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O ESPIÃO / Feminore Cooper
O ESPIÃO / Feminore Cooper

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O ESPIÃO

 

Em fins do ano de 1780, um viajante isolado atravessava um dos numerosos vales pequenos do West Chester. O vento de Leste, carregado de frios vapores e aumentando de violência a cada instante, anunciava inevitavelmente a aproximação de uma tempestade que podíamos esperar, como de costume, que durasse vários dias. O olhar experimentado do viajante procurava em vão, na escuridão da noite, qualquer abrigo conveniente, em que pudesse encontrar os socorros que a sua idade e os seus projectos exigiam, enquanto a sua viagem fosse interrompida pela chuva, que, sob a forma de um espesso nevoeiro, começava já a misturar-se à atmosfera. No entanto, nada se oferecia aos seus olhos, excepto as casas estreitas e incómodas da classe mais baixa dos habitantes; e na vizinhança imediata, não julgava ser prudente nem de boa política fiar-se neles.

Depois de os Ingleses se terem apoderado da ilha de Nova York, o condado do West Chester tornara-se uma espécie de campo cerrado, no qual os dois partidos disputaram diversos combates durante o fim da guerra da revolução. Uma grande parte dos habitantes, dominados pelo medo ou por um resto de afeição pela pátria-mãe, ostentava uma neutralidade que nem sempre existia no coração. As cidades mais próximas do mar estavam, como se pode imaginar, mais particularmente sob a autoridade da coroa, enquanto as do interior, encorajadas pela vizinhança das tropas continentais, deixava transparecer as opiniões revolucionárias e o direito que tinham a governarem-se a si próprias. No entanto, muita gente usava uma máscara que o tempo ainda não conseguiu fazer cair; um indivíduo ia para a cova acusado pelos seus concidadãos de ter sido inimigo da liberdade, ao passo que havia sido em segredo um dos agentes mais úteis dos chefes da revolução; e por outro lado, se se fizesse uma busca muito apertada em casa de certos compatriotas, que pareciam apoiar os direitos do seu país com o mais ardente zelo, encontrar-se-ia um salvo-conduto real escondido sob um montão de guinéus ingleses.

Ao barulho dos cascos do nobre corcel montado pelo viajante, a dona da quinta em frente da qual este passava agora, abriu com precaução a porta de casa para ver este estranho e talvez voltasse a cabeça para comunicar o resultado das suas observações ao homem, que, instalado nas traseiras do edifício, se dispunha a procurar, se fosse caso para isso, o local onde normalmente se escondia, nos bosques vizinhos. O vale estava situado a meio caminho no sentido do comprimento do condado e bastante próximo dos dois exércitos para que a restituição do que tinha sido roubado não fosse um acontecimento raro, nestas paragens. É certo que não se encontravam sempre os mesmos objectos; mas à falta de justiça legal, recorria-se geralmente a uma substituição sumária, que devolvia o montante das perdas para aquele que as tivera com uma bela adição para o indemnizar do uso temporário que tinha sido feito daquilo que lhe pertencia.

A passagem do estranho, cuja aparência tinha qualquer coisa de equívoco, montado num corcel, que, embora os arreios nada tivessem de militar, oferecia um pouco do aspecto orgulhoso e aguerrido do seu cavaleiro, deu lugar a muitas conjecturas entre os habitantes das poucas casas, que o olhavam, e excitou mesmo um sentimento de alarme no coração de alguns, cuja consciência dava mais inquietações do que de costume.

Sentindo certa fadiga, em consequência do exercício que fizera durante um dia de cansaço desusado e desejando encontrar sem demora um abrigo contra a violência crescente da tempestade, que começava a mudar de aspecto, com grandes gotas de água batidas pelo vento, o viajante decidiu-se, por necessidade, a pedir para ser admitido na primeira casa que encontrasse. A ocasião não se fez esperar muito tempo e, atravessando uma vedação arruinada, bateu fortemente à porta de uma habitação cujo exterior era muito humilde, sem descer do cavalo. Uma mulher de meia idade, cuja fisionomia não era mais agradável do que a casa, apresentou-se para lhe responder. Horrorizada ao ver, à claridade de um grande fogo de lenha, um homem a cavalo tão inopinadamente junto da soleira, cerrou a porta, e, com uma expressão de terror misturado a uma curiosidade natural, perguntou-lhe o que queria. Embora a porta não estivesse suficientemente aberta para que lhe fosse possível examinar o interior da casa, o cavaleiro vira o bastante, mesmo sem que os seus olhos apressados tentassem continuar a penetrar nas trevas, para procurar uma casa cujo aspecto prometesse mais. Não podendo recuar, porém, foi com uma repugnância mal disfarçada que deu a conhecer os seus desejos e necessidades. A mulher escutou-o com um ar de má vontade evidente e, antes que tivesse acabado, interrompeu-o num tom de confiança renovada dizendo-lhe agrestemente e com volubilidade:

- Não posso dizer que me importo de alojar um estranho nestes tempos difíceis. Estou só em casa ou, o que é a mesma coisa, está apenas o meu velho patrão e eu. Mas meia-milha daqui, pela estrada, há uma grande casa, onde será bem recebido e sem mesmo pagar nada. Convir-lhe-á melhor e a mim também, porque, como já disse, Harvey não está. Quereria que ele seguisse os meus conselhos e deixasse de correr o país; presentemente anda a tentar fazer o seu caminho no mundo; devia acabar com a vida errante e tornar-se mais ordenado. Mas Harvey Birch só faz o que lhe vem à cabeça e há-de morrer como um vagabundo.

Assim que o estrangeiro ouviu dizer que encontraria outra casa meia-milha mais longe, envolveu-se no casaco e, voltando as rédeas ao cavalo, dispunha-se a partir, sem procurar levar mais longe a conversa, mas o nome que acabava de ser pronunciado, fê-lo estremecer.

- O quê! - exclamou como que involuntariamente. - É então aqui a casa de Harvey Birch? - Ia dizer mais mas reteve-se e ficou silencioso.

- Não sei muito bem - respondeu a mulher - se se pode dizer que seja esta a sua casa, uma vez que ele nunca mora aqui ou pelo menos tão raramente que quase não me lembro da sua cara. Ele não parece achar conveniente mostrá-la todos os dias ao velho pai e a mim. Mas que me importa que venha ou não? não me importo nada...

- Tomará o caminho da esquerda - acrescentou a mulher. - É como lhe digo, não me ralo.

Com estas palavras, fechou bruscamente a porta e o viajante, encantado por poder esperar melhor abrigo, apressou-se na direcção indicada. O dia estava ainda suficientemente claro para que pudesse ver os melhoramentos que houvera na cultura das terras em volta do edifício do qual se aproximava. Era uma casa construída de pedra, longa, pouco elevada, e tendo uma pequena ala a cada extremidade. Um peristilo de colunas, que ornava a fachada, o bom estado de todos os edifícios, as sebes bem tratadas, que rodeavam o jardim, tudo indicava que os proprietários eram de um nível acima do dos quinteiros da região. Depois de ter conduzido o cavalo até junto de um ângulo do muro, onde ficava até certo ponto ao abrigo do vento e da chuva, bateu à porta sem hesitar. Um velho negro veio abri-la imediatamente. Assim que soube tratar-se de um viajante que pedia hospitalidade, não achou necessário consultar os patrões e, depois de ter lançado um olhar atento ao estrangeiro, à luz de um candeeiro que tinha na mão, mandou-o entrar para um salão muito limpo, onde fora acesa uma lareira para combater o cortante vento de leste e o frio de uma noite de Outubro. Depois de ter entregue a mala ao velho negro e de ter repetido o seu pedido de hospitalidade a um velho que se levantara para o receber, cumprimentou três senhoras que cosiam e começou a desembaraçar-se de uma parte do seu fato de viagem.

Depois de ter tirado um lenço colocado sobre a gravata, um casacão e uma redingote de fazenda azul, o estranho apresentou-se para exame da família reunida como um homem de grande estatura, com um ar muito gracioso e parecendo ter cinquenta anos. A sua fisionomia anunciava sangue-frio -e dignidade; o nariz direito tinha quase a forma grega; os olhos eram doces, pensativos e quase melancólicos; a boca e a parte inferior do rosto indicavam um carácter firme e resoluto; os fatos de viagem eram simples, mas de fazenda fina e semelhantes aos usados pela classe mais privilegiada dos seus concidadãos. A maneira como os cabelos estavam arranjados dava-lhe um ar militar, não desmentido pela sua figura direita e porte majestoso. Todas as suas maneiras pareciam tão decididamente as de um homem de bem que, quando acabou de se desembaraçar das vestimentas adicionais, as senhoras e o dono da casa levantaram-se para receber os repetidos cumprimentos que ele lhes dirigiu respondendo do modo mais delicado.

O dono da casa parecia ter mais alguns anos do que o desconhecido e as suas maneiras, bem como o seu trajo, provavam já ter conhecido o mundo.

As damas eram uma senhora solteira de quarenta anos e duas jovens que não pareciam ter atingido metade dessa idade. A mais velha das três tinha perdido a frescura; mas os grandes olhos, os belos cabelos, um ar de doçura e de amabilidade davam à sua fisionomia um encanto que falta muitas vezes a caras muito mais jovens. As duas irmãs, porque a sua semelhança indicava esse grau de parentesco entre elas, brilhavam com todo o esplendor da juventude e as rosas, que pertencem de modo tão eminente às beldades de West Chester, brilhavam nas suas faces e davam aos seus olhos de um escuro azul aquele brilho tão doce que indica a inocência e a felicidade. Todas três tinham o ar de delicadeza que distingue o belo sexo deste país e, assim como o velho, mostravam pelas suas maneiras que pertenciam a uma classe superior.

Depois de ter oferecido ao hóspede um copo de excelente vinho da Madeira, o Sr. Wharton voltou a sentar-se junto do fogo, com outro copo na mão. Depois de um momento de silêncio, como se consultasse a sua boa-educação, levantou os olhos para o estranho e perguntou-lhe num tom formal:

- À saúde de quem vou ter a honra de beber?

O estranho havia-se sentado igualmente e conservava os olhos fixos no fogo, enquanto o Sr. Wharton lhe falava. Levantando-se lentamente sobre o hospedeiro com um olhar que parecia ler-lhe na alma, respondeu, cumprimentando-o por sua vez, enquanto um ligeiro colorido se lhe espalhava nas faces:

- Senhor Harper.

- Pois bem, Sr. Harper, - continuou o dono da casa, com a precisão formal do tempo - bebo à sua saúde, e espero que não sofra qualquer inconveniente causado pela chuva que apanhou.

Uma inclinação de cabeça foi a única resposta que este cumprimento obteve e o Sr. Harper pareceu entregar-se inteiramente aos seus pensamentos.

As duas irmãs tinham continuado o trabalho e a tia, Jeannette Peyton, havia-se retirado, a fim de olhar pelos preparativos, indispensáveis para satisfazer o apetite do viajante que não era esperado. Seguiram-se alguns instantes de silêncio, durante os quais o Sr. Harper parecia gozar a mudança da situação. O Sr. Wharton rompeu-o em primeiro lugar para perguntar ao hóspede, no mesmo tom educado mas formal, se o fumo do tabaco o incomodava e, tendo recebido uma resposta negativa, voltou a pegar no cachimbo que tinha largado quando aquele chegara.

Era evidente que o Sr. Wharton desejava puxar conversa; mas retinha-se, ou pelo medo de se comprometer perante um homem cujas opiniões não conhecia, ou pela surpresa que a taciturnidade afectada do hóspede lhe causava. Por fim, um movimento feito pelo Sr. Harper ao levantar os olhos para as pessoas, que estavam no quarto, encorajou-o a retomar a palavra.

- É-me difícil, presentemente - disse, evitando cuidadosamente os assuntos de conversa que gostaria de puxar - arranjar a qualidade de tabaco a que estava habituado.

- Pensava - disse o Sr. Harper, com a sua gravidade usual - que se podia arranjar da melhor qualidade nas lojas de Nova York.

- Sem dúvida - respondeu o Sr. Wharton, hesitando e levantando primeiro para o hóspede uns olhos que a mirada penetrante deste fez baixar imediatamente - não deve faltar nessa cidade; mas, por mais inocente que possa ser o motivo das nossas comunicações com Nova York, a guerra torna-as demasiado perigosas para se correr tal risco por semelhante bagatela.

A caixa de que o Sr. Wharton tirara tabaco para encher o cachimbo estava aberta a pouca distância do cotovelo do Sr. Harper que escolheu dela uma folha e a levou à boca, de um modo muito natural, mas que encheu imediatamente de receio o companheiro. No entanto, sem referir que este era de primeira qualidade, o viajante descansou o hospedeiro ao voltar a cair nas suas reflexões; e o Sr. Wharton, não querendo perder a vantagem que tinha ganho, voltou a falar, fazendo um esforço enorme.

- Gostaria do fundo do coração - disse - que esta guerra contra a natureza acabasse e que tivéssemos apenas amigos e irmãos.

- Nada é mais de desejar - disse Harper com ênfase olhando fixamente, mais uma vez, para o rosto do hospedeiro.

- Não ouvi falar de nenhum movimento importante desde a chegada dos nossos novos aliados - disse o Sr. Wharton, sacudindo a cinza do cachimbo e voltado de costas para o estrangeiro, sob pretexto de receber o lume das mãos da filha.

- Creio que ainda não chegou nada aos ouvidos do grande público - disse Harper, cruzando as pernas com um ar do maior sangue-frio.

- Pensa-se que se esteja em vésperas de quaisquer medidas importantes? - continuou Wharton, ainda ocupado com a filha, mas interrompendo-se um instante, sem prestar atenção, na expectativa de uma resposta.

- Fala-se disso? - disse Harper, evitando dar uma resposta directa e tomando até um certo ponto o tom de indiferença afectada do hospedeiro.

- Oh! não se fala em nada especial - respondeu Wharton - mas, como sabe, é natural esperar-se por qualquer coisa, tendo em vista as forças que Rochambeau acaba de trazer.

Harper replicou apenas com um movimento de cabeça, que parecia indicar que partilhava essa opinião. O Sr. Wharton recomeçou a conversa, dizendo:

- Há mais actividade ao sul; Gates e Cornwallis parecem querer decidir a questão.

O viajante franziu as sobrancelhas e um ar de melancolia inscreveu-se-lhe por instantes na testa; os olhos chisparam um momento, com um raio de fogo, que anunciava uma fonte escondida de sentimento profundo; mas mal a mais jovem das duas irmãs teve tempo de o notar e já se tinha dissipado, dando lugar à calma habitual, que era o traço característico da fisionomia do estranho, e àquele ar de dignidade imponente, que é uma prova evidente do império da razão.

A irmã mais velha fez um ou dois movimentos na cadeira, antes de se aventurar a dizer, num tom quase de triunfo:

- O general Gates foi menos feliz com o conde de Cornwallis do que com o general Burgoyne.

- Mas o general Gates é inglês, Sara - disse a irmã mais nova, com vivacidade.

E corando até ao branco do olho, por ter ousado meter-se na conversa, voltou ao trabalho, esperando que não se fizesse qualquer reparo à sua observação.

O viajante tinha sucessivamente voltado os olhos para cada uma das irmãs, enquanto estas falavam, e um movimento quase imperceptível da boca anunciara nele uma nova emoção.

- Ousarei perguntar-lhe - disse ele à mais nova, no tom mais bem educado - que consequência tira desse facto?

A jovem corou ainda mais, com este apelo directo feito à sua opinião sobre um assunto do qual imprudentemente falara em frente de um desconhecido; mas, sendo obrigada a responder, disse depois de ter hesitado alguns instantes e não sem balbuciar um pouco:

- Nenhumas, senhor. Somente a minha irmã e eu temos opiniões um tanto diferentes em relação às proezas dos Ingleses.

Proferiu estas palavras com um sorriso expressivo, que indicava tanta inocência como candura e que respondia aos sentimentos ocultos daquele que acabara de falar.

- E quais são os pontos de vista em que diferem? - perguntou Harper, respondendo ao seu olhar animado com um sorriso de uma doçura quase paternal.

- Sara encara os Ingleses como invencíveis e eu não tenho a mesma confiança nas suas proezas.

O viajante escutou-a com aquele ar de indulgência de quem gosta de contemplar o ardor da juventude unida à inocência; mas não respondeu nada e fixando os olhos nos tições que ardiam na chaminé, voltou a cair na sua inicial taciturnidade.

Wharton esforçara-se inutilmente por descobrir quais os sentimentos políticos do hóspede. Nada havia de repugnante na fisionomia de Harper, mas não se lhe via nada de comunicativo: era evidente que estava de pé atrás. Vieram informar que o jantar estava servido e o dono da casa levantou-se para passar à sala de jantar, sem saber qual era o ponto importante do carácter do hóspede nas circunstâncias em que se encontrava o país. Harper ofereceu o braço a Sara Wharton e saíram juntos do salão, seguidos de Frances um tanto inquieta, sem saber se havia ferido a sensibilidade do hóspede do seu pai.

A tempestade estava então na sua maior força e a chuva, que batia com violência as paredes da casa, fazia nascer no coração de todos os convivas aquele sentimento de satisfação natural do homem que goza de todo o bem-estar, ao abrigo dos inconvenientes a que poderia encontrar-se exposto, quando se ouviram bater pancadas na porta. O velho negro acorreu e voltou quase imediatamente, para anunciar ao patrão que um segundo viajante, surpreendido pela tempestade, pedia também hospitalidade para a noite.

Ao ouvir-se a primeira pancada, dada com uma espécie de impaciência por este novo recém-chegado, o Sr. Wharton levantara-se da cadeira com um mal-estar evidente e, voltando rapidamente os olhos umas vezes para a porta outras para o convidado, parecia temer que esta segunda visita tivesse qualquer ligação com a primeira. Mal tinha tido tempo de ordenar ao negro, numa voz fraca, que mandasse entrar o novo estranho, abriu-se a porta e este apresentou-se. Parou um instante ao avistar Harper, e repetiu então da maneira mais formal o pedido que já mandara fazer pelo criado. A chegada desta nova personagem não agradava de modo algum a Wharton nem à sua família, mas o mau tempo e a incerteza das consequências que podia ter uma recusa de hospitalidade forçaram o ancião a aceitá-lo, embora contra-vontade.

"Miss" Peyton mandou voltar certos pratos que já tinham sido levantados e o novo hóspede foi convidado a fazer as honras aos restos de uma refeição que os outros convivas haviam já terminado. Desembaraçando-se de uma grande redingote, pegou tranquilamente na cadeira que lhe ofereciam e começou gravemente a satisfazer um apetite que não parecia difícil; mas entre cada garfada lançava um olhar inquieto para Harper, cujos olhos estavam fixos nele com uma atenção marcada. Por fim, enchendo um copo de vinho e fazendo um sinal com a cabeça na direcção daquele que parecia ocupado em examiná-lo, disse-lhe com um sorriso, ao qual não faltava uma certa amargura:

- Bebo a um mais amplo conhecimento, senhor.

A qualidade do vinho parecia ser do seu agrado, porque ao voltar a colocar o copo na mesa, os lábios fizeram um ruído que ressoou em toda a sala; e segurando a garrafa, conservou-a por instantes entre si e a luz, contemplando o claro e brilhante licor que esta continha.

- Creio que nunca nos vimos, senhor - disse com um ligeiro sorriso, observando os movimentos do recém-chegado.

- É possível - respondeu Harper.

E achando-se sem dúvida satisfeito com o exame, voltou-se para Sara Wharton junto da qual estava sentado e disse-lhe com muita doçura:

- Depois de ter estado habituada aos prazeres da cidade, deve sem dúvida achar a sua residência actual muito solitária?

- É impossível sê-lo mais. Desejo vivamente, assim como meu pai, que esta cruel guerra acabe, para que possamos voltar a encontrar os nossos amigos.

- E a menina, "miss" Frances, deseja a paz tão ardentemente como sua irmã?

- Certamente, e por muitas razões - respondeu esta, lançando um olhar tímido sobre aquele que a interrogava; e encontrando nova coragem na expressão de bondade que lhe viu na fisionomia acrescentou, com um sorriso animado, cheio de inteligência e amabilidade:

- Mas não a desejo à custa dos direitos dos meus concidadãos.

- Direitos! - repetiu a irmã num tom impaciente; - que direitos podem ser mais fortes do que os de um soberano? que dever pode ser mais poderoso do que o de obedecer àqueles que têm o direito natural de comandar?

- Sem dúvida, sem dúvida - disse Frances, segurando-lhe na mão com um ar divertido; e voltando-se para Harper:

- Disse-lhe, senhor - acrescentou sorrindo - que a minha irmã e eu não estamos sempre de acordo nas nossas opiniões políticas; mas temos um árbitro imparcial na pessoa do meu pai, que gosta dos Ingleses e dos Americanos e que não toma partido, nem por uns, nem pelos outros.

- É verdade - disse Wharton, lançando um olhar inquieto sobre cada um dos seus hóspedes. - Tenho amigos muito queridos nos dois exércitos e declare-se a vitória de um ou outro lado, isso vai custar-me muitas lágrimas.

- Suponho que não tem razão em temer que ela favoreça os Yankees(1) - disse o recém-chegado, deitando com muito sangue-frio outro copo de vinho da garrafa que admirara.

- Sua Majestade britânica pode ter tropas mais experimentadas - disse Wharton, num tom de reserva medrosa - mas os Americanos obtiveram grandes êxitos.

O Sr. Harper não pareceu dar atenção a estas observações e levantou-se da mesa, mostrando desejo de se retirar. Um criado foi encarregado de o conduzir ao quarto e seguiu-o, desejando boa-noite com delicadeza a todos os convivas; mas, mal tinha acabado de partir, o segundo viajante, deixando cair das mãos, a faca e o garfo, levantou-se devagarinho, aproximou-se da porta por onde acabara de sair o primeiro, entreabriu-a, escutou o barulho dos seus passos, que diminuía gradualmente, anunciou que aquele se afastava, e fechou-a no meio dos olhares surpreendidos e quase assustados dos companheiros. No mesmo instante, viu-se desaparecer a peruca ruiva que escondia belos cabelos negros, uma grande pala que lhe cobria metade do rosto e as costas curvadas que lhe dariam cinquenta anos.

- Meu pai! minhas irmãs! minha tia! - exclamou o estranho, que se tornara num belo jovem - terei enfim a felicidade de vos tornar a ver?

- Que o céu te abençoe, meu querido Henry, meu querido filho! - exclamou o pai, surpreendido mas encantado, enquanto as irmãs, com a cabeça apoiada sobre cada um dos seus ombros se desfaziam em lágrimas.

O velho e fiel negro, que desde a infância estivera na casa do actual patrão e a quem tinham dado o nome de César, como que para fazer contraste com o seu estado de degradação, foi o único estranho, testemunha da descoberta do filho do Sr. Wharton. Retirou-se, depois de ter apertado a mão que lhe estendia o jovem patrão e de a ter regado de lágrimas. O outro criado não voltou a aparecer na sala,

 

*1. Termo de desprezo, pelo qual os Ingleses designavam os Americanos. Demos já várias vezes a etimologia deste nome que é uma corrupção da palavra english pronunciada pelos índios, etc.

 

mas César reapareceu, pouco depois, no momento em que o jovem capitão exclamava:

- Mas quem é este Sr. Harper? Não terei de temer que ele me traia?

- Não, não, não, massa(1) Harry, - exclamou o africano, sacudindo a cabeça com um ar de confiança. - Eu ir no seu quarto, ele rezar a Deus; eu encontrá-lo de joelhos. Bom homem, que rezar a Deus, não trair bom filho que vir ver seu velho pai. Bom para um Skinner(2), não para um cristão.

César Thompson, como se chamava, César Wharton, como lhe chamavam no pequeno mundo em que era conhecido, não era o único a ter uma tão má opinião dos Skinners. Tinha convido, tinha talvez sido necessário aos chefes dos exércitos americanos nas vizinhanças de Nova York, empregar certos agentes subalternos para executar o plano de atormentar o inimigo. Não era o momento de fazer inquéritos muito rigorosos sobre os abusos, fossem estes quais fossem, e a opressão e a injustiça eram as consequências naturais de um poder que não era reprimido pela autoridade civil. Com o tempo, havia-se formado na sociedade uma ordem distinta cuja única ocupação, sob pretexto de patriotismo e amor da liberdade, parecia ser aliviar os concidadãos de todo o excesso de prosperidade temporal.

A ajuda da autoridade militar não faltava na ocasião para prestar mão-forte nestas distribuições salutares dos bens do mundo, e via-se muitas vezes um jovem oficial da milícia do Estado, portador de uma comissão, dar a sua sanção e imprimir uma espécie de carácter legal aos mais infames actos de pilhagem, e por vezes mesmo de assassínio.

É certo que os Ingleses empregavam também os estimulantes da lealdade quando encontravam um bom campo para a porem em acção. Mas os seus flibusteiros eram alistados, e as suas operações estavam submetidas a uma espécie de sistema. Uma longa experiência ensinara aos chefes a eficácia de uma força concentrada, e a menos que a tradição não faça uma grande injustiça aos seus feitos, o resultado não fez pequena honra à sua prudência. Este corpo recebera o expressivo nome de Vachers(3) provavelmente porque os seus feitos favoritos eram roubar os animais dos cultivadores.

César, porém, era demasiado leal para confundir as pessoas que tinham uma comissão de Jorge III com os soldados irregulares,

 

*1. É assim que os negros pronunciam, em geral, a palavra senhor (master).

  1. Magarefe. Deram esse nome a uma companhia de voluntários republicanos, tolerada mais do que autorizada, por causa das suas pilhagens e crueldades.
  2. Cow-boys. Vaqueiros.

 

cujos excessos vira muitas vezes, e à rapidez dos quais ele próprio não pudera escapar, apesar da sua escravatura e da sua pobreza. Os Vachers não receberam pois o mesmo tratamento que lhes deveria pertencer na severidade da observação do negro, quando disse que nenhum cristão, que ninguém a não ser um Skinner, podia trair um bom filho que honrava seu pai ao vir vê-lo com perigo da sua vida ou da sua liberdade.

 

O pai do Sr. Wharton nascera na Inglaterra, numa família cujo crédito parlamentar obtivera um lugar para o filho mais novo na colónia de Nova York. Este jovem, como tantos outros na mesma situação, acabara por se fixar no país; aí se casou e enviou para Inglaterra o único filho do seu casamento, para lá receber educação. Depois de ter feito a sua licenciatura numa das universidades da mãe-pátria, esse jovem ficou algum tempo na Grã-Bretanha para aprender a conhecer o mundo e desfrutar a vantagem de ver a sociedade da Europa. Mas, ao fim de dois anos, a morte do pai chamou-o à América e fê-lo entrar na posse de um nome honroso e de uma bela fortuna.

Era então moda pôr os jovens de certas famílias no Exército ou na Marinha da Inglaterra, para assegurar a sua promoção. A maior parte dos principais lugares nas colónias estavam ocupados por homens que haviam seguido a profissão das armas, e não era raro ver um veterano deixar a espada pelo arminho e ocupar o lugar mais elevado na hierarquia judiciária.

Segundo este sistema, o Sr. Wharton destinara o filho à carreira militar; mas a fraqueza de carácter deste pusera um obstáculo à realização do projecto.

Este jovem passara um ano a calcular as vantagens que lhe ofereciam os diferentes corpos de tropas nas quais podia servir quando sobreveio a morte do pai. O desafogo da sua situação, e o respeito testemunhado a um jovem que desfrutava de uma das maiores fortunas das colónias, obrigaram-no a fazer sérias reflexões sobre os seus ambiciosos projectos.

O amor decidiu o caso e Wharton, tornando-se esposo, deixou de pensar em fazer-se soldado. Durante vários anos, gozou de uma felicidade perfeita no seio da família, respeitado pelos concidadãos como um homem importante e cheio de integridade. Mas todos os seus prazeres lhe foram de certo modo retirados de uma só vez. O filho único, o jovem que apareceu no capítulo precedente, fizera o serviço militar no Exército inglês e voltara para o país natal pouco tempo antes do começo das hostilidades, com os reforços que o ministério julgara prudente enviar para as regiões da América setentrional onde reinava o descontentamento. As filhas haviam chegado a uma idade em que a sua educação exigia todas as facilidades que uma cidade pode oferecer. A mulher há vários anos com uma saúde delicada, mal tivera tempo de apertar o filho nos braços e saborear o prazer de ver toda a família reunida, quando rebentou a revolução, produzindo um incêndio que se estendeu desde a Jórgia até ao Maine. Ela viu então o filho obrigado a seguir a sua bandeira, para combater contra os membros da sua própria família nos Estados do Sul; este golpe foi demasiado doloroso para que a sua fraca constituição pudesse resistir e sucumbiu-lhe.

Em nenhuma outra parte do continente americano reinavam com mais intensidade do que nos arredores de Nova York, capital da colónia, os costumes ingleses e as opiniões aristocráticas. É certo que esta colónia havia sido fundada pelos Holandeses; mas os costumes e hábitos dos primeiros colonos tinham-se fundido pouco a pouco com os dos Ingleses, que acabaram por prevalecer. O que contribuía principalmente para isso eram as alianças frequentes que se faziam entre oficiais ingleses e as famílias mais ricas; de maneira que, no começo das hostilidades, a balança parecia inclinar-se a favor da Inglaterra. No entanto, o número daqueles que abraçaram a causa do povo foi suficientemente considerável para que se organizasse um governo independente e republicano, e o exército da confederação secundou-os com todo o seu poder.

A cidade de Nova York e o território adjacente não reconheceram todavia a nova república; mas a autoridade real só se manteve na colónia até onde as suas armas podiam chegar. Nesta situação, os lealistas(1) adoptaram naturalmente as medidas que melhor se adaptavam ao seu carácter e situação. Um grande número pegou nas armas para a defesa das antigas leis;

 

*1. Lealismo: lealdade no sentido de fidelidade ao príncipe; realismo.

 

e pelos esforços da sua bravura procuraram aguentar aquilo que consideravam defender os direitos do seu soberano e pôr os seus próprios bens ao abrigo de uma sentença de con fisco. Outros deixaram o país e foram procurar na mãe-pátria um asilo momentâneo, como lhes agradava esperar, contra as perturbações e perigos da guerra. Alguns, e não foram os menos prudentes, ficaram no lugar que os havia visto nascer, com a circunspecção que uma fortuna considerável lhes inspirava, ou talvez cedendo à influência do apego que alimentavam pelo palco da sua juventude.

O Sr. Wharton pertenceu ao número dos últimos. Depois de ter tomado a precaução de colocar na Inglaterra uma soma considerável que tinha em dinheiro, ficou em Nova York, parecendo exclusivamente ocupado com a educação das filhas; fosse de que lado fosse que a vitória se declarasse, esperava, com esta atitude prudente, evitar a confiscação dos seus bens; mas um dos seus parentes, que ocupava um dos primeiros lugares no governo da república nascente, disse-lhe que ficar na cidade que se havia tornado campo inglês, era aos olhos dos concidadãos quase a mesma coisa do que se tivesse emigrado para Londres e ele sentiu que a sua permanência em Nova York seria um crime imperdoável, se os republicanos triunfassem e, para não correr esse risco, resolveu deixar a cidade.

Possuía uma habitação conveniente no condado do West Chester e como há muitos anos tinha o hábito de ir lá passar os calores do Verão, estava mobilada e pronta a recebê-lo. A filha mais velha tinha já o seu lugar na sociedade das senhoras; mas Frances, a mais nova tinha necessidade de mais um ou dois anos para terminar a sua edu cação e aparecer com o brilho conveniente; pelo menos era o que pensava Jeannette Peyton; e como esta senhora, irmã mais nova da sua falecida mulher, deixara a sua casa na colónia da Virgínia com o devotamento e o afecto do seu sexo para vigiar a educação das sobrinhas órfãs, o Sr. Wharton considerou que as opiniões da cunhada tinham direito a um profundo respeito. Consequentemente, e segundo a sua opinião, os sentimentos do pai cederam ao interesse das filhas.

Wharton partiu para Sauterelles com o coração despedaçado pelo desgosto de se separar de tudo o que lhe restava de uma esposa que adorara, mas obedecendo àquela prudência que advoga fortemente a favor dos bens deste mundo, que possuía. Durante este tempo, as duas filhas e a tia ocuparam a bela casa que ele tinha em Nova York. O regimento a que pertencia o capitão Wharton fazia parte da guarnição permanente desta cidade e a presença do filho parecia ao Sr. Wharton uma protecção assegurada para as duas filhas e tranquilizava-o na sua ausência. Mas Henry era jovem, militar, estranho à suspeita, e nunca imaginaria que um uniforme pudesse esconder um coração corrompido.

Resultou daí que a casa do Sr. Wharton se tornou num lugar de encontro na moda para os oficiais do Exército real da mesma maneira que as de todas as outras famílias que julgaram dignas da sua atenção. As consequências destas visitas foram felizes para algumas famílias, funestas para um maior número, fazendo nascer esperanças que não deveriam nunca realizar-se e infelizmente ruinosas para uma grande parte delas. A riqueza bem conhecida do pai e, talvez, a presença de um irmão cheio de nobre e corajoso orgulho não deixavam nada a temer a este respeito para as jovens irmãs; mas era impossível que toda a admiração que testemunhavam pela figura elegante e feições agradáveis de Sara Wharton não produzisse sobre ela qualquer efeito. Atingira a maturidade precoce do clima e o cuidado que tivera em cultivar as suas graças davam-lhe a palma em beleza sobre todas as beldades de Nova York. Nenhuma delas prometia disputar-lhe essa superioridade a não ser, talvez, a irmã mais nova. Mas Frances estava apenas no começo dos seus dezasseis anos e toda a ideia de rivalidade entre elas estava longe do seu coração. Depois do prazer de conversar com o coronel Wellmere, Sara não conhecia outro maior do que contemplar os encantos nascentes da jovem Hébé, que brincava à volta dela com toda a inocência da juventude, com todo o entusiasmo de um carácter ardente e muitas vezes com a alegria maliciosa que lhe era natural.

Talvez porque os galantes militares que frequentavam a casa não dirigissem a Frances nenhum dos cumprimentos que dedicavam à irmã, no meio das suas eternas discussões sobre os acontecimentos da guerra, o certo é que os seus discursos produziram um efeito completamente oposto no espírito das duas irmãs. Era então moda entre os oficiais falar dos inimigos num tom de desprezo, e as narrações que se faziam das primeiras acções que tiveram lugar entre republicanos e realistas estavam sempre recheadas de sarcasmos. Sara encarava-as como sendo tudo verdade, mas Frances era mais incrédula e ainda mais se tornou quando ouviu um velho general inglês render justiça à conduta e bravura dos inimigos, a fim de obter essa mesma justiça para si próprio. O coronel Wellmere era um dos que se divertia mais com os ditos de espírito à custa dos Americanos: por isso era difícil ser o favorito de Frances, que o escutava com muita desconfiança e um pouco de ressentimento.

Num dia de Verão muito quente, o coronel e Sara estavam sentados num sofá do salão, ocupados numa escaramuça de olhares entremeada de pequenas frases. Frances bordava num bastidor, noutro canto da sala, quando Wellmere exclamou de repente:

- Que alegria vai espalhar pela cidade a chegada do exército do general Burgoyne, "miss" Wharton!

- Oh! será maravilhoso - respondeu Sara. - Diz-se que acompanham esse exército várias senhoras muito amáveis.

Frances levantou a cabeça, sacudindo os caracóis dos seus belos cabelos loiros:

- O caso é saber se lhe permitirão cá chegar - disse ela, num tom em que havia tanta malícia como ardor.

- Se lhe permitirem! - repetiu o coronel. - E quem poderia impedi-lo, se é assim que o general o quer, minha gentil Fanny?

Frances estava precisamente naquela idade em que os jovens são mais ciosos do seu lugar na sociedade, não sendo já uma criança e não sendo ainda mulher. A "minha gentil Fanny" era demasiado familiar para lhe agradar; baixou os olhos sobre o trabalho, as faces ficaram carmesim e respondeu num tom grave:

- O general Stark fez prisioneira, em tempos, a guarnição alemã, não será possível que o general Gates encare os Ingleses como demasiado perigosos para os deixar andar em liberdade?

- Oh! eram Alemães - replicou Wellmere picado por se ver na necessidade de se explicar -, tropas mercenárias; mas quando se tratar de regimentos ingleses, verá um resultado completamente diverso.

- Não há a menor dúvida - disse Sara, sem partilhar absolutamente nada o ressentimento do coronel contra a irmã, mas cujo coração estremecia de alegria ao pensar no triunfo futuro das armas inglesas.

- Poderia dizer-me, coronel - perguntou Frances, sorrindo maliciosamente e levantando de novo os olhos para Wellmere - se o lorde Percy de quem se fala acerca da batalha de Chevi Chase, era um dos antepassados do lorde do mesmo nome que comandava quando da derrota de Lexington?

- Na verdade, Frances - disse o coronel, procurando esconder sob o véu da brincadeira, o despeito que o devorava - está a tornar-se uma pequena rebelde. Aquilo que lhe agrada chamar derrota foi apenas uma retirada judiciosa..., uma... uma espécie de...

- De combate... a correr - disse a jovem, maliciosa, acentuando esta última palavra.

- Precisamente, menina. - Aqui o coronel foi interrompido por uma gargalhada cujo autor ainda não tinha sido apercebido.

O vento abrira uma porta de comunicação entre o salão em que se encontravam os três e outra pequena sala. Um belo jovem estava sentado à entrada desta e o seu ar sorridente anunciava que ouvira com prazer a conversa precedente. Levantou-se imediatamente, avançou para a porta, com o chapéu na mão e viram então aparecer um jovem de boa figura, cheio de graça, com a pele bastante morena e os olhos brilhantes, que conservavam ainda alguns traços de alegria à qual se entregara há pouco.

- Senhor Dunwoodie! - exclamou Sara com ar surpreendido. - Ignorava que estava cá em casa. Entre, aqui está mais fresco.

- Agradeço-lhe, Sara, mas tenho de partir. O seu irmão pusera-me de sentinela neste quarto, dizendo-me para esperar por ele; há uma hora que aqui estou e vou procurar encontrá-lo.

Sem entrar em mais explicações, cumprimentou as três senhoras com delicadeza, o coronel com um ar altivo e retirou-se.

Frances seguiu-o até ao vestíbulo e perguntou-lhe corando:

- Porque nos deixa, Dunwoodie? Henry não deve tardar. Dunwoodie pegou-lhe na mão.

- Ridicularizou-o admiravelmente, minha encantadora prima - disse-lhe ele. - Não esqueça nunca, não, nunca, o país onde nasceu. Lembre-se que se é neta de um Inglês, é filha de uma Americana, de uma Peyton.

- Seria difícil esquecê-lo - respondeu ela, sorrindo. - A minha tia dá-me frequentes instruções sobre a genealogia da família. Mas porque não fica?

- Parto para a Virgínia, minha amável prima- respondeu ele, apertando-lhe ternamente a mão - e tenho ainda muitas coisas a fazer antes de partir. Adeus, seja fiel à sua pátria; seja sempre Americana.

A jovem viva e ardente enviou-lhe um beijo com a mão, enquanto ele se retirava e, apoiando seguidamente as duas mãos nas faces escaldantes, subiu para o quarto para aí esconder a sua confusão.

Entre as ironias de Frances e o desdém mal disfarçado daquele jovem, o coronel Wellmere achava-se numa situação desagradável em frente da amada; mas, sem ousar entregar-se na sua presença a todo o ressentimento, contentou-se em dizer, erguendo-se com um ar de importância:

- Esse jovem dá-se grandes ares! É sem dúvida um marçano, ou caixeiro de uma loja?

A ideia daquilo a que se chama caixeiro de loja nunca se apresentara à imaginação de Sara relacionado com a pessoa do amável e elegante Peyton Dunwoodie. Olhou para o coronel, com um ar surpreendido.

- Estou a falar - disse ele - desse Sr. Dun... Dun...

- Dunwoodie! - exclamou Sara. - Está enganado; é um dos nossos parentes, um íntimo amigo de meu irmão. Fizeram os primeiros estudos juntos e só se separaram na Inglaterra, onde um entrou para o Exército e o outro para uma escola militar francesa.

- Onde ele gastou muito dinheiro para não aprender nada - disse Wellmere com um despeito mal disfarçado.

- Devemos desejá-lo, pelo menos -disse Sara - porque se diz que ele se irá juntar ao exército dos rebeldes. Chegou num navio Francês e é possível que volte a encontrá-lo no campo de batalha.

- Com todo o gosto - replicou o coronel. - Desejo a Washington centenas de heróis semelhantes.

E procurou mudar a conversa para outro assunto.

Soube-se algumas semanas depois desta conversa que o exército do general Burgoyne tinha deposto armas; e Wharton, vendo que a sorte balançava entre os dois partidos, a ponto de não se poder dizer por qual acabaria por se declarar, resolveu satisfazer inteiramente os seus concidadãos e contentar-se a si próprio fazendo vir as filhas para junto de si. "Miss" Peyton consentira em acompanhá-las e, desde essa altura, até ao momento em que começa esta história, tinham formado uma só família.

Sempre que a guarnição de Nova York fizera alguns movimentos, o capitão Wharton acompanhara-a e encontrara assim ocasião, sob a protecção de fortes destacamentos em operação nos arredores de Sauterelles, de fazer, à sucapa, duas ou três visitas à família: mas na época em que chegámos, há mais de um ano que esta não o via, e Henry, impaciente por abraçar os parentes, disfarçara-se como já vimos e chegara infelizmente num dia em que se encontrava um hóspede suspeito, numa casa onde raramente se viam estranhos.

- Acreditam que ele não tem qualquer suspeita? - perguntou Henry, depois de ter ouvido o que César acabara de dizer sobre os Skinners.

- Como poderá ter - respondeu Sara - quando mesmo o teu pai e as tuas irmãs não te reconheceram?

- Há nele qualquer coisa de misterioso - continuou o capitão - e os seus olhos fixaram-se em mim com demasiada perseverança para ser sem intenção. Parece-me mesmo que a sua cara não me é desconhecida. A recente morte do major André foi levada a efeito para dar certas inquietudes(1). Sir Henry ameaça-nos de represálias para vingar a sua morte; e Washington está tão firme como se tivesse metade do mundo às suas ordens. Os rebeldes encarar-me-iam neste momento como um sujeito mesmo a calhar para executar o seu plano, se tivesse a infelicidade de lhes cair nas mãos.

- Mas não és um espião, meu filho! - exclamou o Sr. Wharton, muito alarmado. - Não estás na linha dos rebeldes... quero dizer, dos Americanos; não há aqui nenhum motivo de espionagem.

- Isso poderia ser contestado. Os republicanos têm os seus piquetes na Planície-Branca; passei por lá disfarçado e poder-se-ia pretender que a visita que lhes faço não passa de um pretexto para encobrir outros projectos. Lembrem-se como foram tratados não há muito tempo por me terem enviado uma provisão de fruta para o Inverno.

- De acordo; mas isso foi graças aos caridosos cuidados de alguns bons vizinhos, que esperavam, ao fazer confiscar os meus bens, comprar algumas das minhas quintas por bom preço. Aliás só ficámos detidos um mês e Peyton Dunwoodie obteve a nossa libertação.

 

*1. Os Americanos mandaram enforcar o major André, como espião.

Sobre o major André, há uma obra interessante do marquês Barbé-Marbois, Conspiration d'Arnold.

 

- Nós! - gritou Henry, espantado. - O quê? as minhas irmãs foram presas? Não me disseste nada nas tuas cartas, Frances.

- Creio ter-te dito - respondeu Frances corando - que o teu velho amigo Dunwoodie teve as maiores atenções para com o pai e obteve a sua libertação.

- Disseste-me tudo isso, mas não me disseste que tu própria tinhas estado presa no campo dos rebeldes.

- No entanto é verdade, meu filho. Frances não quis deixar-me partir sozinho. Jeannette e Sara ficaram em Sauterelles, para cuidar da casa, e esta rapariguinha foi a minha companheira de cativeiro.

- E voltou mais rebelde do que nunca - disse Sara, com indignação. - Deveria parecer no entanto que a injustiça de que o nosso pai foi vítima a curaria de semelhante loucura.

- Que tens a responder a esta acusação, Frances? - perguntou o capitão, alegremente. - Dunwoodie conseguiu fazer-te odiar o teu rei mais do que ele próprio o odeia?

- Dunwoodie não odeia ninguém - respondeu Frances, com vivacidade e corando. - Aliás ele gosta de ti, Henry, e não posso ter dúvidas disso, porque ele disse-me e tornou-mo a dizer mais de cem vezes.

- Sim - exclamou Henry, batendo-lhe na face com um sorriso malicioso. - Disse-te também - perguntou-lhe em voz baixa - que gosta ainda mais da minha irmãzinha Fanny?

- Que loucura! - disse Frances. E, graças aos seus cuidados, em breve a mesa foi levantada.

 

Uma tempestade partida das montanhas que bordam o Hudson, e trazida pelos ventos de Leste, dura raramente menos de dois dias; por isso, quando os habitantes de Sauterelles se reuniram no dia seguinte para almoçar, a chuva batia com força em linha quase horizontal contra as janelas da casa, e era impossível homens ou animais exporem-se à tempestade. O Sr. Harper chegou em último lugar. Depois de ter examinado o estado do tempo, apresentou desculpas ao Sr. Wharton por se ver na necessidade de recorrer novamente à sua hospitalidade. Wharton respondeu-lhe delicadamente, mas a sua inquietação paternal dava-lhe um ar completamente diferente da resignação do hóspede. Henry voltara a envergar o disfarce, muito contra vontade, mas por deferência pelos desejos do pai. Harper e ele saudaram-se em silêncio. Frances julgou ver um sorriso malicioso nos lábios do primeiro, quando olhou para o irmão ao entrar na sala; mas esse sorriso estava apenas nos olhos, não parecia ter o poder de afectar os músculos do rosto e em breve deu lugar à expressão de benevolência que parecia o traço habitual da sua fisionomia. Os olhos de Frances voltaram-se um instante inquietos para o irmão, e voltando-se novamente para o hóspede desconhecido de seu pai, encontraram os de Harper, enquanto este tinha para com ela, com uma graça muito particular, uma daquelas pequenas delicadezas de mesa; e o coração da jovem, que tinha começado a palpitar violentamente, bateu tão moderadamente quanto o permite a juventude, a saúde e uma natureza cheia de vivacidade. Enquanto estavam ainda à mesa, César entrou e, tendo colocado em silêncio um pequeno embrulho ao lado do patrão, postou-se modestamente atrás deste, com uma mão apoiada nas costas da cadeira, numa atitude meio-familiar, mas profundamente respeitosa.

- O que é isto, César? - perguntou o Sr. Wharton, olhando para o embrulho com uma espécie de receio.

- Tabaco, patrão; bom tabaco; Harvey Birch trazer para o senhor de Nova York.

- Não me lembro de lho ter pedido - disse o Sr. Wharton lançando um olhar de soslaio sobre Harper. - Mas uma vez que ele o comprou para mim, é justo que lho pague.

Harper suspendeu por instantes o almoço, enquanto o negro falava. Os seus olhos dirigiram-se sucessivamente para o criado e para o patrão; mas continuou envolvido na sua reserva impenetrável.

Esta notícia pareceu dar prazer a Sara. Levantou-se precipitadamente e disse a César para mandar entrar Harvey Birch na sala; mas, lembrando-se imediatamente das atenções devidas a um estranho:

- Se o senhor Harper - acrescentou - perdoa a presença de um bufarinheiro...

Harper exprimiu o seu consentimento apenas com um movimento de cabeça; mas a benevolência inscrita nas suas feições era mais eloquente do que poderia ser a frase mais trabalhada, e Sara repetiu a ordem, com uma confiança na franqueza do desconhecido que não lhe deixou qualquer embaraço.

Havia nos vãos das janelas pequenos bancos de cana, meio escondidos pelas amplas pregas dos belos reposteiros de damasco que haviam ornado o salão de Queen Street e que, tendo sido transportados para Sauterelles, anunciavam de uma maneira agradável à vista as precauções que tinham sido tomadas contra a aproximação do Inverno. O capitão Wharton foi sentar-se na extremidade de um desses bancos, de maneira a que o cortinado o tornasse quase invisível enquanto Frances se apoderou do outro, com um ar de contrariedade que contrastava fortemente com a sua franqueza habitual.

Harvey Birch era vendedor ambulante desde a sua juventude. Era o que ele dizia, pelo menos, e os talentos que mostrava no exercício da sua profissão levavam a acreditar ser verdade. Supunham-no natural de uma das colónias situadas a leste e com base num ar de inteligência superior, que se podia notar no seu velho pai, pensava-se que eles tinham vivido dias mais felizes na terra natal. Quanto ao filho, nada parecia distingui-lo das pessoas da sua classe senão a sua habilidade na profissão e o mistério que cobria todas as suas operações. Havia dez anos que tinham chegado ambos a este vale e ali compraram a humilde choupana à porta da qual o Sr. Harper batera primeiro inutilmente.

Ali viveram pacificamente, quase ignorados, e sem procurar darem-se a conhecer.

Enquanto Harvey se ocupava do seu negócio, com uma actividade infatigável, o pai cultivava o pequeno jardim e bastava-se a si mesmo; a ordem e a tranquilidade que reinavam em sua casa, tinha atraído suficiente consideração na vizinhança para decidir uma donzela de trinta e cinco anos a entrar ao seu serviço para se encarregar de todos os cuidados domésticos. As cores que outrora haviam florido no rosto de Katy Haynes há muitos anos tinham murchado; vira sucessivamente todos os seus conhecimentos dos dois sexos contraírem uma união que lhe parecia muito desejável, sem esperança de alguma vez alcançar o mesmo objectivo, quando, com os seus pontos de vista particulares entrou para a família dos Birch. Era asseada, trabalhadora, honesta, boa dona de casa; mas, por outro lado, era faladora, supersticiosa, egoísta e curiosa. À força de procurar com perseverança todas as ocasiões de satisfazer esta última tendência, ainda não vivera cinco anos nesta família e já se encontrava em estado de declarar com um ar de triunfo que sabia tudo o que tinha acontecido ao pai e ao filho no decurso das suas vidas. Todavia, a verdade é que todo o seu saber se reduzia a ter ouvido, à força de escutar às portas, que um incêndio os mergulhara na indigência e reduzira a dois o número de indivíduos que compunham em tempos esta família. A menor alusão a esse fatal acontecimento dava à voz do pai um tremor com o qual nem mesmo o coração de Katy podia impedir-se de ficar comovido.

Nenhuma barreira bastava, porém, para deter uma curiosidade sem delicadeza e ela persistia de tal modo em querer satisfazê-la que Harvey, ameaçando-a de dar o lugar a uma mulher com menos alguns anos, avisou-a seriamente de que havia limites que não lhe seria prudente ultrapassar. Desde essa época, a sua curiosidade vivia constrangida e, embora não deixasse de aproveitar nunca uma única ocasião de escutar, pouco pudera acrescentar ao tesouro dos seus conhecimentos. Havia, no entanto, um segredo, que não deixava de ter interesse para si própria, que conseguira descobrir; e desde o instante em que fez essa descoberta, dirigiu todos os seus esforços para a realização de um projecto inspirado pelo duplo estimulante do amor e da cupidez.

Harvey tinha o hábito de fazer visitas frequentes, misteriosas e nocturnas, à chaminé da sala que servia de cozinha e casa de jantar. Katy espiou o que ele aí fazia e, aproveitando um dia da ausência deste e das ocupações do pai, levantou uma das pedras da lareira, e descobriu um vaso de ferro no qual brilhava um metal que raramente deixa de enternecer os corações mais duros. Conseguiu voltar a colocar a pedra de maneira que não se pudesse aperceber da visita que fizera ao tesouro, e nunca se aventurou a fazer-lhe uma segunda. Mas, desde esse momento, o coração da vestal perdeu a insensibilidade e nada se opunha à felicidade de Harvey senão a sua falta de observação.

A guerra não trouxe qualquer interrupção ao tráfico do vendedor. Os entraves sentidos pelo comércio regular eram mesmo uma circunstância favorável para o seu. Ele parecia apenas ocupado com um projecto, o de ganhar dinheiro; durante os dois primeiros anos da insurreição, nada o perturbou nas suas operações, e o êxito correspondeu ao seu trabalho. Nessa época espalharam-se rumores desagradáveis a seu respeito; uma espécie de mistério que cobria todos os seus movimentos tornava-o suspeito às autoridades civis e estas julgaram propositado examinar de perto o seu modo de vida. As suas detenções, embora frequentes, não foram de longa duração e as medidas tomadas contra ele pelo poder judiciário pareceram-lhe cheias de doçura, em comparação com as perseguições que a justiça militar o fazia suportar. No entanto, Birch sobreviveu-lhes e não deixou de continuar o seu comércio; mas foi obrigado a ter mais reserva nos seus movimentos, sobretudo quando se aproximava dos limites setentrionais do condado- isto é; das vizinhanças das linhas americanas. As suas visitas a Sauterelles tornaram-se menos frequentes e as que fazia à sua própria casa tão raras que Katy, contrariada nos seus projectos, não pudera na plenitude do seu coração impedir-se de se lamentar ao responder a Harper, como relatámos mais acima.

Alguns instantes depois de ter recebido as ordens da jovem patroa, César mandou entrar para a sala o indivíduo que foi objecto da digressão precedente. Era um homem de grande estatura, magro, mas nervoso e vigoroso. Parecia vergar ao peso do fardo que carregava e no entanto movimentava-o com a mesma facilidade como se estivesse cheio de penas. Os olhos cinzentos e encovados, dotados de uma extraordinária mobilidade, pareciam, quando paravam um momento sobre a fisionomia daqueles com quem conversava, ler até ao fundo das suas almas: possuíam no entanto duas expressões bem distintas, e era isso em grande parte o que os caracterizava. - Quando se ocupava dos assuntos do seu negócio, o seu rosto parecia vivo, activo e inteligente até ao mais alto grau; se a conversa incidia sobre os assuntos comuns da vida, tomava um ar distraído e impaciente; mas se por acaso a revolução ou as colónias eram o assunto desta, operava-se nele uma mudança total; todas as suas faculdades se concentravam; escutava durante muito tempo sem pronunciar uma única palavra, e então rompia o silêncio com um tom de ligeireza e brincadeira muito contrária à sua maneira precedente, para não ser fingida. Mas não falava da guerra senão quando lhe era impossível evitá-lo e não era menos reservado no que respeitava a seu pai.

Um observador superficial acreditaria ser a cupidez a sua paixão dominante e, considerando bem, Katy Haynes não poderia ter encontrado uma pessoa menos conveniente para a execução dos seus projectos.

Ao entrar no salão, o bufarinheiro desembaraçou-se do fardo, o qual, colocado no chão, se elevava quase à altura dos seus ombros, e cumprimentou toda a família com uma civilidade modesta.

Dirigiu o mesmo acto de boa-educação ao Sr. Harper, mas em silêncio e sem levantar os olhos do tapete. O cortinado impede-o de prestar atenção ao capitão Wharton.

Sara deixou-lhe pouco tempo para estas formalidades usuais, porque começou imediatamente a passar em revista o interior do fardo e, durante alguns minutos, o vendedor e ela ocuparam-se apenas em ver as mercadorias que este continha. As mesas, as cadeiras e o tapete em breve se cobriram de sedas, crepes, musselinas, luvas e tudo o que compõe a base do comércio de um bufarinheiro. César ocupava-se com as duas mãos em manter o saco aberto, enquanto dele iam tirando os diversos objectos que continha e, de tempos a tempos, tentava dirigir o gosto da jovem patroa, convidando-a a admirar certos adereços que ele julgava dignos de mais atenção, tendo em vista que as cores eram mais vivas. Por fim Sara, tendo escolhido alguns objectos cujos preços foram fixados de modo a satisfazê-la, disse numa voz bem disposta:

- Mas ainda não nos contou nenhuma novidade, Harvey. Lorde Cornwallis bateu outra vez os rebeldes?

O vendedor podia não ter ouvido esta pergunta, porque tinha a cabeça enfiada no saco, tirando deste um embrulho de rendas muito finas que convidou as senhoras a examinar com a atenção que mereciam. A chávena que "miss" Peyton estava ocupada em passar por água escapou-se-lhe das mãos e Frances mostrou o seu rosto amável, do qual até então não deixara aperceber senão uns olhos brilhantes de vivacidade, vendo-se então as suas faces com um colorido do qual o damasco poderia ter ciúmes.

A tia deixou a sua ocupação e Birch em breve vendeu uma parte considerável dessa preciosa mercadoria. O elogio que dela fizeram levou Frances a mostrar-se sem reserva, levantando-se lentamente para deixar a janela quando Sara repetiu a pergunta num tom de triunfo causado mais pela satisfação que lhe dava a compra que fizera do que por sentimentos políticos. A irmã mais nova voltou para o lugar no vão da janela e pareceu ocupar-se em olhar para os movimentos das nuvens e o vendedor, vendo que não podia dispensar-se de responder, disse com uma espécie de hesitação:

- Ouvi dizer que Tarleton derrotou o general Sumpter perto do rio do Tigre.

Neste momento, o capitão Wharton avançou involuntariamente a cabeça para dentro da sala, de entre os dois cortinados, e Frances, conservando-se em silêncio e mal respirando, reparou que os olhos tranquilos do Sr. Harper se fixavam no bufarinheiro, por cima do livro que fingia ler, com uma expressão que anunciava estar a escutar com um interesse pouco comum.

- Na verdade! - exclamou Sara com um ar triunfante. - Sumpter...

- Quem é esse Sumpter? Não lhe comprarei nem mais um alfinete enquanto não me contar todas as notícias.

Continuou a rir e lançou sobre a mesa uma peça de musselina que examinava.

O vendedor hesitou um instante; lançou um olhar rápido a Harper, que continuava com os olhos fixos sobre si com um ar expressivo e então produziu-se nele uma mudança total nos seus modos. Aproximando-se do fogo, desembaraçou a boca sem respeito pelas maneiras brilhantes de "miss" Peyton, de uma grande provisão de erva da Virginia(1) e do supérfluo de sucos que desta tinha obtido; voltando então até junto das suas mercadorias, disse num tom mais animado:

- Vive algures entre os negros do Sul.

- Ele ser tão negro como o senhor, patrão Birch - exclamou César com vivacidade; e deixou cair com ar mal humorado a tela que servia de resguardo às mercadorias.

- Silêncio, César, silêncio! Não pense nisso agora - disse Sara procurando amansá-lo e morrendo de impaciência por saber mais.

- Homem negro valer tanto como branco, menina Sally - continuou o africano ofendido.

- E muitas vezes até muito mais - disse a patroa. - Mas quem é esse Sumpter, Harvey?

Uma ligeira expressão de alegria maliciosa surgiu na fisionomia do vendedor, enquanto respondia:

- Como lhe dizia, vive no Sul entre a gente de cor(2) (César continuou na ocupação que tinha abandonado) e teve muito recentemente uma escaramuça com esse coronel Tarleton.

- Na qual foi batido - disse Sara. - O que tinha de acontecer.

- É pelo menos o que dizem em Morrisania - acrescentou o bufarinheiro.

- Mas o senhor, que lhe parece? - perguntou o Sr. Wharton hesitando, e quase a meia-voz.

- Só posso repetir o que oiço dizer aos outros - respondeu Harvey, apresentando uma peça de tecido a Sara, que nem mesmo quis deitar uma vista de olhos, decidida a saber mais antes de fazer qualquer outra compra.

- Na planície, diz-se - continuou Harvey, depois de ter passado os olhos pela sala e de os ter detido um instante sobre Harper -, que não houve feridos no lado dos Americanos,

 

*1.Tabaco. Estes pormenores, com os quais o gosto Francês pode ofender-se, lembram que Cooper foi marinheiro antes de ser escritor.

  1. Havia muitos mais escravos nas colónias do Sul que nas do Norte.

 

senão Sumpter e mais dois, e que as tropas regulares foram esquartejadas: porque os milicianos tinham-se colocado em vantagem, num celeiro construído com troncos de árvores.

- Creio - disse o vendedor num tom calmo, oferecendo-lhe de novo a peça de seda - que há mais espírito em pôr um tronco de árvore entre uma espingarda e nós próprios do que em nos pormos entre uma espingarda e um tronco de árvore.

O olhar de Harper voltou a cair suavemente sobre o livro e Frances, levantando-se, aproximou-se do bufarinheiro sorrindo e perguntou-lhe, com uma afabilidade que nunca lhe tinha mostrado:

- Tem mais rendas, senhor Birch?

Este mostrou-lhas imediatamente e Frances comprou por sua vez. Mandou dar um copo de licor ao vendedor, que, depois de lhe ter agradecido, brindou ao dono da casa e às três senhoras, e bebeu-o à sua saúde.

- Pensa-se então que o coronel Tarleton levou a melhor ao general Sumpter? - disse Wharton, examinando os fragmentos da chávena partida pela cunhada.

- Creio que se pensa assim em Morrissania - respondeu Birch.

- Eh! amigo, sabe outras notícias? - perguntou o capitão Wharton, aventurando-se de novo a avançar a cabeça por entre os dois cortinados.

- Ouviu dizer que o major André foi enforcado? - respondeu-lhe Harvey acentuando as palavras.

Trocaram-se alguns olhares expressivos, entre o capitão e o vendedor, e Harvey acrescentou num tom de indiferença:

- Já se passaram cinco semanas sobre esse acontecimento.

- Essa execução dá muito que falar? - perguntou o pai examinando se os fragmentos da chávena podiam unir-se.

- Sabe que não se pode impedir que as pessoas falem - respondeu o vendedor, continuando a mostrar as suas mercadorias às três senhoras.

- Será provável que qualquer movimento de tropas torne as estradas perigosas para um viajante? - perguntou o Sr. Harper com os olhos fixos em Harvey, num ar que anunciava esperar uma resposta.

A esta pergunta, Birch deixou cair alguns embrulhos de fitas que tinha na mão; a expressão da sua fisionomia mudou de repente e, em vez de responder com aquele ar de despreocupação que afectara até então, tomou um tom grave, que parecia querer dar a entender muito mais do que ousava dizer.

- Há algum tempo - disse - que a cavalaria regular está em campanha e, ao passar perto dos seus quartéis, vi soldados de Delancey a limparem as armas; e não seria de espantar que em breve se pusessem a caminho, porque a cavalaria da Virgínia entrou no condado.

- Está em grande força? - perguntou o Sr. Wharton, inquieto e deixando de se ocupar da chávena.

- Não a contei - respondeu o vendedor, que continuou as suas operações comerciais.

Frances foi a única a notar a mudança que acabava de se operar nas maneiras de Birch e, voltando-se para Harper, viu-o com os olhos fixos no livro. Pegou numa peça de fita, colocou-a na mesa, tornou a pegar-lhe e, curvando-se para as mercadorias, a ponto de os caracóis dos seus belos cabelos lhe cobrirem o rosto, disse com uma vermelhidão que se podia observar apenas no pescoço:

- Julgava que a cavalaria do Sul tinha marchado em direcção ao Delaware.

- É possível - respondeu Harvey. - Passei a uma certa distância desse rio.

César escolhera uma peça de pano de algodão, em que o vermelho e o amarelo se destacavam vivamente sobre um fundo branco e, depois de a ter admirado durante instantes, voltou a pô-la sobre a mesa e disse suspirando:

- Ser bem bonito este algodão, menina Sara!

- Sim, faria um bonito vestido para a sua mulher, César.

- Ah! menina Sara! fazer dançar de alegria o coração de velha Diná! Ser tão bonito, este algodão!

- Sim - disse o bufarinheiro num tom manhoso. - Faria Diná parecer-se com um arco-íris.

César continuava com os olhos fixos em Sara, que, começando a sorrir, perguntou a Harvey o preço do algodão.

- Depende - respondeu ele.

- Como, depende - disse Sara surpreendida.

- Sem dúvida - continuou Birch - segundo as práticas que utilizo; mas para a minha amiga Diná, serão apenas quatro xelins.

- É muito caro - disse Sara, procurando outras mercadorias para si própria.

- Ser um preço monstruoso! - exclamou César, voltando a deixar escapar das mãos a abertura do saco.

- Está bem! - disse Harvey. - Abatemos para três, se gosta assim tanto.

- Sem dúvida, mim gostar tanto - disse o negro alegremente, voltando a pegar no saco. - Menina Sara gostar mais três xelins quando ela dar e quatro quando ela receber.

O negócio foi concluído imediatamente; mas, ao medir o tecido, viu-se que faltava qualquer coisa para as dez jardas que se sabia serem necessárias para Diná. No entanto, à força de puxar pelo tecido com um braço vigoroso, o experimentado bufarinheiro conseguiu encontrar a medida requerida mas teve suficiente consciência para juntar gratuitamente uma fita que combinava bem com as cores brilhantes do pano de algodão, e César saiu à pressa, para anunciar esta boa notícia à sua velha Diná.

Enquanto se ocupavam desta compra, o capitão Wharton adiantara-se por entre as duas cortinas, de maneira a colocar-se completamente à vista, perguntando então ao vendedor, que começava a arrumar o fardo, quando tinha este deixado Nova York.

- Esta manhã, ao romper do dia - respondeu Birch.

- Há tão pouco tempo! - exclamou o capitão num tom de surpresa; mas pondo-se de novo em guarda, acrescentou com um ar mais indiferente:

- E como conseguiu passar os piquetes?

- Passei-os - respondeu Harvey, com uma frieza lacónica.

- Já deve ser muito conhecido dos oficiais do exército inglês- disse Sara.

- Conheço alguns de vista - respondeu o vendedor. E, passando os olhos em redor da sala, deteve-os um momento primeiro sobre o capitão e seguidamente sobre o Sr. Harper.

O Sr. Wharton tinha ouvido sucessivamente com atenção todos os que haviam falado e perdera de tal modo todo o fingimento de indiferença que partiu os fragmentos da chávena de porcelana que havia examinado tanto tempo, para ver se podiam ser colados. Vendo o vendedor ajustar o último laço do fardo, disse vivamente:

- Vamos então ser novamente inquietados pelo inimigo?

- A quem chama o senhor os inimigos? - perguntou Harvey Birch, erguendo-se e lançando sobre o Sr. Wharton um olhar que o fez baixar os olhos com um ar confuso.

- Todos aqueles que perturbam a nossa paz, são nossos inimigos - disse "miss" Peyton, notando que o cunhado não estava em estado de falar. - Mas as tropas reais saíram dos seus acantonamentos?

- É provável que o façam em breve - respondeu o vendedor, levantando o saco e fazendo os preparativos para partir.

- E os Americanos - continuou "miss" Peyton docemente - estão em campanha?

A chegada de César e da sua velha e fiel companheira, cujos olhos brilhavam de alegria, evitou a Birch o embaraço da resposta.

César pertencia a uma classe de negros que de dia para dia se tornava mais rara. Já não vemos hoje esses velhos servidores, que, nascidos ou pelo menos criados na casa dos patrões, identificavam os seus interesses com os dos indivíduos a quem o destino os obrigava a servir. Esta classe deu lugar a essa raça de vagabundos, que há trinta anos se vê crescer, e que rondam por todo o país, sem ligações com ninguém e sem serem retidos por qualquer princípio; pois este é um dos flagelos da escravatura, que aqueles que dela foram vítimas se tornaram incapazes de adquirirem as qualidades próprias do homem livre.

A idade dera aos cabelos curtos e encarapinhados de César um tom acinzentado que aumentava muito o seu ar venerável. O uso do pente, repetido durante muito tempo e com muita assiduidade, conseguira domar os cabelos sobre a testa, a ponto de os ter hirtos e direitos sobre a cabeça, o que parecia acrescentar pelo menos duas polegadas à sua estatura. A pele, de um negro brilhante em novo, perdera todo o lustro e tornara-se castanho escura. Os olhos, colocados a uma distância formidável um do outro, eram pequenos, mas caracterizados por uma expressão de bom humor, que só era interrompida por curtos acessos de petulância, que se desculpavam num velho servidor; mas neste momento estavam animados pela mais viva alegria. Ao nariz não faltava nada do que constitui o sentido do olfacto, mas tinha suficiente modéstia para não se evidenciar e as largas narinas não incomodavam nunca aqueles de quem se aproximava. A boca, fendida de orelha a orelha, era suportável devido às duas fieiras de pérolas que nela se encontravam. A estatura era pequena e poderíamos dizer quadrada, se as linhas curvas e angulosas que nela se notavam não fossem um obstáculo invencível a qualquer simetria geométrica. Os braços longos e nervosos terminavam por duas mãos emagrecidas, que mostravam de um lado um cinzento a atirar para preto e do outro um vermelho deslavado. Mas foi nas pernas que a natureza se mostrou mais fantasista. As barrigas das pernas não estavam colocadas atrás, nem à frente, mas de lado e tão perto do joelho, que era duvidoso que ele tivesse livre uso desta articulação. Quanto ao pé considerando-o como base sobre a qual o corpo se deve apoiar. César não tinha razão para se queixar, a não ser de que a perna estava colocada tão perto do centro que se poderia perguntar se ele não andava às arrecuas. Mas, apesar de alguns defeitos que um escultor pudesse encontrar na sua conformação o coração de César estava sem dúvida bem situado e era de uma dimensão conveniente.

Vinha com a velha companheira oferecer um tributo de agradecimento a Sara, que os recebeu com bondade, dando cumprimentos ao marido pelo seu bom gosto e assegurando à mulher que o tecido lhe ficaria maravilhosamente. Frances aproximou-se de Diná, que fora sua ama, pegou na mão enrugada e seca desta entre as suas e disse-lhe com um sorriso que correspondia perfeitamente ao ar de prazer do negro e da mulher, que se iria ocupar ela própria de fazer o vestido, oferta que foi aceite com novas expansões de reconhecimento.

O bufarinheiro saiu. César e a mulher seguiram-no; e enquanto o velho negro fechava a porta, ouviram-no fazer o seguinte solilóquio:

- Boa patroazinha! Menina Frances cuidar muito bem do seu velho pai e querer ainda fazer o vestido de Diná.

Não se soube o que disse seguidamente, mas o som da sua voz fazia-se ainda ouvir já depois de ter fechado a porta, embora não fosse possível distinguir as palavras.

O Sr. Harper deixara cair o livro sobre os joelhos, para dedicar toda a atenção a esta pequena cena, e Frances gozou de dupla satisfação ao ver um sorriso de aprovação num rosto que, mostrando o hábito da meditação e da reflexão, oferecia a expressão de todos os sentimentos mais honrosos do coração humano.

 

Um profundo silêncio reinou durante momentos depois da partida do bufarinheiro. Wharton ouvira o suficiente para sentir novos receios relativamente ao filho. O capitão desejava do fundo do coração que Harper estivesse em qualquer outro lugar, mas não no que ocupava neste momento com uma calma aparentemente tão perfeita. "Miss" Peyton preparava o almoço com um ar de benevolência que lhe era natural, aumentado talvez com um pouco de satisfação interior pela compra que fizera de uma boa parte das rendas do vendedor. Sara examinava e arrumava as mercadorias que comprara e Frances ajudava-a gentilmente, sem pensar nas suas próprias compras. O desconhecido rompeu o silêncio de repente.

- Se é por minha causa - disse - que o capitão Wharton conserva o disfarce, aconselho-o a banir qualquer temor e a desenganar-se. Se ti vesse quaisquer motivos para o trair, não teriam força nas presentes circunstâncias.

Frances caiu sobre a cadeira, pálida e interdita. O bule, que "miss" Peyton segurava, escapou-se-lhe das mãos; Sara ficou muda de surpresa sem pensar mais nas compras espalhadas sobre os joelhos; o Sr. Wharton ficou como que estupefacto; mas o capitão, depois de ter hesitado um instante, em consequência do espanto, correu para o meio da sala e arrancou tudo o que lhe servia de disfarce.

- Acredito em si - exclamou - acredito em si do fundo do coração e o disfarce para o diabo! Mas como conseguiu reconhecer-me?

- Tem tão boa cara ao natural, capitão - disse Harper, com um ligeiro sorriso - que o aconselho a nunca se esconder. Supondo que eu não tinha outros meios de o reconhecer, julga que isto não é o suficiente para o descobrir? - E ao mesmo tempo mostrou-lhe um retrato suspenso na parede, representando um oficial inglês em uniforme.

- Sentia-me lisonjeado - disse Henry, rindo - por ter melhor aspecto nesse quadro do que sob o meu disfarce. É preciso ser bom observador, senhor.

- A necessidade obriga-me a isso - respondeu Harper levantando-se. Avançava para a porta quando Frances, precipitando-se ao seu

encontro, lhe agarrou numa das mãos que apertou entre as suas, e lhe disse sem disfarces e com o rosto coberto do mais vivo encarnado:

- O senhor não trairá o meu irmão! é impossível que o traia!

Harper parou, ficou por momentos com os olhos fixos na gentil rapariga, com ar de admiração e, apoiando a mão sobre o coração, disse-lhe num tom solene:

- Não o devo fazer, não quero e não posso.

Estendendo então uma mão sobre a cabeça de Frances, acrescentou:

- Se a bênção de um estranho tem qualquer preço aos seus olhos, recebe-a, minha filha.

As poucas palavras que Harper acabava de pronunciar, o tom e a maneira que as tinham acompanhado, produziram uma profunda impressão em todos os que haviam sido testemunhas desta cena e todos, excepto o pai, sentiram um grande alívio. Foram-se buscar alguns fatos do capitão que tinham sido trazidos da cidade quando a família a deixara, e o jovem Wharton, encantado por se sentir livre de qualquer constrangimento, começou finalmente a gozar o prazer que tinha prometido a si próprio ao expor-se a tantos perigos para fazer esta visita ao pai e às irmãs. Depois de o Sr. Wharton se retirar, para se entregar às suas ocuDações habituais, as três senhoras e o jovem ficaram durante uma hora a desfrutar o prazer de uma conversa sem constrangimento, sem pensar um só instante que pudesse haver qualquer perigo a temer. A cidade de Nova York e os conhecimentos que ali tinham não foram esquecidos muito tempo, porque "miss" Peyton, que nunca esquecera as horas agradáveis que lá passara, pediu ao sobrinho, entre outras coisas, notícias do coronel Wellmere.

- oh! - disse o capitão alegremente - continua na cidade, tão galante e tão requintado como sempre.

Mesmo que o amor não exista no coração de uma mulher, é raro que ela oiça sem corar o nome de um homem que poderia amar, e cujo nome foi ligado ao seu pelos rumores do dia e mexericos da sociedade. Tal era a situação em que Sara se encontrara em Nova York, e esta baixou os olhos para o tapete com um sorriso, que, ajudado pela vermelhidão que lhe cobria as faces, não a fazia perder nada dos seus encantos.

O capitão Wharton não deu atenção a esta espécie de embaraço, que a irmã sentia.

- Está algumas vezes melancólico - continuou - e nós dizemos-lhe que deve estar apaixonado.

Sara levantou os olhos para o irmão, e voltava-os para o resto da companhia quando encontrou os de Frances, que exclamou rindo a perder:

- Pobre homem! Está desesperado?

- Não o creio - respondeu o capitão. - Que motivo teria para desesperar o filho mais velho de um homem rico, que é jovem, bem feito e coronel?

- São razões poderosas para ter êxito - disse Sara esforçando-se por rir - principalmente a última.

- Permite-me que te diga - replicou Henry gravemente - que um posto de tenente-coronel na guarda tem o seu mérito.

- Oh! o coronel Wellmere é um homem perfeito! - disse Frances com um sorriso irónico.

- Sabemos muito bem, minha irmã-replicou Sara, com um movimento mal-humorado - que o coronel nunca teve a felicidade de te agradar. Acha-lo demasiado leal, demasiado fiel ao seu rei.

- Henry sê-lo-á menos? - perguntou Frances docemente, segurando na mão do irmão.

- Então, então - exclamou "miss" Peyton - que não haja diferenças de opinião sobre o coronel; declaro que é um dos meus favoritos.

- Frances gosta mais dos majores - disse Henry, com um sorriso malicioso, puxando a irmã para os joelhos.

- Que loucura! - exclamou Frances, corando e procurando escapar-se-lhe.

- O que me surpreende - continuou o capitão - é que Dunwoodie, ao libertar o meu pai do cativeiro, não tenha procurado reter Frances no campo dos rebeldes.

- Isso poderia ter posto a sua própria liberdade em perigo - disse Frances, com um sorriso malicioso, voltando a sentar-se na cadeira. - Sabes que o major Dunwoodie combate pela liberdade.

- A liberdade! - repetiu Sara. - Bonita liberdade a que é dada por cinquenta chefes em vez de um só!

- O privilégio de mudar de senhores é pelo menos uma liberdade - disse Frances, com um ar de bom-humor.

- E é um privilégio de que as senhoras gostam por vezes de desfrutar - acrescentou o capitão.

- Creio que gostamos de escolher aqueles que deverão ser nossos chefes - disse Frances, sempre num tom de brincadeira. - Não é verdade, tia?

- Eu! - exclamou "miss" Peyton. - E como hei-de saber, minha querida filha! Tens de dirigir-te a outras pessoas, se queres ser instruída sobre esse assunto.

- Ah! - disse Frances, olhando para a tia com um ar ladino - quer fazer-nos acreditar que nunca foi jovem. Mas que devo pensar de tudo o que ouvi dizer acerca da bela Jeannette Peyton?

- Asneiras, minha querida, asneiras! - disse a tia, procurando reprimir um sorriso. - Imaginas ter de acreditar em tudo o que ouves dizer?

- Chama a isso asneiras! - exclamou o capitão, alegremente. - Ainda agora o general Montrose bebe à saúde de Jeannette Peyton e não se separam mais de oito dias desde que eu próprio fui disso testemunha à mesa de Sir Henry.

- Não vales mais do que a tua irmã, Henry - replicou a tia. - E, para acabar com todas estas loucuras, tenho que te mostrar os meus tecidos fabricados na região; farão contraste com todas as belas coisas que Birch acaba de nos mostrar.

Os jovens levantaram-se para seguir a tia, satisfeitos um com o outro e em paz com todo o universo. No entanto, ao subir a escada que conduzia ao quarto onde estavam os tecidos de que acabara de falar, Jeannette aproveitou a oportunidade para perguntar ao sobrinho se o general Montrose sofria ainda de gota como quando ela o conhecera.

É uma descoberta penosa que fazemos ao avançarmos na vida que nenhum de nós está livre de fraquezas. Quando o coração ainda é novo e o futuro ainda se oferece aos nossos olhos sem qualquer daquelas manchas que a experiência virá trazer, todos os nossos sentimentos têm um carácter de santidade. Gostamos de supor naturais nos nossos amigos todas as qualidades a que nós próprios aspiramos. A confiança com que oferecemos a nossa estima parece fazer parte da nossa natureza e o afecto que nos une a tudo que está ligado a nós pelos laços do sangue tem uma pureza que raramente poderá conservar todo o brilho durante o curso da vida. A família do Sr. Wharton continuou a desfrutar durante o resto deste dia uma felicidade que não conhecia há muito e que nascia, pelo menos nos seus mais jovens membros, das delícias de um afecto cheio de confiança, e da reciprocidade dos sentimentos mais vivos.

O Sr. Harper só reapareceu à hora do jantar e, assim que a refeição terminou, retirou-se para o quarto, pretextando alguns negócios.

Apesar da confiança que os seus modos tinham inspirado, a sua ausência foi um alívio para a família; porque a visita do capitão Wharton só podia durar alguns dias, tanto porque a sua licença era limitada como por causa do perigo que corria de ser descoberto.

No entanto, o prazer de se voltarem a ver levou a melhor sobre o temor. Uma ou duas vezes, durante o dia, o Sr. Wharton mostrara ainda dúvidas quanto ao carácter do hóspede desconhecido e ao medo de que ele desse informações que pudessem fazer descobrir o filho. Mas todos os filhos repudiaram vivamente essa ideia, e mesmo Sara se uniu ao irmão e à irmã para advogar calorosamente em favor da sinceridade do ar de franqueza e de candura do Sr. Harper.

- Tais aparências são muitas vezes enganadoras, meus filhos -disse o pai, num tom de desencorajamento. - Quando vemos homens como o major André prestar-se à falsidade, é inútil fazer juízos acerca das qualidades de um indivíduo, e sobretudo das exteriores.

- À falsidade! - exclamou o filho, com vivacidade. - Esquece, meu pai, que o major André servia o seu rei e que os usos da guerra justificam a sua conduta.

- E esses usos da guerra não justificam também a sua morte, meu irmão? - perguntou Frances, numa voz comovida, não querendo abandonar o que ela encarava como a causa do seu país e não podendo ao mesmo tempo resistir à influência da sua sensibilidade.

- Sem dúvida que não - exclamou o jovem levantando-se precipitadamente e caminhando a grandes passadas. - Frances, fazes-me exceder de indignação. Se o meu destino me fizesse cair neste momento entre as mãos dos rebeldes, tu desculparias a minha sentença de morte; talvez aplaudisse a crueldade de Washington.

- Henry! - clamou Frances num tom solene, mas trémula e pálida como a morte. - Conheces tão mal o meu coração!

- Perdão, minha irmã, minha querida Fanny! -disse o rapaz, arrependido, apertando-a contra o coração e enxugando com os lábios as lágrimas que lhe corriam dos olhos.

- Fui louca em tomar à letra certas palavras ditas apressadamente - disse Frances, soltando-se-lhe dos braços e levantando para ele os olhos ainda húmidos com um sorriso. - Mas as censuras daqueles que amamos são bem cruéis, Henry, principalmente quando julgamos... quando sentimos... e...

As cores voltaram a aparecer sobre as suas faces enquanto acrescentava baixando a voz e com os olhos fixos no tapete:

- ... que não o merecemos.

Jeannette deixou a cadeira para se ir sentar junto de Frances, dizendo-lhe ao mesmo tempo que lhe pegava na mão com bondade:

- A impetuosidade do teu irmão não deve afectar-te a esse ponto. Sabes, e ninguém ignora - acrescentou sorrindo - que os jovens são ingovernáveis.

- E segundo a minha conduta, poderia acrescentar: cruéis - disse o capitão, sentando-se do outro lado da irmã. - Mas quando se trata da morte de André somos todos de uma susceptibilidade que não tem limites. Não o conheceste? Era o homem mais valente, mais completo, mais digno de estima.

Frances sorriu dèbilmente, abanando a cabeça, mas não respondeu nada. O irmão, notando, na sua expressão, sinais de incredulidade acrescentou:

- Duvidas? A sua morte parece-te justa?

- Não duvido das suas boas qualidades - respondeu Frances com doçura - não duvido de que ele merecesse um destino mais feliz; mas duvido que Washington se permitisse um acto ilegal. Conheço pouco os costumes da guerra, não desejo conhecê-los melhor; mas que esperança de êxito poderiam ter os Americanos, nesta contestação, se consentissem que todos os princípios estabelecidos há muito só dessem proveito aos Ingleses?

- Mas porquê esta discussão? - exclamou Sara, impacientemente. - Aliás, trata-se de rebeldes: por isso todos os seus actos são ilegais.

- As mulheres - disse Henry - são apenas objectos que reflectem os objectos que a sua imaginação lhes apresenta. Vejo em Frances os traços do major Dunwoodie, e em Sara, reconheço os do...

- Do coronel Wellmere - acrescentou Frances, rindo e corando. - Quanto a mim, confesso que devo ao major a ideia que acabo de exprimir; não é verdade, minha tia?

- Creio - respondeu "miss" Peyton - que havia qualquer coisa de semelhante na última carta que ele me escreveu.

- Não o esqueci - continuou Frances- e vejo que Sara se recorda também das sábias dissertações do coronel Wellmere.

- Orgulho-me de me lembrar sempre dos princípios da justiça e da lealdade- replicou Sara, levantando-se para se afastar do fogo, como se o demasiado calor tivesse trazido às suas faces o carmim de que estavam cobertas.

Durante o resto do dia, não aconteceu nada de importante; mas, à noite, César contou ter ouvido vozes a conversar em tom muito baixo no quarto do Sr. Harper. O quarto ocupado pelo viajante ficava numa das pequenas alas, na extremidade da casa e parece que César tinha estabelecido um sistema regular de espionagem, para velar pela segurança do jovem patrão. Esta notícia espalhou um certo alarme na família do Sr. Wharton; mas a chegada do Sr. Harper, com o seu ar de benevolência e sinceridade, apesar da reserva habitual, baniu a suspeita de todos os corações, excepto no do Sr. Wharton. Os filhos e cunhada julgaram que César se tinha enganado e o serão passou-se sem outro assunto de receio.

 

Na tarde do dia seguinte, quando se reuniram para tomar o chá, que "miss" Peyton preparara na sala de jantar, operou-se uma mudança na atmosfera. As ligeiras nuvens que flutuavam a pouca distância no cimo das montanhas começaram a correr para Leste com uma velocidade surpreendente. A chuva continuava a bater com força incrível contra as janelas da casa virada a nascente e o céu estava sombrio do lado Oeste. Frances olhava esta cena, com o desejo natural da juventude de ver terminar uma prisão de dois dias, quando de repente a tempestade acalmou como por efeito mágico. Os ventos impetuosos tinham-se calado, a chuva cessara e, exaltada, ela viu um raio de sol brilhar num bosque vizinho. As folhas húmidas, marcadas com as soberbas cores de Outubro, reflectiam toda a magnificência de um Outono da América. A família correu imediatamente para um grande terraço, que dava para Sul. O ar estava doce, fresco e perfumado. Do lado Leste viam-se ainda acumuladas grandes nuvens espessas, semelhantes às massas de um exército que se retira em boa ordem depois da derrota. Para Oriente, precipitavam-se ainda com uma rapidez espantosa, vapores condenados, partindo detrás de uma colina situada a alguma distância de Sauterelles; mas a Ocidente, o sol brilhava em todo o seu esplendor, enfeitando a verdura com um novo brilho. Tais momentos pertencem apenas ao clima da América e são gozados ainda mais porque o contraste é muito rápido e porque se sente maior prazer em escapar à fúria dos elementos desencadeados para voltar à tranquilidade de uma tarde calma, e um ar tão doce e tão fresco como o das mais belas manhãs de Junho.

- Que espectáculo magnífico! - disse Harper a meia-voz, esquecendo por instantes que não estava só. - Que grande e sublime espectáculo! Que possam terminar assim os cruéis confrontos que dilaceram a minha pátria! Que possa uma tarde de glória e felicidade suceder a um dia de sofrimento e calamidade!

Frances, que estava junto dele, foi a única que o ouviu; lançando-lhe um olhar de soslaio, viu-o sem chapéu e com os olhos erguidos para o céu. O seu rosto já não oferecia aquela expressão calma e quase melancólica que lhe era habitual; parecia animado pelo fogo do entusiasmo e sobre as suas feições pálidas espalhara-se um ligeiro colorido.

- Um tal homem não pode trair-nos - pensou ela. - Semelhantes sentimentos só podem pertencer a um ser virtuoso.

Entregavam-se todos ainda às suas reflexões silenciosas, quando viram entrar Harvey Birch, que aproveitara o primeiro raio de sol para se dirigir a Sauterelles. Chegou, lutando contra o vento que soprava ainda com força, com as costas curvadas, a cabeça para a frente, os braços balançando de cada lado do corpo; caminhava no passo que lhe era peculiar, o passo lesto e alongado de um comerciante que teme perder a ocasião de vender por chegar demasiado tarde.

- Eis uma bela tarde - disse saudando a companhia, sem levantar os olhos. - Uma tarde doce, muito agradável para a estação.

O Sr. Wharton concordou com a verdade desta observação e perguntou-lhe com bondade como ia o pai.

Harvey ouviu a pergunta e ficou em silêncio. Mas o Sr. Wharton fê-la segunda vez e ele respondeu, em voz entrecortada por um ligeiro tremor:

- Está a ir-se. Que fazer contra a idade e os desgostos?

Uma lágrima brilhou-lhe nos olhos, enquanto pronunciava estas palavras; voltou-se para a enxugar com a mão; mas este movimento de sensibilidade não escapara a Frances, que, pela segunda vez, sentiu que o bufarinheiro subia na sua estima.

O vale, no qual se encontrava a moradia conhecida por Sauterelles, estendia-se do Noroeste ao Sueste e a casa estava situada a meia encosta de uma colina; uma aberta feita frente ao terraço, entre uma montanha e o bosque, deixava aperceber o mar ao longe. As vagas, que antes vinham rebentar com furor junto à costa, ofereciam agora apenas aquelas ondulações regulares, que se sucedem a uma tempestade, e um vento suave e ligeiro, soprando do Sudoeste, contribuía para acalmar este resto de agitação. Podiam distinguir-se alguns pontos negros na superfície das ondas, quando uma vaga os elevava acima do nível das outras; mas desapareciam quando as ondas que os sustinham se abaixavam e só tornavam a ser visíveis alguns instantes depois. Ninguém lhes prestou atenção, excepto o bufarinheiro. Estava sentado no terraço, a alguma distância de Harper, e parecia ter esquecido o motivo da sua visita. No entanto, os seus olhos sempre em movimento em breve se aperceberam do espectáculo que acabámos de descrever e ele levantou-se com vivacidade, olhando para o lado do mar. Deitou fora o tabaco que tinha na boca, mudou de lugar, lançou rapidamente um olhar inquieto sobre Harper e disse, num tom expressivo:

- As tropas reais devem estar em marcha.

- O que lhe faz pensar nisso? - perguntou o capitão Wharton. - Deus queira! Não me importava nada de ter a sua escolta.

- Aquelas dez grandes barcaças não avançariam tão depressa se não tivessem uma equipagem mais numerosa do que de costume.

- Mas não é possível - disse o Sr. Wharton, num tom alarmado - que seja uma divisão dos... dos Americanos?

- Parecem-me tropas reais - repetiu o vendedor ambulante, acentuando as últimas palavras.

- Como? Parece-lhe! - repetiu Henry. - Só se distinguem alguns pontos negros. Harvey não respondeu a esta observação; e, parecendo falar para si próprio:

- Estou a ver o que é - disse. - Partiram antes da tempestade, passaram dois dias na ilha; a cavalaria da Virgínia está a caminho, não tardará a que se batam nestas redondezas.

Enquanto falava, lançava de tempos a tempos um olhar a Harper, que mal parecia ouvi-lo e que, sem mostrar a menor emoção, gozava com calma e prazer a mudança da atmosfera.

No entanto, quando Birch acabou de falar, Harper voltou-se para o seu hospedeiro e disse-lhe que os seus negócios não admitiam qualquer atraso inútil e que aproveitaria esta bela noite para avançar algumas milhas. O Sr. Wharton exprimiu toda a pena que sentia por ir ser em breve privado do seu convívio, mas conhecia demasiado bem os seus deveres para não se prestar ao desejo que o seu hóspede tinha de partir e imediatamente deu ordens a esse respeito.

A inquietação do bufarinheiro aumentava, porém, de maneira que parecia inexplicável. Os seus olhos dirigiam-se a cada instante para a extremidade do vale, como se esperasse qualquer aparição daquele lado. Por fim apareceu César, trazendo o nobre animal que deveria levar o viajante e o vendedor apressou-se a ajudá-lo a apertar a cilha e a amarrar solidamente na garupa a mala e um casacão azul.

Terminados todos os preparativos da partida, Harper despediu-se dos seus hospedeiros. Disse adeus a Sara e à tia com à-vontade e delicadeza mas, quando se aproximou de Frances, parou um instante; o seu rosto tomou uma expressão de benevolência maior do que a habitual; os olhos repetiram a bênção que a boca havia proferido já e a rapariga sentiu o calor subir-lhe às faces e o coração bater com mais rapidez do que habitualmente, quando ele lhe dirigiu as suas despedidas. Houve uma troca de delicadezas recíprocas entre o viajante e o hospedeiro; mas, ao estender a mão com um ar de franqueza ao capitão Wharton, disse-lhe num tom solene:

- O passo que deu tem os seus perigos; podem dele resultar consequências muito desagradáveis para si; mas, neste caso, é possível que eu encontre ocasião de provar o meu reconhecimento pelo acolhimento que recebi da sua família.

- Certamente, senhor - exclamou o pai, não pensando senão no perigo que o filho podia correr - guardará segredo sobre a descoberta que apenas deve à hospitalidade que lhe ofereci.

Harper franzindo as sobrancelhas, voltou-se vivamente para o Sr. Wharton, mas já a calma voltara à sua fronte e respondeu-lhe suavemente:

- Não aprendi nada na sua família que não conhecesse já antes, senhor; mas pode ser uma felicidade para o seu filho o facto de eu ter sabido da sua visita e dos motivos que a ocasionaram.

Saudou toda a companhia e, sem prestar atenção ao bufarinheiro senão para lhe agradecer a sua atenção, montou graciosamente a cavalo, atravessou a pequena porta e, em breve, desaparecia por detrás da montanha que abrigava o vale do lado Norte.

Os olhos de Birch seguiram o cavaleiro enquanto o pôde avistar e, quando o perdeu de vista, respirou com força, como se tivesse ficado aliviado do peso de terrível receio. Durante este tempo, toda a família Wharton meditara em silêncio sobre a visita e sobre o carácter do viajante desconhecido; por fim, o pai disse ao vendedor, aproximando-se dele:

- Sou ainda seu devedor, Harvey. Ainda não lhe paguei o tabaco que teve a gentileza de me trazer da cidade.

- Se não é tão bom como o último - respondeu Birch, lançando um último olhar para o lado da estrada que o Sr. Harper tinha tomado - é porque essa mercadoria está a tornar-se rara.

- Acho-o muito bom - respondeu Wharton - mas esqueceu-se de me dizer o preço.

A fisionomia do comerciante mudou de repente e perdeu a expressão de receio, para tomar a de uma inteligência cheia de fineza.

- É difícil dizer qual o preço. Creio que tenho de deixar à sua generosidade o cuidado de o fixar.

O Sr. Wharton tirara do bolso uma mancheia de moedas de Carolus(1) e estendeu-a para Birch, segurando três entre o indicador e o polegar. Os olhos do bufarinheiro brilharam, ao contemplar aquele metal e, continuando a enrolar na boca uma quantidade bastante considerável de folhas semelhantes àquelas cujo preço ia agora receber, estendeu a mão com muito sangue-frio. Os dólares caíram nela com um som muito agradável ao seu ouvido; mas não sendo suficiente esta música momentânea, fê-las ressoar uma após outra sobre as escadas do terraço, antes de as meter numa grande bolsa de couro, que seguidamente fez desaparecer com tanto jeito que ninguém poderia dizer onde a tinha colocado. Tendo terminado este importante negócio com satisfação, levantou-se e aproximou-se do local onde o capitão Wharton estava de pé, entre as duas irmãs, às quais dava o braço e que escutavam a sua conversa com todo o interesse do afecto.

A agitação ocasionada pelos incidentes precedentes haviam de tal modo esgotado os sucos que se tinham tornado necessários à boca do bufarinheiro, que este teve de lá meter nova provisão, antes de poder dar atenção a um objecto de menor importância. Feito isto, aproximou-se do capitão e perguntou-lhe de repente:

- Capitão Wharton, parte esta noite?

- Não, Birch - respondeu ele olhando para as irmãs com amizade. - Queria que eu deixasse já semelhante companhia, quando é possível que não a volte a ver?

- Brincar com semelhante assunto é uma crueldade, meu irmão - disse Frances com emoção.

- Tenho na ideia - continuou Birch, com sangue-frio - que agora, com a tempestade passada, é possível que os Skinners corram os campos. Se acreditasse em mim, abreviaria a sua visita.

 

*1. Com a efígie de Carlos III de Espanha.

 

- É só isso? - disse Henry, num tom ligeiro.- Se encontro esses malandros, alguns guinéus livrar-me-ão de apuros. Não, Sr. Birch, não. Fico aqui até amanhã de manhã.

- O major André não se livrou de apuros com alguns guinéus - replicou o bufarinheiro, num tom seco.

As duas irmãs começaram a ficar alarmadas.

- Meu irmão - disse a mais velha - farias melhor em seguir o conselho de Harvey. As suas opiniões não são de desprezar, em semelhante assunto.

- Se, como suspeito - acrescentou Frances - Birch te ajudou a vir até aqui, a tua segurança e a nossa felicidade exigem agora que o escutes.

- Saí sozinho de Nova York e estou em estado de voltar só - respondeu o capitão em tom positivo. - Birch estava apenas encarregado de me arranjar um disfarce e de me avisar quando estariam os caminhos livres... A este último respeito, Birch, estava enganado.

- Concordo - respondeu o bufarinheiro com certo interesse - e é mais uma razão para que parta esta noite. O salvo-conduto que lhe arranjei só pode servir uma vez.

- Não pode fabricar-me outro? - perguntou Henry.

As faces pálidas do vendedor ambulante cobriram-se de uma vermelhidão que se lhes via raramente; mas ficou em silêncio com os olhos fixos no chão.

- Aconteça o que acontecer - acrescentou Henry - só partirei amanhã.

- Só tenho mais uma palavra a dizer-lhe, capitão Wharton - disse Harvey, num tom grave. - Tome muita atenção a um grande virginiano de fartos bigodes. Sei que ele não está longe e o diabo não o enganaria; eu só o consegui enganar uma única vez.

- Pois bem! que ele tenha cuidado consigo próprio - respondeu Henry. - Além disso, Sr. Birch, desligo-o de toda a responsabilidade.

- Dar-me-ia essa desobriga por escrito? - perguntou o prudente bufarinheiro.

- Com todo o gosto - exclamou o capitão, rindo. - César, depressa, papel, caneta e tinta; para que eu passe uma carta de desobriga em forma ao meu fiel servidor Harvey Birch, bufarinheiro, etc.

Trouxeram tudo o que era preciso para escrever, e o capitão, com muita alegria, escreveu em estilo análogo ao seu humor a desobriga que lhe era pedida. O vendedor recebeu-a, colocou-a ao lado das imagens de Sua Majestade britânica, cumprimentou toda a família e foi-se embora como tinha vindo. Em breve o viram entrar na sua humilde casa.

O pai e as irmãs do capitão estavam por demais encantadas por o terem junto deles para exprimirem os receios que a sua situação podia compreensivamente excitar e mesmo para os conceber.

Mas quando iam para a mesa jantar, depois de amadurecidas reflexões, o capitão mudou de opinião; não se importando de deixar a protecção da casa do pai, mandou César a casa de Harvey para lhe dizer que desejava ter uma entrevista com este. O negro voltou rapidamente com a má notícia de que era demasiado tarde. Katy dissera-lhe que Birch devia já estar a algumas milhas para Norte, pois partira de casa ao crepúsculo, com o fardo. O capitão tinha pois de ter paciência até ver no dia seguinte de manhã que decisão a prudência lhe sugeria.

- Este Harvey Birch, com os seus ares sabidos e conselhos misteriosos, dá-me mais inquietação do que gostaria de confessar - disse o capitão, depois de alguns momentos passados em pensamentos nos quais entrava em grande parte o perigo da sua situação.

- Como será - disse "miss" Peyton - que no momento presente ele pode percorrer o país em todos os sentidos sem ser molestado?

- Não sei como se arranja com os rebeldes - respondeu Henry. - Mas Sir Henry Clinton não gostaria que lhe tocassem nem num cabelo.

- Sério? - exclamou Frances com interesse. - Sir Henry conhece Harvey Birch?

- Deve conhecê-lo, pelo menos - respondeu Henry com um sorriso que queria dizer muita coisa.

- Acreditas, meu filho - perguntou o Sr. Wharton - que não há perigo de que ele te traia?

- Pensei nisso antes de me confiar a ele - disse Henry, com um ar pensativo. - Ele parece fiel às suas promessas. Aliás o seu interesse responde por ele. Não ousaria voltar a Nova York se me traísse.

- Creio - disse Frances - que Birch não deixa de ter boas qualidades; pelo menos, mostra uma aparência delas em certas ocasiões.

- Tem lealdade - exclamou Sara. - E para mim é uma virtude cardeal.

- Creio - disse o irmão, rindo - que o amor do dinheiro é uma paixão ainda mais forte nele do que o amor pelo seu rei.

- Nesse caso - disse o Sr. Wharton - não estás em segurança; pois que amor pode resistir à tentação que o dinheiro oferece à cupidez?

- Oh! - respondeu Henry, alegremente - há um amor que resiste a tudo, não é verdade, Frances?

- Aqui está o teu candeeiro - respondeu a irmã, perturbada. - Estás a reter o pai para lá da hora habitual.

 

Todos os elementos da família Wharton se deitaram nessa noite temendo que qualquer incidente imprevisto viesse interromper-lhes o repouso habitual. Essa inquietação impediu as duas irmãs de saborearem um sono calmo e, no dia seguinte de manhã, levantaram-se cansadas e quase sem ter fechado os olhos.

Ao deitarem o olhar, apressadas e preocupadas da janela do quarto por todo o vale, viram apenas a serenidade que ali reinava habitualmente. A manhã abria-se com toda a magnificência dos belos dias que acompanham a queda das folhas e cujo número elevado torna a América comparável às estações mais deliciosas de outros países. Não se conhece aqui a Primavera; a vegetação caminha a passos de gigante enquanto nas outras latitudes do velho mundo apenas rasteja. Mas com que graça se retira o Verão! Setembro, Outubro, mesmo Novembro e Dezembro são meses deliciosos. Algumas tempestades perturbam a serenidade do ar mas não são de longa duração e a atmosfera em breve retoma toda a sua transparência. Como não se avistava nada que devesse interromper os prazeres e a harmonia de tão belo dia, as duas irmãs desceram do quarto, com novas esperanças quanto à segurança do irmão e, consequentemente, quanto à sua própria felicidade.

Toda a família se reuniu muito cedo para o pequeno-almoço e Jeannette, com um pouco daquela minuciosa precisão que se infiltra nos hábitos das pessoas não casadas, declarou brincando que a presença do sobrinho não mudaria em nada as horas regulares que estabelecera. Por isso, estavam já à mesa quando o capitão chegou; mas o café, no qual ninguém tocara, provava eloquentemente que a família não o havia esquecido.

- Creio - disse ele, sentando-se entre as irmãs, e aflorando as faces que estas lhe ofereciam - que fiz melhor em garantir uma boa cama e um excelente almoço do que recorrer à hospitalidade do ilustre corpo dos Vachers.

- Se conseguiste dormir - disse Sara. Foste mais feliz do que Frances e eu. O menor ruído que ouvia parecia-me anunciar a chegada dos rebeldes.

- Por minha fé - disse o capitão, rindo - confesso que eu próprio também não deixei de ter certa preocupação. E tu - acrescentou, voltando-se para Frances evidentemente a sua favorita, dando-lhe uma pancadinha na cara - como passaste esta noite? Viste estandartes nas nuvens? Os sons da harpa eólica de Jeannette não te pareceram a música dos rebeldes?

- Ah! Henry! - respondeu Frances olhando-o com ternura - sejam quais forem os meus sentimentos para com a pátria, nada me daria mais pena neste momento do que ver chegar essas tropas.

O irmão não respondeu, mas correspondeu ao seu olhar de amor fraternal e apertou-lhe docemente a mão, em silêncio, quando César, que partilhara a preocupação de toda a família e que se levantara com a aurora para vigiar tudo o que se passasse nos arredores, exclamou, olhando através de uma janela:

- Fugir, massa Harry, fugir, se amar velho César. A cavalaria dos rebeldes chegar!... Ei-la! - acrescentou, com o terror a dar-lhe ao rosto uma cor que se aproximava da de um homem branco.

- Fugir! - repetiu o oficial inglês, erguendo-se com um ar de orgulho militar - não, senhor César, fugir não é a minha profissão.

Enquanto assim falava, avançou com sangue-frio para a janela perto da qual já se encontrava reunida toda a família, mergulhada na consternação.

À distância de mais de uma milha, viam-se uns cinquenta dragões descendo para o vale por um dos caminhos laterais. Ao lado do oficial, que vinha à frente, estava um homem vestido de camponês, que estendia o braço na direcção de Sauterelles. Um pequeno destacamento separou-se então do corpo principal e marchou rapidamente para o local que lhe havia sido indicado.

Ao chegar à estrada que atravessava o fundo do vale, dirigiram-se para norte. Toda a família Wharton se conservava em silêncio, como que agrilhoada junto da janela, e seguia com temor todos os movimentos deste grupo. Este, quando chegou em frente da casa de Birch, descreveu um círculo rápido à volta desta e num instante a casa do bufarinheiro ficou rodeada por uma dúzia de sentinelas.

Dois ou três dragões desceram do cavalo e entraram; mas voltaram a sair ao cabo de poucos minutos, seguidos de Katy, cujos gestos violentos provavam que não se tratava de um caso sem importância. Uma curta conversa com a faladora governanta seguiu-se à chegada do corpo principal e o destacamento, que primeiro se tinha separado, montou novamente a cavalo e toda a tropa marchou a trote apressado em direcção de Sauterelles.

Até então, ninguém tivera suficiente presença de espírito para imaginar qualquer meio de garantir a segurança do capitão Wharton; mas o perigo tornava-se agora demasiado urgente para admitir a menor demora. À pressa, foram propostos vários meios de o esconder, mas ele rejeitou-os com avidez, como indignos do seu carácter. Era demasiado tarde para que se pudesse retirar para os bosques que ficavam por trás da casa, porque era impossível que não o vissem e, perseguido pela cavalaria, seria inevitavelmente apanhado.

Por fim, as mãos trémulas das irmãs cobriram-no com o disfarce sob o qual tinha chegado e que César tivera a precaução de conservar cuidadosamente, para o caso de surgir qualquer perigo.

Esta importante operação foi feita à pressa e muito imperfeitamente. Mal tinha acabado quando os dragões chegaram com a rapidez do vento à relva frente à casa, que, por sua vez, se encontrava cercada.

Não havia agora outra coisa a fazer senão aguentar o exame que ia seguir-se com toda a indiferença que fosse possível afectar. O chefe do grupo saltou para o solo e, seguido por dois soldados, aproximou-se da porta que César lhe foi abrir lentamente e muito contra-vontade. O ruído dos passos do oficial comandante ressoou aos ouvidos das três senhoras à medida que se aproximava; o sangue que animava os seus rostos retirou-se-lhes para o coração e tiveram um estremecimento, que as privava de quase todo o sentimento.

Um homem de estatura colossal e cuja força parecia proporcional à altura apresentou-se no salão e cumprimentou os presentes com um ar de delicadeza que o seu exterior não prometia. Os cabelos negros não estavam empoados, embora fosse essa a moda e enormes bigodes cobriam-lhe os lábios e as faces. Os olhos eram agudos, mas o olhar não tinha nada de duro ou de sinistro. A voz era forte, mas sem que o seu timbre fosse desagradável. Frances lançou-lhe um olhar tímido quando este entrou e imediatamente julgou reconhecer o homem que Harvey Birch lhes descrevera tão temívelmente.

- Não se alarmem, minhas senhoras - disse o oficial que se apercebeu do terror que a sua presença tinha inspirado - quero apenas pedir uma resposta franca a algumas perguntas e parto em seguida.

- E de que se trata, senhor - perguntou Wharton numa voz agitada, levantando-se da cadeira e esperando com impaciência uma resposta.

- Receberam um desconhecido, aqui, durante a tempestade? - perguntou o oficial, falando com interesse e partilhando até certo ponto a inquietação do pai.

- Este senhor, que está aqui - respondeu o pai gaguejando e mostrando o filho - deu-nos a honra da sua companhia e ainda não partiu.

- Senhor - repetiu o dragão, examinando Henry com atenção e aproximando-se dele cumprimentou-o e disse-lhe com um ar de gravidade cómica - lamento muito vê-lo com uma constipação tão violenta.

- Uma constipação! - repetiu Henry. - Não estou constipado.

- Perdão - continuou o capitão - mas ao ver tão belos cabelos negros cobertos por uma peruca tão feia, pensei que tivesse necessidade de manter a cabeça quente. Foi um engano e peço-lhe que me desculpe.

Wharton não conseguiu reprimir um gemido; mas as senhoras, ignorando até que ponto podiam ir as suspeitas do oficial, ficaram em silêncio, embora mergulhadas no mais vivo receio. O capitão Wharton, levando involuntariamente a mão à cabeça, sentiu que com a pressa com que as irmãs o tinham disfarçado, haviam deixado passar uma mecha de cabelos sob a peruca. O dragão observou este movimento com um sorriso malicioso; mas parecendo não dar atenção, voltou-se para o Sr. Wharton.

- Deste modo, senhor, devo concluir pelo que me acabou de dizer que não recebeu aqui a visita do Sr. Harper!

Esta palavra aliviou o coração de Wharton dum grande peso.

- O Sr. Harper! - repetiu - desculpe-me, tinha-me esquecido, mas ele foi-se embora e se há no seu carácter qualquer coisa de suspeito, nós ignoramo-lo completamente. Nunca o tínhamos visto.

- Não tem nada a temer do seu carácter - respondeu o dragão num tom seco. - Mas visto ter partido, quando, como partiu e para onde foi?

- Partiu como tinha chegado - respondeu Wharton a quem os modos do oficial davam uma certa confiança. - Foi-se embora a cavalo ontem à noite e tomou a estrada que conduz ao norte.

O dragão escutou-o com grande atenção e um sorriso de satisfação animou-lhe o rosto. Voltou-se, assim que o Sr. Wharton acabou a sua resposta lacónica e saiu da sala. A família Wharton, julgando pelas aparências, imaginou que este ia pôr-se no encalço do indivíduo sobre o qual fizera tantas perguntas. Assim que chegou junto do relvado, viram-no falar animadamente, e ao que parecia com agrado, com dois oficiais subalternos. Ao cabo de alguns instantes deu novas ordens e uma parte dos oficiais deixaram o vale, a galope, por diferentes estradas.

A incerteza dos espectadores não desinteressados desta cena não foi de longa duração, pois o ruído dos passos do oficial em breve anunciava o seu regresso. Ao voltar a entrar no salão, cumprimentou todos os presentes com a mesma delicadeza e aproximando-se do capitão Wharton, disse-lhe num tom de gravidade cómica:

- Agora, que terminei o assunto principal que aqui me trouxe, permita-me examinar a qualidade dessa peruca?

Henry respondeu-lhe no mesmo tom, entregando-lhe a peruca com um ar decidido.

- Ei-la, senhor - disse-lhe - espero que seja do seu agrado?

- É coisa que não poderia dizer, senhor, sem faltar à verdade - respondeu o oficial. - Gosto mais dos seus cabelos negros, que parecem ter sido limpos de todo o pó com grande cuidado. Mas essa pala negra que lhe cobre um olho e quase toda uma face deve cobrir um terrível ferimento.

- Como observa as coisas tão pormenorizadamente - replicou Henry - ficarei encantado em saber o que pensa. E arrancou o pedaço de seda que o desfigurava.

- Por minha honra - continuou o oficial com a mesma gravidade-o senhor ganha prodigiosamente com a mudança;, e se conseguisse levá-lo a deixar esse mau sobretudo que me parece cobrir um belo fato azul, nunca terei visto uma metamorfose mais agradável desde a que eu próprio passei quando passei de tenente para capitão.

O jovem Wharton fez com muito sangue-frio o que lhe pedia o oficial republicano e apresentou então aos olhos daquele um jovem bem parecido e elegantemente vestido. O dragão olhou-o por instantes com um ar de mordacidade agradável, que parecia caracterizá-lo, e disse-lhe depois:

- Entra em cena uma nova personagem. Sabe que é costume os desconhecidos darem-se a conhecer uns aos outros. Chamo-me Lawton, capitão de cavalaria na Virgínia.

- E eu Wharton, capitão no 60.o regimento de infantaria de Sua Majestade britânica - respondeu Henry saudando-o com uma espécie de rigidez, a que imediatamente deu lugar o ar à-vontade que lhe era natural.

A fisionomia de Lawton mudou de repente e qualquer disposição para gracejar desapareceu imediatamente. Olhou para o jovem oficial que tinha à sua frente, direito e com aquele ar de orgulho mostrando que desprezava qualquer outro disfarce e disse-lhe num tom de verdadeiro interesse:

- Capitão Wharton, lamento-o de todo o meu coração.

- Se o lamenta - gritou o pai fora de si - porque procura perturbá-lo? Não é nenhum espião. Veio aqui disfarçado apenas para ver a família. Não há sacrifício que não esteja disposto a fazer pela sua segurança, e estou pronto a pagar a soma que...

- Senhor - disse Lawton, altivo - esquece-se com quem fala. Mas o interesse que tem por seu filho é mais do que natural para que não seja uma desculpa. Quando para aqui veio, capitão, ignorava que os piquetes do nosso exército se encontravam na Planície-Branca?

- Só o soube quando lá cheguei - respondeu Henry, e era demasiado tarde para recuar. - Vim aqui apenas para ver os meus parentes, como meu pai lhe disse. Tinham-me assegurado que os vossos postos avançados estavam em Peekshill, perto das montanhas, e de outro modo não teria deixado Nova York.

- Tudo isso pode ser verdade - disse Lawton, depois de reflectir por momentos - mas o caso de André pôs-nos de sobreaviso. Quando oficiais generais se encarregam de semelhante tarefa, capitão, os amigos da liberdade têm de se pôr em guarda.

Henry nada respondeu e Sara aventurou-se a dizer algumas palavras a favor do irmão. Lawton escutou-a com delicadeza e mesmo com um ar interessado; mas, querendo evitar instâncias inúteis e embaraçosas:

- Menina Wharton - disse - encarregar-me-ei de que seu irmão seja tratado com todas as atenções que merece, mas é o nosso comandante, o major Dunwoodie, que deve decidir da sua sorte.

- Dunwoodie! - gritou Frances, cuja palidez desaparecera graças à esperança - Deus seja louvado! nesse caso Henry não tem nada a temer.

Lawton olhou-a com um ar de admiração e piedade; e sacudindo a cabeça:

- Desejo-o - disse - mas, com vossa licença, esperaremos pela sua decisão.

Os receios de Frances quanto ao irmão tinham diminuído, no entanto o seu corpo estava agitado por um estremecimento involuntário. Os olhos erguiam-se para o oficial americano e dirigiam-se seguidamente para o chão. Dir-se-ia que queria fazer uma pergunta, mas que não tinha coragem de lha dirigir.

Jeannette avançou então para Lawton, com um ar de dignidade.

- Podemos então esperar ver - disse-lhe ela - dentro em breve o major Dunwoodie?

- Muito em breve - respondeu o capitão. - Já lhe mandei um telegrama para o informar do que aqui se passava e não duvido de que esteja já a caminho. A menos - acrescentou, voltando-se para o Sr. Wharton e apertando os lábios num ar de brincadeira - que ele tenha razões muito particulares para acreditar que a sua visita seria desagradável.

- Encanta-nos sempre ver o major Dunwoodie - apressou-se a dizer o Sr. Wharton.

- Oh! não duvido - continuou Lawton - é sempre o preferido de quem o conhece. Mas ousarei pedir-lhe que tenha a gentileza de servir alguns refrescos aos soldados do seu regimento, que tenho a honra de comandar?

Havia qualquer coisa nos modos deste oficial que teria levado o Sr. Wharton a desculpar-lhe facilmente a falta de tal pedido, mas foi arrastado pelo desejo que tinha de o conciliar, pensando além disso que era melhor dar de boa vontade o que podia ser tomado à força. Fez portanto da necessidade virtude e deu as ordens necessárias para que se contentassem os desejos do capitão Lawton.

Os oficiais foram gentilmente convidados a almoçar com a família. Estes, depois de terem tomado todas as precauções no exterior, aceitaram de boa vontade. O prudente guerrilheiro não descurou nenhuma das medidas que a situação do seu destacamento exigia. Mandou mesmo fazer patrulhas nas montanhas situadas a alguma distância para velar pela segurança dos seus outros soldados que desfrutavam, no meio dos perigos, de uma segurança que só pode ser resultado ou do hábito da indiferença, ou da obediência à disciplina.

Lawton e dois oficiais subalternos tomaram lugar à mesa do Sr. Wharton, para almoçar. Eram três homens, que, sob o aspecto exterior descuidado, consequência de um serviço activo e penoso, tinham as maneiras da primeira classe da sociedade. Por isso, embora a família os olhasse como intrusos, foram observadas todas as regras do mais rígido decoro. As duas irmãs deixaram os hóspedes à mesa e estes continuaram sem muita modéstia a fazer honras à hospitalidade do Sr. Wharton.

Por fim, o capitão suspendeu por momentos um ataque muito vivo contra uns excelentes pãezinhos para perguntar ao dono da casa se um bufarinheiro chamado Birch não morava neste vale.

- Só cá vem de longe em longe - respondeu Wharton, prontamente. - Está raramente por aqui. Poderia dizer que nunca o vejo.

- Isso é muito estranho - disse o capitão, fixando o olhar no perturbado hospedeiro. - Morando tão perto de si, seria natural que lhe viesse oferecer as suas mercadorias. Deve ser pouco cómodo para estas senhoras... Tenho a certeza que pagaram pelas musselinas que vejo sobre o banco que orna o vão daquela janela o dobro do que ele lhes teria pedido.

O Sr. Wharton voltou-se, e viu com consternação que uma parte das compras recentemente feitas estava ainda na sala.

Os dois oficiais olharam um para o outro sorrindo; mas Lawton, sem fazer qualquer observação, voltou a comer com um apetite que podia levar a crer julgar ele estar na sua última refeição. No entanto, voltou a falar, durante o intervalo necessário para que Diná trouxesse um suplemento de comestíveis:

- Gostaria - disse - de corrigir esse Sr. Birch dos seus hábitos anti-sociais. Se o tivesse encontrado em casa. tê-lo-ia colocado num sítio onde não lhe faltaria companhia, pelo menos durante algumas horas.

- E onde o colocaria? - perguntou o Sr. Wharton, julgando ter de dizer qualquer coisa.

- No corpo da guarda - replicou o capitão.

- O que fez o pobre Birch? - perguntou "miss" Peyton oferecendo-lhe uma quarta chávena de café.

- Pobre! - exclamou o capitão. - Se ele é pobre, John Bull paga-lhe muito mal.

- Sem a menor dúvida - acrescentou um dos oficiais - o rei Jorge deve-lhe um ducado.

- E o congresso deve-lhe uma corda - disse Lawton, pegando em alguns bolos.

- Lamento - disse Wharton - que um dos meus vizinhos tenha incorrido no desfavor do governo.

- Se o apanho - disse o capitão dos dragões, barrando de manteiga outro pãozinho - fá-lo-ei dançar sob os ramos de alguma bétula.

- Ficava muito bem - acrescentou o tenente muito tranquilamente - pendurado numa daquelas armadilhas para pássaros, mesmo em frente da sua porta.

- Confiem em mim - continuou Lawton - passará pelas minhas mãos antes de eu ser major.

Dado o tom decidido em que os oficiais se exprimiam, ninguém julgou propositado levar mais longe a conversa sobre este assunto. Toda a família sabia há muito tempo que Birch era suspeito aos oficiais americanos. Já fora preso diversas vezes e a maneira sempre espantosa e muitas vezes misteriosa com que se livrara dera demasiado que falar, para que o tivessem já podido esquecer. De facto, uma grande parte do rancor do capitão Lawton contra o bufarinheiro vinha de que este conseguira subtrair-se à vigilância de dois dos seus mais fiéis dragões, sob a guarda dos quais o tinha posto.

Há mais ou menos um ano, tinham visto Birch rondar nas proximidades do quartel general americano num momento em que eram esperados alguns movimentos importantes. Assim que o oficial, cujo dever era preservar a aproximação do campo soubera deste facto, ordenara ao capitão Lawton que se pusesse em perseguição de Birch e que o prendesse. Como conhecia perfeitamente os bosques, as montanhas e os desfiladeiros, o capitão conseguira ter êxito na sua missão. Tendo parado seguidamente numa quinta, para se refrescar, pusera o prisioneiro num quarto separado e colocara à porta duas sentinelas, em que confiava. Tudo o que se conseguiu saber depois, foi que fora vista uma mulher a ocupar-se arduamente dos trabalhos da casa, perto das sentinelas e, sobretudo, mostrando muito zelo para que não faltasse nada ao capitão, até ao momento em que este dera toda a sua atenção ao assunto sério do jantar.

Não voltaram a ver depois nem a mulher nem o vendedor. Na verdade, encontraram o fardo deste, mas aberto e quase vazio e uma pequena porta, comunicando com um quarto vizinho daquele em que Harvey havia sido encerrado, ficara também aberta.

O capitão Lawton nunca pôde perdoar esta partida. Não odiava os inimigos com moderação e a fuga do bufarinheiro era um insulto à sua perspicácia, do qual conservava um profundo rancor. Neste momento pensava ainda no feito do seu ex-prisioneiro, conservando-se em silêncio mas não parando de mastigar. Tivera tempo de almoçar longamente e muito à vontade quando se fez ouvir o som marcial de um clarim, ressoando por todo o vale. Levantou-se imediatamente e gritou:

- A cavalo, meus senhores! Depressa, a cavalo! Eis Dunwoodie que chega.

E, seguido dos seus oficiais, saiu precipitadamente.

Excepto as sentinelas deixadas para guardar o capitão Wharton, todos os dragões montaram a cavalo e marcharam ao encontro dos camaradas.

O prudente capitão Lawton não esqueceu nesta ocasião nenhuma das precauções necessárias numa guerra em que a semelhança da língua, de usos e costumes tornava a circunspecção duplamente indispensável. No entanto, quando chegou suficientemente perto de um corpo de cavalaria duas vezes mais numeroso do que o seu, para ter bem a certeza de que se não enganava, meteu esporas ao cavalo e, num instante, encontrou-se ao lado do comandante.

O relvado frente à casa foi de novo ocupado pela cavalaria; tomaram as mesmas medidas de precaução que antes e os soldados recém-chegados apressaram-se em obter a sua parte nos refrescos que haviam sido preparados para os camaradas.

 

Jeannette Peyton e as duas sobrinhas tinham-se aproximado de uma janela, por onde observavam com vivo interesse a cena que acabamos de descrever. Sara viu chegar os seus concidadãos com um sorriso de desprezo e desdém, só vendo neles homens armados para defender a causa ímpia da rebelião. Jeannette, reparando na boa ordem das tropas, experimentava um sentimento de satisfação e de orgulho, pensando que era a colónia onde vira o dia que fornecera este escol da cavalaria. Frances olhava-a com um interesse profundo, que bania qualquer outro pensamento.

Os dois grupos não se tinham ainda reunido, quando os seus olhos distinguiram, entre aqueles que chegavam, um cavaleiro no meio de todos os outros que o rodeavam. O seu corcel parecia também sentir que não carregava um soldado comum. Os pés mal tocavam a terra e o seu andar quase aéreo era próprio de um cavalo de batalha.

O cavaleiro erguia-se graciosamente sobre a sela e evidenciava um à-vontade e uma firmeza que provavam ser senhor de si mesmo como do seu cavalo. A sua estatura reunia tudo o que constitui a força e a actividade, porque era grande, elegante e nervoso. Foi a este oficial que Lawton fez o seu relatório, avançando um ao lado do outro ao chegarem ao relvado frente a Sauterelles.

A jovem sentiu o coração bater e mal respirava quando ele se deteve um instante para examinar o edifício. Mudou de cor quando o viu descer agilmente do cavalo e foi obrigada a aliviar as pernas trémulas, sentando-se um momento.

Este oficial deu algumas ordens apressadas ao segundo comandante, atravessou rapidamente o relvado e avançou em direcção à casa. Frances levantou-se e saiu da sala. O oficial subiu as escadas da entrada e mal tivera tempo de tocar na porta quando esta se abriu para o receber.

A juventude de Frances, na época em que deixara a cidade, impedira-a de se conformar ao costume em voga de sacrificar ao altar da moda as graças que tinha por natureza. Os soberbos cabelos loiros, que não tinham sido submetidos à tortura, conservavam ainda os belos caracóis da infância e sombreavam um rosto que brilhava pelos encantos reunidos da saúde, da juventude e da ingenuidade. Os olhos eram eloquentes, mas os seus lábios conservavam-se em silêncio. As mãos estavam unidas; a figura esbelta inclinada, numa atitude de expectativa e o conjunto de toda a sua pessoa oferecia uma graça cujo encanto pareceu de início privar o apaixonado do seu coração do uso da palavra.

Frances conduziu-o em silêncio até a um quarto vizinho daquele em que toda a família se encontrava reunida e, voltando-se para o oficial com um ar de franqueza, exclamou estendendo-lhe a mão:

- Ah! Dunwoodie! quantas razões tenho por me sentir encantada com a sua vinda! Mandei-o entrar para aqui a fim de o preparar para ver no quarto ao lado um amigo que não esperava encontrar.

- Seja qual for a causa - respondeu o jovem, apertando-lhe ternamente a mão - estou igualmente feliz por poder falar consigo sem testemunhas. Frances, a prova a que submeteu o meu amor é demasiado cruel. A guerra e o afastamento podem em breve separar-nos para sempre.

- Temos de nos submeter à necessidade que nos governa - respondeu Frances, perdendo as cores que a agitação lhe tinha dado e tomando um ar mais melancólico. - Mas não é de amor que desejo ouvir falar agora; tenho de lhe pedir toda a sua atenção sobre um assunto bem mais importante.

- E o que pode ser mais importante para mim do que assegurar a sua mão através de um laço indissolúvel? Porque me fala com tal frieza? Frances, a mim, cujo coração conservou tão fielmente a sua imagem durante tantos dias de cansaço e tantas noites de alarmes?

- Querido Dunwoodie! - respondeu Frances, com os olhos húmidos, estendendo-lhe de novo a mão - conhece os meus sentimentos. Uma vez terminada esta guerra, esta mão pertencer-lhe-á para sempre; mas não posso consentir em me unir a si por um laço mais estreito do que aquele que liga já os nossos corações, enquanto usar armas contra o meu irmão... contra esse irmão que, neste momento, espera a sua decisão para recobrar a liberdade ou ser conduzido a uma provável morte.

- O seu irmão! - exclamou Dunwoodie estremecendo e empalidecendo. - O seu irmão! Explique-se! Que significam essas palavras que me alarmam?

- O capitão Lawton não lhe disse que prendeu esta manhã Henry, como espião? - disse Frances, numa voz que o excesso da emoção tornava quase ininteligível e erguendo para ele uns olhos que pareciam esperar a vida ou a morte.

- Ele disse-me que tinha detido um capitão do 60.o regimento, disfarçado, mas ignorava que fosse o seu irmão - respondeu Dunwoodie, com uma agitação que se esforçava por esconder, baixando a cabeça sobre as duas mãos.

- Dunwoodie - gritou Frances, entregando-se então inteiramente ao receio - que significa essa emoção? Certamente, muito certamente, não abandonará o seu amigo, o meu irmão, o seu! Não o enviará para uma morte ignomiosa!

- Frances! - exclamou o jovem oficial, desesperado - que posso eu fazer? que quer que eu faça?

- O quê? - disse Frances fitando-o com um olhar perdido -o major Dunwoodie entregaria o amigo nas mãos do carrasco, o irmão daquela a quem quer chamar esposa?

- Querida menina Wharton - proferiu o major - querida Frances, não me faça tais censuras: quereria neste momento morrer por si," pelo seu irmão. Mas poderei trair o meu dever? Poderei faltar à minha honra? Se eu o fizesse, você mesmo me desprezaria.

- Peyton Dunwoodie - disse Frances, com o rosto coberto por uma palidez mortal - disse-me, jurou-me que me amava.

- Torno a jurá-lo - respondeu o major com fervor.

Mas Frances fez-lhe sinal para se calar e acrescentou, numa voz emocionada:

- Acredita que eu possa alguma vez consentir em chamar esposo a um homem cujas mãos estejam manchadas com o sangue do meu irmão?

- Frances! - exclamou o major desesperado - despedaça-me o coração!

Calou-se um instante, para lutar contra a emoção, e acrescentou seguidamente com um sorriso forçado:

- Mas afinal, porquê torturarmo-nos entregando-nos a receios inúteis?

Quando eu souber todas as circunstâncias, pode ser que Henry seja apenas considerado prisioneiro de guerra e, nesse caso, tenho o direito de lhe devolver a liberdade sob palavra.

A esperança é de todas as paixões aquela que se ilude mais facilmente, e parece ser feliz privilégio da juventude entregar-se a ela cegamente. É quando nós próprios mais confiança merecemos, que menos nos inclinamos para a suspeita; e aquilo que encaramos como possibilidade toma sempre a nossos olhos as cores da realidade.

A esperança incerta do jovem militar foi comunicada mais pelos seus olhares do que pelas palavras à desolada irmã. Esta levantou-se precipitadamente e gritou, enquanto as suas faces se tornavam de novo rosadas:

- Oh! não há qualquer razão para duvidar. Eu sabia-o Dunwoodie, sabia que não nos abandonaria no momento em que tanto precisamos de si.

E, não podendo resistir à violência dos sentimentos que a agitavam, deixou cair uma torrente de lágrimas.

Consolar aqueles que amamos é uma das mais preciosas prerrogativas do amor; e o major Dunwoodie, embora ele próprio não tivesse uma inteira confiança nos motivos de consolação que sugeria, não conseguiu resolver-se a desenganar a gentil Frances apoiada no seu ombro, procurando apagar os vestígios de lágrimas, e entregando-se, não totalmente sem receio, mas com uma confiança renascente, à esperança de garantir a segurança do irmão na protecção do amado.

Frances, suficientemente recomposta da emoção para se sentir senhora de si mesma, conduziu-o então à sala contígua, para dar à família a agradável notícia que encarava já como certa.

O major seguiu-a quase contra-vontade e com sinistros pressentimentos; mas, na presença de todos os familiares, apelou para toda a sua resolução a fim de aguentar com firmeza a prova que o esperava.

Os dois jovens cumprimentaram-se com uma cordialidade sincera e Henry mostrou sangue-frio, como se nada tivesse acontecido que pudesse perturbar a serenidade do seu espírito.

O horror de se tornar de qualquer modo instrumento de detenção do amigo, o perigo que corria a vida do capitão Wharton e as declarações desesperantes de Frances tinham no entanto feito nascer no coração do major um mal-estar que todos os seus esforços não podiam banir. Todos os outros membros da família lhe fizeram o acolhimento mais amistoso, tanto pela antiga amizade como pela recordação das obrigações que já tinham para com ele e talvez, também, porque não podiam deixar de encontrar esperanças nos olhos expressivos da rapariga que se encontrava a seu lado. Depois dos primeiros cumprimentos, Dunwoodie fez sinal à sentinela, que a prudência do capitão Lawton deixara a vigiar o prisioneiro, para sair da sala. Voltando-se, então, para o capitão Wharton, disse-lhe num tom em que havia tanto de doçura como de firmeza:

- Diga-me, Henry, por que razão o capitão Lawton o encontrou aqui disfarçado; mas lembre-se, lembre-se bem, capitão Wharton, de que as suas respostas são inteiramente voluntárias.

- Disfarcei-me, major Dunwoodie - respondeu Henry, num tom grave - para não correr o risco de ser feito prisioneiro de guerra ao vir ver a minha família.

- E consequentemente disfarçou-se apenas quando viu as tropas de Lawton aproximarem-se - replicou vivamente o major.

- Certamente - exclamou Frances a quem a preocupação fazia esquecer as circunstâncias. - Sara e eu fizemos o seu disfarce quando ouvimos chegar os dragões; e se ele foi descoberto foi por culpa da nossa falta de jeito.

A testa do major iluminou-se e voltou os olhos para Frances com um ar de admiração enquanto esta lhe dava as explicações.

- E provavelmente - acrescentou - serviu-se do que encontrou à mão na urgência do momento.

- Não - disse Wharton, com dignidade - parti de Nova York disfarçado; arranjei lá estes fatos na intenção que acabo de explicar e contava voltar a vesti-los hoje mesmo para voltar.

Frances, que no seu ardor se colocara entre o irmão e o amado, recuou consternada quando a verdade exacta se apresentou ao seu espírito e deixando-se cair numa cadeira, olhou com um ar perdido os dois jovens, de pé, à sua frente.

- Mas os nossos piquetes! - perguntou Dunwoodie, empalidecendo - os nossos destacamentos na Planície-Branca!

- Passei-os disfarçado - respondeu Wharton com orgulho. Fiz uso deste salvo-conduto que havia comprado. E como tem o nome de Washington, não duvido de que a assinatura não seja falsa.

Dunwoodie pegou neste documento com vivacidade, examinou durante algum tempo a assinatura em silêncio; e durante este tempo, sobrepondo-se a voz do dever como militar a qualquer outro sentimento, voltou-se para o prisioneiro e disse-lhe, acompanhando as palavras de um olhar penetrante:

- Capitão Wharton, como arranjou este salvo-conduto?

- Creio que é uma pergunta que o major Dunwoodie não tem o direito de me fazer- replicou Henry friamente.

- Perdão, senhor - respondeu o oficial americano. - O que sinto neste momento pode ter-me ditado uma pergunta pouco conveniente.

Wharton, que escutara esta conversa com um profundo interesse, disse então fazendo um esforço sobre si mesmo:

- Certamente, major, que esse documento não tem importância. Utilizam-se todos os dias truques de guerra semelhantes.

- A assinatura não é falsa - disse Dunwoodie, estudando a letra e baixando a voz. - Haverá entre nós traidores que temos de descobrir?

Abusaram da confiança de Washington porque o suposto nome está escrito numa letra diferente da do salvo-conduto.

- Capitão Wharton, o meu dever não me permite devolver-lhe a liberdade sob palavra; tem de me seguir ao quartel general.

- Era o que eu esperava, major Dunwoodie - respondeu o prisioneiro com altivez. E, aproximando-se do pai, disse-lhe algumas palavras em voz baixa.

Dunwoodie voltou-se lentamente para as duas irmãs. Os seus olhos encontraram mais uma vez os de Frances que se tinha levantado e que estava à sua frente, com as mãos juntas, na atitude de súplica. Não se encontrando já em estado de lutar mais tempo contra si próprio, procurou apressadamente uma desculpa para se ausentar um instante e...

 

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Dunwoodie voltou-se lentamente para as duas irmãs. Os seus olhos encontraram mais uma vez os de Frances que se tinha levantado e que estava à sua frente, com as mãos juntas, na atitude de súplica. Não se encontrando já em estado de lutar mais tempo contra si próprio, procurou apressadamente uma desculpa para se ausentar um instante e saiu do apartamento. Frances seguiu-o e o major, obedecendo a um sinal que ela lhe fez com os olhos, voltou para a sala onde tinham tido a primeira entrevista.

- Major Dunwoodie - disse-lhe, numa voz tão fraca que mal se podia ouvir, depois de lhe ter feito sinal para se sentar; as suas faces que a palidez tornara brancas como a neve um momento antes, estavam agora cobertas da mais viva vermelhidão. - Major Dunwoodie - continuou ela, depois de novo esforço sobre si própria - já lhe confessei os meus sentimentos para consigo e mesmo neste momento, em que me causa a maior dor, não procurarei escondê-los. Acredite-me, Henry está inocente, não é culpado senão de imprudência. Que bem faria a sua morte à nossa pátria?

Interrompeu-se, mal podendo respirar. Empalideceu de novo e quando o sangue voltou a corar-lhe o rosto, acrescentou à pressa, baixando a voz:

- Prometi-lhe Dunwoodie, casar consigo logo que a paz seja assinada no nosso infeliz país: devolva a liberdade ao meu irmão e estou pronta a segui-lo ao altar quando quiser, hoje mesmo. Irei consigo para o seu acampamento e, como esposa de um soldado, saberei enfrentar as privações às quais o soldado está exposto.

Dunwoodie agarrou na mão que ela lhe estendia, apertou-a um instante contra o coração e, levantando-se da cadeira, percorreu a sala em grandes passadas, numa agitação que é impossível descrever.

- Frances! - exclamou - suplico-lhe, não me diga mais nada, se não quer despedaçar-me o coração!

- Recusa então a mão que lhe ofereço - disse a jovem com um ar de dignidade ferida, embora as suas faces pálidas, o seio palpitante e os lábios trémulos anunciassem claramente as sensações que a agitavam.

- Recusá-la! - disse o apaixonado. - Não a solicitei insistentemente e em lágrimas? Não é ela tudo o que desejo na terra! Mas aceitá-la com condições que nos desonram, um e outro! No entanto não está perdida toda a esperança; Henry não será condenado; talvez nem seja levado a julgamento.

Tem que ter a certeza de que não me pouparei nem a diligências, nem a orações para o salvar, e posso dizer, Frances, que tenho certo crédito junto de Washington.

- Mas esse maldito salvo-conduto! Esse abuso de confiança de que falou tornar-lhe-ão o coração insensível aos sofrimentos do meu irmão. Se as ameaças ou as orações tivessem podido abalar a sua justiça inflexível, teria André morrido?

Frances proferiu estas palavras com o tom do desespero e, ao terminá-las, saiu precipitadamente da sala, para esconder a violência da sua emoção.

Dunwoodie ficou por momentos mergulhado num estado de acabrunhamento, desfeito tanto pelo desgosto da sua amada como pelo que ele próprio sentia. Por fim, seguiu-a, na intenção de acalmar os seus receios. Mas ao entrar no vestíbulo, que separava as duas salas, encontrou uma criança coberta de andrajos, que, olhando por momentos para o uniforme do major, lhe meteu na mão um pedaço de papel e desapareceu como um relâmpago pela outra porta do vestíbulo. A rapidez do seu desaparecimento e a perturbação do major mal lhe deram tempo para reparar que este mensageiro era uma criança da aldeia, mal vestida, segurando na mão um desses brinquedos próprios da sua idade que se vendem nas cidades e que contemplava provavelmente com o prazer de o ter pago apenas com a mensagem que tinha acabado de entregar. Lançou os olhos sobre o bilhete, que não era mais do que um amarrotado papel sujo e cuja caligrafia mal se podia ler, e foi com dificuldade que conseguiu decifrar o seguinte:

 

"As tropas regulares estão a dois passos, cavalaria e infantaria."

 

Dunwoodie estremeceu e, não pensando senão nos deveres da sua profissão, saiu de casa precipitadamente. Enquanto avançava em grandes passadas na direcção das suas tropas, viu sobre uma elevação situada a alguma distância uma sentinela que descia a toda a velocidade; rapidamente se sucederam vários disparos de pistola; um momento depois ouviu os clarins dos seus homens darem o toque de selar os cavalos. Ao chegar ao terreno ocupado pelo seu esquadrão, viu que estava tudo em movimento. Lawton estava já a cavalo com os olhos fixos na extremidade oposta do vale, com todo o ardor da expectativa e gritando aos músicos numa voz quase tão forte como a dos seus instrumentos reunidos:

- Toquem, meus amigos, toquem! Ensinem a esses Ingleses que a cavalaria da Virgínia se encontra entre eles e é o termo da sua viagem!

As sentinelas e as patrulhas começaram então a chegar sucessivamente e a fazerem os seus relatórios ao oficial comandante, que dava ordens com aquele sangue-frio e prontidão que asseguram a obediência. Apenas uma vez se aventurou enquanto fazia rodar o cavalo sobre o relvado, a olhar para a casa que deixara e o coração bateu-lhe com uma rapidez extraordinária, quando avistou uma mulher de pé e com as mãos unidas a uma janela da sala na qual vira Frances. A distância era grande demais para que conseguisse distinguir as feições; mas o coração disse-lhe que era a dona do seu coração. A palidez e a fraqueza dos olhos duraram apenas um instante. Ao dirigir-se para o local que destinava como campo de batalha, o seu ardor marcial fez-lhe reaparecer uma viva coloração no rosto queimado pelo sol, e os dragões, que estudavam a fisionomia do chefe como um livro onde podiam ler o seu destino, voltaram a encontrar aquele olhar cheio de fogo e o ar animado e alegre que tantas vezes lhe tinham visto na altura do combate.

Compreendendo as sentinelas avançadas e os destacamentos enviados em reconhecimento, agora de regresso, a cavalaria sob as ordens do major contava aproximadamente duzentos homens. Havia também um pequeno corpo de homens a cavalo que, em caso de necessidade, faziam o serviço da infantaria. Dunwoodie mandou-os apear e deu-lhes ordem de abater algumas sebes que poderiam dificultar os movimentos da cavalaria. O estado de descuido da cultura das terras, em consequência das operações da guerra, tornava a tarefa bastante fácil.

As longas linhas de muros maciços e sólidos que hoje se estendem em todas as regiões do país não existiam ainda há quarenta anos. As vedações ligeiras, feitas de pedregulhos amontoados, tinham sido erguidas antes para tornar a terra mais fácil de cultivar, retirando-lhe as pedras, do que para servirem de barreiras permanentes e marcar a divisão das propriedades; exigiam a atenção constante do trabalhador para as preservar do furor das tempestades e da geada dos invernos. Algumas tinham sido construídas com mais cuidado nas proximidades imediatas da casa de Wharton; mas as que cortavam o vale em diagonal algum tempo antes não passavam agora de uma massa de ruínas dispersas, que os cavalos da Virgínia passavam com a ligeireza do vento. Via-se ainda, aqui e ali, alguns vestígios em bastante bom estado; mas como nenhuma atravessava o terreno que Dunwoodie destinava para as suas operações, só tinham que abater um pequeno número de sebes vivas e algumas formadas por caniçadas. Esta tarefa era feita à pressa, mas no entanto foi perfeitamente executada, e os guias dirigiram-se seguidamente ao posto que o major lhe destinara para o combate que se ia seguir.

O major Dunwoodie recebera dos guardas avançados todas as informações de que tinha necessidade para tomar as suas disposições. O fundo do vale era uma planície unida que descia por uma ladeira suave e gradual, desde a base das montanhas que se elevavam de cada lado, e cujo centro era um prado natural, atravessado por um ribeiro cujas águas inundavam muitas vezes o vale, mas que contribuíam para o tornar fértil. Podia passar-se a vau em qualquer ponto e só oferecia obstáculo aos movimentos da cavalaria num único local onde, mudando o curso no vale, se dirigia de poente para levante. Aí, as margens eram mais escarpadas e o seu acesso mais difícil. Era neste local que a estrada principal a atravessava por meio de uma ponte de madeira grosseiramente construída, havendo ainda outra aproximadamente a meia-milha, para lá de Sauterelles.

A leste do vale as montanhas eram escarpadas e algumas adiantavam-se mesmo de maneira a diminuir para perto de metade, em certos locais, a largura do vale.

Uma delas era a pouca distância da retaguarda do esquadrão e o major deu ordem a Lawton para se colocar por trás dela com oitenta homens e de aí fazer uma emboscada. Esta missão não agradava extraordinariamente ao capitão, mas a sua repugnância diminuiu ao pensar no efeito que produziria sobre os inimigos o ataque imprevisto à cabeça da sua coluna. Dunwoodie conhecia o homem com quem tratava e tinha as suas razões para o encarregar deste serviço. Temia que este se deixasse levar pelo ardor, se comandasse na primeira linha e sabia que ele não deixaria de se mostrar à frente dos seus homens quando se apresentasse o momento favorável. Era apenas quando estava em frente do inimigo que Lawton se deixava levar por demasiada precipitação; em todas as outras circunstâncias, tinha tanto sangue-frio como prudência, qualidades que esquecia algumas vezes pelo ardor de travar combate.

No lado esquerdo do terreno, no qual o major tencionava encontrar o inimigo, havia um bosque muito espesso que acompanhava o vale no comprimento de uma milha; aí colocou a companhia dos guias, que se escondeu perto da orla, de maneira a poder manter um fogo contínuo sobre o inimigo assim que se visse a sua coluna aparecer.

Todos estes preparativos se faziam à vista de Sauterelles e é de crer que os habitantes desta casa os olhariam como espectadores não desinteressados; pelo contrário, a vista desta cena fazia-os experimentar todos os sentimentos que podem agitar o coração humano. Só Wharton não esperava nada do resultado do combate que se ia travar, fosse qual fosse. Se os Ingleses vencessem, o filho não correria é certo mais nenhum risco, mas qual seria o resultado quanto a si? Até então sustentava o seu carácter de neutralidade no meio das mais embaraçosas circunstâncias. O facto bem conhecido de ter um filho no exército real ou no exército regular, como lhe chamavam, ia fazendo com que confiscassem as suas propriedades e a sua conservação devia-a a um parente que ocupava um posto eminente na nova administração do país e a uma conduta sempre ditada pela prudência. No fundo do coração, sentia-se ligado à causa do rei; e, quando, na Primavera precedente, ao voltar do campo americano, Frances lhe comunicara, corando, os desejos do seu pretendente, uma das razões que o tinham levado a dar o seu consentimento, era a necessidade que tinha de arranjar poderosos apoios no partido republicano, isso mais do que qualquer consideração sobre a felicidade da filha; mas se agora o filho, detido pelos insurrectos, fosse salvo pelas tropas reais, na opinião pública passaria por ter conspirado com ele contra a segurança da pátria. Se, pelo contrário, Henry ficasse cativo e fosse levado a julgamento, as consequências podiam ainda ser mais terríveis. Por mais ligado que estivesse aos seus bens, Wharton amava ainda mais os filhos, e olhava para o que se passava no vale com um ar de inquietação vaga, que indicava a fraqueza do seu carácter.

O filho estava animado por sentimentos completamente diferentes. O capitão Wharton ficara sob guarda de dois dragões dos quais um fazia o seu quarto de sentinela dum lado para o outro no terraço e o outro recebera ordem de não o perder de vista nem por um instante. Observava com admiração todas as disposições do major Dunwoodie; rendia justiça aos talentos do seu velho amigo e não deixava de temer por aqueles sob cuja bandeira ele teria gostado de combater. A emboscada de Lawton dava-lhe sobretudo grandes receios, pois a sua janela estava situada de maneira que podia vê-lo passeando a pé entre os seus homens em armas e mal podendo moderar a sua impaciência. Por várias vezes, olhou à sua volta para ver se não poderia descobrir qualquer meio de fugir. Mas encontrava sempre os olhos do guarda fixos nele, e por maior que fosse o seu desejo de tomar parte no combate que se ia disputar, viu-se forçado a contentar-se com o papel pouco glorioso de espectador.

Jeannette Peyton e Sara continuaram a observar os preparativos do combate com uma emoção produzida por causas diferentes, das quais a principal era o receio pelo capitão Wharton até ao momento em que, ao parecer-lhes estar quase a começar a correr o sangue, cederam à timidez do seu sexo e retiraram-se para uma sala interior da casa. O mesmo não se passou com Frances: voltara para a sala onde havia deixado Dunwoodie e, de uma velha janela deste quarto, seguira todos os movimentos com um interesse profundo. Não vira nem as tropas colocarem-se em ordem nem qualquer dos preparativos para uma luta sangrenta: não tinha olhos senão para o apaixonado do seu coração. Tão depressa o seu sangue circulava com mais rapidez quando via este jovem guerreiro mostrando sobre o seu corcel tanta graça e habilidade e espalhando evidentemente um espírito de coragem e de actividade entre todos os que a ele se dirigiam; como se lhe gelava nas veias quando pensava que esta bravura que tanto estimava poderia em breve colocar um túmulo entre ela e o objecto de todo o seu afecto. O olhar de Frances ficou pregado a esta cena enquanto os olhos a abarcaram.

Num campo à esquerda de Sauterelles e um pouco na retaguarda do corpo de cavalaria, estava um pequeno grupo parecendo entregar-se a um género de ocupação completamente diferente. Era composto apenas por três indivíduos, dois homens e um jovem mulato.

A figura principal era um homem cuja magreza fazia parecer a sua estatura quase gigantesca. Usava óculos, estava desarmado, a pé e parecia dividir a sua atenção entre um charuto, um livro e o que se passava à sua frente. Frances, resolvida a mandar um bilhete a Dunwoodie, escreveu à pressa a lápis: "Venha ver-me, Dunwoodie, nem que seja por um instante." César, encarregado de o levar, tomou a precaução de sair pela porta traseira para evitar a sentinela postada no terraço, que, muito cavalheirescamente proibira que saísse de casa quem quer que fosse. O negro entregou o bilhete de Frances ao homem magro que acabámos de descrever, pedindo-lhe que o fizesse chegar ao major Dunwoodie.

Era ao cirurgião do regimento que César se dirigia e os dentes do africano bateram uns contra os outros quando viu espalhados no solo os diversos instrumentos já preparados para as operações que podiam ser necessárias. O doutor parecia olhá-los com muita satisfação, quando levantou os olhos do livro para ordenar ao jovem mulato que levasse o bilhete ao oficial comandante e, tornando em seguida à página, que deixara por instantes, continuou a leitura. César retirava-se sem se apressar, quando o terceiro indivíduo, que pelo fato parecia ser o ajudante do cirurgião, lhe perguntou muito tranquilamente se desejava que lhe cortasse uma perna. Esta pergunta fez lembrar ao negro a existência dos seus dois membros, e deles se serviu tão bem que chegou ao terraço ao mesmo tempo que o major Dunwoodie, que viera a trote apressado. A sentinela apresentou as armas com uma precisão militar quando o oficial passou à sua frente; mas, assim que este entrou, voltou-se para César e disse-lhe num tom ameaçador:

- Ouve, negro, se te aventuras a sair outra vez da casa sem que eu o saiba, corto-te uma das tuas orelhas de ébano com esta lâmina.

Ameaçado deste modo em outro dos seus membros, César bateu apressadamente em retirada para a cozinha, murmurando algumas palavras entre-dentes, sendo a parte mais notável do seu discurso formada pelos termos Skinner e cães de rebeldes.

- Major Dunwoodie - disse Frances, quando o seu pretendente entrou - posso ter sido injusta para consigo, ter-lhe falado com tal dureza...

A sua agitação cortou-lhe a palavra e desfez-se em lágrimas.

- Frances - exclamou o major, calorosamente - nunca me falou com dureza, nunca foi injusta para comigo, a não ser quando duvidou do meu amor.

- Ah! Dunwoodie! - acrescentou ela, soluçando - vai jogar a sua vida num combate; pense que existe um coração cuja felicidade depende da sua existência. Sei que é valente, seja prudente.

- Por amor de si? - perguntou o jovem militar encantado.

- Por amor de mim - respondeu Frances baixando a voz e deixando a cabeça repousar sobre o peito do amado.

Dunwoodie apertou-a contra o coração e ia responder-lhe quando o som de um clarim se fez ouvir na extremidade do vale do lado sul. Depois de um terno beijo, arrancou-se aos braços da amada e dirigiu-se a galope para o futuro local de combate.

Frances lançou-se sobre um sofá, escondeu a cabeça sob as almofadas e cobriu o rosto com um xaile para impedir tanto quanto possível que o barulho do combate chegasse até si; e nesta situação ficou, até que os gritos dos combatentes, as descargas da fuzilaria e os passos precipitados dos cavalos deixassem de ser ouvidos.

 

A natureza do país, os bosques de que estava coberto, a distância que o separava da Inglaterra, a facilidade que o seu domínio sobre o oceano dava aos Ingleses para transportarem as suas forças num movimento rápido de um ponto a outro do teatro de guerra, tudo se reunira para determinar que os chefes empregassem pouca cavalaria ligeira nos seus esforços para sufocar as colónias insurrectas.

Durante todo o curso da guerra, fora enviado da Grã-Bretanha para a América apenas um regimento de cavalaria regular; mas, segundo as circunstâncias e os projectos dos comandantes das forças reais, formavam-se em locais variados legiões e corpos independentes. Aqui eram compostos por homens recrutados nas próprias colónias; ali transformavam-se em cavaleiros os soldados do regimento de linha e fazia-se-lhes esquecer o exercício do mosquete e da baioneta para se lhes ensinar o manejo do sabre e da carabina. Foi assim que um corpo de infantaria subsidiário, os caçadores do Hesse, se transformara num esquadrão de cavalaria pesada, do qual ainda não tinham sido retirados grandes serviços.

A cavalaria americana, pelo contrário, era composta pelas melhores tropas das colónias. A das províncias do sul fazia-se sobretudo notar pela disciplina e coragem e tinha por chefes patriotas zelosos, cujo entusiasmo se comunicava aos soldados, que eram homens escolhidos com cuidado e adequados ao serviço que lhes era destinado. Deste modo, enquanto os Ingleses se limitavam a conservar-se nos portos de mar e nas mais consideráveis cidades, as tropas ligeiras dos Americanos estavam de posse dos campos e de todo o interior do país.

As tropas de linha dos Americanos suportavam sofrimentos sem exemplo; mas o entusiasmo redobrava as suas forças e a sua resignação. Os cavaleiros estavam bem montados, os cavalos bem alimentados e, consequentemente, uns e outros estavam em estado de prestarem bons serviços. O mundo não poderia talvez ter fornecido um corpo de cavalaria ligeira mais valente, mais ousado e mais irresistível do que alguns do exército continental na época de que falamos.

O regimento de Dunwoodie distinguira-se já diversas vezes e esperava com impaciência o momento de avançar contra o inimigo, que raramente enfrentara em vão. Este desejo não tardou a ser realizado; pois mal o comandante tivera tempo de montar, quando se viu a força do inimigo aparecer no vale, contornando a base de uma montanha que impedia a vista do lado sul. O major precisou de alguns minutos para os distinguir.

Nos que avançavam à frente, reconheceu o uniforme verde dos Vachers e no segundo corpo os capacetes de coiro e as selas de madeira dos caçadores do Hesse. O seu número não era mais considerável do que o dos homens que estavam sob as suas ordens.

O inimigo parou quando chegou frente à cabana de Birch, pôs-se em linha, tomando as suas disposições para uma carga; no mesmo instante surgiu no fundo do vale uma coluna de infantaria, dirigindo-se para o pequeno rio de que já falámos.

O major Dunwoodie era conhecido não só pelo sangue-frio e sensatez como por uma valentia a toda a prova quando a ocasião o exigia. Viu imediatamente que tinha vantagem e resolveu aproveitá-la. A coluna que conduzia começou a retrair-se lentamente e o jovem alemão que comandava a cavalaria inimiga, temendo perder uma vitória fácil, deu ordem de carregar. Poucas tropas tinham tanta impetuosidade como os Vachers; estes lançaram-se com a confiança que lhes inspirava a retirada do inimigo e a marcha da coluna que formava a retaguarda. Os caçadores do Hesse seguiam-nos mais lentamente, mas em melhor ordem. Os clarins dos Virgínianos fizeram-se então ouvir com os seus sons vivos e prolongados e os do destacamento que se encontrava emboscado responderam-lhes com uma força que levou o terror ao coração dos inimigos. A coluna de Dunwoodie deu uma volta no mesmo instante e quando foi dada ordem de carregar, os homens de Lawton mostraram-se e com o capitão à frente, empunhando o sabre e animando os soldados numa voz que se fazia ouvir acima dos sons da música marcial.

Esta dupla carga pareceu demasiado ameaçadora aos Vachers: começaram a fugir imediatamente e dispersaram-se por todos os lados a toda a velocidade dos seus cavalos, a "elite" dos de West Chester. Apenas um pequeno número ficou ferido, mas os que foram tocados pelo braço vingador dos seus concidadãos não viveram tempo suficiente para dizer quem lhes tinha dado o golpe fatal. O choque deu-se sobre os pobres vassalos de um príncipe alemão. Acostumados a uma disciplina severa e a uma obediência passiva, os infelizes sustiveram a carga com valentia; mas foram varridos pelos cavalos cheios de fogo e pelos braços nervosos dos antagonistas, como pedaços de palha arrastados pelo vento. Muitos deles ficaram literalmente esmagados sob as patas dos cavalos e rapidamente o campo de batalha não apresentava nem um único inimigo aos olhos de Dunwoodie. A vizinhança da infantaria inglesa impediu-os de os perseguirem e foi na retaguarda deste corpo que os poucos que escaparam sem ferimentos se foram reunir.

Os Vachers, mais capazes, dividiram-se em pequenos grupos; e metendo-se por diversos desvios, voltaram à sua antiga posição em frente de Harlem. Vários cultivadores pacíficos foram vítimas, eles, os seus animais e os seus bens desta derrota; pois a dispersão de uma coluna de Vachers só contribuía para aumentar as suas destruições por uma área maior.

Era de esperar que, passando-se semelhante cena tão perto de Sauterelles, os seus habitantes tomassem um grande interesse pelo resultado que esta teria. De facto, esse interesse fazia-se sentir em todos os corações, desde o salão à cozinha. O terror e o horror havia impedido as senhoras de serem espectadoras do combate. Frances continuava na atitude que descrevemos, elevando ao céu orações pela segurança dos seus concidadãos, embora a nação no fundo do seu coração tomasse as feições graciosas do major Dunwoodie. A devoção da tia e da irmã era menos exclusiva; mas o triunfo que Sara esperava causava-lhe menos prazer à medida que o testemunho dos seus sentidos lhe fazia sentir os horrores da guerra.

Os habitantes da cozinha do Sr. Wharton eram quatro: César e a mulher, a neta, uma negra de vinte anos e o jovem de quem falámos. Os negros eram o fim de uma raça de escravos importados para este domínio por um dos antepassados maternos do Sr. Wharton, que descendia dos primeiros colonos holandeses. O tempo, a depravação dos costumes e a morte reduzira-os a este pequeno número, e o jovem que era branco fora acrescentado ao pessoal por "miss" Peyton, para ajudar nos trabalhos da casa e cumprir as funções habituais de lacaio. César, depois de ter tomado a precaução de se abrigar num ângulo da parede, para ficar em segurança contra qualquer bala perdida que pudesse chegar daquele lado tornou-se espectador da acção e nela tomou interesse. A sentinela do terraço estava a poucos passos dele e entrava no espírito da caça com todo o ardor de um excelente cão. Enquanto estava voltado para o inimigo oferecendo o seu peito desprotegido a todos os perigos que o poderiam ameaçar, viu com um sorriso de desprezo a posição judiciosa que o negro tinha escolhido. Depois de o ter olhado por instantes com um desdém inefável:

- Senhor Pele-Negra - disse-lhe - parece ter muito cuidado com a sua encantadora pessoa.

- Eu pensar que bala atravessar pele de cor tão bem como pele branca - respondeu César com certa ironia, mas olhando com satisfação a parede que lhe servia de abrigo.

- Mas é apenas uma suposição; e se fizéssemos a prova? - disse o dragão pegando numa pistola que tinha à cintura e dirigindo o cano para o negro.

Os dentes de César bateram de terror, embora não acreditasse que o dragão estivesse a falar a sério. Foi neste momento que a coluna de Dunwoodie começou o seu movimento de recuo e que a cavalaria real carregou.

- Eh! vocês da cavalaria ligeira! - exclamou César, julgando que os Americanos estavam realmente a fugir - rebeldes derrotados, tropas do rei Jorge fazer correr tropas do major Dunwoodie; ser um valente o major, mas não querer combater com as tropas regulares.

- As tropas regulares que vão para o diabo! - gritou o dragão. - Espera um pouco, negro, e quando o capitão Lawton sair do esconderijo, verás esses miseráveis Vachers espalharem-se como um bando de aves selvagens que perderam o chefe de fila.

César imaginara que o destacamento sob as ordens do capitão Lawton se tinha colocado por trás de uma montanha pelo mesmo motivo que o tinha levado a ele próprio a colocar-se no ângulo de uma parede entre ele e o campo de batalha; mas o que se passou em breve confirmou a previsão da sentinela e o negro viu com consternação a derrota total da cavalaria real.

A sentinela manifestara a sua alegria pelo êxito dos camaradas dando grandes gritos que rapidamente atraíram à janela do salão o companheiro, que ficara no interior da casa para guardar à vista o capitão Wharton.

- Vê, Tom - gritou-lhe a sentinela, radiante - vê como o capitão Lawton faz saltar os capacetes de coiro desses caçadores do Hesse e com que golpe o major acaba de deitar por terra o cavalo daquele oficial! Caramba! porque não o matou a ele em vez da montada?

Foram dados alguns tiros contra os Vachers, que fugiam por todos os lados e uma bala perdida veio partir um vidro a poucos metros de César. Imitando imediatamente a posição do grande tentador da espécie humana, o negro foi procurar, rastejando, uma protecção mais segura no interior da casa e subiu até ao salão.

Uma pequena sebe rodeava uma cerca quase em frente de Sauterelles e os cavalos dos dois dragões tinham sido presos a ela enquanto esperavam pela partida dos donos.

Os Americanos vitoriosos perseguiam os soldados do Hesse em debandada até onde estes se ficavam sob a protecção do fogo da sua infantaria. Mas dois guerreiros ladrões, encontrando-se escondidos nessa cerca ao abrigo de qualquer perigo imediato, cederam à tentação a que poucos soldados do seu regimento estariam em estado de resistir, a ocasião de se apoderarem de dois cavalos. Com uma ousadia e uma presença de espírito que se só podiam dever a uma longa prática de semelhantes feitos, correram para a presa num movimento quase expontâneo. Estavam ocupados a desatar a corda que prendia os cavalos quando o dragão que estava de guarda no relvado atirou contra eles dois tiros de pistola e correu para a cerca com o sabre na mão para se opor ao roubo dos cavalos.

O companheiro, que estava no salão redobrara de vigilância para com o prisioneiro ao ver César entrar; mas este novo incidente atraiu-o segunda vez à janela; e, esticando metade do corpo para fora da janela, procurava com a sua presença, imprecações e ameaças, assustar os malandrins e fazê-los abandonar a presa. O momento era propício para Henry e a tentação era forte. Trezentos camaradas seus estavam a uma milha de distância; cavalos sem dono corriam por toda a parte no vale; por isso agarrando bruscamente nas pernas do guarda surpreendido, atirou-o de cabeça para o relvado. César precipitou-se então para fora da sala e foi aferrolhar a porta de entrada da casa.

A queda do soldado não foi perigosa e este levantou-se imediatamente; a sua fúria dirigiu-se em primeiro lugar para o prisioneiro; no entanto, era impossível escalar a janela em frente do inimigo," e, correndo para a porta, encontrou-a fechada.

Entretanto, o camarada chamava-o com grandes gritos em seu socorro, e banindo qualquer outro pensamento, o dragão desconcertado correu em sua ajuda. Um dos cavalos estava já em liberdade mas o outro estava preso à sela de um dos Vachers. Estes fugiram para trás da casa, os dragões perseguiram-nos e o combate começou, o ar retinindo com o choque dos sabres e o barulho das suas imprecações. César abriu a porta à pressa; e mostrando ao jovem patrão o segundo cavalo que comia tranquilamente a erva da cerca, gritou:

- Correr agora, massa Henry! correr, correr depressa!

- Sim - disse o jovem Wharton, saltando agilmente para a sela - sim, meu velho amigo, é verdadeiramente o momento de correr; à pressa fez um gesto de adeus ao pai que estava a uma janela, mas que o medo tornava mudo, embora tivesse a mão estendida para o filho como para lhe dar a bênção. - Que o céu te abençoe, César - acrescentou Henry dirigindo-se ao negro - e saúda as minhas irmãs por mim.

Com estas palavras partiu com a rapidez de um relâmpago.

O africano seguiu-o com os olhos com temor e viu-o alcançar a grande estrada, voltar à direita, correr a toda a brida ao longo de uma cadeia de montanhas quase perpendiculares, que formavam daquele lado o limite do vale e desaparecer por trás de uns rochedos que sobressaíam e que o esconderam a seus olhos.

César, encantado, fechou a porta sem esquecer um só fecho e voltou a chave na fechadura, fazendo ao mesmo tempo um solilóquio acerca da feliz evasão do jovem patrão.

- Como ele montar bem a cavalo! Eu ensinar-lhe. Saudar as patroas(1)! Eu duvidar se "miss" Fanny deixar um velho homem de cor beijar as suas lindas faces vermelhas.

Quando a sorte do dia se decidiu e chegou o momento de dar sepultura aos mortos, atrás de Sauterelles foram encontrados dois Vachers e um virginiano a acrescentar ao número.

Felizmente para o capitão Wharton, os olhos clarividentes de Lawton estavam então ocupados a examinar, com a ajuda dum telescópio de bolso, a coluna de infantaria inglesa que mantinha a sua posição à beira do rio, enquanto o que restava dos caçadores do Hesse continuava a reunir-se na retaguarda. O seu cavalo era um dos melhores da Virgínia e levava-o ao longo do vale com a rapidez do vento. O coração do jovem batia já com o prazer de ter recobrado a liberdade quando ouviu uma voz que reconheceu imediatamente, gritar muito alto:

- Bravo, capitão! bravo! não poupe o chicote e volte à esquerda antes de atravessar o ribeiro.

Wharton muito surpreendido lançou um olhar para o lado de onde partia a voz e viu Harvey Birch sentado no alto de um rochedo avançado, que abrangia todo o vale. O fardo, cujo volume estava muito diminuído, encontrava-se a seus pés, e agitava o chapéu no ar, em sinal de alegria, quando o capitão inglês passou à sua frente. Wharton seguiu o conselho deste ser misterioso e, encontrando um caminho que levava até à estrada que atravessava o vale, dirigiu-se por esse lado, chegando rapidamente em frente dos amigos e, depois de passar a ponte, fez parar o corcel em frente do seu velho conhecido coronel Wellmere.

- O capitão Wharton! - exclamou o coronel. - De fato azul e montado no cavalo de um dragão dos rebeldes! Desceu do céu nessa figura?

- Graças a Deus - respondeu Henry, ainda sem fôlego - eis-me em segurança e longe dos meus inimigos! Ainda não há cinco minutos estava prisioneiro e ameaçado de forca.

- De forca! Esses traidores ao rei ousariam cometer mais um crime a sangue-frio? Não lhes basta estarem cobertos com o sangue do infeliz André? E que motivo alegavam para lhe fazerem uma tal ameaça?

- A mesma que inventaram para fazer morrer André - respondeu o capitão.

 

*1. verbo inglês to salute significa igualmente "saudar e beijar".

 

E contou ao grupo de oficiais, que se tinham reunido à sua volta, a maneira como fora preso, os motivos de apreensão pessoal e o meio que empregara para se escapar. Quando acabou a narração, os cavaleiros do Hesse fugitivos tinham-se reunido atrás da coluna de infantaria e o coronel Wellmere exclamou:

- Felicito-o do fundo da alma, meu bravo amigo. A piedade é uma virtude que esses traidores não conhecem e é duplamente feliz por ter escapado às suas mãos e por não ter sofrido nenhum insulto pessoal. Prepare-se agora para nos dar a sua ajuda, e em breve lhe fornecerei nobres meios de vingança.

- Não creio, coronel Wellmere - respondeu Wharton, o rosto com uma coloração mais animada - que ninguém possa ter insultos pessoais a temer de uma tropa comandada pelo major Dunwoodie. O seu carácter coloca-o acima duma tal imputação e penso que não seria muito prudente atravessar este ribeiro para entrar na planície descoberta em frente da cavalaria virginiana, cujo ardor deve estar mais inflamado do que nunca pelo êxito que acaba de obter.

- Chama êxito à derrota desses Vachers indisciplinados, desses autómatos do Hesse? Você fala deste assunto e do seu famoso Dunwoodie, porque não lhe concedo o título de major, como se os guardas do rei tivessem sido abatidos:

- E o senhor permita-me que lhe diga, coronel, que se os guardas do rei se encontrassem frente a essa cavalaria, veriam que não se trata de um inimigo tão desprezível. Sabe que Dunwoodie é um dos oficiais mais estimados do exército de Washington?

- Dunwoodie! - repetiu o coronel - conheço esse nome, creio ter visto em qualquer sítio o indivíduo que o usa.

- Disseram-me que o tinha visto por instantes na casa do meu pai, em Nova York.

- Ah! lembro-me do rapaz - disse Wellmere, com um sorriso irónico - e eis a que guerreiros o todo-poderoso congresso confia a direcção das suas tropas.

- Pergunte ao comandante dos soldados do Hesse se julga o major Dunwoodie digno dessa confiança - exclamou Henry, aborrecido por ouvir falar num tom tão ligeiro do seu velho amigo e num momento tão pouco conveniente.

Wellmere estava longe de ser desprovido daquela espécie de orgulho que faz com que um homem se conduza com bravura face ao inimigo. Servira suficiente tempo na América, mas nunca tivera pela frente mais do que novos recrutas ou as milícias do país. Estas tropas combatiam algumas vezes e mesmo com coragem; mas acontecia-lhes também muitas vezes fugir sem queimar uma bala. Por isso, tinha tendência para julgar as coisas pelo exterior e julgava ser impossível que homens cujas polainas estavam tão limpas, que marchavam com tanta regularidade, e que manobravam com uma precisão tão exacta fossem alguma vez batidos.

Além destas vantagens, tinham a de serem ingleses e, consequentemente, o seu triunfo estava assegurado. O coronel Wellmere tinha visto poucos campos de batalha, pois caso contrário já teria visto dissiparem-se há muito essas ideias que trouxera da Inglaterra e que tinham sido alimentadas e aumentadas pelos preconceitos de uma cidade de guarnição. Ouviu a réplica um tanto viva do capitão Wharton com um sorriso altivo e disse-lhe depois:

- Não quereria certamente que batêssemos em retirada perante essa famosa cavalaria, sem tentar roubar-lhe uma parte da glória com que acaba de se cobrir?

- Quereria, coronel, que desse alguma atenção ao perigo a que se expõe.

- O perigo é uma palavra que o soldado não conhece - disse o coronel rindo.

- Dê ordem de marchar - gritou Wharton - e ver-se-á se um capitão do 60.o regimento teme mais o perigo do que aquele que enverga o uniforme dos guardas.

- Reconheço o meu amigo por esse ardor -disse o coronel, num tom mais suave - mas se tem qualquer coisa a dizer-nos, algo que nos possa ser útil para o ataque, escutá-lo-emos de boa vontade. Provavelmente conhece a forma dos rebeldes. Haverá um número maior emboscado?

- Sim - respondeu Henry ainda vibrante, por causa das ironias do coronel - há um destacamento de infantaria por trás da orla destes bosques à nossa direita; mas a cavalaria é toda a que vê.

- E nós vamos desalojá-los da sua posição. Meus senhores, vamos atravessar o rio em coluna e espalhar-nos na outra margem, para que os valentes yankees não ousem aproximar-se até ao alcance dos mosquetes.

- Capitão Wharton - continuou o coronel - reclamo os seus serviços como ajudante de campo.

Henry abanou a cabeça, como se quisesse desaprovar um movimento que na sua opinião lhe parecia imprudência e temeridade; mas preparou-se prontamente a executar as funções que acabavam de lhe ser atribuídas.

Durante esta conversa, que se dera à vista dos Americanos, a poucos passos da coluna inglesa, Dunwoodie reunia as suas tropas dispersas, mandava conduzir para um local seguro os poucos prisioneiros que fizera e retirava-se para o terreno que ocupava quando o inimigo se mostrava. Satisfeito com o êxito que obtivera e julgando os Ingleses demasiado prudentes para lhe fornecerem ocasião de outro, pensou em chamar os guias, deixar um forte destacamento no local para vigiar os movimentos dos inimigos e retirar-se para um sítio conveniente, onde passasse a noite. O capitão Lawton escutava contra-vontade as ideias do comandante e servia-se do telescópio favorito para procurar descobrir algum meio de atacar a infantaria inglesa com vantagem. De repente, exclamou:

- O que quer isto dizer? Um fato azul no meio de todos aqueles senhores de escarlate?

E usando segunda vez o telescópio:

- Tão certo quanto espero voltar a ver a Virginia, é o meu amigo mascarado, o belo capitão Wharton do 60.o regimento de infantaria que se escapou aos dois melhores dragões da minha companhia!

Mal acabara de falar quando chegou o sobrevivente destes dois heróis, trazendo o cavalo e os dois Vachers. Deu a conhecer ao capitão a morte do camarada e a evasão do prisioneiro. Como o defunto era aquele que fora especialmente encarregado de olhar pelo prisioneiro e o outro não podia ser censurado por ter defendido os cavalos que estavam mais particularmente sob a sua vigilância, Lawton escutou-o zangado mas sem cólera.

Esta notícia operou uma mudança completa nas ideias do major Dunwoodie: viu imediatamente que a evasão do prisioneiro comprometia a sua própria reputação. Anulou a ordem que tinha dado ao chamar os guias e procurou tão ardentemente quanto o impetuoso Lawton qualquer meio de atacar o inimigo de modo vantajoso.

Duas horas antes, Dunwoodie encarara como a maior infelicidade que alguma vez lhe acontecera o acaso que tornara Wharton seu prisioneiro. Agora ardia por tornar a pôr a ferros o amigo mesmo com risco da própria vida. Do seu espírito ferido desaparecia qualquer consideração e teria rapidamente imitado a temeridade de Lawton se Wellmere nesse momento não tivesse atravessado o ribeiro à cabeça das suas tropas para entrar na planície.

- Ei-lo! - gritou o capitão encantado, mostrando com o dedo um movimento que se operava. - Eis John Bull que entra na ratoeira com os olhos abertos.

- É impossível - disse Dunwoodie que ele pense abrir a sua coluna nesta planície. -Wharton deve ter-lhe dado a conhecer a emboscada.

- Mas se ele vem, nós não deixaremos doze peles inteiras no seu batalhão - acrescentou Lawton, saltando para o cavalo.

Não ficaram na dúvida durante muito tempo: as tropas inglesas, depois de terem avançado alguns passos na planície, começaram a abrir com uma regularidade que lhe teria creditado grande honra num dia de revista em Hyde Park.

- A cavalo! a cavalo! - gritou Dunwoodie; e esta ordem foi repetida por Lawton com uma voz tão forte que chegou até aos ouvidos de César, que estava a uma janela de Sauterelles. O negro perdera toda a confiança na suposta timidez do capitão Lawton e julgava vê-lo ainda atrás do rochedo, brandindo o sabre sobre a cabeça.

Enquanto a linha inglesa avançava lentamente na melhor ordem, os guias começaram um fogo assassino cujo efeito se fez cruelmente sentir na ala das tropas reais que se encontravam do seu lado.

Ouvindo a opinião do veterano, que era o segundo comandante do seu corpo, Wellmere ordenou a duas companhias que fizessem sair os Americanos do esconderijo. Este movimento ocasionou uma ligeira confusão e Dunwoodie aproveitou esta ocasião para fazer uma carga.

Teria sido difícil encontrar um terreno mais favorável ás manobras da cavalaria e o ataque dos Virginianos foi irresistível: dirigido principalmente sobre o flanco oposto ao bosque, a fim de não expor os Americanos ao fogo dos companheiros que lá se escondiam. Wellmere estava à esquerda da sua linha e foi deitado ao chão pela impetuosidade furiosa dos assaltantes. Dunwoodie chegou a tempo de lhe salvar a vida aparando o golpe que um dos seus dragões lhe ia dar e tendo-o erguido, fê-lo subir para o cavalo e pô-lo sob guarda de um oficial. O oficial inglês que aconselhara um ataque contra os guias fora encarregado de o dirigir, mas esta tropa irregular não esperou a execução da ameaça. Já tinha realizado o serviço que se esperava dela e então retirou-se ao longo da orla do bosque para ir buscar os cavalos, que tinham ficado à guarda de um piquete, na outra extremidade do vale.

Os Americanos, depois de terem voltado o flanco esquerdo à linha inglesa, atacaram-na pela retaguarda e tornaram total a derrota daquele lado. Mas o segundo-comandante das tropas reais, ao ver o que se passava, fez um quarto de conversão com o seu destacamento e começou um fogo cerrado sobre os dragões. Henry Wharton, que o acompanhara na qualidade de voluntário para ajudar a desalojar os guias do bosque, recebeu uma bala no braço direito, o que o obrigou a segurar nas rédeas com o esquerdo. Enquanto os dragões passavam, fazendo ecoar os seus gritos e os clarins tocavam ao mesmo tempo músicas guerreiras, o corcel virginiano que o jovem capitão montava tornou-se ingovernável: ergueu-se, deteve-se e, estando Henry impossibilitado de o dominar por causa do ferimento que recebera, em menos de um minuto se viu contra-vontade galopando ao lado do capitão Lawton. Este compreendeu, num relance, a aborrecida situação do seu novo camarada; mas, estando quase a cair sobre a linha inglesa, apenas teve tempo de lhe gritar:

- O cavalo conhece a boa causa melhor do que o cavaleiro. Capitão Wharton, seja benvindo às fileiras dos amigos da liberdade.

No entanto, assim que a carga terminou, Lawton não perdeu um instante para deter de novo o seu prisioneiro e, ao ver que estava ferido, mandou que o conduzissem para a retaguarda.

Os cavaleiros virginianos não pouparam parte da infantaria real que se encontrava à sua mercê. Dunwoodie, vendo que os soldados do Hesse que tinham escapado no primeiro combate voltavam a aparecer na planície, mandou atacá-los de novo e os seus cavalos fatigados e mal alimentados não puderam resistir ao choque da cavalaria virginiana e os restos deste corpo em breve foram destruídos ou dispersados.

Entretanto, uma parte dos soldados ingleses, aproveitando a fumarada e a confusão que reinava no campo de batalha, tinham conseguido passar para trás dos camaradas e estavam alinhados agora em boa ordem numa linha paralela ao bosque, mas não ousaram abrir fogo com medo de ferir os amigos. Receberam então ordem de entrar no bosque e formar uma segunda linha ao abrigo dos troncos das árvores. Mal esta manobra foi executada, o capitão Lawton, chamando um oficial que comandava uma segunda companhia reunida à sua, propôs-lhe carregar sobre essa linha para a quebrar. Esta proposta foi aceite com o mesmo ardor com que fora feita e as ordens de ataque foram dadas no mesmo instante.

A impetuosidade do chefe impediu-o de tomar as precauções necessárias para assegurar o êxito: a cavalaria foi repelida em desordem; Lawton e o jovem companheiro caíram; felizmente para os virginianos, o major Dunwoodie chegou desse lado no momento crítico. Viu as suas tropas em desordem; o jovem Singleton, oficial que lhe era querido pelas suas excelentes qualidades, estendido a seus pés, nadando em sangue, e Lawton caído do cavalo e sem conhecimento. Os olhos do jovem guerreiro brilharam com uma luz maior do que o costume: colocou-se entre os dragões e o inimigo e lembrou-lhes o seu dever. A sua presença e o discurso que lhes fez obraram o milagre: os clamores cessaram, a linha tornou a formar-se com rapidez e precisão, a carga soou: e, conduzidos pelo seu comandante, os virginianos partiram com uma impetuosidade à qual nada podia resistir. Num instante todos os ingleses foram varridos da planície e aqueles, que não tombaram sob o sabre do vencedor, foram procurar asilo no bosque. Dunwoodie deteve-se a uma certa distância para não expor os seus homens ao fogo dos ingleses, que se tinham refugiado, e começaram então a ocupar-se do penoso dever de recolher mortos e feridos.

O sargento encarregado de conduzir o capitão Wharton à retaguarda e de lhe fazer prestar socorros cumpriu a ordem rapidamente para poder voltar o mais depressa possível para o campo de batalha. Ainda não tinham percorrido metade da planície quando o capitão notou um homem cujo aspecto exterior e ocupação atraíram fortemente a sua atenção. A sua cabeça calva não tinha chapéu mas do bolso das calças via-se sair uma peruca bem empoada. Tirara a casaca, as mangas da camisa estavam arregaçadas até ao cotovelo. As mãos, os braços, os fatos e mesmo o rosto estavam cobertos de sangue. Na boca, um charuto; na mão direita segurava alguns instrumentos de forma estranha e na esquerda um resto de maçã que de tempos a tempos substituía o charuto; estava de pé, como que em contemplação frente ao corpo de um soldado do Hesse estendido a seus pés. A pouca distância estavam três ou quatro guias, apoiados nos mosquetes cujos olhos se dirigiam para o lado dos combatentes.

A seu lado estava um homem que pelos instrumentos que tinha na mão e o sangue de que igualmente estava coberto, parecia ajudá-lo nos seus trabalhos.

- Eis o doutor, senhor - disse o sargento a Henry com o maior sangue-frio. Num abrir e fechar de olhos arranja-lhe o braço.

E, fazendo sinal aos guias para se aproximarem, disse-lhes algumas palavras em voz baixa mostrando-lhes o prisioneiro e partiu a galope, ao encontro dos companheiros.

Wharton aproximou-se daquela estranha figura e, vendo que ele não lhe prestava qualquer atenção, ao dirigir-lhe a palavra, para pedir que lhe fizesse um penso no braço, quando o ouviu fazer o seguinte solilóquio:

- Estou tão certo que este homem foi morto pelo capitão Lawton como se eu próprio o tivesse visto dar o golpe. E no entanto quantas vezes já lhe indiquei os meios de pôr um adversário fora de combate sem lhe destruir os princípios da vida! É uma crueldade agir deste modo para com a raça humana e, aliás, é tratar a ciência com pouco respeito; é querer não deixar-lhe nada para fazer.

- Senhor, - disse Henry - se tem tempo, podia examinar este ligeiro ferimento?

- Ah! - disse o doutor, examinando-o da cabeça aos pés. - Vem de lá? Então, como vão as coisas?

- Posso dizer-lhe que está quente - respondeu Henry, enquanto o cirurgião o ajudava a tirar a casaca.

- Quente! - repetiu o doutor, continuando a operação - tanto melhor. Enquanto houver calor, há vida, há esperança, como sabe. Mas aqui a minha arte não tem utilidade. Meti o cérebro dentro da cabeça de um doente, mas creio que estava morto sem que lhe tocasse. É um caso muito curioso, e vou mostrar-lho. É por detrás desta sebe, onde vê tantos corpos acumulados.

- Ah! a bala só passou pela carne; não tocou o osso. Teve sorte em ter caído nas mãos de um velho médico, sem o que teria perdido o braço.

- Sério! - disse Henry, com um ligeiro temor - não julgava que o ferimento fosse tão sério.

- Oh! o ferimento não é nada - respondeu o cirurgião muito tranquilamente - mas o prazer de cortar um braço destes podia tentar um noviço.

- O quê! -exclamou o capitão horrorizado - que prazer pode encontrar-se em mutilar um dos nossos semelhantes?

- Senhor - respondeu o cirurgião com muita gravidade - uma amputação científica é uma operação muito bonita; e decerto que, com a pressa do momento, um aprendiz poderia muito bem ser tentado a não olhar de muito perto.

A conversa foi interrompida pela chegada dos dragões e vários soldados ligeiramente feridos vieram reclamar por sua vez os cuidados do doutor.

Os Ingleses tinham perdido nesta luta cerca de um terço da sua infantaria, mas o resto reunira-se no bosque e Dunwoodie, julgando ser imprudente atacá-la, deixara perto um destacamento, comandado pelo capitão Lawton, com ordem de vigiar os movimentos do inimigo e de aproveitar todas as ocasiões para o importunar, antes de ele reembarcar.

O major soubera que outro corpo inglês havia chegado para os lados do Hudson e o seu dever exigia que se preparasse para o receber e para lhe descobrir as intenções. Ao dar as suas ordens ao capitão Lawton, recomendou-lhe fortemente que não atacasse o inimigo enquanto não encontrasse uma ocasião favorável. Este oficial tinha ficado apenas aturdido com uma bala que lhe raspara a cabeça e o major, ao deixá-lo, dissera-lhe rindo que se se distraísse outra vez julgá-lo-iam ferido nessa importante parte do corpo humano e cada um foi para seu lado.

Este destacamento inglês não tinha com ele qualquer bagagem, por ter sido encarregado somente de destruir certos aprovisionamentos que se sabia estarem a processar-se para o exército americano. Assim atravessou o bosque, subiu os montes e, continuando a seguir um caminho inacessível à cavalaria, bateu em retirada, para se ir reunir aos barcos que o tinham trazido.

 

O silêncio sucedera ao derradeiro fragor do combate, e os habitantes de Sauterelles, cheios de receio, não sabiam ainda o resultado. Frances continuara a fazer todos os esforços para impedir que os terríveis sons chegassem aos seus ouvidos e procurava em vão armar-se de resolução para ouvir as notícias que temia saber. O terreno em que tivera lugar a carga contra a infantaria era apenas a uma milha de Sauterelles e no intervalo das descargas os gritos dos soldados chegavam mesmo até lá. Depois de ter visto o filho escapar-se, Wharton fora ter com a filha mais velha e com a irmã no refúgio que tinham escolhido e Frances, não podendo aguentar por mais tempo uma incerteza tão dolorosa, fora reunir-se a este pequeno grupo. César foi encarregado de saber informações sobre o estado das coisas no exterior, e de ouvir sob que bandeira se tinha mostrado a vitória. O pai contou então á família espantada o modo como Henry se escapara e todas as circunstâncias da evasão. As três senhoras estavam ainda mergulhadas na primeira surpresa quando a porta se abriu e se viu aparecer o capitão Wharton, acompanhado por dois guias, seguidos de César.

- Henry! meu filho! - exclamou o pai, estendendo-lhe os braços, sem forças para se levantar da cadeira -, será verdade que te estou a ver? Estás novamente prisioneiro? Corres ainda perigo de vida?

- A sorte favoreceu os rebeldes - respondeu Henry, esforçando-se por sorrir e pegando na mão das irmãs aflitas. - Fiz tudo o que podia para conservar a minha liberdade; mas dir-se-ia que o espírito de rebelião se estendeu até aos animais: o infeliz cavalo que montava levou-me, bem contra-vontade, para o meio das tropas de Dunwoodie.

- E foste outra vez feito prisioneiro! - exclamou o pai, lançando um olhar assustado aos dois guias armados que tinham entrado com o filho.

- É verdade - respondeu Henry. - Esse Lawton, que tem tão bons olhos, tornou a deter-me.

- Porque não o ter morto? - exclamou César, sem dar a atenção aos olhares inquietos e às faces pálidas das três senhoras.

- É mais fácil dizê-lo do que fazê-lo, César - respondeu Wharton sorrindo e lançando um olhar aos guias. - Tanto mais que estes senhores tinham tido o prazer de me privar do uso do meu melhor braço.

- Ele está ferido! - gritaram ao mesmo tempo as duas irmãs, notando então o lenço que lhe sustentava o braço direito.

- É apenas um arranhão - disse Henry, estendendo o braço para provar que não procurava enganá-las- mas privou-me da utilização de um braço num momento crítico.

César deitou um olhar de ressentimento amargo aos dois guias, que responsabilizava como causa imediata do ferimento de Henry e saiu do salão. Algumas palavras bastaram para explicar tudo o que o capitão Wharton sabia acerca da sorte desse dia. Acreditava ainda num resultado duvidoso, porque, ao deixar o campo de batalha, os virginianos estavam a retirar-se.

- Tinham forçado o esquilo a subir à árvore - disse um dos guias -e só o deixaram com um bom cão de caça, para o esperar quando descer.

-Sim, sim - acrescentou o camarada num tom seco - e garanto que o capitão Lawton contará os narizes dos que ficarem antes de eles voltarem a ver as suas barcaças.

Frances, durante este diálogo, só conseguira suster-se de pé agarrada às costas de uma cadeira, escutando com uma inquietação mortal cada sílaba que se proferia, mudando de cor a cada momento e tremendo da cabeça aos pés. Por fim, armando-se de uma resolução desesperada, perguntou:

- Há algum oficial ferido do lado dos... de um lado ou do outro?

- Sem dúvida- respondeu cavalheirescamente o mesmo guia. - Estes jovens oficiais do Sul têm tanto ardor que é raro batermo-nos sem ver tombar um ou dois. Um ferido que chegou antes dos outros disse que o capitão Singleton tinha sido morto e que o major Dunwoodie...

Frances não ouviu mais nada e caiu sobre uma cadeira privada dos sentidos. Os socorros que lhe prodigalizaram em breve lhe restituíram os sentidos e Henry, voltando-se para o guia, perguntou:

- O major foi ferido?

- Ferido! - respondeu o guia, sem dar atenção à agitação de toda a família - não. Se uma bala o pudesse matar, há muito tempo que não existiria.

Mas, como diz o provérbio, aquele que nasce para ser enforcado, não pode nunca morrer afogado. O que eu queria dizer é que o major está muito desgostoso com a morte do capitão Singleton. Mas se eu soubesse o interesse que a jovem senhora tinha por esse assunto, ter-me-ia explicado melhor.

Frances corou de novo; levantou-se precipitadamente; confusa, apoiando-se na tia, ia retirar-se, quando chegou o próprio Dunwoodie. A sua primeira sensação ao vê-lo foi um prazer sem mistura; mas quando notou a expressão inabitual do seu rosto, este sentimento foi substituído pela angústia; o seu olhar estava fixo, penetrante e severo; o sorriso de afecto que se espalhava no rosto quando estava junto da amada, dera lugar a um ar inquieto e preocupado; toda a sua alma estava sujeita a uma emoção forte que bania todas as outras e por isso começou por falar no assunto que tão vivamente o ocupava. Voltou-se para Wharton.

- Senhor - disse-lhe - num momento como este dá-se pouca atenção à cerimónia: um dos meus oficiais está perigosamente ferido, mortalmente talvez, e, contando com a vossa hospitalidade, mandei-o transportar para aqui.

- E fez muito bem - respondeu Wharton, que sentia muito quão importante podia ser para o filho suscitar a boa vontade das tropas americanas. - A minha casa está sempre aberta para os meus concidadãos a quem posso ser útil, e sobretudo para os amigos do major Dunwoodie.

- Agradeço-lhe - respondeu o major - por mim e por aquele que neste momento não está em estado de lhe agradecer pessoalmente. Poderia indicar-me um quarto onde o cirurgião o possa ver sem demora, para me dar um relatório sobre a situação em que se encontra?

Não se podia fazer qualquer objecção a este pedido: mas Frances sentiu um frio glacial no coração, quando o seu pretendente se retirou sem lhe dirigir um único olhar.

Existe no amor da mulher uma entrega que não admite qualquer espécie de rivalidade. É para ela uma paixão tirânica e, quando se dá tudo, espera-se tudo em retribuição. Frances passara horas de angústia por Dunwoodie e ele acabara de a ver, de a deixar, sem lhe dirigir um sorriso ou a mais pequena palavra! O ardor dos seus sentimentos não esfriara de modo algum, mas as suas esperanças fraquejavam. Quando os que transportavam o amigo do major para o quarto que lhe tinha sido destinado passaram junto dela, ela viu esse suposto rival no afecto do seu amado. O rosto pálido e sem vida, os olhos encovados, a respiração difícil, deram-lhe uma ideia da morte sob um dos mais horríveis aspectos. Dunwoodie estava a seu lado, segurava-lhe na mão e não parava de recomendar aos que o levavam que andassem com cuidado, numa palavra mostrava toda a solicitude que a mais terna amizade podia inspirar numa tal ocasião. Frances caminhava ligeiramente à frente deles, e ao abrir a porta do quarto para onde o conduziam voltou a cabeça. Só quando o major tocou nos seus vestidos ao entrar é que ela se aventurou a erguer para ele os seus olhos azuis cheios de doçura; mas ele nem mesmo o olhar lhe retribuiu e Frances suspirou sem dar por isso ao retirar-se para a solidão do seu quarto.

O capitão tinha voluntariamente dado a sua palavra de honra aos que o guardavam que não procuraria evadir-se e consequentemente pôde ajudar o pai no exercício dos deveres da hospitalidade. Enquanto se ocupava desses cuidados, encontrou o doutor que lhe havia feito o penso no braço com tanta destreza no campo de batalha e que se dirigia para o quarto do oficial ferido.

- Ah! - exclamou o discípulo de Esculápio - vejo com prazer que vai bem; mas espere... Tem um alfinete? Não, não; aqui está um. É preciso impedir o ar de entrar na sua ferida, senão algum dos nossos jovens pode ainda encontrar matéria para se exercitar.

- Deus nos proteja! - disse o capitão a meia-voz, arranjando o lenço, enquanto Dunwoodie, aparecendo à porta do quarto do ferido, gritava impacientemente:

- Sitgreaves, despache-se ou Jorge Singleton morrerá com uma hemorragia.

- O quê? É Singleton? É o pobre Jorge? - exclamou o doutor acelerando o andar com uma verdadeira emoção. - Meu Deus! Mas ainda vive e enquanto há vida, há esperança. Será o primeiro ferimento grave que verei hoje sem que o doente tenha já morrido. O capitão Lawton ensina os soldados a manejarem o sabre com tão pouca discrição. Pobre Jorge! Felizmente que parece ter sido só uma bala que o feriu.

Entrou no quarto e o jovem ferido voltou os olhos para ele, fazendo um esforço para sorrir e estendendo-lhe a mão. Nesse olhar e nesse gesto havia qualquer coisa que falava ao coração do doutor Sitgreaves e este tirou os óculos para limpar uma lágrima que lhe enevoava a vista.

Pôs-se imediatamente em acção; mas enquanto fazia os arranjos preliminares, entregava-se à sua habitual loquacidade:

- Quando se trata só de uma bala - disse - tenho sempre alguma esperança. Há uma possibilidade de não ter tocado em nenhum órgão vital. Mas os soldados do capitão Lawton disparam à toa; separam a veia jugular ou põem o cérebro à mostra e esses ferimentos são difíceis de curar, porque normalmente o doente está já morto antes do cirurgião ter tempo de chegar. Só consegui uma vez colocar no seu lugar o cérebro de um homem, embora o tenha tentado três vezes hoje. No campo de batalha, reconheço sempre o local em que os homens do capitão Lawton carregaram.

O grupo que rodeava o leito do ferido estava já suficientemente acostumado aos modos do cirurgião-chefe para o interromper no seu solilóquio ou para lhe responder; esperavam tranquilamente o momento em que este começaria o seu exame. Chegou por fim Dunwoodie, com os olhos fixos nos do médico, segurava em silêncio entre as suas uma das mãos do enfermo. Finalmente escapou-se um lamento dos lábios de Singleton e o doutor disse em voz alta, levantando-se com vivacidade:

- Ah! dá prazer seguir no corpo humano a trajectória de uma bala que parece ter circulado de maneira a evitar todas as partes vitais; mas quando o sabre do capitão Lawton...

- Então! - disse Dunwoodie, sem poder conter-se. - Fale! Há alguma esperança? Pode encontrar a bala?

- Não é difícil encontrar aquilo que se tem na mão, major - respondeu o doutor mostrando-lhe a bala. E, arranjando o aparelho, acrescentou:

- Tomou um caminho que o sabre do capitão Lawton nunca toma, apesar de todos os trabalhos que tive para lhe ensinar a manejá-lo cientificamente. Acreditaria que vi hoje no campo de batalha um cavalo cuja cabeça tinha sido separada do corpo?

- Esse golpe era de minha autoria - disse Dunwoodie, com um olhar de esperança renascente que lhe devolvia o sangue ao rosto. - Fui eu que matei esse cavalo.

- O senhor? - exclamou o cirurgião, deixando cair o aparelho com a surpresa. - O senhor? mas o senhor sabia que era um cavalo?

- Confesso que suspeitava - respondeu o major chegando uma bebida aos lábios do amigo.

- Tais golpes dados ao corpo humano são sempre funestos - continuou o doutor. - Vão contra todos os esforços da ciência. São inúteis numa batalha, porque o ponto importante é pôr o inimigo fora de combate. Quantas vezes, major, depois de uma escaramuça comandada pelo capitão Lawton já percorri o campo de batalha na esperança de encontrar qualquer ferimento que fosse uma honra curar! Mas não, só arranhões ou golpes mortais! Ah! major Dunwoodie, numa mão sem experiência o sabre é uma arma terrível! Que tempo já perdi para fazer sentir essa verdade ao capitão Lawton!

O major, impaciente, mostrou-lhe o amigo em silêncio e o doutor, pondo um pouco mais de vivacidade nos seus movimentos, acrescentou:

- Ah! pobre Jorge! pode dizer-se que se escapou de boa! mas...

Foi interrompido por um estafeta, que veio anunciar ao major que a sua presença era necessária no campo de batalha. Dunwoodie apertou a mão do amigo e fez sinal ao doutor que o seguisse.

- O que pensa? - perguntou, ao entrar no corredor. - Acredita que se cura?

- Curar-se-á - respondeu laconicamente o doutor, voltando as costas para entrar no quarto.

- Deus seja louvado! - exclamou Dunwoodie. E desceu as escadas. Antes de sair, foi por instantes ao salão, onde toda a família estava reunida. O sorriso reaparecera nos seus lábios e, se fez os cumprimentos à pressa, fê-los cordialmente. Não falou nem da evasão de Henry Wharton nem do facto que o fizera prisioneiro segunda vez. Tinha o ar de quem acreditava que o capitão inglês ficara onde o deixara antes do combate. Durante a acção, não se tinham encontrado. O jovem Wharton retirou-se para junto de uma janela em silêncio e com um ar altivo e deixou o major dirigir-se sem interrupção ao resto da família.

A agitação que os acontecimentos do dia tinha produzido nas duas irmãs dera lugar a um langor que as mantinha em silêncio e foi "miss" Peyton quem dirigiu a palavra ao major.

- Há qualquer esperança de que o seu amigo sobreviva ao ferimento, meu primo? - perguntou-lhe a senhora, avançando para ele com um sorriso de benevolência e de afecto.

- A maior esperança, minha querida senhora. Sitgreaves diz que ele se curará e Sitgreaves nunca me enganou.

- Essa notícia dá-me quase tanto prazer como a si. É impossível não nos interessarmos por uma pessoa que é tão cara ao major Dunwoodie.

- E que merece tanto ser amada, minha senhora. É um génio benfazejo no meu regimento; não existe um oficial, um soldado que o não estime. Tem tanta candura e generosidade! o seu carácter é tão franco e estável! Doce como um cordeiro, terno como uma pomba e só quando toca a hora do combate é que Singleton é um leão.

- Fala dele como de uma apaixonada, major - disse "miss" Peyton, sorrindo e lançando um olhar para a sobrinha que, pálida e silenciosa, estava sentada num canto.

- Gosto dele do mesmo modo! - exclamou Dunwoodie com o calor da amizade. - Mas tem necessidade de cuidados; presentemente tudo depende dos cuidados que receber.

- Acredite - disse "miss" Peyton dignamente - que não faltará nada ao seu amigo nesta casa.

- Perdão, minha querida senhora - acrescentou o major - a senhora é a própria bondade, mas o estado de Singleton exige atenções que muitas pessoas acharão penosas. É em semelhantes momentos, no meio de tais sofrimentos, que o soldado sente a necessidade da ternura compadecida de uma mulher.

Ao falar assim, fixou os olhos em Frances. Esta levantou-se e disse:

- Teremos para com o seu amigo todos os cuidados que as conveniências permitem dar a um estranho.

- Ah! as conveniências! - exclamou Dunwoodie, sacudindo a cabeça - uma palavra tão fria matá-lo-ia! Ele precisa de cuidados delicados, afectuosos, zelosos.

- São cuidados que convêm a uma esposa ou a uma irmã-respondeu Frances corando ainda mais.

- Uma irmã! - repetiu o major, subindo-lhe o sangue ao rosto. - Uma irmã! Ele tem uma irmã, uma irmã que poderia estar aqui amanhã de manhã.

Calou-se, reflectiu em silêncio, lançou um olhar inquieto a Frances e murmurou a meia-voz:

- A situação de Singleton exige-o, não podemos dispensá-la.

As três senhoras observavam com surpresa a mudança que se operara na sua fisionomia.

- Se o capitão Singleton tem uma irmã-disse "miss" Peyton - as minhas sobrinhas e eu ficaremos encantadas em a receber.

- É necessário, minha senhora; não se pode fazer de outro modo - respondeu Dunwoodie com uma hesitação que não estava de acordo com a vivacidade que acabara de mostrar. - Mandá-la-ei buscar já esta noite por um expresso.

E como se quisesse mudar o rumo da conversa, aproximou-se do capitão Wharton e disse-lhe num tom amigável:

- Henry Wharton, a minha honra é-me mais cara do que a vida, mas sei que posso sem perigo confiá-la à sua. Não lhe deixo nem guardas nem vigilantes; a sua palavra basta-me. Fique aqui até deixarmos as proximidades, o que não acontecerá senão daqui a alguns dias.

- Responderei à sua confiança, Dunwoodie - respondeu Henry, estendendo-lhe a mão ao mesmo tempo que o seu ar de frieza desaparecia - mesmo tendo perante os olhos a forca na qual o vosso Washington mandou pendurar André.

- Henry - replicou o major com ardor - não conhece o homem que está à frente dos nossos exércitos, senão não lhe faria semelhante censura. Mas o meu dever chama-me. Adeus; deixo-o onde eu próprio gostaria de ficar, onde não poderá ser completamente infeliz.

E passando perto de Frances, lançou-lhe um olhar de afecto que lhe fez esquecer a impressão que sentira ao vê-lo depois do combate.

O coronel Singleton pertencia ao número de veteranos que as circunstâncias tinham obrigado a renunciar ao repouso próprio da sua idade para se devotar ao serviço da pátria. Nascera na Georgia e desde a juventude que seguira a profissão das armas. Quando começara a luta pela liberdade, oferecera os seus serviços ao país e o respeito que a sua reputação inspirava tinha feito com que fossem aceites. Mas a idade e a saúde não lhe permitiam que fosse encarregado de um serviço activo e, assim, foram-lhe sucessivamente dados cargos de confiança dos quais a pátria podia tirar proveito pela sua vigilância e fidelidade sem que resultasse qualquer inconveniente para si próprio. Há um ano que estava encarregado de guardar os desfiladeiros das montanhas e neste momento encontrava-se com sua filha a um dia de marcha do vale em que estava Dunwoodie.

Ela era a sua única filha e não tinha outro filho além do oficial ferido de quem já falámos. Foi para esse local que o major enviou um correio, portador da infeliz notícia da situação do capitão e encarregado de um convite, que, não tinha dúvidas, traria em breve a irmã afectuosa para junto do leito do irmão ferido.

Depois de cumprido este dever, embora com uma repugnância que tornava as suas preocupações ainda mais vivas, Dunwoodie dirigiu-se para o terreno em que as tropas se tinham estabelecido. Viam-se ainda para lá das copas das árvores os últimos Ingleses caminhando pelo alto da montanha em boa ordem e cautelosamente de volta às suas barcaças. O destacamento de Lawton seguia-os a pouca distância pelo flanco da montanha, esperando com impaciência um momento favorável para os atacar. Por fim, perderam-se de vista os dois grupos.

A pouca distância de Sauterelles existia uma pequena aldeia atravessada por diversas estradas e de onde, por essa razão, era fácil partir para qualquer lado do interior do país. Era uma paragem predilecta da cavalaria e estava muitas vezes ocupada por destacamentos ligeiros do exército americano durante as suas incursões. Dunwoodie fora o primeiro a reconhecer as vantagens desta posição e como se via obrigado a permanecer nesta região até receber novas instruções, é fácil supor não ter desperdiçado essa vantagem. Ordenou assim aos seus homens que se pusessem em marcha para este local e para lá mandou transportar os feridos. Já se tinha cumprido o triste dever de dar sepultura aos mortos.

Enquanto tratava destes arranjos, apresentou-se-lhe novo assunto embaraçoso. Andando para cá e para lá, avistou o coronel Wellmere só, pensando tristemente no revés que sofrera, com o qual ninguém se preocupava excepto quando recebia qualquer sinal de boa educação dos oficiais americanos que passavam junto de si. A sua preocupação referente a Singleton varrera-lhe completamente do espírito a lembrança do prisioneiro. Por isso, aproximou-se pedindo-lhe desculpas pela sua negligência. O inglês recebeu-as com frieza, queixando-se de sofrer as consequências do que chamou uma queda acidental do cavalo. Dunwoodie que vira um dos dragões atirá-lo ao chão e certamente com pouca cerimónia, sorriu levemente e ofereceu-lhe o auxílio de um cirurgião. Mas só em Sauterelles este poderia ser atendido e por isso ambos se dirigiram para lá.

- Coronel Wellmere! - exclamou o jovem Wharton muito surpreendido ao vê-los entrar. - A sorte da guerra não o tratou melhor do que a mim? Seja bem-vindo a casa de meu pai; mas gostaria de lho apresentar numas circunstâncias mais felizes.

O Sr. Wharton recebeu o novo hóspede com a circunspecção e a reserva que nunca o abandonavam e Dunwoodie saiu da sala para se dirigir ao quarto do amigo. Aí teve a confirmação das suas esperanças e informou o cirurgião que outro ferido necessitava do seu auxílio, encontrando-se este no salão. Estas poucas palavras foram suficientes para pôr o médico em acção; pegando no seu estojo, apressou-se a ir ter com a nova personagem que reclamava os seus cuidados. À porta do salão, encontrou as senhoras que saíam. "Miss" Peyton deteve-o por instantes para saber notícias do capitão Singleton. Frances não conseguiu aguentar o sorriso malicioso que lhe era peculiar ao ver o exterior grotesco do médico careca; mas Sara estava ainda demasiado agitada pela surpresa que fora para ela a chegada inesperada do coronel inglês para dar atenção ao aspecto do doutor. Já se disse que o coronel Wellmere era um antigo conhecimento da família.

Sara estivera tanto tempo ausente de Nova York que a sua recordação quase se tinha apagado do espírito do coronel; mas a impressão que ele fizera no coração dela fora mais duradoira. Existe na vida de todas as mulheres uma época em que se pode dizer que a sua alma está aberta para o amor: é a idade feliz em que a criança desaparece para dar lugar à adolescente, em que o coração inocente bate vivamente enquanto forma da vida ideias de perfeição que o homem não pode nunca realizar. Fora nesta idade que Sara deixara a cidade e trouxera com ela um quadro da vida que na verdade só fora esboçado mas cujas cores se tornaram mais vivas com a solidão; Wellmere continuava a ser o objecto do seu primeiro pensamento. A surpresa de ver o coronel tinha-a perturbado e depois de ter recebido os seus primeiros cumprimentos, levantara-se a um sinal feito pela tia para se retirar com ela e a irmã.

- Desse modo, senhor - disse "miss" Peyton depois de ter ouvido o relatório feito pelo cirurgião sobre a situação do jovem ferido - podemos ter esperança na sua cura?

- É certa, minha senhora - respondeu o doutor procurando, por respeito pelas senhoras colocar a peruca - é certa mas com os cuidados e as atenções convenientes.

- Não lhe faltará nada - replicou "miss" Peyton suavemente. - Tudo o que aqui está fica ao seu dispor e o major Dunwoodie acaba de enviar um correio à irmã para a mandar vir.

- A irmã! - repetiu o médico, com um ar particularmente expressivo. - Oh! se o major a mandou buscar, ela virá.

- A situação perigosa do irmão levá-la-á a vir -replicou "miss" Peyton.

- Sem dúvida, minha senhora - respondeu laconicamente o doutor, fazendo uma vénia profunda e chegando-se para o lado para deixar passar as três senhoras.

O que acabara de dizer, porém, e o tom em que falara não fora perdido para Frances, em presença de quem o nome de Dunwoodie não era nunca pronunciado sem excitar toda a sua atenção.

- Senhor, - disse o doutor ao entrar no salão e dirigindo-se ao único uniforme vermelho que viu - disseram-me que necessita do meu auxílio.

Queira o céu que não tenha estado em contacto com o capitão Lawton porque nesse caso, chego provavelmente tarde demais.

- Há aqui qualquer engano - disse Wellmere altivamente. - O major Dunwoodie devia enviar-me um cirurgião, não uma velha.

- É o doutor Sitgreaves - exclamou o capitão reprimindo com dificuldade a vontade de rir. - A grande quantidade de ocupações que teve hoje, impediram-no de prestar mais atenção ao facto.

- Perdão, senhor - disse o coronel com um ar pouco amável e tirou a casaca para mostrar aquilo que chamava o seu ferimento.

- Senhor, - disse o doutor num tom seco - se as minhas licenciaturas tiradas em Edimburgo, a minha prática nos vossos hospitais de Londres, a amputação de algumas centenas de membros, a teoria e a experiência das mais sábias operações às quais o corpo humano pode ser submetido, uma boa consciência e a comissão de doutor em cirurgia do congresso americano podem formar um cirurgião, eu tenho direito a usar esse título.

- Perdão, senhor - repetiu o coronel rigidamente. - O capitão Wharton já me explicou as razões do meu engano.

- Agradeço ao capitão - respondeu Sitgreaves arranjando sobre uma mesa os instrumentos necessários para uma amputação com um sangue-frio que fez estremecer o coronel. - Agora onde está o seu ferimento. O quê! é esse arranhão no ombro? Quem o feriu assim?

- Um dragão do partido dos rebeldes.

- Impossível! Eu sei como eles atacam. Mesmo o pobre Singleton teria apoiado com mais força. Além disso - acrescentou aplicando no ombro um pedaço daquilo que vulgarmente se chama tafetá de Inglaterra - aqui está o que lhe deve chegar, pois estou certo ser tudo o que deseja de mim.

- O que quer dizer? - perguntou o coronel com altivez.

- Que no seu próximo despacho, quererá colocar-se no número dos feridos- respondeu o doutor. - Pode acrescentar que foi uma velha que lhe fez o penso; porque se não é a exacta verdade, é certo que lhe teria chegado uma velha como cirurgião.

- É uma linguagem extraordinária! - murmurou o coronel inglês.

O capitão Wharton interveio de novo explicando que o engano do coronel Wellmere se devia atribuir à irritação do espírito e aos sofrimentos do corpo e conseguiu amansar o médico insultado que consentiu então em examinar os outros ferimentos do oficial inglês. Mas estes eram apenas algumas contusões resultantes da queda do cavalo e o doutor retirou-se depois de lhes ter aplicado à pressa os remédios necessários.

A cavalaria, depois de se ter refrescado o suficiente, preparou-se para se pôr a caminho da aldeia de que já falámos e Dunwoodie ocupou-se dos prisioneiros. Resolveu deixar Sitgreaves em casa do Sr. Wharton para poder prestar cuidados assíduos ao capitão Singleton.

Henry veio pedir-lhe que o coronel Wellmere também lá ficasse sob sua palavra, até que as tropas deixassem os arredores. O major consentiu sem dificuldade e como os outros prisioneiros eram apenas soldados, mandou reuni-los e conduzir sob escolta para o interior do país. Rapidamente os dragões se puseram em marcha com os guias separados em pequenos grupos. Acompanhados de algumas patrulhas de cavalaria, estes estenderam-se por toda a região de maneira a formarem uma linha de sentinelas desde o mar até ao Hudson.

Dunwoodie depois de se ter despedido, detivera-se frente a Sauterelles com uma grande repugnância em se afastar, que atribuía à solicitude para com o amigo ferido. O coração que não está endurecido, rapidamente se desgosta de uma glória comprada ao preço do sangue. Peyton Dunwoodie abandonado a si próprio e não estando já excitado pelas brilhantes visões que o ardor da juventude lhe apresentara durante todo o dia, começou a sentir que existem outros laços além dos que ligam o soldado às regras rígidas da honra. Não hesitava em cumprir o seu dever, mas como era forte a tentação! O sangue não corria com a mesma rapidez que o combate lhe dera. À expressão orgulhosa do seu olhar sucedeu-se pouco a pouco um ar de doçura e os pensamentos que tinha sobre a vitória não lhe davam uma satisfação capaz de esquecer os sacrifícios com que esta fora conseguida.

Lançando um último olhar sobre esta casa da qual não conseguia arrancar-se, lembrou-se somente que ela continha tudo o que de mais precioso possuía. O amigo da sua juventude estava prisioneiro em circunstâncias que punham em perigo a sua vida e a sua honra; um querido companheiro de armas que sabia dar beleza aos prazeres violentos de um acampamento pela doçura graciosa da paz estava estendido num leito de dor, vítima do êxito que se obtivera. Finalmente a imagem da rapariga que durante esse dia exercera sobre o seu coração apenas uma soberania disputada e que se apresentava ao seu espírito em traços tão graciosos que eclipsava inteiramente a sua rival, a glória.

O último retardatário do seu corpo desaparecera já por detrás das montanhas do norte e o major, contra-vontade, voltou para o mesmo lado a cabeça do seu cavalo. Frances agitada por uma preocupação que lhe não dava qualquer repouso aventurou-se timidamente a ir até ao terraço. O dia fora suave e puro e o sol brilhava em toda a sua magnificência num firmamento sem nuvens. O tumulto que perturbara o vale tão pouco tempo antes fora substituído por um silêncio tão profundo quanto o da morte; e o belo espectáculo que se oferecia a seus olhos parecia não ter sido nunca uma arena para as paixões dos homens.

Uma única nuvem formada pelo fumo do combate pairava ainda sobre o campo de batalha e dissipava-se gradualmente como que para não deixar nenhuma sombra sobre os túmulos pacíficos das vítimas da guerra.

Todos os sentimentos que a tinham agitado, todo o tumulto de um dia tão fértil em acontecimentos lhe pareceram por momentos simples ilusões. Voltou a cabeça e viu afastar-se aquele que fora o principal actor de todas as cenas. A verdade voltou a aparecer ao seu espírito reconhecendo o amado, outras recordações levaram-na a retirar-se para o quarto com o coração tão triste quanto o de Dunwoodie ao sair do vale.

 

O capitão Lawton à cabeça da sua companhia seguira a infantaria inglesa até à praia com a maior vigilância, sem conseguir encontrar uma única ocasião para a importunar na retirada. O oficial experimentado que tinha então o comando conhecia demasiado bem a força do inimigo para se aventurar a deixar os cumes antes de ser obrigado a descer para a beira-mar. Antes de fazer este movimento perigoso, formou o seu corpo em batalhão quadrado eriçado de baionetas por todos os lados. O impetuoso Lawton sabia muito bem que nesta posição, homens valentes não podiam nunca ser atacados com êxito pela cavalaria e com grande pena foi por isso obrigado a seguir o inimigo sem poder pôr obstáculo à sua marcha tão firme quanto lenta. Uma pequena escuna tinha-os trazido de Nova York e os seus canhões protegiam o local de embarque. Lawton era suficientemente prudente para ver que seria uma loucura querer combater contra uma tal combinação de força e de disciplina e viu os Ingleses embarcarem sem procurar atacá-los. Os dragões ficaram perto da praia até ao último momento e começaram então eles a sua retirada muito contra-vontade para se reunirem ao corpo principal de Dunwoodie.

As sombras da noite começavam a escurecer o vale quando o seu destacamento entrou de novo nele, do lado sul, marchando devagar numa linha alargada. Lawton vinha à frente com o seu tenente. Um jovem clarim colocado atrás deles ia tocando uma música enquanto pensava no prazer que sentiria ao estender-se num fardo de palha depois de um dia tão fatigante.

- Então ela deu-te na vista tanto como a mim - disse o capitão ao tenente. - Não precisei de a ver senão um instante para a reconhecer, é uma cara que não se esquece. Por minha fé, Tom, ela honra o gosto do major.

- Honraria todo o regimento - disse o tenente calorosamente. - Tais olhos azuis poderiam levar facilmente um homem a ter ocupações mais doces do que a profissão que nós seguimos; e também, por minha fé, uma rapariga tão bonita far-me-ia deixar o sabre e a sela pela agulha de cerzir e pelo estojo de palha.

- Traição! senhor, traição! - exclamou Lawton. - O quê? você, Tom Mason, ousaria declarar-se rival do major Dunwoodie tão elegante, tão admirado e o que ainda é mais importante, tão rico! Você, simples tenente de cavalaria, não possuindo senão um cavalo que não é dos melhores e cujo capitão é tão duro como um bloco de carvalho e tem tantas vidas como um gato!

- Por minha fé - disse Mason, sorrindo por sua vez - poderíamos ver o bloco fender-se e Raminagrobis perder todas as suas vidas se o senhor faz muitas cargas semelhantes à de hoje de manhã. Quantas vezes quer ter o crânio raspado como teve hoje?

- Não me fale disso, meu caro Mason: só pensar nisso me faz doer a cabeça - disse o capitão encolhendo os ombros. - É aquilo que eu chamo antecipar a noite.

- A noite da morte?

- Não, senhor, a noite que segue o dia. Vi milhares de estrelas que deveriam esconder-se perante o soberano sol. Creio que deve o prazer de me ter ainda consigo por algum tempo ao espesso capacete que uso.

- Tenho com certeza grande dever para com o capacete, mas admito que o capacete ou o crânio devem ser de uma bela espessura.

- Então, então, Tom, você é um brincalhão privilegiado e por isso não me zangarei. Mas creio que o tenente Singleton estará melhor que você depois do serviço deste dia.

- Espero capitão, que nem ele nem eu tenhamos o desgosto de dever a nossa promoção à morte de um camarada e de um amigo. Parece que Sitgreaves fez um relatório favorável dos seus ferimentos.

- Desejo-o de todo o meu coração - exclamou Lawton; - apesar do seu queixo quase imberbe, Singleton tem uma coragem digna de um veterano; mas o que me surpreende é que, embora tenhamos ambos caído no mesmo instante, os nossos se tenham portado bem.

- Deveria agradecer-lhe o cumprimento, mas a minha modéstia opõe-se a isso. Aliás, fiz o que pude para os deter mas não consegui.

- O quê! para os deter! - gritou o capitão. - Deter os dragões no meio de uma carga!

- Parecia-me que não a estavam a dirigir do lado conveniente - respondeu o subalterno, um tanto secamente.

- Ah! foi a nossa queda que os fez fazer um quarto de conversão.

- Quer tenha sido a vossa queda ou o receio de se exporem a fazer o mesmo que o senhor, o certo é que estávamos numa admirável desordem quando o major chegou mesmo a propósito para nos reunir.

- Dunwoodie! mas como? Ele estava ocupado a destruir os cavaleiros do Hesse?

- Sim; mas depois de os ter derrotado, apareceu a galope com as duas outras companhias e colocando-se entre nós e o inimigo com aquele ar impiedoso que sabe tomar quando está animado, voltou a pôr-nos em linha num abrir e fechar de olhos. Foi então - acrescentou o tenente com calor - que enviámos John Bull para o bosque. Ah! foi uma bela carga!

- Diabo! -exclamou Lawton despeitado, que espectáculo perdi!

- Esteve a dormir durante todo o tempo - disse Mason ironicamente.

- Sim - respondeu o capitão suspirando - nem eu nem o pobre Jorge Singleton vimos nada. Mas Tom, o que dirá a irmã de Singleton daquela linda rapariga de cabelos loiros que está lá na casa branca?

- Enforcar-se-á com as ligas. Tenho pelos meus oficiais superiores o respeito que lhes devo, mas devo dizer que dois anjos daqueles é demais para um homem só, a menos que seja um Turco ou um Hindu.

- Sem dúvida, Tom, sem dúvida. O major faz sempre sermões de moral aos rapazes, mas no fim de contas é um tipo malicioso. Note como ele gosta das estradas que se cruzam do outro lado do vale. Ora se eu mandasse parar a minha companhia duas vezes no mesmo sítio, vocês diriam todos que parecia uma dança.

- O senhor é muito bem conhecido no exército - replicou o tenente num tom sentencioso.

- A sua queda para a brincadeira é incurável, Tom - disse Lawton. - Mas - acrescentou inclinando o corpo para o lado em que os seus olhos estavam dirigidos, como que para melhor distinguir os objectos na escuridão - o que é aquele animal que atravessa o vale à nossa direita?

- É um homem - respondeu Mason depois de ter olhado com atenção o objecto suspeito.

- A julgar pelas costas, é um dromedário - disse o capitão. Depois deixando de repente a estrada, gritou:

- Harvey Birch, apanhem-no morto ou vivo!

Mason e alguns outros dragões, que marchavam à frente foram os únicos que compreenderam estas palavras, mas o grito foi ouvido em toda a linha. Uma dúzia deles, com o tenente à frente, seguiram o impetuoso Lawton e a sua rapidez ameaçava aquele que perseguiam de em breve ver o fim desta corrida.

Birch prudentemente conservara a sua posição no alto do rochedo onde Henry Wharton o vira ao passar, até que o crepúsculo começasse a cobrir de escuridão tudo o que o rodeava. Do alto da sua elevação vira todos os acontecimentos do dia à medida que se iam desenrolando. Esperara, com o coração palpitante, a partida das tropas de Dunwoodie e com dificuldade reprimira a sua impaciência até ao momento em que a noite poria os seus movimentos ao abrigo de qualquer perigo. Não tinha portanto ainda feito um quarto do caminho que precisava de fazer até casa quando o seu ouvido atento distinguiu o barulho da marcha de um Corpo de cavalaria que se aproximava.

No entanto, fiando-se na escuridão que aumentava, resolveu continuar o caminho e estava convencido que curvando-se e caminhando rapidamente não seria apercebido. O capitão Lawton estivera demasiado ocupado com a conversa que relatámos para deixar os seus olhos errarem como era seu costume; e o bufarinheiro avisado pelo som das vozes que se afastavam que o inimigo que ele mais temia já tinha passado, cedeu à impaciência e deixou de se curvar para poder avançar mais depressa. Assim que o corpo se elevou acima da sombra do terreno, foi descoberto e a caça começou.

Birch ficou um instante imóvel, com o sangue gelando nas veias ao pensar no perigo que o ameaçava; as pernas recusaram-lhe o seu serviço, tão necessário nesta circunstância; mas apenas por momentos. Desembaraçando-se do fardo que abandonou no local em que se encontrava, e apertando instintivamente o cinto que trazia, começou a fugir. Sabia que em chegando à orla do bosque se tornaria quase invisível e redobrava de velocidade quando vários cavaleiros passaram a pouca distância de si à esquerda e lhe cortaram esse lugar de refúgio. Ao ouvi-los chegar, deitara-se no chão. Mas a menor demora era demasiado perigosa para que ficasse muito tempo nessa posição. Então levantou-se e ladeando o bosque, correu na direcção oposta dos dragões que se exortavam uns aos outros para estarem vigilantes.

Todos os dragões tinham tomado parte na caça, embora a ordem dada precipitadamente por Lawton só tivesse sido ouvida por aqueles que estavam perto deste. Os outros não sabiam precisamente o que deviam fazer e o clarim perguntava ainda de que se tratava quando um homem a pouca distância atrás dele atravessou a estrada de um salto. No mesmo instante a voz de estentor do capitão ressoou em todo o vale, com uma força que deu a conhecer a todos os seus homens a verdade:

- Harvey Birch, agarrem-no morto ou vivo!

Cinquenta tiros de pistola partiram ao mesmo tempo e as balas assobiaram de todos os lados em volta da cabeça do infeliz bufarinheiro. O desespero apoderou-se dele e exclamou com amargura:

- Ser caçado como um animal das florestas!

Parecia-lhe que a vida lhe era demasiado pesada e estava quase a entregar-se aos inimigos. Mas a natureza levou a melhor. Sabia que se fosse apanhado não lhe dariam mesmo a honra de o fazer comparecer em julgamento, mas que provavelmente teria no dia seguinte uma morte ignominiosa, pois já fora condenado e não escapara a esse destino senão através de um estratagema. Excitado por estes pensamentos e pelo barulho dos passos dos cavaleiros, recomeçou a fugir à frente destes. Um fragmento de um muro que resistira às destruições feitas pela guerra nas vedações vizinhas encontrava-se felizmente no seu caminho. Mal transpusera esta barreira quando surgiram do lado oposto uns vinte dos seus inimigos. Na escuridão os cavalos recusaram-se a saltar, e Birch conseguiu chegar ao sopé de uma montanha no alto da qual estaria ao abrigo de qualquer receio da cavalaria.

O coração do vendedor ambulante batia vivamente e renascia a esperança quando voltou a ouvir ressoar aos seus ouvidos a voz do capitão que gritava aos soldados que o deixassem passar. Esta ordem foi prontamente executada e o intrépido capitão correndo para o muro a galope apertou as esporas nos flancos do corcel que transpôs o obstáculo com a rapidez do relâmpago e sem qualquer acidente. Os gritos de triunfo dos dragões e o barulho das patas do cavalo que avançava indicaram muito claramente ao bufarinheiro que o perigo se tornara iminente. Estava quase esgotado de cansaço e o seu destino já não parecia oferecer dúvidas.

- Pára! ou estás morto! - gritou o capitão com um tom de determinação muito pronunciada.

Harvey lançou um olhar receoso para trás e à claridade da lua viu a poucos passos dele o homem que temia mais no mundo avançando para ele com o sabre erguido. O medo, o cansaço, o desespero produziram um tal efeito sobre ele que caiu no chão, sem movimento. O cavalo de Lawton bateu-lhe contra o corpo, caiu, e deitou ao chão sob si o cavaleiro.

Birch levantou-se com a prontidão do pensamento e apoderou-se do sabre de Lawton. A vingança é uma paixão que é mais do que natural no homem. Poucas pessoas não sentiram já o prazer sedutor de fazer recair uma injúria sobre a cabeça daquele que parece ser o seu autor e no entanto há quem saiba que é muito mais doce retribuir o mal com o bem. Tudo o que o bufarinheiro sofrera se apresentou vivamente ao seu espírito. O demónio prevaleceu nele um instante; empunhou no ar a arma fatal; mas no momento seguinte, lançou-a junto do capitão que voltava a si mas que ainda não estava em estado de se defender e começou a fugir para a montanha protectora.

- Ajudem o capitão a levantar-se - gritou Mason surgindo com uma dúzia de dragões - e alguns de vós desmontem. É preciso subir a montanha; o miserável está escondido nela!

- Parem! - exclamou Lawton numa voz de trovão levantando-se com dificuldade. - Se algum de vocês desce do cavalo, morrerá às minhas mãos. Tom, meu bravo, ajude-me a montar o Roanoke.

O tenente espantado obedeceu em silêncio, enquanto os dragões, não menos surpreendidos, ficavam imóveis sobre as selas, como se fizessem parte integrante dos animais que montavam.

- Temo que esteja ferido - disse Mason, num tom de lamento quando recomeçaram a andar enquanto mordia a ponta de um charuto à falta de melhor tabaco.

- É muito possível - respondeu o capitão respirando e falando com uma certa dificuldade. - Gostaria que o nosso endireita estivesse aqui para examinar o estado das minhas costelas.

- Sitgreaves ficou junto do capitão Singleton, em casa do Sr. Wharton.

- Nesse caso pararei aí para passar a noite. Tom. Num tempo como este as cerimónias são supérfluas. Aliás pode lembrar-se que o velho Wharton mostrou muita consideração pela companhia. Oh! não posso passar em frente da porta de um amigo tão bom sem lhe ir fazer uma visita.

- E eu conduzirei as tropas até aos Quatro-Cantos, porque se paramos todos em Sauterelles, introduziremos a fome.

,- É o que eu estou longe de desejar, Mason. A ideia dos excelentes pãezinhos daquela amável solteirona oferecem uma perspectiva agradável à imaginação.

- Então - disse o tenente bem disposto - o senhor não morrerá desta queda visto já pensar em comer.

- Morreria certamente se não comesse - respondeu gravemente o capitão.

- Capitão, - disse um sargento, aproximando-se dele - estamos em frente da casa desse espião, desse bufarinheiro: quer que lhe deitemos fogo?

- Não - gritou Lawton, blasfemando e num tom que fez estremecer o sargento. - É incendiário? Quer queimar uma casa a sangue-frio? Se alguém aproximar uma faúlha, morrerá às minhas mãos.

- Diabo! - gritou o clarim, que estava meio adormecido sobre o cavalo e que acordara com a voz de Lawton - há ainda vida no capitão, apesar da queda.

Lawton e Mason fizeram o resto do caminho em silêncio reflectindo este último sobre a maravilhosa mudança que uma queda do cavalo podia operar. Por fim chegaram a casa do Sr. Wharton. Os homens continuaram o seu caminho mas o capitão e o tenente desmontaram e seguidos pelo criado do primeiro avançaram em passos lentos para a casa.

O coronel Wellmere retirara-se cedo para o seu apartamento para nele esconder a sua mortificação. O Sr. Wharton estava com o filho; e o doutor Sitgreaves tomava chá com as senhoras, depois de ter mandado para a cama um dos seus doentes e ter visto o outro gozar das doçuras de um sono tranquilo. Algumas perguntas que "miss" Peyton lhe tinha feito tinham-no posto imediatamente à vontade. Conhecia toda a sua família na Virgínia; custava-lhe mesmo a acreditar que nunca a tivesse visto. Jeannette Peyton não tinha qualquer dúvida a esse respeito pois que se tivesse visto uma única vez o doutor, nunca esqueceria as suas singularidades. No entanto, esta circunstância dissipou o embaraço da situação, seguindo-se uma espécie de conversa que as sobrinhas se limitaram a escutar e na qual a tia não tomou grande parte.

- Como disse ao senhor seu irmão - disse o doutor - são os vapores fétidos do pântano vizinho que tornaram a casa deste pouco sadia para o homem, porque os animais...

- Meu Deus! o que é isto? - exclamou "miss" Peyton empalidecendo ao ouvir o ruído dos tiros de pistola que haviam sido disparados contra Birch.

- Parece-se prodigiosamente - respondeu o doutor bebendo uma chávena de chá com o maior sangue-frio - com um choque produzido na atmosfera por uma explosão de armas de fogo. Pensaria que é a companhia do capitão Lawton que volta, se não soubesse que não se serve nunca da pistola, mas que abusa terrivelmente do sabre.

- Divina providência! - exclamou "miss" Peyton. - Mas certamente não queria ferir ninguém?

- Ferir? - repetiu Sitgreaves. - Os golpes do capitão não ferem ninguém, minha senhora; dão a morte, uma morte inevitável, apesar de tudo o que já lhe disse.

- Mas o capitão Lawton é o oficial que aqui esteve esta manhã e é certamente seu amigo -disse Frances vendo o terror estampado no rosto da tia.

- Sem dúvida que é meu amigo. É um bravo homem e só lhe falta querer aprender a manejar o sabre cientificamente, de maneira a me deixar qualquer possibilidade de curar os feridos. Todos temos que viver do nosso trabalho, minha senhora, e o que acontecerá a um cirurgião se encontra os seus doentes mortos ao chegar para os ver?

Discutia ainda a probabilidade ou a improbabilidade que os tiros que se tinham ouvido tivessem sido disparados pelo destacamento do capitão Lawton quando as três senhoras se alarmaram seriamente com uma série de violentas pancadas dadas na porta. O médico levantou-se imediatamente e segurando por instinto uma pequena serra que fora a sua fiel companheira durante todo o dia na vã esperança de que encontraria qualquer amputação para fazer, dirigiu-se à porta.

- O capitão Lawton - exclamou Sitgreaves, ao vê-lo entrar no vestíbulo, caminhando com dificuldade e apoiado no braço do tenente.

- Ah! meu caro endireita, aí está o senhor! - disse o capitão alegremente.

- Estou encantado porque desejo que examine a minha carcaça; mas antes do mais, mande para o diabo essa cadela de serra.

Mason explicou em poucas palavras ao cirurgião a natureza do acidente acontecido ao capitão e "miss" Peyton consentiu da maneira mais graciosa a dar-lhe hospitalidade. Enquanto se preparava um quarto e o doutor dava certas ordens de sinistro augúrio, o capitão foi convidado a entrar na sala de jantar. A mesa estava guarnecida com alguns pratos mais substanciais do que aqueles que vulgarmente se servem à noite, e atraíram a atenção e os olhos dos dois oficiais. "Miss" Peyton, pensando que o almoço que lhes servira de manhã fora provavelmente a única refeição de todo o dia, convidou-os a terminarem-no com outra. Mas não teve necessidade de insistir; ao cabo de alguns instantes, eles encontravam-se muito à vontade à mesa, mas interrompidos de tempos a tempos por uma careta que as dores arrancavam ao capitão. No entanto, nem mesmo assim perdeu uma garfada e acabava felizmente esta importante ocupação quando o doutor entrou para lhe anunciar que o quarto que lhe era destinado estava pronto.

- O quê! capitão, - gritou o Esculápio imóvel de surpresa - está a comer! Tem vontade de morrer?

- O menos possível - respondeu Lawton levantando-se da mesa e cumprimentando as senhoras. - É por essa razão que me ocupo em renovar em mim os princípios da vida.

Sitgreaves murmurou algumas palavras de descontentamento e saiu do salão com o capitão e com o tenente.

Havia nesta época na América em todas as casas aquilo a que se chamava o belo quarto e o belo quarto de Sauterelles graças à influência invisível de Sara fora dado ao coronel Wellmere. A colcha de edredão que uma noite muito fria devia ser muito agradável a um corpo cansado, cobria o leito do oficial inglês. Um recipiente de prata decorado com as armas da família Wharton continha a bebida que ele deveria tomar durante a noite, enquanto os dois capitães americanos no seu quarto não tinham mais do que recipientes de bela porcelana. Sara não confessava certamente a preferência que tivera para com o oficial inglês, mas é igualmente certo que, exceptuando as dores das suas contusões, Lawton ter-se-ia incomodado pouco com o leito ou com os vasos, desde que a bebida fosse a seu gosto, porque estava habituado a deitar-se completamente vestido e mesmo de tempos em tempos a passar a noite a cavalo. Depois de ter tomado posse do pequeno quarto onde aliás não faltava nada do que poderia torná-lo cómodo, o doutor Sitgreaves perguntou-lhe onde se encontrava a dor forte de que se queixava e começava já a passar-lhe a mão sobre o corpo quando o capitão gritou num tom impaciente:

- Por amor de Deus, Sitgreaves, deite fora essa maldita serra! Só de vê-la gela-se-me o sangue nas veias.

- Capitão Lawton - respondeu o doutor -, é inconcebível que um homem que expôs a sua vida e os seus membros em tantos combates fique aterrorizado à vista de um instrumento tão útil.

- Que o céu me proteja de comprovar a sua utilidade! - replicou Lawton, estremecendo.

- Certamente não fecharia os olhos às luzes da ciência - continuou o incorrigível operador -, não recusaria o auxílio do cirurgião se esta serra pudesse tornar-se necessária?

- Recusaria.

- O senhor recusaria!

- Sim. Não me há-de decepar como um bocado de boi enquanto tiver forças para me defender. Mas vá lá, estou a ficar com sono; tenho alguma costela quebrada?

- Não.

- Os meus ossos estão todos em bom estado?

- Sim.

- Mason, passe-me essa garrafa.

E tendo bebido um grande copo de vinho, voltou as costas aos dois companheiros com um ar muito deliberado gritando-lhes num tom bem humorado:

- Boa-noite, Mason! Boa-noite Galiano!

O capitão Lawton tinha um profundo respeito pelos conhecimentos cirúrgicos do doutor Sitgreaves, mas era de um cepticismo completo no tocante aos remédios medicinais cujo efeito se processa interiormente. Dizia muitas vezes que um homem com o estômago cheio, o coração firme e a consciência limpa, devia desafiar o mundo e todas as suas vicissitudes. A natureza concedera-lhe a firmeza de coração; e quanto aos dois outros pontos que lhes pareciam necessários para completar a prosperidade humana, a verdade manda que acrescentemos que tentava também não ter censuras a fazer a si próprio. Uma das suas máximas favoritas era que as últimas partes do corpo humano que a morte ataca, eram em primeiro lugar o maxilar e finalmente os olhos; donde concluía que a dieta era contra-natureza e que os olhos deviam vigiar que não entrasse na boca senão o que lhe podia ser agradável.

O cirurgião que conhecia perfeitamente as opiniões do capitão lançou-lhe um olhar de comiseração, enquanto Lawton lhe voltava muito cavalheirescamente as costas, assim como a Mason. No seu estojo medicinal voltou a colocar, com um cuidado que ia quase até à veneração, alguns frascos que tinha tirado, empunhou a serra sobre a cabeça com um ar de triunfo e sem se dignar dizer uma única palavra ao capitão foi fazer uma visita ao oficial instalado no belo quarto. Mason aprestava-se para desejar boa-noite ao capitão, mas percebendo pela sua respiração que este estava já adormecido, apressou-se em se despedir das senhoras. Depois, montando a cavalo, partiu a galope para se ir reunir às suas tropas.

 

Os domínios do Sr. Wharton estendiam-se até alguma distância detrÁS e de cada lado da casa em que habitava; mas a maior parte das suas terras estava inculta. Viam-se em diferentes partes destes domínios algumas casas dispersas; mas estavam desocupadas e rapidamente caíam em ruínas. A proximidade dos exércitos beligerantes tinha quase extinguido do país os trabalhos de agricultura. Por que razão o lavrador consagraria o seu tempo e o suor do seu rosto a encher até cima os celeiros que o primeiro grupo de larápios esvaziaria? Ninguém lavrava a terra com outro propósito além de arranjar fracos meios de subsistência, excepto aqueles que estavam demasiado perto de um destes dois partidos inimigos para não ter de meter as incursões das tropas ligeiras do outro. A guerra oferecia a estes últimos uma colheita de ouro, sobretudo para aqueles que se encontravam nas proximidades do exército real.

O Sr. Wharton não esperando das suas terras meios de subsistência, conformara-se de boa vontade à política do dia e limitava-se a deixar crescer os géneros que podiam consumir-se prontamente na sua família ou que eram de natureza a poderem ser facilmente escondidos dos forrageiros. Portanto não existia nas proximidades do terreno no qual se desenrolara a acção que descrevemos senão uma única casa habitada pertencendo ao pai de Harvey Birch. Esta estava situada entre o local onde a cavalaria tinha combatido e aquele em que os dragões americanos tinham carregado contra o corpo de infantaria de Wellmere.

Esse dia fora suficientemente fértil em acontecimentos para fornecer a Katy Haynes assunto de conversa inextinguível para todo o resto da sua vida. A prudente governanta conservara até então as suas opiniões políticas num estado de neutralidade. Os seus pais tinham apoiado a causa do país mas ela nunca perdera de vista o momento em que se tornaria mulher de Birch e não queria sobrecarregar os laços do hímen com mais entraves além daqueles que a natureza já fornecera abundantemente. Katy sabia que o leito nupcial está sempre rodeado de suficiente amargura para não se acrescentarem ainda altercações políticas; e no entanto a curiosa vestal não sabia por que partido se declarar a fim de evitar essa infelicidade que temia. Havia na conduta do bufarinheiro tanto mistério e tanta reserva que muitas vezes ela retinha as palavras no instante em que teria querido manifestar uma opinião conforme à sua. As suas ausências prolongadas de casa do pai só tinham começado no momento em que os exércitos inimigos tinham aparecido no condado, porque antes dessa época ele voltava frequentemente e com regularidade.

A batalha das planícies ensinara ao prudente Washington as vantagens que o inimigo possuía no que se refere a armamento e a disciplina, vantagens que ele não podia transpor senão à força de cuidados e vigilância. Retirando as suas tropas para locais elevados nas partes setentrionais do condado, desafiou os ataques do exército real e Sir William Howe voltou para gozar as estéreis vitórias que eram uma cidade deserta e as ilhas adjacentes. Desde esse tempo, nunca os exércitos inimigos tinham disputado entre si a superioridade no condado de West Chester. No entanto, era raro passar-se um dia que não fosse marcado por qualquer incursão de guerrilheiros e raramente se via o sol levantar-se sem que os habitantes deixassem de ouvir o relatório dos excessos que a noite precedente servira para esconder. Era também durante as horas que os outros consagram ao repouso que o bufarinheiro dava a maior parte das suas voltas pelo condado. O sol, ao pôr-se, via-o muitas vezes numa extremidade do cantão e quando se levantava, já ele se encontrava na outra. O fardo nunca o deixava, e aqueles que o examinavam de perto nas suas operações comerciais julgavam que todos os seus pensamentos estavam concentrados no desejo de juntar dinheiro. Viam-no frequentemente perto das montanhas de leste, com o corpo curvado sob o peso de que ia carregado e pouco depois avistaram-no junto do ribeiro de Harlem, dirigindo-se, num andar ligeiro, para o sol poente. Mas as suas aparições eram passageiras e incertas; ninguém podia penetrar no que fazia durante o intervalo que as separava. Algumas vezes estava ausente durante meses inteiros sem deixar descobrir qualquer vestígio.

As elevações de Harlem mantinham-se ocupadas por fortes destacamentos de tropas reais; a extremidade setentrional estava eriçada de baionetas inglesas; no entanto, Birch passava por lá sem que o molestassem e quase sem que dessem por ele. Não se aproximava menos das linhas americanas, mas com mais precauções e prevendo meios de se subtrair às perseguições. Várias sentinelas colocadas nos desfiladeiros das montanhas falavam de uma estranha figura que tinham visto passar a uma certa distância nas trevas. Esse rumor chegou até aos ouvidos dos oficiais e como já dissemos, Birch caiu duas vezes nas mãos dos Americanos.

Na primeira escapou a Lawton no instante da sua detenção; na segunda foi condenado à morte. Mas quando o foram buscar, para ser conduzido à forca, encontraram a gaiola bem fechada e no entanto o pássaro tinha voado. Esta evasão era tanto mais extraordinária quanto estar ele sob guarda de um oficial favorito de Washington e de sentinelas que tinham sido julgadas dignas de guardar a pessoa do comandante-chefe. Homens tão estimados não podiam tornar-se suspeitos de traição na confiança que lhes tinha sido dada nem de se deixarem corromper; por isso os soldados estavam convencidos de que o vendedor ambulante estava ligado com o espírito maligno. No entanto, Katy repelia sempre esta ideia com indignação; porque no segredo do seu coração, ela concluía que o espírito maligno não pagava com oiro. E passava-se o mesmo, pensava ela, com Washington; porque antes da chegada dos socorros da França, o chefe do exército americano só pagava em papel e em promessas e mesmo desde esse tempo, embora a governanta não deixasse nunca escapar a ocasião de sondar as profundezas da bolsa de pele de veado, nunca descobrira a efígie de Luís misturada com as de Jorge.

Os Americanos tinham mandado vigiar muitas vezes a casa de Harvey para o prender quando este ali aparecesse, mas sempre sem êxito. O pretenso espião tinha secretos meios de inteligência que iludiam este sistema de contra-espionagem. Uma vez que o corpo do exército republicano passara um Verão inteiro acantonado nos Quatro-Cantos, uma ordem emanada de Washington tinha mesmo recomendado que se vigiasse noite e dia sem interrupção a casa de-Birch; houve as maiores cautelas em não faltar a essa ordem e durante todo esse tempo Harvey não apareceu em casa do pai. Esse corpo foi chamado para o interior e, logo na noite seguinte, aquele apareceu.

O pai de Birch tinha também sido muito importunado em consequência do carácter suspeito do filho. Tomaram informações exactas acerca da conduta do velho mas nenhum facto o comprometia e os seus bens eram demasiado módicos para excitar o zelo dos pretensos patriotas que se indemnizariam pelos seus trabalhos, mandando-as confiscar para depois as comprarem. Além disso, a idade e o desgosto aprestavam-se a pô-lo ao abrigo de qualquer perseguição. A última separação do pai e do filho tinha sido dolorosa mas tivera lugar para obedecer àquilo que ambos encaravam como um dever. O velho guardara segredo da sua situação em toda a vizinhança para poder gozar sem interrupção da companhia do filho nos últimos momentos.

A confusão que reinara durante todo o dia e o medo que tinha de que Harvey chegasse demasiado tarde serviram para acelerar um acontecimento que ele gostaria de ter podido atrasar algumas horas.

Ao cair da noite, a sua situação tornou-se pior a ponto de Katy, não sabendo o que fazer e desejando ter alguém junto dela nesse momento de crise, mandar a Sauterelles uma criança que passara todo o dia na choupana do velho Birch para não atravessar o vale coberto de combatentes. César era o único indivíduo que podia ser dispensado e "miss" Peyton entregando-lhe um cesto cheio daquilo que julgava poder ser mais útil a um velho gasto pelos anos, encarregara-o desta missão de caridade. Mas o moribundo já não se encontrava em estado de aproveitar e o desejo de rever o filho parecia ser o último laço que o prendia à vida.

O barulho da caça dada ao infeliz bufarinheiro fizera-se ouvir até esta choupana, mas não se conhecia a causa e como Katy e o negro sabiam que um destacamento de cavalaria americana seguia no encalço da infantaria inglesa, o fim deste tumulto também pôs termo às suas apreensões. Ouviram os dragões passar em frente de casa; mas, cedendo aos conselhos prudentes de César, a governanta reprimira a curiosidade. O velho fechara os olhos e julgaram que tinha adormecido. A choupana era composta por quatro divisões, duas grandes e duas pequenas. Uma das primeiras servia de cozinha e de sala de jantar; na outra estava deitado o pai de Birch. Uma das duas pequenas era o santuário da vestal; a segunda servia de depósito de provisões. Uma enorme chaminé de pedra elevava-se no meio do edifício e servia de separação entre os dois grandes quartos. Os outros apartamentos tinham dimensões proporcionadas. Um bom fogo ardia na cozinha e era na enorme lareira que César e Katy se encontravam sentados no momento de que falamos. O africano, circunspecto, procurava fazer sentir à sua companheira a necessidade de reprimir uma curiosidade perigosa.

- Ser preciso nunca tentar Satã -dizia César, rolando expressivamente os olhos onde o branco brilhava com o fulgor da chama que dançava na chaminé. - Eu ir perdendo uma orelha só por ir levar uma pequena cartinha. Mas eu querer muito que Harvey estar aqui.

- É uma vergonha para ele estar ausente num momento destes-disse Katy, com um ar imponente. - Suponha que o pai quer fazer o seu testamento sobre a Bíblia, quem o poderá escrever por ele? Harvey é um homem despreocupado e negligente.

- Talvez ele ter já feito - disse César no tom de uma pergunta.

- Não era de espantar - continuou vivamente a governanta - ele fica com a Bíblia entre as mãos dias inteiros.

- Ele ler um bom livro - disse o negro num tom solene. - "Miss" Fanny ler muitas vezes a Bíblia a Diná.

- Mas ele não a leria tantas vezes - continuou Katy - se não estivesse lá aquilo que não se encontra nos outros.

Levantou-se, entrou na ponta dos pés no quarto em que estava o moribundo, abriu a gaveta da cómoda e pegou numa grande Bíblia guarnecida de fechos de cobre e foi ter com o africano, que a esperava. O volume foi aberto e ela começou imediatamente a examiná-lo, mas estava longe de ser hábil na ciência da leitura e César não conhecia uma única letra. O nome de Mateus que tinha visto no alto de uma das páginas em grandes caracteres romanos, levou algum tempo a ser soletrado; imediatamente anunciou a sua descoberta a César, que todo ele era atenção.

- Muito bem, agora ler tudo - disse o negro, olhando por cima do ombro da mulher e segurando uma longa e delgada vela de banha amarela, de maneira a deitar a sua fraca claridade sobre o volume.

- Sim, mas é preciso ver o princípio do livro- respondeu Katy voltando negligentemente as páginas, duas a duas; finalmente encontrou uma que fora branca mas que uma pena cobrira com a sua escrita. - Aqui está - gritou ela, sacudindo o livro com todo o ardor de uma curiosidade impaciente. - Dava tudo no mundo para saber a quem deixa ele as grandes fivelas dos sapatos, em prata.

- A senhora ler - disse laconicamente César.

- E a cómoda em nogueira, porque Harvey nunca precisa dela.

- Porquê ele não precisar como seu pai? - perguntou o negro num tom seco.

- E as seis grandes colheres de prata; porque Harvey só se serve com as de ferro.

- Ele dizer com certeza - disse o africano, apontando para a letra, enquanto escutava o inventário que Katy fazia das riquezas do velho Birch.

Assim empurrada pelo negro e não menos pela curiosidade, Katy começou o seu trabalho e, para chegar mais depressa ao que interessava, passou metade da página e leu lentamente:

- Chester Birch, nascido a 1 de Setembro de 1755.

- Bem! o que dar-lhe? - perguntou o impaciente César.

- Abigail Birch, nascida a 12 de Julho de 1757.

- Ela ficar com certeza com as colheres - acrescentou o negro apressadamente.

-"1 de Junho de 1760. Neste dia terrível o julgamento de um Deus ofendido caiu sobre a família..."

Um gemido profundo partindo do quarto contíguo interrompeu a leitura. A governanta fechou o livro instintivamente e César tremeu por instantes com medo. Nem um nem outro tiveram suficiente coragem para entrar no quarto do moribundo, que se ouvia respirar penosamente. No entanto, Katy não ousou voltar a abrir a Bíblia e, fechando os fechos com cuidado, colocou-a sobre a mesa.

César mexeu-se na cadeira como se sentisse pouco à vontade e disse, depois de ter lançado um olhar tímido em volta do quarto:

- Eu julgar que ele se ir.

- Não - respondeu Katy num tom solene. - Viverá até que a maré baixe ou que o galo cante para anunciar a manhã.

- Pobre homem! - disse o negro, enfiando-se ainda mais sob a chaminé. - Eu esperar que ele ficar muito tranquilo depois de estar morto.

- Eu não garanto - respondeu Katy, olhando à sua volta e baixando a voz. - Dizem que para ficar tranquilo depois da morte é preciso tê-lo sido enquanto vivo.

- John Birch era um homem muito bom.

- Ah! César! só se é bom quando se conduz como tal. Pode dizer-me, César, porque esconderam nas entranhas da terra dinheiro honestamente ganho?

- Se ele saber onde estar esse dinheiro, porquê ele não o desenterrar?

- Pode haver razões que você não compreenda - respondeu Katy, ajeitando a cadeira de maneira a que as saias cobrissem inteiramente a pedra debaixo da qual estava escondido o tesouro secreto do bufarinheiro. Não podendo impedir-se de falar sobre o que a aborreceria muito revelar, acrescentou:

- Não se deve julgar sempre o pássaro pela gaiola.

César abria muito os olhos, que passeava em torno do quarto, incapaz de compreender o sentido escondido desta parábola, quando de repente o seu olhar se tornou fixo e os seus dentes bateram de medo. Katy, que se apercebeu da mudança da sua fisionomia, ao voltar a cabeça, viu o bufarinheiro na soleira da porta.

- Ainda vive? - perguntou Harvey, numa voz trémula e parecendo temer ouvir a resposta a esta pergunta.

- Sem dúvida - respondeu Katy levantando-se apressadamente e oferecendo-lhe oficiosamente a cadeira - tem de viver até à maré baixa ou até ao canto do galo.

Escutando apenas a confirmação que ela lhe dera que o pai vivia ainda, o vendedor entrou suavemente no quarto do moribundo. O laço que unia o pai e o filho não era de uma natureza vulgar: eram tudo no mundo um para o outro. Se Katy tivesse lido mais algumas linhas, teria visto a triste narração das suas infelicidades. Uma catástrofe súbita tinha-lhes tirado de repente todos os bens e a família e desde esse momento, o desespero e a perseguição seguiam os seus passos errantes. Aproximando-se da cabeceira da cama, Harvey inclinou-se e disse numa voz entrecortada:

- Meu pai, conhece-me?

O velho abriu os olhos lentamente e nas suas feições pálidas apareceu um sorriso de satisfação para em seguida deixar nelas a impressão da morte mais fortemente traçada pelo contraste.

Harvey aproximou dos lábios secos do velho uma poção tonificante que lhe trouxera e que por instantes pareceu reanimar-lhe as forças. Falou então ao filho, mas com lentidão e dificuldade. A curiosidade impunha silêncio a Katy e o medo produziu o mesmo efeito sobre César. Harvey parecia mal respirar ao escutar as últimas palavras do pai na hora da morte.

- Meu filho, - disse-lhe este numa voz entrecortada - Deus é tão misericordioso quanto justo. Castigou os erros da minha juventude; mas sinto que não me recusa a salvação pelo meu arrependimento na velhice: ele castiga para purificar. Vou ter com as almas da nossa infeliz família. Vais ficar só no mundo, Harvey, e conheço-te suficientemente para prever que continuarás a viver sozinho. A roseira partida pode conservar um resto de existência, mas nunca mais levanta a cabeça. Tens em ti o que te guiara nos caminhos da justiça. Mantém-te firme no que começaste; pois não se devem nunca descuidar os deveres da vida, e...

Um ruído repentino no outro quarto interrompeu o moribundo e o bufarinheiro impaciente correu para saber a causa deste. Um só olhar lançado sobre o indivíduo que estava à porta deu-lhe a conhecer mais do que claramente qual o motivo desta visita e que destino provavelmente o esperava. O intruso era um homem ainda jovem, mas cujo rosto indicava um espírito há muito agitado pelas paixões. Os fatos grosseiros, sujos e em farrapos, davam-lhe um ar de pobreza estudada. Os cabelos começavam já a cobrir-se de uma brancura prematura, e o olhar encovado e desvairado evitava o olhar franco e ousado da inocência. Havia nas suas maneiras e movimentos uma espécie de agitação inquieta, consequência de um espírito perverso que o animava e que era tão desagradável para os outros como incómodo para si. Era o chefe bem conhecido de um desses grupos de malandrins,(1) autores de todos os crimes, desde o roubo ao assassínio. Atrás dele estavam vários indivíduos vestidos mais ou menos da mesma maneira, mas cujas feições apenas exprimiam a indiferença de uma insensibilidade brutal. Estavam todos armados de espingardas de baioneta e usavam em geral todas as armas da infantaria. Harvey sabia que a resistência seria inútil e submeteu-se tranquilamente a tudo o que exigiram dele. Num abrir e fechar de olhos, César e ele foram despojados dos fatos pelos quais receberam os farrapos dos dois homens mais andrajosos do grupo. Seguidamente colocaram-nos cada um em seu canto do quarto e dirigindo o cano do mosquete para o peito, mandaram-nos responder categoricamente às perguntas que lhes seriam feitas.

- Onde está o teu fardo? - perguntou o chefe ao bufarinheiro.

 

*1. Conhecidos pelo nome de Skinners - isto é: Magarefes, como já foi dito.

 

- Oiça-me - respondeu Birch tremendo de emoção. - O meu pai está na agonia no quarto ao lado; deixem-me receber a sua bênção e fechar-lhe os olhos e tereis tudo; sim tudo.

- Responde à minha pergunta ou este mosquete enviar-te-á a fazer companhia ao velho tonto. Onde está o teu fardo?

- Não lhes direi nada antes de ver o meu pai - disse Harvey resolutamente.

O perseguidor levantou o braço com um sorriso diabólico e ia executar a ameaça quando um dos companheiros o deteve, gritando:

- Que ias fazer? Esqueces certamente a recompensa?

- Vá, diz onde estão as tuas mercadorias e mandamos-te ver o teu pai.

Harvey indicou-lhes onde tinha deixado o fardo ao fugir. Um dos ladrões foi buscá-lo e, tendo regressado rapidamente, deitou-o por terra blasfemando e dizendo que estava tão leve que só tinha penas.

- Sim - exclamou o chefe - mas deve haver em qualquer lugar dinheiro pelo preço do que continha. Dá-nos o teu dinheiro, Harvey Birch; sabemos que o tens porque já não queres saber do papel do congresso.

- Não estão a cumprir a vossa palavra - disse Harvey num tom sombrio.

- Dá-nos o teu dinheiro! - repetiu o chefe num tom furioso, fazendo o vendedor sentir o ferro da baioneta a ponto de algumas gotas de sangue lhe avermelharem os fatos. Neste instante fez-se ouvir um ligeiro movimento no quarto vizinho e Harvey exclamou num tom suplicante:

- Deixem-me, deixem-me ir ver o meu pai e terão tudo.

- Juro-te que vais vê-lo depois.

- Está bem! Tomem esse metal maldito - respondeu Birch lançando-lhes a bolsa que tivera artes de esconder ao mudar de vestimentas.

O ladrão apanhou-a e disse-lhe com um sorriso infernal:

- Sim, sim, irás ver o teu pai mas será o teu pai que está no céu.

- Monstros! - gritou Birch, nem têm sentimentos nem fé nem honra?

- Oiçam-no! dir-se-ia ao ouvi-lo que ele não tem já a corda ao pescoço.

- Está tranquilo, Birch, se o homenzinho se adiantar a ti algumas horas, tens a certeza de ir ter com ele amanhã antes do meio-dia.

Esta notícia, dada com uma maldade brutal não produziu qualquer efeito sobre o bufarinheiro, que escutava quase sem respirar os mais pequenos sons que partiam do quarto do pai. Por fim ouviu uma voz fraca e sepulcral pronunciar o seu nome e não podendo resistir mais à sua impaciência gritou:

- Paz! meu pai! paz, já vou, já vou. - Ao mesmo tempo fez um movimento rápido para se escapar, mas encontrou-se pregado à parede pela baioneta do Skinner. Felizmente a prontidão com a qual se voltara evitara-lhe o golpe que lhe ameaçava a vida, ficando apenas retido pelos fatos.

- Não, Birch, não. Já sabemos como tu deslizas para te perder de vista um instante. O teu dinheiro, o teu dinheiro, digo-te eu.

- Já o têm - gritou Birch com a agonia do desespero.

- Sim, temos a bolsa, mas tu deves ter mais. O rei Jorge é bom pagador e tu já lhe prestaste muitos serviços. Onde está a tua massa? Despacha-te, se queres voltar a ver o teu pai.

- Levantem a pedra que está debaixo dessa mulher - gritou Harvey com vivacidade.

- Está maluco, divaga - exclamou Katy colocando-se rapidamente sobre a pedra vizinha. Num instante a pedra foi levantada e por baixo não se viu senão terra.

- Ele divaga - repetiu a governanta tremendo; fizeram-lhe perder o espírito. - Que homem de bom senso pensaria em colocar o seu dinheiro debaixo de uma pedra da lareira?

- Silêncio, faladora - disse Harvey. - Levantem a pedra que está no canto e ficarão ricos e eu não serei mais do que um mendigo.

- E um mendigo desprezível - exclamou Katy. - O que é um bufarinheiro sem fardo nem dinheiro? Todos o desprezarão, nada é mais certo.

- Terá sempre o suficiente para pagar uma corda - disse o Skinner, avistando uma quantidade considerável de guinéus ingleses. Fizeram-nos prontamente cair num saco de coiro apesar dos protestos da governanta, que declarou que lhe deviam o ordenado e que dez daqueles guinéus lhe pertenciam de direito.

Encantado com a colheita que ultrapassava em muito o que esperavam, os bandidos preparavam-se para partir e levar com eles o bufarinheiro no propósito de o entregarem ao primeiro regimento americano, reclamando a recompensa que fora prometida pela sua detenção. Como Birch recusava teimosamente andar, eles iam levá-lo à força quando se viu entrar no quarto uma espécie de fantasma que gelou de terror todos os espectadores. O seu corpo estava envolto num lençol da cama de onde se levantara e o olhar fixo, o rosto lívido davam-lhe o ar de um ser do outro mundo. Mesmo Katy e César julgaram que era o espírito do velho Birch e fugiram precipitadamente da casa, seguidos por todo o grupo dos Skinners, não menos alarmados.

As forças, que uma viva emoção tinha devolvido ao moribundo, desapareceram imediatamente e o filho segurando-o nos braços, levou-o de volta para a cama. O fim desta cena não podia tardar.

Os olhos meio extintos do pai estavam fixos no filho; os lábios mexiam mas a voz não conseguia fazer-se entender.

Harvey curvou-se sobre o leito e recebeu ao mesmo tempo a bênção e o último suspiro do pai.

Privações, preocupações e injustiças preencheram uma grande parte do resto da vida de Harvey Birch. Mas nem os sofrimentos nem as infelicidades, nem as calúnias apagaram jamais do seu espírito a lembrança do instante em que recebera a última bênção do pai. Nela encontrava consolo do passado, reconforto do presente e as esperanças no futuro. Sabia que um espírito bem-aventurado rezava por ele junto do trono da divindade e a certeza de ter fielmente cumprido todos os deveres da piedade filial, dava-lhe a confiança na misericórdia celeste.

A fuga de César e de Katy fora demasiado precipitada para que pudessem programá-la. No entanto, tinham tomado instintivamente um caminho diferente do dos ladrões. Depois de terem corrido alguns minutos, pararam de cansaço.

- Ah! César - exclamou Katy num tom solene - ver um morto voltar assim, antes mesmo de ser posto no túmulo! Deve ter sido o dinheiro que o perturbou. Dizem que o espírito do capitão Kidd se passeia todas as noites perto do local onde foi enterrado o seu ouro durante a última guerra.

- Eu nunca pensar que John Birch ter tão grandes olhos -disse César, cujos dentes ainda batiam de medo.

- Afinal - continuou Katy - porque não se zangará um morto tanto como um vivo por perder tanto dinheiro? Mas pense em Harvey. Quem quererá casar com ele agora?

- Mas talvez o espírito ter levado a ele - disse César.

Essa palavra levar fez nascer uma nova ideia na imaginação de Katy. Não seria possível que os ladrões, no terror do momento, se tivessem esquecido de levar o dinheiro? Essa reflexão fez desaparecer o medo e participando a César, resolveram depois de madura deliberação voltar à cabana, para se assegurarem desse facto importante e, se fosse possível, acerca da sorte de Birch. Perderam muito tempo para se aproximarem com precaução do lugar temido e como Katy tivera o cuidado de seguir a linha de retirada dos Skinners, ao fazer o caminho, examinou todas as pedras para ver se não seriam moedas de ouro.

Embora o alarme repentino e os gritos de César tivessem levado os malandrins a uma fuga precipitada, estes tinham levado o ouro apertando-o com uma tal força que mesmo a morte não os teria feito largar. Vendo que estava tudo tranquilo na choupana, Katy armou-se de resolução suficiente para entrar. Ali encontraram Harvey tristemente ocupado com os últimos deveres para com o pai. Só precisou de algumas palavras para dar a conhecer a Katy o seu engano; mas César continuou até ao seu último dia a assustar os negros habitantes da cozinha do Sr. Wharton fazendo-lhes sábias dissertações sobre os espíritos e contando-lhes como fora terrível a aparição de John Birch.

O perigo que corria forçou Harvey a abreviar o curto espaço que é costume deixar passar na América entre a morte e a sepultura e, ajudado pelo negro e por Katy, o seu trabalho em breve ficou acabado. César encarregou-se de ir imediatamente encomendar um caixão na aldeia vizinha e o corpo foi envolvido num lençol branco enquanto esperava o regresso do negro.

Entretanto, os Skinners tinham corrido sem parar até ao bosque que ficava a pouca distância da choupana de Birch. Aí pararam e o descontente chefe gritou numa voz de trovão:

- Morte e sangue! Porque fugiram assim, poltrões?

- Poderíamos fazer-lhe a mesma pergunta - respondeu divertido um dos seus homens.

- Pelo vosso terror, julgava que um destacamento da companhia de Delancey vinha em nossa perseguição. Oh! vocês são uns excelentes corredores.

- Seguimos o nosso capitão.

- Está bem! Sigam-me até à choupana e vamos apanhar aquele cão do bufarinheiro para receber a recompensa.

- Sim, para que aquele velho negro malandro nos lance nos braços do danado virginiano. Pela minha alma, temo-o mais do que cinquenta Vachers.

- Imbecil! - gritou o chefe encolerizado - não sabes que Dun-woodie está nos Quatro-Cantos, a duas grandes milhas daqui?

- Não falo de Dunwoodie: mas tenho a certeza que o capitão Lawton está na casa do velho Wharton. Vi-o entrar para lá enquanto espiava uma ocasião para tirar da estrebaria o cavalo daquele coronel inglês.

- E quando Lawton vier atacar-nos, a pele de um dragão americano é mais impenetrável à bala do que a de um cavaleiro inglês?

- Não; mas não estou interessado em meter a cabeça num vespeiro. Se reunimos contra nós outra vez esses danados virginianos, não teremos mais nenhuma noite tranquila para pilhar.

- Está bem! - murmurou o chefe, enquanto recomeçavam a caminhar para se embrenharem no bosque - aquele imbecil do bufarinheiro ficará para enterrar o velho malandro do pai. Não devemos tocar-lhe durante o enterro mas passará aqui o dia de amanhã para tratar do mobiliário e na noite seguinte pagar-lhe-emos as nossas dívidas.

Depois desta ameaça, retiraram-se para um dos seus esconderijos habituais, para lá ficarem até que outra noite lhes fornecesse ocasião de cometerem sem perigo novas depradações.

 

A família Wharton dormira ou vigiara durante os acontecimentos que acabamos de relatar numa ignorância completa do que se passava na choupana de Birch. Os ataques dos Skinners eram conduzidos sempre com tanto segredo que não somente as vítimas não podiam esperar qualquer socorro, como muitas vezes se viam privadas da comiseração dos vizinhos, que temiam que a sua piedade os expusesse a semelhantes depredações. As senhoras, a quem a presença de novos hóspedes ocasionava certo trabalho adicional, tinham descido mais cedo do que de costume.

O capitão Lawton, apesar das dores que ainda sofria, levantara-se muito cedo, conforme à regra que a si próprio prescrevera de nunca ficar mais de seis horas na cama. Era quase o único artigo sobre o qual o doutor e ele estavam de acordo. Sitgreaves não se deitara toda a noite; ficara à cabeceira do capitão Singleton.

De tempos a tempos, ia fazer uma visita ao coronel Wellmere que estando mais doente no espírito do que no corpo, não lhe agradecia de modo algum que o viesse perturbar no sono. Apenas uma vez se aventurou a entrar no quarto de Lawton e estava prestes a medir o pulso, quando o capitão, fazendo um movimento sem acordar e blasfemando enquanto sonhava, fez estremecer o prudente cirurgião, lembrando-lhe um velho dito que corria no regimento "que o capitão Lawton só dormia com um olho".

Este grupo estava reunido numa das salas do rés-do-chão quando o sol se mostrou sobre as montanhas de leste, e dispersou as colunas de nevoeiro que cobriam todo o vale. "Miss" Peyton, de pé em frente da janela, olhava para o lado da casa do bufarinheiro e testemunhava o desejo de saber como se encontrava o velho doente que supunha ainda aí habitar, quando viu sair Katy Haynes do meio de um espesso nevoeiro que se dissipava sob os benfazejos raios do sol. A governanta caminhava depressa, dirigindo-se para Sauterelles e havia no seu ar qualquer coisa que anunciava um desespero extraordinário.

A boa Jeannette abriu a porta da sala na caridosa intenção de suavizar um desgosto que parecia tão pesado. Ao vê-la de perto, reconheceu pelas suas feições alteradas que não se enganara e sentindo o choque que um bom coração não deixa nunca de sentir no instante de uma separação súbita e eterna, seja do mais humilde indivíduo do seu conhecimento, disse-lhe imediatamente:

- Então! Katy, o pobre homem já partiu?

- Não, minha senhora - replicou a pobre rapariga com amargura, mas agora pode partir quando lhe apetecer. Tudo o que há de pior lhe aconteceu; creio na verdade, "miss" Peyton, que eles não lhe deixaram o suficiente para comprar outro fato para esconder a sua nudez; porque aquele que lhe ficou não é dos melhores, asseguro-lhe.

- O quê, Katy! E quem pode ter tido coragem de roubar um infeliz num tal momento de desespero?

- Coragem? Há homens que não têm coração nem entranhas. Sim, "miss" Peyton, ele tinha no pote de ferro cinquenta e quatro bons guinéus de bom e belo ouro. Quanto havia abaixo disso? Isso não sei; porque para o saber era preciso ter contado e eu não quis tocar-lhe, porque dizem que o dinheiro dos outros se prende facilmente aos dedos. No entanto, segundo as aparências, deviam estar mais de duzentos guinéus, sem falar do que tinha no pequeno saco de couro. Mas com tudo isso, o que é Harvey hoje? Apenas um mendigo, e sabe que toda a gente despreza um mendigo!

- Deve lastimar-se o indigente, mas não desprezá-lo - disse Jeannette Peyton que ainda não percebia a extensão das infelicidades dos vizinhos. - Mas como está o pobre velho? Essa perda de que fala afecta-o muito?

A fisionomia de Katy mudou de repente: perdeu a expressão de desgosto natural para dar lugar a uma melancolia estudada:

- Felizmente para ele - respondeu - está ao abrigo das preocupações deste mundo. O som dos guinéus fê-lo sair da cama e a sua pobre alma não conseguiu resistir ao golpe: morreu duas horas e dez minutos antes do galo cantar, tanto quanto posso julgar, e...

Aqui foi interrompida pelo doutor que, aproximando-se lhe perguntou com interesse qual a natureza da doença do defunto.

Katy deitou os olhos sobre aquele que lhe fazia esta pergunta e respondeu-lhe endireitando instintivamente o avental:

- Foi a infelicidade do tempo, foi o desgosto da perda da sua fortuna que o conduziu ao túmulo. Declinava de dia para dia, apesar de todos os cuidados que eu tinha com ele. E agora que Harvey não é mais do que um mendigo quem me pagará todos os meus trabalhos?

- Deus recompensá-la-á por todas as suas boas obras - disse "miss" Peyton com doçura.

- É a minha esperança - respondeu Katy com um ar de respeito que imediatamente foi substituído por uma expressão que anunciava mais solicitude para com os bens deste mundo - pois deixei os meus honorários nas mãos de Harvey desde há três anos e agora quem mos pagará? Muitas vezes os meus irmãos me aconselharam a pedir o meu dinheiro; mas parecia-me que as contas eram fáceis de fazer entre pessoas que estavam tão perto uma da outra.

- Você é parente de Harvey Birch? - perguntou "miss" Peyton.

- Mas... não - respondeu Katy, hesitando - e no entanto na situação em que as coisas estão não sei se terei quaisquer direitos a fazer valer sobre a casa e o jardim: porque agora que isso é propriedade de Harvey, não duvido que seja pronunciada uma confiscação.

E voltando-se para Lawton cujos olhos penetrantes se tinham fixado nela:

- Gostaria - acrescentou - de saber qual é a opinião a este respeito daquele respeitável senhor, que parece ter tanto interesse no que eu digo.

- Minha senhora - disse o capitão cumprimentando ironicamente - nada é mais interessante do que a senhora e a sua história, mas os meus humildes conhecimentos limitam-se a saber alinhar um esquadrão em batalha e a carregar o inimigo quando se apresenta o momento. Convido-a a dirigir-se ao doutor Archibald Sitgreaves, cuja ciência é universal e a filantropia sem limites.

O cirurgião ergueu-se com um orgulho desdenhoso e começou a assobiar em voz baixa, olhando para alguns frascos colocados sobre uma mesa; mas a governanta, voltando-se para ele, continuou depois de ter feito uma reverência:

- Suponho, senhor, - disse - que uma mulher não pode pretender receber um dote sobre os bens do marido, a menos que o casamento tenha sido efectivamente celebrado?

Era uma máxima do doutor que nenhuma ciência era de desprezar e daí resultava ser empírico em tudo, excepto na sua profissão. A indignação que primeiro lhe inspirara a ironia do capitão, conservara-o em silêncio, mas mudando de intenção de repente, respondeu sorrindo:

- Sou dessa opinião. Se a morte precedeu o casamento, receio não haver recurso contra os seus decretos rigorosos.

Katy ouviu muito bem estas palavras, mas morte e casamento foram as únicas que compreendeu. Foi portanto a esta parte da frase do doutor que dirigiu a sua resposta.

- Julgava que ele só esperava a morte do velho pai para se casar; mas agora que é apenas um homem desprezível, ou o que é a mesma coisa, um vendedor sem fardo, sem casa e sem dinheiro, ser-lhe-á difícil encontrar uma mulher que o queira. O que pensa, "miss" Peyton?

- Os meus pensamentos ocupam-se raramente com tais assuntos - respondeu gravemente "miss" Peyton, enquanto se ocupava dos preparativos do almoço.

Durante este diálogo, o capitão Lawton estudara os modos e a fisionomia da mulher com uma gravidade cómica e temendo que a conversa caísse, perguntou-lhe com ar de muito interesse:

- Assim, está convencida que foi a muita idade e a debilidade que levaram ao fim os dias do velho?

- E a infelicidade do tempo - acrescentou vivamente Katy. - A inquietação é uma má companheira de cama para um doente. Mas suponho que tinha chegado a sua hora e quando esta vem não há remédio que possa salvar-nos.

- Calma - disse o doutor - está enganada a esse respeito. É indubitável que temos todos de morrer, mas é-nos permitido recorrer às luzes da ciência para obedecer aos perigos que nos ameaçam até que...

- Até que morramos secundum artem - disse Lawton. Sitgreaves não se dignou responder a este sarcasmo; mas julgando necessário para firmar a sua dignidade que a conversa continuasse, acrescentou:

- No caso de que se trata, é possível que um tratamento judicioso tivesse prolongado a vida do doente. Quem estava encarregado da administração desse assunto?

- Ainda ninguém - respondeu Katy com vivacidade - mas creio que ele escreveu o seu testamento sobre a Bíblia.

O cirurgião não prestou atenção ao sorriso das senhoras e continuou o inquérito, dizendo:

- É prudente estar sempre preparado para a morte; mas estou a perguntar-lhe quem cuidou dele durante a sua doença?

- Eu - respondeu Katy tomando um ar de importância - e posso dizer que foram cuidados perdidos; porque Harvey é demasiado pobre para fazer contas comigo agora.

Os dois interlocutores não se entendiam de modo algum, mas ambos puxando para o seu lado julgavam compreender o outro e a conversa continuou:

- E como o tratou? - perguntou o doutor.

- O que quer isso dizer, como o tratei? - exclamou Katy, agrestemente. - Tratei-o sempre com a maior doçura, pode ter a certeza.

- O doutor está a perguntar-lhe que medicamentos o mandou tomar - disse Lawton, com uma cara séria, que não estaria deslocada no enterro do defunto.

- Ah! é só isso? - disse Katy, sorrindo do seu engano. - Dei-lhe caldos de ervas.

- Decocções simples - disse Sitgreaves. - Esses remédios são menos perigosos nas mãos da ignorância do que medicamentos mais poderosos. Mas porque não chamou para junto dele um oficial de saúde?

-Um oficial! - gritou Katy. - Deus me livre! Os oficiais fizeram bastante mal ao filho, porque mandaria eu vir um para junto do pai?

- O Dr. Sitgreaves está a falar-lhe de um médico, e não de um oficial militar - disse Lawton, com uma gravidade imperturbável.

- Oh! - exclamou a vestal, voltando a reconhecer o seu engano. - Se não mandei vir um médico foi porque não sabia onde encontrar algum e é a melhor razão possível. Foi por isso que eu própria tomei conta do doente. Se tivesse tido um médico à mão, tê-lo-ia consultado de boa vontade; porque, quanto a mim, sou pela medicina, embora Harvey pretenda que me mato à força de drogas; mas que viva ou morra, isso não tem importância para ele agora.

- Nisso mostra bom senso - disse o doutor, aproximando-se de Katy, que, sentada junto do fogo, aquecia as mãos e os pés e se punha o mais à vontade possível no meio de tantos desgostos -, parece uma mulher sensata e discreta e outras pessoas que têm mais ocasiões para formarem ideias correctas poderiam invejar o seu respeito pela mais bela das artes, pela rainha das ciências.

Sem compreender bem esta frase, Katy sentiu que continha um cumprimento em sua honra e encantada com a observação do cirurgião, tomou de novo coragem.

- Disseram-me sempre - replicou ela - que só me faltava ocasião para me tornar médica. Muito antes de morar com o pai de Harvey, chamavam-me o doutor fêmea(1).

- Mais verdadeiro que bonito - disse o doutor, levado a esquecer a classe humilde de Katy, em consequência da admiração que lhe inspirava o respeito que esta mostrava pela arte de curar. - É certo que, à falta de guias mais instruídos, a experiência de uma enfermeira discreta pode ser de grande utilidade para deter o progresso do mal no sistema do corpo humano. E, em tais circunstâncias, minha senhora, é cruel ter de lutar contra a ignorância e a teimosia.

- Sem dúvida, sem dúvida; e eu fiz essa experiência demasiadas vezes- retorquiu Katy, com ar de triunfo. - Harvey, nesse ponto, é mais teimoso do que uma mula. Pensar-se-ia que todos os cuidados que tive com o pai doente lhe ensinariam a não desprezar uma mulher entendida. Talvez venha o dia em que ele saiba o que é não ter uma em casa.

 

*1. No texto figura bitch-doctor. É sabido como a palavra bitch (cadela) é dura para o ouvido feminino na Inglaterra e nos Estados Unidos. É a razão por que o doutor se indigna com a falta de educação do termo.

 

Mas, pobre como é agora, como poderá ter uma casa?

- Compreendo facilmente a mortificação que deve ter sentido ao tratar com um homem tão teimoso - continuou o doutor, lançando um olhar de reprovação ao capitão; - mas tem de passar sobre tais opiniões e desprezar a ignorância que as produz.

Katy hesitou um instante: não compreendia exactamente o que o doutor acabara de dizer, mas, sentindo que havia na sua fala qualquer cumprimento, reprimiu um pouco a volubilidade habitual e disse simplesmente:

- Disse muitas vezes a Harvey que a sua conduta era desprezível e a noite passada ele provou que eu não estava enganada. Mas a opinião de semelhantes incrédulos não é muito importante. No entanto é terrível pensar na maneira como ele se comporta algumas vezes. Por exemplo, quando deitou no fogo a agulha...

- O quê! -exclamou o cirurgião, interrompendo-a - ele despreza a agulha(1)? Mas este é o meu destino, encontrar todos os dias homens cujo espírito igualmente perverso mostra uma indiferença ainda mais culpável pelos conhecimentos que deve às luzes das ciências.

O doutor voltou-se para Lawton ao falar assim; mas a elevação da sua cabeça impedia-o de fixar os olhos na fisionomia grave do capitão. Katy escutava-o com a maior atenção e acrescentou:

- Depois Harvey não acredita nas marés.

- Não acreditar nas marés! - exclamou Sitgreaves, no cúmulo da surpresa; - é talvez sobre a influência da lua que ele tem dúvidas?

- É isso mesmo - disse Katy, transportada de alegria por encontrar um sábio que perfilhava as suas opiniões favoritas. - Se o ouvisse falar, imaginaria que ele não acredita mesmo na existência da lua no mundo.

- A tristeza da ignorância e da incredulidade é ir sempre aumentando, minha senhora - disse gravemente o doutor. - O espírito que uma vez rejeita os conhecimentos úteis abandona-se à superstição e tira conclusões sobre a ordem da natureza tão prejudiciais à causa da verdade como contrárias aos primeiros princípios de todas as ciências humanas.

Este discurso pareceu demasiado imponente a Katy para se aventurar a responder ao acaso e o doutor, depois de ter ficado em silêncio uns momentos com uma espécie de desdém filosófico, acrescentou:

- Que um homem de bom senso possa ter dúvidas acerca das marés, é coisa que nunca acreditaria ser possível; mas a obstinação é um defeito ao qual é perigoso entregar-se e que pode conduzir aos mais grosseiros erros.

 

*1. A palavra needle significa "agulha de coser" e "agulha de íman", a "agulha da bússola". Katy emprega-a no primeiro sentido e o doutor toma-a no segundo.

 

- Acredita então que elas têm efeito sobre o fluxo? - perguntou a governanta.

"Miss" Peyton levantou-se com um ligeiro sorriso e fez sinal às sobrinhas que a viessem ajudar em qualquer ocupação doméstica, enquanto Lawton morria de vontade de rebentar a rir, que não reprimiu senão por um esforço tão violento e tão repentino quanto o motivo que o ocasionara.

Depois de ter pensado se compreendia bem o que dissera a mulher, o cirurgião achou que era preciso respeitar o amor da ciência que se fazia sentir, a despeito da falta de educação, e respondeu:

- Quer falar da lua. Muitos filósofos duvidaram que ela agia sobre as marés; mas creio que é fechar voluntariamente os olhos às luzes da ciência não acreditar que ela ocasiona o fluxo e o refluxo.

Como o refluxo era uma doença que Katy não conhecia, julgou propositado ficar em silêncio por instantes. No entanto, ardendo de curiosidade por saber quais eram as luzes de que ele falava tantas vezes, resolveu perguntar-lhe:

- Essas luzes são as que nós chamamos nesta região as luzes do norte(1).

Por caridade pela sua ignorância, o doutor ia entrar numa explicação científica sobre o que quisera dizer, se não tivesse sido interrompido pelas gargalhadas de Lawton. O capitão escutara até então com muito sangue-frio; não podendo aguentar mais tempo, riu-se até às lágrimas, a ponto de renovar todas as dores dos seus ferimentos. Por fim o cirurgião, ofendido, aproveitou um intervalo para dizer:

- Pode ser uma fonte de triunfo para si, capitão Lawton, ver uma mulher sem educação enganar-se num assunto sobre o qual os homens mais sábios estiveram tanto tempo em desacordo. E no entanto veja que esta respeitável mulher não rejeita as luzes; as luzes, senhor; os instrumentos que podem ser úteis ao homem, seja para reparar as injúrias que o corpo pode receber, como para se elevar às alturas da ciência. Lembra-se da alusão que ela fez à agulha?

- Sim - exclamou Lawton, com nova gargalhada - para remendar as calças do bufarinheiro.

Katy ergueu-se, evidentemente chocada ao ver-se atribuir relações tão familiares com essa parte do fato de Harvey Birch, mas querendo provar que tinha estado entregue a ocupações mais elevadas, apressou-se a dizer:

- Na verdade, senhor, não foi num uso tão vulgar que empreguei essa agulha: tratava-se de um objecto bem mais importante.

- Explique-se - disse Sitgreaves, com uma certa impaciência; - prove a este senhor que não é caso para rejubilar assim.

 

*1. Tradução literal das palavras northern lights que significam a "aurora boreal".

 

Solicitada desta maneira, Katy recolheu-se por instantes, a fim de fazer uma provisão de eloquência para ornar a narração. O facto fora que uma criança confiada aos cuidados de Harvey pela administração dos pobres espetara uma grande agulha no pé, na ausência do patrão. Ela retirara o instrumento malfazejo, untara-o cuidadosamente e envolvendo-o num pedaço de pano, colocara-o ao canto da chaminé sem aplicar qualquer remédio no pé ferido com medo de enfraquecer a força do feitiço. O regresso do bufarinheiro interrompera esta admirável combinação e ela exprimiu as consequências deste facto, terminando a narração com estas palavras:

- Por isso não é de espantar que a criança tenha morrido com tétano(1).

O doutor Sitgreaves aproximou-se de uma janela, admirou a beleza da manhã, fez tudo o que podia para evitar o olhar de Lawton, mas inutilmente. Uma força irresistível levou-o a olhar para a frente. O capitão compusera o rosto com um ar de piedade pela sorte da infeliz criança; mas quando os seus olhos se cruzaram com os do doutor, tomaram um ar de triunfo que este, de tal modo desconcertado, pretextou a necessidade que os doentes podiam ter dos seus cuidados e retirou-se precipitadamente.

"Miss" Peyton perguntou seguidamente informações mais pormenorizadas sobre a situação na qual se encontravam então as coisas de Harvey Birch e escutou pacientemente e com todo o interesse de um excelente coração a narração circunstanciada que Katy lhe fez de tudo o que se passara na noite precedente. Esta não deixou de acentuar a grandeza da perda que o bufarinheiro tivera e não lhe poupou as invectivas por ter descoberto um segredo que teria sido tão fácil guardar.

- Quanto a mim, "miss" Peyton - acrescentou, depois de ter tomado fôlego um momento - preferia perder a vida a dizer uma única palavra. O pior que lhe podiam fazer era matá-lo e pode-se dizer que na verdade o mataram de corpo e alma, pois fizeram dele um vagabundo miserável. Quem quererá ser sua mulher ou tomar conta da sua casa agora? Quanto a mim, sou demasiado ciosa da minha reputação para ficar em casa de um homem solteiro embora na realidade ele não esteja nunca em casa. Estou portanto muito resolvida a avisá-lo de que, não sendo casada, não ficarei em sua casa nem mais uma hora depois do enterro e, quanto a casar com ele, não penso nisso a menos que ele leve uma vida menos errante e mais regular!

A boa Jeannette deixou esgotar-se a eloquência verbosa da governanta; e através de duas ou três perguntas judiciosas, que provavam ter ela um conhecimento mais íntimo do que se poderia supor dos caminhos secretos e tortuosos de Cupido no coração humano,

 

*1. Em inglês locked-jaw, tétano do maxilar, chamado mais vulgarmente trismo.

 

extraiu de Katy pormenores suficientes para ter a certeza que não era de modo algum provável que o bufarinheiro, mesmo no estado de descalabro da sua fortuna, pensasse em oferecer a sua mão a Catherine Haynes. Disse-lhe então que precisava de uma mulher experiente para a ajudar nos cuidados domésticos e propôs-lhe entrar a seu serviço, se Harvey Birch não a conservasse no seu.

Depois de algumas condições preliminares que a prudente empregada pôs, o contrato foi concluído e fazendo ainda algumas tristes lamentações sobre as perdas que tivera e sobre a estupidez de Harvey, Katy voltou para casa do vendedor, tanto por curiosidade em saber o que iria ser dele como para ajudar aos preparativos do funeral que devia realizar-se no próprio dia.

Durante esta conversa, Lawton retirara-se por delicadeza e o seu interesse em saber como se encontrava Singleton levou-o até ao quarto do camarada. Já vimos que o carácter deste oficial lhe granjeara a amizade particular de todo o regimento. A sua doçura, quase feminina, e os seus modos cheios de urbanidade não impediam que fosse dotado de uma resolução viril de que dera provas e lhe assegurara o respeito de um grupo de guerrilheiros belicosos.

O major amava-o como a um irmão e a docilidade com a qual ele se submetia às prescrições de Sitgreaves tinha-o também tornado o favorito do doutor. A valentia com que este corpo se comportava no campo de batalha tinha posto sucessivamente todos os oficiais aos cuidados do doutor, e este classificando-os segundo a sua docilidade às doutrinas de Hipócrates, punha Singleton no alto da escala e deixava Lawton o mais em baixo possível. Dizia muitas vezes com quase tanto de ingenuidade franca como brincadeira, em frente de todos os outros oficiais que tinha muito mais prazer ao ver trazerem Singleton ferido do que qualquer outro dos seus camaradas, mas que não tinha qualquer prazer quando chegava a vez de Lawton; cumprimento que era recebido pelo primeiro com um sorriso suave e tranquilo e pelo segundo agradecendo gravemente.

Nessa ocasião, o cirurgião mortificado e o capitão triunfante encontraram-se no quarto de Singleton que era para eles como que um terreno neutro. Passaram algum tempo junto do companheiro ferido depois do que o médico se retirou para o apartamento que ocupava. Não estava aí senão há poucos minutos quando viu, para sua grande surpresa, entrar Lawton. O capitão tivera uma vitória tão completa que sentia poder ser generoso. Começando por isso por tirar o casaco, exclamou com indiferença:

- Vamos, Sitgreaves, que as luzes da ciência venham em socorro do meu corpo, se faz favor.

As luzes da ciência eram um assunto de conversa insuportável para o doutor neste momento. Mas aventurando-se a lançar um olhar ao capitão, viu os preparativos que este fazia, e notou nele um ar de sinceridade séria que não lhe era habitual. Todo o seu ressentimento se evaporou e disse-lhe com delicadeza:

- Os meus cuidados podem ser úteis ao capitão Lawton?

- Compete-lhe a si julgar, meu caro senhor - respondeu o capitão, docemente. - Vá, não vê neste ombro todas as cores do arco-íris?

- Sem dúvida mas fique descansado - replicou o Esculápio passando ligeiramente a mão sobre a parte magoada. - Felizmente não tem nada partido. É um milagre que se tenha escapado com tão pouco.

- Oh! desde a minha infância que sei dar um salto perigoso e preocupo-me pouco com as quedas do cavalo. Mas, Sitgreaves - acrescentou o dragão mostrando uma cicatriz no corpo - lembra-se desta bagatela?

- Perfeitamente, Jack - respondeu o doutor sorrindo; - o ferimento fora recebido corajosamente e a extracção da bala foi feita habilmente. Mas não acha que seria melhor aplicar um pouco de óleo nessas contusões?

- Certamente - disse Lawton, com uma submissão inesperada.

- Agora, meu caro amigo - proferiu o doutor pondo-se ao trabalho - não acha que teria sido melhor fazer este tratamento ontem à noite?

- Muito provavelmente - respondeu o capitão com a mesma indulgência.

- Muito certamente, Jack - continuou o cirurgião; - e se me tivesse deixado fazer a operação da flebotomia logo quando chegou, ter-lhe-ia sido da maior utilidade.

- Nada de flebotomia! - gritou Lawton num tom positivo.

- Agora é demasiado tarde - respondeu o doutor desconcertado. - Mas uma dose de óleo tomada interiormente limparia os humores admiravelmente.

Lawton só respondeu a esta proposta com um ranger de dentes e apertando-os de modo a mostrar que a sua boca era uma fortaleza que não venceriam sem uma vigorosa resistência. Por isso o doutor, que o conhecia bem, mudou o assunto da conversa.

- É pena - disse - que depois de tanto trabalho e de ter corrido um tal perigo não tenha podido apanhar o malandro do bufarinheiro.

O capitão nada respondeu; e, colocando algumas ligaduras para apertar as compressas, o cirurgião acrescentou:

- Se tenho algum desejo que seja contrário ao prolongamento da vida humana, é ver esse tipo enforcado.

- Julgava que o seu ofício era curar e não matar - disse o capitão, num tom seco.

- De acordo, mas esse espião fez-nos tanto mal com os seus relatórios que muitas vezes tenho a seu respeito disposições pouco cristãs.

- Não devia alimentar tais sentimentos de animosidade contra qualquer dos seus semelhantes - disse o capitão, num tom que surpreendeu de tal modo o doutor que este deixou cair um alfinete de que ia servir-se para prender a ligadura.

Olhou de frente para a pessoa que tratava, como para se convencer da sua identidade e, não podendo duvidar tratar-se do seu antigo camarada, capitão John Lawton, que lhe falava assim, procura dominar a sua surpresa dizendo-lhe:

- A sua doutrina é justa e apoio-a geralmente mas... a ligadura não o incomoda, meu caro Lawton?

- De modo nenhum.

- É um facto de crueldade para com aquele que sofre, e muitas vezes mesmo uma injustiça para com os outros, privar um homem da vida quando um castigo menor produziria o mesmo efeito. Ora, Jack, se você quisesse... Mexa um pouco o braço... Se quisesse somente... Espero que tenha os movimentos bem livres, meu caro amigo?

- Mais não é possível.

- Se você quisesse, meu caro Jack, ensinar aos seus soldados a manejar o sabre com mais discrição, atingiria o mesmo resultado e... dar-me-ia um grande prazer.

O doutor deu um grande suspiro, porque este era um assunto que lhe dizia muito e o dragão, pondo de novo o casaco, respondeu-lhe com o maior sangue-frio ao retirar-se:

- Não conheço soldados que manejem o sabre mais judiciosamente do que os meus. De um só golpe fendem geralmente a cabeça desde o crânio até ao maxilar.

O doutor suspirou, arrumou os instrumentos e dispôs-se a ir fazer uma visita ao coronel Wellmere.

 

O número e a qualidade dos estranhos que se encontravam em Sauterelles tinha consideràvelmente aumentado os afazeres dos cuidados domésticos de que "miss" Peyton estava encarregada. No entanto, o jovem capitão dos dragões, pelo qual Dunwoodie tinha tanto interesse era o único de entre eles cujo estado podia ainda dar cuidados no dia seguinte, embora o doutor Sitgreaves tivesse declarado que respondia pelos seus dias. Vimos que o capitão Lawton se levantara muito cedo. Henry Wharton só tivera o sono perturbado por um sonho no qual julgara ver um aprendiz de cirurgião aprestar-se para lhe amputar o braço; mas como era apenas um sonho, algumas horas de repouso tinham-lhe feito muito bem e o doutor acalmou as apreensões da família assegurando que dentro de quinze dias ele não se ressentiria já do ferimento.

Durante todo este tempo, o coronel Wellmere não tinha ainda aparecido. Tinha almoçado na cama, pretendendo estar demasiado incomodado para poder levantar-se, apesar do sorriso um tanto irónico do discípulo de Esculápio. Sitgreaves, deixando-o a ruminar o seu mau humor na solidão do quarto, foi fazer uma visita mais agradável à cabeceira do leito do capitão Singleton. Notou-lhe no rosto uma ligeira vermelhidão ao entrar no quarto; e avançando prontamente tomou-lhe a mão para ver o estado do pulso fazendo-lhe sinal para ficar calado, encarregando-se ele de preencher o vazio da conversa.

- Os olhos estão bons - disse o doutor - a pele tem mesmo uma certa transpiração, mas o pulso está elevado; é sintoma de febre; precisa de repouso e tranquilidade.

- Não, meu caro Sitgreaves - respondeu Singleton segurando-lhe na mão - não tenho febre. Veja, tenho na língua aquilo que Jack Lawton chama uma geleia branca?

- Não, é certo - disse o cirurgião introduzindo-lhe uma colher na boca para a manter aberta e olhando para a garganta como se lhe quisesse fazer uma visita domiciliária - tem a língua boa e o pulso começa a baixar. Ah! a sangria fez-lhe muito bem. A flebotomia é um específico soberano para as constituições do sul; e no entanto o louco do Lawton recusou deixar-se sangrar, depois de uma queda do cavalo que teve ontem à noite.

- Por minha fé, Jorge, o seu caso está a tornar-se singular - continuou o doutor, empurrando a peruca para o lado, sem dar por isso. - O seu pulso está ritmado e moderado, a sua pele húmida mas os olhos estão ardentes, as faces quase inflamadas. Tenho de examinar todos estes sintomas mais pormenorizadamente.

- Calma, meu caro amigo, calma - disse o jovem deixando-se cair sobre o travesseiro e perdendo um pouco das cores vivas que alarmavam o amigo. - Ao fazer a extracção da bala, o senhor fez tudo o que eu precisava; asseguro-lhe que agora o meu mal é uma grande fraqueza.

- Capitão Singleton - disse o cirurgião calorosamente - é presunção querer dizer ao seu médico que não sofre. Para que servem as luzes da ciência se não for para nos porem em estado de nos pronunciarmos sobre esse ponto? Então Jorge, o descrente Lawton não mostraria mais teimosia.

Singleton sorriu, empurrando suavemente a mão do doutor, que procurava desatar as ligaduras e perguntou-lhe, enquanto reapareciam novas cores nas suas faces:

- Peço-lhe, Archibald - nome de afecto que poucas vezes deixava de enternecer o doutor - diga-me quem é o espírito descido do céu que entrou no meu quarto alguns minutos antes do senhor, enquanto eu fingia dormir?

- No seu quarto? - exclamou o doutor. - E quem ousa querer competir comigo? Espírito ou não, ensinar-lhe-ei a não se meter nos assuntos dos outros!

- Está enganado, doutor; não há nenhuma rivalidade. Examine o aparelho que colocou sobre o meu ferimento; ninguém lhe tocou. Mas quem é esse ser encantador que alia a ligeireza de uma fada ao ar de doçura de um anjo?

Sitgreaves, antes de lhe responder, começou por verificar se ninguém se tinha encarregado de dar na sua ausência tratamento ao ferido; e serenado sobre esse ponto, ajustou a peruca, sentou-se junto da cama e perguntou-lhe com um laconismo digno do tenente Mason:

- Esse espírito usava saias, Jorge?

- Apenas vi os seus olhos celestes, as faces vermelhas, um andar majestoso e cheio de graça, uns...

- Chiu, chiu, está a falar demais para o seu estado de fraqueza - disse-lhe o doutor, pondo a mão na boca - deve ter sido Jeannette Peyton. É uma senhora perfeita cujo andar é cheio de dignidade e tem... sim, qualquer coisa de gracioso; e a sua pele, quando está animada pela caridade, pode disputar a das sobrinhas.

- Das sobrinhas! Tem então sobrinhas? O anjo que vi pode ser uma filha, uma irmã, uma sobrinha, mas é impossível ser uma tia.

- Silêncio! Jorge, silêncio! está a falar tanto que o seu pulso recomeça a bater com violência. Tem que tranquilizar-se e preparar-se para ver a sua irmã que estará aqui dentro de uma hora.

- O quê! Isabel? Quem a mandou chamar?

- O major - respondeu o coronel num tom seco.

- Esse bom, esse excelente Dunwoodie! - murmurou o jovem extenuado, voltando a cair sobre a almofada. E as repetidas ordens de Sitgreaves obrigaram-no a ficar calado.

O capitão Lawton, quando chegara para almoçar, fora acolhido com a maior delicadeza por todos os membros da família que se tinham apressado em perguntar notícias da sua saúde, mas um espírito invisível velava para que nada faltasse ao coronel inglês. A delicadeza de Sara não lhe permitira pôr os pés no seu quarto, mas conhecia a posição exacta de tudo o que mandava levar para lá e tudo o que entrava tinha sido preparado pelas suas mãos.

Na época de que falamos, formávamos uma nação dividida e Sara julgava não fazer senão o seu dever ficando religiosamente ligada ao país que fora o berço dos seus antepassados: mas outras razões e bem mais fortes ainda, motivavam a preferência silenciosa que Sara manifestava pelo coronel inglês. Ele fora o primeiro a encher o vazio da sua jovem imaginação e a sua imagem estava ornada daqueles atractivos que impressionam o coração de uma mulher. É certo não ter ele a grande estatura e o ar gracioso de Dunwoodie, o seu andar imponente, o olhar eloquente e a sua voz viril, embora cheia de sensibilidade; mas tinha uma bonita pele, as faces coradas, dentes soberbos e tão bem alinhados como os que o sorriso do major virginiano deixava aperceber. Sara, antes do almoço, percorrera diversas vezes a casa, lançando muitas vezes um olhar inquieto para a porta do quarto do coronel Wellmere, morrendo de vontade de saber notícias da sua saúde, mas sem ousar perguntar com medo de trair o interesse que tinha por ele. Finalmente a irmã com toda a franqueza da inocência dirigiu ao doutor Sitgreaves a pergunta desejada.

- O coronel Wellmere - respondeu o cirurgião - está naquilo a que se chama um estado de livre arbítrio, doente ou bem de saúde, segundo a sua vontade. A sua doença não se encontra no número daquelas que as luzes da ciência podem curar. Creio que Sir Henry Clinton é o melhor médico que ele pode consultar. Mas o major Dunwoodie pôs um obstáculo a que possa haver comunicação entre eles.

Frances sorriu maliciosamente voltando a cabeça; e Sara, tomando um ar altivo de Juno ofendida, saiu imediatamente da sala. A solidão do quarto não lhe oferecia no entanto uma protecção contra os seus próprios pensamentos; e em breve o deixou passando por um longo corredor que comunicava com todos os quartos da casa e viu que a porta do de Singleton estava aberta.

O jovem capitão estava só e parecia dormir; Sara entrou levemente e passou alguns minutos a arranjar as mesas e a ordenar os diversos objectos que tinham sido preparados para o doente, mal sabendo o que fazia e sonhando talvez que se estava a ocupar de outra pessoa. As suas cores naturais tinham sido realçadas pela indignação que lhe inspirara o que o doutor tinha dito e a mesma causa não esmorecera o brilho dos seus olhos. O ruído dos passos de Sitgreaves obrigara-a a fazer uma retirada acelerada por outra porta e descendo por uma escada secundária, foi ter com a irmã. Então foram ambas tomar ar fresco para o terraço e aí passearam de braço dado.

- Há neste cirurgião que Dunwoodie nos fez o favor de deixar-disse Sara - qualquer coisa de tão desagradável que permitiu que eu gostasse do fundo do coração vê-lo partir.

Frances olhou para a irmã com um sorriso malicioso e Sara, corando, acrescentou num tom meio seco.

- Mas estou a esquecer-me que ele faz parte da famosa cavalaria da Virgínia e que, por isso, só se pode falar dele com respeito.

- Com tanto respeito quanto te apetecer, minha irmã - respondeu Frances sorrindo; - não se pode temer que lhe concedas demasiados elogios.

- É o que tu pensas - retorquiu Sara acaloradamente; - mas creio que o Sr. Dunwoodie tomou uma liberdade que excede os direitos que o parentesco lhe pode conceder, fazendo da casa de meu pai hospital para os feridos.

- Devemos agradecer ao céu - disse Frances, baixando a voz - que entre eles não se encontre nenhum que nos possa inspirar mais interesse.

- O teu irmão é um - disse Sara num tom de reprovação.

- É verdade - respondeu Frances corando e baixando os olhos; - mas não tem de ficar no quarto e não lamenta um ferimento que pode dar-lhe o prazer de ficar com a família. Se se pudessem banir as terríveis suspeitas que a sua visita ocasionou, mal pensaria no ferimento.

-Tais são os frutos da rebelião - disse Sara, caminhando mais depressa - e tu começas a saboreá-los: um irmão ferido, prisioneiro, talvez vítima; um pai desolado obrigado a receber estranhos em sua casa e cujos bens serão provavelmente confiscados por causa da sua fidelidade ao rei.

Frances continuou o passeio em silêncio. Ao chegar ao fim do terraço, os olhos não deixavam nunca de se fixar no ponto onde a estrada ficava escondida da vista por uma montanha, e a cada volta que fazia com a irmã, parava nesse lugar até que um movimento de impaciência de Sara a obrigasse a retomar o caminho. Por fim, viu-se uma carruagem atrelada a um só cavalo avançar cautelosamente através das pedras dispersas ao longo da estrada que conduzia a Sauterelles pelo vale.

Frances perdia o brilho das suas belas cores à medida que aquela se aproximava e, quando pôde distinguir uma mulher sentada ao lado de um negro de libré, que segurava as rédeas, os seus membros tremeram numa agitação que a obrigou a apoiar-se no braço da irmã para conseguir suster-se. Ao cabo de alguns minutos, os viajantes chegaram à porta que foi aberta por um dragão: este tinha sido o mensageiro enviado por Dunwoodie ao coronel Singleton que escoltara a carruagem. "Miss" Peyton avançou para receber a estranha e as duas sobrinhas uniram-se a ela para lhe fazerem o melhor acolhimento. Os olhos curiosos de Frances estudavam a fisionomia da irmã do capitão ferido, não podendo desprender-se. Esta era jovem, com uma figura esbelta e ar delicado, mas o mais poderoso dos seus encantos residia nos olhos; eram grandes, negros, penetrantes e algumas vezes um tanto sonhadores. Os cabelos longos e espessos não estavam empoados, embora ainda fosse moda, e eram tão negros e mais brilhantes que a asa de um corvo. Alguns caracóis que lhe caíam sobre as faces realçavam ainda mais a brancura desta e o contraste dava-lhe ao rosto o ar glacial do mármore. O doutor Sitgreaves ajudou-a a descer do carro e, assim que chegou ao terraço, ela fixou os olhos expressivos nos do cirurgião, sem lhe dizer uma só palavra, mas este olhar exprimia suficientemente o que queria dizer e o doutor respondeu imediatamente:

- O seu irmão está fora de perigo, "miss" Singleton - disse ele - e deseja vê-la.

Ela juntou as mãos fervorosamente, ergueu os olhos negros para o céu, uma ligeira coloração parecida com o último matiz do sol poente desenhou-se-lhe no rosto e cedeu finalmente à sensibilidade, deixando sair uma torrente de lágrimas.

Frances contemplara Isabel e seguira-lhe os movimentos com uma espécie de admiração inquieta; mas neste momento correu para ela com todo o calor de uma irmã e dando-lhe o braço arrastou-a para uma sala separada.

Agindo assim, mostrava tanto zelo, delicadeza e ingenuidade que a própria Jeannette julgou propositado abandonar Isabel aos cuidados da sobrinha mais nova e limitou-se a seguir com os olhos e com um sorriso de benevolência as jovens que se retiravam. Isabel cedeu à doce violência de Frances e ao chegar ao quarto onde esta a conduzia, chorou em silêncio com a cabeça apoiada no ombro da companheira que a observava com atenção, procurando consolá-la. Frances pensou finalmente que as lágrimas de Isabel Singleton corriam com mais abundância do que a ocasião exigia porque só depois de violentos esforços sobre si própria e quando Frances quase extinguira todos os meios de consolo, é que os seus soluços pararam enfim. Levantando então para a companheira uns olhos cujo brilho era realçado pelo sorriso, deu apressadamente algumas desculpas sobre o excesso da sua emoção e pediu-lhe para a conduzir ao quarto do irmão.

A entrevista do irmão e da irmã foi comovente mas Isabel conseguiu parecer mais calma do que se poderia julgar depois da precedente agitação. Encontrou o irmão muito melhor do que a sua susceptível imaginação a levara a crer. Retomando progressivamente forças, passou da prostração a uma espécie de alegria, os belos olhos fulgiram com novo brilho e os lábios realçados por um sorriso tão sedutor que Frances, que a seu pedido insistente a acompanhara até ao quarto do irmão, ficou de olhos fixos no rosto dotado de uma versatilidade tão maravilhosa como se estivesse sob influência de um encanto irresistível.

A irmã lançara-se nos braços do irmão ferido; mal se levantara, este dirigira o olhar para o lado de Frances e foi talvez o primeiro olhar lançado no rosto desta jovem encantadora que se voltou não completamente satisfeita. Depois de um momento de silêncio durante o qual os seus olhos continuaram fixos na porta aberta, Singleton pegou na mão da irmã e disse-lhe afectuosamente:

- Onde está Dunwoodie, Isabel? Ele nunca se cansa de dar provas de amizade. Depois de um dia de trabalhos como o de ontem, passou a noite conduzindo uma enfermeira cuja presença bastará para me pôr em estado de deixar este leito de dor.

A expressão da fisionomia da irmã mudou de repente e os seus olhos investigaram a sala com um ar perdido que pareceu a Frances, observadora atenta de todos estes movimentos, dar-lhe ao rosto um carácter tão repugnante como antes lhe parecera cheio de encanto. Isabel respondeu numa voz trémula:

- Dunwoodie! Ele não está cá? Eu não o vi. Julgava encontrá-lo junto do leito do meu irmão.

- Ele tem deveres que o retêm noutro sítio - disse o capitão com um ar pensativo. - Sim, dizem que os Ingleses avançam do lado do Hudson, e deixam pouco sossego à cavalaria ligeira. Esta é a única razão que o pode impedir de vir ver um amigo ferido. Mas, Isabel, esta conversa está acima das tuas forças, estás agitada como a folha do choupo.

A irmã não respondeu nada mas avançou a mão para a mesa sobre a qual estava colocado tudo o que o capitão tinha necessidade. Frances sempre atenta compreendeu imediatamente o que ela desejava e estendeu-lhe um copo de água que acalmou a agitação de Isabel e permitiu-lhe dizer, sorrindo levemente.

- Sem dúvida que foi retido pelo dever. Antes de partir, ouvi dizer que um destacamento de tropas reais voltava a subir o rio e passei só a duas milhas deste.

A última frase foi pronunciada numa voz tão fraca que mal se podia ouvir e que ela parecia não dirigir a ninguém.

- As tropas estavam em marcha, Isabel? - perguntou-lhe o irmão vivamente.

- Não - respondeu ela com o mesmo ar distraído. - Os cavaleiros tinham desmontado e pareciam repousar.

O irmão, espantado, voltou os olhos para o rosto da irmã cujos olhos negros se tinham fixado no tapete com um ar abstracto, mas não encontrou neles qualquer explicação. Dirigiu-os em seguida para Frances, que, estremecendo ao ver a expressão animada do seu rosto, se levantou apressadamente e lhe perguntou se precisava de alguma coisa.

-Se me perdoa a indelicadeza - respondeu Singleton, fazendo um esforço para se erguer - gostaria de ver por instantes o capitão Lawton.

Frances apressou-se em ir comunicar ao capitão o desejo do seu camarada e cedendo a um interesse ao qual não podia resistir, voltou a sentar-se ao lado de Isabel Singleton.

- Lawton - exclamou o jovem, com vivacidade, mal viu entrar o amigo - tem notícias do major?

- Já mandou duas ordenanças para saber como estamos todos no lazareto.

- E porque não veio ele próprio?

- Ah! isso é uma pergunta a que só o major pode responder - respondeu Lawton num tom seco. - Mas sabe que os casacas vermelhas estão em campanha e tendo Dunwoodie o comando deste condado, tem de vigiar os Ingleses.

- Sem dúvida - respondeu lentamente Singleton, como se ficasse convencido com os motivos alegados pelo camarada para justificar a ausência do major. - Mas porque está aqui de braços cruzados, se há trabalho?

- O meu braço direito não está nas suas melhores condições - disse Lawton esfregando o ombro - e Roanoke está ainda coxo, por causa da queda. Aliás tenho outra razão que poderia dar-lhe se não temesse que "miss" Wharton me não perdoasse jamais.

- Fale, por favor, sem temer o meu desfavor - disse Frances, tirando por instantes os olhos do rosto de Isabel e retribuindo o sorriso de bom humor do capitão com a alegria maliciosa que lhe era natural.

- Pois bem! - exclamou Lawton, cujo rosto resplandecia enquanto assim falava - o odor que sobe da vossa cozinha "miss" Wharton proíbe-me de partir antes de estar em estado de falar com mais certeza dos recursos do cantão.

- Oh! a minha tia Peyton faz os seus esforços para honrar a hospitalidade do meu pai - disse Frances sorrindo - e eu tenho que ir partilhar dos seus trabalhos se quiser ficar nas suas boas graças.

Pedindo então a Isabel que a desculpasse, foi ter com a tia, reflectindo no carácter e extrema sensibilidade da nova conhecida que as circunstâncias tinham trazido a casa de seu pai.

O oficial ferido seguiu-a com os olhos enquanto ela se retirava com uma graça que tinha ainda qualquer coisa de infantil; e quando saiu, disse, dirigindo-se ao camarada:

- Não se encontra muitas vezes tia e sobrinha assim, Jack; esta parece uma fada mas a tia é um anjo.

- Ah! Jorge, vejo que está melhor; volta a sentir entusiasmo.

- Seria tão ingrato quanto insensível se não rendesse justiça à amabilidade de "miss" Peyton.

- É uma senhora bem parecida - disse o capitão secamente. - Quanto à amabilidade, Jorge, sabe que é uma questão de gosto. Para mim, com todo o respeito possível pelo belo sexo - acrescentou, fazendo uma vénia a Isabel - confesso que alguns anos menos me conviriam mais.

- Ela não tem certamente vinte anos! - exclamou vivamente Singleton.

- Sem dúvida. Digamos dezanove - disse Lawton com uma extrema gravidade. - No entanto parece mais qualquer coisa.

- Tomaste a irmã" mais velha pela tia - disse Isabel fechando-lhe a boca com a sua bonita mão. - Mas tens de estar calado. Uma conversa tão animada pode prejudicar a tua convalescença.

A chegada do doutor Sitgreaves, que notou com alarme um aumento dos sintomas febris no doente, fez executar esta ordem prudente e Lawton foi fazer uma visita de condolências a Roanoke, que tinha ficado tão maltratado como o dono com a queda da véspera.

Para sua grande alegria, reconheceu que o corcel estava, como ele próprio, em convalescença. À força de esfregar os membros do animal durante várias horas sem parar, tinham-lhe devolvido aquilo que o capitão chamava o movimento sistemático das pernas. Deu portanto ordens para que o selassem e arreassem na altura própria para poder ir ter com o regimento nos Quatro-Cantos depois do jantar, cuja hora se aproximava.

Entretanto, Henry Wharton entrara no apartamento de Wellmere e como os unia uma grande simpatia na opinião que tinham formado do acontecimento que fora para ambos infeliz, o coronel em breve recuperou e por isso se achou em estado de se levantar e enfrentar o inimigo de que falara tão ligeiramente e, como ficara provado, com tão pouca razão. Wharton sabia que este infortúnio, como ambos chamavam à sua derrota, fora causado pela temeridade do coronel mas absteve-se de falar noutra coisa além do infeliz acidente que privara os Ingleses do seu chefe e o revés que se seguiu como consequência.

- Numa palavra, Wharton - disse o coronel, preparando-se para se levantar e pondo uma perna fora da cama -este dia é o resultado de uma combinação de acontecimentos infelizes. O seu cavalo, ao tornar-se desobediente, impediu-o de levar ao major as minhas ordens para atacar os rebeldes pelo flanco.

- É verdade - respondeu Henry, empurrando com o pé uma pantufa para junto da cama; - e se nós tivéssemos conseguido dar algumas boas descargas de mosquete no flanco da sua linha, teríamos enfrentado esses bravos virginianos.

- E a toque de caixa - acrescentou Wellmere pondo a segunda perna ao lado da primeira; - mas sabe que era necessário desemboscar os guias e esse movimento deu-lhes uma bela oportunidade para uma carga.

- E aquele Dunwoodie não perde nunca uma ocasião de aproveitar uma vantagem que se apresente - disse o capitão enviando a segunda pantufa para junto da primeira.

- Creio que se tivesse de recomeçar - continuou o coronel, pondo-se de pé - as coisas passar-se-iam muito diferentemente. Aliás, eles não têm que se gabar por me terem feito prisioneiro porque você viu como eles foram repelidos na sua tentativa de nos desalojarem do bosque.

- Pelo menos tê-lo-iam sido se tivessem ousado atacar-nos aí- respondeu Wharton pondo os fatos do coronel ao seu alcance.

- É a mesma coisa - disse Wellmere, continuando a sua "toilette"; - tomar uma atitude capaz de intimidar o inimigo é no que consiste principalmente a arte de guerra.

- Sem dúvida - respondeu Wharton tomando também ele um pouco dos sentimentos de orgulho de um soldado - e o senhor deve lembrar-se que uma das nossas descargas pusera-os em debandada.

- É verdade, é perfeitamente verdade - exclamou o coronel num tom animado. Se eu tivesse estado lá para aproveitar essa vantagem, os Yankees teriam ficado em maus lençóis.

Enquanto falava assim, ia acabando a "toilette" e sentia-se pronto a mostrar-se, tendo retomado toda a confiança nele próprio e muito persuadido de que, se se encontrava prisioneiro, era em consequência de um capricho da sorte, que estava acima de toda a prudência humana.

A notícia de que o coronel seria um dos convivas não diminuiu em nada os preparativos que se faziam para o festim; e Sara, depois de ter recebido os cumprimentos do oficial inglês e de lhe ter perguntado, corando, se sofria menos dos seus ferimentos, foi contribuir para aquilo que devia emprestar um novo interesse à cena.

 

O odor dos preparativos do jantar, que o capitão Lawton tinha já notado, elevava-se cada vez mais do reino subterrâneo de César.

O capitão dos dragões concluía que os seus nervos olfactivos, cujo julgamento era nestas ocasiões tão infalível como o dos olhos era noutras, tinham fielmente cumprido o seu dever. Para reconhecer ainda melhor esse perfume à passagem, pôs-se a uma janela da casa felizmente colocada sobre a cozinha. No entanto, Lawton não pensava gozar esse prazer senão depois de se pôr em estado de fazer as honras ao festim com uma "toilette" tão completa quanto o seu pobre guarda-roupa o permitia. O uniforme da sua unidade era um passaporte para as primeiras mesas; o seu ressentia-se um tanto dos longos e fiéis serviços; mas escovou-o e limpou-o com grande cuidado. A sua cabeleira à qual a natureza dera o negro do corvo, tomou, graças ao pé, a brancura sem mácula da pomba. A mão, que tão bem convinha em força e tamanho ao sabre que manejava com tão pouca discrição, não se mostrava senão parcialmente e com a modéstia de uma virgem sob um punho de rendas.

Limitou-se a isso o arranjo da "toilette" do dragão, se não falarmos nas botas que luziam com um esplendor digno de um dia de festa e das esporas que brilhavam ao sol com um fulgor que provavam serem dignas de terem saído das minas do Potose.

César percorreu todos os apartamentos com um ar ainda mais importante do que aquele que tomara de manhã para a sua lúgubre missão.

Depois de ter encomendado o caixão para o pai do bufarinheiro, obedecendo às ordens da patroa, voltara para cumprir os seus deveres em casa. O trabalho tornava-se neste momento tão sério que só a correr pôde dar ao seu irmão negro que acompanhara Isabel Singleton a Sauterelles alguns pormenores sobre os maravilhosos incidentes da noite terrível que tinha passado. No entanto, aproveitando os momentos que lhe pertenciam, disse o suficiente ao seu concidadão para o fazer ficar com a carapinha em pé na cabeça. Por fim, como os dois negros faziam ceder qualquer outra consideração ao gosto pelo maravilhoso, Jeannette viu-se obrigada a interpor a sua autoridade para que o resto da história fosse adiada para uma altura mais conveniente.

- Ah! "miss" Peyton - disse César, abanando a cabeça com ar de sentir profundamente o que exprimia -ter sido um terrível espectáculo ver John Birch andar de pé, enquanto ele estar estendido morto na cama!

Assim terminou por agora esta conversa; mas César prometeu voltar depois a este solene assunto e esta resolução não foi esquecida.

Tendo sido assim esconjurado o espírito, as operações preparatórias do jantar prosseguiram com uma nova actividade, e, no instante em que o sol acabava a sua trajectória de duas horas partindo do meridiano, um numeroso cortejo partiu da cozinha para se dirigir para a sala de jantar sob os auspícios de César, que formava a guarda avançada segurando com as duas mãos um peru com uma destreza que teria honrado um equilibrista.

Depois dele vinha num andar pesado, com as pernas afastadas como se estivesse a cavalo, um dragão que servia de impedido ao capitão Lawton trazendo um verdadeiro presunto da Virgínia, presente enviado a Jeannette Peyton por seu irmão, rico proprietário de Accomac.

Na terceira fila caminhava o criado de quarto do coronel Wellmere, segurando com uma mão um frícassé de frango e com a outra um "patê" quente de ostras.

Vinha em seguida um aprendiz do doutor Sitgreaves, que agarrara instintivamente numa enorme terrina de sopa a ferver, como contendo uma matéria mais análoga à sua profissão. O vapor que dela se elevava tinha de tal modo embaciado as lentes dos óculos que usava como emblema do seu ofício que ao chegar ao palco da acção foi obrigado a depor no chão o fardo e a meter os óculos no bolso para poder dar com o caminho através das pilhas de pratos de porcelana colocados defronte da chaminé para aquecerem.

Outro dragão, ao serviço do capitão Singleton, proporcionando sem dúvida os seus esforços com o estado de fraqueza do amo, encarregara-se somente de dois patos assados cujo odor sedutor lhe fazia lamentar ter engolido tão tarde, independentemente do almoço que lhe fora servido, o que tinha sido preparado para a irmã do patrão.

A marcha fechava com o jovem criado branco de Jeannette Peyton gemendo sob o peso de vários pratos de legumes que a cozinheira acumulara uns sobre os outros sem calcular as suas forças.

Mas estes pratos não compunham tudo o que iria aparecer na mesa. Mal César colocara a infeliz ave, que oito dias antes voava nas montanhas sem imaginar que estava destinada a figurar tão cedo em tal companhia, e já maquinalmente dava uma volta para se pôr de novo em marcha para a cozinha, evolução que todos os companheiros sucessivamente imitaram. O mesmo cortejo voltou em breve, na mesma ordem, para a sala de jantar e bandos de pombos, codornizes, galinholas, bancos de peixes de todas as espécies tomaram o seu lugar à mesa.

Uma terceira visita à cozinha foi seguida da chegada de razoável quantidade de batatas, cebolas, beterrabas e todos os acompanhamentos subalternos de um bom jantar, o que completou o primeiro serviço.

A mesa encontrava-se então servida com uma profusão verdadeiramente americana e César, lançando um olhar de satisfação à ordem do serviço, depois de ter colocado à sua vontade alguns pratos que não tinha ele mesmo posto na mesa, partiu para ir informar a mestra de cerimónias que a sua tarefa estava admiravelmente terminada.

Aproximadamente meia hora antes da procissão marcial que descrevemos, todas as senhoras tinham desaparecido de uma maneira inexplicável como a partida das andorinhas à aproximação do Inverno. Mas a Primavera do seu regresso não se fez esperar muito e toda a sociedade não tardou em reunir-se na sala à qual se dava o nome de salão porque não tinha uma mesa de jantar e possuía um sofá coberto de chita da índia.

.A boa Jeannette julgara que a ocasião exigia não somente preparativos extraordinários no departamento da cozinha como também alguns cuidados de indumentária dignos dos hóspedes que tinha a felicidade de receber.

Na cabeça tinha uma touca do mais belo linho, ornamentada com uma larga renda de maneira a deixar aperceber a grinalda de flores artificiais que a guarnecia. Os cabelos estavam de tal modo cobertos de pó que era impossível distinguir-lhes a cor, mas a extremidade ligeiramente frisada adoçava a rigidez deste género de enfeite e dava-lhe ao rosto um ar de doçura feminina.

O seu trajo era um vestido de seda violeta de longo corpo, guarnecido com cinto semelhante; este vestido apertava-lhe a cintura e desenhava todas as elegantes proporções. Uma saia ampla provava que a moda não procurava economizar no tecido. Pequenos apanhados realçavam esta indumentária e davam um ar majestoso a quem a usava.

A sua alta estatura era ainda relevada por sapatos do mesmo tecido que o vestido e cujos saltos lhe emprestavam mais de uma polegada.

As mangas curtas e estreitas terminavam no cotovelo em punhos de três ordens de renda de Dresde, de inegável categoria, e decoravam um braço e uma mão que conservavam ainda o torneado e a brancura. Uma tripla volta de grandes pérolas envolvia-lhe o pescoço e um lenço de renda cobria aquela parte da sua pessoa que o corte do vestido deixara exposto à vista, mas que uma experiência de mais de quarenta anos lhe ensinara que devia ocultar.

Assim preparada e endireitando-se com aquele ar de nobreza graciosa que fazia parte das maneiras em voga, a tia teria facilmente eclipsado todo um enxame de belezas modernas.

O fato de Sara tinha muitas analogias com o da tia, e um vestido que não diferia daquele que descrevemos senão no tecido e na cor fazia igualmente valer a sua imponente figura; era de cetim rosa pálido. No entanto, como vinte anos não pediam o mesmo véu que a prudência exigia aos quarenta, era apenas uma invejável golinha de renda que escondia a parte que o cetim deixava exposto à vista.

A parte superior do busto e a bela inclinação dos ombros brilhavam com toda a sua beleza natural e, como a tia, tinha o pescoço enfeitado com uma tripla volta de pérolas e trazia brincos a condizer. Os cabelos estavam puxados para cima sobre uma testa tão branca como a neve. Algumas tranças caíam graciosamente sobre o pescoço e a cabeça estava ornamentada com uma grinalda de flores artificiais em forma de coroa.

Isabel Singleton deixara a cabeceira do irmão, a conselho do doutor Sitgreaves que conseguira dar ao doente um profundo sono, depois de ter acalmado alguns sintomas febris ocasionados pela entrevista que relatámos. A dona da casa convidara-a a juntar-se ao grupo reunido no salão onde ela se sentara ao lado de Sara vestindo mais ou menos o mesmo fato, excepto os cabelos que não estavam empoados. A testa muito alta e os grandes olhos brilhantes davam a todas as feições um ar pensativo que aumentava ainda mais a palidez das suas faces.

A última, pela idade, nesta lista de beldades, mas não a menos interessante, era a mais jovem das duas filhas do Sr. Wharton. Frances, como já dissemos, deixara Nova York antes de ter atingido a idade em que a moda faz entrar as jovens no mundo. Alguns espíritos ousados tinham já começado a sacudir os entraves com que os usos antigos tanto tempo haviam embaraçado o belo sexo e Frances não queria que o sapato aumentasse em nada a sua altura.

Esta inovação era pouca coisa, mas essa pouca coisa deixava ver uma obra-prima. Várias vezes no decurso dessa manhã, ela resolvera dar à sua indumentária um cuidado maior do que o habitual. De cada vez que formava esta resolução, passava alguns minutos a olhar ardentemente para norte e depois acabava por mudá-la.

À hora conveniente, apareceu na sala com um vestido de seda azul celeste, assemelhando-se muito no corte ao que a irmã envergava. Os cabelos não tinham outro enfeite além dos caracóis formados pela natureza que se encontravam presos ao alto com um pente de madre-pérola cuja cor mal se distinguia da sua cabeleira loira. O vestido não tinha pregas nem adereços mas desenhava-lhe a cintura com uma exactidão que deixava transparecer toda a beleza que se escondia nele. Uma gola de bela renda de Dresde ornamentava os contornos do busto. A cabeça não tinha qualquer enfeite, mas ostentava um colar de ouro do qual estava suspenso uma soberba cornalina.

A mineralogia era uma das ciências que o doutor Sitgreaves tinha mais particularmente estudado e por isso ousou fazer uma observação sobre a beleza desta pedra. O ingénuo cirurgião procurou muito tempo em vão a razão por que uma observação tão simples podia ter feito refluir todo o sangue de Frances às suas faces, e a sua surpresa poderia ter durado até à hora da morte se Lawton não tivesse tido a bondade de lhe dizer em voz baixa que era indignação de que ele não reservasse a sua admiração para o objecto mais belo sobre o qual a jóia repousava. As luvas de pele de cabrito que lhe cobriam as mãos e uma parte do braço, do qual no entanto deixavam ver o suficiente para se poder apreciar as suas belas proporções, indicavam que não se encontrava presente ninguém que talvez pudesse tentá-la sem saber prodigalizar-lhe todos os seus encantos.

Uma vez, e uma vez somente, enquanto passavam do salão para a sala de jantar para tomar lugar em volta da mesa que César acabara de servir com tanto cuidado e critério, Lawton viu surgir debaixo do vestido de Frances um pèzinho encantador coberto com um sapato de seda azul preso com uma fivela de diamantes. O capitão dos dragões ficou surpreendido ao dar consigo a suspirar. Aquele pé não significaria nada sobre um estribo, pensou ele, mas que graça teria, como seria encantador num minuete!

Quando César apareceu à porta do salão, fazendo uma humilde reverência que há muitos séculos se interpreta pelas palavras "o jantar está servido" o Sr. Wharton de casaca de flanela guarnecida com grandes botões, avançou cerimoniosamente na direcção de Isabel e inclinando quase até ao nível da mão desta uma cabeça perfeitamente empoada, ofereceu-lhe a sua para a conduzir.

O doutor Sitgreaves cumpriu o mesmo cerimonial em relação a Jeannette, a qual no entanto antes de lhe dar a mão o fez esperar um instante para pôr as luvas com uma graça majestosa.

O coronel Wellmere foi premiado com um sorriso de Sara cumprindo junto dela o mesmo dever e tendo o capitão Lawton avançado para Frances, esta estendeu-lhe os seus lindos dedos de maneira a provar-lhe que o indivíduo a quem concedia este favor o devia menos à sua própria pessoa do que ao regimento de que fazia parte.

Passou-se algum tempo surgindo certo embaraço antes que todos os convivas, para grande alegria de César, se colocassem em volta da mesa com todas as regras da etiqueta e das precedências. O negro sabia que o jantar estava a arrefecer e temia que a sua honra ficasse comprometida.

Durante os dez primeiros minutos pareciam todos satisfeitos, à excepção do capitão Lawton. Estava confundido com as perguntas e oferecimentos sem fim que o Sr. Wharton lhe fazia, com uma delicadeza que tinha certamente o propósito de aumentar o bem-estar do hóspede, mas que produzia o efeito contrário. O capitão dos dragões não podia falar e comer ao mesmo tempo e a necessidade de responder interrompia muitas vezes a ocupação à qual gostaria de se entregar exclusivamente.

Seguidamente veio a cerimónia de beber com as damas(1) . Mas como o vinho era excelente e os copos de um tamanho tolerável, o capitão suportou esta nova interrupção com uma paciência exemplar. Temia mesmo de tal modo ofender ou faltar neste capítulo à mais pequena formalidade de etiqueta que tendo começado a beber com a dama junto da qual se tinha sentado, se dirigiu seguidamente a todas as outras cada uma de sua vez, para que nenhuma pudesse justificadamente acusá-lo de parcialidade.

Havia tanto tempo que não bebia nada que se assemelhasse a bom vinho que esta circunstância podia ser uma desculpa, sobretudo quando se está sujeito a uma tão forte tentação como a que o assaltava neste instante. O capitão Wharton fora membro de uma sociedade de políticos em Nova York, cujas principais actividades antes da guerra tinham sido reunirem-se para comunicarem as suas sábias reflexões acerca dos sinais do tempo, sob a inspiração de um certo licor feito com uvas que crescem na extremidade meridional da ilha da Madeira, e que, passando pelas ilhas das índias ocidentais e permanecendo algum tempo no arquipélago do Oeste para experimentar as virtudes do clima, acaba por chegar às colónias do Norte da América. Das suas caves de Nova York trouxera uma ampla provisão deste licor que brilhava numa garrafa colocada em frente do capitão e que tomava um novo brilho sob a acção dos raios de sol que a atravessavam em linha oblíqua.

A partida do primeiro serviço não se distinguiu pela ordem e pela regularidade da sua chegada. O ponto essencial era levantar a mesa e isto foi feito mais ou menos como na história das harpias.

 

*1. Costume inglês conservado na América. Não se oferece vinho no começo do jantar; mas cada conviva pode convidar outro, e mais habitualmente uma senhora, para beber com ele. A tradição não permite recusar este convite; mas se, quando se recebe, não se tem vontade de beber, pode-se limitar a molhar os lábios no copo, dirigindo uma inclinação de cabeça àquele que o fez, como que para beber à sua saúde.

 

Por fim à força de puxar um prato e empurrar outro, entornar molheiras e partir pratos e copos, os restos do primeiro serviço desapareceram e viu-se então começar uma série de marchas e contra-marchas que terminaram por cobrir a mesa de tartes, pudins e tudo o que normalmente compõe o segundo serviço.

O capitão Wharton serviu um copo de vinho à senhora que se sentava junto de si, passou a garrafa ao vizinho e disse fazendo uma vénia profunda à irmã do capitão ferido:

- "Miss" Singleton dá-nos a honra de propor um brinde?

Embora esta proposta não fosse diferente do que se faz todos os dias em semelhantes ocasiões, Isabel tremeu, corou, empalideceu, pareceu esforçar-se por dominar os seus pensamentos e atraiu sobre ela os olhos de toda a gente. Por fim, fazendo um esforço, como se tivesse em vão tentado encontrar outro nome, disse numa voz fraca:

- O major Dunwoodie.

Todos os convivas saudaram este brinde com entusiasmo, à excepção do coronel Wellmere que apenas molhou os lábios no copo entretendo-se a traçar linhas na mesa com algumas gotas de vinho que entornara enquanto Frances reflectia profundamente sobre a maneira como Isabel propusera o brinde que em si não teria dado lugar a qualquer suspeita.

Por fim o coronel Wellmere rompeu o silêncio dizendo muito alto ao capitão Lawton:

- Suponho que Dunwoodie obterá uma promoção no exército dos rebeldes em seguimento da vitória que o meu infortúnio lhe fez obter sobre o regimento que está sob as minhas ordens?

O dragão tinha satisfeito as necessidades da natureza a seu perfeito contento e à excepção de Washington e do seu major, não havia talvez ninguém no mundo cuja antipatia lhe não fosse perfeitamente indiferente. Sentia-se prestes a responder com a língua ou com o sabre a qualquer pessoa. Por isso encheu o copo com o licor favorito e respondeu com um sangue-frio admirável:

- Perdão, coronel Wellmere. O major Dunwoodie deve fidelidade aos Estados confederados da América setentrional; nunca faltou a eles e portanto não é um rebelde. Espero que seja promovido, em primeiro lugar porque o merece, e depois porque eu sou o primeiro a seguir-se-lhe. Quanto ao infortúnio de que fala, não sei o que quer dizer, a menos que considere uma infelicidade ter de combater contra a cavalaria da Virgínia.

- Não tenho vontade de discutir sobre palavras - disse o coronel com um ar desdenhoso. - Falei como me inspirou o meu dever para com o meu soberano. Mas não considera infortúnio um regimento perder o seu comandante?

- Algumas vezes pode acontecer sê-lo - respondeu Lawton com grande ênfase.

- "Miss" Peyton, faça um brinde! - exclamou o capitão Wharton inquieto com o caminho que a conversa começava a tomar e temendo que lhe pedissem a sua opinião.

A cunhada inclinou a cabeça com um ar digno e Henry não pôde impedir-se de sorrir ao ouvir a tia pronunciar o nome do general Montrose, enquanto as cores há muito ausentes das suas faces se mostravam furtivamente.

- Não há termo mais equívoco do que o de infelicidade - disse o doutor sem prestar atenção à hábil manobra a que o dono da casa recorrera para mudar de conversa. - Uns chamam infelicidade a uma coisa e outros dão a mesma palavra ao que é diametralmente oposto. Um infortúnio pode engendrar outro. A vida é um infortúnio visto expor-nos a ter de a suportar; e a morte também o é uma vez que põe termo aos prazeres da vida.

- Uma verdadeira infelicidade - disse Lawton enchendo de novo o copo - é que a cantina do regimento não esteja cheia com um vinho como este.

- Encanta-me que o ache bom - disse o capitão Wharton sem saber ainda onde terminariam todos estes infortúnios. - E beberei um copo consigo se quiser fazer um brinde.

- Aqui está um - replicou o capitão enchendo o copo até cima com os olhos fixos no coronel Wellmere: - um campo de batalha, igualdade numérica, e vitória da coragem.

- Do fundo do coração, capitão, - disse o doutor pegando também no copo - desde que me deixem qualquer coisa para fazer e que a sua companhia não se aproxime do inimigo mais do que o alcance de uma pistola.

- Senhor Archibald Sitgreaves - exclamou Lawton com vivacidade - sabe que é esse o mais diabólico desejo que pode fazer?

Jeannette achou então ser tempo das senhoras se retirarem da mesa; fez-lhes sinal e todas se levantaram imediatamente. Lawton reconhecendo que um movimento involuntário de paixão o tinha levado para lá dos limites prescritos na sociedade, pediu imediatamente humildes desculpas a Frances que se encontrava junto de si e que as recebeu bondosamente por respeito pelo uniforme que ele envergava, embora soubesse ser este facto assunto de triunfo para Sara durante mais de um mês. Mas era demasiado tarde e as senhoras retiraram-se com muita dignidade no meio de cumprimentos respeitosos de todos os convivas, à excepção do capitão dos dragões desconcertado cujas ideias se encontravam todas em estado de estagnação. O capitão Wharton, dando uma profusão de desculpas aos hóspedes, levantou-se também da mesa no mesmo instante, e saiu da sala com o filho.

Assim que as senhoras saíram, o doutor pegou num charuto e colocou-o ao canto da boca de maneira a não entravar em nada os órgãos da fala.

- Se alguma coisa pode adoçar o cativeiro e os sofrimentos, é a felicidade de ter de suportar essas desgraças na companhia das senhoras que acabam de nos deixar - disse o coronel num tom de galanteria, ou porque fosse sensível à hospitalidade que recebia ou porque experimentava um sentimento ainda mais doce.

Sitgreaves olhou para a gravata de seda negra que envolvia o pescoço do coronel inglês e sacudindo com o dedo mínimo as cinzas do charuto, como verdadeiro adepto:

- Sem dúvida, coronel, - disse -, uma terna piedade, uma bondade benevolente têm uma influência natural sobre o sistema da humanidade. Existe uma conexão íntima entre o moral e o físico. Mas para curar, para dar à natureza esse tom de saúde que a doença ou um acidente lhe faz perder, são precisas mais coisas além da piedade e da bondade. As luzes da...

O doutor neste momento encontrou o olhar trocista do capitão que começava a recompor-se do embaraço causado pelo seu lapsus linguae e perdeu o fio do discurso. No entanto quis continuá-lo:

- Porque num caso destes - disse - as... sim, as luzes da ciência... quer dizer, os conhecimentos... que provêm das luzes...

- Como diz, senhor?... - disse Wellmere bebendo o seu vinho em pequenos golos.

- Sim - disse Sitgreaves voltando bruscamente as costas a Lawton. - Dizia que um cataplasma de miolo de pão e de leite não curará uma perna partida.

- Tanto pior, caramba, tanto pior! - disse Lawton recobrando finalmente o uso da palavra.

- É consigo que estou a falar, coronel Wellmere - continuou o doutor muito sério. - Para si que recebeu uma educação distinta.

O coronel inclinou a cabeça com um sorriso de consentimento.

- Deve ter reparado na destruição que os soldados da companhia de que este senhor é capitão fizeram nas suas fileiras.

O coronel tornou-se mais grave.

- Deve ter notado que a cada golpe que eles desferiam a vida do adversário ficava imediata e irremediavelmente extinta, extinta sem deixar o menor recurso a todas as luzes da ciência; que os ferimentos resultantes destes golpes ofereciam tais soluções de continuidade que a arte do médico mais experimentado nada pode fazer. Agora, senhor, dirijo-me a si, e a sua decisão far-me-á triunfar. Responda-me, os seus homens não teriam sido igualmente derrotados se se tivessem contentado, por exemplo, em abater o braço direito dos seus soldados em vez de lhes abrir a cabeça?

- O seu triunfo é um tanto prematuro, senhor - respondeu o coronel ofendido com a maneira como a pergunta fora feita.

- Uma conduta tão pouco judiciosa no campo de batalha faz a causa da liberdade avançar algum passo? - continuou Sitgreaves sem prestar atenção ao embaraço do coronel e pensando apenas em defender o seu princípio favorito.

- Tenho ainda de aprender - replicou Wellmere com vivacidade - em que a conduta daqueles que se encontram nas fileiras dos rebeldes pode ser útil à causa da liberdade?

- À causa da liberdade! - repetiu o doutor com o tom da maior surpresa. - Por Deus! E porque combatemos nós?

- Pela escravatura - respondeu o inglês com um ar de confiança na sua infalibilidade; - para substituir a tirania da populaça ao poder legítimo de um monarca cheio de bondade. Tentem pelo menos estar de acordo entre vós próprios.

- De acordo com nós próprios! - disse o doutor espantado por ouvir falar assim de uma causa que estava habituado a encarar como sagrada.

- Sim, senhor, de acordo com vós próprios. O vosso congresso de sábios publicou um manifesto onde proclama a igualdade de direitos políticos.

- É um manifesto superiormente redigido.

- Não ataco a redacção. Mas se as vossas proclamações em favor da igualdade são sinceras, porque não devolvem a liberdade aos escravos? - gritou Wellmere num tom que mostrava claramente ter trazido a vitória de volta à sua bandeira.

Qualquer americano fica humilhado quando é obrigado a justificar o seu país numa tal acusação. As suas emoções assemelham-se às de um homem forçado a responder a uma acusação vergonhosa embora ele saiba que não tem fundamento. No fundo o doutor tinha muito bom senso e vendo-se assim interpelado, tomou o argumento a sério:

- A liberdade consiste para nós - respondeu - em ter voz nos conselhos pelos quais somos governados. Entendemos como insuportável estarmos submetidos a um povo que se encontra a mil léguas de nós, e que não tem nem pode ter um único interesse político comum com os nossos. Não falo de opressão; a criança tornou-se maior e tinha direitos aos privilégios da sua maioridade. Existe apenas um único tribunal ao qual as nações podem apelar em casos semelhantes, o da força, e é a esse que apelamos.

- Tal doutrina pode convir aos seus projectos - disse Wellmere sorrindo desdenhosamente - mas é contrária às opiniões e aos princípios de todas as nações civilizadas.

- É conforme à prática - replicou com força o doutor encorajado por um olhar de Lawton que prestava justiça ao bom senso e raciocínio do camarada, embora rindo do que ele chamava a sua gíria de médico. - Quem quererá ser escravo quando pode ser livre? O único ponto razoável de que se deve partir, é que todas as sociedades têm o direito de se governarem a si mesmas, desde que não violem as leis de Deus.

- E o senhor chama conformar-se com essas leis retendo os seus semelhantes na escravidão?

Sitgreaves bebeu um copo de vinho, tossiu e voltou à carga:

- Senhor, - disse - a escravatura tem uma origem muito antiga e está universalmente espalhada. Todas as religiões e todas as formas de governo passadas ou presentes a admitiram e não existe uma única nação na Europa civilizada que não tenha reconhecido, ou não reconheça ainda, este princípio.

- Espero que faça excepção para a Grã-Bretanha?

- Certamente que não farei excepção - respondeu o doutor vivamente, sentindo que ia batalhar em território inimigo.-São os seus filhos, os seus navios, as suas leis que introduziram e naturalizaram a escravatura neste país. É pois a ela que cabe a culpa. É apenas ela que deve ser acusada. Nós apenas seguimos a estrada que ela nos traçou. Mas porque continuamos a segui-la? É que não se pode remediar um abuso senão gradualmente, para não fazer nascer males ainda piores do que aqueles que causam. Com o tempo libertaremos os nossos escravos e não se voltará a ver neste belo país uma única imagem do Criador reduzida a esse estado aviltante que mal lhe permite reconhecer os seus celestes benefícios.

Temos de nos lembrar que o doutor Sitgreaves falava assim há quarenta anos e consequentemente Wellmere não podia dizer ser falsa a sua profecia.

Achando o debate acima das suas forças, o coronel inglês deixou a mesa e foi ter com as senhoras ao salão. Aí, sentado entre Jeannette e Sara, achava-se mais agradavelmente ocupado a lembrar todos os prazeres que tinham tido em Nova York e mil pequenas histórias relativas às suas recordações comuns. Jeannette escutava com prazer estes pormenores enquanto preparava o chá com a sua habitual graça, e Sara, com os olhos baixos sobre o trabalho, corava e estremecia ao ouvir os cumprimentos lisonjeiros que ele lhe dirigia durante a conversa.

O diálogo que relatámos restabelecera a paz e a harmonia entre o doutor e Lawton. Estes foram fazer uma visita a Singleton, voltaram para se despedirem das senhoras, montaram ambos a cavalo e partiram juntos para a aldeia dos Quatro-Cantos, o capitão para se reunir ao seu regimento e Sitgreaves para visitar os feridos. Mas foram detidos à porta por uma circunstância que relataremos no capítulo seguinte.

 

Já dissemos que na América é uso deixar passar muito pouco tempo entre a morte e as obséquias e a necessidade de zelar pela sua segurança obrigara Harvey a abreviar ainda mais este curto intervalo nas do seu pai. No meio da confusão e da agitação produzidas pelos acontecimentos que narrámos, a morte do velho Birch não atraía a atenção. No entanto alguns dos seus mais próximos vizinhos haviam-se reunido à pressa para renderas últimas homenagens ao defunto.

O cortejo fúnebre passava em frente de Sauterelles no momento em que Lawton e Sitgreaves se preparavam para sair e foi isso que deteve a sua marcha. Quatro homens carregavam o caixão no qual repousava o corpo de John Birch e quatro outros acompanhavam-nos para, por sua vez, carregarem este fardo, substituindo os primeiros. O bufarinheiro caminhava atrás deles e a seu lado, via-se Katy Haynes, cujo aspecto exprimia o mais triste luto. Wharton e o filho seguiam-nos. Dois ou três velhos, igual número de mulheres e algumas crianças fechavam a marcha.

O capitão permaneceu em silêncio, hirto sobre a sela esperando que o cortejo fúnebre passasse e Harvey erguendo os olhos pela primeira vez desde que partira da choupana, reconheceu o inimigo que mais temia. O seu primeiro movimento foi, é claro, fugir, mas um instante de reflexão chamou-o a si; olhou para o caixão do pai e passou em frente do capitão num passo firme, embora o coração lhe batesse vivamente.

Lawton descobriu-se lentamente e ficou assim até que o capitão Wharton e o filho tivessem passado. Depois acompanhado pelo cirurgião, caminhou a passo atrás do cortejo em profundo silêncio.

César saiu das regiões subterrâneas da sua cozinha e, com um ar solenemente melancólico, juntou-se à procissão fúnebre, embora com humildade, devido à cor da sua pele e a uma distância muito respeitosa do capitão dos dragões, porque uma certa sensação de receio se apoderava do coração do negro todas as vezes que Lawton impedia a sua vista de se fixar em objectos mais agradáveis. À volta do braço, um pouco acima do cotovelo, pusera um pano de uma brancura resplandecente, porque desde que deixara a cidade, era a primeira vez que o negro tinha tido a ocasião de tomar os sinais exteriores de luto entre os escravos.

Dava grande importância ao decoro e o que o estimulara neste passo, fora o desejo de provar ao seu amigo negro da Georgia a decência que em Nova York se observava nos funerais. A efervescência do seu zelo passou-se muito bem e não teve mais resultados além da observação que Jeannette lhe fez com doçura no seu regresso. Ela achava muito bem que ele tivesse seguido o cortejo fúnebre, mas julgava que o fumo era um cerimonial supérfluo para o funeral de um homem da condição do defunto.

O cemitério era uma cerca situada nos domínios do capitão Wharton que a destinara para este fim e que mandara rodear de pedras alguns anos antes. Era no entanto apenas no propósito de fazer dela o lugar de sepultura da sua família. Até ao incêndio que ocorreu quando as tropas inglesas se apoderaram de Nova York e que reduziu a cinzas a Trindade, via-se nas paredes desta igreja uma inscrição em letras douradas e gravadas no mármore, lembrando as virtudes dos seus antepassados cujos restos repousavam com toda a dignidade que convém sob grandes pedras de mármore numa das naves. O capitão Lawton fez um movimento para seguir o cortejo no instante em que este deixou a estrada principal perto do campo que servia para as mais humildes sepulturas. Mas foi acordado da sua distracção pela observação que o companheiro lhe fez dizendo que se estava a enganar no caminho.

- De todos os métodos que o homem adopta para dispor dos seus restos mortais, qual prefere, capitão Lawton? - perguntou-lhe gravemente o doutor quando se separaram do cortejo. - Em certos países deixam o corpo sobre a terra exposto a ser devorado pelos animais selvagens; noutros suspendem-no no ar para que ele aí exale a sua substância em forma de decomposição; aqui consomem-no sobre lenha; ali inumam-no nas entranhas da terra. Cada povo tem o seu costume a este respeito. A qual dá a sua preferência?

- São todos sem dúvida muito agradáveis - respondeu o capitão sem prestar uma grande atenção à arenga do companheiro e seguindo ainda com os olhos a procissão - mas o senhor, o que pensa?

- A última moda, a que nós adoptámos é, sem dúvida, a mais sensata - respondeu o doutor sem hesitar - porque as três outras não deixam recurso para a dissecação; pelo contrário esta, enquanto o caixão fica decente e pacificamente no seio da terra, pode tirar-se o corpo para o fazer servir à propagação de uma maneira mais útil das luzes da ciência. Ah! capitão Lawton gozo bem raramente esse prazer em comparação com o que esperava ao entrar para o exército.

- E esse prazer quantas vezes mais ou menos o goza por ano? - perguntou Lawton num tom seco deixando de dirigir o olhar para o lado do cemitério.

- Doze vezes no máximo - respondeu Sitgreaves suspirando. - A minha melhor recolha é quando as tropas marcham em destacamento, porque quando o corpo do exército oferece um bom trabalho, há tanta gente a satisfazer que é raro arranjar um. São vampiros, têm fome de cadáveres como os abutres.

- Doze vezes - repetiu o capitão num tom surpreendido. - O quê! Só eu forneço-lhe mais.

- Ah! Jack - disse o doutor voltando interessadamente ao seu assunto favorito, é muito raro poder fazer qualquer coisa dos seus doentes! Você desfigura-os horrivelmente. Acredite-me, é como amigo que lhe falo; o seu sistema é essencialmente vicioso. Não somente destrói sem necessidade o princípio da vida, como é causa de que mesmo depois de morto o corpo não possa servir para o único uso para o qual ainda pode ser útil.

Lawton não respondeu nada porque sabia que quando o doutor começava com este assunto o silêncio era o único meio de manter a paz entre eles. Sitgreaves lançando um último olhar ao cortejo fúnebre antes de rodear uma saliência que o ia esconder a seus olhos deu um profundo suspiro:

- Poder-se-ia, - disse -, se tivéssemos tempo, arranjar esta noite no cemitério um corpo que tivesse sucumbido de morte natural. O defunto era sem dúvida o pai da senhora que vimos esta manhã?

- O quê? da doutora, daquela mulher que tem uma pele azul celeste? - exclamou Lawton com um sorriso malicioso que começou a pôr o companheiro pouco à vontade. - Não, não, ela era apenas o seu oficial de saúde e esse Harvey cujo nome servia de refrão a todas as canções é o famoso bufarinheiro, o espião.

- O quê? - exclamou o cirurgião surpreendido - aquele que o fez cair do cavalo?

- Nunca ninguém me fez cair do cavalo, doutor Sitgreaves - disse o dragão com muita gravidade. - Caí do cavalo porque Roanoke deu um passo em falso e beijámos o solo juntos.

- Foi um beijo cheio de ardor - disse o doutor adoptando por sua vez um ar de sarcasmo - porque a sua pele ainda tem marcas. Mas é muita pena que não possa saber onde se encontra escondido esse maldito espião.

- Seguia o corpo do pai - disse o capitão muito calmo.

- O quê! E deixou-o passar? - replicou vivamente Sitgreaves parando o cavalo. - Voltemos para trás e agarremo-lo. Mandá-lo-á enforcar esta noite e amanhã de manhã dissecá-lo-ei.

- Então, então! meu caro Archibald! - disse Lawton suavemente. - Quer prender um homem enquanto ele presta os últimos deveres para com o pai? Confie em mim; pagar-lhe-ei as minhas dívidas qualquer dia.

Sitgreaves não ficou muito contente com aquilo que chamou um atraso da justiça; mas foi obrigado a consentir para não comprometer a reputação que tinha de ser um rígido observador das conveniências e por isso continuaram o caminho para se reunirem ao regimento, conversando sobre diversos assuntos relativos à economia do corpo humano.

Birch mantinha o ar grave e pensativo que se julgava convir a um homem em tais circunstâncias e era de Katy que se esperavam provas daquela sensibilidade que é própria do belo sexo. Há pessoas que a natureza formou de tal modo que não podem chorar senão acompanhadas e a governanta era dotada dessas qualidades amigas da companhia. Depois de ter olhado para o pequeno número de mulheres que se encontravam no enterro, vendo que todas elas tinham os olhos fixos em si com ar de uma expectativa solene, no mesmo instante verteu uma torrente de lágrimas e a abundância destas foi tal que todos os espectadores lhe deram a honra de lhe atribuir o mais terno e sensível coração.

Quando começaram a cobrir de terra o caixão que emitia aquele som oco, surdo e terrível que proclama tão eloquentemente o nada que é o homem, viram-se todos os músculos do rosto de Harvey contraírem-se; o seu corpo foi como que agitado por convulsões; a cintura curvou-se como se tivesse um sofrimento súbito; os braços caíram ao longo do corpo como paralisados, enquanto que os dedos se moviam involuntariamente; numa palavra, todo o seu exterior indicava que a alma estava despedaçada pela angústia mais cruel.

Mas resistiu à emoção que foi apenas momentânea. Endireitou-se, respirou com força e olhou à sua volta com a cabeça levantada, parecendo aplaudir-se a si próprio por ter conseguido uma vitória. A cova em breve ficou cheia. Uma pedra bruta colocada numa das extremidades marcou o lugar e uma relva murcha, símbolo da fortuna do defunto, cobriu com uma aparência de decência a elevação funerária. Os vizinhos que o haviam ajudado a prestar as últimas homenagens ao pai voltaram-se para Harvey tirando o chapéu e o bufarinheiro, que se sentia então verdadeiramente só no mundo, descobriu a cabeça por seu turno e disse-lhes depois de um momento para recobrar as forças:

- Meus amigos, meus vizinhos, agradeço-lhes terem-me ajudado a enterrar o meu pai e a separar-me dele.

Uma pausa solene sucedeu a estas palavras tradicionais e o grupo dispersou-se em silêncio. Alguns acompanharam Harvey até à choupana, mas tiveram a discrição de o deixar quando aí chegou. Este entrou, com Katy, e foram seguidos por um homem muito conhecido na região a quem chamavam o Especulador. O coração de Katy vibrou com funestos pressentimentos ao vê-lo entrar mas Harvey esperava evidentemente esta visita e indicou-lhe educadamente uma cadeira.

O vendedor foi à porta, lançou um olhar inquieto para todos os lados do vale, voltou à pressa e começou o seguinte diálogo:

- O sol já não ilumina o cimo das montanhas de leste; o tempo urge; aqui está o contrato de venda da casa e do jardim; está em boa forma segundo as leis.

O estranho pegou no papel, examinou o conteúdo com uma lentidão que era resultado ou da atenção que queria prestar ou da educação que fora infelizmente descuidada na sua juventude. O tempo que este longo exame ocupou foi preenchido por Harvey para reunir diversos objectos que queria levar ao deixar para sempre esta habitação. Katy tinha-lhe já perguntado se o defunto deixara testamento e vira-o colocar a grande Bíblia no fundo de um novo saco que ela própria lhe preparara; mas vendo que as seis colheres de prata ficavam ao lado do fardo, não conseguiu suportar uma tal negligência e rompeu o silêncio afirmando:

- Quando se casar, Harvey, lamentará não ter essas colheres.

- Nunca me casarei - respondeu ele laconicamente.

- O senhor é o patrão, Harvey; mas não é preciso dizer isso num tom desses. Certamente ninguém pensa em casar consigo. No entanto gostaria de saber que necessidade pode ter um homem só de tantas colheres; quanto a mim penso que um homem tão bem fornecido deve em consciência ter uma mulher e uma família.

Na época em que Katy falava assim, a fortuna de uma mulher da sua classe consistia numa vaca, numa casa, lençóis, toalhas e outra roupa, obra das suas próprias mãos, e quando a fortuna a tinha particularmente favorecido, uma meia dúzia de colheres de prata. A arte e a prudência da governanta tinham-na já fornecido de todos estes primeiros objectos; mas o último faltava-lhe ainda e pode imaginar-se ter sido com um sentimento de pena muito natural que ela viu cair no fardo as colheres que há tanto tempo encarava como vindo a pertencer-lhe um dia, pena que a declaração lacónica de Harvey não contribuía para suavizar. Este sem se perturbar com o que ela poderia pensar, continuava a encher o saco que rapidamente atingiu as suas proporções normais.

- Tenho certas preocupações acerca desta aquisição - disse finalmente o Especulador ao terminar a leitura.

- E porquê? - perguntou vivamente Harvey.

- Temo que não seja válida em justiça. Sei que dois vizinhos se propõem ir pedir amanhã a confiscação desta casa e se eu lhe desse quarenta libras esterlinas e viesse a perdê-las, faria um rico negócio!

- Não podem confiscar o que me pertence - respondeu friamente o bufarinheiro. - Dê-me duzentos dólares e a casa é sua. O senhor é um patriota muito conhecido e não há perigo de o molestarem.

Enquanto assim falava, ao desejo que mostrava em se desfazer da sua propriedade, misturava-se um estranho tom de amargura.

- Diga cem dólares e é negócio feito - continuou o Especulador com uma careta que queria fazer passar por um sorriso de bondade de alma.

- Feito! - repetiu o vendedor surpreendido. - Julgava que o negócio tinha sido concluído esta manhã.

- Não está nada concluído até à entrega do acto e ao pagamento do preço - respondeu o outro felicitando-se interiormente pela sua habilidade.

- Eu entreguei-lhe o papel - proferiu Harvey.

- Sim e eu guardá-lo-ei se me dispensar de pagar o preço - disse o Especulador rindo. - Mas vamos, não quero ser demasiado avarento: digamos cento e cinquenta dólares; tome, aqui estão.

Harvey avançou para a janela e viu consternadamente que o sol já desaparecera no horizonte. Sabia que corria os maiores riscos ficando mais tempo em casa e no entanto não podia suportar a ideia de ser enganado desta maneira num negócio que fora discutido e decidido. Hesitou.

-Está bem! -disse o Especulador levantando-se. - Encontrará talvez outro comprador daqui até amanhã de manhã; mas em caso contrário os seus títulos já não lhe valerão a centésima parte de um dólar.

- Aceite, Harvey, aceite! - disse Katy que sentia o coração enternecer-se à vista de dinheiro líquido.

A sua voz pôs fim à indecisão do bufarinheiro e um novo pensamento apresentou-se-lhe ao espírito.

- Está decidido - disse ele - aceito as suas ofertas.

Voltando-se para Katy entregou-lhe uma parte desse dinheiro dizendo-lhe ao mesmo tempo:

- Se tivesse qualquer outro meio de lhe pagar, preferia perder tudo a deixar-me roubar assim.

- Poderia ainda perder tudo - disse o Especulador com um sorriso infernal ao sair da choupana.

- Ele tem razão - disse Katy seguindo-o com os olhos. - Ele conhece-o, Harvey, e como eu pensa que agora que o seu velho pai já não existe, o senhor precisa de alguém cuidadoso que trate das suas coisas.

O vendedor ocupado em preparar tudo para a partida não prestou atenção a esta insinuação. Katy voltou à carga. Passara tantos anos na expectativa de um acontecimento tão diferente do que ia acontecer que a ideia de se separar de Harvey Birch mesmo depois de todas as perdas que tivera, causava-lhe um aperto no coração com o qual ela própria se admirava.

- Onde vai encontrar outra casa agora? - perguntou-lhe com uma emoção pouco comum nela.

- O céu se encarregará disso.

- Talvez. Mas talvez não seja a seu gosto.

- O pobre não deve ser difícil.

- Eu não o sou, Harvey, mas gosto de ver as coisas bem arrumadas e nos seus lugares; e quanto a mim, não estou muito presa a este vale e àqueles que o habitam.

- O vale é agradável e os que o habitam boa gente. Mas que importa! qualquer casa me é igual agora; só verei rostos estranhos!

E enquanto falava assim, uma bagatela que ia pôr no fardo escapou-se-lhe das mãos e ele deixou-se cair numa cadeira com um ar de derrota.

- Não, Harvey, não - disse Katy aproximando sem pensar a sua cadeira do lugar em que ele estava sentado. - Não me conhece? A minha cara não lhe é estranha.

Birch voltou lentamente os olhos para ela e notou-lhe no rosto um ar de sensibilidade que nunca lhe vira. Pegou-lhe na mão e as suas feições perderam um tanto da sua expressão dolorosa, enquanto lhe disse num tom suave:

- Não, excelente mulher, não; você não é uma estranha para mim enquanto que muitos outros me encherão de insultos e me caluniarão, talvez você me faça justiça e diga quaisquer palavras para me defender.

- Fá-lo-ei! Fá-lo-ei! - afirmou Katy com uma energia sempre crescente. - Sim, Harvey, defendê-lo-ei até à última gota... Eu que oiça dizer uma palavra contra si! Sim, Harvey tem razão, prestar-lhe-ei justiça. Que me importa que você goste do rei? Ouvi dizer que no fundo é um bom homem; mas no antigo país não há religião, porque todos dizem que os seus ministros são o diabo encarnado.

O bufarinheiro passeava em grandes passadas numa agitação inexprimível. Os seus olhos tinham um ar perdido que Katy nunca vira e o andar, uma dignidade com a qual ela se sentia quase assustada.

- Enquanto ele viveu - disse Harvey não podendo fechar no coração os sentimentos que o agitavam - existia alguém que lia no meu coração! Depois dos meus movimentos secretos e perigosos, depois de ter sofrido injúrias e injustiças, que consolação era para mim no meu regresso receber os seus elogios e a sua bênção! Mas ele já não existe - acrescentou, voltando os olhos desesperados para um canto do quarto, lugar habitual do pai - e quem me fará justiça agora?

- Harvey! Harvey! - exclamou Katy num tom quase suplicante; mas ele não a escutava. No entanto um sorriso de satisfação aflorou aos seus traços descompostos quando acrescentou:

- Sim, existe alguém que ma fará, que deve conhecer-me antes que eu morra. Oh! é terrível morrer e deixar atrás de si uma tal reputação!

- Não fale de morte aqui, Harvey! -gritou Katy lançando os olhos em redor do quarto e pondo lenha no fogo para aumentar a claridade.

Mas o momento de efervescência tinha passado. Fora ocasionado pela recordação dos acontecimentos da véspera e pela viva ideia dos seus sofrimentos. As paixões não conservavam muito tempo o seu ascendente no espírito de Harvey; e vendo que a noite cobria já com a sua sombra os objectos exteriores, pôs à pressa o fardo aos ombros e pegando afectuosamente na mão de Katy, despediu-se dela nestes termos:

- É-me doloroso separar-me mesmo de si, excelente mulher; mas chegou a hora e tenho de partir. Dou-lhe todos os móveis que ficam na casa; já não me servem e poder-lhe-ão ser úteis. Adeus; voltaremos a ver-nos um dia.

- Sim, no reino das trevas - disse uma voz que encheu de desespero a alma do bufarinheiro e que o fez voltar a cair na cadeira de onde se levantara.

- O quê? Outro fardo! - acrescentou a mesma voz. - E bem cheio, por minha fé!

- Já não fizeram suficiente mal? - gritou o vendedor ambulante reencontrando a sua firmeza e soerguendo-se com energia. - Não lhes basta ter acelerado os últimos momentos de um velho moribundo, ter-me arruinado? Que querem mais?

- O teu sangue - respondeu o Skinner com uma maldade fria.

- E receberem o preço dele - disse Harvey com amargura. - Como Judas, outrora, querem enriquecer com o preço do sangue.

- É um belo preço, caramba! Meu bom homem. Cinquenta guinéus quase o preço em ouro da tua carcaça.

- Tomem - exclamou vivamente Katy - aqui estão quinze guinéus. Esta cama, esta cómoda, estas cadeiras, todo o mobiliário desta casa pertence-me e dou-vos tudo se derem a Harvey uma hora de avanço para fugir.

- Uma hora! - disse o Skinner mostrando os dentes e cobiçando o dinheiro com os olhos.

- Sim, mais não. Tomem, aqui está o dinheiro.

- Pare - gritou Harvey - não tenha confiança neste incrédulo.

- Que confie em quem quiser - disse o Skinner - mas quanto ao dinheiro, fico com ele. Quanto a ti, Birch, suportarei a tua insolência por respeito pelos cinquenta guinéus que a tua forca me deve valer.

- Seja! - disse o bufarinheiro orgulhosamente. - Conduzam-me ao major Dunwoodie; ele pode ser severo, mas pelo menos não insulta a desgraça.

- Farei melhor que isso - replicou o Skinner - porque não tenho vontade de fazer uma viagem tão longa em tão má companhia. Os homens do capitão Lawton estão mais perto cerca de meia milha e o seu recibo da tua pessoa far-me-á levantar a recompensa prometida tanto como a do major. Que dizes? Não ficas encantado por jantar esta noite com o capitão Lawton?

- Dê-me o meu dinheiro ou deixe Harvey em liberdade - gritou Katy alarmada.

- O seu dinheiro é pouca coisa, mulherzinha, a menos que tenha mais escondido na cama -disse o Skinner, que rasgando o colchão e o enxergão com a baioneta, parecia retirar um grande prazer em espalhar a lã e a palha por todo o quarto.

- Se há leis neste país - gritou Katy a quem o interesse que punha na sua propriedade recentemente adquirida a fazia esquecer o perigo pessoal a que se expunha - obterei justiça por semelhante roubo.

- A lei do território neutro é a do mais forte - disse o Skinner com um sorriso trocista. - Mas tenha cuidado porque a minha baioneta é mais comprida do que a sua língua e os golpes de uma são mais perigosos do que os da outra.

Perto da porta estava um indivíduo que parecia querer esconder-se no meio do grupo dos Skinners; mas uma chama que alguns objectos do mobiliário lançados no fogo pelo seu perseguidor fez luzir, deu a reconhecer ao bufarinheiro o rosto do Especulador que comprara a sua casa. Falava em voz baixa e com um ar de mistério a um dos salteadores que estava mais perto de si e Harvey começou a suspeitar ser vítima de uma conspiração de que este traidor era cúmplice.

As censuras viriam demasiado tarde: seguiu por isso o grupo num passo firme e tranquilo como se o conduzissem ao triunfo e não ao cadafalso. Ao atravessar o pátio, o chefe chocou contra um cepo de madeira, caiu e levantando-se um tanto humilhado com a queda, gritou encolerizado:

- Maldito seja este tronco infernal! A noite está demasiado escura para que possamos caminhar por aqui. Eh! vocês! Deitem um tição para o meio desse monte de lã para nos iluminar.

- Parem! - gritou o Especulador consternado - vão incendiar a casa.

- Ainda veremos melhor - respondeu um Skinner lançando para o meio das matérias combustíveis espalhadas pelo quarto toda a madeira inflamada que ardia na chaminé e num instante toda a casa ficou em chamas.

- Vamos, vamos - disse o chefe - aproveitemos agora esta claridade para alcançar a montanha.

- Miserável! - exclamou o comprador furioso. - É essa a vossa amizade? É assim que me recompensam por vos ter entregue esse espião?

- Farias melhor em te pôr à sombra se me queres falar nesse tom - disse o chefe do grupo - porque agora vejo bem demais para falhar.

Um instante depois executou a ameaça. Felizmente a bala não atingiu nem o Especulador assustado nem a governanta não menos horrorizada que, depois de ter possuído por momentos o que lhe parecia uma fortuna, se achava reduzida a uma pobreza completa. A prudência levou-os ambos a retirarem-se rapidamente e, no dia seguinte de manhã, da casa do bufarinheiro restava apenas a grande chaminé de que falámos.

 

O tempo, que estivera suave e belo desde a tempestade, mudou com a rapidez habitual do clima da América. Pela tarde desceu das montanhas um vento frio e a neve anunciou que Novembro tinha chegado, estação que faz suceder sem transição os gelos do Inverno aos calores do Verão. Frances, de uma janela do seu quarto, via desfilar lentamente o cortejo fúnebre com uma melancolia demasiado profunda para ser causada apenas por este espectáculo. Havia no triste dever que seu pai e irmão cumpriam qualquer coisa que se harmonizava com as ideias que a assaltavam. Enquanto os olhos erravam à sua volta, viu as árvores curvarem-se com a violência do furacão e as construções que não podiam oferecer-lhe uma forte resistência, eram abanadas.

A floresta, que antes o sol fizera brilhar nos tons variados do Outono, perdia grande parte da sua beleza, o vento despia as árvores das suas folhas que varria para longe. Podiam distinguir-se, a pouca distância, nos montes, patrulhas de dragões da Virgínia que guardavam todos os desfiladeiros. Inclinados sobre o arção da sela, por causa do vento glacial que atravessava os grandes lagos de água doce, apertavam contra os braços os casacos para se resguardarem do frio.

Viu desaparecer a seus olhos o caixão, última morada do defunto quando o desceram lentamente para a cova e esta visão emprestou uma nova tristeza ao espectáculo que a natureza lhe oferecia. O capitão Singleton dormia e o dragão que o servia estava cuidadosamente vigilante junto do leito. Tinham conseguido persuadir a irmã a ir tomar posse do quarto que lhe fora preparado e procurar apreciar o repouso de que a viagem, que fizera na noite precedente, a privara.

A porta desse quarto dava para o corredor de que já se falou, mas tinha outra que comunicava para o quarto ocupado pelas duas irmãs. Esta porta estava entreaberta e Frances aproximou-se na intenção caridosa de ver como se encontrava a nova companheira. Para sua grande surpresa, viu aquela que julgava adormecida, não somente acordada como ainda ocupada de uma maneira que não permitia supor que já tivesse passado pelo sono. As tranças de cabelo negro que durante o jantar estavam enroladas em volta da cabeça e presas ao alto caíam-lhe profusamente no colo e sobre os ombros dando-lhe um ar quase transtornado à sua fisionomia expressiva; os olhos negros estavam fixos com a mais viva atenção num retrato que segurava na mão.

Frances mal pôde respirar quando um movimento de Isabel lhe permitiu ver nesse retrato, um homem com o uniforme muito conhecido dos dragões da Virgínia; mas apoiou a mão no coração como para lhe acalmar a agitação, quando julgou reconhecer as feições sempre presentes na sua imaginação. Sentiu que as conveniências não lhe permitiam descobrir o segredo da outra mas a sua emoção era demasiado forte para poder falar e recuando um passo, sentou-se numa cadeira donde podia ainda ver Isabel sobre quem os seus olhos estavam pregados contra a sua própria vontade.

Isabel Singleton, exclusivamente ocupada com as suas próprias ideias para ver a trémula rapariga, testemunha dos seus menores movimentos, apoiou os lábios sobre este retrato inanimado com o ardor da mais violenta paixão. A expressão do rosto da bela desconhecida era animada. A admiração e o desgosto eram no entanto as duas paixões que pareciam dominar e a última era indicada pelas grandes lágrimas que lhe caíam dos olhos sobre o retrato, em intervalos desiguais.

Cada movimento de Isabel era marcado por um entusiasmo próprio do seu carácter e cada paixão triunfava por sua vez no coração. O furor do vento que assobiava em torno dos ângulos da casa estava de perfeito acordo com os seus sentimentos e ela levantou-se para se aproximar de uma janela do quarto. Estava então inteiramente escondida aos olhos de Frances que ia levantar-se para se aproximar dela quando ficou presa à cadeira por sons cuja melodia ia direita ao coração. A música tinha qualquer coisa de estranho; a voz não era muito extensa, mas a execução ultrapassava tudo quanto Frances jamais ouvira. Imóvel, procurando abafar o fraco ruído da sua respiração, ali ficou até Isabel acabar de cantar as seguintes palavras:

O vento frio sopra sobre o cimo das montanhas; os castanheiros que a cobrem são despojados da sua folhagem; da fonte elevam-se lentamente vapores; o gelo brilha à beira do riacho, toda a natureza procura a calma desta estação do ano: mas o repouso abandonou o meu coração.

A tempestade derramou há muito os seus furores sobre o meu país; os guerreiros há muito lhe suportaram o choque; o nosso chefe, bastião elevado sobre o rochedo da liberdade, há muito que enobreceu o seu posto, a ambição desmedida liberta-se das suas pretensões e no entanto uma ternura infeliz roubou o sorriso dos meus lábios.

Lá fora, ouve-se rugir o furor selvagem do Inverno; vê-se a árvore árida despojada das suas folhas; mas o sol vertical do sul aparece para derramar sobre mim o seu calor devorador. Lá fora, mostram-se todos os sinais de uma estação glacial; mas por dentro consome-me o fogo da paixão.

Frances abandonou toda a alma aos encantos da melodia embora as palavras da canção exprimissem um sentido, que reunido aos acontecimentos do dia e do anterior, faziam nascer no seu seio um sentimento de inquietação que nunca sentira antes. Isabel afastou-se da janela no instante em que aquela que a escutava deixou de ouvir o último som da sua voz e viu então pela primeira vez o rosto pálido da companheira. Um fogo súbito animou os rostos das duas raparigas; os olhos azuis de Frances encontraram por instantes os negros de Isabel, e os seus olhares baixaram imediatamente para o tapete. No entanto avançaram uma para a outra e deram-se as mãos antes que qualquer delas ousasse encarar a companheira.

- Esta mudança repentina do tempo e talvez a situação do meu irmão contribuíram para me inspirar melancolia, "miss" Wharton - disse Isabel num tom muito baixo e numa voz trémula.

- Parece que não tem nada a temer pelo seu irmão - respondeu Frances com o mesmo ar embaraçado. - Se o tivesse visto quando o major Dunwoodie o trouxe para aqui...

Interrompeu-se; sentia-se envergonhada sem saber muito bem porquê; levantando os olhos para Isabel, viu-a estudar-lhe o rosto com a mais viva atenção e corou de novo.

- Fala do major Dunwoodie - disse Isabel numa voz fraca.

- Foi ele que trouxe o seu irmão para aqui.

- Conhece Dunwoodie? Viu-o muitas vezes? - perguntou Isabel numa voz que fez estremecer a companheira. Frances aventurou-se a olhá-la uma segunda vez e viu de novo os olhos penetrantes fixos nela como se quisessem penetrar nos seus mais secretos pensamentos. - Fale, "miss" Wharton; o major Dunwoodie é seu conhecido?

- É meu parente - respondeu Frances quase assustada pelo estado em que via a companheira.

- Seu parente? - repetiu Isabel. - Em que grau? Responda, "miss" Wharton! Suplico-lhe, responda-me!

- O pai da minha mãe era primo do pai de Dunwoodie - respondeu Frances com uma confusão ocasionada pela veemência de Isabel.

- E ele vai casar consigo? - exclamou Isabel com vivacidade.

O orgulho de Frances revoltou-se contra um ataque tão directo e levantou os olhos com altivez sobre aquela que a interrogava assim: mas a visão das faces pálidas e dos lábios trémulos de Isabel desarmou no mesmo instante todo o seu ressentimento.

- É, portanto, verdade: a minha conjectura era certa. Fale, "miss" Wharton; por compaixão, responda-me, suplico-lhe! Ama Dunwoodie?

Havia na voz de Isabel Singleton um tom queixoso que fez desaparecer todo o descontentamento de Frances; como resposta, cobriu o rosto ardente com as duas mãos deixando-se cair numa cadeira.

Isabel andou alguns instantes em silêncio pelo quarto até conseguir dominar a violência da sua agitação. Aproximando-se então da companheira, e procurando disfarçar a seus olhos a vergonha que sentia, pegou-lhe na mão dizendo com um esforço evidente para se mostrar calma:

- Perdão, "miss" Wharton, se um sentimento irresistível me fez esquecer as conveniências; o poderoso motivo, a cruel razão...

Hesitou. Frances levantou a cabeça; os olhos das duas jovens cruzaram-se mais uma vez; lançaram-se ambas nos braços uma da outra e as suas faces escaldantes tocaram-se. Este abraço foi longo, sincero; mas nenhuma delas falou e, quando se separaram, Frances retirou-se para o quarto sem outra explicação.

Enquanto se passava esta cena extraordinária no quarto de Isabel Singleton, outros assuntos de grande importância eram discutidos no salão. A tarefa de dispor dos restos de um tão grande jantar como o que fora servido, não exigia pouco cálculo e reflexão. Embora diversas aves selvagens se tivessem familiarizado com os bolsos do dragão ao serviço do capitão Lawton e o ajudante do doutor Sitgreaves se tivesse mesmo precavido contra a possibilidade de deixar em breve tão boas paragens, restavam ainda tantas provisões que a prudente Jeannette não sabia muito bem o que fazer para tirar delas o melhor partido possível.

Sobre este assunto teve lugar uma longa conversa confidencial entre César e a patroa e o resultado foi que o coronel Wellmere se viu abandonado à hospitalidade de Sara. Todos os assuntos vulgares de conversa estavam esgotados quando o coronel, com um pouco daquele mal-estar que até certo ponto sente sempre aquele que tem um erro a censurar-se, fez alusão aos acontecimentos do dia precedente.

- Não pensava de modo algum, "miss" Wharton, quando vi pela primeira vez esse senhor Dunwoodie em vossa casa, em Queen Street, que encontraria nele um guerreiro de tanto renome - disse Wellmere com um sorriso desdenhoso.

- De renome, se se tomar em consideração o inimigo que venceu - respondeu Sara lisonjeando os sentimentos do companheiro. - O acidente que lhe aconteceu foi infeliz por todas as razões; porque sem essa circunstância, as armas do nosso rei teriam normalmente triunfado.

- E no entanto o prazer da companhia junto da qual este acidente me conduziu indemnizou-me pela mortificação e pelos ferimentos de que foi causa - disse o coronel no mais adocicado tom.

- Espero que esses ferimentos sejam pouca coisa - replicou Sara, procurando esconder a sua vermelhidão e baixando-se para cortar com os dentes uma linha do trabalho que repousava nos joelhos.

- Os ferimentos do corpo são efectivamente pouca coisa em comparação com os outros -disse o coronel no mesmo tom. - Ah! "miss" Wharton! é nestes momentos que se aprecia todo o valor da amizade e da compaixão.

Pode-se dificilmente imaginar, sem se ter experimentado, como são rápidos os progressos que o coração de uma mulher pode fazer em amor no curto espaço de meia hora. Quando a conversa começou a versar a amizade e a compaixão, Sara achou o assunto demasiado interessante para ousar fiar-se na sua voz. No entanto ergueu os olhos para o coronel e viu que este lhe contemplava o rosto com um ar de admiração tão manifesto que as palavras não eram necessárias para se exprimir.

A sua conversa a sós durou uma hora sem interrupção e embora o coronel não tivesse pronunciado aquilo que uma senhora experimentada teria chamado uma palavra decisiva, disse uma quantidade de coisas que encantaram a companheira. Esta retirou-se para o quarto, com o coração mais aliviado, sensação que não sentia desde que o irmão fora feito prisioneiro dos Americanos.

 

A posição ocupada pelo corpo dos dragões era, como já dissemos, uma paragem favorita do comandante. Um grupo de cinco a seis choupanas em muito mau estado formava o que se chamava a aldeia dos Quatro-Cantos, que devia o seu nome às duas estradas que a cortavam num ângulo recto. Sobre a porta mais considerável e menos dilapidada destes edifícios, via-se preso a um poste semelhante a uma forca, um letreiro no qual se podia ler em grandes letras: Boa acomodação a pé e a cavalo; e alguns brincalhões que faziam parte do corpo de dragões da Virgínia tinham escrito por baixo com cré vermelho: Hotel de Betty Flanagan.

A senhora a quem davam tanta honra era hospedeira, lavadeira e para nos servirmos da expressão de Katy Haynes, doutora fêmea do corpo. Era viúva de um soldado que fora morto em serviço, e que nascido como ela numa das Antilhas, tinha vindo procurar fortuna nas colónias. Ela seguia constantemente o regimento de Dunwoodie que estacionava raramente mais de dois dias no mesmo sítio mas acompanhava-o numa pequena carroça carregada de objectos próprios para tornarem a sua presença agradável. Chegava sempre em primeiro lugar ao local onde se devia acampar e tinha o cuidado de escolher um sítio favorável às suas operações. A sua velocidade nestes casos era quase sobrenatural.

Tão depressa a carroça lhe servia de loja como os soldados lhe construíam um abrigo com os materiais que encontravam à mão. Nesta ocasião, ela apoderara-se de um edifício abandonado. Tendo substituído os vidros da janela que faltavam por uma parte da roupa suja que tinha para lavar, conseguira afastar o rigor do frio que continuava a ser severo e a arranjar o que ela chamava um alojamento elegante. Os soldados estavam nos celeiros da aldeia e os oficiais tinham-se reunido no hotel Flanagan a que, brincando, chamavam o quartel general.

Não existia um único cavaleiro em todo o regimento que Betty não conhecesse e de quem não soubesse o nome de baptismo, o nome de família e o nome de guerra e, embora parecesse insuportável àqueles a quem o hábito não tinha ainda tornado familiares as suas virtudes, era a favorita declarada de todo o corpo. Os seus defeitos eram uma tendência irresistível para a bebida, uma falta de asseio sem igual e uma liberdade sem limites nas expressões; mas eram pagos por algumas boas qualidades, um amor ardente pela pátria adoptiva, um coração excelente e princípios de honestidade à sua maneira no tráfico com os soldados.

Tinha ainda o mérito de ter inventado essa bebida tão conhecida hoje de todos os que viajam no Inverno entre as capitais comerciais e políticas deste grande país e à qual se deu o nome de cocktail. A educação e as circunstâncias tinham concorrido para pôr Elizabeth Flanagan em estado de dar um tão grande passo na composição de licores; porque desde a sua infância travara conhecimento com tudo o que era o principal ingrediente destes e as suas práticas da Virgínia haviam-lhe ensinado a prestar justiça ao sabor da hortelã, desde um humilde julepo até à mais perfeita bebida de que estamos a falar. Era assim Betty Flanagan, que apesar do vento glacial do norte mostrava o rosto rubicundo à porta do seu hotel para receber o seu favorito, o capitão Lawton que chegava com o doutor Sitgreaves.

- Por todas as minhas esperanças de promoção, Betty - exclamou ele - estou encantado em vê-la! Este maldito vento vindo do Canadá gelou-me até à medula dos ossos; mas a visão da sua carantonha vermelha aquece-me como um fogo de Natal.

- Sei muito bem, capitão Jack - disse a hospedeira segurando nas rédeas do cavalo - que tem sempre a goela cheia de cumprimentos; mas despache-se a entrar, as sebes não são tão sólidas nesta região como na montanha e encontrará em casa tudo o necessário para lhe aquecer o corpo e a alma.

- Então pôs as sebes a contribuir para o fogo! - disse o capitão. - Isso pode parecer útil para o corpo mas quanto ao resto, acabo de acariciar uma garrafa de cristal lapidada colocada numa bandeja de prata e creio que antes de um mês o seu "whisky" não me tentará.

- Se está a pensar no ouro e na prata, não tenho, embora não esteja totalmente desprovida de papel dos Estados; mas - disse Betty com um olhar expressivo - o que tenho para lhe oferecer merecia ser servido em vasos de diamante.

- Que quer ela dizer, Archibald? - perguntou vivamente Lawton ao doutor.

- A pega zarolha parece querer dar-nos a entender mais do que diz.

- É sem dúvida uma aberração das faculdades da razão ocasionada pelo uso demasiado frequente dos licores fortes - respondeu o doutor erguendo lentamente a perna esquerda por cima do cavalo para descer do lado direito.

- Bem, minha jóia de doutor - disse Betty fazendo um sinal de entendimento ao capitão - esperava-o deste lado, embora todos os dragões desçam do outro. Mas tratei bem dos seus feridos na sua ausência; alimentei-os como reis.

- Estupidez bárbara! - exclamou o doutor - dar alimentos a pessoas devoradas por uma febre escaldante! Mulher, você deixaria ficar mal o próprio Hipócrates.

- Tanto barulho por algumas gotas de "whisky" - replicou Betty sem se desconcertar. - Dei-lhes apenas um galão e eles são pelo menos uns vinte. Foi só para os fazer dormir, à laia de supurativo, como o senhor diz.

Lawton e o doutor entraram no hotel Flanagan e os primeiros objectos que viram deram-lhes a entender o sentido escondido das agradáveis promessas da hospedeira. Uma longa mesa formada por pranchas arrancadas a um tabique ocupava o meio da maior sala da casa e sobre ela via-se espalhada a pouca loiça de faiança que a dona da casa possuía. Um odor agradável saía da casa contígua que servia de cozinha; mas o que sobretudo atraía a atenção era um garrafão de grandes dimensões que Betty colocara ostensivamente sobre um banco no meio da mesa, como sendo o objecto que merecia fixar os olhares. Lawton em breve foi informado ser o licor que nele se encontrava o verdadeiro sumo de uva, oferta enviada de Sauterelles para o major Dunwoodie pelo seu amigo Wharton, capitão do exército real.

- E é um presente verdadeiramente real - acrescentou o sargento que lhe deu estes pormenores. - O major regala-nos em honra da vitória que alcançámos e veja que, como é da praxe, é o inimigo que paga as principais despesas. Mil deuses! - exclamou batendo no estômago - quando tivermos aqui alguns cartuchos destas munições, creio que estaremos em estado de raptar Sir Henry do seu quartel general!

Lawton não se aborreceu absolutamente nada ao encontrar esta ocasião de terminar o dia tão agradavelmente como tinha começado. Rapidamente se viu rodeado dos seus camaradas com os quais começou a conversar, enquanto o doutor fazia a sua ronda para visitar os feridos. O fogo que ardia numa imensa chaminé era tão brilhante e produzia uma chama tão viva que não tinham necessidade de acender as velas. Os militares reunidos nesta sala eram na maioria jovens, todos de uma bravura comprovada, em número de doze a quinze e as suas maneiras assim como os seus discursos ofereciam uma singular mistura de elegância da cidade e da rudeza do campo. Os seus fatos estavam limpos, sendo embora simples e o assunto inesgotável das conversas eram as qualidades e os feitos dos seus cavalos.

Uns procuravam dormir, estendidos em bancos colocados ao longo das paredes; outros passeavam-se pelas salas; muitos discutiam acaloradamente questões relativas à profissão. De tempos a tempos, a porta da cozinha abria-se e ouvia-se o barulho dos fritos que estalavam na frigideira e uma nuvem de vapores odoríferos espalhava-se no salão. Então todas as conversas eram interrompidas, todos os olhares se dirigiam para o santuário e mesmo os que dormiam entreabriam os olhos para reconhecer o estado dos preparativos.

Dunwoodie sentado junto do fogo parecia entregar-se aos seus pensamentos e nenhum dos oficiais ousava procurar distraí-lo. Quando Sitgreaves entrara, tinha-lhe feito um grande número de perguntas sobre o estado de saúde do capitão Singleton. Durante esse tempo um silêncio respeitoso reinara em toda a sala, mas mal se dirigiu para o lugar que antes ocupava, viu-se renascer o tom de à-vontade e de liberdade que reinava até então.

O arranjo da mesa não dava grande canseira à senhora Flanagan e César teria ficado estranhamente escandalizado se tivesse visto os pratos parecidos uns com os outros servidos sem cerimónia a tantas pessoas de consideração. No entanto ao tomarem lugar à mesa, todos tiveram o cuidado de se porem no lugar a que o seu posto lhes dava direito; porque apesar da liberdade que reinava num festim de alegria, as regras da etiqueta militar eram sempre observadas com um respeito quase religioso.

A maior parte dos convivas estivera em jejum demasiado tempo para ser difícil no paladar; mas não era o caso do capitão Lawton. Os pratos preparados pelas mãos de Betty causaram-lhe uma repugnância invencível; não pôde impedir-se de fazer uma observação ao ver a ferrugem que roía as facas e o pó que cobria os pratos. O bom carácter de Betty e o afecto natural que tinha pelo culpado levaram-no a suportar por algum tempo esta mortificação em silêncio. Mas, por fim, bocejando, aventurou-se a servir-se de uma fatia de carne escura colocada à sua frente e depois de ter voltado na boca um bocado durante um minuto ou dois fazendo vãos esforços por o mastigar, afirmou bem humorado:

- Senhora Flanagan, que nome usava em vida o animal cujos restos aqui estão?

- Infelizmente, capitão, era a minha pobre vaca! - respondeu a hospedeira com uma emoção causada em parte pelo descontentamento das queixas do seu favorito, e em parte pelo desgosto de ter perdido esse útil animal.

- O quê? A velha Jenny? - exclamou o capitão numa voz de trovão, detendo-se no instante em que se preparava para engolir como uma pílula o pedaço que já desesperava poder dividir.

- Que diabo! - gritou outro oficial deixando cair a faca e o garfo. - Aquela que fez a campanha connosco no Jersey?

- Ela própria - respondeu a dona do hotel com um ar lamentável. - É muito duro, meus senhores, ter de comer uma amiga de há tão longa data!

- Muito duro - repetiu Lawton. - E aqui está o que lhe aconteceu! - acrescentou dirigindo para o prato a ponta da faca.

- Vendi dois quartos aos soldados da sua companhia, capitão - acrescentou Betty. - Mas por nada lhes disse que era a sua velha amiga; tinha medo de lhes tirar o apetite.

- Mil demónios! - exclamou o capitão com uma cólera afectada - que farei dos meus dragões se os habitua a tais guloseimas? Terão medo de um inglês como um escravo negro teme o seu senhor.

- Pois bem! - disse o tenente Mason deixando cair a faca e o garfo com uma espécie de desespero - o meu maxilar tem mais sensibilidade do que o coração de muitas pessoas. Recusa-se absolutamente a mastigar os restos de uma antiga conhecida.

- Experimente uma gota do presente do capitão Wharton - disse Betty enchendo uma chávena com o vinho contido no garrafão e bebendo-a como se tivesse sido encarregada das funções de provador. - Por minha fé - disse seguidamente - afinal não é grande coisa; não tem mais alma do que a cerveja.

O gelo estava quebrado, ofereceram um copo de vinho ao major Dunwoodie que o bebeu brindando aos companheiros no meio de um profundo silêncio. Em seguida foi observado todo o cerimonial habitual dos brindes políticos. No entanto o vinho produziu o seu efeito normal e antes da segunda sentinela, de quarto à porta, ter sido rendida, já ninguém pensava nem no jantar que precedera nem nas preocupações que podiam ter. O doutor Sitgreaves não voltara a tempo de saborear os pratos preparados a expensas da pobre Jenny, mas não demasiado tarde para participar do presente do capitão Wharton.

- Uma canção, capitão Lawton! Uma canção! - gritaram ao mesmo tempo dois ou três oficiais notando que o camarada não estava de humor tão alegre como de costume. - Silêncio! O capitão Lawton vai cantar.

- Meus senhores, - disse o capitão animado pelos copos que bebera, embora a cabeça estivesse firme como uma rocha - não sou de modo algum rouxinol, mas, já que o desejam, cantarei de boa vontade.

- Jack! - exclamou Sitgreaves, balançando-se na cadeira. - Cante a música que lhe ensinei e... espere, tenho no bolso uma cópia da letra.

- Não se dê ao trabalho de a procurar, meu caro doutor - disse o capitão enchendo o copo com muito sangue-frio. - Não poderia nunca fazer uma conversão em torno dos nomes bárbaros dessa canção. Meus senhores, vou oferecer-lhes uma humilde amostra da minha habilidade.

- Silêncio, meus senhores! Oiçam o capitão Lawton! - gritaram ao mesmo tempo cinco ou seis vozes.

E o dragão numa voz bela e sonora cantou os seguintes versos sobre uma música para beber muito conhecida e a maior parte dos camaradas repetia o refrão com um ardor que abalava o edifício arruinado:

Passem a garrafa, alegres camaradas, e vivamos enquanto podemos. O dia de amanhã pode trazer o fim dos vossos prazeres, porque a vida do homem é curta e aquele que combate com bravura pode ver acelerar-se o fim do contrato da sua vida.

Velha tia Flanagan, vem encher os nossos copos; porque tu podes enchê-los, como nós podemos esvaziá-los, boa Betty Flanagan.

Se o amor da vida se apoderou do vosso coração, se o amor das vossas riquezas ocupa o vosso corpo, deixai o caminho da honra e saboreai um repouso pacífico, ostentando o nome de cobarde; porque tarde ou cedo, conhecemos o perigo, nós que nos aguentamos firmes na sela.

Velha tia Flanagan, etc.

Quando os inimigos estrangeiros invadem o nosso país e que as nossas mulheres e noivas nos chamam para as defender, defenderemos corajosamente a causa da liberdade, ou sucumbiremos do mesmo modo corajoso. Seremos donos do belo país que o céu nos deu ou iremos viver no céu.

Velha tia Flanagan, etc.

A cada vez que se cantava o refrão, Betty não deixava de avançar e obedecer literalmente à ordem que este continha, para grande satisfação de todos os cantores e talvez também para sua. A hospedeira servia-se de uma bebida mais própria para um palato acostumado aos licores fortes, e por este meio caminhava bastante facilmente num passo igual para a alegria um pouco ruidosa à qual tinha chegado a maioria dos convivas.

Todos cobriram de aplausos prolongados a canção do capitão, à excepção do cirurgião que se levantara durante o primeiro coro e se passeava de cá para lá num transporte de indignação clássica. Os "bravo! bravíssimo!" abafaram por algum tempo qualquer outro ruído, mas assim que o tumulto começou a decrescer, o doutor voltou-se para o cantor e disse-lhe acaloradamente:

- Capitão Lawton, surpreende-me que um homem bem nascido, um bravo oficial, não possa nestes tempos de provação, encontrar para a sua musa um assunto mais conveniente além de indignas invocações a uma prostituta do corpo de guarda, a essa Betty Flanagan. Parece-me que a deusa da liberdade poderia fornecer inspirações mais nobres e a opressão da nossa pátria um tema mais feliz.

- Por minha fé! - gritou a hospedeira avançando para ele os punhos apoiados nas ancas. - E quem é aquele que me insulta? É o senhor mestre Emplastro, mestre Seringa, mestre...

- Calma! - disse Dunwoodie numa voz que não se elevava acima do tom normal, mas que foi seguida de um silêncio semelhante ao da morte. - Mulher, saia desta sala; doutor Sitgreaves, retome o seu lugar à mesa e não perturbe a continuação dos nossos prazeres.

- Seja, seja! - disse o cirurgião empertigando-se com uma calma dignidade. - Orgulho-me, major Dunwoodie de conhecer um pouco das regras do decoro e de não ignorar completamente aquilo que se pode permitir numa reunião de amigos.

Betty fez uma rápida retirada embora não em linha recta para os domínios da sua cozinha, não estando habituada a replicar a uma ordem do oficial comandante.

- O major Dunwoodie dar-nos-á a honra de cantar uma canção sentimental? - disse Lawton fazendo uma vénia ao seu chefe com a delicadeza de um homem bem nascido e com aquele ar de sangue-frio que tão bem sabia tomar.

Dunwoodie hesitou um instante e depois cantou, numa perfeita execução, os seguintes versos:

Uns gostam do calor dos climas meridionais, onde um sangue ardente circula com rapidez nas veias; eu prefiro a claridade duvidosa que os mais doces raios da lua reflectem tremendo.

Outros gostam das cores brilhantes da tulipa onde o ouro disputa o azul com um brilho esplêndido; mas mais feliz é aquele cuja grinalda nupcial, entrançada pelo amor, exala o doce perfume da rosa.

A voz de Dunwoodie não perdia em nenhuma ocasião a sua autoridade sobre os oficiais subalternos e os aplausos que se seguiram à canção, embora menos ruidosos que os que o capitão Lawton obtivera, foram muito lisonjeiros.

- Senhor, - disse o doutor depois de ter unido os seus aplausos aos dos companheiros - se quisesse aprender a juntar algumas alusões clássicas à sua imaginação, tornar-se-ia um belo poeta amador.

- Aquele que critica deve estar apto a executar - disse o major sorrindo. - Desafio o doutor Sitgreaves a dar-nos uma amostra do estilo que admira.

- Sim, sim - gritaram todos os convivas deliciados. - O doutor tem de cantar! Uma ode clássica do doutor Sitgreaves!

O doutor mostrou o seu contentamento fazendo uma vénia a todos os companheiros e depois de ter tossido duas ou três vezes em forma preliminar, para grande prazer dos jovens clarins que estavam ao fundo da mesa, cantou numa voz de cana rachada desafiando a cada nota os versos seguintes:

A flecha do Amor já vos feriu alguma vez, minha querida? Já exalaste um trémulo suspiro? Pensaste naquele que se encontrava muito longe e continuava sempre presente a teus olhos brilhantes? Então sabes o que é experimentar um mal que a arte de Galiano não pode curar.

- Hurra! - exclamou Lawton com um transporte fingido. - Archibald eclipsa as próprias musas. Os seus versos correm com a mesma suavidade do ribeiro que serpenteia num bosque à meia-noite, e a sua voz é uma raça cruzada de rouxinol e mocho.

- Capitão Lawton, - retorquiu o cirurgião furioso - é ridículo desprezar as luzes dos conhecimentos clássicos e é-o também fazer-se desprezar pela ignorância.

Grandes pancadas batidas à porta fizeram cessar de repente o tumulto, e os oficiais pegaram à pressa nas suas armas para estarem prontos para qualquer acontecimento. A porta abriu-se e os Skinners entraram trazendo com eles o bufarinheiro curvado sob o peso do fardo.

- Qual de vós é o capitão Lawton? - perguntou o chefe do grupo olhando com alguma surpresa para os oficiais reunidos.

- Aqui está, esperando saber o que desejam - disse o capitão num tom seco mas com perfeita calma.

- Nesse caso é entre as suas mãos que entrego um traidor já condenado. Aqui tem Harvey Birch, o bufarinheiro, o espião.

Lawton estremeceu ao encarar o seu antigo conhecido; voltando-se para o Skinner e franzindo as sobrancelhas disse-lhe:

- E quem é o senhor para falar tão livremente do seu próximo?

- Perdão - acrescentou inclinando a cabeça para Dunwoodie. - Aqui está o oficial comandante; é a ele que se deve dirigir.

- Não - respondeu o Skinner num tom desabrido. - É a si que entrego o espião e é de si que espero a recompensa prometida.

- O senhor é Harvey Birch? - perguntou Dunwoodie ao vendedor ambulante avançando com uma autoridade que fez recuar o Skinner para um canto da casa.

- É o meu nome - respondeu Birch com ar orgulhoso.

- O senhor é culpado de traição para com o nosso país - continuou Dunwoodie num tom firme. - Sabe que tenho direito de mandar executar a sentença pronunciada contra si?

- Não é vontade de Deus que uma alma seja enviada tão precipitadamente para a sua presença - respondeu o bufarinheiro num tom solene.

- É certo - disse Dunwoodie. - Por isso serão concedidas mais algumas horas à sua vida. Mas como a espionagem é um crime imperdoável segundo as leis de guerra, prepare-se para morrer amanhã às nove horas da manhã.

- Que se cumpra a vontade de Deus! - respondeu Harvey com a maior impassibilidade.

- Passei muito tempo a vigiar o malandro - disse o Skinner aproximando-se do major - e espero que me dê um certificado para receber a recompensa. Foi prometida em ouro.

- Major Dunwoodie - disse o oficial que estava de guarda nesse dia, entrando no quarto-uma patrulha informou que uma casa foi queimada a noite passada no vale, quase em frente do local onde se travou combate.

- É a cabana do bufarinheiro - disse o Skinner a meia-voz. - Não lhe deixámos o abrigo de uma única telha. Há muito que a teria queimado mas era preciso primeiro servir-me dela como de uma ratoeira para apanhar a raposa.

- Parece um patriota muito habilidoso - disse Lawton com muita gravidade.

- Major Dunwoodie, permite-me apoiar o pedido desta digna personagem e encarregar-me de lhe pagar a recompensa que lhe é devida assim como aos companheiros?

- Encarregue-se disso - disse o major. - E o senhor, infeliz, prepare-se para a morte que terá de enfrentar amanhã, antes do pôr-do-sol.

- A vida tem poucas coisas que me possam tentar - disse Harvey erguendo lentamente os olhos e olhando com um ar perdido as caras que o rodeavam.

- Vamos, dignos filhos da América - disse Lawton aos Skinners - sigam-me; venham receber a recompensa que lhes é devida.

O grupo não se fez rogado e seguiu o capitão para o local em que estava acantonada a companhia.

Dunwoodie ficou por instantes silencioso, não gostando de triunfar sobre um inimigo abatido. Por fim, voltando-se para o bufarinheiro, disse-lhe gravemente:

- O senhor já foi julgado, Harvey Birch, e provou-se que era um inimigo demasiado perigoso para a liberdade da América para que possa ser deixado em vida.

- Provou-se! - repetiu o vendedor estremecendo e endireitando-se com orgulho, de modo a mostrar que o peso do fardo não era nada para ele.

- Sim, provou-se. Foi condenado por espiar os movimentos do exército continental, por avisar os nossos inimigos e assim fornecer-lhes meios de gorar os projectos de Washington.

- Acredita que Washington diria o mesmo? - perguntou Birch empalidecendo.

- Sem dúvida: é o próprio Washington que pronuncia a sua sentença pela minha boca.

- Não, não, não! - gritou Harvey com uma vivacidade que fez estremecer Dunwoodie. - Washington tem o olhar mais agudo que tantos pretensos patriotas. Não foi ele próprio que jogou a sua fortuna num só dado? Se estão a preparar a forca para mim, não prepararam uma para ele? Não, não, não! Washington não pronunciaria nunca essas palavras em minha intenção: Que seja enforcado.

- Tem algum motivo a fazer valer para recorrer à clemência do general comandante? - perguntou-lhe Dunwoodie quando se recompôs da surpresa causada pela energia do bufarinheiro.

Harvey tremeu dos pés à cabeça, de tal modo era violenta a luta interior dos seus pensamentos, e todas as suas feições se cobriram de uma palidez de morte. Tirou do peito uma pequena caixa de estanho, abriu-a e pegou num papel que estava dentro. Os seus olhos tornaram-se fixos por instantes; estendia já o braço para Dunwoodie para lho entregar; mas de repente retirou a mão e afirmou:

- Não, este segredo morrerá comigo. Sei qual é o meu dever e não comprarei a vida faltando a ele. Morrerá comigo!

- Dê-me esse papel e é possível que obtenha perdão - disse o major na expectativa de qualquer descoberta importante.

- O segredo morrerá comigo! - repetiu Birch cuja palidez dera lugar à mais viva vermelhidão.

- Agarrem esse traidor! - gritou Dunwoodie e arranquem-lhe esse papel.

Esta ordem foi executada num instante; mas o movimento do bufarinheiro ainda fora mais rápido e o papel foi engolido antes de terem tempo para se apoderarem dele. Todos os oficiais ficaram imóveis ao ver este acto de audácia e habilidade.

- Segurem-no - disse o doutor - segurem-no bem: vou administrar-lhe alguns grãos de emético.

- Não - disse Dunwoodie fazendo-lhe sinal para recuar - se o seu crime é grande, o castigo tem de ser exemplar.

- Levem-me então - disse o bufarinheiro deitando o fardo para o chão e dando alguns passos para a porta com uma dignidade inconcebível.

- Para onde? - perguntou Dunwoodie surpreendido.

- Para a forca.

- Ainda não - disse o major estremecendo pelo que a justiça exigia de si. - O meu dever obriga-me a ordenar a sua execução, mas não a pôr nela tanta precipitação.

Terá até amanhã de manhã às nove horas tempo para se preparar para a mudança terrível que se vai operar em si.

Dunwoodie deu as suas ordens em voz baixa a um oficial subalterno e fez sinal ao bufarinheiro para se retirar. A interrupção que este incidente tinha trazido aos prazeres desta reunião fez com que não se pensasse mais em prolongar a sessão. Os oficiais retiraram-se para os seus respectivos alojamentos e em breve não se ouvia outro ruído além dos passos pesados da sentinela que montava guarda na terra gelada em frente da porta do hotel Flanagan.

 

O oficial a quem Dunwoodie confiara o cuidado de guardar o prisioneiro livrou-se deste encargo a favor do sargento da guarda. O presente do capitão Wharton não se perdera para o jovem tenente; parecia-lhe que todos os objectos que tinha à sua frente sentiam uma vontade inexplicável de dançar e não se sentia em estado de resistirá natureza que lhe ordenava repouso. Depois de ter recomendado ao sargento que vigiasse o prisioneiro com a maior cautela, envolveu-se no casaco, estendeu-se num banco em frente do fogo e não tardou a gozar do sono que necessitava.

Um armazém grosseiramente construído estendia-se a todo o comprimento dos edifícios e a uma das extremidades tinham feito um pequeno quarto que servia principalmente de depósito dos utensílios de lavoura. A desordem do tempo tinha feito desaparecer todos os objectos que podiam ter qualquer valor e quando Betty Flanagan se instalara na casa, escolhera este reduto para dele fazer o seu quarto de dormir e a loja de todas as suas riquezas. As bagagens e o supérfluo dos armamentos tinham também sido colocados neste armazém e uma sentinela velava dia e noite pela segurança destes tesouros reunidos.

Outra sentinela, encarregada de velar pelos cavalos, podia também ver o exterior deste edifício grosseiro; e como não havia no quarto de que falámos senão uma porta e nenhuma janela, o prudente sargento julgou ser o melhor local para encerrar o prisioneiro até ao momento da execução.

Várias outras razões tinham decidido o sargento Hollistei a esta resolução. A primeira era a ausência de Betty Flanagan, estendida em frente do fogo da cozinha, sonhando que o regimento atacava um destacamento inimigo, e tomando a música nasal que ela própria produzia pelos clarins virginianos que tocavam para a carga. Outro motivo era tirado das opiniões particulares do veterano sobre a vida e a morte, opiniões que lhe tinham valido em todo o regimento uma reputação de piedade exemplar e de santidade de vida.

Hollister tinha mais de cinquenta anos e há perto de trinta que abraçara a profissão das armas. A morte depois de se ter mostrado tantas vezes a seus olhos e sob tão diversas formas, produzira nele um efeito completamente diferente daquele que frequentemente é consequência de tais cenas. Tinha-se tornado não somente o mais bravo soldado de todo o corpo de cavalaria como o mais digno de confiança; e o capitão Lawton recompensara-o pela sua boa conduta escolhendo-o para seu sargento auxiliar.

Em silêncio precedeu Birch para o quarto que lhe destinava como prisão. Ao abrir a porta com uma mão, enquanto segurava uma lanterna na outra, iluminou o bufarinheiro ao entrar. Sentando-se sobre um barril que continha a bebida favorita da hospedeira, fez sinal a Birch que se sentasse sobre outro e pôs a lanterna no chão. Olhando então para o prisioneiro, disse-lhe:

- Você tem ar de estar disposto a enfrentar a morte como um homem e trouxe-o para aqui onde poderá entregar-se tranquilamente aos convenientes pensamentos e sem ser perturbado.

- Meu Deus! - disse Birch olhando para as paredes da prisão - que lugar para uma pessoa se preparar para entrar na eternidade!

- Quanto a isso - retorquiu Hollister - pouco importa em que lugar uma pessoa se dispõe a passar a última revista, desde que se ponha em estado de não ter de temer a justiça severa do comandante. Tenho aqui um livro do qual não deixo nunca de ler alguns capítulos na véspera de qualquer batalha; encontro nele a coragem para os momentos em que dela preciso.

Ao dizer estas palavras, tirou do bolso uma pequena Bíblia e estendeu-a ao prisioneiro; Birch recebeu-a com o seu habitual respeito, mas os seus olhos desesperados e o ar distraído fizeram o sargento julgar que o temor da morte era o único assunto que o preocupava e achou dever tentar lembrar-lhe os sentimentos religiosos.

- Se há qualquer coisa que lhe pesa na consciência, este é o momento de pensar nisso. Se cometeu alguns erros e se for possível repará-los, prometo-lhe, sob palavra de um honesto dragão, ajudá-lo a fazer esse dever se for capaz.

- Quem se pode orgulhar de ter vivido sem cometer erros? - disse Harvey lançando um olhar distraído ao guarda.

- É verdade. O homem é naturalmente fraco; faz algumas vezes o que desejaria depois não ter feito. Mas no fim de contas não gosta de morrer com a consciência demasiado carregada.

Entretanto Harvey examinara bem o local no qual devia passar a noite e não viu qualquer meio de se escapar. Mas a esperança é o último sentimento a morrer no coração do homem; e deu então toda a sua atenção ao sargento que falava com ele. Fixou nele um olhar tão penetrante que Hollister baixou os olhos:

- Ensinaram-me a depor o fardo dos meus erros aos pés do Salvador.

- Isso está bem. Mas tem de se fazer justiça a quem se deve, se é possível. Passaram-se muitas coisas neste país desde que começou a guerra; muitas pessoas foram despojadas do que legitimamente lhes pertencia. Eu mesmo tenho algumas vezes escrúpulos sobre aquilo de que me aproprio nas ocasiões em que a pilhagem nos tem sido permitida.

- Estas mãos - disse Birch estendendo os dedos magros com uma espécie de orgulho - consagraram muitos anos ao trabalho, mas nunca roubaram nada.

- Continua a estar bem e deve ser para si uma grande consolação. Há três pecados principais e aquele que tem a consciência tranquila a esse respeito pode esperar com a graça do céu ser um dia passado em revista com os santos do céu: são o roubo, o assassínio e a deserção.

- Graças a Deus - disse Birch - nunca tirei a vida ao meu semelhante.

- Oh! matar um homem em batalha ordenada, não é um pecado; é apenas fazer o seu dever - replicou Hollister que no campo de batalha era um imitador zeloso do seu capitão. - E se a causa da guerra é injusta, a falta, como deve saber, cai sobre a nação e um homem recebe o castigo aqui em baixo com o resto do povo. Mas o assassínio cometido a sangue-frio é o maior crime aos olhos de Deus depois da deserção.

- Nunca servi, por isso não pude desertar - disse o bufarinheiro apoiando a cabeça sobre uma mão, numa atitude melancólica.

- Mas pode desertar-se sem abandonar a sua bandeira embora essa deserção seja sem dúvida a mais criminosa de todas. Por exemplo, pode desertar-se a... causa do seu país na hora em que é necessária - acrescentou, hesitando, mas acentuando estas últimas palavras.

Harvey apoiou a cabeça nas mãos e todo o seu corpo tremeu de emoção. O sargento observou-o atentamente por sua vez. Tinha uma antipatia natural para com um homem que considerava como traidor ao seu país; mas o zelo religioso levou a melhor.

- E no entanto - acrescentou num tom mais suave - é um crime que pode obter perdão por meio de arrependimento. Que importa a maneira como um homem morre e a altura da sua morte desde que morra como homem e como cristão? Passe algum tempo a rezar e tente depois descansar um pouco, para poder mostrar-se como um e outro. Não espere obter perdão, porque o coronel Singleton deu ordens formais para que a sentença passada contra si fosse executada no momento em que o capturassem. Repito-lhe, não tenha esperanças, nada o pode salvar.

- Sei-o - afirmou Birch - mas é demasiado tarde. Destrui a minha única salvaguarda.

- Que salvaguarda?

- Nada - respondeu o vendedor ambulante retomando o seu modo natural e baixando a cabeça para evitar os olhares penetrantes do companheiro; mas pelo menos ELE prestará justiça à minha memória.

- ELE quem?

- Ninguém - disse Harvey parecendo evidentemente não querer dizer mais.

- Nada e ninguém. Isso não lhe será de uma grande utilidade - disse o sargento levantando-se para se ir embora. - Vamos, tente tranquilizar-se; voltarei para o ver quando amanhecer. Não gosto de ver enforcar um homem como um cão.

- Pode poupar-me a essa morte ignominiosa - gritou Birch levantando-se com vivacidade e agarrando o braço do sargento. - Oh! o que eu não daria para o recompensar!

- E como? - perguntou Hollister com um ar surpreendido.

- Veja - disse o bufarinheiro mostrando-lhe vários guinéus; - isto não é nada comparado com o que lhe darei se quiser favorecer a minha evasão.

- Mesmo que você fosse o homem cuja imagem se vê nessas moedas de ouro, não poderia levar-me a cometer semelhante crime - respondeu o dragão deitando os guinéus para o chão com desprezo. - Vá, vá, pobre miserável, faça as pazes com Deus, porque só a ele pode recorrer agora.

O sargento voltou a pegar na lanterna, com uma espécie de indignação e deixou o bufarinheiro livre para meditar tristemente sobre o seu próximo fim. Birch deixou-se cair de desespero sobre a tarimba de Betty, enquanto o sargento dava ordem à sentinela de o guardar com cuidado, terminando os seus conselhos dizendo:

- Não deixe aproximar ninguém do prisioneiro e pense que se ele se escapa, tem de responder com a sua vida.

- Mas as minhas ordens são de deixar entrar e sair Betty Flanagan quando lhe apetecer - respondeu a sentinela.

- Tanto melhor - replicou Hollister - mas tenha cuidado não vá o astuto bufarinheiro sair escondido nas pregas das saias dela.

Pôs-se a caminho e foi dar as mesmas instruções às outras sentinelas que estavam de atalaia perto deste local.

Durante algum tempo depois da partida do sargento o silêncio reinou na prisão solitária do vendedor ambulante. Por fim, o dragão que guardava a porta, ouviu o ruído de uma respiração forte que rapidamente se transformou num ressonar muito sonoro; continuou a fazer a sua guarda reflectindo sobre a indiferença que um homem que dormia na véspera de ser enforcado devia ter pela vida. Além disso, o nome de Harvey Birch era tido em demasiado horror por todo o regimento para que na alma do dragão se elevasse qualquer sentimento de comiseração. Talvez não houvesse outro homem que lhe falasse com tanta bondade como Hollister e que não tivesse imitado a conduta do veterano recusando as mais sedutoras ofertas, embora provavelmente por motivos menos meritórios.

O soldado que o guardava experimentava mesmo um sentimento secreto de despeito ao ouvir o prisioneiro gozar de um sono de que ele próprio se via privado e dar, deste modo, provas de tanta indiferença pelo castigo mais severo que as leis de guerra podem infligir aos traidores. Mais de uma vez esteve tentado a perturbar este repouso extraordinário do bufarinheiro enchendo-o de censuras e injúrias; mas a disciplina à qual estava submetido e uma vergonha involuntária da sua brutalidade retiveram-no nos limites da moderação.

A hospedeira interrompeu os seus pensamentos. Chegou por uma porta comunicando com a cozinha proferindo maldições contra os impelidos dos oficiais que pelas suas brincadeiras tinham perturbado o sono que gozava junto do fogo. A sentinela compreendeu o suficiente das suas imprecações para saber do que se tratava, mas todos os seus esforços para conversar com esta mulher furiosa foram inúteis e deixou-a entrar no quarto sem lhe explicar que estava já ocupado.

Ela caiu pesadamente sobre a cama; mas rapidamente depois de um momento de silêncio, a sentinela voltou a ouvir a respiração ruidosa do bufarinheiro. Nesse momento vieram render a guarda e a sentinela ainda excessivamente picada com a indiferença do prisioneiro, depois de ter transmitido as ordens ao dragão que o ia substituir, disse-lhe voltando para o corpo da guarda:

- Podes dançar para aquecer os pés, John. O espião afinou o seu violão; não o ouves? e daqui a pouco Betty fará um duo com ele.

O cabo e os dragões que o acompanhavam responderam a esta graça com grandes gargalhadas e partiram para continuar a ronda. Alguns instantes depois, a porta do quarto abriu-se e Betty, depois de sair, tomou o caminho da cozinha:

- Alto aí! - gritou a sentinela segurando-a pelo vestido. - Tem a certeza que o espião não está escondido nos seus bolsos?

- Não o ouve ressonar no quarto, seu canalha? - exclamou Betty tremendo de raiva. E é assim que tratam uma mulher honesta! Pôr um homem a dormir no meu quarto, seu cão danado!

- Bah! Bah! - exclamou o dragão - que grande infelicidade!

Um homem que amanhã será enforcado! Está a ouvir como ele já ressona; mas amanhã começará um sono mais longo.

- Abaixo as mãos, malandro! - gritou a hospedeira abandonando uma pequena garrafa que o dragão conseguira arrancar-lhe.-Vou procurar o capitão Jack e saberei se foram ordens suas mandar pôr um animal de um espião para ser enforcado no meu quarto, na cama de uma viúva, seu ladrão!

- Silêncio, velha Jezabel - gritou a sentinela retirando da boca o gargalo da garrafa para tomar fôlego - ou ainda acorda o prisioneiro. Quer perturbar o último sono de um homem?

- Acordarei o capitão Jack, celerado, e trá-lo-ei aqui para me fazer justiça. Castigá-los-á a todos por insultarem uma viúva decente, cão vadio.

A estas palavras o dragão riu-se. Betty deu a volta ao edifício e dirigiu-se para o quartel do seu favorito, o capitão Lawton para invocar justiça. No entanto, nem o oficial nem a hospedeira voltaram durante toda a noite, ambos diferentemente ocupados e não se deu mais nenhum incidente capaz de perturbar o sono do bufarinheiro que, para grande surpresa da sentinela, provava, continuando a ressonar, que a ideia da forca não tinha poderes de interromper o seu sono.

 

Os Skinners seguiram o capitão Lawton até às instalações que tinham sido destinadas à companhia deste oficial. O capitão dos dragões que sempre demonstrara ter o maior zelo pela causa que abraçara, desprezava de tal forma o perigo quando se tratava de combater o inimigo que, nestas alturas, tomava um aspecto terrível para o qual contribuía a sua estatura e o seu olhar severo e muita gente o supunha diferente daquilo que ele era, dando à sua bravura o nome de ferocidade, ao seu zelo impetuoso o de sede de sangue. Ao contrário, alguns actos de clemência, ou para melhor dizer de justiça imparcial, tinham levado alguns que conheciam mal Dunwoodie a atribuir-lhe uma tolerância culpável. Somos assim levados a concluir que a opinião pública se engana muitas vezes nos seus julgamentos e na forma como distribui os elogios ou as censuras.

Enquanto estivera na presença do major, o chefe dos Skinners mostrara o constrangimento daqueles que mergulhados no vício não conseguem defender-se quando se encontram na companhia de uma pessoa virtuosa. Sentia-se mais à vontade com Lawton, cuja alma julgava mais ou menos semelhante à sua. Com efeito, desde que não estivesse com os seus amigos íntimos, Lawton tinha um ar grave e austero que enganava toda a gente e era voz corrente na companhia que o capitão só se ria quando ia castigar. Aproximando-se dele com um sentimento de satisfação íntima, o Skinner entabulou a seguinte conversa: - É sempre bom saber distinguir os amigos dos inimigos. A esta frase que servia de prefácio, o capitão limitou-se a responder com um som ininteligível que, no entanto, parecia indicar aprovação.

- Suponho que o major Dunwoodie está nas boas graças de Washington? - continuou o Skinner num tom mais de dúvida do que de interrogação.

- Há pessoas que estão convencidas disso - respondeu Lawton com indiferença.

- Os verdadeiros amigos do Congresso e do país - retorquiu o Skinner - gostariam que o comando da cavalaria fosse confiado a outro oficial. Quanto a mim, se estivesse apoiado por um corpo de bons cavaleiros, podia fazer serviços mais importantes do que apanhar um espião.

- Sim! - disse o capitão tomando um tom de familiaridade; - e que serviços?

- Quanto a isso, seria tão bom para o oficial como para nós próprios-acrescentou o Skinner olhando de forma expressiva para Lawton.

- Mas que serviços? - perguntou o capitão, já um pouco impaciente, apressando o passo para que os outros não pudessem ouvir a sua conversa.

- Bem perto das linhas do exército real, quase sob os canhões das suas baterias, poder-se-iam fazer golpes excelentes se eu tivesse uma força de cavalaria para nos proteger contra a de Delancey, e para impedir que nos cortassem a retirada por King Bridge.

- Estava convencido que os Vaqueiros não deixavam nada para os outros fazerem.

- Por Deus, eles não se esquecem; mas são obrigados a poupar um pouco a gente do seu partido - disse o indivíduo com toda a confiança. - Já por duas vezes que entro em acordo com eles: da primeira agiram honradamente, mas, da segunda, traíram-nos, caíram sobre nós e apoderaram-se dos lucros.

- Bandidos infames! - exclamou Lawton com gravidade. - Surpreende-me que tenha entrado em negociações com tal gente.

- Era preciso para a nossa segurança que nos entendêssemos com alguns deles; todavia um homem sem honra é pior que um bruto. Acha que se pode confiar no major Dunwoodie?

- Quer dizer segundo os princípios da honra? - perguntou Lawton.

- Sem dúvida. Como sabe, Arnold gozava de boa reputação até à captura de um tal major do exército real.

- Por Deus, não creio que Dunwoodie quisesse vender o seu país como Arnold estava disposto a fazer; e não creio que se pudesse confiar inteiramente nele se se tratasse de um assunto tão delicado como este de que fala.

- É precisamente o que eu pensava - replicou o Skinner satisfeito consigo mesmo e contente com a sua perspicácia.

Tinham chegado a uma grande quinta cujas casas estavam em bom estado se atendermos às circunstâncias do momento.

Os dragões completamente fardados, estavam deitados nos celeiros, e os cavalos selados, bridados e preparados para serem montados ao primeiro sinal, comiam tranquilamente a forragem debaixo de uma cobertura que os punha ao abrigo do vento frio do norte. Lawton pedindo aos Skinners para esperarem um momento entrou nos seus aposentos. Voltou pouco depois com uma lanterna de cavalariça na mão e conduziu-os para o pomar que rodeava a casa por três lados. O grupo seguiu o chefe em silêncio estando este convencido que o capitão os levava para um sítio onde pudessem falar à vontade, sem correr o risco de serem ouvidos.

Aproximando-se do capitão, e querendo ganhar a confiança de Lawton manifestando-lhe uma opinião favorável sobre a sua inteligência, o chefe dos salteadores, procurou retomar a conversa.

- Acha que as colónias levarão a melhor ao rei? - perguntou num tom importante de um político profissional.

- Estou convencido que sim! - afirmou Lawton abruptamente e recobrando o sangue-frio repetiu: - estou convencido que isso acontecerá. Se a França nos der dinheiro e armas podemos pôr os exércitos reais em debandada em seis meses.

- Assim o espero - retorquiu o Skinner lembrando-se que por mais de uma vez tinha projectado juntar-se aos Vaqueiros. - Teremos então um governo livre e aqueles que combatem por ele serão recompensados.

- Terão direitos incontestáveis e toda essa gente que vive calmamente nas suas casas sofrerá o desprezo que merece. Tem alguma quinta?

- Ainda não; mas sentir-me-ei vítima da infelicidade se não conseguir uma antes de se fazer a paz.

- Muito bem: sonhar com os seus interesses é sonhar com os interesses do país. É preciso fazer valer os serviços prestados, gritar contra os Torys, e aposto as minhas esporas de prata contra um prego ferrugento como, ainda um dia, será, pelo menos, amanuense de condado.

- Não lhe parece que os homens de Paulding fizeram uma asneira deixando fugir o general-ajudante do rei? - perguntou o bandido sem reservas, confiado no tom em que o capitão lhe falava.

- Uma asneira! - disse Lawton sorrindo com amargura. - Sim, sem dúvida. O rei Jorge podia-lhes ter pago mais porque é mais rico. Teriam ficado ricos para a vida inteira. Mas, Deus seja louvado, reina no país um espírito que parece miraculoso. Pessoas que não têm nada procedem como se todas as riquezas dos índios fossem o preço da sua fidelidade. Ainda seríamos por muitos anos escravos da Inglaterra se todos os nossos compatriotas fossem tão miseráveis como o senhor.

- Como! - exclamou o Skinner dando um passo à retaguarda e deitando a mão à espingarda para atingir o capitão. - Estou a ser traído? É meu inimigo?

- Celerado! - gritou Lawton afastando a espingarda com o sabre, cuja lâmina tilintou na bainha - faz outro movimento para apontares a espingarda e eu abro-te a cabeça ao meio.

- É verdade que não nos vai pagar, capitão Lawton? - perguntou o homem ao ver um grupo de dragões que cercava, em silêncio, os seus companheiros.

- Pagar! Conto que vos paguem tudo o que lhes é devido. Tomem-disse o capitão deitando para o chão um saco cheio de guinéus. - Aqui está o dinheiro que o coronel Singleton mandou para que prendessem o espião. Baixem os braços, patifes, e verifiquem se o dinheiro está certo.

O grupo intimidado obedeceu a esta ordem, e enquanto os Skinners estavam agradavelmente ocupados vendo o seu chefe contar as peças de oiro, alguns dragões conseguiram tirar sem serem notados as pedras dos mosquetes.

- Muito bem! Está certo? - perguntou Lawton. - Está aí a recompensa prometida?

- Não falta nada - respondeu o chefe - e agora com sua licença retiramo-nos.

- Um momento! - replicou Lawton com a sua gravidade habitual. - Fomos fiéis às nossas promessas, agora vamos ser justos. Pagámos-lhes para prenderem um espião, agora vamos castigá-los como ladrões, assassinos e incendiários. Agarrem-nos, meus bravos, e tratem-nos segundo a lei de Moisés: quarenta chibatadas menos uma.

Uma ordem destas era uma festa para os dragões. Num abrir e fechar de olhos os Skinners viram-se sem roupa e atados com correias cada um à sua macieira. Num instante os sabres cortaram meia centena de ramos, e os dragões tiveram o cuidado de escolher os mais flexíveis.

Lawton deu o sinal para deitarem mãos à obra, recomendando-lhes com toda a humanidade para não excederem o número prescrito pela lei de Moisés; pelo pomar ergueram-se gritos semelhantes à torre de Babel. O chefe levantava a voz acima das vozes dos outros e tinha boas razões para isso: o capitão tinha advertido o dragão encarregado de administrar o correctivo que ele tinha negócios com um oficial superior e que devia imaginar-se a render-lhe as honras convenientes. A flagelação foi infligida com a maior ordem e brevidade; a única irregularidade foi os dragões só terem começado a contar os golpes depois de terem experimentado vergastas, a fim de, como diziam, reconhecerem os lugares onde deviam bater. Esta operação sumária terminou a contento do capitão, que ordenou aos dragões que deixassem os Skinners vestirem-se e montarem, dado que faziam parte de um destacamento que devia dirigir-se mais para o interior do condado.

- Como vê, meu caro amigo - disse o capitão ao chefe do grupo, quando este estava pronto para partir -, estou preparado para os apoiar e se nos voltarmos a encontrar mais vezes, prometo-lhes que ficarão cobertos de cicatrizes que se não forem muito honrosas são pelo menos muito merecidas.

O salteador não respondeu nada, e pegando na espingarda, fez sinal aos seus companheiros para partirem. Quando todos estavam prontos puseram-se em marcha na direcção a uns rochedos que não ficavam longe dali, a pouca distância dos quais ficava um espesso bosque. A lua erguia-se nesse momento, e era fácil distinguir os dragões que ainda estavam no mesmo lugar.

De repente os Skinners voltaram-se e enfrentando-os prepararam-se para disparar. Todos se aperceberam deste movimento, ouvindo barulho dos gatilhos contra os fechos e esta decisão foi saudada pelas gargalhadas dos soldados cujo capitão gritou:

- Ah! bandidos! Eu conheço-os e mandei tirar as pedras das espingardas.

- Falta a que ficou no meu bolso - respondeu o chefe, e quase no mesmo instante fez fogo. A bala assobiou aos ouvidos de Lawton que abanou a cabeça dizendo a sorrir que não fora apanhado por uma unha negra. Um dragão viu os preparativos do chefe dos Skinners, que ficara sozinho porque o resto do grupo ao ver esboçar-se um movimento de vingança fugira, procurando atirar um segundo projéctil. No momento em que o Skinner fez fogo o soldado fizera sentir a espora ao cavalo. A distância até aos rochedos não era grande, mas a necessidade de evitar a maior velocidade do cavalo fez com que o salteador, na sua precipitação, deixasse cair a espingarda e o saco com os guinéus. O dragão apanhou-o e quis entregar o dinheiro ao capitão. Lawton recusou dizendo-lhe para o guardar até o Skinner lho vir pedir pessoalmente.

Seria difícil aos tribunais então existentes nos Estados conseguirem que fosse executada uma ordem de restituição deste dinheiro, porque pouco depois o sargento Hollister distribuía equitativamente aquela soma por todos os homens da companhia. O grupo pôs-se em marcha para seguir ao seu destino e o capitão voltava para os seus aposentos com a intenção de se deitar. Nesse momento o seu olhar atento descobriu na orla do bosque, do lado por onde os Skinners tinham desaparecido, uma pessoa que passava por entre as árvores com passo rápido. Virando-se, o capitão aproximou-se com precaução e com grande surpresa sua verificou que era a hospedeira que andava sozinha àquelas horas num lugar tão solitário.

- O quê? ! Betty, é sonâmbula ou sonha acordada? Não tem medo de encontrar o espectro da velha Jenny na sua pastagem favorita.

- Ah! capitão Jack - respondeu ela com o seu modo ordinário bamboleando-se de tal forma que lhe era difícil manter a cabeça erguida -, não é Jenny nem o seu espectro que eu procuro, são ervas para os feridos, e elas têm mais virtude quando são colhidas ao erguer da lua. Vou buscá-las atrás destes rochedos e tenho de ir depressa senão o encanto perde-se.

- Que tolice - disse Lawton - faria muito melhor se estivesse na cama do que a andar por estes rochedos onde pode cair e partir os ossos. Além disso os Skinners acabaram mesmo agora de deixar estes lugares e podem querer vingar-se com a mesma disciplina que eu lhes administrei. Boa mulher, é melhor entrar e repousar porque ouvi dizer que partíamos amanhã de manhã.

Betty não ouviu este conselho e começou a andar em diagonal para os rochedos. Quando Lawton falou dos Skinners parou um instante, mas retomou a marcha e desapareceu por entre as árvores.

Ao chegar ao hotel Flanagan, o soldado que estava de sentinela à porta perguntou-lhe se tinha encontrado Betty, e acrescentou que ela acabava de sair proferindo ameaças contra os insolentes que a aborreciam e afirmando que ia procurar o capitão para lhe pedir justiça.

Lawton escutou esta história surpreendido, teve uma nova ideia e voltando atrás, ao pomar, começou a passear a passos largos diante da casa. Decidiu-se por fim a entrar e deitando-se sobre a cama sem se despir adormeceu rapidamente.

Entretanto, os salteadores tinham chegado ao cimo dos rochedos, e tinham dispersado em todos os sentidos pelo bosque espesso. Vendo que não eram perseguidos, e na verdade a perseguição era impossível para a cavalaria, o chefe assobiou para chamar o grupo que daí a pouco estava todo reunido num lugar onde não tinham nada a temer dos seus novos inimigos.

- Ora bem! - começou a dizer um dos salteadores enquanto os seus camaradas acendiam o lume para se defenderem do frio glacial da noite - depois disto não há mais nada a fazer em West Chester. Não tarda que tenhamos no nosso encalço esta cavalaria da Virginia.

- Era capaz de fazer correr o seu sangue mesmo que fosse morrer no instante seguinte - afirmou o chefe.

- Oh! és um valente aqui escondido no meio do bosque - retorquiu um outro num tom de troça. - Tu que te gabas de ser um atirador tão bom, como é que falhaste o teu homem a quarenta passos?

- Se aquele cavaleiro não viesse em minha perseguição teria feito tombar o capitão Lawton ali mesmo. Além disso o frio fazia-me tremer, não conseguia ter a mão firme.

- É melhor dizeres que estavas com medo e assim não mentes. Frio! Há-de passar muito tempo até eu o sentir. As minhas costas ardem como se tivesse estado na grelha.

- E todavia não pensas em vingar-te. Beijavas de boa vontade a vergasta que serviu para te bater.

- Beijá-la! Isso é difícil porque estou convencido que se serviram dela até ao último nó, nos meus ombros. Não deve haver um bocado suficientemente grande para um beijo.

Além disso prefiro ter perdido uns bocadinhos de pele do que tê-la deixado lá toda inteira, e, talvez, as duas orelhas. E é o que nos acontece se nos metemos no caminho deste virginiano. Dava-lhe de boa vontade parte do meu coiro para fazer umas botas, para salvar o resto. Se soubesses aproveitar a ocasião tinhas-te dirigido ao major Dunwoodie que não conhece nem metade das nossas obras.

- Silêncio, tagarela! - interrompeu furioso o chefe. - Uma pessoa fica doida só de te ouvir falar assim. Não chega termos sido roubados e espancados para ainda termos de ouvir as tuas patetices. Vamos lá! O melhor é abrirmos os sacos e vermos o que resta das nossas provisões. A melhor maneira de te fechar a boca é enchendo-a.

Todos obedeceram a esta ordem e no meio de gemidos e contorsões provocadas pelas dores das costas em carne viva, os Skinners iniciaram a refeição. Numa das grutas das rochas ardia um bom fogo de madeira seca e os homens iam-se pouco a pouco recompondo da confusão da fuga e recobrando os sentidos embrutecidos. Apaziguado o apetite, começaram a despir-se para pensar os ferimentos formulando ao mesmo tempo os seus planos de vingança.

Durante uma hora foram apresentados os mais diversos projectos de represálias; mas como era preciso que cada um se expusesse para os executar e como todos eles os expunham a grandes perigos iam sendo sucessivamente rejeitados. Era impossível atacar os dragões de surpresa porque a sua vigilância era sempre impecável. Além disso as probabilidades de encontrarem o capitão Lawton sozinho eram mínimas, porque ele estava sempre ocupado com os seus deveres militares e os seus movimentos eram tão rápidos que podia acontecer encontrarem-se no caminho. Todavia, não era nada certo que este encontro trouxesse qualquer vantagem para eles.

A destreza do capitão era bem conhecida, e embora West Chester fosse um território acidentado, o intrépido patriota havia ensinado o seu cavalo a dar saltos extraordinários e os muros de pedra não constituíam o mínimo obstáculo para uma carga de cavalaria virginiana. Pouco a pouco a conversa tomou outro rumo e o grupo aprovou um plano que parecia assegurar ao mesmo tempo vingança e proveito. A questão foi discutida com cuidado; a altura e a forma de execução foram fixadas; tudo estava combinado para este novo acto de banditismo, quando, tremendo, ouviram alguém dizer em voz alta:

- Por aqui, capitão Lawton! Por aqui! Vamos matar estes bandidos antes que tenham tempo de mudar de sítio! Depressa! Desça do cavalo e prepare as pistolas.

Estas palavras terríveis fizeram desmoronar toda a filosofia da quadrilha. Levantaram-se precipitadamente e embrenharam-se ainda mais no bosque, e como já tinham combinado um lugar para se encontrarem, dispersaram em todos os sentidos. Ouviram barulho e vozes de pessoas que se chamavam umas às outras; mas como os salteadores eram lestos ganharam depressa um bom avanço e consequentemente não podiam ouvir a conversa.

Daí a pouco Betty Flanagan surgindo da escuridão começou a guardar tranquilamente tudo o que os Skinners tinham abandonado ao fugirem, as provisões e os fatos que tinham deixado. A hospedeira sentou-se com o maior sangue-frio e com um ar todo satisfeito começou a comer. Deixou-se ficar uma hora a descansar com a cabeça apoiada na mão, entregue a profundas reflexões; escolheu depois entre a roupa dos Skinners aquela que lhe podia vir a convir e embrenhou-se na floresta, deixando o fogo a iluminar os rochedos em redor até que a última brasa se extinguiu e este lugar ficou entregue à solidão e às trevas.

 

Enquanto o sono fazia esquecer aos seus camaradas as fadigas e os perigos da sua profissão, Dunwoodie não conseguira mais do que um repouso muitas vezes interrompido pela agitação do seu espírito. Logo que os primeiros raios da aurora começaram a suceder à doce claridade da lua, deixou a cama onde se tinha deitado todo vestido, sentindo-se mais cansado do que quando se tinha deitado. O vento era menos intenso, a tempestade dissipara-se, e tudo prometia que o dia seria um daqueles belos dias de Outono que neste clima tão variável se seguem com uma rapidez mágica a uma tempestade. Ainda estava longe a hora em que a sua unidade devia mudar de posição, e como queria que os seus soldados tivessem tanto repouso quanto as circunstâncias o permitiam, avançou para o local em que se assistira ao castigo dos Skinners, pensando em todas as dificuldades da sua situação sem saber muito bem como conseguiria conciliar a delicadeza com o amor.

Outra das suas preocupações era a situação perigosa em que se encontrava Henry Wharton. Não tinha a mínima dúvida que a intenção do seu amigo não fora inteiramente pura, mas não era igualmente certo que um conselho de guerra partilhasse da mesma opinião, e independentemente da sua amizade por Henry, pressentia que se o irmão viesse a perecer, teria de renunciar a todas as esperanças de uma união com a irmã. Enviara na véspera um oficial ao coronel Singleton, que comandava os postos avançados, para lhe comunicar a detenção do capitão Wharton, para lhe dar conta da sua própria opinião sobre a inocência do preso e para perguntar o que devia fazer dele. As ordens do coronel podiam chegar de um momento para o outro e sentia aproximar-se o momento em que Henry deixaria de estar sob a sua protecção o que fazia redobrar a sua inquietação.

Com o espírito perturbado com estes pensamentos, tinha atravessado o pomar e chegado junto dos rochedos que tinham protegido a fuga dos Skinners na noite anterior, sem fazer ideia nenhuma do lugar onde o passeio o tinha conduzido. Preparava-se para regressar ao hotel Flanagan, quando ouviu uma voz que dizia:

- Pare ou morre!

Dunwoodie voltou-se surpreendido, e viu no alto de um rochedo a pouca distância dele um homem que segurava um mosquete e fazia pontaria. Ainda não estava luz suficiente para se poderem distinguir os objectos no meio da obscuridade produzida pelas árvores, pelo que teve de olhar uma segunda vez para, não sem espanto, ter a certeza que o homem que tinha diante de si era o bufarinheiro. Compreendendo o perigo desta situação, mas não querendo nem pedir um favor nem fugir, mesmo que isso fosse possível, disse com firmeza:

- Se quer matar-me faça fogo porque jamais me entregarei como prisioneiro.

- Não, major Dunwoodie, - respondeu Birch - não pretendo nem atentar contra a sua vida nem contra a sua liberdade.

- Que pretende então, ser misterioso? - perguntou Dunwoodie para se certificar se aquilo que estava a ver não era produto da sua imaginação.

- Que tenha uma boa opinião a meu respeito - respondeu com emoção Birch. - Gostaria que as pessoas honestas me julgassem com indulgência.

- A opinião dos homens deve ser-lhe totalmente indiferente - disse o major continuando a olhar para ele surpreendido - porque parece ter meios para se pôr ao abrigo dos seus julgamentos.

- Que Deus salve os seus servos quando lhe aprouver - afirmou em tom solene o bufarinheiro. - Ontem, ameaçava-me com o poder, era o senhor da minha vida; hoje a sua está à minha disposição; não me vou servir disso; é livre, major Dunwoodie, mas a pouca distância há outras pessoas que o tratariam de forma diferente. Para que é que lhe serviria o sabre contra um mosquete e uma mão segura? Tome o conselho de um homem que nunca fez mal a ninguém e que nunca fará: nunca passeie na orla de uma floresta se não estiver acompanhado e bem montado.

- Tem então camaradas que facilitaram a sua fuga e que são menos generosos?

- Não, não - exclamou Harvey num tom amargurado e com um olhar confuso. - Estou completamente sozinho, ninguém me conhece senão Deus e ELE.

- Que ELE? - perguntou o major sem conseguir dominar a sua curiosidade.

- Ninguém - respondeu o bufarinheiro com todo o sangue-frio. - Nada disto interessa, major Dunwoodie. O senhor é novo, é feliz, há pessoas que lhe querem bem e não estão longe daqui. Redobre a vigilância; um perigo iminente ameaça o que mais ama; tome todas as precauções; duplique as patrulhas, e não diga nada sobre esta advertência; com a opinião que faz de mim se eu dissesse mais alguma coisa ficaria a pensar numa emboscada; mas ainda e uma vez mais vele pela segurança de quem lhe é mais querido.

Ao dizer estas palavras, disparou o mosquete para o ar e arremessou-o aos pés de Dunwoodie. E, quando o major paralisado pela surpresa, olhou para o lugar onde estava o bufarinheiro não viu ninguém.

Esta cena extraordinária tinha produzido no major uma espécie de entorpecimento de que só saiu quando ouviu o som das trombetas e o barulho dos cavalos em marcha. O tiro havia atraído uma patrulha para este lado e todos se sentiam alarmados. Sem dar qualquer explicação Dunwoodie entrou nas instalações a que chamavam quartel general e encontrou todos os seus homens armados, a cavalo, aguardando o seu chefe com impaciência.

O oficial que tinha o dever de velar pelo cumprimento de tarefas como o arriar da bandeira já tinha mandado descer o pavilhão que fora hasteado no hotel Flanagan, e o pau que a segurava tinha sido arranjado de maneira a servir de poste de execução para o espião. O major, que tinha conhecimento do castigo que Lawton tinha mandado aplicar aos Skinners, mas que não queria que ninguém soubesse da sua entrevista com Birch, disse aos seus oficiais que tinha encontrado um mosquete que aqueles miseráveis tinham provavelmente abandonado na fuga, e que tinha sido ele próprio que o tinha disparado.

Perguntaram-lhe se o prisioneiro devia ser executado antes de se porem em marcha, e Dunwoodie como que para se convencer que o que acabava de ver não fora um sonho, foi, acompanhado por vários oficiais e precedido pelo sargento Hollister, ao sítio onde tinham encerrado o misterioso bufarinheiro.

- O preso está bem guardado - disse à sentinela que estava à porta.

- Ainda está a dormir - respondeu o dragão - e faz tanto barulho que mal ouvi as trombetas tocarem ao alarme.

- Abre a porta e traz-mo - ordenou o major a Hollister.

O sargento obedeceu imediatamente à primeira parte desta ordem; mas, com grande surpresa, o veterano encontrou a dependência na maior desordem. O fato do bufarinheiro estava no lugar onde ele próprio deveria estar, e uma parte do guarda-roupa de Betty estava espalhado pelo chão. A hospedeira estava deitada sobre a cama toda vestida sem sequer lhe faltar o chapéu de palha preta que trazia sempre e que estava tão deformado que muita gente afirmava que ela o usava tanto de dia como de noite. Dormia ainda profundamente quando Hollister entrou no quarto; mas o barulho das suas exclamações acabou por acordá-la.

- O que é isto? - perguntou ela levantando-se.- Querem tomar o pequeno almoço? Está a olhar para mim como se me quisesse engolir! Paciência, meu caro, paciência; vou fazer uns ovos como nunca viram.

- Com mil demónios! - exclamou o sargento, esquecendo as suas ideias religiosas e a presença dos oficiais - é realmente um rico prato! Já te frito, malvada; foste tu que deixaste fugir esse maldito bufarinheiro!

- Malvado é o senhor, sargento, e o cão do seu bufarinheiro! - gritou Betty cujo humor se azedava facilmente. - O que é que eu tenho a ver com os bufarinheiros e com as suas evasões? Sim, sem dúvida, poderia ser mulher de um bufarinheiro se tivesse tido o bom senso de me casar com Sawny Mac Twill em vez de ter ido atrás de uma súcia de vagabundos de dragões que não sabem como é que se trata decentemente uma viúva.

- O patife deixou a minha Bíblia -disse Hollister deitando-a ao chão. - Em vez de ocupar o tempo a lê-la para se preparar cristãmente para o fim preferiu procurar uma forma para se evadir.

- E quem é que queria ficar para ser pendurado como um cão?- perguntou Betty que começava a perceber o que tinha acontecido. Nem toda a gente é como o senhor que deseja esse fim, senhor Hollister.

- Silêncio! - ordenou Dunwoodie. - Meus senhores, este assunto precisa de ser esclarecido. Não há outra possibilidade de se sair senão pela porta, e o preso só podia sair se a sentinela tivesse sido subornada ou tivesse adormecido no seu posto. Chamem à minha presença todos os que estiveram aqui de serviço esta noite.

Faziam todos parte do corpo da guarda e apareceram imediatamente. Todos declararam que ninguém tinha saído durante o seu quarto. Um deles declarou que Betty tinha saído, mas que ele tinha instruções para a deixar sair.

- Mentes! - interrompeu a hospedeira que tinha escutado com impaciência a sua justificação - atrevido é o que tu és. Queres que uma mulher honesta como eu perca a sua reputação dando a entender que anda por aí durante a noite? Dormi toda a noite aqui, tão inocente como o veado junto de sua mãe.

- Senhor - disse Hollister voltando-se respeitosamente para Dunwoodie - está qualquer coisa escrita na Bíblia que não estava lá porque como não tenho família(1) nunca me preocupei a escrever fosse o que fosse no Livro Sagrado.

Um oficial leu em voz alta o que se segue:

 

"Tem esta o fim de comunicar que, se conseguir fugir, será com o auxílio de Deus, à protecção do qual me encomendo. Fui obrigado a levar alguns fatos desta mulher que está aqui deitada, mas ela encontrará uma indemnização no bolso. Por ser verdade assino.

           Harvey Birch."

 

- Como! Como! - exclamou Betty. - O maroto roubou uma pobre viúva? É preciso persegui-lo, major Dunwoodie; é preciso apanhá-lo se ainda há justiça neste país.

- Abra o bolso, Betty - disse um corneteiro que se divertia com esta cena e não estava nada preocupado com a captura do prisioneiro.

- Meu Deus! - exclamou a hospedeira ao encontrar um guinéu - é um amor o bufarinheiro. Que ele viva muitos anos e prospere no seu negócio! Pode servir-se sempre que quiser dos meus andrajos. Se ele alguma vez for apanhado há patifes muito maiores que escaparam ao poder.

Ao voltar-se para sair do quarto, Dunwoodie viu o capitão Lawton, de pé, de braços cruzados, contemplando esta cena em profundo silêncio. Esta atitude tão diferente do zelo e da impetuosidade habituais espantaram o major pelo que tinha de singular. Os seus olhares encontraram-se; saíram juntos e continuaram durante alguns minutos falando com vivacidade. Dunwoodie voltou e ordenou a todos os dragões que se fossem juntar aos seus camaradas.

O sargento Hollister ficou portanto sozinho com Betty, que, tendo verificado que as roupas que faltavam estavam mais do que pagas com o guinéu, estava de excelente humor. A hospedeira olhou com afeição para o sargento pois tinha resolvido in petto pôr-se ao abrigo dos perigos da viuvez, escolhendo-o para sucessor do seu primeiro marido. Estava convencida que ele correspondia à sua preferência, mas temendo que a cólera a que se tinha entregue viesse alterar a sua disposição favorável, procurou conquistá-lo. Enchendo um copo com o seu licor preferido, ofereceu-lho dizendo:

- As palavras pronunciadas no calor da discussão não são nada entre amigos, sargento; quantas vezes não armei questões com o meu pobre defunto Michel Flanagan!

 

*1. Segundo um costume inglês conservado nos Estados Unidos é habitual escrever-se na primeira página da Bíblia as datas dos casamentos, nascimentos e mortes bem como de outros acontecimentos respeitantes à família. (N. do T.)

 

E todavia não havia neste mundo uma pessoa que eu amasse tanto!

- Michel era um soldado valente e um bom homem - afirmou o veterano depois de ter esvaziado o copo. A nossa companhia cobria o flanco do regimento dele quando ele caiu, e eu passei-lhe duas vezes sobre o corpo durante a luta. Pobre diabo! Estava de costas e tinha um ar tão tranquilo como se tivesse morrido na cama, vítima de uma longa consumição.

- Sim - disse a viúva - Michel era um consumidor terrível. Com duas pessoas como ele e eu as provisões sofriam uma considerável redução! Mas o senhor, senhor Hollister, é um homem sóbrio e discreto, e faria um marido excelente.

- Senhora de Flanagan - começou o sargento num tom solene - fiquei aqui para lhe falar de um assunto importante em que não posso deixar de pensar, e estou disposto a abrir o meu coração se tiver tempo para me ouvir.

- Para o ouvir! Senhor Hollister, terei tempo depois de os oficiais tomarem o pequeno almoço. Outro copo. Dar-lhe-á coragem para falar.

- Não, Betty, não. Não me falta a coragem para uma causa tão justa. Ora diga-me, está verdadeiramente convencida que esse bufarinheiro que eu ontem fechei aqui era o espião.

- E quem queria que fosse, meu amigo?

- O espírito maligno.

- O quê! o diabo?

- Sim, Lúcifer disfarçado de bufarinheiro e os que o trouxeram aqui, e que nós pensámos serem Skinners, eram demónios sob as suas ordens.

- Se está enganado no peso, sargento, são umas escassas gramas, porque se há diabos no condado de West Chester, são certamente os Skinners.

- Mas eu quero dizer verdadeiros espíritos infernais, senhora de Flanagan. O diabo sabia que não há outra pessoa com quem tivéssemos tantas precauções como com o espião Birch, e ele tomou a sua figura para se introduzir no seu quarto.

- Não há diabos suficientes no corpo para ainda ser preciso vir um do fundo dos infernos para atormentar uma pobre viúva? E o que é que o diabo queria fazer de mim, não me diz?

- É uma graça para si ele ter vindo, Betty. Como viu ele tomou a forma do seu corpo para sair deste quarto e isto é um símbolo do que a espera se não mudar de vida. Se visse como ele tremia quando lhe dei o Livro Santo! E além disso, Betty, qual é o cristão que se atrevia a escrever numa Bíblia outras referências que não fossem sobre nascimentos, casamentos, mortes e outras coisas do género?

A hospedeira estava encantada com a doçura com que o amado do seu coração lhe falara, mas muito escandalizada com as suas insinuações. Todavia conservou o bom humor e respondeu com a vivacidade dos naturais da sua terra:

- Está convencido que o diabo me pagava os fatos? Sim, e mais do que pagar?

- É de certeza dinheiro falso - afirmou o sargento um pouco perturbado com esta prova de honestidade de um ser de quem tinha tão má opinião. - Quis-me tentar com o metal brilhante, mas o senhor deu-me força para resistir à tentação.

- Esta moeda tem bom ar - respondeu a hospedeira - mas seja como for vou pedir ainda hoje ao capitão Jack que ma troque porque para ele não existe nenhum diabo de quem tenha medo.

- Betty, Betty, não fale assim do espírito maligno. Está sempre ao pé de nós e pode vingar-se das suas palavras.

- Ora, ora por muito pouco coração que ele tenha não se há-de ralar com as palavras ditas por uma pobre viúva num momento de boa disposição. Tenho a certeza que nenhum outro cristão se importaria.

- Mas o espírito das trevas só tem coração para devorar os filhos dos homens- retorquiu Hollister olhando em volta com um ar horrorizado. - E é bom ter amigos em toda a parte porque não sabemos o que nos vai acontecer. Mas, Betty, nenhum homem conseguiria sair deste quarto e passar por todas as sentinelas sem ser reconhecido; aproveite pois...

O diálogo foi interrompido por um dragão que veio dizer a Betty que os oficiais queriam tomar o pequeno almoço. Os interlocutores foram obrigados a separar-se, a hospedeira vangloriando-se intimamente porque o interesse que Hollister tinha por ela possuía qualquer coisa de mais terreno do que ele admitia, e o sargento resolvido a tudo fazer para salvar uma alma das garras do espírito maligno que vagueia pelo mundo para procurar as suas vítimas.

Durante o pequeno almoço chegaram várias ordenanças. Uma delas trazia pormenores sobre as forças e o destino das tropas inglesas que estavam na margem do Hudson; outra encarregava o major de enviar o capitão Wharton ao posto mais próximo com uma escolta de dragões. Estas últimas instruções, ou melhor, estas ordens, porque era impossível não as executar à letra, vieram aumentar o tormento de Dunwoodie. O gosto e o desespero de Frances estavam sempre diante dos seus olhos, e, cinquenta vezes, foi tentado a saltar para o cavalo e correr a galope até às Sauterelles; mas um sentimento irresistível de delicadeza impedia-o.

Obedecendo às ordens que lhe tinham sido dadas mandou um oficial e alguns dragões para conduzirem Henry Wharton ao local que lhe tinha sido indicado, e entregou ao tenente encarregado desta missão uma carta para o seu amigo, assegurando-lhe que não tinha nada a temer, que ia envidar todos os esforços e usar toda a sua influência para o ajudar. Deixou Lawton com uma parte da sua companhia para guardar os feridos e logo que os soldados acabaram de tomar o pequeno almoço o acampamento foi levantado, e o batalhão pôs-se em marcha em direcção ao Hudson. Repetiu várias vezes as suas ordens ao capitão Lawton, baseando-se sobretudo nas palavras que o bufarinheiro tinha deixado escapar, entregou-se às mais variadas conjecturas que a sua imaginação lhe podia fornecer para o sentido secreto do seu misterioso aviso. Por fim, como não tivesse qualquer pretexto para ficar, partiu.

Todavia, lembrando-se de repente que não tinha deixado ordens para o caso do coronel Wellmere, em vez de seguir a marcha da coluna cedeu à sua paixão, e tomou o caminho que conduzia às Sauterelles, seguido pelo impedido. O cavalo de Dunwoodie era ligeiro como o vento. Mal se tinha posto em marcha e já do cimo de uma colina avistava o vale solitário. Quando começava a descer, viu a alguma distância Henry Wharton e a sua escolta que tomavam o caminho do desfiladeiro que conduzia ao posto onde se dirigia. Perante isto redobrou a velocidade e depois de ter contornado um monte encontrou o que procurava.

Frances tinha seguido, à distância, o grupo que acompanhava o irmão, e, ao perdê-lo de vista parecia-lhe que tinha abandonado o que tinha de mais querido no mundo. A ausência inconcebível de Dunwoodie, o desgosto de ver partir o irmão nestas circunstâncias tinham-lhe tirado totalmente a coragem; tinha-se sentado numa pedra à beira da estrada e chorava como se o coração se fosse partir. Dunwoodie saltou do cavalo, disse ao impedido que continuasse, e num instante estava ao pé da jovem desfeita em lágrimas.

- Frances! Minha querida Frances! Qual é a razão dessa tristeza. Não há razão para alarmes por causa do seu irmão. Logo que as obrigações que requerem a minha presença neste momento mo permitam irei lançar-me aos pés de Washington e pedir-lhe a liberdade de Henry. O pai deste país não pode recusar esse favor a um dos seus discípulos favoritos.

- Major Dunwoodie, - respondeu Frances precipitada, levantando-se com um ar muito digno e enxugando os olhos- agradeço-lhe o interesse que tem pelo meu irmão; mas não me parece próprio que se me dirija nesses termos.

- Como, não é próprio! - repetiu o major surpreendido. - Não é minha com o consentimento do seu pai, da sua tia, do seu irmão, com o seu próprio consentimento, minha querida Frances?

- Não quero ser um obstáculo aos direitos que qualquer outra dama possa ter às suas atenções, major Dunwoodie - respondeu Frances tomando o caminho da casa de seu pai.

- Não há mais ninguém que tenha direitos sobre o meu coração - declarou Dunwoodie com energia -juro pelo céu que a sua imagem é a única para mim.

- Tem tanta experiência e obteve tantos êxitos, major Dunwoodie, que não seria de espantar se conseguisse iludir a credulidade de uma mulher- replicou Frances com amargura, tentando, mas em vão, sorrir.

- Afinal o que é que eu sou para si, "miss" Wharton, para me falar nesses termos? Quando é que eu a enganei? Quem pôde abusar assim da pureza do seu coração?

- Porque é que o major Dunwoodie há já alguns dias que não honra com a sua presença a casa daquele a quem devia chamar sogro? Esqueceu-se que estava ali um amigo ferido e outro profundamente preocupado? A sua memória não lhe chegava para se recordar que naquela casa estava também aquela a quem devia chamar esposa? Temeria encontrar ali mais do que uma pessoa com pretensões a esse nome? Oh! Peyton! Peyton! Como conseguiu enganar-me! Com a credulidade louca da juventude era para mim o mais bravo, o mais nobre, o mais generoso e o mais leal do mundo.

- Estou a perceber o que é que a induziu em erro, Frances - afirmou Dunwoodie com o rosto em fogo - mas não está a ser justa; juro pelo que me é mais querido que está a ser injusta para comigo.

- Não faça juramentos, major Dunwoodie - respondeu Frances com um orgulho que a tornava ainda mais bela - o tempo de acreditar em juras já acabou para mim.

- "Miss" Wharton - retorquiu Dunwoodie - quer fazer de mim um pretensioso, um miserável aos seus próprios olhos, ouvir-me gabar do que poderia conquistar a sua estima?

- Não se vanglorie que seria tarefa fácil - respondeu Frances continuando a avançar para casa. É a última vez que conversamos sozinhos, mas o meu pai ficará certamente encantado de receber um parente da minha mãe.

- Não, "miss" Wharton, não poderei agora entrar em casa dele, seria indigno de mim. Está a levar-me para o desespero, Frances. Parto para uma missão perigosa, e é possível que não volte. Se a sorte me for adversa, ao menos faça justiça à minha memória, e lembre-se que o meu último suspiro é para lhe desejar a felicidade.

Ao dizer estas palavras tinha já o pé no estribo, mas parou ao ver a senhora do seu coração voltar para ele o rosto pálido de emoção, com um olhar que o penetrou até ao fundo da alma.

- Peyton, major Dunwoodie - disse-lhe - pode algum dia esquecer a causa sagrada que defende? O seu dever para com Deus e para com o seu país proíbem-lhe qualquer acto de temeridade. A sua pátria precisa dos seus serviços; além disso... - A voz faltou-lhe e não conseguiu acabar a frase.

- Além disso? - repetiu o major voltando ansiosamente para junto dela e procurando segurar-lhe a mão.

Entretanto, Frances tinha recobrado o sangue-frio, e afastando-o com frieza, retomou o caminho de Sauterelles.

- "Miss" Wharton! Vamos separar-nos assim! - exclamou Dunwoodie com uma voz em que era evidente o desespero. - Sou um miserável para que me trate com tanta crueldade? Nunca me amou e procura esconder a sua leviandade criticando-me e recusando-me uma explicação.

Frances parou subitamente, e havia nos seus olhos tanta candura e tanta sensibilidade, que o major profundamente arrependido estava prestes a lançar-se aos seus pés para lhe pedir perdão; mas ela, tomando a palavra e fazendo-lhe sinal para guardar silêncio, disse-lhe:

- Oiça-me pela última vez, major Dunwoodie. Quando uma pessoa começa a descobrir a sua própria inferioridade adquire um conhecimento bem cruel; mas é uma verdade que só aprendi recentemente. Não o acuso, não o censuro, não, nem sequer voluntariamente, por pensamentos. Ainda que tivesse justos direitos ao seu coração, não sou digna dele. Não é uma rapariga fraca e tímida como eu que o poderia fazer feliz.

- Não, Peyton, nasceu para grandes feitos, para empresas valorosas, para actos gloriosos, e deve unir-se a uma alma semelhante à sua, uma alma capaz de se elevar acima das fraquezas das pessoas do meu sexo. Eu prendê-lo-ia demasiadamente à terra; mas com uma companheira dotada de um espírito diferente pode voar e elevar-se até feitos de glória. É a favor dessa companheira que eu renuncio, não com prazer, e peço... ah! como eu peço ardentemente que seja feliz com ela!

- Amável entusiasta - respondeu Dunwoodie - não me conhece e não se conhece melhor a si própria. Só posso amar uma mulher terna, sensível, e fraca como Frances. Não se deixe vencer por visões de generosidade que me poderiam fazer infeliz.

- Adeus, major Dunwoodie - atalhou Frances. - Esqueça-se que me conheceu, pense nos direitos que tem sobre si a pátria dilacerada e seja feliz.

- Feliz! - repetiu o major com amargura vendo-a entrar no jardim da casa de seu pai e desaparecer por entre as árvores; oh! sem dúvida isto é o cúmulo da felicidade!

Esporeou o cavalo e daí a pouco estava com os seus homens que avançavam pelas veredas tortuosas do condado para as margens do Hudson.

Mas por mais tristes que fossem os pensamentos de Dunwoodie ao ver terminar de uma maneira tão inesperada a entrevista com a sua amada, não eram nada comparados com o que ela sofria. Frances com a perspicácia do amor ciumento, tinha descoberto sem dificuldade o interesse de Isabel Singleton por Dunwoodie. Dotada de uma reserva e de uma delicadeza que os romancistas nunca deram às suas heroínas imaginárias, considerava impossível que ele possuísse este amor sem nunca ter procurado obtê-lo. Ardente nas suas afeições e não conhecendo a arte de as esconder, tinha atraído há muito o jovem militar; mas tinha sido preciso a franqueza viril de Dunwoodie para conquistar as suas boas graças, e o seu devotamento sincero para as obter. Atingido este ponto, o seu poder sobre ela era duradoiro e absoluto.

Mas os acontecimentos extraordinários dos últimos dias, a alteração que tinha notado entretanto na fisionomia do eleito do seu coração, a indiferença invulgar com que a tratara, e sobretudo a paixão romanesca que Isabel Singleton tinha por ele fizeram nascer nela novos sentimentos. O medo que o seu pretendente não usasse de sinceridade fez nascer nela este sentimento que acompanha sempre uma afeição pura, a falta de confiança do seu próprio mérito. Num momento de entusiasmo tinha julgado fácil ceder o seu amor a outra que podia ser mais digna; mas é em vão que a imaginação tenta enganar o coração.

Dunwoodie ainda mal tinha desaparecido e já Frances sentia toda a miséria da sua situação, e se o seu jovem pretendente encontrava um certo consolo nos deveres que o comando da companhia exigiam, ela não era tão feliz ao entregar-se aos deveres que a devoção filial lhe impunha. A partida de Henry tinha tirado a Wharton a sua pouca energia e era precisa toda a afeição das duas filhas para o convencer de que ainda estava em estado de fazer a sua vida.

 

Ao determinar que o capitão Lawton ficasse nos Quatro-Cantos com o sargento Hollister e doze homens da sua companhia para guardar os feridos e grande parte das bagagens, Dunwoodie teve em consideração não só as informações contidas na carta que tinha recebido do coronel Singleton, mas também as contusões que o capitão tinha sofrido aquando da sua queda e que o major estava convencido que ainda lhe provocavam mal-estar. Foi em vão que Lawton tentou convencê-lo que estava apto a fazer um serviço activo, tal como os outros oficiais da companhia, e lhe disse com toda a franqueza que os seus dragões não fariam sob as ordens do tenente Mason uma carga com o mesmo ardor e a mesma confiança com que atacavam quando ele comandava; o major foi inflexível e o capitão foi obrigado a ceder com a melhor disposição que pôde.

Antes de partir, Dunwoodie recomendou-lhe novamente para pugnar pela segurança de Sauterelles e dos seus habitantes aconselhando-o mesmo a mudar de posição e a instalar-se nos domínios de Wharton, que se verificassem de natureza suspeita nas redondezas.

As palavras do bufarinheiro tinham feito nascer no seu espírito um vago temor por qualquer perigo que ameaçasse uma família a que se tinha ligado, embora não pudesse definir o perigo que se podia temer.

Pouco depois da partida do batalhão, o capitão que passeava para trás e para a frente diante do hotel Flanagan, maldizendo interiormente o destino que o condenava à inactividade e o privava da glória que poderia ter no recontro que se esperava com o inimigo, foi obrigado a interromper os seus pensamentos para responder às perguntas que a hospedeira lhe fazia, aos gritos, lá de dentro, sobre pormenores da evasão do bufarinheiro que ela ainda não tinha compreendido. O cirurgião que tinha ido visitar e fazer os pensos aos feridos instalados numa casa longe dali veio daí a pouco juntar-se a ele ignorando tudo o que se passava inclusivamente a partida do batalhão.

- Onde estão as sentinelas, Jack? - perguntou olhando para todos os lados. - Porque é que estás aqui sozinho?

- Partiram todos... partiram com Dunwoodie... dirigem-se para o Hudson. Ficámos aqui os dois para guardar os doentes.

- Seja como for estou muito contente por o major ter tido a atenção de não ordenar o transporte dos feridos. Senhora Elizabeth Flanagan, sirva-me depressa o pequeno almoço porque estou com muita fome e tenho pressa; tenho que dissecar um corpo esta manhã.

- E o senhor, doutor Archibald Sitgreaves - respondeu Betty espreitando pelo buraco de um vidro da janela da cozinha - chega sempre atrasado. Agora não há nada para comer, a não ser a pele de Jenny ou o corpo de que fala.

- Oh! mulher! - respondeu o médico irritado. - Quero qualquer coisa que acalme um estômago em jejum. Pensa que eu sou algum canibal para me fazer uma proposta dessas?

- Cá para mim parece mais uma cânula do que um canhão - replicou Betty olhando de lado para o capitão - e sempre lhe digo que hoje é dia de jejum para o senhor se não quiser que lhe ponha a grelhar um bocado da pele da Jenny. Os dragões comeram-me tudo até aos ossos antes de partirem.

Lawton interrompeu a conversa para salvaguardar a harmonia e garantiu ao médico que já tinha tomado as medidas necessárias para se arranjarem víveres para o seu pequeno grupo. Mais satisfeito com esta explicação o médico em breve esquecia o seu apetite e afirmou que enquanto esperava ia dissecar o corpo.

- Onde está o sujeito? - perguntou com um ar grave o capitão.

- É o bufarinheiro - respondeu Sitgreaves examinando o poste que tinham arranjado para servir de forca. - Como vês Hollister seguiu as instruções que lhe dei para que a forca ficasse construída de maneira que a queda não deslocasse as vértebras do pescoço. Quero arranjar o mais belo esqueleto da região setentrional dos Estados da América. O maroto era bem constituído e eu farei um milagre de beleza.

Há muito que esperava uma boa ocasião para enviar um presente à minha tia que foi tão boa para mim quando era criança.

- Como, com mil demónios, doutor Archibald! Vais enviar um esqueleto a uma senhora!

- Porque não? O homem é o que há de mais nobre na natureza, e os ossos formam uma das partes elementares. Mas onde é que puseram o corpo?

- Partiu também.

- Como é que partiu? - perguntou o médico consternado. - Quem é que ousou apoderar-se dele sem minha autorização?

- O diabo - respondeu Betty - e um dia leva-o também sem mais cerimónias.

- Silêncio! - interrompeu Lawton, cheio de vontade de rir. - É assim que se fala a um oficial, velha bruxa.

- Ele não me chamou trapalhona? - perguntou a hospedeira fazendo estalar os dedos com um ar de desprezo. - Lembro-me de um amigo durante um ano, mas basta-me um mês para me esquecer de um inimigo.

A amizade ou inimizade de Betty Flanagan era o que menos inquietava o médico neste momento que estava obcecado pela perda que tinha sofrido. Lawton foi obrigado a contar o caso com todos os pormenores ao amigo.

- E pode gabar-se de se ter livrado de boa, meu querido doutor - afirmou Betty quando o capitão terminou a sua explicação. - O sargento Hollister que o viu cara a cara, como se costuma dizer, diz que era Belzebu em pessoa e não um bufarinheiro, excepto no que diz respeito a certas trapaças, roubos e outras coisas próprias do ofício. Ora teria feito uma bela figura a dissecar Belzebu. Gostaria muito de saber se o seu dissector conseguiria separar-lhe a pele.

Duplamente frustrado por não ter tomado o pequeno almoço e por não ter feito a dissecação, Sitgreaves decidiu subitamente que ia às Sauterelles ver como é que o capitão Singleton estava. Lawton resolveu acompanhá-lo e puseram-se imediatamente a caminho. Todavia enquanto os cavalos não ganhavam a distância suficiente para a voz de Betty não se ouvir o médico ainda teve de ouvir mais algumas piadas da hospedeira.

Foram em silêncio algum tempo. Por fim Lawton reparando que o companheiro estava de mau humor pelo desapontamento sofrido e pelo sarcasmo de Betty fez uma tentativa para o acalmar, dizendo-lhe:

- Archibald, aquela canção que tinhas começado na noite em que fomos interrompidos pelos homens que nos trouxeram o bufarinheiro, era encantadora. A alusão a Galeno é deliciosa.

- Já sabia que ias gostar, Jack, quando os teus olhos se abrissem às suas belezas- respondeu o cirurgião que descontraiu os músculos até sorrir. - Mas no fim de uma refeição acontece muitas vezes que os vapores do vinho, subindo do estômago ao cérebro, introduzem certa confusão nas ideias, não permitindo que o espírito faça um bom julgamento em matéria de gosto e de ciência.

- E a tua ode tinha tanto de sabedoria como de espírito - disse Lawton cujos olhos sorriam.

- Ode não é bem o termo para esta espécie de composição. Acho que lhe fica melhor a designação de balada clássica.

- Provavelmente, mas como só ouvi a primeira estrofe, é-me difícil dar-lhe a designação própria.

O médico tossiu duas ou três vezes para aclarar a voz embora não se apercebesse do caminho para onde o conduziam estes preparativos. Mas o capitão voltando para ele os seus grandes olhos negros e vendo que ele não estava muito à vontade sobre a sela disse-lhe:

- Estamos longe do barulho e dos importunos, porque não me cantas o resto? Serviria talvez para corrigir o mau gosto de que me acusas.

- Ah! meu caro Jack, se pensas que isso pode corrigir os erros para que o hábito te arrasta, e a confiança demasiada em ti mesmo, nada me dará mais prazer.

- Tenta. À esquerda há um rochedo e o eco deve ser maravilhoso. Entusiasmado e convencido que fazia versos e que os cantava de uma forma muito própria, Sitgreaves preparou-se com um ar muito compenetrado para satisfazer o pedido do amigo. Depois de ter tirado os óculos e limpo as lentes com cuidado, voltado a colocá-los com exactidão e precisão, ajustado a peruca com uma simetria matemática, e, entoado de vários hem! em vários ensaios até o seu ouvido delicado não encontrar nada a criticar na sua voz, começou a cantar para prazer do capitão. Mas ou porque o cavalo tivesse ficado excitado com a sua voz ou porque quisesse imitar o trote do de Lawton, aconteceu que ainda antes do fim da segunda estrofe, a voz do médico ia em cadência regular com os movimentos de báscula do seu corpo.

Apesar destas circunstâncias pouco favoráveis à harmonia, Sitgreaves continuou a canção, cantando sem interrupção as três estrofes seguintes:

 

A flecha do Amor feriu-te alguma vez, minha querida? Exalaste o seu suspiro fremente? Sonhaste com aquele que está tão longe de ti, e que está sempre diante dos teus olhos luminosos? Agora sabes o que é sofrer um mal que nem todas as artes de Galeno podem curar.

O teu rosto cobriu-se alguma vez de um rubor pudico, minha querida? Sentiste alguma vez o calor espalhar-se pelas tuas faces brancas como o mármore, quando Damone lia no teu coração? Nesse caso, jovem insensata, o teu corar prova que estás atacada do mesmo mal que sofre Harvey.

 

Mas para todos os teus males, minha querida, para cada dor causada pelas flechas do Amor, minha tonta, para tudo o que tu numa palavra possas temer, existe um antídoto. A arte toda poderosa da união pode curar todas as feridas dos jovens amantes.

Já alguma vez...

- Chiu! - fez Lawton. - Que barulho é este por trás das rochas.

- É o eco.

Já alguma vez...

- Ouve! - disse Lawton fazendo parar o cavalo. Mal acabara de pronunciar esta palavra quando uma pedra caiu aos seus pés e rolou sem lhe fazer mal.

- Foi um tiro amigo - acrescentou o capitão - nem a bala, nem a mão que a fez partir pareciam ter intenções muito hostis contra nós.

- Um tiro de pedra não provoca mais do que uma contusão - afirmou o médico olhando inutilmente em volta para ver quem os tinha atacado. Não há um único ser vivo aqui à volta; tem de ser um aerólito.

- Por trás daqueles rochedos podia esconder-se um regimento inteiro - retorquiu o capitão saltando para o chão com intenção de apanhar a pedra. - Oh! oh! - acrescentou - está aqui a explicação do mistério.

E enquanto dizia isto apanhou um bocado de papel cuidadosamente atado a um fragmento de rocha que acabava de cair aos seus pés e depois de o ter desdobrado leu as seguintes palavras, já quase apagadas:

- Uma bala de mosquete percorre um caminho mais longo do que uma pedra, e os rochedos de West Chester escondem coisas mais perigosas que as ervas para os feridos. O cavalo pode ser bom, mas está em condições de subir uma rocha?

- Dizes a verdade, desconhecido - afirmou Lawton. - Num lugar como este a coragem e a acção são um fraco recurso contra o homicídio.

Voltando a montar afirmou em voz alta:

- Muito obrigado, amigo desconhecido; lembrar-me-ei do teu aviso, e nunca mais me esquecerei que nem todos os meus inimigos são impiedosos.

Por cima do mato que cobria as rochas apareceu por instantes uma mão magra que se agitou no ar, mas os dois amigos não viram e não ouviram mais nada.

- Uma aventura verdadeiramente extraordinária - afirmou o médico espantado - e o significado desse bilhete é verdadeiramente misterioso.

- Bom! -disse o capitão metendo o bilhete ao bolso - é qualquer engraçado que imagina que pode assim meter medo a dois oficiais dos dragões da Virgínia. A propósito, senhor doutor Archibald Sitgreaves, devo dizer-lhe que se preparava para dissecar um rapaz muito honesto.

- O quê! O bufarinheiro! Um espião ao serviço do inimigo! Estava convencido que dava uma honra muito grande a esse homem ao utilizar os seus restos para propagar as luzes da ciência.

- Pode ser um espião, é-o sem dúvida - afirmou Lawton distraído - mas tem um coração que se eleva acima de todo o ressentimento, uma alma que honraria um soldado corajoso.

Sitgreaves, enquanto o companheiro fazia este solilóquio, olhava para ele como se lhe pedisse uma explicação; mas os olhos do capitão estavam fixos noutro rochedo que avançando consideràvelmente pelo vale parecia obstruir a estrada que passava pela sua base.

- O que um cavalo não pode escalar pode o pé do homem trepar - comentou este patriota prudente.

Voltando a descer do cavalo saltou para cima de um pequeno muro de pedras e começou a trepar por uma rocha para chegar a um ponto de onde podia ver todo o vale, os desfiladeiros e as passagens das montanhas. Mal se virara quando viu um homem fugir rapidamente diante dele e desaparecer do outro lado da rocha.

- A galope! Sitgreaves, a galope! - gritou perseguindo o fugitivo e saltando com ligeireza por cima dos obstáculos que lhe barravam o caminho. - Não deixes o patife fugir se ele passar para o teu lado.

O médico esporeou o cavalo e daí a pouco via um homem armado de mosquete que atravessava a estrada procurando refugiar-se no bosque do outro lado.

- Pára, amigo, pára! Espera que o capitão Lawton aí chegue! -gritava Sitgreaves vendo-o fugir com uma velocidade tal que poucas esperanças havia de o alcançar. Mas o homem, como se este convite lhe tivesse inspirado um novo terror, redobrou os seus esforços e não parou para respirar senão depois de ter atingido a sua meta. Voltando-se, de repente, disparou na direcção do médico e desapareceu no bosque. Lawton estava mesmo a chegar à estrada, mas quando se aproximou, a cavalo, do seu companheiro, o fugitivo tinha desaparecido.

- Para que lado fugiu? - perguntou.

- John, não sou um oficial não combatente?

- Para que lado é que aquele miserável fugiu? - repetiu Lawton com impaciência.

- Para onde não o podes seguir, para o bosque - respondeu o cirurgião. - Mas ainda te pergunto mais uma vez, John, não sou um oficial não combatente?

O capitão, desapontado, vendo que o inimigo estava fora do seu alcance, voltou os olhos ainda cheios de cólera e ensombrados pelas sobrancelhas franzidas, para o seu companheiro, mas os seus músculos foram perdendo pouco a pouco a rigidez, as rugas da fronte desvaneceram-se, e os olhos ao perderem a expressão de dureza tomaram uma expressão irónica que exprimiam tão bem e tantas vezes.

O médico estava montado com um ar de dignidade calma, o corpo magro bem direito, a cabeça levantada como que indignado por não lhe fazerem justiça; a velocidade da corrida tinha feito escorregar os óculos até à extremidade do órgão que os sustentava, que aliás era comprido, e os olhos brilhavam de indignação.

Com um ligeiro esforço todos os músculos do rosto do capitão voltaram ao seu lugar, e rompeu o silêncio dizendo:

- Porque deixaste fugir o bandido? Se o tivesses trazido ao alcance do meu sabre, tinha-te arranjado um substituto para o bufarinheiro.

- Como podia impedi-lo de fugir? - perguntou Sitgreaves mostrando a barricada diante da qual fora obrigado a parar. - Passou esta barreira e deixou-me onde vês. Não atendeu mesmo ao convite que fiz para esperar por ti, nem à advertência de que querias falar com ele.

- Na verdade! - exclamou Lawton fingindo-se surpreendido. - É um patife muito pouco educado! Mas porque não saltaste a barricada para o obrigar a parar? Só tem três paus. Betty Flanagan montada na vaca era capaz de ter saltado.

Pela primeira vez os olhos do médico desviaram-se do ponto por onde o fugitivo tinha desaparecido para se voltar para o capitão, conservando, no entanto, a cabeça na mesma linha.

- Capitão Lawton - disse - parece-me que a senhora Elizabeth Flanagan e a sua vaca não são modelos que se devam apresentar ao doutor Archibald Sitgreaves. Que se diria de um cirurgião que tivesse fracturado as duas pernas ao bater indiscretamente contra um bocado de madeira da parte superior de uma barricada?

Ao dizer isto o médico estendeu os membros em questão numa posição quase horizontal, que teria na verdade dificultado salto tão perigoso. Todavia o capitão sem dar atenção à impossibilidade desse movimento declarou:

- Uma barreira como esta não te devia fazer parar. Vou fazê-la saltar por um esquadrão de cavalaria. Confesso que já encontrei muito mais dificuldades ao carregar sobre uma força de infantaria, de baionetas em riste.

- Capitão John Lawton, - interrompeu o médico num tom de dignidade ofendida - devo lembrar-lhe que não sou nem o professor de equitação do regimento, nem o sargento encarregado de montar o exercício, nem um jovem porta-estandarte sem miolos, nem (e digo-o com todo o respeito devido a uma comissão emanada do Congresso) um capitão que liga tanta importância à sua vida como à do seu inimigo. Não. Sou um pobre homem de letras, um simples cirurgião, um humilde licenciado pela universidade de Edimburgo, um major-médico de um regimento de dragões, nada mais, garanto.

Com estas palavras voltou o cavalo na direcção de Sauterelles e pôs-se em marcha.

- É bem verdade - murmurou Lawton em voz baixa - se estivesse com o menos valente dos meus dragões, aquele patife tinha recebido o castigo que merece e eu teria pelo menos dado uma vítima às leis ofendidas do meu país. Mas, Archibald, não se pode dizer que se sabe montar a cavalo quando se põe as pernas afastadas como o colosso de Rodes. É melhor apoiá-las nos estribos e apertar os joelhos contra os flancos do cavalo.

- Com toda a consideração pela experiência, capitão Lawton, creio que sou o juiz competente para julgar a acção dos músculos do joelho e de todas as outras partes do corpo humano; e embora tenha recebido uma educação bastante rudimentar sei que quanto maior for a base mais sólido fica o edifício.

- Mas, que diabo! Seguindo esse princípio ocupas com as pernas o espaço que é para meia dúzia. As tuas pernas parecem as armaduras dos cavalos antigos.

Esta alusão clássica adoçou um pouco a indignação do médico que lhe respondeu menos mal disposto:

- É preciso falar sempre com respeito dos que viveram antes de nós, porque embora não tivessem sido iluminados pelas luzes da ciência e nomeadamente da cirurgia, encontram-se excepções brilhantes às superstições dos nossos dias. Não tenho dúvidas que Galeno nunca tratou ferimentos provocados pelas armaduras de que falas, embora nenhum dos autores contemporâneos fale nisso; não tenho dúvida também que se evitaram acidentes muito graves que deviam trazer grandes embaraços para os médicos de então.

- A ciência não era muito vasta nesses tempos - afirmou Lawton, com o ar mais sério deste mundo. - Essas malfadadas coberturas podiam de um só golpe cortar o corpo de um homem, depois do que não valia a pena tentar reunir as duas partes. Não me admira que esses senhores não tivessem vencido.

- O quê! - exclamou Sitgreaves. - Reunir duas partes do corpo humano separadas por um objecto cortante e pô-las em condições de desempenharem as funções da vida animal!

- Sim - disse Lawton. - Reunir duas partes separadas por uma armadura, e pô-las em estado de cumprirem os seus deveres militares.

- Impossível, meu caro capitão! Inteiramente impossível! A arte não pode nunca sobrepor-se à natureza. Imagine que num caso desses, por meio de uma operação, era possível estabelecer um sistema de continuidade nas artérias, nos nervos, nos músculos, nos intestinos, e o que é ainda mais importante, tu...

- Basta! Basta, doutor Sitgreaves! Estou convencido.

E garanto-te que não tenho a mínima intenção de experimentar essa solução de continuidade que, segundo me dizes, põe em xeque a arte da cirurgia.

- É verdade, meu caro Lawton. E que prazer há em tratar um ferimento quando se sabe que todas as luzes da ciência são insuficientes para o curar?

- Nenhum, sem dúvida.

- O que é que consideras o maior prazer da vida? - perguntou inesperadamente o médico, cuja conversa sobre este novo tema tinha dissipado completamente o mau humor.

- É uma pergunta a que pode ser difícil responder.

- De maneira nenhuma. É ver... Não; é ver o mal provocado por uma ferida reparado pelas luzes da ciência agindo de harmonia com a natureza. Fracturei uma vez o dedo mínimo da mão esquerda, para curar a fractura e seguir o processo de cura.

Foi uma experiência feita quando era pequeno e, no entanto, Lawton, recordo-me ainda com prazer da sensação deliciosa que senti quando os dois ossos se juntaram e quando contemplei os efeitos admiráveis da arte ajudando a natureza. Nunca mais na minha vida voltei a sentir um prazer tão grande. Teria sido muito mais intenso se se tivesse tratado de um membro mais importante como um braço ou uma perna.

- Ou o pescoço - acrescentou o capitão.

E como tinham chegado a casa de Wharton a conversa ficou por aqui. Como não apareceu ninguém para os anunciar o capitão tomou o caminho do salão, abriu a porta, e parou surpreendido pela cena que tinha diante dos seus olhos. O coronel Wellmere estava debruçado sobre Sara, cujo rosto estava vermelho, e falava-lhe com uma emoção tal que nenhum dos dois deu pela entrada de estranhos.

Certos sinais significativos que não escaparam ao olhar perspicaz do capitão puseram-no ao corrente do segredo deles, e ia sair da sala tão silenciosamente como tinha entrado quando o companheiro, que o seguia, avançou bruscamente e aproximando-se da cadeira do coronel agarrou-lhe um braço e gritou como por instinto:

- Deus do Céu! Pulso rápido e irregular... rosto vermelho... olhos injectados... são graves sintomas de febre que se devem atalhar imediatamente.

E dizendo isto, o médico habituado a agir com decisão, pegou na lanceta, e entregava-se a outros preparativos que anunciavam intenções muito sérias. Mas o coronel Wellmere recompondo-se da confusão e surpresa, levantou-se imediatamente e disse um pouco aborrecido:

- Senhor, é o calor que está nesta sala que me fez estas cores e já devo muitas obrigações ao seu talento para lhe causar novos embaraços. "Miss" Wharton sabe que estou bem. Nunca me senti tão bem e portanto tão feliz.

Pronunciou estas últimas palavras num tom que podia dar satisfação a Sara, mas que fizeram aumentar ainda mais o tom rosado do seu rosto. Sitgreaves cujos olhos seguiram os do seu doente não pôde deixar de se aperceber do que acontecera.

- O seu braço por favor, "miss" Wharton - disse avançando rapidamente para ela, com um comprimento respeitoso - as inquietações e as noites de vela produziram o seu efeito sobre a sua saúde delicada, noto em si sintomas que não se podem negligenciar.

- Perdão, doutor - respondeu Sara levantando-se por sua vez com um ar muito digno - está um calor terrível nesta sala. Vou retirar-me e anunciar a sua presença a Jeannette.

Não era difícil iludir a simplicidade do médico, mas Sara foi obrigada a levantar os olhos para retribuir o cumprimento de Lawton que quase tocou com a testa na mão que mantinha a porta aberta para ela passar. Este olhar bastou-lhe: ela tinha domínio suficiente sobre si mesma para se retirar com dignidade. No entanto quando se sentiu longe de todos os olhares observadores lançou-se sobre uma cadeira e abandonou-se a emoções em que havia tanto de vergonha como de prazer.

Aborrecido com o ar autoritário do coronel inglês, o médico, depois de lhe ter oferecido outra vez os seus préstimos que voltaram a ser recusados, subiu ao quarto de Singleton, onde Lawton, aliás, já se encontrava.

 

O licenciado pela Universidade de Edimburgo verificou que o seu doente se estava a restabelecer bem e que já não tinha febre. A irmã, cujo rosto estava, se possível, ainda mais pálido do que quando tinha chegado, velava por ele com o maior desvelo; e a senhora da casa, apesar dos seus cuidados e preocupações, não tinha negligenciado nenhum dos deveres de hospitalidade. Frances sentia pela sua companheira inconsolável um interesse cuja força irresistível não sabia explicar. Tinha unido, na sua imaginação, o destino de Dunwoodie ao de Isabel, e com todo o entusiasmo romanesco de um coração generoso, achava que a melhor maneira de servir o seu antigo apaixonado era dar toda a sua afeição àquela que ele preferia. Isabel recebia as suas atenções com uma espécie de reconhecimento indiferente; mas nem uma nem outra fazia qualquer referência ao motivo oculto dos seus desgostos.

O poder de observação de Jeannette não ia geralmente mais além do que a superfície das coisas, e a situação em que Henry Wharton se encontrava parecia-lhe causa mais do que suficiente para as faces pálidas de Frances e para os seus olhos cheios de lágrimas. Se Sara parecia menos acabrunhada do que a irmã, a tia não tivera dificuldade em adivinhar a razão. O amor é uma espécie de sentimento santo para o coração ainda puro de uma mulher, que parece consagrar tudo o que está sob a sua influência. Embora Jeannette Peyton estivesse sinceramente preocupada com o perigo que ameaçava o sobrinho, a sua bondade quase maternal levava-a a aceitar como um bem que a sorte lhe tivesse trazido a oportunidade de viver o seu primeiro romance de amor. Sabia muito bem que a guerra é um inimigo cruel do amor, e que por consequência, era preciso não perder os poucos momentos que ela deixava livres.

Passaram-se vários dias sem que se tivesse registado qualquer acontecimento digno de nota nas Sauterelles ou nos Quatro-Cantos. A certeza da inocência de Henry e uma confiança total nas diligências de Dunwoodie a seu favor traziam uma certa calma à família Wharton. Por seu lado, o capitão Lawton continuava a aguardar a todo o momento notícias do combate e ordem para partir. Todavia nem a notícia nem a ordem chegavam.

Uma carta do major anunciava-lhe que o inimigo, tendo tido conhecimento que um destacamento de tropas com o qual se devia juntar tinha sido derrotado, recuara para as instalações do forte Washington, e aí ficara inactivo, mas ameaçando de vez em quando entrar em acção para se vingar deste desaire. Recomendava-lhe que se mantivesse vigilante e terminava a carta elogiando-o pela sua honra, zelo e bravura.

- Extremamente lisonjeiro, major - murmurou o capitão deitando a carta para cima da mesa e começando a passear pelo quarto para acalmar a sua impaciência. - Encarregou-me de um bonito serviço! Ora vejamos sobre que objectos se deve exercer a minha vigilância. Um velho amedrontado e indeciso que não sabe ainda se nos deve considerar como amigos ou como inimigos; quatro mulheres, das quais três são bastante interessantes, mas que parecem não estar nada interessadas na minha companhia, e a quarta, por muito boa que seja, tem mais de quarenta anos; dois ou três negros; uma governanta tagarela que só fala de oiro e de prata, de pobreza miserável, de sinais e augúrios; sim, mas o pobre Jorge Singleton? Ah! um camarada que sofre tem o primeiro lugar no coração de um homem depois da honra e da mulher que ama; desta forma é preciso tomar o seu partido.

Ao terminar este solilóquio, sentou-se e começou a assobiar para se convencer que lhe era indiferente a situação em que o tinham deixado. Ao estender as pernas derrubou o cantil. O acidente foi imediatamente reparado, mas ao levantá-lo viu um papel que estava em cima do banco. Desdobrou-o imediatamente e leu o seguinte:

 

"A lua só surgirá depois da meia-noite: é a altura favorável para as obras das trevas."

 

Não tinha quaisquer dúvidas sobre a letra: era a mesma da nota que o advertira de um projecto de assassínio, e o capitão quedou-se a pensar na natureza destes dois bilhetes e nos motivos que o bufarinheiro misterioso podia ter para se interessar por um homem que tinha sido seu inimigo implacável. Lawton sabia que ele era espião ao serviço do inimigo pois ao ser julgado em conselho de guerra, fora provado que tinha informado o general inglês da posição que deveria tomar uma unidade americana; e se esta traição não tinha tido consequências fatais foi porque Washington dera uma contra-ordem na altura em que as forças inglesas já se preparavam para dispersar o regimento americano. Todavia esta circunstância não diminuía em nada a gravidade do seu crime.

- Talvez queira tornar-se meu amigo - pensou Lawton - para o caso de vir a cair outra vez nas nossas mãos. Seja como for poupou a minha vida uma vez, salvou-a de outra e eu procurarei ser tão generoso como ele; Deus permita que o meu dever não vá contra este desejo! O capitão não sabia se o perigo a que ele se referia neste último bilhete era para os habitantes de Sauterelles ou para o seu destacamento; inclinava-se mais para esta última hipótese e prometeu a si próprio não sair à noite sem tomar todas as precauções. Uma pessoa que viva num país tranquilo no meio da ordem e da segurança acha com certeza inconcebível a indiferença de Lawton pelos perigos que o podiam ameaçar. Estava mais preocupado com os meios de que se podia servir para atrair os seus inimigos a uma cilada do que com os de fazer abortar a conspiração.

As suas reflexões foram interrompidas pelo médico que chegava da visita quotidiana a Sauterelles. Sitgreaves trazia-lhe um bilhete de Jeannette em que pedia a Lawton para com a sua presença honrar Sauterelles nessa noite e para chegar cedo.

- O quê! - exclamou o capitão. - Também receberam uma carta?

- Assim parece - respondeu o médico. - Chegou um capelão do exército real para tratar da troca dos feridos ingleses que temos aqui. Traz também uma ordem do coronel Singleton para que a entrega lhe seja feita a ele. Todavia é uma ideia inteiramente tola esta de fazer evacuar do nosso hospital feridos no estado em que eles ainda se

encontram.

- Um capelão! É um mandrião, um bêbedo, um verdadeiro inútil, um homem capaz de levar um regimento à fome, ou um desses homens que honram a sua profissão?

- Um homem muito respeitável, a julgar pela sua aparência, e que não parece nada entregar-se a excessos. Rezou a acção de graças antes do jantar da maneira mais decente e mais respeitosa.

- Fica esta noite?

- Certamente, pois espera o pacto para a troca de prisioneiros. Temos de nos despachar, Lawton, não temos tempo a perder. Vou fazer uma sangria a dois ou três dos ingleses que devem partir amanhã e volto daqui a bocadinho.

Lawton vestiu a farda de gala e logo que o seu companheiro acabou partiram para Sauterelles. Aqueles dias de repouso tinham feito tão bem a Roanoke como ao seu dono, e Lawton moderando o passo do cavalo quando passou perto dos rochedos que não tinha esquecido, desejou que o seu pérfido inimigo se apresentasse diante dele armado e montado como ele.

Todavia, nenhum inimigo, nenhum obstáculo lhe impediu a marcha, e chegaram a Sauterelles no momento em que o sol lançava os seus últimos raios sobre o vale e doirava as copas das árvores despidas.

O capitão dos dragões descobria com um só olhar tudo o que não estava escondido com demasiado zelo, e mal entrou em casa, apercebeu-se de mais coisas do que o doutor Sitgreaves durante todq o dia. Jeannette Peyton recebeu-o com um sorriso que excedia os preceitos de boa educação e que tinha evidentemente a sua origem num sentimento secreto do coração. Frances ia e vinha agitada com lágrimas nos olhos. Wharton, de pé para os receber, tinha um fato de veludo que poderia vestir na corte mais elegante do continente.

O coronel Wellmere vestia o uniforme dos oficiais da guarda do seu soberano, e Isabel Singleton com um vestido que anunciava a alegria de uma festa tinha uma expressão que não estava inteiramente de acordo com o resto. O irmão sentado a seu lado, seguia tudo o que se passava com um ar interessado, e o olhar vivo e as cores que de vez em quando lhe subiam ao rosto não levariam ninguém a dizer que era afinal um convalescente. Como já era o terceiro dia que saía do quarto, o doutor Sitgreaves, que olhava em redor, surpreendido, nem pensou em acusá-lo de imprudência por ter descido ao salão.

Lawton observava esta cena com a calma e o sangue-frio de uma pessoa que não se deixa facilmente emocionar pelo imprevisto. Cumprimentou e recebeu os cumprimentos com gentileza e depois de ter dirigido algumas palavras a cada um dos presentes, aproximou-se do médico que se tinha afastado para um canto para se recompor da surpresa e confusão.

- John, que pensas de tudo isto? - perguntou em voz baixa com curiosidade.

- Que a tua peruca e a minha cabeleira negra precisam de um bocadinho de farinha de Betty Flanagan; mas é muito tarde para pensarmos nisso, e é preciso que nos recomponhamos do choque, tal como estamos. Sabes, Archibald, tu e eu parecemos dois milicianos ao lado de franceses elegantes.

- Olha!-disse Sitgreaves ainda mais surpreendido - o capelão do exército real que chega vestindo a preceito o seu trajo de doctor divinitatis(1) . O que significa isto?

- É o pacto para a troca de prisioneiros - respondeu o capitão. - Os feridos do exército de Cupido vão apresentar-se para darem conta ao seu pequeno deus, e prometerem nunca mais se exporem às suas flechas.

 

*1. D.D. é a abreviatura usada para designar uma pessoa formada em teologia, um divino, como dizem os Ingleses.

 

- Oh! - disse o médico afagando o nariz ao compreender do que se tratava.

- Sim, oh! - murmurou Lawton imitando o companheiro.

E voltando-se para ele com o sobrolho franzido acrescentou com veemência, mas em voz baixa:

- Não é uma vergonha que um herói sem categoria, um dos nossos inimigos, venha roubar uma das mais belas plantas do nosso país... uma flor que qualquer um gostaria de colocar no coração?

- É verdade, John; e não vai ser melhor marido do que doente. Temo que a mulher que o escolheu para esposo não seja muito feliz com ele.

- Que importa? - disse o capitão dos dragões indignado. - Escolheu-o entre os inimigos do seu país; pode encontrar no objecto da sua escolha as virtudes de um estrangeiro.

Jeannette interrompeu a conversa para lhes anunciar que o motivo do convite fora o casamento da sobrinha mais velha com o coronel Wellmere. Cumprimentaram-na dizendo-lhe que já tinham percebido. A senhora julgando dever-lhes uma explicação acrescentou que os futuros esposos se conheciam há muito tempo e que o seu amor também não era recente. Lawton baixou a cabeça uma segunda vez, em silêncio, mas o médico, que gostava de conversar com a tia, respondeu-lhe:

- O coração humano, minha senhora, não é constituído da mesma forma em todos os indivíduos. Em alguns, os sentimentos são vivos e passageiros, noutros profundos e duradoiros. Alguns filósofos julgam que há uma ligação entre as capacidades físicas e as faculdades morais do animal. Quanto a mim, estou convencido que uns são o resultado do hábito e da educação e que os outros estão sujeitos às leis e às luzes da ciência.

Jeannette Peyton saudou-os, por sua vez, em silêncio e retirou-se para ir ter com a sobrinha porque se aproximava a hora em que, segundo os costumes americanos a cerimónia nupcial se devia realizar. Sara, pudicamente corada, entrou pouco depois no salão acompanhada pela tia, e Wellmere dirigiu-se imediatamente para ela e segurou-lhe na mão que ela lhe estendia baixando os olhos. Foi neste momento e pela primeira vez que o coronel inglês pareceu ter percebido o papel importante que ia ter nesta cerimónia.

Até aí parecia distraído e nas suas maneiras havia qualquer coisa de constrangimento; mas todos estes sintomas desapareceram quando viu chegar a sua dama esfuziante na sua beleza. Então nada mais lhe restava do que a certeza da sua felicidade. Todos se levantaram e o capelão abria o livro que tinha na mão quando repararam que Frances não estava presente. Jeannette voltou a sair para a ir buscar e foi encontrá-la no quarto lavada em lágrimas.

- Vamos, minha querida sobrinha - disse a tia abraçando-a carinhosamente.

- Estão só à nossa espera para a cerimónia. Tenta acalmar-te para receberes como convém aquele que a tua irmã escolheu.

- Mas ele é digno dela? É possível que ele seja digno dela? - perguntou Frances comovida lançando-se nos braços da tia.

- Podia ser de outra maneira? - disse Jeannette. - Não é um homem de boas famílias, um bravo militar, embora tenha sido infeliz; um homem que parece ter todas as qualidades para fazer uma mulher feliz?

Frances sentia-se mais aliviada por ter manifestado os seus sentimentos, e fazendo um esforço sobre si mesma, conseguiu a coragem necessária para ir ter com as outras pessoas. Entretanto e para distrair as pessoas do incidente que provocara este atraso, o capelão fez várias perguntas aos futuros esposos, e nomeadamente uma para a qual não obteve uma resposta satisfatória. Wellmere foi obrigado a admitir que não tinha pensado na aliança. O capelão declarou que não podia proceder à cerimónia e chamou Wharton para confirmar esta decisão.

O pai respondeu afirmativamente e não o poderia ter feito de outra maneira porque a questão fora posta de forma a só admitir esta resposta. A partida do filho tinha-o feito perder a pouca energia que ainda tinha e aprovara a observação do capelão com a mesma facilidade com que tinha dado o seu consentimento ao casamento precipitado da filha com o coronel inglês.

Foi neste momento que Jeannette voltou ao salão acompanhada por Frances. Sitgreaves que estava ao pé da porta ofereceu-lhe o braço e conduziu-a a uma cadeira.

- Minha senhora, parece que as circunstâncias não permitiram que o coronel Wellmere arranjasse todos os atavios que a antiguidade, os costumes e os cânones da Igreja tornam indispensáveis para a celebração do casamento.

Jeannette olhou para o coronel que parecia muito inquieto e não lhe notando a falta de nada, tendo em consideração as circunstâncias em que se vivia e a brevidade com que o casamento tinha sido combinado, voltou-se para o médico com uma expressão de surpresa que exigia uma explicação.

Sitgreaves compreendeu o que ela desejava e prontificou-se a satisfazer a sua curiosidade:

- Uma opinião bastante generalizada é que o coração está situado na parte esquerda do corpo humano e que existe uma relação mais íntima entre os membros colocados deste lado a que se pode chamar a fonte da vida e os órgãos situados à direita; erro causado pela ignorância sobre a disposição científica das partes que constituem a máquina humana. Por consequência considera-se que o quarto dedo da mão esquerda tem uma virtude que nenhum dos outros tem e é por isso que durante a cerimónia nupcial ele é metido num aro, num anel, como para ligar ao matrimónio essa afeição que tem uma garantia maior nas graças da mulher.

Ao dizer estas palavras o médico tinha a mão apoiada no coração e ao terminar o discurso inclinou-se quase até ao chão.

- Parece-me que não o estou a compreender - afirmou "miss" Peyton com dignidade, deixando, no entanto, subir ao rosto que há muito tinha perdido os encantos da juventude, um leve rubor.

- Uma aliança, minha senhora. Falta um anel para a cerimónia.

Logo que Sitgreaves proferiu estas palavras, a tia compreendeu a situação desagradável em que se encontravam. Levantou os olhos para as sobrinhas e reparou que a mais nova tinha um ar de contentamento secreto que não lhe agradou. Compreendeu também o rubor que cobria o rosto de Sara. Por nada deste mundo queria violar as regras da etiqueta feminina. Tanto ela como as sobrinhas pensaram no mesmo instante na aliança da irmã e da mãe, que estava num esconderijo secreto juntamente com outras jóias desde o princípio da agitação na América, para estarem ao abrigo dos assaltos dos malfeitores que infestavam a região. A baixela de prata e outros objectos de valor estavam neste esconderijo onde se encontrava o anel em questão esquecido até este momento.

Mas desde tempos imemoriais é dever do futuro esposo oferecer este objecto indispensável para a celebração do casamento, e, nesta ocasião solene Jeannette não queria, por preço algum, ir além da delicadeza exigida às pessoas do seu sexo, pelo menos, até a ofensa ser expiada com uma dose suficiente de embaraço e inquietação. A tia manteve-se calada por decoro; Sara por delicadeza e Frances imitou-as pelos dois motivos e porque o casamento não lhe agradava. Foi o doutor Sitgreaves que pôs termo ao embaraço geral.

- Minha senhora, se um anel... um anel muito simples que era de uma das minhas irmãs... - O médico parou por um instante para tossir uma ou duas vezes. - Se este anel pode ser considerado digno desta honra, é fácil mandá-lo buscar aos Quatro-Cantos e estou convencido que está mesmo à medida para o dedo a que falta um. Há muitas semelhanças... hem!... entre minha irmã e "miss" Wharton na figura e em toda a estrutura anatómica, e as proporções são geralmente observadas em todo o sistema da economia animal.

Com um olhar "miss" Peyton lembrou ao coronel Wellmere qual era o seu dever. Levantou-se e dirigindo-se ao médico disse-lhe que lhe ficaria muito grato se ele mandasse buscar o anel. Sitgreaves saudou-o com um ar altivo e saiu para cumprir a sua promessa de enviar um emissário. Jeannette Peyton deixou-o sair, mas não querendo que um estranho tivesse conhecimento desta combinação seguiu-o decidida a oferecer-lhe os préstimos de César em vez dos serviços do impedido do capitão Singleton que Isabel tinha oferecido em nome de seu irmão que, talvez devido ao estado de fraqueza em que se encontrava, se mantivera sempre calado. Katy Haynes foi encarregada de dizer ao negro para ir à sala onde Jeannette e o médico o esperavam para lhe darem instruções.

Os motivos que tinham levado Wharton a consentir neste casamento tão rápido da filha mais velha com o coronel Wellmere, sobretudo na altura em que a vida de um membro da família corria tão grande perigo tinham sido a convicção de que a agitação que reinava no país não permitiria aos dois prometidos voltarem-se a encontrar em breve, e um receio secreto que a morte do filho, apressando a sua, deixasse as duas jovens sem protecção.

Todavia, embora "miss" Peyton tivesse cedido ao desejo do cunhado para se aproveitar a presença inesperada do ministro da Igreja, não julgou conveniente falar do futuro casamento da sobrinha, e não o teria feito mesmo que o tempo o tivesse permitido. Estava convencida que ia dizer um grande segredo a César e à governanta.

- César - disse-lhe ela - devo dizer-te que a tua jovem patroa, "miss" Sara, vai-se casar esta tarde com o coronel Wellmere.

- Oh! Oh! eu não ter dúvidas - respondeu César rindo e abanando a cabeça com o ar satisfeito da sua observação. - Quando uma jovem e um jovem falar sempre os dois, o velho negro saber bem adivinhar o resto.

- Na verdade, César - disse com dignidade Jeannette - não te sabia tão observador. Mas como sabes qual é a situação em que precisamos dos teus serviços ouve as ordens que o senhor te vai dar e tem cuidado para serem bem executadas.

O negro voltou-se com uma expressão tranquila e submissa para o médico que lhe disse:

- César, a senhora já te deu conta da cerimónia importante e solene que se vai celebrar nesta casa; mas falta o anel. Para isso é preciso ir à aldeia dos Quatro-Cantos e entregar este bilhete ao sargento Hollister ou à senhora Betty Flanagan. Logo que ela te der o anel volta e faz o possível para ires e voltares sem demoras porque daqui a pouco tenho de voltar para junto dos doentes do hospital e o capitão Singleton precisa de ir descansar.

Ao terminar estas palavras, o médico já tinha afastado do seu espírito tudo o que não tinha relação com os deveres da sua profissão e saiu da sala sem mais cerimónias.

A curiosidade, ou talvez um sentimento muito diferente, a delicadeza, levou "miss" Peyton a deitar uma vista de olhos ao bilhete que Sitgreaves não fechara antes de entregar ao negro e que era dirigido ao seu subordinado, e leu o seguinte:

 

"Se Kinder já não tiver febre dá-lhe qualquer coisa para comer. Tira três onças de sangue a Watson e toma cautela para que essa mulher, Betty Flanagan, não leve bebidas alcoólicas para o hospital. Alivia o aparelho a Johnson.

Manda o Smith embora porque já está em estado de retomar o serviço. Manda-me pelo portador o anel que está preso na corrente do relógio que aí deixei para marcares os intervalos da medicação.

         Archibald Sitgreaves, Major médico."

 

Jeannette entregou esta epístola tão singular a César, e voltou ao salão, deixando Katy e César a fazerem os preparativos necessários para a partida deste.

- César - disse Katy com um ar solene - quando te derem o anel põe-no no bolso esquerdo, é o que fica mais perto do coração; não o ponhas no dedo, porque isso traz infelicidades.

- Não meter no meu dedo! Ah! ah! ah! - riu o negro abrindo a mão enorme. - Estar convencida que o anel de "miss" Sally entrar no dedo do velho César?

- Pouco me importa que entre ou não - retorquiu a governanta. - É mau presságio pôr uma aliança de outra pessoa depois do casamento; e por consequência pode ser perigoso pô-la antes.

- Eu dizer-te, Katy - retorquiu César indignado - que eu ir buscar um anel, mas não pensar meter o anel no dedo.

- Vai-te embora. César, vai-te embora -disse Katy lembrando-se que a preparação da ceia exigia os seus cuidados; vem depressa e não pares por nada deste mundo.

César saiu com esta recomendação e daí a pouco estava sentado na sela.

Desceu à cavalariça, montou o cavalo que lhe tinham preparado e partiu imediatamente. Como a maior parte dos negros fora um excelente cavaleiro quando era novo; mas o peso dos sessenta anos tinha retardado a circulação do sangue do africano, e caminhava agora com a gravidade que convinha à missão tão importante de que fora encarregado. A noite estava escura e o vento soprava no vale com o frio glacial que as longas noites de Novembro lhe dão.

Quando chegou perto do cemitério onde recentemente tinham sido depositados os restos mortais de John Birch, estremeceu involuntariamente, e olhou em volta amedrontado para ver se não haveria por ali qualquer aparição. Havia ainda claridade suficiente para lhe permitir distinguir um vulto humano que saía do meio dos túmulos e que avançava em direcção ao arruamento principal, É em vão que a filosofia e a razão combatem os nossos receios e as nossas primeiras impressões; mas nem uma nem outra ofereciam o seu fraco apoio a César. Todavia, estava montado num dos cavalos do carro de Wharton e agarrando-se à crina com destreza e por instinto, meteu-lhe o freio nos dentes. As montanhas, os bosques, as rochas, as sebes, as casas, pareciam voar de um lado e de outro tal era a velocidade e o negro começava a esquecer-se do local para onde se dirigia e da causa da sua precipitação quando no entroncamento das duas estradas surgiu o hotel Flanagan com toda a simplicidade da sua deterioração.

Ao ver, através da janela, o fogo que ardia na lareira sentiu primeiro a segurança de quem chega a uma habitação humana, mas esta ideia foi acompanhada do medo que sentia pelos dragões da Virgínia. Era preciso entregar a mensagem, e, pondo os pés em terra, atou o cavalo que espumava a uma sebe e aproximou-se da janela andando de mansinho para ouvir e fazer o reconhecimento.

O sargento Hollister e Betty Flanagan, sentados junto do fogo crepitante, conversavam não tendo no jarro, que a hospedeira enchera generosamente com o seu licor preferido, mais do que um terço.

- Volto a dizer-lhe, meu caro sargento - afirmava Betty colocando em cima da mesa o jarro que acabara de levar à boca - que não há razão para pensar que não era o bufarinheiro em pessoa: onde estava o cheiro a enxofre, a cauda, os chifres, o pé de cabra? Além disso, sargento, não é decente dizer a uma viúva que teve Belzebu por companheiro no quarto.

- Pouco importa, Betty Flanagan; o que eu pretendo é que fuja sempre aos seus embustes e ciladas- respondeu o militar que terminou o seu discurso com um ataque vigoroso ao jarro do "whisky".

César tinha ouvido o bastante para se convencer que não havia grande perigo em aproximar-se daquele par. O frio e o medo começavam a fazer-lhe bater os dentes e o fogo e o jarro de "whisky" pareceram-lhe suficientes para se arriscar à aventura. Aproximou-se da porta com toda a cautela e bateu da forma mais humilde que pôde. Os passos de Hollister de sabre na mão gritando "quem vem lá? " não contribuíram em nada para a sua presença de espírito; mas foi precisamente o excesso de medo que lhe permitiu explicar o objectivo da sua missão.

- Adiante! - gritou o sargento em tom peremptório e muito militar, examinando-o dos pés à cabeça com a luz que tinha na mão esquerda. - Adiante, mostra-me a comunicação. Espera um instante: a senha?

- Eu não saber o que querer dizer - respondeu o negro tremendo dos pés à cabeça.

- Quem te enviou nesta missão?

- Ser o senhor com os óculos grandes; o que vir para curar capitão Síngleton.

- É o doutor Sitgreaves, mas ele nunca se lembra da senha. Agora, negro, sempre te digo que se fosse o capitão Lawton não te tinha mandado aqui, para junto de uma sentinela, sem te dar a senha. Esse esquecimento podia ter-te valido uma bala na cabeça, o que teria sido pouco agradável para ti; porque, embora sejas negro, não faço parte daqueles que pensam que os pretos não têm alma.

- Evidentemente que um negro tem alma como um branco - disse Betty. - Avança meu velho e vem aquecer o teu corpo que treme, ao lume. Tenho a certeza que um negro da Guiné gosta tanto do lume como um soldado de um copo de "whisky".

César obedeceu em silêncio, e um jovem mulato que dormia num banco foi levar o bilhete do médico à casa que servia de hospital.

-Toma -disse a hospedeira oferecendo a César um copo do licor que ela própria preferia. - Toma uma gota, moreno. Isto vai dar-te forças para o regresso, aquece a tua alma negra.

- Garanto-lhe, Elizabeth, que as almas dos negros são semelhantes às nossas - declarou Hollister. - Quantas vezes ouvi o bom Whitfield dizer que não há distinção de cor no céu! Não custa nada a crer que a alma desse negro seja tão branca como a minha, ou mesmo como a do major Dunwoodie.

- Ser certo - disse César a quem o licor de Betty Flanagan tinha dado uma calma maravilhosa.

- Em todo o caso - retorquiu a mulher - o major é uma alma excelente... e uma bela alma... sim, e uma alma corajosa; espero que não tenha nada a dizer a isto, sargento.

- Quanto a isso - respondeu o soldado - há uma pessoa que está acima de Washington, e a quem compete julgar as almas; mas posso dizer que o major Dunwoodie é um homem que nunca diz: Vão, meus filhos, mas Vamos, meus filhos. Se falta um freio a um dragão, ou umas esporas ele sabe sempre onde há-de ir arranjar o dinheiro para se comprarem: é ao seu bolso.

- E porque estás aqui de braços cruzados, quando aquele que mais estremeces no mundo está em perigo? - gritou uma voz a pouca distância. - A cavalo! Às armas! Vai ter com o teu comandante ou será tarde demais!

Esta interrupção inesperada lançou a confusão no trio. César refugiou-se debaixo da chaminé, onde manteve a sua posição com coragem, embora exposto a um calor que teria assado um branco. O sargento deu meia-volta à direita e num abrir e fechar de olhos tinha o sabre na mão, segurando-o com uma expressão terrível, fazendo brilhar o aço à luz do fogo. Quando de pé, na soleira da porta, reconheceu o intruso como sendo o intrépido bufarinheiro deu três passos à retaguarda para se juntar ao negro, espécie de manobra militar que tinha como objectivo concentrar as forças.

A hospedeira foi a única que se conservou junto da mesa. Enchendo um copo de licor conhecido dos soldados pelo nome de chokedog(1) ofereceu-o ao vendedor ambulante. O amor e o "whisky" tornavam-lhe os olhos brilhantes e voltando-se para Birch bem humorada disse-lhe:

 

*1. Estrangula-cão. (N. do T.)

 

- Por Deus! Seja bem-vindo, senhor Birch, senhor espião, senhor Belzebu, ou lá como o senhor se chama; porque se é um diabo é um diabo honesto, pelo menos. Espero que o meu vestido e o meu saiote lhe ficassem bem. Chegue-se ao lume e não tenha medo do sargento Hollister; ele não lhe faz mal com medo que o senhor um dia se vingue. Não é verdade, sargento?

- Não avances, espírito das trevas - exclamou o soldado tomando uma posição ainda mais próxima da de César levantando alternadamente as pernas que o calor queimava. - Retira-te em paz: não está aqui nenhum dos teus, e é em vão que procuras esta mulher; está protegida por uma ternura de piedade que a salvará das tuas garras.

O movimento dos lábios revelava que ainda estava a falar; mas era uma oração que fazia em voz baixa de que só se ouviam palavras soltas.

A cabeça da hospedeira escaldava com o licor que tinha bebido sem restrições. Algumas palavras pronunciadas por Hollister, e que ela não tinha compreendido, tinham fixado a sua atenção, e fizeram nascer uma nova ideia na sua imaginação.

- E se é a mim que ele procura quem tem o direito de o contrariar? Não sou viúva e senhora dos meus actos? ... E o senhor fala de ternura; o que vejo não é grosseiro seja no que for. O senhor Belzebu vai dizer-me o que lhe aprouver pois estou disposta a escutá-lo.

- Silêncio, mulher! - exclamou Harvey. - E tu insensato, pega nas armas, monta, e voa em auxílio do teu oficial, se és digno da causa que serves; queres desonrar o uniforme que envergas?

Os sentimentos que animavam o bufarinheiro davam às suas palavras toda a força da eloquência, e desapareceu aos olhos do trio atónito com uma rapidez que não deixou a ninguém tempo para ver que caminho tinha tomado.

Ao ouvir a voz de um amigo de há tantos anos, César saiu do esconderijo com a pele brilhante de suor e avançou com desenvoltura para Betty que tinha ficado de pé com as ideias em turbilhão.

- Eu ter pena de Harvey ter partido - disse ele.

- Se ele ir atravessar o vale, eu ir mais à vontade com ele. O espírito de John Birch não fazer mal ao filho.

- Pobre ignorante! - exclamou o militar recuperando a fala depois de ter tomado o fôlego com dificuldade. - Estão convencidos de que acabamos de ver um homem de carne e osso?

- Harvey não ter muita carne, mas ser bem esperto - replicou o negro.

- Sargento - interveio a hospedeira - tenha juízo ao menos uma vez na vida, e aproveite o aviso que lhe deram, seja lá quem for. Chame os soldados e vá ter com o capitão Jack. Lembre-se que ele lhe disse para estar pronto a partir ao primeiro sinal.

- Sim, mas não por ordem do espírito maligno. Quando o capitão Lawton, o tenente Mason, ou o porta-estandarte Skipwith dão uma ordem, quem se senta na sela antes de mim?

- E quantas vezes se gabou na minha presença, sargento, de não ter medo de fazer face ao diabo?

- Volto a dizê-lo: em batalha organizada à luz do dia. Todavia é uma loucura e uma impiedade tentar Satanás numa noite destas. Oiçam como o vento sopra pelos ramos das árvores: até parece que se ouvem os lamentos dos espíritos malignos.

- Estar a ver! - exclamou César abrindo tanto os olhos que parecia açambarcar uma quantidade enorme de objectos imaginários.

- Quem? - perguntou Hollister levando por instinto a mão ao punho do sabre.

- Eu ver John Birch sair da sepultura - disse o negro. - John Birch levantou-se antes de ter sido enterrado.

- Nesse caso deve ter levado uma vida má - afirmou Hollister. Os espíritos bem-aventurados ficam em repouso até à ressurreição final; mas a alma culpada é atormentada neste mundo como será no outro.

- E que vai acontecer ao capitão Jack? - perguntou encolerizada Betty. - Não pensa nas suas ordens nem no aviso que lhe fizeram? Vou mandar atrelar o meu carro e vou-lhe dizer que escusa de contar com o seu auxílio porque o senhor tem medo do diabo e de um homem morto. Veremos quem é amanhã a ordenança. Tenho a certeza que não nomeará Hollister.

- Vamos, vamos - disse o sargento apoiando a mão no ombro -, se é preciso partir esta noite, que seja aquele cujo dever é chamar os soldados às armas e dar-lhes o exemplo. Que o Senhor tenha piedade de nós, e que nos envie inimigos de carne e osso!

Um outro copo de vinho que a hospedeira lhe deitou ajudou-o a confirmar uma resolução que só tinha tomado com medo de desagradar ao capitão, e foi dar as ordens necessárias aos doze dragões que tinha sob o seu comando. O mulato tinha voltado com o anel. César meteu-o no bolso do colete mais próximo do coração, montou, fechou os olhos, agarrou-se à crina do cavalo e ficou numa espécie de torpor até o animal parar à porta da cavalariça de onde tinha saído.

Os movimentos dos dragões faziam-se com toda a regularidade, numa marcha mais lenta, e o sargento mandava-os avançar com as precauções que tinham como objectivo a protecção contra qualquer acção inesperada do espírito maligno.

 

Para as pessoas reunidas no salão de Wharton a situação era embaraçosa, embora César não tivesse levado mais de uma hora a executar a sua missão. Na verdade foi neste intervalo de tempo que o cavalo percorreu as quatro milhas e se verificaram os factos que acabamos de contar. Sem dúvida que os cavalheiros fizeram todo o possível para abreviar estes momentos embaraçosos; mas a felicidade que aqui se preparava é a que provoca menos alegria. Os futuros esposos por mil razões têm o privilégio de não terem nada a dizer; e os seus amigos nestas ocasiões parecem dispostos a seguir o seu exemplo. O atraso com que a felicidade chegava dava ao coronel inglês motivos de impaciência e inquietação, e a sua fisionomia tomava constantemente novas expressões, ali sentado junto de Sara que aproveitava a demora para ganhar forças para a cerimónia. No meio deste silêncio embaraçoso, Sitgreaves dirigiu-se a Jeannette, ao lado da qual conseguira colocar uma cadeira.

- O casamento, minha senhora, é um estado honroso aos olhos de Deus e dos homens e podemos dizer que no século em que vivemos ele está conforme às leis da natureza e da razão. Os antigos tinham perdido as luzes e condenado milhares de seres à infelicidade sancionando a poligamia. Todavia os progressos e os conhecimentos humanos fizeram nascer esta norma tão esclarecida que proíbe ao homem ter mais do que uma mulher.

Wellmere ao ouvir esta observação banal deitou um olhar em que havia tanto de irritação como de desprezo.

- Estava convencida - disse Jeannette Peyton - que devíamos essa benesse à religião cristã.

- Incontestavelmente, minha senhora - replicou Sitgreaves. - Foi estabelecido em qualquer passagem dos escritos dos Apóstolos que o homem e a mulher estariam neste aspecto em pé de igualdade; contudo, até que ponto a poligamia não poderia afectar a santidade da vida? Foi sem dúvida uma decisão científica de São Paulo, que era um homem instruído, e que provavelmente tinha discutido este assunto com São Lucas que, como toda a gente sabe, tinha sido educado na prática da medicina.

"Miss" Peyton limitou-se a responder a esta exposição tão erudita com um simples baixar de cabeça que teria feito calar um bom observador; mas o capitão Lawton que durante todo este tempo estivera sentado com o queixo apoiado no punho do sabre, cuja bainha estava poisada no chão, olhando alternadamente para o médico e para o coronel, tomou por sua vez a palavra.

- Este costume existe ainda em certos países - disse ele - e precisamente naqueles em que foi abolido pelo cristianismo. O coronel Wellmere sabe qual é a pena para a bigamia em Inglaterra?

Wellmere levantou os olhos para a pessoa que o interrogava, mas baixou-os imediatamente por não poder aguentar o olhar observador que encontrou. Com um esforço conseguiu dominar o tremor dos lábios e o rubor que lhe tinha subido ao rosto e respondeu:

- A morte, como um crime destes o merece.

- E a dissecação - acrescentou o médico - porque os nossos legisladores foram bastante esclarecidos para tornarem o criminoso útil à sociedade, mesmo depois do castigo do crime, e a bigamia é um dos mais odiosos.

- Mais do que o celibato? - perguntou-lhe Lawton com sarcasmo.

- Sem dúvida - respondeu o cirurgião com uma simplicidade imperturbável. Se o celibatário não contribui para a multiplicação da espécie humana, pode dedicar o seu tempo à propagação das luzes da ciência. Mas o miserável que abusa da ternura e da credulidade do sexo mais fraco é tão desprezível como criminoso e não merece piedade de espécie nenhuma.

- Acha, doutor, que as senhoras gostam de ser consideradas como fracas e crédulas?

- Não pode negar, capitão Lawton, que no homem o animal é mais nobre do que na mulher. Os nervos são dotados de menos sensibilidade, as fibras são mais duras, os músculos mais vigorosos, os ossos mais fortes e mais sólidos. É pois de admirar que a mulher tenha mais tendência para ter fé no celerado que procura enganá-la?

Wellmere que não podia seguir a conversa com paciência levantou-se e começou a passear pela sala, perturbado. Com pena dele, o capelão que continuava paramentado esperando o regresso de César conduziu a conversa para outro assunto e pouco depois o negro chegava. Entregou a Sitgreaves o bilhete que trazia porque "miss" Peyton não queria de forma alguma interferir na missão que lhe fora confiada.

Este bilhete dava-lhe conta de todos os assuntos a que o seu se referia e comunicava-lhe que o negro levava o anel o qual lhe foi entregue imediatamente. No rosto do médico surgiu uma expressão de melancolia enquanto olhava o anel em silêncio, e esquecendo onde se encontrava e a cerimónia a que se ia proceder afirmou com ternura:

- Pobre Ana! O teu jovem coração era a morada da inocência e da alegria quando este anel foi comprado para o teu casamento; mas antes do dia chegar, o céu achou por bem chamar-te. Muitos anos se passaram desde então, mas eu não esqueço a companheira da minha infância!

Dirigindo-se a Sara entregou-lhe o anel e enfiando-lho no dedo disse no mesmo tom:

- Aquela a quem este anel se destinava repousa há muito no seu túmulo; o seu prometido seguiu-a pouco depois; aceite-o "miss" Wharton e que ele seja para si o símbolo da felicidade que merece!

Esta manifestação de sensibilidade produziu em Sara uma impressão profunda que fez afluir todo o seu sangue ao coração, mas o coronel oferecendo-lhe a mão conduziu-a para diante do capelão e a cerimónia começou. As primeiras palavras da cerimónia fizeram descer sobre a sala um profundo silêncio, e o reverendo depois de ter dirigido uma exortação aos noivos recebeu as suas promessas de fidelidade mútua.

Chegou-se ao momento da colocação da aliança. Por inadvertência e devido à confusão do momento o anel estava no dedo em que o médico o tinha enfiado. Esta circunstância deu origem a uma pequena interrupção durante a qual apareceu no meio da sala um homem que obrigou a suspender a cerimónia. Era o vendedor ambulante. Os seus olhos há pouco tão tímidos não evitavam os olhos dos outros, mas tinham uma expressão alucinada. Todo o seu corpo estava agitado por uma emoção extraordinária que, todavia, passou como a sombra de uma nuvem perseguida pelo vento forte. Tomando um ar de humildade profunda e de respeito, voltou-se para o noivo e disse-lhe cumprimentando-o:

- Como pode estar aqui o coronel Wellmere no momento em que a sua mulher atravessa o oceano para vir ter com o senhor. As noites são longas, a lua vai surgir; dentro de horas estará em Nova York.

Assombrado com estas palavras inesperadas, Wellmere ficou um instante confundido.

A fisionomia de Birch embora transtornada não fez nascer qualquer receio no espírito de Sara, mas ao recompor-se da surpresa ocasionada por esta interrupção, deitou um olhar inquieto para o rosto do homem a quem ia ligar-se para toda a vida, e leu a terrível confirmação do que o bufarinheiro acabava de dizer.

Tudo o que estava no salão girou em volta dela e caiu sem sentidos nos braços da tia. Existe na mulher um instinto de delicadeza que parece triunfar de todas as outras emoções, por mais intensas que sejam; este instinto fez com que "miss" Peyton e Frances levassem Sara para a sala ao lado, e os homens ficaram sozinhos no salão.

A confusão que se seguiu ao desmaio de Sara permitiu que o bufarinheiro desaparecesse com uma prontidão que não seria possível apanhá-lo se se tivesse pensado nisso. Wellmere reparou que todos os olhos incidiam sobre ele no meio de um silêncio de mau augúrio.

- É falso. Falso como o inferno! - exclamou batendo na testa com a mão; - nunca conheci esses pretensos direitos e as leis do meu país não me obrigarão a reconhecê-los.

- Mas as leis de Deus e da consciência? - perguntou-lhe Lawton. Antes que Wellmere tivesse tido tempo de responder, Singleton que até aí se mantivera apoiado no braço do impedido, avançou para o centro do círculo, e exclamou, com os olhos brilhantes de indignação:

- É assim a honra inglesa! Essa honra de que a vossa nação tanto se orgulha, mas que não segue as mesmas normas para os estrangeiros! Em guarda - acrescentou levando a mão ao punho do sabre; - todas as raparigas da América têm direito à protecção dos seus filhos, e não há nenhuma tão abandonada que não encontre quem a vingue quando é ultrajada e insultada.

- Muito bem, senhor - respondeu Wellmere dirigindo-se altivo para a porta. - A sua situação protege-o; mas pode vir o dia...

Ia a sair do salão, quando sentiu que lhe batiam levemente no ombro. Virou-se, e viu o capitão Lawton, que lhe sorria com uma expressão muito particular e lhe fazia sinal para o seguir. O estado de espírito de Wellmere era tal que estava por tudo para evitar o olhar de horror e de desprezo das pessoas que o rodeavam. Caminharam em silêncio até à cavalariça.

- Tragam-me o Roanoke! - ordenou o capitão.

O impedido apareceu imediatamente com o cavalo selado e pronto para partir. Lawton deitou a rédea, com o maior sangue-frio, sobre o pescoço do animal, e, pegando nas pistolas de arção, disse:

- Teve toda a razão coronel Wellmere quando disse que Jorge Singleton não está em condições para lutar neste momento; mas aqui tem umas pistolas que já fizeram muito serviço, e que sempre estiveram na mão de homens honrados. Pertenceram ao meu pai, coronel; serviu com honra nas guerras contra a França, e ofereceu-mas para as usar na defesa da causa da pátria. Poderia utilizá-las com maior honra do que para castigar um miserável que queria enganar uma das mais belas flores do meu país?

- Sou eu que o vou castigar por essa insolência - exclamou o coronel pegando na arma que o outro lhe estendia - e que o sangue caia sobre a cabeça do agressor!

- Ámen - disse Lawton. - Está livre agora. Tem em seu poder um passaporte de Washington: o primeiro tiro é seu. Se eu morrer tem aqui um cavalo que o porá ao abrigo de toda a perseguição, mas afaste-se sem demora porque num caso destes até o próprio Sitgreaves se bateria e não pode esperar contemplações do esquadrão de dragões aqui estacionado.

- Está pronto? - perguntou Wellmere rangendo os dentes de raiva.

- Aproxima a luz. Tom. Fogo!

Wellmere atirou e a dragona do capitão saltou no ar feita em pedaços.

- E o meu - gritou uma voz por trás dele ao mesmo tempo que lhe desferiam um golpe no braço que o fez largar a pistola. - Não tem nada melhor para fazer do que atirar sobre um homem como se ele fosse um peru na véspera de Natal? Por todos os diabos do inferno! É o furioso da Virgínia! A ele, camaradas! Agarrem-no! É uma presa com que nunca contei!

Embora surpreendido e desarmado, Lawton não perdeu a presença de espírito. Sabia que estava nas mãos de indivíduos de quem não podia esperar clemência e por isso chamou a si todas as forças para se defender. Quatro Skinners lançaram-se sobre ele ao mesmo tempo; três agarraram-no pelo pescoço e pelos braços para lhe impedirem os movimentos e para o amarrarem com cordas. Conseguiu livrar-se de um deles com tanta força que o arremessou contra a parede onde ficou encostado, atordoado pelo choque. Mas o quarto agarrou-o pelas pernas, e o capitão, não podendo defender-se de tantos inimigos, caiu por sua vez arrastando na queda os dois homens que o agarravam. A luta entre os antagonistas foi curta, mas terrível.

Os Skinners proferiam as maldições e as imprecações mais horríveis que se possa imaginar, chamando três outros companheiros que estavam petrificados de horror perante a violência da luta. De repente, um dos homens deu dois suspiros abafados e começou a gemer baixo como se tivesse sido estrangulado; no mesmo instante um dos elementos do grupo assaltante levantou-se libertando-se das mãos de um outro que o pretendia agarrar.

Wellmere e o impedido de Lawton tinham desaparecido, o primeiro para se refugiar na cavalariça e o segundo para dar o alarme em casa. Este último levou consigo a lanterna e a escuridão era completa. O homem que se tinha levantado saltou para a sela do cavalo ali esquecido e as faíscas das ferraduras no solo deram luz suficiente para se ver que o capitão se dirigia a galope para a estrada.

- Para o inferno, salvou-se! - exclamou o chefe dos Skinners com a voz rouca. - Fogo! Abatam-no! Fogo! Agora ou será tarde demais.

A ordem foi executada e os bandidos esperaram, em silêncio, um instante na esperança de ouvirem cair a vítima.

- Ele não cairia mesmo que o tivessem morto - disse um deles. - Já vi virginianos ficarem firmes nas selas mesmo depois de terem duas ou três balas no corpo, e mesmo depois de mortos.

O vento fez chegar até aos seus ouvidos o barulho da corrida rápida de um cavalo no vale e a sua marcha regular era prova evidente de que era montado por um bom cavaleiro.

- Os cavalos bem treinados - afirmou outro elemento do grupo - estão habituados a parar quando o cavaleiro cai.

- Nesse caso, salvou-se! - exclamou o chefe carregando na terra o mosquete com raiva. - O malvado escapou-se... Pois bem! ao trabalho... Daqui a meia hora temos aqui aquele hipócrita do sargento e todos os seus homens. Teremos muita sorte se o barulho dos tiros não os atraiu já. Vamos, depressa, aos vossos postos... deitem fogo à casa. Ruínas fumegantes para encobrir as más obras.

- E o que vamos fazer disto? - perguntou um deles virando com o pé o corpo do homem que Lawton quase tinha estrangulado e que continuava desmaiado. - Com duas bofetadas volta a si.

- Fica aí! - respondeu o chefe furioso.- Se valesse tanto como meio homem, esse maldito dragão estaria agora em meu poder. Vamos entrar e deitar fogo aos quartos; não sairemos daqui de mãos vazias; há dinheiro e pratas para nos enriquecer a todos... sim, e para nos vingarmos.

A ideia da prata fosse qual fosse a forma com que se apresentasse aos seus espíritos, tinha qualquer coisa de muito sedutor a que eles não podiam resistir, e abandonando o companheiro que começava a dar sinais de vida precipitaram-se para a casa.

Wellmere aproveitou a partida deles para sair sem barulho da cavalariça; e como levou consigo um cavalo daí a pouco estava na estrada. Hesitou um momento pensando se devia ir aos Quatro-Cantos para dar o alarme ao destacamento que sabia estar estacionado ali, e procurar socorrer a família Wharton; ou se, aproveitando a liberdade que a nota de troca lhe proporcionava, se devia meter a caminho de Nova York. A vergonha e a consciência que lhe reprovava o seu crime levaram-no a decidir-se pela segunda hipótese, e afastou-se pensando com preocupação na entrevista que ia ter com a mulher escorraçada, com quem tinha casado em Inglaterra, e que tinha abandonado quando a sua paixão tinha sido satisfeita e cujos direitos legítimos estava disposto a contestar.

No estado de confusão e ansiedade em que a família Wharton se encontrava o desaparecimento de Lawton e Wellmere passara completamente despercebido. O estado de Wharton e o esgotamento que se tinha seguido ao movimento de indignação do capitão Singleton exigiam palavras de consolação do capelão e os cuidados do médico. O barulho da descarga da arma de fogo foi para a família o primeiro aviso da aproximação de novos perigos, e um minuto depois o chefe dos Skinners entrava no salão com o seu grupo.

- Renda-se, servidor do rei Jorge - gritou o chefe apoiando a ponta do mosquete no peito de Sitgreaves. - Renda-se ou não deixarei nas suas veias nem uma gota desse sangue monárquico.

- Devagar, devagar, meu amigo - retorquiu o médico. - O senhor é com certeza mais hábil na arte de fazer feridas do que de curá-las, e a arma que segura tão indiscretamente é infinitamente perigosa para a vida animal.

- Renda-se porque senão...

- E porque me hei-de render? Não sou combatente, sou um discípulo de Galeno. É com o capitão Lawton que o senhor deve tratar dos artigos da capitulação, embora esteja convencido que ele não está muito disposto a isso.

O Skinner que tinha tido tempo para examinar o grupo que se encontrava na sala, e verificando que não haveria resistência, dispôs-se imediatamente a assegurar a sua parte da pilhagem deitando para o chão o mosquete. Ajudado pelo homem que o acompanhava começou a meter num saco todos os objectos de prata que pôde encontrar, preparando-se assim para o caso de uma retirada inesperada.

A casa oferecia um aspecto muito singular. Todas as senhoras estavam junto de Sara, ainda desmaiada, numa sala que passara despercebida aos assaltantes. Wharton mergulhara num estado de torpor completo, ouvindo sem entender as palavras de consolação que o capelão lhe dirigia enquanto o medo não se apossou dele e não o obrigou a abandonar esta obra de misericórdia. Singleton esgotado estava estendido num sofá e só dava conta do que se passava à sua volta. O médico deu-lhe um reconstituinte cardíaco e examinava as ligaduras com uma calma que desafiava o tumulto.

César e o impedido do capitão Singleton tinham-se refugiado no bosque; e Katy Haynes, percorrendo toda a casa, fazia apressadamente embrulhos com os objectos mais preciosos tendo, todavia, o cuidado de não meter nada que não fosse seu.

Mas já é tempo de voltarmos aos Quatro-Cantos. Logo que Hollister deu ordem aos dragões para pegarem nas armas e montarem, a hospedeira sentiu o desejo de partilhar a glória e os perigos da expedição. Não nos compete a nós garantir se ela o fez com medo de ficar sozinha ou pelo desejo de ir pessoalmente em socorro do seu preferido; mas uma coisa é certa, quando viu o sargento já montado, hesitando em dar a ordem para a partida, gritou:

- Esperem que eu atrele a carroça; vou acompanhá-los e se, como é muito possível, houver feridos serve para os trazer.

Embora interiormente Hollister não tivesse ficado nada aborrecido com este pretexto para atrasar a partida para uma missão que o contrariava, julgou conveniente mostrar descontentamento por esta demora:

- Quando os meus dragões estão a cavalo nem um tiro de canhão os faz descer; e numa missão que é da invenção do diabo é pouco provável que nos tenhamos de defender do fogo dos canhões ou dos mosquetes; desta forma, se lhe apetece pode vir, mas verá que não teremos necessidade da sua carroça.

- Mente, meu caro sargento - disse Betty a quem as libações copiosas não permitiam escolher os termos. - O capitão Singleton não caiu do cavalo há dez dias atingido por uma bala? Não aconteceu outro tanto ao capitão Jack? Não ficou estendido de costas e com o rosto voltado para o céu? Os seus dragões julgando-o morto não fugiram deixando a vitória às tropas do rei?

- A senhora está a mentir! - exclamou encolerizado o sargento. - Quem disser que entregámos a vitória, mente.

- Quis dizê-lo por um momento - replicou a mulher. Voltaram as costas um momento, mas o major Dunwoodie chegou, mandou-os atacar de novo e as tropas regulares voltaram-lhes por sua vez as costas. Mas o capitão Jack não foi desmontado, e tenho a certeza que entre todos os dragões, não há um cavaleiro melhor do que ele. Dessa forma, sargento, a minha carroça pode ser útil. Vamos, dois de vocês engatem a égua à carroça, e se lhes faltar alguma coisa amanhã de manhã não é "whisky", ponham-lhe no dorso um bocado da pele de Jenny, porque as estradas esburacadas de West Chester fizeram mal ao pobre animal.

Com o consentimento do sargento o carro de Betty Flanagan estava pronto para a levar daí a momentos.

- Como não sabemos de que lado seremos atacados seis de vocês irão à frente e os outros atrás para cobrirem a nossa retirada, se for necessário - disse Hollister aos dragões. - Não é fácil para um homem com pouca instrução ter de tomar o comando num momento destes, senhora Betty Flanagan, e dava tudo para que estivesse aqui um dos nossos oficiais; mas ponho a minha confiança no Senhor.

- Apre! Irra! - exclamou a hospedeira instalando-se melhor na carroça. - No diabo se há um inimigo nas redondezas! Vão mais depressa um bocadinho para poder pôr a égua a trote, senão o capitão Jack não tem que lhes agradecer o trabalho.

- Embora não passe de um ignorante no que diz respeito à comunicação com os espíritos e almas do outro mundo, senhora Betty Flanagan - afirmou Hollister - não fiz a outra guerra e não servi cinco anos nesta sem ter aprendido que um exército deve sempre proteger as suas bagagens e Washington nunca esquece este princípio. Não preciso de receber lições de uma hospedeira sobre os meus deveres. Vamos, camaradas, em marcha! Coloquem-se como eu mandei.

- Sim, andem, não importa como? - retorquiu Betty com impaciência. - Tenho a certeza que o negro já chegou e o capitão os vai repreender por terem sido tão lentos.

- E a senhora tem a certeza que foi um negro que trouxe a carta? - perguntou o sargento colocando-se entre os dois pelotões de forma a poder conversar com Betty e dar ao mesmo tempo ordens para a frente e para trás.

- Já disse que não tenho a certeza de nada - respondeu a mulher - mas porque não põem os dragões os cavalos a trote? A égua não está acostumada a andar a passo, e as pessoas não aquecem neste maldito vale caminhando a passo de enterro.

- Devagar, tranquila e prudentemente, senhora Betty Flanagan - replicou Hollister. - Não é a temeridade que faz um bom oficial. Se viermos a ter problemas com um espírito é muito provável que ele nos ataque de surpresa. Não se deve contar muito com os cavalos no escuro e tenho uma reputação em jogo, boa mulher.

- Uma reputação! - repetiu Betty. - E o capitão Jack não tem uma reputação e mesmo a própria vida em jogo?

- Alto! - gritou o sargento. - O que está a mexer junto daquele rochedo, à esquerda?

- Não é nada - respondeu a mulher com impaciência. - A não ser que seja a alma do capitão Jack que venha ralhar por terem ido tão devagar em seu socorro.

- Betty, é uma tolice falar dessa maneira. À frente, um de vocês! É preciso ver o que se passa ao pé daquele rochedo. Todos com o sabre na mão! Cerrar fileiras.

- É louco ou cobarde, sargento? Vamos, vamos, abram caminho para mim! A minha égua e eu estaremos junto do rochedo num abrir e fechar de olhos. Não é um espírito que me faz medo, por Deus!

Neste momento um dragão que se tinha adiantado voltou atrás para dizer que não havia nada a impedir-lhes o caminho e a marcha prosseguiu com toda a lentidão e solenidade.

- A coragem e a prudência são as virtudes de um soldado, senhora Betty Flanagan - disse o sargento - e sem uma destas qualidades a outra não serve para nada.

- A prudência sem coragem? - replicou a hospedeira. - É isso que quer dizer, sargento? É assim que pensa. Mas não posso aguentar a égua, vai desbocar-se.

- Paciência, boa mulher! Escute! O que é isto? - perguntou Hollister prestando atenção ao tiro de pistola disparado por Wellmere; juraria que é um tiro e de uma pistola do nosso regimento. Atenção! O corpo de reserva para a frente, fechar fileiras. Tenho de a deixar, senhora Betty Flanagan. Com estas palavras, e depois de ter escutado o barulho de uma arma de fogo que ele reconhecia e que lhe veio despertar todas as faculdades, foi colocar-se à frente dos dragões com um ar de orgulho militar que a escuridão não permitiu que a hospedeira se apercebesse. Daí a pouco ouviu-se uma barragem de fogo de mosquetes e o sargento ordenou: - Avancemos! A galope!

No mesmo instante ouviu-se na estrada o barulho de um cavalo cuja velocidade anunciava que era um caso de vida ou de morte para aquele que o montava. Hollister mandou parar os seus homens e avançou para reconhecer o cavaleiro que se aproximava.

- Alto! Quem é? - perguntou o sargento com a voz forte de um homem destemido.

- Ah! é você Hollister? - perguntou Lawton. - Sempre pronto! Sempre no seu posto! Onde está o destacamento?

- A dois passos, capitão, e pronto a segui-lo para onde o quiser conduzir - respondeu o militar feliz por se ter livrado de responsabilidades e não desejando mais nada do que encontrar o inimigo para o combater.

- Muito bem - disse o capitão dirigindo-se para os dragões.

E tendo-lhes dirigido algumas palavras de encorajamento, fê-los partir quase à mesma velocidade a que tinha chegado. Daí a pouco a miserável égua da hospedeira ficara bem para trás, e Betty, chegando a carroça para a beira da estrada, comentou para si própria:

- Olhem! vê-se bem que o capitão Jack está com eles neste momento. Em vez de irem em passo de enterro correm como negros, como se fossem para uma festa. Vou atar a égua a esta sebe, e vou segui-los a pé para ver o que se passa. Não seria justo expor este pobre animal a qualquer golpe mais infeliz.

Conduzidos por Lawton, os soldados sem mostrar qualquer receio, sem pensar, não sabiam se iam atacar um grupo de Vaqueiros ou um destacamento do exército real; mas conheciam a coragem e a habilidade do seu chefe, e estas qualidades cativam sempre os militares.

Ao chegarem à porta de Sauterelles, o capitão mandou parar e fez as disposições para o ataque. Desmontou e ordenou a oito homens para fazerem o mesmo, e disse a Hollister:

- O senhor fica aqui a tomar conta dos cavalos e se alguém tentar sair de casa prenda-o ou mate-o...

Neste momento as chamas começaram a sair pelas janelas e por uma parte do telhado, espalhando uma luz brilhante nas trevas.

- Avancem! - ordenou Lawton - e não tenham contemplações enquanto não fizerem justiça.

Havia na voz do capitão uma força terrível que ia até ao coração, mesmo no meio do horror de que esta casa era teatro. O saco, com o produto do saque, do chefe dos Skinners caiu-lhe das mãos e ele ficou um momento estupefacto. Por fim correu para a janela e abriu-a. Nesse momento Lawton entrou na sala de sabre na mão gritando:

- Morte aos bandidos!

E com um golpe de sabre abriu o crânio do companheiro do chefe; mas este escapou à vingança saltando pela janela. Os gritos das senhoras apavoradas voltaram a dar ao capitão presença de espírito, e as orações ansiosas do capelão fizeram-no pensar na segurança da família.

Um outro homem do grupo caiu nas mãos dos dragões e teve a mesma sorte; mas os outros aperceberam-se do perigo e fugiram a tempo.

Ocupadas com Sara, Jeannette, Frances e Isabel Singleton só se aperceberam da chegada dos Skinners quando as chamas já as rodeavam. Os gritos de Katy e os da mulher de César, apavorada, juntamente com o barulho que vinha da sala ao lado, foram para "miss" Peyton e Isabel os primeiros sinais de um perigo iminente.

- Deus do Céu! - exclamou a tia alarmada. - Há uma confusão terrível em toda a casa. Este incidente vai provocar o derramamento de sangue.

- Quem pode pensar em bater-se? - disse Isabel com o rosto ainda mais pálido do que o de Jeannette.

- O doutor Sitgreaves é pacífico, mas o capitão Lawton não se vai esquecer disto.

- Estes jovens do Sul são assomadiços e impetuosos - retorquiu Jeannette. - Mesmo o seu irmão, ainda tão fraco, tinha esta noite um ar excitado e descontente.

- Meu Deus! - exclamou Isabel, apoiando-se ao sofá onde tinham deitado Sara. - É por natureza manso como um cordeiro, mas é um verdadeiro leão quando se excita.

- Temos de voltar ao salão - disse "miss" Peyton - a nossa presença salvará talvez a vida de um dos nossos semelhantes.

"Miss" Peyton queria desempenhar-se de uma missão que considerava como um dever que o seu carácter e a sua qualidade de mulher lhe exigiam e dirigiu-se para a porta com a dignidade de uma pessoa cuja sensibilidade foi ferida. Isabel seguiu-a. Tinha recobrado a energia e o olhar brilhante revelava uma alma capaz de se desempenhar até ao fim da sua missão. A sala onde se encontravam estava situada numa ala que comunicava com o corpo principal do edifício por um corredor comprido e escuro. O corredor estava iluminado e viram, na outra extremidade, alguns indivíduos, a correr, cujos traços não conseguiram reconhecer.

- Vamos ver - disse Jeannette Peyton com uma firmeza que a sua fisionomia desmentia. - O facto de sermos mulheres imporá sem dúvida algum respeito. - Evidentemente - retorquiu Isabel pondo-se à frente. E Frances ficou sozinha com a irmã.

Ficou uns instantes em silêncio, olhando com tanta inquietação o rosto pálido de Sara que nem deu pela ausência das duas companheiras. De súbito ouviu-se um barulho enorme na sala do andar superior e uma luz brilhante como o sol do meio-dia penetrou na sala pela porta que ficara aberta, permitindo distinguir todos os objectos. Sara soergueu-se, olhou em volta, levou as duas mãos à testa como que para se lembrar do que se passara e olhando para a irmã com uma expressão de surpresa, disse sorrindo:

- Estou com certeza no céu e tu és sem dúvida um dos espíritos bem-aventurados que o habitam? Oh! como esta luz é bela! Sentia que a felicidade que experimentava era grande demais para a terra; não podia durar; mas vamos voltar a ver-nos, ver-nos-emos outra vez.

- Sara! Minha irmã! - gritou Frances alarmada - o que estás a dizer. Não sorrias de uma forma tão terrível! Queres partir-me o coração? Não me reconheces?

- Silêncio! - disse Sara levando um dedo aos lábios. - Ides perturbar o seu repouso porque ele vai seguir-me à sepultura. Julgas que podem estar duas mulheres no mesmo túmulo! Oh! não!... não, não, só uma e nada mais.

Frances apoiou a cabeça no peito da irmã soluçando.

- Estás a chorar, belo anjo? - disse Sara com ternura.-Não se está então livre de desgostos no céu? Mas onde está Henry? Deveria estar aqui porque foi executado. Talvez venham juntos. Como ficarão encantados com esta reunião!

Frances levantou-se e começou a passear pela sala sentindo um desgosto tão profundo que não podia esconder. Sara seguia-a com os olhos, admirando de uma forma infantil a beleza do vestido que era afinal próprio para aquela ocasião. Levando a mão à testa disse-lhe:

- És parecida com a minha irmã, mas todos os espíritos bons e amáveis se parecem. Diz-me, foste casada? Deste, como eu, mais afeição a um estranho do que ao teu pai, ao teu irmão, à tua irmã? Se nunca o fizeste, pobrezinha! Lamento-te ainda que estejas no céu!

- Cala-te, Sara! Silêncio! - ordenou Frances aproximando-se da irmã. - Não fales assim, ou morrerei a teus pés.

Um estrondo terrível repercutiu-se pelo edifício até aos alicerces. Foi o tecto que abateu e as chamas redobrando de actividade tornaram visíveis os arredores da casa. Frances correu para uma das janelas e viu, na relva, algumas pessoas. Reconheceu a tia e Isabel. Tinham os braços estendidos na direcção da casa e pareciam suplicar aos dragões que estavam ao pé delas para irem socorrer as infelizes que ali se encontravam. Foi neste momento que se apercebeu da natureza e do perigo enorme que as ameaçava e dando um grito de terror lançou-se para o corredor sem pensar e sem destino.

Uma cortina de fumo espesso e sufocante fechava-lhe a passagem. Tinha parado para respirar quando um homem lhe pegou por entre a escuridão e as chamas e a levou para a rua onde chegou mais morta que viva. Quando voltou a si percebeu que devia a vida a Lawton e, lançando-se de joelhos diante dele, pediu:

- Sara! Sara! Salve a minha irmã! E que Deus lhe dê todas as bênçãos!

As forças faltaram-lhe e ela caiu sem sentidos na relva. O capitão fez sinal a Katy para a vir socorrer e correu de novo para a casa. O fogo já se tinha propagado à madeira das janelas e às grades que as decoravam e toda a parte exterior da casa estava envolta em fumo.

O único meio de lá entrar era atravessar todos estes perigos e mesmo o intrépido e impetuoso Lawton hesitou um instante: mas não foi mais do que um instante e precipitou-se para esta espécie de fornalha. Não tendo conseguido encontrar a porta voltou à relva para poder respirar e arremessou-se de novo para as trevas, mas não conseguiu encontrar a porta. Só à terceira tentativa é que teve êxito.

Ao entrar no vestíbulo encontrou um homem prestes a ceder ao peso de outra pessoa que trazia ao colo. Não era altura nem havia tempo para fazer perguntas. Lawton pegou nos dois e com a força de um gigante levou-os para a relva. Com grande espanto reconheceu Sitgreaves que carregava com o cadáver de um dos Skinners e que tinha salvo assim.

- Archibald! - exclamou.- Em nome da justiça divina! Para que querias salvar um malandro cujos crimes clamam por vingança?

O médico estava muito perturbado para lhe poder responder imediatamente, mas depois de ter enxugado o suor que lhe cobria o rosto e depois de ter libertado os pulmões dos vapores que lhe tomavam a respiração, disse suspirando:

- Ah! tudo acabou para ele. Se eu tivesse chegado a tempo para fazer parar a hemorragia da jugular, ainda haveria uma esperança, mas o calor provocou uma hemorragia. Sim, na verdade, a vida extinguiu-se. Bem! Há outros feridos?

Não havia ali ninguém para lhe responder porque tinham levado Frances para o outro lado da casa onde estavam a tia e "miss" Singleton, e porque Lawton tinha de novo desaparecido por entre o fumo.

Desta vez encontrou facilmente a porta da casa porque as chamas eram mais intensas e tinham dissipado grande parte dos vapores asfixiantes. Mas quando ia a entrar viu um homem que trazia Sara desmaiada, nos braços. Mal tinham chegado à relva quando as chamas começaram a sair por todas as janelas do edifício que se encontrava como que envolto num lençol de fogo.

- Deus seja louvado! - exclamou o indivíduo que acabava de salvar Sara. - Que morte horrorosa ela ia ter!

O capitão cujos olhos estavam fixos na casa em chamas voltou-os para olhar para a pessoa que falava assim, e, com grande surpresa, em vez de ver um dos seus dragões, reconheceu o bufarinheiro.

- Ah! o espião! Por Deus! Persegue-me como um espectro.

- Capitão Lawton, - respondeu Birch extenuado apoiando-se à grade que cercava a relva do lado da casa - estou em seu poder porque não tenho nem forças para fugir nem meios para resistir.

- A causa da América é tão importante para mim como a vida - replicou o capitão - mas não pode exigir que lhe sacrifique a honra do reconhecimento.

Fuja antes que um dos meus dragões o reconheça porque senão não o poderei salvar.

- Que o céu o proteja! Que ele lhe dê a vitória sobre os seus inimigos! - disse Birch apertando-lhe a mão de uma maneira que mostrava que a sua magreza não tinha nada a ver com a sua força.

- Um momento, só mais uma palavra. O senhor é realmente o que parece ser? É possível que o senhor fosse...

- Um espião do exército real - respondeu Birch voltando a cabeça.

- Vai-te então embora, miserável - disse o capitão empurrando-o. - Foge depressa. Desejos baixos ou um erro fatal apoderaram-se de uma alma nobre e generosa.

As chamas que devoravam a casa iluminavam tudo em redor, mas mal Lawton tinha pronunciado estas palavras e já Harvey Birch desaparecia na escuridão que se estendia mais além e que o contraste tornava ainda mais escuras.

O olhar de Lawton fixou-se por um instante no ponto onde aquele homem inexplicável tinha desaparecido. Pegando em Sara, ainda desmaiada, com a facilidade que pegaria numa criança adormecida, deixou-a aos cuidados da família.

 

Uma enxurrada ou uma tempestade podem trazer a desolação às mais belas cenas da natureza; a guerra com a sua mão de ferro pode como os elementos fazer uma obra de destruição; mas só as paixões podem subverter o coração do homem. A enxurrada e a tempestade são limitadas nas suas destruições; a terra regada com o sangue dos combatentes parece querer indemnizar os homens desta perda, redobrando de fertilidade; mas o coração pode ser ferido de tal forma que nem todos os esforços dos mortais serão capazes de curar.

Há anos que Sara vinha formando no seu coração a imagem de Wellmere; pensava nele como o fazem as jovens da sua idade, mas no momento em que pensava ver realizado o que para ela não passara até aí de um sonho, em que ia dar o passo mais importante da sua vida, com o entusiasmo que transforma todos os outros sentimentos em amor, a descoberta do verdadeiro carácter do noivo foi um golpe demasiado cruel para as suas faculdades. Como já se viu ao recuperar os sentidos parecia ter esquecido o que se tinha passado; e quando a receberam dos braços do capitão Lawton os parentes não encontraram nada do que ela fora.

Da casa de Wharton não ficou nada além das paredes, e as paredes, escurecidas pelo fumo e despojadas de tudo o que as ornamentava, símbolos sombrios da paz e da segurança que pouco antes reinavam naquele lar.

O telhado e o soalho dos vários andares tinham desabado e amontoavam-se na cave e os destroços que ainda ardiam deitavam uma luz ora pálida ora forte que iluminava tudo o que se encontrava na relva.

A fuga precipitada dos Skinners tinha permitido aos dragões salvarem grande parte do mobiliário que espalhado pela erva dava a toda esta cena um ar de desolação ainda mais pronunciado. Quando uma chama atiçada pelo vento se elevava no ar dando mais luz, via-se na parte de trás da cena o sargento Hollister e quatro dos seus homens a cavalo, seguindo todas as regras da disciplina militar, e a égua de Betty Flanagan que tinha sido desatrelada do varal da carroça e comia tranquilamente a erva da beira do caminho.

Betty que se tinha chegado para junto do sargento assistira calmamente a todos os acontecimentos que acabam de ser relatados. Mais de uma vez insinuara ao sargento que como já não se lutava o momento da pilhagem tinha chegado, mas Hollister informando-a das ordens que tinha recebido permaneceu inflexível e imóvel. Por fim, a hospedeira vendo Lawton surgir de trás de uma das alas da casa com Sara nos braços, foi-se juntar aos outros soldados.

O capitão depois de ter colocado Sara no sofá que fora salvo das chamas pelos militares, tal como outros objectos, retirou-se delicadamente para que as senhoras pudessem prestar os cuidados convenientes a esta infeliz e para pensar no que devia fazer. "Miss" Peyton e Frances receberam-na das mãos de Lawton com um sentimento de felicidade tão profundo que não podiam pensar em mais nada senão no prazer de a ver em segurança, mas o rosto afogueado e o olhar perdido trouxeram-lhes imediatamente pensamentos mais tristes.

- Sara, minha filha! Minha querida sobrinha! - dizia a tia apertando-a nos braços. - Estás salva e que as bênçãos do céu desçam sobre aquele que foi instrumento da sua bondade!

- Olhe - disse Sara mostrando à tia o fogo que brilhava ainda nas ruínas -veja que iluminação maravilhosa! Foi para mim que a mandaram fazer: é assim que recebem a noiva. Ele tinha-me dito. Escutem! Não ouvem tocar os sinos?

- Oh! - exclamou Frances com uma expressão quase tão perturbada como a da irmã. - Aqui não há casamento nem alegrias; tudo é infelicidade e desolação! Oh, minha irmã! Que o céu te traga para nós e tu voltes a ser tu própria!

- Para quê chorar, tolinha - disse Sara com um sorriso de compaixão. - Nem todos podem ser felizes ao mesmo tempo; não tem um marido para a consolar? Paciência! Há-de encontrar um. Mas tome cautela que ele não tenha outra mulher - acrescentou em voz baixa, porque é terrível pensar no que lhe poderá acontecer se já for casado.

- Enlouqueceu! - disse Jeannette apertando as mãos. - Minha pobre Sara, minha querida filha! O seu mal será curável?

- Não, não, não! - exclamou Frances. - É a febre que lhe transtorna o espírito, voltará para nós!... Há-de voltar.

"Miss" Peyton agarrou-se a esta esperança vaga e mandou Katy ir buscar o médico. Tinha mandado perguntar aos dragões se havia queimaduras ou outras escoriações quando Katy chegou ao pé dele, mas apressou-se a acorrer ao chamamento de Jeannette Peyton.

- Minha senhora - disse -, uma noite que começou sob tão felizes auspícios terminou de uma maneira deveras terrível. Mas a guerra traz consigo muitos males embora possa ser útil à causa da liberdade e acelere o progresso da ciência cirúrgica.

Jeannette não lhe podia responder e limitou-se a indicar-lhe a sobrinha, soluçando.

- Tem muita febre - disse Frances - tem os olhos fixos e as faces afogueadas!

Sitgreaves estudou em silêncio os sintomas da doente e pegou-lhe na mão em silêncio. Era raro mostrar-se emocionado; todas as suas paixões pareciam estar habituadas a concentrar-se numa dignidade clássica, e as suas feições duras e distantes raramente deixavam perceber o que o seu coração tantas vezes sentia. Todavia, desta vez, os olhos atentos de "miss" Peyton e de Frances descobriram uma expressão de compaixão e sensibilidade. Depois de ter deixado repousar os dedos cerca de um minuto no braço bonito cuja pele branca estava ornada com uma pulseira de brilhantes, sem que Sara opusesse qualquer resistência, deixou-o com um suspiro, e voltando-se para Jeannette depois de ter passado as mãos pelos olhos, disse:

- Não tem febre, minha senhora. Só o tempo, os cuidados da amizade e o auxílio do céu podem operar uma cura para a qual as luzes da ciência são insuficientes.

- E onde está o miserável que provocou toda esta desgraça? - perguntou Singleton fazendo um esforço para se levantar do sofá onde a irmã o tinha instalado, apoiando-se no dragão que o amparava. - Para que serve vencer os nossos inimigos se os vencidos nos podem infligir males tão cruéis?

- Está convencido - disse Lawton com um sorriso de amargura - que os corações ingleses se compadecem com os sofrimentos dos americanos? O que é a América para a Inglaterra? Um satélite cuja luz só serve para juntar à do planeta a que está subordinado. Esquece que um colono se deve sentir honrado de dever a sua ruína à mão de um filho da Grã-Bretanha?

- Não me esqueço que tenho um sabre - respondeu Singleton deixando-se cair extenuado na cadeira. - Mas não houve ainda um braço para vingar esta infeliz e este pai?

- Não é o braço nem a coragem que faltam, capitão - respondeu Lawton com orgulho - mas a fortuna favorece algumas vezes os maus. Daria até Roanoke para o encontrar e para me bater com ele.

- Não, capitão, não - disse-lhe a meia voz Betty Flanagan com um olhar expressivo - não dê Roanoke por nada deste mundo. O animal tem bons pés; salta como um esquilo; e nem sempre se encontra um animal assim.

- Mulher, - disse Lawton - nem cinquenta cavalos dos mais bem ensinados das margens do Potomac valem uma bala bem dirigida contra esse celerado.

- Vamos - interrompeu o médico - o ar da noite não é bom para Jorge e para as senhoras; temos de levá-los para um sítio onde possamos cuidar deles e acomodá-los. Além disso aqui não há mais nada além das ruínas fumegantes e dos miasmas da humidade.

Não havia nada a objectar a uma proposta tão razoável, e Lawton tomou as disposições necessárias para instalar provisoriamente a família Wharton nos Quatro-Cantos.

A arte do segeiro estava ainda na infância na América nesta altura, e os que queriam um coche elegante e rápido eram obrigados a mandá-lo vir de Inglaterra. Quando Wharton tinha deixado Nova York ainda eram poucos os que se permitiam o luxo de ter um trem; e quando a cunhada e as filhas se tinham vindo juntar a ele na sua solidão, tinham chegado a Sauterelles no carro pesado que rodava tão imponente pela rua tortuosa a que se dava o nome de Queen Street, e que se tinha exibido com dignidade no passeio público, mais espaçoso, da Broadway.

O carro ficara tranquilamente no lugar onde o tinham arrumado, e a idade dos cavalos, os favoritos de César, fora a única causa que levara os assaltantes a abandoná-los. O negro, cujo coração ainda batia descompassado, preparou, com o auxílio de alguns dragões, o carro de aspecto maciço, forrado com um tecido desbotado e manchado, cuja tinta das pinturas sobrepostas começava a cair revelando que a arte que lhe dera antes um verniz tão brilhante ainda era rudimentar. O leão deitado das armas de Wharton encontrava em sua volta as armas de um príncipe da Igreja, e a mitra que começa a brilhar sob a pintura americana revelava quem fora o primeiro proprietário deste veículo. O carro em que Isabel Singleton tinha vindo estava intacto porque as chamas tinham poupado as cocheiras, as cavalariças e todas as dependências exteriores independentes da casa.

O projecto dos assaltantes não era com certeza deixar as cavalariças tão bem guarnecidas, mas o ataque dirigido por Lawton tinha ido alterar os seus planos tanto neste ponto como noutros. Hollister ficou aqui comandando um destacamento e já convencido que os únicos inimigos eram inimigos terrestres, tomou o seu lugar com sangue-frio e discernimento. Retirou-se com o pelotão das ruínas para da escuridão poder ver os assaltantes na área iluminada pelos restos do incêndio se eles voltassem para a pilhagem.

Satisfeito com esta medida, o capitão Lawton tomou as disposições necessárias para se porem em marcha.

"Miss" Peyton, as sobrinhas e Isabel tomaram lugar no carro. Na carroça de Betty Flanagan, cheia de colchões e cobertores, seguiu o capitão Singleton e o impedido. O doutor Sitgreaves ocupou o carro de Isabel com Wharton.

À excepção de César e da governanta ignorava-se o que tinha acontecido aos outros criados da casa durante esta noite tão fértil em acontecimentos, pois nenhum deles tinha voltado a aparecer. Depois de estar tudo pronto Lawton deu ordem para a partida. Todavia ao ficar só na relva pegou numa peça de prata temendo que fosse uma prova demasiado dura para a integridade dos seus dragões e montou com a intenção verdadeiramente militar de seguir na retaguarda.

- Esperem! Esperem! - gritou uma voz de mulher.

- Querem-me deixar aqui sozinha para ser assassinada? A colher será fundida, mas eu serei indemnizada se acaso houver justiça neste país.

Lawton voltou-se para o lado de onde vinha a voz e viu sair das ruínas uma mulher carregada com um embrulho, que pelo tamanho lembrava a mala do famoso bufarinheiro.

- Que diabo é isto que sai das chamas como o fénix? - perguntou o capitão aproximando-se dela. - Por Hipócrates! É a doutora, a mulher da agulha! Bem! Boa mulher, para que é tanto barulho?

- Tanto barulho! - respondeu Katy, sem fôlego. - Não basta ter perdido uma colher de prata, ainda tinha que ficar aqui para ser roubada e talvez assassinada! Não era assim que Harvey Birch me tratava quando vivia em casa dele. Tinha os seus segredos, é verdade; não era muito poupado, mas tinha consideração por mim.

- Trabalhou então em casa de Birch?

- Sim, vivia sozinha naquela casa porque além dele e do pai não havia mais ninguém. Não conheceu o velho?

- Não tive essa honra. Mas quanto tempo esteve com essa família?

- Não sei bem. Oito ou nove anos, talvez. Bem, mas não me estou a adiantar?

- Não, sem dúvida, e como estou a ver ganhou pouco com essa associação. Mas há qualquer coisa de muito estranho na forma de proceder de Harvey Birch?

- Qualquer coisa de muito estranho - replicou Katy olhando com cuidado em sua volta e baixando a voz: -era um homem que não pensava e que não dava mais atenção a um guinéu do que eu a uma palha; mas indique-me onde hei-de ir ter com "miss" Jeannette Peyton que eu depois lhe conto todos os prodígios de Birch, do princípio ao fim.

- Ora essa! - disse Lawton. - Não há nada mais fácil. Deixe-me pegar-lhe por baixo dos braços; assim! Tem os ossos fortes como se vê.

Com estas palavras voltou-a rapidamente, de forma a destruir todo o sangue-frio filosófico do seu espírito, e num instante a mulher encontrou-se bem sentada, senão mesmo à vontade, na garupa do cavalo do capitão.

- Agora, minha senhora - disse-lhe ele - tem a consolação de saber que está tão bem montada como podia desejar. O meu cavalo tem o passo certo como uma pantera.

- Deixe-me descer! - pediu Katy procurando libertar-se da mão de ferro que a segurava, mas temendo, ao mesmo tempo, cair. - É assim que se põe uma senhora a cavalo? Além disso preciso de uma almofada.

- Devagar, devagar, boa mulher - recomendou Lawton.

- Embora Roanoke nunca falhe com as patas da frente, levanta-se às vezes nas patas de trás. Não está habituado a sentir nos flancos saltos finos como baquetas de tambor batendo como em dia de combate. Lembra-se durante quinze dias do mais ligeiro toque de espora. Não é prudente mexer-se dessa maneira porque este cavalo não gosta de carga dupla.

- Deixe-me descer, peço-lhe. Vou cair, vou morrer; não tenho com que me agarrar, não vê que tenho as duas mãos ocupadas? - clamava Katy.

Lawton voltou-se para trás e viu que a mulher não tinha largado o embrulho que trazia.

- Parece-me que a senhora pertence à bagagem, mas com o meu cinturão poderei atar o seu corpo esbelto ao meu - afirmou Lawton.

Katy sentia-se tão lisonjeada com este cumprimento que nem pensou em resistir. Lawton ligou-a firmemente ao seu corpo hercúleo, e fazendo sentir a espora ao cavalo, deixou a relva com uma velocidade que nem deu tempo a Katy para pensar em resistir. Depois de ter percorrido uma certa distância a uma velocidade que não agradava nada à governanta, chegaram à carroça da hospedeira, que tinha posto a égua a passo por consideração com os ferimentos do capitão Singleton. À agitação que os acontecimentos desta noite tinham provocado no jovem militar seguiu-se uma prostração extrema. Fora cuidadosamente tapado com cobertores e amparado pelo impedido, não podia conversar, mas estava ocupado com reflexões profundas sobre tudo o que se acabava de passar. A conversa de Lawton com a companheira foi interrompida pelo galope, mas ao voltar a pôr o cavalo a passo, andamento mais favorável ao diálogo, retomou a palavra como se segue:

- Então viveu na mesma casa em que vivia Harvey Birch?

- Durante cerca de nove anos - respondeu Katy que respirava melhor agora que o galope acabara. O ar da noite tinha levado a voz forte do capitão aos ouvidos da hospedeira, que estava sentada na parte da frente da carroça, de onde dirigia os movimentos da égua. Voltou a cabeça para ouvir a resposta como tinha ouvido a pergunta.

- Dessa forma, boa mulher, deves saber se ele é realmente parente de Belzebu. É o sargento Hollister que o afirma, e o sargento não é tolo, disso tenho a certeza! - afirmou ele.

- É uma calúnia escandalosa - exclamou, emocionada, Katy. - Não há um vendedor ambulante mais honesto que Harvey, e se uma amiga precisa de um vestido ou de avental, nunca pede mais do que um farthing(1). Belzebu, que ideia! Então, para que lia ele então a Bíblia se tinha contacto com o espírito maligno.

- Em todo o caso - retorquiu Betty - é um diabo honesto como já tive ocasião de dizer, porque o seu guinéu era de oiro bom e bonito. Todavia o sargento pensa de outra forma e pode dizer-se que o sargento é um sábio.

- O sargento é doido - replicou Katy. - Na verdade Harvey podia ser neste momento um homem rico, mas liga pouco ao negócio! Quantas vezes lhe disse que se quisesse governar-se com a mala, regularizar os ganhos, arranjar uma mulher para lhe pôr a casa em ordem e renunciar às ligações com as tropas e a todo o tráfico deste género, teria em pouco tempo uma boa casa! Ao que me parece o sargento devia sentir-se muito feliz por lhe pegar na vela para o iluminar.

- Na verdade! - disse Betty com ironia. - Não lhe passou pela cabeça que o senhor Hollister é militar. É o primeiro da companhia depois do porta-estandarte. Mas quanto ao bufarinheiro tenho a certeza que foi ele que te veio avisar de todo este charivari; ele não tinha bem a certeza que o capitão Jack recebesse os reforços que tinha aconselhado a partirem.

- Que diz, Betty? - interrompeu Lawton deitando-se para a frente na sela. Foi Birch que lhes deu o alarme?

- Ele mesmo, meu caro; e fui eu que rabiei como um diabo na pia da água benta para fazer partir o destacamento. Não era que eu pensasse que o senhor não estava em condições de aplicar o castigo merecido aos Vaqueiros, mas com o diabo por nós tinha a certeza que os bateríamos. A minha grande surpresa é que num caso destes em que Belzebu está metido não tenha havido pilhagem.

- Agradeço-lhe o reforço que me mandou, Betty, embora me pareça saber os motivos que a levaram a fazer isso.

- O quê! A pilhagem? Só pensei nisso quando vi tantos móveis na relva, uns queimados, outros partidos sem falar dos que estavam bons. Não fazia mal que o corpo tivesse ao menos um colchão de penas.

- Deus do céu! O socorro chegou a tempo. Se Roanoke não tivesse voado mais depressa que as balas, eu já não existiria. Este animal vale o seu peso em oiro.

- O seu peso em papel, quer o senhor dizer, meu caro, porque o oiro é um metal pesado e é raro nos Estados. Se o sargento não tivesse tido medo do negro de rosto cor de cobre queimado,

 

*1. A quarta parte de um dinheiro. - (N. do T.)

 

teríamos chegado a tempo de matar esses cães e de prender os outros.

- Tudo há-de correr pelo melhor, Betty. Um dia, espero, esses malfeitores serão dignamente recompensados, senão for na forca será no desprezo dos seus contemporâneos. Sim, sim, a América saberá um dia distinguir um patriota de um salteador.

- Fale mais baixo - recomendou Katy. - Há pessoas que têm boa opinião de si próprias e que têm negócios com os Skinners.

- Há os que têm melhor opinião de si próprios do que aquela que os outros fazem deles - disse Betty. - Um ladrão é um ladrão quer roube em nome do rei ou em nome do Congresso.

- Já sabia que a infelicidade se aproximava - afirmou Katy. - Ontem o sol pôs-se por trás de uma nuvem negra, e o cão lá de casa uivou, embora eu lhe tivesse dado a ceia com as minhas próprias mãos; além disso ainda nem há uma semana sonhei que estava a ver mil velas acesas e que o pão se tinha queimado no forno. "Miss" Peyton disse que era porque eu tinha derretido sebo na véspera e tinha de cozer o pão no dia seguinte, mas eu bem sabia o que era.

- Pois eu é bem raro sonhar - afirmou Betty. - Quem se deita com a consciência tranquila e a garganta molhada dorme toda a noite como uma criança. A última vez que sonhei, foi na noite em que os soldados tinham metido cardos na minha roupa e eu sonhei que o impedido do capitão Lawton me sovava como se fosse o Roanoke. Mas o que interessa isso!

- Que interessa! - replicou Katy virando-se com tanta energia que Lawton teve de fazer o mesmo movimento. - Nunca nenhum homem teve a ousadia de pôr as mãos na minha cama. É uma conduta indecente e desprezível.

- Ora, ora! - retorquiu a hospedeira - se vivesses como eu na retaguarda de um destacamento de dragões tinhas de aprender a aceitar as brincadeiras. O que seria dos Estados e da liberdade se os soldados nunca tivessem um prazer e uma camisa branca? Pergunta ao capitão como é que eles se bateriam, senhora Belzebu, se não tivessem roupa branca para cantar vitória.

- Ainda sou virgem e chamo-me Haynes - declarou Katy com azedume-e peço-te para não te dirigires a mim nesses termos; não estou habituada a isso e fica ciente que Harvey é tanto Belzebu como tu.

- "Miss" Haynes, - interrompeu o capitão - é preciso dar tréguas à língua da senhora Betty Flanagan. Fala de prazer em sentido lato e a sua linguagem é produto da convivência com os soldados.

- Ora, ora! Capitão, meu caro, para que está a troçar da pobre mulher? - disse Betty. - Diz o que quiseres, minha querida, a língua que tens na boca não é de tola. Mas foi aqui que o sargento mandou parar, convencido que podia haver mais do que um demónio implicado nos incidentes desta noite.

As nuvens estão negras como o coração de Arnold(1) e diabos me levem se vejo brilhar uma estrela! Mas a égua está habituada a andar de noite e fareja a estrada tão bem como um cão.

- A lua vai aparecer daqui a pouco - disse o capitão que chamou um dragão que seguia alguns passos adiante dele e fez-lhe algumas recomendações sobre os cuidados a ter com Singleton para que a viagem não lhe fizesse mal. Depois de ter dirigido algumas palavras de encorajamento ao amigo, esporeou Roanoke e afastou-se da carroça com uma rapidez que destroçou toda a filosofia de Katy.

- Aqui está um cavaleiro famoso e valente - disse a hospedeira. - Boa viagem, capitão e se encontrar o senhor Belzebu no caminho mostre-lhe o cavalo e a mulher que leva na garupa. Estou convencida que ele não se detém muito tempo à conversa. Bem! Bem! conseguimos salvar-lhe a vida como ele próprio disse e depois disto que importa a pilhagem?

Os discursos inflamados de Betty Flanagan eram bem conhecidos do capitão que não parou para a escutar ou para lhe responder. Apesar da carga invulgar que transportava Roanoke transpôs rapidamente a distância que separava a carroça da hospedeira do carro de "miss" Peyton, e se ele correspondia aos desejos do seu dono não satisfazia os da sua companheira.

Já estavam perto dos Quatro-Cantos quando ele chegou junto do carro, e a lua aparecendo nesse instante por detrás de uma massa de nuvens, lançou sobre os objectos uma luz que pareceu mais pálida do que habitualmente aos olhos que tinham fixado o brilho das chamas. Havia, contudo, na claridade da lua uma doçura que o fulgor das chamas não podia igualar, e Lawton abrandando a marcha do cavalo, entregou-se em silêncio aos seus pensamentos durante o resto do caminho.

Comparado com a elegância simples e cómoda de Sauterelles, o hotel Flanagan era uma casa bem triste. Em vez de paredes forradas de tapeçarias e de janelas com cortinas havia tábuas despregadas e bocados de tábua ou de papel a substituir os vidros partidos, que eram em grande número. Tinham acendido lume em todos os quartos para não terem um aspecto de desolação tão grande e os dragões seguindo as instruções do capitão tinham trazido os móveis indispensáveis que tinham conseguido encontrar.

"Miss" Peyton e as suas companheiras encontraram, ao chegar, instalações quase habitáveis. O espírito de Sara continuara a divagar durante a viagem, e com esta disposição particular para o delírio, adaptava todas as circunstâncias aos sentimentos que lhe dominavam o coração. Foi preciso ajudá-la a chegar aos aposentos destinados às senhoras; mas quando se sentou num banco ao lado de Frances passou-lhe o braço,

 

*1. Arnold, o conspirador.

 

com afeição em volta da cintura e disse-lhe olhando em redor:

- Veja, é aqui o palácio do pai dele. Foram acesos mil archotes, mas não há marido... Ah! não se case sem anel. Tome conta para que não fique esquecido e tome cautela para que não haja outra com direitos sobre ele. Pobre pequena! Como treme! Não deve ter medo; não pode haver dois maridos para mais de uma mulher... Oh! não, não, não... Não trema, não chore, não tem nada a temer.

- Qual é o remédio que pode curar um espírito que recebeu um golpe destes? - perguntou Isabel Singleton ao capitão Lawton, que seguia com compaixão este espectáculo terrível. - Só o tempo e a bondade divina podem trazer a cura.

- Mas ainda se pode fazer mais alguma coisa para tornar este quarto mais confortável. Como filha de militar está habituada a cenas semelhantes. Ajude-me a evitar que o frio da noite entre por esta janela.

Isabel Singleton meteu mãos à obra imediatamente. Enquanto Lawton tentava arranjar alguns vidros partidos ela pendurava na janela um pano destinado a servir de cortina.

- Estou a ouvir a carroça - disse o capitão respondendo à pergunta que Isabel lhe fizera acerca do irmão. - Betty tem bom coração. Acredite que Jorge está não só em segurança com ela, mas o melhor possível.

- Que Deus a recompense pelos seus cuidados, e que Ele vos abençoe a todos! - exclamou Isabel com fervor. - O doutor Sitgreaves foi ao encontro deles...

- Mas o que vejo eu brilhar lá ao longe, ao luar?

Da janela onde eles estavam viam-se as dependências exteriores da quinta e Lawton viu imediatamente o objecto que lhe tinha despertado a atenção.

- Meu Deus, é uma arma de fogo! - declarou o capitão que saltou pela janela para ir buscar o cavalo que ainda estava à porta, selado. A sua reacção foi tão rápida como o pensamento, mas ainda não tinha dado um passo quando viu uma luz seguida do sibilar de uma bala. Acabava de saltar para a sela quando ouviu um grito no quarto de onde saíra. Tudo se passou num instante. - A cavalo! Dragões, a cavalo! Sigam-me - ordenou Lawton com voz de trovão. Antes de os soldados terem tido tempo de compreender a causa deste novo alarme já Roanoke tinha saltado a sebe que o separava do inimigo. Perseguiu o fugitivo como se fosse um caso de vida ou de morte, mas os rochedos estavam perto, e o capitão desapontado viu a vítima escapar pelas gargantas por onde lhe era impossível segui-lo. - Pela vida de Washington! - murmurou Lawton metendo o sabre na bainha. Tê-lo-ia feito em dois se não fosse tão ágil, mas o dia virá. Com estas palavras voltou para casa com a indiferença de um homem que sabe que a sua vida pode ser oferecida ao seu país de um momento para o outro. O burburinho invulgar fê-lo apressar a marcha, e ao chegar à porta, Katy, pálida de terror, disse-lhe que a bala dirigida a ele tinha atingido Isabel Singleton no peito.

 

Os aposentos que os dragões tinham preparado à pressa para as senhoras eram formados por dois quartos contíguos dos quais um servia de quarto de dormir. A pedido de Isabel levaram-na para este quarto e colocaram-na numa cama incómoda ao lado de Sara que parecia não ter dado por nada. Quando Jeannette Peyton e Frances acorreram para a socorrer, o sorriso que viram nos seus lábios, e a calma da sua fisionomia, levaram-nas a supor que ela não tinha sido ferida.

- Deus seja louvado! - exclamou Jeannette que tremia dos pés à cabeça. - O tiro e a sua queda fizeram-me temer coisas horríveis. Oh! já sofremos tanto esta noite que bem podíamos ter sido poupadas a isto.

Isabel apertou as mãos no peito sorrindo ainda, mas havia neste sorriso qualquer coisa que fez gelar o sangue nas veias de Frances, enquanto a sua infeliz companheira dizia:

- Jorge ainda está longe? Digam-lhe que venha depressa para que eu possa voltar a ver o meu irmão mais uma vez.

- Os meus receios eram então fundamentados! - disse "miss" Peyton. - Mas está a sorrir, com certeza que não está ferida.

- Estou bem, estou muito bem - murmurou Isabel que continuava com a mão apoiada no peito. - Há um remédio para todos os males.

Sara, que estava deitada ao lado dela soergueu-se e olhou para ela com uma expressão confusa. Estendeu o braço, pegou na mão de Isabel, e viu que estava coberta de sangue.

- Olha, sangue - disse. - Mas o sangue é remédio contra o amor. Case-se, minha amiga, e ninguém o poderá banir do seu coração, a menos que - acrescentou, baixando a voz e inclinando-se sobre a companheira - a menos que outra tenha chegado primeiro. Nesse caso mais vale morrer e ir para o céu: não há mulheres no céu.

A pobre jovem escondeu a cabeça debaixo da roupa e não voltou a falar durante toda a noite. Foi neste momento que Lawton chegou. Embora habituado a ver a morte sob todas as formas, e todos os horrores de uma guerra de guerrilhas, não pôde assistir sem a mais viva emoção ao espectáculo que se oferecia aos seus olhos. Inclinou-se sobre o corpo de Isabel Singleton e os seus olhos revelavam todo o sofrimento que agitava a sua alma.

- Isabel, sei que tem uma coragem que não é vulgar numa mulher.

- Fale - disse ela - se tem alguma coisa para me dizer, diga sem receio.

- Não se pode sobreviver a uma ferida dessas - respondeu voltando a cabeça.

- Não tenho medo da morte, Lawton - respondeu Isabel. - Agradeço-lhe não ter duvidado da minha coragem. Senti imediatamente que a ferida era mortal.

- Não devia ter sido destinado para si este fim - acrescentou Lawton. - Já basta que a Inglaterra obrigue todos os nossos jovens a pegar em armas, mas quando vejo a guerra escolher uma vítima destas a minha profissão faz-me horror.

- Oiça, capitão Lawton - disse Isabel soerguendo-se com dificuldade, mas recusando qualquer auxílio - desde bem pequenina até hoje só tenho vivido em acampamentos e em quartéis para tornar mais agradáveis as horas de descanso do meu pai e do meu irmão. Julga que eu seria capaz de trocar esses dias de perigo e de privações pelo luxo e os prazeres de um palácio de Inglaterra? Não - acrescentou enquanto as faces pálidas se cobriam de um ligeiro rubor - tenho a consolação de saber, ao morrer, que fiz tudo o que uma mulher podia fazer em circunstâncias idênticas.

- Quem é que pode assistir a uma manifestação de coragem tão grande sem se sentir enlevado! - declarou o capitão levando instintivamente a mão ao punho do sabre.

- Já vi centenas de combatentes banhados no seu próprio sangue, mas nunca vi uma alma mais firme.

- Ah! não é a alma - replicou Isabel - a minha condição de mulher e as minhas forças recusaram-me o mais precioso dos privilégios. Mas para o senhor, capitão Lawton, a natureza foi liberal: tem um coração e um braço capaz de fazer tremer o mais valente soldado inglês, e sei que esse braço e esse coração serão fiéis até ao fim.

- Enquanto a liberdade precisar deles, e Washington me mostrar o caminho - respondeu o capitão com decisão e um sorriso de orgulho.

- Eu sei - retorquiu Isabel - eu sei, e Jorge, e... - Calou-se, os lábios tremeram e baixou os olhos.

- E Dunwoodie - acrescentou Lawton. - Quisera Deus que ele aqui estivesse para a ver e para a admirar.

- Não pronuncie esse nome, Lawton - pediu Isabel deixando-se cair sobre a cama e escondendo o rosto. Deixe-me sozinha, Lawton, e vá preparar o meu irmão para este golpe inesperado.

O capitão ficou ainda uns instantes assistindo com um interesse melancólico às convulsões que agitavam o corpo de Isabel, e que o cobertor que a cobria não podia ocultar. Por fim, retirou-se e foi ter com Singleton. O encontro dos dois irmãos foi bem triste e Isabel entregou-se por momentos às manifestações de ternura fraternal. Mas como se soubesse que as suas horas estavam contadas, foi a primeira a fazer um esforço sobre ela própria para se armar de energia. Insistiu para que deixassem ficar junto dela o irmão e Frances e não quis mesmo os cuidados do doutor Sitgreaves que acabou por se retirar contrariado.

A aproximação rápida da morte dava à fisionomia de Isabel um ar distante e os seus olhos pretos ofereciam um contraste enorme com a palidez acinzentada do rosto. Todavia Frances debruçada sobre ela, com afeição, encontrava uma mudança enorme na sua expressão. A altivez, que era característica da sua beleza, tinha dado lugar a um ar de humildade, e não era difícil verificar que o orgulho se extinguia para ela com o mundo.

- Ajude-me a levantar para que possa ver uma vez mais esse rosto que me é tão querido.

Frances ajudou em silêncio a companheira, e Isabel prosseguiu voltando para Jorge os olhos onde brilhava toda a afeição de uma irmã:

- Pouco importa, meu irmão,... daqui a algumas horas esta cena terá acabado.

- Vive, minha irmã, vive, minha querida Isabel! - disse o jovem oficial sem poder dominar o seu profundo desgosto.

- Meu pai, meu pobre pai!...

- É o aguilhão da morte! - disse Isabel estremecendo -, mas ele é soldado, é cristão... Frances, quero dizer-lhe uma coisa que lhe interessa, enquanto me restam forças para cumprir este dever.

- Não, não! - exclamou Frances com mais ternura. - Que o desejo de me ser agradável não ponha em perigo uma vida que é tão preciosa para... para... tanta gente! Estas palavras saíram quase abafadas pela emoção que sentia, porque tocavam numa corda cujas vibrações se faziam sentir até ao fundo da alma.

- Pobre rapariga! - disse Isabel olhando para ela com afecto. - O seu coração é muito sensível, mas a vida ainda está aberta à sua frente, porque havia de ir perturbar a pouca felicidade que ela lhe pode oferecer? Deixe-se viver com os seus sonhos inocentes e que Deus tenha bem longe o dia fatal em que será preciso acordar!

- E neste momento que alegrias é que a vida me pode oferecer? - perguntou Frances escondendo o rosto. - O meu coração foi ferido em todas as suas afeições.

- Não, - retorquiu Isabel - ainda tem um motivo para desejar viver, um motivo que pesa muito no coração de uma mulher. É uma ilusão que só a morte extinguirá.

O cansaço obrigou-a a calar-se e o irmão e a companheira ficaram em silêncio, mal ousando respirar. Mas Isabel retomando o fôlego e chamando a si todas as suas forças poisou a mão sobre a de Frances e acrescentou com mais doçura:

- Frances, se existe um coração que bata a compasso com o de Dunwoodie e seja digno do seu amor, é o seu.

Um calor súbito subiu às faces de Frances e um brilho de prazer irradiou dos seus olhos quando os levantou para Isabel; mas ao ver a amiga que expirava sentiu-se invadir por sentimentos mais dignos dela, e apoiou a cabeça na colcha. Isabel seguiu tudo isto com um sorriso em que havia admiração e piedade.

- É a sensações como essas que eu fujo - disse.

- Sim, Frances, Dunwoodie é inteiramente seu.

- Deves ser justa contigo própria, minha irmã- interrompeu Singleton. - Que uma generosidade romanesca não te faça esquecer a tua própria reputação.

Deixou-o falar, olhando para ele com a maior ternura, e respondeu-lhe abanando docemente a cabeça:

- Não é um sentimento romanesco, é a verdade que me faz falar. Oh! o que eu vivi numa hora!... Frances, nasci sob o sol escaldante da Georgia e os meus sentimentos parecem ter tomado todo o seu calor... Vivi só para o amor.

- Não fales assim, peço-te! - disse o irmão profundamente emocionado. - Pensa com que devoção amaste o nosso pai... na tua afeição desinteressada por mim.

- Sim - replicou Isabel com o rosto animado por um sorriso de prazer. - São palavras que se podem levar para a sepultura.

Nem o irmão nem Frances interromperam os seus pensamentos que se prolongaram por alguns minutos, mas voltando a si de repente, retomou a palavra:

- O egoísmo vive até ao último instante - afirmou. - Frances, a América e a sua liberdade foram a primeira paixão da minha juventude, e...

Voltou a parar, e Frances julgou que ela começava a lutar contra a morte; mas voltando a si, Isabel acrescentou com um rubor que não era habitual nela nem quando estava de saúde:

- Para que hei-de estar com hesitações à beira da sepultura? Dunwoodie foi a minha segunda, a minha última paixão; mas - prosseguiu, ocultando de novo a cara - ele não fez nada para que ela nascesse.

- Isabel! -exclamou o irmão levantando-se da cama e começando a passear pelo quarto, muito agitado.

- Vejam como somos escravos do orgulho do mundo! - retorquiu Isabel. - Jorge sofre por saber que a irmã que ele ama não conseguiu elevar-se acima dos sentimentos que a natureza e a educação lhe tinham inspirado.

- Não diga mais nada - pediu-lhe Frances a meia voz. - Só serve para nos afligir ainda mais, suplico-lhe.

- É preciso que faça justiça a Dunwoodie, e pela mesma razão é preciso que me oiças, meu irmão. Nunca por um gesto ou por uma palavra Dunwoodie me deu a entender que tinha por mim outro sentimento que não fosse amizade... e mesmo... desde há pouco... sim, passei pela vergonha de pensar que ele evitava a minha presença.

- Se ele tivesse ousado!... - exclamou Singleton com ímpeto.

- Cala-te, meu irmão, e ouve-me - disse Isabel fazendo um último esforço para falar. - Aqui está a causa inocente que o justifica. Perdemos as duas as nossas mães. Frances... mas a sua tia... essa tia tão boa, terna, e prudente... assegurou-lhe a vitória... Oh! que perda enorme sofre quem fica sem a protectora da juventude! Deixei aperceber estes sentimentos que aprendemos a dominar. Depois disto podia desejar viver?

- Isabel! Minha pobre irmã! Estás a perder a razão.

- Só mais uma palavra e depois acabo... porque sinto que o meu sangue que sempre correu depressa está a tomar um curso que não foi o que a natureza lhe deu... Só se dá valor a uma mulher enquanto é preciso ter cuidados para lhe agradar. A sua vida é formada por emoções que é preciso simular. Felizes aquelas cujas primeiras impressões lhes dão capacidade para se desempenharem desta missão sem hipocrisia; só elas podem ser felizes com homens como... Dunwoodie.

A voz faltou-lhe e a cabeça caiu sobre o travesseiro. O grito de Singleton fez acorrer toda a gente para junto do leito de Isabel, mas a morte deixara já a sua marca naquele rosto. Só teve forças para pegar na mão do irmão e para a apoiar um instante no coração, mas os dedos abrandaram a pressão e expirou com uma ligeira convulsão.

Frances Wharton estava convencida que o destino, depois de ter posto em perigo a vida do irmão e roubado o juízo à irmã, não podia ter reservado para ela novos desgostos; mas o alívio que as declarações de Isabel, já moribunda, lhe trouxeram fizeram-na compreender que os seus desgostos tinham também outra causa. Viu imediatamente toda a verdade; apreciou a delicadeza que tinha impedido Dunwoodie de se explicar melhor. Tudo isto contribuía para fazer aumentar a estima que sentia por ele. Lamentou que o dever e o orgulho a tivessem levado a ter uma opinião menos lisonjeira a seu respeito e censurou-se a si própria por o ter deixado partir mesmo desesperado. Todavia não está na natureza dos jovens entregarem-se a grandes desgostos, e Frances, no meio de todos os seus cuidados, sentia uma alegria íntima que fazia renascer todo o seu ser.

Na manhã seguinte a esta noite de desolação, o sol nasceu com um brilho que parecia troçar das aflições de todos eles. Lawton tinha dado ordens para lhe trazerem Roanoke ao romper do dia, e preparava-se para montar quando a primeira luz do astro nascente começou a doirar o cimo das montanhas. As ordens já tinham sido dadas e o capitão sentou-se na sela em silêncio. Olhou aborrecido e irritado para o curto espaço de terreno que tinha favorecido a fuga do Skinner, abrandou o freio de Roanoke e partiu para o vale.

O silêncio da morte pairava sobre o caminho, mas nem as cenas terríveis da noite anterior manchavam a pureza desta manhã maravilhosa. Sentindo o contraste entre o homem e a natureza, o intrépido dragão atravessou os desfiladeiros sem pensar uma só vez nos perigos com que podia deparar; e só interrompeu os pensamentos a que se abandonara quando o seu corcel relinchou saudando os cavalos que tinham ficado com os seus donos, os quatro dragões que estavam com Hollister.

Eram visíveis por toda a parte as tristes provas da desgraça de que este lugar fora teatro horas antes. Lawton olhou com a frieza de um militar, avançou para a posição escolhida pelo prudente Hollister, parou o cavalo, e respondeu ao cumprimento do sargento com um ligeiro baixar de cabeça.

- Não viram nada? - perguntou.

- Não, senhor, - respondeu Hollister num tom quase solene - quer dizer nada que pudéssemos atacar. Montámos uma vez ao ouvirmos um tiro à distância.

- Está bem - respondeu Lawton num tom triste. Depois acrescentou:

- Ah! Hollister! Daria Roanoke para que o vosso braço tivesse derrubado esse celerado que disparou o tiro desses miseráveis rochedos que se elevam de todos os lados como se tivessem inveja das pastagens que separam.

Os dragões olharam para ele surpreendidos não percebendo a razão pela qual o capitão se dispunha a tão grande sacrifício.

- À luz do dia, e homem contra homem, há poucas coisas que me façam medo - afirmou o sargento com um ar decidido - mas confesso que não gosto muito de me bater com seres que nem o chumbo nem o aço conseguem abater.

- Que queres dizer, imbecil! - interrompeu Lawton.

- Onde está o ser vivo que pode resistir a um ou a outro?

- Quando se trata de um ser vivo é fácil tirar-lhe a vida- respondeu Hollister - mas o sabre ou mosquete não podem fazer mal aos que já desceram à sepultura; e não gosto muito de um vulto negro que vimos rondar pela beira do bosque ao nascer do dia e umas duas vezes durante a noite; vimo-lo atravessar o vale à luz da lua, sem dúvida com más intenções.

- Ah! - exclamou o capitão - é aquela bola negra que eu vejo ali, junto daquele rochedo coberto de vegetação? Por Deus! Está-se a mexer!

- É sim - respondeu o sargento olhando para o mesmo objecto com respeito - mas o seu movimento não tem nada de natural. É um ser que parece deslizar sobre o terreno, e nenhum de nós conseguiu ver se tinha pernas.

- Quando tiver asas - retorquiu Lawton - é meu: fiquem no vosso posto até eu voltar.

Mal acabara de pronunciar estas palavras e já Roanoke corria a galope pelo vale para colaborar na fanfarronada do dono.

- Estes malditos rochedos! - bradou Lawton ao ver aproximar-se o objecto que perseguia; mas ou porque estivesse cego pelo terror ou porque tivesse desesperado de os poder escalar, este novo inimigo passou a seu lado, e ele ficou na planície.

- Hei-de apanhar-te, homem ou diabo! - gritou o capitão tirando o sabre. - Pára e prometo dar-te quartel.

A proposta parecia ter sido aceite, porque ao som da voz forte do dragão, aquela espécie de bola negra parou, e apareceu uma massa informe privada de vida e de movimento.

- O que é isto! - exclamou Lawton parando - é um vestido de cerimónia de "miss" Jeannette Peyton que vagueia em redor do seu velho domicílio e que procura a dona?

Apoiando-se nos estribos levantou com a ponta do sabre uma ponta do vestido preto de seda e viu surgir lá debaixo o reverendo capelão do exército real, com o trajo eclesiástico.

- Valha-me Deus! O receio de Hollister não deixava de ter um fundamento - disse o capitão. - Um capelão do exército foi sempre um objecto de terror para um destacamento de dragões.

O capelão, já senhor das suas faculdades ao verificar que estava na presença de uma pessoa que conhecia, e um pouco desconcertado com o terror que tinha mostrado, levantou-se, e tentou desculpar-se o melhor possível, Lawton ouviu, bem humorado, as explicações que ele lhe dava, embora não acreditasse inteiramente nelas, e depois de lhe ter garantido que não tinha nada a temer no vale, desceu do cavalo por educação, e dirigiram-se, a pé, para o local onde os dragões tinham ficado.

- Conheço mal os uniformes dos rebeldes, senhor - afirmou o capelão - e por isso não sabia se estes homens, que diz estarem sob as suas ordens, não pertenciam a esse bando de assaltantes.

- Não precisa de se justificar - retorquiu Lawton com um sorriso irónico. - Como ministro de Deus não deve preocupar-se com uniformes: reconhecemos todos os estandartes que o senhor serve.

- Sirvo o estandarte de Sua Majestade Muito Graciosa Jorge III - replicou o capelão limpando o suor frio que lhe cobria a testa. - Mas realmente a ideia de ser escalpado faz perder a coragem a um inexperiente como eu nestas coisas da guerra.

- Escalpado! - repetiu Lawton um pouco bruscamente enquanto interrompia a marcha.

Mas dominando-se imediatamente acrescentou com toda a calma:

- Se se refere ao esquadrão de cavalaria ligeira dos dragões da Virginia, comandado por Dunwoodie, devo informá-lo que eles nunca ficam com uma cabeleira que não lhe juntem uma parte do crânio.

- Oh! não temo de forma alguma as pessoas que o senhor comanda-declarou o capelão com hipocrisia. - São os naturais da região que eu temo.

- Os naturais! Tenho a honra de ser um deles, posso assegurar-lhe.

- Entendamo-nos. Refiro-me aos índios que não fazem outra coisa senão roubar, saquear e matar.

- E escalpar.

- Sim, senhor, e escalpar - respondeu o capelão olhando para o companheiro com um certo receio. - Os índios selvagens que têm a pele cor de cobre.

- E está convencido que vai encontrar esses senhores na zona designada por Território Neutro?

- Certamente. Em Inglaterra garantem-nos que eles pululam por todo o interior do território.

- E chama a este cantão o interior da América? - perguntou Lawton que voltou a parar a fim de, com uma expressão de surpresa que era demasiado natural para se poder dizer que era fingida, olhar melhor para o sacerdote.

- Evidentemente, senhor, estou convencido que me encontro no interior do país.

- Dê atenção - disse Lawton que levantou o braço na direcção leste. - Não vê esta extensão imensa de água a perder de vista? Do outro lado encontra-se a Inglaterra que o senhor acha digna de governar meio mundo. Vê a terra em que viu pela primeira vez a luz do dia?

- É impossível ver objectos a centenas de milhas de distância - respondeu o capelão, muito surpreendido, começando a duvidar que o seu companheiro estivesse bom da cabeça.

- Não! Que pena que as faculdades dos homens não sejam iguais à sua ambição! Agora, olhe para ocidente. Vê este vasto lençol de água que se estende entre as costas da América e as da China?

- Só vejo terra, os meus olhos não podem descobrir água;

- É porque é impossível ver os objectos a centenas de milhas de distância - repetiu Lawton muito sério enquanto retomava a marcha. - Se são selvagens procure-os entre os que servem o seu príncipe. O oiro e o rum compraram-lhes a lealdade.

- É muito provável que eu tenha cometido uma desconsideração - afirmou o capelão deitando um olhar furtivo para a figura colossal e para os bigodes espessos do companheiro - mas os boatos que correm em Inglaterra e o receio de encontrar um inimigo que não seja como o senhor, levaram-me a fugir quando o vi.

- Não foi uma decisão muito criteriosa, porque Roanoke tem, no que diz respeito às pernas, uma vantagem sobre o senhor. Para fugir a Cilas podia ter caído em poder de Caribides. Estes bosques e estes rochedos podem esconder inimigos de temer.

- Os selvagens! - exclamou o capelão colocando-se por instinto por trás do capitão.

- Piores que selvagens - retorquiu Lawton franzindo as sobrancelhas de uma maneira que não acalmava nada os receios do companheiro - homens que sob a máscara do patriotismo, espalham o terror e a devastação, que estão possuídos de uma sede insaciável de pilhagem, e ao pé dos quais, em questão de violência, os índios não passam de crianças; monstros em cujas bocas andam as palavras liberdade e igualdade e em cujo coração guardam todos os vícios e todos os crimes; essas criaturas têm um nome, são os Skinners.

- Já tinha ouvido falar neles nas nossas unidades, mas julgava que eram aborígenes.

- Nesse caso estava a ser desonesto para com os selvagens - respondeu Lawton com a frieza que era natural nele.

Pouco depois chegavam ao lugar onde estava Hollister, que viu com grande surpresa o carácter sagrado do prisioneiro que o capitão trazia. Lawton deu imediatamente as suas ordens e os dragões começaram a juntar os objectos mais preciosos que tinham Sido salvos das chamas. O capitão que arranjou um cavalo excelente para o capelão, tomou o caminho dos Quatro-Cantos.

Singleton que pretendia que os restos mortais da irmã fossem levados para o posto que o pai comandava, fez os preparativos necessários para isso, e enviou uma mensagem ao coronel para lhe dar a triste notícia da morte da filha. Os feridos ingleses juntaram-se ao capelão e ao verificar a meio do dia que os preparativos estavam bastante adiantados concluiu que dentro de algumas horas estaria sozinho com os seus homens no hotel Flanagan.

Quando se encontrava na soleira da porta olhando ainda o ponto em que o Skinner lhe fugira na noite anterior ouviu, pois tinha um ouvido excelente, o barulho de um cavalo a galope na estrada: e um instante mais tarde viu aparecer um dragão da sua companhia, correndo com uma rapidez que anunciava um assunto importante. O cavalo estava coberto de espuma e de suor e o cavaleiro não parecia menos cansado. Sem dizer uma palavra, o soldado entregou-lhe uma carta e conduziu a montada para a cavalariça. Lawton reconheceu a letra de Dunwoodie e leu o seguinte:

 

"Estou muito contente por lhe poder anunciar que Washington acaba de dar ordem para que a família Wharton passe para o lado de lá das montanhas. Poderá comunicar com o capitão Wharton, que aguarda só a chegada dos familiares para ser julgado, porque eles devem ser ouvidos. Comunique-lhes esta ordem e tenho a certeza que o fará com toda a delicadeza.

Logo que os Wharton partam, deixe os Quatro-Cantos e venha juntar-se à companhia. Não tardará em estar ocupado, porque está a chegar a Hudson um novo destacamento de tropas inglesas, e sabe-se que Sir Henry Clinton entregou o comando a um bom oficial. Todas as informações devem ser doravante fornecidas ao comandante de Peekskill, tendo o coronel Singleton sido encarregado de presidir ao conselho de guerra que vai julgar o pobre Henry Wharton.

Recebemos novas ordens para prendermos Harvey Birch, logo que seja possível, mas as instruções não foram emanadas do comandante-chefe. Adeus. Mande um pequeno destacamento para escoltar as senhoras, e venha o mais depressa que puder.

O seu amigo, Dunwoodie Peyton."

 

Esta carta veio alterar todas as disposições que tinham sido tomadas. Não havia qualquer razão para se levar o corpo de Isabel para um posto onde o pai já não estava, e Singleton consentiu, embora contrariado, em deixar sepultar a irmã ali. Foi escolhido um lugar retirado e agradável ao pé dos rochedos e as cerimónias fúnebres realizaram-se tão bem quanto as circunstâncias o permitiam. Algumas pessoas da região, ou trazidas pela curiosidade ou pelo interesse que lhes inspirava a infelicidade, seguiram os restos mortais de Isabel ao túmulo, junto do qual "miss" Payton e Frances deitaram lágrimas sinceras. A cerimónia religiosa foi realizada pelo mesmo ministro que pouco antes desempenhara missão bem diferente. Quando ele pronunciou as palavras que deviam acompanhar o descer do caixão da jovem, que fora tão bela e tão boa, à sepultura, Lawton, apoiado ao sabre, de cabeça baixa, passou a mão pelos olhos.

A notícia da carta de Dunwoodie foi um novo estímulo para a família Wharton. César e os seus cavalos foram de novo requisitados; os móveis que ainda podiam ser aproveitados foram confiados a um vizinho de confiança e o senhor Wharton partiu com "miss" Peyton, Frances e Sara que continuava a delirar. O carro era escoltado por quatro dragões que seguiam todos os feridos americanos. A partida do capelão e dos feridos ingleses verificou-se quase na mesma altura e tomaram o caminho da costa onde eram aguardados por um barco.

Logo que eles desapareceram, Lawton, que tinha seguido todos estes preparativos com alegria, mandou tocar a trombeta, e todos se prepararam para partir. A égua de Betty Flanagan foi atrelada à carroça; o doutor Sitgreaves sentou-se à sua maneira no cavalo, e o capitão saltou para a sela satisfeito por voltar à actividade.

Quando se ouviram as palavras em marcha, Lawton deitou um olhar de desprezo para o lugar por onde o Skinner tinha fugido e olhou melancólico para a sepultura de Isabel. Pôs-se, em seguida, à frente do grupo com o médico a seu lado. O sargento e Betty formavam a retaguarda. O vento fresco do Sul soprava tristemente pelas portas abertas e pelas janelas sem vidros do hotel Flanagan onde ainda há bem pouco tempo soavam as gargalhadas e havia a boa disposição dos nossos valorosos patriotas.

 

Só depois da proclamação da Independência é que os Americanos deixaram de se sentir hóspedes no seu país natal. Antes, todas as suas ideias, a sua riqueza, a sua glória, dirigiam-se para a Grã-Bretanha como o ponteiro de uma bússola. Quarenta anos de governo autónomo foram melhores para ela do que século e meio de dependência. A superfície irregular do West Chester, na altura em que decorre a narração, era realmente atravessada por numerosas estradas que se dirigiam em todos os sentidos; mas estavam em harmonia com o carácter da época e dos habitantes. Depois da nova era, surgiram muitos caminhos bem traçados, que tinham mais em conta a utilidade que o gosto, ligando a direito um ponto a outro. Durante a administração antiga não havia nada de semelhante, se não fossem os casos extraordinários em que um rio de um lado e uma montanha de outro, nada os impedia de descreverem uma curva graciosa.

Em vez destas vias directas e mais curtas, os grandes caminhos, salvo as poucas excepções de que acabamos de falar, ofereciam de uma maneira uniforme o gosto clássico cultivado das instituições que têm necessidade da poesia da vida. Estes sistemas são um símbolo fiel das diferentes instituições a que acabamos de fazer alusão.

Vemos de um lado o resultado do acaso das circunstâncias, embelezado pelas graças da arte, .de forma a tornar agradável o que nem sempre é cómodo; por outro vemos a razão simples e franca, dirigindo-se directamente para o seu fim, deixando a utilidade indemnizar o que pode faltar em beleza e em interesse.

Por mais comparações engenhosas que possamos estabelecer entre os governos e as estradas. César Thompson não encontrava nelas senão prazeres passageiros e perigos frequentes. Enquanto atravessava um destes vales maravilhosos do interior deste condado, sentia-se inteiramente à vontade. Seguindo o curso do regato que nesta região serpenteia invariavelmente, o caminho atravessava ricas pradarias e excelentes pastagens; depois estendia-se para a direita, subia a encosta pouco inclinada do sopé da montanha que terminava no vale, e passando diante da porta de qualquer casa afastada, ia encontrar o ribeiro e a pradaria em toda a sua beleza porque não há lugar que tivesse conseguido escapar melhor à curiosidade do génio das grandes estradas.

Mas daí a pouco, como para se poder admirar outro género de beleza agreste, o caminho avançava afoitamente para a base de uma barreira perigosa e escalava uma montanha escarpada; depois vangloriando-se pela vitória da escalada até ao cimo, descia audaciosamente por uma encosta não menos directa para chegar a um outro vale onde surgia outra paisagem.

Caminhando por uma estrada tão variada, César tinha necessariamente de sentir emoções diferentes. Quando o carro rodava pesadamente sobre uma estrada direita, sentado no banco mais alto, o negro sentia a importância e a dignidade da situação. Ao subir sentia inquietação, mas quando tinha de descer agitava-o o terror.

Apercebendo-se que o caminho ia subir, César, seguindo as ideias dos primeiros colonos holandeses, começava por fazer sentir o chicote aos seus veneráveis corcéis acompanhando os golpes com palavras expressivas que lhe inspiravam uma ambição proporcional à dificuldade da empresa. O espaço a percorrer para se chegar ao cume era transposto com uma rapidez que sacudia de uma forma horrível o carro já antigo e que trazia os consequentes incómodos para os passageiros; mas esta manobra chegava para conseguir dos cavalos um ardor glorioso... Depois faltava-lhes o fôlego, as forças esgotavam-se e era preciso vencer dificuldades ainda maiores. Muitas vezes não se sabia se eram os cavalos que puxavam o carro ou se era o carro que os empurrava. Mas o chicote e as palavras de incitamento do negro davam-lhes forças sobrenaturais e todas as dificuldades acabaram por ser vencidas. Dava-lhes alguns instantes para respirarem quando chegavam ao que se pode chamar a justo título o território contestado e antes de empreenderem uma descida menos difícil talvez, mas bem mais perigosa do que a subida. Então, César com uma destreza notável atava as rédeas em volta do corpo e passava-as em volta do pescoço, para que a cabeça, esse membro tão nobre, fosse encarregue do trabalho de guiar os cavalos. Agarrando-se com as duas mãos aos lados do banco, abrindo a boca de forma a mostrar duas filas de dentes de marfim, e com os olhos brilhantes como diamantes encastoados em ébano, entregava-se inteiramente ao velho provérbio: "Para o diabo o último."

O carro com o zelo de um recém-convertido obrigava os cavalos a darem o seu máximo com uma velocidade que desconcertava completamente a filosofia do africano. Mas a prática traz a perfeição, e quando a noite começava a fazer sentir aos viajantes a necessidade de uma paragem, César estava já habituado a estas descidas perigosas a que se resignava com uma coragem incrível.

Não nos teríamos arriscado a descrever com todas estas metáforas a empresa dos cavalos de Wharton, se não existissem ainda muitos exemplos destes caminhos tão perigosos a que podemos recorrer como prova de que falamos verdade; circunstâncias mais felizes para todos nós trouxeram quase por toda a parte uma melhoria nesta situação, privando-nos praticamente de provas a nosso favor.

Enquanto César e os corcéis lutavam contra os obstáculos da viagem, os que seguiam no carro estavam muito ocupados com os seus próprios problemas para darem atenção às dificuldades daqueles que os serviam. A alucinação de Sara já não era tão grande, mas todas as vezes que fazia um esforço para fazer trabalhar a razão parecia que mergulhava ainda mais no afastamento e no torpor: tornava-se a pouco e pouco triste e melancólica.

Havia momentos em que os familiares inquietos julgavam notar indícios do regresso da memória, mas a expressão de aflição profunda que acompanhava estes momentos passageiros da razão levava-os por vezes à cruel alternativa de desejar que ela continuasse no delírio que lhe evitasse sofrimentos terríveis. A viagem foi feita quase em silêncio; e quando a noite chegou cada um alojou-se como pôde em diferentes quintas.

Na manhã seguinte o grupo separou-se. Os feridos dirigiram-se para o rio a fim de tomarem o barco em Peekskill e seguirem para os hospitais do exército americano que ainda ficavam distantes. Singleton foi transportado de liteira ao quartel general do pai, instalado nas montanhas, e onde devia ficar em convalescença. O carro de Wharton, que era seguido de uma carroça onde ia a governanta e toda a bagagem transportável que se pudera salvar das chamas, continuou o caminho para o lugar onde Henry estava preso e aguardava a chegada da família para ser julgado.

Toda a zona situada entre o Hudson e o estreito ou braço de mar de Long Island é nas suas primeiras quarenta milhas uma sequência de montanhas e vales. Deste lado o terreno é mais baixo e nivela-se pouco a pouco para formar as belas planícies de Connecticut; mas nas margens do Hudson conserva o aspecto selvagem até àquela formidável barreira de montanhas em que terminava o que então se designava por Território Neutro. O exército real ocupava os dois pontos sobranceiros à entrada do rio nas montanhas do lado sul, mas os Americanos dominavam as outras posições.

Como já dissemos, piquetes do exército continental desciam por vezes até esta zona e destacamentos de cavalaria ocupavam de tempos a tempos a aldeia das Planícies Brancas. Noutras ocasiões os seus postos avançados retiravam-se para a extremidade setentrional do condado, e toda a área situada entre o mar e o exército ficava praticamente abandonada aos bandidos que se entregavam à pilhagem em nome dos dois grupos sem servirem nem um nem outro.

A estrada por onde seguiam os nossos viajantes não é a que liga as duas principais cidades deste estado; era uma retirada, pouco frequentada, e quase desconhecida hoje em dia, que penetra nas montanhas até aos limites orientais do condado, e que desemboca na planície a algumas milhas do Hudson.

Era impossível para os cavalos estafados de Wharton puxarem o carro tão pesado pelas montanhas escarpadas que tinham de atravessar, e os dois dragões que lhes serviam de escolta procuraram o auxílio de dois cavalos vigorosos da região com o consentimento ou não do dono. Graças a essa assistência César conseguiu avançar lentamente, mas não sem dificuldades pelo interior das montanhas. Desejando afastar a melancolia, respirando um ar mais fresco, e para aliviar o peso do carro, Frances desceu no sopé de um monte e viu que Katy tinha feito outro tanto e se preparava para subir a encosta a pé.

O sol estava quase a pôr-se, e os dragões tinham anunciado que do alto deste monte se podia ver o ponto para onde se dirigiam. Frances caminhava à frente com o passo ligeiro da juventude e a governanta alguns passos mais atrás. Daí a pouco perdiam de vista o carro que subia penosamente a montanha, e que parava de vez em quando para que os animais que a puxavam pudessem respirar.

- Oh! "miss" Fanny, em que tempo vivemos! - afirmou Katy quando pararam para tomar fôlego. - Eu tinha a certeza que iam acontecer grandes desgraças por ter visto raios de sangue nas nuvens.

- Há muito espalhado pela terra - respondeu Frances com um arrepio - mas não creio que se possa ver nas nuvens.

- Não é sangue nas nuvens, "miss" Frances! Sim, na verdade há, e já apareceram mais do que uma vez, cometas com caudas de fogo. Não se viram homens armados que se batiam no ano antes da guerra? E na véspera da batalha das Planícies Brancas não se ouviram trovões que pareciam o troar dos canhões? Ah! "miss" Frances, não pode. resultar nada de bom de uma revolta contra o ungido do Senhor!

- Os acontecimentos de que somos testemunhas são, na verdade, horríveis - declarou Frances - e são suficientes para vencer o coração mais firme. Mas que se há-de fazer, Katy? Homens bravos e independentes não se podem submeter à opressão, e estou convencida que estas cenas são frequentes na guerra.

- Ainda se pudesse compreender por que razão se batem assim! - afirmou Katy retomando a marcha para seguir a patroa. - Uns dizem que o rei quer guardar o chá para a família, os outros que ele quer guardar tudo o que os pobres ganham neste país, e evidentemente que há aqui motivos para se baterem, porque ninguém, não importa que seja lorde ou rei, tem direito às economias dos outros. Mas, por outro lado, afirma-se que Washington se quer fazer rei; em que devemos acreditar?

- Em nada, Katy, porque nada disso é verdade. Não pretendo dizer que conheço as causas da guerra, mas parece-me antinatural que um território como este esteja sob o domínio de um país tão afastado como a Inglaterra: e ao dizer isto, Frances ruborizou-se pensando na fonte destas opiniões.

- Foi o que eu ouvi Harvey dizer ao pai que repousa agora na sepultura - afirmou Katy baixando a voz - porque ouvi mais de uma vez a conversa, deles, e conversas que a menina não pode imaginar. Para dizer a verdade Harvey é um homem muito estranho! É como o vento, como diz o bom livro: não se sabe de onde vem nem para onde vai.

- Correm sobre ele boatos em que eu não gostaria nada de ter de acreditar - afirmou Frances olhando para ela com um novo interesse e num tom que anunciava estar disposta a saber mais alguma coisa.

- Ah! são falsidades! - exclamou Katy. - Harvey não tem mais contactos com Belzebu do que a menina ou eu; se ele lhe tivesse vendido a alma teria tido o cuidado de receber mais por ela, embora também seja verdade que nunca foi pessoa para defender os seus interesses.

- Não era isso a que eu me referia - atalhou Frances, sorrindo. - Não se vendeu ele a um príncipe da terra bom e amável, mas muito dependente dos interesses do seu país para poder dar atenção aos nossos?

- Ao rei de Inglaterra? Bem! "Miss" Frances, o seu irmão, que está na prisão, não está ao serviço do rei Jorge?

- É verdade, mas serve abertamente não em segredo.

- Dizem portanto que é um espião, é um espião que não vale mais do que qualquer outro.

- É uma calúnia! - exclamou Frances corando de indignação. - O meu irmão não é capaz de fazer um jogo tão vil, nem a ambição nem o interesse o levariam a isso.

- Está bem - afirmou Katy, um pouco desconcertada com o tom da patroa - se uma pessoa faz um trabalho deve receber a paga desse trabalho.

Não é que Harvey esteja interessado. Estou convencida que se há contas a fazer é o rei Jorge que está em dívida.

- Admite então que há ligações com o exército inglês? Confesso que houve alturas em que pensei o contrário.

- Meu Deus! "Miss" Frances, Harvey é um homem acerca do qual não se podem fazer suposições. Embora tivesse vivido nove anos em casa do pai nunca soube o que fazia ou o que pensava. No dia em que Burgoyne foi preso chegou esbaforido e fechou-se num quarto com o pai. Falaram durante muito tempo, mas embora me tivesse posto à escuta não percebi se tinham ficado satisfeitos ou aborrecidos. Bem! Por outro lado quando esse general inglês... Meu Deus! Com todas as minhas canseiras e preocupações esqueci-me do nome dele.

- André? - perguntou Frances, suspirando.

- Sim, André. Quando o velho Birch soube que ele tinha sido enforcado perto de Tappaan quase enlouquecia, não dormiu dia e noite até ao regresso de Harvey; então o seu dinheiro eram principalmente guinéus de oiro. Mas os Skinners levaram-lhe tudo e hoje não passa de um mendigo, ou o que é a mesma coisa, um homem desprezível porque vive na indigência.

Frances não respondeu e continuou a subir a montanha entregue aos seus próprios pensamentos. A alusão feita ao major André trouxe-lhe ao pensamento a situação do irmão. A esperança é a principal fonte da alegria e mesmo quando está apoiada em bases débeis, raramente deixa de se misturar com todas as emoções do coração.

A declaração que Isabel tinha feito ao morrer produzira no espírito de Frances uma impressão cujo efeito influenciava todos os seus pensamentos. Via já Sara recuperar a razão, e nos momentos em que pensava no julgamento do irmão, tinha o pressentimento secreto que a sua inocência seria reconhecida, e entregava-se a estes pensamentos com todo o ardor da juventude, embora não fosse encontrar uma razão.

Tinham chegado ao cimo do monte, e Frances sentou-se para descansar e para admirar a paisagem. A seus pés estava um vale profundo que as culturas pouco tinham alterado e que o entardecer de Novembro tornava ainda mais sombrio. A pouca distância elevava-se outra montanha e nas encostas irregulares viam-se rochas áridas e castanheiros ressequidos a que o solo recusava a seiva que lhes era necessária.

Para os encontrar em toda a sua beleza é preciso atravessar as montanhas logo a seguir à queda da folha. O quadro que apresentam está, então, em toda a sua perfeição, porque nem a folhagem escassa que o Verão empresta às árvores nem as neves do Inverno escondem qualquer aspecto. Uma triste solidão constitui o carácter da paisagem, e o espírito não pode, como em Março, prever a vegetação que vai esconder pormenores dignos de serem vistos.

O dia tinha estado frio e escuro. Neste momento, nuvens esbranquiçadas cobriam o horizonte; Frances esperava ver ainda o sol, mas enganou-se. Por fim um raio solitário reflectiu-se na base da montanha vizinha, subiu ao longo da encosta, atingiu o cume, e formou como que uma coroa de glória que não durou mais de um minuto. A luz era tão intensa que Frances pôde ver objectos que a obscuridade anterior escondia.

Surpreendida por obter de maneira tão inesperada a faculdade de penetrar por assim dizer nos segredos deste lugar solitário, descobriu no meio das árvores dispersas e das extremidades das rochas o que lhe pareceu ser uma cabana de construção muito rudimentar. Era muito baixa e a cor dos materiais de que era feita confundia-se de tal maneira com as rochas que a cercavam que, sem o telhado e os vidros da janela que reflectiam os raios do sol, ela não a teria visto.

Ainda não estava refeita da surpresa de ter visto naquele deserto uma habitação humana quando levantando os olhos um pouco mais para cima viu um outro objecto que lhe causou ainda mais admiração. Parecia ser uma figura humana, mas de uma forma singular e de uma deformidade extraordinária. Este ser estava instalado na extremidade mais saliente de uma rocha que ficava sobranceira à cabana, e não foi difícil para a nossa heroína imaginar que ele seguia os carros que subiam a serra com tanta dificuldade. Todavia a distância que os separava era muito grande para ela poder julgar com uma certeza. Depois desta primeira surpresa, convenceu-se que era produto da sua imaginação e que o que ela estava a ver fazia parte do rochedo. Mas, de súbito, o objecto que atraía o seu olhar mudou de posição, caminhou apressado em direcção à cabana onde entrou, o que não deixou qualquer dúvida sobre a realidade do que tinha visto.

Fosse consequência da conversa que acabava de ter com Katy, fosse qualquer analogia elaborada pela sua imaginação. Frances no momento em que a figura desapareceu encontrou-lhe uma semelhança enorme com Harvey Birch a andar carregado com a mala. Olhava ainda com surpresa esta casa misteriosa quando o som de uma trombeta soou no vale e o eco se repercutiu de rochedo em rochedo. Levantando-se alarmada ouviu o barulho de cavalos e daí a pouco um destacamento de cavalaria com os uniformes tão conhecidos dos soldados da Virgínia surgiu de trás de uma rocha e apareceu a pouca distância do lugar onde ela se encontrava. A trombeta soou de novo mais distinta, e antes de ela ter tempo de se acalmar, Dunwoodie pôs-se à frente dos seus dragões, saltou do cavalo e avançou para junto da dama do seu coração.

As suas maneiras revelavam cuidado e interesse, mas pressentia-se também constrangimento e embaraço. Explicou em poucas palavras que dada a ausência do capitão Lawton tinha recebido ordem para se dirigir a este lugar com um destacamento de dragões para estar presente no processo do capitão Wharton que devia ser julgado no seguinte, e que, desejando saber se a família do amigo tinha atravessado as montanhas sem incidentes, tinha resolvido percorrer algumas milhas para ter essa certeza o mais cedo possível.

Frances explicou-lhe, corando, e com uma voz pouco segura a razão por que se encontrava à frente das outras pessoas e acrescentou que as esperava de um momento para o outro. O constrangimento do major tinha qualquer coisa de contagioso que a atingiu e a chegada do carro foi um alívio para um e para outro. Dunwoodie ofereceu-lhe a mão, disse algumas palavras de encorajamento ao senhor Wharton e a Jeannette, e montando precedeu os viajantes pelas planícies Fishkill que surgiram diante dos seus olhos como por encantamento quando acabaram de rodear uma das rochas.

Cerca de meia hora depois estava ao portão da quinta que Dunwoodie tinha tido o cuidado de preparar para os receber, e onde o capitão Wharton os esperava com impaciência.

 

Os familiares de Henry tinham tanta confiança na sua inocência que não viam bem o perigo da situação. No entanto, à medida que a altura do julgamento se aproximava a inquietação do capitão aumentava. Depois de ter passado grande parte da noite com a família e de ter dormido duas ou três horas com um sono agitado, acordou no dia seguinte com a convicção do perigo iminente que corria; e examinando as possibilidades que tinha concluiu que eram bem incertas. A patente de André, a importância dos assuntos de que se ocupava, e os pedidos que tinham sido feitos a seu favor, tinham tido como consequência que se desse uma importância maior do que era habitual a acontecimentos deste género. Mas tinham sido presos muitos outros espiões e havia numerosos exemplos de punições imediatas do crime. Estes factos não eram ignorados nem por Dunwoodie nem pelo prisioneiro, e os preparativos que estavam a ser feitos para o julgamento eram de molde a alarmá-los. Conseguiram, todavia, simulá-los e nem "miss" Peyton nem Frances se aperceberam deles até ao fim. Os edifícios exteriores da quinta onde o preso se encontrava, estavam bem guardados. Várias sentinelas guardavam a casa e à porta do quarto do oficial inglês havia sempre um soldado. O conselho de guerra que devia fazer a instrução do processo estava já reunido, e da sua decisão dependia a sorte de Henry.

Chegou por fim o momento em que os diferentes actores que deviam desempenhar um papel nesta cena solene se reuniram. Frances sentiu uma espécie de sufocação, quando sentada entre os membros da sua família, olhou para o grupo que estava sentado diante dela. Os três juízes estavam sentados, com uniforme de gala e um ar grave digno da sua posição e de uma ocasião tão solene.

O que ocupava a cadeira do meio era um homem de idade avançada cuja figura e afinal todo o seu aspecto indicavam que era uma pessoa dedicada há muitos anos à profissão das armas. Era o presidente do tribunal marcial, e Frances depois de ter olhado para os outros dois e não tendo ficado satisfeita com o seu aspecto, voltou-se para ele como para um anjo de misericórdia a quem esperava ficar a dever a salvação do irmão. Havia nas suas feições uma expressão de doçura e complacência que contrastava de forma evidente com os rostos impassíveis dos outros dois. O seu fato estava inteiramente de acordo com as normas do serviço a que pertencia; mas os dedos tocavam,com uma espécie de movimento involuntário e quase convulsivo a seda que forrava o punho do sabre sobre o qual se apoiava, num gesto de outros tempos. Notava-se que a sua alma estava agitada por desgostos bem grandes; mas a sua fronte marcial e o seu ar imponente suscitavam tanto o respeito como a piedade.

Os dois juízes eram oficiais das tropas coloniais que ocupavam as fortalezas de West Point e os desfiladeiros da região. Eram homens de meia idade; era em vão que se procurava nos seus traços a expressão de uma paixão ou de uma emoção, sinal de uma fraqueza humana. As suas fisionomias estavam graves, sérias e pensativas; não havia uma expressão de dureza e de violência que repugna, mas não havia também a expressão de interesse e de compaixão que atrai. Eram homens que há muito agiam segundo os conselhos da razão e da prudência, e cujos sentimentos pareciam habituados a submeter-se inteiramente ao seu julgamento.

Henry Wharton foi trazido à presença dos árbitros do seu destino entre dois homens armados. À sua chegada seguiu-se um silêncio profundo e impressionante, e Frances sentiu o sangue gelar nas veias. Exteriormente não havia nada que pudesse excitar a sua imaginação, mas toda esta cena era tão grave e tão fria que lhe parecia que o seu destino estava nas mãos daqueles três homens.

Os dois juízes que tinham um ar reservado e grave olhavam fixamente para aquele que iriam condenar ou absolver: mas o presidente do tribunal olhava em seu redor, com os músculos do rosto em movimento, numa agitação estranha para uma pessoa da sua idade e com a sua profissão. Era o coronel Singleton. Só na véspera tivera conhecimento da morte da filha, mas por brio militar decidiu que essa circunstância não o podia dispensar do dever que a sua pátria lhe impunha. Sentindo o silêncio e vendo que todos os olhos estavam fixos em si, fez um esforço para se concentrar e ordenou, num tom que evidenciava ser uma pessoa habituada a comandar:

- O prisioneiro que avance!

As sentinelas baixaram as baionetas e Henry Wharton avançou com passo firme até ao meio da sala. A curiosidade e o interesse dos espectadores tinha atingido o auge, e Frances voltou-se por um instante emocionada ao reconhecer atrás dela a respiração pesada de Dunwoodie cuja preocupação era evidente. Todavia, daí a pouco, todos os seus pensamentos e todas as suas emoções giravam à volta do irmão. No fundo da sala estavam reunidos todos os habitantes da quinta em que se realizava o julgamento, e por trás deles havia uma fila de rostos cor de ébano de entre os quais se distinguia o de César Thompson.

- Consta - continuou o presidente do tribunal - que o senhor se chama Henry Wharton e é capitão do 6O.O regimento de infantaria de Sua Majestade britânica.

- É verdade - respondeu Henry.

- Gosto da sua sinceridade, que anuncia sentimentos dignos de um soldado e não podem deixar de produzir uma impressão favorável nos juízes.

- Convém advertir o prisioneiro que só é obrigado a responder a perguntas que considere não contenham matéria que possa vir a ser usada contra ele - afirmou um dos outros juízes. - Embora estejamos reunidos em tribunal marcial, reconhecemos os princípios defendidos pelos governos livres a este respeito.

O outro juiz fez um sinal de aprovação; e o juiz presidente depois de ter advertido o prisioneiro, pegou nos papéis que estavam diante dele.

- É acusado de ter, sendo oficial ao serviço do inimigo, passado disfarçado no dia 29 de Outubro para trás das linhas do exército americano nas Planícies Brancas, o que o torna suspeito de servir interesses hostis à América, e passível das penas aplicadas aos espiões.

O tom calmo, mas firme da voz do presidente, quando repetiu lentamente os termos da acusação, calou fundo no coração dos que o escutavam. O facto era tão claro, tão simples, as provas tão evidentes, a pena tão bem pronunciada pela lei militar, que parecia impossível que Henry conseguisse escapar à condenação. Contudo respondeu com calma:

- Que tivesse passado os vossos piquetes sob um disfarce é possível; mas...

- Silêncio! - interrompeu o presidente. - Os costumes da guerra são bastante severos em si mesmos. Não precisa de estar a indicar elementos contra si próprio.

- O acusado pode retratar-se - disse um dos juízes - porque se isso consta do libelo acusatório é porque está provado.

- Não retirarei nada do que disse porque é verdade - afirmou Henry com altivez.

Os dois juízes ouviram esta resposta com uma gravidade imperturbável, sem terem um ar de triunfo; mas o juiz presidente começou a seguir com mais interesse esta cena e afirmou num tom mais animado do que se poderia esperar num homem da sua idade:

- Os seus sentimentos são nobres, e lamento que um jovem militar se tenha deixado levar pela lealdade ao ponto de servir de instrumento à traição.

- À traição! - exclamou Henry furioso. - Mascarei-me para não correr o risco de ser feito prisioneiro.

- Que motivos tinha para passar as nossas linhas disfarçado?

- Pode explicá-los se entender que isso pode contribuir para a sua justificação - disse um outro juiz mal mexendo a boca.

- Sou filho daquele homem de idade que se encontra ali e foi para o ver que me expus imprudentemente ao perigo. Além disso é raro a zona em que a casa fica situada estar ocupada pelas vossas forças, e o seu nome indica que as duas partes têm direito a estar lá.

- O nome de Território Neutro não está reconhecido por nenhuma lei e a sua origem deve-se unicamente à situação do país. Onde quer que se encontre, um exército tem de fazer prevalecer os seus direitos, o primeiro dos quais é velar pela sua segurança.

- Não sou casuísta, senhor, mas acho que o meu pai tem direito ao meu afecto, e não há perigo a que não me expusesse para lhe dar provas disto.

- Esses sentimentos são de louvar. Vamos, meus senhores - disse o presidente do tribunal dirigindo-se aos outros juízes -este caso que se apresentava feio começa a tornar-se mais claro. Quem pode censurar um filho que deseja ver o pai?

- Tem qualquer prova de que era essa a sua intenção? - perguntou um dos outros juízes de aspecto circunspecto.

- Sem dúvida - respondeu Henry vendo brilhar um raio de esperança - o meu pai, a minha irmã, o major Dunwoodie sabem-no tão bem como eu.

- Isso pouco pode mudar a face das coisas - disse o mesmo juiz ao presidente. - Acho que este assunto precisa de ser aprofundado.

- Sem dúvida - respondeu o juiz presidente. - O senhor Wharton pai.

Wharton avançou tremendo de emoção. O juiz presidente deu-lhe algum tempo para se acalmar e depois de o ter mandado prestar juramento segundo a fórmula habitual, fez-lhe a seguinte pergunta:

- O senhor é o pai do prisioneiro?

- É o meu único filho.

- Sabe porque apareceu ele em sua casa no dia 29 de Outubro?

- Como ele disse: para me ver e ver as irmãs.

- Estava disfarçado? - perguntou um dos outros juízes.

- Ele... não vestia o uniforme da unidade a que pertence.

- E para ver as irmãs! - disse o coronel Singleton emocionado. - Tem filhas?

- Tenho duas... Encontram-se nesta casa.

- Trazia peruca? - perguntou um dos outros juízes.

- Tinha uma cabeleira posta... ou qualquer coisa desse género, segundo creio.

- Há quanto tempo não o via? - perguntou o juiz presidente.

- Há catorze meses.

- Trazia uma sobrecasaca comprida de tecido grosseiro - perguntou o outro juiz folheando o processo.

- Trazia... um sobretudo.

- Acha que ele veio só para o ver?

- A mim e às minhas filhas.

- Um rapaz valente! - disse o juiz presidente ao ouvido do colega que se tinha mantido em silêncio. - Não vejo nisto senão imprudência da juventude, e no fundo uma boa intenção.

- Tem a certeza - perguntou o outro juiz a Wharton - que o seu filho não tinha recebido uma missão secreta de Sir Henry Clinton, e que a visita a sua casa não era um pretexto para a encobrir?

- Como poderia saber? - disse o pai que temia estar também comprometido. - Julga que Sir Henry Clinton me faz confidências?

- E sabe como é que ele procurou passar? - continuou o juiz mostrando o documento que Henry tinha mostrado ao major Dunwoodie e que este tinha guardado.

- Não, por minha honra.

- É capaz de jurar?

- Posso jurar.

- Gostaria que fosse ouvida outra testemunha, capitão Wharton? Este depoimento não tem valor. Foi detido em circunstâncias que comprometem a sua vida; é evidente que depende de si provar a sua inocência. Pense o tempo que quiser e mantenha-se calmo.

A frieza do juiz era tão terrível que Henry sentiu um arrepio. O ar de compaixão do juiz presidente fazia-o esquecer o perigo que corria; mas a fisionomia fria e impassível dos outros juízes parecia anunciar-lhe o seu destino. Manteve-se em silêncio e olhou de forma significativa para Dunwoodie. O amigo compreendeu-o e pediu para ser ouvido como testemunha. Prestou juramento e fez o depoimento, mas este não alterou nada o aspecto da questão porque o que ele sabia era muito pouco e pode dizer-se que a declaração foi mais desfavorável do que útil para Henry. Foi ouvido em silêncio, e um movimento de cabeça quase imperceptível anunciou claramente a impressão que tinha produzido.

- Está absolutamente convencido que o prisioneiro não tinha outro objectivo além daquele que referiu?

- Perguntou o juiz presidente ao major, quando ele acabou de falar.

- Sou capaz de o garantir em troca da minha vida.

- Era capaz de jurar - perguntou o outro juiz.

- Como hei-de poder? Só Deus conhece os corações. Mas declaro sob juramento que conheço o capitão Wharton desde criança e que sempre o vi proceder com honestidade. Está acima de uma vileza.

- Disse que ele tinha fugido e que tinha pegado em armas? - perguntou o juiz presidente.

- Ficou mesmo ferido no combate. Como vê traz o braço ao peito. Está convencido que ele se teria mostrado nas fileiras com o risco de voltar a cair nas nossas mãos, se não estivesse certo da sua inocência.

- Se se tivesse travado um combate perto de Tarrytown - disse o outro juiz - o major André ter-se-ia recusado a pegar em armas? Não está conforme a natureza da juventude procurar a glória?

- Dá o nome de glória a uma morte ignominiosa? - perguntou o major. - É glorioso deixar um nome desonrado?

- Major Dunwoodie - respondeu o mesmo juiz com uma gravidade imperturbável - o senhor agiu nobremente; o seu dever era penoso e grave; cumpriu-o fielmente e com honra... nós temos também de cumprir o nosso.

Durante este interrogatório reinava na sala o mais vivo interesse. Com o raciocínio que não pode separar o princípio da causa, a maior parte dos assistentes pensaram que se Dunwoodie não tinha conseguido comover os corações dos juízes de Henry, ninguém mais o conseguiria. César esticou a cabeça e as suas feições exprimiam o interesse que sentia por tudo o que se estava a passar, mas o seu interesse era bem diferente do que se notava na cara dos outros negros, o que chamou a atenção do juiz que se tinha mantido calado. Abriu a boca pela primeira vez.

- Mandem avançar o negro.

Era muito tarde para bater em retirada, e César encontrou-se diante dos juízes antes de ter tempo para pensar. Foi o juiz que o tinha mandado chamar que o interrogou com muita calma:

- Conheces o preso?

- Eu dever conhecer - respondeu César num tom tão sentencioso como o do juiz.

- Deu-te a peruca quando a tirou?

- Eu não ter necessidade de peruca... não ter falta de cabelo.

- Foste encarregado de levar qualquer carta ou mensagem enquanto o capitão Wharton esteve em casa de seu pai?

- Eu fazer sempre o que me ser mandado.

- Que te mandaram fazer durante esse tempo?

- Tantas coisas.

- Basta - afirmou o coronel Singleton com dignidade. - Tem as declarações de um homem bem nascido, o que espera das deste escravo! Capitão Wharton, sabe qual é a ideia que se faz do senhor, não tem outras testemunhas que queira chamar a depor?

Henry já tinha poucas esperanças, a confiança começava a abandoná-lo, mas olhando para Frances sentiu a vaga esperança de que a irmã pudesse vir em seu auxílio. Ela levantou-se imediatamente e dirigiu-se para os juízes com decisão. O rosto que estava pálido tornou-se vermelho como o fogo, e ficou de pé diante dos juízes com um ar modesto, mas firme. Levando a mão à testa afastou os caracóis que a cobriam, e revelou-se em toda a sua beleza e de uma graça e de uma inocência sem igual. O juiz presidente cobriu por instantes os olhos, como se o olhar inteligente e a expressão viva lhe tivessem trazido à memória com mais pormenor a imagem que ele não podia esquecer. A sua emoção foi momentânea; o seu brio triunfou e disse num tom que escondia os seus desejos secretos:

- Foi à menina que o seu irmão comunicou que desejava visitar secretamente a família?

- Não, não - respondeu Frances apoiando a mão na testa que escaldava para se concentrar. - Ele não me tinha dito nada; não o esperávamos quando ele chegou. Mas é preciso explicar a bravos militares que um filho se expõe voluntariamente ao perigo para visitar o pai, e isto numa altura como esta, numa situação como a nossa?

- Era a primeira vez que os visitava? - perguntou o coronel com um interesse paternal. - Nunca lhes tinha anunciado uma visita?

- Desculpe - disse Frances reparando na expressão de complacência da sua fisionomia. - Era a quarta vez.

- Eu bem sabia! - exclamou o coronel esfregando as mãos de prazer. - É um filho tão arrebatado como afectuoso, garanto-lhes, meus senhores, que é um bravo soldado no campo de batalha. Que disfarce usou das outras vezes?

- Não trazia nenhum. Essa precaução não era necessária: as tropas monárquicas ocupavam toda a região, o que o punha ao abrigo do perigo.

- Foi a primeira vez que apareceu sem uniforme? - perguntou o juiz presidente com uma voz pouco segura evitando os olhares dos colegas.

- Sim, certamente - respondeu a jovem com ênfase. - Se cometeu uma falta foi a primeira.

- Mas escreveu-lhe, pediu-lhe para vir? Desejava com certeza vê-lo? - perguntou o coronel com um ligeiro movimento de impaciência.

- Se o desejávamos! Todos os dias o pedíamos ao céu com todo o fervor! Mas não ousávamos entrar em comunicação com o exército real com medo de expor o meu pai a algum perigo.

- Durante a sua permanência em casa ausentou-se? Encontrou-se com algum desconhecido?

- Ninguém, à excepção de um dos nossos vizinhos, um vendedor ambulante chamado Birch, e...

- Que diz? - exclamou o coronel empalidecendo e estremecendo como se tivesse sido picado por uma víbora.

Dunwoodie deixou escapar um suspiro, bateu com a mão na testa e exclamou involuntariamente:

- Está perdido! - e saiu da sala.

- Harvey Birch - repetiu Frances fixando os olhos extasiados na porta por onde tinha saído o amado do seu coração.

- Harvey Birch! -exclamaram ao mesmo tempo os três membros do tribunal marcial. Os dois juízes de rosto impassível olharam um para o outro com uma expressão de entendimento e fitaram o preso.

- Meus senhores, - afirmou Henry avançando de forma a ficar diante dos juízes- não é novidade para nenhum de vós que Harvey Birch é suspeito de favorecer a causa do rei, porque já foi condenado por um dos vossos tribunais militares a sofrer o destino que me está reservado. Confesso que foi ele que me arranjou o disfarce para atravessar as vossas linhas; mas declaro até ao último suspiro que as minhas intenções eram tão puras como as dessa inocente que está diante de vós.

- Capitão Wharton - declarou o juiz presidente num tom solene - os inimigos da liberdade da América não descuidam nada para a destruir; e de todos os meios a que recorreram não há nenhum mais perigoso do que esse bufarinheiro. É um espião sagaz, astuto e inteligente, com meios que estão acima do que se podia esperar de um homem da sua classe. Teria estado em posição de salvar o major André. Sir Henry Clinton não podia ter feito nada de melhor do que associá-lo a um oficial encarregado de uma missão secreta. Temo que essa ligação lhe seja fatal, meu jovem!

Enquanto no rosto do coronel se reflectia uma indignação honesta, a expressão dos seus dois colegas anunciava uma convicção total.

- Fui eu que o perdi! - bradou Frances juntando as mãos com terror. - E vai abandonar-nos? Nesse caso está verdadeiramente perdido!

- Silêncio, jovem e inocente criatura! - ordenou o coronel comovido. - Não prejudicou ninguém, mas afligiu-nos a todos!

- A afeição que a natureza inspira é um crime? - perguntou Frances perturbada. Washington, o nobre, o justo, o imparcial Washington não julgará assim! Esperem até Washington conhecer tudo em pormenor.

- Impossível! - respondeu o juiz presidente cobrindo os olhos para não ver aquela beleza lavada em lágrimas.

- Impossível! Suspendam o julgamento uma semana.

Peço-lhes de joelhos, em nome da compaixão de que um dia terá necessidade no julgamento em que o poder humano nada vale, dê-lhe um dia!

- Impossível - repetiu o coronel com uma voz quase abafada. - As nossas ordens são peremptórias e já demorámos muito tempo para as executar.

Voltou-se para o outro lado, mas não pôde ou não quis soltar a mão que ela ao ajoelhar-se aos seus pés tinha agarrado com força.

- Leve o preso - ordenou um dos juízes ao oficial encarregado de guardar Henry. - Coronel Singleton, vamo-nos retirar?

- Singleton! - repetiu Frances - Singleton! Nesse caso é pai, e deve ser sensível às dores de um pai. Não quer de certeza traspassar o coração já tão cruelmente ferido! Oiça-me, coronel Singleton! Escute-me como gostaria que Deus escutasse as suas últimas preces, e poupa a vida do meu irmão!

- Afastem-na - ordenou o coronel fazendo um pequeno esforço para se libertar da mão dela; mas ninguém parecia interessado em obedecer-lhe.

Embora ele tivesse voltado a cabeça, Frances procurava ler a sua decisão nos seus olhos e resistia com todas as forças às tentativas que ele fazia para se libertar dela.

- Coronel Singleton! Esquece-se que ainda há alguns dias o seu próprio filho foi ferido e esteve às portas da morte? Foi em casa de meu pai que ele foi tratado. Suponha que se tratava agora desse filho, o orgulho da sua velhice, a consolação e o apoio dos filhos órfãos, teria coragem de declarar o meu irmão culpado?

- Com que direito Heath faz de mim um carrasco? - disse o oficial com uma emoção que procurava dominar. - Mas já me esquecia. Vamos, meus senhores, retiremo-nos. É preciso cumprir um dever difícil.

- Não saiam! Não saiam! - pediu Frances. - São capazes de tirar um filho ao pai, um irmão à irmã, com tanto sangue-frio? É esta a causa que vos é tão querida? São estes os homens que me ensinaram a respeitar? Mas os senhores estão a deixar-se aplacar pela piedade, ouvem-me e vão perdoar-lhe.

- Vamos, meus senhores - disse o coronel dirigindo-se para a porta e tomando um ar de altivez militar na esperança de conseguir acalmar a sua agitação interior.

- Não se vá embora! Escute-me! - bradou Frances que lhe pegou na mão com um gesto convulsivo. - Coronel Singleton, o senhor é pai: piedade, compaixão, misericórdia para o filho e para a filha! Sim, o senhor teve uma filha; foi encostada a este peito que ela expirou; foram estas mãos que lhe fecharam os olhos; estas mãos erguidas em prece, foram elas que a ampararam até ao fim. Pode condenar-me agora a fazer outro tanto ao meu pobre irmão?

O oficial lutava contra uma emoção violenta que só dominou depois de suspirar fundo. Olhou em redor com orgulho como para se felicitar da sua vitória; mas esta vitória foi momentânea, e a emoção triunfou. A cabeça embranquecida por setenta invernos tombou sobre o ombro da jovem que lhe pedia auxílio com a energia do desespero. O sabre que tinha sido seu companheiro em tantos combates caiu-lhe da mão enquanto ele dizia:

- Que Deus a recompense! E não pôde conter os soluços.

O coronel Singleton levou bastante tempo para se recompor. Quando conseguiu dominar-se entregou Frances que havia perdido os sentidos nos seus braços à tia, e voltando-se para os colegas com um ar resoluto, disse-lhes:

- Meus senhores, vamos cumprir o nosso dever como militares; podemos depois entregarmo-nos às nossas emoções como homens. Que decidem relativamente ao prisioneiro? Um dos juízes pegou num projecto de sentença que tinha elaborado enquanto o coronel estava ocupado com Frances, dizendo-lhe que era a sua opinião e a do colega. Afirmava, em resumo, que Henry Wharton tinha sido preso disfarçado, ao atravessaras linhas do exército americano; de acordo com as leis da guerra tinha incorrido na pena de morte e que em consequência o tribunal o condenava a ser enforcado no dia seguinte às nove horas. Era costume não executar uma sentença de morte mesmo contra o inimigo sem se obter primeiro a aprovação do comandante-chefe, ou quando este estava muito longe, do oficial general que o substituía. Mas como Washington tinha o quartel general em New Windsor, na margem ocidental do Hudson, era possível obter a resposta muito antes da hora indicada.

- O prazo é muito curto! - afirmou o coronel pegando na pena como se não soubesse o que devia fazer. Nem um dia para que um jovem possa fazer a paz com o céu!

- Os oficiais do exército real - afirmou um dos juízes - não deram a Hale(1) senão uma hora.

- Examinámos o processo segundo o costume. Além disso Washington tem o direito de conceder uma prorrogação, e mesmo de conceder uma absolvição.

- Irei eu mesmo solicitar-lha - declarou o coronel ao assinar a sentença - e se os serviços de um velho soldado e os ferimentos de seu filho têm qualquer direito sobre ele, salvarei este infeliz. Com estas palavras partiu cheio de boas intenções para salvar Henry Wharton.

A sentença foi transmitida ao condenado segundo os costumes, e depois de terem dado as instruções necessárias ao oficial encarregado do comando, e de terem mandado um portador com a sentença ao quartel general, os dois outros juízes partiram a cavalo para as suas unidades com o mesmo ar impassível e a fria integridade que tinham mostrado durante toda a instrução do processo.

 

*1. Oficial americano executado como desertor.

 

Depois de ter sido anunciada a sentença do conselho de guerra, o prisioneiro passou algumas horas com a família. Wharton, tendo perdido a pouca coragem e energia que ainda lhe restava, chorava como uma criança o triste destino do filho. Frances, depois de ter voltado a si, experimentava uma agonia junto da qual a morte não teria sido nada. Só "miss" Peyton conservava um raio de esperança ou pelo menos um pouco de calma para pensar no que era possível fazer nestas circunstâncias. Isto não significava que não estivesse muito preocupada com a sorte do sobrinho mas ao seu espírito acorriam motivos de esperança que tinham por fundamento o carácter de Washington.

Ambos tinham nascido na mesma colónia, e embora ela nunca o tivesse visto, porque ele tinha abraçado muito cedo a carreira das armas e porque ela fazia frequentes visitas a sua irmã e passara a prestar uma assistência permanente aos sobrinhos depois da sua morte, conhecia todas as suas virtudes, e sabia que a inflexibilidade firme que era característica da sua vida pública não se transferia para a sua vida Particular. Era conhecido na Virgínia como um homem bom, tão generoso como justo, e não era sem uma espécie de orgulho que "miss" Peyton via o seu conterrâneo no comando das armas e de certa maneira no comando dos destinos da América. Sabia que Henry não era culpado do crime de que era acusado, e com a simplicidade ingénua da sua inocência, não podia conceber distinções legais e as interpretações dos motivos de uma acção que faziam pronunciar uma pena quando não tinha sido cometido um crime.

A sua esperança e a sua confiança iriam,-em breve, extinguir-se. Pelo meio-dia, um regimento que estava acampado na margem do rio veio ocupar um terreno situado em frente da casa que a família Wharton ocupava, e levantou as tendas com a intenção de ficar até ao dia seguinte para tornar mais solene e mais imponente a execução do espião inglês.

Dunwoodie tinha cumprido as ordens que lhe tinham sido dadas, e estava pronto para se ir juntar às tropas que esperavam impacientes o seu regresso a fim de marcharem contra um destacamento inimigo que, como se sabe, avançava lentamente pelas margens do Hudson para cobrir um grupo de forrageadores. Tinha sido acompanhado por alguns dragões da companhia de Lawton, comandados pelo tenente Mason, cujo testemunho se julgara necessário para identificar o preso.

A confissão do capitão Wharton tornara desnecessário este testemunho. O major, para evitar o espectáculo doloroso da tristeza dos amigos de Henry e por temer deixar-se abater pela sua influência, preferiu andar a passear sozinho, dominado pelo mais profundo desgosto, a alguma distância da quinta. Como "miss" Peyton tinha uma certa confiança na clemência de Washington, mas as dúvidas e os receios surgiam a cada instante. As regras do serviço militar eram-lhe familiares, e estava mais habituado a olhar o general sob o aspecto de chefe do exército do que sob o aspecto do seu carácter pessoal.

Havia um exemplo bem terrível e recente que revelava que Washington era capaz de passar por cima da fraqueza de fazer clemência quando o dever o exigia. Enquanto passeava a passos largos pelo pomar, entre a inquietação e a esperança, Mason aproximou-se dele, preparado para montar:

- Pensando que podia ter esquecido as notícias que chegaram esta manhã, senhor, tomei a liberdade de mandar preparar um destacamento - afirmou Mason num tom de indiferença enquanto fazia saltar com o sabre os verbascos que encontrava à passagem.

- Que notícias? - perguntou o major distraído.

- Que John Bull entrou no West Chester com uma coluna de carros, o que nos forçará, se ele os vier encher, a batermos em retirada por essas malditas montanhas à procura de forragens. Estes ingleses afamados estão de tal maneira fechados na ilha de York que quando se atrevem a sair é raro deixarem palha para fazer a cama a uma vaca.

- Onde disse que o mensageiro os tinha deixado? Passou-me completamente de memória.

- Nos montes para lá de Sing Sing - respondeu o tenente muito admirado. - A estrada aí é como um mercado de feno, e as varas de porcos suspiram e lamentam-se ao verem passar os carros com o cereal para Kingsbridge. O sargento às ordens de Jorge Singleton que trouxe esta notícia diz que se tem de pensarnos cavalos e decidir se devem partir sem cavaleiros para terem uma boa refeição porque não se sabe muito bem quando poderão voltar a encher os estômagos. Se deixamos os Ingleses levarem a pilhagem a cabo quando chegarmos ao Natal não temos um bocadinho de toucinho com gordura suficiente para se fritar.

- Poupe-me às parvoíces do sargento de Singleton, senhor Mason - interrompeu Dunwoodie com impaciência. - Ele que aprenda a esperar pelas ordens dos chefes.

- Peço desculpa em seu nome, major Dunwoodie. Ele estava tão enganado como eu. Pensámos que as ordens do general eram para atacar e repelir o inimigo todas as vezes que ele ousasse sair do seu ninho.

- Não se esqueça, tenente Mason - afirmou o major com severidade - que é de mim que o senhor recebe ordens.

- Eu sei, major Dunwoodie, eu sei - respondeu olhando com um ar de reprovação. - E lamento que tenha esquecido que nunca hesitei em obedecer.

-Perdão, Mason, - afirmou Dunwoodie pegando-lhe nas duas mãos - sei que é um oficial tão obediente como bravo. Esqueça este momento de má disposição. Esta questão tão dolorosa... Teve alguma vez um amigo?

- Vamos, vamos, major, perdoe-me e desculpe o meu zelo. Conhecia as ordens e temia que alguém pudesse vir a censurar o meu comandante. Fiquemos. Se alguém ousar pronunciar uma só palavra contra a unidade todos os sabres sairão imediatamente das bainhas. Além disso os Ingleses ainda estão lá para a frente e ainda é longe de Croton a Kingsbridge. Ainda que eles pudessem aqui chegar, vejo claramente que nós teríamos tempo para os perseguir depois de derrotados e antes de eles voltarem ao seu refúgio.

-Mas esse mensageiro não veio do quartel-general!? - perguntou Dunwoodie. - Esta incerteza é insuportável.

- As suas palavras foram ouvidas - afirmou Mason. - Ei-lo que chega e corre como se trouxesse boas notícias. Deus queira que assim seja, porque devo confessar que não gostaria nada de ver este jovem e bravo militar dançar sem ter nada debaixo dos pés.

Dunwoodie quase não ouviu nada desta declaração sentimental porque antes de Mason ter chegado a meio da frase ele já tinha saltado por cima da sebe para ir ter com o mensageiro.

- Que notícias trazes? - perguntou no instante em que o cavalo parou.

- Boas - respondeu o soldado.

E não hesitando em entregar o despacho a um oficial tão conhecido como o major Dunwoodie, deu-lho dizendo:

- Aqui está a carta. Pode lê-la.

Dunwoodie, sem a abrir, correu com o passo lesto da juventude e da alegria para o quarto do prisioneiro.

A sentinela conhecia-o e deixou-o entrar.

- Oh, Dunwoodie - exclamou Frances vendo-o chegar. - Tem o ar de um enviado do céu. Traz notícias de clemência?

- Ei-las Frances; ei-las Henry; ei-las minha querida prima Peyton, - disse rasgando com mão pouco firme o sobrescrito: - eis o despacho dirigido ao capitão da guarda. Oiçam.

Todos ouviram com a maior atenção; todos os corações se tinham enchido de esperança; mas foi para receber um golpe ainda mais doloroso, quando a alegria do rosto de Dunwoodie deu lugar à mais profunda consternação. A carta trazia só a sentença pronunciada contra Henry e por baixo as palavras:

"Aprovado, G. Washington"

 

- Está perdido! Está perdido! - clamava Frances desesperada, abraçada à tia.

- Meu filho! Meu filho! - bradava o pai soluçando. - Encontrarás justiça e misericórdia no céu, se ela já não existe na terra. Que Washington nunca precise da compaixão que recusa à inocência!

- Washington! - repetiu Dunwoodie com uma expressão confundida. - É realmente a letra dele. Esta assinatura sanciona uma sentença terrível!

- Que homem cruel! - exclamou "miss" Peyton.- O hábito do sangue deve-lhe ter alterado o carácter!

- Não diga isso! - interrompeu Dunwoodie. - Não é o homem que age assim é o general do exército. Tenho a certeza e daria a vida para o provar, que esta decisão que se sentiu obrigado a tomar lhe custou muito.

- Como me enganou! - afirmou Frances. - Julgava ver nele o salvador do país: não passa de um tirano sem misericórdia e sem compaixão. Oh! Dunwoodie! Que imagem tão falsa me levou a fazer dele!

- Calma! Minha querida Frances, calma! - exclamou o seu pretendente. - Por amor de Deus não use essa linguagem! Ele é unicamente o guardião da lei.

- Isso é verdade, Dunwoodie - afirmou Henry começando a recompor-se do choque que sofrera, ao ver extinguir-se o último raio de esperança, e levantando-se para se aproximar do pai. - Eu próprio, que vou ser vítima, da sua severidade, não o censuro. Foi-me concedida toda a indulgência que podia pedir e à beira da sepultura não posso ser injusto.

- Num momento como este, com um exemplo tão recente do perigo que a traição pode levar à causa que defende, não me posso surpreender com a severidade inflexível de Washington.

Não me resta mais nada senão preparar-me para a sorte inevitável que me espera. Major Dunwoodie, é a ti que faço o primeiro pedido.

- Fala, Henry, fala.

- Sê um filho para este velho, protege a sua fraqueza, defende-o contra as perseguições a que a minha condenação o pode expor. Não tem muitos amigos entre os que governam actualmente o país: que ele encontre em ti um amigo. Prometes-me?

- Pela minha honra - murmurou Dunwoodie mal podendo falar.

- E esta infeliz - continuou Henry apontando para Sara, que estava sentada a um canto do quarto entregue aos seus tristes sonhos, e corando de indignação - tinha pensado vingá-la, mas vejo que tais ideias são criminosas. Sim, vejo que estava errado. Mas que ela encontre em ti um irmão, Dunwoodie.

- Serei para ela um irmão - respondeu o major soluçando.

- A minha querida tia tem já direitos à tua afeição; não falo nela, mas da minha irmã, da minha querida irmã -disse Henry que segurava a mão de Frances e olhava para ela com uma expressão de enorme afecto fraternal. - Gostaria de ter antes de morrer a consolação de unir a mão dela à tua, e de lhe dar um protector para a sua inocência e para a sua virtude.

Dunwoodie não pôde reprimir o gesto de estender a mão para segurar a que o amigo lhe estendia; mas Frances recuou e foi esconder o rosto, em fogo, no peito da tia:

- Não! Não! Não! Nunca pertencerei a uma pessoa que tenha contribuído para a perda do meu irmão!

Henry olhou para ela com uma ternura enorme e as palavras que então disse todos perceberam que lhe brotavam do coração.

- Então, estou enganado, Dunwoodie. Imaginava que o teu mérito, a tua dedicação à causa que te pareceu mais justa, as tuas atenções para o meu pai quando ele foi preso, a tua amizade por mim, o teu carácter, numa palavra, tinham impressionado a minha irmã.

- É verdade! É verdade! - exclamou Frances corando, mas continuando com o rosto escondido.

- Julgo, meu caro Henry, que não é assunto que nos deva ocupar o tempo numa altura destas.

- Não te esqueças que o meu está contado - respondeu Henry com um sorriso amargo - e ainda tenho muito que fazer.

- Creio - continuou o major muito corado - que "miss" Wharton concebeu certas ideias a meu respeito que tornam desagradável para ela aquilo que lhe propões... ideias que não é possível neste momento corrigir.

- Não! Não! - exclamou Frances com vivacidade. - Está justificado, Dunwoodie; ela dissipou todas as minhas dúvidas pouco antes de morrer.

- Doce e generosa Isabel! - murmurou Dunwoodie num transporte de alegria momentânea. - Todavia, Henry, poupa a tua irmã e poupa-me a mim.

- Mas eu, eu não me posso poupar - retorquiu Henry enquanto afastava com ternura a irmã dos braços da tia. - Numa altura destas,

é lá possível, deixar duas jovens tão boas sem ninguém que as proteja? A casa foi destruída... O desgosto - acrescentou olhando para o pai - levará em breve o último parente... Posso morrer em paz prevendo os perigos a que ficam expostas?

- Esqueceste-te de mim, então! - interpelou-o Jeannette tremendo só de pensar num casamento celebrado nestas circunstâncias.

- Não, minha querida tia, não a esqueci, não a esquecerei até a morte ter apagado todas as minhas recordações, mas não está a pensar no tempo em que vivemos e nos perigos que as rodeiam. A mulher, tão bondosa, a quem esta quinta pertence já mandou procurar um sacerdote para assistir aos meus últimos momentos. Frances, se queres que eu morra em paz... se queres que tenha uma segurança que me permita consagrar ao céu os últimos pensamentos, consente que ele te una a Dunwoodie.

Frances abanou a cabeça e ficou em silêncio.

- Não te peço manifestações de alegria, manifestações de uma felicidade que não sentes, que não possas experimentar daqui a alguns meses; mas aceita ter direito a usares um nome respeitável; dá-lhe o direito incontestável de te proteger.

A irmã voltou a responder-lhe com um gesto negativo.

- Por amor desta infeliz - pediu Henry mostrando-lhe Sara... por amor aos outros... por meu amor... minha irmã!...

- Calma, Henry! Calma ou vais despedaçar-me o coração! - afirmou Frances muito excitada. - Por nada deste mundo pronunciarei neste momento o voto solene que me pedes. Toda a vida me arrependeria de o ter feito.

- Não o amas então? - perguntou o irmão num tom de reprovação. - Nesse caso não insisto mais para que faças uma coisa que vai contra os teus sentimentos.

Frances levou a mão ao rosto para esconder o rubor que o cobria e estendeu a outra a Dunwoodie, dizendo ao irmão:

- Agora estás a ser injusto comigo como o foste ainda há bocadinho contigo mesmo.

- Promete-me então - disse o capitão Wharton depois de uns instantes de reflexão -que quando puderes pensar em mim sem muita amargura, unirás o teu destino ao do meu amigo. Contentar-me-ei com essa promessa.

- Prometo - respondeu Frances retirando a mão que Dunwoodie segurava entre as suas, e que teve a delicadeza de deixar tirar sem a levar aos lábios.

- Muito bem - afirmou Henry. - E agora minha tia, importa-se de me deixar uns instantes a sós com o meu amigo? Tenho umas instruções bastante tristes a dar-lhe, e preferia evitar dar-lhes o desgosto de as ouvirem.

- Ainda há tempo para procurar Washington - declarou a tia com grande dignidade. - Vou eu mesma procurá-lo. Tenho a certeza que ele não se recusará a ouvir uma mulher que nasceu na mesma colónia. Além disso há ligações entre a família dele e a minha.

- E porque não nos havemos de dirigir ao senhor Harper? - perguntou Frances lembrando-se das últimas palavras que este tinha pronunciado antes de deixar Sauterelles.

- Harper! - repetiu Dunwoodie voltando-se para ela surpreendido. - O que estava a dizer do senhor Harper? Conhece-o?

- Tudo isso é inútil - afirmou Henry afastando o amigo. - Frances procura motivos de esperança com toda a ternura de uma irmã. Vai-te embora, minha querida, e deixa-me sozinho com o meu amigo.

Mas Frances notando nos olhos de Dunwoodie uma expressão que a prendia, e depois de ter lutado contra as suas emoções, respondeu:

- Passou dois dias em nossa casa. Tinha acabado de partir quando Henry foi preso.

- E... e... ele conhecia-os?

- Não, - retorquiu Frances sentindo-se mais confiante ao ver o interesse com que o amigo escutava a explicação - ele não nos conhecia. Chegou à noite e pediu para ficar lá em casa para fugir ao mau tempo, tendo ficado até a tempestade passar; não o conhecíamos, mas ele parecia ter-se interessado por Henry, e prometeu-lhe a sua amizade.

- O quê! - exclamou o major - ele viu o seu irmão?

- Evidentemente. Foi ele que o aconselhou a tirar o disfarce.

- Mas - disse Dunwoodie, empalidecendo de preocupação - ele ignorava que era oficial do exército real?

- Sabia - afirmou Jeannette Peyton - e falou-lhe mesmo do perigo que corria.

Dunwoodie pegou na sentença fatal, que, escapando-lhe da mão, tinha caído em cima da mesa, e examinou com cuidado a letra das três palavras escritas em baixo. Passou a-mão pela testa, todos olhavam para ele na mais cruel expectativa, e todos os corações temiam voltarem-se a abrir à esperança, depois de a terem visto afastar-se de forma tão terrível.

- O que disse ele? O que prometeu? - perguntou Dunwoodie com impaciência.

- Disse a Henry que quando ele se encontrasse em perigo se dirigisse a ele e prometeu ser tão hospitaleiro para o filho como o pai fora para ele.

- Quando disse isso sabia que Henry era oficial inglês?

- Evidentemente e era desse perigo que falava.

- Nesse caso - afirmou Dunwoodie mostrando-se muito alegre - estás salvo. Vou salvá-lo; não, Harper não esquecerá a promessa que fez.

- Mas ele tem assim tanto crédito - perguntou Frances- para fazer mudar uma resolução inflexível de Washington?

- Se tem crédito? - exclamou o major com uma emoção irresistível; Greene, Heath, o jovem Hamilton não são nada comparados com Harper. Mas - acrescentou, aproximando-se de Frances e tomando-lhe as mãos com excitação - diga-me mais uma vez: ele fez uma promessa formal?

- Uma promessa solene, Dunwoodie, com todo o conhecimento de causa.

- Fique tranquila - afirmou o major apertando-a um instante contra o coração. - Vou partir e Henry será salvo.

Deixou o quarto sem mais explicações, deixando toda a família mergulhada na mais completa surpresa. Daí a pouco ouviam o galope do cavalo que se afastava.

Depois desta partida brusca do major, os seus amigos começaram a discutir as probabilidades de êxito que o esperavam. O seu tom de confiança tinha feito renascer a esperança no coração dos amigos. Henry era o único que não conseguia comungar deste sentimento; a situação era demasiadamente terrível para a admitir e durante horas foi condenado a experimentar quanto a incerteza da esperança é mais difícil de suportar que a certeza da desgraça.

Não se passava o mesmo com Frances. Com toda a confiança do seu afecto sentia uma segurança inspirada no tom firme de Dunwoodie; não se entregava a dúvidas que não tinha possibilidade de resolver, acreditava na promessa de que tudo era possível ao poder do homem, e, tendo bem presentes as maneiras de Harper e a afabilidade que tinha mostrado, entregava-se a toda a felicidade daquela esperança que voltava a habitar no seu coração.

A alegria de "miss" Peyton era menos expressiva; censurou mais do que uma vez a sobrinha por ceder à alegria sem ter a certeza que não seria enganada. Mas o sorriso involuntário que pairava nos seus lábios indicava que partilhava do sentimento que procurava moderar.

- O quê! Minha querida tia - respondeu Frances depois de ela lhe ter feito uma observação - quer que reprima o prazer que sinto ao pensar que Henry está salvo, quando me disse tantas vezes que é impossível homens como os que governam o nosso país sacrificarem um inocente?

- Sim, estava e estou convencida disso, minha filha; todavia é preciso moderar a alegria como se modera a tristeza.

Frances recordou-se do que Isabel lhe tinha dito ao morrer, e voltando para a tia os olhos cheios de lágrimas de reconhecimento respondeu-lhe:

- Tem razão, minha tia, mas há sentimentos que se recusam a ceder à razão. Ah! veja estes monstros que vieram assistir à morte de um semelhante! É preciso uma evolução neste campo, como se esta vida fosse para eles uma parada militar.

- A vida não é outra coisa para o militar a soldo - afirmou Henry procurando esquecer as preocupações.

- Tu própria, minha querida, olhas para eles como se considerasses uma parada militar uma coisa muito importante - declarou a tia ao reparar que Frances olhava pela janela com muita atenção. A sobrinha não lhe respondeu.

Da janela via o desfiladeiro que tinha seguido na véspera ao atravessar a serra em que vira a misteriosa cabana que estava precisamente diante dela. As encostas eram áridas, pedregosas, com rochedos de aparência impenetrável de entre os quais surgiam castanheiros escuros sem folhas. O sopé da montanha ficava a uma meia milha da quinta, e o objecto que atraía a atenção de Frances era a figura de um homem que surgiu detrás de uma rocha de forma estranha, mas que desapareceu imediatamente. Fez esta manobra várias vezes, como se a sua intenção fosse examinar, sem se deixar ver, os movimentos das tropas na planície, e de verificar a posição que ocupavam.

Apesar da distância que os separava, Frances imaginou imediatamente que este homem era Harvey Birch. Esta impressão era talvez provocada pelo aspecto e pela figura deste indivíduo, e até certo ponto a ideia que tinha quando o tinha visto na serra, ao entrar para a cabana cuja situação era tão estranha; não tinha dúvidas de que era o mesmo homem, embora neste momento não estivesse disforme, facto que atribuíra à mala do bufarinheiro. A sua imaginação encontrava pontos de ligação tão notórios entre Harvey e Harper, tendo em conta o procedimento igualmente misterioso deste último, que mesmo em circunstâncias menos inquietantes da que agora vivia não teria relatado a ninguém as suas suspeitas.

Frances ficou a pensar em silêncio nesta segunda aparição, e esforçava-se por descobrir que espécie de ligação podia haver entre o destino da sua família e este homem extraordinário. Tinha salvo a vida de Sara, quando do incêndio de Sauterelles e nunca se tinha mostrado inimigo dos interesses da família Wharton.

Depois de ter fixado o lugar onde o tinha visto pela última vez na esperança vã de o ver reaparecer, voltou-se para o interior do quarto. Jeannette estava sentada ao lado de Sara que parecia estar a dar alguma atenção ao que se passava, mas sem manifestações de alegria ou de tristeza. - Suponho que neste momento, minha querida Frances, estás bem ao corrente das manobras de um regimento - disse "miss" Peyton à sobrinha, sorrindo. - Em todo o caso essa curiosidade não é nada censurável na esposa de um militar.

- Ainda não sou - respondeu Frances corando até à raiz dos cabelos - e não temos muitos motivos para desejarmos outro casamento na família.

- Frances - clamou o irmão que se levantou e começou a passear pelo quarto muito agitado - não toques de novo nessa corda, peço-te; o meu destino é ainda duvidoso e gostaria de estar em paz com todo o género humano.

- Bem! Todas as dúvidas vão desaparecer - disse Frances correndo para a porta. - Dunwoodie acaba de chegar.

Mal tinha pronunciado estas palavras já a porta estava aberta e o major vinha a entrar. A sua fisionomia não anunciava nem a alegria do triunfo, nem o desgosto da derrota, mas tinha um ar contrariado. Pegou na mão que Frances com todo o afecto do seu coração lhe estendia, mas largando-a deixou-se cair numa cadeira com uma expressão de imensa fadiga.

- Não conseguiste nada - disse Wharton estremecendo, mas de rosto calmo.

- Não viu Harper? - perguntou Frances que empalideceu.

- Não. Segundo parece enquanto eu atravessava o Hudson numa barca ele vinha noutra para esta margem. Ao regressar consegui seguir-Lhe a pista durante algumas milhas, mas acabei por lhe perder o rasto nas montanhas. Voltei para não estarem inquietos, mas regresso esta noite ao acampamento e hei-de trazer um adiamento para a execução da pena de Henry.

- E Washington. Esteve com ele? - perguntou Jeannette. Dunwoodie olhou para ela distraído. Jeannette repetiu a pergunta e ele respondeu-lhe num tom grave e reservado:

- O comandante-chefe tinha deixado o quartel-general.

- Mas, Dunwoodie - interferiu Frances com um novo terror - se não se conseguir encontrar será tarde demais e Harper por si só não nos chega.

Levantou os olhos para o rosto dela e depois de os deixar repousar aí uns instantes, acrescentou pensativo:

- Não me disseram que ele tinha prometido o seu auxílio a Henry?

- É assim realmente, se lho solicitarem e para provar o reconhecimento pela hospitalidade que recebeu em casa de meu pai.

Dunwoodie abanou a cabeça e ficou muito sério.

- Não gosto desta palavra hospitalidade. Parece fria. São precisas razões mais fortes para influenciarem Harper e temo que haja aí qualquer equívoco. Repita-me o que se passou.

Frances apressou-se a satisfazer o seu pedido. Falou-lhe especialmente da maneira como Harper se tinha apresentado em Sauterelles,

do acolhimento que tinha recebido e todos os acontecimentos registados então, com tanta fidelidade quanto a sua memória lhe permitia. Quando ela se referiu à conversa entre o senhor Wharton e o seu hóspede, o major sorriu, mas não disse nada.

Referiu-se depois à chegada de Henry e a todos os incidentes do segundo dia. Salientou a forma como Harper tinha aconselhado Henry a tirar o disfarce, e falou com uma exactidão maravilhosa das observações que tinha feito sobre os perigos a que o irmão se podia expor. Citou mesmo as palavras que tinha dirigido a Henry, dizendo-lhe que se sentia feliz pela visita e pelo motivo que a tinha ocasionado. Falou, com todo o ardor da juventude, da solicitude que ele tinha testemunhado e relatou em pormenor a despedida.

Dunwoodie escutava-a com toda a atenção. À medida que a narração prosseguia o seu rosto tomava um ar mais satisfeito. Sorriu quando ela falou da bondade paternal com que ele lhe tinha falado, e logo que ela terminou o relato dos acontecimentos, exclamou com alegria:

- Estamos salvos! Estamos salvos! Mas foi interrompido como se verá no capítulo seguinte.

 

Num país povoado por vítimas da perseguição que abandonaram os seus lares por princípios de consciência, não se dispensam, quando as circunstâncias o permitem, solenidades religiosas quando da morte de um cristão. A proprietária da quinta em que Henry estava detido observava com o maior rigor todas as práticas comuns na Igreja a que pertencia e, tendo ela própria tido consciência da sua indignidade através das exortações do ministro da paróquia vizinha, considerou que as suas santas palavras seriam úteis para preencher o curto espaço de tempo que Henry Wharton tinha para viver, as quais o poderiam ajudar a entrar pela porta da salvação. Não era que a boa mulher ignorasse a doutrina da religião que professava para julgar que o auxílio de um homem era indispensável para abrir as portas do céu, mas havia já tanto tempo que escutava as homilias do pároco que estava penetrada, sem o saber, de uma confiança prática nos meios de obter o que não podia vir da própria divindade, como a fé lhe devia ter ensinado. Via a morte com terror, e quando soube que o prisioneiro fora condenado, mandou César, no melhor cavalo do marido, procurar este director espiritual. Tomou a iniciativa sem consultar Henry ou os seus parentes, e só quando precisaram dos serviços do negro tiveram conhecimento do motivo da sua ausência.

O jovem oficial experimentou primeiro uma espécie de repugnância invencível em admitir a seu lado esse consolador espiritual; mas à medida que o interesse pelas coisas do mundo começa a diminuir, os hábitos e as preocupações deixam de ter a sua influência, agradeceu em silêncio os cuidados da boa mulher e dispôs-se a aproveitá-los.

O negro voltava daí a pouco da sua missão, e embora o seu relato fosse desconexo e pouco inteligível, concluiu-se que o reverendo devia vir lá mais para o fim do dia. A interrupção de que falámos no capítulo anterior foi provocada pela entrada da mulher no quarto que precedia o de Henry. A pedido de Dunwoodie, tinham sido dadas ordens à sentinela para deixar entrar a qualquer hora os familiares do preso, e César, como estava ao serviço deles, tinha também autorização para entrar; mas o soldado tinha instruções rigorosas para não deixar entrar mais ninguém, sem uma ordem especial, que só devia ser concedida depois de um exame pormenorizado.

Dunwoodie estava incluído no número dos parentes de Henry, e tinha dado a sua palavra em nome de todos de que não fariam qualquer tentativa para conseguirem a fuga. Travou-se um breve diálogo entre a mulher e a sentinela que tinha entreaberto a porta.

- Quer privar da consolação da religião um dos seus semelhantes prestes a morrer? - perguntava a mulher com um zelo ardente. - Quer fazer entrar uma alma na fornalha de chamas quando chega um sacerdote para o guiar pela vereda estreita e direita?

- Escute, boa mulher - disse o sargento repelindo-a com doçura - não estou interessado em que as minhas costas sirvam de escada para conduzir ao céu. Tenho uma obrigação, e faria uma linda figura perante o piquete, se lhe desobedecesse. Vá pedir autorização ao tenente Mason, e traga depois toda a comunidade que lhe apetecer. Ainda nem há uma hora que substituímos a infantaria e não estou nada interessado que digam que conhecemos tão bem os nossos deveres como os milicianos.

- Deixe entrar a mulher - disse Dunwoodie ao chegar à porta e ao reparar pela primeira vez que a guarda fora entregue à sua unidade.

O sargento fez continência e retirou-se; a sentinela apresentou armas ao major e a mulher entrou no quarto.

- Está lá em baixo um ministro de Deus que vem para suavizar a partida desta alma, em vez do reverendo M..., que não pode vir porque tem de ir enterrar o velho M...

- Ele que suba - disse Henry com impaciência. - Mas vão deixá-lo entrar? Não gostaria que um estranho, um amigo do nosso reverendo, recebesse uma afronta à porta.

Todos os olhos se voltaram para Dunwoodie, que olhando para o relógio disse algumas palavras em voz baixa a Henry, e saiu do quarto, seguido por Frances. O tema deste diálogo foi o desejo manifestado pelo preso de conversar com um pastor anglicano que o major prometeu mandar de Fishkill, por onde devia passar para ir ao encontro de Harper. Mason apareceu daí a pouco à porta; a dona da quinta voltou a fazer-lhe o pedido, e ele acedeu sem dificuldade, pelo que ela saiu para ir buscar o pároco.

O indivíduo que acabava de ser introduzido no quarto precedido por César, que tinha uma expressão muito grave, e seguido pela mulher, que parecia estar muito interessada nesta entrevista, era um homem de meia idade. Não era muito alto embora a sua magreza extrema o fizesse parecer mais alto do que era na realidade.

O rosto duro e severo parecia impassível e nenhum dos seus músculos parecia ter movimento. O prazer e a alegria pareciam estranhos aos seus traços austeros que anunciavam o ódio aos vícios do género humano. As sobrancelhas escuras e grossas davam uma expressão ainda mais dura aos olhos que estavam escondidos por óculos de lentes verdes enormes que davam ao seu olhar uma expressão mais ameaçadora do que de bondade encorajadora que, formando a essência da nossa santa religião, deveria caracterizar os seus sacerdotes. Não havia nada nele que falasse de caridade, mas tudo anunciava arrebatamento e fanatismo.

Mechas compridas de cabelos lisos e pretos que começavam a ficar grisalhos, separavam-se sobre a testa e caíam sobre o pescoço cobrindo uma parte da face. Este penteado, que a graça não havia ajudado, tinha a completá-lo um chapéu enorme de três bicos, que formavam um triângulo irregular, e que trazia enterrado na cabeça.

Trazia um fato preto a que o tempo tinha dado uma cor de ferrugem, e meias de lã a condizer. Os sapatos, semi-encobertos por fivelas de metal prateado, não estavam engraxados.

Avançou pelo quarto com um ar de dignidade, fez uma breve inclinação de cabeça, sentou-se na cadeira que César lhe indicava e ficou em silêncio. Passaram-se alguns minutos assim porque ninguém parecia disposto a romper o silêncio. Henry sentia pelo pastor uma repugnância que considerava inútil dominar e o sacerdote dava de vez em quando suspiros e gemidos que pareciam ameaçar dissolver a união da alma com a argila terrestre e grosseira onde habitava.

Durante esta cena que era realmente uma preparação para a morte, Wharton, dominado por um sentimento semelhante ao do filho, saiu da sala e levou Sara consigo. O pastor viu-o partir com desdém e desprezo e começou a cantar um salmo com toda a riqueza do acento nasal que distingue a salmodia dos Estados da região oriental da América.

- César - disse "miss" Peyton - oferece refresco a este senhor. Depois da viagem que acaba de fazer deve saber-lhe bem.

- A minha força não está nas coisas deste mundo - respondeu o pastor com uma voz cavernosa e sepulcral. - Já fui chamado hoje três vezes para o serviço do meu Mestre e não me senti desfalecer. Todavia, é verdade que esta carne perecível exige sustento, e o trabalhador merece salário.

Abrindo os maxilares enormes para deitar fora uma bola de tabaco de mascar de tamanho proporcional, serviu-se de uma boa quantidade da aguardente que lhe apresentava e bebeu com uma facilidade bastante mundana.

- Temo, senhor - afirmou "miss" Peyton, a boa Jeannette - que a fadiga não lhe permita desempenhar-se dos deveres que a caridade o levou a aceitar.

- Mulher! - exclamou com uma energia fulminante. - Quem me viu já recuar no momento de cumprir os meus deveres? Não julgue para não ser julgada e não imagine que os olhos dos mortais podem penetrar nas intenções da divindade.

- Não pretendo julgar nem as intenções dos meus semelhantes e muito menos as da divindade - respondeu Jeannette com doçura, embora descontente com os modos deste desconhecido.

- Está bem, mulher, está bem - retorquiu o pastor abanando a cabeça com um ar de desprezo e orgulho. - A humildade convém às pessoas do teu sexo e nesse estado de perdição, porque a fraqueza conduz-te à ruína.

Surpreendida com uma atitude tão extraordinária, mas cedendo ao hábito que nos leva a falar com respeito de tudo o que se relaciona com a religião, mesmo quando faríamos melhor se estivéssemos calados, respondeu com brandura:

- Há um poder que tudo alcança e se digna amparar-nos quando o imploramos com confiança e humildade.

O homem olhou para ela com uma expressão de descontentamento e afectando humildade disse-lhe num tom bastante antipático:

- Os que pedem misericórdia não serão atendidos. Não compete aos homens julgarem os caminhos da Providência porque são muitos os chamados mas poucos os escolhidos. É mais fácil falar de humildade do que ser humilde. Verme mesquinho, és assim tão humilde para desejares glorificar a Deus para a tua própria condenação? Se não testemunhas o amor que lhe deves, vales mais do que os publicanos e os fariseus.

Um fanatismo tão rude era tão pouco comum na América, que "miss" Peyton julgou por instantes que este reverendo não estava bom da cabeça. Mas lembrando-se do pastor que o tinha enviado, que era um homem conhecido e gozava de boa reputação, afastou esta ideia e contentou-se em responder:

- Posso estar enganada quando penso que as fontes da misericórdia divina estão ao alcance de todos os homens, mas esta doutrina é tão consoladora que me sentiria muito penalizada se tivesse de a abandonar.

- Só há misericórdia para os eleitos - declarou o sacerdote com violência - e tu estás no vale das sombras da morte. Não pertences àquela religião que só se entrega a cerimónias vãs e fúteis, e que os nossos tiranos queriam impor aqui como o fizeram com as leis sobre a madeira e o chá? Responde-me e pensa que Deus está a ouvir a tua resposta: não pertences a essa seita ímpia e idólatra?

- Sigo a religião dos meus pais - respondeu Jeannette fazendo sinal a Henry para estar calado - e não tenho outro ídolo além da enfermidade da natureza humana.

- Sim, sim, eu sei. Ouves esses homens de carne e osso que só sabem pregar com um livro na mão. Era assim que São Paulo convertia os gentios?

- A minha presença aqui é inútil - afirmou com frieza "miss" Peyton. - Vou deixá-lo com o meu sobrinho pois quero rezar sozinha as orações que gostaria de juntar às suas.

Com estas palavras retirou-se, seguida pela dona da quinta que estava tão surpreendida como satisfeita com o zelo do homem que acabava de conhecer. Embora estivesse firmemente convencida que Jeannette Peyton, assim como todos os que partilhavam dos ensinamentos da Igreja anglicana, estavam no caminho da perdição, considerou que não devia dizer-lhe estas verdades cara a cara. Henry tinha conseguido, não sem dificuldade, dominar a indignação que lhe tinha inspirado este ataque tão pouco merecido contra uma tia cuja bondade era inexcedível, mas logo que ficou sozinho com o pastor e César clamou irado:

- Posso garantir-lhe, senhor, que ao receber a visita de um ministro de Deus, contava encontrar nele um cristão, um homem que, sentindo a sua própria fraqueza, tivesse compaixão pela dos outros. Feriu o espírito de bondade daquela mulher extraordinária e não estou disposto a rezar com um homem tão intolerante.

O pastor tinha voltado a cabeça para seguir, com um olhar de piedade desdenhosa, "miss" Peyton. Empertigou-se sem mudar de posição, como se considerasse uma coisa indigna da sua atenção o que o prisioneiro acabava de dizer. Mas uma outra voz afirmou:

- Há muitas mulheres que teriam tido um ataque se tivessem ouvido uma linguagem destas, mas conseguiu-se o que se pretendia.

- Quem é que está a falar? - perguntou Henry olhando em volta com surpresa...

- Sou eu, capitão Wharton - respondeu Harvey Birch que levantava os óculos para mostrar os seus olhos vivos que brilhavam sob umas sobrancelhas falsas.

- Deus do Céu! Harvey!

- Silêncio! É um nome que não se deve pronunciar e sobretudo no coração do exército americano. - Olhou em volta emocionado, mas não com a emoção que o temor cobarde inspira. - É um nome que tem mil acordes - acrescentou - e se fosse descoberto não tinha grandes probabilidades de fugir uma vez mais. Mas não podia estar em paz sabendo que um inocente ia morrer como um cão, quando poderia salvá-lo.

- Se corre riscos tão grandes - disse Henry com um ardor generoso - vá-se embora como veio e abandone-me ao meu destino. Dunwoodie faz neste momento diligências a meu favor, e se ele encontrar esta noite Harper, tenho a certeza que estou salvo.

- Harper! - repetiu o bufarinheiro ficando com a mão suspensa no ar porque se preparava para pôr os óculos. - Que sabe acerca de Harper? O que o faz crer que ele lhe vai fazer um favor?

- Porque ele me prometeu. Não se lembra que o encontrei em casa de meu pai? Prometeu-me a sua protecção sem que eu lha pedisse.

- Mas conhece-o? Quer dizer, que razão o leva a crer que ele lhe possa fazer um favor e que esteja disposto a cumprir a promessa que lhe fez?

- A natureza seria culpada de uma grave fraude se tivesse dado a um homem falso e velhaco uma expressão de honra e de franqueza. Além disso Dunwoodie tem amigos poderosos no exército rebelde. É melhor pois que eu aguarde a solução da situação em que me encontro do que o senhor estar exposto a uma morte certa se o descobrirem.

- Capitão Wharton - afirmou Birch olhando em volta de si com a prudência habitual, e falando com muita gravidade- nem Harper nem Dunwoodie, nem ninguém neste mundo o pode salvar, excepto eu. Se eu não conseguir tirá-lo daqui dentro de uma hora, amanhã de manhã subirá ao cadafalso como se fosse um assassino. Sim, são estas as leis deles. Os que na guerra pilham e matam são honrados e recompensados, os que servem o seu país fiel e honestamente como espiões vivem desprezados, ou são enforcados sem misericórdia.

- Senhor Birch - interrompeu Wharton indignado - esquece-se que nunca desempenhei o desprezível papel de espião. Sabe bem que é uma acusação falsa e caluniosa.

O sangue subiu ao rosto naturalmente pálido do vendedor ambulante, mas num momento o seu rosto tomou a expressão habitual.

- O que lhe disse é suficiente - respondeu. - Encontrei César esta manhã, e combinei com ele o plano que o há-de salvar, se for executado como desejo. Sem isto, repito, não há qualquer poder sobre a terra que o possa salvar, nem mesmo Washington.

- Submeto-me - respondeu Henry cedendo ao tom peremptório do bufarinheiro, cujas palavras lhe inspiravam novos receios.

Harvey fez-lhe sinal para guardar silêncio e dirigindo-se para a porta abriu-a com o ar formal e inflexível que tinha quando entrou no quarto.

- Amigo - disse à sentinela - não deixes entrar ninguém. Vamos rezar e queremos estar sozinhos.

- Estou convencido que não há ninguém que esteja interessado em interrompê-los - retorquiu o dragão com um sorriso quase trocista. - Mas se aparecer alguma pessoa da família do prisioneiro não tenho o direito de o impedir de entrar. Tenho as minhas ordens e devo executá-las quer o inglês vá ou não para o céu.

- Pecador atrevido! - bradou o pretenso ministro de Deus - não tens o temor de Deus diante dos olhos? É como te digo, se tens um bocadinho de medo do castigo que espera os ímpios no último dia não deixes entrar nenhum dos membros dessa comunhão idólatra para que não venha perturbar os justos nas suas orações.

- Ah! Ah! Ah! que nobre comandante o senhor seria para o sargento Hollister! Havia de o fazer ficar mudo com a sua pregação. Oiça: só quero pedir-lhe que não faça as suas orações muito alto para que os meus camaradas possam ouvir a trombeta, porque senão seria culpado se um ou mais daqueles pobres diabos não recebessem a sua ração de grogue, por não se terem apresentado na parada esta noite. Se querem estar sozinhos não têm uma faca para colocar entre a chapa-testa e a tranqueta? É precisa uma companhia de dragões para guardar o vosso conciliábulo?

Harvey fechou imediatamente a porta e aproveitando o conselho do dragão, tomou a precaução que ele lhe tinha indicado.

- Está a passar os limites da prudência - afirmou Henry que temia ser descoberto de um momento para o outro. - O seu zelo é exagerado.

- Isso seria verdade se se tratasse de soldados de infantaria, desses milicianos das províncias do oriente - respondeu Harvey esvaziando um saco que César lhe tinha entregue. - Mas estes dragões da Virgínia são uns patifes a quem é preciso falar assim. Aqui não há meias medidas, capitão Wharton. Mas vamos, um bocado de tecido preto para cobrir a cara; é preciso que o senhor e o servo troquem as suas posições por instantes.

- Eu parecer-me que ele não ser nada parecido - disse César olhando para o patrão com descontentamento.

- Espera que eu ponha a lã. César - afirmou o bufarinheiro com o ar de sarcasmo que às vezes tomava.

- Estar cada vez pior - acrescentou o negro ainda descontente. - Ter uma cabeça como um carneiro preto e dois lábios! Nunca vi uma coisa assim.

Tudo o que era necessário para o disfarce do capitão Wharton tinha sido preparado com o maior cuidado, e quando tudo estava colocado no seu lugar com a habilidade e a inteligência do vendedor ambulante, a metamorfose verificada era tão perfeita que só uma atenção deveras minuciosa poderia descobrir alguma coisa. A máscara tinha os traços e a cor da raça africana, e a peruca feita de lã preta e branca era tão perfeita, que o próprio César acabou por lhe dar a sua aprovação.

- Em todo o exército americano, capitão- Wharton - afirmou Harvey satisfeito ao concluir a sua obra - só há um homem que seria capaz de descobrir isto, mas, felizmente, não está aqui neste momento.

- E quem é esse homem?

- O que o prendeu. É capaz de descobrir pele branca por baixo da pele de um cavalo. Mas dispam-se; é preciso que troquem as roupas da cabeça aos pés.

César, que tinha recebido instruções pormenorizadas no encontro que tivera, de manhã, com o bufarinheiro, começou imediatamente a desembaraçar-se do seu fato grosseiro. O patrão pegou neles, e dispôs-se a vesti-los, sem conseguir esconder inteiramente a repulsa que a troca lhe inspirava.

Havia nas maneiras de Harvey uma mistura singular de inquietação e bom humor que tinha a sua origem no conhecimento que tinha do perigo e nos pormenores grotescos com que estava ocupado, bem como na indiferença produzida pelo longo hábito de desafiar a morte.

- Vamos, capitão - afirmou pegando num bocado de lã para meter nas meias de César, que o prisioneiro já tinha calçado - é preciso um certo critério para dar a estas pernas uma forma conveniente. Vai mostrá-las quando montar e estes dragões do sul têm bons olhos. Se vissem uma perna tão bem torneada perceberiam logo que nunca pertenceu à carcaça de um negro.

- Valha-me Deus! - exclamou César rindo-se com a boca aberta de orelha a orelha - as calças do patrão ficam-me a matar!

- Com excepção das pernas - afirmou o bufarinheiro ocupado ainda com Henry. - Vista este casaco, capitão. Realmente podia ir a um baile de máscaras. E tu, César, põe esta peruca bem empoada. Toma bem atenção porque quando alguém abrir a porta deves estar voltado para a janela e não pronuncies uma única palavra porque senão estragas tudo.

- Harvey estar convencido que um homem de cor não ter uma língua como os outros- resmungou César tomando a posição que lhe tinham indicado.

Tudo estava pronto, era só agir. Todavia, o prudente bufarinheiro repetiu todas as instruções aos dois actores desta cena. Recomendou ao capitão para esquecer o seu garbo militar, para se curvar e para imitar o melhor possível o andar do humilde servidor de seu pai. Lembrou mais uma vez a César que devia ser discreto e sobretudo que devia guardar silêncio. Terminados todos estes preparativos, abriu a porta e chamou com voz sonora a sentinela que se tinha retirado para a outra extremidade do quarto em que fora montada a guarda, para não perturbar o conforto espiritual que sentia pertencer a outro.

- Chama a dona da casa - disse Harvey num tom solene que convinha à dignidade do cargo que supostamente desempenhava - ela que venha sozinha. O condenado está entregue às suas orações e não deve ser perturbado.

César baixou a cabeça e apoiou a testa nas mãos, tapadas com luvas, e o soldado que olhou para dentro do quarto, julgou ver o preso entregue a profunda meditação. Olhando com desprezo para o ministro de Deus, chamou aos gritos a mulher cujo zelo religioso a fez acorrer imediatamente, na esperança de entrar a tempo de ouvir as palavras de arrependimento de um pecador antes de morrer.

- Minha irmã - disse Harvey com o tom autoritário de um mestre - tens um livro intitulado: Os últimos momentos do criminoso cristão, ou Pensamentos sobre a eternidade, para uso dos que vão morrer de morte violenta?

- Nunca ouvi falar desse livro - respondeu a mulher surpreendida.

- É muito provável, há muitas pessoas que não o conhecem. Este pobre penitente não pode morrer em paz sem as consolações que esse livro lhe traria. Uma hora de leitura desse livro vale os sermões de toda uma vida.

- Que tesoiro! Onde é que foi impresso?

- Foi composto em grego em Genebra, e traduzido e impresso em Boston. É um livro, mulher, que devia estar nas mãos de todos os cristãos e particularmente dos que vão morrer no cadafalso. Manda selar um cavalo para este negro que irá comigo a casa do meu irmão o sacerdote de..., para o prisioneiro ainda receber essa obra a tempo. Meu irmão, que calma começa a dominar o teu espírito; estás agora no caminho glorioso da salvação.

César sentia-se pouco à vontade, mas conservava a presença de espírito necessária para continuar a esconder o rosto nas mãos. A mulher partiu para executar as ordens do pretenso ministro, e os três conspiradores ficaram sozinhos.

- Está tudo a correr bem - afirmou o bufarinheiro. - Neste momento a tarefa mais difícil é convencer o oficial que comanda a guarda. É o tenente de Lawton, e o capitão transmitiu-lhe qualquer coisa da sua perspicácia em questões deste género.

- Capitão Wharton - acrescentou com altivez - pense que chegou o momento em que tudo vai depender do seu sangue-frio.

- Quanto a mim, meu bravo amigo - respondeu Henry - a minha sorte não pode ser pior, mas farei tudo o que me for possível para não o comprometer.

- E eu posso estar mais comprometido, posso ser mais perseguido do que já sou? - perguntou Harvey com uma expressão alucinada que às vezes se lhe notava. - Mas prometi-LHE salvá-lo, e nunca faltei à minha palavra.

- A quem? - perguntou Henry com um movimento de curiosidade.

- A ninguém - respondeu o bufarinheiro.

A sentinela comunicou-lhes que os dois cavalos já estavam à porta. Harvey olhou de lado para Wharton a fim de lhe fazer sinal para o seguir, e desceu à frente, recomendando à dona da quinta para deixar o condenado sozinho a digerir o maná salutar que ele acabava de lhe dar.

As observações sobre o estranho carácter do ministro de Deus tinham corrido céleres e tinham chegado até ao corpo da guarda. Assim quando Harvey e Wharton iam a sair da quinta, encontraram diante do portão uma dúzia de dragões que passavam indolentes por ali na esperança de se divertirem um bocado à custa do pastor fanático. Começaram por fingir que estavam a admirar os dois cavalos.

- Tem um bom corcel - disse o chefe do grupo a Harvey - mas tem pouca carne a cobrir os ossos. É sem dúvida por causa das fadigas que a sua profissão lhe dá.

- A minha profissão pode ser laboriosa tanto para mim como para este animal tão fiel, mas não vem longe o dia do ajuste de contas, e então receberei a recompensa dos meus trabalhos e dos meus serviços- afirmou Birch pondo o pé no estribo para montar.

- Nesse caso - interveio outro - o senhor trabalha como nós nos batemos, quer dizer, em troca de um salário?

- Sem dúvida. Quem trabalha não merece o seu salário?

- Bem, como temos uns momentos de descanso, era bom que nos fizesse um pequeno sermão. Somos uma caterva de ímpios: quem sabe se não nos conseguiria converter? Vamos, suba para este bocado de madeira e escolha o texto que quiser.

Os dragões reuniram-se em volta do bufarinheiro com um ar divertido, e este olhando de forma significativa para o capitão que eles tinham deixado montar, respondeu com calma:

- De boa vontade. É o meu dever. César, aproveita e vai andando para ires buscar o livro de que te falei porque senão faz-se tarde. As horas do condenado estão contadas.

- Sim, sim, César, vai-te embora. Vai buscar o livro - bradaram uma meia dúzia de vozes. Todos os dragões se tinham reunido em volta do pretenso pastor dispostos a entrar com ele.

Harvey temia interiormente que os soldados lhe mexessem no fato com pouca cerimónia, ou que a peruca ou o chapéu saíssem do seu lugar, acidente que deitaria por terra a sua empresa. Decidiu pois aceder de boa vontade ao seu pedido. Subindo para o tronco, tossiu duas ou três vezes. Olhou de soslaio para o capitão que se punha em movimento e começou:

- Chamo a vossa atenção, meus irmãos, para dois versículos do livro segundo de Samuel onde se encontram as seguintes palavras: "E o rei cantou a seguinte lamentação chorando: Abner devia morrer como morrem os insensatos? Tuas mãos não estavam algemadas, nem presos a correntes os teus pés. Caíste como se cai nas mãos de celerados. E o povo repetindo o mesmo, chorou sobre ele."

- César, volto a dizer-te, vai adiante e procura o livro. O espírito do teu patrão sofre por não o ter.

- Que passagem excelente! - exclamaram os dragões. - Continue! Continue. O "bola de neve" pode ficar. Precisa tanto de ouvir boas palavras como nós.

- Muito bem, meus marotos! O que estão a fazer? - perguntou o tenente Mason que voltava de um pequeno passeio que tinha feito para se rir à custa de um regimento de milicianos que estava a fazer exercícios. Toca a andar, e só quero encontrar um cavalo que não esteja bem limpo ou não tenha boa cama, quando fizer a ronda!

O som da voz do oficial foi como um talismã e nenhum pregador poderia desejar uma assembleia mais silenciosa embora talvez a pudesse desejar mais numerosa. Mal Mason acabara de falar e já Harvey não tinha ao pé de si senão o representante de César.

O bufarinheiro aproveitou para montar, mas para desempenhar como devia ser o seu papel, era preciso executar todos os movimentos com gravidade e ainda porque a observação do dragão sobre a magreza do cavalo era bastante acertada, e ele bem via por ali uma dúzia de excelentes cavalos selados e aparelhados, preparados para receberem os seus cavaleiros.

- Bem! - disse Mason a Harvey - pôs as rédeas ao pescoço daquele pobre diabo que está lá em cima? Podemos deixá-lo em segurança na estrada para o outro mundo?

- O espírito maligno inspira os teus discursos, homem profano - respondeu o falso ministro de Deus juntando as mãos e erguendo-as ao céu com um santo horror -, vou-me embora daqui como Daniel depois de ter sido lançado na fossa dos leões.

- Parte, hipócrita! Vai-te embora miserável cantor de salmos, patife disfarçado! - disse Mason num tom de desprezo. - Pela vida de Washington! Um soldado corajoso não pode esconder a sua indignação ao ver estes animais de rapina, estes animais vorazes, devastar um país pelo qual derrama o seu sangue! Se te apanhasse na minha casa da Virgínia ensinava-te outro ofício: mandava-te plantar tabaco.

- Sim, parto sacudindo o pó dos sapatos porque não há nada neste antro impuro que possa manchar o fato do justo.

- E despacha-te porque senão sou eu que te sacudo o pó do fato. Um patife que acha por bem fazer sermões aos meus soldados! É o tolo do Hollister que lhes mete o diabo no corpo com exorcismos. Bem! Bem! Negro, onde é que vais em tão boa companhia.

- Vai comigo - disse Harvey apressando-se a responder por Henry - para trazer ao patrão um livro que lhe abrirá o caminho do céu, e que lhe dará uma alma tão branca como este negro é preto. Quer privar um homem que vai morrer das consolações da religião?

- Oh! não, não. O pobre diabo! Lamento-o do fundo do coração!

Uma das tias dele ofereceu-me um almoço excelente. Mas agora que o visitaste, senhor Apocalipse, e que ele pode morrer em paz com a sua consciência, não apareças mais aqui, se tens algum amor à pele que te cobre o esqueleto.

- Não procuro a companhia dos ímpios e dos blasfemos- retorquiu Birch, seguido do pretenso César, com um ar de gravidade clerical. - Parto deixando atrás de mim o que será a tua condenação e levo o que é a alegria e a consolação da minha alma.

- Vai diabo! - disse Mason com um suspiro de desprezo. O patife monta como um pau, e as pernas parecem os bicos do chapéu. Gostaria bem de o encontrar nestas montanhas onde as leis não são tão severas, eu lhe...

- Cabo da guarda! Cabo da guarda! - gritou a sentinela que estava à porta do quarto de Henry. - Cabo da guarda! Cabo da guarda!

O cabo subiu a correr as escadas estreitas que conduziam ao quarto do preso e perguntou à sentinela porque gritava assim.

O soldado estava de pé diante da porta entreaberta, e olhava com um ar de suspeita o suposto oficial inglês. Vendo chegar o tenente que tinha seguido o cabo, recuou respeitosamente, e depois de Mason lhe ter feito a mesma pergunta, respondeu pensativo e embaraçado:

- Não sei o que é, senhor, mas o preso tem um aspecto singular. Desde que o pastor partiu que lhe acho qualquer coisa diferente. Todavia - acrescentou olhando com atenção por cima do ombro do oficial - é ele: repare na cabeça empoada; repare na costura que lhe fizeram na manga da farda depois da nossa última escaramuça com o inimigo.

- E fazes todo este barulho porque duvidas que seja realmente o preso? E que diabo queres tu que seja, palerma?

- Se não é ele, não sei quem poderá ser, mas se é ele, está mais gordo e mais baixo. E como pode ver, senhor, treme da cabeça aos pés como se tivesse febre.

Tudo isto era verdade. César ouvia alarmado esta curta conversa, e depois de se ter congratulado por ter contribuído para a fuga do patrão, os seus pensamentos começaram muito naturalmente a concentrar-se nas consequências que ela podia ter para si próprio. O silêncio que se seguiu às observações do militar não contribuiu em nada para o ajudar a recuperar todas as faculdades; o tenente Mason observava com os seus próprios olhos a suspeita personagem, e César que não o ignorava, porque o tinha verificado com um rápido olhar de soslaio por um intervalo que tinha deixado entre o braço e o corpo.

O capitão Lawton teria descoberto a fraude num instante, mas Mason não tinha o poder de penetração do seu superior. Ao fim de alguns momentos voltou-se para o soldado com um ar desdenhoso, e disse a meia voz:

- Foi esse anabaptista, esse quaker, esse metodista, esse miserável cantor de salmos que lhe deu a volta ao espírito de tanto lhe falar no fogo eterno.

Vou conversar um bocadinho com ele, uma conversa razoável fá-lo-á voltar ao seu estado natural.

- Já tenho ouvido dizer - afirmou o dragão abrindo os olhos como se lhe fossem saltar das órbitas - que o medo pode fazer mudar a cor dos cabelos, que os cabelos pretos podem ficar brancos, mas desta vez o que mudou foi a pele do capitão do exército real que passou de branca para preta.

Aconteceu que César não tendo ouvido o que Mason tinha dito em voz baixa, e amedrontado por tudo o que se tinha passado, tinha posto, imprudentemente, a peruca por cima de uma das orelhas para ouvir melhor, sem pensar que a cor da pele o trairia. A sentinela que não desviava os olhos do preso, tinha reparado neste movimento.

A atenção de Mason foi atraída para o mesmo objecto, e esquecendo toda a delicadeza que deve merecer um oficial nesta situação, ou melhor não pensando senão nas críticas que lhe poderiam vir a fazer, atravessou o quarto e deitou as mãos ao pescoço do africano apavorado.

César ao ouvir referir a cor da pele, julgou que tudo estava descoberto, e quando as pesadas botas do tenente fizeram ranger o chão, levantou-se precipitadamente e foi refugiar-se no canto mais afastado do quarto.

- Quem és tu? - perguntou Mason batendo-lhe com a cabeça contra a parede. - Que diabo és tu? Onde está o oficial inglês? Fala, com mil raios! Responde-me, miserável, ou faço-te subir à forca preparada para o espião.

César mantinha-se firme. Nem as ameaças, nem as agressões lhe conseguiram arrancar uma palavra. Por fim o tenente mudou a táctica de ataque, e por transição bastante natural, levantou a bota e fez sentir o seu peso numa perna de César. Atingiu o negro numa parte sensível, e nem o coração mais endurecido poderia exigir mais resistência. Sem mais paciência gritou:

- Oh, patrão! Julgar que eu não sentir?

- Por Deus! - exclamou Mason. - É o velho negro! Miserável! Onde está o teu patrão? Quem é aquele malvado pastor?

E dizendo estas palavras colocou o pé numa posição como se fosse desferir um novo golpe. Todavia, César pediu-lhe clemência, em altos berros, prometendo-lhe dizer tudo o que sabia.

- Quem era o reverendo? - perguntou Mason levantando o pé numa atitude ameaçadora.

- Harvey! Harvey! - gritou César que levantava alternadamente as pernas, conforme as sentia ameaçadas, executando assim uma espécie de dança.

- Harvey! Quem? Cão preto! - gritou o tenente impaciente dando o pontapé que a sua vingança ameaçava.

- Harvey Birch! - respondeu César caindo de joelhos com lágrimas grossas deslizando-lhe pelo rosto brilhante.

- Harvey Birch - repetiu Mason que empurrou o negro com tal violência que o fez cair. E descendo a escada a correr gritava: - Às armas! Às armas! Cinquenta guinéus pela vida do bufarinheiro ou do espião! Luta sem quartel a um e outro! A cavalo! Às armas! A cavalo!

Durante o tumulto ocasionado pela concentração dos dragões que se precipitavam em desordem para os cavalos, César levantou-se e começou a apalpar-se para se assegurar que não estava ferido. Felizmente para ele caíra bem e a queda não tinha sido seguida de qualquer acidente grave.

 

O caminho que o bufarinheiro e o capitão inglês tinham de seguir para chegar aos rochedos onde estariam ao abrigo de toda a perseguição estendia-se em campo aberto cerca de meia milha para lá do portão da quinta que tinha sido até agora a prisão de Henry. Era uma bela planície no sopé de umas montanhas quase perpendiculares à base e o caminho que acabava por virar à direita descrevia várias curvas traçadas pela mão da natureza.

Para conservar a aparência da diferença que devia existir entre os dois cavaleiros, Harvey seguia um pouco mais adiante, com um passo grave e certo que devia estar de acordo com a dignidade do seu suposto cargo. A pouca distância, à direita, estava acampado o regimento de infantaria da milícia de que já falámos, e as sentinelas do campo, que estavam instaladas perto do sopé da montanha viram-nos aproximarem-se.

O primeiro movimento de Henry ao sair da quinta foi fazer pressão nos flancos do cavalo para o pôr a galope, afastar-se o mais depressa possível dos seus inimigos, e pôr termo à cruel incerteza da sua situação. Todavia, Birch barrou-lhe o caminho com uma manobra executada com tanta prontidão como destreza, dizendo-lhe ao mesmo tempo:

- Quer que nos percamos os dois? Fique no lugar que compete a um negro que acompanha o patrão. Não viu diante da quinta uma dúzia de cavalos selados? Julga que esse cavalo de trabalho em que vai montado não seria num instante apanhado pela cavalaria da Virgínia? Cada pé de terreno que vencemos é um ano que juntamos à nossa vida. São maus como raposas e sanguinários como lobos. Ande com o mesmo passo, e sobretudo não volte a cabeça para trás.

Henry dominou com dificuldade a impaciência, mas seguiu o aviso prudente do vendedor ambulante. Na sua imaginação ouvia o barulho dos cavalos que os perseguiam, mas Harvey que se voltava para trás de vez em quando como se estivesse a falar com ele assegurava-lhe que não vinha lá nada.

- Mas é impossível que César não tenha sido imediatamente descoberto. Não seria melhor irmos a galope? Antes de eles terem tempo de descobrir qual o motivo que nos faz correr assim, teríamos chegado ao bosque.

- O senhor não os conhece, capitão Wharton. Estou a ver ao portão da quinta um maldito sargento que nos segue com os olhos como se fôssemos a presa que lhe escapa. Quando comecei a pregar olhou para mim com um ar desconfiado. Vamos a passo porque ele está a pôr a mão na sela, e se ele montar é por nossa causa. Estamos ao alcance dos mosquetes do regimento de infantaria.

- O que está ele a fazer? - perguntou Henry segurando o cavalo com as rédeas, mas apertando-lhe os flancos com os calcanhares para estar preparado para o pôr a galope em caso de necessidade.

- Está a olhar para outro lado. Está a afastar-se do cavalo. Podemos ir a trote. Tão depressa, não! Repare como aquela sentinela nos observa.

- E que importa? - disse Henry - o mais que ele pode é dar um tiro enquanto que os dragões nos podem fazer prisioneiros. Harvey, estou a ouvi-los! Não vê nada?

- Eh! eh! sim, verdadeiramente, estou a ver qualquer coisa por trás daquelas moitas, à esquerda. Volte a cabeça um instante e poderá ver, aproveite.

Henry aproveitou a autorização, e o sangue gelou-lhe nas veias ao ver a forca que estava preparada para ele. Desviou os olhos com horror.

- Aí está um aviso de que deve ser prudente - afirmou Birch com o tom sentencioso que tomava, às vezes.

- É horrível - afirmou Henry levando uma mão aos olhos como que para afastar uma visão de terror.

- E todavia, capitão - continuou o bufarinheiro, voltando-se um pouco para trás falando-lhe num tom de triste amargura, mas enérgica.

- Vê esse objecto no lugar em que o Sol ao esconder-se lança os últimos raios sobre a sua cabeça, respira livremente o ar fresco que vem das montanhas, cada passo que dá afasta-o dessa maldita forca, cada gruta das rochas, cada moita vai daqui a instantes ser um abrigo seguro contra os seus inimigos, mas eu, capitão Wharton, já vi a forca elevar-se sem ter um meio de lhe escapar.

Por duas vezes fui lançado para as masmorras, algemado, a ferros, passando noites na agonia do desespero e pensando que o dia só viria para me trazer uma morte ignominiosa. O suor que me banhava parecia ter secado tudo até à medula dos ossos. Se queria respirar através da grade que mal deixava entrar o ar na cela, ou ver sorrir a natureza que Deus criou mesmo para o último dos seus filhos, a forca era o único espectáculo que se apresentava a meus olhos como a consciência atormentada do moribundo.

Já estive quatro vezes em poder deles sem contar com esta, mas por duas vezes julguei que a minha hora tinha chegado. Costuma-se dizer que morrer não é nada, capitão Wharton, a morte nunca se encara sem terror, seja qual for a forma que apresente, mas passar os últimos momentos abandonado por todos, sem um olhar de piedade. Pensar que, dentro de algumas horas, nos vão tirar deste vale de trevas que nos é querido, se pensa no que se vai seguir, para entrarmos no grande dia, em que todos os olhos estarão fixos em nós como se fôssemos um animal selvagem, e perder a vida entre a zombaria e o sarcasmo dos nossos semelhantes, eis, capitão Wharton, eis o que eu chamo morrer.

Henry ouvia surpreendido, porque nunca tinha ouvido o bufarinheiro exprimir-se com tanto calor, e os dois pareciam ter esquecido o perigo que corriam neste momento e os disfarces que vestiam.

- O quê! - disse Henry. - Já viu a morte tão perto?

- Desde há três anos para cá não me procuram nestas montanhas como um animal feroz? Estive uma vez mesmo junto à forca e só escapei porque as tropas reais atacaram nesse momento. Um quarto de hora mais tarde e o mundo teria desaparecido dos meus olhos. Estava no meio de uma multidão de homens, mulheres e crianças que me olhavam insensíveis como se eu fosse um monstro que se devia maldizer. Procurava entre a multidão um rosto que anunciasse compaixão e não encontrei um, não, nem um único, e ouvia-os reprovarem-me por ter traído o meu país, de o ter vendido por dinheiro. O Sol parecia-me mais brilhante que de costume, sem dúvida porque julgava estar a vê-lo pela última vez, o verde dos campos, parecia-me mais vivo, numa palavra, toda a natureza me parecia uma espécie de céu. Ah! como a vida me parecia uma coisa desejável nesse momento terrível! - continuou. - O senhor não sentiu uma coisa assim, capitão Wharton. O senhor tem parentes que aliviam os seus desgostos partilhando-os consigo, eu só tinha um pai para sentir os meus, quando tinha conhecimento deles. Todavia não havia ao pé de mim nem compaixão nem piedade para aliviar a minha dor: tudo parecia ter-me abandonado. Estava mesmo convencido que ele mesmo se tinha esquecido que eu existia.

- O quê! Pensou que Deus o tinha abandonado? - perguntou Henry interessado.

- Deus não abandona nunca os que o servem - respondeu com um sentimento religioso mais verdadeiro do que os que tinha revelado antes.

- E de quem falava ao dizer ELE?

O vendedor ambulante voltou-se na sela e tomou o ar circunspecto que convinha ao hábito que trazia. O fogo que brilhava nos seus olhos deu lugar a uma expressão de humildade e dirigiu-se a Henry no mesmo tom em que teria falado a um negro:

- Não há distinção de cor no céu, meu irmão. A tua alma é como a nossa e terás contas horríveis a dar de... Bom, - acrescentou baixando a voz - passámos a última sentinela da milícia. Não olhe para trás se ama a vida.

Henry lembrou-se da sua situação, tomou o ar de humildade que estava de acordo com o papel que desempenhava. O sentimento de perigo fê-lo esquecer a energia inconcebível do tom e das maneiras do bufarinheiro, e a lembrança da situação terrível em que se encontrava fizeram renascer nele todas as inquietações que, por instantes, tinha esquecido.

- O que é, Harvey? - perguntou ao ver o companheiro olhar de uma maneira para a quinta que lhe pareceu de mau agoiro - o que aconteceu?

- Qualquer coisa que não nos trará nada de bom - respondeu o pretenso ministro. - Tire a máscara e a cabeleira. Vai precisar de todas as energias naturais. Deite-as fora; não há nada a temer lá adiante, mas vejo lá atrás algumas pessoas que nos vão perseguir implacavelmente.

- Pois bem! - disse Henry ao deitar fora a máscara e a cabeleira. - Aproveitemos o tempo para ganhar terreno. Não precisamos de mais de um quarto de hora para chegarmos à curva. Porque não vamos a galope?

- Calma, capitão Wharton, foi dado o alarme, mas os dragões não montam sem o oficial, a menos que nos vejam fugir. Chegou, vai para a cavalariça. Ponha o cavalo a trote. Já montaram doze. O oficial parou para ajustar a cilha. Espera vencer-nos em velocidade. Montou. Agora a galope, a grande galope, daí depende a vida. Siga-me de perto, se me deixa está perdido.

Henry não esperou que ele lhe repetisse as ordens. Logo que Harvey pôs o cavalo a galope ele fez outro tanto exigindo o máximo da sua montada miserável. Birch tinha escolhido a dele, e embora fosse inferior aos corcéis fogosos e bem alimentados dos dragões da Virgínia, valia muito mais que o pequeno cavalo que tinha destinado a César Thompson para ir fazer o recado.

Em poucos instantes Henry reconheceu que o seu companheiro tomava um avanço considerável e um olhar amedrontado que deitou para trás deu-lhe a certeza que os seus inimigos se aproximavam rapidamente. Com esse sentimento de abandono que torna a infelicidade duplamente insuportável, quando não se tem ninguém com quem a partilhar, pediu ao bufarinheiro para não o abandonar. Harvey parou para esperar por ele e abrandou a marcha do cavalo para que o companheiro o pudesse seguir. O chapéu de três bicos e a peruca tinham caído logo que ele se lançou a galope. Sem este disfarce foi imediatamente reconhecido pelos dragões que anunciaram a descoberta com altos berros que chegavam aos ouvidos dos fugitivos, tão curto era o intervalo que os separava.

- Não seria melhor desmontarmos - disse Henry - e atravessarmos este campo para chegar às montanhas à nossa esquerda? As sebes obrigarão a parar os cavaleiros.

- Este caminho conduz directamente à forca - respondeu o bufarinheiro - esses patifes dão três passos enquanto nós damos dois e essas sebes não seriam para eles um obstáculo maior do que estes sulcos que nos embaraçam. Só nos falta um quarto de milha para chegarmos à curva. Por trás do bosque a estrada bifurca e é muito possível que os dragões parem para tentar descobrir qual dos caminhos seguimos, e entretanto teremos ganho terreno.

- Este cavalo estropiado já está na última- interrompeu Henry que batia no cavalo com a ponta da rédea enquanto Harvey secundava os seus esforços com chibatadas bem aplicadas -é impossível que resista mais dez minutos.

- Só precisamos de cinco - respondeu o bufarinheiro. - Em cinco minutos estamos salvos se seguir o meu conselho.

Encorajado pelo sangue-frio e pela confiança do companheiro calou-se e continuou a obrigar o cavalo a andar. Daí a momentos estavam na curva tão desejada e ao voltarem no pequeno bosque viram os dragões que os perseguiam a toda a velocidade pela estrada. Mason e Hollister tinham melhores montadas e estavam mais à frente do que os outros, e mais perto deles do que o bufarinheiro imaginara.

Desde o sopé das montanhas até ao vale que serpenteava entre elas havia um bosque espesso cujas árvores grandes tinham sido abatidas para lenha. Ao ver este abrigo, Henry voltou a propor ao companheiro desmontarem e refugiarem-se no matagal. Todavia Harvey respondeu-lhe com um sinal negativo. As duas estradas de que ele tinha falado juntavam-se a pouca distância da curva da estrada, formando um ângulo agudo, mas as duas continuavam a perder de vista. O bufarinheiro seguiu pela que conduzia para a esquerda, mas num momento encontrando uma aberta na mata entrou aí para atingir a estrada da direita que deixou igualmente para trepar uma montanha que estava diante deles.

Esta manobra salvou-os. Ao chegarem à direita, onde o caminho se dividia, os dragões seguiram as pegadas dos cavalos, e passaram muito para lá do sítio em que os fugitivos tinham deixado a estrada sem se aperceberem que tinham perdido a sua pista. Enquanto os cavalos estafados subiam com dificuldade a serra, Henry e o bufarinheiro ouviram os dragões dizer uns aos outros em altos berros que deviam seguir pela estrada da direita. O capitão Wharton propôs mais uma vez que se apeassem e metessem pela mata.

- Ainda não, - disse Birch, em voz baixa - ainda não. Do alto da serra a estrada desce por uma encosta bastante inclinada. Vamos primeiro até lá acima.

Enquanto falavam chegaram ao cume onde desmontaram. Henry meteu-se pela mata espessa que cobria as vertentes da serra até mais adiante. Harvey parou um instante para dar algumas chibatadas aos cavalos que desceram a grande velocidade a encosta contrária, aquela por onde tinham subido, antes de se juntar ao seu companheiro.

O bufarinheiro entrou no bosque com cuidado, evitando partir os ramos ou bater-lhes com medo de fazer barulho. Mal tinha tido tempo de desaparecer quando um dragão chegou ao alto da montanha e gritou:

- Estou a ver um dos cavalos deles a descer por este lado.

- Adiante, meus amigos! Adiante! - ordenou Mason - dêem quartel ao inglês, mas ataquem o bufarinheiro para não ouvirmos falar mais nele.

Henry sentiu o companheiro apertar-lhe o braço com força e tremer da cabeça aos pés ao ouvir esta ordem terrível, e ouviram uma dúzia de cavaleiros passar a correr com uma velocidade que provava bem que os cavalos deles de pouco lhes teriam servido nesta perseguição.

- Agora - afirmou o vendedor ambulante levantando-se para olhar em volta, depois de um momento de incerteza - eles vão descer por um lado e nós vamos subir por outro. Vamos embora.

- Mas eles vão seguir-nos, vão rodear a montanha - afirmou Henry seguindo a marcha rápida do companheiro. - Lembre-se que eles têm cavalos e pernas como nós e que a fome nos fará presa deles.

- Não se preocupe, capitão Wharton - respondeu o bufarinheiro muito seguro de si. Esta serra não é aquela onde eu penso ficar, mas a necessidade fez de mim um bom guia por entre os rochedos. Vou levá-lo para um sítio onde ninguém ousará seguir-nos. Vê: o Sol está a descer por trás das serras mais altas a ocidente. Ainda faltam mais de duas horas para a lua aparecer. Julga que há alguém que se atreva a perseguir-nos, numa noite de Novembro, no meio destes rochedos e precipícios?

- Escute - disse Henry - estou a ouvir os gritos dos dragões. Já perceberam que estão a seguir uma pista errada.

- Suba para esta rocha e já pode vê-los - afirmou Harvey sentando-se tranquilamente para descansar. - Repare, viram-nos. Vê como apontam para nós? Bom, um deles dispara um tiro de pistola; contudo a distância é muito grande e nem uma bala de mosquete podia chegar até nós.

- Mas vão perseguir-nos - afirmou Henry com impaciência. - Vamos embora.

- Eles não vão fazer nada - respondeu o bufarinheiro que colhia com toda a calma frutos silvestres que metia na boca para se refrescar sem sequer se dar ao trabalho de lhes tirar as folhas. - Como é que eles podiam chegar até aqui com botas grossas, esporas e sabres compridos? Não, não, vão regressar ao acampamento e vão mandar a infantaria por estes desfiladeiros onde os cavaleiros mal conseguem manter-se nas selas.

- Vamos, siga-me, capitão Wharton. Temos um caminho difícil a percorrer, mas vou levá-lo para um sítio onde ninguém ousará chegar-se esta noite. Levantaram-se os dois; daí a pouco as rochas e as grutas encobriam-nos totalmente.

O vendedor ambulante não se tinha enganado nos seus cálculos. Mason e os dragões tinham descido a serra com precipitação e perseguiam as suas vítimas, segundo supunham. Todavia ao chegarem lá abaixo encontraram dois cavalos sem dono. Detiveram-se a fazer buscas no bosque próximo e a verificar se a cavalaria lá podia entrar. Foi precisamente quando estavam ocupados nesta tarefa que um dos dragões viu Harvey e Henry sobre uma rocha e os apontou ao tenente.

- Está salvo! - exclamou Mason pensando primeiro no vendedor ambulante. - Ele está salvo, mas para nós é uma desonra! Deus do Céu! Washington não nos confiará a guarda de um tory suspeito, se deixamos este miserável troçar assim dos dragões da Virgínia! E esse capitão inglês que está ao lado dele parece que tem um sorriso de complacência ou de troça. Eh! camarada, estarias mais à vontade se estivesses a dançar ao ar livre na extremidade de uma corda. Mas paciência, não está ainda a ocidente do rio de Harlem, e terão notícias nossas antes de poderem dar contas a Sir Henry de tudo o que viram, ou eu não seja tenente dos dragões.

- FaçO fogo para amedrontar o bufarinheiro? - perguntou um dos cavaleiros pegando na pistola de arção.

- Sim, sim - respondeu Mason - espanta as aves, fá-las levantar voo dos ramos e veremos como é que elas voam.

O dragão disparou.

- Por Deus! - exclamou o tenente - parece-me que aqueles patifes se estão a rir à nossa custa.

Vamos, vamos, temos de nos retirar senão ainda nos podem deitar com pedras à cabeça, e as gazetas reais não deixariam de contar a derrota de um regimento de rebeldes desbaratados por dois monárquicos. E já contaram muitas histórias fantásticas.

Obedecendo à ordem do oficial, os dragões puseram-se em marcha com um ar de desprezo para voltarem ao ponto de onde tinham partido. Mason pensava no que devia fazer em circunstâncias idênticas. A noite caía quando chegaram à quinta, diante da qual estavam reunidos muitos oficiais e soldados, uns contando, outros escutando, relatos muito exagerados da evasão do oficial inglês.

Os dragões que chegavam deram conta da sua perseguição infrutífera com uma expressão sombria enquanto a maior parte dos oficiais rodeava Mason para pensar no que deviam fazer. Numa janela que ficava mesmo por cima das cabeças deles, Jeannette e Frances escutavam e observavam tudo o que se passava com tanto interesse que mal podiam respirar, mas tendo sempre a precaução de não se mostrarem.

- É preciso fazer qualquer coisa sem perda de tempo - afirmou o coronel do regimento de infantaria que estava acampado diante da quinta. - Esse oficial inglês serviu, sem dúvida, para o grande golpe que o inimigo pretendia desferir. Além disso a nossa honra está comprometida com a sua fuga.

- Faz-se uma batida na mata - afirmaram vários oficiais - e antes do nascer do dia serão descobertos.

- Devagar, meus senhores, devagar - disse o coronel. - É impossível atravessar as montanhas de noite sem conhecer bem o terreno. Só a cavalaria pode fazer esse serviço e acho que o tenente Mason hesita em fazê-lo sem receber ordem do major.

- Evidentemente que não me atrevo a fazê-lo - respondeu o tenente abanando gravemente a cabeça - a menos que o senhor tome sobre si toda a responsabilidade dando-me essa ordem. Mas o major Dunwoodie deve estar de volta dentro de duas horas e antes do nascer do sol a notícia correrá por toda a região.

- Enviam-se patrulhas de um rio ao outro e se se oferecerem recompensas aos aldeões pela detenção dos fugitivos, não nos escaparão, a menos que consigam juntar-se a um destacamento inglês que está na margem do Hudson.

- O plano é bastante bom - afirmou o coronel - e deve resultar. Mas é preciso mandar um mensageiro a Dunwoodie para que ele não fique para a passagem da barca até muito tarde. É muito provável que os evasores passem a noite na serra.

Mason seguiu este conselho. Mandou uma ordenança levar a notícia da evasão de Henry ao major pedindo-lhe ao mesmo tempo a sua comparência indispensável para se tomarem as medidas necessárias.

Depois destas combinações, os oficiais separaram-se.

Ao terem conhecimento da fuga de Henry, Jeannette e Frances mal podiam acreditar no que ouviam. Contavam tanto com o êxito dos esforços de Dunwoodie, que consideraram esta diligência como extremamente imprudente; mas era tarde demais para se remediar isso. Ao ouvirem a conversa dos oficiais ficaram com a certeza de que se Henry voltasse a ser apanhado, a sua situação seria muito mais perigosa, e sentiram-se vacilar ao pensar em todos os meios de que eles se iam servir para os prenderem outra vez.

"Miss" Peyton consolava-se e tentava consolar a sobrinha, com a esperança bastante provável de que os fugitivos, andando bem, conseguissem chegar ao que se designava por Território Neutro antes de a cavalaria espalhar a notícia da sua evasão. A ausência de Dunwoodie neste momento parecia-lhe uma circunstância da maior importância, e a tia tentava encontrar os melhores meios de reter o major e dar tempo ao sobrinho para fugir. Os pensamentos de Frances eram muito diferentes. Não tinha dúvidas que o indivíduo que tinha visto duas vezes na serra, em frente da quinta, era Harvey Birch e estava convencida que o irmão em vez de se dirigir para as tropas reais, passaria essa noite na cabana misteriosa.

Frances e a tia tiveram uma troca de impressões animada sobre este assunto. Por fim, Jeannette Peyton cedendo aos pedidos da sobrinha, embora com dificuldade, abraçou-a, beijou o seu rosto frio, e deu-lhe a bênção com todo o fervor consentindo que ela concretizasse um projecto que lhe era ditado pelo amor fraternal.

 

A noite estava escura e fria, quando Frances Wharton com o coração apertado, mas com passo ligeiro atravessou o jardim que ficava na parte de trás da quinta que havia servido de prisão ao irmão, e se dirigiu para a montanha em que vira o indivíduo que ela julgava ser o bufarinheiro. Ainda era cedo, mas a escuridão e o frio intenso de uma noite de Novembro como esta tê-la-iam feito voltar para trás com terror se não tivesse motivos tão fortes. Sem parar para reflectir,"corria com uma velocidade que parecia vencer todos os obstáculos, sem se deter para tomar fôlego, até chegar a meio caminho do rochedo que ela tinha fixado como sendo o lugar em que Birch aparecera nessa mesma manhã.

O respeito pelas mulheres é um dos sinais mais certos da civilização de um povo, e não há nenhum que se possa orgulhar de possuir esta virtude em mais alto grau do que os Americanos. Frances não tinha qualquer receio por causa do regimento de infantaria que tomava tranquilamente a sua refeição, à beira do caminho, diante do campo que ela atravessava.

Esta unidade era constituída por compatriotas seus, e ela sabia que os soldados da milícia oriental respeitavam as mulheres, mas tinha menos confiança no carácter volúvel e atrevido da cavalaria das províncias do sul, e embora fosse muito raro uma mulher queixar-se de ter sido ultrajada ou insultada por um soldado americano, não sentia menos receio por se expor sozinha.

Quando ouviu os passos de um cavalo que caminhava lentamente, afastou-se por timidez para um pequeno bosque nas margens de um ribeirinho que nascia um pouco mais acima. Era uma sentinela que passou sem reparar nela que, na verdade, tivera o cuidado de se vestir de forma a dar o menos possível nas vistas. O cavaleiro passou cantarolando a meia-voz, pensando talvez noutra rapariga bonita que deixara nas margens do Potomac na flor da sua beleza.

Frances seguiu com inquietação o ruído dos passos que se afastavam e quando deixou de os ouvir, abandonou o refúgio e avançou a alguma distância. Mas por fim, amedrontada com as trevas que se tornavam mais densas e com o silêncio que reinava à sua volta, parou para reflectir no que tinha empreendido.

Tirando o capuz do casaco da cabeça, apoiou-se a uma árvore e olhou para o cimo da montanha que era o objectivo da sua excursão nocturna. Elevava-se da planície como uma pirâmide enorme cujos contornos mal se podiam ver. O cume distinguia-se um pouco melhor porque se desenhava sobre um fundo de nuvens por entre as quais se viam de vez em quando brilhar algumas estrelas, que a neblina arrastada pelo vento escondia. Se ela voltasse para trás Henry e o bufarinheiro passariam provavelmente a noite, numa segurança fatal, na montanha de que os seus olhos não se desviavam na esperança de descobrir uma luz para dirigir os seus passos.

A ameaça dos oficiais americanos ressoava nos seus ouvidos e obrigou-a a caminhar, mas a solidão em que se encontrava... a hora... os perigos do caminho... a incerteza de encontrar a cabana... e o que era ainda mais terrível, a possibilidade de ali encontrar desconhecidos e criminosos talvez, todos estes motivos levaram-na a refugiar-se.

A escuridão era cada vez maior e de momento a momento os objectos eram menos distintos, e as nuvens espessas que se reuniam por trás da montanha já não deixavam reconhecer a sua forma. A montanha enorme parecia ter desaparecido completamente. Por fim, uma claridade fraca e trémula brilhou diante dos olhos de Frances, semelhante à luz de uma fogueira.

Todavia, esta ilusão desvaneceu-se quando o horizonte se tornou mais claro, e a estrela da tarde se mostrou através das nuvens. Frances voltou a ver a serra à esquerda do belo planeta e, de repente, um ponto luminoso brilhou no alto de um castanheiro, aumentou pouco a pouco e estendeu-se por toda a montanha o manto resplandecente dos raios da lua. Embora tivesse sido fisicamente impossível à nossa heroína subi-la sem o auxílio desta luz benfazeja, não se sentia ainda com coragem para se meter ao caminho. Via o objectivo de todos os seus desejos, mas via as dificuldades que tinha de vencer para o conseguir.

Enquanto hesitava, mergulhada numa incerteza terrível, ora levada pela timidez natural das pessoas do seu sexo e da sua idade a renunciar à empresa, ora resolvendo vencer todos os perigos para socorrer o irmão, olhou para oriente para ver as nuvens que ameaçavam constantemente envolvê-la outra vez pela mais profunda escuridão.

Se tivesse visto uma serpente não se teria impressionado mais do que quando reconheceu o objecto a que se encostara e que tomara por uma árvore e que só neste momento reconhecia o que era.

Duas estacas metidas na terra a alguns passos uma da outra cujas extremidades estavam ligadas por uma trave o que lhe indicava claramente o fim a que se destinavam. A um anel de ferro estava atada uma corda que o vento fazia oscilar de um lado para o outro. Ao ver isto, Frances não hesitou mais - atravessou a pradaria a correr ou melhor voando, e chegou rapidamente ao sopé da montanha onde esperava encontrar um caminho que a levasse lá acima. Foi obrigada a parar alguns instantes para tomar fôlego e aproveitou este intervalo para fazer o reconhecimento do terreno.

A encosta era muito escarpada, mas encontrou um atalho feito pelos pastores que costumavam trazer os gados a pastar na serra, que contornava os rochedos e as árvores, o que lhe facilitava bastante a marcha. Jovem, activa e animada pelo generoso desejo de salvar o irmão, saía daí a pouco da mata para entrar num terreno descoberto que tinha sido arroteado para ser cultivado. Todavia ou por causa da guerra ou da improdutividade do terreno, o especulador tinha renunciado às vantagens que podia tirar da natureza agreste, e por toda a parte começava a surgir o mato, como se a charrua nunca tivesse aberto um sulco na terra que o alimentava.

Frances sentiu a coragem reanimar-se com estes fracos vestígios do trabalho do homem e continuou a subir com uma nova esperança. O atalho abria-se em tantas direcções que reconheceu que era inútil seguir estas curvas e contra-curvas, e, abandonando-o tomou o caminho que lhe parecia mais curto e mais fácil para chegar ao cume. Daí a pouco o campo arroteado, as matas e os rochedos que cobriam as encostas e constituíam para ela novos obstáculos tinham ficado para trás. Às vezes via um atalho que subia ao lado de um campo arroteado e penetrava nos bosques, mas nenhum deles se dirigia para o cimo da montanha. Bocados de lã presos aos espinheiros anunciavam claramente a origem destes atalhos e Frances deteve-se a pensar na utilidade que deviam ter para quem descia a montanha, diminuindo-lhes a fadiga. Sentando-se numa pedra, fez uma nova pausa para reflectir. As nuvens afastavam-se diante da lua, como se o seu brilho as empurrasse e a paisagem que via a seus pés estava revestida de cores mais suaves.

Quase imediatamente abaixo do ponto em que se encontrava, estendiam-se em linhas regulares as tendas do regimento de milícia. Brilhava uma luz na janela da tia, e Frances imaginou-a, de pé, diante da janela, os olhos fixos na serra, profundamente preocupada com a segurança da sobrinha. Pelo pátio onde estavam instaladas as cavalariças dos dragões passavam e voltavam a passar lanternas e, convencida que se preparavam para partir, levantou-se toda lesta e retomou o caminho.

A nossa heroína ainda tinha de subir mais de um quarto de milha, embora já tivesse subido dois terços da encosta; não havia, contudo qualquer atalho, nada que lhe pudesse indicar o caminho. Felizmente esta serra, como a maior parte das que constituíam esta cadeia, era de forma cónica, de modo que ela estava certa que se continuasse a subir chegaria à cabana que estava mesmo lá em cima.

Durante uma hora lutou com dificuldades sem conta, e, por fim, depois dos esforços que quase lhe esgotaram as forças, e depois de algumas quedas mais ou menos perigosas, conseguiu chegar à pequena plataforma que formava o cume da serra.

Fatigada por esforços que ninguém pensaria que os seus membros delicados fossem capazes de suportar, sentou-se alguns instantes num rochedo para recobrar as forças e para se armar de coragem para a conversa que esperava ir ter em breve com o irmão. A lua permitia -lhe ver todos os rochedos das redondezas, e do ponto em que se encontrava, Frances via a estrada que seguira desde os Quatro-Cantos. Seguindo com os olhos a linha da estrada encontrou o ponto em que tinha descoberto essa cabana misteriosa, e concluiu que estava mesmo diante desse ponto.

O vento glacial da noite soprava através dos ramos despidos dos velhos castanheiros mirrados, enquanto, com passos leves que mal amachucavam as folhas secas que juncavam o solo, Frances avançava para a encosta onde esperava encontrar a habitação solitária. Todavia não viu nada que pudesse servir para morada de seres humanos. Examinou, em vão, as grutas das rochas, todos os buracos da plataforma, onde julgava que iria encontrar o refúgio do bufarinheiro, mas não encontrou nem a cabana nem o menor indício de uma presença humana naquela zona. A ideia de uma solidão tão completa encheu-a de terror.

Avançou até à ponta de um rochedo para procurar ao menos alguns sinais de vida no vale. Ao fazer este movimento um raio de luz viva incidiu-lhe nos olhos, o ar à sua volta pareceu-lhe mais quente. Recompondo-se da surpresa examinou o rochedo sobre o qual se encon trava. Viu uma abertura por onde saía o fumo que o vento espalhava e viu um bom lume numa lareira de pedras. Frances percebeu que estava precisamente por cima da cabana que procurava, e seguindo um pequeno atalho que contornava o rochedo, encontrou-se diante da porta.

Três dos lados do edifício eram formados por troncos de árvores colocados uns sobre os outros e a sua altura excedia em pouco a altura de um homem de estatura normal e o outro era o rochedo sobre o qual a construção estava apoiada. O telhado era formado por cascas de árvores cortadas ao comprido. Os interstícios entre os troncos das árvores estavam tapados com argila e uma parte que tinha caído fora substituída por folhas secas, para evitar que o vento lá entrasse. A luz entrava por uma pequena janela com quatro vidros, mas um postigo colocado com grande cuidado não permitia que a luz do fogo se visse de fora.

Depois de se ter quedado alguns momentos a examinar este esconderijo, porque a construção singular deste edifício não permitia dar-Lhe outro nome, Frances espreitou por uma fresta para ver o que se passava no interior. Não havia nem candeeiro, nem lanterna, mas a chama da lenha seca dava uma luz a que se podia ler. A um canto estava uma cama de palha coberta, sem grandes cuidados, com uma manta dupla de lã. De ganchos de ferro espetados nas gretas da rocha que servia de parede, estavam pendurados fatos de toda a espécie, tanto de homem como de mulher, para serem utilizados por pessoas de todas as idades e de todas as condições.

Descobriu entre outros diversos uniformes ingleses e americanos colocados pacificamente uns ao lado dos outros, e uma peruca muito bem empoada que servia de atavio a um fato de algodão às riscas, como os que usam geralmente os camponeses. Numa palavra, era um guarda-fato completo que serviria para vestir a freguesia. Diante da chaminé estava um armário aberto, no qual estavam arrumados pratos, uma panela de barro, pão e restos de carne fria. Em frente do lume estava uma mesa que tinha o pé partido, feita com tábuas que não estavam aplainadas. Sobre a mesa estava um livro que pela forma e pelo tamanho se depreendia ser uma Bíblia. Um banco e outros utensílios domésticos compunham o resto do mobiliário.

Mas o que atraiu sobretudo a atenção de Frances foi a pessoa que estava instalada na cabana. Estava sentado no banco diante da mesa, com a cabeça apoiada na mão que encobria completamente o rosto, muito ocupado a examinar uns papéis que tinha diante de si. Em cima da mesa estavam duas pistolas com o punho muito trabalhado, e encostada à perna a ponta do sabre não menos rico, sobre que se apoiava negligentemente a outra mão.

A estatura deste indivíduo, os membros mais robustos que os de Henry ou Harvey Birch, bastaram, sem mesmo ser preciso ter em conta o seu fato, para que Frances tivesse a certeza que não era nenhum dos dois. Trazia sobrecasaca abotoada até ao queixo que abrindo-se sobre os joelhos, deixava ver uns calções de pele de búfalo, botas e esporas. No chão de pedra estava um chapéu que parecia atirado para ali a fim de dar lugar a um mapa que estava aberto sobre a mesa juntamente com outros papéis.

Era uma coisa com que Frances nunca contara. Estava de tal forma convencida que o homem que ela tinha visto duas vezes junto da cabana era Harvey Birch, que ao ter conhecimento do papel que ele tinha tido na evasão do irmão não teve mais dúvidas que havia de encontrar os dois no lugar em que se deparava outro indivíduo. Espreitava ainda pela fresta, não sabendo se se devia ir embora ou esperar que o irmão chegasse, quando o desconhecido tirando a mão que lhe cobria o rosto levantou a cabeça numa atitude de profunda meditação, Frances reconheceu imediatamente o rosto calmo e bondoso de Harper.

Tudo o que ele tinha prometido ao irmão, tudo o que Dunwoodie tinha dito sobre o seu carácter e o seu poder, todas as manifestações de interesse paternal que tinha tido para com ela surgiram de repente ao espírito de Frances. Abriu imediatamente a porta e exclamou lançando-se aos seus pés e apertando-lhe os joelhos:

- Salve-o! Salve o meu irmão! Lembre-se das suas promessas!

O primeiro movimento de Harper quando viu a porta abrir-se foi levantar-se e pegar nas pistolas, mas afastando o capuz do casaco de Frances que lhe cobria uma parte do rosto, reconheceu-a e disse surpreendido:

- Frances Wharton aqui! É impossível que esteja sozinha!

- Não há aqui mais ninguém além de Deus. Comigo só Deus e o senhor - respondeu - e é pelo seu santo nome que lhe peço se lembre da sua promessa e salve o meu irmão.

Harper ajudou-a a levantar-se com ternura, fê-la sentar no banco de que se tinha levantado, pediu-lhe que se acalmasse e lhe contasse tudo o que sabia.

Frances satisfez imediatamente o seu pedido e contou-lhe ingenuamente as razões que a tinham trazido a este lugar solitário, sozinha e a uma hora daquelas.

Era difícil ler os pensamentos de um homem tão habituado como Harper a dominar as suas paixões; e todavia, no seu olhar havia um novo brilho ao escutar a narração da jovem. Mostrou-se muito interessado nos pormenores sobre a evasão de Henry, a fuga para a floresta, e ouviu o resto da história com uma expressão de nítida bondade; e quando ela se referiu ao medo que sentia de que o irmão se demorasse tempo demais na serra, ele deu a entender que partilhava da sua inquietação e percorreu duas ou três vezes o compartimento, a pensar.

Frances hesitou e colocou, sem mesmo dar por isso, a mão na coronha de uma das pistolas; a palidez que o medo tinha provocado deu lugar a rubor intenso e depois de uma breve pausa, acrescentou:

- Podemos contar com a amizade do major Dunwoodie, mas ele tem o sentimento da honra tão puro, tão exaltado, que... apesar... apesar de todos os sofrimentos que isso pode trazer ao seu coração, considerará um dever fazer tudo o que lhe for possível para o prender. Aliás está convencido que Henry não corre perigo porque está sob a sua protecção.

- Sob a minha protecção! - repetiu Harper surpreendido.

- Sim -afirmou Frances. - Quando lhe contei o que o senhor tinha dito, garantiu-me que tinha poder para obter o perdão de Henry, e que se tinha prometido, não deixaria de cumprir.

- Não lhe disse mais nada? - perguntou Harper que olhava fixamente para ela.

- Mais nada - respondeu Frances - repetiu-nos só que Henry estava salvo. Anda à sua procura neste momento.

- "Miss" Wharton - retorquiu Harper com uma dignidade calma - seria inútil esconder-lhe agora que tenho um dos últimos papéis nesta malfadada luta que a Inglaterra e a América travam neste momento. Deve a evasão do seu irmão ao conhecimento que eu tinha da sua inocência e à recordação da minha promessa. O major Dunwoodie enganou-se ao dizer que eu podia procurar abertamente o perdão para o capitão Wharton. Posso agora velar pela sua segurança e dou-lhe a minha palavra, palavra que tem algum valor junto de Washington, que serão tomadas medidas para que ele não seja preso de novo; mas exijo que me prometa guardar um segredo inviolável sobre esta entrevista, até eu lhe permitir que fale nela.

Frances fez-lhe a promessa que ele lhe exigia.

- O seu irmão vem para aqui com aquele que o libertou, mas ele não deve ver-me porque senão a vida de Harvey Birch poderia correr perigo.

- Perigo! - exclamou Frances. - Nunca. O meu irmão não é tão vil que vá trair o homem que o salvou.

- É o que se passa neste país, "miss" Wharton - retorquiu Harper - não é um jogo de crianças. A vida e a fortuna dos homens estão seguras com fios muito finos e não podem ficar à mercê de acidentes.

- Se Sir Henry Clinton soubesse que Birch tinha o menor contacto comigo, nada se poderia fazer para salvar a vida desse infeliz. Assim se o sangue humano lhe faz horror, se se lembra do serviço que foi prestado ao seu irmão, seja prudente e guarde silêncio.

- Conte-lhes tudo o que sabe e faça-os partir imediatamente. É preciso que antes do nascer do dia tenham passado os últimos piquetes do exército americano, e tomarei providências para que ninguém lhes levante obstáculos. Pode encontrar-se para o major Dunwoodie uma ocupação mais agradável do que a, de pôr em perigo a vida do amigo.

Enquanto falava dobrou o mapa que tinha aberto em cima da mesa, pegou nos papéis que estavam ao lado, e meteu tudo no bolso da sobrecasaca. Ainda não tinha acabado quando Frances ouviu a voz do bufarinheiro que falava mais alto do que habitualmente.

- Por aqui, capitão Wharton! Venha por aqui e já pode ver as tendas da milícia! Que nos persigam, tenho aqui um ninho onde cabem dois e onde poderemos descansar.

- E onde é esse ninho? - perguntou Henry. - Disse-me que tinha lá provisões e eu já recebia de boa vontade a minha parte, porque há quase dois dias que não como praticamente nada.

- Hem! - fez o vendedor ambulante chamando a si todas as forças - hem! O frio da noite constipou-me. Vá mais devagar e tome cautela para não escorregar senão espeta-se na baioneta da sentinela que está na planície. Subir custa, mas é muito fácil descer mais depressa do que se quer.

Harper pôs o dedo nos lábios para lembrar a Frances a sua promessa, pegou no chapéu e nas pistolas e sem deixar qualquer vestígio da sua visita, levantou os fatos pendurados no canto mais escuro da cabana, e que escondiam uma abertura estreita para uma cavidade natural da rocha, e desapareceu. À luz das chamas Frances viu que só se encontravam ali objectos de uso doméstico.

Pode compreender-se facilmente a surpresa de Henry e sobretudo de Harvey, quando chegaram e viram Frances. Sem esperar pelas perguntas, nem pelas explicações, lançou-se nos braços do irmão, exprimindo-se pelas lágrimas.

Birch parecia consternado. Olhou para a lareira e verificou imediatamente que a lenha tinha sido posta há pouco. Abriu a gaveta da mesa e ficou alarmado por a encontrar vazia.

- Está sozinha, "miss" Frances - perguntou preocupado. - Veio sozinha até aqui?

- É como vê, senhor Birch - respondeu voltando as costas ao irmão e olhando para a caverna secreta de uma forma que o bufarinheiro compreendeu perfeitamente.

- Mas porque vieste aqui? - perguntou-lhe o irmão, surpreendido. - Como descobriste este refúgio?

Frances contou-lhe rapidamente o que se tinha passado depois da evasão e explicou os motivos que a tinham levado a procurá-lo.

- Mas como é que encontrou esta cabana? - perguntou-lhe Harvey. - E o que a fez pensar que viríamos aqui quando a deixámos na serra em frente?

Frances explicou-lhe que um raio de sol poente lhe tinha revelado esta barraca quando atravessava a serra, disse-lhe que o tinha visto duas vezes naquela zona, e que, dada a segurança que esta habitação parecia oferecer, pensou que eles se iriam refugiar ali nessa noite. Birch examinava com atenção as suas feições enquanto ela descrevia com toda a candura e ingenuidade os incidentes tão simples que lhe tinham revelado o seu segredo, e logo que ela terminou a sua narração, bateu na janela com um pão que tinha na mão e partiu o vidro com uma única pancada.

-Tenho poucos luxos e comodidades - afirmou - e mesmo este pouco não o posso desfrutar em segurança! "Miss" Wharton - acrescentou no tom de amargura e melancolia que lhe era habitual - fui perseguido nestas montanhas como os animais selvagens, mas sempre que extenuado chegava a este retiro obscuro e isolado, podia ao menos descansar a cabeça em segurança. Quer tornar a vida de um infeliz ainda mais miserável?

- Nunca! Nunca! - exclamou Frances com energia. - O seu segredo está em segurança.

- Mas o major Dunwoodie... - retorquiu o bufarinheiro falando lentamente e olhando fixamente para ela como se quisesse ler no fundo da sua alma.

Um sentimento de pudor fez que Frances baixasse a cabeça, mas levantou-a quase no mesmo instante e afirmou com entusiasmo e de faces ruborizadas:

- Nunca o saberá, Harvey. Tomo Deus que me ouve por testemunha.

O vendedor ambulante parecia mais satisfeito. Aproveitando um momento favorável passou para trás dos fatos que estavam pendurados à entrada da caverna, e entrou sem que Henry se apercebesse.

Entretanto Frances e o irmão, que julgava que Birch tinha saído pela porta, conversavam, e o tema desta conversa era a situação em que Harvey se encontrava. A irmã insistia com ele para que partisse imediatamente para escapar às diligências que Dunwoodie ia fazer, pois ambos sabiam que o major não transigiria com o que considerava ser seu dever. O capitão pegou num caderno de notas e escreveu umas linhas a lápis, dobrou o papel e deu-o à irmã.

- Frances - disse-lhe - provaste esta noite que és uma mulher incomparável. Se me amas, entrega este bilhete a Dunwoodie sem o abrir, e lembra-te que duas horas bastam para me salvar a vida.

- Está bem. Eu faço isso, mas para que se hão-de estar a atrasar? Porque não fogem? Porque não aproveitam estes momentos preciosos?

- A sua irmã tem razão, capitão Wharton - disse Harvey que tinha entrado sem eles darem por isso - devemos partir imediatamente. Já tenho víveres e comemos pelo caminho.

- Mas quem é que vai levar a minha irmã até um sítio onde fique em segurança? - perguntou Henry.-Não posso pensar que vai ficar abandonada num lugar destes.

- Deixa isso, deixa isso- respondeu Frances. - Irei tão facilmente como vim. Está descansado. Não conheces nem a minha coragem nem a minha energia.

- Só agora começo a conhecer-te, minha irmã, é esta a verdade, mas agora que aprendi a apreciar-te, posso deixar-te num lugar como este? Não, nunca! Nunca!

- Capitão Wharton - afirmou Birch ao abrir a porta - se o senhor tem muitas vidas faz bem em arriscá-las, mas eu só tenho uma, e quero conservá-la. Vou-me embora sozinho, ou quer vir comigo?

- Vai-te embora Henry, vai-te embora meu querido irmão! - disse Frances beijando-o. - Pensa no nosso pai, pensa em Sara. Frances não esperou pela sua resposta e empurrou-o docemente para a porta que fechou logo que ele chegou lá fora.

Houve mais uns momentos de discussão "entre o capitão e o vendedor ambulante, mas este levou a melhor e daí a pouco ouviu os seus passos descendo a encosta com rapidez.

Logo que eles deixaram de se ouvir, Harper reapareceu. Segurou em silêncio o braço de Frances e levou-a para fora da barraca. O caminho era-lhe familiar. Levou-a até à ponta do rochedo debaixo do qual estava a cabana, fê-la atravessar o planalto, e tinha o cuidado de a prevenir contra os obstáculos e as dificuldades que podiam surgir no caminho.

Ao caminhar ao lado deste homem de estatura imponente, Frances sentia que o braço que a amparava não podia pertencer a uma pessoa vulgar. O seu passo firme, o seu ar calmo pareciam indicar uma alma forte e resoluta.

Desceram a encosta depressa e sem risco. Guiada por Harper, Frances percorreu em dez minutos a mesma distância que lhe tinha custado à vinda uma hora de canseiras.

Por fim, ele tomou por um destes atalhos de que já falámos, feitos pelos rebanhos, e atravessando com passo rápido a terra que tinha sido arroteada, chegou junto do cavalo ricamente ajaezado. O nobre animal relinchou e bateu com a pata no chão, quando o dono colocava as pistolas nos arções.

Harper voltou-se para Frances, e segurando-lhe a mão, disse-lhe o seguinte:

- Salvou esta noite a vida do seu irmão, "miss" Wharton: não lhe posso explicar porque há limites para o poder que tenho de servir; mas se puder atrasar de duas horas a partida da cavalaria, respondo pela sua segurança.

Depois do que fez esta noite, sou levado a crer que nada lhe é impossível. Deus nunca me deu filhos, "miss" Wharton, se me tivesse dado uma filha pedir-lhe-ia que se parecesse consigo. Mas é minha filha. Todos os habitantes deste vasto condado são meus filhos. Adeus, receba a bênção de um soldado que a espera receber numa época mais feliz.

Ao dizer isto estendeu a mão sobre a cabeça de Frances com um ar religioso e solene que a comoveu até ao fundo do coração. Olhou para ele e este movimento bastou para lhe fazer cair o capuz sobre os ombros e para que a lua iluminasse as suas feições tão suaves.

As lágrimas brilhavam no seu rosto, e os seus olhos azuis cheios de doçura fixavam com respeito o seu guia. Harper curvou-se e depôs um beijo paternal na testa de Frances acrescentando:

- Todos estes atalhos a conduzem à planície, mas temos de nos separar aqui..Tenho muito que fazer e tenho de ir longe. Adeus e só se lembre de mim nas suas orações.

Montou e tirando o chapéu cumprimentou Frances com uma delicadeza cheia de graça.

Desceu pelo lado oposto da montanha e desapareceu por entre as árvores.

Frances começou a andar lesta, com o coração aliviado, pelo primeiro carreiro que se lhe deparou e chegou daí a pougo à planície sem ter corrido qualquer perigo.

Enquanto atravessava a planície que a conduzia à quinta, o barulho de alguns cavaleiros que se aproximavam fê-la sentir medo pois o homem é bem mais temível do que a solidão. Escondendo-se por trás de uma sebe, para esperar que passassem, viu avançar a trote um pequeno destacamento de dragões que não vestiam o uniforme dos dragões da Virgínia. Eram seguidos por um homem envolto numa grande capa que ela reconheceu logo ser Harper. Atrás dele seguia um negro de libré e dois jovens de uniforme. Em vez de seguirem pela estrada que conduzia ao campo do regimento da milícia, voltaram à esquerda e entraram na serra.

Entregando-se a conjecturas sobre quem podia ser este amigo poderoso do irmão. Frances retomou a marcha, aproximou-se da quinta com precaução e entrou sem incidentes e sem ser vista.

 

Jeannette Peyton informou Frances que Dunwoodie ainda não tinha chegado. Todavia, para livrar Henry do pretenso ministro divino que tinha ficado com ele, tinha-lhe mandado um respeitável ministro da Igreja anglicana que tinha chegado há meia hora e que tinha passado este tempo a conversar com a tia revelando-se um homem bem educado e de bom senso; mas esta conversa não tinha incidido de forma alguma sobre os problemas da família.

"Miss" Peyton perguntou imediatamente à sobrinha se tinha conseguido levar a cabo a sua expedição romanesca. Tudo o que ela podia dizer é que tinha prometido guardar silêncio e fez a mesma recomendação à tia. O sorriso que embelezava a sua boca tão bonita, enquanto contava isto, bastou para fazer perceber a Jeannette que tudo corria pelo melhor. Estava a instar com a sobrinha para que tomasse qualquer coisa depois deste esforço a que não estava habituada, quando ouviram um cavalo que parava à porta, o que indicava que o major acabava de chegar.

O mensageiro que Mason tinha mandado ao seu encontro dera-lhe o recado quando ele se encontrava na passagem da barca, esperando com impaciência o regresso de Harper, e partiu imediatamente para o local onde o seu amigo tinha estado detido, atormentado por pensamentos vários. O coração de Frances batia apressado quando ouviu os passos na escada. Eram precisas duas horas para a segurança de Henry, segundo lhe tinha dito o bufarinheiro. O próprio Harper, por melhor intencionado que estivesse, por mais poderoso que fosse, tinha insistido na vantagem de os dragões não iniciarem a sua perseguição antes. Frances ainda mal tivera tempo de se concentrar e já Dunwoodie entrava por uma porta enquanto "miss" Peyton saía pela outra. Estava excitado, descontente, irritado e contrariado.

- Que imprudência, Frances! - afirmou sentando-se - fugir na altura em que lhe tinha garantido que não tinha nada a temer! Estou quase persuadido que sentem um prazer em criar situações de contradição entre os nossos sentimentos e os nossos deveres.

- É muito possível que os nossos deveres não estejam de acordo - respondeu Frances aproximando-se dele e apoiando-se ligeiramente à parede - mas os nossos sentimentos não saberiam estar de outra forma. Estás com certeza contente por Henry ter escapado à morte.

- A vida dele não corria qualquer risco. Harper tinha-lhe feito uma promessa, e Harper nunca faltou a uma promessa feita. Oh! Frances, Frances se conhecesses bem esse homem, a sua palavra havia de te parecer sagrada, e nunca terias aceite esta cruel alternativa.

- Que alternativa? - perguntou Frances que se sentia profundamente compadecida com a sua emoção, mas desejava aproveitar todas as ocasiões para prolongar a conversa.

- Que alternativa? Não tenho de montar esta noite a cavalo para perseguir o teu irmão, quando esperava passá-la com a cabeça deitada na almofada felicitando-me por ter contribuído para o salvar? Não querem dar a impressão que sou vosso inimigo, quando daria de boa vontade todo o meu sangue por vós? Repito, Frances, é uma imprudência, uma loucura, um erro cruel, muito cruel.

- Frances inclinou-se para ele e pegou-lhe timidamente numa mão enquanto a outra estava pousada nos cabelos negros que caíam para a testa do seu bem amado.

- E para que é preciso segui-lo, meu querido Peyton? - perguntou. - Já fizeste muito pelo nosso país e este não te pode exigir esse sacrifício.

- Frances! "Miss" Wharton! - bradou o major levantando-se de rompante e começando a percorrer o quarto com passos largos tomado pela emoção de um homem que sente a honra em perigo - não é o meu país, é a minha honra que exige esse sacrifício. Se ele não tivesse fugido quando a minha unidade estava encarregada de o guardar!... Nessas circunstâncias não teria sido atingido da mesma maneira. Mas se os olhos dos dragões da Virgínia se podem deixar cegar pelo ardil e pelo artifício, têm cavalos velozes e sabres bem afiados. Antes do sol nascer, veremos quem é que ousará dar a entender que a beleza da irmã serviu para salvar o irmão. Sim, sim - acrescentou com um sorriso amargo - mesmo neste momento gostaria de ouvir o caluniador que tivesse coragem de insinuar a existência de uma tal traição.

- Peyton! Querido Peyton! - exclamou Frances recuando aterrorizada com o seu olhar irado. - Queres matar o meu irmão?

- E eu não morreria por ele? - retorquiu Dunwoodie num tom mais calmo e olhando para ela com ternura. - Não sabes que o faria.

O que me atormenta são as suspeitas a que o gesto impensado de Henry me expôs. Que pensará de mim Washington se vier a saber que casei contigo?

- Se é esse receio o motivo que te leva a perseguir o meu irmão - afirmou Frances cuja voz tremia ligeiramente - é fácil remediar isso. O casamento ainda não se realizou.

- É assim que me consolas, Frances? É assim que tens compaixão dos meus sofrimentos?

- Estava bem longe de querer dizer alguma coisa que pudesse ser desagradável, Dunwoodie; mas não nos estás a dar uma importância que nunca poderemos ter para Washington?

- Posso orgulhar-me de o meu nome não ser desconhecido para o comandante-chefe - respondeu Dunwoodie com orgulho - e tu própria. Frances, não és tão desconhecida como a tua modéstia o insinua. Acreditei em ti. Frances, quando disseste que tinhas pena de mim.e devo agir de maneira a merecer sempre esses mesmos sentimentos.

- Mas estou a perder momentos preciosos. Temos de atravessar as montanhas esta noite, para estarmos prontos a cumprir a nossa missão ao nascer do dia. Mason aguarda só as minhas ordens para montar. Vou deixar-te. Frances, embora isso me custe o coração. Tem compaixão de mim, mas nada temas pelo teu irmão. Voltará a ser feito prisioneiro, mas todos os cabelos dele são sagrados.

- Espera, Dunwoodie; peço-te - afirmou Frances mal respirando ao olhar para o ponteiro do relógio. - Antes de partires a cumprir esse dever que o coração te dita, lê este bilhete que Henry deixou para ti antes de partir, e que julgava, sem dúvida, estar a escrever ao seu amigo de criança.

- Desculpo a tua sensibilidade. Frances, mas ainda há-de vir o dia em que me farás justiça.

- Esse dia já chegou - respondeu pegando-lhe na mão, não podendo mais fingir um descontentamento que não sentia.

- Onde encontraste este bilhete? - perguntou o major enquanto percorria com os olhos o texto. - Pobre Henry! Sim, és, na verdade, meu amigo. Se há alguém que me queira ver feliz, és tu.

- Sem dúvida, sem dúvida - atalhou Frances excitada. - Ele só deseja a tua felicidade; acredita no que ele te diz; não há aí uma palavra que não seja sincera.

- Estou convencido, Frances; mas compete-te a ti confirmar o que ele me escreve. Deus permita que possa contar igualmente com a tua afeição!

- Podes, Peyton, podes - respondeu Frances que olhava para ele com toda a inocência.

- Nesse caso, lê e demonstra-me que acabas de dizer a verdade - afirmou Dunwoodie mostrando-lhe o bilhete.

Frances pegou no bilhete e leu o seguinte:

"A vida é bastante preciosa para se confiar a esperanças incertas. Vou deixar-te, Dunwoodie. César foi o único confidente da minha fuga, e recomendo-o à tua complacência. Mas sinto-me devorado por uma inquietação cruel.

"Pensa num pai idoso e doente a quem vão censurar pelo suposto crime do filho.

Pensa em duas irmãs que deixo sem protecção. Prova que os amas a todos.

"Que o ministro de Deus que vais levar te una esta noite a Frances, e que a minha família encontre em ti um filho, um irmão e um marido."

 

A carta caiu das mãos de Frances. Quis levantar os olhos para Dunwoodie, mas baixou-os ao encontrar o seu olhar apaixonado.

- Então o que é que dizes? - perguntou o major com ternura. - Sou digno dessa confiança? Queres que seja um irmão que esta noite parte à procura do seu, ou um oficial do Congresso que vai em perseguição de um oficial inglês?

- Cumprirás de forma diferente o teu dever por eu ser tua mulher, major Dunwoodie? Em que se tornará a situação de Henry menos perigosa?

- Volto a dizer-te que Henry está em segurança. A palavra de Harper é uma garantia. Mas eu mostrarei ao mundo - afirmou o jovem oficial enganando-se talvez a si próprio - que um noivo pode ter coragem para prender o irmão da própria mulher.

- E o mundo compreenderá isso? - retorquiu Frances com uma indecisão que fez nascer a esperança no peito do major.

De facto a tentação era forte. Não encontrava uma forma de reter Dunwoodie até a hora fatal ter passado. O que Harper lhe tinha dito, há pouco, que havia muito poucas coisas que pudesse fazer abertamente por Henry, e que tudo dependia do tempo, estava profundamente gravado na sua memória. E pensava também involuntariamente que era possível que se levantasse entre ela e o seu amado uma barreira eterna, se ele prendesse o irmão e a sentença fosse executada. É difícil abalizar todas as emoções do coração do homem e ainda mais as do coração da mulher.

- Para que servem as demoras, minha querida Frances? - perguntou Dunwoodie que seguia no rosto da amada as hesitações da sua alma. - Alguns minutos bastam para me darem o direito de esposo para te proteger.

Frances, trémula, olhou para o relógio cujos ponteiros pareciam andar com uma lentidão incrível, como que para prolongarem a sua tortura.

- Diz qualquer coisa. Frances - pediu o major. - Posso chamar a nossa bondosa parente? Decide, o tempo escasseia.

Frances tentou responder-lhe, mas só lhe saíram sons inarticulados, que o noivo, com um privilégio que data de tempos imemoriais, interpretou como sendo o consentimento. Precipitou-se para a porta, e ia a sair quando ela recuperou a fala.

- Espera, Dunwoodie! - disse. - Não posso enganar-te no momento em que vou firmar um contrato tão solene. Vi Henry depois da evasão; para a sua segurança basta um breve espaço de tempo. Aceita a minha mão, dou-ta agora de bom grado, se ainda a quiseres.

- Se a quero! - exclamou Dunwoodie num transporte de alegria. - Recebo-a como o mais belo presente do céu. Só preciso de duas horas para atravessar as montanhas e amanhã ao meio-dia estarei de volta com o perdão de Henry, assinado por Washington. Henry sentar-se-á connosco à mesa do nosso almoço de núpcias.

- Nesse caso, espera-me aqui dentro de dez minutos - disse Frances, consolada com a decisão que tinha tomado e com a esperança na segurança do irmão. - Voltarei para fazer os votos que nos unirão para o resto da vida.

Dunwoodie estreitou-a, por instantes, contra o coração, e saiu para prevenir o reverendo da cerimónia a que tinha de presidir.

Jeannette recebeu a notícia com muita surpresa, e mesmo com um pouco de descontentamento. Era uma violação de todos os princípios de ordem e de decoro celebrar um casamento com tanta precipitação e tão pouco cerimonial. Todavia Frances declarou-lhe com uma firmeza modesta que a sua resolução estava tomada. Há já algum tempo que a família tinha consentido nesta união que só fora retardada para satisfazer a vontade dela. Acabava de dar a sua palavra a Dunwoodie e ia cumpri-la. Não podia dizer mais nada sem se comprometer, porque seria preciso entrar em explicações perigosas para Birch ou para Harper, ou talvez mesmo para os dois. Pouco habituada a contestar, e sentindo pelo seu parente Dunwoodie uma verdadeira afeição, "miss" Peyton cedeu à firmeza da sobrinha e não fez mais objecções.

O senhor Wharton estava inteiramente convertido à doutrina da obediência passiva e à necessidade de ceder às circunstâncias para resistir às solicitações de um oficial que tinha tanto crédito no exército rebelde como o major; e Frances, acompanhada pelo pai e pela tia, voltou à sala que deixara havia pouco, quando expirava o curto prazo que tinha fixado.

Dunwoodie e o sacerdote já ali se encontravam. Frances, em silêncio, sem se mostrar reservada, entregou-lhe o anel da mãe, e depois de uns instantes que todos aproveitaram para ocupar os seus lugares, o senhor Wharton e "miss" Peyton deram o seu consentimento para que se iniciasse a cerimónia.

O relógio estava mesmo diante de Frances, e os seus olhos inquietos fixaram-se mais de uma vez sobre o mostrador. Mas as palavras solenes do ministro de Deus atraíram toda a sua atenção e o seu espírito estava unicamente ocupado com os votos que ia pronunciar. A cerimónia foi breve e quando o pastor pronunciava a última palavra da bênção nupcial soaram as nove horas. O tempo pedido por Harper tinha passado, e Frances teve a sensação que o seu coração se libertava de um peso terrível.

Dunwoodie abraçou-a, beijou várias vezes Jeannette, apertou a mão ao sogro e ao pastor, e dava ainda largas à sua alegria quando bateram à porta. Abriram e Mason entrou.

- Já estamos montados e se concordar, partiremos. Como tem boa montada, tem muito tempo de nos apanhar.

- Está muito bem, meu bravo Mason - respondeu Dunwoodie aproveitando esta oportunidade para ficar mais uns momentos - estarei convosco na primeira paragem.

O tenente retirou-se para executar estas ordens e Wharton e o reverendo saíram atrás dele.

- Agora, Dunwoodie, pensa que é um irmão que persegues. Não te peço mais nada para ele, se tiveres a infelicidade de o encontrar.

- Diz antes se eu tiver a felicidade - retorquiu Dunwoodie - porque se me meteu na cabeça que ele há-de dançar na nossa festa de núpcias.

Quisera Deus que eu o conseguisse conquistar para a nossa causa! É a causa do seu país, e combateria muito melhor, Frances, se tivesse o teu irmão a meu lado.

- Não fales assim, Dunwoodie! Sinto-me assaltada por pensamentos terríveis.

- Não vamos falar mais, mas tenho de te deixar. Mason partiu e não lhe dei ordens. Mas quanto mais cedo partir. Frances, mais cedo volto.

Ouviu-se então o galope de um cavaleiro que se aproximava da quinta, e antes de o major ter tido tempo de dizer adeus à esposa e à tia, o impedido abriu a porta e deu passagem a um oficial. Trazia o uniforme de ajudante de campo e Dunwoodie reconheceu-o como sendo um dos adidos militares de Washington.

- Major - afirmou o oficial depois de ter cumprimentado as senhoras-o comandante-chefe encarregou-me de lhe entregar esta ordem.

Depois de executada esta missão o cavaleiro pediu desculpa dizendo que o dever o chamava e partiu imediatamente.

- Por Deus! - exclamou o major - os nossos problemas tomam um novo caminho, mas compreendo tudo: Harper recebeu a minha carta e isto é o resultado da sua influência.

- Traz notícias favoráveis a respeito de Henry? - perguntou Frances pondo-se a seu lado.

Oiçam e julguem: "Senhor,

"Logo que receba esta comunicação tome as medidas necessárias para fazer avançar o seu esquadrão de forma a estar amanhã às dez horas nas colinas de Croton, em frente do destacamento inimigo que cobre os forrageadores. Encontrará aí uma unidade de infantaria para o apoiar.

Comunicaram-me a fuga do espião inglês. A sua detenção não tem grande importância comparada com o dever que temos a cumprir. Se alguns dos seus homens já saíram em sua perseguição mande-os regressar e não perca tempo para se ir bater contra o inimigo.

O seu servidor, G. Washington."

 

- Graças a Deus! -exclamou Dunwoodie - estou livre de uma tarefa bem difícil! Posso ir ao encontro do meu dever com honra.

- E com prudência, querido Dunwoodie - disse Frances cujo rosto se fez pálido de morte. - Lembra-te que me deste um novo direito para te recomendar cuidado e ponderação.

O jovem major olhava embevecido o rosto encantador, embora coberto pela palidez e segurando-lhe na mão apertou-a contra o coração dizendo:

- Mas para que é tanta pressa? Além disso só partirei dentro de algumas horas, chegarei a Peekskill antes de os dragões terem tomado o pequeno almoço. Já sou um soldado muito velho para me apressar assim, e para me perturbar.

- Não, parte imediatamente - disse Frances com uma voz abafada - não negligencies as ordens de Washington e sobretudo sê prudente e cuidadoso.

- Vou sê-lo por teu amor - declarou Dunwoodie, abraçando-a uma vez mais. Frances chorou uns momentos sobre o seu coração, mas ele afastou-a.

"Miss" Peyton retirou-se com a sobrinha, considerando necessário, antes de se separarem nessa noite, dar-lhe alguns conselhos sobre os deveres matrimoniais. Se estas instruções não foram convenientemente digeridas foram, pelo menos, recebidas com docilidade. Lamentamos que a história não tenha conservado esta dissertação preciosa, mas as nossas pesquisas permitiram-nos concluir que incidiu principalmente sobre a educação das crianças. Mas vamos deixar as duas senhoras para voltar até junto do capitão Wharton e de Harvey Birch.

 

O bufarinheiro e o companheiro desceram até ao vale e depois de terem parado um instante para se porem à escuta e não tendo ouvido nenhum barulho que anunciasse que os perseguiam, entraram ousadamente na estrada. Conhecendo perfeitamente a montanha que os cercava, Birch caminhava em silêncio com passos largos, como era habitual e que eram um sinal da sua profissão; se estivesse carregado com a mala poderia muito bem parecer que ia trabalhar.

Às vezes, quando se aproximavam dos pequenos postos ocupados pelas tropas americanas, e havia muitas nestas serras, dava uma volta para evitar as sentinelas, e metia-se sem receio por uma mata espessa, ou trepava por uma encosta escarpada, empresa que à vista parecia inacessível. Mas Birch conhecia perfeitamente este caminho difícil, sabia por onde se podia descer por determinada ravina e em que ponto se podia atravessar a vau este ou aquele ribeiro. Por uma ou duas vezes Henry pensou que não poderiam avançar mais além, mas a destreza e a experiência do guia triunfaram de todas as dificuldades.

Depois de terem andado ou mesmo corrido durante três horas, Harvey deixou um caminho que o levava para leste, e dirigiu-se pela serra para sul. Explicou ao seu companheiro que assim evitavam as patrulhas que vigiavam constantemente a entrada de oriente e encurtavam caminho seguindo em linha recta.

Depois de terem chegado ao cume de uma serra bastante alta, Harvey parou, sentou-se na margem de um pequeno regato, abriu uma maleta que tinha ocupado o lugar destinado à mala, tirou algumas provisões e convidou o companheiro a partilhar da sua frugal refeição. Henry tinha conseguido acompanhar o passo ágil do bufarinheiro porque a sua agitação lhe dava forças físicas. A ideia de uma paragem desagradava-lhe porque havia a possibilidade de a cavalaria lhes passar à frente e cortar a passagem para o Território Neutro. Comunicou os seus receios a Harvey acrescentando que gostaria de prosseguir.

- Siga o meu exemplo, capitão Wharton - respondeu Harvey começando a comer - e repare as forças. Se a cavalaria já partiu é impossível conseguirmos um avanço sobre ela; e se não tiverem vão dar-lhes um trabalho que não lhes deixará tempo para pensarem em nós.

- Disse-me que era importante termos duas horas de avanço, mas se paramos aqui perdemos a vantagem que temos.

- Essas duas horas passaram, capitão Wharton, e o major Dunwoodie já não pensa sequer em perseguir dois homens, quando sabe que há centenas que o esperam em Croton.

- Silêncio! Birch. Escute! Oiço cavaleiros que passam no sopé do monte; oiço-os mesmo rir e falar. Deus do céu! É a voz de Dunwoodie. Oiço-o rir com os camaradas. Não parece preocupado com o perigo que o amigo de infância corre. Frances não lhe deve ter entregue o meu bilhete.

Ao ouvir a primeira exclamação do capitão, Harvey levantou-se, e aproximando-se da borda com precaução, estendeu a cabeça de forma a ver o destacamento escondido pela sombra dos rochedos e a não ser visto de tão longe, examinou o caminho seguido pelos dragões. Ficou nesta posição até ter deixado de ouvir o barulho dos cavalos. Sentou-se e continuou a comer tranquilamente a sua refeição.

- Ainda tem um caminho longo e fatigante a percorrer, capitão Wharton. Faria melhor se comesse qualquer coisa como eu. Parecia ter bom apetite no rochedo de Fishkill, a caminhada tirou-lho?

- Julgava então que estava em segurança, mas o que a minha irmã me disse deixou-me preocupado e não sou capaz de comer.

- Tem menos razão para estar preocupado agora do que tinha antes, desde o dia em que se recusou seguir o meu conselho e deixar Sauterelles. O major Dunwoodie não é um homem para se rir e para se divertir quando sabe que um amigo está em perigo. Vamos! Vamos! Coma um bocadinho; não encontraremos a cavalaria se as nossas pernas nos puderem levar mais quatro horas, e se o sol ficar tanto tempo como é habitual por trás das serras.

O bufarinheiro falava com tanta segurança que Henry se sentia mais confiante e resolvido a abandonar-se inteiramente aos conselhos do seu guia, sentiu voltar o apetite e deixou-se persuadir a tomar uma refeição em termos, se tivermos mais em conta a quantidade que a qualidade. Depois de terminada a refeição o bufarinheiro pôs-se em marcha.

Henry seguia-o com uma submissão cega. Durante mais duas horas continuaram a andar pelos desfiladeiros difíceis e perigosos, sem seguirem qualquer caminho traçado, sem outro guia que não fosse a lua que viajava nos céus, ora escondida pelas nuvens arrastadas pelo vento, ora espalhando ao longe sobre a terra o brilho dos seus raios. Chegaram por fim ao ponto em que as serras diminuindo de altura dão lugar a elevações secundárias, e deixaram a aridez estéril dos rochedos para entrarem nas terras imperfeitamente cultivadas do Território Neutro.

Harvey caminhava ainda com maior precaução, e tomou diversas medidas para evitar encontros com patrulhas americanas. Quanto aos postos fixos conhecia-os muito bem pelo que não receava passar ao seu alcance. Ora seguindo por caminhos abertos ora evitando-os com uma precisão que parecia ditada pelo instinto, nunca abrandava o passo, não parecia fazer qualquer esforço, e não parecia conhecer a fadiga.

A lua acabava de se esconder, e a aurora começava a colorir o oriente quando o capitão Wharton confessou que se sentia cansado e perguntou ao companheiro se não tinham ainda chegado a um cantão onde pudessem descansar numa quinta qualquer.

- Olhe - respondeu Birch que lhe mostrava uma colina a alguma distância atrás deles. - Não vê um homem a passear na ponta de um rochedo? Vire-se um pouco mais, para ele ficar na linha de luz que vem de leste e o senhor. Olhe! Está a andar; está a voltar-se para o oriente e parece seguir qualquer coisa com atenção. É uma sentinela das tropas reais e junto dele, no acampamento estão escondidos duzentos homens.

- Nesse caso - interrompeu Henry - vamos ter com eles e estamos salvos.

- Devagar, capitão Wharton, devagar - replicou o bufarinheiro com frieza. - Já esteve uma vez no meio de trezentos homens das tropas regulares, e estava nas fileiras opostas um homem para o prender. Não vê uma coisa negra na encosta desta colina diante da primeira, por trás daqueles molhos de palha? São os... os rebeldes e esperam só a luz do dia para verem quem ficará senhor do terreno.

- Pois bem! - exclamou o jovem impetuoso. - Vou juntar-me às tropas do meu soberano e partilharei com eles a sua sorte, boa ou má.

- Não se bate com armas iguais. Não se esqueça que tem a corda em volta do pescoço? Não, não; prometi a uma pessoa, a quem não posso faltar à palavra, que o levaria a lugar seguro e tenho de o fazer. A menos que não se lembre do que já fiz, e de todos os riscos a que me expus por si, capitão Wharton, vai voltar para este lado e vai seguir-me a Harlem.

Henry cedeu contrariado ao ascendente que o guia tinha sobre ele neste momento, e não levaram muito tempo a chegar às margens do Hudson. Depois de terem caminhado um bocadinho pela margem, o bufarinheiro viu uma barca cujo dono parecia ser seu conhecido. Entraram os dois, atravessaram o rio, e desembarcaram a sul de Croton. Uma vez ali Birch declarou que estavam em segurança, porque as tropas reais tinham paralisado as operações do exército americano nesta zona, onde estavam em força, razão pela qual as tropas ligeiras destes últimos não ousavam mostrar-se temendo que lhes cortassem a retirada.

. Durante toda esta marcha difícil, o bufarinheiro tinha mostrado um sangue-frio e uma presença de espírito a toda a prova. Henry tinha-o seguido como uma criança, e foi recompensado pelo prazer que experimentou ao perceber que não tinha nada a temer, e que não devia ter dúvidas sobre a sua segurança.

Uma encosta escarpada e difícil conduzia-os do sítio em que tinham desembarcado, para os terrenos elevados que nesta zona do rio formam a margem oriental do Hudson. Afastando-se um pouco do caminho, abrigando-se numa pequena mata de cedros, o bufarinheiro sentou-se na plataforma de uma rocha, e disse ao seu companheiro que tinha chegado a hora de descansarem e de refrescarem. Era já dia claro e viam-se distintamente os objectos à distância.

A seus pés corria o Hudson, estendendo-se a direito para sul até onde a vista podia atingir. A norte as montanhas mostravam os seus cumes elevados acima da massa de nuvens suspensas sobre o rio e que assim indicavam o seu curso por entre os rochedos, cujos cimos em forma cónica se agrupavam uns por trás dos outros numa desordem que se podia supor ser a consequência de esforços infrutíferos para suspender este curso de água majestoso e poderoso.

Saindo deste labirinto de montanhas, o rio, como que entregando-se à alegria de ser o vencedor desta luta, formava uma grande baía, adornada por terras baixas e férteis que avançavam humildemente sobre a vasta bacia. Na margem oposta, isto é, a ocidente, os rochedos de Jersey mostravam-se, formando esta barreira que lhes deu o nome de paliçada, e elevando-se a centenas de pés, como para proteger contra uma invasão a rica região situada por trás deles. Mas desprezando tal inimigo, o rio deslizava orgulhosamente, deixando correr a água a seus pés, e continuava a sua marcha para o oceano. Um raio do sol nascente atravessou as nuvens sobre as águas tranquilas do Hudson, e de um momento para o outro toda a cena ganhou movimento, mudando de forma, e oferecendo à vista imagens que renovavam sem cessar.

Na época em que escrevemos, quando a manhã levanta a grande cortina da natureza, podem ver-se a navegar neste rio dezenas de barcos ornados de velas brancas, com aquele aspecto que anuncia a proximidade da metrópole de um grande e florescente império; mas não oferecia então aos olhos de Henry e do vendedor ambulante espectáculo tão deslumbrante porque nas suas águas só se viam as vergas quadradas e os mastros elevados de um barco de guerra que estava ancorado a algumas milhas de distância.

Antes das nuvens se terem dissipado, só se viam os mastros e num deles esvoaçava uma bandeira agitada pelo vento da noite; mas à medida que o dia ia surgindo apareceram sucessivamente o corpo negro do navio, o Intrincado sistema de aprestos, as vergas e os arco-botantes, que pareciam longos braços estendidos.

- Capitão Wharton - disse Harvey - ali tem um lugar seguro para si. A América não saberá atacá-lo se alguma vez se encontrar no convés daquele barco. Enviaram-no para cobrir os forrageadores e apoiar o destacamento que viu há pouco porque as tropas regulares gostam muito de ouvir os canhões dos seus barcos.

Henry não ousou responder ao sarcasmo destas palavras, e talvez nem lhe tivesse prestado atenção, mas aceitou com alegria esta proposta para que depois de terem descansado ele tentasse entrar a bordo.

Iniciaram então a operação indispensável do pequeno almoço, e enquanto estavam ocupados com ela, ouviram várias descargas de mosquetes, ao longe, a seguir alguns tiros de espingarda isolados, depois um fogo rápido quase contínuo.

- A sua profecia concretizou-se - afirmou Henry excitado - as nossas tropas têm os rebeldes entre mãos. Daria seis meses de ordenado para assistir a esta carga.

- Por Deus -atalhou o companheiro sem perder uma dentada. - Vale mais ver de longe que de perto, e posso dizer que a companhia deste bocado de toucinho, embora frio é mais gostoso que o fogo mais quente das tropas continentais.

- O fogo é intenso para uma força tão pequena, mas parece irregular.

- Estas descargas irregulares são da milícia do Connecticut - afirmou Harvey que levantou a cabeça para ouvir melhor. - Estes milicianos são bons atiradores, e sabem atirar a bala para o objectivo. As salvas de artilharia são das tropas reais que, como sabe, fazem fogo, sob comando, tanto tempo quanto podem.

- Não gosto do que chama descargas irregulares- retorquiu Henry que andava para trás e para a frente com um ar mal disposto - sucedem-se como o rufar de um tambor, não se parece nada com o fogo de uma escaramuça.

- Não, não, não falei em escaramuçadores - afirmou o bufarinheiro que acabara de comer e se punha de joelhos. - Enquanto se aguentarem, estes milicianos valem mais que as melhores unidades do exército real. Sabem o que têm em jogo e pensam no que fazem. Não se divertem a fazer fogo para o ar, e cada bala vai direita ao seu alvo.

- Fala como se lhes desejasse a vitória, senhor Birch - afirmou Henry bem humorado.

- Desejo a vitória à boa causa, capitão Wharton - respondeu Harvey cujo ar de satisfação foi substituído por uma expressão de indiferença. Julgava que me conhecia o suficiente para saber que partido prefiro.

- Oh! sei que passa por leal(1) -replicou Henry com certo desprezo. - Mas, por Deus! Deixei de ouvir a artilharia.

Ficaram à escuta alguns minutos. As cargas irregulares tornaram-se menos vivas, mas foram seguidas de salvas fortes e repetidas que se sucederam rapidamente.

- Passaram à baioneta - afirmou o bufarinheiro - as forças regulares tentaram a baioneta e repeliram os rebeldes.

- Ah! senhor Birch! A baioneta é a arma do soldado inglês - declarou Henry com entusiasmo. - Gosta de uma carga de baioneta.

- Pois bem! - disse o bufarinheiro. - Na minha opinião não dá grande prazer manejar essa arma. Estou mesmo convencido que os milicianos são da minha opinião, porque a maior parte não tem esses vis bocados de ferro pontiagudo. Ah! meu Deus! Capitão, gostaria que tivesse estado comigo no campo dos rebeldes, e que tivesse ouvido as mentiras que se diziam acerca de Burgoyne(2) e sobre a batalha de Bunker Hill;

 

*1. Leal, no sentido de monárquico.

  1. General inglês muitas vezes citado com orgulho pelos Americanos por causa da sua derrota.

 

teria ficado convencido que eles gostam mais da baioneta do que do jantar.

Ao dizer isto, Harvey tinha um ar singular de satisfação interior e de afectada ingenuidade que não agradou completamente a Henry que não se atreveu a responder a este comentário.

Ainda se ouviam os tiros dos mosquetes, e enquanto os seguiam com a maior atenção, um homem armado com um mosquete saiu do pequeno bosque de cedros que os cobria, em parte, e avançou para eles com precaução. Foi Henry quem viu primeiro o desconhecido e achando-lhe qualquer coisa de estranho, chamou a atenção do companheiro. Birch estremeceu e fez menção de fugir, mas dominando-se esperou em silêncio que o desconhecido se encontrasse a alguns passos deles.

- Amigo! - disse este, apoiando no chão a coronha do mosquete e temendo aproximar-se mais.

- Era melhor retirar-se - respondeu Birch em voz bem alta. - Há nas redondezas bastantes soldados regulares para tomarem conta do senhor. Não estamos na vizinhança dos dragões de Dunwoodie e não me vai vender uma segunda vez.

- Para o diabo o major Dunwoodie e os seus dragões - retorquiu o chefe dos Skinners, porque dele se tratava. - Viva o rei Jorge! E morram os rebeldes! Se me ensinar a forma de conseguir a segurança no corpo de Vaqueiros, senhor Birch, pago-lhe bem e serei, além disso, seu amigo para sempre.

- O caminho está aberto - respondeu Birch que lhe voltou as costas não podendo esconder o seu desprezo. - Se quer juntar-se aos Vaqueiros sabe tão bem como eu onde é que os pode encontrar.

- Sem dúvida, mas não me arrisco a procurá-los sozinho. O senhor que é tão conhecido, senhor Birch, não lhe custava muito acompanhar-me.

Henry interveio nesta conversa e depois de um curto diálogo com este patife foi-lhe dada a autorização que pedia com a condição de entregar as armas. Consentiu sem dificuldade e Harvey apressou-se a pegar na espingarda; mas só a apoiou ao ombro depois de a ter examinado com cuidado e de se ter assegurado que estava carregada, e que a escorva estava bem seca.

Concluído isto puseram-se em marcha. Birch conduziu-os ao longo da margem do rio por caminhos onde não podiam ser vistos, e quando chegaram diante da fragata, fizeram um sinal a que responderam fazendo descer uma barca.

Só depois de algum tempo e de algumas precauções é que os marinheiros se aproximaram de terra, mas Henry que se apresentou ao oficial que vinha com eles, obteve sem dificuldade autorização para se juntar aos seus companheiros de armas. Antes de se despedir de Birch, o capitão entregou-lhe uma bolsa bem cheia, dadas as circunstâncias, que o bufarinheiro colocou com cuidado num bolso secreto, feito de forma engenhosa no fato e fê-lo com tal perfeição que o Skinner não deu por nada.

A barca afastou-se da margem e Birch voltando-lhe as costas respirou fundo, como se tivesse sido aliviado de uma pesada carga. Começou a trepar a encosta com a sua rapidez habitual. O seu novo companheiro seguia-o.

Olhavam de vez em quando um para o outro de uma forma que indicava bem a desconfiança mútua que havia entre eles, mas não diziam palavra.

Pela estrada que seguia pela margem do rio vinham algumas carroças e de vez em quando viam-se pequenos destacamentos de cavalaria que escoltavam os frutos da sua excursão até à cidade. O bufarinheiro como tinha estabelecido o seu plano evitava encontrar-se com estes destacamentos em vez de procurar a sua protecção. Depois de terem percorrido algumas milhas pela margem do rio, guardando sempre o silêncio apesar das tentativas de conversa que o Skinner acabou por fazer, Harvey, que segurava a espingarda com mão firme e olhava frequentemente para o companheiro, tomou a estrada com a intenção de atravessar a serra para se dirigir a Harlem.

Quando acabavam de entrar na estrada, um pequeno corpo de cavalaria apareceu sobre uma elevação próxima, e chegou junto dos nossos viajantes antes de eles o terem visto. Era tarde para bater em retirada, e depois de ter examinado os componentes deste grupo de atiradores, Harvey não ficou muito aborrecido com este encontro que considerava como uma forma antecipada de entregar um companheiro desagradável.

Eram uns dezoito a vinte homens, montados e equipados com a farda dos dragões, embora o aspecto e as maneiras revelassem que não se tratava de forças regulares. À frente estava um homem de meia idade cuja expressão indicava mais brutalidade que razão. Trazia o uniforme de oficial, mas não trazia o fato limpo e cuidado, nem tinha o aprumo e o desembaraço que distinguiam a maior parte dos oficiais do exército. Estava firme na sela, mas os seus movimentos não tinham flexibilidade, e a forma como segurava nas rédeas teria feito rir o pior dos cavaleiros da Virgínia.

- Olá! - disse como se Harvey o esperasse. E numa voz que tinha tanto de conciliador como o seu aspecto exterior acrescentou: - onde vão com tanta pressa? São espiões de Washington?

- Não passo de um pobre bufarinheiro - respondeu Birch com toda a calma. - Vou a Harlem para comprar mercadorias.

- E como é que pensas lá chegar, meu pobre bufarinheiro? Não sabes que ocupamos todos os fortes da linha de Kingsbridge para evitar que caminhantes como vocês andem pela região?

- Julgava que com este papel poderia andar por toda a parte - respondeu Birch demonstrando certa confiança.

O oficial examinou o papel que lhe foi entregue, e depois de o ter lido, entregou-o ao vendedor ambulante piscando os olhos com um ar de inteligência extraordinária num homem com este aspecto. Voltando-se para dois homens que tinham avançado para impedir a passagem a Harvey disse-lhes:

- Para quê reter este homem? - perguntou num tom brusco. - Deixem-no passar tranquilamente. E tu quem és? - perguntou ao Skinner. - Não vi o teu nome no papel.

- Não, senhor - respondeu o Skinner com humildade. - Sou um pobre homem que se deixou ludibriar. Tive a infelicidade de servir no exército dos rebeldes, mas, graças a Deus, reconheci o meu erro, e quero reparar o erro servindo sob a bandeira do ungido do Senhor.

- Um desertor! Um Skinner que se quer fazer Vaqueiro, sem dúvida? No último recontro que tive com estes patifes, mal podia distinguir os meus homens. Não atendemos muito ao uniforme e estes malandros mudam tantas vezes que é impossível contar com isso. Mas segue que daqui a pouco já te arranjamos uma ocupação.

Por muito pouco cativante que fosse este acolhimento, o Skinner, se se podem julgar os sentimentos pela manifestação exterior, ficou encantado. Dirigiu-se contente para a cidade, tão feliz por escapar ao olhar brutal do homem que o tinha interrogado, que se esqueceu de tudo o resto.

Mas o indivíduo que desempenhava nesta força irregular as funções de sargento aproximou-se do comandante e encetou uma conversa que parecia importante e confidencial. Falavam em voz baixa e olhavam de vez em quando para o Skinner, que começou a estar convencido que era objecto de uma atenção que não era normal.

O seu descontentamento aumentou ao reparar no sorriso do capitão, que embora pudesse passar por um trejeito, revelava uma satisfação interior. Esta cena prolongou-se durante toda a travessia do vale e terminou quando subiam outra colina. Ali o capitão mandou parar os homens e apeou-se com o sargento. Os soldados pegaram nas pistolas de arção, gesto que não causou nem desconfiança nem alarme porque era uma precaução comum entre eles, e o comandante fez sinal ao bufarinheiro e ao Skinner para o seguirem.

Depois de alguns minutos de marcha chegaram a um ponto em que o monte formava uma plataforma que dominava o rio, sobre as margens do qual um dos flancos do rochedo descia quase a pique. No cume desta elevação estava uma casa arruinada e abandonada do que fora antigamente um palheiro. A maior parte das vigas do telhado estavam caídas e as portas tinham sido arremessadas para o chão, uma em frente do edifício e a outra, impelida talvez pelo vento, junto da encosta.

Ao entrar neste lugar desolado, o oficial dos Vaqueiros tirou do bolso com toda a calma, um cachimbo de cano muito curto que podia ter sido branco, mas que servira tantas vezes que já tinha a cor e o brilho do ébano, uma caixa de tabaco e uma bolsa de coiro onde estava a pedra de fuzil para fazer fogo e a respectiva isca.

Quando toda esta aparelhagem fez chegar à sua boca o que um hábito adquirido há muito tornava necessário sempre que se queria concentrar. Quando tinha lançado no ar uma coluna de fumo bastante espessa, o capitão levantou a mão na direcção do sargento.

Este tirou do bolso uma corda pequena e entregou-a ao oficial, que parecia pensar num projecto importante, porque a nuvem de fumo se tornava cada vez mais espessa encobrindo-lhe quase inteiramente a cabeça, e olhava em volta como se procurasse uma coisa que lhe faltava. Por fim tirou o cachimbo da boca, respirou o ar puro, voltou a colocá-lo entre os lábios e voltou a concentrar-se.

O palheiro era atravessado por uma trave grossa que estava apoiada nas paredes, a pouca distância da porta do lado sul, e de onde se viam as águas do Hudson que corriam para a baía de Nova York. O chefe dos Vaqueiros deitou a corda por cima deste bocado de madeira e atou as extremidades. Um barril desmantelado cujas aduelas mal se seguravam estava ali, provavelmente por já não ser utilizado. O sargento obedecendo a um sinal do oficial agarrou nele e colocou-o sobre a trave. Todas estas diligências foram feitas na mais perfeita calma e decorreram, segundo tudo indicava, a gosto do capitão.

- Avança! - ordenou ao Skinner que, espantado com estes preparativos, fora um espectador atento e silencioso. Obedeceu, e só quando lhe tiraram o lenço do pescoço e o chapéu que deitaram para o chão, é que ele começou a ficar alarmado. Mas ele tinha-se servido tantas vezes de expedientes idênticos para obrigar a falar os que teimavam em manter-se calados, que não sentiu o mesmo terror que teria sentido um homem sem a sua experiência ao ver tamanho aparato e de tão mau augúrio. À volta do pescoço foi-lhe ajustado um nó de correr e tudo isto foi executado com o mesmo sangue-frio que tinha caracterizado toda esta cena; sobre o barril desmantelado foi colocado um bocado de madeira e mandaram-no subir para ali.

- Mas o barril pode cair -disse o Skinner que agora começava a tremer. Não era preciso nada disto para eu lhes contar tudo o que sei. Dou-lhes até meios para surpreenderem o meu grupo, embora seja o meu irmão que o comanda.

- Não executo senão os teus ensinamentos - respondeu o executor - porque o capitão executa os actos. E esticando a corda de forma a tornar um bocadinho incómoda a situação do Skinner, passou-a várias vezes em volta da trave e colocou a ponta fora de alcance.

- Isto vai além de uma brincadeira - disse o Skinner em tom de censura ao mesmo tempo que se punha em bicos dos pés e fazia esforços vãos para libertar a cabeça do nó de correr. Todavia, a experiência do Vaqueiro tornava impossível qualquer fuga.

- Que fizeste do cavalo que me roubaste, malandro? - perguntou o oficial por entre baforadas de fumo intenso.

- Rebentou numa corrida - respondeu prontamente o Skinner - mas posso dizer-lhe onde é que se encontra um que vale o que ele e o pai nunca valeram.

- Mentiroso! Quando precisar de um, sei onde é que hei-de ir procurá-lo. Aconselho-te, todavia, a recomendares-te a Deus, porque não vais ficar muito tempo neste mundo.

E ao terminar este aviso consolador, o capitão deu um forte pontapé ao barril cujas aduelas se dispersaram em todos os sentidos e deixaram o Skinner suspenso no ar. Como tinha as mãos livres, levantou-as, segurou a corda e manteve-se assim à força de pulsos.

- Vamos, capitão - disse com uma voz que começava a ficar rouca, enquanto os joelhos começavam a tremer ligeiramente - basta de brincadeiras, tem muito tempo para rir. Os meus braços já não podem mais, na verdade, não me posso aguentar mais tempo.

- Senhor bufarinheiro - disse o chefe dos Vaqueiros com voz autoritária - vou fazer-lhe companhia. O seu caminho é por esta porta, vá, e não pense tocar nesse cão, porque senão enforco-o em seu lugar, mesmo que duas dezenas de Sirs Henry(1) precisem dos seus serviços.

 

*1. Sir Henry Clinton.

 

Com estas palavras deixou o palheiro com o sargento enquanto Birch partia para o seu lado, precipitadamente.

Não foi, contudo, até muito longe pois tendo encontrado uma mata espessa em que se podia esconder dos Vaqueiros, parou, cedendo a um desejo irresistível de ver qual seria o fim desta cena extraordinária.

Ao ficar sozinho no palheiro, o Skinner olhou em redor aterrorizado para ver o que tinha acontecido aos seus perseguidores. Pela primeira vez, o seu espírito admitiu a horrível ideia de que os Vaqueiros tinham projectos sérios contra a sua vida. Suplicou-lhes que o libertassem, prometeu-lhes com palavras entrecortadas que lhes forneceria informações importantes, fingindo mesmo que considerava o que se estava a passar como uma brincadeira.

Quando ouviu o barulho dos cavalos que se punham em movimento, e não viu junto de si ninguém que o pudesse socorrer, o desespero deu-lhe forças para se segurar à trave, mas as forças estavam esgotadas e não se aguentou. Segurou a corda com os dentes, fez uma tentativa vã para a cortar, e caiu, mas ainda suspenso pelos braços. Neste momento os seus gritos eram verdadeiros berros.

- Socorro!... Cortem a corda... Capitão!... Birch!... Bom bufarinheiro!... Para o diabo o Congresso!... Socorro, por amor de Deus!... Viva o rei!... Oh, Deus! Piedade!... Piedade!... Piedade!

A voz faltou-lhe. Soltou uma das mãos da corda para a meter entre o pescoço e o baraço, o que conseguiu em parte, mas a outra caiu sem forças ao longo do corpo. Foi agitado por convulsões e daí a pouco não era mais do que um cadáver horrendo.

Esta cena medonha que Harvey contemplava involuntariamente horrorizou-o e tirou-lhe as forças para prosseguir. Todavia os últimos gritos do moribundo deram-lhe um novo impulso e correu para a estrada tapando as orelhas com as mãos. Contudo, o grito terrível: "piedade!... piedade!..." continuou a soar aos seus ouvidos e durante semanas a sua memória levava-o sem cessar até este espectáculo horrível.

Todavia, os Vaqueiros continuaram o seu caminho, como se não se tivesse passado nada de extraordinário, e o corpo do Skinner ficou suspenso enquanto o acaso o quis.

 

Enquanto se passavam as cenas e os acontecimentos que acabamos de narrar, o capitão Lawton, caminhando com lentidão e prudência, e partindo da aldeia dos Quatro-Cantos, passava com o seu pequeno destacamento em frente de uma unidade de tropas inimigas; durante algum tempo manobrou-o com tanta perícia que não só evitou as suas armadilhas, mas escondeu tão bem a fraqueza da sua unidade que os outros temiam constantemente ser atacados pelos Americanos. Esta contemporização não estava de acordo com o carácter impetuoso do oficial, mas executava as ordens que tinha recebido do comandante. Quando Dunwoodie deixara o regimento, sabia-se que o inimigo avançava com pequenas investidas, e encarregara Lawton de guardar à vista as tropas inglesas até ao seu regresso, e até à chegada de um corpo de infantaria que os podia ajudar a cortar-lhes a retirada.

Lawton executava estas ordens à letra, mas abstinha-se de atacar o inimigo, não sem aquela impaciência que lhe era habitual.

Durante estes movimentos, Betty Flanagan conduzia a pequena carroça com um zelo infatigável através das montanhas do West Chester, ora discutindo com o sargento Hollister a natureza dos espíritos malignos e a qualidade dos licores que vendia, ora travando um vivo diálogo com o doutor Sitgreaves sobre diversos pontos relativos ao uso de estimulantes, questão que se punha todos os dias, e sobre a qual tinha opinião diametralmente oposta. Mas chegou o momento em que tiveram de pôr termo às discussões e às querelas. Um destacamento da milícia das províncias orientais saiu dos desfiladeiros e aproximou-se do inimigo.

A junção do destacamento de Lawton com esta força auxiliar fez-se à meia-noite, e os dois chefes combinaram as medidas que haviam de tomar. Depois de ter escutado o capitão, que menosprezava um pouco o valor do inimigo, o comandante da força de infantaria resolveu atacar os Ingleses logo que o dia lhes permitisse reconhecer a sua posição, sem esperar pela chegada de Dunwoodie e da cavalaria. Logo que isto ficou decidido, Lawton saiu do edifício onde tinha decorrido a conferência e foi juntar-se ao seu pequeno destacamento.

O pequeno número de dragões que estavam sob as ordens de Lawton tinham atado os cavalos às estacas de um monte de feno, ao abrigo do qual se tinham deitado para descansarem umas horas. O doutor Sitgreaves, o sargento Hollister e Betty Flanagan estavam um pouco mais longe, em cima de cobertores que tinham estendido sobre a superfície dura da rocha.

Lawton deitou-se ao lado do médico. Embrulhado no sobretudo, a cabeça apoiada na mão, parecia contemplar a lua que corria majestosa no firmamento. O sargento ouvia numa atitude respeitosa as instruções que o médico lhe dava e Betty que tinha a cabeça apoiada numa pequena barrica do seu licor preferido levantava-a de vez em quando, hesitando entre a necessidade de dormir e o desejo de falar para defender algumas das suas doutrinas favoritas.

- Deve perceber, sargento - afirmou o médico que interrompera a conversa quando Lawton chegara - que se fizer um golpe de sabre de baixo para cima, este perde a força adicional que lhe dá o peso do seu corpo e é menos fatal para a vida humana. Todavia não afecta menos o verdadeiro objectivo da guerra, que é pôr o inimigo fora de combate.

- Aí tem, sargento - disse a hospedeira. - Que mal faz matar um homem em combate? Os monárquicos são mais misericordiosos para connosco? Pergunte ao capitão Lawton se o país poderia ser livre sem golpes de sabre bem aplicados. Não queria, meu Deus, que os nossos soldados desonrassem assim o "whisky" que lhes dão.

- Não se pode exigir que uma mulher ignorante como a senhora, senhora Betty Flanagan - replicou o médico com um ar de desprezo inexprimível - raciocine cientificamente sobre estes assuntos que são do campo da cirurgia; e creio que não sabe mais sobre o manejo do sabre. Assim toda a discussão sobre o uso criterioso desta arma nem lhe pode ser útil nem em teoria nem na prática.

- Não é que eu me interesse por essas bagatelas - respondeu Betty deixando cair a cabeça sobre a barrica- mas uma batalha não é uma brincadeira de crianças e todos os golpes são bons desde que sejam desferidos sobre o inimigo.

- Acha que vai estar calor, capitão - perguntou Sitgreaves a Lawton, voltando as costas à hospedeira com o maior desprezo.

- É muito provável - respondeu o capitão com uma voz que fez arrepiar o médico - é raro que o sangue não corra com abundância no campo de batalha quando se levam para lá estes milicianos descuidados e ignorantes. O soldado bom é que sofre com a má conduta deles.

- Estás mal disposto, Lawton? - perguntou Sitgreaves que passando a mão sobre o braço lhe procurou a veia do pulso, cujas pulsações firmes e iguais não indicavam nenhuma indisposição moral ou física.

- Sim, Archibald - respondeu Lawton - um grande mal-estar. Aperta-se-me o coração quando penso na loucura dos nossos chefes acreditando que podemos travar batalhas e conseguir vitórias com estes palermas que manejam um mosquete como se manejassem um malho; que fecham os olhos de medo quando dão um tiro de espingarda, e que se colocam em ziguezague quando se lhes diz para formarem em linha. A confiança que depositamos neles tem-nos custado o melhor sangue do país.

Sitgreaves ficou extremamente surpreendido com esta filípica, não pelo fundo, mas pela forma. Quando se aproximava uma batalha, Lawton mostrava sempre um ardor e vivacidade que contrastavam com a calma que revelava sempre. Contudo, havia agora um tom de abatimento na voz, uma apatia geral que não estavam de forma alguma de acordo com o seu carácter habitual.

O médico hesitou um instante para pensar na forma de aproveitar esta alteração para o fazer adoptar o seu sistema favorito e prosseguiu como se segue:

- Creio, meu caro Lawton, que seria conveniente recomendar ao coronel para mandar retirar os seus homens um pouco mais para trás. - Sabes que para pôr um inimigo fora de combate, uma bala quase sem força pode...

- Não! Não! - atalhou o capitão com impaciência - os palermas que queimem os bigodes nas escorvas das espingardas dos inimigos, se se conseguir que cheguem lá, mas já basta de conversa sobre o assunto. Diz-me lá, Archibald, achas que a lua é um mundo como este, que há lá pessoas semelhantes a nós.

- Não há nada mais provável. Conhecemos o seu tamanho e, por analogia, podemos pensar nisso. Mas os que lá vivem terão conseguido esta perfeição no campo das ciências, que depende do estado da sociedade e um pouco das influências físicas.

- O estado em que se encontram as ciências deles preocupa-me pouco, Archibald. Mas que poder admirável o que criou todos estes mundos, e determinou a sua marcha! Não sei porque sou dominado por um sentimento de melancolia quando contemplo o belo astro cujas manchas são, segundo dizes, mares e montanhas. Parece destinado a fornecer às almas um lugar de repouso, quando sobem para o firmamento.

- Beba um golo, meu caro - disse Betty levantando a cabeça e passando-lhe a garrafa - é o frio da noite que lhe gela o sangue, e depois uma conversa com essa maldita milícia não pode agradar a um dragão da Virgínia. Beba um golo, digo-lhe eu, e dormirá até de manhã. Fui eu mesma que dei a ração a Roanoke, porque calculei que ele ia ter muito que fazer esta manhã.

- Que espectáculo glorioso o céu nos oferece! - continuou o capitão no mesmo tom, sem dar atenção à oferta da hospedeira.

- É pena que vermes como os homens se entreguem às suas vis paixões e desonrem obras tão belas.

- Tens razão, Lawton. Se todos quisessem viver em paz contentando-se com o que têm, haveria lugar para toda a gente. Todavia a guerra não é inútil; desenvolve nomeadamente os conhecimentos da arte da cirurgia, e...

- Vês aquela estrela tão bonita ali, a brilhar entre duas nuvens - disse Lawton seguindo o curso das suas ideias - talvez seja um mundo; talvez ali vivam pessoas dotadas de razão como nós: achas que conhecem a terra, que derramam o seu sangue?

- Se me é permitido dizer uma palavra - afirmou o sargento Hollister que levou automaticamente a mão ao boné - lembro que no Livro santo se conta que enquanto Josué procedia a uma carga, o Senhor deixou parar o Sol, sem dúvida para ele ver melhor a fim de contornar o flanco do inimigo, atacar a retaguarda, ou coisa parecida.

- Ora, como o Senhor lhe estendeu a mão, a guerra não é um mal. Mas o que eu não concebo é que os militares desse tempo se servissem de carros em vez de dragões que são muito melhores para desbaratar uma coluna de infantaria, que, quanto a isso, podiam voltar estas viaturas de rodas, agarrá-las por trás, e mandar para o diabo os cavalos, as carroças e tudo o resto.

- Diz isso porque não sabe como é que eram construídas, sargento - afirmou o médico em tom solene. - Esses carros estavam armados com gadanhas e instrumentos cortantes que levavam a desordem às fileiras da infantaria. Se se arranjasse dessa forma o carro de Betty Flanagan, veria que ainda hoje provocaria a confusão nas fileiras inimigas.

- Com mil demónios, como é que a minha égua conseguiria abrir caminho no meio dos tiros- resmungou Betty debaixo dos cobertores. - Quando perseguíamos as tropas regulares em Jersey, e quando quis avançar sobre o campo de batalha para apanhar o que pudesse, tive de ir para trás dela e empurrá-la para se aproximar dos mortos. Não, não, não mexeria uma pata depois de ter ouvido o primeiro tiro. Roanoke e o capitão Jack bastam para as fardas vermelhas, e podem deixar-nos em paz, a mim e à minha égua.

Um rufar prolongado de tambores, vindo da colina ocupada pelos Ingleses, anunciou que estavam em guarda, e o mesmo sinal fez-se ouvir no meio da infantaria americana. A trombeta dos virginianos fez soar no ar o mesmo som marcial e num instante nas duas colinas surgiram, de um lado, os Americanos, e, do outro, as tropas reais, emprestando um novo movimento à paisagem.

O dia começava a nascer, e dos dois lados tomavam-se posições, aqui para atacar, ali para se defender. Os Americanos tinham a vantagem do número, mas pela disciplina e pelas armas, a superioridade estava inteiramente do lado dos Ingleses. As disposições para o combate não levaram muito tempo, e o Sol ainda mal se levantara quando a milícia se pôs em marcha.

O terreno oferecia obstáculos aos movimentos da cavalaria, e aos dragões não restava outra hipótese senão esperar o momento da vitória para iniciarem a perseguição ao inimigo em debandada. Lawton mandou montar o seu pequeno destacamento, e, deixando-o sob o comando de Hollister, percorreu as linhas dos milicianos que, na sua maior parte não tinham uniforme e estavam mal armados, mas que tinham sido dispostos de modo a formarem uma espécie de linha de batalha. Um sorriso de desprezo desenhou-se nos lábios do capitão, enquanto com mão hábil, guiava Roanoke por entre as fileiras mal alinhadas.

Logo que lhes foi dada ordem de marcha, voltou o flanco do regimento e seguiu a alguns passos. Os Americanos tinham de descer a um pequeno vale e subir outra colina para se aproximarem do inimigo. Desceram em boa ordem e avançaram até ao sopé da elevação, mas os Ingleses marchavam ao seu encontro, com os flancos protegidos pela própria natureza do terreno. Os milicianos, ao verem chegar os inimigos, fizeram fogo primeiro. A descarga fez efeito e os Ingleses ficaram por momentos abalados.

Os seus oficiais reuniram-nos rapidamente, e os tiros dos mosquetes sucederam-se com rapidez. O fogo foi destruidor durante alguns minutos, mas as forças regulares marcharam contra os Americanos de baioneta em riste. Estes não estavam nada bem organizados para resistirem a um ataque deste género: as fileiras cederam, dividiram-se em companhias e em fragmentos de companhias, e o campo de batalha ficou coberto por Americanos que fugiam para todos os lados em desordem.

Lawton assistira a estas operações em silêncio e sem abrir uma só vez a boca, mas neste momento de vergonha para as armas do seu país sentiu uma indignação imensa; partiu com Roanoke a galope pela montanha, chamou os fugitivos em altos berros, mostrando-lhes o inimigo e dizendo-lhes que estavam enganados no caminho.

Havia uma tal mistura de sangue-frio e de ironia que alguns pararam surpreendidos, e outros se juntaram a eles, e, por fim, reencontrando uma centelha de coragem ao verem a intrepidez do capitão, pediram-lhe para os reconduzir ao inimigo.

- Para a frente, meus bravos! - ordenou Lawton, virando a cabeça do cavalo para o lado das linhas inglesas, que tinha um dos flancos a pouca distância deles. - Para a frente! E não façam fogo enquanto não estiverem tão perto deles que lhes possam queimar as sobrancelhas.

Avançavam a passo de carga seguindo o exemplo do capitão, e não dispararam um único tiro até estarem perto do inimigo. Um sargento inglês que estava por trás da ponta de um rochedo, furioso com a audácia de um oficial que ousava enfrentar forças já vitoriosas, mostrou-se a descoberto e avançou para Lawton apontando-lhe a espingarda.

- Se atiras, morres! - bradou o capitão apertando os flancos do cavalo que se precipitou para o inimigo no mesmo instante. Este movimento e o som da voz de Lawton perturbaram o sargento inglês cuja mão tremia quando disparou sem fazer pontaria. Roanoke saltou e caiu morto aos pés do inimigo. Lawton ficou de pé face a face com o sargento, que puxando da baioneta procurava apontar-lhe ao peito. O aço das armas fez faísca; a baioneta saltou cinquenta pés no ar, e um segundo golpe de sabre estendeu o inglês sem vida no solo.

- Para a frente! - gritou o capitão ao ver chegar um grupo inglês que se preparava para uma carga geral.

- Para a frente! - repetiu agitando no ar o sabre. Ao pronunciar estas palavras, caiu lentamente para trás, como um pinheiro majestoso ferido pelo machado; todavia a mão continuava a segurar o cabo do sabre e as palavras "para a frente" que repetiu uma vez mais foram as últimas que saíram dos seus lábios.

Os Americanos que avançavam, vendo cair o seu novo chefe, fugiram pela segunda vez, deixando a vitória às tropas reais.

Não era intenção nem política do comandante inglês perseguir os fugitivos. Sabia que deviam estar a chegar mais unidades americanas, e, depois de recolher os feridos, formou as suas tropas em batalhão quadrado e iniciou a retirada para o Hudson. Vinte minutos depois da morte não havia no campo de batalha nem ingleses nem americanos.

Quando os habitantes do país foram chamados às armas tinham sido nomeados médicos para todas as unidades, mas os homens que exerciam esta profissão ainda eram raros nesta época nas províncias do interior, e o doutor Sitgreaves tinha por eles tanto desprezo como o capitão Lawton tinha pelos milicianos. Andava a passear pelo campo de batalha, olhando com um ar de desaprovação a forma como eram executadas algumas operações simples de cirurgia.

Ao verificar que entre as tropas de fugitivos que vinham de todos os lados não estava o amigo, o camarada, correu para o local onde estava Hollister para saber se o capitão já tinha chegado. Como se sabe a resposta foi negativa. Entregando-se a mil conjecturas que o enchiam de inquietação, o médico, sem se lembrar dos perigos com que podia deparar, sem reflectir um instante, dirigiu-se com passadas largas para o sítio onde sabia que se tinha travado o último recontro.

Já tinha salvo a vida do amigo em circunstâncias idênticas, às que ele supunha ir encontrar, e a confiança na sua arte e nos seus talentos fizeram-no sentir uma alegria íntima e involuntária quando viu Betty Flanagan, sentada no chão, segurando nos joelhos a cabeça de um homem que pela estatura e pelo uniforme reconheceu imediatamente ser o capitão Lawton. Todavia o aspecto e a expressão da hospedeira alarmaram-no. O chapeuzinho preto estava descaído para o lado, e os cabelos que começavam a ficar grisalhos caíam para a cara.

- John! Meu caro John! - disse ele com uma voz comovida agarrando-lhe o pulso, mas deixando-o com uma espécie de terror - John! Meu amigo John! Onde estás ferido? Não te posso valer em nada?

- Fala com quem não o pode ouvir - afirmou Betty que embalava o corpo enquanto os dedos afagavam, sem ela mesma o saber, os cabelos pretos do capitão. - Estou-lhe a dizer que ele não mais o ouvirá, e que já não precisa das suas sondas, nem das suas drogas. Ai! Ai! E que vai ser da liberdade? Quem combaterá e quem conseguirá as vitórias para ela?

- John! - repetiu o médico não podendo acreditar no testemunho dos seus sentidos. - Meu caro John! Fala. Diz tudo o que te apetecer, mas fala! Oh, meu Deus! - acrescentou entregando-se ao seu desgosto. - Morreu! Se o céu tivesse prometido que eu morresse com ele!

- Já não vale a pena viver e lutar - afirmou a hospedeira. - O homem e o animal ao mesmo tempo! Veja, ali está o animal e aqui está o dono.

Fui eu própria que dei esta manhã a ração ao cavalo, e fui eu que preparei a última refeição do capitão. Ai! Ai! Valeu a pena o capitão Jack viver para ser morto pelas tropas regulares!

- John, - prosseguiu o médico que soluçava convulsivamente - a tua hora chegou. Há homens mais prudentes que ficam, mas não há nenhum mais corajoso. Oh, John! Era um verdadeiro amigo, o mais querido dos meus amigos! Não é filosófico chorar, mas tenho de te chorar, de te chorar na amargura do meu coração!

O médico cobriu o rosto com as duas mãos e abandonou-se durante alguns minutos à sua dor, enquanto a hospedeira manifestava o seu desgosto com palavras e gestos convulsivos.

- E quem encorajará agora os nossos homens. Oh! capitão Jack! Era a alma da unidade, e ninguém temia o perigo quando combatia ao lado dele. Nunca levantava problemas a uma pobre viúva porque o assado estava queimado ou porque o pequeno almoço não estava pronto...

- Beba um golo, meu caro, isto vai reanimá-lo. Ai! não há mais golos para ele!...

- Olhe o doutor com quem gostava tanto de tagarelar, que chora como se a sua pobre alma quisesse partir com a sua.

Ouviram o barulho de cavalos na estrada, perto do local onde Lawton caíra, e quase no mesmo instante Dunwoodie chegou à frente dos dragões da Virgínia. Já sabia que o capitão tinha morrido, e logo que reconheceu o corpo mandou parar, desmontou e aproximou-se. O rosto de Lawton não estava nada desfigurado, parecia dormir. Dunwoodie segurou numa das mãos e olhou para ele em silêncio. O seu olhar começava a brilhar, e a palidez que cobria o rosto deu lugar a um rubor intenso que se espalhou pelas faces.

- O seu sabre vai servir-me para o vingar! - declarou procurando tirá-lo da mão gelada do amigo que ainda segurava o punho com força e que parecia recusar-se a largá-lo. - Será enterrado com ele - acrescentou.

- Sitgreaves cuide dos restos mortais do nosso amigo, que eu vou vingá-lo.

Durante esta paragem de Dunwoodie, o corpo de Lawton ficou exposto aos olhos de todo o regimento. Todos, sem excepção, gostavam dele pelo que se sentiram apoderados de raiva e nem os oficiais nem os soldados tinham o sangue-frio indispensável para assegurarem o êxito de uma operação militar, mas correrem em perseguição do inimigo com um ardor que só respirava vingança.

Os Ingleses tinham formado em batalhão quadrado, e tinham colocado no centro os feridos que, aliás não eram muitos. Marchavam em boa ordem sobre um terreno bastante desfavorável à cavalaria quando os dragões os apanharam. Estes carregaram sobre o inimigo em coluna, com Dunwoodie à frente o qual ardia no desejo de vingar o amigo e desbaratar e pôr em debandada as forças inimigas. Mas os Ingleses sabiam muito bem o que era preciso fazer para a sua segurança e receberam os Americanos de baionetas em riste.

Os cavalos virginianos recuaram, e a terceira linha da infantaria fez fogo ao mesmo tempo, Dunwoodie caiu o mesmo acontecendo a vários dos seus cavaleiros. Os Ingleses prosseguiram com a retirada logo que os deixaram de atacar, e Dunwoodie que fora ferido não queria ordenar um novo ataque que a natureza do terreno lhe indicava que seria inútil.

Só havia um triste dever a cumprir. Os dragões retiraram-se lentamente pelas montanhas, transportando o comandante ferido e o corpo de Lawton. Este ficou sepultado junto da muralha de um dos fortes das montanhas e confiaram o major aos cuidados de uma esposa aflita.

Passaram-se algumas semanas antes de Dunwoodie poder ser transportado para mais longe e durante todo este tempo quantas vezes não bendisse o momento que lhe tinha dado o direito de receber os serviços de uma enfermeira tão bela e tão cuidadosa! Estava sempre junto do seu leito, não se poupava a esforços, cumpria à risca todas as instruções do infatigável Sitgreaves, fazendo aumentar todos os dias a afeição e a estima do marido.

Por ordem de Washington as tropas recolheram, em breve, aos quartéis de Inverno, e Dunwoodie, com a patente de tenente-coronel, recebeu autorização para ficar em casa a restabelecer-se. Toda a família partiu para a Virgínia, acompanhada pelo capitão Singleton, e no meio das comodidades e da abundância esqueceram o tumulto e as privações da guerra.

Todavia, antes de partir de Fishkill, receberam por intermédio de um mensageiro desconhecido uma carta de Henry em que lhes dizia que estava de boa saúde e em segurança. O coronel Wellmere tinha deixado o continente e regressara à sua ilha natal, com o desprezo de todos os homens de honra do exército inglês.

Foi um Inverno de felicidade para Dunwoodie, e o sorriso começou a aparecer nos lábios de Frances.

 

Os Americanos passaram o começo do ano seguinte a fazer combinações com os aliados franceses sobre os preparativos necessários para o fim da guerra. Greene e Rawdon fizeram uma campanha intensa no Sul: foi honrosa para as tropas deste último, mas como o primeiro tinha a vantagem, foi provado que a superioridade dos talentos militares estava do lado do general norte-americano,

Nova York era o ponto que os Aliados ameaçavam principalmente, e Washington, mantendo os Ingleses num terror perpétuo por causa da segurança desta cidade, impediu-os de enviarem reforços para Cornwallis, o que teria permitido êxitos mais consideráveis.

O Outono chegou, e tudo anunciava que o momento da crise se aproximava. As forças francesas atravessavam o Território Neutro, avançavam para as linhas inglesas, e tomaram uma posição ofensiva do lado de Kingsbridge, enquanto várias unidades americanas, manobrando de combinação com eles, causavam preocupações aos postos britânicos, e aproximando-se do lado de Jersey, pareciam ameaçar também o exército real.

Estas disposições podiam anunciar igualmente o projecto de um bloqueio ou de um ataque com as armas na mão. Mas Sir Henry Clinton tendo interceptado despachos de Washington, fechou as linhas,

 

*1. Esta epígrafe por ser o reconhecimento de uma imitação do desenlace de A Dama do Lago.

 

e foi suficientemente prudente para não atender aos pedidos de Cornwallis que lhe solicitava o envio de reforços.

No fim de um belo dia de Setembro, grande número de oficiais do exército americano estava reunido junto da porta de um edifício situado no centro das tropas americanas que ocupavam Jersey. A idade, a farda e o aspecto digno da maior parte destes militares revelavam que ocupavam postos elevados no exército, mas um deles era alvo de uma deferência especial e de uma submissão que demonstravam que ele era superior a todos os outros.

O seu fato era simples, mas ornado com as marcas distintivas do comando. Estava montado num soberbo corcel baio, e um grupo de jovens, que sobressaíam pela sua elegância, esperava as suas ordens e estava pronto para as executar. Ninguém lhe dirigia a palavra sem lhe tirar o chapéu com uma vénia, e quando ele falava, todas as fisionomias indicavam uma atenção profunda que ultrapassava o respeito prescrito pela etiqueta. Por fim o general tirou o chapéu, e cumprimentou gravemente os que o cercavam. Todos responderam a este cumprimento e se afastaram ficando junto dele só as pessoas que estavam ao seu serviço pessoal e um ajudante de campo.

Ao desmontar recuou alguns passos para examinar a montada e o seu olhar indicava que era uma pessoa entendida. Olhando de forma expressiva para o ajudante de campo dirigiu-se para a casa seguido pelo jovem oficial.

Ao chegar ao quarto que tinha sido preparado para o receber, sentou-se e manteve-se numa atitude de meditação durante bastante tempo, o que indicava que era um homem habituado a reflectir. Durante estes momentos de silêncio, o ajudante de campo esperava com respeito que ele lhe desse ordens. Por fim, o general levantando os olhos para ele, disse-lhe no tom calmo e tranquilo que era habitual nele:

- O homem que eu queria ver já chegou?

- Aguarda as ordens de Vossa Excelência.

- Recebo-o aqui e peço-lhe o favor de me deixar a sós com ele. O ajudante de campo cumprimentou-o e saiu.

Daí a alguns minutos a porta abriu-se e entrou na sala um homem que ficou humildemente a alguma distância do general, sem falar. O general não o viu chegar; estava sentado perto do fogo, absorto com os seus pensamentos. Passaram-se alguns minutos até que ele disse para consigo mesmo a meia-voz:

- Amanhã é preciso levantar a cortina e desvendar os nossos planos. Queira Deus que resultem!

O movimento ligeiro que o homem fez ao ouvir aquela voz chamou a sua atenção; voltou a cabeça e viu que não estava sozinho. Fez-lhe sinal para avançar para junto do lume, e o homem aproximou-se, mostrando que o fato que envergava e parecia ter mais como objectivo disfarçá-lo que cobri-lo, mal o aconchegava.

Com um segundo gesto cheio de calma e de bondade convidou-o a sentar-se, mas o homem recusou com humildade. Minutos depois o general levantou-se, e abrindo uma caixa que estava em cima de uma mesa, tirou um saco pequeno que parecia pesado.

- Harvey Birch - disse - chegou o momento em que devem terminar todas as relações entre nós.

Daqui para o futuro teremos de ser desconhecidos.

O bufarinheiro deixou cair sobre os ombros o casaco que lhe cobria uma parte do rosto, olhou um instante para o general, surpreendido, e curvando a cabeça sobre o peito afirmou submisso:

- Farei como Vossa Excelência deseja.

- É a necessidade que o exige. Desde que ocupo o lugar que me foi confiado, tem sido meu dever conhecer pessoas que, como o senhor, me serviram de instrumento para obter as informações de que necessitava. Nenhum me mereceu a confiança de que o senhor foi credor, porque bem cedo comecei a apreciar o seu carácter, e nunca me enganei a seu respeito. Só o senhor conhecia os meus agentes secretos na cidade, e da sua fidelidade dependia não só a sua sorte, mas também a sua existência.

Calou-se um instante como que para se concentrar ou pensar na melhor forma de fazer justiça ao bufarinheiro, e continuou como se segue:

- Entre todos os que empreguei, o senhor foi dos poucos que serviram constantemente a nossa causa com fidelidade. Embora passasse por espião do inimigo nunca lhe deu a conhecer senão aquilo que podia divulgar. Só eu, eu unicamente, no mundo inteiro, sei que agiu sempre com a maior dedicação à causa da liberdade da América.

Durante este discurso, o bufarinheiro foi levantando, pouco a pouco, a cabeça e foi-se endireitando. As faces foram-se ruborizando à medida que o general ia falando. A sua atitude revelava um orgulho nobre e uma emoção viva, mas os seus olhos estavam fitos no chão.

- O meu dever ordena-me hoje que o recompense pelos seus serviços. Tem-se recusado até aqui a receber o seu salário, e a dívida é considerável. Não desejo minimizar os perigos que correu. Tome, e se achar a recompensa inferior aos seus serviços, deve lembrar-se que o nosso país é pobre.

O bufarinheiro levantou os olhos para o general, surpreendido, enquanto este lhe estendia o saco cheio de oiro, e recuou, como se tivesse medo de se manchar ao tocar-lhe.

- Concordo - afirmou o general - que é pouco em comparação com os seus serviços e com os riscos que correu, mas é tudo o que tenho para lhe oferecer. No fim da campanha talvez possa juntar-lhe qualquer coisa.

- Nunca! - declarou Harvey com energia. - Julga que foi por dinheiro que trabalhei?

- Qual poderá ter sido então o seu motivo?

- Que motivo levou Vossa Excelência a pegar em armas? Que motivo o leva a expor-se todos os dias, todas as horas, a perder a vida num combate ou a suportar a morte dos traidores? Que tenho a lamentar quando homens como Vossa Excelência arriscaram tudo pelo nosso país? Não, não, não tocarei num único dólar de oiro, desses que me oferece; a América é pobre e precisa de tudo.

O saco de oiro caiu da mão do general e ficou esquecido, no chão, aos pés do bufarinheiro durante o resto da entrevista. O oficial olhando Harvey de frente respondeu-lhe:

- A minha conduta pode ter sido ditada por motivos que podem não ter influência sobre os seus. Sou conhecido como chefe dos nossos exércitos, e o senhor vai descer à sepultura com a reputação de ter sido inimigo do seu país natal. Como sabe o véu que cobre o seu carácter só pode ser levantado daqui a muitos anos e talvez o senhor nem chegue a conhecer esse momento.

A cabeça de Harvey voltou a curvar-se sobre o peito mas nada anunciava que tivesse mudado de ideias.

- A Primavera da sua vida já passou. A velhice vai surpreendê-lo, que meios de subsistência tem?

- Ei-los - respondeu o bufarinheiro, mostrando as mãos calejadas pelo trabalho.

- Mas esses meios podem faltar-lhe. Aceite o que pode ser um recurso na velhice. Pense nas suas canseiras e nos seus perigos. Já lhe disse que há homens respeitáveis cuja vida e cujo destino depende da sua discrição. Que penhor lhes posso dar da sua fidelidade?

- Diga-lhes - afirmou Birch que avançando pisou, sem querer, o saco de oiro - que recusei aceitar o dinheiro.

Um sorriso de agrado animou as feições calmas do general. Apertou a mão do bufarinheiro com afecto.

- Harvey - disse-lhe - agora conheço-o. Embora as mesmas razões que me obrigaram a expor a sua vida preciosa ainda existam e me impeçam de lhe fazer publicamente a justiça que merece posso ser sempre seu amigo pessoal. Não deixe de me procurar se precisar de mim. Tudo o que Deus me deu ou me vier a dar, será partilhado sempre, de boa vontade com um homem que tem sentimentos tão nobres e que se conduziu com tanta lealdade. Se a velhice ou a pobreza chegarem um dia, pode apresentar-se sempre à porta daquele que encontrou tantas vezes sob o suposto nome de Harper e seja qual for o cargo que ele ocupe, não se envergonhará nunca de o reconhecer.

- Preciso de muito pouco para viver - respondeu Birch com uma expressão radiante. - Enquanto Deus me der saúde e um trabalho honesto, nada me faltará neste país feliz. Mas saber que Vossa Excelência me honra com a sua amizade, é uma honra que eu aprecio mais que todo o oiro do tesoiro da Inglaterra.

O general parecia entregue a profundas reflexões. Sentando-se diante da mesa, pegou numa folha de papel e traçou algumas linhas e entregou o que se segue ao bufarinheiro:

"Devo acreditar que a Providência confia a este país grandes e gloriosos destinos, quando vejo semelhante patriotismo abrasar o coração dos seus filhos mais humildes. Deve ser horrível para uma alma como a sua levar para o túmulo a reputação de ter sido um inimigo da liberdade. Sabe que me é impossível, neste momento, fazer-lhe justiça sem comprometer a vida de pessoas de respeito, mas entrego-lhe sem receio este certificado. Se não nos voltarmos a ver, pode, pelo menos, servir para os seus filhos."

- Os meus filhos! - exclamou o vendedor ambulante. - Podia legar a uma família a infâmia de usar o meu nome?

O general sentiu, penalizado, a comoção profunda do bufarinheiro. Fez um ligeiro movimento como se fosse apanhar o saco de oiro, mas foi obrigado a suspender o gesto pela expressão de orgulho que viu no rosto deste homem estranho. Harvey adivinhou a sua intenção, e acrescentou num tom mais calmo e com muito respeito:

- É verdadeiramente um tesoiro o que Vossa Excelência me confia, mas está em segurança nas minhas mãos. Ainda há pessoas que podem dizer que a vida para mim não é nada, comparada com os segredos de Vossa Excelência. O papel que um dia disse que tinha perdido, engoli-o a última vez que fui preso pelos dragões da Virgínia. Foi a única vez que não disse a verdade a Vossa Excelência, e será a última. Sim, é um tesoiro para mim. Talvez - acrescentou com um sorriso melancólico - talvez depois da minha morte mereça a confiança; e se não se souber não há ninguém para me lamentar.

- Lembre-se - afirmou o general comovido - que terá sempre em mim um amigo secreto, mas que não o posso reconhecer em público.

- Bem sei, bem sei - respondeu Birch. - Conhecia as condições do serviço de que fui encarregado. É provavelmente a última vez que vejo Vossa Excelência. Que o céu lance todas as suas bênçãos sobre Vossa Excelência!

Calou-se e dirigiu-se para a porta. O general seguiu-o com interesse. O bufarinheiro voltou ainda uma vez, e olhou com profundo respeito para a fisionomia calma, mas expressiva do general. Por fim, cumprimentou-o e retirou-se.

Os exércitos da França e da América foram conduzidos pelo seu chefe comum contra os Ingleses comandados por Cornwallis, e um triunfo glorioso terminou uma campanha que tinha começado com dificuldades. A Grã-Bretanha cansou-se da guerra e a independência dos Estados Unidos foi reconhecida.

Passaram-se vários anos. Ter contribuído para o estabelecimento da liberdade na América, dessa liberdade que tinha espalhado tanta felicidade por este país, tornou-se uma glória para os que tinham participado abertamente nessa campanha e para os seus descendentes, mas o nome de Harvey Birch morreu na obscuridade como o de outros que se consideravam como tendo sido inimigos secretos dos direitos dos seus compatriotas.

A sua imagem acorria muitas vezes ao espírito do chefe poderoso, o único que conhecia o seu verdadeiro carácter, e que várias vezes tentou saber informações acerca dele. Só conseguiu uma vez, e tudo o que pôde saber, foi que havia numa das várias firmas que se formavam por todo o lado um vendedor ambulante que percorria o país e cujos sinais correspondiam aos de Harvey Birch, embora usasse outro nome e lutasse contra a velhice e a pobreza. A morte não permitiu que o general tivesse mais notícias deste indivíduo, e só daí a muito tempo é que se ouviu falar no bufarinheiro.

 

Trinta e três anos tinham decorrido desde a entrevista do capítulo anterior, e um exército americano estava uma vez mais em pé de guerra contra a pátria dos seus antepassados, mas a cena em que decorrem os acontecimentos desta nova guerra fora transferida das margens do Hudson para as do Niagara.

Os restos mortais de Washington já tinham desaparecido na corrupção do túmulo, mas o tempo tendo apagado todos os vestígios de inimizade política e de invejas pessoais, dava um novo brilho, cada vez maior, ao seu nome. Cada instante fazia conhecer melhor aos seus compatriotas e ao mundo inteiro o seu mérito, os seus talentos e as suas virtudes. Era reconhecido como o herói de um século iluminado pela razão e pela verdade, e os jovens combatentes que formavam em 1814 o nosso exército sentiam o coração bater de entusiasmo quando ouviam pronunciar o seu nome, e ardiam no desejo de se tornarem ilustres como ele.

Nenhum destes militares experimentava de forma mais viva este desejo, inspirado por um sentimento de virtude, do que um jovem oficial que, na tarde de 25 de Julho desse ano que uma luta cruel tornou memorável, de pé sobre a rocha da Mesa, contemplava a grande catarata. Era alto, bem constituído, e tudo nele indicava força e agilidade. Os seus olhos negros tinham um brilho que penetrava até ao fundo da alma.

Enquanto olhava para esta massa de água que se precipitava a seus pés, tinha uma expressão de audácia e de orgulho que anunciavam o ardor do entusiasmo; mas esta expressão máscula era amenizada por um sorriso cheio de malícia e de alegria que parecem ser propriedade exclusiva do sexo feminino. Os caracóis dos seus belos cabelos loiros brilhavam ao Sol cujos raios penetravam em outros tantos anéis de oiro, enquanto o vento que vinha da catarata os agitava docemente sobre uma fronte cuja brancura provava que o rosto que revelava boa saúde estava bronzeado pela acção conjunta do ar e do calor.

Junto deste jovem favorecido pela natureza estava outro oficial, e o interesse que manifestavam pelo espectáculo que tinham diante dos olhos revelava que era a primeira vez que viam esta maravilha do Novo Mundo. Quedaram-se durante alguns minutos num silêncio de admiração, até que o mais novo dos dois se dirigiu ao companheiro, e indicando-lhe com o sabre um objecto que se encontrava à superfície da água disse-lhe:

- Repara, Dunwoodie! Repara! É um homem que atravessa o rio mesmo à beira da catarata, numa barca que é simplesmente uma casca de noz.

- É, sem dúvida, um soldado - respondeu o outro - porque me parece que traz uma mochila. -Vamos ter com ele Mason. Deve trazer notícias.

Ainda levaram algum tempo para chegar junto dele, mas contra a sua expectativa, em vez de um soldado, encontraram um homem que não tinha nada um aspecto militar, e que era já bastante idoso. Podia ter visto uns setenta Invernos. A sua idade revelava-se mais nos cabelos brancos do que por qualquer sinal de fraqueza ou de decrepitude. Os músculos indicavam uma velhice saudável e vigorosa, a sua magreza não parecia consequência de debilidade e se andava curvado notava-se facilmente que o fazia unicamente por hábito. O fato embora fosse de tecido grosseiro estava limpo e remendado com cuidado em vários sítios e revelava o espírito de economia de quem o vestia. Aos ombros trazia uma mala mal fornecida e fora ela a causa do engano.

Depois de se terem cumprimentado, os dois jovens oficiais manifestaram a sua admiração por verem um homem daquela idade aventurar-se a atravessar o rio tão perto da catarata, e ele perguntou-lhes, com certa emoção na voz, notícias do exército.

- Travámos combate outro dia com os das fardas vermelhas nas grandes planícies de Chippewa, e fizemo-los correr até aqui rodando como piões - respondeu o jovem oficial chamado Mason. - Depois, meu bom velho, andámos a brincar às escondidas com eles. Mas voltámos ao ponto de partida abanando a cabeça e vaidosos como o diabo.

- Talvez o seu filho esteja aqui entre os nossos soldados - afirmou o companheiro num tom mais calmo e bondoso. - Se me disser o nome dele e o regimento a que pertence, talvez o possa levar até junto dele.

O velho abanou a cabeça e passando a mão pelos cabelos brancos levantou os olhos para o céu com um ar de resignação, e respondeu com doçura:

- Não, estou só no mundo.

- Capitão Dunwoodie, - disse Mason bem disposto - devia ter acrescentado se o puder encontrar porque mais de metade do nosso exército já está em marcha e deve estar à sombra das muralhas do forte Jorge, tanto quanto se pode calcular.

O homem deteve-se e ficou a olhar alternadamente e com atenção para os dois oficiais. Estes tendo-se apercebido pararam também.

- Ouvi bem? - perguntou por fim o velho que levava a mão aos olhos para os proteger dos raios do sol poente. - Qual foi o nome?

- Chamo-me Dunwoodie Wharton - respondeu o oficial sorrindo.

O velho fez um gesto como se lhe quisesse pedir para tirar o chapéu. O jovem acedeu e os cabelos loiros e finos como seda voando ao sabor do vento, expuseram toda a sua fisionomia aos olhares curiosos e atentos do desconhecido.

- É como o nosso país natal! - exclamou o velho com uma vivacidade que surpreendeu os dois amigos. - Tudo avança tornando-se melhor com o tempo. Deus os abençoe aos dois.

- Porque olha tão espantado, tenente Mason? - perguntou Dunwoodie rindo e corando ligeiramente. - Parece mais surpreendido do que quando viu a catarata.

- Oh! a catarata, é um espectáculo que a tua tia Sara e esse sempre jovem coronel Singleton gostariam de ver ao luar. Para uma pessoa decidida como eu se espantar é preciso uma coisa muito especial e este velho olha para ti com uma expressão tão extraordinária...

A emoção do desconhecido dissipou-se quase tão depressa como tinha surgido, mas parecia muito interessado na conversa. Dunwoodie interrompeu o amigo e disse-lhe sério:

- Vamos lá, vamos lá, Tom, nada de brincadeiras a respeito da minha boa tia, peço-te. Tem muitas atenções e é muito boa para mim, e segundo se diz a sua juventude não foi muito feliz.

- Se vamos acreditar em boatos - afirmou Mason - conta-se que o coronel Singleton lhe pede a mão regularmente todos os anos no dia de São Valentim e há quem diga que a tua avó defende a sua pretensão.

- A minha tia Jeannette Peyton! - afirmou Dunwoodie rindo. - Estou convencido que ela não pensa em casamento, sob qualquer aspecto, desde a morte do doutor Sitgreaves. Dizia-se que ele lhe fazia a corte, mas não iam além de uma troca de palavras formais. Presumo que toda essa história tenha como base a amizade do coronel Singleton e do meu pai. Como sabes serviram no mesmo regimento de dragões onde serviu também o teu pai.

- Sem dúvida, sei isso muito bem, mas não me convences que ele vai tantas vezes a casa do general Dunwoodie só para conversar com ele acerca de feitos de armas. A última vez que estive em tua casa, a governanta da tua mãe, essa velha de nariz amarelo e comprido, levou-me para o escritório, e disse-me que o coronel Singleton não era de desprezar e que a venda da propriedade da Geórgia lhe tinha rendido... meu Deus, já não me lembro quanto.

- Nada é mais provável - respondeu o capitão.- Katy Haynes sabe muito bem fazer cálculos.

Tinham parado durante a conversa e pareciam hesitar sobre se deviam ou não deixar o novo companheiro.

O velho escutava todas as palavras com o maior interesse, mas no fim do diálogo desenhou-se no seu rosto um sorriso misterioso. Abanou a cabeça, passou a mão pelos cabelos e parecia pensar num tempo distante. Mason não deu muita atenção à sua expressão e prosseguiu:

- Sim, faz contas muito bem feitas e estou convencido que os cálculos são muitas vezes no seu próprio interesse.

- Sim, há nela uma parcela de egoísmo que não chega a prejudicar ninguém - afirmou Dunwoodie sorrindo como se se estivesse a lembrar de episódios passados. - O que ela tem de particular é a aversão pelos negros. Diz que só conheceu um de quem gostou.

- Quem era?

- Chamava-se César e era do meu avô Wharton. Não te deves lembrar dele porque morreu no mesmo ano que o patrão, quando ainda éramos crianças. Katy canta todos os anos um requiem por ele, e creio bem que o merece. Ouvi dizer que ele ajudou o meu tio inglês, como chamamos ao general Wharton, a escapar em circunstâncias difíceis na outra guerra. A minha mãe fala sempre dele com grande afecto. César e Katy vieram com ela da Virgínia depois do seu casamento. A minha mãe era...

- Um anjo! - interrompeu o velho com uma energia e uma vivacidade que fez estremecer os dois oficiais.

- Conheceu-a então? - perguntou Dunwoodie com os olhos brilhantes de alegria.

O ribombar súbito e contínuo da artilharia fez interromper esta conversa. Fizeram-se a seguir ouvir descargas de mosquetes e daí a instantes o tumulto do combate espalhava-se no ar.

Os dois amigos correram para o seu acampamento acompanhados pelo homem que acabavam de conhecer. O interesse que tinham pelo que se estava a passar e a pressa de chegar não os deixou recomeçar a conversa e os três fizeram o caminho formulando conjecturas sobre a causa deste recontro e sobre a probabilidade de se vir a tornar geral. Durante o percurso que foi curto e feito rapidamente, o capitão Dunwoodie olhou várias vezes com simpatia para o velho, que andava com uma rapidez impressionante para uma pessoa da sua idade, porque o elogio que tinha feito a sua mãe, que ele adorava, tinha-lhe aberto o coração a seu favor. Juntaram-se em breve ao regimento a que os dois oficiais pertenciam, e o capitão, apertando a mão do velho, pediu-lhe instantemente para se informar no dia seguinte de manhã do local onde o podia encontrar, e para ir ter com ele à tenda, tendo-se separado imediatamente.

Tudo anunciava no acampamento americano que se aproximava uma batalha. A algumas milhas de distância o troar do canhão e dos tiros de mosquete sobrepunha-se ao da catarata. As unidades puseram-se em movimento logo a seguir para irem apoiar a divisão que lutava. A noite caiu antes da reserva e das tropas irregulares terem atingido Lundy's Lane, caminho que, afastando-se do rio passa por uma elevação de forma cónica, a pouca distância da estrada que conduz a Niagara.

No cimo desta elevação estava uma bateria inglesa e na planície cá em baixo, estava o que restava dessa intrépida brigada escocesa que tinha suportado durante bastante tempo um combate ilegal com uma bravura digna de nota. Opuseram-lhe uma nova linha, e uma brigada americana foi encarregada de subir a elevação paralelamente à estrada. Esta coluna apanhou os Ingleses de lado, e atacando-os com as baionetas, apoderaram-se da bateria. Os Americanos foram reforçados a seguir pelos seus camaradas e o inimigo foi desalojado lá de cima. Mas o general inglês recebia reforços a cada instante, e os seus soldados eram demasiadamente bravos para cederem tão facilmente a vitória. Os Ingleses fizeram cargas violentas para se apoderarem da bateria, mas foram sempre repelidos com baixas.

Na última destas investidas, o ardor do jovem capitão de que falámos levou-o a avançar com a sua companhia a fim de dispersar um pelotão inimigo que se mantinha firme. Conseguiu o seu intento, mas ao voltar às suas fileiras, viu que o tenente não estava no lugar que devia ocupar. Pouco tempo depois desta investida terminou o combate, e foram dadas ordens às tropas dispersas para voltarem ao acampamento. Os Ingleses tinham abandonado o campo de batalha e já se estava a tratar dos feridos que podiam ser transportados.

Dunwoodie Wharton começava a estar preocupado com o amigo e levado pela sua afeição pegou num archote e chamou dois soldados. Encontrou Mason sentado na encosta, com um ar muito calmo, mas sem poder andar porque tinha fracturado uma perna. Ao vê-lo Dunwoodie correu para ele dizendo:

- Ah! meu caro Tom! Já sabia que eras tu que eu ia encontrar mais perto do inimigo.

- Devagar, devagar - disse Mason - tenham cuidado... Não, há um pobre diabo que ainda está mais perto do que eu, e não sei quem pode ser. Vi-o sair do meio da fumarada que fazíamos, perto do meu pelotão, para fazer um prisioneiro, ou não sei para quê, mas nunca mais voltou... Olha, está estendido naquele cabeço. Já tentei falar com ele várias vezes, mas creio que já não me pode responder.

Dunwoodie aproximou-se do lugar indicado e com grande surpresa sua reconheceu o desconhecido que tinha encontrado nessa mesma tarde.

- É o velho que conheceu a minha mãe! - exclamou. - Está morto, mas por amor dela terá uma sepultura digna. Levantem-no e levem-no. Os seus restos mortais repousarão na sua terra natal.

Esta ordem foi cumprida. O velho estava deitado de costas, o rosto exposto à claridade do archote. Os olhos estavam fechados como se tivesse adormecido. Os lábios enrugados pela idade estavam entreabertos para um último sorriso. A seu lado estava um mosquete. As mãos estavam juntas sobre o peito e uma delas segurava uma coisa que brilhava como prata. Dunwoodie curvou-se sobre ele, afastou-lhe as mãos e viu o buraco que a bala tinha feito para lhe penetrar no coração. O objecto que fora o seu último cuidado era uma caixa de estanho que a bala tinha passado e os últimos momentos do moribundo foram para a retirar do peito. Dunwoodie abriu-a e encontrou um papel que com grande surpresa sua dizia:

 

"Razões políticas da maior importância, e que interessam ao destino e à vida de várias pessoas, obrigaram a guardar segredo até este momento do que agora vai ser revelado. Harvey Birch foi sempre um servidor fiel e desinteressado da pátria. Que Deus lhe dê a recompensa que não recebeu dos homens!

  1. Washington."

 

Era o espião do Território Neutro... morreu como tinha vivido, dedicado à pátria e mártir da liberdade.

 

                                                                                Feminore Cooper  

 

                      

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