

— Eu sei. Bridei, e Broichan? O que é que ele te disse? Ele concordou?

— Ainda não, mas vai concordar; não tem outra hipótese. Eu disse-lhe que retiraria a minha candidatura se ele se recusasse a concordar com o nosso casamento.

— Oh.

— Tem de ceder. Ele sabe que eu posso ganhar. Devo conseguir os apoios necessários se Foirel de Galany chegar a Caer Pridne a tempo. Se houver um empate, Faolan pode provar que Drust atentou contra a minha vida. Deve bastar.

— Atentar contra a tua vida? O ferimento na cabeça de que Faolan falou?

— Na Lua cheia. Fui atacado quando ia ter contigo a Banmerren. Desculpa... Desculpa por não te ter podido dizer...

A mão dela acariciou-lhe gentilmente o cabelo e tocou no lugar onde o ferimento ainda era evidente.

— Não sei como pude pensar — murmurou ela. — Tive visões: tu e Ana, tu e Ferada... Não devia ter acreditado neles.

— Eles? Eles quem?

Tuala sorriu.

— É uma longa história, Bridei, uma história longa e estranha. Creio que fui posta à prova.

Bridei acenou com a cabeça, ao mesmo tempo que brincava com as madeixas sedosas do seu cabelo.

— Também é difícil acreditar na minha história. Parece que fomos os dois postos à prova pelos deuses. Gartnait veio atrás de mim e agora está morto.

— Morto? Que aconteceu?

— Só Faolan e eu é que sabemos a verdade. Tenho de arranjar uma versão diferente para Talorgen.

Tuala olhou para o rosto de Bridei; o que viu nele tornou-a silenciosa.

— Ele veio atrás de mim desde Caer Pridne. Eu trouxe a égua de Uist; Gartnait deve ter feito um grande esforço para me apanhar; apanhou-me pouco antes de eu chegar a Pitnochie e disse que tinha vindo para me fazer companhia, para me ajudar. Em seguida, fomos ao Espelho Negro à tua procura. Então...

— Então o quê, Bridei? — A jovem agarrou nas duas mãos dele.

— Então, ele agarrou-me o pescoço com as duas mãos e tentou estrangular-me. Foi como se tivesse enlouquecido. Tudo o que dizia era que lamentava. A única maneira que arranjei de me livrar daquilo foi forçá-lo a cair à água.

— No Espelho Negro?

— Foi terrível. Quando voltei a mim, Faolan estava a tentar tirar-me a água dos pulmões e Gartnait jazia afogado, na margem. Faolan tinha-nos pescado aos dois. O cão estava lá, o cão do Espelho Negro, só que era mesmo real. Nem sequer tive tempo para pensar, fomos logo atrás de ti. Quanto à razão por que Gartnait fez o que fez, é um mistério.

— Que vais dizer a Talorgen?

Bridei olhou para o banco onde Faolan estava deitado.

— Que foi um acidente; que Gartnait tentou salvar-me de morrer afogado. Que, pelo menos na morte, o pai fique com boa opinião dele.

— Ferada vai ficar muito triste.

— Sim. Apesar de andarem sempre às turras, ela e Gartnait gostavam muito um do outro. Ela ajudou-me. Se não fosse ela, eu ainda estava em Caer Pridne.

— Achas que Talorgen, Fola e os outros te vão apoiar apesar de quereres casar com uma rapariga que não é... apropriada?

— Tu és apropriada — disse-lhe Bridei. — Temos é que o demonstrar. E sim, acredito que eles me vão apoiar apesar da influência de Broichan. Se não o fizerem, não sou um pretendente tão forte como devia. Quanto aos chefes tribais de Fortriu, fui eu que os trabalhei, mais ninguém. Eles vão apoiar-me. Amanhã, se não antes, já o meu pai adotivo terá aceitado que o seu argumento não é argumento.

— Ele receia que eu te influencie — observou Tuala. — Que a minha influência possa ser maior do que a dele. Houve uma altura em que quase fomos aliados, ele e eu. Porém, nunca confiou em mim, por mais que eu tentasse. Não faço parte dos planos dele.

— O plano dele acabou — disse Bridei. — Agora, o destino pertence-nos, a ti e a mim.

— Ele ama-te. Não te podes esquecer disso.

— Não me ama pelo que sou, ama-me pelo que posso fazer por ele, por Fortriu.

— Estás enganado. Para ele, és um filho.

— Penso que não.

Seguiu-se um pequeno silêncio. O cão branco suspirou e mexeu-se. Tuala levou a mão de Bridei ao rosto e depois beijou-a.

— Bridei?

— Hum?

— Quando é que nos casamos?

— Ah. — O jovem endireitou-se um pouco e aconchegou melhor o cobertor em redor dos ombros de Tuala. — Gostaria de te falar disso.

— Pareces ansioso, meu querido. Diz lá.

— É que... bem, o meu desejo é que o nosso casamento seja... perfeito.

— Espero que seja — disse Tuala.

— Não se for celebrado aqui, onde tens sido tão infeliz, onde a influência de Broichan é tão forte. E nem em Caer Pridne. Quero fazer algumas mudanças. Em relação a nós e em relação ao governo de Fortriu. Está tudo relacionado com...

— Com o Portal?

Bridei acenou com a cabeça.

— Se tudo correr como eu prevejo, dentro de sete dias serei eleito rei. A primeira coisa que tenciono fazer é estabelecer a corte longe de Caer Pridne. Vou construir uma fortaleza nova. Nela instalarei o centro de negócios de Fortriu. Será o símbolo, assim espero, de um futuro novo, um futuro melhor. Tenho o local em mente, um local que me foi descrito por Ged de Abertornie, situado perto do Lago da Serpente, um monte onde existem as ruínas de uma antiga fortificação de pedra e madeira. No topo existe um bosque de árvores grandes e uma grande extensão de terreno. Dali é possível ver não só o oceano, mas também o lago e os montes do Grande Vale. Acho que tu não deves viver onde não possas ver a floresta.

— E onde tu não possas ver o vôo da águia — disse Tuala docemente. Muita gente não vai gostar do teu plano. A fortaleza de Caer Pridne é a sede do governo de Fortriu há muitos anos.

— Os tempos são de mudança — disse Bridei. — Se não formos capazes de os acompanhar, estamos condenados.

— Quanto tempo será preciso para construir essa fortaleza?

— Não sei, Tuala. Um Verão, talvez dois.

— Oh. Isso é muito tempo.

Bridei suspirou enquanto a sua mão se apoderava, por baixo do cobertor, do seio da jovem. O suspiro de Tuala fê-lo perguntar a si próprio se não estaria, de fato, a ser incrivelmente tolo.

— Sim, minha querida, é muito tempo e tenho de te falar de uma promessa que fiz... um voto que fiz à Guardiã das Chamas...

— Bridei, estás a corar.

O jovem olhou rapidamente de relance para Faolan; os olhos do celta estavam fechados e podia ouvir-se um ligeiro ressonar.

— Que eu não... que não... até sermos casados — disse ele com a respiração entrecortada. — Que seria casto até então. Desculpa, foi...

— Oh, já percebi. Dois Verões, disseste?

— Talvez os construtores consigam ser mais rápidos.

— Esperemos que sim. Bridei, onde é que eu vou ficar até lá? Não quero ficar aqui, em Pitnochie, sem ti. E não quero voltar para Banmerren.

— Não apóio nem uma coisa nem outra. Com ou sem voto de abstinência, quero-te junto de mim. Podemos, pelo menos, olhar um para o outro, podemos conversar, podemos tocar-nos...

— Hum. Vai ser duro. Bridei, eu quero ajudar-te o mais possível, mas se estiver na corte e não formos casados, as pessoas vão começar a falar. A minha presença será um fardo para ti, como Broichan, aliás, sempre acreditou que seria...

— Tenho uma solução para isso e creio que te vai agradar.

— Tu tens solução para tudo.

— Não exatamente, mas faço o possível. A mais um homem não é obrigado, seja ele druida, guerreiro, servo ou rei.


— Espera um momento, Tuala. — Ana estendeu o braço para fazer um pequeno ajustamento no modo como os cabelos de Tuala caíam por cima da fita entrançada e se encaracolavam em redor das orelhas. A fita era azul escura e ia com a saia e a túnica usadas por Tuala por cima de uns chinelos de pele de cabrito. A jovem estava simples mas elegante. Era a primeira vez, desde havia algum tempo, que não usava ligaduras e ungüentos. A jovem afirmara firmemente que não iria à eleição do rei com os pés enfaixados. As borbulhas estavam a desaparecer. O calor e a bondade tinham remediado os outros males.

— Prontas, meninas? Temos de ir. — Rhian de Powys estava a olhar para elas, majestosa no seu vestido cinzento pombo e com um sorriso nos lábios. — Estão muito bem, as duas. Costas direitas e queixo para cima, Tuala. Vamos ficar as duas ao teu lado. Olha para as pessoas de frente, não te esqueças que dentro de pouco tempo serás rainha; nada nem ninguém te pode tocar.

— Obrigada, minha senhora. Por tudo. — Até ali, o plano de Bridei correra às mil maravilhas. A viúva de Drust mostrara-se deliciada com a idéia de continuar na corte, nos seus velhos aposentos, e agir como dama-de-companhia e conselheira da sua amada até o seu casamento. A intuição de Bridei fora correta. Rhian não estava nada receptiva à perspectiva de regressar a Powys visto que a maior parte da sua vida fora vivida em Fortriu. O seu irmão também se sentia feliz por poder continuar a viver em Caer Pridne. Tuala desconfiava que os dois tinham desempenhado um papel mais importante nas decisões do rei do que as pessoas pensavam. O seu comportamento gentil e discreto era, de certo modo, enganador; na tranqüilidade dos alojamentos das mulheres, Rhian debatia estratégia política enquanto bordava, com uma profundidade que constituía um desafio até para uma rapariga educada pelos melhores tutores. Por mais frustrante que o período de espera fosse, não era aborrecido. Além do mais, Tuala reconhecia as vantagens de um período sob a supervisão e proteção da viúva real: Rhian podia ensiná-la a andar, a vestir, a olhar e a ser cautelosa. Tuala aprenderia os jogos sutis da corte; aprenderia a olhar por si e por Bridei. Uma educação assim não tinha preço e recebê-la daquela mulher bondosa era uma dádiva rara. Além do mais, a proteção e influência de Rhian eram suficientes para silenciar aqueles que dissessem que uma filha dos Boa Gente não era apropriada para mulher de um rei. Ana também desempenhava um papel importante. Até ali, ninguém dissera nada. Até ali, Tuala pouco saíra dos aposentos privados da rainha. Aquela noite seria uma prova de fogo.

— Pronta?

— Sim, minha senhora.

As três mulheres entraram num salão repleto de homens e de mulheres. Havia muitas candeias acesas; as mesas estavam encostadas às paredes e fora deixado um espaço aberto em frente do trono. Entre Rhian e Ana, Tuala olhou para os rostos daqueles que conhecia. Lá estava Ferada, parecendo atormentada e exausta, mas de cabeça erguida; os seus cabelos ruivos estavam perfeitamente penteados e o vestido verde perfeitamente pregueado. A jovem tinha um irmão de cada lado. Naquela noite, os turbulentos Bedo e Uric estavam solenes e silenciosos. O primeiro até segurava a mão da irmã. Talorgen estava por trás dos filhos. O chefe tribal da Fonte do Corvo tinha envelhecido dez anos desde a morte heróica do seu filho mais velho, seguida da partida estranha e inesperada da sua mulher para parte incerta. Dizia-se que Dreseida ficara tão esmagada pela dor que quase enlouquecera. Dizia-se que não regressaria. Os que estavam a par da verdade, entre eles Tuala, não diziam nada. Fora Talorgen o causador da partida da sua mulher. Pelo que fizera e pelo que quase fizera, Dreseida fora banida da família e do país para sempre. Pobre Ferada. A jovem sempre desejara fazer algo da sua vida, para além das restrições de um casamento estratégico. Devido à partida da sua mãe, o seu futuro parecia mais pobre; Ferada regressaria a Fonte do Corvo, tomaria conta da casa de Talorgen e criaria os seus filhos.

Lá estava Fola com um grupo de mulheres sábias, entre elas Irethra. Todas elas acenaram e sorriram a Tuala e a jovem retribuiu o cumprimento com uma certa admiração. Tudo aquilo lhe parecia irreal, especialmente quando Bridei não estava por perto.

Lá estava Uist com o seu manto branco esvoaçante e a seu lado outro ancião... Tuala reprimiu um grito de alegria e foi com muito esforço que resistiu ao desejo de correr e de se lançar ao pescoço do velhote de barba branca e nariz de falcão que estava ao lado do velho druida.

— Wid — murmurou a jovem, sorrindo de modo muito pouco próprio para uma dama. O seu velho amigo curvou a cabeça gentilmente na sua direção e piscou-lhe o olho.

— Gostaste? — murmurou Rhian.

— Oh sim! Wid ensinou-me tudo o que sei. Bem, metade, pelo menos. Estou tão contente por ele estar aqui.

— Parece que vai ficar na corte para sempre. Pelo menos, foi o que me disseram. Bridei exigiu a sua presença. O teu noivo preocupa-se muito com o teu bem-estar; quer que tu fiques rodeada de amigos. Bridei é muito bom para ti, Tuala.

— Eu sei.

— Olha — murmurou Ana — aquele é Drust, o javali, todo vestido de vermelho, as cores de Circinn. Lá vêm os outros. Bridei ainda parece mais sério do que de costume.

— É verdade, tem medo de fazer alguma coisa errada, apesar de saber que é capaz de falar e agir com perfeição. Ele é assim.

— Aquele homem está a olhar para ti, além. Repara. Garvan, o escultor.

Tuala olhou e o seu olhar cruzou-se com o de Garvan. Este sorriu e desviou o olhar. Havia uma certa tristeza nas suas feições, o que era desconcertante. O homem, certamente, não imaginava que ela casaria com ele? Certamente que não tencionava esperar indefinidamente, até ela tomar uma decisão, fosse ela qual fosse? Os homens eram, de fato, criaturas estranhas. Até Bridei, que ela conhecia melhor do que se conhecia a si própria, a surpreendera com o voto que fizera à Guardiã das Chamas. Dois anos. Muito tempo, de fato. Era evidente que se outro homem fosse eleito, não haveria necessidade de esperar tanto. Tuala achou que seria pouco provável. Os deuses não tinham escolhido Bridei?

Os candidatos aproximaram-se do centro do salão, Drust, o Javali, resplandecente no seu traje de lã escarlate, Bridei no mesmo tom azul de Tuala, a capa presa com um alfinete de prata. Drust de Circinn era um homem grande, corpulento e escuro. Com os seus olhos pequenos, fazia jus ao codinome. Ao seu lado, Bridei parecia magro e jovem, se bem que fosse mais alto. Cada um deles estava flanqueado pelos seus apoiantes, Bridei por Broichan e Aniel, Drust pelos conselheiros Bargoit, Fergus e a figura pouco simpática do irmão Suibne.

A um sinal de Tharan, que estava no estrado do trono, ao fundo do salão, a multidão calou-se.

— Que os chefes tribais votantes avancem — disse o conselheiro. Do meio da multidão saiu uma determinada quantidade de homens. Tuala não reconheceu muitos. Talorgen era um deles; Ged de Abertornie com o seu traje multicolorido, e ainda Morleo de Longwater. Bridei apresentara-a àqueles dois; Ged elogiara-lhe a beleza, o tamanho diminuto e expressara a intenção de a meter no bolso e de a levar para casa às escondidas. Tuala gostara dele. Morleo fora cortês e formal, como se ela já fosse a rainha.

— Muito bem — disse Tharan. — Estão todos? Podemos prosseguir?

— Não estão todos — disse Aniel. — Como sabemos, os do oeste ainda estão a caminho, são esperados esta noite. Não fora o decreto de um período de sete dias e teríamos requerido um prazo extra para que eles pudessem estar presentes. Além deles, ainda é possível a chegada de um representante das Ilhas Pequenas. O tempo...

— Sigamos em frente. — Bargoit parecia ter dispensado a diplomacia. — Como é que fazemos? O sacerdote e a Mulher Sábia têm direito a voto?

— Serão autorizados a participar — disse Tharan. — Não fará diferença no resultado final.

Fola levantou-se e aproximou-se do grupo de chefes tribais. A Mulher Sábia parecia uma anã junto deles. Os seus trajes brilhantes, os seus alfinetes de prata e os seus colares de ouro faziam-na tão pequena e discreta como uma pomba das rochas; no entanto, o seu porte altivo, o seu queixo pontiagudo e os seus olhos penetrantes asseguraram-lhe um espaço vazio em volta.

— Ouvimos as declarações dos dois pretendentes quando se apresentaram no Solstício de Inverno — continuou solenemente Tharan — a de Drust, filho de Girom, em pessoa e a de Bridei, filho de Maelchon, através do seu substituto, Carnach da casa de Fortrenn. Damos a cada um deles a oportunidade de falar novamente, mas por breves momentos, apenas. Se os retardatários chegarem antes da votação final, poderão participar. Caso contrário, perderão a oportunidade. Ouçamos, primeiro, o pretendente mais velho, Drust.

O javali de Circinn falou bem; havia muitos anos que era rei do reino do sul e estava acostumado a dirigir-se às pessoas. Drust falou da sua maturidade e da sua experiência; de como, se a anterior eleição tivesse sido conduzida com imparcialidade, já seria rei de Circinn e de Fortriu visto que a ascensão de Drust, o Touro, se baseara num sistema de votação deficiente. Tuala sentiu Rhian retesar-se a seu lado e viu-a cerrar os dentes. A jovem tocou no braço da rainha viúva.

— Uma mentira — disse a jovem em voz baixa. — Vai pôr as pessoas contra ele. Um truque barato. Ignorai-o, minha senhora.

Rhian olhou de relance para ela com um leve sorriso.

— Tão nova e já tão sábia — disse ela.

Tuala observou Bridei à espera da sua vez. O jovem estava muito pálido e tinha os dentes cerrados. As suas mãos estavam descontraídas ao lado do corpo, uma atitude treinada, juntamente com a respiração. A seu lado, Broichan parecia um pouco nervoso. Os outros pareciam mais confiantes. Bridei estava rodeado pelos seus apoiantes: o ruivo Carnach, o sombrio Aniel, Talorgen, Ged e Morleo. Faolan também estava perto, adotando o ar ausente dos guarda-costas experientes, os olhos não em Bridei mas nos cantos, nas sombras, nos olhares de relance sutis e nos movimentos bruscos. Breth e Garth estavam estrategicamente atrás de Tuala e das suas companheiras. Bridei não queria correr riscos. O discurso de Drust chegou ao fim. Tharan mostrara-lhe por gestos que as palavras “breves momentos” queriam dizer exatamente breves momentos. O rei de Circinn falara da fé cristã e de como, ao abraçá-la, Fortriu, unindo-se a Circinn, seria mais feliz. Um número alarmante de chefes tribais aplaudira-o com entusiasmo. Tuala mordeu o lábio. Seria possível Bridei ter-se enganado? Pelas suas contas, se os representantes ocidentais não chegassem em breve, o jovem não conseguiria os doze apoiantes. Esperava-se que o primo de Ana, das Ilhas Pequenas, enviasse um parente para votar em nome do seu povo, mas não o fizera. Tuala perguntou a si própria o que aconteceria a Ana se Bridei perdesse a coroa.

— Bridei, podes falar — disse Tharan.

Bridei olhou em volta; os seus olhos encontraram os de Tuala, azuis como o céu de Verão, brilhantes de coragem. O jovem sorriu. A jovem respondeu-lhe acenando ligeiramente com a cabeça; sabia que o que lhe ia no coração estava espelhado no seu rosto. Amo-te, sei que és capaz.

— O meu nome é Bridei, filho de Maelchon. — A voz jovem era clara e forte. — O meu pai é o rei de Gwynedd e a minha mãe é lady Anfreda, prima do nosso falecido rei, Drust, filho de Wdrost, conhecido como o Touro. Como vêdes, sou jovem e coloco a minha vida ao serviço de Fortriu, a nossa terra amada, mas também sou um homem feito; lutei ao lado dos nossos chefes tribais na Batalha de Galany’s Reach, provei o meu valor no campo de batalha e na restauração do orgulho ferido de Fortriu trazendo a Pedra Mágica; fui criado pelo druida do rei, Broichan, e sou intelectual para além de guerreiro; amo os antigos deuses de Fortriu, cujos ossos são a terra onde caminhamos e cuja respiração é o ar que nos dá a vida; comandarei honestamente o meu povo ao longo do meu reinado; servir-vos-ei o melhor que sei com a inspiração da Guardiã das Chamas, a sabedoria da Que Brilha e a certeza profunda da Mãe de Tudo; ofereço a minha juventude, o meu sangue, a minha coragem e a minha energia; levar-vos-ei para um futuro novo, no qual as fronteiras de Fortriu serão novamente seguras e no qual o seu povo será unificado. Juro por tudo o que há de mais sagrado. — Pareceu a Tuala que no rosto de Bridei, enquanto falava, brilhava uma luz. A jovem não sabia se mais alguém a via, mas o silêncio que se seguiu ao seu discurso sugeria que sim. Tuala levou uma mão à face para limpar uma lágrima.

— Muito bem — disse Tharan após uns momentos. — Que a votação comece. Drust, filho de Girom, toma o teu lugar à esquerda. Bridei, filho de Maelchon, à direita. Todos os homens, menos os chefes tribais, devem abandonar a área em frente do trono.

O direito de voto era restringido a um certo número de chefes tribais das sete casas dos Priteni. Os votantes representavam as famílias mais antigas e os maiores proprietários de terras no interior de cada casa ou tribo. Algumas casas tinham direito a um voto e outras a dois ou três. No lado de Bridei, no salão, estavam Talorgen, Ged e Morleo; Carnach e Wredech também estavam porque podiam votar desde que não fossem candidatos à eleição. Fola colocou-se ao lado de Talorgen. Os outros homens afastaram-se. Uist e Wid também. Considerava-se que os druidas já tinham influência que chegasse, não precisavam de votar.

No lado de Drust estavam doze homens, como previsto; doze chefes tribais e o irmão Suibne que se mantinha em silêncio, com a cruz entre as mãos. De fato, reparou Tuala, o sacerdote não se chegara para a esquerda, tinha cada um dos pés, calçados com sandálias, em cada lado do que podia ser considerado o meio do salão. O lado direito tinha mais homens; no lado de Bridei o número era de onze.

Tharan tossiu, clareando a voz acima do burburinho geral.

— Compreendes o procedimento, irmão Suibne? Tens de ir para a direita ou para a esquerda para indicar a tua intenção de voto. — A voz do conselheiro adquirira um tom cortante; opusera-se a Bridei, mas não havia um único homem em Fortriu que quisesse no trono o cristão Drust com o venenoso Bargoit a murmurar-lhe ao ouvido.

— Preciso de tempo para refletir. — A voz de Suibne era calma. No entanto, Tuala reparou no seu tom firme e no olhar direto do sacerdote cristão. — Um homem deve pensar nos dois discursos por breves momentos antes de se decidir. Peço-vos um momento ou dois.

Tuala viu os lábios de Fola torcerem-se, divertidos, e um certo reconhecimento nos olhos da Mulher Sábia. Outros, porém, mostraram-se menos pacientes; no campo de Circinn ouviram-se resmungos. A sua decisão estava tomada havia muito. Decidir depois dos discursos era ridículo. Sabiam todos, antes de viajarem até Caer Pridne, para quem iria o seu voto e esperavam que o sacerdote fosse da mesma opinião.

Subitamente, as portas do salão abriram-se. Ouviu-se um certo tumulto: acabava de entrar gente.

— Conceder-te-emos algum tempo — disse Tharan. O conselheiro fez um excelente trabalho, mantendo um tom calmo e uma expressão imparcial enquanto olhava na direção da entrada. — Alguns momentos para poderes refletir. Como celta que és, suponho que não estás familiarizado com estas formalidades.

— Como homem pensador — disse Suibne — prefiro tomar as minhas decisões apenas depois de pesar todos os argumentos. Agradeço a tua consideração.

Bargoit avançou, agarrou no braço do sacerdote e começou a sibilar-lhe furiosamente ao ouvido.

— Retira-te, Bargoit. — A voz de Tharan era friamente autoritária.

— Só os homens e as mulheres com direito a voto podem estar nessa área. Suponho que o homem é capaz de pensar por si próprio. Pelo menos, esperamos que sim.

— Homens com direito a voto? É isso? — gritou uma voz no fundo do salão. A multidão abriu-se para dar passagem a uma figura vestida de negro, com botas de montar e uma capa de pele. O seu rosto e o seu corpo estavam totalmente tatuados, o registro complexo de muitas batalhas; os seus olhos eram negros e ferozes, o seu queixo severo. Tuala viu iluminarem-se as feições de Bridei. — Nesse caso, estou incluído: Foirel, filho de Duchil, chefe tribal de Galany’s Reach.

— Galany’s Reach perdeu-se! — cuspiu Bargoit, furioso. — Como podes ser chefe tribal de um território que está nas mãos dos Celtas? — O conselheiro de Drust virou-se para Tharan, apontando um dedo acusador. — Ele não pode ser autorizado a votar! É contra as regras! Esta eleição é uma vergonha!

— Incorreto — disse a voz de Broichan, profunda e firme. — A lei permite o seu voto; Foirel é um chefe tribal no exílio. Provou-se, no último Verão, que essas terras estão ao nosso alcance. O jovem que está diante de vós, o nosso futuro rei, fez com que o símbolo da liberdade de Galany fosse devolvido intacto a Fortriu, um ato de grande visão e espírito, um ato certamente abençoado pela própria Guardiã das Chamas. Foirel voltará a ser, dentro de pouco tempo, o chefe tribal de Galany. Negar-lhe o voto é a mesma coisa que dizer que o nosso povo não tem futuro a oeste. Seria uma traição.

— Chega — disse firmemente Tharan. — Foirel, podes votar, claro. Devo dizer, porém, que a tua noção de tempo deixa muito a desejar.

Foirel já estava ao lado de Talorgen, no lado direito do salão. Tuala contou outra vez. Sem o sacerdote cristão, que continuava no centro, sozinho, havia doze votantes no lado de Drust e doze no lado de Bridei, incluindo Fola. O salão estava cheio de gente; parecia que o bando de guerreiros de Foirel acompanhara o seu chefe naquela viagem a Caer Pridne e em todos os cantos se viam homens de aspecto selvagem, totalmente tatuados, muito bem armados. Aqueles homens estavam cheios de ferro. Os olhos das damas da corte refletiam uma mistura de admiração e apreensão.

— Então, irmão Suibne?

— Preciso de mais um pouco de tempo.

— Não podemos esperar a noite toda. A decisão é simples, mas, infelizmente, depende totalmente de ti. Faz a tua escolha, por favor.

— Esqueci-me de mencionar uma coisa — disse casualmente Foirel. — Deve votar pelo menos um chefe tribal de cada uma das sete casas. Certo?

— Correto — disse Tharan. — Como as Ilhas Pequenas não mandaram nenhum representante, desta vez não têm direito.

— Mas há outra casa que não está aqui representada — disse Foirel, coçando o queixo.

— Outra... Oh, estás a referir-te ao norte? — Tharan ergueu as sobrancelhas. — Os Caitt não votam há anos, nunca seguiram a nossa lei. Não é necessário... Além disso, se não vieram, não têm direito a voto.

— Desta vez vieram. — disse Foirel.

Da sombra saiu outro homem, um homem altíssimo, de cabelos negros até à cintura e um rosto que parecia feito de granito, inteiramente coberto de sinais que faziam com que as tatuagens dos guerreiros de Fortriu parecessem gatafunhos de crianças. O homem usava uma longa capa com capuz, feita de muitas peles pequenas. Tuala pensou em Mist, que dormitava à lareira dos aposentos de Rhian e estremeceu. O traje do chefe tribal era formado por franjas que pareciam rabos de gato. Em redor do pescoço, o homem tinha um colar de pequenos ossos. Os seus olhos eram perigosos e os seus punhos eram enormes. O machado que trazia às costas, cuja lâmina tinha esculpidas a Lua e muitas estrelas, brilhava como prata polida à luz das candeias.

— Eu sou Umbrig, dos Caitt — disse o homem com uma voz que parecia uma trombeta de guerra, com um sotaque variante da língua dos Priteni e com um som gutural. Umbrig cruzou os braços e os largos anéis de prata trabalhada que usava revelaram-se quando a capa caiu, mostrando membros extremamente musculosos. — E dou o meu voto ao homem que honra as forças antigas. Se eu soubesse que esta corte dava crédito a um pretendente cujas crenças troçam da sabedoria dos deuses antigos, teria vindo por caminhos menos pacíficos para dar o meu apoio a este jovem guerreiro. Vejo nos seus olhos que é fiel à sua fé e que é forte nas suas intenções. O voto dos Caitt vai para Bridei, filho de Maelchon.

— Engendrado por druidas — resmungou Bargoit. — Planejado, conspirado e injusto em todos os aspectos...

No estrado do trono, Drust, o Javali, começava a sentir-se desconfortável. O seu rosto largo estava quase tão vermelho como a sua túnica. Se a votação ficasse empatada, um determinado assunto acerca de um assassinato falhado seria tornado público pela primeira vez. Drust sabia que os de Fortriu sabiam, estava consciente do rumo que os acontecimentos podiam tomar e das prováveis conseqüências para a sua reputação.

Tuala olhou para Bridei. O jovem parecia calmo, se bem que tivesse empalidecido um pouco.

— Pelas minhas contas, o atual estado de coisas dá treze votos a Bridei, filho de Maelchon e doze a Drust — anunciou Tharan com voz louvavelmente firme. — Só falta um voto; o teu, irmão Suibne. A não ser que haja mais surpresas? — O conselheiro olhou em volta. — Não? Nesse caso, irmão, acabemos com isto.

— Certamente. — O cristão cruzou os braços; o seu rosto estava sereno. — Pensei nos discursos e no que sei acerca deste reino dividido. Pensei na natureza dos dois pretendentes, tão diferentes na fé, na sua idade e comportamento, nas suas convicções e prioridades...

— Irmão — disse Aniel, irritado — não é preciso os votantes fazerem um discurso. Por favor, diz-nos qual é a tua decisão.

— Não posso — disse Suibne calmamente. — Como homem de Deus, não acho que o meu voto deva ser decisivo nesta eleição secular. Como celta, acho, até, que é menos próprio. Não tenho outra solução senão abster-me. — O homenzinho recuou para o interior da multidão, que explodiu num coro de protestos rancorosos e de vivas rejubilantes.

— Chega! Chega! — A voz de Tharan mal se ouvia. Broichan subiu para o estrado, erguendo os dois braços e mantendo-os lá no alto até o burburinho cessar. Os seus olhos ardiam.

— Declaro Bridei, filho de Maelchon, vencedor por treze votos contra doze — disse Tharan solenemente. — E declaro que o nosso novo rei deve ser coroado aqui, em Caer Pridne, na próxima Lua. Perante o olhar dos deuses, saúdo o novo monarca de Fortriu. Bridei, queres falar?

Tuala cerrou os lábios com força; não era tempo de lágrimas. A jovem só queria que Bridei olhasse para o seu pai adotivo. Um olhar para o rosto de Broichan e o jovem nunca mais diria que o druida não sabia o que era o amor. Porém, Bridei estava a olhar para a multidão acenando com a cabeça, sorrindo a cada um dos que o tinham apoiado, controlando a respiração para poder falar calmamente e com vigor por cima do bater descontrolado do seu coração e da distração de uma mente cheia de pensamentos. A jovem conhecia-o demasiadamente bem.

— Direi apenas algumas palavras; o tempo é de celebração, de festa e de música, de esperança e companheirismo. O nosso trabalho, vosso e meu, começa amanhã. Sabeis o que me vai no coração; agradeço-vos e prometo-vos que vos servirei. Só quero dizer duas coisas. A primeira é que desejo expressar o meu respeito ao meu valoroso oponente, Drust filho de Girom, e que lhe desejo felicidades. Espero que possamos cooperar e compreender-nos no futuro, trabalhar juntos apesar das nossas diferenças. Só assim conseguiremos libertar esta terra do flagelo dos invasores. No sul, Drust é rei há muitos anos. Só tenho a aprender com a sua experiência.

As palavras do novo rei foram recebidas com um silêncio de morte. Bridei parecia imperturbável; os seus planos eram a longo prazo e Tuala sabia que o jovem não estava à espera que todos aceitassem imediatamente a mudança. Aquilo precisava de ser dito apesar da expressão turbulenta de Drust e de Bargoit parecer uma serpente prestes a atacar. A situação era difícil. Até os de Circinn se tinham virado contra eles. Ao agir daquele modo, o irmão Suibne salvara-os do embaraço de verem exposta a tentativa de assassinato de Bridei. Tuala perguntou a si própria se o sacerdote estaria a par do ocorrido. Fosse como fosse, não queria estar na sua pele naquela noite.

— Também quero apresentar-vos a minha futura mulher, a minha querida companheira de infância: Tuala de Pitnochie. — Bridei olhou para ela com os olhos a brilhar e as faces um pouco coradas. Tuala endireitou as costas e ergueu o queixo, tal como Rhian lhe ensinara. Bridei estendeu uma mão.

— Vai, filha — murmurou Rhian. — Vai e que os deuses te abençoem.

— Estás encantadora, Tuala — disse Ana. — Caminha devagar e sorri.

Tuala, porém, não sorriu. O momento parecia-lhe tão solene. A jovem fixou simplesmente os olhos nos dele e atravessou o salão como se fosse a flutuar. Bridei pegou-lhe na mão; ela ficou a seu lado sentindo o corpo a tremer, consciente da imensa coragem do jovem e da sua profunda vulnerabilidade. A jovem manteve-se direita e segura, olhando para os poderosos e para as damas, para os guerreiros e para os chefes tribais, para os druidas e para as mulheres sábias, e inclinou ligeiramente a cabeça. Em seguida, o seu olhar cruzou-se com o de Wid e o seu rosto abriu-se num sorriso.

Os murmúrios e os sussurros percorreram o salão numa verdadeira onda de choque. Pronto, pensou Tuala; começou. Os mexericos, a desconfiança, a rejeição; teria de ser muito forte. Algumas vozes começaram a ouvir-se e ela pensou detectar as palavras criatura selvagem e Mulher? Não pode ser! de um deles. Bridei pareceu não as ouvir.

— É meu desejo estender as boas-vindas de Tuala a Caer Pridne em nome de todos. — A voz era profunda, autoritária na sua ressonância. Broichan avançara, as feições duras como o ferro, e erguia um braço no ar, pedindo silêncio. — Como alguns de vós deveis saber, Tuala cresceu em minha casa. Tuala é uma jovem de qualidades excepcionais. Não podíamos ter arranjado uma rainha melhor. Confio que a recebereis bem na corte, onde ela vai ficar sob a orientação da rainha Rhian até o dia do casamento. Esta é uma estação de grandes mudanças para todos nós, um tempo de desafio e de oportunidades. Temos de ter as nossas mentes abertas; temos de aprender. — Se o druida do rei estava a dizer aquelas palavras com os dentes cerrados, disfarçava muito bem. A mensagem por dizer era bem clara. Falai contra a noiva do rei por causa da sua diferença e arriscais-vos à ira do druida.

O salão ficou subitamente silencioso. Foirel de Galany deu dois passos em frente.

— Pelos ovários da Guardiã das Chamas, tu sabes arranjá-las, Bridei — declarou ele com um grande sorriso nas feições escuras. A tua dama tem alguma irmã? — O salão encheu-se de risos, logo seguido de um barulho de louça quando os servos começaram a aparecer com canecas, jarros, pratos e facas para o festim. Os homens reuniram-se em redor do trono; de repente, todos queriam falar com Bridei.

— Tudo bem — murmurou Tuala. — Eles querem ser ouvidos. Faz o que tens a fazer.

— Fica junto de mim — murmurou ele, segurando-lhe na mão com força. — Preciso de ti.

— Estou aqui — disse Tuala. — Estarei sempre aqui.


— Histórias e mais histórias — disse Madressilva para Teia. Sonhos e mais sonhos. Enredos e mais enredos. Destinos e mais destinos. Para quem vive tão pouco, a espécie humana parece determinada a complicar as coisas. Ainda bem para nós e para os nossos esforços que Bridei está sob a proteção dos deuses e que é mais inteligente do que os outros.

— E ainda bem que tem Tuala com ele.

— É verdade. Parece que a nossa missão chegou ao fim. Sinto um certo desânimo, apesar do triunfo desta noite. As vidinhas destas pessoas são, à sua maneira, absorventes.

— Oh, aqui há muito entretenimento — disse Teia com uma risada. — O nosso trabalho com o jovem rei e a jovem rainha de Fortriu pode ter terminado, mas há outras coisas, outras possibilidades. Eu olho para Caer Pridne, esta noite, e vejo um homem que não consegue ouvir mais do que uma simples nota da harpa do bardo sem sair do salão. Aquela música doce é veneno para os seus ouvidos. Vejo uma jovem cujo futuro foi cruelmente detido e pergunto a mim própria se ela vai passar a vida a oscilar à beira do abismo ou se vai saltar para o desconhecido. Vejo um artesão cujas mãos criam magia, uma magia que nunca se compara com os sonhos que lhe atravessam a mente. Vejo um druida sozinho, ponderando em questões de amor e dever, confrontado com a sua própria humanidade. Isto ainda não acabou, meu amigo. Até Bridei e Tuala, por mais fortes que sejam, vão precisar outra vez de nós.

— Ah, Tuala... uma criatura rara. Quase desejo que tivesse vindo para junto de nós...

— O quê? E deixar Bridei à deriva? Não sejas tolo. Esquece Tuala; põe os teus olhos noutra. Que tal a refém real, uma criatura deliciosa com longas tranças douradas e uma pele tão fresca e tão doce como um fruto maduro? Jovem... boa... inocente... Os estragos que não faríamos! Esta gente pode ser posta a dançar, a dançar, até nos suplicar que paremos...

— Vem — disse Madressilva. — Não temos mais nada que fazer aqui. Por enquanto, não me apetece brincar mais com os homens e as mulheres da corte de Bridei. Sinto o coração pesado; não me apetece nada brincar.

— É verdade — disse Teia. — A coisa é pouco interessante. Eles são humanos, afinal de contas; vão arranjar mais complicações, vão dançar ao som da própria música, mover as peças dos próprios jogos. Vem! Segue-me!

Com um sussurro, um clarão súbito de asas brilhantes e o esplendor de uns cabelos prateados, as duas personagens desapareceram. Sozinho no caminho de ronda, no exterior do grande salão, Faolan estremeceu ao olhar para o céu. Algo passara por ele; o celta não o vira, mas sentira a sua presença. Se o espião fosse um homem ligado àquilo dos deuses, talvez dissesse uma oração, um sinal de proteção ou levasse os dedos a um talismã escondido. Faolan, porém, só acreditava em si próprio. Era mais fácil. Através das portas abertas, o som da harpa perseguiu-o na escuridão, fazendo-o sentir comichão nos dedos. O celta virou o olhar para a escuridão da noite.

— Faolan?

Era Bridei, sozinho, caminhando silenciosamente ao longo do parapeito com o pequeno cão nos calcanhares.

— Quase me surpreendeste — disse Faolan. — Devo estar a perder qualidades.

— Queria falar contigo em particular.

— Despacha-te, então. Esta noite, toda a gente quer falar contigo.

— Levarei o tempo que for preciso; isto é importante. Pergunto a mim próprio se já pensaste no teu futuro.

Durante alguns momentos, Faolan não disse nada. Finalmente, a sua resposta saiu hesitante.

— Qualquer homem com o mínimo de senso pensa no seu futuro.

— E chegaste a uma conclusão?

— Ainda não.

Bridei colocou os braços no parapeito. A noite estava clara; as estrelas brilhavam no firmamento onde A Que Brilha dormia, suspensa, qual foice de prata.

— Sabes que eu gostava que ficasses — disse ele em voz baixa. Não como guarda-costas; estava a pensar num papel diferente para ti, um papel que te oferecesse desafios diferentes, oportunidades diferentes.

— Não estás satisfeito com o meu trabalho? — Faolan continuava a olhar para longe.

— Sabes muito bem que a razão não é essa — disse Bridei. — Tu mereces mais do que o que te pagam. A mim, parece-me que os teus talentos são mal aproveitados nesse trabalho simples de guarda-costas.

— Simples! Tu já me fizeste passar dez vezes mais do que Drust durante os anos todos em que o servi. Porém, é verdade, sou capaz de desempenhar uma variedade de outros papéis e tenho-o feito regularmente. Tradutor, assassino, espião. O que é que tens em mente?

— Suponho — disse Bridei — que podes ser chamado a desempenhar qualquer um deles em seu devido tempo, mas estava mais a pensar numa posição de conselheiro, de companheiro. Não te importas de pensar no assunto?

Faolan não respondeu imediatamente. Os dois homens ficaram lado a lado a olhar para as estrelas enquanto o cão branco se sentava aos pés de Bridei, vigilante.

— Tu disseste uma coisa quando estavas doente. Acerca de eu não ser pago para ser amigo. A mim, parece-me que andas à procura de um amigo. Alguém que ocupe o lugar de Gartnait, ou o que tinhas antes, aquele que foi envenenado. Dizem que vocês eram inseparáveis.

Bridei não disse nada, limitou-se a esperar.

— Creio que não sou homem para esse trabalho, Bridei. Uma tarefa simples, que ponha à prova as minhas capacidades e com o pagamento adequado no fim, isso faço de boa vontade. Não está em mim oferecer mais.

— Estou a ver. Deixas-me desapontado, Faolan. Penso que estás a renegar a tua natureza.

— Tu foste criado por um druida, procuras complicações onde elas não existem. Eu quero seguir direto pelo meu caminho, mais nada.

— Lamento. Vou ter saudades tuas.

Seguiram-se mais alguns momentos de silêncio, mas diferentes, dessa vez.

— Estás a dizer que é a única posição que me podes oferecer? — O tom de Faolan era dolorosamente cuidadoso. Bridei sentiu vontade de chorar. — Não tencionas continuar comigo como teu protetor pessoal, ou da tua noiva?

— Eu pensava que ias aceitar a outra oferta. Não pensei em mais nada.

— Estou a ver.

— Não te importas de assegurar a nossa segurança a troco de cama, comida e roupa lavada e um pouco de prata?

— Um pouco de prata, não é bem assim — disse Faolan precipitadamente. — Eu faço-me pagar bem.

— Não me importo — disse Bridei.

— Nesse caso, estamos de acordo. — Faolan estendeu a mão e Bridei apertou-a. — Eu quero ficar aqui. Pensei que não precisava de te dizer.

— Guarda-costas. Dias longos, noites sem dormir, ansiedade constante.

— É o que eu faço. Está de acordo com a minha natureza. Além disto, levarei a cabo as missões periódicas em terreno Dalriada que fazia no tempo do rei Drust, o Touro. Tu não te podes dar ao luxo de dispensar um bom serviço de informações.

— Não — concordou Bridei. — Nem um bom amigo. Tu vais descobrir, com o tempo, o significado desta palavra. Vem, vamos enfrentá-los outra vez. Não gosto de deixar Tuala sozinha durante muito tempo. Isto é tudo novo para ela.

Faolan sorriu.

— Tal como tu, ela parece ser capaz de aprender com uma rapidez espantosa. Ides formar um par espantoso, tu e ela.

— Espero que sim — disse Bridei. — O reino depende disso.

 

 

                                                   Juliet Marillier         

 

 

 

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