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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ESPELHO REVELADOR / Walter Scott
O ESPELHO REVELADOR / Walter Scott

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O ESPELHO REVELADOR

  

 

A tia Margarida pertencia a essa classe de irmãs sobre quem recaem todos os cuidados, todas as preocupações ocasionadas pelas crianças, excepto aquelas que estão ligadas à sua chegada a este mundo. A nossa família era numerosa e composta de crianças de diversos caracteres e de diferentes temperamentos. Os que eram tristes e de mau humor, mandavam-nos à tia Margarida para que ela os divertisse; os impetuosos, bruscos e turbulentos, mandavam-nos à tia Margarida para que os acalmasse, ou antes, para se livrarem deles e do barulho que faziam. Mandavam-lhe os que estavam doentes para ela os tratar; os teimosos para os submeter com a sua doçura e brandas reprimendas. Em resumo, desempenhava todos os deveres de uma mãe, sem ter as honras e dignidades conferidas pelo carácter maternal.

Mas o termo dos seus trabalhos chegou; de todas as crianças fracas ou robustas, meigas ou traquinas, tristes ou alegres, que enchiam a sua pequena sala de manhã à tarde, nenhuma existe já, excepto eu, que, atormentado por enfermidades precoces, mesmo assim lhes sobrevivi.

É ainda e será hábito meu, enquanto puder fazer uso das pernas, ir visitar a minha respeitável parente, pelo menos três vezes por semana. A sua casa fica a meia milha, nos arredores da cidade onde vivo; Tem acesso não pela estrada principal da qual fica perto mas ainda por um caminho tapetado de relva, serpeando por prados verdejantes. Tenho tão poucas preocupações na vida, que um dos meus maiores desgostos é saber que muitos destes campos estão destinados a construções. No que fica mais perto da cidade, vi durante muitas semanas tão grande quantidade de carrinhos de mão, que chego a acreditar que toda a sua superfície, numa profundidade de dezoito polegadas pelo menos, foi levantada nestes carros de uma só roda e transportada para outro local. Imensas pilhas triangulares de pranchas amontoaram-se em diversos pontos deste prado condenado e o pequeno grupo de árvores, que ornamenta o lado oriental e se ergue num cabeço pouco elevado, acaba de receber a sua sentença de morte, anunciada por uma caiadela branca no tronco; as pobres árvores devem ser substituídas por um grupo de chaminés.

Talvez outros se afligissem com a minha posição ao pensarem que esses prados pertenciam outrora a meu pai, cuja família gozava de certa consideração, e que foram vendidos aos bocados, para remediar as dificuldades em que se debatia, tentando dessa forma reparar a sua abalada fortuna. Enquanto os projectos dos construtores se desenvolviam com vigor, os amigos, velando cuidadosamente para que nenhum dos nossos infortúnios nos passasse despercebido, diziam-me muitas vezes:

- Campos assim, situados tão perto da cidade, renderiam, em nabos e batatas, vinte libras esterlinas por cada geira. E foram vendidos para construção! Representavam uma mina de oiro e o antigo proprietário vendeu-os por uma bagatela".

Os meus consoladores, porém, não conseguiam provocar lamentos a este respeito. E se me fosse permi-" tido lançar um olhar ao passado, abandonaria de boa vontade a minha fortuna presente e as minhas esperanças futuras aos que compraram o que meu pai vendeu. Lamento todas estas alterações apenas porque destroem as minhas recordações e preferia - parece-me - ver o Cerrado do Conde - em mãos estranhas, se elas lhe conservassem o seu aspecto campestre a conservar a sua posse, se fossem revolvidos para agricultura ou para construções. As minhas sensações são as do pobre Logan: Relva da minha infância, amigo consolador Teatro das minhas brincadeiras, verde prado Desapareceste sob a relha do arado destruidor O machado arrancou o espinheiro florido Onde o alegre estudante procurava com ardor Contra o calor do dia um abrigo protector

 

No entanto, espero que a terrível devastação não seja consumada durante a minha vida. Embora o espírito aventureiro da época tenha concebido o projecto, desta empresa, tenho bases para acreditar que as desilusões sofridas arrefeceram um pouco o entusiasmo dos especuladores e que o campo arborizado e o atalho que conduz a casa da tia Margarida sejam poupados durante os seus dias e os meus. Estou nisso interessado, porque cada passo do caminho depois de ter atravessado o prado, encerra recordações da minha infância. Eis a escada, se bem me lembro, que uma garota atrevida me auxiliou a subir, censurando a minha fraqueza, para transpor a barreira escarpada que meus irmãos trepavam a correr. Recordo, com amargura, esse instante e, convicto da minha inferioridade e do sentimento profundo de inveja com que via os movimentos ágeis e os membros elásticos de meus irmãos mais bem constituídos. Infelizmente, essas barcas sólidas soçobraram todas no imenso oceano da vida e a que parecia tão pouco digna de ser lançada ao mar desafiou as tempestades e alcançou o porto.

Eis o lago onde, manobrando a pequena flotilha feita de juncos, meu irmão mais velho caiu e foi salvo a custo, para ir morrer mais tarde debaixo das ordens de Nelson. Eis a moita de aveleiras onde meu irmão Henrique foi colher avelãs, não podendo adivinhar que iria morrer na selva indiana, tentando ganhar rupias.

Os arredores deste pequeno atalho encerram tanta recordação que, quando paro encostado à bengala que me serve de muleta e olho em volta de mim, quando penso no que fui e no que sou hoje, chego a duvidar da minha própria identidade, até ao momento em que me encontro diante da porta florida de madressilva da casa da tia Margarida, casa de fachada irregular, cujas janelas de rótulas e em estilo gótico, me fazem crer que os operários, de propósito, as construíram diferentes umas das outras na forma, no tamanho, na pedra que as rodeia de um gosto deliciosamente antiquado, e no lambel que as ornamenta. Esta casa, em tempos o solar do Cerrado do Conde, ainda nos pertence, porque, por certas combinações de família, a tia Margarida conserva a sua posse enquanto for viva. Essa pequena propriedade da família de Bothwell, do Cerrado do Conde, é tudo quanto resta da herança paterna. Quando por morte da minha velha parente, a casa passar para mãos estranhas, o único representante da família será um velho enfermo, vendo sem pesar a morte aproximar-se, a morte que devorou todos os objectos da sua afeição.

Quando dei livre curso a estes pensamentos durante alguns minutos, entrei no solar que, digamos de passagem, se compunha apenas de um pavilhão, resto da primitiva construção e vi a pessoa sobre quem o tempo parecera não influir. No entanto, havia tão grande diferença entre a tia Margarida de hoje e a tia Margarida da minha infância como entre a criança de seis anos e o homem de cinqüenta anos que sou, O trajo da velha senhora, porém, muito contribuía para nos fazer acreditar que o tempo esquecera a tia Margarida.

 

O vestido castanho ou cor de chocolate com punhos do mesmo tecido, por cima dos quais caíam outros em renda de Malines; as luvas ou mitenes de seda preta, os cabelos brancos puxados para trás e a touca de cambraia branca que rodeava a cabeça veneranda, eram coisas que, se não constituíam o trajo usado em 1780, muito menos o de 1826; era o trajo espacial da tia Margarida, eis tudo. Sentar-se onde há trinta anos se sentava, com a roca ou o trabalho de malha, junto da lareira durante o Inverno ou perto da janela no Verão. Nas noites mais quentes atreve-se a ir até ao jardim, não muito longe da porta. As pernas, como peças sólidas de qualquer mecanismo, ainda desempenham a missão para que foram construídas, com uma actividade que diminui gradualmente, mas que não indica ainda a possibilidade de pararem por completo.

A solicitude e o afecto que fizeram a tia Margarida escrava voluntária de uma quantidade de crianças têm agora por objecto a saúde e o bem-estar de um homem velho e enfermo, o único parente que lhe resta e a única pessoa que pode achar interesse nas tradições que ela guardou como o avaro que oculta o seu ouro para que ninguém possa gozá-lo depois da sua morte.

A minha conversa com a tia Margarida raramente se refere ao presente ou ao futuro, porque o passado encerra tudo quanto lamentamos e nada mais desejamos. Quanto ao que deve seguir-se não temos desse lado esperanças, receios ou preocupações. Apenas a perspectiva do túmulo. Em conseqüência, voltamo-nos para o passado e esquecemos o estado precário da nossa fortuna presente, a decadência da nossa família, recordando os tempos da sua riqueza e prosperidade.

Depois desta ligeira introdução, o leitor fica conhecendo a tia Margarida e o sobrinho, o bastante para compreender a narrativa que vai seguir-se.

Na semana passada, numa tarde de Verão quase no fim, visitei a velha senhora com quem o leitor já travou conhecimento e fui recebido por ela com o afecto e bondade do costume, mas ao mesmo tempo achei-a pensativa, propensa ao silêncio. Quis saber a razão.

- Limparam a velha capela - respondeu-me - John Cleighudgeons, segundo parece, descobriu que o seu conteúdo - suponho que os restos dos nossos avós - convinha muito bem para adubar os campos.

Ao ouvir estas palavras, estremeci com mais vivacidade do que o fazia havia muitos anos. Sentei-me, enquanto minha tia acrescentava, poisando a mão sobre o meu braço:

- A capela há muitos anos que é, considerada como uma dependência, meu caro, e ütilizavam-na como curral. Como podemos censurar um homem que emprega o que lhe pertence em seu proveito? Além disso, falei-lhe e ele prometeu-me muito amàvelmente que, se encontrassem ossos ou túmulos, os respeitariam e os deixaria no seu lugar. Que mais poderia desejar? Na primeira pedra sepulcral que encontraram estava gravado o nome de Margarida Bothwell, 1585; ordenei que a pusessem de lado, pois considero o achado como um presságio de morte. A pedra que durante duzentos anos serviu àquela de quem uso o nome, foi encontrada a tempo de me prestar de novo o mesmo serviço. Há muito que tenho tudo em ordem, no que se refere a assuntos deste mundo; mas quem pode afirmar ter a paz e o Céu assegurados?

 

- Pelo que acaba de dizer, tia - repliquei - talvez fosse melhor eu pegar no chapéu e retirar-me. Por certo o faria se não adivinhasse que na sua devoção existe também um pouco de confusão. Pensar na morte seja quando for, é um dever; mas supô-la próxima só por ter encontrado uma pedra sepulcral com o seu nome, é uma superstição. E a tia, cujo espírito e raciocínio foram por muito tempo guias de uma família caída em decadência, é a última pessoa a quem eu suporia sujeita a semelhante fraqueza.

- Não mereceria as tuas suspeitas, sobrinho, se falássemos de qualquer outro acidente da vida humana, que se relacionasse com o presente ou com o futuro. Mas, no que se refere ao passado, acuso-me de alimentar uma superstição da qual não desejo libertar-me. É um sentimento que me isola deste século e me liga àqueles a quem em breve me vou reunir. E mesmo hoje, quando estas idéias me apontam o túmulo entreaberto e me convidam a contemplá-lo, não gostaria de as varrer do espírito. Mas essas idéias só têm império na minha imaginação e não influem na razão nem na conduta.

- Na verdade, minha boa tia, se qualquer outra pessoa me fizesse declaração semelhante, acusá-la-ia de ser tão caprichosa como o ministro que, sem procurar defender o seu texto errado, preferiu, apenas por hábito, o velho mumpsimus ao moderno sumpsimus.

- Vou explicar-te a minha inconsequência neste ponto, comparando-a com outra - respondeu a minha tia - Pertenço, como sabes, àquela classe de pessoas de outro tempo a quem chamavam jacobitas. Mas sou jacobita apenas por sentimento e tradição, porque nunca súbdita mais leal juntou as suas preces às que todos os dias se erguem ao céu pela saúde de Jorge IV. Que Deus lhe conceda longa vida! Mas tenho a certeza de que o nosso bom soberano não se sentirá ofendido porque uma velha dama, enterrada na sua poltrona, num dia escuro como o de hoje, pensa nos homens corajosos que consideraram ser seu dever pegar em armas contra o avô, numa causa que supunham ser a do seu príncipe legítimo e da pátria: "Combateram até que - as mãos lhes ficaram coladas aos punhos das espadas e, embora "a sorte lhes fosse adversa, não perderam a coragem".

"Neste momento, em que tenho a cabeça cheia de plaids, de gaitas de foles, de espadas, não peças à minha razão para admitir aquilo que, receio-o muito, ela não poderá negar, quer dizer, que o bem público exige a abolição de tudo quanto povoa os meus sonhos. Não posso, é verdade, deixar de reconhecer a justiça dos teus raciocínios, mas, convencida contra minha vontade, pouco ganhaste com as tuas demonstrações. Seria como se lesses a um homem apaixonado o catálogo das imperfeições da sua amada. Depois de o teres obrigado a escutar a enumeração, obterias como única resposta que, apesar de tudo, a ama cada vez mais.

Estava satisfeito por ter desviado o curso melancólico dos pensamentos da tia Margarida e respondi-lhe no mesmo tom:

- Não posso deixar de pensar que o nosso bom rei está certo da leal afeição de Mrs. Bothwell, pois além do direito que resulta do "Acto da Sucessão", tem ainda, a seu favor, o direito de nascimento dos Stuarts.

 

- Pode ser que a minha dedicação se baseie na reunião dos direitos a que te referes e seja mais forte por isso mesmo. Mas, por minha honra, seria tão sincera, se os direitos do rei se fundassem apenas no voto do povo, como declarou na revolução. Não sou dessas pessoas de jure divino.

- E, contudo, é jacobita.

- Sim, sou jacobita ou antes, dou-te licença para me considerares desse partido, chamado o partido dos fantásticos, no tempo da rainha Ana, porque se deixavam guiar tanto pelas suas impressões como pelos seus princípios. No fim de contas, é estranho que não queiras conceder a uma velha o direito de ser tão pouco conseqüente nos seus sentimentos políticos, como os homens o são, em geral, nos diversos incidentes da vida. Não poderás citar-me um cujas paixões e preconceitos não o afastem, constantemente, do caminho indicado pela razão.

- Tudo isso é verdade, mas a tia é uma dessas pessoas que se desviam por prazer e a quem devemos obrigar a retomar o bom caminho.

- Poupa-me, por favor. Recordas-me a canção gaélica que vou repetir-te, embora a minha pronúncia seja defeituosa: Halil, mohalil, na dowski mi (Sei que durmo, mas não me acordes). Afirmo-te, sobrinho, que os sonhos em que se perde a minha imaginação e aos quais chamas caprichos do meu espírito, valem todos os sonhos da minha mocidade. Agora, em vez de transportar para o futuro e de erguer palácios encantados, à beira do túmulo, volto-me para o passado e penso nos dias e nos costumes do meu tempo, nas recordações tristes, mas consoladoras, que se me tornaram queridas, e digo a mim mesma que é quase um sacrilégio ser mais sensata, mais razoável, menos cheia de preconceitos do que nos dias da minha mocidade.

- Parece-me compreender agora o que pretende dizer e concebo que prefira, de tempos a tempos, a luz vacilante da ilusão à claridade fixa da razão.

- Quando termino os trabalhos do dia e; já não me restam tarefas a desempenhar, posso, se isso me agrada, conservar-me às escuras. É só quando trabalhamos que precisamos de velas.

- E é nessa obscuridade - atalhei - que a imaginação cria visões encantadas e muitas vezes consegue persuadir os sentidos da sua realidade.

- É isso - confirmou a tia Margarida, cuja memória prova que leu os poetas - segundo diz o tradutor de Tasso: - Poderoso é o poeta cujo espírito exaltado admite as mágicas maravilhas que canta. - Não se torna necessário experimentar as sensações desagradáveis que a crença real em tais prodígios provoca. Actualmente, essas crenças são atribuídas às crianças e aos espíritos fracos. Não é preciso, tão pouco, sentir um zumbido nos ouvidos e empalidecer, como Teodora quando viu o espectro do caçador. Tudo quanto se exige para se experimentar a doce sensação de um terror sobrenatural, é ser susceptível de sentir ligeiro calafrio ao escutar um conto assustador, conto que um narrador hábil, começando por exprimir a sua incredulidade pelo maravilhoso, conta como existindo nele qualquer coisa que lhe é impossível explicar. Outro sintoma, a hesitação momentânea em olhar em volta de nós, no momento em que esse conto atinge o auge do interesse; terceiro, o desejo de evitar olhar para um espelho quando, à noite, nos encontramos sozinhos no nosso quarto. Estes indícios provam que a imaginação de uma mulher está na disposição favorável para escutar uma história de almas do outro mundo. Não pretendo mencionar aqueles que indicam a mesma disposição num homem.

- O terceiro sintoma de evitar olhar para o espelho deve ser muito raro no belo sexo.

- És um novato nessas coisas, sobrinho. Toda a mulher consulta o espelho com ansiedade antes de ir a qualquer festa, mas no regresso, o espelho não tem para ela a mesma atracção. Os dados já foram lançados e a impressão que desejava causar teve ou não teve sucesso. Mas, sem ir mais longe nos segredos dos espelhos, dir-te-ei que eu própria, assim como muitas pessoas sensatas, não gosto de ter um espelho grande no quarto, quando este tem pouca luz ou a claridade projectada por uma vela parece perder-se nas profundidades do espelho, em vez de se espalhar pelo aposento. O espaço ocupado pelas trevas, constitui vasto campo para a imaginação criar quimeras; chama outras feições e não as nossas ou então, como nas aparições da velha no dia de Todos os Santos, nos mostra um rosto desconhecido, espreitando por cima do nosso ombro. Enfim, quando estou mal disposta, peço à minha criada de quarto para puxar o cortinado verde para cima do espelho do meu toucador, antes de entrar no quarto, para que, se houver alguma aparição, seja ela a receber o choque. Mas, para te dizer a verdade, essa antipatia de olhar para o espelho em determinadas alturas e em certos lugares, resulta, suponho, de uma história que conheço, por tradição, de minha avó, que desempenhou papel importante na cena que vou contar-te.

 

               O ESPELHO DA TIA MARGARIDA

- Agradam-te, sobrinho, descrições da sociedade de outrora. Gostaria de te descrever sir Filipe Forester, o mais completo libertino que vivia na Escócia nos fins do século passado. Não o conheci, mas as histórias de minha mãe estavam cheias do seu espírito, da sua galantaria e da sua devassidão. Este brilhante cavaleiro viveu, conforme já te disse, nos fins do século dezassete e começo do século dezoito. Era como o sir Charles Easy e o Lovelace do seu tempo e da sua terra, célebre pela quantidade de duelos que tivera e pelo número das intrigas amorosas; a sua superioridade adquirida numa sociedade onde a moda imperava era absoluta e quando reflectimos numa ou duas das suas aventuras, as quais, se as leis fossem feitas para todas as classes, o levariam à forca, a indulgência de que gozava, isso serve para provar que há mais decência, ou mesmo mais virtude, nos tempos presentes do que outrora e que as boas maneiras eram a esse tempo mais difíceis de conquistar do que presentemente, e que, em conseqüência, aquele que as possuía obtinha indulgências plenárias e previlégios para o seu procedimento. Nenhum galanteador daquela época obtinha, em proporção, tão plenas indulgências e previlégios para a sua conduta. Ninguém, naquela época, foi o herói de aventura mais terrível do que a da jovem Peggy Grindstone, a filha do moleiro em Sille-Mills.

Poderia ter dado que fazer ao lorde-advogado, mas não prejudicou mais a reputação de Filipe do que o granizo prejudica a pedra da lareira. Continuou a ser bem recebido na sociedade e jantou em casa do duque d'Argyle no dia em que a pobre rapariga morreu. Nada disto, porém, se relaciona com a minha história.

"Agora é preciso que te diga algumas palavras sobre os nossos parentes e aliados. Prometi não ser prolixa; mas é imprescindível, para sua autenticidade, saberes que sir Filipe, com a sua beleza, a sua distinção e modos elegantes, casou com a mais nova das Miss Falconer de King's Copland. A irmã mais velha casara muito antes com meu avô, sir Geoffrey, trazendo para a nossa família considerável fortuna. Miss Jemima ou miss Jemmie Falconer, como habitualmente lhe chamavam, possuía cerca de dez mil libras esterlinas, dote muito para considerar.

"As duas irmãs, em solteiras, não se pareciam nada, embora ambas tivessem os seus admiradores. Lady Bothwell tinha nas veias o sangue do velho King's Copland. Destemida, sem chegar a ser audaciosa, ambiciosa, desejando acima de tudo a elevação da sua casa e da família. Segundo opinião geral, representava como um aguilhão para meu avô, pessoa indolente que - salvo se for uma calúnia - por conselho da mulher se meteu em intrigas políticas que seria mais sensato evitar. No entanto, era senhora de sólidos princípios, raciocínio seguro, como o provam as cartas que ainda hoje conservo encerradas na minha secretária.

"Jemmie Falconer era a antítese da irmã; o seu espírito não ultrapassava os limites vulgares, se chegava a atingi-los. A sua beleza, enquanto existiu, consistia apenas na delicadeza da cutis e na regularidade das feições, sem qualquer expressão. Mesmo estes encantos se desvaneceram com os desgostos provocados por um casamento infeliz. Amava apaixonadamente o marido e este tratava-a com indiferença cortês que, para uma mulher de coração terno e mente fraca, era mais doloroso e ofensivo do que se lhe infligisse maus tratos. Sir Filipe era um voluptuoso, quer dizer, um autêntico egoísta, cujo carácter e inclinações se assemelhavam à espada que usava, fina, bem polida, brilhante, mas inflexível e sem piedade. Como cumpria cuidadosamente para com sua mulher todas as regras da delicadeza, conseguia privá-la até da compaixão da sociedade. E, conquanto ela seja inútil para as pessoas que conseguem alcançá-la, para um espírito como o de lady Forester era duro não poder obtê-la.

"As intriguinhas da sociedade colocavam o marido culpado muito acima da esposa ultrajada. Algumas pessoas classificavam lady Forester como uma pobre criatura sem carácter e afirmavam que se ela possuísse a energia da irmã, teria já metido na ordem todos os sir Forester deste mundo, fossem eles piores do que o temível Falconbridge. Mas a maior parte dos amigos dos dois esposos fazia alarde da sua sinceridade e reconhecia as culpas dos dois, conquanto, na verdade, existisse apenas um opressor e uma oprimida. Estes amigos sinceros falavam, desta maneira:

- com certeza ninguém pensa em justificar sir Filipe Forester, mas Jemmie Falconer já o conhecia bem e podia calcular o que a esperava. Quem a mandou meter-se à cara de sir Filipe? Ele nunca teria pensado em casar se ela não tivesse dado os primeiros passos, exibindo as suas pobres dez mil libras esterlinas. Salvo se ele tivesse precisão de dinheiro, comprometeu a felicidade de toda a sua vida. Conheço muitas mulheres que melhor teriam convido a sir Filipe, mas, em resumo, se quis por força casar com ele não seria melhor tentar tornar a casa agradável ao marido, reunir mais vezes os amigos, não o atordoar com os gritos das crianças, dar um aspecto elegante e de bom-gosto a tudo quanto o rodeia? Estou convencido de que sir Filipe seria melhor marido se sua mulher tivesse sabido cativá-lo".

"Os que construíam este brilhante edifício da felicidade doméstica esqueciam que lhe faltava a pedra angular. Que, para receber os amigos e apresentar boa mesa, as despesas do banquete deveriam ser feitas por sir Filipe, cuja fortuna, muito abalada, não podia suportar semelhantes gastos, tanto mais que a despendia com os seus prazeres particulares. Portanto, a despeito de tudo quanto diziam os caridosos amigos, sir Filipe era jovial e afável fora de casa e deixava a esposa desolada e o lar solitário.

"Por fim, com a fortuna muito abalada, fatigado com os curtos instantes que passava na sua triste casa, sir Filipe resolveu dar uma volta pelo Continente, na qualidade de voluntário. Nessa época, era vulgar, entre os homens de nascimento, adoptar esta resolução e talvez o cavaleiro pensasse que o carácter militar, sem o tornar pedante, reforçaria os seus meios e lhe conservaria a elevada situação que obtivera na sociedade. A resolução de sir Filipe causou a sua mulher todas as angústias do terror; o elegante baronete quase se comoveu. Contra seu hábito, deu-se ao incômodo de acalmar estes receios e provocou em sua mulher lágrimas que não eram só de dor. Lady Bothwell pediu, como um favor, o consentimento de sir Filipe para hospedar em sua casa a esposa e os filhos, enquanto durasse a ausência do chefe da família. Radiante, sir Filipe aceitou a proposta que lhe poupava despesas, impunha silêncio àqueles que o acusavam de abandonar sua mulher e os filhos e ao mesmo tempo satisfazia lady Bothwell, por quem sentia involuntário respeito, pois ela sempre lhe falara com franqueza, algumas vezes com severidade, sem se intimidar com as suas zombarias ou com o prestígio da sua reputação.

"Um ou dois dias antes da partida de sir Filipe, lady Bothwell tomou a liberdade de lhe fazer, em presença da mulher, uma pergunta positiva que esta desejara muitas vezes dirigir-lhe, sem ter coragem para isso.

- Pode ter a bondade de nos dizer, sir Filipe, para onde vai, quando chegar ao Continente?

- Vou por mar, de Leith a Helvoet.

- Está muito bem - replicou secamente lady Bothwell - Mas presumo que não tem intenção de permanecer muito tempo em Helvoet e desejo saber para onde vai quando abandonar essa cidade.

- Lady Bothwell faz-me uma pergunta que ainda não formulei a mim próprio. A minha resposta depende dos acasos da guerra. Como é natural, dirigir-me-ei ao quartel general, esteja onde estiver, para apresentar as minhas cartas de recomendação. Aprenderei ali tudo quanto um pobre amador como eu deve saber da nobre profissão das armas e só então poderei tomar parte nessa espécie de combates que os jornais relatam.

- Espero, sir Filipe, que não se esqueça de que é marido e pai e, embora tenha achado conveniente satisfazer esse capricho militar, não afronte perigos desnecessários para quem não é soldado de profissão.

- Lady Bothwell honra-me, manifestando interesse pela minha segurança. Mas, para acalmar essa lisonjeira inquietação, pedirei para se recordar de que não posso expor a vida do venerável pai de família que recomenda à minha protecção, sem arriscar a de um excelente rapaz chamado Filipe Forester com quem estou ligado há mais de trinta anos, sem o menor desejo de me separar dele.

- Sir Filipe é o melhor juiz do que lhe diz respeito. Não tenho o direito de lhe dar conselhos. O senhor não é meu marido.

- Deus me livre!... - exclamou sir Filipe com precipitação. No mesmo instante, porém, apressou-se a acrescentar - Deus me livre de privar o meu amigo sir Goeffrey de um tesouro tão valioso.

- Mas o senhor é marido de minha irmã - replicou lady Bothwell - e suponho que não ignora a tristeza que a esmaga.

- Se o ouvir falar nela desde manhã até à noite fosse o suficiente para me convencer, com efeito, não devo ignorá-la.

- Não pretendo travar um duelo de ditos de espírito consigo, sir Filipe, mas deve saber que essa tristeza é causada pelo temor dos perigos que vai afrontar.

- Nesse caso, surpreende-me que lady Bothwell se preocupe tanto com um assunto tão insignificante.

- O interesse que dedico a minha irmã justifica o meu desejo de conhecer os intuitos de sir Filipe Forester, cujo destino, sem isso, me seria indiferente. Infelizmente, preocupo-me também por causa da segurança de meu irmão.

- Refere-se ao major Falconer, seu irmão pelo lado de sua mãe? Que tem ele a ver com a nossa agradável conversa?

- Falou com ele, sir Filipe?

- Naturalmente. Somos aliados e como tal encontramo-nos muitas vezes.

- Está a sofismar a minha pergunta. Por falar quero eu dizer que questionaram por causa do seu comportamento com sua mulher.

- Se julga o major Falconer tão tolo que me dê conselhos sobre a minha vida doméstica, lady Bothwell pode, nesse caso, admitir que lhe manifestei o meu descontentamento e lhe pedi para guardar os seus conselhos até que eu me dignasse pedir-lhos.

- E é nessa disposição que pensa reunir-se ao exército onde meu irmão presta serviço?

- Ninguém conhece melhor os caminhos da honra do que o major Falconer e um pobre candidato à glória como eu não pode escolher melhor guia.

- Essa ironia fria e insensível é a única consolação que encontra para os receios por nós concebidos sobre uma questão que pode trazer terríveis conseqüências! Santo Deus! De que matéria é feito o coração dos homens para poderem assim regozijar-se com os nossos sofrimentos!

"Sir Filipe Forester ficou impressionado e renunciou ao tom de zombaria que até então empregara.

- Querida lady Bothwell - disse, pegando na mão que a cunhada lhe abandonou com repugnância ambos tivemos culpas. A senhora é demasiado séria e eu não o sou bastante. A zanga que tive com o major Falconer não merece importância; se entre nós existisse qualquer coisa que devesse terminar em vias de facto, como dizem em França, nenhum de nós era homem para adiar o encontro. Permita-me que lhe diga que, se a senhora ou lady Falconer manifestassem inquietações a esse respeito, seria o meio mais certo de provocar uma catástrofe que, provavelmente, nunca se dará. Conheço o seu bom-senso, lady Bothwell, e por certo compreende se lhe disser que os meus negócios exigem uma ausência de alguns meses. Jemima, porém, não conseguiu compreender e esmagava-me com uma série de perguntas. E, quando chegasse ao fim sem obter resultado, voltava ao princípio. Agora, lady Bothwell, tenha a bondade de dizer que eu tenho razão. Sua irmã, tem de concordar, é uma daquelas pessoas que obedecem mais à autoridade do que aos argumentos. Conceda-me um pouco de confiança e verá que serei digno dela.

"Lady Bothwell abanou a cabeça, como pessoa pouco convencida.

- É difícil - replicou - conceder a nossa confiança a alguém que tantas vezes nos desiludiu! Enfim, farei o possível por tranqüilizar Jemima. Quanto às suas promessas, torno-o responsável por elas perante Deus e perante os homens.

- Não suponha que desejo enganá-la. A forma mais simples de se corresponderem comigo, será dirigirem as cartas para a posta restante de Helvoetsluys, onde eu darei ordem para mas enviarem para o local onde me encontrar. Quanto a Falconer, o nosso primeiro encontro terá lugar diante de uma garrafa de Borgonha. Portanto, pode estar descansada a seu respeito.

"Lady Bothwell não ficou muito tranqüila. Porém, no íntimo, estava certa de que a irmã estragara a própria vida, tomando as coisas muito a sério e demonstrando diante de estranhos, pelos modos e até por palavras, quanto a viagem do marido lhe desagradava, facto que chegava sempre aos ouvidos de sir Filipe e excitava o seu ressentimento. No entanto, para estas dissenções domésticas não havia remédio e elas duraram até ao dia da separação.

"Aborrece-me não poder dizer com precisão o ano em que sir Filipe partiu para França, mas foi numa altura em que a guerra se acendia com mais furor. Entre os franceses e os aliados travaram-se algumas escaramuças pouco decisivas, mas sangrentas. De todos os progressos modernos um dos maiores é a rapidez e a exactidão com que as notícias dos acontecimentos desenrolados num país chegam àquele que se interessa por esses acontecimentos. Durante as campanhas de Marlborough, os sofrimentos dos que tinham parentes ou amigos no exército eram aumentados pela incerteza em que estavam mergulhados durante muitas semanas depois de ter conhecimento de que sangrentas batalhas se haviam travado e nas quais tinham combatido aqueles cujo nome lhes faziam palpitar o coração. Entre as pessoas a quem mais cruelmente esta incerteza atormentava contava-se... ia quase a dizer a mulher abandonada de sir Filipe Forester. Jemima recebera uma única carta, comunicando a chegada do marido ao Continente. Depois, mais nada. Uma notícia nos jornais fez referência ao voluntário sir Filipe Forester, dizendo que fora enviado para um reconhecimento perigoso, missão que cumprira não só com coragem, mas com habilidade e inteligência. Por isso recebera - acrescentava a notícia - os agradecimentos do comandante. A satisfação causada pela distinção que o marido alcançara levou às faces pálidas de lady Forester um pouco de cor, palidez que voltou a cobri-las quando pensou nos perigos que havia corrido. Depois disso, as duas irmãs nada mais souberam, nem de sir Filipe nem do irmão, o major Falconer.

"A posição de lady Forester era idêntica à de centenas de mulheres; mas um espírito fraco torna-se naturalmente irritável e esta incerteza, que umas suportavam com indiferença, outras com filosófica resignação, e outras ainda com a disposição de ver tudo pelo melhor, era intolerável para lady Forester, pessoa sensível, honesta, pronta a perder a coragem e desprovida de toda a força de espírito.

 

"Não recebendo notícias de sir Filipe, nem directamente, nem por forma indirecta, a infeliz Jemima acabou por encontrar consolação na negligência que tanto a fizera sofrer.

- Filipe é tão despreocupado, tão leviano! - dizia à irmã mais de cem vezes ao dia - Nunca escreve quando não tem qualquer coisa de novo a contar. É hábito seu. Se algo de extraordinário tivesse acontecido, informar-nos-ia.

"Lady Bothwell escutava-a e não tentava consolá-la. Talvez pensasse que as piores notícias vindas da Flandres teriam o seu lado bom e que a viúva Forester, se o destino quisesse que ela usasse esse triste título, poderia destinar uma felicidade desconhecida à esposa do mais brilhante e distinto cavaleiro da Escócia.

"Esta convicção tornou-se mais forte quando, por informações colhidas no quartel general, se soube que sir Filipe já não se encontrava no exército, fosse por ter sido feito prisioneiro ou morto em qualquer das escaramuças das que a todo o instante se travavam e nas quais ele gostava de se tornar notado, ou porque, por qualquer razão desconhecida ou por capricho, deixasse voluntariamente o serviço, sem que qualquer dos seus compatriotas ou amigos no acampamento pudesse formular conjecturas. Entretanto, na Escócia, os credores de sir Filipe tomavam-se insistentes, apossaram-se dos seus bens e ameaçaram-no de o mandar prender se voltasse à pátria. Estas novas desgraças agravaram o ressentimento de lady Bothwell contra o marido da irmã, ao passo que esta em tudo aquilo não via mais do que um motivo para deplorar a ausência daquele que na sua imaginação continuava a ver como o vira na altura do casamento, isto é, elegante, amável e galanteador.

 

"Nessa época, chegou a Edimburgo um homem cujo aspecto era tão estranho como as suas pretensões. Chamavam-lhe o doutor de Pádua, por ter estudado na famosa universidade daquela cidade. Diziam-no sabedor de extraordinárias receitas com as quais, afirmavam, fizera curas espantosas. Mas, embora os médicos de Edimburgo lhe chamassem curandeiro, muitas pessoas, entre as quais se encontravam algumas pertencentes à Igreja, não admitiam' a realidade das curas e a eficácia dos remédios, alegavam que o doutor Damiotti empregava a feitiçaria e meios ilegais para confirmar o êxito das suas receitas. Proibiram, mesmo do alto dos púlpitos, que recorressem a ele que procurassem a saúde por meio de ídolos e confiassem num socorro que vinha do Egipto. Porém, a protecção que o doutor de Pádua recebeu de alguns amigos poderosos permitiu-lhe desafiar estes ataques e alcançar na própria cidade de Edimburgo, célebre pelo seu horror aos magos e feiticeiros, a perigosa reputação de adivinho do futuro. Dizia-se que, mediante certa quantia, que, como seria de calcular, devia ser considerável, o doutor Baptista Damiotti conseguia saber o destino dos ausentes e até mostrar às pessoas que o consultavam a forma corporal dos amigos e o que estavam fazendo.

Nesse momento. Esta notícia chegou aos ouvidos de lady Forester, que atingira os últimos limites da inquietação e chegara ao ponto em que um infeliz lança mão de todos os expedientes para obter uma certeza.

"Branda e tímida em qualquer circunstância da vida, no estado de espírito em que se encontrava, lady Forester tornou-se ousada e obstinada. Foi com alarmada surpresa que lady Bothwell ouviu Jemima declarar que estava disposta a fazer uma visita ao doutor de Pádua para o consultar sobre o destino do marido.

"Em vão lady Bothwell tentou demonstrar-lhe que as pretensões do estrangeiro só podiam ter por base a impostura.

- Não me interessa - replicou a esposa abandonada-o ridículo a que me exponho. Se houver uma probabilidade sobre cem de saber o que foi feito; de meu marido não a trocaria por tudo quanto de melhor pudessem oferecer-me.

"Lady Bothwell lembrou-lhe a ilegalidade de recorrer a um conhecimento adquirido por meio de uma arte proibida.

- Minha querida irmã - replicou Jemima - ninguém consegue impedir que o sequioso mate a sede numa nascente envenenada. Quem vive numa incerteza como a minha tem de saber, mesmo que o poder que lhe oferece a luz seja proibido ou diabólico. Irei sozinha e hoje mesmo quero conhecer a minha sorte. Quando o Sol nascer amanhã encontrar-me-á, se não mais feliz, pelo menos resignada.

- Se estás decidida a dar semelhante passo – replicou lady Bothwell - não irás sozinha, irmã. Se esse homem é um impostor, a tua emoção pode dominar-te a tal ponto que não te deixe descobrir: como te engana; pelo contrário, se existir na sua arte um fundo de verdade, o que eu não acredito, não estarás só para receber comunicações de natureza tão estranha. No entanto, peço-te para reflectires ainda algum tempo nesse projecto e renunciares a obter uma certeza que não conseguirás obter sem te tornares culpada, e talvez com perigo.

"Lady Forester lançou-se nos braços da irmã e, apertando-a contra o coração, agradeceu-lhe calorosamente por lhe ter proposto a sua companhia, enquanto ela recusava obstinadamente seguir o conselho fraternal que acompanhara o oferecimento.

 

"Quando a noite caiu, hora a que o doutor de Pádua costumava receber os seus clientes, as duas senhoras abandonaram a sua casa de Canongate de Edimburgo, trajando como pessoas de classe inferior, com o plaid dissimulando o rosto, conforme o usavam as mulheres. Naquele tempo aristocrático, a categoria de uma pessoa de sexo feminino era indicada pela forma como estava disposto o seu plaid e também pela finura do tecido. Fora lady Bothwell quem sugerira esta espécie de disfarce, em parte para evitar serem conhecidas quando se dirigissem a casa do adivinho e também para experimentar a penetração desse homem, aparecendo diante dele sob uma falsa aparência.

"O criado de lady Forester, homem de uma fidelidade a toda a prova, levara ao doutor, da parte da ama importante donativo para conquistar as suas boas graças. Informara-o de que a mulher de um soldado desejava conhecer a sorte do marido, assunto sobre o qual, segundo todas as probabilidades, o sábio doutor era muitas vezes consultado.

"Até ao último momento, isto é, quando o relógio, bateu oito horas, lady Bothwell observou a irmã, esperando que renunciasse ao temerário projecto; mas, como a timidez e até a fraqueza são susceptíveis em certos momentos de desígnios firmes e resolutos, viu lady Forester inabalável na sua determinação quando chegou a hora da partida. Profundamente descontente, mas decidida a não a abandonar em semelhante circunstância, lady Bothwell acompanhou Lady Forester pelas ruas escuras. O criado caminhava adiante e servia-lhes de guia. Por fim, parou num pátio estreito e bateu numa porta em forma de arco que parecia pertencer a um palácio antigo; esta abriu-se sem que se visse o porteiro, e o criado, afastando-se para o lado, pediu às duas senhoras para entrarem. Mal o fizeram, a porta fechou-se atrás delas e separou-as do seu guia. As duas irmãs encontraram-se em pequeno vestíbulo, iluminado por uma lâmpada que derramava uma claridade lúgubre, não tendo, logo que a porta se fechou, comunicação com o ar ou com a claridade exterior. No ponto mais afastado do vestíbulo abria-se a porta que dava para um aposento.

- Agora não podemos hesitar, Jemima - observou lady Bothwell.

"E, dirigindo-se para essa porta, entraram e viram o doutor sentado diante de uma mesa, rodeado de livros, de mapas geográficos, de instrumentos de física e de outras máquinas de forma e aparência estranhas.

"A pessoa do Italiano nada tinha de particular. Era moreno, de feições acentuadas como todos os homens da sua nacionalidade e devia ter perto de cinqüenta anos. Trajava de preto, como todos os médicos nessa época. O trajo era rico, mas simples. Grandes velas, ardendo em candelabros de prata, iluminavam o aposento razoavelmente mobilado. Levantou-se quando as senhoras entraram e, a despeito do trajo que indicava baixo nascimento, recebeu-as com todas as marcas de respeito exigida pela sua posição e que são sempre prestadas pelos estranhos às pessoas a quem são devidas,

"Lady Bothwell tentou conservar o incógnito que adoptara e como o médico as conduzisse para o lugar de honra, tentou recusar semelhante delicadeza.

- Somos umas pobres mulheres - declarou - e só a infelicidade de minha irmã pôde decidir-nos a vir consultá-lo.

 

"O doutor sorriu e, interrompendo Lady Bothwell, disse-lhe:

- Minha senhora, conheço a infelicidade de sua irmã. Sei também que sou honrado com a visita de duas damas de alta categoria, lady Bothwell e lady Forester. Se não pudesse reconhecê-las a despeito do trajo indicar que pertencem a classe inferior, não haveria muitas probabilidades de que fosse capaz de lhes dar as informações que vêm procurar.

- Admito que... - ia a dizer lady Bothwell.

- Perdoe-me a ousadia de a interromper – atalhou o Italiano - Vossa Senhoria ia afirmar que admitia tivesse eu sabido o seu nome por intermédio do criado. É injusta para a fidelidade de um velho servidor e para o talento deste vosso humilde servo, Baptista Damiotti.

- Não era minha intenção ser injusta para um ou para outro - declarou lady Bothwell com toda a calma, embora tivesse ficado admirada - Mas a posição em que me encontro é absolutamente nova para mim. Se sabe quem somos, deve saber também o que nos traz aqui.

- O desejo de conhecer a sorte de um dos mais distintos cavaleiros da Escócia, que se encontra ou já se encontrou no Continente - respondeu o adivinho - Chama-se Filipe Forester, cavaleiro que tem a honra de ser marido desta senhora e - perdoe-me Vossa Senhoria-que tem a infelicidade de não saber apreciar no seu justo valor tão preciosa vantagem.

"Lady Forester suspirou profundamente, enquanto lady Bothwell prosseguia:

- Se conhece as nossas intenções, só me resta fazer uma pergunta. Tem o poder de acalmar a inquietação de minha irmã?

- Tenho, sim, - madame. Porém, antes de mais nada, devo fazer-lhes uma pergunta indespensáveL Terão a coragem de contemplar com os vossos próprios olhos o que faz neste momento o cavaleiro Filipe Forester? Ou contentam-se com as minhas informações?

- Só minha irmã pode responder a essa pergunta

- declarou lady Bothwell.

- Quero ver com meus próprios olhos aquilo que puder mostrar-me - afirmou Lady Forester com a mesma temeridade que estimulara todos os seus actos desde que tomara a resolução de ir consultar o adivinho.

- Pode haver perigo.

- Se o ouro pode compensar... - começou lady Forester, pegando na bolsa.

- Não faço estas coisas por amor ao dinheiro

- respondeu o Italiano - Não me atrevo a dizer a minha arte, nestas circunstâncias. Se aceito o ouro dos ricos é para o dar aos pobres. Não exijo mais do que, a soma recebida das mãos do vosso criado. Guarde a sua bolsa, madame, um adepto desta doutrina não precisa de ouro.

"Lady Bothwell pensou que a recusa não era mais do que uma habilidade impírica para lhe oferecerem uma quantia maior e, desejando que tudo acabasse o mais depressa possível, fez a sua oferta também, afirmando que o fazia para alimentar o âmbito das suas obras de caridade.

 

- Lady Bothwell pode alargar o seu - respondeu o doutor de Pádua-não só dando esmolas, pois sei que dá bastantes, mas não fazendo maus juízos do carácter dos outros. E que faça a honra a Baptista Damiotti de o considerar honesto, até descobrir ser ele um impostor. Não fique surpreendida, madame, se respondo ao seu pensamento mais do que às suas palavras e diga-me mais uma vez se está preparada para contemplar o quadro que vou mostrar-lhes.

- Confesso-lhe que as suas palavras me inspiram certo receio - respondeu Lady Bothwell - Mas tudo quanto minha irmã vir, vê-lo-ei eu também.

- Só existe perigo se a coragem lhes faltar. O quadro não dura mais do que sete minutos; se interromperem a visão, proferindo uma só palavra, não só o encantamento será destruído, mas os espectadores poderão correr perigo. Mas se conseguirem manter-se no mais profundo silêncio durante sete minutos, a curiosidade de ambas será satisfeita sem que daí resulte o menor risco. Dou-lhes a minha palavra de honra.

"Lady Bothwell pensou intimamente que a garantia não era das melhores; mas logo afastou esse pensamento, como se receasse que o adivinho, cujos lábios se contraíam num sorriso irônico, pudesse descobrir o que lhe passava pelo cérebro. Seguiu-se um momento de silêncio, até que Lady Forester adquiriu coragem para garantir ao médico - era este o título que ele dava a si mesmo - que contemplaria em silêncio e com firmeza o quadro que lhe apresentasse.

"Então, o Italiano fez-lhes profunda reverência, dizendo que ia preparar tudo para satisfazer-lhe os desejos e abandonou a sala.

"As duas irmãs, de mãos dadas, como se esperassem conjurar assim o perigo que pudesse ameaçá-las, sentaram-se numa cadeira, muito juntas uma da outra. Jemima procurava apoio na coragem firme de Lady Bothwell e esta, talvez mais impressionada do que supusera estar, tentava reagir para amparar a irmã na resolução desesperada que tomara. Uma dizia que lody Bothwell nunca tivera medo, outra pensava que se uma mulher fraca como Jemima não estava assustada, uma mulher forte como Lady Bothwell também não podia demonstrá-lo.

"Decorridos alguns momentos, as reflexões das duas irmãs foram interrompidas por uma música tão suave e solene, que dirse-ia ter sido criada para afastar todos os sentimentos alheios à sua harmonia e aumentar a emoção que a entrevista antecedente provocara. A música era produzida por um Instrumento que as duas irmãs desconheciam, mas que, mais tarde, por diversas circunstâncias, minha avó calculou ser, uma harmônica, instrumento já escutado havia muito tempo.

 

"Quando os sons - que pareciam cair do alto - se desvaneceram, abriu-se uma porta e as duas senhoras viram Damiotti de pé num estrado, formado por dois ou três degraus, e lhes fazia sinal para se aproximarem. O trajo era diferente daquele que usava pouco antes, a tal ponto que elas mal o reconheceram; a palidez mortal, a contracção de todos os músculos, indicavam que qualquer coisa de estranho e ousado ia seguir-se. A expressão do rosto também era totalmente outra e modificara o olhar satírico com que pouco antes as observara, principalmente a lady Bothwell, Tinha os pés nus dentro das sandálias, à moda antiga. As pernas estavam descobertas até aos joelhos. Vestia calção e um colete de seda carmesim e por cima uma vestimenta larga, semelhante a uma sobrepeliz, feita de linho branco como a neve; o pescoço estava descoberto e os cabelos negros e curtos, penteados com cuidado, caíam-lhe nos ombros.

"As duas irmãs aproximaram-se, tal como ele lhes ordenava. Deixara de lhes testemunhar a polidez cerimoniosa e, pelo contrário, assumira um ar de autoridade. Quando, de braço dado, com passo incerto, chegaram junto do estrado, franziu a testa e pôs o dedo nos lábios, como a recomendar-lhes de novo silêncio absoluto. Em seguida, caminhando à frente, dirigiu-se para o aposento contíguo.

"Este era uma sala vasta, com as paredes forradas de negro como para um funeral. No topo do quarto via-se uma mesa, ou antes, uma espécie de altar coberto com um pano do mesmo tom lúgubre e sobre o qual estavam colocados muitos instrumentos usados em feitiçaria. Estes objectos não se viam quando as duas senhoras entraram no quarto, porque este estava iluminado por duas lâmpadas de luz mortiça. O Mestre, para me servir da classificação usada pelos italianos para as pessoas deste género, avançou para a extremidade do aposento e ao passar diante do altar fez uma genuflexão e persignou-se.

"As duas irmãs seguiram-no em silêncio, sempre de braço dado. Dois ou três degraus abaixo conduziam a uma plataforma colocada em frente do altar. O Mestre subiu-os, colocou-as de um lado e outro, recomendando-lhes por sinais, com ar misterioso, que guardassem silêncio.

"Libertou então o braço nu debaixo da vestimenta de linho e estendeu o dedo sucessivamente para os cinco tocheiros que imediatamente se acenderam quando aproximava o dedo, e espalharam pelo aposento brilhante claridade.

 

"As duas senhoras puderam então ver que em cima do altar estavam duas espadas desembainhadas e cruzadas e ainda grosso volume que supuseram ser uma cópia das Sagradas Escrituras, escrita num idioma desconhecido. Junto do misterioso livro via-se um crânio humano. Mas o que mais impressionou as duas irmãs foi um espelho alto e largo, disposto atrás do altar e que batido pela luz das velas, reflectia as espadas e os outros objectos.

"O Mestre colocou-se entre as duas senhoras e, designando-lhes o espelho, pegou-lhes na mão. Todos estes gestos foram feitos sem proferir palavra. Dirigiram a sua atenção para a superfície polida e escura. Imediatamente, essa superfície tomou novo e estranho aspecto; deixou de reflectir os objectos colocados na sua frente e, como se encerrasse dentro de si cenas próprias, deixou entrever imagens que, de princípio, se mostraram por forma vaga, indistinta e confusa, mas que logo se acentuaram e sairam do caos, adquirindo linhas perfeitas. Foi assim que, depois de algumas alternativas de luz e de sombra, na superfície do maravilhoso espelho se formou a imagem de arcos e colunas, colocados de ambos os lados. Por fim, depois de muitas oscilações, a aparição estabilizou-se, representando o interior de uma igreja estrangeira. Os pilares eram de grande beleza, ornados com escudos brasonados; as arcadas eram altas e magníficas, o chão coberto de inscrições fúnebres. Não se viam, porém, relíquias ou imagens na igreja, nem cálice ou crucifixos nos altares. Era uma igreja protestante do Continente. Um padre, revestido com paramentos de Genova, de cabeção, estava de pé junto da mesa de comunhão e tinha uma Bíblia diante de si. Junto dele, o sacristão, trajando de preto, preparava"-se para desempenhar qualquer cerimônia da igreja a que pertencia.

"Por fim, pela nave subiu numeroso cortejo. Era um cortejo de núpcias, porque à frente vinham um homem novo e uma rapariga de mãos dadas. Seguiam-nos muitas pessoas de ambos os sexos, ricamente trajadas.

"A noiva, cujo rosto se via perfeitamente, era linda e não teria mais de dezasseis anos. O noivo estava voltado de forma que não podia ver-se-lhe a cara, mas a elegância do porte e o andar despertaram nas duas irmãs a mesma suspeita. O rapaz voltou a cabeça e essas suspeitas foram confirmadas. No noivo elegante que estava na sua frente reconheceram sir Filipe Forester. Jemima soltou débil gemido; ao mesmo tempo a aparição obscureceu e o encantamento pareceu prestes a quebrar-se.

- Não posso comparar o espectáculo - dizia mais tarde lady Bothwell quando contava esta maravilhosa aventura - senão à superfície de um lago calmo e profundo quando se lhe atira com força uma pedra e que a imagem luminosa se dispersa e desaparece.

"O Mestre apertou com força a mão das duas senhoras, como a recordar-lhes a promessa e o perigo a que se expunham. O grito deteve-se nos lábios de lady Forester e limitou-se a um som muito fraco. Após uma flutuação de poucos minutos a aparição retomou o primitivo aspecto de cena real ou de uma pintura bem nítida, cujas personagens em vez de permanecerem imóveis tivessem vida.

"Sir Filipe Forester, cuja estatura e feições eram agora bem visíveis, conduziu até ao altar a sua linda noiva, que avançava com um misto de timidez e de inocente orgulho. No instante em que o sacerdote, depois do acompanhamento o ter rodeado, se dispunha a começar a cerimônia, outro grupo de pessoas, entre as quais muitos oficiais, entrou na igreja. Avançaram, como impelidas pela curiosidade, a fim da assistirem à cerimônia nupcial. De repente, um dos oficiais destacou-se do grupo e correu para o altar. Não se lhe via o rosto. Todo o acompanhamento se voltou para ele devido à exclamação que soltou. Imediatamente, esse oficial desembainhou a espada, sir Forester imitou-o e avançou para o desconhecido. Muitos dos homens que pertenciam aos convidados e outros do grupo que entrara depois, desembainharam também a espada. Disto resultou temível luta, enquanto o sacerdote e alguns homens mais velhos tentavam restabelecer a calma.

"Infelizmente, o prazo de tempo, que o mago afirmara poder conceder, expirou. As imagens confundiram-se de novo e, pouco a pouco, desapareceram do espelho; os arcos e as colunas oscilaram e a superfície polida passou a reflectír unicamente os lúgubres objectos colocados sobre o altar e os candelabros acesos.

"O Mestre conduziu as duas irmãs, que bem necessitavam dos seus socorros, para a sala onde primeiro haviam estado. Vinhos, licores e outros estimulantes próprios para lhes restituírem as forças ali tinham sido postos na sua ausência. Levou-as até às cadeiras onde elas se deixaram cair em silêncio. Lady Forester, a mais impressionada das duas, uniu as mãos e ergueu os olhos ao céu, mas não conseguiu proferir palavra como se o encantamento ainda não se tivesse desvanecido.

- O que vimos passou-se, de facto, neste instante?

- perguntou lady Bothwell, que pouco a pouco recuperava o domínio próprio.

- Não posso dar-lhes uma certeza - respondeu o doutor Baptista Damiotti - Mas se não se passou neste instante, passou-se há pouco tempo. Foi o último acontecimento notável da vida de sir Filipe Forester.

"Lady Bothwell manifestou então a sua inquietação pelo estado da irmã, cuja palidez mortal e aparente insensibilidade tornavam impossível uma saída imediata.

- Calculei isso - respondeu o Italiano - e mandei ordem ao vosso criado para trazer a carruagem para junto da porta, se a largura da rua o permitir. Não esteja aflita com o estado de sua irmã, mas quando chegar a casa dê-lhe estas gotas que preparei para ela. Amanhã de manhã estará boa. Poucas pessoas - continuou com ar triste - abandonam esta casa de tão perfeita saúde como entraram. É a conseqüência de tentarem saber coisas por meios misteriosos. Podem calcular o estado daqueles a quem satisfaço uma curiosidade ilegal. Adeus. Não se esqueça do remédio,

- Não darei a minha irmã coisa alguma que venha da sua mão - afirmou lady Bothwell - . Bastou-me esta amostra das suas artes. Talvez queira envenenar-nos para ocultar os seus sortilégios. Mas somos pessoas, a quem não faltam meios para apontar os agravos de que se tornou culpado para connosco, nem braços para nos vingar.

- Não cometi agravos para com as senhoras, madame - respondeu Damiotti - Procurou quem não ambicionava tão grande honra. Não convidei ninguém, apenas respondi a quem veio até mim. No fundo, souberam um pouco mais cedo o mal que há-de feri-las. Oiço os passos do criado. Não quero prender por mais tempo Vossa Senhoria, nem lady Forester. A primeira correspondência que receberem do Continente narrar-lhes-á o acontecimento a que em parte assistiram. Se me permite ainda um conselho, tome precauções antes que as cartas cheguem às mãos de sua irmã.

"Quando acabou de proferir estas palavras, deu as boas-noites a lady Bothwell, acompanhou-a até ao vestíbulo onde deitou enorme capa negra sobre os ombros para ocultar o estranho vestuário. Em seguida, abriu a porta e confiou as duas senhoras aos cuidados do criado. Lady Bothwell, com grande dificuldade, conduziu a irmã até à carruagem que se encontrava a vinte passos. Quando chegaram a casa, viu-se obrigada a mandar chamar o médico da família. Logo que chegou, este apressou-se a examinar lady Forester. Tomou-lhe o pulso e abanou a cabeça.

- Os nervos de lady Forester - declarou - sofreram grande abalo, um choque violento. Impõe-se conhecer o motivo que o causou.

"Lady Bothwell confessou que haviam ido a casa do feiticeiro e que lady Forester recebera más notícias do marido, sir Filipe.

- Aquele maroto, se continua em Edimburgo faz a minha fortuna - afirmou o médico - É este o sétimo abalo de nervos, causado pelo terror, que tenho de curar.

"Em seguida, examinou as gotas que lady Bothwell trouxera sem lhes ligar importância. Provou-as e afirmou que convinham perfeitamente ao estado de lady Forester e que assim poupava uma corrida à farmácia. Calou-se um instante e, olhando Lady Bothwell com ar expressivo, disse:

- Suponho que não devo perguntar a opinião de Vossa Senhoria sobre a conduta do feiticeiro.

- com efeito, considero o que se passou uma confidencia; e, embora aquele homem seja um parlapatão, visto termos sido suficientemente tolas para ir consultá-lo, devemos ser honestas e guardar segredo.

- Embora seja um parlapatão - repetiu o médico

- Estou encantado por ouvir Vossa Senhoria admitir, essa hipótese sobre alguém que vem de Itália.

- O que vem de Itália pode ser tão bom como o que vem de Hanover, doutor. Sejamos amigos e não falemos de Whigs ou de Torys.

- Tem razão - concordou o médico, recebendo os seus honorários e pegando no chapéu - Tanto me faz um cárolus

 

(1) como um guilherme

(2). Mas gostava de

(1) - Moeda do tempo de Carlos VIII.

(2) - Moeda holandesa.

 

saber por que razão a velha Lady Saint-Ringan e muitas outras senhoras da sociedade, não se cansam de elogiar esse charlatão estrangeiro?

- Santo Deus! Melhor seria chamar-lhe também hipócrita!

"Despediram-se friamente e a pobre doente, cujos nervos haviam sofrido violento abalo, acalmou pouco a pouco e tentou combater o terror supersticioso que dela se apoderara. Infelizmente, a verdade, vinda da Holanda, confirmou os seus fatais receios.

"Essas notícias foram mandadas pelo célebre conde de Stair. Diziam que se travara entre sir Filipe Forester e o irmão de sua mulher, o capitão Falconer, do exército scoto-holandês, um duelo no qual este último perdera a vida. A causa do duelo tornava esta morte ainda mais lamentável,

"Supunha-se que sir Filipe abandonara subitamente o exército em conseqüência de considerável dívida contraída ao jogo, que não podia pagar. Mudara de nome e refugiara-se em Roterdão, onde conseguira conquistar as boas graças do velho e rico burgomestre. Pela sua elegância e modos distintos cativara a afeição da sua filha única, menina muito nova, de grande beleza e herdeira de grande fortuna. Encantado com os dotes daquele que se propunha para seu genro, o rico burgomestre, que formara alto conceito do carácter inglês, não tomou qualquer informação e deu o seu consentimento para o casamento. A cerimónia ia realizar-se na principal igreja da cidade, quando foi interrompida por singular circunstância.

"O capitão Falconer fora enviado a Roterdão para reunir uma parte da brigada dos auxiliares escoceses, que estavam aquartelados nessa cidade; um sujeito de posição propôs-lhe, para se distrair, irem assistir na principal igreja da cidade ao casamento de um seu compatriota com a filha de um rico burgomestre, O capitão Falconer concordou e foram ambos para a igreja com alguns amigos e muitos oficiais da brigada escocesa. Pode calcular-se o seu espanto quando reconheceu o cunhado no homem que conduzia ao altar a linda e inocente noiva a quem enganava vilménte. Ali mesmo desmascarou sir Filipe. Em conseqüência, a cerimônia foi interrompida. Mas, contra a espectativa das pessoas que diziam dever sir Filipe ser expulso da sociedade, o capitão Falconer aceitou o desafio do cunhado e no duelo que se seguiu foi atingido por golpe mortal. São assim os desígnios misteriosos da Providência! Lady Forester nunca pôde restabelecer-se do abalo sofrido com estas notícias.

- E essa cena trágica - perguntei à tia Margarida - desenrolou-se precisamente na altura em que apareceu no espelho?

- É desagradável ser eu própria obrigada a desacreditar a minha história - respondeu minha tia - Mas, para dizer a verdade, ocorreu dias antes da aparição.

- Nesse caso, pode supor-se que, por via ignorada e misteriosa, Damiotti já estava ao facto do acontecimento?

- É essa a opinião de muitos incrédulos.

- Que foi feito do charlatão?

- Pouco tempo depois, teve ordem de prisão por crime de alta traição, como agente do cavaleiro, de Saint-George, e Lady Bothwell, recordou-se das insinuações feitas pelo médico da família, amigo zeloso da Liga Protestante, e também de que o Italiano era muito enaltecido pelas matronas que partilhavam as suas opiniões políticas. Segundo todas as probabilidades, tinha inteligências no Continente que lhe transmitiam as notícias por qualquer agente poderoso e activo, dando-lhe assim o meio de preparar cenas fantasmagóricas como a que Lady Bothwell presenciara. No entanto, torna-se difícil dar uma explicação natural aos factos sobre os quais até ao dia da sua morte, lady Bothwell conservou dúvidas, estando muitas vezes tentada a cortar o nó górdio, admitindo a possibilidade de um poder sobrenatural.

- E que foi feito desse homem habilidoso, minha querida tia?

- Era muito bom adivinho para não prever que seu próprio destino seria trágico se aguardasse a chegada do homem com a alavanca de prata bordada na manga. Fugiu e nunca mais se soube dele. Falou-se muito, durante algum tempo, dos documentos e cartas encontradas em sua casa. Mas, pouco a pouco, também, isso esqueceu e depois lembravam-se tanto do doutor Baptista Damiotti como de Galileu ou de Hipócrates.

- E de sir Forester, também nada mais se soube?

- Não. Falou-se mais uma vez nele numa altura notável. Diz-se que nós, os Escoceses, enquanto existir uma nação com esse nome, temos, entre as nossas numerosas virtudes, alguns pequenos vícios. Especialmente, acusam-nos de nunca esquecermos e perdoarmos uma injuria; que fazemos um deus do nosso ressentimento, como a pobre lady Constança fez um deus do seu desgosto e seguiu Burns, que temos o hábito de alimentar a cólera a fim de lhe conservar o calor. Lady Bothwell perfilhava estes sentimentos e coisa alguma neste mundo, excepto a restauração dos Stuarts, seria para ela tão deliciosa como ter ocasião de se vingar de sir Filipe Forester, que lhe roubara ao mesmo tempo um irmão e uma irmã. Mas os anos passavam e nunca mais se ouviu falar a seu respeito. Por fim, numa festa de Carnaval onde estava reunida a melhor sociedade de Edimburgo e da qual lady Bothwell era uma das patronas, foram avisá-la em voz baixa de que um cavalheiro desejava falar-lhe em particular.

- Em particular, numa ocasião destas! - protestou-Deve estar doido! Diga-lhe para passar por minha casa amanhã de manhã.

- Já lhe disse, milady - respondeu o mensageiro e pediu-me para lhe entregar este papel.

"Lady Bothwell abriu o bilhete que estava dobrado e lacrado por forma especial. Continha apenas estas palavras: "Piora um assunto de vida ou de morte" traçadas por mão desconhecida. Lady Bothwell, de súbito, pensou que poderia tratar-se da segurança pessoal de algum dos seus amigos. Decidiu-se, portanto, a seguir o mensageiro para a pequena sala onde preparavam os refrescos e na qual raramente os convidados entravam. Encontrou ali um velho que se levantou e saudou profundamente quando a viu entrar. O seu aspecto revelava débil saúde e o fato, embora de acordo com a etiqueta do baile, estava usado e desbotado e muito largo para um corpo muito magro, Lady Bothwell apressou-se a procurar a bolsa, contando livrar-se do importuno com avultada esmola; ao mesmo tempo, o receio de estar enganada sobre as suas intenções deteve-lhe o gesto e deu ao homem tempo a explicar-se.

- Tenho a honra de falar a lady Bothwell? - perguntou o desconhecido.

- com efeito, sou lady Bothwell, senhor. No entanto, permita-me que lhe diga, não é esta a altura nem o lugar conveniente para conversarmos. Que deseja de mim?

- Vossa Senhoria tinha uma irmã?

- A quem muito amava, sim.

- E um irmão?

- O mais valente, o melhor e o mais afectuoso dos irmãos.

- Perdeu esses irmãos por culpa de um homem desventurado?

- Devido ao crime de um homem vil, pela mão de um assassino.

- Respondeu ao que eu pretendia saber - . disse o homem, levantando-se para sair.

- Espere, ordeno-lhe! - bradou lady Bothwell Quem é o senhor para vir, numa ocasião destas, acordar tão tristes recordações? Quem é? Quero sabê-lo.

- Sou um homem que não lhe quer mal, lady Bothwell e, pelo contrário, venho oferecer-lhe o meio de realizar um acto de caridade cristã que causará admiração do mundo e o Céu recompensará. Mas não a encontro preparada para o sacrifício que tencionava pedir-lhe.

- Fale claramente, senhor. Que pretende de mim?

- O miserável que tão profundamente a ofendeu está prestes a morrer. Os seus dias foram dias de miséria; as suas noites, noites sem repouso. Não quer morrer sem o seu perdão. A sua vida tem sido de contínua penitência; no entanto, não deseja depor o fardo das suas tristezas, enquanto a maldição de lady Bothwell pesar sobre a sua alma.

 

- Diga-lhe - respondeu Lady Bothwell com ar sombrio - para implorar o perdão a Deus a quem tanto ofendeu e não a um triste mortal como eu, Não precisa do meu perdão.

- Engana-se. Seria uma garantia para aquele que tenciona implorar o do seu Criador e da sua mulher que está no Céu. Lembre-se, lady Bothwell, que um dia também morrerá; que a sua alma, como a dos outros mortais, também irá perante o trono donde dimanam os julgamentos de Deus, trêmula de receio. Que fará quando lhe acudir este pensamento: "Não concedi perdão, também não devo esperá-lo"?

- Homem, sejas tu quem fores, não me fales tão cruelmente. Seria uma blasfêmia, uma hipocrisia, se obrigasse os meus lábios a pronunciar um perdão, que todas as fibras do meu coração desmentem. Esse perdão faria entreabrir os túmulos donde sairia o pálido espectro de minha irmã e o fantasma ensangüentado de meu irmão. Perdoar! Nunca, nunca!

- Santo Deus! - exclamou o velho, unindo as mãos - É assim que os vermes que Tu tiraste do pó cumprem os Teus mandamentos? Mulher orgulhosa e vingativa, podes vangloriar-te de ter acrescentado1 aos tormentos de um homem que morre de miséria e de desgosto, as angústias do desespero religioso, mas nunca insultes o Céu, pedindo para ti um perdão que recusaste aos outros.

"E dispunha-se a sair.

- Espere! - pediu Lady Bothwell - vou tentar perdoar-lhe, sim.

- Graciosa dama - respondeu o velho - aliviará uma alma que receia abandonar o corpo mortal antes de fazer a paz consigo. Talvez o perdão reserve para a penitência os dias de uma vida miserável.

- És tu esse miserável! - exclamou ludy Bothwell, ferida por súbita suspeita e, agarrando a gola do casaco de sir Forester, pois de facto era ele, gritou Assassino! Assassino! Prendam o assassino!

"Ao ouvirem estes gritos tão pouco próprios do lugar, os convidados precipitaram-se na sala. Sir Forester, porém, já lá não estava. Empregara os seus maiores esforços para se libertar das mãos de lady Bothwell e fugira pela porta que abria para o patamar da escadaria. Era difícil evadir-se por ali, pois os convidados subiam e desciam constantemente. Mas o infeliz estava desesperado. Saltou por cima do corrimão e caiu no vestíbulo, são e salvo, apesar de se ter atirado de uma altura de quinze pés, aproximadamente. Em seguida, precipitou-se para a rua e desapareceu nas trevas.

"Alguns membros da família Bothwell correram em sua perseguição e se o apanhassem teria sido morto, porque naquela época corria sangue esquentado nas veias de todos os homens e a polícia não interviria no assunto, pois o crime de sir Forester ocorrera havia muito tempo e num país estrangeiro.

"Sempre se pensou que aquela cena extraordinária não passara de uma experiência hipócrita com a qual sir Filipe desejava assegurar-se se podia voltar à pátria sem temer o ressentimento de uma família que tão profundamente ofendera. Como o resultado da experiência fosse contrário aos seus desejos, calcularam que voltasse para o Continente e morresse no exílio.

Assim termina a história do espelho revelador.

 

               O FOGO SAGRADO

Os barões de Arnheim, embora se ocupassem, de pais para filhos, em estudos de ciências ocultas, eram, como todos os nobres alemães, belicosos e apaixonados pela caça. Era este o carácter de Herman de Arnheim, avô materno de Ana de Geiersten, que se orgulhava de possuir soberba coudelaria e o mais nobre corcel jamais visto na Alemanha. Renuncio a fazer a discrição deste animal. Limitar-me-ei a dizer que era preto como azeviche, sem um pêlo branco da cabeça aos pés. Por esta razão e pelo seu carácter fogoso, o dono deu-Lhe o nome de Apolion, o que, segundo diziam muito em segredo, confirmava os desagradáveis boatos que corriam sobre a casa de Arnheim, visto o barão dar ao seu cavalo o nome de um demônio.

Aconteceu que, num dia de Novembro, o barão foi caçar na floresta e só regressou a casa noite fechada. No castelo não havia estranhos, porque, como já disse, os barões não recebiam senão quem pudesse dar-lhes novos conhecimentos. O barão estava sozinho, sentado na sua sala, iluminada por tocheiros e velas. Numa das mãos segurava um livro cujos dizeres seriam indecifráveis para qualquer outro. A outra mão apoiava-se numa mesa de mármore, em cima da qual estava uma garrafa de vinho de Tokai. Ao fundo da sala via-se um pajem em atitude respeitosa. Ouvia-se o vento assobiar lúgubremente ao passar pelas armaduras enferrujadas, pelas bandeiras em farrapos que formavam a tapeçaria deste salão feudal.

De súbito, ouviram um passo vacilante, mas pesado, subir a escada. A porta abriu-se com violência e o terror desenhou-se em todos os rostos. Gaspar, o chefe das cavalariças do barão, ou seja o seu escudeiro principal, correu para a mesa junto da qual o barão estava sentado e gritou:

- Monsenhor! Monsenhor! Está um demônio na cavalariça!

- Que loucura é essa? - perguntou o barão, pondo-se de pé, surpreendido e descontente por ter sido perturbado por forma tão disparatada.

- Suporto a sua cólera, senhor barão, se não digo a verdade. Apolion...

Calou-se um instante, sufocado.

- Falas ou não, grande doido! - ordenou o barão Ou o medo deu-te volta à cabeça? O meu cavalo está doente? Aconteceu-lhe algum desastre?

Mas o pobre escudeiro não fazia mais do que repetir:

- Apolion...

- Está bem! - disse o barão - Mesmo que o Apolion viesse aqui e entrasse nesta sala, não vejo motivo para assustar um homem valente.

- O diabo está ao lado de Apolion! - conseguiu por fim dizer o chefe das cavalariças.

- Doido! - gritou o barão, pegando numa tocha Quem te deu volta à cabeça? Pessoas como tu, nascidas para servir, deviam ter mais força para se dominar por consideração por nós e por respeito a si mesmo.

 

Ao mesmo tempo, ia atravessando o pátio do castelo e dirigiu-se às cavalariças, que ocupavam uma das extremidades, e onde em cada um dos lados estavam abrigados cinqüenta belos corcéis. Junto de cada um viam-se penduradas as armas ofensivas e defensivas de um homem de armas, tão brilhantes e em tão bom estado quanto era possível. Via-se também a cota de pele de búfalo que constituía o vestuário interior de um soldado.

O barão entrou ali, seguido por dois criados que, admirados com este alarme, haviam acorrido. Em grandes passadas, avançou por entre as duas filas de cavalos e aproximou-se do seu corcel favorito que se encontrava do lado direito, numa das extremidades da cavalariça. O animal não relinchou, não sacudiu a cabeça, nem bateu com a pata, não teve qualquer das manifestações com que costumava acolher a chegada do dono. Demonstrou reconhecê-lo, limitando-se a soltar uma espécie de gemido como se lhe implorasse auxílio.

Herman levantou a tocha e viu um homem muito alto com a mão apoiada na anca do cavalo.

- Quem és tu? Que fazes aqui? - perguntou o barão.

- Procuro refúgio e hospitalidade - respondeu o estrangeiro - e peço-ta pela anca do teu cavalo e pelo gume da tua espada; que nunca te faltem quando deles precisares.

- Sendo assim, és um irmão do Fogo Sagrado?

- perguntou o barão - Segundo o ritual dos Magos persas, não posso recusar-te o que me pedes. Contra quem e por quanto tempo me pedes protecção?

- Contra aqueles que virão procurar-me quando o galo cantar - respondeu o desconhecido - e por um ano e mais um dia a contar deste momento.

- Os meus juramentos e a minha honra não me permitem recusar o que pedes. Proteger-te-ei durante um ano e mais um dia. A tua cabeça terá por abrigo o meu tecto, sentar-te-ás à minha mesa e beberás do meu vinho. Mas, tu também, terás de obedecer aos preceitos de Zaroastro. Da mesma forma que disse: "O mais forte protegerá o mais fraco" também ordenou que o mais sábio instruísse o que possuía menos conhecimentos. Eu sou o mais forte e estarás seguro debaixo da minha protecção, mas és tu o mais sábio e deves instruir-me nos mais ocultos mistérios.

- Zombais do vosso humilde servo; mas se Dannischemend sabe alguma coisa que possa ser útil a Herman, as suas lições serão para ele como as de um pai para um filho.

- Abandona, portanto, o teu refugio. Juro-te, pelo Fogo Sagrado que vive sem alimento terrestre, pela fraternidade que existe entre nós, pela anca do meu 58

cavalo e pelo gume da minha espada, que garantirei a tua segurança durante um ano e um dia. enquanto o meu poder o conseguir.

O desconhecido saiu da cavalariça e aqueles que puderam ver a sua aparência não se admiraram por Gaspar ter ficado assustado ao encontrá-lo junto do animal, sem saber como entrara.

 

Quando penetraram na sala, onde o barão o conduziu como o teria feito a um hóspede de categoria, recebido com prazer, a luz das tochas iluminou o visitante, um homem alto, de porte majestoso. Usava um trajo oriental, isto é, um cafetão ou comprida túnica preta, semelhante às usadas pelos armênios, e um grande boné quadrado, em pele de astracã, também preto. Este total negrume do fato, fazia sobressair a comprida barba branca que lhe caía no peito. A túnica cingia-se na cintura com um cinto de seda preta, no qual, em vez de punhal e cimitarra, estavam entalados um estojo de prata e um rolo de pergaminho. Como único ornamento trazia um rubi de grandeza pouco comum e cujo brilho era tal que, quando a luz lhe batia, mais parecia dardejá-lo de que reflecti-lo. O barão ofereceu-lhe comida, mas o desconhecido respondeu

- Não posso comer ou fazer passar uma gota de água pelos meus lábios sem que o vingador chegue diante da tua porta.

O barão deu ordens para renovarem o azeite nas lâmpadas, acenderem novas tochas; depois, disse para irem descansar e ficou sozinho com o desconhecido.

À meia-noite, as portas do castelo foram abaladas como por um vendaval e a voz de um arauto soou, pedindo a entrega do prisioneiro Dannischmend, filho de Ali. O guarda da porta ouviu então abrir uma janela e reconheceu a voz do amo que falava com a pessoa que fizera a intimação. Porém, a noite estava tão escura, que não conseguiu ver qualquer dos interlocutores. Falavam uma lingua desconhecida ou, pelo menos, a conversa era intercalada com tantas palavras estrangeiras que não conseguiu perceber uma sílaba. Decorreram cinco minutos apenas e a pessoa que falava de fora elevou de novo a voz e declarou em alemão:

- Adio os meus direitos para daqui a um ano e um dia. Mas quando esse prazo terminar, será para exigir o que me é devido e o que me é devido não me será recusado.

Desde então, o persa Dannischmend passou a viver no castelo de Arnheim e nunca, fosse por que motivo fosse, passou a ponte levadiça. As suas distracções e trabalhos estavam concentradas na biblioteca e no laboratório, onde o barão trabalhava muitas vezes com ele até altas horas da noite.

Os habitantes do castelo não encontravam qualquer coisa a censurar ao Mago persa, salvo excluir dos seus actos todas as manifestações religiosas, pois nunca assistia à missa, não se confessava, em resumo, não comparecia à mais simples cerimônia religiosa. O capelão, no entanto, afirmava estar satisfeito com o estado de consciência do estrangeiro; mas, suspeitava-se, havia muito tempo, que o digno eclesiástico obtivera aquele lugar sossegado com a condição bastante razoável de aprovar os princípios de todos aqueles a quem o barão quisesse conceder hospitalidade e os declarasse ortodoxos.

Contudo, notaram que o Persa era muito exacto no cumprimento das suas devoções particulares. Mal o Sol nascia nunca deixava de se prostrar no chão e fabricara uma lâmpada de prata das mais belas proporções, lâmpada que colocou num pedestal de mármore com a forma de coluna truncada, na base do qual gravou diversos hieroglifos. Ninguém, excepto talvez o barão, sabia como ele alimentava a chama dessa lâmpada, a mais pura, a mais constante e mais brilhante de todas as luzes jamais vistas, com excepção da do Sol. Acreditava-se que, - na ausência do astro-rei, era a lâmpada o objecto do culto de Dannischmend.

Notavam-se também nele costumes severos, uma austeridade extrema, uma maneira de viver ditada pela temperança e por freqüentes jejuns. Salvo caso muito especial, só falava com o barão, mas, como não lhe faltava dinheiro e era muito liberal, os criados olhavam-no com respeito, mas sem temor ou retraimento.

 

A Primavera sucedeu ao Inverno, o Verão trouxe consigo as flores, o Outono os frutos e quando começaram a cair de maduros, um pajem, que algumas vezes os acompanhava no laboratório, ouviu o Persa dizer ao barão de Arnheim:

- Presta muita atenção às minhas palavras, meu filho, pois as minhas lições estão a acabar. Não existe poder na Terra que possa evitar por mais tempo o meu destino.

- Mestre - exclamou o barão - Será preciso que eu perca as tuas lições, quando a tua mão hábil poderia colocar-me nos pináculos do Templo da Sabedoria?

- Não desanimas, mau filho - respondeu o sábio Deixarei a minha filha o encargo de te aperfeiçoar. Ela virá para aqui nessa idéia. Mas lembra-te bem do que te digo. Se queres perpetuar o teu nome deves vê-la simplesmente como auxiliar dos teus estudos. Se a sua beleza te fizer olvidar que está aqui só para te ensinar, serás enterrado com a tua espada e o teu escudo, como sendo o último descendente masculino da tua casa. Além disso, acredita-me, outros males resultarão daí, porque semelhantes alianças nunca deram bom resultado. Toma a minha pessoa como exemplo.

- Silêncio! Estão a ouvir-nos.

Daí em diante, todos os que compunham a casa do barão, encontraram muito assunto para reflexão e observavam atentamente o que se passava à sua volta.

Quando se aproximou a época do Persa ter de abandonar o abrigo encontrado no castelo, uns despediram-se a qualquer pretexto e os outros aguardavam, tremendo, que se desencadeasse terrível catástrofe. Nada aconteceu, porque quando o dia fatal chegou, muito tempo antes da meia-noite tão temida, Dan- nischmend pôs termo à sua estadia no castelo de Arnheim, saindo a cavalo, como qualquer viajante. O barão despediu-se do Mestre com manifestações da pesar e de desgosto. O sábio Persa consolou-o, falando-lhe muito tempo em voz baixa, mas alguns ouviram as últimas palavras:

- Ela estará aqui quando o Sol nascer. Trata-a com afecto, mas não vás demasiado longe.

Ditas estas palavras, afastou-se e nunca mais foi visto nos arredores do castelo de Arnheim.

Durante todo o dia que se seguiu à partida do Mago, a fisionomia do barão reflectiu profunda melancolia. Contra o seu costume, deixou-se ficar no salão e não foi para a biblioteca nem para o laboratório, onde o Mestre já não se encontrava para o acompanhar.

No dia seguinte de manhã, ao romper do dia, chamou o pajem. E, embora de costume fosse pouco cuidadoso com a sua pessoa, naquele dia vestiu-se com maior requinte. Como se encontrava ainda na primavera da vida, a e o seu porte era nobre e distinto, teve razões para ficar satisfeito com o seu aspecto exterior.

Quando acabou de se vestir, aguardou que o Sol despontasse no horizonte. Então, foi buscar a chave do laboratório a uma mesa onde, calculou o pajem, ela devia ter estado toda a noite e, seguido pelo rapaz, para lá se dirigiu.

 

Parou à porta e pareceu reflectir alguns instantes antes de mandar embora o criado. Em seguida, meteu a chave na fechadura e hesitou, como se ao abrir contasse ver qualquer coisa de estranho. Por fim, armando-se de toda a sua resolução, deu a volta à chave, empurrou a porta e entrou.

O pajem seguiu atrás dele e ficou tolhido de surpresa, que atingia as raias do terror, vendo uma coisa que, embora extraordinária, era bastante agradável e encantador para a vista.

A lâmpada de prata não estava no pedestal e em seu lugar via-se uma rapariga muito nova e bonita, envergando o trajo persa no qual predominava a cor carmesim. Não usava turbante ou qualquer toucado; os cabelos castanhos doirados, estavam atados com uma fita azul, presa sobre a testa com um alfinete de oiro, no qual estava engastada magnífica opala que por entre os cambiantes próprios desta pedra preciosa, despedia um raio vermelho como uma centelha de fogo.

A gentil rapariga era de estatura média, perfeitamente proporcionada. O trajo oriental, com as calças tufadas, presas no tornozelo, deixava ver o mais lindo pé que se poderia sonhar e sob as pregas da túnica viam-se os braços e as mãos de uma simetria perfeita. O rosto era expressivo e animado, reflectindo inteligência e espírito. Os olhos vivos, negros, com sobrancelhas bem arqueadas, dir-se-iam sublinhar as observações maliciosas que os lábios vermelhos e sorridentes pareciam prestes a proferir.

O pedestal sobre o qual estava de pé, como que empoleirada, dava a impressão de ser um apoio pouco seguro para uma pessoa de considerável peso; mas, fosse qual fosse a maneira como ali chegara, repousava nele ligeiramente, segura como um pintarroxo que no vôo poisa no tronco flexível de uma roseira. O primeiro raio do Sol nascente, penetrando pela janela que se encontrava mesmo "m face do pedestal, aumentava a beleza daquela estátua viva, que se mantinha imóvel como se fosse de mármore. Não demonstrou ter dado pelo barão senão pela respiração mais rápida que lhe elevava o seio, acompanhada de vivo rubor e um sorriso.

Por muito preparado que estivesse o barão para ver qualquer coisa do género daquela que lhe encantava os olhos, a beleza da rapariga ultrapassava de tal modo a sua espectativa, que ficou suspenso, mal podendo respirar.

De súbito, recordou-se ser seu dever fazer um acolhimento hospitaleiro à linda estrangeira que chegara ao castelo por modo tão estranho e tirá-la da posição incômoda em que se encontrava. Deu alguns passos para ela, prestes a proferir as palavras de boas-vindas e com os braços estendidos para a ajudar a descer do pedestal que tinha mais de cinco pés de altura. Porém, a viva e ágil estrangeira recusou o auxílio que o barão lhe oferecia e saltou para o chão com facilidade e sem se magoar, como se tivesse asas. Só pela pressão momentânea da mãozinha que o barão de Arnheim apertou, este pôde certificar-se que ela era um ser de carne e osso.

- Estou aqui segundo a ordem que recebi - declarou ela, relanceando em volta um olhar rápido Encontrará em mim uma professora dedicada e conto que me faça honra, sendo um discípulo atento e tra-" balhador.

com a chegada deste ente encantador, diversas mudanças ocorreram no castelo de Arnheim. Uma dama de alta categoria e sem fortuna, viúva respeitável de um conde do Império, parente do barão, aceitou o convite que - este lhe fez para tomar conta do governo ida casa do seu parente e afastar com a sua presença qualquer suspeita ínjuriosa, que a presença de Hermione - assim se chamava a linda Persa - no castelo podia suscitar.

A condessa de Waldsfcetten levou a sua condescendência ao ponto de estar quase sempre presente quando o barão de Arnheim dava lições com a gentil professora, que por forma tão estranha substituira o velho Mago, decorressem elas na biblioteca ou no laboratório. Se pode dar-se crédito às palavras desta dama, os trabalhos eram de natureza muito estranha e produziam muitas vezes efeitos que infundiam tanto receio como surpresa. No entanto, afirmava categoricamente, que nunca se preocupavam com ciências ilícitas e se limitavam aos conhecimentos permitidos ao género humano.

Um juiz mais competente na matéria, o arcebispo de Bamberg, visitou o castelo de Arnheim para poder avaliar a ciência de uma mulher, cuja fama se espalhara por todas as terras banhadas pelo Reno. Conversou com Hermione e verificou ter ela profunda noção de todas as verdades da religião. Conhecia tão bem os dogmas, que a classificou como um doutor em teologia, usando os trajos de uma bailarina do Oriente. Quando lhe perguntaram o que pensava dos seus conhecimentos nas línguas estrangeiras e nas ciências, respondeu que fora a Arnheim para verificar a verdade de tudo quanto ouvira dizer e que lhe parecera um pouco exagerado. Mas como teimassem, confessou não lhe terem dito metade da verdade.

Depois deste testemunho irrefutável, acabaram os boatos sinistros aos quais a estranha aparição da bela estrangeira dera lugar, tanto mais que os seus modos insinuantes obrigavam todos os que lidavam de perto com ela a estimá-la.

Entretanto, as relações entre a amável professora e o seu aluno tomavam aspecto diferente. Mantinham-se dentro da mais estrita reserva e nunca, pelo que sabiam, a condessa Waldstetten ou qualquer outra pessoa de respeito deixava de estar presente às lições. Estas entrevistas, porém, já não se davam exclusivamente na biblioteca ou no laboratório; procuravam distrair-se nos jardins ou no parque; faziam caçadas ou pescarias e passavam os serões a dançar. E tudo isto provava que o estudo das ciências cedera o lugar à atracção do prazer.

Não foi difícil adivinhar a significação da mudança quando ela e o barão de Arnheim falaram uma língua que ninguém compreendia e puderam ter conversas particulares no meio do tumulto de prazeres que os rodeava.

Ninguém ficou surpreendido quando, decorridas algumas semanas, foi oficialmente anunciado que a linda Persa ia tornar-se baronesa de Arnheim.

Os modos desta linda criatura eram tão sedutores

e amáveis, a sua conversa tão animada, o seu espírito tão brilhante e ao mesmo tempo era tão meiga e modesta que, embora a sua origem fosse desconhecida, a sua boa fortuna não suscitou invejas, como seria de esperar naquela circunstância.

 

Por último, a sua génerosidade causava espanto e conquistou os corações de todos quantos lidavam de perto com ela. A sua riqueza parecia imensa. Distribuía tantas jóias pelas amigas que poderia supor-se não restarem nenhumas para se enfeitar. As suas boas qualidades, principalmente a sua liberalidade, a simplicidade do seu carácter, fazendo contraste com a extensão dos conhecimentos que sabiam ela possuir, a ausência completa de ostentação, faziam com que as outras - damas lhe perdoassem a superioridade. Notava-se, no entanto, algumas singularidades, talvez exageradas pela inveja, que traçavam como que a linha de separação entre a bela Hermione e as simples mortais com quem convivia.

A dançar não tinha rivais, pela leveza e agilidade e poder-se-ia tomar por um ser alado. Podia entregar-se ao prazer da dança horas seguidas sem demonstrar a mais pequena fadiga, a ponto de cansar o mais intrépido dançarino.

O jovem duque de Hochspringen, que em toda a Alemanha era considerado infatigável, tendo dançado meia hora com ela, viu-se obrigado a interromper a dança e atirou-se para cima de um sofá, completamente esgotado, afirmando ter dançado não com uma mulher, mas com um fogo-fátuo.

Dizia-se baixinho que, quando brincava no labirinto ou nos bosques do jardim com as amigas, brincadeiras que exigiam agilidade, demonstrava a leveza sobrenatural que a inspirava quando dançava. Quando saía do lado das pessoas amigas desaparecia e pouco depois transpunha as sebes, os caniçados, as barreiras com tanta rapidez que o olhar mais observador não conseguia descobrir como se encontrava do outro lado; quando a viam longe, por trás de qualquer barreira, os que a seguiam com os olhos, viam-na no mesmo instante a seu lado, sem poderem descobrir como isso acontecera.

Nesses momentos, quando os olhos lhe brilhavam e as faces se tornavam mais vermelhas, quando mais se animavam, dizia-se que a opala encastoada na fita azul que lhe prendia os cabelos, enfeite que nunca abandonava, brilhava com maior fulgor e tornava-se mais viva a centelha ou língua de fogo que dela emanava. Da mesma forma, à noite, na sala, se a conversa de Hermione era mais animada do que o costume, a pedra tornava-se mais brilhante e dela brotava um raio de luz, sem que qualquer outro corpo luminoso pudesse reflecti-lo como era natural.

As criadas afirmavam que, se a ama se deixava arrebatar por um movimento de cólera, uma centelha vermelho-vivo brotava da misteriosa jóia, como se ela partilhasse as emoções da pessoa que a usava. As mulheres encarregadas do seu serviço asseguravam que Hermione nunca se separava dessa jóia, salvo durante breves instantes em que guardava silêncio e assumia um ar mais pensativo do que de costume e que: nessa altura, demonstrava grande receio de que aproximassem dela qualquer Líquido.

Notou-se também que, quando molhava os dedos na bacia da água benta à porta da igreja, nunca levava a mão à testa para fazer o sinal da cruz, com medo, supunham, que uma gota de água atingisse a jóia que tanto apreciava.

 

Estes boatos não impediram a realização do casamento do barão de Arnheim. Foi celebrado conforme os ritos religiosos em uso e o novo casal iniciou uma vida de felicidade, tal como raramente se encontra na terra.

Decorridos doze meses, a baronesa deu à luz uma menina a quem deram o nome de Sibila, o da mãe do barão de Arnheim. Como a saúde da criança era excelente, demoraram o baptizado até que a mãe se encontrasse em estado de poder assistir. Fizeram convites às principais pessoas dos arredores e, na altura da cerimônia, reuniu-se no castelo uma sociedade bastante selecta.

Entre os convidados encontrava-se uma velha dama, que parecia destinada a desempenhar o papel que nos contos de fadas se atribui à fada má.

Era a baronesa de Steinfeldt, célebre pela sua curiosidade insaciável e pelo insolente orgulho. Instalara-se havia poucos dias no castelo e já, com o auxílio de uma criada, para encontrar alimento para a sua curiosidade, sabia tudo quanto se dizia e suspeitava a respeito de Hermione. Na manhã do dia fixado para o baptizado, quando todos os convidados estavam reunidos no salão e só aguardavam a chegada da dona da casa para se dirigirem à igreja, levantou-se entre a baronesa e a condessa de Walsdtetten violenta questão sobre o direito de procedência. O barão de Arnheim, escolhido para árbitro, pronunciouse a favor da condessa. Madame de Steinfeldt ordenou imediatamente que trouxessem o seu corcel e toda a sua comitiva montou a cavalo.

- Abandono o castelo onde uma boa cristã nunca devia ter entrado - bradou - Deixo uma casa cujo dono é feiticeiro, a dona um demônio que não se atreve a tocar na testa com água benta, e a dama de companhia uma mulher que, por vil interesse, desempenhou o papel de intermediária entre o mágico e um demônio encarnado.

E saiu no mesmo instante com o semblante contraído pelo ódio e o coração a estoirar de raiva,

O barão deu alguns passos em frente e perguntou se entre os cavaleiros e senhores reunidos naquela sala se encontrava algum que desejasse desembainhar a espada para sustentar as infames mentiras que a baronesa acabava de proferir contra ele, contra sua esposa e contra a sua parente.

Ninguém quis tomar a defesa da baronesa de Steiníeld em tão má causa e todos declararam estarem convencidos de que só pronunciara mentiras e falsidades.

- Que as suas palavras sejam então consideradas como mentiras - disse o barão de Arnheim - visto nenhum homem de honra querer tomar a sua defesa. Mas todos os que aqui estão presentes esta manhã verão a baronesa Hermione cumprir os seus deveres

de cristã.

A condessa Waldstetten, ao ouvi-lo falar assim, mostrou-se inquieta e fez-lhe sinal para se calar. E, quando teve ocasião de se aproximar dele, disse-lhe a meia voz:

- Seja prudente e não procure provas temerárias. Existe qualquer coisa de misterioso na opala, naquele talismã. Seja cauteloso e não pense mais no que se passou aqui.

O barão, porém, estava fora de si e mais encolerizado ficou.

 

Talvez que semelhante afronta, recebida naquelas circunstâncias, bastasse para abalar a prudência do homem mais paciente e a filosofia do mais sábio; Em conseqüência, respondeu com certa rudeza e mau modo:

- Estará a senhora tão louca como a baronesa?

E não desistiu do projecto que formara.

A baronesa de Arnheim entrou nesse momento. O parto recente deixara-lhe nas faces a palidez suficiente para lhe acentuar a formosura e torná-la mais interessante do que nunca, embora as feições expressivas estivessem pouco animadas. Cumprimentou os presentes com graça e delicadeza e logo perguntou onde estava madame de Steinfeld. O marido, porém, obrigou-a a mudar de assunto, pedindo aos convidados para passarem à capela; e, quando todos acederam, deu o braço a sua mulher e seguiu atrás deles.

A brilhante sociedade quase enchia a capela e todos os olhares se cravaram no barão e na baronesa quando eles chegaram, precedidos por quatro jovens que traziam a criança sobre uma almofada, ricamente bordada.

Quando entrou na capela, o barão molhou os dedos na água benta e ofereceu-a à esposa que a aceitou, conforme o uso, tocando com os dedos nos seus.

Então, como para refutar as calúnias da maldosa baronesa de Steinfeld e com alegre familiaridade que o local e a ocasião deviam ter-lhe interdito, salpicou a fronte da bela Hermione com as gotas de água benta que lhe restavam nos dedos. Uma dessas gotas atingiu a opala.

Então, a pedra despediu uma centelha brilhante e, como fogo que se apaga, perdeu todo o brilho e cores e tornou-se semelhante a uma pedra vulgar.

Ao mesmo tempo, a linda baronesa caiu no chão pavimentado de mármore, soltando profundo suspiro.

Assustados, os convidados rodearam-na, levantaram-na e levaram-na para o quarto. Durante esta curta operação, porém, as feições transtornaram-se-lhe de tal maneira e o pulso tornou-se tão fraco que todos a consideraram como uma moribunda.

Quando se encontrou estendida no leito pediu para a deixarem sozinha com o marido. O barão demorou-se uma hora no quarto com ela e quando saiu fechou a porta à chave. Voltou para a capela e ficou mais de uma hora ajoelhado em frente do altar.

Entretanto, a maior parte dos convidados para o baptizado já se haviam retirado, dominados pela mais viva consternação. Ficaram poucos, uns por delicadeza, outros por curiosidade.

Todos, porém, concordavam que não se devia deixar uma doente em estado tão grave sozinha e fechada nos seus aposentos. Mas, embora estivessem assustados com as estranhas circunstâncias que haviam provocado a doença, ninguém se atreveu a perturbar o barão nas suas devoções.

Por fim, chegaram os médicos que tinham sido chamados e a condessa Waldstetten decidiu-se a ir pedir ao barão a chave do quarto. Foi obrigada a repetir o pedido muitas vezes para ele a ouvir e fazer-lhe compreender o que pretendia.

Então, o barão deu-lhe a chave mas, com ar sombrio, afirmou ser inútil qualquer socorro e manifestou o desejo de que o resto dos convidados abandonasse o castelo.

 

Poucos deles contrariaram este desejo, quando, decorridas duas horas, abriram a porta do quarto para onde fora transportada Hermione.

A doente desaparecera e em seu lugar, no leito, encontraram um montinho de cinzas escuras, como as produzidas por papel queimado.

Chorando tão triste acontecimento, o barão ordenou solenes exéquias; cumpriram-se todos os ritos religiosos por alma da mui alta e nobre Hermione, baronesa de Arnheim.

No mesmo dia, três anos depois, o barão morreu e foi sepultado com a sua espada, elmo e escudo, como sendo o último descendente masculino da sua raça.

 

                 O QUARTO ASSOMBRADO

Esta história é transmitida tal como a contaram ao autor, tanto quanto a sua memória o pode garantir. Por conseqüência, não merece ser louvado ou censurado pelo bom ou mau gosto que inspirou a escolha, pois evitou cuidadosamente sobrepor qualquer ornamento à simplicidade do estilo.

Deve admitir-se ao mesmo tempo que as histórias da espécie destas, que têm o maravilhoso por objecto, influem muito mais sobre o espírito quando são contadas conforme as impressões recebidas.

Um livro, lido à luz do candeeiro, embora contendo os mesmos incidentes, causa uma emoção muito menos forte do que quando escutamos a voz do narrador, sentados ao canto do fogão, pormenorizando todos os incidentes que aumentam a autenticidade da história, ou então a sua voz baixa assime um tom misterioso quando descreve uma catástrofe terrível ou maravilhou. Foi nestas circunstâncias que o autor ouviu contar a história seguinte, há mais de vinte anos, pela célebre miss Seward, de Láchfield, que, aos seus numerosos talentos, reunia por forma notável o dom de encantar os seus ouvintes quando conversava.

Esta narrativa deve necessariamente perder, na forma como é apresentada, parte do interesse que lhe transmitia a voz maviosa e as feições expressivas da narradora. No entanto, lido em voz alta, perante um auditório suficientemente crédulo, com a claridade dúbia do crepúsculo ou na solidão de um aposento mal iluminado, o conto pode considerar-se uma boa história de fantasmas.

Miss Seward afirmava sempre tê-la ouvido às autênticas personagens que nela interferem, embora oculte o nome das duas pessoas que desempenham os principais papéis.

Também não me aproveitarei de alguns pormenores que mais tarde chegaram ao meu conhecimento, referentes à localidade onde isto se passou, mas limito-me à descrição geral, tal como primitivamente ma fizeram. Pela mesma razão, não aumentarei nem tirarei coisa alguma à narrativa. Apenas transcreverei, tal como o ouvi contar, um acontecimento sobrenatural.

 

Nos últimos tempos da guerra da América, quando os oficiais do exército de lorde Cornwallis, que se rendeu em York-Town, e os outros que foram feitos prisioneiros durante essa luta impolítica e infeliz, voltaram à pátria para contar as suas aventuras e, descansar das fadigas da guerra, havia entre eles um oficial general a quem miss Seward deu o nome de Brown, simplesmente, como depreendi, para evitar a dificuldade de apresentar - na narrativa uma personagem sem nome. Era um oficial de mérito e um homem distinto, tanto pelo nascimento como pela educação.

Certos negócios levaram o general Brown a viajar nos condados do Oeste. De manhã chegou a uma muda situada nos arredores de uma cidade, que apresentava uma paisagem de uma beleza e de um carácter totalmente inglês.

Esta pequena cidade com a sua igreja gótica, cuja torre atestava a devoção dos séculos passados, erguia-se no meio de campinas e de campos de trigo não muito extensos, rodeados de sebes e de árvores enormes e muito antigas. O modernismo ainda ali não entrara. Os arredores não apresentavam o aspecto desolado das ruínas, nem o movimento ocasionado pelas reparações. As casas eram velhas, mas em bom estado e o ribeiro que murmurava, correndo livremente ao lado esquerdo da cidade, não era preso por barragens, nem bordado por caminhos de reboque.

Numa eminência, cerca de uma milha distante da cidade, para sul, avistavam-se, no meio de veneráveis carvalhos e de espesso arvoredo, as torres de um castelo tão antigo como as guerras de York e Lencaster, mas que devia ter sofrido grandes modificações no reinado de Isabel e do seu sucessor.

Não era uma construção imponente, mas todas as comodidades que proporcionava noutros tempos deviam ainda encontrar-se - ou podia-se admiti-lo - entre as suas paredes. Pelo menos, era esta a opinião que o general Brown acabava de formular, ao ver o fumo elevar-se rapidamente das velhas chaminés esculpidas.

Os muros do parque ladeavam a estrada principal, ao longo de duzentos ou trezentos metros e os bosques, que se avistavam pareciam bem povoados de caça.

Doutros pontos, avistavam-se alternadamente, quer a fachada do velho castelo, quer uma parte das diversas torres: a primeira, exibindo todas as bizarrias da arquitectura do tempo de Isabel, enquanto o aspecto simples e sólido das outras partes do edifício provava terem sido elevadas mais como meios de defesa que por ostentação feudal.

Encantado com o que avistava do castelo, por entre os bosques e as clareiras de que a antiga fortaleza estava rodeada, o nosso militar viajante resolveu informar-se para saber se o castelo merecia ser visto mais de perto e se continha retratos de família ou outros objectos dignos da curiosidade de um forasteiro. Abandonou, portanto, as proximidades do parque, atravessou a rua limpa e bem pavimentada e parou diante de uma hospedaria que parecia bem afreguezada.

Depois de ter pedido cavalos para continuar a viagem, o general Brown fez algumas perguntas sobre o actual proprietário do castelo que cativara a sua admiração. A sua surpresa não foi maior do que a alegria ao ouvir nomear um fidalgo a quem chamaremos lorde Woodville. Que felicidade! A maior parte das recordações de Brown dos tempos de colégio e da universidade andavam ligadas ao jovem Woodville. Mais algumas perguntas deram-lhe a certeza de ser bem a mesma pessoa o possuidor do belo domínio.

 

Fora elevado ao pariato por morte do pai e, conforme o dono da hospedaria lhe disse, tendo acabado o luto, o jovem par tomou posse da herança paterna, no mês mais belo do Outono, acompanhado por um grupo de amigos escolhidos, que vinham partilhar com ele os prazeres da caça numa região onde ela era tão abundante.

Estas informações encantaram o nosso viajante. Frank Woodville era bem o antigo condiscípulo de Ricardo Brown, em Eton, e seu amigo íntimo na universidade de Crist-Church; juntos se haviam divertido e estudado; o coração do valoroso militar alegrou-se ao saber que o seu antigo amigo possuía uma residência tão bela e um domínio digno da sua alta posição, conforme o dono da hospedaria lhe garantiu com um abanar de cabeça e um piscar de olhos significativo. Nada mais natural do que a resolução do general de suspender a viagem, que não era urgente, para visitar um velho amigo, com grande prazer e em circunstâncias tão favoráveis.

Os novos cavalos, portanto, tiveram apenas a missão de conduzir o general na sua carruagem até ao castelo de Woodville.

O oficial foi recebido pelo porteiro, no seu cubículo construído num estilo meio moderno meio gótico, para corresponder com o castelo. Este porteiro tocou para anunciar a visita. Aparentemente, este toque deteve a dispersão dos convidados, que estavam dispostos a separar-se para gozar os divertimentos proporcionados por uma manhã passada no castelo, porque, ao entrar no pátio, Brown viu muitos rapazes em trajo de caça, examinando e apreciando os cães, que os guardas seguravam, prontos a segui-los.

No instante em que Brown desceu da carruagem, o jovem lorde apareceu à porta do vestíbulo e, durante algum tempo, observou o desconhecido, porque de momento não reconheceu um rosto que a guerra, as fadigas e os ferimentos haviam modificado. Essa dúvida, porém, cessou logo que Brown fez ouvir a sua voz. O encontro foi o de dois amigos que tinham passado juntos os dias felizes da infância e os primeiros anos da mocidade.

- Se tivesse pensado em formular um desejo, meu, caro Brown - afirmou lorde Woodville - esse era o de

o ter connosco neste dia que os meus amigos terão a bondade de considerar um dia de festa. Não creia que o esqueci durante todos estes anos de ausência. Segui a sua carreira e estou ao facto de todos os perigos por que passou, dos seus triunfos e infelicidades e sentia-me feliz ao verificar que, tanto nas vitórias como nas derrotas, o meu velho amigo sempre se cobriu de glória.

O general respondeu como convinha e por sua vez cumprimentou o amigo pela sua nova dignidade e pela posse de tão belo domínio.

- Ainda não viu nada, meu amigo - respondeu lorde Woodville - e espero que não nos deixe sem conhecer bem o domínio. Infelizmente, tenho nesta ocasião bastantes convidados e este velho castelo, como todos os deste género, não oferece tantas comodidades como o exterior e a extensão prometem. No entanto, posso dar-lhe um quarto antigo e atrevo-me a esperar que as suas campanhas o tenham habituado a contentar-se com tão mau alojamento.

O general riu e encolheu os ombros.

- Presumo - respondeu - que o mais medíocre quarto do seu castelo será preferível ao grande tonei de guardar tabaco onde fui obrigado a dormir quando estive nas savanas da Virgínia. Sentia-me lá dentro melhor do que o próprio Diogenes e tão satisfeito por estar ao abrigo da fúria dos elementos, que gostaria de ter rolado a minha casa para novos aquartelamentos. Mas o meu comandante não me consentiu esse luxo a eu despedi-me do meu querido tonei com as lágrimas nos olhos.

- Muito bem! - aprovou lorde Woodville- E, visto não lhe meter medo o quarto que lhe destino, ficará connosco pelo menos uma semana. Espingardas, cães e canas de pesca, redes para apanhar insectos ou borboletas, todos os meios para caçar em terra ou no mar estão à sua disposição. Não conseguirá inventar um divertimento que nós não possamos proporcionar-Lhe. Mas, se prefere uma boa espingarda e um perdigueiro, acompanhá-lo-ei e verei se a sua estadia entre os índios da América o tornou melhor caçador.

O general aceitou com alegria a proposta do amigo. Depois de um dia passado em exercícios fatigantes, reuniram-se para jantar e lorde Woodville, durante a refeição, encantado por poder fazer admirar aos seus convidados, quase todos pessoas de distinção pelo nascimento, espírito ou qualidades, o amigo tão inesperadamente recuperado, levou o general Brown a falar das acções em que tinha tomado parte.

Cada palavra sua revelava o oficial corajoso e o homem sensível que soubera conservar o sangue-frio perante os maiores perigos, todos os rapazes presentes sentiram o mais profundo e sincero respeito pelo homem que possuía verdadeira coragem, atributo que todos gostam de fazer ver que possuem.

O dia no castelo de WoodvUle terminou como é uso terminarem nestas circunstâncias: os prazeres não ultrapassaram os limites das conveniências. A música, uma das ocupações favoritas do jovem lorde, sucedeu à circulação das garrafas. Havia um bilhar e mesas de jogo para quem preferisse esse género de distracções. Mas o exercício da manhã exigia que descansassem cedo e, pouco depois das onze, os convidados de lorde Woodville começaram a retirar para os seus aposentos.

O próprio lorde conduziu o amigo, o general Brown, ao quarto que lhe destinara e que correspondia exactamente à discrição que dele fora feita, isto é, a de um quarto com todas as comodidades, mas mobilado à antiga.

A cama era dessa forma, maciça usada no século dezassete, os cortinados de seda desbotada com pesadas franjas de oiro enegrecido; mas os lençóis, almofadas e cobertores apresentavam delicioso aspecto aos olhos do general quando pensava no seu tonei. Havia qual quer coisa de sombrio nas tapeçarias que forravam as paredes do quarto. Agitavam-se devagarinho, movidas pela brisa de Outono que passava através das velhas vigas do tecto e assobiava ao penetrar no aposento. O toucador e o espelho, eram ornamentados com seda escura disposta em forma de turbante, conforme a moda do começo do século dezoito e em cima do primeiro viam-se muitas caixinhas com coisas indispensáveis a penteados que não se usavam havia mais de cinqüenta anos. Tudo isto dava ao quarto um aspecto antiquado e lúgubre, atenuado pela claridade brilhante projectada por duas enormes velas e pela lenha miúda que ardia no fogão e que espalhava ao mesmo tempo luz e calor. O pequeno quarto, a despeito da sua aparência gótica, dispunha de todas as comodidades que as casas modernas tornam necessárias ou, pelo menos, agradáveis.

- Aqui tem um quarto de dormir muito antigo, general - observou o jovem lorde - Mas creio que, ficando aqui instalado, não lamentará o seu tonei.

- Não sou muito exigente em questão de alojamento - respondeu o general - No entanto, se pudesse escolher, creia que preferiria este quarto aos mais modernos aposentos do seu castelo. Quer acredite ou não, vendo reunida aqui a antigüidade aos requintes do modernismo e quando me lembro que tudo isto pertence a Vossa Senhoria, classifico os meus aposentos melhores dos que podiam proporcionar-me os melhores hotéis de Londres.

- Espero, não duvide, que durma aqui bem, meu general.

E, apertando mais uma vez a mão do amigo, retirou-se.

O general olhou mais uma vez em volta dele e, intimamente, felicitou-se pelo seu regresso à vida pacífica, cujos benefícios mais apreciava ao recordar as fadigas que suportara. Enquanto fazia estas reflexões, despiu-se e deitou-se na idéia de que passaria uma excelente noite.

Deixemos, portanto, o general na posse do seu belo aposento até a manhã seguinte.

Os convidados reuniram-se cedo para o almoço; o general Brown, porém, aquele a quem Woodville ligava maior importância, não apareceu.

Por mais de uma vez lorde Woodville manifestou surpresa pela ausência e acabou por enviar um criado ao quarto para se informar do que acontecera. O criado voltou, dizendo que o general Brown fora passear logo de madrugada, a despeito da manhã estar fria e chuvosa.

- É um hábito de militar-declarou o lorde para os amigos - A maior parte deles não consegue estar deitado depois da hora a que eram forçados a levantar-se quando estavam ao serviço.

Contudo, apesar desta explicação dada naturalmente aos seus convidados, lorde Woodville não estava muito convencido e aguardou em silêncio e como absorvido em profundas reflexões, o regresso do general, que teve lugar mais de uma hora depois da sineta ter tocado para o almoço.

Brown parecia fatigado e doente. Os seus cabelos, cuja disposição e arranjo constituíam uma das mais importantes tarefas de um homem durante uma parte do dia e revelavam o seu bom gosto, tal como actualmente o nó da gravata, estavam desordenados, sem polvilhos e húmidos de orvalho; tinha a aparência de uma pessoa que se vestira à pressa e sem cuidado, facto de estranhar num militar que, por dever, era obrigado a dispensar a maior atenção ao vestuário. O olhar tinha uma expressão estranha.

 

- Então não quis passear connosco esta manhã, general! - comentou lorde Woodville - ou a cama não foi tão boa como eu supunha. Como passou a noite?

- Bem, muito bem - respondeu com precipitação o general - Foi a melhor noite da minha vida.

Em seguida, bebeu precipitadamente uma chávena de chá. recusou tudo quanto lhe ofereceram e caiu numa abstracção total.

- Tenciona acompanhar-nos numa caçada, general?

- perguntou o dono da casa.

Mas foi obrigado a repetir duas vezes a pergunta antes de obter a seguinte resposta:

- Não, milorde. Sinto-me penalizado por não poder passar outro dia consigo, mas os cavalos de posta que mandei vir devem encontrar-se aqui dentro de minutos.

Todos os convidados manifestaram a sua surpresa e lorde Woodville exclamou:

- Cavalos de posta, meu bom amigo! Para que precisa deles se me prometeu passar connosco pelo menos uma semana?

- Creio - respondeu o general evidentemente atrapalhado - que o prazer causado pelo nosso encontro me levasse a prometer qualquer coisa nesse género. Mas depois pensei que me seria impossível.

- É estranho - replicou o lorde - Ontem não tinha nada que o prendesse e hoje ainda não recebeu notícias, com certeza, pois a correspondência ainda não chegou da cidade.

O general Brown não deu mais explicações e murmurou qualquer coisa, referindo-se a assuntos inadiáveis e insistiu na necessidade da partida por forma que tornou impossível mais oposição por parte do lorde, pois reconheceu ser a resolução do amigo irrevogável. Momentos depois, acrescentou:

- Pelo menos, meu caro Brown, visto ter tanta pressa em nos deixar, consinta que lhe mostre a paisagem do terraço. O nevoeiro está a levantar e permitirá que a admiremos.

Ao dizer estas palavras, abriu a porta envidraçada e passou para o terraço. Sempre distraído, o general seguiu-o e deu pouca atenção aos discursos do lorde, "enquanto este lhe descrevia os diversos pontos do panorama que merecia ser admirado. Lorde Woodville, enquanto falava, ia andando e quando levou Brown para longe dos convidados, voltou-se de repente e disse-lhe com ar grave:

- Estamos sós, Ricardo Brown. meu velho e sincero amigo. Conjuro-o a responder como amigo e pela sua honra de soldado, como passou esta noite?

- O mais deploràvelmente possível, milorde - respondeu o general no mesmo tom - de uma maneira tão terrível que não quero afrontar a perspectiva de passar outra igual, ainda que me oferecessem não só todas as terras pertencentes ao castelo como aquelas que a nossa vista abraça.

- É extraordinário! - comentou o lorde, como se falasse consigo próprio - Então sempre há alguma coisa de verdade nos boatos que correm sobre esse apposento!

E, dirigindo-se novamente ao general, continuou:

- Pelo amor de Deus, meu caro amigo, seja franco comigo e conte-me tudo quanto lhe aconteceu de desagradável debaixo dos meus tectos e onde, conforme o meu desejo, só devia encontrar repouso e prazer.

 

O general pareceu ficar desolado com o pedido, conservou-se calado durante algum tempo e por fim respondeu:

- Meu caro lorde, o que me aconteceu a noite passada foi tão estranho e desagradável, que mal tenho coragem para lhe contar todos os pormenores, mesmo a si, porque essa sinceridade da minha parte levar-me-á a explicar-lhe circunstâncias tão estranhas quanto misteriosas. Para indiferentes, o que vou dizer-lhe, dar - me-ia a aparência de um tolo supersticioso que se deixa arrastar e enganar pela sua imaginação. Mas o meu amigo conhece-me de pequeno e com certeza não supõe ter eu adquirido na idade madura as fraquezas das quais não enfermava na mocidade.

Calou-se e o dono da casa apressou-se a responder:

- Por muito estranhas que sejam as suas confi dências, não duvide da minha confiança. Conheço demasiado a sinceridade do seu carácter para duvidar do que me disser. Além disso, estou convencido de que a sua amizade por mim e a sua honra o impediriam de exagerar os factos que presenciou.

- Muito bem! - respondeu o general - Vou contar-lhe a minha história o melhor que puder, confiando na sua génerosidade. No entanto, confesso-lhe que preferia estar diante de uma bateria do que recordar os odiosos acontecimentos da noite passada.

Calou-se um instante, mas como lorde Woodville nada dissesse também e demonstrasse profunda atenção, começou com visível repugnância a narrativa da aventura nocturna no quarto antigo.

- Despi-me e meti-me na cama logo que Vossa Senhoria saiu do quarto. No entanto, a claridade do fogão que ficava mesmo em frente da cama, as recordações da infância e dos primeiros tempos da minha mocidade, despertadas pelo encontro com um velho amigo, impediram-me de adormecer logo. Devo dizer que essas recordações eram todas agradáveis e alegres, baseadas na certeza de ter trocado durante algum tempo os trabalhos, as canseiras e os perigos da minha profissão pelos prazeres de uma vida calma e pelos laços de afeição quebrados durante muito tempo pelos deveres da minha profissão. Enquanto estas reflexões agradáveis me acudiam ao espírito e me levavam pouco a pouco a adormecer, fui subitamente despertado pelo roçar de um vestido de seda e pelo martelar de saltos altos no chão, como se uma mulher andasse no meu quarto. Antes de ter afastado o cortinado para ver de quem se tratava, o vulto de uma dama de pequena estatura passou entre a minha cama e o fogão. Voltava-me as costas, mas pelo vergar dos ombros e pelo pescoço, pude verificar ser uma velha. O trajo consistia num vestido cuja forma já passou de moda e que outrora se chamava vestido-saco, creio eu, vestido inteiro, sem cintura marcada, mas cujas pregas se reuniam no pescoço e nos ombros, caindo até ao chão, formando uma espécie de cauda.

"Achei a visita muito estranha, mas nem por momentos me veio à idéia que se tratasse de qualquer coisa sobrenatural. Supus ter diante de mim uma senhora de idade, do castelo que, por capricho, se vestisse como a sua avó e que, tendo sido desalojada do seu quarto para mo ceder, tivesse esquecido a circunstância e voltasse a ele, com essa persuação, mexi-me na cama e tossi ao de leve para lhe indicar que o quarto estava habitado. Então a mulher voltou-se lentamente.

 

"Santo Deus! Que rosto era o dela, milorde! Não precisei perguntar a mim mesmo quem ela era, porque não podia pensar ser um ente vivo.

"Na face descarnada de esqueleto reflectiam-se todas as odientas vis paixões que haviam animado aquela mulher para se unir à alma que fora cúmplice dos seus crimes. Estremeci e soergui-me sobre o cotovelo para olhar bem o terrível espectro. Então a medonha feiticeira deu um salto para a minha cama, sentou-se precisamente na mesma posição em que me encontrava, aproximou a face diabólica bem perto da minha, com um ranger de dentes e um esgar irônico, revelando toda a malícia de um espírito mau.

Chegando a este ponto, o general Brown calou-se um instante e enxugou a testa que a recordação da horrível aparição cobrira de suor frio.

- Não sou poltrão, milorde - continuou por fim - Afrontei todos os perigos que se nos deparam na minha profissão e posso afirmar com verdade que, Ricardo Brown nunca desonrou a sua espada. Mas com aquele terrível ser junto de mim, quase nas mãos de um demônio, toda a minha firmeza me abandonou e a minha coragem desapareceu como cera na fornalha. Os cabelos puseram-se-me em pé, o sangue gelou-se-me nas veias e perdi os sentidos, vítima de um terror pânico, tal como uma rapariguita da aldeia ou uma criança de dez anos. Não posso dizer-lhe quanto tempo durou o meu desmaio.

"Voltei a mim quando o relógio do castelo dava a uma hora e com tanta força como se soasse no meu quarto. Decorreram alguns minutos antes que abrisse os olhos, com receio de encontrar de novo o horrível espectro. Quando por fim arranjei coragem para olhar em volta de mim, não vi a terrível aparição. A minha primeira idéia foi a de tocar, de chamar os criados e refugiar-me nas mansardas ou num barracão de guardar palha, de preferência a ser atormentado de novo pelo medonho fantasma. Mas devo confessar a verdade. Faltou-me a força para pôr em prática essa resolução, não pelo receio de confessar medo, mas porque o cordão da campainha pendia junto do fogão e eu recuava perante a perspectiva de encontrar o velho demônio, pois supunha que estivesse escondido em qualquer ponto do aposento.

"Não tentarei descrever-lhe os calafrios e os calores ardentes que, alternadamente, eu experimentei durante a noite. Mil aparições, cada qual a mais horrível, perpassavam-me diante dos olhos, mas havia grande diferença entre a primeira aparição e as que se lhe seguiram. Compreendi que as últimas eram produto da minha imaginação transtornada e dos meus nervos irritados.

"Finalmente o dia nasceu e eu saltei imediatamente da cama, doente e humilhado. Estava envergonhado como homem, e como militar, tanto mais que desejava com ânsia abandonar aquele quarto habitado por espíritos. Esse desejo dominou qualquer outra consideração. Vesti-me à pressa e precipitei-me para a saída do castelo, procurando nos campos alívio para o meu sofrimento. Vossa Senhoria conhece agora o motivo do desejo súbito que me impele a abandonar o castelo de Woodville. Poderemos encontrar-nos muitas vezes

em qualquer outro ponto, mas Deus me livre de passar segunda noite debaixo destes tectos.

 

Por muito estranha que fosse a história, o general falava com tão profunda convicção, que tornou impossível qualquer dos comentários que é hábito fazer-se em semelhantes circunstâncias. Lorde Woodville não perguntou ao amigo se estava certo de não ter tido um mau sonho, nem opôs as suposições que usualmente se empregam para explicar estas aparições: uma imaginação em delírio ou uma ilusão de óptica. Pelo contrário, pareceu absolutamente convencido da verdade e da realidade do que tinha ouvido e, depois de um momento de silêncio, exprimiu, com expressão de profunda sinceridade, o pesar pelos sofrimentos que o amigo havia suportado em sua casa.

- Estou ainda mais aborrecido, meu caro Brown - acrescentou - por tudo isto ter sido resultado de uma infeliz experiência que me dispus fazer. Convém saber que, desde o tempo de meu pai e mesmo de meu avô, o quarto que ocupou esta noite estava fechado por ter corrido o boato de que era freqüentado por seres sobrenaturais. Quando aqui cheguei, há poucas semanas, pensei que os meus convidados eram muito numerosos para permitirem aos habitantes do mundo invisível apossarem-se de um quarto de dormir cómodo. Ordenei, portanto, que abrissem o quarto das tapeçarias, é esse o nome que lhe dão. Sem lhe tirar o cunho antigo, mandei colocar ali alguns móveis modernos, usados nos nossos dias. Contudo, como entre os criados, entre os meus amigos e mesmo nas vizinhanças continuassem a afirmar que estava assombrado, receei que a pessoa lá instalada fosse dominada por sugestões que confirmassem os boatos e transtornassem o meu desejo de utilizar o quarto das tapeçarias. Devo confessar-lhe, meu caro Brown, que a sua chegada, muito agradável para mim sob muitos outros aspectos, me pareceu a ocasião mais favorável para destruir as prevenções relativas ao quarto das tapeçarias. com a sua coragem bem conhecida e o seu espírito desempoeirado a este respeito, não podia encontrar pessoa mais conveniente para a minha experiência.

- Sinto-me infinitamente grato a Vossa Senhoria

- respondeu o general, levemente irritado - muito grato, na verdade. É natural que os meus nervos se ressintam por muito tempo das conseqüências dessa experiência, como Vossa Senhoria quer chamar-lhe.

- É injusto, meu caro amigo - replicou lorde Woodville - Pense um instante e terá de concordar que me seria impossível adivinhar os sofrimentos a que ia expô-lo. Ainda ontem de manhã eu era um verdadeiro céptico no que diz respeito a aparições sobrenaturais e estou convencido de que, se lhe tivesse contado os boatos que dizem respeito ao quarto das tapeçarias, seria o meu amigo a insistir para passar lá a noite. Foi uma infelicidade, mas não tive a culpa do senhor ter sido atormentado por forma tão estranha.

- Estranha, com efeito - replicou o general, recuperando o bom humor - Concordo que não devo querer mal a Vossa Senhoria por ter imaginado que eu não era aquilo que eu próprio supunha ser, um homem forte e corajoso... Mas já chegaram os meus cavalos e eu não quero privá-lo por mais tempo da companhia dos seus convidados.

 

- Visto não poder ficar mais um dia connosco, meu amigo - pediu lorde Woodville - conceda-me ainda meia hora. Noutro tempo gostava muito de quadros. Possuo uma galeria de retratos, alguns dos quais são pintados por Van Dyck. São dos meus antepassados, os antigos possuidores deste castelo e suas dependências. Julgo que saberá apreciar muitos deles.

Embora um pouco contrariado, o general Brown cedeu. Tornava-se evidente o seu mal-estar enquanto estivesse debaixo dos tectos do castelo de Woodville. No entanto, não quis magoar o amigo, tanto mais que se sentia envergonhado pelo mau humor demonstrado pouco antes.

Seguiu, portanto, lorde Woodville, atravessando diversas salas até chegarem à galeria dos quadros, que o amigo lhe mostrou, nomeando as pessoas retratadas. Estas discrições pouco interessaram o general. Quase todas as galerias de retratos de família se assemelham. Aqui, era um cavaleiro que arruinara a sua casa para servir a causa do rei; além, uma linda dama que a restabelecera no seu esplendor ao casar com um cabeça-redonda; de um lado via-se o retrato de um valente, que correra os maiores perigos para manter correspondência com a corte exilada em Saint-Germain; depois, outro, que pegara em armas por Guilherme, durante a revolução; por fim, um terceiro, que pesara ora na balança dos Whigs ora na dos Torys.

Enquanto o lorde descrevia os retratos, falando em voz baixa, os dois amigos atingiram o meio da galeria.

Woodville viu o general estremecer, ao mesmo tempo que as suas feições exprimiam a maior surpresa e um pouco de receio. O olhar detivera-se no retrato de uma velha dama, com um vestido-saco, trajo muito em moda nos fins do século dezassete.

- É esta! - exclamou o general Brown - A mesma estatura, o mesmo trajo, as suas feições, conquanto a expressão seja menos diabólica do que a do espectro que me visitou na última noite.

- Sendo assim - respondeu lorde Woodville - não podem restar-me as mais pequenas dúvidas sobre a realidade da aparição. Este retrato é o de uma mulher má, cuja negra e terrível lista de crimes está consignada nos arquivos da nossa família. Pormenorizá-los seria horrível. Basta dizer-lhe que no fatal quarto onde passou a noite foram cometidos um incesto e um crime de infanticídio. Vou condená-lo de novo à solidão" de acordo com a sensata decisão daqueles que me precederam e nunca, enquanto eu puder opor-me, ninguém ficará exposto à repetição da cena horrível e sobrenatural que abalou um homem corajoso como o meu caro amigo.

Os dois amigos, que se haviam encontrado com profundo sentimento de alegria, separaram-se com impressões muito diferentes.

Lorde Woodville deu as suas ordens para tirarem a mobília do quarto das tapeçarias e mandou murar a porta.

O general Brown, foi procurar numa região menos romântica e entre amigos de esfera menos elevada o esquecimento da terrível noite que passara no castelo de Woodville.

 

                       O BERÇO DO GATO

Eis uma história contada por Willie, o Vagabundo, com certeza já ouviram falar de sir Robert Redgauntlet, de Redgauntlet, que viveu muito tempo nesta região. Ainda hoje muitos se recordam dele e os nossos pais mal respiravam quando ouviam o seu nome. Esteve com os highlanders do tempo de Montrose; viram-no nas montanhas com Glencaird, em 1652, e quando o rei Carlos II voltou quem mais estava nas graças do soberano senão o laird de Redgauntlet? O próprio rei o fez cavaleiro na corte de Londres. Era um dos mais ardentes defensores dessa gente do episcopado e chegou aqui furioso como um leão, com ordem do lugar-tenente do condado para exterminar todos os Whigs e todos aqueles que haviam tomado partido pelo Covenant. A luta foi terrível, porque os Whigs eram tão teimosos quanto os Cavaleiros eram obstinados, e andavam ao desafio para ver qual deles atacava primeiro.

Redgauntlet estava sempre adiante de todos e o seu nome era tão conhecido na região como os de Claverhouse e o de tom Daizel. Nem vale, rochedo ou caverna podia servir de esconderijo aos nossos montanheses, que Redgauntlet perseguia, tocando trompa, acompanhado de uma matilha de cães, como se fosse caçar gamos. E quando conseguia apanhar algum, não fazia mais cerimônia com ele do que um montanhês poderia fazer com um cabrito montês.

- Queres prestar juramento? - perguntava.

E se o outro não obedecia no mesmo instante, bradava:

- Apontar! Fogo!

E o desgraçado caía morto.

Desta forma, sir Robert espalhava o terror e o ódio por toda a parte.

Diziam que tinha pacto com o diabo, que estava à prova de aço, que as balas eram repelidas pelo seu justilho de pele de búfalo como o granizo por uma muralha, que a sua égua se transformava em lebre quando chegava ao outro lado de Carrifra-Gawn. E muitas outras coisas que mais tarde contarei.

O melhor que podiam desejar-lhe e que diziam como bênção era: - O diabo leve Redgauntlet!

No entanto, não era mau patrão e todos os seus rendeiros o estimavam. Quanto aos soldados que o auxiliavam nas perseguições, como os Whigs classificavam aquele tempo de desordem, esses estavam sempre prontos a embriagar-se para beber à sua saúde.

É bom saber-se que meu avô vivia nos domínios de Redguantlet, num sítio chamado Primrose-Knowe. Havia longos anos que a minha família ali se estabelecera. Possuia uma casita agradável e posso afirmar que o ar ali era mais salubre e mais fresco do que em qualquer outro ponto da região. Hoje está deserta e abandonada. Ainda há três dias estive sentado no degrau da porta escangalhada e me felicitei pela impossibilidade de ver em que estado se encontrava o resto. Mas não se trata agora disso.

 

Ali vivia o meu avô, Steenie Steenson. Era um homem forte, que nos seus tempos fizera das suas e correra mundo. Tornara-se célebre por tocar muito bem gaita de foles, principalmente a ária: Hoopers and Gznders. Ninguém como ele em todo o Cumberland tocava o Jockie Luttin e dedilhava melhor do que qualquer outro, entre Berwick e Carlisle. Um homem como Steenie não era do estofo de que se fazem os Whigs; por conseguinte, fez-se Tory, quer dizer, jacobita, como hoje lhes chamamos, e isso pela necessidade de pertencer a um ou a outro partido. Não tinha raiva aos Whigs e não gostava de ver correr o seu sangue.

Embora obrigado a seguir sir Robert na caça, quer dizer, na guerra, via muitas coisas que lhe desagradavam e muitas vezes as fez também, porque não podia evitá-las.

Steenie era uma espécie de favorito do amo e conhecido por todos os que habitavam o castelo onde o chamavam muita vez para tocar gaita de foles quando queriam divertir-se.

O velho Dougal Mac Callum, o mordomo, que seguira sir Robert por montes e vales, por aqui e por ali, adorava apaixonadamente esse instrumento e encontrava sempre uma palavra a dizer ao laird a favor do meu avô, pois fazia do amo tudo quanto queria.

Chegou por fim a revolução e poder-se-ia acreditar que o coração de Dougal e do amo haviam sido despedaçados. A mudança, porém, não foi tão grande como temiam. Os Whigs fizeram muito barulho, enumerando o que se dispunham a fazer aos seus inimigos, principalmente a sir Robert Redgauntlet; mas muitas personalidades em destaque haviam posto mão na obra e não seria fácil atingi-las a todas.

Por conseguinte, o parlamento fechou os olhos sobre o passado e sir Robert continuou como dantes, salvo que, para se divertir, só lhe restava a caça às raposas em vez de caçar partidários do Covenant. As suas orgias eram tão ruidosas como noutros tempos. O castelo estava mais iluminado do que nunca estivera; contudo, já não tinha as multas dos não-conformistas que costumavam alimentar-lhe as despensas e as adegas.

Começou então a vigiar mais de perto os seus rendimentos e, se os rendeiros se esqueciam de pagar no dia convencionado, o laird mostrava-se pouco satisfeito.

Procedia por tal forma, que todos temiam descontentá-lo. Praguejava e a sua cólera e ar ameaçador eram tais que, por vezes, chegavam a supô-lo enlouquecido.

Muito bem. Meu avô não tinha jeito para contar, embora não fosse gastador. Mas não sabia poupar e assim, atrasou-se em dois anos de renda. Conseguiu livrar-se do primeiro com o auxílio de belas palavras e da gaita de foles. Mas quando chegou o S. Martinho, recebeu a intimação de pagar a renda ou abandonar a casa.

Steenie não tinha muitas possibilidades de arranjar o dinheiro. Mas como lhe sobejavam amigos, pedindo a este e àquele, conseguiu reunir a soma que subia a mil marcos. A maior parte foi-lhe emprestada por um vizinho, chamado Laurie Lapraik, um espertalhão a quem não faltava dinheiro, que sabia perseguir como os cães e fugir como as lebres e que era Whigs ou Tory, santo ou pecador, conforme lhe con- vinha. Era um professor na ciência neste mundo de revoluções, mas, de tempos a tempos, gostava bastante de ouvir tocar gaita de foles e, acima de tudo, pensava que os campos de semeadura, os animais e o mobiliário da quinta de Primrose-Knowe constituíam boa garantia para o seu dinheiro.

 

Eis, portanto, meu avô, caminhando com o coração leve e a bolsa pesada, para o castelo de Redguantlet, radiante por não ter de enfrentar a cólera do laird.

A primeira coisa que soube, ao chegar, foi que sir Robert fora atacado pela gota ao ver que passava do meio-dia e Steenie não chegava. Não era tanto por causa do dinheiro, como pensava Dougal, mas porque não lhe agradava ter de expulsar meeu avô da herdade.

Dougal ficou contente por ver Steenie e mandou-o entrar para uma grande sala com lambri de carvalho, onde o laird estava sozinho, tendo a seu lado um feio macaco, seu favorito, animal detestável, que pregava partidas a todos, não gostava de ninguém e se enfurecia por um nada. Corria todo o castelo, guinchando, arranhando, mordendo, principalmente quando o mau tempo se aproximava ou estava prestes uma revolução. Sir Robert chamava-lhe o major Weird, nome de um feiticeiro que fora queimado. Ninguém gostava do nome nem do antipático animal. Diziam não ser ele um macaco vulgar.

Meu avô não se sentiu muito bem quando a porta se fechou e se viu sòzinho na sala com o laird com Dougal Mac Callum e o tal macaco, coisa que nunca lhe acontecera até então.

Sir Robert estava sentado, posso dizer estendido, numa poltrona com os pés poisados num tamborete, pois sofria dos rins tanto como de gota. Envergava um roupão de veludo e a sua expressão era tão sombria e terrível como a de Satanás. Em frente estava sentado o major Weird, com uma casaca encarnada: agaloada de oiro e tendo na cabeça a cabeleira do laird. Sempre que as dores arrancavam uma careta a sir Robert, o macaco fazia outra e, desta forma, o homem e o animal formavam um casal medonho de se ver. O justilho de pele de búfalo do laird estava pendurado num prego na parede atrás dele e o sabre e as pistolas ao alcance da mão, pois sir Robert não perdera o hábito de ter as suas armas sempre perto de si e o cavalo selado noite e dia, como fazia quando podia montar e dar-se ao prazer de ir atormentar os pobres Whigs que descobria. Muitos diziam ser por causa do receio que os próprios Whigs quisessem vingar-se. Por mim, acredito mais facilmente que fosse pelo hábito, pois ele não era homem para temer alguém.

O registo das contas, encadernado de preto, encontrava-se diante dele e outro livro de canções alegres estava colocado entre as folhas para o conservar aberto no ponto que provava estar Steenie, de Primrose-Knowe, atrasado no pagamento das rendas e foros.

Sir Robert fulminou meu avô com o olhar. É bom saberem que tinha uma forma de franzir a testa e unir as sobrancelhas, que lhe traçava na fronte, distinta e profundamente impressa, a marca de uma ferradura.

- Vens com as mãos vazias, filho do diabo? perguntou sir Roberto - Se assim é...

Meu avô, o mais tranqüilamente que pôde, avançou alguns passos e colocou em cima da mesa o saco com o dinheiro que trazia, com o ar satisfeito de um homem que sabe ter feito alguma coisa que mereça aplausos.

O laird puxou-o para si e perguntou:

- Está tudo, Steenie?

- Vossa Honra encontrará aí a conta certa - respondeu meu avô.

- Muito bem. Dougal - ordenou o laird - leva o Steenie à cozinha e dá-lhe um copo de aguardente enquanto eu conto o dinheiro e passo o recibo.

Mal, porém, deram alguns passos fora da sala, sir Robert soltou um grito que fez tremer todo castelo. Dougal voltou para trás a correr e todos os criados apareceram também. O laird continuava a soltar gritos cada vez mais terríveis.

Meu avô não sabia o que havia de fazer; por fim, atreveu-se a entrar na sala, pois todos estavam de cabeça perdida e ninguém lhe dizia para entrar ou sair. O laird continuava a gritar, pedindo água fria para os pés e vinho para refrescar as guelas.

- Inferno! Inferno! Inferno! - era a única palavra que proferia.

Trouxeram um balde com água fria e logo que Já meteu os pés inchados, retirou-os, gritando que a água os queimava; e muitos afirmavam que tinham visto a água ferver como uma caldeira que estivesse sobre brasas. Atirou à cara de Dougal com o vinho que este acabava de lhe trazer, afirmando que o criado lhe dava sangue em vez de vinho; e, na verdade, a criada, quando no dia seguinte limpou o tapete, encontrou sangue coalhado. O macaco, que ele chamava major Weird, gritava e fazia caretas como se troçasse do dono.

Meu avô sentiu a cabeça andar-lhe à roda e, sem querer saber do dinheiro nem do recibo, correu para a escada. Enquanto descia, os gritos do laird diminuíam de violência, ouviu como que um suspiro e, no mesmo instante, correu por todo o castelo que o laird acabava de expirar.

Meu avô afastou-se com as mãos na algibeira, dizendo consigo, para se consolar, que Dougal vira o dinheiro e ouvira o amo falar no recibo.

O jovem laird, então sir John, chegou de Edimburgo para tomar conta da casa. Ele e o pai não se entendiam bem. O rapaz era advogado e fora membro do último parlamento da Escócia que votara a união com a Inglaterra, procedimento que, segundo diziam, fora bem pago e pelo qual o pai lhe teria esmagado a cabeça sobre a pedra do túmulo se dele pudesse sair.

Muitos diziam que, em negócios, preferiam o velho casmurro ao cavaleiro novo, de falinhas mansas. Mas voltaremos a este assunto na devida ocasião.

Dougal Mac Callum, o pobre homem, não chorou nem gritou; limitou-se a andar pela casa, pálido como um cadáver, dando ordens para o enterro, como era seu dever. Todas as noites, quando escurecia, tornava-se ainda mais sombrio e era sempre o último a deitar-se. O seu quarto ficava mesmo em frente daquele que o amo ocupara em vida e onde agora o corpo estava estendido no seu leito fúnebre, como é uso dizer. Pois bem! Na noite que antecedeu o funeral, Douglas não pôde conter-se por mais tempo. Desceu do alto do seu orgulho e pediu ao velho Hutcheon para passar uma hora no seu quarto.

Quando lá se encontravam, ofereceu-lhe um copo de aguardente, encheu outro para si, bebeu-o de um trago, desejando-lhe saúde e longa vida. Quanto a ele - afirmou - já não estaria muito tempo neste mundo, porque todas as noites, depois da morte de sir Robert, ouvia no seu quarto o apito de prata com o qual, em vida, o amo o chamava para o auxiliar a voltar-se na cama. Acrescentou que, estando sozinho com o morto naquela parte do castelo - porque ninguém se atrevera a velar o corpo de sir Roberto Redgauntlet como o teriam feito com outro - nunca se af oitara a responder ao apito, mas que a sua consciência lhe censurava ter faltado ao seu dever.

- Embora a morte quebre qualquer compromisso de serviço - afirmou - nunca faltaria ao que devo a sir Robert, E quando o assobio voltar a ouvir-se irei cumprir a minha obrigação, Hutcheon, contando que estejas disposto a acompanhar-me.

Não era coisa que muito agradasse a Hutcheon; mas como fizera a guerra com Dougal e combatera a seu lado, não queria abandoná-lo naquelas circunstâncias. Ficaram, portanto, sentados à mesa, tendo na sua frente uma garrafa de aguardente e Hutcheon, que era religioso, propôs para lerem um capítulo da Bíblia. Dougal, porém, só quis ouvir um fragmento de David Lindsay, o que não constituía grande preparação.

À meia-noite, quando a casa estava mergulhada no mais profundo silêncio, soou o apito de prata, tão distintamente como no tempo em que sir Robert vivia. Os dois criados levantaram-se imediatamente e com passo mal seguro entraram no quarto onde se encontrava o corpo do amo. Hutcheon, com uma olhadela, viu o bastante, pois havia tochas acesas na câmara fúnebre e afirmou depois ter avistado o próprio diabo sentado em cima do caixão do laird. Desmaiou à porta e não pôde dizer quanto tempo assim permaneceu. Quando voltou a si, chamou pelo companheiro e como não recebesse resposta acordou toda a casa. Entraram no quarto e encontraram Dougal morto, caído a dois passos do leito sobre o qual se encontrava o caixão do amo.

Quanto ao apito, desapareceu para sempre, mas ouviram-no muitas vezes soar no alto do castelo, ao longo das ameias, nas muralhas, por entre as chaminés e no alto das velhas torres onde os mochos faziam os ninhos. Sir John pôs ponto no assunto e o enterro fez-se sem mais se falar em diabos e em espíritos.

Quando tudo terminou e o jovem laird começou a pôr em ordem diversos assuntos, avisaram os rendeiros para vir pagar as rendas em atraso e pediram a meu avô o total dos dois anos que, segundo os registos de sir Robert, ainda devia.

O pobre homem correu ao castelo para contar a sua história. Levaram-no à presença de sir John que estava sentado na poltrona do pai, da luto carregado, com larga gravata em volta do pescoço e pequena espada ao lado, em vez do sabre do pai cuja lâmina, punhos e bainha pesavam pelo menos um quintal. Ouvi tanta vez contar a conversa que tiveram que quase poderia afirmar que a ela assisti, embora nessa época ainda não tivesse nascido.

com efeito, Alan, o meu velho companheiro, imitava na perfeição a voz humilde e conciliadora do rendeiro e a tristeza hipócrita do laird ao responder-lhe. O avô, quando falava, disse-me ele, fixava o fatal registo como se ele fosse um buldogue prestes a saltar-lhe à garganta"

 

- Estou muito contente, sir John, por vê-lo sentado na cadeira dos seus antepassados. Felicito-o por ter herdado este belo domínio e desejo-lhe muita abundância e pão branco. O seu pai era um bom amo, sir John, e creio que o senhor seguirá o meu exemplo e calçará os seus sapatos. Devia dizer as botas, porque ele não usava sapatos, salvo quando sofria da gota e calçava pantufas forradas.

- Infelizmente, Steenie! - exclamou o laird, enxugando os olhos com o lenço - meu pai foi-nos roubado muito cedo e a sua morte constituirá uma perda para todos nós. Não teve tempo para pôr as suas coisas em ordem, na Terra, mas estava bem preparado para comparecer diante de Deus, assim o espero. É o mais importante, embora me deixasse uma meada muito emaranhada para desembaraçar. Vamos direito ao fim, Steenie. Tenho muito que fazer e pouco tempo para perder.

Ao dizer estas palavras, abriu o fatal registo.

Tenho ouvido falar muitas vezes num livro do julgamento final e estou certo de que é um registo de contas dos rendeiros atrasados.

- Steenie - continuou o laird no mesmo tom malévulo e hipócrita - Steenie Steenson neste livro indica que deve dois anos de renda, vencido no S. Martinho passado.

- Sem querer desmentir Vossa Senhoria, afirmo que os paguei a seu pai, sir John.

- Sendo assim, com certeza ele lhe deu um recibo. Pode mostrar-mo, Steenie?

- Seu pai não teve tempo de o passar, sir John, Mal coloquei o dinheiro em cima da mesa e sir Robert se dispunha a contá-lo para me dar o recibo, foi atacado pela doença que tão subitamente o levou.

- Isso é mau - retorquiu sir John após ligeira pausa - Mas talvez haja uma testemunha que o visse pagar. Só lhe peço uma prova talis qualis, Steenie. Não pretendo ser rigoroso com um pobre homem como você.

- Na verdade, no quarto estava Mac Callum, o mordomo. Mas Vossa Honra não ignora que não sobreviveu ao seu velho amo.

- Ainda pior, Steenie - comentou sir John, sem elevar a voz ou mudar de tom - aquele a quem entregaste o dinheiro morreu, a testemunha indicada como estando presente ao pagamento, morreu também; o dinheiro que devia encontrar-se em qualquer sítio não foi encontrado. Como posso acreditar numa coisa dessas?

- Não sei dizer-lhe, sir John. Mas tenho aqui a indicação das diferentes moedas que o saco continha. Pedi a soma emprestada a vinte pessoas diferentes e cada uma delas pode jurar para que destinava eu o empréstimo, porque lho disse.

- Não duvido de que pedisses emprestado, Steenie; Mas impõe-se que me dês uma prova do pagamento. - O dinheiro deve encontrar-se nesta casa, sir John; como Vossa Honra não o viu e o seu defunto pai não podia tê-lo levado consigo, talvez algum criado saiba onde se encontra.

- É justo, Steenie. Interrogá-los-emos.

Mas todos os criados e criadas, pajens e palefreneiros declararam positivamente que nunca tinham visto saco semelhante ao que meu avô indicava. Para cúmulo da infelicidade não dissera a nenhum deles que vinha pagar as rendas. Uma das criadas declarou tê-lo visto com um objecto debaixo do braço, mas pensara ser a gaita de foles.

Sir John Redgauntlet ordenou aos criados para se retirarem e disse a meu avô:

- Bem vê, Steenie, como estou disposto a fazer-Lhe justiça. Mas, em consciência, julgo saber melhor do que ninguém onde se encontra o dinheiro. Intimo-o, portanto, a deixar-se de mentiras e pagar ou abandonar a herdade, Steenie.

- Que Deus lhe perdoe se medita semelhante coisa!

- replicou Steenie, não sabendo mais o que dizer Eu sou um homem honrado.

- Eu também o sou - retorquiu o laird - e espero que o sejam também todos os que habitam esta casa.

Calou-se um instante e prosseguiu em tom severo:

- Se existe um patife entre nós, só pode ser aquele que conta uma história sem poder prová-la. Se bem compreendo, pretende aproveitar certos boatos caluniosos que fizeram correr sobre a minha família e especialmente sobre a morte de meu pai para se esquivar a pagar as rendas e talvez prejudicar a minha reputação, dando a entender terem recebido já a soma que lhe peço. Onde poderá estar o dinheiro, volto a perguntar. Insisto por sabê-lo.

Meu avô compreendeu muito bem que todas as aparências estavam contra ele e quase perdeu a cabeça. Equilibrava-se ora numa perna ora noutra, olhava para todos os recantos da sala e não respondeu.

- Fala, maroto! - exclamou o laird, fulminando-o com o olhar, um olhar especial, o mesmo do pai quando se encolerizava, e as sobrancelhas unidas quase reproduziam a marca da ferradura que muitas vezes aparecia na fronte do defunto - Fala, já te disse, quero saber o que pensas. Atreves-te a supor ter eu o teu dinheiro?

- Deus me defenda de dizer semelhante coisa! -

exclamou Steenie.

- Então acusas algum dos meus criados de se ter apropriado dele? - insistiu o laird no mesmo tom.

- Não quero acusar inocentes - afirmou meu avô Se algum deles é culpado, não tenho provas para o afirmar.

- No entanto, se há uma palavra de verdade nessa história, o dinheiro deve encontrar-se em qual quer parte - replicou o laird - Pergunto onde supões que ele esteja e exijo uma resposta positiva.

- No inferno, se quer saber o que penso - bradou meu avô com a cabeça perdida - No inferno com o seu pai e o seu apito de prata.

E, depois de ter proferido estas palavras, abandonou a sala a correr, porque, depois de as ter dito, não se sentia muito seguro. com efeito, ainda ouviu o laird praguejar mais energicamente do que o pai nunca o fizera e chamar o bailio e o oficial da baronia.

Depois disto, meu avô correu a casa do seu principal credor, Laurie Lapraik, para ver se conseguia dele alguma coisa. Mas quando lhe contou o que se passava, as palavras ladrão, aldrabão e miserável foram as mais doces que ouviu da sua boca; e depois de ter empregado termos tão duros, Laurie foi buscar coisas antigas, censurando meu avô por ter tinto as mãos com sangue dos eleitos do Senhor. Como se um rendeiro pudesse deixar de obedecer ao seu laird e principalmente a um laird como sir Robert Redgauntlet.

Meu avô perdeu a cabeça e, enquanto ele e Laurie estavam prestes a socarem-se, foi suficientemente desastrado para dizer que pior do que matar um homem era a doutrina que eles seguiam então. Sim, disse esta e muitas outras coisas que arrepiavam aqueles que as ouviram. Mas o pobre estava fora de si e lidava com pessoas que não faziam cerimônia para dizerem o que pensavam e fazer o que entendiam.

Por fim separaram-se. Meu avô, para regressar a casa, tinha de atravessar a floresta de Pitmarkie, um pinhal negro e escuro. Eu conheço-o bem, mas não sei dizer se os pinheiros são negros ou verdes. À entrada da floresta encontra-se o prado comunal e, no extremo deste prado, pequena taberna que nessa altura pertencia a uma mulher chamada Tibbie Faw.

Meu avô parou à porta e pediu um cálice de aguardente. Como não tivesse comido nada em todo o dia, a taberneira convidou-o a desmontar para comer alguma coisa. Meu avô, porém, não cedeu e despejou a aguardente de um trago, fazendo duplo brinde:

- À memória de sir Robert Redgauntlet, para que não tenha sossego no seu túmulo, enquanto não se fizer justiça ao seu pobre rendeiro - foi o primeiro.

- À saúde do inimigo dos homens, para que me restitua o saco com o dinheiro ou me diga o que foi feito dele - foi o segundo.

Porque - pensava ele - depois do que sucedera, toda a gente ia olhá-lo como um impostor e um patife, o que era pior para ele do que a perda de todos os seus bens.

Caminhava sem saber para onde ia. A noite estava escura e as árvores mais densa a tornavam. Deixava ao cavalo o cuidado de encontrar o caminho.

De repente, o animal, que estava esgotado de fadiga, começou a caracolar, a saltar, a encataritar-se nas patas traseiras, de tal forma que meu avô mal podia manter-se na sela.

Nessa altura apareceu um cavaleiro sem que se soubesse donde tinha vindo.

- Tens um cavalo muito vivo, amigo - comentou - Queres vender-mo?

Dizendo isto, tocou levemente com a chibata no pescoço do animal que logo se aquietou, retomando o trote normal.

- Mas depressa lhe passa - comentou o desconhecido - É como a coragem de muitas pessoas que se julgam capazes de fazer grandes coisas até à altura de serem postas à prova.

Meu avô mal o ouvia. Esporeou o cavalo e despediu-se:

- Boa noite, amigo!

Mas, segundo parecia, o desconhecido era daqueles de quem não se torna fácil libertarmo-nos, porque Steenie, quer metesse o cavalo a galope, a trote ou a passo, via-o sempre a seu lado.

Por fim, meio descontente, meio assustado, resolveu-se a perguntar-lhe:

- Que pretendes de mim, amigo? Se és ladrão, não tenho dinheiro. Se és um homem honrado que deseja companhia, não estou disposto a conversar nem a rir. E se precisas que te indique o caminho, nem eu próprio sei onde estou.

- Se tens aborrecimentos, conta-mos, porque para ajudar alguém não tenho rival, embora muitos me maltratem neste mundo.

Meu avô, mais para desabafar do que na esperança de alcançar socorro, contou-lhe a história do começo ao fim.

- O caso é complicado, mas creio poder valer-te.

- Pode emprestar-me o dinheiro a longo prazo?

- perguntou Steenie - Não conheço outra forma de me ajudar.

- É fácil encontrar outra, sim - replicou o desconhecido - Bem, já vejo que é preciso falar com franqueza. Poderia emprestar-te o dinheiro, mas com tais condições que por certo terias escrúpulo em aceitá-las. Vou dizer-te uma coisa. O teu antigo laird não consegue descansar no seu túmulo por causa das tuas maldições e dos lamentos da tua família. Se tens coragem para ir procurá-lo, dar-te-á o recibo.

Ao ouvir esta proposta, os cabelos do meu avô puseram-se em pé. Porém, pensou que o companheiro era um brincalhão que pretendia divertir-se à sua custa acabaria por lhe emprestar o dinheiro.

Além disso, a aguardente dera-lhe coragem e o desgosto tornava-o disposto a tudo.

Portanto, respondeu que, para conseguir o recibo, iria até à porta do inferno e mesmo um pouco mais longe se fosse preciso.

O desconhecido começou a rir. Continuaram a caminhar pela espessura da floresta e, de repente; o cavalo parou à porta de uma grande casa que Steenie poderia tomar pelo castelo de Redgauntlet, se não soubesse que se encontrava dez milhas longe dele. Transpuseram a velha porta em abóbada, entraram no pátio, viram todos os aposentos da casa bem iluminados, ouviram o som de violinos e de gaita de foles. Dir-se-ia que dançavam e se divertiam como sir Robert costumava fazer na ocasião do Natal e noutras circunstâncias semelhantes. Saltaram dos cavalos e meu avô teve a impressão de prender o seu na argola chumbada na parede onde horas antes o fizera ao chegar ao castelo de sir John,

- Que é isto! - exclamou - A morte de sir Robert não seria mais do que um sonho?

Bateu na porta como costumava fazer e também como sempre acontecia, o seu antigo conhecimento Dougal Mac Callum veio abrir.

- És tu, Steenie? - perguntou - Sir Robert está à tua espera.

Meu avô sentia-se como um homem que sonha. Voltou-se para ver o desconhecido, mas este havia desaparecido. Por fim, recuperou o uso da palavra e exclamou:

- Estás vivo, Douglas! Supus que tivesses morrido.

- Não te preocupes comigo - respondeu Douglas - Toma cuidado contigo e não aceites a mais simples coisa de ninguém; nem ouro, nem prata, nem de beber nem de comer, salvo o recibo que vens buscar.

Dizendo estas palavras, fê-lo atravessar o vestíbulo e a antecâmara que Steenie conhecia muito bem e entraram no salão com lambris de carvalho onde todos estavam sentados à mesa. O vinho corria, as blasfêmias e as canções alegres soavam por todos os lados, como era costume nos bons tempos do castelo de Redgauntlet.

 

Mas, Deus nos proteja, como eram horríveis os convivas sentados em volta da mesa! Meu avô reconheceu muitos dos personagens presentes e que sabia terem partido havia já muitos anos para a sua derradeira morada. Viu o feroz Middleton, o dissoluto Rhotes, o astucioso Lauderdale, Farlshaw, tendo ainda as mãos tintas do sangue de Cameron. O selvagem Bonshaw que amarrou com tanta força os membros do bem-aventurado M. Cargill até que o sangue brotou; Dubarton Douglas, duas vezes traidor ao rei e à pátria; o sanguinário advogado geral Mackenzie que, pelo seu espírito e à vontade mundano, era como um deus ao lado dos outros; por fim, Claverhouse, de tão perfeita beleza como em vida, com os compridos cabelos negros, anelados, caindo sobre o justilho de pele de búfalo, bordado, tendo a mão direita sobre o ombro esquerdo para ocultar a ferida feita pela bala de prata. Estava sentado um pouco afastado dos outros, olhando-os com ar altivo e melancólico, vendo-os rir, cantar e gritar a ponto de abalarem as paredes da sala. O riso, porém, assemelhava-se a uma careta horrível; as gargalhadas produziam um som tão estranho que as unhas de meu avô tornaram-se azuis e esfriou até à medula dos ossos.

Os que serviam à mesa eram os criados e soldados que haviam sido, em vida, os sanguinários executores das bárbaras ordens dos amos. Estava ali Land-Lad de Nethertown, que ajudara a tomar Argyll; aquele a quem chamavam Trombeta do Diabo e que fizera as ultimações ao arcebispo; os cruéis Amorrheens dos Highlands que haviam derramado sangue como água; os ferozes soldados da guarda com os seus uniformes agaloados e muitos outros servidores, orgulhosos, altivos, com as mãos ensangüentadas, lisonjeando os grandes para os tornar ainda piores do que eram e esmagando debaixo dos pés os pobres abatidos no pó pelos ricos. Viam-se correndo para lá e para cá. tão deligentes no serviço como tinham sido em vida.

Presidindo a esta horrível orgia estava sir Robert Redgauntlet, que ordenou a Steenie, com voz de estentor para se aproximar. Estava sentado na cabeceira da mesa, com as pernas estendidas e o sabre encostado à poltrona, exactamente como Steenie o vira pela última vez no castelo.

A almofada destinada ao enorme macaco encontrava-se perto dele, mas o animal não se via ali. Possivelmente, a sua hora ainda não havia chegado, porque meu avô, ao entrar, ouviu perguntar:

- O "major" ainda não veio? E uma voz respondeu:

- Chegará a tempo, amanhã de manhã.

Como Steenie se aproximasse de sir Robert, do seu espírito ou do diabo com a sua figura, o laird perguntou-lhe:

- Então, Steenie, como te arranjaste com o meu filho para o pagamento das rendas em atraso?

A muito custo, meu avô conseguiu responder que sir John não queria saber de coisa alguma sem o recibo passado por Sua Honra.

- Terás o recibo se me tocares uma ária na gaita de foles, Steenie - declarou sir Robert ou o que parecia ser ele - Toca-me a ária Bien sautille, Ia mére.

 

Era uma ária que um feiticeiro ensinara a meu avô por tê-la ouvido no sabat e ele tocara várias vezes nas festas realizadas no castelo de Redgauntlat. mas sempre contrariado; quando ouviu o pedido, o sangue gelou-se-lhe nas veias e alegou, como desculpa, que não trazia consigo a gaita de foles.

- Mac Callum, filho do diabo! - gritou sir Robert com voz atroadora - Traz a gaita de foles que eu guardei para Steenie.

Dougal trouxe uma gaita de foles digna de ser tocada pelo bardo Douglas das Ilhas. Mas, enquanto a entregava a meu avô, deu-lhe uma cotovelada. Steenie, observando-a com atenção, reparou que os tubos eram de aço e estavam aquecidos ao rubro, de forma que teria queimado os dedos se lhes tocasse. Pediu desculpa mais uma vez, afirmando estar tão assustado e tão fraco que não teria fôlego para encher o saco.

- Nesse caso, come e bebe, Steenie - ordenou sir Robert - Aqui não fazemos outra coisa e quem tem o ventre vazio não pode conversar com quem tem a barriga cheia.

Ora tinham sido precisamente as palavras pronunciadas pelo sanguinário conde Douglas para entreter o mensageiro do rei, enquanto mandava cortar a cabeça de Mac Lellan de Bombie, no castelo de Treave, e Steenie, ao ouvi-las, cada vez ficou mais desconfiado.

Afoitou-se e declarou que não estava ali para comer ou beber, nem para tocar gaita de foles, mas para receber o que lhe era devido, isto é, para alcançar o recibo e saber onde estava o dinheiro. Tão grande foi a sua coragem naquela altura, que disse a sir Robert ser seu dever fazê-lo para bem da sua consciência, pois não podia pronunciar o Santo Nome de Deus, e se desejava ter paz e tranqüilidade, teria de lhe dar o que lhe era devido e não armar-lhe ciladas.

Sir Robert rangeu os dentes e começou a rir; mas tirou o recibo de uma grande pasta e entregou-o a Steenie.

- Aqui tens o recibo, miserável massador! - exclamou - Quanto ao dinheiro, meu filho que o procure no Berço do Gato.

Meu avô agradeceu e ia a retirar-se, quando sir Robert gritou em alta voz:

- Espera um momento, meu odre velho, ainda não acabei. Nós aqui não fazemos as coisas de graça. De hoje a um ano terás de vir prestar homenagem ao teu senhor e agradecer-lhe a protecção que te concedeu.

Steenie sentiu-se imediatamente com coragem para responder:

- Será o que tiver de ser e agradar, não a si, mas a Deus.

Mal proferiu a última palavra, encontrou-se no meio da escuridão e foi empurrado tão bruscamente que caiu no chão e perdeu os sentidos.

Nunca soube dizer quanto tempo permaneceu assim; mas, quando voltou a si, viu que estava caído no cemitério da paróquia de Redguantlet, precisamente à porta da cripta onde se encontrava o túmulo da família de Redguantlet, cujo brasão estava mesmo debaixo da sua cabeça. Em volta dele, a erva e as pedras sepulcrais estavam cobertas de orvalho e o seu cavalo pastava tranqüilamente ao lado das vacas que pertenciam ao pároco.

 

Steenie poderia acreditar que tudo aquilo não fora mais do que um sonho, se não apertasse nos dedos o recibo escrito e assinado pelo velho laird e as últimas letras do seu nome não estivessem traçadas por mão menos firme do que o resto, como se sir Robert, ao escrever, tivesse sido atacado por uma súbita dor.

Meu avô montou a cavalo, saiu daquele lugar de desolação e, com o espírito extraordinariamente perturbado, dirigiu-se imediatamente ao castelo de Redgauntlet, onde a custo conseguiu que o levassem à presença do laird.

- Então, meu impostor, meu aldrabão! - exclamou sir John, quando o viu - Trazes-me o dinheiro da renda?

- Saiba Vossa Honra que não trago. Mas está aqui o recibo passado por seu pai.

- O quê! Grande maroto! Pois não me disseste que não to tinha dado?

- Vossa Honra quer ver se está em regra?

Sir John examinou com a maior atenção linha por linha, letra por letra, e quando chegou à data em que meu avô não havia reparado e que dizia o seguinte: Passado no lugar do meu destino em 23 de Novembro, bradou:

- O que é isto, miserável? Foste buscar isto ao inferno?

- Não sei se era o inferno ou o céu, mas recebi-o das mãos do pai de Vossa Honra.

- Vou denunciar-te ao conselho privado como feiticeiro. Mandar-te-ei para o teu amo Satanás com o auxílio de um barril de pez e uma tocha.

- Tenciono eu próprio ir contar no Presbitério o que me aconteceu e tudo o que vi a noite passada, sir John; eles podem melhor compreendê-las do que um pobre homem como eu.

Sir John reflectiu e tornou-se mais calmo. Pediu a meu avô que lhe dissesse em pormenor o que lhe tinha acontecido; e Steenie contou-lhe toda a história, ponto por ponto, como acabo de fazer, palavra por palavra, nem uma a mais, nem uma a menos.

Sir John conservou-se calado durante algum tempo e por fim disse a meu avô num tom mais brando:

- Steenie, o que acabas de contar-me toca a honra de mais de uma nobre família, além da minha. Se é mentira, inventada para ficares de bem comigo, o menos que podes esperar é ter a língua queimada com um ferro em brasa, o que é pior do que queimar os dedos nos tubos ardentes de uma gaita de foles. Contudo, quero acreditar-te e, se o dinheiro for encontrado, não sei o que pensar. Mas onde iremos procurar o berço do gato? Não faltam gatos no castelo, mas estou certo de que não precisam de camas nem de berços para deitar as suas ninhadas.

- Será bom perguntar ao Hutcheon - respondeu Steenie - Conhece todos os cantos e recantos desta casa tão bem como... o pode conhecer um velho servidor da família ou aquele que já não está neste mundo e a quem não desejo nomear.

Chamaram Hutcheon e ele disse-lhes que existia uma velha torre em ruínas, desabitada havia muito tempo, situada perto do relógio; para lá entrar precisavam de utilizar uma escada de mão, pois só tinha acesso pelo exterior, muito acima das ameias. Essa torre chamava-se o Berço do Gato.

- Vou lá imediatamente - afirmou sir John.

E, agarrando numa das pistolas do pai - sabe Deus com que desígnio - que se conservavam em cima da mesa desde o dia da sua morte, subiu para a plataforma do castelo.

 

A empresa não era fácil. A escada de mão estava velha e carunchosa e faltavam-lhe dois degraus.

Mesmo assim, sir John subiu e chegou à estreita abertura que dava entrada para a torre, obstruindo-a com o corpo, não deixando assim entrar a claridade.

Nesse instante, alguma coisa se atirou a ele com violência, como se pretendesse deitá-lo da escada abaixo; soou um tiro de pistola e Hutcheon, que segurava a escada assim como meu avô, que estava a seu lado, ouviram um grande grito. Instantes depois, sír John atirou-lhes o corpo do grande macaco, dizendo-lhes que tinha encontrado o dinheiro e ordenando-Lhes que subissem. Obedeceram e encontraram não só o saco com o dinheiro como muitos outros objectos que nos últimos tempos haviam desaparecido.

Depois de sir John revistar a torre, desceu e levou meu avô para a sala de jantar. Pegou-lhe na mão, falou-lhe com bondade e afirmou estar pesaroso por ter duvidado da sua palavra. Que, para o indemnizar de qualquer forma, de futuro seria para ele um bom amo.

- E agora, Steenie - continuou - embora, pensando bem, a tua visão seja honrosa para meu pai, pois prova que, mesmo depois de morto, como homem de honra, quis fazer-te justiça, podemos recear que pessoas mal intencionadas tirem disto conclusões malévolas sobre a salvação da sua alma. Portanto, julgo mais acertado deitarmos as culpas para aquela endiabrada criatura, o major Weird, e não falarmos mais do teu sonho na floresta de Pitmarkie. Bebeste muita aguardente para poderes estar certo do que afirmas, Steenie. E quanto a este recibo - e a mão tremia-lhe ao agarrá-lo - é um documento muito estranho e o melhor que temos a fazer é lançá-lo ao fogo.

- Embora seja estranho - replicou meu avô - é a única garantia que possuo do pagamento das rendas.

Steenie receava perder o recibo passado por sir Robert.

- Vou imediatamente registar a importância no livro - respondeu sir John - e dar-te-ei outro recibo.

Ainda mais, se fores discreto e não falares deste assunto, diminuir-te-ei a renda.

- Tudo agradeço a Vossa Honra - respondeu Steenie. sentindo que o vento soprava de bom lado - conformar-me-ei com os desejos de Vossa Honra, mas gostaria de contar tudo a um ministro da Igreja, porque não me agrada a entrevista que me marcou sir Robert...

- Não chames o fantasma de meu pai! - bradou sir John.

- Seja então aquele que se fez passar por ele. Ordenou-me para o ir ver daqui a um ano e isso pesa-me na consciência.

- Se é isso que te apoquenta, Steenie, podes falar ao pároco da aldeia - concordou sir John - É um homem sensato e instruído, que tem muita consideração pela minha família, tanto mais que precisa da minha protecção.

Ao mesmo tempo, ia passando o novo recibo. Quando o entregou a meu avô, este já não se importou que queimasse o outro e o laird atirou-o para o lume com a sua própria mão. Mas o papel não quis arder. Voou pela chaminé acima, seguido por uma chuva de centelhas ardentes e produzindo um barulho como o esteirar de uma bomba.

 

Meu avô foi à igreja e o pároco, depois de ter escutado a história, disse-lhe que tinha corrido grande perigo, mas como não quisera aceitar as dádivas do diabo, pois interpretava assim a oferta recebida para comer e beber e recusara prestar-lhe homenagem, tocando gaita de foles por sua ordem, na sua opinião, nada teria a sofrer se de futuro andasse com cuidado.

com efeito, por sua própria iniciativa, meu avô passou muito tempo sem tocar o seu instrumento favorito e sem beber um golo de aguardente, até que expirou o ano e o dia fatal passou. Só então recomeçou a tocar e a beber, de longe em longe, um copito de usqueb-augh.

Sir John contou a história do macaco conforme lhe pareceu e muitos ainda hoje tomam o caso como uma prova da gatunice do animal. Muitos chegaram a dizer que não foi o inimigo do género humano que Dougal e Hutcheon viram no quarto de sir Robert, mas sim o maldito macaco sentado em cima do caixão. E que, quanto aos apitos ouvidos depois da morte do laird, no seu quarto, o animal podia assobiar tanto como o dono ou muito melhor ainda.

Só Deus conhece a verdade e foi a própria mulher do padre quem contou a história, depois da morte do marido e do laird.

Então, meu avô, cujo corpo estava enfraquecido pela idade, pelo menos em aparência, mas que conservava a memória e o raciocínio, viu-se na necessi dade de contar a história verdadeira aos amigos, para que não pudessem alcunhá-lo de feiticeiro.

Estava a anoitecer, quando o meu companheiro acabou de contar esta aventura, concluindo com o seguinte conceito moral:

- Como vê, não é prudente tomar um desconhecido por guia quando nos encontramos numa região que não conhecemos.

- Não concordo com essa conclusão - respondi - A aventura do seu avô foi boa para ele, pois o salvou da ruína; e também o foi para o laird, porque o impediu de cometer uma injustiça.

- Sim, mas mais cedo ou mais tarde receberam o seu quinhão da mão do diabo - respondeu Willie o vagabundo - O que foi adiado não pode considerar-se perdido. Sir John morreu ainda não tinha sessenta anos e poucos instantes esteve doente. Pelo contrário, meu avô morreu tranqüilamente e de idade avançada, mas meu pai, forte e saudável, aos quarenta e cinco anos andava atrás do arado e caiu para nunca mais se levantar.

"Só tinha um filho, eu, pobre cego, que fiquei sem pai nem mãe. não podendo trabalhar nem morrer de fome.

Durante algum tempo, as coisas caminharam bem, porque sir Rewald Redgauntlet, filho único de sir John e neto de sir Robert e, infelizmente, o único descendente desta digna família, tirou-me a herdade e tomou-me para sua casa por caridade. Gostava de música e eu tive os melhores mestres que podiam encontrar-se na Escócia e na Inglaterra. Passei com ele alguns anos felizes. Para minha infelicidade, sir Rewald fez como os outros, faleceu. Não preciso dizer mais nada. Desde que o perdi fiquei com a cabeça um pouco desarranjada e, por vezes, impossibilitado de tocar.

 

                               UM DRAMA NA MONTANHA

Um manuscrito, pertencente a mrs. Bethune Beliol, continha uma interessante narrativa que começava da seguinte maneira:

"Há trinta e cinco anos, ou antes, aproximadamente quarenta, para aliviar o meu espírito abatido por grande perda na família, ocorrida dois ou três meses antes, empreendi aquilo a que chamam a pequena viagem dos Highlands. Tratava-se de uma excursão em moda. Mas, conquanto as estradas fossem excelentes, os alojamentos que encontrávamos eram tão pouco cômodos, que a viagem era considerada como difícil aventura levada a cabo. Além disso, embora os Highlands fossem tão sossegados como qualquer outra região dos domínios do rei Jorge, a palavra Highltinã bastava para provocar o terror num tempo em que existiam ainda tantas testemunhas da insurreição de 1745. Muitas pessoas experimentavam vago receio quando olhavam para as torres de Stirling, erguidas na alta cadeia de montanhas, ao norte, como sombria muralha para ocultar os refúgios dos homens que, pelos seus trajos, costumes e língua, eram ainda muito diferentes dos seus compatriotas das terras baixas. Quanto a mim, descendia de uma raça pouco sujeita a apreensões, apenas nascidas da imaginação. Tinha muitos parentes montanheses, conhecia muitas das suas famílias mais distintas e, sómente acompanhada pela minha criada de quarto, Alice Lambakin, parti para a viagem sem medo, embora não levasse escolta.

No entanto, acompanhava-me um guia e um cicerone pouco inferior a Great-Heart na Viagem do Peregrino; era ele Donald Mac-Leish, postilhão contratado em Stirling, com dois robustos cavalos tão seguros como o próprio Donald para conduzir a carruagem, comigo e a criada, por todos os lados onde me apetecesse ir.

Donald Mac-Leish era um destes postilhões que, conforme suponho, as deligências, os barcos e o vapor fizeram passar de moda. Encontravam-se principalmente em Perth, em Stirling ou em Glasgow, onde era uso alugá-los, com os seus cavalos, para as viagens de negócios ou de prazer que muitas vezes se empreendiam nas montanhas.

Essa espécie de homens é, pouco mais ou menos, o que no Continente se chamam condutores, podendo ser comparados ao piloto de um barco de guerra inglês que segue, conforme entende, direito ao fim que o capitão lhe indicou. Basta dizer-lhe a direcção da viagem e indicar-lhe os pontos que se deseja visitar e encontrá-lo-eis apto a fixar as paragens para descanso e para comer; na sua escolha terá sempre em vista as nossas comodidades e os pontos de maior interesse a conhecer.

Além do cuidado extremo que Donald Mac-Leish punha em se precaver contra todos as acidentes ordinários que podem ocorrer aos cavalos e as carruagens e em arranjar expedientes para os alimentar de pão e bolachas nos locais onde faltava pasto e onde não se encontrava aveia, era ainda um homem com grandes recursos intelectuais.

 

Adquirira um conhecimento geral das tradições históricas da região que tantas vezes percorria e, se o incitassem - porque Donald era tão reservado quanto as conveniências o exigiam - apontaria todos os locais onde se haviam travado as principais batalhas entre os clãs e contava as lendas mais notáveis que ilustravam o caminho percorrido, assim como os objectos que encontrávamos.

O gosto pela ciência das lendas formava, com a esperteza natural própria da sua actual profissão, estranho contraste que dava ao seu modo habitual de pensar e de se exprimir verdadeira originalidade. A sua conversa era agradável e tornava o caminho mais curto.

Ainda por cima, Donald conhecia todas as obrigações da sua profissão numa região que atravessava: muitas vezes. Podia dizer, quase sem um dia de diferença, quando matavam cordeiros em Tyndrum ou em Glenuilt. Desta forma, o viajante tinha a probabilidade de ser bem alimentado; sabia, sem engano, qual era a última aldeia onde podiam encontrar pão de trigo, coisas que, não deixava de dizer àqueles que não estavam habituados àquelas terras. Conhecia a estrada palmo a palmo e podia indicar, sem receio de erro, qual era o lado praticável de uma ponte e qual o que oferecia perigo. Numa palavra, Donald Mac-Leish podia considerar-se não apenas um fiel servidor e o mais seguro criado, mas ainda um sincero e obsequioso amigo; e, conquanto eu tivesse conhecido o clássico cicerone de Itália, o lacaio conversador de França e o almocreve de Espanha, que se gaba de comer milho e apregoa a sua honra da qual não podemos duvidar sem perigo, não creio ter tido nunca um guia tão sensato e inteligente.

As nossas deslocações eram, como devem calcular,

submetidas à direcção de Donald. E muitas vezes acontecia, quando estava bom tempo, pararmos para dar

descanso aos cavalos, mesmo nos pontos onde não estavam marcadas mudas, ou comermos alguma coisa sentados num rochedo escarpado donde brotava uma cascata ou donde uma fonte nascia, correndo sobre a relva verdejante, esmaltada de flores. Donald tinha uma habilidade especial para encontrar pontos destes e, conquanto, estou certa, nunca tivesse lido Gil Blas ou Don Quichote, escolhia sempre para pararmos sítios dignos da pena do Sábio ou de Cervantes.

Tendo notado quanto prazer eu encontrava quando conversava com as pessoas da terra, fazia paragem junto de uma cabana onde vivia um velho montanhês, cujo claymore cintilara em Falkirk ou em Preston e que era como frágil, mas fiel monumento do passado, Outras vezes, conseguia passar algum tempo - . enquanto bebíamos uma chávena de chá - na casa hospitaleira de um ministro da paróquia ou de qualquer família campesina de classe mais elevada, que reunia à simplicidade rústica dos costumes primitivos o acolhimento franco e obsequiador, uma espécie de cortesia natural própria de um povo entre o qual os indivíduos de classe mais inferior têm o hábito de se considerar, conforme a frase espanhola, tão bons fidalgos como o rei, ainda que mais pobres.

Donald Mac-Leish era conhecido de todos e uma recomendação sua servia-nos de tanto como se levássemos uma carta de algum fidalgo distinto.

 

Acontecia algumas vezes que a hospitalidade dos montanheses, que nos serviam as comidas próprias da região, tais como leite e ovos preparados de diversas maneiras, bolos variados e outros alimentos mais substanciais, conforme os meios de que dispunham para obsequiar os viajantes, tornava-se um pouco demasiada em volta de Donald Mac-Leish. Caíam sobre ele como o orvalho da montanha. Pobre Donald! Nessas ocasiões era como o tosão de Gedeão, molhado pelo nobre elemento que, certamente, não cairá sobre nós. Era o seu único defeito, quando insistiam para beber antes de partir, um copo à saúde de milady, tomariam a recusa por indelicadeza e ele não queria uma coisa dessas; era, repito, o seu único defeito e mesmo assim não tínhamos razão de queixa, porque, se se tornava um pouco mais conversador, mostrava-se ainda mais escrupuloso em observar todas as fórmulas da delicadeza. Conduzia mais devagar e falava por mais tempo e mais pomposamente do que quando não ingerira uma gota de usqueb-augh. Notávamos que nessas ocasiões, Donald falava com um ar de importância da família Mac-Leish e não tínhamos o direito de censurar um fraco cujas conseqüências se limitavam a factos tão inocentes.

Habituámo-nos por tal forma ao procedimento de Donald que observámos com interesse a arte que empregava para nos causar pequena surpresa, ocultando-nos o ponto onde tencionava parar, quando esse ponto era excepcionalmente pitoresco e interessante.

Contávamos tanto com isto que, quando se desculpava por ser obrigado a parar num sítio ermo e solitário para os cavalos poderem comer a aveia que levava consigo, a nossa imaginação esforçava-se por idealizar o local romântico onde em segredo determinara descansar ao meio-dia.

Havíamos passado a maior parte da manhã na encantadora aldeia de Dalmally; fomos até ao lago, acompanhadas pelo bom do pároco que se encontrava nessa época em Glenorquhy e ouvimos contar mais de cem histórias sobre os severos chefes do Loch-Awe, sobre Duncan com o gorro de lã e outros senhores das torres de Kilchurn que, naquela altura, já deviam estar transformadas em pó. Em conseqüência, era mais tarde do que o habitual quando nos pusemos a caminho, depois de termos sido avisadas uma ou duas vezes por Donald da extensão da jornada, tanto mais não existir ponto conveniente para descansarmos, entre Dalmally e Oban.

Assim, tendo dito adeus ao nosso venerável e obsequiador cicerone, continuámos a nossa viagem, rodeando a imponente montanha chamada Cruachan-Ben, cujos picos deveras majestosos descem quase a pique para o lago e onde se encontra apenas um desfiladeiro, o que não impediu o belicoso clã de Mac-Dougal de Lome de ser completamente destruído pela sagacidade de Roberto Bruce.

Este rei, o Weliington de seu tempo, com uma marcha forçada, conseguiu realizar a surpreendente manobra de fazer subir um corpo de exército pelo outro lado da montanha, cercando assim pelo lado e pela retaguarda, os soldados de Lorne, enquanto os atacava pela frente.

O grande número de montes que se avistam para ocidente, ao longo do desfiladeiro, demonstram-nos até onde foi a vingança de Bruce sobre os seus inimigos pessoais e encarniçados.

Sou, como sabe, irmã de militares e muitas vezes1 me ocorreu que a manobra descrita por Donald se parecia com as de Weliington ou de Bonaparte.

 

Roberto Bruce era um grande homem, mesmo uma Baliol tem de concordar, embora comece a reconhecer-se que a sua pretensão à coroa era tão legítima com a da infortunada família que combateu. Mas deixemos isso. O que mais aumentou o horror da carnificina foi o facto do Awerio, de corrente rápida e profunda, que nasce no lago, se encontrar mesmo na retaguarda dos fugitivos e descrever um círculo em redor da montanha; de forma que a retirada dos infelizes foi cortada por todos os lados pela natureza inacessível da região que parecia prometer-lhes defesa.

Meditando, como a dama irlandesa da canção, em factos passados havia tanto tempo, suportávamos com paciência a lentidão que o nosso condutor empregava para subir a estrada militar do general Wade, que não procura nunca ou quase nunca evitar o declive mais inclinado, avança em linha recta, subindo ou descendo colinas, com a mesma indiferença demonstrada pelos antigos engenheiros por terrenos profundos ou elevados, bem nivelados ou escarpados.

No entanto, a real excelência destas trabalhos assim podem classificar-se as grandes estradas militares da montanha-merecem os elogios do poeta que, seja no país irmão da Grã-Bretanha e fale o seu próprio dialecto ou que aqueles a quem supõe dirigir-se possam ter qualquer pretensão nacional a eles, escreveu os versos seguintes:

Had you but seen these roads before they were made You would hold up your hands, and bless general Wade (1).

com efeito, nada mais admirável do que estes desertos, rasgados e abertos em todas as direcções por largas estradas de excelente construção, superiores a tudo quanto o país poderia desejar depois de séculos, para fins pacíficos de comunicações comerciais. Desta forma, as coisas da guerra, felizmente, servem algumas vezes para trazer os benefícios da paz. As vitórias de (1) Se pudessem ter visto estas estradas antes de serem feitas, levantariam os braços ao céu e abençoariam o general Wade.

Bonaparte de pouco serviram, mas a sua estrada sobre o Simplon servirá por muito tempo de comunicação entre as pacatas regiões que desejem empregar para relações comerciais e de amizade essa obra gigantesca, cujo fim ambicioso foi unicamente o de facilitar uma invasão militar.

Enquanto íamos avançando, rodeámos pouco a pouco a costa de Ben-Cruachan e, descendo o curso, rápido e turbulento do Awe, deixámos para trás o grande e majestoso lago onde nasce o impetuoso rio.

Os rochedos e a montanha que, do lado direito; desciam perpendicularmente sobre o nosso caminho, ofereciam ainda ao nosso olhar restos das florestas, que outrora os cobriam, mas que em tempos posteriores haviam sido abatidas para alimentar, segundo nos disse Donald, as fundições de ferro de Bunawe.

 

Este cenário levou-nos a admirar com interesse o enorme carvalho que se elevava à esquerda do rio. Era uma árvore de tamanho descomunal e de uma pitoresca beleza e encontrava-se no meio de enormes pedras, caídas num terreno descoberto, por terem rolado da montanha. Para tornar o sítio ainda mais pitoresco, ao meio do terreno nu elevava-se um rochedo de aspecto majestoso, do cimo do qual, à altura duna sessenta pés, se via grosso jacto de águas que na sua queda se transformavam numa espuma rosada. Mas, junto do rochedo, a fraca corrente, tal como um general derrotado, reunia as suas forças dispersas e dominadas pela força da queda e conseguia encontrar passagem através da charneca para se lançar no Awe.

A árvore e a queda de água impressionaram-me vivamente e demonstrei o desejo de me aproximar mais, não para as desenhar e enriquecer o meu álbum, porque, na minha mocidade, as raparigas não costumavam utilizar o lápis e o carvão de desenhar, se não soubessem fazer bom uso deles, mas simplesmente pelo prazer de os ver mais de perto.

Donald abriu imediatamente a portinhola, mas fez-me notar que a descida era íngreme e que eu poderia ver melhor a árvore, seguindo a estrada mais cinqüenta metros, pois se aproximava mais do local pelo qual ele não demonstrava muita predilecção. Conhecia, afirmou, perto de Bunawe uma árvore muito maior e num terreno plano onde as carruagens podiam chegar, o que era muito difícil ali. Mas se milady desejava... com efeito, preferi ver aquela que estava tão perto a passar adiante na esperança de encontrar outra mais bonita. Caminhámos, portanto, junto da carruagem até chegarmos ao ponto donde, segundo afirmava Donald, poderíamos atingir a árvore sem dificuldade, embora ele nos aconselhasse a ficarmos na estrada sem nos aproximarmos muito.

As feições acentuadas de Donald exprimiam qualquer coisa de grave e de misterioso quando nos dava este conselho e os seus modos eram tão diferentes dos habituais, que me despertou a curiosidade.

Continuámos a andar e vi a árvore, que uma elevação de terreno nos escondera, na realidade mais afastada do que a princípio me parecera.

- Iria jurar - disse ao meu cicerone - que a árvore e a queda de água que vemos além estão precisamente no ponto onde tencionava dar hoje descanso aos cavalos.

- Deus me livre! - exclamou Donald com precipitação.

- Porquê, Donald? - perguntei - Por que motivo passaríamos por um sítio tão lindo sem pararmos?

- Estamos muito perto de Dalmally, milady, para dar aveia aos cavalos. Seria aproximar muito o jantar do almoço, pobres animais! Além disso, este sítio traz desgraça.

- Está explicado o mistério! Vive aqui um fantasma, espírito, feiticeira ou ogre, maga ou fada, não é verdade?

- Nada disso, milady, está muito longe do caminho, como costuma dizer-se. Mas se está disposta a ter paciência, quando passarmos daqui e deixarmos o vale, dir-lhe-ei do que se trata. Não é bom falar das coisas no local onde aconteceram.

Fui obrigada a sofrear a minha curiosidade, verificando que, se persistia em falar no assunto, Donald desviava logo a conversa. Desta forma tornava a sua oposição ainda mais forte, como uma corda que se torce ao mesmo tempo nos dois sentidos.

 

Por fim, numa volta da estrada, chegámos a cinqüenta passos da árvore que eu desejava admirar e vi então, com grande surpresa, que se erguia uma espécie de casa no meio dos rochedos que a rodeavam. Era uma pobre cabana, a mais pequena e miserável que vira em toda a minha vida, mesmo na montanha. As paredes feitas de terra amassada, de divot, como lhe chamam os escoceses, não tinham quatro pés de altura; o telhado era de erva, ligada com caniços e espadanas; a chaminé, feita de barro, ligada com palha; a totalidade das paredes, do telhado e da chaminé estava igualmente coberta de arroz dos telhados, de grama e de musgo, como acontece muitas vezes nas velhas cabanas. Não se viam couves plantadas, coisa que, em geral, se encontra sempre junto das cabanas, mesmo nas mais pobres; e os únicos seres viventes que vimos foram um cabrito que pastava no telhado da cabana e uma cabra, sua mãe, que passeava a pouca distância, entre esta e o Awe.

- Quem poderia ter cometido tão nefando crimeexclamei - para merecer viver em tão miserável situação?

- Muitos crimes - respondeu Donald Mac-Leish, sufocando um gemido - e muita miséria também. Não é um homem que ali mora, mas sim uma mulher.

- Uma mulher! - repeti - Num ponto tão isolado! Que espécie de mulher é ela?

- Venha por este lado, milady, e poderá ajuizar por seus próprios olhos - chamou Donald.

Dei alguns passos, virei à esquerda e avistei o grande e alto carvalho em direcção oposta àquela em que o tínhamos visto já.

- Se conservou o velho hábito, deve estar aqui a esta hora - afirmou Donald, baixando a voz como se tivesse receio de ser ouvido, apontando o ponto a que se referira.

Olhei e vi, com profunda emoção, uma mulher sentada junto do tronco do carvalho, de cabeça baixa, as mãos unidas, a cabeça coberta com um manto escuro, tal como se vê nas medalhas assírias Judas debaixo da figueira. Senti-me dominada pela espécie de respeito que o meu guia sentia por aquele ser extraordinário e não pensei em me aproximar para a ver mais de perto antes de ter relanceado para Donald um olhar curioso, ao qual ele respondeu em voz baixa:

- Foi uma má mulher, milady.

- Que disse? - perguntei, pois não ouvira bem Talvez seja perigosa?

- Não, não é uma louca - prosseguiu Donald - e talvez se sentisse mais feliz se o fosse, embora, com certeza, quando pensa no que fez e obrigou os outros a fazer, para não ceder um passo na sua perversa obstinação, deva ser difícil conservar a razão; não está louca nem é má e, contudo, penso, milady, que seria melhor não se aproximar.

Então contou-me em termos resumidos a história que vou repetir com mais pormenores.

Ouvi a narrativa com uma espécie de horror e compaixão que me impeliu, de súbito, a aproximar-me da infeliz para lhe dirigir algumas palavras de dó e de consolação e ao mesmo tempo me fez recear ceder a este impulso.

 

Era esse o sentimento que provocava entre os montanheses quando viam Elspat Mac-Tevish ou "a mulher da árvore", como lhe chamavam, com os mesmos olhos que os gregos viam os que eram perseguidos pelas Fúrias e cujo espírito se debatia nos tormentos que são a conseqüência dos grandes crimes. Consideravam esses infelizes seres, tais como Orestes Edipo, não como autores voluntários do seu crime, mas como instrumentos passivos pelos quais os decretos do Destino se haviam cumprido; e no receio com que olhavam não deixava de existir uma certa veneração.

Soube, pela boca de Donald Mac-Leish, que temiam desgraça para aquele que tinha a audácia de se aventurar a aproximar-se de um ente votado a tal grau de miséria e perturbar a sua solene solidão; diziam que quem o fizesse seria atingido, até certo ponto, pelo contágio da sua miséria.

Portanto, foi com repugnância que Donald me viu disposta a aproximar-me da desventurada e me auxiliou a descer um atalho pedregoso. Creio que a sua dedicação por mim dominou no seu coração o pressentimento de que, naquela ocasião, se confundia com o tenebroso receio de ver um dos seus cavalos coxo, os eixos quebrados, a carruagem voltada e muitos outros acidentes e perigos a que a vida de um postilhão está exposta.

Não sei muito bem se teria tido coragem para chegar tão perto de Elspat, se Donald não me tivesse acompanhado. Lia-se no rosto daquela mulher austera a mortificação de um desgosto sem esperança e terrível, sentimentos de remorso e o orgulho que se esforçava por ocultar. Adivinhou, talvez, ser a curiosidade despertada pela sua extraordinária história que me impelira a perturbar a sua solidão. Não podia conceber que uma vida tal como a sua fosse assunto para distracção de uma viajante. O olhar que me lançou, portanto, foi mais de desprezo do que de embaraço. A opinião do mundo e dos seus filhos não podia aumentar nem diminuir o peso da sua miséria; e, com excepção de meio sorriso que indicava o desprezo de um ser elevado pela própria grandeza da sua aflição acima da esfera da humanidade, mostrou-se tão indiferente à forma como eu a olhava, como se fosse um corpo inanimado ou uma estátua de mármore.

Era de estatura acima da média. Os cabelos, já grisalhos, bastante espessos deviam ter sido muito pretos. Os olhos, do mesmo tom, brilhavam com uma cintilação intensa e incerta, o que indicava um espírito desordenado, formando estranho contraste com as feições vincadas e austeras. Enrolara os cabelos com certa elegância, pregando-os com um gancho de prata, e estava envolta num manto escuro, posto com gosto, embora o tecido fosse ordinário.

Tendo contemplado demoradamente esta vítima do crime e da desgraça, envergonhada por estar calada havia tanto tempo, conquanto não soubesse como dirigir-lhe palavra, comecei por testemunhar-lhe a minha surpresa por ter escolhido uma morada tão miserável e em sítio tão ermo. Atalhou logo estas manifestações de compaixão, respondendo-me em tom austero, sem modificar a sua atitude: "Viajante, ele já te contou a minha história. "

No mesmo instante fiquei reduzida ao silêncio e pensei como devia parecer fútil tudo quanto na terra pode encontrar-se de comodidades, a um espírito que tinha assuntos tão graves para meditar.

Sem tentar de novo entabular conversa, tirei uma moeda de oiro da bolsa, pois Donald me dera a perceber que ela vivia de esmolas, pensando que, pelo menos, Elspat estenderia a mão para a receber. Porém, a infeliz não aceitou nem recusou o meu presente; não demonstrou ter dado por ele, embora valesse, sem dúvida, vinte vezes mais do que estava habituada a receber.

Atirei-lho para o colo, dizendo involuntariamente: "Que Deus lhe perdoe e alivie os seus males! "

Nunca esquecerei o olhar que ergueu ao céu nem o tom em que proferiu as palavras do meu velho amigo, John Home: My beautiful! My brave! Era o grito da natureza que partia do coração de uma mãe privada do seu filho, tal como nasceu da feliz imaginação do poeta, que emprestava a linguagem da poesia à dor ideal de Lady Randolph.

Embora na velhice Elspat fosse esmagada por desgostos e infelicidades sem consolação e sem esperança, conhecera, no entanto, dias melhores.

Fora a linda e feliz mulher de Hamish Mac-Tavish que, pela sua força e coragem, alcançara o título de Mac-Tavish-Mhor. A vida deste homem foi uma seqüência de perturbações e de perigos, porque modelara os seus costumes pelos dos antigos montanheses, que consideravam uma vergonha não possuir uma coisa que podiam tomar. Os habitantes das baixas terras, que viviam perto dele e desejavam gozar em paz os seus bens e vidas, sentiam-se felizes por poder consegui-lo mediante o pagamento de módico tributo, classificado como dinheiro de probecção, e consolavam-se pensando, conforme o antigo provérbio, que "mais vale lisonjear o diabo do que combatê-lo". Muitos que consideravam desonroso pagar semelhante tributo, foram algumas vezes surpreendidos por Mac-Tavish-Mhor ou pelos seus associados e partidários, que os castigavam por forma proporcionada, quer nos seus bens ou nas suas pessoas ou mesmo nas duas coisas. Recordavam ainda a incursão durante a qual roubaram a Monteith uma manada de cento e cinqüenta vacas e o modo como meteram o laird de Ballybught nu, num atoleiro, por ter ameaçado que mandaria vir uma companhia de highlans-watch para defender os seus bens.

Por grandes que fossem, de tempos a tempos, as vitórias deste audacioso cateran, eram muitas vezes compensados com reveses; a forma hábil como conseguia sair de apuros, as suas rápidas fugas, os estratagemas engenhosos que o livravam dos perigos iminentes não eram assunto menos freqüente de recordações e de admiração do que as empresas em que triunfara.

Na boa como na má fortuna, através de todas as fadigas, sofrimentos e perigos, Elspat foi sempre a sua fiel companheira. Gozava com ele as horas de felicidade e quando a adversidade lhes caía em cima, a sua grandeza de alma, presença de espírito e coragem com as quais suportava as fadigas e os perigos, secundaram por mais de uma vez, diziam, os esforços da marido.

A sua moralidade era a dos antigos montanheses, amigos fiéis e inimigos encarniçados. Consideravam como seus os rebanhos e as colheitas dos habitantes, das terras baixas, sempre que podiam levar os primeiros consigo e apoderar-se das outras. Nessas ocasiões não tinham o mais pequeno escrúpulo sobre o direito de propriedade. Hamish-Mhor raciocinava como o velho guerreiro cretense:

O meu escudo, a minha espada e a minha lança tornam-me senhor de tudo

Quem recear cair com os meus golpes

Tem de ceder perante a minha valentia. O que tem a fazer é ceder à minha lei O que um poltrão possui é meu.

Mas os dias de perigosas depradações, por vezes coroadas de sucesso, tornaram-se raros quando a expedição do príncipe Carlos Eduardo falhou.

Mac-Tavish-Mhor não ficou inactivo nessa ocasião e como conseqüência foi proscrito como traidor ao Estado, como ladrão e cateran.

Colocaram guarnições em muitos pontos onde nunca haviam sido vistas Casacas-Encarnadas, e o tambor guerreiro dos saxões fez-se ouvir nos recantos mais solitários do país das montanhas. A sorte que ameaçava Mac-Tavish tornou-se dia a dia mais Inevitável e o que dificultava ainda os esforços que fazia para se defender e fugir aos seus perseguidores era o facto de Elspat, neste período de adversidade, ter aumentado a família com uma criança que representava considerável obstáculo para a rapidez dos seus movimentos.

O dia fatal chegou: num desfiladeiro situado nos flancos do Ben-Cruachan, o famoso Mac-Tavish-Mhor, foi surpreendido por um destacamento de Sidier-Roy. A mulher auxiliou-o heroicamente, carregando-lhe a espingarda; e, como estavam senhores de um posto quase inexpugnável, talvez tivessem conseguido escapar se as munições não se acabassem. As balas desapareceram. Mas só depois de ter carregado a espingarda com os botões de prata do casaco, os soldados, deixando de temer afrontar um homem que já matara três dos seus camaradas e ferira muitos outros, se aproximaram do forte e, não conseguindo apanhá-lo vivo, o mataram após a mais desesperada resistência.

Elspat presenciou todos estes infortúnios e sobreviveu-lhes por ter no filho, que não podia passar sem ela, um incentivo de força e de coragem. Torna-se difícil dizer como conseguiu manter-se. Os seus únicos meios de vida eram, aparentemente, três ou quatro cabras que largava para pastar onde bem lhe apetecia, nos melhores pastos da montanha, sem que ninguém tivesse coragem para a censurar por se apoderar assim dos bens alheios.

No meio da miséria geral da região, os antigos conhecimentos pouco podiam dar-lhe, mas o que conseguiam subtrair às suas próprias necessidades consagravam-no ao bem dos outros.

Ia muitas vezes procurar os habitantes das terras baixas, não para lhes pedir esmola, mas para lhes exigir um tributo. Não esquecia a sua qualidade de viúva de Mac-Tavish-Mhor e imaginava que a criança que levava pela mão poderia mais tarde igualar o pai na reputação e alcançar o ascendente que este exercera como senhor. Convivia pouco e raramente saía dos mais selváticos refúgios da montanha onde vivia com as cabras e, assim, ignorava totalmente a mudança operada no país em que vivia, a substituição da violência militar pela ordem civil e a autoridade que a lei e os seus partidários haviam conseguido sobre aqueles que nas baladas gaélicas eram chamados filhos impetuosos da espada.

 

Sentia, é verdade, a diminuição da sua importância e a imiséria da sua condição. Mas a morte de Mac-Tavish era, em sua opinião, motivo suficiente para isso e não duvidava de poder readquirir a consideração que outrora lhe testemunhavam quando, Hamish-Bean ou James-o-Loiro, pudesse empunhar a espada do pai.

Portanto, se era repelida por um lavrador brutal quando lhe pedia qualquer coisa necessária para si ou para o pequeno rebanho que possuía, as ameaças de vingança, proferidas com sentido obscuro, mas terrível, conseguiam muitas vezes desses homens aterrados pelas suas maldições, aquilo que haviam recusado à sua indigência; a trêmula dona de casa que dava comida ou dinheiro à viúva de Mac-Tavish-Mhor, no íntimo do coração exprimia o desejo de que a bruxa tivesse sido queimada no dia em que fora feita justiça ao marido.

Assim decorreram alguns anos durante os quais Hamish-Bean cresceu e se tornou, não semelhante ao pai pela estatura e pela força, mas cheio de actividade e de audácia, de cabelos loiros, faces rosadas, olhar de águia e a agilidade e quase a força do seu temido pai, cuja história e feitos a mãe descrevia muitas vezes, para incutir no filho o espírito de aventura. Porém, os novos vêem o estado presente deste mundo com olhar mais penetrante do que os velhos.

Muito dedicado à mãe e disposto a fazer o impossível para a sustentar, Hamish descobriu, no entanto, quando conheceu o mundo, que a vida de cateran de futuro seria tão perigosa como desonrosa e que, se queria imitar os altos feitos do pai, devia fazê-lo de outro modo e noutra carreira mais conforme as opiniões do dia.

À medida que as suas faculdades de corpo e de espírito se desenvolviam, melhor reconhecia a natureza precária da sua situação, as idéias errôneas da mãe a sua ignorância das mudanças sofridas pela sociedade da qual continuava afastada. Quando visitava amigos e vizinhos compreendia a miséria à qual a mãe estava reduzida e reconheceu que ela nada ou quase nada possuía das coisas necessárias à vida, coisas que, muitas vezes lhe faltavam. Alguns dias, a sua habilidade para a pesca e para a caça permitia - lhe aumentar os seus recursos; mas reconheceu que não tinha outro modo de a sustentar do que as humilhações de um trabalho servil que, se a ele se submetesse, vibraria um golpe mortal no orgulho da mãe.

Por seu lado, Elspat via com surpresa que Hamish Bean, já de alta estatura e apto a usar as armas, não demonstrava qualquer inclinação pela carreira activa do pai. O sentimento maternal que vivia no seu coração impedia-a de intimar o filho em termos formais para começar a vida de cateran, no receio dos perigos a que essa vida ia expô-lo e quando se propunha falar-lhe no assunto, a sua ardente imaginação ressuscitava a sombra do marido, interpondo-se entre ela e o rapaz, usando o tarlan ensangüentado e que, com o dedo nos lábios, a proibia de falar. No entanto, admirava-se com o procedimento do filho, indício, em sua opinião, de falta de coragem, e suspirava quando o via passar os dias na ociosidade, trajando o casaco de compridas abas usado nas terras baixas, que a legislatura impusera aos montanheses em vez do seu trajo pitoresco. Pensava que o rapaz se pareceria mais com o pai se usasse o plaid apertado por um cinto, os calções até meia perna e se as armas bem polidas brilhassem a seu lado.

Além destes motivos para inquietação, Elspat tinha outros, nascidos da extrema impetuosidade do seu carácter. Ao seu amor por Mac-Tavish-Mhor reunia-se o respeito e muitas vezes o temor, porque os caterans não eram homens para se submeterem a imposições das mulheres. No entanto, durante a infância e a juventude do filho exercera sobre ele uma autoridade imperiosa que dava ao amor maternal o carácter do ciúme. Não admitia que Hamish, à medida que crescia, desse cada dia um passo para a independência e se ausentasse quando lhe parecia e pelo tempo que lhe apetecia. Verificava com pesar que, embora conservando por ela o máximo respeito e ternura, dava a entender que era senhor, e o único responsável pelas suas acções.

Os seus sentimentos não teriam conseqüências de maior se ela soubesse calá-los; mas o ardor e impa ciência do seu carácter levaram-na muitas vezes a manifestá-los ao filho, queixando-se de ser desprezada e indignamente tratada. Quando ele se ausentava por algum tempo sem lhe dar a conhecer o motivo, o ressentimento da mãe, quando regressava, era tão disparatado, que naturalmente sugeria ao rapaz, ávido de independência e ansioso por melhorar a sua situação no mundo, o projecto de abandonar a mãe, no desígnio de melhor prover às necessidades daquela cujas pretensões exclusivas do seu amor maternal, tendiam apenas a retê-lo num deserto onde ambos morriam de fome, sem esperança e sem socorros.

Um dia em que Hamish se tornou culpado de uma dessas ausências, feitas sem consultar a mãe, esta, descontente e furiosa, demonstrou-lhe, no regresso, ressentimento mais violento do que o habitual, o que excitou no rapaz profundo descontentamento, ensombrando-lhe o rosto de nuvens de tristeza.

Por fim, como ela teimasse nas suas manifestações disparatadas, a paciência do rapaz esgotou-se. Pegou na espingarda que estava encostada ao canto da chaminé e, murmurando uma réplica que o sentimento de respeito pela mãe impediu que pronunciasse em voz alta, preparou-se para abandonar a cabana onde acabava de entrar.

- Vais deixar-me, Hamish? - perguntou a mãe. Hamish não respondeu, olhando para a correia da espingarda e esfregando-a.

- Esfrega a correia da espingarda, esfrega – prosseguiu a mãe com amargura - Duvido que tenhas coragem para a disparar, a não ser contra os cabritos monteses.

Hamish estremeceu ao ouvir esta censura imerecida e limitou-se a responder-lhe com um olhar de cólera.

A mãe adivinhou ter encontrado o meio mais certo de o ferir e continuou:

- Podes olhar com cólera, enquanto o desejares, uma pobre mulher que é tua mãe, mas ainda passará muito tempo antes de franzires a testa diante de um homem zangado, que tenha barba no queixo.

- Cale-se, mãe, ou fale do que lhe compete - retorquiu Hamish, muito irritado - isto é, da roca e do fuso.

 

- Era na roca e no fuso que eu pensava quando te transportei nos braços quando eras criança, sob o fogo de seis saxões? Posso afirmar-te, Hamish. Sei cem vezes melhor o que é uma espada ou uma espingarda do que tu nunca o saberás; e também nunca conseguirás aprender tanta coisa sobre a guerra, como quando eu te levava envolto no meu plaid.

- Resolveu não me deixar em paz enquanto eu estiver em casa, mãe. Mas tudo isto vai acabar, descanse - declarou, no momento em que, no desígnio de abandonar a cabana, se levantou e dirigiu para a porta.

- Fica, ordeno-te! - bradou a mãe - Fica ou possa a espingarda que tens na mão ser o instrumento da tua perda! Possa o caminho que vais percorrer ser o da tua morte!

- Para que emprega essas expressões, mãe? - protestou o rapaz, voltando-se - Não são boas e não podem alcançar bom resultado. Adeus. Estamos muito encolerizados ambos para podermos falar com calma. Adeus. Passará muito tempo antes que volte a ver-me.

Dizendo estas palavras, saiu, deixando a mãe que, no primeiro movimento de cólera fez cair sobre ele uma chuva de maldições e que, momentos depois, pedia ao Céu para as fazer recair sobre si e poupasse o filho.

Passou esse dia e o seguinte entregue a um acesso de cólera, filho do seu gênio exaltado. Tão depressa pedia ao Céu e aos santos e santas que as tradições lhe haviam tornado familiares, para lhe restituirem o filho - o cordeirinho do seu coração - como, repisando o seu ressentimento, pensava nos termos amargos com que censuraria a sua desobediência quando voltasse, ou estudava uma linguagem mais terna para o segurar na cabana que, no transporte da sua afeição, quando o filho lá se encontrava, não trocaria pelo castelo de Taymouth.

Dois dias decorreram e ela nem sequer pensou em satisfazer as necessidades da natureza, mesmo com os fracos meios de que dispunha e, sem a resistência de um corpo habituado às fadigas e às privações de toda a espécie, nada conseguiria conservar-lhe a vida, embora a angústia do seu espírito a impedisse de sentir a própria fraqueza. Vivia, nessa época, na mesma cabana onde eu a conheci. Nessa altura, porém, encontrava-se em melhor estado, graças aos cuidados do filho, que em parte a construira e reparara.

Na manhã do terceiro dia depois da desaparição do filho, estava sentada à porta, balouçando-se conforme o uso das mulheres dos Highlands quando suportam qualquer desgosto ou alguma desgraça as fere, quando viu passar um homem pela estrada que corre mais acima da cabana. Bastou-lhe um rápido olhar - o homem ia a cavalo - para verificar que não era Hamish e, como se importava pouco com qualquer outro que vivesse na terra, não se deu ao trabalho, de olhar segunda vez. Contudo, o desconhecido parou perto da cabana e, saltando do cavalo, desceu o atalho íngreme e pedregoso que conduzia à porta de Elspat.

- Deus a abençoe, Elspat Mac-Tavish!

Elspat fixou aquele que assim se lhe dirigia com o ar aborrecido de uma pessoa que foi interrompida nas suas meditações. Mesmo assim, o desconhecido continuou:

- Trago-lhe notícias do seu filho Hamish.

 

Imediatamente aquele homem a quem Elspat considerara o ente menos digno de interesse que existia na terra, tomou a seus olhos tanta importância como um mensageiro descido dos céus para proferir a sua sentença de vida ou de morte.

Ergueu-se precipitadamente da cadeira, trêmula. com as mãos unidas, erguidas ao alto, olhos fixos no rosto do desconhecido, inclinada para ele e com olhar penetrante pareceu dirigir-lhe as perguntas que a voz desfalecida não conseguia articular.

- O seu filho envia-lhe respeitosas saudades e isto - declarou o mensageiro, colocando na mão de Elspat pequena bolsa que continha quatro ou cinco dólares.

- Ele partiu! Ele partiu! - exclamou Elspat - Vendeu-se para ir servir os saxões e não voltarei a vê-lo! Diga-me, Miles Mac-Phadraick, pois reconheço-o agora, foi o preço do sangue do filho que entregou na mão da mãe?

- Deus nos livre de semelhante coisa! - respondeu Mac-Phadraick, tacksman senhor de considerável porção de terra nas propriedades do seu chefe que vivia à distância de vinte milhas - Deus me livre de me tornar culpado de falsidade ou de injustiça com a viúva ou o filho de Mac-Tavish-Mhor! Juro-lhe que seu filho está bem e que em breve virá vê-la; e então ele lhe contará o resto.

Dizendo estas palavras, Mac-Phadraick afastou-se pelo atalho por onde viera, alcançou a estrada e, montando a cavalo, continuou a viagem.

Elspat Mac-Tavish deixou-se ficar, olhando fixamente o dinheiro, como se as gravuras das moedas pudessem dizer-lhe como haviam sido adquiridas.

- Não gosto deste Mac-Phadraick - murmurouÉ uma raça de que falava o bardo quando dizia: "Teme-o, não quando as suas palavras são ruidosas como o vento de Inverno, mas quando chegam aos teus ouvidos como o canto de um tordo". No entanto, este mistério só pode ter uma explicação: meu filho resolveu empunhar a espada para alcançar pela força, como um homem, aquilo que os estúpidos lhe negavam quando lhes pedia com palavras boas para assustar crianças.

Quando esta idéia acudiu ao espírito de Elspat, pareceu-lhe tanto mais razoável, quanto era certo ter Mac-Phadraick, como perfeitamente sabia, apesar do seu aspecto circunspecto, encorajado o marido a ponto de lhe comprar animais, embora não pudesse ignorar como haviam sido obtidos; nestes negócios, contudo, procedia sempre de forma a alcançar o maior proveito, sem correr o mais pequeno perigo. Quem melhor do que Mac-Phadraick podia indicar ao filho o caminho que devia seguir para encetar a sua perigosa profissão com mais esperança de êxito? Quem melhor do que ele podia converter a presa em dinheiro? Os sentimentos que outra qualquer mulher poderia experimentar ao desconfiar de que o filho tomara a carreira onde o pai perecera, não eram conhecidos das mães dos highlanders daquele tempo. Elspat considerava a morte de Mac-Tavish-Mhor como a de um herói que sucumbira numa carreira belicosa, mas que não cairá sem esperança de ser vingado. Receava para o filho menos a morte do que a desonra. Temia para ele a submissão aos estrangeiros e o sono mortal da alma causado pelo que ela considerava como escravidão.

 

O princípio moral que vive natural e justamente no espírito daqueles que nasceram e foram errados com um governo estável, cujas leis protegem os bens dos fracos contra as incursões dos fortes, era para a pobre Elspat como um livro fechado ou uma nascente oculta. Habituara-se a ver, naqueles a que chamava saxões, uma raça com a qual os habitantes das montanhas estavam constantemente em guerra e acreditava que tudo quanto estava ao alcance dos highlanders era objecto legítimo de ataque e de pilhagem. Estas idéias sobre o assunto haviam ainda sido fortificadas, não só pelo desejo de vingar a morte do marido, mas ainda por um sentimento de indignação geral que existia, não sem razão, no coração dos highlanders, depois do procedimento bárbaro e violento adoptado pelos vencedores depois da batalha de Culloden. Existiam mesmo certos clãs montanheses que Elspat considerava como marcados para a pilhagem, por causa de antigas inimizades e ódios mortais existentes entre eles e aquele de que fazia parte.

A prudência teria avaliado os fracos meios de que dispunha no tempo presente para resistir aos esforços de um governo regular que, quando a sua autoridade era menos firme e mal estabelecida, não conseguira reprimir as depradações dos caterans como Mac-Tavish-Mhor; mas a prudência era ignorada por uma mulher que vivia isolada e cujas idéias eram ainda as da sua mocidade. Supunha que bastava ao filho apresentar-se como sucessor do pai na sua carreira de empresas audaciosas, para que um grupo de homens, tão valentes como aqueles que seguiam Mac-Tavish-Mhor acorresse a colocar-se debaixo das suas ordens. Em sua opinião, Hamish era como a águia a quem bastava erguer o vôo para retomar o seu lugar nos céus, sem compreender como esse vôo seria vigiado - e quantas balas lhe seriam dirigidas. Numa palavra, o novo estado da sociedade valia tanto para Elspat como os tempos que já haviam passado. Vivera na miséria, no desprezo e na opressão, desde que o marido deixara de inspirar terror e acreditava que o seu ascendente renasceria quando o filho se resolvesse a assumir o papel do pai. Se pensava no futuro, era para dizer que os seus restos mortais seriam depostos num túmulo, que a sua tribo a acompanharia, conforme o uso, com gritos e cantos fúnebres, muito antes que o seu Hamish-o-Loiro sucumbisse, com a mão apoiada no punho do seu claymore tinto de sangue.

Os cabelos do pai haviam branqueado e estivera exposto a cem perigos antes de ter sucumbido com as armas na mão. O facto dela ter sobrevivido a semelhante espectáculo era a conseqüência natural dos costumes do século. Tinha sido preferível, pensava Elspat no seu orgulho, vê-lo morrer assim do que assistir à sua morte entre as paredes de uma choupana, deitado numa cama de palha carcomida, como um cão esgotado pela fadiga ou como um boi morto de doença. Mas a hora de morrer do seu jovem e valente Hamish estava ainda muito longe. Ele triunfaria, tinha de vencer como o pai. E quando por fim caísse - pois estava certa de que um dia o filho morreria de morte violenta - Elspat já dormiria, havia muito tempo, no túmulo e não podia assistir à sua agonia, nem chorar sobre a sua sepultura.

 

O cérebro de Elspat exaltava-se com estes pensamenttos extravagantes até ao seu entusiasmo habitual, ou antes, ele subia mais alto do que nunca. Conforme a linguagem enfática das Escrituras que, no seu idioma, não deferia nada do estilo sagrado, levantou-se, procedeu às suas lavagens, mudou de vestido, comeu pão e recuperou a energia.

Ardia no desejo de voltar a ver o filho, mas esse sentimento não era acompanhado pela inquietação amarga causada pelas dúvidas e pelos temores. Pensava que Hamish precisava de fazer muita coisa ainda, no século em que vivia, antes de ser considerado chefe eminente e temido. No entanto, contava vê-lo chegar, comandando um grupo de homens intrépidos, ao som das gaitas de foles, bandeiras ao vento, com o nobre tartan esvoaçando, apesar das leis que tinham proibido, sob pena de severos castigos, o trajo nacional e todo o aparato da cavalaria escocesa. Para tudo isto a sua imaginação concedia-lhe o prazo de alguns dias.

Desde que esta idéia, se lhe apoderou do espírito, todos os seus pensamentos se conjugaram para se preparar para receber o filho, à frente dos seus partidários, da forma que usava ornamentar a cabana no regresso do pai.

Não tinha meios para prover à sua subsistência, mas não se importava. Os caterans deviam trazer com eles animais de toda a espécie. E assim, arranjou a cabana para a sua chegada. Fez ou destilou usqueb-augh em tão grande quantidade que seria difícil acreditar que só uma mulher pudesse prepará-lo. Varreu-a e decorou-a com ramos de árvores, como se fosse a casa de um judeu no dia chamado a Pesta dos Tabernáculos. Preparou, de todas maneiras que sabia, o leite do seu pequeno rebanho, a fim de regalar o filho e os companheiros que contava receber com ele.

Porém, a principal decoração, aquela que procurou com maior cuidado, foi o cloudberry, fruto vermelho que se encontra nas altas montanhas e em pequena quantidade. O marido, ou talvez um dos seus antepassados, escolhera esse fruto para emblema da sua família, porque indicava, pela sua raridade, o pequeno número de indivíduos de que o seu clã se compunha e pelos pontos onde se encontrava, a altura ambiciosa das suas pretensões.

Enquanto duraram estes simpLes preparativos, a felicidade de Elspat foi um pouco incerta, pois a pungia a inquietação de não ter tempo para concluir tudo quanto desejava fazer para acolher Hamish e os amigos que, em sua opinião, o seguiam, antes de chegarem e de não se encontrar pronta para os receber.

Mas quando terminou tudo e se encontrou sem ocupação, salvo os pequenos cuidados exigidos pelas cabras, quando esses mesmo ficaram feitos, só lhe restava o trabalho de verificar se tudo estava em ordem e renovar os preparativos que eram de origem passageira, substituir os ramos secos e murchos, sentar-se à porta da cabana e olhar para a estrada que, de um lado, subia as margens do Awe e do outro rodeava as encostas da montanha, ajustando-se aos pontos altos, conforme os planos do engenheiro militar que a esboçara.

 

Entretanto, traçando planos de futuro conforme as recordações do passado, via nas névoas da manhã ou nas nuvens da tarde a forma fantástica de um grupo em marcha, chamado então Sidier-dhu, composto de soldados com o tartan escuro da Escócia e assim chamados para os distinguir dos batalhões fardados de vermelho do exército inglês. Nestas ocupações passava muitas horas da manhã e todas as tardes.

Foi em vão que Elspat olhou para o atalho longínquo desde o romper da aurora até ao último clarão do crepúsculo. Dele não se elevava uma nuvem de pó, não havia uma cintilação de armas ou plumas esvoaçando ao vento. O viajante solitário que por ali passava seguia com passo lento e indiferente, "envergando a casaca usada nas terras baixas ou o tartan negro ou vermelho-escuro para iludir a proibição de o usar com as suas cores vivas. O montanhês, desanimado com as leis severas, embora talvez necessárias, que proibiam as armas e os costumes por eles considerados como direito de nascimento, fazia-se notar por andar de cabeça baixa e pelo seu ar abatido.

Não era nesta atitude de homem humilhado que Elspat contava reconhecer o andar firme e livre do filho, agora que, segundo concluira, adoptara uma vida nova, quebrando todos os laços de escravatura que o prendiam aos saxões.

Todas as noites, quando as trevas cobriam a terra, afastava-se da porta, sempre aberta, e ia deitar-se na mísera enxerga, não para dormir, mas para velar.

«Os homens valentes e terríveis - pensava - viajam durante a noite; os seus passos fazem-se ouvir quando tudo se cala, excepto a tempestade ou as cataratas; o tímido gamo só aparece quando o sol brilha no cimo da montanha, mas o lobo audacioso caminha à claridade avermelhada do luar de Agosto. "

Em vão raciocinava assim. A voz do filho não soava para a arrancar do humilde catre onde estava deitada, sonhando com o seu regresso. Hamish não voltava.

A esperança iludida torna o coração doente e, apesar da sua forte constituição, Elspat começava a compreender não suportar já as fadigas às quais a expunha a sua afeição inquieta e exagerada.

Certa manhã, porém, a aparição, muito cedo, de üm viajante na estrada solitária, reanimou-lhe a esperança que já começava a transformar-se num desespero inconsciente. O desconhecido não usava nada que indicasse a escravidão aos saxões. De longe, pôde ver flutuar o plaid, cujas pregas caíam com graça, e a pluma que, colocada no gorro, indicava alto nascimento. Trazia a espingarda ao ombro e ao lado pendia o claymore com os acessórios ordinários, a adaga, a pistola e o sporranmollach. Entretanto, antes de Elspat poder examinar tudo isto, os passos ligeiros do viajante tornaram-se mais rápidos e agitou o braço numa saudação. Instantes depois, Elspat apertava nos braços o filho bem-amado, envergando o trajo dos seus antepassados e parecendo aos olhos da mãe o mais belo entre mil.

Seria impossível descrever as primeiras manifestações da sua afeição. As bênçãos confundiam-se com os epítetos mais ternos que uma língua enérgica pode proporcionar para exprimir o arrebatamento louco da sua alegria. Sobre a mesa foi rapidamente posto tudo quanto podia oferecer-lhe; e, enquanto contemplava encantada o moço soldado, comendo com ela, pensou na semelhança e ao mesmo tempo na diferença entre os sentimentos que experimentava agora e os despertados quando ele tomava o primeiro alimento no seu próprio seio.

Quando o primeiro transporte de alegria acalmou, Elspat tornou-se impaciente por conhecer as aventuras do filho desde a sua separação e não pôde deixar de lhe censurar vivamente a temeridade com que atravessara a montanha em pleno dia, com o trajo mon tanhês, quando o castigo era terrível e havia tantos Casacas-Vermelhas pelos arredores.

- Nada tema por mim, mãe - sossegou Hamishv no desejo de a tranqüilizar e, no entanto, um pouco atrapalhado - Posso usar o brecam mesmo à porta do forte Augusta, se me apetecer.

- Não sejas temerário, meu querido Hamish, enbora seja esse o defeito que mais convém ao filho do teu pai. Não sejas temerário, repito. Eles não combatem hoje como então, com armas iguais e número igual. Pelo contrário, têm vantagem nas duas coisas, de forma que o fraco e o forte estão ao mesmo nível com o tiro de uma espingarda de uma criança. Não me consideres indigna de ser tua mãe e esposa do teu pai se falo desta maneira, porque, homem contra homem, Deus sabe que não temeria ver-te diante do homem mais forte do condado de Breadalbane.

- Volto a afirmar-lhe, mãe, que não corro o menor perigo. Viu o Mac-Phadraick e que lhe disse ele a meu respeito?

- Deu-me muito dinheiro, Hanúsh. Mas maior alegria me causou o dizer-me que estavas bem e que em breve virias ver-me. Desconfia de Mac-Phadraick, porque, quando se intitulava amigo de teu pai, preferia o pior boi do seu rebanho ao mais precioso sangue de Mac-Tavish-Mhor. Aproveita os seus serviços e não deixes de lhe pagar, pois assim devemos proceder com os maus. Segue o meu conselho, filho, e não confies nele.

Hamish não conseguiu reprimir um suspiro que parecia indicar ter vindo o conselho demasiado tarde.

- Que negócios tens com ele? - perguntou a mãe, num tom que exprimia impaciência e alarme.

- Deu-me dinheiro e ele nunca o faz sem receber o seu valor em troca. Não é daqueles que trocam centeio por palha.

- Se estás arrependido do negócio e se podes desmanchá-lo sem desonra, restitui-lhe o dinheiro e não confies nas suas palavras lisonjeiras.

- Não pode ser, mãe - respondeu Hamish - Se me arrependo do compromisso que tomei é apenas por ser obrigado a deixá-la em breve.

- Deixar-me! Deixar-me como? Insensato! Supões que não conheço os deveres de esposa ou de mãe de um jovem audacioso? Não passas de ser uma criança; e, embora teu pai tivesse sido durante vinte anos o terror destas terras, não desprezava a minha companhia nem a minha assistência e muitas vezes dizia que o meu auxílio era superior ao de dois rapazes vigorosos.

- Não se trata disso, mãe. Tenho de abandonar o país.

 

- Abandonar o país! - bradou a mãe, ínterrompendo-o - Julgas que sou como as plantas que criam raízes onde nascem e morrem quando são transplantadas? Respirei outros ares além dos de Ben-Cruanchan; segui o teu pai até às solidões de Ross e aos desertos impenetráveis de Mac Mhor. Fica sabendo que as minhas pernas, por muito velhas que sejam, levar-me-ão tão longe quanto os teus pés mo indicarem!

- Infelizmente, mãe - respondeu o rapaz com voz sumida - tenho de atravessar o mar...

- O mar? Quem sou eu para recear o mar? Julgas que nunca entrei num barco? Que nunca vi o estreito de Mull, as ilhas de Treshonish e os escarpádos rochedos de Harris?

- Vou para muito mais longe do que tudo isso. Alistei-me num dos novos regimentos que vão combater os franceses na América.

- Alistaste-te! - repetiu a mãe, espantada - Contra minha vontade e sem o meu consentimento! Não devias tê-lo feito. Por certo não o fizeste de vontade.

E, levantando-se, tomou uma atitude altiva e acrescentou:

- Não te atreverias a tanto, Hamish.

- O desespero, mãe, dá-nos coragem para tudo - respondeu Hamish em tom melancólico, mas resoluto - Que poderia eu fazer aqui onde mal posso ganhar o pão de cada dia para si e para mim? Se quer fazer-me o favor de se sentar e de me escutar, convencê-la-ei de ter feito o que devia.

Elspat sentou-se, de lábios contraídos num sorriso amargo. Uma expressão severa e irônica revestiu-lhe o semblante, enquanto, apertando os lábios, escutava a justificação do filho.

Sem se deixar atrapalhar pelo descontentamento; da mãe, com o qual já contava, Hamish continuou:

- Quando a deixei, mãe, fui a casa de Mac-Phadraick, porque, embora astucioso e avaro como todos os saxões, é sensato pensei que não me recusaria, visto não lhe custar dinheiro, um conselho ou indicação para melhorar a nossa vida neste mundo.

- A nossa vida neste mundo! - repetiu Elspat, perdendo a paciência ao ouvir esta declaração - Foste ter com um cobarde que não vale mais do que um vaqueiro para lhe pedires conselhos? O teu pai nunca os pedia senão à sua coragem e ao seu claymore.

- Querida mãe, como conseguirei convencê-la de que vive na terra dos nossos antepassados como se eles vivessem ainda? Vive por assim dizer num sonho, rodeada pelos fantasmas daqueles que há muito estão com os mortos. Quando meu pai vivia e lutava, os grandes respeitavam os homens de braços fortes e até os ricos os temiam. Tinham como protectoras Mac-Allan-Mhor e Caberfae e por tributários os homens de classe inferior. Agora tudo isso acabou. O filho só conseguiria uma morte sem honra e sem piedade como prêmio das acções que trouxeram ao pai fama e poder entre os que usam o breacan. O país foi conquistado e as luzes apagadas; Glengary, Lochiel, Perth, lorde Lewis e todos os chefes poderosos ou morreram ou estão exilados. Afligimo-nos com isso, mas não podemos valer-lhes. Gorro, claymore e sporran, poder, força e riqueza, tudo morreu em Drummossie-Muir.

 

- É falso! - protestou exaltada Elspat - Tu e todos os cobardes como tu, deixaram-se subjugar pela fraqueza dos vossos corações e não pela força do inimigo; és como as galinhas que tomam pela sombra da águia a mais pequena nuvem que passa nos céus.

- Não me acuse de fraqueza, mãe - protestou Hamish com altivez - Vou para onde são precisos homens de braço forte e almas corajosas. Abandono o deserto por uma terra onde posso conquistar glória.

- E deixas a tua mãe morrer de miséria e de velhice, na solidão! - protestou Elspat, tentando por todos os meios abalar uma resolução que lhe parecia agora mais enraizada do que a princípio calculara.

- Nada disso - respondeu o rapaz - Deixo-a remediada e qom uma vida segura, que a mãe nunca conheceu. O filho de Barcaldine foi nomeado comandante e sob as suas ordens me alistei. Mac-Phadraick está encarregado das suas coisas, arranja-lhe recrutas e ganha com isso.

- Eis o que há de mais verdadeiro em toda essa história, quando o resto fosse mais falso do que o inferno - comentou a mãe com amargura.

- Mas nós também ganhamos - continuou Hamish - porque Barcaldine comprometeu-se a dar-lhe uma choupana no seu bosque de Letter-Frindreight, com direito de pastagem no seu terreno comum para as cabras e para uma vaca, se quiser tê-la; e o meu pré, apesar de estar longe de si, será suficiente para o seu sustento e para todas as suas outras necessidades. Nada receie por mim. Parto como simples soldado, mas hei-de voltar oficial, ganhando meio dólar por dia, se para isso bastar lutar com coragem e cumprir os meus deveres para merecer tão grande recompensa.

- Pobre filho! - lamentou Elspat, num tom misto de compaixão e desdém - Confias em Mac-Phadraick?

- Posso confiar - afirmou Hamish, cuja fronte se coloriu com um tom vermelho carregado, cor do seu clã - Mac-Phadraick conhece o sangue que me corre nas veias e não ignora que, se fosse falso para nós, podia contar os dias que me trariam a Breadalbane e pensar que a sua vida não se prolongaria por mais três. Matá-lo-ia na sua própria casa, se ele faltasse à palavra dada, juro-o por Deus que nos criou a ambos!

O olhar e a atitude do moço soldado impuseram-se por momentos a Elspat. Não estava habituada a encontrar no filho sentimentos tão profundos e amargos que lhe recordavam o pai. No entanto, continuou a fazer-lhe censuras no tom insulente com que começara.

- Pobre rapaz! - disse - Acreditas que, distante daqui mais de metade do mundo, alguém ouvirá as tuas ameaças e lhes dará atenção! Mas vai, vai curvar a cabeça debaixo do jugo hanoveriano, contra o qual todos os verdadeiros montanheses combateram até à morte; renega a real família dos Stuarts pela qual o teu pai e os seus antepassados e os da tua mãe verteram o seu sangue em tantos campos de batalha; vai pôr a tua cabeça debaixo do pé de um dos descendentes da raça dos Dermid, cujos filhos assassinaram, sim, assassinaram - repetiu, erguendo a voz - pais de tua mãe na paz das suas casas, em Glencoe. Sim - prosseguiu, soltando um grito ainda mais feroz e mais estridente - eu ainda não tinha nascido, mas minha mãe disse-me e eu escutava-a e ainda me lembro das suas palavras: "Vieram em paz e foram recebidos como amigos e as suas mãos ensangüentadas atearam incêndios, provocaram gritos de dor e cometeram assassinatos".

- Minha mãe - respondeu Hamish em tom triste, mas resoluto - não ignoro essas desgraças. Mas o nobre braço de Barcaldine não verteu uma gota de sangue em Glencoe. Foi sobre a sua infeliz família de Glanlyon que a maldição caiu e foi sobre ela também que a vingança de Deug feriu.

- Falas como um padre dos saxões - replicou a mãe - Não seria melhor ficares aqui e pedires uma igreja a Mac-Allan-Mhor, a fim de pregares o perdão para a raça de Dermid?

- Ontem foi ontem - respondeu Hamish - . e hoje é hoje. Quando os clãs foram esmagados e confundidos entre eles, os seus ódios e questões não deviam sobreviver à sua independência e poder. Aquele que não pode vingar-se como homem não deve conservar como um cobarde um ódio inútil. Minha mãe, o jovem" Barcaldine é bravo e sincero. Sei que Mac-Phadraick o aconselhou a não me deixar vir despedir-me de si, com receio de que a mãe tentasse dissuadir-one dos meus desígnios. Mas disse também: "Hamish Mac-Tavish é filho de um valente e não faltará à sua palavra". Minha mãe, Barcaldine marcha à cabeça de mais de cem montanheses, envergando o trajo do seu país, com as armas dos seus pais, coração contra coração, ombro com ombro. Jurei acompanhá-lo. Confiou em mim e eu confiarei nele.

Ao ouvir esta resposta, proferida com tanta firmeza e resolução, ELspat, no meio do seu desespero, ficou como ferida pelo raio. Os argumentos que calculara serem concludentes e irresistíveis haviam sido repelidos como as ondas o são pelos rochedos. Ficou calada durante muito tempo e, por fim, encheu a taça do filho e apresentou-lha com um ar abatido, de deferência e submissão.

- Bebe - pediu - debaixo do tecto dos teus pais antes de o abandonares para sempre e diz-me - visto que o jugo de um novo rei e de um novo chefe que os teus antepassados conheceram como mortais inimigos pesa sobre os ombros do filho do teu pai. - diz-me quantos elos tem essa cadeia.

Hamish pegou na taça e olhou para a mãe como se não ignorasse o que pretendia dizer. Elspat continuou em voz mais alta:

- Diz-me, porque tenho o direito de saber, quantos dias te concedem aqueles que tomaste por amos? Noutros termos, quantos dias me restam de vida? Porque, quando me deixares, não haverá na terra coisa alguma digna de me prolongar a existência.

- Mãe - respondeu Hamish Mac-Tavish - posso ficar seis dias consigo e, se quiser partir comigo no quinto, eu próprio a conduzirei à sua nova habitação. Mas se preferir ficar, partirei no sétimo dia de madrugada, porque, se não me apresentar em Dunbarton no oitavo, serei considerado como desertor, desonrado como soldado1 e como homem.

- Os pés de teu pai - respondeu ela - eram tão livres como o vento da charneca. Seria inútil perguntar-lhe para onde ia como inútil seria perguntar a esse condutor de nuvens porque sopra. Diz-me porque deves e queres - porque o queres - voltar à escravidão.

 

- Não lhe chame escravidão, mãe. Vou cumprir o dever honrado de um soldado, o único possível, neste tempo, para o filho de Mac-Tavish-Mhor.

- Qual seria o castigo se não voltasses? - perguntou Elspat.

- Castigo militar como desertor - respondeu Hamish, sem conseguir ocultar ao olhar observador da mãe a alteração das feições, produzida por qualquer pensamento íntimo que ela resolveu descobrir.

- E esse castigo é - prosseguiu com afectada calma, que o brilho cintilante do olhar desmentia - o castigo de um cão desobediente?

- Não faça mais perguntas, mãe - replicou Hamish

- O castigo nada representa para aquele que não tenciona merecê-lo.

- Para mim representa muito - replicou Elspat pois sei melhor do que tu que onde existe o poder de castigar se encontra também o desejo de o fazer sem motivo. Gostaria de rezar por ti, Hamish, e é preciso que eu saiba contra que males hei-da implorar Àquele que vela por todo o género humano para proteger a tua mocidade e simplicidade.

- Mãe, pouco importa o castigo que ameaça um criminoso, quando se está resolvido a nunca merecer esse nome. Os nossos chefes montanheses também tinham o costume de castigar os seus vassalos e, pelo que ouvi dizer, com muita severidade. Não foi Lachlan Mac-Jan a quem cortaram a cabeça por ordem do seu chefe, só porque atirou a um veado antas dele?

- Foi - concordou Elspat - e cortaram-lhe a cabeça com justiça, porque desonrou o chefe de um povo diante do seu clã reunido. Mas os chefes eram nobres na sua cólera e castigavam com uma arma cortante e não com um pau. Os seus castigos faziam correr sangue, mas não desonravam. Podes dizer a mesma coisa das leis daqueles a cujo jugo te submeteste? Fala. fala com franqueza,

- Não, não posso, mãe - declarou Hamish com tristeza-Vi castigar um inglês por ter desertado do que eles chamam a sua bandeira. Bateram-lhe com uma vergasta, confesso, foi castigado como um cão que ofendeu o dono imperioso. O espectáculo fez-me mal, confesso. No entanto, a punição dos cães só é dada aos homens piores do que cães, que não sabem manter a sua palavra.

- Contudo, estás sujeito a essa infâmia - replicou Elspat - se deres aos teus oficiais motivo para descontentamento ou se eles injustamente embirrarem contigo. Não quero dizer-te mais nada sobre o assunto. Se o sexto dia depois deste fosse o da minha morte e desejasses ficar para me fechar os olhos, serias preso a um poste e chicoteado como um cão, salvo se tivesses o coração bastante generoso para consentir que na lareira deserta a última centelha do fogo do teu pai e a da vida da tua mãe morressem juntas.

Hamish atravessou a cabana num passo que indicava impaciência e descontentamento.

- Deixe-se dessas idéias, mãe. Não posso estar sujeito a semelhante infâmia, porque não a merecerei. E, se chegasse a ameaçar-me, saberia morrer antes de ser desonrado a esse ponto.

 

- Agora reconheço o filho do esposo do meu coração! - replicou Elspat.

A seguir, mudou de conversa e pareceu escutar o filho com uma melancolia que não encontrava respostas para lhe dar, quando ele lhe recordou o pouco tempo de que dispunham para estar juntos e lhe suplicou que não o estragasse com alusões inúteis e desagradáveis às circunstâncias que em breve os obrigariam a separar-se.

Elspat ficou convencida que o filho, entre outras qualidades do pai, herdara o espírito másculo e altivo e que seria difícil desviá-lo de uma resolução difinitiva. Mostrou-se, portanto, aparentemente resignada à separação; e se, de tempos a tempos, começava a falar e a chorar, era por não poder dominar inteiramente a impetuosidade do seu carácter ou por querer mostrar que um aquiescimento total e sem reserva poderia parecer suspeito ao filho, despertar-lhe desconfianças e transtornar as medidas pelas quais contava impedir a partida. A sua afeição materna ardente, embora interessada, mas incapaz de se modificar por atenção às vantagens reais do infortunado alvo da sua dedicação, assemelhava-se ao amor que os animais dedicam, por instinto, às suas crias. E, receando tanto o futuro como um desses seres inferiores, pensava apenas que viver separada do seu Hamish ou a morte significavam o mesmo para ela.

No curto espaço de tempo que lhes era concedido, Elspat esgotou todos os meios imaginados pela sua afeição para tornar agradável ao filho o tempo que, aparentemente, deviam ainda estar juntos. A memória levava-a ao tempo passado e ao seu tesouro de lendas, que constituem o principal divertimento dos montanheses nos seus momentos de ócio, e ao conhecimento pouco vulgar dos cantos dos antigos bardos, das tradições e dos narradores de histórias mais célebres. Os cuidados demonstrados para que ao filho não faltasse coisa alguma eram tão constantes, que o rapaz afligia-se e procurava impedi-la de se afadigar tanto para lhe arranjar um leito de urzes floridas ou para lhe preparar a comida.

- Deixa-me, Hamish - dizia ela, nestas ocasiões Fazes a tua vontade, deixando a tua mãe. Deixa a tua mãe fazer a sua, acarinhando-te enquanto estás junto dela.

Parecia tão conformada com a resolução de Hamish, que não se importava de o ouvir falar na mudança de domicílio e de ir viver para as terras de Green-Colin, como se chamava a propriedade onde iria encontrar asilo.

No fundo, porém, tudo isso estava longe do seu pensamento. Durante a primeira discussão, Elspat concluira, pelas afirmações do filho que, se não voltasse depois do tempo fixado para a licença, incorreria na pena de um castigo corporal. Se tal acontecesse, sabia que o rapaz nunca se submeteria à infâmia, voltando ao regimento onde seria castigado. Supunha ela que algumas outras conseqüências podiam resultar do seu infeliz projecto, mas quais tornava-se impossível saber. Mas aquela que partilhara todos os perigos e todas as aventuras de Mac-Tavish-Mhor conhecia mil exemplos de que a resistência ou a fuga oferecem a um homem corajoso, no meio de uma região coberta de rochas, de lagos e montanhas, de desfiladeiros peri gosos e de sombrias florestas, de escapar à perseguição de centenas de pessoas. Em conseqüência, não receava o futuro e o único alvo dos seus pensamentos era conseguir que Hamish não cumprisse a promessa feita ao oficial.

com este secreto desígnio, recusou muitas vezes a proposta do filho para partir com ele a fim de ir tomar posse da sua nova habitação e deu-lhe razões que se lhe afiguraram tão naturais que o rapaz não desconfiou nem se alarmou.

- Não exijas de mim - dizia - que no curto espaço de uma semana eu me despeça do meu filho único e do vale onde vivi tanto tempo. Consente que os meus olhos, enfraquecidos pelas lágrimas que lhes farás verter, pousem ainda durante alguns dias, no lago Awe e no Ben-Cruachan.

Hamish cedeu de boa vontade, tanto mais que uma ou duas famílias residentes no vale próximo e cujos filhos pertenciam ao grupo de Barcaline, também deviam fixar domicílio nos domínios do chefe. Ficou, portanto, decidido que Elspat partiria com elas quando fossem habitar a sua nova residência. Desta forma, Hamish supôs ter contentado a mãe, proporcionando- lhe ao mesmo tempo uma vida feliz e tranqüila. Porém, Elspat alimentava em segredo pensamentos e projectos muito diferentes.

O final da licença de Hamish aproximava-se. Mais de uma vez o rapaz pensou partir a fim de se encontrar a tempo e cedo em Dunbarton, cidade onde se fixara o quartel general do seu regimento. Mas os rogos da mãe, a sua tendência natural para ficar ainda algum tempo no meio do cenário querido ao seu coração e, acima de tudo, a confiança firme na sua ligeireza e actividade, levaram-no a adiar a partida para o sexto dia, o último que podia passar com a mãe, se queria, de facto, cumprir as condições impostas para a licença.

Na tarde que precedeu o dia fixado para a partida, Hamish dirigiu-se ao rio com a cana de pesca a fim de se entregar pela última vez ao divertimento no qual era exímio e para arranjar, ao mesmo tempo, maneira de terem, ele e a mãe, uma refeição melhor do que a habitual. Foi tão afortunado como sempre e pescou um belo salmão. Quando voltava a casa, deu-se um incidente que considerou como um mau presságio, embora provavelmente a sua imaginação exaltada, a tendência dos seus compatriotas para o maravilhoso e para o exagero, dessem uma importância supersticiosa a uma circunstância vulgar e natural.

No atalho que conduzia a sua casa, ficou muito surpreendido quando viu um homem com o trajo e armado como os antigos highlanders. A primeira idéia que lhe acudiu ao espírito foi a do desconhecido fazer parte do seu corpo, e cujos soldados, alistados pelo governo e usando as armas com a autoridade do rei, não estavam sujeitos aos regulamentos que proibiam o antigo trajo e as armas de outro tempo. Mas, enquanto apressava o passo para alcançar o suposto camarada, na intenção de lhe pedir para serem companheiros de viagem no dia seguinte, ficou surpreendido ao reparar que o desconhecido usava um laço branco, sinal proscrito na terra dos highlanders. O homem era alto, com um ar sombrio, o que mais acentuava a sua estatura; a forma como se aproximava, mais deslizando do que andando, fez nascer no espírito de Hamish dúvidas supersticiosas sobre a natureza do ser que assim passava diante dos seus olhos na meia luz da tarde. Abrandou o passo, desistindo de o alcançar e contentou-se em segui-lo com o olhar, crendo, segundo a superstição comum aos montanheses, que não é bom aproximarmo-nos das aparições sobrenaturais que vemos, nem tão-pouco evitar a sua presença; deve deixar-se-lhe a escolha de ocultar ou revelar os seus segredos, segundo o seu poder sobrenatural o permita ou o exija o fim da sua missão.

Num montículo, situado à beira da estrada, precisamente no ponto onde o atalho mudava da direcção e descia para a cabana de Elspat, o desconhecido parou e pareceu aguardar a aproximação de Hamish. Por seu lado, o rapaz, vendo que se impunha passar junto dele, chamou a si toda a sua coragem e avançou para o ponto onde se encontrava. Então ele apontou primeiro a cabana de Elspat e fez com os braços e com a cabeça um gesto como a impedi-lo de lá entrar em seguida, apontou para a estrada que conduzia ao Sul e o seu gesto parecia indicar-lhe que partisse imediatamente nessa direcção. Momentos depois, o homem embrulhado no plaid nacional desapareceu. Hamish não pensou precisamente o que se via, mas aquela figura esfumou-se, ainda que, naquele ponto houvesse rochedos e árvores encarquilhadas em quantidade suficiente para o ocultarem. Hamish ficou convencido de ter visto o espírito de Mac-Tavish-Mhor que o intimava a iniciar imediatamente a sua viagem para Dunbarton, sem aguardar o dia seguinte e sem voltar à cabana da mãe.

com efeito, podiam surgir tantos incidentes capazes de lhe dificultar o regresso, principalmente numa região onde existiam tantas passagens de barco, que tomou a resolução de partir, embora não o pudesse fazer sem se despedir da mãe, não ficando junto dela senão o tempo suficiente para lhe dizer adeus, a fim de que, no dia seguinte, o primeiro raio de sol o visse a caminho e tendo já percorrido muitas milhas na direcção de Dunbarton. Por conseguinte, desceu o atalho e, entrando na cabana, comunicou num tom quase brusco e perturbado, o que indicava a sua agitação, a resolução de partir naquele mesmo instante. com grande surpresa sua, Elspat não protestou contra o seu desígnio, mas pediu-lhe para comer alguma coisa antes de partir. O rapaz fê-lo à pressa e em silêncio, pensando na próxima separação e mal acreditando que ela se desse sem ter de lutar mais uma vez contra a ternura maternal. No (entanto, com grande espanto, viu-a encher a taça da despedida.

- Parte, meu filho - disse ela - visto ser essa a tua firme vontade; mas antes, senta-te um instante junto da lareira da tua mãe. Passará muito tempo depois da chama ter deixado de brilhar, quando os teus pés voltem a pisar o solo desta cabana.

- À sua saúde, mãe - saudou Hamish - Possamos nós sermos felizes quando nos encontrarmos de novo, a despeito dos seus sinistros presságios!

- Seria melhor não nos separarmos - replicou ela, observando-o com olhar atento, enquanto o filho despejava a taça na qual seria de mau agoiro deixar uma só gota.

- Agora - murmurou Elspat por entre os dentes-, parte, se puderes partir.

- Mãe - disse Hamish, colocando a taça em cima da mesa - esta bebida tem um gosto agradável, mas tira as forças que devia animar.

- São esses os seus primeiros efeitos, meu filho - ; replicou Elspat - Deita-te em cima desse leito de urzes e fecha os olhos durante algum tempo. O sono de uma hora restituir-te-á as forças.

- Mãe - respondeu Hamish, em cujo cérebro a Poção fazia rápido efeito - dê-me o gorro" Tenho que despedir-me e partir já... mas parece-me ter os pés colados ao chão.

- Asseguro-te que ficarás melhor daqui a pouco se te deitares uma meia hora; ainda faltam oito para nascer o dia e quando aparecer o Sol ainda será tempo do filho do teu pai começar a viagem.

- Tenho de seguir os seus conselhos, mãe, sinto que tenho - respondeu Hamish em voz balbuciante Mas chame-me quando a Lua nascer.

Estendeu-se na cama e adormeceu quase logo. Palpitante de alegria como uma pessoa que realizou difícil tarefa, Elspat começou a arranjar carinhosamente o plaid do filho adormecido, para quem a sua disparatada ternura seria fatal. Ao mesmo tempo, ia manifestando a sua alegria, dizendo com uma inflexão que exprimia ao mesmo tempo amor maternal e o triunfo do amor-próprio:

- Cordeirinho do meu coração, a Lua nascerá e voltará a desaparecer, tal como o Sol, não para iluminar os teus passos longe da terra dos teus pais ou para te animar a servir o príncipe estrangeiro, inimigo da tua raça!... Nunca o darei a um filho de Dermid para ser tratado como escravo. Aquele que é a minha vida e o meu orgulho, será o meu guarda e protector. Dizem que o país das montanhas mudou. Mas eu vejo o Ben-Cruachan elevar para o céu o seu cume altivo, mais alto do que nunca. Ainda ninguém guardou os seus rebanhos na bacia profunda do lago Awe. O carvalho que além cresce ainda não se curvou como um salgueiro. Os filhos dos montanheses serão o mesmo que os seus pais foram até que as próprias montanhas se nivelem com os vales. Nestas florestas selvagens, que outrora alimentavam milhares de bravos, ainda deve restar alimento e abrigo para uma pobre mulher e para o seu valente filho da raça antiga, conservando os costumes doutros tempos.

Enquanto a mãe triunfava assim no seu erro com o êxito do seu estratagema, podemos dizer ao leitor que esse triunfo foi alcançado com o conhecimento das propriedades das plantas que Elspat, hábil em todas as artes relacionadas com a vida que levava, possuía em alto grau e utilizava de diversas maneiras. com plantas, que sabia escolher e destilar, podia curar muitas doenças melhor do que um médico vulgar. Empregava algumas para tingir o tartã de diversas cores; com outras compunha bebidas com diversas virtudes e, infelizmente, sabia preparar uma que era violento soporífero. Haviam sido os efeitos desta poção, como o leitor por certo já calculou, que prenderam Hamish para lá do termo da licença; pensava que o horror, provocado pelo receio do castigo ao qual ficaria sujeito, o impediria de voltar para o regimento.

 

Durante essa noite terrível, Hamish Mac-Tavish esteve mergulhado num sono mais profundo do que o sono habitual, mas o mesmo não aconteceu com a mãe. Mal fechava os olhos acordava em sobressalto, receando que o filho acordasse e partisse; e só quando se aproximava da cama onde dormia o rapaz e ouvindo-o respirar regularmente e com força, ficava mais tranqüila sobre a segurança do sono em que estava mergulhado.

Mesmo assim, receava que o nascer do dia o acordasse, apesar das virtudes narcóticas da poção que lhe dera a beber. Se restasse para alguém a esperança de realizar a viagem, Elspat tinha a certeza de que Hamish a realizaria, embora tivesse de morrer de cansaço na estrada.

Agitada por este receio, esforçou-se por atenuar a luz, tapando todas as fendas que, mais do que as aberturas regulares, podiam dar passagem à claridade da manhã. Todos estes cuidados tinham por alvo reter, no meio da pobreza, aquele a quem daria oom alegria o mundo inteiro se fosse dona dele.

Mas todos eles eram supérfluos! O sol percorreu os céus, o mais ágil veado de Breadalbane, perseguido pelos cães não poria, para salvar a vida, mais persistência do que Hamish deveria pôr para chegar a tempo. A viúva de Tamish-Mhor alcançara os seus fins. O regresso do filho na data fixada tornara-sa impossível. Supôs também impossível que ele pensasse em voltar ao serviço, estando como estava agora, exposto ao perigo de um castigo infamante. Pouco a pouco, por diversas vezes, conseguira saber por ele o que tinha a temer se não aparecesse no dia fixado e da fraca esperança que podia alimentar de ser tratado com indulgência.

Todos sabem que o grande e sábio conde de Chatam se gabava de ter encontrado o meio de reunir os bravos montanheses para defesa das colônias, esses homens que antes dele haviam constituído motivo de receio e de suspeitas para todos os governos. Os hábitos e o carácter particular desse povo eram outros tantos obstáculos para a execução do seu patriótico projecto. Por gosto e por costume, todos os highlanders andavam armados. Ao mesmo tempo, porém, não conheciam a sujeição que a disciplina impõe às tropas regulares e nem mesmo a suportavam. Formavam uma espécie de melícia que não podia conceber que um campo fosse o seu posto. Se perdiam uma batalha dispersavam para se salvar e velar pela família. Se alcançavam uma vitória, voltavam para os seus vales com os despojos alcançados, para tratar do gado e das herdades. Este previlégio de ir e vir ao sabor da sua vontade era tão importante a seus olhos que não queriam ser privados dele, mesmo pelos seus chefes que, a muitos outros respeitos, dispunham de uma autoridade despótica. Como conseqüência, os recrutas dos Highlanders dificilmente compreendiam a natureza de um compromisso militar que obrigava um homem a servir no exército mais tempo do que lhe apetecia. Acontecia muitas vezes que, ao alistá-los, não tinham o cuidado de lhes indicar a duração do compromisso com medo que mudassem de resolução. Houve, portanto, muitas deserções no regimento organizado em Dunbarton e o general que ali comandava não encontrou nada de melhor para as reprimir do que ordenar um exemplo extraordinário num desertor inglês. O regimento dos montanheses foi obrigado a assistir ao castigo, o que deixou horrorisados os homens, ciosos da sua honra pessoal e indispôs muitos outros contra o serviço militar.

No entanto, o velho general, que aprendera disciplina na Alemanha, persistiu na sua opinião e anunciou, na ordem do dia, que o primeiro montanhês que desertasse ou não aparecesse quando expirasse a sua licença, seria chicoteado, castigado como o culpado cujo castigo haviam presenceado. Ninguém duvidou de que o general cumpriria a sua palavra sempre que a severidade assim o exigisse. Portanto, Elspat sabia que o filho, logo que reconhecesse ser impossível obedecer às ordens do general, ao mesmo tempo consideraria como inevitável o castigo degradante decretado contra a deserção, se fosse de novo colocar-se debaixo das ordens do chefe.

Passado o meio-dia, novos receios nasceram no espírito daquela mulher. O filho continuava a dormir sob a influência do narcótico; mas o que aconteceria se a sua razão ou a sua saúde perigassem com a dose fortíssima que lhe dera, mais forte do que nunca vira aplicar? Pela primeira vez também, a despeito da alta idéia que fazia da autoridade materna começou a temer o ressentimento do filho com quem, segundo lhe dizia o coração, procedera mal. Naqueles últimos tempos, o carácter de Hamish tornara-se mais indócil e as suas resoluções, principalmente depois do alistamento, eram tomadas com independência e executadas com firmeza. Recordava a severa obstinação do pai quando se considerava ofendido e começou a recear que Hamish descobrisse que a mãe o havia enganado e se vingasse, abandonando-a, prosseguindo a sua carreira. Foram esses os receios alarmantes que dominaram a infeliz depois do sucesso aparente do seu estratagema.

Anoitecia quando Hamish acordou; mas bem longe de ter recuperado as faculdades de espírito ou de corpo. As palavras vagas e o pulso agitado causaram grandes inquietações a Elspat, que logo empregou os remédios conhecidos pela sua medicina. No decurso da noite, teve a satisfação de o ver mais uma vez mergulhado num sono profundo que, sem dúvida, desvaneceu os efeitos do narcótico, e quando o Sol apontou no horizonte, ouviu-o levantar e pedir o gorro. Escondera-o de propósito com receio de que o filho acordasse de noite e partisse sem ela dar por isso.

- Mãe, dê-me o gorro! É tempo de lhe dizer, adeus e partir. A bebida era muito forte. Dormi até o Sol nascer, mas amanhã verei o duplo cimo do antigo Dun. O gorro, mãe. Tenho de partir já.

Estas palavras demonstraram que o pobre Hamish não sabia terem decorrido duas noites e um dia depois de ter bebido a taça fatal e Elspat tinha diante de si uma tarefa que se lhe afigurou quase tão perigosa como custosa, a de lhe explicar o estratagema de que lançara mão.

- Perdoa-me, meu filho - disse, aproximando-se e agarrando-lhe a mão com um ar tímido e arrependido, que nunca demonstrara ao pai, mesmo quando ele tinha um dos seus ataques de mau gênio.

 

- Perdoar-lhe, mãe! Perdoar-lhe o quê? - perguntou Hamish, rindo - Por me ter dado tão grande dose de licor que a minha cabeça ainda se ressente ou por ter escondido o meu gorro para me prender um pouco mais? Sou eu quem deve pedir-lhe perdão. Dê-me o gorro e deixe-me fazer o que é indispensável. Dê-me o gorro ou partirei sem ele, pois não consentirei que me prenda com a falta de uma coisa tão pouco importante, eu que, durante tantos anos, não tive mais do que uma tira de coiro para prender os cabelos.

- Meu filho - disse Elspat, agarrando-lhe a mão com força - Nada pode impedir o que está feito. Ainda que pedisse à águia as suas asas, chegarias a Dun demasiado tarde para o que desejas e cedo de mais para 10 que te espera. Supões que o Sol se levanta pela primeira vez desde que adormeceste. Mas ontem subiu por cima do Bem-Cruachan sem que os teus olhos vissem a sua luz.

Hamish volveu à mãe um olhar aterrado; mas, voltando a si, disse:

- Não sou uma criança para me desviarem do meu caminho com essas mentiras. Adeus, minha mãe.

Cada minuto é para mim mais precioso do que a vida.

- Espera, meu filho! Não corras para a infâmia e para a perda. Vejo na estrada um sacerdote montado num cavalo branco. Vai perguntar-lhe em que dia estamos do mês e da semana. Ele que te diga se minto.

Tão rápido como a águia, Hamish voou para o alto da colina e parou diante do pároco de Glenorquhy que ia, tão cedo, levar consolações a uma pobre família de Bunawe.

O pobre homem não ficou pouco assustado ao ver um montanhês armado, o que era raro, dominado por tão grande agitação, que fez parar o cavalo e lhe perguntou com voz sumida em que dia estavam da semana e do mês.

- Se estivesse onde devia estar ontem, meu rapaz - respondeu o eclesiástico - saberia que era o dia do Senhor e que hoje é segunda-feira, vinte e um do mês.

- Diz a verdade?

- Tão verdade, como é verdade ter eu ontem, pregado a palavra de Deus nesta paróquia. Mas o que tem? Está doente? Está em seu juízo?

Hamish não lhe respondeu. Repetia apenas as primeiras palavras do sacerdote:

"Se estivesse onde devia estar ontem".

Ao mesmo tempo largou a rédea do animal, abandonou a estrada e desceu o atalho que conduzia à choupana, na atitude e no passo de um homem que caminha para o cadafalso. Surpreendido, o padre seguiu-o com a vista. Mas embora soubesse quem vivia na cabana e o carácter de Elspat o afastasse dela, porque tinha fama de papista ou antes, por pessoa indiferente à religião, com excepção de algumas práticas supersticiosas aprendidas com os pais, o reverendo Mr. Tyrie ensinado alguma coisa a Hamish quando a ocasião se proporcionara e, se a semente caíra no meio de silvas e de espinhos, com um carácter como o seu, não fora totalmente estéril e perdida.

 

Havia qualquer coisa de tão lúgubre na expressão do rapaz que o virtuoso eclesiástico esteve tentado a descer à choupana e informar-se se acontecera qualquer infelicidade aos que a habitavam, na qual a sua presença fosse consoladora. e o seu ministério útil! Infelizmente, não persistiu nessa idéia, que poderia ter impedido um acontecimento fatal, atendendo a que, possivelmente, teria sido um mediador para o infeliz rapaz. Mas o lembrar-se do carácter selvático dos montanheses, criados nos antigos usos da região, impediu-o de se interessar pela viúva e pelo filho do temido salteador Mac-Tavish-Mhor, perdendo assim uma ocasião de fazer bem, o que mais tarde lamentou sinceramente.

Quando Hamish Mac-Tavish regressou à choupana da mãe, foi para se atirar para cima do leito de urzes que abandonara, exclamando: "Perdido! Perdido" e com gritos de dor e de raiva protestou e manifestou a cólera e o ressentimento profundo que o dominavam contra o estratagema que a mãe empregara com ele e contra a sua cruel situação.

Elspat já contava com a primeira explosão de cólera do filho e disse para consigo mesma: "É como a torrente da montanha cheia com a chuva da tempestade. Sentemo-nos e descansemos na margem. Embora tenha saído do leito, em breve poderemos passar a pé enxuto". Os lamentos e as recriminações do filho que, mesmo no meio da sua aflição, exprimiam respeito e afeição, deixou-os passar sem lhes responder; e logo que ele esgotou todas as exclamações de dor, que os sentimentos do coração podem inspirar a um homem e que ficou mergulhado em sombrio desespero, não se aproximou dele sem ter passado uma hora.

- Agora - disse num tom em que a autoridade maternal era suavizada pela ternura - já desabafaste o teu inútil desgosto? És capaz de comparar o que ganhaste ao que perdeste? O pérfido filho de Dermid é irmão ou pai da tua tribo para lamentares assim o facto de não poderes seguir debaixo da sua bandeira e seres um daqueles que executam as suas ordens? Podes encontrar noutra região os lagos e as montanhas que deixas aqui? Poderás caçar os gamos de Breadalbane nas florestas da América ou encontrar no mar o salmão de escamas de prata que encontras no Awe? Pensa no que perderias e, como homem sensato, compara-o ao que ganhaste.

- Perdi tudo, mãe - replicou Hamish - visto ter faltado à minha palavra e perdido a honra. Poderei contar a minha história, mas quem me acreditaria?

E o infeliz rapaz levou as mãos à cabeça e ocultou o rosto nas urzes do leito.

Elspat ficou então seriamente assustada e talvez lamentasse ter recorrido ao seu fatal artifício. Não tinha esperança e refúgio senão na eloqüência da persuação, que possuía em alto grau, conquanto a sua ignorância total do mundo em que vivia, tal como existia então, tornasse essa energia infrutuosa. Incitou o filho, com todas as palavras que a sua ternura maternal pôde encontrar, para o convencer a pensar na sua segurança.

 

- Deixa-me o cuidado de desviar aqueles que te perseguem. Salvar-te-ei a vida e a honra, dir-lhes-ei que o meu Hamiah de loiros cabelos caiu do alto do Corrie Dhu num abismo do qual os homens nunca viram o fundo. Dir-lhes-ei isso e atirarei o teu plaid para as silvas que crescem no fundo do precipício Acreditarão nas minhas palavras e voltarão para o Dun. Porque o tambor dos saxões pode chamar os vivos para a morte, mas não pode chamar os mortos para servirem sob os seus vis estandartes. Então iremos juntos para o norte, até aos lagos salgados de Kintail e poremos vales e montanhas entre nós e os filhos de Dermid. Iremos ver as margens do lago negro e a minha família - porque minha mãe descende dos filhos de Kenneth - e encontraremos nela o antigo afecto. Naqueles vales longínquos, os montanheses conservam ainda toda a sua nobreza, separada dos saxões grosseiros e da raça desses homens vis que são seus instrumentos e escravos.

A energia desta linguagem um pouco herperbólica, mesmo nas suas mais vulgares expressões, pareceu a Elspat muito fraca ainda para conseguir pintar aos olhos do filho o brilhante quadro das belezas da terra onde propunha refugiar-se com ele. No entanto, ainda encontrou cores para descrever o paraíso das montanhas. As colinas - afirmou - eram mais altas e belas do que as de Breadalbane. Ben Croachan não passava de ser um anão comparado com o Scooroora.

Os lagos eram mais largos, mais profundos, povoados não só de peixe, mas dessa espécie de animais anfíbios que fornecem ao homem óleo para as suas lâmpadas e ainda os alimentos. Os gamos eram maiores e em maior número. O javali, de brancas defesas, cuja caça, foi sempre a preferida pelos bravos, ainda se encontrava naquelas solidões ocidentais. Os homens eram mais nobres, mais sensatos e mais fortes do que os da raça degenerada que vivia sob as ordens dos saxões.

As raparigas daquela região eram lindas, tinham os olhos azuis, os cabelos loiros e uma tez de neve. Seria entre elas que Hamish escolheria uma esposa de raça irrepreensível, com uma reputação sem mancha, com um amor firme e verdadeiro que seria na sua casa como um raio de sol no Verão e no Inverno como o calor da lareira benéfica.

Foram estas as palavras de que se serviu para tentar acalmar o desespero do filho e decidi-lo, se pudesse, a abandonar aquele sítio fatal onde se mostrava resolvido a ficar. A linguagem da sua retórica era poética, mas, sob outros aspectos, assemelhava-se àquela que, como outras mães, prodigalizara a Hamish na infância ou na adolescência para o convencer a fazer qualquer coisa que lhe desagradava. A força, rapidez e veemência das palavras aumentava à medida que começava a desesperar de que elas convencessem o filho. A sua eloqüência não fez a mais pequena impressão sobre Hamish. Conhecia muito melhor do que ela o estado do país e sabia que, mesmo que lhe fosse possível esconder-se como um fugitivo, no meio das mais afastadas montanhas, não encontraria em parte alguma um canto de terra onde pudesse exercer a profissão do pai, embora não tivesse já adoptado as idéias mais justas do tempo em que vivia e a opinião de que a profissão de cateran não podia ser já o caminho das honras e distinções. Por- tanto, as palavras da mãe batiam em ouvidos cerrados e em vão se cansava a descrever-lhe a terra dos seus parentes em termos que incitassem Hamish a acompanhá-la. Falou horas seguidas, mas falou em vão. Não obteve mais resposta do que gemidos, suspiros e soluços que exprimiam dor e desespero.

 

Por fim, levantou-se e, abandonando o tom monótono adoptado para tecer louvores à terra que podia oferecer-lhes refúgio, tomou a linguagem concisa e severa da impaciência e da exaltação.

- Estou louca por perder as minhas palavras com um rapaz teimoso, cobarde e sem inteligência, que se deita como um cão ao apanhar pancada. Fica para receberes os teus imperiosos donos e sujeita-te ao castigo. Mas não esperas que os olhos de tua mãe o testemunhem. Não poderei assistir a semelhante espectáculo sem morrer. Os meus olhos viram a morte muitas vezes, mas nunca a desonra.

Dizendo estas palavras, precipitou-se para fora da cabana com celeridade, e talvez então concebesse o projecto, como afirmava, de abandonar o filho para sempre.

Era um espectáculo quase aterrador, vê-la, toda a noite, errar por aquelas solidões como um espírito inquieto e dirigir-se a si mesma em termos que não poderíamos traduzir. Correu de um lado para o outro horas seguidas, procurando os mais perigosos atalhos através do pântano e ao longo dos precipícios ou nas margens espumejantes do rio. Mas a coragem que nasce do desespero salvou-lhe a vida que talvez - embora nas montanhas se vejam raramente suicídios cometidos deliberadamente - ela tivesse o desejo de perder. Os seus passos à borda do precipício eram firmes como os de um cabrito montês. O seu olhar, no meio de tanta agitação, era tão penetrante que evitava, no meio da escuridão, os perigos a que um estranho poderia fugir em pleno dia.

Elspat não caminhava a direito. Se o fizesse, ter-se-ia afastado muito da choupana onde deixara o filho. Descrevia uma espécie de círculos dos quais essa mesma choupana era o centro e onde o coração a conduzia constantemente. Voltou quando raiava o dia e, chegando junto da porta, fechada com uma grade de caniços, parou um instante, como se tivesse vergonha de ter sido impelida por uma ternura inquieta para um sítio que abandonara com a firme tenção de nunca mais voltar. Mas na sua hesitação havia muito receio inquietação. O filho de loiros cabelos, talvez estivesse sofrendo os efeitos da poção que lhe dera. Os seus inimigos não teriam ido surpreendê-lo durante a noite? Abriu a porta devagarinho e entrou sem fazer barulho. Esmagado pela dor e pela aflição e talvez ainda sob a influência da bebida soporífera, Hamish Bean dormia com esse sono profundo, ao qual, segundo dizem, os indianos sucumbem no intervalo dos tormentos. Mal a mãe se certificou que, de facto, o filho estava deitado e ouviu o ruído da sua respiração, com o coração palpitante aproximou-se do catre, colocado a meio da cabana onde estavam, abafados por um bocado de turfa, as brasas que nunca se apagam num lar escocês até que aquela que o ocupe o abandone para sempre.

- Pobre centelha - murmurou, acendendo com o auxílio de um fósforo uma lasca de pinheiro que lhe servia de candeeiro - pobre chama, em breve te apagarás para sempre. E Deus permita que a vida de Elspat Mac-Tavish não dure mais do que a tua!

 

Ao mesmo tempo fez incidir a luz sobre o leito onde Hamish estava estendido numa posição que não se poderia dizer se dormia ou estava desmaiado.

A luz bateu-lhe nos olhos. O rapaz ergueu-se, deu um passo em frente com a adaga na mão como um homem armado que avança ao encontro de um inimigo mortal e exclamou:

- Não se aproximem! Se têm amor à vida, não se aproximem!

- Reconheço a voz e os gestos do meu esposo - respondeu Elspat - e pelo andar e pelas palavras reconheço também o filho de Mac-Tavish-Mhoj:

- Mãe! - exclamou Hamish, abandonando o tom ameaçador pelo lamentoso e melancólico - Querida mãe, para que voltou?

- Pergunta à corça para que volta para junto das crias - respondeu Elspat - e porque a fêmea do gato bravo das nossas montanhas volta para o seu covil e para os filhos. Fica sabendo, Hamish, que o coração de uma mãe não palpita senão junto do filho.

- Nesse caso, em breve deixará da palpitar - respondeu Hamish - salvo se bater junto de um peito colocado num túmulo. Não me censure, mãe. Choro por si, não por mim. Os meus sofrimentos em breve acabarão, contanto que os seus... só Deus poderá pôr-lhes limite.

Estas palavras fizeram estremecer e recuar Elspat. No mesmo instante, porém, recuperou a sua atitude rígida e o seu ar intrépido.

- Ainda há pouco te supus um homem - afirmou e eis que voltaste a ser criança. Ouve-me e deixemos ambos esta choupana. Fiz-te mal ou injuriei-te? Se foi isso, não deves vingar-te tão cruelmente. Olha. Elspat Mac-Tavish, que nunca dobrou o joelho, mesmo diante de um padre, ajoelha diante do próprio filho e implora-lhe o seu perdão.

No mesmo instante, pôs-se de joelhos diante de Hamish, agarrou-lhe na mão, beijou-a repetidas vezes e implorou com voz ardente e dilacerante que lhe perdoasse.

- Perdão! - exclamava - Perdão pelas cinzas de pai, perdão pelas dores que sofri quando te levava nos braços e pelos trabalhos que passei para te educar. Céus e terra, ouvi! A mãe pede perdão ao filho e esse perdão é-lhe recusado.

Em vão Hamish tentou deter esta torrente de expressões apaixonadas, afirmando à mãe com os mais solenes protestos que lhe perdoava fatal estratagema que usara contra ele.

- Palavras no ar - respondeu ela - vãos protestos que empregas para ocultar o teu profundo ressentimento. Como queres que te acredite? Abandona esta choupana neste mesmo instante e afasta-te de uma terra que se torna mais perigosa para ti de hora para hora. Faz o que te peço e então poderei acreditar que me perdoas. Recusas e eu tomarei de novo o céu, a lua, as estrelas e a terra como testemunhas do ressentimento implacável com o qual persegues a tua mãe por um erro que, se de facto é um erro, foi cometido por amor de ti.

 

- Mãe - declarou Hamish - não consegue modificar a minha determinação. Não fugirei. Embora Barcaldine enviasse contra mim todos os montanheses que servem sob as suas ordens, é aqui, nesta casa, que os aguardarei. Quando me diz para fugir é como se ordenasse a esta montanha para se arrancar dos seus fundamentos. Se soubesse positivamente porque estrada vêm, poupar-lhes-ia o trabalho de me procurar. Mas poderei ir pelos caminhos da montanha, enquanto eles chegam pelos do lago. É aqui que aguardarei a minha sentença e não há em toda a Escócia voz bastante poderosa para me ordenar que me vá e se faça obedecer.

- Nesse caso, também eu fico - decidiu Elspat, levantando-se e falando com uma calma que não era senão aparente - Vi morrer o meu marido e não temerei ver a morte de meu filho. Mac-Tavish-Mhor, porém, morreu como um valente, com a mão direita poisada, no seu claymore. Meu filho morrerá como o boi, conduzido ao matadoiro pelo Saxão que o comprou.

- Mãe - retorquiu o infeliz rapaz - tirou-me, a vida. Estava no seu direito porque ma deu. Mas não me toque na honra! Herdei-a de uma raça de valentes antepassados e não deve ser manchada nem pelos actos de um homem nem pelas palavras de uma mulher. O que farei, talvez eu mesmo o ignore ainda. Mas não volte a tentar-me com palavras injuriosas. Nunca poderá sarar as feridas que me causou.

- Está bem, meu filho - replicou Elspat - Não me ouvirás nem mais uma queixa nem uma censura. Calo-me e aguardaremos a sorte que o céu nos reserva.

Na manhã seguinte, o Sol, ao nascer, encontrou a choupana silenciosa como um túmulo. Mãe e filho ocupavam-se cada um das suas tarefas. Hamish preparava e limpava as suas armas com o maior cuidado, mas com um ar de profundo abatimento. Elspat, muito agitada, preparava a comida que a desgraça da véspera a obrigara a niglegenciar por muito tempo. Quando estava pronta, colocou-a em cima da mesa diante do filho, repetindo as palavras de um poeta da montanha:

- Sem o alimento de cada dia, o soco da charrua

Ao trabalhador fica parado no sulco; sem o alimento, He cada dia, a espada do guerreiro torna-se pesada para o seu braço. Os nossos corpos não são escravos. Devemos alimentá-los se queremos que nos sirvam. Assim falava outrora o bardo cego aos guerreiros de Fion.

O filho não lhe respondeu; mas aceitou a comida que a mãe lhe pusera na frente, como se desejasse adquirir forças para o que o esperava.

Quando a mãe julgou que ele já havia comido o suficiente, encheu de novo a taça fatal e ofereceu-lha para fim da refeição. O rapaz, porém, afastou-a, estremecendo, fazendo um gesto convulso; que exprimia ao mesmo tempo receio e horror.

- Bebe, meu filho. Desta vez não deves ter receio.

- Não insista, mãe - respondeu Hamish - . Ponha dentro de um copo um sapo imundo e eu beberei; mas. de futuro, nunca mais aproximarei os meus lábios dessa taça maldita, nunca mais provarei a bebida que foi a perda da minha alma.

- Como quiseres, filho - retorquiu Elspat, com ar altivo. E com simulada solicitude dedicou-se aos trabalhos domésticos, interrompidos na véspera. Fossem quais fossem os seus sentimentos, ao ver os seus gestos e atitude, todos poderiam supor não ter ela motivo para preocupações. Apenas pelo excesso de actividade e pela agitação contínua, um observador atento descobriria que todos os seus actos tinham por móbil um sentimento doloroso. Poderia notar igualmente quantas vezes ela interrompia as árias que cantarolava, aparentemente sem saber o que fazia, para ir à porta da choupana relancear uma olhadela para fora. Fossem quais fossem os sentimentos de Hamish, o seu procedimento era completamente diferente do da mãe. Tendo acabado de limpar e preparar as armas, o que fez dentro de casa, foi sentar-se diante da porta e fixou o olhar na colina que se erguia em frente da choupana, como uma sentinela alerta aguardando, a chegada do inimigo. O meio-dia encontrou-o na mesma posição e só uma hora depois a mãe chegou junto

dele e poisou-lhe a mão no ombro, perguntando-lhe num tom indiferente, como se se referisse à chegada de alguns amigos:

- Quando os esperas?

- Não podem estar aqui antes das sombras da noite virem do Oriente - respondeu Hamish - isto supondo que o destacamento mais próximo, comandado pelo sargento Allan Breack Cameron, fosse mandado aqui de propósito, vindo de Dunbarton, que é o mais provável.

- Nesse caso, entra mais uma vez na casa de tua mãe e vem partilhar com ela o alimento que preparou.

Depois disso, podem vir e tu verás que tua mãe não é uma testemunha inútil ou incômoda nos momentos de perigo. A tua mão, por muito habituada que esteja, não pode descarregar uma arma tão depressa como eu a carrego; e, se isso for necessário, não temo o clarão da escorva nem o som do tiro, e todos os que atirei atingiam o alvo.

- Pelo amor de Deus, mãe, não se meta no caso - pediu Hamish - Allan Breack é sensato e benevolente.

Descende de boa raça. Talvez possa prometer-me que os meus oficiais me pouparão o castigo infamante. Se pretendem encerrar-me numa prisão e depois matarem-me com um tiro, seja, estou disposto a isso!

- Fias-te nas suas promessas, rapaz insensato? Recorda-te de que a raça d" Dermid foi sempre lisonjeira e cheia de falsidade. Mal te apanhem carregado de correntes, despem-te e aplicam-te o chicote.

- Poupe-me os seus conselhos, mãe - replicou Hamish em tom severo - A minha resolução está tomada.

 

Mas, embora Hamish falasse assim para se livrar das importunidades, mesmo das perseguições da mãe, ser-lhe-ia difícil, naquele momento, dizer qual a sua resolução. Só um ponto estava assente. Aguardar o seu destino, fosse ele qual fosse, para não acrescentar, ao erro de ter faltado, à sua palavra, o erro de que se tornara involuntariamente culpado, o de tentar fugir, ao castigo. Pensava dever esse acto de submissão à sua honra e à dos seus compatriotas. Se o considerassem culpado de ter faltado à sua palavra e atraiçoado a confiança dos seus oficiais, quem confiaria nele no futuro? Quem, senão ele, seria acusado, ele Hamish Bean Mac-Tavish, pelos habitantes das montanhas de ter legitimado e confirmado as suspeitas que o general saxão alimentava, segundo diziam, sobre a boa fé dos montanheses? Estava, portanto, decidido a suportar a sua sorte. Mas tencionava entregar-se ao destacamento que viria prendê-lo ou estava disposto a resistir, para obrigar os homens a matá-lo ali mesmo? Era uma interrogação à qual ele próprio não saberia responder. O desejo que alimentava de voltar a ver Barcaldine para lhe explicar o motivo por que não comparecera no tempo fixado, levava-o a adoptar a primeira hipótese; o receio sentido por um castigo degradante e as censuras amargas da mãe excitavam-no a seguir a segunda e a mais perigosa das duas. Deixou ao acaso o cuidado de decidir na altura própria e não pensou mais na catástrofe que se aproximava.

A noite caía, as montanhas projectavam para oriente as suas sombras gigantescas, enquanto que, para ocidente, ainda se viam brilhar sobre os seus cumes o ouro e a púrpura. Da porta da choupana, via-se a estrada que rodeia o Ben-Cruachan, quando um destacamento de cinco soldados, cujas armas brilhavam com os últimos raios de sol, surgiu ao longe, no ponto em que a estrada se ocultava por trás da montanha. Um dos homens seguia à frente dos outros quatro, conforme as regras militares. Incontestável, pelos toques, pelas espingardas e pelo plaid que usavam, era um destacamento do regimento de Hamish, conduzido por um oficial inferior e adivinhava-se o motivo que o trazia ao lago de Awe.

- Vêm depressa - comentou a viúva de Mac-Tavish-Mhor - Não me admiraria se regressassem da mesma maneira. São apenas cinco e a diferença do número não é tão grande que não possamos aproveitar as vantagens da nossa posição. Retira-te para dentro da choupana e atira pelo buraco que fica perto da porta. Podes matar dois antes que abandonem a estrada pelo atalho. Ficarão apenas três. Teu pai, com o meu auxílio, resistiu muitas vezes a um número igual.

Hamish Bean agarrou na espingarda que lhe estendia a mãe, mas não se afastou da porta. Foi logo descoberto pelo destacamento que vinha na estrada, como supôs ao ver os soldados apressar o passo, sem, no entanto, abandonarem a forma e de marcharem dois a dois como galgos atrelados, embora avançassem com rapidez. Em menos tempo do que seria preciso a homens pouco habituados à montanha, abandonaram a estrada, percorreram o estreito atalho e, aproximaram-se à distância de um tiro de pistola da porta onde se encontrava Hamish, imóvel como uma estátua de pedra, com a espingarda na mão, enquanto a mãe, atrás dele e impelida até ao frenesi pela violência das suas paixões, o censurava nos termos mais fortes que o desespero pode inspirar, pela sua falta de resolução e fraqueza de coração. As palavras de Elspat tornaram ainda mais amargo o fel que o rapaz sentia nascer no coração ao verificar a pressa pouco benévola com que os antigos camaradas avançavam para ele como cães, correndo atrás do veado perseguido. Os sentimentos violentos e indomáveis herdados do pai e da mãe despertaram nele uma hostilidade aparente contra aqueles que o perseguiam e o domínio que o seu raciocínio sensato havia até então imposto às suas paixões, começou a ceder. O sargento dirigiu-lhe a palavra:

- Hamish Bean Mac-Tavish baixa a arma e rende-te.

- E tu, Allan Breack Cameron, pára e ordena aos teus soldados para pararem também ou custar-nos-á caro a todos nós.

- Alto, soldados - ordenou o sargento, continuando ele a avançar - Hamísh, pensa bem no que estás a fazer. Dá-me a tua espingarda; podes verter sangue mas não podes evitar o castigo.

- O chicote, o chicote, meu filho, pensa no chicote - murmurou baixinho a mãe.

- Toma cautela, Allan Breack - avisou Hamish Teria pena se te fizesse mal, mas não me deixarei; prender, se não me garantires que não terei a recear o chicote dos saxões.

- Louco! - respondeu Cameron- Bem sabes que isso é impossível. No entanto, farei tudo quanto puder. Direi que te encontrei já a caminho para te apresentares no regimento e o castigo será leve. Baixa a espingarda. Para a frente, soldados.

Ele próprio avançou, estendendo o braço como para afastar a espingarda que Hamish dirigia contra ele. Elspat gritou:

- Não poupes sangue para defender o lar de teu pai!

Hamish fez fogo e Cameron caiu morto. Todos estes acontecimentos se desenrolaram num segundo. Os soldados precipitaram-se para a frente e prenderam Hamish, que parecia petrificado ao ver o que tinha feito e não opôs resistência. Não aconteceu o mesmo com a mãe que, vendo os soldados dispostos a pôr as algemas ao filho, se atirou a eles com tanta fúria que foram precisos dois para a agarrar, enquanto os outros dois levavam o prisioneiro.

- Não vês, maldita criatura - disse um dos soldados, para Hamish - que mataste o teu melhor amigo, que durante todo o caminho procurou meio de te salvar, de te poupar o castigo da deserção?

- Ouve isto, mãe? - perguntou Hamish, voltando-se para ela, tanto quanto as algemas o podiam permitir.

Mas Elspat não podia ouvi-lo. Fora levada para dentro da choupana e desmaiara. Sem esperar que voltasse a si, o destacamento tomou o caminho de Dunbarton com o prisioneiro. No entanto, os soldados acharam conveniente parar na vila de Dalmally, donde enviaram alguns homens para trazer o corpo do infortunado chefe, enquanto eles próprios iam falar com um magistrado, a fim de lhe participar o acontecido e pedir-lhe instruções. Como o crime era um crime militar, o magistrado ordenou-lhes que, sem demora, conduzissem o prisioneiro para Dunbarton.

O desmaio de Elspat durou muito tempo, mais tempo do que teria durado se a sua forte constituição não estivesse já abalada pela agitação que a dominara durante os últimos três dias. Quando voltou a si ouviu o canto fúnebre, o coronach, entoado por algumas mulheres que batiam as mãos e soltavam ruidosas exclamações, enquanto a gaita de foles fazia ouvir de vez em quando notas lúgubres e tristes, próprias do clã dos Cameron.

Levantou-se num salto, como uma pessoa que desperta entre os mortos, sem se recordar bem da cena; que se desenrolara diante dos seus olhos. Viu a choupana cheia de mulheres que embrulhavam o corpo de Cameron no plaid ensangüentado, para o levarem daquele lugar fatal.

- Mulheres - perguntou, levantando-se e interrompendo ao mesmo tempo os cânticos e o seu trabalho porque estão entoando os cânticos fúnebres de Mac-Dhonnil-Dhu na casa de Mac-Tavish-Mhor?

 

- Loba - respondeu uma das mulheres - cala os teus uivos sinistros. Deixa-nos prestar os nossos deveres ao nosso primo bem-amado. Nunca cantarão o coronash nem o dirge por ti ou pelo teu lobinho sanguinário. Os corvos devorá-los-ão sobre o cadafalso, e as raposas e os gatos bravos despedaçarão o teu cadáver sobre a colina. Maldito seja aquele que abençoar a tua memória ou que acrescente uma pedra ao teu cairn!

- Filha de uma mãe insensata - replicou a viúva de Mac-Tavish-Mhor - fica sabendo que o cadafalso com que nos ameaças não faz parte da nossa herança. Durante trinta anos a árvore negra da lei desejou avidamente o corpo do meu marido bem-amado. Contudo, ele morreu como um valente, de espada na mão e roubou a essa árvore todas as suas esperanças e frutos.

- Não acontecerá o mesmo com o filho, feiticeira sanguinária - replicou a triste parenta de Cameron, cujas paixões eram tão violentas como as de Elspat - Os corvos arrancarão os seus cabelos para guarnecerem o ninho, antes que o Sol se esconda por trás das ilhas de Treshornish.

Estas palavras recordaram a Elspat a terrível história dos últimos três dias. No primeiro momento ficou imóvel como se a dor a tivesse transformado numa estátua de pedra; pouco depois, porém, o orgulho e a violência do seu carácter, vendo-se, segundo pensava, afrontada na sua própria casa, levaram-na a replicar:

- Sim, insolente mulher, o meu Hamish de loiros cabelos pode morrer, mas primeiro tingiu as mãos no sangue do seu inimigo, no melhor sangue de um Cameron, lembra-te disto. E quando depuseres esse morto no túmulo, não podes encontrar melhor epitáfio do que escrever que Hamish Bean o matou, por ter tentado pôr a mão sobre o filho de Mac-Tavish-Mhor, diante da sua própria porta. Adeus. Que a vergonha, da derrota, da morte e do crime, recaia sobre o clã que a suportou.

A parente do infeliz Cameron dispunha-Se a replicar, mas Elspat, não querendo prolongar a questão, talvez por sentir que a sua aflição poderia sobirelevar o poder de que dispunha para exprimir o seu ressentimento, abandonou a choupana e afastou-se à claridade brilhante da Lua.

As mulheres, que prestavam os últimos cuidados ao corpo do infeliz sargento, interromperam a triste ocupação para seguir com a vista a sombra gigantesca de Elspat, que desaparecia por trás dos rochedos.

- Ainda bem que se foi embora - comentou uma das mais novas - Preferia envolver um morto na sua mortalha na presença do próprio Satanás do que na de Elspat, Deus me perdoe. Durante toda a sua vida teve negócios com o inimigo dos homens.

- Sempre és muito tola - respondeu a mulher que mantivera até ao fim o diálogo com Elspat - Pensas que existe sobre a terra ou debaixo dela, inimigo mais poderoso do que o orgulho e a cólera de uma mulher ofendida, como a fúria sanguinária que saiu daqui? Fica sabendo que o sangue é tão familiar para ela como o orvalho é para a margarida dos montes. Matou muitos e muitos valentes a quem ela e os seus nada tinham a censurar. Agora, os nervos dos seus jarretes estão cortados, felizmente, visto o seu lobozinho, criminoso como é, ter de morrer como criminoso.

 

Enquanto as mulheres assim conversavam, amortalhando ao mesmo tempo o corpo de Allan Breack Cameron, a infeliz que provocara aquela morte prosseguia a sua marcha solitária através das montanhas. Enquanto podiam vê-la da cabana, conseguiu dominar-se, a fim de que uma mudança no andar ou nos modos desse aos seus inimigos o triunfo de avaliarem o excesso da sua agitação e desespero. Caminhou, portanto, aprumada, num passo mais lento do que rápido, demonstrando pela sua atitude sofrer com firmeza a adversidade passada e desafiar a que previa. Mas quando ficou fora do alcance da vista das pessoas que se encontravam na choupana, não conseguiu resistir por mais tempo à impetuosidade dos movimentos que a impeliu. Envolvendo-se na capa, parou no primeiro montículo que encontrou e, trepando-o até ao cimo, estendeu o braço e ergueu-o para a Lua brilhante, como para acusar o céu e a terra dos seus infortúnios, soltou gritos agudos e multiplicados, semelhantes ao da águia cujos filhos foram arrebatados do ninho. Durante algum tempo desabafou assim a sua aflição em gritos inarticulados e, em seguida, continuou o seu caminho em passos rápidos e desiguais, na vã esperança de atingir o destacamento que levava o filho preso para Dunbarton. Mas, embora as suas forças fossem mais do que humanas; não chegaram para a tentativa e não lhe foi possível, apesar de todos os esforços, conseguir os seus fins.

Mesmo assim, continuou a caminhar com toda a rapidez de que o seu corpo fatigado era capaz. Quando o alimento se lhe tornava indispensável, entrava na primeira choupana que encontrava e dizia:

- Sou a viúva de Mac-Tavish-Mhor e mãe de Hamish-Mac-Tavish-Bean. Peço que me dêem de comer para poder ver pela última vez o meu filho de loiros cabelos.

Nunca lhe recusavam o que pedia, embora o fizessem com um misto de compaixão e aversão, sentimentos que, por vezes, eram acompanhados de receio, Não sabiam exactamente a parte que Elspat tomara na morte de Allan Breack Cameron, morte que provocara a de seu próprio filho. Mas conheciam a violência das suas paixões e os seus hábitos de outrora; ninguém duvidava de que tivesse sido ela, fosse de que maneira fosse, a causa da catástrofe e todos consideravam Hamish-Bean menos como cúmplice da mãe do que como instrumento de que se servira para cometer o crime.

Era essa a opinião dos compatriotas de Hamish, mas de pouco serviu ao infeliz rapaz. Como seu capi tão, Green Colin conhecia os usos e costumes do seu país, não teve dificuldade em conseguir de Hamish os pormenores relativos à deserção e à morte do sargento.

Foi dominado por grande compaixão pelo rapaz que fora vítima da excessiva e fatal ternura da mãe, Não tinha, porém, qualquer atenuante a alegar para subtrair o infeliz à sorte a que a disciplina militar e o tribunal marcial o condenara, como castigo do seu crime.

Pouco tempo foi necessário para instaurar o processo e pouco tempo decorreu também entre a sentença e a sua execução.

 

O general resolvera dar um exemplo severo no primeiro desertor que lhe caísse nas mãos e aquele recorrera à força para se defender e, defendendo-se, matara o sargento enviado para o prender. Seria impossível encontrar culpado que melhor merecesse o castigo. Por conseguinte, Hamish foi condenado a ser executado naquele mesmo dia. Tudo quanto a influência do seu capitão pôde obter em seu favor foi que morreria como um soldado, pois chegaram a falar na forca.

O digno pároco de Glenorquhy estava, por acaso, em Dunbarton, para assistir a uma reunião religiosa, realizada na altura da catástrofe. Visitou o seu infeliz paroquiano na prisão onde estava encerrado. Encontrou-o, sem dúvida, ignorante, mas não obstinado. As respostas recebidas quando conversou com ele sobre assuntos religiosos foram tais, que lamentou ter ficado inculto um espírito tão puro e nobre.

Depois de se ter assegurado do carácter e das disposições do rapaz, o digno eclesiástico fez tristes reflexões sobre a sua própria timidez e a sua disparatada vergonha, provocadas pela má fama da raça de Hamish, que o haviam impedido de fazer as caridosas tentativas para conduzir ao redil aquela ovelha tresmalhada.

Enquanto o bom do padre se censurava pela passada fraqueza que não o deixara arriscar a sua pessoa para salvar aquela alma imortal, resolveu nunca mais seguir os conselhos da tibieza e dirigiu-se aos oficiais no intuito de obter o perdão do criminoso ou, pelo menos, adiar a execução da sentença de um desgraçado por quem sentia um interesse extraordinário, tanto por causa da docilidade do seu carácter como pela generosidade das suas disposições.

Em conseqüência, o ministro da Igreja foi falar, com o capitão Campbell na caserna da guarnição. A fronte de Green Colin estava sombreada por uma nuvem de preocupação, que, longe de se atenuar, mais aumentou quando o sacerdote lhe disse o nome, a sua qualidade e o assunto da visita.

- Não conseguirá dizer-me coisa alguma a respeito desse rapaz que eu não esteja disposto a acreditar - respondeu o oficial montanhês - e não pode pedir-me para fazer a seu favor, mais do que o meu desejo, mais do que já tentei fazer. Mas tudo é inútil, O general pertence metade às terras baixas, metade à Inglaterra. Não faz a mais pequena idéia da altivez e do carácter entusiasta, que originam muitas vezes nas montanhas as virtudes mais exaltadas ao lado dos maiores crimes, filhos menos de erros de coração do que de raciocínio. Cheguei a dizer-lhe que, condenando à morte o rapaz, matava o melhor e mais valente soldado da minha companhia, na qual não existe um só que não seja honesto e bravo. Contei-lhe o estranho estratagema que originara a aparente deserção do acusado e como era pequena a parte tomada pelo coração no crime que a mãe havia praticado. Respondeu-me o seguinte:

- Existem visões higlandesas, capitão Campbell, tão fúteis e tão-pouco satisfatórias como as da segunda vista. Um acto de deserção formal pode desculpar-se com a embriaguez; o crime de um oficial pode mascarar-se com a loucura. Impõem-se dar um exemplo e se aquele que o dá é um bom soldado mais eficaz ele se tornará. Visto ser esta a determinação irrevogável do general, reverendo Tyrie, só lhe resta preparar o seu paroquiano para suportar amanhã, ao romper do dia, para aquilo por que todos nós, mais tarde ou mais cedo, devemos passar.

- Só peço a Deus que todos nós estejamos tão bem preparados - respondeu o sacerdote - como tenciono preparar o infortunado rapaz.

 

No dia seguinte de manhã, quando os primeiros raios do sol tingiram as torres acinzentadas que coroam o cimo do rochedo estranho e aterrador" os soldados do regimento montanhês reuniram-se na parada no interior do castelo de Dunbarton. Formaram e desceram as escadas íngremes e os corredores estreitos que conduziam à porta exterior, na base do rochedo. Os sons ásperos da gaita de foles faziam-se ouvir de tempos a tempos, logo seguidos pelo tambor e pelos pífaros que tocavam marchas fúnebres.

A sorte do infeliz Hamish, de princípio, não suscitou grande compaixão no regimento, como teria excitado se ele fosse apenas desertor. A morte do infortunado Allan Breack dera à culpa de Hamish um carácter diferente, porque o sargento era muito estimado e, além disso, pertencia a um clã poderoso, ao qual também pertenciam muitos dos soldados. O desventurado rapaz, pelo contrário, era pouco conhecido dos camaradas e não mantinha laços de amizade com qualquer deles. O pai fora, é verdade, célebre pela sua força e coragem, mas pertencia a um clã quebrado, como chamavam àqueles que não tinham chefe para os conduzir ao combate.

Em qualquer outro caso, seria impossível fazer sair do regimento o pelotão para execução da sentença; mas os seis indivíduos escolhidos eram amigos do defunto e descendiam, como ele, da raça de Mac-Dhonnil-Dhu. Foi, portanto, com um sentimento de vingança satisfeita que se prepararam para desempenhar a tarefa fatal, imposta pelo dever. A primeira companhia do regimento começou a desfilar, seguida pelas outras, cada uma delas avançando ou parando, segundo as ordens do sargento, da maneira a formar três lados do grande quadrado. O quarto, ou seja o lado vazio do quadrado, era fechado pelo rochedo escarpado e medonho sobre o qual se erguia o castelo. No centro do cortejo marchava, de cabeça descoberta, desarmado e com as mãos amarradas, a infeliz vítima das leis militares. O rosto apresentava uma palidez mortal, mas os passos eram firmes e os olhos brilhavam mais do que nunca. Junto dele caminhava o sacerdote; na frente, seguia o caixão onde seriam recolhidos os seus restos mortais. Os camaradas assumiam um ar solene, calmo e grave, sentiam-se cheios de piedade pelo rapaz cuja estatura elegante, ar viril e, no entanto, submisso, havia, logo que puderam vê-lo distintamente, abrandado o coração de muitos, mesmo de alguns que de princípio alimentavam sentimentos de vingança.

O caixão destinado a receber o corpo de Hamish-Bean, foi colocado a cerca de dois metros da base do rochedo que, naquele ponto, se elevava perpendicularmente, como uma muralha, até à altura de trinta e cinco a quarenta metros.

Levaram para lá o prisioneiro, sempre acompanhado pelo sacerdote que o exortava a ter coragem e lhe prodigalizava consolação que o rapaz escutava com devoção e respeito.

Então, o pelotão que devia fazer fogo avançou a passo lento, por assim dizer, contra vontade, entrou no quadrado e alinhou em frente do prisioneiro, ficando a cerca de dez metros de distância. O ministro de Deus dispôs-se a retirar-se.

 

- Pensa, meu filho, no que te disse - murmurou ainda - e agarra-te à âncora que te apontei. Vais trocar uma curta e miserável existência por uma vida onde não terás sofrimento nem pezares. Posso fazer mais alguma coisa por ti?

O rapaz relanceou a vista para os botões das mangas. Eram de oiro e, possivelmente, haviam sido roubados pelo pai a qualquer oficial inglês, durante as guerras civis. O ministro arrancou-os.

- Dê-os à minha pobre mãe! Vá procurá-la, meu padre, e diga-lhe o que deve pensar de tudo isto.

Diga-lhe que Hamish-Bean está mais contente por morrer do que estaria ao descansar após fatigante dia de caça. Adeus, meu padre, adeus.

O sacerdote a custo se afastou do lugar fatal. Um oficial amparou-o pelo braço. Quando olhou pela última vez para Hamish, viu-o de joelhos junto do caixão; as poucas pessoas que o rodeavam retiraram-se. A ordem fatal foi dada, o rochedo repercutiu o estrondo dos tiros e Hamish, soltando um gemido, caiu morto, provavelmente sem quase sentir a angústia passageira que pôs fim aos seus dias.

Então, dez ou doze soldados da companhia aproximaram-se e, com uma espécie de veneração solene, deitaram o corpo do camarada no caixão, enquanto soava de novo a marcha fúnebre e os soldados das diferentes companhias marchavam em fila, passando diante dele, para que todos pudessem ver o espectáculo terrível que tinham debaixo dos olhos e lhes servisse de exemplo para o futuro.

O regimento retomou então a marcha e subiu o rochedo, a música, conforme o uso em tais ocasiões, fazia ouvir sons marciais e alegres, como se os pezares ou as preocupações não devessem pesar por muito tempo no coração de um soldado.

Entretanto, o pelotão de que falámos, levou o corpo do infeliz Hamish para a sua humilde sepultura, cavada num canto do cemitério de Dunbarton, ordinariamente reservado para os criminosos. Ali, entre as cinzas dos culpados, dormia um rapaz cujo nome, se sobrevivesse aos funestos acontecimentos que o precipitaram no crime, teria podido ser mencionado nos anais dos valentes.

O pároco de Glenorquhy abandonou Dumbarton logo após ter presenciado a última cena desta melancólica catástrofe. A sua razão concordava com a justiça da sentença, que exigira ser o sangue pago com sangue, e reconheceu que o carácter vingativo dos seus compatriotas precisava de ser reprimido pelo freio poderoso da lei social. No entanto, chorava o indivíduo que fora sua vítima. Quem pode acusar o raio quando cai no meio dos filhos da floresta? Contudo, quem pode deixar de gemer quando ele derruba o tronco soberbo do carvalho que prometia ser o orgulho do vale que o vira nascer? Meditando nestes tristes acontecimentos, ao meio-dia chegou aos desfiladeiros da montanha por onde devia seguir para sua casa, ainda muito afastada.

Confiando no seu conhecimento da região, o sacerdote abandonou a estrada principal e tomou por um atalho mais curto, ordinariamente só freqüentado por peões e por pessoas montadas nos cavalos da terra que, apesar de serem pequenos, têm andamento seguro e são muito inteligentes.

 

O sítio que percorria naquele momento era medonho pelo seu aspecto triste e deserto e as tradições supersticiosas tornavam-no aterrador. Pretendia-se que, tomando a forma feminina, um espírito malfasejo chá-' mado Cloght-Dearg, quer dizer, Capa Encarnada, inimigo dos homens e dos seres inferiores da criação, atravessava o vale a qualquer hora, especialmente ao meio-dia e à meia-noite, para fazer todo o mal que pudesse inspirar o terror àqueles que não podia prejudicar de outra forma.

O pároco de Glenorquhy pregara abertamente contra a maior parte destas superstições, que considerava, e com razão, nascidas nos séculos tenebrosos do pa-" pismo, talvez mesmo no tempo do paganismo, não sendo merecedoras da atenção nem da crença de cristãos de um século esclarecido. Muitos dos seus paroquianos, os mais ligados à sua pessoa, acusavam-no de temeridade, ouvindo-o opor-se assim à antiga crença dos seus avós e, conquanto reconhecessem a intrepidez moral do seu pastor, não podiam deixar de alimentar e de lhe testemunhar o receio de que um dia fosse vítima da sua imprudência e aparecesse morto no vale de Cloght-Deag ou em qualquer outro sítio deserto e freqüentado pelos espíritos, locais que ele atravessava com orgulho e prazer nos dias e horas apontados como sendo aqueles em que esses mesmos espíritos tinham mais poder sobre os homens e animais.

Estas lendas acudiram ao pensamento do eclesiástico e, na solidão que o rodeava, não pôde deixar de sorrir com melancolia ao pensar na inconsequência da natureza humana e no número de homens valentes Que correriam de cabeça baixa, de baioneta calada, desafiando as que dirigiam contra eles, como os touros bravos se precipitam contra os seus inimigos e que receariam afrontar os terrores imaginários, através dos Quais um homem pacato como ele, que nos perigos ordinários não se tornava notado pela sua força de nervos, se aventurava sem hesitar.

Como corresse a vista por aquela cena de desolação, não pôde deixar de concordar, de si para si ser o ponto bem escolhido pelos espíritos que, segundo dizem, gostam de solidão e de tristeza.

O vale era tão estreito, ladeado por montanhas tão altas, que o sol do meio-dia mal conseguia penetrar até ao pequeno e escuro ribeiro que corria naquele local, umas vezes quase em silêncio, outras murmurando tristemente contra os enormes pedregulhos que pareciam erguer-se para lhe barrar a passagem. No Inverno e na estação das chuvas, o ribeiro transformava-se numa torrente caudalosa; fora numa dessas épocas que as suas tremendas vagas haviam arrancado e deslocado os enormes fragmentos de rocha que, no Verão, quase o ocultavam e pareciam dispostas a interromper-lhe o curso. "Sem dúvida - pensou o sacerdote - este ribeiro que desce da montanha, aumentado com uma queda de água ou com as chuvas do temporal, causou muitas vezes desastres atribuídos a Cloght-Deag, por terem acontecido no vale que tem este nome".

No momento preciso em que este pensamento lhe ocorreu, uma voz de mulher, estridente e aguda, gritou:

- Miguel Tyrie! Miguel Tyrie!

Olhou em volta com espanto e até com receio. No entanto, logo se recompôs e perguntou com voz firme:

- Quem me chama? Onde está?

- Aquela que viaja na miséria, entre a vida e a morte - respondeu a voz.

Logo em seguida, uma mulher alta saiu do meio dos rochedos que a ocultavam a seus olhos.

À medida que se aproximava, a capa de tartan no qual predominava o tom vermelho, a altura, o passo apressado, a pele enrugada e o olhar feroz que brilhava por baixo da touca, davam-lhe o aspecto do espírito malfasejo que diziam povoar aquele vale. Mas mr. Tyrie reconheceu-a imediatamente. Era a mulher da Árvore, como lhe chamavam, a mãe do infeliz Hamish-Bean, a viúva da Mac-Tavish-Mhor.

Não sei se o sacerdote teria preferido a visita do Cloght-Deag à presença de Elspat, considerando o seu crime e miséria. Instintivamente, puxou a rédea do cavalo e parou para concentrar idéias, enquanto que, em poucas passadas, ela chegava junto dele.

- Miguel Tyrie - disse Elspat - as loucas de Clachan olham-te como um Deus. Sé um para mim e diz-me se meu filho está vivo. Diz-me e eu seguirei o teu culto. No sétimo dia dobrarei o joelho diante da casa de pedra, e o teu Deus será o meu Deus.

- Infeliz mulher! - respondeu o padre - O homem não estabelece contratos com o seu Criador, como os faz com uma criatura de lama como ele. Pensas negociar com Aquele que formou a Terra e os Céus e podes oferecer-Lhe uma prova da tua homenagem e devoção que mereça ser aceite a Seus olhos? Ele deseja obediência e não sacrifício; paciência para suportar as provações que nos afligem e não vãs ofertas tais como o homem oferece aos seus irmãos inconstantes e feitos de lama como ele, a fim de os corromper e desviar dos seus desígnios.

- Cala-te, padre - respondeu a desolada mulher, - , não pregues as palavras do teu livro branco. Os pais de Elspat eram daqueles que faziam o sinal da cruz e ajoelhavam ao som do sino sagrado. Sabiam o que se fez no campo de batalha. Elspat possuía outrora rebanhos de toda a espécie de cabras nos rochedos e gado nos vales. Usava ouro em volta do pescoço e nos cabelos, cordões tão grossos como os dos heróis de outros tempos. Daria tudo isso ao padre e, se ele desejasse também possuir as jóias de uma dama de qualidade ou o sporran de um chefe, fosse ele tão poderoso como o próprio Mac-Allan-Mhor, Mac-Tavish-Mhor, conquistá-los-ia, se Elspat lhos prometesse. Agora, porém, Elspat é pobre, nada tem para dar; mas o abade Negro de Inchaffray podia ordenar-me que fustigasse com o chicote os meus próprios ombros, que rasgasse os pés numa peregrinação e dizer que me perdoava, vendo o meu sangue derramado e a minha carne ferida. Eram esses os padres poderosos entre os mais poderosos. As palavras saídas da sua boca ameaçavam os grandes da terra e faziam-lhes ouvir as sentenças do seu livro ao clarão de uma tocha e ao som do sino sagrado. Os poderosos dobravam-se perante a sua vontade, soltavam, quando ouviam1 a voz do padre, aqueles que estavam presos e punham em liberdade os condenados à morte, de cujo sangue estavam sequiosos, sem lhes fazerem mal. Eram homens verdadeiramente poderosos e tinham o direito de pedir aos pobres para ajoelharem na sua frente, visto poderem assim humilhar os soberbos. Mas tu! Contra quem és forte, senão contra as mulheres, culpadas de loucura, e contra homens que nunca usaram espada! Os padres doutro tempo eram como torrentes que, durante o Inverno, enchem o vale profundo e empurram os rochedos uns contra os outros tão facilmente como as crianças brincam com a bola que atiram para o ar. Tu! Tu és como o ribeiro enfraquecido pelos calores do Verão, que mal detêm os juncos ou um tufo de espadanas. Desgraça sobre ti, visto não poderes con- solar-nos.

O sacerdote não lhe custou compreender que Elspat renunciara à fé católica romana sem adoptar outra e que conservava ainda uma idéia vaga e confusa como um padre, com o auxílio da confissão, esmolas e penitência assim como com o seu poder imenso, poderia, segundo a sua opinião, salvar a vida do filho. Cheio de compaixão e de indulgência pelos seus erros e ignorância, respondeu com doçura:

- Desgraçada mulher! Prouvera a Deus que eu pudesse indicar-lhe onde devia procurar e encontrar consolações, dar-lhas com uma só palavra, se Roma e todos os seus sacerdotes estivessem ainda na plenitude do seu poder. Mas nem as liberalidades, nem a penitência poderiam oferecer-me a possibilidade de dar à sua miséria a mais pequena assistência ou a mais fraca consolação! Elspat Mac-Tavish tenho tristes notícias a comunicar-lhe.

- Conheço-as sem que mas digas - respondeu a infeliz mulher - Meu filho foi condenado à morte.

- Sim, Elspat, foi condenado e a sentença já foi executada.

A infeliz mãe ergueu os olhos ao céu, soltou um grito tão diferente da voz humana como o da águia que paira nos ares ao responder ao grito da companheira.

- É impossível! - exclamou - É impossível! Os homens não adem condenar e matar no mesmo dia! Estás a enganar-me. O povo chama-te santo! Tens a coragem de dizer a uma mãe que matou o seu filho único?

- Só Deus sabe como desejaria dar-lhe melhores notícias - replicou o sacerdote, com os olhos cheios de lágrimas - Mas as que lhe dou são tão certas como fatais. Os meus ouvidos ouviram, o tiro mortal, os meus olhos viram a morta e o enterro do seu filho, a minha boca testemunha o que os maus olhos viram e o que ouvi.

A desgraçada apertou as mãos uma contra a outra ergueu os olhos ao céu, como uma profetisa que anuncia a guerra e a desolação, enquanto que, com raiva impotente e ao mesmo tempo terrível, proferia uma torrente de imprecações e as pragas as mais terríveis:

- Saxão vil e bruto! - exclamou - Cobarde, hipócrita e impostor! Possam os olhos que viram com calma a morte do meu Hamish de loiros cabelos desfazerem-se nas órbitas à força de chorares os teus mais próximos parentes e os teus mais queridos amigos! Possam os ouvidos que ouviram o seu dobre a finados ficarem de futuro cerrados para qualquer som, excepto para o silvo da serpente e o croachar dos corvos! Possa a língua que me fala de morte e do meu crime secar na tua boca! Ou antes, quando rezares pelo teu povo, possa o espírito maligno inspirar-te e obrigar-te a proferir blasfêmias em vez de bênçãos, até que os homens fujam aterrorizados para longe de ti e que o logo do céu, lançado contra a tua cabeça, possa calar para sempre a tua voz maldita e amaldiçoada! Vai-te embora e leva contigo a minha maldição! Nunca mais Elspat dirigirá tantas palavras a uma criatura humana.

Manteve a sua promessa. Desde esse dia o mundo foi para ela como um deserto onde estava sem tomar interesse pelo que se passava em sua volta, sem se preocupar, sem mesmo pensar, absorvida na sua própria aflição, indiferente a tudo.

Quanto à sua maneira de viver, ou antes, de existir, o leitor já a conhece tanto quanto foi possível dar-Lha a conhecer. Da sua morte nada se sabe. Supõe-se que morreu muitos anos depois de ter atraído a atenção da minha amiga, mrs. Bethune Baliol. A sua benevolência que nunca se contentava em verter uma lágrima estéril quando realmente podia exercer a caridade, levou-a a tentar muitas vezes suavizar a situação da miserável mulher. Mas tudo quanto pôde conseguir foi tornar menos precários os meios de subsistência de Elspat, circunstância que para ela era completamente indiferente, sem interesse, embora não o seja para os seres mais miseráveis. Tentou diversas vezes levar alguém para a choupana de Elspat a fim de tratar dela, mas nunca o conseguiu, seja pelo extremo ressentimento por ela manifestado contra todos que iam perturbar a sua solidão, seja por causa da timidez das pessoas escolhidas para morar, com a terrível mulher da Árvore. No fim, quando Elspat ficou completamente inutilizada, pelo menos aparentemente, e não podia voltar-se no duro catre que lhe servia de leito, a caridade do sucessor do reverendo mr. Tyrie mandou duas mulheres para tomar conta dela nos últimos momentos, que supunham não estar muito longe, e para evitar o perigo de a deixar morrer por falta de assistência e de alimento, antes de sucumbir de velhice ou por efeito de doença mortal.

Numa noite do mês de Novembro, as duas mulheres encarregadas de tratar de Elspat chegaram à miserável choupana que já descrevemos. A infeliz, estendida no catre era já como um corpo sem vida, se não fossem os olhos negros e vivos rolarem nas órbitas por forma aterradora e observarem com surpresa e indignação todos os movimentos das duas desconhecidas, como se a sua presença fosse para ela ao mesmo tempo inesperada e desagradável. As pobres ficaram assustadas com este olhar. Tranqüilizadas, porém, com a companhia uma da outra, acenderam um candeeiro, prepararam o alimento e procederam a outros arranjos, para cumprirem a obrigação que lhes incumbia.

Combinaram velar cada uma por sua vez junto do leito da doente; mas, pela meia-noite, vencidas pela fadiga - pois haviam andado muito durante o dia - . caíram as duas num sono profundo. Quando acordaram algumas horas depois, verificaram estar a choupana vazia e ter a doente desaparecido.

Ergueram-se aterradas e correram para a porta que encontraram fechada no ferrolho, como ficava todas as noites. Saíram, procuraram por todos os lados e chamaram pelo nome aquela que havia sido confiada aos seus cuidados.

O corvo soltou agudos gritos no alto do carvalho, a raposa ululou na colina, os ecos surdos da queda de água responderam, mas não ouviram qualquer voz humana. Cheias de medo, não se atreveram a procurar mais antes do nascer do dia, porque a desaparição brusca de uma mulher no estado da fraqueza em que se encontrava Elspat e o carácter estranho da sua história, tudo as intimidou, não as deixando sair da choupana. Ficaram, portanto, presas de um terror imenso, supondo, por vezes, ouvir a voz da Elspat lá fora, outras que sons de uma natureza diferente se confundiam com os tristes suspiros da brisa da noite e com o ruído da cascata. Por vezes, também, o ferrolho mexia, como se uma mão fraca e impotente tentasse levantá-lo e, a todo o momento, esperavam ver entrar a doente, animada por uma força sobrenatural, talvez acompanhada por outro ser ainda mais aterrador do que ela.

O dia raiou, enfim, mas em vão procuraram por todas as moitas, atrás dos rochedos e nas sarças. Duas horas depois, o pároco chegou e, depois de ouvir as duas mulheres, ordenou que dessem alarme na terra e fizessem uma busca minuciosa e geral pelos arredores da choupana e do carvalho. Tudo foi inútil, ninguém encontrou Elspat Mac-Tavish, morta ou viva. Nem mesmo foi possível descobrir a mais pequena circunstância que indicasse qual a sua sorte.

As pessoas da região diferem de opinião sobre a causa da sua desaparição. Os mais crédulos pensam que o espírito maligno, sob a influência do qual parecia proceder, a levara, corpo e alma; e ainda hoje há muitas pessoas que se recusam a passar, a certas horas perto do carvalho, sob o qual, segundo afirmam, a vêem sentada como de costume. Outros, menos supersticiosos, supõem que, se fosse possível visitar os precipícios do Corri-Dhu, os abismos do lago ou sondar o rio, descobrir-se-iam os restos de Elspat-Mac-Tavish, atendendo que não havia nada de mais natural, dado o estado do seu espirito e do seu corpo, ter ela caído por desastre ou por se atirar, de propósito, num daqueles pontos de destruição certa.

O sacerdote alimentava opinião diferente. Pensava que, não podendo suportar a presença das mulheres que mandara para junto dela, a infeliz, guiada pelo instinto que dirige todos os animais domésticos ou não, se afastasse para longe da sua própria choupana e procurasse qualquer caverna onde a sua agonia não fosse presenciada por ninguém e os seus restos não pudessem ser encontrados por qualquer mortal. Acreditava que este instinto estava de acordo com a vida da infeliz mulher e que influísse sobre ela quando pressentiu aproximar-se o seu fim.

 

                     CAVALARIA RUSTICANA

Estamos no dia seguinte à feira de Doune.

O mercado estivera animado. Muitos negociantes ali se encontravam, vindos do norte e do centro da Inglaterra e o dinheiro inglês circulara com a abundância suficiente para alegrar os corações dos highlanders. Muitas manadas dispunham-se a partir para Inglaterra, conduzidas pelos seus donos ou pelos homens a quem confiavam a responsabilidade, a tarefa aborrecida e fatigante de percorrer com os animais centenas de milhas, desde o mercado onde haviam sido comprados aos campos e herdades onde seriam engordados para matar.

 

Os highlanders têm habilidade especial para este mister de boieiros, do qual gostam quase tanto como da guerra. Oferece-lhes ocasião de exercer todas as suas qualidades de paciência e de actividade. Impõe-se conhecer perfeitamente as estradas por onde deve passar o gado, estradas que atravessam muitas vezes a parte mais agreste da região, que evitem o mais possível as estradas principais que fatigam as patas dos bois, e as barreiras, cuja portagem atormenta o espírito daqueles que os conduzem. Na relva, pelo contrário, ou pelos atalhos cobertos de erva seca, os únicos que se encontram nos prados, as manadas não só andam à vontade ao abrigo de impostos, como, se procurarem bem, encontram pelo caminho alguma contribuição para o seu sustento.

De noite, os boeiros dormem habitualmente com as manadas, seja qual for o tempo, e a maior parte destes homens, habituados às fadigas, não descansam uma só vez debaixo de tecto durante a viagem a pé de Lochaber ao condado de Lincoln. Recebem um rico salário, porque a sua tarefa é de grande importância, pois depende da sua prudência, vigilância e honestidade, que a manada chegue em bom estado ao seu destino e dê lucro a quem a comprou. Como se alimentam à sua custa, neste ponto são de uma economia extrema.

Na época a que nos referimos, a provisão de um boieiro dos Highlanders, para a fatigante e longa viagem, consistia em alguns bolos de aveia, duas ou três cebolas, renovadas de tempos a tempos, um chifre de carneiro cheio de whisky, que bebiam com moderação todas as manhãs e todas as noites. O punhal ou syene-dhu - isto é, a faca negra - usada de maneira a ficar oculta debaixo do braço ou pelas pregas do capote era a sua única arma, com cajado de que se serviam para dirigir o gado.

Os montanheses nunca se sentem tão felizes como nestas ocasiões. Encontram em toda a viagem uma variedade de aspectos que lhes desperta a curiosidade e o gosto pelo movimento, natural do Celta; uma mudança constante de lugares e de cenários; pequenas aventuras próprias do ofício e contactos freqüentes com os criadores de gado e negociantes reunidos em grupos alegres, que lhes agradam tanto mais que não lhes custam nada. Por fim, encontram também a satisfação proporcionada pelo sentimento de uma aptidão especial, porque o montanhês que não passa de ser uma criança com os carneiros, torna-se um príncipe com os bois e os seus hábitos levam-no, naturalmente, a desprezar a vida indolente de um pastor. Portanto nunca se sente tão feliz como quando caminha atrás de uma bela manada da sua região confiada aos seus cuidados.

Entre todos aqueles que nesse dia sairam de Doune com a tarefa que acabamos de descrever, nenhum deles usava o gorro com tanta galhardia nem prendia por baixo do joelho as meias de tartan do que Robin Oig Mac-Combish, mais familiarmente chamado Robin Oig, o que significava Robin o novo ou o pequeno.

 

Conquanto de pequena estatura, conforme indica o epíteto de Oig, Robin era esperto e ágil como um gamo das montanhas. Os seus passos tinham tanta elasticidade que, no decurso da viagem, excitava a inveja de mais de um companheiro. A forma como punha o gorro e ajeitava o plaid, indicava a íntima convicção de que um montanhês como ele não deixaria de ser notado pelas raparigas das terras por onde passava. As faces coradas, os lábios vermelhos e os dentes brancos animavam um semblante ao qual a vida ao ar livre, exposto a todas as variações do tempo, dava um ar de saúde e de vigor, mais do que rudeza. Se Robin, conforme o hábito dos seus compatriotas, não ria ou nem mesmo sorria muitas vezes, os olhos vivos brilhavam, sob o gorro com uma expressão de bom humor, pronta a transformar-se em alegria.

A partida de Robin Oig constituía sempre um acontecimento na pequena cidade onde possuía, assim como nos arredores, muitos amigos dos dois sexos. Era uma pessoa de destaque, na sua classe; fazia negócios importantes por sua conta e gozava da confiança de todos os criadores da montanha, que o escolhiam, de preferência a todos os outros boieiros da província.

Poderia ter aumentado o seu negócio quase indefinidamente se quisesse tomar sócios; mas, exceptuando um ou dois rapazes, seus sobrinhos, Robin repelia a idéia de ter representantes, adivinhando talvez que o seu prestígio dependia da perseverança em cumprir em pessoa os deveres da sua profissão em todas as ocasiões. Contentava-se, portanto, em receber o maior pagamento concedido às pessoas do seu mister, consolando-se com a esperança de que algumas viagens a Inglaterra dar-lhe-iam meios de fazer negócios por sua conta numa escala conveniente e mais de harmonia com o seu nascimento.

O pai de Robin Oig, Lachlan Mac-Combish, quer dizer filho de meu amigo, porque o verdadeiro nome do clã era o de Mac-Gregor, fora assim chamado por RoÍJ-Roy, por causa da amizade especial existente entre o avô de Robin e o célebre oateron. Algumas pessoas chegavam a dizer que Robin Oig herdara o nome de baptismo de um homem assim chamado e tão célebre nos arredores do Loch Lemon como o próprio Robin Hood era nos limites da floresta de Sherwood. Quem não se orgulharia destes antepassados? - como dizia James Boswell. Portanto, Robin Oig sentia-se orgulhoso. Mas as suas freqüentes viagens a Inglaterra e às'terras baixas conferiam-lhe o senso suficiente para saber que as pretensões que lhe davam direito a certas distinções no vale isolado, seriam perigosas e ridículas se as demonstrasse em qualquer outro lugar. O orgulho pelo seu nascimento, portanto, era como o tesouro do avarento, objecto oculto da sua contemplação, e nunca apresentado a estranhos como base para vaidade.

Robin Oig foi felicitado e todos fizeram votos para que a viagem fosse boa. Os conhecedores elogiavam a manada e principalmente os bois mais perfeitos que pertenciam ao próprio Robin. Uns ofereciam-Lhe a tabaqueira aberta para ele tirar a última pitada, outros apresentavam-lhe o doch-an-dorroch ou seja, o copo da despedida. Todos gritavam: "Boa viagem e bom regresso. Boa sorte no mercado saxão e muitas notas no leabhar-dhu - carteira preta - e muito ouro inglês no sporran - bolsa de pele de cabra. "

As raparigas bonitas despediam-se com maior discrição; e mais de uma, dizia-se, daria as suas mais belas jóias para ter a certeza de ser ela a última pessoa sobre quem o olhar de Robin se deteria quando se pusesse a caminho.

 

Robin acabava de dar o primeiro sinal Hoo!... hoo!... para apressar os que reuniam a manada, quando ouviu um grito atrás de si:

- Pára, Robin, espera um momento. Vem aí Janet Tomahourick, a velha Janet, irmã de teu pai.

- Maldita feiticeira dos Highlands - resmungou um dos homens de Stirling - Vai deitar mau olhado aos bois.

- Como poderá fazê-lo? - retorquiu outro, da mesma profissão - Robin Oig não é homem para deixar passar um animal sem lhe fazer na cauda o nó de S. Mungo e todos sabem que isso afugenta mesmo a melhor feiticeira que atravessa o Dimayet montada no cabo de uma vassoura.

Não será talvez inútil para o leitor saber que todas as manadas da Escócia estão particularmente sujeitas a serem enfeitiçadas de diversas maneiras, feitiços contra os quais as pessoas prudentes se defendem, fazendo um nó especial no tufo dos pêlos que terminam a cauda do animal. No entanto, a idosa criatura, objecto das suspeitas do lavrador, não se preocupou com a manada, mas sim com o boieiro. Robin Oig mostrou-se contrariado com a sua presença.

- Que idéia estranha a trouxe tão cedo aqui, tia? Não me despedi de si e não me desejou boa viagem ontem à noite?

- E deixaste-me mais dinheiro do que uma velha como eu, que não serve para nada, precisa até ao teu regresso, meu querido filho - respondeu a sibila - Mas importar-me-ia pouco com o alimento, com o fogo que me aquece ou mesmo com o bendito sol de Deus, se acontecesse alguma desgraça ao neto de meu - pai.

Deixa-me, portanto, fazer em volta de ti a roda do deasil, a fim de que possas partir sem perigo para a terra estranha e voltar são e salvo.

Robin Oig parou, meio sério, meio risonho, dando a entender àqueles que o rodeavam que se prestava à fantasia da tia para não lhe desagradar. No entanto, ela executou em volta dele a cerimônia propiciatória, que muitos supõem descender da mitologia dos druídas. Consiste no seguinte: a pessoa que faz o deasil anda três vezes em volta de quem é objecto da cerimônia, tendo o cuidado de regular os passos pelo sol.

De repente, Janet parou e gritou num tom de horror e de susto:

- Neto de meu pai, vejo sangue nas tuas mãos.

- Silêncio, tia, suplico-lhe - pediu Robin Oig com o seu taishataragh - segunda vista - está a meter-se numa complicação da qual só daqui a muito tempo conseguirá livrar-se.

A velha, porém, contentou-se em repetir:

- Vejo sangue nas tuas mãos e é sangue inglês. O sangue gaélico é mais escuro e mais vermelho. Vejamos vejamos.

E antes que Robin pudesse impedi-la, o que não teria podido fazer senão à força, com gestos rápidos e decididos, tirou-lhe o punhal oculto nas pregas do plaid e, "erguendo-o ao ar gritou, conquanto a lâmina brilhasse ao sol límpida, sem mancha:

- Sangue! Sangue de saxão! Robin Oig Mac-Combish não partas hoje para Inglaterra.

- Bem sabe que isso é impossível; o mesmo seria se quisesse percorrer o país como vagabundo. Dê-me o punhal, tia. Não consegue distinguir o sangue de um boi negro de um boi branco e pretende conhecer a diferença entre o sangue saxão e o sangue escocês. Todos os homens herdaram o sangue de Adão, Dê-me a arma e deixe-me pôr a caminho. Já podia estar perto da ponte de Stirling. Dê-me o punhal, já lhe disse e deixe-me partir.

- Não to darei nem largarei o teu plaid sem me prometeres que não farás uso desta arma fatal.

As mulheres presentes a esta cena juntaram as suas súplicas às dela, dizendo ser raro que as palavras da tia não se confirmassem. E como os homens de Lowlands continuassem a presencear o que se passava, com mau humor, Robin Oig decidiu terminar a cena fosse como fosse.

- Pois bem - disse, entregando a bainha do punhal a Hugo Morrison - vocês, os das terras baixas, não costumam fazer caso das predições. Guarda o meu punhal. Não to dou porque pertenceu a meu pai. Mas como a tua manada vem atrás da minha, consulto que o punhal fique nas tuas mãos e não nas minhas. Isto chega, tia?

- Que remédio! - respondeu a velha - Isto é, se o teu amigo das baixas terras for suficientemente louco para se encarregar do punhal.

O robusto habitante do Oeste começou a rir às gargalhadas.

- Boa mulher - declarou - Chamo-me Hugo Morrison de Glenae, descendo dos Manly Morrison doutros tempos que nunca, em toda a sua vida, usaram arma tão curta contra os seus inimigos. Não precisavam disso. Tinham as suas espadas e eu tenho este pauzinho - afirmou, mostrando enorme cajado - para me defender quando passar a fronteira. Deixo o punhal para John dos Highlands. Não abanem a cabeça, senhores das montanhas, principalmente tu, Robin. Guardarei o punhal se tens medo dos contos desta velha feiticeira e restituir-to-ei quando precisares dele.

Robin não gostou muito da parte do discurso de Hugo Morrison. Mas nas suas viagens adquirira mais paciência do que aquela que talvez comportasse o seu carácter de montanhês. Por conseguinte, aceitou a oferta de Morrison sem se ofender com os termos em que era feita.

- Se o presente desta manhã não lhe tivesse já subido à cabeça e se ela não fosse, ainda por cima, um carneiro do condado de Dunfries, teria sido mais delicado. Mas uma porca não pode fazer mais do que grunhir. É uma vergonha ver o punhal de meu pai cortar pão para um homem como ele.

Enquanto assim falava, usando o dialecto das montanhas, Robin fez um sinal de despedida a todos os que o rodeavam e pôs-se a caminho com a manada. Tinha ainda mais pressa do que o costume, porque contava encontrar em Falkirk, um amigo, boieiro, como ele, em cuja companhia tencionava viajar.

Esse amigo era um jovem inglês, chamado Harry Wabefield, bem conhecido nas feiras do Norte e, entre os seus, tão conhecido e estimado como o nosso boieiro montanhês. Tinha quase seis pés de altura e, conquanto fizesse o possível por manter o seu lugar, quer um desafio de soco em Smithfield, ou num combate de luta, embora tivesse encontrado, por vezes quem o vencesse, talvez entre os profissionais da arte do pugilato, era capaz, em qualquer encontro, de chamar à razão um amador. Nas corridas de Doncaster viam-no apostando o seu guinéu e geralmente com sucesso. Não havia combate no condado de York, onde os criadores de gado são considerados pessoas de categoria, ao qual não assistisse se os seus afazeres lho permitiam. Embora um tanto amigo da pândega, gostando de freqüentar os sítios onde podia divertir-se, Harry Wafcefield era um homem forte, e o prudente Robin Oig Mac-Combish não podia considerar-se mais atento e mais sério nos negócios do que ele.

Os dias de festa eram dias de festa, mas os dias de trabalho eram empregados com ardor e constante assiduidade. Pelos seus modos e caracter, Wakefield era o modelo dos alegres filhos da Inglaterra, cujos arcos e compridas flechas asseguravam nas batalhas a sua superioridade sobre as outras nações e cujos sabres, no nosso tempo, são a melhor e mais segura defesa. A sua alegria, facilmente se excitava; de constituição robusta, gozando de honesto bem-estar, achava bem tudo quanto via e considerava as dificuldades que, de tempos a tempos, encontrava no seu caminho, mais como divertimento do que verdadeiros motivos de desgosto. com todas as qualidades de um carácter ardente, o nosso boieiro inglês também tinha os seus defeitos. Era irascível, por vezes ao ponto de procurar questões e tanto mais disposto a entregar à força dos punhos a resolução dessas questões, quanto era certo encontrar poucos adversários capazes de lhe resistir.

Seria difícil dizer como começara a amizade entre Harry Wakefield e Robin Oig; fosse como fosse, criara-se entre os dois estreito laço, embora, em aparência tivessem poucos assuntos comuns de conversa ou interesse para comentarem, quando deixavam de falar nos bois; Robin falava inglês muito mal e, Harry Wakefield com o sotaque acentuado do condado de York, nunca conseguira pronunciar uma palavra da língua gaélica. Foi em vão que Robin empregou todos os seus esforços, uma manhã inteira, durante a travessia do Minch-Moor, para conseguir que o companheiro pronunciasse correctamente a palavra Llhu, que em gaélico quer dizer vitelo. De Traquair a Mudercairn, pela montanha ecoaram, os sons discordantes com que o saxão tentava pronunciar o monossílabo rebelde e as gargalhadas que se seguiam a todas as tentativas infrutuosas. No entanto, muitas vezes despertavam, alegremente esses ecos, porque Harry Wakefield cantava muitos versos em honra de Molly. Susana ou Cicely, e Robin Oig tinha especial talento para tocar a sua inseparável gaita de foles com todas as suas variações; e o que era ainda mais agradável aos ouvidos meridionais do companheiro, sabia muitas canções do Norte, alegres ou tristes, que Wakefield acompanhava, assobiando baixinho. Portanto, embora Robin mal compreendesse as histórias contadas pelo companheiro sobre as corridas dos cavalos, combates de galos ou caçadas às raposas e as suas próprias narrativas de combates dos creagh entre clãs, incursões a Inglaterra, várias digressões sobre os duendes e todos os seres fantásticos dos Highlands fossem incompreensíveis para um inglês, sentiam prazer com a companhia um do outro, o que os levara, havia já três anos, a viajar juntos, quando a direcção dessa viagem o permitia. De facto, cada um deles tirava vantagem de reunião; o Inglês poderia encontrar melhor guia do que Robin para atravessar as montanhas do Oeste? E quando chegavam ao que Harry chamava o lado bom da fronteira, a sua protecção, que não era para desprezar e a sua bolsa, sempre recheada, estavam constantemente ao serviço do amigo highlander e muitas vezes a sua liberalidade lhe prestou favores dignos de um verdadeiro filho da alegre Inglaterra.

Os nossos dois amigos atravessaram, com a disposição habitual, as verdes planícies de Liddesdale e passaram o lado oposto de Cumberland, enfaticamente chamado o Deserto. Nestas regiões solitárias, os animais confiados à guarda dos dois boieiros, arranjavam a própria subsistência por pouco dinheiro, comendo o pasto ao longo do caminho e outras vezes, cedendo à tentação de saltar para o prado vizinho quando se oferecia ocasião. Depois, a cena mudou para eles. Desciam para uma região onde havia muitos cerrados onde não podiam tomar essas liberdades com impunidade. Impunha-se uma combinação com os proprietários do terreno. O facto tornava-se tanto mais necessário, pois estava-se nas vésperas de uma grande feira no Norte onde os nossos dois boieiros contavam vender grande parte do gado, e desejavam apresentá-lo bem tratado e gordo. Não conseguiam, portanto, obter pastos senão por preços elevados e com dificuldade. Esta necessidade ocasionou a separação temporária dos dois amigos. Cada um deles teria de arranjar-se como pudesse e prover às necessidades do seu gado. Infelizmente, aconteceu que, às escondidas um do outro, ambos pensaram encontrar aquilo de que precisavam nas propriedades de um lavrador rico, cujos campos ficavam perto. O boieiro inglês dirigiu-se ao bailio do domínio, a quem conhecia muito bem. Mas o dono, que alimentava algumas suspeitas sobre a honestidade do seu bailio, tomou as suas medidas para descobrir se eram ou não fundadas e ordenara que todos os pedidos feitos sobre as suas terras muradas, no sentido de serem temporariamente ocupadas, lhe fossem enviados. Contudo, como mr. Ireby tivesse ido na véspera fazer uma viagem para o Norte, o bailio tomou a responsabilidade de considerar as restricções aos seus poderes como não válidas durante o tempo da viagem do dono das terras e concluiu que o melhor para os interesses do patrão e também para os seus, seria o contrato com Wakefield. Entretanto, ignorando o que fazia o amigo, Robin Oig, por acaso, encontrou na estrada um homenzinho bem parecido, montando um pônei, cuja cauda e orelhas estavam artisticamente cortadas, conforme a moda daquela época, usando um calção de pele bem colado à perna e esporas brilhantes. Este cavaleiro começou por lhe fazer perguntas sobre os mercados e preço do gado. O Escocês, considerando-o como homem educado e sensato, tomou a liberdade de lhe pedir que lhe indicasse qualquer pastagem para alugar nas proximidades, onde abrigasse temporariamente o gado. Não podia dirigir-se a alguém mais capaz de lhe responder. O cavaleiro era justamente o proprietário dos terrenos, cujo bailio se entendera com Harry Wakefield ou estava prestes a entender-se.

 

- Tiveste sorte em me encontrar, meu bravo highlander - respondeu mr. Iraby - Parece-me que os teus bois tiveram também muita sorte. Tenho à minha disposição para alugar, o único campo existente numa circunferência de três milhas.

- A minha manada pode ainda fazer duas, três ou quatro milhas - respondeu o prudente Escocês Quanto deseja Vossa Senhoria por cada cabeça de gado, se eu alugar o campo por dois ou três dias?

- Combinaremos isso, Sawniey, me quiseres vender-me por preço razoável seis dos teus bois para eu os engordar durante o Inverno.

- Quais são os que Vossa Senhoria pretende?

- Vejamos: os dois pretos, o castanho-escuro, o que não tem chifres, o de pelagem fulva e o que tem os chifres torcidos. Quanto queres por cabeça?

- Vossa Senhoria é conhecedor, um verdadeiro conhecedor. Eu não teria escolhido os seis melhores, eu que os conheço como se fossem meus filhos, pobres animais.

- E então, quanto queres por cabeça, volto a perguntar?

- Os preços subiram muito na feira de Doune e na de Falkirk - respondeu Robin.

A conversa continuou nestes termos até chegarem a acordo sobre o preço dos bois, concedendo o comprador como acréscimo o uso temporário do campo para toda a manada o que, na opinião de Robin, era excelente negócio, contanto que os pastos fossem bons. O proprietário meteu o cavalo a passo e acompanhou o boieiro para lhe mostrar o caminho e dar-lhe posse da pastagem e também para o pôr ao facto das últimas novidades dos mercados do Norte.

Quando chegaram ao campo, cuja erva parecia excelente, qual foi a sua surpresa quando viram o bailio dar entrada à manada de Harry Wafcefield na pastagem que o próprio dono cedera a Robin Oig Mac-Combish.

Ireby ficou furioso, avançou para o bailio e, sa bendo o que acontecera, informou secamente o boieiro inglês que o bailio alugara o campo sem autorização e ordenou-lhe que fosse procurar pastagem para a sua manada onde quisesse, visto não poder ficar ali. Ao mesmo tempo, repreendeu severamente o bailio por ter transgredido as suas ordens e intimou-o a pôr fora imediatamente os animais de Harry Wakefield que, esfomeados, se atiravam à erva abundante, e a dar entrada aos do seu amigo, que o boieiro inglês começava a considerar seu rival.

Wakefield ainda pensou resistir à decisão de mr. Ireby. Todo o inglês, porém, forma conceito muito alto da lei e da justiça e John Fleecebumpklin, o bailio, concordou que não havia mais a fazer; do que reunir a manada esfomeada e ir procurar pasto noutro lado. Robin Oig, contristado com o que acontecia, e apressou-se a oferecer ao Inglês, seu amigo, para partilhar o campo, objecto da disputa. O orgulho de Wakefield, porém, sentiu-se ferido e este respondeu com desdém:

- Fica com ele, Robin. fica com ele. É difícil cortar uma cereja em dois bocados. Sabes bem conquistar os donos e deitar-lhes poeira nos olhos. Por mim, Robin, não gostaria de lamber as botas a ninguém para obter a licença de cozer pão no seu forno.

 

Zangado, mas pouco surpreendido pom' o descontentamento do amigo, Robin Oig pediu-lhe que esperasse uma hora apenas, pois ia ter com o proprietário para receber o pagamento dos bois e voltaria imediatamente para o auxiliar a conduzir a manada para outro campo onde pudesse descansar à vontade e para lhe explicar o equívoco em que ambos haviam incorrido. O Inglês, porém, não abrandou a cólera:

- Vendeste os bois, não é verdade? - perguntou Sabes muito bem escolher a altura de fazer bom negócio. Vai para o diabo. Não quero voltar a ver-te Devias ter vergonha de olhar para mim.

- Não tenho vergonha de olhar para ninguém retorquiu Robin Oig, um pouco emocionado - e mesmo hoje voltarei a olhar-te de frente, se queres esperar por mim no Clachan.

- Seria melhor se te fosses embora - replicou o camarada. "

E, voltando-lhe as costas, afastou-se, auxiliado pelo bailio que demonstrava interesse e ainda afectuou mais, vendo Wakefield obrigado a ir procurar outro campo para pastagem.

Depois de ter perdido algum tempo a falar com os proprietários vizinhos, que não tinham campos ou não queriam alugá-los, Harry Wakefield, impelido pela necessidade, concluiu negócio com o dono da taberna onde ele e Robin haviam combinado passar a noite, quando ainda eram bons amigos. O dono da taberna consentiu que pusesse a manada num terreno estéril, por um preço quase tão elevado como aquele que pedira o bailio pelo campo disputado. A má qualidade do pasto, assim como o preço que foi obrigado a pagar, foram outros tantos motivos para tornar mais vivo o ressentimento do Inglês pelo seu antigo camarada dos Highlands.

Esta disposição de Wakefield foi acirrada pelo bailio, que tinha as suas razões para querer mal ao pobre Robin que, sem querer, o fizera cair no desagrado do amo. O dono da taberna e mais dois ou três boieiros, que por acaso ali se encontravam, também excitaram o ressentimento de Wakefield contra o antigo camarada, uns impelidos pelo antigo ódio contra os escoceses, que continua a existir, principalmente nos condados da fronteira; outros, pelo espírito do mal que caracteriza o género humano, seja qual for a sua classe social, seja dito em honra dos filhos de Adão. O deus dos bebedores, que exerce sempre a sua influência nas paixões exaltadas ou exasperadas, não deixou de influir nesta ocasião.

- Desgraça sobre os maus amigos e sobre os maus patrões! - foi o brinde que naquela altura fez despejar mais de um copo de cerveja.

Entretanto, mr. Ireby encontrava certo prazer em reter o boieiro escocês no castelo. Mandou-lhe servir um bocado de carneiro assado e um copo de cerveja e viu com prazer o apetite com que Robin devorava este festim inesperado. Por fim, acendeu o cachimbo e, para conciliar a sua dignidade com o desejo de uma conversa sobre a agricultura, começou a passear no aposento, enquanto falava com o seu convidado.

- Passei por outra manada - declarou - conduzida por um dos teus compatriotas. Era mais pequena do que a tua e quase todos os animais sem chifres. O condutor era um homem gordo, mas não um dos vossos homens de kilt. Usava calções. Sabes quem é?

 

- Sei. Deve ser Hugo Morrison. Não supunha que estivesse tão perto. Ganhou um1 dia de avanço sobre nós. Mas os seus animais do condado de Argyle devem estar muito cansados. A quantas milhas daqui o encontrou?

- Cerca de seis ou sete, suponho - . respondeu mr. Ireby - Passei-lhe à frente em Chrystenbury-Cragg e encontrei-te em Holland-Bush. Se os seus animais estão cansados, talvez faça negócio com ele.

- Não creio. Hugo Morrison não é homem para se fazer bons negócios com ele. Para isso, só encontrando um pobre highlander como Robin Oig. Mas já é tempo de lhe desejar uma boa noite ou antes, vinte em vez de uma. Quero ir ao Clachan ver se o mau humor de Harry já passou.

Na taberna, a conversa ia animada. A traição de Robin Oig continuava a ser o assunto dela, quando o pretendido culpado entrou na sala. A sua aparição; como sempre é costume nestes casos, pôs fim à discussão de que era objecto e foi acolhido com frio silêncio que, melhor do que todas as exclamações, demonstrou ao recém-chegado que não o consideravam bem-vindo.

Surpreendido e ofendido, mas não assustado com o acolhimento recebido, Robin entrou com ar firme e um tanto altivo, não cumprimentou ninguém quando viu que ninguém o cumprimentava e foi sentar-se junto do fogão, a pouca distância da mesa onde estavam Harry Wakefield, o bailio e mais dois ou três homens. A cozinha, vasta como todas as do Cumberland, tinha espaço para que a separação fosse mais completa.

Depois de sentado, Robin acendeu o cachimbo pediu um copo de cerveja de dois pences.

- Não temos dessa cerveja - respondeu o taberneiro Ralph Heskiett - Mas como consegues arranjar tabaco por tuas mãos, talvez possas arranjar bebida. É o hábito da tua terra, creio eu.

- Homem! - exclamou a mulher, semblante alegre, pessoa trabalhadora, que se apressou a servir a cerveja pedida - tens o que pediu o freguês e é tua obrigação ser bem educado, ouves? Deves saber, que se, os escoceses gostam de um copito, costumam sempre pagá-lo.

Sem fazer caso deste diálogo entre marido e mulher, o montanhês ergueu o copo e, dirigindo-se à assistência, fez o seguinte brinde:

- Aos bons negócios!

- Prouvera a Deus que o vento nos troxesse menos negociantes do Norte - respondeu um dos lavradores-e menos vacas velhas da montanha para devorarem os pastos de Inglaterra!

- Está enganado, meu amigo - respondeu Robin. com a maior calma - São os gordos ingleses que devoram os - animais escoceses, pobrezitos!

- Gostaria que alguém devorasse os seus condutores

- disse outro - Um bravo inglês não pode ganhar o seu pão se houver um escocês a uma milha de distância.

- E um bom intendente não pode conservar a confiança do amo se um escocês vem meter-se entre ambos.

- Estão a brincar - retorquiu Robin Oig com a mesma calma - mas isso é demasiado para um homem só.

- Não estamos a brincar, estamos a falar sério - respondeu o bailio - Escute, senhor Robin Oig ou seja qual for o seu nome, é bom saber que todos nós temos a mesma opinião. Pensamos que o senhor Robin Oig procedeu como um patife para com o nosso amigo Harry Wakefield.

- Muito bem - respondeu Robin com calma - e os senhores são excelentes juizes por cujos cérebros e modos eu não daria uma pitada de tabaco... Se Harry Wakefield se considera ofendido, conhece o meio de fazer justiça por suas mãos.

- Ele tem razão - concordou Wakefield, que escutara o que se passava, hesitante entre o ressentimento de Robin e a antiga amizade que os unia.

Levantou-se e dirigiu-se para a mesa de Robin, que também se levantou e lhe estendeu a mão.

- Vamos, Harry! Dá-lhe uma boa tareia - gritavam de todos os lados - Não o poupes! Mostra-lhe como nos batemos!

- Calem-se e vão para o diabo! - gritou Wakefield. E, voltando-se para o companheiro, pegou na mão

que ele lhe oferecia numa atitude calma e ao mesmo tempo da desafio.

- Robin-disse - pregaste-me hoje uma partida; mas, se queres, como homens, depois de termos apertado a mão, bater-nos-emos um pouco lá fora e eu perdoar-te-ei e ficaremos melhores amigos do que nunca.

- Não seria melhor ficarmos amigos desde já e não pensarmos mais no assunto? - retorquiu Robin A nossa amizade não aumentará pelo facto de termos dado e recebido alguns socos e quebrarmos os ossos um ao outro.

Harry Wakefield deixou cair, ou antes, repeliu a mão de Robin.

- Nunca supus ter um cobarde por companheiro durante três anos.

- Cobarde é uma classificação que nunca mereci nem nenhum dos meus - respondeu Robin, cujos olhos começavam a fuzilar, mas que procurava dominar-se ainda.

- Não tinha pernas nem mãos de cobarde, Harry Wakefield, quando te tirei do vau de Frew no momento em que ias com a corrente, arrastado para o rochedo negro, e que todas as enguias do rio contavam ter a sua parte dos teus restos.

- Tens razão! - exclamou o Inglês, recordando-se do acontecimento a que Robin aludia.

- com os demônios! - gritou o bailio - Harry Wakefield, o rapaz mais valente que apareceu em Whitson-Triste e na feira de Wooler, em Carlisle-Sand ou em Stagshow Bank, suporta tranqüilamente uma afronta? Eis o que acontece a quem vive muito tempo com essa gente de kilt e de gorro. Até esquecem como se usam os punhos.

- Mestre Fleecebumpkin, poderia mostrar-lhe que ainda não esqueci a usar os meus - respondeu Harry Wakefield, que depois se voltou para Robin - Não podemos ficar assim. Temos de usar as mãos ou seremos objecto de troças de toda esta gente. O demônio me leve se te fizer mal. Calçarei luvas, se quiseres. Vamos, ataca-me como um homem.

- Para ser batido como um cão? - respondeu Robin

- Seria justo? Se tens razão de queixa contra mim estou pronto a ir à presença do teu juiz, embora não conheça as suas leis nem a sua linguagem.

Todos gritaram:

- Nada de leis! Nada de juizes! Um par de socos e depois voltem a ser amigos!

- Não sei bater-me como um macaco, com as mãos e com as unhas - respondeu Robin.

- Então como queres bater-te? - perguntou o adversário - Conquanto eu pense que será difícil levar-te a isso, seja de que maneira for.

- Quero bater-me à espada como um gentil-homem e baixá-la quando correr o primeiro sangue.

Prolongada gargalhada acolheu esta declaração, que, com efeito, fora mais um desabafo do coração magoado do pobre Robin do que ditada pelo seu bonvsenso.

- Gentil-homem, na verdade! - repetiram de todos os lados com enormes gargalhadas - Belo fidalgo, não haja dúvida! Ralph Heskett, não podes arranjar duas espadas para este gentil-homem?

- Não, mas posso mandar alguém buscá-las ao arsenal de Carlisle. Entretanto, podem ir experimentando com dois garfos.

- Estes escoceses - comentou outro - vêm ao mundo com o gorro azul na cabeça e com o punhal e a pistola no cinto.

- Seria melhor mandar chamar ao posto mr. Corby Castle para servir de segunda testemunha.

No meio deste fogo de sarcasmos e ironias, o montanhês levou instintivamente a mão às pregas do plaid, tremendo de raiva.

"Não, não, será melhor não fazer nada - murmurou, falando consigo mesmo - Mil vezes malditos sejam estes comedores de porco, que não conhecem as conveniências nem a delicadeza! "

- Deixem-me passar! - gritou, avançando para a porta.

Mas o ex-amigo colocou-se-lhe no caminho para o deter e quando Robin quis passar à força, estendeu-o no chão tão facilmente como uma criança derruba um paulito.

- Formemos círculo em volta dos combatentes! - gritaram.

E as vigas enfurnadas, os presuntos que ostentavam e toda a loiça arrumada nas prateleiras estremeceram com estes gritos.

- Bravo, Harry! Trata-o como merece. Toma cautela com ele agora. Já viu a cor do seu sangue.

Enquanto soltavam estes gritos, o montanhês ergueu-se e, tendo perdido todo o sangue-frio, dominado por uma raiva frenética, precipitou-se para o adversário com a fúria, actividade e sede de vingança de um tigre irritado. Mas o que pode a raiva contra a ciência e o domínio próprio? Naquela luta desigual, Robin foi derrubado segunda vez; e como o soco foi vigoroso, ficou estendido no chão da cozinha, sem movimento. A hospedeira correu para lhe prestar socorro; mas mr. Fleecebumpkin não a deixou aproximar.

- Deixe-o. Levantar-se-á a tempo de recomeçar o combate. Ainda não levou a metade do que merece.

- Levou mais do que eu queria dar-lhe - atalhou o seu adversário, cujo coração começava a compadecer-se do amigo - Gostaria de lhe dar o resto a si, mr. Fleecebumpkin; porque o senhor afirma conhecer um pouco as regras do soco e Robin nem sequer se despiu para lutar. Levanta-te, Robin, meu amigo! Tudo acabou e se oiço alguém dizer uma palavra em teu desabono ou contra o teu país, comigo terá de entender-se.

Robin Oig ainda estava debaixo da influência da cólera e gostaria de recomeçar a luta; mas como a mulher de Heskett o agarrava e tentava restabelecer a paz e vendo que Wakefield não queria continuar, a sua raiva foi substituída por um silêncio ameaçador.

- Não tomes isto tanto a peito, amigo, - pediu Wakefield que, como todos os do seu país, facilmente abrandava - apertemos a mão e sejamos melhores amigos do que nunca.

- Amigos! - exclamou Robin com ênfase - Amigos, nunca! Toma cuidado contigo, Harry Wakefield!

- Que a maldição de Cromwell caia sobre a tua cabeça, orgulhoso escocês, como dizem numa comédia. Faz o que quiseres e vai para o diabo. Porque um homem não pode dizer mais nada a outro, depois de terem jogado ao soco, senão que o lamenta.

Assim se separaram os dois amigos. Robin Oig, em silêncio, procurou na algibeira uma moeda de prata que atirou para cima da mesa e saiu da taberna; mas, quando chegou à porta, voltou-se e mostrou o punho a Harry, depois ergueu um dedo num gesto de ameaça e aviso para se acautelar. Só então desapareceu na noite luarenta.

Depois da sua saída, acendeu-se uma disputa entre o bailio, que gostava de fazer de fanfarrão e Harry, Wakefield que, com génerosa inconsequência, estava disposto a travar novo combate para defender a reputação de Robin Oig, embora, segundo afirmou, ele não soubesse servir-se dos punhos como um inglês, porque não estava habituado a isso. Mas a mulher do taberneiro opôs-se à segunda luta, declarando num tom peremptório que não queria mais barulho na sua casa, pois já houvera até demais.

- E o senhor, mr. Wakefield - acrescentou – talvez ainda venha a saber o que custa transformar num inimigo mortal um bom amigo.

- Não diga isso, boa mulher. O Robin Oig é bom rapaz e não me guardará rancor.

- Não se fie. Não conhece o carácter rancoroso dos escoceses, embora tenha lidado com eles muitas vezes. Eu conheço-o, porque minha mãe era escocesa.

- Conhece-se bem pela filha - comentou Ralph Heskett.

Este sarcasmo conjugal deu outro rumo à conversa. Entraram novos fregueses e outros saíram. Falaram nos próximos mercados, no preço do gado nos diversos pontos da Escócia e da Inglaterra. Iniciaram vários negócios e Harry Wakefield teve a felicidade de arranjar comprador para a maior parte da sua manada com ganho considerável. Era acontecimento de importância, suficientemente para lhe varrer da mente a recordação da desagradável disputa que acabava de ter. Mas havia alguém em cujo espírito essa recordação não poderia ser apagada, nem pela posse de todo o gado existente entre Esk e Éden.

Era Robin Oig Mac-Combish.

- E, pela primeira vez na minha vida estava desarmado! Maldita seja a língua que aconselhou ao montanhês o abandono do seu punhal! O seu punhal! O sangue inglês! As palavras da minha tia! Quando é que as suas palavras não saem certas?

A recordação da fatal profecia confirmou a resolução mortal tomada naquele instante.

- O Morrison não pode estar muito longe. E ainda que estivesse a cem milhas He distância, não me importaria.

 

Desde esta altura, no seu carácter impetuoso nasceu uma idéia fixa. E nesse intuito, dirigiu-se com a velocidade comum aos seus compatriotas para os campos, através dos quais, segundo mr. Ireby havia dito, sabia que Morrison avançava.

Estava completamente dominado pelo sentimento da injúria que recebera do amigo e pelo desejo de vingança alimentado contra ele a quem passara a considerar como o seu mais cruel inimigo. As idéias que formava da sua importância pessoal, de boa opinião de si próprio, do nascimento e posição imaginária eram para ele tanto mais preciosas por - como o tesouro do avaro - não poder gozá-las senão às ocultas. Esse tesouro, porém, já não estava intacto. Os ídolos secretamente adorados haviam sido profanados. Insultado, oprimido de injúrias, já não era digno, em sua opinião, nem do nome que usava nem da família a que pertencia. Nada mais lhe restava senão a vingança; e, como estas reflexões se tornavam mais amargas a cada passo dado, jurou que essa vingança seria tão fulminante e tremenda como a ofensa.

Quando saiu da taberna, entre ele e Morrison distavam sete ou oito milhas inglesas. Hugo avançava devagar como o exigia o andar lento da sua manada; Robin, porém, depressa deixou os campos ceifados, as estradas ladeadas de sebes, os atalhos pedregosos e as terras incultas cobertas de urzes. Tudo isto brilhava com a geada e um belo luar de Novembro. Andava à razão de Seis milhas por hora e depressa ouviu ao longe os mugidos da manada de Morrisson; quando começou a ver os animais não eram maiores do que toupeiras, caminhando vagarosamente pela vasta extensão de um pântano. Por fim, chegou junto deles, ultrapassou-os e parou diante do seu condutor.

- Deus nos salve! - saudou o habitante das terras baixas - És tu, Robin Mac-Combish ou a tua sombra?

- Sou eu, sim, Robin. Oig Mac-Combish - respondeu o montanhês - e não a minha sombra. Mas isso não importa. Dá-me o meu punhal.

- Pois quê! Já voltas para as montanhas? Que demônio! Já vendeste tudo no mercado? Foi o negócio mais rápido que tenho visto até hoje!

- Não vendi nada e não volto para as montanhas. Talvez nunca mais lá volte. Dá-me o punhal, Hugo Morrisson, ou teremos questão.

- Mesmo assim, quero saber o que se passa antes de to restituir. É uma arma perigosa na mão de um montanhês e parece-me que meditas qualquer coisa de mau.

- Vamos, dá-me a arma - teimou Robin, já impaciente.

- Devagar! - opôs o amigo com a melhor das intenções - Vou dizer-te o que seria preferível a levares o punhal. Bem sabes que montanheses, habitantes das terras baixas ou da fronteira, são irmãos, visto terem nascido todos na Escócia. Os bravos de Eskdale, o valente Carlie de Liddesdale, os rapazes de Lockerby, os quatro Dandies de Lustruther e muitos outros plaids cinzentos, seguem atrás de nós. Se foste ofendido, palavra de Manly Morrisson, justiça te será feita, ainda que toda a gente de Carlisle e de Stanwig tenha de tomar parte na questão.

 

- Para te dizer a verdade - respondeu Robin, que desejava desvanecer as suspeitas do amigo - alistei-me numa companhia de guardas negros e sou obrigado a partir amanhã de manhã.

- Alistaste-te! Estavas louco ou embriagado? Tens de resgatar-te. Posso emprestar-te vinte notas e mais outras vinte se vender a manada.

- Obrigado, Hughie. Foi de própria vontade que tomei este caminho. Dá-me o punhal, depressa.

- Aqui o tens, visto assim o exigires. Mas pensa no que te disse. Será uma triste notícia para as raparigas de Balquider, quando souberem que Robin Oig Mac-Combish escolheu esse caminho.

- Nunca mais vereis o Robin Oig nas feiras. Dizendo estas palavras, apertou a mão ao amigo

e voltou para trás com a mesma velocidade.

- Aquele rapaz tem qualquer coisa na idéia - . murmurou Morrisson - Amanhã de manhã o saberei.

Porém, muito antes do nascer do dia a catástrofe da nossa história desenrolou-se.

A questão ocorrera havia duas horas e estava quase esquecida, quando Robin Oig voltou à taberna de Heskett. A sala estava cheia e todos falavam cada qual à sua maneira; as vozes e os murmúrios daqueles que tratavam dos seus negócios confundiam-se com os risos, canções e ditos alegres dos que não tinham mais em que pensar senão em divertir-se. Entre estes últimos estava Harry Wakefield que, no meio de um grupo de homens barulhentos, envergando casacos grossos, sapatos pregados, rostos risonhos, verdadeiras fisionomias inglesas, cantavam: SOu Rogério e conduzo umas vezes o arado, outras a carroça.

Foram interrompidos por uma voz bem conhecida que gritava em tom severo, com forte sotaque montanhês:

- Harry Hakefield, se és homem, levanta-te!

- Quem é? Que pretende? - perguntaram os assistentes.

- É um maldito escocês - respondeu Fleecebumpkin

- que há pouco estava bêbado e a quem Harry Wakefield já deu uma boa sova e que vem agora pedir outra.

- Harry Wakefield - dizia o Escocês, repetindo a fatal intimação - se és homem, levanta-te.

Na voz vibrava cólera profunda e concentrada, qualquer coisa que chamava a atenção e inspirava receio só pela expressão. Os espectadores recuaram todos e fixaram o montanhês que estava de pé, no meio da sala, de testa franzida, com as feições vincadas numa resolução bem determinada.

- Levanto-me de boa vontade, Robin, meu amigo, para te apertar a mão e esquecer a nossa questão. Não foi por falta de coragem que não soubeste servir-te dos punhos.

Ao mesmo tempo, colocou-se diante do adversário e a sua fisionomia franca e confiante contrastava singularmente com a expressão vingativa que brilhava no olhar sombrio do montanhês.

- Não foi culpa tua, repito, se, não tendo a felicidade de ser inglês, te bates como uma rapariga.

- Eu sei bater-me - respondeu Robin, com ar severo, mas calmo - e vais sabê-lo. Harry Wakefield, esta manhã mostraste-me como se bate um rústico saxão; e eu mostro-te agora como se bate um nobre dunniwassel dos Highlands.

 

E, juntando a acção às palavras, ergueu o punhal e mergulhou-o no peito do Inglês. O golpe foi tão forte e tão certeiro que o punho da arma bateu surdamente de encontro ao esterno e a lâmina de dois gumes penetrou até ao coração da vitima. Harry Wakefield tombou e expirou sem soltar um grito. O assassino então, agarrou o bailio pela gola do casaco e encostou-lhe o punhal ensangüentado à garganta, enquanto o terror e a surpresa impediam o outro de se defender.

- Devia matá-lo como o matei a ele - afirmou - . mas o sangue de um miserável nunca se confundirá na lâmina do punhal de meu pai com o sangue de um valente e honesto rapaz.

Ao mesmo tempo, repeliu o bailio com tanta força que ele foi cair no chão. Entretanto, Robin atirou para o lume a arma fatal.

O espanto mantinha ainda imóveis todos os espectadores desta cena, quando Robin pediu um oficial da justiça. Um agente da polícia chegou e Robin entregou-se-lhe.

- Fez uma bonita obra - comentou o oficial - derramar assim o sangue.

- A culpa foi de todos. Se o tivessem segurado e impedido de me bater há duas horas, Harry ainda estaria de boa saúde e alegre como estava há dois minutos.

- O castigo será terrível! - afirmou o oficial.

- Que importa! A morte salda todas as dívidas e também pagará esta.

Entre os presentes, a indignação começava a suceder ao horror; ao verem um companheiro estimado assassinado à sua vista, quando a provocação fora tão-pouco proporcionada ao excesso da vingança, quase se sentiam dispostos a matar o assassino ali mesmo. O oficial da justiça, porém, fez o seu dever naquela ocasião e, com o auxílio de alguns dos espectadores mais sensatos, mandou chamar guardas a cavalo para conduzirem o prisioneiro a Carlisle, a fim de ser entregue ao tribunal e julgado. Enquanto a escolta formava, Robin não manifestou qualquer receio, nem falou. Apenas, antes de ser levado para fora da sala fatal, quis ver o cadáver que haviam levantado e colocado em cima de uma mesa, aquela junto da qual Harry se sentara minutos antes, cheio de vida, de força e de alegria. Até virem os médicos examinaram a ferida mortal, cobriram-lhe o rosto com um guardanapo. com grande surpresa e horror dos presentes, que por entre os dentes cerrados soltaram uma exclamação, Robin Oig levantou o guardanapo e fixou com olhar triste, mas firme, o rosto inanimado daquele que estava morto havia tão pouco tempo, que o sorriso de bom humor, de confiança na sua própria força, de conciliação e ao mesmo tempo de desprezo pelo seu inimigo, dir-se-ia ainda pairar nos seus lábios. Enquanto os presentes pareciam acreditar que a ferida ia reabrir e inundar o chão de sangue quando a mão homicida de Robin Oig tocou a sua vítima, este largou o guardanapo, comentando:

- Era um belo rapaz.

Esta história está quase terminada. O infeliz montanhês foi julgado em Carlisle. Eu estava presente e na minha qualidade de jurisconsulto, advogado escocês e homem de certa categoria, o magistrado do Cumberland teve a amabilidade de me oferecer um lugar no banco dos magistrados.

 

Os factos foram pormenorizados e provados na audição das testemunhas pela forma que já contei e, fossem quais fossem as prevenções do tribunal contra um crime tão contrário ao carácter inglês como o de assassinar por vingança, no entanto, quando ouviram mencionar os preconceitos nacionais alimentados pelo prisioneiro, que o levavam a considerar-se desonrado sem remédio depois de ter suportado uma violência pessoal; quando avaliaram a paciência e moderação de que primeiro dera provas, a génerosidade inglesa mostrou-se disposta a olhar o crime mais como o erro fatal de um falso conceito da honra, do que o acto inspirado por um coração naturalmente bárbaro ou pervertido pelo hábito do crime. Nunca esquecerei o o discurso do venerável juiz e do júri, embora eu não estivesse então disposto a deixar-me emocionar pela sua eloqüência, patética.

- O nosso dever foi até aqui - disse, aludindo a alguns processos que haviam precedido o de Robin julgar crimes que excitam a repulsa, e o horror, pedindo para eles a justa vingança da lei. Temos agora de cumprir um dever mais doloroso, o de aplicar as suas sanções salutares, mesmo as mais severas, a um caso - especial no qual o crime, porque se trata de um crime e grande, foi praticado, menos pelo desejo de fazer mal do que por uma noção infelizmente pervertida do bem. Eis dois homens que, segundo nos disseram, eram estimados na sua classe e mutuamente unidos pelos laços de amizade. A vida de um foi sacrificada por funesto conceito da honra e a do outro suportará a justa vingança da lei ofendida. No entanto, ambos podem pedir, pelo menos, a nossa compaixão, pois procederam na ignorância dos preconceitos nacionais recíprocos e como homens infelizmente desorientados, mais do que voluntariamente desviados do caminho direito. Na causa originária da disputa, devemos, por justiça dar razão ao prisioneiro que está na nossa frente. Estava na posse do campo, objecto dela, por um contrato legal com o seu proprietário, mr. Ireby; e, no entanto, quando se viu alvo de censuras injustas por si mesmas e duplamente amargas para um carácter irascível, ofereceu ceder metade da sua aquisição para manter a paz e provar ser bom camarada. A proposta foi rejeitada com desdém. Segue-se a cena ocorrida na taberna de mr. HeskettPensem como o prisioneiro foi tratado pelo defunto e, lamento ser obrigado a acrescentar, pelos espectadores que parece terem-no excitado de forma, a irritá-lo ao máximo. Enquanto o prisioneiro não desejava senão a paz ou entrar num acordo e ofereceu submeter-se à decisão do magistrado ou de um árbitro mútuo, foi insultado por toda a assistência que, na circunstância, parecia ter esquecido a máxima nacional na igualdade na luta; e, quando procurou sair em paz da sala, foi detido, derrubado, batido e viu correr o seu sangue.

 

Senhores jurados, foi com certa impaciência que ouvi o meu eloqüente colega, o acusador, dar um aspecto desfavorável ao procedimento do prisioneiro. O prisioneiro - disse ele - receando encontrar-se com o adversário numa luta igual e submeter-se às leis do combate, recorreu, como um cobarde, ao seu fatal estilete para assassinar o homem com quem não se atrevia a medir-se numa luta leal. Notei que o prisioneiro, ao escutar a acusação, estremecia de horror; repelindo-a com a repulsa de um homem corajoso e valente. E assim como desejo que as minhas palavras impressionem quando me refira ao seu crime real; pretendo demonstrar-lhes a minha imparcialidade, rejeitando tudo o que se me afigura ser falsa acusação. Não pode pôr-se em dúvida que o prisioneiro seja um homem resoluto - demasiado talvez - Prouvesse a Deus que o fosse menos ou tivesse aprendido a dominar-se

"Senhores, quanto às leis do combate a que se refere o meu colega, podem ser leis nos sítios onde se dão touradas, combates de ursos ou de galos, mas; não o são aqui. Ou, se são admitidas como uma espécie de prova de que não há premeditação no combate, do que resulta, por vezes, fatais acidentes, não o podem ser quando os dois adversários estão in pari casu, conhecendo tão bem um como o outro a luta: corpo contra corpo e consentem sujeitar-se a essa arbitragem. Pode, no entanto, pretender-se que um homem superior aos outros pela sua categoria e educação se submeta ou o obriguem a submeter-se a essa luta grosseira e brutal, talvez contra um adversário mais novo, mais forte e mais hábil? Certamente, o código do pugilato, mesmo se for fundado, como pretende o meu colega, nas máximas da velha Inglaterra, quer dizer, numa luta com armas legais não pode ser mais absurdo. E, senhores jurados, se as leis permitem a um inglês de distinção, usando uma espada, servir-se dela para se defender contra violenta agressão pessoal, - tal como o prisioneiro suportou, devem proteger também um estrangeiro nas mesmas circunstâncias dolorosas. Portanto, senhores jurados, o acusado, quando se viu impelido por uma força brutal, quando se viu alvo de insultos de um grupo de homens e de uma violência directa de um deles pelo menos, tinha razão para temer suportá-las dos outros; se então, prossigo, se serviu da arma que os seus compatriotas, segundo me disseram, usam sempre consigo e que do facto resultou a triste ocorrência que as testemunhas narraram, não posso, em consciência, pedir que o declarem culpado de crime. A defesa pessoal do prisioneiro teria podido, é verdade, mesmo neste caso, ultrapassar mais ou menos os limites do que os jurisconsultos chamam moderamen inculpaíoe íuteloe; mas incorreria na pena que a lei aplica ao homicídio e não ao assassínio, Devo acrescentar ser meu parecer que este género de acusação menos grave deve ser aplicado no caso presente, apesar do estatuto de Jaques I, que priva do benefício da clareza todo o crime cometido com arma curta, mesmo sem premeditação. Porque esse estatuto contra o uso do punhal, como lhe chamam, foi provocado por uma causa temporária; e como o crime real é o mesmo, seja cometido com um punhal, espada ou pistola, a indulgência das leis modernas coloca todos estes casos pouco mais ou menos na mesma categoria. Porém, senhores jurados, a questão, no caso presente, é o tempo decorrido entre a imposição do ultraje e a fatal vingança. No calor da acção poder-se-ia empregar o termo legal, no calor da luta e a lei, compadecendo-se das enfermidades da natureza humana, também se condói das paixões que a dominam num momento de cólera, dos sentimentos de dor presente com receio de males mais graves, pela dificuldade de precisar com exactidão o grau de violência necessária para proteger a pessoa do indivíduo atacado sem prejudicar ou ferir a do agressor, mais do que se torna absolutamente indispensável. Mas o tempo preciso para caminhar doze milhas, por muito rápida que seja a marcha, foi suficiente para que o prisioneiro recuperasse a calma; e a violência empregada a executar o seu desígnio, acompanhada por circunstâncias que provam a premeditação, não podem tomar-se como impulso nem de cólera nem de temor; foi um plano e acto de vingança premeditado de antemão, ao qual a lei não quer nem pode conceder compaixão nem atenuantes. Podemos, é verdade, dizer para nós mesmos que o seu caso é especial. O país que habita era, num tempo em que viviam muitas pessoas que ainda hoje existem, inacessível, não só às leis de Inglaterra que nem sequer lá penetravam, mas também às próprias leis a que os nossos vizinhos escoceses estavam submetidos e que seriam, devemos admiti-lo, baseadas em princípios génerosos de justiça e equidade, que governam todos os países civilizados. Nas suas montanhas como entre os índios do Norte da América, as diversas tribos estavam habituadas a combater entre elas, de forma que todos os homens eram obrigados a andar armados para se defenderem ou para vingar o insulto feito ao seu vizinho. Esses homens, pela alta idéia que tinham do seu nascimento e importância pessoal, consideravam-se mais como cavaleiros ou homens de armas do que como camponeses e habitantes de uma região pacata. As leis do pugilato, como lhes chama o meu colega, eram desconhecidas para essa raça de montanheses. A decisão de disputas com as armas que a natureza deu a todos os homens, era por eles considerada ignóbil e tão absurda como para a nobreza de França. A vingança, por outro lado, devia ter sido tão natural para os seus hábitos sociais como para os cherokees ou mohaivks. Era, no fundo, como disse Bacon, uma espécie de justiça sem leis. Porque o temor da vingança sustinha a mão do opressor quando não existia lei para reprimir a violência. Mas, embora se admitam estes raciocínios e concordemos que, sendo estas as idéias dos montanheses da Escócia no tempo dos antepassados do prisioneiro e que muitas destas opiniões e sentimentos devam ainda manter a sua influência sobre a geração actual, não podem nem devem, mesmo no caso presente, por muito doloroso que seja, perturbar o exercício da lei, quer nas vossas mãos, senhores jurados, quer nas minhas. O primeiro objectivo da civilização é substituir a protecção geral, da lei, justamente administrada, à justiça bruta feita por cada homem, conforme o comprimento da sua espada e a força do seu braço. A Lei proclama nujna voz que só é coberta pela da majestade divina:

"A vingança pertence-me. Desde que a paixão tem tempo para acalmar e a razão de intervir, o ofendido deve saber que a lei assume o direito exclusivo de decidir o que é justo ou injusto de qualquer dos lados e opor uma barreira inviolável a toda a tentativa individual de fazer justiça por suas mãos. Repito, este infeliz deve ser mais objecto de compaixão do que de horror, porque pecou por ignorância e por falsas concepções da honra. Mas nem por isso o seu crime deixou de ser um assassinato e, senhores, é vosso dever proclamá-lo. Os ingleses têm as suas paixões condenáveis tanto como os escoceses e se o acto deste homem não fosse punido, mil punhais poderiam ser arrancados da bainha, desde o extremo da Cornualha até às ilhas Orcades. "

Assim terminou o discurso do venerável juiz.

Seguindo as suas instruções, o júri declarou culpado o acusado e Robin Oig Mac-Combish foi condenado à morte e conduzido ao cadafalso.

Suportou a pena com firmeza e reconheceu a justiça da sentença, mas repeliu com indignação aqueles que o acusavam de ter atacado um homem desarmado. Antes de morrer, declarou:

- Dou a minha vida pela vida que tirei... Que mais posso fazer?

 

           AS AVENTURAS DE MARTINHO WALDECK

A solitária floresta de Hartz, na Alemanha, e principalmente as montanhas chamadas Blockberg, também, conhecidas por Brockenberg, são os cenários escolhidos para contos onde figuram feiticeiras, demônios e aparições. A maior parte dos habitantes da região são lenhadores ou mineiros e este género de vida torna-os mais acessíveis às superstições vulgares e, muitas vezes, atribuem ao poder da magia ou à intervenção de espíritos os fenômenos naturais que despertam a sua atenção na solidão dos bosques ou na profundidade das minas.

Entre as diversas fábulas conhecidas nestas regiões selváticas, a mais espalhada é a que afirma ser a floresta de Hartz habitada por um demônio que se apresenta sob a forma humana de um homem de gigantesca estatura, usando uma coroa e um cinto de folhas de carvalho, trazendo na mão um pinheiro arrancado da terra com as raízes. Muitos afirmam tê-lo visto do fundo do vale passear na encosta de uma montanha. O facto desta aparição é, em geral, tão tida como certa, que, para a explicar e recusarem-se a dar-lhe crédito, os mais cépticos atribuem-na a uma ilusão de óptica.

Nos antigos tempos, este ser diabólico convivia muito com os habitantes da região e, conforme as tradições, muitas vezes intervinha nos negócios dos mortais, conforme o seu capricho, vulgar em entes desta espécie, isto é, quer para os prejudicar ou para os favorecer, favores que, com o tempo se tornavam prejudiciais, mesmo àqueles para quem, de princípio, eram benéficos.

Os Pastores da igreja faziam demorados sermões para instrução das suas ovelhas, tomando muitas vezes por tema as vantagens de não terem relações directas ou indirectas com o demônio de Hartz.

Os velhos contavam aos filhos e aos netos a história de Martinho Waldeck quando os ouviam zombar de um perigo por eles considerado imaginário.

Um missionário capuchinho subiu ao púlpito de uma igreja coberta de colmo de um povoado chamado Morgenbrodt, situado na floresta de Hertz. Dali fulminava a corrupção dos habitantes e as freqüentes comunicações que tinham com feiticeiras, espíritos, fadas e, principalmente, com o terrível demônio de Hartz.

A doutrina de Lutero começava então a espalhar-se pelos camponeses, pois esta aventura passou-se, segundo dizem, no reinado de Carlos V. Desta forma, os camponeses riam do zelo demonstrado pelo reverendo padre. A sua veemência, porém, aumentava em proporção com o desprezo que lhe opunham, e o desprezo aumentava também com a veemência.

Os habitantes não gostavam que um demônio pacífico a que estavam habituados, que vivia em Brockenberg havia séculos fosse confundido com Belfegor Astarote e até com Belzebu, e que o condenassem sem misericórdia a ser precipitado num abismo sem fundo. Ao receio de que o demônio se vingasse neles da condenação lançada contra ele na sua presença por forma tão pouco caridosa, juntava-se o interesse que todos alimentavam pelo demônio, desde tempos imemoriais. "Um missionário capuchinho - diziam - que está hoje aqui e amanhã ali, pode dizer o que melhor lhe pareça. Mas seremos nós, os antigos e permanentes habitantes da região, que pagaremos por ele. "

Estas reflexões irritaram-nos e não se limitaram às

palavras injuriosas. Pegaram em pedras, atiraram-nas à cabeça do capuchinho e expulsaram-no da região, dizendo-lhe que fosse pregar para outro lado contra os demônios.

Três rapazes que haviam sido espectadores e actores nesta cena, voltaram para a cabana que ocupavam, entregando-se ao mister de carvoeiros.

Pelo caminho, como era natural, a conversa recaiu sobre o demônio de Hartz e sobre o sermão do capuchinho. Max e Jorge "Waldeclc, os dois mais velhos, ao mesmo tempo que concordavam ter sido o frade indiscreto e digno de censura por se atrever a condenar a natureza, o carácter e o espírito de Hartz, afirmavam ser perigoso ao máximo aceitar os seus dons e ter com ele qualquer comunicação. Reconheciam ser o demônio poderoso, mas ao mesmo tempo, fantástico e caprichoso, e aqueles que travavam conhecimento com ele raramente tinham bom fim, E a este respeito citavam-se vários exemplos.

Não dera ao bravo cavaleiro Ecbert de Rabenwall o célebre cavalo negro, graças ao qual vencera todos os concorrentes, no grande torneio, de Brême? E esse mesmo cavalo não se precipitara com o dono num abismo tão profundo que nunca mais puderam encontrar nem o cavaleiro nem o cavalo? Não deu' à dama Gertrudes Trodden um feitiço para fazer boa manteiga e, mais tarde, não foi ela queimada como feiticeira, por ordem do grande juiz criminal do eleitorado, por ter usado esse feitiço?

Todos estes exemplos, porém, e muitos outros que citaram das funestas conseqüências dos benefícios do demônio de Hartz não impressionaram Martinho Waldeck, o mais novo dos três irmãos.

Era um rapaz temerário, impetuoso, exímio em todos os exercícios próprios dos montanheses e de uma coragem a toda a prova, pois estava familiarizado com o perigo que eles correm ao treparem os rochedos. A timidez dos irmãos provocou-lhe o riso.

- Deixem-se de asneiras - disse-lhes - O demônio é um bom demônio. Vive entre nós como se fosse um simples aldeão; trepa aos rochedos e sobe montanhas como se andasse à caça ou guardasse cabras; visto habitar na floresta e gostar tanto destas regiões selváticas, não pode ficar indiferente à sorte dos que vivem aqui, como ele. Mas, embora fosse tão mau, como afirmam, que poder maléfico pode ter sobre aqueles que utilizam os seus dons sem contrair qualquer compromisso com ele? Quando vocês levam o carvão à fundição, o dinheiro que lhes dá o superintendente, o velho Blaise, que só sabe blasfemar, não é tão bom como se o recebessem da mão do nosso Pastor? Não são os dons do demônio que podem ser perigosos para vocês, mas sim a forma como os empregam. Por ela terão de prestar contas. Quanto a mim, se ele me aparecesse neste momento e me mostrasse uma mina de de oiro ou de prata, eu começaria a cavar a terra antes dele ter voltado as costas; e, enquanto fizesse bom uso das riquezas que me proporcionasse, sentir-me-ia sob a protecção de Alguém mais poderoso do que ele.

O irmão mais velho afirmou que raramente se fazia bom uso de riquezas mal adquiridas e Martinho teve a presunção de afirmar que a posse de todos os tesouros da floresta de Hartz não seria suficiente para lhe modificar os hábitos, o seu viver e carácter.

Max aconselhou-o a ser mais prudente ao falar em semelhante assunto a custo conseguiu desviar-lhe a atenção, recordando-lhe uma caçada ao urso por ambos projectada.

Durante a conversa, chegaram à cabana miserável onde viviam, situada na encosta de uma colina, diante de um vale apertado, no coração das montanhas de Brockenberg. Acordaram a irmã, encarregada, durante a sua ausência de velar pela transformação da madeira em carvão, operação que exige uma atenção contínua e, conforme o costume, tomaram o encargo de velar.

por ela durante a noite, dormindo dois, enquanto o terceiro vigiava a fogueira.

Max Waldeck, o mais velho, a quem competiam as duas primeiras horas, ficou assustado ao ver brilhar, na colina que se erguia mesmo em frente da cabana, enorme fogueira, junto da qual muitas pessoas se moviam com gestos bizarros. Pensou primeiro em chamar os irmãos, mas, lembrando-se do feitio arrojado do mais novo e receando não conseguir acordar Jorge sem perturbar o sono de Martinho; pensando que o espectáculo podia ser obra do demônio, resultado, talvez, das palavras irreflectidas proferidas pelo irmão mais novo na noite antecedente, achou melhor recorrer à oração e aguardar com inquietação e terror o fim da estranha e alarmante visão. A fogueira, depois de ter brilhado durante algum tempo, extinguiu-se pouco a pouco; tudo mergulhou nas trevas e, durante o tempo que ainda lhe restava para velar, só foi perturbado pela recordação do que vira.

Jorge, por fim, veio tomar o lugar de Max que, por sua vez se foi deitar.

O fenômeno da grande fogueira ardendo na colina fronteira repetiu-se a seus olhos como havia acontecido com o irmão. Em torno das chamas moviam-se vultos que, alternadamente colocados entre estas e a cabana, podiam ver-se facilmente, gesticulando como se realizassem qualquer mística cerimônia.

Embora tão prudente como o irmão, Jorge era um pouco mais ousado e resolveu ir examinar mais de perto aquela maravilha. Atravessou o ribeiro que corria no vale, aproximou-se da fogueira, tão perto como um tiro de flecha e viu o seu brilho deslumbrante.

 

Os seres que a rodeavam assemelhavam-se aos fantasmas que em sonhos se nos apresentam e, ao vê-los, mais se acentuou a convicção de Jorge, pertencerem eles a outro mundo. Entre aqueles vultos estranhos, viu um ser coberto de pêlo, tendo na mão um pinheiro arrancado com a raiz que ainda conservava e do qual se servia, de tempos a tempos, para atiçar o fogo, sem qualquer vestimenta, excepto um cinto de folhas de carvalho e uma coroa. Jorge sentiu-se desfalecer ao reconhecer o demônio da floresta de Hartz, tal como os pastores e os caçadores o descreviam por o terem visto em tempos atravessar as montanhas. Deu meia volta e fugiu a correr. Mas, censurou-se pela sua cobardia e, rezando em voz baixa o salmo: "Que todos os povos abençoem o Senhor! ", voltou para trás e recomeçou a subir a colina onde, vira a fogueira. Mas, com grande surpresa sua, não encontrou dela o mais pequeno vestígio.

Os pálidos raios da Lua iluminavam o vale. Quando Jorge, com a fronte coberta de suor frio, os cabelos em pé, chegou ao ponto onde vira a fogueira acesa e notara um grande tronco de carvalho, consumindo-se no meio das chamas, não encontrou nada do que vira. O musgo, a relva e as flores campestres estavam intactas e as folhas das árvores húmidas com as gotas de orvalho.

Voltou à cabana tremendo e, raciocinando como o irmão mais velho, resolveu não falar do que acabava de ver, com receio de despertar em Martinho uma curiosidade audaciosa, que, em seu entender, podia ser considerada quase como uma impiedade.

Chegava a altura de Martinho velar. O galo, na pequena capoeira, acabava de anunciar que a noite não tardaria a dar lugar ao dia.

O rapaz examinou o forno, onde a madeira estava depositada para ser reduzida a carvão, e, com espanto, verificou que o fogo não havia sido mantido como devia, porque a excursão de Jorge e o espantoso espectáculo de que fora testemunha o levaram a esquecer a sua principal preocupação.

A sua primeira idéia foi chamar os irmãos. Mas ao verificar que dormiam profundamente, respeitou-lhes o sono e tentou atear o fogo com novo alimento, sem pedir o auxílio a ninguém. Porém, a madeira que apanhou ou estava verde ou húmida, porque, em vez de reanimar o fogo, parecia abafá-lo. Correu a buscar madeira bem seca que guardavam de reserva. Infelizmente, quando voltou, encontrou o fogo totalmente apagado. O caso era sério e podia representar a perda de um dia de trabalho. Muito contrariado com o caso, começou a bater a pederneira, mas a isca estava húmida e todos os seus esforços foram Inúteis. Dispunha-se a chamar os irmãos, porque as circunstâncias se lhe afiguravam graves, quando súbito clarão penetrou na cabana pelas janelas e pelas fendas. Correu para a porta e viu o mesmo fenômeno que alarmara Max e Jorge.

De princípio, pensou que os Muhllerhaussers, com quem os três irmãos questionavam muitas vezes, por emulação do ofício, haviam transposto os seus limites, para roubar madeira naquele ponto da floresta. Pensou de novo acordar os irmãos para irem os três castigar os audaciosos vizinhos; contudo, ao examinar melhor os gestos daqueles que andavam em volta da fogueira, mudou de opinião e, embora fosse um tanto céptico em certos assuntos, concluiu que se tratava de um fenômeno sobrenatural.

"Sejam homens ou espíritos - pensou o rapaz - e seja qual for a tarefa a que se entregam, vou pedir-Lhes lume para a nossa fornalha. "

Renunciou à idéia de acordar os irmãos, pois sempre ouvira dizer ser preciso estar só para triunfar em empresas semelhantes àquela que ia empreender. Receou também que a sua timidez fosse obstáculo para a resolução que acabava de tomar.

Em conseqüência, pegando em comprido cajado, utilizado para caçar ursos, partiu sozinho, disposto a levar a cabo a sua audaciosa aventura.

com a mesma resolução demonstrada por Jorge, mas com uma coragem muito mais firme, Martinho atravessou o ribeiro, subiu a encosta e chegou tão perto da estranha reunião que não hesitou em reconhecer naquele que parecia presidir a ela, todos os atributos do demônio de Hartz.

Pela primeira vez na sua vida um calafrio lhe percorreu a espinha. Recordou-se, porém, de que muitas vezes desejara a ocasião que naquele momento se lhe apresentava "e esse pensamento reanimou-lhe a coragem. Encontrando no amor-próprio estímulo para o ânimo que começava a faltar-lhe, avançou para a fogueira com firmeza, apesar dos seres que a rodeavam tomarem um aspecto mais estranho, mais fantástico e mais sobrenatural à medida que se aproximava.

Foi acolhido com grandes gargalhadas, cujas notas discordantes e extraordinárias soaram aos seus ouvidos mais alarmantes do que a combinação de sons mais fúnebres e melancólicos que se possa imaginar.

- Quem és? - perguntou o horrível gigante, dando às medonhas feições um ar de forçada gravidade que, por vezes, era quebrado, como contra a sua vontade, por um acesso de riso sardónico.

- Martinho Waldeck, o carvoeiro - respondeu o audacioso rapaz - E tu quem és?

- O senhor destas montanhas e das minas. Como te atreves a vir perturbar os meus mistérios?

- Venho buscar lume para reanimar a minha fornalha.

E, chamando a si toda a sua coragem, voltou a perguntar:

- Que mistérios são esses?

- Estamos a festejar - respondeu o demônio, complacente - o casamento de Hermes com o dragão negro. Leva o lume que vieste buscar e vai-te embora. Nenhum mortal pode ver-nos muito tempo sem morrer.

Martinho meteu a ponta da comprida estaca num grande bocado de madeira bem inflamado e, levando-o com custo, tomou o caminho da cabana, perseguido pelas gargalhadas que repetiam com violência e que se repercutiam por todo o vale.

Quando atingiu a cabana, o seu primeiro cuidado, por muito preocupado que estivesse com o que acabava de lhe acontecer, foi o de colocar a madeira inflamada no meio da madeira seca, para reacender a fornalha. Mas, a despeito de todos os seus esforços e apesar de se ter socorrido de excelente fole de ferreiro, a madeira a arder acabou por se apagar, sem ter pegado fogo a um só cavaco.

 

Voltou-se e viu que a fogueira continuava a brilhar na colina fronteira, embora os seres que pouco antes a rodeavam tivessem desaparecido. Supondo que o demônio tivesse querido pregar-lhe uma partida, com a sua audácia natural, decidiu-se a ver o fim daquela aventura. Voltou à colina, tirou outro bocado de madeira da fogueira, sem que ninguém se opusesse, voltou à cabana, mas da mesma forma não conseguiu reacender a fornalha.

Como a impunidade aumentasse a sua ousadia, resolveu experimentar terceira vez e foi à fogueira buscar novo bocado de madeira a arder. Porém, quando se retirava, ouviu a mesma voz que já uma vez lhe falara, dizer:

- Livra-te de voltar aqui quarta vez!

Os esforços que fez para reanimar a fornalha foram infrutíferos. Martinho renunciou e foi-se deitar, resolvendo aguardar o nascer do dia para comunicar aos irmãos o sucedido. A fadiga do corpo e a agitação do espírito venceram-no e não tardou a adormecer.

De manhã foi despertado por grandes gritos de alegria e de surpresa.

Os irmãos, quando acordaram, ficaram admirados por encontrar o fogo extinto e começaram a tirar toda a madeira da fornalha para mais facilmente a acenderem. Calcule-se o seu espanto quando encontraram entre as cinzas três enormes lingotes de metal; pelos conhecimentos de mineralogia que a prática dá a quase todos os habitantes das montanhas, viram imediatamente serem do mais puro ouro.

A sua alegria acalmou um pouco quando o irmão lhes contou de que maneira, aquele tesouro se encontrava ali. Pelo que eles próprios haviam presenciado não podiam duvidar da realidade daquela aventura.

Contudo, não puderam resistir à tentação de partilhar a fortuna do irmão, considerando-o, de futuro, como chefe da família.

Martinho Waldeck comprou terras e florestas, mandou construir um castelo, obteve cartas de nobreza e gozou dos mesmos previlégios que os nobres varões da vizinhança, com grande desprazer destes. A sua coragem nas guerras, assim como nas questões particulares que teve de sustentar, defenderam-no contra o ódio provocado pela sua súbita elevação e as suas pretensões arrogantes.

Martinho Waldeck em breve se tornou um exemplo da forma como poucos homens estão defendidos contra a influência exercida sobre o seu carácter por súbita prosperidade.

As más inclinações que a pobreza conseguira atenuar, desenvolveram-se. As tentações e o meio de as satisfazer produziram funestos frutos. Uma paixão despertou outra; o demônio da avareza chamou o orgulho e este chamou em seu auxílio a opressão e a crueldade.

O carácter de Martinho Waldeck, sempre audacioso e empreendedor, mas que a prosperidade tornara mais duro e insolente, atraiu o ódio não só da nobreza, mas também das classes inferiores, que viam com dobrada indignação os direitos mais opressivos do feudalismo exercidos sem remorsos e em todo o seu rigor por um homem saído do nada.

 

A sua aventura, embora oculta com o maior cuidado, começou a ser conhecida e o clero alcunhava de feiticeiro e cúmplice do demônio o miserável que, tendo obtido um tesoiro quase inexgotável por meios tão estranhos, não consagrara uma parte à Igreja para santificar o resto.

Rodeado por inimigos públicos e particulares, questionando com todos os vizinhos e ameaçado de excomunhão, Martinho, ou para melhor dizer, o barão you Waldeck, como se chamava agora, várias vezes teve saudades dos trabalhos e dos prazeres de uma pobreza que não excitara invejas. No entanto, nunca lhe faltou coragem. Dir-se-ia que, pelo contrário, era cada vez maior perante os perigos que o rodeavam.

Um incidente imprevisto acelerou a sua queda.

Uma proclamação do duque reinante de Brunswick convidou para um torneio todos os nobres alemães de nascimento digno.

Martinho Waldeck, coberto de magnífica armadura, acompanhado pelos dois irmãos, seguido por numerosa escolta, sumptuosamente armada, teve a insolência de comparecer no meio dos cavaleiros reunidos e pediu para entrar na liça. Esta atitude foi considerada como o cúmulo das suas pretensões. Mil vozes protestaram, gritando ser impossível consentir que um antigo carvoeiro tomasse parte nos jogos da cavalaria. Irritado ao máximo, Martinho desembainhou a espada e feriu o arauto que, por pedido geral, se opunha à sua entrada na liça.

Cem espadas saíram então das bainhas para castigar a violência que naquele tempo era considerada um crime tão repugnante como o sacrilégio e o régicídio.

Waldeck defendeu-se como um leão, mas por fim foi preso, arrastado perante os marechais do torneio, julgado ali mesmo e condenado, como reparação do atentado cometido ao violar a paz pública e ferido a pessoa sagrada, de um arauto de armas, a ter a mão direita decepada, ser destituído dos previlégios da nobreza da que era indigno e expulso da cidade.

Despojado das suas armas, sofreu a sentença severa e foi iem seguida abandonado à populaça que perseguiu a infeliz vítima da ambição, soltando gritos, acusando-o de feiticeiro e opressor e que, depois de o ter insultado com palavras injuriosas, acabou por o maltratar de todas as formas.

A escolta fugira e dispersara. No entanto, os dois irmãos conseguiram tirá-lo das mãos da canalha que o atormentava por prazer quando esta deu por satisfeita a sua sede de vingança e o viu cair desfalecido com a perda de sangue. A crueldade dos seus inimigos foi ainda bastante engenhosa para não permitir que o conduzissem senão numa carroça de carvoeiro, semelhante àquela que ele próprio em tempo conduzira. Os irmãos estenderam-no numa camada de palha no desejo de o conduzirem a um sítio seguro antes que a morte pusesse fim aos seus tormentos.

Quando os Waldeck, viajando tão miseravelmente, chegaram perto da sua terra natal, viram ao longe, num desfiladeiro apertado entre duas montanhas, alguém que se aproximava e a quem, de princípio, tomaram por um velho. Mas, à medida que o desconhecido avançava para eles, parecia cada vez mais alto, o capote desapareceu dos seus ombros, o bordão de caminheiro transformou-se num pinheiro arrancado com a raiz, e o gigantesco demônio da floresta de Hartz surgiu diante deles e deixou-os gelados de terror.

 

Quando chegou junto da carroça onde estava estendido o infeliz Waldsck, as feições revestiram-se de uma expressão de supremo desdém e de uma maldade satisfeita e perguntou a Martinho:

- Que tal achas o fogo que a minha madeira acendeu?

A presença daquele ser temível deixou os dois irmãos imobilizados pelo terror, mas, bem ao contrário, reanimou as forças do moribundo.

Soergueu-se, cerrou a mão que lhe restava e ameaçou o espírito. O demônio, conforme era seu costume, soltou uma gargalhada sardónica e desapareceu aos olhos dos três, deixando Waldeck com as forças esgotadas pelo esforço dispendido.

Ainda esmagados pelo terror, os dois irmãos dirigiram-se para um convento, cujas torres se elevavam no meio de um pinhal, perto da estrada. Foram caridosamente recebidos por um capuchinho, de pés nus e comprida barba, e Martinho viveu o tempo necessário para confessar os seus pecados, o que não fizera desde que a fortuna o bafejara, e para receber a absolvição das mãos do mesmo frade que ajudara a expulsar da aldeia de Morgenbrodt, à pedrada, três anos atrás, dia por dia.

Sempre se acreditou que aqueles três anos de precária felicidade se relacionavam misteriosamente com o número das viagens feitas por Martinho à colina onde ardia a fogueira sobrenatural.

O corpo de Martinho Waldeck foi enterrado junto do convento, e os irmãos, tendo professado naquela ordem, viveram "e morreram ocupados em obras de devoção e caridade.

As suas terras, que ninguém reclamou, permaneceram incultas até que o imperador as considerou como feudo devoluto e as tomou para a coroa. As ruínas do castelo, ao qual dera o seu nome, ainda hoje são temidas por mineiros e lenhadores, que afirmam serem elas covil de maus espíritos.

Foi assim que Martinho Waldeck, com a sua maneira de agir, deu um exemplo dos perigos causados por uma riqueza mal adquirida e da qual, por vezes, se faz mau uso.

 

                                                                                Walter Scott  

 

                      

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