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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ESPELHO NEGRO - P.2 / Juliet Marillier
O ESPELHO NEGRO - P.2 / Juliet Marillier

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

                                      CAPITULO DEZ

- Bem - disse Fola -, chegaste, enfim. És tão pequenina, custa a acreditar que tenhas catorze anos, mas como Broichan diz que sim! Bem-vinda a Banmerren, filha.

- Obrigada, minha senhora - disse Tuala, fazendo um esforço para parecer calma. A entrada naquela casa estranha, de paredes de pedra, com raparigas espantadas a olhar para ela, fora difícil e ainda mais difícil fora ouvir a voz intimidante de Dreseida, a primeira a entrar no santuário de Fola: "Trazemos-te esta criança estranha de Pitnochie." Naquele momento, Ferada e a mãe tinham ido ver a zona onde as raparigas nobres ficavam alojadas, aquelas cuja educação nada tinha a ver com esoterismo.

 

 

 

 

Tuala viu-se perante a Mulher Sábia e uma antipática mulher de meia-idade que respondia pelo nome de Irethra. Apesar de se sentir miserável, a jovem não deixou de reparar na tranquilidade do local, nas pedras aveludadas dos edifícios, nos nichos com pequenas figuras aqui e ali, todas diferentes, cada uma delas surpreendente, nas trepadeiras e nas curiosas candeias trabalhadas.

- Podes tratar-me por Fola. Aqui, não ligamos muito a cerimónias; somos todas iguais perante A Que Brilha. Sentes-te feliz por estar aqui, Tuala?

Aquela pergunta difícil surgira do nada.

- Estou grata pela oportunidade, minha se... Fola. - Era esquisito tratar a Mulher Sábia daquela maneira, como se fosse uma familiar. Apesar de pequena, Fola parecia-lhe maior e mais imponente do que quando a vira pela primeira vez: os seus cabelos, descobertos, eram longos e grisalhos, enrolados num grande carrapito na nuca; em redor do pescoço, por cima do vestido cinzento e macio, Fola usava um disco lunar, preso por uma fivela que parecia uma garra, a um pequeno fio.

Os olhos da Mulher Sábia eram os mesmos, escuros, intensos, o seu sorriso era quente. Por trás de si, numa prateleira de pedra, estava um gato escuro como a noite, enorme; as suas orelhas esfarrapadas e o seu focinho cheio de cicatrizes pareciam as de um guerreiro tatuado. O animal olhou para Tuala através de uns olhos amarelos semicerrados.

E...? - perguntou Fola.

Tuala olhou fixamente para ela.

- Trabalharei arduamente - disse a jovem -, e farei os possíveis para aprender o mais possível. Fico em dívida para contigo, assim como estou em dívida para com os que me ensinaram antes.

- Não estás a ser totalmente honesta comigo, filha - disse Fola.

- Eu sei que vais trabalhar arduamente. As que não estão preparadas para o fazer não poderão ficar em Banmerren. Irethra velará por isso - disse a Mulher Sábia, olhando para a mulher a seu lado de braços cruzados. Esta torceu os lábios no que parecia ser um sorriso. - Se tens reservas, Tuala, é melhor dizeres-me agora. Aqui, em Banmerren, somos todas servas da Que Brilha; de corpo, coração, mente e espírito.

Tuala curvou a cabeça.

- Eu sou filha dela - disse a jovem. - Sirvo-a em tudo o que faço. Se ela deseja que eu seja sacerdotisa, farei os possíveis e os impossíveis para o ser, mas não pedi para vir para aqui. A escolha não foi minha. - As imagens surgiram-lhe na mente: Pearl no estábulo mordiscando-lhe o pescoço, inconsciente de que era a última vez; Mist miando por trás da porta fechada, como se soubesse que o estava a abandonar; a Lua através da pequena janela e a pena de águia no peitoril. A jovem olhou para a silenciosa Irethra, que lhe devolveu o olhar, impassível.

- Podes ir, Irethra - disse Fola. - És capaz de pedir a Odha um pouco da infusão de hortelã dela e um pouco de mel? Obrigada.

Irethra saiu com as costas muito direitas, numa atitude desaprovadora.

Fola suspirou.

- Irethra está encarregue das alunas mais novas - disse. - É a minha principal assistente. Senta-te, Tuala. A viagem foi muito longa. Lady Dreseida falou-me dela. Como a sua filha também vai ficar connosco durante algum tempo, ficas com alguém conhecido por perto, o que já é alguma coisa.

Tuala acenou ligeiramente com a cabeça.

- Porém - continuou Fola -, penso que o olhar de desespero que tens não se deve aos dias cansativos a cavalo e através dos lagos. Sinto que, até agora, disseste a verdade, mas também sinto que há mais qualquer coisa.

- Era suposto ser eu a escolher - replicou Tuala a custo. - Afinal foi ele.

Fola esperou um momento e depois disse:

- Ele? Broichan?

Tuala anuiu, sentindo-se miserável.

- Ou vinha para aqui ou casava com um homem cujo rosto parece um nabo. Peço desculpa, não é justo. Ele parecia ser bom homem, mas eu não me quero casar e também não queria...

- Não querias vir para Banmerren? - perguntou Fola suavemente.

- Sair de Pitnochie - disse Tuala num murmúrio. - Ele não compreende. Eu preciso de estar lá.

Ouviu-se alguém a bater à porta. Um momento depois, entrava uma rapariga com um pequeno tabuleiro. A jovem usava o mesmo vestido azul das outras raparigas de Banmerren. Tuala vira muitas raparigas a atravessar à pressa o jardim ou concentradas em pergaminhos, em recipientes ou em punhados de ervas. Algumas tinham vestidos verdes, mas apenas as mais velhas, como Irethra ou a própria Fola, usavam os vestidos cinzentos das mulheres sábias. A rapariga pousou o tabuleiro e saiu em silêncio. O gato espreguiçou-se e saltou da prateleira para investigar o que a visitante trouxera.

- Estou a perceber. - Fola levantou o pequeno bule do tabuleiro, encheu duas minúsculas chávenas com a infusão aromática, acrescentou-lhes um pouco de mel e entregou uma a Tuala. Não tendo encontrado comida, o gato perdera o interesse e lambia-se.

- Eu sou obediente À Que Brilha - disse Tuala. - Amo-a. Por que havia de ir contra a sua vontade? Porém, não acredito que ela quisesse que eu saísse de Pitnochie. Se isto era intenção dela, servi-la como Mulher Sábia, por que razão fez com que Bridei me encontrasse há tantos anos atrás? - A jovem calou-se.

Fola bebericou tranquilamente a infusão.

- Suponhamos que Broichan se enganou - disse ela. - Temos de ter em mente que Broichan não é conhecido por se enganar; os seus objectivos podem parecer obscuros, por vezes, mas geralmente ele e os seus esquemas não estão ao alcance dos mortais normais.

Era difícil perceber se ela estava ou não a brincar. - Por outro lado suponhamos que A Que Brilha não quer que tu sejas sua sacerdotisa. Se assim é, então o que é que tu achas que ela quer para ti?

Tuala manteve-se teimosamente em silêncio.

Quem me dera saber - disse Fola, pousando a chávena no tabuleiro. - Bebe, filha; dá-te ânimo. Broichan é conhecido por dÍzer às pessoas que há sempre algo a aprender em tudo o que fazemos, vemos ou ouvimos, mesmo quando estamos desesperados. Aqui, em Banmerren, vais aprender alguma coisa e espero que nós também; nunca tivemos aqui uma filha da floresta. Não vai ser fácil para ti. Vai ser um desafio, mas aposto que vais gostar. Bebe. Em seguida, vou pedir a Irethra que te vá mostrar o sítio onde vais dormir. Podes descansar um pouco antes do jantar. Com o tempo, tenho a certeza que A Que Brilha nos dará a conhecer os seus intentos.

Seguindo Irethra, Tuala passou por um corredor, pelo refeitório, pelo salão de estudo e foi dar a uma arrecadação onde uma rapariga lhe entregou uma pilha de roupa - um vestido azul e outras coisas -, enquanto a fixava intensamente. A jovem voltou a passar pelo jardim, reparando ao passar nalgumas raparigas que tratavam de uma horta, remexendo a palha com forquilhas e atando umas videiras, ao mesmo tempo que ouvia umas vozes puras, cantando um hino à virgem Todas as Flores. De uma porta aberta, saía um aroma a pão fresco.

O recinto de Banmerren situava-se no interior de uma muralha, que o delimitava e isolava do mundo exterior. A única entrada que Tuala conseguia ver era aquela por onde tinha entrado - um pesado portão de ferro com uma enorme tranca. No exterior, havia um local que ela teria gostado de explorar, um local tão diferente dos montes rochosos e do manto florestal de Pitnochie como uma gaivota de uma coruja. A jovem vira-o de relance, um areal vazio e para lá deste, o mar sussurrante. Do interior daquelas muralhas não era possível vê-lo.

Várias raparigas, com saias finas e túnicas de cores diferentes, não com os vestidos azuis, estavam sentadas num banco no jardim, falando umas com as outras. Viraram-se todas ao mesmo tempo para olhar luala quando esta passou quase a correr para conseguir acompanhar a passada firme da sua impaciente guia. A jovem ouviu os murmúrios e as risadinhas reprimidas, mas não conseguiu ouvir as palavras. Uma outra, que estava sentada sozinha, sorriu-lhe, um sorriso meigo num rosto notável apesar dos olhos cinzentos, serenos. Os seus cabelos pareciam ouro puro sob a luz do Sol e caíam-lhe pelas costas. A jovem usava um vestido claro com um toque de azul na gola e nos punhos. Tuala fez-lhe um sinal de cabeça cortês. Retribuir-lhe o sorriso seria demasiado para o estado de espírito em que se encontrava.

- Por aqui - disse Irethra. A mulher tornara várias vezes claro que não tinha tempo a perder e que não gostava de ser ama-seca daquela recém-chegada especial. Tuala sentia-se tão deprimida junto dela como em Pitnochie nos dias anteriores à partida. - Fola diz que vais dormir na torre. Há algum tempo que está fechada. Talvez seja melhor. As outras vão desconfiar de ti, mas suponho que tu sabes isso.

- A mulher conduziu-a por uns íngremes degraus de pedra até ao exterior, ao longo de uma passagem estreita e perigosa, e mandou-a entrar num pequeno quarto cuja porta estava praticamente ao mesmo nível do topo da muralha exterior de Banmerren. O espaço era muito escuro. Quando as duas mulheres entraram, ouviu-se o som de pequenos passos a fugir.

- Vais precisar de uma vela - disse Irethra. - Quando fores jantar, pede uma na cozinha.

- Quando...?

- Quando a campainha tocar. Veste o vestido azul. Só daqui a muito tempo é que vestes o verde. Se o vestires. Mais alguma coisa?

Tuala pigarreou. No quarto, havia uma armação de madeira com um colchão de palha; a jovem não viu nem lençóis nem cobertores, nem nenhuma lareira.

- Posso...?

- Fala! - exclamou Irethra. - Tenho mais que fazer. Suponho que estás habituada a que as pessoas andem à tua volta a fazer tudo por ti. Aqui não há nada disso. Fazemos todas o que temos de fazer, seja qual for o nosso nascimento.

- Um cobertor - disse firmemente Tuala, decidindo que não se deixaria intimidar. - Dois, se for permitido; estou a ver que não há lareira. Eu vou lá abaixo buscá-los, não é preciso...

- Mais alguma coisa?

- Por enquanto, não - respondeu Tuala polidamente.

- Vais ter de esperar; a arrecadação está fechada e toda a gente está ocupada. Fala nisso outra vez depois de jantar. E agora, se não te importas, tenho de dar uma lição. - Irethra girou nos calcanhares e saiu.

Tuala deixou cair o saco em cima da esteira e envolveu-se melhor na capa. Certamente que não lhe seria possível descansar; estava tanto frio que, ao respirar, surgia-lhe perante a boca uma pequena nuvem de vapor. Aquele quarto parecia-lhe demasiado estranho para lhe ter sido designado. Havia ali muitas raparigas e entre as divisões que vislumbrara durante a volta forçada que fizera, vira vários quartos grandes com esteiras umas a seguir às outras. A jovem tinha a certeza de ter visto lareiras com a sua provisão de turfa, prontas para serem acesas. Tuala esperara ficar alojada junto das outras raparigas, viver em comunidade com elas, tal como os homens de armas em Pitnochie. Talvez aquele isolamento servisse para sublinhar mais ainda a sua diferença. Na verdade, apesar do tamanho minúsculo do quarto, Tuala sentia-se aliviada por ficar sozinha. Os seus olhos habituaram-se gradualmente à escuridão. O quarto tinha uma espécie de janela aberta, uma mera fresta entre as pedras. O frio entrava por esta, transportando consigo um cheiro a sal: devia vir do mar. A jovem ouviu o grito das aves, vozes ásperas e estranhas, diferentes das das carriças, dos tordos, das corujas e dos corvos. Aquelas aves eram viajantes, as suas vozes falavam de longas jornadas sobre águas perigosas. Com o tempo, aprenderia a compreendê-las.

Ouviu-se novamente um restolhar e um ligeiro arranhar. Era evidente que partilharia o seu quarto com os ratos. Mist teria gostado do local. As lágrimas picaram-lhe os olhos; não as deixaria cair. Mist tinha um lar, muita comida e pessoas que seriam boas para ele. Mist passaria bem sem ela. Tuala sofreria mais do que ele, sentiria falta da sua presença consoladora na cama fria. No Inverno, seria muito duro dormir naquela torre. Talvez fizesse parte do treino. Talvez devesse aceitar o frio e não pedir cobertores. Afinal, os druidas faziam-no, eram capazes de suportar o frio, o calor, a água profunda e o ar vazio. Penduravam-se metidos em peles de boi e esperavam por sonhos proféticos. O que eram algumas noites desconfortáveis comparadas com aquilo?

Um pouco de água teria sido bom para lavar a sujidade da viagem das mãos e do rosto. Paciência. Tremendo de frio, Tuala desfez a trouxa e começou a tirar os seus escassos pertences. Havia uma arca no quarto, antiga, pesada, cheia de teias de aranha. A jovem fez os possíveis por não as incomodar, visto que estas já lá estavam. Mara metera-lhe na trouxa uma muda de roupa, dois lençóis, meias quentes e uma camisa de noite. No interior da trouxa, também estava a saia e a túnica que usara para contar a história de Nechtan, o pedreiro, e da sua amante misteriosa, Ela. Para além de mais duas peças iguais e em bom estado, semelhantes em estilo, mas mais simples. A tremer, Tuala tirou o vestido que usara na viagem e vestiu o vestido azul, atando-o em redor da cintura com a faixa a condizer que encontrara no pequeno monte de roupa que lhe tinham dado. Não tinha hipótese de ver como lhe ficava, mas pareceu-lhe razoável. A jovem suspeitava que era o mais pequeno que havia em Banmerren. As raparigas que vira pareciam todas alarmantemente altas e bem feitas para a idade, muito próxima da sua, pareciam mulheres jovens. Uma coisa eram os homens de Pitnochie que a viam como uma espécie de sedutora misteriosa; era psicológico. Outra era ver-se ao pé daquelas raparigas; parecia uma criança.

Depois de arrumar as roupas, Tuala tirou da trouxa as coisas mais pequenas que empacotara à parte, onde estariam longe dos olhares predadores dos irmãos de Ferada. A sua faca especial; a sua colecção de penas apanhadas do chão da floresta; as fitas do cabelo, as que conseguira encontrar antes de partir de Pitnochie. Já não precisava delas. Tuala cortara de qualquer maneira os cabelos ao nível do queixo com a faca e atirara com as madeixas para a lareira de Broichan. A Que Brilha já estava a par do encarceramento da sua filha para bem dos deuses e do futuro de Fortriu; com aquele pequeno sacrifício, Tuala dava-o também a conhecer à Guardiã das Chamas, guardiã e inspiradora dos guerreiros. Se algum deles aceitava as suas oferendas, ela não o sabia. No fim de contas, estava ali e tudo lhe parecia mal.

As fitas: verde, da cor da erva, azul, da cor do céu, encarnada, da cor do sangue, amarela, da cor do Sol. Quando era pequena, as pessoas, em Pitnochie, davam-lhas. Os homens de armas saíam numa expedição e passavam por um mercado qualquer. Ferat comprava duas todos os Verões a um vendedor ambulante. Brenna encontrava algumas que lhe pertenciam ou fazia-as com restos de tecido. Aquelas fitas eram recordações de casa; representavam Bridei a penteá-la com mãos cuidadosas e uma pequena graçola; representavam os bolos de aveia de Ferat e a roupa lavada de Mara; representavam as histórias de Uven e de Cinioch, e o ronronar de Mist, enroscado nas pernas de Brenna. Aquelas fitas representavam um lar que deixara de existir; representavam um amor que nunca existira. Tuala meteu-as na arca.

O vestido azul era mais quente do que as suas roupas, mas não o suficiente para afastar o frio. No exterior, as nuvens tinham tapado o Sol e o vento soprava frio e forte do lado do mar. Quando soaria a campainha para o jantar? É claro que Tuala podia descer a escada, e tentar não reparar nos olhares espantados das outras raparigas, não ouvir as suas risadas mal reprimidas e comentários sussurrados. Sentar-se-ia na relva, talvez meditasse um pouco. Sentiria menos frio. Se as raparigas a maçassem, ignorá-las-ia. Tuala sorriu. Estava a enganar-se a si própria se pensava que seria possível. A julgar pelas instruções inadequadas de Irethra, a sobrevivência em Banmerren dependia da rápida aprendizagem das regras e da certeza de que as cumpriria. Era estranho; claro, um estabelecimento daqueles tinha de ter um código de comportamento, mas a falta de flexibilidade ou a falta de compreensão eram coisas que Tuala nunca esperaria encontrar numa escola dirigida por Fola. A recordação que tinha da Mulher Sábia, na floresta, era a de alguém que não só sabia as regras, como sabia quando quebrá-las.

As mãos de Tuala acariciaram o último objecto da sua trouxa: o cordão que contava a sua história e de Bridei. Parecia que os dois fios estavam destinados, a partir dali, a ficar separados para sempre. Fora tola em pensar que poderia ser de outro modo; em acreditar, no mais profundo do seu coração, que poderia ser de outro modo. Tuala transformou o cordão numa bola e escondeu-o na camisa de noite dobrada. Fechou a arca e saiu. O frio era o mesmo mas, pelo menos, conseguia ver o céu. As nuvens que tapavam o Sol por cima de Banmerren passariam mais tarde pela floresta de Pitnochie e ensombrariam as águas do Lago da Serpente. Talvez, antes de se dispersarem, avistassem o exército de Talorgen marchando ao longo do Vale para enfrentar os ferozes guerreiros de Dalriada. Talvez se voltassem a cruzar com o Sol, e um jovem de cabelos castanhos encaracolados e olhos azuis muito brilhantes olhasse para elas com saudades de casa. Talvez.

Se virasse à direita na passagem estreita logo à saída da porta, desceria as escadas e iria dar ao jardim, seguindo ao longo da muralha coberta de musgo. Para a esquerda, a passagem estreita continuava até atingir um telhado inclinado de madeira e depois outro trecho da muralha que circundava Banmerren. Junto daquela barreira, encontrava-se um velho carvalho; os seus ramos passavam por cima da muralha, o tronco era enrugado e cheio de nós, e as raízes um emaranhado de arcos, curvas e vãos, espalhando-se por uma extensão de terreno antes de penetrarem profundamente o coração da terra. A Primavera ainda estava no seu início; os ramos escuros tinham folhas pequenas. Os ninhos do ano anterior continuavam nos ramos altos, sinal de que aquele gigante dava abrigo, todos os anos, a muitas espécies de aves.

A copa do carvalho não chegava ao telhado de madeira. Era preciso percorrer um trecho de muralha com três passos de comprimento e um palmo de largura para a atingir. A altura era considerável; uma queda resultaria, na melhor das hipóteses, nalguns ossos partidos. Tuala prendeu a saia do vestido na faixa da cintura, abriu os braços e, sob os seus pequenos pés, percorreu a distância com cuidado. Nunca tivera medo das alturas.

Utilizando as mãos e os pés, Tuala chegou a um ramo em forquilha suficientemente grande para a suportar de costas para o tronco musgoso, os pés juntos num dos ramos, de frente para o que se avistava para lá de Banmerren, do outro lado da muralha. Seria possível trepar até ao cimo da muralha se o quisesse fazer, já que a árvore estendia generosamente os seus ramos em todas as direcções. Era provável que a campainha para o jantar tocasse quando ela estivesse a meio caminho e chegasse atrasada logo no primeiro dia. Não precisava de se aventurar mais; a árvore dava-lhe abrigo, suportava o seu pequeno corpo com os ramos antigos e fortes. Se estivesse quieta e abrisse os ouvidos do espírito, com o tempo começaria a murmurar-lhe as suas histórias.

Tuala conseguia avistar uma baía grande, clara, uma extensão de terreno a leste e uma fortaleza. Os estandartes flutuavam sobre as muralhas de pedra, brancos com símbolos azuis. Do alto, devia ser possível olhar para o mar, ver a aproximação de possíveis atacantes e preparar a defesa. A fortaleza também tinha muros de terra e valas; semicerrando os olhos, Tuala conseguiu ver pequenas figuras. Caer Pridne: fortaleza de Drust, o Touro, monarca de Fortriu. Ficava tão perto. Dreseida já lá devia estar com os dois filhos, junto dos amigos, sem dúvida, feliz por a longa viagem ter terminado. Dreseida só ficara em Banmerren o tempo suficiente para que a filha se instalasse porque os homens - com excepção dos druidas - não podiam entrar no recinto, e Tuala não conseguia imaginar Uric e Bedo esperando pacientemente a mãe do lado exterior das muralhas.

Caer Pridne. Contavam-se histórias estranhas acerca daquele local. Aliás, Erip e Wid tinham insinuado histórias demasiado estranhas para poderem ser contadas. Existia aí um poço muito fundo onde se realizavam cerimónias sombrias. Os seus tutores não lhe tinham dito mais nada.

Se os estandartes estavam a flutuar, significava que o rei Drust estava na fortaleza, ao mesmo tempo que no Grande Vale os seus guerreiros combatiam contra os Celtas. Broichan também se encontrava em Caer Pridne, tendo retomado a sua função de druida do rei, um lugar que ele abandonara durante longos anos para permitir que Bridei crescesse e se transformasse num homem. Parecia que para onde quer que Bridei fosse, Broichan o seguia como uma sombra. Podia não estar ao lado do filho adoptivo no campo de batalha, mas esperava-o na corte. Por instantes, a jovem imaginou Bridei com uma idade madura, os caracóis grisalhos e um velho Broichan sempre por perto, controlando-o, manipulando cada jogador no seu jogo pessoal e prolongado. Fola falara nos seus esquemas. Tuala fechou a mente àquela visão futura, não fosse surgir nela uma certa mulher de cabelos ruivos. Os druidas não sabiam tudo. Nem sequer a mais rígida das auto-disciplinas, ou o mais profundo dos conhecimentos, eram capazes de ultrapassar os deuses.

A estadia de Tuala transformou-se numa rotina de refeições, de estudos, de trabalhos domésticos, de sono. A jovem descobriu, depois de arranjar a coragem para perguntar, que todas as raparigas tinham uma almofada e dois cobertores e que, como ela estava na torre e não tinha lareira, devia ter direito a três. Aprendeu o significado das campainhas e obedecia-lhes quando se lembrava. Por vezes, quando estava nas árvores, ou quando se encontrava em transe perante uma poça de água ou uma bacia de água suja, Tuala perdia a noção do tempo, absorta num mundo diferente. Nesses momentos, Irethra nunca perdia a ocasião de a repreender.

- O que queres dizer com isso, não ouviste tocar a campainha? Onde estavas, noutro sítio? - As palavras de Irethra faziam-lhe doer os ouvidos. Apesar de se esforçar para ser como as outras, Tuala não conseguia escapar às suas origens. Por mais discreta que fosse, continuava a ser diferente e os comentários não ajudavam. - A campainha ouve-se em todos os recantos da casa e do jardim, Tuala. Da próxima vez, espero que não te atrases e que estejas pronta.

- Sim, Irethra. - Em Pitnochie, a jovem achara Mara uma mandona. Comparada com aquela tutora irascível, a governanta de Broichan era amável e razoável.

Os padrões diários eram fáceis de seguir. Levantavam-se todas cedo. As alunas faziam as tarefas domésticas por turnos, desde ir buscar água ao poço até preparar as refeições e servi-las, lavar o soalho, cortar lenha, acender as lareiras, coser e remendar roupa. Tais tarefas eram um complemento dos estudos; as que não tinham trabalhos para fazer num dia específico, praticavam as técnicas que Irethra ou as outras lhes ensinavam: preparar bálsamos e tinturas a partir de ervas, ensaiar as palavras e os movimentos de um ritual, interpretar as estrelas e, as que tinham aptidão, aprendiam línguas, a escrita e a leitura. Banmerren tinha uma pequena biblioteca. Como complemento, a arte dos presságios, da adivinhação e da profecia era apresentada às alunas de vestido azul. O estudo sério daqueles aspectos da arte era, principalmente, um assunto para as mais velhas, as que tinham atingido um determinado nível de competência e compreensão. Tuala gostava das mais velhas. Só havia sete, e tinham um olhar tão calmo e uns modos tão agradáveis que a faziam desejar ser uma delas, não apenas uma principiante num grupo de raparigas tagarelas que mal distinguiam geografia de genealogia e astronomia de aritmética. Habituada às lições intensas, por vezes inflamadas dos seus velhos tutores, Tuala remetia-se ao silêncio durante as aulas. A sua presença atraía as atenções; a jovem não queria ver as sobrancelhas erguidas e os sorrisos trocistas que as suas perguntas provocariam.

Assim se passaram duas Luas e chegou-se ao Verão. Tuala descobriu que a melhor aula do dia era história, razão pela qual as filhas de famílias nobres assistiam juntamente com as que procuravam ser servas da Que Brilha. Tuala nunca imaginara que ficaria contente com a presença da Rapariga Raposa mas, pelo menos, Ferada, era honesta; a filha de Dreseida não pertencia à espécie de rapariga sempre com risadinhas ou com segredinhos. Tuala apanhara Ferada, logo nos primeiros dias em Banmerren, a observá-la ao jantar, ocasião em que as raparigas nobres se sentavam numa única mesa e as outras em três mesas longas, sob o olhar perspicaz das mais antigas. Durante as refeições, Tuala sentava-se sempre sozinha. As outras deixavam um espaço em aberto, como se ela tivesse uma doença contagiosa, o que significava que o pão nunca lhe chegava às mãos; por vezes, a jovem nem comia. Tuala, uma rapariga que sempre tivera o apetite de um pássaro, não deixava que isso a deprimisse. Pelo menos, tirava-lhe a necessidade de pensar no que dizer, mas era evidente que Ferada se sentia preocupada.

A jovem olhava para Tuala com as suas elegantes sobrancelhas franzidas e trocava comentários com a rapariga a seu lado, a que tinha olhos amistosos e cabelos que pareciam uma cascata dourada. Esta era interessante. Tuala descobrira que o seu nome era Ana, que era uma refém real das ilhas do norte e que estava sob a custódia do rei Drust, servindo de penhor para que os seus parentes não atacassem as costas de Fortriu. Totalmente inocente, Ana deixara para trás a sua terra e a sua família. Há quatro anos que a jovem dividia a sua vida entre Banmerren e Caer Pridne, afastada de tudo o que amava. Era pouco mais velha do que Tuala. Dizia-se que sempre que saía do interior das muralhas de Banmerren, Ana era acompanhada por um grupo de quatro guardas corpulentos para o caso dos seus parentes decidirem que a sua liberdade era mais importante do que o perigo de desafiar o rei Drust. Na corte, Ana andava sempre rodeada de homens armados. O rei das Ilhas Pequenas era primo de Ana, e o seu estatuto era inferior ao do monarca de Fortriu. Nos seus quatro anos como refém, não houvera qualquer tentativa para a libertar. Tuala não sabia como aquela jovem de cabelos dourados conseguia ser tão serena, e ter aquele ar tão tranquilo.

Aquando da primeira lição de história, Ferada sentou-se ao lado de Tuala e Ana no outro, e a partir dali as três jovens passaram a sentar-se sempre juntas. Durante aquela hora, Tuala fingiu que não estava sozinha em Banmerren. Uma das raparigas vestidas de verde, Derila, era quem conduzia a aula, uma alternativa agradável para as perguntas ásperas e comentários mordazes de Irethra. Derila era inteligente e justa. Queria que todas as alunas participassem e lidassem positivamente com os seus erros. Nas aulas de Derila nunca havia silêncio.

Ferada também era inteligente. A sua mão erguia-se em resposta a todas as perguntas; se discordava de um determinado ponto, discutia com convicção. Tuala começou a refazer a ideia que tinha dela.

Ana também tinha talento para aquela disciplina. Menos dada a disputas, agarrava-se à sua ideia, aprendia com facilidade e era o tipo de aluna que acordava cedo para estudar enquanto as outras ainda dormiam. Ana era capaz de bordar e recitar simultaneamente a história dos reis dos Folir, sem errar em nenhuma das coisas. Era capaz de desenhar mapas num tabuleiro cheio de areia, sabia quais as estrelas que davam boa sorte e as que pressagiavam uma vida de luta, sabia cantar e tocava harpa.

Quanto a Tuala, durante a aula de história não tinha medo de falar. Um dia, a jovem respondeu cuidadosamente a uma pergunta, depois a outra, e disse o que sabia sobre os símbolos do parentesco e o modo como eles eram utilizados nas esculturas das pedras, dependendo se pertenciam a Circinn ou a Fortriu. A explicação levou algum tempo porque o assunto era complexo, muitas vezes discutido com Wid e Erip. A classe ouviu-a, muda, tal como Derila. A partir dali, a tutora pedia muitas vezes a Tuala algumas elucidações e por vezes ficava a falar com ela depois da aula. Não era como nos velhos tempos em Pitnochie, mas era bom.

A adivinhação, porém, era o oposto. Aquela disciplina não era estudada pelas raparigas nobres; durante aquelas sessões podiam andar a cavalo visto que tinham as suas montadas pessoais no estábulo da herdade, no exterior das muralhas. Os guardas de Ana nunca andavam longe; ficavam aquartelados na herdade quando se encontravam em Banmerren. Quando o tempo estava inclemente, as raparigas nobres sentavam-se a bordar e a conversar. Por norma, as conversas que Tuala ouvia tinham como principal assunto rapazes das suas relações.

Tuala e as suas colegas mais novas reuniam-se numa sala fria, sob o olhar de Irethra, com uma tigela de bronze em cima da mesa. Irethra explicava-lhes os rudimentos.

- Provavelmente, não verás mais do que o teu próprio reflexo... é normal... tens de focar a mente...

Tuala olhava para uma mancha na parede que tinha mais ou menos a forma de um cão, para os arranhões nos bancos, para os riscos no chão e para as mãos juntas da rapariga a seu lado.

- Concentra-te... não te distraias... respira lenta e firmemente como eu te ensinei...

Odha, pálida devido à tensão, estava inclinada sobre a tigela que outra rapariga enchera com a água de um jarro colocado sobre a mesa. Tuala olhava para os chinelos de feltro de Odha, para as dobradiças da porta, para o gato de Fola, Sbade, sentado ameaçador a um canto, para qualquer coisa que a fizesse afastar a vista daquela superfície trémula cheia de segredos, para qualquer coisa que a impedisse de revelar que era capaz de ver.

- Respira, Odha. Concentra-te... Liberta a mente...

Uma longa espera em silêncio. Por fim, Odha endireitou-se com alguma ansiedade no rosto.

Não consigo ver nada - disse ela, desanimada.

Esta técnica é uma dádiva da Que Brilha - explicou Irethra, muito pouco carinhosa. - Nas tuas orações, fala com ela e procura a sua sabedoria; há-de vir com o tempo, quando ela achar que estás pronta. O nosso ofício não se aprende num dia, ou numa estação, ou num ano, mas com disciplina e uma prática rigorosa. Isto não é um teste, filha, é apenas o começo. Tuala! - O tom da sua voz tornara-se áspero, gelado.

Tuala sobressaltou-se.

- Sim, Irethra?

Estou a ver que achas esses riscos no chão muito fascinantes; talvez no sítio de onde vens as pessoas não se preocupem com certas coisas. Estás aqui para aprender, não para sonhar. Ou talvez aches que eu não tenho nada para te ensinar? Que sabes tudo?

Ouviu-se uma série de risadinhas rapidamente reprimidas pelo olhar que Irethra lançou à sua volta. Tuala olhou para as próprias mãos. A jovem não queria mentir; sentia que A Que Brilha esperava que ela dissesse sempre a verdade naquela casa de Mulheres Sábias.

- Creio que não devia estar nesta aula - disse ela calmamente. Não se ouviram quaisquer risadinhas. Em sua substituição, olhos e bocas abertas, horrorizadas. A língua de Irethra era universalmente temida; ninguém se atrevia a desafiá-la. Além disso, como principal assistente de Fola, Irethra era conhecida como a própria fonte da sabedoria. O facto das suas aulas serem suportadas, em vez de desfrutadas, não fazia diferença.

- És capaz de ter razão - disse Irethra com secura. - Algumas alunas nunca chegam a conseguir dominar a arte da adivinhação. As imagens que surgem na tigela estão-lhes vedadas. No entanto queremos que, pelo menos, tentem. Os teus tutores é que decidem se tens aptidão ou não. As que não têm talento dedicam-se a outras tarefas.

- A esfregar o chão - murmurou alguém.

- Eu não quis dizer isso - começou Tuala, desesperada, fazendo um enorme esforço para se manter calma, mas incapaz de se calar perante o olhar daquela mulher, que a queria colocar ao nível de uma coisa qualquer que se esmaga com a sola do sapato. - O que eu disse foi que preferia não fazer isso aqui, na aula... prefiro fazê-lo sozinha, com orações e o ritual apropriado...

O olhar de Irethra voltou a alterar-se; havia algo nos seus olhos que era verdadeiramente alarmante.

- Terei ouvido bem? - O seu tom de voz não estava de acordo com o olhar; era suave. - Tu, uma aluna nova, uma filha da floresta que veio para aqui por bondade da nossa sacerdotisa principal, estás a tentar dizer-me como devo conduzir as minhas aulas?

Tuala sacudiu a cabeça. A raiva e a angústia misturavam-se-lhe no coração. A jovem enfrentou o olhar de Irethra, fazendo os possíveis para que a água brilhante não se cruzasse com a sua visão.

- Não - respondeu ela no tom mais polido que conseguiu encontrar. - Eu não sou Mulher Sábia nem tutora, mas ensinaram-me a amar os deuses e a observar os seus rituais. Estudo esta disciplina desde criança. Tenho a certeza que sabe o que é apropriado para as suas alunas. Tudo o que posso dizer é que, para mim e para outras pessoas da minha casa, esta prática sempre foi algo de solitário, um ritual entre a vidente e os espíritos. - Aquilo não era inteiramente verdade; olhara para o Espelho Negro ao lado de Bridei e cada um vira a sua própria visão. Porém, Bridei era uma parte de si própria, e ela dele; era diferente. - Peço autorização para sair da sala; quero praticar sozinha. Também posso esfregar o chão, se achar que é apropriado.

Durante alguns momentos, Irethra olhou para ela. De seguida, a Mulher Sábia afastou-se e a tigela ficou à vista, a água imóvel reflectindo a luz de duas velas colocadas sobre a mesa próxima. As imagens dançavam na sua superfície, atraindo Tuala contra a sua vontade. O silêncio era total.

- É a tua vez - murmurou suavemente Irethra. - Diz-nos o que vês, rapariga selvagem.

As coisas tinham ido longe demais. A água chamava-a. A visão seduzia-a, tinha de olhar. Tuala aproximou-se. A tutora, as alunas, as velas, a sala silenciosa e as paredes de pedra dissolveram-se quando o seu espírito entrou em transe.

Uma mulher alta atravessou o espelho, a própria Que Brilha, vestida de prata e com um rosto tão radiante que Tuala não o conseguia fixar, não conseguia ver-lhe as feições ou a expressão, mas sabia que eram incomparavelmente encantadoras, e plenas de uma suave compaixão. Num ombro, empoleirava-se uma coruja de olhos redondos e lustrosos, de plumagem branca, imaculada. A deusa transportava nos braços uma criança vestida de peles brancas como a neve. A Que Brilha segurava nela com ternura, como se fosse a coisa mais preciosa do mundo. A deusa desvaneceu-se e, no seu lugar, surgiu uma cena tão estranha que, durante alguns momentos, Tuala não conseguiu perceber o seu significado. A visão mostrou-lhe uma actividade frenética, homens a cortarem árvores e a transformarem os troncos em toros polidos. Homens a mexerem em cordas, fabricando uma rede, ou arreios. Homens cavando a terra. Homens à beira da água construindo uma enorme jangada. Homens de guarda, como se esperassem um ataque. A jovem conhecia alguns deles: Donal junto dos que trabalhavam com cordas, Enfret de guarda, Gartnait, o irmão de Ferada, encostado a um muro sem fazer nada, olhando apenas com uma expressão trocista. Em seguida, uma visão terrível: um enorme monte de corpos a arder. Tuala, como vidente, mordeu o lábio ao ouvir as mulheres aos gritos, despedindo-se desesperadamente dos maridos, dos irmãos, dos pais, dos filhos. Parecia que a batalha terminara; Fortriu vencera. Porém, que estavam os homens a fazer?

Então, por fim, surgiu Bridei na imagem. A jovem sentiu lágrimas nos olhos ao vê-lo. Vivo, são e salvo. O jovem estava no cimo de uma colina, com o vento fustigando-lhe os cabelos, dando ordens que alguns homens se apressavam a cumprir. Bridei parecia tão alto, tão solene, tão homem.

Mais escavações. Espantosamente, parecia que estavam a soltar uma enorme pedra do solo, puxando-a com cordas, até que o monólito caiu em cima de uns troncos que funcionavam como rolos. Enquanto a jovem olhava, perplexa, para as imagens, a pedra maciça desceu colina abaixo com os homens correndo a seu lado, mudando os rolos de trás para a frente, outros fazendo força nas cordas para abrandar a velocidade da descida. A seu lado, Bridei incitava-os, encorajando-os, alterando o ângulo do enorme monólito para que pudesse ser de novo erguido, certamente uma tarefa hercúlea, mesmo com tantos homens. Um homem de expressão selvagem ao lado de Bridei, paradoxalmente com lágrimas nos olhos. Uma marcha lenta, esgotante, os homens agarrados às cordas e puxando agora em terreno plano, ao mesmo tempo que outros continuavam a mudar os pesados rolos de trás para a frente. Por fim, a margem do lago e uma transferência complicada com madeiras em forma de calço, grandes alavancas e cordas grossas, a pedra passando da margem para uma espécie de ninho em cima duma jangada. Tuala perguntou a si própria se aquilo não se iria afundar sem deixar rasto. Se os deuses não iriam punir aqueles homens de rortriu pelo que parecia ser um acto ultrajante, apesar do objecto lhes pertencer por direito. Porém, com um coro de vivas - era espantoso como aqueles homens tinham fôlego para algo mais do que um suspiro -, a Pedra Mágica flutuou aninhada na sua cama de cordas, tal como a jangada flutuou nas águas agitadas do que parecia ser o Lago do rei no extremo ocidental do Grande Vale. Talorgen deu uma palmada no ombro de Bridei, felicitando-o. Donal estava junto deles, as tatuagens deformadas pelo orgulho. Gartnait não estava à vista.

Bridei sorria. Tuala conhecia aquele pequeno sorriso e sabia, pela sombra nos seus olhos e pela palidez do rosto, pelas articulações dos dedos das mãos fechadas que, para ele, aquela dupla vitória tinha algo de derrota, de insucesso. A campanha terminara e iam regressar a casa. Os homens iam regressar a casa e Bridei necessitaria de falar, de dizer o que o atormentava, o que lhe toldava o espírito, o que lhe confundia os pensamentos e lhe apertava o coração. O jovem não conseguia confiar aqueles segredos a Donal, pelo menos, na sua totalidade, e não permitiria que Broichan lhe visse as lágrimas. Bridei precisaria dela e ela não estaria presente.

Mais tarde, Tuala não teve a certeza se a imagem desaparecera por sua vontade ou se se desvanecera por si própria. A jovem permaneceu a olhar para a água durante muito tempo, já não como vidente, mas também ainda não como ela própria. Então, uma voz disse:

- Ela está a chorar.

Kethra, em voz baixa, cautelosa, respondeu:

- Silêncio, reia. Uma das coisas que tens de aprender é a não perturbar uma pessoa em transe. É preciso dar tempo a que a imagem desapareça, dar tempo a que a pessoa regresse a si. - Em seguida, após um período de espera: - Tuala?

A jovem pestanejou. As velas tremeluziram e o círculo de rostos surgiu, rostos jovens, fixos, de olhos abertos de espanto. Tuala sentiu-se fraca, enjoada. Há já muito tempo que não o via, e agora aquilo...

- Senta-te - indicou-lhe Kethra. - Odha, vai buscar água. Vocês, dêem-lhe espaço. Respira lentamente, Tuala.

Shade, o grande gato, escolheu aquele momento para se levantar e saltar para o banco, ao lado de Tuala. O animal encostou a cabeça à jovem, ronronando e ela estendeu uma mão para lhe afagar o espaço entre as orelhas. A carícia era reconfortante. Dava-lhe o que a fala humana não lhe podia dar, trazia-lhe o seu mundo de volta.

- Bebe isto - disse Kethra, metendo-lhe uma malga de água nas mãos. - Meninas, têm muito a aprender com o que acabam de presenciar.

Quanto mais não seja, assistiram ao perigo que é fazer esta experiência sem assistência. Não se deve fazer isto. Tanto o corpo como a mente pagam uma factura muito elevada. Enquanto não atingirem um certo nível, devem ter sempre uma acompanhante. - A tutora virou de novo a sua atenção para Tuala. - Com que então - observou ela - estavas a dizer a verdade. O que é que viste? Diz-nos.

Não valia a pena protestar; uma recusa só atrairia ainda mais as atenções. Kethra não desistiria enquanto não obtivesse uma resposta.

- Penso que as imagens eram actuais, ou recentes - respondeu Tuala. - É claro que, por vezes, as imagens são do que pode vir a acontecer, ou do que pode ter acontecido. Nem sempre é possível ver o que queremos ver. Às vezes, não conseguimos respostas. Outras vezes, as respostas estão lá, mas escondidas. Vi relances dos homens do rei Drust. Como sabe, eles partiram em campanha com o chefe tribal Talorgen na esperança de reclamar o território de Galany's Reach, onde se encontra a Pedra Mágica.

A audiência estava completamente silenciosa, à espera de mais.

- Pareceu-me que eles venceram a batalha. E... estavam a mover a pedra, a arrancá-la do chão com cordas e madeira, e a levá-la para uma jangada para a transportarem para Fortriu. - A jovem não falou na Que Brilha e também não falaria em Bridei.

Kethra franziu a testa.

- Como é possível uma criança como tu ter esse tipo de visão? perguntou ela. - Que sabes tu desses assuntos?

- Mover a Pedra Mágica? - inquiriu Reia, espantada. - Essa pedra não é mais alta do que um gigante e mais grossa do que o pescoço de um touro? Como é que eles conseguiram?

Tuala viu de novo as feições jovens e determinadas de Bridei. Os olhos brilhantes, nos quais a consciência da presença dos deuses nunca estava distante. Com o líder adequado, os homens são capazes do impossível.

- Fizeram-no com magia druídica e com inteligência - disse.

- Hmm - murmurou Kethra. - Que história estranha, pouco verosímil. Porque haviam eles de fazer uma coisa dessas quando as pedras são colocadas num determinado local como símbolos da descendência do nosso povo dos sete filhos de Pridne? As pedras simbolizam o território e o sangue. Tirá-las do local é um insulto aos deuses, é um mau presságio. Quem decidiria uma coisa dessas após uma vitória em combate?

- Eu compreendo as razões - replicou Tuala. - O acto em si parece estranho, pode provocar um desequilíbrio na estrutura da nossa terra, mas Galany's Reach pertence agora a Dalriada. Fortriu perdeu aquele território há anos. As forças de Talorgen não podiam aguentá-lo; está demasiado afastado das nossas próprias fortalezas. Esta campanha não teve o propósito de reconquistar o território de Galany's Reach, foi um ataque simbólico. Um aviso do que poderá acontecer se Dalriada pensar em se expandir na direcção do Vale. Trazer a pedra é um acto de coragem e de imaginação. Difícil, cansativo, inspirador. Deve ter sido motivo de orgulho para os nossos homens e deve ter desestabilizado o inimigo. Pelo menos - disse a jovem, apercebendo-se de que estava a dizer mais do que tencionava -, é o que penso.

- Como é que tu sabes isso tudo? - perguntou uma das raparigas. - Batalhas, territórios e tudo o mais?

- Está a inventar tudo - disse outra com a mão a tapar a boca.

- Tive excelentes tutores - retorquiu Tuala. - Tive sorte.

- A sorte faz parte - interrompeu Irethra num tom cortante -, e fazer bom proveito dessa mesma sorte é uma vantagem. Depois há o talento natural. Meninas, estou a ouvir a campainha. Toca a andar para o refeitório. Não corras, Odha, não estás a morrer à fome.

Irethra e Tuala ficaram sozinhas na sala, conscientes de que ainda havia mais para dizer.

- Peço desculpa - disse Tuala, sincera. - Tentei não olhar, mas às vezes acontece. As visões estão na água à minha espera.

Irethra respirou fundo.

- É óbvio que aprendeste esta técnica antes de vires para Banmerren. Quem te ensinou? Broichan?

Tuala ter-se-ia rido se não estivesse tão nervosa.

- Os meus tutores ensinaram-me muitas coisas, mas não me ensinaram isto. Nunca me ensinaram as artes dos druidas ou das Mulheres Sábias. E Broichan nunca me ensinou nada. Excepto a ter medo. Ele achava que eu não precisava de instrução.

- Dir-se-ia - observou Irethra, despejando a água da tigela no jarro - que, no que diz respeito à adivinhação, ele tinha razão. Queres dizer com isso que aprendeste isto sozinha? Que és capaz de invocar estas visões sem qualquer técnica, simplesmente através da força da vontade?

- Oh, não! - exclamou Tuala, chocada. - As imagens são-me enviadas pelos deuses, não são apenas invocadas. Por vezes, é possível submetê-las ou moldá-las com a mente, fechar algumas e fortalecer outras. - Tuala fizera aquilo mesmo quando os Boa Gente tinham tentado encher-lhe o espelho com imagens que ela não queria ver. Então, invocara A Que Brilha e a deusa mostrara-se na água límpida.

- Eu penso que, se a vidente quiser saber algo, talvez fazer uma interpretação do futuro, os deuses moldam as imagens de maneira a ajudar. Pelo menos, é o que a experiência me diz.

- Estou a ver. - Irethra parecia espantada, confusa. As suas mãos ágeis taparam a bacia com um pano, cobriram o jarro e uniram-se quando a Mulher Sábia se colocou em frente de Tuala. A jovem pôs-se respeitosamente de pé.

- Tuala - disse Irethra.

- Sim?

- Penso que é melhor não falarmos abertamente sobre esta aula com as raparigas. Se elas te fizerem perguntas sobre o que aconteceu, dá-lhes uma resposta curta, mais nada. Não te deixes arrastar para discussões complicadas, nem tentes demonstrá-las. Estas raparigas são principiantes e vulneráveis. Compreendes?

- Claro. De qualquer modo, elas não me perguntam, não me falam. Seguiu-se um breve silêncio.

- Teremos cometido um erro ao deixar-te ficar sozinha? - perguntou Irethra.

- Oh, não! - Tuala ficou horrorizada perante a perspectiva de ir para uma das camaratas e ficar rodeada de raparigas aos segredinhos dia e noite. A torre era sua, era o seu local, seguro, silencioso. O carvalho era o seu refúgio, o seu pedaço de Pitnochie naquele território diferente. A pessoa que tivera a ideia de a colocar na torre demonstrara sabedoria e bondade. - Sinto-me bem onde estou. A torre é ideal para mim.

- Talvez - disse Irethra. - Podes ir. Amanhã, em vez de vires a esta aula, vais ter com Fola. Ela queria saber dos teus progressos e chegou a hora de lhe dizer alguma coisa. Vou informá-la que vais ter com ela. E agora vai, ou perdes o jantar.

Tuala já se encontrava junto à porta quando Irethra lhe disse:

- Achas que é verdade? Eles trouxeram mesmo a Pedra Mágica?

- Suponho que saberemos quando os homens de Talorgen chegarem - disse Tuala, voltando a ver mentalmente o rosto de Bridei, e consciente, no seu coração, de que a visão fora um registo verdadeiro e exacto do que acontecera. Uma outra imagem sobrepôs-se àquela recordação: um homem agarrado à própria garganta, sufocando até à morte. Nas imagens que acabara de ver, Bridei ainda não tinha o rosto tatuado. Broichan, porém, prometera-lhe acção. O jovem já devia ter um provador e guardas extra. Apesar de tudo, só queria ver Bridei de regresso a Pitnochie são e salvo.

- Suponho que sim - disse Irethra. - Se for verdade, pode ser um bom presságio para o futuro dos Priteni. Muito bom. - O tom de voz mudou. - Toca a andar - disse ela. - Tenho mais que fazer.

Na manhã seguinte, enquanto as outras se dirigiam para a aula, Tuala esperava à entrada dos aposentos de Fola. Shade também estava do lado de fora da porta. A jovem tinha-o visto antes no jardim atrás dos pássaros. Naquele momento, estava sentado, com as orelhas espetadas e com a cauda a abanar, impaciente por entrar. O gato possuía a sua rotina, tal como todas as pessoas em Banmerren e não gostava muito de a quebrar. Porém, a porta de Fola estava fechada; no interior, podia-se ouvir a voz da Mulher Sábia, cadenciada e calma. Tuala inclinou-se para afagar Shade. As muitas cicatrizes de antigos combates tornavam-lhe o pêlo áspero e coçado. Olhando para ela com olhos cépticos, o animal ronronou.

A porta abriu-se abruptamente e a rapariga que saiu do quarto teve de estender os braços para evitar cair sobre Tuala e o gato, e estatelar-se ao comprido no chão.

- Oh... Peço desculpa... - balbuciou Tuala, estendendo a mão para a amparar.

A rapariga, arregalando os olhos, hesitou. Tuala lembrava-se vagamente de a ter visto durante os primeiros dias em Banmerren; magra, de rosto solene, sempre muito sossegada. Qual era o nome dela? Morna? Morva? Havia algum tempo que não a via nas aulas. Pensando bem, Tuala tinha-a visto no jardim com as outras, ou sentada a uma mesa durante muito tempo. Talvez tivesse estado doente. Os seus olhos eram muito estranhos. A jovem virou-se e desapareceu como uma sombra, não em direcção à área comunal, antes em direcção aos aposentos das mulheres. Só depois dela se ter afastado é que Tuala se apercebeu de que Morna não usava o vestido azul das raparigas mais novas, usava um vestido branco como a neve.

- Entra, Tuala. - O tom de voz de Fola não dava qualquer indicação de qual o seu estado de espírito. Shade já entrara e sentara-se no banco ao lado da Mulher Sábia, andando em círculos em cima de uma almofada. Tuala perguntou a si própria se o animal se teria alguma vez atrevido a sentar-se nos joelhos da dona. Talvez fosse pouco digno para ambos.

- Irethra falou-me do que aconteceu ontem - continuou Fola -, e do teu pedido para não praticares a adivinhação com as outras. Surpreendeste-a.

- Lamento... Tentei dizer-lhe...

- Se calhar, não fui justa contigo e com Irethra. Para mim, não foi surpresa; raramente me engano e detectei algo em ti quando nos encontrámos pela primeira vez, algo que se materializaria e que seria poderoso e perigoso ao mesmo tempo. Esperei muito tempo, até te receber em Banmerren, enquanto os teus tutores em Pitnochie te davam uma educação muito para além daquilo que oferecemos neste estabelecimento de raparigas. Podia ter avisado Irethra e as outras, mas pareceu-me melhor deixar que as coisas fossem correndo durante algum tempo para ver o que pensavas de Banmerren e o que Banmerren pensava de ti.

Tuala não disse nada. Aquilo parecia-se com os jogos estratégicos de Broichan, jogos com pessoas. A jovem lembrou-se que Fola e o druida do rei eram velhos amigos.

- Achas que a tua visão foi uma imagem recente? Um reflexo da verdade? - A voz da Mulher Sábia soava com um tom de ansiedade, o mesmo tom que Tuala sentira na voz de Irethra. Ambas tinham apreendido o verdadeiro significado da visão da jovem.

- Sei que foi - respondeu Tuala.

- Sabes? - perguntou asperamente Fola. - Isso é arrogância, filha. Nós só sabemos quais são as intenções dos deuses quando estes portentos se tornam realidade.

- Sei. Sei porque Bridei entrava nela, e quando ele aparece eu nunca me engano. A não ser que seja uma visão do futuro, que pode ser alterado. - A jovem estremeceu. Se não fosse pelo envio rápido daquela mensagem por parte de Broichan e o futuro poderia ser bem triste.

Os olhos de Fola tinham-se semicerrado.

- Bridei. Tu não falaste a Irethra de Bridei. Pelo menos, ela não me disse nada. Qual é o papel dele no meio disso tudo?

Tuala mordeu o lábio, subitamente relutante em dizer mais, mesmo a alguém que sempre lhe parecera uma pessoa amiga.

- Eu não lhe quero mal, Tuala - disse Fola. - Aliás, é precisamente o contrário. Tal como Broichan, eu estou comprometida com o futuro de Bridei. Podes confiar em mim; estou a dizer-te a verdade.

- Era ele que estava a comandar a operação de transporte da Pedra Mágica para o Lago do rei - explicou Tuala. - Foi tudo obra dele. Todos os outros o seguiram, guerreiros e chefes tribais. Foi ele que os inspirou, que acordou neles a chama da Guardiã das Chamas. Creio que os homens se vão lembrar disto durante muito tempo.

Fola acenou com a cabeça.

- Broichan vai ficar muito satisfeito - disse ela. - E o rei também. Vivemos tempos interessantes, muito importantes.

- Fola?

- Sim, minha filha?

- Tenho tentado trabalhar muito desde que vim para aqui. Tenho tentado, tal como prometi. Peço desculpa se fiz com que Irethra se zangasse.

Fola olhou em silêncio para a jovem durante alguns momentos.

- Irethra não está zangada - disse ela. - Talvez um pouco contrariada consigo própria por não ter percebido isto antes, mas nada que tenha a ver contigo. Tal como eu, ela gosta de alunas talentosas, que são raras. Pedi aos teus tutores que me enviassem um relatório sobre os teus progressos. Irethra recomendou que tivesses lições à parte em todos os ramos da arte que ensina, com ela ou comigo. Derila disse-me que os teus conhecimentos de história, geografia e política são excepcionais. Ela preferia que continuasses na aula dela visto que algumas das raparigas nobres são bastante inteligentes e todas teríeis a ganhar com debates inflamados.

Tuala sacudiu a cabeça.

- Derila está a gostar - disse Fola, sorrindo. - Ela diz que esta é a melhor colheita de alunas que alguma vez teve. Tens feito amigas, Tuala?

- Amigas. - Tuala não sabia bem o significado da palavra, estava rodeada de raparigas tão diferentes que até pareciam de um outro mundo. - Nem por isso. A Rapariga... Ferada senta-se ao pé de mim e Ana tem sido amável. Elas são filhas de chefes tribais e eu sou... o que sou. Penso que nunca poderemos ser amigas. Quanto às outras, bem, elas olham para mim, riem-se e dizem segredinhos umas às outras com a mão em frente da boca, mas não faz mal. Já era assim em pitnochie antes de vir para aqui.

Algo na sua voz, ou no seu rosto, fez com que Fola se aproximasse, perscrutando-a.

- Que queres dizer, Tuala?

A voz de Tuala saiu irregular apesar dos seus esforços para a controlar.

- Tornei-me indesejável. Broichan nunca me quis em Pitnochie, mas os outros gostavam de mim. Até que comecei a crescer. Começaram a ter medo de mim. Uma coisa estúpida, mas não o pude evitar. Foi então que Broichan me disse que eu tinha de partir.

- E o teu amigo? Bridei? Ele tem medo de ti, agora que és uma mulher?

Tuala olhou para ela, sentindo-se ultrajada.

- A pergunta é razoável - prosseguiu Fola calmamente. - De facto, muito apropriada visto que esse jovem está na idade em que pode ser muito vulnerável a esse respeito.

- Ele não está em Pitnochie - disse Tuala, piscando os olhos para afastar as lágrimas. - E é claro que não tem medo de mim. É claro que não. Connosco, as coisas são diferentes...

- Diferentes como?

Tuala cerrou os lábios. Aquilo não era justo; era cruel. Ninguém o podia compreender exactamente, ninguém senão ela própria e Bridei. Ninguém senão A Que Brilha, que os juntara muito tempo antes, no Solstício de Inverno.

- Deixemos isso por agora visto que te perturba - disse Fola. Talvez tenhas vindo para aqui na altura ideal. Quanto ao outro assunto, vamos alterar os teus dias de trabalho para que possam encaixar-se nas aulas que vais passar a ter comigo de manhã, em vez de assistires às aulas de Irethra. Vais continuar a assistir às aulas de Derila. Penso que só terás a ganhar com isso. As raparigas nobres regressarão à corte assim que Talorgen vier para Caer Pridne. Se as tuas visões forem tão exactas como pensas, pode ser que isso aconteça dentro de pouco tempo. Depois, pode ser que Derila peça a tua ajuda para ensinar algumas das outras raparigas, se concordares.

Tuala ficou a olhar para ela.

- Creio que elas não gostarão. Provavelmente, ainda me detestarão mais.

As sobrancelhas de Fola ergueram-se.

- Mas como é ao serviço da Que Brilha, vais fazê-lo mesmo assim, não vais? - perguntou ela.

- Vou, Fola. - Broichan dizia permanentemente que estamos sempre a aprender, apesar de estarmos acima daqueles que nos consideram inferiores, diferentes.

- Também quero - disse Fola - que fales a Ferada e a Ana sobre alianças através do casamento, sobre o que as espera como filhas de chefes tribais e o porquê daquilo que se lhes pede.

- Mas...

Fola silenciou-a com um olhar.

- Sei que tu sabes tudo sobre o assunto. Em teoria. A descendência real, a importância dos laços entre as sete casas, etc. Este assunto não pertence às conversas das raparigas da tua idade, mas acredita que o futuro é regido por ele.

- Se assim o desejas, mas não percebo por que razão.

A Mulher Sábia olhou intensamente para Tuala durante alguns momentos.

- Suponho que é normal saberes porquê - disse ela. - Sentir-me-ia mais descansada se aceitasses a ideia de que estar em Banmerren é bom para ti, que podemos ensinar-te algo que valha a pena.

- Eu não quis dizer... Fola ergueu uma mão.

- Nem eu; mas já me deste pistas suficientes quanto ao teu estado de espírito, Tuala. Creio que desejas um futuro como sacerdotisa da Que Brilha, ou como estudiosa, ou como tutora, por mais aptidão que tenhas, e tens. Tu falas muitas vezes em Pitnochie com um tom de voz que vai muito para além da nostalgia que afecta a maior parte das alunas. Tu não falas muito de Bridei. Porém, quando falas, sinto que ele está permanentemente nos teus pensamentos.

Tuala não disse nada. A jovem não sabia o que Fola pretendia com aquilo nem a sua relação com o que a Mulher Sábia lhe perguntara antes.

- É muito importante que percebas a importância da oportunidade que te foi oferecida, Tuala - continuou Fola, muito séria. - Fala com Ana e Ferada. Pensa nas tuas outras opções, que talvez sejam menos do que imaginas. Pensa na vida que tens aqui e no seu significado. Sei que vivemos encerradas entre quatro paredes, mas a sua protecção dá-nos uma liberdade especial, uma liberdade de pensamento e de espírito muito especiais. Eu não duvido do teu amor pela Que Brilha, minha querida, só quero que vejas as coisas sob determinadas perspectivas.

- Sim, Fola, eu falo com as raparigas nobres.

- Óptimo. Agora, podes ir. Irethra disse-me que gostas de estar na torre. Não preferes ficar com as outras? Talvez elas te aceitem melhor!

- Talvez, mas acho que não gostaria. Gosto de ver o céu e estou habituada ao silêncio, a estar sozinha.

Fola anuiu.

- E gostas de árvores - disse ela. - Lembro-me de te ver escondida nas raízes de uma árvore, há muito tempo. Muito bem, toca a andar. Estou ansiosa por trabalhar contigo. Espero que aprendamos as duas uma com a outra.

O que parecia uma coisa simples para a Mulher Sábia exigia, de facto, uma certa coragem. Manter-se isolada, excluída, podia ser visto como uma questão de orgulho da sua parte. Aproximar-se das raparigas nobres fora do contexto da aula de história era tentar ser admitida num círculo a que não pertencia, um convite à humilhação.

Ana e Ferada tinham levado a sua ração de pão e queijo para o jardim. As duas raparigas sentaram-se no seu local habitual, um banco de pedra à sombra de uma pereira, juntamente com outras alunas. As duas jovens podiam representar duas manifestações diferentes da virgem Todas as Flores: Ferada o Outono com o seu vestido castanho avermelhado, os cabelos ruivos presos no alto da cabeça, e as feições vincadas suavizadas pelas sardas nas maçãs do rosto e no nariz. Ana era a Primavera com os caracóis claros caindo-lhe em cascata sobre os ombros, com a túnica tradicional e a saia direita do povo das ilhas, de cor creme com a bainha em tom de miosótis. Num dos ombros, um alfinete de prata prendia-lhe o xaile. A jóia tinha a forma de um animal marinho, meio cavalo, meio foca, meio outra coisa: um dos símbolos antigos da linhagem das Ilhas Pequenas. Ao ver as duas jovens Tuala sentiu, enquanto pensava no que lhes dizer, que havia algo que as diferenciava das outras. Se era o sangue nobre, o resultado da educação ou o toque especial da deusa, não sabia, mas as duas raparigas tinham um ar encantador, poderoso - apesar das suas reservas

em relação à Rapariga Raposa - e, de certo modo, bom. Tuala apercebeu-se de que Ferada estava a olhar para ela.

- Senta-te aqui ao pé de nós, Tuala - disse Ana com a sua voz doce e melodiosa. - O Sol está hoje tão quente; acho que a Guardiã das Chamas está contente com Fortriu. - A jovem afastou-se para arranjar espaço no banco. Ferada permaneceu onde estava com uma expressão algo divertida. Quando Tuala se aproximou, as outras raparigas levantaram-se sem uma palavra, e afastaram-se.

- Peço desculpa - disse Tuala - não queria...

- Shhh - murmurou Ana. - Senta-te. Não te preocupes com elas, não passam de um bando de raparigas parvas. Ah! - acrescentou triunfalmente quando Tuala se sentou entre as duas. - Perdeste, Ferada!

Tuala olhou duma para a outra, e as faces de Ana coraram ligeiramente.

- Uma aposta - disse Ferada. - Quanto tempo levaria até arranjares coragem para te sentares junto a nós. Infelizmente, aqui em Banmerren, não temos muito em que apostar. Vou ter que lavar os cabelos da Ana, logo à noite. De qualquer maneira, é uma coisa que fazemos uma à outra desde que aqui estamos.

A Rapariga Raposa parecia quase humana. Era surpreendente. A jovem sempre se mantivera distante, exceptuando as aulas de história.

- Ouvi dizer que vais para a corte - arriscou Tuala. - Quando o teu pai regressar.

Ferada sorriu.

- É inevitável - disse ela. - Ficamos aqui algum tempo, encerradas nestas quatro paredes, e algum tempo em Caer Pridne, sorrindo para os homens que as nossas famílias acham convenientes. Na verdade, não sei o que será pior.

- Mas vais ver a tua família - replicou Tuala, surpreendida. - A tua mãe e os teus irmãos mais novos.

Ferada ergueu as sobrancelhas.

- Tu terias pressa de ver Uric e Bedo se eles fossem teus irmãos? Rãs na cama, gritos e guinchos quando estou a tentar estudar, piadas sobre os rapazes de quem gosto?

Tuala sorriu contra vontade.

- Pensei que eram dois rapazes simpáticos - disse ela. - A mim, fazem-me rir.

Não ameaçaste transformar Bedo num tritão? Foi o que ele me disse.

Creio que disse algo no género - replicou Tuala. - Ele devia saber que eu estava a brincar.

Ana riu-se.

Deve ser bom ter irmãos mais novos - observou. - Eu só tenho irmãos mais velhos. E uma irmã. - Repentinamente, a jovem tornou-se muito solene. - Deve ter onze anos. Provavelmente já se esqueceu de mim.

- Hmm - murmurou Ferada, partindo um pedaço de pão e atirando-o a um tordo que saltitava na relva. - Os irmãos mais velhos podem ser uma preocupação. Não concordas, Tuala?

- Não sei - respondeu Tuala. - Não tenho irmãos, ou irmãs. Na sua mente surgiu a imagem das duas personagens da floresta, a rapariga de cabelos como uma teia de aranha e os caracóis anelados, e o rapaz cheio de nozes, bagas e hera. Se a sua família era constituída por gente daquela, não admirava que as outras raparigas olhassem para ela de lado.

- Ah, isso é que tens - exclamou Ferada. - Tens Bridei. Um irmão adoptivo.

Seguiu-se um curto silêncio.

- Preciso de te perguntar uma coisa - disse Tuala.

- Pergunta - retorquiu Ferada, interessada. Surgiu-lhe um brilho especulativo nos olhos.

- Fola quer que eu saiba coisas sobre... o vosso futuro. Casamentos e alianças.

- Porquê? - perguntou Ana, espantada. - Fola sabe que as aulas de história servem para isso. Além disso, tu já sabes mais do que nós todas juntas.

- Não é isso que ela quer - disse Ferada. - O que ela quer é saber as coisas que as tutoras não ensinam.

- Não estás a falar... - As faces de Ana voltaram a enrubescer. Ferada sorriu trocista, olhando de lado para a amiga.

- Duvido que Fola queira que nós te digamos coisas sobre a alcova - disse ela secamente. - O que ela quer é que nós te falemos do que é esperado de nós e de outras como nós. Não será?

Tuala anuiu.

- Foi o que ela disse. Eu sei que são ambas de sangue real, que lady Dreseida é prima do rei Drust, por parte da mãe, e que Ana é parente afastada da linhagem que governa as Ilhas Pequenas. Isto quer dizer que um dia os vossos filhos serão pretendentes ao trono, e que, por isso mesmo, não podem casar com qualquer um.

- O que limita as nossas escolhas - replicou Ferada sombriamente. - Dá-te por feliz por poderes ficar em Banmerren, Tuala. É verdade que ficas afastada do mundo exterior, mas é melhor do que seres uma égua parideira de sangue real. Pode parecer uma espécie de poder, muita coisa depende de nós, mas não é verdade. Os homens é que tomam as decisões. Nós não passamos de parideiras.

- Não é assim tão mau - disse Ana. - É uma vida privilegiada comparada com a vida dura da mulher dum camponês, ou de uma serva.

- Como podes dizer isso? - perguntou Ferada, sentindo-se ultrajada. - Tu és uma prisioneira, estás na corte de Drust há uma série de anos, não podes ir a lado nenhum sem ser rodeada de homens armados. Há quanto tempo não vês a tua família?

Ana olhou para as mãos.

- Há muito tempo - respondeu. - Eles não vêm cá. Suponho que o meu primo tem medo de deixar aqui mais reféns. A minha família tornou-se condescendente. Suponho que era isso que Fortriu queria.

- Pareces sempre tão calma - arriscou Tuala, escolhendo as palavras com cuidado. - Como se não te importasses de ser prisioneira.

- Não vale a pena queixar-me - disse Ana. - A princípio, sentia-me triste. Triste e assustada, sentia umas saudades enormes da minha irmã. Porém, o rei e a rainha têm sido sempre muito amáveis. Além disso, ajuda um pouco passar aqui algum tempo, em Banmerren. Eu gosto de aprender, gosto da companhia das outras raparigas, em especial de Ferada.

- E não tens de ter os guardas sempre à tua volta - comentou Ferada secamente.

- É verdade - concordou Ana. - Há ocasiões em que a proibição dos homens entrarem neste santuário, excepto os druidas, é bem-vinda.

- Ana? - perguntou Tuala.

- Hmm?

- E se o teu primo... se ele...? - Era terrível dizer aquilo. A questão parecia, de facto, inimaginável.

- Essa pergunta é difícil - respondeu Ferada. Ana juntara as mãos no colo e os seus olhos cinzentos tinham ficado sombrios.

se o primo dela decidir deixar de ser obediente? E se ele decidir atacar Drust, o Touro, ou aliar-se a um inimigo como os Celtas, por exemplo? Não gostaria nada de arriscar uma resposta, salvo para dizer que, se eu fosse refém, sentir-me-ia muito menos confiante do que Ana.

Penso que não me matariam - disse Ana em voz baixa. - Porém, suponho que é possível. Se não estivessem preparados para cumprir essa ameaça, não valia a pena manterem-me aqui em Fortriu. É difícil acreditar que é uma possibilidade, a rainha Rhian sempre foi muito boa para mim.

- Tu estás a salvo enquanto o teu primo acreditar que as coisas correm bem - observou Ferada. - Ainda bem que ele não te visita. Se ele visse como és tratada em Caer Pridne, perceberia imediatamente.

- Eu aceito a minha condição - disse Ana. - A nossa linhagem dá-nos importância, não só como éguas parideiras, como a minha amiga diz, mas também como peças no jogo estratégico da política. Há muito tempo que sei disso. É provável que o meu tempo como refém esteja a chegar ao fim. Já estou em idade de casar e é provável que o rei Drust me queira ligar a um chefe tribal perigoso, ou a um reizito qualquer que ele queira aplacar. Depois, suponho que há-de arranjar novos reféns.

- Como é possível sentires-te tão calma? - exclamou Ferada. Por vezes, estas coisas irritam-me tanto que sinto vontade de gritar, mas uma dama não pode fazer uma coisa dessas. Temos tanto para dar, podíamos fazer tanta coisa! Porém, como somos quem somos, não podemos escolher.

- Shhh! - sussurrou Ana. - Que Irethra não oiça o que estás a dizer. Ela acha que isso é um insulto aos deuses. Temos de aceitar a vida como ela é, Ferada. Temos de percorrer o nosso caminho.

- Hmm - disse Ferada com um sorriso trocista. - Voltando à tua pergunta, Tuala, nós vamos regressar à corte para mais uma série de apresentações a homens que as nossas famílias acham convenientes. Não há muito por onde escolher. Têm de ser de elevado nascimento, ricos, têm que ter um bom carácter e ser praticantes da antiga fé de Fortriu. Por outras palavras, têm que ser pais dignos de um futuro monarca. Por mim, ainda não encontrei nenhum com categoria suficiente para me tocar, quanto mais para me fazer o que um marido faz com a mulher. A maioria olha para mim de alto a baixo, como se estivessem a olhar para um pedaço de carne. Não conseguem evitá-lo.

- Não é bem assim - contrariou-a Ana, franzindo o sobrolho.

Entre eles há homens de valor.

- De valor! - Ferada deu uma risada trocista. ?- Quem precisa de homens de valor? Não interessa. Sei muito bem que não podemos escolher. Se pudéssemos, diria aos meus pais que não quero ninguém. Faria como Fola.

- Pode ser uma vida bastante solitária - arriscou Tuala. Ferada olhou para ela com curiosidade.

- É estranho dizeres isso. Não gostas de estar sozinha? Passas a vida a fugir para a torre. Talvez Fola seja como tu. Talvez ela goste de estar sozinha com os seus pensamentos.

- As mulheres sábias têm a companhia dos deuses - retorquiu Ana. - Isso quer dizer que nunca estão sós.

- Por vezes, falamos aos deuses e eles não nos respondem disse Tuala. - Quando isso acontece, a sensação de solidão é muito grande. - A jovem pensou em Bridei, e no seu olhar sombrio e rosto pálido, tenso. Nem os deuses nem os homens lhe poderiam dar as respostas que ele queria.

- O que é, Tuala? - A voz de Ana soava preocupada. - O que é que se passa?

- Nada. - Tinha de guardar os pensamentos para si mesma com maior cuidado. - Quando é que te casas? Broichan queria que eu me casasse. Só vim para aqui porque...

- Ele já tinha um pretendente para ti? - perguntou Ferada. Quem? Diz-nos!

- Um homem chamado Garvan. Um escultor. Eu não me quis casar com ele. Não me quero casar com ninguém.

- Nesse caso, vieste para o sítio certo - observou Ferada.

- Garvan - espantou-se Ana. - Estás a falar no famoso Garvan, o que esculpiu as pedras de Caer Pridne? Ele deve ser muito velho.

- Não sei se é famoso, pode ser que seja. Broichan falou em encomendas para o rei. Pareceu-me velho. Talvez trinta.

- Nós nunca nos poderíamos casar com um escultor - disse Ferada -, por mais famoso que fosse. Só nos podemos casar com chefes tribais ou com os filhos deles; por vezes, com reis de outros países. As mulheres de sangue real nunca ficam em casa. Suponho que é uma espécie de escape. Olha para Bridei.

  1. que é que tem Bridei? - Tuala tentou parecer desprendida.

Foi o que aconteceu com a mãe dele, casou com o rei de Gwynedd, foi para o país dele e teve aí os filhos. Em Gwynedd, Bridei tem irmãos mais velhos, é claro. Certamente que um deles há-de suceder ao pai. Bridei é um pouco como Ana: foi separado da família por razões de Estado. É claro que pode casar comigo, ou com Ana, tem as qualificações necessárias. O único inconveniente é ser pretendente ao trono. É preferível o rei casar com alguém que não tenha sangue real, evitando assim que os seus filhos lutem uns contra os outros no futuro. Casar com uma mulher do mesmo sangue, mesmo uma prima afastada, concentraria demasiado poder numa só família. A linhagem ficaria diminuída.

- No entanto, as hipóteses são de que Bridei nem sequer avance com o seu nome chegada a ocasião. Há outros mais velhos, mais experientes. Um ou dois até são muito respeitados. O teu irmão adoptivo nunca será candidato e por isso mesmo, não pode ser considerado como um provável marido para nós. Sou forçada a admitir que a perspectiva até é boa. A vida com ele seria demasiado solene, mas pelo menos não é um imbecil, como muitos. Broichan educou-o no amor aos deuses e a ter maneiras impecáveis.

- Acha-lo demasiado solene? - perguntou Ana. - Alguns homens não riem com facilidade, o que não é mau. É melhor do que um homem que ri demasiado, por tudo e por nada.

- Ana gosta dele - murmurou Ferada a Tuala, erguendo as sobrancelhas. - Ela viu o teu irmão à distância, há dois anos, quando Talorgen levou os rapazes à corte. Disse que ele era bonito.

- Não disse nada - disse Ana, voltando a corar. - Nem sequer o conheço.

Tuala sentiu uma necessidade urgente de mudar de assunto.

- Os teus irmãos também são pretendentes ao trono - ripostou a jovem, virada para Ferada.

- Bem, sim - respondeu Ferada com um sorriso. - Tecnicamente, como filhos da minha mãe. Porém, Uric e Bedo ainda têm muito que crescer, e Gartnait é um inapto. Gosto muito do meu irmão mais velho, mas ele não tem as qualidades necessárias. Falta-lhe o essencial para ser um verdadeiro líder. Há uma coisa que sou obrigada a reconhecer. O merecedor e bastante aborrecido Bridei dá mostras cada vez maiores de ser um bom líder à medida que vai ficando mais velho. O meu pai nunca pensaria em considerar Gartnait como preten dente ao trono. De facto, dizem que Fortriu vai ter que tomar uma decisão dentro de dois Verões, no máximo. Drust está doente. Ouvi Irethra dizê-lo. Pouca sorte para os meus irmãos. Quando chegarem à idade adulta, Fortriu já terá um novo rei, jovem.

- Talvez não tão novo quanto isso - disse Ana. - Não te esqueças de que cada uma das sete casas dos Priteni avança com um pretendente, e é possível que alguns sejam de meia-idade. Alguns dos meus parentes poderiam apresentar-se porque são do mesmo sangue, mas duvido que o façam se a eleição for dentro de pouco tempo. A minha situação impede-o.

- É verdade - admitiu Ferada. - Os chefes tribais que irão fazer a selecção, escolherão um que já tenha experiência como líder. Alguém como o primo direito de Drust, Carnach, que é novo mas muito respeitado e poderoso no seu território. E leal. Creio que podemos pôr de lado Bridei e os meus irmãos. Se os seus nomes forem anunciados, as pessoas rir-se-ão. A maior ameaça vem de Circinn. De Drust, o Javali. Vai ser a sua oportunidade para unir as duas coroas, juntando assim os dois reinos sob a bandeira da fé cristã.

- Que A Que Brilha nos proteja desse horror - murmurou Ana.

- Achas que Drust, o Javali, é capaz de reunir o número suficiente de apoiantes? - perguntou Tuala, chocada. - Os chefes tribais que o apoiam serão suficientes?

- Será à justa - replicou Ferada. - Vêm aí tempos interessantes, perigosos. Se colocares perante um grupo de homens uma tal perspectiva de poder, tudo pode acontecer. - A jovem virou-se para Tuala.

- Está um belo dia para andar a cavalo. Queres vir connosco, Tuala? Tenho a certeza que somos capazes de fazer com que passes despercebida. - A jovem levantou-se com um brilho malicioso nos olhos.

- Não, obrigada - respondeu Tuala. - Tenho de... preciso de...

- Tudo bem, Tuala - disse amavelmente Ana. - Não queres quebrar as regras. Por vezes, Ferada torna-se um pouco rebelde, em especial quando fica fechada muito tempo, como um gato enfiado numa jaula. Espero que tenhas ficado satisfeita com as respostas que te demos.

- Sim, eu...

- Acontece que - prosseguiu Ferada - de certo modo, a coisa é tão má para os rapazes como para as raparigas. Os rapazes que podem ser pretendentes ao trono, também têm que cumprir determinadas regras. Também lhes escolhem as mulheres como escolhem os nossos maridos, não por nascimento, antes porque uma esposa real tem de ser perfeita, tem de estar para além de quaisquer censuras. Imagina essa pressão em cima de ti. Serias apenas a sombra do teu marido, o teu único papel seria reflectir a sua glória como representante humano da Guardiã das Chamas e símbolo das aspirações de portriu. Tudo o que fizesses seria examinado de perto. Não terias vida própria.

- Certamente que se amasses esse marido - alvitrou Ana - não teria importância, pois não?

- Ouçam o que ela diz - troçou Ferada - com a sua conversa de amor! Não percebo como consegues sonhar com isso quando tudo indica o contrário. Vamos embora, estamos atrasadas. Diverte-te com o que vais fazer, Tuala. - Com um trejeito dos lábios, Ferada girou nos calcanhares e Ana seguiu-a.

Tuala encaixou-se nos ramos seguros e fortes da árvore, aproximando-se assim do coração da Terra. A copa espalhava-se, verde e fresca sob o calor do Sol. Ana dissera que a Guardiã das Chamas sorria a Fortriu. Podia muito bem ser. Tinham a Pedra Mágica e o país teria, em breve, um novo rei. Apesar das palavras de Ferada, Tuala estava optimista.

Não procuraria visões na água. Ela sabia que o que surgisse na água só serviria para a atormentar. Desta vez, não seria a imagem da Rapariga Raposa, Ferada, em adulta com um belo vestido sorrindo para o marido, ao mesmo tempo que este educadamente inclinava a cabeça na sua direcção para ouvir o que ela lhe dizia. Não, desta vez seria a imagem de Ana. Tuala sentiu o coração gelar. Era indiscutível que o futuro rei de um país devia ter uma noiva a condizer com a sua pessoa. Não poderia assumir responsabilidades tão terríveis se não tivesse uma esposa capaz de o apoiar totalmente. Bridei não seria aceite pelos seus aliados e possíveis adversários, se não fizesse um casamento digno do seu povo e dos deuses. Tuala estava consciente de tal facto. A jovem vira Ferada como uma hipótese possível, mas pusera-a de parte porque a Rapariga Raposa nunca seria escolhida. A Que Brilha interviria antes que Bridei se aliasse a uma rapariga que o achava aborrecido, que nunca o amaria como ele merecia ser amado. Porém com Ana a questão era outra. Ana era jovem, bela, inteligente, de sangue real, doce e boa. Doía-lhe pensar nela. Ana gostava de Bridei e ele sem dúvida, gostaria dela. Como poderia não gostar? A jovem era absolutamente perfeita, a escolha ideal. Era fácil imaginar Bridei a confiar em Ana, tal como fizera consigo, contando-lhe os seus problemas os seus dilemas, partilhando com ela a sua luta para decidir o que fazer. Eram perfeitos um para o outro. Quase como que um desígnio dos deuses.

Não choraria. Engoliria as lágrimas. Se aquilo ajudasse Bridei, se fosse para o bem do futuro de Fortriu, então seria ideal. E se o seu coração ficasse despedaçado, seria um pequeno preço a pagar por um bem maior.

Tuala ergueu os joelhos e envolveu-os com os braços. Sentia um frio interior, muito pouco consentâneo com o Sol brilhante daquele dia. Provavelmente, nunca mais voltaria a ver Bridei. Nunca mais. Provavelmente, passaria o resto da vida no interior das muralhas de Banmerren ou noutra casa de Mulheres Sábias de Fortriu. Se amava mesmo A Que Brilha, como sempre pensara que amava, seria uma vida abençoada, uma vida de serviço dedicado, de pureza e força. Podia ensinar. Aliás, a oportunidade já se lhe oferecera.

Apesar de se esforçar, as lágrimas começaram a cair-lhe pelo rosto. Tuala sentiu umas terríveis saudades de casa, dos bosques, dos carvalhos, da lareira, dos rostos enrugados e bondosos de Erip e Wid, animando-a. Da amizade de Brenna, dos resmungos de Ferat e da força autêntica de Donal. Das afirmações de Mara, do cheiro a roupa lavada e dos bolos de aveia acabados de sair do forno. A jovem ansiava por aquele mundo. Queria cavalgar Blase através da floresta, com Bridei a seu lado montando Snonfin e com o dia todo pela frente, cheio de coisas maravilhosas para descobrir. No entanto, Tuala sabia que aquilo não bastava, já não queria que Bridei a amasse como a uma irmã, queria... queria o impossível.

Não podes voltar atrás, dizia uma voz na sua mente, a mesma que lhe murmurara a história de Nechtan e de Ela ao ouvido. Não havia ninguém em cima da árvore, apenas ela e um pássaro ou dois. Porém, a rapariga teia de aranha e o Homem-Folha continuavam com ela, uma parte de si própria que não conseguia ignorar, nem sequer ali, em Banmerren, tão longe de casa. Não podes voltar atrás.

Não àquele mundo. Aquela era a voz da rapariga e Tuala quase conseguiu ver a silhueta graciosa, imaterial, por entre os ramos, com os anéis de prata e o vestido leve, a pele translúcida e os cabelos brilhantes. Mas o nosso mundo está à tua espera. O teu mundo, Tuala, o mundo a que pertences. Tens de vir para casa, para junto dos teus. Não tens lugar nesse mundo. Nenhuma corte de reis, ou santuário te pode guardar durante muito tempo. Tal como os animais da floresta, não podes estar fechada. Mais tarde ou mais cedo terás que fugir.

Tantas lágrimas, disse o Homem-Folha e Tuala sentiu uma carícia, como se um pequeno ramo se estendesse para lhe limpar o rosto. Era, ao mesmo tempo, doce e perturbador. Connosco, não terás motivo para chorar, pequena. Estarás rodeada de amor. As corujas, os texugos, as lontras e os veados serão teus amigos. Beberás da madressilva e dançarás à luz da Lua. Viverás os teus dias sem medo ou tristeza, e só terás bons sonhos. Deixa isso tudo para trás, não foste feita para esse mundo. Vem para casa. Volta para a floresta. Nós mostramos-te o caminho...

Estavam a tentá-la com tanta ternura... Porém, tinham-na abandonado em bebé sem pensar duas vezes. Estariam a obedecer à Que Brilha? Ou não passara de um jogo cruel? Apesar das suas dúvidas, havia tanta ternura no tom de voz do Homem-Folha que, se estivesse naquele momento no Vale dos Que Caíram, Tuala teria estendido uma mão, deixando que ele a levasse sob as árvores para a terra de que falava, para o reino onde a sua verdadeira família a esperava, e onde todas as suas perguntas teriam uma resposta. Porém, não estava no Vale dos Que Caíram. Estava em Banmerren empoleirada no alto de um carvalho e aquelas vozes não eram reais, saíam de dentro de si mesma, uma manifestação que pouco tinha a ver com Ana, com Bridei ou com o facto de no dia seguinte ter uma aula privada com Fola, para a qual se deveria estar a preparar. Esfregando as faces com as mãos, Tuala passou da árvore para a muralha, trepou para o telhado, equilibrando-se nas pedras estreitas e regressou ao quarto frio. Ajoelhou-se no chão de pedra e fechou os olhos. Respirando lentamente, Tuala dirigiu os pensamentos para A Que Brilha poderosa, compassiva e sábia. Se não conseguisse encontrar a verdade na oração, então estaria verdadeiramente sozinha.

 

                                     CAPITULO ONZE

Doía-lhe tanto a cabeça que parecia que ia rebentar. Continuou a andar, cada passo uma martelada no cérebro. As árvores, as rochas e as encostas flutuavam à sua volta, as suas formas distorcidas por uma névoa de dor. Aquilo não era nada. Tinha de continuar porque ao anoitecer chegariam a casa, a Pitnochie. Poderia, por fim, descansar, e partilhar a angústia, o sentimento de culpa e os erros, e talvez a dor de cabeça e o frio que sentia no coração abrandassem um pouco.

Donal estava morto. Não morrera como desejara, em combate, mas num acto cruel, assassinado a sangue-frio. Donal bebera pela taça de outro homem e morrera nos braços de Bridei, o seu corpo sacudido por convulsões. Bridei nunca se considerara capaz de odiar, mas odiava com uma fúria cega quem fizera aquilo. Se descobrisse as suas identidades, puni-los-ia da mesma maneira que eles tinham punido o seu amigo leal, estrangulá-los-ia com as próprias mãos e ficaria a vê-los contorcerem-se até à morte como Donal arquejara, esbracejara, lutara com a morte como guerreiro que era. Donal era um homem bom, um homem corajoso, honesto. O alvo não era Donal. O alvo era Bridei.

Acontecera no dia em que Gartnait e ele tinham recebido as tatuagens de guerreiros, na Fonte do Corvo, no regresso a casa. Havia um homem em casa de Talorgen que fazia aquelas incisões na pele das faces e do queixo com agulhas finas e pigmentos coloridos; doeu, mas foi uma dor boa, e Bridei e Gartnait tinham ficado sentados juntos enquanto as tatuagens lhes eram feitas nos rostos, símbolos da sua participação numa grande batalha pelo seu rei. Depois, falaram tranquilamente dos tempos passados, renovando a amizade que quase se perdera na aldeia escurecida pelo fogo de Galany's Reach. Gartnait apresentara de novo a sua explicação, com um pedido de desculpas. Bridei aceitara-as, e mantivera as suas dúvidas para si mesmo.

Quando terminaram de fazer as tatuagens, houve um festim. Apesar da senhora da Fonte do Corvo estar ausente, o pessoal de Talorgen assou grandes pedaços de carne, arranjou-se cerveja e até se confeccionaram alguns doces. Depois da marcha pelo Grande Vale até ao Lago da Donzela, os homens estavam esfomeados e saborearam deliciados a refeição. Foirel de Galany partira. Era sua responsabilidade levar a Pedra Mágica até um determinado local onde seria de novo enterrada, no território de Fortriu, longe do alcance das garras dos Celtas. A pedra estava no Lago do rei. Os homens de Foirel tinham de arranjar um método de a colocar em terra, um desafio que poria à prova a sua força e coragem. Não fora muito difícil fazer rolar aquele penedo por um monte abaixo, um desafio que os faria exercitar a sua força e engenho. Porém, as encostas íngremes e estreitas do Vale exigiam algo mais do que simples engenho. Falava-se em pedir a ajuda de alguns druidas.

No festim, a cerveja correu livremente. Os brindes, as histórias, as risadas e as anedotas sucediam-se. Os jarros passavam de mão em mão, as taças eram deixadas aqui e ali em cima da mesa, entornavam-se, esvaziavam-se, eram trocadas e voltavam a encher-se. Ninguém soube quem encheu a taça de Bridei. Quem o fizera teve pouca sorte. De facto, Bridei bebera muito pouco durante toda a noite e só comera alguma coisa por cortesia. As tatuagens doíam-lhe, a cabeça doía-lhe, a batalha e o resultado desta não lhe saíam da cabeça. O jovem dormira pouco nas noites em que acampara sob as árvores. A taça de Donal estava vazia. Em vez de ir buscar um jarro para lha voltar a encher, Bridei dera-lhe a sua, consciente de que não beberia mais.

- Toma.

Então... então... Bridei fechou os olhos, mas a imagem continuou presente em toda a sua realidade brutal. O jovem lembrava-se de todos Os pormenores, de todos os momentos... Não demorara muito tempo. Fosse o que fosse, era poderoso. Todos tentaram, desesperadamente,

fazer com que Donal vomitasse o veneno, tentaram fazer com que ele andasse, mas os espasmos foram aumentando. As suas costas arquearam-se, os membros agitando-se violentamente e os olhos quase lhe saltavam das órbitas. Donal emitia ruídos horríveis, sons animalescos.

não demorara muito tempo. A um momento terrível seguira-se outro e depois mais outro, cem, mil momentos de horror até que, por fim, Donal desfalecera nos braços de Bridei com o sangue e o vomitado sujando-lhe a roupa, o chão, os bancos e os tapetes. Donal não voltara a falar depois da garra lhe apertar a garganta, dissera apenas num murmúrio de angústia: "Bridei!" e morrera sem se despedir.

Pitnochie. Pensar em Pitnochie. Pensar em casa. Aqueles pensamentos, pelo menos, continuavam fortes e certos: os velhos carvalhos, os vidoeiros sussurrantes, a herdade com os seus campos murados e a pequena cabana de Fidich. A casa, baixa e dissimulada entre as árvores. Broichan, severo e sábio, capaz de encontrar ensinamentos em qualquer história, por mais lúgubre e cruel que fosse. Erip e Wid, sempre risonhos e sábios depois de uma longa vida. E Tuala... deuses, como ansiava que Tuala lhe segurasse a mão, o escutasse e lhe dissesse que tudo voltaria a ficar bem...

Chegaram a casa de Broichan antes do entardecer, subindo a colina sob os carvalhos, um destacamento mais pequeno dos homens que tinham travado a batalha de Galany's Reach. A maior parte regressara a casa, mas Talorgen e o filho dirigiram-se à corte com Ged de Abertornie e um contingente razoável de homens de armas que incluíam os dois guarda-costas de Aniel, Breth e Garth. Ao lado deste seguiam os homens da casa de Broichan que também tinham entrado em combate: Elpin, Enfret e Cinioch. Urguist não regressara. Tinham-no deixado a dormir nas margens do Lago do rei, coberto por um manto de terra.

Por ordem de Talorgen, Breth e Garth tinham permanecido sob as ordens de Bridei, escoltando-o tal como Donal fizera, embora Bridei se tivesse recusado a deixá-los provar a sua comida. Parecia-lhe algo de ultrajante um homem morrer por sua causa, como se ele tivesse mais valor do que qualquer outro homem. Bridei vira um homem morrer por si, não queria ver mais nenhum.

Foram todos bem recebidos, mas a casa parecia muito calma e perceberam de imediato que Broichan não estava. Para surpresa e desgosto de Bridei, tinha regressado a Caer Pridne para exercer o seu dever, deixando instruções para que Bridei seguisse para a corte com Talorgen porque chegara a ocasião para conhecer, por fim, o rei Drust, o Touro. Ferat sorriu abertamente, admirando as tatuagens de Bridei.

- Ora vejam. Sim senhor, grande homem!

Mara foi menos loquaz, mas não evitou um sorriso ao vê-lo em casa são e salvo.

De seguida, e rapidamente, os viajantes deram as más notícias antes que lhes fizessem demasiadas perguntas. A batalha fora ganha, mas tinham existido perdas. Urguist caíra corajosamente e um outro velho amigo não regressaria a casa. Foi o próprio Bridei a dar a última notícia, consciente da sua importância. Donal fizera parte, tal como Bridei, daquela casa. A sua morte seria muito sentida.

- Pobre homem - murmurou Mara. - Foi uma morte triste para um guerreiro. Tempos terríveis, estes. Ainda bem que os dois velhos nos deixaram. Isto tê-los-ia afectado muito.

- Erip e Wid? Não estão cá? Esperava vê-los... - Algo nos olhos de Mara deteve Bridei.

- Broichan mandou um mensageiro - disse Mara olhando para Talorgen. - A vós, senhor. Há muito tempo.

- Não recebi nenhum mensageiro - replicou Talorgen. - Que notícias é que ele levava?

- Mais uma morte. O velho, Erip, morreu no Inverno. Um frio terrível. O peito dele já não estava bom. Enterrámo-lo no monte. Wid partiu com os druidas.

- Ides, certamente, querer que os homens se instalem - disse Ferat. - Ficai uma noite ou duas, dai descanso aos cavalos. Deixai-me mostrar-vos...

- Onde está Tuala? - perguntou Bridei. Uma sensação inquietante abatia-se sobre ele ao ouvir a notícia de cada ausência, de cada perda. Era como se tivesse outra vez quatro anos e lhe tivessem tirado tudo.

Seguiu-se um curto silêncio.

- Foi-se embora - disse Mara sem entoação. - Há muito tempo. Bridei olhou para ela e a governanta estremeceu visivelmente.

- Está naquele estabelecimento no norte, a escola para mulheres sábias. Banmerren - prosseguiu Mara. - Tuala teve a sorte de poder ser sacerdotisa da Que Brilha, uma estupenda oportunidade para uma pessoa como ela. Foi para lá com a vossa família, meu senhor - disse ela, virando-se para Talorgen. - Veio mesmo a calhar. Broichan ficou aliviado.

Bridei preferiu ficar calado. Na verdade, o jovem nem sequer sabia Se seria capaz de dizer fosse o que fosse. O coração parecia ter-se esquecido de bater.

- Obrigado pela hospitalidade - agradeceu Talorgen perante o silêncio estranho que se seguiu. - Na realidade, estamos um pouco cansados. Os homens agradecem a comida que lhes puderdes dar e um recanto quente para dormirem. Não vos incomodaremos durante muito tempo. Ged e eu temos de estar em Caer Pridne o mais cedo possível.

- Não dais trabalho algum - disse Ferat. - Dai-nos algum tempo e servir-vos-emos um jantar digno de reis. - Vendo alguns rostos familiares, o cozinheiro gritou: - Enfret! Cinioch! Bem-vindos a casa! Elpin, meu rapaz! Que notícias me trazes?

Sozinho no seu antigo quarto, Bridei tentou controlar-se. Era um homem: tinha dezoito anos, era um verdadeiro guerreiro e era filho adoptivo do druida do rei. Já não era a criança que ficava acordada de noite a olhar para a Lua, esperando que lhe contassem uma história para afastar as sombras. Já não era o rapazinho que se escondera nas rochas enquanto a espada de um assassino procurara selvaticamente o seu corpo. Era Bridei, filho de Maelchon. Trouxera a Pedra Mágica de Galany's Reach e conquistara a amizade de guerreiros e chefes tribais. Foirel de Galany jurara-lhe lealdade até à morte, Ged de Abertornie dera-lhe de presente uma capa aos quadrados e às riscas verdes, laranja e encarnado. Morleo convidara-o a passar um Verão em Longwater, onde as trutas eram tão grandes como pequenas focas. Era um homem.

Era um homem, doía-lhe a cabeça e tinha os olhos cheios de lágrimas. Era um homem, e o seu melhor amigo morrera perante os seus olhos porque lhe oferecera uma bebida. Bridei deu um murro na parede junto da pequena janela quadrada, onde ainda se encontravam as três pedras brancas como oferenda aos deuses. Pousou a testa na mão e fechou os olhos. Por que não conseguia chorar, nem sequer ali naquele quarto com a porta fechada, onde ninguém o podia ver? Por que não conseguia falar com Gartnait, ou com Talorgen? Por que precisava dela ao ponto do corpo lhe doer, como se fosse um vazio a pedir para ser preenchido? Que se passava com ele? E por que razão ela se fora embora? Como lhe pudera fazer aquilo? Tuala amava A Que Brilha e A Que Brilha sempre lhe sorrira. Percebera-o no momento em que a deusa lhe mostrara o local onde ela estava naquela noite gelada. A lógica dizia que era razoável, desejável, até. O seu coração gritava não.

As pessoas mudavam de vida, ele sabia-o muito bem. Partiam e nunca mais regressavam. As coisas eram assim, a vida era assim. Mas Tuala não. Tuala não podia partir. Não podia abandonar Pitnochie. Não o podia deixar sozinho. Não estava certo. Se ela não estivesse a seu lado, como poderia ser o que queriam que ele fosse, o que os deuses esperavam que ele fosse?

Bridei encostou a testa à pedra fria, junto à janela, mas não lhe foi de grande ajuda. A cabeça latejava-lhe, parecia um tambor. Era como as recordações de guerra. Uma mulher tratada como um objecto de vingança. Um jovem guerreiro enroscado sobre si mesmo como uma criança, tremendo de choque. Uma criança aterrorizada. Corpos a arder, gritos terríveis, lamentos desesperados. Donal... e Erip, o seu velho amigo, o sábio sorridente, malicioso, careca... Pela espada da Guardiã das Chamas, era certo que a sua cabeça se abriria ao meio, se a dor se prolongasse por muito mais tempo. Por que não conseguia chorar? Por que razão as lágrimas não caíam?

No peitoril da janela estava um cabelo, preso por baixo de uma das pequenas pedras brancas. A brisa fê-lo esvoaçar. Bridei pegou nele e o fio finíssimo enroscou-se-lhe em redor da mão como se tivesse vida própria. Era dela, de Tuala. Ela estivera ali antes de partir. Estivera ali de vigia, talvez despedindo-se. Teria desempenhado Broichan algum papel naquela história? Teria sido ele que a mandara embora, daquela vez para sempre? Bridei levou os dedos ao talismã que continuava a usar no pulso, uma fita tão desbotada e fina que a qualquer momento se podia partir. Por que permitiste que isto acontecesse?, perguntou ele À Que Brilha apesar do seu rosto não ser visível para lá da pequena janela. Estava a anoitecer e nas longas noites de Verão a sua imagem era apenas uma sombra pálida no céu a escurecer. Por que a levaste para longe de mim? A imagem do corpo retorcido e das feições deformadas de Donal regressou-lhe à memória. Donal morrera por ele. Bridei deixou-se cair na cama e fechou os olhos. Tinha de continuar, era preciso. Fora treinado para resistir, para lutar, para ser forte. Iria a Caer Pridne e Broichan responderia às suas perguntas: sobre Tuala e sobre si mesmo.

- Ainda não lhe disseste? - perguntou Aniel, fixando Broichan, com os seus olhos cinzentos e as mãos elegantes pousadas em cima da mesa. Estavam reunidos numa divisão em Caer Pridne, o salão de uma das casas menos importantes no interior das muralhas da fortaleza de Drust, de frente para o mar que ia de Fortriu às Ilhas Pequenas e mais além. O encontro seria breve. Aquele conselho mantinha-se secreto havia muitos anos porque raramente acontecia e efectuava-se sempre em locais diferentes. Os assuntos eram secretos e perigosos, estavam a tornar-se cada vez mais insistentes e eles tinham decidido encontrar-se assim que Talorgen regressasse à corte. O chefe tribal ainda tinha calçadas as botas de montar. Drust, o Touro, estava doente. Dizia-se que o Portal seguinte seria o último do rei. Tinham menos de um ano talvez apenas uma estação, para colocar as peças nos seus lugares e fazer a última jogada vital. Houvera uma tentativa de assassinato. Não fora a primeira mas fora, certamente, a mais audaz.

- Quem me dera que Bridei pudesse tomar parte nesta tentativa sem o peso de tantas expectativas sobre os ombros. - O tom de Broichan era calmo, como sempre, mas havia cansaço nos seus olhos. Chegou a hora da verdade, concordo. Porém, ele acaba de chegar. Deve estar cansado depois desta viagem desde Pitnochie. Falo com ele amanhã. Hoje ainda deve estar a chorar a perda do amigo. Imagino que se sente responsável, por mais ilógico que pareça. Ele sabe, claro. Bridei é muito inteligente, demasiado astuto para permitir que a verdade óbvia lhe escape por mais tempo, por mais cuidados que eu e os tutores dele tenhamos tido para não sermos específicos em relação ao seu parentesco e ao seu significado.

- Devias ter discutido isto com ele há muito tempo - disse Talorgen. - Ou permitido que eu o fizesse. Bridei podia ter começado a preparar-se para o que parece agora iminente. Não temos muito tempo. O rapaz tem de ser apresentado a Drust.

- Amanhã à noite, de facto - replicou Aniel - Um jantar comemorativo. O rei quer felicitar-te, meu amigo, e aos guerreiros que te acompanharam. Ele já ouviu histórias sobre o jovem cujo engenho permitiu arrancar a Pedra Mágica às mãos do inimigo. Drust está ansioso por conhecer o rapaz. A história devolveu-lhe alguma luz aos olhos.

- Nesse caso, Broichan tem de falar com Bridei imediatamente e sem demora. - Talorgen bateu com os dedos na mesa e franziu o sobrolho. - O rei sabe quais são as origens do rapaz; sabe que ele é um pretendente potencial. Precisamos que Bridei faça uso de toda a sua inteligência e que mantenha os olhos bem abertos. Se o assassínio pôde ser cometido na minha própria mesa, na Fonte do Corvo, também nos pode ter seguido até à segurança de Caer Pridne. Breth e Garth têm que estar vigilantes.

Mas não às claras. - Fola mantivera-se calada até ali. – Creio que precisamos de mais qualquer coisa. Não precisamos só de quem guarde o nosso candidato de uma faca nas costas antes de termos hipótese de o apresentar, precisamos de alguém que evite a ameaça à nascença. Pelas minhas contas, são sete os pretendentes à coroa. Aposto que só um deles é capaz de cometer um assassínio. Talorgen falhou completamente nos seus esforços para descobrir a identidade do executante, quanto mais do mandante. O que impede esse homem de tentar dia e noite até à Primavera, ou enquanto Drust for vivo? Bridei precisa de guarda-costas, ninguém o pode negar, mas também precisa de protecção especial, de um investigador com talentos especiais, um homem sem escrúpulos, que seja capaz de descobrir a verdade e que se sirva da sua própria faca sem hesitação, se for necessário.

Aniel abriu os lábios num sorriso gelado.

- És mal empregue em Banmerren, Fola - disse ele.

- Eu conheço o homem certo para isso - retorquiu Broichan. Drust terá de o libertar para esse propósito. Porém, como vou pedir esse favor ao rei? Terei de lhe dizer a verdade.

Aniel ergueu as sobrancelhas.

- Não dizes sempre a verdade ao rei? - perguntou o conselheiro, trocista.

Num dos cantos, Uist deu uma risada explosiva. Os outros olharam para ele espantados. Quase se tinham esquecido da presença do velho druida.

- Existe sempre uma espécie particular de verdade para os reis disse Uist, olhando para eles das sombras com os seus olhos brilhantes, inconstantes. - A que os seus conselheiros querem que eles saibam. A meu ver, não precisais de lhe dizer nada. Um olhar apenas e

rust reconhecerá o rapaz pelo seu porte, pelo seu olhar, pela sua maneira de falar. O mesmo que os outros homens vêem. Este jovem é um rei em potência, a única escolha possível para Fortriu. Drust dar-vos-átantos homens perigosos e armados quantos quiserdes. - Só precisamos de um - disse Broichan. - Um especial.

O assunto tem de ser tratado com cuidado - replicou Talorgen. Sabes muito bem o que aconteceu quando os dois se encontraram.

- São ambos homens, capazes de resolver os seus problemas. Quamto a Drust e ao banquete a que fizeste menção, penso que devemos dar uma palavra ao rei. Não queremos que se fale dele e que haja apostas quanto às suas hipóteses. Por que pensam que o mantive longe de tudo duramte todo este tempo? É uma vantagem. A falta de diversões tolas permitiu que ele se tornasse forte no amor aos deuses, puro, corajoso e resoluto.

- O mundo em que ele tem de viver é este - disse Aniel. - Um mundo de jogos de poder, de maquinações, de mentiras e meias verdades, de implicações e incertezas. Um mundo sombrio. Quando lhe deres a notícia formal, ele tem de entrar nesse reino e continuar forte.

- Será suficientemente forte - retorquiu Broichan. - Desde que foi para Pitnochie que a sua vida é orientada nesse sentido. O material é bom. Catorze anos de preparação rigorosa tornaram-no perfeito. Não nos vai deixar ficar mal.

Fola tossiu ligeiramente. Os quatro homens viraram-se como um só para onde a Mulher Sábia estava sentada, tranquila e imóvel no seu vestido cinzento e leve.

- Tens alguma reserva? - A voz de Broichan soava irritada.

- Quero só fazer um comentário. O fardo que vai recair sobre uns ombros tão jovens é muito pesado. Também tenho muita esperança em Bridei. A mim, parece-me que os deuses respiram por intermédio dele, mas lembro-vos que não nos podemos esquecer do preço a pagar na pressa de nos congratularmos a nós próprios.

- Preço a pagar? - repetiu Broichan. - Que queres dizer?

- Que talvez não seja o que ele queria se tivesse tido a hipótese de escolher. Que a vida de um rei é tudo menos fácil. A vida de um rei é um caminho solitário, como Uist nos disse uma vez. Um caminho de escolhas impossíveis, de pressões constantes. Bridei vai aceitá-la. Não tenho dúvida de que os deuses lhe murmuram ao ouvido, mas não podemos esperar que ele a aceite com alegria.

- Dá-me a tua opinião honesta, Broichan - disse Talorgen. Tu também, Aniel. Tendes estado perto do rei nestes últimos tempos. Tivestes oportunidade para avaliar a situação. Sinceramente, quanto tempo lhe resta? Toda a gente fala do Portal que irá ser realizado a mais de uma estação de distância. Se os deuses quiserem, Drust estará connosco mais uma vez por ocasião desse ritual sombrio; parecerá estranho vermos outro homem ajoelhar junto do Poço das Sombras. Diz-me com franqueza. Drust sobreviverá a outro Inverno?

Aniel olhou de relance para Broichan, Broichan devolveu-lhe o olhar. Os seus olhos escuros eram ilegíveis.

- Seria um acto de misericórdia - comentou Aniel calmamente -, se não sobrevivesse. Ouvi-lo a tentar respirar no ar gelado de Inverno é ouvir a própria dor. Se a Mãe de Tudo for misericordiosa, levá-lo-á para o seu seio por ocasião do Solstício.

- Estou a ver - disse Talorgen. - Nesse caso, temos de nos apressar, meus amigos. Quando as aves de rapina sentem uma fraqueza na sua presa, apressam-se a atacar com as garras de fora. Temos de proteger o velho rei e o novo. O manto tem de mudar de ombros, pelo menos em espírito. Temos de fazer com que a chama que ardeu durante os tempos de trevas não se apague.

- Muito poético - observou Uist -, mas algo confuso. Fola, vou contigo até Banmerren. O caminho é longo para uma mulher sozinha. Não que eu seja grande protector, mas as pessoas olham para mim e tendem a fugir rapidamente, não vá eu transformá-las em gansos ou em porcos. Assim que te devolver em segurança à tua fortaleza de mulheres, estou a pensar em ir até Circinn. Precisamos de algumas informações daqueles lados. Se o que dizes é verdade, se os deuses tencionam levar-nos Drust no espaço de uma estação ou duas, duvido que o seu homónimo do sul permita que a sucessão se efectue sem protestos. Com um pouco de sorte, um druida vagabundo, que parece de certo modo pateta, pode passar despercebido. Em devido tempo, vos darei notícias.

- Tem cuidado - avisou-o Aniel. - Pensas que o teu traje te protege, mas nas terras de Drust, o Javali, não querem saber da velha fé. Não querem saber nem a respeitam. Será melhor visitares apenas as aldeias mais isoladas. Mantém-te afastado da corte. O rei de Circinn pode tratar-te com algum civismo, mas os conselheiros dele são autênticas doninhas, impiedosos e astuciosos.

- Vamos, Fola - disse Uist, ignorando o aviso. - Um passeio à beira-mar vai fazer bem aos nossos velhos ossos. Deixemos estes homens tortuosos e gozemos a canção das ondas e das gaivotas durante algum tempo. A não ser que não queiras ser vista na companhia de um velho louco como eu?

- Não me importo - replicou Fola levantando-se. - Broichan, não me perguntaste pela tua filha adoptiva.

Broichan olhou para ela sem expressão. Era evidente que a Mulher Sábia o apanhara desprevenido.

- Estás a falar de Tuala - disse ele um momento depois.

Como é que ela está? - O seu tom de voz era desprovido de inflexão.

- Muito bem. Coopera, demonstra capacidades notáveis e aplica-se muito.

- Ainda bem - respondeu Broichan, como se a conversa o aborrecesse. Era evidente que respondera por cortesia e porque havia outras pessoas presentes.

- Também se sente profundamente infeliz, profundamente só está cheia de saudades de casa.

Seguiu-se uma pausa.

- Não é raro, suponho, nas tuas alunas recém-chegadas disse Broichan. - Estou certo que és capaz de resolver tão bem essa situação como todas as outras. Tuala teve a hipótese de fazer um bom casamento. Tolamente, não o quis aceitar. Sendo o que é, devia agradecer de joelhos a tua bondade.

- Casamento - murmurou Fola, abstracta. - Devia ter... o quê?... doze, treze anos por ocasião da proposta?

A sala foi percorrida por uma corrente de ar. Aniel e Talorgen pegaram nas respectivas capas e prepararam-se para partir, pretendendo assim dar a entender que aquilo não lhes dizia respeito. Uist escutava, impassível, com os olhos brilhantes tão curiosos como os de um corvo.

- Idade suficiente - disse Broichan. - As raparigas casam muitas vezes com essa idade, não casam? Por que estamos a falar disso, Fola? Temos um acordo. A felicidade da rapariga, ou a falta dela, não faz parte dele. Esse assunto não é importante. É irrelevante. Além disso, tenho de ir. Se fico aqui mais tempo, a minha ausência torna-se notada. - O druida passou pela Mulher Sábia com o manto escuro a esvoaçar, abriu a porta de carvalho e desapareceu.

- Hmm - murmurou Aniel - Tens uma arte que mais ninguém tem em Fortriu, Fola. Só na tua presença é que este homem perde o controlo. Quem é essa rapariga? Broichan nunca mencionou uma filha adoptiva. O assunto tem alguma importância, ou disseste aquilo unicamente para o vexar?

- Ouviste o que ele disse. O plano é dele, na sua mente a rapariga não tem qualquer importância. Estás pronto, Uist? Vamos, saímos pelas traseiras. Com o nosso talento, somos capazes de passar despercebidos. Adeus, Aniel, Talorgen. Estarei de volta por ocasião do Portal.

Mandai-me uma mensagem em caso de urgência. Se não, ocuparei o meu lugar com as minhas alunas sem importância.

Tenho um pressentimento - disse Aniel ao chefe tribal da casa do Corvo, enquanto passeavam ao longo do caminho de ronda de Caer pridne, parando aqui e ali para olhar para o mar como se nas suas cabeças não houvesse outra coisa senão o desejo de apanhar ar fresco. - Quero saber se também o tens.

Talorgen esperou com os olhos fixos no horizonte para lá do qual se encontravam as Ilhas Pequenas, lar dos papagaios-do-mar, das focas, e de um rei cujos parentes poderiam muito bem candidatar-se ao trono de Fortriu se tivessem coragem. Havia muitos rapazes e homens de sangue real por onde escolher: demasiados, daquela vez. Porém, os deuses só sorriam a um.

- Tem a ver com o envenenamento. Morreu um homem no teu salão. Por sorte, não foi Bridei. Pelo que disseste, as únicas pessoas presentes eram tuas, de Ged e de Morleo... homens em quem confiamos, homens por quem os respectivos chefes tribais se responsabilizam. A tua própria casa foi cuidadosamente verificada. Os meus guarda-costas. Uma mão-cheia de homens de Broichan, comprovadamente leais desde a infância de Bridei. Ninguém podia ter violado a tua segurança. Pelo menos, foi o que me disseste e eu não tenho razões para desconfiar de ti. Portanto, o ataque foi perpetrado por um ou mais dos nossos. Há um traidor nas nossas fileiras.

- Penso exactamente o mesmo.

- Como Bridei se distinguiu em combate, vamos ter mexericos e conjecturas. As pessoas sabem que ele é filho de Maelchon. Anfreda casou há muitos anos com o rei de Gwynedd e fez a sua vida longe de Fortriu, mas há-de haver quem se lembre dela. Dentro de pouco tempo toda a gente na corte perceberá que Bridei tem direito a candidatar-se ao trono.

Estás a dizer que haverá outras tentativas de assassinato?

- Penso que é muito provável - disse Talorgen -, e imagino que Broichan pensa o mesmo. O trilho que percorremos é estreito, meu amigo. Por um lado, este jovem tem de brilhar, tem de impressionar e convencer os poderosos de Caer Pridne de que é o melhor candidato. Por outro, quanto mais aparente se tornar a sua força, mais os nossos inimigos tentarão afastá-lo da competição. Temos de estar vigilantes.

- Continuas sem saber quem perpetrou o ataque que tirou a vida a Donal?

- Não faço a mínima ideia. Interroguei todos os homens que estavam presentes, verifiquei a disposição de todos cinco vezes, mandei um ervanário tentar identificar a substância usada. Nada feito. Outra coisa que sabemos acerca do nosso adversário: é esperto.

- Talorgen? - O conselheiro do rei baixara a voz até esta se transformar num sussurro.

- Hum?

- Nem quero acreditar. Tremo só de pensar na possibilidade, mas vou fazer a pergunta na mesma. Existirá no nosso círculo restrito quem não seja o que parece? Depois deste tempo todo, terei errado em alguém?

Talorgen manteve-se em silêncio durante alguns momentos.

- Seria terrível - disse ele de maxilares cerrados. - Um tal traidor, se for descoberto, bem pode rezar. Nós os cinco temos poder suficiente para vencer o mais forte dos homens. Quem se atreveria a desafiar Broichan? Não sei, meu amigo. Temos de rezar. Pedir à Guardiã das Chamas que proteja o rapaz.

- E temos de arranjar toda a ajuda possível. Conseguir os serviços do assassino do rei já é um bom começo.

- Uma criança - disse Fola, virando-se para o seu velho amigo Uist. Os dois companheiros atravessavam a praia que fazia uma curva em redor da baía entre o promontório da fortaleza de Caer Pridne e a península arborizada de Banmerren. A maré estava vazia. Uist tirara as sandálias e enterrava, satisfeito, os pés descalços na areia fina. Atrás de si, a égua branca do druida caminhava calmamente sem necessidade de cabeçada ou brida. Fola debruçou-se para apanhar uma concha. O seu exterior delicado, rosado, quebrara-se, revelando o interior em espiral. Um minúsculo e misterioso animal marinho fizera dela, em tempos, a sua casa. - Não é uma criança, é uma jovem. Deve ter uns catorze anos pelas minhas contas. Estou preocupada com ela.

- A mesma que mencionaste, que fez o nosso amigo afastar o olhar e cerrar os maxilares? Lembro-me do velho tutor, Wid, mencionar essa aluna de modo deliberadamente vago. Quem é ela?

- Suponho que já não é segredo. A rapariga é filha dos Boa Gente. Está em casa de Broichan desde a primeira infância. Ela e Bridei cresceram juntos.

Uist assobiou. O druida parou de andar e olhou para os pés a enterrerrar-se na areia, ao mesmo tempo que a água os cobria e lhe molhava a bainha do manto.

Broichan nunca falou dela.

Suponho que ele esperava que ela se fosse embora.

E não foi porque, aposto, ela está contigo em Banmerren, o que a afasta convenientemente de Pitnochie e de Caer Pridne. Suponho que o problema estava na ligação entre os dois. Não podiam ser amigos, não é assim? Porque ficou Broichan com ela, afinal? Um homem como ele devia ter percebido que era perigoso.

- Ficou com ela porque respeita os deuses - replicou Fola. Broichan põe sempre a vontade deles à frente da sua, apesar da sua vida estar totalmente virada para este plano. Também ficou com ela porque Bridei o quis. Broichan adora aquele rapaz. O amor... complica os nossos jogos, velho amigo. Insinua-se, desfaz os planos mais cuidadosos e desmoraliza o mais disciplinado dos corações. Gostava que conhecesses esta rapariga e me desses a tua opinião, não como homem, mas sim como servo da Que Brilha. Nunca pensei dizer isto, mas pergunto a mim mesma se o nosso conselho não corre perigo graças à dedicação de Broichan à causa. Não quero acreditar que o seu zelo o tenha feito afastar-se da vontade da deusa. Esta criança, esta jovem quer desesperadamente regressar a Pitnochie apesar de saber que não é bem-vinda. Há algo que a chama, algo maior do que ela própria. Sou capaz de ver o que lhe vai no coração e sinto que é algo perturbador. Ela vira para mim aqueles olhos estranhos e eu vejo A Que Brilha.

- Intrigas-me - disse Uist - e alarmas-me. Quando for a Banmerren, aproveito e tenho uma pequena conversa com ela. Como vai a outra rapariga?

A expressão de Fola endureceu.

- A preparação tem sido dura. Morna estará pronta por ocasião do Portal. Como sempre, é difícil. Difícil para todos.

- Podes utilizar alguns preparados - observou Uist, muito sério.

Suponho que os conheces. As ervas podem aprofundar-lhe o transe. As infusões purificam-lhe o corpo, preparando-a para se desligar melhor deste mundo e entrar no outro com mais facilidade.

- Conhecemos alguns. Temos tentado protelar o seu uso, até uma data mais próxima do ritual. Depende da rapariga. Algumas são fortes e conseguem-no sem ajuda, ouvem a voz dos deuses e vão em frente de boa vontade. Se alterarmos a mente ou o corpo com ervas e poções, arriscamo-nos a diminuir a sua efectividade, o que seria cruel. Até agora, ainda não vi uma única candidata que dê esse passo final sem algum receio.

- Bem, passarei algum tempo com a tua escolhida - disse Uist

- Dar-lhe-ei os conselhos que puder. Porém, a outra rapariga é que me intriga. Nunca conheci uma filha dos Boa Gente em carne e osso. Ela é muito bela, como as mulheres das histórias?

Fola sorriu.

- És demasiado velho para me fazeres essa pergunta - replicou ela. - Tuala é Tuala. Não é preciso dizer mais nada.

Era intenção de Bridei confrontar o pai adoptivo assim que chegasse a Caer Pridne e exigir explicações para um certo número de assuntos: a morte de Donal; a traição de Tuala; a decisão de esperar tanto tempo, escondendo a verdade acerca dos seus planos, até ele próprio ter reconhecido a sua natureza. Depois, a necessidade de protecção, como se fosse uma criança, quando já tinha as suas tatuagens de guerreiro. O facto de Donal estar perto de si é que o matara. Quem se seguiria - Breth, o guerreiro de ombros largos e olhar perspicaz? Garth, com o seu sorriso doce e braços poderosos? Era tempo de Broichan começar a tratar Bridei como o homem que ele era e de lhe dizer a verdade.

O druida do rei apropriou-se antecipadamente das exigências do seu filho adoptivo. Os dois homens encontraram-se nos aposentos de Broichan no interior das muralhas da fortaleza onde Bridei ficaria também alojado com os seus dois guarda-costas, enquanto permanecesse na corte. O jovem estava cansado depois da cavalgada desde Pitnochie. Vira Snonfm nos estábulos do rei, comera uma refeição rápida com os dois guardas e fora procurar o pai adoptivo. Breth e Garth tinham ficado a arrumar o equipamento no quarto. Bridei encontrou Broichan na sua pose habitual, perante uma lareira apagada e, aparentemente mergulhado em pensamentos profundos. O quarto era muito parecido com o do druida em Pitnochie: as ferramentas do seu ofício estavam em cima de prateleiras ou penduradas nas traves; os pergaminhos e os materiais de escrita estavam perfeitamente ordenados. Uma prateleira ao fundo, com um cobertor por cima, parecia ser o seu habitual local de dormida. Bridei viu-se a si mesmo a desejar que houvesse um colchão de palha, pelo menos, no outro quarto. As suas últimas noites tinham sido perturbadas por sonhos e a dor de cabeça ainda não desaparecera.

Meu senhor?

Bridei. Bem-vindo, meu filho.

Bridei avançou e ofereceu um abraço rápido e firme. Sentiu a magreza do pai adoptivo por baixo do manto negro. Bridei afastou-se e observou as rugas novas no rosto do druida, assim como as novas madeixas cinzentas nos cabelos entrançados.

- Espero que estejais bem?

- Estou suficientemente bem, Bridei. A vida na corte já me agradou mais. É claro que não diria isto em frente do rei Drust. Ele precisa de mim e eu sirvo-o. Os deuses assim o exigem. Pareces cansado. Sei que houve perdas. Lamento. Talorgen disse-me que o mensageiro que te enviei nunca chegou com as notícias de Erip. Também... Não interessa. O velho morreu em paz, rodeado de amigos.

- Donal não morreu em paz. Morreu em vez de mim. Fui eu mesmo que lhe pus a taça nas mãos. - Com um esforço, Bridei conseguiu manter a voz baixa.

- Senta-te, filho. Temos de falar. Sabes muito bem que não foi a primeira vez que te tentaram matar, ou a mim. Penso que agora o inimigo é novo, mas o motivo é o mesmo. Suponho que não precisas de me perguntar por que razão alguém te tentou matar.

Bridei não disse nada.

- Diz qualquer coisa.

- Não vos cabe a vós dizer, meu senhor?

Broichan suspirou e sentou-se em frente de Bridei com a mesa de trabalho entre os dois.

- Penso que podemos dispensar esse "meu senhor", agora que somos os dois homens - disse ele calmamente. - Trata-me pelo meu nome, se não te importas. E agora conta lá. Dizem que és um herói. O homem que imaginou e levou a cabo o plano engenhoso de roubar a Pedra Mágica ao inimigo, mesmo nas suas barbas. Talorgen também me disse que te portaste muito bem em combate e que depois te comportaste com frieza e maturidade. Pelo tom, desconfio que o que ele queria era que fosses filho dele. Portanto, portaste-te melhor do que esperávamos, arranjaste aliados e amigos, e não ofendeste nin guém. A tua história já corre pelo Vale fora, estás a tornar-te numa lenda. A Guardiã das Chamas sorri-te. No entanto, alguém tentou matar-te. Porquê?

- Sabes muito bem porquê. Porque sou filho da minha mãe.

- Ah! - Broichan inclinou-se para trás com as mãos na nuca - Há quanto tempo percebeste isso?

- Há muito tempo. Wid e Erip foram-no evitando cuidadosamente durante as aulas de genealogia. O modo como eles rodeavam a questão da minha ascendência alertou-me para o seu possível significado. Não me lembro do nome dela. Para uma criança, o nome da sua mãe é simplesmente mãe. Por fim, perguntei a Ferada e soube que a minha mãe é prima do rei pelo lado feminino. Drust tem outros parentes mais próximos, primos direitos. Carnach de Thorn Bend é um deles e lacjy Dreseida outro. Espero que Drust, o Touro, não nos deixe em breve. Porém, se isso acontecer, eu sou um dos que pode candidatar-se ao trono. Suponho que foi para isso que fui preparado.

- Porque razão não me confrontaste mais cedo, Bridei?

- Se estivesse enganado, seria demasiada arrogância da minha parte. Seria presunção. Não tenho as qualidades necessárias para reclamar a pretensão.

Broichan sorriu.

- Salvo que és ao mesmo tempo filho de Maelchon e filho do sangue real dos Priteni - disse o druida. - Combina isso com a preparação que te demos e o resultado é um rei em potência. A tua mãe ficaria orgulhosa.

Algo no tom de voz do druida atraiu a atenção de Bridei.

- Conheceste-a, não conheceste? - perguntou o jovem. - A minha mãe?

- Conheci. Oh, se conheci!

Bridei não se enganara. A voz mais suave, a mudança quase imperceptível nos olhos escuros.

- Fala-me dela. Não me lembro de nada.

- Anfreda era... excepcional. Inteligente, alegre, esbelta, com uns cabelos brilhantes, castanhos, e um sorriso capaz de fazer parar o coração de um homem. De facto, despedaçou muitos corações quando decidiu casar com Maelchon e viver longe de Fortriu. Ele era um homem perfeito, mas impulsivo. A mim, parecia-me... não interessa.

Há muito da tua mãe em ti, Bridei. Possivelmente, de Maelchon também.

Bridei não se atreveu a perguntar, O teu coração foi um dos que ficou despedaçado quando partiu? Broichan estava, certamente, acima das fraquezas humanas.

Vai acontecer dentro de pouco tempo, não vai? – perguntou ele calmamente. - Dizem que o rei está muito doente, que é capaz de não aguentar todo o Inverno.

É verdade. Temos muito que fazer e pouco tempo para o conseguir. Vais conhecer Drust amanhã. A tua candidatura não pode ser feita enquanto ele não morrer e não começar o processo formal, mas os candidatos vão começar a mostrar as garras a partir de agora. Estamos à espera de uma delegação de Circinn e essa é, provavelmente, a maior ameaça. Com os outros, podemos bem. Alguns podem ser comprados com prata ou com incentivos; outros podem ser persuadidos, por outros meios, a apoiar-te em vez de se apresentarem como candidatos rivais. À parte tu próprio, há duas possibilidades vindas da casa de Fortrenn, a mais provável das quais será Carnach. Será muito melhor se o norte apresentar apenas um candidato forte. Se os chefes tribais de Fortriu estiverem divididos, não poderemos derrotar Drust, o javali, que terá, provavelmente, o apoio dos chefes tribais das regiões do sul.

- E as Ilhas Pequenas?

- Esses têm dois ou três de sangue real, mas desconfio que os Folir vão ficar de fora desta vez. Temos connosco uma refém real e eles devem estar a pensar na sua segurança. Drust mostrou visão quando ficou com a rapariga por ocasião de uma visita que eles fizeram a Caer Pridne há alguns anos. Vais conhecê-la. A rapariga regressou à corte.

- Achas que o assassino estava a soldo de Circinn? Que Drust, o Javali, quer juntar Fortriu a Circinn?

Broichan abanou a cabeça.

- Quase de certeza que a última está correcta. Nenhum rei digno desse nome deixaria passar a oportunidade e o Javali está rodeado de conselheiros ambiciosos, mas assassinato? Penso que não. Ele é o pretendente por direito, não precisa de recorrer a esses meios e não te conhece. Duvido que te visse como um rival sério. Por enquanto.

- Nesse caso, quem...?

- Não sabemos, o que quer dizer que terás que me obedecer em tudo o que disser respeito à tua liberdade pessoal, Bridei. Eu sei que não gostas, que até a presença de Donal te irritava, por vezes, apesar de ser teu amigo, mas vais ter que contar com a presença constante de Breth e de Garth, vais ter quem te prove a comida e vais ter outro homem. Mandei chamá-lo para te conhecer. Deve estar a chegar.

- Não preciso de mais um guarda-costas.

- Aqueles que velam pelos teus interesses acham que precisas. Bridei abriu a boca para contestar, mas depois pensou melhor e manteve-se calado. Havia outra pergunta que precisava de fazer antes que o outro guarda, fosse ele quem fosse, aparecesse e lhes tirasse a privacidade.

- Tuala não estava quando cheguei a Pitnochie - observou sentindo dificuldade, dessa vez, em fixar o olhar em Broichan, receoso do que poderia ler nele. - Disseram-me que ela tinha ido para a escola de Mulheres Sábias de Banmerren, para se tornar serva da Que Brilha.

Broichan cruzou as longas mãos.

- É verdade - disse o druida. - Foi devidamente escoltada e com tudo o que achamos necessário.

- Quando a mandaste embora da primeira vez - alvitrou Bridei, tentando manter a voz controlada - foi porque não a querias em Pitnochie, porque era um embaraço para ti. Desta vez foi o mesmo? Obrigaste-a a ir-se embora?

Broichan olhou para ele em silêncio, as feições pálidas calmas, e os olhos escuros desprovidos de qualquer emoção.

- Não, Bridei - respondeu ele, por fim. - Tuala é que quis ir para Banmerren. Aliás, fez uma óptima escolha.

Bridei sentiu um frio súbito a percorrer-lhe a espinha. As palavras do pai adoptivo reflectiam a verdade pura. Tuala fizera o que ele nunca achara possível. A jovem cortara abrupta e completamente os laços que os uniam, como se tivesse morrido.

- Estou a ver - disse ele asperamente.

- É uma honra servir A Que Brilha - observou Broichan. - Os dois velhotes achavam que ela tinha imenso talento e que seria uma excelente tutora. Apesar das diferenças, espero que ela se sinta em casa no estabelecimento de Fola.

Casa, pensou Bridei. A. sua única casa era em Pitnochie.

- Espero que sim - conseguiu dizer. Naquele preciso momento ouviu-se um som vindo da entrada. Broichan olhou naquela direcção.

Pôs-se de pé, virou-se e ficou gelado. Depois recordou o treino de Donal. Levando a mão à faca, o jovem lançou-se pelo quarto fora em direcção à porta. Na mesma fracção de segundo, na mão do homem surgiu uma adaga e no seu rosto um sorriso, um rosto que Bridei vira antes e que não esquecera.

Alto!

Bridei parou de imediato com a faca a dois metros do punhal do outro. O olhar divertido do homem transformou-se num olhar de irritação e depois de alarme. Broichan não fazia muitas vezes uso da magia. Quando o fazia, as pessoas ficavam a saber por que razão ele se tornara o druida do rei. Broichan era temido e respeitado em Fortriu e em Circinn. O druida limitara-se a erguer um pouco a mão, e a apontar para os dois homens com o dedo que tinha o anel em forma de serpente. Bridei ficou à espera, incapaz de se mover, ouvindo os batimentos do próprio coração. O jovem olhou para o outro homem, que estava igualmente imóvel devido ao feitiço do druida, e que olhava para ele com a mesma intensidade hostil.

- As minhas desculpas - disse Broichan, não parecendo nada arrependido. - Antes que se atirem um ao outro, é preciso explicar certas coisas. Chegaste cedo, Faolan. O meu filho adoptivo responde como um guerreiro deve responder, ao ver um inimigo num local a que não pertence. Bridei, contrariamente às aparências, este homem é um dos nossos. Vou desfazer o feitiço e vós os dois baixem as armas e sentem-se, enquanto explico o que se passa. Em lados opostos da mesa, e mantenham-se calados até eu acabar.

O druida estalou os dedos. Os dois homens conseguiram mover-se de novo. Bridei necessitou de todo o seu auto-controlo para não continuar o ataque.

- Este homem é um espião! - protestou o jovem. - E um celta! Conheço-o, capturei-o eu mesmo! Mas... - Bridei calou-se. O homem chamado Faolan embainhou a faca, dirigiu-se para a mesa e sentou-se.

Era suposto ele estar morto - disse Bridei, sentindo que estava a dizer uma tolice e perguntando-se se as suas dúvidas, naquele dia na fonte do Corvo, não seriam acertadas. Talvez a coisa tivesse sido montada apenas para permitir que ele e Gartnait conseguissem aquela pequena vitória sem correr verdadeiros riscos. Não. Uma coisa era certa. - Ele é celta - repetiu o jovem. - Ouvi-o falar a língua. Como um nativo. Que está ele aqui a fazer? Pensei...

- Não ouviste o que eu disse, Bridei?

- Peço desculpa, meu senhor... Broichan.

- Faolan é, de facto, celta de nascimento e criação, e está ao serviço do rei Drust há muitos anos. O que aconteceu entre os dois na Fonte do Corvo foi uma infelicidade. Tem de ser esquecido, atirado para trás das costas. Faolan vai ser a tua sombra, vai proteger-te, procurar os teus inimigos onde Breth e Garth não podem ir. Faolan tem ouvidos em todas as portas, um pé em todos os exércitos. Com ele a teu lado, talvez te safes. Isto se fizeres o que ele diz.

Bridei olhou para o celta, que examinava as próprias unhas com uma expressão de desdém.

- Porque razão estava ele no bosque com um homem que Talorgen mais tarde torturou até à morte? Porque razão estavam a tentar fugir e a falar naquela língua? Porque razão me disseram que ele tinha morrido?

- Eu falo mais ou menos a língua dos Priteni e não sou estúpido - disse Faolan, erguendo as sobrancelhas. - Creio que posso muito bem falar por mim próprio.

- Nesse caso, fala! - exigiu Bridei.

- Eu estava de regresso de uma missão e trazia comigo um homem que tinha informações. Ele pensava que estávamos os dois a reunir factos sobre as forças de Talorgen. Era minha intenção levá-lo até a um ponto em que seria apanhado. Acontece que estavas de guarda naquele dia. Podia ter sido outro qualquer.

- Estás a dizer que já nessa altura trabalhavas para Talorgen?

- Para Drust. Talorgen conhece-me.

- Podia ter-te morto! - Bridei estava espantado, sentia-se insultado, humilhado.

- Exageras as tuas capacidades, se acreditas nisso - troçou Faolan, parecendo um tanto aborrecido. - Atraíste a atenção sobre mim de um modo que não me agradou nem agradou a Talorgen, o que reduziu a minha eficácia na região da Fonte do Corvo. Os conselheiros de Gabhran acreditam que eu trabalho para eles, ou que trabalhava, o que me permitia percorrer Dalriada de um lado ao outro e ter acesso aos conselhos dos Celtas. Infelizmente, quantos mais homens me conhecem, incluindo os nossos, menos eficácia tenho como espião. Daí a decisão de Drust de me fazer regressar à corte para esfriar um pouco as coisas. Agradeço-te por isso e por isto. – Faolan arregaçou a manga da túnica e revelou uma feia cicatriz no antebraço.

Felizmente continuo a poder pegar numa arma, senão terias ganho um inimigo perigoso.

Peço desculpa - disse Bridei educadamente - mas parece-me que já o tenho.

Não te guardo rancor - replicou Faolan. - Desde que me paguem regularmente. Porém, tens razão. Disseram-me que tens inimigos. É por isso que estou aqui.

Bridei virou-se para o druida.

Por que me mentiu Talorgen? - perguntou o jovem. – Por que me deixou acreditar que este homem tinha morrido?

- Pergunta-lhe - disse Broichan. - Suponho que lhe convinha, e a Faolan também, que quanto menos gente soubesse a verdade, melhor.

- Mas... - Bridei engoliu o que ia dizer.

- Se te sentiste culpado, és tolo - interrompeu-o Faolan rudemente. - Começa a simpatizar com os teus inimigos e perdes a batalha antes dela começar. Ainda bem que me contrataste, meu senhor.

- Sim - disse Broichan. - A tua falta de escrúpulos é tão conhecida como a tua capacidade e a tua discrição. Precisamos de ti. Bridei, tens de aceitar a situação.

- O que é que ele vai fazer?

- Faolan trabalha sozinho. Contratámo-lo partindo do princípio de que ele fará o trabalho, segundo as suas próprias regras. Explicámos-lhe porque razão precisas de protecção e a natureza dos que procuram fazer-te mal. Ele explicar-te-á o que deseja de ti.

- Ele fica aqui comigo? Vai seguir-me por toda a parte apesar de Garth e Breth estarem a fazer um excelente trabalho? Apesar de eu já não ser uma criança que precisa de um cão de guarda para afastar as sombras?

Broichan fez girar o anel de prata no dedo.

- Consideravas Donal um mero cão de guarda? - perguntou ele calmamente.

Extraordinariamente, Bridei sentiu lágrimas nos olhos. Parecia que a criança não estava assim tão distante da superfície apesar das tatuagens guerreiras.

Donal era meu amigo.

Nem Broichan nem o celta responderam. Deviam saber, pensou Bridei, que Faolan nunca seria amigo de ninguém.

- Eu tenho certos talentos - respondeu Faolan. - Posso proteger-te. O facto de não gostarmos um do outro não é para aqui chamado.

- Peço desculpa - disse Bridei -, mas pergunto a mim próprio qual será a tua credibilidade na corte, um homem de Dalriada no coração de Fortriu. É verdade que a tua aparência não sugere de imediato as tuas origens, mas as pessoas devem certamente perguntar por que razão um homem que anda sempre armado não tem tatuagens guerreiras no rosto. Além disso, assim que abres a boca, o sotaque denuncia-te. - O jovem olhou para Broichan. - Dizes que este homem pode ir onde Breth e Garth não podem, que tem um pé em todos os exércitos. Como é isso possível quando se torna rapidamente evidente que é um celta?

Faolan esboçou um ligeiro sorriso.

- O quê? - perguntou em ar de troça. - O rei de Fortriu confia em mim e tu não? Exerço o meu ofício há muito tempo, Bridei. Sou especialista em todas as suas facetas. Uma delas é a capacidade de desaparecer, de me misturar com as pessoas, tanto entre os Priteni como nos salões do rei Gabhran de Dalriada. Tenho um nome diferente em cada lugar, uma aparência diferente. Cada um instantaneamente olvidável. O sotaque varia, não vi razão para o mudar hoje. Quanto a Caer Pridne, o rei tornou claro que eu estava aqui sob a sua protecção, celta ou não celta. Sou conhecido dos mais íntimos do rei. Se chegarem visitantes estranhos, faço de maneira que não me vejam. Ah, sim, uma pequena correcção. Eu não pertenço a Dairiada. Trabalho por um preço. A minha lealdade dura tanto tempo como a missão de que me encarregam.

- Estou a ver. - Bridei achava aquilo muito pouco tranquilizador. Era o mesmo que dizer que o homem estava pronto a mudar de campo por um saco de prata mais pesado.

- Portanto - perguntou Faolan -, levas-me até junto desses teus dois guardas para eu ter uma conversa com eles? Vou precisar de verificar os teus alojamentos e arranjar algumas coisas.

- Segue-me - respondeu Bridei, fazendo um esforço e mostrando-se cortês. Era evidente que não tinha escolha.

- Bridei - disse Broichan atrás do jovem -, este é o caminho que decidimos seguir. Com Drust é o mesmo. Terás que aceitar protectores, conselheiros, homens que te adularão servilmente, e ou que não hesitarão em te espetar uma faca nas costas. Acredita, um homem como Faolan é uma boa companhia. Ele provou o seu valor mais de cem vezes.

Tuala, pensou Bridei. Tuala partira para sempre. Tuala estava encerrada entre quatro paredes. Tuala estava num local onde os homens não podiam entrar. Tuala preferira viver sem ele. Não fora por aquela notícia e teria lidado com a questão de modo controlado, não teria dado àquele celta a impressão de que era uma criança petulante. Quando Faolan entrou nos seus aposentos, e se tornou evidente que Breth e Garth aceitavam sem quaisquer dúvidas que a partir daquele momento passava ele a mandar, Bridei manteve-se silenciosamente à porta com os dedos na fita que usava no pulso. Enquanto afagava a sua suavidade familiar, as pontas desgastadas cederam por fim, e o pequeno pedaço de tecido caiu-lhe na mão. Talvez fosse um sinal. Mesmo que ela não tivesse decidido deixá-lo, mesmo que ela tivesse decidido ficar a seu lado, que vida seria a de uma rapariga cujo ser estava em sintonia com os carvalhos, os vidoeiros, as sorveiras-bravas, os mochos, as lontras e os veados, com as águas difusamente brilhantes do Lago da Serpente e com o pico solitário de Estrela da Águia? Que alegrias teria a vida na corte para uma rapariga que adorava histórias, sonhos e silêncios? Rodeada de guardas e cortesãos, de assassinos e conspiradores, quanto tempo sobreviveria a sua flor selvagem? Esperar que ela ficasse a seu lado sabendo - como ele suspeitava que acontecia há muito tempo - qual seria o seu futuro, seria pedir-lhe que murchasse e morresse em nome de uma promessa feita entre duas crianças. Tinha de a esquecer. Tinha de continuar sozinho. Os deuses assim o exigiam.

 

                                               CAPITULO DOZE

- Veste o verde - disse Dreseida. - E arranja o cabelo de outra maneira, com mais suavidade. Não te podes dar ao luxo de parecer demasiado sumptuosa, nenhum dos homens se atreverá a aproximar-se de ti.

- E que me interessa? - respondeu a filha, ao mesmo tempo que vasculhava a pequena arca, afastando uma a uma as jóias que ia encontrando.

- Não sejas tola, Ferada. Sabes muito bem porque razão estás em Caer Pridne. Tens de compreender a importância da reunião desta noite e de todas as que se seguirem na corte. Tens dezasseis anos. Se deixares isso para mais tarde, as oportunidades começarão a faltar, passando para raparigas mais novas e mais frescas. Quero que fales com Bridei esta noite.

- Não tenho outro remédio, ele é amigo de Gartnait.

- Não sejas obtusa. Sabes muito bem o que eu quero dizer. Fala com ele, sedu-lo, encoraja-o a confiar em ti. Broichan anda a tramar qualquer coisa e eu quero saber o que é.

- Bridei não é estúpido, mãe, perceberá imediatamente. Quando falava com ele na Fonte do Corvo era sempre sobre História, política ou outros assuntos eruditos. Não me importo de fazer isso, será sempre melhor do que os olhares e os esforços trapalhões dos outros para tornarem a conversa interessante.

- Ferada.

Ferada imobilizou-se, um par de brincos de prata em forma de golfinho a meio caminho das orelhas. O tom de voz da mãe exigia obediência imediata.

- Sim, mãe? - O coração da jovem parecia um tambor.

- Vais fazer o que eu mando. Preciso dessas informações. Compreendes o que te estou a dizer?

- Sim, mãe.

- Fala com ele. Com suavidade. Usa uma certa sedução. Fala em Broichan. Quero saber o que aqueles dois tencionam fazer daqui até ao Inverno. Para onde vão e com quem se vão encontrar. Vigia os olhos de Bridei quando lhe perguntares.

- Mãe, eu...

- Nem parece tua, essa desatenção, Ferada. Tens de compreender que, se não cumprires com os meus desejos, falhas na tua obediência aos deuses, o que limitará muito as tuas hipóteses futuras. Aproxima-se a eleição do rei, uma oportunidade para exercer alguma influência, desempenhar um papel que contribua para o futuro do país. Nós, as mulheres, raramente temos uma oportunidade destas e eu quero aproveitá-la ao máximo. Para isso, preciso de informações. Infelizmente, não posso aproximar-me de Broichan ou do seu filho adoptivo. Tens de o fazer por mim. Vigiar-te-ei de perto e espero ver progressos.

- É a mesma coisa que... é a mesma coisa que ser um objecto de aluguer - replicou Ferada amargamente, incapaz de conter as palavras -, como se não tivesse qualquer valor. Eu sou sua filha, não sou uma ferramenta.

- És uma mulher - disse Dreseida secamente. - Desempenha bem o teu papel e poderás exercer um certo poder. Isto é apenas o primeiro passo.

- O jogo não é meu. - A voz de Ferada tremia. - O jogo é seu e eu não gosto dele. Quem me dera ter ficado em Banmerren.

- Tu vais fazer o que eu mando. Não me desafies. Não te esqueças que a escolha do teu futuro marido está nas minhas mãos. O teu pai fará o que eu lhe disser. Sê uma filha obediente e talvez eu te dê alguma liberdade de escolha.

- Suponho que não está a pensar em Bridei. A mãe nunca gostou muito dele.

Creseida deu uma gargalhada desconsolada.

- Não disseste uma vez que ele não tinha sentido de humor? vamos esperar mais um pouco. Caer Pridne vai estar cheia de chefes tribais por ocasião do Solstício de Inverno. Se te portares bem, poderás escolher à vontade.

Tuala via os archotes em redor da baía, uma linha dupla iluminando o crepúsculo de Verão, demarcando o caminho ao longo do promontório até aos portões da fortaleza do rei. Havia mais na muralha tripla de Caer Pridne. A fortaleza de Drust parecia um palácio das histórias antigas. Uma comemoração. O velho druida, Uist, falara dela e Fola confirmara-a. Um festival para comemorar a vitória, o reconhecimento da coragem e do triunfo. Bridei estaria presente. Tuala sabia que ele regressara são e salvo porque Uist lho dissera, sem que lho perguntasse. A jovem agradecera-lhe a notícia com a maior das calmas. Pelo menos, assim pensara. Era cada vez mais evidente que não desempenharia qualquer papel no futuro de Bridei, que a sua amizade só aumentaria o seu afastamento. Por isso, mais valia fingir que não se importava. Talvez, se continuasse a pensar que tivera sorte por ter ido para Banmerren e que a vida como intelectual ao serviço dos deuses era vantajosa, acabasse por acreditar.

Uist fora portador de boas e más notícias. Wid estava bem e retirara-se para a floresta para passar algum tempo em meditação e oração. Tuala esperava que ele não tivesse muitas saudades dos cozinhados de Ferat. Quando Uist lhe deu as más notícias, a jovem quase perdeu o controlo de si própria. Donal tinha morrido. O corajoso companheiro de Bridei e amigo de todos em Pitnochie, incluindo ela própria, morrera envenenado numa comemoração. Tuala sentira um nó no estômago, a sua visão tornara-se realidade se bem que ao contrário, o acontecimento terrível que a fizera correr através da floresta como um veado assustado e pedir a Broichan que a ajudasse. A alteração fora muito ligeira, uma caneca de cerveja passara da mão de um homem para outro, e a vida de Bridei fora poupada, mas o seu amigo pagara um preço demasiado alto. A jovem sabia o que Bridei devia estar a sentir: culpa, tristeza, o peso de um fardo demasiado pesado. Se pudesse, pelo menos, estar com ele... Ele estava em Caer Pridne, perto da baía, tão perto mas ao mesmo tempo tão longe, como se estivesse noutro país. Bridei não podia, como qualquer outro homem, à excepção dos druidas, visitá-la. Tuala agradecera amavelmente as notícias a Uist e mantivera uma expressão calma.

Isso acontecera na noite anterior. Esta noite era diferente. Durante o dia, mantivera-se ocupada o mais possível. Como as raparigas nobres tinham regressado à corte, Derila dividira a sua classe em duas e Tuala passou a actuar como tutora das mais novas, raparigas quase da sua idade, um desafio. Todas elas invejavam o seu novo estatuto de tutora, a sua juventude, a sua pele pálida e os olhos estranhos. Ao mesmo tempo, a diferença fascinava-as. As raparigas apreciavam as coisas que ela era capaz de fazer. Com alguma relutância, Tuala mostrara-lhes alguns truques, os jogos de luz, as pequenas transformações que fazia na floresta, quase sem pensar, desde pequena. Gostavam de aprender a escutar os pensamentos de um esquilo, de uma coruja ou de uma carriça. Gostavam das histórias que se podiam ouvir no coração de um velho carvalho. Tuala mostrava-lhes o suficiente para as manter interessadas. A parte histórica da aula era passada com ansiedade, à espera da recompensa daqueles segredos que ela não se importava de partilhar. As raparigas não se sentavam a seu lado à hora das refeições. A situação não mudara. Porém, já não se riam dela.

Terminado o longo dia, Tuala estava agora sentada no alto da árvore e olhava ao longo da costa para Caer Pridne. Alguns dos archotes estavam em movimento. Talvez fosse um cortejo em direcção ao grande salão de Drust, o Touro. Diziam que a entrada era imponente. Havia pedras esculpidas, oito de cada lado, em frente umas das outras, uma das coisas mais belas de Fortriu, dissera-lhe Erip. Qualquer homem ou mulher que se aproximasse da corte de Drust seria recebido por aquela monumental afirmação de poder. Tuala não conseguia ouvir nada. A fortaleza estava demasiado afastada. Talvez houvesse trompas a tocar, tambores a soar, cânticos. Para alguns haveria, certamente, histórias. A da Pedra Mágica rivalizava com qualquer outra em heroísmo e engenho. Também aquilo, na verdade, acontecera. Fola dissera-lhes que seria assim. Finalmente, Bridei começava a trilhar o seu próprio caminho.

Tuala estremeceu. Até as noites de Verão em Banmerren podiam ser frias, quando o vento soprava do mar. Tinha de regressar. Era uma loucura permanecer em cima depois do escurecer. A Lua estava em quarto minguante, e ela podia escorregar e cair. Talvez não caísse. Talvez voasse. Em criança sempre sonhara conseguir voar.

Olhou uma última vez para a fortaleza. Observou a extensão de areia iluminada pela luz dos archotes. Não era assim tão longe. Para uma criança que crescera a correr pelas colinas acima de Pitnochie, não era longe. Num dia bom, uma pessoa podia ir até lá e regressar sem ninguém dar pela sua falta. O problema era que não podia sair dali, nem ela nem nenhuma das que usavam vestido azul. As raparigas nobres tinham a liberdade de se deslocar entre a escola e a corte em determinadas ocasiões, e de montarem a cavalo. As outras só podiam sair quando iam em busca de ervas sob a vigilância rigorosa de Luthana, que supervisionava os trabalhos de jardinagem e de costura Por ocasião do Portal, as mulheres sábias iriam a Caer Pridne para comparecer a uma cerimónia solene. Questionada sobre o significado de tal acontecimento, Irethra fora pouco esclarecedora. Um ritual para os homens, conduzido pelo druida do rei, e simultaneamente outro para as mulheres, conduzido por Fola. As mais velhas iriam com as que usavam vestidos cinzentos. As restantes teriam de esperar até terem idade para usar os vestidos verdes.

Tuala gostaria de testar a sua teoria naquela noite. Atirar-se do alto da muralha para ver se cairia no solo, em baixo, com os ossos partidos, despedaçada, ou se voaria como uma coruja através da escuridão até às muralhas de Caer Pridne para espreitar o banquete do rei. Em vez disso, regressou ao seu quarto na torre. Tinha que ser forte. Tinha de pensar em Bridei e não em si própria. Era inteiramente verdade: tinha sorte. Podia ser o que Fola queria que ela fosse, levaria simplesmente algum tempo. Bridei teria outros junto de si para lhe escutar os medos, partilhar os seus sonhos, manterem-se a seu lado, como ela nunca poderia estar devido ao que era. Com o tempo, o jovem aprenderia a confiar neles. Ana, por exemplo. Bridei veria Ana no banquete daquela noite, e Ferada. Falaria com elas com os seus olhos azuis e brilhantes, fixando-as enquanto lhes explicava qualquer coisa e fazendo gestos para ilustrar o que dizia. Ana responder-lhe-ia com a sua voz doce e grave e Bridei inclinaria a cabeça delicadamente para a ouvir... Tuala enterrou a cabeça na almofada, fechou os olhos com força e puxou o cobertor por cima da cabeça. A jovem abandonara a tigela de bronze porque as suas imagens a atormentavam, mas elas tinham vida própria, entravam-lhe cruelmente nos sonhos.

- Ela começou a duvidar do que em tempos era claro e límpido como a água - observou a presença de cabelos prateados empoleirada num ramo alto, invisível para o género humano. - O olhar dela é triste.

- Mas não duvida do amor da Que Brilha - disse o seu companheiro -, e isso é consolador nestes tempos de solidão.

- A tristeza pode ser demasiado grande. Maior do que o que ela sente por Bridei, maior do que a voz no seu coração e o apelo para a longa tarefa que tem pela frente.

O apelo é da Que Brilha. Foi a própria deusa que deu vida a esta criança - observou o jovem coberto de hera -, e que nos mandou colocá-la à porta de Bridei. Se Tuala preferir ficar em Banmerren, vai contra os intentos da nossa Grande Mãe.

Ser sacerdotisa é um acto de obediência à vontade da deusa.

Todos aqueles que conhecem Tuala no mundo dos mortais, incluindo Bridei, sabem que é assim. Como é que a rapariga vai saber que A Que Brilha tem outro caminho para ela?

De facto, ela tem poucas hipóteses de escolha, não pode lançar-se da muralha e voar até Caer Pridne. Tuala fará sempre o que acha que será melhor para Bridei, mesmo que isso a afaste dele.

- Bem - retorquiu a rapariga, passando uma mão descuidada pelos caracóis cintilantes -, ela ainda é uma criança, uma criança que foi expulsa de casa. Creio que temos de fazer com que o teste seja ainda mais difícil.

- Mais difícil para quem? - perguntou o rapaz.

- Para Bridei. Tuala está desanimada, deprimida, está pronta a considerar a outra hipótese, a hipótese que existe, não apenas fora da casa das mulheres sábias, como para lá do mundo dos humanos. Vamos tentar esse caminho. Vamos aliciá-la o mais possível. Vamos aliciá-la de tal modo que ela vai ter que responder: através do sangue que partilhamos.

- E se ela seguir em frente? E se ela passa para a outra margem e vê que não pode regressar?

- Não segue.

O rapaz vestido de hera estremeceu.

- Estás muito confiante - disse ele. - Olha que é muito perigoso. A rapariga anuiu com os olhos luminosos subitamente muito sérios.

- Fortriu tem de ter um verdadeiro líder - disse ela -, um líder capaz de unir os reinos dos Priteni em redor dos deuses antigos e em sintonia com as antigas raças do país, especialmente a nossa. A nova ordem, no sul, espalha-se furiosamente, pisa indiscriminadamente os locais sagrados, desaloja os druidas e as Mulheres Sábias, queima e destrói os lares dos animais da floresta. A deusa precisa de Bridei.

- E Bridei precisa de Tuala.

- O meu plano assegurará que ambos estejam prontos para o que os espera.

- Pareces muito segura. Há que pensar nas excentricidades da espécie humana. As suas intrigas e jogos de poder têm a capacidade de destroçar os planos mais bem arquitectados.

- É verdade, Bridei ainda tem muito que sofrer, tanto por part dos humanos como por parte dos deuses, perante os quais terá de pro var que é digno da sua confiança. Eu confio nele. A luz da Guardiã das Chamas brilha no seu espírito, mas ainda tem muito que andar. O seu caminho está cheio de sombras e nem todas são nossas.

Caer Priden brilhava de tanta luz. Os archotes ardiam ao longo dos caminhos de ronda, iluminando as pedras esculpidas com estranhas criaturas. Estas tinham sido esculpidas com delicadeza mas tinham, simultaneamente, captado toda a sua força muscular e virilidade. O grande salão de Drust erguia-se sobre o promontório, rodeado pelas muralhas altas de Caer Pridne. A fortaleza tinha três níveis, cada um deles com uma muralha de pedra alternada com madeira. As valas triplas eram uma barreira adicional contra qualquer ataque. No interior das muralhas, vivia uma comunidade inteira dedicada à manutenção da corte do rei e ao apoio da sua casa. No lado oeste, entre quebra-mares de pedra, havia locais para a ancoragem de barcos. Uma escada ia dar a um portão de ferro. Para lá deste ficava a estrada, uma via larga de terra batida, naquela noite iluminada por tições colocados no alto de postes. Os homens que chegavam a pé ou a cavalo eram recebidos por um formidável grupo de guardas, colocados em frente dos portões duplos que impediam a entrada na fortaleza. Drust era poderoso, mas também era cuidadoso. Fora eleito rei numa época em que o sangue fervia entre os chefes tribais dos Priteni e os nobres se tinham dividido por causa da sucessão.

O sul, cada vez mais influenciado pela fé cristã, quisera Drust, filho de Girom, conhecido como o javali, um homem que seguia a nova fé. e que encorajava os missionários desejosos de a espalharem. O norte ficara sob o poder de Drust, filho de drost, dedicado aos antigos costumes e à protecção das fronteiras de Fortriu. Broichan apoiara Drust, o Touro. Como poderia não o fazer? Por seu lado, Drust, o Javali, tinha fortes e leais apoiantes. Assim, os nobres tinham ficado divididos. O voto de desempate de Fola, a Mulher Sábia, fora rejeitado pelos chefes tribais de Circinn visto que uma tal participante poderia tomar o partido da magia pagã para submeter as mentes dos homens à sua vontade.

Após algum tempo de tumultos e caos, atingira-se um compromisso

amargo. Até então, apenas um rei governava as terras dos Priteni, desde o Grande Vale, a norte, até à muralha romana, a sul. O rei das Ilhas Pequenas submetia-se à lei daquele monarca mais poderoso. Os Caitt, claro, eram um povo à parte. No entanto, os territórios entendiam-se. Quando era necessário, trabalhavam em conjunto. Depois da dissolução da assembleia de nobres, a terra dos Priteni ficara dividida em dois reinos. Fortriu, governado por Drust, o Touro, e a sul o reino de Circinn governado por Drust, o javali. Toda a gente sabia, se bem que fosse segredo, que ambos tinham concordado em reclamar o território do outro em caso da morte de um deles. Não admirava que houvesse, naquele momento, tantos guardas à entrada de Caer Pridne.

Bridei entrou no salão discretamente seguido por Breth e Garth. Já começara a reparar, agora que era obrigado a ser seguido por aquelas duas sombras, que havia outros homens com uma protecção semelhante. Broichan não. O druida sempre andara sozinho, mas Aniel, o conselheiro do rei, tinha um guarda-costas novo que podia ser visto perto do elegante nobre de cabelos grisalhos, e que tentava passar despercebido. Havia outros no salão com a mesma expressão, a expressão de homens sempre alerta, mas tentando, ao mesmo tempo, passar despercebidos. Geralmente eram homens robustos, vestidos com simplicidade e que rondavam os cantos das salas. Evidentemente, havia outras espécies de protecção. O rei Drust tinha Broichan. A presença do druida do rei devia ser, ou era, o suficiente para evitar quaisquer atacantes. Era do conhecimento comum que tais homens tinham imenso poder, que eram capazes de invocar as forças que quisessem para os ajudar. Um druida podia invocar a Guardiã das Chamas e fazer com que um homem suasse e ardesse até ser consumido pela febre; podia invocar A Que Brilha, pedindo inundações ou vagas avassaladoras. Só outro mago se atreveria a desafiar um tal homem.

No entanto, pensassem as pessoas o que pensassem, Broichan era um mortal e, por isso mesmo, era vulnerável. Bridei nunca mais se esquecera da noite, muito tempo antes, durante a qual recebera a notícia de que o seu pai adoptivo fora envenenado. O jovem recordou-se da sua própria desolação e da bondade de Donal. Alguém tivera a inteligência de se insinuar junto do druida do rei. Seria o mesmo que perseguira o pequeno Bridei na floresta com o arco e a espada? Nunca ninguém Lhe dissera. Talvez ainda ninguém soubesse, ninguém senão aqueles que queriam mal ao druida do rei e ao seu filho adoptivo. Tornava-se cada vez mais evidente que Broichan dissera a verdade. A partir dali seria sempre assim, sempre guardado de perto, sempre consciente de que os seus inimigos estavam prontos a atacar. Se um fosse detectado e eliminado, logo outro tomaria o seu lugar.

Drust, o Touro... Bridei perguntara muitas vezes a si próprio como é que este seria. Talvez o rei tivesse um ar maciço, forte e sólido, como o animal que escolhera como símbolo. Talvez fosse majestoso e resplandecente, como se transportasse consigo a chama da Guardiã das Chamas. O rei de Fortriu era, no fim de contas e de certo modo, a personificação daquele deus. O seu papel especial nos rituais acentuava-o. Talvez fosse um desapontamento. Talvez Drust fosse uma caricatura, um pobre homem agarrado com todas as forças à vida e ao poder. Dizia-se que ele teria sorte se conseguisse durar todo o Inverno.

O salão estava cheio de homens e de mulheres, alguns sentados às três grandes mesas, outros amontoados nos espaços entre elas. O ar vibrava com os risos e as conversas. Algures, mais longe, era possível ouvir música sobrepondo-se acima daquele barulho: uma gaita-de-foles, um tambor ou uma harpa. Cheirava a carne assada e ervas, e estava muito calor. Na grande lareira, ardiam grandes troncos. Astuciosamente, a ventilação desta era feita através de uma estrutura de pedra, mantendo o salão relativamente livre de fumo. Bridei reparou que o movimento das pessoas parecia uma dança ou um jogo, um complicado jogo de estratégia com regras diferentes. Bem preparado por Broichan, o jovem tentou identificar alguns homens, homens influentes contra os quais fora avisado. O tipo excepcionalmente alto com cabelos cor de cobre até aos ombros devia ser Carnach, primo do rei e um potencial candidato. A ser vigiado. O homem de ombros largos que conversava com Talorgen era, provavelmente, outro candidato, Wredech, da casa de Fidach. Talorgen possuía informações acerca de Wredech que talvez fossem úteis. O homem tinha de ser cuidadosamente trabalhado. Onde estavam os conselheiros do rei?

Bridei olhou para o canto mais afastado do salão e lá estava o rei Drust, sentado a uma mesa mais pequena perpendicular às outras e instalada sobre um estrado. O seu cabelo negro tinha madeixas grisalhas, assim como a barba bem tratada. As suas feições distinguiam-se por um nariz em forma adunco e por umas sobrancelhas espessas que lhe enegreciam os olhos, olhos que perscrutavam a sala mesmo quando se inclinava para escutar Broichan, sentado a seu lado. Claro que não era possível avaliar um homem com tanta rapidez, mas Bridei sentiu que havia poder até no dedo mindinho do rei, autoridade em cada um dos seus pestanejares, no modo como ele se sentava direito, régio, descontraído, mas ao mesmo tempo, atento. Na inteligência dos seus olhos negros, frios como o aço, no maxilar forte, na economia de gestos. No modo como Broichan o escutava e na inclinação da cabeça do druida. Se o rei estava mesmo doente, não parecia. Havia uma ruga entre as sobrancelhas, uma tensão na boca que talvez indicasse a presença da dor, suprimida pela vontade, mas mais nada.

A multidão mexia-se, passava, agrupava-se e reagrupava-se. Havia mulheres no salão: depois da longa preparação para a guerra, da marcha até Galany's Reach e do penoso regresso a casa, custava-lhe a acreditar que estavam ali. Lady Dreseida, com um vestido prateado e preto, conversava com um grupo de mulheres elegantemente vestidas, com penteados muito elaborados, entrançados e enrolados. Gartnait estava com a irmã, Ferada. A jovem apercebeu-se do olhar de Bridei e fez um gesto com a cabeça, sem sorrir. Bridei devolveu sobriamente o cumprimento. Ferada era uma rapariga estranha, inteligente e voluntariosa, com uma ira dentro de si que a tornava combativa. As conversas com Ferada eram geralmente interessantes, mas pouco descontraídas. Gartnait, por melhor companhia que fosse na caça ou em treino de combate, não sabia conversar. Ferada era capaz de seguir a maioria dos tópicos. Conversar com ela na Fonte do Corvo era sempre um descanso depois dos infindáveis dias de preparação para a guerra. No entanto, não desejava a sua companhia naquele momento. Geralmente, Ferada dava a impressão de que estava, de certo modo, a troçar dele. Que, na verdade, desprezava todo o mundo. Aquilo perturbava Bridei porque lhe parecia que só havia um mundo e que, se tinha defeitos, as pessoas não se deviam queixar deles, mas dar passos para o mudar.

A filha de Talorgen. - Aniel, o conselheiro do rei, aparecera ao lado de Bridei, ao mesmo tempo que o seu guarda-costas fazia uma Pausa para falar com Breth. - Vais conhecê-la, suponho. A rapariga ao lado dela é Ana, a refém de Drust das Ilhas Pequenas, uma excelente rapariga. Arranjou-se maneira de as duas passarem algum tempo aqui juntamente com outras, e a rapariga está a gostar muito porque é muito tranquila, muito senhoril. Também é extremamente bonita, não achas?

Vindas do reservado e prudente Aniel, aquelas palavras eram sur preendentes. Bridei apercebeu-se do olhar sério de Ana, da tez pálida dos cabelos dourados caindo-lhe em cascata pelos ombros, e a tristeza voltou a apoderar-se dele. Não conseguia afastar a imagem de Tuala girando no topo de Cicatriz de Águia, as madeixas flutuando ao vento como um estandarte. O jovem não respondeu.

- Mais tarde, não te esqueças de falar àquelas duas jovens - disse Aniel, imperturbável. - Deves fazê-lo. Mais um passo que deves dar. Estás a ver o tipo magro à direita do rei? Um homem perigoso. Tharan é um dos meus colegas conselheiros. Extremamente influente e um feroz apoiante do candidato da casa de Fortrenn, que tem grandes aspirações. É pura perda de tempo tentar fazê-lo mudar de ideia. A seguir a ele está Eogan, outro conselheiro, muito próximo do rei e possuidor de alguma flexibilidade de pensamento. Uma aproximação tua é capaz de ter mais sorte do que uma minha, ou de Broichan. Nós os dois não somos universalmente admirados. A mulher pequena é a mulher de Drust, Rhian de Powys. Tem sido uma excelente apoiante, mas é pouco provável que desempenhe qualquer papel depois dele morrer. O irmão dela, Owain, é insignificante. Parece que nos vamos sentar. Depois do jantar, o rei vai decerto chamar alguns dos homens para receberem pessoalmente os seus agradecimentos. Tu vais ser um deles. Estás preparado?

- Penso que sim, meu senhor.

- Óptimo. Estou a ver que te vestiram bem. Isso também é importante. Rico, mas sem ostentações. Com o tempo desenvolverás o teu próprio estilo.

Bridei não podia responder sem, possivelmente, ofender o conselheiro. Faolan é que escolhera aquelas roupas por ordem de Broichan, e o jovem sentia-se estranho com elas depois de tantos dias e noites a caminhar, a trepar, a comer e a dormir sempre com a mesma túnica, as mesmas calças, a mesma roupa interior, as mesmas botas. Aquela lã macia, fina, o cinto com a fivela de prata e a capa cuidadosamente adornada não pareciam pertencer-lhe. Lavara o corpo e o cabelo. Para o efeito, encontrara água quente no seu quarto, juntamente com um pedaço de sabão que cheirava a rosmaninho. Depois de secos, os seus caracóis castanhos tinham ficado indomavelmente frisados, e Bridei

tivera qUe passar pela humilhação de deixar que Garth lhe fizesse uma pinça na nuca.

É um mundo novo para ti. Aprende depressa. Não tens muito tempo. - Em seguida, o conselheiro desapareceu. Esperava-o um lugar na mesa real, perto do rei.

Bridei sentou-se com a família de Talorgen, Gartnait à sua direita e Ferada à sua esquerda. A alarmante lady Dreseida sentou-se à sua frente. Naquela noite, o provador era Garth. Bridei não o conseguira evitar. O guarda-costas estava atrás do jovem, quase encostado à parede. Breth estava estrategicamente um pouco mais afastado, aparentemente muito divertido com os amigos. No entanto, não bebeu nem comeu, atento aos convidados, às entradas no salão, aos cantos sombrios e ao que estes poderiam esconder. A técnica de Faolan era diferente. Antes, Bridei reparara nele várias vezes, sempre pelos cantos, sempre à escuta. O espião passava de um grupo para outro com tanta discrição que as pessoas mal reparavam nele. Provavelmente, o celta ouvia cada conversação significativa, cada pequena conspiração, cada comentário. Naquele momento, estava sentado no meio de um grupo de homens que Bridei não conhecia e parecia estar a comer e a beber tranquilamente, muito calado. A rapariga dos cabelos dourados estava sentada na mesa alta. A jovem era de sangue real, parente do rei vassalo das Ilhas Pequenas. Era o seu lugar.

- A minha amiga Ana - disse Ferada secamente, seguindo o olhar de Bridei. - Bonita, não é?

- Ouvi dizer que é uma refém. Tão nova. Suponho que é mais nova do que tu. Deve ser uma situação difícil.

- Ela tem mais ou menos a mesma idade de Tuala, a tua irmã. Sim, Ana tem muitas saudades de casa. Em Banmerren é uma coisa normal, mas Ana é uma daquelas pessoas que tira partido de tudo, nunca se queixa.

A mão de Bridei descansou na bolsa que lhe pendia do cinto. Não enfiaria a mão na bolsa para tocar no objecto que se encontrava no seu interior. A sua primeira intenção fora atirar com a fita para a lareira: Um acto de sacrifício à Guardiã das Chamas, uma promessa de que Seguiria o caminho que se abria à sua frente por mais perdas que uma tal decisão representasse. Porém, guardara-a.

- É uma rapariga muito bonita - disse Bridei, reparando no Pequeno sorriso de Ana, enquanto escutava algo que o conselheiro Eogan dizia, e no rosa delicado com que as suas faces se cobriram. Também estás muito bonita esta noite, Ferada. Os brincos ficam-te bem. - A boa educação não exigia menos. Além do mais, mesmo que ela troçasse do seu comentário, estava a dizer a verdade. As sardas no nariz de Ferada suavizavam-lhe as feições agudas, e o penteado era de certo modo diferente, não a fazia tão formidável.

- Todas nós - disse ela, olhando para o prato - fizemos um esforço. Faz parte da grande representação que são as nossas vidas na corte. - A jovem cortou uma fatia de carne e ficou a olhar para ela - Estou a ver que tens um provador - comentou.

Bridei sorriu.

- Ordens de Broichan.

- É estranho. Os provadores não são só para os homens poderosos e influentes? O meu pai não tem nenhum.

- O amigo de Bridei morreu envenenado - observou Gartnait, com a boca cheia de carne. - Não sabias, Ferada?

- Se fosse eu - replicou Ferada -, não quereria que morresse mais nenhum amigo.

Bridei pousou a faca, subitamente sem apetite.

- Estúpida - exclamou Gartnait, olhando para a irmã do outro lado de Bridei.

- Valham-me os deuses. Desculpa, Bridei - murmurou Ferada, brincando com umas migalhas de pão. - Falemos de outra coisa, sim?

Bridei não disse nada. O jovem não tinha jeito nem inclinação para aqueles jogos, em especial com a dama Dreseida ouvindo atentamente toda a troca de palavras do outro lado da mesa. Além disso, apercebeu-se que havia realmente algo de que queria falar. Queria fazer algumas perguntas a Ferada respeitantes a Banmerren, de onde ela viera pouco tempo antes. Não as podia fazer naquele momento com Dreseida a ouvir e os outros por perto. A dor provocada pela deserção de Tuala era muito recente, estava em carne viva. Reconhecia que era muito vulnerável naquela área, e tinha de ser cuidadoso para não ser atacado.

- Depois de uma estação ou mais ao ar livre - disse ele -, e agradável ter comida tão boa e cerveja. Verás que não somos grande coisa como conversadores. Lamento.

Ferada deu uma breve risada.

- Da parte do meu irmão isso não é novidade - replicou ela, Gartnait fez-lhe uma careta. - Tu, por outro lado, não podes usar essa desculpa, assim como não pareces estar a comer, com ou sem prOvador. Penso que gostas tanto da vida na corte como Tuala de estar ein Banmerren.

Bridei respirou fundo, lentamente. Fixou a mente na Que Brilha, impecável, calmo, sereno. A sua educação druídica, com as suas técnicas de equilíbrio e concentração, ajudavam-no muito naqueles momentos.

Suponho que a transição possa ser difícil, mesmo para um guerreiro experimentado como o teu pai - disse ele calmamente. O mundo da guerra, com noites ao ar livre e jantares em movimento, faz com que isto pareça... artificial.

O mundo é o mesmo - observou Ferada, pousando a sua taça.

A guerra na corte é que é diferente, mais nada. Se pudesse escolher, eu preferia as noites ao ar livre e os jantares em movimento.

Gartnait olhou para ela com o sobrolho franzido. Era desconfortável estar sentado entre os dois. Bridei não se lembrava daquela antipatia no Verão que passara na Fonte do Corvo.

- Não aguentavas dois dias - disse Gartnait. - Não fazes ideia do que aquilo é.

- Eu... - Ferada ergueu-se ligeiramente na cadeira, as faces muito coradas.

- A tua irmã tem uma óptima noção de estratégia - interrompeu Bridei rapidamente. - Falámos muitas vezes sobre estas coisas na Fonte do Corvo. Ferada não tem culpa de, por ser mulher, não poder experimentar em primeira-mão o sangue e a crueldade, a coragem e o sacrifício por que os homens passam em tempo de guerra, mas tenho a certeza que compreende o seu significado, tal como outra rapariga qualquer. Porém, tens razão, Gartnait, ninguém pode apreender a verdadeira natureza da guerra sem tomar parte nela. A guerra faz vir ao de cima o melhor e o pior nos homens.

Seguiu-se um pequeno silêncio entre os três, ao mesmo tempo que em redor as pessoas continuavam a rir e a conversar, as facas batendo nos pratos, e os jarros tilintando contra as canecas.

Bem dito, Bridei - disse Dreseida, muito séria. - Pelo que tenho ouvido, tu és considerado um herói. Espantoso, logo na tua primeira batalha. - A dama tinha o dom de transformar um cumprimento num insulto.

Houve muitos homens corajosos, minha senhora - respondeu Bridei em tom neutro. - Alguns morreram e outros ficaram gravemente feridos. O meu papel na batalha foi pequeno.

- Não me estou a referir à batalha. É evidente que todos desempenharam o seu papel nela. O que aconteceu depois é que te tornou famoso: o homem que roubou a Pedra Mágica mesmo nas barbas dos Celtas. Notável. É difícil imaginar uma sequência de acontecimentos que ilustre melhor o prestígio que conseguiste e a maneira como ganhaste a confiança dos teus camaradas. Se o que Gartnait diz é verdade, eles adoram-te.

Bridei sentiu as faces coradas.

- Se Gartnait disse isso, exagerou. Na ocasião, pareceu-me que não havia outra coisa a fazer. Valia a pena agarrar a oportunidade, foi um acto do agrado dos deuses. Houve muitos homens que contribuíram: Foirel de Galany, Ged de Abertornie, Talorgen. Limitei-me a oferecer os conhecimentos que tinha. A educação que tive é que tornou possível a remoção da pedra, a sua passagem para o lago e o seu transporte pelo lago acima, mais nada.

- Foi, de facto, um mais nada substancial - comentou Ferada, pela primeira vez num tom de voz sem malícia. - Um grande feito. Além disso, a ideia foi tua. Se não fosses tu, não teria acontecido. Pelo menos, foi o que o pai disse. - A jovem olhou para a mãe e calou-se.

- Obrigado - disse Bridei. - Aprendi muito. Aprendi que, por vezes, o risco vale a pena e aprendi a dar valor à camaradagem entre os homens. Estou grato aos deuses por isso. Espero que Foirel tenha conseguido levar a pedra até ao local onde ela se erguerá orgulhosamente mais uma vez. Quando regressarmos a Galany's Reach, já não será para conseguir uma vitória simbólica, será para erguer lá o nosso estandarte para sempre. Aquela terra é nossa e há-de ser reconquistada.

Dreseida estava a olhar para ele com os olhos semicerrados. Era evidente que estava a preparar uma das suas perguntas provocadoras.

- Meus senhores! Minhas senhoras!

As conversas esmoreceram. A música vacilou e desvaneceu-se. A voz pertencia a um dos guardas de Drust, um homem escolhido pelo seu peito em forma de barril e voz de trompa.

- Silêncio, vai falar o rei! - bradou.

Drust levantou-se. Bridei reparou que ele deixara uma mão pousada na mesa para se poder apoiar. A sua voz, no entanto, era forte e firme.

- Bem-vindos, todos - disse ele. - Estendo especialmente a minha mão àqueles que regressaram de Galany's Reach com a honra de uma vitória contra os Celtas de Dalriada. Pelos homens que pereceram por esta causa nobre, oferecemos uma oração para que tenham uma jornada rápida e pacífica para o reino para lá do véu. Que durmam profundamente nos braços da Mãe de Tudo e que acordem para um novo dia cheio de promessas. Por ocasião da festa da Medida, honrá-los-emos. - O monarca baixou a cabeça por breves momentos. Os homens e as mulheres presentes no salão fizeram o mesmo. Toda a gente menos Faolan, claro. Bridei viu de relance o celta sentado com os braços cruzados e a expressão habitual de divertimento no rosto. Aquele homem estava ao serviço de Drust? Por todos os deuses, devia ter qualidades raras para se permitir mostrar um tal desprezo no próprio salão do rei.

- As mulheres e os filhos dos que pereceram não passarão privações - continuou o rei -, e os feridos receberão as atenções dos meus próprios físicos na medida do possível. Este salão sente-se honrado por receber esta noite dois dos líderes desta grande expedição: Talorgen da Fonte do Corvo e Ged de Abertornie estão connosco, e receberão os meus agradecimentos pessoais sob a forma de presentes. Em devido tempo, espero que Morleo de Longwater e Foirel, filho de Duchil de Galany e verdadeiro chefe tribal daquelas terras a oeste, possam vir a Caer Pridne para receber a minha gratidão. Saúdo os feitos dos guerreiros que combateram sob a liderança destes grandes chefes tribais. A Guardiã das Chamas sorri-vos. O deus delicia-se com os actos dos bravos e presta honras aos corações corajosos. A Que Brilha olha para vós com amor. Peço a todos que assistam ao grande ritual que vamos celebrar aqui em Caer Pridne. Que cada um de vós, à vez, use a coroa dos sonhos e continue a percorrer o mesmo caminho com o fogo da inspiração dos deuses a iluminar-vos.

Os homens deram vivas aos berros. Os pés bateram com força no chão e os punhos nas mesas. Bridei descobriu que tinha lágrimas nos olhos. Consciente do olhar de Ferada e, pior ainda, do da sua mãe, controlou a respiração e não as deixou cair.

Avança, Talorgen, meu amigo. Ged, avança com ele. Que Corvo negro nos acuda, homem, quem é que te faz as roupas? Trazes mais cores contigo do que um arco-íris. - O comentário do rei foi recebido com uma gargalhada geral. Ged, sorridente, atirou com a capa multicolorida Por cima dos ombros e ajoelhou-se ao lado de Talorgen. Ninguém se colocava de pé perto do rei sem que lhe fosse dada autorização.

Drust afastou-se da mesa. O monarca enfrentou as pessoas ali reunidas com a figura alta e escura de Broichan um pouco atrás, como uma sombra, e Aniel a seu lado com um pequeno cofre nas mãos. Perto deles pairavam dois guarda-costas, flanqueando os dois homens ajoelhados. Um terceiro estava por trás da mesa e havia outros nos cantos do estrado. Drust não corria riscos. Se aquelas precauções eram necessárias, pensou Bridei, o que aconteceria quando a delegação de Cirdnn chegasse para apresentar a sua candidatura? E os outros pretendentes? O local ficaria repleto de grandes homens fortemente armados, fingindo que não estavam a fazer nada de especial. Se não fosse um assunto tão sério, daria vontade de rir. Bridei pensou que gostaria de contar o caso a Tuala.

- Levantai-vos, Talorgen, Ged. Somos velhos amigos. Agradeço-vos do fundo do coração. Conseguistes uma grande vitória para Fortriu, um feito que permanecerá vivo durante muito tempo através de canções e histórias. Em nome do amor, da gratidão e do orgulho da Guardiã das Chamas, dou-te isto, Talorgen. - Aniel tirou do cofre uma bracelete de ouro torcido, grossa como uma corda. - Para ti, Ged, isto, para prenderes essas capas chocantes. - O presente era um alfinete de ouro em forma de pena. Bridei não conseguia ver os pormenores, mas parecia ter várias placas ovais de esmalte incrustadas, o que o fazia brilhar como um arco-íris. Sorrindo, Ged prendeu-o de imediato à capa que tinha sobre os ombros. Parecia que aquele poderoso rei tinha um belo sentido de humor.

- Obrigado, meu senhor rei - disse Talorgen, fazendo uma vénia.

- Dás-nos uma grande honra - acrescentou Ged.

- Sentai-vos aí. Na mesa - convidou o rei. - Ainda vamos ouvir música e algum as histórias. Parece que temos uma canção nova. Diz respeito a um jovem e à deslocação de um objecto incrivelmente grande por terrenos incrivelmente difíceis. O meu bardo levou dois dias e duas noites para a compor. Tal feito inspirou-me o espírito e deliciou-me o coração. Eu não conheço o homem que o concebeu e que vos levou à sua execução, mas já o amo. Avança, Bridei, filho adoptivo do meu druida.

O coração de Bridei bateu com força. O jovem esperava uma coisa daquelas, mas não tão cedo. Para ele, ser honrado logo a seguir a Talorgen e a Ged era tão pouco apropriado que era quase ridículo.

Não tinha quaisquer palavras preparadas, mas esperava lembrar-se de algumas.

Bridei ajoelhou-se perante o rei e sentiu a presença de Drust como uma força, um calor quase tangível. O fogo da Guardiã das Chamas ardia, poderosa, no seu representante na terra. Quando o rei lhe colocou uma mão na cabeça, abençoando-o, o jovem sentiu um arrepio percorrer-lhe todo o corpo.

- Levanta-te, Bridei - disse Drust. - Nós os dois somos parentes. És parecido com a tua mãe, mas também tens alguma coisa do teu pai. Se bem me lembro, Maelchon era um grande homem, um grande líder, que não se deixava enganar com facilidade. No entanto, não teve a vantagem de uma educação druídica, não foi criado no amor aos deuses antigos nem à bela terra de Fortriu. Tenho um presente para ti, jovem. Sei que Ged te deu uma capa, mas não a tens contigo esta noite.

Pelo canto do olho, Bridei viu o sorriso aberto de Ged e o sorriso trocista de Talorgen.

- Não, meu senhor. - Se tivesse entrado no salão com aquela peça de vestuário, teria sido o centro das atenções.

- Não faz mal - disse Drust. - Este alfinete fica bem numa capa qualquer; eu próprio to vou pôr. - Enquanto a corte em peso olhava em completo silêncio, o rei tirou um alfinete de prata do cofre que Aniel lhe estendia e prendeu-o à capa de Bridei com as próprias mãos. O objecto tinha a forma de uma ave com as asas abertas e os seus olhos eram duas pedras azuis. Uma águia em voo: a chama de Fortriu.

- Bom trabalho, meu filho - continuou Drust serenamente. Estamos todos orgulhosos de ti. Ouvi dizer que perdeste um amigo há pouco. Vem, senta-te a meu lado, poderás contar-me essa história triste. Depois, quero que me contes o teu feito. Broichan assegurou-me que a Pedra Mágica não poderia ter sido deslocada sem a ajuda de feitiços druídicos. Ele e Aniel fizeram uma aposta nesse sentido. Eu não. A minha mulher não gosta dessas coisas. - Drust sorriu para a rainha, sentada à mesa, que lhe devolveu o sorriso com uma covinha ao canto da boca. - Vem, junta-te a nós. - O monarca ergueu a voz mais uma vez, dirigindo-se à corte reunida. - Comei, bebei, diverti-vos com a música, meus amigos e o meu bardo que se prepare. Após as palavras do rei tudo se tornou mais fácil para o jovem, o facto de ser primo de Drust tinha de chegar ao conhecimento das pessoas mais tarde ou mais cedo mas não significava, necessariamente que a circunstância faria dele um pretendente à coroa. Os candidatos tinham que ser filhos de uma princesa de sangue real e Drust escolhera cuidadosamente as palavras, não pronunciara o nome de Anfreda. Era possível que, para os que já tinham bebido muito, ou para os que não tinham inteligência ou não estavam interessados, o estatuto de Bridei como potencial candidato permanecesse desconhecido durante mais algum tempo. Porém, após as palavras do rei, o jovem passava a ser uma figura pública, quer quisesse, quer não.

Drust era um homem amável, inteligente e um bom ouvinte, mas não era possível contar a história da morte de Donal com todos os pormenores. Bridei só poderia contá-la na totalidade a uma pessoa visto que as lágrimas lhe cairiam pelas faces. O jovem limitou-se a alguns factos e o rei, com os olhos semicerrados, passou rapidamente para as roldanas, as alavancas, as jangadas, os rolos e as circunstâncias em que um grupo tão diferente de homens, cansados de uma longa marcha e desejosos de regressar a casa antes da chegada de reforços de Dalriada, conseguiram levar a cabo uma tarefa cuja grandeza só se equiparava à sua aparente loucura.

Explicar devidamente a odisseia exigiu o uso de facas, de malgas e de taças. O rei seguiu cada passo com grande interesse. Quando Bridei terminou, Broichan e Aniel declararam que tinham ganho a aposta. Aniel disse que podia ser tudo explicado pela força das alavancas e do equilíbrio. Broichan declarou que, sem a intervenção da Guardiã das Chamas na elevação inicial da pedra e a boa vontade da Que Brilha, que permitira que uma coisa tão pesada flutuasse, a deslocação teria sido impossível. Tinham sido ditas orações, sem dúvida, e invocações enquanto os homens puxavam pelas cordas. Os deuses tinham sorrido ao seu filho e ao seu plano fantástico. Os deuses queriam que a Pedra Mágica passasse para as mãos dos Priteni, que continuavam fiéis à sua fé.

- E Foirel ficou encarregue de a levar para Lago Mágico - disse Drust, abstracto, com o queixo barbudo apoiado numa das mãos. Também foi bem pensado, Bridei.

- Pareceu-me sensato deixá-la nas mãos dele, meu senhor rei. O povo dele perdeu quase tudo quando os Celtas lhe usurparam as terras. Foirel não queria sair de Galany's Reach depois de, por fim, ter pisado novamente aquele solo ancestral. Foirel é um líder; pode ter a reputação de ser impetuoso, mas é suficientemente inteligente para reconhecer que não podia ficar isolado, longe do posto avançado mais próximo. Os homens dele, porém, não são tão inteligentes. Sem um objectivo preciso, uma demanda, teria sido difícil obrigá-los a regressar. Se tivessem ficado, teriam sido massacrados com a chegada dos reforços de Gabhran. A Pedra Mágica permitiu-lhes retirar com o orgulho intacto. - Bridei apercebeu-se de que Drust não era o único a olhar para ele; todos os outros, sentados à mesa do rei, seguiam atentamente as suas palavras.

- Suponho que discutiste essa teoria com Talorgen e os outros chefes tribais?

Bridei sentiu corar as faces, como uma criança apanhada a mentir.

- Não exactamente, meu senhor rei. Tenho a certeza que estavam todos conscientes da delicadeza do momento. Se a questão fosse abordada abertamente, Foirel de Galany poderia sentir-se insultado, pareceria que eu é que sabia o que era melhor para ele. Foirel é um homem excelente e eu respeito-o.

- Hmm - murmurou Drust, encostando-se para trás. A mesa era uma confusão de facas e de taças, aqui e ali uma côdea ou um osso representando um objecto qualquer da história. - Broichan, tens aqui um jovem muito pouco vulgar.

- Obrigado, meu senhor rei. - Se o druida parecera surpreendido antes, naquele momento a sua expressão era normal, ilegível. Broichan tanto podia estar a sentir orgulho como não estar a sentir absolutamente nada.

- Estou a ver que já puseste Faolan a trabalhar - disse o rei em voz mais baixa, olhando para Bridei. O celta sentara-se na cadeira que o jovem deixara vaga e parecia tentar entabular uma conversa com lady Dreseida. A expressão da dama era glacial.

- Sim, meu senhor.

Algo no tom de Bridei atraiu a atenção do rei.

Não o julgues mal, Bridei - disse Drust. - Não encontrarias melhor. Por que imaginas que eu durei tanto? Aniel tossicou.

É claro que tenho conselheiros excelentes - acrescentou Drust -, é um druida excepcional, se bem que tivesse preferido afastar-se durante muitos anos. Não te deixes enganar pelos modos de Faolan, Bridei. O homem é um verdadeiro especialista.

- Preocupa-me - disse Bridei com alguma hesitação - o facto de ele trabalhar contra o seu próprio povo. Por que decidiu ele espiar para Fortriu? Por que decidiu viver entre gente que o despreza? Peço desculpa, meu senhor rei - disse o jovem, apercebendo-se de que Broichan estava a olhar para ele -, pela minha rudeza. Sei que ele vos tem servido bem.

- E também te servirá a ti enquanto precisares dele. Não subestimes os seus serviços. Valem mais do que cem alfinetes. Não aprofundes demasiado os seus motivos e não lhe faças perguntas sobre o passado: esse está enterrado. O homem é uma arma, uma ferramenta, eficiente e mortal. Tira partido dele e não lhe faças perguntas.

- Sim, meu senhor rei.

A cerveja quente com ervas voltou a correr, juntamente com bolos de mel, e a música ouviu-se de novo. As conversas generalizaram-se; Broichan afastou-se com Talorgen e Tharan; o rei chamou Ged para junto de si e Bridei viu-se ao lado de Ana, a rapariga dos cabelos dourados, que se tinha mantido até ali completamente silenciosa.

- As minhas desculpas - disse-lhe ele, um pouco atrapalhado. Se a jovem fosse como as mulheres da família de Gartnait, pô-lo-ia no seu devido lugar com as palavras apropriadas. - Aquilo foi uma falta de cortesia. Os homens têm o costume de pressupor que as mulheres não estão interessadas em determinadas conversas. A tua amiga Ferada já me disse que isso não é verdade. O meu nome é Bridei, filho de Maelchon.

- O meu é Ana, da Ilhas Pequenas, cujo rei é meu primo.

- Bridei acenou com a cabeça.

- Ferada disse-me. Deve ser muito difícil para ti.

- Já estou habituada - disse ela, brincando com a franja do cinto.

- Por vezes, sim, é difícil, mas o rei Drust permite-me certas liberdades.

- Disseram-me que passas algum tempo em Banmerren. Estás a ser educada lá?

Ana sorriu, fazendo com que o seu rosto já bonito adquirisse um encanto deslumbrante.

- É verdade - disse ela. - É claro que Ferada, eu e as outras raparigas de sangue nobre não estudam as disciplinas esotéricas, como a adivinhação ou as profecias. Estudamos o conhecimento das ervas, o que pode ser útil. Não aprendemos os rituais na sua totalidade, apenas a parte que a mulher de um chefe tribal pode ser chamada a desempenhar e temos uma tutora de história e de política muito boa. A tua irmã! - Ana olhou para o rosto de Bridei; os seus grandes olhos fixaram os dele e a sua expressão mudou - Tens saudades dela - disse ela docemente.

Bridei olhou para as mãos. Devia estar cansado; não devia ter deixado abrir a guarda daquela maneira. O jovem aprendera a dissimular os sentimentos com um mestre. Talvez fosse da dor de cabeça, que desaparecera quando o rei lhe tocara na cabeça e que estava a regressar, latejando como um tambor. Bridei não disse nada.

- Eu entrego-lhe qualquer mensagem que me dês - disse Ana.

- Dentro de pouco tempo regressamos a Banmerren. Penso que Tuala gostará de ter notícias tuas. Apesar de ir bem nos estudos e de as tutoras gostarem muito dela, creio que se sente muito só.

Era impossível não perguntar.

- Falas muitas vezes com ela? Ela é tua amiga? Ana continuava a brincar com o cinto.

- Tuala não faz exactamente amigas. Ela fala comigo e com Ferada, que já conhecia antes de ir para Banmerren. Deram-lhe um pequeno quarto na torre, só para ela. A mim, pareceu-me esquisito, pareceu-me que estavam a tentar demonstrar que ela é diferente de nós, mas Tuala não se importa, tem um carvalho mesmo no lado de fora da porta e de vez em quando trepa para cima dele. Penso que nessas ocasiões está a pensar em Pitnochie. Tuala é uma rapariga invulgar, parece um animal selvagem.

- São boas para ela? - Bridei não queria fazer a pergunta que desejava. Só Tuala lhe podia falar das razões que a tinham levado a entrar para Banmerren, virando-lhe as costas.

Ana começou a responder, mas depois calou-se. O bardo do rei sentara-se com a pequena harpa nos joelhos, perto da mesa. Chegara a hora de a heróica história da Pedra Mágica ser contada com todo o seu esplendor. Bridei viu-se a si próprio a esperar fervorosamente que o seu nome fosse mencionado o menor número de vezes possível. Na ocasião fora um acto de generosidade, unira os homens e mantivera a mente ocupada; mantivera os sonhos sombrios afastados. Porém, não via razão para que o que fizera fosse imortalizado. As pessoas faziam o que tinham que fazer e, se corria bem, era aos deuses que deviam agradecer.

Para seu alívio, apesar do seu nome aparecer na história, a ênfase ia para o rei Drust, sob cujo estandarte se desenrolara a aventura contra os Celtas: Drust, a personificação terrena do mais heróico dos deuses guerreiros, a Guardiã das Chamas. Talorgen também aparecia, juntamente com Ged e os seus guerreiros multicoloridos, Morleo de Longwater e Foirel de Galany. A pedra era descrita poeticamente e as suas inscrições interpretadas.

O bardo do rei tinha uma voz poderosa e suave; os seus dedos longos tangiam as cordas da harpa evocando umas vezes um prodígio, outras o terror, outras o mistério e outras o patético com a perícia de um profissional e a sensibilidade de um verdadeiro poeta.

Quando a história acabou, a corte reunida aplaudiu ruidosamente e depois pediu mais música. As gaitas-de-foles soaram, agudas, os tambores começaram a marcar o ritmo e as pessoas afastaram as mesas, preparando-se para dançar.

Ferada aproximou-se com a mãe logo atrás. Era evidente que iam em busca de Ana, que se levantou. Era preciso tomar uma decisão: só os deuses sabiam quando teria uma nova oportunidade!

- Toma - disse Bridei, olhando em redor para ver se Broichan não estaria a olhar para eles e tirando a fita azul da bolsa. - Por favor, dá-lhe isto.

Ana recebeu o objecto e meteu-o por baixo do cinto, escondendo-o. A jovem olhou novamente para ele com uma pergunta nos olhos.

- Se pudesses guardar segredo... Suponho que este tipo de comunicação é proibido - disse Bridei em voz baixa.

- Não tens nenhuma mensagem? - perguntou Ana.

Ferada parara para falar com o pai. Dreseida percorria a multidão com o olhar, atenta à agitação provocada pelos casais colocando-se em linha ao longo do salão.

- Diz-lhe que respeito a decisão dela. - Parecia uma coisa fria, formal; não era, de modo nenhum, o que lhe ia no coração. - E que espero que seja feliz. Nunca pensei que A Que Brilha a chamasse. O jovem parou; já era demasiado.

Ana acenou levemente com a cabeça, ao mesmo tempo que Ferada a levava para dançar. O momento passara.

Mais tarde, quando estavam todos deitados e o brilho branco e dourado da Lua se espalhava por cima de Caer Pridne, Bridei passeava pelo caminho de ronda, perto dos aposentos de Broichan. A dor de cabeça não lhe permitia adormecer, ou sequer ficar quieto; tinha de pedir uma poção qualquer a Broichan no dia seguinte, se bem que desconfiasse que nem a mais potente o aliviaria.

O jovem ouviu um som quase inaudível atrás de si. Bridei girou com a faca subitamente na mão, alerta.

- Muito bem - disse Faolan, saindo da sombra para a luz do archote. - Pensei que te ia apanhar a sonhar. Tens o hábito de passear sozinho de noite? Onde estão os teus guarda-costas?

- A dormir. Disse-lhes que fossem descansar. Breth está à porta do meu quarto, não está a mais de quatro passos. Pode chegar aqui em dois momentos.

- Um momento é o tempo suficiente para que uma faca se enterre no teu coração - disse Faolan. - És pouco cuidadoso, mas não pensei que fosses tolo.

- Irrita-me passar a vida a fugir das sombras. Apesar disso, hei-de aprender, com o tempo. O rei Drust é um bom exemplo.

- Drust teve excelentes protectores. - Faolan encostou-se à muralha ao lado de Bridei. Poucos archotes estavam acesos; estava tudo calmo salvo o som do mar a bater suavemente nas rochas do ancoradouro. A Lua iluminava palidamente a praia e as águas escuras como tinta da baía. - E tu também vais ter, mas mais ter que aprender a seguir os seus conselhos se quiseres viver tanto tempo como ele.

Bridei não podia permitir que tanta presunção passasse despercebida.

- Tu és um homem novo - disse ele. - Deves perceber, certamente, o que é viver assim, limitado, sempre acorrentado por aqueles que procuram a minha segurança. Eu fui educado por um druida, estou acostumado a estar só, estou habituado à solidão. Estou habituado a passear pela floresta sem ser incomodado. Como hei-de saber qual é a vontade dos deuses se não posso ouvir as suas vozes? Como hei-de ouvi-los se não posso ficar sozinho? Como hei-de ser quem tenho de ser sem isso?

- Não estou minimamente qualificado para responder a essas perguntas - disse Faolan -, mas sempre te digo que houve gente que conseguiu resolver o problema. Existem diversas pessoas que têm muita confiança em ti. Se vieres a ser rei, poderás fazer as tuas próprias regras. Poderás dispensar os meus serviços; eu só fui contratado Para te proteger até essa ocasião. Estou-me nas tintas para as divindades que te murmuram ao ouvido. A única coisa que me interessa é desempenhar bem o meu trabalho e não posso permitir que tu o ponhas em causa correndo riscos estúpidos.

Bridei não respondeu. Na verdade, não podia visto que foi assaltado por nova dor. O jovem pensou que a sua cabeça se ia abrir ao meio. Com um grande esforço, conseguiu evitar vomitar para cima dos pés de Faolan.

- O que é que se passa? - O celta aproximara-se e perscrutava o rosto de Bridei. - Estás ferido? Bebeste demais? Não, bebida não pode ser, mal tocaste na cerveja. Tens dores? Estás com uma dor de cabeça?

Bridei sentiu um arrepio a percorrer-lhe o corpo.

- Estou habituado - disse ele num murmúrio. - Durmo pouco. Isto passa.

- Uma droga qualquer. Distracção. Trabalho árduo. Ou uma mulher - disse Faolan, contando pelos dedos. - Há quanto tempo não estás com uma mulher? Pode-se arranjar uma.

- Não. - Bridei esperava não ter que explicar nada. Faolan era o último homem a quem confiaria as razões do seu voto de celibato, o voto a que jurara obedecer até ao dia do seu casamento.

- Nesse caso, suponho que vamos ficar aqui a conversar até de manhã - disse Faolan. - Pelo menos, sentemo-nos, sempre ficamos mais confortáveis. É isso mesmo, senta-te aqui. Há quanto tempo é que tens essas dores de cabeça?

O tom de voz do celta era quase amigável. Evidentemente, fazia parte do seu trabalho conquistar a confiança dos outros.

- Desde a batalha de Galany's Reach. Talvez antes.

- E qual é a razão? Será possível ser uma consequência do envenenamento? Algo subtil, de efeito retardado?

- Duvido. Suponho que em breve saberemos, Breth ou Garth hão-de ter as mesmas dores.

- Tu não gostas de demonstrar fraqueza. Seguiu-se um silêncio.

- Fui treinado para revelar o menos possível - disse Bridei. Como deves imaginar, suponho, é útil.

- Percebo-te muito bem - replicou Faolan tranquilamente. Não tens ninguém em quem confiar. Nem sequer no teu druida confias. Já sabes o que significa ser rei.

- Shhh - sibilou Bridei.

- Achas que diria uma coisa destas se pudesse ser ouvido? Nisso, pelo menos, podes confiar em mim. Não tenho o menor desejo de ouvir os teus pensamentos mais íntimos, estou apenas interessado em te curar dessa maleita. É minha responsabilidade manter-te vivo e em perfeitas condições até ao Solstício de Inverno.

- Nesse caso, deixa-me só - disse Bridei, incapaz de esconder o cansaço.

- Sozinho com as estrelas - observou Faolan, divertido. - Isso cura-te as dores de cabeça? Eu volto para o meu lugar, Bridei, para a sombra. Não saias desta parte do caminho de ronda; não te posso perder de vista.

- Tencionas ficar acordado toda a noite?

- O meu sono ou a falta dele deve ser a última das tuas preocupações. Reza, medita, sonha faz o que quiseres, mas fica onde te possa ver. Quanto aos espaços abertos e à voz dos deuses, suponho que, com o tempo, hás-de ouvi-las. Se não, suponho que terá sido tudo em vão.

 

                                       CAPITULO TREZE

Tinham acampado na sua árvore. À medida que o Verão se tornava num Outono frio e áspero, as suas formas podiam ser avistadas, por vezes, no meio da copa verde, esquivas como esquilos, uma cinzenta, como uma teia de aranha e a outra vermelha como uma baga e castanha como uma noz. Mais ninguém as conseguia ver. As duas personagens estavam ali exclusivamente por causa de Tuala.

À noite, quando a jovem se instalava num ramo à luz do luar, sonhando com Pitnochie, instalavam-se a seu lado, a rapariga espalhando as saias prateadas e o rapaz confundindo-se com as sombras e a textura da árvore, tal era a forma do seu corpo e a natureza do seu vestuário, cascas de árvore, folhas e fetos.

- Tendes nomes? - perguntou-lhes Tuala uma noite, cansada de, mentalmente, lhes chamar rapariga da floresta e Homem-Folha.

- Não temos nomes iguais aos dos humanos - disse a rapariga com uma risada cristalina. - A ti, chamam-te Tuala. Que nome é esse? Para já, não faz jus à tua beleza; deviam ter-te dado o nome de coruja branca, ou o nome daquelas flores brancas que se agarram tenazmente às fendas dos penhascos. Tuala: isso é nome de mulher importante, nome de mulher de rei.

Tuala não lhe disse que, provavelmente, Bridei o escolhera precisamente por aquela razão. Nas canções da sua infância, ele chamava-lhe muitas vezes princesa.

- Perguntei por uma questão de facilidade, para que me possa dirigir a vós como vós vos dirigis a mim.

- Os humanos dar-nos-iam nomes de acordo com o que vêem disse o rapaz. - Para a minha companheira, Teia, Salgueiro, Névoa. Para mim, talvez madressilva.

- Teia e Madressilva. Dois nomes bonitos.

- Servem - disse a rapariga. - Agora, diz-nos lá o que aprendeste hoje?

- Agora, Irethra também aparece nas minhas aulas privadas. Mostrei a ela e a Fola como faço mexer as coisas sem lhes tocar. Irethra queria que eu fizesse mais; até agora, só o tenho feito com objectos pequenos, as peças de um jogo, uma faca ou um pente, quando é preciso. Ela perguntou-me se eu era capaz de fazer mexer um objecto sem o estar a ver; se eu era capaz de manipular a sua velocidade de deslocação. Se tinha importância o seu tamanho, ou o seu peso. Ela queria que eu tentasse no exterior, com barris ou pedaços de ferro.

- E tu tentaste?

- Fola disse que não.

O rapaz, Madressilva, franziu o sobrolho.

- Não aprendeste nada. Revelaste os teus segredos.

- Isso não é bom para ti - disse Teia. - Ainda não percebeste por que razão essa gente te tem aqui? Estão a usar-te. Um dia destes, consegues pôr um barril em cima de uma carroça e no seguinte atiras uma barra de ferro pelo ar em termos de esmagar o crânio de um homem, ou de uma mulher. Um dia destes, crias imagens muito bonitas de borboletas e flores com efeitos de luz e no seguinte provocas um raio que deslumbra um homem enquanto outro lhe atravessa o coração com uma lança. És louca se pensas que te trouxeram para aqui para aprender.

- Estamos sempre a aprender.

- Ah. Repetes o ditado favorito do druida. Suponho que sim. Por isso mesmo, devias ter aprendido hoje que a nossa espécie é facilmente explorada pelos humanos se lho permitirmos.

- Não acho...

- Não - disse Madressilva. - Não achas, mas devias. Este sítio não é para ti. Tens olheiras e estás mais magra do que uma galinha meio morta de fome.

- Fora de Pitnochie, definhas - disse Teia docemente. - Deixa que te levemos para casa.

Tuala fez um esforço enorme para não chorar.

Pitnochie já não é a minha casa - replicou ela. - Pelo menos,

Ela e Irethra gostam que eu esteja aqui; posso contribuir com alguma coisa; posso servir A Que Brilha; estou a progredir como tutora; as raparigas começam a confiar em mim; posso fazer a minha vida em oanrnerren.

- Disparate - disse Teia. - Tu odeias isto. Além disso, não estamos a falar de Pitnochie. Ninguém te quer lá. Vem para casa connosco. Nós não temos tristezas nem sofremos de solidão; não sentimos o dedo da morte.

Tuala estremeceu e embrulhou-se mais no xaile. Ana entregara-lhe a mensagem. Bridei devolvia-lhe a fita, o talismã que usava junto à pele desde o dia da partida. As palavras que a acompanhavam eram frias e corteses, a espécie de palavras vindas de um rapaz que seria, um dia rei de Fortriu. Bridei respeitava a sua decisão, esperava que ela fosse feliz. O seu significado era nulo, salvo que ele não a impediria. Aquelas palavras eram a confirmação de que tomara a decisão certa. Bridei não precisava dela; arranjaria outra para caminhar a seu lado.

A última parte da mensagem era diferente. Nunca pensei que A Que brilha te chamasse. Talvez estivesse a iludir-se a si própria, mas aquilo soava-lhe a infelicidade. Se o pudesse ver, falar-lhe, olhá-lo nos olhos, saberia o seu estado de espírito. Tuala ansiava tanto por aquilo como uma mulher esfomeada anseia por pão fresco ou por água límpida em caso de sede: a verdade nua e crua vista nos olhos de um amigo que não é capaz de mentir. Se tivesse hipótese de ler o que lhe ia na alma, talvez se pudesse afastar com mais facilidade.

- Não posso ir convosco, sussurrou ela. - Teria de deixar muitas coisas para trás. Não acredito que não haja nada para mim no mundo dos humanos. Mesmo que não possa ter... mesmo que a vida não venha a ser o que eu desejo, ir convosco, passar a fronteira para um reino tão diferente, um local de onde nunca poderei regressar... seria demasiado final. Seria como cortar os últimos laços que me ligam às coisas de que gosto.

Teia riu-se de novo, um som cristalino. Era espantoso como mais ninguém em Banmerren o conseguia ouvir.

- Gostar - repetiu a rapariga. - Gostas muito dessa palavra, Tuala. No nosso mundo há muitas coisas boas, belas. Todos gostariam de ti; serias a princesa cujo nome tens há muitos anos. A Que Brilha olha para os nossos dois mundos da mesma maneira, minha irmã. Atravessa a fronteira e continuarás a gozar da sua benevolência eternamente, terás uma vida livre, sem cuidados, ao contrário da que tens neste mundo. Nunca mais te preocuparás com pessoas que querem que faças truques e lhes reveles os teus segredos. Nunca mais terás de ver aquele que pensas amar junto de uma determinada rapariga, uma rapariga que tem uns cabelos que parecem uma cascata dourada. Nunca mais pensarás nessas coisas assim que passares para o nosso mundo; até te vais rir por te teres preocupado. Sabias que quando um dos nossos casa com um humano perde a imortalidade? Quem escolhe a morte se pode ter a vida eterna?

- Não quero ouvir mais nada. Já vos disse vezes sem conta. Vou ficar aqui em Banmerren. A deusa quer que eu seja uma Mulher Sábia. A minha escolha está feita. - Com uma dor no coração, Tuala apercebeu-se de que quanto mais pronunciava aquelas palavras menos se sentia inclinada a acreditar nelas.

- Por que é que não fazes uma experiência? - Madressilva estendeu uns dedos nodosos para lhe tocar num joelho, mas Tuala afastou as pernas.

- Não faças isso! Que queres dizer com isso, uma experiência?

- Ele mandou-te uma mensagem - disse Teia, de pé, a sua silhueta esbelta recortada contra a Lua, os braços graciosos abertos por cima da cabeça e descansando num ramo mais alto, o vestido de teia de aranha flutuando, os pequenos pés brancos bem firmes. - Manda-lhe também uma. Se te sentes infeliz, diz-lhe. Experimenta. Se falhar, ficarás a saber que tinhas razão. Então, terás que aceitar a verdade e nós levamos-te para a floresta. Não tens saudades do verde e do silêncio?

- É proibido - disse Tuala. - Ele arriscou-se muito quando deu a fita a Ana; as raparigas que estão a ser treinadas para ser sacerdotisas não podem ter contactos com o mundo para lá destas muralhas, a não ser que Fola ou Irethra o autorizem. Posso metê-lo em sarilhos. Além disso, ele não me pode levar para casa, tem de ficar em Caer Pridne.

- Se ele achar que não vales o risco - disse Teia descuidadamente - nem sequer te responde. Tens de fazer com que a mensagem seja subtil. Ele conhece-te bem. Manda-lhe algo que mais ninguém consiga interpretar. Desse modo, nem ele nem tu correrão perigo.

- Por que me estás a sugerir isso? - Aqueles dois não eram de confiança; seguiam as suas próprias e impenetráveis regras.

Porque sabemos que não virás connosco senão quando a tua mente estiver satisfeita - disse Madressilva, pondo-se de pé no ramo ao lado de Tuala. - Tens de pôr os pontos nos "is", tens de saber a verdade nua e crua: que não contas na vida dele; que a vida dele continua sem ti; que, de facto, o fardo que tu representas não o ajudará a cumprir o seu destino. Alguma vez um rei de Fortriu casou com uma filha dos Boa Gente? Além disso, que outra coisa havias de ser? Que mulher te toleraria em sua casa, esgotando a energia do seu marido distraindo-o permanentemente? Não estás à espera que Bridei sacrifique a hipótese que tem de ser rei por tua causa? É claro que, como é um jovem bem-educado, não o dirá do mesmo modo que eu, mas tu conhece-lo, compreenderás a sua mensagem. É o melhor que tens a fazer; tiras-nos a todos desta angústia. Sê audaz. O rei Drust apanhou outra constipação; não dura muito mais tempo.

As duas personagens não gostavam de despedidas. Uma última observação, normalmente calculada para magoar e desapareciam no meio das folhas iluminadas pelo luar como pequenas nuvens de fumo, deixando Tuala sozinha com os seus pensamentos. Naquela noite foi a mesma coisa; desapareceram num abrir e fechar de olhos e na mente da jovem ficou a mensagem, como se Tuala a tivesse planeado, na qual dizia a Bridei onde e quando a poderia encontrar mas em termos que mais ninguém compreenderia. Pelo menos, assim esperava. Em Ana podia confiar. Quanto às palavras cruéis acerca de noivas e reis, faria de conta que não as tinha ouvido. Com o coração a bater que nem um tambor, Tuala arrancou uma folha seca do carvalho e regressou à sua torre.

Antes da estação começar a escurecer, aproximando-se da época do Portal, Drust adoeceu novamente. As noites eram frias; os homens de guarda tremiam nos seus casacos de pele de ovelha, nas suas capas forradas de pele e nos seus chapéus de feltro e as lareiras estavam sempre acesas nos quartos de pedra cheios de correntes de ar de Caer Pridne. A tosse do rei ouvia-se nos corredores como um grito rouco de morte, como uma emanação do próprio Corvo Negro. Drust tinha sempre as faces coradas num rosto desprovido de qualquer cor; a rainha Rhian, permanentemente com as feições agradáveis franzidas de preocupação, vagueava pelo aposento tentando, com as próprias mãos, evitar que as correntes prejudicassem ainda mais a saúde do seu real marido. Dizia-se que só a magia de Broichan o mantinha ainda vivo.

Porém, Drust não era nenhum fracote. O monarca não se aguentara tanto tempo no poder por desistir em tempos difíceis. O rei mudou o seu centro de operações para um pequeno quarto que podia ser aquecido convenientemente e mandou colocar potes de água a ferver perto da lareira, em cuja água flutuavam as folhas esmagadas de algumas ervas curativas, o funcho e a calaminta. O rei bebeu uma infusão de nozes esmagadas e mel, mas não conseguia esconder o seu apetite de pardal. Em redor do quarto multiplicavam-se os amuletos: pedras brancas para A Que Brilha em conjuntos de três, cincos e setes; um colar de pequenos homens de palha, cada um com uma grinalda de folhas outonais na cabeça minúscula e um cinto encarnado e dourado: filhos da Guardiã das Chamas, cujo calor gerava colheitas fartas; por cima da porta estava uma coroa de folhas verdes e junto da lareira uma trança de alhos. Bridei recordou-se de Pitnochie e das lições de Broichan sobre amuletos de protecção. Não respondas como uma criança, responde como um druida.

Naquele momento, o jovem podia responder como um druida. O rei estava a morrer. A Mãe de Tudo aproximava-se com os braços estendidos; aqueles amuletos não impediam o seu avanço. Talvez o retardassem durante uma Lua ou duas, mas não mais. A verdade estava nos olhos de Drust e o rei enfrentava-a sem medo. O monarca só queria ter a certeza de que o seu reino não descambaria para um caos de rivalidades, desafios e jogos de poder assim que fechasse os olhos.

Como moscas pairando sobre um animal a morrer mas que ainda respirava, os nobres do sul tinham descido sobre Caer Pridne. Drust, o javali, não fizera a viagem. No seu lugar tinham viajado os seus dois principais conselheiros e um padre cristão, um gesto de insolência sem precedentes. Caer Pridne nunca alojara um cristão e não tinha desejo de o fazer; quem seria suficientemente louco para ofender os deuses com o rei às portas da morte? Infelizmente, o facto de o irmão Suibne - um celta, portanto duplamente indesejável - fazer parte de uma delegação real, exigia que ele fosse principescamente alojado e com toda a cortesia. Os rostos mostraram sorrisos e as vozes esconderam ? ressentimento. Os três homens receberam um quarto óptimo com uma antecâmara privada onde o homem podia levar a cabo os seus rituais estranhos longe do olhar das pessoas leais aos deuses. O que tinha de ser vigiado, disse Broichan ao seu filho adoptivo, era o conselheiro-mor de Circinn, um homem chamado Bargoit. O homem era de falinhas mansas, tinha poucos escrúpulos e ao longo dos anos tinha conseguido dobrar Drust, o Javali, à sua vontade. O outro, Fergus, era dominado por Bargoit. O que um decretava, o outro apoiava. Os três homens tinham chegado cedo. O druida esperava que eles não falassem a muitos ouvidos e não provocassem demasiados danos. Quanto ao padre, se àquilo se podia chamar padre, a sua presença era um insulto. Broichan suspeitava que Drust de Circinn fizera um mau serviço à sua candidatura ao trono do norte. Bastava olhar para o irmão Suibne para que qualquer nobre de Fortriu pensasse no que aconteceria se as duas partes do reino caíssem nas mãos de Drust, o Javali. Os que eram leais aos deuses nunca o escolheriam.

O tempo passou rapidamente. Bridei viu os seus dias preenchidos com conversas crípticas, trocas de palavras sussurradas nos corredores, manobras delicadas com um ou outro homem influente. A princípio, a conselho de Broichan, fez de jovem inocente, tranquilo e bem-educado, parco e simples nos seus comentários. As pessoas sabiam, claro. Se não tinham percebido, na noite em que Drust lhe dera o alfinete da águia e a sua bênção, que o filho adoptivo do druida de Pitnochie era um pretendente genuíno ao trono, ficaram a perceber pouco depois. Todos o avaliavam. À vez, Bridei começou a lidar com todos, tratando com cada um de acordo com o grau de ameaça que representavam e a probabilidade que havia de mudarem de ideias. Se uma parte dele ansiava por mudar de caminho, um caminho que o levaria a Pitnochie e a uma vida sossegada de intelectual, não permitia que o seu pensamento se demorasse nele. Como verdadeiro filho de Fortriu, Bridei não podia recusar o que, cada vez mais, parecia ser um chamamento dos deuses. Se fosse rei, concretizaria o grande sonho confessado a Fola; trabalharia para curar o reino dividido dos Priteni. A perspectiva era ao mesmo tempo assustadora e poderosamente encorajadora.

Era costume cada uma das sete casas oferecer apenas um candidato e daquela vez pareceria que seriam menos de sete; as tribos do sul, em particular, não apresentariam candidatos próprios visto que Drust, o Javali, era, com efeito, senhor daqueles territórios. A linhagem real provinha da casa de Fidach, cuja terra-mãe ficava no Grande Vale, mas como a descendência era pelo lado feminino e as princesas de Fidach tinham casado com chefes tribais de todas as partes do reino dos Priteni e não só, havia pretendentes válidos em cada uma das sete casas.

Parecia que, daquela vez, as Ilhas Pequenas não iam apresentar pretendente. A presença de Ana na corte de Drust e a possibilidade de outros membros da mesma família serem também tomados como reféns limitava a sua ambição. Dizia-se também que os chefes tribais daquelas ilhas, que eram vassalos de Drust, o Touro, tinham tido uma espécie de garantia. A refém real casaria com o novo rei se este não fosse ainda casado, o que engrandeceria o estatuto da sua família e aproximaria o seu primo do nível do monarca de Fortriu. Como resultado, seguir-se-iam acordos comerciais e outras vantagens. Alguém fora inteligente.

A casa de Caitt era imprevisível. Bridei chegara a acreditar que seria possível uma aliança com aqueles selvagens do norte, mas Broichan fê-lo desistir da ideia. Tinham-se passado gerações desde que os Caitt tinham apresentado um pretendente ao trono de Fortriu. Ninguém esperava surpresas daquelas bandas. Quanto ao futuro, Bridei tinha os seus próprios planos. Os Caitt tinham sangue Priteni e eram fortes. Se fosse rei, começaria, pelo menos, a explorar uma hipótese de uma aproximação.

Dos dois parentes mais próximos de Drust, o ruivo Carnach era o pretendente mais forte. O homem falava bem, era capaz e estava a reunir um bom número de homens influentes, entre eles Tharan, o conselheiro do rei. Aniel dissera que Tharan era perigoso. Havia algum trabalho para ser feito naquele campo.

Wredech foi deixado à mercê de Talorgen. Seria necessária alguma pressão, não muita, para persuadir aquele primo de Drust, o Touro, de que seria sensato da sua parte deixar cair a candidatura devido a uma questão de gado que tinha desaparecido misteriosamente e a uma bolsa de moedas de prata que tinha mudado de mãos mesmo nas barbas de Drust. Se o papel de Wredech naquilo tudo fosse tornado público, como seria se ele se declarasse interessado na candidatura, seria desacreditado perante os seus pares e perderia o gado, incluindo um belo touro que já tinha coberto diversas vacas. Por outro lado, se apoiasse o candidato favorito de Talorgen, nada seria dito e até poderia haver um aumento de unidades na manada de Wredech.

As propostas de Talorgen não foram feitas às claras, todas ao mesmo tempo, foram feitas com subtileza, tirando partido das fraquezas do homem. Bridei não podia fazer outra coisa senão mostrar-se amistoso e respeitoso para com Wredech quando se conheceram, evitando conversas sobre parentesco e gado.

Não pôde evitar os conselheiros de Circinn, Bargoit, Fergus e o padre cristão. Bargoit era mesmo perigoso: a insinuar era um mestre, fazia perguntas difíceis, recorria habilidosamente a evasivas e atacava inesperadamente. Bridei sentiu-se sobrecarregado; a dor de cabeça era mais ou menos constante e não contribuía nada para a sua concentração. O jovem não pediu uma poção a Broichan. O druida andava muito ocupado, passava os dias e as noites à cabeceira de Drust, fabricava remédios queimando ervas poderosas, dizia orações e, provavelmente, fazia o papel de amigo e companheiro porque os dois homens tinham passado muito tempo juntos até Bridei ir para Pitnochie.

A princípio, o jovem pensara que nunca se habituaria aos seus três guarda-costas. Porém, na atmosfera carregada da fortaleza sobrepovoada, começou a achar a presença constante de um ou outro daqueles grandes homens muito tranquilizadora. Se Garth, ou Breth, estavam a seu lado, vigilantes, Bridei podia concentrar-se noutras coisas como debater com o irmão Suibne a natureza dos homens e dos deuses ou num jogo de Corvo que chega e vem com o perspicaz conselheiro Tharan perante uma audiência tensa constituída por Aniel e pelos dois conselheiros de Circinn. Bridei sabia que estava numa montra; os seus guardas asseguravam que ele não precisaria de se preocupar com uma possível faca nas costas.

Faolan deixou que Breth e Garth partilhassem a responsabilidade da vigília. O celta não estava ocioso. Reunia informações, investigava o passado dos pretendentes, falava com os servos e os escravos e examinava secretamente os alojamentos dos visitantes enquanto estes estavam ocupados noutros locais. Durante a noite, ficava de guarda quando Bridei não conseguia adormecer. Se descansava ou não, ou quando, não era possível saber. O celta não aparentava sinais de cansaço.

As jovens tinham regressado a Banmerren algum tempo antes e deviam estar a regressar à corte. Tuala continuava no pensamento de Bridei. À noite, o jovem ia para o caminho de ronda, olhava para a Lua e imaginava-a com o vestido cinzento de sacerdotisa, com uma malga de bronze cheia de água na mão por ocasião do ritual do Solstício de Verão, ou olhando para um conjunto de pétalas brancas por ocasião de Harmonia. Bridei pensava nela a olhar para a água da malga de bronze, os seus olhos estranhos abertos para um mundo que estava para além da sua compreensão. O jovem imaginava-a a rir, os cabelos esvoaçando ao vento; as suas mãos conheciam intimamente aquela cabeleira porque os seus dedos tinham-na entrançado mais vezes do que conseguia lembrar-se. Bridei pensava na promessa que lhe fizera e que fizera os possíveis por cumprir. Tuala já não era uma criança, não precisava das suas histórias para afastar o desconhecido. Tuala tinha mais ou menos a idade de Ana; já era uma mulher e afastara-se dele. A Que Brilha tocara-a em criança e voltara a estender a mão, chamando-a. Haveria serviço mais puro para os deuses do que o do druida, ou da Mulher Sábia? Não podia querer-lhe mal! No entanto... no entanto...

- Bridei?

- Hmm?

.- Vamos ter uma folga amanhã - anunciou Faolan do seu canto escuro junto dos degraus da escada.

- O quê?

- O tempo está seco. Não sei qual é a tua opinião, mas eu estou farto disto. Levamos dois cavalos, cavalgamos ao longo da praia, procuramos uns lugares selvagens que mencionaste e descansamos. Nem reis, nem conselheiros, nem sacerdotes, nem druidas. Que achas?

- Nem Breth nem Garth? Faolan não sorriu.

- Eles também merecem. Tens-me a mim; não precisas deles.

- Portanto, não vais ter folga.

- Eu nunca tenho folga, Bridei, mas, pelo menos, é uma mudança. Soava-lhe bem; notavelmente bem. Afastar-se da coroa durante um dia inteiro era uma perspectiva maravilhosa.

- Já disse a Broichan - disse Faolan. - Vou arranjar umas rações para levarmos. Tens de estar pronto muito cedo.

- Sabes - observou Bridei - custa-me a acreditar que tenhas tomado esta iniciativa. Tu não és a espécie de homem que tira uma folga quando há assuntos urgentes para atender. Se há mais qualquer coisa, preferia que me dissesses.

Durante alguns momentos, Faolan não disse nada.

- Podemos fazer isto mais do que uma vez - acabou por dizer.

- Podemos estabelecer um padrão. Pode ser útil.

- Para quê?

- Para atrair um ataque - respondeu o celta friamente. - Não amanhã; uma vez dada a indicação sobre onde podemos ser encontrados em certos dias e em determinados momentos.

- Que maravilha. Supostamente, vou cavalgar alegremente para os montes e levo com uma flecha no coração.

- Pensei que eras o melhor arqueiro de Fortriu - disse Faolan em tom brejeiro. - Não deixes que a coisa te aborreça, Bridei. Eu sei o que estou a fazer. Caer Pridne está tão cheia de guarda-costas que ninguém se atreve a fazer seja o que for. Os teus adversários estão à espera de uma oportunidade e nós vamos dar-lha.

- Estou a ver.

- Amanhã não há perigo. Amanhã podes escutar a voz dos deuses para alegria do teu coração.

- O passeio a cavalo é bem-vindo. Obrigado. - Na verdade, com ou sem assassinos, Bridei sentia saudades da liberdade de poder passear pelas florestas e pelas charnecas, pelas montanhas e pelos vales com os olhos e os ouvidos bem abertos para as maravilhas do mundo selvagem. Em Caer Pridne, os seus olhos estavam fartos de ornamentos e de rostos mentirosos, de conversa fiada, de murmúrios e apartes sibilados. Não montava a cavalo com um companheiro desde a morte de Donal...

- O que é?

Maldito Faolan; era demasiado rápido.

- Nada. Vou ver se durmo um pouco. Boa noite. Que A Que Brilha vele pelo teu sono.

- Boa noite, Bridei.

Parecia que Faolan estava decidido a cansá-lo. Talvez o celta pensasse que um dia de actividade lhes permitiria ter uma boa noite de sono, mas Bridei crescera a fazer grandes expedições na floresta, em Pitnochie. O jovem sentia-se em casa na floresta, em sintonia com os seus ritmos desde criança e o facto de poder ser assim libertado fez com que se sentisse como nunca se sentira nas manobras mais difíceis ou nos jogos de corte mais subtis de Drust. A dor de cabeça não desapareceu, mas ia e vinha. A dúvida ainda o perseguia, mas encontrar-se à sombra dos grandes pinheiros, olhando para um grande pântano de sal sobrevoado por milhares de aves, uma massa cinzenta, bege e branca erguendo-se no ar como uma roda e descendo para se alimentar, era recuperar algo daquela maravilha secreta que sempre lhe aquecia o espírito quando percorria os despenhadeiros e os vales de Pitnochie, sozinho ou na companhia de alguém em quem confiava.

Faolan não procurou encher o grande silêncio com conversa inútil; a sua presença era discreta, eficiente, aceite. Os dois companheiros aqueceram primeiro os cavalos e depois puseram-nos a galope ao longo da areia molhada, desde Caer Pridne até Banmerren. Não era uma corrida, mas era como se fosse. Snonftre aproveitou a oportunidade para se exercitar depois de tantos dias parado.

No extremo ocidental da baía, as muralhas do estabelecimento de Fola erguiam-se no meio de um xaile de vegetação verdejante e de um grupo de pinheiros que faziam daquele promontório uma espécie de refúgio, não uma fortaleza. Os portões eram de ferro e estavam fechados. Não era possível ver o que existia para lá deles porque havia uma parede logo a seguir, provavelmente para deter os olhares curiosos, como o seu. A regra que proibia qualquer homem, salvo um druida, de entrar naquele reino sagrado para A Que Brilha era bem conhecida. Só o pensamento era suficiente para ofender a deusa. Para um homem pretendente ao trono de Fortriu, era uma ofensa, um sacrilégio e uma tolice. A lealdade de um rei aos deuses tinha de ser total. Bridei, como homem extremamente inteligente que era, sabia-o bem. O coração, porém, batia-lhe com força, desejoso de deitar abaixo a muralha, de a encontrar, de saber a verdade.

O jovem não via o carvalho que Ana mencionara, não sabia em que lado daquele recinto fechado estaria a torre com um pequeno quarto. Junto do recinto da escola havia um conjunto de edifícios: estábulos, um celeiro e uma grande casa de habitação de um só andar. No interior dos campos murados viam-se ovelhas a pastar e para lá deles um carreiro que ia dar aos terrenos que eram invadidos pelas marés. Bridei era capaz de imaginar Tuala naquele cenário em busca de conchas com os cabelos ao vento, as saias puxadas para cima, os pequenos pés descalços deixando pegadas tão delicadas como as de uma andorinha-do-mar na areia pálida...

Os dois companheiros passaram pelas muralhas, dirigiram-se para oeste através das dunas e dos terrenos alagados, atravessaram pântanos e charnecas e pararam para olhar para além de um banco de areia que atravessava uma baía límpida onde, naquela manhã, um bando de gansos se agitava na água e em terra como um tecido vivo. As vozes dos animais enchiam aquele lugar remoto com a sua música estranha, lembrando que o ano estava a chegar ao fim; visitantes de Inverno, cuja estadia em Fortriu ia do Portal a Dança das Virgens, antes de irem passar o Verão a outras regiões com outros climas.

Falta pouco mais de uma Lua para o ritual - disse Bridei com os olhos nos movimentos dos gansos, um padrão maravilhoso, semPre a mudar.

Hum - disse Faolan. - Conseguirá Broichan manter o rei vivo até lá?

Bridei estremeceu.

- Espero que sim.

- Dizem que Drust se está a aguentar com esse propósito - disse o celta. - Os pulmões dele estão a dar as últimas; a luta para conseguirem respirar é terrível. O rei quer presidir à cerimónia uma última vez; pagar o seu tributo ao Que Não Tem Nome antes de passar para lá do véu.

- Não se fala dessas coisas em voz alta.

- Eu não sou um de vós.

- Mesmo assim. Se vives entre nós e aceitas a nossa prata para pagar os teus serviços, deves prestar atenção a essas proibições. Mencionaste um deus cujos rituais são sombrios e secretos. O facto de os mencionarmos já é perigoso.

Faolan olhou para ele com curiosidade.

- Suponho que já te apercebeste de que, no próximo ano e nos muitos que se lhe seguem a responsabilidade da observância particular deste ritual cai sobre os teus ombros?

- Já. Não é coisa que me faça hesitar. Os deuses chamam-nos de acordo com a nossa posição na sociedade. Se os amamos, como é obrigação de todos os filhos e filhas de Fortriu, devemos obedecer. Não é preciso dizer mais nada. Porém, ainda não sou rei. Neste momento, sou um de muitos candidatos possíveis.

- Sabes em que consiste o ritual?

- Não ouviste o que eu disse, Faolan?

Silêncio. Faolan pôs-se de pé e dirigiu-se para os cavalos amarrados a uma árvore.

- Hoje não podemos ir até às tuas montanhas adoradas - disse ele - mas aqui existem belas charnecas, suaves outeiros, ondulações de terreno e um rio para passar a vau se decidirmos ir para o interior. Continuamos?

- Locais ideais para uma emboscada? Buracos onde se podem esconder assassinos contratados?

- Talvez, mas como já te disse, hoje é dia de folga, dia de passeio. Esperemos que o tempo seco se mantenha para o podermos repetir.

Os dois companheiros prosseguiram até o Sol atingir o zénite, deram liberdade aos cavalos na charneca e passaram cuidadosamente o rio a vau; em tempo de chuva, com muita água, a travessia devia ser bastante difícil. Finalmente, chegaram a um cenário de montes verdejantes e vales estreitos cobertos de árvores. Os dois cavaleiros atravessaram uma ponte de pranchas cobertas de musgo sobre um ribeiro gorgolejante, cavalgaram ao longo de um dos tais vales estreitos até ele se alargar, transformando-se em campo aberto. Mais abaixo via-se um bosque de árvores altas, ulmeiros nus e grandes carvalhos vestidos com as suas cores outonais. Bridei tocou no pescoço de Snonftre, detendo-o e Faolan fez o mesmo ao seu. À sombra das árvores, abrigados, em segredo, estavam três dólmenes, cada um rodeado por um anel de pedras erectas.

- Este lugar pertence à deusa - murmurou Bridei, desmontando. O jovem era capaz de sentir a respiração da Que Brilha em cada canto do santuário; havia ali uma tranquilidade especial, a tranquilidade dos lugares selvagens, uma espécie de serenidade profunda e um aviso poderoso. - Como homens, não nos podemos aproximar mais - disse ele.

Faolan desmontou.

- Mesmo assim, ficamos aqui um bocado - disse o celta. - Onde não podemos ir, outros vão. Recua um pouco, para ali, para o alto, onde nos podemos proteger melhor.

- Que queres dizer com isso, outros vão?

Faolan já conduzÍa as duas montadas para trás de uns arbustos. O espião tirou um pacote do alforge e instalou-se numa pedra lisa. Faolan era celta e era, portanto, surdo às vozes dos antigos deuses de Fortriu. Possuído por uma necessidade urgente de sair daquele lugar, um lugar de mulheres, Bridei estava, no entanto, consciente de que o dia ia a meio, que ainda tinham que regressar e que estava cheio de fome.

- Estava a falar a sério - disse o jovem, sentando-se ao lado do celta e aceitando uma fatia de queijo e um naco de pão de cevada. Mais perto, não. E devemos ir-nos embora assim que acabarmos de comer. Ainda bem que vi isto. Já tinha ouvido falar deste santuário. Aquelas câmaras são muito antigas, foram construídas pelos nossos antepassados. Gerações de mulheres conduziram aqui os seus rituais e ofereceram orações à deusa na sua tripla forma. Os homens não devem pisar o solo destes dólmenes. Mesmo que não o soubesse, senti-lo-ia nos meus próprios ossos.

- O que interessa - disse Faolan, mastigando firmemente é que um homem tem de comer. A tua deusa, certamente, não nos proibiria de o fazer. Temos muito tempo. Tenho hidromel neste frasco. Bebe.

O Outono ia avançado, mas ali, naquela encosta por cima do santuário, o Sol estava quente. Os cavalos pastavam, contentes. Faolan estava tranquilamente sentado, descontraído. A comida era excelente e o hidromel de grande qualidade; Bridei suspeitou que era do stock pessoal do rei. A sua dor de cabeça era quase imperceptível. Uma espécie de paz, que quase tinha esquecido, apoderou-se do jovem, uma sensação de profundo contentamento que só sentia ao ar livre e, mesmo assim, só raramente. No fim de contas, era a mais pequena das criaturas na imensa e maravilhosa tapeçaria das coisas vivas; as suas preocupações eram diminutas perante a sua grandeza, existia eternamente, forte e segura. O coração dos deuses batia em cada ave, em cada folha castanho-dourada que caía dos ramos altos dos carvalhos, em cada gota de orvalho, grão de areia, cada seixo, cada cascata, cada lago e cada pico rochoso, o mesmo que batia no seu peito. Ali, naquele santuário, sentia o seu ritmo firme, ligando-o intimamente à vida do Vale e à terra-mãe de Fortriu, da qual seria em breve o líder. Encostado a um ulmeiro, Bridei fechou os olhos. O desaparecimento da dor de cabeça era uma bênção, uma dádiva.

- Bridei!

O tom alertou-o instantaneamente; era um aviso, tornando imperativo o silêncio. Os olhos do jovem abriram-se. A sombra tinha-se alterado, o Sol movera-se mais para ocidente. Bridei estivera a dormir durante algum tempo; os seus membros estavam dormentes. Estremecendo, o jovem tentou levantar-se. Faolan estava a espreitar por entre os arbustos. O celta tinha um dedo nos lábios. Seguindo o seu olhar, Bridei viu que não estavam sós. Um grupo de mulheres encapuzadas movia-se por entre as velhas pedras inclinando-se aqui e ali enquanto outras caminhavam um pouco mais longe, na margem do pequeno ribeiro. O jovem fechou os olhos com força e virou-se.

- O ritual terminou - murmurou Faolan. - Já podes olhar. Só te acordei depois de estar tudo acabado. Elas estão de partida, conversando e procurando ervas.

- Isto não está certo; é uma falta de respeito - murmurou Bridei. - Espiar mulheres... não. Por que me trouxeste aqui? Não quero ver isto. - Porém, algo nele exigia ser ouvido, algo que ele tentava reprimir: Se calhar ela está ali, tão perto... Se não olhar agora ela vai-se embora e depois será demasiado tarde...

- Serias capaz de me mentir? Eu acho que tu queres olhar. Eu não sei qual daquelas raparigas é a amiga cuja ausência fez com que olhasses para as muralhas de Banmerren como se fossem uma barreira defensiva a ser tomada de assalto, mas creio que me posso deitar a adivinhar. Ela é uma criatura rara e pequena, com uma pele da cor da neve e cabelos tão negros como as asas de um corvo?

Bridei não conseguiu manter os olhos fechados e a cabeça virada. O jovem olhou e viu-a instantaneamente na margem do ribeiro onde várias raparigas apanhavam caules de uma planta que desabrochava no Outono e os metiam em cestos de verga. Tuala estava um pouco afastada das outras, tinha tirado a capa e tinha-a deixado perto, no chão. A jovem tinha um braçado de flores numa das suas pequenas mãos e olhava para ele como se não soubesse o que era, como se não soubesse exactamente o que estava a fazer. Os caracóis negros tinham escapado da fita e caíam-lhe sobre as delicadas feições numa confusão selvagem... Os seus cabelos, os seus belos cabelos longos tinham sido cortados, quase só lhe davam pelos ombros. Quem teria feito aquilo? Fazia-a parecer diferente, mais velha. Mais velha... Tuala usava uma simples saia e uma túnica, azul como a capa e com um cinto cinzento. Só se passara um ano desde que a vira pela última vez? A simplicidade rígida do vestuário servia apenas para revelar que ela já não era a criança franzina aquando do seu último encontro. Tuala continuava esbelta e pequena, mas a sua silhueta adquirira curvas subtis e contornos doces; um poema delicado de feminilidade. No entanto, Tuala continuava a ser ela própria, desde os lábios cor-de-rosa, às sobrancelhas em forma de asa e à cascata de cabelos sedosos e indomáveis.

Entre as outras raparigas, Tuala parecia uma coruja jovem no meio de um bando de pombas.

Bridei devia ter feito um som qualquer, pequeno. Só Corvo Negro

sabia o que Faolan lhe estava a ver no rosto. O jovem ergueu ambas as mãos para o esconder; naquele momento, era como se não tivesse sido treinado por Broichan. Auto-controlo? Bridei sentia-se como se o seu Coração lhe fosse saltar do peito, pronto a sair de trás do arbusto e corrrer pela encosta abaixo para... para quê? Para as aterrorizar? Para cometer um sacrilégio e ofender os deuses? Para Pedir a Tuala que deitasse fora uma vida de paz ao serviço da Que Brilha para o acompanhar numa vida de conspiração, guarda-costas permanentes e facadas no escuro?

- Temos de esperar. - Faolan puxou-o para trás e obrigou-o a sentar-se em cima da pedra onde estivera antes. - Seria desastroso para o teu futuro se fosses visto aqui. Temos de esperar até elas se terem ido embora. Só então podemos montar e falar sobre o assunto. Tu choraste. Ela é uma criatura muito sedutora, é evidente. Nas histórias da minha terra aparecem muitas mulheres como ela, ao mesmo tempo belas e perigosas.

Bridei fez um gesto, indicando a sua intenção de cortar a garganta do celta se ele não parasse de falar. Abaixo do sítio onde se encontravam, as mulheres, avistadas através do arbusto, reuniam as suas ferramentas, as suas capas e iniciavam ordeiramente, em fila, o longo caminho de regresso a casa. Contra a sua vontade, Bridei mexeu-se para ver melhor, uma última vez. Tuala seguia no fim da fila sozinha, enquanto as outras seguiam aos pares. A jovem estava sempre a olhar para trás; uma mão esbelta ergueu-se e afastou os cabelos dos olhos, mas estes caíram-lhe novamente em cima da testa, desafiadores. Os seus olhos estavam sombrios, como se também ela andasse com o sono perturbado.

- Não te mexas - disse Faolan em voz baixa. - Deixa-a ir. Já percebi que ansiavas por isto, o que explica muita coisa. Deixa-a ir. Se fizeres alguma coisa neste momento, será a tua ruína.

O celta tinha razão, porém a dor que Bridei sentia no coração, uma dor que se espalhara por todo o seu ser, dizendo-lhe que avançasse, agora, agora, antes que ela desaparecesse da sua vista para sempre, porque não conseguia estar tão perto e não lhe falar, não lhe tocar... Bridei ficou quieto e silencioso enquanto Tuala descia pela margem do ribeiro e desaparecia. O jovem continuou quieto e silencioso até que à dor que sentia no coração se juntou uma dor profunda nas têmporas. O que suspeitara era verdade; Broichan não tinha cura para aquela doença.

Finalmente, Faolan levantou-se e foi soltar os cavalos. Já podiam regressar à corte.

Durante algum tempo, os dois companheiros seguiram em silêncio. Bridei foi o primeiro a quebrá-lo.

- Isto foi mais um pouco da tua estratégia calculada? Fazer-me chorar na tua frente para que possas relatar a minha fraqueza aos senhores que te pagam? Sabias que aquelas mulheres iriam estar ali?

- Sim e não - disse Faolan. - Chegaram-me algumas informações sugerindo que Fola poderia sair com as suas alunas assim que o tempo estivesse seco. Certos rituais devem ser celebrados numa preparação para o Portal. Além disso, disseram-me que as alunas, como parte do seu treino, têm que apanhar ervas. Na ocasião, eu não sabia o dia exacto. Nesse ponto, foi uma intervenção dos teus deuses. Eles são complexos contigo, Bridei.

- Porquê? Qual é o teu interesse nisto? O problema é meu, não tem nada a ver com o que estamos a fazer em Caer Pridne.

- Não? Eu tento descobrir a origem da tua doença; faz parte do meu trabalho. Um homem que é atacado por dores de cabeça, um homem que não consegue dormir senão aos poucos e que é atormentado por pesadelos, acabará por não conseguir desempenhar o papel que o espera. Tu disseste-me que não precisavas de uma mulher; que isso não te ajudaria. O que eu vi hoje sugere que estás enganado.

Bridei cerrou os dentes, furioso. A sua cabeça batia como um tambor de guerra.

- Não fales dela assim - disse o jovem. - Estás a depreciá-la. Ela é a minha maior e mais antiga amiga; é mais minha amiga do que qualquer outra pessoa, ainda era uma criança quando a vi pela última vez e agora é o que tu vês: uma Mulher Sábia, uma filha da Que Brilha, chamada pela própria deusa. Tuala não é nenhuma encantadora da floresta enviada para me tentar, como as fadas das histórias, nem uma mulher vulgar. Tuala é... - O jovem parou. Quanto mais falava dela, maior era a dor.

- Foi criada em casa de Broichan. É tua irmã.

- Não, irmã não; somos muito mais chegados do que isso. Somos duas partes de um todo: medula e concha, pétala e caule, gaita e palheta, harpa e corda. - Bridei esperava uma reacção que não veio.

Os dois cavaleiros continuaram em silêncio até que, à distância, as muralhas de Banmerren puderam ser avistadas de novo, ao longo da praia, para lá das formas indefinidas da fortaleza do rei. Os dois companheiros tinham feito um percurso que, dissera Faolan, não se cruzava com quaisquer carreiros. O que era preciso era estabelecer um padrão, mas para atrair os espiões dos homens influentes, não um grupo de Mulheres.

Muito bem - disse Faolan abruptamente, detendo a sua montada - QUe queres fazer?

- Não percebo.

- Tenho a certeza que percebes. O dilema é o seguinte: um homem que precisa de estar em forma, rapidamente, porque o destino do reino depende dele. Um homem com um problema por resolver. Um problema que não pode ser resolvido a não ser que ele viole as regras. Porém, ele não as pode violar porque tem medo de ofender alguém: o seu pai adoptivo, o rei, os deuses. Por isso, pergunto-te novamente: Que queres fazer?

- Estás a dar-me uma possibilidade de escolha? Tu, um homem pago para me livrar do perigo? Um homem que segue todos os meus passos?

- Dá-me um plano estratégico - disse Faolan. - Se eu o aprovar, vamos em frente.

- Um plano. Para ires contar tudo a Broichan, ao homem das moedas de prata. - Bridei ouviu o tom da sua própria voz e sentiu vergonha, mas naquele momento pareceu-lhe a única coisa a dizer.

Faolan suspirou.

- Eu sou dono de mim mesmo apesar das moedas de prata. Um homem tem de comer. Isso não faz com que tenha que obedecer cegamente. Neste momento, Broichan anda muito ocupado. O rei exige a sua atenção permanente. Além disso, pelo que sei, os druidas não são especialistas em coisas do coração. Penso que não precisamos de lhe dizer nada por enquanto. Para mim, é evidente que precisas de ver a rapariga sozinho, falar com ela, dormir com ela, se for preciso - pensando melhor, a coisa poderia tornar-se mais complicada ainda, por isso é melhor não - e resolver o caso de uma vez por todas. Tu tens uma série de desafios pela frente. Ela está no interior daquelas muralhas e talvez não te queira ver; quem sabe o que se passa na mente de uma mulher? Tu tens inimigos. Ninguém pode saber senão eu. Arranja um meio. Põe-o a prova e depois diz-me. Mas não te demores, temos pouco tempo.

Bridei tossiu para clarear a voz. O jovem ficara momentaneamente sem palavras. Provavelmente, aquilo fazia parte de outro esquema qualquer.

- Isto não tem nada a ver com assuntos de alcova, como acabas de dizer tão friamente - disse ele. - Tuala é... era... uma criança; não está certo...

- Estás enganado - disse Faolan. - Olha para mim e diz-me que não sentiste desejo quando olhaste para ela, para a sua pele cor de pérola e para os seus olhos sonhadores. O que é que tu queres, afinal? É um assunto do coração, mais nada.

Não havia resposta para aquilo. Era e não era. O jovem precisava tanto dela como as árvores precisavam da chuva, como as flores precisavam do sol. Bridei ansiava por ela como os salmões ansiavam pelo rio onde desovavam; suspirava por ela como uma criança que suspira por um amigo do coração e queria-a como um homem queria uma mulher. A intensidade do seu desejo físico chocava-o; fazia-lhe bater o coração com toda a força. A jovem não podia ser uma amante ocasional ou uma amante; Tuala não. Bridei queria a jovem para sua mulher e era impossível. Tuala tornara-o claro, para além de Broichan, de Aniel e dos outros. A Que Brilha levara-lha.

- Eu amo-a - disse ele simplesmente.

- Hum. Queres dizer com pureza, honradamente, com nobreza? Essas coisas?

- Suponho que não compreendes.

- Não tenhas dúvidas. Continuemos; é melhor chegarmos a Caer Pridne ainda de dia. Quero que nos vejam. Trata do teu plano, que eu trato do meu. Se os teus deuses te visitarem esta noite, pede-lhes que mantenham o bom tempo. Não quero andar a cavalo com chuva.

A manhã do Portal. Faltavam poucos dias para que a Lua estivesse cheia, mas o tempo estava húmido e ventoso; o rosto da Que Brilha não seria visto sobre Caer Pridne naquela noite, por ocasião do ritual mais sombrio que acontecia por baixo de terra, no Poço das Sombras. Bridei dormira pouco. O jovem sentia-se tenso como um arame esticado, os seus nervos estavam discordantes, as suas sensações amplificadas. A sua cabeça estava cheia de pensamentos, de ideias, de perguntas sem resposta. Para além do dilema pessoal, tinha o ritual daquela noite. Bridei sabia mais ou menos como ele seria conduzido no Poço, baseado em coisas que ouvira na corte e no que Wid e Erip lhe tinham mais ou menos dito. O jovem estremeceu ao pensar na noite que o esperava. Havia deuses e deuses. A Guardiã das Chamas estava no seu coração, era a divindade da luz, da coragem e da força, que recompensava os homens pelo seu valor e que não esperava em troca outra coisa senão lealdade e propósito; venerava A Que Brilha pela sua beleza e sabedoria; respeitava a Mãe de Tudo do mesmo modo que uma criança respeita um ancião, com amor e receio. Porém, com o deus que os homens iam honrar naquela noite, a questão era diferente. O que aquele deus exigia era terrível, repelente, um teste de obediência que exigia uma força de vontade para além do normal. Na verdade, Bridei não sabia se seria capaz de assistir e manter a compostura. Porém, tinha de o fazer, era mais um teste. Se queria ser rei, tinha de o fazer.

Os outros, Carnach, Wredech, já o deviam ter presenciado como parentes próximos do rei. Drust, o Javali, devia tê-lo conduzido antes de abraçar a fé cristã; os seus conselheiros, tendo virado as costas aos costumes antigos, provavelmente não compareceriam. Para Bridei, seria a primeira vez. Ao passar pelo quarto de Broichan, o jovem viu o druida ajoelhado, sozinho, de frente para a parede, os olhos profundos distantes e os braços abertos numa posição de súplica. O quarto, praticamente às escuras, estava iluminado por uma única vela. A sombra de Broichan aparecia, distorcida, enorme, na parede de pedra. Bridei recordou-se do dia da sua chegada a Pitnochie; do tamanho sombrio do seu pai adoptivo, da sua presença poderosa, couraçada.

O jovem ficou a observar a cena durante alguns momentos. Broichan não se mexeu uma única vez, totalmente concentrado. Finalmente, Bridei afastou-se com o silencioso Garth logo atrás e foi à procura de Gartnait, sentindo que precisava naquele dia de uma actividade dura, que lhe afastasse da mente os pensamentos sombrios: um pouco de luta livre, talvez, ou um combate com cajados. Porém, Gartnait estava inesperadamente ocupado. O filho de Talorgen estava sentado ao lado do escriba do rei a escrever algumas cartas.

- Desculpa - disse Gartnait. O seu sorriso triste estava de acordo com o seu olhar; ambos incaracteristicamente sem vida. A minha mãe acha que a minha educação tem algumas falhas e arranjou-me um horário. Talvez arranje algum tempo livre mais tarde.

- Eu vou ter contigo - disse Bridei, retirando-se. Era estranho. Lady Dreseida conhecia certamente o seu filho e devia saber que o escriba do rei estava a perder o seu tempo. Gartnait não nascera para ser intelectual. O herdeiro da Fonte do Corvo nascera para outras coisas; era um poderoso nadador e um fervoroso adepto da espada e do cajado, montava bem. Gartnait nunca conseguiria ler ou escrever, nunca conseguiria apreender a história ou a filosofia. Bridei comparava as suas tentativas para partilhar o que sabia com Gartnait e com Tuala. Tuala era uma esponja, como se tivesse nascido para aquilo. Gartnait, simplesmente, não estava interessado. Quando uma pessoa se sente aborrecida, não aprende. Gartnait e o escriba tinham pela frente dias bem inúteis.

Faolan não estava em lado nenhum. O tempo estava demasiado húmido para andar a cavalo, demasiado frio fosse para o que fosse, excepto para os guardas que estavam de vigia no passeio de ronda. O único sítio onde havia alguma tranquilidade era o seu próprio quarto, o que significava permitir que a sua mente pensasse no ritual que se aproximava. A figura silenciosa e imóvel de Broichan no quarto ao lado não ajudaria nada.

Foram para o salão. Breth já lá estava com um grupo de homens a lançar facas a um alvo de madeira, uma efígie toda olhos e cabelo, pintada de vermelho: um celta, obviamente. Junto da lareira estava outro grupo, e sentado à mesa um grupo diferente, ocupado com tabuleiros de jogos. Algumas mulheres ouviam o bardo do rei, cantando uma ária triste ao som da harpa e outras conversavam entre si. Bridei tornara-se especialista na identificação de tais grupos e sabia quais devia evitar e de quais se podia aproximar. Talorgen observava os lançadores de facas, assim como Carnach, o primo do rei, com alguns dos seus homens e o conselheiro Tharan. Aniel não se encontrava no salão; o rei estava doente e precisava de apoio para se preparar para a noite que se aproximava. Não havia sinal da rainha, nem do seu irmão. Porém, entre os homens à lareira, falando em voz baixa, estavam os dois emissários de Circinn. Bargoit, o dos olhos frios, fazia as despesas da conversa, enquanto o mais velho, Fergus, ouvia e acenava com a cabeça. O cristão, Suibne, sorria amavelmente e batia com o pé no chão ao ritmo da harpa, como se não estivesse naquela fortaleza um rei a morrer. Bridei fez um esforço para não se deixar irritar. Tinha de aproveitar a oportunidade; tinha de desviar o problema que tendia a ultrapassar, até, na sua mente, o ritual daquela noite. O pequeno pacote continuava, seguro, na bolsa que tinha à cintura. Não recebera mais nenhuma mensagem, nada, senão o que Ana lhe metera na mão ao Passarem pelo corredor, no dia em que as raparigas tinham regressado mais uma vez de Banmerren. Apenas aquilo: um pedaço de pano atado com uma fita verde e, no interior, uma folha seca de carvalho e um seixo branco. Tuala era inteligente. Quem mais poderia interpretar aquilo senão um druida ou uma Mulher Sábia? Quem reconheceria o seu significado senão uma criança criada em casa de Broichan?

A mensagem especificava, claramente, o quando e o onde de que Faolan necessitava.

Bridei passara em revista todos os argumentos. O jovem jurara a si próprio, depois do dia em que estivera nos antigos dólmenes, que não a procuraria, não podia fazê-lo e ela não o desejava. Tuala escolhera Banmerren. A jovem não lhe responderia. Bridei não podia duvidar da sabedoria da Que Brilha. Se se tornasse rei e se Tuala concordasse em ser sua mulher, estaria a condená-la a uma vida infeliz. Na corte, a jovem seria objecto de mexericos, de murmúrios, talvez, até, de ódio. Ninguém confiava nos Boa Gente. Como poderia um deles ser aceite como rainha de Fortriu? Bridei pensara e voltara a pensar naquelas verdades enquanto esperava, com o coração a bater, pelo regresso de Ana.

A jovem refém olhara-lhe para o rosto com curiosidade enquanto lhe metia o pequeno pacote na mão. Bridei afastara-se imediatamente com um murmúrio de agradecimento; o seu coração comportava-se de maneira inconstante e o jovem sentira as faces coradas; apercebera-se então do que sempre soubera desde que vira Tuala junto do ribeiro naquela tarde, tão solene e doce, tão maravilhosamente mudada mas, no entanto, sempre a mesma. Tinha de a ver apesar dos riscos. Ser descoberto no interior das muralhas de Banmerren seria deitar fora a hipótese de se tornar rei; seria um insulto à deusa. Tinha de fazer o que Faolan sugerira: ensaiar um plano e pô-lo à prova. Tuala mostrara-lhe o caminho com aquela pedra e aquela folha, uma mensagem tão clara como quaisquer palavras: o carvalho na noite de Lua cheia. Só faltavam quatro dias, faltava pouco, vê-la-ia de novo, poderia tocar-lhe, falar-lhe... não, estava a pôr o carro à frente dos bois. Primeiro teria de se esgueirar de Caer Pridne com Faolan, percorrer a baía e chegar a Banmerren sem serem vistos à luz do luar. Tinha de levar uma corda. Tuala estaria à sua espera, tinha a certeza, chegasse a que horas chegasse. Não poderia ficar muito tempo, mas tinha de ir...

Não podia pensar naquilo naquele momento. Bargoit cessara a sua narrativa e estava a olhar para Bridei com os braços cruzados numa expressão de desafio. A seu lado, Fergus, o outro conselheiro, assumira uma postura semelhante. Se os dois homens queriam uma espécie de debate, estava à sua disposição. Se queria ter resultados, no fim, tinha de tirar partido de todos os encontros.

- Vai lançar facas, se quiseres - murmurou ele a Garth.

- Prefiro ficar de olho neles; é muito fácil, num espaço como este, uma faca falhar o alvo e atingir alguém inesperadamente. Vais falar com aquele miserável de rosto comprido, de Circinn?

- O plano é esse. Fica calado, se tencionas ficar comigo. Temos de fazer de conta que somos bem-educados.

- Para um tipo que expulsa as Mulheres Sábias e que instala estranhos desprezíveis como aquele Suibne?

- Exactamente, Garth. O tipo é um dos nossos, quer gostemos ou não dele.

- Silencioso como um túmulo. É a minha divisa.

- Lindo menino.

A conversa percorreu inúmeros tópicos, mas nunca foi mencionado o triste facto de que Drust, o Touro, estava a morrer, ou a inegável verdade de que Fortriu iria precisar, em breve, de um novo rei. Os dois contendores começaram em território neutro, falaram de pesca, de caça e das oportunidades que existiam no Grande Vale em oposição às terras mais dóceis de Drust, o Javali. Circinn também tinha montes, se bem que não rivalizassem com os picos elevados e nus de Cinco Irmãs ou as montanhas sempre nevadas a ocidente. A fortaleza do próprio Drust, o Javali, estava no topo de uma antiga montanha, perto do monte sagrado destino de peregrinações desde os tempos anteriores à memória: a mãe, era assim chamado. As Mulheres Sábias já não trepavam pelos flancos ossudos da mãe, nem velavam no seu pico por ocasião do Portal ou da Medida. Os missionários cristãos tinham acabado com aquele costume. As casas da deusa, em Circinn, tinham sido fechadas uma a uma e as Mulheres Sábias tinham sido expulsas. Bridei perguntou a si próprio se as pessoas ainda subiriam secretamente lá acima, sozinhas ou em grupos furtivos. O jovem virou os seus pensamentos para o tópico que estava em discussão: que caça podia ser encontrada nas encostas arborizadas daquela região.

- Tu caças o veado? - perguntou Bargoit. - É um bom passatempo para um jovem da tua idade.

- Eu fui criado por um druida - disse calmamente Bridei. Participei em caçadas na Fonte do Corvo. Porém, o meu conhecimento dos animais selvagens baseia-se na compreensão de que partilhamos o mundo, não que devemos persegui-los e matá-los. Em Pitnochie, a nossa mesa tinha, normalmente, produtos da herdade. E peixe, claro. Os vales escondidos a norte do Lago da Serpente são o lar de algumas das melhores trutas que alguma vez honraram a mesa de um homem.

- Hum - disse Bargoit. - Dizem que as terras de Morleo, em Longwater, são ricas em lagos e em rios. Tu combateste com ele em Galany's Reach, não combateste? Qual é a tua opinião sobre o homem?

- Penso que Morleo é um líder admirável - disse cuidadosamente Bridei; aquele tópico era mais complicado. - Franco, flexível, respeitado pelos seus homens.

- E Ged?

- É um homem valente e amado.

- Disseste que Morleo é flexível. Um homem que adere tão firmemente aos velhos costumes pode ser chamado assim. Vós viveis todos no passado. Não admira... - Bargoit pareceu pensar melhor no que ia dizer a seguir. As suas súbitas reticências eram mais do que um pequeno artifício.

- Não admira o quê? - Bridei não podia deixar escapar aquilo. Os outros escutavam: o conselheiro Fergus, companheiro de Bargoit, um pouco mais longe o padre cristão, Tharan, o conselheiro de Drust, o Touro e o ruivo Carnach, um pretendente ao trono.

- Não admira que a vossa vitória em Galany's Reach tenha sido uma coisa efémera - disse Bargoit rudemente. - Quem, senão quem vive no passado, faria um gesto daqueles, tão caro? Uma estação totalmente perdida, perdas pesadas, casas e herdades negligenciadas. Para quê? Uma conquista momentânea, insignificante. A remoção simbólica de uma pedra com uns sinais crípticos gravados, um animal ou dois, uns corpos sem cabeça pintados em fila! Não ganhastes terreno e não conseguistes prisioneiros úteis. Um miserável chefe tribal, mais nada, pelo que me dizem. Não é maneira de conduzir uma guerra. Desse modo, Fortriu nunca conseguirá expulsar os invasores. Quando derdes por isso já os Celtas estão de novo em cima de vós, queimando as vossas casas, devastando as vossas herdades, chacinando as vossas crianças e violando as vossas mulheres.

Era preciso manter a calma. A alguns metros de distância, Talorgen estava pálido como a cera, de maxilares cerrados. Bridei usou um dos padrões de Broichan para dominar a respiração, abriu os punhos e tentou esquecer a dor de cabeça.

- Esses comentários intrigam-me - disse ele suavemente, aproximando-se de um banco e esperando parecer descontraído. - Posso.

Senta-te; continuemos a nossa discussão. Breth, importas-te de pedir a alguém que nos traga cerveja? Ora bem - disse o jovem, debruçando-se na direcção do outro -, pelo que sei, Circinn também tem os seus problemas. Inimigos diferentes, os Anglos e outros mais a sul, uma quantidade de tribos ferozes cujas incursões nas vossas terras exigem muitos homens armados estacionados naquelas partes. Uma conta pesada para a corte ou para os chefes tribais que mantêm esses postos avançados. Não me atrevo a provocar aqui uma contenda infantil perguntando-te se, pelo vosso lado, vos aventurastes para sul numa tentativa de recuperar os territórios perdidos. Não te vou perguntar se as vossas vitórias são simbólicas ou reais. Digo apenas que um homem sábio não vê o seu domínio aos pedaços, como se acreditasse que é capaz de compreender o todo de um areal examinando um simples grão de areia, ou uma floresta examinando uma simples folha. Eu sigo a fé dos deuses antigos; sou-lhes leal em tudo porque eles são o pilar, o coração vivo de Fortriu. Isso não quer dizer que esteja agarrado ao passado, Bargoit. Eu estou, ao mesmo tempo, agarrado ao passado e ao futuro. Os meus olhos estão abertos para qualquer oportunidade, para qualquer desafio, para qualquer ameaça, mas não estão cegos às manifestações do espírito. As duas coisas seguem de mãos dadas. Um homem não pode ter uma vida boa sem o sopro dos deuses nas suas costas, sem os seus murmúrios ao ouvido. Acusas-nos de vivermos no passado. Isso não é correcto. Nós transportamos o passado connosco. O passado corre-nos nas veias, bate nos nossos corações. O passado fortalece-nos; transporta-nos corajosamente em direcção ao futuro.

Seguiu-se um pequeno silêncio. O padre, o irmão Suibne, tossicou, como quem pede desculpa.

- Falaste bem - disse o cristão. - Não admira que os homens te sigam. Mesmo assim, esses deuses de que falas não passam de sombras. Se eles te chamam para actos como o que vai acontecer esta noite, então as vozes que ouves são manifestação do Demónio, murmúrios maléficos. Deves afastar-te deles e caminhar na direcção da luz. Só existe um único caminho que não é esse, cruel e mortífero. Como podes...

- Shhh - sibilou um círculo de vozes horrorizadas. Suibne calou-se, mas não por muito tempo.

- Os teus deuses governam pelo medo - disse ele. - O único deus verdadeiro é um deus de amor, de perdão, de alegria. Se confiares n'Ele, não precisarás de apaziguar as tuas divindades sombrias com actos de violência que te enchem de desassossego.

- Aqui, tu és um hóspede - disse o conselheiro do rei, Tharan. Ele e mais alguns tinham-se aproximado durante o discurso de Bridei e o ancião dirigia-se ao irmão Suibne num tom capaz de silenciar o mais corajoso dos homens. - O rei ofereceu-te a hospitalidade do seu salão como é obrigado, aliás, visto que vieste com os emissários de Drust, o Javali. Nós aceitamos a tua presença. Porém, nenhum de nós permitirá que violes tão flagrantemente os nossos costumes antigos. Essa violação coloca-nos a todos em perigo. Quando falas em voz alta deste ritual e daquele em cuja honra ele é celebrado, ofendes cada um dos seus fiéis. A lei é essa, foi-nos inculcada ainda no colo das nossas mães. Não voltarei a falar do assunto, salvo para dizer que, se quebrares o silêncio sobre isto, arriscas-te a atrair o castigo do deus, não só sobre ti, mas sobre cada homem aqui presente, seja ele de Circinn ou de Fortriu. Espero não ter que dizer mais nada.

Suibne nem sequer teve a graça de corar ou murmurar uma desculpa. O homem abanou ligeiramente a cabeça e levou a mão à cruz que usava ao pescoço.

- Fortriu está cheio de homens que estão cheios de palavras observou Bargoit com as sobrancelhas ligeiramente levantadas. - Jovens, homens na flor da idade, anciãos. Todos eles tocam a mesma música. Os tempos são de mudança, meus amigos. Nós os do sul, abraçámo-la; o nosso povo cada vez se vira mais para a nova fé.

- Isso não é totalmente verdade - disse Carnach, o primo do rei.

- As minhas terras estão na fronteira norte de Circinn. Frequentemente, ouço histórias de pessoas deslocadas, de Mulheres Sábias expulsas das aldeias, de homens de fé com as suas casas confiscadas, de lugares antigos de culto arrasados para darem lugar a templos cristãos. Tais histórias não falam de uma transição pacífica para a nova fé sob a liderança de Drust, o Javali. Eu, pelo menos, não quereria um homem assim para meu rei.

As palavras do primo do rei eram quase uma afirmação clara do que se estava verdadeiramente a discutir; um quase muito pouco confortável. Drust, o Touro, ainda vivia. Naquela noite, iria presidir ao ritual do Portal, uma cerimónia onde as sombras dos que tinham partido regressavam e a mão estendida da Mãe de Tudo estava a pouca distância.

- É um erro - disse calmamente Bridei - assumir que, só porque uma coisa qualquer é velha, já não presta. Devemos aprender com os mais antigos. Devemos aprender com o passado. Como podemos, de outro modo, ter sabedoria? Eu devo muito aos tutores que estiveram presentes na minha infância, anciãos veneráveis, ambos, exemplos vivos de tudo o que um homem tem de bom: sabedoria, coragem, humor, fé. Os velhos costumes são o coração e o espírito de Fortriu. Se os pusermos de lado ficamos como uma concha vazia. Se os pusermos de lado, faremos de uma terra viva uma casca morta, desprovida de significado.

- Este jovem, tal como ele disse - observou o conselheiro Fergus, virado para Bargoit -, foi educado por um druida, nem mais nem menos do que Broichan. Não nos devemos mostrar surpreendidos por Bridei se exprimir deste modo. Um homem assim expressa-se por meio de metáforas e responde a uma pergunta com outra pergunta. A mente dele segue caminhos muito afastados dos das pessoas normais como nós.

- Bridei apenas expressa a verdade que existe em todos nós. Aquelas palavras tinham vindo, inesperadamente, do enluvado Tharan, o homem que Aniel dissera ser perigoso. - Sejam quais forem as nossas diferenças, os verdadeiros homens de Fortriu partilham as mesmas lealdades e as mesmas aspirações. Nós amamos os deuses e amamos a terra que nos foi confiada antes de o tempo ser tempo. Nem sempre nos amamos uns aos outros; está na natureza do homem discutir, lutar pelo poder. Apesar disso, aqui no norte, pelo menos, o nosso objectivo é um só: aceitar a vontade dos deuses e afastar o inimigo das nossas costas.

- Não foi o que se viu na vossa última incursão, pelo que me dizem - disse Fergus. - Uns poucos de Celtas mortos, uma presença momentânea na aldeia de Galany's Reach e uma retirada discreta. Não se pode dizer que tenha contribuído para expulsar o inimigo. Quanto aos velhos deuses, devem ter chorado de vergonha, certamente, ao verem a grande pedra arrancada do solo e transportada aos ombros de homens através de metade do país. Não foi um insulto ao vosso folclore? Além disso, os teus actos não estão de acordo com o que dizes, Tharan. Onde estavas enquanto tudo isto decorria? Suponho que em Caer Pridne, aquecendo as mãos à lareira.

O grupo de homens junto da lareira era agora maior; o diálogo atraíra a atenção de muitos deles. Bridei viu uma expressão de profunda ofensa e de raiva nas feições correctas de Talorgen. O jovem viu o queixo de Tharan retorcer-se, sinal de que o conselheiro mais perigoso de Fortriu não era imune a insultos. Carnach, o primo do rei, olhava para Fergus com olhos furiosos, abertamente e Bargoit mantinha as sobrancelhas levantadas. O padre cristão tinha-se afastado para ouvir a música do bardo.

- Isso é injusto e tu sabe-lo muito bem - disse Bridei rudemente. O jovem não esperava, entre tanto homem, erguer-se em defesa de Tharan, mas sentiu-se obrigado a falar. As palavras de Fergus tinham sido ultrajantes e não podiam passar sem uma resposta. - Os teus colegas conselheiros combatem contra os Anglos? Deixam o teu rei sozinho? Duvido. Tharan está sempre ao lado direito do rei; os conselheiros do Touro sempre o serviram bem e sabiamente. Um bom monarca compreende o valor de um tal apoio, de uma tal amizade. É verdade que Tharan, Aniel e Eogan nem sempre estão de acordo, mas isso só contribui para fortalecer o papel que desempenham, permitindo que o rei pese as possibilidades e esteja aberto a ideias. Os nossos conselheiros não vão para a guerra; temos chefes tribais, como Talorgen aqui presente, que controlam essas expedições, homens especialistas em incursões, em defesa e que sabem lidar diariamente com guerreiros. Um rei não atira com toda a sua força para as partes mais longínquas do seu reino, tem de pensar no que fica para trás. Quanto à nossa empresa, valeu a pena. Talorgen liderou-nos com honra e propósito. Nunca foi nossa intenção reclamar aquele território porque ainda não chegou a hora. Procuramos testar as águas para o futuro, encher os corações dos nossos inimigos de medo. Matámos cem homens de Dalriada, ou mais. Trouxemos um refém de algum significado, que está agora preso na fortaleza de Foirel. Quanto à Pedra Mágica, nenhum homem põe em dúvida os desígnios dos deuses. O tempo dirá se a sua ira descerá sobre nós por um acto sacrílego, como tu sugeres. Tudo o que posso dizer é que, quando levámos a cabo aquele feito, pareceu, a todos, que a Guardiã das Chamas nos sorria. Todos nós sentimos o seu amor, tal como sentimos o calor do sol; a sua boa vontade susteve-nos e trouxe-nos de regresso a casa sãos e salvos. O poder dos deuses está para além da nossa compreensão; está para além dos insultos baratos daqueles que troçam das nossas empresas e se riem dos nossos camaradas que derramaram o seu sangue no campo de batalha.

- Isso é tudo muito bonito - disse Bargoit, abrindo as mãos num gesto conciliador. O conselheiro do sul tinha à sua volta um círculo de homens zangados. - No entanto, os teus argumentos sofrem de alguma falta de lógica, jovem. Falaste antes em coisas poéticas: grãos de areia, folhas e coisas assim. Se é tão importante um homem ver a nossa terra como uma entidade única, um todo indivisível, nesse caso precisamos de um governante, de uma corte, de um rei! De uma fé! Se acreditas mesmo nisso, jovem Bridei, estou de acordo contigo. Nós, os de Circirin e vós, os de Fortriu, somos um único povo, apesar de nos esquecermos de vez em quando.

- E os Caitt também - disse Bridei calmamente. - Também os incluirias num reino unido, claro?

- Os Caitt? - sibilou Fergus. - Aqueles bárbaros?

- Do sangue dos Priteni - disse Talorgen, que se colocara logo atrás de Bridei. - Falaste em lógica. Levemos isto para a sua conclusão inevitável. O reino devia ser só um: Fortriu, Circinn, as Ilhas Pequenas e o território dos Caitt. Reinos diferentes mas unidos sob um único rei e uma única fé. Não é difficil imaginá-lo. No tempo do meu pai, Bargoit, e no tempo do teu pai, era assim. Os territórios dos Priteni eram um só reino. Foi a decisão de Drust, filho de Girom, de admitir missionários da fé cristã no sul, que dividiu a nossa pátria. Advogas agora o regresso à sua primeira forma? Não encontrarás argumentos contra entre os homens de Fortriu.

Bargoit sorriu ao de leve.

- Eu não advogo nada disso, como tu bem sabes. As velhas práticas desapareceram de Circinn e nunca mais regressarão. Porém, existe outra maneira, aberta a todos nós, se Fortriu decidir avançar em vez de recuar.

- Fortriu nunca virará as costas aos seus antigos deuses. - Bridei sentiu um arrepio na espinha, como se o Inverno tivesse chegado subitamente. - O nosso rei ainda vive e nós pedimos aos deuses que o preservem para nos liderar nas estações que se seguem. Eu também gostava de ver a nossa terra unida sob um único líder. Na verdade, acredito que é a única maneira de assegurarmos as nossas fronteiras, tanto a oeste com os Celtas como a sul contra os Anglos. Acredito que é o nosso único caminho se quisermos ser fortes nestes tempos de mudança. Um tal líder não confiaria mais nos seus conselheiros do que deveria. Um tal líder não expulsaria druidas nem baniria Mulheres Sábias. Um verdadeiro rei não cospe nos rostos dos deuses. Pelo menos é no que eu acredito. Um tal líder seria forte e bom, firme na sua fé e pronto a muitos sacrifícios para que o seu povo seguisse em frente com esperança e propósito. Drust, filho de Wdrost, é esse homem. Nós amamo-lo e honramo-lo. E ele ainda está vivo. Levar esta conversa, como tendes feito, para um futuro para lá dele, ofende-nos. Porém, sois nossos hóspedes. Por isso, ofereço-vos cerveja e sugiro que falemos doutros assuntos. Se bem me lembro, começamos com uma discussão sobre pesca, uma conversa não só respeitosa para o nosso anfitrião, como mais segura. Tendes apanhado alguns grandes, ultimamente?

Os homens de Fortriu riram-se contra vontade. Eram todos peritos e começaram, rapidamente, a falar do tamanho e da qualidade das trutas que se encontravam nos diferentes lagos e qual espécie era a melhor. Bargoit, de lábios cerrados, não contribuiu.

- Bem feito - murmurou Talorgen ao ouvido de Bridei um pouco mais tarde, depois de terem saído do agrupamento. - Cumpriste uma série de objectivos rapidamente, incluindo um, pelo menos, que me surpreendeu. Conseguiste que Tharan concordasse publicamente contigo. Temos de continuar a trabalhar nesse sentido.

Bridei acenou com a cabeça, ao mesmo tempo que um súbito cansaço se apoderava dele. Num certo sentido, Talorgen tinha razão; havia muito a ganhar ali, e havia muito a perder. Aqueles homens eram poderosos. Quando chegasse a escolha do candidato, as suas vozes é que contariam. No entanto, ao falar, Bridei tinha-se esquecido da questão essencial enquanto escolhia as palavras e o tom exactos. O jovem não pensara no seu próprio futuro, apenas na necessidade de dizer àqueles homens o que lhe ia na mente e no coração. Talorgen equivocara-se que aquilo fora um lance calculado em busca de apoio.

- Tharan falou de amor a Fortriu - disse ele. - Carnach também. Nisso, pelo menos, os homens de Fortriu estão de acordo.

- Mas o sul tem mais gente - disse Talorgen. - Circin vai mandar vinte chefes tribais à votação quando chegar a ocasião. O processo permite-lhes toda uma Lua para chegar aqui. A não ser que rezemos por um tempo particularmente mau, estarão aqui todos. Vamos ter que trabalhar arduamente, ou Fortriu não poderá apresentar uma frente unida contra eles. Nós só queremos um candidato, mais nada. Temos muito que fazer. Pareces cansado, Bridei.

- Quando estou no meio deles, parece fácil - disse Bridei -, é como se os deuses me dissessem o que dizer. Porém, depois, quando estou só, lembro-me de que sou apenas um homem, que há outros pretendentes, prontos a lutarem contra mim. Aos olhos dos chefes tribais, sou novo e inexperiente, não sou ninguém. Investistes muito em mim: tu, os teus amigos, Broichan em particular. Eu não quero deixar-vos ficar mal, não quero deixar ficar mal os deuses.

Talorgen olhou para ele com curiosidade.

- Se pensássemos que seria assim, Bridei, não teríamos perseguido este objectivo até ao fim e parece-me que esse fim está mais próximo do que imaginávamos.

- É verdade; ouvi dizer que a saúde do rei está cada vez pior.

- Drust não estará muito mais tempo connosco. Aniel está à cabeceira dele com a rainha. Os deuses são misericordiosos; vão ver o nosso rei cumprir o ritual uma última vez e depois, acredito, chamá-lo-ão. O Inverno vai ser muito frio.

Bridei não disse nada. O jovem pensou no poço profundo, mais frio do que qualquer Inverno e na voz do deus sombrio chamando.

- Ele aguenta a cerimónia - afirmou Talorgen. - A vontade de Drust é muito forte. Vai ser uma prova dura. Estás preparado para isto, Bridei?

- Tenho de estar. Talorgen acenou com a cabeça.

- Até Broichan o detesta, mas tem de ser feito. É uma parte do que nós somos; uma coisa sombria, mas temos de aceitá-la. Devias descansar um pouco. A noite vai ser longa.

 

                                 CAPITULO CATORZE

O Sol não se mostrara durante todo o dia. As nuvens baixas, estendiam-se de norte a sul e de leste a oeste, cheias de chuva. De vez em quando, aliviavam-se, deixando cair um dilúvio sobre os telhados de Banmerren, aguaceiros trovejantes que escorriam do colmo e se perdia em cem regatos através dos jardins inundados de onde até os patos tinham retirado, procurando abrigo por baixo de um arbusto. No interior do recinto amuralhado, o dia parecia um crepúsculo e quando, por fim, o Sol se pôs, algures por trás das nuvens, a noite caiu abruptamente, como se o deus secreto estivesse impaciente por receber o que lhe era devido.

O carvalho estava quase totalmente despido; a chuva fazia poças nos buracos entre as suas raízes expostas. A luz da candeia de Irethra iluminou os montes de folhas douradas, avermelhadas e acastanhadas a apodrecerem por acção da humidade, reclamadas pela terra, para que a alimentassem até à estação seguinte. O barulho da chuva apagava todos os outros sons. Tuala seguiu a mulher mais velha ao longo do corredor coberto e entrou no edifício principal onde, na divisão central, estava uma lareira acesa e onde a lenha ardia aos repelões, como se estivesse consciente do poder daquele dilúvio. O fogo estaria extinto chegada a hora do ritual; as presenças esperadas na cerimónia eram conhecidas por não gostarem de luz.

A casa estava silenciosa. A chuva deixara de ser um rugido quase impossível de suportar; era um rufar distante quando a porta foi fechada. As raparigas, que geralmente recebiam de braços abertos a oportunidade de falar da casa e das amigas, partilhar dezenas de pequenos segredos guardados, estavam, naquela noite, invulgarmente solenes.

Antes do anoitecer, tinham visto Fola sair de Banmerren com a cabeça curvada por causa da chuva, seguida por uma procissão de mulheres encapuzadas em direcção a Caer Pridne. Dizia-se que Fola não gostava do Portal. Dizia-se que a Mulher Sábia preferia celebrar os rituais em locais próprios da deusa: ali, no interior daquelas paredes, na grande praia, mais abaixo e no interior dos três dólmenes. Porém, não em Caer Pridne, um reino de homens, de poder e de trevas antigas. Não aquela espécie de cerimónia, na qual o papel das mulheres era ao mesmo tempo um raro privilégio e a mais profunda das vergonhas. Porém, Fola obedecia aos deuses. A Mulher Sábia obedecia a todos, mesmo àquele cujo nome não devia ser pronunciado. Assim, dirigiu-se para a fortaleza acompanhada das suas mulheres, todas elas sacerdotisas, menos Irethra, que tivera que ficar para velar pelas raparigas mais novas; todas as mais velhas, as que vestiam de verde, a tutora de história Derila e os seus pares. Nenhuma das mais novas; as que usavam vestido azul ainda não podiam aprender a celebrar aquele ritual e não podiam, evidentemente, comparecer àquele acto. Odha desafiara Irethra algum tempo antes.

- Por que é que nós não podemos ir? Estamos aqui para aprender, no fim de contas. Além disso, queremos ver Caer Pridne, as pedras-touro, a corte do rei e tudo o mais.

O rosto de Irethra mudara; ficara extremamente tenso.

- O assunto está fora de discussão, Odha. Devias ajoelhar-te perante A Que Brilha e agradecer-lhe do fundo do teu coração por não teres que ir a Caer Pridne esta noite. A tua vez há-de chegar, se não te mandarmos antes para casa por seres estúpida, antes de chegares, sequer, a usar um vestido verde.

- Mas...

- Nem mais uma palavra.

Agora, estavam reunidas em frente da lareira. Ninguém dizia nada. Todas escutavam a chuva e evitavam os olhares umas das outras, imersas nos seus próprios pensamentos. Tuala quisera passar a noite na sua torre, sozinha, abraçando mentalmente Bridei enquanto ? jovem testemunhava o ritual, desejando que ele tivesse força de espião e firmeza de propósito no mais sombrio dos testes. No entanto, ethra obrigara-a a ir com elas para casa. Na torre estava frio e o elhado deixava entrar água. Tuala tinha de se juntar às outras; fariam todas juntas.

As raparigas estavam familiarizadas com o Portal. Todas as casas, todas as aldeias, todas as comunidades o observavam. A Mãe de Tudo era honrada, as luzes apagavam-se e os espíritos dos que tinham partido eram bem-vindos; o frio, aumentado pelas correntes de ar, assinalava a espiral de dança daquelas sombras entre os vivos à frente, atrás, em volta, tocando numa face ou numa mão com dedos gelados, numa boca tremente com lábios glaciais. Broichan sacrificava sempre um animal ao deus, geralmente um cordeiro outonal ou uma galinha. A primeira vez em que fora autorizada a ficar acordada para o ritual, Bridei dissera a Tuala para tapar os ouvidos e fechar os olhos quando se chegasse àquela parte, mas ela espreitara e depois desejara não o ter feito. Depois das oferendas era a vez das orações, a partilha de comida ritual e o acender de uma única vela: a esperança era restaurada e o caminho em frente miraculosamente iluminado mesmo em tempos de trevas e de morte. Tuala sabia o que era aquilo; tinha-o feito em criança. O carvalho estava a dormir; não havia sinais de verdura, nenhuma sugestão de vida senão nas suas profundezas, nas lentas histórias ditadas pelo seu coração, na estranha e maravilhosa transformação das folhas em estrume, alimentando o seu lento crescimento. Entretanto, os homens e as mulheres descansavam enquanto o caminho em frente se formava de novo, algures no labirinto secreto dos seus sonhos.

O Portal era assim em Pitnochie, na Fonte do Corvo, em todos os recantos de Fortriu. Em Caer Pridne, porém, era diferente. O promontório onde se erguia a fortaleza do rei albergava um lugar profundo, uma fenda escura, sagrada para o mais antigo dos deuses, um deus cujo nome não podia ser pronunciado, de tal modo era temido entre os Priteni. Ao longo de inúmeras eras, os reis de Fortriu desciam ao Poço das Sombras por ocasião do Portal para celebrar o ritual especial exigido pela divindade. Era necessário; a história provava que era extremamente cruel. Wid e Erip tinham falado de um determinado monarca que não fora capaz de seguir a cerimónia até ao fim; sob o seu comando, o poço fora selado e o seu acesso fechado. A princípio, tudo parecia na mesma. Depois, porém, o reino foi atormentado por estações terríveis: três anos sem Verão. O céu ficava coberto por uma névoa dia sim dia não; a Guardiã das Chamas quase desapareceu dando à terra apenas um pouco de luz e nenhum calor. A Que Brilha retirou-se para trás do seu véu e não olhava para a terra que não lhe obedecia. As colheitas mirravam antes mesmo de crescerem dois palmos, a fome e a doença devastaram Fortriu. As pessoas morriam aos milhares e os sobreviventes enlouqueciam por falta de comida e depois prostravam-se, desesperadas, pedindo aos deuses que fossem misericordiosos. No quarto ano de escuridão, a Mãe de Tudo levou o rei para o seu regaço e os chefes tribais de Fortriu escolheram um novo monarca. No Portal seguinte, os homens de Caer Pridne reuniram-se mais uma vez no Poço das Sombras, a cerimónia desenrolou-se mais uma vez de acordo com a sua forma antiga e os verões regressaram.

Os Priteni levaram muito tempo a recuperar daquelas estações terríveis; como pode um homem viver no terror permanente de uma vida em perpétua sombra? O sentimento entrara na memória colectiva do povo. No sul, para lá da muralha romana, dizia-se que o pesadelo durara ainda mais porque às estações terríveis se tinham seguido epidemias e os poucos que tinham sobrevivido aos anos de fome e doença não tinham força nem vontade de recomeçar a longa tarefa de fertilizar de novo os campos e as pastagens.

Tuala sabia que a observância geral teria muito em comum com a versão que Broichan representava em Pitnochie. No entanto, seria algo diferente: ao ritual do rei só assistiriam homens e o modo como ele era conduzido era secreto. As Mulheres Sábias de Banmerren não desceriam ao poço, tinham um determinado dever a cumprir e depois ficariam de vigília na praia abaixo da fortaleza até ao nascer do Sol. A noite seria particularmente dura; A Que Brilha escondera o seu brilho, talvez envergonhada com o que ia ser feito para aplacar o mais antigo dos deuses. As mulheres regressariam a casa molhadas, cheias de frio e tristes. Outra coisa não seria possível!

Tuala olhou para a lareira. A jovem perguntou a si própria se as outras não saberiam o que ia acontecer naquela noite ou se estariam apenas a fingir porque a verdade era demasiado amarga. Entre os dois, Erip e Wid tinham-lhe dado pistas suficientes ao longo dos anos. O que Tuala não sabia, adivinhava. Morna, a rapariga de tez pálida e de olhos estranhos, saíra atrás de Fola com uma capa cinzenta de capuz como se fosse já uma sacerdotisa; era impossível, Morna ainda era muito nova e só estava mais ou menos há um ano em Banmerren. Morna saíra com um ar estranho como se, na sua mente, não caminhasse ao longo de um carreiro enlameado sob um céu ameaçador, antes ao longo de outro totalmente diferente, sozinha com os deuses e os espíritos.

A noite foi passando; a lareira tentava permanecer acesa. Nenhuma das raparigas se despediu e foi dormir para o conforto da sua cama. Daquela noite, os cantos escuros eram demasiados nos quartos, havia demasiadas sombras estranhas. Em vez disso, uma a uma, as jovens encostaram-se às paredes, assentaram as cabeças nas mesas ou estenderam-se em cima dos bancos. Quando a hora do ritual se aproximou apenas Irethra e Tuala estavam acordadas, sentadas à lareira.

- Tuala?

- Sim?

- Vi-te a adivinhar; vi o poder das imagens que consegues invocar. Por que é que deixaste de fazer uso dessa técnica? Eu pensava quando te dispensei da minha aula, que desabrocharias; esperava poder, juntamente com Fola, ensinar-te a dares a esse talento o melhor uso possível. Porém, nunca mais te vi com uma tigela de bronze.

- Penso que é capaz de ser... perigoso. Muitas vezes, sinto-me perturbada com o que vejo.

- O olho do espírito não se abre para que a vidente possa ser consolada, abre-se para que ela aprenda - disse Irethra. - É suposto ficarmos perturbadas; é suposto aceitarmos o esgotamento do corpo e do espírito depois das visões. Esconder um talento assim, especialmente quando ele é grande, é uma desobediência à deusa, é rirmo-nos dela e tu estás aqui em Banmerren ao seu serviço. Uma boa filha de Fortriu não obedece À Que Brilha em tudo?

Tuala não disse nada.

- Diz-me uma coisa. - Irethra inclinou-se para a frente com os cotovelos nos joelhos; à luz das chamas viam-se os seus olhos inquisidores, as pequenas rugas em redor da boca, os cabelos bem penteados.

- És capaz de invocar o que queres na água? És capaz de controlar essa dádiva? Se desejasses, serias capaz de ver o que está a acontecer neste momento em Caer Pridne?

Subitamente, Tuala sentiu um frio terrível; era como se estivesse na entrada do Poço das Sombras, vacilando por cima de um quadrado de água negra como tinta.

- Por vezes, consigo - murmurou a jovem - e por vezes a deusa envia-me outras imagens. Penso que, se olhasse esta noite, veria o rej e o poço. Porém, é proibido as mulheres assistirem ao ritual.

- Não estaríamos a assistir - disse suavemente Irethra. ? Estaríamos apenas a ver algo que se parece com a realidade. És capaz de invocar uma visão? És capaz de a partilhar?

- Não sei. - Tuala tremia. A sugestão de Irethra alarmara-a e mais alarmante ainda era a compreensão de que era exactamente o que ela queria fazer, ansiava por fazer para poder partilhar com Bridei aqueles momentos terríveis passo a passo.

- Se déssemos as mãos - disse Irethra - e se uníssemos as nossas vontades, talvez a deusa nos concedesse a mesma visão. Tu tens um talento natural muito grande. Eu tenho prática desta arte e tenho ferramentas para a manter sob controlo. Juntas, somos capazes.

Tuala olhou para ela. Irethra era uma Mulher Sábia, tinha obrigação de saber que era proibido. Era evidente que era um pouco diferente de assistir pessoalmente ao ritual secreto, algo que uma mulher não podia fazer, mas espiar aquele ritual era irritar os deuses, arriscar uma possível represália. No entanto, a jovem queria fazê-lo. O seu desejo aumentava à medida que pensava na possibilidade. Bridei estava lá. Se fizesse aquilo, poderia vê-lo, poderia mantê-lo são e salvo nos seus pensamentos enquanto ele suportava o desenrolar do ritual.

- Fola não aprovaria - disse ela.

- Com o tempo, acabaria por aprovar. - A voz de Irethra era quase sussurrada, como que para não acordar as outras alunas, mas era também confiante. - Os teus talentos fascinam-na. Ela trouxe-te para aqui, desconfio, não para que te possamos ensinar, mas para que tu nos possas ensinar. Acredita, se Fola não tivesse que passar a noite na praia a tremer de frio, estaria aqui ao nosso lado a olhar para a tigela. Fazes? Está quase na hora.

Tuala não disse nada. A jovem pôs-se de pé quando Irethra se pôs de pé e foi buscar um jarro de água enquanto a tutora preparava a tigela de bronze. A água agitou-se e imobilizou-se. A jovem segurou nas mãos de Irethra, que estava no lado oposto da mesa, para que pudessem estar de frente uma para a outra com a tigela no meio e as duas mulheres debruçaram as cabeças sobre a superfície da água. Ao lado ardia uma vela; os rostos das raparigas adormecidas viam-se, pálidos, na sombra. Tuala sentiu o seu coração a bater mais devagar e a sua respiração tornou-se mais lenta. Então, a deusa chamou-a e fê-la mergulhar na escuridão.

Uma procissão; as Mulheres Sábias aproximando-se de Caer Pridne já sem a chuva a cair, Fola com os cabelos prateados caindo-lhe pelas costas abaixo. A seu lado caminhava outra mulher. Não, uma mulher não?, uma rapariga, uma rapariga de rosto branco como a cinza, de olhar vazio, com cabelos aos caracóis até à cintura e com um antigo vestido branco como a neve por baixo da capa cinzenta de Mulher Sábia. Morna: aquela que desaparecia subitamente das aulas para ser vista de relance novamente mas como uma sombra, aparecendo e desaparecendo, a rapariga cujos olhos não pareciam ver outra coisa senão sonhos. No outro lado de Fola seguia Luthana, especialista em ervas uma mulher que passava os dias a cavar, a podar, a mexer em caldeiras a ferver. As mulheres chegaram aos portões de ferro de Caer PridneTuala viu as pedras-touro alinhadas ao longo do caminho, umas lajes formidáveis nas quais as imagens dos animais se viam difusamente à luz dos archotes. Talvez o escultor daquelas coisas tão belas tivesse sido Garvan, o homem que ela não conseguira surpreender com a história de desejo e auto-controlo. Garvan, de quem seria mulher naquele momento se não tivesse escolhido o caminho da Que Brilha.

As Mulheres Sábias esperaram em silêncio. Morna imóvel e pálida entre as duas mulheres mais velhas e as sacerdotisas de Banmerren atrás delas em fila dupla, com as cabeças descobertas e as mãos cruzadas no peito. Fola e Luthana não adoptavam aquela pose; ambas agarravam num dos pulsos frágeis de Morna como se a rapariga pudesse desaparecer se não estivesse assim presa. Morna olhava em frente, para lá dos portões. Aquele, pensou Tuala, era o olhar de uma mulher cega, a rapariga não sabia se o que estava na sua frente era belo ou feio, uma coisa maravilhosa ou um objecto de terror. Irethra apertava com força as mãos de Tuala. A jovem estava habituada a invocar sozinha as suas visões; fazê-lo na companhia de outra pessoa que não Bridei sempre lhe parecera uma coisa muito errada. Quando os Boa Gente tinham olhado por cima do seu ombro para o Espelho Negro, sentira-se irada e ressentida. Naquela noite, porém, a presença de Irethra era bem-vinda e tranquilizadora, quente.

Na água, o tempo parecia passar; as nuvens rodopiavam e rolavam no céu negro. A chuva começou a cair, mas as mulheres deixaram os capuzes descidos e as cabeças nuas. Finalmente, os homens apareceram no outro lado dos portões, uma fila dupla de guerreiros à cabeça, três vestidos de negro: Broichan ao centro com muitas tranças pequenas nos cabelos escuros à moda druídica, os seus olhos escuros autênticos buracos num rosto que mais parecia uma caveira devido a luz incerta da Lua velada e dos archotes. À sua direita caminhava um homem seco, grisalho, de lábios cerrados e olhos argutos. À esquerda de Broichan estava um homem mais alto, de olhos duros e de aparência severa. Dois guardas retiraram os ferrolhos e abriram de par em par os grandes portões.

Seguiu-se uma troca de palavras: Broichan falou e Fola respondeu. Uma sequência formal de perguntas e respostas. Com o ouvido do espírito e o conhecimento do ritual, Tuala percebeu o seu sentido.

Porque estás aqui?

Para emendar o que está errado. Para devolver o que foi tirado. Para nos empenharmos de novo.

Que ofereces!

Pureza. Obediência. Sacrifício. A. renúncia perante a essência do deus.

A oferenda é ideal?

É ideal. Fola curvou a cabeça.

É total, disse Luthana, largando a mão de Morna e afastando-se na direcção do fim da fila. Por sua vez, cada uma das mulheres de Banmerren avançou e apresentou a sua declaração ao druida; ao deus sombrio, cujo representante naquela noite era Broichan.

E pura.

Está cheia de luz.

E completa.

E de livre vontade.

E jovem.

E obediente.

E sábia.

Todas as mulheres se retiraram depois de terem falado, ficando apenas Morna no sítio onde estava, silenciosa, imóvel, com Fola a seu lado, pequena e muito direita. Em seguida, a Mulher Sábia tirou a capa dos ombros estreitos da rapariga e esta ficou perante o homem com o seu vestido branco como a neve, uma figura delicada, frágil, à luz dos archotes. Apesar da chuva e da mordedura do vento frio, Morna mantinha-se absolutamente imóvel.

E perfeita, disse Fola novamente, colocando-se na frente de Morna. Foi? era uma mulher pequena. Teve que se pôr em bicos dos pés para aproximar o rosto do da jovem. A Mulher Sábia beijou Morna na testa, uma despedida formal, e afastou-se. As feições de Morna permaneceram impassíveis. A jovem ia entrar num mundo diferente.

E boa, disse Broichan e, avançando, tocou no ombro da rapariga.

Nos seus olhos não havia qualquer luz, nenhum reconhecimento fosse do que fosse. Morna atravessou os portões de Caer Pritne nos calcanhares do druida e estes fecharam-se, deixando Fola e a sua Mulher Sábia no exterior.

Tuala teve um sobressalto; sentiu, mais do que viu, tal como Irethra. A água agitou-se e imobilizou-se.

As mulheres sábias estavam na praia, envoltas nas capas enquanto o vento as açoitava, dando às suas formas o aspecto de aves, morcegos, animais das profundezas da floresta ou manifestações de Corvo Negro que não eram nem uma coisa nem outra. Fola formara um círculo com elas. Não era um ritual; as mulheres não faziam qualquer tipo de saudação, não rezavam nem faziam determinados movimentos permaneciam em silêncio, sem se tocarem, como um conjunto de pedras erectas numa planície sombria; como um bosque de pequenas árvores num vale secreto. O vento soprava, fazendo voar a areia em redor; emaranhando-lhes os longos cabelos grisalhos, brancos, ruivos, louros; chicoteando-lhes as roupas e enregelando-lhes os corpos. A espuma salgada seguia-se à areia; a chuva caía, misturando-se com as lágrimas. Tuala viu que até Fola chorava. As mulheres não se mexiam; ficariam de vigília até de manhã.

A imagem agitou-se e dissipou-se; a água na tigela escureceu e permaneceu com aquele tom durante algum tempo. O único ponto de luz era o reflexo da vela, lutando contra as pequenas correntes de ar que percorriam a divisão. O som das raparigas a dormir, firme, suave, reconfortante, ouvia-se.

Um brilho pálido na água: o vestido branco de Morna e o seu rosto murcho. O transe continuava, provocado talvez por orações, jejum, ervas, solidão ou infusões. No interior de Caer Pridne decorria uma procissão, não uma mera fila dupla de guerreiros, antes uma assembleia maior, se bem que os archotes fossem poucos. Aquele deus gostava da escuridão; aqueles homens levavam apenas a luz necessária para poderem ver onde pisavam. Morna seguia no meio deles como um espectro, na sombra da figura escura do druida do rei. A procissão prosseguia em espiral, seguindo os caminhos de ronda e subindo as escadas íngremes, passando de um nível para outro. Quando chegaram ao pátio superior, os guerreiros formaram um grande círculo com a rapariga vestida de branco e o druida no centro. Ouviu-se uma trompa de som grave. Tuala não soube dizer se o som estava na sua mente ou se fora transportado pelo vento desde a fortaleza do rei até Banmerren. Um som parecido com o de um animal ferido. As portas abriram-se; um grupo de homens emergiu do interior da fortaleza. Todos eles tinham trajes negros; todos eles tinham rostos sombrios. Um deles distinguia-se dos restantes: o rei, sem dúvida, se bem que não usasse coroa, ceptro ou jóias, apenas o traje negro idêntico aos dos seus companheiros. A sua identidade estava no seu rosto, um rosto descarnado, cinzento e uns olhos brilhantes de febre e dor, uma boca cerrada, umas feições que proclamavam a sua autoridade através de uma máscara de morte. A força de vontade de Drust era formidável. O monarca olhou através do pátio para Broichan e o druida caiu de joelhos. Todos os presentes lhe seguiram o exemplo; todas as cabeças se curvaram. O momento era de coragem total; uma demonstração de verdadeira majestade.

Então, durante algum tempo, a água mostrou apenas vislumbres. Fola, Derila, Luthana, imóveis, firmes perante o açoite do vento e do frio. Homens novamente a andar ao longo do topo do monte e descendo depois na direcção de uma pequena entrada secreta. Os guerreiros recuando e os archotes enfiados em suportes. Apenas alguns prosseguiam pela entrada estreita e profunda, descendo para o coração do monte. Tuala conseguia ver os seus rostos, iluminados à vez ao passarem pelo archote colocado no topo de uma escadaria incrivelmente íngreme. Lá estava o rei, estóico, voluntarioso, com a dor escrita nas feições. Os seus conselheiros seguiam-no. Em seguida, a jovem viu Broichan, o seu rosto uma autêntica máscara, e Morna com o seu vestido branco e olhos sem vida. Talvez a jovem não se apercebesse de nada, não compreendesse nada, ou talvez soubesse tudo, compreendesse e aceitasse a viagem para um reino onde A Que Brilha a saudaria com a sua bondade e a Mãe de Tudo a receberia nos seus braços numa promessa de paz. Tuala esperava, desejava, rezava para que fosse o caso.

Em seguida viram-se outros homens, entre eles um alto de cabelos ruivos, Talorgen e o seu filho. E Bridei; Bridei estava entre eles vestido com um manto comprido e negro, os cabelos pelos ombros e uma fita estreita e verde atada em redor do pulso. Tuala não olhou para mais nada. A jovem sonhou que os seus pensamentos chegavam até ele, que o seu amor o cingia. Bridei estava com uma dor de cabeça; Tuala reconheceu o facto pela expressão da sua boca, pelas suas mãos estendendo-se para tocar nas paredes, pela ruga na testa. Bridei andava a dormir pouco; tinha olheiras e estava mais magro. No entanto, o jovem caminhava direito, com firmeza e não permitia que a sua mente vagueasse, vigiava os outros: o rei, os conselheiros e Broichan. Especialmente Broichan.

A água na tigela começou a mudar. Tuala olhou e viu que se estavam a formar alguns cristais de gelo, gelando a superfície, e sentiu um frio que lhe fez gelar o nariz e as orelhas. No entanto, a sala ainda retinha algum calor da lareira; o gato, Shade, dormitava junto das brasas, enroscado sobre si mesmo e as raparigas dormiam pacificamente cobertas apenas com as respectivas capas. O frio pertencia à visão. O gelo vinha directamente do santuário secreto do deus: o Poço das Sombras.

Os homens continuaram a descer os degraus iluminados difusamente por velas acesas no último archote. A luz vacilante revelou uma superfície lisa, de pedra, um tecto abobadado. No fundo da escadaria, uma câmara cujo chão não era de terra ou de rocha, antes de água escura. Fria; mais fria do que o toque do gelo no espinheiro-alvar, mais fria do que o vento áspero que sopra nas montanhas, mais fria do que o beijo da morte nos lábios de um homem morto. Em redor do poço, uma plataforma suficientemente grande para suportar um homem de pé; um a um, o rei, os guerreiros e os conselheiros colocaram-se nela, perto da água. No lado oposto à escadaria o rei e o druida e, entre eles, Morna. Entre aqueles homens vestidos de negro, a rapariga brilhava difusamente à luz das velas, como se fosse uma manifestação menor da própria Que Brilha. A água era mais escura do que a noite; nem o vestido branco da rapariga nem as pequenas chamas das velas se reflectiam naquela superfície proibida.

O coração de Tuala começou a bater com toda a força, apesar dos esforços da jovem para o acalmar. As suas mãos estavam encharcadas em suor, de tal modo Irethra se agarrava a elas. Onde estava Bridei? Ah, ali, perto do rei Drust. Broichan ensinara bem o seu filho adoptivo. O jovem não mostrava a dor de cabeça. Outros, porém, não conseguiam disfarçar o mal-estar. O homem alto, ruivo, parecia que ia desmaiar; outros mostravam sinais de frio e embrulhavam-se ainda mais nas capas e um outro, de olhar duro, não disfarçava a repulsa que sentia.

O ritual era breve e simples. Tuala compreendia as razões de tal facto. A câmara do deus sombrio não era um lugar onde um homem são gostasse de estar muito tempo e, por isso, a cerimónia não incluía orações, demoras, oportunidades para aprofundar a sua natureza e significado e oportunidades para se começar a duvidar.

Broichan falou: palavras rituais acompanhadas por gestos e uma sequência de sinais que Tuala desconhecia. Talvez fosse um encantamento druídico. No fim, Broichan abriu os braços, deu um grande grito e as trevas começaram a reunir-se à sua volta erguendo-se da água, do ar frio, das pedras, tornando-o altíssimo, mais velho do que o tenpo e repleto de um poder implacável, esfomeado. Tuala mal conseguia respirar; os rostos dos homens mostravam espanto, medo, como o dos animais selvagens apanhados numa armadilha, à espera do golpe fatal do caçador. Broichan gritou novamente numa língua que Tuala não compreendia. Em seguida, agarrou num ombro de Morna, no outro lado o rei fez o mesmo e os dois homens entraram na água até aos joelhos com a rapariga entre eles.

- Reza para que ela não recupere os sentidos até a coisa estar feita.

- O murmúrio de Irethra era trémulo e a voz era terrivelmente fria.

- Reza para que a deusa não lhe acorde o olhar antes do fim. Tuala viu o rosto de Bridei, jovem, gelado, os seus olhos esgazeados; o do rei, onde o dever lutava com a dor. Nas feições severas de Broichan havia algo de demasiado terrível para se poder contemplar porque naquele momento o deus cujo nome não se podia pronunciar estava no seu corpo, o poder estava em cada parte do seu ser: não o poder vivo e vibrante da Guardiã das Chamas, não o eterno fluxo das marés da Que Brilha nem a profunda sabedoria da Mãe de Tudo, antes uma energia sombria que fluía e para lá daquelas, uma coisa secreta, terrível que fazia com que os olhares dos homens se desviassem mas que ao mesmo tempo os atraía contra a sua vontade porque a fúria horrível daquela divindade se reflectia em cada um deles, profundamente escondida.

As costas de Morna debruçaram-se e o seu rosto inclinou-se para a água quando a jovem ajoelhou entre os dois homens, o rei e o druida. Os seus longos cabelos caíram para a frente, a um dedo da superfície escura. Morna continuava imóvel; aquiescente. Tuala prendeu a respiração.

No exterior, na encosta do monte, a trompa soou outra vez, um gemido, uma nota violenta de sofrimento chamando o deus. A oferenda estava pronta. Então, rápido como uma flecha no coração, Broichan colocou a mão no pescoço de Morna e mergulhou-lhe a cabeça na água. No outro lado, Drust fez o mesmo, mas com menos força; o homem, doente, não tinha a força do druida que, naquela noite, tinha a força de um deus. Tuala sentiu o coração na garganta. Os seus olhos ficaram rasos de água. Não houve luta. Morna ficou imóvel na estreita saliência, o vestido branco flutuando à sua volta, os cabelos negros espalhados pela água escura, o rosto invisível sob a superfície. A mão de longos dedos do druida apertava o seu frágil pescoço. Broichan e o rei agarraram a jovem pelos braços, segurando-a afogando-a, matando-a, num acto de perfeita obediência.

Tuala esquecera-se de respirar; diante dos seus olhos havia luzes, ia perder a visão, queria que ela se fosse embora, queria...

- Ah! - disse Irethra, prendendo a respiração. A pose de Broichan tornara-se estranha. A sua mão, em contraste com os cabelos negros de Morna, era muito branca. O corpo da jovem estava rígido; os dois homens tentavam mantê-la naquela posição. Subitamente, o rei começou a tossir violentamente. Drust tapou a boca com uma mão, ao mesmo tempo que tentava manter o equilíbrio na estreita saliência. Broichan era o único que mantinha a rapariga na sua posição, com o rosto debaixo de água. Drust afastou a mão da boca. Os dedos estavam manchados de sangue. A seu lado, Broichan emitiu um pequeno som e o seu pé deslizou na pedra lisa da orla do poço. Ouviu-se um som de água agitada. Morna sentira finalmente o toque gelado da Mãe de Tudo e lutava com todas as suas forças. Meio acocorado na berma do poço, Broichan resmungou algo em voz baixa e Drust ergueu os olhos num apelo urgente àqueles que, devido ao parentesco, podiam assisti-lo.

- Ajudai-me - disse Drust em voz alta e olhando para Bridei. Tuala sentiu o coração gelado. A jovem, fechando os olhos, quase largou as mãos de Irethra, mas não conseguiu. Aquilo tinha de ser partilhado em todo o seu horror e grandeza; os deuses assim o exigiam. Bridei deu a volta ao poço, tão cuidadosamente como um gato. Os outros homens encostaram-se à parede para o deixar passar. Quando chegou junto de Drust, Bridei ajoelhou e, amparando o rei com um braço, manteve-o equilibrado enquanto Drust pressionava mais uma vez com o braço para baixo. Não demorou muito mais tempo; a água era muito fria. Não demorou mais do que o tempo que leva a contar duas vezes os dedos das mãos e dos pés; não mais do que o tempo que leva a arrancar uma folha de rosmaninho ou a atar uma fita. Talvez um pouco mais; era necessário ter a certeza que a coisa estava mesmo feita, que o sacrifício fora completo e perfeito, que o deus ficara satisfeito. Finalmente, os dois homens retiraram Morna da água, inerte e branca, e o rei, pondo-se de pé com a ajuda de Bridei, abençoou o seu rosto branco e colocou-lhe as mãos no peito.

Um dos homens, um tipo grande que estava perto de Broichan, tomou Morna nos braços para a levar para fora daquela câmara profunda. O druida ergueu os braços mais uma vez, as mangas caindo e revelando fila após fila de pequenas tatuagens, não as tatuagens dos guerreiros, antes os símbolos subtis da casta druídica, animais e ervas, pedras erectas e estrelas distantes, em espiral através da pele pálida, aqui e ali com palavras escritas na língua secreta da irmandade, como se fossem filas de árvores minúsculas e misteriosas. O druida gritou uma vez mais, um som profundo e áspero. Tuala pensou ver a gruta iluminar-se e nas paredes e no tecto abobadado do Poço das Sombras viram-se gravuras, sinais do deus inscritos pelos antepassados, um reflexo dos padrões nos braços do druida, ligando-o intimamente às forças que moravam ali, no coração da terra, do mesmo modo que nos recessos mais íntimos das almas dos homens. Tuala sentiu um arrepio terrível ao ouvir aquele grito e rangeu os dentes. A jovem sentiu tremer as mãos de Irethra.

O som morreu. A procissão recomeçou lentamente, subindo os degraus que iam dar ao ar livre. O homem grande levava facilmente nos braços o corpo de Morna. A jovem era leve, muito leve; fora para Banmerren vinda do oeste, os seus pais tinham sido mortos por ocasião de uma incursão de Dalriada e ninguém mais quisera ficar com ela; uma rapariga pacífica que só queria agradar; era o que Tuala se lembrava de ouvir dizer. Bridei caminhou ao lado do rei, amparando-o firmemente pelo ombro. Drust parecia cansado de morte; os seus olhos brilhavam de febre e viam-se-lhe os ossos. No entanto, continuava a caminhar como um rei, de costas direitas e a cabeça bem direita. Quanto a Bridei, parecia calmo, impassível. O jovem era forte; Tuala nunca pensara que ele seria capaz de aguentar aquilo. Os homens olhavam para ele e ela viu respeito nos seus rostos, invejoso, talvez, mas real; olhavam para ele como se o jovem fosse o homem que eles desejariam ser se tivessem coragem. A sua expressão não revelava nada; Bridei era um modelo de controlo. Nada, mas não para Tuala. A jovem conhecia-o como se conhecia a si própria, leu-lhe a dor nos olhos; sentiu a sua dor de cabeça como se fosse sua; sentiu o bater do seu coração, a culpa, a repulsa; reconheceu a marca do deus sombrio e não pôde fazer nada para a banir.

- Acabou - disse Irethra com uma voz estranha, libertando as mãos de Tuala. Tinha acabado, realmente; a tigela de bronze não tinha mais nada senão água límpida. A sala estava muito fria e muito calma. Tuala pestanejou e esfregou as lágrimas, viu Irethra fazer o mesmo e ouviu respirar áspera e profundamente. Num círculo silencioso, as alunas, brancas como a cal e de olhos muito abertos, rodeavam-nas. Tal como um grupo de crianças acordadas subitamente de um pesadelo demasiado terrível para ser contado, olhavam, mudas, para as que lhe tinham dado forma. Naquele momento, Tuala viu as consequências da sua desobediência; olhara para onde não devia ter olhado; entrara onde as mulheres não podiam entrar. Como uma pedra atirada para um poço em descanso, o seu acto poderia provocar ondas que chegariam longe. Quem poderia saber qual seria o possível castigo daquele deus sombrio? No entanto, não estava arrependida. Irethra foi a primeira a recuperar a voz.

- Odha, espevita o fogo. Deira, traz lenha do cesto. As outras, acendam algumas velas. O ritual acabou, pelo menos para nós. Vamos dormir aqui esta noite, todas juntas à lareira. Tira daí esse gato, está a tirar-nos o calor que resta. Precisamos de pão, de mel e de uma infusão de ervas para nos ajudar a descansar. Finalmente, algumas perguntas, mas não muitas. Não sei o que vistes, mas quero dizer-vos uma coisa. As visões da tigela aparecem e formam-se segundo a vontade da deusa. Se vistes imagens que vos perturbaram, foi por terdes olhado quando não devíeis. - As mãos de Irethra estavam cerradas uma na outra. Tuala sentiu que a tutora falava sem a consciência de que as únicas culpadas eram elas, mais ninguém. Depois, porém, viu o brilho nos olhos de Irethra e percebeu que era uma extraordinária demonstração de presença de espírito. Os olhos da tutora tinham consciência e tinham medo. - Concentrai-vos na obediência - continuou Irethra. - Todas nós aprendemos a obedecer em Banmerren; mesmo as mais velhas e mais sábias devem curvar-se à vontade dos deuses.

- Quero ir para casa. - Aquela voz trémula podia pertencer a qualquer uma delas; a sua mensagem era evidente.

- O que és tu - disse Irethra com voz forte, uma manifestação de força de vontade - uma serva da Que Brilha ou um bebé chorão. Tuala, leva as mais novas à cozinha para beberem um soporífero; se não souberes qual escolher é porque Luthana não tem feito o seu trabalho. Quanto às outras, não ouvistes o que eu disse? A lareira, Odha. A lenha, Deira. Fola e as outras hão-de ter frio quando regressarem e hão-de vir cansadas. Como estamos acordadas à mesma hora das corujas e dos ouriços-cacheiros, preparemos-lhes as boas-vindas.

Respirar: profundamente, firmemente, lentamente. Contar ritmadamente, uma canção para acompanhar. Hee-o, wee-o, pena do corvo mais negro...

Tinham chegado aos aposentos do rei onde a rainha Rhian, de olhos secos e melancólicos estava pronta para receber o seu exausto marido. O seu irmão, Owain, não comparecera no ritual visto que era de Powys e leal aos rituais do seu povo, mas estava ali para segurar no braço de Drust e ampará-lo. A respiração do rei parecia um ferro a raspar gelo, o sussurro de folhas secas levadas por um vento de Outono. Drust virou-se, finalmente, e saudou toda a gente com um aceno de cabeça. Os seus olhos, ferozes como os de um touro de combate, não permitiam expressões de preocupação nem ofertas de apoio.

- Acabou, mais uma vez - disse o rei em voz baixa. - Obrigado - disse ele, olhando para Bridei. - O caminho é solitário. Tudo o que sou, dou-o aos deuses e a Fortriu. - Os seus olhos mexeram-se novamente; o seu olhar iluminou-se ao ver a figura rechonchuda da sua mulher, cujas feições doces não conseguiam esconder totalmente o seu desespero. - Tive muita sorte - disse Drust em tom diferente. - Tive sorte com os amigos e tive sorte com a família. A confiança dos deuses é uma dádiva maravilhosa e um fardo terrível. Um homem não pode transportá-lo sozinho. Desejo-vos a todos boa noite, apesar de o sono não chegar facilmente numa noite como esta. Que A Que Brilha ilumine os vossos sonhos.

- Que a Guardiã das Chamas ilumine o teu acordar - foi a resposta, vinda de muitas vozes ao mesmo tempo: a de Aniel, a de Tharan, a de Broichan, a de Bridei e as dos parentes mais próximos do rei, a do ruivo Carnach e do robusto Wredech, o homem do gado. A porta fechou-se. Drust, o Touro, desapareceu.

Bridei tinha comido pouco, a dor de cabeça tirava-lhe o apetite, apesar disso, o jovem dobrava-se e vomitava no pequeno espaço por trás dos degraus do caminho de ronda com os intestinos retorcidos, cerrando os dentes, levantando-se e dobrando-se de novo até à última gota de bílis e de água. A determinada altura, Bridei reparou que Faolan estava junto dele com um pano húmido na mão, segurando-lhe na cabeça, oferecendo-lhe água que não lhe ficava no estômago mais do que o tempo que demorava a engoli-la. Finalmente, a coisa pareceu acalmar e ele sentou-se nos degraus a tremer convulsivamente pOr baixo do cobertor espesso que o celta lhe deixara cair em cima dos ombros. Um pouco mais tarde, Garth apareceu com uma infusão a ferver e Breth com pão duro que os outros comeram, mas Bridei não. Os três ficaram ao lado dele durante aquelas horas sombrias, dizendo e falando pouco.

Aqui e ali, nos caminhos de ronda ou nos pátios, no interior das muralhas de terra, outros grupos de homens agrupavam-se em silêncio ou falavam em voz baixa. As lanternas acenderam-se; iniciou-se uma espécie de vigília, um turno de guarda para afastar as sombras. Naquela noite, não havia um único homem capaz de enfrentar os seus sonhos. A luz saía da câmara do rei através das fendas das persianas. O som da tosse de Drust ouvia-se na perfeição; a memória da sua coragem estava em todos os corações. Algures, num canto tranquilo qualquer, alguém devia estar a abrir uma campa. As escolhidas não regressavam a Banmerren.

Algum tempo antes do nascer do sol, Bridei conseguiu mexer-se, se bem que sentisse as pernas estranhamente fracas e a cabeça tonta. O jovem pôs-se de pé e olhou para os três homens: Breth, com os seus olhos perspicazes, escondendo um bocejo; Garth, com o seu rosto agradável cinzento de cansaço; Faolan, magro, escuro, cujo sorriso habitualmente meio divertido fora substituído por outra coisa qualquer, uma expressão que Bridei, demasiado cansado, demasiado doente e demasiado triste, não conseguiu interpretar.

- Obrigado - disse ele simplesmente. - Vou-me deitar - e foi-se embora, esperando que as suas costas estivessem tão direitas e os seus passos tão firmes como os de Drust. Bridei, porém, não foi imediatamente para o quarto que partilhava com Breth e Garth; a luz de uma vela, vinda dos aposentos de Broichan, atraiu-lhe o olhar e o jovem fez uma pausa em frente da porta aberta.

A princípio, parecia que não estava ninguém dentro da câmara. O local onde, na manhã do Portal, o druida se ajoelhara numa pose de força e obediência, estava vazio. Num nicho ardia uma vela. A cama estreita e dura, com o seu cobertor dobrado cuidadosamente, estava desocupada.

As prateleiras tinham os mesmos jarros, garrafas, sacos, tigelas e cadinhos; as tranças de alho continuavam penduradas nas vigas e em cima da mesa de pedra estava um conjunto de gravetos esculpidos, sinal de que houvera ali um augúrio. Brídei vírou-se para continuar o seu caminho em direcção ao seu quarto para dormir até de manhã. O jovem sabia que não dormiria. No entanto, faria de conta, pelo menos os outros poderiam descansar.

Um pequeno som prendeu-o à porta do druida; a respiração entrecortada de um homem lutando consigo próprio. Broichan estava de pé junto da janela estreita. As suas mãos, cerradas uma contra a outra de tal maneira que até os nós dos dedos estavam brancos, estavam encostadas ao corpo. O druida não tirara o manto negro que usara durante a cerimónia. O druida estava encostado à parede, imóvel, com a cabeça descansando na pedra fria. Bridei nunca lhe vira aquele olhar. A máscara desaparecera por completo; a culpa, a confusão, a dor e o sofrimento eram evidentes e nas austeras faces do druida a luz da vela deixava ver traços de lágrimas.

Bridei fora tratado, naquela noite, com cortesia por outras pessoas, com constrangimento, com verdadeira amizade. O jovem não podia fazer menos por Broichan. Tal como elas, Bridei acreditara que o seu pai adoptivo era uma criatura de certezas poderosas, para além das fraquezas dos homens normais, a sua mente rodava apenas em volta de conspirações e planos, de conhecimento e magia druídica; pensara que no coração de Broichan não havia lugar para outra coisa que não o amor pelos deuses. Naquele momento, Bridei reconheceu que estava errado. Durante aqueles anos todos, desde a chegada confusa a Pitnochie, desde o primeiro relance para aquela figura alta e remota que lhe iria moldar o futuro, nunca pensara em Broichan como um homem. Nunca lhe passara pela cabeça quão solitária podia ser a sua existência.

- Estou aqui - disse ele em voz baixa entrando no quarto, pegando na vela para acender uma candeia em cima da mesa e deitando água numa taça. - Vem, senta-te, bebe. já acabou tudo. - Mas não disse: Por agora. Por esta veZ.

- Ainda bem - disse Fola - que estas raparigas são apenas noviças. Se tivessem visto tudo, como parece ser o caso com vós as duas, estaria com uma revolta nas mãos, este local estaria vazio e A Que Brilha estaria amargamente ofendida. Em que estáveis a pensar? Estes segredos estão proibidos até às mais sábias de nós; O Poço das Som bras não é um lugar onde as mulheres possam entrar. Expôs as crian ças assim... Faltam-me as palavras, Irethra. Como serva da deusa, uma sacerdotisa experiente e dedicada, é impensável teres cometido um erro destes, apesar de ter sido Tuala a influenciar-te. Irethra tinha os lábios cerrados e os olhos vermelhos.

- A culpa não foi de Tuala - disse ela. - A ideia foi minha. Eu é que a pressionei.

- A responsabilidade e a culpa devem ser partilhadas entre as duas - disse Fola, olhando da sua assistente para Tuala. As duas estavam em frente da Mulher Sábia nos aposentos privados desta, envergonhadas perante a sua desaprovação. Se Fola se sentia esmagada pelo papel que desempenhara no ritual da noite anterior, não parecia. As suas costas estavam direitas e as suas feições calmas. Os olhos, porém, estavam frios. - Não interessa quem foi a investigadora e quem foi a seguidora. Não interessa quem foi a tutora e quem foi a aluna. Sois ambas inteligentes e capazes. Cada uma de vós possui os seus talentos únicos. Cada uma de vós conhece os desejos da Que Brilha e está aberta à sua voz. Cada uma de vós é culpada. Cada uma de vós deve sofrer as consequências do seu terror.

- Queres que eu abandone Banmerren - disse Irethra numa voz sem tom. -Já não sirvo para ensinar, não mereço passar os meus dias ao serviço da deusa.

Fola suspirou. Ao olhar para ela através de um véu de tristeza e confusão, Tuala reparou na rede de rugas do rosto da Mulher Sábia, da falta de cor da pele em redor dos olhos e apercebeu-se de que Fola era realmente idosa, talvez tão idosa como Uist, o druida, esmagada pelas próprias dúvidas. Entregar Morna daquela maneira na fortaleza, deixá-la passar os portões e esperar a noite toda na praia consciente do que estava a acontecer no coração da terra devia ter sido uma coisa terrível. Só uma mulher fiel a toda a prova aos deuses seria capaz de a ultrapassar e regressar ao dia-a-dia intacta. Aqueles dois eram fortes, muito fortes. Tuala sentia que não seria capaz de obedecer daquela maneira. Todos os seus sentidos estremeciam com o que tinham presenciado na noite anterior, apesar de achar que fora um acto necessário.

- Tuala!

- Sim, minha senhora?

Eu não me tornei numa pessoa diferente só porque desobedeceste hoje, só porque foste tola. Chama-me pelo meu nome. Tu és uma de nós. Ou estarei enganada? Se calhar, pelo que se passou ontem, cometi um erro grave ao trazer-te para Banmerren. O teu dom é perigoso; tenta as pessoas a procurar conhecimento para lá do que é permitido. Esse dom é uma ferramenta para os ambiciosos, para os que desejam o poder. - Irethra encolheu-se perante o olhar da Mulher sábia. - Não devias concordar com isso, Tuala, sabendo aquilo de que eras capaz.

Tuala lamentava alguma coisa do que ocorrera, pelo menos. No entanto, a jovem não conseguia dizer as palavras de desculpa que lhe eram exigidas.

- Fala - disse Fola - Irethra mencionou o castigo apropriado para si própria e expressou arrependimento. O que é que tu tens para dizer?

Tuala respirou fundo.

- Nós erramos ao fazer aquilo enquanto as raparigas estavam a dormir - disse ela. - O facto de nunca termos imaginado que elas acordariam, não é desculpa, eu sei. Mas não devias mandar Irethra embora. Ela é uma tutora excelente. O seu talento seria mais bem aproveitado aqui, remediando o mal provocado pelo que as raparigas viram, fazendo-as compreender o que viram e como isso está ligado ao folclore dos deuses.

Seguiu-se um breve silêncio.

- Eu não te pedi que comentasses a situação de Irethra - disse Fola.

- Não, minha... não, Fola.

Penso que falta qualquer coisa no teu discurso. Tu lamentas o facto de as raparigas se terem envolvido. É um alívio ouvir isso, pelo menos era o que eu esperava de ti. Porém, sinto que há um mas nesse teu arrependimento!

Tuala cerrou os dentes. Tinha de dizer a verdade, mesmo que o resultado fosse a sua expulsão; mesmo que, no fim, Bridei fosse lá e ela já lá não estivesse. Para onde iria?

- Eu não lamento o acto em si - disse ela, ao mesmo tempo que ouvia Irethra prender a respiração. - Sempre acreditei que as visões Que A Que Brilha me revela são as que ela quer que eu veja. Ela dá-mas para que eu possa encontrar o meu caminho, para que eu possa guiar os outros. Por vezes, sinto que algumas imagens aparecem por que eu as invoco, porque as quero, mas não acredito que uma rapariga humana seja capaz de fazer uma coisa que A Que Brilha proíbe. A deusa é demasiado poderosa para se deixar enganar assim, sem mais nem menos. O que eu vejo na água determina o meu caminho e o de. outros do meu conhecimento. Ontem à noite, por exemplo. A deusa mostrou-me o ritual porque queria que eu o conhecesse.

- Metes-me medo, minha filha. E Irethra? Tuala hesitou.

- Suponho que com ela acontece o mesmo; foi A Que Brilha que enviou a visão, não fui eu que a invoquei, nem Irethra. Tu falaste de poder, do mau uso de um dom. Isto pode muito bem ter sido uma lição.

Fola sorriu cruelmente.

- A sério? Se isso é verdade, parece que Irethra aprendeu com ela, ao passo que tu não.

- Irethra e eu somos diferentes e a lição também é diferente para ambas.

- Estou a ver. Isso pode querer dizer que, se uma rapariga humana não pode invocar imagens proibidas a uma vidente, tu não és, portanto, uma rapariga humana. Será possível estarmos a lidar com algo que não imaginávamos?

Tuala teve uma sensação estranha, como se estivesse ali no quarto iluminado por uma candeia e noutro sítio qualquer ao mesmo tempo; uma sensação gelada de Isolamento, como se estivesse totalmente sozinha.

- Aquilo foi uma visão da Que Brilha - disse ela num murmúrio.

- Eu sei que foi. A deusa guia-me os passos desde o dia em que me depositou em Pitnochie, ainda em bebé. Não é A Que Brilha que provoca as trevas, é aquele que exige dos homens actos como o que a visão nos mostrou; tais actos são capazes de despedaçar o mais forte dos corações e destruir a vontade do mais forte.

- Silêncio, filha - disse Fola com a voz a tremer. Por fim, as consequências do Portal podiam ser vistas nos seus olhos. - Aqui, não falamos dessas coisas. As imagens que viste não são para os olhos de uma mulher, especialmente uma inocente como tu. Por que havia a deusa de revelar uns segredos tão amargos a uma criança como tu. Com que propósito?

Tuala ficou muda. Para ela, a verdade era evidente: Bridei. Porém, não a diria. A Que Brilha estava a jogar um jogo muito difícil: dava a Tuala as ferramentas de que a jovem precisava para ajudar aquele que ela amava e, ao mesmo tempo, colocava uma parede entre os dois, uma parede que não era a mera barreira de pedra e terra que encerrava Banmerren, antes uma muralha contra os costumes, a esperança, a história e o protocolo, muito mais difícil de deitar abaixo. Talvez Fola estivesse a dizer a verdade. A visão da noite anterior teria sido uma coisa deformada, retorcida, invocada das trevas, para lá do reino dos deuses?

- Isto exige alguma ponderação - disse Fola. - Irethra, vou pensar no teu futuro. O que se passou vai alterar o teu futuro. O que aconteceu pode vir a alterar o teu caminho, de um modo ou de outro. Por agora, continuarás connosco. As crianças precisam de orientação; precisam de explicações daquelas em quem confiam; é a tua oportunidade para me mostrares que és realmente de confiança. Não abuses dela, ou sairás para sempre de Banmerren. E agora vai.

Irethra fez uma pequena vénia. O seu rosto estava pálido; era do conhecimento geral que ela aspirava, aliás esperava, governar um dia

Banmerren, depois de Fola. A partir daquele momento, até o seu lugar como tutora estava em risco. Tuala permaneceu imóvel quando a tutora passou por ela com as feições rígidas e abandonou a sala.

- Quanto a ti - disse Fola num tom ligeiramente diferente mostraste uma certa compreensão, uma certa compaixão, tal como a própria Irethra, e eu agradeço à deusa por as duas possuírem ainda um pouco de sabedoria interior. Tu sabes que eu não estava presente no Poço das Sombras; na verdade, ainda bem que não estava e espero que este meu desejo se prolongue por muitos anos. Quem compareceu foi Drust. O papel que eu desempenhei aflige-me, é um tormento; invejo a força e a certeza de Broichan. Tuala, eu não quero que me contes o que viste, sei muito bem o que procuravas. Encontraste o que querias?

Tuala acenou com a cabeça e não disse nada.

- Nesse caso, diz-me - disse a Mulher Sábia com olhos perspicazes apesar de não ter dormido - qual foi o papel de Bridei? Não fiques assim, minha filha. A tua expressão é transparente, sei muito bem o que te vai na cabeça. O jovem ficou horrorizado? Ou foi um Modelo de controlo, como o seu pai adoptivo? Conta-me.

O rei Drust precisava de ajuda e quando o... quando eles... Broichan não conseguiu sozinho e o rei começou a tossir e a tentar respirar. Drust virou-se para alguns dos homens, suponho que para os parentes mais próximos porque a regra é essa, tal como Wid me disse... Mais ninguém pode tocar no... ninguém pode... O único que o ajudou foi Bridei - Tuala ouviu a doçura da sua própria voz ao pronunciar o nome do jovem, uma revelação perigosa dos seus sentimentos secretos.

- Estou a ver - disse Fola num tom pesado, um tom que era uma declaração importante, o reconhecimento de uma mudança.

- Bridei ajudou o rei calmamente e sem hesitações. O rosto dele não revelava quaisquer sentimentos.

- Broichan foi sempre um grande tutor. - Fola suspirou e descansou o queixo nas mãos. - Estou cansada, Tuala; vou seguir o conselho de Luhana e descansar um pouco. Podes ir.

- Também... também vou ser castigada?

- Provavelmente, quem precisa de castigo sou eu por te ter aqui presa - disse Fola em voz baixa. - Porém, sim, tens de ter um castigo qualquer; foi uma loucura pôr daquela maneira as raparigas em risco. Deixas de dormir na torre. De qualquer modo, é fria demais no Inverno. Traz as coisas para baixo; vais dormir com as outras na camarata.

Tuala sentiu-se empalidecer. Não podia ser; ainda não; antes da Lua cheia, não...

- Por favor, não - começou ela.

- Podes ir, Tuala. - A voz era suave, mas implacável. - Traz as tuas coisas para baixo hoje. E que Irethra remedeie o mal que fez; as raparigas vão aceitar as explicações dela mais depressa do que as tuas, atrevo-me a dizer.

- Eu...

- Não ouviste o que eu disse?

Ao ver o olhar de Fola nas suas feições fortes, um olhar que mostrava, finalmente, toda a angústia e exaustão da noite anterior, toda a culpa e responsabilidade de uma vida inteira de promessas, Tuala engoliu o protesto e saiu. As regras não interessavam, assim como as portas fechadas e as tutoras vigilantes. Quando fosse Lua cheia, ele iria ter com ela e ela estaria à espera.

- Desenrasca-te - disse Dreseida em tom cortante. - E despacha-te; preciso de ver Gartnait assim que acabarmos a nossa conversa. Ele não está a fazer progressos nenhuns.

- Não pode, mãe. - Ferada estava nos alojamentos das mulheres, em Caer Pridne, a olhar para os olhos ferozes da mãe, uns olhos que lhe faziam lembrar um animal selvagem e que a faziam sentir a presa. - A mãe sabe muito bem que ele não é um intelectual. Ele não é capaz de se lembrar desse tipo de informações. Não percebo por que razão o obriga...

- Nesse caso, tens tu que tentar mais, Ferada, preciso da tua ajuda, preciso da tua lealdade total. Já te disse que um chefe tribal de Fib foi ter com o teu pai por causa de uma aliança? Uma aliança através do casamento? Como é que ele se chama? Coltran, Celtane?

- Cealtran - disse Ferada, ameaçadoramente, revendo na memória o nariz imponente, vermelho, do chefe tribal recém-chegado à corte. A barriga de Cealtran gingava quando ele andava e os seus olhos pequenos estavam afundados em bolsas de gordura pálida. O homem devia ter cinquenta anos; Dreseida devia estar a brincar.

- Ele é velho, mãe, é do Sul e é cristão. O pai nunca...

- Como já te disse muitas vezes, a decisão é minha. O teu pai tornou-o bem claro. Existem outras possibilidades, claro, desde que não esperemos muito tempo. Ana tem tios e nem todos eles são casados. A rainha tem primos jovens em Powys. E que tal os chefes tribais dos Caitt? Tens muitas possibilidades pela frente, se bem que todas elas longe de casa. E agora, explica-te. Tu sabes como funciona a coisa, Ferada. Faz o que te digo, não fales disto em lado nenhum, nem ao teu pai, aos teus irmãos ou às tuas amigas, isto se conseguires alguma coisa e terás hipótese de escolher um marido. Não te peço muito, minha filha, apenas algumas informações. Só tens de representar um pouco. Para uma rapariga esperta como tu não deve ser difícil.

- Mãe... Gartanait e tudo... é para quê? O que é que a mãe pretende?

- Se pensas que te vou responder, estás muito enganada. Nem pareces minha filha - disse Dreseida. - Este sítio está cheio de espiões. Uma pessoa só está segura no seu quarto. Vem aí uma eleição. Não é para já porque Drust surpreende-nos a todos agarrando-se à vida mais do que nós acharíamos possível, mas dentro em breve, muito em breve. Eu procuro tirar partido do pouco poder que tenho como mulher, para conseguir um resultado satisfatório. Não interessa Se não posso votar. Os homens são extremamente maleáveis, Ferada. temos de aprender as técnicas. E agora, diz-me: Que soubeste?

Não muito. Como já disse, tive poucas oportunidades de falar con Bridei antes de regressar a Banmerren.

- E a rapariga, a irmã dele? Alguns sinais, mensagens? Ela fala de Bridei? E acerca de Broichan? Dos planos dele?

- Não, mãe. Tuala é muito calada; nunca fala do que sente.

- Preciso de mais qualquer coisa, Ferada. Pensa em Cealtran a levar-te pela mão para casa dele para lhe aqueceres a casa. O tipo quer herdeiros. Montes deles.

Ferada encolheu os ombros.

- Tuala mandou uma mensagem - disse ela sinistramente. - Ana foi a portadora.

- Foi Ana que te disse? Qual era a mensagem? Ferada abanou a cabeça.

- Ana não falou dela, mas eu vi-a. A mãe pediu-me para espiar, no fim de contas. Tuala enviou a Bridei um pequeno pacote com uma folha e uma pedra lá dentro. Mais nada.

- E uma fita.

- Suponho que estava atado com uma fita - disse Ferada, surpreendida. - Como é que sabe?

O sorriso de Dreseida era fino e os seus olhos tinham um ar duro.

- Aprendi a observar. O jovem usa uma fita no pulso, tal como o favorito de uma dama, se bem que todos os homens sabem que Bridei nem sequer se aproxima das casas de prazer, nem nunca dá atenção a rapariga nenhuma; algumas pessoas dizem em voz baixa que ele prefere rapazes, mas Gartnait disse-me que não vê sinais disso. Bridei parece ser tão casto como um monge cristão. Só por isso dá para pensar se ele será a pessoa adequada para personificar a Guardiã das Chamas. É suposto um rei ser viril. Não percebo por que o levam a sério como candidato, mas dizem que ele tem apoiantes. Claro, o rapaz foi criado por Broichan, o que explica tanta estranheza. Ele já usava uma fita, mas estava quase a desfazer-se. Agora, usa uma nova, verde seca e eu vi essa fita a atar os cabelos compridos de uma certa criaturinha selvagem do nosso conhecimento. O seu significado é evidente: diz-nos que a rapariga feiticeira não é irmã dele, é o amor dele. Tens de estar alerta a todos os pormenores, Ferada, se queres ser uma boa informadora.

Ferada cerrou os lábios.

- A mensagem - disse a mãe da jovem. - Que significa? Uma folha, uma pedra? Que espécie de folha?

- Que diferença faz? Uma folha de carvalho, suponho. No lado de fora da janela de Tuala, na torre, há um carvalho enorme que se estende pela muralha fora.

- Ah.

- Mãe, eu...

- Que espécie de pedra? Pequena, imagino. Preta, branca, cinzenta? Suave, rugosa, redonda, comprida?

- Penso que era branca. Mãe, não gosto disto. Por que é que a mãe...?

- Vais fazer o seguinte. Procura Bridei. Ele fala contigo, já vi; ele gosta da tua vivacidade. Sê uma mulher, para variar. Usa o vestido azul e o alfinete de prata. Ele deve andar perturbado por causa do Portal. Se o que teu pai contou sobre o que aconteceu estava correcto, o rei descarregou um fardo pesado sobre os ombros dos seus parentes naquela noite e parece que, dos três, Bridei foi o que se portou melhor. Ouviste falar no que aconteceu.

Ferada estremeceu.

- Oficialmente, não, mas não é possível ficar surda aos mexericos. Ana e eu conhecíamos aquela rapariga, Morna. Falámos com ela, partilhámos pão. Aquilo mudou o que eu sentia por Banmerren, por Fola; encheu-me a cabeça de perguntas sem resposta.

- Davas uma boa companheira para Bridei. O protegido de Broichan também está sempre a fazer perguntas. Encontra-o; escuta-o. Deixa-o falar. Ganha-lhe a confiança. Aproxima-te dele o mais que puderes; usa tudo o que tens, Ferada. Eu preciso de uma oportunidade e tu podes conseguir-ma.

- Que oportunidade?

- Mais tarde. Tudo a seu tempo.

- Mãe?

- O que é? Despacha-te; já te disse, tenho outros assuntos a tratar.

- Parece-me - arriscou Ferada - que o que aconteceu durante o Portal demonstra a força de Bridei, a sua coragem, a sua auto-disciplina; mostra que vai ser um forte candidato. Algumas pessoas dizem que isto, só por si, o tornou a única hipótese; que Carnach pode juntar os seus apoiantes a Bridei em vez de se candidatar ele próprio.

- Quais pessoas? Quem é que anda a dizer isso? - Dreseida parecia uma serpente a sibilar.

- Se calhar, quem deve ouvir não sou eu - disse Ferada. Um instante mais tarde, a mão cheia de anéis de Dreseida atingiu a jovem na face, deixando-lhe um vergão vermelho.

- Tu achas que o teu irmão é um tolo - disse Dreseida - mas ele podia muito bem ensinar-te o significado da palavra lealdade. Não me voltes a falar nesse tom. Se pensavas que eu ia deixar uma insolência dessas passar sem retaliação, então és incapaz de olhar de frente para o teu futuro. Faz com que Bridei se torne teu amigo. Sê o seu confidente. Especialmente, quero que saibas quais são os seus movimentos; quais as incursões planeadas fora das muralhas de Caer Pridne. Despacha-te, porque o tempo escasseia. E é melhor fazeres qualquer coisa ao teu rosto, ou afugentarás o rapaz, o que seria muito desvantajoso para todas nós.

Broichan ensinara-o melhor do que qualquer um deles imaginava: máscaras, espelhos, truques, encantamentos e disfarces. Bridei fazia demonstrações diárias das habilidades que aprendera, não só ensinadas pelo seu pai adoptivo, mas também ensinadas por Erip com o seu amor pelo folclore e por Wid, que era capaz de avaliar um estranho apenas com um olhar. A corte passou a reconhecer Bridei como um homem subtil, profundo, inteligente, engenhoso, capaz de se aguentar perfeitamente nos seus jogos perigosos. Porém, as pessoas sabiam muito menos acerca das suas outras capacidades, as aprendidas anos antes em Pitnochie, coisas que só um druida era capaz de ensinar.

Faolan não gostava do plano de Bridei para entrarem em Banmerren. Uma capa de disfarce, conseguido com o uso da magia, não constituía, para ele, uma protecção infalível. Resumindo, o celta não acreditava que Bridei pudesse fazê-lo, e disse-o rudemente.

- Vamos ser vistos no momento em que sairmos porta fora. Que estás a tentar fazer? Queres que eu perca o meu emprego?

- Não vamos ser vistos. A capa engana; só um druida seria capaz de a detectar. Evidentemente, tomaremos outras precauções, manter-nos-emos a coberto das dunas e seguiremos sempre vigilantes. Confia em mim.

- Disseram que eras louco quando decidiste deslocar a Pedra Mágica - observou Faolan. - As pessoas fizeram o que lhes pediste, apesar de tudo. Muito bem, vamos tentar. Como tencionas passar por cima da muralha?

- Com uma corda. Levo-a aqui.

- Como é que...? Confia em mim, Faolan.

- Hum. Vai ter que ser tudo muito rápido. E não nos podemos distrair. Entrar, sair e regressar a Caer Pridne sem que ninguém nos veja. Eu manifestei a intenção de atrair a atenção para a nossa saída a cavalo para oeste, mas não podes ser visto em Banmerren. Os homens estão proibidos de entrar no interior daquelas muralhas, como muito bem sabes. Se fores apanhado a violar a regra, a tua candidatura não vale um caracol. Um rei tem de ser puro, perfeito e obediente. Não vai atrás de mulheres à meia-noite para um sítio onde não tem nada que estar.

- Eu não vou atrás de mulheres como tu estás a dizer tão cruamente - disse Bridei. - Eu vou visitar uma amiga. Além disso, lembro-te que a ideia foi tua.

Os lábios de Faolan torceram-se numa espécie de sorriso.

- Não finjas que não é o teu desejo - disse o celta. - Até dói ver o que te vai nos olhos. No entanto, não te esqueças, quando estiveres nos braços dela, da razão por que vais lá: tirar o assunto da cabeça de uma vez por todas.

Nos braços dela, pensou Bridei; não aconteceria, se bem que a ideia de lhe tocar, de a abraçar, de a beijar não lhe saísse da cabeça. Não só não seria capaz de lhe tocar, como não conseguiria encontrar as palavras certas quando a encontrasse. Tuala era uma sacerdotisa. A escolha fora sua. Não tinha nada para lhe oferecer senão uma vida infeliz, uma vida de confinamento no interior das muralhas de uma fortaleza. Seria como fechar uma borboleta numa pequena caixa e esperar que ela ficasse satisfeita. Não lhe podia pedir tal coisa; seria uma demonstração de egoísmo. No entanto, ela enviara-lhe uma mensagem, enviara-lhe a fita.

Lua cheia: as areias da baía de Banmerren brilhavam palidamente sob os raios de luz da deusa e o mar banhava-as incessantemente, obediente ao seu chamamento. O ar estava límpido e frio. Os dois homens seguiam cuidadosamente a coberto dos arbustos. Os seus movimentos eram praticamente invisíveis, tal o feitiço de Bridei: um encantamento que funcionava, não fazendo-os desaparecer, porque o jovem não tinha tais poderes, mas fazendo com que as suas silhuetas se confundissem com o que os rodeava; uma rocha, a areia pálida, uns caniços, uns gravetos, alguns troncos castanho-esverdeados. Ninguém os vira Sair pela comporta; os guardas não tinham sido alertados, apesar de os dois companheiros terem deixado, certamente, pegadas na areia antes de se terem posto a coberto das dunas.

Faolan levava duas facas no cinto; Bridei levava um rolo de corda. O coração do jovem batia de modo estranho, como se tivesse acabado de fazer uma corrida; nenhuma disciplina druídica conseguia forçá-lo a um ritmo menos violento. A mente de Bridei formava as palavras que queria dizer e eliminava-as sucessivamente. Espero que estejas bem. como se fosse um estranho, formal, sem qualquer significado. Amo-te. Proibido; a verdade. A verdade perigosa. Ele sabia, não eram precisas palavras. Porque me deixaste? Egoísmo; petulância; a presunção de que ela se devia sentir culpada por obedecer às ordens da Que Brilha. Não podia dizer aquilo. Vem comigo, agora, preciso de ti... Mostrando-lhe com as mãos, com a boca, com o corpo, como a necessidade era grande, uma coisa capaz de o devorar se não fosse satisfeita. Aquilo, acima de tudo, não podia dizer. Aterrorizaria a amiga do seu coração, afugentá-la-ia para sempre. Bridei tinha pouco para lhe oferecer; se tivesse cuidado com as palavras, com os gestos, conseguiria, pelo menos, conservar a sua amizade apesar da separação. Que lhe poderia dizer, então? Que lhe restava que pudesse dizer?

Chegaram à base das muralhas de Banmerren. Bridei sabia onde ficava o carvalho: o plano que apresentara a Faolan era perfeito em todos os pormenores. O celta não era homem que partisse mal preparado para uma missão, seguia as suas próprias regras apesar de ir onde os outros tinham medo de ir, calculava os riscos. O seu plano era impecável e a sua execução teria de ser sem falha; não admirava que o seu preço fosse tão alto.

Estavam por baixo da árvore. Os ramos nus podiam ser vistos por cima da muralha, rígidos e fortes à luz fria do luar. Bridei emitiu um pequeno assobio, o chamamento de uma ave nocturna, e esperou. A resposta chegou uns momentos depois, o inimitável chamamento de uma coruja. Tuala. O jovem assobiou outra vez apenas para se certificar, ao mesmo tempo que tirava o rolo de corda do ombro e se preparava para a lançar. O pio da coruja ouviu-se mais perto, como se a jovem tivesse avançado mais no ramo, aproximando-se da muralha.

- Esta rapariga é meio gato? - murmurou Faolan. - Não tens medo que ela caia e parta o pescoço? A altura é grande.

Na mente de Bridei apareceu uma imagem de Tuala empoleirada no topo de Cicatriz de Águia, girando como um cata-vento e recitando com a sua voz clara: Fortrenn, Fotlaid, Fidach, Fib, Circinn, Caitt.

- Não cai - disse o jovem. - Preocupa-te antes comigo. Bridei olhou novamente para cima e pensou vê-la, uma silhueta pálida no topo da muralha, uma nuvem de cabelos escuros; fez um gesto, esperando que ela compreendesse e segurando numa ponta da corda com uma mão, lançou-a com a outra.

Tuala falhou: A sua mão esticou-se, mas a corda caiu no solo. Bridei lançou-a de novo. Faolan perscrutava a costa, os arbustos, o carreiro.

- Lembra-te - murmurou o celta - despacha-te. - Nada de despedidas longas.

Bridei lançou novamente a corda e sentiu-a presa no topo. O jovem conseguiu ver, difusamente, a pequena silhueta de Tuala puxando-a e prendendo-a a um ramo, pronta para ser trepada por um homem forte.

- Põe-te a andar - sibilou Faolan. - Não te afastes; se formos descobertos, tenho de ter a possibilidade de te tirar daqui rapidamente. Se ouvires o meu sinal, vem imediatamente. Ainda é longe daqui a Caer Pridne. Mantém sempre os pés encostados à muralha enquanto trepas...

Um pouco mais tarde, com a respiração ofegante, Bridei atingiu o topo e sentou-se escarranchado, algo desajeitadamente, no alto da parede estreita. Olhando para baixo, o jovem viu um jardim na penumbra e, mais longe as paredes de pedra de uma casa. A única luz era a da Que Brilha. Tuala tinha recuado para um ramo do carvalho. A jovem olhou para ele com olhos solenes de coruja, com os cabelos suaves em redor do pequeno rosto, com a sua silhueta doce tão agradável aos olhos de Bridei como no dia em que a vira nos dólmenes, o dia em que se apercebera de que ela se tinha transformado numa mulher. O jovem olhou para ela. Apesar de bom estratega e de se ter transformado num bom cortesão, Bridei ficou sem palavras. Se Tuala pudesse ouvir o seu coração, pensou, se pudesse sentir a necessidade que tinha de chorar, de gritar, de cantar, de explodir, saberia a verdade, não precisaria de falar.

Vieste - disse Tuala. - Tenho pouco tempo; não posso estar aqui.

Nem eu - disse Bridei. - Tenho um homem à minha espera, em baixo. Podemos...? - O jovem estava numa posição precária, consciente do vazio de ambos os lados da parede, nunca possuíra o sentido instintivo de equilíbrio de Tuala.

- Não podemos entrar - disse a jovem. - Fiz uma coisa errada e agora a torre está fechada. Vem para aqui, para a árvore. Ficas mais seguro.

Bridei olhou para o espaço: a distância não era grande, mas estava escuro e a queda era muito grande. Os ramos do carvalho não lhe pareciam mais seguros do que a parede estreita.

- Não tenhas medo, Bridei - disse Tuala. A voz fina e límpida transportou-o de regresso à infância: até em criança ela tinha aquela certeza, aquela segurança interior que o fazia acreditar sempre nela.

- Agarra a minha mão. - A jovem aproximou-se com os pés bem firmes no ramo e um braço estendido na direcção dele.

O jovem estendeu um braço, agarrou a mão dela e empoleirou-se no ramo. Bridei olhou para ela; ela devolveu-lhe o olhar com uns olhos tão claros como o luar, tão profundos como um lago, tão doces como o orvalho de uma manhã de Primavera. Bridei sentiu o aperto da sua mão em todo o corpo. O desejo percorreu-o, arrebatado, perigoso. O jovem largou a mão da jovem e sentou-se desajeitadamente no local onde o ramo grosso se unia ao tronco.

- Eu... - começou ele.

- Eu... - disse Tuala ao mesmo tempo.

- Tu primeiro - disse ele, perguntando a si próprio se iriam ambos perder a ocasião; se conseguiriam dizer o que tinham a dizer.

- Esperei tanto tempo para te poder dizer - disse Tuala docemente - e agora não tenho palavras depois do que aconteceu no Portal, depois do que foste obrigado a fazer.

Bridei ficou horrorizado.

- Como é que soubeste?

- Vi. Na água; tinha de ver. Fola ficou zangada e com razão. Bridei, aquilo foi... foi uma coisa terrível. Horrível e cruel. Tu foste muito forte. Não admira que o rei estivesse cansado.

- Ele está preso à vida por um fio. Ninguém esperava que ele sobrevivesse tanto tempo. Tuala?

- Hum?

Bridei desejava que ela se aproximasse mais. Tuala estava fora de alcance, encostada a um galho novo com os joelhos dobrados por baixo da saia e os braços a rodeá-los. O seu cabelo tinha crescido; estava mais comprido, o suficiente para poder ser atado com uma fita no pescoço. Alguns caracóis emolduravam-lhe o rosto. Bridei olhou para as sobrancelhas excêntricas, em forma de asa; para o pequeno nariz, delicado; para a boca doce. As suas mãos pareciam saber, sem necessidade de se mexerem, o que era acariciar as suas faces pálidas, o seu nariz delicado, percorrer as suas curvas suaves com paixão e reverência; o seu corpo dizia-lhe que seria maravilhoso dar-lhe prazer...

- Ias perguntar-me alguma coisa? - perguntou Tuala. Bridei regressou ao presente.

- Tu sabes, não sabes? O que vai ser o meu futuro? Tuala acenou com a cabeça.

- Desde pequena que sei.

- Nunca me disseste nada.

- Era melhor cresceres sem saber. Era melhor se descobrisses em devido tempo. É um fardo muito pesado.

Bridei não respondeu de imediato.

- Não sabia que podia ser tão pesado - disse ele finalmente até presenciar o Portal. Fiz o que exigiam de mim; Drust precisava de mim, respeito-o e amo-o como meu rei e como representante da Guardiã das Chamas na terra, mas não sei se o conseguirei fazer todos os anos, enquanto reinar. Eu sou leal aos deuses, como todos os filhos de Fortriu devem ser. É meu desejo governar bem. Mas... por vezes, sinto que não me devia apresentar como pretendente, Tuala. Este ritual é aterrorizador, repelente. Digo estas palavras cruas sob o olhar da Que Brilha e espero que ela perdoe. Se o rei de Fortriu tem de celebrar este ritual para apaziguar Aquele Cujo Nome Não Se Diz, então talvez o rei não deva ser Bridei, filho de Maelchon. Vi o que a cerimónia fez a Broichan, um homem que eu sempre acreditei ser insensível. Ele ficou desfeito, envergonhado, envelheceu. É um fardo demasiado pesado. Desculpa, não vim aqui para te falar disto.

Tuala estava a olhar para as próprias mãos.

- Não o queres partilhar comigo? - perguntou ela.

Bridei ouviu o tom cuidadoso da pergunta, o esforço para a tornar neutra e sentiu vontade de chorar.

- Não é justo - disse ele. - Tu agora és uma Mulher Sábia, foste chamada pela Que Brilha; vives o dia-a-dia consciente do amor da deusa. Não precisas do peso da minha incerteza.

- Hás-de encontrar alguém, Bridei. - A voz de Tuala era muito baixa. - Alguém mais adequado, mas eu hei-de ser sempre tua amiga.

As palavras da jovem pareceram-lhe um golpe final, demolidor; uma sentença de morte. A distância entre ambos pareceu-lhe subitamente vasta, profunda, inatingível. Tuala desligara-se; Bridei sentiu-o na sua voz. A Que Brilha colocara um obstáculo intransponível entre ambos.

- Minha amiga - conseguiu ele dizer. - Espero que sim, porque vou deixar de te ver, agora que escolheste o caminho da deusa. Ela deu-te uma grande honra; vais ser feliz em Banmerren, tenho a certeza. - Que os deuses lhe valessem, parecia que estava a falar com uma pessoa qualquer, formal afectado. A cabeça começou a doer-lhe.

- Bridei?

- Sim?

- Tu tens de ser rei. Tens de dar o passo em frente. Tem de ser. Eu vi, Broichan viu e Fola também, penso. Tem de ser.

- Creio que não consigo. Sem ti não consigo.

- Eu sei que o Portal foi uma coisa muito má; cruel, terrível, e também sei de outras coisas: da batalha, de Donal. Coisas tristes, coisas lamentáveis. Gostaria de ter estado ao pé de ti para as partilhar contigo. No entanto, tu tens de continuar com coragem, como até aqui, aliás. Isto há-de ter uma solução, tenho a certeza, uma solução aceitável para os deuses e para os homens. Sei que a hás-de encontrar. Promete-me, Bridei. Promete-me que segues em frente.

O jovem abriu a boca e voltou a fechá-la. Bridei não conseguia olhar para ela. A voz de Tuala tornara-se subitamente quente como nos velhos tempos, as palavras vibrantes e provocadoras. Que quisera ela dizer com aquilo de encontrar alguém? Como poderia haver alguém e não ela? Tuala devia saber que a amava.

- Promete-me - repetiu Tuala e naquele momento ouviu-se um assobio vindo da base da muralha: Faolan avisando Bridei que eram horas de regressar. Já?

- Prometo - disse ele, olhando para ela.

Tuala sorriu. Que os deuses o ajudassem, como era possível ver aquele sorriso e não a abraçar, satisfazendo um desejo louco, como outro rapaz qualquer, um rapaz que não soubesse nada de disciplina druídica? Não conseguia desviar o olhar! Nunca mais a veria. Porém, não lhe podia tocar, cometeria uma grande injustiça. Tinha de a colocar num canto da sua mente, um lugar à parte, ir-se embora sem lhe tocar, deixá-la pura, sã e salva no interior daquelas paredes, uma serva da deusa, ilesa das provações sombrias, dos perigosos jogos de poder do seu próprio futuro. Outra coisa seria puro egoísmo da sua parte.

- Tenho de ir - disse ele, e viu o sorriso da jovem a desvanecer-se. Os seus olhos, por um instante, tornaram-se nos de uma criança sozinha na escuridão, com medo de adormecer.

- É melhor assim - disse Bridei, mas a tentativa para controlar a voz não teve qualquer sucesso; as palavras saíram-lhe num sussurro estrangulado.

- Se é o que queres, Bridei.

- Tenho de ir. Faolan está à minha espera. Eu...

- Tem cuidado ao descer; toma, segura na minha mão...

- Não, eu consigo...

De certo modo, no ramo que fazia de ponte para a muralha, tornou-se impossível não se tocarem apesar de ele se tentar afastar antes de perder o controlo por completo, fazendo tábua rasa dos ensinamentos de Broichan. Tuala estava mesmo ao seu lado, mão na mão. O jovem parou, respirando com dificuldade, lutando com todas as suas forças contra o desejo, que o percorria, mais forte do que a lógica, mais forte do que o bom senso, mais poderoso do que a vontade da deusa... quase...

- Assim não - murmurou Bridei. - Assim não...

- Bridei.

Tuala pôs-se em bicos dos pés num equilíbrio perfeito e colocou-lhe a mão em concha no rosto, cobrindo-lhe as orgulhosas tatuagens. Bridei sentiu o polegar da jovem a afagá-lo suavemente; viu o seu olhar, um olhar que desmentia a frieza do tom de voz anterior. A mão dele cobriu a dela. Sem o conseguir evitar, Bridei levou a palma da mão de Tuala aos seus lábios, ao mesmo tempo que ouvia o seu súbito soluço, um eco do que lhe ia no coração.

Em baixo, na sombra, surgiu uma luz. Alguém percorria o carreiro com uma lanterna, talvez procurando alguém.

- Depressa! - sibilou Tuala. - Depressa! Não te podem encontrar aqui!

Bridei aproximou-se da berma. A sua mão continuava na dela; os seus dedos pareciam não conseguir soltar-se. No último momento, o jovem virou-se, ela ergueu o rosto para ele, os olhos muito brilhantes, a boca entreaberta, sedutora, tão encantadora como uma rosa de Verão e a pele translúcida à luz da Que Brilha. Em baixo, os passos aproximavam-se.

- Adeus - disse ele, vacilante, e virou-se. Tinha de ser; não podia fazer outra coisa, era a segurança dela que estava em causa.

- Bridei. - Um murmúrio. - Eu não estava a falar verdade. Tive tantas saudades tuas...

Bridei sentiu as duas mãos da jovem no rosto, puxando-o. Um momento mais tarde, a boca dela encontrou a dele algo timidamente, algo desajeitadamente, mas oh, quanta doçura. Bridei sentiu-se morrer apesar do fogo que sentia no corpo, que lhe dizia que estava bem vivo, mais vivo do que alguma vez estivera. O jovem agarrou-se a um ramoquase se esquecia de onde estava, tão alto que um simples passo poderia provocar a morte. Os seus lábios abriram-se; o beijo prolongou-se fazendo-o sentir algo semelhante a uma tortura, uma tortura que ele desejaria prolongar até se transformar em algo mais, algo de que precisava desesperadamente ao ponto de sacrificar tudo... mas não a segurança e a reputação de Tuala... Tinha de a deixar. Se fosse encontrado ali, Tuala perderia o lugar que tinha em Banmerren e o seu próprio futuro ficaria em risco. Bridei afastou os lábios, ouvindo o som irregular da sua própria respiração e sentindo o mesmo na de Tuala. A mão da jovem agarrou-se à dele com força.

- Na próxima Lua - murmurou ela. - Adeus, Bridei. Tem cuidado.

- Tu também - conseguiu ele dizer, e largou-a. A jovem esperou acocorada junto do topo da muralha enquanto ele descia. Quando Bridei chegou ao solo, a corda seguiu-o. Bridei olhou para cima, mas Tuala já tinha desaparecido. O jovem ficou sozinho com a Lua, com o silencioso Faolan e com o bater desordenado do seu coração.

Os Boa Gente não precisam de falar para se entenderem. Para Luthana, a Mulher Sábia idosa que ralhara com Tuala e a escoltava agora para dentro de casa com a candeia a balouçar indignadamente na mão, o carvalho não tinha ninguém senão aquela aluna desobediente de rosto branco e cabelos negros, aquela rapariga estranha que parecia determinada a quebrar as regras e a esticar a boa vontade das suas superiores até ao limite. Porém, elas estavam lá: as criaturas conhecidas de Tuala sob os nomes de Madressilva e Teia, ela com um vestido feito de teias de aranha e com cabelos prateados qual colar de gotas de orvalho e ele com um traje feito de tudo o que a floresta tinha, gravetos, folhas, musgo e fetos. As duas criaturas estavam acocoradas num galho do carvalho e conversavam sem emitir qualquer som.

- Finalmente, a jornada continua. Viste o que ela fez? O aspecto dela, o modo como lhe tocou, como lhe ofereceu os lábios? A nossa pálida criatura, finalmente, transformou-se numa mulher, apesar do seu carácter distante. Tenho medo que as coisas se tornem fáceis demais para Bridei.

- Achas? Ele não pode escolher as duas coisas, Tuala e o reino. Irá pôr o dever para com Fortriu à frente dos desejos do seu coração? Como é que ele vai reconciliar as duas coisas?

- Tem de encontrar o caminho. O teste é esse. Tem de dar provas de que é um homem a sério, não só perante os homens e as mulheres, como perante os antigos poderes. Perante os deuses. Ele sabe. E perante nós.

- Vai esquecer tudo.

- Talvez. Por isso mesmo, temos de o lembrar. Fortriu precisa dele. Mais ninguém nos pode levar em frente.

- Mas ele precisa dela. Isto é um enigma. Eles nunca a aceitarão. E Broichan?

Madressilva sorriu trocista.

- Broichan brinca com todos, movendo-os como peças num tabuleiro à sua vontade. Fá-los saltar. O druida não é o único a conhecer o jogo e talvez o ache mais complexo do que alguma vez sonhou. Creio que é capaz de perder...

- Para quem?

Madressilva virou os olhos cor de lama para os luminosos e enigmáticos da sua amiga.

- Veremos - disse ele. - Os deuses reservam um último teste para o rapaz. Mais tarde, perto do fim. Entretanto, nós vamos desempenhar o nosso papel. Vamos fazer dançar estes dois.

Teia riu-se, uma gargalhada breve, alta, como que uma campainha.

- Esta gente deixa-me frustrada. São tão cegos. Pobrezinhos... Pergunto a mim próprio quanto a amará ele? Irá persegui-la, mesmo quando A Que Brilha não se atrever a mostrar o rosto? Irá ele manter-se forte, mesmo perante aquele que respeita e ama como um pai?

 

- Em breve saberemos - disse Madressilva, encolhendo os ombros. - Drust não vai ficar muito mais tempo neste mundo; eles já se estão a juntar, de facas na mão. Tolos. O rapaz brilha no meio deles, como uma estrela. Porém, tem de enfrentar o teste final. Achas que ela nos viu?

- Ela sabia que a estávamos a vigiar - disse Teia, atirando para trás os seus brilhantes cabelos. - Para já, fizemo-la refrear as palavras; fizemo-la acautelar os olhares, mas o amor brilhou através dos seus pequenos esforços para se mostrar fria; a sua tentativa para se convencer a si própria de que ele ficaria melhor com uma princesa qualquer de cabelos sedosos e de que ela ficaria bem por trás das muralhas de Banmerren foi patética. Em todo o caso, parece mais segura do que ele.

- Claro - disse Madressilva. - Ela é um dos nossos.

 

                                   CAPÍTULO QUINZE

O Inverno deu a conhecer energicamente a sua presença varrendo Caer Pridne com ventos gelados e encharcando-a com chuva persistente. Não era possível sair a cavalo; só os que tinham assuntos da maior urgência é que se aventuravam ao ar livre. O comportamento de Faolan não era muito diferente do seu habitual distanciamento frio, mas o celta estava a ficar cada vez mais impaciente. Bridei, habituado à menor alteração da sua voz, compreendia a sua frustração. O plano de Faolan para atrair o inimigo e forçá-lo a um ataque fora destruído por uma coisa tão simples como o clima. O espião vagueava pelos corredores de Caer Pridne; podia ser encontrado a escutar intensamente a conversa ociosa dos escravos da cozinha, dos trabalhadores remendando o colmo dos telhados ou das crianças brincando com uma bola durante uma breve paragem do dilúvio. Está a imaginar um plano novo, pensou Bridei. Entretanto, alguém, algures, planeia matar-me.

Bridei tentava manter a mente concentrada no que, inevitavelmente, iria acontecer em breve. O rei Drust aguentara mais uma Lua desde o Portal, mas o fim estava próximo e estava a chamá-los, um a um, ao quarto onde passava os dias embrulhado numa capa, tentando respirar apesar do calor do fogo e do cheiro das ervas. Drust despediu-se de todos: palavras de reconhecimento, de orientação, de amizade ou de gratidão. Por vezes, o reconhecimento simples de que o seu futuro ia mudar por vontade dos deuses que governavam as suas vidas e a vida de Fortriu.

Com aquela perda iminente, Bridei perguntava a si próprio como era possível continuar a pensar em Tuala: em cada movimento que ela fizera, em cada palavra que pronunciara, nas coisas por dizer que vira nos seus olhos. Acima de tudo, na carícia da sua mão. A sua mente recordava-lha vezes sem conta: os seus próprios esforços desajeitados para lhe dizer o que lhe ia no coração, o seu falhanço patético em se expressar, as palavras que ela murmurara no fim, o facto de ter correspondido ao seu beijo - ah, a recordação do beijo, tão doce - quando sabia que não devia tentá-la a abandonar o santuário por as suas hipóteses serem tão pequenas para lá das suas muralhas. A deusa não queria aquela pequena e rara criatura para si? Porém, Tuala dissera: Na próxima Lua, e ele não conseguira murmurar: Não, não posso, não devo. Não fora capaz de lhe dizer não; iria ter com ela, com ou sem Faolan. O que resultaria do seu acto, não sabia. A única coisa que sabia era que o risco seria terrível. Então, a eleição do novo rei estaria no auge e os seus movimentos estariam vigiados. O instinto dizia-lhe que não devia ir. Porém, tinha de ir; Tuala estaria à sua espera. Tinha de ir; todo o seu ser lhe dizia que tinha de ir. Tuala estava nos seus pensamentos dia e noite, de tal modo o seu corpo lhe dizia que não podia passar sem ela. A situação era doentia; devorava-o, seguia-o durante o sono, enchia-lhe o tempo com sonhos perturbadores, nos quais a seguia pela floresta sozinho, na escuridão, consciente de que, se não a encontrasse, nunca mais a veria; consciente de que ela lhe fugia, procurando atravessar uma fronteira que ele não poderia atravessar; consciente de que não a devia perseguir se o seu desejo era ser rei; consciente de que, sem ela, não era um homem completo. O jovem fazia os possíveis para que as visões desaparecessem, mas elas não lhe obedeciam.

Bridei dizia a si próprio que a culpa era sua; que nunca devia ter ido a Banmerren; aprendera à sua custa a razão da existência das regras que mantinham os homens afastados dos santuários da deusa. Porém, não podia mudar as coisas. Não podia ter deixado de comparecer àquele encontro e voltaria a repeti-lo. Da próxima vez, diria o que tinha a dizer. Diria o que lhe ia no coração; pedir-lhe-ia que regressasse com ele, que fosse sua mulher. Fora aquele o seu erro. Não lhe dissera; não lhe dera a oportunidade de escolher. Tuala continuava a ser a mesma; compreendera-o logo de início. Parecera-lhe, pelas suas palavras murmuradas e pelo seu beijo, que a jovem diria sim, mas não tinha a certeza. Se ela dissesse não, teria de aceitar e continuar sozinho, sem saber exactamente como o conseguiria.

Por fim, uma manhã, Bridei também foi chamado. Havia muito tempo que Drust não saía do pequeno quarto para onde a doença o tinha atirado e Bridei ficou espantado com a aparência do? rei, só pele e ossos, pálido, com uma pele que parecia pergaminho.

A divisão estava desconfortavelmente quente; a rainha Rhian tinha o rosto corado e o seu irmão Owain, vestido apenas com uma camisa e umas calças, suava em bica. Drust tremia, embrulhado numa capa de lã e com um espesso cobertor em cima dos joelhos. A seus pés, um cão, ansioso.

- Meu senhor - disse Bridei, não permitindo que o seu rosto mostrasse o que sentia, cumprimentando o monarca com uma vénia formal e o tom cortês exigido por uma ocasião daquelas. - Mandastes chamar-me?

- Aproxima-te. Senta-te. - Drust fazia um esforço para ver todos os pretendentes, para lhes dizer o que tinha de ser dito enquanto tinha voz.

Bridei sentou-se. À sua volta, a rainha e as suas ajudantes moviam-se com a eficiência de gente há muito acostumada a tratar de um doente. Os lençóis eram mudados, os recipientes esvaziados, a lareira atiçada, as infusões preparadas. Porém, tais ajudantes eram tão discretas que Bridei bem podia estar só com o rei. Os olhos de Drust brilhavam; no seu corpo devastado ardia uma vontade de ferro.

- Carnach - disse Drust. - Fala com ele. Oferece-lhe uma... posição. Confiança... estatuto...

Bridei acenou com a cabeça.

- Trabalharemos juntos - disse ele. - Eu falo com ele. E Tharan?

Drust esboçou um sorriso que lhe transformou as feições, fazendo-o parecer uma caveira, e Bridei reprimiu o instinto de fazer um sinal de protecção com a mão. Corvo Negro andava por perto, era possível ouvir o bater das suas asas negras.

- A decisão pertence a Carnach - disse o rei. - Carnach é dono de si próprio. Se Carnach não ficar, ele também não fica. Se Carnach seguir a teu lado, Tharan... não tem outra hipótese senão... segui-lo. Tharan sabe... lembra-se do... Portal...

Bridei hesitou.

- Meu senhor...

O olhar de Drust parecia perfurá-lo, tão forte como uma espada.

Tu és capaz - disse o rei. - Tens de ser capaz.

Tornou-se impossível Bridei dizer o que necessitava de dizer: que achava que não conseguiria, ano após ano, Inverno após Inverno; que o peso de uma morte como aquela era demasiado, que duvidava ser capaz de continuar o mesmo; que não era desobediência aos deuses, era fraqueza. Perante aquele moribundo, cujo espírito irradiava através dos seus olhos vermelhos, as palavras de Bridei ficaram por dizer.

- Ameaça principal... sul... Bargoit. - Drust suspirou e bebeu um pouco de água de uma caneca que a sua mulher lhe estendeu. Certifica-te... números...

Bridei acenou com a cabeça.

- Se Carnach se juntar a mim, havemos de conseguir os votos necessários - disse ele. - Aniel está a tratar disso e Broichan também.

- Ah, Broichan... fez um bom trabalho contigo, meu filho... o meu druida... longos serviços, leais... Fortriu... melhor dádiva... tu...

O rei estava cansado. A sua respiração era curta, dolorosa apesar do calor, do vapor saído dos potes que ferviam na lareira e do odor pungente das ervas.

- Espero ser digno da vossa confiança, meu senhor e rei. - Que A Que Brilha o ajudasse, nunca seria um rei como Drust, forte, obediente, um verdadeiro condutor de homens.

- Uma... coisa - disse o rei com um fio de voz. - Mulher... escolhe bem... faz toda... diferença. - Drust virou os olhos demasiado brilhantes para Rhian. A rainha estava ajoelhada à lareira, mexendo algo numa pequena panela. A doçura do seu olhar, a sua expressão sombria, a antecipação da sua partida iminente, revelavam que aquele monarca poderoso era, por baixo da sua couraça exterior, um homem mortal e vulnerável. - Não te preocupes com o sangue - disse Drust. - Não te preocupes com a linhagem... com o dinheiro... Procura alguém capaz de caminhar a teu lado... toda... diferença...

- Sim, meu senhor - disse Bridei, mas não disse: Eu sei. Já a encontrei, mas não sei se a poderei ter.

- Vai - disse Drust - filho da... Guardiã das Chamas...

- Adeus, meu senhor rei. Que os deuses te concedam uma jornada segura. Creio que Fortriu nunca mais terá um rei como vós.

- Nada de lágrimas. Por mim... não. Novo rei... novo caminho... mais brilhante, melhor... voo da... águia... Sê forte, Bridei.

Bridei não conseguiu dizer mais nada. O jovem fez uma vénia e quando Drust começou novamente a tossir e Rhian e Owain se apressaram a ajudá-lo a endireitar-se, a limpar-lhe o sangue do rosto devido aos espasmos, Bridei abandonou o quarto, passou pelos guardas e saiu para o caminho de ronda onde caminhou durante muito tempo, esquecido da chuva.

Mais tarde, durante a manhã, uma figura esbelta subiu os degraus e caminhou na sua direcção. O seu cabelo, tonsurado, flutuava ao vento. Parecia que o irmão Suibne também vagueava pelos caminhos de ronda imerso em pensamentos. Bridei esboçou um cumprimento cortês. Apesar do sacerdote cristão representar ideias que detestava, ensinamentos que tinham levado à divisão dos Priteni e à destruição dos lugares sagrados no sul, o jovem fora obrigado a reconhecer, ao longo do tempo que Suibne passara em Caer Pridne, que o tipo era inteligente, profundo e possuído de um sentido de humor retorcido, mundano. Se Suibne não fosse o que era, talvez pudessem ser amigos.

Suibne colocou-se ao lado de Bridei com os braços cruzados em cima do parapeito, olhando para o mar. A nortada agreste varria a água cinzenta, transformando-a numa confusão de cristas espumantes.

- Lamento as notícias acerca do rei Drust - disse o sacerdote com voz calma. - Disseram-me que está a despedir-se. Tenho rezado por ele.

- A que deuses? - perguntou Bridei, consciente da sua indelicadeza mas incapaz de se calar.

- Só há um Deus, Bridei. - O sacerdote sorria; não era a primeira vez que tinham aquela discussão. - Um Deus que te pode oferecer muito se te virares para Ele. Vejo nos teus olhos que estás perturbado, confuso. Suponho que tens a mente cheia de problemas, de decisões difíceis, de questões urgentes.

- Viste isso tudo nos meus olhos? Supões demasiado. Esta manhã fui convocado pelo rei. Estou triste por vê-lo partir, mais nada.

- E?

Suibne parecia-se um pouco com Broichan. Bridei sentiu-se desconfortável com a comparação.

- É verdade - disse o jovem - as coisas vão mudar, vêm aí tempos difíceis. Um líder como Drust não se substitui com facilidade. Sugeres que eu olhe para a cruz em busca de respostas. Não vale a pena tentares converter-me à tua fé. Eu fui educado no amor pelos deuses antigos. A única coisa que quero é ver as terras dos Priteni unidas na prática dos rituais antigos, leais À Que Brilha e à Guardiã das Chamas. Eu sei que, interiormente, és bom homem, mas não posso aprovar a tua presença em Caer Pridne nem a tua influência em Circinn. Os da tua fé espalharam a devastação entre o nosso povo; fracturaram o nosso reino e enfraqueceram a nossa capacidade de defesa.

- Ah - disse Suibne, com os olhos brilhantes de interesse.

Mas se Fortriu se virasse para a fé cristã, como Circinn faz neste preciso momento em que estamos aqui a conversar, os dois países estariam unidos à sombra da mesma cruz. A doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo baseia-se no amor, na paz e na tolerância. O nosso livro sagrado ensina-nos a amar o próximo. Quando os homens se viram para o verdadeiro Deus, ficam unidos pelo amor. Deixa de haver necessidade de exércitos ou de fronteiras.

- Em princípio, esse é um grande sentimento - disse Bridei. ?Diz-me, e os Celtas? O povo de Dalriada segue a sua própria crença; no centro de Galany's Reach, a aldeia que nós atacámos na Primavera passada, há uma cruz. Os Celtas são conhecidos como os combatentes mais selvagens que os nossos guerreiros alguma vez encontraram; são cruéis; não compreendem o significado da palavra misericórdia. Como concilias tu esse estado de espírito com a doutrina do amor?

Suibne sorriu.

- As tuas perguntas são um reflexo do teu passado, Bridei; foste bem ensinado, penso. Coloca-te no lugar do rei Gabhran de Dalriada. Para um celta, o teu povo é que é selvagem, pagão, recalcitrante e perigoso: um obstáculo no caminho da conquista do norte e no estabelecimento do mesmo domínio de que me falaste uma vez: um reino, um povo, uma fé.

- Sob a bota de um invasor? Isso seria uma fantochada. Uma tal unidade, se assim se pode chamar, só seria conseguida se todos os homens e mulheres de Fortriu fossem chacinados. Conquista do norte? Seria uma vitória conseguida à custa do sangue dos Priteni, à custa de chacinas e destruição.

Suibne não tentou discutir.

- Com o líder adequado - disse o sacerdote - não teria de ser assim. Com um rei liberal, a paz poderia ser conseguida através de negociações.

- Estás a ser a voz de Drust de Circinn? Ou de Bargoit?

- De nenhum deles. Limito-me a afirmar que a tolerância e a indulgência podem levar longe um homem, ou o seu reino. É preciso um grande líder para levar a cabo uma obra assim. Um homem de qualidades extraordinárias.

Estás a falar de Drust, o Javali?

- Estou a falar de um futuro distante, de uma paz que pode ser conseguida se alguns homens de bom coração depuserem as armas e abrirem os seus espíritos à luz de Deus.

Bridei estava confuso com a expressão do rosto do clérigo; era quase como a de Broichan quando o druida entrava em transe em frente do padrão de um presságio ou de um recipiente de adivinhação. O jovem não sabia que os cristãos estavam sujeitos a visões do Outro Mundo.

- Nunca me viraria contra os deuses do meu povo - disse ele calmamente.

- Mesmo um deus que exige um assassínio? - perguntou Suibne.

- Não quero falar disso. É proibido.

- Mas pensas. Esse assassínio estará sempre na tua mente, estação após estação, ano após ano, ritual cruel após ritual cruel; atormentará a tua consciência e entristecerá o teu espírito. Aderir a isso não é leal, Bridei. É loucura. Não acredito que um homem como tu, um homem destinado a fazer coisas grandes e importantes, possa estar de acordo com uma coisa tão bárbara.

- Destinado a fazer coisas grandes e importantes? O conselheiro religioso de Drust de Circinn fala assim de mim? Estás a brincar, certamente.

- Estou a falar de homem para homem, Bridei. Espiritualmente, tu és um homem de paz, vejo-o perfeitamente nos teus olhos. Além disso, és jovem; quem sabe o que nos reserva o futuro? Quem sabe o que o futuro reserva a Fortriu? Rezemos para que os chefes tribais dos Priteni votem sabiamente. Muita coisa pode mudar durante a vida de um rei.

Bridei não precisou de ir à procura de Carnach. Carnach encontrou-o mais tarde, no mesmo dia, e sugeriu que fossem até um canto tranquilo para conversar sem serem perturbados. Sem serem perturbados não significava que tivessem de estar sós visto que ambos eram pretendentes ao trono. Os dois homens encontraram-se nos estábulos, onde era fácil um homem fingir que estava a mostrar um cavalo a outro que o queria comprar; era espantoso como se podia conversar enquanto se observavam os cascos ou os dentes de um animal. Breth mantinha-se vigilante a uma certa distância. O guarda-costas pessoal de Carnach, um tipo alto e barbudo, estava encostado na soleira da porta, fazendo de conta que estava descontraído.

- Falaste com o rei? - Carnach foi directo; não havia tempo para etiquetas e Bridei recebeu bem a rudeza do ruivo.

- Esta manhã. E tu? Carnach acenou com a cabeça.

- Tens uma proposta para mim?

- Tenho. E tu vais sugerir algumas modificações; estou pronto para as ouvir.

- Começa lá, então. - Apercebendo-se do olhar de relance de Bridei para o guarda barbudo, o ruivo prosseguiu: - Gwrad é de confiança, tal como o teu homem, ou não o terias trazido contigo. Fala.

Bridei lançou um conjunto de propostas em que tinha estado a trabalhar havia algum tempo com a assistência de Aniel, tendo em conta o estatuto de Carnach, o seu passado e a localização das suas terras ancestrais na fronteira com Circinn. Carnach ficaria encarregado da segurança ao longo do Rio Thorn, uma corrente que mergulhava através do centro do país e que circundava a grande cadeia montanhosa que separava Fortriu, a noroeste e Circinn, a sudeste. Todos os chefes tribais da região seriam seus vassalos e seriam obrigados pelo rei a fornecer homens se Carnach os exigisse. Mais ainda, seria um dos conselheiros pessoais do rei, um estatuto que lhe daria um lugar especial na corte se assim o desejasse. Carnach desempenharia um papel critico nas decisões futuras quanto ao modo de agir contra o invasor, fosse ele celta, Anglo ou outro desconhecido qualquer. Haveria outros incentivos: a fortaleza de Carnach levaria os melhoramentos que ele exigisse - muralhas exteriores, barreiras de terra, tudo o que Carnach achasse apropriado à sua posição elevada e tudo por conta do rei. Haveria também a possibilidade de um casamento, se Carnach o desejasse. Havia jovens de sangue nobre na corte, raparigas muito belas. Bridei apresentou as suas propostas o mais friamente possível, consciente, o tempo todo, do grande sacrifício que estava a pedir ao seu pretendente rival.

- Estou a ver - disse Carnach também friamente. - Defesa das fronteiras. Queres que eu faça o trabalho árduo por ti.

- Por mim não, comigo. É disso que se trata, de trabalho em conjunto. A fronteira com Circinn é vulnerável. Não gosto nada de pensar na possibilidade de entrar em guerra com o nosso próprio povo, mas as diferenças entre nós tornaram-se-me claras aquando da chegada de Bargoit e dos seus lacaios. Se mantivermos a fronteira forte, conseguiremos resistir, não só ao seu desejo de poder, como ao avanço na nova fé. Se conseguires defender o Thorn, poderemos virar as nossas atenções para oeste. Eu tenciono ter um grande número de conselheiros. Algumas das minhas escolhas vão desconcertar os homens mais velhos e mais conservadores da corte. Seria um privilégio ter-te entre eles, Carnach. Tu tens o respeito do rei Drust e o de muitos homens em cujas opiniões eu confio, entre eles Aniel e Talorgen.

- E Broichan?

- Broichan não sabia bem para que lado cairias, mesmo depois do Portal. Eu disse-lhe que contava que tu, pelo menos, me ouvisses. Reconheço que és um homem de bom senso e sei que amas Fortriu.

- Mas não teria feito aquilo no Portal. Bridei não disse nada.

- Diz-me - continuou Carnach - e se eu te fizesse uma contraproposta? Se te apresentasse uns termos parecidos, o suficiente para retirares a tua candidatura?

- Podes apresentá-la. Eu ouço-te; seria uma descortesia da minha parte não o fazer. Porém, não retirarei a minha candidatura. Eu sei que tenho de seguir em frente. A Guardiã das Chamas exige-o.

- Hum. - Carnach quase sorria. - Eu não preciso de uma mulher. Tenho uma rapariga em casa; assim que souber o resultado da eleição, casamo-nos. Ela não é de sangue real, mas agrada-me. Mais duas coisas: quero os serviços do escultor do rei durante um Verão, quero erguer os meus sinais de família na encosta por cima da minha casa. Posso esperar se mo garantires. Suponho que Garvan vai estar ocupado mais ou menos durante um ano.

- E a outra coisa?

Carnach parecia um pouco embaraçado.

- A minha mulher - a minha futura mulher, quer dizer - gostaria de estar numa posição que me permitisse dar-lhe um presente especial visto que ela não tem jóias nem outras coisas. Talvez alguma prata e os serviços de um bom joalheiro? Eu sei qual é o desenho que quero, espirais e cães; ela gosta muito de cães. E talvez também alguma para a minha mãe.

- Será possível, certamente - disse Bridei. - Quanto a Garvan, vamos apresentar-lhe a questão. Ele decidirá o que fazer primeiro. Vai haver trabalho para ele aqui, claro; isto se... - A voz do jovem desvaneceu-se. Bridei tinha uma ideia sobre Caer Pridne e sobre o futuro, uma ideia que se estava a formar na sua cabeça desde a noite em que vira Tuala e lhe dissera adeus sem conseguir dizer o que lhe ia no coração. Porém, era muito cedo para falar dela. Ainda não era rei.

- Certamente - disse Carnach, não compreendendo o sentido das palavras do jovem. - Não nos podemos precipitar. Bem, preciso de algum tempo para pensar nisto. Tenho de falar com algumas pessoas, com Tharan em particular. Penso que te posso dar uma resposta ainda esta noite. Os termos da tua proposta são razoáveis. Não franzas o sobrolho, Bridei. Com o tempo, descobrirás que sou de confiança e que ninguém toma decisões por mim. Ao consultar o conselheiro do rei, limito-me apenas a ser prudente. Não é fácil desistir da hipótese de vir a ser rei.

- Desculpa - disse Bridei. - Leva o tempo que quiseres.

- A areia escorre rapidamente na ampulheta - disse Carnach sobriamente. - Vi Drust esta manhã, tal como tu. Se quisermos chegar a um acordo enquanto ele ainda é vivo, terá de ser antes de a Guardiã das Chamas se pôr no horizonte mais uma vez. Gwrad trar-te-á a resposta antes disso.

Assim aconteceu. Quando, naquela noite, as pessoas se reuniram para jantar em Caer Pridne, Bridei ficou a saber que a pretensão ao trono de Fortriu estava limitada a dois homens: ele próprio, jovem, desconhecido, inexperiente, e Drust, filho de Girom, o rei cristão de Circinn, que queria governar os dois reinos. Salvo alguma surpresa, como por exemplo uma candidatura por parte dos Caitt, o cenário estava pronto. Carnach aceitara os termos; fora acordado entre os dois homens que o acordo seria mantido secreto até à apresentação formal dos pretendentes para que a facção de Circinn pudesse continuar a acreditar que os votos de Fortriu estavam divididos e que o seu homem seria o vencedor provável. Wredech fora persuadido a limitar-se ao gado e à obscuridade relativa; estava fora da corrida.

A rainha e o seu irmão não compareciam havia alguns dias à refeição da noite; o estado de Drust exigia a presença constante de uma ou de outro e, nos intervalos, ambos dormiam por turnos, exaustos. Naquela noite, não eram os únicos ausentes: Broichan, Aniel, Tharan, Eogan e vários dos seus guarda-costas não se viam em lado nenhum. Bargoit estava presente com Fergus e o irmão Suibne. Bargoit espantara toda a gente no Poço das Sombras; ninguém acreditava que ele seria capaz de testemunhar o ritual depois de expressar tanta repulsa pelo que considerava uma prática bárbara e nojenta. À saída, dissera pouca coisa. Bridei tinha as suas próprias ideias acerca do assunto. Bargoit não podia ser banido do poço; era um emissário do rei de Circinn e, como tal, podia entrar livremente nos lugares secretos dos homens de Fortriu. O folclore não dizia nada acerca dos Cristãos. Na verdade, ninguém sabia ao certo se o apoio declarado por parte de Bargoit às mudanças no território de Drust, filho de Girom, marchava ao lado da sua decisão de se baptizar. As palavras do irmão Suibne tinham perturbado Bridei. O jovem perguntou a si próprio se seria possível um homem de Fortriu renunciar aos antigos deuses. Evidentemente, Bargoit era um estratega. Quando os representantes de Circinn chegassem em força, o conselheiro de Drust, o Javali, regalá-los-ia com um relato do que se passara no Poço das Sombras, enfatizando os papeis desempenhados pelo influente e perigoso Broichan e pelo seu filho adoptivo que era, nada mais nada menos, do que uma mera ferramenta do druida. Bargoit contaria detalhadamente o que vira: os seus braços abertos, mantendo a cabeça da rapariga debaixo de água. Bargoit daria a entender que testemunhara o assassínio de uma inocente.

O salão estava quase silencioso. As conversas faziam-se em voz baixa; as pessoas comiam frugalmente. O bardo do rei olhava para a cerveja com a mão no queixo enquanto a sua harpa jazia, silenciosa, no interior do saco a seu lado. Quando lhe tangesse novamente as cordas, seria para cantar um lamento.

Bridei viu Dreseida com a testa ligeiramente franzida, olhando para Gartnait. Ferada parecia pálida e distante e Ana pouco à vontade. Eram tantos os ausentes à mesa do rei que ela estava praticamente sentada sozinha. Gartnait conversava com o pai. Bridei sentou-se entre Garth e Ged de Abertornie, enquanto Breth se colocava atrás do jovem para lhe provar a comida. Até Ged parecia deprimido naquela noite. O chefe tribal comia a empada de carneiro sem dizer uma palavra. Estava toda a gente à espera.

Os pratos tinham sido tirados havia pouco tempo quando Broichan entrou no salão. Algo no seu rosto fez calar os presentes.

- O nosso bom rei partiu - disse simplesmente o druida.

A Mãe de Tudo levou-o para lá do véu. Um acto de misericórdia. Bebei à sua memória; contai histórias dos seus grandes feitos; celebrai a sua coragem. Amanhã, ao anoitecer, celebraremos os rituais fúnebres.

- Depois, começa o espectáculo - resmungou Ged. - Espero que estejas pronto, Bridei. Uma Lua e depois a assembleia. Caer Pridne vai transformar-se num local de doidos. Que A Que Brilha nos proteja.

- Faremos os possíveis para que tudo corra ordeiramente - murmurou Bridei. - Em nome dele. Drust foi um grande rei, valoroso e forte. Que os deuses lhe garantam uma boa jornada.

- Uma coisa é certa - disse Ged, olhando através do salão para Bargoit. - Ainda bem que ele não vai assistir a isto.

De acordo com os desejos do rei e sob a impassível supervisão de Broichan, foi construída uma grande pira na praia e Drust, o Touro, partiu para a sua última viagem pelo fogo e pela água. A chuva parou mesmo a tempo da cerimónia. Em seguida, Broichan lançou os gravetos de vidoeiro, consultou A Que Brilha e declarou que, devido à estação, o prazo para a assembleia seria alargado, mais sete dias, para permitir que os chefes tribais de Circinn tivessem tempo para fazer a difícil viagem de Inverno. Seguiu-se alguma hostilidade à sugestão; por que não encurtar o prazo, aumentando as hipóteses de maioria de Fortriu? Vozes mais sábias, entre elas a de Aniel, acalmaram os dissidentes. Restringir o tempo de viagem seria o mesmo que dar azo a Circin para declarar a eleição inválida e abrir a porta a mais um longo período de conflito. Os sete dias adicionais eram uma medida inteligente e vantajosa.

O prazo adicional significava que os candidatos apresentariam a sua candidatura ao trono no Solstício de Inverno, uma conjunção auspiciosa. Cada um dos pretendentes compareceria perante a corte e apresentaria as suas credenciais. Se algum dos candidatos não chegasse a tempo a Caer Pridne, seria substituído por um representante. Sete dias mais tarde, a assembleia reunir-se-ia e far-se-ia a votação. Na eleição anterior, os chefes tribais de Circinn tinham sido doze e os de Fortriu outros tantos, incluindo o representante das Ilhas Pequenas. Era provável, mas não certo, que os números fossem os mesmos se os votantes chegassem dentro do período combinado. Se fosse necessário um voto de desempate, chamariam Fola, a Mulher Sábia.

- Isso é inaceitável - disse Bargoit quando Broichan anunciou aquele detalhe crucial. - Dá vantagem a Fortriu. Se a Mulher Sábia tem direito a voto, também o irmão Suibne aqui presente tem como conselheiro religioso de Drust.

O irmão Suibne sorriu vagamente e não disse nada. O seu comportamento sugeria o profundo desejo de estar noutro lado qualquer.

- Além disso - acrescentou Fergus, o outro conselheiro sulista

- toda a gente sabe que Fola pertence-te, Broichan. Tu tem-la no bolso. O voto dela é o teu voto.

Seguiu-se algum burburinho no salão, centrado em redor de Ged de Abertornie.

- Isso não é correcto - disse Aniel com uma expressão maliciosa. - Conhece-la mal se pensas que ela pertence a qualquer homem. Eu sei que este problema provocou algumas dificuldades na última eleição. A tua observação, portanto, tem alguma razão de ser.

- Dê-se o voto a ambos - disse Ged. - Ao cristão e à sacerdotisa. Por que não?

- De facto, não serviria para nada. Os números continuariam empatados - disse Bargoit, irritado.

- Posso falar? - perguntou Bridei, pondo-se de pé. - Falais como se o voto de cada homem já fosse conhecido; como se os nossos chefes tribais não pudessem mudar de opinião. Estaremos todos tão acomodados que não temos espaço nas nossas mentes para compromissos e ideias novas? Se é assim, o processo de apresentação dos candidatos sete dias antes da votação não vale a pena. Para que precisa um homem de saber mais sobre um determinado pretendente se vota apenas com espírito partidário? Ouçamos o que os candidatos têm para nos dizer, o que eles pensam poder oferecer-nos. Pode não ser necessário um voto de desempate. Se for, podemos muito bem confiar na experiência de homens como Broichan e tu próprio, Bargoit, para que a decisão seja tomada a tempo. - Seguiu-se algum burburinho e um acordo relutante. Restava saber se adeririam todos chegada a hora.

Ao longo dos dias que se seguiram, Bridei trabalhou arduamente Aviando mensageiros, consultando os seus conselheiros, fazendo planos e tentando aceitar a espantosa possibilidade de, em menos de uma estação, poder vir a ser o mais poderoso dos poderosos do reino. Por vezes, a perspectiva metia-lhe medo: medo de tropeçar e cair, de desiludir Broichan, de desiludir o rei Drust, de desiludir os deuses. Cada vez mais, porém, quando rezava, sentia o calor da Guardiã das Chamas no espírito e a sua voz murmurando-lhe ao ouvido: Vai em frente, meu filho. Sê forte. Ao mesmo tempo, sentia que as suas hipóteses de escolha desapareciam à medida que os dias passavam. Não se desobedecia impunemente aos deuses. Ninguém se podia esquivar ao seu grande chamamento. Se a Guardiã das Chamas o achava o melhor homem para a imensa tarefa de reunificar os Priteni, Bridei tinha de dar o melhor de si; tinha de dedicar a sua vida àquela missão e queria fazê-lo. Apesar do seu desejo por uma vida tranquila, por espaço, por solidão, a necessidade de levar a cabo aquela demanda ardia-lhe na mente como uma chama. No entanto, no seu coração só contavam os dias que faltavam até à Lua cheia seguinte. A perspectiva de ver novamente Tuala agigantava-se, fazendo com que não conseguisse concentrar-se como devia na tarefa de cortejar alguns homens e aplacar outros. A dor de cabeça era constante; já quase se esquecera do que era passar sem ela.

Apesar de tudo, Bridei percorria os degraus daquela dança de possibilidades, consciente de que o futuro de Fortriu e do seu povo dependia da justeza dos seus instintos e da capacidade de outros para atravessar com rapidez e segurança os grandes desfiladeiros e os profundos vales no Inverno. Os rios corriam cheios; se nevasse, alguns caminhos ficariam bloqueados. Os cavalos só podiam ser utilizados nas partes mais fáceis da viagem, como a extensão de terra que ia da boca do Lago da Serpente a Caer Pridne. Além do mais, o tempo escasseava. Ainda bem que Bridei enviara os seus mensageiros mais cedo. Broichan ajudara-o; uma adivinhação, levada a cabo com fumo depois de um dia de jejum predissera o dia da morte de Drust com uma exactidão que reflectia na perfeição os intentos dos deuses. Bargoit devia ter feito algo semelhante. Talvez o cristão, Suibne, tivesse os seus próprios métodos para prever o futuro. Em breve se tornava evidente que os doze representantes de Circinn já tinham percorrido uma boa distância desde as suas fortalezas a sul. Muito antes do fim do prazo estabelecido já eles começavam a chegar à corte: gelados, cansados e prontos para uma guerra de palavras. Os apoiantes de Drust, o javali, estavam preparados para discutir finalmente o seu caso em voz alta com os do norte. Suibne começou por conduzir um serviço religioso diário no quarto atribuído a Bargoit. Broichan não mostrou em público que a cerimónia o ofendia profundamente, mas mandou um homem passar em frente da porta de Bargoit com um recipiente de água com sete pedras brancas lá dentro. Daquele modo, talvez a boa influência da Que Brilha impedisse que aquele ritual estranho poluísse a casa do rei. Por vezes, era o próprio Broichan que passava pela porta segurando uma tigela de barro com gravetos a arder aos quais juntara um pó de ervas de protecção cujo aroma pungente se misturava com o fumo purificador. À noite, o druida ajoelhava-se na sua câmara escura e rezava em silêncio durante muito tempo.

Quando a Lua ficou cheia, Bridei invocou o encantamento que lhe dava protecção contra os olhares dos curiosos, saiu de Caer Pridne pela comporta e dirigiu-se para Banmerren. A Que Brilha estava tapada por nuvens pesadas. O jovem desconfiava que, quando chegasse a meio da baía, estas abrir-se-iam e deixariam cair em cima da sua cabeça uma torrente de água. Bridei pensou em Tuala, sozinha na árvore despida. Não a deixaria lá; se ela concordasse, levá-la-ia consigo naquela noite. A jovem não podia ter frio, não se podia sentir só, com medo. Não a podia deixar sozinha, sem amigos. Levá-la-ia... Podia ficar com a família de Gartnait, certamente que seria aceitável... Não, tinha de afastar aqueles pensamentos. Estava a ir depressa demais, estava a fazer suposições que não tinha o direito de fazer. A escolha teria de ser de Tuala.

Por todos os deuses, um homem precisava de ter olhos de gato para ver naquela noite tão escura. Ao longe, ouvia-se o ribombar dos trovões, algures para norte. O ar estava abafado, antecipando uma tempestade. O seu coração sentia o mesmo, o medo e o maravilhoso misturavam-se, sentia que algo ia mudar. Ia vê-la... Ia perguntar-lhe... Ia saber...

Bridei escondeu-se por trás dos arbustos baixos que guarneciam as dunas e retraiu-se metendo subitamente um pé num buraco; tinha de ter mais cuidado. Os seus pensamentos estavam a torná-lo descuidado; caminhava como se fosse um estranho, um intruso. Que saudades de casa... Que saudades de Pitnochie, que saudades do Vale no Verão com as árvores cheias de folhas e os ribeiros com as margens cheias de fetos, o seu restolhar, a sua vida secreta, os seus picos nobres e os céus vastos, vazios. Se pudesse regressar com a sua querida amiga a seu lado, mão na mão, a sua cabeça desgrenhada no seu ombro... o calor do seu corpo contra o seu...

Bridei fez um esforço para regressar à noite, ao carreiro, à distante silhueta sombria da longínqua península onde as muralhas escuras de Banmerren mal se viam. Fora difícil escapar a Faolan, mas essencial: não podia falar daquela noite ao celta. Um homem que acreditava que uma simples visita bastava para resolver aquilo, não compreendia a sua complexidade. Faolan não podia saber quanto dependia da decisão de Tuala. De uma maneira ou de outra, teria feito os possíveis para que aquela expedição não tivesse lugar.

Bridei achava que tinha feito de modo a levar as pessoas a pensarem que aquela era uma noite como outra qualquer. Algures, entre a hora do jantar, com Garth a fazer de provador, e a hora de ir para a cama, ocasião em que Faolan assumia o papel de vigilante das noites sem sono de Bridei, conseguira fugir a ambos servindo-se da pequena magia que Broichan lhe ensinara. A sua habilidade com aquelas artes era bem fraca em comparação com a do seu pai adoptivo; o encantamento de dissimulação durou pouco mais do que o tempo necessário para atingir as dunas, mas naquela noite não precisava de mais. Só um louco deambularia por ali com uma tempestade a aproximar-se. Um louco... Se calhar, o louco era ele. E se Tuala não estivesse lá? E se lançasse a corda e ela caísse uma e outra vez? Pior ainda, a jovem podia ouvi-lo e recusar-se a vê-lo. Tuala tinha-o beijado, mas era nova, talvez demasiado nova para compreender o que a carícia tinha despoletado nele...

Um raio surgiu no céu iluminando a praia, as dunas quais montículos nevados e os arbustos varridos pelo vento. A escuridão desceu novamente sobre ele quando o trovão estalou, ensurdecendo-o. Um momento mais tarde, os homens surgiram do nada. Bridei teve um sobressalto. O jovem levou a mão à faca, rodopiou mesmo sentindo as mãos a agarrá-lo, três homens pelo menos, um por trás e um de cada lado. A chuva começou a cair, súbita e violenta. Os dedos de Bridei agarraram na faca. O homem atrás de si estava a puxá-lo para o solo enquanto outro tentava meter-lhe qualquer coisa na boca... Bridei golpeou selvaticamente, ouviu um grito de dor e sentiu cair a faca quando algo duro e pesado lhe esmagou o pulso. Um relâmpago; o jovem ouviu gritar, talvez o seu próprio nome. Um instante mais tarde, Bridei sentiu um golpe na cabeça e o mundo escureceu.

O quarto parou de andar à roda: tapeçarias suavizando as paredes de pedra, uma candeia em cima de uma arca a um canto, uma pessoa debruçada sobre uma prateleira, deitando água quente numa taça. Um aroma pungente; uma das infusões de Luthana, preparada com ervas curativas e amarga. Algumas vozes começaram a chegar aos ouvidos de Tuala, vindas de algures. A voz de Fola, calma.

- Ela não pode ficar aqui depois disto. Se ela continuar a persistir neste tipo de comportamento, arriscamo-nos a perdê-la.

A silhueta junto da prateleira virou-se. Era a própria Luthana, com as suas feições bondosas. A anciã tinha uma taça na mão. A memória recomeçou a funcionar; Tuala virou o rosto na almofada.

- Vamos, minha filha, tens de beber. Apanhaste um frio terrível; isto vai dar-te forças e ajudar-te a pensar. Anda lá, Tuala, eu sei que estás acordada. Levanta-te; deixa-me ajudar-te...

Não valia a pena beber; não valia a pena, sequer, tentar. Já nada fazia sentido. Que estava a fazer A Que Brilha? Aquela que iluminava os caminhos obscurecera o seu mesmo em frente dos seus pés, tirara-lhe a hipótese de ter um futuro brilhante e bom, como sempre acreditara ser possível. Tuala sempre acreditara, sempre, mesmo nos momentos mais desesperados, quando as pessoas de Pitnochie lhe tinham virado as costas, quando cortara os cabelos e passara as preocupações para com Bridei para as mãos da deusa, quando Broichan a mandara embora, que a vida seria possível ao lado do jovem, uma vida durante a qual o seu amor lhe daria força para a grande tarefa de que os deuses o tinham incumbido. Apesar de tudo, sempre se agarrara àquela ideia. Por que outra razão A Que Brilha a teria colocado à porta de Bridei, assegurando-se de que seria o jovem a encontrá-la? Por que outra razão permitira a deusa que ela tivesse uma educação que mais nenhuma rapariga de Fortriu podia ter? Estavam os dois ligados; ligados Por laços sagrados e por um amor que crescera maravilhosamente a partir de uma devoção inocente e de uma familiaridade infantil Para outra coisa forte e profunda, uma coisa tumultuosa e temerária, a Paixão entre um homem e uma mulher. Tuala sentira-o quando pegara na mão de Bridei, quando os seus lábios tinham procurado os dele com uma fome que brotara nela como uma nascente de Primavera e acreditara que Bridei também o tinha sentido apesar do seu constrangimento. As suas palavras tinham sido substituídas pelo beijo.

Porém, o jovem não regressara. Tuala esperara a noite toda até que, de madrugada, Irethra a encontrara triste e ensopada, agarrada aos ramos nus do carvalho a tiritar de olhos cerrados, as lágrimas misturadas com a chuva. A jovem não se conseguia mexer; fora necessário arranjar uma escada e mandar subir duas das raparigas mais velhas, as mais ágeis, para a ajudar a descer. Depois, a escuridão total. Tuala pensava que tinha dormido um pouco; não fazia ideia de onde estava; não havia quartos como aquele, pequeno, na área das alunas, em Banmerren. Não interessava. Nada mais interessava. Bridei não aparecera. Estava enganada. Bridei não a amava senão como um irmão. Bridei decidira continuar sem ela; ou talvez Broichan tivesse decidido por ele. Broichan não decidia tudo?

- Muito bem, filha - disse Luthana, levando a taça aos lábios de Tuala. - Tudo. Daqui a pouco vais comer um pouco de sopa. Não abanes a cabeça, ou ainda entornas tudo. Tens de comer. Quase te perdíamos. Não troces da decisão da Mãe de Tudo de te deixar viver mais um pouco. Isso, muito bem. Agora, descansa. Daqui a pouco Fola vem falar contigo.

- Quanto...? - Tuala mal conseguia falar; o seu corpo estava trémulo, fraco, como o de uma criança ao frio. - Quanto tempo...?

A expressão de Luthana era perspicaz, piedosa.

- Estiveste muito doente, Tuala. Fizeste uma coisa muito estranha; não compreendo o que te levou a um comportamento tão sem sentido. Fazias bem se procurasses a sabedoria da Que Brilha e lhe pedisses orientação.

Tuala fechou os olhos. A Que Brilha? Não. Talvez a deusa lhe tivesse iluminado o caminho, tivesse sorrido à sua filha com amor, mas deixara de o fazer. Quem saberia o que ela queria?

- Por favor - murmurou Tuala, quando a Mulher Sábia se pôs de pé. - Há quanto tempo estou aqui, assim?

- Três dias - disse Luthana. - Sempre cheia de febre; preocupaste-nos muito, mas o pior já passou. Se fizeres um esforço para comer e fizeres o que Fola te mandar, poderás sair da cama dentro de um dia ou dois.

- Onde...?

- Estás nos alojamentos das mulheres sábias, Tuala. Fola achou que seria melhor. As mais novas já tiveram quebras que chegassem para o Inverno todo, como tu sabes muito bem. Aqui, podemos ter-te debaixo de olho. E agora descansa um pouco. Fola virá ter contigo depois.

Ter-te debaixo de olho. Mal traduzido, aquilo queria dizer: Impedir que faças outra vez a mesma coisa. Pouco interessa se era uma espécie de prisioneira. Nada mais interessava, de facto. Sem Bridei, não valia a pena. Sem o seu amor e sem o amor da Que Brilha, a vida tornava-se tão insignificante que deixava de valer a pena. O mais simples, provavelmente, era encolher-se naquele pequeno quarto, fechar os olhos e desejar desaparecer. Luthana não conseguiria obrigá-la a comer...

O tempo passou. Os dois personagens dos Boa Gente estavam com ela no pequeno quarto silencioso, tal como tinham estado no alto da árvore, fazendo comentários, lisonjeando-a, tentando persuadi-la e analisando friamente a situação.

- Tal como eu esperava. - A voz de Teia, leve, trocista, mas algo suave. A compaixão não fazia parte da natureza dos Boa Gente. No entanto, aquelas duas figuras tinham, de certo modo, ganho amizade a Tuala. Se não, por que estariam ali? - Ele deseja-te, ou desejava, quando veio da outra vez; viu-se perfeitamente, mas o desejo dos homens esgota-se rapidamente. Um momento de arrebatamento, um momento de reflexão e na Lua seguinte lá vão eles em busca de uma presa mais apropriada. Aquela rapariga, Ana, por exemplo. Não restam dúvidas de que Bridei viu o erro que cometeu e virou a sua atenção para ela.

Tuala não disse nada; não tinha energia para protestar. Antes, teria lançado aquelas palavras cruéis à cara da rapariga da floresta, mas naquele momento acreditava nelas.

- Estás triste - disse Madressilva, instalando-se aos pés da cama. O rapaz não era mais pesado do que um gato. - Não é de admirar. Pensavas que ele te poria à frente do trono. Estavas enganada. Pensavas que tinhas aqui um refúgio, ou um segundo refúgio. Também estavas enganada; Fola já não te quer aqui. Transformaste-te numa responsabilidade, és imprevisível, um perigo para as tuas colegas e para ti própria. Se decidires ficar toda a noite na rua durante uma tempestade e morrer de uma pneumonia, Broichan tem de ser avisado e Bridei também. Apesar de ter decidido que um rei não pode casar com uma mulher dos Boa Gente, não quer dizer que Bridei não queira saber de ti. Se morresses, ele ficaria muito zangado, a tua morte provocaria uma fractura entre ele e um certo druida muito influente. Fola não quer ser responsável por isso. Ela não quer ser responsável por ti, agora que as coisas se estão a dificultar.

Iam mandá-la embora, pensou Tuala vagamente. Para onde? Para onde?

- Bem - disse Madressilva, animando-a - pelo menos ainda tens aquele tipo, Garvan. Ele não disse que esperava o tempo que fosse preciso? Parece que vai ter de esperar menos do que pensava. Neste momento, ele está na corte, à espera de prováveis encomendas do novo rei. Águias de pedra, suponho.

Garvan; o grosseiro Garvan com as suas grandes mãos. Tuala imaginou-se a seu lado, dirigindo a sua casa, partilhando a sua cama, criando os seus filhos... Não queria pensar na hipótese, era impossível... Hipóteses... Subitamente, deixara de as haver. Limitava-se tudo àquele quarto, àquela cama, àquelas paredes... àquele dia...

- Olha para ali! - A voz de Teia ouviu-se, límpida como um sino.

- Alguém andou a riscar a pedra com uma faca. E aqui, mais. Que estranho. É como se tivesse estado aqui um prisioneiro e tivesse contado os dias.

- Muitos dias, desde Dança das Virgens até ao Portal - disse Madressilva suavemente. - Os dias de uma vida inteira. A cela é aconchegada. Uma rapariga pode viver aqui durante muito tempo num conforto relativo. Mesmo assim, Morna deve ter-se sentido muito só; só e assustada. Como pode uma pessoa preparar-se para uma coisa daquelas? Estas linhas, gravadas na pedra, devem tê-la ajudado; o seu próprio ritual, ordenado e seguro, num mundo subitamente escuro e irreal. Como elas se devem ter sentido atormentadas enquanto a alimentavam, a treinavam, a aprontavam. Como os seus sonhos as devem ter torturado enquanto a rapariga ficava aqui sozinha com a sua vela e a sua pequena faca, gravando uma longa litania de dias. Pergunto a mim próprio por que terão elas escolhido este mesmo quarto para ti, Tuala? Pergunto a mim mesmo qual será o plano delas?

- Não quero saber - murmurou Tuala. - Nada mais me interessa.

- Exactamente - disse Madressilva. - Dorme bem. Fala com Fola. Nós voltamos mais tarde. Ao contrário de ti, temos um plano. penso que o vais aprovar. É muito superior a um casamento desesperado e muito melhor do que ficar onde não és desejada. Bons sonhos, Tuala. - E desapareceram; Shade, o gato, ao passar pela porta, eriçou o pêlo, subitamente alarmado. Tuala ficou acordada a olhar para as marcas na parede, riscos desesperados, patéticos, simples e ordenados. No que pensaria Morna ao fazê-los, noite após noite? No que teriam pensado todas aquelas raparigas ao longo dos anos, preparando-se para um Portal após outro? Tantas vidas jovens desperdiçadas; tanta beleza e vitalidade perdidas no poço do deus sombrio, atiradas fora para alimentar uma fome que nunca estava satisfeita. Aquilo não podia continuar! Bridei não podia fazer parte

daquilo! O jovem não podia viver com aquilo se ela não estivesse a seu lado!

Shade saltou para cima da cama e pousou pesadamente nos joelhos de Tuala. O gato deu três voltas e instalou-se, arranhando o cobertor. A sua presença era confortável; fê-la pensar em Mist. Mist na floresta à caça de martas; Mist na cozinha, depositando orgulhosamente um rato aos pés de Ferat. Mist nos joelhos de Erip, aquecendo o sono irregular de um velho doente. Mist fechado; Mist miando, protestando por Tuala deixar Pitnochie pela última vez...

Tuala sentiu que não precisava de ouvir Fola; já sabia o que a Mulher Sábia lhe ia dizer. Comportamento impróprio de uma serva da deusa... Nem sequer precisava de esperar que Madressilva e Teia lhe falassem do seu grande plano; não era preciso ser muito inteligente para adivinhar o que era. Estava decidida. Não podia ficar naquele pequeno quarto com o seu triste recorde de vidas perdidas, de anos de solidão e desespero. Banmerren ficaria fechado para ela; mesmo que não ficasse, não poderia continuar naquele santuário com Bridei tão perto e casado com outra. Pitnochie não a receberia de braços abertos; não poderia viver em casa de Broichan. Não casaria com Garvan porque não o amava e casar sem amor era profundamente errado. Concordar não seria justo para Garvan nem para ela. Portanto, daria o passo que até ali nunca se atrevera a dar; confiaria na sua própria gente, nas criaturas esquivas cuja presença traquina, incómoda, se tornara mais ou menos constante durante a sua estadia em Banmerren. A viagem de regresso ao Grande Vale era longa e estava-se no Inverno. Não interessava; Teia e Madressilva arranjariam uma maneira. Tuala ia para casa.

- Quando é que ele fica bom? - perguntou Aniel. - Quando é que ele está pronto?

- Falas como se não pensasses noutra coisa senão na guerra que estamos aqui a disputar, como se não quisesses saber dele - disse Talorgen com ar cansado, passando uma caneca de cerveja ao conselheiro e enchendo uma outra para si. Estavam ambos sentados na antecâmara dos alojamentos de Broichan, local habitual de reunião para determinados homens nos últimos dias. - Ele está entre a vida e a morte. - É melhor não fazeres essa pergunta a Broichan.

- Disseram-me que ele estava melhor - disse Aniel. - Se Bridei estivesse a morrer não seria tão brusco. Uist diz que ele está melhor se bem que não perceba muito bem como é que os nossos amigos druidas sabem; a última vez que me deixaram ir vê-lo, o rapaz estava inconsciente, tal como o trouxeram, mas mais magro. De vez em quando, mexe-se, dizem, e é possível fazê-lo comer qualquer coisa, ou beber um pouco de água. O rapaz diz coisas sem nexo; coisas antigas, misturadas. Suponho que um druida sabe interpretá-las. Esperemos que ele regresse para nós tal como estava. O futuro do nosso reino depende dele.

- Não podia ter melhores assistentes. Entre as ervas de Broichan e os encantamentos de Uist, juntamente com os esforços dos seus devotados guarda-costas, é impossível não melhorar. Bridei inspira confiança; quase lhe podemos chamar amor. A centelha do monarca já brilha nele. O que é preciso é pô-lo bom antes da apresentação das candidaturas e a tempo da eleição.

- Ah sim - disse Aniel, sorrindo. - A eleição. Estou convencido que vamos ter algumas surpresas... Aquele Faolan é carrancudo e taciturno, mas é competente; tem o miserável preso e parece que é possível ligá-lo a Drust, o Javali, ou aos seus conselheiros. Agradeçamos a Uist por isso. A sua pequena estadia em Circinn, juntamente com a sua memória espantosa, permitiu-nos identificar o homem. Evidentemente, a gente de Bargoit vai tentar desacreditar Uist como testemunha quando tornarmos a tentativa de assassinato pública.

- Não vai ser difícil. Uist é conhecido por ser algo excêntrico; alguns são até capazes de o achar um pouco maluco. Os seus pensamentos estão a um nível diferente dos dos homens normais. Quem, senão um maluco, decidiria regressar de Circinn sozinho em pleno Inverno?

- Isso não tem importância. As pessoas vão reconhecer a verdade. Além disso, Faolan fará falar o prisioneiro: quem lhe pagou para seguir Bridei e para o eliminar antes da apresentação das candidaturas.

- Onde está esse candidato a assassino? Devia, também, ser interrogado sobre a primeira tentativa, quando foi envenenado um homem à minha própria mesa.

- Não está em Caer Pridne. Faolan tem-no escondido.

Aquele celta é um tipo activo. Os outros, segundo sei, estão enterrados nas dunas.

- Que outros? - perguntou Aniel com as sobrancelhas levantadas, numa surpresa trocista.

- Hum - disse Talorgen, abstracto. - Temos a certeza de que Bargoit não sabe nada dos nossos planos?

- Oh, deve desconfiar. No fim de contas, os assassinos não apareceram para lhe dar contas. Além disso, sabe que Bridei continua vivo; a não ser que pense que a nossa história de uma doença se destina a encobrir a busca desesperada de um novo candidato, mas é pouco provável, temos Carnach. Sempre é melhor do que um sulista.

- Estou morto por que Bridei abra os olhos e comece a dizer coisas com sentido - disse Talorgen. - Nisso estou totalmente de acordo contigo, meu amigo. O Solstício de Inverno está quase a chegar; ele está inconsciente há muito tempo, o que não é nada bom para o corpo e para a mente. Não o queremos fraco e incapaz e não queremos um substituto. Bridei é um grande orador, tem o dom da palavra. Os discursos dele, apesar de simples, agitam os espíritos dos homens. Apesar disso, um de nós tem de estar preparado para falar por ele.

- Broichan vai querer esse privilégio - disse Aniel.

- Broichan? Não seria nada sensato. Broichan tem muitos inimigos e é temido. Seria bem melhor um homem mais franco.

- Tu? - perguntou Aniel, retorcido.

- Não. Só o faria se não houvesse mais ninguém. Ged, talvez? Alguém bateu à porta e Carnach entrou, dobrado, para não bater com a cabeça no lintel. Carnach era o homem mais alto de Caer Pridne, ultrapassando até Breth.

- Como é que ele está? - perguntou o ruivo.

- Na mesma. Melhor, segundo dizem. Esta espera é desesperante. Estávamos a discutir o assunto dos substitutos.

- Eu faço isso - disse Carnach, sentando-se ao lado de Talorgen e servindo-se de uma caneca de cerveja. - Penso que vai provocar algum impacto. Levanto-me e em vez de fazer o que todos esperam, quer dizer, anunciar a minha própria candidatura e expor as minhas qualidades, digo aos votantes reunidos que estou ali para apresentar Bridei como futuro rei de Fortriu; Bridei que, disseram-me, está ausente apenas porque o seu principal rival tentou assassiná-lo antes de ele poder apresentar a sua candidatura. Vai provocar uma impressão forte Atenção, preferia que fosse o próprio Bridei a levantar-se e a falar. Todos nós queremos isso. Aquele Bargoit miserável! Gostava de lhe pôr as mãos no pescoço e apertar com força.

- Não és o único, acredita - disse Aniel. - Mas vamos apagá-lo com palavras, não com actos. Drust, o Javali, assinou o seu destino quando ordenou esta tentativa de assassinato. Os deuses sejam louvados por Faolan.

- De certo modo - disse Talorgen - as tuas palavras parecem-me pouco apropriadas. Creio que os deuses não têm nada a ver com a presença do celta.

Uist estava sentado à cabeceira de Bridei, limpando-lhe a testa com um pano húmido e estudando as linhas e as sombras das feições inconscientes onde nada parecia viver. No entanto, Bridei respirava; entre cada inalação e exalação parecia decorrer uma eternidade, como se passar de um ponto a outro exigisse uma força tremenda. Eram os deuses, talvez, que o levavam a decidir viver. O jovem jazia assim, numa inconsciência profunda, havia muitos dias. As breves vezes que parecia querer acordar eram perturbadas por visões sombrias; as palavras que proferia estavam para além da compreensão até de um druida.

Uist e Broichan tinham sido, de certo modo, pouco honestos nas informações dadas aos outros dois homens, apesar de serem amigos de confiança. Nem Aniel nem Talorgen sabiam como aquilo os esgotava; como estavam perto do desespero. As feições de Broichan estavam descarnadas, exaustas. Garth estava a dormir num banco encostado à parede, coberto com uma capa, enquanto Breth aquecia água para lavar o jovem inconsciente. Os guarda-costas de Bridei não deixavam entrar os servos de Caer Pridne; só os mais íntimos podiam visitar o seu líder derrotado. Por trás da porta, o guarda-costas de Aniel vigiava; o pessoal de Talorgen estava um pouco mais longe, no caminho de ronda. De Faolan, nem sinal. O celta andava muito ocupado. Apesar disso, regressava todas as noites à cabeceira de Bridei, mais uma presença silenciosa, mudando também ele os lençóis, preparando as infusões, erguendo o paciente e lavando o seu corpo cada vez mais magro; permanecendo acordado enquanto os outros dormiam, todos menos os dois druidas vestidos de negro, Broichan com os seus olhos sombrios e Uist com o seu traje branco e os cabelos cor de neve, que não pareciam ter sono. Os dois homens ficavam de pé, meditando, ou de joelhos com os olhos abertos, sem verem, escutando as vozes murmuradas dos deuses. De manhã, Faolan saía sem uma palavra sequer.

- Ele vai acordar em breve - disse Broichan, aproximando-se para olhar para o seu filho adoptivo. - Pergunto a mim próprio o que lhe terá passado pela cabeça? Quando confiei a sua segurança a Faolan, nunca esperei que o celta se arriscasse tanto. Atrair um ataque, sim, mas não se coloca o homem que se protege numa posição tão perigosa. Se não tens aparecido com o teu bordão, meu amigo, quem sabe se Faolan não teria caído também, não capturando, assim, nenhum dos assassinos?

- Uma coincidência feliz - disse Uist com um sorriso críptico.

- Quem diria que a minha égua me levaria àquele local naquele momento preciso? Gostei muito do meu relâmpago; o meu bordão ainda estremece quando seguro nele. Até Faolan ficou alarmado. Mas não por muito tempo; o tipo é mesmo competente, tal como nos disse Drust. Bridei devia ficar com ele.

- Ele arriscou a vida de Bridei deixando-o sair assim sozinho, de noite, e armado apenas com uma faca. Podíamos tê-lo perdido.

Algo na voz de Broichan fez o velho druida fazer uma pausa. Uist olhou para o rosto do outro e sorriu novamente.

- Por vezes, penso no que será - disse ele calmamente - ser pai de muitos filhos. Tantos momentos de terror; tantas pequenas tristezas, tantas ansiedades. Sinto-me duplamente feliz por ter abraçado o caminho dos deuses e nunca me ter casado. Não que não me tivesse sentido tentado, há muito tempo. Fola era uma rapariga deliciosa, tão pequenina e determinada. Um pouco como aquela tua filha adoptiva, qual é o nome dela?

- Tuala. - Sobre as feições de Broichan desceu uma máscara, proibindo outras perguntas. Porém, Uist também era druida.

- Fola não te mandou um mensageiro há algum tempo, logo a seguir ao ataque de que Bridei foi vítima? O que é que ela queria? Passaste aos outros essas notícias?

- Ela sabe que o meu filho adoptivo está doente. A mensagem dela era pessoal.

- Estou a ver. - Uist não perguntou que tipo de mensagem pessoal exigia um cavaleiro com aquele tempo inclemente. - Evidentemente - continuou ele - estás ciente de que qualquer informação que possa estar relacionada com o nosso plano não pode ser classificada de pessoal, por mais privada que te pareça. Se tem a ver com essa rapariga, Tuala, pode estar relacionada com Bridei e Bridei é o centro do nosso plano. Não te esqueças do que combinámos, nós os cinco; não te esqueças do nosso juramento de total honestidade.

- Era pessoal.

Alguém bateu à porta; Aniel espreitou.

- Tivemos visitantes - disse ele. - Tharan e Eogan. Expressaram o seu pesar por Bridei ainda estar inconsciente e disseram-me, de certo modo indirectamente, que temos o seu apoio visto que Carnach está fora da corrida. Tharan não o disse por estas palavras, claro; Carnach feriu o orgulho do seu mentor com esta decisão. No entanto, achei que estava a ser verdadeiro.

Broichan acenou com a cabeça.

- Óptimo - disse ele. - Eu detesto esse teu amigo conselheiro, mas sei que podemos confiar nele, sei que porá os interesses de Fortriu à frente de tudo o mais. Esta tentativa para assassinar Bridei só serviu para nos unir ainda mais contra o sul. Apesar disso, ainda não temos apoios que cheguem. E o tempo escasseia cada vez mais.

- Bridei tem tudo controlado. - Para sua surpresa, fora Breth, o guarda-costas, que falara do sítio onde estava sentado, à lareira. - Ele há-de conseguir esses apoios.

- Espero que tenhas razão - disse Aniel secamente. - Neste momento, Bridei não está em posição de controlar seja o que for. Rezo aos deuses para que fique bom a tempo e que possamos confiar no seu plano.

- Ele vai ser rei - disse simplesmente Breth. - É claro que podeis confiar nele.

- Portanto - disse Dreseida, andando de um lado para o outro no soalho coberto de palha dos alojamentos das mulheres - a rapariga fugiu de Banmerren. Desapareceu na floresta. Suponho que, mais tarde ou mais cedo, era inevitável. Ela nunca devia ter entrado para a irmandade de Fola; foi um erro. Tinha de voltar, foi superior às forças dela.

- Voltar? - perguntou Ferada. - Voltar para onde?

- Para lá do nosso mundo: para o sítio de onde veio. Para junto dos da espécie dela. Para nós, as notícias não são boas, não podemos tirar partido da rapariga. Esperava que a devoção dela pelo irmão adoptivo, e dele por ela, nos desse uma oportunidade... Como é que está Bridei? O que é que se diz?

Ferada olhou surpreendida para a mãe.

- Por que havia eu de saber mais do que a mãe? Acabo de regressar de Banmerren. Tanto quanto sei, Bridei está a melhorar, mas continua demasiado doente para poder receber visitantes. Pelo menos foi o que Ana disse; ela tentou ir vê-lo, mas não a deixaram entrar. Se quer saber notícias, por que não pergunta ao pai?

- O teu pai é uma autêntica lapa no que respeita a este assunto - disse Dreseida. - Porém, ouvi o suficiente para me deixar preocupada. Parece que tinhas razão, filha. Afinal de contas, parece que o candidato ideal não vai ser o óbvio. Eles querem avançar com Bridei, isto se ele recuperar a tempo. Bridei, aquele intelectual de falinhas mansas, sempre com a cabeça nas nuvens. O peão de Broichan. Não consigo acreditar! O sangue daquele rapaz é fraco. O pai dele é de Gwynedd, um estrangeiro; a mãe dele é prima afastada de Drust, o Touro. Como é que um mestiço pode ter a força suficiente para servir como rei de Fortriu? Isto é obra de Broichan. Os druidas têm poder a mais. Aquele homem devia ter sido detido antes de a sua influência ter começado a corromper os outros. Os outros, que tinham obrigação de saber mais. É lamentável. É mais do que lamentável. - Dreseida torcia as mãos e andava de um lado para o outro como uma fera numa jaula.

Ferada tossicou nervosamente.

- Mas, mãe... Eu concordo que é um pouco surpreendente Carnach ter concordado em apoiar a pretensão de Bridei, em vez de o enfrentar. Mas faz sentido, se pensarmos bem. Nós precisamos de um candidato forte do norte, não dois ou três, se queremos derrotar Drust, o Javali. É verdade, como disse, que Carnach é o candidato óbvio. Ou era. Dizem que Bridei tem cada vez mais apoios, que crescem a cada dia que passa. A sua honestidade, a sua coragem e o seu dom da palavra são muito admirados. Além disso, o rei Drust, o Touro, gostava dele. Isso é conhecido e deve contar a seu favor.

O olhar que a mãe virou para ela fez Ferada engolir em seco. A jovem imobilizou-se, perguntando a si própria que pecado cometera daquela vez; qual seria o castigo.

- Muito bem, Ferada - disse Dreseida, batendo as palmas. Ferada apercebeu-se de que a mãe tentava devolver a calma às feições tensas e aos olhos furiosos. Para um estranho, a atitude era convincente. - Uma pequena mudança de plano. Só temos alguns dias antes da chegada de Drust, o Javali, e de a coisa começar a sério. Quando Bridei estiver suficientemente recuperado, tu vais criar uma oportunidade para falar com ele em particular. Pode ser hoje, ou amanhã, mas não mais tarde.

- Mas, a mãe sabe que a guarda em redor dele é apertada. Ainda por cima agora, com a eleição tão próxima e Bridei ainda tão doente.

- Pára de protestar e ouve o que eu digo. Por todos os deuses, por vezes pergunto a mim mesma por que razão as pessoas te acham inteligente. Tenho uma tarefa para ti. Desta vez não são confidências, ele deve estar muito cansado para isso. Apenas uma visita, só tu e Bridei, sozinhos, juntos. Sê gentil, sê encantadora, sê rapariga, se conseguires. Quero que lhe dês uma... não quero chamar-lhe uma poção de amor, parece um pouco rude, mas, de facto, é o que é. Arranjas uma oportunidade para estar sozinha com Bridei e deitas-lhe isto na água ou noutra bebida qualquer. Assegura-te de que os olhos dele estão fixos em ti quando a beber.

- O quê? - Aquilo era tão inesperado que Ferada pensou que estava a ouvir mal.

- Pensa, Ferada. Bridei ou Cealtran. Um jovem saudável, que tu toleras bem, ou um pote de banha velho com mãos curiosas. Eu sei qual escolheria.

Ferada ficou sem palavras.

- Podias ser rainha - disse Dreseida suavemente. - Chega como poder, para ti? É fácil. Eu tenho aqui um anel, uma insignificância, com uma pequena tampa; pode-se esconder dentro dele alguns grãos de pó e depois pode-se deixá-los cair numa caneca de cerveja, ou de água sem levantar suspeitas. Eles deixar-te-ão entrar. Cora, sorri, bate as pestanas. Convence os guardas de que estás apaixonada. Assegura-te de que é Breth, ou Garth, quem está de serviço e não

aquele celta miserável.

- Mas, mãe, isso não faz sentido. A mãe nunca gostou de Bridei; sempre deu a entender que o desprezava. Sempre achou que ele não tem vontade própria. Por que há-de querer que a sua filha case com ele?

- Responde-me a uma pergunta, Ferada - disse Dreseida muito docemente. - O que é que eu te disse acerca do casamento, vezes sem conta, quando eras criança? Por que razão se casa uma mulher? Em que é que se baseia uma mulher quando escolhe um marido?

- Estratégia. - O tom de Ferada era amargo. - Nós casamos por uma questão de poder. Por uma questão de influência.

- Rapariga bonita. - Dreseida sorriu, fazendo estremecer a filha.

- Se, contra todo o bom senso, Bridei for eleito rei, eu tenho de o aceitar, mas só se a minha filha for rainha. Está bem, ele é um chato, prefere os livros e as orações à companhia e conselho dos poderosos. Não interessa. Bridei é um homem. Pode ser influenciado. Até Broichan pode ser influenciado. Por isso, vais fazer o que te peço. A não ser, claro, que prefiras Cealtran.

Ferada engoliu em seco, ao mesmo tempo que tentava, desesperadamente, encontrar palavras para responder. Estranhamente, a sensação que sentia naquele momento era de alívio.

- Eu... A mãe sabe que eu não me quero casar, mas se tiver que o fazer, prefiro não depender das poções das velhas para conseguir um parceiro. Por que é que o pai não pede a Broichan que pense no assunto? Seria um casamento vantajoso. De facto, o pai falou várias vezes nessa hipótese.

- Não temos tempo para isso. - A voz de Dreseida era fria. Quero resolver já o assunto. Quero ter a certeza. Quando o rapaz estiver suficientemente bom para poder ver os amigos, vais fazer o que te mando. E vais ficar muito caladinha. Será melhor para ti se parecer que Bridei te escolheu porque te admira e porque acha que serás uma boa rainha para Fortriu. Nesse aspecto, a tua conversa sobre as poções das velhas está certa.

- De certo modo - disse Ferada - sinto-me um pouco encorajada pela sua decisão. Preferia não me casar com Bridei. Aliás, preferia nem sequer me casar. Porém, a mãe aliviou os meus receios num ponto. pensei - cheguei a pensar - não, apercebi-me de que estava a ser to?la. Evidentemente, a mãe não seria capaz de colocar Gartnait como Pretendente ao trono? Seria demasiado cruel!

Enquanto a filha falava, Dreseida virara as costas. Ferada não pôde ver o rosto da mãe. A voz, quando a ouviu, era fria como o ferro.

- O anel está em cima da mesa, ali, junto da vela. Leva-o. Usa-o. Se não fizeres isto, Ferada, acredita, a tua vida deixará de valer a pena. Conto contigo.

- Isto não pode esperar até Bridei estar totalmente recuperado? Talvez depois da eleição? Não estou a ver...

- Ferada. - Aquele tom outra vez; o tom que lhe provocava arrepios na espinha.

- Sim, mãe?

- Vais fazer isto agora. No espaço de dois dias, se possível. Engana-te e o que te espera será muito pior do que o velho Cealtran, prometo-te.

- Mãe... - Ferada respirou fundo. - Isto é... parece-me errado...

- Chega! - A voz de Dreseida parecia um chicote; Ferada, contra a sua vontade, encolheu-se. - Não te atrevas a criticar-me! Acredita, o tempo passa. Provavelmente, eu sou a única na corte que compreende o que está em jogo. Agora que Drust morreu, sou a que tem o sangue mais puro: Eu e os meus. Dá-te por feliz por não te exigir mais nada, Ferada. E não penses em desafiar-me, porque não duvides que serei a vencedora. E agora vai.

- Está bem, mas...

- Vai!

- Sim, mãe.

A viagem foi dura e cansativa. Tuala pensava que seria rápida com Madressilva e Teia como guias; aquelas criaturas não podiam mudar de forma à vontade, deslizar sobre os campos gelados, mergulhar nos lagos mais profundos, voar como as andorinhas, ao sabor das correntes, sobre o Vale? Se era da espécie deles, por que razão não podia fazer o mesmo entre Banmerren e Pitnochie com a mesma facilidade com que passara do telhado da torre para a árvore sem se preocupar com o perigo? Por que não podia ser como uma coruja da floresta, um salmão do rio, um veado, uma lebre, um animal qualquer, livre? Porque não; pelo menos por enquanto.

- Passaste muitos anos entre os humanos - disse Teia. - NóS avisámos-te. Enfraqueceste; a tua vontade diminuiu e a tua magia diluiu-se. Algum tempo no reino de lá e tudo voltará ao normal. Entretanto, vais ter de caminhar. Nós vigiamos-te.

Porém, enquanto progredia obstinadamente em direcção ao Vale, passando as noites em telheiros ou em medas de feno encharcadas, comendo pão bolorento, a única coisa que conseguira surripiar antes da fuga de Banmerren - através de uma janela minúscula enquanto as suas vigilantes oravam, para cima da árvore, para a parede e descendo depois, provando que era, de facto, algo mais do que humana porque fechara os olhos, imaginara que era uma coruja e saltara - Tuala apercebeu-se de que os seus companheiros continuavam tão esquivos e imprevisíveis, quando a sua presença podia significar a diferença entre a vida e a morte para ela, como em tempos mais fáceis. Por vezes, caminhavam a seu lado, encorajando-a com palavras amáveis, com canções e histórias. Por vezes, a jovem acordava de madrugada entorpecida, gelada, desanimada e descobria que estava só. Quando tal situação acontecia, Tuala confiava nos seus sentidos para encontrar o caminho certo e abençoava as lições de geografia de Erip, do Sol, da Lua e das estrelas. Com a educação que tivera, dificilmente se perderia.

Depois da última Lua cheia, Tuala decidira deixar de se preocupar fosse com o que fosse. Porém, algumas coisas continuavam a preocupá-la. O tempo estava a ficar mais frio e nevava ligeiramente de vez em quando, o que fazia com que tivesse saudades de uma fogueira. As suas botas estavam ensopadas e os seus pés estavam cheios de bolhas. Por que razão Teia e Madressilva não tinham frio? Quando regressavam, acomodando-se a seu lado na palha por trás de um chiqueiro, o único refúgio que conseguira encontrar, fazia-lhes aquela pergunta e recebia uma resposta familiar.

- Tu estiveste muito tempo entre os humanos. As tuas tendências adquiriram o padrão deles. Quando chegarmos a casa, recuperas rapidamente. Lá não há calor nem frio; em casa não há dor.

- Mas... - arriscou novamente Tuala - o significado pode não ser esse. Talvez eu tenha frio, esteja cansada e tenha fome porque não sou uma de vós. Talvez seja humana, como Bridei. - Pronunciar aquele nome era ao mesmo tempo doce e angustiante: um feitiço de amor e de perda.

- Ah! - troçou Madressilva, instalando-se confortavelmente na pala. - Não voaste da muralha de Banmerren? Uma rapariga humana teria partido o pescoço.

- Nesse caso, talvez eu seja metade de cada, o resultado de uma União entre um da vossa espécie e um humano.

- Se assim fosse, saberíamos - tranquilizou-a Teia. - Uma coisa dessas é rara. Pensa em Amna do Xaile Branco. Ela nem sequer se deu ao trabalho de conservar aquele Conn miserável mais do que uma noite de cada vez e no fim deu cabo dele. A fraqueza dele enojava-a. Como seria possível uma pessoa como ela querer um filho dele? Se o tivesse, não o deixaria à porta de um humano qualquer, envolto em cobertores por causa do frio. Amna detestava o homem, ele não conseguia satisfazê-la. A sua última preocupação seria a sobrevivência do filho dele.

- Mas tu disseste... Madressilva é que disse... que a história de Amna não era verdadeira - protestou Tuala. E a mulher-coruja? Essa tinha filhos. Pode acontecer. Além disso, seja eu o que for, os meus pais não me quiseram. Se pertenço à vossa espécie, se a minha mãe e o meu pai eram Boa Gente, por que não ficaram comigo? Não, ficai, respondei à minha pergunta! Por que não respondeis? Não mereço a verdade, se vou convosco? E se eu atravesso a margem de que falais e descubro que lá também ninguém me quer?

- Acreditas nisso? - perguntou Teia com voz fria. - Queres que te deixemos aqui? Queres passar o resto da vida entre os humanos que te trataram tão injustamente, com tanta indelicadeza? Para onde é que ias?

- Não é isso que eu quero - murmurou Tuala. - O que eu quero é saber quem sou. E quero sentir calor, estar seca. A viagem parece tão longa.

- Hum - disse Madressilva, olhando para ela com os seus olhos redondos, estranhos. - Quanto ao frio, não posso fazer grande coisa. Se acendermos uma fogueira, as pessoas da herdade aparecem aí para ver se lhes roubamos uma ovelha ou duas. Há quanto tempo estamos em viagem? Três dias? Quatro?

- Quatro - disse Tuala, desconsolada. - E ainda nem sequer chegámos ao Lago da Serpente. É quase Lua nova e penso que vai nevar.

- Sim - disse Madressilva - Um homem a cavalo conseguiria percorrer mais depressa a distância, claro, com uma conjunção feliz do tempo e da Lua, mas precisaria de uma montada de qualidades excepcionais. Quanto a nós, não viajamos de qualquer maneira. Cada um segue o seu caminho muito particular e calcula o tempo que vai demorar. Não te podemos levar num abrir e fechar de olhos, que é o que os druidas fazem, segundo parece, mas podemos, a partir de agora, viajar mais depressa. A Lua nova ajuda muito.

- Não ajuda, não - disse Tuala. - A Lua nova quer dizer que não podemos viajar de noite, a não ser que queiramos tropeçar num lodaçal ou cair num lago e servir de alimento às serpentes.

- A Lua nova é a altura certa para terminarmos a nossa viagem disse Teia. - A Lua nova calha no Solstício de Inverno, uma conjunção de grande significado, quase tão grande como a da noite em que foste encontrada à porta de Broichan, uma visão de luz e esperança. Nessa ocasião, A Que Brilha revelou a sua verdadeira beleza, o seu poder radiante; desta vez, ela esconde o rosto do mundo dos homens e do nosso ao mesmo tempo que a estação muda. Quem sabe o que pode acontecer numa noite assim? Em Caer Pridne, os pretendentes ao trono vão levantar-se e proclamar as suas intenções. O teu amigo vai estar entre eles; uma certa donzela estará perto dele, sorrindo-lhe, aplaudindo-o. Nós estaremos nos bosques acima de Pitnochie; estaremos junto do Espelho Negro. Basta um passo, um único, e ficarás para sempre livre dessas preocupações humanas. No nosso reino terás resposta para todas as perguntas...

 

                             CAPÍTULO DEZASSEIS

- Ferada - disse Ana gentilmente - creio que estás a coser isso à tua saia.

- Oh. - Ferada olhou para o seu trabalho, resmungou uma praga muito pouco própria de uma dama e começou a desfazer os pontos com os lábios cerrados. As duas raparigas estavam sentadas à luz de uma candeia porque os dias escureciam cedo e as nuvens obscureciam o rosto da Guardiã das Chamas, que ardia baixo e com pouca intensidade naquela época do ano, próxima do Solstício de Inverno. O bordado de Ana era requintado: um padrão de flores minúsculas de cor creme, cada uma com uma orla azul, estreita.

- O que é que se passa? - perguntou a jovem, observando os movimentos impacientes das mãos de Ferada puxando o fio e quase rasgando o tecido. - Estás preocupada com qualquer coisa, é óbvio. Pareces exausta. Ainda estás a pensar no Portal?

- Tenho de estar, não tenho? - O tom de Ferada era ameaçador.

- Depois do que ouvi, não sei se despreze Fola por permitir que aconteça uma tal atrocidade, ou se a admire pela sua total obediência aos deuses. Ainda não me decidi. Um ritual destes só podia ter sido imaginado por homens. Como é possível uma mulher no seu perfeito juízo aceitá-lo? Não acredito como A Que Brilha pode permitir que ele continue ano após ano. É um pecado.

- Shhh. - Ana olhou em volta, nervosa, como se os deuses estivessem mesmo atrás dela à escuta. As duas raparigas estavam sozinhas naquele quarto, nos alojamentos das mulheres, mas a qualquer momento podiam entrar outras. Havia muitas mulheres em Caer Pridne naquele momento, à espera, com os seus maridos, da apresentação dos candidatos, da assembleia, do anúncio da nova estrutura do poder. Muita coisa seria decidida nos dez dias que se seguiriam. A estação era propícia à arte do bordado, da roca e do tear. No entanto, as mulheres mais velhas preferiam o grande salão com a sua grande lareira, a sua música e as suas conversas interessantes. Em épocas como aquela, de mudança, as mulheres eram transmissoras muito úteis de informações e tinham uma considerável influência sobre os seus maridos visto que tinham bons ouvidos e uma grande capacidade de persuasão.

- Aceito que possas pensar desse modo - continuou Ana - mas não o deves dizer em voz alta.

- Começo a perguntar a mim mesma por que não. - Ferada arrancou o último fio e cortou com os dentes a ponta puída. - Começo a perguntar a mim mesma se acredito em alguma coisa para além do facto de os homens e as mulheres serem motivados pela ganância e pela luxúria do poder.

- Ferada! - Ana baixou o seu trabalho e olhou para a amiga, alarmada. - Isso que estás a dizer é terrível. E o amor? E o desejo de ajudar os outros? E a melhoria de vida do teu povo e da tua terra?

Ferada ergueu as sobrancelhas.

- Em tempos acreditei nisso tudo - disse ela. - Se tu ainda estás agarrada a esses ideais, fico feliz por ti. Suponho que te dá esperança, uma coisa de que precisas se vais ficar aqui como refém até alguém te deixar voltar para casa.

- Estás a ser muito cínica - disse Ana calmamente. - E, lá no fundo, não acreditas no que estás a dizer. Há muitos homens e mulheres de valor, bons, altruístas. E Bridei?

As mãos de Ferada fizeram um movimento seco e bruto e a jovem estremeceu quando a agulha lhe picou um dedo.

- Anda lá - disse Ana. - Diz o que tens a dizer.

- Tenho de o ver, mas não o deixam ter visitas.

- Hum - disse Ana. - Também eu; como te disse, ordens de Aniel. Uma de nós tem de entrar no quarto. Uma de nós tem de lhe dizer.

Ferada olhou para ela.

- Acerca de Tuala - disse Ana. - Acerca do que lhe aconteceu. Ele vai querer saber assim que estiver melhor.

- Mas... - Ferada franziu o sobrolho e torceu as mãos. - Broichan não lhe terá já dito? Fola enviou-lhe um mensageiro.

A expressão de Ana era severa.

Sim; tenho a certeza que Broichan sabe que Tuala fugiu. Como Pai adoptivo, é sua responsabilidade mandar gente atrás dela 474

para a tentar encontrar. Porém, não sei se dará a notícia a Bridei. A apresentação dos pretendentes é daqui a três dias e Bridei continua doente, pelo menos é o que toda a gente diz, e ele ficaria muito preocupado se soubesse que Tuala desapareceu, que se foi embora a meio do Inverno e que ninguém sabe para onde. Broichan vai querer que Bridei esteja no seu melhor para a apresentação.

- Mas tu, se puderes, dizes-lhe - disse Ferada.

- Tu não?

- Não sei. - O tom de Ferada, habitualmente confiante, estava diferente. - A única coisa que sei é que tenho de vê-lo e não sei como.

Um grupo de mulheres entrou no quarto, falando em voz baixa: a rainha Rhian, pálida mas composta e três damas de companhia. Todas elas traziam consigo cestos de costura. As duas raparigas levantaram-se e baixaram as cabeças educadamente.

- Continuai, minhas queridas - disse Rhian, sentando-se num banco junto da pequena lareira. - Só estávamos à procura de um sítio tranquilo; o salão está cheio de gente, a maior parte a dizer disparates. Pelo menos, é o que me parece. Tenho uma notícia que é capaz de vos interessar. Aniel disse-me que Bridei está melhor; que se sentou e mostrou algum interesse por uma sopa quente; foi assim que ele disse. Graças aos deuses. Foi há tanto tempo; não me lembro de uma doença prender um homem saudável à cama durante tantos dias. Foram quê? Dez? Doze?

Os deuses queiram que Bridei melhore o suficiente para poder falar na apresentação. Soubemos que o rei de Circinn só está a um dia de viagem e que vai apresentar a sua pretensão ao trono em pessoa.

Ana olhou para Ferada e esta devolveu-lhe o olhar. As duas raparigas tinham tido a mesma ideia. Ana acenou levemente com a cabeça, como se quisesse dizer: Vai lá tu.

- Minha senhora - arriscou Ferada. - Tenho a certeza que Bridei recuperaria muito melhor se o visitásseis. Para ele, a opinião do rei estava acima de tudo. Acredito que ele se sentiria muito encorajado se... - A voz de Ferada desvaneceu-se no que pareceu ser um ataque de timidez. Ana reprimiu um sorriso.

Os olhos da rainha Rhian semicerraram-se, perspicazes.

- Estás a pedir isso como amiga da família? - perguntou ela.

- E como amiga pessoal - disse Ferada, corando sem recorrer a qualquer artifício. Fazer uma sugestão daquelas a uma rainha era mais arrojado do que o que era permitido pelas praxes da corte. - Estou a ver - disse Rhian, olhando para Ferada e depois para Ana. - E vós ides querer ir, suponho.

Ferada olhou para as mãos.

- Gostaria muito. Só por um momento; eu sei que ele tem estado muito doente.

- As duas? - As sobrancelhas da rainha ergueram-se.

- Oh não - disse Ana muito depressa. - Ferada pode ir sozinha; quer dizer basta ir uma de nós. Não me importo de esperar até Bridei estar completamente restabelecido.

- Hum - disse Rhian. - Vale a pena tentar só para ver se consigo passar pelo formidável exército de guarda-costas que eles reuniram. Não sei o que é mais intimidante: os guarda-costas ou os druidas. Muito bem, Ferada. Talvez amanhã, depois do pequeno-almoço. Eu mando chamar-te. Serve assim?

- Sim, minha senhora. - Ferada fez os possíveis por parecer uma rapariga apaixonada, de olhos baixos e com as mãos entrelaçadas com força. A jovem sentiu no dedo o peso incómodo do anel que a mãe lhe dera; a tampa de esmalte verde, com a sua mola intrincada, escondendo no interior o pó castanho de aspecto inofensivo. - Obrigada.

- Não tens de agradecer - disse Rhian. - Não percebo por que razão não pedes simplesmente ao teu pai; ele passa lá metade dos dias. É verdade que nos assuntos do coração os pais não são de grande ajuda. Talvez seja preciso ser rainha para passar pela porta de Broichan. Veremos.

- Faolan... - dizia Bridei. - Chamar Faolan... agora... procurá-lo...

- Deixa-te estar deitado - ordenou Broichan. - Breth foi à procura dele. Por mais urgente que seja, pode esperar até comeres qualquer coisa, descansares e recuperares.

- Mensagem... tenho de enviar...

- Bebe isto. - A voz de Broichan era calma e profunda. O druida colocou um braço por trás dos ombros de Bridei, levantando-o e amparando-o. Os seus dedos longos levavam uma caneca aos lábios do doente.

Bridei bebeu um gole e cuspiu explosivamente; Broichan permaneceu imóvel enquanto o líquido se espalhava pelo cobertor.

- O que é isto? Não posso... dormir... não dormir... Faolan...

- Faolan só acrescentará a voz dele às nossas. - Uist estava aos pés da esteira com os olhos claros, instáveis, assentes em Bridei enquanto o jovem tentava libertar-se dos cobertores e pôr os pés no chão. - Tu não estás em estado de fazer outra coisa que não seja descansar, especialmente se tencionas fazer a tua própria apresentação. O tempo escasseia; compreendo como te sentes, mas é no teu próprio interesse...

- Escasseia - disse Bridei, olhando para o velho druida. - Escasseia como? Quanto tempo... assim?

- Desde a última Lua - disse Broichan, erguendo novamente a caneca. - Bebe, Bridei. O teu sono tem sido muito perturbador. Precisas disto.

- Não! - A caneca voou quando a mão de Bridei varreu o ar com uma violência que surpreendeu os dois druidas. - Não, não vou beber isso! Quanto tempo? Quantos dias? O que é que eu tenho?

- Treze - disse Uist, observando-o de perto.

- O quê?

- Chiu, Bridei - disse Broichan. - Ainda há tempo. Temos três dias até à apresentação. Se ainda estiveres fraco, Carnach concordou em apresentar-se como teu substituto...

- O que é que eu tenho? - Bridei conseguiu pôr os pés no chão, tentou levantar-se e caiu sentado na cama quando os joelhos não aguentaram o peso do corpo.

- Não te lembras de nada? - perguntou Broichan, sentando-se num banco; na antecâmara não se ouvia qualquer som de vozes de homens.

- Nada... desde a Lua cheia. - A voz de Bridei transformara-se num sussurro. Os seus olhos brilhavam intensamente. - O que...?

- Foste atacado, tal como Faolan tinha previsto - disse Broichan com voz firme. - A ideia foi mal concebida, cheia de riscos. Deixar-te sair sozinho de noite, com aquele tempo... Mas o celta, como sabemos, não é homem que siga as regras estabelecidas, nem se arrisca a não ser que esteja seguro do sucesso. Tu foste atacado por três homens. Faolan não estava longe. Um foi capturado. Os outros dois foram mortos. Por pouco não era demais para o teu defensor. Felizmente, Uist estava por perto e ajudou na captura. Mais felizmente ainda, reconheceu o homem que Faolan capturou por o ter visto em Circinn. O tipo falou; estava ao serviço de Bargoit.

Suspeitamos que este atentado contra a tua vida, além de outros no passado, foi encomendado por Drust, o Javali.

- Apercebes-te do que isto quer dizer, suponho - disse Uist. Temos provas suficientes para desacreditar o teu rival. Se tiveres tantos apoiantes como ele, apresentaremos isto como argumento decisivo. Faolan conseguiu o que os homens mais poderosos de Fortriu não conseguiram; a tua vitória.

- Se Bridei tivesse sido morto, não serviria de nada - comentou Broichan.

- Treze dias - disse Bridei, abstracto, como se não tivesse ouvido nada. - Treze dias?

- É verdade - disse Uist - estiveste inconsciente, ou meio inconsciente, esse tempo todo. Levaste uma pancada muito forte na cabeça. Espalhámos o boato de que estiveste com um fluxo, o que explicará a tua fraqueza quando te levantares. Os teus guarda-costas têm feito um trabalho excelente, têm conseguido manter toda a...

- Muito bem - disse Bridei, levantando-se mais uma vez com um enorme esforço, necessitando de se apoiar nas costas de uma cadeira para se manter direito. - Roupas... sair... Faolan...

- Não. - As mãos de Broichan nos seus ombros forçaram Bridei a sentar-se novamente na cama; os olhos escuros do druida tinham uma expressão de comando. - Não podes ser visto nesse estado. Não podes aparecer em público até a tua mente estar totalmente restaurada. Fartaste-te de murmurar, de chorar, de gritar, de discursar em sonhos durante este tempo todo. Agora, tens de descansar. Faolan vem daqui a pouco; se achas que é essencial, fala com ele. Agradece-lhe porque o que ele fez funcionou a nosso favor. Entrega-lhe as mensagens que quiseres. Depois, toma o soporífero e dorme para que amanhã possas estar melhor.

Tinha de ter paciência. Paciência enquanto a sua cabeça desbobinava imagens e o seu corpo resistia às suas tentativas para o pôr a trabalhar; não tinha força para pegar, sequer, numa caneca e as suas pernas recusavam-se a ampará-lo mais do que um simples passo, antes de se transformarem em geleia. A dor de cabeça transformara-se numa c?lsa nova, um martelar monótono que se parecia mais com cólera do

que com dor. Tuala... Tuala na árvore, à sua espera... talvez a noite toda ao frio, à chuva... treze dias, treze dias inteiros sem uma única mensagem... ela devia ter pensado... devia ter acreditado...

- Bridei. - Faolan chegara, finalmente. O celta demorara muito tempo; já devia ter escurecido, o Sol já se devia ter posto, passara-se mais um dia, perdera-se outra oportunidade. Os druidas estavam à lareira, falando em voz baixa. O celta estava à porta com uma capa pesada em volta dos ombros, como se tivesse regressado de um sítio qualquer. Faolan estava pálido; o seu olhar estava invulgarmente sério.

- Vem... - murmurou Bridei. - Aproxima-te...

Faolan aproximou-se da cama; sentou-se num banco de costas para os druidas, tapando Bridei. Aquele era um dos seus talentos: o celta tinha a habilidade de compreender muita coisa sem que lhe dissessem nada. Broichan e Uist não viam o jovem. Por outro lado, era sabido que os druidas ouviam muito bem.

- Broichan? - chamou Bridei.

- Sim?

- Eu quero... falar com Faolan... a sós. Tu e Uist... ar fresco... muito tempo... a tratar de mim...

- Nem por sombras... - começou Broichan a dizer, calando-se logo a seguir abruptamente. Um momento mais tarde, o druida seguia Uist para a antecâmara e a porta fechava-se nas suas costas.

- Espantoso - observou Faolan. - Pensava que ninguém era capaz de dar uma ordem àquele homem.

- Só outro... druida - disse Bridei.

- Por que... disseste que foste tu? O plano... ataque? Porquê?

- Ah. Devia calcular que seria a tua primeira pergunta. Pareceu-me... apropriado. Preferias que tivesse dito a verdade?

- Que... verdade?

- Que ias visitar uma certa dama num sítio proibido e que te tinhas esquecido de dizer aos guardas.

- Sabias?

- Vi-te na vez anterior, não te esqueças: os olhos brilhantes de estrelas, os pés a flutuar, os sintomas habituais. Pensei que serias suficientemente louco para tentar novamente na Lua seguinte. Evidentemente, não me disseste nada; sabias que não te deixaria ir. Já tinha as minhas suspeitas quanto à origem do provável ataque.

- Que estás a dizer, Faolan? Que lhes disseste onde me podiam encontrar? Que foi graças a ti que eu... que eu não pude...

- Que não pudeste vê-la? Esse assunto é mais importante do que o trono de Fortriu? Não estamos todos enganados a teu respeito, pois não, Bridei?

Bridei abanou a cabeça e arrependeu-se imediatamente porque a dor de cabeça regressou, batendo-lhe persistentemente nas têmporas.

- Enganados, não... mas não compreendem... Faolan?

- O que é?

Bridei pensou ver, através da névoa da dor e do cansaço, um novo olhar na expressão do celta. Ninguém podia chamar brando a Faolan; contudo, havia nele uma certa franqueza que dizia que as coisas entre eles estavam diferentes. Bridei esperava que o seu instinto não tivesse desaparecido com a doença.

- Tenho de lhe mandar uma mensagem - disse o jovem. Agora, imediatamente. Ela está à espera... muito tempo... Não deve saber por que razão...

Faolan sorriu.

- Uma mensagem a Banmerren? Penso que não. Sabias que só faltam três dias para te apresentares diante de toda a gente e proclamares a tua candidatura? Os assassinos que eliminámos não eram os teus únicos inimigos. Este sítio está cheio de homens poderosos, homens do sul; Drust, o Javali, é esperado em Caer Pridne amanhã. Eles só estão à espera de uma oportunidade para desacreditar quem se lhe opuser. Estou a falar de Carnach, porque muita gente pensa que ele é pretendente e estou a falar de ti. O risco é muito grande.

Bridei tentou agarrar o pulso do celta; a sua mão tinha tanta força como a de um bebé.

- Tem de ser - disse ele. - Prometi... Faolan franziu o sobrolho.

- Prometeste o quê?

- Que... seria... responsável. - A fraqueza percorreu-lhe o corpo como um fluxo, uma maré, retardando-o, paralisando-o, procurando destruir-lhe a vontade. - Que... estaria lá... quando ela...

- Bridei - disse Faolan suavemente - não posso fazer nada esta noite. Se estivesses em ti, saberias que é assim. Amanhã falamos outra Vez. Penso que deves deixar de pensar no assunto. Depois de uma boa noite de sono, talvez te apercebas que é melhor assim. De outro modo, não arriscas apenas o teu próprio futuro, arriscas também o dela. Acho que é melhor beberes a poção de Broichan. Quando ele ta der, bebe-a. Tiveste pesadelos, sabes? Bem maus.

- Tive...?

- Não consegui interpretar a maior parte; os druidas devem ter percebido qualquer coisa, mas eu não. No entanto, pronunciaste um certo nome várias vezes. Isso percebi.

Bridei fechou os olhos.

- Preciso dela - murmurou o jovem, odiando a sua fraqueza.

- Chiu - disse Faolan. - Espera até amanhã de manhã. Não te apercebes, mas passaste um mau bocado. Quase te perdemos. Tenho de ir. Os teus protectores devem estar à espera, impacientes.

- Tu disseste... ouviste... pesadelos. Tu... aqui?

- Os turnos nocturnos fazem parte do meu trabalho - disse Faolan sem entoação. - Estive aqui, sim. Uma das noites não, tive que levar o meu cativo para um sítio seguro, mas as outras estive, nem sempre por vontade de Broichan. Penso que ele te queria só para ele. Tenho de ir; esta capa está ensopada.

- Põem-na... à lareira. Fica... só um bocado... - Bridei sentiu que não podia continuar sentado. O jovem encostou-se na almofada, frustrado com o seu estado de fraqueza, mas também desejoso de cair num sono sem sonhos.

- Pés para cima - disse Faolan, e aconchegou-lhe os cobertores.

- Engraçado... tu... enfermeira...

-Já te disse, pagam-me - disse Faolan, tirando a capa e colocando-a num banco junto da lareira. - Para fazer com que malucos como tu vivam o suficiente para atingir o que lhes está destinado. Limito-me a fazer o meu trabalho.

- Isso... não... pagar... isso... amigo...

Ao ouvir aquilo, Faolan calou-se. Através dos olhos meio fechados, Bridei observou o rosto do celta, pelo qual passava rapidamente uma sequência de emoções notáveis: surpresa, tristeza, algo fantástico como a humildade e depois, abruptamente, a falta de expressão com que Faolan habitualmente escondia tudo o que sentia. O espião sentou-se à cabeceira de Bridei a olhar para a parede. Algum tempo depois, os druidas regressaram com o soporífero, Bridei bebeu-o e adormeceu.

A Que Brilha transformara-se numa unha; estava-se perto da noite do Solstício e da Lua nova. Era estranho como tudo estava a mudar.

Tuala já não sentia fome, ou sede, no entanto tinham-se passado vários dias desde que comera o último pedaço de pão. A jovem sabia que estava cansada e que havia algo de errado com os seus pés, mas não conseguia tirar as botas para ver o que se passava. Parecia não ter importância. Apesar de doridos, os pés continuavam a andar firmemente pelos carreiros lamacentos da floresta. As suas mãos estavam cheias de frieiras; Tuala envolveu-as no xaile encharcado e ignorou a dor. Não tinha importância; estava a abandonar aquele mundo, ia-se embora. Na verdade, sentia que já tinha, provavelmente, um pé na outra margem; que já tinha entrado no reino secreto. Não só podia passar sem comer como começara a ver coisas, coisas estranhas que nunca tinha visto antes na floresta acima do Lago da Serpente, criaturas nas árvores a olhar para ela; em todos os galhos, em todos os ramos, algo fixava os olhos estranhos e luminosos na rapariga que caminhava em baixo; por baixo de cada arbusto, no interior da vegetação emaranhada, viam-se pequenos rostos enrugados, de orelhas compridas, de cabelos espetados, de narizes pontiagudos, todas as espécies de rostos, com olhos vivos parecidos com contas, curiosos. Algo estava sempre a correr no carreiro à sua frente. A jovem ouvia, mas não via nada. Sempre que subia, ouvia uns passos seguindo-a. Vozes subtis chamavam-na, misteriosas, na bruma do dia de Inverno. Tuala! Tuala! Irmã, vem para casa!

À medida que se aproximavam do lago e de Pitnochie, tornava-se cada vez mais difícil encontrar abrigo. A jovem ficou reduzida a escavar um buraco no leito de folhas podres e a apanhar os fetos que conseguia encontrar para se tapar e tentar afastar o frio. Quando chegasse ao Espelho Negro, assim que atravessasse verdadeiramente a fronteira, nunca mais sentiria frio. Enroscada por baixo de um carvalho maciÇo, Tuala pensou que valeria a pena só para deixar de tremer.

?- Já falta pouco. - Madressilva estava sentado num cepo, totalmente à vontade apesar do frio do anoitecer. A Lua estava tão indisttinta que o Homem-Folha estava reduzido a uma silhueta sombria, escura no escuro. Tuala pensou naquilo. Se era um dos Boa Gente, não Seria também capaz de encontrar o caminho de noite, como aqueles Pareciam ser capazes? - Mais um dia ou dois - anunciou Madressilva - e estará tudo terminado.

Pergunto a mim própria o que estarão eles a fazer em Caer Bridne - disse Teia, passando os dedos longos pelos cabelos prateados que continuavam lustrosos mesmo na escuridão. - Não te sentiste tentada a olhar para a água, Tuala? Para ver o que Bridei está a fazer?

- Não. - Era mentira. Procurara vislumbrá-lo quando os seus companheiros do Outro Mundo se tinham ausentado e estivera junto de uma poça de água sob um céu cheio de nuvens. A jovem aproximara-se, esperando que a deusa lhe mostrasse as imagens. Tuala rezara, respirara lenta e profundamente, fizera os possíveis por limpar a mente e abrir o seu olho de vidente. A água mantivera-se obstinadamente igual a si própria: uma poça de água reflectindo nuvens cinzentas. Nem uma única imagem aparecera na superfície apesar de Tuala ter ficado a olhar para a poça até as costas lhe doerem e sentir cãibras nas pernas. Â Que Brilha virara-lhe as costas; abandonara a sua filha. Tuala não queria olhar outra vez; se aquela janela lhe estava fechada para sempre, preferia não saber. Se a água lhe recusava os seus segredos, nunca mais o veria. Nunca.

- Por que havia eu de procurar essas visões? Não me disseste vezes sem conta que esta era a melhor solução? Bridei deve estar a preparar-se para reclamar o seu direito ao trono. Broichan deve estar a prepará-lo, mais nada. Não disseste que seria no Solstício de Inverno?

- Disse. No Solstício, os candidatos avançam e declaram as suas intenções. No Solstício, tu regressas ao reino a que pertences. Um resultado satisfatório; com a educação que recebeste, vais gostar.

- Tenho frio - resmungou Tuala, abraçando-se a si própria e cerrando os dentes. - Está a nevar. - E estava; os flocos brancos caíam por entre os grandes ramos nus do carvalho.

- Só mais dois dias - disse Teia. - Não é muito. Encontramo-nos no Espelho Negro. - Com aquelas palavras, a criatura desapareceu antes de Tuala ter tempo de pestanejar. Madressilva fizera o mesmo sem uma única palavra.

- Não... - começou Tuala a dizer, debilmente. - Ficai... - A jovem fez um esforço, parou e começou a respirar lentamente; era capaz, podia muito bem continuar sozinha. Já tinha estado sozinha antes. A situação não era nova. Poria muito simplesmente um pé a frente do outro e chegaria ao fim.

Bridei insistiu em levantar-se e vestir-se. O jovem fez um esforço, foi até à antecâmara, sentou-se a uma mesa e cumprimentou todos aqueles que entraram para perguntar por ele: Aniel, Talorgen e Carnach acompanhado por Tharan, o que era, de certo modo, surpreendente. Bridei achou que se tinha desenvencilhado bastante bem. Pouco depois, Breth e Garth despediram os visitantes e ficaram a vigiar Bridei enquanto ele comia papas de aveia com mel. O jovem sentiu-se uma criança mimada e disse-o.

- Goza enquanto podes - disse Breth, sorrindo. - Agora, o que tu precisas é de cama; um homem não recupera de uma coisa destas num abrir e fechar de olhos. Eu ajudo-te...

Garth, que estava junto da porta, tossiu.

- Mais visitantes - disse ele calmamente. - Damas, desta vez.

- Já chega...

- Não pode recusar estas.

A rainha Rhian entrou de cabeça erguida, usando um traje cinzento pombo da melhor lã, apropriado para aquele período de luto. Atrás dela entrou Ferada, filha de Talorgen, com um vestido azul, um alfinete de prata num ombro e os cabelos ruivos entrançados no alto da cabeça, formando uma coroa.

- Ah - disse a rainha, sorrindo. - Estou a ver que já és capaz de te sentar a uma mesa, Bridei. Ainda bem; pelo que me têm dito, esperava ver-te prostrado a dizer disparates. Não, não te levantes; nós não nos demoramos. Oh, quase me esquecia do nosso pequeno presente, Ferada. Tenho a certeza que Bridei pode pedir a um dos seus homens que o vá buscar - Garth, nos meus aposentos está um pequeno pote com uma bela sopa de galinha; vai lá, fala com a minha criada, se não te importas, que ela dá-to. Fui eu que a fiz. Por pouco apetite que tenhas, Bridei, vais gostar, é extremamente fortificante. Vai lá, jovem! - A rainha sorriu e Garth obedeceu sem uma palavra.

Rhian sentou-se em frente de Bridei e fixou-o com os seus bondosos olhos azuis. Ferada ficou por trás dela, torcendo as mãos.

- Um pouco de hidromel? - A rainha olhou de relance para oreth e este desapareceu no outro quarto; se o guarda-costas tencionava arrancá-la dos aposentos de Broichan, não conseguira encontrar as palavras necessárias face àquela investida de boa vontade.

- E agora diz-me, Bridei - inquiriu Rhian -, estás mesmo melhor? Estiveste doente muito tempo, coisa rara num jovem tão saudável.

- Estou melhor, minha senhora. Espero estar totalmente recuperado por ocasião do Solstício.

- Ah, sim, o Solstício de Inverno... Tens pouco tempo, mas o que interessa é que estejas bom por ocasião da assembleia. O meu marido pensava muito bem de ti, Bridei. Tens de fazer o melhor possível, deves isso à sua memória. Não te esqueças. - Nos seus olhos brilhou uma lágrima, mas Rhian era uma rainha; a face continuou seca.

- É muito amável da vossa parte, minha senhora. Foi uma grande perda, muito triste. Nunca conseguirei ser igual a ele, mas darei o meu melhor, prometo-vos.

- Hmm-hmm. - A rainha permaneceu silenciosa durante alguns momentos enquanto Breth, que regressara com o hidromel, punha o jarro e três canecas em cima da mesa. - Tenho a certeza que darás, meu filho. - Que os deuses te inspirem. Estamos em tempos de grandes mudanças; mudanças assustadoras. Temos todos que ser fortes. Muito bem - disse a rainha, pondo-se de pé de repente, como se se tivesse lembrado de qualquer coisa. - Preciso de dar uma palavrinha a Broichan. Ele está? - perguntou ela, olhando para Breth. Sem esperar por uma resposta, Rhian dirigiu-se à porta interior, bateu e entrou. O guarda-costas, com uma expressão de alarme nas feições, correu atrás dela.

Ferada pegou no jarro de hidromel e encheu duas canecas. Bridei estava espantado com a mudança operada na jovem. Ferada sempre lhe parecera uma rapariga equilibrada, confiante, que o fazia sentir estranho e pouco à vontade. Naquele momento, a jovem estava pálida, indecisa; as suas mãos tremiam, desajeitadas, enquanto punha de parte o jarro e colocava uma das canecas na sua frente. O jovem, porém, não ia perder tempo com aquilo; tinha de aproveitar a oportunidade rapidamente, antes que os outros regressassem.

- Ferada, preciso que me leves uma mensagem a Banmerren. És capaz?

A jovem olhou para ele sem expressão; parecia que não tinha compreendido as palavras.

- A Tuala. É urgente. Levas?

Ferada continuava com a sua caneca na mão; as suas mãos tremiam tanto que o hidromel entornou-se.

- A Tuala... oh...

- Diz-lhe o que aconteceu. Que tenho estado doente desde a noite de Lua cheia; que não pude... - Por todos os deuses, que tinha a rapariga? Não era imaginação o seu estado de agitação; o rosto dela estava branco como a cal, as sardas sobressaíam e os lábios formavam uma linha fina, de tal modo estavam cerrados. Algo não estava bem. Tinha de a pôr à vontade. Só de pensar em beber o hidromel dava-lhe volta ao estômago, mas se desse um gole ou dois e fizesse de conta que não se passava nada, talvez ela se descontraísse e o escutasse.

O jovem estendeu a mão para a caneca, mas sem ele saber como, a mão de Ferada deu um encontrão na sua e a caneca que ela lhe enchera entornou-se na mesa de pedra.

- Oh! - gritou Ferada, estendendo a mão para endireitar a caneca.

Bridei conseguira evitar o pior, afastando o jarro da poça de hidromel. Evidentemente, ninguém, no quarto interior, ouvira a pequena agitação; a voz da rainha ouvia-se no outro lado da porta, viva e alegre.

- O que se passa, Ferada? - perguntou Bridei à jovem, vendo que ela empalidecera ainda mais. - Que aconteceu? Passa-se alguma coisa com Gartnait?

- O quê? Por que havia de se passar alguma coisa com Gartnait?

- A sua voz tremia. Ferada fez uma tentativa fútil para limpar a saia, onde o hidromel escurecera o tecido azul, tornando-o cinzento, com um lenço minúsculo. - Bridei, tenho de te dizer uma coisa. - A sua voz transformou-se num sussurro. - É a propósito de Tuala. Ela fugiu.

- O quê?

- Bridei, estás a magoar-me.

O jovem apercebeu-se de que estava de pé, que estava a agarrar com força nos ombros de Ferada e que a jovem estava a gemer de dor.

- Desculpa - disse ele, libertando-a, ao mesmo tempo que o seu coração batia com toda a força e com toda a velocidade. - Fugiu? Para onde? Quando?

- Logo a seguir à Lua cheia. Uns dias depois. Ninguém sabe para onde.

Bridei sentiu um frio terrível.

- Que queres dizer com isso, ninguém sabe? Elas têm que saber!

- Não sabem. Uma noite, ela simplesmente desapareceu. Fola mandou uns homens da herdade à procura dela, mas eles não a encontraram nem viram quaisquer sinais dela. Depois, Ana e eu viemo-nos embora. Nunca mais soube nada.

Bridei sentiu-se tonto; por onde começar, fazer que perguntas, fazer o quê? Treze dias, estivera inconsciente durante treze dias, enquanto ela...

- Por que não me disseram? Por que é que ninguém me disse nada? - Tanto tempo; tão longe; tinha de ir, imediatamente...

- Provavelmente, sabiam que ficarias preocupado - disse Ferada, tentando secar a mesa com o lenço encharcado. - Eles querem que estejas nas melhores condições aquando da apresentação.

- Que se dane a apresentação! Este tempo todo sozinha, no Inverno - em que estavam a pensar? Que está Broichan aqui a fazer quando - Pitnochie, ela deve ter ido para Pitnochie. Ele podia ter ido atrás dela, podia tê-la encontrado... Se ela conseguir chegar a Pitnochie, está salva e eu posso ir buscá-la...

- Eu penso que ela não queria continuar em Banmerren - disse Ferada. - Ela dizia que elas não a queriam lá; quando lá estive, ela pareceu-me muito infeliz. Eu acho que se ela tivesse podido ficar em Pitnochie, nunca teria decidido ir para Banmerren. Não sabias?

As vozes que se ouviam no quarto interior estavam a aproximar-se da porta; a rainha vinha a sair.

- Diz-me - sibilou Bridei. - Depressa!

- Broichan obrigou-a a escolher. Casar com um homem que lhe tinha feito uma oferta, ou ir para Banmerren. Ela não se queria casar. Banmerren era o menor dos males. Ela nunca quis sair de Pitnochie. Bridei, tenho de te avisar - tens de ter cuidado...

- Que homem? - As palavras sairam de um sítio frio no interior do seu corpo, um sítio onde não havia lugar para o perdão.

- Garvan, o escultor. Tuala disse que ele era bom homem, mas que não podia... Ela acreditava que a deusa tinha escolhido por ela. Antes de deixar Pitnochie ela... ela...

- Ela o quê? Depressa.

- Ela cortou o cabelo, fez um corte na mão e fez um feitiço de protecção para ti. Ela não queria ir-se embora de Pitnochie, não queria ir para Banmerren, mas já não há lugar para ela em casa de Broichan. Se Tuala foi para casa, não foi para casa do druida.

Bridei olhou para a jovem; Ferada devolveu-lhe o olhar com uma expressão sombria.

- Que vais fazer? - perguntou ela.

- Procurá-la - disse Bridei. - Encontrá-la antes que seja tarde. És capaz de me dar cobertura? - A sua capa estava ali e a um canto estava um par de botas de Garth. A hipótese era muito pequena; talvez tivesse apenas uma. Se algum deles fosse alertado, Breth, Garth, Faolan, Broichan... Broichan, que lhe tinha mentido, Broichan, que o tinha traído... seria detido. Aquela gente só pensava na apresentação, na assembleia, no grande plano que estava quase a dar frutos, não pensava numa rapariga na neve, vagueando sozinha nas profundezas do Inverno totalmente sozinha, sem amigos. Bridei sentiu um nó no estômago. - Diz-lhes que Faolan veio ter comigo; que estamos reunidos e que eu regresso por volta do meio-dia.

- Como é que tu...?

Bridei não esperou para ouvir as palavras da jovem. O tempo era precioso; era uma questão de vida ou de morte. Fazendo um esforço sobre-humano, o jovem pegou nas botas, atirou com a capa por cima do ombro e saiu para o caminho de ronda. Em seguida, invocando o feitiço de encobrimento, dirigiu-se para os estábulos.

No seu quarto, em Banmerren, Fola estava sozinha com uma tigela de bronze na sua frente, em cima da mesa. A Mulher Sábia acabava de sair de um transe prolongado. As visões na superfície da água tinham desaparecido, mas Fola continuava imóvel, procurando no mais profundo do seu ser a voz da deusa, uma luz que lhe revelasse o caminho a seguir. A aceitação era lenta, lenta e dolorosa. Estavam enganados, ela e Broichan. Tinham permitido que a ambição, o orgulho e a autoconfiança lhes toldassem a capacidade de discernimento. Não tinham prestado atenção ao que A Que Brilha tornara claro desde o princípio: que o impensável devia ser aceite, que o impossível tinha de ser encarado ou tudo falharia e os seus esforços sairiam frustrados. Era difícil de engolir; era uma humilhação. Tão simples, tão óbvio; porém, não tinham visto, os dois, tão dedicados aos deuses, ambos celibatários, dedicados a uma vida de obediência, de ensinamento e autodisciplina. Ambos sem amor e sem filhos. Finalmente, Fola estava senhora da verdade. Talvez já o estivesse, no íntimo, quando encontrara Tuala pela primeira vez à sombra dos carvalhos, uma verdade minúscula, intensa, transbordando de sentimentos e tentasse escondê-los. Quanto a Broichan, talvez não conseguisse aceitar. O seu plano era perfeito, cada elemento, cada pormenor perfeitamente calculado, quinze anos da sua vida sacrificados; quinze anos dedicados à grande causa da unidade de Fortriu: a criação do reino perfeito, a moldagem do líder que transportaria aquele abençoado reino para a luz.

Se Broichan não se curvasse, se não aceitasse que o seu edifício tinha sido construído sobre fundações defeituosas, tudo estaria perdido. Se Broichan se achasse mais perfeito do que a deusa, talvez merecessem perder.

Fola começou a voltar a si, mexendo os dedos das mãos, dos pés, alterando a respiração, pestanejando, espreguiçando-se. Finalmente, a Mulher Sábia fez uma vénia com as mãos juntas e virou-se para deitar a água da tigela no jarro. Em seguida, chamou Luthana, foi buscar a sua capa. Acompanhada da ervanária, atravessou os portões de Banmerren e dirigiu-se para Caer Pridne através da areia varrida pelo vento.

Tinha de escolher. Snonfm, atento, à espera, pronto, numa antecipação de uma bela cavalgada, semelhante à que Bridei e Faolan tinham efectuado através da charneca até aos três dólmenes. Snonfm era forte e estava desejoso de correr, mas não suportaria aquela longa corrida através da escuridão invernosa. Lufiry, de quem Bridei não conseguira separar-se; Luciry, o cavalo alto, malhado, o cavalo mais feio dos estábulos reais... A montada de Donal era resistente, era um corredor de fundo; melhorara com a idade. Os encarregados dos estábulos tinham-no exercitado regularmente, estava em boas condições. Luciry não era conhecido pela sua velocidade apesar das suas pernas compridas. Depressa, depressa, tinha de escolher; a qualquer momento, qualquer um dos interessados desconfiaria e a busca começaria. Aparelhar um cavalo, um cavalo qualquer e partir... Junto da soleira da porta, uma sombra branca mexeu-se: Spondrift, a égua de Uist, o animal sobrenatural com o seu pêlo cor de neve, perfeito, a crina sedosa, a cauda que parecia uma cascata e os olhos estranhos, tão fluidos e manhosos como os do próprio druida. A égua olhou para Bridei mudando de uma mão para a outra, como que a querer dizer: Anda lá, decide-te. Aquela égua era muito rápida, nunca se cansava... Aquela égua era capaz de ir onde os cavalos normais não podiam ir, com neve ou com chuva, incólume através da floresta ou do pântano, sempre no mesmo passo até Pitnochie.

Bridei conseguira ir até ali controlando o seu corpo fraco com uma enorme força de vontade. No entanto, estava muito fraco e a mente não podia fazer tudo. O jovem abriu a porta. Era necessário subir para uma espécie de banco e dali para um parapeito para chegar ao pescoço da égua; uma proeza desajeitada. Bridei inclinou-se para a frente com as mãos no pescoço de Spindrift e murmurou-lhe ao ouvido:

- Leva-me para casa.

O jovem esperava que o animal compreendesse. Precisaria de todas as suas forças para conseguir manter-se em cima da égua e continuar a respirar; mal conseguiria guiá-la. Não levara nada consigo; nem comida, nem água, nem qualquer arma, nem fosse o que fosse. Nem tempo. Tinha de partir imediatamente, antes de ser descoberto, e esperar que aquele animal raro conseguisse deixar para trás os melhores que os seus vigilantes conseguissem arranjar. Algures, na sua mente, continuava a eleição, os homens e as mulheres que dependiam dele, a questão do destino. Porém, tudo aquilo estava no interior de uma bolota, de uma noz, ultrapassado pelo peso do seu medo, da sua fúria, da sua necessidade ardente de encontrar rapidamente o seu amor, depressa, antes de o perder para sempre.

- Vamos - murmurou Bridei e, rodopiando, num sobressalto, graciosa como um cisne em voo, a égua saiu de Caer Pridne disparada em direcção a sudoeste, em direcção ao Grande Vale. Um vulto pálido na escuridão do Inverno, a égua galopava com a confiança de um animal que se sabia protegido por poderes mais antigos do que o tempo e não deixava uma única marca atrás de si, no solo macio.

Estava um frio de rachar no caminho de ronda, no lado de fora dos alojamentos das mulheres. Ferada comprimiu-se por trás dos degraus com a capa por cima da cabeça e cruzada no peito, escondendo o fino vestido azul, o belo alfinete de prata e o odiado e pesado anel. Já estava ali havia algum tempo, sem ser vista por ninguém. Algures, na barriga, a jovem sentia um peso enorme, como que uma pedra enorme; talvez fosse medo. Medo de uma bofetada da mãe; medo dos olhos da mãe. Medo do que estava para vir, para ela, para todos. Doíam-lhe os dedos; roera as unhas até ao sabugo e roera a pele do indicador até fazer sangue. No entanto, apesar daquele sentimento de pavor, no seu coração havia algo diferente, algo bom e novo. No fim de contas, não fizera o que lhe tinha sido ordenado. Talvez fosse realmente uma Poção de amor, como Dreseida lhe dissera. Talvez. Ferada queria acreditar que era verdade; queria, mais do que tudo, que fosse verdade, apesar de improvável. No entanto, vira o olhar no rosto de Dreseida, sabia a força que a mão da sua mãe tinha, do que era capaz a sua fúria. Por que razão queria Dreseida que Bridei se apaixonasse por ela? Antes, nunca quisera o filho adoptivo de Broichan para marido da filha e não o queria como rei. Se Bridei tivesse bebido aquele hidromel, Dreseida teria transformado a sua própria filha numa assassina.

Talvez não fosse verdade. Talvez fosse apenas a sua imaginação. A sua mãe era uma mulher de linhagem impecável e muito inteligente. O seu pai era honesto, justo, admirado por todos; era amigo de Broichan. Que não seja verdade, pensou Ferada. Que não passe de um sonho mau. Porém, não conseguia deixar de pensar noutra ocasião, quando Donal morrera em vez de Bridei, no salão da sua própria casa, na Fonte do Corvo. Donal morrera envenenado. Teria sido um servo que, por lealdade ou por medo, matara por ordem da sua senhora?

Estava a fazer-se tarde e não podia ficar ali o resto do dia. Bridei já devia estar longe e a sua mãe devia estar à espera de um relatório. Teria de lhe dizer... Teria de lhe dizer a verdade, pensou Ferada sinistramente, pondo-se de pé e alisando a saia do vestido. A partir dali, diria sempre a verdade e se as pessoas não gostassem, pior. A jovem tremeu convulsivamente. Ali sozinha, ditas em voz baixa, aquelas intenções pareciam-lhe muito bonitas. A coisa seria diferente quando tivesse de enfrentar os olhos penetrantes da sua mãe, a sua língua viperina, a sua mão pesada. Não interessava; fá-lo-ia. Mas primeiro... Com dedos trémulos, Ferada tirou o anel e sopesou-o na palma da mão durante um momento; entre as pedras do caminho de ronda havia uma fenda profunda, com musgo de ambos os lados. Ferada meteu nela o anel e ouviu-o cair mais abaixo, onde ficou a descansar, invisível. Em seguida, pôs-se de pé e entrou.

Gartnait e Dreseida estavam na câmara destinada à família. Dreseida e Ferada dormiam nos alojamentos das mulheres, juntamente com os rapazes mais pequenos. Talorgen e Gartnait dormiam nos dos homens. Porém, como família nobre e parente do rei, tinham algumas divisões para seu uso exclusivo; o sítio onde estavam era o seu principal local de encontro. Quando Ferada entrou, a mãe e o filho calaram-se.

- Bem, bem - disse Dreseida suavemente. - Surpreendeste-me, filha. Parece que a tua missão resultou. Nunca pensei que fosses capaz.

Ferada sentiu um nó no estômago; olhou para Gartnait, para a mãe e novamente para Gartnait.

- O quê? - perguntou ela. - Não compreendo...

- A história que foi posta a circular diz que Bridei piorou subitamente. - A voz de Dreseida era calma, mas os seus olhos tinham uma excitação que enjoou Ferada. - À hora do pequeno-almoço, está sentado e recebe visitas; antes do meio-dia, está mais uma vez indisposto, a porta está fechada e os guarda-costas não deixam entrar ninguém. Diria que vai haver uma declaração dentro de pouco tempo. Se o nosso jovem amigo recebeu a última visita da Mãe de Tudo, Broichan não vai conseguir mantê-la em segredo depois do Solstício. Vão precisar de outro candidato ou Drust, o Javali, avança e fica com tudo.

- Mas... - protestou Ferada; havia algo errado ali, aquilo era um pesadelo. - Não foi...

- Foste esperta, filha, muito esperta. Ouvi falar na visita da rainha. Foi um disfarce perfeito. Rhian é tão nobre e honesta, ninguém desconfia dela. Bom trabalho, minha querida.

Ferada respirou fundo.

- Portanto, não era uma poção de amor - disse ela, pensando a toda a velocidade.

As sobrancelhas de Dreseida ergueram-se extravagantemente; os seus lábios torceram-se.

- Ora vamos, Ferada. Não acreditaste nisso, pois não?

Ferada olhou para o irmão. Gartnait estava pálido, tinha os dentes cerrados e as mãos atrás das costas. A jovem sabia exactamente o que ele estava a sentir; como ela se sentiria se tivesse levado a cabo a missão de que fora incumbida.

- Ele é o teu melhor amigo - murmurou ela.

- Está no meu caminho - disse Gartnait em tom insípido. Sempre esteve. - Era como se estivesse a repetir uma lição memorizada.

- No teu caminho para quê? Nunca serás rei. E Carnach, Wredech, qualquer um dos primos de Ana? O pai nunca pensou...

- Cuidado com a língua! - avisou Dreseida, e Ferada calou-se, mantendo os olhos nas feições febris do irmão. Gartnait devia saber; devia saber que não valia a pena. Que lhe dissera Dreseida para o levar a acreditar naquilo? - O teu irmão tem-se esforçado. Além disso, é meu filho. Está pronto.

- Mãe - disse Ferada, consciente de que tinha de lhes dizer mas incapaz de o fazer. - Porquê? Porquê? Odeia Bridei assim tanto?

Dreseida sorriu cruelmente.

- A ele não. À mãe dele. Anfreda levou o que me pertencia, roubou-me a oportunidade; roubou-me o futuro. Era uma pretensiosa, andavam todos em cima dela, como se ela fosse uma cadela com cio. Era nojento A perspectiva de ver um filho dela no trono de Fortriu. enoja-me.

- Ficou com o que era seu? Que quer dizer com isso? Está a falar de Maelchon?

- Ele ia fazer uma oferta por mim; foi ele que me disse. Teria sido rainha. Ele era um homem poderoso, um verdadeiro líder. Como mulher dele, teria gozado de uma influência enorme. Então, apareceu ela a doce Anfreda, e ele nunca mais olhou para mim.

- Mas a mãe casou com o pai.

- Casei - disse Dreseida por entre os dentes cerrados. - E tenho o meu filho, e o meu filho é que vai ser o rei de Fortriu, não o filho dela. Tal é a vontade dos deuses.

Havia algo no rosto dela que assustava Ferada mais do que qualquer ameaça, qualquer bofetada.

- Mãe - perguntou ela -, já pensou no que isto vai fazer a Gartnait? Temos menos de dois dias até às declarações. Ele nunca fez um discurso formal na vida. Não lhe pode fazer isto. É cruel e injusto.

- Eu sou capaz - disse Gartnait em tom cortante. Ferada ouviu o desespero no seu tom de voz, apesar do ar de confiança, e o seu coração chorou por ele.

- Eu vou falar por ele no Solstício - disse Dreseida firmemente. Os substitutos são permitidos e eu sou de sangue real. Vou apresentar a pretensão de Gartnait de uma maneira que nem Broichan poderá recusar. Tudo o que Gartnait terá de fazer será levantar-se perante a assembleia, dizer um discurso preparado antecipadamente e estar presente na votação. Eu não sou estúpida, filha.

- Não, mãe. - Ferada viu o irmão arrastar um pé no chão, fazer tenção de dizer qualquer coisa, pensar melhor e fechar a boca. Tinha de lhes dizer. Jurara dizer a verdade... Tudo o que lhe apetecia fazer era fugir e esconder-se como uma criança assustada. - Mãe - disse ela, com esforço -, não me parece que Gartnait queira ser rei. E não me parece que venha a ser.

- Que tolice é essa? É claro que quer...

- Mãe, eu não dei a poção a Bridei. Ele não está a morrer; foi à procura de Tuala. Eu dei-lhe a notícia do desaparecimento dela e ele foi-se embora.

O rosto de Dreseida mudara de modo alarmante durante o seu discurso; estava distorcido de fúria. A sua voz soou mortalmente calma.

- Diz lá isso outra vez, Ferada e diz-me que não é verdade. Lembra-te, enquanto vais falando, do que te disse exactamente acerca das consequências da tua desobediência.

- Eu não estou preparada para ser uma assassina, nem sequer pela melhor das causas. Por uma causa sem esperança como esta, então, nem pensar. Gartnait não tem estofo de rei, até uma mulher cega é capaz de ver. Bridei regressou a Pitnochie. Não vai estar aqui por ocasião das apresentações. Porém, como muito bem disseste, não tem importância porque os substitutos são aceites. Talvez o pai fale por ele.

Dreseida deu um passo em direcção à filha. O braço recuou, preparando-se para uma bofetada monumental; Ferada prendeu a respiração e esperou imóvel, sem pestanejar.

- Não, mãe. - Gartnait prendeu o braço da mãe, impedindo-a de bater na filha. - Assim, não. - O jovem olhou de relance para Ferada. - É melhor ires. Deixa isto comigo. E fecha a boca para bem de todos. Já provocaste demasiados danos.

Ferada fez uma pausa à entrada e depois, ao ver a expressão no rosto da mãe, desapareceu.

Depois de Ferada ter saído e da porta se ter fechado, Dreseida olhou para o filho e disse:

- A tua irmã desiludiu-me. Tu és meu filho. Chegou a hora de provares que és alguém, de lhes mostrares o que podes ser.

Gartnait engoliu em seco e endireitou as costas.

- Eu encontro-o. Farei com que a mãe se orgulhe de mim. Dreseida acenou com a cabeça.

- Terás de ser rápido; parece que a vantagem dele é grande. Tens de ir imediatamente e quando tiveres oportunidade, a coisa tem de ser bem feita e sem ninguém ver. Tem de ser impecável. Compreendes? Nada nem ninguém te poderá acusar.

- Sim, mãe. Já provei que sou guerreiro; não se esqueça. Sei o que hei-de fazer.

- Vai, então.

- E as apresentações? Eu não vou estar...

- Ainda bem, talvez, que vais estar ausente; fornece-me a justificação para falar por ti. É claro que tens de regressar a tempo da assembleia. Nove dias; é suficiente. Com sorte, apanha-lo antes de ele chegar a Pitnochie. Ele tem estado doente; isso vai atrasá-lo. Pode haver outros em perseguição dele. Tem cuidado.

- Adeus, mãe. Farei o melhor por si, prometo.

Dreseida suspirou e pousou uma mão no ombro do seu filho.

- Adeus, Gartnait. Vai com cuidado. Que os deuses te protejam.

- Que A Que Brilha a proteja até ao meu regresso.

No lado de fora do alojamento de Broichan estavam dois guardas de rosto severo: Gwrad, que estava geralmente ao serviço de Carnach, o primo do rei, e um outro homem cujo rosto cheio de cicatrizes e orelhas proeminentes o identificavam como Imbeg, o homem de Tharan. Os dois homens barraram a passagem a Fola até a Mulher Sábia erguer a voz o suficiente para fazer com que Talorgen saísse para investigar. Pouco depois, no quarto interior de Broichan, os cinco conspiradores reuniam-se uma vez mais: um conselho secreto já não tão secreto porque a mudança da guarda devia ter alertado Caer Pridne, pelo menos, para um acontecimento pouco vulgar.

Fola sentou-se na esteira vazia, sem lençóis ou cobertores. Os quatro homens estavam de pé. De todos, apenas Uist parecia tranquilo, uma silhueta branca na sombra, à lareira. Aniel tamborilava com os dedos na mesa; Talorgen andava de um lado para o outro; Broichan, o imperturbável Broichan, torcia uma fita verde nos dedos longos como se a quisesse fazer em tiras e o seu rosto parecia uma caveira devido à tensão.

- Como é que soubeste? - perguntou o druida antes mesmo de ela se sentar.

- Como é que eu soube o quê? - inquiriu Fola em voz calma.

- Que ele desapareceu. Que foi levado apesar de me terem assegurado que os guardas eram especialistas, que não deixariam ninguém aproximar-se...

- Não podes culpar Breth e Garth - acrescentou Aniel. A lealdade de ambos não está em causa. Além disso, ainda não sabemos o que aconteceu...

- O nosso inimigo raptou-o; talvez, até, já o tenha morto. - A voz de Broichan tremeu. - Que outra coisa há-de ser? Como é que eles deixaram que isto acontecesse? Não estava ninguém de guarda?

- Broichan.

Ao ouvirem a voz de Fola, todos se calaram.

- Bridei não foi raptado. O rapaz vai a caminho de Pitnochie à procura de Tuala.

Ninguém disse uma palavra. As mãos de Broichan imobilizaram-se; a fita ficou entre elas, suspensa.

- Vi-o na água. Uma visão verdadeira. Vim aqui para te dizer que alguém vai ter que falar por Bridei no Solstício. Na ocasião, ele estará bem longe de Caer Pridne, numa missão por conta própria.

- Não! - exclamou Broichan, dirigindo-se para ela e fixando-a com os seus olhos escuros. Fola devolveu-lhe firmemente o olhar. É impossível! Bridei está comprometido com isto. Ele obedece à Guardiã das Chamas em tudo. Ele não era capaz...

- Foi capaz. Já vai a caminho; a filha de Talorgen deu-lhe a notícia e ele foi atrás dela.

- Que notícia? - perguntou Talorgen, franzindo o sobrolho. O que é que Ferada sabia?

Fola olhou para ele.

- Que Tuala fugiu - disse ela. - Ainda não sabias?

- Estás a dizer que Bridei tenciona ir a Pitnochie a cavalo? - perguntou Aniel. - Ele estava muito fraco por causa do ferimento e da doença que se lhe seguiu. Ele mal podia andar, quanto mais fazer uma viagem a cavalo tão perigosa, ainda por cima com este tempo. Bridei deve ir devagar, pode ser apanhado, trazido de volta...

- Vai ser difícil apanhá-lo - disse Fola olhando para Uist, que lhe devolveu o olhar com olhos brilhantes. - Se a minha visão não me enganou, Bridei levou uma égua especial.

- Há quanto tempo é que a rapariga desapareceu? - perguntou Talorgen. - Compreendo que Bridei se sinta angustiado. Foi montada uma busca?

A expressão de Fola ficou subitamente muito severa. A Mulher Sábia fixou o olhar em Broichan como se o druida fosse um aluno que tivesse cometido uma falta imperdoável.

- Diz-lhes - disse ela - porque parece que a mensagem que te mandei urgentemente, há catorze dias, não passou dos teus ouvidos. Conta-lhes como a tua filha adoptiva fugiu de Banmerren de noite, sozinha. Conta-lhes como a minha gente andou à procura dela e não a encontrou. Diz-lhes para onde pensas que ela foi, por que razão e explica aos teus amigos de confiança por que não deste a notícia a Bridei quando ele voltou a si, dizendo-lhe ao mesmo tempo, para o tranquilizar, que tinhas mandado homens atrás dela para o golpe ser menos brutal. Anda lá, Broichan. Entre nós, a verdade faz parte do código; somos um conselho de cinco, obrigados, por confiança mútua, a partilhar quaisquer informações que sejam pertinentes para a causa. Conta-lhes.

- A égua - disse Broichan, como se não a tivesse ouvido. Deixaste que ele levasse Spindrift. Isto é obra tua... - O druida virara o olhar feroz para o colega de cabelos brancos; a sua voz era tão cortante como uma faca. - Aquele animal não aceita ninguém na garupa sem o teu consentimento! Como vamos apanhá-lo a tempo se é ela que o leva? Traíste-me... - Broichan deu um passo em direcção a Uist e ergueu as mãos, talvez para agarrar o outro pelos ombros e abaná-lo, talvez para o castigar fisicamente porque o ar em redor dele parecia habitado pelo silvo e crepitar de um feitiço. Os olhos de Uist reviraram-se, enganadores. Os seus dedos apertaram o bordão encostado à parede e uma luz prateada pareceu brilhar na sua ponta, onde estava alojada a pedra em forma de ovo.

- Parai, os dois - disse Fola, irritada. - Nós não somos nenhumas crianças. Isto tem sido conduzido muito mal; está errado desde o princípio. O papel de Tuala é primordial e eu só o percebi agora, quando pode ser demasiado tarde.

- Que queres dizer? - perguntou Broichan. - Tuala não faz parte dos nossos planos. Ainda bem que ela se foi embora. Não é preciso iniciar uma busca; não vale a pena. Tu sabes quem ela é. Esses argumentos, uma viagem longa, o tempo, são irrelevantes no caso dos da espécie dela. Tuala deve ter ido para junto dos Boa Gente. Era inevitável. Temos de nos preocupar é com Bridei; com mais ninguém.

- Uist - disse Fola - desconfio que estás a par desta pequena dificuldade há mais tempo do que eu; de outro modo, a tua égua não se teria prestado. Talvez o meu amigo aqui compreenda melhor se a coisa for contada por outro homem.

- Eu conheço alguma coisa da história da rapariga - disse Uist, voltando a encostar o bordão à parede. - Tuala foi deixada à porta de Broichan no Solstício de Inverno, numa noite de Lua cheia e foi encontrada por Bridei. A rapariga foi educada por sábios em casa de um druida. Depois, foi enviada para Banmerren para que a sua educação fosse completada. Eu conheci-a. Tuala é uma rapariga notável, sábia, solene, tem uma doçura natural e uma beleza que eu não tenho o privilégio de ver desde que pus pela primeira vez os olhos em Fola, quando ela tinha dezasseis anos. Fola resfolegou, trocista.

- Continua - disse Aniel, irritado. - Precisamos de Bridei aqui; diz-nos o que havemos de fazer.

- Eu vou buscá-lo. - O tom de Broichan era de comando. Não é preciso envolver mais ninguém.

- Nós somos um conselho de cinco - disse Talorgen severamente. - É melhor não o esquecermos. Uist, acaba o que estavas a dizer.

- Perguntei a mim próprio por que razão A Que Brilha a tinha colocado perante um caminho tão difícil. Tuala é boa rapariga e ama o nosso amigo, isso é evidente, apesar dos esforços que faz para o esconder quando fala dele.

- Ama-o? Como irmã?

- Não, Aniel, não como irmã, mas com a devoção apaixonada de alguém que, em devido tempo conta ser sua amada, sua amante, sua mulher. Com a dedicação de alguém que o acompanhará em todos os desafios da governação. E ele também a ama; não passei estes catorze dias à sua cabeceira, na companhia dos seus sonhos? Bridei precisa desta rapariga. Sem ela, o nosso rei perfeito falhará.

- Disparate! - A indignação de Broichan era quase palpável. Um homem normal ter-se-ia encolhido perante o seu olhar. Os seus companheiros olharam simplesmente para ele com expressões que iam da preocupação ao reconhecimento horrorizado. Broichan era falível. O druida do rei cometera um erro e naquele momento, a não ser que fossem dados os passos necessários, o jogo estaria perdido. - Ela é filha dos Boa Gente! Nunca será aceite como rainha! Bridei será motivo de chacota!

- Ele não é suficientemente forte para se aguentar? - perguntou Fola. - Pensas assim tão mal da tua própria criação? Queres perder o jogo? Achas que ele cede perante a desaprovação de uns poucos cortesãos de vistas estreitas? Ele é forte, Broichan, muito forte. E ela também. Juntos, acredito que seguirão em frente sob a protecção do amor dos deuses. Acredito que formarão um par poderoso, capaz de mudar este país.

- Confesso que acho isto um pouco estranho: um deles como mulher do rei - disse Aniel, abstracto. - Persuadir a corte de que é uma boa ideia vai ser um desafio, mas confio no teu discernimento, Fola. Que fazemos?

- Deixar ir Bridei - disse Fola. - Deixá-lo entregue a si próprio para que a encontre e a traga com ele.

- Perdeste o juízo? - gritou Broichan, deixando cair o punho em cima da mesa. - Bridei está doente, está confuso. Passou muitas noites com pesadelos; não admira que tenha agido de modo tão irracional. Já te esqueceste que foi precisamente uma coisa igual a esta que o levou ao estado em que se encontra? Fazer uma tal viagem sozinho é convidar a um ataque. Além disso, como é que se vai defender se está demasiado fraco para dar dois passos? Tenho de ir atrás dele.

- Nem tu conseguirás segui-lo com facilidade - disse Uist. Spindrift só se deixa encontrar se quiser. É por isso que ela não pode ficar confinada aos estábulos.

- Nesse caso, vou para Pitnochie e espero lá por ele. - Broichan tirara uma capa de um prego e, subitamente, o seu cajado, um belo cajado de carvalho escuro com muitos sinais pequenos esculpidos, estava nas suas mãos. -Viajarei rapidamente; não irei pelos caminhos dos homens. Farei com que o rapaz ganhe juízo. E trago-o a tempo da assembleia. Um de vós terá de falar por ele no Solstício. A rapariga tem-no mais preso do que eu pensava; quem sabe por que caminhos o levará ela se a deixarmos influenciá-lo à vontade? Deuses, para quê isto, agora? Parece que a tua filha desempenhou um papel qualquer nisto tudo, Talorgen. O melhor é obrigar Ferada a dobrar a língua antes que provoque mais sarilhos.

Talorgen empertigou-se e os seus punhos cerraram-se.

- Broichan. - Fola pôs-se de pé e colocou-se entre os dois homens. - Não vás. Bridei ficará melhor se o deixares seguir sozinho. Ele há-de regressar a tempo da assembleia; e não esqueceu o futuro para que foi preparado por ti. Não confias no teu próprio filho?

Ninguém a corrigiu. Após alguns momentos, Broichan disse:

- Nele, confio, mas nela não. Desde o primeiro momento que vi que ela era a cara do inimigo. Sabia que ela se intrometeria. O meu erro foi deixá-la ficar em Pitnochie, permitir que ela se insinuasse junto dele...

- Falas como um amante ciumento - disse Fola bruscamente. Pergunta a ti próprio por que razão o fizeste; por que razão não puseste o bebé fora de casa. Terá sido por amares o rapaz e não o quereres fazer infeliz? Ou terá sido porque, no íntimo, reconheceste que era a vontade da Que Brilha?

- Enquanto perdemos tempo com discussões inúteis - retorquiu Broichan friamente -, Bridei cavalga sozinho pelos campos cobertos de neve, confuso e doente. Não aturo mais isto.

- Vais, apesar dos nossos conselhos?

- Vou e farei os possíveis para que os nossos esforços não tenham sido em vão. Vou e trago o nosso futuro rei. - O druida saiu impetuosamente do quarto com as tranças esvoaçando por cima dos ombros vestidos de negro e a longa capa flutuando atrás como uma nuvem de tempestade. Os outros ficaram a olhar uns para os outros, em silêncio.

- Numa coisa, pelo menos, ele tem razão - disse finalmente Aniel. - Bridei corre o risco de ser alvo de um ataque, planeado ou fortuito. Devíamos, pelo menos...

- Faolan - disse Talorgen. - Ele encarrega-se do assunto, melhor do que qualquer outro nessas circunstâncias. Vou mandar Gwrad chamá-lo. Eu sei que me vais dizer para o deixar sozinho, Fola, mas tens de concordar que um protector não é demais.

- Curvo-me perante a opinião de um guerreiro.

- Quem é que vai falar por ele no Solstício? Concordamos com Carnach?

Ouviu-se um batimento na porta e, para sua surpresa, era Ferada com Gartnait atrás de si, este com uma expressão apologética no rosto. Os quatro conselheiros olharam para os dois jovens. A filha de Talorgen era conhecida pela sua aparência imaculada, pelo seu modo de vestir elegante, pelo seu porte excelente, um espelho da sua mãe. Naquele momento, os seus cabelos estavam despenteados e o rosto tão pálido como o de um cadáver, com excepção dos olhos, que estavam encovados e vermelhos. A saia do vestido estava manchada. Ferada tinha um xaile em volta dos ombros e apertava-o na frente com tanta força que os nós dos dedos estavam brancos. A jovem tremia como se tivesse estado na rua durante muito tempo. Fola soltou uma exclamação de consternação e Talorgen avançou para a filha, alarmado.

- Ferada! Que se passa?

- Pai - disse Ferada com a voz distorcida devido a um longo choro. - Preciso de falar contigo em particular. Tenho uma coisa para te dizer.

 

                                 CAPÍTULO DEZASSETE

Nevara durante a noite. Quando chegou junto da margem do lago, passando por baixo dos pinheiros espessos, Tuala ouviu o som suave das pinhas a caírem no solo. A jovem não sabia há quanto tempo caminhava, perdera a noção do tempo. As suas botas estavam cheias de pequenos detritos e a saia pegava-se-lhe às pernas. O seu bafo fazia uma nuvem no ar frio; as orelhas doíam-lhe e o nariz escorria-lhe. Estava quase lá. Aqueles pinheiros altos, aquela encosta atapetada de branco e aquela extensão de água escura eram-lhe familiares; as vozes das aves, gritando lá no alto, acima da copa das árvores, desejavam-lhe as boas vindas a casa. Casa... que rica casa... sem frio, sem fome, sem dor... sem morte... Não conseguia imaginar. Imortalidade: um estado que os homens desejavam, uma dádiva impossível, impossível de sonhar e nunca alcançada... O que os Boa Gente lhe tinham oferecido. No entanto, naquele momento, não significava nada. Tudo o que ela queria era uma lareira, umas meias secas e vê-lo de novo só mais uma vez, só mais uma vez antes do fim...

O druida estava à porta olhando para o alto do monte, para nordeste. Broichan sabia que a rapariga estava a chegar, que estava nos limites das suas terras. Ele próprio viajara desde Caer Pridne de diversas maneiras, primeiro como um célere cão de caça, depois como uma lebre de pêlo branco e por fim como uma coruja das neves voando através dos bosques de Pitnochie até à sua porta da frente, onde as asas se tinham transformado numa capa negra e o corpo da ave no corpo de um homem, antes de entrar e pregar um susto tão grande a Mara que a governanta deixara cair uma tigela cheia de cebolas. Broichan não vira Bridei no caminho, mas passara por cima de Tuala e pousara num ramo para observar o seu progresso obstinado e miserável; reparando que ela falava consigo própria como se a longa viagem solitária lhe tivesse começado a perturbar o juízo. Naquele momento já devia estar perto de Pitnochie; em breve avistaria a casa. Tinha de se assegurar de que nunca a alcançaria. Broichan ergueu os braços e fechou os olhos. Respirando profundamente, o druida invocou um antigo feitiço de dissimulação.

Quando viu que estava de acordo com o que desejava, entrou e aferrolhou a porta apesar de ainda ser dia. Fizera o que tinha de fazer para proteger o seu filho da influência perniciosa que procurava prejudicá-lo. Cumprira a sua responsabilidade perante os deuses. Nada nem ninguém se interporia no caminho daquele rei perfeito.

Tuala atingiu o fim de uma curva e lá estavam os campos murados, a cabana de Fidich e as árvores que escondiam a casa do druida. As ovelhas amontoavam-se no caminho, na parte abrigada do redil. As silhuetas castanhas dos patos viam-se sob os arbustos, junto do lago gelado. A sua casa... A jovem podia ver os carvalhos junto dos quais se sentara tantas vezes à espera que Bridei terminasse as suas lições. Tuala podia ver o pátio onde ele e Donal tinham praticado as suas intrincadas danças de guerra; podia ver a casa, a casa de Broichan, onde se sentara à lareira com os dois tutores e aprendera matérias misteriosas e encantadoras, divertidas e solenes... Onde, sentada num banco ao lado de Bridei, escutara uma história... E ali, na soleira da porta, que encontrou ele... Um bebé... Tuala esfregou os olhos; não queria chorar, chorar era sinal de fraqueza e, se queria fazer aquilo, fá-lo-ia com coragem e dignidade. A casa... faltava pouco... estava frio; os seus ossos parecia que se tinham transformado em gelo, não conseguia parar de tremer... O Espelho Negro, tinham eles dito antes de a abandonarem. Encontramo-nos no Espelho Negro. Devia continuar, então, pelo monte acima, para oeste, para poder chegar antes do anoitecer. Não conseguiria encontrar o caminho de noite, com a Lua nova. Não podia perder tempo. Mas... para lá daquela porta estava a lareira de Pitnochie, abrigo, calor, roupas secas, provavelmente uma sopa quente e pão acabado de cozer. O facto de não a quererem não devia ter importância. Mara era uma pessoa de bom senso. As boas-vindas não seriam calorosas, mas Mara, pensou Tuala, dar-lhe-ia, pelo menos, calor e roupa seca antes de a pôr novamente na rua. O pensamento da lareira fê-la tremer de cansaço. Uma visita rápida não devia ter importância. Não precisava de durar muito tempo. Tuala hesitou um pouco e depois desceu por entre os carvalhos sem folhas na direcção da porta da cozinha.

Não havia sinal de guardas, nem marcas de botas na neve macia. A porta estava aferrolhada com uma barra de ferro, nova, pelo lado de fora. Tuala ergueu uma mão frágil para bater e baixou-a. A jovem estava em cima de um monte de neve, na soleira da porta onde fora encontrada num cesto tecido com penas de cisne. Tuala recuou e olhou para cima. Não se viam colunas de fumo no telhado; naquele dia, tão frio, o mais frio de todos, a lareira não tinha sido acesa. Olhando através dos campos para a casa de Fidich, a jovem reparou que do telhado de colmo também não saía qualquer fumo. Tuala deu a volta à casa de Broichan, tentando espreitar pelas poucas janelas abertas nas espessas paredes de pedra e de barro. Todas elas estavam fechadas; o interior devia estar tão escuro como a noite. Devia haver candeias acesas; por que não a lareira?

Só a minúscula janela do quarto de Bridei é que estava aberta, mas estava demasiado alta para poder espreitar. Voltando à porta, Tuala bateu, desejando subitamente acordá-los a todos como naquelas histórias assustadoras, em que o mundo muda enquanto o herói dorme, e quando este acorda encontra o que o rodeia totalmente vazio. Ou naquelas em que uma rapariga entra num reino onde o tempo anda mais devagar, e quando regressa a casa todos os rostos familiares já morreram há muito. O local estava estranhamente silencioso, como se tudo tivesse retido a respiração. A jovem bateu novamente; não obteve resposta. Talvez tivesse batido devagar. Tuala encontrou um pau e usou-o para bater repetidamente nos sólidos painéis de carvalho. A jovem bateu uma, duas, três vezes. O som ecoou nas árvores cobertas de neve e nos bosques silenciosos. Não estava ninguém em casa.

Tuala foi até ao celeiro. Ali, pelo menos, havia sinais de vida, as ovelhas encostavam-se umas às outras em busca de calor e um pequeno pássaro caçava insectos numa pilha de madeira podre. Talvez os homens estivessem lá dentro, tratando dos cavalos ou do outro gado. Pearl devia estar ali, e Blaze... Porém, o celeiro também estava fechado, as grandes portas duplas estavam fechadas a cadeado; espreitando por uma frincha, Tuala não viu homens nem cavalos, nenhuma ovelha, nenhum cão nem nenhuma galinha no espaço vazio. Com o coração tão frio como os braços e as pernas, envolveu-se mais ainda na capa, afastou-se de Pitnochie e dirigiu-se para a floresta onde aos grossos carvalhos escuros se juntavam os vidoeiros pálidos e prateados e os azevinhos espinhosos com as suas bagas brilhantes. Não passes para lá dos azevinhos, Tuala... De onde tinham vindo aquelas palavras? Voltara a ser uma criança para precisar de amas, para fazer tudo o que Broichan queria? Já era uma mulher e iria para onde quisesse. Deixaria aquele mundo onde não tinha lugar, passaria para o reino a que sempre pertencera... nunca mais teria frio... Mas, oh, vê-lo só mais uma vez, só mais uma, um vislumbre apenas, não precisava de mais nada...

Pareceu decorrer muito tempo, se bem que o Sol quase invisível estivesse a meio da sua jornada quando ela meteu cuidadosamente pelo carreiro estreito que ia dar ao Vale dos Que Caíram. Os pés escorregaram na superfície lamacenta. Os braços abriram-se em busca de equilíbrio, as mãos procuraram freneticamente apoio e Tuala sentiu os espinhos de uma roseira a entrarem-lhe nos dedos já feridos. O incidente fê-la derramar as lágrimas que jurara não derramar. Fungou, limpou as faces com as costas das mãos e seguiu aos tropeções pelo carreiro fora.

O pequeno vale estava deserto. A lagoa estava escura e silenciosa; as pedras antigas jaziam agrupadas, em silêncio, aninhadas por baixo dos respectivos mantos de musgo. As trepadeiras tinham-se espalhado ainda mais desde a sua última visita e agora cobriam uma das sete pedras druídicas com a sua folhagem exuberante. Não havia sinal de Teia ou de Madressilva. Não havia sinal de ninguém.

Tuala deixou-se cair na orla do Espelho Negro. Só lhe restava esperar e esperar que as duas criaturas fossem fiéis à sua palavra. Teia e Madressilva tinham dito que se encontrariam com ela ali e que a conduziriam através da margem, mas não tinham dito quando.

Talvez aquilo quisesse dizer que devia ficar sozinha, numa espécie de vigília, naquele antigo lugar de verdade. Não desejara uma visão daquele que amava? Uma última imagem, para poder levar algo consigo para o outro mundo? Não conseguia imaginar que, uma vez no outro lado, não conseguisse lembrar-se dele. Tinha de tentar, apesar de na última vez o dom a ter deixado ficar mal. Sentar-se quieta, respirar profundamente, abrir o olho do espírito e encontrá-lo. Encontrá-lo...

O dia passou. Tuala pairava para lá do frio, para lá do cansaço, quase para lá do mundo onde estava sentada de pernas cruzadas em cima das pedras, olhando para a água fria. Na fenda profunda que abrigava a lagoa nada se mexia. Nenhuma ave pulava de ramo em ramo procurando o pouco alimento permitido por aquela estação pobre. nenhum insecto pairava por cima da água escura; nenhum peixe, procurando abrigo, perturbava a superfície imóvel. Não aparecia nenhuma imagem; nenhuma. Parecia que não havia outra coisa a fazer senão ficar sentada, respirar e esperar. Sentada até lhe doerem as costas; respirar ainda mais devagar porque fazê-lo normalmente naquele ar era encher os pulmões de gelo; esperar até que, finalmente, eles tivessem pena e aparecessem. O Sol já estava a pôr-se; o dia mais pequeno aproximava-se do fim e o pequeno vale ficara sombrio e estranho. A cabeça de Tuala inclinou-se; as suas pálpebras estavam a fechar-se, não podia continuar acordada...

Tão abrupta como a chama de um archote, a cor espalhou-se sobre a superfície da água. Tuala pestanejou e levantou a cabeça; aquele pequeno esforço pôs-lhe o coração a bater com toda a força. A jovem olhou para a lagoa.

Ele estava de pé no meio do grande salão, sem dúvida em Caer Pridne. As suas roupas eram ricas, longe dos trajes vulgares dos tempos de Pitnochie. Bridei estava vestido de azul: uma túnica e umas calças de lã e, por cima, uma capa curta, suave, cinzento-escuro, entrançada na orla e presa com um alfinete de prata com a forma de uma águia em voo. Os seus cabelos castanhos encaracolados estavam entrançados na nuca. Ah, os seus olhos, tão brilhantes, tão cheios de esperança e coragem, como se fosse a própria Guardiã das Chamas, o portador dos sonhos de Fortriu! Aqueles olhos eram mais azuis do que o mar profundo; mais azuis do que o céu no Verão; tão azuis como as pétalas de uma violeta. Havia gente à sua volta, alegre, talvez dando-lhe os parabéns. Lá estava Broichan com as suas feições, habitualmente impassíveis, cheias de um orgulho mal disfarçado; lá estava Talorgen, sorrindo, e a Rapariga Raposa vestida de verde, muito elegante, e Gartnait, com os seus turbulentos irmãos mais novos. Muitas outras pessoas oferecendo as mãos a Bridei, dizendo palavras que Tuala não podia ouvir mas que ela reconhecia: Muito bem, Bridei! Sabíamos que eras tu, desde o princípio! Que dia feliz!

Tuala viu-o virar-se ligeiramente, estender uma mão e sorrir docemente. Bridei era parco em sorrisos; as pessoas raramente os viam. Um momento mais tarde, lá estava ela: Ana das Ilhas Pequenas, com os seus cabelos prateados pelas costas abaixo, o seu vestido branco, o belo rosto de pele macia e faces rosadas, olhando solenemente para Bridei como se ele fosse o único homem no mundo. Bridei segurou-lhe na mão; ela disse uma palavra ou duas; ele respondeu. Tuala apercebeu-se do brilho dos seus olhos. Bridei ergueu a outra mão e acariciou gentilmente o rosto de Ana. No seu punho não havia qualquer adorno. A fita verde tinha desaparecido.

Quando a imagem se desvaneceu, deixando Tuala vazia, sem nada que lhe interessasse, ouviu-se uma voz do alto do carreiro, na orla do vale.

- Vem! Aqui para cima! Segue-me!

Tinha de fazer mais uma coisa; um último ritual, pequeno. Com dedos dormentes, Tuala meteu a mão na bolsa que tinha à cintura e tirou o pequeno talismã de corda, o registo da sua velha amizade com Bridei. Depois de terem estado afastados muito tempo, os dois cordões tinham-se juntado uma última vez, como se tivessem nascido para ser um só. Lua cheia... Depois, tinham-se separado novamente, iniciando jornadas separadas. Os cordões tinham quase atingido o seu fim natural e começavam a ficar puídos. Tuala fechou a mão com força em redor do pequeno talismã, cerrou os dentes e atirou-o para o meio do Espelho Negro. Apesar do seu pequeno peso, o objecto afundou-se como uma pedra, provocando uma série de pequenas ondas.

- Vem! Sobe! - chamou a voz. Não era possível saber se era a voz tipo campainha de Teia, o tom mais profundo de Madressilva ou as duas coisas ao mesmo tempo. O som era estranho, misturado, um lamento triste, sobrenatural, como o latido de um pequeno cão abandonado. Tuala já tinha ouvido aquele som naquele local.

A jovem conseguiu levantar-se, apesar de ter demorado mais tempo do que devia. Os seus pés obedeceram-lhe e subiram lenta e irregularmente o carreiro íngreme. As suas mãos agarraram-se ao que lhe aparecia; sem o suporte dos arbustos espinhosos não teria conseguido. Quando atingiu o topo, Tuala arquejava. A luz começava a desaparecer, mesmo ali; não poderia continuar durante muito tempo.

- Vem! Segue-me! Mais para cima! Mais para cima! - Parecia um coro. Tuala não conseguia vê-los. O som obrigou-a a avançar, a partir dali por um caminho novo que subia aos ziguezagues por entre as árvores, primeiro através de um paul lamacento, depois por um carreiro estreito totalmente atapetado por folhas podres e finalmente por uma vereda íngreme e escorregadia, cheia de pedras cobertas de musgo. As palavras Não posso estavam algures na sua mente, mas as vozes eram insistentes, irresistíveis; estava quase na altura de aquela dor desaparecer... Se conseguisse aguentar mais um pouco, só mais um pouco, em breve nada mais interessaria...

- Mais alto! Mais alto! Mais! Mais!

Trepando, rastejando, arrastando-se, deixando marcas de sangue nas pedras, esgravatando com os pés em busca de um apoio que não conseguia sentir, Tuala lutou desesperadamente para chegar ao topo de Cicatriz de Águia.

- Parece estranho dizer isto - disse a criatura conhecida pelo nome de Madressilva, comunicando à sua maneira com a companheira - mas acho isto um pouco... cruel. Sinto uma certa simpatia por esta rapariga.

Teia riu-se.

- Isto é um teste - disse ela. - É necessário. Estes humanos não prestam para nada. Uma barriga vazia, um arranhão, uma noite sem dormir? Não aguentam nada.

- Esta é boa rapariga. E do nosso sangue. Não vejo necessidade de lhe prolongar o sofrimento.

Teia abanou a cabeça; as mechas de cabelo brilhante dançaram, enviando raios de luz difusa pela encosta abaixo, na direcção dos carvalhos nus.

- Isto vai fazê-la pensar; vai fazê-la ponderar; vai fazer com que nunca mais se esqueça de onde veio, ou de quem é.

- Ela não sabe quem é - observou Madressilva.

- Não, mas vai sentir. Quando for velha e estiver a sonhar à lareira com o neto nos joelhos, vai sentir e contar esse sentimento numa história. Vai guardar esse sentimento no coração.

- Isso se não morrer de frio, de solidão e de desespero.

- Esta gente é tão fraca, tão imperfeita, tão frágil. Pelo menos, não está a chover.

- Não lhe podemos arranjar companhia? - perguntou-lhe Madressilva. - Bastava uma pequena.

- O quê, estás como os homens, tornaste-te sentimental ao ver esta rapariga passar por um pequeno inconveniente? - O tom de Teia era de troça. - Também caíste vítima das angústias do amor?

- Amor? Dificilmente. Mesmo assim, acho...

- Faz o que quiseres - disse Teia encolhendo os ombros. Bridei vem aí; em breve estará em Pitnochie, ele e a égua sem par. Foi uma boa escolha; o velho tem um pé em cada mundo, mas vê tudo. Só Spindrift podia ter trazido o rapaz a tempo. Porém, Bridei traz um companheiro; um homem que usa uma máscara de amigo para esconder um rosto de traidor. A coisa vai começar...

- Começar? - repetiu Madressilva. - Começou com uma criança, um bebé e o olhar frio da Que Brilha. E se falhar? E se ele não entender nada?

Teia virou os olhos grandes e brilhantes para ele.

- Esperemos que não - disse ela, muito séria. - Um líder como Bridei raramente se encontra entre os humanos. Uma companheira como Tuala não tem preço. Se ele falhar hoje, creio que Fortriu está perdido.

Bridei sentia a fraqueza em todos os membros; o ferimento e o longo tempo de inconsciência tinham-lhe tirado as forças. Pelo contrário, a dor de cabeça desaparecera miraculosamente, deixando-lhe a mente clara, como não a sentia havia muito tempo e Spindrift, a égua, comprovara as esperanças que depositara nela. O animal encontrara o caminho por si próprio através de diversos terrenos, aparentemente sem se cansar. O seu único defeito era parar de vez em quando ao abrigo de uma parede de rocha ou de um grupo de pinheiros, obrigando-o a desmontar para que descansasse um bocado. Spindrift não dormia de pé, como Snoufire ou Luciry, deitava-se a seu lado, aquecendo-o com o seu corpo.

Bridei estava impaciente, sentia que não tinha tempo para descansar. Tuala desaparecera havia muito tempo, talvez já tivesse chegado a Pitnochie e tivesse continuado... para onde? O pensamento fê-lo estremecer porque quanto mais pensava no que Ferada lhe dissera e no modo como as coisas tinham acontecido, mais acreditava que Tuala decidira deixá-lo e partir para um reino onde não poderia segui-la. Bridei não fora ter com ela na noite de Lua cheia. Tuala esperara por ele e ele não aparecera. Se Ferada dissera a verdade, Pitnochie também rejeitara a sua pequena filha da floresta. Finalmente, a jovem fugira de Banmerren. Tuala nunca quisera ser serva da Que Brilha. Tuala quisera... quisera o que ele quisera e ele não percebera, cego que estava para tudo menos para si próprio; percebera tudo mal e agora, se não a encontrasse rapidamente, perdê-la-ia para sempre.

Bridei irritava-se a cada paragem, consciente, ao mesmo tempo, de que precisava de descanso e de calor. Sem Spindríft, não podia continuar; a pé, não conseguiria encontrar Tuala a tempo, a não ser que ela esperasse por ele em Pitnochie... Bridei achava que ela não o faria. Se o melhor que Broichan conseguira fora oferecer-lhe um casamento com um estranho, ou uma vida fechada entre quatro paredes, o druida do rei, provavelmente, não a receberia de braços abertos em sua casa. Bridei cerrou os dentes. Broichan... Broichan tinha-lhe mentido. Dizer que Banmerren fora escolha de Tuala era uma coisa, mas omitir o facto de que a outra escolha possível seria o casamento com Garvan era esconder cruelmente a verdade. Broichan deixara-a fugir, sozinha, e não lhe dissera nada. O druida nunca gostara da dádiva da Que Brilha naquele Solstício de Inverno. O seu procedimento era uma traição pura e simples. No espaço de instantes, o seu pai adoptivo tornara-se um estranho: um homem que não confiava nele e em quem não podia continuar a confiar.

Era dia. Tinham parado duas vezes para dormir. Bridei achou, pela posição do Sol tapado pelas nuvens, que a tarde ia avançada. À medida que se aproximavam de Pitnochie, escolhendo o caminho íngreme pela margem do lago, Spindríft ia ficando cada vez mais inquieta, torcia as orelhas, virava a cabeça, abanava a cauda. Bridei estava consciente de que não tinha qualquer arma, nem sequer uma faca para se defender; saíra de Caer Pridne sem nada. Donal teria ficado muito mal impressionado.

Bridei ouviu o que alertara a égua: som de cascos atrás de si, um cavaleiro a aproximar-se. O jovem pesou as possibilidades: um assassino, mais um, pago pelos partidários de Circinn; o próprio Broichan, procurando apanhar o seu filho adoptivo desobediente e forçá-lo a regressar à corte. Não; se Broichan decidira persegui-lo, fá-lo-ia como um druida, não como um homem normal. Um dos seus guarda-costas, Breth ou Garth. Ou Faolan, mais provavelmente. Faolan tinha de merecer o seu salário e, para isso, o seu protegido tinha de estar em Caer Pridne para a assembleia, não ali, naquilo que o celta considerava ser, certamente, uma causa perdida. Faolan tinha a capacidade e a resistência para o seguir daquela maneira, para estar ali naquele momento. Spindrift parou e virou a cabeça na direcção do recém-chegado. Bridei chamou a si as forças que lhe restavam. Com ou sem arma, não se deixaria apanhar sem luta.

O cavaleiro apareceu: um jovem sardento, alto, de cabelos ruivos. As suas feições pouco atraentes estavam pálidas, totalmente exaustas. O cavalo tremia e revirava os olhos, como se estivesse no limiar da resistência.

- Gartnait! - exclamou Bridei; o seu amigo era a última pessoa que esperava ver ali. - Como é que, em nome dos deuses, me apanhaste?

- Digamos que dormi pouco - disse Gartnait, parando o seu cavalo ao lado do de Bridei. - Mudei de montada em Três Montanhas da Quinta e outra vez em Borda de Água. Que perseguição... Essa égua é rapidíssima. Bridei, pareces esgotado. O que é que...

- Por que vieste? - O tempo passava. Bridei não queria companhia; uma vez em Pitnochie, não sabia em que direcção seguir. - Por que me seguiste?

Gartnait franziu o sobrolho.

- Nem parece teu, Bridei, receber assim um amigo. Estava preocupado contigo. Um homem não sai assim da cama onde está doente e vai atrás sabe-se lá de quê sem dizer nada aos amigos, sabes? Especialmente se é pretendente ao trono. Em que estavas a pensar?

- Deves saber - disse Bridei. - Ferada sabia. O trono pode esperar; tenho de encontrar Tuala e o tempo escasseia. Se queres vir comigo, segue-me, mas não se trata de ir até Pitnochie e levá-la. Ela não vai estar lá, penso que deve ter ido para um sítio secreto, no bosque.

- Um sítio secreto - repetiu Gartnait, ao mesmo tempo que a égua recomeçava a andar e o seu cavalo a seguia. - Perigoso?

- Não do modo que pensas. É isolado.

- Nesse caso, vais precisar de um amigo. Não me agradeças por quase me ter matado para te conseguir apanhar.

- Obrigado - disse Bridei firmemente; o simples facto de ter que falar já lhe parecia uma pura perda de tempo e de energia. - Não havia necessidade.

Havia gente em Pitnochie, se bem que menos do que nos velhos tempos. No exterior do celeiro via-se uma pequena silhueta rodeada de algumas crianças e alguns cães: Fidich e as suas muletas, inspeccionando algumas ovelhas. Os guardas estavam na mudança de turno, um acontecimento inesperado e feliz.

- Mantém-te a coberto das árvores - disse Bridei a Gartnait. - Não faço ideia do que farão quando me virem, mas o tempo escasseia e eu tenho de ir ao Espelho Negro sem demora.

- O Espelho Negro? - perguntou Gartnait enquanto os dois levavam os cavalos para debaixo dos pinheiros, onde não poderiam ser vistos da casa nem do pátio.

- Um sítio onde tenho de ir. Um dos covis dos Boa Gente; um vale estreito onde, em tempos, aconteceu uma batalha terrível, os guerreiros de Fortriu foram massacrados por Celtas. Se ela veio para aqui, deve lá estar.

- Porquê? - perguntou Gartnait sem expressão. A sua voz parecia estranha.

- Ela costumava lá ir em busca de respostas, quando estava preocupada ou se sentia só. Existe lá uma lagoa escura, na qual algumas pessoas conseguem ver imagens... Tuala deve ter ido para lá.

- Hum - disse Gartnait, e continuaram em silêncio, mergulhando na floresta onde a luz do Sol só difusamente conseguia entrar. A folhagem estava molhada e o solo coberto por um manto espesso de folhas em decomposição, escuro, libertando um cheiro pungente sob os cascos dos cavalos. Um vapor frio rastejava por entre as árvores, junto às raízes entrelaçadas, subia e envolvia os troncos. Sob os ramos retorcidos, a bruma envolvia de tal modo o terreno que Bridei não via dois palmos diante do nariz. Finalmente, o jovem desmontou e seguiu com a mão no pescoço de Spindrift. Atrás de si, Gartnait fez

o mesmo.

- Aqui - disse Bridei. - É este o carreiro que vai dar ao Vale dos Que Caíram. - Naquele dia não havia pedras brancas. Não interessava; continuaria, com ou sem Boa Gente. Talvez ela estivesse um pouco mais à frente, a um grito de distância... Bridei não gritou. - É melhor deixarmos aqui os cavalos - disse ele a Gartnait. - Isto é muito estreito para eles. Se quiseres, podes vir.

- Bridei...

Bridei não esperou para ouvir o que o amigo tinha para lhe dizer. O jovem já descia a escorregar pelo carreiro precário, roçando com os braços pela vegetação e respirando com dificuldade. Algo se apoderara dele, uma sensação de urgência, como se uma voz o chamasse, como que desafiando-o: Aparece e luta connosco! Prova que és um homem! Mostra-nos do que és capaz! Bridei cerrou os dentes e continuou a descer. Tuala, Tuala... Nada mais lhe interessava. Sem ela, não conseguiria. Como era possível Broichan não compreender aquela evidência? E Faolan? E toda a gente? Tinha de a encontrar... Tinha de a impedir... Bridei praguejou quando algo lhe passou sob os pés, quase o fazendo tropeçar: um animal pequeno, cinzento, desaparecendo na floresta.

- Que Corvo Negro nos proteja! - exclamou Gartnait. - O que era aquilo?

O gato de Tuala, Mist; Mist rugindo aterrorizado, ou perseguindo o mesmo que ele.

- Depressa! - disse Bridei, apressando-se pelo carreiro abaixo na direcção da lagoa.

O jovem apercebeu-se imediatamente de que Tuala não estava no Espelho Negro. Talvez tivesse estado, mas naquele momento a lagoa estava sob as garras de um frio profundo e fechada num silêncio impenetrável; o frio era suficiente para fazer parar o coração e gelar a respiração. Bridei fez uma pausa junto da água escura, atento. Teria ela estado ali? Havia sinais no solo, marcas de botas pequenas e de patas de gato. Onde estava ela? Para onde tinha ido? Era quase noite. Como encontrá-la numa noite sem Lua?

- Lamento - disse Gartnait, mesmo por trás de si, ao mesmo tempo que as suas mãos se fechavam no seu pescoço e apertavam com força. Bridei cambaleou, sentindo o coração a bater com força e tentou libertar-se dos dedos que lhe apertavam a garganta, ao mesmo tempo que ouvia o ar a chiar-lhe nos pulmões. Quase, tão perto, e agora aquilo. Em nome dos deuses, o que era aquilo..? Gartnait tinha a vantagem do seu lado, era mais alto, estava mais forte... um torno em redor do seu pescoço... não conseguia respirar, estava tudo a escurecer... Donal, que faria Donal... Bridei fez força para a frente, desequilibrando-os aos dois. Um instante mais tarde, o jovem caía na água gelada do Espelho Negro e, sempre agarrado ao seu pescoço, Gartnait caía com ele.

Bridei sentiu-se sufocar. Sentindo-se sufocar, o jovem esbracejava, tentando sobreviver. A água era mais fria do que outra qualquer, mesmo em tempo de Inverno, estava a gelar-lhe o sangue nas veias. Gartnait, como nadador mais forte, estava a conseguir mantê-lo submerso... Não tinha tempo, não tinha tempo... Bridei continuou a lutar por tudo o que interessava realmente, pela lealdade de Brethe e pela bondade de Garth, pela amizade estranha e relutante de Faolan, pela lareira de Pitnochie e pelos estandartes que flutuavam sobre o carro de batalha de Galany's Reach, pelos olhos fortes e ferozes de Drust Touro, e pelo corpo torcido de um guerreiro tatuado... pela disciplina de Broichan e pelos longos anos de aprendizagem... até por aquilo, por Tuala... acima de tudo, por Tuala... Deuses, Gartnait era tão forte! Nunca se apercebera de quão forte...

- Porquê? - conseguiu dizer Bridei quando as mãos do seu adversário abrandaram por momentos o aperto. - Porquê?

O jovem não obteve resposta; vislumbrou apenas o rosto branco de Gartnait, os olhos cegos de fúria de Gartnait e depois as mãos a apertarem outra vez.

- Desculpa - disse Gartnait num sussurro entrecortado, mergulhando a cabeça de Bridei na água.

Estava a afogar-se... ia morrer... os pulmões doíam-lhe e tinha a cabeça cheia de visões emaranhadas e distorcidas... Algures, debaixo de água, Bridei ouviu um cão a ladrar...

Estava debaixo de terra, envolto pela escuridão, enroscado sobre si próprio como um bebé adormecido. Por cima de si, as raízes dos grandes carvalhos prosseguiam a sua lenta e minuciosa jornada através do solo em busca de nutrientes, enquanto em redor delas seguia uma miríade de criaturas minúsculas, escaravelhos, vermes, formigas e larvas... As suas pequenas escavações, as suas câmaras minúsculas, corredores e armazéns minavam o subsolo, um mundo invisível por baixo da encosta arborizada, da extensão relvada, do paul coberto de urze... Estava soterrado... encurralado... Tuala...

- Esquece o corpo, confia na tua mente. - Bridei ouviu a voz de Broichan, profunda e forte. - Aplica o que aprendeste.

- Está tudo bem, Bridei - disse a voz límpida de Tuala, fazendo-o quase chorar. - Tu és capaz.

Pensar... Pensar na Mãe de Tudo, em cujos braços estava aninhado, nos quais todos se aninhariam mais tarde ou mais cedo, fosse o rei de Fortriu, uma criança abandonada, a grande águia ou o mais pequeno dos animais subterrâneos. A deusa recebia-os a todos; a todos concedia um determinado espaço de tempo, uma determinada oportunidade. Quando achava que era suficiente, tinha início o sono eterno. Porém, para ele, a hora ainda não chegara. Mãe de Tudo, em cujo colo estava a descansar, são e salvo, aconchegado... aconchegado, finalmente... As suas mãos eram fortes, os braços compridos, desde os vales ocidentais à praia da fortaleza do rei, desde os montes arredondados de Circinn aos picos áridos do noroeste... A única; o seu amor existia em cada canto do grande reino de Fortriu, que precisava dele...

Não vou pedir para viver, rezou Bridei em silêncio. Entrego-me nas tuas mãos. Deixa-me encontrá-la. Estou deciddido a seguir em frente; deciddido a liderar. Não faço concessões. Não sou louco ao ponto de me atrever a pôr à prova a boa vontade dos deuses. Amo. Confio. Deixa-me seguir em frente...

Bridei sentiu a água à sua volta e animais estranhos e maravilhosos a nadar, bolas coloridas com membros delgados; peixes gordos e atarracados com olhos protuberantes; ou compridos, delgados e guarnecidos de espinhos; um ser parecido com um monstro das ilhas e um pequeno cão branco com cauda de salmão. Todos eles nadavam em círculos à sua volta numa dança flamante, por cima, por baixo, em redor, deslumbrando-lhe os olhos e seduzindo-lhe os sentidos. O jovem não via Gartnait. O seu amigo não parecia tê-lo seguido para aquele reino. Porém, havia mais alguém presente. Na superfície, por cima de si, nadava uma rapariga, lutando para se manter a flutuar ao mesmo tempo que o pesado vestido cinzento a arrastava para o fundo. Os seus pés pequenos e pálidos davam pontapés cada vez mais fracos à medida que o frio e o cansaço lhe tiravam as forças. Os seus braços moviam-se debilmente na água... a rapariga estava a afundar-se, a afogar-se... Uma grande mão surgiu vinda de cima e empurrou-lhe a cabeça ainda mais... os seus olhos arregalaram-se... os cabelos escuros flutuavam-lhe em redor das feições como um conjunto de algas graciosas...

Não! gritou Bridei, mas a água transformou-lhe as palavras em bolhas inúteis. O jovem deu um safanão com os pés e esticou os braços. Ela estava ali, ali mesmo, a duas braçadas de distância, podia salvá-la... O seu pé estava preso, não podia mover-se... Bridei olhou para baixo lentamente por causa do peso da água. Algo o estava a prender, um conjunto de algas emaranhadas, um pedaço de rede, um pedaço de corda... Tuala! gritou ele, e as bolhas de ar subiram para rebentar junto do seu rosto a afogar-se. Tuala!

- Põe em prática o que te ensinamos - disse a voz do careca e gordo Erip. - Água. Marés. Fluxo e refluxo.

Fluxo e refluxo... A Que Brilha... Bridei fechou os olhos, imaginou a forma cheia, redonda e majestosa da deusa, tal como a vira no Solstício de Inverno, olhando placidamente para os campos de Pitnochie. Tão encantadora, tão boa, tão sábia. A Que Brilha não deixaria a sua filha partir daquela maneira, cruelmente; não lhe cortaria o caminho tão cedo. Amei-a como bebé, disse ele, e as bolhas transportaram as suas palavras silenciosas em direcção à luz. Amei-a como rapariga pequena, Amei-a como amiga do coração. Amo-a como mulher e amo-a como tua filha.

- Olha em volta - sussurrou-lhe ao ouvido a voz de Wid.

Observa, rapaz, observa...

Peixes rápidos como flechas, algas à deriva, rochas escuras no fundo, lama macia... ali, junto do seu pé, enrolada em redor da sua bota, uma corda, um cordão, prendendo-o... Bridei estendeu um braço, agarrou e puxou... O pequeno cordão ficou-lhe na mão e o jovem nadou para a superfície. Já podia alcançá-la... Onde estava Tuala? Para onde a tinham levado?... Algures, acima da superfície, ladrava um cão...

Bridei atingiu a superfície e sentiu o calor, viu o brilho da luz enquanto os seus pés pisavam solo firme. O cão estava ali, sem cauda de peixe, com quatro pernas, branco e hirsuto, na sua frente como que a guardá-lo, com uma voz demasiado grossa para um tamanho tão diminuto. Bridei já o tinha visto antes numa visão, muito tempo antes, velando um guerreiro caído no campo de batalha. À sua volta, o fogo rodopiava, tremeluzia, pulsando grandes ondas de calor. Era como se estivesse a rugir no interior do coração da Guardiã das Chamas. Tuala. Para onde tinha ela ido? Para o interior do fogo? Para lá do espaço e do tempo, numa jornada que ele não podia partilhar? Não podia ser. Ele era Bridei, filho de Maelchon, criado em casa de um druida, destinado a ser o líder de Fortriu, não permitiria que a levassem. O jovem encheu os pulmões de ar, lentamente, metodicamente, como Broichan lhe ensinara. Em seguida, olhou para o pequeno cão e o cão olhou para ele. Então, como um só, entraram no fogo.

Não era exactamente dor; era como se estivesse a despir a pele, a carne, as veias, os músculos, os ossos... a mente, o coração... tudo consumido no calor branco da purificação, tudo sacrificado à vontade dos deuses... salvo uma única coisa, a essência, a coragem, o espírito que existia bem fundo em cada filho de Fortriu, em cada filha, tornando-os irmãos de sangue para sempre... O núcleo, a semente, o âmago, que os faria continuar, sempre. Fossem quais fossem as perdas, fosse qual fosse a dor, aquela força assegurava que nunca seriam derrotados... Fortriu, arquejou Bridei, ao mesmo tempo que as chamas o crestavam. Fortriu... e sentiu o pulsar do fogo como se o seu peito fosse um tambor de guerra e fosse o deus a bater nele com força, soando como um furioso desafio. Fortriu! Fortriu!

A sua boca estava aberta e os maxilares frouxos. Havia gravetos e folhas em frente do seu rosto. Bridei tinha frio. As suas roupas estavam encharcadas e alguém lhe fazia pressão nos flancos com mãos cruéis, apertando-o ritmicamente, magoando-o, deuses, como estavam a magoá-lo, por que não paravam, não sabiam que já estava morto, três vezes morto, ou quatro?... Um líquido amargo subiu-lhe à garganta, saiu-lhe pela boca e sentiu-se sufocar:

- Chega, Gartnait... já chega...

A pressão cessou. Um par de mãos apertou-lhe os ombros, virando-o de lado. Então, alguém tentou tirar-lhe as roupas, a túnica, a capa que ainda parecia estar a usar. Alguém dizia:

- Raios te partam, Bridei, ajuda-me um pouco, sim? Tirar isto, depressa, e isto... Se eu acreditasse em deuses, estaria agora a agradecer-lhes, homem...

A voz tinha um sotaque Gaélico, não pertencia certamente a Gartnait. Bridei viu-se subitamente apoiado nos cotovelos e a olhar para um céu onde o Sol se estava a pôr. Um pequeno cão lambia-lhe o rosto com grande entusiasmo. Um cão a sério, de carne e osso. Tê-lo-ia libertado da sua longa velada? Cem anos de espera...

Bridei tentou sentar-se. Uma túnica seca foi-lhe metida pela cabeça abaixo, quente, seca, contra a pele fria e húmida. Um momento mais tarde, alguém lhe pôs pelos ombros uma capa de lã e o jovem agarrou-se a ela. Quem teria sonhado que uma coisa tão simples poderia ser o melhor dos presentes? Bridei virou a cabeça.

- Não olhes para ali - disse Faolan, que estava de ceroulas. Está lá um homem morto.

Bridei olhou; na orla do Espelho Negro estava Gartnait deitado de costas, com os cabelos ruivos quase dentro de água e os olhos abertos.

- Não consegui salvá-lo - disse Faolan. -Já estava morto quando o pesquei. Quanto a ti, ainda és mais louco do que eu pensava. Que raio aconteceu aqui?

Bridei não respondeu. O jovem estava a olhar para o pequeno objecto que tinha na mão, um talismã feito com dois fios de corda, unidos num padrão complicado.

- Tuala... - suspirou ele. - Onde está Tuala? Viste-a? Ela está aqui? - Os olhos do jovem perscrutaram as rochas, a margem, o carreiro cheio de erva, a superfície escura da água.

- Nem sinal. Apenas aqui o nosso amigo e tu, a flutuar. E o cão. Foi ele que te tirou da água. Para onde é que ele foi? - perguntou Faolan perscrutando a paisagem envolvente. - Não interessa - disse ele. - Os cavalos não estão longe; temos de te aquecer antes que seja noite. Não tenciono perder a minha bolsa de prata só porque decidiste dar um mergulho no Solstício de Inverno.

- Tuala - disse Bridei, brincando com o talismã, como se aquela actividade o pudesse ajudar. - Tuala... tenho de a encontrar... mas onde? Para onde a levaram?

- Bridei - disse Faolan em tom calmo e amável, como se estivesse a falar com uma criança - Gartnait está morto. Tu quase te afogaste e eu acabo de te dar a maior parte da minha roupa. É quase noite. Temos de ir para Pitnochie. Agora. Os cavalos estão à espera. Vamos.

No alto do carreiro o cão ladrou, alto e aflitivamente.

- Temos de te tirar deste ar gelado, depressa. Vamos embora, Bridei. Encosta-te a mim.

- Ar - disse Bridei. - Terra, água, fogo... e ar. O ar é o teste final. Ar, asas, voo... a águia... voando, caindo... oh, deuses... - O jovem pôs-se em pé de um salto e correu na direcção do carreiro e Faolan, praguejando, seguiu-o.

- Mais alto! Mais alto! - diziam as vozes à sua volta, agudas, inevitáveis. - Sobe! Sobe! - Estava tão escuro que mal conseguia ver o chão que pisava. Doíam-lhe as mãos e os pés mal conseguiam transportá-la. Porém, algo a forçava a avançar, uma força grande demais, a que não conseguia resistir. Estava na hora de passar para o outro lado. Estava na hora de deixar as coisas más para trás.

Em criança, escalara Cicatriz de Águia sem pensar duas vezes, tão ágil como uma marta, mas agora era diferente. Os seus pés escorregavam, fazendo-lhe vibrar o corpo; as mãos estavam escorregadias por causa do sangue, não se podia agarrar às rochas com elas; o peito doía-lhe, de tanto arfar, tal como os maxilares, de tanto cerrar os dentes. Onde estavam Madressilva e Teia? Por que não tinham aparecido, como prometido, para a ajudar? Não havia sinal deles; apenas as vozes, cantando, chamando, estridentes, fazendo-lhe doer os ossos do crânio. Para cima, sempre para cima: um passo hesitante, um apoio frágil, a respiração entrecortada. Não tinha outra hipótese; tinha de continuar.

Finalmente, Tuala atingiu a laje de pedra no topo da Cicatriz, o sítio onde duas crianças se sentavam lado a lado no Verão, partilhando uma refeição frugal na companhia silenciosa uma da outra. O Verão... aquele tempo soalheiro, aquela felicidade simples que parecia agora uma coisa de sonhos, uma coisa desaparecida havia muito, que estava muito longe, inalcançável. Tuala deixou-se cair. As suas pernas estavam demasiado cansadas, não podiam continuar.

- Para cima! Para cima! - gritaram as vozes. - Mais alto! Mais alto! Não havia mais nenhum sítio para onde ir. Mais nenhum senão para o pequeno pináculo rochoso onde estivera, em criança, girando, girando ao vento, enquanto Bridei fingia não ter medo que ela caísse.

- Para cima! Para cima!

A jovem fez um último esforço e subiu para o ponto mais alto da rocha. Tão pequeno; não se lembrava de ser tão pequeno, ou tão alto. Por baixo de si, a Cicatriz caía na direcção da escuridão. Por cima, os últimos vestígios de luz do dia sobressaíam num céu sombrio, da cor do sono, da cor dos olhos da Mãe de Tudo.

- Ahhh... - suspiraram as vozes, ao mesmo tempo que Tuala permanecia equilibrada, a tremer de frio, com os braços cruzados, tentando aquecer. - Agora... chegou a hora... Anda... Avança...

- Avança? Para onde? Os dedos da jovem agarraram-se ao tecido da capa; os seus pés moveram-se ligeiramente na superfície molhada da rocha. Tuala nunca tivera medo das alturas; na verdade, nunca compreendera a razão de um tal medo. Naquele momento, porém, ao olhar para baixo, para o abismo sombrio, sentiu um nó no estômago e uma forte dor de cabeça. Avança... Que queriam eles dizer com aquilo?

- Agora, Tuala! - disse a voz de Teia, delicada mas insistente, não um convite, antes uma ordem. - Sabes que és capaz. Faz o que fizeste por nós em Banmerren. Fecha os olhos, estende os braços e voa! Voa, minha irmã, vem ter connosco! Esquece o cansaço! Deixa a dor e a tristeza para trás! Agora, Tuala, agora!

- Não tinha importância, pensou vagamente Tuala. Quem se importaria se ela caísse? O mundo continuaria na mesma, quer se transformasse na coruja da sua imaginação, voando no céu nocturno, atravessando a fronteira invisível da terra dos sonhos, quer caísse nas rochas no fundo do abismo, não passaria de mais uma coisa quebrada, estatelada. Acontecesse o que acontecesse, Bridei continuaria sem ela. Mais tarde, dir-lhe-iam, ele derramaria uma lágrima ou duas e esquecê-la-ia. Bridei ia ser rei; não teria tempo para pequenas tristezas. Tuala respirou fundo, fechou os olhos com força e abriu os braços.

Algo lhe roçou os tornozelos, suave, como uma pena, mas insistente e real, desequilibrando-a.

- Ah! - disse ela, vacilando em cima da rocha. Tuala abriu os olhos e procurou equilibrar-se. Ao mesmo tempo, Mist saltava-lhe para os braços e arranhava-lhe as mãos. A dor foi pior do que tudo, como que o último golpe, a última traição por parte dos que amara e em quem confiara. Mist agarrou-se; as suas garras penetraram mais ainda. Deuses, como doía...

- Agora, Tuala! - gritaram as vozes. - Agora, agora! Voa!

A jovem não conseguia mexer-se. Imóvel, gelada, com o vento nocturno a sacudir-lhe a capa, os pés escorregando na rocha e as garras do gato penetrando-lhe nas palmas das mãos, Tuala descobriu a verdade. A jovem sentia; a dor, a tristeza, o medo de cair, o terror do desconhecido; conseguia sentir aquilo e também o outro lado: a lareira, os festins de pão de aveia e de maçãs secas, o riso retorcido dos anciãos e o sorriso de Bridei... Bridei... As carícias de Bridei... o beijo de Bridei... Tuala apertou com mais firmeza o corpo quente do gato e aconchegou-o ao peito. A jovem adorava aquilo. A dor, o medo, a sabedoria e a alegria faziam parte dela, significavam que estava viva, significavam que era humana. Fosse o que fosse, viesse de onde viesse, pertencia àquele mundo, não ao outro.

- Então, Tuala? - gritou Teia, e Tuala pensou que era capaz de discernir, na orla da sua visão, o vislumbre de um brilho que não era daquele mundo, um raio colorido; a jovem ouvia pedaços de uma música maravilhosa, uma canção, parecida com as que faziam doer o coração. A jovem pensou sentir um aroma doce no ar, como quando os perfumes das flores de Primavera se misturavam, atravessando os prados do Vale nas asas da brisa. As coisas boas estavam ali, antes da fronteira... Que tolice deitar tudo fora só porque... só porque...

- Vem, Tuala - chamou Madressilva num tom mais baixo, gentil, sedutor, quente, cheio de promessas. - Um único passo, mais nada. Sabes que é melhor para ele, que é melhor para ambos... Vem para casa, querida irmã...

Tuala fechou os olhos. Mist... Não podia levar Mist consigo. A jovem pousou o gato no solo, a seus pés, endireitou-se e abriu mais uma vez os braços.

- Óptimo, óptimo - murmurou Madressilva. - Fecha os olhos e segura na minha mão...

Tuala!

O coração da jovem desatou a bater; a cabeça doeu-lhe. As lágrimas cegaram-na.

Tuala, não me abandones! A-mo-te!

A voz do jovem chegou-lhe distorcida pelo terror, mas Tuala percebeu instantaneamente. Bridei estava ali. Afinal, não a abandonara. A jovem virou a cabeça e perscrutou a escuridão. O vento fustigou-lhe a roupa, insistentemente, com força. Tuala vacilou. Cair naquele momento, quando o milagre acontecia, seria demasiado cruel...

- Agarra a minha mão. - Aquela voz não era de Madressilva, era de um estranho estendendo-lhe o braço, agarrando-lhe as duas mãos, ajudando-a a descer do pináculo para a segurança relativa da rocha plana. As mãos do homem eram quentes e fortes; Tuala agarrou-se a elas com o corpo a tremer. Quando encontrou a própria voz, começou a soluçar como uma criança aterrorizada.

- Bridei? - disse ela.

O outro homem deu um passo atrás e lá estava Bridei abraçando-a, o seu coração batendo de encontro às suas faces, os seus lábios de encontro aos seus cabelos. Bridei arquejava, talvez estivesse a chorar; a jovem sentiu-o estremecer, desesperado. O seu abraço foi igual; as sensações que a percorriam eram fortes demais, não tinham nome, não faziam sentido. Tudo o que interessava era que estava viva e que ele estava ali. Tuala enterrou o rosto na túnica de Bridei, sentiu as mãos do jovem nos cabelos e ouviu-o sussurrar num tom que nunca utilizara antes:

- Tuala... Tuala...

Apesar de áspero e irregular, soava como uma oração. Após alguns momentos, o outro homem tossiu.

- Bridei - disse ele, e Tuala apercebeu-se de que Bridei estava gelado e que o outro homem não tinha nem túnica, nem jaqueta, nem capa para o proteger do frio daquela noite de Solstício. Estranhamente, aos pés de Bridei estava sentado um cão pequeno, muito educado. - Temos de ir - continuou o estranho. - A tua dama está em tão mau estado como tu. Agradeço aos meus patrões por me terem contratado para te proteger apenas a ti porque só de pensar em ter que aquecer os dois deixa-me um pouco atarantado. Toca a andar para os cavalos imediatamente. Precisamos de uma lareira e de roupas secas. Sois capaz de descer?

Tuala sentiu que o estranho estava a falar com ela. A jovem abriu a boca para dizer que sim, era evidente que sim, mas quando tentou pôr um pé à frente do outro, começou tudo a girar e só o braço de Bridei a impediu de cair. Mist já tinha descido; o pequeno cão branco continuava pacientemente sentado com os olhos fixos em Bridei. A sua silhueta pálida parecia, na escuridão, a luz difusa de um farol.

- Eu... - começou a dizer Bridei, mas o seu companheiro cortou-lhe a palavra pegando em Tuala ao colo e iniciando a descida.

- Tu não vais fazer nada. Aqui, quem manda sou eu, pelo menos até regressarmos a Caer Pridne. Toca a andar para os cavalos e deixa a dama comigo. Terás muito tempo quando chegarmos a Pitnochie. Anda lá, Bridei, estás exausto, embora te esforces por mostrar que não. Ninguém espera que exibas a força da própria Guardiã das Chamas. Pelo menos por enquanto.

- Pitnochie... - murmurou Tuala ao colo do estranho. - Não está lá ninguém... tudo fechado...

- Agora já está - disse o homem. - E há-de haver uma lareira acesa, comida e camas quentes. Deixai tudo connosco, minha senhora. Dentro em pouco estareis em segurança.

Tuala fechou os olhos, submetendo-se ao luxo inimaginável de não ter de tomar decisões. No fundo do carreiro estavam três cavalos à espera.

- Laciry - murmurou Tuala, sorrindo ao ver o familiar pêlo malhado e as formas angulosas do velho amigo de Donal.

- É verdade, Laciry - disse o homem que a transportava, erguendo-a para cima de uma égua branca, um animal encantador que se manteve imóvel enquanto Bridei era ajudado a montar, os seus braços rodeavam a cintura de Tuala, puxando-a para si e o outro saltava para cima de Luciry, segurando nas rédeas do terceiro cavalo.

- E...? - perguntou o outro homem, olhando de relance para Bridei.

- Amanhã de manhã. Mando cá uns homens buscá-lo. Temos de levar Tuala imediatamente, ela está completamente gelada e também está ferida.

- Para não falar de ti próprio, que quase te afogaste e que tens um golpe na cabeça. Vamos, então, mas com cuidado; está escuro como breu.

O animal que a transportava e a Bridei parecia pertencer mais ao outro mundo, pensou Tuala enquanto desciam vagarosamente, ao mundo cuja música e luz, cujas maravilhas e segredos vislumbrara apenas por um momento, antes de o poder do seu próprio mundo a ter feito recuar. A jovem continuava a ouvir as vozes, não iradas, desapontadas ou acusatórias, como seria de esperar, antes cantando uma canção de reconhecimento e despedida, uma espécie de saudação na qual não se ouvia outra coisa senão o seu nome e o dele e uma melodia sem palavras.

Afinal de contas, a noite não estava tão sombria que não conseguissem encontrar o caminho de Pitnochie. O pequeno cão trotava na frente, silencioso. A sua silhueta pendular parecia transportar consigo a sua própria luz, guiando os cavaleiros com segurança até eles atingirem a orla da floresta e verem, mais abaixo, os archotes, os guardas e a casa de Broichan à sombra dos carvalhos, com o seu telhado de colmo e o fumo a sair pela chaminé. Não havia neve nos degraus; não havia ferrolho de ferro na porta. Quando se aproximaram da entrada, a porta abriu-se de par em par e a luz quente saiu na sua direcção, acompanhada por vozes e pelos latidos excitados dos três cães de Pitnochie. O pequeno cão não fugiu, ficou entre o cavalo branco e o perigo, decidido. Então, quando Bridei deslizou da égua e pegou em Tuala, uma forma escura apareceu à porta, a sua silhueta recortada pela luz dourada da lareira e da candeia acolhedora. Broichan observou em silêncio o seu filho adoptivo pegar em Tuala ao colo, transportá-la através da soleira e entrar em casa.

O calor, o barulho e os odores fizeram andar à roda a cabeça de Tuala; abruptamente, a jovem tomava consciência da sua exaustão, das dores em todo o corpo, da necessidade urgente de beber água. À sua volta, a confusão era total; a única certeza era os braços de Bridei, segurando-a enquanto a levava para o salão e a sentava num banco como se fosse uma cesta de ovos, cuidadosamente. De Broichan, a jovem não ouviu um único som.

- Cinioch, acompanha Brenna à cabana e traz roupa seca para Tuala, aqui não há nada suficientemente pequeno. Mara, precisamos de água quente, ela está gelada. Também precisamos de algumas coisas aqui para Faolan, ele deu-me a roupa quase toda dele...

Olhando em volta, Tuala viu que a casa estava enfeitada para aquela época do ano. Havia grinaldas por cima das janelas e das portas, folhas luxuriantes e bagas escarlates; junto da lareira um grande tronco, pronto para a cerimónia e para o reacendimento das outras lareiras da casa. Um aroma rico, a carne assada e a pudim de frutos vinha da cozinha; era evidente que sempre tinha havido gente em casa e nos pátios em redor, preparando o ritual. O celeiro vazio, os campos desertos, as janelas fechadas tinham sido um truque, uma visão, para a afastar de Pitnochie e encaminhá-la para o Espelho Negro. Teria sido obra de Teia e Madressilva? Por que teriam sido tão cruéis? A não ser que tivesse sido tudo um truque, a adulação, a sedução, a longa e solitária viagem. Talvez tivesse sido um teste... um teste de lealdade...

- Bridei - estava a dizer Faolan - deixa-te disso, sim? Tu é que precisas de roupas secas e água quente.

- Tem razão - disse Broichan, finalmente, acordando o velho medo de Tuala. O druida desprezava-a; não a queria ali. Nada mudara. A jovem enterrou o rosto no peito de Bridei odiando a sua própria fraqueza e sentiu os braços dele em seu redor, apertando-a enquanto se sentava no banco a seu lado. - Não sei o que se passou, mas a minha casa providenciará calor e abrigo a todos - disse o druida. As mulheres tratam de Tuala. Quanto a ti, Bridei, fazeres uma viagem destas no teu estado não foi um acto nada racional. Tu não estás bem. Tens de comer, beber e descansar. Deixa as decisões para os outros, pelo menos por agora. Amanhã temos muito tempo para pôr a conversa em dia.

Bridei não se mexeu.

- Estou a falar a sério, Bridei. Mara trata de Tuala. Podes descansar e recuperar.

- Eu já não sou nenhuma criança. - A voz de Bridei era fria, controlada: a voz de um homem, de um líder. No salão, o silêncio foi total.

- Temos umas contas para ajustar que não podem esperar. Mara! Deixo Tuala ao teu cuidado e ao de Brenna, por agora. Faolan, quero que fiques tão perto delas quanto o permita a decência. Que nem um só cabelo dela sofra, que não seja pronunciada uma única palavra desagradável na sua presença. Que todos saibam que, dentro de sete dias, me apresentarei como pretendente ao trono de Fortriu. A partir deste momento, Tuala está sob a minha protecção. Tratá-la-eis com cortesia, respeito e amor. Devíeis sentir vergonha por eu precisar de vos dizer isto. - Os seus braços largaram gentilmente a jovem, mas a mão de Tuala continuou na sua. A jovem viu um círculo de rostos surpreendidos, salvo o de Mara; Mara já estava a colocar uma pilha de roupa a aquecer à lareira e a espantar os cães - quatro. A governanta olhou para a figura impassível de Faolan.

- E este, quem é? - perguntou ela. - Nesta casa nunca houve lugar para celtas e não vejo por que há-de ser diferente a partir de agora. - Faolan é meu amigo - disse simplesmente Bridei. - Faolan trata dos meus assuntos. Podes confiar nele. E agora...

Libertando a mão de Tuala, o jovem sorriu-lhe docemente.

- Não me demoro - murmurou ele. Em seguida, Bridei atravessou o salão na direcção de Broichan. O esforço foi impressionante; Tuala, retendo a respiração, apercebeu-se da dificuldade que o jovem tinha em caminhar firmemente e com as costas direitas. Doente? Doente de quê? Teria Faolan falado realmente de um golpe na cabeça?

- Vem - disse Bridei ao seu pai adoptivo e os dois homens dirigiram-se para os aposentos privados de Broichan. A porta fechou-se.

- Diz-me - pediu Tuala ao celta, enquanto a actividade recomeçava, frenética, à sua volta. - Que se passa com ele? Que aconteceu?

- Banho primeiro, perguntas depois - disse Mara com voz cortante, ao mesmo tempo que o barulho de potes vindo da cozinha indicava que Ferat regressara para preparar a festa do Solstício. - E não só não gostamos de ter celtas vendo mulheres a despirem-se no meu salão, como, em tais ocasiões, não gostamos de ter qualquer espécie de homens. Toca a andar daqui para fora! Uven, leva este tipo aos alojamentos dos homens e arranja-lhe qualquer coisa para vestir, parece um rato meio afogado. O que é que andaram a fazer? A pescar serpentes do lago? Toca a andar!

- Ouviste o que ele disse. - O tom de Faolan era neutro.

- Ouvi e não é necessário. Eu sei muito bem o que está certo e o que não está, sempre soube. É um insulto o rapaz pensar que não pode confiar em mim.

- As coisas mudaram - disse o celta. - Terás que te habituar.

- Talvez não tenham mudado assim tanto - resmungou Mara, olhando para a porta interior. - Toca a andar, todos. Não quero homens aqui; só quando eu disser. Que Corvo Negro nos salve, Tuala, que andaste a fazer? Estás mais magra do que uma galinha depenada e quanto às botas... Brenna, ajuda-me aqui, sim? Cinioch que vá buscar a roupa. Ferat! Essa água quente, vem ou não vem?

Tuala olhou de relance para o celta que continuava plantado no meio do salão, impassível e de braços cruzados.

- Não te preocupes - disse-lhe ela. - Podes ir. Eu fico bem. E obrigada. Pareces ser um amigo leal de Bridei.

Faolan acenou com a cabeça. Sem dizer nada, o espião girou nos calcanhares e seguiu Uven.

- Não se pode ensinar boas maneiras a um celta - observou Mara. - E de onde é que veio aquilo? - O pequeno cão tinha-se desembaraçado dos cães grandes e estava agora aos pés de Tuala, olhando para ela com olhos brilhantes.

- De muito longe - disse Tuala, lembrando-se das visões no Espelho Negro, suas e de Bridei. - De muito, muito longe. Creio que Bridei o libertou de uma obrigação terrível.

- Hum - disse Mara, enquanto Ferat e os seus assistentes apareciam com um grande panelão de água quente e alguns jarros. Ouvem-se latidos de cão no bosque, todas as noites. Dizem que duram há cem anos. - A governanta olhou duvidosamente para o animal.

- Penso que ele não volta a latir - disse Tuala. - Penso que, finalmente, chegou a casa.

 

                                   CAPÍTULO DEZOITO

- Não te vou perguntar - disse Bridei -, porque razão a mandaste embora outra vez de Pitnochie, nem por que razão lhe quiseste arranjar um casamento enquanto eu estive fora. Não te vou perguntar por que razão, quando soubeste que ela tinha fugido, não utilizaste todos os meios para a encontrar. Não precisas de me dizer por que não me disseste que ela se tinha perdido; por que razão me mentiste. Nunca compreendi por que razão não gostas de Tuala. Para mim, é evidente que ela tem a bênção da Que Brilha, que percorre um caminho de luz e que só nos pode trazer o bem. Tu és o druida do rei. Os deuses estão-te no coração e o seu conhecimento corre-te no sangue. Tudo o que sei, aprendi contigo! Não compreendo como nunca conseguiste reconhecer a verdade acerca de Tuala. Para mim, é um mistério. Desapontaste-me, Broichan, e acordaste em mim desconfianças perturbadoras. Pergunto a mim próprio se te terás realmente apercebido de que já não sou uma criança, que me transformei num homem. Pergunto a mim próprio se não reconhecerás que um homem que mais tarde ou mais cedo vai ser rei é capaz de pensar por si mesmo.

- Senta-te, Bridei.

Recusar seria infantil; além do mais, o senso comum dizia a Bridei que as suas pernas não aguentariam muito mais tempo. Era evidente que o sucesso da sua missão, desde a cavalgada terrível até Cicatriz de Águia até ao momento em que tivera Tuala nos braços, se devera à notável Spindrift e, no fim, a Faolan. Bridei sabia que estava fraco e exausto. No entanto, fora treinado para se controlar, e treinado pelo melhor. Naquele momento, o que tinha pela frente era um desafio e não tencionava perdê-lo.

- Muito bem - disse Broichan, sentando-se à mesa em frente do jovem e deitando hidromel em duas canecas. - Espero que me ouças, apesar dessa tua conversa de não procurar explicações.

- Não quero nenhuma. Nenhuma fará sentido. Ela estava ao nosso cuidado; foi-nos confiada pela deusa. Sabias o que ela significava para mim. Com as tuas maquinações, com a tua inacção, fizeste com que Tuala quase se tivesse perdido para sempre. Provocaste-lhe desgosto e dor. Se estás à espera de perdão, vais ficar desapontado. Se estás à espera de compreensão, és louco.

Broichan suspirou.

- Bridei - disse ele -, tens sete dias até à assembleia. As tuas palavras anteriores dizem-me que não esqueceste esse facto, se bem que as tuas acções impetuosas sugiram que perdeste algum do seu significado. Sete dias, Bridei. Estamos no Inverno. Drust, o javali, já deve estar em Caer Pridne a seduzir, a bajular, a subornar, virando os homens contra ti, reunindo apoios para a sua causa. A cada dia que passas fora da corte, a influência do teu oponente aumenta. A eleição não espera por nós. Tens de regressar a Caer Pridne o mais depressa possível. Tens de estar lá, ser visto e ouvido, trabalhar os corações e as mentes que ainda podem ser trabalhados. Vir para aqui foi uma loucura. Ficar aqui mais tempo do que o necessário pode ser a morte das nossas esperanças. A morte do futuro de Fortriu.

Bridei ficou silencioso durante alguns momentos a olhar para as mãos, descontraídas em cima da mesa. O jovem não tocou no hidromel.

- Um exagero - disse ele. - Há mais candidatos com valor.

- Isso é pouco sincero da tua parte, Bridei. Carnach fará a tua apresentação como substituto, não em seu nome. É minha opinião, e dos meus amigos, que o único pretendente, para além de ti, será Drust, o Javali. Ambos sabemos, sabemos todos, que tu és o candidato da Guardiã das Chamas. Esta situação está a ser preparada há quinze anos; o seu planeamento é muito anterior. O país precisa de ti. O povo de Fortriu precisa de ti. Reconheço que precisas de algum tempo de descanso, para recuperares as tuas forças, Um dia, dois, não mais. Depois, temos de regressar à corte.

Bridei não disse nada.

Broichan tamborilou com os dedos na mesa. A sua expressão não mudou.

- Temos a questão de Tuala. Compreendo a tua posição. Dou-te a minha palavra de que poderá ficar aqui o tempo que for necessário. Quanto ao futuro dela, acho que não é altura de pensarmos nisso. Ela teria feito melhor se tivesse ficado em Banmerren, onde tinha um lugar. A sua fuga fez-nos perder um tempo precioso. Não interessa; Tuala pode esperar. Depois da assembleia, quando fores rei, trataremos do assunto.

- Não tenciono perdê-la de vista - disse Bridei.

- Ela não pode ir para a corte connosco. - O tom de Broichan era brusco. - Tuala não será aceite. Bastará um olhar para toda a gente ver que tem sangue dos Boa Gente. Que pensarão os votantes de Circinn? Até os nossos a vêem com desconfiança. Por que imaginas que ela teve de sair de Pitnochie?

- Penso - disse Bridei lentamente, pesando cada palavra - que essa desconfiança só existe se a permitirmos. A tua gente ama-te e respeita-te. Teria bastado uma palavra ou duas da tua parte para que essa desconfiança tivesse desaparecido. Em vez disso, mandaste-a embora. Roubaste-lhe o único lar que ela alguma vez conheceu. As tuas preocupações não têm qualquer valor para mim. Não regresso a Caer Pridne sem Tuala.

Seguiu-se um curto silêncio.

- Lamento, Bridei. Compreendo os laços que existem entre vós e sei que as qualidades de Tuala são admiráveis: inteligência, subtileza, lealdade e encanto físico, que pode fazer com que um homem jovem esqueça o que é correcto na escolha de uma... parceira. - Broichan disse a última palavra com evidente repugnância. - Deixa-me ser franco contigo. Não sei qual é o papel que tencionas dar à rapariga na corte e sei que não vai ser o de irmã. Talvez se possa arranjar alguma coisa. Podia arranjar-se um alojamento, não em Caer Pridne abertamente, mas...

- Chega. - Bridei manteve a voz controlada apesar da fúria que sentia. - É evidente que não me fiz entender. O que eu quis dizer é que me vou casar com Tuala e com mais ninguém. O assunto está fora de discussão. A minha decisão está tomada.

- Oh, Bridei - suspirou Broichan. - Ainda és tão novo, tens o futuro pela frente, cheio de oportunidades. Esta não é, certamente, uma delas, filho. Um rei de Fortriu não casa com uma filha dos Boa Gente. Ficas sujeito ao ridículo, acorrentado, coxo. A influência dela pode tornar o teu percurso perigosamente imprevisível. Não podemos permitir isso.

- Podemos? - Bridei respirou fundo, manteve as mãos imóveis e uma expressão calma.

- Os teus conselheiros. Se bem que nunca diga nada abertamente, Talorgen sempre esperou que fosse possível uma aliança entre ti e a filha dele. Ela é perfeitamente apropriada: é inteligente, tem apresentação, não é feia é de sangue real. Além disso, é irmã do teu melhor amigo.

- Eu respeito e admiro Ferada. Sempre admirei, mas não tenciono casar com ela. - Bridei viu Gartnait afogado, com os olhos vazios virados para o céu e estremeceu.

- Aniel - continuou Broichan - sugeriu a refém real, Ana. Ana é muito bela e, aparentemente, um modelo de amabilidade e cortesia. Seria uma excelente escolha. Mas há mais. Bridei, eu compreendo que um jovem está sempre sujeito a impulsos fortes, a paixões que a Guardiã das Chamas desperta. Não tenho dúvidas de que chegou a altura de arranjares uma esposa.

- Mas não Tuala.

- Certamente que não. O facto de teres pensado, sequer, nessa possibilidade, significa que estás a troçar da tua educação.

- Estou a ver. A decisão de não a escolher não significa que estou a troçar da Que Brilha? Foi a deusa que colocou Tuala a meu cargo há muito tempo, numa noite do Solstício de Inverno. Não te importa essa circunstância?

Seguiu-se uma pausa.

- Tal como te disse, não faltará nada a Tuala. - Os dedos de Broichan brincaram com a taça de hidromel. - Não precisas de casar com a rapariga para cumprir a promessa que fizeste de tomar conta dela.

- Acho que preciso. Eu acredito que A Que Brilha a trouxe para Pitnochie por uma única razão: para que, se eu me tornasse rei de Fortriu, tivesse uma companheira perfeita a meu lado, uma companheira que me dará força nas dificuldades que me esperam no caminho. A deusa mandou Tuala, como minha amiga do coração, para que, nesta grande missão que me espera, eu não falhe nem hesite. Eu amo-a e ela ama-me. Um druida não compreende uma coisa tão simples?

- Bridei - disse Broichan -, tu estás extremamente cansado, ainda estás fraco e desconfio que não comes desde que saíste de Caer Pridne. Acredita, é melhor deixarmos isto para amanhã. Melhor ainda, para depois da assembleia. Uma decisão destas não deve ser tomada à pressa. Se não queres deixar Tuala aqui, tudo bem, ela pode ir para Banmerren até a questão do trono estar decidida. É vital que concentres todas as tuas energias na eleição. Não nos podemos dar ao luxo de nos distrairmos. Não penses nisto agora. Fola toma conta da rapariga até termos tempo...

- Não - disse Bridei. - Eu não posso esperar. Tuala quase morreu esta noite por causa da tua falta de compreensão, porque pensava estar completamente só no mundo. Eu fui testemunha do que te aconteceu no Portal, vi o preço que tens de pagar, sei que deve ser muito caro. Diz-me, a tua vida foi sempre assim, disciplinada, leal, nunca aprendeste o que é o amor?

- Isso não é amor - disse Broichan, com uma voz subitamente tão dura como o ferro - é uma ilusão. Tu não te vais casar com Tuala. Como rei, não podes.

Bridei fixou os olhos escuros e impenetráveis do seu pai adoptivo.

- Nesse caso, não serei rei - disse ele calmamente.

Os olhos mudaram. Era evidente que Broichan, nos seus sonhos mais impossíveis, nunca imaginara aquilo.

- Que estás a dizer, Bridei?

- Tuala será minha mulher. Não alterarei a minha decisão porque sei que não posso continuar sem ela. Parece que me estás a dar a escolher: Tuala ou o reino. Eu não desisto dela, Broichan. Se decidir que o custo deste teu sonho de quinze anos é demasiado caro para mim, terás que arranjar outro homem para teu fantoche. Sem ela, não consigo.

- Não sejas ridículo. É evidente que consegues! - O druida pusera-se de pé, com o rosto branco como a cal.

- Deixa que te repita - disse Bridei. - Sem ela, não serei candidato. Espero ter sido suficientemente claro. Eu sou um homem, Broichan. Cresci e sou muito bem capaz de tomar as minhas decisões. Nunca perdi de vista o destino que preparaste para mim. Acredita que não desisto de bom grado, mas o que disse, faço. Se recusares aceitar o meu casamento, Tuala e eu ir-nos-emos embora e faremos a nossa vida noutro sítio qualquer, longe da limitação dos poderosos. Nada do que faças ou digas me fará mudar de ideias.

- Não acredito nisto...

- Pensa no que fizeste a Tuala. Foram as tuas acções irreflectidas que provocaram esta situação. A minha obediência só dura até eu ver as expressões a alterarem-se nos rostos daqueles em quem eu acreditava. Não perdoo o que lhe fizeste. Não perdoo as tuas mentiras.

Porém, não tomo esta decisão para te punir. Eu quero o trono, Broichan. Trabalhei para ele. Acredito que é a vontade dos deuses; sei que sou o melhor homem para o cargo e sei que, se for eleito, não conseguirei sobreviver sem ela. É por essa razão que não me afasto se tu e os teus aliados apoiarem a minha escolha. E agora, vou fazer o que sugeriste: vestir roupa seca, comer e descansar. O ritual do Solstício do Inverno está quase a começar. Estamos na estação do despertar, uma época de nascimento e luz nova, os dias crescem até a Guardiã das Chamas atingir, uma vez mais, o seu zénite radiante. Uma noite auspiciosa. Como disseste, é preciso algum tempo para tomar uma decisão. A tua, quero eu dizer, porque a minha está tomada.

- O que é que queres? - O tom de Broichan era constrangido.

- O teu apoio em tudo. Que não apoies apenas a minha escolha, que mostres a tua amizade e cortesia e que faças com que o resto da corte faça o mesmo. Que não fales mal dela, que não ajas contra ela. Que a tua verdadeira atitude em relação a este assunto não se torne conhecida fora deste quarto.

- Se eu recusar, tu...

- Saio de Pitnochie e de Fortriu com Tuala a meu lado. Nunca mais me verás.

- Estás a falar a sério! Bridei pôs-se de pé.

- Se eu for rei, tenciono ter um certo número de conselheiros disse ele -, e tu serás um deles. O que aconteceu aqui não diminuiu a minha gratidão pelos anos que devotaste à minha educação, pela sabedoria que partilhaste comigo, pelas oportunidades que me deste. No entanto, nunca mais confiarei em ti. Um rei deve escutar os seus conselheiros e tomar, depois, as suas decisões. - Bridei inclinou polidamente a cabeça e abandonou o quarto. Atrás de si ficou o silêncio total.

O ritual do Solstício de Inverno daquele ano não teve a sua vitalidade habitual. Broichan disse as orações como se a sua mente estivesse noutro sítio. A cerimónia do fogo foi breve: era importante manter o salão quente visto que três dos presentes sofriam os efeitos de uma longa exposição ao frio do Inverno. No ponto da cerimónia em que eram feitas perguntas e obtidas respostas, Broichan olhou para Bridei e este, calmo e sereno, desempenhou o seu papel há muito aperfeiçoado sob a orientação exacta do druida. No fim, quando estavam todos em círculo para proferir as palavras de bênção, Tuala ocupou o seu lugar ao lado de Bridei, mão na mão. A um canto da sala, Faolan observava tudo com uma expressão séria.

Seguiu-se um óptimo festim, mas nem Bridei nem Tuala conseguiram comer muito. Um pouco de sopa e um bocado de pão pareceu-lhe suficiente e a cerveja e o hidromel que lhes serviram ficaram intactos. Os dois jovens falaram pouco; ficaram sentados lado a lado no banco onde, em crianças, se tinham acotovelado ouvindo e contando histórias de magia e mistério. Naquela noite iniciava-se para os dois uma nova história, maravilhosa e prometedora, que duraria a vida inteira. Os dois jovens só tinham olhos um para o outro.

O tronco do Solstício de Inverno ardeu, vivo. Em frente da lareira, Mist dormitava enroscado e, junto dele, dormia o cão branco com a cabeça pousada nos pés de Bridei e as orelhas mexendo-se de vez em quando. Talvez, nos seus sonhos, ainda estivesse de guarda no vale solitário onde, muito tempo antes, guerreiro amado, fora morto por um machado de Dalriada.

As pessoas começaram a retirar-se. Havia um lugar para Tuala nos aposentos de Mara e Bridei tinha o seu velho quarto, mas nenhum dos jovens parecia decidido a sair dali. Finalmente, depois de Mara ter aferrolhado a porta, apagado tudo menos uma candeia e olhar por cima do ombro antes de sair, Broichan levantou-se e foi em silêncio para o seu quarto.

Perto da lareira havia uma cadeira grande de carvalho esculpido, com um grande espaldar. Bridei instalou-se nela com Tuala nos joelhos e com um cobertor a tapá-los. Por baixo, as mãos moviam-se, acariciavam, criavam uma sequência de surpresas deliciosas. As faces de Bridei estavam coradas; os olhos de Tuala estavam brilhantes. Talvez fosse bom estarem os dois demasiado cansados para desejarem mais do que aquelas explorações delicadas de uma proximidade recém-descoberta. Num banco encostado à parede mais afastada, Faolan estava deitado de costas, por baixo de uma capa. Provavelmente, não dormia. O celta nem ali deixava Bridei sem guarda.

- Tenho uma coisa para te perguntar - murmurou Bridei. Porém, não sei se consigo; se disseres não, não só me despedaças o coração, como me farás fazer figura de tolo em frente de toda a gente.

- Não vou dizer não, Bridei. - A mão da jovem acariciou gentilmente o peito de Bridei por baixo da camisa limpa que tinham dado ao jovem.

Bridei engoliu em seco.

- Tencionava perguntar-te antes... Queria perguntar-te... Queres ser minha mulher, Tuala? - O seu coração batia com toda a força; era espantoso como, depois de tudo aquilo por que passara, se sentia aterrorizado.

- Quero, Bridei. - A voz da jovem era meiga e precisa; mudara pouco desde os tempos de criança.

Bridei inclinou a cabeça e beijou-a; o beijo dela foi, indiscutivelmente, o beijo de uma mulher. Após alguns momentos, ele afastou os lábios.

- Compreendes o que isto quer dizer? - perguntou-lhe ele. - Se eu for eleito, serás rainha de Fortriu. A vida de uma rainha é muito diferente; é solitária, difícil.

- Eu sei. Bridei, e Broichan? O que é que ele te disse? Ele concordou?

- Ainda não, mas vai concordar; não tem outra hipótese. Eu disse-lhe que retiraria a minha candidatura se ele se recusasse a concordar com o nosso casamento.

- Oh.

- Tem de ceder. Ele sabe que eu posso ganhar. Devo conseguir os apoios necessários se Foirel de Galany chegar a Caer Pridne a tempo. Se houver um empate, Faolan pode provar que Drust atentou contra a minha vida. Deve bastar.

- Atentar contra a tua vida? O ferimento na cabeça de que Faolan falou?

Na Lua cheia. Fui atacado quando ia ter contigo a Banmerren. Desculpa... Desculpa por não te ter podido dizer...

A mão dela acariciou-lhe gentilmente o cabelo e tocou no sítio onde o ferimento ainda era evidente.

- Não sei como pude pensar - murmurou ela. - Tive visões: tu e Ana, tu e Ferada... Não devia ter acreditado neles.

- Eles? Eles quem? Tuala sorriu.

- É uma longa história, Bridei, uma história longa e estranha. Creio que fui posta à prova.

Bridei acenou com a cabeça, ao mesmo tempo que brincava com as madeixas sedosas do seu cabelo.

- Também é difícil acreditar na minha história. Parece que fomos os dois postos à prova pelos deuses. Gartnait veio atrás de mim e agora está morto.

- Morto? Que aconteceu?

- Só Faolan e eu é que sabemos a verdade. Tenho de arranjar uma versão diferente para Talorgen.

Tuala olhou para o rosto de Bridei; o que viu nele tornou-a silenciosa.

- Ele veio atrás de mim desde Caer Pridne. Eu trouxe a égua de Uist; Gartnait deve ter feito um grande esforço para me apanhar; apanhou-me pouco antes de eu chegar a Pitnochie e disse que tinha vindo para me fazer companhia, para me ajudar. Em seguida, fomos ao Espelho Negro à tua procura. Então...

- Então o quê, Bridei? - A jovem agarrou nas duas mãos dele.

- Então, ele agarrou-me o pescoço com as duas mãos e tentou estrangular-me. Foi como se tivesse enlouquecido. Tudo o que dizia era que lamentava. A única maneira que arranjei de me livrar daquilo foi forçá-lo a cair à água.

- No Espelho Negro?

- Foi terrível. Quando voltei a mim, Faolan estava a tentar tirar-me a água dos pulmões e Gartnait jazia afogado, na margem. Faolan tinha-nos pescado aos dois. O cão estava lá, o cão do Espelho Negro, só que era mesmo real. Nem sequer tive tempo para pensar, fomos logo atrás de ti. Quanto à razão por que Gartnait fez o que fez, é um mistério.

- Que vais dizer a Talorgen?

Bridei olhou para o banco onde Faolan estava deitado.

- Que foi um acidente; que Gartnait tentou salvar-me de morrer afogado. Que, pelo menos na morte, o pai fique com boa opinião dele.

- Ferada vai ficar muito triste.

- Sim. Apesar de andarem sempre às turras, ela e Gartnait gostavam muito um do outro. Ela ajudou-me. Se não fosse ela, eu ainda estava em Caer Pridne.

- Achas que Talorgen, Fola e os outros te vão apoiar apesar de quereres casar com uma rapariga que não é... apropriada?

- Tu és apropriada - disse-lhe Bridei. - Temos é que o demonstrar. E sim, acredito que eles me vão apoiar apesar da influência de Broichan. Se não o fizerem, não sou um pretendente tão forte como devia. Quanto aos chefes tribais de Fortriu, fui eu que os trabalhei, mais ninguém. Eles vão apoiar-me. Amanhã, se não antes, já o meu pai adoptivo terá aceitado que o seu argumento não é argumento.

- Ele receia que eu te influencie - observou Tuala. - Que a minha influência possa ser maior do que a dele. Houve uma altura em que quase fomos aliados, ele e eu. Porém, nunca confiou em mim, por mais que eu tentasse. Não faço parte dos planos dele.

- O plano dele acabou - disse Bridei. - Agora, o destino pertence-nos, a ti e a mim.

- Ele ama-te. Não te podes esquecer disso.

- Não me ama pelo que sou, ama-me pelo que posso fazer por ele, por Fortriu.

- Estás enganado. Para ele, és um filho.

- Penso que não.

Seguiu-se um pequeno silêncio. O cão branco suspirou e mexeu-se. Tuala levou a mão de Bridei ao rosto e depois beijou-a.

- Bridei?

- Hum?

- Quando é que nos casamos?

- Ah. - O jovem endireitou-se um pouco e aconchegou melhor o cobertor em redor dos ombros de Tuala. - Gostaria de te falar disso.

- Pareces ansioso, meu querido. Diz lá.

- É que... bem, o meu desejo é que o nosso casamento seja... perfeito.

- Espero que seja - disse Tuala.

- Não se for celebrado aqui, onde tens sido tão infeliz, onde a influência de Broichan é tão forte. E nem em Caer Pridne. Quero fazer algumas mudanças. Em relação a nós e em relação à governação de Fortriu. Está tudo relacionado com...

- Com o Portal?

Bridei acenou com a cabeça.

- Se tudo correr como eu prevejo, dentro de sete dias serei eleito rei. A primeira coisa que tenciono fazer é estabelecer a corte longe de Caer Pridne. Vou construir uma fortaleza nova. Nela instalarei o centro de negócios de Fortriu. Será o símbolo, assim espero, de um futuro novo, um futuro melhor. Tenho o local em mente, um local que me foi descrito por Ged de Abertornie, situado perto do Lago da Serpente, um monte onde existem as ruínas de uma antiga fortificação de pedra e madeira. No topo existe um bosque de árvores grandes e uma grande extensão de terreno. Dali é possível ver não só o oceano, mas também o lago e os montes do Grande Vale. Acho que tu não deves viver onde não possas ver a floresta.

- E onde tu não possas ver o voo da águia - disse Tuala docemente. Muita gente não vai gostar do teu plano. A fortaleza de Caer Pridne é a sede do governo de Fortriu há muitos anos.

- Os tempos são de mudança - disse Bridei. - Se não formos capazes de os acompanhar, estamos condenados.

- Quanto tempo será preciso para construir essa fortaleza?

- Não sei, Tuala. Um Verão, talvez dois.

- Oh. Isso é muito tempo.

Bridei suspirou enquanto a sua mão se apoderava, por baixo do cobertor, do seio da jovem. O suspiro de Tuala fê-lo perguntar a si próprio se não estaria, de facto, a ser incrivelmente tolo.

- Sim, minha querida, é muito tempo e tenho de te falar de uma promessa que fiz... um voto que fiz à Guardiã das Chamas...

- Bridei, estás a corar.

O jovem olhou rapidamente de relance para Faolan; os olhos do celta estavam fechados e podia ouvir-se um ligeiro ressonar.

- Que eu não... que não... até sermos casados - disse ele com a respiração entrecortada. - Que seria casto até então. Desculpa, foi...

- Oh, já percebi. Dois Verões, disseste?

- Talvez os construtores consigam ser mais rápidos.

- Esperemos que sim. Bridei, onde é que eu vou ficar até lá? Não quero ficar aqui, em Pitnochie, sem ti. E não quero voltar para Banmerren.

- Não apoio nem uma coisa nem outra. Com ou sem voto de abstinência, quero-te junto de mim. Podemos, pelo menos, olhar um para o outro, podemos conversar, podemos tocar-nos...

- Hum. Vai ser duro. Bridei, eu quero ajudar-te o mais possível, mas se estiver na corte e não formos casados, as pessoas vão começar a falar. A minha presença será um fardo para ti, como Broichan, aliás, sempre acreditou que seria...

- Tenho uma solução para isso e creio que te vai agradar.

- Tu tens solução para tudo.

- Não exactamente, mas faço os possíveis. A mais um homem não é obrigado, seja ele druida, guerreiro, servo ou rei.

- Espera um momento, Tuala. - Ana estendeu o braço para fazer um pequeno ajustamento no modo como os cabelos de Tuala caíam por cima da fita entrançada e se encaracolavam em redor das orelhas. A fita era azul escura e ia com a saia e a túnica usadas por Tuala por cima de uns chinelos de pele de cabrito. A jovem estava simples mas elegante. Era a primeira vez, desde havia algum tempo, que não usava ligaduras e unguentos. A jovem afirmara firmemente que não iria à eleição do rei com os pés enfaixados. As borbulhas estavam a desaparecer. O calor e a bondade tinham remediado os outros males.

- Prontas, meninas? Temos de ir. - Rhian de Powys estava a olhar para elas, majestosa no seu vestido cinzento pombo e com um sorriso nos lábios. - Estão muito bem, as duas. Costas direitas e queixo para cima, Tuala. Vamos ficar as duas ao teu lado. Olha para as pessoas de frente, não te esqueças que dentro de pouco tempo serás rainha; nada nem ninguém te pode tocar.

- Obrigada, minha senhora. Por tudo. - Até ali, o plano de Bridei correra às mil maravilhas. A viúva de Drust mostrara-se deliciada com a ideia de continuar na corte, nos seus velhos aposentos, e agir como dama-de-companhia e conselheira da sua amada até ao seu casamento. A intuição de Bridei fora correcta. Rhian não estava nada receptiva à perspectiva de regressar a Powys visto que a maior parte da sua vida fora vivida em Fortriu. O seu irmão também se sentia feliz por poder continuar a viver em Caer Pridne. Tuala desconfiava que os dois tinham desempenhado um papel mais importante nas decisões do rei do que as pessoas pensavam. O seu comportamento gentil e discreto era, de certo modo, enganador; na tranquilidade dos alojamentos das mulheres, Rhian debatia estratégia política enquanto bordava, com uma profundidade que constituía um desafio até para uma rapariga educada pelos melhores tutores. Por mais frustrante que o período de espera fosse, não era aborrecido. Além do mais, Tuala reconhecia as vantagens de um período sob a supervisão e protecção da viúva real: Rhian podia ensiná-la a andar, a vestir, a olhar e a ser cautelosa. Tuala aprenderia os jogos subtis da corte; aprenderia a olhar por si e por Bridei. Uma educação assim não tinha preço e recebê-la daquela mulher bondosa era uma dádiva rara. Além do mais, a protecção e influência de Rhian eram suficientes para silenciar aqueles que dissessem que uma filha dos Boa Gente não era apropriada para mulher de um rei. Ana também desempenhava um papel importante. Até ali, ninguém dissera nada. Até ali, Tuala pouco saíra dos aposentos privados da rainha. Aquela noite seria uma prova de fogo.

- Pronta?

- Sim, minha senhora.

As três mulheres entraram num salão repleto de homens e de mulheres. Havia muitas candeias acesas; as mesas estavam encostadas às paredes e fora deixado um espaço aberto em frente do trono. Entre Rhian e Ana, Tuala olhou para os rostos daqueles que conhecia. Lá estava Ferada, parecendo atormentada e exausta, mas de cabeça direita; os seus cabelos ruivos estavam perfeitamente penteados e o vestido verde perfeitamente pregueado. A jovem tinha um irmão de cada lado. Naquela noite, os turbulentos Bedo e Uric estavam solenes e silenciosos. O primeiro até segurava a mão da irmã. Talorgen estava por trás dos filhos. O chefe tribal da Fonte do Corvo tinha envelhecido dez anos desde a morte heróica do seu filho mais velho, seguida da partida estranha e inesperada da sua mulher para parte incerta. Dizia-se que Dreseida ficara tão esmagada pela dor que quase enlouquecera. Dizia-se que não regressaria. Os que estavam a par da verdade, entre eles Tuala, não diziam nada. Fora Talorgen o causador da partida da sua mulher. Pelo que fizera e pelo que quase fizera, Dreseida fora banida da família e do país para sempre. Pobre Ferada. A jovem sempre desejara fazer algo da sua vida, para além das restrições de um casamento estratégico. Devido à partida da sua mãe, o seu futuro parecia mais pobre; Ferada regressaria a Fonte do Corvo, tomaria conta da casa de Talorgen e criaria os seus filhos.

Lá estava Fola com um grupo de mulheres sábias, entre elas Irethra. Todas elas acenaram e sorriram a Tuala e a jovem retribuiu o cumprimento com uma certa admiração. Tudo aquilo lhe parecia irreal, especialmente quando Bridei não estava por perto.

Lá estava Uist com o seu manto branco esvoaçante e a seu lado outro ancião... Tuala reprimiu um grito de alegria e foi com muito esforço que resistiu ao desejo de correr e de se lançar ao pescoço do velhote de barba branca e nariz de falcão que estava ao lado do velho druida.

- Wid - murmurou a jovem, sorrindo de modo muito pouco próprio para uma dama. O seu velho amigo curvou a cabeça gentilmente na sua direcção e piscou-lhe o olho.

- Gostaste? - murmurou Rhian.

- Oh sim! Wid ensinou-me tudo o que sei. Bem, metade, pelo menos. Estou tão contente por ele estar aqui.

- Parece que vai ficar na corte para sempre. Pelo menos, foi o que me disseram. Bridei exigiu a sua presença. O teu noivo preocupa-se muito com o teu bem-estar; quer que tu fiques rodeada de amigos. Bridei é muito bom para ti, Tuala.

- Eu sei.

- Olha - murmurou Ana - aquele é Drust, o javali, todo vestido de vermelho, as cores de Circinn. Lá vêm os outros. Bridei ainda parece mais sério do que de costume.

- É verdade, tem medo de fazer alguma coisa mal apesar de saber que é capaz de falar e agir na perfeição. Ele é assim.

- Aquele homem está a olhar para ti, além. Repara. Garvan, o escultor.

Tuala olhou e o seu olhar cruzou-se com o de Garvan. Este sorriu e desviou o olhar. Havia uma certa tristeza nas suas feições, o que era desconcertante. O homem, certamente, não imaginava que ela casaria com ele? Certamente que não tencionava esperar indefinidamente, até ela tomar uma decisão, fosse ela qual fosse? Os homens eram, de facto, criaturas estranhas. Até Bridei, que ela conhecia melhor do que se conhecia a si própria, a surpreendera com o voto que fizera à Guardiã das Chamas. Dois anos. Muito tempo, de facto. Era evidente que se outro homem fosse eleito, não haveria necessidade de esperar tanto. Tuala achou que seria pouco provável. Os deuses não tinham escolhido Bridei?

Os candidatos aproximaram-se do centro do salão, Drust, o Javali, resplandecente no seu traje de lã escarlate, Bridei no mesmo tom azul de Tuala, a capa presa com um alfinete de prata. Drust de Circinn era um homem grande, corpulento e escuro. Com os seus olhos pequenos, fazia jus ao cognome. Ao seu lado, Bridei parecia magro e jovem, se bem que fosse mais alto. Cada um deles estava flanqueado pelos seus apoiantes, Bridei por Broichan e Aniel, Drust pelos conselheiros Bargoit, Fergus e a figura pouco simpática do irmão Suibne.

A um sinal de Tharan, que estava no estrado do trono, ao fundo do salão, a multidão calou-se.

- Que os chefes tribais votantes avancem - disse o conselheiro. Do meio da multidão saiu uma determinada quantidade de homens. Tuala não reconheceu muitos. Talorgen era um deles; Ged de Abertornie com o seu traje multicolorido outro, e ainda Morleo de Longwater outro. Bridei apresentara-a àqueles dois; Ged elogiara-lhe a beleza, o tamanho diminuto e expressara a intenção de a meter no bolso e de a levar para casa às escondidas. Tuala gostara dele. Morleo fora cortês e formal, como se ela já fosse a rainha.

- Muito bem - disse Tharan. - Estão todos? Podemos prosseguir?

- Não estão todos - disse Aniel. - Como sabemos, os do oeste ainda estão a caminho, são esperados esta noite. Não fora o decreto de um período de sete dias e teríamos requerido um prazo extra para que eles pudessem estar presentes. Além deles, ainda é possível a chegada de um representante das Ilhas Pequenas. O tempo...

- Sigamos em frente. - Bargoit parecia ter dispensado a diplomacia. - Como é que fazemos? O sacerdote e a Mulher Sábia têm direito a voto?

- Serão autorizados a participar - disse Tharan. - Não fará diferença no resultado final.

Fola levantou-se e aproximou-se do grupo de chefes tribais. A Mulher Sábia parecia uma anã ao pé deles. Os seus trajes brilhantes, os seus alfinetes de prata e os seus colares de ouro faziam-na tão pequena e discreta como uma pomba das rochas; no entanto, o seu porte altivo, o seu queixo pontiagudo e os seus olhos penetrantes asseguraram-lhe um espaço vazio em volta.

- Ouvimos as declarações dos dois pretendentes quando se apresentaram no Solstício de Inverno - continuou solenemente Tharan - a de Drust, filho de Girom, em pessoa e a de Bridei, filho de Maelchon, através do seu substituto, Carnach da casa de Fortrenn. Damos a cada um deles a oportunidade de falar novamente, mas por breves momentos, apenas. Se os retardatários chegarem antes da votação final, poderão participar. Caso contrário, perderão a oportunidade. Ouçamos, primeiro, o pretendente mais velho, Drust.

O javali de Circinn falou bem; havia muitos anos que era rei do reino do sul e estava acostumado a dirigir-se às pessoas. Drust falou da sua maturidade e da sua experiência; de como, se a anterior eleição tivesse sido conduzida com imparcialidade, já seria rei de Circinn e de Fortriu visto que a ascensão de Drust, o Touro, se baseara num sistema de votação deficiente. Tuala sentiu Rhian retesar-se a seu lado e viu-a cerrar os dentes. A jovem tocou no braço da rainha viúva.

- Uma mentira - disse a jovem em voz baixa. - Vai pôr as pessoas contra ele. Um truque barato. Ignorai-o, minha senhora.

Rhian olhou de relance para ela com um leve sorriso.

- Tão nova e já tão sábia - disse ela.

Tuala observou Bridei à espera da sua vez. O jovem estava muito pálido e tinha os dentes cerrados. As suas mãos estavam descontraídas ao lado do corpo, uma atitude treinada, juntamente com a respiração. A seu lado, Broichan parecia um pouco nervoso. Os outros pareciam mais confiantes. Bridei estava rodeado pelos seus apoiantes: o ruivo Carnach, o sombrio Aniel, Talorgen, Ged e Morleo. Faolan também estava perto, adoptando o ar ausente dos guarda-costas experientes, os olhos não em Bridei mas nos cantos, nas sombras, nos olhares de relance subtis e nos movimentos bruscos. Breth e Garth estavam estrategicamente atrás de Tuala e das suas companheiras. Bridei não queria correr riscos. O discurso de Drust chegou ao fim. Tharan mostrara-lhe por gestos que as palavras "breves momentos" queriam dizer exactamente breves momentos. O rei de Circinn falara da fé cristã e de como, ao abraçá-la, Fortriu, unindo-se a Circinn, seria mais feliz. Um número alarmante de chefes tribais aplaudira-o com entusiasmo. Tuala mordeu o lábio. Seria possível Bridei ter-se enganado? Pelas suas contas, se os representantes ocidentais não chegassem em breve, o jovem não conseguiria os doze apoiantes. Esperava-se que o primo de Ana, das Ilhas Pequenas, enviasse um parente para votar em nome do seu povo, mas não o fizera. Tuala perguntou a si própria o que aconteceria a Ana se Bridei perdesse a coroa.

- Bridei, podes falar - disse Tharan.

Bridei olhou em volta; os seus olhos encontraram os de Tuala, azuis como o céu de Verão, brilhantes de coragem. O jovem sorriu. A jovem respondeu-lhe acenando ligeiramente com a cabeça; sabia que o que lhe ia no coração estava espelhado no seu rosto. Amo-te, sei que és capaz.

- O meu nome é Bridei, filho de Maelchon. - A voz jovem era clara e forte. - O meu pai é o rei de Gwynedd e a minha mãe é lady Anfreda, prima do nosso falecido rei, Drust, filho de Wdrost, conhecido como o Touro. Como vêdes, sou jovem e coloco a minha vida ao serviço de Fortriu, a nossa terra amada, mas também sou um homem feito; lutei ao lado dos nossos chefes tribais na Batalha de Galany's Reach, provei o meu valor no campo de batalha e na restauração do orgulho ferido de Fortriu trazendo a Pedra Mágica; fui criado pelo druida do rei, Broichan, e sou intelectual para além de guerreiro; amo os antigos deuses de Fortriu, cujos ossos são a terra onde caminhamos e cuja respiração é o ar que nos dá a vida; comandarei honestamente o meu povo ao longo do meu reinado; servir-vos-ei o melhor que sei com a inspiração da Guardiã das Chamas, a sabedoria da Que Brilha e a certeza profunda da Mãe de Tudo; ofereço a minha juventude, o meu sangue, a minha coragem e a minha energia; levar-vos-ei para um futuro novo, no qual as fronteiras de Fortriu serão novamente seguras e no qual o seu povo será unificado. Juro por tudo o que há de mais sagrado. Pareceu a Tuala que no rosto de Bridei, enquanto falava, brilhava uma luz. A jovem não sabia se mais alguém a via, mas o silêncio que se seguiu ao seu discurso sugeria que sim. Tuala levou uma mão à face para limpar uma lágrima.

- Muito bem - disse Tharan após uns momentos. - Que a votação comece. Drust, filho de Girom, toma o teu lugar à esquerda. Bridei, filho de Maelchon, à direita. Todos os homens, menos os chefes tribais, devem abandonar a área em frente do trono.

O direito de voto era restringido a um certo número de chefes tribais das sete casas dos Priteni. Os votantes representavam as famílias mais antigas e os maiores proprietários de terras no interior de cada casa ou tribo. Algumas casas tinham direito a um voto e outras a dois ou três. No lado de Bridei, no salão, estavam Talorgen, Ged e Morleo; Carnach e Wredech também estavam porque podiam votar desde que não fossem candidatos à eleição. Fola colocou-se ao lado de Talorgen. Os outros homens afastaram-se. Uist e Wid também. Considerava-se que os druidas já tinham influência que chegasse, não precisavam de votar.

No lado de Drust estavam doze homens, como previsto; doze chefes tribais e o irmão Suibne que se mantinha em silêncio, com a cruz entre as mãos. De facto, reparou Tuala, o sacerdote não se chegara para a esquerda, tinha cada um dos pés, calçados com sandálias, em cada lado do que podia ser considerado o meio do salão. O lado direito tinha mais homens; no lado de Bridei o número era de onze.

Tharan tossiu, clareando a voz acima do burburinho geral.

- Compreendes o procedimento, irmão Suibne? Tens de ir para a direita ou para a esquerda para indicar a tua intenção de voto. - A voz do conselheiro adquirira um tom cortante; opusera-se a Bridei, mas não havia um único homem em Fortriu que quisesse no trono o cristão Drust com o venenoso Bargoit a murmurar-lhe ao ouvido.

- Preciso de tempo para reflectir. - A voz de Suibne era calma. No entanto, Tuala reparou no seu tom firme e no olhar directo do sacerdote cristão. - Um homem deve pensar nos dois discursos por breves momentos antes de se decidir. Peço-vos um momento ou dois.

Tuala viu os lábios de Fola torcerem-se, divertidos, e um certo reconhecimento nos olhos da Mulher Sábia. Outros, porém, mostraram-se menos pacientes; no campo de Circinn ouviram-se resmungos. A sua decisão estava tomada havia muito. Decidir depois dos discursos era ridículo. Sabiam todos, antes de viajarem até Caer Pridne, para quem iria o seu voto e esperavam que o sacerdote fosse da mesma opinião.

Subitamente, as portas do salão abriram-se. Ouviu-se um certo tumulto: acabava de entrar gente.

- Conceder-te-emos algum tempo - disse Tharan. O conselheiro fez um excelente trabalho, mantendo um tom calmo e uma expressão imparcial enquanto olhava na direcção da entrada. - Alguns momentos para poderes reflectir. Como celta que és, suponho que não estás familiarizado com estas formalidades.

- Como homem pensador - disse Suibne - prefiro tomar as minhas decisões apenas depois de pesar todos os argumentos. Agradeço a tua consideração.

Bargoit avançou, agarrou no braço do sacerdote e começou a sibilar-lhe furiosamente ao ouvido.

- Retira-te, Bargoit. - A voz de Tharan era friamente autoritária.

- Só os homens e as mulheres com direito a voto podem estar nessa área. Suponho que o homem é capaz de pensar por si próprio. Pelo menos, esperamos que sim.

- Homens com direito a voto? É isso? - gritou uma voz no fundo do salão. A multidão abriu-se para dar passagem a uma figura vestida de negro, com botas de montar e uma capa de pele. O seu rosto e o seu corpo estavam totalmente tatuados, o registo complexo de muitas batalhas; os seus olhos eram negros e ferozes, o seu queixo severo. Tuala viu iluminarem-se as feições de Bridei. - Nesse caso, estou incluído: Foirel, filho de Duchil, chefe tribal de Galany's Reach.

- Galany's Reach perdeu-se! - cuspiu Bargoit, furioso. - Como podes ser chefe tribal de um território que está nas mãos dos Celtas?

- O conselheiro de Drust virou-se para Tharan, apontando um dedo acusador. - Ele não pode ser autorizado a votar! É contra as regras! Esta eleição é uma vergonha!

- Incorrecto - disse a voz de Broichan, profunda e firme. A lei permite o seu voto; Foirel é um chefe tribal no exílio. Provou-se, no último Verão, que essas terras estão ao nosso alcance. O jovem que está diante de vós, o nosso futuro rei, fez com que o símbolo da liberdade de Galany fosse devolvido intacto a Fortriu, um acto de grande visão e espírito, um acto certamente abençoado pela própria Guardiã das Chamas. Foirel voltará a ser, dentro de pouco tempo, o chefe tribal de Galany. Negar-lhe o voto é a mesma coisa que dizer que o nosso povo não tem futuro a oeste. Seria uma traição.

- Chega - disse firmemente Tharan. - Foirel, podes votar, claro. Devo dizer, porém, que a tua noção de tempo deixa muito a desejar.

Foirel já estava ao lado de Talorgen, no lado direito do salão. Tuala contou outra vez. Sem o sacerdote cristão, que continuava no centro, sozinho, havia doze votantes no lado de Drust e doze no lado de Bridei, incluindo Fola. O salão estava cheio de gente; parecia que o bando de guerreiros de Foirel acompanhara o seu chefe naquela viagem a Caer Pridne e em todos os cantos se viam homens de aspecto selvagem, totalmente tatuados, muito bem armados. Aqueles homens estavam cheios de ferro. Os olhos das damas da corte reflectiam uma mistura de admiração e apreensão.

- Então, irmão Suibne?

- Preciso de mais um pouco de tempo.

- Não podemos esperar a noite toda. A decisão é simples, mas, infelizmente, depende totalmente de ti. Faz a tua escolha, por favor.

- Esqueci-me de mencionar uma coisa - disse casualmente Foirel. - Deve votar pelo menos um chefe tribal de cada uma das sete casas. Certo?

- Correcto - disse Tharan. - Como as Ilhas Pequenas não mandaram nenhum representante, desta vez não têm direito.

- Mas há outra casa que não está aqui representada - disse Foirel, coçando o queixo.

- Outra... Oh, estás a referir-te ao norte? - Tharan ergueu as sobrancelhas. - Os Caitt não votam há anos, nunca seguiram a nossa lei. Não é necessário... Além disso, se não vieram, não têm direito a voto.

- Desta vez vieram. - disse Foirel.

Da sombra saiu outro homem, um homem altíssimo, de cabelos negros até à cintura e um rosto que parecia feito de granito, inteiramente coberto de sinais que faziam com que as tatuagens dos guerreiros de Fortriu parecessem gatafunhos de crianças. O homem usava uma longa capa com capuz, feita de muitas peles pequenas. Tuala pensou em Mist, que dormitava à lareira dos aposentos de Rhian e estremeceu. O traje do chefe tribal era formado por franjas que pareciam rabos de gato. Em redor do pescoço, o homem tinha um colar de pequenos ossos. Os seus olhos eram perigosos e os seus punhos eram enormes. O machado que trazia às costas, cuja lâmina tinha esculpidas a Lua e muitas estrelas, brilhava como prata polida à luz das candeias.

- Eu sou Umbrig, dos Caitt - disse o homem com uma voz que parecia uma trombeta de guerra, com um sotaque variante da língua dos Priteni e com um som gutural. Umbrig cruzou os braços e os largos anéis de prata trabalhada que usava revelaram-se quando a capa descaiu, mostrando membros extremamente musculados. - E dou o meu voto ao homem que honra as forças antigas. Se eu soubesse que esta corte dava crédito a um pretendente cujas crenças troçam da sabedoria dos deuses antigos, teria vindo por caminhos menos pacíficos para dar o meu apoio a este jovem guerreiro. Vejo nos seus olhos que é fiel à sua fé e que é forte nas suas intenções. O voto dos Caitt vai para Bridei, filho de Maelchon.

- Engendrado por druidas - resmungou Bargoit. - Planeado, conspirado e injusto em todos os aspectos...

No estrado do trono, Drust, o Javali, começava a sentir-se desconfortável. O seu rosto largo estava quase tão vermelho como a sua túnica. Se a votação ficasse empatada, um determinado assunto acerca de um assassinato falhado seria tornado público pela primeira vez. Drust sabia que os de Fortriu sabiam, estava consciente do rumo que os acontecimentos podiam tomar e das prováveis consequências para a sua reputação. Tuala olhou para Bridei. O jovem parecia calmo, se bem que tivesse empalidecido um pouco.

- Pelas minhas contas, o actual estado de coisas dá treze votos a Bridei, filho de Maelchon e doze a Drust - anunciou Tharan com voz louvavelmente firme. - Só falta um voto; o teu, irmão Suibne. A não ser que haja mais surpresas? - O conselheiro olhou em volta.

- Não? Nesse caso, irmão, acabemos com isto.

- Certamente. - O cristão cruzou os braços; o seu rosto estava sereno. - Pensei nos discursos e no que sei acerca deste reino dividido. Pensei na natureza dos dois pretendentes, tão diferentes na fé, na sua idade e comportamento, nas suas convicções e prioridades...

- Irmão - disse Aniel, irritado - não é preciso os votantes fazerem um discurso. Por favor, diz-nos qual é a tua decisão.

- Não posso - disse Suibne calmamente. - Como homem de Deus, não acho que o meu voto deva ser decisivo nesta eleição secular. Como celta, acho, até, que é menos próprio. Não tenho outra solução senão abster-me. - O homenzinho recuou para o interior da multidão, que explodiu num coro de protestos rancorosos e de vivas rejubilantes.

- Chega! Chega! - A voz de Tharan mal se ouvia. Broichan subiu para o estrado, erguendo os dois braços e mantendo-os lá no alto até o burburinho cessar. Os seus olhos ardiam.

- Declaro Bridei, filho de Maelchon, vencedor por treze votos contra doze - disse Tharan solenemente. - E declaro que o nosso novo rei deve ser coroado aqui, em Caer Pridne, na próxima Lua. Perante o olhar dos deuses, saúdo o novo monarca de Fortriu. Bridei, queres falar?

Tuala cerrou os lábios com força; não era tempo de lágrimas. A jovem só queria que Bridei olhasse para o seu pai adoptivo. Um olhar para o rosto de Broichan e o jovem nunca mais diria que o druida não sabia o que era o amor. Porém, Bridei estava a olhar para a multidão acenando com a cabeça, sorrindo a cada um dos que o tinham apoiado, controlando a respiração para poder falar calmamente e com vigor por cima do bater descontrolado do seu coração e da distracção de uma mente cheia de pensamentos. A jovem conhecia-o demasiado bem.

- Direi apenas algumas palavras; o tempo é de celebração, de festa e de música, de esperança e companheirismo. O nosso trabalho, vosso e meu, começa amanhã. Sabeis o que me vai no coração; agradeço-vos e prometo-vos que vos servirei. Só quero dizer duas coisas. A primeira é que desejo expressar o meu respeito ao meu valoroso oponente, Drust filho de Girom, e que lhe desejo felicidades. Espero que possamos cooperar e compreender-nos no futuro, trabalhar juntos apesar das nossas diferenças. Só assim conseguiremos libertar esta terra do flagelo dos invasores. No sul, Drust é rei há muitos anos. Só tenho a aprender com a sua experiência.

As palavras do novo rei foram recebidas com um silêncio de morte. Bridei parecia imperturbável; os seus planos eram a longo prazo e Tuala sabia que o jovem não estava à espera que todos aceitassem imediatamente a mudança. Aquilo precisava de ser dito apesar da expressão turbulenta de Drust e de Bargoit parecer uma serpente prestes a atacar. A situação era difícil. Até os de Circinn se tinham virado contra eles. Ao agir daquele modo, o irmão Suibne salvara-os do embaraço de verem exposta a tentativa de assassinato de Bridei. Tuala perguntou a si própria se o sacerdote estaria ao corrente. Fosse como fosse, não queria estar na sua pele naquela noite.

- Também quero apresentar-vos a minha futura mulher, a minha querida companheira de infância: Tuala de Pitnochie. - Bridei olhou para ela com os olhos a brilhar e as faces um pouco coradas. Tuala endireitou as costas e ergueu o queixo, tal como Rhian lhe ensinara. Bridei estendeu uma mão.

- Vai, filha - murmurou Rhian. - Vai e que os deuses te abençoem.

- Estás encantadora, Tuala - disse Ana. - Caminha devagar e sorri.

Tuala, porém, não sorriu. O momento parecia-lhe tão solene. A jovem fixou simplesmente os olhos nos dele e atravessou o salão como se fosse a flutuar. Bridei pegou-lhe na mão; ela ficou a seu lado sentindo o corpo a tremer, consciente da imensa coragem do jovem e da sua profunda vulnerabilidade. A jovem manteve-se direita e segura, olhando para os poderosos e para as damas, para os guerreiros e para os chefes tribais, para os druidas e para as mulheres sábias, e inclinou ligeiramente a cabeça. Em seguida, o seu olhar cruzou-se com o de Wid e o seu rosto abriu-se num sorriso.

Os murmúrios e os sussurros percorreram o salão numa verdadeira onda de choque. Pronto, pensou Tuala; começou. Os mexericos, a desconfiança, a rejeição; teria de ser muito forte. Algumas vozes começaram a ouvir-se e ela pensou detectar as palavras criatura selvagem e Mulher? Não pode ser! de um deles. Bridei pareceu não as ouvir.

- É meu desejo estender as boas-vindas de Tuala a Caer Pridne em nome de todos. - A voz era profunda, autoritária na sua ressonância. Broichan avançara, as feições duras como o ferro, e erguia um braço no ar, pedindo silêncio. - Como alguns de vós deveis saber, Tuala cresceu em minha casa. Tuala é uma jovem de qualidades excepcionais.

Não podíamos ter arranjado uma rainha melhor. Confio que a recebereis bem na corte, onde ela vai ficar sob a orientação da rainha Rhian até ao dia do casamento. Esta é uma estação de grandes mudanças para todos nós, um tempo de desafio e de oportunidades. Temos de ter as nossas mentes abertas; temos de aprender. - Se o druida do rei estava a dizer aquelas palavras com os dentes cerrados, disfarçava muito bem. A mensagem por dizer era bem clara. Falai contra a noiva do rei por causa da sua diferença e arriscais-vos à ira do druida.

O salão ficou subitamente silencioso. Foirel de Galany deu dois passos em frente.

- Pelos ovários da Guardiã das Chamas, tu sabes arranjá-las, Bridei - declarou ele com um grande sorriso nas feições escuras. A tua dama tem alguma irmã? - O salão encheu-se de risos, logo seguido de um barulho de louça quando os servos começaram a aparecer com canecas, jarros, pratos e facas para o festim. Os homens reuniram-se em redor do trono; de repente, todos queriam falar com Bridei.

- Tudo bem - murmurou Tuala. - Eles querem ser ouvidos. Faz o que tens a fazer.

- Fica junto de mim - murmurou ele, segurando-lhe na mão com força. - Preciso de ti.

- Estou aqui - disse Tuala. - Estarei sempre aqui.

- Histórias e mais histórias - disse Madressilva para Teia. Sonhos e mais sonhos. Enredos e mais enredos. Destinos e mais destinos. Para quem vive tão pouco, a espécie humana parece determinada a complicar as coisas. Ainda bem para nós e para os nossos esforços que Bridei está sob a protecção dos deuses e que é mais inteligente do que os outros.

- E ainda bem que tem Tuala com ele.

- É verdade. Parece que a nossa missão chegou ao fim. Sinto um certo desânimo, apesar do triunfo desta noite. As vidinhas desta gente são, à sua maneira, absorventes.

- Oh, aqui há muito entretenimento - disse Teia com uma risada. - O nosso trabalho com o jovem rei e a jovem rainha de Fortriu pode ter terminado, mas há outras coisas, outras possibilidades. Eu olho para Caer Pridne, esta noite, e vejo um homem que não consegue ouvir mais do que uma simples nota da harpa do bardo sem sair do salão. Aquela música doce é veneno para os seus ouvidos. Vejo uma jovem cujo futuro foi cruelmente detido e pergunto a mim própria se ela vai passar a vida a oscilar à beira do abismo ou se vai saltar para o desconhecido. Vejo um artesão cujas mãos criam magia, uma magia que nunca se compara com os sonhos que lhe atravessam a mente. Vejo um druida sozinho, ponderando em questões de amor e dever, confrontado com a sua própria humanidade. Isto ainda não acabou, meu amigo. Até Bridei e Tuala, por mais fortes que sejam, vão precisar outra vez de nós.

- Ah, Tuala... uma criatura rara. Quase desejo que tivesse vindo para junto de nós...

- O quê? E deixar Bridei à deriva? Não sejas tolo. Esquece Tuala; põe os teus olhos noutra. Que tal a refém real, uma criatura deliciosa com longas tranças douradas e uma pele tão fresca e tão doce como um fruto maduro? Jovem... boa... inocente... Os estragos que não faríamos! Esta gente pode ser posta a dançar, a dançar, até nos suplicar que paremos...

- Vem - disse Madressilva. - Não temos mais nada que fazer aqui. Por enquanto, não me apetece brincar mais com os homens e as mulheres da corte de Bridei. Sinto o coração pesado; não me apetece nada brincar.

- É verdade - disse Teia. - A coisa é pouco interessante. Eles são humanos, no fim de contas; vão arranjar mais complicações, vão dançar ao som da própria música, mover as peças dos próprios jogos. Vem! Segue-me!

Com um sussurro, um clarão súbito de asas brilhantes e o esplendor de uns cabelos prateados, as duas personagens desapareceram. Sozinho no caminho de ronda, no exterior do grande salão, Faolan estremeceu ao olhar para o céu. Algo passara por ele; o celta não o vira, mas sentira a sua presença. Se o espião fosse homem para ligar àquilo dos deuses, talvez dissesse uma oração, um sinal de protecção ou levasse os dedos a um talismã escondido. Faolan, porém, só acreditava em si próprio. Era mais fácil. Através das portas abertas, o som da harpa perseguiu-o na escuridão, fazendo-o sentir comichão nos dedos. O celta virou o olhar para a escuridão da noite.

- Faolan?

Era Bridei, sozinho, caminhando silenciosamente ao longo do parapeito com o pequeno cão nos calcanhares.

- Quase me surpreendeste - disse Faolan. - Devo estar a perder qualidades.

- Queria falar contigo em particular.

- Despacha-te, então. Esta noite toda a gente quer falar contigo.

- Levarei o tempo que for preciso; isto é importante. Pergunto a mim próprio se já pensaste no teu futuro.

Durante alguns momentos, Faolan não disse nada. Finalmente, a sua resposta saiu hesitante.

- Qualquer homem com o mínimo de senso pensa no seu futuro.

- E chegaste a uma conclusão?

- Ainda não.

Bridei colocou os braços no parapeito. A noite estava clara; as estrelas brilhavam no firmamento onde A Que Brilha dormia, suspensa, qual foice de prata.

- Sabes que eu gostava que ficasses - disse ele em voz baixa. Não como guarda-costas; estava a pensar num papel diferente para ti, um papel que te oferecesse desafios diferentes, oportunidades diferentes.

- Não estás satisfeito com o meu trabalho? - Faolan continuava a olhar para longe.

- Sabes muito bem que a razão não é essa - disse Bridei. - Tu mereces mais do que o que te pagam. A mim, parece-me que os teus talentos são mal aproveitados nesse trabalho simples de guarda-costas.

- Simples! Tu já me fizeste passar dez vezes mais do que Drust durante os anos todos em que o servi. Porém, é verdade, sou capaz de desempenhar uma variedade de outros papéis e tenho-o feito regularmente. Tradutor, assassino, espião. O que é que tens em mente?

- Suponho - disse Bridei - que podes ser chamado a desempenhar qualquer um deles em seu devido tempo, mas estava mais a pensar numa posição de conselheiro, de companheiro. Não te importas de pensar no assunto?

Faolan não respondeu imediatamente. Os dois homens ficaram lado a lado a olhar para as estrelas enquanto o cão branco se sentava aos pés de Bridei, vigilante.

- Tu disseste uma coisa quando estavas doente. Acerca de eu não ser pago para ser amigo. A mim, parece-me que andas à procura de um amigo. Alguém que ocupe o lugar de Gartnait, ou o que tinhas antes, aquele que foi envenenado. Dizem que vocês eram inseparáveis.

Bridei não disse nada, limitou-se a esperar.

- Creio que não sou homem para esse trabalho, Bridei. Uma tarefa simples, que ponha à prova as minhas capacidades e com o pagamento adequado no fim, isso faço de boa vontade. Não está em mim oferecer mais.

- Estou a ver. Deixas-me desapontado, Faolan. Penso que estás a renegar a tua natureza.

- Tu foste criado por um druida, procuras complicações onde elas não existem. Eu quero seguir a direito pelo meu caminho, mais nada.

- Lamento. Vou ter saudades tuas.

Seguiram-se mais alguns momentos de silêncio, mas diferentes, dessa vez.

- Estás a dizer que é a única posição que me podes oferecer? O tom de Faolan era dolorosamente cuidadoso. Bridei sentiu vontade de chorar. - Não tencionas continuar comigo como teu protector pessoal, ou da tua noiva?

- Eu pensava que ias aceitar a outra oferta. Não pensei em mais nada.

- Estou a ver.

- Não te importas de assegurar a nossa segurança a troco de cama, comida e roupa lavada e um pouco de prata?

- Um pouco de prata não é bem assim - disse Faolan precipitadamente. - Eu faço-me pagar bem.

- Não me importo - disse Bridei.

- Nesse caso, estamos de acordo. - Faolan estendeu a mão e Bridei apertou-a. - Eu quero ficar aqui. Pensei que não precisava de to dizer.

- Guarda-costas. Dias longos, noites sem dormir, ansiedade constante.

- É o que eu faço. Está de acordo com a minha natureza. Além disto, levarei a cabo as missões periódicas em terreno Dalriada que fazia no tempo do rei Drust, o Touro. Tu não te podes dar ao luxo de dispensar um bom serviço de informações.

- Não - concordou Bridei. - Nem um bom amigo. Tu vais descobrir, com o tempo, o significado desta palavra. Vem, vamos enfrentá-los outra vez. Não gosto de deixar Tuala sozinha durante muito tempo. Isto é tudo novo para ela.

Faolan sorriu.

- Tal como tu, ela parece ser capaz de aprender com uma rapidez espantosa. Ides formar um par espantoso, tu e ela.

- Espero que sim - disse Bridei. - O reino depende disso. 

 

                                                                                Juliet Marillier 

 

 

                                         

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