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QUARENTA E SETE LONDRES
Clive Roach estava sentado a uma mesa junto à janela, no café em frente do apartamento de Catherine Blake, do outro lado da rua. A empregada trouxe-lhe o chá e o pão de leite. Ele largou de imediato algumas moedas na mesa. Era um hábito que tinha adquirido com o trabalho. Por norma, Roach era obrigado a sair dos cafés inesperada e rapidamente. A última coisa de que precisava era atrair atenções. Bebericou o chá e folheou um jornal matutino sem grande convicção. Não estava realmente interessado. Estava mais interessado na entrada do prédio do outro lado da rua. A chuva começou a cair com mais intensidade. Não estava desejoso de voltar a sair e molhar-se. Era o único aspeto do seu trabalho de que não gostava - a exposição constante ao mau tempo. Já tinha apanhado mais constipações e bronquites do que se conseguia lembrar.
Antes da guerra, tinha sido professor numa escola degradada para rapazes. Decidiu alistar-se no exército em 1939. Estava longe de ser o soldado ideal - magro, pele macilenta, cabelo ralo, uma voz com pouca potência. Não era propriamente disso que os oficiais eram feitos. No centro de recrutamento, reparou que estava a ser observado por dois homens bem vestidos a um canto. E também reparou que tinham pedido uma cópia do seu processo e que a estavam a examinar minuciosamente e com grande interesse. Passados uns minutos, arrancaram-no da fila, disseram-lhe que eram dos serviços secretos militares e ofereceram-lhe trabalho.
Roach gostava de observar. Era um observador de pessoas nato e possuía grande aptidão para nomes e caras. Oh, sabia que não haveria medalhas em reconhecimento de heroísmo no campo de batalha, nem histórias que pudesse contar no pub quando a guerra terminasse. Mas era um trabalho importante e Roach fazia-o bem. Começou a comer o pão de leite, pensando em Catherine Blake. Tinha seguido muitos espiões alemães desde 1939, mas ela era a melhor. Uma verdadeira profissional. Já o envergonhara uma vez, mas jurara que nunca mais iria deixar que isso acontecesse.
Terminou o pão de leite e bebeu o que restava do chá. Levantou os olhos da mesa e viu-a sair do prédio. Maravilhou-se com as artes do ofício de Catherine. Ficava sempre parada durante um momento a fazer qualquer coisa prosaica, ao mesmo tempo que perscrutava a rua à procura de sinais de vigilância. Naquele dia, estava às voltas com o guarda-chuva, como se este estivesse estragado. Roach pensou: A menina é muito boa, Miss Blake. Mas eu sou melhor.
Observou-a a abrir por fim o guarda-chuva e a começar a andar. Roach levantou-se, vestiu o casaco e saiu do café para ir atrás dela.
Horst Neumann acordou no momento em que o comboio atravessava ruidosamente os subúrbios do nordeste de Londres. Deu uma olhadela ao relógio: 10h30. Deviam ter chegado a Liverpool Street às 10h23. Milagrosamente, iriam atrasar-se apenas uns minutos. Bocejou, espreguiçou-se e endireitou-se no lugar. Espreitou pela janela, vendo os sombrios edifícios vitorianos que iam passando. Crianças sujas acenaram ao comboio. Neumann, sentindo-se ridiculamente inglês, acenou-lhes também. Havia mais três passageiros no seu compartimento, um par de soldados e uma jovem que usava um fato-macaco de trabalhador fabril e tinha franzido o sobrolho de preocupação quando vira a cara cheia de ligaduras de Neumann. Naquele momento, ele olhou de relance para cada um deles. Ficava sempre preocupado com a possibilidade de falar enquanto dormia, embora nas noites anteriores tivesse sonhado em inglês. Recostou a cabeça e fechou os olhos novamente. Meu Deus, como estava cansado. De pé às cinco da manhã, fora do chalé às seis, para Sean lhe
noder dar boleia até Hunstanton, o comboio das 7hl2 de Hunstanton para Liverpool Street.
Dormira mal na noite anterior, por causa das dores provocadas relos ferimentos e da presença de Jenny Colville na sua cama. Esta levantara-se ao mesmo tempo que ele, antes do amanhecer, escapulira-se do chalé dos Dogherty e fora de bicicleta para casa, no meio da escuridão e da chuva. Neumann esperava que ela tivesse chegado em segurança. E esperava que Martin não se encontrasse à espera dela. Tinha sido uma coisa estúpida deixá-la passar a noite consigo. Pensou no que ela sentiria quando ele se fosse embora. Quando nunca lhe escrevesse e ela nunca mais voltasse a ter notícias dele. Preocupava-o a reação dela se alguma vez descobrisse a verdade - que ele não era James Porter, um soldado britânico ferido, à procura de paz e sossego numa aldeia de Norfolk. Que era Horst Neumann, um paraquedista militar condecorado que tinha vindo para Inglaterra espiar e que a tinha enganado da pior forma. Mas não a tinha enganado em relação a uma coisa. Gostava dela. Não da maneira como ela gostaria que o fizesse, mas a verdade é que gostava dela a ponto de se preocupar com o que lhe pudesse acontecer.
O comboio abrandou ao aproximar-se de Liverpool Street. Neumann levantou-se, vestiu o casacão e saiu do compartimento. O corredor estava repleto de gente. Foi avançando a custo por entre os outros passageiros, em direção à porta. Houve alguém à frente dele que a abriu de rompante e Neumann saiu do comboio ainda em andamento. Deu o bilhete ao revisor e seguiu por uma passagem húmida até à estação do metro. Lá chegado, comprou um bilhete para Temple e apanhou o comboio seguinte. Uns minutos mais tarde, estava a subir as escadas e a dirigir-se para norte, a caminho da Strand.
Catherine Blake apanhou um táxi para Charing Cross. O ponto de encontro ficava a uma pequena distância, à frente de uma loja na Strand. Pagou ao taxista e abriu o guarda-chuva para não ficar molhada. Começou a andar. Parou junto a uma cabine telefónica, levantou o auscultador e fingiu que estava a fazer uma chamada. Olhou
para trás. A chuva forte tinha reduzido a visibilidade, mas não viu sinais do inimigo. Voltou a pousar o auscultador, saiu da cabine e continuou para leste, seguindo pela Strand.
Clive Roach saiu discretamente da parte de trás de uma carrinha de vigilância e seguiu-a pela Strand. Durante a curta viagem de carrinha, tinha-se livrado do impermeável e do chapéu de abas e vestido um oleado verde-escuro e um gorro de lã. A transformação era extraordinária - de um empregado de escritório para um operário. Roach ficou a ver Catherine Blake parar para fazer o suposto telefonema. Roach parou ao pé de um quiosque. Ao dar uma vista de olhos às manchetes, visualizou o rosto do agente a quem o professor Vicary tinha dado o nome de código de Rudolf. A missão de Roach era simples: seguir Catherine Blake até ela passar o material a Rudolf e depois segui-lo a ele. Levantou os olhos a tempo de a ver pousar o auscultador no gancho e sair da cabine telefónica. Roach embrenhou-se no meio das pessoas e seguiu-a.
Neumann avistou Catherine Blake a caminhar na sua direção. Parou junto a uma loja, com os olhos a perscrutarem as caras e a roupa das pessoas que se encontravam atrás dela no passeio. Quando ela se aproximou, Neumann afastou-se da montra e começou a avançar na sua direção. O contacto foi breve, um segundo ou dois. Mas, quando terminou, Neumann tinha o rolo na mão e estava a enfiá-lo no bolso do casaco. Ela continuou a andar depressa, desaparecendo por entre a multidão. Neumann seguiu na direção oposta mais uns metros, registando as caras. Depois, parou abruptamente em frente a outra montra, deu meia-volta e seguiu-a discretamente.
Clive Roach avistou Rudolf e viu a troca. Pensou: Vocês são uns sacanas manhosos, não são? Observou Rudolf a parar e depois a dar meia-volta e a caminhar na mesma direção que Catherine Blake. Roach tinha assistido a muitos encontros entre espiões alemães desde
1939, mas nunca tinha visto um agente dar meia-volta para seguir outro. Normalmente, cada um seguia o seu caminho. Roach levantou a gola do oleado para tapar as orelhas e deslizou cuidadosamente atrás deles.
Catherine Blake avançou para leste, seguindo pela Strand, e depois dirigiu-se para o Victoria Embankment. Foi lá que detetou que Neumann se encontrava atrás de si. A sua primeira reação foi de fúria. O procedimento normal para encontros consistia em separarem-se - e depressa - mal a entrega fosse feita. Neumann conhecia o procedimento e tinha-o executado sempre sem falhas. Ela pensou: Porque é que ele me está a seguir agora?
Vogel deve ter-lhe dado ordens para o fazer.
Mas porquê? Só conseguia pensar em duas explicações possíveis: ele tinha perdido a confiança nela e queria ver para onde ela ia ou queria perceber se estava a ser seguida pelo inimigo. Contemplou o Tamisa e depois virou-se e lançou uma olhadela ao Embankment. Neumann não tentou esconder a sua presença. Catherine virou-se novamente e continuou a andar.
Lembrou-se das intermináveis palestras de treino no campo secreto de Vogel na Baviera. Ele tinha-lhe chamado contravigilância, um agente a seguir outro para ter a certeza de que o agente não estava a ser seguido pelo inimigo. Perguntou-se por que razão teria Vogel decidido fazer isso naquela altura. Talvez Vogel quisesse confirmar que as informações que ela andava a receber eram fidedignas certificando-se de que ela não estava a ser seguida pelo inimigo. Bastou considerar sequer essa segunda explicação para que o estômago lhe ardesse de ansiedade. Neumann estava a segui-la porque Vogel suspeitava que ela estava sob vigilância do MI5.
Voltou a parar e a contemplar o rio, forçando-se a manter a calma. A pensar com clareza. Virou-se e olhou para o Embankment. Neumann continuava ali. Evitava intencionalmente o seu olhar, isso era óbvio. Punha-se a contemplar o rio ou a voltar-se para trás, tudo menos olhar para Catherine.
Ela virou-se outra vez e recomeçou a andar. Sentia o coração a ribombar no peito. Foi até à estação de metro de Blackfriars, entrou e comprou um bilhete para Victoria. Neumann foi atrás dela e fez o mesmo, só que o bilhete que comprou foi para a estação seguinte, South Kensington.
Ela avançou rapidamente para a plataforma. Neumann comprou um jornal e seguiu-a. Ela parou à espera do metro. Neumann parou a uns seis metros dela a ler o jornal. Quando o metro apareceu, Catherine aguardou que as portas se abrissem e depois entrou na carruagem. Neumann entrou nessa mesma carruagem, mas por uma porta diferente.
Ela sentou-se. Neumann deixou-se ficar de pé, na outra ponta da carruagem. Catherine não gostou da expressão que ele tinha na cara. Baixou os olhos, abriu a mala e espreitou lá para dentro - uma carteira cheia de dinheiro, uma faca de ponta e mola e uma Mauser carregada, com silenciador e munição extra. Fechou a mala e esperou para ver o que Neumann faria a seguir.
Durante duas horas, Neumann seguiu-a ao longo do West End, de Kensington a Chelsea, de Chelsea a Brompton, de Brompton a Belgravia, de Belgravia a Mayfair. Quando chegaram a Berkeley Square, estava convencido. Eles eram bons - muito bons mesmo -, mas o tempo e a paciência tinham acabado por lhes esgotar os recursos, forçando-os a cometerem um erro. Foi o homem do impermeável que seguia uns quinze metros atrás de si. Cinco minutos antes, Neumann tinha conseguido ver-lhe muito bem a cara. Era a mesma cara que tinha visto quase três horas antes, na Strand, quando tinha ficado com o rolo passado por Catherine, só que nessa altura o homem trazia um oleado verde e um gorro de lã.
Neumann sentiu-se desesperadamente sozinho. Tinha sobrevivido ao pior da guerra - Polónia, Rússia, Creta -, mas nenhuma das capacidades que o tinham ajudado a superar essas batalhas entraria ali em jogo. Pensou no homem atrás de si - esguio, de pele macilenta, provavelmente muito fraco. Neumann poderia matá-lo num instante se quisesse. Mas as velhas regras não se aplicavam àquele jogo. Não pedia pedir reforços por rádio, não podia contar com o apoio dos companheiros. Continuou a andar, surpreendido por se encontrar tão
calmo- Pensou: Andam a seguir-nos há horas, porque é que ainda não nos prenderam aos dois? Achou que sabia a resposta. Era evidente que queriam saber mais. Onde
iria ser entregue o rolo? Onde estava instalado Neumann? Havia mais agentes na rede? Desde que não lhes desse as respostas para essas perguntas, estariam a salvo. Era um trunfo muito fraco, mas, se fosse bem jogado, talvez lhes desse uma possibilidade de se escaparem.
Neumann acelerou o passo. Catherine, alguns metros à sua frente, virou para Bond Street. Parou para chamar um táxi. Neumann avançou mais depressa e depois começou
a correr ligeiramente. Gritou:
- Catherine! Meu Deus, há quanto tempo! Como é que tens passado?
Ela levantou os olhos, alarmada. Neumann pegou-lhe no braço.
- Precisamos de falar - disse Neumann. - Vamos procurar um sítio para beber um chá e pôr a conversa em dia.
A atitude repentina de Neumann foi recebida no centro de operações em West Halkin Street com o impacto de uma bomba de quinhentos quilos. Basil Boothby andava de um lado para o outro a falar ao telefone com o diretor-geral sob grande tensão nervosa. O diretor-geral estava em contacto com o Comité dos Vinte e com o staff do primeiro-ministro nas Salas de Guerra Subterrâneas. Vicary tinha-se envolvido num manto de silêncio e olhava fixamente para a parede, com as mãos fechadas por baixo do queixo. Boothby desligou o telefone com violência e anunciou:
- O Comité dos Vinte diz para os deixarmos à solta.
- Não gosto disso - afirmou Vicary, continuando a fitar a parede. - É evidente que detetaram a vigilância. Neste momento, estão para ali sentados a tentar perceber o que fazer.
- Não tem a certeza disso. Vicary levantou os olhos.
- Nunca tínhamos conseguido reparar num encontro entre ela e outro agente. E agora de repente está sentada num café em Mayfair a beber chá e a comer uma torrada com Rudolf?
- Só a temos sob vigilância há pouco tempo. Tanto quanto sabemos, ela e Rudolf até podem andar a encontrar-se regularmente.
- Há qualquer coisa que não bate certo. Acho que eles detetaram que os estão a vigar. E não só, acho que Rudolf já andava a tentar confirmar isso. Foi por isso que a seguiu depois do encontro na Strand.
- A decisão do Comité dos Vinte está tomada. Eles dizem para os deixarmos à solta, por isso deixamo-los à solta.
- Se eles detetaram a vigilância, não faz sentido deixá-los à solta. Rudolf não vai fazer a entrega e vai manter-se longe de todos os outros agentes da rede. Estar a segui-los agora não nos beneficia em nada. Acabou, Sir Basil.
- Então o que sugere?
- Que avancemos já. Prendê-los mal saiam do café. Boothby olhou para Vicary como se ele tivesse dito uma heresia.
- Estamos a ficar com medo agora, é, Alfred?
- O que quer dizer com isso?
- Quero dizer que a ideia foi sua, logo para início de conversa. Foi o Alfred que a concebeu, foi o Alfred que a vendeu ao primeiro-ministro. O diretor-geral concordou com ela e o Comité dos Vinte aprovou-a. Há várias semanas que um grupo de agentes anda a labutar dia e noite para providenciar o material para aquela pasta. E agora o Alfred quer acabar com tudo, assim sem mais nem menos - disse Sir Basil, estalando os dedos grossos tão alto que pareceu um tiro porque tem um palpite.
- É mais do que um palpite, Sir Basil. Leia o raio dos relatórios de vigilância. Está lá tudo.
Boothby tinha recomeçado a andar de um lado para o outro, com as mãos cruzadas atrás das costas e a cabeça ligeiramente levantada, como se estivesse a fazer um esforço para ouvir qualquer coisa irritante ao longe.
- Eles vão dizer: "Ele era bom nas mensagens por rádio, mas não tinha o sangue-frio necessário para lidar com agentes de carne e osso." É isso que vão dizer de si quando tudo isto terminar: "Na verdade, não foi surpresa. Afinal de contas, ele era um amador. Era só um geniozinho da universidade que deu o seu contributo durante a guerra e depois se esfumou quando tudo terminou. Era bom, muito bom, mas não teve tomates para jogar com a parada alta." E isso que
quer que digam de si? Porque, se for, o melhor é pegar no telefone e dizer ao diretor-geral que acha que devemos acabar já com isto tudo.
Vicary fitou Boothby. Boothby, controlador de agentes. Boothby, da serenidade aristocrática debaixo de fogo. Questionou-se por que i-azão estaria Boothby a tentar
envergonhá-lo para o convencer a ir em frente quando até um cego podia ver que tinham sido desmascarados.
- Acabou - sentenciou Vicary desanimada e monocordicamente. - Eles detetaram a vigilância. Estão ali sentados a planear o que fazer a seguir. Catherine Blake sabe que foi enganada e vai informar Kurt Vogel disso. Vogel vai concluir que a Mulberry é exatamente o contrário daquilo que lhe dissemos. E depois estamos mortos.
- Eles estão por todo o lado - disse Neumann. - O homem do impermeável, a rapariga à espera do autocarro, o homem a entrar na farmácia do outro lado da praça. Já usaram várias caras, várias combinações, várias roupas. Mas andam a seguir-nos desde que saímos da Strand.
Uma empregada trouxe chá. Catherine esperou que ela se fosse embora antes de falar:
- Foi Vogel que te mandou seguir-me?
- Foi.
- E imagino que não tenha explicado porquê, pois não? Neumann abanou a cabeça.
Catherine pegou na chávena de chá, com a mão a tremer. Serviu-se da outra mão para estabilizar a chávena e forçou-se a beber.
- O que te aconteceu à cara?
- Tive um problemazito na aldeia. Nada de grave. Catherine olhou para ele, desconfiada, e perguntou:
- Porque é que eles não nos prenderam?
- Pelas mais variadas razões. Provavelmente, sabem da tua existência há imenso tempo. E, provavelmente, também andam a seguir-te há imenso tempo. Se isso for verdade, então todas as informações que tens andado a receber do comandante Jordan são falsas, uma
cortina de fumo concebida pelos britânicos. E nós temos-lhes feito o favor de passar isso a Berlim.
Ela pousou a chávena. Lançou uma olhadela à rua e depois fitou Neumann, obrigando-se a não olhar para os vigias.
- Se Jordan estiver a trabalhar para os serviços secretos britânicos, podemos partir do princípio de que tudo o que ele tem na pasta é falso: informações que eles queriam que eu visse, informações com o intuito de induzir a Abwehr em erro em relação aos planos dos Aliados para a invasão. Vogel precisa de ser informado disso - disse ela, conseguindo sorrir. - É possível que aqueles sacanas nos tenham acabado de entregar o segredo da invasão.
- Suspeito que tenhas razão. Mas há um problema. Precisamos de dizer isso a Vogel pessoalmente. Temos de partir do princípio de que a via da embaixada portuguesa
se encontra neste momento comprometida. E também temos de partir do princípio de que não podemos utilizar os nossos rádios. Vogel acha que os velhos códigos da Abwehr foram decifrados. É por isso que se serve do rádio tão poucas vezes. Se transmitirmos a Vogel o que sabemos via rádio, os britânicos também vão ficar a saber.
Catherine acendeu um cigarro, com as mãos ainda a tremerem. Acima de tudo, sentia-se furiosa consigo própria. Durante anos, tinha feito tudo e mais alguma coisa para se assegurar de que não estava a ser vigiada pelo outro lado. E depois, quando aconteceu por fim, não tinha dado por isso. Perguntou:
- Como raio é que vamos conseguir sair de Londres?
- Temos umas quantas coisas que podemos utilizar a nosso favor. Número um, isto - disse Neumann, batendo ao de leve no bolso onde se encontrava o rolo. - Posso estar enganado, mas acho que nunca fui seguido. Vogel treinou-me bem e sou muito cuidadoso. Não me parece que saibam como é que entrego o filme ao português: onde é que isso é feito, se há alguma palavra-chave ou outro sinal qualquer que sirva de código. Além disso, também tenho a certeza de que não fui seguido até Hampton Sands. A aldeia é tão pequena que eu saberia se estivesse a ser vigiado. Não sabem onde é que estou alojado nem se ando a trabalhar com mais algum agente. O procedimento normal consiste em localizar todos os elementos de
uma rede e depois acabar com ela de uma só vez. É assim que a Gestapo lida com a Resistência em França e é assim que o MI5 o faria em Londres.
Tudo isso me parece lógico. O que sugeres?
- Vais estar com Jordan hoje à noite? .-Sim.
- A que horas?
- vou encontrar-me com ele às sete para jantar.
- Perfeito - exclamou Neumann. - O que eu quero que tu faças é o seguinte.
Neumann passou os cinco minutos seguintes a explicar pormenorizadamente o seu plano de fuga. Catherine ouviu com atenção, nunca tirando os olhos de cima dele, resistindo à imensa tentação de olhar para os vigias à espera do lado de fora do café. Após terminar, Neumann disse:
- Faças o que fizeres, não podes fazer nada fora do normal. Nada que os possa levar a suspeitar que sabes que estás a ser vigiada. Mantém-te em movimento até ser altura. Vai às compras, vai ao cinema, não fiques em casa. Enquanto eu não entregar este rolo, não corres perigo. Quando chegar a altura, vai para o teu apartamento e vai buscar o rádio. vou lá ter às cinco horas, às cinco em ponto, e entro pela porta de trás. Entendeste?
Catherine assentiu com a cabeça. Neumann disse:
- Só há um problema. Fazes ideia de onde é que eu posso deitar a mão a um carro e a gasolina?
Catherine não conseguiu evitar rir-se.
- Por acaso, até sei de um sítio. Mas não te aconselho a mencio-
nares o meu nome.
Neumann saiu do café primeiro. Vagueou por Mayfair durante meia hora, seguido pelo menos por dois homens - o oleado e o impermeável.
A chuva começou a cair com mais força e o vento tornou-se mais forte. Estava com frio, encharcado até aos ossos e cansado. Precisava de ir repousar para algum sítio,
algum sítio onde se pudesse aquecer durante um bocado, descansar os pés e manter os amigos
Impermeável e Oleado debaixo de olho. Dirigiu-se para Portman Square. Sentia-se mal por estar a envolvê-la, mas, quando tudo terminasse, iriam interrogá-la e concluir
que ela não sabia de nada.
Parou à porta da livraria e espreitou pela montra. Sarah estava em cima do escadote, com o cabelo escuro bem puxado para trás. Bateu ao de leve na montra para não
a assustar. Ela virou-se e o seu rosto iluminou-se num sorriso instantâneo. Pousou os livros e fez-lhe sinal entusiasticamente para entrar. Olhou para ele e exclamou:
- Meu Deus, está com um péssimo aspeto. O que lhe aconteceu à cara?
Neumann hesitou; apercebeu-se de que não tinha uma explicação para o penso na maçã do rosto. Murmurou qualquer coisa sobre uma queda durante o blackout e ela pareceu aceitar a história. Ajudou-o a tirar o casaco e pendurou-o em cima do aquecedor para que secasse. Ele ficou com ela duas horas, fazendo-lhe companhia, ajudando-a a dispor os livros novos nas prateleiras e tomando chá com ela no café do lado quando chegou a altura da sua pausa. Reparou que os antigos vigias se estavam a ir embora e a serem substituídos por novos. Reparou numa carrinha preta estacionada à esquina e partiu do princípio de que os homens na parte da frente pertenciam ao inimigo.
Às 16h30, quando a última luz do dia tinha desaparecido e o blackout se instalara, tirou o casaco de cima do aquecedor e vestiu-o. Ela fez uma cara triste, na brincadeira, e depois pegou-lhe na mão e levou-o para o armazém. Lá, encostou-se à parede, puxou-o contra si e beijou-o.
- Não sei absolutamente nada sobre si, James Porter, mas gosto muito de si. Está triste com qualquer coisa. Gosto disso.
Neumann foi-se embora da livraria, sabendo que nunca mais a voltaria a ver. De Portman Square, dirigiu-se para norte, para a estação de metro de Baker Street, seguido pelo menos por duas pessoas a pé, além da carrinha preta. Entrou na estação, comprou um bilhete para Charing Cross e apanhou o metro seguinte que lá passava. Em Charing Cross, mudou de metro e seguiu para a estação de Euston. com dois homens a perseguirem-no, atravessou o túnel que ligava a estação de metro ao terminal ferroviário. Neumann esperou quinze minutos numa bilheteira e comprou um bilhete para Liverpool.
OS passageiros já estavam a subir a bordo do comboio quando chegou à plataforma. A carruagem ia apinhada. Procurou um compartimento com um lugar vago. Encontrou por fim um, abriu a porta, enfrou e sentou-se.
Olhou para o relógio: faltavam três minutos para o comboio partir. Do lado de fora do compartimento, o corredor estava a encher-se rapidamente de passageiros. Não era invulgar alguns viajantes azarados passarem a viagem inteira em pé ou sentados no corredor. Neumann levantou-se e comprimiu-se todo para sair do compartimento, murmurando qualquer coisa sobre estar mal do estômago. Dirigiu-se para a casa de banho no final da carruagem. Bateu à porta. Não houve resposta. Quando bateu pela segunda vez, espreitou por cima do ombro; o homem que tinha entrado com ele no comboio não o conseguia ver devido aos outros passageiros no corredor.
Perfeito. O comboio começou a andar. Neumann esperou à porta da casa de banho enquanto o comboio ia ganhando velocidade lentamente. Para a maioria das pessoas, já ia demasiado depressa para se saltar em segurança. Neumann esperou mais uns segundos e, a seguir, avançou para a porta, abriu-a de rompante e saltou para a plataforma.
Aterrou suavemente, dando primeiro uns pulinhos e depois começando a andar rapidamente. Levantou os olhos a tempo de avistar um revisor de ar irritado a fechar a porta. Avançou rapidamente para a saída e embrenhou-se no blackout.
Euston Road estava apinhada com o corrupio do final da tarde. Chamou um táxi e entrou. Deu uma morada no East End ao taxista e instalou-se, preparando-se para a viagem.
QUARENTA E OITO
HAMPTON SANDS, NORFOLK
Mary Dogherty esperou sozinha no chalé. Tinha achado sempre que era um sitiozinho adorável - quente, cheio de luz, arejado -, mas naquele momento parecia-lhe claustrofóbico e exíguo como uma catacumba. Lá fora, a grande tempestade que tinha sido prevista abatera-se finalmente sobre a costa de Norfolk. A chuva fustigava as janelas, fazendo
as vidraças chocalharem. O vento soprava em rajadas incessantes, gemendo pelo beiral. Ouviu uma telha a raspar e a ceder no telhado.
Sean não estava lá, tinha ido a Hunstanton buscar Neumann à estação de comboios. Mary afastou-se da janela e recomeçou a andar de um lado para o outro. Fragmentos da conversa que tinham tido de manhã ecoavam-lhe na cabeça sem parar, como um disco riscado num gramofone: submarino para a França... ficar em Berlim uns tempos... passagem para outro país... voltar para -a Irlanda... ires lá ter comigo quando a guerra acabar...
Parecia um pesadelo - como se estivesse a ouvir a conversa de outra pessoa, a vê-la num filme ou a lê-la num livro. A ideia era ridícula: Sean Dogherty, agricultor desfavorecido na costa de Norfolk e simpatizante do IRA, ia apanhar um submarino para a Alemanha. Calculou que fosse o culminar lógico da espionagem feita por Sean. Tinha sido parva em esperar que tudo fosse regressar ao normal após a guerra terminar. Tinha-se iludido a si própria. Sean ia fugir e deixá-la para trás, a braços com as consequências. Que iriam fazer as autoridades?
Diz-lhes só que não sabias de nada, Mary. E o que aconteceria se não acreditassem nela? O que fariam então? Como poderia ela ficar na aldeia se toda a gente soubesse que Sean tinha sido um espião? Seria expulsa da costa de Norfolk. Seria escorraçada de todas as aldeias inglesas onde tentasse instalar-se. Teria de abandonar Hampton Sands.
Teria de abandonar Jenny Colville. Teria de voltar para a Irlanda, para a aldeia desoladora de onde tinha fugido trinta anos antes. Ainda lá tinha família, família
que a podia acolher. A ideia era absolutamente aterradora, mas não teria outra escolha - não quando toda a gente ficasse a saber que Sean tinha espiado para os alemães.
Começou a chorar. Pensou: Raios te partam, Sean Dogherty! Como é que pudeste ser assim tão tonto?
Mary voltou para a janela. No trilho, na direção da aldeia, viu um ponto de luz a oscilar sob a carga de água. Passado um momento, viu o brilho de um oleado molhado e uma silhueta frágil numa bicicleta, com o corpo dobrado para a frente, contra o vento, os cotovelos para fora e os joelhos em grande atividade. Era Jenny Colville. Saiu de cima da bicicleta junto ao portão e empurrou-a pelo trilho. Mary abriu-lhe a porta. O vento soprava em rajadas, atirando a chuva para dentro do chalé. Mary puxou Jenny para dentro e ajudou-a a tirar o casaco e o chapéu molhados.
- Meu Deus, Jenny, o que é que andas a fazer na rua com um tempo destes?
- Oh, Mary, é maravilhoso. Tão ventoso. Tão lindo.
- Está visto que perdeste o juízo, rapariga. Senta-te ao pé da lareira. vou fazer-te um chá quente.
Jenny aqueceu-se à frente da lenha que ardia na lareira.
- Onde está o James? - perguntou.
- Não está cá - gritou Mary da cozinha. - Foi com Sean a algum lado.
- Oh - exclamou Jenny, com Mary a perceber a desilusão na voz dela. - E vai demorar muito tempo?
Mary parou o que estava a fazer e voltou para a sala de estar. Olhou para Jenny e perguntou:
- Porque estás assim tão interessada no James de repente?
- Só o queria ver. Dizer olá. Passar algum tempo com ele. Só isso.
- Só isso? Mas que raio é que tu tens, Jenny?
- É só que gosto dele, Mary. Gosto muito dele. E ele gosta de mim.
- Tu gostas dele e ele gosta de ti? E onde foste buscar uma ideia dessas?
- Eu sei, Mary, acredita. Não me perguntes como é que sei, mas sei.
Mary agarrou-a pelos ombros.
- Presta atenção, Jenny - disse ela, sacudindo Jenny uma vez.
- Estás a prestar atenção?
- Sim, Mary! Estás a magoar-me!
- Afasta-te dele. Esquece-o. Ele não é para ti. Jenny começou a chorar.
- Não o posso esquecer, Mary. Amo-o. E ele ama-me. Eu sei que sim.
- Jenny, ele não te ama. Não me peças para te explicar tudo agora porque não posso, meu amor. Ele é um homem bondoso, mas não é o que parece ser. Esquece isso. Esquece-o! Tens de confiar em mim, minha pequenina. Ele não é para ti.
Jenny conseguiu soltar-se de Mary com violência, recuou e limpou as lágrimas da cara.
- Ele é para mim, Mary. Eu amo-o. Estás aqui presa com o Sean há tanto tempo que já te esqueceste do que é o amor.
A seguir, pegou no casaco e saiu a correr pela porta fora, fechando-a com força. Mary precipitou-se para a janela e ficou a ver Jenny a pedalar pelo meio da tempestade.
A chuva batia no rosto de Jenny enquanto ela seguia na bicicleta pelo trilho ondulante em direção à aldeia. Tinha dito a si mesma que não iria voltar a chorar, mas não conseguia cumprir a palavra. As lágrimas misturaram-se com a chuva e escorreram-lhe pela cara. A aldeia tinha as persianas todas bem fechadas, a loja e o pub estavam fechados e os cortinados opacos dos chalés encontravam-se corridos. Tinha a lanterna no cesto, com o seu fraco feixe amarelo apontado para a escuridão total. A luz quase não dava para ver nada. Atravessou a aldeia e começou a avançar em direção ao seu chalé.
Estava furiosa com Mary. Como se atrevia a intrometer-se entre ela e James? E o que teria querido dizer com aquele comentário Ele não é o que parece ser? E também
estava zangada consigo própria. Sentia uns remorsos terríveis por ter lançado um insulto a Mary quando saíra a correr pela porta fora. Nunca tinham discutido. De
manhã, quando as coisas já tivessem acalmado, Jenny iria voltar lá para pedir desculpa.
Conseguiu distinguir ao longe o contorno do seu chalé, recortado no céu. Saiu de cima da bicicleta junto ao portão, empurrou-a pelo trilho e encostou-a ao chalé.
O pai apareceu lá fora e parou à frente da porta, limpando as mãos a um trapo. Ainda tinha a cara inchada da luta. Jenny tentou passar por ele, mas o pai estendeu
o braço e agarrou-lhe o braço com toda a força.
- Estiveste com ele outra vez?
- Não, papá! - gritou ela, cheia de dores. - Por favor, estás a magoar-me o braço!
Ele levantou a outra mão para lhe bater, com a horrível cara inchada a contorcer-se de raiva.
- Diz-me a verdade, Jenny! Estiveste com ele outra vez?
- Não, juro! - gritou ela, erguendo os braços à frente da cara para se proteger do golpe que esperava que surgisse a qualquer momento. - Por favor, papá, não me batas! Estou a dizer-te a verdade!
Martin Colville largou-a.
- Vai lá para dentro e faz-me qualquer coisa para eu comer.
Ela quis gritar-lhe: Faz tu o raio do teu jantar, para variar! Mas sabia onde isso levaria. Olhou para a cara dele e, por um instante, deu por si a desejar que James o tivesse matado. Esta é a última vez, pensou. Esta é mesmo a última vez. Entrou em casa, despiu o casaco encharcado, pendurou-o na parede da cozinha e começou a tratar-lhe do jantar.
QUARENTA E NOVE
LONDRES
Clive Roach soube que estava em apuros mal Rudolf entrou na carruagem apinhada de gente. Roach não teria problemas desde que o agente se deixasse ficar sentado no compartimento. Mas se o agente saísse do compartimento para ir à casa de banho, à carruagem-restaurante ou a outra qualquer, Roach ficaria em apuros. Os corredores estavam entupidos com viajantes, uns em pé e outros sentados, a tentarem em vão dormir. Era uma provação uma pessoa deslocar-se pelo comboio; tinha de se comprimir e empurrar os outros passageiros e estar constantemente a dizer com licença e Peço desculpa. Tentar seguir alguém sem se ser detetado seria difícil - provavelmente, impossível, se o agente fosse bom. E tudo o que Roach tinha visto até então lhe indicava que Rudolf era bom.
Roach ficou desconfiado quando Rudolf, agarrado ao estômago, saiu do compartimento com o comboio ainda parado na plataforma em Euston e rompeu pelo corredor apinhado. Rudolf era pequeno, não tinha mais do que um metro e sessenta e cinco, e a cabeça dele desapareceu rapidamente no mar de passageiros. Roach avançou uns quantos passos a custo, recebendo em troca os protestos e os gemidos dos outros passageiros. Sentia-se relutante em aproximar-se demasiado; Rudolf tinha voltado para trás várias vezes nesse dia e Roach receava que ele lhe tivesse visto a cara. O corredor estava mal iluminado por causa do regulamento do blackout e já se encontrava envolto num manto de fumo de cigarro que mais parecia nevoeiro
cerrado. Roach manteve-se nas sombras e ficou a ver Rudolf bater à porta da casa de banho duas vezes. Outro passageiro empurrou-o para passar, obstruindo-lhe a visão
por alguns segundos apenas. Quando voltou a olhar, já Rudolf tinha desaparecido.
Roach não saiu de onde se encontrava durante três minutos, observando a porta da casa de banho. Outro homem aproximou-se, bateu à porta e, a seguir, entrou na casa
de banho e fechou-a.
Começaram a tocar campainhas de alarme na cabeça de Roach.
Avançou aos empurrões pelo meio do emaranhado de passageiros no corredor, parou à frente da porta da casa de banho e começou a bater nela com toda a força.
- Espere pela sua vez, como toda a gente - disse a voz do outro lado.
- Abra a porta, emergência policial.
O homem abriu a porta uns segundos mais tarde, ainda a apertar a braguilha. Roach espreitou lá para dentro para ter a certeza de que Rudolf não estava lá. Maldição! Abriu de rompante a porta que dava para a carruagem seguinte e entrou nela. Tal como a anterior, estava às escuras, cheia de fumo e desesperadamente apinhada de passageiros. Naquele momento, seria impossível descobrir Rudolf sem revirar o comboio carruagem atrás de carruagem, compartimento atrás de compartimento.
Pensou: Como é que ele desapareceu tão depressa?
Regressou apressadamente para a primeira carruagem e deu com o revisor, um velho com óculos de aros de aço e um pé aleijado. Roach sacou da fotografia de vigilância de Rudolf e meteu-a à frente da cara do revisor.
- Viu este homem?
- Um sujeito pequeno?
- Sim - confirmou Roach, cada vez mais desanimando e pensando: Maldição! Maldição!
- Saltou do comboio quando estávamos a sair de Euston. Foi uma sorte não ter partido o raio da perna.
- Jesus! Porque não disse nada?
Apercebeu-se do ridículo que devia ter soado aquele comentário. Obrigou-se a falar com mais calma:
- Qual é a primeira paragem deste comboio?
- Watford.
- Quando?
- Daqui a uma meia hora.
- Demasiado tempo. Tenho de sair já deste comboio.
Roach esticou-se, agarrou o travão de emergência e puxou. O comboio abrandou de imediato quando o travão foi acionado e começou a parar.
O velho revisor olhou para Roach, pestanejando por trás dos óculos, e perguntou:
- O senhor não é um polícia normal, pois não?
Roach não disse nada e o comboio parou por completo. Abriu a porta de rompante, desceu para a linha e desapareceu pela escuridão dentro.
Neumann pagou ao taxista quando se encontrava a pouca distância do armazém dos Pope e, a seguir, fez o resto do caminho a pé. Passou a Mauser da cintura das calças para o bolso da frente do casacão e depois levantou a gola para se proteger da chuva forte. O primeiro ato tinha corrido sem problemas. O logro a bordo do comboio funcionara exatamente como esperava. Neumann tinha a certeza de não ter sido seguido após sair da estação de Euston. Isso queria dizer uma coisa: o Impermeável, o homem que o tinha seguido até ao comboio, continuava quase de certeza a bordo dele e a sair de Londres, a caminho de Liverpool. O vigia não era um idiota. Mais tarde ou mais cedo, acabaria por se aperceber de que Neumann não tinha voltado para o compartimento e efetuaria uma busca. Era possível que fizesse algumas perguntas. A fuga de Neumann não passara despercebida; o revisor tinha-o visto saltar do comboio. Quando o vigia percebesse que Neumann já não se encontrava no comboio, sairia na paragem seguinte e telefonaria aos superiores em Londres. Neumann deu-se conta de que tinha uma janela de oportunidade muito limitada. Tinha de atuar depressa.
O armazém estava às escuras e parecia deserto. Neumann tocou à campainha e aguardou. Não houve resposta. Voltou a tocar à campainha e dessa vez ouviu o ruído de passos do outro lado. Passado
um momento, a porta foi aberta por um gigante de cabelo preto e casaco de cabedal.
- O que quer?
- Gostaria de falar com o senhor Pope, por favor - respondeu Neumann educadamente. - Preciso de alguns artigos e disseram-me que este era, sem dúvida, o sítio indicado.
- O senhor Pope já cá não está e nós fechámos, por isso desapareça.
O gigante começou a fechar a porta. Neumann enfiou o pé para o impedir.
- Peço desculpa. É realmente muito urgente. Talvez o senhor me possa ajudar.
O gigante olhou para Neumann com uma expressão de perplexidade. Parecia estar a tentar conciliar o sotaque de colégio privado com o casacão e o penso na cara.
- Estou a ver que não me ouviu da primeira vez - respondeu ele. - Fechámos. Para sempre - atirou, agarrando em Neumann pelo ombro. - Agora, ponha-se a andar.
Neumann deu um murro na maçã de Adão do gigante e, a seguir, sacou da Mauser e deu-lhe um tiro no pé. O homem caiu redondo no chão, uivando de dor ou esforçando-se por respirar. Neumann entrou e fechou o portão. O armazém era tal e qual como Catherine o tinha descrito: carrinhas, carros, motas, pilhas de comida do mercado negro e vários bidões de gasolina.
Neumann debruçou-se e disse:
- Se te mexeres, dou-te outro tiro e não vai ser no pé. Estás a entender?
O gigante grunhiu.
Neumann escolheu uma carrinha preta, abriu a porta e ligou o motor. Agarrou em dois bidões de gasolina e enfiou-os na parte de trás da carrinha. Pensando bem, era uma viagem muito longa. Pegou noutros dois e enfiou-os também lá. Entrou para a carrinha, levou-a até à entrada do armazém e, a seguir, saiu e abriu o portão principal.
Antes de se ir embora, ajoelhou-se ao lado do homem que tinha ferido e disse-lhe:
- Se fosse a ti, ia já para um hospital.
O homem olhou para Neumann, mais confuso do que nunca.
- Mas que raio, quem és tu, pá?
Neumann sorriu, sabendo que a verdade soaria tão absurda que o homem nunca acreditaria nela.
- Sou um espião alemão que anda a fugir do MI5.
- Pois, e eu sou o raio do Adolf Hitler.
Neumann entrou para a carrinha e arrancou a grande velocidade.
Harry Dalton tirou as proteções dos faróis e atravessou Londres perigosamente depressa, em direção a oeste. A divisão dos Transportes tinha-lhe disponibilizado um
bom motorista, capaz de andar a alta velocidade, mas Harry quis ser ele a guiar. Ia serpenteando pelo meio dos carros, a buzinar sem parar. Vicary ia sentado ao seu lado, à frente, agarrando com força e nervosamente o painel de instrumentos. Os limpa-para-brisas esforçavam-se em vão por afastar a chuva. Ao virar para Cromwell Road, Harry acelerou tanto que a traseira do carro derrapou no alcatrão escorregadio. Continuou a serpentear entre o trânsito e depois virou para sul, para Earl's Court. Entrou numa pequena rua secundária e, a seguir, avançou a toda a velocidade por uma ruela estreita, guinando uma vez para evitar um caixote do lixo e depois outra para se esquivar de um gato. Travou a fundo por trás de um prédio de apartamentos e fez o carro parar abruptamente.
Harry e Vicary saíram do carro e entraram no prédio pela porta de serviço, nas traseiras, e subiram as escadas a correr, em direção ao posto de vigilância no quinto andar. Ignorando a dor que lhe rasgava o joelho como uma faca, Vicary acompanhou o ritmo de Harry.
Pensou: Se ao menos Boothby me tivesse deixado prendê-los há umas horas, não estaríamos neste sarilho.
Era um verdadeiro desastre.
O agente com o nome de código Rudolf tinha acabado de saltar de um comboio na estação de Euston e desaparecido na cidade. Vicary tinha de partir do princípio de que ele estava naquele momento a tentar fugir do país. Não tinha outra escolha a não ser prender
Catherine Blake; precisava dela detida e assustada de morte. Nesse caso, talvez lhes dissesse para onde fora Rudolf e como planeava escapar, se havia ou não outros agentes envolvidos e onde guardava ele o rádio.
Vicary não estava otimista. Tudo o que pressentia em relação àquela mulher lhe dizia que ela não iria colaborar, mesmo enfrentando uma execução. Tudo o que precisava de fazer era aguentar o tempo necessário para Rudolf poder escapar. Se fizesse isso, a Abwehr ficaria na posse de provas que indiciavam que os serviços secretos britânicos estavam empenhados num gigantesco logro. As consequências seriam demasiado tenebrosas para considerar a hipótese. Todo o trabalho que dedicara à Operação Fortitude seria desperdiçado. Os alemães deduziriam que os Aliados desembarcariam na Normandia. A invasão teria de ser adiada e planeada de novo; caso contrário, terminaria numa catástrofe sangrenta. A ocupação da Europa Ocidental por Hitler, com mão de ferro, prosseguiria. Morreria mais um número incontável de pessoas. E tudo porque a operação de Vicary se tinha desmoronado. Naquele momento, tinham uma hipótese apenas: prendê-la, obrigá-la a falar e deter Rudolf antes que ele pudesse fugir do país ou utilizar o rádio.
Harry abriu a porta do apartamento que servia de posto de vigilância e entraram ambos. As cortinas estavam abertas, deixando ver a rua e a sala às escuras. Vicary esforçou-se por distinguir os vultos que se encontravam na sala, lembrando pelas suas poses estátuas num jardim às escuras: dois vigias com olhos congestionados, imóveis à janela; meia dúzia de homens tensos da Divisão Especial, encostados a uma parede. O agente da Divisão Especial de posição superior chamava-se Cárter. Era grande e de rosto rude, com um pescoço grosso e pele bexigosa. Tinha um cigarro, apagado por motivos de segurança, a pender-lhe do canto da boca grande. Quando Harry apresentou Vicary, apertou-lhe a mão e, a seguir, levou-o para a janela para lhe explicar a disposição das forças ao seu comando. O cigarro apagado ia soltando cinza enquanto ele falava.
- Vamos entrar pela porta da frente - disse Cárter, com um ligeiro sotaque do norte de Inglaterra. - Quando o fizermos, vamos
fechar a rua numa e noutra ponta e dois homens vão vigiar as traseiras do prédio. Assim que entrarmos lá dentro, ela não vai poder fugir para lado nenhum.
- É extremamente importante que a capturem viva - sublinhou Vicary. - Não nos serve absolutamente de nada morta.
- Harry diz que ela tem jeito para as armas.
- É verdade. Temos razões para acreditar que ela tem uma pistola e está disposta a utilizá-la.
- Vamos capturá-la tão depressa que ela nem vai perceber o que lhe aconteceu. Estamos prontos assim que nos mandar avançar.
Vicary afastou-se da janela e atravessou a sala, dirigindo-se para o telefone. Marcou o número do departamento e esperou que a telefonista passasse a chamada para o gabinete de Boothby.
- Os homens da Divisão Especial estão prontos para avançar assim que lhes dermos essa ordem - anunciou Vicary quando a voz de Boothby se ouviu do outro lado da linha. -Já temos autorização?
- Não. O Comité dos Vinte ainda está a deliberar. E não podemos avançar até eles aprovarem isso. Agora, a bola está do lado deles.
- Meu Deus! Se calhar, alguém devia explicar ao Comité dos Vinte que tempo é coisa que não temos em grande abundância nesta altura. Para termos sequer uma hipótese mínima de apanhar Rudolf, precisamos de saber para onde é que ele vai.
- Eu compreendo o seu dilema - retorquiu Boothby. Vicary pensou: O seu dilema. O meu dilema, Sir Basil? Atirou:
- E quando é que eles vão decidir?
- A qualquer momento. Ligo-lhe logo a seguir.
Vicary desligou e começou a percorrer a sala escura. Virou-se para um dos vigias e perguntou:
- Há quanto tempo é que ela já ali está?
- Há coisa de um quarto de hora.
- Um quarto de hora? Porque é que ela ficou tanto tempo na rua? Não estou a gostar disto.
O telefone tocou. Vicary lançou-se para o atender e levou o auscultador ao ouvido. Basil Boothby disse:
- Temos a aprovação do Comité dos Vinte. Prenda-a, Alfred. E boa sorte.
Vicary bateu com o auscultador com força.
- Luz verde, cavalheiros - afirmou, voltando-se para Harry. Viva. Precisamos dela viva.
Harry assentiu com a cabeça, de cara fechada, e depois conduziu os homens da Divisão Especial para fora do apartamento, em fila indiana. Vicary ouviu o ruído dos seus passos ao descerem as escadas a desaparecer gradualmente. A seguir, passado um momento, viu-Ihes as cabeças quando saíram do prédio e começaram a atravessar a rua em direção ao apartamento de Catherine Blake.
Horst Neumann estacionou a carrinha numa pequena e sossegada rua secundária, ao virar da esquina do apartamento de Catherine. Saiu e fechou a porta sem fazer barulho. Seguiu rapidamente pelo passeio, com as mãos bem enfiadas nos bolsos, uma delas agarrada à coronha da Mauser.
A rua estava completamente às escuras. Chegou ao monte de destroços que tinha sido em tempos a fila de casas por trás do apartamento. Foi avançando às apalpadelas pelo meio de madeira partida, tijolos desfeitos e canos retorcidos. Os destroços terminavam numa parede com quase dois metros de altura. Do lado de lá da parede,
encontrava-se o jardim que ficava nas traseiras da casa - Neumann já o tinha visto da janela do quarto dela. Experimentou o portão; estava trancado. Teria de o abrir
pelo outro lado.
Colocou as mãos no cimo da parede, fez força com as pernas e puxou com os braços. Já em cima da parede, passou uma perna para o outro lado e rodou o corpo. Ficou assim pendurado durante alguns segundos, a olhar para baixo. O chão era invisível na escuridão. Podia cair em cima de qualquer coisa - num cão que estivesse a dormir ou numa fila de caixotes do lixo, que fariam uma barulheira terrível se aterrasse em cima deles. Pôs a hipótese de acender a lanterna por um segundo, mas isso poderia atrair atenções. Saltou da parede e caiu pela escuridão abaixo. Não havia cães nem caixotes do lixo, só um arbusto espinhoso qualquer que se espetou na sua cara
e no casaco.
Neumann libertou-se dos espinhos do arbusto e depois destrancou o portão. Atravessou o jardim até à porta das traseiras. Experimentou o trinco - estava trancada. A porta tinha uma janela. Enfiou a mão no bolso do casaco, tirou a Mauser e serviu-se dela para partir a vidraça no canto inferior esquerdo. O barulho foi surpreendentemente alto. Enfiou a mão pela vidraça partida, destrancou a porta e, a seguir, subiu as escadas.
Chegou à porta de Catherine e bateu ao de leve.
Do lado de lá da porta, ouviu a voz dela a perguntar:
- Quem é?
- Sou eu.
Ela abriu a porta. Neumann entrou e fechou-a. Catherine usava calças, uma camisola grossa e um casaco de cabedal. A mala rádio estava encostada à porta. Neumann
olhou para a cara dela. Estava pálida.
- Pode ser imaginação minha - disse ela -, mas acho que se passa qualquer coisa lá em baixo. Vi uns homens a rondar a rua e dentro de carros estacionados.
O apartamento estava às escuras, com uma única luz acesa na sala de estar. Neumann atravessou a sala rapidamente, em poucas passadas, e desligou-a. Foi até à janela e levantou a ponta do cortinado opaco, espreitando para a rua. O trânsito noturno circulava lá em baixo, lançando a luz necessária para que ele visse quatro homens a saírem em grande velocidade do prédio em frente, do outro lado da rua, e a avançarem em direção a eles.
Neumann virou-se e arrancou a Mauser do bolso.
- Eles vêm aí. Pega no rádio e segue-me lá para baixo. Já!
Harry Dalton abriu de rompante a porta da frente do prédio e entrou, com os homens da Divisão Especial logo atrás. Acendeu a luz do vestíbulo a tempo de ver Catherine Blake fugir pela porta das traseiras, com a mala do rádio a balançar-lhe no braço.
Horst Neumann tinha aberto a porta das traseiras a pontapé e estava a correr pelo jardim quando ouviu o grito vindo da casa. Avançou a toda a velocidade pela cortina de escuridão, com a Mauser à sua frente e a mão esticada. O portão abriu-se de rompante e uma figura surgiu lá, em silhueta de pistola erguida. Gritou a Neumann para parar. Neumann continuou a correr, disparando duas vezes. O primeiro tiro atingiu o homem no ombro, fazendo-o rodar. O segundo desfez-Ihe a espinha, matando-o de imediato.
Um segundo homem ocupou o lugar dele e tentou disparar. Neumann apertou o gatilho. A Mauser deu um salto na sua mão, sem fazer praticamente barulho, apenas o clique surdo do mecanismo de disparo. A cabeça do homem explodiu.
Neumann atravessou o portão a correr, passando por cima dos corpos e espreitando no meio do blackout. Não havia mais ninguém atrás da casa. Voltou-se e viu Catherine, a poucos metros dele, a correr com o rádio. Estavam três homens a persegui-la. Neumann ergueu a pistola e disparou para a escuridão. Ouviu dois homens a gritarem. Catherine continuou a correr.
Ele virou-se e começou a atravessar os destroços em direção à carrinha.
Harry sentiu as balas passarem-lhe rente à cabeça. Ouviu os gritos dos dois homens que iam atrás de si. Ela estava mesmo à sua frente. Mergulhou na escuridão, com os braços esticados para a frente. Apercebeu-se de que se encontrava numa situação de clara desvantagem; estava desarmado e sozinho. Podia parar e procurar uma das armas dos homens da Divisão Especial, para depois os perseguir e tentar alvejá-los aos dois. Mas o mais certo seria Rudolf matá-lo algures pelo caminho. Podia parar, dar meia-volta, voltar para dentro do prédio e avisar o posto de vigilância. Mas, por essa altura, já Catherine Blake e Rudolf teriam desaparecido há muito, eles seriam obrigados a recomeçar a maldita busca desde o início, os espiões utilizariam o rádio para comunicar a Berlim o que tinham descoberto e a porra da guerra estaria perdida, raios partam!
O rádio!
Pensou: Posso já não ser capaz de os parar, mas posso cortar-lhes o acesso a Berlim durante algum tempo.
Harry saltou no meio da escuridão, soltando um grito profundo, e agarrou a mala com as duas mãos. Tentou arrancá-la a Catherine, mas ela virou-se e puxou pela mala
com uma força surpreendente. Ele levantou os olhos e viu pela primeira vez a cara dela: vermelha, contorcida de medo e feia de raiva. Tentou arrancar-lhe a mala
das mãos novamente, mas não a conseguiu soltar; Catherine tinha os dedos bem cerrados à volta da pega, como um torno. Ela gritou pelo nome verdadeiro de Rudolf.
Soou a Wurst.
Foi então que Harry ouviu um clique. Já o tinha ouvido nas ruas da zona leste de Londres, antes da guerra, o som da lâmina de uma faca de ponta e mola a ser aberta
com um estalido. Viu o braço dela erguer-se e depois a baixar-se num arco violento em direção à sua garganta. Se ele levantasse o braço, poderia desviar o golpe.
Mas isso significaria que ela seria capaz de arrancar o rádio das mãos dele. Continuou a agarrá-lo e tentou esquivar-se da faca rodando a cabeça. A ponta da lâmina
acertou-lhe de lado na cara. Sentiu a carne rasgar-se. A dor surgiu passado um instante - penetrante, como se lhe tivessem atirado metal derretido à cara. Harry gritou, mas não largou a mala. Ela ergueu o braço novamente, enterrando-lhe desta feita a ponta da faca no antebraço. Harry berrou outra vez de dor, com os dentes cerrados, mas as mãos continuaram agarradas à mala. Era como se já estivessem a agir por sua própria vontade. Nada, nenhuma dor no mundo, seria capaz de as obrigar a soltarem-se.
Ela largou a mala e disse:
- É um homem corajoso, se está disposto a morrer por um rádio.
A seguir, virou-se e desapareceu no meio da escuridão.
Harry ficou deitado no chão molhado. Quando ela já estava longe dali, levou a mão à cara e ficou com vontade de vomitar quando sentiu o osso quente do próprio maxilar. Estava a perder os sentidos; a dor começava a esbater-se. Ouviu os homens da Divisão Especial que tinham sido feridos a gemerem ali perto. Sentiu a chuva bater-lhe na cara. Fechou os olhos. Sentiu alguém a encostar-lhe qualquer coisa à cara. Quando abriu os olhos, viu Alfred Vicary debruçar-se sobre ele.
- Disse-lhe para ter cuidado, Harry.
- Ela levou o rádio?
- Não. O Harry impediu-a de levar o rádio.
- E eles escaparam-se?
- Sim. Mas estamos a persegui-los.
Foi então que a dor se apoderou de Harry muito repentinamente. Começou a tremer e pareceu-lhe que ia vomitar. A seguir, o rosto de Vicary transformou-se em água e Harry perdeu os sentidos.
CINQUENTA LONDRES
Uma hora após o desastre em EarPs Court, Alfred Vicary já tinha orquestrado a maior caça ao homem da história do Reino Unido. Todas as esquadras de polícia do país - de Penzance a Dover, de Portsmouth a Inverness - receberam uma descrição dos espiões fugitivos. Para as cidades, povoações e aldeias perto de Londres, Vicary enviou fotografias por estafetas de mota. Foi dito à maioria dos polícias envolvidos na busca que os fugitivos eram suspeitos em quatro homicídios ocorridos já em 1938. Um punhado de agentes com posições de grande importância foi discretamente informado de que se tratava de um assunto de segurança da máxima importância - tão importante que o primeiro-ministro se encontrava a acompanhar a evolução da caçada pessoalmente.
A Polícia Metropolitana de Londres respondeu com velocidade extraordinária e, quinze minutos depois do primeiro telefonema de Vicary, já tinham sido estabelecidas barricadas em todas as principais artérias que saíam da cidade. Vicary tentou abranger todos os percursos de fuga possíveis. O MI5 e a polícia ferroviária rondavam as estações mais importantes. Os operadores dos ferríes irlandeses também receberam uma descrição dos suspeitos.
A seguir, Vicary contactou a BBC e pediu para falar com o chefe de redação que se encontrava em serviço. No noticiário das nove horas, a notícia de abertura da BBC foi um tiroteio em Earl's Court, que tinha deixado dois polícias mortos e três feridos. A notícia incluía
uma descrição de Catherine Blake e de Rudolf e concluía com um número de telefone para onde as pessoas podiam ligar para prestarem informações. Passados cinco minutos, os telefones começaram a tocar. As datilógrafas transcreveram todas as chamadas bem-intencionadas e transmitiram-nas a Vicary. Este atirou a maior parte logo para o cesto do lixo. Investigou algumas. Nenhuma deu qualquer resultado.
A seguir, voltou a atenção para os percursos de fuga que apenas um espião utilizaria. Contactou a RAF e pediu-lhes para estarem atentos a aviões leves. Contactou o Almirantado e pediu-lhes para terem atenção a eventuais submarinos que se aproximassem da costa. Contactou a Polícia Marítima e pediu-lhes para ficarem atentos a pequenas embarcações que seguissem para o mar. Telefonou para os monitores das estações de recolha de comunicações e pediu-lhes para ouvirem atentamente as transmissões radiofónicas e informarem se
fossem suspeitas.
Vicary levantou-se da secretária e saiu do gabinete pela primeira vez em duas horas. O centro de operações em West Halkin Street tinha sido abandonado e a sua equipa já regressara lentamente a St. James's Street. Estavam sentados na área comum à saída do gabinete, como sobreviventes aturdidos de um desastre natural, molhados, exaustos, derrotados. Clive Roach estava sentado sozinho, cabisbaixo e de mãos entrelaçadas. De quando em quando, um dos vigias pousava a mão no ombro dele, murmurava-lhe ao ouvido palavras encoraj adoras e seguia o seu caminho em silêncio. Peter Jordan andava de um lado para o outro. Tony Blair estava a fitá-lo com um olhar assassino. O único som que se ouvia era o dos teleimpressores e o da tagarelice das raparigas ao telefone.
O silêncio foi interrompido por uns minutos, às nove horas, quando Harry Dalton entrou na sala com a cara e o braço enfaixados. Toda a gente se levantou para se amontoar à volta dele - Muito bem, Harry, meu velho... mereces uma medalha... mantiveste-nos à tona, Harry... estava tudo acabado se não fosses tu...
Vicary puxou-o para dentro do gabinete.
- Não devia estar deitado a descansar?
- Sim, mas prefiro estar aqui.
- E como estão as dores?
- Podiam estar piores. Deram-me umas coisas para ajudar.
- Ainda tem dúvidas de qual seria a sua reação debaixo de fogo, no campo de batalha?
Harry conseguiu esboçar um meio sorriso, baixou os olhos e abanou a cabeça.
- Já houve algum avanço? - perguntou, mudando rapidamente de assunto.
Vicary abanou a cabeça.
- O que fez?
Vicary pô-lo a par das medidas tomadas.
- Foi uma jogada arrojada da parte de Rudolf ter ido buscá-la daquela maneira, sacando-a mesmo debaixo do nosso nariz. Ele tem coragem, lá isso não há que negar. E como é que Boothby está a reagir?
- Tão bem quanto seria de esperar. Está lá em cima com o diretor-geral. Provavelmente, a planear a minha execução. Temos uma linha aberta para as Salas de Guerra Subterrâneas e o primeiro-ministro. O Velho está a receber atualizações a cada minuto. Quem me dera ter qualquer coisa para lhe dizer.
- Não deixou escapar nenhuma opção possível. Agora, só lhe resta sentar-se e esperar que haja algum avanço. Eles têm de se mexer para algum lado. E, quando o fizerem, vamos logo saber.
- Quem me dera partilhar do seu otimismo.
Harry fez um esgar de dor e pareceu subitamente muito cansado.
- vou deitar-me um bocado. Começou a sair do gabinete devagar. Vicary perguntou:
- Grace Clarendon está de serviço hoje à noite?
- Sim, acho que sim.
O telefone tocou. Basil Boothby disse:
- Venha cá acima imediatamente, Alfred.
A luz verde estava acesa sobre a porta do gabinete de Boothby. Vicary entrou e deu com Sir Basil a andar de um lado para o outro e a fumar sem parar. Tinha tirado o casaco; o colete estava desabotoado e o nó da gravata folgado. com um ar irritado, fez sinal a Vicary para se sentar numa cadeira e disse:
- Sente-se, Alfred. Bem, hoje à noite as luzes estão acesas por toda a Londres: Grosvenor Square, o quartel-general pessoal de gisenhower em Hayes Lodge, as Salas de Guerra Subterrâneas. E querem todos saber uma coisa. Será que Hitler sabe que é na Normandia? Será que a invasão está acabada mesmo antes de começar?
- Evidentemente, ainda não temos forma de saber isso.
- Meu Deus! - exclamou Boothby, esmagando o cigarro e acendendo outro logo de seguida. - Dois agentes da Divisão Especial mortos, outros três feridos. O que nos valeu foi o Harry.
- Ele está lá em baixo. Tenho a certeza de que gostaria de ouvir isso da sua boca.
- Não temos tempo para conversas para animar as hostes, Alfred. Precisamos de os parar e de fazer isso depressa. Não preciso de lhe explicar o que está em jogo.
- Pois não, Sir Basil, não precisa.
- O primeiro-ministro quer atualizações de meia em meia hora. Há alguma coisa que eu lhe possa dizer?
- Infelizmente, não. Não deixámos escapar nenhum percurso de fuga possível. Quem me dera poder dizer com toda a segurança que os vamos apanhar, mas acho que seria pouco prudente subestimá-los. Já provaram isso vezes sem conta.
Boothby recomeçou a andar de um lado para o outro.
- Dois homens mortos, três feridos e dois espiões, na posse de informações capazes de desvendar o logro que orquestrámos, em fuga, nscusado será dizer, isto é o pior desastre da história do departamento.
- A Divisão Especial avançou com os homens que considerou necessários para a prender. Obviamente, foi um erro de cálculo.
Boothby parou de se mexer e lançou um olhar assassino a Vicary.
- Não tente culpar a Divisão Especial pelo que aconteceu, Alfred. Você era o agente mais graduado no local. Esse aspeto da Operação Kettledrum era da sua responsabilidade.
- Tenho consciência disso, Sir Basil.
- Otimo, já que, quando tudo isto terminar, vai reunir-se um comité interno e duvido que o seu desempenho seja visto com bons olhos.
Vicary levantou-se.
- É tudo, Sir Basil?
- Sim.
Vicary deu meia-volta e dirigiu-se para a porta.
O uivo longínquo das sirenes de ataque aéreo começou a ouvir-se quando Vicary estava a descer as escadas para a divisão dos Registos. As salas estavam parcialmente às escuras, apenas com uma ou outra luz acesa. Como sempre, o cheiro daquele sítio não passou despercebido a Vicary: papel em decomposição, pó, humidade e um ténue vestígio do tenebroso cachimbo de Nicholas Jago. Olhou para o gabinete envidraçado de Jago. A luz estava apagada e a porta bem fechada. Ouviu o som vivo de sapatos de mulher a baterem no chão e reconheceu a passada tempestuosa e enérgica de Grace Clarendon, digna de uma parada militar. Viu o seu cabelo loiro a passar rapidamente pelas pilhas de documentos, como uma aparição, e depois a desaparecer. Seguiu-a até uma das salas laterais e chamou-a ainda a uma certa distância, para não a assustar. Ela virou-se, fitou-o com olhos verdes hostis e depois voltou-se outra vez de costas para ele e recomeçou a arquivar os documentos.
- Isto é oficial, professor Vicary? - perguntou ela. - É que, se não for, vou ter de lhe pedir para se ir embora. Já me causou problemas suficientes. Se me virem a falar outra vez consigo, será uma sorte se conseguir emprego como o raio de uma fiscal do blackout. Por favor, vá-se embora, professor.
- Preciso de consultar um dossiê, Grace.
- Sabe qual é o procedimento, professor. Preencha uma requisição. Se a requisição for autorizada, pode consultar o ficheiro.
- Não me vão dar autorização para consultar o dossiê que preciso de consultar.
- Então não o pode consultar - retorquiu ela, com a voz a adquirir o tom de fria eficiência de uma diretora de escola. - As regras são essas.
As primeiras bombas começaram a cair do lado de lá do rio, segundo levava a crer o barulho. Foi então que as baterias antiaéreas
dos parques abriram fogo. Vicary ouviu o zumbido dos bombardeiros Heinkel por cima da cabeça. Grace parou o que estava a fazer e olhou para cima. Uma rajada de bombas
caiu ali perto - demasiado perto, já que todo o edifício começou a abanar e os dossiês a caírem das prateleiras. Grace olhou para aquela confusão e exclamou:
- Raios me partam!
- Eu sei que Boothby a anda a obrigar a fazer coisas que a Grace não quer. Ouvi-vos a discutirem no gabinete dele e vi-a a entrar para o carro dele na Northumberland Avenue ontem à noite. E não me diga que andam apenas envolvidos romanticamente porque eu sei que está apaixonada por Harry.
Vicary reparou no brilho das lágrimas nos olhos verdes de Grace e o dossiê que ela segurava começou a tremer.
- A culpa é sua, maldição! - disparou ela. - Se não lhe tivesse falado do dossiê Vogel, não estava metida neste sarilho.
- O que é que ele a está a obrigar a fazer? Ela hesitou.
- Por favor, vá-se embora, professor. Por favor.
- Não me vou embora enquanto não me disser o que é que Boothby queria que a Grace fizesse.
- Raios, professor Vicary, ele queria que eu o espiasse a si! E a Harry! - gritou ela, forçando-se depois a baixar a voz. - Tudo o que Harry me contasse, fosse na cama ou noutro sítio, devia ser-lhe transmitido.
- E o que lhe contou?
- Tudo o que Harry me mencionou sobre o caso e os avanços na investigação. E também lhe falei da pesquisa que o senhor pediu para fazer na base de dados dos Registos - explicou ela, tirando um punhado de dossiês do carrinho e recomeçando a arquivá-los. Ouvi dizer que Harry esteve envolvido naquela confusão em Earl's Court.
- Esteve, sim senhor. Aliás, ele é o homem do momento.
- E ficou ferido?
Vicary assentiu com a cabeça.
- Está lá em cima. Os médicos não conseguiram que ele ficasse
na cama.
- Provavelmente, fez qualquer coisa estúpida, não foi? A tentar provar o que vale. Meu Deus, às vezes, ele é mesmo capaz de ser um idiota teimoso e estúpido.
- Grace, preciso de consultar um dossiê. Boothby vai despedir-me quando este assunto estiver terminado e eu só preciso de saber porquê.
Ela fitou-o com uma expressão grave.
- Está a falar a sério, não está, professor?
- Infelizmente, sim.
Sem dizer nada, ela olhou para ele durante um momento, ao mesmo tempo que o prédio estremecia com as ondas de choque da bomba.
- Qual é o dossiê? - perguntou.
- O de uma operação chamada Kettledrum. Grace franziu o sobrolho, confusa.
-- Mas isso não é o nome de código da operação em que o senhor está envolvido agora?
- É.
- Espere lá um minuto. O senhor quer que eu arrisque o pescoço para lhe mostrar o dossiê do seu próprio caso?
- Qualquer coisa do género - respondeu Vicary. - Só que quero que o cruze com o rome do agente responsável por outro caso,
- Quem?
Vicary olhou diretamente para os olhos verdes dela e articulou com os lábios as iniciais BB.
Ela regressou passados cinco minutos, trazendo uma capa de dossiê vazia.
- Operação Kettledrum - anunciou. - Extinta.
- E onde está o que se encontrava aí dentro?
- Ou foi destruído ou está com o agente responsável.
- E quando é que o dossiê foi aberto? - perguntou Vicary. Grace olhou para a etiqueta do dossiê e depois para Vicary.
- Que estranho - disse ela. - Segundo isto, a Operação Kettledrum teve início em outubro de 1943.
CINQUENTA E UM
CAMBRIDGESHIRE, INGLATERRA
Quando a Scotland Yard respondeu ao pedido de barricadas feito por Alfred Vicary, já Horst Neumann tinha saído de Londres, avançando a toda a velocidade em direção
a norte, pela AIO. Era evidente que a carrinha se encontrava em bom estado. Era capaz de atingir pelo menos os cem quilómetros por hora e o motor funcionava sem
problemas. Os pneus ainda possuíam uma quantidade aceitável de piso e agarravam-se surpreendentemente bem à estrada molhada. E havia uma outra característica bastante prática - uma carrinha preta não chamava a atenção no meio dos outros veículos comerciais na estrada. Uma vez que o racionamento de gasolina tornava praticamente impossível andar de carro não comercial, qualquer pessoa que estivesse a conduzir um automóvel àquelas horas da noite poderia ser mandada parar pela polícia e interrogada.
A estrada seguia a direito pelo terreno maioritariamente plano. Neumann inclinou-se sobre o volante enquanto guiava, espreitando para a pequena poça de luz produzida pelos faróis encobertos. Por um instante, pensou em retirar as proteções dos faróis, mas decidiu que era demasiado arriscado. Passou a grande velocidade por aldeias com nomes estranhos - Puckeridge, Buntingford - às escuras, sem uma luz acesa nem ninguém na rua. Era como se o tempo tivesse retrocedido dois mil anos. Neumann dificilmente ficaria surpreendido se visse uma legião romana acampada nas margens do rio Cam.
Mais aldeias - Melbourn, Foxton, Newton, Hauxton. Durante o treino na quinta de Vogel à saída de Berlim, Neumann tinha passado horas a estudar mapas antigos do Reino Unido, do serviço cartográfico e topográfico oficial. Suspeitava que conhecia as estradas e os trilhos de East Anglia tão bem como a maioria dos ingleses, talvez até melhor.
Melbourn, Foxton, Newton, Hauxton.
Estava a aproximar-se de Cambridge.
Cambridge significava problemas. com certeza que o MI5 tinha alertado as forças policiais das principais cidades e povoações. Neumann calculou que a polícia das aldeias e dos lugarejos não representaria grande ameaça. Os agentes faziam as suas rondas a pé ou de bicicleta e raramente tinham carros, ao passo que o estado das comunicações era tão fraco que talvez ainda não tivessem recebido sequer a informação. Estava a atravessar tão depressa as aldeias às escuras devido ao blackout que um polícia nem os chegaria a ver. Cidades como Cambridge eram diferentes. Provavelmente, o MI5 tinha alertado a polícia de Cambridge. E esta possuía homens suficientes para estabelecer uma barricada numa via importante como a AIO. Esses homens tinham carros e podiam dar início a uma perseguição. Neumann conhecia as estradas e era um condutor competente, mas não teria hipótese contra um polícia experiente daquela região.
Antes de chegar a Cambridge, Neumann virou para uma pequena estrada secundária. Contornou a base das Gog Magog Hills e seguiu para norte pela orla leste da cidade. Mesmo na escuridão do blackout, conseguiu distinguir os pináculos da King's Church e da St. John's Church. Passou por uma aldeia chamada Horningsea, atravessou o Cam e entrou em Waterbeach, uma aldeia cortada a meio pela AIO. Avançou lentamente pelas ruas às escuras até descobrir a maior; não havia tabuletas que indicassem a AIO, mas partiu do princípio de que teria de ser ali. Virou à direita, dirigindo-se para norte, e, passado um momento, estava a percorrer a paisagem plana e solitária das Fens.
Os quilómetros foram passando muito depressa. A chuva abrandou, mas o vento, naquela região pantanosa e sem nada no seu caminho até ao mar do Norte, maltratou a carrinha como se esta fosse
um brinquedo de criança. A estrada seguia junto à margem do rio Great Ouse e depois por Southery Fens. Atravessaram as aldeias de Southery e Hilgay. A povoação importante seguinte era Downham Jvlarket, mais pequena do que Cambridge, mas Neumann partiu do princípio de que teria a sua própria força policial e que representava portanto uma ameaça. Repetiu a opção que tinha tomado em Cambridge, virando para uma estrada secundária mais pequena, circundando a orla da povoação e regressando à AIO a norte.
Passados dezasseis quilómetros, chegou a King's Lynn, o porto situado no sudeste de Wash e a povoação mais importante na costa de Norfolk. Neumann voltou a sair da AIO e seguiu por uma pequena estrada secundária a leste da cidade.
A estrada era de má qualidade - em muitos pontos, não pavimentada e com apenas uma faixa - e o terreno tornou-se montanhoso e arborizado. Parou e despejou dois bidões de gasolina no depósito. O tempo ia piorando à medida que se aproximavam da costa. Por vezes, Neumann parecia estar a deslocar-se a pé. Receou ter cometido um erro ao sair da estrada em melhores condições, talvez estivesse a ser demasiado cauteloso. Após mais de uma hora de condução atribulada, chegou ao litoral.
Passou por Hampton Sands, atravessou a enseada e acelerou pelo trilho. Sentiu-se aliviado - finalmente, uma estrada conhecida. O chalé dos Dogherty surgiu ao longe. Neumann virou para o caminho de entrada. Viu a porta abrir-se e o brilho de um candeeiro a querosene aproximar-se deles. Era Sean Dogherty, com o seu oleado e chapéu
impermeável, e uma caçadeira ao ombro.
Sean Dogherty não tinha ficado preocupado quando não viu Neumann sair do comboio da tarde, em Hunstanton. Neumann tinha-o avisado de que poderia ficar em Londres
mais tempo do que o costume. Dogherty resolveu esperar pelo comboio da noite. Saiu da estação e entrou numpub ali perto. Pediu uma tarte de batata e cenoura e acompanhou-a com dois copos de cerveja. A seguir, saiu do pub e passeou-se pela zona ribeirinha. Antes da guerra, Hunstanton era uma popular estância balnear porque a sua localização na ponta
leste da Wash dava azo a pores do Sol extraordinários sobre a água. Nessa noite, os velhos hotéis eduardianos estavam maioritariamente vazios e tinham um ar sombrio sob a chuva a cair ininterruptamente. O pôr do Sol não era mais que uma última luz cinzenta a escapar-se das nuvens de tempestade. Dogherty deixou a zona ribeirinha e regressou à estação para acompanhar a chegada do comboio da noite. Ficou parado na plataforma, a fumar e a observar o punhado de passageiros que desembarcava. Quando viu que Neumann não se encontrava entre eles, Dogherty ficou alarmado.
Entrou no carro e voltou para Hampton Sands, pensando nas palavras de Neumann no início dessa semana. Neumann tinha-lhe dito que era possível que a operação estivesse prestes a terminar, possível que ele se fosse embora de Inglaterra e voltasse para Berlim. Dogherty pensou: Mas porque não veio no maldito comboio?
Chegou ao chalé e entrou. Mary, sentada junto à lareira, lançou-lhe um olhar feroz e depois subiu as escadas para o andar de cima. Dogherty ligou a telefonia. O
noticiário chamou-lhe a atenção. Estava em curso uma busca à escala nacional para capturar dois supostos assassinos que tinham participado num tiroteio com a polícia ao início da noite, no bairro londrino conhecido como Earl's Court.
Dogherty aumentou o som quando o locutor começou a descrever os dois suspeitos. O primeiro, surpreendentemente, era uma mulher. O segundo era um homem cuja descrição
correspondia sem tirar nem pôr a Horst Neumann.
Dogherty desligou o rádio. Seria possível que estes dois suspeitos envolvidos no tiroteio em Earl's Court fossem Neumann e o outro agente? Estariam naquele instante
a fugir do MI5 e de metade da polícia do Reino Unido? Estariam a caminho de Hampton Sands ou deixá-lo-iam para trás? Foi então que pensou: Será que os britânicos
sabem que eu também sou um espião?
Foi para o andar de cima, meteu uma muda de roupa num pequeno saco de lona e desceu outra vez as escadas. Foi até ao celeiro, descobriu a caçadeira e carregou dois cartuchos no cano.
Quando regressou ao chalé, Dogherty sentou-se à janela, à espera. Já quase tinha perdido a esperança quando avistou a luz saída dos
faróis encobertos a avançar pela estrada, em direção ao chalé. No momento em que a carrinha virou para o pátio da quinta, conseguiu ver que era Neumann que vinha ao volante. Estava uma mulher sentada no lugar do passageiro.
Dogherty levantou-se e pôs o oleado e o chapéu. Acendeu o candeeiro a querosene, pegou na caçadeira e saiu de casa, enfrentando a chuva.
Martin Colville examinou o rosto ao espelho: nariz partido, olhos negros, lábios inchados, uma contusão no lado direito da cara.
Entrou na cozinha e verteu as últimas e preciosas gotas de uma garrafa de uísque. Todos os seus instintos lhe diziam que havia qualquer coisa de errado no homem chamado James Porter. Não acreditava que ele fosse um soldado britânico ferido. Não acreditava que ele fosse um velho conhecido de Sean Dogherty. Não acreditava que ele tivesse vindo para Hampton Sands pelo ar do oceano.
Tocou no rosto desfeito e pensou: Nunca ninguém me fez isto em toda a minha vida e não vou deixar que aquele sacana fique impune.
Colville bebeu o uísque de um só gole e, a seguir, colocou a garrafa vazia e o copo no lava-louças. Ouviu o ruído de um motor lá fora. Foi até à porta e espreitou. Uma carrinha passou depressa. Colville conseguiu ver James Porter ao volante e uma mulher no lugar do passageiro.
Fechou a porta e pensou: Mas que raio anda ele a fazer a estas horas da noite? E onde é que arranjou a carrinha?
Decidiu que iria descobrir. Entrou na sala de estar e tirou uma caçadeira calibre 12 da prateleira por cima da lareira. Os cartuchos estavam na gaveta da cozinha. Abriu-a e pôs-se a vasculhar na confusão de coisas que havia lá dentro, até encontrar a caixa. Saiu de casa e subiu para a bicicleta.
Passado um momento, Colville estava a pedalar no meio da chuva, com a caçadeira em cima do guiador, a caminho do chalé dos Dogherty.
Lá em cima, no seu quarto, Jenny Colville ouviu a porta da frente a abrir-se e a fechar-se uma vez. A seguir, ouviu o ruído de um veículo a passar, pouco comum àquelas horas da noite. Quando ouviu
a porta a abrir-se e a fechar-se uma segunda vez, ficou assustada. Levantou-se da cama e atravessou o quarto. Abriu a cortina e espreitou a tempo de ver o pai a afastar-se de bicicleta através da escuridão.
Bateu com força na janela, mas foi em vão. Passados uns segundos, ele já tinha desaparecido.
Jenny estava apenas de camisa de dormir. Tirou-a, vestiu umas calças e uma camisola e desceu as escadas. As botas de borracha estavam ao lado da porta. Ao calçá-las, reparou que a caçadeira que estava habitualmente pendurada sobre a lareira tinha desaparecido. Espreitou para a cozinha e viu que a gaveta onde os cartuchos estavam guardados se encontrava aberta. Vestiu o casaco e saiu rapidamente.
Jenny andou às apalpadelas no escuro até dar com a bicicleta encostada ao chalé. Empurrou-a pelo trilho, subiu para cima dela e pôs-se a pedalar atrás do pai, em direção ao chalé dos Cottage, e a pensar: Por favor, Deus, faz com que eu o consiga parar antes que alguém acabe morto hoje à noite.
Sean Dogherty abriu a porta do celeiro e levou-os para dentro, iluminados pelo candeeiro a querosene. Tirou o chapéu impermeável e desabotoou o oleado, olhando de seguida para Neumann e para a mulher.
Neumann, disse:
- Sean Dogherty, Catherine Blake. Sean fazia parte de um grupo chamado Exército Republicano Irlandês, mas foi-nos emprestado durante a guerra. Catherine também trabalha para Kurt Vogel. Desde
1938 que vive em Inglaterra, infiltrada profundamente.
Para Catherine, foi uma sensação estranha ouvir o seu passado e o seu trabalho serem referidos com tanta despreocupação. Depois de tantos anos a esconder a sua identidade, depois de todas as precauções, depois de toda a ansiedade, era difícil imaginar que estava tudo prestes a terminar.
Dogherty olhou para ela e, a seguir, para Neumann.
- A BBC passou a noite inteira a dar noticiários sobre um tiroteio em Earl's Court. Calculo que tenham estado envolvidos nisso, não?
Neumann assentiu com a cabeça.
- Mas não eram polícias londrinos vulgares. Eram do MI5 e da IDivisão Especial, diria eu. O que é que a rádio anda a dizer?
- Que vocês mataram dois e feriram outros três. Está em curso uma busca nacional, para vos encontrar, e pediram ajuda a todas as pessoas. O mais provável é metade
do país andar neste momento por aí a vasculhar tudo à vossa procura. Fico surpreendido por terem conseguido chegar tão longe.
- Mantivemo-nos afastados das terras mais importantes. Parece que resultou. Até agora, não vimos nenhum polícia na estrada.
- bom, isso não vai durar, podem ter a certeza.
Neumann olhou para o relógio - passavam poucos minutos da meia-noite. Pegou no candeeiro a querosene de Sean e levou-o para a mesa de trabalho. Tirou o rádio do armário e ligou-o.
- O submarino anda em patrulha no mar do Norte. Depois de receber o nosso sinal, vai deslocar-se precisamente dezasseis quilómetros para leste de Spurn Head e vai lá ficar até às seis horas. Se não aparecermos, afasta-se da costa e fica à espera de notícias nossas.
Catherine perguntou:
- E como vamos conseguir estar dezasseis quilómetros para leste de Spurn Head? Dogherty interveio:
- Há um tipo chamado Jack Kincaid. Tem um pequeno barco de pesca num cais do rio Humber.
Dogherty foi buscar um mapa antigo do serviço oficial de topografia e cartografia, anterior à guerra.
- O barco está aqui - indicou, batendo com o dedo no mapa.
- Numa terra chamada Cleethorpes. Fica a uns cento e sessenta quilómetros daqui. Vai ser difícil guiar com este mau tempo, ainda por cima com o blackout, O Kincaid tem um apartamento por cima de uma garagem na zona ribeirinha. Falei com ele ontem. Sabe que é possível aparecermos.
Neumann assentiu com a cabeça e disse:
- Se sairmos agora, temos à volta de seis horas para fazer a viagem. Acho que conseguimos fazê-lo esta noite. A próxima oportunidade que temos para irmos ter com
o submarino é daqui a três dias.
Não me encanta muito a ideia de ficar escondido durante três dias com todos os polícias do Reino Unido a vasculharem por todo o lado à nossa procura. Digo que devíamos ir esta noite.
Catherine assentiu com a cabeça. Neumann colocou os auscultadores e sintonizou o rádio na frequência correta. Digitou um sinal de identificação e esperou por uma resposta. Uns segundos mais tarde, o operador de rádio a bordo do submarino pediu a Neumann para prosseguir. Neumann suspirou fundo, digitou a mensagem com cuidado e, a seguir, terminou a comunicação e desligou o rádio.
- E agora resta-nos resolver uma coisa - disse ele, virando-se para Dogherty. - Vens connosco?
Dogherty assentiu com a cabeça.
- Já falei disso com Mary. Ela concorda comigo. vou para a Alemanha convosco; e depois Vogel e os amigos podem ajudar-me a voltar para a Irlanda. Mary vai ter comigo quando eu lá estiver. Temos amigos e família que podem olhar por nós até assentarmos. Não vamos ter problemas.
- E como é que Mary está a reagir?
O rosto de Dogherty endureceu numa expressão taciturna. Neumann sabia que era bem provável que ele e Mary nunca mais se voltassem a ver. Pegou no candeeiro a querosene, pousou a mão no ombro de Dogherty e disse:
- Vamos.
Em cima da bicicleta e a ofegar, Martin Colville viu uma luz acesa no celeiro dos Dogherty. Deitou a bicicleta junto à estrada e, a seguir, atravessou o prado silenciosamente e agachou-se à porta do celeiro. com a chuva a cair com força, esforçou-se por perceber a conversa que estava a ter lugar lá dentro.
Era inacreditável.
Sean Dogherty - a trabalhar para os nazis. O homem chamado James Porter - um agente alemão. Um ninho de espiões alemães, em ação ali mesmo em Hampton Sands!
Colville esforçou-se por ouvir mais um pouco da conversa. Estavam a planear subir a costa de carro até Lincolnshire e apanhar um
barco para irem ter com um submarino. O coração começou a ribombar-lhe no peito e a respiração a acelerar. Forçou-se a acalmar, a pensar com clareza.
Tinha duas opções: ir-se embora, voltar para a aldeia e alertar as autoridades ou entrar no celeiro e prendê-los ele mesmo. Tanto uma como outra tinham os seus inconvenientes. Se se fosse embora para ir pedir ajuda, o mais certo era Dogherty e os espiões já terem desaparecido quando ele lá regressasse. Havia poucos polícias na costa de Norfolk, dificilmente seriam suficientes para levar a cabo uma busca. Mas, se entrasse sozinho, estaria em desvantagem. Conseguia ver que Sean tinha a caçadeira consigo e partiu do princípio de que os outros dois também estariam armados. Ainda assim, teria a vantagem da surpresa.
E havia outra razão que o levava a gostar da segunda opção adoraria ajustar contas com o alemão que dava pelo nome de James Porter. Colville sabia que tinha de agir e agir rapidamente. Rasgou a caixa dos cartuchos, tirou dois e enfiou-os na velha caçadeira calibre 12. Nunca tinha apontado aquela coisa a nada que fosse mais ameaçador do que uma perdiz ou um faisão. Interrogou-se se teria coragem para disparar sobre um ser humano.
Levantou-se e avançou para a porta.
Jenny pedalou até as pernas lhe começarem a arder - atravessando a aldeia, passando pela igreja e pelo cemitério, até ao outro lado da enseada. O ar estava carregado com o som da tempestade e o ruído do mar. A chuva fustigava-lhe a cara e o vento quase a fez cair.
Jenny avistou a bicicleta do pai na vegetação junto ao trilho e parou ao lado dela. Porquê deixá-la ali? Porque não ir com ela até ao chalé?
Achou que sabia a resposta. Ele estava a tentar apanhá-los de surpresa, aparecendo sem que o vissem.
Foi então que ela ouviu um disparo de caçadeira vindo do celeiro de Sean. Jenny soltou um grito e saltou da bicicleta, deixando-a cair ao lado da do pai. Correu pelo prado, a pensar: Por favor, Deus, não deixes que ele tenha morrido. Não deixes que ele tenha morrido.
CINQUENTA E DOIS
SCARBOROUGH, INGLATERRA
Aproximadamente cento e sessenta quilómetros a norte de Hampton Sands, Charlotte Endicott entrou de bicicleta no pequeno recinto de cascalho à entrada da estação de recolha de comunicações de Scarborough. A viagem desde os seus aposentos numa pensão exígua na cidade tinha sido violentíssima, com vento e chuva durante todo o caminho. Encharcada até aos ossos e com um frio de morrer, desceu da bicicleta e encostou-a a várias outras no estrado.
O vento soprava em rajadas, gemendo por entre as três enormes antenas retangulares, no alto dos penhascos com vista para o mar do Norte. Charlotte Endicott lançou-lhes uma olhadela, a oscilarem visivelmente, enquanto atravessava o recinto apressadamente. Abriu a porta do abrigo e entrou antes de o vento a fechar com estrondo.
Faltavam alguns minutos para o seu turno começar. Despiu a gabardina encharcada, desapertou o nó do chapéu e pendurou tudo num cabide em mau estado que se encontrava ao canto. O abrigo era frio e estava cheio de correntes de ar, tendo sido construído numa lógica de utilidade e não de conforto. Mas, apesar disso, tinha uma pequena cantina. Charlotte entrou nela, serviu-se de uma chávena de chá quente, sentou-se numa das mesas pequenas e acendeu um cigarro. Um hábito horrível, sabia-o, mas, se era capaz de manter um emprego como um homem, também era capaz de fumar como um. Além disso, gostava do ar que aquilo lhe dava - sexy, sofisticado, um bocadinho
mais velho do que os seus vinte e três anos. E também tinha ficado viciada no raio daquelas coisas. O trabalho era stressante, as horas uma brutalidade e a vida em Scarborough terrivelmente entediante. Mas ela adorava cada minuto do que fazia.
Só tinha havido uma vez em que tinha detestado o que estava a fazer, durante a Batalha de Inglaterra. Durante os longos e terríveis combates aéreos, os membros do ramo feminino da Marinha Real Britânica estacionados em Scarborough ouviam o que os pilotos britânicos e alemães diziam nos cockpits. Uma vez, Charlotte tinha ouvido um rapaz inglês a gritar e a chorar pela mãe enquanto o seu SpitJtre, atingido, caía desamparado em direção ao mar. Quando perdeu o contacto com ele, Charlotte foi a correr lá para fora para vomitar. Estava feliz por esses dias terem terminado.
Charlotte olhou para o relógio. Quase meia-noite. Altura de entrar ao serviço. Levantou-se e alisou o uniforme húmido. Deu uma última passa no cigarro - era proibido fumar dentro do buraco e depois apagou-o com força num pequeno cinzeiro de metal a transbordar de beatas. Saiu da cantina e dirigiu-se para o centro de operações. Mostrou o cartão de identificação ao guarda. Este examinou-o com atenção, embora já o tivesse visto uma centena de vezes, e a seguir devolveu-o, sorrindo um pouco mais do que seria necessário. Charlotte sabia que era uma rapariga atraente, mas não havia ali lugar para essas coisas. Abriu as portas, entrou no buraco e sentou-se no sítio do costume.
Sentiu um rápido calafrio - como sempre.
Olhou fixamente para os botões luminosos do seu recetor super-heteródino de comunicações RCA AR-88 por um momento e depois colocou os auscultadores. Os cristais especiais do RCA, eliminadores de interferências, permitiam-lhe monitorizar os agentes alemães que transmitiam em código Morse por toda a Europa do Norte. Sintonizou o recetor na banda de frequência que tinha ficado incumbida de controlar nessa noite e instalou-se.
Os agentes alemães que enviavam mensagens em código Morse eram os mais rápidos do mundo a digitar. Charlotte era capaz de identificar de imediato muitos deles pelos seus estilos próprios de digitar e ela e as restantes colegas tinham-lhes atribuído alcunhas: Wagner, Beethoven, Zeppelin.
Charlotte não teve de esperar muito para entrar em ação naquela noite.
Uns minutos depois da meia-noite, ouviu uma sucessão de sinais Morse, num estilo que não reconheceu. A cadência era fraca, o ritmo lento e incerto. Um amador, pensou, alguém que não utilizava muito o rádio. Não era com certeza um dos profissionais do BdU, o quartel-general da Kriegsmarine. Reagindo rapidamente, gravou a transmissão no oscilógrafo - um aparelho que criaria no fundo uma impressão digital do sinal chamada Tina - e escrevinhou furiosamente a mensagem em Morse numa folha de papel. Depois de o amador terminar, Charlotte ouviu outra sucessão de sinais na mesma frequência. Já não era um amador; Charlotte e as colegas já o tinham ouvido. Tinham-lhe dado a alcunha de Fritz. Era um operador de rádio a bordo de um submarino. Charlotte também transcreveu rapidamente essa mensagem.
À transmissão de Fritz seguiu-se uma nova e atabalhoada sucessão de sinais em código Morse por parte do amador e depois terminaram as comunicações. Charlotte tirou os auscultadores, arrancou a impressão saída do oscilógrafo e atravessou a sala a passos largos. Normalmente, limitava-se a entregar as transcrições das mensagens em Morse a um estafeta que, por sua vez, as levava de mota, a toda a velocidade, até Bletchley Park para serem descodificadas. Mas havia qualquer coisa diferente naquelas comunicações - tinha-o sentido nos estilos dos operadores de rádio: Fritz, a bordo de um submarino, e um amador algures. Suspeitava saber do que se tratava, mas teria de ser bem convincente. Apresentou-se diante do supervisor noturno, um homem de pele clara e ar exausto chamado Lowe. Largou as transcrições e o oscilógrafo em cima da secretária dele. Lowe olhou para ela, com uma expressão de perplexidade.
- Posso estar completamente enganada, senhor - disse Charlotte, invocando a voz mais perentória possível -, mas acho que acabei de ouvir um espião alemão a comunicar com um submarino ao largo da costa.
O Kapitànleutnant Max Hoffman nunca se habituaria ao fedor de um submarino submerso há demasiado tempo: suor, urina, óleo diesel, batatas, sémen. O ataque às suas narinas era tão intenso que suportaria de bom grado estar de vigia na torre de comando, debaixo de uma tempestade, em vez de ficar lá dentro.
Encontrava-se na ponte de comando do U-509 e conseguia sentir a vibração dos motores elétricos por baixo dos pés à medida que se deslocavam num círculo monótono a trinta e dois quilómetros da costa britânica. Uma suave neblina pairava no interior do submarino, criando uma auréola em torno de cada lâmpada. Todas as superfícies estavam frias e molhadas. Hoffman gostava de imaginar que era o orvalho de uma manhã de primavera, mas bastou-lhe olhar naquele momento para o mundo claustrofóbico e apertado que habitava para essa fantasia lhe ser rapidamente arrancada.
Era uma missão entediante ficar estacionado ao largo da costa britânica durante semanas a fio, à espera de um dos espiões de Canaris. Da tripulação de Hoffman, apenas o seu imediato sabia o verdadeiro objetivo da missão. O resto dos homens suspeitava provavelmente do mesmo, já que não se encontravam em missão de patrulha. Ainda assim, as coisas poderiam ser piores. Tendo em conta a extraordinária proporção de perdas no seio da U-bootewaffe - praticamente 90 por cento - Hoffman e a sua tripulação podiam considerar-se bastante afortunados por terem sobrevivido tanto tempo.
O imediato surgiu na ponte de comando, de rosto fechado e com um papel na mão. Hoffman olhou para o homem, ficando deprimido com a noção de que o mais provável era estar com o mesmo aspeto horrível: olhos fundos, rosto encovado, a palidez de um tripulante de submarino, a barba por fazer por não haver água doce suficiente para desperdiçar nisso.
O imediato informou:
- O nosso homem no Reino Unido deu finalmente notícias. Quer que lhe demos boleia para casa hoje à noite.
Hoffman sorriu e pensou: Finalmente. Apanhamo-lo e vamos para França, onde há comida boa e roupa de cama lavada. Perguntou:
- Como está o tempo?
-- Nada bom, Herr Kaleu - respondeu o imediato, utilizando o diminutivo habitual de Kapitànleutnant. - Chuvadas fortes, ventos a cinquenta quilómetros por hora do noroeste, ondulação entre três metros e três metros e meio.
- Jesus! E o mais certo é ele vir de barco a remos, se tivermos sorte. Organize uma festa de receção e prepare-se para emergirmos. Mande o operador de rádio informar o BdU dos nossos planos. Fixe a trajetória para o ponto de encontro. Eu vou lá para cima com os vigias. Não me interessa se o tempo está mau ou não - afirmou Hoffman, fazendo uma careta. -Já não aguento mais a porra do cheiro aqui dentro.
- Sim, Herr Kaleu.
O imediato gritou uma série de ordens, transmitidas pela tripulação. Dois minutos mais tarde, o U-509 irrompeu pela superfície tempestuosa do mar do Norte.
O sistema era conhecido como Localização de Direção de Alta Frequência, mas quase toda a gente envolvida no projeto lhe chamava Huff Duff. Funcionava segundo um princípio de triangulação. A impressão digital criada pelo oscilógrafo em Scarborough podia ser utilizada para identificar o tipo de transmissor e a sua fonte de energia. Se as estações de recolha de comunicações de Flowerdon e da Islândia também tivessem os seus oscilógrafos em ação, as três gravações podiam ser utilizadas para estabelecer linhas de orientação conhecidas como cortes -, a partir das quais se podia depois localizar a posição do transmissor. Por vezes, o Huff Duff conseguia indicar um rádio num raio de dezasseis quilómetros da sua exata localização geográfica. Mas, normalmente, o sistema era muito menos preciso, ficando entre os cinquenta e os oitenta quilómetros.
O comandante Lowe não achou que Charlotte Endicott estivesse completamente enganada. Na verdade, achou que ela tinha descoberto uma coisa de crucial importância. Ao início da noite, um major Vicary do MI5 tinha enviado um alerta para as estações de recolha de comunicações, para que estivessem atentas a precisamente esse tipo de coisas.
Lowe passou os minutos seguintes a falar com os seus homólogos em Flowerdon e na Islândia, tentando localizar o transmissor. Infelizmente, a comunicação tinha sido curta e a determinação da posição não muito precisa. Na verdade, Lowe foi apenas capaz de a circunscrever a uma extensão bastante ampla do leste de Inglaterra - todo o condado de Norfolk e grande parte de Suffolk, Cambridgeshire e Lincolnshire. Provavelmente, não serviria de muito, mas pelo menos já era qualquer coisa.
Lowe vasculhou os papéis que tinha na secretária até descobrir o número de Vicary de Londres e, a seguir, esticou-se na direção do seu telefone seguro.
As condições atmosféricas no norte da Europa tornavam praticamente impossível a comunicação de onda curta entre as Ilhas Britânicas e Berlim. Em consequência disso, o centro de comunicações via rádio da Abwehr estava localizado na cave de uma grande mansão em Wohldorf, um subúrbio de Hamburgo, duzentos e quarenta quilómetros a noroeste da capital germânica.
Cinco minutos depois de o rádio operador do U-509 ter transmitido a sua mensagem ao BdU, no norte da França, o oficial de serviço no BdU enviou uma curta mensagem para Hamburgo. O oficial de serviço em Hamburgo era um veterano da Abwehr chamado capitão Schmidt. Gravou a mensagem, fez um telefonema prioritário, através da linha segura, para o quartel-general da Abwehr em Berlim e informou o tenente Werner Ulbricht dos desenvolvimentos. A seguir, Schmidt saiu da mansão e desceu a rua, em direção a um hotel ali perto, onde fez uma segunda chamada para Berlim. Não quis fazer esse telefonema através das linhas pejadas de escutas do posto da Abwehr, pois o número que indicou à telefonista foi o do gabinete do Brigadefúhrer Walter Schellenberg, na Prinz Albrechtstrasse. Infelizmente para Schmidt, Schellenberg tinha descoberto que ele estava envolvido numa relação amorosa bastante chocante com um rapaz de dezasseis anos, em Hamburgo. Schmidt aceitou prontamente passar a trabalhar para Schellenberg para evitar que o caso viesse a público.
Quando a ligação foi efetuada, falou com um dos muitos assistentes de Schellenberg - o general tinha ido jantar fora essa noite - e informou-o das novidades.
Kurt Vogel tinha decidido passar uma rara noite no seu pequeno apartamento a poucos quarteirões de Tirpitz Ufer. Ulbricht telefonou-lhe para lá e informou-o de que Horst Neumann tinha contactado o submarino e que estava prestes a abandonar a Inglaterra. Cinco minutos mais tarde, Vogel estava a sair pela porta da frente do prédio e a caminhar à chuva, em direção a Tirpitz Ufer.
Nesse preciso instante, Walter Schellenberg ligou para o gabinete e foi informado dos desenvolvimentos no Reino Unido. A seguir, telefonou para o Reichsfúhrer Heinrich Himmler e pô-lo ao corrente da situação. Himmler ordenou a Schellenberg que se dirigisse para a Prinz Albrechtstrasse; iria ser uma noite longa e queria companhia. Por coincidência, Schellenberg e Vogel chegaram aos respetivos gabinetes exatamente ao mesmo tempo e instalaram-se para a espera que os aguardava.
O local da invasão da França pelos Aliados.
A vida do almirante Canaris.
E tudo dependia do que dissessem um par de espiões em fuga ao MI5.
CINQUENTA E TRÊS
HAMPTON SANDS, NORFOLK
Martin Colville serviu-se do cano da caçadeira para empurrar a porta do celeiro. Neumann, ainda sentado ao lado do rádio, ouviu o barulho. Esticou-se para agarrar
a Mauserno momento em que Colville entrou. Colville viu Neumann a tentar chegar à pistola. Virou-se, apontou a caçadeira e disparou. Neumann desviou-se com um salto,
caindo no chão e rebolando pelo celeiro. O estrondo do disparo da caçadeira no espaço reduzido do celeiro foi ensurdecedor. O rádio desintegrou-se.
Colville fez pontaria a Neumann pela segunda vez. Neumann levantou-se, apoiado nos cotovelos, segurando a Mauser nas mãos esticadas. Sean Dogherty avançou, gritando a Colville para parar. Colville apontou a arma a Dogherty e carregou no gatilho. O tiro atingiu Dogherty no peito, fazendo-o dar um salto para trás com toda a força, como se fosse um boneco de trapos. Caiu de costas, com o sangue a jorrar-lhe do buraco no peito, e morreu passados segundos.
Neumann disparou, acertando no ombro de Colville e fazendo-o rodar. Por essa altura, Catherine já tinha sacado da sua Mauser e, com ambas as mãos, apontou-a à cabeça de Colville. Disparou rapidamente duas vezes, com o silenciador a abafar os tiros e a reduzi-los a um baque surdo. À cabeça de Colville explodiu e ele já estava morto antes de o corpo bater no chão do celeiro de Dogherty.
Mary Dogherty estava a meio de um sono agitado, na sua cama no andar de cima do chalé, quando ouviu o primeiro disparo da caçadeira. Endireitou-se de rompante e tocou com os pés no chão no instante em que o segundo disparo rasgou a noite. Atirou o cobertor para trás e desceu as escadas a correr.
O chalé estava às escuras, a sala de estar e a cozinha desertas. Foi lá para fora. A chuva fustigou-lhe a cara. Foi então que se apercebeu de que estava apenas com a sua camisa de dormir de flanela. Naquele momento, imperava o silêncio e apenas se ouvia o barulho da tempestade. Para lá do jardim, reparou numa carrinha preta desconhecida estacionada no caminho de entrada. Voltou-se para o celeiro e viu uma luz acesa lá dentro. Gritou Sean! e começou a correr para o celeiro.
Mary tinha os pés descalços e o chão estava frio e empapado. Gritou o nome de Sean mais uma série de vezes enquanto corria. Um ténue raio de luz saía da porta aberta do celeiro, iluminando uma caixa de cartuchos de caçadeira que se encontrava no chão.
Ao entrar, arquejou. Ficou com um grito preso na garganta, que se recusava a sair cá para fora. A primeira coisa que viu foi o corpo de Martin Colville estendido no chão do celeiro, a poucos metros dela. Parte da cabeça tinha desaparecido e havia sangue e tecido por todo o lado. Sentiu o estômago começar a entrar em convulsões.
Foi então que voltou a atenção para o segundo corpo. Estava deitado de costas, com os braços bem abertos. Por alguma razão, com a morte, os tornozelos tinham-se cruzado, como se a pessoa estivesse a dormir uma sesta. O sangue tapava-lhe a cara. Por um breve segundo, Mary permitiu-se acalentar a esperança de não ser na realidade Sean quem estava ali morto. Mas depois olhou para as velhas botas de borracha e para o oleado e soube que era ele.
O grito que lhe estava preso na garganta saiu cá para fora.
Mary berrou:
- Oh, Sean! Oh, meu Deus, Sean! O que foste fazer?
Levantou os olhos e viu Horst Neumann parado ao pé do corpo de Sean, com uma pistola na mão. A poucos metros dele, estava uma mulher, de pistola apontada à cabeça de Mary.
Mary olhou para Neumann e gritou:
- Foste tu que fizeste isto? Foste?
- Foi o Colville - respondeu Neumann. - Apareceu aqui dentro aos tiros. Sean meteu-se à frente dele. Lamento imenso, Mary.
- Não, Horst, pode ter sido Martin a carregar no gatilho, mas foste tu que lhe fizeste isto. Não tenhas dúvidas. Tu e os teus amigos de Berlim, foram vocês que lhe fizeram isto.
Neumann não disse nada. Catherine continuava com a Mauser apontada à cabeça de Mary. Neumann avançou, agarrou na pistola dela e baixou-a suavemente.
Jenny Colville não saiu do prado mergulhado na escuridão e aproximou-se do celeiro lateralmente, sem que a pudessem ver. Agachou-se junto à parede exterior, com a chuva a bater-lhe com força no oleado, e escutou a conversa que estava a ter lugar lá dentro.
Ouviu a voz do homem que conhecia como James Porter, embora Mary lhe tivesse chamado outra coisa, uma coisa parecida com Horse. Foi o Colville. Sean meteu-se à frente dele. Lamento imenso, Mary.
A seguir, ouviu a voz de Mary. Tinha uma intensidade altíssima e tremia de raiva e dor. Foste tu que lhe fizeste isto... Tu e os teus amigos de Berlim.
Ficou à espera de ouvir a voz do pai; ficou à espera de ouvir a voz de Sean. Nada. Percebeu que estavam ambos mortos.
Tu e os teus amigos de Berlim.
Jenny pensou: O que estás a dizer, Mary?
E foi então que tudo se encaixou na cabeça dela, como peças de um quebra-cabeças que ficam de repente na ordem certa: Sean na praia, naquela noite, o súbito aparecimento
do homem chamado James Porter, o aviso que Mary lhe fizera ao início da tarde: Ele não é o que parece ser. Ele não é para ti.
Na altura, Jenny não tinha compreendido o que Mary lhe estava a tentar dizer, mas agora achava que sim. O homem que conhecia como James Porter era um espião alemão. E isso significava que Sean também era um espião ao serviço dos alemães. O pai dela devia ter descoberto a verdade e resolvido enfrentá-los. E agora estava morto no chão do celeiro de Sean Dogherty.
Jenny queria gritar. Sentiu lágrimas quentes a correrem-lhe dos olhos pela cara. Levou as mãos à boca para abafar o choro. Tinha-se apaixonado por ele, mas ele mentira-lhe e usara-a e era um espião alemão e provavelmente tinha acabado de lhe matar o pai.
Jenny ouviu movimentos dentro do celeiro, movimentos e instruções dadas em voz baixa, que ela não conseguiu perceber. Ouviu a voz do espião alemão e ouviu uma voz
de mulher que não era a de Mary. Foi então que viu o espião sair do celeiro e percorrer o caminho de entrada, de lanterna na mão. Estava a dirigir-se para onde estavam
as bicicletas. Se as encontrasse, iria perceber que ela também lá estava.
E iria procurá-la.
Jenny obrigou-se a respirar devagar, pausadamente, e a pensar com clareza.
Estava a ser fustigada por várias emoções. Estava assustada, sentia-se agoniada com a ideia de que o pai e Sean estavam mortos. Mas, acima de tudo, estava furiosa. Tinham-lhe mentido e tinham-na traído. E, naquele momento, o que a impulsionava era um desejo avassalador: queria vê-los presos e queria vê-los castigados.
Jenny sabia que não poderia fazer nada se o alemão a descobrisse.
Mas o que fazer? Podia tentar correr até à aldeia. O hotel e o pub tinham telefones. Podia contactar a polícia e a polícia podia vir prendê-los.
Mas a aldeia era o primeiro lugar onde os espiões a iriam procurar. Do chalé dos Dogherty, só havia um caminho para a aldeia: atravessando a ponte junto à St. John's Church. Jenny sabia que poderia ser apanhada muito facilmente.
Pensou numa segunda opção. Eles tinham de se ir embora dali a pouco tempo. Afinal de contas, tinham acabado de matar duas pessoas. Jenny podia ficar escondida durante um bocado, só até eles se irem embora; depois, podia sair do esconderijo e contactar a polícia.
Pensou: Mas e se eles levarem Mary?
Mary estaria melhor com Jenny em liberdade e a tentar encontrar ajuda.
Jenny observou o espião a aproximar-se da estrada. Viu o feixe de luz da lanterna deslocar-se pelo terreno em redor. Viu-o fixar-se em qualquer coisa por um momento e, a seguir, virar-se na direção dela.
Jenny arquejou. Ele tinha encontrado a bicicleta dela. Levantou-se e começou a correr.
Horst Neumann avistou as duas bicicletas deitadas ao lado uma
da outra na vegetação, junto à estrada. Virou a lanterna para o prado, mas o fraco feixe iluminou apenas uns quantos metros à sua frente. Levantou as bicicletas, segurou-as pelo manipulo e empurrou-as pelo caminho de entrada. Deixou-as nas traseiras do chalé de Dogherty, onde ninguém as poderia ver.
Ela estava por ali - algures. Tentou imaginar o que tinha acontecido. O pai sai de casa enfurecido e de caçadeira na mão; Jenny vai atrás dele e chega ao chalé dos Dogherty a tempo de ver o rescaldo.
Neumann calculou que ela estivesse escondida, à espera que eles se fossem embora, e achou que sabia onde.
Durante um momento, pensou na hipótese de a deixar em liberdade. Mas Jenny era uma rapariga inteligente. Iria arranjar uma maneira de contactar a polícia. A polícia estabeleceria barricadas por Hampton Sands inteira. Chegar a Lincolnshire a tempo do encontro com o submarino já seria suficientemente difícil. Deixar que Jenny ficasse à solta e contactasse a polícia apenas tornaria tudo mais duro.
Neumann entrou no celeiro. Catherine tinha tapado os corpos
com serapilheira velha. Mary estava sentada numa cadeira, a tremer violentamente. Neumann evitou o olhar dela.
- Temos um problema - anunciou Neumann, apontando para
o corpo tapado de Martin Colville. -- Encontrei a bicicleta da filha dele. Temos de partir do princípio de que ela anda algures por aqui e que sabe o que aconteceu. E também temos de partir do princípio de que vai tentar arranjar ajuda.
- Então vai à procura dela - atirou Catherine.
Neumann assentiu com a cabeça.
- Leva Mary para dentro de casa. Amarra-a e amordaça-a. Acho
que sei para onde é que Jenny é capaz de ir.
Neumann foi lá para fora e correu até à carrinha, no meio da
chuva. Ligou o motor, saiu do caminho de entrada em marcha atrás e seguiu em direção à praia.
Catherine amarrou Mary a uma cadeira de madeira na cozinha. Rasgou uma toalha de chá ao meio e fez uma bola com uma das metades. Enfiou-a na boca de Mary e depois amarrou a outra metade à volta da cara dela, com um nó apertado. Se dependesse de Catherine, matá-la-ia naquele preciso instante; não gostava de deixar uma pista para a polícia seguir. Mas era óbvio que Neumann sentia algum carinho pela mulher. Além disso, era provável que se passassem várias horas até que alguém a encontrasse, talvez até mais tempo. O chalé estava isolado, a cerca de um quilómetro e meio da aldeia; era possível que demorasse um dia ou dois até que alguém notasse que Sean, Colville e a rapariga tinham desaparecido. Ainda assim, todos os seus instintos de sobrevivência lhe diziam que era melhor matá-la e despachar aquilo. Neumann nunca saberia. Mentir-lhe-ia, dizendo-lhe que Mary estava bem, e ele nunca descobriria.
Catherine verificou os nós pela última vez. A seguir, tirou a Mauser do bolso do casaco. Segurou-a bem, enfiando o indicador no gatilho, e encostou o cano à testa de Mary. Mary não se mexeu um milímetro e lançou um olhar de desafio a Catherine.
- Não se esqueça, a Jenny vai connosco -- disse Catherine. Sc disser alguma coisa à polícia, nós vamos saber. E depois vamos matar a Jenny. Compreende o que lhe estou a dizer, Mary?
Mary assentiu com a cabeça uma vez. Catherine pegou na Mauser pelo cano, ergueu-a bem alto e bateu com ela na cabeça de Mary. Perdendo os sentidos, Mary afundou-se para a frente, com o sangue a escorrer-lhe do cabelo para os olhos. Catherine pôs-se diante da lareira prestes a apagar-se, à espera de Neumann e da rapariga, à espera de voltar para casa.
CINQUENTA E QUATRO
LONDRES Nesse momento, um táxi parou, no meio de uma chuva fortíssima, à porta de um edifício atarracado e coberto de hera sob o Arco do Almirantado. A porta abriu-se e
um homem pequeno e bastante feio saiu do táxi, apoiando-se acentuadamente numa bengala. Não se tinha incomodado com um guarda-chuva. Eram apenas poucos me tros até à entrada, onde um guarda da Marinha Real estava de senti nela. O guarda fez uma vigorosa continência, que o homem feio não se deu ao trabalho de retribuir, pois isso teria implicado passar a ben gala da mão direita para a esquerda, uma tarefa incómoda. Além do mais, cinco anos após ter sido destacado para a Marinha Real, Arthur Braithwaite continuava a não se sentir à vontade com os costumes e tradições da vida militar.
Oficialmente, Braithwaite só entrava de serviço dali a uma hora. Mas, tal como era seu hábito todos os dias, tinha chegado à Cidadela uma hora mais cedo para ter
mais tempo para se preparar. com uma perna aleijada desde a infância, Braithwaite sabia que para ter êxito tinha de estar mais bem preparado do que as pessoas à sua volta. Era um compromisso que lhe trazia dividendos.
A Sala de Localização de Submarinos - à qual se chegava por um emaranhado de escadas exíguas e tortuosas - não era de fácil acesso para um homem com uma perna gravemente
deformada. Atravessou a Sala dos Gráficos e entrou na Sala de Localização depois de passar por uma porta com um guarda.
A energia e a agitação daquele sítio apoderaram-se dele, tal como acontecia todas as noites. As paredes sem janelas eram da cor da nata azeda e estavam repletas de mapas, cartas de navegação e fotografias de submarinos e das suas tripulações. Várias dezenas de oficiais e de datilógrafas trabalhavam às secretárias, à roda da sala. No meio, estava a principal mesa de localização para o Atlântico Norte, com pioneses coloridos a assinalarem a posição de cada navio de guerra, navio de carga e submarino, do mar Báltico a Cape Cod.
Uma grande fotografia do almirante Karl Dònitz, o comandante da Kriegsmarine, lançava um olhar ameaçador da parede onde se encontrava pendurada. Braithwaite, tal como fazia todas as manhãs, piscou-lhe o olho e disse: bom dia, Herr Admirai. A seguir, abriu a porta do seu cubículo de vidro, tirou o casaco e sentou-se à secretária.
Estendeu a mão na direção da pilha de mensagens por descodificar que o aguardava todas as manhãs e pensou: Estás bem longe de
1939, meu velho.
Em 1939, tinha licenciaturas em Direito e Psicologia tiradas em Cambridge e Yale e estava à procura de alguma coisa para fazer com elas. Quando a guerra rebentou,
tentou dar utilidade ao seu alemão fluente voluntariando-se para interrogar prisioneiros de guerra alemães. Os seus superiores ficaram tão impressionados que recomendaram
uma transferência para a Cidadela, na qual foi destacado, como voluntário civil, para a Sala de Localização de Submarinos, no auge da Batalha do Atlântico. O intelecto
e a determinação de Braithwaite fizeram-no distinguir-se rapidamente. Dedicou-se por inteiro ao trabalho, voluntariou-se para prestar serviços adicionais e leu todos
os livros que conseguiu encontrar sobre a história e as táticas navais alemãs. Possuidor de uma memória quase perfeita, decorou as biografias de todos os Kapitànleutnant
da U-bootewaffe. No espaço de poucos meses, desenvolveu uma capacidade extraordinária para prever os movimentos dos submarinos alemães. Nada disso passou despercebido.
Atribuíram-lhe o posto de comandante temporário e colocaram-no à frente da localização de submarinos, um feito espantoso para alguém que não tinha passado pelo Dartmouth Naval College.
O seu assessor bateu ao de leve na porta de vidro, aguardou que Braithwaite assentisse com a cabeça e entrou.
- bom dia, senhor - disse, pousando uma bandeja com um bule de chá e biscoitos.
- bom dia, Patrick.
- O tempo manteve as coisas razoavelmente sossegadas ontem à noite, senhor. Não foram avistados submarinos alemães a virem à superfície em lado nenhum. A tempestade
afastou-se do oeste. Agora, é o leste que está a suportar o impacto, de Yorkshire a Suffolk.
Braithwaite assentiu com a cabeça e o assessor foi-se embora. As primeiras mensagens eram coisas convencionais, interceções de comunicações de rotina entre submarinos
e o BdU. A quinta chamou-lhe a atenção. Era um alerta emitido por um major Alfred Vicary do Ministério da Guerra. Indicava que as autoridades se encontravam a perseguir
duas pessoas, um homem e uma mulher, que poderiam estar a tentar fugir do país. Braithwaite sorriu perante os eufemismos cautelosos de Vicary. Era evidente que Vicary era do MI5. O homem e a mulher eram obviamente agentes alemães e fosse o que fosse em que estavam envolvidos devia ser bem importante, caso contrário o alerta não lhe teria passado pela secretária. Pôs o alerta de Vicary de lado e continuou a ler.
Após mais algumas mensagens rotineiras, Braithwaite deu com outra coisa que lhe chamou a atenção. Um membro do ramo feminino da Marinha Real Britânica, da estação de recolha de comunicações de Scarborough, tinha intercetado o que julgava ser uma comunicação entre um submarino alemão e um rádio em terra. O sistema Huff Duff tinha indicado que o transmissor se encontrava algures na costa leste - algures entre Lincolnshire e Suffolk. Braithwaite tirou a mensagem da pilha e colocou-a ao lado do alerta de Vicary.
Levantou-se e coxeou para fora do gabinete e, já na sala principal, parou junto à mesa de localização para o Atlântico Norte. Dois membros da sua equipa estavam a reposicionar alguns pinos coloridos, na sequência de movimentações noturnas. Braithwaite pareceu não reparar neles. De rosto fechado, fixou o olhar nas águas ao largo da costa leste britânica.
Passado um momento, disse em voz baixa:
- Patrick, traga-me o dossiê do U-509.
CINQUENTA E CINCO
HAMPTON SANDS, NORFOLK
Jenny atingiu o pinhal no fundo das dunas e caiu exausta. Tinha corrido instintivamente, como um animal assustado. Tinha-se mantido longe da estrada, não saindo dos prados e dos pântanos, alagados pela chuva. Tinha caído tantas vezes que até perdera a conta. Estava cheia de lama, cheirava a terra em decomposição e a mar. A cara, fustigada pela chuva e pelo vento, doía-lhe como se tivesse sido esbofeteada. E tinha frio - mais frio do que alguma vez sentira na vida. Era como se o oleado pesasse uns cinquenta quilos. As botas de borracha estavam cheias de água e tinha os pés a congelar. Foi então que se lembrou de que tinha saído sem meias do chalé. Pôs-se de gatas, a ofegar com falta de ar. Tinha a garganta seca e sabia-lhe a ferrugem.
Deixou-se ficar assim durante um momento, até que a respiração acalmasse, e depois forçou-se a levantar-se e a penetrar no meio das árvores. Estava escuro como breu, tão escuro que teve de avançar com as mãos esticadas para a frente, como um cego às apalpadelas num local desconhecido. Estava zangada consigo mesma por não ter trazido a lanterna.
O som do vento, o estrondo das ondas a rebentarem na praia e os guinchos das aves marinhas enchiam o ar. As árvores já pareciam estar dispostas de uma forma familiar. Jenny orientava-se pela memória, como alguém a arrastar os pés pela própria casa, no escuro.
As árvores desapareceram: o seu esconderijo secreto surgiu diante dela.
Escorregou pelo declive e sentou-se encostada à grande rocha. Os pinheiros contorciam-se ao vento, por cima da sua cabeça, mas Jenny estava abrigada do pior da tempestade. Queria imenso fazer uma fogueira, mas o fumo seria visível de muito longe. Desenterrou a mala debaixo da caruma de pinheiro, tirou de lá o velho cobertor de lã e enrolou-se toda nele.
Começou a sentir o calor. Foi então que começou a chorar. Perguntou-se quanto tempo teria de esperar ali até poder ir procurar ajuda. Dez minutos? Vinte minutos?
Meia hora? Perguntou-se se Mary ainda estaria no chalé quando ela lá voltasse. Perguntou-se se estaria ferida. Uma imagem horrenda do cadáver do pai passou-lhe diante
dos olhos. Sacudiu a cabeça para tentar que ela desaparecesse. Tremeu e depois enrolou-se ainda mais no cobertor.
Trinta minutos. Iria esperar trinta minutos. Por essa altura, já se teriam ido embora e seria seguro regressar.
Neumann estacionou no fim do trilho, pegou na lanterna que estava no banco do passageiro e saiu da carrinha. Acendeu a lanterna e avançou rapidamente por entre as
árvores. Escalou as dunas e desceu aos tropeções pelo outro lado. Desligou a lanterna e deslocou-se pela praia, em direção à beira-mar. Quando atingiu a areia molhada
e dura, onde as ondas rebentavam na praia, começou a correr levemente, com a cabeça baixa para avançar contra o vento.
Recordou-se da manhã em que estava a correr na praia e vira Jenny a sair das dunas. Recordou-se do aspeto dela, como se tivesse dormido na praia naquela noite. Tinha a certeza de que ela tinha alguma espécie de esconderijo ali perto, para onde ia quando as coisas em casa ficavam más. Estava assustada, em fuga e sozinha. Iria fugir para o sítio que conhecia melhor, como fazem as crianças. Neumann foi até ao ponto da praia que utilizava como meta imaginária, depois parou e caminhou em direção às dunas.
Já do outro lado, voltou a acender a lanterna, deu com um trilho pisado e seguiu-o. Ia dar a uma pequena depressão no terreno, abrigada do vento pelas árvores e por um par de grandes pedregulhos. Apontou a lanterna para a depressão e o feixe luminoso apanhou o rosto de Jenny Colville.
- Qual é o seu nome verdadeiro? - perguntou Jenny enquanto seguiam na carrinha para o chalé dos Dogherty.
- O meu nome verdadeiro é tenente Horst Neumann.
- E porque fala inglês tão bem?
- O meu pai era inglês e eu nasci em Londres. A minha mãe e eu mudámo-nos para a Alemanha quando ele morreu.
- E é um espião alemão?
- Qualquer coisa do género.
- E o que aconteceu a Sean e ao meu pai?
- Estávamos a utilizar o rádio no celeiro de Sean quando o teu pai nos apareceu de rompante. Sean tentou para-lo e o teu pai matou-o. Catherine e eu matámos o teu
pai. Lamento imenso, Jenny. Aconteceu tudo muito depressa.
- Cale-se! Não quero que me diga que lamenta imenso! Neumann manteve-se em silêncio.
Jenny perguntou:
- E agora o que vai acontecer?
- Vamos fazer uma viagem pela costa até ao rio Humber. Chegados lá, vamos para o mar num barco pequeno para irmos ter com um submarino alemão.
- Espero que vos apanhem. E espero que vos matem.
- Eu diria que isso é uma possibilidade muito forte.
- O senhor é um sacana! Porque andou à luta com o meu pai por causa de mim?
- Porque gosto muito de ti, Jenny Colville. Menti-te em relação a tudo o resto, mas a verdade é essa. Agora, faz exatamente o que eu te disser e não te vai acontecer
nada de mal. Compreendes?
Jenny assentiu com a cabeça. Neumann virou para o chalé dos Dogherty. A porta abriu-se e Catherine saiu. Dirigiu-se para a carrinha e olhou lá para dentro, vendo
Jenny. A seguir, olhou para Neumann e disse em alemão:
- Amarra-a e enfia-a na parte de trás. Vamos levá-la connosco. Nunca se sabe quando é que um refém pode vir a calhar.
Neumann abanou a cabeça e respondeu na mesma língua:
- O melhor é deixá-la aqui e pronto. Não nos serve de nada e ainda é capaz de lhe acontecer alguma coisa.
- Está a esquecer-se de que sou seu superior, tenente?
- Não, major - retorquiu Neumann, com a voz tingida de sarcasmo.
- Ótimo. Agora, amarra-a e vamos pôr-nos a milhas deste lugar
horrível.
Neumann voltou ao celeiro para procurar um bocado de corda. Encontrou-o, pegou no candeeiro e começou a ir-se embora. Olhou uma última vez para o corpo de Sean Dogherty,
estendido no chão e tapado pela velha serapilheira. Neumann não conseguia deixar de se sentir culpado pela sucessão de acontecimentos que tinha levado à morte de
Sean. Se não tivesse lutado com Martin, este não teria aparecido no celeiro com uma caçadeira. Sean estaria a ir com eles para a Alemanha e não estendido no chão do seu celeiro, sem metade do peito. Apagou o candeeiro, deixando os corpos na escuridão, e saiu, fechando a porta do celeiro.
Jenny não resistiu nem lhe dirigiu uma única palavra. Neumann amarrou-lhe as mãos à frente, para que ela se pudesse sentar mais confortavelmente. Verificou o nó, para se certificar de que não estava demasiado apertado. A seguir, atou-lhe os pés. Quando terminou, levou-a para a parte de trás da carrinha, abriu as portas e meteu-a lá dentro.
Despejou mais um bidão de gasolina no depósito e atirou o recipiente vazio para o prado.
Não havia sinal de vida no trilho entre o chalé e a aldeia. Era óbvio que os tiros tinham passado despercebidos em Hampton Sands. Atravessaram a ponte, passaram a grande velocidade pelo pináculo da St. John's Church e continuaram pela rua às escuras. A aldeia estava tão silenciosa que mais parecia ter sido evacuada.
Catherine ia ao lado de Neumann, calada e a recarregar a Mauser.
Neumann carregou a fundo no acelerador e Hampton Sands desapareceu atrás deles.
CINQUENTA E SEIS
LONDRES
Arthur Braithwaite fixou o olhar na mesa de localização enquanto esperava pelo dossiê do U-509. Não que Braithwaite precisasse dele para grande coisa - achava que sabia tudo o que havia para saber sobre o comandante do submarino e podia provavelmente recitar todas as patrulhas que o submarino já tinha realizado. Só queria confirmar umas quantas coisas antes de telefonar para o MI5.
As movimentações do U-509 andavam a intrigá-lo há várias semanas. O submarino parecia estar a patrulhar o mar do Norte sem nenhum objetivo, navegando sem destino em particular e passando longos períodos sem contactar o BdU. E quando dava de facto notícias, comunicava uma posição ao largo da costa britânica, perto de Spurn
Head. E também tinha sido avistado em fotografias aéreas num recinto para submarinos, no sul da Noruega. Não tinha sido visto a vir à superfície e não atacara nenhum
navio de guerra nem nenhum navio mercante dos Aliados.
Braithwaite pensou: Andas só para aí a tentar passar despercebido, sem fazer absolutamente nada. Bem, não acredito nisso, Kapitànleutnant Hoffman.
Ergueu os olhos para o rosto severo de Dónitz e murmurou:
- Porque deixarias um submarino e uma tripulação em perfeitas condições serem desperdiçados dessa maneira?
Passado um momento, o assessor regressou com o dossiê.
- Aqui está, senhor.
Braithwaite não pegou no dossiê; em vez disso, começou a recitar o que lá vinha escrito.
- O capitão chama-se Max Hoffman, se bem me lembro.
- Correto, senhor.
- Cruz de Cavaleiro da Cruz de Ferro em 1942, Folhas de Carvalho um ano depois.
- Colocadas pelo próprio Fúhrer.
- E agora a parte importante. Julgo que fez parte do sfaffde Canaris, na Abwehr, durante um curto período antes da guerra.
O assessor folheou o dossiê.
- Sim, aqui está, senhor. Hoffman foi destacado para o quartel-general da Abwehr, em Berlim, entre 38 e 39. Quando a guerra rebentou, foi outra vez transferido para a Kriegsmarine e recebeu o comando do U-509.
Braithwaite estava a olhar novamente para a mesa com o mapa.
- Patrick, se tivesse um importante espião alemão a precisar de uma boleia para fora de Inglaterra, não preferiria que fosse um velho amigo a conduzir?
- com certeza, senhor.
- Telefone para o MI5 e peça para falar com Vicary. Acho que precisamos de ter uma conversa.
CINQUENTA E SETE
LONDRES
Alfred Vicary estava parado diante um mapa das Ilhas Britânicas com dois metros e meio de altura, a fumar sem parar, a beber um chá horrível e a pensar: Agora sei como é que Adolf Hitler se deve sentir. com base no telefonema do comandante Lowe, da estação de recolha de comunicações de Scarborough, naquele momento era seguro partir do princípio de que os espiões estavam a tentar escapulir-se de Inglaterra a bordo de um submarino. Mas Vicary tinha um problema muito simples e, no entanto, muito grave. Fazia apenas uma vaga ideia de quando e uma ideia ainda mais vaga de como.
Partiu do princípio de que os espiões teriam de se encontrar com o submarino antes do amanhecer; seria demasiado perigoso para um submarino alemão manter-se à superfície perto da costa depois dos primeiros raios de luz do dia. Era possível que o submarino pretendesse desembarcar alguns membros da tripulação por meio de um bote de borracha - era assim que a Abwehr introduzia muitos dos seus espiões no Reino Unido -, mas Vicary duvidava que o tentassem fazer com mares revoltos. Por outro lado,
roubar um barco não era tão fácil como parecia. A Marinha Real tinha apreendido quase tudo o que conseguia flutuar. E a pesca no mar do Norte tinha diminuído porque
as águas costeiras se encontravam repletas de minas. Dois espiões em fuga teriam grandes dificuldades em encontrar um barco capaz de andar no mar em tão pouco tempo, com uma tempestade e durante o blackout.
Pensou: Se calhar, os espiões já têm um barco.
A pergunta mais exasperante era onde. De que ponto da costa iriam partir para o mar? Vicary olhou fixamente para o mapa. A estacão de recolha de comunicações não conseguia apontar a localização exata do transmissor. Só para que pudesse considerar essa hipótese, Vicary escolheu precisamente o centro da vasta área que lhe tinham indicado. Percorreu o mapa com o dedo até chegar à costa de Norfolk.
Sim, fazia todo o sentido. Vicary conhecia bem os horários dos caminhos de ferro. Um espião poder-se-ia esconder numa das aldeias da costa e ser também capaz de chegar a Londres em três horas graças ao comboio direto que saía de Hunstanton.
Vicary partiu do princípio de que teriam um bom veículo e bastante gasolina. Tinham efetuado uma viagem considerável desde Londres e, devido à forte presença policial nas linhas férreas, tinha praticamente a certeza de que não o tinham feito de comboio.
Pensou: Então, até que ponto da costa de Norfolk conseguiriam eles ir até se enfiarem num barco e partirem para o mar?
Provavelmente, o submarino não se aproximaria mais do que oito quilómetros da costa. Os espiões demorariam uma hora a percorrer esses oito quilómetros, se não mais.
E se o submarino submergisse aos primeiros raios de luz do dia, os espiões teriam de partir para o mar no máximo às seis horas, para jogarem pelo seguro. A mensagem
radiofónica tinha sido enviada às 22h. Isso deixava-lhes oito horas de potencial tempo de condução. Até onde poderiam ir? Tendo em conta o tempo que fazia, o blackout e as fracas condições das estradas, entre cento e cinquenta e duzentos e cinquenta quilómetros.
Vicary olhou para o mapa, desanimado. com isso, ainda restava uma enorme faixa da costa britânica, que se estendia do estuário do Tamisa, a sul, ao rio Humber, a norte. Seria praticamente impossível abarcar tudo. O litoral estava semeado de pequenos portos, aldeias piscatórias e cais. Vicary tinha pedido às forças policiais locais para percorrerem a costa com o máximo de homens possível. O Comando Costeiro da RAF tinha concordado em dar início a missões de busca logo que amanhecesse, embora Vicary temesse que fosse demasiado tarde. As corvetas da Marinha Real andavam à procura de
barcos pequenos, ainda que fosse praticamente impossível localiza-los numa noite chuvosa e escura, em pleno mar. Sem outra pista -- um segundo sinal de rádio intercetado ou um avistamento -, não havia grande esperança de os apanhar. O telefone tocou.
- Vicary.
- Daqui fala o comandante Arthur Braithwaite, da Sala de Localização de Submarinos. Vi o seu alerta quando entrei ao serviço e acho que lhe posso dar uma ajuda bastante importante.
- A Sala de Localização de Submarinos diz que o U-509 anda há umas quantas semanas a aproximar-se e a afastar-se da costa de Lincolnshire - revelou Vicary.
Boothby tinha descido para acompanhar Vicary na vigília defronte do mapa.
- Se concentrarmos todos os nossos homens e recursos em Lincolnshire, temos boas hipóteses de os parar.
- Continua a ser muita costa para abarcar. Vicary estava a olhar de novo para o mapa.
- Qual é a maior terra daquela região?
- Grimsby, diria eu.
-- Mas que apropriado, Grimsby. E quanto tempo é que acha que eu levaria a chegar lá?
- A divisão dos Transportes pqdia arranjar-lhe boleia, mas levaria horas.
Vicary fez uma careta. A divisão dos Transportes possuía alguns carros velozes precisamente para casos destes. Tinham condutores experimentados de reserva, especializados em perseguições a alta velocidade; um ou dois até tinham competido em corridas profissionais antes da guerra. Mas Vicary achava que os condutores, apesar de brilhantes, eram demasiado imprudentes. Lembrou-se da noite em que tinha sacado o espião da praia na Cornualha, recordando-se de estar a atravessar em grande velocidade a noite da Cornualha, durante o blackout, num Rover todo modificado, e a rezar para viver o suficiente para poder fazer aquela detenção.
Vicary perguntou:
- Então e se fosse um avião?
- Tenho a certeza de que lhe podia arranjar uma boleia com a RAF. Há uma pequena base de caças nos arredores de Grimsby. Podiam lá pô-lo em mais ou menos uma hora e podia servir-se da base como posto de comando. Mas já olhou pela janela nas últimas horas? Está uma noite horrível para se andar de avião.
- Eu tenho noção disso, mas tenho a certeza de que poderia coordenar melhor a busca se estivesse lá, no terreno - retorquiu Vicary, afastando-se do mapa e olhando para Boothby. - E ocorreu-me outra coisa. Se os conseguirmos deter antes de enviarem uma mensagem para Berlim, talvez possa enviá-la eu por eles.
- Engendrando uma explicação qualquer para a decisão deles de fugirem de Londres que reforce a confiança na Operação Kettledrum?
- Exato.
- Bem pensado, Alfred.
- Gostava de levar dois homens comigo: Roach e Dalton, se ele estiver em condições.
Boothby hesitou.
- Acho que também devia levar outra pessoa.
- Quem?
- Peter Jordan. -Jordan!
- Veja a coisa do outro lado do espelho. Se Jordan foi enganado e traído, não iria querer estar lá no fim, para presenciar a morte de Catherine Blake? Eu sei que iria querer de certeza. Iria querer carregar eu próprio no gatilho. Se estivesse no lugar dele. E os alemães também têm de achar isso. Temos de fazer tudo o que for possível para fazer com que acreditem na ilusão da Operação Kettledrum.
Vicary pensou no dossiê vazio que se encontrava nos Registos. O telefone voltou a tocar.
- Vicary.
Era uma das telefonistas do departamento.
- Professor Vicary, tenho uma chamada interurbana de um superintendente-chefe Perkin, da polícia de King's Lynn, em Norfolk. Diz que é bastante urgente.
- Passe-mo.
Hampton Sands era demasiado pequena, demasiado isolada e demasiado sossegada para justificar ter o seu próprio polícia. Partilhava um com mais quatro aldeias da costa de Norfolk, Holme, Thornton, Titchwell e Brancaster. O polícia era um homem chamado Thomasson, um veterano que trabalhava na costa de Norfolk desde a grande guerra anterior. Thomasson vivia numa casa da polícia, em Brancaster, e devido às necessidades do trabalho tinha o seu próprio telefone.
Uma hora antes, o telefone tinha tocado, acordando Thomasson, a mulher e o seu setter inglês, Rags. A voz do outro lado da linha pertencia ao superintendente-chefe Perkin, de King's Lynn. O superintendente informou Thomasson do telefonema importante que tinha recebido do Ministério da Guerra, em Londres, a pedir auxílio às forças policiais locais na busca de dois fugitivos suspeitos de homicídio.
Dez minutos depois de receber o telefonema de Perkin, Thomasson já estava a sair do chalé, com uma capa de oleado azul, um chapéu impermeável atado por baixo do queixo e um termos de chá doce que Judith lhe tinha preparado rapidamente. Foi buscar a bicicleta ao barracão nas traseiras da casa e, a seguir, partiu para o centro da aldeia. Rags, que acompanhava sempre Thomasson nas suas rondas, seguia descontraidamente ao lado dele.
Thomasson tinha cinquenta e tal anos. Nunca fumava, raramente tocava em álcool e trinta anos a percorrer de bicicleta a costa ondulante de Norfolk tinham-no deixado em forma e cheio de força. As pernas grossas e bem musculadas pedalavam facilmente, impulsionando a pesada bicicleta de ferro na direção de Brancaster. Tal como suspeitava, reinava um silêncio de morte na aldeia. Podia ir bater a algumas portas, acordar umas quantas pessoas, mas conhecia toda a gente na aldeia e não havia lá ninguém que estivesse a abrigar assassinos em fuga. Passou uma vez pelas ruas silenciosas e depois virou para a estrada costeira e seguiu para a aldeia seguinte, Hampton Sands.
O chalé dos Colville ficava a uns quinhentos metros da aldeia. Toda a gente conhecia a história de Martin Colville. Tinha sido abandonado pela mulher, bebia imenso
e mal conseguia viver da sua pequena propriedade. Thomasson sabia que Colville era demasiado duro com a filha, Jenny. E também sabia que Jenny passava muito tempo nas dunas; Thomasson encontrara as coisas dela depois de um dos habitantes da aldeia se queixar de que havia ciganos a viverem na praia. Deixou que a bicicleta parasse e apontou a lanterna para o chalé dos Colville. Estava às escuras e não havia fumo a sair da chaminé.
Thomasson empurrou a bicicleta pelo caminho de acesso e bateu à porta. Ninguém respondeu. Receando que Colville estivesse bêbado ou desmaiado, voltou a bater, com mais força. Mais uma vez, ninguém respondeu. Abriu a porta e espreitou lá para dentro. O interior da casa estava às escuras. Gritou pelo nome de Colville uma última vez. Como ninguém respondesse, foi-se embora do chalé e continuou em direção a Hampton Sands.
Tal como Brancaster, Hampton Sands estava silenciosa e numa escuridão completa. Thomasson atravessou a aldeia, passando pelo Arms, pela loja da aldeia e pela St. John's Church. Atravessou a ponte sobre a enseada. Sean e Mary Dogherty viviam a cerca de um quilómetro e meio da aldeia. Thomasson sabia que Jenny Colville vivia praticamente com os Dogherty. Era muito provável que estivesse a passar a noite lá. Mas onde estaria Martin?
Foi um quilómetro e meio difícil, com o trilho a subir e a descer à medida que avançava. À sua frente, no escuro, conseguia ouvir o clicar das patas de Rags no trilho e o ritmo constante da respiração do cão. O chalé dos Dogherty surgiu diante dele. Pedalou pelo caminho de entrada, parou e apontou a lanterna de um lado para o outro.
Houve qualquer coisa no prado que lhe chamou a atenção. Deslocou o feixe luminoso sobre a vegetação e - ali - ali estava aquilo outra vez. Avançou com dificuldade pelo meio do prado encharcado e baixou-se para apanhar o objeto. Era um bidão vazio. Cheirou-o gasolina. Virou-o ao contrário. Um fio de gasolina escorreu para fora.
Dirigiu-se para o chalé dos Dogherty, com Rags à sua frente. Viu a carrinha velha e em mau estado de Sean Dogherty estacionada no pátio. Depois, avistou duas bicicletas caídas no meio da vegetação, ao
lado do celeiro. Thomasson avançou até ao chalé e bateu à porta. Tal como no chalé dos Colville, ninguém respondeu.
Thomasson não se deu ao trabalho de bater uma segunda vez. Já se encontrava completamente alarmado com o que tinha visto. Abriu a porta e gritou
Olá. Ouviu um ruído
estranho, como gemidos abafados. Apontou a lanterna para a sala e viu Mary Dogherty amarrada a uma cadeira e com a boca amordaçada.
Thomasson correu para ela, com .Rags a ladrar furiosamente, e desatou rapidamente o pano que tinha à volta da cara.
- Mary! Mas que raio é que se passou aqui? ! Mary, nervosíssima, ofegou com falta de ar.
- Sean... Martin... mortos... celeiro... espiões... submarino... Jenny!
- Daqui fala Vicary.
- Superintendente-chefe Perkin, da polícia de King's Lynn.
- E o que tem para me dizer? - Dois cadáveres, uma mulher histérica e uma rapariga desaparecida.
- Meu Deus! Comece do início.
- Depois de ter recebido a sua chamada, mandei todos os meus agentes fazerem rondas. O agente Thomasson é responsável por um punhado de pequenas aldeias no norte da costa de Norfolk. Foi ele que deparou com os sarilhos.
- Continue.
- Aconteceu tudo num sítio chamado Hampton Sands. A não ser que tenha um mapa grande, não é provável que o encontre. Mas se tiver, descubra Hunstanton, na Wash, e percorra o leste da costa de Norfolk com o dedo e vai ver Hampton Sands.
- Já a encontrei.
Era praticamente o ponto onde Vicary tinha imaginado que o transmissor pudesse estar.
- Thomasson deu com dois corpos num celeiro, numa quinta logo à saída de Hampton Sands. As vítimas são dois habitantes locais, Martin Colville e Sean Dogherty. Dogherty é irlandês. Thomasson encontrou a mulher de Dogherty, Mary, amarrada e amordaçada
no chalé. Tinha levado uma pancada na cabeça e estava num estado de histeria quando Thomasson a descobriu. Contou-lhe uma história e pêras.
- Não há nada que me vá surpreender, superintendente. Por favor, continue.
- A senhora Dogherty diz que o marido anda a espiar para os alemães desde o começo da guerra, nunca foi um homem armado do IRA a cem por cento, mas tinha ligações ao grupo. Ela diz que, há umas semanas, os alemães largaram outro agente na praia, chamado Horst Neumann, e que Dogherty o acolheu. O agente tem estado a morar com eles desde então e a viajar para Londres regularmente.
- E o que aconteceu hoje à noite?
- Ela não sabe ao certo. Ouviu tiros, foi a correr para o celeiro e deu com os corpos. O alemão disse-lhe que Colville lhes tinha entrado por ali de rompante e que fora então que o tiroteio começara.
- E estava lá alguma mulher com Neumann?
- Estava.
- Fale-me da rapariga que desapareceu.
- É a filha de Colville, Jenny. Não está em casa e encontraram a bicicleta dela junto ao chalé dos Dogherty. Thomasson acha que ela seguiu o pai, assistiu ao tiroteio ou ao rescaldo e fugiu. Mary tem medo que o alemão tenha descoberto a rapariga e a tenha levado com ele.
- E ela sabe para onde é que eles iam?
- Não, mas diz que vão numa carrinha... talvez preta.
- E onde está ela agora?
- Continua no chalé.
- E onde está o agente Thomasson?
- Continua em linha, numpub em Hampton Sands.
- E havia algum indício de um rádio no chalé ou no celeiro?
- Espere um momento, deixe-me perguntar-lhe.
Vicary ouviu Perkin, com a voz abafada, a fazer a pergunta.
- Ele diz que viu uma engenhoca no celeiro que poderia ser um rádio.
- E era parecida com quê?
- com uma mala com uma coisa parecida com uma telefonia. Foi destruída por um tiro de caçadeira.
- E quem mais é que sabe disto?
- Eu, Thomasson e provavelmente o dono dopub. Suspeito que ele deve estar ao lado de Thomasson neste preciso momento.
- Não quero que fale a quem quer que seja do que se passou esta noite no chalé dos Dogherty. Não pode haver referências a agentes alemães em nenhum relatório sobre esta questão. Isto é um assunto de segurança da máxima importância. Estamos entendidos, superintendente?
- Estamos.
- vou enviar uma equipa de homens para Norfolk para o auxiliar. Por agora, deixe Mary Dogherty e esses corpos exatamente onde estão.
- Sim, senhor.
Vicary estava outra vez a olhar para o mapa.
- bom, superintendente, eu tenho informações que me levam a suspeitar que, com toda a probabilidade, esses fugitivos estão a dirigir-se precisamente para onde se encontra. Julgamos que o destino final deles é a costa de Lincolnshire.
- Já chamei todos os meus homens. Estamos a barricar todas as estradas principais.
- Mantenha o Ministério informado de todos os desenvolvimentos. E boa sorte.
Vicary desligou o telefone e voltou-se para Boothby.
- Eles mataram duas pessoas, têm provavelmente um refém e estão a tentar chegar à costa de Lincolnshire - revelou Vicary, sorrindo ferozmente. - E parece que acabaram de ficar sem o segundo rádio.
CINQUENTA E OITO
LINCOLNSHIRE, INGLATERRA
Duas horas depois de terem saído de Hampton Sands, Horst Neumann e Catherine Blake começaram a ter sérias dúvidas sobre as hipóteses de chegarem a tempo ao ponto de encontro com o submarino. Para escapar à costa de Norfolk, Neumann refez o seu percurso, subindo o grupo de colinas no coração de Norfolk e seguindo depois a estreita faixa de estrada pela região pantanosa e pelas povoações às escuras. Contornou King's Lynn para sudeste, serpenteou por uma série de aldeolas e depois atravessou o rio Great Ouse, numa aldeia chamada Wiggenhall St. Germans.
A viagem pela orla sul da Wash foi um pesadelo. O vento soprava com toda a força, vindo do mar do Norte, e chicoteava os pântanos e diques. A chuva aumentou de intensidade. Às vezes, vinha em rajadas furiosas - em turbilhão, soprada pelo vento, ocultando as bermas da estrada. Neumann curvava-se todo para a frente, quilómetro após quilómetro, agarrando com força o volante com ambas as mãos, enquanto a carrinha avançava a grande velocidade pelo terreno plano. Por vezes, tinha a sensação de estar a flutuar num abismo.
Catherine estava sentada ao lado dele, a ler o mapa antigo de Dogherty, do serviço oficial de topografia e cartografia, à luz da lanterna. Falavam em alemão para
Jenny não perceber. Neumann achava o alemão de Catherine curioso: átono, sem entoação especial nem sotaque regional. O tipo de alemão que é uma segunda ou terceira
língua. O tipo de alemão que não é falado há muito tempo.
Neumann traçou o caminho com as instruções de navegação de Catherine.
O barco estaria á espera deles numa terra chamada Cleethorpes, que ficava perto do porto de Grimsby, na foz do Humber. Assim que deixassem a Wash para trás, não teriam povoações grandes pelo caminho. De acordo com os mapas, havia uma estrada boa - a Al 6
- que seguia vários quilómetros para o interior, ao longo do sopé das colinas de Lincolnshire Wolds, e depois em direção ao Humber. Para efeitos de planeamento,
Neumann partiu do pressuposto de que as coisas correriam da pior maneira. Partiu do pressuposto de que Mary acabaria por ser encontrada, de que o MI5 acabaria por ser alertado e de que seriam estabelecidas barricadas em todas as estradas principais perto do litoral. Apanharia a Al 6 até meio do caminho para Cleethorpes e, a seguir, mudaria para uma estrada secundária que seguia mais perto da costa.
Avistou Boston perto da margem ocidental da Wash. Era a última cidade grande que os separava do Humber. Neumann deixou a estrada principal, avançou lentamente por tranquilas estradas secundárias e depois reentrou na Al 6 a norte da cidade. Carregou no acelerador e puxou fortemente pela carrinha por entre a tempestade.
Catherine desligou a lanterna para o blackout e olhou para a chuva a rodopiar à fraca luz dos faróis.
- Como é que andam as coisas agora... em Berlim? Neumann manteve os olhos na estrada.
- É o paraíso. Estamos todos felizes, trabalhamos muito nas fábricas, agitamos os punhos contra os bombardeiros americanos e britânicos e toda a gente ama o Fúhrer.
-- Pareces um filme de propaganda do Goebbels.
- A verdade não é assim tão divertida. Berlim está muito mal. Os americanos vêm de dia com os seus B-17 e os britânicos vêm à noite com os seus lancasters e Halifaxes. Há dias em que parece que a cidade está sob bombardeamento constante. Grande parte do centro de Berlim é um monte de destroços.
- Tendo eu passado também pela Blitz, receio bem que a Alemanha mereça tudo o que os americanos e britânicos lhe conseguirem infligir. Os alemães foram os primeiros a levar a guerra à população
civil. Não posso verter muitas lágrimas por Berlim estar agora a ser reduzida a pó.
- Pareces uma verdadeira britânica.
- E sou meia britânica. A minha mãe era inglesa. E há seis anos que vivo com os britânicos. É difícil não nos esquecermos de que lado supostamente estamos quando nos encontramos numa situação dessas. Mas fala-me mais de Berlim.
- Quem tem dinheiro ou ligações consegue comer bem. Quem não tem não consegue. Os russos inverteram por completo a situação no Leste. Desconfio que meia Berlim esteja
desejosa de que a invasão aconteça para que os americanos cheguem a Berlim antes dos russos.
- Isso é tão tipicamente alemão. Elegem um psicopata, dão-lhe poder absoluto e depois choram porque ele os conduziu à beira da destruição.
Neumann riu-se.
- Se foste abençoada com essa capacidade de prever o futuro, por que raio é que te voluntariaste para ser
espiã?
- E quem é que falou em voluntariado?
Passaram rapidamente por duas aldeias - primeiro, Stickney, depois, Stickford. O aroma de fumo vindo de lareiras a arderem nas pequenas casas invadiu a carrinha.
Neumann ouviu um cão a ladrar e, a seguir, outro. Enfiou a mão no bolso, tirou de lá os cigarros e passou-os a Catherine. Ela acendeu dois, ficou com um e deu-lhe o outro.
- Importas-te de explicar essa última observação?
Ela pensou: Importo-me? Era uma sensação tão estranha, após todos aqueles anos, estar a falar sequer alemão. Tinha passado seis anos a esconder o mais pequeno resquício de verdade sobre si. Tinha-se tornado outra pessoa, tinha apagado todos os aspetos da sua personalidade e do seu passado. Quando pensava na pessoa que era antes de Hitler e antes da guerra, era como se estivesse a pensar noutra pessoa.
Anna Katarina von Steiner morreu num infeli acidente de automóvel, à saída de Berlim.
- Bem, eu não fui propriamente ao gabinete da Abwehr lá da zona para me alistar - afirmou ela. - Mas também suponho que
não haja ninguém nesta atividade a conseguir trabalho dessa maneira pois não? Eles é que vêm sempre ter connosco. No meu caso, eles foram Kurt Vogel.
Contou-lhe a história, a história que nunca tinha contado a ninguém. A história do verão em Espanha, o verão em que rebentou a guerra civil. O verão na estancia de Maria. O caso com o pai de Maria.
- Só para veres a minha sorte, acontece que ele era um fascista e um caçador de talentos para a Abwehr. Vendeu-me a Vogel e Vogel veio à minha procura.
- E porque é que não disseste simplesmente não?
- Porque é que nenhum de nós disse simplesmente não? No meu caso, ele ameaçou quem eu mais quero neste mundo... o meu pai. É isso que um bom responsável operacional
faz. Entra-nos na cabeça. Consegue saber como é que pensamos, o que é que sentimos. O que é que amamos e o que é que tememos. E depois usa isso para nos pôr a fazer
o que ele quer que façamos.
Ela fumou em silêncio por um momento, observando enquanto passavam por outra aldeia.
- Ele sabia que eu tinha vivido em Londres quando era criança, que falava a língua perfeitamente, que já sabia usar uma arma e que...
Silêncio durante um momento. Neumann não insistiu com ela. Limitou-se a esperar, fascinado.
- Ele sabia que eu tinha a personalidade adequada para a missão que tinha em mente. Estive quase seis anos no Reino Unido, sozinha, praticamente sem contacto com ninguém do meu lado: nem amigos, nem família, nenhum contacto com outros agentes, nada. Foi mais uma sentença de prisão do que uma missão. Nem te consigo dizer quantas vezes sonhei em voltar a Berlim e matar Vogel com uma das maravilhosas técnicas que ele e os amigos me ensinaram.
- E como entraste no país?
Ela contou-lhe... contou-lhe o que Vogel a tinha feito fazer.
- Jesus - murmurou Neumann.
- Uma coisa típica da Gestapo, certo? Passei os seis meses seguintes a preparar a minha nova identidade. Depois instalei-me e esperei. Vogel e eu tínhamos uma forma de comunicar por rádio que
não incluía nomes de código. Portanto, os britânicos nunca me procuraram. Vogel sabia que eu estava segura e infiltrada, pronta para ser ativada. Depois, o idiota deu-me uma missão e fez-me cair mesmo nos braços do MI5 - disse ela, rindo-se baixinho. - Meu Deus, não posso acreditar que estou realmente a voltar para lá depois deste tempo todo. Nunca pensei que ia ver a Alemanha outra vez.
- Não pareces lá muito entusiasmada com a perspetiva de voltar para casa.
- Casa? É difícil pensar na Alemanha como a minha casa. É difícil pensar em mim como alemã. Vogel apagou essa parte de mini no maravilhoso retirozinho dele nas montanhas
da Baviera.
- E o que vais fazer?
- Encontrar-me com Vogel, ter a certeza de que o meu pai ainda está vivo e, a seguir, receber o meu pagamento e partir. Vogel pode arranjar-me outra das identidades falsas dele. Sou capaz de passar por cinco nacionalidades diferentes. Foi isso que me fez ir parar a este jogo logo para começar. É tudo um grande jogo, não é? Um grande jogo.
- E para onde estás a pensar ir?
- vou voltar para Espanha - respondeu ela. - vou voltar para o sítio onde começou tudo.
- Fala-me disso - pediu Neumann. - Preciso de pensar noutra coisa além desta estrada no meio de nenhures.
- Fica nas colinas no sopé dos Pirenéus. De manhã, vamos caçar e, à tarde, subimos às montanhas. Há uma maravilhosa ribeira com lagos fundos e frios e ficamos lá toda a tarde, a beber vinho branco gelado e a sentir o cheiro dos eucaliptos. Costumava pensar nisso o tempo todo quando a solidão me invadia. Às vezes, pensava que ia ficar maluca.
- Parece maravilhoso. Se precisares de um moço de estrebaria, diz-me.
Ela olhou para ele e sorriu.
- Tens sido maravilhoso. Se não fosses tu... - exclamou ela, hesitando antes de continuar. - Meu Deus, nem consigo sequer imaginar.
- Não precisas de agradecer. Fico contente por ter podido ajudar. Não quero estragar a festa, mas ainda não estamos livres de perigo.
- Acredita, tenho consciência disso.
Ela acabou o cigarro, abriu uma nesga do vidro da janela e atirou a ponta para o meio da noite. A beata atingiu a estrada e explodiu em faúlhas. Catherine recostou-se e fechou os olhos. Há já demasiado tempo que eram apenas a adrenalina e o medo que a faziam avançar. A exaustão tomou-a de assalto. O balançar suave da carrinha embalou-a, fazendo-a cair num sono leve, meio acordada.
Neumann perguntou:
- Vogel nunca me disse o teu nome verdadeiro. Qual é?
- O meu nome verdadeiro era Anna Katarina von Steiner -
respondeu ela com o sono a infiltrar-se-lhe na voz. - Mas prefiro que me continues a chamar Catherine. É que Kurt Vogel matou Anna antes de a enviar para Inglaterra. Receio bem que Anna já não exista. Anna está morta.
Quando Neumann falou outra vez, a sua voz estava muito longe, no fim de um grande túnel.
- E como é que uma mulher linda e inteligente como a Anna Katarina von Steiner acabou aqui, desta maneira?
- É uma pergunta muito boa - retorquiu ela, com a fadiga a tomar conta de si, adormecendo de seguida.
O sonho é neste momento a única recordação que ela tem disso; há muito que foi expulsa benevolamente dos seus pensamentos conscientes. Vê-o apenas em breves erupções - vislumbres roubados. As vezes, vê-o com os próprios olhos, como se o estivesse a reviver, e, outras
vezes, o sonho obriga-a a vê-lo de novo, como um espectador
numa bancada.
Esta noite está a revivê-lo.
Está deitada à beira do lago; o papá deixa-a ir sozinha. Sabe que ela não se vai aproximar da água - está demasiado fria para nadar- e sabe que ela gosta de estar
sozinha quando pensa na mãe.
É outono. Ela trouxe um cobertor. A erva alta à beira do lago está húmida da chuva da manhã. O vento move-se nas árvores. Um bando de gralhas revolteia
e dispersa-se ruidosamente por cima da cabeça dela. As árvores derramam flamejantes folhas cor de laranja e vermelhas. Ela observa as folhas a descerem suavemente,
como pequenos balões de ar quente, e a pousarem na superfície encrespada
do lago.
E então que, enquanto segue com os olhos a descida das folhas, vê o homem, parado junto às árvores do outro lado do lago.
Ele fica quieto durante muito tempo, a olhar para ela; a seguir, avança na sua direção. Tra botas altas e um casaco que lhe dá pelas coxas. Tem uma caçadeira de carregar pela culatra aninhada no braço direito. O cabelo e a barba são muito compridos, os olhos vermelhos e húmidos. A medida que se aproxima, ela vê que tem algo pendurado no cinto. Percebe que são dois coelhos ensanguentados. Mortos e flácidos, parecem absurdamente compridos e finos.
O papá tem uma palavra para homens como ele: larápios. Chegam às terras das outras pessoas e matam os animais - veados, coelhos efaisões. Ela acha que é uma palavra engraçada, larápios. Parece referir-se a alguém que prepara ovos de manha. Pensa nisso enquanto o homem se aproxima, e isso fá-la sorrir.
O larápio pergunta se pode sentar-se ao lado dela e ela diz que sim.
Ele põe-se de cócoras e pousa a espingarda na relva.
- Estás aqui sozinha?-pergunta.
- Sim. O meu pai diz que não faz mal.
- E onde está o teu pai agora?
- Está em casa.
- E não vem cá?
- Não.
-Quero mostrar-te uma coisa - diz ele. - Uma coisa que te vai fazer sentir ótima.
Os olhos dele já estão muito húmidos. Está a rir-se; tem os dentes pretos e podres. Ela fica com medo pela primeira
vez. Tenta levantar-se mas ele agarra-a pelos
ombros e empurra-a para baixo, deitando-a no cobertor. Ela tenta gritar mas ele abafa o som com a mão grande e peluda. De repente, está em cima dela; ela fica paralisada
debaixo do peso dele. Ele está a levantar-lhe o vestido e a arrancar-lhe a roupa interior.
A dor não se parece com nada que ela já tenha sentido. Parece que está a ser rasgada. Ele prende-lhe os braços atrás da cabeça com a mão e tapa-lhe a boca com a
outra para ninguém a ouvir gritar. Ela sente os corpos ainda quentes dos
coelhos mortos a pressionarem-lhe a perna. A seguir, o rosto do larápio contorce-se como se ele estivesse com dores e tudo aquilo para tão repentinamente como começou.
Ele está outra vez a falar com ela:
- Viste os coelhos? Viste o que eu fiz aos coelhos?
Ela tenta assentir com a cabeça, mas a mão que lhe tapa a boca está afazer tanta força que ela não consegue mexer a cabeça.
- Se alguma vez disseres a alguém o que aconteceu aqui hoje, faço-te o mesmo. E depois faço o mesmo ao teu pai. Dou um tiro aos dois e, a seguir, penduro as vossas
cabeças no meu cinto. Estás a ouvir, rapariga?
Ela começa a chorar.
- És uma rapariga muito má - diz ele. - Oh, sim, dá para ver isso. Acho que até gostaste disto.
A seguir, faz-lhe aquilo outra vez.
Começam os tremores. Nunca tinha sonhado com aquilo desta maneira. Alguém está a chamar o nome dela - Catherine... Catherine... acorda. Porque é que ele me está
a chamar Catherine? O meu nome é Arma...
Horst Neumann sacudiu-a uma vez mais, com violência, e gritou:
- Catherine, raios partam! Acorda! Temos sarilhos!
CINQUENTA E NOVE
LINCOLNSHIRE, INGLATERRA
Eram três da manhã quando o ILysander atravessou as nuvens espessas e aterrou com um forte solavanco numa pequena base da RAF a três quilómetros da cidade de Grimsby.
Alfred Vicary nunca tinha andado de avião e era uma experiência que desejava não repetir tão depressa. O mau tempo sacudiu o avião durante todo o voo, desde que saíram de Londres, e Vicary nunca se tinha sentido tão satisfeito na vida por ver um lugar quando deslizaram na pista em direção ao pequeno barracão de operações.
O piloto desligou o motor enquanto um tripulante abria a porta da cabine. Vicary, Harry Dalton, Clive Roach e Peter Jordan desceram rapidamente. Estavam dois homens à espera deles, um jovem oficial da RAF, de ombros quadrados, e um homem alto e bexigoso, com uma gabardina em mau estado.
O homem da RAF estendeu a mão e tratou das apresentações.
- Chefe de esquadrilha Edmund Hughes. E o superintendente -chefe da polícia do condado de Lincolnshire, Roger Lockwood. Entrem no barracão das operações. É rudimentar, mas seco, e montámos um posto de comando improvisado para os senhores.
Entraram. O oficial da RAF disse:
- Calculo que não seja tão agradável como os vossos aposentos em Londres.
- Até ficaria surpreendido - respondeu Vicary.
Era uma sala pequena, com uma janela com vista para o aeródromo. Havia um mapa de grande escala de lincolnshire pendurado numa parede e uma secretária com dois telefones maltratados do outro lado da sala.
- Serve perfeitamente.
- Temos um rádio e um teleimpressor - anunciou Hughes. -- Até podemos arranjar chá e sanduíches de queijo. Estão com ar de quem podia comer qualquer coisa.
- Obrigado - respondeu Vicary. - Foi um dia longo. Hughes saiu e o superintendente-chefe Lockwood avançou.
- Temos homens em todas as estradas principais até à Wash disse Lockwood, com o dedo grosso a bater no mapa. - Nas aldeias mais pequenas, só há polícias de bicicleta e portanto receio bem que não sejam capazes de fazer muito se os virem. Mas, à medida que se deslocarem para mais perto da costa, vão ter problemas. Barricadas aqui, aqui, aqui e aqui. Os meus melhores homens, carros-patrulha, carrinhas e armas.
- Muito bem. E em relação à costa propriamente dita?
- Temos homens em todas as docas e cais ao longo da costa de Lincolnshire e do Humber. Se tentarem roubar algum barco, vou ser informado.
- E em relação às praias abertas?
- Isso já é outra história. Não tenho meios ilimitados. O exército levou-me muitos dos meus melhores rapazes, tal como a toda a gente. Mas conheço estas águas. Também sou marinheiro amador. E não ia querer sair para o mar esta noite em nenhum barco que saísse de uma praia.
- Este tempo pode ser o nosso melhor amigo.
- É verdade. Outra coisa, major Vicary. Continuamos a ter de fingir que os senhores só andam atrás de um par de criminosos vulgares?
- Por acaso, superintendente-chefe, temos mesmo.
A saída da Al6 para uma pequena estrada secundária estava à frente deles, mesmo à saída da cidade de Louth. Neumann tinha
planeado deixar a Al 6 nessa altura, apanhar a estrada secundária para a costa, mudar para outra estrada secundária e dirigir-se para norte para Cleethorpes. Havia
apenas um problema. Metade da polícia de Louth estava na saída. Neumann conseguia ver pelo menos quatro homens. Quando se aproximou, eles apontaram as lanternas
na sua direção e fizeram-lhe sinal para parar.
Catherine já tinha acordado, sobressaltada.
- O que se passa?
- Fim da linha, receio bem - respondeu Neumann, parando a carrinha. - É evidente que têm estado à nossa espera. Não é com conversas que nos vamos safar.
Catherine pegou na Mauser.
- E quem é que falou em conversas?
Um dos polícias avançou, empunhando uma caçadeira, e bateu ao de leve no vidro da janela de Neumann. Neumann desceu o vidro e disse:
- Boa tarde. Qual é o problema?
- O senhor importa-se de sair da carrinha?
- Por acaso, até me importo. É tarde, estou cansado, está um tempo horrível e quero chegar ao meu destino.
- E pode dizer-me onde isso é?
- Kingston - respondeu Neumann, apesar de conseguir ver que o polícia já estava a duvidar da história. Outro polícia apareceu à janela de Catherine. E outros dois posicionaram-se atrás da carrinha.
O polícia abriu a porta de Neumann de rompante, apontou-lhe a caçadeira à cara e disse:
- Muito bem. Levante as mãos para eu as poder ver e saia da carrinha. Devagarinho.
Jenny Colville estava sentada na parte de trás da carrinha, com as mãos e os pés atados e a boca amordaçada. Doíam-lhe os pulsos. E também o pescoço e as costas. Estava sentada no chão da carrinha há quanto tempo? Duas horas? Três horas? Talvez quatro? Quando a carrinha abrandou, permitiu-se um breve lampejo de esperança.
Pensou: Talvez isto acabe rapidamente e eu possa voltar para Hampton Sands e Mary e Sean e o papá estejam lá e as coisas sejam como eram antes de ele vir e tudo acabe por ser um pesadelo e... deteve-se. Era melhor ser realista. Era melhor pensar naquilo que era realmente possível.
Observou-os no banco da frente. Tinham falado baixinho em alemão durante muito tempo, depois a mulher adormeceu e, naquele momento, Neumann estava a sacudi-la e a tentar acordá-la. Mais adiante, pelo para-brisas, viu luz - feixes de luz balançando para a frente e para trás, como lanternas. Pensou: Os polícias usariam lanternas se estivessem a barricar a estrada. Seria possível? Será que sabiam que eles eram espiões alemães e que ela tinha sido raptada? Estariam à procura dela?
A carrinha parou. Conseguiu ver dois polícias à frente da carrinha e, lá fora, perto da parte de trás, ouviu passos e as vozes de pelo menos mais dois. Ouviu o polícia a bater no vidro. Viu Neumann descer a janela. Viu que ele tinha uma arma na mão. Jenny olhou para a mulher. Também tinha uma arma na mão.
Foi então que se lembrou do que tinha acontecido no celeiro. Duas pessoas atravessaram-se no caminho deles - o pai dela e Sean Dogherty - e tinham-nas matado. Era
possível que também tivessem matado Mary. Não se iriam render só porque alguns polícias da província os mandavam fazê-lo. Também iriam matar os polícias, tal como
tinham matado o pai e Sean.
Jenny ouviu a porta a abrir-se, ouviu o polícia a gritar-lhes para saírem. Sabia o que estava prestes a acontecer. Em vez de saírem, iriam começar a disparar. E
depois os polícias morreriam todos e Jenny ficaria outra vez sozinha com eles.
Tinha de os avisar.
Mas como?
Não podia falar porque Neumann a tinha amordaçado fortemente.
Só podia fazer uma coisa.
Levantou as pernas e pontapeou a parte lateral da carrinha com toda a força possível.
Se a ação de Jenny Colville não teve o efeito pretendido, pelo menos garantiu a um dos polícias - aquele que estava mais perto da porta de Catherine Blake - uma morte mais suave. Quando ele virou a cabeça na direção do som, Catherine levantou a Mauser e deu-Ihe um tiro. O soberbo silenciador da Mauser abafou a explosão da bala, fazendo com que a arma emitisse apenas um estampido grave. A bala estilhaçou o vidro, atingiu o polícia na articulação do maxilar e, a seguir, ricocheteou para a base do crânio. Ele tombou morto na superfície lamacenta da estrada.
O segundo a morrer foi o polícia do lado da porta de Neumann, apesar de não ter sido Neumann a disparar o tiro que o matou. Neumann livrou-se da caçadeira com um golpe da mão direita; Catherine virou-se e disparou pela porta aberta. A bala atingiu o polícia no meio da testa e saiu pela parte de trás do crânio. Ele caiu de costas na estrada.
Neumann caiu da carrinha e aterrou na estrada. Um dos polícias na parte de trás da carrinha disparou por cima da cabeça dele, estilhaçando a janela meio aberta. Neumann apertou o gatilho rapidamente, duas vezes. O primeiro tiro atingiu o polícia no ombro, fazendo-o rodopiar. O segundo atravessou-lhe o coração.
Catherine saiu da carrinha, com a arma nas mãos esticadas para a frente, a apontar para a escuridão. Do outro lado da carrinha, Neumann estava a fazer a mesma coisa, só que continuava deitado de barriga para baixo. Ficaram ambos à espera, sem fazer barulho, à escuta.
O quarto polícia pensou que era melhor fugir e pedir ajuda. Voltou-se e começou a correr pela escuridão. Depois de dar algumas passadas, ficou ao alcance de Neumann. Neumann fez pontaria cuidadosamente e disparou duas vezes. A corrida terminou, a caçadeira bateu com estrépito no alcatrão e o último dos quatro homens caiu morto na estrada molhada da chuva.
Neumann recolheu os corpos e empilhou-os atrás da carrinha. Catherine abriu as portas traseiras. Jenny, com os olhos escancarados
de terror, ergueu as mãos para proteger a cabeça. Catherine levantou a arma bem alto e bateu com ela na cara de Jenny. Um corte profundo abriu-se por cima do olho. Catherine disse:
- A não ser que queiras acabar como eles, não voltes a tentar mais nada desse género.
Neumann pegou em Jenny ao colo e deitou-a na superfície da estrada. Em seguida, com Catherine, colocou os corpos dos polícias mortos no fundo da carrinha. A ideia tinha-lhe surgido instantaneamente. Os polícias tinham vindo de carrinha para aquele sítio; esta encontrava-se estacionada a poucos metros dali, na berma da estrada. Neumann iria esconder os corpos e a carrinha roubada no meio das árvores, onde não pudessem ser vistos, e servir-se da carrinha da polícia para seguir até à costa. Era possível que passassem várias horas até outro polícia aparecer ali e descobrir que os polícias tinham desaparecido. Nessa altura, já ele e Catherine estariam a caminho da Alemanha, a bordo do submarino.
Neumann pegou em Jenny e colocou-a na parte de trás da carrinha da polícia. Catherine subiu para o lugar do condutor e ligou o motor. Neumann dirigiu-se para a outra carrinha e entrou nela. O motor estava a trabalhar. Fez marcha atrás, deu a volta e, a seguir, acelerou pela estrada fora, com Catherine a segui-lo. Tentou não pensar nos quatro cadáveres que se encontravam a poucos centímetros dele.
Dois minutos depois, Neumann virou para um pequeno caminho fora da estrada. Conduziu cerca de duzentos metros, parou e desligou o motor. A seguir, saiu e voltou a correr para a estrada. Catherine tinha invertido a direção da carrinha e estava sentada no lugar do passageiro quando Neumann regressou. Entrou, bateu com a porta e partiu a toda a velocidade.
Passaram o local onde a barricada tinha sido montada e viraram para a pequena estrada secundária. De acordo com o mapa, faltavam cerca de dezasseis quilómetros até à estrada da costa e, a seguir, mais trinta e dois quilómetros até Cleethorpes. Neumann acelerou a fundo e puxou fortemente pela carrinha. Pela primeira vez desde que tinha visto os homens do MI5 em Londres, permitiu-se imaginar que apesar de tudo talvez até conseguissem.
Alfred Vicary andava de um lado para o outro da sala na base da RAF nos arredores de Grimsby. Harry Dalton e Peter Jordan estavam sentados à secretária, a fumar. O superintendente Lockwood encontrava-se sentado ao lado deles, construindo figuras geométricas com os fósforos.
Vicary disse:
- Não estou a gostar disto. Alguém já os devia ter visto. Harry respondeu:
- Todas as estradas principais estão bloqueadas. A dada altura, vão ter de dar de caras com uma barricada.
- Se calhar, talvez não estejam a vir nesta direção. Se calhar, fiz um erro de cálculo terrível. Se calhar, foram de Hampton Sands para sul. Se calhar, a comunicação com o submarino foi um estratagema e estão a caminho da Irlanda numferry.
- Eles estão a vir nesta direção.
- Se calhar, resolveram esconder-se, desistiram. Se calhar, estão enfiados noutra aldeia longínqua, à espera que as coisas acalmem antes de avançarem.
- Eles avisaram o submarino. Têm de ir.
- Não têm de fazer nada. É possível que tenham avistado as barricadas e o aumento do número de polícias e decidido esperar. Podem avisar o submarino na próxima oportunidade e tentar novamente quando as coisas estiverem mais calmas.
- Está a esquecer-se de uma coisa. Eles não têm rádio.
- Nós achamos que não têm. O Harry tirou-lhes um e o Thomasson encontrou um rádio destruído em Hampton Sands. Mas não temos a certeza de que não têm um terceiro.
- Não temos a certeza de nada, Alfred. Fazemos palpites fundamentados.
Vicary andou outra vez de um lado para o outro, a olhar para o telefone e a pensar: Toca, diabos, toca!
Querendo desesperadamente fazer qualquer coisa, levantou o auscultador e pediu à telefonista para ligar para a Sala de Localização de Submarinos, em Londres. Quando apareceu por fim na linha,
Arthur Braithwaite parecia estar dentro de um tubo de lançamento de torpedos.
Vicary perguntou:
- Soube alguma coisa, comandante?
- Falei com a Marinha Real e a guarda costeira local. A Marinha Real está neste preciso momento a deslocar para a área um par de corvetas - números 745 e 128. Vão
estar ao largo de Spurn Head dentro de uma hora e começar as operações de busca logo de seguida. A guarda costeira está a tomar conta das coisas mais perto da costa. E a RAF vai pôr aviões no ar à primeira luz do dia.
- E quando é isso?
- Por volta das sete da manhã. Talvez um pouco depois, por causa da densa cobertura de nuvens.
- Isso pode ser já muito tarde.
- Não lhes vai servir de nada irem antes disso. Precisam de luz para ver. Estariam perfeitamente cegos se fossem agora. Mas há boas notícias. Esperamos uma aberta no tempo pouco antes do amanhecer. O céu vai manter-se encoberto, mas espera-se que a chuva abrande e o vento diminua. Isso vai facilitar a condução das operações de busca.
- Afinal de contas, não tenho a certeza de que sejam assim tão boas notícias. Estávamos a contar com a tempestade para fechar a costa. E o tempo melhor também torna a vida mais fácil aos agentes e ao submarino.
- Bem visto.
- Dei instruções à Marinha Real e à RAF para fazerem a busca o mais discretamente possível. Eu sei que isto soa algo inverosímil, mas tente fazer com que pareça tudo rotina. E diga a todos para terem cuidado com o que dizem pelo rádio. Os alemães também nos ouvem. Lamento não poder ser mais claro, comandante Braithwaite.
- Eu compreendo. vou transmitir essas indicações.
- Obrigado.
- E tente não se enervar, major Vicary. Se esses seus espiões tentarem chegar àquele submarino hoje à noite, vamos detê-los.
Os polícias Gardner e Sullivan pedalavam ao lado um do outro pelas ruas escuras de Louth, Gardner, um homem grande, alto e de meia-idade, e Sullivan um rapaz magro e em boa forma, com pouco mais de vinte anos. O superintendente-chefe Lockwood tinha-lhes ordenado que se dirigissem a uma barricada a sul da aldeia e substituíssem dois dos polícias que lá estavam. Gardner queixou-se enquanto pedalava:
- Porque é que os criminosos de Londres arranjam sempre maneira de acabar aqui, no meio de uma tempestade, és capaz de me explicar?
Sullivan estava entusiasmadíssimo. Esta era a sua primeira grande caça ao homem. E também era a primeira vez que usava uma arma em serviço. Trazia uma espingarda de ferrolho, com trinta anos e saída da sala de armas da esquadra, pendurada ao ombro.
Cinco minutos mais tarde, chegaram à saída onde deveria estar a barricada. O lugar estava deserto. Gardner levantou-se, sem sair da bicicleta. Sullivan deitou a sua no chão, acendeu a lanterna e iluminou a área. Primeiro, viu as marcas dos pneus e, depois, os vidros espalhados.
Sullivan gritou:
- Chega aqui! Depressa!
Gardner desceu da bicicleta e empurrou-a até onde estava Sullivan.
- Jesus Cristo!
- Olha para as marcas. Dois veículos, o deles e o nosso. Quando voltaram para trás, os pneus enlamearam a superfície da estrada. Deixaram-nos umas belas marcas para seguirmos.
- É verdade. Vai ver onde vão dar. Eu volto para a esquadra para alertar Lockwood. E, por amor de Deus, tem cuidado.
Sullivan pedalou pela estrada, segurando a lanterna com uma mão e vendo as marcas a desvanecerem-se gradualmente. Cem metros à frente do local da barricada, o rasto tinha desaparecido. Sullivan avançou mais uns quatrocentos metros à procura de algum sinal da carrinha da polícia.
Andou um pouco mais e foi então que avistou outro conjunto de marcas de pneus. Estas eram diferentes. As marcas tornavam-se mais claras e definidas à medida que pedalava. O veículo que as tinha feito tinha obviamente vindo da direção contrária.
Seguiu as marcas até ao ponto de origem e encontrou o pequeno trilho que ia dar às árvores. Apontou a lanterna para o trilho e viu o par de marcas recentes de pneus. Virou o feixe de luz na horizontal, para o túnel de árvores, mas a luz não era suficientemente potente para penetrar na escuridão. Olhou para o chão - demasiado sulcado e enlameado para manobrar a bicicleta. Desmontou, encostou a bicicleta a uma árvore e começou a andar.
Dois minutos depois, avistou a parte de trás da carrinha. Chamou, mas ninguém respondeu. Olhou com mais atenção. Não era o veículo da polícia; tinha matrícula de
Londres e era um modelo diferente. Sullivan avançou lentamente. Aproximou-se da parte da frente da carrinha pelo lado do passageiro e apontou a lanterna lá para dentro. O banco da frente estava vazio. Apontou o feixe de luz para a parte de trás, na direção da área de armazenamento.
Foi então que viu os corpos.
Sullivan deixou a carrinha no meio das árvores e voltou para Louth, pedalando o mais depressa possível. Chegou à esquadra da polícia e contactou rapidamente o superintendente-chefe
Lockwood na base da RAF.
- Estão os quatro mortos - disse ele, sem fôlego devido à corrida. - Estão estendidos na parte de trás de uma carrinha, mas não é a deles. Parece que os fugitivos levaram a carrinha da polícia. A julgar pelas marcas na estrada, acho que voltaram para trás, no sentido de Louth.
Lockwood perguntou:
- E onde estão os corpos agora?
- Deixei-os no bosque, senhor.
- Volta para lá e fica à espera até que chegue ajuda.
- Sim, senhor. Lockwood desligou o telefone.
- Quatro homens mortos. Meu Deus!
- Lamento, superintendente-chefe. Lá se vão as minhas teorias de eles se terem escondido. Andam obviamente por aqui e são capazes de fazer tudo para escapar, incluindo
assassinar quatro dos seus homens a sangue-frio.
- E temos outro problema... vão num veículo da polícia. Avisar os agentes que dirigem as barricadas vai levar tempo. E, entretanto, os seus espiões estão a aproximar-se
perigosamente da costa - afirmou Lockwood, dirigindo-se para o mapa. - Louth fica aqui, mesmo a sul de nós. Agora, eles podem apanhar uma série de estradas secundárias para o mar.
- Reposicione os seus homens. Coloque-os todos entre Louth e a costa.
- com certeza, mas vai demorar tempo. E os seus espiões já nos levam avanço.
- Outra coisa - atirou Vicary. - Tragam esses mortos para aqui o mais discretamente possível. Quando isto tudo acabar, pode ser necessário engendrar outra explicação para a morte deles.
- E o que digo às famílias deles? - vociferou Lockwood, saindo da sala.
Vicary pegou no telefone. A telefonista fez a ligação para o quartel-general do MI5 em Londres. Uma telefonista do departamento atendeu. Vicary pediu para falar com Boothby e esperou que ele surgisse na linha.
-Sir Basil, receio bem que tenhamos grandes problemas por aqui.
Um vento rigoroso fazia a chuva fustigar a zona do porto de Cleethorpes quando Neumann abrandou e virou para uma fila de armazéns e garagens. Parou a carrinha e desligou o motor. Não faltava muito para o amanhecer. Mesmo à luz fraca, conseguia ver um pequeno cais, com vários barcos de pesca atracados e mais barcos a balouçarem, presos com as suas amarras na água negra. Tinham feito um tempo excelente até à costa. Por duas vezes, tinham encontrado barricadas e, por duas vezes, tinham-nos deixado passar sem perguntas graças à carrinha em que seguiam.
Supostamente, o apartamento de Jack Kincaid ficava por cima de uma garagem. Tinha uma escada exterior de madeira, com uma porta no cimo. Neumann saiu da carrinha e subiu as escadas, puxando instintivamente da Mauser ao aproximar-se da porta. Bateu suavemente, mas ninguém respondeu. Experimentou o trinco; a porta estava destrancada. Abriu-a e entrou.
Foi imediatamente assaltado pelo fedor do lugar: lixo em decomposição, cigarros velhos, corpos sujos, um cheiro opressivo a álcool. Experimentou o interruptor, mas não aconteceu nada. Tirou a lanterna do bolso e acendeu-a. O feixe apanhou a figura de um homem grande a dormir num colchão sem lençóis. Neumann avançou cautelosamente pelo quarto imundo e deu um pequeno toque no homem com a biqueira da bota.
- É o Jack Kincaid?
- Sou. E quem é você?
- Chamo-me James Porter. Ficou de me dar boleia no seu barco.
- Oh, sim, sim.
Kincaid tentou sentar-se no colchão, mas não conseguiu. Neumann apontou-lhe a luz à cara. Tinha pelo menos sessenta anos e a sua cara angulosa mostrava os sinais de um alcoolismo desregrado.
- Bebeu um pouco ontem à noite, Jack? - perguntou Neumann.
- Um pouco.
- Qual é o seu barco, Jack?
- O Camilla.
- E onde está ele exatamente?
- Lá em baixo, no cais. É impossível não dar por ele. Kincaid estava a perder os sentidos outra vez.
- Não se importa que eu o leve emprestado por um bocadinho, pois não, Jack?
Kincaid não respondeu, limitou-se a começar a ressonar profundamente.
- Muito obrigado, Jack.
Neumann saiu do apartamento e voltou a entrar na carrinha.
- O nosso capitão não está em condições de nos levar. Está bêbado que nem um cacho.
- E o barco?
- É o Camilla. Ele diz que está mesmo ali em baixo, no cais.
- E está lá mais qualquer coisa.
- O quê?
- Já vais ver daqui a um instante. Neumann viu surgir um polícia.
- Eles devem estar a vigiar a costa toda - disse Neumann.
- É uma pena. Outra baixa desnecessária.
- Vamos lá a despachar isso. Matei mais gente esta noite do que em todo o tempo que estive nos Fallschirmjàger.
- Porque achas que Vogel te mandou para aqui? Neumann não respondeu.
- Então e a Jenny?
- Ela vem connosco.
- Quero deixá-la aqui. Ela já não nos serve de nada.
- Não me parece. Se a encontrarem, pode dizer-lhes muita coisa. Além disso, se eles sabem que temos um refém a bordo, vão pensar duas vezes sobre as medidas a tomar para nos deter.
- Se estás a sugerir que vão hesitar em disparar sobre nós por termos uma civil britânica a bordo, estás enganada. Estão demasiadas coisas em jogo para isso. Matam-nos a todos, se for necessário.
- Então que seja. Mas ela vem connosco. Quando chegarmos ao submarino, deixamo-la ficar no barco. Os britânicos vão salvá-la e não lhe vai acontecer mal nenhum.
Neumann percebeu que continuar a discutir com ela seria uma perda de tempo. Catherine voltou-se para trás e, em inglês, disse a Jenny:
- Acabaram-se os heroísmos. Se te mexeres, dou-te um tiro na cara.
Neumann abanou a cabeça. Ligou o motor, pôs a carrinha em primeira e seguiu para o cais.
O polícia que se encontrava no cais ouviu o som de um motor parou e olhou para cima. Avistou a carrinha da polícia a dirigir-se para ele. Estranho, pensou, pois só estava previsto ser substituído às oito horas. Viu a carrinha parar e duas pessoas saírem. Esforçou-se por perceber quem eram no meio da escuridão, mas passados alguns segundos deu-se conta de que não eram polícias. Eram um homem e uma mulher, muito provavelmente os fugitivos!
Foi então que teve uma sensação de desânimo. Estava armado apenas com um revólver anterior à guerra e que encravava frequentemente. A mulher vinha na sua direção. O braço dela ergueu-se e houve um clarão, mas praticamente nenhum som, apenas um baque abafado. Sentiu a bala rasgar-lhe o peito e teve consciência da perda de equilíbrio.
A última coisa que viu foi a água suja do Humber a avançar subitamente na sua direção.
lan McMann era um pescador que acreditava que o sangue celta que lhe corria nas veias lhe dava poderes que os meros mortais não possuíam. Ao longo dos sessenta anos passados junto ao mar do Norte, afirmou ter ouvido pedidos de socorro antes de serem enviados. Afirmava ver os fantasmas de homens desaparecidos no mar a pairar por cima dos desembarcadouros e dos portos. Afirmava saber que alguns navios estavam amaldiçoados e que nunca se aproximaria deles. Toda a gente em Cleethorpes aceitava tudo isso como verdadeiro, mas, em privado, sugeria-se que lan McMann tinha passado demasiadas noites no mar.
McMann tinha-se levantado, como habitualmente, às cinco horas, apesar de as péssimas previsões meteorológicas indicarem condições que manteriam todos os barcos fora de água o dia inteiro. Estava a comer papas de aveia ao pequeno-almoço, sentado à mesa da cozinha, quando ouviu um barulho lá fora, no cais.
O bater da chuva tornava difícil distinguir qualquer outro som, mas McMann podia jurar ter ouvido alguém ou qualquer coisa a cair na água. Sabia que havia um polícia lá fora - na noite anterior, tinha-lhe levado chá e uma fatia de bolo antes de se ir deitar - e sabia por que razão lá estava. O polícia estava á procura de dois suspeitos de homicídio de Londres. McMann suspeitava que não fossem suspeitos de homicídio vulgares. Vivia em Cleethorpes há vinte anos
e nunca tinha ouvido falar da polícia local a vigiar a zona
do porto.
A janela da cozinha do chalé de McMann tinha uma vista excelente para o cais e, mais adiante, para a foz do Humber. McMann levantou-se, abriu as cortinas e olhou
lá para fora. Não havia sinal do polícia. McMann enfiou um oleado e um chapéu impermeável, foi buscar a lanterna à mesa ao lado da porta e saiu.
Acendeu a lanterna e começou a andar. Depois de alguns passos, ouviu o barulho do motor a diesel de um barco a pegar. Andou mais depressa, até conseguir ver que
barco era: o Camiíla, o barco de Jack Kincaid.
McMann pensou: Mas ele está maluco, a sair com uma tempestade destas?
Começou a correr e gritou:
- Jack, Jack! Para! Onde pensas que vais?
Foi então que percebeu que o homem que estava a desamarrar o Camiíla do cais e a saltar para o convés de popa não era Jack Kincaid. Alguém estava a roubar o barco.
Olhou em redor, à procura do polícia, mas ele tinha desaparecido. O homem entrou na casa do leme, acelerou e o Camiíla afastou-se do cais.
McMann correu atrás do barco e gritou:
- Volte já aqui!
Nessa altura, uma segunda pessoa saiu da casa do leme. McMann viu o clarão de um disparo, mas não ouviu nada. Sentiu a bala a passar ao lado da cabeça, perigosamente perto. Atirou-se para o chão, escondendo-se atrás de um par de bidões vazios. O cais foi atingido por mais duas balas e depois o tiroteio terminou.
Pôs-se de pé e viu a popa do Camiíla a afastar-se pelo mar.
Foi só então que McMann viu uma coisa a flutuar na água oleosa ao largo do cais.
- Acho que é melhor ser o senhor a ouvir isto, major Vicary. Vicary pegou no auscultador que Lockwood lhe estendeu. lan
McMann estava a telefonar de Cleethorpes. Lockwood disse:
- Comece do princípio, lan.
- Duas pessoas acabaram de roubar o barco de pesca de Jack Kincaid e dirigem-se para alto-mar.
Vicary vociferou:
- Meu Deus! De onde está a ligar?
- De Cleethorpes.
Vicary lançou uma olhadela ao mapa.
- Cleethorpes? Não tínhamos um homem ai?
- Tinham - retorquiu McMann. - Está neste preciso momento a boiar na água com uma bala no coração.
Vicary praguejou em voz baixa e, a seguir, perguntou:
- Quantas pessoas é que lá estavam?
- Que eu visse, pelo menos duas.
- Um homem e uma mulher?
- Demasiado longe e demasiado escuro. Além disso, quando começaram a disparar contra mim, atirei-me para o chão.
- E não viu uma rapariguinha com eles?
- Não.
Vicary tapou o auscultador com a palma da mão.
- Talvez ela ainda esteja naquela carrinha. Ponha um homem lá o mais depressa possível.
Lockwood assentiu com a cabeça. Vicary tirou a mão do auscultador e disse:
- Fale-me do barco que eles roubaram.
- O Camilla é uma embarcação de pesca. O barco está em más condições. Eu não queria estar a bordo do Camilla a ir para o mar alto com uma tempestade destas.
- Só mais uma pergunta. O Camilla tem rádio?
- Não, que eu saiba, não.
Vicary pensou: Graças a Deus! Disse:
- Obrigado pela sua ajuda.
Vicary desligou o telefone. Lockwood estava parado diante do mapa.
- Bem, a boa notícia é que agora sabemos exatamente onde eles estão. Têm de atravessar a foz do Humber antes de atingirem o mar alto. Isso fica apenas a um quilómetro e meio do cais. Não há maneira de conseguirmos impedi-los de fazer isso. Mas se aquelas corvetas da Marinha Real se posicionarem ao largo de Spurn Head, eles nunca vão conseguir passar. Aquele barco de pesca em que vão não está à altura delas.
- Sentia-me melhor se tivéssemos o nosso próprio barco na água.
- Na realidade, isso até se pode arranjar.
- A sério?
- A polícia do condado de Lincolnshire tem um pequeno barco no rio, o Rebecca. Neste momento, está em Grimsby. Não foi concebido para o mar alto, mas pode fazê-lo num aperto. E também é bastante mais rápido do que aquele velho barco de pesca. Se nos pusermos a caminho imediatamente, devemos poder apanhá-los em pouco tempo.
- E o Rebecca tem rádio?
- Sim. Vamos poder falar convosco para aqui.
- Então e armas?
- Posso ir buscar umas espingardas velhas à prisão da esquadra da polícia de Grimsby. Vão dar conta do recado.
- Agora, só precisamos de uma tripulação. Leve os meus homens. Eu fico aqui para poder continuar em contacto com Londres. A última coisa de que precisa é que eu vá a bordo de um barco com um tempo destes.
Lockwood conseguiu esboçar um sorriso, deu uma palmadinha nas costas de Vicary e saiu. Clive Roach, Harry Dalton e Peter Jordan seguiram-no. Vicary pegou no telefone para dar as notícias a Boothby, em Londres.
Neumann não se afastou dos marcadores do canal, com o Camilla a avançar pelas águas agitadas da foz do Humber. O barco tinha cerca de doze metros, era largo e precisava urgentemente de uma pintura. Havia uma pequena cabine à ré, onde Neumann tinha deixado
Jenny. Catherine estava ao lado dele, na casa do leme. O céu estava a começar a clarear ligeiramente a leste. A chuva rufava na vidraça. A bombordo, via as ondas a rebentarem em Spurn Head. O farol estava apagado. Havia uma bússola no painel de instrumentos, ao lado do leme. Neumann colocou o barco numa rota para leste, acelerou a fundo e dirigiu-se para o mar alto.
SESSENTA
MAR DO NORTE, AO LARGO DE SPURN HEAD
O U-509 flutuava logo abaixo da superfície. Eram 5h30. O Kapitànleutnant Max Hoffman estava na sala de comando a espreitar pelo periscópio e a beber café. Os olhos
doíam-lhe por ter passado a noite inteira a olhar fixamente para o negrume do mar. A cabeça
latejava-lhe. Precisava desesperadamente de dormir umas horas.
O seu imediato surgiu na ponte de comando.
- Só nos restam mais trinta minutos, Herr Kaleu.
- Tenho noção do tempo de que dispomos, senhor imediato.
- Não voltámos a receber comunicações dos agentes da Abwehr, Herr Kaleu. Penso que temos de considerar a possibilidade de terem sido capturados ou mortos.
- Já considerei essa possibilidade, senhor imediato.
- Daqui a nada vai amanhecer, Herr Kaleu.
- Sim. É um fenómeno que ocorre todos os dias por volta desta hora. Até no Reino Unido, senhor imediato.
- O que eu quero dizer é que não é seguro ficarmos tão perto da costa inglesa por muito mais tempo. A profundidade nesta zona não é suficiente para nos podermos escapar às wabos britânicas - explicou o imediato, utilizando a gíria comum entre os tripulantes de submarino alemães para se referirem às cargas de profundidade.
- Tenho perfeita consciência dos perigos que a situação envolve, senhor imediato. Mas vamos continuar no ponto de encontro até
não nos restar mais tempo. E depois disso, se eu achar que ainda é seguro, vamos continuar um bocadinho mais.
- Mas, Herr Kaleu...
- Eles enviaram-nos um sinal de rádio fidedigno a avisar-nos de que vinham a caminho. Temos de partir do princípio de que vêm num barco roubado, provavelmente com pouquíssimas condições de navegabilidade, e também temos de partir do princípio de que estão exaustos ou até feridos. Vamos ficar aqui até eles chegarem ou eu estar completamente convencido de que já não vêm. Entendido?
- Sim, Herr Kaleu.
O imediato foi-se embora. Hoffman pensou: Mas que chato do caraças.
O Kebecca tinha cerca de dez metros de comprimento, com um calado raso, um motor interior e uma casa do leme no meio, onde mal cabiam dois homens lado a lado. Lockwood tinha telefonado de antemão e o motor do Rebecca já estava a trabalhar quando eles lá chegaram.
Os quatro homens subiram a bordo: Lockwood, Harry, Jordan e Roach. Um dos rapazes que trabalhava na doca soltou a última amarra e Lockwood conduziu o barco em direção ao canal.
Acelerou a fundo. O ruído do motor aumentou; a proa esguia ergueu-se para fora da água e depois avançou a toda a velocidade pela ondulação provocada pelo vento. A noite clareava no céu a leste. A silhueta do farol era visível a bombordo. O mar à frente deles esta-
va deserto.
Harry baixou-se, levantou o auscultador do rádio e entrou em contacto com Vicary para o pôr ao corrente da situação.
Oito quilómetros para leste do Kebecca, a corveta número 745 navegava num ziguezague entediante por mares revoltos. O capitão e o imediato encontravam-se na ponte de comando, de binóculos encostados aos olhos, a tentarem ver alguma coisa através de uma cortina de chuva. Era escusado. Além da escuridão e da chuva, instalara-se
um nevoeiro que reduzia ainda mais a visibilidade. Face a condições dessas, podiam passar a cem metros de um submarino alemão sem o verem sequer. O capitão dirigiu-se para a mesa das cartas de navegação, onde o navegador estava a preparar a mudança de trajetória seguinte. Quando o capitão deu a ordem, a corveta virou 90 graus para estibordo e embrenhou-se ainda mais no mar. A seguir, ordenou ao operador de rádio que informasse a Sala de Localização de Submarinos do seu novo rumo.
Em Londres, Arthur Braithwaite estava junto da mesa com o mapa, apoiando-se pronunciadamente na bengala. Tinha-se certificado de que todas as atualizações da Marinha Real e da RAF passariam pela sua secretária assim que fossem recebidas. Sabia que as probabilidades de encontrar um submarino naquelas condições meteorológicas e de luminosidade eram remotas, mesmo que o submarino se encontrasse à superfície. Se o submarino estivesse à espreita logo abaixo da superfície, seria quase impossível.
O seu assessor entregou-lhe uma cópia de uma comunicação via rádio. A corveta número 745 tinha acabado de mudar de trajetória e seguia naquele momento em direção a leste. Uma segunda corveta, a número 128, estava a pouco mais de três quilómetros de distância e a avançar para sul. Braithwaite debruçou-se sobre a mesa, fechou os olhos e tentou imaginar a busca na cabeça. Pensou: Maldito sejas, Max Hoffman! Onde raio estás?
O Camilla, embora Horst Neumann não se tivesse apercebido disso, estava precisamente onze quilómetros a leste de Spurn Head. As condições meteorológicas pareciam estar a piorar a cada minuto. A chuva caía, criando uma cortina opaca, e martelava a vidraça da casa do leme, dificultando a visão. O vento e a corrente, ambos a fustigarem o barco a partir do norte, não paravam de os desviar ligeiramente do rumo. com a ajuda da bússola do painel de instrumentos, Neumann esforçava-se por mante-los na sua rota em direção a leste.
O maior problema era o mar. A meia hora anterior tinha sido uma repetição implacável do mesmo ciclo agoniante. O barco escalava uma onda, ficava a balançar-se no cimo dela por um instante e depois caía
a pique na depressão entre as ondas. Lá em baixo, o barco parecia sempre estar prestes a ser engolido por um desfiladeiro verde-acinzentado de água. O convés era constantemente varrido pelas ondas. Neumann já não conseguia sentir os pés. Baixou os olhos pela primeira vez e reparou que estava rodeado por vários centímetros de água gelada.
Ainda assim, milagrosamente, achava que até iriam conseguir. O barco parecia estar a absorver toda a violência que o mar lhe conseguia infligir. Eram 5h30 - ainda lhes restavam trinta minutos até o submarino dar meia-volta. Tinha sido capaz de manter o barco numa trajetória constante e estava convicto de que se estavam a aproximar do ponto certo. E não havia sinal do inimigo.
Só havia um problema: não tinham rádio. Tinham ficado sem o de Catherine, em Londres, e tinham ficado sem o segundo graças ao tiro de caçadeira de Martin Colville,
em Hampton Sands. Neumann tinha esperança de que o barco tivesse um rádio, mas não tinha. O que os impossibilitava de comunicar com o submarino.
Neumann tinha apenas uma opção: ligar as luzes de navegação do barco.
Era um risco, mas necessário. A única maneira de o submarino perceber que eles se encontravam no ponto de encontro era se os conseguisse ver. E a única maneira de o Camilla poder ser visto naquelas condições meteorológicas era se tivesse as luzes ligadas. Mas se o submarino os conseguisse ver, o mesmo seria válido para qualquer navio de guerra ou da guarda costeira britânica que se encontrasse nas proximidades.
Neumann calculou que estivessem a poucos quilómetros do ponto de encontro. Continuou a acelerar a fundo durante mais cinco minutos e, a seguir, baixou-se e carregou num interruptor, e o Camilla encheu-se de luz.
Jenny Colville debruçou-se sobre o balde e vomitou lá para dentro pela terceira vez. Perguntou-se como poderia haver ainda qualquer coisa para lhe sair do estômago. Tentou lembrar-se da última vez que tinha comido. Não jantara na noite anterior por estar zangada
com o pai e também não tinha almoçado nada. Talvez qualquer coisa ao pequeno-almoço, mas isso não tinha sido mais do que uma bolacha e chá.
O estômago entrou novamente em convulsões, mas desta vez não saiu de lá nada. Tinha vivido a vida inteira junto ao mar, mas só andara de barco uma vez - passando o dia a passear pela Wash, com o pai de uma amiga da escola - e nunca sentira nada assim.
Estava completamente paralisada de tão enjoada. Queria morrer, precisava desesperadamente de ar fresco. Não podia fazer nada perante o balançar constante do barco. Tinha os braços e as pernas cheios de nódoas negras por causa das sucessivas pancadas. E depois havia o barulho - o ribombar e o estrépito ensurdecedores e constantes do motor do barco.
Dava a sensação de estar mesmo por baixo dela.
Tudo o que mais queria era sair do barco e regressar a terra. Disse a si própria sem parar que, se sobrevivesse àquela noite, não voltaria a entrar num barco, nunca mais. E foi então que pensou: O que é que vai acontecer quando eles chegarem ao sítio para onde vão? O que vão fazer comigo? com certeza que não vão neste barco até à Alemanha, ou será que vão? O mais provável era irem ter com outro barco. E depois o que é que acontece? Será que a iriam levar de novo com eles ou deixá-la sozinha no barco? Se a deixassem sozinha, era possível que nunca a encontrassem. Poderia morrer sozinha, algures no mar do Norte, numa tempestade igual àquela.
O barco deslizou por mais uma enorme onda abaixo. Na cabine, Jenny foi atirada para a frente, batendo com a cabeça.
O porão tinha duas vigias de cada lado. com as mãos amarradas, desembaciou a vigia de estibordo e espreitou lá para fora. O mar era aterrador, montanhas verdes e ondulantes de água.
Mas havia ali mais qualquer coisa. O mar agitou-se e uma coisa
escura e brilhante irrompeu da superfície. A seguir, o mar entrou
num turbilhão e uma gigantesca coisa cinzenta, como um monstro
marinho num conto infantil, subiu à superfície com a água a escorrer-lhe da pele.
O Kapitánleutnant Max Hoffman, farto de aguentar o submarino a quinze quilómetros de distância da costa, tinha resolvido arriscar e aproximar-se mais dois ou três quilómetros. Estava à espera a treze quilómetros da costa, a espreitar para a escuridão, quando avistou de repente as luzes de navegação de um pequeno barco de pesca. com um grito, Hoffman ordenou que o submarino subisse à superfície e, passados dois minutos, já estava na ponte de comando, a sentir a forte chuvada e a respirar o ar frio e limpo, com os binóculos colados aos olhos.
De início, Neumann pensou que pudesse ser uma alucinação. O vislumbre tinha sido breve - apenas um instante, antes de o barco mergulhar em mais uma depressão entre as ondas e tudo se obliterar uma vez mais.
A proa enterrou-se no mar profundamente, como uma pá na terra, e, durante alguns segundos, toda a coberta ficou submersa na água. Mas, de alguma forma, o barco conseguiu sair dessa depressão e escalar o pico seguinte. No topo da onda seguinte, uma forte chuvada, varrida pelo vento, impedia a visão por completo.
O barco caiu e depois voltou a erguer-se. Foi então que, com o Camilla no cimo de uma montanha de água, Horst Neumann avistou a silhueta inconfundível de um submarino alemão.
Peter Jordan, no convés de popa do Rebecca, foi o primeiro a ver o submarino. Lockwood viu-o passados uns segundos e, a seguir, avistou as luzes de navegação do Camilla a cerca de quatrocentos metros do estibordo do submarino e a aproximar-se rapidamente. Lockwood fez o Rebecca guinar para bombordo, colocando-o em rota de colisão com o Camilla, e pegou no auscultador para contactar Alfred Vicary.
Vicary levantou o auscultador da linha aberta para a Sala de Localização de Submarinos.
- Comandante Braithwaite, está a ouvir-me?
- Sim, estou. E também ouvi a conversa toda que acabou de ter.
- E então?
- Acho que temos um problema grave. A corveta 745 está um quilómetro e meio para sul da posição do submarino. Já contactei o capitão via rádio e ele está a dirigir-se
para lá neste momento. Mas se o Camilla estiver realmente apenas a quatrocentos metros do submarino, vai lá chegar primeiro.
- Maldição!
- Mas ainda tem outro trunfo, senhor Vicary, o Kebecca. Sugiro que o utilize. Os seus homens têm de fazer qualquer coisa para atrasar aquele barco e dar à corveta possibilidade de intervir.
Vicary pousou o auscultador e levantou o do rádio.
- Superintendente Lockwood, daqui Grimsby, escuto.
- Lockwood, escuto.
- Superintendente, ouça com atenção. Vem aí ajuda, mas, enquanto ela não chega, quero que abalroe esse barco de pesca.
Todos eles ouviram - Lockwood, Harry, Roach e Jordan -, pois estavam os quatro apinhados na cabine, abrigando-se do mau tempo.
Lockwood, gritando por cima do barulho do vento e do ribombar dos motores do Rebecca, perguntou:
- Mas ele estará louco?
- Não - respondeu Harry -, apenas desesperado. Consegue lá chegar a tempo?
- Claro, mas vamos ficar de caras para os canhões da coberta daquele submarino.
Olharam todos uns para os outros, sem dizerem nada. Por fim, Lockwood afirmou:
- Estão coletes salva-vidas nesse cacifo aí atrás. E tragam as espingardas. Tenho um pressentimento que podemos precisar delas.
Lockwood olhou novamente para o mar e deu com o Camilla. Fez uma ligeira correção na trajetória e acelerou a fundo.
Na ponte de comando do U-509, Max Hoffman avistou o Rebecca a aproximar-se rapidamente.
- Temos companhia, senhor imediato. Um barco civil, com três ou quatro homens a bordo.
- Estou a vê-los, Herr Kaleu.
- Tendo em conta a velocidade e a trajetória, diria que se trata do inimigo.
- Parecem estar desarmados, Herr Kaleu.
- Sim. Disparem um tiro de aviso com a artilharia da coberta da proa. Disparem para a frente da proa. Não quero que se derrame sangue desnecessariamente. Se eles não desistirem, disparem diretamente para o barco. Mas para a linha de água, senhor imediato, não para a cabine.
- Sim, Herr Kaleu - ripostou o imediato.
Hoffman ouviu ordens a serem gritadas e, passados trinta segundos, o primeiro tiro do canhão Bootskanone na dianteira da coberta do U-509 estava a fazer um arco por cima da proa do Rebecca.
Apesar de os submarinos alemães raramente se envolverem em combates de artilharia à superfície, o projétil de 10,5 centímetros do canhão da coberta era capaz de infligir danos letais, mesmo em barcos grandes. O primeiro tiro passou bem longe da proa do Rebecca. O segundo, disparado dez segundos depois, ficou bem mais perto.
Lockwood virou-se para Harry e gritou:
- Cá para mim, é o último aviso a que temos direito. O próximo tiro vai rebentar connosco. A decisão é sua, mas não vamos poder ajudar ninguém se estivermos mortos.
Harry gritou:
- Dê meia-volta!
Lockwood guinou o Kebecca para bombordo e deu meia-volta. Harry olhou para trás, na direção do submarino. O Camilla estava a duzentos metros e a aproximar-se cada vez mais, e não havia absolutamente nada que eles pudessem fazer. Pensou: Maldição! Onde está essa corveta?
A seguir, levantou o auscultador e informou Vicary de que não podiam fazer nada para os deter.
Jenny ouviu o estrondo do canhão do submarino a disparar e viu o projétil avançar em grande velocidade pela linha de água, em direção a um segundo barco. Pensou:
Graças a Deus! Afinal de contas, não estou sozinha. Mas o submarino voltou a disparar e, uns segundos mais tarde, ela viu o pequeno barco dar meia-volta e perdeu
o ânimo.
A seguir, fez-se forte e pensou: Eles são agentes alemães. Mataram o meu pai e mais seis pessoas esta noite e estão prestes a escapar impunes. Tenho de fazer alguma coisa para os impedir.
Mas que podia ela fazer? Estava sozinha e tinha as mãos e os pés amarrados. Pensou em tentar libertar-se, subir sorrateiramente para o convés e bater-lhes com qualquer coisa. Mas, se a vissem, não hesitariam em matá-la. Talvez pudesse pegar fogo a qualquer coisa, mas depois ficaria encurralada com o fumo e as chamas e seria a única
a morrer...
Pensa, Jenny! Pensa!
Era difícil pensar com o ribombar constante do motor do barco. Estava a deixá-la louca.
E foi então que pensou: Sim, é isso!
Se pudesse de algum modo inutilizar o motor - nem que fosse só por um momento - talvez isso pudesse ajudar. Se estava um barco a persegui-los, era possível que estivessem mais - se calhar, barcos maiores, que poderiam ripostar contra o submarino alemão.
Pelo som, o motor parecia estar mesmo por baixo dela, já que o barulho era tanto. Levantou-se a muito custo e afastou o emaranhado de cordas e lonas em cima do qual tinha estado sentada. E ali estava - uma porta embutida no chão do porão. Conseguiu abri-la e foi dominada de imediato pelo barulho atroador e pelo calor do motor do Camilla.
Olhou para ele. Jenny não percebia nada de motores. Uma vez, Sean tinha tentado explicar-lhe as reparações que estava a fazer na carripana velha que era a sua carrinha. Havia sempre um problema
qualquer com o raio da coisa, mas qual era mesmo? Qualquer coisa a ver com os tubos e a bomba de combustível. De certeza que aquele motor era diferente do motor da carrinha de Sean. Era um motor a diesel, logo para começar; a carrinha de Sean funcionava a gasolina. Mas ela sabia uma coisa: independentemente do tipo de motor, precisava de combustível para trabalhar. Se o abastecimento de combustível fosse cortado, o motor deixaria de funcionar.
Mas como? Olhou com atenção para o motor. Vários tubos metálicos pretos saíam da parte de cima e convergiam num único ponto, na parte lateral do motor. Será que eram os tubos de combustível? E seria o ponto onde se ligavam à bomba de combustível?
Olhou em redor. Precisava de ferramentas. Os marinheiros andavam sempre com ferramentas. Afinal de contas, o que acontece se o motor for abaixo no meio do mar? Descobriu uma caixa de ferramentas metálica na outra ponta da cabine e rastejou até lá. Espreitou pela vigia. O submarino enchia-lhe o seu campo de visão. Já estavam muito perto. Viu o outro barco. Tinha-se afastado. Abriu a caixa e viu que estava repleta de ferramentas imundas e cheias de óleo.
Tirou duas, um alicate laminado e um grande martelo.
Agarrou o alicate com as mãos, virou a ponta para os pulsos e começou a cortar a corda. Demorou cerca de um minuto a soltar as mãos. A seguir, serviu-se do alicate para cortar a corda à volta dos tornozelos.
Rastejou outra vez para junto do motor.
Pousou o alicate no chão e escondeu-o por baixo de uma corda toda emaranhada. Depois baixou-se, pegou no martelo e destruiu o primeiro tubo de combustível. Rompeu-se, ficando a deitar diesel. Rapidamente, bateu com o martelo mais uma série de vezes, até o último tubo de combustível ter sido rebentado.
O motor deixou de funcionar.
Sem o barulho, Jenny pôde finalmente ouvir o bramido do mar e do vento. Fechou a porta que dava para o motor mutilado e sentou-se. Tinha o martelo ao lado da mão direita.
Sabia que Neumann ou a mulher desceriam dentro de poucos segundos para investigar. E, quando o fizessem, perceberiam que Jenny tinha sabotado o motor.
A porta abriu-se de rompante e Neumann desceu a escada de escotilha a toda a velocidade. Tinha o rosto contorcido, como naquela manhã em que Jenny o vira a correr na praia. Olhou para ela e reparou que já não tinha as mãos e os pés amarrados. Baixou os olhos
e reparou que o material que ali se encontrava tinha sido afastado
para um canto.
Gritou:
- Jenny, o que fizeste?
O barco, sem motor a funcionar, deslizava, desamparado, por uma onda.
Neumann debruçou-se e abriu a escotilha.
Jenny agarrou no martelo e pôs-se de joelhos. Ergueu o martelo bem alto e acertou-lhe na nuca com o máximo de força possível. Neumann caiu no chão, com o sangue
a correr do crânio rachado.
Jenny virou a cara e vomitou.
O Kapitánleutnant Max Hoffman viu o Camilla a começar a balançar, desamparado, no mar agitado e apercebeu-se de imediato de que o barco tinha ficado sem motor. Sabia que tinha de agir depressa. Sem propulsão, o barco afundaria. Talvez até se virasse ao contrário. E se os agentes fossem atirados para dentro do gelado mar do Norte, morreriam numa questão de minutos.
- Senhor imediato! Leve-nos até ao barco e tenha um grupo preparado para subir a bordo.
- Sim, Herr Kaleu!
Hoffman sentiu a vibração das hélices do motor a diesel a girarem sob os seus pés à medida que o submarino avançava lentamente.
Jenny receou tê-lo matado. Ele ficou completamente imóvel durante um momento; a seguir, começou a mexer-se e, de alguma forma, conseguiu levantar-se. Quase não se aguentava em pé. Ela poderia facilmente ter-lhe acertado com o martelo novamente, mas não conseguiu arranjar coragem nem vontade para o fazer. Estava indefeso,
agarrado à parede da cabine. O sangue jorrava-lhe da ferida para a cara, pelo pescoço abaixo. Ergueu a mão e limpou o sangue dos olhos.
- Não saias daqui. Se subires para o convés, ela mata-te. Faz o que te digo, Jenny.
Neumann subiu a escada de escotilha com grande dificuldade. Catherine olhou para ele, com a inquietação estampada no rosto.
- Caí e bati com a cabeça quando o barco se inclinou. O motor deixou de funcionar.
Tinha a lanterna ao lado do leme. Pegou nela e avançou pelo convés. Apontou a lanterna para a torre de comando do submarino e lançou um pedido de socorro. O submarino estava a aproximar-se deles com uma lentidão agonizante. Virou-se para trás e fez sinal a Catherine para se juntar a ele na coberta da proa. A chuva limpou-Ihe o sangue da cara. Olhou para cima, sentindo-a a fustigá-lo, e agitou os braços na direção do submarino.
Catherine foi ter com ele. Mal conseguia acreditar. Na tarde anterior, estavam sentados num café em Mayfair, rodeados por agentes do MI5, e agora, milagrosamente, estavam prestes a subir a bordo de um submarino e partir dali para fora. Seis longos e dolorosamente solitários anos - por fim, terminados. Nunca tinha acreditado que esse dia chegasse. Nunca se tinha atrevido realmente a imaginá-lo. A emoção daquele momento apoderou-se dela. Soltou um grito de alegria infantil e, tal como Neumann, voltou a cara para a chuva, agitando os braços na direção do submarino.
A parte da frente de metal do submarino encostou na proa do Camilla. Um grupo avançou apressadamente pelo convés do submarino na direção deles. Catherine abraçou Neumann e apertou-o com muita força.
- Conseguimos - disse ela. - Chegámos a tempo. Vamos para
casa.
Na casa do leme do Rebecca, Harry Dalton descreveu a situação a Vicary, em Grimsby. Vicary, por sua vez, descreveu-a a Arthur Braithwaite, na sala de localização
de submarinos.
- Raios partam, comandante! Onde é que está essa corveta?
- Está mesmo colada a eles. Só que não consegue ver nada por causa do mau tempo.
- Então diga ao capitão para fazer alguma coisa! Os meus homens não podem fazer nada para os deter.
- E que ordens é que eu devo dar ao capitão?
- Para disparar sobre o barco e matar esses espiões.
- Major Vicary, não nos podemos esquecer de que está uma rapariga inocente a bordo.
- Que Deus me perdoe por dizer isto, mas receio bem que não possamos estar preocupados com ela numa altura destas, comandante Braithwaite. Dê ordens ao capitão dessa corveta para atingir o Camilla com todo o arsenal que tiver.
- Entendido.
Vicary pousou o auscultador e pensou: Meu Deus, tornei-me mesmo um sacana completo.
O vento abriu um buraco momentâneo na cortina de chuva e nevoeiro. Na ponte de comando, o capitão da corveta 745 avistou o U-509 e o Camilla a cento e cinquenta metros da sua proa. Pelos binóculos, viu duas pessoas na coberta do Camilla e uma equipa de salvamento no convés do submarino alemão. De imediato, deu ordem para disparar. Segundos depois, o canhão no convés da corveta abriu fogo.
Neumann ouviu os disparos. Os primeiros tiros passaram por cima. A segunda rajada atingiu o submarino com estrondo. A equipa de salvamento atirou-se para o chão do convés para evitar os tiros, ao mesmo tempo que os disparos se deslocavam do submarino para o Camilla. Não havia nenhum sítio na coberta do barco de pesca que servisse de proteção. Os disparos atingiram Catherine. O seu corpo foi estraçalhado num instante, com a cabeça a explodir num clarão de sangue e miolos.
Neumann desatou a correr, tentando chegar ao submarino. O primeiro tiro que o atingiu arrancou-lhe a perna pelo joelho. Gritou e arrastou-se. Um segundo tiro atingiu-o, cortando-lhe a espinha.
Não sentiu nada. O último tiro atingiu-o na cabeça e a seguir fez-se escuridão.
A observar da torre de comando, Max Hoffman ordenou ao imediato que passasse os motores a diesel para a potência máxima e submergisse o submarino o mais rápido possível. Passados poucos segundos, o U-509 estava a afastar-se a toda a velocidade. Dois minutos mais tarde, mergulhou nas profundezas do mar do Norte e desapareceu.
Sozinho no mar e com o convés inundado de sangue, o Camilla começou a afundar-se.
O estado de espírito a bordo do Rebeaa era de euforia. Os quatro homens abraçaram-se ao observarem o submarino a dar meia-volta e a fugir a todo o vapor. Harry Dalton contactou Vicary e deu-lhe a novidade. Vicary fez dois telefonemas, o primeiro para a sala de localização de submarinos, para agradecer a Arthur Braithwaite, e o segundo para Sir Basil Boothby, para o informar de que tinha finalmente terminado tudo.
Jenny Colville sentiu o Camilla estremecer. Atirou-se para o chão, de barriga para baixo, e protegeu a cabeça com as mãos. Os disparos terminaram tão repentinamente como tinham começado. Foi então que ouviu o barulho do submarino a afastar-se e, por fim, apenas o ruído do mar. Estava demasiado aterrorizada para se mexer. O barco balançava loucamente. Imaginou que isso tivesse alguma coisa a ver com o motor avariado. Sem um motor que o fizesse avançar, o barco estava indefeso perante o ataque do mar. Ela tinha de se levantar, ir lá para fora e avisar os outros barcos de que estava ali, viva.
Obrigou-se a levantar-se, foi imediatamente derrubada pelos solavancos do barco e depois levantou-se outra vez. Subir a escada de escotilha revelou-se quase impossível. Conseguiu chegar por fim ao convés. O vento era tremendo. A chuva fustigava-a de lado. O barco parecia estar a deslocar-se em várias direções ao mesmo tempo: para cima e para baixo, para trás e para a frente, e a balançar de um lado para o outro. Era impossível uma pessoa aguentar-se de pé. Ela
olhou para a proa e viu os corpos. Não tinham levado simplesmente um tiro e morrido. Tinham sido triturados, despedaçados, pelos disparos. O convés estava cor-de-rosa com todo o sangue que escorria. Jenny teve um vómito e desviou o olhar. Viu o submarino a mergulhar ao longe e a desaparecer sob a superfície do mar. Do outro lado do barco, viu um navio de guerra, cinzento, não muito grande, a vir na sua direção. Um segundo barco - o que ela já tinha visto pela vigia - estava a aproximar-se depressa.
Agitou os braços, gritou e começou a chorar. Queria dizer-lhes que tinha sido ela a consegui-lo. Ela é que tinha inutilizado o motor para que o barco parasse e os espiões não conseguissem chegar ao submarino. Estava cheia de um enorme e feroz orgulho.
O Camilla subiu uma onda gigantesca. Quando a onda lhe passou por baixo, o barco inclinou-se todo para bombordo. A seguir, caiu a pique na depressão entre as ondas e, ao mesmo tempo, endireitou-se e inclinou-se todo para estibordo. Jenny não conseguiu segurar-se no cimo da escada de escotilha. Foi atirada pelo convés e caiu ao mar.
O frio não se comparava a nada que já tivesse sentido: um frio horrível, entorpecedor e paralisante. Debateu-se para atingir a superfície e tentou abrir a boca para respirar, mas em vez disso engoliu água do mar. Afundou-se, sufocando, engasgando-se, com a água a encher-lhe o estômago e os pulmões. Esperneou até à superfície e conseguiu respirar um pouco antes de o mar voltar a puxá-la para baixo. Foi então que começou a cair, afundando-se lenta e agradavelmente, sem esforço algum. Já não tinha frio. Não sentia nem via nada. Apenas uma escuridão impenetrável.
O Rebecca foi o primeiro a chegar, com Lockwood e Roach na casa do leme e Harry e Peter Jordan na coberta da proa. Harry atou uma corda à bóia de salvamento, atando a outra ponta a um cunho na proa e atirando a bóia para o mar. Tinham visto Jenny subir uma segunda vez à superfície para respirar e desaparecer sob a superfície. Naquele momento, não havia nada, nem um único sinal dela. Lockwood fez avançar o Rebecca a fundo e a direito; a seguir, a poucos metros do Camilla, fez marcha atrás e parou o barco subitamente.
Jordan inclinou-se sobre a proa, à procura de qualquer sinal da rapariga. A seguir, endireitou-se e, sem aviso, mergulhou. Harry gritou a Lockwood:
- Jordan está dentro de água! Não se aproxime mais!
Jordan veio à superfície e tirou o colete salva-vidas. Harry berrou:
- O que está a fazer?
- Não consigo ir até ao fundo com esta maldita coisa enfiada! Jordan encheu os pulmões de ar e desapareceu durante o que
a Harry pareceu ser um minuto. O mar fustigava o Camilla a bombordo, abanando-o de um lado para o outro e impulsionando-o na direção do Kebecca. Harry olhou por cima do ombro e agitou os braços para Lockwood, na casa do leme.
- Recue um ou dois metros! O Camilla está mesmo em cima de nós!
Por fim, Jordan subiu à superfície novamente, trazendo Jenny consigo. Ela estava inconsciente, com a cabeça caída para o lado. Jordan desatou a corda da bóia e atou-a à volta de Jenny, por baixo dos braços. Levantou o polegar para Harry e este puxou-a até ao Rebecca. Clive Roach ajudou Harry a iça-la para o convés.
Jordan estava a espernear furiosamente, tentando manter-se à tona, com as ondas a passarem-lhe por cima da cara, e parecia exausto do frio. Harry desatou rapidamente a corda que prendia Jenny e atirou-a na direção dele - no preciso instante em que o Camilla se virou por fim, arrastando Peter Jordan para as profundezas do mar.
SESSENTA E UM
BERLIM, ABRIL DE 1944
Kurt Vogel estava à espera na antecâmara luxuosamente mobilada de Walter Schellenberg, observando o esquadrão de jovens assistentes a entrarem e a saírem freneticamente do gabinete. Loiros e de olhos azuis, parecia que tinham acabado de sair de um cartaz de propaganda nazi. Já tinham passado três horas desde que Schellenberg convocara Vogel para uma reunião urgente a propósito daquele infelis assunto no Reino Unido, como se referia habitualmente à operação falhada de Vogel. Vogel não se importava de estar à espera; na verdade, não tinha nada melhor para fazer. Desde que Canaris fora demitido e a Abwehr absorvida pelas SS, os serviços secretos militares alemães pareciam um barco sem leme, precisamente quando Hitler mais necessitava deles. As velhas casas geminadas que se espraiavam por Tirpitz Ufer tinham adquirido o aspeto abatido de uma estância de férias decadente. O moral era tão baixo que muitos oficiais se estavam a oferecer para ir para a Frente Russa.
Vogel tinha outros planos.
Um dos assessores de Schellenberg saiu do gabinete, apontou um dedo acusador a Vogel e, sem dizer uma palavra, fez-lhe sinal para entrar. O gabinete era do tamanho de uma catedral gótica, com sumptuosos quadros a óleo e tapeçarias pendurados nas paredes, bem diferente do comedido Covil da Raposa de Canaris, em Tirpitz Ufer. A luz do Sol entrava obliquamente pelas janelas altas. Vogel olhou lá para fora. Os fogos provocados pelo ataque aéreo matinal
iam-se extinguindo ao longo da Unter den Linden e uma fina camada de fuligem cobria o Tiergarten como neve preta.
Schellenberg sorriu calorosamente, apertou com força a mão esquelética de Vogel e fez-lhe sinal para se sentar. Vogel sabia que Schellenberg tinha metralhadoras na secretária e, por isso, não se mexeu um milímetro e manteve as mãos bem à vista. As portas fecharam-se e ficaram os dois sozinhos no gabinete cavernoso. Vogel sentiu que Schellenberg o estava a consumir com os olhos.
Embora Schellenberg e Himmler andassem há vários anos a maquinar contra Canaris, fora uma sucessão de infelizes acontecimentos que aniquilara por fim a Velha Raposa: a incapacidade de prever a decisão da Argentina de cortar todas as ligações com a Alemanha; a perda de um posto vital de recolha de informações para a Abwehr na zona espanhola de Marrocos; a deserção de vários agentes importantes da Abwehr na Turquia, em Casablanca, Lisboa e Estocolmo. Mas a gota de água foi a desastrosa conclusão da operação de Vogel em Londres. Dois agentes da Abwehr - Horst Neumann e Catherine Blake - foram mortos mesmo à vista do submarino. Não puderam transmitir uma última mensagem, a explicar por que razão tinham decidido fugir de Inglaterra, deixando Vogel sem forma de aferir a autenticidade das informações sobre a Operação Mulberry que Catherine Blake tinha roubado. Hitler explodiu quando soube do acontecido. Despediu de imediato Canaris e colocou a Abwehr e os seus dezasseis mil agentes nas mãos de Schellenberg.
Sem saber bem como, Vogel sobreviveu. Schellenberg e Himmler suspeitavam que a operação tinha sido comprometida por Canaris. Vogel, como Catherine Blake e Horst Neumann, era uma vítima inocente da traição da Velha Raposa.
A teoria de Vogel era outra. Suspeitava que todas as informações roubadas por Catherine tinham sido plantadas pelos serviços secretos britânicos. Suspeitava que ela e Neumann tinham tentado fugir do Reino Unido quando Neumann descobriu que Catherine estava a ser seguida pelo inimigo. Suspeitava que a Operação Mulberry não era um complexo antiaéreo com destino ao Pás de Calais, mas sim um porto artificial a caminho das praias da Normandia. E também suspeitava
que todos os outros agentes enviados para o Reino Unido se encontravam corrompidos - que tinham sido capturados e obrigados a colaborar com os serviços secretos britânicos, provavelmente desde o início da guerra.
No entanto, Vogel não tinha provas que servissem para fundamentar nada daquilo - sendo um bom advogado, não tencionava fazer acusações que não pudesse provar. Além disso, mesmo que tivesse provas, não tinha a certeza de que as teria dado a gente como Schellenberg e Himmler.
Um dos telefones na secretária de Schellenberg tocou. Era uma chamada que ele tinha de atender. Cautelosamente, resmungou e falou em código durante cinco minutos enquanto Vogel esperava. O nevão de fuligem tinha diminuído. As ruínas de Berlim brilhavam sob o sol de abril. Os vidros estilhaçados cintilavam como cristais de gelo.
Continuar na Abwehr e cooperar com o novo regime tinha as suas vantagens. Vogel tinha feito Gertrude, Nicole e Lizbet passarem discretamente da Baviera para a Suíça. Como um bom agente que comanda outros, financiara a operação através de uma complexa artimanha, transferindo fundos de contas secretas da Abwehr na Suíça para a conta de Gertrude, ocultando depois essa transferência com o dinheiro que ele próprio possuía na Alemanha. Transferira para fora do país dinheiro que chegaria para viverem confortavelmente durante alguns anos quando a guerra terminasse. E possuía outra mais-valia, as informações que tinha na cabeça. Tinha a certeza de que os britânicos e os americanos pagariam muito bem, tanto com dinheiro como com proteção.
Schellenberg desligou o telefone e fez uma careta, como se lhe doesse o estômago.
- Muito bem - disse ele. - Vamos ao motivo que me levou a chamá-lo cá, capitão Vogel. Chegaram notícias muito interessantes de Londres.
- Ai sim? - retorquiu Vogel, erguendo a sobrancelha.
- Sim. A nossa fonte no MI5 tem uma informação muito importante.
com um floreado, Schellenberg exibiu uma cópia de uma comunicação via rádio e entregou-a a Vogel. Ao lê-la, Vogel pensou: Notável, a subtileza da manipulação. Quando acabou de ler, estendeu o braço sobre a secretária e devolveu a cópia a Schellenberg.
Schellenberg afirmou:
- O MI5 punir disciplinarmente um homem que é amigo pessoal e confidente de Winston Churchill é algo de extraordinário. E a fonte está acima de qualquer suspeita. Fui eu próprio que o recrutei. Não é um dos lacaios do Canaris. Penso que isso prova que as informações roubadas pela sua agente eram genuínas, capitão Vogel.
- Sim, penso que tem razão, Herr Brigadefúhrer.
- O Fúhrer precisa de ser informado disto imediatamente. Vai reunir-se hoje à noite com o embaixador japonês, em Berchtesgaden, para o pôr ao corrente dos preparativos para a invasão. Tenho a certeza de que vai querer transmitir-lhe isto também.
Vogel assentiu com a cabeça.
- vou apanhar um avião que sai de Templehof daqui a uma hora. Gostava que me acompanhasse e informasse o Fiihrer pessoalmente. Afinal de contas, e antes de mais, a operação era sua. Além disso, o homem simpatiza consigo. O senhor tem um futuro francamente brilhante à sua frente, capitão Vogel.
- Obrigado pela proposta, Herr Brigadefúhrer, mas acho que o senhor é que devia dar a novidade ao Fúhrer.
- Tem a certeza, capitão Vogel?
- Sim, Herr Brigadefúhrer, tenho a certeza absoluta.
SESSENTA E DOIS
OYSTER BAY, LONG ISLAND
Foi o primeiro dia bom de primavera - sol quente e um vento suave que soprava do Sound. O dia anterior fora frio e húmido. Dorothy Lauterbach estava preocupada com
a hipótese de o frio estragar a cerimónia fúnebre e a receção. Certificou-se de que todas as lareiras da casa tinham lenha e deu instruções ao responsável pela comida para terem bastante café quente pronto para quando os convidados chegassem. Mas, a meio da manhã, já o sol expulsara as últimas nuvens e a ilha resplandecia. Dorothy transferiu rapidamente a receção da casa para o relvado com vista para o Sound.
Shepherd Ramsey tinha trazido as coisas de Jordan de Londres: a roupa, os livros, as cartas, os documentos pessoais que os homens dos serviços de segurança não tinham confiscado. No avião de carga que o trouxe de Londres, Ramsey folheou as cartas para se certificar de que não faziam referência à mulher com quem Peter tinha um relacionamento em Londres antes de morrer.
Foi uma cerimónia fúnebre muito concorrida. Não havia corpo para enterrar, mas foi colocada uma pequena lápide ao lado da de Margaret. Todo o staffdo banco de Bratton
compareceu, tal como grande parte dos funcionários da Northeast Bridge Company. As famílias da North Shore também estiveram presentes - os Dutton, os Robinson e
os Tetlinger. Billy manteve-se ao lado de Jane e Jane apoiou-se em Walker Hardegen. Bratton recebeu a bandeira americana das mãos de um representante da marinha.
O vento arrancou flores
das árvores e lançou-as para cima da multidão como se fossem papelinhos de Carnaval.
Havia um homem ligeiramente afastado do resto das pessoas, com as mãos cruzadas atrás das costas e a cabeça inclinada para baixo, em sinal de respeito. Era alto e magro e o fato cinzento de lã, com casaco assertoado, era um bocadinho pesado para o quente tempo primaveril.
Walker Hardegen foi a única pessoa que o reconheceu. Mas Hardegen não sabia o nome verdadeiro do homem. Ele usava sempre um pseudónimo que era tão ridículo que Hardegen tinha dificuldade em dizê-lo sem se rir.
O homem era o agente responsável por Hardegen e o pseudónimo que usava era Broome.
Shepherd Ramsey trouxe a carta do homem de Londres. Dorothy e Bratton entraram discretamente na biblioteca e leram-na durante a receção. Dorothy leu-a primeiro, com as mãos a tremerem. Estava mais velha, mais velha e mais grisalha. Uma queda nos degraus gelados da casa de Manhattan, em dezembro, tinha-a deixado com uma anca
partida. O coxear que daí resultara roubara-lhe o antigo físico imponente. Tinha os olhos molhados quando acabou de ler a carta, mas não chorou. Dorothy fazia sempre
as coisas com moderação. Passou a carta a Bratton, que chorou ao lê-la.
Caro Billy,
É com grande tristeza que escrevo esta carta. Tive o prazer de trabalhar com o teu pai apenas por um período muito curto de tempo, mas achei-o um dos homens mais extraordinários
que já conheci. Esteve envolvido num dos projetos mais vitais da guerra. No entanto, devido a exigências de segurança, há uma forte possibilidade de nunca vires
a saber o que o teu pai fez.
Posso dizer-te isto: o trabalho feito pelo teu pai vai salvar inúmeras vidas e
fazer com que os europeus se possam livrar de Mitler e dos nazis de uma vez por todas.
O teu pai deu verdadeiramente a vida para que outros pudessem viver. Foi um herói.
Mas nada que o teu pai tenha conseguido fazer lhe deu tanto prazer e satisfação como tu,
Billy. Quando o teu pai falava de ti, a cara dele alterava-se. Os olhos
iluminavam-se e ele sorria, mesmo que estivesse muito cansado. Eu nunca tive a sorte de ser
abençoado com um filho. Ao ouvir o teu pai falar de ti, dei-me conta da imensidão do meu infortúnio.
Atenciosamente, Alfred Vicary
Bratton devolveu a carta a Dorothy. Ela dobrou-a, voltou a colocá-la no envelope e guardou-a na gaveta de cima da secretária de Bratton. Dirigiu-se para a janela
e olhou lá para fora.
Toda a gente estava a comer e a beber e parecia estar a divertir-se. Para lá da multidão, viu Billy, Jane e Walker sentados na relva junto à doca. Jane e Walker
tinham-se tornado mais do que amigos. Tinham começado uma relação amorosa e Jane até falava em casamento. Dorothy pensou: Seria mesmo perfeito. Billy teria outra
vez uma verdadeira família.
Havia algo de apropriado nisso, uma sensação de conclusão para tudo aquilo, que Dorothy considerava reconfortante. Estava outra vez quente e dentro de pouco tempo seria verão. As casas não tardariam muito a abrir e as festas começariam. A vida continua, disse a si própria. Margaret e Peter já cá não estão, mas não há dúvida de que a vida continua.
SESSENTA E TRÊS
GLOUCESTERSHIRE, INGLATERRA: SETEMBRO
DE 1944
Até Alfred Vicary ficou surpreendido com a rapidez com que conseguira sair. Tecnicamente, tratava-se de uma licença administrativa até serem conhecidas as conclusões do inquérito interno. Vicary sabia que isso era uma terminologia pomposa que correspondia a um despedimento.
Perversamente, seguiu o conselho de Basil Boothby e fugiu para a casa da tia Matilda - nunca fora capaz de se habituar à ideia de que era sua - para ordenar as ideias. Os primeiros dias de exílio foram aterradores. Sentia falta da camaradagem do MI5. Sentia falta do seu gabinetezinho miserável. Até deu por si a sentir falta da cama de campanha, pois tinha perdido a bênção do sono profundo. Culpava a cama de casal de Matilda, que afundava cada vez mais - demasiado mole, com demasiado espaço para ele se debater com os seus pensamentos atormentados. Num raro clarão de inspiração, foi à loja da aldeia comprar uma nova cama de campanha. Instalou-a na sala de estar, ao lado da lareira, um local estranho, sabia-o, mas não planeava receber visitas. A partir dessa noite, começou a dormir tão bem como se poderia esperar.
Passou por um longo e triste período de inatividade. Mas, na primavera, quando o tempo aqueceu, concentrou a ilimitada energia acumulada na sua nova casa. Os vigias que o visitavam de vez em quando viram, horrorizados, Vicary atacar o jardim munido de uma
tesoura de podar, de uma foice e dos óculos em meia-lua. Observaram-no, espantados, a pintar de novo o interior do chalé. Gerou-se uma discussão considerável à
volta da cor por ele escolhida: um branco forte e rotineiro. Será que significava que o seu estado de espírito estava a melhorar ou estaria a transformar a casa
num hospital e a dar entrada por um período prolongado?
A preocupação também era grande na aldeia. Poole, o homem da drogaria, diagnosticou o estado de espírito de Vicary como sendo de luto. Não é possível, disse Plenderleith, o homem da estufa, que dava conselhos a Vicary acerca do jardim. Nunca foi casado, nunca esteve apaixonado, ao que parece. Miss Lazenby, da loja de roupa, decretou que estavam ambos errados. O pobre homem está apaixonado, qualquer pateta vê isso. E, pelo aspeto dele, o objeto da sua devoção não lhe retribui esse amor.
Mesmo que tivesse sabido dessa discussão, Vicary não teria sido capaz de a resolver, já que conhecia tão mal os seus próprios sentimentos como as pessoas que os testemunhavam. O chefe do seu departamento no University College enviou-lhe uma carta. Tivera conhecimento que Vicary já não se encontrava ao serviço do Ministério da Guerra e queria saber quando regressaria à universidade. Vicary rasgou a carta ao meio e queimou-a na lareira.
Já não havia nada em Londres para ele - apenas más recordações -, por isso, manteve-se longe. Só lá foi uma vez, numa manhã da primeira semana de junho, quando Sir Basil o chamou para ouvir os resultados do inquérito interno.
- Olá, Alfred! - gritou Sir Basil quando Vicary entrou no seu gabinete.
Lá dentro, brilhava uma suave luz cor de laranja. Boothby estava exatamente no centro do gabinete, como se quisesse espaço para manobrar para todos os lados. Trazia um fato cinzento que lhe assentava na perfeição e parecia mais alto do que Vicary se lembrava. O diretor-geral estava sentado no elegante sofá, com os dedos entrelaçados como se estivesse a rezar e os olhos fixos num ponto do tapete persa. Boothby com a mão direita em riste como uma baioneta, avançou
na direção de Vicary. Tendo em conta o sorriso caótico estampado na cara de Boothby, Vicary não tinha a certeza se ele estava a planear abraçá-lo ou atacá-lo. E também não tinha a certeza daquilo que receava mais.
Mas o que Boothby fez de facto foi apertar a mão a Vicary com um bocadinho de simpatia a mais e pousar-lhe a sua patorra no ombro. Estava quente e húmida, como se tivesse acabado de jogar uma partida de ténis. Serviu-lhe ele próprio chá e fez conversa de circunstância enquanto Vicary fumava um último cigarro. A seguir, com considerável cerimónia, tirou da secretária o relatório final da comissão de inquérito e colocou-o em cima da mesa. Vicary não quis olhar para o documento diretamente.
Boothby explicou a Vicary, com um prazer excessivo, que não lhe era permitido ler a avaliação feita à sua própria operação. Mostrou-lhe antes um documento de uma
só página, uma versão saneada que supostamente condensava e resumia o conteúdo do relatório. Vicary segurou-o com as duas mãos, mantendo-o bem esticado para que
não tremesse enquanto o lia. Era um documento desprezível e obsceno, mas contestá-lo naquele momento não serviria de nada. Devolveu-o a Boothby, apertou-lhe a mão,
depois a do diretor-geral, e foi-se embora.
Vicary desceu as escadas. Estava alguém no seu gabinete. Era Harry, com uma cicatriz horrível no maxilar. Vicary não era adepto de despedidas prolongadas. Disse
a Harry que tinha sido despedido, agradeceu-lhe tudo o que ele tinha feito e disse-lhe adeus.
Chovia outra vez e o tempo estava frio para junho. O chefe da divisão dos Transportes disponibilizou um carro a Vicary. Vicary recusou educadamente. Abriu o guarda-chuva
e seguiu vagarosamente para Chelsea, com a chuva a cair torrencialmente.
Passou a noite na sua casa em Chelsea. Acordou ao amanhecer, com a chuva a bater nas janelas. Era o dia 6 de junho. Ligou a BBC para ouvir as notícias e ficou a
saber que a invasão estava em curso.
Ao meio-dia, Vicary saiu de casa, esperando ver multidões nervosas e ouvir conversas ansiosas, mas havia um silêncio de morte em Londres. Algumas pessoas aventuravam-se
a ir às compras e outras entravam nas igrejas para rezarem. Os táxis deslocavam-se pelas ruas vazias à procura de clientes.
Vicary observou os londrinos ocupados com a sua vida. Sentiu vontade de correr para eles, sacudi-los e dizer: Não sabem o que é que está a acontecer? Não têm noção
do que foi necessário? Não sabem as coisas inteligentes e perversas que fizemos para os enganar? Não sabem o que é que eles me fizeram a mim?
Jantou no pub da esquina e ouviu os animadores boletins noticiosos na telefonia. Nessa noite, de novo sozinho, ouviu a mensagem do Rei à nação e, a seguir, foi deitar-se.
De manhã, apanhou um táxi para a estação de Paddington e regressou a Gloucestershire no primeiro comboio.
Gradualmente, por altura do verão, os seus dias adquiriram uma cuidadosa rotina.
Levantava-se cedo e lia até ao almoço, que comia todos os dias na aldeia, no Eight Bells: tarte de legumes, cerveja, carne quando constava do menu. Do Eight Bells,
partia para a caminhada que se obrigava a dar diariamente pelos trilhos ventosos em redor da aldeia. A cada dia que passava, o joelho aleijado recuperava um pouco
mais de força e, em agosto, Vicary já fazia dezasseis quilómetros todas as tardes. Deixou de fumar cigarros e passou para o cachimbo. Os rituais do cachimbo - carregá-lo,
limpá-lo, acendê-lo e voltar a acendê-lo - assentavam de modo perfeito na sua nova vida.
Não tinha noção do dia certo em que aquilo tinha acontecido o dia em que tudo se desvaneceu dos seus pensamentos conscientes: o gabinete exíguo, o estrépito dos
teleimpressores, a comida horrível da cantina, o léxico louco daquele sítio. Double Cross... Mulberry... Phoenix... Kettledrum. Até Helen foi empurrada para dentro
de uma sala fechada da sua memória, onde não poderia causar mais danos. Alice Simpson começou a visitá-lo ao fim de semana e passou lá uma semana inteira no início
de agosto.
No último dia do verão, sentiu-se invadido pela suave melancolia que aflige as pessoas do campo quando o tempo quente está a chegar ao fim. Era um crepúsculo glorioso,
com o horizonte raiado de púrpura e cor de laranja, a primeira sugestão do outono no ar. As prímulas e as campainhas há muito tinham desaparecido. Recordou-se de
um fim de tarde assim, meia vida antes, quando Brendan Evans o ensinou a andar de mota nos trilhos da Fens. Ainda não estava frio para
acender lareiras, mas do seu poleiro, no cimo de uma colina, conseguia ver as chaminés da aldeia a deitarem fumo suavemente e sentir o cheiro intenso a madeira verde
no ar.
Foi então que viu tudo a desenrolar-se nas encostas, como a solução para um problema de xadrez. Conseguia ver as linhas de ataque, a preparação, o logro. Nada tinha
sido o que parecia.
Vicary voltou apressadamente para o chalé, telefonou para o departamento e pediu para falar com Boothby. Foi nessa altura que se apercebeu de que era tarde e de
que era sexta-feira - os dias da semana já não significavam nada para ele - mas, por milagre, Boothby ainda lá estava e atendeu o seu próprio telefone.
Vicary identificou-se. Boothby revelou-se genuinamente agradado por ouvir a voz dele. Vicary garantiu-lhe que estava ótimo.
- Quero falar consigo - disse Vicary. - Sobre a Operação Ketdedrum.
A linha caiu num silêncio, mas Vicary sabia que Boothby não tinha desligado o telefone de repente porque o ouvia a mexer-se agitadamente na cadeira.
- Já não pode vir cá. O Alfred épersona nongrata. Por isso, suponho que tenha de ser eu a ir ter consigo.
- Perfeito. E não finja que não sabe como me encontrar porque tenho visto os seus vigias a andarem atrás de mim.
- Amanhã, ao meio-dia - atirou Boothby, desligando o telefone.
Boothby chegou ao meio-dia em ponto, num Humber oficial, vestido para o campo com roupa de tweed, uma camisa aberta no pescoço e um casaco de malha confortável.
Tinha chovido durante a noite. Vicary foi buscar à cave umas botas de borracha tamanho XL para Boothby e percorreram como velhos colegas um prado pontilhado de ovelhas
tosquiadas. Boothby foi falando sobre mexericos do departamento e Vicary, com considerável esforço, fingiu estar interessado.
Passado um bocado, Vicary parou de andar e pôs-se a olhar para longe.
- Nada daquilo era real, pois não? - exclamou. -Jordan, Catherine Blake... - era tudo falso desde o início.
Boothby sorriu sedutoramente.
- Não foi bem assim, Alfred. Mas qualquer coisa do género.
Virou-se e continuou a caminhar, o corpo alto uma linha vertical recortada no horizonte. A seguir, parou e fez sinal a Vicary para se aproximar. Coxeando mecânica
e rigidamente, Vicary seguiu Boothby, batendo nos bolsos à procura dos óculos em meia-lua.
- Foi a natureza da Operação Mulberry que nos colocou um problema - começou a dizer Boothby, sem aviso. - Estavam envolvidas dezenas de milhares de pessoas. Claro
que a grande maioria não fazia ideia daquilo em que estava a trabalhar. Ainda assim, o potencial para ocorrerem fugas de segurança era enorme. As componentes eram
tão grandes que tinham de ser construídas à vista de toda a gente. Os locais de construção estavam espalhados pelo país, mas uma parte foi construída mesmo aqui
perto, nas docas de Londres. Assim que nos informaram do projeto, percebemos que tínhamos um problema. Sabíamos que os alemães seriam capazes de fotografar os locais
a partir do ar. Sabíamos que bastava um espião razoável andar a bisbilhotar as obras para conseguir provavelmente descobrir o que estávamos a preparar. Enviámos
um homem para Sesley para testar o grau de segurança. Já estava a beber chá na cantina com alguns trabalhadores quando alguém se deu ao trabalho de lhe pedir a identificação.
Boothby riu. Vicary observou-o enquanto ele falava. Toda a sua arrogância e todo o seu nervosismo tinham desaparecido. Sir Basil mostrava-se calmo, sereno e simpático.
Vicary pensou que, em circunstâncias diferentes, até poderia ter gostado dele. Apercebeu-se, chocado, de que tinha subestimado a inteligência de Boothby desde o
início. E também ficou espantado com a utilização que ele fazia da palavra nós. Boothby era membro do clube; Vicary tinha apenas sido autorizado a encostar o nariz
ao vidro durante um curto período de tempo.
- O maior problema era a possibilidade de a Operação Mulberry revelar as nossas intenções - recomeçou Boothby. - Se os alemães descobrissem que estávamos a construir
portos artificiais, eram bem
capazes de concluir que pretendíamos evitar os portos altamente fortificados de Calais atacando na Normandia. Como o projeto era tão grande e difícil de ocultar,
tínhamos de partir do princípio de que os alemães acabariam por descobrir o que estávamos a preparar. A nossa solução foi roubar por eles o segredo da Operação Mulberry
e tentar controlar o jogo - explicou Boothby, olhando para Vicary. - Muito bem, Alfred, vamos lá ouvir o que tem para dizer. Quero saber o que conseguiu descobrir
ao certo.
- Walker Hardegen - afirmou Vicary. - Eu diria que começou tudo com Walker Hardegen.
- Muito bem, Alfred. Mas como?
- Walker Hardegen era um banqueiro e um homem de negócios rico, ultraconservador, anticomunista e provavelmente um bocadinho antissemita. Vinha da Ivy League e conhecia
metade das pessoas em Washington. Tinha andado na escola com elas. Os americanos não são assim tão diferentes de nós nesse aspeto. Os negócios dele levavam-no a
Berlim regularmente. E quando homens como Hardegen viajavam para Berlim, iam a jantares e festas de embaixadas. Jantavam com os diretores das maiores empresas alemãs
e com funcionários nazis do partido e dos ministérios. Hardegen falava alemão perfeitamente. E o mais provável era que admirasse algumas das coisas que os nazis
andavam a fazer. Acreditava que Hitler e os nazis funcionavam como um importante amortecedor entre os bolcheviques e o resto da Europa. Eu diria que, durante uma
das visitas dele, terá chamado a atenção da Abwehr ou do SD.
- Bravo, Alfred. Foi a Abwehr, por acaso, e o homem cuja atenção capturámos foi Paul Múller, o diretor das operações da Abwehr na América.
- Muito bem. Múller recrutou-o. Oh, calculo que provavelmente tenha suavizado a coisa. Dito que Hardegen não estaria realmente a trabalhar para os nazis. Estaria
a ajudar na luta contra o comunismo internacional. Pediu informações a Hardegen sobre a produção industrial americana, o estado de espírito em Washington, coisas
desse género. Hardegen aceitou e tornou-se agente. Mas tenho uma pergunta: Hardegen já era um agente americano nessa altura?
- Não - respondeu Boothby, sorrindo. - Não se esqueça, isto passou-se ainda bem no início do jogo, em 1937. Os americanos não eram especialmente sofisticados nessa
altura. Mas sabiam, no entanto, que a Abwehr se encontrava ativa nos Estados Unidos, particularmente em Nova Iorque. Um ano antes, os planos relativos à mira de
bombardeiro Norden saíram do país dentro da pasta de um espião da Abwehr chamado Nikolaus Ritter. Roosevelt tinha dado ordens a Hoover para atuar com dureza. Em
1939, Hardegen foi fotografado a encontrar-se em Nova Iorque com um conhecido agente da Abwehr. Dois meses mais tarde, viram-no novamente, desta vez a encontrar-se
com outro agente da Abwehr na Cidade do Panamá. Hoover queria prendê-lo e levá-lo a julgamento. Meu Deus, os americanos eram mesmo uns lorpas neste jogo. Felizmente,
o MI6 já tinha instalado o seu gabinete em Nova Iorque nessa altura. Intervieram e convenceram Hoover de que Hardegen era mais valioso se continuasse em jogo do
que enfiado numa cela qualquer.
- Então quem é que o controlava, nós ou os americanos?
- Na verdade, era um projeto conjunto. Fornecíamos um fluxo constante de ótimo material aos alemães através de Hardegen, tudo coisas de qualidade superior. Em Berlim,
o estatuto de Hardegen subiu em flecha. Enquanto isso, todos os aspetos da vida de Walker Hardegen foram analisados microscopicamente, incluindo a relação dele com
a família Lauterbach e com um engenheiro brilhante chamado Peter Jordan.
- Por isso, em 1943, quando foi tomada a decisão de efetuar a invasão através do canal da Mancha na Normandia, com a ajuda de um porto artificial, os serviços secretos britânicos e americanos abordaram Peter Jordan e pediram-lhe para passar a trabalhar para nós.
- Sim. Em outubro de 1943, para ser exato.
- Ele era perfeito - prosseguiu Vicary. - Era precisamente o tipo de engenheiro de que o projeto necessitava e era conhecido e respeitado na sua área. Os nazis só precisavam de ir à biblioteca para ler sobre os feitos dele. E a morte da mulher também o tornava vulnerável em termos pessoais. Por isso, no final de 1943, fizeram com que Hardegen se encontrasse com o agente da Abwehr responsável por ele e lhe contasse tudo sobre Peter Jordan. O que é que lhes revelaram na altura?
- Só que Jordan estava a trabalhar num grande projeto de construção relacionado com a invasão. E também demos a entender que ele era vulnerável, como o Alfred disse. A Abwehr mordeu o isco. Múller convenceu Canaris e Canaris passou o assunto a Vogel.
- Então, toda essa coisa foi um estratagema complexo para impingir informações falsas à Abwehr. E Peter Jordan foi o cordeiro sacrificado da praxe.
- Exato. Os primeiros documentos eram propositadamente ambíguos. Estavam abertos à interpretação e à discussão. As unidades Phoenix podiam ser componentes de um porto artificial ou podiam ser um complexo antiaéreo. Queríamos que eles andassem à bulha, discutissem, se esfrangalhassem todos. Tem Sun-Tzu em dia?
- Sabota o teu inimigo, subverte-o, semeia a discórdia entre os seus líderes.
- Exato. Queríamos encorajar a fricção entre o SD e a Abwehr. E também não lhes queríamos facilitar demasiado as coisas. Gradualmente, os documentos da Operação
Kettledrum foram clareando o quadro e esse quadro foi transmitido diretamente a Hitler.
- Mas porquê darem-se a tanto trabalho? Porque é que não utilizaram simplesmente um dos agentes que já tinham mudado de lado? Ou um dos agentes fictícios? Porquê
utilizarem um engenheiro de carne e osso? Porque não inventaram simplesmente um de fio a pavio?
- Por duas razões - respondeu Boothby. - Número um, isso é demasiado fácil. Queríamos que eles se esforçassem para obter as informações. Queríamos influenciar-lhes o pensamento subtilmente. Queríamos que pensassem que eram eles que estavam a decidir apontar baterias a Jordan. Não se esqueça do mantra de um agente da Operação Double Cross: as informações facilmente obtidas são facilmente descartadas. Havia uma cadeia de informações, por assim dizer: de Hardegen para Múller, de Múller para Canaris, de Canaris para Vogel e de Vogel para Catherine Blake.
- Impressionante - afirmou Vicary. - E a segunda razão?
- A segunda razão foi que, no final de 1943, descobrimos que não conhecíamos todos os espiões alemães que atuavam no Reino
Unido. Ficámos a saber de Kurt Vogel, ficámos a saber da rede dele e ficámos a saber que um dos agentes era uma mulher. Mas tínhamos um problema grave. Vogel tinha infiltrado os agentes no Reino Unido tão cuidadosamente que só os conseguiríamos localizar se fizéssemos com que eles se revelassem. Não se esqueça, o Plano Bodyguard estava prestes a começar a carburar a cem por cento, íamos bombardear os alemães com rajadas de informações falsas. Mas não nos podíamos sentir confortáveis sabendo que havia agentes de carne e osso ativos no nosso país. Tínhamos de os identificar a todos. Caso contrário, nunca poderíamos ter a certeza de que os alemães não estavam a receber informações que contradissessem o Plano Bodyguard.
- E como tiveram conhecimento da rede de Vogel?
- Fomos informados.
- Por quem?
Boothby deu alguns passos em silêncio, contemplando a biqueira enlameada das botas de borracha.
- Fomos informados da rede por Wilhelm Canaris - disse por fim.
- Por Canaris?
- Através de um dos emissários dele, na realidade. Em 1943, no final do verão. Isto vai provavelmente chocá-lo, mas Canaris era um dos líderes da Schwarze Kapelle. Queria que Menzies e os serviços secretos o ajudassem a derrubar Hitler e a acabar com a guerra. Num gesto de boa vontade, informou Menzies da existência da rede de Vogel. Menzies informou os serviços de segurança e, em conjunto, engendrámos um estratagema chamado Kettledrum.
- O principal espião de Hitler, um traidor. Extraordinário. E o senhor sabia de tudo isto, claro. Sabia-o na noite em que eu fui destacado para o caso. Aquele relatório acerca da invasão e dos planos de logro... Teve tudo como objetivo assegurar a minha lealdade cega. Motivar-me. Manipular-me.
- Lamento dizê-lo, mas sim.
- Então a operação tinha dois objetivos: enganá-los em relação ao Projeto Mulberry e, ao mesmo tempo, fazer com que os agentes de Vogel se revelassem para os podermos neutralizar.
- Sim - confirmou Boothby. - E mais outra coisa: possibilitar a Canaris um golpe de mestre que lhe permitisse salvar a cabeça
até à invasão. A última coisa de que precisávamos era de Schellenberg e de Himmler a comandarem. A Abwehr estava totalmente paralisada e manipulada. Sabíamos que se Schellenberg assumisse o controlo, ia pôr em causa tudo o que Canaris tinha feito. Mas não fomos bem-sucedidos nesse ponto, claro. Canaris foi despedido e Schellenberg apoderou-se finalmente da Abwehr.
- Então porque é que a Operação Double Cross e o Plano Bodyguard não se desmoronaram com a queda de Canaris?
- Oh, Schellenberg estava mais interessado em consolidar o seu império do que em introduzir uma nova leva de agentes em Inglaterra. Houve uma impressionante reorganização burocrática - gabinetes a trocarem de dono, dossiês a mudarem de mãos, esse tipo de coisas. No estrangeiro, mandou embora agentes dos serviços secretos experientes
que eram leais a Canaris e substituiu-os por sabujos ainda verdes, leais às SS e ao Partido. Enquanto isso, no quartel-general da Abwehr, os agentes responsáveis
faziam todos os possíveis por provar que os agentes a atuarem no Reino Unido eram fidedignos e produtivos. Pondo as coisas de forma simples, era uma questão de vida
ou de morte para esses agentes. Se admitissem que os agentes deles estavam sob controlo britânico, teriam sido enfiados no primeiro comboio a caminho do Leste. Ou
pior.
Caminharam em silêncio durante algum tempo enquanto Vicary assimilava tudo o que lhe tinha sido dito. Tinha a cabeça à roda. E inúmeras perguntas. Temia que Boothby
se pudesse calar a qualquer instante. Ordenou-as por importância, deixando de lado as suas emoções fervilhantes. Passou uma nuvem diante do Sol e de repente fez-se
frio.
- E resultou tudo? - perguntou Vicary.
- Sim, resultou de forma brilhante.
- Então e a emissão do Lord Haw-Haw?
O próprio Vicary tinha-a ouvido, sentado na sala de estar do chalé de Mádida, e tinha sentido um calafrio. Nós sabemos exatamente o que é que vocês pretendem faer
com essas unidades de betão. Pensam que as vão afundar nas nossas costas durante a invasão. bom, vamos ajudar-vos, rapaces...
- Pôs o Supremo Comando Aliado em pânico. Pelo menos, à superfície - acrescentou Boothby presunçosamente. - Um grupo
muito pequeno de oficiais tinha conhecimento do logro da Operação Kettledrum e percebeu que se tratava apenas do último ato. Eisenhower enviou um telegrama para
Washington a pedir cinquenta vedetas para resgatar as tripulações caso as Mulberries fossem afundadas durante a travessia do Canal. Certificámo-nos de que os alemães
sabiam disso. Tate, o nosso agente da Operação Double Cross com uma fonte fictícia dentro do SHAEF, transmitiu ao agente da Abwehr responsável por ele um relatório
do pedido de Eisenhower. Passados vários dias, o embaixador japonês fez uma visita às defesas costeiras e foi informado por Rundstedt. Rundstedt falou-lhe das Mulberries
e explicou-lhe que um agente da Abwehr tinha descoberto que eram torres de artilharia antiaérea. O embaixador enviou por telegrama essa informação aos seus chefes
em Tóquio. Essa mensagem, tal como todas as outras comunicações dele, foi intercetada e descodificada. Nesse momento, soubemos que a Operação Kettledrum tinha resultado.
- E quem dirigiu a operação em termos globais?
- O MI6, na verdade. Foram eles que a iniciaram, foram eles que a conceberam, e nós deixámo-los dirigi-la.
- E quem sabia dentro do departamento?
- Eu, o diretor-geral, Masterman, do Comité da Operação Double Cross.
- E quem era o agente que comandava tudo? Boothby olhou para Vicary.
- O Broome, claro.
- E quem é o Broome?
- O Broome é o Broome, Alfred.
- Só não compreendo uma coisa. Porque é que era necessário enganar o agente responsável pelo caso?
Boothby sorriu tenuemente, como se tivesse sido apoquentado por uma recordação ligeiramente desagradável. Dois faisões irromperam da sebe e voaram disparados pelo
céu cinzento-escuro. Boothby parou e contemplou as nuvens.
- Parece que vem aí chuva - atirou. - Talvez fosse melhor voltarmos para trás.
Deram meia-volta e começaram a andar.
- Nós enganámo-lo, Alfred, porque queríamos que parecesse tudo verdadeiro ao outro lado. Queríamos que o Alfred seguisse os
mesmos passos que em princípio seguiria num caso normal. E também não lhe era necessário saber que Jordan estava a trabalhar para nós desde o início. Não era necessário.
- Meu Deus! - disparou Vicary. - Então comandaram-me, como a qualquer outro agente. Comandaram-me.
- Pode dizer-se isso, sim.
- E porque fui escolhido? Porque não outra pessoa?
- Porque o Alfred, como o Peter Jordan, era perfeito.
- É capaz de me explicar isso?
- Escolhemo-lo por ser inteligente e engenhoso, e, em circunstâncias normais, o Alfred ter-lhes-ia dado água pela barba. Meu Deus, quase percebeu o logro enquanto
a operação estava em curso. E também o escolhemos por a tensão entre nós dois ser lendária afirmou Boothby, parando por uns instantes e olhando para Vicary.
- O Alfred não era propriamente discreto quando me criticava perante o resto do staff. Mas, mais importante do que isso, escolhemo-lo por ser amigo do primeiro-ministro
e a Abwehr o saber.
- E quando me despediram, informaram os alemães através de Hawke e do Pelicano. Esperavam que o sacrifício de um amigo pessoal de Winston Churchill reforçasse a
confiança deles no material da Operação Kettledrum.
- Exato, fazia tudo parte do guião. E resultou, já agora.
- E Churchill sabia?
- Sim, sabia. Foi ele próprio que aprovou tudo. O seu velho amigo traiu-o. Adora a magia negra, o nosso Winston. Se não fosse primeiro-ministro, acho que teria
sido um agente perito em logros. Acho que se divertiu bastante com tudo. Ouvi dizer que aquele discurso de motivação que ele lhe fez nas Salas de Guerra Subterrâneas
foi um clássico.
- Sacanas - murmurou Vicary. - Sacanas manipuladores. Mas a verdade é que, se calhar, me devia dar por feliz. Podia estar morto como os outros. Meu Deus! Já se deram
conta de quantas pessoas morreram por causa do vosso joguinho? Pope, a namorada dele, Rose Morely, os dois homens da Divisão Especial em Earl's Court, os quatro
polícias em Louth, outro em Cleethorpes, Sean Dogherty, Martin Colville.
- Está a esquecer-se de Peter Jordan.
- Por amor de Deus, mataram o vosso próprio agente!
- Não, o A-lfred é que o matou. Foi o Alfred que o pôs a bordo daquele barco. Eu até gostei bastante, devo admitir. O homem cujo descuido pessoal quase nos custou
a guerra morre a salvar a vida de uma rapariga e expia os seus pecados. Era assim que Hollywood teria feito a coisa. E é isso que os alemães pensam que aconteceu
realmente. E, além do mais, o número de vidas que se perderam não é nada comparado com a carnificina que teria ocorrido se Rommel estivesse à nossa espera na Normandia.
- Trata-se tudo de créditos e débitos? É assim que olha para as coisas? Como se fossem uma gigantesca folha de contabilidade? Ainda bem que estou fora! Não quero
fazer parte disso! Não se isso significa fazer coisas dessas. Meu Deus, já devíamos ter queimado pessoas como o senhor na fogueira há muito tempo!
Subiram uma última colina. Ao longe, a casa de Vicary surgiu diante deles. As trepadeiras floridas de Matilda cobriam o muro de calcário que servia de proteção.
Ele queria estar lá - bater com a porta, sentar-se à lareira e nunca mais voltar a pensar em nada daquilo. Sabia que naquele momento isso era impossível. Queria
livrar-se de Boothby. Acelerou o passo, descendo rapidamente a colina e quase perdendo o equilíbrio. Boothby, com o seu corpo alto e pernas atléticas, esforçou-se
por o acompanhar.
- Não é mesmo isso que acha, pois não? O Alfred gostou daquilo. Foi seduzido. Gostou da manipulação e do logro. A sua universidade quer que regresse, mas o Alfred
não tem a certeza se quer voltar para lá porque tem consciência de que tudo aquilo em que acreditava é mentira e de que o meu mundo, este mundo, é que é o verdadeiro.
- O senhor não é o mundo verdadeiro. Não tenho a certeza do que o senhor é, mas não é verdadeiro.
- Pode dizer isso agora, mas eu sei que sente uma falta terrível de tudo aquilo. É bastante parecido com uma amante, o tipo de trabalho que fazemos. Às vezes, não
gostamos muito dela. Não gostamos de nós próprios quando estamos com ela. Os momentos em
que nos sentimos bem são fugazes. Mas quando tentamos deixá-la há sempre qualquer coisa que nos puxa outra vez para ela.
- Receio bem que essa metáfora não me diga muito, Sir Basil.
- Lá está o Alfred outra vez, a armar-se em superior, em melhor do que os outros. Pensei que já tivesse aprendido a lição por esta altura. O Alfred precisa de pessoas
como nós. O país precisa de nós.
Atravessaram o portão e seguiram pelo caminho de entrada. O cascalho estalava sob os seus pés. Vicary lembrou-se da tarde em que tinha sido chamado a Chartwell e
recebido o cargo no MI5. Lembrou-se da manhã nas Salas de Guerra Subterrâneas, das palavras de Churchill: Tem de deixar de lado quaisquer princípios que ainda possua,
deixar de lado quaisquer sentimentos de compaixão que ainda possua, efaer tudo o que for necessário para vencer.
Pelo menos, tinha havido alguém que tinha sido sincero consigo, mesmo que isso tivesse sido mentira na altura.
Pararam ao lado do Humber de Boothby.
- Compreenderá por certo que eu não o convide para entrar e tomar um refresco - disse Vicary. - Quero ir lavar o sangue das mãos.
- A beleza da coisa é essa, Alfred - retorquiu Boothby, mostrando as grandes patorras a Vicary. - Eu também tenho sangue nas mãos. Só que não o consigo ver e mais
ninguém consegue. É uma mancha secreta.
O motor do carro disparou quando Boothby abriu a porta.
- Quem é Broome? - perguntou Vicary uma última vez.
O rosto de Boothby ensombrou-se, como se uma nuvem lhe tivesse passado à frente.
- Broome é Brendan Evans, o seu velho amigo de Cambridge. Contou-nos a sua manobra para entrar para os serviços secretos militares. E contou-nos o que lhe aconteceu
em França. Sabíamos o que o impelia e o que o motivava. Tinha de ser... afinal de contas, estávamos a comandá-lo.
Vicary sentiu a cabeça começar a latejar.
- Tenho mais uma pergunta.
- Quer saber se Helen estava envolvida nisso ou se foi ter consigo de livre vontade.
Vicary ficou em suspenso, à espera de uma resposta.
- Porque não vai ter com ela e lhe pergunta?
A seguir, Boothby desapareceu dentro do carro e foi-se embora.
SESSENTA E QUATRO
LONDRES: MAIO DE 1945
Nessa tarde, às seis horas, Lillian Walford aclarou a garganta, bateu suavemente à porta do gabinete e entrou sem esperar que respondessem. O professor estava lá,
sentado à janela com vista para Gordon Square, com o corpo franzino debruçado sobre um velho manuscrito.
- Se já não tiver mais nada para eu fazer, vou-me embora, professor - disse ela, dando início ao ritual de fechar os livros e endireitar os papéis que parecia acompanhar
sempre as conversas de sexta-feira ao final da tarde entre ambos.
- Não, tenho tudo o que preciso, obrigado.
Ela olhou para ele e pensou: Não, por qualquer razão, duvido muito disso, professor. Havia qualquer coisa nele que tinha mudado. Oh, é verdade que nunca tinha sido do tipo falador; nunca tinha sido pessoa de iniciar uma conversa, a não ser que fosse absolutamente necessário. Mas parecia mais reservado do que nunca, coitadinho. E tinha piorado à medida que o período letivo avançava, em vez de melhorar, como ela tinha esperado. Contavam-se histórias na faculdade, especulações fúteis. Havia quem dissesse que ele tinha enviado homens para a morte ou ordenado execuções. Era difícil imaginar o professor a fazer essas coisas, mas fazia algum sentido, ela tinha de admitir. Alguma coisa o tinha feito fazer um voto de silêncio.
- É melhor não se demorar muito, professor, se quer apanhar o comboio.
.- Estava a pensar em ficar antes em Londres no fim de semana
respondeu ele, sem levantar os olhos do trabalho. - Interessa-me
ver qual é o aspeto da cidade à noite, agora que as luzes estão outra vez a funcionar.
- Ora aí está uma coisa que eu espero mesmo nunca mais voltar a ver, o maldito blackout.
- Algo me diz que não verá.
Ela tirou-lhe o impermeável do cabide atrás da porta e colocou-o na cadeira ao lado da secretária. Pousou o lápis e olhou para ela. O que ela fez a seguir apanhou-os aos dois de surpresa. A mão dela pareceu estender-se para a cara dele de livre vontade, por reflexo, como o faria para uma criancinha que tivesse acabado de se magoar.
- O professor está bem?
Ele afastou-se bruscamente e voltou a olhar para o manuscrito.
- Sim, estou ótimo - respondeu ele.
A voz tinha um tom, uma rispidez que ela nunca lhe tinha ouvido. A seguir, ele murmurou qualquer coisa baixinho que pareceu ser nunca estive melhor.
Ela virou-se e dirigiu-se para a porta.
- Tenha um bom fim de semana - disse.
- É essa a minha ideia, obrigado.
- Boa noite, professor Vicary.
- Boa noite, Miss Walford.
A noite estava quente e, quando atravessou Leicester Square, Vicary já tinha despido o impermeável, levando-o dobrado sobre o braço. O crepúsculo chegava ao fim e as luzes de Londres começaram a acender-se lentamente. Quem diria, Liílian Walford a tocar-lhe na cara daquela maneira! Sempre tinha pensado que era um mentiroso
razoável. Interrogou-se se seria assim tão evidente.
Atravessou o Hyde Park. À esquerda, um grupo de americanos jogava softball à luz ténue. À direita, britânicos e canadianos participavam num barulhento jogo de râguebi. Passou por um local onde apenas uns dias antes se encontrava uma arma antiaérea. A arma tinha desaparecido; apenas se mantinham lá os sacos de areia, como se fossem pedras de ruínas antigas.
Entrou em Belgravia e, por instinto, dirigiu-se para a casa de Helen.
Espero que mudes de opinião, e depressa.
As cortinas opacas estavam levantadas e a casa inundada de luz. Estavam lá mais dois casais. David estava de uniforme, com Helen pendurada no braço. Vicary perguntou-se há quanto tempo estaria ali parado, a observá-los, a observá-la. Para sua grande surpresa - ou seria alívio, talvez -, não sentiu nada por ela. O seu fantasma tinha-o abandonado por fim, desta vez definitivamente.
Afastou-se. King's Road deu lugar a Sloane Square e Sloane Square a sossegadas ruas secundárias de Chelsea. Olhou para o relógio; ainda tinha tempo para apanhar
o comboio. Conseguiu um táxi e, antes de entrar, pediu ao taxista para o levar até à estação de Paddington. Baixou o vidro da janela e sentiu o vento quente na cara.
Pela primeira vez em muitos meses, sentiu qualquer coisa parecida com contentamento, qualquer coisa parecida com paz.
Ligou para Alice Simpson de uma cabine telefónica, na estação, e ela aceitou o convite para ir ter com ele ao campo na manhã seguinte. Desligou o telefone e teve
de correr para apanhar o comboio. A carruagem ia apinhada, mas descobriu um lugar à janela, num compartimento com duas velhas e um soldado com cara de menino, agarrado
a uma bengala.
Olhou para o soldado e viu que ele trazia a insígnia do 2.º Regimento de East Yorkshire. Vicary sabia que ele tinha estado na Normandia - em Sword Beach, para ser
exato - e que tinha sorte em estar vivo. Os East Yorks tinham sofrido muitas baixas nos primeiros minutos da invasão.
O soldado reparou que Vicary estava a olhar para ele e conseguiu esboçar um ligeiro sorriso.
- Foi na Normandia. Quase não cheguei a sair do barco - disse, erguendo a bengala. - Os médicos dizem que vou precisar de usar isto para o resto da vida. Como ficou
com o seu, quer dizer, com o coxear?
- Na Primeira Guerra Mundial, em França - disse Vicary num tom distante.
- E fizeram-no regressar para esta?
Vicary assentiu com a cabeça.
- Um trabalho à secretária, num departamento muito monótono do Ministério da Guerra. Nada de importante, na verdade.
Passado algum tempo, o soldado adormeceu. Por uma vez, nos campos que iam passando, Vicary viu o rosto dela, sorrindo-lhe, apenas por um instante. A seguir, viu o de Boothby. E depois, quando a escuridão se instalou, o seu próprio reflexo a acompanhá-lo em silêncio no vidro da janela.QUARENTA E SETE LONDRES
Clive Roach estava sentado a uma mesa junto à janela, no café em frente do apartamento de Catherine Blake, do outro lado da rua. A empregada trouxe-lhe o chá e o pão de leite. Ele largou de imediato algumas moedas na mesa. Era um hábito que tinha adquirido com o trabalho. Por norma, Roach era obrigado a sair dos cafés inesperada e rapidamente. A última coisa de que precisava era atrair atenções. Bebericou o chá e folheou um jornal matutino sem grande convicção. Não estava realmente interessado. Estava mais interessado na entrada do prédio do outro lado da rua. A chuva começou a cair com mais intensidade. Não estava desejoso de voltar a sair e molhar-se. Era o único aspeto do seu trabalho de que não gostava - a exposição constante ao mau tempo. Já tinha apanhado mais constipações e bronquites do que se conseguia lembrar.
Antes da guerra, tinha sido professor numa escola degradada para rapazes. Decidiu alistar-se no exército em 1939. Estava longe de ser o soldado ideal - magro, pele macilenta, cabelo ralo, uma voz com pouca potência. Não era propriamente disso que os oficiais eram feitos. No centro de recrutamento, reparou que estava a ser observado por dois homens bem vestidos a um canto. E também reparou que tinham pedido uma cópia do seu processo e que a estavam a examinar minuciosamente e com grande interesse. Passados uns minutos, arrancaram-no da fila, disseram-lhe que eram dos serviços secretos militares e ofereceram-lhe trabalho.
Roach gostava de observar. Era um observador de pessoas nato e possuía grande aptidão para nomes e caras. Oh, sabia que não haveria medalhas em reconhecimento de heroísmo no campo de batalha, nem histórias que pudesse contar no pub quando a guerra terminasse. Mas era um trabalho importante e Roach fazia-o bem. Começou a comer o pão de leite, pensando em Catherine Blake. Tinha seguido muitos espiões alemães desde 1939, mas ela era a melhor. Uma verdadeira profissional. Já o envergonhara uma vez, mas jurara que nunca mais iria deixar que isso acontecesse.
Terminou o pão de leite e bebeu o que restava do chá. Levantou os olhos da mesa e viu-a sair do prédio. Maravilhou-se com as artes do ofício de Catherine. Ficava sempre parada durante um momento a fazer qualquer coisa prosaica, ao mesmo tempo que perscrutava a rua à procura de sinais de vigilância. Naquele dia, estava às voltas com o guarda-chuva, como se este estivesse estragado. Roach pensou: A menina é muito boa, Miss Blake. Mas eu sou melhor.
Observou-a a abrir por fim o guarda-chuva e a começar a andar. Roach levantou-se, vestiu o casaco e saiu do café para ir atrás dela.
Horst Neumann acordou no momento em que o comboio atravessava ruidosamente os subúrbios do nordeste de Londres. Deu uma olhadela ao relógio: 10h30. Deviam ter chegado a Liverpool Street às 10h23. Milagrosamente, iriam atrasar-se apenas uns minutos. Bocejou, espreguiçou-se e endireitou-se no lugar. Espreitou pela janela, vendo os sombrios edifícios vitorianos que iam passando. Crianças sujas acenaram ao comboio. Neumann, sentindo-se ridiculamente inglês, acenou-lhes também. Havia mais três passageiros no seu compartimento, um par de soldados e uma jovem que usava um fato-macaco de trabalhador fabril e tinha franzido o sobrolho de preocupação quando vira a cara cheia de ligaduras de Neumann. Naquele momento, ele olhou de relance para cada um deles. Ficava sempre preocupado com a possibilidade de falar enquanto dormia, embora nas noites anteriores tivesse sonhado em inglês. Recostou a cabeça e fechou os olhos novamente. Meu Deus, como estava cansado. De pé às cinco da manhã, fora do chalé às seis, para Sean lhe
noder dar boleia até Hunstanton, o comboio das 7hl2 de Hunstanton para Liverpool Street.
Dormira mal na noite anterior, por causa das dores provocadas relos ferimentos e da presença de Jenny Colville na sua cama. Esta levantara-se ao mesmo tempo que ele, antes do amanhecer, escapulira-se do chalé dos Dogherty e fora de bicicleta para casa, no meio da escuridão e da chuva. Neumann esperava que ela tivesse chegado em segurança. E esperava que Martin não se encontrasse à espera dela. Tinha sido uma coisa estúpida deixá-la passar a noite consigo. Pensou no que ela sentiria quando ele se fosse embora. Quando nunca lhe escrevesse e ela nunca mais voltasse a ter notícias dele. Preocupava-o a reação dela se alguma vez descobrisse a verdade - que ele não era James Porter, um soldado britânico ferido, à procura de paz e sossego numa aldeia de Norfolk. Que era Horst Neumann, um paraquedista militar condecorado que tinha vindo para Inglaterra espiar e que a tinha enganado da pior forma. Mas não a tinha enganado em relação a uma coisa. Gostava dela. Não da maneira como ela gostaria que o fizesse, mas a verdade é que gostava dela a ponto de se preocupar com o que lhe pudesse acontecer.
O comboio abrandou ao aproximar-se de Liverpool Street. Neumann levantou-se, vestiu o casacão e saiu do compartimento. O corredor estava repleto de gente. Foi avançando a custo por entre os outros passageiros, em direção à porta. Houve alguém à frente dele que a abriu de rompante e Neumann saiu do comboio ainda em andamento. Deu o bilhete ao revisor e seguiu por uma passagem húmida até à estação do metro. Lá chegado, comprou um bilhete para Temple e apanhou o comboio seguinte. Uns minutos mais tarde, estava a subir as escadas e a dirigir-se para norte, a caminho da Strand.
Catherine Blake apanhou um táxi para Charing Cross. O ponto de encontro ficava a uma pequena distância, à frente de uma loja na Strand. Pagou ao taxista e abriu o guarda-chuva para não ficar molhada. Começou a andar. Parou junto a uma cabine telefónica, levantou o auscultador e fingiu que estava a fazer uma chamada. Olhou
para trás. A chuva forte tinha reduzido a visibilidade, mas não viu sinais do inimigo. Voltou a pousar o auscultador, saiu da cabine e continuou para leste, seguindo pela Strand.
Clive Roach saiu discretamente da parte de trás de uma carrinha de vigilância e seguiu-a pela Strand. Durante a curta viagem de carrinha, tinha-se livrado do impermeável e do chapéu de abas e vestido um oleado verde-escuro e um gorro de lã. A transformação era extraordinária - de um empregado de escritório para um operário. Roach ficou a ver Catherine Blake parar para fazer o suposto telefonema. Roach parou ao pé de um quiosque. Ao dar uma vista de olhos às manchetes, visualizou o rosto do agente a quem o professor Vicary tinha dado o nome de código de Rudolf. A missão de Roach era simples: seguir Catherine Blake até ela passar o material a Rudolf e depois segui-lo a ele. Levantou os olhos a tempo de a ver pousar o auscultador no gancho e sair da cabine telefónica. Roach embrenhou-se no meio das pessoas e seguiu-a.
Neumann avistou Catherine Blake a caminhar na sua direção. Parou junto a uma loja, com os olhos a perscrutarem as caras e a roupa das pessoas que se encontravam atrás dela no passeio. Quando ela se aproximou, Neumann afastou-se da montra e começou a avançar na sua direção. O contacto foi breve, um segundo ou dois. Mas, quando terminou, Neumann tinha o rolo na mão e estava a enfiá-lo no bolso do casaco. Ela continuou a andar depressa, desaparecendo por entre a multidão. Neumann seguiu na direção oposta mais uns metros, registando as caras. Depois, parou abruptamente em frente a outra montra, deu meia-volta e seguiu-a discretamente.
Clive Roach avistou Rudolf e viu a troca. Pensou: Vocês são uns sacanas manhosos, não são? Observou Rudolf a parar e depois a dar meia-volta e a caminhar na mesma direção que Catherine Blake. Roach tinha assistido a muitos encontros entre espiões alemães desde
1939, mas nunca tinha visto um agente dar meia-volta para seguir outro. Normalmente, cada um seguia o seu caminho. Roach levantou a gola do oleado para tapar as orelhas e deslizou cuidadosamente atrás deles.
Catherine Blake avançou para leste, seguindo pela Strand, e depois dirigiu-se para o Victoria Embankment. Foi lá que detetou que Neumann se encontrava atrás de si. A sua primeira reação foi de fúria. O procedimento normal para encontros consistia em separarem-se - e depressa - mal a entrega fosse feita. Neumann conhecia o procedimento e tinha-o executado sempre sem falhas. Ela pensou: Porque é que ele me está a seguir agora?
Vogel deve ter-lhe dado ordens para o fazer.
Mas porquê? Só conseguia pensar em duas explicações possíveis: ele tinha perdido a confiança nela e queria ver para onde ela ia ou queria perceber se estava a ser seguida pelo inimigo. Contemplou o Tamisa e depois virou-se e lançou uma olhadela ao Embankment. Neumann não tentou esconder a sua presença. Catherine virou-se novamente e continuou a andar.
Lembrou-se das intermináveis palestras de treino no campo secreto de Vogel na Baviera. Ele tinha-lhe chamado contravigilância, um agente a seguir outro para ter a certeza de que o agente não estava a ser seguido pelo inimigo. Perguntou-se por que razão teria Vogel decidido fazer isso naquela altura. Talvez Vogel quisesse confirmar que as informações que ela andava a receber eram fidedignas certificando-se de que ela não estava a ser seguida pelo inimigo. Bastou considerar sequer essa segunda explicação para que o estômago lhe ardesse de ansiedade. Neumann estava a segui-la porque Vogel suspeitava que ela estava sob vigilância do MI5.
Voltou a parar e a contemplar o rio, forçando-se a manter a calma. A pensar com clareza. Virou-se e olhou para o Embankment. Neumann continuava ali. Evitava intencionalmente o seu olhar, isso era óbvio. Punha-se a contemplar o rio ou a voltar-se para trás, tudo menos olhar para Catherine.
Ela virou-se outra vez e recomeçou a andar. Sentia o coração a ribombar no peito. Foi até à estação de metro de Blackfriars, entrou e comprou um bilhete para Victoria. Neumann foi atrás dela e fez o mesmo, só que o bilhete que comprou foi para a estação seguinte, South Kensington.
Ela avançou rapidamente para a plataforma. Neumann comprou um jornal e seguiu-a. Ela parou à espera do metro. Neumann parou a uns seis metros dela a ler o jornal. Quando o metro apareceu, Catherine aguardou que as portas se abrissem e depois entrou na carruagem. Neumann entrou nessa mesma carruagem, mas por uma porta diferente.
Ela sentou-se. Neumann deixou-se ficar de pé, na outra ponta da carruagem. Catherine não gostou da expressão que ele tinha na cara. Baixou os olhos, abriu a mala e espreitou lá para dentro - uma carteira cheia de dinheiro, uma faca de ponta e mola e uma Mauser carregada, com silenciador e munição extra. Fechou a mala e esperou para ver o que Neumann faria a seguir.
Durante duas horas, Neumann seguiu-a ao longo do West End, de Kensington a Chelsea, de Chelsea a Brompton, de Brompton a Belgravia, de Belgravia a Mayfair. Quando chegaram a Berkeley Square, estava convencido. Eles eram bons - muito bons mesmo -, mas o tempo e a paciência tinham acabado por lhes esgotar os recursos, forçando-os a cometerem um erro. Foi o homem do impermeável que seguia uns quinze metros atrás de si. Cinco minutos antes, Neumann tinha conseguido ver-lhe muito bem a cara. Era a mesma cara que tinha visto quase três horas antes, na Strand, quando tinha ficado com o rolo passado por Catherine, só que nessa altura o homem trazia um oleado verde e um gorro de lã.
Neumann sentiu-se desesperadamente sozinho. Tinha sobrevivido ao pior da guerra - Polónia, Rússia, Creta -, mas nenhuma das capacidades que o tinham ajudado a superar essas batalhas entraria ali em jogo. Pensou no homem atrás de si - esguio, de pele macilenta, provavelmente muito fraco. Neumann poderia matá-lo num instante se quisesse. Mas as velhas regras não se aplicavam àquele jogo. Não pedia pedir reforços por rádio, não podia contar com o apoio dos companheiros. Continuou a andar, surpreendido por se encontrar tão
calmo- Pensou: Andam a seguir-nos há horas, porque é que ainda não nos prenderam aos dois? Achou que sabia a resposta. Era evidente que queriam saber mais. Onde
iria ser entregue o rolo? Onde estava instalado Neumann? Havia mais agentes na rede? Desde que não lhes desse as respostas para essas perguntas, estariam a salvo. Era um trunfo muito fraco, mas, se fosse bem jogado, talvez lhes desse uma possibilidade de se escaparem.
Neumann acelerou o passo. Catherine, alguns metros à sua frente, virou para Bond Street. Parou para chamar um táxi. Neumann avançou mais depressa e depois começou
a correr ligeiramente. Gritou:
- Catherine! Meu Deus, há quanto tempo! Como é que tens passado?
Ela levantou os olhos, alarmada. Neumann pegou-lhe no braço.
- Precisamos de falar - disse Neumann. - Vamos procurar um sítio para beber um chá e pôr a conversa em dia.
A atitude repentina de Neumann foi recebida no centro de operações em West Halkin Street com o impacto de uma bomba de quinhentos quilos. Basil Boothby andava de um lado para o outro a falar ao telefone com o diretor-geral sob grande tensão nervosa. O diretor-geral estava em contacto com o Comité dos Vinte e com o staff do primeiro-ministro nas Salas de Guerra Subterrâneas. Vicary tinha-se envolvido num manto de silêncio e olhava fixamente para a parede, com as mãos fechadas por baixo do queixo. Boothby desligou o telefone com violência e anunciou:
- O Comité dos Vinte diz para os deixarmos à solta.
- Não gosto disso - afirmou Vicary, continuando a fitar a parede. - É evidente que detetaram a vigilância. Neste momento, estão para ali sentados a tentar perceber o que fazer.
- Não tem a certeza disso. Vicary levantou os olhos.
- Nunca tínhamos conseguido reparar num encontro entre ela e outro agente. E agora de repente está sentada num café em Mayfair a beber chá e a comer uma torrada com Rudolf?
- Só a temos sob vigilância há pouco tempo. Tanto quanto sabemos, ela e Rudolf até podem andar a encontrar-se regularmente.
- Há qualquer coisa que não bate certo. Acho que eles detetaram que os estão a vigar. E não só, acho que Rudolf já andava a tentar confirmar isso. Foi por isso que a seguiu depois do encontro na Strand.
- A decisão do Comité dos Vinte está tomada. Eles dizem para os deixarmos à solta, por isso deixamo-los à solta.
- Se eles detetaram a vigilância, não faz sentido deixá-los à solta. Rudolf não vai fazer a entrega e vai manter-se longe de todos os outros agentes da rede. Estar a segui-los agora não nos beneficia em nada. Acabou, Sir Basil.
- Então o que sugere?
- Que avancemos já. Prendê-los mal saiam do café. Boothby olhou para Vicary como se ele tivesse dito uma heresia.
- Estamos a ficar com medo agora, é, Alfred?
- O que quer dizer com isso?
- Quero dizer que a ideia foi sua, logo para início de conversa. Foi o Alfred que a concebeu, foi o Alfred que a vendeu ao primeiro-ministro. O diretor-geral concordou com ela e o Comité dos Vinte aprovou-a. Há várias semanas que um grupo de agentes anda a labutar dia e noite para providenciar o material para aquela pasta. E agora o Alfred quer acabar com tudo, assim sem mais nem menos - disse Sir Basil, estalando os dedos grossos tão alto que pareceu um tiro porque tem um palpite.
- É mais do que um palpite, Sir Basil. Leia o raio dos relatórios de vigilância. Está lá tudo.
Boothby tinha recomeçado a andar de um lado para o outro, com as mãos cruzadas atrás das costas e a cabeça ligeiramente levantada, como se estivesse a fazer um esforço para ouvir qualquer coisa irritante ao longe.
- Eles vão dizer: "Ele era bom nas mensagens por rádio, mas não tinha o sangue-frio necessário para lidar com agentes de carne e osso." É isso que vão dizer de si quando tudo isto terminar: "Na verdade, não foi surpresa. Afinal de contas, ele era um amador. Era só um geniozinho da universidade que deu o seu contributo durante a guerra e depois se esfumou quando tudo terminou. Era bom, muito bom, mas não teve tomates para jogar com a parada alta." E isso que
quer que digam de si? Porque, se for, o melhor é pegar no telefone e dizer ao diretor-geral que acha que devemos acabar já com isto tudo.
Vicary fitou Boothby. Boothby, controlador de agentes. Boothby, da serenidade aristocrática debaixo de fogo. Questionou-se por que i-azão estaria Boothby a tentar
envergonhá-lo para o convencer a ir em frente quando até um cego podia ver que tinham sido desmascarados.
- Acabou - sentenciou Vicary desanimada e monocordicamente. - Eles detetaram a vigilância. Estão ali sentados a planear o que fazer a seguir. Catherine Blake sabe que foi enganada e vai informar Kurt Vogel disso. Vogel vai concluir que a Mulberry é exatamente o contrário daquilo que lhe dissemos. E depois estamos mortos.
- Eles estão por todo o lado - disse Neumann. - O homem do impermeável, a rapariga à espera do autocarro, o homem a entrar na farmácia do outro lado da praça. Já usaram várias caras, várias combinações, várias roupas. Mas andam a seguir-nos desde que saímos da Strand.
Uma empregada trouxe chá. Catherine esperou que ela se fosse embora antes de falar:
- Foi Vogel que te mandou seguir-me?
- Foi.
- E imagino que não tenha explicado porquê, pois não? Neumann abanou a cabeça.
Catherine pegou na chávena de chá, com a mão a tremer. Serviu-se da outra mão para estabilizar a chávena e forçou-se a beber.
- O que te aconteceu à cara?
- Tive um problemazito na aldeia. Nada de grave. Catherine olhou para ele, desconfiada, e perguntou:
- Porque é que eles não nos prenderam?
- Pelas mais variadas razões. Provavelmente, sabem da tua existência há imenso tempo. E, provavelmente, também andam a seguir-te há imenso tempo. Se isso for verdade, então todas as informações que tens andado a receber do comandante Jordan são falsas, uma
cortina de fumo concebida pelos britânicos. E nós temos-lhes feito o favor de passar isso a Berlim.
Ela pousou a chávena. Lançou uma olhadela à rua e depois fitou Neumann, obrigando-se a não olhar para os vigias.
- Se Jordan estiver a trabalhar para os serviços secretos britânicos, podemos partir do princípio de que tudo o que ele tem na pasta é falso: informações que eles queriam que eu visse, informações com o intuito de induzir a Abwehr em erro em relação aos planos dos Aliados para a invasão. Vogel precisa de ser informado disso - disse ela, conseguindo sorrir. - É possível que aqueles sacanas nos tenham acabado de entregar o segredo da invasão.
- Suspeito que tenhas razão. Mas há um problema. Precisamos de dizer isso a Vogel pessoalmente. Temos de partir do princípio de que a via da embaixada portuguesa
se encontra neste momento comprometida. E também temos de partir do princípio de que não podemos utilizar os nossos rádios. Vogel acha que os velhos códigos da Abwehr foram decifrados. É por isso que se serve do rádio tão poucas vezes. Se transmitirmos a Vogel o que sabemos via rádio, os britânicos também vão ficar a saber.
Catherine acendeu um cigarro, com as mãos ainda a tremerem. Acima de tudo, sentia-se furiosa consigo própria. Durante anos, tinha feito tudo e mais alguma coisa para se assegurar de que não estava a ser vigiada pelo outro lado. E depois, quando aconteceu por fim, não tinha dado por isso. Perguntou:
- Como raio é que vamos conseguir sair de Londres?
- Temos umas quantas coisas que podemos utilizar a nosso favor. Número um, isto - disse Neumann, batendo ao de leve no bolso onde se encontrava o rolo. - Posso estar enganado, mas acho que nunca fui seguido. Vogel treinou-me bem e sou muito cuidadoso. Não me parece que saibam como é que entrego o filme ao português: onde é que isso é feito, se há alguma palavra-chave ou outro sinal qualquer que sirva de código. Além disso, também tenho a certeza de que não fui seguido até Hampton Sands. A aldeia é tão pequena que eu saberia se estivesse a ser vigiado. Não sabem onde é que estou alojado nem se ando a trabalhar com mais algum agente. O procedimento normal consiste em localizar todos os elementos de
uma rede e depois acabar com ela de uma só vez. É assim que a Gestapo lida com a Resistência em França e é assim que o MI5 o faria em Londres.
Tudo isso me parece lógico. O que sugeres?
- Vais estar com Jordan hoje à noite? .-Sim.
- A que horas?
- vou encontrar-me com ele às sete para jantar.
- Perfeito - exclamou Neumann. - O que eu quero que tu faças é o seguinte.
Neumann passou os cinco minutos seguintes a explicar pormenorizadamente o seu plano de fuga. Catherine ouviu com atenção, nunca tirando os olhos de cima dele, resistindo à imensa tentação de olhar para os vigias à espera do lado de fora do café. Após terminar, Neumann disse:
- Faças o que fizeres, não podes fazer nada fora do normal. Nada que os possa levar a suspeitar que sabes que estás a ser vigiada. Mantém-te em movimento até ser altura. Vai às compras, vai ao cinema, não fiques em casa. Enquanto eu não entregar este rolo, não corres perigo. Quando chegar a altura, vai para o teu apartamento e vai buscar o rádio. vou lá ter às cinco horas, às cinco em ponto, e entro pela porta de trás. Entendeste?
Catherine assentiu com a cabeça. Neumann disse:
- Só há um problema. Fazes ideia de onde é que eu posso deitar a mão a um carro e a gasolina?
Catherine não conseguiu evitar rir-se.
- Por acaso, até sei de um sítio. Mas não te aconselho a mencio-
nares o meu nome.
Neumann saiu do café primeiro. Vagueou por Mayfair durante meia hora, seguido pelo menos por dois homens - o oleado e o impermeável.
A chuva começou a cair com mais força e o vento tornou-se mais forte. Estava com frio, encharcado até aos ossos e cansado. Precisava de ir repousar para algum sítio,
algum sítio onde se pudesse aquecer durante um bocado, descansar os pés e manter os amigos
Impermeável e Oleado debaixo de olho. Dirigiu-se para Portman Square. Sentia-se mal por estar a envolvê-la, mas, quando tudo terminasse, iriam interrogá-la e concluir
que ela não sabia de nada.
Parou à porta da livraria e espreitou pela montra. Sarah estava em cima do escadote, com o cabelo escuro bem puxado para trás. Bateu ao de leve na montra para não
a assustar. Ela virou-se e o seu rosto iluminou-se num sorriso instantâneo. Pousou os livros e fez-lhe sinal entusiasticamente para entrar. Olhou para ele e exclamou:
- Meu Deus, está com um péssimo aspeto. O que lhe aconteceu à cara?
Neumann hesitou; apercebeu-se de que não tinha uma explicação para o penso na maçã do rosto. Murmurou qualquer coisa sobre uma queda durante o blackout e ela pareceu aceitar a história. Ajudou-o a tirar o casaco e pendurou-o em cima do aquecedor para que secasse. Ele ficou com ela duas horas, fazendo-lhe companhia, ajudando-a a dispor os livros novos nas prateleiras e tomando chá com ela no café do lado quando chegou a altura da sua pausa. Reparou que os antigos vigias se estavam a ir embora e a serem substituídos por novos. Reparou numa carrinha preta estacionada à esquina e partiu do princípio de que os homens na parte da frente pertenciam ao inimigo.
Às 16h30, quando a última luz do dia tinha desaparecido e o blackout se instalara, tirou o casaco de cima do aquecedor e vestiu-o. Ela fez uma cara triste, na brincadeira, e depois pegou-lhe na mão e levou-o para o armazém. Lá, encostou-se à parede, puxou-o contra si e beijou-o.
- Não sei absolutamente nada sobre si, James Porter, mas gosto muito de si. Está triste com qualquer coisa. Gosto disso.
Neumann foi-se embora da livraria, sabendo que nunca mais a voltaria a ver. De Portman Square, dirigiu-se para norte, para a estação de metro de Baker Street, seguido pelo menos por duas pessoas a pé, além da carrinha preta. Entrou na estação, comprou um bilhete para Charing Cross e apanhou o metro seguinte que lá passava. Em Charing Cross, mudou de metro e seguiu para a estação de Euston. com dois homens a perseguirem-no, atravessou o túnel que ligava a estação de metro ao terminal ferroviário. Neumann esperou quinze minutos numa bilheteira e comprou um bilhete para Liverpool.
OS passageiros já estavam a subir a bordo do comboio quando chegou à plataforma. A carruagem ia apinhada. Procurou um compartimento com um lugar vago. Encontrou por fim um, abriu a porta, enfrou e sentou-se.
Olhou para o relógio: faltavam três minutos para o comboio partir. Do lado de fora do compartimento, o corredor estava a encher-se rapidamente de passageiros. Não era invulgar alguns viajantes azarados passarem a viagem inteira em pé ou sentados no corredor. Neumann levantou-se e comprimiu-se todo para sair do compartimento, murmurando qualquer coisa sobre estar mal do estômago. Dirigiu-se para a casa de banho no final da carruagem. Bateu à porta. Não houve resposta. Quando bateu pela segunda vez, espreitou por cima do ombro; o homem que tinha entrado com ele no comboio não o conseguia ver devido aos outros passageiros no corredor.
Perfeito. O comboio começou a andar. Neumann esperou à porta da casa de banho enquanto o comboio ia ganhando velocidade lentamente. Para a maioria das pessoas, já ia demasiado depressa para se saltar em segurança. Neumann esperou mais uns segundos e, a seguir, avançou para a porta, abriu-a de rompante e saltou para a plataforma.
Aterrou suavemente, dando primeiro uns pulinhos e depois começando a andar rapidamente. Levantou os olhos a tempo de avistar um revisor de ar irritado a fechar a porta. Avançou rapidamente para a saída e embrenhou-se no blackout.
Euston Road estava apinhada com o corrupio do final da tarde. Chamou um táxi e entrou. Deu uma morada no East End ao taxista e instalou-se, preparando-se para a viagem.
QUARENTA E OITO
HAMPTON SANDS, NORFOLK
Mary Dogherty esperou sozinha no chalé. Tinha achado sempre que era um sitiozinho adorável - quente, cheio de luz, arejado -, mas naquele momento parecia-lhe claustrofóbico e exíguo como uma catacumba. Lá fora, a grande tempestade que tinha sido prevista abatera-se finalmente sobre a costa de Norfolk. A chuva fustigava as janelas, fazendo
as vidraças chocalharem. O vento soprava em rajadas incessantes, gemendo pelo beiral. Ouviu uma telha a raspar e a ceder no telhado.
Sean não estava lá, tinha ido a Hunstanton buscar Neumann à estação de comboios. Mary afastou-se da janela e recomeçou a andar de um lado para o outro. Fragmentos da conversa que tinham tido de manhã ecoavam-lhe na cabeça sem parar, como um disco riscado num gramofone: submarino para a França... ficar em Berlim uns tempos... passagem para outro país... voltar para -a Irlanda... ires lá ter comigo quando a guerra acabar...
Parecia um pesadelo - como se estivesse a ouvir a conversa de outra pessoa, a vê-la num filme ou a lê-la num livro. A ideia era ridícula: Sean Dogherty, agricultor desfavorecido na costa de Norfolk e simpatizante do IRA, ia apanhar um submarino para a Alemanha. Calculou que fosse o culminar lógico da espionagem feita por Sean. Tinha sido parva em esperar que tudo fosse regressar ao normal após a guerra terminar. Tinha-se iludido a si própria. Sean ia fugir e deixá-la para trás, a braços com as consequências. Que iriam fazer as autoridades?
Diz-lhes só que não sabias de nada, Mary. E o que aconteceria se não acreditassem nela? O que fariam então? Como poderia ela ficar na aldeia se toda a gente soubesse que Sean tinha sido um espião? Seria expulsa da costa de Norfolk. Seria escorraçada de todas as aldeias inglesas onde tentasse instalar-se. Teria de abandonar Hampton Sands.
Teria de abandonar Jenny Colville. Teria de voltar para a Irlanda, para a aldeia desoladora de onde tinha fugido trinta anos antes. Ainda lá tinha família, família
que a podia acolher. A ideia era absolutamente aterradora, mas não teria outra escolha - não quando toda a gente ficasse a saber que Sean tinha espiado para os alemães.
Começou a chorar. Pensou: Raios te partam, Sean Dogherty! Como é que pudeste ser assim tão tonto?
Mary voltou para a janela. No trilho, na direção da aldeia, viu um ponto de luz a oscilar sob a carga de água. Passado um momento, viu o brilho de um oleado molhado e uma silhueta frágil numa bicicleta, com o corpo dobrado para a frente, contra o vento, os cotovelos para fora e os joelhos em grande atividade. Era Jenny Colville. Saiu de cima da bicicleta junto ao portão e empurrou-a pelo trilho. Mary abriu-lhe a porta. O vento soprava em rajadas, atirando a chuva para dentro do chalé. Mary puxou Jenny para dentro e ajudou-a a tirar o casaco e o chapéu molhados.
- Meu Deus, Jenny, o que é que andas a fazer na rua com um tempo destes?
- Oh, Mary, é maravilhoso. Tão ventoso. Tão lindo.
- Está visto que perdeste o juízo, rapariga. Senta-te ao pé da lareira. vou fazer-te um chá quente.
Jenny aqueceu-se à frente da lenha que ardia na lareira.
- Onde está o James? - perguntou.
- Não está cá - gritou Mary da cozinha. - Foi com Sean a algum lado.
- Oh - exclamou Jenny, com Mary a perceber a desilusão na voz dela. - E vai demorar muito tempo?
Mary parou o que estava a fazer e voltou para a sala de estar. Olhou para Jenny e perguntou:
- Porque estás assim tão interessada no James de repente?
- Só o queria ver. Dizer olá. Passar algum tempo com ele. Só isso.
- Só isso? Mas que raio é que tu tens, Jenny?
- É só que gosto dele, Mary. Gosto muito dele. E ele gosta de mim.
- Tu gostas dele e ele gosta de ti? E onde foste buscar uma ideia dessas?
- Eu sei, Mary, acredita. Não me perguntes como é que sei, mas sei.
Mary agarrou-a pelos ombros.
- Presta atenção, Jenny - disse ela, sacudindo Jenny uma vez.
- Estás a prestar atenção?
- Sim, Mary! Estás a magoar-me!
- Afasta-te dele. Esquece-o. Ele não é para ti. Jenny começou a chorar.
- Não o posso esquecer, Mary. Amo-o. E ele ama-me. Eu sei que sim.
- Jenny, ele não te ama. Não me peças para te explicar tudo agora porque não posso, meu amor. Ele é um homem bondoso, mas não é o que parece ser. Esquece isso. Esquece-o! Tens de confiar em mim, minha pequenina. Ele não é para ti.
Jenny conseguiu soltar-se de Mary com violência, recuou e limpou as lágrimas da cara.
- Ele é para mim, Mary. Eu amo-o. Estás aqui presa com o Sean há tanto tempo que já te esqueceste do que é o amor.
A seguir, pegou no casaco e saiu a correr pela porta fora, fechando-a com força. Mary precipitou-se para a janela e ficou a ver Jenny a pedalar pelo meio da tempestade.
A chuva batia no rosto de Jenny enquanto ela seguia na bicicleta pelo trilho ondulante em direção à aldeia. Tinha dito a si mesma que não iria voltar a chorar, mas não conseguia cumprir a palavra. As lágrimas misturaram-se com a chuva e escorreram-lhe pela cara. A aldeia tinha as persianas todas bem fechadas, a loja e o pub estavam fechados e os cortinados opacos dos chalés encontravam-se corridos. Tinha a lanterna no cesto, com o seu fraco feixe amarelo apontado para a escuridão total. A luz quase não dava para ver nada. Atravessou a aldeia e começou a avançar em direção ao seu chalé.
Estava furiosa com Mary. Como se atrevia a intrometer-se entre ela e James? E o que teria querido dizer com aquele comentário Ele não é o que parece ser? E também
estava zangada consigo própria. Sentia uns remorsos terríveis por ter lançado um insulto a Mary quando saíra a correr pela porta fora. Nunca tinham discutido. De
manhã, quando as coisas já tivessem acalmado, Jenny iria voltar lá para pedir desculpa.
Conseguiu distinguir ao longe o contorno do seu chalé, recortado no céu. Saiu de cima da bicicleta junto ao portão, empurrou-a pelo trilho e encostou-a ao chalé.
O pai apareceu lá fora e parou à frente da porta, limpando as mãos a um trapo. Ainda tinha a cara inchada da luta. Jenny tentou passar por ele, mas o pai estendeu
o braço e agarrou-lhe o braço com toda a força.
- Estiveste com ele outra vez?
- Não, papá! - gritou ela, cheia de dores. - Por favor, estás a magoar-me o braço!
Ele levantou a outra mão para lhe bater, com a horrível cara inchada a contorcer-se de raiva.
- Diz-me a verdade, Jenny! Estiveste com ele outra vez?
- Não, juro! - gritou ela, erguendo os braços à frente da cara para se proteger do golpe que esperava que surgisse a qualquer momento. - Por favor, papá, não me batas! Estou a dizer-te a verdade!
Martin Colville largou-a.
- Vai lá para dentro e faz-me qualquer coisa para eu comer.
Ela quis gritar-lhe: Faz tu o raio do teu jantar, para variar! Mas sabia onde isso levaria. Olhou para a cara dele e, por um instante, deu por si a desejar que James o tivesse matado. Esta é a última vez, pensou. Esta é mesmo a última vez. Entrou em casa, despiu o casaco encharcado, pendurou-o na parede da cozinha e começou a tratar-lhe do jantar.
QUARENTA E NOVE
LONDRES
Clive Roach soube que estava em apuros mal Rudolf entrou na carruagem apinhada de gente. Roach não teria problemas desde que o agente se deixasse ficar sentado no compartimento. Mas se o agente saísse do compartimento para ir à casa de banho, à carruagem-restaurante ou a outra qualquer, Roach ficaria em apuros. Os corredores estavam entupidos com viajantes, uns em pé e outros sentados, a tentarem em vão dormir. Era uma provação uma pessoa deslocar-se pelo comboio; tinha de se comprimir e empurrar os outros passageiros e estar constantemente a dizer com licença e Peço desculpa. Tentar seguir alguém sem se ser detetado seria difícil - provavelmente, impossível, se o agente fosse bom. E tudo o que Roach tinha visto até então lhe indicava que Rudolf era bom.
Roach ficou desconfiado quando Rudolf, agarrado ao estômago, saiu do compartimento com o comboio ainda parado na plataforma em Euston e rompeu pelo corredor apinhado. Rudolf era pequeno, não tinha mais do que um metro e sessenta e cinco, e a cabeça dele desapareceu rapidamente no mar de passageiros. Roach avançou uns quantos passos a custo, recebendo em troca os protestos e os gemidos dos outros passageiros. Sentia-se relutante em aproximar-se demasiado; Rudolf tinha voltado para trás várias vezes nesse dia e Roach receava que ele lhe tivesse visto a cara. O corredor estava mal iluminado por causa do regulamento do blackout e já se encontrava envolto num manto de fumo de cigarro que mais parecia nevoeiro
cerrado. Roach manteve-se nas sombras e ficou a ver Rudolf bater à porta da casa de banho duas vezes. Outro passageiro empurrou-o para passar, obstruindo-lhe a visão
por alguns segundos apenas. Quando voltou a olhar, já Rudolf tinha desaparecido.
Roach não saiu de onde se encontrava durante três minutos, observando a porta da casa de banho. Outro homem aproximou-se, bateu à porta e, a seguir, entrou na casa
de banho e fechou-a.
Começaram a tocar campainhas de alarme na cabeça de Roach.
Avançou aos empurrões pelo meio do emaranhado de passageiros no corredor, parou à frente da porta da casa de banho e começou a bater nela com toda a força.
- Espere pela sua vez, como toda a gente - disse a voz do outro lado.
- Abra a porta, emergência policial.
O homem abriu a porta uns segundos mais tarde, ainda a apertar a braguilha. Roach espreitou lá para dentro para ter a certeza de que Rudolf não estava lá. Maldição! Abriu de rompante a porta que dava para a carruagem seguinte e entrou nela. Tal como a anterior, estava às escuras, cheia de fumo e desesperadamente apinhada de passageiros. Naquele momento, seria impossível descobrir Rudolf sem revirar o comboio carruagem atrás de carruagem, compartimento atrás de compartimento.
Pensou: Como é que ele desapareceu tão depressa?
Regressou apressadamente para a primeira carruagem e deu com o revisor, um velho com óculos de aros de aço e um pé aleijado. Roach sacou da fotografia de vigilância de Rudolf e meteu-a à frente da cara do revisor.
- Viu este homem?
- Um sujeito pequeno?
- Sim - confirmou Roach, cada vez mais desanimando e pensando: Maldição! Maldição!
- Saltou do comboio quando estávamos a sair de Euston. Foi uma sorte não ter partido o raio da perna.
- Jesus! Porque não disse nada?
Apercebeu-se do ridículo que devia ter soado aquele comentário. Obrigou-se a falar com mais calma:
- Qual é a primeira paragem deste comboio?
- Watford.
- Quando?
- Daqui a uma meia hora.
- Demasiado tempo. Tenho de sair já deste comboio.
Roach esticou-se, agarrou o travão de emergência e puxou. O comboio abrandou de imediato quando o travão foi acionado e começou a parar.
O velho revisor olhou para Roach, pestanejando por trás dos óculos, e perguntou:
- O senhor não é um polícia normal, pois não?
Roach não disse nada e o comboio parou por completo. Abriu a porta de rompante, desceu para a linha e desapareceu pela escuridão dentro.
Neumann pagou ao taxista quando se encontrava a pouca distância do armazém dos Pope e, a seguir, fez o resto do caminho a pé. Passou a Mauser da cintura das calças para o bolso da frente do casacão e depois levantou a gola para se proteger da chuva forte. O primeiro ato tinha corrido sem problemas. O logro a bordo do comboio funcionara exatamente como esperava. Neumann tinha a certeza de não ter sido seguido após sair da estação de Euston. Isso queria dizer uma coisa: o Impermeável, o homem que o tinha seguido até ao comboio, continuava quase de certeza a bordo dele e a sair de Londres, a caminho de Liverpool. O vigia não era um idiota. Mais tarde ou mais cedo, acabaria por se aperceber de que Neumann não tinha voltado para o compartimento e efetuaria uma busca. Era possível que fizesse algumas perguntas. A fuga de Neumann não passara despercebida; o revisor tinha-o visto saltar do comboio. Quando o vigia percebesse que Neumann já não se encontrava no comboio, sairia na paragem seguinte e telefonaria aos superiores em Londres. Neumann deu-se conta de que tinha uma janela de oportunidade muito limitada. Tinha de atuar depressa.
O armazém estava às escuras e parecia deserto. Neumann tocou à campainha e aguardou. Não houve resposta. Voltou a tocar à campainha e dessa vez ouviu o ruído de passos do outro lado. Passado
um momento, a porta foi aberta por um gigante de cabelo preto e casaco de cabedal.
- O que quer?
- Gostaria de falar com o senhor Pope, por favor - respondeu Neumann educadamente. - Preciso de alguns artigos e disseram-me que este era, sem dúvida, o sítio indicado.
- O senhor Pope já cá não está e nós fechámos, por isso desapareça.
O gigante começou a fechar a porta. Neumann enfiou o pé para o impedir.
- Peço desculpa. É realmente muito urgente. Talvez o senhor me possa ajudar.
O gigante olhou para Neumann com uma expressão de perplexidade. Parecia estar a tentar conciliar o sotaque de colégio privado com o casacão e o penso na cara.
- Estou a ver que não me ouviu da primeira vez - respondeu ele. - Fechámos. Para sempre - atirou, agarrando em Neumann pelo ombro. - Agora, ponha-se a andar.
Neumann deu um murro na maçã de Adão do gigante e, a seguir, sacou da Mauser e deu-lhe um tiro no pé. O homem caiu redondo no chão, uivando de dor ou esforçando-se por respirar. Neumann entrou e fechou o portão. O armazém era tal e qual como Catherine o tinha descrito: carrinhas, carros, motas, pilhas de comida do mercado negro e vários bidões de gasolina.
Neumann debruçou-se e disse:
- Se te mexeres, dou-te outro tiro e não vai ser no pé. Estás a entender?
O gigante grunhiu.
Neumann escolheu uma carrinha preta, abriu a porta e ligou o motor. Agarrou em dois bidões de gasolina e enfiou-os na parte de trás da carrinha. Pensando bem, era uma viagem muito longa. Pegou noutros dois e enfiou-os também lá. Entrou para a carrinha, levou-a até à entrada do armazém e, a seguir, saiu e abriu o portão principal.
Antes de se ir embora, ajoelhou-se ao lado do homem que tinha ferido e disse-lhe:
- Se fosse a ti, ia já para um hospital.
O homem olhou para Neumann, mais confuso do que nunca.
- Mas que raio, quem és tu, pá?
Neumann sorriu, sabendo que a verdade soaria tão absurda que o homem nunca acreditaria nela.
- Sou um espião alemão que anda a fugir do MI5.
- Pois, e eu sou o raio do Adolf Hitler.
Neumann entrou para a carrinha e arrancou a grande velocidade.
Harry Dalton tirou as proteções dos faróis e atravessou Londres perigosamente depressa, em direção a oeste. A divisão dos Transportes tinha-lhe disponibilizado um
bom motorista, capaz de andar a alta velocidade, mas Harry quis ser ele a guiar. Ia serpenteando pelo meio dos carros, a buzinar sem parar. Vicary ia sentado ao seu lado, à frente, agarrando com força e nervosamente o painel de instrumentos. Os limpa-para-brisas esforçavam-se em vão por afastar a chuva. Ao virar para Cromwell Road, Harry acelerou tanto que a traseira do carro derrapou no alcatrão escorregadio. Continuou a serpentear entre o trânsito e depois virou para sul, para Earl's Court. Entrou numa pequena rua secundária e, a seguir, avançou a toda a velocidade por uma ruela estreita, guinando uma vez para evitar um caixote do lixo e depois outra para se esquivar de um gato. Travou a fundo por trás de um prédio de apartamentos e fez o carro parar abruptamente.
Harry e Vicary saíram do carro e entraram no prédio pela porta de serviço, nas traseiras, e subiram as escadas a correr, em direção ao posto de vigilância no quinto andar. Ignorando a dor que lhe rasgava o joelho como uma faca, Vicary acompanhou o ritmo de Harry.
Pensou: Se ao menos Boothby me tivesse deixado prendê-los há umas horas, não estaríamos neste sarilho.
Era um verdadeiro desastre.
O agente com o nome de código Rudolf tinha acabado de saltar de um comboio na estação de Euston e desaparecido na cidade. Vicary tinha de partir do princípio de que ele estava naquele momento a tentar fugir do país. Não tinha outra escolha a não ser prender
Catherine Blake; precisava dela detida e assustada de morte. Nesse caso, talvez lhes dissesse para onde fora Rudolf e como planeava escapar, se havia ou não outros agentes envolvidos e onde guardava ele o rádio.
Vicary não estava otimista. Tudo o que pressentia em relação àquela mulher lhe dizia que ela não iria colaborar, mesmo enfrentando uma execução. Tudo o que precisava de fazer era aguentar o tempo necessário para Rudolf poder escapar. Se fizesse isso, a Abwehr ficaria na posse de provas que indiciavam que os serviços secretos britânicos estavam empenhados num gigantesco logro. As consequências seriam demasiado tenebrosas para considerar a hipótese. Todo o trabalho que dedicara à Operação Fortitude seria desperdiçado. Os alemães deduziriam que os Aliados desembarcariam na Normandia. A invasão teria de ser adiada e planeada de novo; caso contrário, terminaria numa catástrofe sangrenta. A ocupação da Europa Ocidental por Hitler, com mão de ferro, prosseguiria. Morreria mais um número incontável de pessoas. E tudo porque a operação de Vicary se tinha desmoronado. Naquele momento, tinham uma hipótese apenas: prendê-la, obrigá-la a falar e deter Rudolf antes que ele pudesse fugir do país ou utilizar o rádio.
Harry abriu a porta do apartamento que servia de posto de vigilância e entraram ambos. As cortinas estavam abertas, deixando ver a rua e a sala às escuras. Vicary esforçou-se por distinguir os vultos que se encontravam na sala, lembrando pelas suas poses estátuas num jardim às escuras: dois vigias com olhos congestionados, imóveis à janela; meia dúzia de homens tensos da Divisão Especial, encostados a uma parede. O agente da Divisão Especial de posição superior chamava-se Cárter. Era grande e de rosto rude, com um pescoço grosso e pele bexigosa. Tinha um cigarro, apagado por motivos de segurança, a pender-lhe do canto da boca grande. Quando Harry apresentou Vicary, apertou-lhe a mão e, a seguir, levou-o para a janela para lhe explicar a disposição das forças ao seu comando. O cigarro apagado ia soltando cinza enquanto ele falava.
- Vamos entrar pela porta da frente - disse Cárter, com um ligeiro sotaque do norte de Inglaterra. - Quando o fizermos, vamos
fechar a rua numa e noutra ponta e dois homens vão vigiar as traseiras do prédio. Assim que entrarmos lá dentro, ela não vai poder fugir para lado nenhum.
- É extremamente importante que a capturem viva - sublinhou Vicary. - Não nos serve absolutamente de nada morta.
- Harry diz que ela tem jeito para as armas.
- É verdade. Temos razões para acreditar que ela tem uma pistola e está disposta a utilizá-la.
- Vamos capturá-la tão depressa que ela nem vai perceber o que lhe aconteceu. Estamos prontos assim que nos mandar avançar.
Vicary afastou-se da janela e atravessou a sala, dirigindo-se para o telefone. Marcou o número do departamento e esperou que a telefonista passasse a chamada para o gabinete de Boothby.
- Os homens da Divisão Especial estão prontos para avançar assim que lhes dermos essa ordem - anunciou Vicary quando a voz de Boothby se ouviu do outro lado da linha. -Já temos autorização?
- Não. O Comité dos Vinte ainda está a deliberar. E não podemos avançar até eles aprovarem isso. Agora, a bola está do lado deles.
- Meu Deus! Se calhar, alguém devia explicar ao Comité dos Vinte que tempo é coisa que não temos em grande abundância nesta altura. Para termos sequer uma hipótese mínima de apanhar Rudolf, precisamos de saber para onde é que ele vai.
- Eu compreendo o seu dilema - retorquiu Boothby. Vicary pensou: O seu dilema. O meu dilema, Sir Basil? Atirou:
- E quando é que eles vão decidir?
- A qualquer momento. Ligo-lhe logo a seguir.
Vicary desligou e começou a percorrer a sala escura. Virou-se para um dos vigias e perguntou:
- Há quanto tempo é que ela já ali está?
- Há coisa de um quarto de hora.
- Um quarto de hora? Porque é que ela ficou tanto tempo na rua? Não estou a gostar disto.
O telefone tocou. Vicary lançou-se para o atender e levou o auscultador ao ouvido. Basil Boothby disse:
- Temos a aprovação do Comité dos Vinte. Prenda-a, Alfred. E boa sorte.
Vicary bateu com o auscultador com força.
- Luz verde, cavalheiros - afirmou, voltando-se para Harry. Viva. Precisamos dela viva.
Harry assentiu com a cabeça, de cara fechada, e depois conduziu os homens da Divisão Especial para fora do apartamento, em fila indiana. Vicary ouviu o ruído dos seus passos ao descerem as escadas a desaparecer gradualmente. A seguir, passado um momento, viu-Ihes as cabeças quando saíram do prédio e começaram a atravessar a rua em direção ao apartamento de Catherine Blake.
Horst Neumann estacionou a carrinha numa pequena e sossegada rua secundária, ao virar da esquina do apartamento de Catherine. Saiu e fechou a porta sem fazer barulho. Seguiu rapidamente pelo passeio, com as mãos bem enfiadas nos bolsos, uma delas agarrada à coronha da Mauser.
A rua estava completamente às escuras. Chegou ao monte de destroços que tinha sido em tempos a fila de casas por trás do apartamento. Foi avançando às apalpadelas pelo meio de madeira partida, tijolos desfeitos e canos retorcidos. Os destroços terminavam numa parede com quase dois metros de altura. Do lado de lá da parede,
encontrava-se o jardim que ficava nas traseiras da casa - Neumann já o tinha visto da janela do quarto dela. Experimentou o portão; estava trancado. Teria de o abrir
pelo outro lado.
Colocou as mãos no cimo da parede, fez força com as pernas e puxou com os braços. Já em cima da parede, passou uma perna para o outro lado e rodou o corpo. Ficou assim pendurado durante alguns segundos, a olhar para baixo. O chão era invisível na escuridão. Podia cair em cima de qualquer coisa - num cão que estivesse a dormir ou numa fila de caixotes do lixo, que fariam uma barulheira terrível se aterrasse em cima deles. Pôs a hipótese de acender a lanterna por um segundo, mas isso poderia atrair atenções. Saltou da parede e caiu pela escuridão abaixo. Não havia cães nem caixotes do lixo, só um arbusto espinhoso qualquer que se espetou na sua cara
e no casaco.
Neumann libertou-se dos espinhos do arbusto e depois destrancou o portão. Atravessou o jardim até à porta das traseiras. Experimentou o trinco - estava trancada. A porta tinha uma janela. Enfiou a mão no bolso do casaco, tirou a Mauser e serviu-se dela para partir a vidraça no canto inferior esquerdo. O barulho foi surpreendentemente alto. Enfiou a mão pela vidraça partida, destrancou a porta e, a seguir, subiu as escadas.
Chegou à porta de Catherine e bateu ao de leve.
Do lado de lá da porta, ouviu a voz dela a perguntar:
- Quem é?
- Sou eu.
Ela abriu a porta. Neumann entrou e fechou-a. Catherine usava calças, uma camisola grossa e um casaco de cabedal. A mala rádio estava encostada à porta. Neumann
olhou para a cara dela. Estava pálida.
- Pode ser imaginação minha - disse ela -, mas acho que se passa qualquer coisa lá em baixo. Vi uns homens a rondar a rua e dentro de carros estacionados.
O apartamento estava às escuras, com uma única luz acesa na sala de estar. Neumann atravessou a sala rapidamente, em poucas passadas, e desligou-a. Foi até à janela e levantou a ponta do cortinado opaco, espreitando para a rua. O trânsito noturno circulava lá em baixo, lançando a luz necessária para que ele visse quatro homens a saírem em grande velocidade do prédio em frente, do outro lado da rua, e a avançarem em direção a eles.
Neumann virou-se e arrancou a Mauser do bolso.
- Eles vêm aí. Pega no rádio e segue-me lá para baixo. Já!
Harry Dalton abriu de rompante a porta da frente do prédio e entrou, com os homens da Divisão Especial logo atrás. Acendeu a luz do vestíbulo a tempo de ver Catherine Blake fugir pela porta das traseiras, com a mala do rádio a balançar-lhe no braço.
Horst Neumann tinha aberto a porta das traseiras a pontapé e estava a correr pelo jardim quando ouviu o grito vindo da casa. Avançou a toda a velocidade pela cortina de escuridão, com a Mauser à sua frente e a mão esticada. O portão abriu-se de rompante e uma figura surgiu lá, em silhueta de pistola erguida. Gritou a Neumann para parar. Neumann continuou a correr, disparando duas vezes. O primeiro tiro atingiu o homem no ombro, fazendo-o rodar. O segundo desfez-Ihe a espinha, matando-o de imediato.
Um segundo homem ocupou o lugar dele e tentou disparar. Neumann apertou o gatilho. A Mauser deu um salto na sua mão, sem fazer praticamente barulho, apenas o clique surdo do mecanismo de disparo. A cabeça do homem explodiu.
Neumann atravessou o portão a correr, passando por cima dos corpos e espreitando no meio do blackout. Não havia mais ninguém atrás da casa. Voltou-se e viu Catherine, a poucos metros dele, a correr com o rádio. Estavam três homens a persegui-la. Neumann ergueu a pistola e disparou para a escuridão. Ouviu dois homens a gritarem. Catherine continuou a correr.
Ele virou-se e começou a atravessar os destroços em direção à carrinha.
Harry sentiu as balas passarem-lhe rente à cabeça. Ouviu os gritos dos dois homens que iam atrás de si. Ela estava mesmo à sua frente. Mergulhou na escuridão, com os braços esticados para a frente. Apercebeu-se de que se encontrava numa situação de clara desvantagem; estava desarmado e sozinho. Podia parar e procurar uma das armas dos homens da Divisão Especial, para depois os perseguir e tentar alvejá-los aos dois. Mas o mais certo seria Rudolf matá-lo algures pelo caminho. Podia parar, dar meia-volta, voltar para dentro do prédio e avisar o posto de vigilância. Mas, por essa altura, já Catherine Blake e Rudolf teriam desaparecido há muito, eles seriam obrigados a recomeçar a maldita busca desde o início, os espiões utilizariam o rádio para comunicar a Berlim o que tinham descoberto e a porra da guerra estaria perdida, raios partam!
O rádio!
Pensou: Posso já não ser capaz de os parar, mas posso cortar-lhes o acesso a Berlim durante algum tempo.
Harry saltou no meio da escuridão, soltando um grito profundo, e agarrou a mala com as duas mãos. Tentou arrancá-la a Catherine, mas ela virou-se e puxou pela mala
com uma força surpreendente. Ele levantou os olhos e viu pela primeira vez a cara dela: vermelha, contorcida de medo e feia de raiva. Tentou arrancar-lhe a mala
das mãos novamente, mas não a conseguiu soltar; Catherine tinha os dedos bem cerrados à volta da pega, como um torno. Ela gritou pelo nome verdadeiro de Rudolf.
Soou a Wurst.
Foi então que Harry ouviu um clique. Já o tinha ouvido nas ruas da zona leste de Londres, antes da guerra, o som da lâmina de uma faca de ponta e mola a ser aberta
com um estalido. Viu o braço dela erguer-se e depois a baixar-se num arco violento em direção à sua garganta. Se ele levantasse o braço, poderia desviar o golpe.
Mas isso significaria que ela seria capaz de arrancar o rádio das mãos dele. Continuou a agarrá-lo e tentou esquivar-se da faca rodando a cabeça. A ponta da lâmina
acertou-lhe de lado na cara. Sentiu a carne rasgar-se. A dor surgiu passado um instante - penetrante, como se lhe tivessem atirado metal derretido à cara. Harry gritou, mas não largou a mala. Ela ergueu o braço novamente, enterrando-lhe desta feita a ponta da faca no antebraço. Harry berrou outra vez de dor, com os dentes cerrados, mas as mãos continuaram agarradas à mala. Era como se já estivessem a agir por sua própria vontade. Nada, nenhuma dor no mundo, seria capaz de as obrigar a soltarem-se.
Ela largou a mala e disse:
- É um homem corajoso, se está disposto a morrer por um rádio.
A seguir, virou-se e desapareceu no meio da escuridão.
Harry ficou deitado no chão molhado. Quando ela já estava longe dali, levou a mão à cara e ficou com vontade de vomitar quando sentiu o osso quente do próprio maxilar. Estava a perder os sentidos; a dor começava a esbater-se. Ouviu os homens da Divisão Especial que tinham sido feridos a gemerem ali perto. Sentiu a chuva bater-lhe na cara. Fechou os olhos. Sentiu alguém a encostar-lhe qualquer coisa à cara. Quando abriu os olhos, viu Alfred Vicary debruçar-se sobre ele.
- Disse-lhe para ter cuidado, Harry.
- Ela levou o rádio?
- Não. O Harry impediu-a de levar o rádio.
- E eles escaparam-se?
- Sim. Mas estamos a persegui-los.
Foi então que a dor se apoderou de Harry muito repentinamente. Começou a tremer e pareceu-lhe que ia vomitar. A seguir, o rosto de Vicary transformou-se em água e Harry perdeu os sentidos.
CINQUENTA LONDRES
Uma hora após o desastre em EarPs Court, Alfred Vicary já tinha orquestrado a maior caça ao homem da história do Reino Unido. Todas as esquadras de polícia do país - de Penzance a Dover, de Portsmouth a Inverness - receberam uma descrição dos espiões fugitivos. Para as cidades, povoações e aldeias perto de Londres, Vicary enviou fotografias por estafetas de mota. Foi dito à maioria dos polícias envolvidos na busca que os fugitivos eram suspeitos em quatro homicídios ocorridos já em 1938. Um punhado de agentes com posições de grande importância foi discretamente informado de que se tratava de um assunto de segurança da máxima importância - tão importante que o primeiro-ministro se encontrava a acompanhar a evolução da caçada pessoalmente.
A Polícia Metropolitana de Londres respondeu com velocidade extraordinária e, quinze minutos depois do primeiro telefonema de Vicary, já tinham sido estabelecidas barricadas em todas as principais artérias que saíam da cidade. Vicary tentou abranger todos os percursos de fuga possíveis. O MI5 e a polícia ferroviária rondavam as estações mais importantes. Os operadores dos ferríes irlandeses também receberam uma descrição dos suspeitos.
A seguir, Vicary contactou a BBC e pediu para falar com o chefe de redação que se encontrava em serviço. No noticiário das nove horas, a notícia de abertura da BBC foi um tiroteio em Earl's Court, que tinha deixado dois polícias mortos e três feridos. A notícia incluía
uma descrição de Catherine Blake e de Rudolf e concluía com um número de telefone para onde as pessoas podiam ligar para prestarem informações. Passados cinco minutos, os telefones começaram a tocar. As datilógrafas transcreveram todas as chamadas bem-intencionadas e transmitiram-nas a Vicary. Este atirou a maior parte logo para o cesto do lixo. Investigou algumas. Nenhuma deu qualquer resultado.
A seguir, voltou a atenção para os percursos de fuga que apenas um espião utilizaria. Contactou a RAF e pediu-lhes para estarem atentos a aviões leves. Contactou o Almirantado e pediu-lhes para terem atenção a eventuais submarinos que se aproximassem da costa. Contactou a Polícia Marítima e pediu-lhes para ficarem atentos a pequenas embarcações que seguissem para o mar. Telefonou para os monitores das estações de recolha de comunicações e pediu-lhes para ouvirem atentamente as transmissões radiofónicas e informarem se
fossem suspeitas.
Vicary levantou-se da secretária e saiu do gabinete pela primeira vez em duas horas. O centro de operações em West Halkin Street tinha sido abandonado e a sua equipa já regressara lentamente a St. James's Street. Estavam sentados na área comum à saída do gabinete, como sobreviventes aturdidos de um desastre natural, molhados, exaustos, derrotados. Clive Roach estava sentado sozinho, cabisbaixo e de mãos entrelaçadas. De quando em quando, um dos vigias pousava a mão no ombro dele, murmurava-lhe ao ouvido palavras encoraj adoras e seguia o seu caminho em silêncio. Peter Jordan andava de um lado para o outro. Tony Blair estava a fitá-lo com um olhar assassino. O único som que se ouvia era o dos teleimpressores e o da tagarelice das raparigas ao telefone.
O silêncio foi interrompido por uns minutos, às nove horas, quando Harry Dalton entrou na sala com a cara e o braço enfaixados. Toda a gente se levantou para se amontoar à volta dele - Muito bem, Harry, meu velho... mereces uma medalha... mantiveste-nos à tona, Harry... estava tudo acabado se não fosses tu...
Vicary puxou-o para dentro do gabinete.
- Não devia estar deitado a descansar?
- Sim, mas prefiro estar aqui.
- E como estão as dores?
- Podiam estar piores. Deram-me umas coisas para ajudar.
- Ainda tem dúvidas de qual seria a sua reação debaixo de fogo, no campo de batalha?
Harry conseguiu esboçar um meio sorriso, baixou os olhos e abanou a cabeça.
- Já houve algum avanço? - perguntou, mudando rapidamente de assunto.
Vicary abanou a cabeça.
- O que fez?
Vicary pô-lo a par das medidas tomadas.
- Foi uma jogada arrojada da parte de Rudolf ter ido buscá-la daquela maneira, sacando-a mesmo debaixo do nosso nariz. Ele tem coragem, lá isso não há que negar. E como é que Boothby está a reagir?
- Tão bem quanto seria de esperar. Está lá em cima com o diretor-geral. Provavelmente, a planear a minha execução. Temos uma linha aberta para as Salas de Guerra Subterrâneas e o primeiro-ministro. O Velho está a receber atualizações a cada minuto. Quem me dera ter qualquer coisa para lhe dizer.
- Não deixou escapar nenhuma opção possível. Agora, só lhe resta sentar-se e esperar que haja algum avanço. Eles têm de se mexer para algum lado. E, quando o fizerem, vamos logo saber.
- Quem me dera partilhar do seu otimismo.
Harry fez um esgar de dor e pareceu subitamente muito cansado.
- vou deitar-me um bocado. Começou a sair do gabinete devagar. Vicary perguntou:
- Grace Clarendon está de serviço hoje à noite?
- Sim, acho que sim.
O telefone tocou. Basil Boothby disse:
- Venha cá acima imediatamente, Alfred.
A luz verde estava acesa sobre a porta do gabinete de Boothby. Vicary entrou e deu com Sir Basil a andar de um lado para o outro e a fumar sem parar. Tinha tirado o casaco; o colete estava desabotoado e o nó da gravata folgado. com um ar irritado, fez sinal a Vicary para se sentar numa cadeira e disse:
- Sente-se, Alfred. Bem, hoje à noite as luzes estão acesas por toda a Londres: Grosvenor Square, o quartel-general pessoal de gisenhower em Hayes Lodge, as Salas de Guerra Subterrâneas. E querem todos saber uma coisa. Será que Hitler sabe que é na Normandia? Será que a invasão está acabada mesmo antes de começar?
- Evidentemente, ainda não temos forma de saber isso.
- Meu Deus! - exclamou Boothby, esmagando o cigarro e acendendo outro logo de seguida. - Dois agentes da Divisão Especial mortos, outros três feridos. O que nos valeu foi o Harry.
- Ele está lá em baixo. Tenho a certeza de que gostaria de ouvir isso da sua boca.
- Não temos tempo para conversas para animar as hostes, Alfred. Precisamos de os parar e de fazer isso depressa. Não preciso de lhe explicar o que está em jogo.
- Pois não, Sir Basil, não precisa.
- O primeiro-ministro quer atualizações de meia em meia hora. Há alguma coisa que eu lhe possa dizer?
- Infelizmente, não. Não deixámos escapar nenhum percurso de fuga possível. Quem me dera poder dizer com toda a segurança que os vamos apanhar, mas acho que seria pouco prudente subestimá-los. Já provaram isso vezes sem conta.
Boothby recomeçou a andar de um lado para o outro.
- Dois homens mortos, três feridos e dois espiões, na posse de informações capazes de desvendar o logro que orquestrámos, em fuga, nscusado será dizer, isto é o pior desastre da história do departamento.
- A Divisão Especial avançou com os homens que considerou necessários para a prender. Obviamente, foi um erro de cálculo.
Boothby parou de se mexer e lançou um olhar assassino a Vicary.
- Não tente culpar a Divisão Especial pelo que aconteceu, Alfred. Você era o agente mais graduado no local. Esse aspeto da Operação Kettledrum era da sua responsabilidade.
- Tenho consciência disso, Sir Basil.
- Otimo, já que, quando tudo isto terminar, vai reunir-se um comité interno e duvido que o seu desempenho seja visto com bons olhos.
Vicary levantou-se.
- É tudo, Sir Basil?
- Sim.
Vicary deu meia-volta e dirigiu-se para a porta.
O uivo longínquo das sirenes de ataque aéreo começou a ouvir-se quando Vicary estava a descer as escadas para a divisão dos Registos. As salas estavam parcialmente às escuras, apenas com uma ou outra luz acesa. Como sempre, o cheiro daquele sítio não passou despercebido a Vicary: papel em decomposição, pó, humidade e um ténue vestígio do tenebroso cachimbo de Nicholas Jago. Olhou para o gabinete envidraçado de Jago. A luz estava apagada e a porta bem fechada. Ouviu o som vivo de sapatos de mulher a baterem no chão e reconheceu a passada tempestuosa e enérgica de Grace Clarendon, digna de uma parada militar. Viu o seu cabelo loiro a passar rapidamente pelas pilhas de documentos, como uma aparição, e depois a desaparecer. Seguiu-a até uma das salas laterais e chamou-a ainda a uma certa distância, para não a assustar. Ela virou-se, fitou-o com olhos verdes hostis e depois voltou-se outra vez de costas para ele e recomeçou a arquivar os documentos.
- Isto é oficial, professor Vicary? - perguntou ela. - É que, se não for, vou ter de lhe pedir para se ir embora. Já me causou problemas suficientes. Se me virem a falar outra vez consigo, será uma sorte se conseguir emprego como o raio de uma fiscal do blackout. Por favor, vá-se embora, professor.
- Preciso de consultar um dossiê, Grace.
- Sabe qual é o procedimento, professor. Preencha uma requisição. Se a requisição for autorizada, pode consultar o ficheiro.
- Não me vão dar autorização para consultar o dossiê que preciso de consultar.
- Então não o pode consultar - retorquiu ela, com a voz a adquirir o tom de fria eficiência de uma diretora de escola. - As regras são essas.
As primeiras bombas começaram a cair do lado de lá do rio, segundo levava a crer o barulho. Foi então que as baterias antiaéreas
dos parques abriram fogo. Vicary ouviu o zumbido dos bombardeiros Heinkel por cima da cabeça. Grace parou o que estava a fazer e olhou para cima. Uma rajada de bombas
caiu ali perto - demasiado perto, já que todo o edifício começou a abanar e os dossiês a caírem das prateleiras. Grace olhou para aquela confusão e exclamou:
- Raios me partam!
- Eu sei que Boothby a anda a obrigar a fazer coisas que a Grace não quer. Ouvi-vos a discutirem no gabinete dele e vi-a a entrar para o carro dele na Northumberland Avenue ontem à noite. E não me diga que andam apenas envolvidos romanticamente porque eu sei que está apaixonada por Harry.
Vicary reparou no brilho das lágrimas nos olhos verdes de Grace e o dossiê que ela segurava começou a tremer.
- A culpa é sua, maldição! - disparou ela. - Se não lhe tivesse falado do dossiê Vogel, não estava metida neste sarilho.
- O que é que ele a está a obrigar a fazer? Ela hesitou.
- Por favor, vá-se embora, professor. Por favor.
- Não me vou embora enquanto não me disser o que é que Boothby queria que a Grace fizesse.
- Raios, professor Vicary, ele queria que eu o espiasse a si! E a Harry! - gritou ela, forçando-se depois a baixar a voz. - Tudo o que Harry me contasse, fosse na cama ou noutro sítio, devia ser-lhe transmitido.
- E o que lhe contou?
- Tudo o que Harry me mencionou sobre o caso e os avanços na investigação. E também lhe falei da pesquisa que o senhor pediu para fazer na base de dados dos Registos - explicou ela, tirando um punhado de dossiês do carrinho e recomeçando a arquivá-los. Ouvi dizer que Harry esteve envolvido naquela confusão em Earl's Court.
- Esteve, sim senhor. Aliás, ele é o homem do momento.
- E ficou ferido?
Vicary assentiu com a cabeça.
- Está lá em cima. Os médicos não conseguiram que ele ficasse
na cama.
- Provavelmente, fez qualquer coisa estúpida, não foi? A tentar provar o que vale. Meu Deus, às vezes, ele é mesmo capaz de ser um idiota teimoso e estúpido.
- Grace, preciso de consultar um dossiê. Boothby vai despedir-me quando este assunto estiver terminado e eu só preciso de saber porquê.
Ela fitou-o com uma expressão grave.
- Está a falar a sério, não está, professor?
- Infelizmente, sim.
Sem dizer nada, ela olhou para ele durante um momento, ao mesmo tempo que o prédio estremecia com as ondas de choque da bomba.
- Qual é o dossiê? - perguntou.
- O de uma operação chamada Kettledrum. Grace franziu o sobrolho, confusa.
-- Mas isso não é o nome de código da operação em que o senhor está envolvido agora?
- É.
- Espere lá um minuto. O senhor quer que eu arrisque o pescoço para lhe mostrar o dossiê do seu próprio caso?
- Qualquer coisa do género - respondeu Vicary. - Só que quero que o cruze com o rome do agente responsável por outro caso,
- Quem?
Vicary olhou diretamente para os olhos verdes dela e articulou com os lábios as iniciais BB.
Ela regressou passados cinco minutos, trazendo uma capa de dossiê vazia.
- Operação Kettledrum - anunciou. - Extinta.
- E onde está o que se encontrava aí dentro?
- Ou foi destruído ou está com o agente responsável.
- E quando é que o dossiê foi aberto? - perguntou Vicary. Grace olhou para a etiqueta do dossiê e depois para Vicary.
- Que estranho - disse ela. - Segundo isto, a Operação Kettledrum teve início em outubro de 1943.
CINQUENTA E UM
CAMBRIDGESHIRE, INGLATERRA
Quando a Scotland Yard respondeu ao pedido de barricadas feito por Alfred Vicary, já Horst Neumann tinha saído de Londres, avançando a toda a velocidade em direção
a norte, pela AIO. Era evidente que a carrinha se encontrava em bom estado. Era capaz de atingir pelo menos os cem quilómetros por hora e o motor funcionava sem
problemas. Os pneus ainda possuíam uma quantidade aceitável de piso e agarravam-se surpreendentemente bem à estrada molhada. E havia uma outra característica bastante prática - uma carrinha preta não chamava a atenção no meio dos outros veículos comerciais na estrada. Uma vez que o racionamento de gasolina tornava praticamente impossível andar de carro não comercial, qualquer pessoa que estivesse a conduzir um automóvel àquelas horas da noite poderia ser mandada parar pela polícia e interrogada.
A estrada seguia a direito pelo terreno maioritariamente plano. Neumann inclinou-se sobre o volante enquanto guiava, espreitando para a pequena poça de luz produzida pelos faróis encobertos. Por um instante, pensou em retirar as proteções dos faróis, mas decidiu que era demasiado arriscado. Passou a grande velocidade por aldeias com nomes estranhos - Puckeridge, Buntingford - às escuras, sem uma luz acesa nem ninguém na rua. Era como se o tempo tivesse retrocedido dois mil anos. Neumann dificilmente ficaria surpreendido se visse uma legião romana acampada nas margens do rio Cam.
Mais aldeias - Melbourn, Foxton, Newton, Hauxton. Durante o treino na quinta de Vogel à saída de Berlim, Neumann tinha passado horas a estudar mapas antigos do Reino Unido, do serviço cartográfico e topográfico oficial. Suspeitava que conhecia as estradas e os trilhos de East Anglia tão bem como a maioria dos ingleses, talvez até melhor.
Melbourn, Foxton, Newton, Hauxton.
Estava a aproximar-se de Cambridge.
Cambridge significava problemas. com certeza que o MI5 tinha alertado as forças policiais das principais cidades e povoações. Neumann calculou que a polícia das aldeias e dos lugarejos não representaria grande ameaça. Os agentes faziam as suas rondas a pé ou de bicicleta e raramente tinham carros, ao passo que o estado das comunicações era tão fraco que talvez ainda não tivessem recebido sequer a informação. Estava a atravessar tão depressa as aldeias às escuras devido ao blackout que um polícia nem os chegaria a ver. Cidades como Cambridge eram diferentes. Provavelmente, o MI5 tinha alertado a polícia de Cambridge. E esta possuía homens suficientes para estabelecer uma barricada numa via importante como a AIO. Esses homens tinham carros e podiam dar início a uma perseguição. Neumann conhecia as estradas e era um condutor competente, mas não teria hipótese contra um polícia experiente daquela região.
Antes de chegar a Cambridge, Neumann virou para uma pequena estrada secundária. Contornou a base das Gog Magog Hills e seguiu para norte pela orla leste da cidade. Mesmo na escuridão do blackout, conseguiu distinguir os pináculos da King's Church e da St. John's Church. Passou por uma aldeia chamada Horningsea, atravessou o Cam e entrou em Waterbeach, uma aldeia cortada a meio pela AIO. Avançou lentamente pelas ruas às escuras até descobrir a maior; não havia tabuletas que indicassem a AIO, mas partiu do princípio de que teria de ser ali. Virou à direita, dirigindo-se para norte, e, passado um momento, estava a percorrer a paisagem plana e solitária das Fens.
Os quilómetros foram passando muito depressa. A chuva abrandou, mas o vento, naquela região pantanosa e sem nada no seu caminho até ao mar do Norte, maltratou a carrinha como se esta fosse
um brinquedo de criança. A estrada seguia junto à margem do rio Great Ouse e depois por Southery Fens. Atravessaram as aldeias de Southery e Hilgay. A povoação importante seguinte era Downham Jvlarket, mais pequena do que Cambridge, mas Neumann partiu do princípio de que teria a sua própria força policial e que representava portanto uma ameaça. Repetiu a opção que tinha tomado em Cambridge, virando para uma estrada secundária mais pequena, circundando a orla da povoação e regressando à AIO a norte.
Passados dezasseis quilómetros, chegou a King's Lynn, o porto situado no sudeste de Wash e a povoação mais importante na costa de Norfolk. Neumann voltou a sair da AIO e seguiu por uma pequena estrada secundária a leste da cidade.
A estrada era de má qualidade - em muitos pontos, não pavimentada e com apenas uma faixa - e o terreno tornou-se montanhoso e arborizado. Parou e despejou dois bidões de gasolina no depósito. O tempo ia piorando à medida que se aproximavam da costa. Por vezes, Neumann parecia estar a deslocar-se a pé. Receou ter cometido um erro ao sair da estrada em melhores condições, talvez estivesse a ser demasiado cauteloso. Após mais de uma hora de condução atribulada, chegou ao litoral.
Passou por Hampton Sands, atravessou a enseada e acelerou pelo trilho. Sentiu-se aliviado - finalmente, uma estrada conhecida. O chalé dos Dogherty surgiu ao longe. Neumann virou para o caminho de entrada. Viu a porta abrir-se e o brilho de um candeeiro a querosene aproximar-se deles. Era Sean Dogherty, com o seu oleado e chapéu
impermeável, e uma caçadeira ao ombro.
Sean Dogherty não tinha ficado preocupado quando não viu Neumann sair do comboio da tarde, em Hunstanton. Neumann tinha-o avisado de que poderia ficar em Londres
mais tempo do que o costume. Dogherty resolveu esperar pelo comboio da noite. Saiu da estação e entrou numpub ali perto. Pediu uma tarte de batata e cenoura e acompanhou-a com dois copos de cerveja. A seguir, saiu do pub e passeou-se pela zona ribeirinha. Antes da guerra, Hunstanton era uma popular estância balnear porque a sua localização na ponta
leste da Wash dava azo a pores do Sol extraordinários sobre a água. Nessa noite, os velhos hotéis eduardianos estavam maioritariamente vazios e tinham um ar sombrio sob a chuva a cair ininterruptamente. O pôr do Sol não era mais que uma última luz cinzenta a escapar-se das nuvens de tempestade. Dogherty deixou a zona ribeirinha e regressou à estação para acompanhar a chegada do comboio da noite. Ficou parado na plataforma, a fumar e a observar o punhado de passageiros que desembarcava. Quando viu que Neumann não se encontrava entre eles, Dogherty ficou alarmado.
Entrou no carro e voltou para Hampton Sands, pensando nas palavras de Neumann no início dessa semana. Neumann tinha-lhe dito que era possível que a operação estivesse prestes a terminar, possível que ele se fosse embora de Inglaterra e voltasse para Berlim. Dogherty pensou: Mas porque não veio no maldito comboio?
Chegou ao chalé e entrou. Mary, sentada junto à lareira, lançou-lhe um olhar feroz e depois subiu as escadas para o andar de cima. Dogherty ligou a telefonia. O
noticiário chamou-lhe a atenção. Estava em curso uma busca à escala nacional para capturar dois supostos assassinos que tinham participado num tiroteio com a polícia ao início da noite, no bairro londrino conhecido como Earl's Court.
Dogherty aumentou o som quando o locutor começou a descrever os dois suspeitos. O primeiro, surpreendentemente, era uma mulher. O segundo era um homem cuja descrição
correspondia sem tirar nem pôr a Horst Neumann.
Dogherty desligou o rádio. Seria possível que estes dois suspeitos envolvidos no tiroteio em Earl's Court fossem Neumann e o outro agente? Estariam naquele instante
a fugir do MI5 e de metade da polícia do Reino Unido? Estariam a caminho de Hampton Sands ou deixá-lo-iam para trás? Foi então que pensou: Será que os britânicos
sabem que eu também sou um espião?
Foi para o andar de cima, meteu uma muda de roupa num pequeno saco de lona e desceu outra vez as escadas. Foi até ao celeiro, descobriu a caçadeira e carregou dois cartuchos no cano.
Quando regressou ao chalé, Dogherty sentou-se à janela, à espera. Já quase tinha perdido a esperança quando avistou a luz saída dos
faróis encobertos a avançar pela estrada, em direção ao chalé. No momento em que a carrinha virou para o pátio da quinta, conseguiu ver que era Neumann que vinha ao volante. Estava uma mulher sentada no lugar do passageiro.
Dogherty levantou-se e pôs o oleado e o chapéu. Acendeu o candeeiro a querosene, pegou na caçadeira e saiu de casa, enfrentando a chuva.
Martin Colville examinou o rosto ao espelho: nariz partido, olhos negros, lábios inchados, uma contusão no lado direito da cara.
Entrou na cozinha e verteu as últimas e preciosas gotas de uma garrafa de uísque. Todos os seus instintos lhe diziam que havia qualquer coisa de errado no homem chamado James Porter. Não acreditava que ele fosse um soldado britânico ferido. Não acreditava que ele fosse um velho conhecido de Sean Dogherty. Não acreditava que ele tivesse vindo para Hampton Sands pelo ar do oceano.
Tocou no rosto desfeito e pensou: Nunca ninguém me fez isto em toda a minha vida e não vou deixar que aquele sacana fique impune.
Colville bebeu o uísque de um só gole e, a seguir, colocou a garrafa vazia e o copo no lava-louças. Ouviu o ruído de um motor lá fora. Foi até à porta e espreitou. Uma carrinha passou depressa. Colville conseguiu ver James Porter ao volante e uma mulher no lugar do passageiro.
Fechou a porta e pensou: Mas que raio anda ele a fazer a estas horas da noite? E onde é que arranjou a carrinha?
Decidiu que iria descobrir. Entrou na sala de estar e tirou uma caçadeira calibre 12 da prateleira por cima da lareira. Os cartuchos estavam na gaveta da cozinha. Abriu-a e pôs-se a vasculhar na confusão de coisas que havia lá dentro, até encontrar a caixa. Saiu de casa e subiu para a bicicleta.
Passado um momento, Colville estava a pedalar no meio da chuva, com a caçadeira em cima do guiador, a caminho do chalé dos Dogherty.
Lá em cima, no seu quarto, Jenny Colville ouviu a porta da frente a abrir-se e a fechar-se uma vez. A seguir, ouviu o ruído de um veículo a passar, pouco comum àquelas horas da noite. Quando ouviu
a porta a abrir-se e a fechar-se uma segunda vez, ficou assustada. Levantou-se da cama e atravessou o quarto. Abriu a cortina e espreitou a tempo de ver o pai a afastar-se de bicicleta através da escuridão.
Bateu com força na janela, mas foi em vão. Passados uns segundos, ele já tinha desaparecido.
Jenny estava apenas de camisa de dormir. Tirou-a, vestiu umas calças e uma camisola e desceu as escadas. As botas de borracha estavam ao lado da porta. Ao calçá-las, reparou que a caçadeira que estava habitualmente pendurada sobre a lareira tinha desaparecido. Espreitou para a cozinha e viu que a gaveta onde os cartuchos estavam guardados se encontrava aberta. Vestiu o casaco e saiu rapidamente.
Jenny andou às apalpadelas no escuro até dar com a bicicleta encostada ao chalé. Empurrou-a pelo trilho, subiu para cima dela e pôs-se a pedalar atrás do pai, em direção ao chalé dos Cottage, e a pensar: Por favor, Deus, faz com que eu o consiga parar antes que alguém acabe morto hoje à noite.
Sean Dogherty abriu a porta do celeiro e levou-os para dentro, iluminados pelo candeeiro a querosene. Tirou o chapéu impermeável e desabotoou o oleado, olhando de seguida para Neumann e para a mulher.
Neumann, disse:
- Sean Dogherty, Catherine Blake. Sean fazia parte de um grupo chamado Exército Republicano Irlandês, mas foi-nos emprestado durante a guerra. Catherine também trabalha para Kurt Vogel. Desde
1938 que vive em Inglaterra, infiltrada profundamente.
Para Catherine, foi uma sensação estranha ouvir o seu passado e o seu trabalho serem referidos com tanta despreocupação. Depois de tantos anos a esconder a sua identidade, depois de todas as precauções, depois de toda a ansiedade, era difícil imaginar que estava tudo prestes a terminar.
Dogherty olhou para ela e, a seguir, para Neumann.
- A BBC passou a noite inteira a dar noticiários sobre um tiroteio em Earl's Court. Calculo que tenham estado envolvidos nisso, não?
Neumann assentiu com a cabeça.
- Mas não eram polícias londrinos vulgares. Eram do MI5 e da IDivisão Especial, diria eu. O que é que a rádio anda a dizer?
- Que vocês mataram dois e feriram outros três. Está em curso uma busca nacional, para vos encontrar, e pediram ajuda a todas as pessoas. O mais provável é metade
do país andar neste momento por aí a vasculhar tudo à vossa procura. Fico surpreendido por terem conseguido chegar tão longe.
- Mantivemo-nos afastados das terras mais importantes. Parece que resultou. Até agora, não vimos nenhum polícia na estrada.
- bom, isso não vai durar, podem ter a certeza.
Neumann olhou para o relógio - passavam poucos minutos da meia-noite. Pegou no candeeiro a querosene de Sean e levou-o para a mesa de trabalho. Tirou o rádio do armário e ligou-o.
- O submarino anda em patrulha no mar do Norte. Depois de receber o nosso sinal, vai deslocar-se precisamente dezasseis quilómetros para leste de Spurn Head e vai lá ficar até às seis horas. Se não aparecermos, afasta-se da costa e fica à espera de notícias nossas.
Catherine perguntou:
- E como vamos conseguir estar dezasseis quilómetros para leste de Spurn Head? Dogherty interveio:
- Há um tipo chamado Jack Kincaid. Tem um pequeno barco de pesca num cais do rio Humber.
Dogherty foi buscar um mapa antigo do serviço oficial de topografia e cartografia, anterior à guerra.
- O barco está aqui - indicou, batendo com o dedo no mapa.
- Numa terra chamada Cleethorpes. Fica a uns cento e sessenta quilómetros daqui. Vai ser difícil guiar com este mau tempo, ainda por cima com o blackout, O Kincaid tem um apartamento por cima de uma garagem na zona ribeirinha. Falei com ele ontem. Sabe que é possível aparecermos.
Neumann assentiu com a cabeça e disse:
- Se sairmos agora, temos à volta de seis horas para fazer a viagem. Acho que conseguimos fazê-lo esta noite. A próxima oportunidade que temos para irmos ter com
o submarino é daqui a três dias.
Não me encanta muito a ideia de ficar escondido durante três dias com todos os polícias do Reino Unido a vasculharem por todo o lado à nossa procura. Digo que devíamos ir esta noite.
Catherine assentiu com a cabeça. Neumann colocou os auscultadores e sintonizou o rádio na frequência correta. Digitou um sinal de identificação e esperou por uma resposta. Uns segundos mais tarde, o operador de rádio a bordo do submarino pediu a Neumann para prosseguir. Neumann suspirou fundo, digitou a mensagem com cuidado e, a seguir, terminou a comunicação e desligou o rádio.
- E agora resta-nos resolver uma coisa - disse ele, virando-se para Dogherty. - Vens connosco?
Dogherty assentiu com a cabeça.
- Já falei disso com Mary. Ela concorda comigo. vou para a Alemanha convosco; e depois Vogel e os amigos podem ajudar-me a voltar para a Irlanda. Mary vai ter comigo quando eu lá estiver. Temos amigos e família que podem olhar por nós até assentarmos. Não vamos ter problemas.
- E como é que Mary está a reagir?
O rosto de Dogherty endureceu numa expressão taciturna. Neumann sabia que era bem provável que ele e Mary nunca mais se voltassem a ver. Pegou no candeeiro a querosene, pousou a mão no ombro de Dogherty e disse:
- Vamos.
Em cima da bicicleta e a ofegar, Martin Colville viu uma luz acesa no celeiro dos Dogherty. Deitou a bicicleta junto à estrada e, a seguir, atravessou o prado silenciosamente e agachou-se à porta do celeiro. com a chuva a cair com força, esforçou-se por perceber a conversa que estava a ter lugar lá dentro.
Era inacreditável.
Sean Dogherty - a trabalhar para os nazis. O homem chamado James Porter - um agente alemão. Um ninho de espiões alemães, em ação ali mesmo em Hampton Sands!
Colville esforçou-se por ouvir mais um pouco da conversa. Estavam a planear subir a costa de carro até Lincolnshire e apanhar um
barco para irem ter com um submarino. O coração começou a ribombar-lhe no peito e a respiração a acelerar. Forçou-se a acalmar, a pensar com clareza.
Tinha duas opções: ir-se embora, voltar para a aldeia e alertar as autoridades ou entrar no celeiro e prendê-los ele mesmo. Tanto uma como outra tinham os seus inconvenientes. Se se fosse embora para ir pedir ajuda, o mais certo era Dogherty e os espiões já terem desaparecido quando ele lá regressasse. Havia poucos polícias na costa de Norfolk, dificilmente seriam suficientes para levar a cabo uma busca. Mas, se entrasse sozinho, estaria em desvantagem. Conseguia ver que Sean tinha a caçadeira consigo e partiu do princípio de que os outros dois também estariam armados. Ainda assim, teria a vantagem da surpresa.
E havia outra razão que o levava a gostar da segunda opção adoraria ajustar contas com o alemão que dava pelo nome de James Porter. Colville sabia que tinha de agir e agir rapidamente. Rasgou a caixa dos cartuchos, tirou dois e enfiou-os na velha caçadeira calibre 12. Nunca tinha apontado aquela coisa a nada que fosse mais ameaçador do que uma perdiz ou um faisão. Interrogou-se se teria coragem para disparar sobre um ser humano.
Levantou-se e avançou para a porta.
Jenny pedalou até as pernas lhe começarem a arder - atravessando a aldeia, passando pela igreja e pelo cemitério, até ao outro lado da enseada. O ar estava carregado com o som da tempestade e o ruído do mar. A chuva fustigava-lhe a cara e o vento quase a fez cair.
Jenny avistou a bicicleta do pai na vegetação junto ao trilho e parou ao lado dela. Porquê deixá-la ali? Porque não ir com ela até ao chalé?
Achou que sabia a resposta. Ele estava a tentar apanhá-los de surpresa, aparecendo sem que o vissem.
Foi então que ela ouviu um disparo de caçadeira vindo do celeiro de Sean. Jenny soltou um grito e saltou da bicicleta, deixando-a cair ao lado da do pai. Correu pelo prado, a pensar: Por favor, Deus, não deixes que ele tenha morrido. Não deixes que ele tenha morrido.
CINQUENTA E DOIS
SCARBOROUGH, INGLATERRA
Aproximadamente cento e sessenta quilómetros a norte de Hampton Sands, Charlotte Endicott entrou de bicicleta no pequeno recinto de cascalho à entrada da estação de recolha de comunicações de Scarborough. A viagem desde os seus aposentos numa pensão exígua na cidade tinha sido violentíssima, com vento e chuva durante todo o caminho. Encharcada até aos ossos e com um frio de morrer, desceu da bicicleta e encostou-a a várias outras no estrado.
O vento soprava em rajadas, gemendo por entre as três enormes antenas retangulares, no alto dos penhascos com vista para o mar do Norte. Charlotte Endicott lançou-lhes uma olhadela, a oscilarem visivelmente, enquanto atravessava o recinto apressadamente. Abriu a porta do abrigo e entrou antes de o vento a fechar com estrondo.
Faltavam alguns minutos para o seu turno começar. Despiu a gabardina encharcada, desapertou o nó do chapéu e pendurou tudo num cabide em mau estado que se encontrava ao canto. O abrigo era frio e estava cheio de correntes de ar, tendo sido construído numa lógica de utilidade e não de conforto. Mas, apesar disso, tinha uma pequena cantina. Charlotte entrou nela, serviu-se de uma chávena de chá quente, sentou-se numa das mesas pequenas e acendeu um cigarro. Um hábito horrível, sabia-o, mas, se era capaz de manter um emprego como um homem, também era capaz de fumar como um. Além disso, gostava do ar que aquilo lhe dava - sexy, sofisticado, um bocadinho
mais velho do que os seus vinte e três anos. E também tinha ficado viciada no raio daquelas coisas. O trabalho era stressante, as horas uma brutalidade e a vida em Scarborough terrivelmente entediante. Mas ela adorava cada minuto do que fazia.
Só tinha havido uma vez em que tinha detestado o que estava a fazer, durante a Batalha de Inglaterra. Durante os longos e terríveis combates aéreos, os membros do ramo feminino da Marinha Real Britânica estacionados em Scarborough ouviam o que os pilotos britânicos e alemães diziam nos cockpits. Uma vez, Charlotte tinha ouvido um rapaz inglês a gritar e a chorar pela mãe enquanto o seu SpitJtre, atingido, caía desamparado em direção ao mar. Quando perdeu o contacto com ele, Charlotte foi a correr lá para fora para vomitar. Estava feliz por esses dias terem terminado.
Charlotte olhou para o relógio. Quase meia-noite. Altura de entrar ao serviço. Levantou-se e alisou o uniforme húmido. Deu uma última passa no cigarro - era proibido fumar dentro do buraco e depois apagou-o com força num pequeno cinzeiro de metal a transbordar de beatas. Saiu da cantina e dirigiu-se para o centro de operações. Mostrou o cartão de identificação ao guarda. Este examinou-o com atenção, embora já o tivesse visto uma centena de vezes, e a seguir devolveu-o, sorrindo um pouco mais do que seria necessário. Charlotte sabia que era uma rapariga atraente, mas não havia ali lugar para essas coisas. Abriu as portas, entrou no buraco e sentou-se no sítio do costume.
Sentiu um rápido calafrio - como sempre.
Olhou fixamente para os botões luminosos do seu recetor super-heteródino de comunicações RCA AR-88 por um momento e depois colocou os auscultadores. Os cristais especiais do RCA, eliminadores de interferências, permitiam-lhe monitorizar os agentes alemães que transmitiam em código Morse por toda a Europa do Norte. Sintonizou o recetor na banda de frequência que tinha ficado incumbida de controlar nessa noite e instalou-se.
Os agentes alemães que enviavam mensagens em código Morse eram os mais rápidos do mundo a digitar. Charlotte era capaz de identificar de imediato muitos deles pelos seus estilos próprios de digitar e ela e as restantes colegas tinham-lhes atribuído alcunhas: Wagner, Beethoven, Zeppelin.
Charlotte não teve de esperar muito para entrar em ação naquela noite.
Uns minutos depois da meia-noite, ouviu uma sucessão de sinais Morse, num estilo que não reconheceu. A cadência era fraca, o ritmo lento e incerto. Um amador, pensou, alguém que não utilizava muito o rádio. Não era com certeza um dos profissionais do BdU, o quartel-general da Kriegsmarine. Reagindo rapidamente, gravou a transmissão no oscilógrafo - um aparelho que criaria no fundo uma impressão digital do sinal chamada Tina - e escrevinhou furiosamente a mensagem em Morse numa folha de papel. Depois de o amador terminar, Charlotte ouviu outra sucessão de sinais na mesma frequência. Já não era um amador; Charlotte e as colegas já o tinham ouvido. Tinham-lhe dado a alcunha de Fritz. Era um operador de rádio a bordo de um submarino. Charlotte também transcreveu rapidamente essa mensagem.
À transmissão de Fritz seguiu-se uma nova e atabalhoada sucessão de sinais em código Morse por parte do amador e depois terminaram as comunicações. Charlotte tirou os auscultadores, arrancou a impressão saída do oscilógrafo e atravessou a sala a passos largos. Normalmente, limitava-se a entregar as transcrições das mensagens em Morse a um estafeta que, por sua vez, as levava de mota, a toda a velocidade, até Bletchley Park para serem descodificadas. Mas havia qualquer coisa diferente naquelas comunicações - tinha-o sentido nos estilos dos operadores de rádio: Fritz, a bordo de um submarino, e um amador algures. Suspeitava saber do que se tratava, mas teria de ser bem convincente. Apresentou-se diante do supervisor noturno, um homem de pele clara e ar exausto chamado Lowe. Largou as transcrições e o oscilógrafo em cima da secretária dele. Lowe olhou para ela, com uma expressão de perplexidade.
- Posso estar completamente enganada, senhor - disse Charlotte, invocando a voz mais perentória possível -, mas acho que acabei de ouvir um espião alemão a comunicar com um submarino ao largo da costa.
O Kapitànleutnant Max Hoffman nunca se habituaria ao fedor de um submarino submerso há demasiado tempo: suor, urina, óleo diesel, batatas, sémen. O ataque às suas narinas era tão intenso que suportaria de bom grado estar de vigia na torre de comando, debaixo de uma tempestade, em vez de ficar lá dentro.
Encontrava-se na ponte de comando do U-509 e conseguia sentir a vibração dos motores elétricos por baixo dos pés à medida que se deslocavam num círculo monótono a trinta e dois quilómetros da costa britânica. Uma suave neblina pairava no interior do submarino, criando uma auréola em torno de cada lâmpada. Todas as superfícies estavam frias e molhadas. Hoffman gostava de imaginar que era o orvalho de uma manhã de primavera, mas bastou-lhe olhar naquele momento para o mundo claustrofóbico e apertado que habitava para essa fantasia lhe ser rapidamente arrancada.
Era uma missão entediante ficar estacionado ao largo da costa britânica durante semanas a fio, à espera de um dos espiões de Canaris. Da tripulação de Hoffman, apenas o seu imediato sabia o verdadeiro objetivo da missão. O resto dos homens suspeitava provavelmente do mesmo, já que não se encontravam em missão de patrulha. Ainda assim, as coisas poderiam ser piores. Tendo em conta a extraordinária proporção de perdas no seio da U-bootewaffe - praticamente 90 por cento - Hoffman e a sua tripulação podiam considerar-se bastante afortunados por terem sobrevivido tanto tempo.
O imediato surgiu na ponte de comando, de rosto fechado e com um papel na mão. Hoffman olhou para o homem, ficando deprimido com a noção de que o mais provável era estar com o mesmo aspeto horrível: olhos fundos, rosto encovado, a palidez de um tripulante de submarino, a barba por fazer por não haver água doce suficiente para desperdiçar nisso.
O imediato informou:
- O nosso homem no Reino Unido deu finalmente notícias. Quer que lhe demos boleia para casa hoje à noite.
Hoffman sorriu e pensou: Finalmente. Apanhamo-lo e vamos para França, onde há comida boa e roupa de cama lavada. Perguntou:
- Como está o tempo?
-- Nada bom, Herr Kaleu - respondeu o imediato, utilizando o diminutivo habitual de Kapitànleutnant. - Chuvadas fortes, ventos a cinquenta quilómetros por hora do noroeste, ondulação entre três metros e três metros e meio.
- Jesus! E o mais certo é ele vir de barco a remos, se tivermos sorte. Organize uma festa de receção e prepare-se para emergirmos. Mande o operador de rádio informar o BdU dos nossos planos. Fixe a trajetória para o ponto de encontro. Eu vou lá para cima com os vigias. Não me interessa se o tempo está mau ou não - afirmou Hoffman, fazendo uma careta. -Já não aguento mais a porra do cheiro aqui dentro.
- Sim, Herr Kaleu.
O imediato gritou uma série de ordens, transmitidas pela tripulação. Dois minutos mais tarde, o U-509 irrompeu pela superfície tempestuosa do mar do Norte.
O sistema era conhecido como Localização de Direção de Alta Frequência, mas quase toda a gente envolvida no projeto lhe chamava Huff Duff. Funcionava segundo um princípio de triangulação. A impressão digital criada pelo oscilógrafo em Scarborough podia ser utilizada para identificar o tipo de transmissor e a sua fonte de energia. Se as estações de recolha de comunicações de Flowerdon e da Islândia também tivessem os seus oscilógrafos em ação, as três gravações podiam ser utilizadas para estabelecer linhas de orientação conhecidas como cortes -, a partir das quais se podia depois localizar a posição do transmissor. Por vezes, o Huff Duff conseguia indicar um rádio num raio de dezasseis quilómetros da sua exata localização geográfica. Mas, normalmente, o sistema era muito menos preciso, ficando entre os cinquenta e os oitenta quilómetros.
O comandante Lowe não achou que Charlotte Endicott estivesse completamente enganada. Na verdade, achou que ela tinha descoberto uma coisa de crucial importância. Ao início da noite, um major Vicary do MI5 tinha enviado um alerta para as estações de recolha de comunicações, para que estivessem atentas a precisamente esse tipo de coisas.
Lowe passou os minutos seguintes a falar com os seus homólogos em Flowerdon e na Islândia, tentando localizar o transmissor. Infelizmente, a comunicação tinha sido curta e a determinação da posição não muito precisa. Na verdade, Lowe foi apenas capaz de a circunscrever a uma extensão bastante ampla do leste de Inglaterra - todo o condado de Norfolk e grande parte de Suffolk, Cambridgeshire e Lincolnshire. Provavelmente, não serviria de muito, mas pelo menos já era qualquer coisa.
Lowe vasculhou os papéis que tinha na secretária até descobrir o número de Vicary de Londres e, a seguir, esticou-se na direção do seu telefone seguro.
As condições atmosféricas no norte da Europa tornavam praticamente impossível a comunicação de onda curta entre as Ilhas Britânicas e Berlim. Em consequência disso, o centro de comunicações via rádio da Abwehr estava localizado na cave de uma grande mansão em Wohldorf, um subúrbio de Hamburgo, duzentos e quarenta quilómetros a noroeste da capital germânica.
Cinco minutos depois de o rádio operador do U-509 ter transmitido a sua mensagem ao BdU, no norte da França, o oficial de serviço no BdU enviou uma curta mensagem para Hamburgo. O oficial de serviço em Hamburgo era um veterano da Abwehr chamado capitão Schmidt. Gravou a mensagem, fez um telefonema prioritário, através da linha segura, para o quartel-general da Abwehr em Berlim e informou o tenente Werner Ulbricht dos desenvolvimentos. A seguir, Schmidt saiu da mansão e desceu a rua, em direção a um hotel ali perto, onde fez uma segunda chamada para Berlim. Não quis fazer esse telefonema através das linhas pejadas de escutas do posto da Abwehr, pois o número que indicou à telefonista foi o do gabinete do Brigadefúhrer Walter Schellenberg, na Prinz Albrechtstrasse. Infelizmente para Schmidt, Schellenberg tinha descoberto que ele estava envolvido numa relação amorosa bastante chocante com um rapaz de dezasseis anos, em Hamburgo. Schmidt aceitou prontamente passar a trabalhar para Schellenberg para evitar que o caso viesse a público.
Quando a ligação foi efetuada, falou com um dos muitos assistentes de Schellenberg - o general tinha ido jantar fora essa noite - e informou-o das novidades.
Kurt Vogel tinha decidido passar uma rara noite no seu pequeno apartamento a poucos quarteirões de Tirpitz Ufer. Ulbricht telefonou-lhe para lá e informou-o de que Horst Neumann tinha contactado o submarino e que estava prestes a abandonar a Inglaterra. Cinco minutos mais tarde, Vogel estava a sair pela porta da frente do prédio e a caminhar à chuva, em direção a Tirpitz Ufer.
Nesse preciso instante, Walter Schellenberg ligou para o gabinete e foi informado dos desenvolvimentos no Reino Unido. A seguir, telefonou para o Reichsfúhrer Heinrich Himmler e pô-lo ao corrente da situação. Himmler ordenou a Schellenberg que se dirigisse para a Prinz Albrechtstrasse; iria ser uma noite longa e queria companhia. Por coincidência, Schellenberg e Vogel chegaram aos respetivos gabinetes exatamente ao mesmo tempo e instalaram-se para a espera que os aguardava.
O local da invasão da França pelos Aliados.
A vida do almirante Canaris.
E tudo dependia do que dissessem um par de espiões em fuga ao MI5.
CINQUENTA E TRÊS
HAMPTON SANDS, NORFOLK
Martin Colville serviu-se do cano da caçadeira para empurrar a porta do celeiro. Neumann, ainda sentado ao lado do rádio, ouviu o barulho. Esticou-se para agarrar
a Mauserno momento em que Colville entrou. Colville viu Neumann a tentar chegar à pistola. Virou-se, apontou a caçadeira e disparou. Neumann desviou-se com um salto,
caindo no chão e rebolando pelo celeiro. O estrondo do disparo da caçadeira no espaço reduzido do celeiro foi ensurdecedor. O rádio desintegrou-se.
Colville fez pontaria a Neumann pela segunda vez. Neumann levantou-se, apoiado nos cotovelos, segurando a Mauser nas mãos esticadas. Sean Dogherty avançou, gritando a Colville para parar. Colville apontou a arma a Dogherty e carregou no gatilho. O tiro atingiu Dogherty no peito, fazendo-o dar um salto para trás com toda a força, como se fosse um boneco de trapos. Caiu de costas, com o sangue a jorrar-lhe do buraco no peito, e morreu passados segundos.
Neumann disparou, acertando no ombro de Colville e fazendo-o rodar. Por essa altura, Catherine já tinha sacado da sua Mauser e, com ambas as mãos, apontou-a à cabeça de Colville. Disparou rapidamente duas vezes, com o silenciador a abafar os tiros e a reduzi-los a um baque surdo. À cabeça de Colville explodiu e ele já estava morto antes de o corpo bater no chão do celeiro de Dogherty.
Mary Dogherty estava a meio de um sono agitado, na sua cama no andar de cima do chalé, quando ouviu o primeiro disparo da caçadeira. Endireitou-se de rompante e tocou com os pés no chão no instante em que o segundo disparo rasgou a noite. Atirou o cobertor para trás e desceu as escadas a correr.
O chalé estava às escuras, a sala de estar e a cozinha desertas. Foi lá para fora. A chuva fustigou-lhe a cara. Foi então que se apercebeu de que estava apenas com a sua camisa de dormir de flanela. Naquele momento, imperava o silêncio e apenas se ouvia o barulho da tempestade. Para lá do jardim, reparou numa carrinha preta desconhecida estacionada no caminho de entrada. Voltou-se para o celeiro e viu uma luz acesa lá dentro. Gritou Sean! e começou a correr para o celeiro.
Mary tinha os pés descalços e o chão estava frio e empapado. Gritou o nome de Sean mais uma série de vezes enquanto corria. Um ténue raio de luz saía da porta aberta do celeiro, iluminando uma caixa de cartuchos de caçadeira que se encontrava no chão.
Ao entrar, arquejou. Ficou com um grito preso na garganta, que se recusava a sair cá para fora. A primeira coisa que viu foi o corpo de Martin Colville estendido no chão do celeiro, a poucos metros dela. Parte da cabeça tinha desaparecido e havia sangue e tecido por todo o lado. Sentiu o estômago começar a entrar em convulsões.
Foi então que voltou a atenção para o segundo corpo. Estava deitado de costas, com os braços bem abertos. Por alguma razão, com a morte, os tornozelos tinham-se cruzado, como se a pessoa estivesse a dormir uma sesta. O sangue tapava-lhe a cara. Por um breve segundo, Mary permitiu-se acalentar a esperança de não ser na realidade Sean quem estava ali morto. Mas depois olhou para as velhas botas de borracha e para o oleado e soube que era ele.
O grito que lhe estava preso na garganta saiu cá para fora.
Mary berrou:
- Oh, Sean! Oh, meu Deus, Sean! O que foste fazer?
Levantou os olhos e viu Horst Neumann parado ao pé do corpo de Sean, com uma pistola na mão. A poucos metros dele, estava uma mulher, de pistola apontada à cabeça de Mary.
Mary olhou para Neumann e gritou:
- Foste tu que fizeste isto? Foste?
- Foi o Colville - respondeu Neumann. - Apareceu aqui dentro aos tiros. Sean meteu-se à frente dele. Lamento imenso, Mary.
- Não, Horst, pode ter sido Martin a carregar no gatilho, mas foste tu que lhe fizeste isto. Não tenhas dúvidas. Tu e os teus amigos de Berlim, foram vocês que lhe fizeram isto.
Neumann não disse nada. Catherine continuava com a Mauser apontada à cabeça de Mary. Neumann avançou, agarrou na pistola dela e baixou-a suavemente.
Jenny Colville não saiu do prado mergulhado na escuridão e aproximou-se do celeiro lateralmente, sem que a pudessem ver. Agachou-se junto à parede exterior, com a chuva a bater-lhe com força no oleado, e escutou a conversa que estava a ter lugar lá dentro.
Ouviu a voz do homem que conhecia como James Porter, embora Mary lhe tivesse chamado outra coisa, uma coisa parecida com Horse. Foi o Colville. Sean meteu-se à frente dele. Lamento imenso, Mary.
A seguir, ouviu a voz de Mary. Tinha uma intensidade altíssima e tremia de raiva e dor. Foste tu que lhe fizeste isto... Tu e os teus amigos de Berlim.
Ficou à espera de ouvir a voz do pai; ficou à espera de ouvir a voz de Sean. Nada. Percebeu que estavam ambos mortos.
Tu e os teus amigos de Berlim.
Jenny pensou: O que estás a dizer, Mary?
E foi então que tudo se encaixou na cabeça dela, como peças de um quebra-cabeças que ficam de repente na ordem certa: Sean na praia, naquela noite, o súbito aparecimento
do homem chamado James Porter, o aviso que Mary lhe fizera ao início da tarde: Ele não é o que parece ser. Ele não é para ti.
Na altura, Jenny não tinha compreendido o que Mary lhe estava a tentar dizer, mas agora achava que sim. O homem que conhecia como James Porter era um espião alemão. E isso significava que Sean também era um espião ao serviço dos alemães. O pai dela devia ter descoberto a verdade e resolvido enfrentá-los. E agora estava morto no chão do celeiro de Sean Dogherty.
Jenny queria gritar. Sentiu lágrimas quentes a correrem-lhe dos olhos pela cara. Levou as mãos à boca para abafar o choro. Tinha-se apaixonado por ele, mas ele mentira-lhe e usara-a e era um espião alemão e provavelmente tinha acabado de lhe matar o pai.
Jenny ouviu movimentos dentro do celeiro, movimentos e instruções dadas em voz baixa, que ela não conseguiu perceber. Ouviu a voz do espião alemão e ouviu uma voz
de mulher que não era a de Mary. Foi então que viu o espião sair do celeiro e percorrer o caminho de entrada, de lanterna na mão. Estava a dirigir-se para onde estavam
as bicicletas. Se as encontrasse, iria perceber que ela também lá estava.
E iria procurá-la.
Jenny obrigou-se a respirar devagar, pausadamente, e a pensar com clareza.
Estava a ser fustigada por várias emoções. Estava assustada, sentia-se agoniada com a ideia de que o pai e Sean estavam mortos. Mas, acima de tudo, estava furiosa. Tinham-lhe mentido e tinham-na traído. E, naquele momento, o que a impulsionava era um desejo avassalador: queria vê-los presos e queria vê-los castigados.
Jenny sabia que não poderia fazer nada se o alemão a descobrisse.
Mas o que fazer? Podia tentar correr até à aldeia. O hotel e o pub tinham telefones. Podia contactar a polícia e a polícia podia vir prendê-los.
Mas a aldeia era o primeiro lugar onde os espiões a iriam procurar. Do chalé dos Dogherty, só havia um caminho para a aldeia: atravessando a ponte junto à St. John's Church. Jenny sabia que poderia ser apanhada muito facilmente.
Pensou numa segunda opção. Eles tinham de se ir embora dali a pouco tempo. Afinal de contas, tinham acabado de matar duas pessoas. Jenny podia ficar escondida durante um bocado, só até eles se irem embora; depois, podia sair do esconderijo e contactar a polícia.
Pensou: Mas e se eles levarem Mary?
Mary estaria melhor com Jenny em liberdade e a tentar encontrar ajuda.
Jenny observou o espião a aproximar-se da estrada. Viu o feixe de luz da lanterna deslocar-se pelo terreno em redor. Viu-o fixar-se em qualquer coisa por um momento e, a seguir, virar-se na direção dela.
Jenny arquejou. Ele tinha encontrado a bicicleta dela. Levantou-se e começou a correr.
Horst Neumann avistou as duas bicicletas deitadas ao lado uma
da outra na vegetação, junto à estrada. Virou a lanterna para o prado, mas o fraco feixe iluminou apenas uns quantos metros à sua frente. Levantou as bicicletas, segurou-as pelo manipulo e empurrou-as pelo caminho de entrada. Deixou-as nas traseiras do chalé de Dogherty, onde ninguém as poderia ver.
Ela estava por ali - algures. Tentou imaginar o que tinha acontecido. O pai sai de casa enfurecido e de caçadeira na mão; Jenny vai atrás dele e chega ao chalé dos Dogherty a tempo de ver o rescaldo.
Neumann calculou que ela estivesse escondida, à espera que eles se fossem embora, e achou que sabia onde.
Durante um momento, pensou na hipótese de a deixar em liberdade. Mas Jenny era uma rapariga inteligente. Iria arranjar uma maneira de contactar a polícia. A polícia estabeleceria barricadas por Hampton Sands inteira. Chegar a Lincolnshire a tempo do encontro com o submarino já seria suficientemente difícil. Deixar que Jenny ficasse à solta e contactasse a polícia apenas tornaria tudo mais duro.
Neumann entrou no celeiro. Catherine tinha tapado os corpos
com serapilheira velha. Mary estava sentada numa cadeira, a tremer violentamente. Neumann evitou o olhar dela.
- Temos um problema - anunciou Neumann, apontando para
o corpo tapado de Martin Colville. -- Encontrei a bicicleta da filha dele. Temos de partir do princípio de que ela anda algures por aqui e que sabe o que aconteceu. E também temos de partir do princípio de que vai tentar arranjar ajuda.
- Então vai à procura dela - atirou Catherine.
Neumann assentiu com a cabeça.
- Leva Mary para dentro de casa. Amarra-a e amordaça-a. Acho
que sei para onde é que Jenny é capaz de ir.
Neumann foi lá para fora e correu até à carrinha, no meio da
chuva. Ligou o motor, saiu do caminho de entrada em marcha atrás e seguiu em direção à praia.
Catherine amarrou Mary a uma cadeira de madeira na cozinha. Rasgou uma toalha de chá ao meio e fez uma bola com uma das metades. Enfiou-a na boca de Mary e depois amarrou a outra metade à volta da cara dela, com um nó apertado. Se dependesse de Catherine, matá-la-ia naquele preciso instante; não gostava de deixar uma pista para a polícia seguir. Mas era óbvio que Neumann sentia algum carinho pela mulher. Além disso, era provável que se passassem várias horas até que alguém a encontrasse, talvez até mais tempo. O chalé estava isolado, a cerca de um quilómetro e meio da aldeia; era possível que demorasse um dia ou dois até que alguém notasse que Sean, Colville e a rapariga tinham desaparecido. Ainda assim, todos os seus instintos de sobrevivência lhe diziam que era melhor matá-la e despachar aquilo. Neumann nunca saberia. Mentir-lhe-ia, dizendo-lhe que Mary estava bem, e ele nunca descobriria.
Catherine verificou os nós pela última vez. A seguir, tirou a Mauser do bolso do casaco. Segurou-a bem, enfiando o indicador no gatilho, e encostou o cano à testa de Mary. Mary não se mexeu um milímetro e lançou um olhar de desafio a Catherine.
- Não se esqueça, a Jenny vai connosco -- disse Catherine. Sc disser alguma coisa à polícia, nós vamos saber. E depois vamos matar a Jenny. Compreende o que lhe estou a dizer, Mary?
Mary assentiu com a cabeça uma vez. Catherine pegou na Mauser pelo cano, ergueu-a bem alto e bateu com ela na cabeça de Mary. Perdendo os sentidos, Mary afundou-se para a frente, com o sangue a escorrer-lhe do cabelo para os olhos. Catherine pôs-se diante da lareira prestes a apagar-se, à espera de Neumann e da rapariga, à espera de voltar para casa.
CINQUENTA E QUATRO
LONDRES Nesse momento, um táxi parou, no meio de uma chuva fortíssima, à porta de um edifício atarracado e coberto de hera sob o Arco do Almirantado. A porta abriu-se e
um homem pequeno e bastante feio saiu do táxi, apoiando-se acentuadamente numa bengala. Não se tinha incomodado com um guarda-chuva. Eram apenas poucos me tros até à entrada, onde um guarda da Marinha Real estava de senti nela. O guarda fez uma vigorosa continência, que o homem feio não se deu ao trabalho de retribuir, pois isso teria implicado passar a ben gala da mão direita para a esquerda, uma tarefa incómoda. Além do mais, cinco anos após ter sido destacado para a Marinha Real, Arthur Braithwaite continuava a não se sentir à vontade com os costumes e tradições da vida militar.
Oficialmente, Braithwaite só entrava de serviço dali a uma hora. Mas, tal como era seu hábito todos os dias, tinha chegado à Cidadela uma hora mais cedo para ter
mais tempo para se preparar. com uma perna aleijada desde a infância, Braithwaite sabia que para ter êxito tinha de estar mais bem preparado do que as pessoas à sua volta. Era um compromisso que lhe trazia dividendos.
A Sala de Localização de Submarinos - à qual se chegava por um emaranhado de escadas exíguas e tortuosas - não era de fácil acesso para um homem com uma perna gravemente
deformada. Atravessou a Sala dos Gráficos e entrou na Sala de Localização depois de passar por uma porta com um guarda.
A energia e a agitação daquele sítio apoderaram-se dele, tal como acontecia todas as noites. As paredes sem janelas eram da cor da nata azeda e estavam repletas de mapas, cartas de navegação e fotografias de submarinos e das suas tripulações. Várias dezenas de oficiais e de datilógrafas trabalhavam às secretárias, à roda da sala. No meio, estava a principal mesa de localização para o Atlântico Norte, com pioneses coloridos a assinalarem a posição de cada navio de guerra, navio de carga e submarino, do mar Báltico a Cape Cod.
Uma grande fotografia do almirante Karl Dònitz, o comandante da Kriegsmarine, lançava um olhar ameaçador da parede onde se encontrava pendurada. Braithwaite, tal como fazia todas as manhãs, piscou-lhe o olho e disse: bom dia, Herr Admirai. A seguir, abriu a porta do seu cubículo de vidro, tirou o casaco e sentou-se à secretária.
Estendeu a mão na direção da pilha de mensagens por descodificar que o aguardava todas as manhãs e pensou: Estás bem longe de
1939, meu velho.
Em 1939, tinha licenciaturas em Direito e Psicologia tiradas em Cambridge e Yale e estava à procura de alguma coisa para fazer com elas. Quando a guerra rebentou,
tentou dar utilidade ao seu alemão fluente voluntariando-se para interrogar prisioneiros de guerra alemães. Os seus superiores ficaram tão impressionados que recomendaram
uma transferência para a Cidadela, na qual foi destacado, como voluntário civil, para a Sala de Localização de Submarinos, no auge da Batalha do Atlântico. O intelecto
e a determinação de Braithwaite fizeram-no distinguir-se rapidamente. Dedicou-se por inteiro ao trabalho, voluntariou-se para prestar serviços adicionais e leu todos
os livros que conseguiu encontrar sobre a história e as táticas navais alemãs. Possuidor de uma memória quase perfeita, decorou as biografias de todos os Kapitànleutnant
da U-bootewaffe. No espaço de poucos meses, desenvolveu uma capacidade extraordinária para prever os movimentos dos submarinos alemães. Nada disso passou despercebido.
Atribuíram-lhe o posto de comandante temporário e colocaram-no à frente da localização de submarinos, um feito espantoso para alguém que não tinha passado pelo Dartmouth Naval College.
O seu assessor bateu ao de leve na porta de vidro, aguardou que Braithwaite assentisse com a cabeça e entrou.
- bom dia, senhor - disse, pousando uma bandeja com um bule de chá e biscoitos.
- bom dia, Patrick.
- O tempo manteve as coisas razoavelmente sossegadas ontem à noite, senhor. Não foram avistados submarinos alemães a virem à superfície em lado nenhum. A tempestade
afastou-se do oeste. Agora, é o leste que está a suportar o impacto, de Yorkshire a Suffolk.
Braithwaite assentiu com a cabeça e o assessor foi-se embora. As primeiras mensagens eram coisas convencionais, interceções de comunicações de rotina entre submarinos
e o BdU. A quinta chamou-lhe a atenção. Era um alerta emitido por um major Alfred Vicary do Ministério da Guerra. Indicava que as autoridades se encontravam a perseguir
duas pessoas, um homem e uma mulher, que poderiam estar a tentar fugir do país. Braithwaite sorriu perante os eufemismos cautelosos de Vicary. Era evidente que Vicary era do MI5. O homem e a mulher eram obviamente agentes alemães e fosse o que fosse em que estavam envolvidos devia ser bem importante, caso contrário o alerta não lhe teria passado pela secretária. Pôs o alerta de Vicary de lado e continuou a ler.
Após mais algumas mensagens rotineiras, Braithwaite deu com outra coisa que lhe chamou a atenção. Um membro do ramo feminino da Marinha Real Britânica, da estação de recolha de comunicações de Scarborough, tinha intercetado o que julgava ser uma comunicação entre um submarino alemão e um rádio em terra. O sistema Huff Duff tinha indicado que o transmissor se encontrava algures na costa leste - algures entre Lincolnshire e Suffolk. Braithwaite tirou a mensagem da pilha e colocou-a ao lado do alerta de Vicary.
Levantou-se e coxeou para fora do gabinete e, já na sala principal, parou junto à mesa de localização para o Atlântico Norte. Dois membros da sua equipa estavam a reposicionar alguns pinos coloridos, na sequência de movimentações noturnas. Braithwaite pareceu não reparar neles. De rosto fechado, fixou o olhar nas águas ao largo da costa leste britânica.
Passado um momento, disse em voz baixa:
- Patrick, traga-me o dossiê do U-509.
CINQUENTA E CINCO
HAMPTON SANDS, NORFOLK
Jenny atingiu o pinhal no fundo das dunas e caiu exausta. Tinha corrido instintivamente, como um animal assustado. Tinha-se mantido longe da estrada, não saindo dos prados e dos pântanos, alagados pela chuva. Tinha caído tantas vezes que até perdera a conta. Estava cheia de lama, cheirava a terra em decomposição e a mar. A cara, fustigada pela chuva e pelo vento, doía-lhe como se tivesse sido esbofeteada. E tinha frio - mais frio do que alguma vez sentira na vida. Era como se o oleado pesasse uns cinquenta quilos. As botas de borracha estavam cheias de água e tinha os pés a congelar. Foi então que se lembrou de que tinha saído sem meias do chalé. Pôs-se de gatas, a ofegar com falta de ar. Tinha a garganta seca e sabia-lhe a ferrugem.
Deixou-se ficar assim durante um momento, até que a respiração acalmasse, e depois forçou-se a levantar-se e a penetrar no meio das árvores. Estava escuro como breu, tão escuro que teve de avançar com as mãos esticadas para a frente, como um cego às apalpadelas num local desconhecido. Estava zangada consigo mesma por não ter trazido a lanterna.
O som do vento, o estrondo das ondas a rebentarem na praia e os guinchos das aves marinhas enchiam o ar. As árvores já pareciam estar dispostas de uma forma familiar. Jenny orientava-se pela memória, como alguém a arrastar os pés pela própria casa, no escuro.
As árvores desapareceram: o seu esconderijo secreto surgiu diante dela.
Escorregou pelo declive e sentou-se encostada à grande rocha. Os pinheiros contorciam-se ao vento, por cima da sua cabeça, mas Jenny estava abrigada do pior da tempestade. Queria imenso fazer uma fogueira, mas o fumo seria visível de muito longe. Desenterrou a mala debaixo da caruma de pinheiro, tirou de lá o velho cobertor de lã e enrolou-se toda nele.
Começou a sentir o calor. Foi então que começou a chorar. Perguntou-se quanto tempo teria de esperar ali até poder ir procurar ajuda. Dez minutos? Vinte minutos?
Meia hora? Perguntou-se se Mary ainda estaria no chalé quando ela lá voltasse. Perguntou-se se estaria ferida. Uma imagem horrenda do cadáver do pai passou-lhe diante
dos olhos. Sacudiu a cabeça para tentar que ela desaparecesse. Tremeu e depois enrolou-se ainda mais no cobertor.
Trinta minutos. Iria esperar trinta minutos. Por essa altura, já se teriam ido embora e seria seguro regressar.
Neumann estacionou no fim do trilho, pegou na lanterna que estava no banco do passageiro e saiu da carrinha. Acendeu a lanterna e avançou rapidamente por entre as
árvores. Escalou as dunas e desceu aos tropeções pelo outro lado. Desligou a lanterna e deslocou-se pela praia, em direção à beira-mar. Quando atingiu a areia molhada
e dura, onde as ondas rebentavam na praia, começou a correr levemente, com a cabeça baixa para avançar contra o vento.
Recordou-se da manhã em que estava a correr na praia e vira Jenny a sair das dunas. Recordou-se do aspeto dela, como se tivesse dormido na praia naquela noite. Tinha a certeza de que ela tinha alguma espécie de esconderijo ali perto, para onde ia quando as coisas em casa ficavam más. Estava assustada, em fuga e sozinha. Iria fugir para o sítio que conhecia melhor, como fazem as crianças. Neumann foi até ao ponto da praia que utilizava como meta imaginária, depois parou e caminhou em direção às dunas.
Já do outro lado, voltou a acender a lanterna, deu com um trilho pisado e seguiu-o. Ia dar a uma pequena depressão no terreno, abrigada do vento pelas árvores e por um par de grandes pedregulhos. Apontou a lanterna para a depressão e o feixe luminoso apanhou o rosto de Jenny Colville.
- Qual é o seu nome verdadeiro? - perguntou Jenny enquanto seguiam na carrinha para o chalé dos Dogherty.
- O meu nome verdadeiro é tenente Horst Neumann.
- E porque fala inglês tão bem?
- O meu pai era inglês e eu nasci em Londres. A minha mãe e eu mudámo-nos para a Alemanha quando ele morreu.
- E é um espião alemão?
- Qualquer coisa do género.
- E o que aconteceu a Sean e ao meu pai?
- Estávamos a utilizar o rádio no celeiro de Sean quando o teu pai nos apareceu de rompante. Sean tentou para-lo e o teu pai matou-o. Catherine e eu matámos o teu
pai. Lamento imenso, Jenny. Aconteceu tudo muito depressa.
- Cale-se! Não quero que me diga que lamenta imenso! Neumann manteve-se em silêncio.
Jenny perguntou:
- E agora o que vai acontecer?
- Vamos fazer uma viagem pela costa até ao rio Humber. Chegados lá, vamos para o mar num barco pequeno para irmos ter com um submarino alemão.
- Espero que vos apanhem. E espero que vos matem.
- Eu diria que isso é uma possibilidade muito forte.
- O senhor é um sacana! Porque andou à luta com o meu pai por causa de mim?
- Porque gosto muito de ti, Jenny Colville. Menti-te em relação a tudo o resto, mas a verdade é essa. Agora, faz exatamente o que eu te disser e não te vai acontecer
nada de mal. Compreendes?
Jenny assentiu com a cabeça. Neumann virou para o chalé dos Dogherty. A porta abriu-se e Catherine saiu. Dirigiu-se para a carrinha e olhou lá para dentro, vendo
Jenny. A seguir, olhou para Neumann e disse em alemão:
- Amarra-a e enfia-a na parte de trás. Vamos levá-la connosco. Nunca se sabe quando é que um refém pode vir a calhar.
Neumann abanou a cabeça e respondeu na mesma língua:
- O melhor é deixá-la aqui e pronto. Não nos serve de nada e ainda é capaz de lhe acontecer alguma coisa.
- Está a esquecer-se de que sou seu superior, tenente?
- Não, major - retorquiu Neumann, com a voz tingida de sarcasmo.
- Ótimo. Agora, amarra-a e vamos pôr-nos a milhas deste lugar
horrível.
Neumann voltou ao celeiro para procurar um bocado de corda. Encontrou-o, pegou no candeeiro e começou a ir-se embora. Olhou uma última vez para o corpo de Sean Dogherty,
estendido no chão e tapado pela velha serapilheira. Neumann não conseguia deixar de se sentir culpado pela sucessão de acontecimentos que tinha levado à morte de
Sean. Se não tivesse lutado com Martin, este não teria aparecido no celeiro com uma caçadeira. Sean estaria a ir com eles para a Alemanha e não estendido no chão do seu celeiro, sem metade do peito. Apagou o candeeiro, deixando os corpos na escuridão, e saiu, fechando a porta do celeiro.
Jenny não resistiu nem lhe dirigiu uma única palavra. Neumann amarrou-lhe as mãos à frente, para que ela se pudesse sentar mais confortavelmente. Verificou o nó, para se certificar de que não estava demasiado apertado. A seguir, atou-lhe os pés. Quando terminou, levou-a para a parte de trás da carrinha, abriu as portas e meteu-a lá dentro.
Despejou mais um bidão de gasolina no depósito e atirou o recipiente vazio para o prado.
Não havia sinal de vida no trilho entre o chalé e a aldeia. Era óbvio que os tiros tinham passado despercebidos em Hampton Sands. Atravessaram a ponte, passaram a grande velocidade pelo pináculo da St. John's Church e continuaram pela rua às escuras. A aldeia estava tão silenciosa que mais parecia ter sido evacuada.
Catherine ia ao lado de Neumann, calada e a recarregar a Mauser.
Neumann carregou a fundo no acelerador e Hampton Sands desapareceu atrás deles.
CINQUENTA E SEIS
LONDRES
Arthur Braithwaite fixou o olhar na mesa de localização enquanto esperava pelo dossiê do U-509. Não que Braithwaite precisasse dele para grande coisa - achava que sabia tudo o que havia para saber sobre o comandante do submarino e podia provavelmente recitar todas as patrulhas que o submarino já tinha realizado. Só queria confirmar umas quantas coisas antes de telefonar para o MI5.
As movimentações do U-509 andavam a intrigá-lo há várias semanas. O submarino parecia estar a patrulhar o mar do Norte sem nenhum objetivo, navegando sem destino em particular e passando longos períodos sem contactar o BdU. E quando dava de facto notícias, comunicava uma posição ao largo da costa britânica, perto de Spurn
Head. E também tinha sido avistado em fotografias aéreas num recinto para submarinos, no sul da Noruega. Não tinha sido visto a vir à superfície e não atacara nenhum
navio de guerra nem nenhum navio mercante dos Aliados.
Braithwaite pensou: Andas só para aí a tentar passar despercebido, sem fazer absolutamente nada. Bem, não acredito nisso, Kapitànleutnant Hoffman.
Ergueu os olhos para o rosto severo de Dónitz e murmurou:
- Porque deixarias um submarino e uma tripulação em perfeitas condições serem desperdiçados dessa maneira?
Passado um momento, o assessor regressou com o dossiê.
- Aqui está, senhor.
Braithwaite não pegou no dossiê; em vez disso, começou a recitar o que lá vinha escrito.
- O capitão chama-se Max Hoffman, se bem me lembro.
- Correto, senhor.
- Cruz de Cavaleiro da Cruz de Ferro em 1942, Folhas de Carvalho um ano depois.
- Colocadas pelo próprio Fúhrer.
- E agora a parte importante. Julgo que fez parte do sfaffde Canaris, na Abwehr, durante um curto período antes da guerra.
O assessor folheou o dossiê.
- Sim, aqui está, senhor. Hoffman foi destacado para o quartel-general da Abwehr, em Berlim, entre 38 e 39. Quando a guerra rebentou, foi outra vez transferido para a Kriegsmarine e recebeu o comando do U-509.
Braithwaite estava a olhar novamente para a mesa com o mapa.
- Patrick, se tivesse um importante espião alemão a precisar de uma boleia para fora de Inglaterra, não preferiria que fosse um velho amigo a conduzir?
- com certeza, senhor.
- Telefone para o MI5 e peça para falar com Vicary. Acho que precisamos de ter uma conversa.
CINQUENTA E SETE
LONDRES
Alfred Vicary estava parado diante um mapa das Ilhas Britânicas com dois metros e meio de altura, a fumar sem parar, a beber um chá horrível e a pensar: Agora sei como é que Adolf Hitler se deve sentir. com base no telefonema do comandante Lowe, da estação de recolha de comunicações de Scarborough, naquele momento era seguro partir do princípio de que os espiões estavam a tentar escapulir-se de Inglaterra a bordo de um submarino. Mas Vicary tinha um problema muito simples e, no entanto, muito grave. Fazia apenas uma vaga ideia de quando e uma ideia ainda mais vaga de como.
Partiu do princípio de que os espiões teriam de se encontrar com o submarino antes do amanhecer; seria demasiado perigoso para um submarino alemão manter-se à superfície perto da costa depois dos primeiros raios de luz do dia. Era possível que o submarino pretendesse desembarcar alguns membros da tripulação por meio de um bote de borracha - era assim que a Abwehr introduzia muitos dos seus espiões no Reino Unido -, mas Vicary duvidava que o tentassem fazer com mares revoltos. Por outro lado,
roubar um barco não era tão fácil como parecia. A Marinha Real tinha apreendido quase tudo o que conseguia flutuar. E a pesca no mar do Norte tinha diminuído porque
as águas costeiras se encontravam repletas de minas. Dois espiões em fuga teriam grandes dificuldades em encontrar um barco capaz de andar no mar em tão pouco tempo, com uma tempestade e durante o blackout.
Pensou: Se calhar, os espiões já têm um barco.
A pergunta mais exasperante era onde. De que ponto da costa iriam partir para o mar? Vicary olhou fixamente para o mapa. A estacão de recolha de comunicações não conseguia apontar a localização exata do transmissor. Só para que pudesse considerar essa hipótese, Vicary escolheu precisamente o centro da vasta área que lhe tinham indicado. Percorreu o mapa com o dedo até chegar à costa de Norfolk.
Sim, fazia todo o sentido. Vicary conhecia bem os horários dos caminhos de ferro. Um espião poder-se-ia esconder numa das aldeias da costa e ser também capaz de chegar a Londres em três horas graças ao comboio direto que saía de Hunstanton.
Vicary partiu do princípio de que teriam um bom veículo e bastante gasolina. Tinham efetuado uma viagem considerável desde Londres e, devido à forte presença policial nas linhas férreas, tinha praticamente a certeza de que não o tinham feito de comboio.
Pensou: Então, até que ponto da costa de Norfolk conseguiriam eles ir até se enfiarem num barco e partirem para o mar?
Provavelmente, o submarino não se aproximaria mais do que oito quilómetros da costa. Os espiões demorariam uma hora a percorrer esses oito quilómetros, se não mais.
E se o submarino submergisse aos primeiros raios de luz do dia, os espiões teriam de partir para o mar no máximo às seis horas, para jogarem pelo seguro. A mensagem
radiofónica tinha sido enviada às 22h. Isso deixava-lhes oito horas de potencial tempo de condução. Até onde poderiam ir? Tendo em conta o tempo que fazia, o blackout e as fracas condições das estradas, entre cento e cinquenta e duzentos e cinquenta quilómetros.
Vicary olhou para o mapa, desanimado. com isso, ainda restava uma enorme faixa da costa britânica, que se estendia do estuário do Tamisa, a sul, ao rio Humber, a norte. Seria praticamente impossível abarcar tudo. O litoral estava semeado de pequenos portos, aldeias piscatórias e cais. Vicary tinha pedido às forças policiais locais para percorrerem a costa com o máximo de homens possível. O Comando Costeiro da RAF tinha concordado em dar início a missões de busca logo que amanhecesse, embora Vicary temesse que fosse demasiado tarde. As corvetas da Marinha Real andavam à procura de
barcos pequenos, ainda que fosse praticamente impossível localiza-los numa noite chuvosa e escura, em pleno mar. Sem outra pista -- um segundo sinal de rádio intercetado ou um avistamento -, não havia grande esperança de os apanhar. O telefone tocou.
- Vicary.
- Daqui fala o comandante Arthur Braithwaite, da Sala de Localização de Submarinos. Vi o seu alerta quando entrei ao serviço e acho que lhe posso dar uma ajuda bastante importante.
- A Sala de Localização de Submarinos diz que o U-509 anda há umas quantas semanas a aproximar-se e a afastar-se da costa de Lincolnshire - revelou Vicary.
Boothby tinha descido para acompanhar Vicary na vigília defronte do mapa.
- Se concentrarmos todos os nossos homens e recursos em Lincolnshire, temos boas hipóteses de os parar.
- Continua a ser muita costa para abarcar. Vicary estava a olhar de novo para o mapa.
- Qual é a maior terra daquela região?
- Grimsby, diria eu.
-- Mas que apropriado, Grimsby. E quanto tempo é que acha que eu levaria a chegar lá?
- A divisão dos Transportes pqdia arranjar-lhe boleia, mas levaria horas.
Vicary fez uma careta. A divisão dos Transportes possuía alguns carros velozes precisamente para casos destes. Tinham condutores experimentados de reserva, especializados em perseguições a alta velocidade; um ou dois até tinham competido em corridas profissionais antes da guerra. Mas Vicary achava que os condutores, apesar de brilhantes, eram demasiado imprudentes. Lembrou-se da noite em que tinha sacado o espião da praia na Cornualha, recordando-se de estar a atravessar em grande velocidade a noite da Cornualha, durante o blackout, num Rover todo modificado, e a rezar para viver o suficiente para poder fazer aquela detenção.
Vicary perguntou:
- Então e se fosse um avião?
- Tenho a certeza de que lhe podia arranjar uma boleia com a RAF. Há uma pequena base de caças nos arredores de Grimsby. Podiam lá pô-lo em mais ou menos uma hora e podia servir-se da base como posto de comando. Mas já olhou pela janela nas últimas horas? Está uma noite horrível para se andar de avião.
- Eu tenho noção disso, mas tenho a certeza de que poderia coordenar melhor a busca se estivesse lá, no terreno - retorquiu Vicary, afastando-se do mapa e olhando para Boothby. - E ocorreu-me outra coisa. Se os conseguirmos deter antes de enviarem uma mensagem para Berlim, talvez possa enviá-la eu por eles.
- Engendrando uma explicação qualquer para a decisão deles de fugirem de Londres que reforce a confiança na Operação Kettledrum?
- Exato.
- Bem pensado, Alfred.
- Gostava de levar dois homens comigo: Roach e Dalton, se ele estiver em condições.
Boothby hesitou.
- Acho que também devia levar outra pessoa.
- Quem?
- Peter Jordan. -Jordan!
- Veja a coisa do outro lado do espelho. Se Jordan foi enganado e traído, não iria querer estar lá no fim, para presenciar a morte de Catherine Blake? Eu sei que iria querer de certeza. Iria querer carregar eu próprio no gatilho. Se estivesse no lugar dele. E os alemães também têm de achar isso. Temos de fazer tudo o que for possível para fazer com que acreditem na ilusão da Operação Kettledrum.
Vicary pensou no dossiê vazio que se encontrava nos Registos. O telefone voltou a tocar.
- Vicary.
Era uma das telefonistas do departamento.
- Professor Vicary, tenho uma chamada interurbana de um superintendente-chefe Perkin, da polícia de King's Lynn, em Norfolk. Diz que é bastante urgente.
- Passe-mo.
Hampton Sands era demasiado pequena, demasiado isolada e demasiado sossegada para justificar ter o seu próprio polícia. Partilhava um com mais quatro aldeias da costa de Norfolk, Holme, Thornton, Titchwell e Brancaster. O polícia era um homem chamado Thomasson, um veterano que trabalhava na costa de Norfolk desde a grande guerra anterior. Thomasson vivia numa casa da polícia, em Brancaster, e devido às necessidades do trabalho tinha o seu próprio telefone.
Uma hora antes, o telefone tinha tocado, acordando Thomasson, a mulher e o seu setter inglês, Rags. A voz do outro lado da linha pertencia ao superintendente-chefe Perkin, de King's Lynn. O superintendente informou Thomasson do telefonema importante que tinha recebido do Ministério da Guerra, em Londres, a pedir auxílio às forças policiais locais na busca de dois fugitivos suspeitos de homicídio.
Dez minutos depois de receber o telefonema de Perkin, Thomasson já estava a sair do chalé, com uma capa de oleado azul, um chapéu impermeável atado por baixo do queixo e um termos de chá doce que Judith lhe tinha preparado rapidamente. Foi buscar a bicicleta ao barracão nas traseiras da casa e, a seguir, partiu para o centro da aldeia. Rags, que acompanhava sempre Thomasson nas suas rondas, seguia descontraidamente ao lado dele.
Thomasson tinha cinquenta e tal anos. Nunca fumava, raramente tocava em álcool e trinta anos a percorrer de bicicleta a costa ondulante de Norfolk tinham-no deixado em forma e cheio de força. As pernas grossas e bem musculadas pedalavam facilmente, impulsionando a pesada bicicleta de ferro na direção de Brancaster. Tal como suspeitava, reinava um silêncio de morte na aldeia. Podia ir bater a algumas portas, acordar umas quantas pessoas, mas conhecia toda a gente na aldeia e não havia lá ninguém que estivesse a abrigar assassinos em fuga. Passou uma vez pelas ruas silenciosas e depois virou para a estrada costeira e seguiu para a aldeia seguinte, Hampton Sands.
O chalé dos Colville ficava a uns quinhentos metros da aldeia. Toda a gente conhecia a história de Martin Colville. Tinha sido abandonado pela mulher, bebia imenso
e mal conseguia viver da sua pequena propriedade. Thomasson sabia que Colville era demasiado duro com a filha, Jenny. E também sabia que Jenny passava muito tempo nas dunas; Thomasson encontrara as coisas dela depois de um dos habitantes da aldeia se queixar de que havia ciganos a viverem na praia. Deixou que a bicicleta parasse e apontou a lanterna para o chalé dos Colville. Estava às escuras e não havia fumo a sair da chaminé.
Thomasson empurrou a bicicleta pelo caminho de acesso e bateu à porta. Ninguém respondeu. Receando que Colville estivesse bêbado ou desmaiado, voltou a bater, com mais força. Mais uma vez, ninguém respondeu. Abriu a porta e espreitou lá para dentro. O interior da casa estava às escuras. Gritou pelo nome de Colville uma última vez. Como ninguém respondesse, foi-se embora do chalé e continuou em direção a Hampton Sands.
Tal como Brancaster, Hampton Sands estava silenciosa e numa escuridão completa. Thomasson atravessou a aldeia, passando pelo Arms, pela loja da aldeia e pela St. John's Church. Atravessou a ponte sobre a enseada. Sean e Mary Dogherty viviam a cerca de um quilómetro e meio da aldeia. Thomasson sabia que Jenny Colville vivia praticamente com os Dogherty. Era muito provável que estivesse a passar a noite lá. Mas onde estaria Martin?
Foi um quilómetro e meio difícil, com o trilho a subir e a descer à medida que avançava. À sua frente, no escuro, conseguia ouvir o clicar das patas de Rags no trilho e o ritmo constante da respiração do cão. O chalé dos Dogherty surgiu diante dele. Pedalou pelo caminho de entrada, parou e apontou a lanterna de um lado para o outro.
Houve qualquer coisa no prado que lhe chamou a atenção. Deslocou o feixe luminoso sobre a vegetação e - ali - ali estava aquilo outra vez. Avançou com dificuldade pelo meio do prado encharcado e baixou-se para apanhar o objeto. Era um bidão vazio. Cheirou-o gasolina. Virou-o ao contrário. Um fio de gasolina escorreu para fora.
Dirigiu-se para o chalé dos Dogherty, com Rags à sua frente. Viu a carrinha velha e em mau estado de Sean Dogherty estacionada no pátio. Depois, avistou duas bicicletas caídas no meio da vegetação, ao
lado do celeiro. Thomasson avançou até ao chalé e bateu à porta. Tal como no chalé dos Colville, ninguém respondeu.
Thomasson não se deu ao trabalho de bater uma segunda vez. Já se encontrava completamente alarmado com o que tinha visto. Abriu a porta e gritou
Olá. Ouviu um ruído
estranho, como gemidos abafados. Apontou a lanterna para a sala e viu Mary Dogherty amarrada a uma cadeira e com a boca amordaçada.
Thomasson correu para ela, com .Rags a ladrar furiosamente, e desatou rapidamente o pano que tinha à volta da cara.
- Mary! Mas que raio é que se passou aqui? ! Mary, nervosíssima, ofegou com falta de ar.
- Sean... Martin... mortos... celeiro... espiões... submarino... Jenny!
- Daqui fala Vicary.
- Superintendente-chefe Perkin, da polícia de King's Lynn.
- E o que tem para me dizer? - Dois cadáveres, uma mulher histérica e uma rapariga desaparecida.
- Meu Deus! Comece do início.
- Depois de ter recebido a sua chamada, mandei todos os meus agentes fazerem rondas. O agente Thomasson é responsável por um punhado de pequenas aldeias no norte da costa de Norfolk. Foi ele que deparou com os sarilhos.
- Continue.
- Aconteceu tudo num sítio chamado Hampton Sands. A não ser que tenha um mapa grande, não é provável que o encontre. Mas se tiver, descubra Hunstanton, na Wash, e percorra o leste da costa de Norfolk com o dedo e vai ver Hampton Sands.
- Já a encontrei.
Era praticamente o ponto onde Vicary tinha imaginado que o transmissor pudesse estar.
- Thomasson deu com dois corpos num celeiro, numa quinta logo à saída de Hampton Sands. As vítimas são dois habitantes locais, Martin Colville e Sean Dogherty. Dogherty é irlandês. Thomasson encontrou a mulher de Dogherty, Mary, amarrada e amordaçada
no chalé. Tinha levado uma pancada na cabeça e estava num estado de histeria quando Thomasson a descobriu. Contou-lhe uma história e pêras.
- Não há nada que me vá surpreender, superintendente. Por favor, continue.
- A senhora Dogherty diz que o marido anda a espiar para os alemães desde o começo da guerra, nunca foi um homem armado do IRA a cem por cento, mas tinha ligações ao grupo. Ela diz que, há umas semanas, os alemães largaram outro agente na praia, chamado Horst Neumann, e que Dogherty o acolheu. O agente tem estado a morar com eles desde então e a viajar para Londres regularmente.
- E o que aconteceu hoje à noite?
- Ela não sabe ao certo. Ouviu tiros, foi a correr para o celeiro e deu com os corpos. O alemão disse-lhe que Colville lhes tinha entrado por ali de rompante e que fora então que o tiroteio começara.
- E estava lá alguma mulher com Neumann?
- Estava.
- Fale-me da rapariga que desapareceu.
- É a filha de Colville, Jenny. Não está em casa e encontraram a bicicleta dela junto ao chalé dos Dogherty. Thomasson acha que ela seguiu o pai, assistiu ao tiroteio ou ao rescaldo e fugiu. Mary tem medo que o alemão tenha descoberto a rapariga e a tenha levado com ele.
- E ela sabe para onde é que eles iam?
- Não, mas diz que vão numa carrinha... talvez preta.
- E onde está ela agora?
- Continua no chalé.
- E onde está o agente Thomasson?
- Continua em linha, numpub em Hampton Sands.
- E havia algum indício de um rádio no chalé ou no celeiro?
- Espere um momento, deixe-me perguntar-lhe.
Vicary ouviu Perkin, com a voz abafada, a fazer a pergunta.
- Ele diz que viu uma engenhoca no celeiro que poderia ser um rádio.
- E era parecida com quê?
- com uma mala com uma coisa parecida com uma telefonia. Foi destruída por um tiro de caçadeira.
- E quem mais é que sabe disto?
- Eu, Thomasson e provavelmente o dono dopub. Suspeito que ele deve estar ao lado de Thomasson neste preciso momento.
- Não quero que fale a quem quer que seja do que se passou esta noite no chalé dos Dogherty. Não pode haver referências a agentes alemães em nenhum relatório sobre esta questão. Isto é um assunto de segurança da máxima importância. Estamos entendidos, superintendente?
- Estamos.
- vou enviar uma equipa de homens para Norfolk para o auxiliar. Por agora, deixe Mary Dogherty e esses corpos exatamente onde estão.
- Sim, senhor.
Vicary estava outra vez a olhar para o mapa.
- bom, superintendente, eu tenho informações que me levam a suspeitar que, com toda a probabilidade, esses fugitivos estão a dirigir-se precisamente para onde se encontra. Julgamos que o destino final deles é a costa de Lincolnshire.
- Já chamei todos os meus homens. Estamos a barricar todas as estradas principais.
- Mantenha o Ministério informado de todos os desenvolvimentos. E boa sorte.
Vicary desligou o telefone e voltou-se para Boothby.
- Eles mataram duas pessoas, têm provavelmente um refém e estão a tentar chegar à costa de Lincolnshire - revelou Vicary, sorrindo ferozmente. - E parece que acabaram de ficar sem o segundo rádio.
CINQUENTA E OITO
LINCOLNSHIRE, INGLATERRA
Duas horas depois de terem saído de Hampton Sands, Horst Neumann e Catherine Blake começaram a ter sérias dúvidas sobre as hipóteses de chegarem a tempo ao ponto de encontro com o submarino. Para escapar à costa de Norfolk, Neumann refez o seu percurso, subindo o grupo de colinas no coração de Norfolk e seguindo depois a estreita faixa de estrada pela região pantanosa e pelas povoações às escuras. Contornou King's Lynn para sudeste, serpenteou por uma série de aldeolas e depois atravessou o rio Great Ouse, numa aldeia chamada Wiggenhall St. Germans.
A viagem pela orla sul da Wash foi um pesadelo. O vento soprava com toda a força, vindo do mar do Norte, e chicoteava os pântanos e diques. A chuva aumentou de intensidade. Às vezes, vinha em rajadas furiosas - em turbilhão, soprada pelo vento, ocultando as bermas da estrada. Neumann curvava-se todo para a frente, quilómetro após quilómetro, agarrando com força o volante com ambas as mãos, enquanto a carrinha avançava a grande velocidade pelo terreno plano. Por vezes, tinha a sensação de estar a flutuar num abismo.
Catherine estava sentada ao lado dele, a ler o mapa antigo de Dogherty, do serviço oficial de topografia e cartografia, à luz da lanterna. Falavam em alemão para
Jenny não perceber. Neumann achava o alemão de Catherine curioso: átono, sem entoação especial nem sotaque regional. O tipo de alemão que é uma segunda ou terceira
língua. O tipo de alemão que não é falado há muito tempo.
Neumann traçou o caminho com as instruções de navegação de Catherine.
O barco estaria á espera deles numa terra chamada Cleethorpes, que ficava perto do porto de Grimsby, na foz do Humber. Assim que deixassem a Wash para trás, não teriam povoações grandes pelo caminho. De acordo com os mapas, havia uma estrada boa - a Al 6
- que seguia vários quilómetros para o interior, ao longo do sopé das colinas de Lincolnshire Wolds, e depois em direção ao Humber. Para efeitos de planeamento,
Neumann partiu do pressuposto de que as coisas correriam da pior maneira. Partiu do pressuposto de que Mary acabaria por ser encontrada, de que o MI5 acabaria por ser alertado e de que seriam estabelecidas barricadas em todas as estradas principais perto do litoral. Apanharia a Al 6 até meio do caminho para Cleethorpes e, a seguir, mudaria para uma estrada secundária que seguia mais perto da costa.
Avistou Boston perto da margem ocidental da Wash. Era a última cidade grande que os separava do Humber. Neumann deixou a estrada principal, avançou lentamente por tranquilas estradas secundárias e depois reentrou na Al 6 a norte da cidade. Carregou no acelerador e puxou fortemente pela carrinha por entre a tempestade.
Catherine desligou a lanterna para o blackout e olhou para a chuva a rodopiar à fraca luz dos faróis.
- Como é que andam as coisas agora... em Berlim? Neumann manteve os olhos na estrada.
- É o paraíso. Estamos todos felizes, trabalhamos muito nas fábricas, agitamos os punhos contra os bombardeiros americanos e britânicos e toda a gente ama o Fúhrer.
-- Pareces um filme de propaganda do Goebbels.
- A verdade não é assim tão divertida. Berlim está muito mal. Os americanos vêm de dia com os seus B-17 e os britânicos vêm à noite com os seus lancasters e Halifaxes. Há dias em que parece que a cidade está sob bombardeamento constante. Grande parte do centro de Berlim é um monte de destroços.
- Tendo eu passado também pela Blitz, receio bem que a Alemanha mereça tudo o que os americanos e britânicos lhe conseguirem infligir. Os alemães foram os primeiros a levar a guerra à população
civil. Não posso verter muitas lágrimas por Berlim estar agora a ser reduzida a pó.
- Pareces uma verdadeira britânica.
- E sou meia britânica. A minha mãe era inglesa. E há seis anos que vivo com os britânicos. É difícil não nos esquecermos de que lado supostamente estamos quando nos encontramos numa situação dessas. Mas fala-me mais de Berlim.
- Quem tem dinheiro ou ligações consegue comer bem. Quem não tem não consegue. Os russos inverteram por completo a situação no Leste. Desconfio que meia Berlim esteja
desejosa de que a invasão aconteça para que os americanos cheguem a Berlim antes dos russos.
- Isso é tão tipicamente alemão. Elegem um psicopata, dão-lhe poder absoluto e depois choram porque ele os conduziu à beira da destruição.
Neumann riu-se.
- Se foste abençoada com essa capacidade de prever o futuro, por que raio é que te voluntariaste para ser
espiã?
- E quem é que falou em voluntariado?
Passaram rapidamente por duas aldeias - primeiro, Stickney, depois, Stickford. O aroma de fumo vindo de lareiras a arderem nas pequenas casas invadiu a carrinha.
Neumann ouviu um cão a ladrar e, a seguir, outro. Enfiou a mão no bolso, tirou de lá os cigarros e passou-os a Catherine. Ela acendeu dois, ficou com um e deu-lhe o outro.
- Importas-te de explicar essa última observação?
Ela pensou: Importo-me? Era uma sensação tão estranha, após todos aqueles anos, estar a falar sequer alemão. Tinha passado seis anos a esconder o mais pequeno resquício de verdade sobre si. Tinha-se tornado outra pessoa, tinha apagado todos os aspetos da sua personalidade e do seu passado. Quando pensava na pessoa que era antes de Hitler e antes da guerra, era como se estivesse a pensar noutra pessoa.
Anna Katarina von Steiner morreu num infeli acidente de automóvel, à saída de Berlim.
- Bem, eu não fui propriamente ao gabinete da Abwehr lá da zona para me alistar - afirmou ela. - Mas também suponho que
não haja ninguém nesta atividade a conseguir trabalho dessa maneira pois não? Eles é que vêm sempre ter connosco. No meu caso, eles foram Kurt Vogel.
Contou-lhe a história, a história que nunca tinha contado a ninguém. A história do verão em Espanha, o verão em que rebentou a guerra civil. O verão na estancia de Maria. O caso com o pai de Maria.
- Só para veres a minha sorte, acontece que ele era um fascista e um caçador de talentos para a Abwehr. Vendeu-me a Vogel e Vogel veio à minha procura.
- E porque é que não disseste simplesmente não?
- Porque é que nenhum de nós disse simplesmente não? No meu caso, ele ameaçou quem eu mais quero neste mundo... o meu pai. É isso que um bom responsável operacional
faz. Entra-nos na cabeça. Consegue saber como é que pensamos, o que é que sentimos. O que é que amamos e o que é que tememos. E depois usa isso para nos pôr a fazer
o que ele quer que façamos.
Ela fumou em silêncio por um momento, observando enquanto passavam por outra aldeia.
- Ele sabia que eu tinha vivido em Londres quando era criança, que falava a língua perfeitamente, que já sabia usar uma arma e que...
Silêncio durante um momento. Neumann não insistiu com ela. Limitou-se a esperar, fascinado.
- Ele sabia que eu tinha a personalidade adequada para a missão que tinha em mente. Estive quase seis anos no Reino Unido, sozinha, praticamente sem contacto com ninguém do meu lado: nem amigos, nem família, nenhum contacto com outros agentes, nada. Foi mais uma sentença de prisão do que uma missão. Nem te consigo dizer quantas vezes sonhei em voltar a Berlim e matar Vogel com uma das maravilhosas técnicas que ele e os amigos me ensinaram.
- E como entraste no país?
Ela contou-lhe... contou-lhe o que Vogel a tinha feito fazer.
- Jesus - murmurou Neumann.
- Uma coisa típica da Gestapo, certo? Passei os seis meses seguintes a preparar a minha nova identidade. Depois instalei-me e esperei. Vogel e eu tínhamos uma forma de comunicar por rádio que
não incluía nomes de código. Portanto, os britânicos nunca me procuraram. Vogel sabia que eu estava segura e infiltrada, pronta para ser ativada. Depois, o idiota deu-me uma missão e fez-me cair mesmo nos braços do MI5 - disse ela, rindo-se baixinho. - Meu Deus, não posso acreditar que estou realmente a voltar para lá depois deste tempo todo. Nunca pensei que ia ver a Alemanha outra vez.
- Não pareces lá muito entusiasmada com a perspetiva de voltar para casa.
- Casa? É difícil pensar na Alemanha como a minha casa. É difícil pensar em mim como alemã. Vogel apagou essa parte de mini no maravilhoso retirozinho dele nas montanhas
da Baviera.
- E o que vais fazer?
- Encontrar-me com Vogel, ter a certeza de que o meu pai ainda está vivo e, a seguir, receber o meu pagamento e partir. Vogel pode arranjar-me outra das identidades falsas dele. Sou capaz de passar por cinco nacionalidades diferentes. Foi isso que me fez ir parar a este jogo logo para começar. É tudo um grande jogo, não é? Um grande jogo.
- E para onde estás a pensar ir?
- vou voltar para Espanha - respondeu ela. - vou voltar para o sítio onde começou tudo.
- Fala-me disso - pediu Neumann. - Preciso de pensar noutra coisa além desta estrada no meio de nenhures.
- Fica nas colinas no sopé dos Pirenéus. De manhã, vamos caçar e, à tarde, subimos às montanhas. Há uma maravilhosa ribeira com lagos fundos e frios e ficamos lá toda a tarde, a beber vinho branco gelado e a sentir o cheiro dos eucaliptos. Costumava pensar nisso o tempo todo quando a solidão me invadia. Às vezes, pensava que ia ficar maluca.
- Parece maravilhoso. Se precisares de um moço de estrebaria, diz-me.
Ela olhou para ele e sorriu.
- Tens sido maravilhoso. Se não fosses tu... - exclamou ela, hesitando antes de continuar. - Meu Deus, nem consigo sequer imaginar.
- Não precisas de agradecer. Fico contente por ter podido ajudar. Não quero estragar a festa, mas ainda não estamos livres de perigo.
- Acredita, tenho consciência disso.
Ela acabou o cigarro, abriu uma nesga do vidro da janela e atirou a ponta para o meio da noite. A beata atingiu a estrada e explodiu em faúlhas. Catherine recostou-se e fechou os olhos. Há já demasiado tempo que eram apenas a adrenalina e o medo que a faziam avançar. A exaustão tomou-a de assalto. O balançar suave da carrinha embalou-a, fazendo-a cair num sono leve, meio acordada.
Neumann perguntou:
- Vogel nunca me disse o teu nome verdadeiro. Qual é?
- O meu nome verdadeiro era Anna Katarina von Steiner -
respondeu ela com o sono a infiltrar-se-lhe na voz. - Mas prefiro que me continues a chamar Catherine. É que Kurt Vogel matou Anna antes de a enviar para Inglaterra. Receio bem que Anna já não exista. Anna está morta.
Quando Neumann falou outra vez, a sua voz estava muito longe, no fim de um grande túnel.
- E como é que uma mulher linda e inteligente como a Anna Katarina von Steiner acabou aqui, desta maneira?
- É uma pergunta muito boa - retorquiu ela, com a fadiga a tomar conta de si, adormecendo de seguida.
O sonho é neste momento a única recordação que ela tem disso; há muito que foi expulsa benevolamente dos seus pensamentos conscientes. Vê-o apenas em breves erupções - vislumbres roubados. As vezes, vê-o com os próprios olhos, como se o estivesse a reviver, e, outras
vezes, o sonho obriga-a a vê-lo de novo, como um espectador
numa bancada.
Esta noite está a revivê-lo.
Está deitada à beira do lago; o papá deixa-a ir sozinha. Sabe que ela não se vai aproximar da água - está demasiado fria para nadar- e sabe que ela gosta de estar
sozinha quando pensa na mãe.
É outono. Ela trouxe um cobertor. A erva alta à beira do lago está húmida da chuva da manhã. O vento move-se nas árvores. Um bando de gralhas revolteia
e dispersa-se ruidosamente por cima da cabeça dela. As árvores derramam flamejantes folhas cor de laranja e vermelhas. Ela observa as folhas a descerem suavemente,
como pequenos balões de ar quente, e a pousarem na superfície encrespada
do lago.
E então que, enquanto segue com os olhos a descida das folhas, vê o homem, parado junto às árvores do outro lado do lago.
Ele fica quieto durante muito tempo, a olhar para ela; a seguir, avança na sua direção. Tra botas altas e um casaco que lhe dá pelas coxas. Tem uma caçadeira de carregar pela culatra aninhada no braço direito. O cabelo e a barba são muito compridos, os olhos vermelhos e húmidos. A medida que se aproxima, ela vê que tem algo pendurado no cinto. Percebe que são dois coelhos ensanguentados. Mortos e flácidos, parecem absurdamente compridos e finos.
O papá tem uma palavra para homens como ele: larápios. Chegam às terras das outras pessoas e matam os animais - veados, coelhos efaisões. Ela acha que é uma palavra engraçada, larápios. Parece referir-se a alguém que prepara ovos de manha. Pensa nisso enquanto o homem se aproxima, e isso fá-la sorrir.
O larápio pergunta se pode sentar-se ao lado dela e ela diz que sim.
Ele põe-se de cócoras e pousa a espingarda na relva.
- Estás aqui sozinha?-pergunta.
- Sim. O meu pai diz que não faz mal.
- E onde está o teu pai agora?
- Está em casa.
- E não vem cá?
- Não.
-Quero mostrar-te uma coisa - diz ele. - Uma coisa que te vai fazer sentir ótima.
Os olhos dele já estão muito húmidos. Está a rir-se; tem os dentes pretos e podres. Ela fica com medo pela primeira
vez. Tenta levantar-se mas ele agarra-a pelos
ombros e empurra-a para baixo, deitando-a no cobertor. Ela tenta gritar mas ele abafa o som com a mão grande e peluda. De repente, está em cima dela; ela fica paralisada
debaixo do peso dele. Ele está a levantar-lhe o vestido e a arrancar-lhe a roupa interior.
A dor não se parece com nada que ela já tenha sentido. Parece que está a ser rasgada. Ele prende-lhe os braços atrás da cabeça com a mão e tapa-lhe a boca com a
outra para ninguém a ouvir gritar. Ela sente os corpos ainda quentes dos
coelhos mortos a pressionarem-lhe a perna. A seguir, o rosto do larápio contorce-se como se ele estivesse com dores e tudo aquilo para tão repentinamente como começou.
Ele está outra vez a falar com ela:
- Viste os coelhos? Viste o que eu fiz aos coelhos?
Ela tenta assentir com a cabeça, mas a mão que lhe tapa a boca está afazer tanta força que ela não consegue mexer a cabeça.
- Se alguma vez disseres a alguém o que aconteceu aqui hoje, faço-te o mesmo. E depois faço o mesmo ao teu pai. Dou um tiro aos dois e, a seguir, penduro as vossas
cabeças no meu cinto. Estás a ouvir, rapariga?
Ela começa a chorar.
- És uma rapariga muito má - diz ele. - Oh, sim, dá para ver isso. Acho que até gostaste disto.
A seguir, faz-lhe aquilo outra vez.
Começam os tremores. Nunca tinha sonhado com aquilo desta maneira. Alguém está a chamar o nome dela - Catherine... Catherine... acorda. Porque é que ele me está
a chamar Catherine? O meu nome é Arma...
Horst Neumann sacudiu-a uma vez mais, com violência, e gritou:
- Catherine, raios partam! Acorda! Temos sarilhos!
CINQUENTA E NOVE
LINCOLNSHIRE, INGLATERRA
Eram três da manhã quando o ILysander atravessou as nuvens espessas e aterrou com um forte solavanco numa pequena base da RAF a três quilómetros da cidade de Grimsby.
Alfred Vicary nunca tinha andado de avião e era uma experiência que desejava não repetir tão depressa. O mau tempo sacudiu o avião durante todo o voo, desde que saíram de Londres, e Vicary nunca se tinha sentido tão satisfeito na vida por ver um lugar quando deslizaram na pista em direção ao pequeno barracão de operações.
O piloto desligou o motor enquanto um tripulante abria a porta da cabine. Vicary, Harry Dalton, Clive Roach e Peter Jordan desceram rapidamente. Estavam dois homens à espera deles, um jovem oficial da RAF, de ombros quadrados, e um homem alto e bexigoso, com uma gabardina em mau estado.
O homem da RAF estendeu a mão e tratou das apresentações.
- Chefe de esquadrilha Edmund Hughes. E o superintendente -chefe da polícia do condado de Lincolnshire, Roger Lockwood. Entrem no barracão das operações. É rudimentar, mas seco, e montámos um posto de comando improvisado para os senhores.
Entraram. O oficial da RAF disse:
- Calculo que não seja tão agradável como os vossos aposentos em Londres.
- Até ficaria surpreendido - respondeu Vicary.
Era uma sala pequena, com uma janela com vista para o aeródromo. Havia um mapa de grande escala de lincolnshire pendurado numa parede e uma secretária com dois telefones maltratados do outro lado da sala.
- Serve perfeitamente.
- Temos um rádio e um teleimpressor - anunciou Hughes. -- Até podemos arranjar chá e sanduíches de queijo. Estão com ar de quem podia comer qualquer coisa.
- Obrigado - respondeu Vicary. - Foi um dia longo. Hughes saiu e o superintendente-chefe Lockwood avançou.
- Temos homens em todas as estradas principais até à Wash disse Lockwood, com o dedo grosso a bater no mapa. - Nas aldeias mais pequenas, só há polícias de bicicleta e portanto receio bem que não sejam capazes de fazer muito se os virem. Mas, à medida que se deslocarem para mais perto da costa, vão ter problemas. Barricadas aqui, aqui, aqui e aqui. Os meus melhores homens, carros-patrulha, carrinhas e armas.
- Muito bem. E em relação à costa propriamente dita?
- Temos homens em todas as docas e cais ao longo da costa de Lincolnshire e do Humber. Se tentarem roubar algum barco, vou ser informado.
- E em relação às praias abertas?
- Isso já é outra história. Não tenho meios ilimitados. O exército levou-me muitos dos meus melhores rapazes, tal como a toda a gente. Mas conheço estas águas. Também sou marinheiro amador. E não ia querer sair para o mar esta noite em nenhum barco que saísse de uma praia.
- Este tempo pode ser o nosso melhor amigo.
- É verdade. Outra coisa, major Vicary. Continuamos a ter de fingir que os senhores só andam atrás de um par de criminosos vulgares?
- Por acaso, superintendente-chefe, temos mesmo.
A saída da Al6 para uma pequena estrada secundária estava à frente deles, mesmo à saída da cidade de Louth. Neumann tinha
planeado deixar a Al 6 nessa altura, apanhar a estrada secundária para a costa, mudar para outra estrada secundária e dirigir-se para norte para Cleethorpes. Havia
apenas um problema. Metade da polícia de Louth estava na saída. Neumann conseguia ver pelo menos quatro homens. Quando se aproximou, eles apontaram as lanternas
na sua direção e fizeram-lhe sinal para parar.
Catherine já tinha acordado, sobressaltada.
- O que se passa?
- Fim da linha, receio bem - respondeu Neumann, parando a carrinha. - É evidente que têm estado à nossa espera. Não é com conversas que nos vamos safar.
Catherine pegou na Mauser.
- E quem é que falou em conversas?
Um dos polícias avançou, empunhando uma caçadeira, e bateu ao de leve no vidro da janela de Neumann. Neumann desceu o vidro e disse:
- Boa tarde. Qual é o problema?
- O senhor importa-se de sair da carrinha?
- Por acaso, até me importo. É tarde, estou cansado, está um tempo horrível e quero chegar ao meu destino.
- E pode dizer-me onde isso é?
- Kingston - respondeu Neumann, apesar de conseguir ver que o polícia já estava a duvidar da história. Outro polícia apareceu à janela de Catherine. E outros dois posicionaram-se atrás da carrinha.
O polícia abriu a porta de Neumann de rompante, apontou-lhe a caçadeira à cara e disse:
- Muito bem. Levante as mãos para eu as poder ver e saia da carrinha. Devagarinho.
Jenny Colville estava sentada na parte de trás da carrinha, com as mãos e os pés atados e a boca amordaçada. Doíam-lhe os pulsos. E também o pescoço e as costas. Estava sentada no chão da carrinha há quanto tempo? Duas horas? Três horas? Talvez quatro? Quando a carrinha abrandou, permitiu-se um breve lampejo de esperança.
Pensou: Talvez isto acabe rapidamente e eu possa voltar para Hampton Sands e Mary e Sean e o papá estejam lá e as coisas sejam como eram antes de ele vir e tudo acabe por ser um pesadelo e... deteve-se. Era melhor ser realista. Era melhor pensar naquilo que era realmente possível.
Observou-os no banco da frente. Tinham falado baixinho em alemão durante muito tempo, depois a mulher adormeceu e, naquele momento, Neumann estava a sacudi-la e a tentar acordá-la. Mais adiante, pelo para-brisas, viu luz - feixes de luz balançando para a frente e para trás, como lanternas. Pensou: Os polícias usariam lanternas se estivessem a barricar a estrada. Seria possível? Será que sabiam que eles eram espiões alemães e que ela tinha sido raptada? Estariam à procura dela?
A carrinha parou. Conseguiu ver dois polícias à frente da carrinha e, lá fora, perto da parte de trás, ouviu passos e as vozes de pelo menos mais dois. Ouviu o polícia a bater no vidro. Viu Neumann descer a janela. Viu que ele tinha uma arma na mão. Jenny olhou para a mulher. Também tinha uma arma na mão.
Foi então que se lembrou do que tinha acontecido no celeiro. Duas pessoas atravessaram-se no caminho deles - o pai dela e Sean Dogherty - e tinham-nas matado. Era
possível que também tivessem matado Mary. Não se iriam render só porque alguns polícias da província os mandavam fazê-lo. Também iriam matar os polícias, tal como
tinham matado o pai e Sean.
Jenny ouviu a porta a abrir-se, ouviu o polícia a gritar-lhes para saírem. Sabia o que estava prestes a acontecer. Em vez de saírem, iriam começar a disparar. E
depois os polícias morreriam todos e Jenny ficaria outra vez sozinha com eles.
Tinha de os avisar.
Mas como?
Não podia falar porque Neumann a tinha amordaçado fortemente.
Só podia fazer uma coisa.
Levantou as pernas e pontapeou a parte lateral da carrinha com toda a força possível.
Se a ação de Jenny Colville não teve o efeito pretendido, pelo menos garantiu a um dos polícias - aquele que estava mais perto da porta de Catherine Blake - uma morte mais suave. Quando ele virou a cabeça na direção do som, Catherine levantou a Mauser e deu-Ihe um tiro. O soberbo silenciador da Mauser abafou a explosão da bala, fazendo com que a arma emitisse apenas um estampido grave. A bala estilhaçou o vidro, atingiu o polícia na articulação do maxilar e, a seguir, ricocheteou para a base do crânio. Ele tombou morto na superfície lamacenta da estrada.
O segundo a morrer foi o polícia do lado da porta de Neumann, apesar de não ter sido Neumann a disparar o tiro que o matou. Neumann livrou-se da caçadeira com um golpe da mão direita; Catherine virou-se e disparou pela porta aberta. A bala atingiu o polícia no meio da testa e saiu pela parte de trás do crânio. Ele caiu de costas na estrada.
Neumann caiu da carrinha e aterrou na estrada. Um dos polícias na parte de trás da carrinha disparou por cima da cabeça dele, estilhaçando a janela meio aberta. Neumann apertou o gatilho rapidamente, duas vezes. O primeiro tiro atingiu o polícia no ombro, fazendo-o rodopiar. O segundo atravessou-lhe o coração.
Catherine saiu da carrinha, com a arma nas mãos esticadas para a frente, a apontar para a escuridão. Do outro lado da carrinha, Neumann estava a fazer a mesma coisa, só que continuava deitado de barriga para baixo. Ficaram ambos à espera, sem fazer barulho, à escuta.
O quarto polícia pensou que era melhor fugir e pedir ajuda. Voltou-se e começou a correr pela escuridão. Depois de dar algumas passadas, ficou ao alcance de Neumann. Neumann fez pontaria cuidadosamente e disparou duas vezes. A corrida terminou, a caçadeira bateu com estrépito no alcatrão e o último dos quatro homens caiu morto na estrada molhada da chuva.
Neumann recolheu os corpos e empilhou-os atrás da carrinha. Catherine abriu as portas traseiras. Jenny, com os olhos escancarados
de terror, ergueu as mãos para proteger a cabeça. Catherine levantou a arma bem alto e bateu com ela na cara de Jenny. Um corte profundo abriu-se por cima do olho. Catherine disse:
- A não ser que queiras acabar como eles, não voltes a tentar mais nada desse género.
Neumann pegou em Jenny ao colo e deitou-a na superfície da estrada. Em seguida, com Catherine, colocou os corpos dos polícias mortos no fundo da carrinha. A ideia tinha-lhe surgido instantaneamente. Os polícias tinham vindo de carrinha para aquele sítio; esta encontrava-se estacionada a poucos metros dali, na berma da estrada. Neumann iria esconder os corpos e a carrinha roubada no meio das árvores, onde não pudessem ser vistos, e servir-se da carrinha da polícia para seguir até à costa. Era possível que passassem várias horas até outro polícia aparecer ali e descobrir que os polícias tinham desaparecido. Nessa altura, já ele e Catherine estariam a caminho da Alemanha, a bordo do submarino.
Neumann pegou em Jenny e colocou-a na parte de trás da carrinha da polícia. Catherine subiu para o lugar do condutor e ligou o motor. Neumann dirigiu-se para a outra carrinha e entrou nela. O motor estava a trabalhar. Fez marcha atrás, deu a volta e, a seguir, acelerou pela estrada fora, com Catherine a segui-lo. Tentou não pensar nos quatro cadáveres que se encontravam a poucos centímetros dele.
Dois minutos depois, Neumann virou para um pequeno caminho fora da estrada. Conduziu cerca de duzentos metros, parou e desligou o motor. A seguir, saiu e voltou a correr para a estrada. Catherine tinha invertido a direção da carrinha e estava sentada no lugar do passageiro quando Neumann regressou. Entrou, bateu com a porta e partiu a toda a velocidade.
Passaram o local onde a barricada tinha sido montada e viraram para a pequena estrada secundária. De acordo com o mapa, faltavam cerca de dezasseis quilómetros até à estrada da costa e, a seguir, mais trinta e dois quilómetros até Cleethorpes. Neumann acelerou a fundo e puxou fortemente pela carrinha. Pela primeira vez desde que tinha visto os homens do MI5 em Londres, permitiu-se imaginar que apesar de tudo talvez até conseguissem.
Alfred Vicary andava de um lado para o outro da sala na base da RAF nos arredores de Grimsby. Harry Dalton e Peter Jordan estavam sentados à secretária, a fumar. O superintendente Lockwood encontrava-se sentado ao lado deles, construindo figuras geométricas com os fósforos.
Vicary disse:
- Não estou a gostar disto. Alguém já os devia ter visto. Harry respondeu:
- Todas as estradas principais estão bloqueadas. A dada altura, vão ter de dar de caras com uma barricada.
- Se calhar, talvez não estejam a vir nesta direção. Se calhar, fiz um erro de cálculo terrível. Se calhar, foram de Hampton Sands para sul. Se calhar, a comunicação com o submarino foi um estratagema e estão a caminho da Irlanda numferry.
- Eles estão a vir nesta direção.
- Se calhar, resolveram esconder-se, desistiram. Se calhar, estão enfiados noutra aldeia longínqua, à espera que as coisas acalmem antes de avançarem.
- Eles avisaram o submarino. Têm de ir.
- Não têm de fazer nada. É possível que tenham avistado as barricadas e o aumento do número de polícias e decidido esperar. Podem avisar o submarino na próxima oportunidade e tentar novamente quando as coisas estiverem mais calmas.
- Está a esquecer-se de uma coisa. Eles não têm rádio.
- Nós achamos que não têm. O Harry tirou-lhes um e o Thomasson encontrou um rádio destruído em Hampton Sands. Mas não temos a certeza de que não têm um terceiro.
- Não temos a certeza de nada, Alfred. Fazemos palpites fundamentados.
Vicary andou outra vez de um lado para o outro, a olhar para o telefone e a pensar: Toca, diabos, toca!
Querendo desesperadamente fazer qualquer coisa, levantou o auscultador e pediu à telefonista para ligar para a Sala de Localização de Submarinos, em Londres. Quando apareceu por fim na linha,
Arthur Braithwaite parecia estar dentro de um tubo de lançamento de torpedos.
Vicary perguntou:
- Soube alguma coisa, comandante?
- Falei com a Marinha Real e a guarda costeira local. A Marinha Real está neste preciso momento a deslocar para a área um par de corvetas - números 745 e 128. Vão
estar ao largo de Spurn Head dentro de uma hora e começar as operações de busca logo de seguida. A guarda costeira está a tomar conta das coisas mais perto da costa. E a RAF vai pôr aviões no ar à primeira luz do dia.
- E quando é isso?
- Por volta das sete da manhã. Talvez um pouco depois, por causa da densa cobertura de nuvens.
- Isso pode ser já muito tarde.
- Não lhes vai servir de nada irem antes disso. Precisam de luz para ver. Estariam perfeitamente cegos se fossem agora. Mas há boas notícias. Esperamos uma aberta no tempo pouco antes do amanhecer. O céu vai manter-se encoberto, mas espera-se que a chuva abrande e o vento diminua. Isso vai facilitar a condução das operações de busca.
- Afinal de contas, não tenho a certeza de que sejam assim tão boas notícias. Estávamos a contar com a tempestade para fechar a costa. E o tempo melhor também torna a vida mais fácil aos agentes e ao submarino.
- Bem visto.
- Dei instruções à Marinha Real e à RAF para fazerem a busca o mais discretamente possível. Eu sei que isto soa algo inverosímil, mas tente fazer com que pareça tudo rotina. E diga a todos para terem cuidado com o que dizem pelo rádio. Os alemães também nos ouvem. Lamento não poder ser mais claro, comandante Braithwaite.
- Eu compreendo. vou transmitir essas indicações.
- Obrigado.
- E tente não se enervar, major Vicary. Se esses seus espiões tentarem chegar àquele submarino hoje à noite, vamos detê-los.
Os polícias Gardner e Sullivan pedalavam ao lado um do outro pelas ruas escuras de Louth, Gardner, um homem grande, alto e de meia-idade, e Sullivan um rapaz magro e em boa forma, com pouco mais de vinte anos. O superintendente-chefe Lockwood tinha-lhes ordenado que se dirigissem a uma barricada a sul da aldeia e substituíssem dois dos polícias que lá estavam. Gardner queixou-se enquanto pedalava:
- Porque é que os criminosos de Londres arranjam sempre maneira de acabar aqui, no meio de uma tempestade, és capaz de me explicar?
Sullivan estava entusiasmadíssimo. Esta era a sua primeira grande caça ao homem. E também era a primeira vez que usava uma arma em serviço. Trazia uma espingarda de ferrolho, com trinta anos e saída da sala de armas da esquadra, pendurada ao ombro.
Cinco minutos mais tarde, chegaram à saída onde deveria estar a barricada. O lugar estava deserto. Gardner levantou-se, sem sair da bicicleta. Sullivan deitou a sua no chão, acendeu a lanterna e iluminou a área. Primeiro, viu as marcas dos pneus e, depois, os vidros espalhados.
Sullivan gritou:
- Chega aqui! Depressa!
Gardner desceu da bicicleta e empurrou-a até onde estava Sullivan.
- Jesus Cristo!
- Olha para as marcas. Dois veículos, o deles e o nosso. Quando voltaram para trás, os pneus enlamearam a superfície da estrada. Deixaram-nos umas belas marcas para seguirmos.
- É verdade. Vai ver onde vão dar. Eu volto para a esquadra para alertar Lockwood. E, por amor de Deus, tem cuidado.
Sullivan pedalou pela estrada, segurando a lanterna com uma mão e vendo as marcas a desvanecerem-se gradualmente. Cem metros à frente do local da barricada, o rasto tinha desaparecido. Sullivan avançou mais uns quatrocentos metros à procura de algum sinal da carrinha da polícia.
Andou um pouco mais e foi então que avistou outro conjunto de marcas de pneus. Estas eram diferentes. As marcas tornavam-se mais claras e definidas à medida que pedalava. O veículo que as tinha feito tinha obviamente vindo da direção contrária.
Seguiu as marcas até ao ponto de origem e encontrou o pequeno trilho que ia dar às árvores. Apontou a lanterna para o trilho e viu o par de marcas recentes de pneus. Virou o feixe de luz na horizontal, para o túnel de árvores, mas a luz não era suficientemente potente para penetrar na escuridão. Olhou para o chão - demasiado sulcado e enlameado para manobrar a bicicleta. Desmontou, encostou a bicicleta a uma árvore e começou a andar.
Dois minutos depois, avistou a parte de trás da carrinha. Chamou, mas ninguém respondeu. Olhou com mais atenção. Não era o veículo da polícia; tinha matrícula de
Londres e era um modelo diferente. Sullivan avançou lentamente. Aproximou-se da parte da frente da carrinha pelo lado do passageiro e apontou a lanterna lá para dentro. O banco da frente estava vazio. Apontou o feixe de luz para a parte de trás, na direção da área de armazenamento.
Foi então que viu os corpos.
Sullivan deixou a carrinha no meio das árvores e voltou para Louth, pedalando o mais depressa possível. Chegou à esquadra da polícia e contactou rapidamente o superintendente-chefe
Lockwood na base da RAF.
- Estão os quatro mortos - disse ele, sem fôlego devido à corrida. - Estão estendidos na parte de trás de uma carrinha, mas não é a deles. Parece que os fugitivos levaram a carrinha da polícia. A julgar pelas marcas na estrada, acho que voltaram para trás, no sentido de Louth.
Lockwood perguntou:
- E onde estão os corpos agora?
- Deixei-os no bosque, senhor.
- Volta para lá e fica à espera até que chegue ajuda.
- Sim, senhor. Lockwood desligou o telefone.
- Quatro homens mortos. Meu Deus!
- Lamento, superintendente-chefe. Lá se vão as minhas teorias de eles se terem escondido. Andam obviamente por aqui e são capazes de fazer tudo para escapar, incluindo
assassinar quatro dos seus homens a sangue-frio.
- E temos outro problema... vão num veículo da polícia. Avisar os agentes que dirigem as barricadas vai levar tempo. E, entretanto, os seus espiões estão a aproximar-se
perigosamente da costa - afirmou Lockwood, dirigindo-se para o mapa. - Louth fica aqui, mesmo a sul de nós. Agora, eles podem apanhar uma série de estradas secundárias para o mar.
- Reposicione os seus homens. Coloque-os todos entre Louth e a costa.
- com certeza, mas vai demorar tempo. E os seus espiões já nos levam avanço.
- Outra coisa - atirou Vicary. - Tragam esses mortos para aqui o mais discretamente possível. Quando isto tudo acabar, pode ser necessário engendrar outra explicação para a morte deles.
- E o que digo às famílias deles? - vociferou Lockwood, saindo da sala.
Vicary pegou no telefone. A telefonista fez a ligação para o quartel-general do MI5 em Londres. Uma telefonista do departamento atendeu. Vicary pediu para falar com Boothby e esperou que ele surgisse na linha.
-Sir Basil, receio bem que tenhamos grandes problemas por aqui.
Um vento rigoroso fazia a chuva fustigar a zona do porto de Cleethorpes quando Neumann abrandou e virou para uma fila de armazéns e garagens. Parou a carrinha e desligou o motor. Não faltava muito para o amanhecer. Mesmo à luz fraca, conseguia ver um pequeno cais, com vários barcos de pesca atracados e mais barcos a balouçarem, presos com as suas amarras na água negra. Tinham feito um tempo excelente até à costa. Por duas vezes, tinham encontrado barricadas e, por duas vezes, tinham-nos deixado passar sem perguntas graças à carrinha em que seguiam.
Supostamente, o apartamento de Jack Kincaid ficava por cima de uma garagem. Tinha uma escada exterior de madeira, com uma porta no cimo. Neumann saiu da carrinha e subiu as escadas, puxando instintivamente da Mauser ao aproximar-se da porta. Bateu suavemente, mas ninguém respondeu. Experimentou o trinco; a porta estava destrancada. Abriu-a e entrou.
Foi imediatamente assaltado pelo fedor do lugar: lixo em decomposição, cigarros velhos, corpos sujos, um cheiro opressivo a álcool. Experimentou o interruptor, mas não aconteceu nada. Tirou a lanterna do bolso e acendeu-a. O feixe apanhou a figura de um homem grande a dormir num colchão sem lençóis. Neumann avançou cautelosamente pelo quarto imundo e deu um pequeno toque no homem com a biqueira da bota.
- É o Jack Kincaid?
- Sou. E quem é você?
- Chamo-me James Porter. Ficou de me dar boleia no seu barco.
- Oh, sim, sim.
Kincaid tentou sentar-se no colchão, mas não conseguiu. Neumann apontou-lhe a luz à cara. Tinha pelo menos sessenta anos e a sua cara angulosa mostrava os sinais de um alcoolismo desregrado.
- Bebeu um pouco ontem à noite, Jack? - perguntou Neumann.
- Um pouco.
- Qual é o seu barco, Jack?
- O Camilla.
- E onde está ele exatamente?
- Lá em baixo, no cais. É impossível não dar por ele. Kincaid estava a perder os sentidos outra vez.
- Não se importa que eu o leve emprestado por um bocadinho, pois não, Jack?
Kincaid não respondeu, limitou-se a começar a ressonar profundamente.
- Muito obrigado, Jack.
Neumann saiu do apartamento e voltou a entrar na carrinha.
- O nosso capitão não está em condições de nos levar. Está bêbado que nem um cacho.
- E o barco?
- É o Camilla. Ele diz que está mesmo ali em baixo, no cais.
- E está lá mais qualquer coisa.
- O quê?
- Já vais ver daqui a um instante. Neumann viu surgir um polícia.
- Eles devem estar a vigiar a costa toda - disse Neumann.
- É uma pena. Outra baixa desnecessária.
- Vamos lá a despachar isso. Matei mais gente esta noite do que em todo o tempo que estive nos Fallschirmjàger.
- Porque achas que Vogel te mandou para aqui? Neumann não respondeu.
- Então e a Jenny?
- Ela vem connosco.
- Quero deixá-la aqui. Ela já não nos serve de nada.
- Não me parece. Se a encontrarem, pode dizer-lhes muita coisa. Além disso, se eles sabem que temos um refém a bordo, vão pensar duas vezes sobre as medidas a tomar para nos deter.
- Se estás a sugerir que vão hesitar em disparar sobre nós por termos uma civil britânica a bordo, estás enganada. Estão demasiadas coisas em jogo para isso. Matam-nos a todos, se for necessário.
- Então que seja. Mas ela vem connosco. Quando chegarmos ao submarino, deixamo-la ficar no barco. Os britânicos vão salvá-la e não lhe vai acontecer mal nenhum.
Neumann percebeu que continuar a discutir com ela seria uma perda de tempo. Catherine voltou-se para trás e, em inglês, disse a Jenny:
- Acabaram-se os heroísmos. Se te mexeres, dou-te um tiro na cara.
Neumann abanou a cabeça. Ligou o motor, pôs a carrinha em primeira e seguiu para o cais.
O polícia que se encontrava no cais ouviu o som de um motor parou e olhou para cima. Avistou a carrinha da polícia a dirigir-se para ele. Estranho, pensou, pois só estava previsto ser substituído às oito horas. Viu a carrinha parar e duas pessoas saírem. Esforçou-se por perceber quem eram no meio da escuridão, mas passados alguns segundos deu-se conta de que não eram polícias. Eram um homem e uma mulher, muito provavelmente os fugitivos!
Foi então que teve uma sensação de desânimo. Estava armado apenas com um revólver anterior à guerra e que encravava frequentemente. A mulher vinha na sua direção. O braço dela ergueu-se e houve um clarão, mas praticamente nenhum som, apenas um baque abafado. Sentiu a bala rasgar-lhe o peito e teve consciência da perda de equilíbrio.
A última coisa que viu foi a água suja do Humber a avançar subitamente na sua direção.
lan McMann era um pescador que acreditava que o sangue celta que lhe corria nas veias lhe dava poderes que os meros mortais não possuíam. Ao longo dos sessenta anos passados junto ao mar do Norte, afirmou ter ouvido pedidos de socorro antes de serem enviados. Afirmava ver os fantasmas de homens desaparecidos no mar a pairar por cima dos desembarcadouros e dos portos. Afirmava saber que alguns navios estavam amaldiçoados e que nunca se aproximaria deles. Toda a gente em Cleethorpes aceitava tudo isso como verdadeiro, mas, em privado, sugeria-se que lan McMann tinha passado demasiadas noites no mar.
McMann tinha-se levantado, como habitualmente, às cinco horas, apesar de as péssimas previsões meteorológicas indicarem condições que manteriam todos os barcos fora de água o dia inteiro. Estava a comer papas de aveia ao pequeno-almoço, sentado à mesa da cozinha, quando ouviu um barulho lá fora, no cais.
O bater da chuva tornava difícil distinguir qualquer outro som, mas McMann podia jurar ter ouvido alguém ou qualquer coisa a cair na água. Sabia que havia um polícia lá fora - na noite anterior, tinha-lhe levado chá e uma fatia de bolo antes de se ir deitar - e sabia por que razão lá estava. O polícia estava á procura de dois suspeitos de homicídio de Londres. McMann suspeitava que não fossem suspeitos de homicídio vulgares. Vivia em Cleethorpes há vinte anos
e nunca tinha ouvido falar da polícia local a vigiar a zona
do porto.
A janela da cozinha do chalé de McMann tinha uma vista excelente para o cais e, mais adiante, para a foz do Humber. McMann levantou-se, abriu as cortinas e olhou
lá para fora. Não havia sinal do polícia. McMann enfiou um oleado e um chapéu impermeável, foi buscar a lanterna à mesa ao lado da porta e saiu.
Acendeu a lanterna e começou a andar. Depois de alguns passos, ouviu o barulho do motor a diesel de um barco a pegar. Andou mais depressa, até conseguir ver que
barco era: o Camiíla, o barco de Jack Kincaid.
McMann pensou: Mas ele está maluco, a sair com uma tempestade destas?
Começou a correr e gritou:
- Jack, Jack! Para! Onde pensas que vais?
Foi então que percebeu que o homem que estava a desamarrar o Camiíla do cais e a saltar para o convés de popa não era Jack Kincaid. Alguém estava a roubar o barco.
Olhou em redor, à procura do polícia, mas ele tinha desaparecido. O homem entrou na casa do leme, acelerou e o Camiíla afastou-se do cais.
McMann correu atrás do barco e gritou:
- Volte já aqui!
Nessa altura, uma segunda pessoa saiu da casa do leme. McMann viu o clarão de um disparo, mas não ouviu nada. Sentiu a bala a passar ao lado da cabeça, perigosamente perto. Atirou-se para o chão, escondendo-se atrás de um par de bidões vazios. O cais foi atingido por mais duas balas e depois o tiroteio terminou.
Pôs-se de pé e viu a popa do Camiíla a afastar-se pelo mar.
Foi só então que McMann viu uma coisa a flutuar na água oleosa ao largo do cais.
- Acho que é melhor ser o senhor a ouvir isto, major Vicary. Vicary pegou no auscultador que Lockwood lhe estendeu. lan
McMann estava a telefonar de Cleethorpes. Lockwood disse:
- Comece do princípio, lan.
- Duas pessoas acabaram de roubar o barco de pesca de Jack Kincaid e dirigem-se para alto-mar.
Vicary vociferou:
- Meu Deus! De onde está a ligar?
- De Cleethorpes.
Vicary lançou uma olhadela ao mapa.
- Cleethorpes? Não tínhamos um homem ai?
- Tinham - retorquiu McMann. - Está neste preciso momento a boiar na água com uma bala no coração.
Vicary praguejou em voz baixa e, a seguir, perguntou:
- Quantas pessoas é que lá estavam?
- Que eu visse, pelo menos duas.
- Um homem e uma mulher?
- Demasiado longe e demasiado escuro. Além disso, quando começaram a disparar contra mim, atirei-me para o chão.
- E não viu uma rapariguinha com eles?
- Não.
Vicary tapou o auscultador com a palma da mão.
- Talvez ela ainda esteja naquela carrinha. Ponha um homem lá o mais depressa possível.
Lockwood assentiu com a cabeça. Vicary tirou a mão do auscultador e disse:
- Fale-me do barco que eles roubaram.
- O Camilla é uma embarcação de pesca. O barco está em más condições. Eu não queria estar a bordo do Camilla a ir para o mar alto com uma tempestade destas.
- Só mais uma pergunta. O Camilla tem rádio?
- Não, que eu saiba, não.
Vicary pensou: Graças a Deus! Disse:
- Obrigado pela sua ajuda.
Vicary desligou o telefone. Lockwood estava parado diante do mapa.
- Bem, a boa notícia é que agora sabemos exatamente onde eles estão. Têm de atravessar a foz do Humber antes de atingirem o mar alto. Isso fica apenas a um quilómetro e meio do cais. Não há maneira de conseguirmos impedi-los de fazer isso. Mas se aquelas corvetas da Marinha Real se posicionarem ao largo de Spurn Head, eles nunca vão conseguir passar. Aquele barco de pesca em que vão não está à altura delas.
- Sentia-me melhor se tivéssemos o nosso próprio barco na água.
- Na realidade, isso até se pode arranjar.
- A sério?
- A polícia do condado de Lincolnshire tem um pequeno barco no rio, o Rebecca. Neste momento, está em Grimsby. Não foi concebido para o mar alto, mas pode fazê-lo num aperto. E também é bastante mais rápido do que aquele velho barco de pesca. Se nos pusermos a caminho imediatamente, devemos poder apanhá-los em pouco tempo.
- E o Rebecca tem rádio?
- Sim. Vamos poder falar convosco para aqui.
- Então e armas?
- Posso ir buscar umas espingardas velhas à prisão da esquadra da polícia de Grimsby. Vão dar conta do recado.
- Agora, só precisamos de uma tripulação. Leve os meus homens. Eu fico aqui para poder continuar em contacto com Londres. A última coisa de que precisa é que eu vá a bordo de um barco com um tempo destes.
Lockwood conseguiu esboçar um sorriso, deu uma palmadinha nas costas de Vicary e saiu. Clive Roach, Harry Dalton e Peter Jordan seguiram-no. Vicary pegou no telefone para dar as notícias a Boothby, em Londres.
Neumann não se afastou dos marcadores do canal, com o Camilla a avançar pelas águas agitadas da foz do Humber. O barco tinha cerca de doze metros, era largo e precisava urgentemente de uma pintura. Havia uma pequena cabine à ré, onde Neumann tinha deixado
Jenny. Catherine estava ao lado dele, na casa do leme. O céu estava a começar a clarear ligeiramente a leste. A chuva rufava na vidraça. A bombordo, via as ondas a rebentarem em Spurn Head. O farol estava apagado. Havia uma bússola no painel de instrumentos, ao lado do leme. Neumann colocou o barco numa rota para leste, acelerou a fundo e dirigiu-se para o mar alto.
SESSENTA
MAR DO NORTE, AO LARGO DE SPURN HEAD
O U-509 flutuava logo abaixo da superfície. Eram 5h30. O Kapitànleutnant Max Hoffman estava na sala de comando a espreitar pelo periscópio e a beber café. Os olhos
doíam-lhe por ter passado a noite inteira a olhar fixamente para o negrume do mar. A cabeça
latejava-lhe. Precisava desesperadamente de dormir umas horas.
O seu imediato surgiu na ponte de comando.
- Só nos restam mais trinta minutos, Herr Kaleu.
- Tenho noção do tempo de que dispomos, senhor imediato.
- Não voltámos a receber comunicações dos agentes da Abwehr, Herr Kaleu. Penso que temos de considerar a possibilidade de terem sido capturados ou mortos.
- Já considerei essa possibilidade, senhor imediato.
- Daqui a nada vai amanhecer, Herr Kaleu.
- Sim. É um fenómeno que ocorre todos os dias por volta desta hora. Até no Reino Unido, senhor imediato.
- O que eu quero dizer é que não é seguro ficarmos tão perto da costa inglesa por muito mais tempo. A profundidade nesta zona não é suficiente para nos podermos escapar às wabos britânicas - explicou o imediato, utilizando a gíria comum entre os tripulantes de submarino alemães para se referirem às cargas de profundidade.
- Tenho perfeita consciência dos perigos que a situação envolve, senhor imediato. Mas vamos continuar no ponto de encontro até
não nos restar mais tempo. E depois disso, se eu achar que ainda é seguro, vamos continuar um bocadinho mais.
- Mas, Herr Kaleu...
- Eles enviaram-nos um sinal de rádio fidedigno a avisar-nos de que vinham a caminho. Temos de partir do princípio de que vêm num barco roubado, provavelmente com pouquíssimas condições de navegabilidade, e também temos de partir do princípio de que estão exaustos ou até feridos. Vamos ficar aqui até eles chegarem ou eu estar completamente convencido de que já não vêm. Entendido?
- Sim, Herr Kaleu.
O imediato foi-se embora. Hoffman pensou: Mas que chato do caraças.
O Kebecca tinha cerca de dez metros de comprimento, com um calado raso, um motor interior e uma casa do leme no meio, onde mal cabiam dois homens lado a lado. Lockwood tinha telefonado de antemão e o motor do Rebecca já estava a trabalhar quando eles lá chegaram.
Os quatro homens subiram a bordo: Lockwood, Harry, Jordan e Roach. Um dos rapazes que trabalhava na doca soltou a última amarra e Lockwood conduziu o barco em direção ao canal.
Acelerou a fundo. O ruído do motor aumentou; a proa esguia ergueu-se para fora da água e depois avançou a toda a velocidade pela ondulação provocada pelo vento. A noite clareava no céu a leste. A silhueta do farol era visível a bombordo. O mar à frente deles esta-
va deserto.
Harry baixou-se, levantou o auscultador do rádio e entrou em contacto com Vicary para o pôr ao corrente da situação.
Oito quilómetros para leste do Kebecca, a corveta número 745 navegava num ziguezague entediante por mares revoltos. O capitão e o imediato encontravam-se na ponte de comando, de binóculos encostados aos olhos, a tentarem ver alguma coisa através de uma cortina de chuva. Era escusado. Além da escuridão e da chuva, instalara-se
um nevoeiro que reduzia ainda mais a visibilidade. Face a condições dessas, podiam passar a cem metros de um submarino alemão sem o verem sequer. O capitão dirigiu-se para a mesa das cartas de navegação, onde o navegador estava a preparar a mudança de trajetória seguinte. Quando o capitão deu a ordem, a corveta virou 90 graus para estibordo e embrenhou-se ainda mais no mar. A seguir, ordenou ao operador de rádio que informasse a Sala de Localização de Submarinos do seu novo rumo.
Em Londres, Arthur Braithwaite estava junto da mesa com o mapa, apoiando-se pronunciadamente na bengala. Tinha-se certificado de que todas as atualizações da Marinha Real e da RAF passariam pela sua secretária assim que fossem recebidas. Sabia que as probabilidades de encontrar um submarino naquelas condições meteorológicas e de luminosidade eram remotas, mesmo que o submarino se encontrasse à superfície. Se o submarino estivesse à espreita logo abaixo da superfície, seria quase impossível.
O seu assessor entregou-lhe uma cópia de uma comunicação via rádio. A corveta número 745 tinha acabado de mudar de trajetória e seguia naquele momento em direção a leste. Uma segunda corveta, a número 128, estava a pouco mais de três quilómetros de distância e a avançar para sul. Braithwaite debruçou-se sobre a mesa, fechou os olhos e tentou imaginar a busca na cabeça. Pensou: Maldito sejas, Max Hoffman! Onde raio estás?
O Camilla, embora Horst Neumann não se tivesse apercebido disso, estava precisamente onze quilómetros a leste de Spurn Head. As condições meteorológicas pareciam estar a piorar a cada minuto. A chuva caía, criando uma cortina opaca, e martelava a vidraça da casa do leme, dificultando a visão. O vento e a corrente, ambos a fustigarem o barco a partir do norte, não paravam de os desviar ligeiramente do rumo. com a ajuda da bússola do painel de instrumentos, Neumann esforçava-se por mante-los na sua rota em direção a leste.
O maior problema era o mar. A meia hora anterior tinha sido uma repetição implacável do mesmo ciclo agoniante. O barco escalava uma onda, ficava a balançar-se no cimo dela por um instante e depois caía
a pique na depressão entre as ondas. Lá em baixo, o barco parecia sempre estar prestes a ser engolido por um desfiladeiro verde-acinzentado de água. O convés era constantemente varrido pelas ondas. Neumann já não conseguia sentir os pés. Baixou os olhos pela primeira vez e reparou que estava rodeado por vários centímetros de água gelada.
Ainda assim, milagrosamente, achava que até iriam conseguir. O barco parecia estar a absorver toda a violência que o mar lhe conseguia infligir. Eram 5h30 - ainda lhes restavam trinta minutos até o submarino dar meia-volta. Tinha sido capaz de manter o barco numa trajetória constante e estava convicto de que se estavam a aproximar do ponto certo. E não havia sinal do inimigo.
Só havia um problema: não tinham rádio. Tinham ficado sem o de Catherine, em Londres, e tinham ficado sem o segundo graças ao tiro de caçadeira de Martin Colville,
em Hampton Sands. Neumann tinha esperança de que o barco tivesse um rádio, mas não tinha. O que os impossibilitava de comunicar com o submarino.
Neumann tinha apenas uma opção: ligar as luzes de navegação do barco.
Era um risco, mas necessário. A única maneira de o submarino perceber que eles se encontravam no ponto de encontro era se os conseguisse ver. E a única maneira de o Camilla poder ser visto naquelas condições meteorológicas era se tivesse as luzes ligadas. Mas se o submarino os conseguisse ver, o mesmo seria válido para qualquer navio de guerra ou da guarda costeira britânica que se encontrasse nas proximidades.
Neumann calculou que estivessem a poucos quilómetros do ponto de encontro. Continuou a acelerar a fundo durante mais cinco minutos e, a seguir, baixou-se e carregou num interruptor, e o Camilla encheu-se de luz.
Jenny Colville debruçou-se sobre o balde e vomitou lá para dentro pela terceira vez. Perguntou-se como poderia haver ainda qualquer coisa para lhe sair do estômago. Tentou lembrar-se da última vez que tinha comido. Não jantara na noite anterior por estar zangada
com o pai e também não tinha almoçado nada. Talvez qualquer coisa ao pequeno-almoço, mas isso não tinha sido mais do que uma bolacha e chá.
O estômago entrou novamente em convulsões, mas desta vez não saiu de lá nada. Tinha vivido a vida inteira junto ao mar, mas só andara de barco uma vez - passando o dia a passear pela Wash, com o pai de uma amiga da escola - e nunca sentira nada assim.
Estava completamente paralisada de tão enjoada. Queria morrer, precisava desesperadamente de ar fresco. Não podia fazer nada perante o balançar constante do barco. Tinha os braços e as pernas cheios de nódoas negras por causa das sucessivas pancadas. E depois havia o barulho - o ribombar e o estrépito ensurdecedores e constantes do motor do barco.
Dava a sensação de estar mesmo por baixo dela.
Tudo o que mais queria era sair do barco e regressar a terra. Disse a si própria sem parar que, se sobrevivesse àquela noite, não voltaria a entrar num barco, nunca mais. E foi então que pensou: O que é que vai acontecer quando eles chegarem ao sítio para onde vão? O que vão fazer comigo? com certeza que não vão neste barco até à Alemanha, ou será que vão? O mais provável era irem ter com outro barco. E depois o que é que acontece? Será que a iriam levar de novo com eles ou deixá-la sozinha no barco? Se a deixassem sozinha, era possível que nunca a encontrassem. Poderia morrer sozinha, algures no mar do Norte, numa tempestade igual àquela.
O barco deslizou por mais uma enorme onda abaixo. Na cabine, Jenny foi atirada para a frente, batendo com a cabeça.
O porão tinha duas vigias de cada lado. com as mãos amarradas, desembaciou a vigia de estibordo e espreitou lá para fora. O mar era aterrador, montanhas verdes e ondulantes de água.
Mas havia ali mais qualquer coisa. O mar agitou-se e uma coisa
escura e brilhante irrompeu da superfície. A seguir, o mar entrou
num turbilhão e uma gigantesca coisa cinzenta, como um monstro
marinho num conto infantil, subiu à superfície com a água a escorrer-lhe da pele.
O Kapitánleutnant Max Hoffman, farto de aguentar o submarino a quinze quilómetros de distância da costa, tinha resolvido arriscar e aproximar-se mais dois ou três quilómetros. Estava à espera a treze quilómetros da costa, a espreitar para a escuridão, quando avistou de repente as luzes de navegação de um pequeno barco de pesca. com um grito, Hoffman ordenou que o submarino subisse à superfície e, passados dois minutos, já estava na ponte de comando, a sentir a forte chuvada e a respirar o ar frio e limpo, com os binóculos colados aos olhos.
De início, Neumann pensou que pudesse ser uma alucinação. O vislumbre tinha sido breve - apenas um instante, antes de o barco mergulhar em mais uma depressão entre as ondas e tudo se obliterar uma vez mais.
A proa enterrou-se no mar profundamente, como uma pá na terra, e, durante alguns segundos, toda a coberta ficou submersa na água. Mas, de alguma forma, o barco conseguiu sair dessa depressão e escalar o pico seguinte. No topo da onda seguinte, uma forte chuvada, varrida pelo vento, impedia a visão por completo.
O barco caiu e depois voltou a erguer-se. Foi então que, com o Camilla no cimo de uma montanha de água, Horst Neumann avistou a silhueta inconfundível de um submarino alemão.
Peter Jordan, no convés de popa do Rebecca, foi o primeiro a ver o submarino. Lockwood viu-o passados uns segundos e, a seguir, avistou as luzes de navegação do Camilla a cerca de quatrocentos metros do estibordo do submarino e a aproximar-se rapidamente. Lockwood fez o Rebecca guinar para bombordo, colocando-o em rota de colisão com o Camilla, e pegou no auscultador para contactar Alfred Vicary.
Vicary levantou o auscultador da linha aberta para a Sala de Localização de Submarinos.
- Comandante Braithwaite, está a ouvir-me?
- Sim, estou. E também ouvi a conversa toda que acabou de ter.
- E então?
- Acho que temos um problema grave. A corveta 745 está um quilómetro e meio para sul da posição do submarino. Já contactei o capitão via rádio e ele está a dirigir-se
para lá neste momento. Mas se o Camilla estiver realmente apenas a quatrocentos metros do submarino, vai lá chegar primeiro.
- Maldição!
- Mas ainda tem outro trunfo, senhor Vicary, o Kebecca. Sugiro que o utilize. Os seus homens têm de fazer qualquer coisa para atrasar aquele barco e dar à corveta possibilidade de intervir.
Vicary pousou o auscultador e levantou o do rádio.
- Superintendente Lockwood, daqui Grimsby, escuto.
- Lockwood, escuto.
- Superintendente, ouça com atenção. Vem aí ajuda, mas, enquanto ela não chega, quero que abalroe esse barco de pesca.
Todos eles ouviram - Lockwood, Harry, Roach e Jordan -, pois estavam os quatro apinhados na cabine, abrigando-se do mau tempo.
Lockwood, gritando por cima do barulho do vento e do ribombar dos motores do Rebecca, perguntou:
- Mas ele estará louco?
- Não - respondeu Harry -, apenas desesperado. Consegue lá chegar a tempo?
- Claro, mas vamos ficar de caras para os canhões da coberta daquele submarino.
Olharam todos uns para os outros, sem dizerem nada. Por fim, Lockwood afirmou:
- Estão coletes salva-vidas nesse cacifo aí atrás. E tragam as espingardas. Tenho um pressentimento que podemos precisar delas.
Lockwood olhou novamente para o mar e deu com o Camilla. Fez uma ligeira correção na trajetória e acelerou a fundo.
Na ponte de comando do U-509, Max Hoffman avistou o Rebecca a aproximar-se rapidamente.
- Temos companhia, senhor imediato. Um barco civil, com três ou quatro homens a bordo.
- Estou a vê-los, Herr Kaleu.
- Tendo em conta a velocidade e a trajetória, diria que se trata do inimigo.
- Parecem estar desarmados, Herr Kaleu.
- Sim. Disparem um tiro de aviso com a artilharia da coberta da proa. Disparem para a frente da proa. Não quero que se derrame sangue desnecessariamente. Se eles não desistirem, disparem diretamente para o barco. Mas para a linha de água, senhor imediato, não para a cabine.
- Sim, Herr Kaleu - ripostou o imediato.
Hoffman ouviu ordens a serem gritadas e, passados trinta segundos, o primeiro tiro do canhão Bootskanone na dianteira da coberta do U-509 estava a fazer um arco por cima da proa do Rebecca.
Apesar de os submarinos alemães raramente se envolverem em combates de artilharia à superfície, o projétil de 10,5 centímetros do canhão da coberta era capaz de infligir danos letais, mesmo em barcos grandes. O primeiro tiro passou bem longe da proa do Rebecca. O segundo, disparado dez segundos depois, ficou bem mais perto.
Lockwood virou-se para Harry e gritou:
- Cá para mim, é o último aviso a que temos direito. O próximo tiro vai rebentar connosco. A decisão é sua, mas não vamos poder ajudar ninguém se estivermos mortos.
Harry gritou:
- Dê meia-volta!
Lockwood guinou o Kebecca para bombordo e deu meia-volta. Harry olhou para trás, na direção do submarino. O Camilla estava a duzentos metros e a aproximar-se cada vez mais, e não havia absolutamente nada que eles pudessem fazer. Pensou: Maldição! Onde está essa corveta?
A seguir, levantou o auscultador e informou Vicary de que não podiam fazer nada para os deter.
Jenny ouviu o estrondo do canhão do submarino a disparar e viu o projétil avançar em grande velocidade pela linha de água, em direção a um segundo barco. Pensou:
Graças a Deus! Afinal de contas, não estou sozinha. Mas o submarino voltou a disparar e, uns segundos mais tarde, ela viu o pequeno barco dar meia-volta e perdeu
o ânimo.
A seguir, fez-se forte e pensou: Eles são agentes alemães. Mataram o meu pai e mais seis pessoas esta noite e estão prestes a escapar impunes. Tenho de fazer alguma coisa para os impedir.
Mas que podia ela fazer? Estava sozinha e tinha as mãos e os pés amarrados. Pensou em tentar libertar-se, subir sorrateiramente para o convés e bater-lhes com qualquer coisa. Mas, se a vissem, não hesitariam em matá-la. Talvez pudesse pegar fogo a qualquer coisa, mas depois ficaria encurralada com o fumo e as chamas e seria a única
a morrer...
Pensa, Jenny! Pensa!
Era difícil pensar com o ribombar constante do motor do barco. Estava a deixá-la louca.
E foi então que pensou: Sim, é isso!
Se pudesse de algum modo inutilizar o motor - nem que fosse só por um momento - talvez isso pudesse ajudar. Se estava um barco a persegui-los, era possível que estivessem mais - se calhar, barcos maiores, que poderiam ripostar contra o submarino alemão.
Pelo som, o motor parecia estar mesmo por baixo dela, já que o barulho era tanto. Levantou-se a muito custo e afastou o emaranhado de cordas e lonas em cima do qual tinha estado sentada. E ali estava - uma porta embutida no chão do porão. Conseguiu abri-la e foi dominada de imediato pelo barulho atroador e pelo calor do motor do Camilla.
Olhou para ele. Jenny não percebia nada de motores. Uma vez, Sean tinha tentado explicar-lhe as reparações que estava a fazer na carripana velha que era a sua carrinha. Havia sempre um problema
qualquer com o raio da coisa, mas qual era mesmo? Qualquer coisa a ver com os tubos e a bomba de combustível. De certeza que aquele motor era diferente do motor da carrinha de Sean. Era um motor a diesel, logo para começar; a carrinha de Sean funcionava a gasolina. Mas ela sabia uma coisa: independentemente do tipo de motor, precisava de combustível para trabalhar. Se o abastecimento de combustível fosse cortado, o motor deixaria de funcionar.
Mas como? Olhou com atenção para o motor. Vários tubos metálicos pretos saíam da parte de cima e convergiam num único ponto, na parte lateral do motor. Será que eram os tubos de combustível? E seria o ponto onde se ligavam à bomba de combustível?
Olhou em redor. Precisava de ferramentas. Os marinheiros andavam sempre com ferramentas. Afinal de contas, o que acontece se o motor for abaixo no meio do mar? Descobriu uma caixa de ferramentas metálica na outra ponta da cabine e rastejou até lá. Espreitou pela vigia. O submarino enchia-lhe o seu campo de visão. Já estavam muito perto. Viu o outro barco. Tinha-se afastado. Abriu a caixa e viu que estava repleta de ferramentas imundas e cheias de óleo.
Tirou duas, um alicate laminado e um grande martelo.
Agarrou o alicate com as mãos, virou a ponta para os pulsos e começou a cortar a corda. Demorou cerca de um minuto a soltar as mãos. A seguir, serviu-se do alicate para cortar a corda à volta dos tornozelos.
Rastejou outra vez para junto do motor.
Pousou o alicate no chão e escondeu-o por baixo de uma corda toda emaranhada. Depois baixou-se, pegou no martelo e destruiu o primeiro tubo de combustível. Rompeu-se, ficando a deitar diesel. Rapidamente, bateu com o martelo mais uma série de vezes, até o último tubo de combustível ter sido rebentado.
O motor deixou de funcionar.
Sem o barulho, Jenny pôde finalmente ouvir o bramido do mar e do vento. Fechou a porta que dava para o motor mutilado e sentou-se. Tinha o martelo ao lado da mão direita.
Sabia que Neumann ou a mulher desceriam dentro de poucos segundos para investigar. E, quando o fizessem, perceberiam que Jenny tinha sabotado o motor.
A porta abriu-se de rompante e Neumann desceu a escada de escotilha a toda a velocidade. Tinha o rosto contorcido, como naquela manhã em que Jenny o vira a correr na praia. Olhou para ela e reparou que já não tinha as mãos e os pés amarrados. Baixou os olhos
e reparou que o material que ali se encontrava tinha sido afastado
para um canto.
Gritou:
- Jenny, o que fizeste?
O barco, sem motor a funcionar, deslizava, desamparado, por uma onda.
Neumann debruçou-se e abriu a escotilha.
Jenny agarrou no martelo e pôs-se de joelhos. Ergueu o martelo bem alto e acertou-lhe na nuca com o máximo de força possível. Neumann caiu no chão, com o sangue
a correr do crânio rachado.
Jenny virou a cara e vomitou.
O Kapitánleutnant Max Hoffman viu o Camilla a começar a balançar, desamparado, no mar agitado e apercebeu-se de imediato de que o barco tinha ficado sem motor. Sabia que tinha de agir depressa. Sem propulsão, o barco afundaria. Talvez até se virasse ao contrário. E se os agentes fossem atirados para dentro do gelado mar do Norte, morreriam numa questão de minutos.
- Senhor imediato! Leve-nos até ao barco e tenha um grupo preparado para subir a bordo.
- Sim, Herr Kaleu!
Hoffman sentiu a vibração das hélices do motor a diesel a girarem sob os seus pés à medida que o submarino avançava lentamente.
Jenny receou tê-lo matado. Ele ficou completamente imóvel durante um momento; a seguir, começou a mexer-se e, de alguma forma, conseguiu levantar-se. Quase não se aguentava em pé. Ela poderia facilmente ter-lhe acertado com o martelo novamente, mas não conseguiu arranjar coragem nem vontade para o fazer. Estava indefeso,
agarrado à parede da cabine. O sangue jorrava-lhe da ferida para a cara, pelo pescoço abaixo. Ergueu a mão e limpou o sangue dos olhos.
- Não saias daqui. Se subires para o convés, ela mata-te. Faz o que te digo, Jenny.
Neumann subiu a escada de escotilha com grande dificuldade. Catherine olhou para ele, com a inquietação estampada no rosto.
- Caí e bati com a cabeça quando o barco se inclinou. O motor deixou de funcionar.
Tinha a lanterna ao lado do leme. Pegou nela e avançou pelo convés. Apontou a lanterna para a torre de comando do submarino e lançou um pedido de socorro. O submarino estava a aproximar-se deles com uma lentidão agonizante. Virou-se para trás e fez sinal a Catherine para se juntar a ele na coberta da proa. A chuva limpou-Ihe o sangue da cara. Olhou para cima, sentindo-a a fustigá-lo, e agitou os braços na direção do submarino.
Catherine foi ter com ele. Mal conseguia acreditar. Na tarde anterior, estavam sentados num café em Mayfair, rodeados por agentes do MI5, e agora, milagrosamente, estavam prestes a subir a bordo de um submarino e partir dali para fora. Seis longos e dolorosamente solitários anos - por fim, terminados. Nunca tinha acreditado que esse dia chegasse. Nunca se tinha atrevido realmente a imaginá-lo. A emoção daquele momento apoderou-se dela. Soltou um grito de alegria infantil e, tal como Neumann, voltou a cara para a chuva, agitando os braços na direção do submarino.
A parte da frente de metal do submarino encostou na proa do Camilla. Um grupo avançou apressadamente pelo convés do submarino na direção deles. Catherine abraçou Neumann e apertou-o com muita força.
- Conseguimos - disse ela. - Chegámos a tempo. Vamos para
casa.
Na casa do leme do Rebecca, Harry Dalton descreveu a situação a Vicary, em Grimsby. Vicary, por sua vez, descreveu-a a Arthur Braithwaite, na sala de localização
de submarinos.
- Raios partam, comandante! Onde é que está essa corveta?
- Está mesmo colada a eles. Só que não consegue ver nada por causa do mau tempo.
- Então diga ao capitão para fazer alguma coisa! Os meus homens não podem fazer nada para os deter.
- E que ordens é que eu devo dar ao capitão?
- Para disparar sobre o barco e matar esses espiões.
- Major Vicary, não nos podemos esquecer de que está uma rapariga inocente a bordo.
- Que Deus me perdoe por dizer isto, mas receio bem que não possamos estar preocupados com ela numa altura destas, comandante Braithwaite. Dê ordens ao capitão dessa corveta para atingir o Camilla com todo o arsenal que tiver.
- Entendido.
Vicary pousou o auscultador e pensou: Meu Deus, tornei-me mesmo um sacana completo.
O vento abriu um buraco momentâneo na cortina de chuva e nevoeiro. Na ponte de comando, o capitão da corveta 745 avistou o U-509 e o Camilla a cento e cinquenta metros da sua proa. Pelos binóculos, viu duas pessoas na coberta do Camilla e uma equipa de salvamento no convés do submarino alemão. De imediato, deu ordem para disparar. Segundos depois, o canhão no convés da corveta abriu fogo.
Neumann ouviu os disparos. Os primeiros tiros passaram por cima. A segunda rajada atingiu o submarino com estrondo. A equipa de salvamento atirou-se para o chão do convés para evitar os tiros, ao mesmo tempo que os disparos se deslocavam do submarino para o Camilla. Não havia nenhum sítio na coberta do barco de pesca que servisse de proteção. Os disparos atingiram Catherine. O seu corpo foi estraçalhado num instante, com a cabeça a explodir num clarão de sangue e miolos.
Neumann desatou a correr, tentando chegar ao submarino. O primeiro tiro que o atingiu arrancou-lhe a perna pelo joelho. Gritou e arrastou-se. Um segundo tiro atingiu-o, cortando-lhe a espinha.
Não sentiu nada. O último tiro atingiu-o na cabeça e a seguir fez-se escuridão.
A observar da torre de comando, Max Hoffman ordenou ao imediato que passasse os motores a diesel para a potência máxima e submergisse o submarino o mais rápido possível. Passados poucos segundos, o U-509 estava a afastar-se a toda a velocidade. Dois minutos mais tarde, mergulhou nas profundezas do mar do Norte e desapareceu.
Sozinho no mar e com o convés inundado de sangue, o Camilla começou a afundar-se.
O estado de espírito a bordo do Rebeaa era de euforia. Os quatro homens abraçaram-se ao observarem o submarino a dar meia-volta e a fugir a todo o vapor. Harry Dalton contactou Vicary e deu-lhe a novidade. Vicary fez dois telefonemas, o primeiro para a sala de localização de submarinos, para agradecer a Arthur Braithwaite, e o segundo para Sir Basil Boothby, para o informar de que tinha finalmente terminado tudo.
Jenny Colville sentiu o Camilla estremecer. Atirou-se para o chão, de barriga para baixo, e protegeu a cabeça com as mãos. Os disparos terminaram tão repentinamente como tinham começado. Foi então que ouviu o barulho do submarino a afastar-se e, por fim, apenas o ruído do mar. Estava demasiado aterrorizada para se mexer. O barco balançava loucamente. Imaginou que isso tivesse alguma coisa a ver com o motor avariado. Sem um motor que o fizesse avançar, o barco estava indefeso perante o ataque do mar. Ela tinha de se levantar, ir lá para fora e avisar os outros barcos de que estava ali, viva.
Obrigou-se a levantar-se, foi imediatamente derrubada pelos solavancos do barco e depois levantou-se outra vez. Subir a escada de escotilha revelou-se quase impossível. Conseguiu chegar por fim ao convés. O vento era tremendo. A chuva fustigava-a de lado. O barco parecia estar a deslocar-se em várias direções ao mesmo tempo: para cima e para baixo, para trás e para a frente, e a balançar de um lado para o outro. Era impossível uma pessoa aguentar-se de pé. Ela
olhou para a proa e viu os corpos. Não tinham levado simplesmente um tiro e morrido. Tinham sido triturados, despedaçados, pelos disparos. O convés estava cor-de-rosa com todo o sangue que escorria. Jenny teve um vómito e desviou o olhar. Viu o submarino a mergulhar ao longe e a desaparecer sob a superfície do mar. Do outro lado do barco, viu um navio de guerra, cinzento, não muito grande, a vir na sua direção. Um segundo barco - o que ela já tinha visto pela vigia - estava a aproximar-se depressa.
Agitou os braços, gritou e começou a chorar. Queria dizer-lhes que tinha sido ela a consegui-lo. Ela é que tinha inutilizado o motor para que o barco parasse e os espiões não conseguissem chegar ao submarino. Estava cheia de um enorme e feroz orgulho.
O Camilla subiu uma onda gigantesca. Quando a onda lhe passou por baixo, o barco inclinou-se todo para bombordo. A seguir, caiu a pique na depressão entre as ondas e, ao mesmo tempo, endireitou-se e inclinou-se todo para estibordo. Jenny não conseguiu segurar-se no cimo da escada de escotilha. Foi atirada pelo convés e caiu ao mar.
O frio não se comparava a nada que já tivesse sentido: um frio horrível, entorpecedor e paralisante. Debateu-se para atingir a superfície e tentou abrir a boca para respirar, mas em vez disso engoliu água do mar. Afundou-se, sufocando, engasgando-se, com a água a encher-lhe o estômago e os pulmões. Esperneou até à superfície e conseguiu respirar um pouco antes de o mar voltar a puxá-la para baixo. Foi então que começou a cair, afundando-se lenta e agradavelmente, sem esforço algum. Já não tinha frio. Não sentia nem via nada. Apenas uma escuridão impenetrável.
O Rebecca foi o primeiro a chegar, com Lockwood e Roach na casa do leme e Harry e Peter Jordan na coberta da proa. Harry atou uma corda à bóia de salvamento, atando a outra ponta a um cunho na proa e atirando a bóia para o mar. Tinham visto Jenny subir uma segunda vez à superfície para respirar e desaparecer sob a superfície. Naquele momento, não havia nada, nem um único sinal dela. Lockwood fez avançar o Rebecca a fundo e a direito; a seguir, a poucos metros do Camilla, fez marcha atrás e parou o barco subitamente.
Jordan inclinou-se sobre a proa, à procura de qualquer sinal da rapariga. A seguir, endireitou-se e, sem aviso, mergulhou. Harry gritou a Lockwood:
- Jordan está dentro de água! Não se aproxime mais!
Jordan veio à superfície e tirou o colete salva-vidas. Harry berrou:
- O que está a fazer?
- Não consigo ir até ao fundo com esta maldita coisa enfiada! Jordan encheu os pulmões de ar e desapareceu durante o que
a Harry pareceu ser um minuto. O mar fustigava o Camilla a bombordo, abanando-o de um lado para o outro e impulsionando-o na direção do Kebecca. Harry olhou por cima do ombro e agitou os braços para Lockwood, na casa do leme.
- Recue um ou dois metros! O Camilla está mesmo em cima de nós!
Por fim, Jordan subiu à superfície novamente, trazendo Jenny consigo. Ela estava inconsciente, com a cabeça caída para o lado. Jordan desatou a corda da bóia e atou-a à volta de Jenny, por baixo dos braços. Levantou o polegar para Harry e este puxou-a até ao Rebecca. Clive Roach ajudou Harry a iça-la para o convés.
Jordan estava a espernear furiosamente, tentando manter-se à tona, com as ondas a passarem-lhe por cima da cara, e parecia exausto do frio. Harry desatou rapidamente a corda que prendia Jenny e atirou-a na direção dele - no preciso instante em que o Camilla se virou por fim, arrastando Peter Jordan para as profundezas do mar.
SESSENTA E UM
BERLIM, ABRIL DE 1944
Kurt Vogel estava à espera na antecâmara luxuosamente mobilada de Walter Schellenberg, observando o esquadrão de jovens assistentes a entrarem e a saírem freneticamente do gabinete. Loiros e de olhos azuis, parecia que tinham acabado de sair de um cartaz de propaganda nazi. Já tinham passado três horas desde que Schellenberg convocara Vogel para uma reunião urgente a propósito daquele infelis assunto no Reino Unido, como se referia habitualmente à operação falhada de Vogel. Vogel não se importava de estar à espera; na verdade, não tinha nada melhor para fazer. Desde que Canaris fora demitido e a Abwehr absorvida pelas SS, os serviços secretos militares alemães pareciam um barco sem leme, precisamente quando Hitler mais necessitava deles. As velhas casas geminadas que se espraiavam por Tirpitz Ufer tinham adquirido o aspeto abatido de uma estância de férias decadente. O moral era tão baixo que muitos oficiais se estavam a oferecer para ir para a Frente Russa.
Vogel tinha outros planos.
Um dos assessores de Schellenberg saiu do gabinete, apontou um dedo acusador a Vogel e, sem dizer uma palavra, fez-lhe sinal para entrar. O gabinete era do tamanho de uma catedral gótica, com sumptuosos quadros a óleo e tapeçarias pendurados nas paredes, bem diferente do comedido Covil da Raposa de Canaris, em Tirpitz Ufer. A luz do Sol entrava obliquamente pelas janelas altas. Vogel olhou lá para fora. Os fogos provocados pelo ataque aéreo matinal
iam-se extinguindo ao longo da Unter den Linden e uma fina camada de fuligem cobria o Tiergarten como neve preta.
Schellenberg sorriu calorosamente, apertou com força a mão esquelética de Vogel e fez-lhe sinal para se sentar. Vogel sabia que Schellenberg tinha metralhadoras na secretária e, por isso, não se mexeu um milímetro e manteve as mãos bem à vista. As portas fecharam-se e ficaram os dois sozinhos no gabinete cavernoso. Vogel sentiu que Schellenberg o estava a consumir com os olhos.
Embora Schellenberg e Himmler andassem há vários anos a maquinar contra Canaris, fora uma sucessão de infelizes acontecimentos que aniquilara por fim a Velha Raposa: a incapacidade de prever a decisão da Argentina de cortar todas as ligações com a Alemanha; a perda de um posto vital de recolha de informações para a Abwehr na zona espanhola de Marrocos; a deserção de vários agentes importantes da Abwehr na Turquia, em Casablanca, Lisboa e Estocolmo. Mas a gota de água foi a desastrosa conclusão da operação de Vogel em Londres. Dois agentes da Abwehr - Horst Neumann e Catherine Blake - foram mortos mesmo à vista do submarino. Não puderam transmitir uma última mensagem, a explicar por que razão tinham decidido fugir de Inglaterra, deixando Vogel sem forma de aferir a autenticidade das informações sobre a Operação Mulberry que Catherine Blake tinha roubado. Hitler explodiu quando soube do acontecido. Despediu de imediato Canaris e colocou a Abwehr e os seus dezasseis mil agentes nas mãos de Schellenberg.
Sem saber bem como, Vogel sobreviveu. Schellenberg e Himmler suspeitavam que a operação tinha sido comprometida por Canaris. Vogel, como Catherine Blake e Horst Neumann, era uma vítima inocente da traição da Velha Raposa.
A teoria de Vogel era outra. Suspeitava que todas as informações roubadas por Catherine tinham sido plantadas pelos serviços secretos britânicos. Suspeitava que ela e Neumann tinham tentado fugir do Reino Unido quando Neumann descobriu que Catherine estava a ser seguida pelo inimigo. Suspeitava que a Operação Mulberry não era um complexo antiaéreo com destino ao Pás de Calais, mas sim um porto artificial a caminho das praias da Normandia. E também suspeitava
que todos os outros agentes enviados para o Reino Unido se encontravam corrompidos - que tinham sido capturados e obrigados a colaborar com os serviços secretos britânicos, provavelmente desde o início da guerra.
No entanto, Vogel não tinha provas que servissem para fundamentar nada daquilo - sendo um bom advogado, não tencionava fazer acusações que não pudesse provar. Além disso, mesmo que tivesse provas, não tinha a certeza de que as teria dado a gente como Schellenberg e Himmler.
Um dos telefones na secretária de Schellenberg tocou. Era uma chamada que ele tinha de atender. Cautelosamente, resmungou e falou em código durante cinco minutos enquanto Vogel esperava. O nevão de fuligem tinha diminuído. As ruínas de Berlim brilhavam sob o sol de abril. Os vidros estilhaçados cintilavam como cristais de gelo.
Continuar na Abwehr e cooperar com o novo regime tinha as suas vantagens. Vogel tinha feito Gertrude, Nicole e Lizbet passarem discretamente da Baviera para a Suíça. Como um bom agente que comanda outros, financiara a operação através de uma complexa artimanha, transferindo fundos de contas secretas da Abwehr na Suíça para a conta de Gertrude, ocultando depois essa transferência com o dinheiro que ele próprio possuía na Alemanha. Transferira para fora do país dinheiro que chegaria para viverem confortavelmente durante alguns anos quando a guerra terminasse. E possuía outra mais-valia, as informações que tinha na cabeça. Tinha a certeza de que os britânicos e os americanos pagariam muito bem, tanto com dinheiro como com proteção.
Schellenberg desligou o telefone e fez uma careta, como se lhe doesse o estômago.
- Muito bem - disse ele. - Vamos ao motivo que me levou a chamá-lo cá, capitão Vogel. Chegaram notícias muito interessantes de Londres.
- Ai sim? - retorquiu Vogel, erguendo a sobrancelha.
- Sim. A nossa fonte no MI5 tem uma informação muito importante.
com um floreado, Schellenberg exibiu uma cópia de uma comunicação via rádio e entregou-a a Vogel. Ao lê-la, Vogel pensou: Notável, a subtileza da manipulação. Quando acabou de ler, estendeu o braço sobre a secretária e devolveu a cópia a Schellenberg.
Schellenberg afirmou:
- O MI5 punir disciplinarmente um homem que é amigo pessoal e confidente de Winston Churchill é algo de extraordinário. E a fonte está acima de qualquer suspeita. Fui eu próprio que o recrutei. Não é um dos lacaios do Canaris. Penso que isso prova que as informações roubadas pela sua agente eram genuínas, capitão Vogel.
- Sim, penso que tem razão, Herr Brigadefúhrer.
- O Fúhrer precisa de ser informado disto imediatamente. Vai reunir-se hoje à noite com o embaixador japonês, em Berchtesgaden, para o pôr ao corrente dos preparativos para a invasão. Tenho a certeza de que vai querer transmitir-lhe isto também.
Vogel assentiu com a cabeça.
- vou apanhar um avião que sai de Templehof daqui a uma hora. Gostava que me acompanhasse e informasse o Fiihrer pessoalmente. Afinal de contas, e antes de mais, a operação era sua. Além disso, o homem simpatiza consigo. O senhor tem um futuro francamente brilhante à sua frente, capitão Vogel.
- Obrigado pela proposta, Herr Brigadefúhrer, mas acho que o senhor é que devia dar a novidade ao Fúhrer.
- Tem a certeza, capitão Vogel?
- Sim, Herr Brigadefúhrer, tenho a certeza absoluta.
SESSENTA E DOIS
OYSTER BAY, LONG ISLAND
Foi o primeiro dia bom de primavera - sol quente e um vento suave que soprava do Sound. O dia anterior fora frio e húmido. Dorothy Lauterbach estava preocupada com
a hipótese de o frio estragar a cerimónia fúnebre e a receção. Certificou-se de que todas as lareiras da casa tinham lenha e deu instruções ao responsável pela comida para terem bastante café quente pronto para quando os convidados chegassem. Mas, a meio da manhã, já o sol expulsara as últimas nuvens e a ilha resplandecia. Dorothy transferiu rapidamente a receção da casa para o relvado com vista para o Sound.
Shepherd Ramsey tinha trazido as coisas de Jordan de Londres: a roupa, os livros, as cartas, os documentos pessoais que os homens dos serviços de segurança não tinham confiscado. No avião de carga que o trouxe de Londres, Ramsey folheou as cartas para se certificar de que não faziam referência à mulher com quem Peter tinha um relacionamento em Londres antes de morrer.
Foi uma cerimónia fúnebre muito concorrida. Não havia corpo para enterrar, mas foi colocada uma pequena lápide ao lado da de Margaret. Todo o staffdo banco de Bratton
compareceu, tal como grande parte dos funcionários da Northeast Bridge Company. As famílias da North Shore também estiveram presentes - os Dutton, os Robinson e
os Tetlinger. Billy manteve-se ao lado de Jane e Jane apoiou-se em Walker Hardegen. Bratton recebeu a bandeira americana das mãos de um representante da marinha.
O vento arrancou flores
das árvores e lançou-as para cima da multidão como se fossem papelinhos de Carnaval.
Havia um homem ligeiramente afastado do resto das pessoas, com as mãos cruzadas atrás das costas e a cabeça inclinada para baixo, em sinal de respeito. Era alto e magro e o fato cinzento de lã, com casaco assertoado, era um bocadinho pesado para o quente tempo primaveril.
Walker Hardegen foi a única pessoa que o reconheceu. Mas Hardegen não sabia o nome verdadeiro do homem. Ele usava sempre um pseudónimo que era tão ridículo que Hardegen tinha dificuldade em dizê-lo sem se rir.
O homem era o agente responsável por Hardegen e o pseudónimo que usava era Broome.
Shepherd Ramsey trouxe a carta do homem de Londres. Dorothy e Bratton entraram discretamente na biblioteca e leram-na durante a receção. Dorothy leu-a primeiro, com as mãos a tremerem. Estava mais velha, mais velha e mais grisalha. Uma queda nos degraus gelados da casa de Manhattan, em dezembro, tinha-a deixado com uma anca
partida. O coxear que daí resultara roubara-lhe o antigo físico imponente. Tinha os olhos molhados quando acabou de ler a carta, mas não chorou. Dorothy fazia sempre
as coisas com moderação. Passou a carta a Bratton, que chorou ao lê-la.
Caro Billy,
É com grande tristeza que escrevo esta carta. Tive o prazer de trabalhar com o teu pai apenas por um período muito curto de tempo, mas achei-o um dos homens mais extraordinários
que já conheci. Esteve envolvido num dos projetos mais vitais da guerra. No entanto, devido a exigências de segurança, há uma forte possibilidade de nunca vires
a saber o que o teu pai fez.
Posso dizer-te isto: o trabalho feito pelo teu pai vai salvar inúmeras vidas e
fazer com que os europeus se possam livrar de Mitler e dos nazis de uma vez por todas.
O teu pai deu verdadeiramente a vida para que outros pudessem viver. Foi um herói.
Mas nada que o teu pai tenha conseguido fazer lhe deu tanto prazer e satisfação como tu,
Billy. Quando o teu pai falava de ti, a cara dele alterava-se. Os olhos
iluminavam-se e ele sorria, mesmo que estivesse muito cansado. Eu nunca tive a sorte de ser
abençoado com um filho. Ao ouvir o teu pai falar de ti, dei-me conta da imensidão do meu infortúnio.
Atenciosamente, Alfred Vicary
Bratton devolveu a carta a Dorothy. Ela dobrou-a, voltou a colocá-la no envelope e guardou-a na gaveta de cima da secretária de Bratton. Dirigiu-se para a janela
e olhou lá para fora.
Toda a gente estava a comer e a beber e parecia estar a divertir-se. Para lá da multidão, viu Billy, Jane e Walker sentados na relva junto à doca. Jane e Walker
tinham-se tornado mais do que amigos. Tinham começado uma relação amorosa e Jane até falava em casamento. Dorothy pensou: Seria mesmo perfeito. Billy teria outra
vez uma verdadeira família.
Havia algo de apropriado nisso, uma sensação de conclusão para tudo aquilo, que Dorothy considerava reconfortante. Estava outra vez quente e dentro de pouco tempo seria verão. As casas não tardariam muito a abrir e as festas começariam. A vida continua, disse a si própria. Margaret e Peter já cá não estão, mas não há dúvida de que a vida continua.
SESSENTA E TRÊS
GLOUCESTERSHIRE, INGLATERRA: SETEMBRO
DE 1944
Até Alfred Vicary ficou surpreendido com a rapidez com que conseguira sair. Tecnicamente, tratava-se de uma licença administrativa até serem conhecidas as conclusões do inquérito interno. Vicary sabia que isso era uma terminologia pomposa que correspondia a um despedimento.
Perversamente, seguiu o conselho de Basil Boothby e fugiu para a casa da tia Matilda - nunca fora capaz de se habituar à ideia de que era sua - para ordenar as ideias. Os primeiros dias de exílio foram aterradores. Sentia falta da camaradagem do MI5. Sentia falta do seu gabinetezinho miserável. Até deu por si a sentir falta da cama de campanha, pois tinha perdido a bênção do sono profundo. Culpava a cama de casal de Matilda, que afundava cada vez mais - demasiado mole, com demasiado espaço para ele se debater com os seus pensamentos atormentados. Num raro clarão de inspiração, foi à loja da aldeia comprar uma nova cama de campanha. Instalou-a na sala de estar, ao lado da lareira, um local estranho, sabia-o, mas não planeava receber visitas. A partir dessa noite, começou a dormir tão bem como se poderia esperar.
Passou por um longo e triste período de inatividade. Mas, na primavera, quando o tempo aqueceu, concentrou a ilimitada energia acumulada na sua nova casa. Os vigias que o visitavam de vez em quando viram, horrorizados, Vicary atacar o jardim munido de uma
tesoura de podar, de uma foice e dos óculos em meia-lua. Observaram-no, espantados, a pintar de novo o interior do chalé. Gerou-se uma discussão considerável à
volta da cor por ele escolhida: um branco forte e rotineiro. Será que significava que o seu estado de espírito estava a melhorar ou estaria a transformar a casa
num hospital e a dar entrada por um período prolongado?
A preocupação também era grande na aldeia. Poole, o homem da drogaria, diagnosticou o estado de espírito de Vicary como sendo de luto. Não é possível, disse Plenderleith, o homem da estufa, que dava conselhos a Vicary acerca do jardim. Nunca foi casado, nunca esteve apaixonado, ao que parece. Miss Lazenby, da loja de roupa, decretou que estavam ambos errados. O pobre homem está apaixonado, qualquer pateta vê isso. E, pelo aspeto dele, o objeto da sua devoção não lhe retribui esse amor.
Mesmo que tivesse sabido dessa discussão, Vicary não teria sido capaz de a resolver, já que conhecia tão mal os seus próprios sentimentos como as pessoas que os testemunhavam. O chefe do seu departamento no University College enviou-lhe uma carta. Tivera conhecimento que Vicary já não se encontrava ao serviço do Ministério da Guerra e queria saber quando regressaria à universidade. Vicary rasgou a carta ao meio e queimou-a na lareira.
Já não havia nada em Londres para ele - apenas más recordações -, por isso, manteve-se longe. Só lá foi uma vez, numa manhã da primeira semana de junho, quando Sir Basil o chamou para ouvir os resultados do inquérito interno.
- Olá, Alfred! - gritou Sir Basil quando Vicary entrou no seu gabinete.
Lá dentro, brilhava uma suave luz cor de laranja. Boothby estava exatamente no centro do gabinete, como se quisesse espaço para manobrar para todos os lados. Trazia um fato cinzento que lhe assentava na perfeição e parecia mais alto do que Vicary se lembrava. O diretor-geral estava sentado no elegante sofá, com os dedos entrelaçados como se estivesse a rezar e os olhos fixos num ponto do tapete persa. Boothby com a mão direita em riste como uma baioneta, avançou
na direção de Vicary. Tendo em conta o sorriso caótico estampado na cara de Boothby, Vicary não tinha a certeza se ele estava a planear abraçá-lo ou atacá-lo. E também não tinha a certeza daquilo que receava mais.
Mas o que Boothby fez de facto foi apertar a mão a Vicary com um bocadinho de simpatia a mais e pousar-lhe a sua patorra no ombro. Estava quente e húmida, como se tivesse acabado de jogar uma partida de ténis. Serviu-lhe ele próprio chá e fez conversa de circunstância enquanto Vicary fumava um último cigarro. A seguir, com considerável cerimónia, tirou da secretária o relatório final da comissão de inquérito e colocou-o em cima da mesa. Vicary não quis olhar para o documento diretamente.
Boothby explicou a Vicary, com um prazer excessivo, que não lhe era permitido ler a avaliação feita à sua própria operação. Mostrou-lhe antes um documento de uma
só página, uma versão saneada que supostamente condensava e resumia o conteúdo do relatório. Vicary segurou-o com as duas mãos, mantendo-o bem esticado para que
não tremesse enquanto o lia. Era um documento desprezível e obsceno, mas contestá-lo naquele momento não serviria de nada. Devolveu-o a Boothby, apertou-lhe a mão,
depois a do diretor-geral, e foi-se embora.
Vicary desceu as escadas. Estava alguém no seu gabinete. Era Harry, com uma cicatriz horrível no maxilar. Vicary não era adepto de despedidas prolongadas. Disse
a Harry que tinha sido despedido, agradeceu-lhe tudo o que ele tinha feito e disse-lhe adeus.
Chovia outra vez e o tempo estava frio para junho. O chefe da divisão dos Transportes disponibilizou um carro a Vicary. Vicary recusou educadamente. Abriu o guarda-chuva
e seguiu vagarosamente para Chelsea, com a chuva a cair torrencialmente.
Passou a noite na sua casa em Chelsea. Acordou ao amanhecer, com a chuva a bater nas janelas. Era o dia 6 de junho. Ligou a BBC para ouvir as notícias e ficou a
saber que a invasão estava em curso.
Ao meio-dia, Vicary saiu de casa, esperando ver multidões nervosas e ouvir conversas ansiosas, mas havia um silêncio de morte em Londres. Algumas pessoas aventuravam-se
a ir às compras e outras entravam nas igrejas para rezarem. Os táxis deslocavam-se pelas ruas vazias à procura de clientes.
Vicary observou os londrinos ocupados com a sua vida. Sentiu vontade de correr para eles, sacudi-los e dizer: Não sabem o que é que está a acontecer? Não têm noção
do que foi necessário? Não sabem as coisas inteligentes e perversas que fizemos para os enganar? Não sabem o que é que eles me fizeram a mim?
Jantou no pub da esquina e ouviu os animadores boletins noticiosos na telefonia. Nessa noite, de novo sozinho, ouviu a mensagem do Rei à nação e, a seguir, foi deitar-se.
De manhã, apanhou um táxi para a estação de Paddington e regressou a Gloucestershire no primeiro comboio.
Gradualmente, por altura do verão, os seus dias adquiriram uma cuidadosa rotina.
Levantava-se cedo e lia até ao almoço, que comia todos os dias na aldeia, no Eight Bells: tarte de legumes, cerveja, carne quando constava do menu. Do Eight Bells,
partia para a caminhada que se obrigava a dar diariamente pelos trilhos ventosos em redor da aldeia. A cada dia que passava, o joelho aleijado recuperava um pouco
mais de força e, em agosto, Vicary já fazia dezasseis quilómetros todas as tardes. Deixou de fumar cigarros e passou para o cachimbo. Os rituais do cachimbo - carregá-lo,
limpá-lo, acendê-lo e voltar a acendê-lo - assentavam de modo perfeito na sua nova vida.
Não tinha noção do dia certo em que aquilo tinha acontecido o dia em que tudo se desvaneceu dos seus pensamentos conscientes: o gabinete exíguo, o estrépito dos
teleimpressores, a comida horrível da cantina, o léxico louco daquele sítio. Double Cross... Mulberry... Phoenix... Kettledrum. Até Helen foi empurrada para dentro
de uma sala fechada da sua memória, onde não poderia causar mais danos. Alice Simpson começou a visitá-lo ao fim de semana e passou lá uma semana inteira no início
de agosto.
No último dia do verão, sentiu-se invadido pela suave melancolia que aflige as pessoas do campo quando o tempo quente está a chegar ao fim. Era um crepúsculo glorioso,
com o horizonte raiado de púrpura e cor de laranja, a primeira sugestão do outono no ar. As prímulas e as campainhas há muito tinham desaparecido. Recordou-se de
um fim de tarde assim, meia vida antes, quando Brendan Evans o ensinou a andar de mota nos trilhos da Fens. Ainda não estava frio para
acender lareiras, mas do seu poleiro, no cimo de uma colina, conseguia ver as chaminés da aldeia a deitarem fumo suavemente e sentir o cheiro intenso a madeira verde
no ar.
Foi então que viu tudo a desenrolar-se nas encostas, como a solução para um problema de xadrez. Conseguia ver as linhas de ataque, a preparação, o logro. Nada tinha
sido o que parecia.
Vicary voltou apressadamente para o chalé, telefonou para o departamento e pediu para falar com Boothby. Foi nessa altura que se apercebeu de que era tarde e de
que era sexta-feira - os dias da semana já não significavam nada para ele - mas, por milagre, Boothby ainda lá estava e atendeu o seu próprio telefone.
Vicary identificou-se. Boothby revelou-se genuinamente agradado por ouvir a voz dele. Vicary garantiu-lhe que estava ótimo.
- Quero falar consigo - disse Vicary. - Sobre a Operação Ketdedrum.
A linha caiu num silêncio, mas Vicary sabia que Boothby não tinha desligado o telefone de repente porque o ouvia a mexer-se agitadamente na cadeira.
- Já não pode vir cá. O Alfred épersona nongrata. Por isso, suponho que tenha de ser eu a ir ter consigo.
- Perfeito. E não finja que não sabe como me encontrar porque tenho visto os seus vigias a andarem atrás de mim.
- Amanhã, ao meio-dia - atirou Boothby, desligando o telefone.
Boothby chegou ao meio-dia em ponto, num Humber oficial, vestido para o campo com roupa de tweed, uma camisa aberta no pescoço e um casaco de malha confortável.
Tinha chovido durante a noite. Vicary foi buscar à cave umas botas de borracha tamanho XL para Boothby e percorreram como velhos colegas um prado pontilhado de ovelhas
tosquiadas. Boothby foi falando sobre mexericos do departamento e Vicary, com considerável esforço, fingiu estar interessado.
Passado um bocado, Vicary parou de andar e pôs-se a olhar para longe.
- Nada daquilo era real, pois não? - exclamou. -Jordan, Catherine Blake... - era tudo falso desde o início.
Boothby sorriu sedutoramente.
- Não foi bem assim, Alfred. Mas qualquer coisa do género.
Virou-se e continuou a caminhar, o corpo alto uma linha vertical recortada no horizonte. A seguir, parou e fez sinal a Vicary para se aproximar. Coxeando mecânica
e rigidamente, Vicary seguiu Boothby, batendo nos bolsos à procura dos óculos em meia-lua.
- Foi a natureza da Operação Mulberry que nos colocou um problema - começou a dizer Boothby, sem aviso. - Estavam envolvidas dezenas de milhares de pessoas. Claro
que a grande maioria não fazia ideia daquilo em que estava a trabalhar. Ainda assim, o potencial para ocorrerem fugas de segurança era enorme. As componentes eram
tão grandes que tinham de ser construídas à vista de toda a gente. Os locais de construção estavam espalhados pelo país, mas uma parte foi construída mesmo aqui
perto, nas docas de Londres. Assim que nos informaram do projeto, percebemos que tínhamos um problema. Sabíamos que os alemães seriam capazes de fotografar os locais
a partir do ar. Sabíamos que bastava um espião razoável andar a bisbilhotar as obras para conseguir provavelmente descobrir o que estávamos a preparar. Enviámos
um homem para Sesley para testar o grau de segurança. Já estava a beber chá na cantina com alguns trabalhadores quando alguém se deu ao trabalho de lhe pedir a identificação.
Boothby riu. Vicary observou-o enquanto ele falava. Toda a sua arrogância e todo o seu nervosismo tinham desaparecido. Sir Basil mostrava-se calmo, sereno e simpático.
Vicary pensou que, em circunstâncias diferentes, até poderia ter gostado dele. Apercebeu-se, chocado, de que tinha subestimado a inteligência de Boothby desde o
início. E também ficou espantado com a utilização que ele fazia da palavra nós. Boothby era membro do clube; Vicary tinha apenas sido autorizado a encostar o nariz
ao vidro durante um curto período de tempo.
- O maior problema era a possibilidade de a Operação Mulberry revelar as nossas intenções - recomeçou Boothby. - Se os alemães descobrissem que estávamos a construir
portos artificiais, eram bem
capazes de concluir que pretendíamos evitar os portos altamente fortificados de Calais atacando na Normandia. Como o projeto era tão grande e difícil de ocultar,
tínhamos de partir do princípio de que os alemães acabariam por descobrir o que estávamos a preparar. A nossa solução foi roubar por eles o segredo da Operação Mulberry
e tentar controlar o jogo - explicou Boothby, olhando para Vicary. - Muito bem, Alfred, vamos lá ouvir o que tem para dizer. Quero saber o que conseguiu descobrir
ao certo.
- Walker Hardegen - afirmou Vicary. - Eu diria que começou tudo com Walker Hardegen.
- Muito bem, Alfred. Mas como?
- Walker Hardegen era um banqueiro e um homem de negócios rico, ultraconservador, anticomunista e provavelmente um bocadinho antissemita. Vinha da Ivy League e conhecia
metade das pessoas em Washington. Tinha andado na escola com elas. Os americanos não são assim tão diferentes de nós nesse aspeto. Os negócios dele levavam-no a
Berlim regularmente. E quando homens como Hardegen viajavam para Berlim, iam a jantares e festas de embaixadas. Jantavam com os diretores das maiores empresas alemãs
e com funcionários nazis do partido e dos ministérios. Hardegen falava alemão perfeitamente. E o mais provável era que admirasse algumas das coisas que os nazis
andavam a fazer. Acreditava que Hitler e os nazis funcionavam como um importante amortecedor entre os bolcheviques e o resto da Europa. Eu diria que, durante uma
das visitas dele, terá chamado a atenção da Abwehr ou do SD.
- Bravo, Alfred. Foi a Abwehr, por acaso, e o homem cuja atenção capturámos foi Paul Múller, o diretor das operações da Abwehr na América.
- Muito bem. Múller recrutou-o. Oh, calculo que provavelmente tenha suavizado a coisa. Dito que Hardegen não estaria realmente a trabalhar para os nazis. Estaria
a ajudar na luta contra o comunismo internacional. Pediu informações a Hardegen sobre a produção industrial americana, o estado de espírito em Washington, coisas
desse género. Hardegen aceitou e tornou-se agente. Mas tenho uma pergunta: Hardegen já era um agente americano nessa altura?
- Não - respondeu Boothby, sorrindo. - Não se esqueça, isto passou-se ainda bem no início do jogo, em 1937. Os americanos não eram especialmente sofisticados nessa
altura. Mas sabiam, no entanto, que a Abwehr se encontrava ativa nos Estados Unidos, particularmente em Nova Iorque. Um ano antes, os planos relativos à mira de
bombardeiro Norden saíram do país dentro da pasta de um espião da Abwehr chamado Nikolaus Ritter. Roosevelt tinha dado ordens a Hoover para atuar com dureza. Em
1939, Hardegen foi fotografado a encontrar-se em Nova Iorque com um conhecido agente da Abwehr. Dois meses mais tarde, viram-no novamente, desta vez a encontrar-se
com outro agente da Abwehr na Cidade do Panamá. Hoover queria prendê-lo e levá-lo a julgamento. Meu Deus, os americanos eram mesmo uns lorpas neste jogo. Felizmente,
o MI6 já tinha instalado o seu gabinete em Nova Iorque nessa altura. Intervieram e convenceram Hoover de que Hardegen era mais valioso se continuasse em jogo do
que enfiado numa cela qualquer.
- Então quem é que o controlava, nós ou os americanos?
- Na verdade, era um projeto conjunto. Fornecíamos um fluxo constante de ótimo material aos alemães através de Hardegen, tudo coisas de qualidade superior. Em Berlim,
o estatuto de Hardegen subiu em flecha. Enquanto isso, todos os aspetos da vida de Walker Hardegen foram analisados microscopicamente, incluindo a relação dele com
a família Lauterbach e com um engenheiro brilhante chamado Peter Jordan.
- Por isso, em 1943, quando foi tomada a decisão de efetuar a invasão através do canal da Mancha na Normandia, com a ajuda de um porto artificial, os serviços secretos britânicos e americanos abordaram Peter Jordan e pediram-lhe para passar a trabalhar para nós.
- Sim. Em outubro de 1943, para ser exato.
- Ele era perfeito - prosseguiu Vicary. - Era precisamente o tipo de engenheiro de que o projeto necessitava e era conhecido e respeitado na sua área. Os nazis só precisavam de ir à biblioteca para ler sobre os feitos dele. E a morte da mulher também o tornava vulnerável em termos pessoais. Por isso, no final de 1943, fizeram com que Hardegen se encontrasse com o agente da Abwehr responsável por ele e lhe contasse tudo sobre Peter Jordan. O que é que lhes revelaram na altura?
- Só que Jordan estava a trabalhar num grande projeto de construção relacionado com a invasão. E também demos a entender que ele era vulnerável, como o Alfred disse. A Abwehr mordeu o isco. Múller convenceu Canaris e Canaris passou o assunto a Vogel.
- Então, toda essa coisa foi um estratagema complexo para impingir informações falsas à Abwehr. E Peter Jordan foi o cordeiro sacrificado da praxe.
- Exato. Os primeiros documentos eram propositadamente ambíguos. Estavam abertos à interpretação e à discussão. As unidades Phoenix podiam ser componentes de um porto artificial ou podiam ser um complexo antiaéreo. Queríamos que eles andassem à bulha, discutissem, se esfrangalhassem todos. Tem Sun-Tzu em dia?
- Sabota o teu inimigo, subverte-o, semeia a discórdia entre os seus líderes.
- Exato. Queríamos encorajar a fricção entre o SD e a Abwehr. E também não lhes queríamos facilitar demasiado as coisas. Gradualmente, os documentos da Operação
Kettledrum foram clareando o quadro e esse quadro foi transmitido diretamente a Hitler.
- Mas porquê darem-se a tanto trabalho? Porque é que não utilizaram simplesmente um dos agentes que já tinham mudado de lado? Ou um dos agentes fictícios? Porquê
utilizarem um engenheiro de carne e osso? Porque não inventaram simplesmente um de fio a pavio?
- Por duas razões - respondeu Boothby. - Número um, isso é demasiado fácil. Queríamos que eles se esforçassem para obter as informações. Queríamos influenciar-lhes o pensamento subtilmente. Queríamos que pensassem que eram eles que estavam a decidir apontar baterias a Jordan. Não se esqueça do mantra de um agente da Operação Double Cross: as informações facilmente obtidas são facilmente descartadas. Havia uma cadeia de informações, por assim dizer: de Hardegen para Múller, de Múller para Canaris, de Canaris para Vogel e de Vogel para Catherine Blake.
- Impressionante - afirmou Vicary. - E a segunda razão?
- A segunda razão foi que, no final de 1943, descobrimos que não conhecíamos todos os espiões alemães que atuavam no Reino
Unido. Ficámos a saber de Kurt Vogel, ficámos a saber da rede dele e ficámos a saber que um dos agentes era uma mulher. Mas tínhamos um problema grave. Vogel tinha infiltrado os agentes no Reino Unido tão cuidadosamente que só os conseguiríamos localizar se fizéssemos com que eles se revelassem. Não se esqueça, o Plano Bodyguard estava prestes a começar a carburar a cem por cento, íamos bombardear os alemães com rajadas de informações falsas. Mas não nos podíamos sentir confortáveis sabendo que havia agentes de carne e osso ativos no nosso país. Tínhamos de os identificar a todos. Caso contrário, nunca poderíamos ter a certeza de que os alemães não estavam a receber informações que contradissessem o Plano Bodyguard.
- E como tiveram conhecimento da rede de Vogel?
- Fomos informados.
- Por quem?
Boothby deu alguns passos em silêncio, contemplando a biqueira enlameada das botas de borracha.
- Fomos informados da rede por Wilhelm Canaris - disse por fim.
- Por Canaris?
- Através de um dos emissários dele, na realidade. Em 1943, no final do verão. Isto vai provavelmente chocá-lo, mas Canaris era um dos líderes da Schwarze Kapelle. Queria que Menzies e os serviços secretos o ajudassem a derrubar Hitler e a acabar com a guerra. Num gesto de boa vontade, informou Menzies da existência da rede de Vogel. Menzies informou os serviços de segurança e, em conjunto, engendrámos um estratagema chamado Kettledrum.
- O principal espião de Hitler, um traidor. Extraordinário. E o senhor sabia de tudo isto, claro. Sabia-o na noite em que eu fui destacado para o caso. Aquele relatório acerca da invasão e dos planos de logro... Teve tudo como objetivo assegurar a minha lealdade cega. Motivar-me. Manipular-me.
- Lamento dizê-lo, mas sim.
- Então a operação tinha dois objetivos: enganá-los em relação ao Projeto Mulberry e, ao mesmo tempo, fazer com que os agentes de Vogel se revelassem para os podermos neutralizar.
- Sim - confirmou Boothby. - E mais outra coisa: possibilitar a Canaris um golpe de mestre que lhe permitisse salvar a cabeça
até à invasão. A última coisa de que precisávamos era de Schellenberg e de Himmler a comandarem. A Abwehr estava totalmente paralisada e manipulada. Sabíamos que se Schellenberg assumisse o controlo, ia pôr em causa tudo o que Canaris tinha feito. Mas não fomos bem-sucedidos nesse ponto, claro. Canaris foi despedido e Schellenberg apoderou-se finalmente da Abwehr.
- Então porque é que a Operação Double Cross e o Plano Bodyguard não se desmoronaram com a queda de Canaris?
- Oh, Schellenberg estava mais interessado em consolidar o seu império do que em introduzir uma nova leva de agentes em Inglaterra. Houve uma impressionante reorganização burocrática - gabinetes a trocarem de dono, dossiês a mudarem de mãos, esse tipo de coisas. No estrangeiro, mandou embora agentes dos serviços secretos experientes
que eram leais a Canaris e substituiu-os por sabujos ainda verdes, leais às SS e ao Partido. Enquanto isso, no quartel-general da Abwehr, os agentes responsáveis
faziam todos os possíveis por provar que os agentes a atuarem no Reino Unido eram fidedignos e produtivos. Pondo as coisas de forma simples, era uma questão de vida
ou de morte para esses agentes. Se admitissem que os agentes deles estavam sob controlo britânico, teriam sido enfiados no primeiro comboio a caminho do Leste. Ou
pior.
Caminharam em silêncio durante algum tempo enquanto Vicary assimilava tudo o que lhe tinha sido dito. Tinha a cabeça à roda. E inúmeras perguntas. Temia que Boothby
se pudesse calar a qualquer instante. Ordenou-as por importância, deixando de lado as suas emoções fervilhantes. Passou uma nuvem diante do Sol e de repente fez-se
frio.
- E resultou tudo? - perguntou Vicary.
- Sim, resultou de forma brilhante.
- Então e a emissão do Lord Haw-Haw?
O próprio Vicary tinha-a ouvido, sentado na sala de estar do chalé de Mádida, e tinha sentido um calafrio. Nós sabemos exatamente o que é que vocês pretendem faer
com essas unidades de betão. Pensam que as vão afundar nas nossas costas durante a invasão. bom, vamos ajudar-vos, rapaces...
- Pôs o Supremo Comando Aliado em pânico. Pelo menos, à superfície - acrescentou Boothby presunçosamente. - Um grupo
muito pequeno de oficiais tinha conhecimento do logro da Operação Kettledrum e percebeu que se tratava apenas do último ato. Eisenhower enviou um telegrama para
Washington a pedir cinquenta vedetas para resgatar as tripulações caso as Mulberries fossem afundadas durante a travessia do Canal. Certificámo-nos de que os alemães
sabiam disso. Tate, o nosso agente da Operação Double Cross com uma fonte fictícia dentro do SHAEF, transmitiu ao agente da Abwehr responsável por ele um relatório
do pedido de Eisenhower. Passados vários dias, o embaixador japonês fez uma visita às defesas costeiras e foi informado por Rundstedt. Rundstedt falou-lhe das Mulberries
e explicou-lhe que um agente da Abwehr tinha descoberto que eram torres de artilharia antiaérea. O embaixador enviou por telegrama essa informação aos seus chefes
em Tóquio. Essa mensagem, tal como todas as outras comunicações dele, foi intercetada e descodificada. Nesse momento, soubemos que a Operação Kettledrum tinha resultado.
- E quem dirigiu a operação em termos globais?
- O MI6, na verdade. Foram eles que a iniciaram, foram eles que a conceberam, e nós deixámo-los dirigi-la.
- E quem sabia dentro do departamento?
- Eu, o diretor-geral, Masterman, do Comité da Operação Double Cross.
- E quem era o agente que comandava tudo? Boothby olhou para Vicary.
- O Broome, claro.
- E quem é o Broome?
- O Broome é o Broome, Alfred.
- Só não compreendo uma coisa. Porque é que era necessário enganar o agente responsável pelo caso?
Boothby sorriu tenuemente, como se tivesse sido apoquentado por uma recordação ligeiramente desagradável. Dois faisões irromperam da sebe e voaram disparados pelo
céu cinzento-escuro. Boothby parou e contemplou as nuvens.
- Parece que vem aí chuva - atirou. - Talvez fosse melhor voltarmos para trás.
Deram meia-volta e começaram a andar.
- Nós enganámo-lo, Alfred, porque queríamos que parecesse tudo verdadeiro ao outro lado. Queríamos que o Alfred seguisse os
mesmos passos que em princípio seguiria num caso normal. E também não lhe era necessário saber que Jordan estava a trabalhar para nós desde o início. Não era necessário.
- Meu Deus! - disparou Vicary. - Então comandaram-me, como a qualquer outro agente. Comandaram-me.
- Pode dizer-se isso, sim.
- E porque fui escolhido? Porque não outra pessoa?
- Porque o Alfred, como o Peter Jordan, era perfeito.
- É capaz de me explicar isso?
- Escolhemo-lo por ser inteligente e engenhoso, e, em circunstâncias normais, o Alfred ter-lhes-ia dado água pela barba. Meu Deus, quase percebeu o logro enquanto
a operação estava em curso. E também o escolhemos por a tensão entre nós dois ser lendária afirmou Boothby, parando por uns instantes e olhando para Vicary.
- O Alfred não era propriamente discreto quando me criticava perante o resto do staff. Mas, mais importante do que isso, escolhemo-lo por ser amigo do primeiro-ministro
e a Abwehr o saber.
- E quando me despediram, informaram os alemães através de Hawke e do Pelicano. Esperavam que o sacrifício de um amigo pessoal de Winston Churchill reforçasse a
confiança deles no material da Operação Kettledrum.
- Exato, fazia tudo parte do guião. E resultou, já agora.
- E Churchill sabia?
- Sim, sabia. Foi ele próprio que aprovou tudo. O seu velho amigo traiu-o. Adora a magia negra, o nosso Winston. Se não fosse primeiro-ministro, acho que teria
sido um agente perito em logros. Acho que se divertiu bastante com tudo. Ouvi dizer que aquele discurso de motivação que ele lhe fez nas Salas de Guerra Subterrâneas
foi um clássico.
- Sacanas - murmurou Vicary. - Sacanas manipuladores. Mas a verdade é que, se calhar, me devia dar por feliz. Podia estar morto como os outros. Meu Deus! Já se deram
conta de quantas pessoas morreram por causa do vosso joguinho? Pope, a namorada dele, Rose Morely, os dois homens da Divisão Especial em Earl's Court, os quatro
polícias em Louth, outro em Cleethorpes, Sean Dogherty, Martin Colville.
- Está a esquecer-se de Peter Jordan.
- Por amor de Deus, mataram o vosso próprio agente!
- Não, o A-lfred é que o matou. Foi o Alfred que o pôs a bordo daquele barco. Eu até gostei bastante, devo admitir. O homem cujo descuido pessoal quase nos custou
a guerra morre a salvar a vida de uma rapariga e expia os seus pecados. Era assim que Hollywood teria feito a coisa. E é isso que os alemães pensam que aconteceu
realmente. E, além do mais, o número de vidas que se perderam não é nada comparado com a carnificina que teria ocorrido se Rommel estivesse à nossa espera na Normandia.
- Trata-se tudo de créditos e débitos? É assim que olha para as coisas? Como se fossem uma gigantesca folha de contabilidade? Ainda bem que estou fora! Não quero
fazer parte disso! Não se isso significa fazer coisas dessas. Meu Deus, já devíamos ter queimado pessoas como o senhor na fogueira há muito tempo!
Subiram uma última colina. Ao longe, a casa de Vicary surgiu diante deles. As trepadeiras floridas de Matilda cobriam o muro de calcário que servia de proteção.
Ele queria estar lá - bater com a porta, sentar-se à lareira e nunca mais voltar a pensar em nada daquilo. Sabia que naquele momento isso era impossível. Queria
livrar-se de Boothby. Acelerou o passo, descendo rapidamente a colina e quase perdendo o equilíbrio. Boothby, com o seu corpo alto e pernas atléticas, esforçou-se
por o acompanhar.
- Não é mesmo isso que acha, pois não? O Alfred gostou daquilo. Foi seduzido. Gostou da manipulação e do logro. A sua universidade quer que regresse, mas o Alfred
não tem a certeza se quer voltar para lá porque tem consciência de que tudo aquilo em que acreditava é mentira e de que o meu mundo, este mundo, é que é o verdadeiro.
- O senhor não é o mundo verdadeiro. Não tenho a certeza do que o senhor é, mas não é verdadeiro.
- Pode dizer isso agora, mas eu sei que sente uma falta terrível de tudo aquilo. É bastante parecido com uma amante, o tipo de trabalho que fazemos. Às vezes, não
gostamos muito dela. Não gostamos de nós próprios quando estamos com ela. Os momentos em
que nos sentimos bem são fugazes. Mas quando tentamos deixá-la há sempre qualquer coisa que nos puxa outra vez para ela.
- Receio bem que essa metáfora não me diga muito, Sir Basil.
- Lá está o Alfred outra vez, a armar-se em superior, em melhor do que os outros. Pensei que já tivesse aprendido a lição por esta altura. O Alfred precisa de pessoas
como nós. O país precisa de nós.
Atravessaram o portão e seguiram pelo caminho de entrada. O cascalho estalava sob os seus pés. Vicary lembrou-se da tarde em que tinha sido chamado a Chartwell e
recebido o cargo no MI5. Lembrou-se da manhã nas Salas de Guerra Subterrâneas, das palavras de Churchill: Tem de deixar de lado quaisquer princípios que ainda possua,
deixar de lado quaisquer sentimentos de compaixão que ainda possua, efaer tudo o que for necessário para vencer.
Pelo menos, tinha havido alguém que tinha sido sincero consigo, mesmo que isso tivesse sido mentira na altura.
Pararam ao lado do Humber de Boothby.
- Compreenderá por certo que eu não o convide para entrar e tomar um refresco - disse Vicary. - Quero ir lavar o sangue das mãos.
- A beleza da coisa é essa, Alfred - retorquiu Boothby, mostrando as grandes patorras a Vicary. - Eu também tenho sangue nas mãos. Só que não o consigo ver e mais
ninguém consegue. É uma mancha secreta.
O motor do carro disparou quando Boothby abriu a porta.
- Quem é Broome? - perguntou Vicary uma última vez.
O rosto de Boothby ensombrou-se, como se uma nuvem lhe tivesse passado à frente.
- Broome é Brendan Evans, o seu velho amigo de Cambridge. Contou-nos a sua manobra para entrar para os serviços secretos militares. E contou-nos o que lhe aconteceu
em França. Sabíamos o que o impelia e o que o motivava. Tinha de ser... afinal de contas, estávamos a comandá-lo.
Vicary sentiu a cabeça começar a latejar.
- Tenho mais uma pergunta.
- Quer saber se Helen estava envolvida nisso ou se foi ter consigo de livre vontade.
Vicary ficou em suspenso, à espera de uma resposta.
- Porque não vai ter com ela e lhe pergunta?
A seguir, Boothby desapareceu dentro do carro e foi-se embora.
SESSENTA E QUATRO
LONDRES: MAIO DE 1945
Nessa tarde, às seis horas, Lillian Walford aclarou a garganta, bateu suavemente à porta do gabinete e entrou sem esperar que respondessem. O professor estava lá,
sentado à janela com vista para Gordon Square, com o corpo franzino debruçado sobre um velho manuscrito.
- Se já não tiver mais nada para eu fazer, vou-me embora, professor - disse ela, dando início ao ritual de fechar os livros e endireitar os papéis que parecia acompanhar
sempre as conversas de sexta-feira ao final da tarde entre ambos.
- Não, tenho tudo o que preciso, obrigado.
Ela olhou para ele e pensou: Não, por qualquer razão, duvido muito disso, professor. Havia qualquer coisa nele que tinha mudado. Oh, é verdade que nunca tinha sido do tipo falador; nunca tinha sido pessoa de iniciar uma conversa, a não ser que fosse absolutamente necessário. Mas parecia mais reservado do que nunca, coitadinho. E tinha piorado à medida que o período letivo avançava, em vez de melhorar, como ela tinha esperado. Contavam-se histórias na faculdade, especulações fúteis. Havia quem dissesse que ele tinha enviado homens para a morte ou ordenado execuções. Era difícil imaginar o professor a fazer essas coisas, mas fazia algum sentido, ela tinha de admitir. Alguma coisa o tinha feito fazer um voto de silêncio.
- É melhor não se demorar muito, professor, se quer apanhar o comboio.
.- Estava a pensar em ficar antes em Londres no fim de semana
respondeu ele, sem levantar os olhos do trabalho. - Interessa-me
ver qual é o aspeto da cidade à noite, agora que as luzes estão outra vez a funcionar.
- Ora aí está uma coisa que eu espero mesmo nunca mais voltar a ver, o maldito blackout.
- Algo me diz que não verá.
Ela tirou-lhe o impermeável do cabide atrás da porta e colocou-o na cadeira ao lado da secretária. Pousou o lápis e olhou para ela. O que ela fez a seguir apanhou-os aos dois de surpresa. A mão dela pareceu estender-se para a cara dele de livre vontade, por reflexo, como o faria para uma criancinha que tivesse acabado de se magoar.
- O professor está bem?
Ele afastou-se bruscamente e voltou a olhar para o manuscrito.
- Sim, estou ótimo - respondeu ele.
A voz tinha um tom, uma rispidez que ela nunca lhe tinha ouvido. A seguir, ele murmurou qualquer coisa baixinho que pareceu ser nunca estive melhor.
Ela virou-se e dirigiu-se para a porta.
- Tenha um bom fim de semana - disse.
- É essa a minha ideia, obrigado.
- Boa noite, professor Vicary.
- Boa noite, Miss Walford.
A noite estava quente e, quando atravessou Leicester Square, Vicary já tinha despido o impermeável, levando-o dobrado sobre o braço. O crepúsculo chegava ao fim e as luzes de Londres começaram a acender-se lentamente. Quem diria, Liílian Walford a tocar-lhe na cara daquela maneira! Sempre tinha pensado que era um mentiroso
razoável. Interrogou-se se seria assim tão evidente.
Atravessou o Hyde Park. À esquerda, um grupo de americanos jogava softball à luz ténue. À direita, britânicos e canadianos participavam num barulhento jogo de râguebi. Passou por um local onde apenas uns dias antes se encontrava uma arma antiaérea. A arma tinha desaparecido; apenas se mantinham lá os sacos de areia, como se fossem pedras de ruínas antigas.
Entrou em Belgravia e, por instinto, dirigiu-se para a casa de Helen.
Espero que mudes de opinião, e depressa.
As cortinas opacas estavam levantadas e a casa inundada de luz. Estavam lá mais dois casais. David estava de uniforme, com Helen pendurada no braço. Vicary perguntou-se há quanto tempo estaria ali parado, a observá-los, a observá-la. Para sua grande surpresa - ou seria alívio, talvez -, não sentiu nada por ela. O seu fantasma tinha-o abandonado por fim, desta vez definitivamente.
Afastou-se. King's Road deu lugar a Sloane Square e Sloane Square a sossegadas ruas secundárias de Chelsea. Olhou para o relógio; ainda tinha tempo para apanhar
o comboio. Conseguiu um táxi e, antes de entrar, pediu ao taxista para o levar até à estação de Paddington. Baixou o vidro da janela e sentiu o vento quente na cara.
Pela primeira vez em muitos meses, sentiu qualquer coisa parecida com contentamento, qualquer coisa parecida com paz.
Ligou para Alice Simpson de uma cabine telefónica, na estação, e ela aceitou o convite para ir ter com ele ao campo na manhã seguinte. Desligou o telefone e teve
de correr para apanhar o comboio. A carruagem ia apinhada, mas descobriu um lugar à janela, num compartimento com duas velhas e um soldado com cara de menino, agarrado
a uma bengala.
Olhou para o soldado e viu que ele trazia a insígnia do 2.º Regimento de East Yorkshire. Vicary sabia que ele tinha estado na Normandia - em Sword Beach, para ser
exato - e que tinha sorte em estar vivo. Os East Yorks tinham sofrido muitas baixas nos primeiros minutos da invasão.
O soldado reparou que Vicary estava a olhar para ele e conseguiu esboçar um ligeiro sorriso.
- Foi na Normandia. Quase não cheguei a sair do barco - disse, erguendo a bengala. - Os médicos dizem que vou precisar de usar isto para o resto da vida. Como ficou
com o seu, quer dizer, com o coxear?
- Na Primeira Guerra Mundial, em França - disse Vicary num tom distante.
- E fizeram-no regressar para esta?
Vicary assentiu com a cabeça.
- Um trabalho à secretária, num departamento muito monótono do Ministério da Guerra. Nada de importante, na verdade.
Passado algum tempo, o soldado adormeceu. Por uma vez, nos campos que iam passando, Vicary viu o rosto dela, sorrindo-lhe, apenas por um instante. A seguir, viu o de Boothby. E depois, quando a escuridão se instalou, o seu próprio reflexo a acompanhá-lo em silêncio no vidro da janela.QUARENTA E SETE LONDRES
Clive Roach estava sentado a uma mesa junto à janela, no café em frente do apartamento de Catherine Blake, do outro lado da rua. A empregada trouxe-lhe o chá e o pão de leite. Ele largou de imediato algumas moedas na mesa. Era um hábito que tinha adquirido com o trabalho. Por norma, Roach era obrigado a sair dos cafés inesperada e rapidamente. A última coisa de que precisava era atrair atenções. Bebericou o chá e folheou um jornal matutino sem grande convicção. Não estava realmente interessado. Estava mais interessado na entrada do prédio do outro lado da rua. A chuva começou a cair com mais intensidade. Não estava desejoso de voltar a sair e molhar-se. Era o único aspeto do seu trabalho de que não gostava - a exposição constante ao mau tempo. Já tinha apanhado mais constipações e bronquites do que se conseguia lembrar.
Antes da guerra, tinha sido professor numa escola degradada para rapazes. Decidiu alistar-se no exército em 1939. Estava longe de ser o soldado ideal - magro, pele macilenta, cabelo ralo, uma voz com pouca potência. Não era propriamente disso que os oficiais eram feitos. No centro de recrutamento, reparou que estava a ser observado por dois homens bem vestidos a um canto. E também reparou que tinham pedido uma cópia do seu processo e que a estavam a examinar minuciosamente e com grande interesse. Passados uns minutos, arrancaram-no da fila, disseram-lhe que eram dos serviços secretos militares e ofereceram-lhe trabalho.
Roach gostava de observar. Era um observador de pessoas nato e possuía grande aptidão para nomes e caras. Oh, sabia que não haveria medalhas em reconhecimento de heroísmo no campo de batalha, nem histórias que pudesse contar no pub quando a guerra terminasse. Mas era um trabalho importante e Roach fazia-o bem. Começou a comer o pão de leite, pensando em Catherine Blake. Tinha seguido muitos espiões alemães desde 1939, mas ela era a melhor. Uma verdadeira profissional. Já o envergonhara uma vez, mas jurara que nunca mais iria deixar que isso acontecesse.
Terminou o pão de leite e bebeu o que restava do chá. Levantou os olhos da mesa e viu-a sair do prédio. Maravilhou-se com as artes do ofício de Catherine. Ficava sempre parada durante um momento a fazer qualquer coisa prosaica, ao mesmo tempo que perscrutava a rua à procura de sinais de vigilância. Naquele dia, estava às voltas com o guarda-chuva, como se este estivesse estragado. Roach pensou: A menina é muito boa, Miss Blake. Mas eu sou melhor.
Observou-a a abrir por fim o guarda-chuva e a começar a andar. Roach levantou-se, vestiu o casaco e saiu do café para ir atrás dela.
Horst Neumann acordou no momento em que o comboio atravessava ruidosamente os subúrbios do nordeste de Londres. Deu uma olhadela ao relógio: 10h30. Deviam ter chegado a Liverpool Street às 10h23. Milagrosamente, iriam atrasar-se apenas uns minutos. Bocejou, espreguiçou-se e endireitou-se no lugar. Espreitou pela janela, vendo os sombrios edifícios vitorianos que iam passando. Crianças sujas acenaram ao comboio. Neumann, sentindo-se ridiculamente inglês, acenou-lhes também. Havia mais três passageiros no seu compartimento, um par de soldados e uma jovem que usava um fato-macaco de trabalhador fabril e tinha franzido o sobrolho de preocupação quando vira a cara cheia de ligaduras de Neumann. Naquele momento, ele olhou de relance para cada um deles. Ficava sempre preocupado com a possibilidade de falar enquanto dormia, embora nas noites anteriores tivesse sonhado em inglês. Recostou a cabeça e fechou os olhos novamente. Meu Deus, como estava cansado. De pé às cinco da manhã, fora do chalé às seis, para Sean lhe
noder dar boleia até Hunstanton, o comboio das 7hl2 de Hunstanton para Liverpool Street.
Dormira mal na noite anterior, por causa das dores provocadas relos ferimentos e da presença de Jenny Colville na sua cama. Esta levantara-se ao mesmo tempo que ele, antes do amanhecer, escapulira-se do chalé dos Dogherty e fora de bicicleta para casa, no meio da escuridão e da chuva. Neumann esperava que ela tivesse chegado em segurança. E esperava que Martin não se encontrasse à espera dela. Tinha sido uma coisa estúpida deixá-la passar a noite consigo. Pensou no que ela sentiria quando ele se fosse embora. Quando nunca lhe escrevesse e ela nunca mais voltasse a ter notícias dele. Preocupava-o a reação dela se alguma vez descobrisse a verdade - que ele não era James Porter, um soldado britânico ferido, à procura de paz e sossego numa aldeia de Norfolk. Que era Horst Neumann, um paraquedista militar condecorado que tinha vindo para Inglaterra espiar e que a tinha enganado da pior forma. Mas não a tinha enganado em relação a uma coisa. Gostava dela. Não da maneira como ela gostaria que o fizesse, mas a verdade é que gostava dela a ponto de se preocupar com o que lhe pudesse acontecer.
O comboio abrandou ao aproximar-se de Liverpool Street. Neumann levantou-se, vestiu o casacão e saiu do compartimento. O corredor estava repleto de gente. Foi avançando a custo por entre os outros passageiros, em direção à porta. Houve alguém à frente dele que a abriu de rompante e Neumann saiu do comboio ainda em andamento. Deu o bilhete ao revisor e seguiu por uma passagem húmida até à estação do metro. Lá chegado, comprou um bilhete para Temple e apanhou o comboio seguinte. Uns minutos mais tarde, estava a subir as escadas e a dirigir-se para norte, a caminho da Strand.
Catherine Blake apanhou um táxi para Charing Cross. O ponto de encontro ficava a uma pequena distância, à frente de uma loja na Strand. Pagou ao taxista e abriu o guarda-chuva para não ficar molhada. Começou a andar. Parou junto a uma cabine telefónica, levantou o auscultador e fingiu que estava a fazer uma chamada. Olhou
para trás. A chuva forte tinha reduzido a visibilidade, mas não viu sinais do inimigo. Voltou a pousar o auscultador, saiu da cabine e continuou para leste, seguindo pela Strand.
Clive Roach saiu discretamente da parte de trás de uma carrinha de vigilância e seguiu-a pela Strand. Durante a curta viagem de carrinha, tinha-se livrado do impermeável e do chapéu de abas e vestido um oleado verde-escuro e um gorro de lã. A transformação era extraordinária - de um empregado de escritório para um operário. Roach ficou a ver Catherine Blake parar para fazer o suposto telefonema. Roach parou ao pé de um quiosque. Ao dar uma vista de olhos às manchetes, visualizou o rosto do agente a quem o professor Vicary tinha dado o nome de código de Rudolf. A missão de Roach era simples: seguir Catherine Blake até ela passar o material a Rudolf e depois segui-lo a ele. Levantou os olhos a tempo de a ver pousar o auscultador no gancho e sair da cabine telefónica. Roach embrenhou-se no meio das pessoas e seguiu-a.
Neumann avistou Catherine Blake a caminhar na sua direção. Parou junto a uma loja, com os olhos a perscrutarem as caras e a roupa das pessoas que se encontravam atrás dela no passeio. Quando ela se aproximou, Neumann afastou-se da montra e começou a avançar na sua direção. O contacto foi breve, um segundo ou dois. Mas, quando terminou, Neumann tinha o rolo na mão e estava a enfiá-lo no bolso do casaco. Ela continuou a andar depressa, desaparecendo por entre a multidão. Neumann seguiu na direção oposta mais uns metros, registando as caras. Depois, parou abruptamente em frente a outra montra, deu meia-volta e seguiu-a discretamente.
Clive Roach avistou Rudolf e viu a troca. Pensou: Vocês são uns sacanas manhosos, não são? Observou Rudolf a parar e depois a dar meia-volta e a caminhar na mesma direção que Catherine Blake. Roach tinha assistido a muitos encontros entre espiões alemães desde
1939, mas nunca tinha visto um agente dar meia-volta para seguir outro. Normalmente, cada um seguia o seu caminho. Roach levantou a gola do oleado para tapar as orelhas e deslizou cuidadosamente atrás deles.
Catherine Blake avançou para leste, seguindo pela Strand, e depois dirigiu-se para o Victoria Embankment. Foi lá que detetou que Neumann se encontrava atrás de si. A sua primeira reação foi de fúria. O procedimento normal para encontros consistia em separarem-se - e depressa - mal a entrega fosse feita. Neumann conhecia o procedimento e tinha-o executado sempre sem falhas. Ela pensou: Porque é que ele me está a seguir agora?
Vogel deve ter-lhe dado ordens para o fazer.
Mas porquê? Só conseguia pensar em duas explicações possíveis: ele tinha perdido a confiança nela e queria ver para onde ela ia ou queria perceber se estava a ser seguida pelo inimigo. Contemplou o Tamisa e depois virou-se e lançou uma olhadela ao Embankment. Neumann não tentou esconder a sua presença. Catherine virou-se novamente e continuou a andar.
Lembrou-se das intermináveis palestras de treino no campo secreto de Vogel na Baviera. Ele tinha-lhe chamado contravigilância, um agente a seguir outro para ter a certeza de que o agente não estava a ser seguido pelo inimigo. Perguntou-se por que razão teria Vogel decidido fazer isso naquela altura. Talvez Vogel quisesse confirmar que as informações que ela andava a receber eram fidedignas certificando-se de que ela não estava a ser seguida pelo inimigo. Bastou considerar sequer essa segunda explicação para que o estômago lhe ardesse de ansiedade. Neumann estava a segui-la porque Vogel suspeitava que ela estava sob vigilância do MI5.
Voltou a parar e a contemplar o rio, forçando-se a manter a calma. A pensar com clareza. Virou-se e olhou para o Embankment. Neumann continuava ali. Evitava intencionalmente o seu olhar, isso era óbvio. Punha-se a contemplar o rio ou a voltar-se para trás, tudo menos olhar para Catherine.
Ela virou-se outra vez e recomeçou a andar. Sentia o coração a ribombar no peito. Foi até à estação de metro de Blackfriars, entrou e comprou um bilhete para Victoria. Neumann foi atrás dela e fez o mesmo, só que o bilhete que comprou foi para a estação seguinte, South Kensington.
Ela avançou rapidamente para a plataforma. Neumann comprou um jornal e seguiu-a. Ela parou à espera do metro. Neumann parou a uns seis metros dela a ler o jornal. Quando o metro apareceu, Catherine aguardou que as portas se abrissem e depois entrou na carruagem. Neumann entrou nessa mesma carruagem, mas por uma porta diferente.
Ela sentou-se. Neumann deixou-se ficar de pé, na outra ponta da carruagem. Catherine não gostou da expressão que ele tinha na cara. Baixou os olhos, abriu a mala e espreitou lá para dentro - uma carteira cheia de dinheiro, uma faca de ponta e mola e uma Mauser carregada, com silenciador e munição extra. Fechou a mala e esperou para ver o que Neumann faria a seguir.
Durante duas horas, Neumann seguiu-a ao longo do West End, de Kensington a Chelsea, de Chelsea a Brompton, de Brompton a Belgravia, de Belgravia a Mayfair. Quando chegaram a Berkeley Square, estava convencido. Eles eram bons - muito bons mesmo -, mas o tempo e a paciência tinham acabado por lhes esgotar os recursos, forçando-os a cometerem um erro. Foi o homem do impermeável que seguia uns quinze metros atrás de si. Cinco minutos antes, Neumann tinha conseguido ver-lhe muito bem a cara. Era a mesma cara que tinha visto quase três horas antes, na Strand, quando tinha ficado com o rolo passado por Catherine, só que nessa altura o homem trazia um oleado verde e um gorro de lã.
Neumann sentiu-se desesperadamente sozinho. Tinha sobrevivido ao pior da guerra - Polónia, Rússia, Creta -, mas nenhuma das capacidades que o tinham ajudado a superar essas batalhas entraria ali em jogo. Pensou no homem atrás de si - esguio, de pele macilenta, provavelmente muito fraco. Neumann poderia matá-lo num instante se quisesse. Mas as velhas regras não se aplicavam àquele jogo. Não pedia pedir reforços por rádio, não podia contar com o apoio dos companheiros. Continuou a andar, surpreendido por se encontrar tão
calmo- Pensou: Andam a seguir-nos há horas, porque é que ainda não nos prenderam aos dois? Achou que sabia a resposta. Era evidente que queriam saber mais. Onde
iria ser entregue o rolo? Onde estava instalado Neumann? Havia mais agentes na rede? Desde que não lhes desse as respostas para essas perguntas, estariam a salvo. Era um trunfo muito fraco, mas, se fosse bem jogado, talvez lhes desse uma possibilidade de se escaparem.
Neumann acelerou o passo. Catherine, alguns metros à sua frente, virou para Bond Street. Parou para chamar um táxi. Neumann avançou mais depressa e depois começou
a correr ligeiramente. Gritou:
- Catherine! Meu Deus, há quanto tempo! Como é que tens passado?
Ela levantou os olhos, alarmada. Neumann pegou-lhe no braço.
- Precisamos de falar - disse Neumann. - Vamos procurar um sítio para beber um chá e pôr a conversa em dia.
A atitude repentina de Neumann foi recebida no centro de operações em West Halkin Street com o impacto de uma bomba de quinhentos quilos. Basil Boothby andava de um lado para o outro a falar ao telefone com o diretor-geral sob grande tensão nervosa. O diretor-geral estava em contacto com o Comité dos Vinte e com o staff do primeiro-ministro nas Salas de Guerra Subterrâneas. Vicary tinha-se envolvido num manto de silêncio e olhava fixamente para a parede, com as mãos fechadas por baixo do queixo. Boothby desligou o telefone com violência e anunciou:
- O Comité dos Vinte diz para os deixarmos à solta.
- Não gosto disso - afirmou Vicary, continuando a fitar a parede. - É evidente que detetaram a vigilância. Neste momento, estão para ali sentados a tentar perceber o que fazer.
- Não tem a certeza disso. Vicary levantou os olhos.
- Nunca tínhamos conseguido reparar num encontro entre ela e outro agente. E agora de repente está sentada num café em Mayfair a beber chá e a comer uma torrada com Rudolf?
- Só a temos sob vigilância há pouco tempo. Tanto quanto sabemos, ela e Rudolf até podem andar a encontrar-se regularmente.
- Há qualquer coisa que não bate certo. Acho que eles detetaram que os estão a vigar. E não só, acho que Rudolf já andava a tentar confirmar isso. Foi por isso que a seguiu depois do encontro na Strand.
- A decisão do Comité dos Vinte está tomada. Eles dizem para os deixarmos à solta, por isso deixamo-los à solta.
- Se eles detetaram a vigilância, não faz sentido deixá-los à solta. Rudolf não vai fazer a entrega e vai manter-se longe de todos os outros agentes da rede. Estar a segui-los agora não nos beneficia em nada. Acabou, Sir Basil.
- Então o que sugere?
- Que avancemos já. Prendê-los mal saiam do café. Boothby olhou para Vicary como se ele tivesse dito uma heresia.
- Estamos a ficar com medo agora, é, Alfred?
- O que quer dizer com isso?
- Quero dizer que a ideia foi sua, logo para início de conversa. Foi o Alfred que a concebeu, foi o Alfred que a vendeu ao primeiro-ministro. O diretor-geral concordou com ela e o Comité dos Vinte aprovou-a. Há várias semanas que um grupo de agentes anda a labutar dia e noite para providenciar o material para aquela pasta. E agora o Alfred quer acabar com tudo, assim sem mais nem menos - disse Sir Basil, estalando os dedos grossos tão alto que pareceu um tiro porque tem um palpite.
- É mais do que um palpite, Sir Basil. Leia o raio dos relatórios de vigilância. Está lá tudo.
Boothby tinha recomeçado a andar de um lado para o outro, com as mãos cruzadas atrás das costas e a cabeça ligeiramente levantada, como se estivesse a fazer um esforço para ouvir qualquer coisa irritante ao longe.
- Eles vão dizer: "Ele era bom nas mensagens por rádio, mas não tinha o sangue-frio necessário para lidar com agentes de carne e osso." É isso que vão dizer de si quando tudo isto terminar: "Na verdade, não foi surpresa. Afinal de contas, ele era um amador. Era só um geniozinho da universidade que deu o seu contributo durante a guerra e depois se esfumou quando tudo terminou. Era bom, muito bom, mas não teve tomates para jogar com a parada alta." E isso que
quer que digam de si? Porque, se for, o melhor é pegar no telefone e dizer ao diretor-geral que acha que devemos acabar já com isto tudo.
Vicary fitou Boothby. Boothby, controlador de agentes. Boothby, da serenidade aristocrática debaixo de fogo. Questionou-se por que i-azão estaria Boothby a tentar
envergonhá-lo para o convencer a ir em frente quando até um cego podia ver que tinham sido desmascarados.
- Acabou - sentenciou Vicary desanimada e monocordicamente. - Eles detetaram a vigilância. Estão ali sentados a planear o que fazer a seguir. Catherine Blake sabe que foi enganada e vai informar Kurt Vogel disso. Vogel vai concluir que a Mulberry é exatamente o contrário daquilo que lhe dissemos. E depois estamos mortos.
- Eles estão por todo o lado - disse Neumann. - O homem do impermeável, a rapariga à espera do autocarro, o homem a entrar na farmácia do outro lado da praça. Já usaram várias caras, várias combinações, várias roupas. Mas andam a seguir-nos desde que saímos da Strand.
Uma empregada trouxe chá. Catherine esperou que ela se fosse embora antes de falar:
- Foi Vogel que te mandou seguir-me?
- Foi.
- E imagino que não tenha explicado porquê, pois não? Neumann abanou a cabeça.
Catherine pegou na chávena de chá, com a mão a tremer. Serviu-se da outra mão para estabilizar a chávena e forçou-se a beber.
- O que te aconteceu à cara?
- Tive um problemazito na aldeia. Nada de grave. Catherine olhou para ele, desconfiada, e perguntou:
- Porque é que eles não nos prenderam?
- Pelas mais variadas razões. Provavelmente, sabem da tua existência há imenso tempo. E, provavelmente, também andam a seguir-te há imenso tempo. Se isso for verdade, então todas as informações que tens andado a receber do comandante Jordan são falsas, uma
cortina de fumo concebida pelos britânicos. E nós temos-lhes feito o favor de passar isso a Berlim.
Ela pousou a chávena. Lançou uma olhadela à rua e depois fitou Neumann, obrigando-se a não olhar para os vigias.
- Se Jordan estiver a trabalhar para os serviços secretos britânicos, podemos partir do princípio de que tudo o que ele tem na pasta é falso: informações que eles queriam que eu visse, informações com o intuito de induzir a Abwehr em erro em relação aos planos dos Aliados para a invasão. Vogel precisa de ser informado disso - disse ela, conseguindo sorrir. - É possível que aqueles sacanas nos tenham acabado de entregar o segredo da invasão.
- Suspeito que tenhas razão. Mas há um problema. Precisamos de dizer isso a Vogel pessoalmente. Temos de partir do princípio de que a via da embaixada portuguesa
se encontra neste momento comprometida. E também temos de partir do princípio de que não podemos utilizar os nossos rádios. Vogel acha que os velhos códigos da Abwehr foram decifrados. É por isso que se serve do rádio tão poucas vezes. Se transmitirmos a Vogel o que sabemos via rádio, os britânicos também vão ficar a saber.
Catherine acendeu um cigarro, com as mãos ainda a tremerem. Acima de tudo, sentia-se furiosa consigo própria. Durante anos, tinha feito tudo e mais alguma coisa para se assegurar de que não estava a ser vigiada pelo outro lado. E depois, quando aconteceu por fim, não tinha dado por isso. Perguntou:
- Como raio é que vamos conseguir sair de Londres?
- Temos umas quantas coisas que podemos utilizar a nosso favor. Número um, isto - disse Neumann, batendo ao de leve no bolso onde se encontrava o rolo. - Posso estar enganado, mas acho que nunca fui seguido. Vogel treinou-me bem e sou muito cuidadoso. Não me parece que saibam como é que entrego o filme ao português: onde é que isso é feito, se há alguma palavra-chave ou outro sinal qualquer que sirva de código. Além disso, também tenho a certeza de que não fui seguido até Hampton Sands. A aldeia é tão pequena que eu saberia se estivesse a ser vigiado. Não sabem onde é que estou alojado nem se ando a trabalhar com mais algum agente. O procedimento normal consiste em localizar todos os elementos de
uma rede e depois acabar com ela de uma só vez. É assim que a Gestapo lida com a Resistência em França e é assim que o MI5 o faria em Londres.
Tudo isso me parece lógico. O que sugeres?
- Vais estar com Jordan hoje à noite? .-Sim.
- A que horas?
- vou encontrar-me com ele às sete para jantar.
- Perfeito - exclamou Neumann. - O que eu quero que tu faças é o seguinte.
Neumann passou os cinco minutos seguintes a explicar pormenorizadamente o seu plano de fuga. Catherine ouviu com atenção, nunca tirando os olhos de cima dele, resistindo à imensa tentação de olhar para os vigias à espera do lado de fora do café. Após terminar, Neumann disse:
- Faças o que fizeres, não podes fazer nada fora do normal. Nada que os possa levar a suspeitar que sabes que estás a ser vigiada. Mantém-te em movimento até ser altura. Vai às compras, vai ao cinema, não fiques em casa. Enquanto eu não entregar este rolo, não corres perigo. Quando chegar a altura, vai para o teu apartamento e vai buscar o rádio. vou lá ter às cinco horas, às cinco em ponto, e entro pela porta de trás. Entendeste?
Catherine assentiu com a cabeça. Neumann disse:
- Só há um problema. Fazes ideia de onde é que eu posso deitar a mão a um carro e a gasolina?
Catherine não conseguiu evitar rir-se.
- Por acaso, até sei de um sítio. Mas não te aconselho a mencio-
nares o meu nome.
Neumann saiu do café primeiro. Vagueou por Mayfair durante meia hora, seguido pelo menos por dois homens - o oleado e o impermeável.
A chuva começou a cair com mais força e o vento tornou-se mais forte. Estava com frio, encharcado até aos ossos e cansado. Precisava de ir repousar para algum sítio,
algum sítio onde se pudesse aquecer durante um bocado, descansar os pés e manter os amigos
Impermeável e Oleado debaixo de olho. Dirigiu-se para Portman Square. Sentia-se mal por estar a envolvê-la, mas, quando tudo terminasse, iriam interrogá-la e concluir
que ela não sabia de nada.
Parou à porta da livraria e espreitou pela montra. Sarah estava em cima do escadote, com o cabelo escuro bem puxado para trás. Bateu ao de leve na montra para não
a assustar. Ela virou-se e o seu rosto iluminou-se num sorriso instantâneo. Pousou os livros e fez-lhe sinal entusiasticamente para entrar. Olhou para ele e exclamou:
- Meu Deus, está com um péssimo aspeto. O que lhe aconteceu à cara?
Neumann hesitou; apercebeu-se de que não tinha uma explicação para o penso na maçã do rosto. Murmurou qualquer coisa sobre uma queda durante o blackout e ela pareceu aceitar a história. Ajudou-o a tirar o casaco e pendurou-o em cima do aquecedor para que secasse. Ele ficou com ela duas horas, fazendo-lhe companhia, ajudando-a a dispor os livros novos nas prateleiras e tomando chá com ela no café do lado quando chegou a altura da sua pausa. Reparou que os antigos vigias se estavam a ir embora e a serem substituídos por novos. Reparou numa carrinha preta estacionada à esquina e partiu do princípio de que os homens na parte da frente pertenciam ao inimigo.
Às 16h30, quando a última luz do dia tinha desaparecido e o blackout se instalara, tirou o casaco de cima do aquecedor e vestiu-o. Ela fez uma cara triste, na brincadeira, e depois pegou-lhe na mão e levou-o para o armazém. Lá, encostou-se à parede, puxou-o contra si e beijou-o.
- Não sei absolutamente nada sobre si, James Porter, mas gosto muito de si. Está triste com qualquer coisa. Gosto disso.
Neumann foi-se embora da livraria, sabendo que nunca mais a voltaria a ver. De Portman Square, dirigiu-se para norte, para a estação de metro de Baker Street, seguido pelo menos por duas pessoas a pé, além da carrinha preta. Entrou na estação, comprou um bilhete para Charing Cross e apanhou o metro seguinte que lá passava. Em Charing Cross, mudou de metro e seguiu para a estação de Euston. com dois homens a perseguirem-no, atravessou o túnel que ligava a estação de metro ao terminal ferroviário. Neumann esperou quinze minutos numa bilheteira e comprou um bilhete para Liverpool.
OS passageiros já estavam a subir a bordo do comboio quando chegou à plataforma. A carruagem ia apinhada. Procurou um compartimento com um lugar vago. Encontrou por fim um, abriu a porta, enfrou e sentou-se.
Olhou para o relógio: faltavam três minutos para o comboio partir. Do lado de fora do compartimento, o corredor estava a encher-se rapidamente de passageiros. Não era invulgar alguns viajantes azarados passarem a viagem inteira em pé ou sentados no corredor. Neumann levantou-se e comprimiu-se todo para sair do compartimento, murmurando qualquer coisa sobre estar mal do estômago. Dirigiu-se para a casa de banho no final da carruagem. Bateu à porta. Não houve resposta. Quando bateu pela segunda vez, espreitou por cima do ombro; o homem que tinha entrado com ele no comboio não o conseguia ver devido aos outros passageiros no corredor.
Perfeito. O comboio começou a andar. Neumann esperou à porta da casa de banho enquanto o comboio ia ganhando velocidade lentamente. Para a maioria das pessoas, já ia demasiado depressa para se saltar em segurança. Neumann esperou mais uns segundos e, a seguir, avançou para a porta, abriu-a de rompante e saltou para a plataforma.
Aterrou suavemente, dando primeiro uns pulinhos e depois começando a andar rapidamente. Levantou os olhos a tempo de avistar um revisor de ar irritado a fechar a porta. Avançou rapidamente para a saída e embrenhou-se no blackout.
Euston Road estava apinhada com o corrupio do final da tarde. Chamou um táxi e entrou. Deu uma morada no East End ao taxista e instalou-se, preparando-se para a viagem.
QUARENTA E OITO
HAMPTON SANDS, NORFOLK
Mary Dogherty esperou sozinha no chalé. Tinha achado sempre que era um sitiozinho adorável - quente, cheio de luz, arejado -, mas naquele momento parecia-lhe claustrofóbico e exíguo como uma catacumba. Lá fora, a grande tempestade que tinha sido prevista abatera-se finalmente sobre a costa de Norfolk. A chuva fustigava as janelas, fazendo
as vidraças chocalharem. O vento soprava em rajadas incessantes, gemendo pelo beiral. Ouviu uma telha a raspar e a ceder no telhado.
Sean não estava lá, tinha ido a Hunstanton buscar Neumann à estação de comboios. Mary afastou-se da janela e recomeçou a andar de um lado para o outro. Fragmentos da conversa que tinham tido de manhã ecoavam-lhe na cabeça sem parar, como um disco riscado num gramofone: submarino para a França... ficar em Berlim uns tempos... passagem para outro país... voltar para -a Irlanda... ires lá ter comigo quando a guerra acabar...
Parecia um pesadelo - como se estivesse a ouvir a conversa de outra pessoa, a vê-la num filme ou a lê-la num livro. A ideia era ridícula: Sean Dogherty, agricultor desfavorecido na costa de Norfolk e simpatizante do IRA, ia apanhar um submarino para a Alemanha. Calculou que fosse o culminar lógico da espionagem feita por Sean. Tinha sido parva em esperar que tudo fosse regressar ao normal após a guerra terminar. Tinha-se iludido a si própria. Sean ia fugir e deixá-la para trás, a braços com as consequências. Que iriam fazer as autoridades?
Diz-lhes só que não sabias de nada, Mary. E o que aconteceria se não acreditassem nela? O que fariam então? Como poderia ela ficar na aldeia se toda a gente soubesse que Sean tinha sido um espião? Seria expulsa da costa de Norfolk. Seria escorraçada de todas as aldeias inglesas onde tentasse instalar-se. Teria de abandonar Hampton Sands.
Teria de abandonar Jenny Colville. Teria de voltar para a Irlanda, para a aldeia desoladora de onde tinha fugido trinta anos antes. Ainda lá tinha família, família
que a podia acolher. A ideia era absolutamente aterradora, mas não teria outra escolha - não quando toda a gente ficasse a saber que Sean tinha espiado para os alemães.
Começou a chorar. Pensou: Raios te partam, Sean Dogherty! Como é que pudeste ser assim tão tonto?
Mary voltou para a janela. No trilho, na direção da aldeia, viu um ponto de luz a oscilar sob a carga de água. Passado um momento, viu o brilho de um oleado molhado e uma silhueta frágil numa bicicleta, com o corpo dobrado para a frente, contra o vento, os cotovelos para fora e os joelhos em grande atividade. Era Jenny Colville. Saiu de cima da bicicleta junto ao portão e empurrou-a pelo trilho. Mary abriu-lhe a porta. O vento soprava em rajadas, atirando a chuva para dentro do chalé. Mary puxou Jenny para dentro e ajudou-a a tirar o casaco e o chapéu molhados.
- Meu Deus, Jenny, o que é que andas a fazer na rua com um tempo destes?
- Oh, Mary, é maravilhoso. Tão ventoso. Tão lindo.
- Está visto que perdeste o juízo, rapariga. Senta-te ao pé da lareira. vou fazer-te um chá quente.
Jenny aqueceu-se à frente da lenha que ardia na lareira.
- Onde está o James? - perguntou.
- Não está cá - gritou Mary da cozinha. - Foi com Sean a algum lado.
- Oh - exclamou Jenny, com Mary a perceber a desilusão na voz dela. - E vai demorar muito tempo?
Mary parou o que estava a fazer e voltou para a sala de estar. Olhou para Jenny e perguntou:
- Porque estás assim tão interessada no James de repente?
- Só o queria ver. Dizer olá. Passar algum tempo com ele. Só isso.
- Só isso? Mas que raio é que tu tens, Jenny?
- É só que gosto dele, Mary. Gosto muito dele. E ele gosta de mim.
- Tu gostas dele e ele gosta de ti? E onde foste buscar uma ideia dessas?
- Eu sei, Mary, acredita. Não me perguntes como é que sei, mas sei.
Mary agarrou-a pelos ombros.
- Presta atenção, Jenny - disse ela, sacudindo Jenny uma vez.
- Estás a prestar atenção?
- Sim, Mary! Estás a magoar-me!
- Afasta-te dele. Esquece-o. Ele não é para ti. Jenny começou a chorar.
- Não o posso esquecer, Mary. Amo-o. E ele ama-me. Eu sei que sim.
- Jenny, ele não te ama. Não me peças para te explicar tudo agora porque não posso, meu amor. Ele é um homem bondoso, mas não é o que parece ser. Esquece isso. Esquece-o! Tens de confiar em mim, minha pequenina. Ele não é para ti.
Jenny conseguiu soltar-se de Mary com violência, recuou e limpou as lágrimas da cara.
- Ele é para mim, Mary. Eu amo-o. Estás aqui presa com o Sean há tanto tempo que já te esqueceste do que é o amor.
A seguir, pegou no casaco e saiu a correr pela porta fora, fechando-a com força. Mary precipitou-se para a janela e ficou a ver Jenny a pedalar pelo meio da tempestade.
A chuva batia no rosto de Jenny enquanto ela seguia na bicicleta pelo trilho ondulante em direção à aldeia. Tinha dito a si mesma que não iria voltar a chorar, mas não conseguia cumprir a palavra. As lágrimas misturaram-se com a chuva e escorreram-lhe pela cara. A aldeia tinha as persianas todas bem fechadas, a loja e o pub estavam fechados e os cortinados opacos dos chalés encontravam-se corridos. Tinha a lanterna no cesto, com o seu fraco feixe amarelo apontado para a escuridão total. A luz quase não dava para ver nada. Atravessou a aldeia e começou a avançar em direção ao seu chalé.
Estava furiosa com Mary. Como se atrevia a intrometer-se entre ela e James? E o que teria querido dizer com aquele comentário Ele não é o que parece ser? E também
estava zangada consigo própria. Sentia uns remorsos terríveis por ter lançado um insulto a Mary quando saíra a correr pela porta fora. Nunca tinham discutido. De
manhã, quando as coisas já tivessem acalmado, Jenny iria voltar lá para pedir desculpa.
Conseguiu distinguir ao longe o contorno do seu chalé, recortado no céu. Saiu de cima da bicicleta junto ao portão, empurrou-a pelo trilho e encostou-a ao chalé.
O pai apareceu lá fora e parou à frente da porta, limpando as mãos a um trapo. Ainda tinha a cara inchada da luta. Jenny tentou passar por ele, mas o pai estendeu
o braço e agarrou-lhe o braço com toda a força.
- Estiveste com ele outra vez?
- Não, papá! - gritou ela, cheia de dores. - Por favor, estás a magoar-me o braço!
Ele levantou a outra mão para lhe bater, com a horrível cara inchada a contorcer-se de raiva.
- Diz-me a verdade, Jenny! Estiveste com ele outra vez?
- Não, juro! - gritou ela, erguendo os braços à frente da cara para se proteger do golpe que esperava que surgisse a qualquer momento. - Por favor, papá, não me batas! Estou a dizer-te a verdade!
Martin Colville largou-a.
- Vai lá para dentro e faz-me qualquer coisa para eu comer.
Ela quis gritar-lhe: Faz tu o raio do teu jantar, para variar! Mas sabia onde isso levaria. Olhou para a cara dele e, por um instante, deu por si a desejar que James o tivesse matado. Esta é a última vez, pensou. Esta é mesmo a última vez. Entrou em casa, despiu o casaco encharcado, pendurou-o na parede da cozinha e começou a tratar-lhe do jantar.
QUARENTA E NOVE
LONDRES
Clive Roach soube que estava em apuros mal Rudolf entrou na carruagem apinhada de gente. Roach não teria problemas desde que o agente se deixasse ficar sentado no compartimento. Mas se o agente saísse do compartimento para ir à casa de banho, à carruagem-restaurante ou a outra qualquer, Roach ficaria em apuros. Os corredores estavam entupidos com viajantes, uns em pé e outros sentados, a tentarem em vão dormir. Era uma provação uma pessoa deslocar-se pelo comboio; tinha de se comprimir e empurrar os outros passageiros e estar constantemente a dizer com licença e Peço desculpa. Tentar seguir alguém sem se ser detetado seria difícil - provavelmente, impossível, se o agente fosse bom. E tudo o que Roach tinha visto até então lhe indicava que Rudolf era bom.
Roach ficou desconfiado quando Rudolf, agarrado ao estômago, saiu do compartimento com o comboio ainda parado na plataforma em Euston e rompeu pelo corredor apinhado. Rudolf era pequeno, não tinha mais do que um metro e sessenta e cinco, e a cabeça dele desapareceu rapidamente no mar de passageiros. Roach avançou uns quantos passos a custo, recebendo em troca os protestos e os gemidos dos outros passageiros. Sentia-se relutante em aproximar-se demasiado; Rudolf tinha voltado para trás várias vezes nesse dia e Roach receava que ele lhe tivesse visto a cara. O corredor estava mal iluminado por causa do regulamento do blackout e já se encontrava envolto num manto de fumo de cigarro que mais parecia nevoeiro
cerrado. Roach manteve-se nas sombras e ficou a ver Rudolf bater à porta da casa de banho duas vezes. Outro passageiro empurrou-o para passar, obstruindo-lhe a visão
por alguns segundos apenas. Quando voltou a olhar, já Rudolf tinha desaparecido.
Roach não saiu de onde se encontrava durante três minutos, observando a porta da casa de banho. Outro homem aproximou-se, bateu à porta e, a seguir, entrou na casa
de banho e fechou-a.
Começaram a tocar campainhas de alarme na cabeça de Roach.
Avançou aos empurrões pelo meio do emaranhado de passageiros no corredor, parou à frente da porta da casa de banho e começou a bater nela com toda a força.
- Espere pela sua vez, como toda a gente - disse a voz do outro lado.
- Abra a porta, emergência policial.
O homem abriu a porta uns segundos mais tarde, ainda a apertar a braguilha. Roach espreitou lá para dentro para ter a certeza de que Rudolf não estava lá. Maldição! Abriu de rompante a porta que dava para a carruagem seguinte e entrou nela. Tal como a anterior, estava às escuras, cheia de fumo e desesperadamente apinhada de passageiros. Naquele momento, seria impossível descobrir Rudolf sem revirar o comboio carruagem atrás de carruagem, compartimento atrás de compartimento.
Pensou: Como é que ele desapareceu tão depressa?
Regressou apressadamente para a primeira carruagem e deu com o revisor, um velho com óculos de aros de aço e um pé aleijado. Roach sacou da fotografia de vigilância de Rudolf e meteu-a à frente da cara do revisor.
- Viu este homem?
- Um sujeito pequeno?
- Sim - confirmou Roach, cada vez mais desanimando e pensando: Maldição! Maldição!
- Saltou do comboio quando estávamos a sair de Euston. Foi uma sorte não ter partido o raio da perna.
- Jesus! Porque não disse nada?
Apercebeu-se do ridículo que devia ter soado aquele comentário. Obrigou-se a falar com mais calma:
- Qual é a primeira paragem deste comboio?
- Watford.
- Quando?
- Daqui a uma meia hora.
- Demasiado tempo. Tenho de sair já deste comboio.
Roach esticou-se, agarrou o travão de emergência e puxou. O comboio abrandou de imediato quando o travão foi acionado e começou a parar.
O velho revisor olhou para Roach, pestanejando por trás dos óculos, e perguntou:
- O senhor não é um polícia normal, pois não?
Roach não disse nada e o comboio parou por completo. Abriu a porta de rompante, desceu para a linha e desapareceu pela escuridão dentro.
Neumann pagou ao taxista quando se encontrava a pouca distância do armazém dos Pope e, a seguir, fez o resto do caminho a pé. Passou a Mauser da cintura das calças para o bolso da frente do casacão e depois levantou a gola para se proteger da chuva forte. O primeiro ato tinha corrido sem problemas. O logro a bordo do comboio funcionara exatamente como esperava. Neumann tinha a certeza de não ter sido seguido após sair da estação de Euston. Isso queria dizer uma coisa: o Impermeável, o homem que o tinha seguido até ao comboio, continuava quase de certeza a bordo dele e a sair de Londres, a caminho de Liverpool. O vigia não era um idiota. Mais tarde ou mais cedo, acabaria por se aperceber de que Neumann não tinha voltado para o compartimento e efetuaria uma busca. Era possível que fizesse algumas perguntas. A fuga de Neumann não passara despercebida; o revisor tinha-o visto saltar do comboio. Quando o vigia percebesse que Neumann já não se encontrava no comboio, sairia na paragem seguinte e telefonaria aos superiores em Londres. Neumann deu-se conta de que tinha uma janela de oportunidade muito limitada. Tinha de atuar depressa.
O armazém estava às escuras e parecia deserto. Neumann tocou à campainha e aguardou. Não houve resposta. Voltou a tocar à campainha e dessa vez ouviu o ruído de passos do outro lado. Passado
um momento, a porta foi aberta por um gigante de cabelo preto e casaco de cabedal.
- O que quer?
- Gostaria de falar com o senhor Pope, por favor - respondeu Neumann educadamente. - Preciso de alguns artigos e disseram-me que este era, sem dúvida, o sítio indicado.
- O senhor Pope já cá não está e nós fechámos, por isso desapareça.
O gigante começou a fechar a porta. Neumann enfiou o pé para o impedir.
- Peço desculpa. É realmente muito urgente. Talvez o senhor me possa ajudar.
O gigante olhou para Neumann com uma expressão de perplexidade. Parecia estar a tentar conciliar o sotaque de colégio privado com o casacão e o penso na cara.
- Estou a ver que não me ouviu da primeira vez - respondeu ele. - Fechámos. Para sempre - atirou, agarrando em Neumann pelo ombro. - Agora, ponha-se a andar.
Neumann deu um murro na maçã de Adão do gigante e, a seguir, sacou da Mauser e deu-lhe um tiro no pé. O homem caiu redondo no chão, uivando de dor ou esforçando-se por respirar. Neumann entrou e fechou o portão. O armazém era tal e qual como Catherine o tinha descrito: carrinhas, carros, motas, pilhas de comida do mercado negro e vários bidões de gasolina.
Neumann debruçou-se e disse:
- Se te mexeres, dou-te outro tiro e não vai ser no pé. Estás a entender?
O gigante grunhiu.
Neumann escolheu uma carrinha preta, abriu a porta e ligou o motor. Agarrou em dois bidões de gasolina e enfiou-os na parte de trás da carrinha. Pensando bem, era uma viagem muito longa. Pegou noutros dois e enfiou-os também lá. Entrou para a carrinha, levou-a até à entrada do armazém e, a seguir, saiu e abriu o portão principal.
Antes de se ir embora, ajoelhou-se ao lado do homem que tinha ferido e disse-lhe:
- Se fosse a ti, ia já para um hospital.
O homem olhou para Neumann, mais confuso do que nunca.
- Mas que raio, quem és tu, pá?
Neumann sorriu, sabendo que a verdade soaria tão absurda que o homem nunca acreditaria nela.
- Sou um espião alemão que anda a fugir do MI5.
- Pois, e eu sou o raio do Adolf Hitler.
Neumann entrou para a carrinha e arrancou a grande velocidade.
Harry Dalton tirou as proteções dos faróis e atravessou Londres perigosamente depressa, em direção a oeste. A divisão dos Transportes tinha-lhe disponibilizado um
bom motorista, capaz de andar a alta velocidade, mas Harry quis ser ele a guiar. Ia serpenteando pelo meio dos carros, a buzinar sem parar. Vicary ia sentado ao seu lado, à frente, agarrando com força e nervosamente o painel de instrumentos. Os limpa-para-brisas esforçavam-se em vão por afastar a chuva. Ao virar para Cromwell Road, Harry acelerou tanto que a traseira do carro derrapou no alcatrão escorregadio. Continuou a serpentear entre o trânsito e depois virou para sul, para Earl's Court. Entrou numa pequena rua secundária e, a seguir, avançou a toda a velocidade por uma ruela estreita, guinando uma vez para evitar um caixote do lixo e depois outra para se esquivar de um gato. Travou a fundo por trás de um prédio de apartamentos e fez o carro parar abruptamente.
Harry e Vicary saíram do carro e entraram no prédio pela porta de serviço, nas traseiras, e subiram as escadas a correr, em direção ao posto de vigilância no quinto andar. Ignorando a dor que lhe rasgava o joelho como uma faca, Vicary acompanhou o ritmo de Harry.
Pensou: Se ao menos Boothby me tivesse deixado prendê-los há umas horas, não estaríamos neste sarilho.
Era um verdadeiro desastre.
O agente com o nome de código Rudolf tinha acabado de saltar de um comboio na estação de Euston e desaparecido na cidade. Vicary tinha de partir do princípio de que ele estava naquele momento a tentar fugir do país. Não tinha outra escolha a não ser prender
Catherine Blake; precisava dela detida e assustada de morte. Nesse caso, talvez lhes dissesse para onde fora Rudolf e como planeava escapar, se havia ou não outros agentes envolvidos e onde guardava ele o rádio.
Vicary não estava otimista. Tudo o que pressentia em relação àquela mulher lhe dizia que ela não iria colaborar, mesmo enfrentando uma execução. Tudo o que precisava de fazer era aguentar o tempo necessário para Rudolf poder escapar. Se fizesse isso, a Abwehr ficaria na posse de provas que indiciavam que os serviços secretos britânicos estavam empenhados num gigantesco logro. As consequências seriam demasiado tenebrosas para considerar a hipótese. Todo o trabalho que dedicara à Operação Fortitude seria desperdiçado. Os alemães deduziriam que os Aliados desembarcariam na Normandia. A invasão teria de ser adiada e planeada de novo; caso contrário, terminaria numa catástrofe sangrenta. A ocupação da Europa Ocidental por Hitler, com mão de ferro, prosseguiria. Morreria mais um número incontável de pessoas. E tudo porque a operação de Vicary se tinha desmoronado. Naquele momento, tinham uma hipótese apenas: prendê-la, obrigá-la a falar e deter Rudolf antes que ele pudesse fugir do país ou utilizar o rádio.
Harry abriu a porta do apartamento que servia de posto de vigilância e entraram ambos. As cortinas estavam abertas, deixando ver a rua e a sala às escuras. Vicary esforçou-se por distinguir os vultos que se encontravam na sala, lembrando pelas suas poses estátuas num jardim às escuras: dois vigias com olhos congestionados, imóveis à janela; meia dúzia de homens tensos da Divisão Especial, encostados a uma parede. O agente da Divisão Especial de posição superior chamava-se Cárter. Era grande e de rosto rude, com um pescoço grosso e pele bexigosa. Tinha um cigarro, apagado por motivos de segurança, a pender-lhe do canto da boca grande. Quando Harry apresentou Vicary, apertou-lhe a mão e, a seguir, levou-o para a janela para lhe explicar a disposição das forças ao seu comando. O cigarro apagado ia soltando cinza enquanto ele falava.
- Vamos entrar pela porta da frente - disse Cárter, com um ligeiro sotaque do norte de Inglaterra. - Quando o fizermos, vamos
fechar a rua numa e noutra ponta e dois homens vão vigiar as traseiras do prédio. Assim que entrarmos lá dentro, ela não vai poder fugir para lado nenhum.
- É extremamente importante que a capturem viva - sublinhou Vicary. - Não nos serve absolutamente de nada morta.
- Harry diz que ela tem jeito para as armas.
- É verdade. Temos razões para acreditar que ela tem uma pistola e está disposta a utilizá-la.
- Vamos capturá-la tão depressa que ela nem vai perceber o que lhe aconteceu. Estamos prontos assim que nos mandar avançar.
Vicary afastou-se da janela e atravessou a sala, dirigindo-se para o telefone. Marcou o número do departamento e esperou que a telefonista passasse a chamada para o gabinete de Boothby.
- Os homens da Divisão Especial estão prontos para avançar assim que lhes dermos essa ordem - anunciou Vicary quando a voz de Boothby se ouviu do outro lado da linha. -Já temos autorização?
- Não. O Comité dos Vinte ainda está a deliberar. E não podemos avançar até eles aprovarem isso. Agora, a bola está do lado deles.
- Meu Deus! Se calhar, alguém devia explicar ao Comité dos Vinte que tempo é coisa que não temos em grande abundância nesta altura. Para termos sequer uma hipótese mínima de apanhar Rudolf, precisamos de saber para onde é que ele vai.
- Eu compreendo o seu dilema - retorquiu Boothby. Vicary pensou: O seu dilema. O meu dilema, Sir Basil? Atirou:
- E quando é que eles vão decidir?
- A qualquer momento. Ligo-lhe logo a seguir.
Vicary desligou e começou a percorrer a sala escura. Virou-se para um dos vigias e perguntou:
- Há quanto tempo é que ela já ali está?
- Há coisa de um quarto de hora.
- Um quarto de hora? Porque é que ela ficou tanto tempo na rua? Não estou a gostar disto.
O telefone tocou. Vicary lançou-se para o atender e levou o auscultador ao ouvido. Basil Boothby disse:
- Temos a aprovação do Comité dos Vinte. Prenda-a, Alfred. E boa sorte.
Vicary bateu com o auscultador com força.
- Luz verde, cavalheiros - afirmou, voltando-se para Harry. Viva. Precisamos dela viva.
Harry assentiu com a cabeça, de cara fechada, e depois conduziu os homens da Divisão Especial para fora do apartamento, em fila indiana. Vicary ouviu o ruído dos seus passos ao descerem as escadas a desaparecer gradualmente. A seguir, passado um momento, viu-Ihes as cabeças quando saíram do prédio e começaram a atravessar a rua em direção ao apartamento de Catherine Blake.
Horst Neumann estacionou a carrinha numa pequena e sossegada rua secundária, ao virar da esquina do apartamento de Catherine. Saiu e fechou a porta sem fazer barulho. Seguiu rapidamente pelo passeio, com as mãos bem enfiadas nos bolsos, uma delas agarrada à coronha da Mauser.
A rua estava completamente às escuras. Chegou ao monte de destroços que tinha sido em tempos a fila de casas por trás do apartamento. Foi avançando às apalpadelas pelo meio de madeira partida, tijolos desfeitos e canos retorcidos. Os destroços terminavam numa parede com quase dois metros de altura. Do lado de lá da parede,
encontrava-se o jardim que ficava nas traseiras da casa - Neumann já o tinha visto da janela do quarto dela. Experimentou o portão; estava trancado. Teria de o abrir
pelo outro lado.
Colocou as mãos no cimo da parede, fez força com as pernas e puxou com os braços. Já em cima da parede, passou uma perna para o outro lado e rodou o corpo. Ficou assim pendurado durante alguns segundos, a olhar para baixo. O chão era invisível na escuridão. Podia cair em cima de qualquer coisa - num cão que estivesse a dormir ou numa fila de caixotes do lixo, que fariam uma barulheira terrível se aterrasse em cima deles. Pôs a hipótese de acender a lanterna por um segundo, mas isso poderia atrair atenções. Saltou da parede e caiu pela escuridão abaixo. Não havia cães nem caixotes do lixo, só um arbusto espinhoso qualquer que se espetou na sua cara
e no casaco.
Neumann libertou-se dos espinhos do arbusto e depois destrancou o portão. Atravessou o jardim até à porta das traseiras. Experimentou o trinco - estava trancada. A porta tinha uma janela. Enfiou a mão no bolso do casaco, tirou a Mauser e serviu-se dela para partir a vidraça no canto inferior esquerdo. O barulho foi surpreendentemente alto. Enfiou a mão pela vidraça partida, destrancou a porta e, a seguir, subiu as escadas.
Chegou à porta de Catherine e bateu ao de leve.
Do lado de lá da porta, ouviu a voz dela a perguntar:
- Quem é?
- Sou eu.
Ela abriu a porta. Neumann entrou e fechou-a. Catherine usava calças, uma camisola grossa e um casaco de cabedal. A mala rádio estava encostada à porta. Neumann
olhou para a cara dela. Estava pálida.
- Pode ser imaginação minha - disse ela -, mas acho que se passa qualquer coisa lá em baixo. Vi uns homens a rondar a rua e dentro de carros estacionados.
O apartamento estava às escuras, com uma única luz acesa na sala de estar. Neumann atravessou a sala rapidamente, em poucas passadas, e desligou-a. Foi até à janela e levantou a ponta do cortinado opaco, espreitando para a rua. O trânsito noturno circulava lá em baixo, lançando a luz necessária para que ele visse quatro homens a saírem em grande velocidade do prédio em frente, do outro lado da rua, e a avançarem em direção a eles.
Neumann virou-se e arrancou a Mauser do bolso.
- Eles vêm aí. Pega no rádio e segue-me lá para baixo. Já!
Harry Dalton abriu de rompante a porta da frente do prédio e entrou, com os homens da Divisão Especial logo atrás. Acendeu a luz do vestíbulo a tempo de ver Catherine Blake fugir pela porta das traseiras, com a mala do rádio a balançar-lhe no braço.
Horst Neumann tinha aberto a porta das traseiras a pontapé e estava a correr pelo jardim quando ouviu o grito vindo da casa. Avançou a toda a velocidade pela cortina de escuridão, com a Mauser à sua frente e a mão esticada. O portão abriu-se de rompante e uma figura surgiu lá, em silhueta de pistola erguida. Gritou a Neumann para parar. Neumann continuou a correr, disparando duas vezes. O primeiro tiro atingiu o homem no ombro, fazendo-o rodar. O segundo desfez-Ihe a espinha, matando-o de imediato.
Um segundo homem ocupou o lugar dele e tentou disparar. Neumann apertou o gatilho. A Mauser deu um salto na sua mão, sem fazer praticamente barulho, apenas o clique surdo do mecanismo de disparo. A cabeça do homem explodiu.
Neumann atravessou o portão a correr, passando por cima dos corpos e espreitando no meio do blackout. Não havia mais ninguém atrás da casa. Voltou-se e viu Catherine, a poucos metros dele, a correr com o rádio. Estavam três homens a persegui-la. Neumann ergueu a pistola e disparou para a escuridão. Ouviu dois homens a gritarem. Catherine continuou a correr.
Ele virou-se e começou a atravessar os destroços em direção à carrinha.
Harry sentiu as balas passarem-lhe rente à cabeça. Ouviu os gritos dos dois homens que iam atrás de si. Ela estava mesmo à sua frente. Mergulhou na escuridão, com os braços esticados para a frente. Apercebeu-se de que se encontrava numa situação de clara desvantagem; estava desarmado e sozinho. Podia parar e procurar uma das armas dos homens da Divisão Especial, para depois os perseguir e tentar alvejá-los aos dois. Mas o mais certo seria Rudolf matá-lo algures pelo caminho. Podia parar, dar meia-volta, voltar para dentro do prédio e avisar o posto de vigilância. Mas, por essa altura, já Catherine Blake e Rudolf teriam desaparecido há muito, eles seriam obrigados a recomeçar a maldita busca desde o início, os espiões utilizariam o rádio para comunicar a Berlim o que tinham descoberto e a porra da guerra estaria perdida, raios partam!
O rádio!
Pensou: Posso já não ser capaz de os parar, mas posso cortar-lhes o acesso a Berlim durante algum tempo.
Harry saltou no meio da escuridão, soltando um grito profundo, e agarrou a mala com as duas mãos. Tentou arrancá-la a Catherine, mas ela virou-se e puxou pela mala
com uma força surpreendente. Ele levantou os olhos e viu pela primeira vez a cara dela: vermelha, contorcida de medo e feia de raiva. Tentou arrancar-lhe a mala
das mãos novamente, mas não a conseguiu soltar; Catherine tinha os dedos bem cerrados à volta da pega, como um torno. Ela gritou pelo nome verdadeiro de Rudolf.
Soou a Wurst.
Foi então que Harry ouviu um clique. Já o tinha ouvido nas ruas da zona leste de Londres, antes da guerra, o som da lâmina de uma faca de ponta e mola a ser aberta
com um estalido. Viu o braço dela erguer-se e depois a baixar-se num arco violento em direção à sua garganta. Se ele levantasse o braço, poderia desviar o golpe.
Mas isso significaria que ela seria capaz de arrancar o rádio das mãos dele. Continuou a agarrá-lo e tentou esquivar-se da faca rodando a cabeça. A ponta da lâmina
acertou-lhe de lado na cara. Sentiu a carne rasgar-se. A dor surgiu passado um instante - penetrante, como se lhe tivessem atirado metal derretido à cara. Harry gritou, mas não largou a mala. Ela ergueu o braço novamente, enterrando-lhe desta feita a ponta da faca no antebraço. Harry berrou outra vez de dor, com os dentes cerrados, mas as mãos continuaram agarradas à mala. Era como se já estivessem a agir por sua própria vontade. Nada, nenhuma dor no mundo, seria capaz de as obrigar a soltarem-se.
Ela largou a mala e disse:
- É um homem corajoso, se está disposto a morrer por um rádio.
A seguir, virou-se e desapareceu no meio da escuridão.
Harry ficou deitado no chão molhado. Quando ela já estava longe dali, levou a mão à cara e ficou com vontade de vomitar quando sentiu o osso quente do próprio maxilar. Estava a perder os sentidos; a dor começava a esbater-se. Ouviu os homens da Divisão Especial que tinham sido feridos a gemerem ali perto. Sentiu a chuva bater-lhe na cara. Fechou os olhos. Sentiu alguém a encostar-lhe qualquer coisa à cara. Quando abriu os olhos, viu Alfred Vicary debruçar-se sobre ele.
- Disse-lhe para ter cuidado, Harry.
- Ela levou o rádio?
- Não. O Harry impediu-a de levar o rádio.
- E eles escaparam-se?
- Sim. Mas estamos a persegui-los.
Foi então que a dor se apoderou de Harry muito repentinamente. Começou a tremer e pareceu-lhe que ia vomitar. A seguir, o rosto de Vicary transformou-se em água e Harry perdeu os sentidos.
CINQUENTA LONDRES
Uma hora após o desastre em EarPs Court, Alfred Vicary já tinha orquestrado a maior caça ao homem da história do Reino Unido. Todas as esquadras de polícia do país - de Penzance a Dover, de Portsmouth a Inverness - receberam uma descrição dos espiões fugitivos. Para as cidades, povoações e aldeias perto de Londres, Vicary enviou fotografias por estafetas de mota. Foi dito à maioria dos polícias envolvidos na busca que os fugitivos eram suspeitos em quatro homicídios ocorridos já em 1938. Um punhado de agentes com posições de grande importância foi discretamente informado de que se tratava de um assunto de segurança da máxima importância - tão importante que o primeiro-ministro se encontrava a acompanhar a evolução da caçada pessoalmente.
A Polícia Metropolitana de Londres respondeu com velocidade extraordinária e, quinze minutos depois do primeiro telefonema de Vicary, já tinham sido estabelecidas barricadas em todas as principais artérias que saíam da cidade. Vicary tentou abranger todos os percursos de fuga possíveis. O MI5 e a polícia ferroviária rondavam as estações mais importantes. Os operadores dos ferríes irlandeses também receberam uma descrição dos suspeitos.
A seguir, Vicary contactou a BBC e pediu para falar com o chefe de redação que se encontrava em serviço. No noticiário das nove horas, a notícia de abertura da BBC foi um tiroteio em Earl's Court, que tinha deixado dois polícias mortos e três feridos. A notícia incluía
uma descrição de Catherine Blake e de Rudolf e concluía com um número de telefone para onde as pessoas podiam ligar para prestarem informações. Passados cinco minutos, os telefones começaram a tocar. As datilógrafas transcreveram todas as chamadas bem-intencionadas e transmitiram-nas a Vicary. Este atirou a maior parte logo para o cesto do lixo. Investigou algumas. Nenhuma deu qualquer resultado.
A seguir, voltou a atenção para os percursos de fuga que apenas um espião utilizaria. Contactou a RAF e pediu-lhes para estarem atentos a aviões leves. Contactou o Almirantado e pediu-lhes para terem atenção a eventuais submarinos que se aproximassem da costa. Contactou a Polícia Marítima e pediu-lhes para ficarem atentos a pequenas embarcações que seguissem para o mar. Telefonou para os monitores das estações de recolha de comunicações e pediu-lhes para ouvirem atentamente as transmissões radiofónicas e informarem se
fossem suspeitas.
Vicary levantou-se da secretária e saiu do gabinete pela primeira vez em duas horas. O centro de operações em West Halkin Street tinha sido abandonado e a sua equipa já regressara lentamente a St. James's Street. Estavam sentados na área comum à saída do gabinete, como sobreviventes aturdidos de um desastre natural, molhados, exaustos, derrotados. Clive Roach estava sentado sozinho, cabisbaixo e de mãos entrelaçadas. De quando em quando, um dos vigias pousava a mão no ombro dele, murmurava-lhe ao ouvido palavras encoraj adoras e seguia o seu caminho em silêncio. Peter Jordan andava de um lado para o outro. Tony Blair estava a fitá-lo com um olhar assassino. O único som que se ouvia era o dos teleimpressores e o da tagarelice das raparigas ao telefone.
O silêncio foi interrompido por uns minutos, às nove horas, quando Harry Dalton entrou na sala com a cara e o braço enfaixados. Toda a gente se levantou para se amontoar à volta dele - Muito bem, Harry, meu velho... mereces uma medalha... mantiveste-nos à tona, Harry... estava tudo acabado se não fosses tu...
Vicary puxou-o para dentro do gabinete.
- Não devia estar deitado a descansar?
- Sim, mas prefiro estar aqui.
- E como estão as dores?
- Podiam estar piores. Deram-me umas coisas para ajudar.
- Ainda tem dúvidas de qual seria a sua reação debaixo de fogo, no campo de batalha?
Harry conseguiu esboçar um meio sorriso, baixou os olhos e abanou a cabeça.
- Já houve algum avanço? - perguntou, mudando rapidamente de assunto.
Vicary abanou a cabeça.
- O que fez?
Vicary pô-lo a par das medidas tomadas.
- Foi uma jogada arrojada da parte de Rudolf ter ido buscá-la daquela maneira, sacando-a mesmo debaixo do nosso nariz. Ele tem coragem, lá isso não há que negar. E como é que Boothby está a reagir?
- Tão bem quanto seria de esperar. Está lá em cima com o diretor-geral. Provavelmente, a planear a minha execução. Temos uma linha aberta para as Salas de Guerra Subterrâneas e o primeiro-ministro. O Velho está a receber atualizações a cada minuto. Quem me dera ter qualquer coisa para lhe dizer.
- Não deixou escapar nenhuma opção possível. Agora, só lhe resta sentar-se e esperar que haja algum avanço. Eles têm de se mexer para algum lado. E, quando o fizerem, vamos logo saber.
- Quem me dera partilhar do seu otimismo.
Harry fez um esgar de dor e pareceu subitamente muito cansado.
- vou deitar-me um bocado. Começou a sair do gabinete devagar. Vicary perguntou:
- Grace Clarendon está de serviço hoje à noite?
- Sim, acho que sim.
O telefone tocou. Basil Boothby disse:
- Venha cá acima imediatamente, Alfred.
A luz verde estava acesa sobre a porta do gabinete de Boothby. Vicary entrou e deu com Sir Basil a andar de um lado para o outro e a fumar sem parar. Tinha tirado o casaco; o colete estava desabotoado e o nó da gravata folgado. com um ar irritado, fez sinal a Vicary para se sentar numa cadeira e disse:
- Sente-se, Alfred. Bem, hoje à noite as luzes estão acesas por toda a Londres: Grosvenor Square, o quartel-general pessoal de gisenhower em Hayes Lodge, as Salas de Guerra Subterrâneas. E querem todos saber uma coisa. Será que Hitler sabe que é na Normandia? Será que a invasão está acabada mesmo antes de começar?
- Evidentemente, ainda não temos forma de saber isso.
- Meu Deus! - exclamou Boothby, esmagando o cigarro e acendendo outro logo de seguida. - Dois agentes da Divisão Especial mortos, outros três feridos. O que nos valeu foi o Harry.
- Ele está lá em baixo. Tenho a certeza de que gostaria de ouvir isso da sua boca.
- Não temos tempo para conversas para animar as hostes, Alfred. Precisamos de os parar e de fazer isso depressa. Não preciso de lhe explicar o que está em jogo.
- Pois não, Sir Basil, não precisa.
- O primeiro-ministro quer atualizações de meia em meia hora. Há alguma coisa que eu lhe possa dizer?
- Infelizmente, não. Não deixámos escapar nenhum percurso de fuga possível. Quem me dera poder dizer com toda a segurança que os vamos apanhar, mas acho que seria pouco prudente subestimá-los. Já provaram isso vezes sem conta.
Boothby recomeçou a andar de um lado para o outro.
- Dois homens mortos, três feridos e dois espiões, na posse de informações capazes de desvendar o logro que orquestrámos, em fuga, nscusado será dizer, isto é o pior desastre da história do departamento.
- A Divisão Especial avançou com os homens que considerou necessários para a prender. Obviamente, foi um erro de cálculo.
Boothby parou de se mexer e lançou um olhar assassino a Vicary.
- Não tente culpar a Divisão Especial pelo que aconteceu, Alfred. Você era o agente mais graduado no local. Esse aspeto da Operação Kettledrum era da sua responsabilidade.
- Tenho consciência disso, Sir Basil.
- Otimo, já que, quando tudo isto terminar, vai reunir-se um comité interno e duvido que o seu desempenho seja visto com bons olhos.
Vicary levantou-se.
- É tudo, Sir Basil?
- Sim.
Vicary deu meia-volta e dirigiu-se para a porta.
O uivo longínquo das sirenes de ataque aéreo começou a ouvir-se quando Vicary estava a descer as escadas para a divisão dos Registos. As salas estavam parcialmente às escuras, apenas com uma ou outra luz acesa. Como sempre, o cheiro daquele sítio não passou despercebido a Vicary: papel em decomposição, pó, humidade e um ténue vestígio do tenebroso cachimbo de Nicholas Jago. Olhou para o gabinete envidraçado de Jago. A luz estava apagada e a porta bem fechada. Ouviu o som vivo de sapatos de mulher a baterem no chão e reconheceu a passada tempestuosa e enérgica de Grace Clarendon, digna de uma parada militar. Viu o seu cabelo loiro a passar rapidamente pelas pilhas de documentos, como uma aparição, e depois a desaparecer. Seguiu-a até uma das salas laterais e chamou-a ainda a uma certa distância, para não a assustar. Ela virou-se, fitou-o com olhos verdes hostis e depois voltou-se outra vez de costas para ele e recomeçou a arquivar os documentos.
- Isto é oficial, professor Vicary? - perguntou ela. - É que, se não for, vou ter de lhe pedir para se ir embora. Já me causou problemas suficientes. Se me virem a falar outra vez consigo, será uma sorte se conseguir emprego como o raio de uma fiscal do blackout. Por favor, vá-se embora, professor.
- Preciso de consultar um dossiê, Grace.
- Sabe qual é o procedimento, professor. Preencha uma requisição. Se a requisição for autorizada, pode consultar o ficheiro.
- Não me vão dar autorização para consultar o dossiê que preciso de consultar.
- Então não o pode consultar - retorquiu ela, com a voz a adquirir o tom de fria eficiência de uma diretora de escola. - As regras são essas.
As primeiras bombas começaram a cair do lado de lá do rio, segundo levava a crer o barulho. Foi então que as baterias antiaéreas
dos parques abriram fogo. Vicary ouviu o zumbido dos bombardeiros Heinkel por cima da cabeça. Grace parou o que estava a fazer e olhou para cima. Uma rajada de bombas
caiu ali perto - demasiado perto, já que todo o edifício começou a abanar e os dossiês a caírem das prateleiras. Grace olhou para aquela confusão e exclamou:
- Raios me partam!
- Eu sei que Boothby a anda a obrigar a fazer coisas que a Grace não quer. Ouvi-vos a discutirem no gabinete dele e vi-a a entrar para o carro dele na Northumberland Avenue ontem à noite. E não me diga que andam apenas envolvidos romanticamente porque eu sei que está apaixonada por Harry.
Vicary reparou no brilho das lágrimas nos olhos verdes de Grace e o dossiê que ela segurava começou a tremer.
- A culpa é sua, maldição! - disparou ela. - Se não lhe tivesse falado do dossiê Vogel, não estava metida neste sarilho.
- O que é que ele a está a obrigar a fazer? Ela hesitou.
- Por favor, vá-se embora, professor. Por favor.
- Não me vou embora enquanto não me disser o que é que Boothby queria que a Grace fizesse.
- Raios, professor Vicary, ele queria que eu o espiasse a si! E a Harry! - gritou ela, forçando-se depois a baixar a voz. - Tudo o que Harry me contasse, fosse na cama ou noutro sítio, devia ser-lhe transmitido.
- E o que lhe contou?
- Tudo o que Harry me mencionou sobre o caso e os avanços na investigação. E também lhe falei da pesquisa que o senhor pediu para fazer na base de dados dos Registos - explicou ela, tirando um punhado de dossiês do carrinho e recomeçando a arquivá-los. Ouvi dizer que Harry esteve envolvido naquela confusão em Earl's Court.
- Esteve, sim senhor. Aliás, ele é o homem do momento.
- E ficou ferido?
Vicary assentiu com a cabeça.
- Está lá em cima. Os médicos não conseguiram que ele ficasse
na cama.
- Provavelmente, fez qualquer coisa estúpida, não foi? A tentar provar o que vale. Meu Deus, às vezes, ele é mesmo capaz de ser um idiota teimoso e estúpido.
- Grace, preciso de consultar um dossiê. Boothby vai despedir-me quando este assunto estiver terminado e eu só preciso de saber porquê.
Ela fitou-o com uma expressão grave.
- Está a falar a sério, não está, professor?
- Infelizmente, sim.
Sem dizer nada, ela olhou para ele durante um momento, ao mesmo tempo que o prédio estremecia com as ondas de choque da bomba.
- Qual é o dossiê? - perguntou.
- O de uma operação chamada Kettledrum. Grace franziu o sobrolho, confusa.
-- Mas isso não é o nome de código da operação em que o senhor está envolvido agora?
- É.
- Espere lá um minuto. O senhor quer que eu arrisque o pescoço para lhe mostrar o dossiê do seu próprio caso?
- Qualquer coisa do género - respondeu Vicary. - Só que quero que o cruze com o rome do agente responsável por outro caso,
- Quem?
Vicary olhou diretamente para os olhos verdes dela e articulou com os lábios as iniciais BB.
Ela regressou passados cinco minutos, trazendo uma capa de dossiê vazia.
- Operação Kettledrum - anunciou. - Extinta.
- E onde está o que se encontrava aí dentro?
- Ou foi destruído ou está com o agente responsável.
- E quando é que o dossiê foi aberto? - perguntou Vicary. Grace olhou para a etiqueta do dossiê e depois para Vicary.
- Que estranho - disse ela. - Segundo isto, a Operação Kettledrum teve início em outubro de 1943.
CINQUENTA E UM
CAMBRIDGESHIRE, INGLATERRA
Quando a Scotland Yard respondeu ao pedido de barricadas feito por Alfred Vicary, já Horst Neumann tinha saído de Londres, avançando a toda a velocidade em direção
a norte, pela AIO. Era evidente que a carrinha se encontrava em bom estado. Era capaz de atingir pelo menos os cem quilómetros por hora e o motor funcionava sem
problemas. Os pneus ainda possuíam uma quantidade aceitável de piso e agarravam-se surpreendentemente bem à estrada molhada. E havia uma outra característica bastante prática - uma carrinha preta não chamava a atenção no meio dos outros veículos comerciais na estrada. Uma vez que o racionamento de gasolina tornava praticamente impossível andar de carro não comercial, qualquer pessoa que estivesse a conduzir um automóvel àquelas horas da noite poderia ser mandada parar pela polícia e interrogada.
A estrada seguia a direito pelo terreno maioritariamente plano. Neumann inclinou-se sobre o volante enquanto guiava, espreitando para a pequena poça de luz produzida pelos faróis encobertos. Por um instante, pensou em retirar as proteções dos faróis, mas decidiu que era demasiado arriscado. Passou a grande velocidade por aldeias com nomes estranhos - Puckeridge, Buntingford - às escuras, sem uma luz acesa nem ninguém na rua. Era como se o tempo tivesse retrocedido dois mil anos. Neumann dificilmente ficaria surpreendido se visse uma legião romana acampada nas margens do rio Cam.
Mais aldeias - Melbourn, Foxton, Newton, Hauxton. Durante o treino na quinta de Vogel à saída de Berlim, Neumann tinha passado horas a estudar mapas antigos do Reino Unido, do serviço cartográfico e topográfico oficial. Suspeitava que conhecia as estradas e os trilhos de East Anglia tão bem como a maioria dos ingleses, talvez até melhor.
Melbourn, Foxton, Newton, Hauxton.
Estava a aproximar-se de Cambridge.
Cambridge significava problemas. com certeza que o MI5 tinha alertado as forças policiais das principais cidades e povoações. Neumann calculou que a polícia das aldeias e dos lugarejos não representaria grande ameaça. Os agentes faziam as suas rondas a pé ou de bicicleta e raramente tinham carros, ao passo que o estado das comunicações era tão fraco que talvez ainda não tivessem recebido sequer a informação. Estava a atravessar tão depressa as aldeias às escuras devido ao blackout que um polícia nem os chegaria a ver. Cidades como Cambridge eram diferentes. Provavelmente, o MI5 tinha alertado a polícia de Cambridge. E esta possuía homens suficientes para estabelecer uma barricada numa via importante como a AIO. Esses homens tinham carros e podiam dar início a uma perseguição. Neumann conhecia as estradas e era um condutor competente, mas não teria hipótese contra um polícia experiente daquela região.
Antes de chegar a Cambridge, Neumann virou para uma pequena estrada secundária. Contornou a base das Gog Magog Hills e seguiu para norte pela orla leste da cidade. Mesmo na escuridão do blackout, conseguiu distinguir os pináculos da King's Church e da St. John's Church. Passou por uma aldeia chamada Horningsea, atravessou o Cam e entrou em Waterbeach, uma aldeia cortada a meio pela AIO. Avançou lentamente pelas ruas às escuras até descobrir a maior; não havia tabuletas que indicassem a AIO, mas partiu do princípio de que teria de ser ali. Virou à direita, dirigindo-se para norte, e, passado um momento, estava a percorrer a paisagem plana e solitária das Fens.
Os quilómetros foram passando muito depressa. A chuva abrandou, mas o vento, naquela região pantanosa e sem nada no seu caminho até ao mar do Norte, maltratou a carrinha como se esta fosse
um brinquedo de criança. A estrada seguia junto à margem do rio Great Ouse e depois por Southery Fens. Atravessaram as aldeias de Southery e Hilgay. A povoação importante seguinte era Downham Jvlarket, mais pequena do que Cambridge, mas Neumann partiu do princípio de que teria a sua própria força policial e que representava portanto uma ameaça. Repetiu a opção que tinha tomado em Cambridge, virando para uma estrada secundária mais pequena, circundando a orla da povoação e regressando à AIO a norte.
Passados dezasseis quilómetros, chegou a King's Lynn, o porto situado no sudeste de Wash e a povoação mais importante na costa de Norfolk. Neumann voltou a sair da AIO e seguiu por uma pequena estrada secundária a leste da cidade.
A estrada era de má qualidade - em muitos pontos, não pavimentada e com apenas uma faixa - e o terreno tornou-se montanhoso e arborizado. Parou e despejou dois bidões de gasolina no depósito. O tempo ia piorando à medida que se aproximavam da costa. Por vezes, Neumann parecia estar a deslocar-se a pé. Receou ter cometido um erro ao sair da estrada em melhores condições, talvez estivesse a ser demasiado cauteloso. Após mais de uma hora de condução atribulada, chegou ao litoral.
Passou por Hampton Sands, atravessou a enseada e acelerou pelo trilho. Sentiu-se aliviado - finalmente, uma estrada conhecida. O chalé dos Dogherty surgiu ao longe. Neumann virou para o caminho de entrada. Viu a porta abrir-se e o brilho de um candeeiro a querosene aproximar-se deles. Era Sean Dogherty, com o seu oleado e chapéu
impermeável, e uma caçadeira ao ombro.
Sean Dogherty não tinha ficado preocupado quando não viu Neumann sair do comboio da tarde, em Hunstanton. Neumann tinha-o avisado de que poderia ficar em Londres
mais tempo do que o costume. Dogherty resolveu esperar pelo comboio da noite. Saiu da estação e entrou numpub ali perto. Pediu uma tarte de batata e cenoura e acompanhou-a com dois copos de cerveja. A seguir, saiu do pub e passeou-se pela zona ribeirinha. Antes da guerra, Hunstanton era uma popular estância balnear porque a sua localização na ponta
leste da Wash dava azo a pores do Sol extraordinários sobre a água. Nessa noite, os velhos hotéis eduardianos estavam maioritariamente vazios e tinham um ar sombrio sob a chuva a cair ininterruptamente. O pôr do Sol não era mais que uma última luz cinzenta a escapar-se das nuvens de tempestade. Dogherty deixou a zona ribeirinha e regressou à estação para acompanhar a chegada do comboio da noite. Ficou parado na plataforma, a fumar e a observar o punhado de passageiros que desembarcava. Quando viu que Neumann não se encontrava entre eles, Dogherty ficou alarmado.
Entrou no carro e voltou para Hampton Sands, pensando nas palavras de Neumann no início dessa semana. Neumann tinha-lhe dito que era possível que a operação estivesse prestes a terminar, possível que ele se fosse embora de Inglaterra e voltasse para Berlim. Dogherty pensou: Mas porque não veio no maldito comboio?
Chegou ao chalé e entrou. Mary, sentada junto à lareira, lançou-lhe um olhar feroz e depois subiu as escadas para o andar de cima. Dogherty ligou a telefonia. O
noticiário chamou-lhe a atenção. Estava em curso uma busca à escala nacional para capturar dois supostos assassinos que tinham participado num tiroteio com a polícia ao início da noite, no bairro londrino conhecido como Earl's Court.
Dogherty aumentou o som quando o locutor começou a descrever os dois suspeitos. O primeiro, surpreendentemente, era uma mulher. O segundo era um homem cuja descrição
correspondia sem tirar nem pôr a Horst Neumann.
Dogherty desligou o rádio. Seria possível que estes dois suspeitos envolvidos no tiroteio em Earl's Court fossem Neumann e o outro agente? Estariam naquele instante
a fugir do MI5 e de metade da polícia do Reino Unido? Estariam a caminho de Hampton Sands ou deixá-lo-iam para trás? Foi então que pensou: Será que os britânicos
sabem que eu também sou um espião?
Foi para o andar de cima, meteu uma muda de roupa num pequeno saco de lona e desceu outra vez as escadas. Foi até ao celeiro, descobriu a caçadeira e carregou dois cartuchos no cano.
Quando regressou ao chalé, Dogherty sentou-se à janela, à espera. Já quase tinha perdido a esperança quando avistou a luz saída dos
faróis encobertos a avançar pela estrada, em direção ao chalé. No momento em que a carrinha virou para o pátio da quinta, conseguiu ver que era Neumann que vinha ao volante. Estava uma mulher sentada no lugar do passageiro.
Dogherty levantou-se e pôs o oleado e o chapéu. Acendeu o candeeiro a querosene, pegou na caçadeira e saiu de casa, enfrentando a chuva.
Martin Colville examinou o rosto ao espelho: nariz partido, olhos negros, lábios inchados, uma contusão no lado direito da cara.
Entrou na cozinha e verteu as últimas e preciosas gotas de uma garrafa de uísque. Todos os seus instintos lhe diziam que havia qualquer coisa de errado no homem chamado James Porter. Não acreditava que ele fosse um soldado britânico ferido. Não acreditava que ele fosse um velho conhecido de Sean Dogherty. Não acreditava que ele tivesse vindo para Hampton Sands pelo ar do oceano.
Tocou no rosto desfeito e pensou: Nunca ninguém me fez isto em toda a minha vida e não vou deixar que aquele sacana fique impune.
Colville bebeu o uísque de um só gole e, a seguir, colocou a garrafa vazia e o copo no lava-louças. Ouviu o ruído de um motor lá fora. Foi até à porta e espreitou. Uma carrinha passou depressa. Colville conseguiu ver James Porter ao volante e uma mulher no lugar do passageiro.
Fechou a porta e pensou: Mas que raio anda ele a fazer a estas horas da noite? E onde é que arranjou a carrinha?
Decidiu que iria descobrir. Entrou na sala de estar e tirou uma caçadeira calibre 12 da prateleira por cima da lareira. Os cartuchos estavam na gaveta da cozinha. Abriu-a e pôs-se a vasculhar na confusão de coisas que havia lá dentro, até encontrar a caixa. Saiu de casa e subiu para a bicicleta.
Passado um momento, Colville estava a pedalar no meio da chuva, com a caçadeira em cima do guiador, a caminho do chalé dos Dogherty.
Lá em cima, no seu quarto, Jenny Colville ouviu a porta da frente a abrir-se e a fechar-se uma vez. A seguir, ouviu o ruído de um veículo a passar, pouco comum àquelas horas da noite. Quando ouviu
a porta a abrir-se e a fechar-se uma segunda vez, ficou assustada. Levantou-se da cama e atravessou o quarto. Abriu a cortina e espreitou a tempo de ver o pai a afastar-se de bicicleta através da escuridão.
Bateu com força na janela, mas foi em vão. Passados uns segundos, ele já tinha desaparecido.
Jenny estava apenas de camisa de dormir. Tirou-a, vestiu umas calças e uma camisola e desceu as escadas. As botas de borracha estavam ao lado da porta. Ao calçá-las, reparou que a caçadeira que estava habitualmente pendurada sobre a lareira tinha desaparecido. Espreitou para a cozinha e viu que a gaveta onde os cartuchos estavam guardados se encontrava aberta. Vestiu o casaco e saiu rapidamente.
Jenny andou às apalpadelas no escuro até dar com a bicicleta encostada ao chalé. Empurrou-a pelo trilho, subiu para cima dela e pôs-se a pedalar atrás do pai, em direção ao chalé dos Cottage, e a pensar: Por favor, Deus, faz com que eu o consiga parar antes que alguém acabe morto hoje à noite.
Sean Dogherty abriu a porta do celeiro e levou-os para dentro, iluminados pelo candeeiro a querosene. Tirou o chapéu impermeável e desabotoou o oleado, olhando de seguida para Neumann e para a mulher.
Neumann, disse:
- Sean Dogherty, Catherine Blake. Sean fazia parte de um grupo chamado Exército Republicano Irlandês, mas foi-nos emprestado durante a guerra. Catherine também trabalha para Kurt Vogel. Desde
1938 que vive em Inglaterra, infiltrada profundamente.
Para Catherine, foi uma sensação estranha ouvir o seu passado e o seu trabalho serem referidos com tanta despreocupação. Depois de tantos anos a esconder a sua identidade, depois de todas as precauções, depois de toda a ansiedade, era difícil imaginar que estava tudo prestes a terminar.
Dogherty olhou para ela e, a seguir, para Neumann.
- A BBC passou a noite inteira a dar noticiários sobre um tiroteio em Earl's Court. Calculo que tenham estado envolvidos nisso, não?
Neumann assentiu com a cabeça.
- Mas não eram polícias londrinos vulgares. Eram do MI5 e da IDivisão Especial, diria eu. O que é que a rádio anda a dizer?
- Que vocês mataram dois e feriram outros três. Está em curso uma busca nacional, para vos encontrar, e pediram ajuda a todas as pessoas. O mais provável é metade
do país andar neste momento por aí a vasculhar tudo à vossa procura. Fico surpreendido por terem conseguido chegar tão longe.
- Mantivemo-nos afastados das terras mais importantes. Parece que resultou. Até agora, não vimos nenhum polícia na estrada.
- bom, isso não vai durar, podem ter a certeza.
Neumann olhou para o relógio - passavam poucos minutos da meia-noite. Pegou no candeeiro a querosene de Sean e levou-o para a mesa de trabalho. Tirou o rádio do armário e ligou-o.
- O submarino anda em patrulha no mar do Norte. Depois de receber o nosso sinal, vai deslocar-se precisamente dezasseis quilómetros para leste de Spurn Head e vai lá ficar até às seis horas. Se não aparecermos, afasta-se da costa e fica à espera de notícias nossas.
Catherine perguntou:
- E como vamos conseguir estar dezasseis quilómetros para leste de Spurn Head? Dogherty interveio:
- Há um tipo chamado Jack Kincaid. Tem um pequeno barco de pesca num cais do rio Humber.
Dogherty foi buscar um mapa antigo do serviço oficial de topografia e cartografia, anterior à guerra.
- O barco está aqui - indicou, batendo com o dedo no mapa.
- Numa terra chamada Cleethorpes. Fica a uns cento e sessenta quilómetros daqui. Vai ser difícil guiar com este mau tempo, ainda por cima com o blackout, O Kincaid tem um apartamento por cima de uma garagem na zona ribeirinha. Falei com ele ontem. Sabe que é possível aparecermos.
Neumann assentiu com a cabeça e disse:
- Se sairmos agora, temos à volta de seis horas para fazer a viagem. Acho que conseguimos fazê-lo esta noite. A próxima oportunidade que temos para irmos ter com
o submarino é daqui a três dias.
Não me encanta muito a ideia de ficar escondido durante três dias com todos os polícias do Reino Unido a vasculharem por todo o lado à nossa procura. Digo que devíamos ir esta noite.
Catherine assentiu com a cabeça. Neumann colocou os auscultadores e sintonizou o rádio na frequência correta. Digitou um sinal de identificação e esperou por uma resposta. Uns segundos mais tarde, o operador de rádio a bordo do submarino pediu a Neumann para prosseguir. Neumann suspirou fundo, digitou a mensagem com cuidado e, a seguir, terminou a comunicação e desligou o rádio.
- E agora resta-nos resolver uma coisa - disse ele, virando-se para Dogherty. - Vens connosco?
Dogherty assentiu com a cabeça.
- Já falei disso com Mary. Ela concorda comigo. vou para a Alemanha convosco; e depois Vogel e os amigos podem ajudar-me a voltar para a Irlanda. Mary vai ter comigo quando eu lá estiver. Temos amigos e família que podem olhar por nós até assentarmos. Não vamos ter problemas.
- E como é que Mary está a reagir?
O rosto de Dogherty endureceu numa expressão taciturna. Neumann sabia que era bem provável que ele e Mary nunca mais se voltassem a ver. Pegou no candeeiro a querosene, pousou a mão no ombro de Dogherty e disse:
- Vamos.
Em cima da bicicleta e a ofegar, Martin Colville viu uma luz acesa no celeiro dos Dogherty. Deitou a bicicleta junto à estrada e, a seguir, atravessou o prado silenciosamente e agachou-se à porta do celeiro. com a chuva a cair com força, esforçou-se por perceber a conversa que estava a ter lugar lá dentro.
Era inacreditável.
Sean Dogherty - a trabalhar para os nazis. O homem chamado James Porter - um agente alemão. Um ninho de espiões alemães, em ação ali mesmo em Hampton Sands!
Colville esforçou-se por ouvir mais um pouco da conversa. Estavam a planear subir a costa de carro até Lincolnshire e apanhar um
barco para irem ter com um submarino. O coração começou a ribombar-lhe no peito e a respiração a acelerar. Forçou-se a acalmar, a pensar com clareza.
Tinha duas opções: ir-se embora, voltar para a aldeia e alertar as autoridades ou entrar no celeiro e prendê-los ele mesmo. Tanto uma como outra tinham os seus inconvenientes. Se se fosse embora para ir pedir ajuda, o mais certo era Dogherty e os espiões já terem desaparecido quando ele lá regressasse. Havia poucos polícias na costa de Norfolk, dificilmente seriam suficientes para levar a cabo uma busca. Mas, se entrasse sozinho, estaria em desvantagem. Conseguia ver que Sean tinha a caçadeira consigo e partiu do princípio de que os outros dois também estariam armados. Ainda assim, teria a vantagem da surpresa.
E havia outra razão que o levava a gostar da segunda opção adoraria ajustar contas com o alemão que dava pelo nome de James Porter. Colville sabia que tinha de agir e agir rapidamente. Rasgou a caixa dos cartuchos, tirou dois e enfiou-os na velha caçadeira calibre 12. Nunca tinha apontado aquela coisa a nada que fosse mais ameaçador do que uma perdiz ou um faisão. Interrogou-se se teria coragem para disparar sobre um ser humano.
Levantou-se e avançou para a porta.
Jenny pedalou até as pernas lhe começarem a arder - atravessando a aldeia, passando pela igreja e pelo cemitério, até ao outro lado da enseada. O ar estava carregado com o som da tempestade e o ruído do mar. A chuva fustigava-lhe a cara e o vento quase a fez cair.
Jenny avistou a bicicleta do pai na vegetação junto ao trilho e parou ao lado dela. Porquê deixá-la ali? Porque não ir com ela até ao chalé?
Achou que sabia a resposta. Ele estava a tentar apanhá-los de surpresa, aparecendo sem que o vissem.
Foi então que ela ouviu um disparo de caçadeira vindo do celeiro de Sean. Jenny soltou um grito e saltou da bicicleta, deixando-a cair ao lado da do pai. Correu pelo prado, a pensar: Por favor, Deus, não deixes que ele tenha morrido. Não deixes que ele tenha morrido.
CINQUENTA E DOIS
SCARBOROUGH, INGLATERRA
Aproximadamente cento e sessenta quilómetros a norte de Hampton Sands, Charlotte Endicott entrou de bicicleta no pequeno recinto de cascalho à entrada da estação de recolha de comunicações de Scarborough. A viagem desde os seus aposentos numa pensão exígua na cidade tinha sido violentíssima, com vento e chuva durante todo o caminho. Encharcada até aos ossos e com um frio de morrer, desceu da bicicleta e encostou-a a várias outras no estrado.
O vento soprava em rajadas, gemendo por entre as três enormes antenas retangulares, no alto dos penhascos com vista para o mar do Norte. Charlotte Endicott lançou-lhes uma olhadela, a oscilarem visivelmente, enquanto atravessava o recinto apressadamente. Abriu a porta do abrigo e entrou antes de o vento a fechar com estrondo.
Faltavam alguns minutos para o seu turno começar. Despiu a gabardina encharcada, desapertou o nó do chapéu e pendurou tudo num cabide em mau estado que se encontrava ao canto. O abrigo era frio e estava cheio de correntes de ar, tendo sido construído numa lógica de utilidade e não de conforto. Mas, apesar disso, tinha uma pequena cantina. Charlotte entrou nela, serviu-se de uma chávena de chá quente, sentou-se numa das mesas pequenas e acendeu um cigarro. Um hábito horrível, sabia-o, mas, se era capaz de manter um emprego como um homem, também era capaz de fumar como um. Além disso, gostava do ar que aquilo lhe dava - sexy, sofisticado, um bocadinho
mais velho do que os seus vinte e três anos. E também tinha ficado viciada no raio daquelas coisas. O trabalho era stressante, as horas uma brutalidade e a vida em Scarborough terrivelmente entediante. Mas ela adorava cada minuto do que fazia.
Só tinha havido uma vez em que tinha detestado o que estava a fazer, durante a Batalha de Inglaterra. Durante os longos e terríveis combates aéreos, os membros do ramo feminino da Marinha Real Britânica estacionados em Scarborough ouviam o que os pilotos britânicos e alemães diziam nos cockpits. Uma vez, Charlotte tinha ouvido um rapaz inglês a gritar e a chorar pela mãe enquanto o seu SpitJtre, atingido, caía desamparado em direção ao mar. Quando perdeu o contacto com ele, Charlotte foi a correr lá para fora para vomitar. Estava feliz por esses dias terem terminado.
Charlotte olhou para o relógio. Quase meia-noite. Altura de entrar ao serviço. Levantou-se e alisou o uniforme húmido. Deu uma última passa no cigarro - era proibido fumar dentro do buraco e depois apagou-o com força num pequeno cinzeiro de metal a transbordar de beatas. Saiu da cantina e dirigiu-se para o centro de operações. Mostrou o cartão de identificação ao guarda. Este examinou-o com atenção, embora já o tivesse visto uma centena de vezes, e a seguir devolveu-o, sorrindo um pouco mais do que seria necessário. Charlotte sabia que era uma rapariga atraente, mas não havia ali lugar para essas coisas. Abriu as portas, entrou no buraco e sentou-se no sítio do costume.
Sentiu um rápido calafrio - como sempre.
Olhou fixamente para os botões luminosos do seu recetor super-heteródino de comunicações RCA AR-88 por um momento e depois colocou os auscultadores. Os cristais especiais do RCA, eliminadores de interferências, permitiam-lhe monitorizar os agentes alemães que transmitiam em código Morse por toda a Europa do Norte. Sintonizou o recetor na banda de frequência que tinha ficado incumbida de controlar nessa noite e instalou-se.
Os agentes alemães que enviavam mensagens em código Morse eram os mais rápidos do mundo a digitar. Charlotte era capaz de identificar de imediato muitos deles pelos seus estilos próprios de digitar e ela e as restantes colegas tinham-lhes atribuído alcunhas: Wagner, Beethoven, Zeppelin.
Charlotte não teve de esperar muito para entrar em ação naquela noite.
Uns minutos depois da meia-noite, ouviu uma sucessão de sinais Morse, num estilo que não reconheceu. A cadência era fraca, o ritmo lento e incerto. Um amador, pensou, alguém que não utilizava muito o rádio. Não era com certeza um dos profissionais do BdU, o quartel-general da Kriegsmarine. Reagindo rapidamente, gravou a transmissão no oscilógrafo - um aparelho que criaria no fundo uma impressão digital do sinal chamada Tina - e escrevinhou furiosamente a mensagem em Morse numa folha de papel. Depois de o amador terminar, Charlotte ouviu outra sucessão de sinais na mesma frequência. Já não era um amador; Charlotte e as colegas já o tinham ouvido. Tinham-lhe dado a alcunha de Fritz. Era um operador de rádio a bordo de um submarino. Charlotte também transcreveu rapidamente essa mensagem.
À transmissão de Fritz seguiu-se uma nova e atabalhoada sucessão de sinais em código Morse por parte do amador e depois terminaram as comunicações. Charlotte tirou os auscultadores, arrancou a impressão saída do oscilógrafo e atravessou a sala a passos largos. Normalmente, limitava-se a entregar as transcrições das mensagens em Morse a um estafeta que, por sua vez, as levava de mota, a toda a velocidade, até Bletchley Park para serem descodificadas. Mas havia qualquer coisa diferente naquelas comunicações - tinha-o sentido nos estilos dos operadores de rádio: Fritz, a bordo de um submarino, e um amador algures. Suspeitava saber do que se tratava, mas teria de ser bem convincente. Apresentou-se diante do supervisor noturno, um homem de pele clara e ar exausto chamado Lowe. Largou as transcrições e o oscilógrafo em cima da secretária dele. Lowe olhou para ela, com uma expressão de perplexidade.
- Posso estar completamente enganada, senhor - disse Charlotte, invocando a voz mais perentória possível -, mas acho que acabei de ouvir um espião alemão a comunicar com um submarino ao largo da costa.
O Kapitànleutnant Max Hoffman nunca se habituaria ao fedor de um submarino submerso há demasiado tempo: suor, urina, óleo diesel, batatas, sémen. O ataque às suas narinas era tão intenso que suportaria de bom grado estar de vigia na torre de comando, debaixo de uma tempestade, em vez de ficar lá dentro.
Encontrava-se na ponte de comando do U-509 e conseguia sentir a vibração dos motores elétricos por baixo dos pés à medida que se deslocavam num círculo monótono a trinta e dois quilómetros da costa britânica. Uma suave neblina pairava no interior do submarino, criando uma auréola em torno de cada lâmpada. Todas as superfícies estavam frias e molhadas. Hoffman gostava de imaginar que era o orvalho de uma manhã de primavera, mas bastou-lhe olhar naquele momento para o mundo claustrofóbico e apertado que habitava para essa fantasia lhe ser rapidamente arrancada.
Era uma missão entediante ficar estacionado ao largo da costa britânica durante semanas a fio, à espera de um dos espiões de Canaris. Da tripulação de Hoffman, apenas o seu imediato sabia o verdadeiro objetivo da missão. O resto dos homens suspeitava provavelmente do mesmo, já que não se encontravam em missão de patrulha. Ainda assim, as coisas poderiam ser piores. Tendo em conta a extraordinária proporção de perdas no seio da U-bootewaffe - praticamente 90 por cento - Hoffman e a sua tripulação podiam considerar-se bastante afortunados por terem sobrevivido tanto tempo.
O imediato surgiu na ponte de comando, de rosto fechado e com um papel na mão. Hoffman olhou para o homem, ficando deprimido com a noção de que o mais provável era estar com o mesmo aspeto horrível: olhos fundos, rosto encovado, a palidez de um tripulante de submarino, a barba por fazer por não haver água doce suficiente para desperdiçar nisso.
O imediato informou:
- O nosso homem no Reino Unido deu finalmente notícias. Quer que lhe demos boleia para casa hoje à noite.
Hoffman sorriu e pensou: Finalmente. Apanhamo-lo e vamos para França, onde há comida boa e roupa de cama lavada. Perguntou:
- Como está o tempo?
-- Nada bom, Herr Kaleu - respondeu o imediato, utilizando o diminutivo habitual de Kapitànleutnant. - Chuvadas fortes, ventos a cinquenta quilómetros por hora do noroeste, ondulação entre três metros e três metros e meio.
- Jesus! E o mais certo é ele vir de barco a remos, se tivermos sorte. Organize uma festa de receção e prepare-se para emergirmos. Mande o operador de rádio informar o BdU dos nossos planos. Fixe a trajetória para o ponto de encontro. Eu vou lá para cima com os vigias. Não me interessa se o tempo está mau ou não - afirmou Hoffman, fazendo uma careta. -Já não aguento mais a porra do cheiro aqui dentro.
- Sim, Herr Kaleu.
O imediato gritou uma série de ordens, transmitidas pela tripulação. Dois minutos mais tarde, o U-509 irrompeu pela superfície tempestuosa do mar do Norte.
O sistema era conhecido como Localização de Direção de Alta Frequência, mas quase toda a gente envolvida no projeto lhe chamava Huff Duff. Funcionava segundo um princípio de triangulação. A impressão digital criada pelo oscilógrafo em Scarborough podia ser utilizada para identificar o tipo de transmissor e a sua fonte de energia. Se as estações de recolha de comunicações de Flowerdon e da Islândia também tivessem os seus oscilógrafos em ação, as três gravações podiam ser utilizadas para estabelecer linhas de orientação conhecidas como cortes -, a partir das quais se podia depois localizar a posição do transmissor. Por vezes, o Huff Duff conseguia indicar um rádio num raio de dezasseis quilómetros da sua exata localização geográfica. Mas, normalmente, o sistema era muito menos preciso, ficando entre os cinquenta e os oitenta quilómetros.
O comandante Lowe não achou que Charlotte Endicott estivesse completamente enganada. Na verdade, achou que ela tinha descoberto uma coisa de crucial importância. Ao início da noite, um major Vicary do MI5 tinha enviado um alerta para as estações de recolha de comunicações, para que estivessem atentas a precisamente esse tipo de coisas.
Lowe passou os minutos seguintes a falar com os seus homólogos em Flowerdon e na Islândia, tentando localizar o transmissor. Infelizmente, a comunicação tinha sido curta e a determinação da posição não muito precisa. Na verdade, Lowe foi apenas capaz de a circunscrever a uma extensão bastante ampla do leste de Inglaterra - todo o condado de Norfolk e grande parte de Suffolk, Cambridgeshire e Lincolnshire. Provavelmente, não serviria de muito, mas pelo menos já era qualquer coisa.
Lowe vasculhou os papéis que tinha na secretária até descobrir o número de Vicary de Londres e, a seguir, esticou-se na direção do seu telefone seguro.
As condições atmosféricas no norte da Europa tornavam praticamente impossível a comunicação de onda curta entre as Ilhas Britânicas e Berlim. Em consequência disso, o centro de comunicações via rádio da Abwehr estava localizado na cave de uma grande mansão em Wohldorf, um subúrbio de Hamburgo, duzentos e quarenta quilómetros a noroeste da capital germânica.
Cinco minutos depois de o rádio operador do U-509 ter transmitido a sua mensagem ao BdU, no norte da França, o oficial de serviço no BdU enviou uma curta mensagem para Hamburgo. O oficial de serviço em Hamburgo era um veterano da Abwehr chamado capitão Schmidt. Gravou a mensagem, fez um telefonema prioritário, através da linha segura, para o quartel-general da Abwehr em Berlim e informou o tenente Werner Ulbricht dos desenvolvimentos. A seguir, Schmidt saiu da mansão e desceu a rua, em direção a um hotel ali perto, onde fez uma segunda chamada para Berlim. Não quis fazer esse telefonema através das linhas pejadas de escutas do posto da Abwehr, pois o número que indicou à telefonista foi o do gabinete do Brigadefúhrer Walter Schellenberg, na Prinz Albrechtstrasse. Infelizmente para Schmidt, Schellenberg tinha descoberto que ele estava envolvido numa relação amorosa bastante chocante com um rapaz de dezasseis anos, em Hamburgo. Schmidt aceitou prontamente passar a trabalhar para Schellenberg para evitar que o caso viesse a público.
Quando a ligação foi efetuada, falou com um dos muitos assistentes de Schellenberg - o general tinha ido jantar fora essa noite - e informou-o das novidades.
Kurt Vogel tinha decidido passar uma rara noite no seu pequeno apartamento a poucos quarteirões de Tirpitz Ufer. Ulbricht telefonou-lhe para lá e informou-o de que Horst Neumann tinha contactado o submarino e que estava prestes a abandonar a Inglaterra. Cinco minutos mais tarde, Vogel estava a sair pela porta da frente do prédio e a caminhar à chuva, em direção a Tirpitz Ufer.
Nesse preciso instante, Walter Schellenberg ligou para o gabinete e foi informado dos desenvolvimentos no Reino Unido. A seguir, telefonou para o Reichsfúhrer Heinrich Himmler e pô-lo ao corrente da situação. Himmler ordenou a Schellenberg que se dirigisse para a Prinz Albrechtstrasse; iria ser uma noite longa e queria companhia. Por coincidência, Schellenberg e Vogel chegaram aos respetivos gabinetes exatamente ao mesmo tempo e instalaram-se para a espera que os aguardava.
O local da invasão da França pelos Aliados.
A vida do almirante Canaris.
E tudo dependia do que dissessem um par de espiões em fuga ao MI5.
CINQUENTA E TRÊS
HAMPTON SANDS, NORFOLK
Martin Colville serviu-se do cano da caçadeira para empurrar a porta do celeiro. Neumann, ainda sentado ao lado do rádio, ouviu o barulho. Esticou-se para agarrar
a Mauserno momento em que Colville entrou. Colville viu Neumann a tentar chegar à pistola. Virou-se, apontou a caçadeira e disparou. Neumann desviou-se com um salto,
caindo no chão e rebolando pelo celeiro. O estrondo do disparo da caçadeira no espaço reduzido do celeiro foi ensurdecedor. O rádio desintegrou-se.
Colville fez pontaria a Neumann pela segunda vez. Neumann levantou-se, apoiado nos cotovelos, segurando a Mauser nas mãos esticadas. Sean Dogherty avançou, gritando a Colville para parar. Colville apontou a arma a Dogherty e carregou no gatilho. O tiro atingiu Dogherty no peito, fazendo-o dar um salto para trás com toda a força, como se fosse um boneco de trapos. Caiu de costas, com o sangue a jorrar-lhe do buraco no peito, e morreu passados segundos.
Neumann disparou, acertando no ombro de Colville e fazendo-o rodar. Por essa altura, Catherine já tinha sacado da sua Mauser e, com ambas as mãos, apontou-a à cabeça de Colville. Disparou rapidamente duas vezes, com o silenciador a abafar os tiros e a reduzi-los a um baque surdo. À cabeça de Colville explodiu e ele já estava morto antes de o corpo bater no chão do celeiro de Dogherty.
Mary Dogherty estava a meio de um sono agitado, na sua cama no andar de cima do chalé, quando ouviu o primeiro disparo da caçadeira. Endireitou-se de rompante e tocou com os pés no chão no instante em que o segundo disparo rasgou a noite. Atirou o cobertor para trás e desceu as escadas a correr.
O chalé estava às escuras, a sala de estar e a cozinha desertas. Foi lá para fora. A chuva fustigou-lhe a cara. Foi então que se apercebeu de que estava apenas com a sua camisa de dormir de flanela. Naquele momento, imperava o silêncio e apenas se ouvia o barulho da tempestade. Para lá do jardim, reparou numa carrinha preta desconhecida estacionada no caminho de entrada. Voltou-se para o celeiro e viu uma luz acesa lá dentro. Gritou Sean! e começou a correr para o celeiro.
Mary tinha os pés descalços e o chão estava frio e empapado. Gritou o nome de Sean mais uma série de vezes enquanto corria. Um ténue raio de luz saía da porta aberta do celeiro, iluminando uma caixa de cartuchos de caçadeira que se encontrava no chão.
Ao entrar, arquejou. Ficou com um grito preso na garganta, que se recusava a sair cá para fora. A primeira coisa que viu foi o corpo de Martin Colville estendido no chão do celeiro, a poucos metros dela. Parte da cabeça tinha desaparecido e havia sangue e tecido por todo o lado. Sentiu o estômago começar a entrar em convulsões.
Foi então que voltou a atenção para o segundo corpo. Estava deitado de costas, com os braços bem abertos. Por alguma razão, com a morte, os tornozelos tinham-se cruzado, como se a pessoa estivesse a dormir uma sesta. O sangue tapava-lhe a cara. Por um breve segundo, Mary permitiu-se acalentar a esperança de não ser na realidade Sean quem estava ali morto. Mas depois olhou para as velhas botas de borracha e para o oleado e soube que era ele.
O grito que lhe estava preso na garganta saiu cá para fora.
Mary berrou:
- Oh, Sean! Oh, meu Deus, Sean! O que foste fazer?
Levantou os olhos e viu Horst Neumann parado ao pé do corpo de Sean, com uma pistola na mão. A poucos metros dele, estava uma mulher, de pistola apontada à cabeça de Mary.
Mary olhou para Neumann e gritou:
- Foste tu que fizeste isto? Foste?
- Foi o Colville - respondeu Neumann. - Apareceu aqui dentro aos tiros. Sean meteu-se à frente dele. Lamento imenso, Mary.
- Não, Horst, pode ter sido Martin a carregar no gatilho, mas foste tu que lhe fizeste isto. Não tenhas dúvidas. Tu e os teus amigos de Berlim, foram vocês que lhe fizeram isto.
Neumann não disse nada. Catherine continuava com a Mauser apontada à cabeça de Mary. Neumann avançou, agarrou na pistola dela e baixou-a suavemente.
Jenny Colville não saiu do prado mergulhado na escuridão e aproximou-se do celeiro lateralmente, sem que a pudessem ver. Agachou-se junto à parede exterior, com a chuva a bater-lhe com força no oleado, e escutou a conversa que estava a ter lugar lá dentro.
Ouviu a voz do homem que conhecia como James Porter, embora Mary lhe tivesse chamado outra coisa, uma coisa parecida com Horse. Foi o Colville. Sean meteu-se à frente dele. Lamento imenso, Mary.
A seguir, ouviu a voz de Mary. Tinha uma intensidade altíssima e tremia de raiva e dor. Foste tu que lhe fizeste isto... Tu e os teus amigos de Berlim.
Ficou à espera de ouvir a voz do pai; ficou à espera de ouvir a voz de Sean. Nada. Percebeu que estavam ambos mortos.
Tu e os teus amigos de Berlim.
Jenny pensou: O que estás a dizer, Mary?
E foi então que tudo se encaixou na cabeça dela, como peças de um quebra-cabeças que ficam de repente na ordem certa: Sean na praia, naquela noite, o súbito aparecimento
do homem chamado James Porter, o aviso que Mary lhe fizera ao início da tarde: Ele não é o que parece ser. Ele não é para ti.
Na altura, Jenny não tinha compreendido o que Mary lhe estava a tentar dizer, mas agora achava que sim. O homem que conhecia como James Porter era um espião alemão. E isso significava que Sean também era um espião ao serviço dos alemães. O pai dela devia ter descoberto a verdade e resolvido enfrentá-los. E agora estava morto no chão do celeiro de Sean Dogherty.
Jenny queria gritar. Sentiu lágrimas quentes a correrem-lhe dos olhos pela cara. Levou as mãos à boca para abafar o choro. Tinha-se apaixonado por ele, mas ele mentira-lhe e usara-a e era um espião alemão e provavelmente tinha acabado de lhe matar o pai.
Jenny ouviu movimentos dentro do celeiro, movimentos e instruções dadas em voz baixa, que ela não conseguiu perceber. Ouviu a voz do espião alemão e ouviu uma voz
de mulher que não era a de Mary. Foi então que viu o espião sair do celeiro e percorrer o caminho de entrada, de lanterna na mão. Estava a dirigir-se para onde estavam
as bicicletas. Se as encontrasse, iria perceber que ela também lá estava.
E iria procurá-la.
Jenny obrigou-se a respirar devagar, pausadamente, e a pensar com clareza.
Estava a ser fustigada por várias emoções. Estava assustada, sentia-se agoniada com a ideia de que o pai e Sean estavam mortos. Mas, acima de tudo, estava furiosa. Tinham-lhe mentido e tinham-na traído. E, naquele momento, o que a impulsionava era um desejo avassalador: queria vê-los presos e queria vê-los castigados.
Jenny sabia que não poderia fazer nada se o alemão a descobrisse.
Mas o que fazer? Podia tentar correr até à aldeia. O hotel e o pub tinham telefones. Podia contactar a polícia e a polícia podia vir prendê-los.
Mas a aldeia era o primeiro lugar onde os espiões a iriam procurar. Do chalé dos Dogherty, só havia um caminho para a aldeia: atravessando a ponte junto à St. John's Church. Jenny sabia que poderia ser apanhada muito facilmente.
Pensou numa segunda opção. Eles tinham de se ir embora dali a pouco tempo. Afinal de contas, tinham acabado de matar duas pessoas. Jenny podia ficar escondida durante um bocado, só até eles se irem embora; depois, podia sair do esconderijo e contactar a polícia.
Pensou: Mas e se eles levarem Mary?
Mary estaria melhor com Jenny em liberdade e a tentar encontrar ajuda.
Jenny observou o espião a aproximar-se da estrada. Viu o feixe de luz da lanterna deslocar-se pelo terreno em redor. Viu-o fixar-se em qualquer coisa por um momento e, a seguir, virar-se na direção dela.
Jenny arquejou. Ele tinha encontrado a bicicleta dela. Levantou-se e começou a correr.
Horst Neumann avistou as duas bicicletas deitadas ao lado uma
da outra na vegetação, junto à estrada. Virou a lanterna para o prado, mas o fraco feixe iluminou apenas uns quantos metros à sua frente. Levantou as bicicletas, segurou-as pelo manipulo e empurrou-as pelo caminho de entrada. Deixou-as nas traseiras do chalé de Dogherty, onde ninguém as poderia ver.
Ela estava por ali - algures. Tentou imaginar o que tinha acontecido. O pai sai de casa enfurecido e de caçadeira na mão; Jenny vai atrás dele e chega ao chalé dos Dogherty a tempo de ver o rescaldo.
Neumann calculou que ela estivesse escondida, à espera que eles se fossem embora, e achou que sabia onde.
Durante um momento, pensou na hipótese de a deixar em liberdade. Mas Jenny era uma rapariga inteligente. Iria arranjar uma maneira de contactar a polícia. A polícia estabeleceria barricadas por Hampton Sands inteira. Chegar a Lincolnshire a tempo do encontro com o submarino já seria suficientemente difícil. Deixar que Jenny ficasse à solta e contactasse a polícia apenas tornaria tudo mais duro.
Neumann entrou no celeiro. Catherine tinha tapado os corpos
com serapilheira velha. Mary estava sentada numa cadeira, a tremer violentamente. Neumann evitou o olhar dela.
- Temos um problema - anunciou Neumann, apontando para
o corpo tapado de Martin Colville. -- Encontrei a bicicleta da filha dele. Temos de partir do princípio de que ela anda algures por aqui e que sabe o que aconteceu. E também temos de partir do princípio de que vai tentar arranjar ajuda.
- Então vai à procura dela - atirou Catherine.
Neumann assentiu com a cabeça.
- Leva Mary para dentro de casa. Amarra-a e amordaça-a. Acho
que sei para onde é que Jenny é capaz de ir.
Neumann foi lá para fora e correu até à carrinha, no meio da
chuva. Ligou o motor, saiu do caminho de entrada em marcha atrás e seguiu em direção à praia.
Catherine amarrou Mary a uma cadeira de madeira na cozinha. Rasgou uma toalha de chá ao meio e fez uma bola com uma das metades. Enfiou-a na boca de Mary e depois amarrou a outra metade à volta da cara dela, com um nó apertado. Se dependesse de Catherine, matá-la-ia naquele preciso instante; não gostava de deixar uma pista para a polícia seguir. Mas era óbvio que Neumann sentia algum carinho pela mulher. Além disso, era provável que se passassem várias horas até que alguém a encontrasse, talvez até mais tempo. O chalé estava isolado, a cerca de um quilómetro e meio da aldeia; era possível que demorasse um dia ou dois até que alguém notasse que Sean, Colville e a rapariga tinham desaparecido. Ainda assim, todos os seus instintos de sobrevivência lhe diziam que era melhor matá-la e despachar aquilo. Neumann nunca saberia. Mentir-lhe-ia, dizendo-lhe que Mary estava bem, e ele nunca descobriria.
Catherine verificou os nós pela última vez. A seguir, tirou a Mauser do bolso do casaco. Segurou-a bem, enfiando o indicador no gatilho, e encostou o cano à testa de Mary. Mary não se mexeu um milímetro e lançou um olhar de desafio a Catherine.
- Não se esqueça, a Jenny vai connosco -- disse Catherine. Sc disser alguma coisa à polícia, nós vamos saber. E depois vamos matar a Jenny. Compreende o que lhe estou a dizer, Mary?
Mary assentiu com a cabeça uma vez. Catherine pegou na Mauser pelo cano, ergueu-a bem alto e bateu com ela na cabeça de Mary. Perdendo os sentidos, Mary afundou-se para a frente, com o sangue a escorrer-lhe do cabelo para os olhos. Catherine pôs-se diante da lareira prestes a apagar-se, à espera de Neumann e da rapariga, à espera de voltar para casa.
CINQUENTA E QUATRO
LONDRES Nesse momento, um táxi parou, no meio de uma chuva fortíssima, à porta de um edifício atarracado e coberto de hera sob o Arco do Almirantado. A porta abriu-se e
um homem pequeno e bastante feio saiu do táxi, apoiando-se acentuadamente numa bengala. Não se tinha incomodado com um guarda-chuva. Eram apenas poucos me tros até à entrada, onde um guarda da Marinha Real estava de senti nela. O guarda fez uma vigorosa continência, que o homem feio não se deu ao trabalho de retribuir, pois isso teria implicado passar a ben gala da mão direita para a esquerda, uma tarefa incómoda. Além do mais, cinco anos após ter sido destacado para a Marinha Real, Arthur Braithwaite continuava a não se sentir à vontade com os costumes e tradições da vida militar.
Oficialmente, Braithwaite só entrava de serviço dali a uma hora. Mas, tal como era seu hábito todos os dias, tinha chegado à Cidadela uma hora mais cedo para ter
mais tempo para se preparar. com uma perna aleijada desde a infância, Braithwaite sabia que para ter êxito tinha de estar mais bem preparado do que as pessoas à sua volta. Era um compromisso que lhe trazia dividendos.
A Sala de Localização de Submarinos - à qual se chegava por um emaranhado de escadas exíguas e tortuosas - não era de fácil acesso para um homem com uma perna gravemente
deformada. Atravessou a Sala dos Gráficos e entrou na Sala de Localização depois de passar por uma porta com um guarda.
A energia e a agitação daquele sítio apoderaram-se dele, tal como acontecia todas as noites. As paredes sem janelas eram da cor da nata azeda e estavam repletas de mapas, cartas de navegação e fotografias de submarinos e das suas tripulações. Várias dezenas de oficiais e de datilógrafas trabalhavam às secretárias, à roda da sala. No meio, estava a principal mesa de localização para o Atlântico Norte, com pioneses coloridos a assinalarem a posição de cada navio de guerra, navio de carga e submarino, do mar Báltico a Cape Cod.
Uma grande fotografia do almirante Karl Dònitz, o comandante da Kriegsmarine, lançava um olhar ameaçador da parede onde se encontrava pendurada. Braithwaite, tal como fazia todas as manhãs, piscou-lhe o olho e disse: bom dia, Herr Admirai. A seguir, abriu a porta do seu cubículo de vidro, tirou o casaco e sentou-se à secretária.
Estendeu a mão na direção da pilha de mensagens por descodificar que o aguardava todas as manhãs e pensou: Estás bem longe de
1939, meu velho.
Em 1939, tinha licenciaturas em Direito e Psicologia tiradas em Cambridge e Yale e estava à procura de alguma coisa para fazer com elas. Quando a guerra rebentou,
tentou dar utilidade ao seu alemão fluente voluntariando-se para interrogar prisioneiros de guerra alemães. Os seus superiores ficaram tão impressionados que recomendaram
uma transferência para a Cidadela, na qual foi destacado, como voluntário civil, para a Sala de Localização de Submarinos, no auge da Batalha do Atlântico. O intelecto
e a determinação de Braithwaite fizeram-no distinguir-se rapidamente. Dedicou-se por inteiro ao trabalho, voluntariou-se para prestar serviços adicionais e leu todos
os livros que conseguiu encontrar sobre a história e as táticas navais alemãs. Possuidor de uma memória quase perfeita, decorou as biografias de todos os Kapitànleutnant
da U-bootewaffe. No espaço de poucos meses, desenvolveu uma capacidade extraordinária para prever os movimentos dos submarinos alemães. Nada disso passou despercebido.
Atribuíram-lhe o posto de comandante temporário e colocaram-no à frente da localização de submarinos, um feito espantoso para alguém que não tinha passado pelo Dartmouth Naval College.
O seu assessor bateu ao de leve na porta de vidro, aguardou que Braithwaite assentisse com a cabeça e entrou.
- bom dia, senhor - disse, pousando uma bandeja com um bule de chá e biscoitos.
- bom dia, Patrick.
- O tempo manteve as coisas razoavelmente sossegadas ontem à noite, senhor. Não foram avistados submarinos alemães a virem à superfície em lado nenhum. A tempestade
afastou-se do oeste. Agora, é o leste que está a suportar o impacto, de Yorkshire a Suffolk.
Braithwaite assentiu com a cabeça e o assessor foi-se embora. As primeiras mensagens eram coisas convencionais, interceções de comunicações de rotina entre submarinos
e o BdU. A quinta chamou-lhe a atenção. Era um alerta emitido por um major Alfred Vicary do Ministério da Guerra. Indicava que as autoridades se encontravam a perseguir
duas pessoas, um homem e uma mulher, que poderiam estar a tentar fugir do país. Braithwaite sorriu perante os eufemismos cautelosos de Vicary. Era evidente que Vicary era do MI5. O homem e a mulher eram obviamente agentes alemães e fosse o que fosse em que estavam envolvidos devia ser bem importante, caso contrário o alerta não lhe teria passado pela secretária. Pôs o alerta de Vicary de lado e continuou a ler.
Após mais algumas mensagens rotineiras, Braithwaite deu com outra coisa que lhe chamou a atenção. Um membro do ramo feminino da Marinha Real Britânica, da estação de recolha de comunicações de Scarborough, tinha intercetado o que julgava ser uma comunicação entre um submarino alemão e um rádio em terra. O sistema Huff Duff tinha indicado que o transmissor se encontrava algures na costa leste - algures entre Lincolnshire e Suffolk. Braithwaite tirou a mensagem da pilha e colocou-a ao lado do alerta de Vicary.
Levantou-se e coxeou para fora do gabinete e, já na sala principal, parou junto à mesa de localização para o Atlântico Norte. Dois membros da sua equipa estavam a reposicionar alguns pinos coloridos, na sequência de movimentações noturnas. Braithwaite pareceu não reparar neles. De rosto fechado, fixou o olhar nas águas ao largo da costa leste britânica.
Passado um momento, disse em voz baixa:
- Patrick, traga-me o dossiê do U-509.
CINQUENTA E CINCO
HAMPTON SANDS, NORFOLK
Jenny atingiu o pinhal no fundo das dunas e caiu exausta. Tinha corrido instintivamente, como um animal assustado. Tinha-se mantido longe da estrada, não saindo dos prados e dos pântanos, alagados pela chuva. Tinha caído tantas vezes que até perdera a conta. Estava cheia de lama, cheirava a terra em decomposição e a mar. A cara, fustigada pela chuva e pelo vento, doía-lhe como se tivesse sido esbofeteada. E tinha frio - mais frio do que alguma vez sentira na vida. Era como se o oleado pesasse uns cinquenta quilos. As botas de borracha estavam cheias de água e tinha os pés a congelar. Foi então que se lembrou de que tinha saído sem meias do chalé. Pôs-se de gatas, a ofegar com falta de ar. Tinha a garganta seca e sabia-lhe a ferrugem.
Deixou-se ficar assim durante um momento, até que a respiração acalmasse, e depois forçou-se a levantar-se e a penetrar no meio das árvores. Estava escuro como breu, tão escuro que teve de avançar com as mãos esticadas para a frente, como um cego às apalpadelas num local desconhecido. Estava zangada consigo mesma por não ter trazido a lanterna.
O som do vento, o estrondo das ondas a rebentarem na praia e os guinchos das aves marinhas enchiam o ar. As árvores já pareciam estar dispostas de uma forma familiar. Jenny orientava-se pela memória, como alguém a arrastar os pés pela própria casa, no escuro.
As árvores desapareceram: o seu esconderijo secreto surgiu diante dela.
Escorregou pelo declive e sentou-se encostada à grande rocha. Os pinheiros contorciam-se ao vento, por cima da sua cabeça, mas Jenny estava abrigada do pior da tempestade. Queria imenso fazer uma fogueira, mas o fumo seria visível de muito longe. Desenterrou a mala debaixo da caruma de pinheiro, tirou de lá o velho cobertor de lã e enrolou-se toda nele.
Começou a sentir o calor. Foi então que começou a chorar. Perguntou-se quanto tempo teria de esperar ali até poder ir procurar ajuda. Dez minutos? Vinte minutos?
Meia hora? Perguntou-se se Mary ainda estaria no chalé quando ela lá voltasse. Perguntou-se se estaria ferida. Uma imagem horrenda do cadáver do pai passou-lhe diante
dos olhos. Sacudiu a cabeça para tentar que ela desaparecesse. Tremeu e depois enrolou-se ainda mais no cobertor.
Trinta minutos. Iria esperar trinta minutos. Por essa altura, já se teriam ido embora e seria seguro regressar.
Neumann estacionou no fim do trilho, pegou na lanterna que estava no banco do passageiro e saiu da carrinha. Acendeu a lanterna e avançou rapidamente por entre as
árvores. Escalou as dunas e desceu aos tropeções pelo outro lado. Desligou a lanterna e deslocou-se pela praia, em direção à beira-mar. Quando atingiu a areia molhada
e dura, onde as ondas rebentavam na praia, começou a correr levemente, com a cabeça baixa para avançar contra o vento.
Recordou-se da manhã em que estava a correr na praia e vira Jenny a sair das dunas. Recordou-se do aspeto dela, como se tivesse dormido na praia naquela noite. Tinha a certeza de que ela tinha alguma espécie de esconderijo ali perto, para onde ia quando as coisas em casa ficavam más. Estava assustada, em fuga e sozinha. Iria fugir para o sítio que conhecia melhor, como fazem as crianças. Neumann foi até ao ponto da praia que utilizava como meta imaginária, depois parou e caminhou em direção às dunas.
Já do outro lado, voltou a acender a lanterna, deu com um trilho pisado e seguiu-o. Ia dar a uma pequena depressão no terreno, abrigada do vento pelas árvores e por um par de grandes pedregulhos. Apontou a lanterna para a depressão e o feixe luminoso apanhou o rosto de Jenny Colville.
- Qual é o seu nome verdadeiro? - perguntou Jenny enquanto seguiam na carrinha para o chalé dos Dogherty.
- O meu nome verdadeiro é tenente Horst Neumann.
- E porque fala inglês tão bem?
- O meu pai era inglês e eu nasci em Londres. A minha mãe e eu mudámo-nos para a Alemanha quando ele morreu.
- E é um espião alemão?
- Qualquer coisa do género.
- E o que aconteceu a Sean e ao meu pai?
- Estávamos a utilizar o rádio no celeiro de Sean quando o teu pai nos apareceu de rompante. Sean tentou para-lo e o teu pai matou-o. Catherine e eu matámos o teu
pai. Lamento imenso, Jenny. Aconteceu tudo muito depressa.
- Cale-se! Não quero que me diga que lamenta imenso! Neumann manteve-se em silêncio.
Jenny perguntou:
- E agora o que vai acontecer?
- Vamos fazer uma viagem pela costa até ao rio Humber. Chegados lá, vamos para o mar num barco pequeno para irmos ter com um submarino alemão.
- Espero que vos apanhem. E espero que vos matem.
- Eu diria que isso é uma possibilidade muito forte.
- O senhor é um sacana! Porque andou à luta com o meu pai por causa de mim?
- Porque gosto muito de ti, Jenny Colville. Menti-te em relação a tudo o resto, mas a verdade é essa. Agora, faz exatamente o que eu te disser e não te vai acontecer
nada de mal. Compreendes?
Jenny assentiu com a cabeça. Neumann virou para o chalé dos Dogherty. A porta abriu-se e Catherine saiu. Dirigiu-se para a carrinha e olhou lá para dentro, vendo
Jenny. A seguir, olhou para Neumann e disse em alemão:
- Amarra-a e enfia-a na parte de trás. Vamos levá-la connosco. Nunca se sabe quando é que um refém pode vir a calhar.
Neumann abanou a cabeça e respondeu na mesma língua:
- O melhor é deixá-la aqui e pronto. Não nos serve de nada e ainda é capaz de lhe acontecer alguma coisa.
- Está a esquecer-se de que sou seu superior, tenente?
- Não, major - retorquiu Neumann, com a voz tingida de sarcasmo.
- Ótimo. Agora, amarra-a e vamos pôr-nos a milhas deste lugar
horrível.
Neumann voltou ao celeiro para procurar um bocado de corda. Encontrou-o, pegou no candeeiro e começou a ir-se embora. Olhou uma última vez para o corpo de Sean Dogherty,
estendido no chão e tapado pela velha serapilheira. Neumann não conseguia deixar de se sentir culpado pela sucessão de acontecimentos que tinha levado à morte de
Sean. Se não tivesse lutado com Martin, este não teria aparecido no celeiro com uma caçadeira. Sean estaria a ir com eles para a Alemanha e não estendido no chão do seu celeiro, sem metade do peito. Apagou o candeeiro, deixando os corpos na escuridão, e saiu, fechando a porta do celeiro.
Jenny não resistiu nem lhe dirigiu uma única palavra. Neumann amarrou-lhe as mãos à frente, para que ela se pudesse sentar mais confortavelmente. Verificou o nó, para se certificar de que não estava demasiado apertado. A seguir, atou-lhe os pés. Quando terminou, levou-a para a parte de trás da carrinha, abriu as portas e meteu-a lá dentro.
Despejou mais um bidão de gasolina no depósito e atirou o recipiente vazio para o prado.
Não havia sinal de vida no trilho entre o chalé e a aldeia. Era óbvio que os tiros tinham passado despercebidos em Hampton Sands. Atravessaram a ponte, passaram a grande velocidade pelo pináculo da St. John's Church e continuaram pela rua às escuras. A aldeia estava tão silenciosa que mais parecia ter sido evacuada.
Catherine ia ao lado de Neumann, calada e a recarregar a Mauser.
Neumann carregou a fundo no acelerador e Hampton Sands desapareceu atrás deles.
CINQUENTA E SEIS
LONDRES
Arthur Braithwaite fixou o olhar na mesa de localização enquanto esperava pelo dossiê do U-509. Não que Braithwaite precisasse dele para grande coisa - achava que sabia tudo o que havia para saber sobre o comandante do submarino e podia provavelmente recitar todas as patrulhas que o submarino já tinha realizado. Só queria confirmar umas quantas coisas antes de telefonar para o MI5.
As movimentações do U-509 andavam a intrigá-lo há várias semanas. O submarino parecia estar a patrulhar o mar do Norte sem nenhum objetivo, navegando sem destino em particular e passando longos períodos sem contactar o BdU. E quando dava de facto notícias, comunicava uma posição ao largo da costa britânica, perto de Spurn
Head. E também tinha sido avistado em fotografias aéreas num recinto para submarinos, no sul da Noruega. Não tinha sido visto a vir à superfície e não atacara nenhum
navio de guerra nem nenhum navio mercante dos Aliados.
Braithwaite pensou: Andas só para aí a tentar passar despercebido, sem fazer absolutamente nada. Bem, não acredito nisso, Kapitànleutnant Hoffman.
Ergueu os olhos para o rosto severo de Dónitz e murmurou:
- Porque deixarias um submarino e uma tripulação em perfeitas condições serem desperdiçados dessa maneira?
Passado um momento, o assessor regressou com o dossiê.
- Aqui está, senhor.
Braithwaite não pegou no dossiê; em vez disso, começou a recitar o que lá vinha escrito.
- O capitão chama-se Max Hoffman, se bem me lembro.
- Correto, senhor.
- Cruz de Cavaleiro da Cruz de Ferro em 1942, Folhas de Carvalho um ano depois.
- Colocadas pelo próprio Fúhrer.
- E agora a parte importante. Julgo que fez parte do sfaffde Canaris, na Abwehr, durante um curto período antes da guerra.
O assessor folheou o dossiê.
- Sim, aqui está, senhor. Hoffman foi destacado para o quartel-general da Abwehr, em Berlim, entre 38 e 39. Quando a guerra rebentou, foi outra vez transferido para a Kriegsmarine e recebeu o comando do U-509.
Braithwaite estava a olhar novamente para a mesa com o mapa.
- Patrick, se tivesse um importante espião alemão a precisar de uma boleia para fora de Inglaterra, não preferiria que fosse um velho amigo a conduzir?
- com certeza, senhor.
- Telefone para o MI5 e peça para falar com Vicary. Acho que precisamos de ter uma conversa.
CINQUENTA E SETE
LONDRES
Alfred Vicary estava parado diante um mapa das Ilhas Britânicas com dois metros e meio de altura, a fumar sem parar, a beber um chá horrível e a pensar: Agora sei como é que Adolf Hitler se deve sentir. com base no telefonema do comandante Lowe, da estação de recolha de comunicações de Scarborough, naquele momento era seguro partir do princípio de que os espiões estavam a tentar escapulir-se de Inglaterra a bordo de um submarino. Mas Vicary tinha um problema muito simples e, no entanto, muito grave. Fazia apenas uma vaga ideia de quando e uma ideia ainda mais vaga de como.
Partiu do princípio de que os espiões teriam de se encontrar com o submarino antes do amanhecer; seria demasiado perigoso para um submarino alemão manter-se à superfície perto da costa depois dos primeiros raios de luz do dia. Era possível que o submarino pretendesse desembarcar alguns membros da tripulação por meio de um bote de borracha - era assim que a Abwehr introduzia muitos dos seus espiões no Reino Unido -, mas Vicary duvidava que o tentassem fazer com mares revoltos. Por outro lado,
roubar um barco não era tão fácil como parecia. A Marinha Real tinha apreendido quase tudo o que conseguia flutuar. E a pesca no mar do Norte tinha diminuído porque
as águas costeiras se encontravam repletas de minas. Dois espiões em fuga teriam grandes dificuldades em encontrar um barco capaz de andar no mar em tão pouco tempo, com uma tempestade e durante o blackout.
Pensou: Se calhar, os espiões já têm um barco.
A pergunta mais exasperante era onde. De que ponto da costa iriam partir para o mar? Vicary olhou fixamente para o mapa. A estacão de recolha de comunicações não conseguia apontar a localização exata do transmissor. Só para que pudesse considerar essa hipótese, Vicary escolheu precisamente o centro da vasta área que lhe tinham indicado. Percorreu o mapa com o dedo até chegar à costa de Norfolk.
Sim, fazia todo o sentido. Vicary conhecia bem os horários dos caminhos de ferro. Um espião poder-se-ia esconder numa das aldeias da costa e ser também capaz de chegar a Londres em três horas graças ao comboio direto que saía de Hunstanton.
Vicary partiu do princípio de que teriam um bom veículo e bastante gasolina. Tinham efetuado uma viagem considerável desde Londres e, devido à forte presença policial nas linhas férreas, tinha praticamente a certeza de que não o tinham feito de comboio.
Pensou: Então, até que ponto da costa de Norfolk conseguiriam eles ir até se enfiarem num barco e partirem para o mar?
Provavelmente, o submarino não se aproximaria mais do que oito quilómetros da costa. Os espiões demorariam uma hora a percorrer esses oito quilómetros, se não mais.
E se o submarino submergisse aos primeiros raios de luz do dia, os espiões teriam de partir para o mar no máximo às seis horas, para jogarem pelo seguro. A mensagem
radiofónica tinha sido enviada às 22h. Isso deixava-lhes oito horas de potencial tempo de condução. Até onde poderiam ir? Tendo em conta o tempo que fazia, o blackout e as fracas condições das estradas, entre cento e cinquenta e duzentos e cinquenta quilómetros.
Vicary olhou para o mapa, desanimado. com isso, ainda restava uma enorme faixa da costa britânica, que se estendia do estuário do Tamisa, a sul, ao rio Humber, a norte. Seria praticamente impossível abarcar tudo. O litoral estava semeado de pequenos portos, aldeias piscatórias e cais. Vicary tinha pedido às forças policiais locais para percorrerem a costa com o máximo de homens possível. O Comando Costeiro da RAF tinha concordado em dar início a missões de busca logo que amanhecesse, embora Vicary temesse que fosse demasiado tarde. As corvetas da Marinha Real andavam à procura de
barcos pequenos, ainda que fosse praticamente impossível localiza-los numa noite chuvosa e escura, em pleno mar. Sem outra pista -- um segundo sinal de rádio intercetado ou um avistamento -, não havia grande esperança de os apanhar. O telefone tocou.
- Vicary.
- Daqui fala o comandante Arthur Braithwaite, da Sala de Localização de Submarinos. Vi o seu alerta quando entrei ao serviço e acho que lhe posso dar uma ajuda bastante importante.
- A Sala de Localização de Submarinos diz que o U-509 anda há umas quantas semanas a aproximar-se e a afastar-se da costa de Lincolnshire - revelou Vicary.
Boothby tinha descido para acompanhar Vicary na vigília defronte do mapa.
- Se concentrarmos todos os nossos homens e recursos em Lincolnshire, temos boas hipóteses de os parar.
- Continua a ser muita costa para abarcar. Vicary estava a olhar de novo para o mapa.
- Qual é a maior terra daquela região?
- Grimsby, diria eu.
-- Mas que apropriado, Grimsby. E quanto tempo é que acha que eu levaria a chegar lá?
- A divisão dos Transportes pqdia arranjar-lhe boleia, mas levaria horas.
Vicary fez uma careta. A divisão dos Transportes possuía alguns carros velozes precisamente para casos destes. Tinham condutores experimentados de reserva, especializados em perseguições a alta velocidade; um ou dois até tinham competido em corridas profissionais antes da guerra. Mas Vicary achava que os condutores, apesar de brilhantes, eram demasiado imprudentes. Lembrou-se da noite em que tinha sacado o espião da praia na Cornualha, recordando-se de estar a atravessar em grande velocidade a noite da Cornualha, durante o blackout, num Rover todo modificado, e a rezar para viver o suficiente para poder fazer aquela detenção.
Vicary perguntou:
- Então e se fosse um avião?
- Tenho a certeza de que lhe podia arranjar uma boleia com a RAF. Há uma pequena base de caças nos arredores de Grimsby. Podiam lá pô-lo em mais ou menos uma hora e podia servir-se da base como posto de comando. Mas já olhou pela janela nas últimas horas? Está uma noite horrível para se andar de avião.
- Eu tenho noção disso, mas tenho a certeza de que poderia coordenar melhor a busca se estivesse lá, no terreno - retorquiu Vicary, afastando-se do mapa e olhando para Boothby. - E ocorreu-me outra coisa. Se os conseguirmos deter antes de enviarem uma mensagem para Berlim, talvez possa enviá-la eu por eles.
- Engendrando uma explicação qualquer para a decisão deles de fugirem de Londres que reforce a confiança na Operação Kettledrum?
- Exato.
- Bem pensado, Alfred.
- Gostava de levar dois homens comigo: Roach e Dalton, se ele estiver em condições.
Boothby hesitou.
- Acho que também devia levar outra pessoa.
- Quem?
- Peter Jordan. -Jordan!
- Veja a coisa do outro lado do espelho. Se Jordan foi enganado e traído, não iria querer estar lá no fim, para presenciar a morte de Catherine Blake? Eu sei que iria querer de certeza. Iria querer carregar eu próprio no gatilho. Se estivesse no lugar dele. E os alemães também têm de achar isso. Temos de fazer tudo o que for possível para fazer com que acreditem na ilusão da Operação Kettledrum.
Vicary pensou no dossiê vazio que se encontrava nos Registos. O telefone voltou a tocar.
- Vicary.
Era uma das telefonistas do departamento.
- Professor Vicary, tenho uma chamada interurbana de um superintendente-chefe Perkin, da polícia de King's Lynn, em Norfolk. Diz que é bastante urgente.
- Passe-mo.
Hampton Sands era demasiado pequena, demasiado isolada e demasiado sossegada para justificar ter o seu próprio polícia. Partilhava um com mais quatro aldeias da costa de Norfolk, Holme, Thornton, Titchwell e Brancaster. O polícia era um homem chamado Thomasson, um veterano que trabalhava na costa de Norfolk desde a grande guerra anterior. Thomasson vivia numa casa da polícia, em Brancaster, e devido às necessidades do trabalho tinha o seu próprio telefone.
Uma hora antes, o telefone tinha tocado, acordando Thomasson, a mulher e o seu setter inglês, Rags. A voz do outro lado da linha pertencia ao superintendente-chefe Perkin, de King's Lynn. O superintendente informou Thomasson do telefonema importante que tinha recebido do Ministério da Guerra, em Londres, a pedir auxílio às forças policiais locais na busca de dois fugitivos suspeitos de homicídio.
Dez minutos depois de receber o telefonema de Perkin, Thomasson já estava a sair do chalé, com uma capa de oleado azul, um chapéu impermeável atado por baixo do queixo e um termos de chá doce que Judith lhe tinha preparado rapidamente. Foi buscar a bicicleta ao barracão nas traseiras da casa e, a seguir, partiu para o centro da aldeia. Rags, que acompanhava sempre Thomasson nas suas rondas, seguia descontraidamente ao lado dele.
Thomasson tinha cinquenta e tal anos. Nunca fumava, raramente tocava em álcool e trinta anos a percorrer de bicicleta a costa ondulante de Norfolk tinham-no deixado em forma e cheio de força. As pernas grossas e bem musculadas pedalavam facilmente, impulsionando a pesada bicicleta de ferro na direção de Brancaster. Tal como suspeitava, reinava um silêncio de morte na aldeia. Podia ir bater a algumas portas, acordar umas quantas pessoas, mas conhecia toda a gente na aldeia e não havia lá ninguém que estivesse a abrigar assassinos em fuga. Passou uma vez pelas ruas silenciosas e depois virou para a estrada costeira e seguiu para a aldeia seguinte, Hampton Sands.
O chalé dos Colville ficava a uns quinhentos metros da aldeia. Toda a gente conhecia a história de Martin Colville. Tinha sido abandonado pela mulher, bebia imenso
e mal conseguia viver da sua pequena propriedade. Thomasson sabia que Colville era demasiado duro com a filha, Jenny. E também sabia que Jenny passava muito tempo nas dunas; Thomasson encontrara as coisas dela depois de um dos habitantes da aldeia se queixar de que havia ciganos a viverem na praia. Deixou que a bicicleta parasse e apontou a lanterna para o chalé dos Colville. Estava às escuras e não havia fumo a sair da chaminé.
Thomasson empurrou a bicicleta pelo caminho de acesso e bateu à porta. Ninguém respondeu. Receando que Colville estivesse bêbado ou desmaiado, voltou a bater, com mais força. Mais uma vez, ninguém respondeu. Abriu a porta e espreitou lá para dentro. O interior da casa estava às escuras. Gritou pelo nome de Colville uma última vez. Como ninguém respondesse, foi-se embora do chalé e continuou em direção a Hampton Sands.
Tal como Brancaster, Hampton Sands estava silenciosa e numa escuridão completa. Thomasson atravessou a aldeia, passando pelo Arms, pela loja da aldeia e pela St. John's Church. Atravessou a ponte sobre a enseada. Sean e Mary Dogherty viviam a cerca de um quilómetro e meio da aldeia. Thomasson sabia que Jenny Colville vivia praticamente com os Dogherty. Era muito provável que estivesse a passar a noite lá. Mas onde estaria Martin?
Foi um quilómetro e meio difícil, com o trilho a subir e a descer à medida que avançava. À sua frente, no escuro, conseguia ouvir o clicar das patas de Rags no trilho e o ritmo constante da respiração do cão. O chalé dos Dogherty surgiu diante dele. Pedalou pelo caminho de entrada, parou e apontou a lanterna de um lado para o outro.
Houve qualquer coisa no prado que lhe chamou a atenção. Deslocou o feixe luminoso sobre a vegetação e - ali - ali estava aquilo outra vez. Avançou com dificuldade pelo meio do prado encharcado e baixou-se para apanhar o objeto. Era um bidão vazio. Cheirou-o gasolina. Virou-o ao contrário. Um fio de gasolina escorreu para fora.
Dirigiu-se para o chalé dos Dogherty, com Rags à sua frente. Viu a carrinha velha e em mau estado de Sean Dogherty estacionada no pátio. Depois, avistou duas bicicletas caídas no meio da vegetação, ao
lado do celeiro. Thomasson avançou até ao chalé e bateu à porta. Tal como no chalé dos Colville, ninguém respondeu.
Thomasson não se deu ao trabalho de bater uma segunda vez. Já se encontrava completamente alarmado com o que tinha visto. Abriu a porta e gritou
Olá. Ouviu um ruído
estranho, como gemidos abafados. Apontou a lanterna para a sala e viu Mary Dogherty amarrada a uma cadeira e com a boca amordaçada.
Thomasson correu para ela, com .Rags a ladrar furiosamente, e desatou rapidamente o pano que tinha à volta da cara.
- Mary! Mas que raio é que se passou aqui? ! Mary, nervosíssima, ofegou com falta de ar.
- Sean... Martin... mortos... celeiro... espiões... submarino... Jenny!
- Daqui fala Vicary.
- Superintendente-chefe Perkin, da polícia de King's Lynn.
- E o que tem para me dizer? - Dois cadáveres, uma mulher histérica e uma rapariga desaparecida.
- Meu Deus! Comece do início.
- Depois de ter recebido a sua chamada, mandei todos os meus agentes fazerem rondas. O agente Thomasson é responsável por um punhado de pequenas aldeias no norte da costa de Norfolk. Foi ele que deparou com os sarilhos.
- Continue.
- Aconteceu tudo num sítio chamado Hampton Sands. A não ser que tenha um mapa grande, não é provável que o encontre. Mas se tiver, descubra Hunstanton, na Wash, e percorra o leste da costa de Norfolk com o dedo e vai ver Hampton Sands.
- Já a encontrei.
Era praticamente o ponto onde Vicary tinha imaginado que o transmissor pudesse estar.
- Thomasson deu com dois corpos num celeiro, numa quinta logo à saída de Hampton Sands. As vítimas são dois habitantes locais, Martin Colville e Sean Dogherty. Dogherty é irlandês. Thomasson encontrou a mulher de Dogherty, Mary, amarrada e amordaçada
no chalé. Tinha levado uma pancada na cabeça e estava num estado de histeria quando Thomasson a descobriu. Contou-lhe uma história e pêras.
- Não há nada que me vá surpreender, superintendente. Por favor, continue.
- A senhora Dogherty diz que o marido anda a espiar para os alemães desde o começo da guerra, nunca foi um homem armado do IRA a cem por cento, mas tinha ligações ao grupo. Ela diz que, há umas semanas, os alemães largaram outro agente na praia, chamado Horst Neumann, e que Dogherty o acolheu. O agente tem estado a morar com eles desde então e a viajar para Londres regularmente.
- E o que aconteceu hoje à noite?
- Ela não sabe ao certo. Ouviu tiros, foi a correr para o celeiro e deu com os corpos. O alemão disse-lhe que Colville lhes tinha entrado por ali de rompante e que fora então que o tiroteio começara.
- E estava lá alguma mulher com Neumann?
- Estava.
- Fale-me da rapariga que desapareceu.
- É a filha de Colville, Jenny. Não está em casa e encontraram a bicicleta dela junto ao chalé dos Dogherty. Thomasson acha que ela seguiu o pai, assistiu ao tiroteio ou ao rescaldo e fugiu. Mary tem medo que o alemão tenha descoberto a rapariga e a tenha levado com ele.
- E ela sabe para onde é que eles iam?
- Não, mas diz que vão numa carrinha... talvez preta.
- E onde está ela agora?
- Continua no chalé.
- E onde está o agente Thomasson?
- Continua em linha, numpub em Hampton Sands.
- E havia algum indício de um rádio no chalé ou no celeiro?
- Espere um momento, deixe-me perguntar-lhe.
Vicary ouviu Perkin, com a voz abafada, a fazer a pergunta.
- Ele diz que viu uma engenhoca no celeiro que poderia ser um rádio.
- E era parecida com quê?
- com uma mala com uma coisa parecida com uma telefonia. Foi destruída por um tiro de caçadeira.
- E quem mais é que sabe disto?
- Eu, Thomasson e provavelmente o dono dopub. Suspeito que ele deve estar ao lado de Thomasson neste preciso momento.
- Não quero que fale a quem quer que seja do que se passou esta noite no chalé dos Dogherty. Não pode haver referências a agentes alemães em nenhum relatório sobre esta questão. Isto é um assunto de segurança da máxima importância. Estamos entendidos, superintendente?
- Estamos.
- vou enviar uma equipa de homens para Norfolk para o auxiliar. Por agora, deixe Mary Dogherty e esses corpos exatamente onde estão.
- Sim, senhor.
Vicary estava outra vez a olhar para o mapa.
- bom, superintendente, eu tenho informações que me levam a suspeitar que, com toda a probabilidade, esses fugitivos estão a dirigir-se precisamente para onde se encontra. Julgamos que o destino final deles é a costa de Lincolnshire.
- Já chamei todos os meus homens. Estamos a barricar todas as estradas principais.
- Mantenha o Ministério informado de todos os desenvolvimentos. E boa sorte.
Vicary desligou o telefone e voltou-se para Boothby.
- Eles mataram duas pessoas, têm provavelmente um refém e estão a tentar chegar à costa de Lincolnshire - revelou Vicary, sorrindo ferozmente. - E parece que acabaram de ficar sem o segundo rádio.
CINQUENTA E OITO
LINCOLNSHIRE, INGLATERRA
Duas horas depois de terem saído de Hampton Sands, Horst Neumann e Catherine Blake começaram a ter sérias dúvidas sobre as hipóteses de chegarem a tempo ao ponto de encontro com o submarino. Para escapar à costa de Norfolk, Neumann refez o seu percurso, subindo o grupo de colinas no coração de Norfolk e seguindo depois a estreita faixa de estrada pela região pantanosa e pelas povoações às escuras. Contornou King's Lynn para sudeste, serpenteou por uma série de aldeolas e depois atravessou o rio Great Ouse, numa aldeia chamada Wiggenhall St. Germans.
A viagem pela orla sul da Wash foi um pesadelo. O vento soprava com toda a força, vindo do mar do Norte, e chicoteava os pântanos e diques. A chuva aumentou de intensidade. Às vezes, vinha em rajadas furiosas - em turbilhão, soprada pelo vento, ocultando as bermas da estrada. Neumann curvava-se todo para a frente, quilómetro após quilómetro, agarrando com força o volante com ambas as mãos, enquanto a carrinha avançava a grande velocidade pelo terreno plano. Por vezes, tinha a sensação de estar a flutuar num abismo.
Catherine estava sentada ao lado dele, a ler o mapa antigo de Dogherty, do serviço oficial de topografia e cartografia, à luz da lanterna. Falavam em alemão para
Jenny não perceber. Neumann achava o alemão de Catherine curioso: átono, sem entoação especial nem sotaque regional. O tipo de alemão que é uma segunda ou terceira
língua. O tipo de alemão que não é falado há muito tempo.
Neumann traçou o caminho com as instruções de navegação de Catherine.
O barco estaria á espera deles numa terra chamada Cleethorpes, que ficava perto do porto de Grimsby, na foz do Humber. Assim que deixassem a Wash para trás, não teriam povoações grandes pelo caminho. De acordo com os mapas, havia uma estrada boa - a Al 6
- que seguia vários quilómetros para o interior, ao longo do sopé das colinas de Lincolnshire Wolds, e depois em direção ao Humber. Para efeitos de planeamento,
Neumann partiu do pressuposto de que as coisas correriam da pior maneira. Partiu do pressuposto de que Mary acabaria por ser encontrada, de que o MI5 acabaria por ser alertado e de que seriam estabelecidas barricadas em todas as estradas principais perto do litoral. Apanharia a Al 6 até meio do caminho para Cleethorpes e, a seguir, mudaria para uma estrada secundária que seguia mais perto da costa.
Avistou Boston perto da margem ocidental da Wash. Era a última cidade grande que os separava do Humber. Neumann deixou a estrada principal, avançou lentamente por tranquilas estradas secundárias e depois reentrou na Al 6 a norte da cidade. Carregou no acelerador e puxou fortemente pela carrinha por entre a tempestade.
Catherine desligou a lanterna para o blackout e olhou para a chuva a rodopiar à fraca luz dos faróis.
- Como é que andam as coisas agora... em Berlim? Neumann manteve os olhos na estrada.
- É o paraíso. Estamos todos felizes, trabalhamos muito nas fábricas, agitamos os punhos contra os bombardeiros americanos e britânicos e toda a gente ama o Fúhrer.
-- Pareces um filme de propaganda do Goebbels.
- A verdade não é assim tão divertida. Berlim está muito mal. Os americanos vêm de dia com os seus B-17 e os britânicos vêm à noite com os seus lancasters e Halifaxes. Há dias em que parece que a cidade está sob bombardeamento constante. Grande parte do centro de Berlim é um monte de destroços.
- Tendo eu passado também pela Blitz, receio bem que a Alemanha mereça tudo o que os americanos e britânicos lhe conseguirem infligir. Os alemães foram os primeiros a levar a guerra à população
civil. Não posso verter muitas lágrimas por Berlim estar agora a ser reduzida a pó.
- Pareces uma verdadeira britânica.
- E sou meia britânica. A minha mãe era inglesa. E há seis anos que vivo com os britânicos. É difícil não nos esquecermos de que lado supostamente estamos quando nos encontramos numa situação dessas. Mas fala-me mais de Berlim.
- Quem tem dinheiro ou ligações consegue comer bem. Quem não tem não consegue. Os russos inverteram por completo a situação no Leste. Desconfio que meia Berlim esteja
desejosa de que a invasão aconteça para que os americanos cheguem a Berlim antes dos russos.
- Isso é tão tipicamente alemão. Elegem um psicopata, dão-lhe poder absoluto e depois choram porque ele os conduziu à beira da destruição.
Neumann riu-se.
- Se foste abençoada com essa capacidade de prever o futuro, por que raio é que te voluntariaste para ser
espiã?
- E quem é que falou em voluntariado?
Passaram rapidamente por duas aldeias - primeiro, Stickney, depois, Stickford. O aroma de fumo vindo de lareiras a arderem nas pequenas casas invadiu a carrinha.
Neumann ouviu um cão a ladrar e, a seguir, outro. Enfiou a mão no bolso, tirou de lá os cigarros e passou-os a Catherine. Ela acendeu dois, ficou com um e deu-lhe o outro.
- Importas-te de explicar essa última observação?
Ela pensou: Importo-me? Era uma sensação tão estranha, após todos aqueles anos, estar a falar sequer alemão. Tinha passado seis anos a esconder o mais pequeno resquício de verdade sobre si. Tinha-se tornado outra pessoa, tinha apagado todos os aspetos da sua personalidade e do seu passado. Quando pensava na pessoa que era antes de Hitler e antes da guerra, era como se estivesse a pensar noutra pessoa.
Anna Katarina von Steiner morreu num infeli acidente de automóvel, à saída de Berlim.
- Bem, eu não fui propriamente ao gabinete da Abwehr lá da zona para me alistar - afirmou ela. - Mas também suponho que
não haja ninguém nesta atividade a conseguir trabalho dessa maneira pois não? Eles é que vêm sempre ter connosco. No meu caso, eles foram Kurt Vogel.
Contou-lhe a história, a história que nunca tinha contado a ninguém. A história do verão em Espanha, o verão em que rebentou a guerra civil. O verão na estancia de Maria. O caso com o pai de Maria.
- Só para veres a minha sorte, acontece que ele era um fascista e um caçador de talentos para a Abwehr. Vendeu-me a Vogel e Vogel veio à minha procura.
- E porque é que não disseste simplesmente não?
- Porque é que nenhum de nós disse simplesmente não? No meu caso, ele ameaçou quem eu mais quero neste mundo... o meu pai. É isso que um bom responsável operacional
faz. Entra-nos na cabeça. Consegue saber como é que pensamos, o que é que sentimos. O que é que amamos e o que é que tememos. E depois usa isso para nos pôr a fazer
o que ele quer que façamos.
Ela fumou em silêncio por um momento, observando enquanto passavam por outra aldeia.
- Ele sabia que eu tinha vivido em Londres quando era criança, que falava a língua perfeitamente, que já sabia usar uma arma e que...
Silêncio durante um momento. Neumann não insistiu com ela. Limitou-se a esperar, fascinado.
- Ele sabia que eu tinha a personalidade adequada para a missão que tinha em mente. Estive quase seis anos no Reino Unido, sozinha, praticamente sem contacto com ninguém do meu lado: nem amigos, nem família, nenhum contacto com outros agentes, nada. Foi mais uma sentença de prisão do que uma missão. Nem te consigo dizer quantas vezes sonhei em voltar a Berlim e matar Vogel com uma das maravilhosas técnicas que ele e os amigos me ensinaram.
- E como entraste no país?
Ela contou-lhe... contou-lhe o que Vogel a tinha feito fazer.
- Jesus - murmurou Neumann.
- Uma coisa típica da Gestapo, certo? Passei os seis meses seguintes a preparar a minha nova identidade. Depois instalei-me e esperei. Vogel e eu tínhamos uma forma de comunicar por rádio que
não incluía nomes de código. Portanto, os britânicos nunca me procuraram. Vogel sabia que eu estava segura e infiltrada, pronta para ser ativada. Depois, o idiota deu-me uma missão e fez-me cair mesmo nos braços do MI5 - disse ela, rindo-se baixinho. - Meu Deus, não posso acreditar que estou realmente a voltar para lá depois deste tempo todo. Nunca pensei que ia ver a Alemanha outra vez.
- Não pareces lá muito entusiasmada com a perspetiva de voltar para casa.
- Casa? É difícil pensar na Alemanha como a minha casa. É difícil pensar em mim como alemã. Vogel apagou essa parte de mini no maravilhoso retirozinho dele nas montanhas
da Baviera.
- E o que vais fazer?
- Encontrar-me com Vogel, ter a certeza de que o meu pai ainda está vivo e, a seguir, receber o meu pagamento e partir. Vogel pode arranjar-me outra das identidades falsas dele. Sou capaz de passar por cinco nacionalidades diferentes. Foi isso que me fez ir parar a este jogo logo para começar. É tudo um grande jogo, não é? Um grande jogo.
- E para onde estás a pensar ir?
- vou voltar para Espanha - respondeu ela. - vou voltar para o sítio onde começou tudo.
- Fala-me disso - pediu Neumann. - Preciso de pensar noutra coisa além desta estrada no meio de nenhures.
- Fica nas colinas no sopé dos Pirenéus. De manhã, vamos caçar e, à tarde, subimos às montanhas. Há uma maravilhosa ribeira com lagos fundos e frios e ficamos lá toda a tarde, a beber vinho branco gelado e a sentir o cheiro dos eucaliptos. Costumava pensar nisso o tempo todo quando a solidão me invadia. Às vezes, pensava que ia ficar maluca.
- Parece maravilhoso. Se precisares de um moço de estrebaria, diz-me.
Ela olhou para ele e sorriu.
- Tens sido maravilhoso. Se não fosses tu... - exclamou ela, hesitando antes de continuar. - Meu Deus, nem consigo sequer imaginar.
- Não precisas de agradecer. Fico contente por ter podido ajudar. Não quero estragar a festa, mas ainda não estamos livres de perigo.
- Acredita, tenho consciência disso.
Ela acabou o cigarro, abriu uma nesga do vidro da janela e atirou a ponta para o meio da noite. A beata atingiu a estrada e explodiu em faúlhas. Catherine recostou-se e fechou os olhos. Há já demasiado tempo que eram apenas a adrenalina e o medo que a faziam avançar. A exaustão tomou-a de assalto. O balançar suave da carrinha embalou-a, fazendo-a cair num sono leve, meio acordada.
Neumann perguntou:
- Vogel nunca me disse o teu nome verdadeiro. Qual é?
- O meu nome verdadeiro era Anna Katarina von Steiner -
respondeu ela com o sono a infiltrar-se-lhe na voz. - Mas prefiro que me continues a chamar Catherine. É que Kurt Vogel matou Anna antes de a enviar para Inglaterra. Receio bem que Anna já não exista. Anna está morta.
Quando Neumann falou outra vez, a sua voz estava muito longe, no fim de um grande túnel.
- E como é que uma mulher linda e inteligente como a Anna Katarina von Steiner acabou aqui, desta maneira?
- É uma pergunta muito boa - retorquiu ela, com a fadiga a tomar conta de si, adormecendo de seguida.
O sonho é neste momento a única recordação que ela tem disso; há muito que foi expulsa benevolamente dos seus pensamentos conscientes. Vê-o apenas em breves erupções - vislumbres roubados. As vezes, vê-o com os próprios olhos, como se o estivesse a reviver, e, outras
vezes, o sonho obriga-a a vê-lo de novo, como um espectador
numa bancada.
Esta noite está a revivê-lo.
Está deitada à beira do lago; o papá deixa-a ir sozinha. Sabe que ela não se vai aproximar da água - está demasiado fria para nadar- e sabe que ela gosta de estar
sozinha quando pensa na mãe.
É outono. Ela trouxe um cobertor. A erva alta à beira do lago está húmida da chuva da manhã. O vento move-se nas árvores. Um bando de gralhas revolteia
e dispersa-se ruidosamente por cima da cabeça dela. As árvores derramam flamejantes folhas cor de laranja e vermelhas. Ela observa as folhas a descerem suavemente,
como pequenos balões de ar quente, e a pousarem na superfície encrespada
do lago.
E então que, enquanto segue com os olhos a descida das folhas, vê o homem, parado junto às árvores do outro lado do lago.
Ele fica quieto durante muito tempo, a olhar para ela; a seguir, avança na sua direção. Tra botas altas e um casaco que lhe dá pelas coxas. Tem uma caçadeira de carregar pela culatra aninhada no braço direito. O cabelo e a barba são muito compridos, os olhos vermelhos e húmidos. A medida que se aproxima, ela vê que tem algo pendurado no cinto. Percebe que são dois coelhos ensanguentados. Mortos e flácidos, parecem absurdamente compridos e finos.
O papá tem uma palavra para homens como ele: larápios. Chegam às terras das outras pessoas e matam os animais - veados, coelhos efaisões. Ela acha que é uma palavra engraçada, larápios. Parece referir-se a alguém que prepara ovos de manha. Pensa nisso enquanto o homem se aproxima, e isso fá-la sorrir.
O larápio pergunta se pode sentar-se ao lado dela e ela diz que sim.
Ele põe-se de cócoras e pousa a espingarda na relva.
- Estás aqui sozinha?-pergunta.
- Sim. O meu pai diz que não faz mal.
- E onde está o teu pai agora?
- Está em casa.
- E não vem cá?
- Não.
-Quero mostrar-te uma coisa - diz ele. - Uma coisa que te vai fazer sentir ótima.
Os olhos dele já estão muito húmidos. Está a rir-se; tem os dentes pretos e podres. Ela fica com medo pela primeira
vez. Tenta levantar-se mas ele agarra-a pelos
ombros e empurra-a para baixo, deitando-a no cobertor. Ela tenta gritar mas ele abafa o som com a mão grande e peluda. De repente, está em cima dela; ela fica paralisada
debaixo do peso dele. Ele está a levantar-lhe o vestido e a arrancar-lhe a roupa interior.
A dor não se parece com nada que ela já tenha sentido. Parece que está a ser rasgada. Ele prende-lhe os braços atrás da cabeça com a mão e tapa-lhe a boca com a
outra para ninguém a ouvir gritar. Ela sente os corpos ainda quentes dos
coelhos mortos a pressionarem-lhe a perna. A seguir, o rosto do larápio contorce-se como se ele estivesse com dores e tudo aquilo para tão repentinamente como começou.
Ele está outra vez a falar com ela:
- Viste os coelhos? Viste o que eu fiz aos coelhos?
Ela tenta assentir com a cabeça, mas a mão que lhe tapa a boca está afazer tanta força que ela não consegue mexer a cabeça.
- Se alguma vez disseres a alguém o que aconteceu aqui hoje, faço-te o mesmo. E depois faço o mesmo ao teu pai. Dou um tiro aos dois e, a seguir, penduro as vossas
cabeças no meu cinto. Estás a ouvir, rapariga?
Ela começa a chorar.
- És uma rapariga muito má - diz ele. - Oh, sim, dá para ver isso. Acho que até gostaste disto.
A seguir, faz-lhe aquilo outra vez.
Começam os tremores. Nunca tinha sonhado com aquilo desta maneira. Alguém está a chamar o nome dela - Catherine... Catherine... acorda. Porque é que ele me está
a chamar Catherine? O meu nome é Arma...
Horst Neumann sacudiu-a uma vez mais, com violência, e gritou:
- Catherine, raios partam! Acorda! Temos sarilhos!
CINQUENTA E NOVE
LINCOLNSHIRE, INGLATERRA
Eram três da manhã quando o ILysander atravessou as nuvens espessas e aterrou com um forte solavanco numa pequena base da RAF a três quilómetros da cidade de Grimsby.
Alfred Vicary nunca tinha andado de avião e era uma experiência que desejava não repetir tão depressa. O mau tempo sacudiu o avião durante todo o voo, desde que saíram de Londres, e Vicary nunca se tinha sentido tão satisfeito na vida por ver um lugar quando deslizaram na pista em direção ao pequeno barracão de operações.
O piloto desligou o motor enquanto um tripulante abria a porta da cabine. Vicary, Harry Dalton, Clive Roach e Peter Jordan desceram rapidamente. Estavam dois homens à espera deles, um jovem oficial da RAF, de ombros quadrados, e um homem alto e bexigoso, com uma gabardina em mau estado.
O homem da RAF estendeu a mão e tratou das apresentações.
- Chefe de esquadrilha Edmund Hughes. E o superintendente -chefe da polícia do condado de Lincolnshire, Roger Lockwood. Entrem no barracão das operações. É rudimentar, mas seco, e montámos um posto de comando improvisado para os senhores.
Entraram. O oficial da RAF disse:
- Calculo que não seja tão agradável como os vossos aposentos em Londres.
- Até ficaria surpreendido - respondeu Vicary.
Era uma sala pequena, com uma janela com vista para o aeródromo. Havia um mapa de grande escala de lincolnshire pendurado numa parede e uma secretária com dois telefones maltratados do outro lado da sala.
- Serve perfeitamente.
- Temos um rádio e um teleimpressor - anunciou Hughes. -- Até podemos arranjar chá e sanduíches de queijo. Estão com ar de quem podia comer qualquer coisa.
- Obrigado - respondeu Vicary. - Foi um dia longo. Hughes saiu e o superintendente-chefe Lockwood avançou.
- Temos homens em todas as estradas principais até à Wash disse Lockwood, com o dedo grosso a bater no mapa. - Nas aldeias mais pequenas, só há polícias de bicicleta e portanto receio bem que não sejam capazes de fazer muito se os virem. Mas, à medida que se deslocarem para mais perto da costa, vão ter problemas. Barricadas aqui, aqui, aqui e aqui. Os meus melhores homens, carros-patrulha, carrinhas e armas.
- Muito bem. E em relação à costa propriamente dita?
- Temos homens em todas as docas e cais ao longo da costa de Lincolnshire e do Humber. Se tentarem roubar algum barco, vou ser informado.
- E em relação às praias abertas?
- Isso já é outra história. Não tenho meios ilimitados. O exército levou-me muitos dos meus melhores rapazes, tal como a toda a gente. Mas conheço estas águas. Também sou marinheiro amador. E não ia querer sair para o mar esta noite em nenhum barco que saísse de uma praia.
- Este tempo pode ser o nosso melhor amigo.
- É verdade. Outra coisa, major Vicary. Continuamos a ter de fingir que os senhores só andam atrás de um par de criminosos vulgares?
- Por acaso, superintendente-chefe, temos mesmo.
A saída da Al6 para uma pequena estrada secundária estava à frente deles, mesmo à saída da cidade de Louth. Neumann tinha
planeado deixar a Al 6 nessa altura, apanhar a estrada secundária para a costa, mudar para outra estrada secundária e dirigir-se para norte para Cleethorpes. Havia
apenas um problema. Metade da polícia de Louth estava na saída. Neumann conseguia ver pelo menos quatro homens. Quando se aproximou, eles apontaram as lanternas
na sua direção e fizeram-lhe sinal para parar.
Catherine já tinha acordado, sobressaltada.
- O que se passa?
- Fim da linha, receio bem - respondeu Neumann, parando a carrinha. - É evidente que têm estado à nossa espera. Não é com conversas que nos vamos safar.
Catherine pegou na Mauser.
- E quem é que falou em conversas?
Um dos polícias avançou, empunhando uma caçadeira, e bateu ao de leve no vidro da janela de Neumann. Neumann desceu o vidro e disse:
- Boa tarde. Qual é o problema?
- O senhor importa-se de sair da carrinha?
- Por acaso, até me importo. É tarde, estou cansado, está um tempo horrível e quero chegar ao meu destino.
- E pode dizer-me onde isso é?
- Kingston - respondeu Neumann, apesar de conseguir ver que o polícia já estava a duvidar da história. Outro polícia apareceu à janela de Catherine. E outros dois posicionaram-se atrás da carrinha.
O polícia abriu a porta de Neumann de rompante, apontou-lhe a caçadeira à cara e disse:
- Muito bem. Levante as mãos para eu as poder ver e saia da carrinha. Devagarinho.
Jenny Colville estava sentada na parte de trás da carrinha, com as mãos e os pés atados e a boca amordaçada. Doíam-lhe os pulsos. E também o pescoço e as costas. Estava sentada no chão da carrinha há quanto tempo? Duas horas? Três horas? Talvez quatro? Quando a carrinha abrandou, permitiu-se um breve lampejo de esperança.
Pensou: Talvez isto acabe rapidamente e eu possa voltar para Hampton Sands e Mary e Sean e o papá estejam lá e as coisas sejam como eram antes de ele vir e tudo acabe por ser um pesadelo e... deteve-se. Era melhor ser realista. Era melhor pensar naquilo que era realmente possível.
Observou-os no banco da frente. Tinham falado baixinho em alemão durante muito tempo, depois a mulher adormeceu e, naquele momento, Neumann estava a sacudi-la e a tentar acordá-la. Mais adiante, pelo para-brisas, viu luz - feixes de luz balançando para a frente e para trás, como lanternas. Pensou: Os polícias usariam lanternas se estivessem a barricar a estrada. Seria possível? Será que sabiam que eles eram espiões alemães e que ela tinha sido raptada? Estariam à procura dela?
A carrinha parou. Conseguiu ver dois polícias à frente da carrinha e, lá fora, perto da parte de trás, ouviu passos e as vozes de pelo menos mais dois. Ouviu o polícia a bater no vidro. Viu Neumann descer a janela. Viu que ele tinha uma arma na mão. Jenny olhou para a mulher. Também tinha uma arma na mão.
Foi então que se lembrou do que tinha acontecido no celeiro. Duas pessoas atravessaram-se no caminho deles - o pai dela e Sean Dogherty - e tinham-nas matado. Era
possível que também tivessem matado Mary. Não se iriam render só porque alguns polícias da província os mandavam fazê-lo. Também iriam matar os polícias, tal como
tinham matado o pai e Sean.
Jenny ouviu a porta a abrir-se, ouviu o polícia a gritar-lhes para saírem. Sabia o que estava prestes a acontecer. Em vez de saírem, iriam começar a disparar. E
depois os polícias morreriam todos e Jenny ficaria outra vez sozinha com eles.
Tinha de os avisar.
Mas como?
Não podia falar porque Neumann a tinha amordaçado fortemente.
Só podia fazer uma coisa.
Levantou as pernas e pontapeou a parte lateral da carrinha com toda a força possível.
Se a ação de Jenny Colville não teve o efeito pretendido, pelo menos garantiu a um dos polícias - aquele que estava mais perto da porta de Catherine Blake - uma morte mais suave. Quando ele virou a cabeça na direção do som, Catherine levantou a Mauser e deu-Ihe um tiro. O soberbo silenciador da Mauser abafou a explosão da bala, fazendo com que a arma emitisse apenas um estampido grave. A bala estilhaçou o vidro, atingiu o polícia na articulação do maxilar e, a seguir, ricocheteou para a base do crânio. Ele tombou morto na superfície lamacenta da estrada.
O segundo a morrer foi o polícia do lado da porta de Neumann, apesar de não ter sido Neumann a disparar o tiro que o matou. Neumann livrou-se da caçadeira com um golpe da mão direita; Catherine virou-se e disparou pela porta aberta. A bala atingiu o polícia no meio da testa e saiu pela parte de trás do crânio. Ele caiu de costas na estrada.
Neumann caiu da carrinha e aterrou na estrada. Um dos polícias na parte de trás da carrinha disparou por cima da cabeça dele, estilhaçando a janela meio aberta. Neumann apertou o gatilho rapidamente, duas vezes. O primeiro tiro atingiu o polícia no ombro, fazendo-o rodopiar. O segundo atravessou-lhe o coração.
Catherine saiu da carrinha, com a arma nas mãos esticadas para a frente, a apontar para a escuridão. Do outro lado da carrinha, Neumann estava a fazer a mesma coisa, só que continuava deitado de barriga para baixo. Ficaram ambos à espera, sem fazer barulho, à escuta.
O quarto polícia pensou que era melhor fugir e pedir ajuda. Voltou-se e começou a correr pela escuridão. Depois de dar algumas passadas, ficou ao alcance de Neumann. Neumann fez pontaria cuidadosamente e disparou duas vezes. A corrida terminou, a caçadeira bateu com estrépito no alcatrão e o último dos quatro homens caiu morto na estrada molhada da chuva.
Neumann recolheu os corpos e empilhou-os atrás da carrinha. Catherine abriu as portas traseiras. Jenny, com os olhos escancarados
de terror, ergueu as mãos para proteger a cabeça. Catherine levantou a arma bem alto e bateu com ela na cara de Jenny. Um corte profundo abriu-se por cima do olho. Catherine disse:
- A não ser que queiras acabar como eles, não voltes a tentar mais nada desse género.
Neumann pegou em Jenny ao colo e deitou-a na superfície da estrada. Em seguida, com Catherine, colocou os corpos dos polícias mortos no fundo da carrinha. A ideia tinha-lhe surgido instantaneamente. Os polícias tinham vindo de carrinha para aquele sítio; esta encontrava-se estacionada a poucos metros dali, na berma da estrada. Neumann iria esconder os corpos e a carrinha roubada no meio das árvores, onde não pudessem ser vistos, e servir-se da carrinha da polícia para seguir até à costa. Era possível que passassem várias horas até outro polícia aparecer ali e descobrir que os polícias tinham desaparecido. Nessa altura, já ele e Catherine estariam a caminho da Alemanha, a bordo do submarino.
Neumann pegou em Jenny e colocou-a na parte de trás da carrinha da polícia. Catherine subiu para o lugar do condutor e ligou o motor. Neumann dirigiu-se para a outra carrinha e entrou nela. O motor estava a trabalhar. Fez marcha atrás, deu a volta e, a seguir, acelerou pela estrada fora, com Catherine a segui-lo. Tentou não pensar nos quatro cadáveres que se encontravam a poucos centímetros dele.
Dois minutos depois, Neumann virou para um pequeno caminho fora da estrada. Conduziu cerca de duzentos metros, parou e desligou o motor. A seguir, saiu e voltou a correr para a estrada. Catherine tinha invertido a direção da carrinha e estava sentada no lugar do passageiro quando Neumann regressou. Entrou, bateu com a porta e partiu a toda a velocidade.
Passaram o local onde a barricada tinha sido montada e viraram para a pequena estrada secundária. De acordo com o mapa, faltavam cerca de dezasseis quilómetros até à estrada da costa e, a seguir, mais trinta e dois quilómetros até Cleethorpes. Neumann acelerou a fundo e puxou fortemente pela carrinha. Pela primeira vez desde que tinha visto os homens do MI5 em Londres, permitiu-se imaginar que apesar de tudo talvez até conseguissem.
Alfred Vicary andava de um lado para o outro da sala na base da RAF nos arredores de Grimsby. Harry Dalton e Peter Jordan estavam sentados à secretária, a fumar. O superintendente Lockwood encontrava-se sentado ao lado deles, construindo figuras geométricas com os fósforos.
Vicary disse:
- Não estou a gostar disto. Alguém já os devia ter visto. Harry respondeu:
- Todas as estradas principais estão bloqueadas. A dada altura, vão ter de dar de caras com uma barricada.
- Se calhar, talvez não estejam a vir nesta direção. Se calhar, fiz um erro de cálculo terrível. Se calhar, foram de Hampton Sands para sul. Se calhar, a comunicação com o submarino foi um estratagema e estão a caminho da Irlanda numferry.
- Eles estão a vir nesta direção.
- Se calhar, resolveram esconder-se, desistiram. Se calhar, estão enfiados noutra aldeia longínqua, à espera que as coisas acalmem antes de avançarem.
- Eles avisaram o submarino. Têm de ir.
- Não têm de fazer nada. É possível que tenham avistado as barricadas e o aumento do número de polícias e decidido esperar. Podem avisar o submarino na próxima oportunidade e tentar novamente quando as coisas estiverem mais calmas.
- Está a esquecer-se de uma coisa. Eles não têm rádio.
- Nós achamos que não têm. O Harry tirou-lhes um e o Thomasson encontrou um rádio destruído em Hampton Sands. Mas não temos a certeza de que não têm um terceiro.
- Não temos a certeza de nada, Alfred. Fazemos palpites fundamentados.
Vicary andou outra vez de um lado para o outro, a olhar para o telefone e a pensar: Toca, diabos, toca!
Querendo desesperadamente fazer qualquer coisa, levantou o auscultador e pediu à telefonista para ligar para a Sala de Localização de Submarinos, em Londres. Quando apareceu por fim na linha,
Arthur Braithwaite parecia estar dentro de um tubo de lançamento de torpedos.
Vicary perguntou:
- Soube alguma coisa, comandante?
- Falei com a Marinha Real e a guarda costeira local. A Marinha Real está neste preciso momento a deslocar para a área um par de corvetas - números 745 e 128. Vão
estar ao largo de Spurn Head dentro de uma hora e começar as operações de busca logo de seguida. A guarda costeira está a tomar conta das coisas mais perto da costa. E a RAF vai pôr aviões no ar à primeira luz do dia.
- E quando é isso?
- Por volta das sete da manhã. Talvez um pouco depois, por causa da densa cobertura de nuvens.
- Isso pode ser já muito tarde.
- Não lhes vai servir de nada irem antes disso. Precisam de luz para ver. Estariam perfeitamente cegos se fossem agora. Mas há boas notícias. Esperamos uma aberta no tempo pouco antes do amanhecer. O céu vai manter-se encoberto, mas espera-se que a chuva abrande e o vento diminua. Isso vai facilitar a condução das operações de busca.
- Afinal de contas, não tenho a certeza de que sejam assim tão boas notícias. Estávamos a contar com a tempestade para fechar a costa. E o tempo melhor também torna a vida mais fácil aos agentes e ao submarino.
- Bem visto.
- Dei instruções à Marinha Real e à RAF para fazerem a busca o mais discretamente possível. Eu sei que isto soa algo inverosímil, mas tente fazer com que pareça tudo rotina. E diga a todos para terem cuidado com o que dizem pelo rádio. Os alemães também nos ouvem. Lamento não poder ser mais claro, comandante Braithwaite.
- Eu compreendo. vou transmitir essas indicações.
- Obrigado.
- E tente não se enervar, major Vicary. Se esses seus espiões tentarem chegar àquele submarino hoje à noite, vamos detê-los.
Os polícias Gardner e Sullivan pedalavam ao lado um do outro pelas ruas escuras de Louth, Gardner, um homem grande, alto e de meia-idade, e Sullivan um rapaz magro e em boa forma, com pouco mais de vinte anos. O superintendente-chefe Lockwood tinha-lhes ordenado que se dirigissem a uma barricada a sul da aldeia e substituíssem dois dos polícias que lá estavam. Gardner queixou-se enquanto pedalava:
- Porque é que os criminosos de Londres arranjam sempre maneira de acabar aqui, no meio de uma tempestade, és capaz de me explicar?
Sullivan estava entusiasmadíssimo. Esta era a sua primeira grande caça ao homem. E também era a primeira vez que usava uma arma em serviço. Trazia uma espingarda de ferrolho, com trinta anos e saída da sala de armas da esquadra, pendurada ao ombro.
Cinco minutos mais tarde, chegaram à saída onde deveria estar a barricada. O lugar estava deserto. Gardner levantou-se, sem sair da bicicleta. Sullivan deitou a sua no chão, acendeu a lanterna e iluminou a área. Primeiro, viu as marcas dos pneus e, depois, os vidros espalhados.
Sullivan gritou:
- Chega aqui! Depressa!
Gardner desceu da bicicleta e empurrou-a até onde estava Sullivan.
- Jesus Cristo!
- Olha para as marcas. Dois veículos, o deles e o nosso. Quando voltaram para trás, os pneus enlamearam a superfície da estrada. Deixaram-nos umas belas marcas para seguirmos.
- É verdade. Vai ver onde vão dar. Eu volto para a esquadra para alertar Lockwood. E, por amor de Deus, tem cuidado.
Sullivan pedalou pela estrada, segurando a lanterna com uma mão e vendo as marcas a desvanecerem-se gradualmente. Cem metros à frente do local da barricada, o rasto tinha desaparecido. Sullivan avançou mais uns quatrocentos metros à procura de algum sinal da carrinha da polícia.
Andou um pouco mais e foi então que avistou outro conjunto de marcas de pneus. Estas eram diferentes. As marcas tornavam-se mais claras e definidas à medida que pedalava. O veículo que as tinha feito tinha obviamente vindo da direção contrária.
Seguiu as marcas até ao ponto de origem e encontrou o pequeno trilho que ia dar às árvores. Apontou a lanterna para o trilho e viu o par de marcas recentes de pneus. Virou o feixe de luz na horizontal, para o túnel de árvores, mas a luz não era suficientemente potente para penetrar na escuridão. Olhou para o chão - demasiado sulcado e enlameado para manobrar a bicicleta. Desmontou, encostou a bicicleta a uma árvore e começou a andar.
Dois minutos depois, avistou a parte de trás da carrinha. Chamou, mas ninguém respondeu. Olhou com mais atenção. Não era o veículo da polícia; tinha matrícula de
Londres e era um modelo diferente. Sullivan avançou lentamente. Aproximou-se da parte da frente da carrinha pelo lado do passageiro e apontou a lanterna lá para dentro. O banco da frente estava vazio. Apontou o feixe de luz para a parte de trás, na direção da área de armazenamento.
Foi então que viu os corpos.
Sullivan deixou a carrinha no meio das árvores e voltou para Louth, pedalando o mais depressa possível. Chegou à esquadra da polícia e contactou rapidamente o superintendente-chefe
Lockwood na base da RAF.
- Estão os quatro mortos - disse ele, sem fôlego devido à corrida. - Estão estendidos na parte de trás de uma carrinha, mas não é a deles. Parece que os fugitivos levaram a carrinha da polícia. A julgar pelas marcas na estrada, acho que voltaram para trás, no sentido de Louth.
Lockwood perguntou:
- E onde estão os corpos agora?
- Deixei-os no bosque, senhor.
- Volta para lá e fica à espera até que chegue ajuda.
- Sim, senhor. Lockwood desligou o telefone.
- Quatro homens mortos. Meu Deus!
- Lamento, superintendente-chefe. Lá se vão as minhas teorias de eles se terem escondido. Andam obviamente por aqui e são capazes de fazer tudo para escapar, incluindo
assassinar quatro dos seus homens a sangue-frio.
- E temos outro problema... vão num veículo da polícia. Avisar os agentes que dirigem as barricadas vai levar tempo. E, entretanto, os seus espiões estão a aproximar-se
perigosamente da costa - afirmou Lockwood, dirigindo-se para o mapa. - Louth fica aqui, mesmo a sul de nós. Agora, eles podem apanhar uma série de estradas secundárias para o mar.
- Reposicione os seus homens. Coloque-os todos entre Louth e a costa.
- com certeza, mas vai demorar tempo. E os seus espiões já nos levam avanço.
- Outra coisa - atirou Vicary. - Tragam esses mortos para aqui o mais discretamente possível. Quando isto tudo acabar, pode ser necessário engendrar outra explicação para a morte deles.
- E o que digo às famílias deles? - vociferou Lockwood, saindo da sala.
Vicary pegou no telefone. A telefonista fez a ligação para o quartel-general do MI5 em Londres. Uma telefonista do departamento atendeu. Vicary pediu para falar com Boothby e esperou que ele surgisse na linha.
-Sir Basil, receio bem que tenhamos grandes problemas por aqui.
Um vento rigoroso fazia a chuva fustigar a zona do porto de Cleethorpes quando Neumann abrandou e virou para uma fila de armazéns e garagens. Parou a carrinha e desligou o motor. Não faltava muito para o amanhecer. Mesmo à luz fraca, conseguia ver um pequeno cais, com vários barcos de pesca atracados e mais barcos a balouçarem, presos com as suas amarras na água negra. Tinham feito um tempo excelente até à costa. Por duas vezes, tinham encontrado barricadas e, por duas vezes, tinham-nos deixado passar sem perguntas graças à carrinha em que seguiam.
Supostamente, o apartamento de Jack Kincaid ficava por cima de uma garagem. Tinha uma escada exterior de madeira, com uma porta no cimo. Neumann saiu da carrinha e subiu as escadas, puxando instintivamente da Mauser ao aproximar-se da porta. Bateu suavemente, mas ninguém respondeu. Experimentou o trinco; a porta estava destrancada. Abriu-a e entrou.
Foi imediatamente assaltado pelo fedor do lugar: lixo em decomposição, cigarros velhos, corpos sujos, um cheiro opressivo a álcool. Experimentou o interruptor, mas não aconteceu nada. Tirou a lanterna do bolso e acendeu-a. O feixe apanhou a figura de um homem grande a dormir num colchão sem lençóis. Neumann avançou cautelosamente pelo quarto imundo e deu um pequeno toque no homem com a biqueira da bota.
- É o Jack Kincaid?
- Sou. E quem é você?
- Chamo-me James Porter. Ficou de me dar boleia no seu barco.
- Oh, sim, sim.
Kincaid tentou sentar-se no colchão, mas não conseguiu. Neumann apontou-lhe a luz à cara. Tinha pelo menos sessenta anos e a sua cara angulosa mostrava os sinais de um alcoolismo desregrado.
- Bebeu um pouco ontem à noite, Jack? - perguntou Neumann.
- Um pouco.
- Qual é o seu barco, Jack?
- O Camilla.
- E onde está ele exatamente?
- Lá em baixo, no cais. É impossível não dar por ele. Kincaid estava a perder os sentidos outra vez.
- Não se importa que eu o leve emprestado por um bocadinho, pois não, Jack?
Kincaid não respondeu, limitou-se a começar a ressonar profundamente.
- Muito obrigado, Jack.
Neumann saiu do apartamento e voltou a entrar na carrinha.
- O nosso capitão não está em condições de nos levar. Está bêbado que nem um cacho.
- E o barco?
- É o Camilla. Ele diz que está mesmo ali em baixo, no cais.
- E está lá mais qualquer coisa.
- O quê?
- Já vais ver daqui a um instante. Neumann viu surgir um polícia.
- Eles devem estar a vigiar a costa toda - disse Neumann.
- É uma pena. Outra baixa desnecessária.
- Vamos lá a despachar isso. Matei mais gente esta noite do que em todo o tempo que estive nos Fallschirmjàger.
- Porque achas que Vogel te mandou para aqui? Neumann não respondeu.
- Então e a Jenny?
- Ela vem connosco.
- Quero deixá-la aqui. Ela já não nos serve de nada.
- Não me parece. Se a encontrarem, pode dizer-lhes muita coisa. Além disso, se eles sabem que temos um refém a bordo, vão pensar duas vezes sobre as medidas a tomar para nos deter.
- Se estás a sugerir que vão hesitar em disparar sobre nós por termos uma civil britânica a bordo, estás enganada. Estão demasiadas coisas em jogo para isso. Matam-nos a todos, se for necessário.
- Então que seja. Mas ela vem connosco. Quando chegarmos ao submarino, deixamo-la ficar no barco. Os britânicos vão salvá-la e não lhe vai acontecer mal nenhum.
Neumann percebeu que continuar a discutir com ela seria uma perda de tempo. Catherine voltou-se para trás e, em inglês, disse a Jenny:
- Acabaram-se os heroísmos. Se te mexeres, dou-te um tiro na cara.
Neumann abanou a cabeça. Ligou o motor, pôs a carrinha em primeira e seguiu para o cais.
O polícia que se encontrava no cais ouviu o som de um motor parou e olhou para cima. Avistou a carrinha da polícia a dirigir-se para ele. Estranho, pensou, pois só estava previsto ser substituído às oito horas. Viu a carrinha parar e duas pessoas saírem. Esforçou-se por perceber quem eram no meio da escuridão, mas passados alguns segundos deu-se conta de que não eram polícias. Eram um homem e uma mulher, muito provavelmente os fugitivos!
Foi então que teve uma sensação de desânimo. Estava armado apenas com um revólver anterior à guerra e que encravava frequentemente. A mulher vinha na sua direção. O braço dela ergueu-se e houve um clarão, mas praticamente nenhum som, apenas um baque abafado. Sentiu a bala rasgar-lhe o peito e teve consciência da perda de equilíbrio.
A última coisa que viu foi a água suja do Humber a avançar subitamente na sua direção.
lan McMann era um pescador que acreditava que o sangue celta que lhe corria nas veias lhe dava poderes que os meros mortais não possuíam. Ao longo dos sessenta anos passados junto ao mar do Norte, afirmou ter ouvido pedidos de socorro antes de serem enviados. Afirmava ver os fantasmas de homens desaparecidos no mar a pairar por cima dos desembarcadouros e dos portos. Afirmava saber que alguns navios estavam amaldiçoados e que nunca se aproximaria deles. Toda a gente em Cleethorpes aceitava tudo isso como verdadeiro, mas, em privado, sugeria-se que lan McMann tinha passado demasiadas noites no mar.
McMann tinha-se levantado, como habitualmente, às cinco horas, apesar de as péssimas previsões meteorológicas indicarem condições que manteriam todos os barcos fora de água o dia inteiro. Estava a comer papas de aveia ao pequeno-almoço, sentado à mesa da cozinha, quando ouviu um barulho lá fora, no cais.
O bater da chuva tornava difícil distinguir qualquer outro som, mas McMann podia jurar ter ouvido alguém ou qualquer coisa a cair na água. Sabia que havia um polícia lá fora - na noite anterior, tinha-lhe levado chá e uma fatia de bolo antes de se ir deitar - e sabia por que razão lá estava. O polícia estava á procura de dois suspeitos de homicídio de Londres. McMann suspeitava que não fossem suspeitos de homicídio vulgares. Vivia em Cleethorpes há vinte anos
e nunca tinha ouvido falar da polícia local a vigiar a zona
do porto.
A janela da cozinha do chalé de McMann tinha uma vista excelente para o cais e, mais adiante, para a foz do Humber. McMann levantou-se, abriu as cortinas e olhou
lá para fora. Não havia sinal do polícia. McMann enfiou um oleado e um chapéu impermeável, foi buscar a lanterna à mesa ao lado da porta e saiu.
Acendeu a lanterna e começou a andar. Depois de alguns passos, ouviu o barulho do motor a diesel de um barco a pegar. Andou mais depressa, até conseguir ver que
barco era: o Camiíla, o barco de Jack Kincaid.
McMann pensou: Mas ele está maluco, a sair com uma tempestade destas?
Começou a correr e gritou:
- Jack, Jack! Para! Onde pensas que vais?
Foi então que percebeu que o homem que estava a desamarrar o Camiíla do cais e a saltar para o convés de popa não era Jack Kincaid. Alguém estava a roubar o barco.
Olhou em redor, à procura do polícia, mas ele tinha desaparecido. O homem entrou na casa do leme, acelerou e o Camiíla afastou-se do cais.
McMann correu atrás do barco e gritou:
- Volte já aqui!
Nessa altura, uma segunda pessoa saiu da casa do leme. McMann viu o clarão de um disparo, mas não ouviu nada. Sentiu a bala a passar ao lado da cabeça, perigosamente perto. Atirou-se para o chão, escondendo-se atrás de um par de bidões vazios. O cais foi atingido por mais duas balas e depois o tiroteio terminou.
Pôs-se de pé e viu a popa do Camiíla a afastar-se pelo mar.
Foi só então que McMann viu uma coisa a flutuar na água oleosa ao largo do cais.
- Acho que é melhor ser o senhor a ouvir isto, major Vicary. Vicary pegou no auscultador que Lockwood lhe estendeu. lan
McMann estava a telefonar de Cleethorpes. Lockwood disse:
- Comece do princípio, lan.
- Duas pessoas acabaram de roubar o barco de pesca de Jack Kincaid e dirigem-se para alto-mar.
Vicary vociferou:
- Meu Deus! De onde está a ligar?
- De Cleethorpes.
Vicary lançou uma olhadela ao mapa.
- Cleethorpes? Não tínhamos um homem ai?
- Tinham - retorquiu McMann. - Está neste preciso momento a boiar na água com uma bala no coração.
Vicary praguejou em voz baixa e, a seguir, perguntou:
- Quantas pessoas é que lá estavam?
- Que eu visse, pelo menos duas.
- Um homem e uma mulher?
- Demasiado longe e demasiado escuro. Além disso, quando começaram a disparar contra mim, atirei-me para o chão.
- E não viu uma rapariguinha com eles?
- Não.
Vicary tapou o auscultador com a palma da mão.
- Talvez ela ainda esteja naquela carrinha. Ponha um homem lá o mais depressa possível.
Lockwood assentiu com a cabeça. Vicary tirou a mão do auscultador e disse:
- Fale-me do barco que eles roubaram.
- O Camilla é uma embarcação de pesca. O barco está em más condições. Eu não queria estar a bordo do Camilla a ir para o mar alto com uma tempestade destas.
- Só mais uma pergunta. O Camilla tem rádio?
- Não, que eu saiba, não.
Vicary pensou: Graças a Deus! Disse:
- Obrigado pela sua ajuda.
Vicary desligou o telefone. Lockwood estava parado diante do mapa.
- Bem, a boa notícia é que agora sabemos exatamente onde eles estão. Têm de atravessar a foz do Humber antes de atingirem o mar alto. Isso fica apenas a um quilómetro e meio do cais. Não há maneira de conseguirmos impedi-los de fazer isso. Mas se aquelas corvetas da Marinha Real se posicionarem ao largo de Spurn Head, eles nunca vão conseguir passar. Aquele barco de pesca em que vão não está à altura delas.
- Sentia-me melhor se tivéssemos o nosso próprio barco na água.
- Na realidade, isso até se pode arranjar.
- A sério?
- A polícia do condado de Lincolnshire tem um pequeno barco no rio, o Rebecca. Neste momento, está em Grimsby. Não foi concebido para o mar alto, mas pode fazê-lo num aperto. E também é bastante mais rápido do que aquele velho barco de pesca. Se nos pusermos a caminho imediatamente, devemos poder apanhá-los em pouco tempo.
- E o Rebecca tem rádio?
- Sim. Vamos poder falar convosco para aqui.
- Então e armas?
- Posso ir buscar umas espingardas velhas à prisão da esquadra da polícia de Grimsby. Vão dar conta do recado.
- Agora, só precisamos de uma tripulação. Leve os meus homens. Eu fico aqui para poder continuar em contacto com Londres. A última coisa de que precisa é que eu vá a bordo de um barco com um tempo destes.
Lockwood conseguiu esboçar um sorriso, deu uma palmadinha nas costas de Vicary e saiu. Clive Roach, Harry Dalton e Peter Jordan seguiram-no. Vicary pegou no telefone para dar as notícias a Boothby, em Londres.
Neumann não se afastou dos marcadores do canal, com o Camilla a avançar pelas águas agitadas da foz do Humber. O barco tinha cerca de doze metros, era largo e precisava urgentemente de uma pintura. Havia uma pequena cabine à ré, onde Neumann tinha deixado
Jenny. Catherine estava ao lado dele, na casa do leme. O céu estava a começar a clarear ligeiramente a leste. A chuva rufava na vidraça. A bombordo, via as ondas a rebentarem em Spurn Head. O farol estava apagado. Havia uma bússola no painel de instrumentos, ao lado do leme. Neumann colocou o barco numa rota para leste, acelerou a fundo e dirigiu-se para o mar alto.
SESSENTA
MAR DO NORTE, AO LARGO DE SPURN HEAD
O U-509 flutuava logo abaixo da superfície. Eram 5h30. O Kapitànleutnant Max Hoffman estava na sala de comando a espreitar pelo periscópio e a beber café. Os olhos
doíam-lhe por ter passado a noite inteira a olhar fixamente para o negrume do mar. A cabeça
latejava-lhe. Precisava desesperadamente de dormir umas horas.
O seu imediato surgiu na ponte de comando.
- Só nos restam mais trinta minutos, Herr Kaleu.
- Tenho noção do tempo de que dispomos, senhor imediato.
- Não voltámos a receber comunicações dos agentes da Abwehr, Herr Kaleu. Penso que temos de considerar a possibilidade de terem sido capturados ou mortos.
- Já considerei essa possibilidade, senhor imediato.
- Daqui a nada vai amanhecer, Herr Kaleu.
- Sim. É um fenómeno que ocorre todos os dias por volta desta hora. Até no Reino Unido, senhor imediato.
- O que eu quero dizer é que não é seguro ficarmos tão perto da costa inglesa por muito mais tempo. A profundidade nesta zona não é suficiente para nos podermos escapar às wabos britânicas - explicou o imediato, utilizando a gíria comum entre os tripulantes de submarino alemães para se referirem às cargas de profundidade.
- Tenho perfeita consciência dos perigos que a situação envolve, senhor imediato. Mas vamos continuar no ponto de encontro até
não nos restar mais tempo. E depois disso, se eu achar que ainda é seguro, vamos continuar um bocadinho mais.
- Mas, Herr Kaleu...
- Eles enviaram-nos um sinal de rádio fidedigno a avisar-nos de que vinham a caminho. Temos de partir do princípio de que vêm num barco roubado, provavelmente com pouquíssimas condições de navegabilidade, e também temos de partir do princípio de que estão exaustos ou até feridos. Vamos ficar aqui até eles chegarem ou eu estar completamente convencido de que já não vêm. Entendido?
- Sim, Herr Kaleu.
O imediato foi-se embora. Hoffman pensou: Mas que chato do caraças.
O Kebecca tinha cerca de dez metros de comprimento, com um calado raso, um motor interior e uma casa do leme no meio, onde mal cabiam dois homens lado a lado. Lockwood tinha telefonado de antemão e o motor do Rebecca já estava a trabalhar quando eles lá chegaram.
Os quatro homens subiram a bordo: Lockwood, Harry, Jordan e Roach. Um dos rapazes que trabalhava na doca soltou a última amarra e Lockwood conduziu o barco em direção ao canal.
Acelerou a fundo. O ruído do motor aumentou; a proa esguia ergueu-se para fora da água e depois avançou a toda a velocidade pela ondulação provocada pelo vento. A noite clareava no céu a leste. A silhueta do farol era visível a bombordo. O mar à frente deles esta-
va deserto.
Harry baixou-se, levantou o auscultador do rádio e entrou em contacto com Vicary para o pôr ao corrente da situação.
Oito quilómetros para leste do Kebecca, a corveta número 745 navegava num ziguezague entediante por mares revoltos. O capitão e o imediato encontravam-se na ponte de comando, de binóculos encostados aos olhos, a tentarem ver alguma coisa através de uma cortina de chuva. Era escusado. Além da escuridão e da chuva, instalara-se
um nevoeiro que reduzia ainda mais a visibilidade. Face a condições dessas, podiam passar a cem metros de um submarino alemão sem o verem sequer. O capitão dirigiu-se para a mesa das cartas de navegação, onde o navegador estava a preparar a mudança de trajetória seguinte. Quando o capitão deu a ordem, a corveta virou 90 graus para estibordo e embrenhou-se ainda mais no mar. A seguir, ordenou ao operador de rádio que informasse a Sala de Localização de Submarinos do seu novo rumo.
Em Londres, Arthur Braithwaite estava junto da mesa com o mapa, apoiando-se pronunciadamente na bengala. Tinha-se certificado de que todas as atualizações da Marinha Real e da RAF passariam pela sua secretária assim que fossem recebidas. Sabia que as probabilidades de encontrar um submarino naquelas condições meteorológicas e de luminosidade eram remotas, mesmo que o submarino se encontrasse à superfície. Se o submarino estivesse à espreita logo abaixo da superfície, seria quase impossível.
O seu assessor entregou-lhe uma cópia de uma comunicação via rádio. A corveta número 745 tinha acabado de mudar de trajetória e seguia naquele momento em direção a leste. Uma segunda corveta, a número 128, estava a pouco mais de três quilómetros de distância e a avançar para sul. Braithwaite debruçou-se sobre a mesa, fechou os olhos e tentou imaginar a busca na cabeça. Pensou: Maldito sejas, Max Hoffman! Onde raio estás?
O Camilla, embora Horst Neumann não se tivesse apercebido disso, estava precisamente onze quilómetros a leste de Spurn Head. As condições meteorológicas pareciam estar a piorar a cada minuto. A chuva caía, criando uma cortina opaca, e martelava a vidraça da casa do leme, dificultando a visão. O vento e a corrente, ambos a fustigarem o barco a partir do norte, não paravam de os desviar ligeiramente do rumo. com a ajuda da bússola do painel de instrumentos, Neumann esforçava-se por mante-los na sua rota em direção a leste.
O maior problema era o mar. A meia hora anterior tinha sido uma repetição implacável do mesmo ciclo agoniante. O barco escalava uma onda, ficava a balançar-se no cimo dela por um instante e depois caía
a pique na depressão entre as ondas. Lá em baixo, o barco parecia sempre estar prestes a ser engolido por um desfiladeiro verde-acinzentado de água. O convés era constantemente varrido pelas ondas. Neumann já não conseguia sentir os pés. Baixou os olhos pela primeira vez e reparou que estava rodeado por vários centímetros de água gelada.
Ainda assim, milagrosamente, achava que até iriam conseguir. O barco parecia estar a absorver toda a violência que o mar lhe conseguia infligir. Eram 5h30 - ainda lhes restavam trinta minutos até o submarino dar meia-volta. Tinha sido capaz de manter o barco numa trajetória constante e estava convicto de que se estavam a aproximar do ponto certo. E não havia sinal do inimigo.
Só havia um problema: não tinham rádio. Tinham ficado sem o de Catherine, em Londres, e tinham ficado sem o segundo graças ao tiro de caçadeira de Martin Colville,
em Hampton Sands. Neumann tinha esperança de que o barco tivesse um rádio, mas não tinha. O que os impossibilitava de comunicar com o submarino.
Neumann tinha apenas uma opção: ligar as luzes de navegação do barco.
Era um risco, mas necessário. A única maneira de o submarino perceber que eles se encontravam no ponto de encontro era se os conseguisse ver. E a única maneira de o Camilla poder ser visto naquelas condições meteorológicas era se tivesse as luzes ligadas. Mas se o submarino os conseguisse ver, o mesmo seria válido para qualquer navio de guerra ou da guarda costeira britânica que se encontrasse nas proximidades.
Neumann calculou que estivessem a poucos quilómetros do ponto de encontro. Continuou a acelerar a fundo durante mais cinco minutos e, a seguir, baixou-se e carregou num interruptor, e o Camilla encheu-se de luz.
Jenny Colville debruçou-se sobre o balde e vomitou lá para dentro pela terceira vez. Perguntou-se como poderia haver ainda qualquer coisa para lhe sair do estômago. Tentou lembrar-se da última vez que tinha comido. Não jantara na noite anterior por estar zangada
com o pai e também não tinha almoçado nada. Talvez qualquer coisa ao pequeno-almoço, mas isso não tinha sido mais do que uma bolacha e chá.
O estômago entrou novamente em convulsões, mas desta vez não saiu de lá nada. Tinha vivido a vida inteira junto ao mar, mas só andara de barco uma vez - passando o dia a passear pela Wash, com o pai de uma amiga da escola - e nunca sentira nada assim.
Estava completamente paralisada de tão enjoada. Queria morrer, precisava desesperadamente de ar fresco. Não podia fazer nada perante o balançar constante do barco. Tinha os braços e as pernas cheios de nódoas negras por causa das sucessivas pancadas. E depois havia o barulho - o ribombar e o estrépito ensurdecedores e constantes do motor do barco.
Dava a sensação de estar mesmo por baixo dela.
Tudo o que mais queria era sair do barco e regressar a terra. Disse a si própria sem parar que, se sobrevivesse àquela noite, não voltaria a entrar num barco, nunca mais. E foi então que pensou: O que é que vai acontecer quando eles chegarem ao sítio para onde vão? O que vão fazer comigo? com certeza que não vão neste barco até à Alemanha, ou será que vão? O mais provável era irem ter com outro barco. E depois o que é que acontece? Será que a iriam levar de novo com eles ou deixá-la sozinha no barco? Se a deixassem sozinha, era possível que nunca a encontrassem. Poderia morrer sozinha, algures no mar do Norte, numa tempestade igual àquela.
O barco deslizou por mais uma enorme onda abaixo. Na cabine, Jenny foi atirada para a frente, batendo com a cabeça.
O porão tinha duas vigias de cada lado. com as mãos amarradas, desembaciou a vigia de estibordo e espreitou lá para fora. O mar era aterrador, montanhas verdes e ondulantes de água.
Mas havia ali mais qualquer coisa. O mar agitou-se e uma coisa
escura e brilhante irrompeu da superfície. A seguir, o mar entrou
num turbilhão e uma gigantesca coisa cinzenta, como um monstro
marinho num conto infantil, subiu à superfície com a água a escorrer-lhe da pele.
O Kapitánleutnant Max Hoffman, farto de aguentar o submarino a quinze quilómetros de distância da costa, tinha resolvido arriscar e aproximar-se mais dois ou três quilómetros. Estava à espera a treze quilómetros da costa, a espreitar para a escuridão, quando avistou de repente as luzes de navegação de um pequeno barco de pesca. com um grito, Hoffman ordenou que o submarino subisse à superfície e, passados dois minutos, já estava na ponte de comando, a sentir a forte chuvada e a respirar o ar frio e limpo, com os binóculos colados aos olhos.
De início, Neumann pensou que pudesse ser uma alucinação. O vislumbre tinha sido breve - apenas um instante, antes de o barco mergulhar em mais uma depressão entre as ondas e tudo se obliterar uma vez mais.
A proa enterrou-se no mar profundamente, como uma pá na terra, e, durante alguns segundos, toda a coberta ficou submersa na água. Mas, de alguma forma, o barco conseguiu sair dessa depressão e escalar o pico seguinte. No topo da onda seguinte, uma forte chuvada, varrida pelo vento, impedia a visão por completo.
O barco caiu e depois voltou a erguer-se. Foi então que, com o Camilla no cimo de uma montanha de água, Horst Neumann avistou a silhueta inconfundível de um submarino alemão.
Peter Jordan, no convés de popa do Rebecca, foi o primeiro a ver o submarino. Lockwood viu-o passados uns segundos e, a seguir, avistou as luzes de navegação do Camilla a cerca de quatrocentos metros do estibordo do submarino e a aproximar-se rapidamente. Lockwood fez o Rebecca guinar para bombordo, colocando-o em rota de colisão com o Camilla, e pegou no auscultador para contactar Alfred Vicary.
Vicary levantou o auscultador da linha aberta para a Sala de Localização de Submarinos.
- Comandante Braithwaite, está a ouvir-me?
- Sim, estou. E também ouvi a conversa toda que acabou de ter.
- E então?
- Acho que temos um problema grave. A corveta 745 está um quilómetro e meio para sul da posição do submarino. Já contactei o capitão via rádio e ele está a dirigir-se
para lá neste momento. Mas se o Camilla estiver realmente apenas a quatrocentos metros do submarino, vai lá chegar primeiro.
- Maldição!
- Mas ainda tem outro trunfo, senhor Vicary, o Kebecca. Sugiro que o utilize. Os seus homens têm de fazer qualquer coisa para atrasar aquele barco e dar à corveta possibilidade de intervir.
Vicary pousou o auscultador e levantou o do rádio.
- Superintendente Lockwood, daqui Grimsby, escuto.
- Lockwood, escuto.
- Superintendente, ouça com atenção. Vem aí ajuda, mas, enquanto ela não chega, quero que abalroe esse barco de pesca.
Todos eles ouviram - Lockwood, Harry, Roach e Jordan -, pois estavam os quatro apinhados na cabine, abrigando-se do mau tempo.
Lockwood, gritando por cima do barulho do vento e do ribombar dos motores do Rebecca, perguntou:
- Mas ele estará louco?
- Não - respondeu Harry -, apenas desesperado. Consegue lá chegar a tempo?
- Claro, mas vamos ficar de caras para os canhões da coberta daquele submarino.
Olharam todos uns para os outros, sem dizerem nada. Por fim, Lockwood afirmou:
- Estão coletes salva-vidas nesse cacifo aí atrás. E tragam as espingardas. Tenho um pressentimento que podemos precisar delas.
Lockwood olhou novamente para o mar e deu com o Camilla. Fez uma ligeira correção na trajetória e acelerou a fundo.
Na ponte de comando do U-509, Max Hoffman avistou o Rebecca a aproximar-se rapidamente.
- Temos companhia, senhor imediato. Um barco civil, com três ou quatro homens a bordo.
- Estou a vê-los, Herr Kaleu.
- Tendo em conta a velocidade e a trajetória, diria que se trata do inimigo.
- Parecem estar desarmados, Herr Kaleu.
- Sim. Disparem um tiro de aviso com a artilharia da coberta da proa. Disparem para a frente da proa. Não quero que se derrame sangue desnecessariamente. Se eles não desistirem, disparem diretamente para o barco. Mas para a linha de água, senhor imediato, não para a cabine.
- Sim, Herr Kaleu - ripostou o imediato.
Hoffman ouviu ordens a serem gritadas e, passados trinta segundos, o primeiro tiro do canhão Bootskanone na dianteira da coberta do U-509 estava a fazer um arco por cima da proa do Rebecca.
Apesar de os submarinos alemães raramente se envolverem em combates de artilharia à superfície, o projétil de 10,5 centímetros do canhão da coberta era capaz de infligir danos letais, mesmo em barcos grandes. O primeiro tiro passou bem longe da proa do Rebecca. O segundo, disparado dez segundos depois, ficou bem mais perto.
Lockwood virou-se para Harry e gritou:
- Cá para mim, é o último aviso a que temos direito. O próximo tiro vai rebentar connosco. A decisão é sua, mas não vamos poder ajudar ninguém se estivermos mortos.
Harry gritou:
- Dê meia-volta!
Lockwood guinou o Kebecca para bombordo e deu meia-volta. Harry olhou para trás, na direção do submarino. O Camilla estava a duzentos metros e a aproximar-se cada vez mais, e não havia absolutamente nada que eles pudessem fazer. Pensou: Maldição! Onde está essa corveta?
A seguir, levantou o auscultador e informou Vicary de que não podiam fazer nada para os deter.
Jenny ouviu o estrondo do canhão do submarino a disparar e viu o projétil avançar em grande velocidade pela linha de água, em direção a um segundo barco. Pensou:
Graças a Deus! Afinal de contas, não estou sozinha. Mas o submarino voltou a disparar e, uns segundos mais tarde, ela viu o pequeno barco dar meia-volta e perdeu
o ânimo.
A seguir, fez-se forte e pensou: Eles são agentes alemães. Mataram o meu pai e mais seis pessoas esta noite e estão prestes a escapar impunes. Tenho de fazer alguma coisa para os impedir.
Mas que podia ela fazer? Estava sozinha e tinha as mãos e os pés amarrados. Pensou em tentar libertar-se, subir sorrateiramente para o convés e bater-lhes com qualquer coisa. Mas, se a vissem, não hesitariam em matá-la. Talvez pudesse pegar fogo a qualquer coisa, mas depois ficaria encurralada com o fumo e as chamas e seria a única
a morrer...
Pensa, Jenny! Pensa!
Era difícil pensar com o ribombar constante do motor do barco. Estava a deixá-la louca.
E foi então que pensou: Sim, é isso!
Se pudesse de algum modo inutilizar o motor - nem que fosse só por um momento - talvez isso pudesse ajudar. Se estava um barco a persegui-los, era possível que estivessem mais - se calhar, barcos maiores, que poderiam ripostar contra o submarino alemão.
Pelo som, o motor parecia estar mesmo por baixo dela, já que o barulho era tanto. Levantou-se a muito custo e afastou o emaranhado de cordas e lonas em cima do qual tinha estado sentada. E ali estava - uma porta embutida no chão do porão. Conseguiu abri-la e foi dominada de imediato pelo barulho atroador e pelo calor do motor do Camilla.
Olhou para ele. Jenny não percebia nada de motores. Uma vez, Sean tinha tentado explicar-lhe as reparações que estava a fazer na carripana velha que era a sua carrinha. Havia sempre um problema
qualquer com o raio da coisa, mas qual era mesmo? Qualquer coisa a ver com os tubos e a bomba de combustível. De certeza que aquele motor era diferente do motor da carrinha de Sean. Era um motor a diesel, logo para começar; a carrinha de Sean funcionava a gasolina. Mas ela sabia uma coisa: independentemente do tipo de motor, precisava de combustível para trabalhar. Se o abastecimento de combustível fosse cortado, o motor deixaria de funcionar.
Mas como? Olhou com atenção para o motor. Vários tubos metálicos pretos saíam da parte de cima e convergiam num único ponto, na parte lateral do motor. Será que eram os tubos de combustível? E seria o ponto onde se ligavam à bomba de combustível?
Olhou em redor. Precisava de ferramentas. Os marinheiros andavam sempre com ferramentas. Afinal de contas, o que acontece se o motor for abaixo no meio do mar? Descobriu uma caixa de ferramentas metálica na outra ponta da cabine e rastejou até lá. Espreitou pela vigia. O submarino enchia-lhe o seu campo de visão. Já estavam muito perto. Viu o outro barco. Tinha-se afastado. Abriu a caixa e viu que estava repleta de ferramentas imundas e cheias de óleo.
Tirou duas, um alicate laminado e um grande martelo.
Agarrou o alicate com as mãos, virou a ponta para os pulsos e começou a cortar a corda. Demorou cerca de um minuto a soltar as mãos. A seguir, serviu-se do alicate para cortar a corda à volta dos tornozelos.
Rastejou outra vez para junto do motor.
Pousou o alicate no chão e escondeu-o por baixo de uma corda toda emaranhada. Depois baixou-se, pegou no martelo e destruiu o primeiro tubo de combustível. Rompeu-se, ficando a deitar diesel. Rapidamente, bateu com o martelo mais uma série de vezes, até o último tubo de combustível ter sido rebentado.
O motor deixou de funcionar.
Sem o barulho, Jenny pôde finalmente ouvir o bramido do mar e do vento. Fechou a porta que dava para o motor mutilado e sentou-se. Tinha o martelo ao lado da mão direita.
Sabia que Neumann ou a mulher desceriam dentro de poucos segundos para investigar. E, quando o fizessem, perceberiam que Jenny tinha sabotado o motor.
A porta abriu-se de rompante e Neumann desceu a escada de escotilha a toda a velocidade. Tinha o rosto contorcido, como naquela manhã em que Jenny o vira a correr na praia. Olhou para ela e reparou que já não tinha as mãos e os pés amarrados. Baixou os olhos
e reparou que o material que ali se encontrava tinha sido afastado
para um canto.
Gritou:
- Jenny, o que fizeste?
O barco, sem motor a funcionar, deslizava, desamparado, por uma onda.
Neumann debruçou-se e abriu a escotilha.
Jenny agarrou no martelo e pôs-se de joelhos. Ergueu o martelo bem alto e acertou-lhe na nuca com o máximo de força possível. Neumann caiu no chão, com o sangue
a correr do crânio rachado.
Jenny virou a cara e vomitou.
O Kapitánleutnant Max Hoffman viu o Camilla a começar a balançar, desamparado, no mar agitado e apercebeu-se de imediato de que o barco tinha ficado sem motor. Sabia que tinha de agir depressa. Sem propulsão, o barco afundaria. Talvez até se virasse ao contrário. E se os agentes fossem atirados para dentro do gelado mar do Norte, morreriam numa questão de minutos.
- Senhor imediato! Leve-nos até ao barco e tenha um grupo preparado para subir a bordo.
- Sim, Herr Kaleu!
Hoffman sentiu a vibração das hélices do motor a diesel a girarem sob os seus pés à medida que o submarino avançava lentamente.
Jenny receou tê-lo matado. Ele ficou completamente imóvel durante um momento; a seguir, começou a mexer-se e, de alguma forma, conseguiu levantar-se. Quase não se aguentava em pé. Ela poderia facilmente ter-lhe acertado com o martelo novamente, mas não conseguiu arranjar coragem nem vontade para o fazer. Estava indefeso,
agarrado à parede da cabine. O sangue jorrava-lhe da ferida para a cara, pelo pescoço abaixo. Ergueu a mão e limpou o sangue dos olhos.
- Não saias daqui. Se subires para o convés, ela mata-te. Faz o que te digo, Jenny.
Neumann subiu a escada de escotilha com grande dificuldade. Catherine olhou para ele, com a inquietação estampada no rosto.
- Caí e bati com a cabeça quando o barco se inclinou. O motor deixou de funcionar.
Tinha a lanterna ao lado do leme. Pegou nela e avançou pelo convés. Apontou a lanterna para a torre de comando do submarino e lançou um pedido de socorro. O submarino estava a aproximar-se deles com uma lentidão agonizante. Virou-se para trás e fez sinal a Catherine para se juntar a ele na coberta da proa. A chuva limpou-Ihe o sangue da cara. Olhou para cima, sentindo-a a fustigá-lo, e agitou os braços na direção do submarino.
Catherine foi ter com ele. Mal conseguia acreditar. Na tarde anterior, estavam sentados num café em Mayfair, rodeados por agentes do MI5, e agora, milagrosamente, estavam prestes a subir a bordo de um submarino e partir dali para fora. Seis longos e dolorosamente solitários anos - por fim, terminados. Nunca tinha acreditado que esse dia chegasse. Nunca se tinha atrevido realmente a imaginá-lo. A emoção daquele momento apoderou-se dela. Soltou um grito de alegria infantil e, tal como Neumann, voltou a cara para a chuva, agitando os braços na direção do submarino.
A parte da frente de metal do submarino encostou na proa do Camilla. Um grupo avançou apressadamente pelo convés do submarino na direção deles. Catherine abraçou Neumann e apertou-o com muita força.
- Conseguimos - disse ela. - Chegámos a tempo. Vamos para
casa.
Na casa do leme do Rebecca, Harry Dalton descreveu a situação a Vicary, em Grimsby. Vicary, por sua vez, descreveu-a a Arthur Braithwaite, na sala de localização
de submarinos.
- Raios partam, comandante! Onde é que está essa corveta?
- Está mesmo colada a eles. Só que não consegue ver nada por causa do mau tempo.
- Então diga ao capitão para fazer alguma coisa! Os meus homens não podem fazer nada para os deter.
- E que ordens é que eu devo dar ao capitão?
- Para disparar sobre o barco e matar esses espiões.
- Major Vicary, não nos podemos esquecer de que está uma rapariga inocente a bordo.
- Que Deus me perdoe por dizer isto, mas receio bem que não possamos estar preocupados com ela numa altura destas, comandante Braithwaite. Dê ordens ao capitão dessa corveta para atingir o Camilla com todo o arsenal que tiver.
- Entendido.
Vicary pousou o auscultador e pensou: Meu Deus, tornei-me mesmo um sacana completo.
O vento abriu um buraco momentâneo na cortina de chuva e nevoeiro. Na ponte de comando, o capitão da corveta 745 avistou o U-509 e o Camilla a cento e cinquenta metros da sua proa. Pelos binóculos, viu duas pessoas na coberta do Camilla e uma equipa de salvamento no convés do submarino alemão. De imediato, deu ordem para disparar. Segundos depois, o canhão no convés da corveta abriu fogo.
Neumann ouviu os disparos. Os primeiros tiros passaram por cima. A segunda rajada atingiu o submarino com estrondo. A equipa de salvamento atirou-se para o chão do convés para evitar os tiros, ao mesmo tempo que os disparos se deslocavam do submarino para o Camilla. Não havia nenhum sítio na coberta do barco de pesca que servisse de proteção. Os disparos atingiram Catherine. O seu corpo foi estraçalhado num instante, com a cabeça a explodir num clarão de sangue e miolos.
Neumann desatou a correr, tentando chegar ao submarino. O primeiro tiro que o atingiu arrancou-lhe a perna pelo joelho. Gritou e arrastou-se. Um segundo tiro atingiu-o, cortando-lhe a espinha.
Não sentiu nada. O último tiro atingiu-o na cabeça e a seguir fez-se escuridão.
A observar da torre de comando, Max Hoffman ordenou ao imediato que passasse os motores a diesel para a potência máxima e submergisse o submarino o mais rápido possível. Passados poucos segundos, o U-509 estava a afastar-se a toda a velocidade. Dois minutos mais tarde, mergulhou nas profundezas do mar do Norte e desapareceu.
Sozinho no mar e com o convés inundado de sangue, o Camilla começou a afundar-se.
O estado de espírito a bordo do Rebeaa era de euforia. Os quatro homens abraçaram-se ao observarem o submarino a dar meia-volta e a fugir a todo o vapor. Harry Dalton contactou Vicary e deu-lhe a novidade. Vicary fez dois telefonemas, o primeiro para a sala de localização de submarinos, para agradecer a Arthur Braithwaite, e o segundo para Sir Basil Boothby, para o informar de que tinha finalmente terminado tudo.
Jenny Colville sentiu o Camilla estremecer. Atirou-se para o chão, de barriga para baixo, e protegeu a cabeça com as mãos. Os disparos terminaram tão repentinamente como tinham começado. Foi então que ouviu o barulho do submarino a afastar-se e, por fim, apenas o ruído do mar. Estava demasiado aterrorizada para se mexer. O barco balançava loucamente. Imaginou que isso tivesse alguma coisa a ver com o motor avariado. Sem um motor que o fizesse avançar, o barco estava indefeso perante o ataque do mar. Ela tinha de se levantar, ir lá para fora e avisar os outros barcos de que estava ali, viva.
Obrigou-se a levantar-se, foi imediatamente derrubada pelos solavancos do barco e depois levantou-se outra vez. Subir a escada de escotilha revelou-se quase impossível. Conseguiu chegar por fim ao convés. O vento era tremendo. A chuva fustigava-a de lado. O barco parecia estar a deslocar-se em várias direções ao mesmo tempo: para cima e para baixo, para trás e para a frente, e a balançar de um lado para o outro. Era impossível uma pessoa aguentar-se de pé. Ela
olhou para a proa e viu os corpos. Não tinham levado simplesmente um tiro e morrido. Tinham sido triturados, despedaçados, pelos disparos. O convés estava cor-de-rosa com todo o sangue que escorria. Jenny teve um vómito e desviou o olhar. Viu o submarino a mergulhar ao longe e a desaparecer sob a superfície do mar. Do outro lado do barco, viu um navio de guerra, cinzento, não muito grande, a vir na sua direção. Um segundo barco - o que ela já tinha visto pela vigia - estava a aproximar-se depressa.
Agitou os braços, gritou e começou a chorar. Queria dizer-lhes que tinha sido ela a consegui-lo. Ela é que tinha inutilizado o motor para que o barco parasse e os espiões não conseguissem chegar ao submarino. Estava cheia de um enorme e feroz orgulho.
O Camilla subiu uma onda gigantesca. Quando a onda lhe passou por baixo, o barco inclinou-se todo para bombordo. A seguir, caiu a pique na depressão entre as ondas e, ao mesmo tempo, endireitou-se e inclinou-se todo para estibordo. Jenny não conseguiu segurar-se no cimo da escada de escotilha. Foi atirada pelo convés e caiu ao mar.
O frio não se comparava a nada que já tivesse sentido: um frio horrível, entorpecedor e paralisante. Debateu-se para atingir a superfície e tentou abrir a boca para respirar, mas em vez disso engoliu água do mar. Afundou-se, sufocando, engasgando-se, com a água a encher-lhe o estômago e os pulmões. Esperneou até à superfície e conseguiu respirar um pouco antes de o mar voltar a puxá-la para baixo. Foi então que começou a cair, afundando-se lenta e agradavelmente, sem esforço algum. Já não tinha frio. Não sentia nem via nada. Apenas uma escuridão impenetrável.
O Rebecca foi o primeiro a chegar, com Lockwood e Roach na casa do leme e Harry e Peter Jordan na coberta da proa. Harry atou uma corda à bóia de salvamento, atando a outra ponta a um cunho na proa e atirando a bóia para o mar. Tinham visto Jenny subir uma segunda vez à superfície para respirar e desaparecer sob a superfície. Naquele momento, não havia nada, nem um único sinal dela. Lockwood fez avançar o Rebecca a fundo e a direito; a seguir, a poucos metros do Camilla, fez marcha atrás e parou o barco subitamente.
Jordan inclinou-se sobre a proa, à procura de qualquer sinal da rapariga. A seguir, endireitou-se e, sem aviso, mergulhou. Harry gritou a Lockwood:
- Jordan está dentro de água! Não se aproxime mais!
Jordan veio à superfície e tirou o colete salva-vidas. Harry berrou:
- O que está a fazer?
- Não consigo ir até ao fundo com esta maldita coisa enfiada! Jordan encheu os pulmões de ar e desapareceu durante o que
a Harry pareceu ser um minuto. O mar fustigava o Camilla a bombordo, abanando-o de um lado para o outro e impulsionando-o na direção do Kebecca. Harry olhou por cima do ombro e agitou os braços para Lockwood, na casa do leme.
- Recue um ou dois metros! O Camilla está mesmo em cima de nós!
Por fim, Jordan subiu à superfície novamente, trazendo Jenny consigo. Ela estava inconsciente, com a cabeça caída para o lado. Jordan desatou a corda da bóia e atou-a à volta de Jenny, por baixo dos braços. Levantou o polegar para Harry e este puxou-a até ao Rebecca. Clive Roach ajudou Harry a iça-la para o convés.
Jordan estava a espernear furiosamente, tentando manter-se à tona, com as ondas a passarem-lhe por cima da cara, e parecia exausto do frio. Harry desatou rapidamente a corda que prendia Jenny e atirou-a na direção dele - no preciso instante em que o Camilla se virou por fim, arrastando Peter Jordan para as profundezas do mar.
SESSENTA E UM
BERLIM, ABRIL DE 1944
Kurt Vogel estava à espera na antecâmara luxuosamente mobilada de Walter Schellenberg, observando o esquadrão de jovens assistentes a entrarem e a saírem freneticamente do gabinete. Loiros e de olhos azuis, parecia que tinham acabado de sair de um cartaz de propaganda nazi. Já tinham passado três horas desde que Schellenberg convocara Vogel para uma reunião urgente a propósito daquele infelis assunto no Reino Unido, como se referia habitualmente à operação falhada de Vogel. Vogel não se importava de estar à espera; na verdade, não tinha nada melhor para fazer. Desde que Canaris fora demitido e a Abwehr absorvida pelas SS, os serviços secretos militares alemães pareciam um barco sem leme, precisamente quando Hitler mais necessitava deles. As velhas casas geminadas que se espraiavam por Tirpitz Ufer tinham adquirido o aspeto abatido de uma estância de férias decadente. O moral era tão baixo que muitos oficiais se estavam a oferecer para ir para a Frente Russa.
Vogel tinha outros planos.
Um dos assessores de Schellenberg saiu do gabinete, apontou um dedo acusador a Vogel e, sem dizer uma palavra, fez-lhe sinal para entrar. O gabinete era do tamanho de uma catedral gótica, com sumptuosos quadros a óleo e tapeçarias pendurados nas paredes, bem diferente do comedido Covil da Raposa de Canaris, em Tirpitz Ufer. A luz do Sol entrava obliquamente pelas janelas altas. Vogel olhou lá para fora. Os fogos provocados pelo ataque aéreo matinal
iam-se extinguindo ao longo da Unter den Linden e uma fina camada de fuligem cobria o Tiergarten como neve preta.
Schellenberg sorriu calorosamente, apertou com força a mão esquelética de Vogel e fez-lhe sinal para se sentar. Vogel sabia que Schellenberg tinha metralhadoras na secretária e, por isso, não se mexeu um milímetro e manteve as mãos bem à vista. As portas fecharam-se e ficaram os dois sozinhos no gabinete cavernoso. Vogel sentiu que Schellenberg o estava a consumir com os olhos.
Embora Schellenberg e Himmler andassem há vários anos a maquinar contra Canaris, fora uma sucessão de infelizes acontecimentos que aniquilara por fim a Velha Raposa: a incapacidade de prever a decisão da Argentina de cortar todas as ligações com a Alemanha; a perda de um posto vital de recolha de informações para a Abwehr na zona espanhola de Marrocos; a deserção de vários agentes importantes da Abwehr na Turquia, em Casablanca, Lisboa e Estocolmo. Mas a gota de água foi a desastrosa conclusão da operação de Vogel em Londres. Dois agentes da Abwehr - Horst Neumann e Catherine Blake - foram mortos mesmo à vista do submarino. Não puderam transmitir uma última mensagem, a explicar por que razão tinham decidido fugir de Inglaterra, deixando Vogel sem forma de aferir a autenticidade das informações sobre a Operação Mulberry que Catherine Blake tinha roubado. Hitler explodiu quando soube do acontecido. Despediu de imediato Canaris e colocou a Abwehr e os seus dezasseis mil agentes nas mãos de Schellenberg.
Sem saber bem como, Vogel sobreviveu. Schellenberg e Himmler suspeitavam que a operação tinha sido comprometida por Canaris. Vogel, como Catherine Blake e Horst Neumann, era uma vítima inocente da traição da Velha Raposa.
A teoria de Vogel era outra. Suspeitava que todas as informações roubadas por Catherine tinham sido plantadas pelos serviços secretos britânicos. Suspeitava que ela e Neumann tinham tentado fugir do Reino Unido quando Neumann descobriu que Catherine estava a ser seguida pelo inimigo. Suspeitava que a Operação Mulberry não era um complexo antiaéreo com destino ao Pás de Calais, mas sim um porto artificial a caminho das praias da Normandia. E também suspeitava
que todos os outros agentes enviados para o Reino Unido se encontravam corrompidos - que tinham sido capturados e obrigados a colaborar com os serviços secretos britânicos, provavelmente desde o início da guerra.
No entanto, Vogel não tinha provas que servissem para fundamentar nada daquilo - sendo um bom advogado, não tencionava fazer acusações que não pudesse provar. Além disso, mesmo que tivesse provas, não tinha a certeza de que as teria dado a gente como Schellenberg e Himmler.
Um dos telefones na secretária de Schellenberg tocou. Era uma chamada que ele tinha de atender. Cautelosamente, resmungou e falou em código durante cinco minutos enquanto Vogel esperava. O nevão de fuligem tinha diminuído. As ruínas de Berlim brilhavam sob o sol de abril. Os vidros estilhaçados cintilavam como cristais de gelo.
Continuar na Abwehr e cooperar com o novo regime tinha as suas vantagens. Vogel tinha feito Gertrude, Nicole e Lizbet passarem discretamente da Baviera para a Suíça. Como um bom agente que comanda outros, financiara a operação através de uma complexa artimanha, transferindo fundos de contas secretas da Abwehr na Suíça para a conta de Gertrude, ocultando depois essa transferência com o dinheiro que ele próprio possuía na Alemanha. Transferira para fora do país dinheiro que chegaria para viverem confortavelmente durante alguns anos quando a guerra terminasse. E possuía outra mais-valia, as informações que tinha na cabeça. Tinha a certeza de que os britânicos e os americanos pagariam muito bem, tanto com dinheiro como com proteção.
Schellenberg desligou o telefone e fez uma careta, como se lhe doesse o estômago.
- Muito bem - disse ele. - Vamos ao motivo que me levou a chamá-lo cá, capitão Vogel. Chegaram notícias muito interessantes de Londres.
- Ai sim? - retorquiu Vogel, erguendo a sobrancelha.
- Sim. A nossa fonte no MI5 tem uma informação muito importante.
com um floreado, Schellenberg exibiu uma cópia de uma comunicação via rádio e entregou-a a Vogel. Ao lê-la, Vogel pensou: Notável, a subtileza da manipulação. Quando acabou de ler, estendeu o braço sobre a secretária e devolveu a cópia a Schellenberg.
Schellenberg afirmou:
- O MI5 punir disciplinarmente um homem que é amigo pessoal e confidente de Winston Churchill é algo de extraordinário. E a fonte está acima de qualquer suspeita. Fui eu próprio que o recrutei. Não é um dos lacaios do Canaris. Penso que isso prova que as informações roubadas pela sua agente eram genuínas, capitão Vogel.
- Sim, penso que tem razão, Herr Brigadefúhrer.
- O Fúhrer precisa de ser informado disto imediatamente. Vai reunir-se hoje à noite com o embaixador japonês, em Berchtesgaden, para o pôr ao corrente dos preparativos para a invasão. Tenho a certeza de que vai querer transmitir-lhe isto também.
Vogel assentiu com a cabeça.
- vou apanhar um avião que sai de Templehof daqui a uma hora. Gostava que me acompanhasse e informasse o Fiihrer pessoalmente. Afinal de contas, e antes de mais, a operação era sua. Além disso, o homem simpatiza consigo. O senhor tem um futuro francamente brilhante à sua frente, capitão Vogel.
- Obrigado pela proposta, Herr Brigadefúhrer, mas acho que o senhor é que devia dar a novidade ao Fúhrer.
- Tem a certeza, capitão Vogel?
- Sim, Herr Brigadefúhrer, tenho a certeza absoluta.
SESSENTA E DOIS
OYSTER BAY, LONG ISLAND
Foi o primeiro dia bom de primavera - sol quente e um vento suave que soprava do Sound. O dia anterior fora frio e húmido. Dorothy Lauterbach estava preocupada com
a hipótese de o frio estragar a cerimónia fúnebre e a receção. Certificou-se de que todas as lareiras da casa tinham lenha e deu instruções ao responsável pela comida para terem bastante café quente pronto para quando os convidados chegassem. Mas, a meio da manhã, já o sol expulsara as últimas nuvens e a ilha resplandecia. Dorothy transferiu rapidamente a receção da casa para o relvado com vista para o Sound.
Shepherd Ramsey tinha trazido as coisas de Jordan de Londres: a roupa, os livros, as cartas, os documentos pessoais que os homens dos serviços de segurança não tinham confiscado. No avião de carga que o trouxe de Londres, Ramsey folheou as cartas para se certificar de que não faziam referência à mulher com quem Peter tinha um relacionamento em Londres antes de morrer.
Foi uma cerimónia fúnebre muito concorrida. Não havia corpo para enterrar, mas foi colocada uma pequena lápide ao lado da de Margaret. Todo o staffdo banco de Bratton
compareceu, tal como grande parte dos funcionários da Northeast Bridge Company. As famílias da North Shore também estiveram presentes - os Dutton, os Robinson e
os Tetlinger. Billy manteve-se ao lado de Jane e Jane apoiou-se em Walker Hardegen. Bratton recebeu a bandeira americana das mãos de um representante da marinha.
O vento arrancou flores
das árvores e lançou-as para cima da multidão como se fossem papelinhos de Carnaval.
Havia um homem ligeiramente afastado do resto das pessoas, com as mãos cruzadas atrás das costas e a cabeça inclinada para baixo, em sinal de respeito. Era alto e magro e o fato cinzento de lã, com casaco assertoado, era um bocadinho pesado para o quente tempo primaveril.
Walker Hardegen foi a única pessoa que o reconheceu. Mas Hardegen não sabia o nome verdadeiro do homem. Ele usava sempre um pseudónimo que era tão ridículo que Hardegen tinha dificuldade em dizê-lo sem se rir.
O homem era o agente responsável por Hardegen e o pseudónimo que usava era Broome.
Shepherd Ramsey trouxe a carta do homem de Londres. Dorothy e Bratton entraram discretamente na biblioteca e leram-na durante a receção. Dorothy leu-a primeiro, com as mãos a tremerem. Estava mais velha, mais velha e mais grisalha. Uma queda nos degraus gelados da casa de Manhattan, em dezembro, tinha-a deixado com uma anca
partida. O coxear que daí resultara roubara-lhe o antigo físico imponente. Tinha os olhos molhados quando acabou de ler a carta, mas não chorou. Dorothy fazia sempre
as coisas com moderação. Passou a carta a Bratton, que chorou ao lê-la.
Caro Billy,
É com grande tristeza que escrevo esta carta. Tive o prazer de trabalhar com o teu pai apenas por um período muito curto de tempo, mas achei-o um dos homens mais extraordinários
que já conheci. Esteve envolvido num dos projetos mais vitais da guerra. No entanto, devido a exigências de segurança, há uma forte possibilidade de nunca vires
a saber o que o teu pai fez.
Posso dizer-te isto: o trabalho feito pelo teu pai vai salvar inúmeras vidas e
fazer com que os europeus se possam livrar de Mitler e dos nazis de uma vez por todas.
O teu pai deu verdadeiramente a vida para que outros pudessem viver. Foi um herói.
Mas nada que o teu pai tenha conseguido fazer lhe deu tanto prazer e satisfação como tu,
Billy. Quando o teu pai falava de ti, a cara dele alterava-se. Os olhos
iluminavam-se e ele sorria, mesmo que estivesse muito cansado. Eu nunca tive a sorte de ser
abençoado com um filho. Ao ouvir o teu pai falar de ti, dei-me conta da imensidão do meu infortúnio.
Atenciosamente, Alfred Vicary
Bratton devolveu a carta a Dorothy. Ela dobrou-a, voltou a colocá-la no envelope e guardou-a na gaveta de cima da secretária de Bratton. Dirigiu-se para a janela
e olhou lá para fora.
Toda a gente estava a comer e a beber e parecia estar a divertir-se. Para lá da multidão, viu Billy, Jane e Walker sentados na relva junto à doca. Jane e Walker
tinham-se tornado mais do que amigos. Tinham começado uma relação amorosa e Jane até falava em casamento. Dorothy pensou: Seria mesmo perfeito. Billy teria outra
vez uma verdadeira família.
Havia algo de apropriado nisso, uma sensação de conclusão para tudo aquilo, que Dorothy considerava reconfortante. Estava outra vez quente e dentro de pouco tempo seria verão. As casas não tardariam muito a abrir e as festas começariam. A vida continua, disse a si própria. Margaret e Peter já cá não estão, mas não há dúvida de que a vida continua.
SESSENTA E TRÊS
GLOUCESTERSHIRE, INGLATERRA: SETEMBRO
DE 1944
Até Alfred Vicary ficou surpreendido com a rapidez com que conseguira sair. Tecnicamente, tratava-se de uma licença administrativa até serem conhecidas as conclusões do inquérito interno. Vicary sabia que isso era uma terminologia pomposa que correspondia a um despedimento.
Perversamente, seguiu o conselho de Basil Boothby e fugiu para a casa da tia Matilda - nunca fora capaz de se habituar à ideia de que era sua - para ordenar as ideias. Os primeiros dias de exílio foram aterradores. Sentia falta da camaradagem do MI5. Sentia falta do seu gabinetezinho miserável. Até deu por si a sentir falta da cama de campanha, pois tinha perdido a bênção do sono profundo. Culpava a cama de casal de Matilda, que afundava cada vez mais - demasiado mole, com demasiado espaço para ele se debater com os seus pensamentos atormentados. Num raro clarão de inspiração, foi à loja da aldeia comprar uma nova cama de campanha. Instalou-a na sala de estar, ao lado da lareira, um local estranho, sabia-o, mas não planeava receber visitas. A partir dessa noite, começou a dormir tão bem como se poderia esperar.
Passou por um longo e triste período de inatividade. Mas, na primavera, quando o tempo aqueceu, concentrou a ilimitada energia acumulada na sua nova casa. Os vigias que o visitavam de vez em quando viram, horrorizados, Vicary atacar o jardim munido de uma
tesoura de podar, de uma foice e dos óculos em meia-lua. Observaram-no, espantados, a pintar de novo o interior do chalé. Gerou-se uma discussão considerável à
volta da cor por ele escolhida: um branco forte e rotineiro. Será que significava que o seu estado de espírito estava a melhorar ou estaria a transformar a casa
num hospital e a dar entrada por um período prolongado?
A preocupação também era grande na aldeia. Poole, o homem da drogaria, diagnosticou o estado de espírito de Vicary como sendo de luto. Não é possível, disse Plenderleith, o homem da estufa, que dava conselhos a Vicary acerca do jardim. Nunca foi casado, nunca esteve apaixonado, ao que parece. Miss Lazenby, da loja de roupa, decretou que estavam ambos errados. O pobre homem está apaixonado, qualquer pateta vê isso. E, pelo aspeto dele, o objeto da sua devoção não lhe retribui esse amor.
Mesmo que tivesse sabido dessa discussão, Vicary não teria sido capaz de a resolver, já que conhecia tão mal os seus próprios sentimentos como as pessoas que os testemunhavam. O chefe do seu departamento no University College enviou-lhe uma carta. Tivera conhecimento que Vicary já não se encontrava ao serviço do Ministério da Guerra e queria saber quando regressaria à universidade. Vicary rasgou a carta ao meio e queimou-a na lareira.
Já não havia nada em Londres para ele - apenas más recordações -, por isso, manteve-se longe. Só lá foi uma vez, numa manhã da primeira semana de junho, quando Sir Basil o chamou para ouvir os resultados do inquérito interno.
- Olá, Alfred! - gritou Sir Basil quando Vicary entrou no seu gabinete.
Lá dentro, brilhava uma suave luz cor de laranja. Boothby estava exatamente no centro do gabinete, como se quisesse espaço para manobrar para todos os lados. Trazia um fato cinzento que lhe assentava na perfeição e parecia mais alto do que Vicary se lembrava. O diretor-geral estava sentado no elegante sofá, com os dedos entrelaçados como se estivesse a rezar e os olhos fixos num ponto do tapete persa. Boothby com a mão direita em riste como uma baioneta, avançou
na direção de Vicary. Tendo em conta o sorriso caótico estampado na cara de Boothby, Vicary não tinha a certeza se ele estava a planear abraçá-lo ou atacá-lo. E também não tinha a certeza daquilo que receava mais.
Mas o que Boothby fez de facto foi apertar a mão a Vicary com um bocadinho de simpatia a mais e pousar-lhe a sua patorra no ombro. Estava quente e húmida, como se tivesse acabado de jogar uma partida de ténis. Serviu-lhe ele próprio chá e fez conversa de circunstância enquanto Vicary fumava um último cigarro. A seguir, com considerável cerimónia, tirou da secretária o relatório final da comissão de inquérito e colocou-o em cima da mesa. Vicary não quis olhar para o documento diretamente.
Boothby explicou a Vicary, com um prazer excessivo, que não lhe era permitido ler a avaliação feita à sua própria operação. Mostrou-lhe antes um documento de uma
só página, uma versão saneada que supostamente condensava e resumia o conteúdo do relatório. Vicary segurou-o com as duas mãos, mantendo-o bem esticado para que
não tremesse enquanto o lia. Era um documento desprezível e obsceno, mas contestá-lo naquele momento não serviria de nada. Devolveu-o a Boothby, apertou-lhe a mão,
depois a do diretor-geral, e foi-se embora.
Vicary desceu as escadas. Estava alguém no seu gabinete. Era Harry, com uma cicatriz horrível no maxilar. Vicary não era adepto de despedidas prolongadas. Disse
a Harry que tinha sido despedido, agradeceu-lhe tudo o que ele tinha feito e disse-lhe adeus.
Chovia outra vez e o tempo estava frio para junho. O chefe da divisão dos Transportes disponibilizou um carro a Vicary. Vicary recusou educadamente. Abriu o guarda-chuva
e seguiu vagarosamente para Chelsea, com a chuva a cair torrencialmente.
Passou a noite na sua casa em Chelsea. Acordou ao amanhecer, com a chuva a bater nas janelas. Era o dia 6 de junho. Ligou a BBC para ouvir as notícias e ficou a
saber que a invasão estava em curso.
Ao meio-dia, Vicary saiu de casa, esperando ver multidões nervosas e ouvir conversas ansiosas, mas havia um silêncio de morte em Londres. Algumas pessoas aventuravam-se
a ir às compras e outras entravam nas igrejas para rezarem. Os táxis deslocavam-se pelas ruas vazias à procura de clientes.
Vicary observou os londrinos ocupados com a sua vida. Sentiu vontade de correr para eles, sacudi-los e dizer: Não sabem o que é que está a acontecer? Não têm noção
do que foi necessário? Não sabem as coisas inteligentes e perversas que fizemos para os enganar? Não sabem o que é que eles me fizeram a mim?
Jantou no pub da esquina e ouviu os animadores boletins noticiosos na telefonia. Nessa noite, de novo sozinho, ouviu a mensagem do Rei à nação e, a seguir, foi deitar-se.
De manhã, apanhou um táxi para a estação de Paddington e regressou a Gloucestershire no primeiro comboio.
Gradualmente, por altura do verão, os seus dias adquiriram uma cuidadosa rotina.
Levantava-se cedo e lia até ao almoço, que comia todos os dias na aldeia, no Eight Bells: tarte de legumes, cerveja, carne quando constava do menu. Do Eight Bells,
partia para a caminhada que se obrigava a dar diariamente pelos trilhos ventosos em redor da aldeia. A cada dia que passava, o joelho aleijado recuperava um pouco
mais de força e, em agosto, Vicary já fazia dezasseis quilómetros todas as tardes. Deixou de fumar cigarros e passou para o cachimbo. Os rituais do cachimbo - carregá-lo,
limpá-lo, acendê-lo e voltar a acendê-lo - assentavam de modo perfeito na sua nova vida.
Não tinha noção do dia certo em que aquilo tinha acontecido o dia em que tudo se desvaneceu dos seus pensamentos conscientes: o gabinete exíguo, o estrépito dos
teleimpressores, a comida horrível da cantina, o léxico louco daquele sítio. Double Cross... Mulberry... Phoenix... Kettledrum. Até Helen foi empurrada para dentro
de uma sala fechada da sua memória, onde não poderia causar mais danos. Alice Simpson começou a visitá-lo ao fim de semana e passou lá uma semana inteira no início
de agosto.
No último dia do verão, sentiu-se invadido pela suave melancolia que aflige as pessoas do campo quando o tempo quente está a chegar ao fim. Era um crepúsculo glorioso,
com o horizonte raiado de púrpura e cor de laranja, a primeira sugestão do outono no ar. As prímulas e as campainhas há muito tinham desaparecido. Recordou-se de
um fim de tarde assim, meia vida antes, quando Brendan Evans o ensinou a andar de mota nos trilhos da Fens. Ainda não estava frio para
acender lareiras, mas do seu poleiro, no cimo de uma colina, conseguia ver as chaminés da aldeia a deitarem fumo suavemente e sentir o cheiro intenso a madeira verde
no ar.
Foi então que viu tudo a desenrolar-se nas encostas, como a solução para um problema de xadrez. Conseguia ver as linhas de ataque, a preparação, o logro. Nada tinha
sido o que parecia.
Vicary voltou apressadamente para o chalé, telefonou para o departamento e pediu para falar com Boothby. Foi nessa altura que se apercebeu de que era tarde e de
que era sexta-feira - os dias da semana já não significavam nada para ele - mas, por milagre, Boothby ainda lá estava e atendeu o seu próprio telefone.
Vicary identificou-se. Boothby revelou-se genuinamente agradado por ouvir a voz dele. Vicary garantiu-lhe que estava ótimo.
- Quero falar consigo - disse Vicary. - Sobre a Operação Ketdedrum.
A linha caiu num silêncio, mas Vicary sabia que Boothby não tinha desligado o telefone de repente porque o ouvia a mexer-se agitadamente na cadeira.
- Já não pode vir cá. O Alfred épersona nongrata. Por isso, suponho que tenha de ser eu a ir ter consigo.
- Perfeito. E não finja que não sabe como me encontrar porque tenho visto os seus vigias a andarem atrás de mim.
- Amanhã, ao meio-dia - atirou Boothby, desligando o telefone.
Boothby chegou ao meio-dia em ponto, num Humber oficial, vestido para o campo com roupa de tweed, uma camisa aberta no pescoço e um casaco de malha confortável.
Tinha chovido durante a noite. Vicary foi buscar à cave umas botas de borracha tamanho XL para Boothby e percorreram como velhos colegas um prado pontilhado de ovelhas
tosquiadas. Boothby foi falando sobre mexericos do departamento e Vicary, com considerável esforço, fingiu estar interessado.
Passado um bocado, Vicary parou de andar e pôs-se a olhar para longe.
- Nada daquilo era real, pois não? - exclamou. -Jordan, Catherine Blake... - era tudo falso desde o início.
Boothby sorriu sedutoramente.
- Não foi bem assim, Alfred. Mas qualquer coisa do género.
Virou-se e continuou a caminhar, o corpo alto uma linha vertical recortada no horizonte. A seguir, parou e fez sinal a Vicary para se aproximar. Coxeando mecânica
e rigidamente, Vicary seguiu Boothby, batendo nos bolsos à procura dos óculos em meia-lua.
- Foi a natureza da Operação Mulberry que nos colocou um problema - começou a dizer Boothby, sem aviso. - Estavam envolvidas dezenas de milhares de pessoas. Claro
que a grande maioria não fazia ideia daquilo em que estava a trabalhar. Ainda assim, o potencial para ocorrerem fugas de segurança era enorme. As componentes eram
tão grandes que tinham de ser construídas à vista de toda a gente. Os locais de construção estavam espalhados pelo país, mas uma parte foi construída mesmo aqui
perto, nas docas de Londres. Assim que nos informaram do projeto, percebemos que tínhamos um problema. Sabíamos que os alemães seriam capazes de fotografar os locais
a partir do ar. Sabíamos que bastava um espião razoável andar a bisbilhotar as obras para conseguir provavelmente descobrir o que estávamos a preparar. Enviámos
um homem para Sesley para testar o grau de segurança. Já estava a beber chá na cantina com alguns trabalhadores quando alguém se deu ao trabalho de lhe pedir a identificação.
Boothby riu. Vicary observou-o enquanto ele falava. Toda a sua arrogância e todo o seu nervosismo tinham desaparecido. Sir Basil mostrava-se calmo, sereno e simpático.
Vicary pensou que, em circunstâncias diferentes, até poderia ter gostado dele. Apercebeu-se, chocado, de que tinha subestimado a inteligência de Boothby desde o
início. E também ficou espantado com a utilização que ele fazia da palavra nós. Boothby era membro do clube; Vicary tinha apenas sido autorizado a encostar o nariz
ao vidro durante um curto período de tempo.
- O maior problema era a possibilidade de a Operação Mulberry revelar as nossas intenções - recomeçou Boothby. - Se os alemães descobrissem que estávamos a construir
portos artificiais, eram bem
capazes de concluir que pretendíamos evitar os portos altamente fortificados de Calais atacando na Normandia. Como o projeto era tão grande e difícil de ocultar,
tínhamos de partir do princípio de que os alemães acabariam por descobrir o que estávamos a preparar. A nossa solução foi roubar por eles o segredo da Operação Mulberry
e tentar controlar o jogo - explicou Boothby, olhando para Vicary. - Muito bem, Alfred, vamos lá ouvir o que tem para dizer. Quero saber o que conseguiu descobrir
ao certo.
- Walker Hardegen - afirmou Vicary. - Eu diria que começou tudo com Walker Hardegen.
- Muito bem, Alfred. Mas como?
- Walker Hardegen era um banqueiro e um homem de negócios rico, ultraconservador, anticomunista e provavelmente um bocadinho antissemita. Vinha da Ivy League e conhecia
metade das pessoas em Washington. Tinha andado na escola com elas. Os americanos não são assim tão diferentes de nós nesse aspeto. Os negócios dele levavam-no a
Berlim regularmente. E quando homens como Hardegen viajavam para Berlim, iam a jantares e festas de embaixadas. Jantavam com os diretores das maiores empresas alemãs
e com funcionários nazis do partido e dos ministérios. Hardegen falava alemão perfeitamente. E o mais provável era que admirasse algumas das coisas que os nazis
andavam a fazer. Acreditava que Hitler e os nazis funcionavam como um importante amortecedor entre os bolcheviques e o resto da Europa. Eu diria que, durante uma
das visitas dele, terá chamado a atenção da Abwehr ou do SD.
- Bravo, Alfred. Foi a Abwehr, por acaso, e o homem cuja atenção capturámos foi Paul Múller, o diretor das operações da Abwehr na América.
- Muito bem. Múller recrutou-o. Oh, calculo que provavelmente tenha suavizado a coisa. Dito que Hardegen não estaria realmente a trabalhar para os nazis. Estaria
a ajudar na luta contra o comunismo internacional. Pediu informações a Hardegen sobre a produção industrial americana, o estado de espírito em Washington, coisas
desse género. Hardegen aceitou e tornou-se agente. Mas tenho uma pergunta: Hardegen já era um agente americano nessa altura?
- Não - respondeu Boothby, sorrindo. - Não se esqueça, isto passou-se ainda bem no início do jogo, em 1937. Os americanos não eram especialmente sofisticados nessa
altura. Mas sabiam, no entanto, que a Abwehr se encontrava ativa nos Estados Unidos, particularmente em Nova Iorque. Um ano antes, os planos relativos à mira de
bombardeiro Norden saíram do país dentro da pasta de um espião da Abwehr chamado Nikolaus Ritter. Roosevelt tinha dado ordens a Hoover para atuar com dureza. Em
1939, Hardegen foi fotografado a encontrar-se em Nova Iorque com um conhecido agente da Abwehr. Dois meses mais tarde, viram-no novamente, desta vez a encontrar-se
com outro agente da Abwehr na Cidade do Panamá. Hoover queria prendê-lo e levá-lo a julgamento. Meu Deus, os americanos eram mesmo uns lorpas neste jogo. Felizmente,
o MI6 já tinha instalado o seu gabinete em Nova Iorque nessa altura. Intervieram e convenceram Hoover de que Hardegen era mais valioso se continuasse em jogo do
que enfiado numa cela qualquer.
- Então quem é que o controlava, nós ou os americanos?
- Na verdade, era um projeto conjunto. Fornecíamos um fluxo constante de ótimo material aos alemães através de Hardegen, tudo coisas de qualidade superior. Em Berlim,
o estatuto de Hardegen subiu em flecha. Enquanto isso, todos os aspetos da vida de Walker Hardegen foram analisados microscopicamente, incluindo a relação dele com
a família Lauterbach e com um engenheiro brilhante chamado Peter Jordan.
- Por isso, em 1943, quando foi tomada a decisão de efetuar a invasão através do canal da Mancha na Normandia, com a ajuda de um porto artificial, os serviços secretos britânicos e americanos abordaram Peter Jordan e pediram-lhe para passar a trabalhar para nós.
- Sim. Em outubro de 1943, para ser exato.
- Ele era perfeito - prosseguiu Vicary. - Era precisamente o tipo de engenheiro de que o projeto necessitava e era conhecido e respeitado na sua área. Os nazis só precisavam de ir à biblioteca para ler sobre os feitos dele. E a morte da mulher também o tornava vulnerável em termos pessoais. Por isso, no final de 1943, fizeram com que Hardegen se encontrasse com o agente da Abwehr responsável por ele e lhe contasse tudo sobre Peter Jordan. O que é que lhes revelaram na altura?
- Só que Jordan estava a trabalhar num grande projeto de construção relacionado com a invasão. E também demos a entender que ele era vulnerável, como o Alfred disse. A Abwehr mordeu o isco. Múller convenceu Canaris e Canaris passou o assunto a Vogel.
- Então, toda essa coisa foi um estratagema complexo para impingir informações falsas à Abwehr. E Peter Jordan foi o cordeiro sacrificado da praxe.
- Exato. Os primeiros documentos eram propositadamente ambíguos. Estavam abertos à interpretação e à discussão. As unidades Phoenix podiam ser componentes de um porto artificial ou podiam ser um complexo antiaéreo. Queríamos que eles andassem à bulha, discutissem, se esfrangalhassem todos. Tem Sun-Tzu em dia?
- Sabota o teu inimigo, subverte-o, semeia a discórdia entre os seus líderes.
- Exato. Queríamos encorajar a fricção entre o SD e a Abwehr. E também não lhes queríamos facilitar demasiado as coisas. Gradualmente, os documentos da Operação
Kettledrum foram clareando o quadro e esse quadro foi transmitido diretamente a Hitler.
- Mas porquê darem-se a tanto trabalho? Porque é que não utilizaram simplesmente um dos agentes que já tinham mudado de lado? Ou um dos agentes fictícios? Porquê
utilizarem um engenheiro de carne e osso? Porque não inventaram simplesmente um de fio a pavio?
- Por duas razões - respondeu Boothby. - Número um, isso é demasiado fácil. Queríamos que eles se esforçassem para obter as informações. Queríamos influenciar-lhes o pensamento subtilmente. Queríamos que pensassem que eram eles que estavam a decidir apontar baterias a Jordan. Não se esqueça do mantra de um agente da Operação Double Cross: as informações facilmente obtidas são facilmente descartadas. Havia uma cadeia de informações, por assim dizer: de Hardegen para Múller, de Múller para Canaris, de Canaris para Vogel e de Vogel para Catherine Blake.
- Impressionante - afirmou Vicary. - E a segunda razão?
- A segunda razão foi que, no final de 1943, descobrimos que não conhecíamos todos os espiões alemães que atuavam no Reino
Unido. Ficámos a saber de Kurt Vogel, ficámos a saber da rede dele e ficámos a saber que um dos agentes era uma mulher. Mas tínhamos um problema grave. Vogel tinha infiltrado os agentes no Reino Unido tão cuidadosamente que só os conseguiríamos localizar se fizéssemos com que eles se revelassem. Não se esqueça, o Plano Bodyguard estava prestes a começar a carburar a cem por cento, íamos bombardear os alemães com rajadas de informações falsas. Mas não nos podíamos sentir confortáveis sabendo que havia agentes de carne e osso ativos no nosso país. Tínhamos de os identificar a todos. Caso contrário, nunca poderíamos ter a certeza de que os alemães não estavam a receber informações que contradissessem o Plano Bodyguard.
- E como tiveram conhecimento da rede de Vogel?
- Fomos informados.
- Por quem?
Boothby deu alguns passos em silêncio, contemplando a biqueira enlameada das botas de borracha.
- Fomos informados da rede por Wilhelm Canaris - disse por fim.
- Por Canaris?
- Através de um dos emissários dele, na realidade. Em 1943, no final do verão. Isto vai provavelmente chocá-lo, mas Canaris era um dos líderes da Schwarze Kapelle. Queria que Menzies e os serviços secretos o ajudassem a derrubar Hitler e a acabar com a guerra. Num gesto de boa vontade, informou Menzies da existência da rede de Vogel. Menzies informou os serviços de segurança e, em conjunto, engendrámos um estratagema chamado Kettledrum.
- O principal espião de Hitler, um traidor. Extraordinário. E o senhor sabia de tudo isto, claro. Sabia-o na noite em que eu fui destacado para o caso. Aquele relatório acerca da invasão e dos planos de logro... Teve tudo como objetivo assegurar a minha lealdade cega. Motivar-me. Manipular-me.
- Lamento dizê-lo, mas sim.
- Então a operação tinha dois objetivos: enganá-los em relação ao Projeto Mulberry e, ao mesmo tempo, fazer com que os agentes de Vogel se revelassem para os podermos neutralizar.
- Sim - confirmou Boothby. - E mais outra coisa: possibilitar a Canaris um golpe de mestre que lhe permitisse salvar a cabeça
até à invasão. A última coisa de que precisávamos era de Schellenberg e de Himmler a comandarem. A Abwehr estava totalmente paralisada e manipulada. Sabíamos que se Schellenberg assumisse o controlo, ia pôr em causa tudo o que Canaris tinha feito. Mas não fomos bem-sucedidos nesse ponto, claro. Canaris foi despedido e Schellenberg apoderou-se finalmente da Abwehr.
- Então porque é que a Operação Double Cross e o Plano Bodyguard não se desmoronaram com a queda de Canaris?
- Oh, Schellenberg estava mais interessado em consolidar o seu império do que em introduzir uma nova leva de agentes em Inglaterra. Houve uma impressionante reorganização burocrática - gabinetes a trocarem de dono, dossiês a mudarem de mãos, esse tipo de coisas. No estrangeiro, mandou embora agentes dos serviços secretos experientes
que eram leais a Canaris e substituiu-os por sabujos ainda verdes, leais às SS e ao Partido. Enquanto isso, no quartel-general da Abwehr, os agentes responsáveis
faziam todos os possíveis por provar que os agentes a atuarem no Reino Unido eram fidedignos e produtivos. Pondo as coisas de forma simples, era uma questão de vida
ou de morte para esses agentes. Se admitissem que os agentes deles estavam sob controlo britânico, teriam sido enfiados no primeiro comboio a caminho do Leste. Ou
pior.
Caminharam em silêncio durante algum tempo enquanto Vicary assimilava tudo o que lhe tinha sido dito. Tinha a cabeça à roda. E inúmeras perguntas. Temia que Boothby
se pudesse calar a qualquer instante. Ordenou-as por importância, deixando de lado as suas emoções fervilhantes. Passou uma nuvem diante do Sol e de repente fez-se
frio.
- E resultou tudo? - perguntou Vicary.
- Sim, resultou de forma brilhante.
- Então e a emissão do Lord Haw-Haw?
O próprio Vicary tinha-a ouvido, sentado na sala de estar do chalé de Mádida, e tinha sentido um calafrio. Nós sabemos exatamente o que é que vocês pretendem faer
com essas unidades de betão. Pensam que as vão afundar nas nossas costas durante a invasão. bom, vamos ajudar-vos, rapaces...
- Pôs o Supremo Comando Aliado em pânico. Pelo menos, à superfície - acrescentou Boothby presunçosamente. - Um grupo
muito pequeno de oficiais tinha conhecimento do logro da Operação Kettledrum e percebeu que se tratava apenas do último ato. Eisenhower enviou um telegrama para
Washington a pedir cinquenta vedetas para resgatar as tripulações caso as Mulberries fossem afundadas durante a travessia do Canal. Certificámo-nos de que os alemães
sabiam disso. Tate, o nosso agente da Operação Double Cross com uma fonte fictícia dentro do SHAEF, transmitiu ao agente da Abwehr responsável por ele um relatório
do pedido de Eisenhower. Passados vários dias, o embaixador japonês fez uma visita às defesas costeiras e foi informado por Rundstedt. Rundstedt falou-lhe das Mulberries
e explicou-lhe que um agente da Abwehr tinha descoberto que eram torres de artilharia antiaérea. O embaixador enviou por telegrama essa informação aos seus chefes
em Tóquio. Essa mensagem, tal como todas as outras comunicações dele, foi intercetada e descodificada. Nesse momento, soubemos que a Operação Kettledrum tinha resultado.
- E quem dirigiu a operação em termos globais?
- O MI6, na verdade. Foram eles que a iniciaram, foram eles que a conceberam, e nós deixámo-los dirigi-la.
- E quem sabia dentro do departamento?
- Eu, o diretor-geral, Masterman, do Comité da Operação Double Cross.
- E quem era o agente que comandava tudo? Boothby olhou para Vicary.
- O Broome, claro.
- E quem é o Broome?
- O Broome é o Broome, Alfred.
- Só não compreendo uma coisa. Porque é que era necessário enganar o agente responsável pelo caso?
Boothby sorriu tenuemente, como se tivesse sido apoquentado por uma recordação ligeiramente desagradável. Dois faisões irromperam da sebe e voaram disparados pelo
céu cinzento-escuro. Boothby parou e contemplou as nuvens.
- Parece que vem aí chuva - atirou. - Talvez fosse melhor voltarmos para trás.
Deram meia-volta e começaram a andar.
- Nós enganámo-lo, Alfred, porque queríamos que parecesse tudo verdadeiro ao outro lado. Queríamos que o Alfred seguisse os
mesmos passos que em princípio seguiria num caso normal. E também não lhe era necessário saber que Jordan estava a trabalhar para nós desde o início. Não era necessário.
- Meu Deus! - disparou Vicary. - Então comandaram-me, como a qualquer outro agente. Comandaram-me.
- Pode dizer-se isso, sim.
- E porque fui escolhido? Porque não outra pessoa?
- Porque o Alfred, como o Peter Jordan, era perfeito.
- É capaz de me explicar isso?
- Escolhemo-lo por ser inteligente e engenhoso, e, em circunstâncias normais, o Alfred ter-lhes-ia dado água pela barba. Meu Deus, quase percebeu o logro enquanto
a operação estava em curso. E também o escolhemos por a tensão entre nós dois ser lendária afirmou Boothby, parando por uns instantes e olhando para Vicary.
- O Alfred não era propriamente discreto quando me criticava perante o resto do staff. Mas, mais importante do que isso, escolhemo-lo por ser amigo do primeiro-ministro
e a Abwehr o saber.
- E quando me despediram, informaram os alemães através de Hawke e do Pelicano. Esperavam que o sacrifício de um amigo pessoal de Winston Churchill reforçasse a
confiança deles no material da Operação Kettledrum.
- Exato, fazia tudo parte do guião. E resultou, já agora.
- E Churchill sabia?
- Sim, sabia. Foi ele próprio que aprovou tudo. O seu velho amigo traiu-o. Adora a magia negra, o nosso Winston. Se não fosse primeiro-ministro, acho que teria
sido um agente perito em logros. Acho que se divertiu bastante com tudo. Ouvi dizer que aquele discurso de motivação que ele lhe fez nas Salas de Guerra Subterrâneas
foi um clássico.
- Sacanas - murmurou Vicary. - Sacanas manipuladores. Mas a verdade é que, se calhar, me devia dar por feliz. Podia estar morto como os outros. Meu Deus! Já se deram
conta de quantas pessoas morreram por causa do vosso joguinho? Pope, a namorada dele, Rose Morely, os dois homens da Divisão Especial em Earl's Court, os quatro
polícias em Louth, outro em Cleethorpes, Sean Dogherty, Martin Colville.
- Está a esquecer-se de Peter Jordan.
- Por amor de Deus, mataram o vosso próprio agente!
- Não, o A-lfred é que o matou. Foi o Alfred que o pôs a bordo daquele barco. Eu até gostei bastante, devo admitir. O homem cujo descuido pessoal quase nos custou
a guerra morre a salvar a vida de uma rapariga e expia os seus pecados. Era assim que Hollywood teria feito a coisa. E é isso que os alemães pensam que aconteceu
realmente. E, além do mais, o número de vidas que se perderam não é nada comparado com a carnificina que teria ocorrido se Rommel estivesse à nossa espera na Normandia.
- Trata-se tudo de créditos e débitos? É assim que olha para as coisas? Como se fossem uma gigantesca folha de contabilidade? Ainda bem que estou fora! Não quero
fazer parte disso! Não se isso significa fazer coisas dessas. Meu Deus, já devíamos ter queimado pessoas como o senhor na fogueira há muito tempo!
Subiram uma última colina. Ao longe, a casa de Vicary surgiu diante deles. As trepadeiras floridas de Matilda cobriam o muro de calcário que servia de proteção.
Ele queria estar lá - bater com a porta, sentar-se à lareira e nunca mais voltar a pensar em nada daquilo. Sabia que naquele momento isso era impossível. Queria
livrar-se de Boothby. Acelerou o passo, descendo rapidamente a colina e quase perdendo o equilíbrio. Boothby, com o seu corpo alto e pernas atléticas, esforçou-se
por o acompanhar.
- Não é mesmo isso que acha, pois não? O Alfred gostou daquilo. Foi seduzido. Gostou da manipulação e do logro. A sua universidade quer que regresse, mas o Alfred
não tem a certeza se quer voltar para lá porque tem consciência de que tudo aquilo em que acreditava é mentira e de que o meu mundo, este mundo, é que é o verdadeiro.
- O senhor não é o mundo verdadeiro. Não tenho a certeza do que o senhor é, mas não é verdadeiro.
- Pode dizer isso agora, mas eu sei que sente uma falta terrível de tudo aquilo. É bastante parecido com uma amante, o tipo de trabalho que fazemos. Às vezes, não
gostamos muito dela. Não gostamos de nós próprios quando estamos com ela. Os momentos em
que nos sentimos bem são fugazes. Mas quando tentamos deixá-la há sempre qualquer coisa que nos puxa outra vez para ela.
- Receio bem que essa metáfora não me diga muito, Sir Basil.
- Lá está o Alfred outra vez, a armar-se em superior, em melhor do que os outros. Pensei que já tivesse aprendido a lição por esta altura. O Alfred precisa de pessoas
como nós. O país precisa de nós.
Atravessaram o portão e seguiram pelo caminho de entrada. O cascalho estalava sob os seus pés. Vicary lembrou-se da tarde em que tinha sido chamado a Chartwell e
recebido o cargo no MI5. Lembrou-se da manhã nas Salas de Guerra Subterrâneas, das palavras de Churchill: Tem de deixar de lado quaisquer princípios que ainda possua,
deixar de lado quaisquer sentimentos de compaixão que ainda possua, efaer tudo o que for necessário para vencer.
Pelo menos, tinha havido alguém que tinha sido sincero consigo, mesmo que isso tivesse sido mentira na altura.
Pararam ao lado do Humber de Boothby.
- Compreenderá por certo que eu não o convide para entrar e tomar um refresco - disse Vicary. - Quero ir lavar o sangue das mãos.
- A beleza da coisa é essa, Alfred - retorquiu Boothby, mostrando as grandes patorras a Vicary. - Eu também tenho sangue nas mãos. Só que não o consigo ver e mais
ninguém consegue. É uma mancha secreta.
O motor do carro disparou quando Boothby abriu a porta.
- Quem é Broome? - perguntou Vicary uma última vez.
O rosto de Boothby ensombrou-se, como se uma nuvem lhe tivesse passado à frente.
- Broome é Brendan Evans, o seu velho amigo de Cambridge. Contou-nos a sua manobra para entrar para os serviços secretos militares. E contou-nos o que lhe aconteceu
em França. Sabíamos o que o impelia e o que o motivava. Tinha de ser... afinal de contas, estávamos a comandá-lo.
Vicary sentiu a cabeça começar a latejar.
- Tenho mais uma pergunta.
- Quer saber se Helen estava envolvida nisso ou se foi ter consigo de livre vontade.
Vicary ficou em suspenso, à espera de uma resposta.
- Porque não vai ter com ela e lhe pergunta?
A seguir, Boothby desapareceu dentro do carro e foi-se embora.
SESSENTA E QUATRO
LONDRES: MAIO DE 1945
Nessa tarde, às seis horas, Lillian Walford aclarou a garganta, bateu suavemente à porta do gabinete e entrou sem esperar que respondessem. O professor estava lá,
sentado à janela com vista para Gordon Square, com o corpo franzino debruçado sobre um velho manuscrito.
- Se já não tiver mais nada para eu fazer, vou-me embora, professor - disse ela, dando início ao ritual de fechar os livros e endireitar os papéis que parecia acompanhar
sempre as conversas de sexta-feira ao final da tarde entre ambos.
- Não, tenho tudo o que preciso, obrigado.
Ela olhou para ele e pensou: Não, por qualquer razão, duvido muito disso, professor. Havia qualquer coisa nele que tinha mudado. Oh, é verdade que nunca tinha sido do tipo falador; nunca tinha sido pessoa de iniciar uma conversa, a não ser que fosse absolutamente necessário. Mas parecia mais reservado do que nunca, coitadinho. E tinha piorado à medida que o período letivo avançava, em vez de melhorar, como ela tinha esperado. Contavam-se histórias na faculdade, especulações fúteis. Havia quem dissesse que ele tinha enviado homens para a morte ou ordenado execuções. Era difícil imaginar o professor a fazer essas coisas, mas fazia algum sentido, ela tinha de admitir. Alguma coisa o tinha feito fazer um voto de silêncio.
- É melhor não se demorar muito, professor, se quer apanhar o comboio.
.- Estava a pensar em ficar antes em Londres no fim de semana
respondeu ele, sem levantar os olhos do trabalho. - Interessa-me
ver qual é o aspeto da cidade à noite, agora que as luzes estão outra vez a funcionar.
- Ora aí está uma coisa que eu espero mesmo nunca mais voltar a ver, o maldito blackout.
- Algo me diz que não verá.
Ela tirou-lhe o impermeável do cabide atrás da porta e colocou-o na cadeira ao lado da secretária. Pousou o lápis e olhou para ela. O que ela fez a seguir apanhou-os aos dois de surpresa. A mão dela pareceu estender-se para a cara dele de livre vontade, por reflexo, como o faria para uma criancinha que tivesse acabado de se magoar.
- O professor está bem?
Ele afastou-se bruscamente e voltou a olhar para o manuscrito.
- Sim, estou ótimo - respondeu ele.
A voz tinha um tom, uma rispidez que ela nunca lhe tinha ouvido. A seguir, ele murmurou qualquer coisa baixinho que pareceu ser nunca estive melhor.
Ela virou-se e dirigiu-se para a porta.
- Tenha um bom fim de semana - disse.
- É essa a minha ideia, obrigado.
- Boa noite, professor Vicary.
- Boa noite, Miss Walford.
A noite estava quente e, quando atravessou Leicester Square, Vicary já tinha despido o impermeável, levando-o dobrado sobre o braço. O crepúsculo chegava ao fim e as luzes de Londres começaram a acender-se lentamente. Quem diria, Liílian Walford a tocar-lhe na cara daquela maneira! Sempre tinha pensado que era um mentiroso
razoável. Interrogou-se se seria assim tão evidente.
Atravessou o Hyde Park. À esquerda, um grupo de americanos jogava softball à luz ténue. À direita, britânicos e canadianos participavam num barulhento jogo de râguebi. Passou por um local onde apenas uns dias antes se encontrava uma arma antiaérea. A arma tinha desaparecido; apenas se mantinham lá os sacos de areia, como se fossem pedras de ruínas antigas.
Entrou em Belgravia e, por instinto, dirigiu-se para a casa de Helen.
Espero que mudes de opinião, e depressa.
As cortinas opacas estavam levantadas e a casa inundada de luz. Estavam lá mais dois casais. David estava de uniforme, com Helen pendurada no braço. Vicary perguntou-se há quanto tempo estaria ali parado, a observá-los, a observá-la. Para sua grande surpresa - ou seria alívio, talvez -, não sentiu nada por ela. O seu fantasma tinha-o abandonado por fim, desta vez definitivamente.
Afastou-se. King's Road deu lugar a Sloane Square e Sloane Square a sossegadas ruas secundárias de Chelsea. Olhou para o relógio; ainda tinha tempo para apanhar
o comboio. Conseguiu um táxi e, antes de entrar, pediu ao taxista para o levar até à estação de Paddington. Baixou o vidro da janela e sentiu o vento quente na cara.
Pela primeira vez em muitos meses, sentiu qualquer coisa parecida com contentamento, qualquer coisa parecida com paz.
Ligou para Alice Simpson de uma cabine telefónica, na estação, e ela aceitou o convite para ir ter com ele ao campo na manhã seguinte. Desligou o telefone e teve
de correr para apanhar o comboio. A carruagem ia apinhada, mas descobriu um lugar à janela, num compartimento com duas velhas e um soldado com cara de menino, agarrado
a uma bengala.
Olhou para o soldado e viu que ele trazia a insígnia do 2.º Regimento de East Yorkshire. Vicary sabia que ele tinha estado na Normandia - em Sword Beach, para ser
exato - e que tinha sorte em estar vivo. Os East Yorks tinham sofrido muitas baixas nos primeiros minutos da invasão.
O soldado reparou que Vicary estava a olhar para ele e conseguiu esboçar um ligeiro sorriso.
- Foi na Normandia. Quase não cheguei a sair do barco - disse, erguendo a bengala. - Os médicos dizem que vou precisar de usar isto para o resto da vida. Como ficou
com o seu, quer dizer, com o coxear?
- Na Primeira Guerra Mundial, em França - disse Vicary num tom distante.
- E fizeram-no regressar para esta?
Vicary assentiu com a cabeça.
- Um trabalho à secretária, num departamento muito monótono do Ministério da Guerra. Nada de importante, na verdade.
Passado algum tempo, o soldado adormeceu. Por uma vez, nos campos que iam passando, Vicary viu o rosto dela, sorrindo-lhe, apenas por um instante. A seguir, viu o de Boothby. E depois, quando a escuridão se instalou, o seu próprio reflexo a acompanhá-lo em silêncio no vidro da janela.QUARENTA E SETE LONDRES
Clive Roach estava sentado a uma mesa junto à janela, no café em frente do apartamento de Catherine Blake, do outro lado da rua. A empregada trouxe-lhe o chá e o pão de leite. Ele largou de imediato algumas moedas na mesa. Era um hábito que tinha adquirido com o trabalho. Por norma, Roach era obrigado a sair dos cafés inesperada e rapidamente. A última coisa de que precisava era atrair atenções. Bebericou o chá e folheou um jornal matutino sem grande convicção. Não estava realmente interessado. Estava mais interessado na entrada do prédio do outro lado da rua. A chuva começou a cair com mais intensidade. Não estava desejoso de voltar a sair e molhar-se. Era o único aspeto do seu trabalho de que não gostava - a exposição constante ao mau tempo. Já tinha apanhado mais constipações e bronquites do que se conseguia lembrar.
Antes da guerra, tinha sido professor numa escola degradada para rapazes. Decidiu alistar-se no exército em 1939. Estava longe de ser o soldado ideal - magro, pele macilenta, cabelo ralo, uma voz com pouca potência. Não era propriamente disso que os oficiais eram feitos. No centro de recrutamento, reparou que estava a ser observado por dois homens bem vestidos a um canto. E também reparou que tinham pedido uma cópia do seu processo e que a estavam a examinar minuciosamente e com grande interesse. Passados uns minutos, arrancaram-no da fila, disseram-lhe que eram dos serviços secretos militares e ofereceram-lhe trabalho.
Roach gostava de observar. Era um observador de pessoas nato e possuía grande aptidão para nomes e caras. Oh, sabia que não haveria medalhas em reconhecimento de heroísmo no campo de batalha, nem histórias que pudesse contar no pub quando a guerra terminasse. Mas era um trabalho importante e Roach fazia-o bem. Começou a comer o pão de leite, pensando em Catherine Blake. Tinha seguido muitos espiões alemães desde 1939, mas ela era a melhor. Uma verdadeira profissional. Já o envergonhara uma vez, mas jurara que nunca mais iria deixar que isso acontecesse.
Terminou o pão de leite e bebeu o que restava do chá. Levantou os olhos da mesa e viu-a sair do prédio. Maravilhou-se com as artes do ofício de Catherine. Ficava sempre parada durante um momento a fazer qualquer coisa prosaica, ao mesmo tempo que perscrutava a rua à procura de sinais de vigilância. Naquele dia, estava às voltas com o guarda-chuva, como se este estivesse estragado. Roach pensou: A menina é muito boa, Miss Blake. Mas eu sou melhor.
Observou-a a abrir por fim o guarda-chuva e a começar a andar. Roach levantou-se, vestiu o casaco e saiu do café para ir atrás dela.
Horst Neumann acordou no momento em que o comboio atravessava ruidosamente os subúrbios do nordeste de Londres. Deu uma olhadela ao relógio: 10h30. Deviam ter chegado a Liverpool Street às 10h23. Milagrosamente, iriam atrasar-se apenas uns minutos. Bocejou, espreguiçou-se e endireitou-se no lugar. Espreitou pela janela, vendo os sombrios edifícios vitorianos que iam passando. Crianças sujas acenaram ao comboio. Neumann, sentindo-se ridiculamente inglês, acenou-lhes também. Havia mais três passageiros no seu compartimento, um par de soldados e uma jovem que usava um fato-macaco de trabalhador fabril e tinha franzido o sobrolho de preocupação quando vira a cara cheia de ligaduras de Neumann. Naquele momento, ele olhou de relance para cada um deles. Ficava sempre preocupado com a possibilidade de falar enquanto dormia, embora nas noites anteriores tivesse sonhado em inglês. Recostou a cabeça e fechou os olhos novamente. Meu Deus, como estava cansado. De pé às cinco da manhã, fora do chalé às seis, para Sean lhe
noder dar boleia até Hunstanton, o comboio das 7hl2 de Hunstanton para Liverpool Street.
Dormira mal na noite anterior, por causa das dores provocadas relos ferimentos e da presença de Jenny Colville na sua cama. Esta levantara-se ao mesmo tempo que ele, antes do amanhecer, escapulira-se do chalé dos Dogherty e fora de bicicleta para casa, no meio da escuridão e da chuva. Neumann esperava que ela tivesse chegado em segurança. E esperava que Martin não se encontrasse à espera dela. Tinha sido uma coisa estúpida deixá-la passar a noite consigo. Pensou no que ela sentiria quando ele se fosse embora. Quando nunca lhe escrevesse e ela nunca mais voltasse a ter notícias dele. Preocupava-o a reação dela se alguma vez descobrisse a verdade - que ele não era James Porter, um soldado britânico ferido, à procura de paz e sossego numa aldeia de Norfolk. Que era Horst Neumann, um paraquedista militar condecorado que tinha vindo para Inglaterra espiar e que a tinha enganado da pior forma. Mas não a tinha enganado em relação a uma coisa. Gostava dela. Não da maneira como ela gostaria que o fizesse, mas a verdade é que gostava dela a ponto de se preocupar com o que lhe pudesse acontecer.
O comboio abrandou ao aproximar-se de Liverpool Street. Neumann levantou-se, vestiu o casacão e saiu do compartimento. O corredor estava repleto de gente. Foi avançando a custo por entre os outros passageiros, em direção à porta. Houve alguém à frente dele que a abriu de rompante e Neumann saiu do comboio ainda em andamento. Deu o bilhete ao revisor e seguiu por uma passagem húmida até à estação do metro. Lá chegado, comprou um bilhete para Temple e apanhou o comboio seguinte. Uns minutos mais tarde, estava a subir as escadas e a dirigir-se para norte, a caminho da Strand.
Catherine Blake apanhou um táxi para Charing Cross. O ponto de encontro ficava a uma pequena distância, à frente de uma loja na Strand. Pagou ao taxista e abriu o guarda-chuva para não ficar molhada. Começou a andar. Parou junto a uma cabine telefónica, levantou o auscultador e fingiu que estava a fazer uma chamada. Olhou
para trás. A chuva forte tinha reduzido a visibilidade, mas não viu sinais do inimigo. Voltou a pousar o auscultador, saiu da cabine e continuou para leste, seguindo pela Strand.
Clive Roach saiu discretamente da parte de trás de uma carrinha de vigilância e seguiu-a pela Strand. Durante a curta viagem de carrinha, tinha-se livrado do impermeável e do chapéu de abas e vestido um oleado verde-escuro e um gorro de lã. A transformação era extraordinária - de um empregado de escritório para um operário. Roach ficou a ver Catherine Blake parar para fazer o suposto telefonema. Roach parou ao pé de um quiosque. Ao dar uma vista de olhos às manchetes, visualizou o rosto do agente a quem o professor Vicary tinha dado o nome de código de Rudolf. A missão de Roach era simples: seguir Catherine Blake até ela passar o material a Rudolf e depois segui-lo a ele. Levantou os olhos a tempo de a ver pousar o auscultador no gancho e sair da cabine telefónica. Roach embrenhou-se no meio das pessoas e seguiu-a.
Neumann avistou Catherine Blake a caminhar na sua direção. Parou junto a uma loja, com os olhos a perscrutarem as caras e a roupa das pessoas que se encontravam atrás dela no passeio. Quando ela se aproximou, Neumann afastou-se da montra e começou a avançar na sua direção. O contacto foi breve, um segundo ou dois. Mas, quando terminou, Neumann tinha o rolo na mão e estava a enfiá-lo no bolso do casaco. Ela continuou a andar depressa, desaparecendo por entre a multidão. Neumann seguiu na direção oposta mais uns metros, registando as caras. Depois, parou abruptamente em frente a outra montra, deu meia-volta e seguiu-a discretamente.
Clive Roach avistou Rudolf e viu a troca. Pensou: Vocês são uns sacanas manhosos, não são? Observou Rudolf a parar e depois a dar meia-volta e a caminhar na mesma direção que Catherine Blake. Roach tinha assistido a muitos encontros entre espiões alemães desde
1939, mas nunca tinha visto um agente dar meia-volta para seguir outro. Normalmente, cada um seguia o seu caminho. Roach levantou a gola do oleado para tapar as orelhas e deslizou cuidadosamente atrás deles.
Catherine Blake avançou para leste, seguindo pela Strand, e depois dirigiu-se para o Victoria Embankment. Foi lá que detetou que Neumann se encontrava atrás de si. A sua primeira reação foi de fúria. O procedimento normal para encontros consistia em separarem-se - e depressa - mal a entrega fosse feita. Neumann conhecia o procedimento e tinha-o executado sempre sem falhas. Ela pensou: Porque é que ele me está a seguir agora?
Vogel deve ter-lhe dado ordens para o fazer.
Mas porquê? Só conseguia pensar em duas explicações possíveis: ele tinha perdido a confiança nela e queria ver para onde ela ia ou queria perceber se estava a ser seguida pelo inimigo. Contemplou o Tamisa e depois virou-se e lançou uma olhadela ao Embankment. Neumann não tentou esconder a sua presença. Catherine virou-se novamente e continuou a andar.
Lembrou-se das intermináveis palestras de treino no campo secreto de Vogel na Baviera. Ele tinha-lhe chamado contravigilância, um agente a seguir outro para ter a certeza de que o agente não estava a ser seguido pelo inimigo. Perguntou-se por que razão teria Vogel decidido fazer isso naquela altura. Talvez Vogel quisesse confirmar que as informações que ela andava a receber eram fidedignas certificando-se de que ela não estava a ser seguida pelo inimigo. Bastou considerar sequer essa segunda explicação para que o estômago lhe ardesse de ansiedade. Neumann estava a segui-la porque Vogel suspeitava que ela estava sob vigilância do MI5.
Voltou a parar e a contemplar o rio, forçando-se a manter a calma. A pensar com clareza. Virou-se e olhou para o Embankment. Neumann continuava ali. Evitava intencionalmente o seu olhar, isso era óbvio. Punha-se a contemplar o rio ou a voltar-se para trás, tudo menos olhar para Catherine.
Ela virou-se outra vez e recomeçou a andar. Sentia o coração a ribombar no peito. Foi até à estação de metro de Blackfriars, entrou e comprou um bilhete para Victoria. Neumann foi atrás dela e fez o mesmo, só que o bilhete que comprou foi para a estação seguinte, South Kensington.
Ela avançou rapidamente para a plataforma. Neumann comprou um jornal e seguiu-a. Ela parou à espera do metro. Neumann parou a uns seis metros dela a ler o jornal. Quando o metro apareceu, Catherine aguardou que as portas se abrissem e depois entrou na carruagem. Neumann entrou nessa mesma carruagem, mas por uma porta diferente.
Ela sentou-se. Neumann deixou-se ficar de pé, na outra ponta da carruagem. Catherine não gostou da expressão que ele tinha na cara. Baixou os olhos, abriu a mala e espreitou lá para dentro - uma carteira cheia de dinheiro, uma faca de ponta e mola e uma Mauser carregada, com silenciador e munição extra. Fechou a mala e esperou para ver o que Neumann faria a seguir.
Durante duas horas, Neumann seguiu-a ao longo do West End, de Kensington a Chelsea, de Chelsea a Brompton, de Brompton a Belgravia, de Belgravia a Mayfair. Quando chegaram a Berkeley Square, estava convencido. Eles eram bons - muito bons mesmo -, mas o tempo e a paciência tinham acabado por lhes esgotar os recursos, forçando-os a cometerem um erro. Foi o homem do impermeável que seguia uns quinze metros atrás de si. Cinco minutos antes, Neumann tinha conseguido ver-lhe muito bem a cara. Era a mesma cara que tinha visto quase três horas antes, na Strand, quando tinha ficado com o rolo passado por Catherine, só que nessa altura o homem trazia um oleado verde e um gorro de lã.
Neumann sentiu-se desesperadamente sozinho. Tinha sobrevivido ao pior da guerra - Polónia, Rússia, Creta -, mas nenhuma das capacidades que o tinham ajudado a superar essas batalhas entraria ali em jogo. Pensou no homem atrás de si - esguio, de pele macilenta, provavelmente muito fraco. Neumann poderia matá-lo num instante se quisesse. Mas as velhas regras não se aplicavam àquele jogo. Não pedia pedir reforços por rádio, não podia contar com o apoio dos companheiros. Continuou a andar, surpreendido por se encontrar tão
calmo- Pensou: Andam a seguir-nos há horas, porque é que ainda não nos prenderam aos dois? Achou que sabia a resposta. Era evidente que queriam saber mais. Onde
iria ser entregue o rolo? Onde estava instalado Neumann? Havia mais agentes na rede? Desde que não lhes desse as respostas para essas perguntas, estariam a salvo. Era um trunfo muito fraco, mas, se fosse bem jogado, talvez lhes desse uma possibilidade de se escaparem.
Neumann acelerou o passo. Catherine, alguns metros à sua frente, virou para Bond Street. Parou para chamar um táxi. Neumann avançou mais depressa e depois começou
a correr ligeiramente. Gritou:
- Catherine! Meu Deus, há quanto tempo! Como é que tens passado?
Ela levantou os olhos, alarmada. Neumann pegou-lhe no braço.
- Precisamos de falar - disse Neumann. - Vamos procurar um sítio para beber um chá e pôr a conversa em dia.
A atitude repentina de Neumann foi recebida no centro de operações em West Halkin Street com o impacto de uma bomba de quinhentos quilos. Basil Boothby andava de um lado para o outro a falar ao telefone com o diretor-geral sob grande tensão nervosa. O diretor-geral estava em contacto com o Comité dos Vinte e com o staff do primeiro-ministro nas Salas de Guerra Subterrâneas. Vicary tinha-se envolvido num manto de silêncio e olhava fixamente para a parede, com as mãos fechadas por baixo do queixo. Boothby desligou o telefone com violência e anunciou:
- O Comité dos Vinte diz para os deixarmos à solta.
- Não gosto disso - afirmou Vicary, continuando a fitar a parede. - É evidente que detetaram a vigilância. Neste momento, estão para ali sentados a tentar perceber o que fazer.
- Não tem a certeza disso. Vicary levantou os olhos.
- Nunca tínhamos conseguido reparar num encontro entre ela e outro agente. E agora de repente está sentada num café em Mayfair a beber chá e a comer uma torrada com Rudolf?
- Só a temos sob vigilância há pouco tempo. Tanto quanto sabemos, ela e Rudolf até podem andar a encontrar-se regularmente.
- Há qualquer coisa que não bate certo. Acho que eles detetaram que os estão a vigar. E não só, acho que Rudolf já andava a tentar confirmar isso. Foi por isso que a seguiu depois do encontro na Strand.
- A decisão do Comité dos Vinte está tomada. Eles dizem para os deixarmos à solta, por isso deixamo-los à solta.
- Se eles detetaram a vigilância, não faz sentido deixá-los à solta. Rudolf não vai fazer a entrega e vai manter-se longe de todos os outros agentes da rede. Estar a segui-los agora não nos beneficia em nada. Acabou, Sir Basil.
- Então o que sugere?
- Que avancemos já. Prendê-los mal saiam do café. Boothby olhou para Vicary como se ele tivesse dito uma heresia.
- Estamos a ficar com medo agora, é, Alfred?
- O que quer dizer com isso?
- Quero dizer que a ideia foi sua, logo para início de conversa. Foi o Alfred que a concebeu, foi o Alfred que a vendeu ao primeiro-ministro. O diretor-geral concordou com ela e o Comité dos Vinte aprovou-a. Há várias semanas que um grupo de agentes anda a labutar dia e noite para providenciar o material para aquela pasta. E agora o Alfred quer acabar com tudo, assim sem mais nem menos - disse Sir Basil, estalando os dedos grossos tão alto que pareceu um tiro porque tem um palpite.
- É mais do que um palpite, Sir Basil. Leia o raio dos relatórios de vigilância. Está lá tudo.
Boothby tinha recomeçado a andar de um lado para o outro, com as mãos cruzadas atrás das costas e a cabeça ligeiramente levantada, como se estivesse a fazer um esforço para ouvir qualquer coisa irritante ao longe.
- Eles vão dizer: "Ele era bom nas mensagens por rádio, mas não tinha o sangue-frio necessário para lidar com agentes de carne e osso." É isso que vão dizer de si quando tudo isto terminar: "Na verdade, não foi surpresa. Afinal de contas, ele era um amador. Era só um geniozinho da universidade que deu o seu contributo durante a guerra e depois se esfumou quando tudo terminou. Era bom, muito bom, mas não teve tomates para jogar com a parada alta." E isso que
quer que digam de si? Porque, se for, o melhor é pegar no telefone e dizer ao diretor-geral que acha que devemos acabar já com isto tudo.
Vicary fitou Boothby. Boothby, controlador de agentes. Boothby, da serenidade aristocrática debaixo de fogo. Questionou-se por que i-azão estaria Boothby a tentar
envergonhá-lo para o convencer a ir em frente quando até um cego podia ver que tinham sido desmascarados.
- Acabou - sentenciou Vicary desanimada e monocordicamente. - Eles detetaram a vigilância. Estão ali sentados a planear o que fazer a seguir. Catherine Blake sabe que foi enganada e vai informar Kurt Vogel disso. Vogel vai concluir que a Mulberry é exatamente o contrário daquilo que lhe dissemos. E depois estamos mortos.
- Eles estão por todo o lado - disse Neumann. - O homem do impermeável, a rapariga à espera do autocarro, o homem a entrar na farmácia do outro lado da praça. Já usaram várias caras, várias combinações, várias roupas. Mas andam a seguir-nos desde que saímos da Strand.
Uma empregada trouxe chá. Catherine esperou que ela se fosse embora antes de falar:
- Foi Vogel que te mandou seguir-me?
- Foi.
- E imagino que não tenha explicado porquê, pois não? Neumann abanou a cabeça.
Catherine pegou na chávena de chá, com a mão a tremer. Serviu-se da outra mão para estabilizar a chávena e forçou-se a beber.
- O que te aconteceu à cara?
- Tive um problemazito na aldeia. Nada de grave. Catherine olhou para ele, desconfiada, e perguntou:
- Porque é que eles não nos prenderam?
- Pelas mais variadas razões. Provavelmente, sabem da tua existência há imenso tempo. E, provavelmente, também andam a seguir-te há imenso tempo. Se isso for verdade, então todas as informações que tens andado a receber do comandante Jordan são falsas, uma
cortina de fumo concebida pelos britânicos. E nós temos-lhes feito o favor de passar isso a Berlim.
Ela pousou a chávena. Lançou uma olhadela à rua e depois fitou Neumann, obrigando-se a não olhar para os vigias.
- Se Jordan estiver a trabalhar para os serviços secretos britânicos, podemos partir do princípio de que tudo o que ele tem na pasta é falso: informações que eles queriam que eu visse, informações com o intuito de induzir a Abwehr em erro em relação aos planos dos Aliados para a invasão. Vogel precisa de ser informado disso - disse ela, conseguindo sorrir. - É possível que aqueles sacanas nos tenham acabado de entregar o segredo da invasão.
- Suspeito que tenhas razão. Mas há um problema. Precisamos de dizer isso a Vogel pessoalmente. Temos de partir do princípio de que a via da embaixada portuguesa
se encontra neste momento comprometida. E também temos de partir do princípio de que não podemos utilizar os nossos rádios. Vogel acha que os velhos códigos da Abwehr foram decifrados. É por isso que se serve do rádio tão poucas vezes. Se transmitirmos a Vogel o que sabemos via rádio, os britânicos também vão ficar a saber.
Catherine acendeu um cigarro, com as mãos ainda a tremerem. Acima de tudo, sentia-se furiosa consigo própria. Durante anos, tinha feito tudo e mais alguma coisa para se assegurar de que não estava a ser vigiada pelo outro lado. E depois, quando aconteceu por fim, não tinha dado por isso. Perguntou:
- Como raio é que vamos conseguir sair de Londres?
- Temos umas quantas coisas que podemos utilizar a nosso favor. Número um, isto - disse Neumann, batendo ao de leve no bolso onde se encontrava o rolo. - Posso estar enganado, mas acho que nunca fui seguido. Vogel treinou-me bem e sou muito cuidadoso. Não me parece que saibam como é que entrego o filme ao português: onde é que isso é feito, se há alguma palavra-chave ou outro sinal qualquer que sirva de código. Além disso, também tenho a certeza de que não fui seguido até Hampton Sands. A aldeia é tão pequena que eu saberia se estivesse a ser vigiado. Não sabem onde é que estou alojado nem se ando a trabalhar com mais algum agente. O procedimento normal consiste em localizar todos os elementos de
uma rede e depois acabar com ela de uma só vez. É assim que a Gestapo lida com a Resistência em França e é assim que o MI5 o faria em Londres.
Tudo isso me parece lógico. O que sugeres?
- Vais estar com Jordan hoje à noite? .-Sim.
- A que horas?
- vou encontrar-me com ele às sete para jantar.
- Perfeito - exclamou Neumann. - O que eu quero que tu faças é o seguinte.
Neumann passou os cinco minutos seguintes a explicar pormenorizadamente o seu plano de fuga. Catherine ouviu com atenção, nunca tirando os olhos de cima dele, resistindo à imensa tentação de olhar para os vigias à espera do lado de fora do café. Após terminar, Neumann disse:
- Faças o que fizeres, não podes fazer nada fora do normal. Nada que os possa levar a suspeitar que sabes que estás a ser vigiada. Mantém-te em movimento até ser altura. Vai às compras, vai ao cinema, não fiques em casa. Enquanto eu não entregar este rolo, não corres perigo. Quando chegar a altura, vai para o teu apartamento e vai buscar o rádio. vou lá ter às cinco horas, às cinco em ponto, e entro pela porta de trás. Entendeste?
Catherine assentiu com a cabeça. Neumann disse:
- Só há um problema. Fazes ideia de onde é que eu posso deitar a mão a um carro e a gasolina?
Catherine não conseguiu evitar rir-se.
- Por acaso, até sei de um sítio. Mas não te aconselho a mencio-
nares o meu nome.
Neumann saiu do café primeiro. Vagueou por Mayfair durante meia hora, seguido pelo menos por dois homens - o oleado e o impermeável.
A chuva começou a cair com mais força e o vento tornou-se mais forte. Estava com frio, encharcado até aos ossos e cansado. Precisava de ir repousar para algum sítio,
algum sítio onde se pudesse aquecer durante um bocado, descansar os pés e manter os amigos
Impermeável e Oleado debaixo de olho. Dirigiu-se para Portman Square. Sentia-se mal por estar a envolvê-la, mas, quando tudo terminasse, iriam interrogá-la e concluir
que ela não sabia de nada.
Parou à porta da livraria e espreitou pela montra. Sarah estava em cima do escadote, com o cabelo escuro bem puxado para trás. Bateu ao de leve na montra para não
a assustar. Ela virou-se e o seu rosto iluminou-se num sorriso instantâneo. Pousou os livros e fez-lhe sinal entusiasticamente para entrar. Olhou para ele e exclamou:
- Meu Deus, está com um péssimo aspeto. O que lhe aconteceu à cara?
Neumann hesitou; apercebeu-se de que não tinha uma explicação para o penso na maçã do rosto. Murmurou qualquer coisa sobre uma queda durante o blackout e ela pareceu aceitar a história. Ajudou-o a tirar o casaco e pendurou-o em cima do aquecedor para que secasse. Ele ficou com ela duas horas, fazendo-lhe companhia, ajudando-a a dispor os livros novos nas prateleiras e tomando chá com ela no café do lado quando chegou a altura da sua pausa. Reparou que os antigos vigias se estavam a ir embora e a serem substituídos por novos. Reparou numa carrinha preta estacionada à esquina e partiu do princípio de que os homens na parte da frente pertenciam ao inimigo.
Às 16h30, quando a última luz do dia tinha desaparecido e o blackout se instalara, tirou o casaco de cima do aquecedor e vestiu-o. Ela fez uma cara triste, na brincadeira, e depois pegou-lhe na mão e levou-o para o armazém. Lá, encostou-se à parede, puxou-o contra si e beijou-o.
- Não sei absolutamente nada sobre si, James Porter, mas gosto muito de si. Está triste com qualquer coisa. Gosto disso.
Neumann foi-se embora da livraria, sabendo que nunca mais a voltaria a ver. De Portman Square, dirigiu-se para norte, para a estação de metro de Baker Street, seguido pelo menos por duas pessoas a pé, além da carrinha preta. Entrou na estação, comprou um bilhete para Charing Cross e apanhou o metro seguinte que lá passava. Em Charing Cross, mudou de metro e seguiu para a estação de Euston. com dois homens a perseguirem-no, atravessou o túnel que ligava a estação de metro ao terminal ferroviário. Neumann esperou quinze minutos numa bilheteira e comprou um bilhete para Liverpool.
OS passageiros já estavam a subir a bordo do comboio quando chegou à plataforma. A carruagem ia apinhada. Procurou um compartimento com um lugar vago. Encontrou por fim um, abriu a porta, enfrou e sentou-se.
Olhou para o relógio: faltavam três minutos para o comboio partir. Do lado de fora do compartimento, o corredor estava a encher-se rapidamente de passageiros. Não era invulgar alguns viajantes azarados passarem a viagem inteira em pé ou sentados no corredor. Neumann levantou-se e comprimiu-se todo para sair do compartimento, murmurando qualquer coisa sobre estar mal do estômago. Dirigiu-se para a casa de banho no final da carruagem. Bateu à porta. Não houve resposta. Quando bateu pela segunda vez, espreitou por cima do ombro; o homem que tinha entrado com ele no comboio não o conseguia ver devido aos outros passageiros no corredor.
Perfeito. O comboio começou a andar. Neumann esperou à porta da casa de banho enquanto o comboio ia ganhando velocidade lentamente. Para a maioria das pessoas, já ia demasiado depressa para se saltar em segurança. Neumann esperou mais uns segundos e, a seguir, avançou para a porta, abriu-a de rompante e saltou para a plataforma.
Aterrou suavemente, dando primeiro uns pulinhos e depois começando a andar rapidamente. Levantou os olhos a tempo de avistar um revisor de ar irritado a fechar a porta. Avançou rapidamente para a saída e embrenhou-se no blackout.
Euston Road estava apinhada com o corrupio do final da tarde. Chamou um táxi e entrou. Deu uma morada no East End ao taxista e instalou-se, preparando-se para a viagem.
QUARENTA E OITO
HAMPTON SANDS, NORFOLK
Mary Dogherty esperou sozinha no chalé. Tinha achado sempre que era um sitiozinho adorável - quente, cheio de luz, arejado -, mas naquele momento parecia-lhe claustrofóbico e exíguo como uma catacumba. Lá fora, a grande tempestade que tinha sido prevista abatera-se finalmente sobre a costa de Norfolk. A chuva fustigava as janelas, fazendo
as vidraças chocalharem. O vento soprava em rajadas incessantes, gemendo pelo beiral. Ouviu uma telha a raspar e a ceder no telhado.
Sean não estava lá, tinha ido a Hunstanton buscar Neumann à estação de comboios. Mary afastou-se da janela e recomeçou a andar de um lado para o outro. Fragmentos da conversa que tinham tido de manhã ecoavam-lhe na cabeça sem parar, como um disco riscado num gramofone: submarino para a França... ficar em Berlim uns tempos... passagem para outro país... voltar para -a Irlanda... ires lá ter comigo quando a guerra acabar...
Parecia um pesadelo - como se estivesse a ouvir a conversa de outra pessoa, a vê-la num filme ou a lê-la num livro. A ideia era ridícula: Sean Dogherty, agricultor desfavorecido na costa de Norfolk e simpatizante do IRA, ia apanhar um submarino para a Alemanha. Calculou que fosse o culminar lógico da espionagem feita por Sean. Tinha sido parva em esperar que tudo fosse regressar ao normal após a guerra terminar. Tinha-se iludido a si própria. Sean ia fugir e deixá-la para trás, a braços com as consequências. Que iriam fazer as autoridades?
Diz-lhes só que não sabias de nada, Mary. E o que aconteceria se não acreditassem nela? O que fariam então? Como poderia ela ficar na aldeia se toda a gente soubesse que Sean tinha sido um espião? Seria expulsa da costa de Norfolk. Seria escorraçada de todas as aldeias inglesas onde tentasse instalar-se. Teria de abandonar Hampton Sands.
Teria de abandonar Jenny Colville. Teria de voltar para a Irlanda, para a aldeia desoladora de onde tinha fugido trinta anos antes. Ainda lá tinha família, família
que a podia acolher. A ideia era absolutamente aterradora, mas não teria outra escolha - não quando toda a gente ficasse a saber que Sean tinha espiado para os alemães.
Começou a chorar. Pensou: Raios te partam, Sean Dogherty! Como é que pudeste ser assim tão tonto?
Mary voltou para a janela. No trilho, na direção da aldeia, viu um ponto de luz a oscilar sob a carga de água. Passado um momento, viu o brilho de um oleado molhado e uma silhueta frágil numa bicicleta, com o corpo dobrado para a frente, contra o vento, os cotovelos para fora e os joelhos em grande atividade. Era Jenny Colville. Saiu de cima da bicicleta junto ao portão e empurrou-a pelo trilho. Mary abriu-lhe a porta. O vento soprava em rajadas, atirando a chuva para dentro do chalé. Mary puxou Jenny para dentro e ajudou-a a tirar o casaco e o chapéu molhados.
- Meu Deus, Jenny, o que é que andas a fazer na rua com um tempo destes?
- Oh, Mary, é maravilhoso. Tão ventoso. Tão lindo.
- Está visto que perdeste o juízo, rapariga. Senta-te ao pé da lareira. vou fazer-te um chá quente.
Jenny aqueceu-se à frente da lenha que ardia na lareira.
- Onde está o James? - perguntou.
- Não está cá - gritou Mary da cozinha. - Foi com Sean a algum lado.
- Oh - exclamou Jenny, com Mary a perceber a desilusão na voz dela. - E vai demorar muito tempo?
Mary parou o que estava a fazer e voltou para a sala de estar. Olhou para Jenny e perguntou:
- Porque estás assim tão interessada no James de repente?
- Só o queria ver. Dizer olá. Passar algum tempo com ele. Só isso.
- Só isso? Mas que raio é que tu tens, Jenny?
- É só que gosto dele, Mary. Gosto muito dele. E ele gosta de mim.
- Tu gostas dele e ele gosta de ti? E onde foste buscar uma ideia dessas?
- Eu sei, Mary, acredita. Não me perguntes como é que sei, mas sei.
Mary agarrou-a pelos ombros.
- Presta atenção, Jenny - disse ela, sacudindo Jenny uma vez.
- Estás a prestar atenção?
- Sim, Mary! Estás a magoar-me!
- Afasta-te dele. Esquece-o. Ele não é para ti. Jenny começou a chorar.
- Não o posso esquecer, Mary. Amo-o. E ele ama-me. Eu sei que sim.
- Jenny, ele não te ama. Não me peças para te explicar tudo agora porque não posso, meu amor. Ele é um homem bondoso, mas não é o que parece ser. Esquece isso. Esquece-o! Tens de confiar em mim, minha pequenina. Ele não é para ti.
Jenny conseguiu soltar-se de Mary com violência, recuou e limpou as lágrimas da cara.
- Ele é para mim, Mary. Eu amo-o. Estás aqui presa com o Sean há tanto tempo que já te esqueceste do que é o amor.
A seguir, pegou no casaco e saiu a correr pela porta fora, fechando-a com força. Mary precipitou-se para a janela e ficou a ver Jenny a pedalar pelo meio da tempestade.
A chuva batia no rosto de Jenny enquanto ela seguia na bicicleta pelo trilho ondulante em direção à aldeia. Tinha dito a si mesma que não iria voltar a chorar, mas não conseguia cumprir a palavra. As lágrimas misturaram-se com a chuva e escorreram-lhe pela cara. A aldeia tinha as persianas todas bem fechadas, a loja e o pub estavam fechados e os cortinados opacos dos chalés encontravam-se corridos. Tinha a lanterna no cesto, com o seu fraco feixe amarelo apontado para a escuridão total. A luz quase não dava para ver nada. Atravessou a aldeia e começou a avançar em direção ao seu chalé.
Estava furiosa com Mary. Como se atrevia a intrometer-se entre ela e James? E o que teria querido dizer com aquele comentário Ele não é o que parece ser? E também
estava zangada consigo própria. Sentia uns remorsos terríveis por ter lançado um insulto a Mary quando saíra a correr pela porta fora. Nunca tinham discutido. De
manhã, quando as coisas já tivessem acalmado, Jenny iria voltar lá para pedir desculpa.
Conseguiu distinguir ao longe o contorno do seu chalé, recortado no céu. Saiu de cima da bicicleta junto ao portão, empurrou-a pelo trilho e encostou-a ao chalé.
O pai apareceu lá fora e parou à frente da porta, limpando as mãos a um trapo. Ainda tinha a cara inchada da luta. Jenny tentou passar por ele, mas o pai estendeu
o braço e agarrou-lhe o braço com toda a força.
- Estiveste com ele outra vez?
- Não, papá! - gritou ela, cheia de dores. - Por favor, estás a magoar-me o braço!
Ele levantou a outra mão para lhe bater, com a horrível cara inchada a contorcer-se de raiva.
- Diz-me a verdade, Jenny! Estiveste com ele outra vez?
- Não, juro! - gritou ela, erguendo os braços à frente da cara para se proteger do golpe que esperava que surgisse a qualquer momento. - Por favor, papá, não me batas! Estou a dizer-te a verdade!
Martin Colville largou-a.
- Vai lá para dentro e faz-me qualquer coisa para eu comer.
Ela quis gritar-lhe: Faz tu o raio do teu jantar, para variar! Mas sabia onde isso levaria. Olhou para a cara dele e, por um instante, deu por si a desejar que James o tivesse matado. Esta é a última vez, pensou. Esta é mesmo a última vez. Entrou em casa, despiu o casaco encharcado, pendurou-o na parede da cozinha e começou a tratar-lhe do jantar.
QUARENTA E NOVE
LONDRES
Clive Roach soube que estava em apuros mal Rudolf entrou na carruagem apinhada de gente. Roach não teria problemas desde que o agente se deixasse ficar sentado no compartimento. Mas se o agente saísse do compartimento para ir à casa de banho, à carruagem-restaurante ou a outra qualquer, Roach ficaria em apuros. Os corredores estavam entupidos com viajantes, uns em pé e outros sentados, a tentarem em vão dormir. Era uma provação uma pessoa deslocar-se pelo comboio; tinha de se comprimir e empurrar os outros passageiros e estar constantemente a dizer com licença e Peço desculpa. Tentar seguir alguém sem se ser detetado seria difícil - provavelmente, impossível, se o agente fosse bom. E tudo o que Roach tinha visto até então lhe indicava que Rudolf era bom.
Roach ficou desconfiado quando Rudolf, agarrado ao estômago, saiu do compartimento com o comboio ainda parado na plataforma em Euston e rompeu pelo corredor apinhado. Rudolf era pequeno, não tinha mais do que um metro e sessenta e cinco, e a cabeça dele desapareceu rapidamente no mar de passageiros. Roach avançou uns quantos passos a custo, recebendo em troca os protestos e os gemidos dos outros passageiros. Sentia-se relutante em aproximar-se demasiado; Rudolf tinha voltado para trás várias vezes nesse dia e Roach receava que ele lhe tivesse visto a cara. O corredor estava mal iluminado por causa do regulamento do blackout e já se encontrava envolto num manto de fumo de cigarro que mais parecia nevoeiro
cerrado. Roach manteve-se nas sombras e ficou a ver Rudolf bater à porta da casa de banho duas vezes. Outro passageiro empurrou-o para passar, obstruindo-lhe a visão
por alguns segundos apenas. Quando voltou a olhar, já Rudolf tinha desaparecido.
Roach não saiu de onde se encontrava durante três minutos, observando a porta da casa de banho. Outro homem aproximou-se, bateu à porta e, a seguir, entrou na casa
de banho e fechou-a.
Começaram a tocar campainhas de alarme na cabeça de Roach.
Avançou aos empurrões pelo meio do emaranhado de passageiros no corredor, parou à frente da porta da casa de banho e começou a bater nela com toda a força.
- Espere pela sua vez, como toda a gente - disse a voz do outro lado.
- Abra a porta, emergência policial.
O homem abriu a porta uns segundos mais tarde, ainda a apertar a braguilha. Roach espreitou lá para dentro para ter a certeza de que Rudolf não estava lá. Maldição! Abriu de rompante a porta que dava para a carruagem seguinte e entrou nela. Tal como a anterior, estava às escuras, cheia de fumo e desesperadamente apinhada de passageiros. Naquele momento, seria impossível descobrir Rudolf sem revirar o comboio carruagem atrás de carruagem, compartimento atrás de compartimento.
Pensou: Como é que ele desapareceu tão depressa?
Regressou apressadamente para a primeira carruagem e deu com o revisor, um velho com óculos de aros de aço e um pé aleijado. Roach sacou da fotografia de vigilância de Rudolf e meteu-a à frente da cara do revisor.
- Viu este homem?
- Um sujeito pequeno?
- Sim - confirmou Roach, cada vez mais desanimando e pensando: Maldição! Maldição!
- Saltou do comboio quando estávamos a sair de Euston. Foi uma sorte não ter partido o raio da perna.
- Jesus! Porque não disse nada?
Apercebeu-se do ridículo que devia ter soado aquele comentário. Obrigou-se a falar com mais calma:
- Qual é a primeira paragem deste comboio?
- Watford.
- Quando?
- Daqui a uma meia hora.
- Demasiado tempo. Tenho de sair já deste comboio.
Roach esticou-se, agarrou o travão de emergência e puxou. O comboio abrandou de imediato quando o travão foi acionado e começou a parar.
O velho revisor olhou para Roach, pestanejando por trás dos óculos, e perguntou:
- O senhor não é um polícia normal, pois não?
Roach não disse nada e o comboio parou por completo. Abriu a porta de rompante, desceu para a linha e desapareceu pela escuridão dentro.
Neumann pagou ao taxista quando se encontrava a pouca distância do armazém dos Pope e, a seguir, fez o resto do caminho a pé. Passou a Mauser da cintura das calças para o bolso da frente do casacão e depois levantou a gola para se proteger da chuva forte. O primeiro ato tinha corrido sem problemas. O logro a bordo do comboio funcionara exatamente como esperava. Neumann tinha a certeza de não ter sido seguido após sair da estação de Euston. Isso queria dizer uma coisa: o Impermeável, o homem que o tinha seguido até ao comboio, continuava quase de certeza a bordo dele e a sair de Londres, a caminho de Liverpool. O vigia não era um idiota. Mais tarde ou mais cedo, acabaria por se aperceber de que Neumann não tinha voltado para o compartimento e efetuaria uma busca. Era possível que fizesse algumas perguntas. A fuga de Neumann não passara despercebida; o revisor tinha-o visto saltar do comboio. Quando o vigia percebesse que Neumann já não se encontrava no comboio, sairia na paragem seguinte e telefonaria aos superiores em Londres. Neumann deu-se conta de que tinha uma janela de oportunidade muito limitada. Tinha de atuar depressa.
O armazém estava às escuras e parecia deserto. Neumann tocou à campainha e aguardou. Não houve resposta. Voltou a tocar à campainha e dessa vez ouviu o ruído de passos do outro lado. Passado
um momento, a porta foi aberta por um gigante de cabelo preto e casaco de cabedal.
- O que quer?
- Gostaria de falar com o senhor Pope, por favor - respondeu Neumann educadamente. - Preciso de alguns artigos e disseram-me que este era, sem dúvida, o sítio indicado.
- O senhor Pope já cá não está e nós fechámos, por isso desapareça.
O gigante começou a fechar a porta. Neumann enfiou o pé para o impedir.
- Peço desculpa. É realmente muito urgente. Talvez o senhor me possa ajudar.
O gigante olhou para Neumann com uma expressão de perplexidade. Parecia estar a tentar conciliar o sotaque de colégio privado com o casacão e o penso na cara.
- Estou a ver que não me ouviu da primeira vez - respondeu ele. - Fechámos. Para sempre - atirou, agarrando em Neumann pelo ombro. - Agora, ponha-se a andar.
Neumann deu um murro na maçã de Adão do gigante e, a seguir, sacou da Mauser e deu-lhe um tiro no pé. O homem caiu redondo no chão, uivando de dor ou esforçando-se por respirar. Neumann entrou e fechou o portão. O armazém era tal e qual como Catherine o tinha descrito: carrinhas, carros, motas, pilhas de comida do mercado negro e vários bidões de gasolina.
Neumann debruçou-se e disse:
- Se te mexeres, dou-te outro tiro e não vai ser no pé. Estás a entender?
O gigante grunhiu.
Neumann escolheu uma carrinha preta, abriu a porta e ligou o motor. Agarrou em dois bidões de gasolina e enfiou-os na parte de trás da carrinha. Pensando bem, era uma viagem muito longa. Pegou noutros dois e enfiou-os também lá. Entrou para a carrinha, levou-a até à entrada do armazém e, a seguir, saiu e abriu o portão principal.
Antes de se ir embora, ajoelhou-se ao lado do homem que tinha ferido e disse-lhe:
- Se fosse a ti, ia já para um hospital.
O homem olhou para Neumann, mais confuso do que nunca.
- Mas que raio, quem és tu, pá?
Neumann sorriu, sabendo que a verdade soaria tão absurda que o homem nunca acreditaria nela.
- Sou um espião alemão que anda a fugir do MI5.
- Pois, e eu sou o raio do Adolf Hitler.
Neumann entrou para a carrinha e arrancou a grande velocidade.
Harry Dalton tirou as proteções dos faróis e atravessou Londres perigosamente depressa, em direção a oeste. A divisão dos Transportes tinha-lhe disponibilizado um
bom motorista, capaz de andar a alta velocidade, mas Harry quis ser ele a guiar. Ia serpenteando pelo meio dos carros, a buzinar sem parar. Vicary ia sentado ao seu lado, à frente, agarrando com força e nervosamente o painel de instrumentos. Os limpa-para-brisas esforçavam-se em vão por afastar a chuva. Ao virar para Cromwell Road, Harry acelerou tanto que a traseira do carro derrapou no alcatrão escorregadio. Continuou a serpentear entre o trânsito e depois virou para sul, para Earl's Court. Entrou numa pequena rua secundária e, a seguir, avançou a toda a velocidade por uma ruela estreita, guinando uma vez para evitar um caixote do lixo e depois outra para se esquivar de um gato. Travou a fundo por trás de um prédio de apartamentos e fez o carro parar abruptamente.
Harry e Vicary saíram do carro e entraram no prédio pela porta de serviço, nas traseiras, e subiram as escadas a correr, em direção ao posto de vigilância no quinto andar. Ignorando a dor que lhe rasgava o joelho como uma faca, Vicary acompanhou o ritmo de Harry.
Pensou: Se ao menos Boothby me tivesse deixado prendê-los há umas horas, não estaríamos neste sarilho.
Era um verdadeiro desastre.
O agente com o nome de código Rudolf tinha acabado de saltar de um comboio na estação de Euston e desaparecido na cidade. Vicary tinha de partir do princípio de que ele estava naquele momento a tentar fugir do país. Não tinha outra escolha a não ser prender
Catherine Blake; precisava dela detida e assustada de morte. Nesse caso, talvez lhes dissesse para onde fora Rudolf e como planeava escapar, se havia ou não outros agentes envolvidos e onde guardava ele o rádio.
Vicary não estava otimista. Tudo o que pressentia em relação àquela mulher lhe dizia que ela não iria colaborar, mesmo enfrentando uma execução. Tudo o que precisava de fazer era aguentar o tempo necessário para Rudolf poder escapar. Se fizesse isso, a Abwehr ficaria na posse de provas que indiciavam que os serviços secretos britânicos estavam empenhados num gigantesco logro. As consequências seriam demasiado tenebrosas para considerar a hipótese. Todo o trabalho que dedicara à Operação Fortitude seria desperdiçado. Os alemães deduziriam que os Aliados desembarcariam na Normandia. A invasão teria de ser adiada e planeada de novo; caso contrário, terminaria numa catástrofe sangrenta. A ocupação da Europa Ocidental por Hitler, com mão de ferro, prosseguiria. Morreria mais um número incontável de pessoas. E tudo porque a operação de Vicary se tinha desmoronado. Naquele momento, tinham uma hipótese apenas: prendê-la, obrigá-la a falar e deter Rudolf antes que ele pudesse fugir do país ou utilizar o rádio.
Harry abriu a porta do apartamento que servia de posto de vigilância e entraram ambos. As cortinas estavam abertas, deixando ver a rua e a sala às escuras. Vicary esforçou-se por distinguir os vultos que se encontravam na sala, lembrando pelas suas poses estátuas num jardim às escuras: dois vigias com olhos congestionados, imóveis à janela; meia dúzia de homens tensos da Divisão Especial, encostados a uma parede. O agente da Divisão Especial de posição superior chamava-se Cárter. Era grande e de rosto rude, com um pescoço grosso e pele bexigosa. Tinha um cigarro, apagado por motivos de segurança, a pender-lhe do canto da boca grande. Quando Harry apresentou Vicary, apertou-lhe a mão e, a seguir, levou-o para a janela para lhe explicar a disposição das forças ao seu comando. O cigarro apagado ia soltando cinza enquanto ele falava.
- Vamos entrar pela porta da frente - disse Cárter, com um ligeiro sotaque do norte de Inglaterra. - Quando o fizermos, vamos
fechar a rua numa e noutra ponta e dois homens vão vigiar as traseiras do prédio. Assim que entrarmos lá dentro, ela não vai poder fugir para lado nenhum.
- É extremamente importante que a capturem viva - sublinhou Vicary. - Não nos serve absolutamente de nada morta.
- Harry diz que ela tem jeito para as armas.
- É verdade. Temos razões para acreditar que ela tem uma pistola e está disposta a utilizá-la.
- Vamos capturá-la tão depressa que ela nem vai perceber o que lhe aconteceu. Estamos prontos assim que nos mandar avançar.
Vicary afastou-se da janela e atravessou a sala, dirigindo-se para o telefone. Marcou o número do departamento e esperou que a telefonista passasse a chamada para o gabinete de Boothby.
- Os homens da Divisão Especial estão prontos para avançar assim que lhes dermos essa ordem - anunciou Vicary quando a voz de Boothby se ouviu do outro lado da linha. -Já temos autorização?
- Não. O Comité dos Vinte ainda está a deliberar. E não podemos avançar até eles aprovarem isso. Agora, a bola está do lado deles.
- Meu Deus! Se calhar, alguém devia explicar ao Comité dos Vinte que tempo é coisa que não temos em grande abundância nesta altura. Para termos sequer uma hipótese mínima de apanhar Rudolf, precisamos de saber para onde é que ele vai.
- Eu compreendo o seu dilema - retorquiu Boothby. Vicary pensou: O seu dilema. O meu dilema, Sir Basil? Atirou:
- E quando é que eles vão decidir?
- A qualquer momento. Ligo-lhe logo a seguir.
Vicary desligou e começou a percorrer a sala escura. Virou-se para um dos vigias e perguntou:
- Há quanto tempo é que ela já ali está?
- Há coisa de um quarto de hora.
- Um quarto de hora? Porque é que ela ficou tanto tempo na rua? Não estou a gostar disto.
O telefone tocou. Vicary lançou-se para o atender e levou o auscultador ao ouvido. Basil Boothby disse:
- Temos a aprovação do Comité dos Vinte. Prenda-a, Alfred. E boa sorte.
Vicary bateu com o auscultador com força.
- Luz verde, cavalheiros - afirmou, voltando-se para Harry. Viva. Precisamos dela viva.
Harry assentiu com a cabeça, de cara fechada, e depois conduziu os homens da Divisão Especial para fora do apartamento, em fila indiana. Vicary ouviu o ruído dos seus passos ao descerem as escadas a desaparecer gradualmente. A seguir, passado um momento, viu-Ihes as cabeças quando saíram do prédio e começaram a atravessar a rua em direção ao apartamento de Catherine Blake.
Horst Neumann estacionou a carrinha numa pequena e sossegada rua secundária, ao virar da esquina do apartamento de Catherine. Saiu e fechou a porta sem fazer barulho. Seguiu rapidamente pelo passeio, com as mãos bem enfiadas nos bolsos, uma delas agarrada à coronha da Mauser.
A rua estava completamente às escuras. Chegou ao monte de destroços que tinha sido em tempos a fila de casas por trás do apartamento. Foi avançando às apalpadelas pelo meio de madeira partida, tijolos desfeitos e canos retorcidos. Os destroços terminavam numa parede com quase dois metros de altura. Do lado de lá da parede,
encontrava-se o jardim que ficava nas traseiras da casa - Neumann já o tinha visto da janela do quarto dela. Experimentou o portão; estava trancado. Teria de o abrir
pelo outro lado.
Colocou as mãos no cimo da parede, fez força com as pernas e puxou com os braços. Já em cima da parede, passou uma perna para o outro lado e rodou o corpo. Ficou assim pendurado durante alguns segundos, a olhar para baixo. O chão era invisível na escuridão. Podia cair em cima de qualquer coisa - num cão que estivesse a dormir ou numa fila de caixotes do lixo, que fariam uma barulheira terrível se aterrasse em cima deles. Pôs a hipótese de acender a lanterna por um segundo, mas isso poderia atrair atenções. Saltou da parede e caiu pela escuridão abaixo. Não havia cães nem caixotes do lixo, só um arbusto espinhoso qualquer que se espetou na sua cara
e no casaco.
Neumann libertou-se dos espinhos do arbusto e depois destrancou o portão. Atravessou o jardim até à porta das traseiras. Experimentou o trinco - estava trancada. A porta tinha uma janela. Enfiou a mão no bolso do casaco, tirou a Mauser e serviu-se dela para partir a vidraça no canto inferior esquerdo. O barulho foi surpreendentemente alto. Enfiou a mão pela vidraça partida, destrancou a porta e, a seguir, subiu as escadas.
Chegou à porta de Catherine e bateu ao de leve.
Do lado de lá da porta, ouviu a voz dela a perguntar:
- Quem é?
- Sou eu.
Ela abriu a porta. Neumann entrou e fechou-a. Catherine usava calças, uma camisola grossa e um casaco de cabedal. A mala rádio estava encostada à porta. Neumann
olhou para a cara dela. Estava pálida.
- Pode ser imaginação minha - disse ela -, mas acho que se passa qualquer coisa lá em baixo. Vi uns homens a rondar a rua e dentro de carros estacionados.
O apartamento estava às escuras, com uma única luz acesa na sala de estar. Neumann atravessou a sala rapidamente, em poucas passadas, e desligou-a. Foi até à janela e levantou a ponta do cortinado opaco, espreitando para a rua. O trânsito noturno circulava lá em baixo, lançando a luz necessária para que ele visse quatro homens a saírem em grande velocidade do prédio em frente, do outro lado da rua, e a avançarem em direção a eles.
Neumann virou-se e arrancou a Mauser do bolso.
- Eles vêm aí. Pega no rádio e segue-me lá para baixo. Já!
Harry Dalton abriu de rompante a porta da frente do prédio e entrou, com os homens da Divisão Especial logo atrás. Acendeu a luz do vestíbulo a tempo de ver Catherine Blake fugir pela porta das traseiras, com a mala do rádio a balançar-lhe no braço.
Horst Neumann tinha aberto a porta das traseiras a pontapé e estava a correr pelo jardim quando ouviu o grito vindo da casa. Avançou a toda a velocidade pela cortina de escuridão, com a Mauser à sua frente e a mão esticada. O portão abriu-se de rompante e uma figura surgiu lá, em silhueta de pistola erguida. Gritou a Neumann para parar. Neumann continuou a correr, disparando duas vezes. O primeiro tiro atingiu o homem no ombro, fazendo-o rodar. O segundo desfez-Ihe a espinha, matando-o de imediato.
Um segundo homem ocupou o lugar dele e tentou disparar. Neumann apertou o gatilho. A Mauser deu um salto na sua mão, sem fazer praticamente barulho, apenas o clique surdo do mecanismo de disparo. A cabeça do homem explodiu.
Neumann atravessou o portão a correr, passando por cima dos corpos e espreitando no meio do blackout. Não havia mais ninguém atrás da casa. Voltou-se e viu Catherine, a poucos metros dele, a correr com o rádio. Estavam três homens a persegui-la. Neumann ergueu a pistola e disparou para a escuridão. Ouviu dois homens a gritarem. Catherine continuou a correr.
Ele virou-se e começou a atravessar os destroços em direção à carrinha.
Harry sentiu as balas passarem-lhe rente à cabeça. Ouviu os gritos dos dois homens que iam atrás de si. Ela estava mesmo à sua frente. Mergulhou na escuridão, com os braços esticados para a frente. Apercebeu-se de que se encontrava numa situação de clara desvantagem; estava desarmado e sozinho. Podia parar e procurar uma das armas dos homens da Divisão Especial, para depois os perseguir e tentar alvejá-los aos dois. Mas o mais certo seria Rudolf matá-lo algures pelo caminho. Podia parar, dar meia-volta, voltar para dentro do prédio e avisar o posto de vigilância. Mas, por essa altura, já Catherine Blake e Rudolf teriam desaparecido há muito, eles seriam obrigados a recomeçar a maldita busca desde o início, os espiões utilizariam o rádio para comunicar a Berlim o que tinham descoberto e a porra da guerra estaria perdida, raios partam!
O rádio!
Pensou: Posso já não ser capaz de os parar, mas posso cortar-lhes o acesso a Berlim durante algum tempo.
Harry saltou no meio da escuridão, soltando um grito profundo, e agarrou a mala com as duas mãos. Tentou arrancá-la a Catherine, mas ela virou-se e puxou pela mala
com uma força surpreendente. Ele levantou os olhos e viu pela primeira vez a cara dela: vermelha, contorcida de medo e feia de raiva. Tentou arrancar-lhe a mala
das mãos novamente, mas não a conseguiu soltar; Catherine tinha os dedos bem cerrados à volta da pega, como um torno. Ela gritou pelo nome verdadeiro de Rudolf.
Soou a Wurst.
Foi então que Harry ouviu um clique. Já o tinha ouvido nas ruas da zona leste de Londres, antes da guerra, o som da lâmina de uma faca de ponta e mola a ser aberta
com um estalido. Viu o braço dela erguer-se e depois a baixar-se num arco violento em direção à sua garganta. Se ele levantasse o braço, poderia desviar o golpe.
Mas isso significaria que ela seria capaz de arrancar o rádio das mãos dele. Continuou a agarrá-lo e tentou esquivar-se da faca rodando a cabeça. A ponta da lâmina
acertou-lhe de lado na cara. Sentiu a carne rasgar-se. A dor surgiu passado um instante - penetrante, como se lhe tivessem atirado metal derretido à cara. Harry gritou, mas não largou a mala. Ela ergueu o braço novamente, enterrando-lhe desta feita a ponta da faca no antebraço. Harry berrou outra vez de dor, com os dentes cerrados, mas as mãos continuaram agarradas à mala. Era como se já estivessem a agir por sua própria vontade. Nada, nenhuma dor no mundo, seria capaz de as obrigar a soltarem-se.
Ela largou a mala e disse:
- É um homem corajoso, se está disposto a morrer por um rádio.
A seguir, virou-se e desapareceu no meio da escuridão.
Harry ficou deitado no chão molhado. Quando ela já estava longe dali, levou a mão à cara e ficou com vontade de vomitar quando sentiu o osso quente do próprio maxilar. Estava a perder os sentidos; a dor começava a esbater-se. Ouviu os homens da Divisão Especial que tinham sido feridos a gemerem ali perto. Sentiu a chuva bater-lhe na cara. Fechou os olhos. Sentiu alguém a encostar-lhe qualquer coisa à cara. Quando abriu os olhos, viu Alfred Vicary debruçar-se sobre ele.
- Disse-lhe para ter cuidado, Harry.
- Ela levou o rádio?
- Não. O Harry impediu-a de levar o rádio.
- E eles escaparam-se?
- Sim. Mas estamos a persegui-los.
Foi então que a dor se apoderou de Harry muito repentinamente. Começou a tremer e pareceu-lhe que ia vomitar. A seguir, o rosto de Vicary transformou-se em água e Harry perdeu os sentidos.
CINQUENTA LONDRES
Uma hora após o desastre em EarPs Court, Alfred Vicary já tinha orquestrado a maior caça ao homem da história do Reino Unido. Todas as esquadras de polícia do país - de Penzance a Dover, de Portsmouth a Inverness - receberam uma descrição dos espiões fugitivos. Para as cidades, povoações e aldeias perto de Londres, Vicary enviou fotografias por estafetas de mota. Foi dito à maioria dos polícias envolvidos na busca que os fugitivos eram suspeitos em quatro homicídios ocorridos já em 1938. Um punhado de agentes com posições de grande importância foi discretamente informado de que se tratava de um assunto de segurança da máxima importância - tão importante que o primeiro-ministro se encontrava a acompanhar a evolução da caçada pessoalmente.
A Polícia Metropolitana de Londres respondeu com velocidade extraordinária e, quinze minutos depois do primeiro telefonema de Vicary, já tinham sido estabelecidas barricadas em todas as principais artérias que saíam da cidade. Vicary tentou abranger todos os percursos de fuga possíveis. O MI5 e a polícia ferroviária rondavam as estações mais importantes. Os operadores dos ferríes irlandeses também receberam uma descrição dos suspeitos.
A seguir, Vicary contactou a BBC e pediu para falar com o chefe de redação que se encontrava em serviço. No noticiário das nove horas, a notícia de abertura da BBC foi um tiroteio em Earl's Court, que tinha deixado dois polícias mortos e três feridos. A notícia incluía
uma descrição de Catherine Blake e de Rudolf e concluía com um número de telefone para onde as pessoas podiam ligar para prestarem informações. Passados cinco minutos, os telefones começaram a tocar. As datilógrafas transcreveram todas as chamadas bem-intencionadas e transmitiram-nas a Vicary. Este atirou a maior parte logo para o cesto do lixo. Investigou algumas. Nenhuma deu qualquer resultado.
A seguir, voltou a atenção para os percursos de fuga que apenas um espião utilizaria. Contactou a RAF e pediu-lhes para estarem atentos a aviões leves. Contactou o Almirantado e pediu-lhes para terem atenção a eventuais submarinos que se aproximassem da costa. Contactou a Polícia Marítima e pediu-lhes para ficarem atentos a pequenas embarcações que seguissem para o mar. Telefonou para os monitores das estações de recolha de comunicações e pediu-lhes para ouvirem atentamente as transmissões radiofónicas e informarem se
fossem suspeitas.
Vicary levantou-se da secretária e saiu do gabinete pela primeira vez em duas horas. O centro de operações em West Halkin Street tinha sido abandonado e a sua equipa já regressara lentamente a St. James's Street. Estavam sentados na área comum à saída do gabinete, como sobreviventes aturdidos de um desastre natural, molhados, exaustos, derrotados. Clive Roach estava sentado sozinho, cabisbaixo e de mãos entrelaçadas. De quando em quando, um dos vigias pousava a mão no ombro dele, murmurava-lhe ao ouvido palavras encoraj adoras e seguia o seu caminho em silêncio. Peter Jordan andava de um lado para o outro. Tony Blair estava a fitá-lo com um olhar assassino. O único som que se ouvia era o dos teleimpressores e o da tagarelice das raparigas ao telefone.
O silêncio foi interrompido por uns minutos, às nove horas, quando Harry Dalton entrou na sala com a cara e o braço enfaixados. Toda a gente se levantou para se amontoar à volta dele - Muito bem, Harry, meu velho... mereces uma medalha... mantiveste-nos à tona, Harry... estava tudo acabado se não fosses tu...
Vicary puxou-o para dentro do gabinete.
- Não devia estar deitado a descansar?
- Sim, mas prefiro estar aqui.
- E como estão as dores?
- Podiam estar piores. Deram-me umas coisas para ajudar.
- Ainda tem dúvidas de qual seria a sua reação debaixo de fogo, no campo de batalha?
Harry conseguiu esboçar um meio sorriso, baixou os olhos e abanou a cabeça.
- Já houve algum avanço? - perguntou, mudando rapidamente de assunto.
Vicary abanou a cabeça.
- O que fez?
Vicary pô-lo a par das medidas tomadas.
- Foi uma jogada arrojada da parte de Rudolf ter ido buscá-la daquela maneira, sacando-a mesmo debaixo do nosso nariz. Ele tem coragem, lá isso não há que negar. E como é que Boothby está a reagir?
- Tão bem quanto seria de esperar. Está lá em cima com o diretor-geral. Provavelmente, a planear a minha execução. Temos uma linha aberta para as Salas de Guerra Subterrâneas e o primeiro-ministro. O Velho está a receber atualizações a cada minuto. Quem me dera ter qualquer coisa para lhe dizer.
- Não deixou escapar nenhuma opção possível. Agora, só lhe resta sentar-se e esperar que haja algum avanço. Eles têm de se mexer para algum lado. E, quando o fizerem, vamos logo saber.
- Quem me dera partilhar do seu otimismo.
Harry fez um esgar de dor e pareceu subitamente muito cansado.
- vou deitar-me um bocado. Começou a sair do gabinete devagar. Vicary perguntou:
- Grace Clarendon está de serviço hoje à noite?
- Sim, acho que sim.
O telefone tocou. Basil Boothby disse:
- Venha cá acima imediatamente, Alfred.
A luz verde estava acesa sobre a porta do gabinete de Boothby. Vicary entrou e deu com Sir Basil a andar de um lado para o outro e a fumar sem parar. Tinha tirado o casaco; o colete estava desabotoado e o nó da gravata folgado. com um ar irritado, fez sinal a Vicary para se sentar numa cadeira e disse:
- Sente-se, Alfred. Bem, hoje à noite as luzes estão acesas por toda a Londres: Grosvenor Square, o quartel-general pessoal de gisenhower em Hayes Lodge, as Salas de Guerra Subterrâneas. E querem todos saber uma coisa. Será que Hitler sabe que é na Normandia? Será que a invasão está acabada mesmo antes de começar?
- Evidentemente, ainda não temos forma de saber isso.
- Meu Deus! - exclamou Boothby, esmagando o cigarro e acendendo outro logo de seguida. - Dois agentes da Divisão Especial mortos, outros três feridos. O que nos valeu foi o Harry.
- Ele está lá em baixo. Tenho a certeza de que gostaria de ouvir isso da sua boca.
- Não temos tempo para conversas para animar as hostes, Alfred. Precisamos de os parar e de fazer isso depressa. Não preciso de lhe explicar o que está em jogo.
- Pois não, Sir Basil, não precisa.
- O primeiro-ministro quer atualizações de meia em meia hora. Há alguma coisa que eu lhe possa dizer?
- Infelizmente, não. Não deixámos escapar nenhum percurso de fuga possível. Quem me dera poder dizer com toda a segurança que os vamos apanhar, mas acho que seria pouco prudente subestimá-los. Já provaram isso vezes sem conta.
Boothby recomeçou a andar de um lado para o outro.
- Dois homens mortos, três feridos e dois espiões, na posse de informações capazes de desvendar o logro que orquestrámos, em fuga, nscusado será dizer, isto é o pior desastre da história do departamento.
- A Divisão Especial avançou com os homens que considerou necessários para a prender. Obviamente, foi um erro de cálculo.
Boothby parou de se mexer e lançou um olhar assassino a Vicary.
- Não tente culpar a Divisão Especial pelo que aconteceu, Alfred. Você era o agente mais graduado no local. Esse aspeto da Operação Kettledrum era da sua responsabilidade.
- Tenho consciência disso, Sir Basil.
- Otimo, já que, quando tudo isto terminar, vai reunir-se um comité interno e duvido que o seu desempenho seja visto com bons olhos.
Vicary levantou-se.
- É tudo, Sir Basil?
- Sim.
Vicary deu meia-volta e dirigiu-se para a porta.
O uivo longínquo das sirenes de ataque aéreo começou a ouvir-se quando Vicary estava a descer as escadas para a divisão dos Registos. As salas estavam parcialmente às escuras, apenas com uma ou outra luz acesa. Como sempre, o cheiro daquele sítio não passou despercebido a Vicary: papel em decomposição, pó, humidade e um ténue vestígio do tenebroso cachimbo de Nicholas Jago. Olhou para o gabinete envidraçado de Jago. A luz estava apagada e a porta bem fechada. Ouviu o som vivo de sapatos de mulher a baterem no chão e reconheceu a passada tempestuosa e enérgica de Grace Clarendon, digna de uma parada militar. Viu o seu cabelo loiro a passar rapidamente pelas pilhas de documentos, como uma aparição, e depois a desaparecer. Seguiu-a até uma das salas laterais e chamou-a ainda a uma certa distância, para não a assustar. Ela virou-se, fitou-o com olhos verdes hostis e depois voltou-se outra vez de costas para ele e recomeçou a arquivar os documentos.
- Isto é oficial, professor Vicary? - perguntou ela. - É que, se não for, vou ter de lhe pedir para se ir embora. Já me causou problemas suficientes. Se me virem a falar outra vez consigo, será uma sorte se conseguir emprego como o raio de uma fiscal do blackout. Por favor, vá-se embora, professor.
- Preciso de consultar um dossiê, Grace.
- Sabe qual é o procedimento, professor. Preencha uma requisição. Se a requisição for autorizada, pode consultar o ficheiro.
- Não me vão dar autorização para consultar o dossiê que preciso de consultar.
- Então não o pode consultar - retorquiu ela, com a voz a adquirir o tom de fria eficiência de uma diretora de escola. - As regras são essas.
As primeiras bombas começaram a cair do lado de lá do rio, segundo levava a crer o barulho. Foi então que as baterias antiaéreas
dos parques abriram fogo. Vicary ouviu o zumbido dos bombardeiros Heinkel por cima da cabeça. Grace parou o que estava a fazer e olhou para cima. Uma rajada de bombas
caiu ali perto - demasiado perto, já que todo o edifício começou a abanar e os dossiês a caírem das prateleiras. Grace olhou para aquela confusão e exclamou:
- Raios me partam!
- Eu sei que Boothby a anda a obrigar a fazer coisas que a Grace não quer. Ouvi-vos a discutirem no gabinete dele e vi-a a entrar para o carro dele na Northumberland Avenue ontem à noite. E não me diga que andam apenas envolvidos romanticamente porque eu sei que está apaixonada por Harry.
Vicary reparou no brilho das lágrimas nos olhos verdes de Grace e o dossiê que ela segurava começou a tremer.
- A culpa é sua, maldição! - disparou ela. - Se não lhe tivesse falado do dossiê Vogel, não estava metida neste sarilho.
- O que é que ele a está a obrigar a fazer? Ela hesitou.
- Por favor, vá-se embora, professor. Por favor.
- Não me vou embora enquanto não me disser o que é que Boothby queria que a Grace fizesse.
- Raios, professor Vicary, ele queria que eu o espiasse a si! E a Harry! - gritou ela, forçando-se depois a baixar a voz. - Tudo o que Harry me contasse, fosse na cama ou noutro sítio, devia ser-lhe transmitido.
- E o que lhe contou?
- Tudo o que Harry me mencionou sobre o caso e os avanços na investigação. E também lhe falei da pesquisa que o senhor pediu para fazer na base de dados dos Registos - explicou ela, tirando um punhado de dossiês do carrinho e recomeçando a arquivá-los. Ouvi dizer que Harry esteve envolvido naquela confusão em Earl's Court.
- Esteve, sim senhor. Aliás, ele é o homem do momento.
- E ficou ferido?
Vicary assentiu com a cabeça.
- Está lá em cima. Os médicos não conseguiram que ele ficasse
na cama.
- Provavelmente, fez qualquer coisa estúpida, não foi? A tentar provar o que vale. Meu Deus, às vezes, ele é mesmo capaz de ser um idiota teimoso e estúpido.
- Grace, preciso de consultar um dossiê. Boothby vai despedir-me quando este assunto estiver terminado e eu só preciso de saber porquê.
Ela fitou-o com uma expressão grave.
- Está a falar a sério, não está, professor?
- Infelizmente, sim.
Sem dizer nada, ela olhou para ele durante um momento, ao mesmo tempo que o prédio estremecia com as ondas de choque da bomba.
- Qual é o dossiê? - perguntou.
- O de uma operação chamada Kettledrum. Grace franziu o sobrolho, confusa.
-- Mas isso não é o nome de código da operação em que o senhor está envolvido agora?
- É.
- Espere lá um minuto. O senhor quer que eu arrisque o pescoço para lhe mostrar o dossiê do seu próprio caso?
- Qualquer coisa do género - respondeu Vicary. - Só que quero que o cruze com o rome do agente responsável por outro caso,
- Quem?
Vicary olhou diretamente para os olhos verdes dela e articulou com os lábios as iniciais BB.
Ela regressou passados cinco minutos, trazendo uma capa de dossiê vazia.
- Operação Kettledrum - anunciou. - Extinta.
- E onde está o que se encontrava aí dentro?
- Ou foi destruído ou está com o agente responsável.
- E quando é que o dossiê foi aberto? - perguntou Vicary. Grace olhou para a etiqueta do dossiê e depois para Vicary.
- Que estranho - disse ela. - Segundo isto, a Operação Kettledrum teve início em outubro de 1943.
CINQUENTA E UM
CAMBRIDGESHIRE, INGLATERRA
Quando a Scotland Yard respondeu ao pedido de barricadas feito por Alfred Vicary, já Horst Neumann tinha saído de Londres, avançando a toda a velocidade em direção
a norte, pela AIO. Era evidente que a carrinha se encontrava em bom estado. Era capaz de atingir pelo menos os cem quilómetros por hora e o motor funcionava sem
problemas. Os pneus ainda possuíam uma quantidade aceitável de piso e agarravam-se surpreendentemente bem à estrada molhada. E havia uma outra característica bastante prática - uma carrinha preta não chamava a atenção no meio dos outros veículos comerciais na estrada. Uma vez que o racionamento de gasolina tornava praticamente impossível andar de carro não comercial, qualquer pessoa que estivesse a conduzir um automóvel àquelas horas da noite poderia ser mandada parar pela polícia e interrogada.
A estrada seguia a direito pelo terreno maioritariamente plano. Neumann inclinou-se sobre o volante enquanto guiava, espreitando para a pequena poça de luz produzida pelos faróis encobertos. Por um instante, pensou em retirar as proteções dos faróis, mas decidiu que era demasiado arriscado. Passou a grande velocidade por aldeias com nomes estranhos - Puckeridge, Buntingford - às escuras, sem uma luz acesa nem ninguém na rua. Era como se o tempo tivesse retrocedido dois mil anos. Neumann dificilmente ficaria surpreendido se visse uma legião romana acampada nas margens do rio Cam.
Mais aldeias - Melbourn, Foxton, Newton, Hauxton. Durante o treino na quinta de Vogel à saída de Berlim, Neumann tinha passado horas a estudar mapas antigos do Reino Unido, do serviço cartográfico e topográfico oficial. Suspeitava que conhecia as estradas e os trilhos de East Anglia tão bem como a maioria dos ingleses, talvez até melhor.
Melbourn, Foxton, Newton, Hauxton.
Estava a aproximar-se de Cambridge.
Cambridge significava problemas. com certeza que o MI5 tinha alertado as forças policiais das principais cidades e povoações. Neumann calculou que a polícia das aldeias e dos lugarejos não representaria grande ameaça. Os agentes faziam as suas rondas a pé ou de bicicleta e raramente tinham carros, ao passo que o estado das comunicações era tão fraco que talvez ainda não tivessem recebido sequer a informação. Estava a atravessar tão depressa as aldeias às escuras devido ao blackout que um polícia nem os chegaria a ver. Cidades como Cambridge eram diferentes. Provavelmente, o MI5 tinha alertado a polícia de Cambridge. E esta possuía homens suficientes para estabelecer uma barricada numa via importante como a AIO. Esses homens tinham carros e podiam dar início a uma perseguição. Neumann conhecia as estradas e era um condutor competente, mas não teria hipótese contra um polícia experiente daquela região.
Antes de chegar a Cambridge, Neumann virou para uma pequena estrada secundária. Contornou a base das Gog Magog Hills e seguiu para norte pela orla leste da cidade. Mesmo na escuridão do blackout, conseguiu distinguir os pináculos da King's Church e da St. John's Church. Passou por uma aldeia chamada Horningsea, atravessou o Cam e entrou em Waterbeach, uma aldeia cortada a meio pela AIO. Avançou lentamente pelas ruas às escuras até descobrir a maior; não havia tabuletas que indicassem a AIO, mas partiu do princípio de que teria de ser ali. Virou à direita, dirigindo-se para norte, e, passado um momento, estava a percorrer a paisagem plana e solitária das Fens.
Os quilómetros foram passando muito depressa. A chuva abrandou, mas o vento, naquela região pantanosa e sem nada no seu caminho até ao mar do Norte, maltratou a carrinha como se esta fosse
um brinquedo de criança. A estrada seguia junto à margem do rio Great Ouse e depois por Southery Fens. Atravessaram as aldeias de Southery e Hilgay. A povoação importante seguinte era Downham Jvlarket, mais pequena do que Cambridge, mas Neumann partiu do princípio de que teria a sua própria força policial e que representava portanto uma ameaça. Repetiu a opção que tinha tomado em Cambridge, virando para uma estrada secundária mais pequena, circundando a orla da povoação e regressando à AIO a norte.
Passados dezasseis quilómetros, chegou a King's Lynn, o porto situado no sudeste de Wash e a povoação mais importante na costa de Norfolk. Neumann voltou a sair da AIO e seguiu por uma pequena estrada secundária a leste da cidade.
A estrada era de má qualidade - em muitos pontos, não pavimentada e com apenas uma faixa - e o terreno tornou-se montanhoso e arborizado. Parou e despejou dois bidões de gasolina no depósito. O tempo ia piorando à medida que se aproximavam da costa. Por vezes, Neumann parecia estar a deslocar-se a pé. Receou ter cometido um erro ao sair da estrada em melhores condições, talvez estivesse a ser demasiado cauteloso. Após mais de uma hora de condução atribulada, chegou ao litoral.
Passou por Hampton Sands, atravessou a enseada e acelerou pelo trilho. Sentiu-se aliviado - finalmente, uma estrada conhecida. O chalé dos Dogherty surgiu ao longe. Neumann virou para o caminho de entrada. Viu a porta abrir-se e o brilho de um candeeiro a querosene aproximar-se deles. Era Sean Dogherty, com o seu oleado e chapéu
impermeável, e uma caçadeira ao ombro.
Sean Dogherty não tinha ficado preocupado quando não viu Neumann sair do comboio da tarde, em Hunstanton. Neumann tinha-o avisado de que poderia ficar em Londres
mais tempo do que o costume. Dogherty resolveu esperar pelo comboio da noite. Saiu da estação e entrou numpub ali perto. Pediu uma tarte de batata e cenoura e acompanhou-a com dois copos de cerveja. A seguir, saiu do pub e passeou-se pela zona ribeirinha. Antes da guerra, Hunstanton era uma popular estância balnear porque a sua localização na ponta
leste da Wash dava azo a pores do Sol extraordinários sobre a água. Nessa noite, os velhos hotéis eduardianos estavam maioritariamente vazios e tinham um ar sombrio sob a chuva a cair ininterruptamente. O pôr do Sol não era mais que uma última luz cinzenta a escapar-se das nuvens de tempestade. Dogherty deixou a zona ribeirinha e regressou à estação para acompanhar a chegada do comboio da noite. Ficou parado na plataforma, a fumar e a observar o punhado de passageiros que desembarcava. Quando viu que Neumann não se encontrava entre eles, Dogherty ficou alarmado.
Entrou no carro e voltou para Hampton Sands, pensando nas palavras de Neumann no início dessa semana. Neumann tinha-lhe dito que era possível que a operação estivesse prestes a terminar, possível que ele se fosse embora de Inglaterra e voltasse para Berlim. Dogherty pensou: Mas porque não veio no maldito comboio?
Chegou ao chalé e entrou. Mary, sentada junto à lareira, lançou-lhe um olhar feroz e depois subiu as escadas para o andar de cima. Dogherty ligou a telefonia. O
noticiário chamou-lhe a atenção. Estava em curso uma busca à escala nacional para capturar dois supostos assassinos que tinham participado num tiroteio com a polícia ao início da noite, no bairro londrino conhecido como Earl's Court.
Dogherty aumentou o som quando o locutor começou a descrever os dois suspeitos. O primeiro, surpreendentemente, era uma mulher. O segundo era um homem cuja descrição
correspondia sem tirar nem pôr a Horst Neumann.
Dogherty desligou o rádio. Seria possível que estes dois suspeitos envolvidos no tiroteio em Earl's Court fossem Neumann e o outro agente? Estariam naquele instante
a fugir do MI5 e de metade da polícia do Reino Unido? Estariam a caminho de Hampton Sands ou deixá-lo-iam para trás? Foi então que pensou: Será que os britânicos
sabem que eu também sou um espião?
Foi para o andar de cima, meteu uma muda de roupa num pequeno saco de lona e desceu outra vez as escadas. Foi até ao celeiro, descobriu a caçadeira e carregou dois cartuchos no cano.
Quando regressou ao chalé, Dogherty sentou-se à janela, à espera. Já quase tinha perdido a esperança quando avistou a luz saída dos
faróis encobertos a avançar pela estrada, em direção ao chalé. No momento em que a carrinha virou para o pátio da quinta, conseguiu ver que era Neumann que vinha ao volante. Estava uma mulher sentada no lugar do passageiro.
Dogherty levantou-se e pôs o oleado e o chapéu. Acendeu o candeeiro a querosene, pegou na caçadeira e saiu de casa, enfrentando a chuva.
Martin Colville examinou o rosto ao espelho: nariz partido, olhos negros, lábios inchados, uma contusão no lado direito da cara.
Entrou na cozinha e verteu as últimas e preciosas gotas de uma garrafa de uísque. Todos os seus instintos lhe diziam que havia qualquer coisa de errado no homem chamado James Porter. Não acreditava que ele fosse um soldado britânico ferido. Não acreditava que ele fosse um velho conhecido de Sean Dogherty. Não acreditava que ele tivesse vindo para Hampton Sands pelo ar do oceano.
Tocou no rosto desfeito e pensou: Nunca ninguém me fez isto em toda a minha vida e não vou deixar que aquele sacana fique impune.
Colville bebeu o uísque de um só gole e, a seguir, colocou a garrafa vazia e o copo no lava-louças. Ouviu o ruído de um motor lá fora. Foi até à porta e espreitou. Uma carrinha passou depressa. Colville conseguiu ver James Porter ao volante e uma mulher no lugar do passageiro.
Fechou a porta e pensou: Mas que raio anda ele a fazer a estas horas da noite? E onde é que arranjou a carrinha?
Decidiu que iria descobrir. Entrou na sala de estar e tirou uma caçadeira calibre 12 da prateleira por cima da lareira. Os cartuchos estavam na gaveta da cozinha. Abriu-a e pôs-se a vasculhar na confusão de coisas que havia lá dentro, até encontrar a caixa. Saiu de casa e subiu para a bicicleta.
Passado um momento, Colville estava a pedalar no meio da chuva, com a caçadeira em cima do guiador, a caminho do chalé dos Dogherty.
Lá em cima, no seu quarto, Jenny Colville ouviu a porta da frente a abrir-se e a fechar-se uma vez. A seguir, ouviu o ruído de um veículo a passar, pouco comum àquelas horas da noite. Quando ouviu
a porta a abrir-se e a fechar-se uma segunda vez, ficou assustada. Levantou-se da cama e atravessou o quarto. Abriu a cortina e espreitou a tempo de ver o pai a afastar-se de bicicleta através da escuridão.
Bateu com força na janela, mas foi em vão. Passados uns segundos, ele já tinha desaparecido.
Jenny estava apenas de camisa de dormir. Tirou-a, vestiu umas calças e uma camisola e desceu as escadas. As botas de borracha estavam ao lado da porta. Ao calçá-las, reparou que a caçadeira que estava habitualmente pendurada sobre a lareira tinha desaparecido. Espreitou para a cozinha e viu que a gaveta onde os cartuchos estavam guardados se encontrava aberta. Vestiu o casaco e saiu rapidamente.
Jenny andou às apalpadelas no escuro até dar com a bicicleta encostada ao chalé. Empurrou-a pelo trilho, subiu para cima dela e pôs-se a pedalar atrás do pai, em direção ao chalé dos Cottage, e a pensar: Por favor, Deus, faz com que eu o consiga parar antes que alguém acabe morto hoje à noite.
Sean Dogherty abriu a porta do celeiro e levou-os para dentro, iluminados pelo candeeiro a querosene. Tirou o chapéu impermeável e desabotoou o oleado, olhando de seguida para Neumann e para a mulher.
Neumann, disse:
- Sean Dogherty, Catherine Blake. Sean fazia parte de um grupo chamado Exército Republicano Irlandês, mas foi-nos emprestado durante a guerra. Catherine também trabalha para Kurt Vogel. Desde
1938 que vive em Inglaterra, infiltrada profundamente.
Para Catherine, foi uma sensação estranha ouvir o seu passado e o seu trabalho serem referidos com tanta despreocupação. Depois de tantos anos a esconder a sua identidade, depois de todas as precauções, depois de toda a ansiedade, era difícil imaginar que estava tudo prestes a terminar.
Dogherty olhou para ela e, a seguir, para Neumann.
- A BBC passou a noite inteira a dar noticiários sobre um tiroteio em Earl's Court. Calculo que tenham estado envolvidos nisso, não?
Neumann assentiu com a cabeça.
- Mas não eram polícias londrinos vulgares. Eram do MI5 e da IDivisão Especial, diria eu. O que é que a rádio anda a dizer?
- Que vocês mataram dois e feriram outros três. Está em curso uma busca nacional, para vos encontrar, e pediram ajuda a todas as pessoas. O mais provável é metade
do país andar neste momento por aí a vasculhar tudo à vossa procura. Fico surpreendido por terem conseguido chegar tão longe.
- Mantivemo-nos afastados das terras mais importantes. Parece que resultou. Até agora, não vimos nenhum polícia na estrada.
- bom, isso não vai durar, podem ter a certeza.
Neumann olhou para o relógio - passavam poucos minutos da meia-noite. Pegou no candeeiro a querosene de Sean e levou-o para a mesa de trabalho. Tirou o rádio do armário e ligou-o.
- O submarino anda em patrulha no mar do Norte. Depois de receber o nosso sinal, vai deslocar-se precisamente dezasseis quilómetros para leste de Spurn Head e vai lá ficar até às seis horas. Se não aparecermos, afasta-se da costa e fica à espera de notícias nossas.
Catherine perguntou:
- E como vamos conseguir estar dezasseis quilómetros para leste de Spurn Head? Dogherty interveio:
- Há um tipo chamado Jack Kincaid. Tem um pequeno barco de pesca num cais do rio Humber.
Dogherty foi buscar um mapa antigo do serviço oficial de topografia e cartografia, anterior à guerra.
- O barco está aqui - indicou, batendo com o dedo no mapa.
- Numa terra chamada Cleethorpes. Fica a uns cento e sessenta quilómetros daqui. Vai ser difícil guiar com este mau tempo, ainda por cima com o blackout, O Kincaid tem um apartamento por cima de uma garagem na zona ribeirinha. Falei com ele ontem. Sabe que é possível aparecermos.
Neumann assentiu com a cabeça e disse:
- Se sairmos agora, temos à volta de seis horas para fazer a viagem. Acho que conseguimos fazê-lo esta noite. A próxima oportunidade que temos para irmos ter com
o submarino é daqui a três dias.
Não me encanta muito a ideia de ficar escondido durante três dias com todos os polícias do Reino Unido a vasculharem por todo o lado à nossa procura. Digo que devíamos ir esta noite.
Catherine assentiu com a cabeça. Neumann colocou os auscultadores e sintonizou o rádio na frequência correta. Digitou um sinal de identificação e esperou por uma resposta. Uns segundos mais tarde, o operador de rádio a bordo do submarino pediu a Neumann para prosseguir. Neumann suspirou fundo, digitou a mensagem com cuidado e, a seguir, terminou a comunicação e desligou o rádio.
- E agora resta-nos resolver uma coisa - disse ele, virando-se para Dogherty. - Vens connosco?
Dogherty assentiu com a cabeça.
- Já falei disso com Mary. Ela concorda comigo. vou para a Alemanha convosco; e depois Vogel e os amigos podem ajudar-me a voltar para a Irlanda. Mary vai ter comigo quando eu lá estiver. Temos amigos e família que podem olhar por nós até assentarmos. Não vamos ter problemas.
- E como é que Mary está a reagir?
O rosto de Dogherty endureceu numa expressão taciturna. Neumann sabia que era bem provável que ele e Mary nunca mais se voltassem a ver. Pegou no candeeiro a querosene, pousou a mão no ombro de Dogherty e disse:
- Vamos.
Em cima da bicicleta e a ofegar, Martin Colville viu uma luz acesa no celeiro dos Dogherty. Deitou a bicicleta junto à estrada e, a seguir, atravessou o prado silenciosamente e agachou-se à porta do celeiro. com a chuva a cair com força, esforçou-se por perceber a conversa que estava a ter lugar lá dentro.
Era inacreditável.
Sean Dogherty - a trabalhar para os nazis. O homem chamado James Porter - um agente alemão. Um ninho de espiões alemães, em ação ali mesmo em Hampton Sands!
Colville esforçou-se por ouvir mais um pouco da conversa. Estavam a planear subir a costa de carro até Lincolnshire e apanhar um
barco para irem ter com um submarino. O coração começou a ribombar-lhe no peito e a respiração a acelerar. Forçou-se a acalmar, a pensar com clareza.
Tinha duas opções: ir-se embora, voltar para a aldeia e alertar as autoridades ou entrar no celeiro e prendê-los ele mesmo. Tanto uma como outra tinham os seus inconvenientes. Se se fosse embora para ir pedir ajuda, o mais certo era Dogherty e os espiões já terem desaparecido quando ele lá regressasse. Havia poucos polícias na costa de Norfolk, dificilmente seriam suficientes para levar a cabo uma busca. Mas, se entrasse sozinho, estaria em desvantagem. Conseguia ver que Sean tinha a caçadeira consigo e partiu do princípio de que os outros dois também estariam armados. Ainda assim, teria a vantagem da surpresa.
E havia outra razão que o levava a gostar da segunda opção adoraria ajustar contas com o alemão que dava pelo nome de James Porter. Colville sabia que tinha de agir e agir rapidamente. Rasgou a caixa dos cartuchos, tirou dois e enfiou-os na velha caçadeira calibre 12. Nunca tinha apontado aquela coisa a nada que fosse mais ameaçador do que uma perdiz ou um faisão. Interrogou-se se teria coragem para disparar sobre um ser humano.
Levantou-se e avançou para a porta.
Jenny pedalou até as pernas lhe começarem a arder - atravessando a aldeia, passando pela igreja e pelo cemitério, até ao outro lado da enseada. O ar estava carregado com o som da tempestade e o ruído do mar. A chuva fustigava-lhe a cara e o vento quase a fez cair.
Jenny avistou a bicicleta do pai na vegetação junto ao trilho e parou ao lado dela. Porquê deixá-la ali? Porque não ir com ela até ao chalé?
Achou que sabia a resposta. Ele estava a tentar apanhá-los de surpresa, aparecendo sem que o vissem.
Foi então que ela ouviu um disparo de caçadeira vindo do celeiro de Sean. Jenny soltou um grito e saltou da bicicleta, deixando-a cair ao lado da do pai. Correu pelo prado, a pensar: Por favor, Deus, não deixes que ele tenha morrido. Não deixes que ele tenha morrido.
CINQUENTA E DOIS
SCARBOROUGH, INGLATERRA
Aproximadamente cento e sessenta quilómetros a norte de Hampton Sands, Charlotte Endicott entrou de bicicleta no pequeno recinto de cascalho à entrada da estação de recolha de comunicações de Scarborough. A viagem desde os seus aposentos numa pensão exígua na cidade tinha sido violentíssima, com vento e chuva durante todo o caminho. Encharcada até aos ossos e com um frio de morrer, desceu da bicicleta e encostou-a a várias outras no estrado.
O vento soprava em rajadas, gemendo por entre as três enormes antenas retangulares, no alto dos penhascos com vista para o mar do Norte. Charlotte Endicott lançou-lhes uma olhadela, a oscilarem visivelmente, enquanto atravessava o recinto apressadamente. Abriu a porta do abrigo e entrou antes de o vento a fechar com estrondo.
Faltavam alguns minutos para o seu turno começar. Despiu a gabardina encharcada, desapertou o nó do chapéu e pendurou tudo num cabide em mau estado que se encontrava ao canto. O abrigo era frio e estava cheio de correntes de ar, tendo sido construído numa lógica de utilidade e não de conforto. Mas, apesar disso, tinha uma pequena cantina. Charlotte entrou nela, serviu-se de uma chávena de chá quente, sentou-se numa das mesas pequenas e acendeu um cigarro. Um hábito horrível, sabia-o, mas, se era capaz de manter um emprego como um homem, também era capaz de fumar como um. Além disso, gostava do ar que aquilo lhe dava - sexy, sofisticado, um bocadinho
mais velho do que os seus vinte e três anos. E também tinha ficado viciada no raio daquelas coisas. O trabalho era stressante, as horas uma brutalidade e a vida em Scarborough terrivelmente entediante. Mas ela adorava cada minuto do que fazia.
Só tinha havido uma vez em que tinha detestado o que estava a fazer, durante a Batalha de Inglaterra. Durante os longos e terríveis combates aéreos, os membros do ramo feminino da Marinha Real Britânica estacionados em Scarborough ouviam o que os pilotos britânicos e alemães diziam nos cockpits. Uma vez, Charlotte tinha ouvido um rapaz inglês a gritar e a chorar pela mãe enquanto o seu SpitJtre, atingido, caía desamparado em direção ao mar. Quando perdeu o contacto com ele, Charlotte foi a correr lá para fora para vomitar. Estava feliz por esses dias terem terminado.
Charlotte olhou para o relógio. Quase meia-noite. Altura de entrar ao serviço. Levantou-se e alisou o uniforme húmido. Deu uma última passa no cigarro - era proibido fumar dentro do buraco e depois apagou-o com força num pequeno cinzeiro de metal a transbordar de beatas. Saiu da cantina e dirigiu-se para o centro de operações. Mostrou o cartão de identificação ao guarda. Este examinou-o com atenção, embora já o tivesse visto uma centena de vezes, e a seguir devolveu-o, sorrindo um pouco mais do que seria necessário. Charlotte sabia que era uma rapariga atraente, mas não havia ali lugar para essas coisas. Abriu as portas, entrou no buraco e sentou-se no sítio do costume.
Sentiu um rápido calafrio - como sempre.
Olhou fixamente para os botões luminosos do seu recetor super-heteródino de comunicações RCA AR-88 por um momento e depois colocou os auscultadores. Os cristais especiais do RCA, eliminadores de interferências, permitiam-lhe monitorizar os agentes alemães que transmitiam em código Morse por toda a Europa do Norte. Sintonizou o recetor na banda de frequência que tinha ficado incumbida de controlar nessa noite e instalou-se.
Os agentes alemães que enviavam mensagens em código Morse eram os mais rápidos do mundo a digitar. Charlotte era capaz de identificar de imediato muitos deles pelos seus estilos próprios de digitar e ela e as restantes colegas tinham-lhes atribuído alcunhas: Wagner, Beethoven, Zeppelin.
Charlotte não teve de esperar muito para entrar em ação naquela noite.
Uns minutos depois da meia-noite, ouviu uma sucessão de sinais Morse, num estilo que não reconheceu. A cadência era fraca, o ritmo lento e incerto. Um amador, pensou, alguém que não utilizava muito o rádio. Não era com certeza um dos profissionais do BdU, o quartel-general da Kriegsmarine. Reagindo rapidamente, gravou a transmissão no oscilógrafo - um aparelho que criaria no fundo uma impressão digital do sinal chamada Tina - e escrevinhou furiosamente a mensagem em Morse numa folha de papel. Depois de o amador terminar, Charlotte ouviu outra sucessão de sinais na mesma frequência. Já não era um amador; Charlotte e as colegas já o tinham ouvido. Tinham-lhe dado a alcunha de Fritz. Era um operador de rádio a bordo de um submarino. Charlotte também transcreveu rapidamente essa mensagem.
À transmissão de Fritz seguiu-se uma nova e atabalhoada sucessão de sinais em código Morse por parte do amador e depois terminaram as comunicações. Charlotte tirou os auscultadores, arrancou a impressão saída do oscilógrafo e atravessou a sala a passos largos. Normalmente, limitava-se a entregar as transcrições das mensagens em Morse a um estafeta que, por sua vez, as levava de mota, a toda a velocidade, até Bletchley Park para serem descodificadas. Mas havia qualquer coisa diferente naquelas comunicações - tinha-o sentido nos estilos dos operadores de rádio: Fritz, a bordo de um submarino, e um amador algures. Suspeitava saber do que se tratava, mas teria de ser bem convincente. Apresentou-se diante do supervisor noturno, um homem de pele clara e ar exausto chamado Lowe. Largou as transcrições e o oscilógrafo em cima da secretária dele. Lowe olhou para ela, com uma expressão de perplexidade.
- Posso estar completamente enganada, senhor - disse Charlotte, invocando a voz mais perentória possível -, mas acho que acabei de ouvir um espião alemão a comunicar com um submarino ao largo da costa.
O Kapitànleutnant Max Hoffman nunca se habituaria ao fedor de um submarino submerso há demasiado tempo: suor, urina, óleo diesel, batatas, sémen. O ataque às suas narinas era tão intenso que suportaria de bom grado estar de vigia na torre de comando, debaixo de uma tempestade, em vez de ficar lá dentro.
Encontrava-se na ponte de comando do U-509 e conseguia sentir a vibração dos motores elétricos por baixo dos pés à medida que se deslocavam num círculo monótono a trinta e dois quilómetros da costa britânica. Uma suave neblina pairava no interior do submarino, criando uma auréola em torno de cada lâmpada. Todas as superfícies estavam frias e molhadas. Hoffman gostava de imaginar que era o orvalho de uma manhã de primavera, mas bastou-lhe olhar naquele momento para o mundo claustrofóbico e apertado que habitava para essa fantasia lhe ser rapidamente arrancada.
Era uma missão entediante ficar estacionado ao largo da costa britânica durante semanas a fio, à espera de um dos espiões de Canaris. Da tripulação de Hoffman, apenas o seu imediato sabia o verdadeiro objetivo da missão. O resto dos homens suspeitava provavelmente do mesmo, já que não se encontravam em missão de patrulha. Ainda assim, as coisas poderiam ser piores. Tendo em conta a extraordinária proporção de perdas no seio da U-bootewaffe - praticamente 90 por cento - Hoffman e a sua tripulação podiam considerar-se bastante afortunados por terem sobrevivido tanto tempo.
O imediato surgiu na ponte de comando, de rosto fechado e com um papel na mão. Hoffman olhou para o homem, ficando deprimido com a noção de que o mais provável era estar com o mesmo aspeto horrível: olhos fundos, rosto encovado, a palidez de um tripulante de submarino, a barba por fazer por não haver água doce suficiente para desperdiçar nisso.
O imediato informou:
- O nosso homem no Reino Unido deu finalmente notícias. Quer que lhe demos boleia para casa hoje à noite.
Hoffman sorriu e pensou: Finalmente. Apanhamo-lo e vamos para França, onde há comida boa e roupa de cama lavada. Perguntou:
- Como está o tempo?
-- Nada bom, Herr Kaleu - respondeu o imediato, utilizando o diminutivo habitual de Kapitànleutnant. - Chuvadas fortes, ventos a cinquenta quilómetros por hora do noroeste, ondulação entre três metros e três metros e meio.
- Jesus! E o mais certo é ele vir de barco a remos, se tivermos sorte. Organize uma festa de receção e prepare-se para emergirmos. Mande o operador de rádio informar o BdU dos nossos planos. Fixe a trajetória para o ponto de encontro. Eu vou lá para cima com os vigias. Não me interessa se o tempo está mau ou não - afirmou Hoffman, fazendo uma careta. -Já não aguento mais a porra do cheiro aqui dentro.
- Sim, Herr Kaleu.
O imediato gritou uma série de ordens, transmitidas pela tripulação. Dois minutos mais tarde, o U-509 irrompeu pela superfície tempestuosa do mar do Norte.
O sistema era conhecido como Localização de Direção de Alta Frequência, mas quase toda a gente envolvida no projeto lhe chamava Huff Duff. Funcionava segundo um princípio de triangulação. A impressão digital criada pelo oscilógrafo em Scarborough podia ser utilizada para identificar o tipo de transmissor e a sua fonte de energia. Se as estações de recolha de comunicações de Flowerdon e da Islândia também tivessem os seus oscilógrafos em ação, as três gravações podiam ser utilizadas para estabelecer linhas de orientação conhecidas como cortes -, a partir das quais se podia depois localizar a posição do transmissor. Por vezes, o Huff Duff conseguia indicar um rádio num raio de dezasseis quilómetros da sua exata localização geográfica. Mas, normalmente, o sistema era muito menos preciso, ficando entre os cinquenta e os oitenta quilómetros.
O comandante Lowe não achou que Charlotte Endicott estivesse completamente enganada. Na verdade, achou que ela tinha descoberto uma coisa de crucial importância. Ao início da noite, um major Vicary do MI5 tinha enviado um alerta para as estações de recolha de comunicações, para que estivessem atentas a precisamente esse tipo de coisas.
Lowe passou os minutos seguintes a falar com os seus homólogos em Flowerdon e na Islândia, tentando localizar o transmissor. Infelizmente, a comunicação tinha sido curta e a determinação da posição não muito precisa. Na verdade, Lowe foi apenas capaz de a circunscrever a uma extensão bastante ampla do leste de Inglaterra - todo o condado de Norfolk e grande parte de Suffolk, Cambridgeshire e Lincolnshire. Provavelmente, não serviria de muito, mas pelo menos já era qualquer coisa.
Lowe vasculhou os papéis que tinha na secretária até descobrir o número de Vicary de Londres e, a seguir, esticou-se na direção do seu telefone seguro.
As condições atmosféricas no norte da Europa tornavam praticamente impossível a comunicação de onda curta entre as Ilhas Britânicas e Berlim. Em consequência disso, o centro de comunicações via rádio da Abwehr estava localizado na cave de uma grande mansão em Wohldorf, um subúrbio de Hamburgo, duzentos e quarenta quilómetros a noroeste da capital germânica.
Cinco minutos depois de o rádio operador do U-509 ter transmitido a sua mensagem ao BdU, no norte da França, o oficial de serviço no BdU enviou uma curta mensagem para Hamburgo. O oficial de serviço em Hamburgo era um veterano da Abwehr chamado capitão Schmidt. Gravou a mensagem, fez um telefonema prioritário, através da linha segura, para o quartel-general da Abwehr em Berlim e informou o tenente Werner Ulbricht dos desenvolvimentos. A seguir, Schmidt saiu da mansão e desceu a rua, em direção a um hotel ali perto, onde fez uma segunda chamada para Berlim. Não quis fazer esse telefonema através das linhas pejadas de escutas do posto da Abwehr, pois o número que indicou à telefonista foi o do gabinete do Brigadefúhrer Walter Schellenberg, na Prinz Albrechtstrasse. Infelizmente para Schmidt, Schellenberg tinha descoberto que ele estava envolvido numa relação amorosa bastante chocante com um rapaz de dezasseis anos, em Hamburgo. Schmidt aceitou prontamente passar a trabalhar para Schellenberg para evitar que o caso viesse a público.
Quando a ligação foi efetuada, falou com um dos muitos assistentes de Schellenberg - o general tinha ido jantar fora essa noite - e informou-o das novidades.
Kurt Vogel tinha decidido passar uma rara noite no seu pequeno apartamento a poucos quarteirões de Tirpitz Ufer. Ulbricht telefonou-lhe para lá e informou-o de que Horst Neumann tinha contactado o submarino e que estava prestes a abandonar a Inglaterra. Cinco minutos mais tarde, Vogel estava a sair pela porta da frente do prédio e a caminhar à chuva, em direção a Tirpitz Ufer.
Nesse preciso instante, Walter Schellenberg ligou para o gabinete e foi informado dos desenvolvimentos no Reino Unido. A seguir, telefonou para o Reichsfúhrer Heinrich Himmler e pô-lo ao corrente da situação. Himmler ordenou a Schellenberg que se dirigisse para a Prinz Albrechtstrasse; iria ser uma noite longa e queria companhia. Por coincidência, Schellenberg e Vogel chegaram aos respetivos gabinetes exatamente ao mesmo tempo e instalaram-se para a espera que os aguardava.
O local da invasão da França pelos Aliados.
A vida do almirante Canaris.
E tudo dependia do que dissessem um par de espiões em fuga ao MI5.
CINQUENTA E TRÊS
HAMPTON SANDS, NORFOLK
Martin Colville serviu-se do cano da caçadeira para empurrar a porta do celeiro. Neumann, ainda sentado ao lado do rádio, ouviu o barulho. Esticou-se para agarrar
a Mauserno momento em que Colville entrou. Colville viu Neumann a tentar chegar à pistola. Virou-se, apontou a caçadeira e disparou. Neumann desviou-se com um salto,
caindo no chão e rebolando pelo celeiro. O estrondo do disparo da caçadeira no espaço reduzido do celeiro foi ensurdecedor. O rádio desintegrou-se.
Colville fez pontaria a Neumann pela segunda vez. Neumann levantou-se, apoiado nos cotovelos, segurando a Mauser nas mãos esticadas. Sean Dogherty avançou, gritando a Colville para parar. Colville apontou a arma a Dogherty e carregou no gatilho. O tiro atingiu Dogherty no peito, fazendo-o dar um salto para trás com toda a força, como se fosse um boneco de trapos. Caiu de costas, com o sangue a jorrar-lhe do buraco no peito, e morreu passados segundos.
Neumann disparou, acertando no ombro de Colville e fazendo-o rodar. Por essa altura, Catherine já tinha sacado da sua Mauser e, com ambas as mãos, apontou-a à cabeça de Colville. Disparou rapidamente duas vezes, com o silenciador a abafar os tiros e a reduzi-los a um baque surdo. À cabeça de Colville explodiu e ele já estava morto antes de o corpo bater no chão do celeiro de Dogherty.
Mary Dogherty estava a meio de um sono agitado, na sua cama no andar de cima do chalé, quando ouviu o primeiro disparo da caçadeira. Endireitou-se de rompante e tocou com os pés no chão no instante em que o segundo disparo rasgou a noite. Atirou o cobertor para trás e desceu as escadas a correr.
O chalé estava às escuras, a sala de estar e a cozinha desertas. Foi lá para fora. A chuva fustigou-lhe a cara. Foi então que se apercebeu de que estava apenas com a sua camisa de dormir de flanela. Naquele momento, imperava o silêncio e apenas se ouvia o barulho da tempestade. Para lá do jardim, reparou numa carrinha preta desconhecida estacionada no caminho de entrada. Voltou-se para o celeiro e viu uma luz acesa lá dentro. Gritou Sean! e começou a correr para o celeiro.
Mary tinha os pés descalços e o chão estava frio e empapado. Gritou o nome de Sean mais uma série de vezes enquanto corria. Um ténue raio de luz saía da porta aberta do celeiro, iluminando uma caixa de cartuchos de caçadeira que se encontrava no chão.
Ao entrar, arquejou. Ficou com um grito preso na garganta, que se recusava a sair cá para fora. A primeira coisa que viu foi o corpo de Martin Colville estendido no chão do celeiro, a poucos metros dela. Parte da cabeça tinha desaparecido e havia sangue e tecido por todo o lado. Sentiu o estômago começar a entrar em convulsões.
Foi então que voltou a atenção para o segundo corpo. Estava deitado de costas, com os braços bem abertos. Por alguma razão, com a morte, os tornozelos tinham-se cruzado, como se a pessoa estivesse a dormir uma sesta. O sangue tapava-lhe a cara. Por um breve segundo, Mary permitiu-se acalentar a esperança de não ser na realidade Sean quem estava ali morto. Mas depois olhou para as velhas botas de borracha e para o oleado e soube que era ele.
O grito que lhe estava preso na garganta saiu cá para fora.
Mary berrou:
- Oh, Sean! Oh, meu Deus, Sean! O que foste fazer?
Levantou os olhos e viu Horst Neumann parado ao pé do corpo de Sean, com uma pistola na mão. A poucos metros dele, estava uma mulher, de pistola apontada à cabeça de Mary.
Mary olhou para Neumann e gritou:
- Foste tu que fizeste isto? Foste?
- Foi o Colville - respondeu Neumann. - Apareceu aqui dentro aos tiros. Sean meteu-se à frente dele. Lamento imenso, Mary.
- Não, Horst, pode ter sido Martin a carregar no gatilho, mas foste tu que lhe fizeste isto. Não tenhas dúvidas. Tu e os teus amigos de Berlim, foram vocês que lhe fizeram isto.
Neumann não disse nada. Catherine continuava com a Mauser apontada à cabeça de Mary. Neumann avançou, agarrou na pistola dela e baixou-a suavemente.
Jenny Colville não saiu do prado mergulhado na escuridão e aproximou-se do celeiro lateralmente, sem que a pudessem ver. Agachou-se junto à parede exterior, com a chuva a bater-lhe com força no oleado, e escutou a conversa que estava a ter lugar lá dentro.
Ouviu a voz do homem que conhecia como James Porter, embora Mary lhe tivesse chamado outra coisa, uma coisa parecida com Horse. Foi o Colville. Sean meteu-se à frente dele. Lamento imenso, Mary.
A seguir, ouviu a voz de Mary. Tinha uma intensidade altíssima e tremia de raiva e dor. Foste tu que lhe fizeste isto... Tu e os teus amigos de Berlim.
Ficou à espera de ouvir a voz do pai; ficou à espera de ouvir a voz de Sean. Nada. Percebeu que estavam ambos mortos.
Tu e os teus amigos de Berlim.
Jenny pensou: O que estás a dizer, Mary?
E foi então que tudo se encaixou na cabeça dela, como peças de um quebra-cabeças que ficam de repente na ordem certa: Sean na praia, naquela noite, o súbito aparecimento
do homem chamado James Porter, o aviso que Mary lhe fizera ao início da tarde: Ele não é o que parece ser. Ele não é para ti.
Na altura, Jenny não tinha compreendido o que Mary lhe estava a tentar dizer, mas agora achava que sim. O homem que conhecia como James Porter era um espião alemão. E isso significava que Sean também era um espião ao serviço dos alemães. O pai dela devia ter descoberto a verdade e resolvido enfrentá-los. E agora estava morto no chão do celeiro de Sean Dogherty.
Jenny queria gritar. Sentiu lágrimas quentes a correrem-lhe dos olhos pela cara. Levou as mãos à boca para abafar o choro. Tinha-se apaixonado por ele, mas ele mentira-lhe e usara-a e era um espião alemão e provavelmente tinha acabado de lhe matar o pai.
Jenny ouviu movimentos dentro do celeiro, movimentos e instruções dadas em voz baixa, que ela não conseguiu perceber. Ouviu a voz do espião alemão e ouviu uma voz
de mulher que não era a de Mary. Foi então que viu o espião sair do celeiro e percorrer o caminho de entrada, de lanterna na mão. Estava a dirigir-se para onde estavam
as bicicletas. Se as encontrasse, iria perceber que ela também lá estava.
E iria procurá-la.
Jenny obrigou-se a respirar devagar, pausadamente, e a pensar com clareza.
Estava a ser fustigada por várias emoções. Estava assustada, sentia-se agoniada com a ideia de que o pai e Sean estavam mortos. Mas, acima de tudo, estava furiosa. Tinham-lhe mentido e tinham-na traído. E, naquele momento, o que a impulsionava era um desejo avassalador: queria vê-los presos e queria vê-los castigados.
Jenny sabia que não poderia fazer nada se o alemão a descobrisse.
Mas o que fazer? Podia tentar correr até à aldeia. O hotel e o pub tinham telefones. Podia contactar a polícia e a polícia podia vir prendê-los.
Mas a aldeia era o primeiro lugar onde os espiões a iriam procurar. Do chalé dos Dogherty, só havia um caminho para a aldeia: atravessando a ponte junto à St. John's Church. Jenny sabia que poderia ser apanhada muito facilmente.
Pensou numa segunda opção. Eles tinham de se ir embora dali a pouco tempo. Afinal de contas, tinham acabado de matar duas pessoas. Jenny podia ficar escondida durante um bocado, só até eles se irem embora; depois, podia sair do esconderijo e contactar a polícia.
Pensou: Mas e se eles levarem Mary?
Mary estaria melhor com Jenny em liberdade e a tentar encontrar ajuda.
Jenny observou o espião a aproximar-se da estrada. Viu o feixe de luz da lanterna deslocar-se pelo terreno em redor. Viu-o fixar-se em qualquer coisa por um momento e, a seguir, virar-se na direção dela.
Jenny arquejou. Ele tinha encontrado a bicicleta dela. Levantou-se e começou a correr.
Horst Neumann avistou as duas bicicletas deitadas ao lado uma
da outra na vegetação, junto à estrada. Virou a lanterna para o prado, mas o fraco feixe iluminou apenas uns quantos metros à sua frente. Levantou as bicicletas, segurou-as pelo manipulo e empurrou-as pelo caminho de entrada. Deixou-as nas traseiras do chalé de Dogherty, onde ninguém as poderia ver.
Ela estava por ali - algures. Tentou imaginar o que tinha acontecido. O pai sai de casa enfurecido e de caçadeira na mão; Jenny vai atrás dele e chega ao chalé dos Dogherty a tempo de ver o rescaldo.
Neumann calculou que ela estivesse escondida, à espera que eles se fossem embora, e achou que sabia onde.
Durante um momento, pensou na hipótese de a deixar em liberdade. Mas Jenny era uma rapariga inteligente. Iria arranjar uma maneira de contactar a polícia. A polícia estabeleceria barricadas por Hampton Sands inteira. Chegar a Lincolnshire a tempo do encontro com o submarino já seria suficientemente difícil. Deixar que Jenny ficasse à solta e contactasse a polícia apenas tornaria tudo mais duro.
Neumann entrou no celeiro. Catherine tinha tapado os corpos
com serapilheira velha. Mary estava sentada numa cadeira, a tremer violentamente. Neumann evitou o olhar dela.
- Temos um problema - anunciou Neumann, apontando para
o corpo tapado de Martin Colville. -- Encontrei a bicicleta da filha dele. Temos de partir do princípio de que ela anda algures por aqui e que sabe o que aconteceu. E também temos de partir do princípio de que vai tentar arranjar ajuda.
- Então vai à procura dela - atirou Catherine.
Neumann assentiu com a cabeça.
- Leva Mary para dentro de casa. Amarra-a e amordaça-a. Acho
que sei para onde é que Jenny é capaz de ir.
Neumann foi lá para fora e correu até à carrinha, no meio da
chuva. Ligou o motor, saiu do caminho de entrada em marcha atrás e seguiu em direção à praia.
Catherine amarrou Mary a uma cadeira de madeira na cozinha. Rasgou uma toalha de chá ao meio e fez uma bola com uma das metades. Enfiou-a na boca de Mary e depois amarrou a outra metade à volta da cara dela, com um nó apertado. Se dependesse de Catherine, matá-la-ia naquele preciso instante; não gostava de deixar uma pista para a polícia seguir. Mas era óbvio que Neumann sentia algum carinho pela mulher. Além disso, era provável que se passassem várias horas até que alguém a encontrasse, talvez até mais tempo. O chalé estava isolado, a cerca de um quilómetro e meio da aldeia; era possível que demorasse um dia ou dois até que alguém notasse que Sean, Colville e a rapariga tinham desaparecido. Ainda assim, todos os seus instintos de sobrevivência lhe diziam que era melhor matá-la e despachar aquilo. Neumann nunca saberia. Mentir-lhe-ia, dizendo-lhe que Mary estava bem, e ele nunca descobriria.
Catherine verificou os nós pela última vez. A seguir, tirou a Mauser do bolso do casaco. Segurou-a bem, enfiando o indicador no gatilho, e encostou o cano à testa de Mary. Mary não se mexeu um milímetro e lançou um olhar de desafio a Catherine.
- Não se esqueça, a Jenny vai connosco -- disse Catherine. Sc disser alguma coisa à polícia, nós vamos saber. E depois vamos matar a Jenny. Compreende o que lhe estou a dizer, Mary?
Mary assentiu com a cabeça uma vez. Catherine pegou na Mauser pelo cano, ergueu-a bem alto e bateu com ela na cabeça de Mary. Perdendo os sentidos, Mary afundou-se para a frente, com o sangue a escorrer-lhe do cabelo para os olhos. Catherine pôs-se diante da lareira prestes a apagar-se, à espera de Neumann e da rapariga, à espera de voltar para casa.
CINQUENTA E QUATRO
LONDRES Nesse momento, um táxi parou, no meio de uma chuva fortíssima, à porta de um edifício atarracado e coberto de hera sob o Arco do Almirantado. A porta abriu-se e
um homem pequeno e bastante feio saiu do táxi, apoiando-se acentuadamente numa bengala. Não se tinha incomodado com um guarda-chuva. Eram apenas poucos me tros até à entrada, onde um guarda da Marinha Real estava de senti nela. O guarda fez uma vigorosa continência, que o homem feio não se deu ao trabalho de retribuir, pois isso teria implicado passar a ben gala da mão direita para a esquerda, uma tarefa incómoda. Além do mais, cinco anos após ter sido destacado para a Marinha Real, Arthur Braithwaite continuava a não se sentir à vontade com os costumes e tradições da vida militar.
Oficialmente, Braithwaite só entrava de serviço dali a uma hora. Mas, tal como era seu hábito todos os dias, tinha chegado à Cidadela uma hora mais cedo para ter
mais tempo para se preparar. com uma perna aleijada desde a infância, Braithwaite sabia que para ter êxito tinha de estar mais bem preparado do que as pessoas à sua volta. Era um compromisso que lhe trazia dividendos.
A Sala de Localização de Submarinos - à qual se chegava por um emaranhado de escadas exíguas e tortuosas - não era de fácil acesso para um homem com uma perna gravemente
deformada. Atravessou a Sala dos Gráficos e entrou na Sala de Localização depois de passar por uma porta com um guarda.
A energia e a agitação daquele sítio apoderaram-se dele, tal como acontecia todas as noites. As paredes sem janelas eram da cor da nata azeda e estavam repletas de mapas, cartas de navegação e fotografias de submarinos e das suas tripulações. Várias dezenas de oficiais e de datilógrafas trabalhavam às secretárias, à roda da sala. No meio, estava a principal mesa de localização para o Atlântico Norte, com pioneses coloridos a assinalarem a posição de cada navio de guerra, navio de carga e submarino, do mar Báltico a Cape Cod.
Uma grande fotografia do almirante Karl Dònitz, o comandante da Kriegsmarine, lançava um olhar ameaçador da parede onde se encontrava pendurada. Braithwaite, tal como fazia todas as manhãs, piscou-lhe o olho e disse: bom dia, Herr Admirai. A seguir, abriu a porta do seu cubículo de vidro, tirou o casaco e sentou-se à secretária.
Estendeu a mão na direção da pilha de mensagens por descodificar que o aguardava todas as manhãs e pensou: Estás bem longe de
1939, meu velho.
Em 1939, tinha licenciaturas em Direito e Psicologia tiradas em Cambridge e Yale e estava à procura de alguma coisa para fazer com elas. Quando a guerra rebentou,
tentou dar utilidade ao seu alemão fluente voluntariando-se para interrogar prisioneiros de guerra alemães. Os seus superiores ficaram tão impressionados que recomendaram
uma transferência para a Cidadela, na qual foi destacado, como voluntário civil, para a Sala de Localização de Submarinos, no auge da Batalha do Atlântico. O intelecto
e a determinação de Braithwaite fizeram-no distinguir-se rapidamente. Dedicou-se por inteiro ao trabalho, voluntariou-se para prestar serviços adicionais e leu todos
os livros que conseguiu encontrar sobre a história e as táticas navais alemãs. Possuidor de uma memória quase perfeita, decorou as biografias de todos os Kapitànleutnant
da U-bootewaffe. No espaço de poucos meses, desenvolveu uma capacidade extraordinária para prever os movimentos dos submarinos alemães. Nada disso passou despercebido.
Atribuíram-lhe o posto de comandante temporário e colocaram-no à frente da localização de submarinos, um feito espantoso para alguém que não tinha passado pelo Dartmouth Naval College.
O seu assessor bateu ao de leve na porta de vidro, aguardou que Braithwaite assentisse com a cabeça e entrou.
- bom dia, senhor - disse, pousando uma bandeja com um bule de chá e biscoitos.
- bom dia, Patrick.
- O tempo manteve as coisas razoavelmente sossegadas ontem à noite, senhor. Não foram avistados submarinos alemães a virem à superfície em lado nenhum. A tempestade
afastou-se do oeste. Agora, é o leste que está a suportar o impacto, de Yorkshire a Suffolk.
Braithwaite assentiu com a cabeça e o assessor foi-se embora. As primeiras mensagens eram coisas convencionais, interceções de comunicações de rotina entre submarinos
e o BdU. A quinta chamou-lhe a atenção. Era um alerta emitido por um major Alfred Vicary do Ministério da Guerra. Indicava que as autoridades se encontravam a perseguir
duas pessoas, um homem e uma mulher, que poderiam estar a tentar fugir do país. Braithwaite sorriu perante os eufemismos cautelosos de Vicary. Era evidente que Vicary era do MI5. O homem e a mulher eram obviamente agentes alemães e fosse o que fosse em que estavam envolvidos devia ser bem importante, caso contrário o alerta não lhe teria passado pela secretária. Pôs o alerta de Vicary de lado e continuou a ler.
Após mais algumas mensagens rotineiras, Braithwaite deu com outra coisa que lhe chamou a atenção. Um membro do ramo feminino da Marinha Real Britânica, da estação de recolha de comunicações de Scarborough, tinha intercetado o que julgava ser uma comunicação entre um submarino alemão e um rádio em terra. O sistema Huff Duff tinha indicado que o transmissor se encontrava algures na costa leste - algures entre Lincolnshire e Suffolk. Braithwaite tirou a mensagem da pilha e colocou-a ao lado do alerta de Vicary.
Levantou-se e coxeou para fora do gabinete e, já na sala principal, parou junto à mesa de localização para o Atlântico Norte. Dois membros da sua equipa estavam a reposicionar alguns pinos coloridos, na sequência de movimentações noturnas. Braithwaite pareceu não reparar neles. De rosto fechado, fixou o olhar nas águas ao largo da costa leste britânica.
Passado um momento, disse em voz baixa:
- Patrick, traga-me o dossiê do U-509.
CINQUENTA E CINCO
HAMPTON SANDS, NORFOLK
Jenny atingiu o pinhal no fundo das dunas e caiu exausta. Tinha corrido instintivamente, como um animal assustado. Tinha-se mantido longe da estrada, não saindo dos prados e dos pântanos, alagados pela chuva. Tinha caído tantas vezes que até perdera a conta. Estava cheia de lama, cheirava a terra em decomposição e a mar. A cara, fustigada pela chuva e pelo vento, doía-lhe como se tivesse sido esbofeteada. E tinha frio - mais frio do que alguma vez sentira na vida. Era como se o oleado pesasse uns cinquenta quilos. As botas de borracha estavam cheias de água e tinha os pés a congelar. Foi então que se lembrou de que tinha saído sem meias do chalé. Pôs-se de gatas, a ofegar com falta de ar. Tinha a garganta seca e sabia-lhe a ferrugem.
Deixou-se ficar assim durante um momento, até que a respiração acalmasse, e depois forçou-se a levantar-se e a penetrar no meio das árvores. Estava escuro como breu, tão escuro que teve de avançar com as mãos esticadas para a frente, como um cego às apalpadelas num local desconhecido. Estava zangada consigo mesma por não ter trazido a lanterna.
O som do vento, o estrondo das ondas a rebentarem na praia e os guinchos das aves marinhas enchiam o ar. As árvores já pareciam estar dispostas de uma forma familiar. Jenny orientava-se pela memória, como alguém a arrastar os pés pela própria casa, no escuro.
As árvores desapareceram: o seu esconderijo secreto surgiu diante dela.
Escorregou pelo declive e sentou-se encostada à grande rocha. Os pinheiros contorciam-se ao vento, por cima da sua cabeça, mas Jenny estava abrigada do pior da tempestade. Queria imenso fazer uma fogueira, mas o fumo seria visível de muito longe. Desenterrou a mala debaixo da caruma de pinheiro, tirou de lá o velho cobertor de lã e enrolou-se toda nele.
Começou a sentir o calor. Foi então que começou a chorar. Perguntou-se quanto tempo teria de esperar ali até poder ir procurar ajuda. Dez minutos? Vinte minutos?
Meia hora? Perguntou-se se Mary ainda estaria no chalé quando ela lá voltasse. Perguntou-se se estaria ferida. Uma imagem horrenda do cadáver do pai passou-lhe diante
dos olhos. Sacudiu a cabeça para tentar que ela desaparecesse. Tremeu e depois enrolou-se ainda mais no cobertor.
Trinta minutos. Iria esperar trinta minutos. Por essa altura, já se teriam ido embora e seria seguro regressar.
Neumann estacionou no fim do trilho, pegou na lanterna que estava no banco do passageiro e saiu da carrinha. Acendeu a lanterna e avançou rapidamente por entre as
árvores. Escalou as dunas e desceu aos tropeções pelo outro lado. Desligou a lanterna e deslocou-se pela praia, em direção à beira-mar. Quando atingiu a areia molhada
e dura, onde as ondas rebentavam na praia, começou a correr levemente, com a cabeça baixa para avançar contra o vento.
Recordou-se da manhã em que estava a correr na praia e vira Jenny a sair das dunas. Recordou-se do aspeto dela, como se tivesse dormido na praia naquela noite. Tinha a certeza de que ela tinha alguma espécie de esconderijo ali perto, para onde ia quando as coisas em casa ficavam más. Estava assustada, em fuga e sozinha. Iria fugir para o sítio que conhecia melhor, como fazem as crianças. Neumann foi até ao ponto da praia que utilizava como meta imaginária, depois parou e caminhou em direção às dunas.
Já do outro lado, voltou a acender a lanterna, deu com um trilho pisado e seguiu-o. Ia dar a uma pequena depressão no terreno, abrigada do vento pelas árvores e por um par de grandes pedregulhos. Apontou a lanterna para a depressão e o feixe luminoso apanhou o rosto de Jenny Colville.
- Qual é o seu nome verdadeiro? - perguntou Jenny enquanto seguiam na carrinha para o chalé dos Dogherty.
- O meu nome verdadeiro é tenente Horst Neumann.
- E porque fala inglês tão bem?
- O meu pai era inglês e eu nasci em Londres. A minha mãe e eu mudámo-nos para a Alemanha quando ele morreu.
- E é um espião alemão?
- Qualquer coisa do género.
- E o que aconteceu a Sean e ao meu pai?
- Estávamos a utilizar o rádio no celeiro de Sean quando o teu pai nos apareceu de rompante. Sean tentou para-lo e o teu pai matou-o. Catherine e eu matámos o teu
pai. Lamento imenso, Jenny. Aconteceu tudo muito depressa.
- Cale-se! Não quero que me diga que lamenta imenso! Neumann manteve-se em silêncio.
Jenny perguntou:
- E agora o que vai acontecer?
- Vamos fazer uma viagem pela costa até ao rio Humber. Chegados lá, vamos para o mar num barco pequeno para irmos ter com um submarino alemão.
- Espero que vos apanhem. E espero que vos matem.
- Eu diria que isso é uma possibilidade muito forte.
- O senhor é um sacana! Porque andou à luta com o meu pai por causa de mim?
- Porque gosto muito de ti, Jenny Colville. Menti-te em relação a tudo o resto, mas a verdade é essa. Agora, faz exatamente o que eu te disser e não te vai acontecer
nada de mal. Compreendes?
Jenny assentiu com a cabeça. Neumann virou para o chalé dos Dogherty. A porta abriu-se e Catherine saiu. Dirigiu-se para a carrinha e olhou lá para dentro, vendo
Jenny. A seguir, olhou para Neumann e disse em alemão:
- Amarra-a e enfia-a na parte de trás. Vamos levá-la connosco. Nunca se sabe quando é que um refém pode vir a calhar.
Neumann abanou a cabeça e respondeu na mesma língua:
- O melhor é deixá-la aqui e pronto. Não nos serve de nada e ainda é capaz de lhe acontecer alguma coisa.
- Está a esquecer-se de que sou seu superior, tenente?
- Não, major - retorquiu Neumann, com a voz tingida de sarcasmo.
- Ótimo. Agora, amarra-a e vamos pôr-nos a milhas deste lugar
horrível.
Neumann voltou ao celeiro para procurar um bocado de corda. Encontrou-o, pegou no candeeiro e começou a ir-se embora. Olhou uma última vez para o corpo de Sean Dogherty,
estendido no chão e tapado pela velha serapilheira. Neumann não conseguia deixar de se sentir culpado pela sucessão de acontecimentos que tinha levado à morte de
Sean. Se não tivesse lutado com Martin, este não teria aparecido no celeiro com uma caçadeira. Sean estaria a ir com eles para a Alemanha e não estendido no chão do seu celeiro, sem metade do peito. Apagou o candeeiro, deixando os corpos na escuridão, e saiu, fechando a porta do celeiro.
Jenny não resistiu nem lhe dirigiu uma única palavra. Neumann amarrou-lhe as mãos à frente, para que ela se pudesse sentar mais confortavelmente. Verificou o nó, para se certificar de que não estava demasiado apertado. A seguir, atou-lhe os pés. Quando terminou, levou-a para a parte de trás da carrinha, abriu as portas e meteu-a lá dentro.
Despejou mais um bidão de gasolina no depósito e atirou o recipiente vazio para o prado.
Não havia sinal de vida no trilho entre o chalé e a aldeia. Era óbvio que os tiros tinham passado despercebidos em Hampton Sands. Atravessaram a ponte, passaram a grande velocidade pelo pináculo da St. John's Church e continuaram pela rua às escuras. A aldeia estava tão silenciosa que mais parecia ter sido evacuada.
Catherine ia ao lado de Neumann, calada e a recarregar a Mauser.
Neumann carregou a fundo no acelerador e Hampton Sands desapareceu atrás deles.
CINQUENTA E SEIS
LONDRES
Arthur Braithwaite fixou o olhar na mesa de localização enquanto esperava pelo dossiê do U-509. Não que Braithwaite precisasse dele para grande coisa - achava que sabia tudo o que havia para saber sobre o comandante do submarino e podia provavelmente recitar todas as patrulhas que o submarino já tinha realizado. Só queria confirmar umas quantas coisas antes de telefonar para o MI5.
As movimentações do U-509 andavam a intrigá-lo há várias semanas. O submarino parecia estar a patrulhar o mar do Norte sem nenhum objetivo, navegando sem destino em particular e passando longos períodos sem contactar o BdU. E quando dava de facto notícias, comunicava uma posição ao largo da costa britânica, perto de Spurn
Head. E também tinha sido avistado em fotografias aéreas num recinto para submarinos, no sul da Noruega. Não tinha sido visto a vir à superfície e não atacara nenhum
navio de guerra nem nenhum navio mercante dos Aliados.
Braithwaite pensou: Andas só para aí a tentar passar despercebido, sem fazer absolutamente nada. Bem, não acredito nisso, Kapitànleutnant Hoffman.
Ergueu os olhos para o rosto severo de Dónitz e murmurou:
- Porque deixarias um submarino e uma tripulação em perfeitas condições serem desperdiçados dessa maneira?
Passado um momento, o assessor regressou com o dossiê.
- Aqui está, senhor.
Braithwaite não pegou no dossiê; em vez disso, começou a recitar o que lá vinha escrito.
- O capitão chama-se Max Hoffman, se bem me lembro.
- Correto, senhor.
- Cruz de Cavaleiro da Cruz de Ferro em 1942, Folhas de Carvalho um ano depois.
- Colocadas pelo próprio Fúhrer.
- E agora a parte importante. Julgo que fez parte do sfaffde Canaris, na Abwehr, durante um curto período antes da guerra.
O assessor folheou o dossiê.
- Sim, aqui está, senhor. Hoffman foi destacado para o quartel-general da Abwehr, em Berlim, entre 38 e 39. Quando a guerra rebentou, foi outra vez transferido para a Kriegsmarine e recebeu o comando do U-509.
Braithwaite estava a olhar novamente para a mesa com o mapa.
- Patrick, se tivesse um importante espião alemão a precisar de uma boleia para fora de Inglaterra, não preferiria que fosse um velho amigo a conduzir?
- com certeza, senhor.
- Telefone para o MI5 e peça para falar com Vicary. Acho que precisamos de ter uma conversa.
CINQUENTA E SETE
LONDRES
Alfred Vicary estava parado diante um mapa das Ilhas Britânicas com dois metros e meio de altura, a fumar sem parar, a beber um chá horrível e a pensar: Agora sei como é que Adolf Hitler se deve sentir. com base no telefonema do comandante Lowe, da estação de recolha de comunicações de Scarborough, naquele momento era seguro partir do princípio de que os espiões estavam a tentar escapulir-se de Inglaterra a bordo de um submarino. Mas Vicary tinha um problema muito simples e, no entanto, muito grave. Fazia apenas uma vaga ideia de quando e uma ideia ainda mais vaga de como.
Partiu do princípio de que os espiões teriam de se encontrar com o submarino antes do amanhecer; seria demasiado perigoso para um submarino alemão manter-se à superfície perto da costa depois dos primeiros raios de luz do dia. Era possível que o submarino pretendesse desembarcar alguns membros da tripulação por meio de um bote de borracha - era assim que a Abwehr introduzia muitos dos seus espiões no Reino Unido -, mas Vicary duvidava que o tentassem fazer com mares revoltos. Por outro lado,
roubar um barco não era tão fácil como parecia. A Marinha Real tinha apreendido quase tudo o que conseguia flutuar. E a pesca no mar do Norte tinha diminuído porque
as águas costeiras se encontravam repletas de minas. Dois espiões em fuga teriam grandes dificuldades em encontrar um barco capaz de andar no mar em tão pouco tempo, com uma tempestade e durante o blackout.
Pensou: Se calhar, os espiões já têm um barco.
A pergunta mais exasperante era onde. De que ponto da costa iriam partir para o mar? Vicary olhou fixamente para o mapa. A estacão de recolha de comunicações não conseguia apontar a localização exata do transmissor. Só para que pudesse considerar essa hipótese, Vicary escolheu precisamente o centro da vasta área que lhe tinham indicado. Percorreu o mapa com o dedo até chegar à costa de Norfolk.
Sim, fazia todo o sentido. Vicary conhecia bem os horários dos caminhos de ferro. Um espião poder-se-ia esconder numa das aldeias da costa e ser também capaz de chegar a Londres em três horas graças ao comboio direto que saía de Hunstanton.
Vicary partiu do princípio de que teriam um bom veículo e bastante gasolina. Tinham efetuado uma viagem considerável desde Londres e, devido à forte presença policial nas linhas férreas, tinha praticamente a certeza de que não o tinham feito de comboio.
Pensou: Então, até que ponto da costa de Norfolk conseguiriam eles ir até se enfiarem num barco e partirem para o mar?
Provavelmente, o submarino não se aproximaria mais do que oito quilómetros da costa. Os espiões demorariam uma hora a percorrer esses oito quilómetros, se não mais.
E se o submarino submergisse aos primeiros raios de luz do dia, os espiões teriam de partir para o mar no máximo às seis horas, para jogarem pelo seguro. A mensagem
radiofónica tinha sido enviada às 22h. Isso deixava-lhes oito horas de potencial tempo de condução. Até onde poderiam ir? Tendo em conta o tempo que fazia, o blackout e as fracas condições das estradas, entre cento e cinquenta e duzentos e cinquenta quilómetros.
Vicary olhou para o mapa, desanimado. com isso, ainda restava uma enorme faixa da costa britânica, que se estendia do estuário do Tamisa, a sul, ao rio Humber, a norte. Seria praticamente impossível abarcar tudo. O litoral estava semeado de pequenos portos, aldeias piscatórias e cais. Vicary tinha pedido às forças policiais locais para percorrerem a costa com o máximo de homens possível. O Comando Costeiro da RAF tinha concordado em dar início a missões de busca logo que amanhecesse, embora Vicary temesse que fosse demasiado tarde. As corvetas da Marinha Real andavam à procura de
barcos pequenos, ainda que fosse praticamente impossível localiza-los numa noite chuvosa e escura, em pleno mar. Sem outra pista -- um segundo sinal de rádio intercetado ou um avistamento -, não havia grande esperança de os apanhar. O telefone tocou.
- Vicary.
- Daqui fala o comandante Arthur Braithwaite, da Sala de Localização de Submarinos. Vi o seu alerta quando entrei ao serviço e acho que lhe posso dar uma ajuda bastante importante.
- A Sala de Localização de Submarinos diz que o U-509 anda há umas quantas semanas a aproximar-se e a afastar-se da costa de Lincolnshire - revelou Vicary.
Boothby tinha descido para acompanhar Vicary na vigília defronte do mapa.
- Se concentrarmos todos os nossos homens e recursos em Lincolnshire, temos boas hipóteses de os parar.
- Continua a ser muita costa para abarcar. Vicary estava a olhar de novo para o mapa.
- Qual é a maior terra daquela região?
- Grimsby, diria eu.
-- Mas que apropriado, Grimsby. E quanto tempo é que acha que eu levaria a chegar lá?
- A divisão dos Transportes pqdia arranjar-lhe boleia, mas levaria horas.
Vicary fez uma careta. A divisão dos Transportes possuía alguns carros velozes precisamente para casos destes. Tinham condutores experimentados de reserva, especializados em perseguições a alta velocidade; um ou dois até tinham competido em corridas profissionais antes da guerra. Mas Vicary achava que os condutores, apesar de brilhantes, eram demasiado imprudentes. Lembrou-se da noite em que tinha sacado o espião da praia na Cornualha, recordando-se de estar a atravessar em grande velocidade a noite da Cornualha, durante o blackout, num Rover todo modificado, e a rezar para viver o suficiente para poder fazer aquela detenção.
Vicary perguntou:
- Então e se fosse um avião?
- Tenho a certeza de que lhe podia arranjar uma boleia com a RAF. Há uma pequena base de caças nos arredores de Grimsby. Podiam lá pô-lo em mais ou menos uma hora e podia servir-se da base como posto de comando. Mas já olhou pela janela nas últimas horas? Está uma noite horrível para se andar de avião.
- Eu tenho noção disso, mas tenho a certeza de que poderia coordenar melhor a busca se estivesse lá, no terreno - retorquiu Vicary, afastando-se do mapa e olhando para Boothby. - E ocorreu-me outra coisa. Se os conseguirmos deter antes de enviarem uma mensagem para Berlim, talvez possa enviá-la eu por eles.
- Engendrando uma explicação qualquer para a decisão deles de fugirem de Londres que reforce a confiança na Operação Kettledrum?
- Exato.
- Bem pensado, Alfred.
- Gostava de levar dois homens comigo: Roach e Dalton, se ele estiver em condições.
Boothby hesitou.
- Acho que também devia levar outra pessoa.
- Quem?
- Peter Jordan. -Jordan!
- Veja a coisa do outro lado do espelho. Se Jordan foi enganado e traído, não iria querer estar lá no fim, para presenciar a morte de Catherine Blake? Eu sei que iria querer de certeza. Iria querer carregar eu próprio no gatilho. Se estivesse no lugar dele. E os alemães também têm de achar isso. Temos de fazer tudo o que for possível para fazer com que acreditem na ilusão da Operação Kettledrum.
Vicary pensou no dossiê vazio que se encontrava nos Registos. O telefone voltou a tocar.
- Vicary.
Era uma das telefonistas do departamento.
- Professor Vicary, tenho uma chamada interurbana de um superintendente-chefe Perkin, da polícia de King's Lynn, em Norfolk. Diz que é bastante urgente.
- Passe-mo.
Hampton Sands era demasiado pequena, demasiado isolada e demasiado sossegada para justificar ter o seu próprio polícia. Partilhava um com mais quatro aldeias da costa de Norfolk, Holme, Thornton, Titchwell e Brancaster. O polícia era um homem chamado Thomasson, um veterano que trabalhava na costa de Norfolk desde a grande guerra anterior. Thomasson vivia numa casa da polícia, em Brancaster, e devido às necessidades do trabalho tinha o seu próprio telefone.
Uma hora antes, o telefone tinha tocado, acordando Thomasson, a mulher e o seu setter inglês, Rags. A voz do outro lado da linha pertencia ao superintendente-chefe Perkin, de King's Lynn. O superintendente informou Thomasson do telefonema importante que tinha recebido do Ministério da Guerra, em Londres, a pedir auxílio às forças policiais locais na busca de dois fugitivos suspeitos de homicídio.
Dez minutos depois de receber o telefonema de Perkin, Thomasson já estava a sair do chalé, com uma capa de oleado azul, um chapéu impermeável atado por baixo do queixo e um termos de chá doce que Judith lhe tinha preparado rapidamente. Foi buscar a bicicleta ao barracão nas traseiras da casa e, a seguir, partiu para o centro da aldeia. Rags, que acompanhava sempre Thomasson nas suas rondas, seguia descontraidamente ao lado dele.
Thomasson tinha cinquenta e tal anos. Nunca fumava, raramente tocava em álcool e trinta anos a percorrer de bicicleta a costa ondulante de Norfolk tinham-no deixado em forma e cheio de força. As pernas grossas e bem musculadas pedalavam facilmente, impulsionando a pesada bicicleta de ferro na direção de Brancaster. Tal como suspeitava, reinava um silêncio de morte na aldeia. Podia ir bater a algumas portas, acordar umas quantas pessoas, mas conhecia toda a gente na aldeia e não havia lá ninguém que estivesse a abrigar assassinos em fuga. Passou uma vez pelas ruas silenciosas e depois virou para a estrada costeira e seguiu para a aldeia seguinte, Hampton Sands.
O chalé dos Colville ficava a uns quinhentos metros da aldeia. Toda a gente conhecia a história de Martin Colville. Tinha sido abandonado pela mulher, bebia imenso
e mal conseguia viver da sua pequena propriedade. Thomasson sabia que Colville era demasiado duro com a filha, Jenny. E também sabia que Jenny passava muito tempo nas dunas; Thomasson encontrara as coisas dela depois de um dos habitantes da aldeia se queixar de que havia ciganos a viverem na praia. Deixou que a bicicleta parasse e apontou a lanterna para o chalé dos Colville. Estava às escuras e não havia fumo a sair da chaminé.
Thomasson empurrou a bicicleta pelo caminho de acesso e bateu à porta. Ninguém respondeu. Receando que Colville estivesse bêbado ou desmaiado, voltou a bater, com mais força. Mais uma vez, ninguém respondeu. Abriu a porta e espreitou lá para dentro. O interior da casa estava às escuras. Gritou pelo nome de Colville uma última vez. Como ninguém respondesse, foi-se embora do chalé e continuou em direção a Hampton Sands.
Tal como Brancaster, Hampton Sands estava silenciosa e numa escuridão completa. Thomasson atravessou a aldeia, passando pelo Arms, pela loja da aldeia e pela St. John's Church. Atravessou a ponte sobre a enseada. Sean e Mary Dogherty viviam a cerca de um quilómetro e meio da aldeia. Thomasson sabia que Jenny Colville vivia praticamente com os Dogherty. Era muito provável que estivesse a passar a noite lá. Mas onde estaria Martin?
Foi um quilómetro e meio difícil, com o trilho a subir e a descer à medida que avançava. À sua frente, no escuro, conseguia ouvir o clicar das patas de Rags no trilho e o ritmo constante da respiração do cão. O chalé dos Dogherty surgiu diante dele. Pedalou pelo caminho de entrada, parou e apontou a lanterna de um lado para o outro.
Houve qualquer coisa no prado que lhe chamou a atenção. Deslocou o feixe luminoso sobre a vegetação e - ali - ali estava aquilo outra vez. Avançou com dificuldade pelo meio do prado encharcado e baixou-se para apanhar o objeto. Era um bidão vazio. Cheirou-o gasolina. Virou-o ao contrário. Um fio de gasolina escorreu para fora.
Dirigiu-se para o chalé dos Dogherty, com Rags à sua frente. Viu a carrinha velha e em mau estado de Sean Dogherty estacionada no pátio. Depois, avistou duas bicicletas caídas no meio da vegetação, ao
lado do celeiro. Thomasson avançou até ao chalé e bateu à porta. Tal como no chalé dos Colville, ninguém respondeu.
Thomasson não se deu ao trabalho de bater uma segunda vez. Já se encontrava completamente alarmado com o que tinha visto. Abriu a porta e gritou
Olá. Ouviu um ruído
estranho, como gemidos abafados. Apontou a lanterna para a sala e viu Mary Dogherty amarrada a uma cadeira e com a boca amordaçada.
Thomasson correu para ela, com .Rags a ladrar furiosamente, e desatou rapidamente o pano que tinha à volta da cara.
- Mary! Mas que raio é que se passou aqui? ! Mary, nervosíssima, ofegou com falta de ar.
- Sean... Martin... mortos... celeiro... espiões... submarino... Jenny!
- Daqui fala Vicary.
- Superintendente-chefe Perkin, da polícia de King's Lynn.
- E o que tem para me dizer? - Dois cadáveres, uma mulher histérica e uma rapariga desaparecida.
- Meu Deus! Comece do início.
- Depois de ter recebido a sua chamada, mandei todos os meus agentes fazerem rondas. O agente Thomasson é responsável por um punhado de pequenas aldeias no norte da costa de Norfolk. Foi ele que deparou com os sarilhos.
- Continue.
- Aconteceu tudo num sítio chamado Hampton Sands. A não ser que tenha um mapa grande, não é provável que o encontre. Mas se tiver, descubra Hunstanton, na Wash, e percorra o leste da costa de Norfolk com o dedo e vai ver Hampton Sands.
- Já a encontrei.
Era praticamente o ponto onde Vicary tinha imaginado que o transmissor pudesse estar.
- Thomasson deu com dois corpos num celeiro, numa quinta logo à saída de Hampton Sands. As vítimas são dois habitantes locais, Martin Colville e Sean Dogherty. Dogherty é irlandês. Thomasson encontrou a mulher de Dogherty, Mary, amarrada e amordaçada
no chalé. Tinha levado uma pancada na cabeça e estava num estado de histeria quando Thomasson a descobriu. Contou-lhe uma história e pêras.
- Não há nada que me vá surpreender, superintendente. Por favor, continue.
- A senhora Dogherty diz que o marido anda a espiar para os alemães desde o começo da guerra, nunca foi um homem armado do IRA a cem por cento, mas tinha ligações ao grupo. Ela diz que, há umas semanas, os alemães largaram outro agente na praia, chamado Horst Neumann, e que Dogherty o acolheu. O agente tem estado a morar com eles desde então e a viajar para Londres regularmente.
- E o que aconteceu hoje à noite?
- Ela não sabe ao certo. Ouviu tiros, foi a correr para o celeiro e deu com os corpos. O alemão disse-lhe que Colville lhes tinha entrado por ali de rompante e que fora então que o tiroteio começara.
- E estava lá alguma mulher com Neumann?
- Estava.
- Fale-me da rapariga que desapareceu.
- É a filha de Colville, Jenny. Não está em casa e encontraram a bicicleta dela junto ao chalé dos Dogherty. Thomasson acha que ela seguiu o pai, assistiu ao tiroteio ou ao rescaldo e fugiu. Mary tem medo que o alemão tenha descoberto a rapariga e a tenha levado com ele.
- E ela sabe para onde é que eles iam?
- Não, mas diz que vão numa carrinha... talvez preta.
- E onde está ela agora?
- Continua no chalé.
- E onde está o agente Thomasson?
- Continua em linha, numpub em Hampton Sands.
- E havia algum indício de um rádio no chalé ou no celeiro?
- Espere um momento, deixe-me perguntar-lhe.
Vicary ouviu Perkin, com a voz abafada, a fazer a pergunta.
- Ele diz que viu uma engenhoca no celeiro que poderia ser um rádio.
- E era parecida com quê?
- com uma mala com uma coisa parecida com uma telefonia. Foi destruída por um tiro de caçadeira.
- E quem mais é que sabe disto?
- Eu, Thomasson e provavelmente o dono dopub. Suspeito que ele deve estar ao lado de Thomasson neste preciso momento.
- Não quero que fale a quem quer que seja do que se passou esta noite no chalé dos Dogherty. Não pode haver referências a agentes alemães em nenhum relatório sobre esta questão. Isto é um assunto de segurança da máxima importância. Estamos entendidos, superintendente?
- Estamos.
- vou enviar uma equipa de homens para Norfolk para o auxiliar. Por agora, deixe Mary Dogherty e esses corpos exatamente onde estão.
- Sim, senhor.
Vicary estava outra vez a olhar para o mapa.
- bom, superintendente, eu tenho informações que me levam a suspeitar que, com toda a probabilidade, esses fugitivos estão a dirigir-se precisamente para onde se encontra. Julgamos que o destino final deles é a costa de Lincolnshire.
- Já chamei todos os meus homens. Estamos a barricar todas as estradas principais.
- Mantenha o Ministério informado de todos os desenvolvimentos. E boa sorte.
Vicary desligou o telefone e voltou-se para Boothby.
- Eles mataram duas pessoas, têm provavelmente um refém e estão a tentar chegar à costa de Lincolnshire - revelou Vicary, sorrindo ferozmente. - E parece que acabaram de ficar sem o segundo rádio.
CINQUENTA E OITO
LINCOLNSHIRE, INGLATERRA
Duas horas depois de terem saído de Hampton Sands, Horst Neumann e Catherine Blake começaram a ter sérias dúvidas sobre as hipóteses de chegarem a tempo ao ponto de encontro com o submarino. Para escapar à costa de Norfolk, Neumann refez o seu percurso, subindo o grupo de colinas no coração de Norfolk e seguindo depois a estreita faixa de estrada pela região pantanosa e pelas povoações às escuras. Contornou King's Lynn para sudeste, serpenteou por uma série de aldeolas e depois atravessou o rio Great Ouse, numa aldeia chamada Wiggenhall St. Germans.
A viagem pela orla sul da Wash foi um pesadelo. O vento soprava com toda a força, vindo do mar do Norte, e chicoteava os pântanos e diques. A chuva aumentou de intensidade. Às vezes, vinha em rajadas furiosas - em turbilhão, soprada pelo vento, ocultando as bermas da estrada. Neumann curvava-se todo para a frente, quilómetro após quilómetro, agarrando com força o volante com ambas as mãos, enquanto a carrinha avançava a grande velocidade pelo terreno plano. Por vezes, tinha a sensação de estar a flutuar num abismo.
Catherine estava sentada ao lado dele, a ler o mapa antigo de Dogherty, do serviço oficial de topografia e cartografia, à luz da lanterna. Falavam em alemão para
Jenny não perceber. Neumann achava o alemão de Catherine curioso: átono, sem entoação especial nem sotaque regional. O tipo de alemão que é uma segunda ou terceira
língua. O tipo de alemão que não é falado há muito tempo.
Neumann traçou o caminho com as instruções de navegação de Catherine.
O barco estaria á espera deles numa terra chamada Cleethorpes, que ficava perto do porto de Grimsby, na foz do Humber. Assim que deixassem a Wash para trás, não teriam povoações grandes pelo caminho. De acordo com os mapas, havia uma estrada boa - a Al 6
- que seguia vários quilómetros para o interior, ao longo do sopé das colinas de Lincolnshire Wolds, e depois em direção ao Humber. Para efeitos de planeamento,
Neumann partiu do pressuposto de que as coisas correriam da pior maneira. Partiu do pressuposto de que Mary acabaria por ser encontrada, de que o MI5 acabaria por ser alertado e de que seriam estabelecidas barricadas em todas as estradas principais perto do litoral. Apanharia a Al 6 até meio do caminho para Cleethorpes e, a seguir, mudaria para uma estrada secundária que seguia mais perto da costa.
Avistou Boston perto da margem ocidental da Wash. Era a última cidade grande que os separava do Humber. Neumann deixou a estrada principal, avançou lentamente por tranquilas estradas secundárias e depois reentrou na Al 6 a norte da cidade. Carregou no acelerador e puxou fortemente pela carrinha por entre a tempestade.
Catherine desligou a lanterna para o blackout e olhou para a chuva a rodopiar à fraca luz dos faróis.
- Como é que andam as coisas agora... em Berlim? Neumann manteve os olhos na estrada.
- É o paraíso. Estamos todos felizes, trabalhamos muito nas fábricas, agitamos os punhos contra os bombardeiros americanos e britânicos e toda a gente ama o Fúhrer.
-- Pareces um filme de propaganda do Goebbels.
- A verdade não é assim tão divertida. Berlim está muito mal. Os americanos vêm de dia com os seus B-17 e os britânicos vêm à noite com os seus lancasters e Halifaxes. Há dias em que parece que a cidade está sob bombardeamento constante. Grande parte do centro de Berlim é um monte de destroços.
- Tendo eu passado também pela Blitz, receio bem que a Alemanha mereça tudo o que os americanos e britânicos lhe conseguirem infligir. Os alemães foram os primeiros a levar a guerra à população
civil. Não posso verter muitas lágrimas por Berlim estar agora a ser reduzida a pó.
- Pareces uma verdadeira britânica.
- E sou meia britânica. A minha mãe era inglesa. E há seis anos que vivo com os britânicos. É difícil não nos esquecermos de que lado supostamente estamos quando nos encontramos numa situação dessas. Mas fala-me mais de Berlim.
- Quem tem dinheiro ou ligações consegue comer bem. Quem não tem não consegue. Os russos inverteram por completo a situação no Leste. Desconfio que meia Berlim esteja
desejosa de que a invasão aconteça para que os americanos cheguem a Berlim antes dos russos.
- Isso é tão tipicamente alemão. Elegem um psicopata, dão-lhe poder absoluto e depois choram porque ele os conduziu à beira da destruição.
Neumann riu-se.
- Se foste abençoada com essa capacidade de prever o futuro, por que raio é que te voluntariaste para ser
espiã?
- E quem é que falou em voluntariado?
Passaram rapidamente por duas aldeias - primeiro, Stickney, depois, Stickford. O aroma de fumo vindo de lareiras a arderem nas pequenas casas invadiu a carrinha.
Neumann ouviu um cão a ladrar e, a seguir, outro. Enfiou a mão no bolso, tirou de lá os cigarros e passou-os a Catherine. Ela acendeu dois, ficou com um e deu-lhe o outro.
- Importas-te de explicar essa última observação?
Ela pensou: Importo-me? Era uma sensação tão estranha, após todos aqueles anos, estar a falar sequer alemão. Tinha passado seis anos a esconder o mais pequeno resquício de verdade sobre si. Tinha-se tornado outra pessoa, tinha apagado todos os aspetos da sua personalidade e do seu passado. Quando pensava na pessoa que era antes de Hitler e antes da guerra, era como se estivesse a pensar noutra pessoa.
Anna Katarina von Steiner morreu num infeli acidente de automóvel, à saída de Berlim.
- Bem, eu não fui propriamente ao gabinete da Abwehr lá da zona para me alistar - afirmou ela. - Mas também suponho que
não haja ninguém nesta atividade a conseguir trabalho dessa maneira pois não? Eles é que vêm sempre ter connosco. No meu caso, eles foram Kurt Vogel.
Contou-lhe a história, a história que nunca tinha contado a ninguém. A história do verão em Espanha, o verão em que rebentou a guerra civil. O verão na estancia de Maria. O caso com o pai de Maria.
- Só para veres a minha sorte, acontece que ele era um fascista e um caçador de talentos para a Abwehr. Vendeu-me a Vogel e Vogel veio à minha procura.
- E porque é que não disseste simplesmente não?
- Porque é que nenhum de nós disse simplesmente não? No meu caso, ele ameaçou quem eu mais quero neste mundo... o meu pai. É isso que um bom responsável operacional
faz. Entra-nos na cabeça. Consegue saber como é que pensamos, o que é que sentimos. O que é que amamos e o que é que tememos. E depois usa isso para nos pôr a fazer
o que ele quer que façamos.
Ela fumou em silêncio por um momento, observando enquanto passavam por outra aldeia.
- Ele sabia que eu tinha vivido em Londres quando era criança, que falava a língua perfeitamente, que já sabia usar uma arma e que...
Silêncio durante um momento. Neumann não insistiu com ela. Limitou-se a esperar, fascinado.
- Ele sabia que eu tinha a personalidade adequada para a missão que tinha em mente. Estive quase seis anos no Reino Unido, sozinha, praticamente sem contacto com ninguém do meu lado: nem amigos, nem família, nenhum contacto com outros agentes, nada. Foi mais uma sentença de prisão do que uma missão. Nem te consigo dizer quantas vezes sonhei em voltar a Berlim e matar Vogel com uma das maravilhosas técnicas que ele e os amigos me ensinaram.
- E como entraste no país?
Ela contou-lhe... contou-lhe o que Vogel a tinha feito fazer.
- Jesus - murmurou Neumann.
- Uma coisa típica da Gestapo, certo? Passei os seis meses seguintes a preparar a minha nova identidade. Depois instalei-me e esperei. Vogel e eu tínhamos uma forma de comunicar por rádio que
não incluía nomes de código. Portanto, os britânicos nunca me procuraram. Vogel sabia que eu estava segura e infiltrada, pronta para ser ativada. Depois, o idiota deu-me uma missão e fez-me cair mesmo nos braços do MI5 - disse ela, rindo-se baixinho. - Meu Deus, não posso acreditar que estou realmente a voltar para lá depois deste tempo todo. Nunca pensei que ia ver a Alemanha outra vez.
- Não pareces lá muito entusiasmada com a perspetiva de voltar para casa.
- Casa? É difícil pensar na Alemanha como a minha casa. É difícil pensar em mim como alemã. Vogel apagou essa parte de mini no maravilhoso retirozinho dele nas montanhas
da Baviera.
- E o que vais fazer?
- Encontrar-me com Vogel, ter a certeza de que o meu pai ainda está vivo e, a seguir, receber o meu pagamento e partir. Vogel pode arranjar-me outra das identidades falsas dele. Sou capaz de passar por cinco nacionalidades diferentes. Foi isso que me fez ir parar a este jogo logo para começar. É tudo um grande jogo, não é? Um grande jogo.
- E para onde estás a pensar ir?
- vou voltar para Espanha - respondeu ela. - vou voltar para o sítio onde começou tudo.
- Fala-me disso - pediu Neumann. - Preciso de pensar noutra coisa além desta estrada no meio de nenhures.
- Fica nas colinas no sopé dos Pirenéus. De manhã, vamos caçar e, à tarde, subimos às montanhas. Há uma maravilhosa ribeira com lagos fundos e frios e ficamos lá toda a tarde, a beber vinho branco gelado e a sentir o cheiro dos eucaliptos. Costumava pensar nisso o tempo todo quando a solidão me invadia. Às vezes, pensava que ia ficar maluca.
- Parece maravilhoso. Se precisares de um moço de estrebaria, diz-me.
Ela olhou para ele e sorriu.
- Tens sido maravilhoso. Se não fosses tu... - exclamou ela, hesitando antes de continuar. - Meu Deus, nem consigo sequer imaginar.
- Não precisas de agradecer. Fico contente por ter podido ajudar. Não quero estragar a festa, mas ainda não estamos livres de perigo.
- Acredita, tenho consciência disso.
Ela acabou o cigarro, abriu uma nesga do vidro da janela e atirou a ponta para o meio da noite. A beata atingiu a estrada e explodiu em faúlhas. Catherine recostou-se e fechou os olhos. Há já demasiado tempo que eram apenas a adrenalina e o medo que a faziam avançar. A exaustão tomou-a de assalto. O balançar suave da carrinha embalou-a, fazendo-a cair num sono leve, meio acordada.
Neumann perguntou:
- Vogel nunca me disse o teu nome verdadeiro. Qual é?
- O meu nome verdadeiro era Anna Katarina von Steiner -
respondeu ela com o sono a infiltrar-se-lhe na voz. - Mas prefiro que me continues a chamar Catherine. É que Kurt Vogel matou Anna antes de a enviar para Inglaterra. Receio bem que Anna já não exista. Anna está morta.
Quando Neumann falou outra vez, a sua voz estava muito longe, no fim de um grande túnel.
- E como é que uma mulher linda e inteligente como a Anna Katarina von Steiner acabou aqui, desta maneira?
- É uma pergunta muito boa - retorquiu ela, com a fadiga a tomar conta de si, adormecendo de seguida.
O sonho é neste momento a única recordação que ela tem disso; há muito que foi expulsa benevolamente dos seus pensamentos conscientes. Vê-o apenas em breves erupções - vislumbres roubados. As vezes, vê-o com os próprios olhos, como se o estivesse a reviver, e, outras
vezes, o sonho obriga-a a vê-lo de novo, como um espectador
numa bancada.
Esta noite está a revivê-lo.
Está deitada à beira do lago; o papá deixa-a ir sozinha. Sabe que ela não se vai aproximar da água - está demasiado fria para nadar- e sabe que ela gosta de estar
sozinha quando pensa na mãe.
É outono. Ela trouxe um cobertor. A erva alta à beira do lago está húmida da chuva da manhã. O vento move-se nas árvores. Um bando de gralhas revolteia
e dispersa-se ruidosamente por cima da cabeça dela. As árvores derramam flamejantes folhas cor de laranja e vermelhas. Ela observa as folhas a descerem suavemente,
como pequenos balões de ar quente, e a pousarem na superfície encrespada
do lago.
E então que, enquanto segue com os olhos a descida das folhas, vê o homem, parado junto às árvores do outro lado do lago.
Ele fica quieto durante muito tempo, a olhar para ela; a seguir, avança na sua direção. Tra botas altas e um casaco que lhe dá pelas coxas. Tem uma caçadeira de carregar pela culatra aninhada no braço direito. O cabelo e a barba são muito compridos, os olhos vermelhos e húmidos. A medida que se aproxima, ela vê que tem algo pendurado no cinto. Percebe que são dois coelhos ensanguentados. Mortos e flácidos, parecem absurdamente compridos e finos.
O papá tem uma palavra para homens como ele: larápios. Chegam às terras das outras pessoas e matam os animais - veados, coelhos efaisões. Ela acha que é uma palavra engraçada, larápios. Parece referir-se a alguém que prepara ovos de manha. Pensa nisso enquanto o homem se aproxima, e isso fá-la sorrir.
O larápio pergunta se pode sentar-se ao lado dela e ela diz que sim.
Ele põe-se de cócoras e pousa a espingarda na relva.
- Estás aqui sozinha?-pergunta.
- Sim. O meu pai diz que não faz mal.
- E onde está o teu pai agora?
- Está em casa.
- E não vem cá?
- Não.
-Quero mostrar-te uma coisa - diz ele. - Uma coisa que te vai fazer sentir ótima.
Os olhos dele já estão muito húmidos. Está a rir-se; tem os dentes pretos e podres. Ela fica com medo pela primeira
vez. Tenta levantar-se mas ele agarra-a pelos
ombros e empurra-a para baixo, deitando-a no cobertor. Ela tenta gritar mas ele abafa o som com a mão grande e peluda. De repente, está em cima dela; ela fica paralisada
debaixo do peso dele. Ele está a levantar-lhe o vestido e a arrancar-lhe a roupa interior.
A dor não se parece com nada que ela já tenha sentido. Parece que está a ser rasgada. Ele prende-lhe os braços atrás da cabeça com a mão e tapa-lhe a boca com a
outra para ninguém a ouvir gritar. Ela sente os corpos ainda quentes dos
coelhos mortos a pressionarem-lhe a perna. A seguir, o rosto do larápio contorce-se como se ele estivesse com dores e tudo aquilo para tão repentinamente como começou.
Ele está outra vez a falar com ela:
- Viste os coelhos? Viste o que eu fiz aos coelhos?
Ela tenta assentir com a cabeça, mas a mão que lhe tapa a boca está afazer tanta força que ela não consegue mexer a cabeça.
- Se alguma vez disseres a alguém o que aconteceu aqui hoje, faço-te o mesmo. E depois faço o mesmo ao teu pai. Dou um tiro aos dois e, a seguir, penduro as vossas
cabeças no meu cinto. Estás a ouvir, rapariga?
Ela começa a chorar.
- És uma rapariga muito má - diz ele. - Oh, sim, dá para ver isso. Acho que até gostaste disto.
A seguir, faz-lhe aquilo outra vez.
Começam os tremores. Nunca tinha sonhado com aquilo desta maneira. Alguém está a chamar o nome dela - Catherine... Catherine... acorda. Porque é que ele me está
a chamar Catherine? O meu nome é Arma...
Horst Neumann sacudiu-a uma vez mais, com violência, e gritou:
- Catherine, raios partam! Acorda! Temos sarilhos!
CINQUENTA E NOVE
LINCOLNSHIRE, INGLATERRA
Eram três da manhã quando o ILysander atravessou as nuvens espessas e aterrou com um forte solavanco numa pequena base da RAF a três quilómetros da cidade de Grimsby.
Alfred Vicary nunca tinha andado de avião e era uma experiência que desejava não repetir tão depressa. O mau tempo sacudiu o avião durante todo o voo, desde que saíram de Londres, e Vicary nunca se tinha sentido tão satisfeito na vida por ver um lugar quando deslizaram na pista em direção ao pequeno barracão de operações.
O piloto desligou o motor enquanto um tripulante abria a porta da cabine. Vicary, Harry Dalton, Clive Roach e Peter Jordan desceram rapidamente. Estavam dois homens à espera deles, um jovem oficial da RAF, de ombros quadrados, e um homem alto e bexigoso, com uma gabardina em mau estado.
O homem da RAF estendeu a mão e tratou das apresentações.
- Chefe de esquadrilha Edmund Hughes. E o superintendente -chefe da polícia do condado de Lincolnshire, Roger Lockwood. Entrem no barracão das operações. É rudimentar, mas seco, e montámos um posto de comando improvisado para os senhores.
Entraram. O oficial da RAF disse:
- Calculo que não seja tão agradável como os vossos aposentos em Londres.
- Até ficaria surpreendido - respondeu Vicary.
Era uma sala pequena, com uma janela com vista para o aeródromo. Havia um mapa de grande escala de lincolnshire pendurado numa parede e uma secretária com dois telefones maltratados do outro lado da sala.
- Serve perfeitamente.
- Temos um rádio e um teleimpressor - anunciou Hughes. -- Até podemos arranjar chá e sanduíches de queijo. Estão com ar de quem podia comer qualquer coisa.
- Obrigado - respondeu Vicary. - Foi um dia longo. Hughes saiu e o superintendente-chefe Lockwood avançou.
- Temos homens em todas as estradas principais até à Wash disse Lockwood, com o dedo grosso a bater no mapa. - Nas aldeias mais pequenas, só há polícias de bicicleta e portanto receio bem que não sejam capazes de fazer muito se os virem. Mas, à medida que se deslocarem para mais perto da costa, vão ter problemas. Barricadas aqui, aqui, aqui e aqui. Os meus melhores homens, carros-patrulha, carrinhas e armas.
- Muito bem. E em relação à costa propriamente dita?
- Temos homens em todas as docas e cais ao longo da costa de Lincolnshire e do Humber. Se tentarem roubar algum barco, vou ser informado.
- E em relação às praias abertas?
- Isso já é outra história. Não tenho meios ilimitados. O exército levou-me muitos dos meus melhores rapazes, tal como a toda a gente. Mas conheço estas águas. Também sou marinheiro amador. E não ia querer sair para o mar esta noite em nenhum barco que saísse de uma praia.
- Este tempo pode ser o nosso melhor amigo.
- É verdade. Outra coisa, major Vicary. Continuamos a ter de fingir que os senhores só andam atrás de um par de criminosos vulgares?
- Por acaso, superintendente-chefe, temos mesmo.
A saída da Al6 para uma pequena estrada secundária estava à frente deles, mesmo à saída da cidade de Louth. Neumann tinha
planeado deixar a Al 6 nessa altura, apanhar a estrada secundária para a costa, mudar para outra estrada secundária e dirigir-se para norte para Cleethorpes. Havia
apenas um problema. Metade da polícia de Louth estava na saída. Neumann conseguia ver pelo menos quatro homens. Quando se aproximou, eles apontaram as lanternas
na sua direção e fizeram-lhe sinal para parar.
Catherine já tinha acordado, sobressaltada.
- O que se passa?
- Fim da linha, receio bem - respondeu Neumann, parando a carrinha. - É evidente que têm estado à nossa espera. Não é com conversas que nos vamos safar.
Catherine pegou na Mauser.
- E quem é que falou em conversas?
Um dos polícias avançou, empunhando uma caçadeira, e bateu ao de leve no vidro da janela de Neumann. Neumann desceu o vidro e disse:
- Boa tarde. Qual é o problema?
- O senhor importa-se de sair da carrinha?
- Por acaso, até me importo. É tarde, estou cansado, está um tempo horrível e quero chegar ao meu destino.
- E pode dizer-me onde isso é?
- Kingston - respondeu Neumann, apesar de conseguir ver que o polícia já estava a duvidar da história. Outro polícia apareceu à janela de Catherine. E outros dois posicionaram-se atrás da carrinha.
O polícia abriu a porta de Neumann de rompante, apontou-lhe a caçadeira à cara e disse:
- Muito bem. Levante as mãos para eu as poder ver e saia da carrinha. Devagarinho.
Jenny Colville estava sentada na parte de trás da carrinha, com as mãos e os pés atados e a boca amordaçada. Doíam-lhe os pulsos. E também o pescoço e as costas. Estava sentada no chão da carrinha há quanto tempo? Duas horas? Três horas? Talvez quatro? Quando a carrinha abrandou, permitiu-se um breve lampejo de esperança.
Pensou: Talvez isto acabe rapidamente e eu possa voltar para Hampton Sands e Mary e Sean e o papá estejam lá e as coisas sejam como eram antes de ele vir e tudo acabe por ser um pesadelo e... deteve-se. Era melhor ser realista. Era melhor pensar naquilo que era realmente possível.
Observou-os no banco da frente. Tinham falado baixinho em alemão durante muito tempo, depois a mulher adormeceu e, naquele momento, Neumann estava a sacudi-la e a tentar acordá-la. Mais adiante, pelo para-brisas, viu luz - feixes de luz balançando para a frente e para trás, como lanternas. Pensou: Os polícias usariam lanternas se estivessem a barricar a estrada. Seria possível? Será que sabiam que eles eram espiões alemães e que ela tinha sido raptada? Estariam à procura dela?
A carrinha parou. Conseguiu ver dois polícias à frente da carrinha e, lá fora, perto da parte de trás, ouviu passos e as vozes de pelo menos mais dois. Ouviu o polícia a bater no vidro. Viu Neumann descer a janela. Viu que ele tinha uma arma na mão. Jenny olhou para a mulher. Também tinha uma arma na mão.
Foi então que se lembrou do que tinha acontecido no celeiro. Duas pessoas atravessaram-se no caminho deles - o pai dela e Sean Dogherty - e tinham-nas matado. Era
possível que também tivessem matado Mary. Não se iriam render só porque alguns polícias da província os mandavam fazê-lo. Também iriam matar os polícias, tal como
tinham matado o pai e Sean.
Jenny ouviu a porta a abrir-se, ouviu o polícia a gritar-lhes para saírem. Sabia o que estava prestes a acontecer. Em vez de saírem, iriam começar a disparar. E
depois os polícias morreriam todos e Jenny ficaria outra vez sozinha com eles.
Tinha de os avisar.
Mas como?
Não podia falar porque Neumann a tinha amordaçado fortemente.
Só podia fazer uma coisa.
Levantou as pernas e pontapeou a parte lateral da carrinha com toda a força possível.
Se a ação de Jenny Colville não teve o efeito pretendido, pelo menos garantiu a um dos polícias - aquele que estava mais perto da porta de Catherine Blake - uma morte mais suave. Quando ele virou a cabeça na direção do som, Catherine levantou a Mauser e deu-Ihe um tiro. O soberbo silenciador da Mauser abafou a explosão da bala, fazendo com que a arma emitisse apenas um estampido grave. A bala estilhaçou o vidro, atingiu o polícia na articulação do maxilar e, a seguir, ricocheteou para a base do crânio. Ele tombou morto na superfície lamacenta da estrada.
O segundo a morrer foi o polícia do lado da porta de Neumann, apesar de não ter sido Neumann a disparar o tiro que o matou. Neumann livrou-se da caçadeira com um golpe da mão direita; Catherine virou-se e disparou pela porta aberta. A bala atingiu o polícia no meio da testa e saiu pela parte de trás do crânio. Ele caiu de costas na estrada.
Neumann caiu da carrinha e aterrou na estrada. Um dos polícias na parte de trás da carrinha disparou por cima da cabeça dele, estilhaçando a janela meio aberta. Neumann apertou o gatilho rapidamente, duas vezes. O primeiro tiro atingiu o polícia no ombro, fazendo-o rodopiar. O segundo atravessou-lhe o coração.
Catherine saiu da carrinha, com a arma nas mãos esticadas para a frente, a apontar para a escuridão. Do outro lado da carrinha, Neumann estava a fazer a mesma coisa, só que continuava deitado de barriga para baixo. Ficaram ambos à espera, sem fazer barulho, à escuta.
O quarto polícia pensou que era melhor fugir e pedir ajuda. Voltou-se e começou a correr pela escuridão. Depois de dar algumas passadas, ficou ao alcance de Neumann. Neumann fez pontaria cuidadosamente e disparou duas vezes. A corrida terminou, a caçadeira bateu com estrépito no alcatrão e o último dos quatro homens caiu morto na estrada molhada da chuva.
Neumann recolheu os corpos e empilhou-os atrás da carrinha. Catherine abriu as portas traseiras. Jenny, com os olhos escancarados
de terror, ergueu as mãos para proteger a cabeça. Catherine levantou a arma bem alto e bateu com ela na cara de Jenny. Um corte profundo abriu-se por cima do olho. Catherine disse:
- A não ser que queiras acabar como eles, não voltes a tentar mais nada desse género.
Neumann pegou em Jenny ao colo e deitou-a na superfície da estrada. Em seguida, com Catherine, colocou os corpos dos polícias mortos no fundo da carrinha. A ideia tinha-lhe surgido instantaneamente. Os polícias tinham vindo de carrinha para aquele sítio; esta encontrava-se estacionada a poucos metros dali, na berma da estrada. Neumann iria esconder os corpos e a carrinha roubada no meio das árvores, onde não pudessem ser vistos, e servir-se da carrinha da polícia para seguir até à costa. Era possível que passassem várias horas até outro polícia aparecer ali e descobrir que os polícias tinham desaparecido. Nessa altura, já ele e Catherine estariam a caminho da Alemanha, a bordo do submarino.
Neumann pegou em Jenny e colocou-a na parte de trás da carrinha da polícia. Catherine subiu para o lugar do condutor e ligou o motor. Neumann dirigiu-se para a outra carrinha e entrou nela. O motor estava a trabalhar. Fez marcha atrás, deu a volta e, a seguir, acelerou pela estrada fora, com Catherine a segui-lo. Tentou não pensar nos quatro cadáveres que se encontravam a poucos centímetros dele.
Dois minutos depois, Neumann virou para um pequeno caminho fora da estrada. Conduziu cerca de duzentos metros, parou e desligou o motor. A seguir, saiu e voltou a correr para a estrada. Catherine tinha invertido a direção da carrinha e estava sentada no lugar do passageiro quando Neumann regressou. Entrou, bateu com a porta e partiu a toda a velocidade.
Passaram o local onde a barricada tinha sido montada e viraram para a pequena estrada secundária. De acordo com o mapa, faltavam cerca de dezasseis quilómetros até à estrada da costa e, a seguir, mais trinta e dois quilómetros até Cleethorpes. Neumann acelerou a fundo e puxou fortemente pela carrinha. Pela primeira vez desde que tinha visto os homens do MI5 em Londres, permitiu-se imaginar que apesar de tudo talvez até conseguissem.
Alfred Vicary andava de um lado para o outro da sala na base da RAF nos arredores de Grimsby. Harry Dalton e Peter Jordan estavam sentados à secretária, a fumar. O superintendente Lockwood encontrava-se sentado ao lado deles, construindo figuras geométricas com os fósforos.
Vicary disse:
- Não estou a gostar disto. Alguém já os devia ter visto. Harry respondeu:
- Todas as estradas principais estão bloqueadas. A dada altura, vão ter de dar de caras com uma barricada.
- Se calhar, talvez não estejam a vir nesta direção. Se calhar, fiz um erro de cálculo terrível. Se calhar, foram de Hampton Sands para sul. Se calhar, a comunicação com o submarino foi um estratagema e estão a caminho da Irlanda numferry.
- Eles estão a vir nesta direção.
- Se calhar, resolveram esconder-se, desistiram. Se calhar, estão enfiados noutra aldeia longínqua, à espera que as coisas acalmem antes de avançarem.
- Eles avisaram o submarino. Têm de ir.
- Não têm de fazer nada. É possível que tenham avistado as barricadas e o aumento do número de polícias e decidido esperar. Podem avisar o submarino na próxima oportunidade e tentar novamente quando as coisas estiverem mais calmas.
- Está a esquecer-se de uma coisa. Eles não têm rádio.
- Nós achamos que não têm. O Harry tirou-lhes um e o Thomasson encontrou um rádio destruído em Hampton Sands. Mas não temos a certeza de que não têm um terceiro.
- Não temos a certeza de nada, Alfred. Fazemos palpites fundamentados.
Vicary andou outra vez de um lado para o outro, a olhar para o telefone e a pensar: Toca, diabos, toca!
Querendo desesperadamente fazer qualquer coisa, levantou o auscultador e pediu à telefonista para ligar para a Sala de Localização de Submarinos, em Londres. Quando apareceu por fim na linha,
Arthur Braithwaite parecia estar dentro de um tubo de lançamento de torpedos.
Vicary perguntou:
- Soube alguma coisa, comandante?
- Falei com a Marinha Real e a guarda costeira local. A Marinha Real está neste preciso momento a deslocar para a área um par de corvetas - números 745 e 128. Vão
estar ao largo de Spurn Head dentro de uma hora e começar as operações de busca logo de seguida. A guarda costeira está a tomar conta das coisas mais perto da costa. E a RAF vai pôr aviões no ar à primeira luz do dia.
- E quando é isso?
- Por volta das sete da manhã. Talvez um pouco depois, por causa da densa cobertura de nuvens.
- Isso pode ser já muito tarde.
- Não lhes vai servir de nada irem antes disso. Precisam de luz para ver. Estariam perfeitamente cegos se fossem agora. Mas há boas notícias. Esperamos uma aberta no tempo pouco antes do amanhecer. O céu vai manter-se encoberto, mas espera-se que a chuva abrande e o vento diminua. Isso vai facilitar a condução das operações de busca.
- Afinal de contas, não tenho a certeza de que sejam assim tão boas notícias. Estávamos a contar com a tempestade para fechar a costa. E o tempo melhor também torna a vida mais fácil aos agentes e ao submarino.
- Bem visto.
- Dei instruções à Marinha Real e à RAF para fazerem a busca o mais discretamente possível. Eu sei que isto soa algo inverosímil, mas tente fazer com que pareça tudo rotina. E diga a todos para terem cuidado com o que dizem pelo rádio. Os alemães também nos ouvem. Lamento não poder ser mais claro, comandante Braithwaite.
- Eu compreendo. vou transmitir essas indicações.
- Obrigado.
- E tente não se enervar, major Vicary. Se esses seus espiões tentarem chegar àquele submarino hoje à noite, vamos detê-los.
Os polícias Gardner e Sullivan pedalavam ao lado um do outro pelas ruas escuras de Louth, Gardner, um homem grande, alto e de meia-idade, e Sullivan um rapaz magro e em boa forma, com pouco mais de vinte anos. O superintendente-chefe Lockwood tinha-lhes ordenado que se dirigissem a uma barricada a sul da aldeia e substituíssem dois dos polícias que lá estavam. Gardner queixou-se enquanto pedalava:
- Porque é que os criminosos de Londres arranjam sempre maneira de acabar aqui, no meio de uma tempestade, és capaz de me explicar?
Sullivan estava entusiasmadíssimo. Esta era a sua primeira grande caça ao homem. E também era a primeira vez que usava uma arma em serviço. Trazia uma espingarda de ferrolho, com trinta anos e saída da sala de armas da esquadra, pendurada ao ombro.
Cinco minutos mais tarde, chegaram à saída onde deveria estar a barricada. O lugar estava deserto. Gardner levantou-se, sem sair da bicicleta. Sullivan deitou a sua no chão, acendeu a lanterna e iluminou a área. Primeiro, viu as marcas dos pneus e, depois, os vidros espalhados.
Sullivan gritou:
- Chega aqui! Depressa!
Gardner desceu da bicicleta e empurrou-a até onde estava Sullivan.
- Jesus Cristo!
- Olha para as marcas. Dois veículos, o deles e o nosso. Quando voltaram para trás, os pneus enlamearam a superfície da estrada. Deixaram-nos umas belas marcas para seguirmos.
- É verdade. Vai ver onde vão dar. Eu volto para a esquadra para alertar Lockwood. E, por amor de Deus, tem cuidado.
Sullivan pedalou pela estrada, segurando a lanterna com uma mão e vendo as marcas a desvanecerem-se gradualmente. Cem metros à frente do local da barricada, o rasto tinha desaparecido. Sullivan avançou mais uns quatrocentos metros à procura de algum sinal da carrinha da polícia.
Andou um pouco mais e foi então que avistou outro conjunto de marcas de pneus. Estas eram diferentes. As marcas tornavam-se mais claras e definidas à medida que pedalava. O veículo que as tinha feito tinha obviamente vindo da direção contrária.
Seguiu as marcas até ao ponto de origem e encontrou o pequeno trilho que ia dar às árvores. Apontou a lanterna para o trilho e viu o par de marcas recentes de pneus. Virou o feixe de luz na horizontal, para o túnel de árvores, mas a luz não era suficientemente potente para penetrar na escuridão. Olhou para o chão - demasiado sulcado e enlameado para manobrar a bicicleta. Desmontou, encostou a bicicleta a uma árvore e começou a andar.
Dois minutos depois, avistou a parte de trás da carrinha. Chamou, mas ninguém respondeu. Olhou com mais atenção. Não era o veículo da polícia; tinha matrícula de
Londres e era um modelo diferente. Sullivan avançou lentamente. Aproximou-se da parte da frente da carrinha pelo lado do passageiro e apontou a lanterna lá para dentro. O banco da frente estava vazio. Apontou o feixe de luz para a parte de trás, na direção da área de armazenamento.
Foi então que viu os corpos.
Sullivan deixou a carrinha no meio das árvores e voltou para Louth, pedalando o mais depressa possível. Chegou à esquadra da polícia e contactou rapidamente o superintendente-chefe
Lockwood na base da RAF.
- Estão os quatro mortos - disse ele, sem fôlego devido à corrida. - Estão estendidos na parte de trás de uma carrinha, mas não é a deles. Parece que os fugitivos levaram a carrinha da polícia. A julgar pelas marcas na estrada, acho que voltaram para trás, no sentido de Louth.
Lockwood perguntou:
- E onde estão os corpos agora?
- Deixei-os no bosque, senhor.
- Volta para lá e fica à espera até que chegue ajuda.
- Sim, senhor. Lockwood desligou o telefone.
- Quatro homens mortos. Meu Deus!
- Lamento, superintendente-chefe. Lá se vão as minhas teorias de eles se terem escondido. Andam obviamente por aqui e são capazes de fazer tudo para escapar, incluindo
assassinar quatro dos seus homens a sangue-frio.
- E temos outro problema... vão num veículo da polícia. Avisar os agentes que dirigem as barricadas vai levar tempo. E, entretanto, os seus espiões estão a aproximar-se
perigosamente da costa - afirmou Lockwood, dirigindo-se para o mapa. - Louth fica aqui, mesmo a sul de nós. Agora, eles podem apanhar uma série de estradas secundárias para o mar.
- Reposicione os seus homens. Coloque-os todos entre Louth e a costa.
- com certeza, mas vai demorar tempo. E os seus espiões já nos levam avanço.
- Outra coisa - atirou Vicary. - Tragam esses mortos para aqui o mais discretamente possível. Quando isto tudo acabar, pode ser necessário engendrar outra explicação para a morte deles.
- E o que digo às famílias deles? - vociferou Lockwood, saindo da sala.
Vicary pegou no telefone. A telefonista fez a ligação para o quartel-general do MI5 em Londres. Uma telefonista do departamento atendeu. Vicary pediu para falar com Boothby e esperou que ele surgisse na linha.
-Sir Basil, receio bem que tenhamos grandes problemas por aqui.
Um vento rigoroso fazia a chuva fustigar a zona do porto de Cleethorpes quando Neumann abrandou e virou para uma fila de armazéns e garagens. Parou a carrinha e desligou o motor. Não faltava muito para o amanhecer. Mesmo à luz fraca, conseguia ver um pequeno cais, com vários barcos de pesca atracados e mais barcos a balouçarem, presos com as suas amarras na água negra. Tinham feito um tempo excelente até à costa. Por duas vezes, tinham encontrado barricadas e, por duas vezes, tinham-nos deixado passar sem perguntas graças à carrinha em que seguiam.
Supostamente, o apartamento de Jack Kincaid ficava por cima de uma garagem. Tinha uma escada exterior de madeira, com uma porta no cimo. Neumann saiu da carrinha e subiu as escadas, puxando instintivamente da Mauser ao aproximar-se da porta. Bateu suavemente, mas ninguém respondeu. Experimentou o trinco; a porta estava destrancada. Abriu-a e entrou.
Foi imediatamente assaltado pelo fedor do lugar: lixo em decomposição, cigarros velhos, corpos sujos, um cheiro opressivo a álcool. Experimentou o interruptor, mas não aconteceu nada. Tirou a lanterna do bolso e acendeu-a. O feixe apanhou a figura de um homem grande a dormir num colchão sem lençóis. Neumann avançou cautelosamente pelo quarto imundo e deu um pequeno toque no homem com a biqueira da bota.
- É o Jack Kincaid?
- Sou. E quem é você?
- Chamo-me James Porter. Ficou de me dar boleia no seu barco.
- Oh, sim, sim.
Kincaid tentou sentar-se no colchão, mas não conseguiu. Neumann apontou-lhe a luz à cara. Tinha pelo menos sessenta anos e a sua cara angulosa mostrava os sinais de um alcoolismo desregrado.
- Bebeu um pouco ontem à noite, Jack? - perguntou Neumann.
- Um pouco.
- Qual é o seu barco, Jack?
- O Camilla.
- E onde está ele exatamente?
- Lá em baixo, no cais. É impossível não dar por ele. Kincaid estava a perder os sentidos outra vez.
- Não se importa que eu o leve emprestado por um bocadinho, pois não, Jack?
Kincaid não respondeu, limitou-se a começar a ressonar profundamente.
- Muito obrigado, Jack.
Neumann saiu do apartamento e voltou a entrar na carrinha.
- O nosso capitão não está em condições de nos levar. Está bêbado que nem um cacho.
- E o barco?
- É o Camilla. Ele diz que está mesmo ali em baixo, no cais.
- E está lá mais qualquer coisa.
- O quê?
- Já vais ver daqui a um instante. Neumann viu surgir um polícia.
- Eles devem estar a vigiar a costa toda - disse Neumann.
- É uma pena. Outra baixa desnecessária.
- Vamos lá a despachar isso. Matei mais gente esta noite do que em todo o tempo que estive nos Fallschirmjàger.
- Porque achas que Vogel te mandou para aqui? Neumann não respondeu.
- Então e a Jenny?
- Ela vem connosco.
- Quero deixá-la aqui. Ela já não nos serve de nada.
- Não me parece. Se a encontrarem, pode dizer-lhes muita coisa. Além disso, se eles sabem que temos um refém a bordo, vão pensar duas vezes sobre as medidas a tomar para nos deter.
- Se estás a sugerir que vão hesitar em disparar sobre nós por termos uma civil britânica a bordo, estás enganada. Estão demasiadas coisas em jogo para isso. Matam-nos a todos, se for necessário.
- Então que seja. Mas ela vem connosco. Quando chegarmos ao submarino, deixamo-la ficar no barco. Os britânicos vão salvá-la e não lhe vai acontecer mal nenhum.
Neumann percebeu que continuar a discutir com ela seria uma perda de tempo. Catherine voltou-se para trás e, em inglês, disse a Jenny:
- Acabaram-se os heroísmos. Se te mexeres, dou-te um tiro na cara.
Neumann abanou a cabeça. Ligou o motor, pôs a carrinha em primeira e seguiu para o cais.
O polícia que se encontrava no cais ouviu o som de um motor parou e olhou para cima. Avistou a carrinha da polícia a dirigir-se para ele. Estranho, pensou, pois só estava previsto ser substituído às oito horas. Viu a carrinha parar e duas pessoas saírem. Esforçou-se por perceber quem eram no meio da escuridão, mas passados alguns segundos deu-se conta de que não eram polícias. Eram um homem e uma mulher, muito provavelmente os fugitivos!
Foi então que teve uma sensação de desânimo. Estava armado apenas com um revólver anterior à guerra e que encravava frequentemente. A mulher vinha na sua direção. O braço dela ergueu-se e houve um clarão, mas praticamente nenhum som, apenas um baque abafado. Sentiu a bala rasgar-lhe o peito e teve consciência da perda de equilíbrio.
A última coisa que viu foi a água suja do Humber a avançar subitamente na sua direção.
lan McMann era um pescador que acreditava que o sangue celta que lhe corria nas veias lhe dava poderes que os meros mortais não possuíam. Ao longo dos sessenta anos passados junto ao mar do Norte, afirmou ter ouvido pedidos de socorro antes de serem enviados. Afirmava ver os fantasmas de homens desaparecidos no mar a pairar por cima dos desembarcadouros e dos portos. Afirmava saber que alguns navios estavam amaldiçoados e que nunca se aproximaria deles. Toda a gente em Cleethorpes aceitava tudo isso como verdadeiro, mas, em privado, sugeria-se que lan McMann tinha passado demasiadas noites no mar.
McMann tinha-se levantado, como habitualmente, às cinco horas, apesar de as péssimas previsões meteorológicas indicarem condições que manteriam todos os barcos fora de água o dia inteiro. Estava a comer papas de aveia ao pequeno-almoço, sentado à mesa da cozinha, quando ouviu um barulho lá fora, no cais.
O bater da chuva tornava difícil distinguir qualquer outro som, mas McMann podia jurar ter ouvido alguém ou qualquer coisa a cair na água. Sabia que havia um polícia lá fora - na noite anterior, tinha-lhe levado chá e uma fatia de bolo antes de se ir deitar - e sabia por que razão lá estava. O polícia estava á procura de dois suspeitos de homicídio de Londres. McMann suspeitava que não fossem suspeitos de homicídio vulgares. Vivia em Cleethorpes há vinte anos
e nunca tinha ouvido falar da polícia local a vigiar a zona
do porto.
A janela da cozinha do chalé de McMann tinha uma vista excelente para o cais e, mais adiante, para a foz do Humber. McMann levantou-se, abriu as cortinas e olhou
lá para fora. Não havia sinal do polícia. McMann enfiou um oleado e um chapéu impermeável, foi buscar a lanterna à mesa ao lado da porta e saiu.
Acendeu a lanterna e começou a andar. Depois de alguns passos, ouviu o barulho do motor a diesel de um barco a pegar. Andou mais depressa, até conseguir ver que
barco era: o Camiíla, o barco de Jack Kincaid.
McMann pensou: Mas ele está maluco, a sair com uma tempestade destas?
Começou a correr e gritou:
- Jack, Jack! Para! Onde pensas que vais?
Foi então que percebeu que o homem que estava a desamarrar o Camiíla do cais e a saltar para o convés de popa não era Jack Kincaid. Alguém estava a roubar o barco.
Olhou em redor, à procura do polícia, mas ele tinha desaparecido. O homem entrou na casa do leme, acelerou e o Camiíla afastou-se do cais.
McMann correu atrás do barco e gritou:
- Volte já aqui!
Nessa altura, uma segunda pessoa saiu da casa do leme. McMann viu o clarão de um disparo, mas não ouviu nada. Sentiu a bala a passar ao lado da cabeça, perigosamente perto. Atirou-se para o chão, escondendo-se atrás de um par de bidões vazios. O cais foi atingido por mais duas balas e depois o tiroteio terminou.
Pôs-se de pé e viu a popa do Camiíla a afastar-se pelo mar.
Foi só então que McMann viu uma coisa a flutuar na água oleosa ao largo do cais.
- Acho que é melhor ser o senhor a ouvir isto, major Vicary. Vicary pegou no auscultador que Lockwood lhe estendeu. lan
McMann estava a telefonar de Cleethorpes. Lockwood disse:
- Comece do princípio, lan.
- Duas pessoas acabaram de roubar o barco de pesca de Jack Kincaid e dirigem-se para alto-mar.
Vicary vociferou:
- Meu Deus! De onde está a ligar?
- De Cleethorpes.
Vicary lançou uma olhadela ao mapa.
- Cleethorpes? Não tínhamos um homem ai?
- Tinham - retorquiu McMann. - Está neste preciso momento a boiar na água com uma bala no coração.
Vicary praguejou em voz baixa e, a seguir, perguntou:
- Quantas pessoas é que lá estavam?
- Que eu visse, pelo menos duas.
- Um homem e uma mulher?
- Demasiado longe e demasiado escuro. Além disso, quando começaram a disparar contra mim, atirei-me para o chão.
- E não viu uma rapariguinha com eles?
- Não.
Vicary tapou o auscultador com a palma da mão.
- Talvez ela ainda esteja naquela carrinha. Ponha um homem lá o mais depressa possível.
Lockwood assentiu com a cabeça. Vicary tirou a mão do auscultador e disse:
- Fale-me do barco que eles roubaram.
- O Camilla é uma embarcação de pesca. O barco está em más condições. Eu não queria estar a bordo do Camilla a ir para o mar alto com uma tempestade destas.
- Só mais uma pergunta. O Camilla tem rádio?
- Não, que eu saiba, não.
Vicary pensou: Graças a Deus! Disse:
- Obrigado pela sua ajuda.
Vicary desligou o telefone. Lockwood estava parado diante do mapa.
- Bem, a boa notícia é que agora sabemos exatamente onde eles estão. Têm de atravessar a foz do Humber antes de atingirem o mar alto. Isso fica apenas a um quilómetro e meio do cais. Não há maneira de conseguirmos impedi-los de fazer isso. Mas se aquelas corvetas da Marinha Real se posicionarem ao largo de Spurn Head, eles nunca vão conseguir passar. Aquele barco de pesca em que vão não está à altura delas.
- Sentia-me melhor se tivéssemos o nosso próprio barco na água.
- Na realidade, isso até se pode arranjar.
- A sério?
- A polícia do condado de Lincolnshire tem um pequeno barco no rio, o Rebecca. Neste momento, está em Grimsby. Não foi concebido para o mar alto, mas pode fazê-lo num aperto. E também é bastante mais rápido do que aquele velho barco de pesca. Se nos pusermos a caminho imediatamente, devemos poder apanhá-los em pouco tempo.
- E o Rebecca tem rádio?
- Sim. Vamos poder falar convosco para aqui.
- Então e armas?
- Posso ir buscar umas espingardas velhas à prisão da esquadra da polícia de Grimsby. Vão dar conta do recado.
- Agora, só precisamos de uma tripulação. Leve os meus homens. Eu fico aqui para poder continuar em contacto com Londres. A última coisa de que precisa é que eu vá a bordo de um barco com um tempo destes.
Lockwood conseguiu esboçar um sorriso, deu uma palmadinha nas costas de Vicary e saiu. Clive Roach, Harry Dalton e Peter Jordan seguiram-no. Vicary pegou no telefone para dar as notícias a Boothby, em Londres.
Neumann não se afastou dos marcadores do canal, com o Camilla a avançar pelas águas agitadas da foz do Humber. O barco tinha cerca de doze metros, era largo e precisava urgentemente de uma pintura. Havia uma pequena cabine à ré, onde Neumann tinha deixado
Jenny. Catherine estava ao lado dele, na casa do leme. O céu estava a começar a clarear ligeiramente a leste. A chuva rufava na vidraça. A bombordo, via as ondas a rebentarem em Spurn Head. O farol estava apagado. Havia uma bússola no painel de instrumentos, ao lado do leme. Neumann colocou o barco numa rota para leste, acelerou a fundo e dirigiu-se para o mar alto.
SESSENTA
MAR DO NORTE, AO LARGO DE SPURN HEAD
O U-509 flutuava logo abaixo da superfície. Eram 5h30. O Kapitànleutnant Max Hoffman estava na sala de comando a espreitar pelo periscópio e a beber café. Os olhos
doíam-lhe por ter passado a noite inteira a olhar fixamente para o negrume do mar. A cabeça
latejava-lhe. Precisava desesperadamente de dormir umas horas.
O seu imediato surgiu na ponte de comando.
- Só nos restam mais trinta minutos, Herr Kaleu.
- Tenho noção do tempo de que dispomos, senhor imediato.
- Não voltámos a receber comunicações dos agentes da Abwehr, Herr Kaleu. Penso que temos de considerar a possibilidade de terem sido capturados ou mortos.
- Já considerei essa possibilidade, senhor imediato.
- Daqui a nada vai amanhecer, Herr Kaleu.
- Sim. É um fenómeno que ocorre todos os dias por volta desta hora. Até no Reino Unido, senhor imediato.
- O que eu quero dizer é que não é seguro ficarmos tão perto da costa inglesa por muito mais tempo. A profundidade nesta zona não é suficiente para nos podermos escapar às wabos britânicas - explicou o imediato, utilizando a gíria comum entre os tripulantes de submarino alemães para se referirem às cargas de profundidade.
- Tenho perfeita consciência dos perigos que a situação envolve, senhor imediato. Mas vamos continuar no ponto de encontro até
não nos restar mais tempo. E depois disso, se eu achar que ainda é seguro, vamos continuar um bocadinho mais.
- Mas, Herr Kaleu...
- Eles enviaram-nos um sinal de rádio fidedigno a avisar-nos de que vinham a caminho. Temos de partir do princípio de que vêm num barco roubado, provavelmente com pouquíssimas condições de navegabilidade, e também temos de partir do princípio de que estão exaustos ou até feridos. Vamos ficar aqui até eles chegarem ou eu estar completamente convencido de que já não vêm. Entendido?
- Sim, Herr Kaleu.
O imediato foi-se embora. Hoffman pensou: Mas que chato do caraças.
O Kebecca tinha cerca de dez metros de comprimento, com um calado raso, um motor interior e uma casa do leme no meio, onde mal cabiam dois homens lado a lado. Lockwood tinha telefonado de antemão e o motor do Rebecca já estava a trabalhar quando eles lá chegaram.
Os quatro homens subiram a bordo: Lockwood, Harry, Jordan e Roach. Um dos rapazes que trabalhava na doca soltou a última amarra e Lockwood conduziu o barco em direção ao canal.
Acelerou a fundo. O ruído do motor aumentou; a proa esguia ergueu-se para fora da água e depois avançou a toda a velocidade pela ondulação provocada pelo vento. A noite clareava no céu a leste. A silhueta do farol era visível a bombordo. O mar à frente deles esta-
va deserto.
Harry baixou-se, levantou o auscultador do rádio e entrou em contacto com Vicary para o pôr ao corrente da situação.
Oito quilómetros para leste do Kebecca, a corveta número 745 navegava num ziguezague entediante por mares revoltos. O capitão e o imediato encontravam-se na ponte de comando, de binóculos encostados aos olhos, a tentarem ver alguma coisa através de uma cortina de chuva. Era escusado. Além da escuridão e da chuva, instalara-se
um nevoeiro que reduzia ainda mais a visibilidade. Face a condições dessas, podiam passar a cem metros de um submarino alemão sem o verem sequer. O capitão dirigiu-se para a mesa das cartas de navegação, onde o navegador estava a preparar a mudança de trajetória seguinte. Quando o capitão deu a ordem, a corveta virou 90 graus para estibordo e embrenhou-se ainda mais no mar. A seguir, ordenou ao operador de rádio que informasse a Sala de Localização de Submarinos do seu novo rumo.
Em Londres, Arthur Braithwaite estava junto da mesa com o mapa, apoiando-se pronunciadamente na bengala. Tinha-se certificado de que todas as atualizações da Marinha Real e da RAF passariam pela sua secretária assim que fossem recebidas. Sabia que as probabilidades de encontrar um submarino naquelas condições meteorológicas e de luminosidade eram remotas, mesmo que o submarino se encontrasse à superfície. Se o submarino estivesse à espreita logo abaixo da superfície, seria quase impossível.
O seu assessor entregou-lhe uma cópia de uma comunicação via rádio. A corveta número 745 tinha acabado de mudar de trajetória e seguia naquele momento em direção a leste. Uma segunda corveta, a número 128, estava a pouco mais de três quilómetros de distância e a avançar para sul. Braithwaite debruçou-se sobre a mesa, fechou os olhos e tentou imaginar a busca na cabeça. Pensou: Maldito sejas, Max Hoffman! Onde raio estás?
O Camilla, embora Horst Neumann não se tivesse apercebido disso, estava precisamente onze quilómetros a leste de Spurn Head. As condições meteorológicas pareciam estar a piorar a cada minuto. A chuva caía, criando uma cortina opaca, e martelava a vidraça da casa do leme, dificultando a visão. O vento e a corrente, ambos a fustigarem o barco a partir do norte, não paravam de os desviar ligeiramente do rumo. com a ajuda da bússola do painel de instrumentos, Neumann esforçava-se por mante-los na sua rota em direção a leste.
O maior problema era o mar. A meia hora anterior tinha sido uma repetição implacável do mesmo ciclo agoniante. O barco escalava uma onda, ficava a balançar-se no cimo dela por um instante e depois caía
a pique na depressão entre as ondas. Lá em baixo, o barco parecia sempre estar prestes a ser engolido por um desfiladeiro verde-acinzentado de água. O convés era constantemente varrido pelas ondas. Neumann já não conseguia sentir os pés. Baixou os olhos pela primeira vez e reparou que estava rodeado por vários centímetros de água gelada.
Ainda assim, milagrosamente, achava que até iriam conseguir. O barco parecia estar a absorver toda a violência que o mar lhe conseguia infligir. Eram 5h30 - ainda lhes restavam trinta minutos até o submarino dar meia-volta. Tinha sido capaz de manter o barco numa trajetória constante e estava convicto de que se estavam a aproximar do ponto certo. E não havia sinal do inimigo.
Só havia um problema: não tinham rádio. Tinham ficado sem o de Catherine, em Londres, e tinham ficado sem o segundo graças ao tiro de caçadeira de Martin Colville,
em Hampton Sands. Neumann tinha esperança de que o barco tivesse um rádio, mas não tinha. O que os impossibilitava de comunicar com o submarino.
Neumann tinha apenas uma opção: ligar as luzes de navegação do barco.
Era um risco, mas necessário. A única maneira de o submarino perceber que eles se encontravam no ponto de encontro era se os conseguisse ver. E a única maneira de o Camilla poder ser visto naquelas condições meteorológicas era se tivesse as luzes ligadas. Mas se o submarino os conseguisse ver, o mesmo seria válido para qualquer navio de guerra ou da guarda costeira britânica que se encontrasse nas proximidades.
Neumann calculou que estivessem a poucos quilómetros do ponto de encontro. Continuou a acelerar a fundo durante mais cinco minutos e, a seguir, baixou-se e carregou num interruptor, e o Camilla encheu-se de luz.
Jenny Colville debruçou-se sobre o balde e vomitou lá para dentro pela terceira vez. Perguntou-se como poderia haver ainda qualquer coisa para lhe sair do estômago. Tentou lembrar-se da última vez que tinha comido. Não jantara na noite anterior por estar zangada
com o pai e também não tinha almoçado nada. Talvez qualquer coisa ao pequeno-almoço, mas isso não tinha sido mais do que uma bolacha e chá.
O estômago entrou novamente em convulsões, mas desta vez não saiu de lá nada. Tinha vivido a vida inteira junto ao mar, mas só andara de barco uma vez - passando o dia a passear pela Wash, com o pai de uma amiga da escola - e nunca sentira nada assim.
Estava completamente paralisada de tão enjoada. Queria morrer, precisava desesperadamente de ar fresco. Não podia fazer nada perante o balançar constante do barco. Tinha os braços e as pernas cheios de nódoas negras por causa das sucessivas pancadas. E depois havia o barulho - o ribombar e o estrépito ensurdecedores e constantes do motor do barco.
Dava a sensação de estar mesmo por baixo dela.
Tudo o que mais queria era sair do barco e regressar a terra. Disse a si própria sem parar que, se sobrevivesse àquela noite, não voltaria a entrar num barco, nunca mais. E foi então que pensou: O que é que vai acontecer quando eles chegarem ao sítio para onde vão? O que vão fazer comigo? com certeza que não vão neste barco até à Alemanha, ou será que vão? O mais provável era irem ter com outro barco. E depois o que é que acontece? Será que a iriam levar de novo com eles ou deixá-la sozinha no barco? Se a deixassem sozinha, era possível que nunca a encontrassem. Poderia morrer sozinha, algures no mar do Norte, numa tempestade igual àquela.
O barco deslizou por mais uma enorme onda abaixo. Na cabine, Jenny foi atirada para a frente, batendo com a cabeça.
O porão tinha duas vigias de cada lado. com as mãos amarradas, desembaciou a vigia de estibordo e espreitou lá para fora. O mar era aterrador, montanhas verdes e ondulantes de água.
Mas havia ali mais qualquer coisa. O mar agitou-se e uma coisa
escura e brilhante irrompeu da superfície. A seguir, o mar entrou
num turbilhão e uma gigantesca coisa cinzenta, como um monstro
marinho num conto infantil, subiu à superfície com a água a escorrer-lhe da pele.
O Kapitánleutnant Max Hoffman, farto de aguentar o submarino a quinze quilómetros de distância da costa, tinha resolvido arriscar e aproximar-se mais dois ou três quilómetros. Estava à espera a treze quilómetros da costa, a espreitar para a escuridão, quando avistou de repente as luzes de navegação de um pequeno barco de pesca. com um grito, Hoffman ordenou que o submarino subisse à superfície e, passados dois minutos, já estava na ponte de comando, a sentir a forte chuvada e a respirar o ar frio e limpo, com os binóculos colados aos olhos.
De início, Neumann pensou que pudesse ser uma alucinação. O vislumbre tinha sido breve - apenas um instante, antes de o barco mergulhar em mais uma depressão entre as ondas e tudo se obliterar uma vez mais.
A proa enterrou-se no mar profundamente, como uma pá na terra, e, durante alguns segundos, toda a coberta ficou submersa na água. Mas, de alguma forma, o barco conseguiu sair dessa depressão e escalar o pico seguinte. No topo da onda seguinte, uma forte chuvada, varrida pelo vento, impedia a visão por completo.
O barco caiu e depois voltou a erguer-se. Foi então que, com o Camilla no cimo de uma montanha de água, Horst Neumann avistou a silhueta inconfundível de um submarino alemão.
Peter Jordan, no convés de popa do Rebecca, foi o primeiro a ver o submarino. Lockwood viu-o passados uns segundos e, a seguir, avistou as luzes de navegação do Camilla a cerca de quatrocentos metros do estibordo do submarino e a aproximar-se rapidamente. Lockwood fez o Rebecca guinar para bombordo, colocando-o em rota de colisão com o Camilla, e pegou no auscultador para contactar Alfred Vicary.
Vicary levantou o auscultador da linha aberta para a Sala de Localização de Submarinos.
- Comandante Braithwaite, está a ouvir-me?
- Sim, estou. E também ouvi a conversa toda que acabou de ter.
- E então?
- Acho que temos um problema grave. A corveta 745 está um quilómetro e meio para sul da posição do submarino. Já contactei o capitão via rádio e ele está a dirigir-se
para lá neste momento. Mas se o Camilla estiver realmente apenas a quatrocentos metros do submarino, vai lá chegar primeiro.
- Maldição!
- Mas ainda tem outro trunfo, senhor Vicary, o Kebecca. Sugiro que o utilize. Os seus homens têm de fazer qualquer coisa para atrasar aquele barco e dar à corveta possibilidade de intervir.
Vicary pousou o auscultador e levantou o do rádio.
- Superintendente Lockwood, daqui Grimsby, escuto.
- Lockwood, escuto.
- Superintendente, ouça com atenção. Vem aí ajuda, mas, enquanto ela não chega, quero que abalroe esse barco de pesca.
Todos eles ouviram - Lockwood, Harry, Roach e Jordan -, pois estavam os quatro apinhados na cabine, abrigando-se do mau tempo.
Lockwood, gritando por cima do barulho do vento e do ribombar dos motores do Rebecca, perguntou:
- Mas ele estará louco?
- Não - respondeu Harry -, apenas desesperado. Consegue lá chegar a tempo?
- Claro, mas vamos ficar de caras para os canhões da coberta daquele submarino.
Olharam todos uns para os outros, sem dizerem nada. Por fim, Lockwood afirmou:
- Estão coletes salva-vidas nesse cacifo aí atrás. E tragam as espingardas. Tenho um pressentimento que podemos precisar delas.
Lockwood olhou novamente para o mar e deu com o Camilla. Fez uma ligeira correção na trajetória e acelerou a fundo.
Na ponte de comando do U-509, Max Hoffman avistou o Rebecca a aproximar-se rapidamente.
- Temos companhia, senhor imediato. Um barco civil, com três ou quatro homens a bordo.
- Estou a vê-los, Herr Kaleu.
- Tendo em conta a velocidade e a trajetória, diria que se trata do inimigo.
- Parecem estar desarmados, Herr Kaleu.
- Sim. Disparem um tiro de aviso com a artilharia da coberta da proa. Disparem para a frente da proa. Não quero que se derrame sangue desnecessariamente. Se eles não desistirem, disparem diretamente para o barco. Mas para a linha de água, senhor imediato, não para a cabine.
- Sim, Herr Kaleu - ripostou o imediato.
Hoffman ouviu ordens a serem gritadas e, passados trinta segundos, o primeiro tiro do canhão Bootskanone na dianteira da coberta do U-509 estava a fazer um arco por cima da proa do Rebecca.
Apesar de os submarinos alemães raramente se envolverem em combates de artilharia à superfície, o projétil de 10,5 centímetros do canhão da coberta era capaz de infligir danos letais, mesmo em barcos grandes. O primeiro tiro passou bem longe da proa do Rebecca. O segundo, disparado dez segundos depois, ficou bem mais perto.
Lockwood virou-se para Harry e gritou:
- Cá para mim, é o último aviso a que temos direito. O próximo tiro vai rebentar connosco. A decisão é sua, mas não vamos poder ajudar ninguém se estivermos mortos.
Harry gritou:
- Dê meia-volta!
Lockwood guinou o Kebecca para bombordo e deu meia-volta. Harry olhou para trás, na direção do submarino. O Camilla estava a duzentos metros e a aproximar-se cada vez mais, e não havia absolutamente nada que eles pudessem fazer. Pensou: Maldição! Onde está essa corveta?
A seguir, levantou o auscultador e informou Vicary de que não podiam fazer nada para os deter.
Jenny ouviu o estrondo do canhão do submarino a disparar e viu o projétil avançar em grande velocidade pela linha de água, em direção a um segundo barco. Pensou:
Graças a Deus! Afinal de contas, não estou sozinha. Mas o submarino voltou a disparar e, uns segundos mais tarde, ela viu o pequeno barco dar meia-volta e perdeu
o ânimo.
A seguir, fez-se forte e pensou: Eles são agentes alemães. Mataram o meu pai e mais seis pessoas esta noite e estão prestes a escapar impunes. Tenho de fazer alguma coisa para os impedir.
Mas que podia ela fazer? Estava sozinha e tinha as mãos e os pés amarrados. Pensou em tentar libertar-se, subir sorrateiramente para o convés e bater-lhes com qualquer coisa. Mas, se a vissem, não hesitariam em matá-la. Talvez pudesse pegar fogo a qualquer coisa, mas depois ficaria encurralada com o fumo e as chamas e seria a única
a morrer...
Pensa, Jenny! Pensa!
Era difícil pensar com o ribombar constante do motor do barco. Estava a deixá-la louca.
E foi então que pensou: Sim, é isso!
Se pudesse de algum modo inutilizar o motor - nem que fosse só por um momento - talvez isso pudesse ajudar. Se estava um barco a persegui-los, era possível que estivessem mais - se calhar, barcos maiores, que poderiam ripostar contra o submarino alemão.
Pelo som, o motor parecia estar mesmo por baixo dela, já que o barulho era tanto. Levantou-se a muito custo e afastou o emaranhado de cordas e lonas em cima do qual tinha estado sentada. E ali estava - uma porta embutida no chão do porão. Conseguiu abri-la e foi dominada de imediato pelo barulho atroador e pelo calor do motor do Camilla.
Olhou para ele. Jenny não percebia nada de motores. Uma vez, Sean tinha tentado explicar-lhe as reparações que estava a fazer na carripana velha que era a sua carrinha. Havia sempre um problema
qualquer com o raio da coisa, mas qual era mesmo? Qualquer coisa a ver com os tubos e a bomba de combustível. De certeza que aquele motor era diferente do motor da carrinha de Sean. Era um motor a diesel, logo para começar; a carrinha de Sean funcionava a gasolina. Mas ela sabia uma coisa: independentemente do tipo de motor, precisava de combustível para trabalhar. Se o abastecimento de combustível fosse cortado, o motor deixaria de funcionar.
Mas como? Olhou com atenção para o motor. Vários tubos metálicos pretos saíam da parte de cima e convergiam num único ponto, na parte lateral do motor. Será que eram os tubos de combustível? E seria o ponto onde se ligavam à bomba de combustível?
Olhou em redor. Precisava de ferramentas. Os marinheiros andavam sempre com ferramentas. Afinal de contas, o que acontece se o motor for abaixo no meio do mar? Descobriu uma caixa de ferramentas metálica na outra ponta da cabine e rastejou até lá. Espreitou pela vigia. O submarino enchia-lhe o seu campo de visão. Já estavam muito perto. Viu o outro barco. Tinha-se afastado. Abriu a caixa e viu que estava repleta de ferramentas imundas e cheias de óleo.
Tirou duas, um alicate laminado e um grande martelo.
Agarrou o alicate com as mãos, virou a ponta para os pulsos e começou a cortar a corda. Demorou cerca de um minuto a soltar as mãos. A seguir, serviu-se do alicate para cortar a corda à volta dos tornozelos.
Rastejou outra vez para junto do motor.
Pousou o alicate no chão e escondeu-o por baixo de uma corda toda emaranhada. Depois baixou-se, pegou no martelo e destruiu o primeiro tubo de combustível. Rompeu-se, ficando a deitar diesel. Rapidamente, bateu com o martelo mais uma série de vezes, até o último tubo de combustível ter sido rebentado.
O motor deixou de funcionar.
Sem o barulho, Jenny pôde finalmente ouvir o bramido do mar e do vento. Fechou a porta que dava para o motor mutilado e sentou-se. Tinha o martelo ao lado da mão direita.
Sabia que Neumann ou a mulher desceriam dentro de poucos segundos para investigar. E, quando o fizessem, perceberiam que Jenny tinha sabotado o motor.
A porta abriu-se de rompante e Neumann desceu a escada de escotilha a toda a velocidade. Tinha o rosto contorcido, como naquela manhã em que Jenny o vira a correr na praia. Olhou para ela e reparou que já não tinha as mãos e os pés amarrados. Baixou os olhos
e reparou que o material que ali se encontrava tinha sido afastado
para um canto.
Gritou:
- Jenny, o que fizeste?
O barco, sem motor a funcionar, deslizava, desamparado, por uma onda.
Neumann debruçou-se e abriu a escotilha.
Jenny agarrou no martelo e pôs-se de joelhos. Ergueu o martelo bem alto e acertou-lhe na nuca com o máximo de força possível. Neumann caiu no chão, com o sangue
a correr do crânio rachado.
Jenny virou a cara e vomitou.
O Kapitánleutnant Max Hoffman viu o Camilla a começar a balançar, desamparado, no mar agitado e apercebeu-se de imediato de que o barco tinha ficado sem motor. Sabia que tinha de agir depressa. Sem propulsão, o barco afundaria. Talvez até se virasse ao contrário. E se os agentes fossem atirados para dentro do gelado mar do Norte, morreriam numa questão de minutos.
- Senhor imediato! Leve-nos até ao barco e tenha um grupo preparado para subir a bordo.
- Sim, Herr Kaleu!
Hoffman sentiu a vibração das hélices do motor a diesel a girarem sob os seus pés à medida que o submarino avançava lentamente.
Jenny receou tê-lo matado. Ele ficou completamente imóvel durante um momento; a seguir, começou a mexer-se e, de alguma forma, conseguiu levantar-se. Quase não se aguentava em pé. Ela poderia facilmente ter-lhe acertado com o martelo novamente, mas não conseguiu arranjar coragem nem vontade para o fazer. Estava indefeso,
agarrado à parede da cabine. O sangue jorrava-lhe da ferida para a cara, pelo pescoço abaixo. Ergueu a mão e limpou o sangue dos olhos.
- Não saias daqui. Se subires para o convés, ela mata-te. Faz o que te digo, Jenny.
Neumann subiu a escada de escotilha com grande dificuldade. Catherine olhou para ele, com a inquietação estampada no rosto.
- Caí e bati com a cabeça quando o barco se inclinou. O motor deixou de funcionar.
Tinha a lanterna ao lado do leme. Pegou nela e avançou pelo convés. Apontou a lanterna para a torre de comando do submarino e lançou um pedido de socorro. O submarino estava a aproximar-se deles com uma lentidão agonizante. Virou-se para trás e fez sinal a Catherine para se juntar a ele na coberta da proa. A chuva limpou-Ihe o sangue da cara. Olhou para cima, sentindo-a a fustigá-lo, e agitou os braços na direção do submarino.
Catherine foi ter com ele. Mal conseguia acreditar. Na tarde anterior, estavam sentados num café em Mayfair, rodeados por agentes do MI5, e agora, milagrosamente, estavam prestes a subir a bordo de um submarino e partir dali para fora. Seis longos e dolorosamente solitários anos - por fim, terminados. Nunca tinha acreditado que esse dia chegasse. Nunca se tinha atrevido realmente a imaginá-lo. A emoção daquele momento apoderou-se dela. Soltou um grito de alegria infantil e, tal como Neumann, voltou a cara para a chuva, agitando os braços na direção do submarino.
A parte da frente de metal do submarino encostou na proa do Camilla. Um grupo avançou apressadamente pelo convés do submarino na direção deles. Catherine abraçou Neumann e apertou-o com muita força.
- Conseguimos - disse ela. - Chegámos a tempo. Vamos para
casa.
Na casa do leme do Rebecca, Harry Dalton descreveu a situação a Vicary, em Grimsby. Vicary, por sua vez, descreveu-a a Arthur Braithwaite, na sala de localização
de submarinos.
- Raios partam, comandante! Onde é que está essa corveta?
- Está mesmo colada a eles. Só que não consegue ver nada por causa do mau tempo.
- Então diga ao capitão para fazer alguma coisa! Os meus homens não podem fazer nada para os deter.
- E que ordens é que eu devo dar ao capitão?
- Para disparar sobre o barco e matar esses espiões.
- Major Vicary, não nos podemos esquecer de que está uma rapariga inocente a bordo.
- Que Deus me perdoe por dizer isto, mas receio bem que não possamos estar preocupados com ela numa altura destas, comandante Braithwaite. Dê ordens ao capitão dessa corveta para atingir o Camilla com todo o arsenal que tiver.
- Entendido.
Vicary pousou o auscultador e pensou: Meu Deus, tornei-me mesmo um sacana completo.
O vento abriu um buraco momentâneo na cortina de chuva e nevoeiro. Na ponte de comando, o capitão da corveta 745 avistou o U-509 e o Camilla a cento e cinquenta metros da sua proa. Pelos binóculos, viu duas pessoas na coberta do Camilla e uma equipa de salvamento no convés do submarino alemão. De imediato, deu ordem para disparar. Segundos depois, o canhão no convés da corveta abriu fogo.
Neumann ouviu os disparos. Os primeiros tiros passaram por cima. A segunda rajada atingiu o submarino com estrondo. A equipa de salvamento atirou-se para o chão do convés para evitar os tiros, ao mesmo tempo que os disparos se deslocavam do submarino para o Camilla. Não havia nenhum sítio na coberta do barco de pesca que servisse de proteção. Os disparos atingiram Catherine. O seu corpo foi estraçalhado num instante, com a cabeça a explodir num clarão de sangue e miolos.
Neumann desatou a correr, tentando chegar ao submarino. O primeiro tiro que o atingiu arrancou-lhe a perna pelo joelho. Gritou e arrastou-se. Um segundo tiro atingiu-o, cortando-lhe a espinha.
Não sentiu nada. O último tiro atingiu-o na cabeça e a seguir fez-se escuridão.
A observar da torre de comando, Max Hoffman ordenou ao imediato que passasse os motores a diesel para a potência máxima e submergisse o submarino o mais rápido possível. Passados poucos segundos, o U-509 estava a afastar-se a toda a velocidade. Dois minutos mais tarde, mergulhou nas profundezas do mar do Norte e desapareceu.
Sozinho no mar e com o convés inundado de sangue, o Camilla começou a afundar-se.
O estado de espírito a bordo do Rebeaa era de euforia. Os quatro homens abraçaram-se ao observarem o submarino a dar meia-volta e a fugir a todo o vapor. Harry Dalton contactou Vicary e deu-lhe a novidade. Vicary fez dois telefonemas, o primeiro para a sala de localização de submarinos, para agradecer a Arthur Braithwaite, e o segundo para Sir Basil Boothby, para o informar de que tinha finalmente terminado tudo.
Jenny Colville sentiu o Camilla estremecer. Atirou-se para o chão, de barriga para baixo, e protegeu a cabeça com as mãos. Os disparos terminaram tão repentinamente como tinham começado. Foi então que ouviu o barulho do submarino a afastar-se e, por fim, apenas o ruído do mar. Estava demasiado aterrorizada para se mexer. O barco balançava loucamente. Imaginou que isso tivesse alguma coisa a ver com o motor avariado. Sem um motor que o fizesse avançar, o barco estava indefeso perante o ataque do mar. Ela tinha de se levantar, ir lá para fora e avisar os outros barcos de que estava ali, viva.
Obrigou-se a levantar-se, foi imediatamente derrubada pelos solavancos do barco e depois levantou-se outra vez. Subir a escada de escotilha revelou-se quase impossível. Conseguiu chegar por fim ao convés. O vento era tremendo. A chuva fustigava-a de lado. O barco parecia estar a deslocar-se em várias direções ao mesmo tempo: para cima e para baixo, para trás e para a frente, e a balançar de um lado para o outro. Era impossível uma pessoa aguentar-se de pé. Ela
olhou para a proa e viu os corpos. Não tinham levado simplesmente um tiro e morrido. Tinham sido triturados, despedaçados, pelos disparos. O convés estava cor-de-rosa com todo o sangue que escorria. Jenny teve um vómito e desviou o olhar. Viu o submarino a mergulhar ao longe e a desaparecer sob a superfície do mar. Do outro lado do barco, viu um navio de guerra, cinzento, não muito grande, a vir na sua direção. Um segundo barco - o que ela já tinha visto pela vigia - estava a aproximar-se depressa.
Agitou os braços, gritou e começou a chorar. Queria dizer-lhes que tinha sido ela a consegui-lo. Ela é que tinha inutilizado o motor para que o barco parasse e os espiões não conseguissem chegar ao submarino. Estava cheia de um enorme e feroz orgulho.
O Camilla subiu uma onda gigantesca. Quando a onda lhe passou por baixo, o barco inclinou-se todo para bombordo. A seguir, caiu a pique na depressão entre as ondas e, ao mesmo tempo, endireitou-se e inclinou-se todo para estibordo. Jenny não conseguiu segurar-se no cimo da escada de escotilha. Foi atirada pelo convés e caiu ao mar.
O frio não se comparava a nada que já tivesse sentido: um frio horrível, entorpecedor e paralisante. Debateu-se para atingir a superfície e tentou abrir a boca para respirar, mas em vez disso engoliu água do mar. Afundou-se, sufocando, engasgando-se, com a água a encher-lhe o estômago e os pulmões. Esperneou até à superfície e conseguiu respirar um pouco antes de o mar voltar a puxá-la para baixo. Foi então que começou a cair, afundando-se lenta e agradavelmente, sem esforço algum. Já não tinha frio. Não sentia nem via nada. Apenas uma escuridão impenetrável.
O Rebecca foi o primeiro a chegar, com Lockwood e Roach na casa do leme e Harry e Peter Jordan na coberta da proa. Harry atou uma corda à bóia de salvamento, atando a outra ponta a um cunho na proa e atirando a bóia para o mar. Tinham visto Jenny subir uma segunda vez à superfície para respirar e desaparecer sob a superfície. Naquele momento, não havia nada, nem um único sinal dela. Lockwood fez avançar o Rebecca a fundo e a direito; a seguir, a poucos metros do Camilla, fez marcha atrás e parou o barco subitamente.
Jordan inclinou-se sobre a proa, à procura de qualquer sinal da rapariga. A seguir, endireitou-se e, sem aviso, mergulhou. Harry gritou a Lockwood:
- Jordan está dentro de água! Não se aproxime mais!
Jordan veio à superfície e tirou o colete salva-vidas. Harry berrou:
- O que está a fazer?
- Não consigo ir até ao fundo com esta maldita coisa enfiada! Jordan encheu os pulmões de ar e desapareceu durante o que
a Harry pareceu ser um minuto. O mar fustigava o Camilla a bombordo, abanando-o de um lado para o outro e impulsionando-o na direção do Kebecca. Harry olhou por cima do ombro e agitou os braços para Lockwood, na casa do leme.
- Recue um ou dois metros! O Camilla está mesmo em cima de nós!
Por fim, Jordan subiu à superfície novamente, trazendo Jenny consigo. Ela estava inconsciente, com a cabeça caída para o lado. Jordan desatou a corda da bóia e atou-a à volta de Jenny, por baixo dos braços. Levantou o polegar para Harry e este puxou-a até ao Rebecca. Clive Roach ajudou Harry a iça-la para o convés.
Jordan estava a espernear furiosamente, tentando manter-se à tona, com as ondas a passarem-lhe por cima da cara, e parecia exausto do frio. Harry desatou rapidamente a corda que prendia Jenny e atirou-a na direção dele - no preciso instante em que o Camilla se virou por fim, arrastando Peter Jordan para as profundezas do mar.
SESSENTA E UM
BERLIM, ABRIL DE 1944
Kurt Vogel estava à espera na antecâmara luxuosamente mobilada de Walter Schellenberg, observando o esquadrão de jovens assistentes a entrarem e a saírem freneticamente do gabinete. Loiros e de olhos azuis, parecia que tinham acabado de sair de um cartaz de propaganda nazi. Já tinham passado três horas desde que Schellenberg convocara Vogel para uma reunião urgente a propósito daquele infelis assunto no Reino Unido, como se referia habitualmente à operação falhada de Vogel. Vogel não se importava de estar à espera; na verdade, não tinha nada melhor para fazer. Desde que Canaris fora demitido e a Abwehr absorvida pelas SS, os serviços secretos militares alemães pareciam um barco sem leme, precisamente quando Hitler mais necessitava deles. As velhas casas geminadas que se espraiavam por Tirpitz Ufer tinham adquirido o aspeto abatido de uma estância de férias decadente. O moral era tão baixo que muitos oficiais se estavam a oferecer para ir para a Frente Russa.
Vogel tinha outros planos.
Um dos assessores de Schellenberg saiu do gabinete, apontou um dedo acusador a Vogel e, sem dizer uma palavra, fez-lhe sinal para entrar. O gabinete era do tamanho de uma catedral gótica, com sumptuosos quadros a óleo e tapeçarias pendurados nas paredes, bem diferente do comedido Covil da Raposa de Canaris, em Tirpitz Ufer. A luz do Sol entrava obliquamente pelas janelas altas. Vogel olhou lá para fora. Os fogos provocados pelo ataque aéreo matinal
iam-se extinguindo ao longo da Unter den Linden e uma fina camada de fuligem cobria o Tiergarten como neve preta.
Schellenberg sorriu calorosamente, apertou com força a mão esquelética de Vogel e fez-lhe sinal para se sentar. Vogel sabia que Schellenberg tinha metralhadoras na secretária e, por isso, não se mexeu um milímetro e manteve as mãos bem à vista. As portas fecharam-se e ficaram os dois sozinhos no gabinete cavernoso. Vogel sentiu que Schellenberg o estava a consumir com os olhos.
Embora Schellenberg e Himmler andassem há vários anos a maquinar contra Canaris, fora uma sucessão de infelizes acontecimentos que aniquilara por fim a Velha Raposa: a incapacidade de prever a decisão da Argentina de cortar todas as ligações com a Alemanha; a perda de um posto vital de recolha de informações para a Abwehr na zona espanhola de Marrocos; a deserção de vários agentes importantes da Abwehr na Turquia, em Casablanca, Lisboa e Estocolmo. Mas a gota de água foi a desastrosa conclusão da operação de Vogel em Londres. Dois agentes da Abwehr - Horst Neumann e Catherine Blake - foram mortos mesmo à vista do submarino. Não puderam transmitir uma última mensagem, a explicar por que razão tinham decidido fugir de Inglaterra, deixando Vogel sem forma de aferir a autenticidade das informações sobre a Operação Mulberry que Catherine Blake tinha roubado. Hitler explodiu quando soube do acontecido. Despediu de imediato Canaris e colocou a Abwehr e os seus dezasseis mil agentes nas mãos de Schellenberg.
Sem saber bem como, Vogel sobreviveu. Schellenberg e Himmler suspeitavam que a operação tinha sido comprometida por Canaris. Vogel, como Catherine Blake e Horst Neumann, era uma vítima inocente da traição da Velha Raposa.
A teoria de Vogel era outra. Suspeitava que todas as informações roubadas por Catherine tinham sido plantadas pelos serviços secretos britânicos. Suspeitava que ela e Neumann tinham tentado fugir do Reino Unido quando Neumann descobriu que Catherine estava a ser seguida pelo inimigo. Suspeitava que a Operação Mulberry não era um complexo antiaéreo com destino ao Pás de Calais, mas sim um porto artificial a caminho das praias da Normandia. E também suspeitava
que todos os outros agentes enviados para o Reino Unido se encontravam corrompidos - que tinham sido capturados e obrigados a colaborar com os serviços secretos britânicos, provavelmente desde o início da guerra.
No entanto, Vogel não tinha provas que servissem para fundamentar nada daquilo - sendo um bom advogado, não tencionava fazer acusações que não pudesse provar. Além disso, mesmo que tivesse provas, não tinha a certeza de que as teria dado a gente como Schellenberg e Himmler.
Um dos telefones na secretária de Schellenberg tocou. Era uma chamada que ele tinha de atender. Cautelosamente, resmungou e falou em código durante cinco minutos enquanto Vogel esperava. O nevão de fuligem tinha diminuído. As ruínas de Berlim brilhavam sob o sol de abril. Os vidros estilhaçados cintilavam como cristais de gelo.
Continuar na Abwehr e cooperar com o novo regime tinha as suas vantagens. Vogel tinha feito Gertrude, Nicole e Lizbet passarem discretamente da Baviera para a Suíça. Como um bom agente que comanda outros, financiara a operação através de uma complexa artimanha, transferindo fundos de contas secretas da Abwehr na Suíça para a conta de Gertrude, ocultando depois essa transferência com o dinheiro que ele próprio possuía na Alemanha. Transferira para fora do país dinheiro que chegaria para viverem confortavelmente durante alguns anos quando a guerra terminasse. E possuía outra mais-valia, as informações que tinha na cabeça. Tinha a certeza de que os britânicos e os americanos pagariam muito bem, tanto com dinheiro como com proteção.
Schellenberg desligou o telefone e fez uma careta, como se lhe doesse o estômago.
- Muito bem - disse ele. - Vamos ao motivo que me levou a chamá-lo cá, capitão Vogel. Chegaram notícias muito interessantes de Londres.
- Ai sim? - retorquiu Vogel, erguendo a sobrancelha.
- Sim. A nossa fonte no MI5 tem uma informação muito importante.
com um floreado, Schellenberg exibiu uma cópia de uma comunicação via rádio e entregou-a a Vogel. Ao lê-la, Vogel pensou: Notável, a subtileza da manipulação. Quando acabou de ler, estendeu o braço sobre a secretária e devolveu a cópia a Schellenberg.
Schellenberg afirmou:
- O MI5 punir disciplinarmente um homem que é amigo pessoal e confidente de Winston Churchill é algo de extraordinário. E a fonte está acima de qualquer suspeita. Fui eu próprio que o recrutei. Não é um dos lacaios do Canaris. Penso que isso prova que as informações roubadas pela sua agente eram genuínas, capitão Vogel.
- Sim, penso que tem razão, Herr Brigadefúhrer.
- O Fúhrer precisa de ser informado disto imediatamente. Vai reunir-se hoje à noite com o embaixador japonês, em Berchtesgaden, para o pôr ao corrente dos preparativos para a invasão. Tenho a certeza de que vai querer transmitir-lhe isto também.
Vogel assentiu com a cabeça.
- vou apanhar um avião que sai de Templehof daqui a uma hora. Gostava que me acompanhasse e informasse o Fiihrer pessoalmente. Afinal de contas, e antes de mais, a operação era sua. Além disso, o homem simpatiza consigo. O senhor tem um futuro francamente brilhante à sua frente, capitão Vogel.
- Obrigado pela proposta, Herr Brigadefúhrer, mas acho que o senhor é que devia dar a novidade ao Fúhrer.
- Tem a certeza, capitão Vogel?
- Sim, Herr Brigadefúhrer, tenho a certeza absoluta.
SESSENTA E DOIS
OYSTER BAY, LONG ISLAND
Foi o primeiro dia bom de primavera - sol quente e um vento suave que soprava do Sound. O dia anterior fora frio e húmido. Dorothy Lauterbach estava preocupada com
a hipótese de o frio estragar a cerimónia fúnebre e a receção. Certificou-se de que todas as lareiras da casa tinham lenha e deu instruções ao responsável pela comida para terem bastante café quente pronto para quando os convidados chegassem. Mas, a meio da manhã, já o sol expulsara as últimas nuvens e a ilha resplandecia. Dorothy transferiu rapidamente a receção da casa para o relvado com vista para o Sound.
Shepherd Ramsey tinha trazido as coisas de Jordan de Londres: a roupa, os livros, as cartas, os documentos pessoais que os homens dos serviços de segurança não tinham confiscado. No avião de carga que o trouxe de Londres, Ramsey folheou as cartas para se certificar de que não faziam referência à mulher com quem Peter tinha um relacionamento em Londres antes de morrer.
Foi uma cerimónia fúnebre muito concorrida. Não havia corpo para enterrar, mas foi colocada uma pequena lápide ao lado da de Margaret. Todo o staffdo banco de Bratton
compareceu, tal como grande parte dos funcionários da Northeast Bridge Company. As famílias da North Shore também estiveram presentes - os Dutton, os Robinson e
os Tetlinger. Billy manteve-se ao lado de Jane e Jane apoiou-se em Walker Hardegen. Bratton recebeu a bandeira americana das mãos de um representante da marinha.
O vento arrancou flores
das árvores e lançou-as para cima da multidão como se fossem papelinhos de Carnaval.
Havia um homem ligeiramente afastado do resto das pessoas, com as mãos cruzadas atrás das costas e a cabeça inclinada para baixo, em sinal de respeito. Era alto e magro e o fato cinzento de lã, com casaco assertoado, era um bocadinho pesado para o quente tempo primaveril.
Walker Hardegen foi a única pessoa que o reconheceu. Mas Hardegen não sabia o nome verdadeiro do homem. Ele usava sempre um pseudónimo que era tão ridículo que Hardegen tinha dificuldade em dizê-lo sem se rir.
O homem era o agente responsável por Hardegen e o pseudónimo que usava era Broome.
Shepherd Ramsey trouxe a carta do homem de Londres. Dorothy e Bratton entraram discretamente na biblioteca e leram-na durante a receção. Dorothy leu-a primeiro, com as mãos a tremerem. Estava mais velha, mais velha e mais grisalha. Uma queda nos degraus gelados da casa de Manhattan, em dezembro, tinha-a deixado com uma anca
partida. O coxear que daí resultara roubara-lhe o antigo físico imponente. Tinha os olhos molhados quando acabou de ler a carta, mas não chorou. Dorothy fazia sempre
as coisas com moderação. Passou a carta a Bratton, que chorou ao lê-la.
Caro Billy,
É com grande tristeza que escrevo esta carta. Tive o prazer de trabalhar com o teu pai apenas por um período muito curto de tempo, mas achei-o um dos homens mais extraordinários
que já conheci. Esteve envolvido num dos projetos mais vitais da guerra. No entanto, devido a exigências de segurança, há uma forte possibilidade de nunca vires
a saber o que o teu pai fez.
Posso dizer-te isto: o trabalho feito pelo teu pai vai salvar inúmeras vidas e
fazer com que os europeus se possam livrar de Mitler e dos nazis de uma vez por todas.
O teu pai deu verdadeiramente a vida para que outros pudessem viver. Foi um herói.
Mas nada que o teu pai tenha conseguido fazer lhe deu tanto prazer e satisfação como tu,
Billy. Quando o teu pai falava de ti, a cara dele alterava-se. Os olhos
iluminavam-se e ele sorria, mesmo que estivesse muito cansado. Eu nunca tive a sorte de ser
abençoado com um filho. Ao ouvir o teu pai falar de ti, dei-me conta da imensidão do meu infortúnio.
Atenciosamente, Alfred Vicary
Bratton devolveu a carta a Dorothy. Ela dobrou-a, voltou a colocá-la no envelope e guardou-a na gaveta de cima da secretária de Bratton. Dirigiu-se para a janela
e olhou lá para fora.
Toda a gente estava a comer e a beber e parecia estar a divertir-se. Para lá da multidão, viu Billy, Jane e Walker sentados na relva junto à doca. Jane e Walker
tinham-se tornado mais do que amigos. Tinham começado uma relação amorosa e Jane até falava em casamento. Dorothy pensou: Seria mesmo perfeito. Billy teria outra
vez uma verdadeira família.
Havia algo de apropriado nisso, uma sensação de conclusão para tudo aquilo, que Dorothy considerava reconfortante. Estava outra vez quente e dentro de pouco tempo seria verão. As casas não tardariam muito a abrir e as festas começariam. A vida continua, disse a si própria. Margaret e Peter já cá não estão, mas não há dúvida de que a vida continua.
SESSENTA E TRÊS
GLOUCESTERSHIRE, INGLATERRA: SETEMBRO
DE 1944
Até Alfred Vicary ficou surpreendido com a rapidez com que conseguira sair. Tecnicamente, tratava-se de uma licença administrativa até serem conhecidas as conclusões do inquérito interno. Vicary sabia que isso era uma terminologia pomposa que correspondia a um despedimento.
Perversamente, seguiu o conselho de Basil Boothby e fugiu para a casa da tia Matilda - nunca fora capaz de se habituar à ideia de que era sua - para ordenar as ideias. Os primeiros dias de exílio foram aterradores. Sentia falta da camaradagem do MI5. Sentia falta do seu gabinetezinho miserável. Até deu por si a sentir falta da cama de campanha, pois tinha perdido a bênção do sono profundo. Culpava a cama de casal de Matilda, que afundava cada vez mais - demasiado mole, com demasiado espaço para ele se debater com os seus pensamentos atormentados. Num raro clarão de inspiração, foi à loja da aldeia comprar uma nova cama de campanha. Instalou-a na sala de estar, ao lado da lareira, um local estranho, sabia-o, mas não planeava receber visitas. A partir dessa noite, começou a dormir tão bem como se poderia esperar.
Passou por um longo e triste período de inatividade. Mas, na primavera, quando o tempo aqueceu, concentrou a ilimitada energia acumulada na sua nova casa. Os vigias que o visitavam de vez em quando viram, horrorizados, Vicary atacar o jardim munido de uma
tesoura de podar, de uma foice e dos óculos em meia-lua. Observaram-no, espantados, a pintar de novo o interior do chalé. Gerou-se uma discussão considerável à
volta da cor por ele escolhida: um branco forte e rotineiro. Será que significava que o seu estado de espírito estava a melhorar ou estaria a transformar a casa
num hospital e a dar entrada por um período prolongado?
A preocupação também era grande na aldeia. Poole, o homem da drogaria, diagnosticou o estado de espírito de Vicary como sendo de luto. Não é possível, disse Plenderleith, o homem da estufa, que dava conselhos a Vicary acerca do jardim. Nunca foi casado, nunca esteve apaixonado, ao que parece. Miss Lazenby, da loja de roupa, decretou que estavam ambos errados. O pobre homem está apaixonado, qualquer pateta vê isso. E, pelo aspeto dele, o objeto da sua devoção não lhe retribui esse amor.
Mesmo que tivesse sabido dessa discussão, Vicary não teria sido capaz de a resolver, já que conhecia tão mal os seus próprios sentimentos como as pessoas que os testemunhavam. O chefe do seu departamento no University College enviou-lhe uma carta. Tivera conhecimento que Vicary já não se encontrava ao serviço do Ministério da Guerra e queria saber quando regressaria à universidade. Vicary rasgou a carta ao meio e queimou-a na lareira.
Já não havia nada em Londres para ele - apenas más recordações -, por isso, manteve-se longe. Só lá foi uma vez, numa manhã da primeira semana de junho, quando Sir Basil o chamou para ouvir os resultados do inquérito interno.
- Olá, Alfred! - gritou Sir Basil quando Vicary entrou no seu gabinete.
Lá dentro, brilhava uma suave luz cor de laranja. Boothby estava exatamente no centro do gabinete, como se quisesse espaço para manobrar para todos os lados. Trazia um fato cinzento que lhe assentava na perfeição e parecia mais alto do que Vicary se lembrava. O diretor-geral estava sentado no elegante sofá, com os dedos entrelaçados como se estivesse a rezar e os olhos fixos num ponto do tapete persa. Boothby com a mão direita em riste como uma baioneta, avançou
na direção de Vicary. Tendo em conta o sorriso caótico estampado na cara de Boothby, Vicary não tinha a certeza se ele estava a planear abraçá-lo ou atacá-lo. E também não tinha a certeza daquilo que receava mais.
Mas o que Boothby fez de facto foi apertar a mão a Vicary com um bocadinho de simpatia a mais e pousar-lhe a sua patorra no ombro. Estava quente e húmida, como se tivesse acabado de jogar uma partida de ténis. Serviu-lhe ele próprio chá e fez conversa de circunstância enquanto Vicary fumava um último cigarro. A seguir, com considerável cerimónia, tirou da secretária o relatório final da comissão de inquérito e colocou-o em cima da mesa. Vicary não quis olhar para o documento diretamente.
Boothby explicou a Vicary, com um prazer excessivo, que não lhe era permitido ler a avaliação feita à sua própria operação. Mostrou-lhe antes um documento de uma
só página, uma versão saneada que supostamente condensava e resumia o conteúdo do relatório. Vicary segurou-o com as duas mãos, mantendo-o bem esticado para que
não tremesse enquanto o lia. Era um documento desprezível e obsceno, mas contestá-lo naquele momento não serviria de nada. Devolveu-o a Boothby, apertou-lhe a mão,
depois a do diretor-geral, e foi-se embora.
Vicary desceu as escadas. Estava alguém no seu gabinete. Era Harry, com uma cicatriz horrível no maxilar. Vicary não era adepto de despedidas prolongadas. Disse
a Harry que tinha sido despedido, agradeceu-lhe tudo o que ele tinha feito e disse-lhe adeus.
Chovia outra vez e o tempo estava frio para junho. O chefe da divisão dos Transportes disponibilizou um carro a Vicary. Vicary recusou educadamente. Abriu o guarda-chuva
e seguiu vagarosamente para Chelsea, com a chuva a cair torrencialmente.
Passou a noite na sua casa em Chelsea. Acordou ao amanhecer, com a chuva a bater nas janelas. Era o dia 6 de junho. Ligou a BBC para ouvir as notícias e ficou a
saber que a invasão estava em curso.
Ao meio-dia, Vicary saiu de casa, esperando ver multidões nervosas e ouvir conversas ansiosas, mas havia um silêncio de morte em Londres. Algumas pessoas aventuravam-se
a ir às compras e outras entravam nas igrejas para rezarem. Os táxis deslocavam-se pelas ruas vazias à procura de clientes.
Vicary observou os londrinos ocupados com a sua vida. Sentiu vontade de correr para eles, sacudi-los e dizer: Não sabem o que é que está a acontecer? Não têm noção
do que foi necessário? Não sabem as coisas inteligentes e perversas que fizemos para os enganar? Não sabem o que é que eles me fizeram a mim?
Jantou no pub da esquina e ouviu os animadores boletins noticiosos na telefonia. Nessa noite, de novo sozinho, ouviu a mensagem do Rei à nação e, a seguir, foi deitar-se.
De manhã, apanhou um táxi para a estação de Paddington e regressou a Gloucestershire no primeiro comboio.
Gradualmente, por altura do verão, os seus dias adquiriram uma cuidadosa rotina.
Levantava-se cedo e lia até ao almoço, que comia todos os dias na aldeia, no Eight Bells: tarte de legumes, cerveja, carne quando constava do menu. Do Eight Bells,
partia para a caminhada que se obrigava a dar diariamente pelos trilhos ventosos em redor da aldeia. A cada dia que passava, o joelho aleijado recuperava um pouco
mais de força e, em agosto, Vicary já fazia dezasseis quilómetros todas as tardes. Deixou de fumar cigarros e passou para o cachimbo. Os rituais do cachimbo - carregá-lo,
limpá-lo, acendê-lo e voltar a acendê-lo - assentavam de modo perfeito na sua nova vida.
Não tinha noção do dia certo em que aquilo tinha acontecido o dia em que tudo se desvaneceu dos seus pensamentos conscientes: o gabinete exíguo, o estrépito dos
teleimpressores, a comida horrível da cantina, o léxico louco daquele sítio. Double Cross... Mulberry... Phoenix... Kettledrum. Até Helen foi empurrada para dentro
de uma sala fechada da sua memória, onde não poderia causar mais danos. Alice Simpson começou a visitá-lo ao fim de semana e passou lá uma semana inteira no início
de agosto.
No último dia do verão, sentiu-se invadido pela suave melancolia que aflige as pessoas do campo quando o tempo quente está a chegar ao fim. Era um crepúsculo glorioso,
com o horizonte raiado de púrpura e cor de laranja, a primeira sugestão do outono no ar. As prímulas e as campainhas há muito tinham desaparecido. Recordou-se de
um fim de tarde assim, meia vida antes, quando Brendan Evans o ensinou a andar de mota nos trilhos da Fens. Ainda não estava frio para
acender lareiras, mas do seu poleiro, no cimo de uma colina, conseguia ver as chaminés da aldeia a deitarem fumo suavemente e sentir o cheiro intenso a madeira verde
no ar.
Foi então que viu tudo a desenrolar-se nas encostas, como a solução para um problema de xadrez. Conseguia ver as linhas de ataque, a preparação, o logro. Nada tinha
sido o que parecia.
Vicary voltou apressadamente para o chalé, telefonou para o departamento e pediu para falar com Boothby. Foi nessa altura que se apercebeu de que era tarde e de
que era sexta-feira - os dias da semana já não significavam nada para ele - mas, por milagre, Boothby ainda lá estava e atendeu o seu próprio telefone.
Vicary identificou-se. Boothby revelou-se genuinamente agradado por ouvir a voz dele. Vicary garantiu-lhe que estava ótimo.
- Quero falar consigo - disse Vicary. - Sobre a Operação Ketdedrum.
A linha caiu num silêncio, mas Vicary sabia que Boothby não tinha desligado o telefone de repente porque o ouvia a mexer-se agitadamente na cadeira.
- Já não pode vir cá. O Alfred épersona nongrata. Por isso, suponho que tenha de ser eu a ir ter consigo.
- Perfeito. E não finja que não sabe como me encontrar porque tenho visto os seus vigias a andarem atrás de mim.
- Amanhã, ao meio-dia - atirou Boothby, desligando o telefone.
Boothby chegou ao meio-dia em ponto, num Humber oficial, vestido para o campo com roupa de tweed, uma camisa aberta no pescoço e um casaco de malha confortável.
Tinha chovido durante a noite. Vicary foi buscar à cave umas botas de borracha tamanho XL para Boothby e percorreram como velhos colegas um prado pontilhado de ovelhas
tosquiadas. Boothby foi falando sobre mexericos do departamento e Vicary, com considerável esforço, fingiu estar interessado.
Passado um bocado, Vicary parou de andar e pôs-se a olhar para longe.
- Nada daquilo era real, pois não? - exclamou. -Jordan, Catherine Blake... - era tudo falso desde o início.
Boothby sorriu sedutoramente.
- Não foi bem assim, Alfred. Mas qualquer coisa do género.
Virou-se e continuou a caminhar, o corpo alto uma linha vertical recortada no horizonte. A seguir, parou e fez sinal a Vicary para se aproximar. Coxeando mecânica
e rigidamente, Vicary seguiu Boothby, batendo nos bolsos à procura dos óculos em meia-lua.
- Foi a natureza da Operação Mulberry que nos colocou um problema - começou a dizer Boothby, sem aviso. - Estavam envolvidas dezenas de milhares de pessoas. Claro
que a grande maioria não fazia ideia daquilo em que estava a trabalhar. Ainda assim, o potencial para ocorrerem fugas de segurança era enorme. As componentes eram
tão grandes que tinham de ser construídas à vista de toda a gente. Os locais de construção estavam espalhados pelo país, mas uma parte foi construída mesmo aqui
perto, nas docas de Londres. Assim que nos informaram do projeto, percebemos que tínhamos um problema. Sabíamos que os alemães seriam capazes de fotografar os locais
a partir do ar. Sabíamos que bastava um espião razoável andar a bisbilhotar as obras para conseguir provavelmente descobrir o que estávamos a preparar. Enviámos
um homem para Sesley para testar o grau de segurança. Já estava a beber chá na cantina com alguns trabalhadores quando alguém se deu ao trabalho de lhe pedir a identificação.
Boothby riu. Vicary observou-o enquanto ele falava. Toda a sua arrogância e todo o seu nervosismo tinham desaparecido. Sir Basil mostrava-se calmo, sereno e simpático.
Vicary pensou que, em circunstâncias diferentes, até poderia ter gostado dele. Apercebeu-se, chocado, de que tinha subestimado a inteligência de Boothby desde o
início. E também ficou espantado com a utilização que ele fazia da palavra nós. Boothby era membro do clube; Vicary tinha apenas sido autorizado a encostar o nariz
ao vidro durante um curto período de tempo.
- O maior problema era a possibilidade de a Operação Mulberry revelar as nossas intenções - recomeçou Boothby. - Se os alemães descobrissem que estávamos a construir
portos artificiais, eram bem
capazes de concluir que pretendíamos evitar os portos altamente fortificados de Calais atacando na Normandia. Como o projeto era tão grande e difícil de ocultar,
tínhamos de partir do princípio de que os alemães acabariam por descobrir o que estávamos a preparar. A nossa solução foi roubar por eles o segredo da Operação Mulberry
e tentar controlar o jogo - explicou Boothby, olhando para Vicary. - Muito bem, Alfred, vamos lá ouvir o que tem para dizer. Quero saber o que conseguiu descobrir
ao certo.
- Walker Hardegen - afirmou Vicary. - Eu diria que começou tudo com Walker Hardegen.
- Muito bem, Alfred. Mas como?
- Walker Hardegen era um banqueiro e um homem de negócios rico, ultraconservador, anticomunista e provavelmente um bocadinho antissemita. Vinha da Ivy League e conhecia
metade das pessoas em Washington. Tinha andado na escola com elas. Os americanos não são assim tão diferentes de nós nesse aspeto. Os negócios dele levavam-no a
Berlim regularmente. E quando homens como Hardegen viajavam para Berlim, iam a jantares e festas de embaixadas. Jantavam com os diretores das maiores empresas alemãs
e com funcionários nazis do partido e dos ministérios. Hardegen falava alemão perfeitamente. E o mais provável era que admirasse algumas das coisas que os nazis
andavam a fazer. Acreditava que Hitler e os nazis funcionavam como um importante amortecedor entre os bolcheviques e o resto da Europa. Eu diria que, durante uma
das visitas dele, terá chamado a atenção da Abwehr ou do SD.
- Bravo, Alfred. Foi a Abwehr, por acaso, e o homem cuja atenção capturámos foi Paul Múller, o diretor das operações da Abwehr na América.
- Muito bem. Múller recrutou-o. Oh, calculo que provavelmente tenha suavizado a coisa. Dito que Hardegen não estaria realmente a trabalhar para os nazis. Estaria
a ajudar na luta contra o comunismo internacional. Pediu informações a Hardegen sobre a produção industrial americana, o estado de espírito em Washington, coisas
desse género. Hardegen aceitou e tornou-se agente. Mas tenho uma pergunta: Hardegen já era um agente americano nessa altura?
- Não - respondeu Boothby, sorrindo. - Não se esqueça, isto passou-se ainda bem no início do jogo, em 1937. Os americanos não eram especialmente sofisticados nessa
altura. Mas sabiam, no entanto, que a Abwehr se encontrava ativa nos Estados Unidos, particularmente em Nova Iorque. Um ano antes, os planos relativos à mira de
bombardeiro Norden saíram do país dentro da pasta de um espião da Abwehr chamado Nikolaus Ritter. Roosevelt tinha dado ordens a Hoover para atuar com dureza. Em
1939, Hardegen foi fotografado a encontrar-se em Nova Iorque com um conhecido agente da Abwehr. Dois meses mais tarde, viram-no novamente, desta vez a encontrar-se
com outro agente da Abwehr na Cidade do Panamá. Hoover queria prendê-lo e levá-lo a julgamento. Meu Deus, os americanos eram mesmo uns lorpas neste jogo. Felizmente,
o MI6 já tinha instalado o seu gabinete em Nova Iorque nessa altura. Intervieram e convenceram Hoover de que Hardegen era mais valioso se continuasse em jogo do
que enfiado numa cela qualquer.
- Então quem é que o controlava, nós ou os americanos?
- Na verdade, era um projeto conjunto. Fornecíamos um fluxo constante de ótimo material aos alemães através de Hardegen, tudo coisas de qualidade superior. Em Berlim,
o estatuto de Hardegen subiu em flecha. Enquanto isso, todos os aspetos da vida de Walker Hardegen foram analisados microscopicamente, incluindo a relação dele com
a família Lauterbach e com um engenheiro brilhante chamado Peter Jordan.
- Por isso, em 1943, quando foi tomada a decisão de efetuar a invasão através do canal da Mancha na Normandia, com a ajuda de um porto artificial, os serviços secretos britânicos e americanos abordaram Peter Jordan e pediram-lhe para passar a trabalhar para nós.
- Sim. Em outubro de 1943, para ser exato.
- Ele era perfeito - prosseguiu Vicary. - Era precisamente o tipo de engenheiro de que o projeto necessitava e era conhecido e respeitado na sua área. Os nazis só precisavam de ir à biblioteca para ler sobre os feitos dele. E a morte da mulher também o tornava vulnerável em termos pessoais. Por isso, no final de 1943, fizeram com que Hardegen se encontrasse com o agente da Abwehr responsável por ele e lhe contasse tudo sobre Peter Jordan. O que é que lhes revelaram na altura?
- Só que Jordan estava a trabalhar num grande projeto de construção relacionado com a invasão. E também demos a entender que ele era vulnerável, como o Alfred disse. A Abwehr mordeu o isco. Múller convenceu Canaris e Canaris passou o assunto a Vogel.
- Então, toda essa coisa foi um estratagema complexo para impingir informações falsas à Abwehr. E Peter Jordan foi o cordeiro sacrificado da praxe.
- Exato. Os primeiros documentos eram propositadamente ambíguos. Estavam abertos à interpretação e à discussão. As unidades Phoenix podiam ser componentes de um porto artificial ou podiam ser um complexo antiaéreo. Queríamos que eles andassem à bulha, discutissem, se esfrangalhassem todos. Tem Sun-Tzu em dia?
- Sabota o teu inimigo, subverte-o, semeia a discórdia entre os seus líderes.
- Exato. Queríamos encorajar a fricção entre o SD e a Abwehr. E também não lhes queríamos facilitar demasiado as coisas. Gradualmente, os documentos da Operação
Kettledrum foram clareando o quadro e esse quadro foi transmitido diretamente a Hitler.
- Mas porquê darem-se a tanto trabalho? Porque é que não utilizaram simplesmente um dos agentes que já tinham mudado de lado? Ou um dos agentes fictícios? Porquê
utilizarem um engenheiro de carne e osso? Porque não inventaram simplesmente um de fio a pavio?
- Por duas razões - respondeu Boothby. - Número um, isso é demasiado fácil. Queríamos que eles se esforçassem para obter as informações. Queríamos influenciar-lhes o pensamento subtilmente. Queríamos que pensassem que eram eles que estavam a decidir apontar baterias a Jordan. Não se esqueça do mantra de um agente da Operação Double Cross: as informações facilmente obtidas são facilmente descartadas. Havia uma cadeia de informações, por assim dizer: de Hardegen para Múller, de Múller para Canaris, de Canaris para Vogel e de Vogel para Catherine Blake.
- Impressionante - afirmou Vicary. - E a segunda razão?
- A segunda razão foi que, no final de 1943, descobrimos que não conhecíamos todos os espiões alemães que atuavam no Reino
Unido. Ficámos a saber de Kurt Vogel, ficámos a saber da rede dele e ficámos a saber que um dos agentes era uma mulher. Mas tínhamos um problema grave. Vogel tinha infiltrado os agentes no Reino Unido tão cuidadosamente que só os conseguiríamos localizar se fizéssemos com que eles se revelassem. Não se esqueça, o Plano Bodyguard estava prestes a começar a carburar a cem por cento, íamos bombardear os alemães com rajadas de informações falsas. Mas não nos podíamos sentir confortáveis sabendo que havia agentes de carne e osso ativos no nosso país. Tínhamos de os identificar a todos. Caso contrário, nunca poderíamos ter a certeza de que os alemães não estavam a receber informações que contradissessem o Plano Bodyguard.
- E como tiveram conhecimento da rede de Vogel?
- Fomos informados.
- Por quem?
Boothby deu alguns passos em silêncio, contemplando a biqueira enlameada das botas de borracha.
- Fomos informados da rede por Wilhelm Canaris - disse por fim.
- Por Canaris?
- Através de um dos emissários dele, na realidade. Em 1943, no final do verão. Isto vai provavelmente chocá-lo, mas Canaris era um dos líderes da Schwarze Kapelle. Queria que Menzies e os serviços secretos o ajudassem a derrubar Hitler e a acabar com a guerra. Num gesto de boa vontade, informou Menzies da existência da rede de Vogel. Menzies informou os serviços de segurança e, em conjunto, engendrámos um estratagema chamado Kettledrum.
- O principal espião de Hitler, um traidor. Extraordinário. E o senhor sabia de tudo isto, claro. Sabia-o na noite em que eu fui destacado para o caso. Aquele relatório acerca da invasão e dos planos de logro... Teve tudo como objetivo assegurar a minha lealdade cega. Motivar-me. Manipular-me.
- Lamento dizê-lo, mas sim.
- Então a operação tinha dois objetivos: enganá-los em relação ao Projeto Mulberry e, ao mesmo tempo, fazer com que os agentes de Vogel se revelassem para os podermos neutralizar.
- Sim - confirmou Boothby. - E mais outra coisa: possibilitar a Canaris um golpe de mestre que lhe permitisse salvar a cabeça
até à invasão. A última coisa de que precisávamos era de Schellenberg e de Himmler a comandarem. A Abwehr estava totalmente paralisada e manipulada. Sabíamos que se Schellenberg assumisse o controlo, ia pôr em causa tudo o que Canaris tinha feito. Mas não fomos bem-sucedidos nesse ponto, claro. Canaris foi despedido e Schellenberg apoderou-se finalmente da Abwehr.
- Então porque é que a Operação Double Cross e o Plano Bodyguard não se desmoronaram com a queda de Canaris?
- Oh, Schellenberg estava mais interessado em consolidar o seu império do que em introduzir uma nova leva de agentes em Inglaterra. Houve uma impressionante reorganização burocrática - gabinetes a trocarem de dono, dossiês a mudarem de mãos, esse tipo de coisas. No estrangeiro, mandou embora agentes dos serviços secretos experientes
que eram leais a Canaris e substituiu-os por sabujos ainda verdes, leais às SS e ao Partido. Enquanto isso, no quartel-general da Abwehr, os agentes responsáveis
faziam todos os possíveis por provar que os agentes a atuarem no Reino Unido eram fidedignos e produtivos. Pondo as coisas de forma simples, era uma questão de vida
ou de morte para esses agentes. Se admitissem que os agentes deles estavam sob controlo britânico, teriam sido enfiados no primeiro comboio a caminho do Leste. Ou
pior.
Caminharam em silêncio durante algum tempo enquanto Vicary assimilava tudo o que lhe tinha sido dito. Tinha a cabeça à roda. E inúmeras perguntas. Temia que Boothby
se pudesse calar a qualquer instante. Ordenou-as por importância, deixando de lado as suas emoções fervilhantes. Passou uma nuvem diante do Sol e de repente fez-se
frio.
- E resultou tudo? - perguntou Vicary.
- Sim, resultou de forma brilhante.
- Então e a emissão do Lord Haw-Haw?
O próprio Vicary tinha-a ouvido, sentado na sala de estar do chalé de Mádida, e tinha sentido um calafrio. Nós sabemos exatamente o que é que vocês pretendem faer
com essas unidades de betão. Pensam que as vão afundar nas nossas costas durante a invasão. bom, vamos ajudar-vos, rapaces...
- Pôs o Supremo Comando Aliado em pânico. Pelo menos, à superfície - acrescentou Boothby presunçosamente. - Um grupo
muito pequeno de oficiais tinha conhecimento do logro da Operação Kettledrum e percebeu que se tratava apenas do último ato. Eisenhower enviou um telegrama para
Washington a pedir cinquenta vedetas para resgatar as tripulações caso as Mulberries fossem afundadas durante a travessia do Canal. Certificámo-nos de que os alemães
sabiam disso. Tate, o nosso agente da Operação Double Cross com uma fonte fictícia dentro do SHAEF, transmitiu ao agente da Abwehr responsável por ele um relatório
do pedido de Eisenhower. Passados vários dias, o embaixador japonês fez uma visita às defesas costeiras e foi informado por Rundstedt. Rundstedt falou-lhe das Mulberries
e explicou-lhe que um agente da Abwehr tinha descoberto que eram torres de artilharia antiaérea. O embaixador enviou por telegrama essa informação aos seus chefes
em Tóquio. Essa mensagem, tal como todas as outras comunicações dele, foi intercetada e descodificada. Nesse momento, soubemos que a Operação Kettledrum tinha resultado.
- E quem dirigiu a operação em termos globais?
- O MI6, na verdade. Foram eles que a iniciaram, foram eles que a conceberam, e nós deixámo-los dirigi-la.
- E quem sabia dentro do departamento?
- Eu, o diretor-geral, Masterman, do Comité da Operação Double Cross.
- E quem era o agente que comandava tudo? Boothby olhou para Vicary.
- O Broome, claro.
- E quem é o Broome?
- O Broome é o Broome, Alfred.
- Só não compreendo uma coisa. Porque é que era necessário enganar o agente responsável pelo caso?
Boothby sorriu tenuemente, como se tivesse sido apoquentado por uma recordação ligeiramente desagradável. Dois faisões irromperam da sebe e voaram disparados pelo
céu cinzento-escuro. Boothby parou e contemplou as nuvens.
- Parece que vem aí chuva - atirou. - Talvez fosse melhor voltarmos para trás.
Deram meia-volta e começaram a andar.
- Nós enganámo-lo, Alfred, porque queríamos que parecesse tudo verdadeiro ao outro lado. Queríamos que o Alfred seguisse os
mesmos passos que em princípio seguiria num caso normal. E também não lhe era necessário saber que Jordan estava a trabalhar para nós desde o início. Não era necessário.
- Meu Deus! - disparou Vicary. - Então comandaram-me, como a qualquer outro agente. Comandaram-me.
- Pode dizer-se isso, sim.
- E porque fui escolhido? Porque não outra pessoa?
- Porque o Alfred, como o Peter Jordan, era perfeito.
- É capaz de me explicar isso?
- Escolhemo-lo por ser inteligente e engenhoso, e, em circunstâncias normais, o Alfred ter-lhes-ia dado água pela barba. Meu Deus, quase percebeu o logro enquanto
a operação estava em curso. E também o escolhemos por a tensão entre nós dois ser lendária afirmou Boothby, parando por uns instantes e olhando para Vicary.
- O Alfred não era propriamente discreto quando me criticava perante o resto do staff. Mas, mais importante do que isso, escolhemo-lo por ser amigo do primeiro-ministro
e a Abwehr o saber.
- E quando me despediram, informaram os alemães através de Hawke e do Pelicano. Esperavam que o sacrifício de um amigo pessoal de Winston Churchill reforçasse a
confiança deles no material da Operação Kettledrum.
- Exato, fazia tudo parte do guião. E resultou, já agora.
- E Churchill sabia?
- Sim, sabia. Foi ele próprio que aprovou tudo. O seu velho amigo traiu-o. Adora a magia negra, o nosso Winston. Se não fosse primeiro-ministro, acho que teria
sido um agente perito em logros. Acho que se divertiu bastante com tudo. Ouvi dizer que aquele discurso de motivação que ele lhe fez nas Salas de Guerra Subterrâneas
foi um clássico.
- Sacanas - murmurou Vicary. - Sacanas manipuladores. Mas a verdade é que, se calhar, me devia dar por feliz. Podia estar morto como os outros. Meu Deus! Já se deram
conta de quantas pessoas morreram por causa do vosso joguinho? Pope, a namorada dele, Rose Morely, os dois homens da Divisão Especial em Earl's Court, os quatro
polícias em Louth, outro em Cleethorpes, Sean Dogherty, Martin Colville.
- Está a esquecer-se de Peter Jordan.
- Por amor de Deus, mataram o vosso próprio agente!
- Não, o A-lfred é que o matou. Foi o Alfred que o pôs a bordo daquele barco. Eu até gostei bastante, devo admitir. O homem cujo descuido pessoal quase nos custou
a guerra morre a salvar a vida de uma rapariga e expia os seus pecados. Era assim que Hollywood teria feito a coisa. E é isso que os alemães pensam que aconteceu
realmente. E, além do mais, o número de vidas que se perderam não é nada comparado com a carnificina que teria ocorrido se Rommel estivesse à nossa espera na Normandia.
- Trata-se tudo de créditos e débitos? É assim que olha para as coisas? Como se fossem uma gigantesca folha de contabilidade? Ainda bem que estou fora! Não quero
fazer parte disso! Não se isso significa fazer coisas dessas. Meu Deus, já devíamos ter queimado pessoas como o senhor na fogueira há muito tempo!
Subiram uma última colina. Ao longe, a casa de Vicary surgiu diante deles. As trepadeiras floridas de Matilda cobriam o muro de calcário que servia de proteção.
Ele queria estar lá - bater com a porta, sentar-se à lareira e nunca mais voltar a pensar em nada daquilo. Sabia que naquele momento isso era impossível. Queria
livrar-se de Boothby. Acelerou o passo, descendo rapidamente a colina e quase perdendo o equilíbrio. Boothby, com o seu corpo alto e pernas atléticas, esforçou-se
por o acompanhar.
- Não é mesmo isso que acha, pois não? O Alfred gostou daquilo. Foi seduzido. Gostou da manipulação e do logro. A sua universidade quer que regresse, mas o Alfred
não tem a certeza se quer voltar para lá porque tem consciência de que tudo aquilo em que acreditava é mentira e de que o meu mundo, este mundo, é que é o verdadeiro.
- O senhor não é o mundo verdadeiro. Não tenho a certeza do que o senhor é, mas não é verdadeiro.
- Pode dizer isso agora, mas eu sei que sente uma falta terrível de tudo aquilo. É bastante parecido com uma amante, o tipo de trabalho que fazemos. Às vezes, não
gostamos muito dela. Não gostamos de nós próprios quando estamos com ela. Os momentos em
que nos sentimos bem são fugazes. Mas quando tentamos deixá-la há sempre qualquer coisa que nos puxa outra vez para ela.
- Receio bem que essa metáfora não me diga muito, Sir Basil.
- Lá está o Alfred outra vez, a armar-se em superior, em melhor do que os outros. Pensei que já tivesse aprendido a lição por esta altura. O Alfred precisa de pessoas
como nós. O país precisa de nós.
Atravessaram o portão e seguiram pelo caminho de entrada. O cascalho estalava sob os seus pés. Vicary lembrou-se da tarde em que tinha sido chamado a Chartwell e
recebido o cargo no MI5. Lembrou-se da manhã nas Salas de Guerra Subterrâneas, das palavras de Churchill: Tem de deixar de lado quaisquer princípios que ainda possua,
deixar de lado quaisquer sentimentos de compaixão que ainda possua, efaer tudo o que for necessário para vencer.
Pelo menos, tinha havido alguém que tinha sido sincero consigo, mesmo que isso tivesse sido mentira na altura.
Pararam ao lado do Humber de Boothby.
- Compreenderá por certo que eu não o convide para entrar e tomar um refresco - disse Vicary. - Quero ir lavar o sangue das mãos.
- A beleza da coisa é essa, Alfred - retorquiu Boothby, mostrando as grandes patorras a Vicary. - Eu também tenho sangue nas mãos. Só que não o consigo ver e mais
ninguém consegue. É uma mancha secreta.
O motor do carro disparou quando Boothby abriu a porta.
- Quem é Broome? - perguntou Vicary uma última vez.
O rosto de Boothby ensombrou-se, como se uma nuvem lhe tivesse passado à frente.
- Broome é Brendan Evans, o seu velho amigo de Cambridge. Contou-nos a sua manobra para entrar para os serviços secretos militares. E contou-nos o que lhe aconteceu
em França. Sabíamos o que o impelia e o que o motivava. Tinha de ser... afinal de contas, estávamos a comandá-lo.
Vicary sentiu a cabeça começar a latejar.
- Tenho mais uma pergunta.
- Quer saber se Helen estava envolvida nisso ou se foi ter consigo de livre vontade.
Vicary ficou em suspenso, à espera de uma resposta.
- Porque não vai ter com ela e lhe pergunta?
A seguir, Boothby desapareceu dentro do carro e foi-se embora.
SESSENTA E QUATRO
LONDRES: MAIO DE 1945
Nessa tarde, às seis horas, Lillian Walford aclarou a garganta, bateu suavemente à porta do gabinete e entrou sem esperar que respondessem. O professor estava lá,
sentado à janela com vista para Gordon Square, com o corpo franzino debruçado sobre um velho manuscrito.
- Se já não tiver mais nada para eu fazer, vou-me embora, professor - disse ela, dando início ao ritual de fechar os livros e endireitar os papéis que parecia acompanhar
sempre as conversas de sexta-feira ao final da tarde entre ambos.
- Não, tenho tudo o que preciso, obrigado.
Ela olhou para ele e pensou: Não, por qualquer razão, duvido muito disso, professor. Havia qualquer coisa nele que tinha mudado. Oh, é verdade que nunca tinha sido do tipo falador; nunca tinha sido pessoa de iniciar uma conversa, a não ser que fosse absolutamente necessário. Mas parecia mais reservado do que nunca, coitadinho. E tinha piorado à medida que o período letivo avançava, em vez de melhorar, como ela tinha esperado. Contavam-se histórias na faculdade, especulações fúteis. Havia quem dissesse que ele tinha enviado homens para a morte ou ordenado execuções. Era difícil imaginar o professor a fazer essas coisas, mas fazia algum sentido, ela tinha de admitir. Alguma coisa o tinha feito fazer um voto de silêncio.
- É melhor não se demorar muito, professor, se quer apanhar o comboio.
.- Estava a pensar em ficar antes em Londres no fim de semana
respondeu ele, sem levantar os olhos do trabalho. - Interessa-me
ver qual é o aspeto da cidade à noite, agora que as luzes estão outra vez a funcionar.
- Ora aí está uma coisa que eu espero mesmo nunca mais voltar a ver, o maldito blackout.
- Algo me diz que não verá.
Ela tirou-lhe o impermeável do cabide atrás da porta e colocou-o na cadeira ao lado da secretária. Pousou o lápis e olhou para ela. O que ela fez a seguir apanhou-os aos dois de surpresa. A mão dela pareceu estender-se para a cara dele de livre vontade, por reflexo, como o faria para uma criancinha que tivesse acabado de se magoar.
- O professor está bem?
Ele afastou-se bruscamente e voltou a olhar para o manuscrito.
- Sim, estou ótimo - respondeu ele.
A voz tinha um tom, uma rispidez que ela nunca lhe tinha ouvido. A seguir, ele murmurou qualquer coisa baixinho que pareceu ser nunca estive melhor.
Ela virou-se e dirigiu-se para a porta.
- Tenha um bom fim de semana - disse.
- É essa a minha ideia, obrigado.
- Boa noite, professor Vicary.
- Boa noite, Miss Walford.
A noite estava quente e, quando atravessou Leicester Square, Vicary já tinha despido o impermeável, levando-o dobrado sobre o braço. O crepúsculo chegava ao fim e as luzes de Londres começaram a acender-se lentamente. Quem diria, Liílian Walford a tocar-lhe na cara daquela maneira! Sempre tinha pensado que era um mentiroso
razoável. Interrogou-se se seria assim tão evidente.
Atravessou o Hyde Park. À esquerda, um grupo de americanos jogava softball à luz ténue. À direita, britânicos e canadianos participavam num barulhento jogo de râguebi. Passou por um local onde apenas uns dias antes se encontrava uma arma antiaérea. A arma tinha desaparecido; apenas se mantinham lá os sacos de areia, como se fossem pedras de ruínas antigas.
Entrou em Belgravia e, por instinto, dirigiu-se para a casa de Helen.
Espero que mudes de opinião, e depressa.
As cortinas opacas estavam levantadas e a casa inundada de luz. Estavam lá mais dois casais. David estava de uniforme, com Helen pendurada no braço. Vicary perguntou-se há quanto tempo estaria ali parado, a observá-los, a observá-la. Para sua grande surpresa - ou seria alívio, talvez -, não sentiu nada por ela. O seu fantasma tinha-o abandonado por fim, desta vez definitivamente.
Afastou-se. King's Road deu lugar a Sloane Square e Sloane Square a sossegadas ruas secundárias de Chelsea. Olhou para o relógio; ainda tinha tempo para apanhar
o comboio. Conseguiu um táxi e, antes de entrar, pediu ao taxista para o levar até à estação de Paddington. Baixou o vidro da janela e sentiu o vento quente na cara.
Pela primeira vez em muitos meses, sentiu qualquer coisa parecida com contentamento, qualquer coisa parecida com paz.
Ligou para Alice Simpson de uma cabine telefónica, na estação, e ela aceitou o convite para ir ter com ele ao campo na manhã seguinte. Desligou o telefone e teve
de correr para apanhar o comboio. A carruagem ia apinhada, mas descobriu um lugar à janela, num compartimento com duas velhas e um soldado com cara de menino, agarrado
a uma bengala.
Olhou para o soldado e viu que ele trazia a insígnia do 2.º Regimento de East Yorkshire. Vicary sabia que ele tinha estado na Normandia - em Sword Beach, para ser
exato - e que tinha sorte em estar vivo. Os East Yorks tinham sofrido muitas baixas nos primeiros minutos da invasão.
O soldado reparou que Vicary estava a olhar para ele e conseguiu esboçar um ligeiro sorriso.
- Foi na Normandia. Quase não cheguei a sair do barco - disse, erguendo a bengala. - Os médicos dizem que vou precisar de usar isto para o resto da vida. Como ficou
com o seu, quer dizer, com o coxear?
- Na Primeira Guerra Mundial, em França - disse Vicary num tom distante.
- E fizeram-no regressar para esta?
Vicary assentiu com a cabeça.
- Um trabalho à secretária, num departamento muito monótono do Ministério da Guerra. Nada de importante, na verdade.
Passado algum tempo, o soldado adormeceu. Por uma vez, nos campos que iam passando, Vicary viu o rosto dela, sorrindo-lhe, apenas por um instante. A seguir, viu o de Boothby. E depois, quando a escuridão se instalou, o seu próprio reflexo a acompanhá-lo em silêncio no vidro da janela.QUARENTA E SETE LONDRES
Clive Roach estava sentado a uma mesa junto à janela, no café em frente do apartamento de Catherine Blake, do outro lado da rua. A empregada trouxe-lhe o chá e o pão de leite. Ele largou de imediato algumas moedas na mesa. Era um hábito que tinha adquirido com o trabalho. Por norma, Roach era obrigado a sair dos cafés inesperada e rapidamente. A última coisa de que precisava era atrair atenções. Bebericou o chá e folheou um jornal matutino sem grande convicção. Não estava realmente interessado. Estava mais interessado na entrada do prédio do outro lado da rua. A chuva começou a cair com mais intensidade. Não estava desejoso de voltar a sair e molhar-se. Era o único aspeto do seu trabalho de que não gostava - a exposição constante ao mau tempo. Já tinha apanhado mais constipações e bronquites do que se conseguia lembrar.
Antes da guerra, tinha sido professor numa escola degradada para rapazes. Decidiu alistar-se no exército em 1939. Estava longe de ser o soldado ideal - magro, pele macilenta, cabelo ralo, uma voz com pouca potência. Não era propriamente disso que os oficiais eram feitos. No centro de recrutamento, reparou que estava a ser observado por dois homens bem vestidos a um canto. E também reparou que tinham pedido uma cópia do seu processo e que a estavam a examinar minuciosamente e com grande interesse. Passados uns minutos, arrancaram-no da fila, disseram-lhe que eram dos serviços secretos militares e ofereceram-lhe trabalho.
Roach gostava de observar. Era um observador de pessoas nato e possuía grande aptidão para nomes e caras. Oh, sabia que não haveria medalhas em reconhecimento de heroísmo no campo de batalha, nem histórias que pudesse contar no pub quando a guerra terminasse. Mas era um trabalho importante e Roach fazia-o bem. Começou a comer o pão de leite, pensando em Catherine Blake. Tinha seguido muitos espiões alemães desde 1939, mas ela era a melhor. Uma verdadeira profissional. Já o envergonhara uma vez, mas jurara que nunca mais iria deixar que isso acontecesse.
Terminou o pão de leite e bebeu o que restava do chá. Levantou os olhos da mesa e viu-a sair do prédio. Maravilhou-se com as artes do ofício de Catherine. Ficava sempre parada durante um momento a fazer qualquer coisa prosaica, ao mesmo tempo que perscrutava a rua à procura de sinais de vigilância. Naquele dia, estava às voltas com o guarda-chuva, como se este estivesse estragado. Roach pensou: A menina é muito boa, Miss Blake. Mas eu sou melhor.
Observou-a a abrir por fim o guarda-chuva e a começar a andar. Roach levantou-se, vestiu o casaco e saiu do café para ir atrás dela.
Horst Neumann acordou no momento em que o comboio atravessava ruidosamente os subúrbios do nordeste de Londres. Deu uma olhadela ao relógio: 10h30. Deviam ter chegado a Liverpool Street às 10h23. Milagrosamente, iriam atrasar-se apenas uns minutos. Bocejou, espreguiçou-se e endireitou-se no lugar. Espreitou pela janela, vendo os sombrios edifícios vitorianos que iam passando. Crianças sujas acenaram ao comboio. Neumann, sentindo-se ridiculamente inglês, acenou-lhes também. Havia mais três passageiros no seu compartimento, um par de soldados e uma jovem que usava um fato-macaco de trabalhador fabril e tinha franzido o sobrolho de preocupação quando vira a cara cheia de ligaduras de Neumann. Naquele momento, ele olhou de relance para cada um deles. Ficava sempre preocupado com a possibilidade de falar enquanto dormia, embora nas noites anteriores tivesse sonhado em inglês. Recostou a cabeça e fechou os olhos novamente. Meu Deus, como estava cansado. De pé às cinco da manhã, fora do chalé às seis, para Sean lhe
noder dar boleia até Hunstanton, o comboio das 7hl2 de Hunstanton para Liverpool Street.
Dormira mal na noite anterior, por causa das dores provocadas relos ferimentos e da presença de Jenny Colville na sua cama. Esta levantara-se ao mesmo tempo que ele, antes do amanhecer, escapulira-se do chalé dos Dogherty e fora de bicicleta para casa, no meio da escuridão e da chuva. Neumann esperava que ela tivesse chegado em segurança. E esperava que Martin não se encontrasse à espera dela. Tinha sido uma coisa estúpida deixá-la passar a noite consigo. Pensou no que ela sentiria quando ele se fosse embora. Quando nunca lhe escrevesse e ela nunca mais voltasse a ter notícias dele. Preocupava-o a reação dela se alguma vez descobrisse a verdade - que ele não era James Porter, um soldado britânico ferido, à procura de paz e sossego numa aldeia de Norfolk. Que era Horst Neumann, um paraquedista militar condecorado que tinha vindo para Inglaterra espiar e que a tinha enganado da pior forma. Mas não a tinha enganado em relação a uma coisa. Gostava dela. Não da maneira como ela gostaria que o fizesse, mas a verdade é que gostava dela a ponto de se preocupar com o que lhe pudesse acontecer.
O comboio abrandou ao aproximar-se de Liverpool Street. Neumann levantou-se, vestiu o casacão e saiu do compartimento. O corredor estava repleto de gente. Foi avançando a custo por entre os outros passageiros, em direção à porta. Houve alguém à frente dele que a abriu de rompante e Neumann saiu do comboio ainda em andamento. Deu o bilhete ao revisor e seguiu por uma passagem húmida até à estação do metro. Lá chegado, comprou um bilhete para Temple e apanhou o comboio seguinte. Uns minutos mais tarde, estava a subir as escadas e a dirigir-se para norte, a caminho da Strand.
Catherine Blake apanhou um táxi para Charing Cross. O ponto de encontro ficava a uma pequena distância, à frente de uma loja na Strand. Pagou ao taxista e abriu o guarda-chuva para não ficar molhada. Começou a andar. Parou junto a uma cabine telefónica, levantou o auscultador e fingiu que estava a fazer uma chamada. Olhou
para trás. A chuva forte tinha reduzido a visibilidade, mas não viu sinais do inimigo. Voltou a pousar o auscultador, saiu da cabine e continuou para leste, seguindo pela Strand.
Clive Roach saiu discretamente da parte de trás de uma carrinha de vigilância e seguiu-a pela Strand. Durante a curta viagem de carrinha, tinha-se livrado do impermeável e do chapéu de abas e vestido um oleado verde-escuro e um gorro de lã. A transformação era extraordinária - de um empregado de escritório para um operário. Roach ficou a ver Catherine Blake parar para fazer o suposto telefonema. Roach parou ao pé de um quiosque. Ao dar uma vista de olhos às manchetes, visualizou o rosto do agente a quem o professor Vicary tinha dado o nome de código de Rudolf. A missão de Roach era simples: seguir Catherine Blake até ela passar o material a Rudolf e depois segui-lo a ele. Levantou os olhos a tempo de a ver pousar o auscultador no gancho e sair da cabine telefónica. Roach embrenhou-se no meio das pessoas e seguiu-a.
Neumann avistou Catherine Blake a caminhar na sua direção. Parou junto a uma loja, com os olhos a perscrutarem as caras e a roupa das pessoas que se encontravam atrás dela no passeio. Quando ela se aproximou, Neumann afastou-se da montra e começou a avançar na sua direção. O contacto foi breve, um segundo ou dois. Mas, quando terminou, Neumann tinha o rolo na mão e estava a enfiá-lo no bolso do casaco. Ela continuou a andar depressa, desaparecendo por entre a multidão. Neumann seguiu na direção oposta mais uns metros, registando as caras. Depois, parou abruptamente em frente a outra montra, deu meia-volta e seguiu-a discretamente.
Clive Roach avistou Rudolf e viu a troca. Pensou: Vocês são uns sacanas manhosos, não são? Observou Rudolf a parar e depois a dar meia-volta e a caminhar na mesma direção que Catherine Blake. Roach tinha assistido a muitos encontros entre espiões alemães desde
1939, mas nunca tinha visto um agente dar meia-volta para seguir outro. Normalmente, cada um seguia o seu caminho. Roach levantou a gola do oleado para tapar as orelhas e deslizou cuidadosamente atrás deles.
Catherine Blake avançou para leste, seguindo pela Strand, e depois dirigiu-se para o Victoria Embankment. Foi lá que detetou que Neumann se encontrava atrás de si. A sua primeira reação foi de fúria. O procedimento normal para encontros consistia em separarem-se - e depressa - mal a entrega fosse feita. Neumann conhecia o procedimento e tinha-o executado sempre sem falhas. Ela pensou: Porque é que ele me está a seguir agora?
Vogel deve ter-lhe dado ordens para o fazer.
Mas porquê? Só conseguia pensar em duas explicações possíveis: ele tinha perdido a confiança nela e queria ver para onde ela ia ou queria perceber se estava a ser seguida pelo inimigo. Contemplou o Tamisa e depois virou-se e lançou uma olhadela ao Embankment. Neumann não tentou esconder a sua presença. Catherine virou-se novamente e continuou a andar.
Lembrou-se das intermináveis palestras de treino no campo secreto de Vogel na Baviera. Ele tinha-lhe chamado contravigilância, um agente a seguir outro para ter a certeza de que o agente não estava a ser seguido pelo inimigo. Perguntou-se por que razão teria Vogel decidido fazer isso naquela altura. Talvez Vogel quisesse confirmar que as informações que ela andava a receber eram fidedignas certificando-se de que ela não estava a ser seguida pelo inimigo. Bastou considerar sequer essa segunda explicação para que o estômago lhe ardesse de ansiedade. Neumann estava a segui-la porque Vogel suspeitava que ela estava sob vigilância do MI5.
Voltou a parar e a contemplar o rio, forçando-se a manter a calma. A pensar com clareza. Virou-se e olhou para o Embankment. Neumann continuava ali. Evitava intencionalmente o seu olhar, isso era óbvio. Punha-se a contemplar o rio ou a voltar-se para trás, tudo menos olhar para Catherine.
Ela virou-se outra vez e recomeçou a andar. Sentia o coração a ribombar no peito. Foi até à estação de metro de Blackfriars, entrou e comprou um bilhete para Victoria. Neumann foi atrás dela e fez o mesmo, só que o bilhete que comprou foi para a estação seguinte, South Kensington.
Ela avançou rapidamente para a plataforma. Neumann comprou um jornal e seguiu-a. Ela parou à espera do metro. Neumann parou a uns seis metros dela a ler o jornal. Quando o metro apareceu, Catherine aguardou que as portas se abrissem e depois entrou na carruagem. Neumann entrou nessa mesma carruagem, mas por uma porta diferente.
Ela sentou-se. Neumann deixou-se ficar de pé, na outra ponta da carruagem. Catherine não gostou da expressão que ele tinha na cara. Baixou os olhos, abriu a mala e espreitou lá para dentro - uma carteira cheia de dinheiro, uma faca de ponta e mola e uma Mauser carregada, com silenciador e munição extra. Fechou a mala e esperou para ver o que Neumann faria a seguir.
Durante duas horas, Neumann seguiu-a ao longo do West End, de Kensington a Chelsea, de Chelsea a Brompton, de Brompton a Belgravia, de Belgravia a Mayfair. Quando chegaram a Berkeley Square, estava convencido. Eles eram bons - muito bons mesmo -, mas o tempo e a paciência tinham acabado por lhes esgotar os recursos, forçando-os a cometerem um erro. Foi o homem do impermeável que seguia uns quinze metros atrás de si. Cinco minutos antes, Neumann tinha conseguido ver-lhe muito bem a cara. Era a mesma cara que tinha visto quase três horas antes, na Strand, quando tinha ficado com o rolo passado por Catherine, só que nessa altura o homem trazia um oleado verde e um gorro de lã.
Neumann sentiu-se desesperadamente sozinho. Tinha sobrevivido ao pior da guerra - Polónia, Rússia, Creta -, mas nenhuma das capacidades que o tinham ajudado a superar essas batalhas entraria ali em jogo. Pensou no homem atrás de si - esguio, de pele macilenta, provavelmente muito fraco. Neumann poderia matá-lo num instante se quisesse. Mas as velhas regras não se aplicavam àquele jogo. Não pedia pedir reforços por rádio, não podia contar com o apoio dos companheiros. Continuou a andar, surpreendido por se encontrar tão
calmo- Pensou: Andam a seguir-nos há horas, porque é que ainda não nos prenderam aos dois? Achou que sabia a resposta. Era evidente que queriam saber mais. Onde
iria ser entregue o rolo? Onde estava instalado Neumann? Havia mais agentes na rede? Desde que não lhes desse as respostas para essas perguntas, estariam a salvo. Era um trunfo muito fraco, mas, se fosse bem jogado, talvez lhes desse uma possibilidade de se escaparem.
Neumann acelerou o passo. Catherine, alguns metros à sua frente, virou para Bond Street. Parou para chamar um táxi. Neumann avançou mais depressa e depois começou
a correr ligeiramente. Gritou:
- Catherine! Meu Deus, há quanto tempo! Como é que tens passado?
Ela levantou os olhos, alarmada. Neumann pegou-lhe no braço.
- Precisamos de falar - disse Neumann. - Vamos procurar um sítio para beber um chá e pôr a conversa em dia.
A atitude repentina de Neumann foi recebida no centro de operações em West Halkin Street com o impacto de uma bomba de quinhentos quilos. Basil Boothby andava de um lado para o outro a falar ao telefone com o diretor-geral sob grande tensão nervosa. O diretor-geral estava em contacto com o Comité dos Vinte e com o staff do primeiro-ministro nas Salas de Guerra Subterrâneas. Vicary tinha-se envolvido num manto de silêncio e olhava fixamente para a parede, com as mãos fechadas por baixo do queixo. Boothby desligou o telefone com violência e anunciou:
- O Comité dos Vinte diz para os deixarmos à solta.
- Não gosto disso - afirmou Vicary, continuando a fitar a parede. - É evidente que detetaram a vigilância. Neste momento, estão para ali sentados a tentar perceber o que fazer.
- Não tem a certeza disso. Vicary levantou os olhos.
- Nunca tínhamos conseguido reparar num encontro entre ela e outro agente. E agora de repente está sentada num café em Mayfair a beber chá e a comer uma torrada com Rudolf?
- Só a temos sob vigilância há pouco tempo. Tanto quanto sabemos, ela e Rudolf até podem andar a encontrar-se regularmente.
- Há qualquer coisa que não bate certo. Acho que eles detetaram que os estão a vigar. E não só, acho que Rudolf já andava a tentar confirmar isso. Foi por isso que a seguiu depois do encontro na Strand.
- A decisão do Comité dos Vinte está tomada. Eles dizem para os deixarmos à solta, por isso deixamo-los à solta.
- Se eles detetaram a vigilância, não faz sentido deixá-los à solta. Rudolf não vai fazer a entrega e vai manter-se longe de todos os outros agentes da rede. Estar a segui-los agora não nos beneficia em nada. Acabou, Sir Basil.
- Então o que sugere?
- Que avancemos já. Prendê-los mal saiam do café. Boothby olhou para Vicary como se ele tivesse dito uma heresia.
- Estamos a ficar com medo agora, é, Alfred?
- O que quer dizer com isso?
- Quero dizer que a ideia foi sua, logo para início de conversa. Foi o Alfred que a concebeu, foi o Alfred que a vendeu ao primeiro-ministro. O diretor-geral concordou com ela e o Comité dos Vinte aprovou-a. Há várias semanas que um grupo de agentes anda a labutar dia e noite para providenciar o material para aquela pasta. E agora o Alfred quer acabar com tudo, assim sem mais nem menos - disse Sir Basil, estalando os dedos grossos tão alto que pareceu um tiro porque tem um palpite.
- É mais do que um palpite, Sir Basil. Leia o raio dos relatórios de vigilância. Está lá tudo.
Boothby tinha recomeçado a andar de um lado para o outro, com as mãos cruzadas atrás das costas e a cabeça ligeiramente levantada, como se estivesse a fazer um esforço para ouvir qualquer coisa irritante ao longe.
- Eles vão dizer: "Ele era bom nas mensagens por rádio, mas não tinha o sangue-frio necessário para lidar com agentes de carne e osso." É isso que vão dizer de si quando tudo isto terminar: "Na verdade, não foi surpresa. Afinal de contas, ele era um amador. Era só um geniozinho da universidade que deu o seu contributo durante a guerra e depois se esfumou quando tudo terminou. Era bom, muito bom, mas não teve tomates para jogar com a parada alta." E isso que
quer que digam de si? Porque, se for, o melhor é pegar no telefone e dizer ao diretor-geral que acha que devemos acabar já com isto tudo.
Vicary fitou Boothby. Boothby, controlador de agentes. Boothby, da serenidade aristocrática debaixo de fogo. Questionou-se por que i-azão estaria Boothby a tentar
envergonhá-lo para o convencer a ir em frente quando até um cego podia ver que tinham sido desmascarados.
- Acabou - sentenciou Vicary desanimada e monocordicamente. - Eles detetaram a vigilância. Estão ali sentados a planear o que fazer a seguir. Catherine Blake sabe que foi enganada e vai informar Kurt Vogel disso. Vogel vai concluir que a Mulberry é exatamente o contrário daquilo que lhe dissemos. E depois estamos mortos.
- Eles estão por todo o lado - disse Neumann. - O homem do impermeável, a rapariga à espera do autocarro, o homem a entrar na farmácia do outro lado da praça. Já usaram várias caras, várias combinações, várias roupas. Mas andam a seguir-nos desde que saímos da Strand.
Uma empregada trouxe chá. Catherine esperou que ela se fosse embora antes de falar:
- Foi Vogel que te mandou seguir-me?
- Foi.
- E imagino que não tenha explicado porquê, pois não? Neumann abanou a cabeça.
Catherine pegou na chávena de chá, com a mão a tremer. Serviu-se da outra mão para estabilizar a chávena e forçou-se a beber.
- O que te aconteceu à cara?
- Tive um problemazito na aldeia. Nada de grave. Catherine olhou para ele, desconfiada, e perguntou:
- Porque é que eles não nos prenderam?
- Pelas mais variadas razões. Provavelmente, sabem da tua existência há imenso tempo. E, provavelmente, também andam a seguir-te há imenso tempo. Se isso for verdade, então todas as informações que tens andado a receber do comandante Jordan são falsas, uma
cortina de fumo concebida pelos britânicos. E nós temos-lhes feito o favor de passar isso a Berlim.
Ela pousou a chávena. Lançou uma olhadela à rua e depois fitou Neumann, obrigando-se a não olhar para os vigias.
- Se Jordan estiver a trabalhar para os serviços secretos britânicos, podemos partir do princípio de que tudo o que ele tem na pasta é falso: informações que eles queriam que eu visse, informações com o intuito de induzir a Abwehr em erro em relação aos planos dos Aliados para a invasão. Vogel precisa de ser informado disso - disse ela, conseguindo sorrir. - É possível que aqueles sacanas nos tenham acabado de entregar o segredo da invasão.
- Suspeito que tenhas razão. Mas há um problema. Precisamos de dizer isso a Vogel pessoalmente. Temos de partir do princípio de que a via da embaixada portuguesa
se encontra neste momento comprometida. E também temos de partir do princípio de que não podemos utilizar os nossos rádios. Vogel acha que os velhos códigos da Abwehr foram decifrados. É por isso que se serve do rádio tão poucas vezes. Se transmitirmos a Vogel o que sabemos via rádio, os britânicos também vão ficar a saber.
Catherine acendeu um cigarro, com as mãos ainda a tremerem. Acima de tudo, sentia-se furiosa consigo própria. Durante anos, tinha feito tudo e mais alguma coisa para se assegurar de que não estava a ser vigiada pelo outro lado. E depois, quando aconteceu por fim, não tinha dado por isso. Perguntou:
- Como raio é que vamos conseguir sair de Londres?
- Temos umas quantas coisas que podemos utilizar a nosso favor. Número um, isto - disse Neumann, batendo ao de leve no bolso onde se encontrava o rolo. - Posso estar enganado, mas acho que nunca fui seguido. Vogel treinou-me bem e sou muito cuidadoso. Não me parece que saibam como é que entrego o filme ao português: onde é que isso é feito, se há alguma palavra-chave ou outro sinal qualquer que sirva de código. Além disso, também tenho a certeza de que não fui seguido até Hampton Sands. A aldeia é tão pequena que eu saberia se estivesse a ser vigiado. Não sabem onde é que estou alojado nem se ando a trabalhar com mais algum agente. O procedimento normal consiste em localizar todos os elementos de
uma rede e depois acabar com ela de uma só vez. É assim que a Gestapo lida com a Resistência em França e é assim que o MI5 o faria em Londres.
Tudo isso me parece lógico. O que sugeres?
- Vais estar com Jordan hoje à noite? .-Sim.
- A que horas?
- vou encontrar-me com ele às sete para jantar.
- Perfeito - exclamou Neumann. - O que eu quero que tu faças é o seguinte.
Neumann passou os cinco minutos seguintes a explicar pormenorizadamente o seu plano de fuga. Catherine ouviu com atenção, nunca tirando os olhos de cima dele, resistindo à imensa tentação de olhar para os vigias à espera do lado de fora do café. Após terminar, Neumann disse:
- Faças o que fizeres, não podes fazer nada fora do normal. Nada que os possa levar a suspeitar que sabes que estás a ser vigiada. Mantém-te em movimento até ser altura. Vai às compras, vai ao cinema, não fiques em casa. Enquanto eu não entregar este rolo, não corres perigo. Quando chegar a altura, vai para o teu apartamento e vai buscar o rádio. vou lá ter às cinco horas, às cinco em ponto, e entro pela porta de trás. Entendeste?
Catherine assentiu com a cabeça. Neumann disse:
- Só há um problema. Fazes ideia de onde é que eu posso deitar a mão a um carro e a gasolina?
Catherine não conseguiu evitar rir-se.
- Por acaso, até sei de um sítio. Mas não te aconselho a mencio-
nares o meu nome.
Neumann saiu do café primeiro. Vagueou por Mayfair durante meia hora, seguido pelo menos por dois homens - o oleado e o impermeável.
A chuva começou a cair com mais força e o vento tornou-se mais forte. Estava com frio, encharcado até aos ossos e cansado. Precisava de ir repousar para algum sítio,
algum sítio onde se pudesse aquecer durante um bocado, descansar os pés e manter os amigos
Impermeável e Oleado debaixo de olho. Dirigiu-se para Portman Square. Sentia-se mal por estar a envolvê-la, mas, quando tudo terminasse, iriam interrogá-la e concluir
que ela não sabia de nada.
Parou à porta da livraria e espreitou pela montra. Sarah estava em cima do escadote, com o cabelo escuro bem puxado para trás. Bateu ao de leve na montra para não
a assustar. Ela virou-se e o seu rosto iluminou-se num sorriso instantâneo. Pousou os livros e fez-lhe sinal entusiasticamente para entrar. Olhou para ele e exclamou:
- Meu Deus, está com um péssimo aspeto. O que lhe aconteceu à cara?
Neumann hesitou; apercebeu-se de que não tinha uma explicação para o penso na maçã do rosto. Murmurou qualquer coisa sobre uma queda durante o blackout e ela pareceu aceitar a história. Ajudou-o a tirar o casaco e pendurou-o em cima do aquecedor para que secasse. Ele ficou com ela duas horas, fazendo-lhe companhia, ajudando-a a dispor os livros novos nas prateleiras e tomando chá com ela no café do lado quando chegou a altura da sua pausa. Reparou que os antigos vigias se estavam a ir embora e a serem substituídos por novos. Reparou numa carrinha preta estacionada à esquina e partiu do princípio de que os homens na parte da frente pertenciam ao inimigo.
Às 16h30, quando a última luz do dia tinha desaparecido e o blackout se instalara, tirou o casaco de cima do aquecedor e vestiu-o. Ela fez uma cara triste, na brincadeira, e depois pegou-lhe na mão e levou-o para o armazém. Lá, encostou-se à parede, puxou-o contra si e beijou-o.
- Não sei absolutamente nada sobre si, James Porter, mas gosto muito de si. Está triste com qualquer coisa. Gosto disso.
Neumann foi-se embora da livraria, sabendo que nunca mais a voltaria a ver. De Portman Square, dirigiu-se para norte, para a estação de metro de Baker Street, seguido pelo menos por duas pessoas a pé, além da carrinha preta. Entrou na estação, comprou um bilhete para Charing Cross e apanhou o metro seguinte que lá passava. Em Charing Cross, mudou de metro e seguiu para a estação de Euston. com dois homens a perseguirem-no, atravessou o túnel que ligava a estação de metro ao terminal ferroviário. Neumann esperou quinze minutos numa bilheteira e comprou um bilhete para Liverpool.
OS passageiros já estavam a subir a bordo do comboio quando chegou à plataforma. A carruagem ia apinhada. Procurou um compartimento com um lugar vago. Encontrou por fim um, abriu a porta, enfrou e sentou-se.
Olhou para o relógio: faltavam três minutos para o comboio partir. Do lado de fora do compartimento, o corredor estava a encher-se rapidamente de passageiros. Não era invulgar alguns viajantes azarados passarem a viagem inteira em pé ou sentados no corredor. Neumann levantou-se e comprimiu-se todo para sair do compartimento, murmurando qualquer coisa sobre estar mal do estômago. Dirigiu-se para a casa de banho no final da carruagem. Bateu à porta. Não houve resposta. Quando bateu pela segunda vez, espreitou por cima do ombro; o homem que tinha entrado com ele no comboio não o conseguia ver devido aos outros passageiros no corredor.
Perfeito. O comboio começou a andar. Neumann esperou à porta da casa de banho enquanto o comboio ia ganhando velocidade lentamente. Para a maioria das pessoas, já ia demasiado depressa para se saltar em segurança. Neumann esperou mais uns segundos e, a seguir, avançou para a porta, abriu-a de rompante e saltou para a plataforma.
Aterrou suavemente, dando primeiro uns pulinhos e depois começando a andar rapidamente. Levantou os olhos a tempo de avistar um revisor de ar irritado a fechar a porta. Avançou rapidamente para a saída e embrenhou-se no blackout.
Euston Road estava apinhada com o corrupio do final da tarde. Chamou um táxi e entrou. Deu uma morada no East End ao taxista e instalou-se, preparando-se para a viagem.
QUARENTA E OITO
HAMPTON SANDS, NORFOLK
Mary Dogherty esperou sozinha no chalé. Tinha achado sempre que era um sitiozinho adorável - quente, cheio de luz, arejado -, mas naquele momento parecia-lhe claustrofóbico e exíguo como uma catacumba. Lá fora, a grande tempestade que tinha sido prevista abatera-se finalmente sobre a costa de Norfolk. A chuva fustigava as janelas, fazendo
as vidraças chocalharem. O vento soprava em rajadas incessantes, gemendo pelo beiral. Ouviu uma telha a raspar e a ceder no telhado.
Sean não estava lá, tinha ido a Hunstanton buscar Neumann à estação de comboios. Mary afastou-se da janela e recomeçou a andar de um lado para o outro. Fragmentos da conversa que tinham tido de manhã ecoavam-lhe na cabeça sem parar, como um disco riscado num gramofone: submarino para a França... ficar em Berlim uns tempos... passagem para outro país... voltar para -a Irlanda... ires lá ter comigo quando a guerra acabar...
Parecia um pesadelo - como se estivesse a ouvir a conversa de outra pessoa, a vê-la num filme ou a lê-la num livro. A ideia era ridícula: Sean Dogherty, agricultor desfavorecido na costa de Norfolk e simpatizante do IRA, ia apanhar um submarino para a Alemanha. Calculou que fosse o culminar lógico da espionagem feita por Sean. Tinha sido parva em esperar que tudo fosse regressar ao normal após a guerra terminar. Tinha-se iludido a si própria. Sean ia fugir e deixá-la para trás, a braços com as consequências. Que iriam fazer as autoridades?
Diz-lhes só que não sabias de nada, Mary. E o que aconteceria se não acreditassem nela? O que fariam então? Como poderia ela ficar na aldeia se toda a gente soubesse que Sean tinha sido um espião? Seria expulsa da costa de Norfolk. Seria escorraçada de todas as aldeias inglesas onde tentasse instalar-se. Teria de abandonar Hampton Sands.
Teria de abandonar Jenny Colville. Teria de voltar para a Irlanda, para a aldeia desoladora de onde tinha fugido trinta anos antes. Ainda lá tinha família, família
que a podia acolher. A ideia era absolutamente aterradora, mas não teria outra escolha - não quando toda a gente ficasse a saber que Sean tinha espiado para os alemães.
Começou a chorar. Pensou: Raios te partam, Sean Dogherty! Como é que pudeste ser assim tão tonto?
Mary voltou para a janela. No trilho, na direção da aldeia, viu um ponto de luz a oscilar sob a carga de água. Passado um momento, viu o brilho de um oleado molhado e uma silhueta frágil numa bicicleta, com o corpo dobrado para a frente, contra o vento, os cotovelos para fora e os joelhos em grande atividade. Era Jenny Colville. Saiu de cima da bicicleta junto ao portão e empurrou-a pelo trilho. Mary abriu-lhe a porta. O vento soprava em rajadas, atirando a chuva para dentro do chalé. Mary puxou Jenny para dentro e ajudou-a a tirar o casaco e o chapéu molhados.
- Meu Deus, Jenny, o que é que andas a fazer na rua com um tempo destes?
- Oh, Mary, é maravilhoso. Tão ventoso. Tão lindo.
- Está visto que perdeste o juízo, rapariga. Senta-te ao pé da lareira. vou fazer-te um chá quente.
Jenny aqueceu-se à frente da lenha que ardia na lareira.
- Onde está o James? - perguntou.
- Não está cá - gritou Mary da cozinha. - Foi com Sean a algum lado.
- Oh - exclamou Jenny, com Mary a perceber a desilusão na voz dela. - E vai demorar muito tempo?
Mary parou o que estava a fazer e voltou para a sala de estar. Olhou para Jenny e perguntou:
- Porque estás assim tão interessada no James de repente?
- Só o queria ver. Dizer olá. Passar algum tempo com ele. Só isso.
- Só isso? Mas que raio é que tu tens, Jenny?
- É só que gosto dele, Mary. Gosto muito dele. E ele gosta de mim.
- Tu gostas dele e ele gosta de ti? E onde foste buscar uma ideia dessas?
- Eu sei, Mary, acredita. Não me perguntes como é que sei, mas sei.
Mary agarrou-a pelos ombros.
- Presta atenção, Jenny - disse ela, sacudindo Jenny uma vez.
- Estás a prestar atenção?
- Sim, Mary! Estás a magoar-me!
- Afasta-te dele. Esquece-o. Ele não é para ti. Jenny começou a chorar.
- Não o posso esquecer, Mary. Amo-o. E ele ama-me. Eu sei que sim.
- Jenny, ele não te ama. Não me peças para te explicar tudo agora porque não posso, meu amor. Ele é um homem bondoso, mas não é o que parece ser. Esquece isso. Esquece-o! Tens de confiar em mim, minha pequenina. Ele não é para ti.
Jenny conseguiu soltar-se de Mary com violência, recuou e limpou as lágrimas da cara.
- Ele é para mim, Mary. Eu amo-o. Estás aqui presa com o Sean há tanto tempo que já te esqueceste do que é o amor.
A seguir, pegou no casaco e saiu a correr pela porta fora, fechando-a com força. Mary precipitou-se para a janela e ficou a ver Jenny a pedalar pelo meio da tempestade.
A chuva batia no rosto de Jenny enquanto ela seguia na bicicleta pelo trilho ondulante em direção à aldeia. Tinha dito a si mesma que não iria voltar a chorar, mas não conseguia cumprir a palavra. As lágrimas misturaram-se com a chuva e escorreram-lhe pela cara. A aldeia tinha as persianas todas bem fechadas, a loja e o pub estavam fechados e os cortinados opacos dos chalés encontravam-se corridos. Tinha a lanterna no cesto, com o seu fraco feixe amarelo apontado para a escuridão total. A luz quase não dava para ver nada. Atravessou a aldeia e começou a avançar em direção ao seu chalé.
Estava furiosa com Mary. Como se atrevia a intrometer-se entre ela e James? E o que teria querido dizer com aquele comentário Ele não é o que parece ser? E também
estava zangada consigo própria. Sentia uns remorsos terríveis por ter lançado um insulto a Mary quando saíra a correr pela porta fora. Nunca tinham discutido. De
manhã, quando as coisas já tivessem acalmado, Jenny iria voltar lá para pedir desculpa.
Conseguiu distinguir ao longe o contorno do seu chalé, recortado no céu. Saiu de cima da bicicleta junto ao portão, empurrou-a pelo trilho e encostou-a ao chalé.
O pai apareceu lá fora e parou à frente da porta, limpando as mãos a um trapo. Ainda tinha a cara inchada da luta. Jenny tentou passar por ele, mas o pai estendeu
o braço e agarrou-lhe o braço com toda a força.
- Estiveste com ele outra vez?
- Não, papá! - gritou ela, cheia de dores. - Por favor, estás a magoar-me o braço!
Ele levantou a outra mão para lhe bater, com a horrível cara inchada a contorcer-se de raiva.
- Diz-me a verdade, Jenny! Estiveste com ele outra vez?
- Não, juro! - gritou ela, erguendo os braços à frente da cara para se proteger do golpe que esperava que surgisse a qualquer momento. - Por favor, papá, não me batas! Estou a dizer-te a verdade!
Martin Colville largou-a.
- Vai lá para dentro e faz-me qualquer coisa para eu comer.
Ela quis gritar-lhe: Faz tu o raio do teu jantar, para variar! Mas sabia onde isso levaria. Olhou para a cara dele e, por um instante, deu por si a desejar que James o tivesse matado. Esta é a última vez, pensou. Esta é mesmo a última vez. Entrou em casa, despiu o casaco encharcado, pendurou-o na parede da cozinha e começou a tratar-lhe do jantar.
QUARENTA E NOVE
LONDRES
Clive Roach soube que estava em apuros mal Rudolf entrou na carruagem apinhada de gente. Roach não teria problemas desde que o agente se deixasse ficar sentado no compartimento. Mas se o agente saísse do compartimento para ir à casa de banho, à carruagem-restaurante ou a outra qualquer, Roach ficaria em apuros. Os corredores estavam entupidos com viajantes, uns em pé e outros sentados, a tentarem em vão dormir. Era uma provação uma pessoa deslocar-se pelo comboio; tinha de se comprimir e empurrar os outros passageiros e estar constantemente a dizer com licença e Peço desculpa. Tentar seguir alguém sem se ser detetado seria difícil - provavelmente, impossível, se o agente fosse bom. E tudo o que Roach tinha visto até então lhe indicava que Rudolf era bom.
Roach ficou desconfiado quando Rudolf, agarrado ao estômago, saiu do compartimento com o comboio ainda parado na plataforma em Euston e rompeu pelo corredor apinhado. Rudolf era pequeno, não tinha mais do que um metro e sessenta e cinco, e a cabeça dele desapareceu rapidamente no mar de passageiros. Roach avançou uns quantos passos a custo, recebendo em troca os protestos e os gemidos dos outros passageiros. Sentia-se relutante em aproximar-se demasiado; Rudolf tinha voltado para trás várias vezes nesse dia e Roach receava que ele lhe tivesse visto a cara. O corredor estava mal iluminado por causa do regulamento do blackout e já se encontrava envolto num manto de fumo de cigarro que mais parecia nevoeiro
cerrado. Roach manteve-se nas sombras e ficou a ver Rudolf bater à porta da casa de banho duas vezes. Outro passageiro empurrou-o para passar, obstruindo-lhe a visão
por alguns segundos apenas. Quando voltou a olhar, já Rudolf tinha desaparecido.
Roach não saiu de onde se encontrava durante três minutos, observando a porta da casa de banho. Outro homem aproximou-se, bateu à porta e, a seguir, entrou na casa
de banho e fechou-a.
Começaram a tocar campainhas de alarme na cabeça de Roach.
Avançou aos empurrões pelo meio do emaranhado de passageiros no corredor, parou à frente da porta da casa de banho e começou a bater nela com toda a força.
- Espere pela sua vez, como toda a gente - disse a voz do outro lado.
- Abra a porta, emergência policial.
O homem abriu a porta uns segundos mais tarde, ainda a apertar a braguilha. Roach espreitou lá para dentro para ter a certeza de que Rudolf não estava lá. Maldição! Abriu de rompante a porta que dava para a carruagem seguinte e entrou nela. Tal como a anterior, estava às escuras, cheia de fumo e desesperadamente apinhada de passageiros. Naquele momento, seria impossível descobrir Rudolf sem revirar o comboio carruagem atrás de carruagem, compartimento atrás de compartimento.
Pensou: Como é que ele desapareceu tão depressa?
Regressou apressadamente para a primeira carruagem e deu com o revisor, um velho com óculos de aros de aço e um pé aleijado. Roach sacou da fotografia de vigilância de Rudolf e meteu-a à frente da cara do revisor.
- Viu este homem?
- Um sujeito pequeno?
- Sim - confirmou Roach, cada vez mais desanimando e pensando: Maldição! Maldição!
- Saltou do comboio quando estávamos a sair de Euston. Foi uma sorte não ter partido o raio da perna.
- Jesus! Porque não disse nada?
Apercebeu-se do ridículo que devia ter soado aquele comentário. Obrigou-se a falar com mais calma:
- Qual é a primeira paragem deste comboio?
- Watford.
- Quando?
- Daqui a uma meia hora.
- Demasiado tempo. Tenho de sair já deste comboio.
Roach esticou-se, agarrou o travão de emergência e puxou. O comboio abrandou de imediato quando o travão foi acionado e começou a parar.
O velho revisor olhou para Roach, pestanejando por trás dos óculos, e perguntou:
- O senhor não é um polícia normal, pois não?
Roach não disse nada e o comboio parou por completo. Abriu a porta de rompante, desceu para a linha e desapareceu pela escuridão dentro.
Neumann pagou ao taxista quando se encontrava a pouca distância do armazém dos Pope e, a seguir, fez o resto do caminho a pé. Passou a Mauser da cintura das calças para o bolso da frente do casacão e depois levantou a gola para se proteger da chuva forte. O primeiro ato tinha corrido sem problemas. O logro a bordo do comboio funcionara exatamente como esperava. Neumann tinha a certeza de não ter sido seguido após sair da estação de Euston. Isso queria dizer uma coisa: o Impermeável, o homem que o tinha seguido até ao comboio, continuava quase de certeza a bordo dele e a sair de Londres, a caminho de Liverpool. O vigia não era um idiota. Mais tarde ou mais cedo, acabaria por se aperceber de que Neumann não tinha voltado para o compartimento e efetuaria uma busca. Era possível que fizesse algumas perguntas. A fuga de Neumann não passara despercebida; o revisor tinha-o visto saltar do comboio. Quando o vigia percebesse que Neumann já não se encontrava no comboio, sairia na paragem seguinte e telefonaria aos superiores em Londres. Neumann deu-se conta de que tinha uma janela de oportunidade muito limitada. Tinha de atuar depressa.
O armazém estava às escuras e parecia deserto. Neumann tocou à campainha e aguardou. Não houve resposta. Voltou a tocar à campainha e dessa vez ouviu o ruído de passos do outro lado. Passado
um momento, a porta foi aberta por um gigante de cabelo preto e casaco de cabedal.
- O que quer?
- Gostaria de falar com o senhor Pope, por favor - respondeu Neumann educadamente. - Preciso de alguns artigos e disseram-me que este era, sem dúvida, o sítio indicado.
- O senhor Pope já cá não está e nós fechámos, por isso desapareça.
O gigante começou a fechar a porta. Neumann enfiou o pé para o impedir.
- Peço desculpa. É realmente muito urgente. Talvez o senhor me possa ajudar.
O gigante olhou para Neumann com uma expressão de perplexidade. Parecia estar a tentar conciliar o sotaque de colégio privado com o casacão e o penso na cara.
- Estou a ver que não me ouviu da primeira vez - respondeu ele. - Fechámos. Para sempre - atirou, agarrando em Neumann pelo ombro. - Agora, ponha-se a andar.
Neumann deu um murro na maçã de Adão do gigante e, a seguir, sacou da Mauser e deu-lhe um tiro no pé. O homem caiu redondo no chão, uivando de dor ou esforçando-se por respirar. Neumann entrou e fechou o portão. O armazém era tal e qual como Catherine o tinha descrito: carrinhas, carros, motas, pilhas de comida do mercado negro e vários bidões de gasolina.
Neumann debruçou-se e disse:
- Se te mexeres, dou-te outro tiro e não vai ser no pé. Estás a entender?
O gigante grunhiu.
Neumann escolheu uma carrinha preta, abriu a porta e ligou o motor. Agarrou em dois bidões de gasolina e enfiou-os na parte de trás da carrinha. Pensando bem, era uma viagem muito longa. Pegou noutros dois e enfiou-os também lá. Entrou para a carrinha, levou-a até à entrada do armazém e, a seguir, saiu e abriu o portão principal.
Antes de se ir embora, ajoelhou-se ao lado do homem que tinha ferido e disse-lhe:
- Se fosse a ti, ia já para um hospital.
O homem olhou para Neumann, mais confuso do que nunca.
- Mas que raio, quem és tu, pá?
Neumann sorriu, sabendo que a verdade soaria tão absurda que o homem nunca acreditaria nela.
- Sou um espião alemão que anda a fugir do MI5.
- Pois, e eu sou o raio do Adolf Hitler.
Neumann entrou para a carrinha e arrancou a grande velocidade.
Harry Dalton tirou as proteções dos faróis e atravessou Londres perigosamente depressa, em direção a oeste. A divisão dos Transportes tinha-lhe disponibilizado um
bom motorista, capaz de andar a alta velocidade, mas Harry quis ser ele a guiar. Ia serpenteando pelo meio dos carros, a buzinar sem parar. Vicary ia sentado ao seu lado, à frente, agarrando com força e nervosamente o painel de instrumentos. Os limpa-para-brisas esforçavam-se em vão por afastar a chuva. Ao virar para Cromwell Road, Harry acelerou tanto que a traseira do carro derrapou no alcatrão escorregadio. Continuou a serpentear entre o trânsito e depois virou para sul, para Earl's Court. Entrou numa pequena rua secundária e, a seguir, avançou a toda a velocidade por uma ruela estreita, guinando uma vez para evitar um caixote do lixo e depois outra para se esquivar de um gato. Travou a fundo por trás de um prédio de apartamentos e fez o carro parar abruptamente.
Harry e Vicary saíram do carro e entraram no prédio pela porta de serviço, nas traseiras, e subiram as escadas a correr, em direção ao posto de vigilância no quinto andar. Ignorando a dor que lhe rasgava o joelho como uma faca, Vicary acompanhou o ritmo de Harry.
Pensou: Se ao menos Boothby me tivesse deixado prendê-los há umas horas, não estaríamos neste sarilho.
Era um verdadeiro desastre.
O agente com o nome de código Rudolf tinha acabado de saltar de um comboio na estação de Euston e desaparecido na cidade. Vicary tinha de partir do princípio de que ele estava naquele momento a tentar fugir do país. Não tinha outra escolha a não ser prender
Catherine Blake; precisava dela detida e assustada de morte. Nesse caso, talvez lhes dissesse para onde fora Rudolf e como planeava escapar, se havia ou não outros agentes envolvidos e onde guardava ele o rádio.
Vicary não estava otimista. Tudo o que pressentia em relação àquela mulher lhe dizia que ela não iria colaborar, mesmo enfrentando uma execução. Tudo o que precisava de fazer era aguentar o tempo necessário para Rudolf poder escapar. Se fizesse isso, a Abwehr ficaria na posse de provas que indiciavam que os serviços secretos britânicos estavam empenhados num gigantesco logro. As consequências seriam demasiado tenebrosas para considerar a hipótese. Todo o trabalho que dedicara à Operação Fortitude seria desperdiçado. Os alemães deduziriam que os Aliados desembarcariam na Normandia. A invasão teria de ser adiada e planeada de novo; caso contrário, terminaria numa catástrofe sangrenta. A ocupação da Europa Ocidental por Hitler, com mão de ferro, prosseguiria. Morreria mais um número incontável de pessoas. E tudo porque a operação de Vicary se tinha desmoronado. Naquele momento, tinham uma hipótese apenas: prendê-la, obrigá-la a falar e deter Rudolf antes que ele pudesse fugir do país ou utilizar o rádio.
Harry abriu a porta do apartamento que servia de posto de vigilância e entraram ambos. As cortinas estavam abertas, deixando ver a rua e a sala às escuras. Vicary esforçou-se por distinguir os vultos que se encontravam na sala, lembrando pelas suas poses estátuas num jardim às escuras: dois vigias com olhos congestionados, imóveis à janela; meia dúzia de homens tensos da Divisão Especial, encostados a uma parede. O agente da Divisão Especial de posição superior chamava-se Cárter. Era grande e de rosto rude, com um pescoço grosso e pele bexigosa. Tinha um cigarro, apagado por motivos de segurança, a pender-lhe do canto da boca grande. Quando Harry apresentou Vicary, apertou-lhe a mão e, a seguir, levou-o para a janela para lhe explicar a disposição das forças ao seu comando. O cigarro apagado ia soltando cinza enquanto ele falava.
- Vamos entrar pela porta da frente - disse Cárter, com um ligeiro sotaque do norte de Inglaterra. - Quando o fizermos, vamos
fechar a rua numa e noutra ponta e dois homens vão vigiar as traseiras do prédio. Assim que entrarmos lá dentro, ela não vai poder fugir para lado nenhum.
- É extremamente importante que a capturem viva - sublinhou Vicary. - Não nos serve absolutamente de nada morta.
- Harry diz que ela tem jeito para as armas.
- É verdade. Temos razões para acreditar que ela tem uma pistola e está disposta a utilizá-la.
- Vamos capturá-la tão depressa que ela nem vai perceber o que lhe aconteceu. Estamos prontos assim que nos mandar avançar.
Vicary afastou-se da janela e atravessou a sala, dirigindo-se para o telefone. Marcou o número do departamento e esperou que a telefonista passasse a chamada para o gabinete de Boothby.
- Os homens da Divisão Especial estão prontos para avançar assim que lhes dermos essa ordem - anunciou Vicary quando a voz de Boothby se ouviu do outro lado da linha. -Já temos autorização?
- Não. O Comité dos Vinte ainda está a deliberar. E não podemos avançar até eles aprovarem isso. Agora, a bola está do lado deles.
- Meu Deus! Se calhar, alguém devia explicar ao Comité dos Vinte que tempo é coisa que não temos em grande abundância nesta altura. Para termos sequer uma hipótese mínima de apanhar Rudolf, precisamos de saber para onde é que ele vai.
- Eu compreendo o seu dilema - retorquiu Boothby. Vicary pensou: O seu dilema. O meu dilema, Sir Basil? Atirou:
- E quando é que eles vão decidir?
- A qualquer momento. Ligo-lhe logo a seguir.
Vicary desligou e começou a percorrer a sala escura. Virou-se para um dos vigias e perguntou:
- Há quanto tempo é que ela já ali está?
- Há coisa de um quarto de hora.
- Um quarto de hora? Porque é que ela ficou tanto tempo na rua? Não estou a gostar disto.
O telefone tocou. Vicary lançou-se para o atender e levou o auscultador ao ouvido. Basil Boothby disse:
- Temos a aprovação do Comité dos Vinte. Prenda-a, Alfred. E boa sorte.
Vicary bateu com o auscultador com força.
- Luz verde, cavalheiros - afirmou, voltando-se para Harry. Viva. Precisamos dela viva.
Harry assentiu com a cabeça, de cara fechada, e depois conduziu os homens da Divisão Especial para fora do apartamento, em fila indiana. Vicary ouviu o ruído dos seus passos ao descerem as escadas a desaparecer gradualmente. A seguir, passado um momento, viu-Ihes as cabeças quando saíram do prédio e começaram a atravessar a rua em direção ao apartamento de Catherine Blake.
Horst Neumann estacionou a carrinha numa pequena e sossegada rua secundária, ao virar da esquina do apartamento de Catherine. Saiu e fechou a porta sem fazer barulho. Seguiu rapidamente pelo passeio, com as mãos bem enfiadas nos bolsos, uma delas agarrada à coronha da Mauser.
A rua estava completamente às escuras. Chegou ao monte de destroços que tinha sido em tempos a fila de casas por trás do apartamento. Foi avançando às apalpadelas pelo meio de madeira partida, tijolos desfeitos e canos retorcidos. Os destroços terminavam numa parede com quase dois metros de altura. Do lado de lá da parede,
encontrava-se o jardim que ficava nas traseiras da casa - Neumann já o tinha visto da janela do quarto dela. Experimentou o portão; estava trancado. Teria de o abrir
pelo outro lado.
Colocou as mãos no cimo da parede, fez força com as pernas e puxou com os braços. Já em cima da parede, passou uma perna para o outro lado e rodou o corpo. Ficou assim pendurado durante alguns segundos, a olhar para baixo. O chão era invisível na escuridão. Podia cair em cima de qualquer coisa - num cão que estivesse a dormir ou numa fila de caixotes do lixo, que fariam uma barulheira terrível se aterrasse em cima deles. Pôs a hipótese de acender a lanterna por um segundo, mas isso poderia atrair atenções. Saltou da parede e caiu pela escuridão abaixo. Não havia cães nem caixotes do lixo, só um arbusto espinhoso qualquer que se espetou na sua cara
e no casaco.
Neumann libertou-se dos espinhos do arbusto e depois destrancou o portão. Atravessou o jardim até à porta das traseiras. Experimentou o trinco - estava trancada. A porta tinha uma janela. Enfiou a mão no bolso do casaco, tirou a Mauser e serviu-se dela para partir a vidraça no canto inferior esquerdo. O barulho foi surpreendentemente alto. Enfiou a mão pela vidraça partida, destrancou a porta e, a seguir, subiu as escadas.
Chegou à porta de Catherine e bateu ao de leve.
Do lado de lá da porta, ouviu a voz dela a perguntar:
- Quem é?
- Sou eu.
Ela abriu a porta. Neumann entrou e fechou-a. Catherine usava calças, uma camisola grossa e um casaco de cabedal. A mala rádio estava encostada à porta. Neumann
olhou para a cara dela. Estava pálida.
- Pode ser imaginação minha - disse ela -, mas acho que se passa qualquer coisa lá em baixo. Vi uns homens a rondar a rua e dentro de carros estacionados.
O apartamento estava às escuras, com uma única luz acesa na sala de estar. Neumann atravessou a sala rapidamente, em poucas passadas, e desligou-a. Foi até à janela e levantou a ponta do cortinado opaco, espreitando para a rua. O trânsito noturno circulava lá em baixo, lançando a luz necessária para que ele visse quatro homens a saírem em grande velocidade do prédio em frente, do outro lado da rua, e a avançarem em direção a eles.
Neumann virou-se e arrancou a Mauser do bolso.
- Eles vêm aí. Pega no rádio e segue-me lá para baixo. Já!
Harry Dalton abriu de rompante a porta da frente do prédio e entrou, com os homens da Divisão Especial logo atrás. Acendeu a luz do vestíbulo a tempo de ver Catherine Blake fugir pela porta das traseiras, com a mala do rádio a balançar-lhe no braço.
Horst Neumann tinha aberto a porta das traseiras a pontapé e estava a correr pelo jardim quando ouviu o grito vindo da casa. Avançou a toda a velocidade pela cortina de escuridão, com a Mauser à sua frente e a mão esticada. O portão abriu-se de rompante e uma figura surgiu lá, em silhueta de pistola erguida. Gritou a Neumann para parar. Neumann continuou a correr, disparando duas vezes. O primeiro tiro atingiu o homem no ombro, fazendo-o rodar. O segundo desfez-Ihe a espinha, matando-o de imediato.
Um segundo homem ocupou o lugar dele e tentou disparar. Neumann apertou o gatilho. A Mauser deu um salto na sua mão, sem fazer praticamente barulho, apenas o clique surdo do mecanismo de disparo. A cabeça do homem explodiu.
Neumann atravessou o portão a correr, passando por cima dos corpos e espreitando no meio do blackout. Não havia mais ninguém atrás da casa. Voltou-se e viu Catherine, a poucos metros dele, a correr com o rádio. Estavam três homens a persegui-la. Neumann ergueu a pistola e disparou para a escuridão. Ouviu dois homens a gritarem. Catherine continuou a correr.
Ele virou-se e começou a atravessar os destroços em direção à carrinha.
Harry sentiu as balas passarem-lhe rente à cabeça. Ouviu os gritos dos dois homens que iam atrás de si. Ela estava mesmo à sua frente. Mergulhou na escuridão, com os braços esticados para a frente. Apercebeu-se de que se encontrava numa situação de clara desvantagem; estava desarmado e sozinho. Podia parar e procurar uma das armas dos homens da Divisão Especial, para depois os perseguir e tentar alvejá-los aos dois. Mas o mais certo seria Rudolf matá-lo algures pelo caminho. Podia parar, dar meia-volta, voltar para dentro do prédio e avisar o posto de vigilância. Mas, por essa altura, já Catherine Blake e Rudolf teriam desaparecido há muito, eles seriam obrigados a recomeçar a maldita busca desde o início, os espiões utilizariam o rádio para comunicar a Berlim o que tinham descoberto e a porra da guerra estaria perdida, raios partam!
O rádio!
Pensou: Posso já não ser capaz de os parar, mas posso cortar-lhes o acesso a Berlim durante algum tempo.
Harry saltou no meio da escuridão, soltando um grito profundo, e agarrou a mala com as duas mãos. Tentou arrancá-la a Catherine, mas ela virou-se e puxou pela mala
com uma força surpreendente. Ele levantou os olhos e viu pela primeira vez a cara dela: vermelha, contorcida de medo e feia de raiva. Tentou arrancar-lhe a mala
das mãos novamente, mas não a conseguiu soltar; Catherine tinha os dedos bem cerrados à volta da pega, como um torno. Ela gritou pelo nome verdadeiro de Rudolf.
Soou a Wurst.
Foi então que Harry ouviu um clique. Já o tinha ouvido nas ruas da zona leste de Londres, antes da guerra, o som da lâmina de uma faca de ponta e mola a ser aberta
com um estalido. Viu o braço dela erguer-se e depois a baixar-se num arco violento em direção à sua garganta. Se ele levantasse o braço, poderia desviar o golpe.
Mas isso significaria que ela seria capaz de arrancar o rádio das mãos dele. Continuou a agarrá-lo e tentou esquivar-se da faca rodando a cabeça. A ponta da lâmina
acertou-lhe de lado na cara. Sentiu a carne rasgar-se. A dor surgiu passado um instante - penetrante, como se lhe tivessem atirado metal derretido à cara. Harry gritou, mas não largou a mala. Ela ergueu o braço novamente, enterrando-lhe desta feita a ponta da faca no antebraço. Harry berrou outra vez de dor, com os dentes cerrados, mas as mãos continuaram agarradas à mala. Era como se já estivessem a agir por sua própria vontade. Nada, nenhuma dor no mundo, seria capaz de as obrigar a soltarem-se.
Ela largou a mala e disse:
- É um homem corajoso, se está disposto a morrer por um rádio.
A seguir, virou-se e desapareceu no meio da escuridão.
Harry ficou deitado no chão molhado. Quando ela já estava longe dali, levou a mão à cara e ficou com vontade de vomitar quando sentiu o osso quente do próprio maxilar. Estava a perder os sentidos; a dor começava a esbater-se. Ouviu os homens da Divisão Especial que tinham sido feridos a gemerem ali perto. Sentiu a chuva bater-lhe na cara. Fechou os olhos. Sentiu alguém a encostar-lhe qualquer coisa à cara. Quando abriu os olhos, viu Alfred Vicary debruçar-se sobre ele.
- Disse-lhe para ter cuidado, Harry.
- Ela levou o rádio?
- Não. O Harry impediu-a de levar o rádio.
- E eles escaparam-se?
- Sim. Mas estamos a persegui-los.
Foi então que a dor se apoderou de Harry muito repentinamente. Começou a tremer e pareceu-lhe que ia vomitar. A seguir, o rosto de Vicary transformou-se em água e Harry perdeu os sentidos.
CINQUENTA LONDRES
Uma hora após o desastre em EarPs Court, Alfred Vicary já tinha orquestrado a maior caça ao homem da história do Reino Unido. Todas as esquadras de polícia do país - de Penzance a Dover, de Portsmouth a Inverness - receberam uma descrição dos espiões fugitivos. Para as cidades, povoações e aldeias perto de Londres, Vicary enviou fotografias por estafetas de mota. Foi dito à maioria dos polícias envolvidos na busca que os fugitivos eram suspeitos em quatro homicídios ocorridos já em 1938. Um punhado de agentes com posições de grande importância foi discretamente informado de que se tratava de um assunto de segurança da máxima importância - tão importante que o primeiro-ministro se encontrava a acompanhar a evolução da caçada pessoalmente.
A Polícia Metropolitana de Londres respondeu com velocidade extraordinária e, quinze minutos depois do primeiro telefonema de Vicary, já tinham sido estabelecidas barricadas em todas as principais artérias que saíam da cidade. Vicary tentou abranger todos os percursos de fuga possíveis. O MI5 e a polícia ferroviária rondavam as estações mais importantes. Os operadores dos ferríes irlandeses também receberam uma descrição dos suspeitos.
A seguir, Vicary contactou a BBC e pediu para falar com o chefe de redação que se encontrava em serviço. No noticiário das nove horas, a notícia de abertura da BBC foi um tiroteio em Earl's Court, que tinha deixado dois polícias mortos e três feridos. A notícia incluía
uma descrição de Catherine Blake e de Rudolf e concluía com um número de telefone para onde as pessoas podiam ligar para prestarem informações. Passados cinco minutos, os telefones começaram a tocar. As datilógrafas transcreveram todas as chamadas bem-intencionadas e transmitiram-nas a Vicary. Este atirou a maior parte logo para o cesto do lixo. Investigou algumas. Nenhuma deu qualquer resultado.
A seguir, voltou a atenção para os percursos de fuga que apenas um espião utilizaria. Contactou a RAF e pediu-lhes para estarem atentos a aviões leves. Contactou o Almirantado e pediu-lhes para terem atenção a eventuais submarinos que se aproximassem da costa. Contactou a Polícia Marítima e pediu-lhes para ficarem atentos a pequenas embarcações que seguissem para o mar. Telefonou para os monitores das estações de recolha de comunicações e pediu-lhes para ouvirem atentamente as transmissões radiofónicas e informarem se
fossem suspeitas.
Vicary levantou-se da secretária e saiu do gabinete pela primeira vez em duas horas. O centro de operações em West Halkin Street tinha sido abandonado e a sua equipa já regressara lentamente a St. James's Street. Estavam sentados na área comum à saída do gabinete, como sobreviventes aturdidos de um desastre natural, molhados, exaustos, derrotados. Clive Roach estava sentado sozinho, cabisbaixo e de mãos entrelaçadas. De quando em quando, um dos vigias pousava a mão no ombro dele, murmurava-lhe ao ouvido palavras encoraj adoras e seguia o seu caminho em silêncio. Peter Jordan andava de um lado para o outro. Tony Blair estava a fitá-lo com um olhar assassino. O único som que se ouvia era o dos teleimpressores e o da tagarelice das raparigas ao telefone.
O silêncio foi interrompido por uns minutos, às nove horas, quando Harry Dalton entrou na sala com a cara e o braço enfaixados. Toda a gente se levantou para se amontoar à volta dele - Muito bem, Harry, meu velho... mereces uma medalha... mantiveste-nos à tona, Harry... estava tudo acabado se não fosses tu...
Vicary puxou-o para dentro do gabinete.
- Não devia estar deitado a descansar?
- Sim, mas prefiro estar aqui.
- E como estão as dores?
- Podiam estar piores. Deram-me umas coisas para ajudar.
- Ainda tem dúvidas de qual seria a sua reação debaixo de fogo, no campo de batalha?
Harry conseguiu esboçar um meio sorriso, baixou os olhos e abanou a cabeça.
- Já houve algum avanço? - perguntou, mudando rapidamente de assunto.
Vicary abanou a cabeça.
- O que fez?
Vicary pô-lo a par das medidas tomadas.
- Foi uma jogada arrojada da parte de Rudolf ter ido buscá-la daquela maneira, sacando-a mesmo debaixo do nosso nariz. Ele tem coragem, lá isso não há que negar. E como é que Boothby está a reagir?
- Tão bem quanto seria de esperar. Está lá em cima com o diretor-geral. Provavelmente, a planear a minha execução. Temos uma linha aberta para as Salas de Guerra Subterrâneas e o primeiro-ministro. O Velho está a receber atualizações a cada minuto. Quem me dera ter qualquer coisa para lhe dizer.
- Não deixou escapar nenhuma opção possível. Agora, só lhe resta sentar-se e esperar que haja algum avanço. Eles têm de se mexer para algum lado. E, quando o fizerem, vamos logo saber.
- Quem me dera partilhar do seu otimismo.
Harry fez um esgar de dor e pareceu subitamente muito cansado.
- vou deitar-me um bocado. Começou a sair do gabinete devagar. Vicary perguntou:
- Grace Clarendon está de serviço hoje à noite?
- Sim, acho que sim.
O telefone tocou. Basil Boothby disse:
- Venha cá acima imediatamente, Alfred.
A luz verde estava acesa sobre a porta do gabinete de Boothby. Vicary entrou e deu com Sir Basil a andar de um lado para o outro e a fumar sem parar. Tinha tirado o casaco; o colete estava desabotoado e o nó da gravata folgado. com um ar irritado, fez sinal a Vicary para se sentar numa cadeira e disse:
- Sente-se, Alfred. Bem, hoje à noite as luzes estão acesas por toda a Londres: Grosvenor Square, o quartel-general pessoal de gisenhower em Hayes Lodge, as Salas de Guerra Subterrâneas. E querem todos saber uma coisa. Será que Hitler sabe que é na Normandia? Será que a invasão está acabada mesmo antes de começar?
- Evidentemente, ainda não temos forma de saber isso.
- Meu Deus! - exclamou Boothby, esmagando o cigarro e acendendo outro logo de seguida. - Dois agentes da Divisão Especial mortos, outros três feridos. O que nos valeu foi o Harry.
- Ele está lá em baixo. Tenho a certeza de que gostaria de ouvir isso da sua boca.
- Não temos tempo para conversas para animar as hostes, Alfred. Precisamos de os parar e de fazer isso depressa. Não preciso de lhe explicar o que está em jogo.
- Pois não, Sir Basil, não precisa.
- O primeiro-ministro quer atualizações de meia em meia hora. Há alguma coisa que eu lhe possa dizer?
- Infelizmente, não. Não deixámos escapar nenhum percurso de fuga possível. Quem me dera poder dizer com toda a segurança que os vamos apanhar, mas acho que seria pouco prudente subestimá-los. Já provaram isso vezes sem conta.
Boothby recomeçou a andar de um lado para o outro.
- Dois homens mortos, três feridos e dois espiões, na posse de informações capazes de desvendar o logro que orquestrámos, em fuga, nscusado será dizer, isto é o pior desastre da história do departamento.
- A Divisão Especial avançou com os homens que considerou necessários para a prender. Obviamente, foi um erro de cálculo.
Boothby parou de se mexer e lançou um olhar assassino a Vicary.
- Não tente culpar a Divisão Especial pelo que aconteceu, Alfred. Você era o agente mais graduado no local. Esse aspeto da Operação Kettledrum era da sua responsabilidade.
- Tenho consciência disso, Sir Basil.
- Otimo, já que, quando tudo isto terminar, vai reunir-se um comité interno e duvido que o seu desempenho seja visto com bons olhos.
Vicary levantou-se.
- É tudo, Sir Basil?
- Sim.
Vicary deu meia-volta e dirigiu-se para a porta.
O uivo longínquo das sirenes de ataque aéreo começou a ouvir-se quando Vicary estava a descer as escadas para a divisão dos Registos. As salas estavam parcialmente às escuras, apenas com uma ou outra luz acesa. Como sempre, o cheiro daquele sítio não passou despercebido a Vicary: papel em decomposição, pó, humidade e um ténue vestígio do tenebroso cachimbo de Nicholas Jago. Olhou para o gabinete envidraçado de Jago. A luz estava apagada e a porta bem fechada. Ouviu o som vivo de sapatos de mulher a baterem no chão e reconheceu a passada tempestuosa e enérgica de Grace Clarendon, digna de uma parada militar. Viu o seu cabelo loiro a passar rapidamente pelas pilhas de documentos, como uma aparição, e depois a desaparecer. Seguiu-a até uma das salas laterais e chamou-a ainda a uma certa distância, para não a assustar. Ela virou-se, fitou-o com olhos verdes hostis e depois voltou-se outra vez de costas para ele e recomeçou a arquivar os documentos.
- Isto é oficial, professor Vicary? - perguntou ela. - É que, se não for, vou ter de lhe pedir para se ir embora. Já me causou problemas suficientes. Se me virem a falar outra vez consigo, será uma sorte se conseguir emprego como o raio de uma fiscal do blackout. Por favor, vá-se embora, professor.
- Preciso de consultar um dossiê, Grace.
- Sabe qual é o procedimento, professor. Preencha uma requisição. Se a requisição for autorizada, pode consultar o ficheiro.
- Não me vão dar autorização para consultar o dossiê que preciso de consultar.
- Então não o pode consultar - retorquiu ela, com a voz a adquirir o tom de fria eficiência de uma diretora de escola. - As regras são essas.
As primeiras bombas começaram a cair do lado de lá do rio, segundo levava a crer o barulho. Foi então que as baterias antiaéreas
dos parques abriram fogo. Vicary ouviu o zumbido dos bombardeiros Heinkel por cima da cabeça. Grace parou o que estava a fazer e olhou para cima. Uma rajada de bombas
caiu ali perto - demasiado perto, já que todo o edifício começou a abanar e os dossiês a caírem das prateleiras. Grace olhou para aquela confusão e exclamou:
- Raios me partam!
- Eu sei que Boothby a anda a obrigar a fazer coisas que a Grace não quer. Ouvi-vos a discutirem no gabinete dele e vi-a a entrar para o carro dele na Northumberland Avenue ontem à noite. E não me diga que andam apenas envolvidos romanticamente porque eu sei que está apaixonada por Harry.
Vicary reparou no brilho das lágrimas nos olhos verdes de Grace e o dossiê que ela segurava começou a tremer.
- A culpa é sua, maldição! - disparou ela. - Se não lhe tivesse falado do dossiê Vogel, não estava metida neste sarilho.
- O que é que ele a está a obrigar a fazer? Ela hesitou.
- Por favor, vá-se embora, professor. Por favor.
- Não me vou embora enquanto não me disser o que é que Boothby queria que a Grace fizesse.
- Raios, professor Vicary, ele queria que eu o espiasse a si! E a Harry! - gritou ela, forçando-se depois a baixar a voz. - Tudo o que Harry me contasse, fosse na cama ou noutro sítio, devia ser-lhe transmitido.
- E o que lhe contou?
- Tudo o que Harry me mencionou sobre o caso e os avanços na investigação. E também lhe falei da pesquisa que o senhor pediu para fazer na base de dados dos Registos - explicou ela, tirando um punhado de dossiês do carrinho e recomeçando a arquivá-los. Ouvi dizer que Harry esteve envolvido naquela confusão em Earl's Court.
- Esteve, sim senhor. Aliás, ele é o homem do momento.
- E ficou ferido?
Vicary assentiu com a cabeça.
- Está lá em cima. Os médicos não conseguiram que ele ficasse
na cama.
- Provavelmente, fez qualquer coisa estúpida, não foi? A tentar provar o que vale. Meu Deus, às vezes, ele é mesmo capaz de ser um idiota teimoso e estúpido.
- Grace, preciso de consultar um dossiê. Boothby vai despedir-me quando este assunto estiver terminado e eu só preciso de saber porquê.
Ela fitou-o com uma expressão grave.
- Está a falar a sério, não está, professor?
- Infelizmente, sim.
Sem dizer nada, ela olhou para ele durante um momento, ao mesmo tempo que o prédio estremecia com as ondas de choque da bomba.
- Qual é o dossiê? - perguntou.
- O de uma operação chamada Kettledrum. Grace franziu o sobrolho, confusa.
-- Mas isso não é o nome de código da operação em que o senhor está envolvido agora?
- É.
- Espere lá um minuto. O senhor quer que eu arrisque o pescoço para lhe mostrar o dossiê do seu próprio caso?
- Qualquer coisa do género - respondeu Vicary. - Só que quero que o cruze com o rome do agente responsável por outro caso,
- Quem?
Vicary olhou diretamente para os olhos verdes dela e articulou com os lábios as iniciais BB.
Ela regressou passados cinco minutos, trazendo uma capa de dossiê vazia.
- Operação Kettledrum - anunciou. - Extinta.
- E onde está o que se encontrava aí dentro?
- Ou foi destruído ou está com o agente responsável.
- E quando é que o dossiê foi aberto? - perguntou Vicary. Grace olhou para a etiqueta do dossiê e depois para Vicary.
- Que estranho - disse ela. - Segundo isto, a Operação Kettledrum teve início em outubro de 1943.
CINQUENTA E UM
CAMBRIDGESHIRE, INGLATERRA
Quando a Scotland Yard respondeu ao pedido de barricadas feito por Alfred Vicary, já Horst Neumann tinha saído de Londres, avançando a toda a velocidade em direção
a norte, pela AIO. Era evidente que a carrinha se encontrava em bom estado. Era capaz de atingir pelo menos os cem quilómetros por hora e o motor funcionava sem
problemas. Os pneus ainda possuíam uma quantidade aceitável de piso e agarravam-se surpreendentemente bem à estrada molhada. E havia uma outra característica bastante prática - uma carrinha preta não chamava a atenção no meio dos outros veículos comerciais na estrada. Uma vez que o racionamento de gasolina tornava praticamente impossível andar de carro não comercial, qualquer pessoa que estivesse a conduzir um automóvel àquelas horas da noite poderia ser mandada parar pela polícia e interrogada.
A estrada seguia a direito pelo terreno maioritariamente plano. Neumann inclinou-se sobre o volante enquanto guiava, espreitando para a pequena poça de luz produzida pelos faróis encobertos. Por um instante, pensou em retirar as proteções dos faróis, mas decidiu que era demasiado arriscado. Passou a grande velocidade por aldeias com nomes estranhos - Puckeridge, Buntingford - às escuras, sem uma luz acesa nem ninguém na rua. Era como se o tempo tivesse retrocedido dois mil anos. Neumann dificilmente ficaria surpreendido se visse uma legião romana acampada nas margens do rio Cam.
Mais aldeias - Melbourn, Foxton, Newton, Hauxton. Durante o treino na quinta de Vogel à saída de Berlim, Neumann tinha passado horas a estudar mapas antigos do Reino Unido, do serviço cartográfico e topográfico oficial. Suspeitava que conhecia as estradas e os trilhos de East Anglia tão bem como a maioria dos ingleses, talvez até melhor.
Melbourn, Foxton, Newton, Hauxton.
Estava a aproximar-se de Cambridge.
Cambridge significava problemas. com certeza que o MI5 tinha alertado as forças policiais das principais cidades e povoações. Neumann calculou que a polícia das aldeias e dos lugarejos não representaria grande ameaça. Os agentes faziam as suas rondas a pé ou de bicicleta e raramente tinham carros, ao passo que o estado das comunicações era tão fraco que talvez ainda não tivessem recebido sequer a informação. Estava a atravessar tão depressa as aldeias às escuras devido ao blackout que um polícia nem os chegaria a ver. Cidades como Cambridge eram diferentes. Provavelmente, o MI5 tinha alertado a polícia de Cambridge. E esta possuía homens suficientes para estabelecer uma barricada numa via importante como a AIO. Esses homens tinham carros e podiam dar início a uma perseguição. Neumann conhecia as estradas e era um condutor competente, mas não teria hipótese contra um polícia experiente daquela região.
Antes de chegar a Cambridge, Neumann virou para uma pequena estrada secundária. Contornou a base das Gog Magog Hills e seguiu para norte pela orla leste da cidade. Mesmo na escuridão do blackout, conseguiu distinguir os pináculos da King's Church e da St. John's Church. Passou por uma aldeia chamada Horningsea, atravessou o Cam e entrou em Waterbeach, uma aldeia cortada a meio pela AIO. Avançou lentamente pelas ruas às escuras até descobrir a maior; não havia tabuletas que indicassem a AIO, mas partiu do princípio de que teria de ser ali. Virou à direita, dirigindo-se para norte, e, passado um momento, estava a percorrer a paisagem plana e solitária das Fens.
Os quilómetros foram passando muito depressa. A chuva abrandou, mas o vento, naquela região pantanosa e sem nada no seu caminho até ao mar do Norte, maltratou a carrinha como se esta fosse
um brinquedo de criança. A estrada seguia junto à margem do rio Great Ouse e depois por Southery Fens. Atravessaram as aldeias de Southery e Hilgay. A povoação importante seguinte era Downham Jvlarket, mais pequena do que Cambridge, mas Neumann partiu do princípio de que teria a sua própria força policial e que representava portanto uma ameaça. Repetiu a opção que tinha tomado em Cambridge, virando para uma estrada secundária mais pequena, circundando a orla da povoação e regressando à AIO a norte.
Passados dezasseis quilómetros, chegou a King's Lynn, o porto situado no sudeste de Wash e a povoação mais importante na costa de Norfolk. Neumann voltou a sair da AIO e seguiu por uma pequena estrada secundária a leste da cidade.
A estrada era de má qualidade - em muitos pontos, não pavimentada e com apenas uma faixa - e o terreno tornou-se montanhoso e arborizado. Parou e despejou dois bidões de gasolina no depósito. O tempo ia piorando à medida que se aproximavam da costa. Por vezes, Neumann parecia estar a deslocar-se a pé. Receou ter cometido um erro ao sair da estrada em melhores condições, talvez estivesse a ser demasiado cauteloso. Após mais de uma hora de condução atribulada, chegou ao litoral.
Passou por Hampton Sands, atravessou a enseada e acelerou pelo trilho. Sentiu-se aliviado - finalmente, uma estrada conhecida. O chalé dos Dogherty surgiu ao longe. Neumann virou para o caminho de entrada. Viu a porta abrir-se e o brilho de um candeeiro a querosene aproximar-se deles. Era Sean Dogherty, com o seu oleado e chapéu
impermeável, e uma caçadeira ao ombro.
Sean Dogherty não tinha ficado preocupado quando não viu Neumann sair do comboio da tarde, em Hunstanton. Neumann tinha-o avisado de que poderia ficar em Londres
mais tempo do que o costume. Dogherty resolveu esperar pelo comboio da noite. Saiu da estação e entrou numpub ali perto. Pediu uma tarte de batata e cenoura e acompanhou-a com dois copos de cerveja. A seguir, saiu do pub e passeou-se pela zona ribeirinha. Antes da guerra, Hunstanton era uma popular estância balnear porque a sua localização na ponta
leste da Wash dava azo a pores do Sol extraordinários sobre a água. Nessa noite, os velhos hotéis eduardianos estavam maioritariamente vazios e tinham um ar sombrio sob a chuva a cair ininterruptamente. O pôr do Sol não era mais que uma última luz cinzenta a escapar-se das nuvens de tempestade. Dogherty deixou a zona ribeirinha e regressou à estação para acompanhar a chegada do comboio da noite. Ficou parado na plataforma, a fumar e a observar o punhado de passageiros que desembarcava. Quando viu que Neumann não se encontrava entre eles, Dogherty ficou alarmado.
Entrou no carro e voltou para Hampton Sands, pensando nas palavras de Neumann no início dessa semana. Neumann tinha-lhe dito que era possível que a operação estivesse prestes a terminar, possível que ele se fosse embora de Inglaterra e voltasse para Berlim. Dogherty pensou: Mas porque não veio no maldito comboio?
Chegou ao chalé e entrou. Mary, sentada junto à lareira, lançou-lhe um olhar feroz e depois subiu as escadas para o andar de cima. Dogherty ligou a telefonia. O
noticiário chamou-lhe a atenção. Estava em curso uma busca à escala nacional para capturar dois supostos assassinos que tinham participado num tiroteio com a polícia ao início da noite, no bairro londrino conhecido como Earl's Court.
Dogherty aumentou o som quando o locutor começou a descrever os dois suspeitos. O primeiro, surpreendentemente, era uma mulher. O segundo era um homem cuja descrição
correspondia sem tirar nem pôr a Horst Neumann.
Dogherty desligou o rádio. Seria possível que estes dois suspeitos envolvidos no tiroteio em Earl's Court fossem Neumann e o outro agente? Estariam naquele instante
a fugir do MI5 e de metade da polícia do Reino Unido? Estariam a caminho de Hampton Sands ou deixá-lo-iam para trás? Foi então que pensou: Será que os britânicos
sabem que eu também sou um espião?
Foi para o andar de cima, meteu uma muda de roupa num pequeno saco de lona e desceu outra vez as escadas. Foi até ao celeiro, descobriu a caçadeira e carregou dois cartuchos no cano.
Quando regressou ao chalé, Dogherty sentou-se à janela, à espera. Já quase tinha perdido a esperança quando avistou a luz saída dos
faróis encobertos a avançar pela estrada, em direção ao chalé. No momento em que a carrinha virou para o pátio da quinta, conseguiu ver que era Neumann que vinha ao volante. Estava uma mulher sentada no lugar do passageiro.
Dogherty levantou-se e pôs o oleado e o chapéu. Acendeu o candeeiro a querosene, pegou na caçadeira e saiu de casa, enfrentando a chuva.
Martin Colville examinou o rosto ao espelho: nariz partido, olhos negros, lábios inchados, uma contusão no lado direito da cara.
Entrou na cozinha e verteu as últimas e preciosas gotas de uma garrafa de uísque. Todos os seus instintos lhe diziam que havia qualquer coisa de errado no homem chamado James Porter. Não acreditava que ele fosse um soldado britânico ferido. Não acreditava que ele fosse um velho conhecido de Sean Dogherty. Não acreditava que ele tivesse vindo para Hampton Sands pelo ar do oceano.
Tocou no rosto desfeito e pensou: Nunca ninguém me fez isto em toda a minha vida e não vou deixar que aquele sacana fique impune.
Colville bebeu o uísque de um só gole e, a seguir, colocou a garrafa vazia e o copo no lava-louças. Ouviu o ruído de um motor lá fora. Foi até à porta e espreitou. Uma carrinha passou depressa. Colville conseguiu ver James Porter ao volante e uma mulher no lugar do passageiro.
Fechou a porta e pensou: Mas que raio anda ele a fazer a estas horas da noite? E onde é que arranjou a carrinha?
Decidiu que iria descobrir. Entrou na sala de estar e tirou uma caçadeira calibre 12 da prateleira por cima da lareira. Os cartuchos estavam na gaveta da cozinha. Abriu-a e pôs-se a vasculhar na confusão de coisas que havia lá dentro, até encontrar a caixa. Saiu de casa e subiu para a bicicleta.
Passado um momento, Colville estava a pedalar no meio da chuva, com a caçadeira em cima do guiador, a caminho do chalé dos Dogherty.
Lá em cima, no seu quarto, Jenny Colville ouviu a porta da frente a abrir-se e a fechar-se uma vez. A seguir, ouviu o ruído de um veículo a passar, pouco comum àquelas horas da noite. Quando ouviu
a porta a abrir-se e a fechar-se uma segunda vez, ficou assustada. Levantou-se da cama e atravessou o quarto. Abriu a cortina e espreitou a tempo de ver o pai a afastar-se de bicicleta através da escuridão.
Bateu com força na janela, mas foi em vão. Passados uns segundos, ele já tinha desaparecido.
Jenny estava apenas de camisa de dormir. Tirou-a, vestiu umas calças e uma camisola e desceu as escadas. As botas de borracha estavam ao lado da porta. Ao calçá-las, reparou que a caçadeira que estava habitualmente pendurada sobre a lareira tinha desaparecido. Espreitou para a cozinha e viu que a gaveta onde os cartuchos estavam guardados se encontrava aberta. Vestiu o casaco e saiu rapidamente.
Jenny andou às apalpadelas no escuro até dar com a bicicleta encostada ao chalé. Empurrou-a pelo trilho, subiu para cima dela e pôs-se a pedalar atrás do pai, em direção ao chalé dos Cottage, e a pensar: Por favor, Deus, faz com que eu o consiga parar antes que alguém acabe morto hoje à noite.
Sean Dogherty abriu a porta do celeiro e levou-os para dentro, iluminados pelo candeeiro a querosene. Tirou o chapéu impermeável e desabotoou o oleado, olhando de seguida para Neumann e para a mulher.
Neumann, disse:
- Sean Dogherty, Catherine Blake. Sean fazia parte de um grupo chamado Exército Republicano Irlandês, mas foi-nos emprestado durante a guerra. Catherine também trabalha para Kurt Vogel. Desde
1938 que vive em Inglaterra, infiltrada profundamente.
Para Catherine, foi uma sensação estranha ouvir o seu passado e o seu trabalho serem referidos com tanta despreocupação. Depois de tantos anos a esconder a sua identidade, depois de todas as precauções, depois de toda a ansiedade, era difícil imaginar que estava tudo prestes a terminar.
Dogherty olhou para ela e, a seguir, para Neumann.
- A BBC passou a noite inteira a dar noticiários sobre um tiroteio em Earl's Court. Calculo que tenham estado envolvidos nisso, não?
Neumann assentiu com a cabeça.
- Mas não eram polícias londrinos vulgares. Eram do MI5 e da IDivisão Especial, diria eu. O que é que a rádio anda a dizer?
- Que vocês mataram dois e feriram outros três. Está em curso uma busca nacional, para vos encontrar, e pediram ajuda a todas as pessoas. O mais provável é metade
do país andar neste momento por aí a vasculhar tudo à vossa procura. Fico surpreendido por terem conseguido chegar tão longe.
- Mantivemo-nos afastados das terras mais importantes. Parece que resultou. Até agora, não vimos nenhum polícia na estrada.
- bom, isso não vai durar, podem ter a certeza.
Neumann olhou para o relógio - passavam poucos minutos da meia-noite. Pegou no candeeiro a querosene de Sean e levou-o para a mesa de trabalho. Tirou o rádio do armário e ligou-o.
- O submarino anda em patrulha no mar do Norte. Depois de receber o nosso sinal, vai deslocar-se precisamente dezasseis quilómetros para leste de Spurn Head e vai lá ficar até às seis horas. Se não aparecermos, afasta-se da costa e fica à espera de notícias nossas.
Catherine perguntou:
- E como vamos conseguir estar dezasseis quilómetros para leste de Spurn Head? Dogherty interveio:
- Há um tipo chamado Jack Kincaid. Tem um pequeno barco de pesca num cais do rio Humber.
Dogherty foi buscar um mapa antigo do serviço oficial de topografia e cartografia, anterior à guerra.
- O barco está aqui - indicou, batendo com o dedo no mapa.
- Numa terra chamada Cleethorpes. Fica a uns cento e sessenta quilómetros daqui. Vai ser difícil guiar com este mau tempo, ainda por cima com o blackout, O Kincaid tem um apartamento por cima de uma garagem na zona ribeirinha. Falei com ele ontem. Sabe que é possível aparecermos.
Neumann assentiu com a cabeça e disse:
- Se sairmos agora, temos à volta de seis horas para fazer a viagem. Acho que conseguimos fazê-lo esta noite. A próxima oportunidade que temos para irmos ter com
o submarino é daqui a três dias.
Não me encanta muito a ideia de ficar escondido durante três dias com todos os polícias do Reino Unido a vasculharem por todo o lado à nossa procura. Digo que devíamos ir esta noite.
Catherine assentiu com a cabeça. Neumann colocou os auscultadores e sintonizou o rádio na frequência correta. Digitou um sinal de identificação e esperou por uma resposta. Uns segundos mais tarde, o operador de rádio a bordo do submarino pediu a Neumann para prosseguir. Neumann suspirou fundo, digitou a mensagem com cuidado e, a seguir, terminou a comunicação e desligou o rádio.
- E agora resta-nos resolver uma coisa - disse ele, virando-se para Dogherty. - Vens connosco?
Dogherty assentiu com a cabeça.
- Já falei disso com Mary. Ela concorda comigo. vou para a Alemanha convosco; e depois Vogel e os amigos podem ajudar-me a voltar para a Irlanda. Mary vai ter comigo quando eu lá estiver. Temos amigos e família que podem olhar por nós até assentarmos. Não vamos ter problemas.
- E como é que Mary está a reagir?
O rosto de Dogherty endureceu numa expressão taciturna. Neumann sabia que era bem provável que ele e Mary nunca mais se voltassem a ver. Pegou no candeeiro a querosene, pousou a mão no ombro de Dogherty e disse:
- Vamos.
Em cima da bicicleta e a ofegar, Martin Colville viu uma luz acesa no celeiro dos Dogherty. Deitou a bicicleta junto à estrada e, a seguir, atravessou o prado silenciosamente e agachou-se à porta do celeiro. com a chuva a cair com força, esforçou-se por perceber a conversa que estava a ter lugar lá dentro.
Era inacreditável.
Sean Dogherty - a trabalhar para os nazis. O homem chamado James Porter - um agente alemão. Um ninho de espiões alemães, em ação ali mesmo em Hampton Sands!
Colville esforçou-se por ouvir mais um pouco da conversa. Estavam a planear subir a costa de carro até Lincolnshire e apanhar um
barco para irem ter com um submarino. O coração começou a ribombar-lhe no peito e a respiração a acelerar. Forçou-se a acalmar, a pensar com clareza.
Tinha duas opções: ir-se embora, voltar para a aldeia e alertar as autoridades ou entrar no celeiro e prendê-los ele mesmo. Tanto uma como outra tinham os seus inconvenientes. Se se fosse embora para ir pedir ajuda, o mais certo era Dogherty e os espiões já terem desaparecido quando ele lá regressasse. Havia poucos polícias na costa de Norfolk, dificilmente seriam suficientes para levar a cabo uma busca. Mas, se entrasse sozinho, estaria em desvantagem. Conseguia ver que Sean tinha a caçadeira consigo e partiu do princípio de que os outros dois também estariam armados. Ainda assim, teria a vantagem da surpresa.
E havia outra razão que o levava a gostar da segunda opção adoraria ajustar contas com o alemão que dava pelo nome de James Porter. Colville sabia que tinha de agir e agir rapidamente. Rasgou a caixa dos cartuchos, tirou dois e enfiou-os na velha caçadeira calibre 12. Nunca tinha apontado aquela coisa a nada que fosse mais ameaçador do que uma perdiz ou um faisão. Interrogou-se se teria coragem para disparar sobre um ser humano.
Levantou-se e avançou para a porta.
Jenny pedalou até as pernas lhe começarem a arder - atravessando a aldeia, passando pela igreja e pelo cemitério, até ao outro lado da enseada. O ar estava carregado com o som da tempestade e o ruído do mar. A chuva fustigava-lhe a cara e o vento quase a fez cair.
Jenny avistou a bicicleta do pai na vegetação junto ao trilho e parou ao lado dela. Porquê deixá-la ali? Porque não ir com ela até ao chalé?
Achou que sabia a resposta. Ele estava a tentar apanhá-los de surpresa, aparecendo sem que o vissem.
Foi então que ela ouviu um disparo de caçadeira vindo do celeiro de Sean. Jenny soltou um grito e saltou da bicicleta, deixando-a cair ao lado da do pai. Correu pelo prado, a pensar: Por favor, Deus, não deixes que ele tenha morrido. Não deixes que ele tenha morrido.
CINQUENTA E DOIS
SCARBOROUGH, INGLATERRA
Aproximadamente cento e sessenta quilómetros a norte de Hampton Sands, Charlotte Endicott entrou de bicicleta no pequeno recinto de cascalho à entrada da estação de recolha de comunicações de Scarborough. A viagem desde os seus aposentos numa pensão exígua na cidade tinha sido violentíssima, com vento e chuva durante todo o caminho. Encharcada até aos ossos e com um frio de morrer, desceu da bicicleta e encostou-a a várias outras no estrado.
O vento soprava em rajadas, gemendo por entre as três enormes antenas retangulares, no alto dos penhascos com vista para o mar do Norte. Charlotte Endicott lançou-lhes uma olhadela, a oscilarem visivelmente, enquanto atravessava o recinto apressadamente. Abriu a porta do abrigo e entrou antes de o vento a fechar com estrondo.
Faltavam alguns minutos para o seu turno começar. Despiu a gabardina encharcada, desapertou o nó do chapéu e pendurou tudo num cabide em mau estado que se encontrava ao canto. O abrigo era frio e estava cheio de correntes de ar, tendo sido construído numa lógica de utilidade e não de conforto. Mas, apesar disso, tinha uma pequena cantina. Charlotte entrou nela, serviu-se de uma chávena de chá quente, sentou-se numa das mesas pequenas e acendeu um cigarro. Um hábito horrível, sabia-o, mas, se era capaz de manter um emprego como um homem, também era capaz de fumar como um. Além disso, gostava do ar que aquilo lhe dava - sexy, sofisticado, um bocadinho
mais velho do que os seus vinte e três anos. E também tinha ficado viciada no raio daquelas coisas. O trabalho era stressante, as horas uma brutalidade e a vida em Scarborough terrivelmente entediante. Mas ela adorava cada minuto do que fazia.
Só tinha havido uma vez em que tinha detestado o que estava a fazer, durante a Batalha de Inglaterra. Durante os longos e terríveis combates aéreos, os membros do ramo feminino da Marinha Real Britânica estacionados em Scarborough ouviam o que os pilotos britânicos e alemães diziam nos cockpits. Uma vez, Charlotte tinha ouvido um rapaz inglês a gritar e a chorar pela mãe enquanto o seu SpitJtre, atingido, caía desamparado em direção ao mar. Quando perdeu o contacto com ele, Charlotte foi a correr lá para fora para vomitar. Estava feliz por esses dias terem terminado.
Charlotte olhou para o relógio. Quase meia-noite. Altura de entrar ao serviço. Levantou-se e alisou o uniforme húmido. Deu uma última passa no cigarro - era proibido fumar dentro do buraco e depois apagou-o com força num pequeno cinzeiro de metal a transbordar de beatas. Saiu da cantina e dirigiu-se para o centro de operações. Mostrou o cartão de identificação ao guarda. Este examinou-o com atenção, embora já o tivesse visto uma centena de vezes, e a seguir devolveu-o, sorrindo um pouco mais do que seria necessário. Charlotte sabia que era uma rapariga atraente, mas não havia ali lugar para essas coisas. Abriu as portas, entrou no buraco e sentou-se no sítio do costume.
Sentiu um rápido calafrio - como sempre.
Olhou fixamente para os botões luminosos do seu recetor super-heteródino de comunicações RCA AR-88 por um momento e depois colocou os auscultadores. Os cristais especiais do RCA, eliminadores de interferências, permitiam-lhe monitorizar os agentes alemães que transmitiam em código Morse por toda a Europa do Norte. Sintonizou o recetor na banda de frequência que tinha ficado incumbida de controlar nessa noite e instalou-se.
Os agentes alemães que enviavam mensagens em código Morse eram os mais rápidos do mundo a digitar. Charlotte era capaz de identificar de imediato muitos deles pelos seus estilos próprios de digitar e ela e as restantes colegas tinham-lhes atribuído alcunhas: Wagner, Beethoven, Zeppelin.
Charlotte não teve de esperar muito para entrar em ação naquela noite.
Uns minutos depois da meia-noite, ouviu uma sucessão de sinais Morse, num estilo que não reconheceu. A cadência era fraca, o ritmo lento e incerto. Um amador, pensou, alguém que não utilizava muito o rádio. Não era com certeza um dos profissionais do BdU, o quartel-general da Kriegsmarine. Reagindo rapidamente, gravou a transmissão no oscilógrafo - um aparelho que criaria no fundo uma impressão digital do sinal chamada Tina - e escrevinhou furiosamente a mensagem em Morse numa folha de papel. Depois de o amador terminar, Charlotte ouviu outra sucessão de sinais na mesma frequência. Já não era um amador; Charlotte e as colegas já o tinham ouvido. Tinham-lhe dado a alcunha de Fritz. Era um operador de rádio a bordo de um submarino. Charlotte também transcreveu rapidamente essa mensagem.
À transmissão de Fritz seguiu-se uma nova e atabalhoada sucessão de sinais em código Morse por parte do amador e depois terminaram as comunicações. Charlotte tirou os auscultadores, arrancou a impressão saída do oscilógrafo e atravessou a sala a passos largos. Normalmente, limitava-se a entregar as transcrições das mensagens em Morse a um estafeta que, por sua vez, as levava de mota, a toda a velocidade, até Bletchley Park para serem descodificadas. Mas havia qualquer coisa diferente naquelas comunicações - tinha-o sentido nos estilos dos operadores de rádio: Fritz, a bordo de um submarino, e um amador algures. Suspeitava saber do que se tratava, mas teria de ser bem convincente. Apresentou-se diante do supervisor noturno, um homem de pele clara e ar exausto chamado Lowe. Largou as transcrições e o oscilógrafo em cima da secretária dele. Lowe olhou para ela, com uma expressão de perplexidade.
- Posso estar completamente enganada, senhor - disse Charlotte, invocando a voz mais perentória possível -, mas acho que acabei de ouvir um espião alemão a comunicar com um submarino ao largo da costa.
O Kapitànleutnant Max Hoffman nunca se habituaria ao fedor de um submarino submerso há demasiado tempo: suor, urina, óleo diesel, batatas, sémen. O ataque às suas narinas era tão intenso que suportaria de bom grado estar de vigia na torre de comando, debaixo de uma tempestade, em vez de ficar lá dentro.
Encontrava-se na ponte de comando do U-509 e conseguia sentir a vibração dos motores elétricos por baixo dos pés à medida que se deslocavam num círculo monótono a trinta e dois quilómetros da costa britânica. Uma suave neblina pairava no interior do submarino, criando uma auréola em torno de cada lâmpada. Todas as superfícies estavam frias e molhadas. Hoffman gostava de imaginar que era o orvalho de uma manhã de primavera, mas bastou-lhe olhar naquele momento para o mundo claustrofóbico e apertado que habitava para essa fantasia lhe ser rapidamente arrancada.
Era uma missão entediante ficar estacionado ao largo da costa britânica durante semanas a fio, à espera de um dos espiões de Canaris. Da tripulação de Hoffman, apenas o seu imediato sabia o verdadeiro objetivo da missão. O resto dos homens suspeitava provavelmente do mesmo, já que não se encontravam em missão de patrulha. Ainda assim, as coisas poderiam ser piores. Tendo em conta a extraordinária proporção de perdas no seio da U-bootewaffe - praticamente 90 por cento - Hoffman e a sua tripulação podiam considerar-se bastante afortunados por terem sobrevivido tanto tempo.
O imediato surgiu na ponte de comando, de rosto fechado e com um papel na mão. Hoffman olhou para o homem, ficando deprimido com a noção de que o mais provável era estar com o mesmo aspeto horrível: olhos fundos, rosto encovado, a palidez de um tripulante de submarino, a barba por fazer por não haver água doce suficiente para desperdiçar nisso.
O imediato informou:
- O nosso homem no Reino Unido deu finalmente notícias. Quer que lhe demos boleia para casa hoje à noite.
Hoffman sorriu e pensou: Finalmente. Apanhamo-lo e vamos para França, onde há comida boa e roupa de cama lavada. Perguntou:
- Como está o tempo?
-- Nada bom, Herr Kaleu - respondeu o imediato, utilizando o diminutivo habitual de Kapitànleutnant. - Chuvadas fortes, ventos a cinquenta quilómetros por hora do noroeste, ondulação entre três metros e três metros e meio.
- Jesus! E o mais certo é ele vir de barco a remos, se tivermos sorte. Organize uma festa de receção e prepare-se para emergirmos. Mande o operador de rádio informar o BdU dos nossos planos. Fixe a trajetória para o ponto de encontro. Eu vou lá para cima com os vigias. Não me interessa se o tempo está mau ou não - afirmou Hoffman, fazendo uma careta. -Já não aguento mais a porra do cheiro aqui dentro.
- Sim, Herr Kaleu.
O imediato gritou uma série de ordens, transmitidas pela tripulação. Dois minutos mais tarde, o U-509 irrompeu pela superfície tempestuosa do mar do Norte.
O sistema era conhecido como Localização de Direção de Alta Frequência, mas quase toda a gente envolvida no projeto lhe chamava Huff Duff. Funcionava segundo um princípio de triangulação. A impressão digital criada pelo oscilógrafo em Scarborough podia ser utilizada para identificar o tipo de transmissor e a sua fonte de energia. Se as estações de recolha de comunicações de Flowerdon e da Islândia também tivessem os seus oscilógrafos em ação, as três gravações podiam ser utilizadas para estabelecer linhas de orientação conhecidas como cortes -, a partir das quais se podia depois localizar a posição do transmissor. Por vezes, o Huff Duff conseguia indicar um rádio num raio de dezasseis quilómetros da sua exata localização geográfica. Mas, normalmente, o sistema era muito menos preciso, ficando entre os cinquenta e os oitenta quilómetros.
O comandante Lowe não achou que Charlotte Endicott estivesse completamente enganada. Na verdade, achou que ela tinha descoberto uma coisa de crucial importância. Ao início da noite, um major Vicary do MI5 tinha enviado um alerta para as estações de recolha de comunicações, para que estivessem atentas a precisamente esse tipo de coisas.
Lowe passou os minutos seguintes a falar com os seus homólogos em Flowerdon e na Islândia, tentando localizar o transmissor. Infelizmente, a comunicação tinha sido curta e a determinação da posição não muito precisa. Na verdade, Lowe foi apenas capaz de a circunscrever a uma extensão bastante ampla do leste de Inglaterra - todo o condado de Norfolk e grande parte de Suffolk, Cambridgeshire e Lincolnshire. Provavelmente, não serviria de muito, mas pelo menos já era qualquer coisa.
Lowe vasculhou os papéis que tinha na secretária até descobrir o número de Vicary de Londres e, a seguir, esticou-se na direção do seu telefone seguro.
As condições atmosféricas no norte da Europa tornavam praticamente impossível a comunicação de onda curta entre as Ilhas Britânicas e Berlim. Em consequência disso, o centro de comunicações via rádio da Abwehr estava localizado na cave de uma grande mansão em Wohldorf, um subúrbio de Hamburgo, duzentos e quarenta quilómetros a noroeste da capital germânica.
Cinco minutos depois de o rádio operador do U-509 ter transmitido a sua mensagem ao BdU, no norte da França, o oficial de serviço no BdU enviou uma curta mensagem para Hamburgo. O oficial de serviço em Hamburgo era um veterano da Abwehr chamado capitão Schmidt. Gravou a mensagem, fez um telefonema prioritário, através da linha segura, para o quartel-general da Abwehr em Berlim e informou o tenente Werner Ulbricht dos desenvolvimentos. A seguir, Schmidt saiu da mansão e desceu a rua, em direção a um hotel ali perto, onde fez uma segunda chamada para Berlim. Não quis fazer esse telefonema através das linhas pejadas de escutas do posto da Abwehr, pois o número que indicou à telefonista foi o do gabinete do Brigadefúhrer Walter Schellenberg, na Prinz Albrechtstrasse. Infelizmente para Schmidt, Schellenberg tinha descoberto que ele estava envolvido numa relação amorosa bastante chocante com um rapaz de dezasseis anos, em Hamburgo. Schmidt aceitou prontamente passar a trabalhar para Schellenberg para evitar que o caso viesse a público.
Quando a ligação foi efetuada, falou com um dos muitos assistentes de Schellenberg - o general tinha ido jantar fora essa noite - e informou-o das novidades.
Kurt Vogel tinha decidido passar uma rara noite no seu pequeno apartamento a poucos quarteirões de Tirpitz Ufer. Ulbricht telefonou-lhe para lá e informou-o de que Horst Neumann tinha contactado o submarino e que estava prestes a abandonar a Inglaterra. Cinco minutos mais tarde, Vogel estava a sair pela porta da frente do prédio e a caminhar à chuva, em direção a Tirpitz Ufer.
Nesse preciso instante, Walter Schellenberg ligou para o gabinete e foi informado dos desenvolvimentos no Reino Unido. A seguir, telefonou para o Reichsfúhrer Heinrich Himmler e pô-lo ao corrente da situação. Himmler ordenou a Schellenberg que se dirigisse para a Prinz Albrechtstrasse; iria ser uma noite longa e queria companhia. Por coincidência, Schellenberg e Vogel chegaram aos respetivos gabinetes exatamente ao mesmo tempo e instalaram-se para a espera que os aguardava.
O local da invasão da França pelos Aliados.
A vida do almirante Canaris.
E tudo dependia do que dissessem um par de espiões em fuga ao MI5.
CINQUENTA E TRÊS
HAMPTON SANDS, NORFOLK
Martin Colville serviu-se do cano da caçadeira para empurrar a porta do celeiro. Neumann, ainda sentado ao lado do rádio, ouviu o barulho. Esticou-se para agarrar
a Mauserno momento em que Colville entrou. Colville viu Neumann a tentar chegar à pistola. Virou-se, apontou a caçadeira e disparou. Neumann desviou-se com um salto,
caindo no chão e rebolando pelo celeiro. O estrondo do disparo da caçadeira no espaço reduzido do celeiro foi ensurdecedor. O rádio desintegrou-se.
Colville fez pontaria a Neumann pela segunda vez. Neumann levantou-se, apoiado nos cotovelos, segurando a Mauser nas mãos esticadas. Sean Dogherty avançou, gritando a Colville para parar. Colville apontou a arma a Dogherty e carregou no gatilho. O tiro atingiu Dogherty no peito, fazendo-o dar um salto para trás com toda a força, como se fosse um boneco de trapos. Caiu de costas, com o sangue a jorrar-lhe do buraco no peito, e morreu passados segundos.
Neumann disparou, acertando no ombro de Colville e fazendo-o rodar. Por essa altura, Catherine já tinha sacado da sua Mauser e, com ambas as mãos, apontou-a à cabeça de Colville. Disparou rapidamente duas vezes, com o silenciador a abafar os tiros e a reduzi-los a um baque surdo. À cabeça de Colville explodiu e ele já estava morto antes de o corpo bater no chão do celeiro de Dogherty.
Mary Dogherty estava a meio de um sono agitado, na sua cama no andar de cima do chalé, quando ouviu o primeiro disparo da caçadeira. Endireitou-se de rompante e tocou com os pés no chão no instante em que o segundo disparo rasgou a noite. Atirou o cobertor para trás e desceu as escadas a correr.
O chalé estava às escuras, a sala de estar e a cozinha desertas. Foi lá para fora. A chuva fustigou-lhe a cara. Foi então que se apercebeu de que estava apenas com a sua camisa de dormir de flanela. Naquele momento, imperava o silêncio e apenas se ouvia o barulho da tempestade. Para lá do jardim, reparou numa carrinha preta desconhecida estacionada no caminho de entrada. Voltou-se para o celeiro e viu uma luz acesa lá dentro. Gritou Sean! e começou a correr para o celeiro.
Mary tinha os pés descalços e o chão estava frio e empapado. Gritou o nome de Sean mais uma série de vezes enquanto corria. Um ténue raio de luz saía da porta aberta do celeiro, iluminando uma caixa de cartuchos de caçadeira que se encontrava no chão.
Ao entrar, arquejou. Ficou com um grito preso na garganta, que se recusava a sair cá para fora. A primeira coisa que viu foi o corpo de Martin Colville estendido no chão do celeiro, a poucos metros dela. Parte da cabeça tinha desaparecido e havia sangue e tecido por todo o lado. Sentiu o estômago começar a entrar em convulsões.
Foi então que voltou a atenção para o segundo corpo. Estava deitado de costas, com os braços bem abertos. Por alguma razão, com a morte, os tornozelos tinham-se cruzado, como se a pessoa estivesse a dormir uma sesta. O sangue tapava-lhe a cara. Por um breve segundo, Mary permitiu-se acalentar a esperança de não ser na realidade Sean quem estava ali morto. Mas depois olhou para as velhas botas de borracha e para o oleado e soube que era ele.
O grito que lhe estava preso na garganta saiu cá para fora.
Mary berrou:
- Oh, Sean! Oh, meu Deus, Sean! O que foste fazer?
Levantou os olhos e viu Horst Neumann parado ao pé do corpo de Sean, com uma pistola na mão. A poucos metros dele, estava uma mulher, de pistola apontada à cabeça de Mary.
Mary olhou para Neumann e gritou:
- Foste tu que fizeste isto? Foste?
- Foi o Colville - respondeu Neumann. - Apareceu aqui dentro aos tiros. Sean meteu-se à frente dele. Lamento imenso, Mary.
- Não, Horst, pode ter sido Martin a carregar no gatilho, mas foste tu que lhe fizeste isto. Não tenhas dúvidas. Tu e os teus amigos de Berlim, foram vocês que lhe fizeram isto.
Neumann não disse nada. Catherine continuava com a Mauser apontada à cabeça de Mary. Neumann avançou, agarrou na pistola dela e baixou-a suavemente.
Jenny Colville não saiu do prado mergulhado na escuridão e aproximou-se do celeiro lateralmente, sem que a pudessem ver. Agachou-se junto à parede exterior, com a chuva a bater-lhe com força no oleado, e escutou a conversa que estava a ter lugar lá dentro.
Ouviu a voz do homem que conhecia como James Porter, embora Mary lhe tivesse chamado outra coisa, uma coisa parecida com Horse. Foi o Colville. Sean meteu-se à frente dele. Lamento imenso, Mary.
A seguir, ouviu a voz de Mary. Tinha uma intensidade altíssima e tremia de raiva e dor. Foste tu que lhe fizeste isto... Tu e os teus amigos de Berlim.
Ficou à espera de ouvir a voz do pai; ficou à espera de ouvir a voz de Sean. Nada. Percebeu que estavam ambos mortos.
Tu e os teus amigos de Berlim.
Jenny pensou: O que estás a dizer, Mary?
E foi então que tudo se encaixou na cabeça dela, como peças de um quebra-cabeças que ficam de repente na ordem certa: Sean na praia, naquela noite, o súbito aparecimento
do homem chamado James Porter, o aviso que Mary lhe fizera ao início da tarde: Ele não é o que parece ser. Ele não é para ti.
Na altura, Jenny não tinha compreendido o que Mary lhe estava a tentar dizer, mas agora achava que sim. O homem que conhecia como James Porter era um espião alemão. E isso significava que Sean também era um espião ao serviço dos alemães. O pai dela devia ter descoberto a verdade e resolvido enfrentá-los. E agora estava morto no chão do celeiro de Sean Dogherty.
Jenny queria gritar. Sentiu lágrimas quentes a correrem-lhe dos olhos pela cara. Levou as mãos à boca para abafar o choro. Tinha-se apaixonado por ele, mas ele mentira-lhe e usara-a e era um espião alemão e provavelmente tinha acabado de lhe matar o pai.
Jenny ouviu movimentos dentro do celeiro, movimentos e instruções dadas em voz baixa, que ela não conseguiu perceber. Ouviu a voz do espião alemão e ouviu uma voz
de mulher que não era a de Mary. Foi então que viu o espião sair do celeiro e percorrer o caminho de entrada, de lanterna na mão. Estava a dirigir-se para onde estavam
as bicicletas. Se as encontrasse, iria perceber que ela também lá estava.
E iria procurá-la.
Jenny obrigou-se a respirar devagar, pausadamente, e a pensar com clareza.
Estava a ser fustigada por várias emoções. Estava assustada, sentia-se agoniada com a ideia de que o pai e Sean estavam mortos. Mas, acima de tudo, estava furiosa. Tinham-lhe mentido e tinham-na traído. E, naquele momento, o que a impulsionava era um desejo avassalador: queria vê-los presos e queria vê-los castigados.
Jenny sabia que não poderia fazer nada se o alemão a descobrisse.
Mas o que fazer? Podia tentar correr até à aldeia. O hotel e o pub tinham telefones. Podia contactar a polícia e a polícia podia vir prendê-los.
Mas a aldeia era o primeiro lugar onde os espiões a iriam procurar. Do chalé dos Dogherty, só havia um caminho para a aldeia: atravessando a ponte junto à St. John's Church. Jenny sabia que poderia ser apanhada muito facilmente.
Pensou numa segunda opção. Eles tinham de se ir embora dali a pouco tempo. Afinal de contas, tinham acabado de matar duas pessoas. Jenny podia ficar escondida durante um bocado, só até eles se irem embora; depois, podia sair do esconderijo e contactar a polícia.
Pensou: Mas e se eles levarem Mary?
Mary estaria melhor com Jenny em liberdade e a tentar encontrar ajuda.
Jenny observou o espião a aproximar-se da estrada. Viu o feixe de luz da lanterna deslocar-se pelo terreno em redor. Viu-o fixar-se em qualquer coisa por um momento e, a seguir, virar-se na direção dela.
Jenny arquejou. Ele tinha encontrado a bicicleta dela. Levantou-se e começou a correr.
Horst Neumann avistou as duas bicicletas deitadas ao lado uma
da outra na vegetação, junto à estrada. Virou a lanterna para o prado, mas o fraco feixe iluminou apenas uns quantos metros à sua frente. Levantou as bicicletas, segurou-as pelo manipulo e empurrou-as pelo caminho de entrada. Deixou-as nas traseiras do chalé de Dogherty, onde ninguém as poderia ver.
Ela estava por ali - algures. Tentou imaginar o que tinha acontecido. O pai sai de casa enfurecido e de caçadeira na mão; Jenny vai atrás dele e chega ao chalé dos Dogherty a tempo de ver o rescaldo.
Neumann calculou que ela estivesse escondida, à espera que eles se fossem embora, e achou que sabia onde.
Durante um momento, pensou na hipótese de a deixar em liberdade. Mas Jenny era uma rapariga inteligente. Iria arranjar uma maneira de contactar a polícia. A polícia estabeleceria barricadas por Hampton Sands inteira. Chegar a Lincolnshire a tempo do encontro com o submarino já seria suficientemente difícil. Deixar que Jenny ficasse à solta e contactasse a polícia apenas tornaria tudo mais duro.
Neumann entrou no celeiro. Catherine tinha tapado os corpos
com serapilheira velha. Mary estava sentada numa cadeira, a tremer violentamente. Neumann evitou o olhar dela.
- Temos um problema - anunciou Neumann, apontando para
o corpo tapado de Martin Colville. -- Encontrei a bicicleta da filha dele. Temos de partir do princípio de que ela anda algures por aqui e que sabe o que aconteceu. E também temos de partir do princípio de que vai tentar arranjar ajuda.
- Então vai à procura dela - atirou Catherine.
Neumann assentiu com a cabeça.
- Leva Mary para dentro de casa. Amarra-a e amordaça-a. Acho
que sei para onde é que Jenny é capaz de ir.
Neumann foi lá para fora e correu até à carrinha, no meio da
chuva. Ligou o motor, saiu do caminho de entrada em marcha atrás e seguiu em direção à praia.
Catherine amarrou Mary a uma cadeira de madeira na cozinha. Rasgou uma toalha de chá ao meio e fez uma bola com uma das metades. Enfiou-a na boca de Mary e depois amarrou a outra metade à volta da cara dela, com um nó apertado. Se dependesse de Catherine, matá-la-ia naquele preciso instante; não gostava de deixar uma pista para a polícia seguir. Mas era óbvio que Neumann sentia algum carinho pela mulher. Além disso, era provável que se passassem várias horas até que alguém a encontrasse, talvez até mais tempo. O chalé estava isolado, a cerca de um quilómetro e meio da aldeia; era possível que demorasse um dia ou dois até que alguém notasse que Sean, Colville e a rapariga tinham desaparecido. Ainda assim, todos os seus instintos de sobrevivência lhe diziam que era melhor matá-la e despachar aquilo. Neumann nunca saberia. Mentir-lhe-ia, dizendo-lhe que Mary estava bem, e ele nunca descobriria.
Catherine verificou os nós pela última vez. A seguir, tirou a Mauser do bolso do casaco. Segurou-a bem, enfiando o indicador no gatilho, e encostou o cano à testa de Mary. Mary não se mexeu um milímetro e lançou um olhar de desafio a Catherine.
- Não se esqueça, a Jenny vai connosco -- disse Catherine. Sc disser alguma coisa à polícia, nós vamos saber. E depois vamos matar a Jenny. Compreende o que lhe estou a dizer, Mary?
Mary assentiu com a cabeça uma vez. Catherine pegou na Mauser pelo cano, ergueu-a bem alto e bateu com ela na cabeça de Mary. Perdendo os sentidos, Mary afundou-se para a frente, com o sangue a escorrer-lhe do cabelo para os olhos. Catherine pôs-se diante da lareira prestes a apagar-se, à espera de Neumann e da rapariga, à espera de voltar para casa.
CINQUENTA E QUATRO
LONDRES Nesse momento, um táxi parou, no meio de uma chuva fortíssima, à porta de um edifício atarracado e coberto de hera sob o Arco do Almirantado. A porta abriu-se e
um homem pequeno e bastante feio saiu do táxi, apoiando-se acentuadamente numa bengala. Não se tinha incomodado com um guarda-chuva. Eram apenas poucos me tros até à entrada, onde um guarda da Marinha Real estava de senti nela. O guarda fez uma vigorosa continência, que o homem feio não se deu ao trabalho de retribuir, pois isso teria implicado passar a ben gala da mão direita para a esquerda, uma tarefa incómoda. Além do mais, cinco anos após ter sido destacado para a Marinha Real, Arthur Braithwaite continuava a não se sentir à vontade com os costumes e tradições da vida militar.
Oficialmente, Braithwaite só entrava de serviço dali a uma hora. Mas, tal como era seu hábito todos os dias, tinha chegado à Cidadela uma hora mais cedo para ter
mais tempo para se preparar. com uma perna aleijada desde a infância, Braithwaite sabia que para ter êxito tinha de estar mais bem preparado do que as pessoas à sua volta. Era um compromisso que lhe trazia dividendos.
A Sala de Localização de Submarinos - à qual se chegava por um emaranhado de escadas exíguas e tortuosas - não era de fácil acesso para um homem com uma perna gravemente
deformada. Atravessou a Sala dos Gráficos e entrou na Sala de Localização depois de passar por uma porta com um guarda.
A energia e a agitação daquele sítio apoderaram-se dele, tal como acontecia todas as noites. As paredes sem janelas eram da cor da nata azeda e estavam repletas de mapas, cartas de navegação e fotografias de submarinos e das suas tripulações. Várias dezenas de oficiais e de datilógrafas trabalhavam às secretárias, à roda da sala. No meio, estava a principal mesa de localização para o Atlântico Norte, com pioneses coloridos a assinalarem a posição de cada navio de guerra, navio de carga e submarino, do mar Báltico a Cape Cod.
Uma grande fotografia do almirante Karl Dònitz, o comandante da Kriegsmarine, lançava um olhar ameaçador da parede onde se encontrava pendurada. Braithwaite, tal como fazia todas as manhãs, piscou-lhe o olho e disse: bom dia, Herr Admirai. A seguir, abriu a porta do seu cubículo de vidro, tirou o casaco e sentou-se à secretária.
Estendeu a mão na direção da pilha de mensagens por descodificar que o aguardava todas as manhãs e pensou: Estás bem longe de
1939, meu velho.
Em 1939, tinha licenciaturas em Direito e Psicologia tiradas em Cambridge e Yale e estava à procura de alguma coisa para fazer com elas. Quando a guerra rebentou,
tentou dar utilidade ao seu alemão fluente voluntariando-se para interrogar prisioneiros de guerra alemães. Os seus superiores ficaram tão impressionados que recomendaram
uma transferência para a Cidadela, na qual foi destacado, como voluntário civil, para a Sala de Localização de Submarinos, no auge da Batalha do Atlântico. O intelecto
e a determinação de Braithwaite fizeram-no distinguir-se rapidamente. Dedicou-se por inteiro ao trabalho, voluntariou-se para prestar serviços adicionais e leu todos
os livros que conseguiu encontrar sobre a história e as táticas navais alemãs. Possuidor de uma memória quase perfeita, decorou as biografias de todos os Kapitànleutnant
da U-bootewaffe. No espaço de poucos meses, desenvolveu uma capacidade extraordinária para prever os movimentos dos submarinos alemães. Nada disso passou despercebido.
Atribuíram-lhe o posto de comandante temporário e colocaram-no à frente da localização de submarinos, um feito espantoso para alguém que não tinha passado pelo Dartmouth Naval College.
O seu assessor bateu ao de leve na porta de vidro, aguardou que Braithwaite assentisse com a cabeça e entrou.
- bom dia, senhor - disse, pousando uma bandeja com um bule de chá e biscoitos.
- bom dia, Patrick.
- O tempo manteve as coisas razoavelmente sossegadas ontem à noite, senhor. Não foram avistados submarinos alemães a virem à superfície em lado nenhum. A tempestade
afastou-se do oeste. Agora, é o leste que está a suportar o impacto, de Yorkshire a Suffolk.
Braithwaite assentiu com a cabeça e o assessor foi-se embora. As primeiras mensagens eram coisas convencionais, interceções de comunicações de rotina entre submarinos
e o BdU. A quinta chamou-lhe a atenção. Era um alerta emitido por um major Alfred Vicary do Ministério da Guerra. Indicava que as autoridades se encontravam a perseguir
duas pessoas, um homem e uma mulher, que poderiam estar a tentar fugir do país. Braithwaite sorriu perante os eufemismos cautelosos de Vicary. Era evidente que Vicary era do MI5. O homem e a mulher eram obviamente agentes alemães e fosse o que fosse em que estavam envolvidos devia ser bem importante, caso contrário o alerta não lhe teria passado pela secretária. Pôs o alerta de Vicary de lado e continuou a ler.
Após mais algumas mensagens rotineiras, Braithwaite deu com outra coisa que lhe chamou a atenção. Um membro do ramo feminino da Marinha Real Britânica, da estação de recolha de comunicações de Scarborough, tinha intercetado o que julgava ser uma comunicação entre um submarino alemão e um rádio em terra. O sistema Huff Duff tinha indicado que o transmissor se encontrava algures na costa leste - algures entre Lincolnshire e Suffolk. Braithwaite tirou a mensagem da pilha e colocou-a ao lado do alerta de Vicary.
Levantou-se e coxeou para fora do gabinete e, já na sala principal, parou junto à mesa de localização para o Atlântico Norte. Dois membros da sua equipa estavam a reposicionar alguns pinos coloridos, na sequência de movimentações noturnas. Braithwaite pareceu não reparar neles. De rosto fechado, fixou o olhar nas águas ao largo da costa leste britânica.
Passado um momento, disse em voz baixa:
- Patrick, traga-me o dossiê do U-509.
CINQUENTA E CINCO
HAMPTON SANDS, NORFOLK
Jenny atingiu o pinhal no fundo das dunas e caiu exausta. Tinha corrido instintivamente, como um animal assustado. Tinha-se mantido longe da estrada, não saindo dos prados e dos pântanos, alagados pela chuva. Tinha caído tantas vezes que até perdera a conta. Estava cheia de lama, cheirava a terra em decomposição e a mar. A cara, fustigada pela chuva e pelo vento, doía-lhe como se tivesse sido esbofeteada. E tinha frio - mais frio do que alguma vez sentira na vida. Era como se o oleado pesasse uns cinquenta quilos. As botas de borracha estavam cheias de água e tinha os pés a congelar. Foi então que se lembrou de que tinha saído sem meias do chalé. Pôs-se de gatas, a ofegar com falta de ar. Tinha a garganta seca e sabia-lhe a ferrugem.
Deixou-se ficar assim durante um momento, até que a respiração acalmasse, e depois forçou-se a levantar-se e a penetrar no meio das árvores. Estava escuro como breu, tão escuro que teve de avançar com as mãos esticadas para a frente, como um cego às apalpadelas num local desconhecido. Estava zangada consigo mesma por não ter trazido a lanterna.
O som do vento, o estrondo das ondas a rebentarem na praia e os guinchos das aves marinhas enchiam o ar. As árvores já pareciam estar dispostas de uma forma familiar. Jenny orientava-se pela memória, como alguém a arrastar os pés pela própria casa, no escuro.
As árvores desapareceram: o seu esconderijo secreto surgiu diante dela.
Escorregou pelo declive e sentou-se encostada à grande rocha. Os pinheiros contorciam-se ao vento, por cima da sua cabeça, mas Jenny estava abrigada do pior da tempestade. Queria imenso fazer uma fogueira, mas o fumo seria visível de muito longe. Desenterrou a mala debaixo da caruma de pinheiro, tirou de lá o velho cobertor de lã e enrolou-se toda nele.
Começou a sentir o calor. Foi então que começou a chorar. Perguntou-se quanto tempo teria de esperar ali até poder ir procurar ajuda. Dez minutos? Vinte minutos?
Meia hora? Perguntou-se se Mary ainda estaria no chalé quando ela lá voltasse. Perguntou-se se estaria ferida. Uma imagem horrenda do cadáver do pai passou-lhe diante
dos olhos. Sacudiu a cabeça para tentar que ela desaparecesse. Tremeu e depois enrolou-se ainda mais no cobertor.
Trinta minutos. Iria esperar trinta minutos. Por essa altura, já se teriam ido embora e seria seguro regressar.
Neumann estacionou no fim do trilho, pegou na lanterna que estava no banco do passageiro e saiu da carrinha. Acendeu a lanterna e avançou rapidamente por entre as
árvores. Escalou as dunas e desceu aos tropeções pelo outro lado. Desligou a lanterna e deslocou-se pela praia, em direção à beira-mar. Quando atingiu a areia molhada
e dura, onde as ondas rebentavam na praia, começou a correr levemente, com a cabeça baixa para avançar contra o vento.
Recordou-se da manhã em que estava a correr na praia e vira Jenny a sair das dunas. Recordou-se do aspeto dela, como se tivesse dormido na praia naquela noite. Tinha a certeza de que ela tinha alguma espécie de esconderijo ali perto, para onde ia quando as coisas em casa ficavam más. Estava assustada, em fuga e sozinha. Iria fugir para o sítio que conhecia melhor, como fazem as crianças. Neumann foi até ao ponto da praia que utilizava como meta imaginária, depois parou e caminhou em direção às dunas.
Já do outro lado, voltou a acender a lanterna, deu com um trilho pisado e seguiu-o. Ia dar a uma pequena depressão no terreno, abrigada do vento pelas árvores e por um par de grandes pedregulhos. Apontou a lanterna para a depressão e o feixe luminoso apanhou o rosto de Jenny Colville.
- Qual é o seu nome verdadeiro? - perguntou Jenny enquanto seguiam na carrinha para o chalé dos Dogherty.
- O meu nome verdadeiro é tenente Horst Neumann.
- E porque fala inglês tão bem?
- O meu pai era inglês e eu nasci em Londres. A minha mãe e eu mudámo-nos para a Alemanha quando ele morreu.
- E é um espião alemão?
- Qualquer coisa do género.
- E o que aconteceu a Sean e ao meu pai?
- Estávamos a utilizar o rádio no celeiro de Sean quando o teu pai nos apareceu de rompante. Sean tentou para-lo e o teu pai matou-o. Catherine e eu matámos o teu
pai. Lamento imenso, Jenny. Aconteceu tudo muito depressa.
- Cale-se! Não quero que me diga que lamenta imenso! Neumann manteve-se em silêncio.
Jenny perguntou:
- E agora o que vai acontecer?
- Vamos fazer uma viagem pela costa até ao rio Humber. Chegados lá, vamos para o mar num barco pequeno para irmos ter com um submarino alemão.
- Espero que vos apanhem. E espero que vos matem.
- Eu diria que isso é uma possibilidade muito forte.
- O senhor é um sacana! Porque andou à luta com o meu pai por causa de mim?
- Porque gosto muito de ti, Jenny Colville. Menti-te em relação a tudo o resto, mas a verdade é essa. Agora, faz exatamente o que eu te disser e não te vai acontecer
nada de mal. Compreendes?
Jenny assentiu com a cabeça. Neumann virou para o chalé dos Dogherty. A porta abriu-se e Catherine saiu. Dirigiu-se para a carrinha e olhou lá para dentro, vendo
Jenny. A seguir, olhou para Neumann e disse em alemão:
- Amarra-a e enfia-a na parte de trás. Vamos levá-la connosco. Nunca se sabe quando é que um refém pode vir a calhar.
Neumann abanou a cabeça e respondeu na mesma língua:
- O melhor é deixá-la aqui e pronto. Não nos serve de nada e ainda é capaz de lhe acontecer alguma coisa.
- Está a esquecer-se de que sou seu superior, tenente?
- Não, major - retorquiu Neumann, com a voz tingida de sarcasmo.
- Ótimo. Agora, amarra-a e vamos pôr-nos a milhas deste lugar
horrível.
Neumann voltou ao celeiro para procurar um bocado de corda. Encontrou-o, pegou no candeeiro e começou a ir-se embora. Olhou uma última vez para o corpo de Sean Dogherty,
estendido no chão e tapado pela velha serapilheira. Neumann não conseguia deixar de se sentir culpado pela sucessão de acontecimentos que tinha levado à morte de
Sean. Se não tivesse lutado com Martin, este não teria aparecido no celeiro com uma caçadeira. Sean estaria a ir com eles para a Alemanha e não estendido no chão do seu celeiro, sem metade do peito. Apagou o candeeiro, deixando os corpos na escuridão, e saiu, fechando a porta do celeiro.
Jenny não resistiu nem lhe dirigiu uma única palavra. Neumann amarrou-lhe as mãos à frente, para que ela se pudesse sentar mais confortavelmente. Verificou o nó, para se certificar de que não estava demasiado apertado. A seguir, atou-lhe os pés. Quando terminou, levou-a para a parte de trás da carrinha, abriu as portas e meteu-a lá dentro.
Despejou mais um bidão de gasolina no depósito e atirou o recipiente vazio para o prado.
Não havia sinal de vida no trilho entre o chalé e a aldeia. Era óbvio que os tiros tinham passado despercebidos em Hampton Sands. Atravessaram a ponte, passaram a grande velocidade pelo pináculo da St. John's Church e continuaram pela rua às escuras. A aldeia estava tão silenciosa que mais parecia ter sido evacuada.
Catherine ia ao lado de Neumann, calada e a recarregar a Mauser.
Neumann carregou a fundo no acelerador e Hampton Sands desapareceu atrás deles.
CINQUENTA E SEIS
LONDRES
Arthur Braithwaite fixou o olhar na mesa de localização enquanto esperava pelo dossiê do U-509. Não que Braithwaite precisasse dele para grande coisa - achava que sabia tudo o que havia para saber sobre o comandante do submarino e podia provavelmente recitar todas as patrulhas que o submarino já tinha realizado. Só queria confirmar umas quantas coisas antes de telefonar para o MI5.
As movimentações do U-509 andavam a intrigá-lo há várias semanas. O submarino parecia estar a patrulhar o mar do Norte sem nenhum objetivo, navegando sem destino em particular e passando longos períodos sem contactar o BdU. E quando dava de facto notícias, comunicava uma posição ao largo da costa britânica, perto de Spurn
Head. E também tinha sido avistado em fotografias aéreas num recinto para submarinos, no sul da Noruega. Não tinha sido visto a vir à superfície e não atacara nenhum
navio de guerra nem nenhum navio mercante dos Aliados.
Braithwaite pensou: Andas só para aí a tentar passar despercebido, sem fazer absolutamente nada. Bem, não acredito nisso, Kapitànleutnant Hoffman.
Ergueu os olhos para o rosto severo de Dónitz e murmurou:
- Porque deixarias um submarino e uma tripulação em perfeitas condições serem desperdiçados dessa maneira?
Passado um momento, o assessor regressou com o dossiê.
- Aqui está, senhor.
Braithwaite não pegou no dossiê; em vez disso, começou a recitar o que lá vinha escrito.
- O capitão chama-se Max Hoffman, se bem me lembro.
- Correto, senhor.
- Cruz de Cavaleiro da Cruz de Ferro em 1942, Folhas de Carvalho um ano depois.
- Colocadas pelo próprio Fúhrer.
- E agora a parte importante. Julgo que fez parte do sfaffde Canaris, na Abwehr, durante um curto período antes da guerra.
O assessor folheou o dossiê.
- Sim, aqui está, senhor. Hoffman foi destacado para o quartel-general da Abwehr, em Berlim, entre 38 e 39. Quando a guerra rebentou, foi outra vez transferido para a Kriegsmarine e recebeu o comando do U-509.
Braithwaite estava a olhar novamente para a mesa com o mapa.
- Patrick, se tivesse um importante espião alemão a precisar de uma boleia para fora de Inglaterra, não preferiria que fosse um velho amigo a conduzir?
- com certeza, senhor.
- Telefone para o MI5 e peça para falar com Vicary. Acho que precisamos de ter uma conversa.
CINQUENTA E SETE
LONDRES
Alfred Vicary estava parado diante um mapa das Ilhas Britânicas com dois metros e meio de altura, a fumar sem parar, a beber um chá horrível e a pensar: Agora sei como é que Adolf Hitler se deve sentir. com base no telefonema do comandante Lowe, da estação de recolha de comunicações de Scarborough, naquele momento era seguro partir do princípio de que os espiões estavam a tentar escapulir-se de Inglaterra a bordo de um submarino. Mas Vicary tinha um problema muito simples e, no entanto, muito grave. Fazia apenas uma vaga ideia de quando e uma ideia ainda mais vaga de como.
Partiu do princípio de que os espiões teriam de se encontrar com o submarino antes do amanhecer; seria demasiado perigoso para um submarino alemão manter-se à superfície perto da costa depois dos primeiros raios de luz do dia. Era possível que o submarino pretendesse desembarcar alguns membros da tripulação por meio de um bote de borracha - era assim que a Abwehr introduzia muitos dos seus espiões no Reino Unido -, mas Vicary duvidava que o tentassem fazer com mares revoltos. Por outro lado,
roubar um barco não era tão fácil como parecia. A Marinha Real tinha apreendido quase tudo o que conseguia flutuar. E a pesca no mar do Norte tinha diminuído porque
as águas costeiras se encontravam repletas de minas. Dois espiões em fuga teriam grandes dificuldades em encontrar um barco capaz de andar no mar em tão pouco tempo, com uma tempestade e durante o blackout.
Pensou: Se calhar, os espiões já têm um barco.
A pergunta mais exasperante era onde. De que ponto da costa iriam partir para o mar? Vicary olhou fixamente para o mapa. A estacão de recolha de comunicações não conseguia apontar a localização exata do transmissor. Só para que pudesse considerar essa hipótese, Vicary escolheu precisamente o centro da vasta área que lhe tinham indicado. Percorreu o mapa com o dedo até chegar à costa de Norfolk.
Sim, fazia todo o sentido. Vicary conhecia bem os horários dos caminhos de ferro. Um espião poder-se-ia esconder numa das aldeias da costa e ser também capaz de chegar a Londres em três horas graças ao comboio direto que saía de Hunstanton.
Vicary partiu do princípio de que teriam um bom veículo e bastante gasolina. Tinham efetuado uma viagem considerável desde Londres e, devido à forte presença policial nas linhas férreas, tinha praticamente a certeza de que não o tinham feito de comboio.
Pensou: Então, até que ponto da costa de Norfolk conseguiriam eles ir até se enfiarem num barco e partirem para o mar?
Provavelmente, o submarino não se aproximaria mais do que oito quilómetros da costa. Os espiões demorariam uma hora a percorrer esses oito quilómetros, se não mais.
E se o submarino submergisse aos primeiros raios de luz do dia, os espiões teriam de partir para o mar no máximo às seis horas, para jogarem pelo seguro. A mensagem
radiofónica tinha sido enviada às 22h. Isso deixava-lhes oito horas de potencial tempo de condução. Até onde poderiam ir? Tendo em conta o tempo que fazia, o blackout e as fracas condições das estradas, entre cento e cinquenta e duzentos e cinquenta quilómetros.
Vicary olhou para o mapa, desanimado. com isso, ainda restava uma enorme faixa da costa britânica, que se estendia do estuário do Tamisa, a sul, ao rio Humber, a norte. Seria praticamente impossível abarcar tudo. O litoral estava semeado de pequenos portos, aldeias piscatórias e cais. Vicary tinha pedido às forças policiais locais para percorrerem a costa com o máximo de homens possível. O Comando Costeiro da RAF tinha concordado em dar início a missões de busca logo que amanhecesse, embora Vicary temesse que fosse demasiado tarde. As corvetas da Marinha Real andavam à procura de
barcos pequenos, ainda que fosse praticamente impossível localiza-los numa noite chuvosa e escura, em pleno mar. Sem outra pista -- um segundo sinal de rádio intercetado ou um avistamento -, não havia grande esperança de os apanhar. O telefone tocou.
- Vicary.
- Daqui fala o comandante Arthur Braithwaite, da Sala de Localização de Submarinos. Vi o seu alerta quando entrei ao serviço e acho que lhe posso dar uma ajuda bastante importante.
- A Sala de Localização de Submarinos diz que o U-509 anda há umas quantas semanas a aproximar-se e a afastar-se da costa de Lincolnshire - revelou Vicary.
Boothby tinha descido para acompanhar Vicary na vigília defronte do mapa.
- Se concentrarmos todos os nossos homens e recursos em Lincolnshire, temos boas hipóteses de os parar.
- Continua a ser muita costa para abarcar. Vicary estava a olhar de novo para o mapa.
- Qual é a maior terra daquela região?
- Grimsby, diria eu.
-- Mas que apropriado, Grimsby. E quanto tempo é que acha que eu levaria a chegar lá?
- A divisão dos Transportes pqdia arranjar-lhe boleia, mas levaria horas.
Vicary fez uma careta. A divisão dos Transportes possuía alguns carros velozes precisamente para casos destes. Tinham condutores experimentados de reserva, especializados em perseguições a alta velocidade; um ou dois até tinham competido em corridas profissionais antes da guerra. Mas Vicary achava que os condutores, apesar de brilhantes, eram demasiado imprudentes. Lembrou-se da noite em que tinha sacado o espião da praia na Cornualha, recordando-se de estar a atravessar em grande velocidade a noite da Cornualha, durante o blackout, num Rover todo modificado, e a rezar para viver o suficiente para poder fazer aquela detenção.
Vicary perguntou:
- Então e se fosse um avião?
- Tenho a certeza de que lhe podia arranjar uma boleia com a RAF. Há uma pequena base de caças nos arredores de Grimsby. Podiam lá pô-lo em mais ou menos uma hora e podia servir-se da base como posto de comando. Mas já olhou pela janela nas últimas horas? Está uma noite horrível para se andar de avião.
- Eu tenho noção disso, mas tenho a certeza de que poderia coordenar melhor a busca se estivesse lá, no terreno - retorquiu Vicary, afastando-se do mapa e olhando para Boothby. - E ocorreu-me outra coisa. Se os conseguirmos deter antes de enviarem uma mensagem para Berlim, talvez possa enviá-la eu por eles.
- Engendrando uma explicação qualquer para a decisão deles de fugirem de Londres que reforce a confiança na Operação Kettledrum?
- Exato.
- Bem pensado, Alfred.
- Gostava de levar dois homens comigo: Roach e Dalton, se ele estiver em condições.
Boothby hesitou.
- Acho que também devia levar outra pessoa.
- Quem?
- Peter Jordan. -Jordan!
- Veja a coisa do outro lado do espelho. Se Jordan foi enganado e traído, não iria querer estar lá no fim, para presenciar a morte de Catherine Blake? Eu sei que iria querer de certeza. Iria querer carregar eu próprio no gatilho. Se estivesse no lugar dele. E os alemães também têm de achar isso. Temos de fazer tudo o que for possível para fazer com que acreditem na ilusão da Operação Kettledrum.
Vicary pensou no dossiê vazio que se encontrava nos Registos. O telefone voltou a tocar.
- Vicary.
Era uma das telefonistas do departamento.
- Professor Vicary, tenho uma chamada interurbana de um superintendente-chefe Perkin, da polícia de King's Lynn, em Norfolk. Diz que é bastante urgente.
- Passe-mo.
Hampton Sands era demasiado pequena, demasiado isolada e demasiado sossegada para justificar ter o seu próprio polícia. Partilhava um com mais quatro aldeias da costa de Norfolk, Holme, Thornton, Titchwell e Brancaster. O polícia era um homem chamado Thomasson, um veterano que trabalhava na costa de Norfolk desde a grande guerra anterior. Thomasson vivia numa casa da polícia, em Brancaster, e devido às necessidades do trabalho tinha o seu próprio telefone.
Uma hora antes, o telefone tinha tocado, acordando Thomasson, a mulher e o seu setter inglês, Rags. A voz do outro lado da linha pertencia ao superintendente-chefe Perkin, de King's Lynn. O superintendente informou Thomasson do telefonema importante que tinha recebido do Ministério da Guerra, em Londres, a pedir auxílio às forças policiais locais na busca de dois fugitivos suspeitos de homicídio.
Dez minutos depois de receber o telefonema de Perkin, Thomasson já estava a sair do chalé, com uma capa de oleado azul, um chapéu impermeável atado por baixo do queixo e um termos de chá doce que Judith lhe tinha preparado rapidamente. Foi buscar a bicicleta ao barracão nas traseiras da casa e, a seguir, partiu para o centro da aldeia. Rags, que acompanhava sempre Thomasson nas suas rondas, seguia descontraidamente ao lado dele.
Thomasson tinha cinquenta e tal anos. Nunca fumava, raramente tocava em álcool e trinta anos a percorrer de bicicleta a costa ondulante de Norfolk tinham-no deixado em forma e cheio de força. As pernas grossas e bem musculadas pedalavam facilmente, impulsionando a pesada bicicleta de ferro na direção de Brancaster. Tal como suspeitava, reinava um silêncio de morte na aldeia. Podia ir bater a algumas portas, acordar umas quantas pessoas, mas conhecia toda a gente na aldeia e não havia lá ninguém que estivesse a abrigar assassinos em fuga. Passou uma vez pelas ruas silenciosas e depois virou para a estrada costeira e seguiu para a aldeia seguinte, Hampton Sands.
O chalé dos Colville ficava a uns quinhentos metros da aldeia. Toda a gente conhecia a história de Martin Colville. Tinha sido abandonado pela mulher, bebia imenso
e mal conseguia viver da sua pequena propriedade. Thomasson sabia que Colville era demasiado duro com a filha, Jenny. E também sabia que Jenny passava muito tempo nas dunas; Thomasson encontrara as coisas dela depois de um dos habitantes da aldeia se queixar de que havia ciganos a viverem na praia. Deixou que a bicicleta parasse e apontou a lanterna para o chalé dos Colville. Estava às escuras e não havia fumo a sair da chaminé.
Thomasson empurrou a bicicleta pelo caminho de acesso e bateu à porta. Ninguém respondeu. Receando que Colville estivesse bêbado ou desmaiado, voltou a bater, com mais força. Mais uma vez, ninguém respondeu. Abriu a porta e espreitou lá para dentro. O interior da casa estava às escuras. Gritou pelo nome de Colville uma última vez. Como ninguém respondesse, foi-se embora do chalé e continuou em direção a Hampton Sands.
Tal como Brancaster, Hampton Sands estava silenciosa e numa escuridão completa. Thomasson atravessou a aldeia, passando pelo Arms, pela loja da aldeia e pela St. John's Church. Atravessou a ponte sobre a enseada. Sean e Mary Dogherty viviam a cerca de um quilómetro e meio da aldeia. Thomasson sabia que Jenny Colville vivia praticamente com os Dogherty. Era muito provável que estivesse a passar a noite lá. Mas onde estaria Martin?
Foi um quilómetro e meio difícil, com o trilho a subir e a descer à medida que avançava. À sua frente, no escuro, conseguia ouvir o clicar das patas de Rags no trilho e o ritmo constante da respiração do cão. O chalé dos Dogherty surgiu diante dele. Pedalou pelo caminho de entrada, parou e apontou a lanterna de um lado para o outro.
Houve qualquer coisa no prado que lhe chamou a atenção. Deslocou o feixe luminoso sobre a vegetação e - ali - ali estava aquilo outra vez. Avançou com dificuldade pelo meio do prado encharcado e baixou-se para apanhar o objeto. Era um bidão vazio. Cheirou-o gasolina. Virou-o ao contrário. Um fio de gasolina escorreu para fora.
Dirigiu-se para o chalé dos Dogherty, com Rags à sua frente. Viu a carrinha velha e em mau estado de Sean Dogherty estacionada no pátio. Depois, avistou duas bicicletas caídas no meio da vegetação, ao
lado do celeiro. Thomasson avançou até ao chalé e bateu à porta. Tal como no chalé dos Colville, ninguém respondeu.
Thomasson não se deu ao trabalho de bater uma segunda vez. Já se encontrava completamente alarmado com o que tinha visto. Abriu a porta e gritou
Olá. Ouviu um ruído
estranho, como gemidos abafados. Apontou a lanterna para a sala e viu Mary Dogherty amarrada a uma cadeira e com a boca amordaçada.
Thomasson correu para ela, com .Rags a ladrar furiosamente, e desatou rapidamente o pano que tinha à volta da cara.
- Mary! Mas que raio é que se passou aqui? ! Mary, nervosíssima, ofegou com falta de ar.
- Sean... Martin... mortos... celeiro... espiões... submarino... Jenny!
- Daqui fala Vicary.
- Superintendente-chefe Perkin, da polícia de King's Lynn.
- E o que tem para me dizer? - Dois cadáveres, uma mulher histérica e uma rapariga desaparecida.
- Meu Deus! Comece do início.
- Depois de ter recebido a sua chamada, mandei todos os meus agentes fazerem rondas. O agente Thomasson é responsável por um punhado de pequenas aldeias no norte da costa de Norfolk. Foi ele que deparou com os sarilhos.
- Continue.
- Aconteceu tudo num sítio chamado Hampton Sands. A não ser que tenha um mapa grande, não é provável que o encontre. Mas se tiver, descubra Hunstanton, na Wash, e percorra o leste da costa de Norfolk com o dedo e vai ver Hampton Sands.
- Já a encontrei.
Era praticamente o ponto onde Vicary tinha imaginado que o transmissor pudesse estar.
- Thomasson deu com dois corpos num celeiro, numa quinta logo à saída de Hampton Sands. As vítimas são dois habitantes locais, Martin Colville e Sean Dogherty. Dogherty é irlandês. Thomasson encontrou a mulher de Dogherty, Mary, amarrada e amordaçada
no chalé. Tinha levado uma pancada na cabeça e estava num estado de histeria quando Thomasson a descobriu. Contou-lhe uma história e pêras.
- Não há nada que me vá surpreender, superintendente. Por favor, continue.
- A senhora Dogherty diz que o marido anda a espiar para os alemães desde o começo da guerra, nunca foi um homem armado do IRA a cem por cento, mas tinha ligações ao grupo. Ela diz que, há umas semanas, os alemães largaram outro agente na praia, chamado Horst Neumann, e que Dogherty o acolheu. O agente tem estado a morar com eles desde então e a viajar para Londres regularmente.
- E o que aconteceu hoje à noite?
- Ela não sabe ao certo. Ouviu tiros, foi a correr para o celeiro e deu com os corpos. O alemão disse-lhe que Colville lhes tinha entrado por ali de rompante e que fora então que o tiroteio começara.
- E estava lá alguma mulher com Neumann?
- Estava.
- Fale-me da rapariga que desapareceu.
- É a filha de Colville, Jenny. Não está em casa e encontraram a bicicleta dela junto ao chalé dos Dogherty. Thomasson acha que ela seguiu o pai, assistiu ao tiroteio ou ao rescaldo e fugiu. Mary tem medo que o alemão tenha descoberto a rapariga e a tenha levado com ele.
- E ela sabe para onde é que eles iam?
- Não, mas diz que vão numa carrinha... talvez preta.
- E onde está ela agora?
- Continua no chalé.
- E onde está o agente Thomasson?
- Continua em linha, numpub em Hampton Sands.
- E havia algum indício de um rádio no chalé ou no celeiro?
- Espere um momento, deixe-me perguntar-lhe.
Vicary ouviu Perkin, com a voz abafada, a fazer a pergunta.
- Ele diz que viu uma engenhoca no celeiro que poderia ser um rádio.
- E era parecida com quê?
- com uma mala com uma coisa parecida com uma telefonia. Foi destruída por um tiro de caçadeira.
- E quem mais é que sabe disto?
- Eu, Thomasson e provavelmente o dono dopub. Suspeito que ele deve estar ao lado de Thomasson neste preciso momento.
- Não quero que fale a quem quer que seja do que se passou esta noite no chalé dos Dogherty. Não pode haver referências a agentes alemães em nenhum relatório sobre esta questão. Isto é um assunto de segurança da máxima importância. Estamos entendidos, superintendente?
- Estamos.
- vou enviar uma equipa de homens para Norfolk para o auxiliar. Por agora, deixe Mary Dogherty e esses corpos exatamente onde estão.
- Sim, senhor.
Vicary estava outra vez a olhar para o mapa.
- bom, superintendente, eu tenho informações que me levam a suspeitar que, com toda a probabilidade, esses fugitivos estão a dirigir-se precisamente para onde se encontra. Julgamos que o destino final deles é a costa de Lincolnshire.
- Já chamei todos os meus homens. Estamos a barricar todas as estradas principais.
- Mantenha o Ministério informado de todos os desenvolvimentos. E boa sorte.
Vicary desligou o telefone e voltou-se para Boothby.
- Eles mataram duas pessoas, têm provavelmente um refém e estão a tentar chegar à costa de Lincolnshire - revelou Vicary, sorrindo ferozmente. - E parece que acabaram de ficar sem o segundo rádio.
CINQUENTA E OITO
LINCOLNSHIRE, INGLATERRA
Duas horas depois de terem saído de Hampton Sands, Horst Neumann e Catherine Blake começaram a ter sérias dúvidas sobre as hipóteses de chegarem a tempo ao ponto de encontro com o submarino. Para escapar à costa de Norfolk, Neumann refez o seu percurso, subindo o grupo de colinas no coração de Norfolk e seguindo depois a estreita faixa de estrada pela região pantanosa e pelas povoações às escuras. Contornou King's Lynn para sudeste, serpenteou por uma série de aldeolas e depois atravessou o rio Great Ouse, numa aldeia chamada Wiggenhall St. Germans.
A viagem pela orla sul da Wash foi um pesadelo. O vento soprava com toda a força, vindo do mar do Norte, e chicoteava os pântanos e diques. A chuva aumentou de intensidade. Às vezes, vinha em rajadas furiosas - em turbilhão, soprada pelo vento, ocultando as bermas da estrada. Neumann curvava-se todo para a frente, quilómetro após quilómetro, agarrando com força o volante com ambas as mãos, enquanto a carrinha avançava a grande velocidade pelo terreno plano. Por vezes, tinha a sensação de estar a flutuar num abismo.
Catherine estava sentada ao lado dele, a ler o mapa antigo de Dogherty, do serviço oficial de topografia e cartografia, à luz da lanterna. Falavam em alemão para
Jenny não perceber. Neumann achava o alemão de Catherine curioso: átono, sem entoação especial nem sotaque regional. O tipo de alemão que é uma segunda ou terceira
língua. O tipo de alemão que não é falado há muito tempo.
Neumann traçou o caminho com as instruções de navegação de Catherine.
O barco estaria á espera deles numa terra chamada Cleethorpes, que ficava perto do porto de Grimsby, na foz do Humber. Assim que deixassem a Wash para trás, não teriam povoações grandes pelo caminho. De acordo com os mapas, havia uma estrada boa - a Al 6
- que seguia vários quilómetros para o interior, ao longo do sopé das colinas de Lincolnshire Wolds, e depois em direção ao Humber. Para efeitos de planeamento,
Neumann partiu do pressuposto de que as coisas correriam da pior maneira. Partiu do pressuposto de que Mary acabaria por ser encontrada, de que o MI5 acabaria por ser alertado e de que seriam estabelecidas barricadas em todas as estradas principais perto do litoral. Apanharia a Al 6 até meio do caminho para Cleethorpes e, a seguir, mudaria para uma estrada secundária que seguia mais perto da costa.
Avistou Boston perto da margem ocidental da Wash. Era a última cidade grande que os separava do Humber. Neumann deixou a estrada principal, avançou lentamente por tranquilas estradas secundárias e depois reentrou na Al 6 a norte da cidade. Carregou no acelerador e puxou fortemente pela carrinha por entre a tempestade.
Catherine desligou a lanterna para o blackout e olhou para a chuva a rodopiar à fraca luz dos faróis.
- Como é que andam as coisas agora... em Berlim? Neumann manteve os olhos na estrada.
- É o paraíso. Estamos todos felizes, trabalhamos muito nas fábricas, agitamos os punhos contra os bombardeiros americanos e britânicos e toda a gente ama o Fúhrer.
-- Pareces um filme de propaganda do Goebbels.
- A verdade não é assim tão divertida. Berlim está muito mal. Os americanos vêm de dia com os seus B-17 e os britânicos vêm à noite com os seus lancasters e Halifaxes. Há dias em que parece que a cidade está sob bombardeamento constante. Grande parte do centro de Berlim é um monte de destroços.
- Tendo eu passado também pela Blitz, receio bem que a Alemanha mereça tudo o que os americanos e britânicos lhe conseguirem infligir. Os alemães foram os primeiros a levar a guerra à população
civil. Não posso verter muitas lágrimas por Berlim estar agora a ser reduzida a pó.
- Pareces uma verdadeira britânica.
- E sou meia britânica. A minha mãe era inglesa. E há seis anos que vivo com os britânicos. É difícil não nos esquecermos de que lado supostamente estamos quando nos encontramos numa situação dessas. Mas fala-me mais de Berlim.
- Quem tem dinheiro ou ligações consegue comer bem. Quem não tem não consegue. Os russos inverteram por completo a situação no Leste. Desconfio que meia Berlim esteja
desejosa de que a invasão aconteça para que os americanos cheguem a Berlim antes dos russos.
- Isso é tão tipicamente alemão. Elegem um psicopata, dão-lhe poder absoluto e depois choram porque ele os conduziu à beira da destruição.
Neumann riu-se.
- Se foste abençoada com essa capacidade de prever o futuro, por que raio é que te voluntariaste para ser
espiã?
- E quem é que falou em voluntariado?
Passaram rapidamente por duas aldeias - primeiro, Stickney, depois, Stickford. O aroma de fumo vindo de lareiras a arderem nas pequenas casas invadiu a carrinha.
Neumann ouviu um cão a ladrar e, a seguir, outro. Enfiou a mão no bolso, tirou de lá os cigarros e passou-os a Catherine. Ela acendeu dois, ficou com um e deu-lhe o outro.
- Importas-te de explicar essa última observação?
Ela pensou: Importo-me? Era uma sensação tão estranha, após todos aqueles anos, estar a falar sequer alemão. Tinha passado seis anos a esconder o mais pequeno resquício de verdade sobre si. Tinha-se tornado outra pessoa, tinha apagado todos os aspetos da sua personalidade e do seu passado. Quando pensava na pessoa que era antes de Hitler e antes da guerra, era como se estivesse a pensar noutra pessoa.
Anna Katarina von Steiner morreu num infeli acidente de automóvel, à saída de Berlim.
- Bem, eu não fui propriamente ao gabinete da Abwehr lá da zona para me alistar - afirmou ela. - Mas também suponho que
não haja ninguém nesta atividade a conseguir trabalho dessa maneira pois não? Eles é que vêm sempre ter connosco. No meu caso, eles foram Kurt Vogel.
Contou-lhe a história, a história que nunca tinha contado a ninguém. A história do verão em Espanha, o verão em que rebentou a guerra civil. O verão na estancia de Maria. O caso com o pai de Maria.
- Só para veres a minha sorte, acontece que ele era um fascista e um caçador de talentos para a Abwehr. Vendeu-me a Vogel e Vogel veio à minha procura.
- E porque é que não disseste simplesmente não?
- Porque é que nenhum de nós disse simplesmente não? No meu caso, ele ameaçou quem eu mais quero neste mundo... o meu pai. É isso que um bom responsável operacional
faz. Entra-nos na cabeça. Consegue saber como é que pensamos, o que é que sentimos. O que é que amamos e o que é que tememos. E depois usa isso para nos pôr a fazer
o que ele quer que façamos.
Ela fumou em silêncio por um momento, observando enquanto passavam por outra aldeia.
- Ele sabia que eu tinha vivido em Londres quando era criança, que falava a língua perfeitamente, que já sabia usar uma arma e que...
Silêncio durante um momento. Neumann não insistiu com ela. Limitou-se a esperar, fascinado.
- Ele sabia que eu tinha a personalidade adequada para a missão que tinha em mente. Estive quase seis anos no Reino Unido, sozinha, praticamente sem contacto com ninguém do meu lado: nem amigos, nem família, nenhum contacto com outros agentes, nada. Foi mais uma sentença de prisão do que uma missão. Nem te consigo dizer quantas vezes sonhei em voltar a Berlim e matar Vogel com uma das maravilhosas técnicas que ele e os amigos me ensinaram.
- E como entraste no país?
Ela contou-lhe... contou-lhe o que Vogel a tinha feito fazer.
- Jesus - murmurou Neumann.
- Uma coisa típica da Gestapo, certo? Passei os seis meses seguintes a preparar a minha nova identidade. Depois instalei-me e esperei. Vogel e eu tínhamos uma forma de comunicar por rádio que
não incluía nomes de código. Portanto, os britânicos nunca me procuraram. Vogel sabia que eu estava segura e infiltrada, pronta para ser ativada. Depois, o idiota deu-me uma missão e fez-me cair mesmo nos braços do MI5 - disse ela, rindo-se baixinho. - Meu Deus, não posso acreditar que estou realmente a voltar para lá depois deste tempo todo. Nunca pensei que ia ver a Alemanha outra vez.
- Não pareces lá muito entusiasmada com a perspetiva de voltar para casa.
- Casa? É difícil pensar na Alemanha como a minha casa. É difícil pensar em mim como alemã. Vogel apagou essa parte de mini no maravilhoso retirozinho dele nas montanhas
da Baviera.
- E o que vais fazer?
- Encontrar-me com Vogel, ter a certeza de que o meu pai ainda está vivo e, a seguir, receber o meu pagamento e partir. Vogel pode arranjar-me outra das identidades falsas dele. Sou capaz de passar por cinco nacionalidades diferentes. Foi isso que me fez ir parar a este jogo logo para começar. É tudo um grande jogo, não é? Um grande jogo.
- E para onde estás a pensar ir?
- vou voltar para Espanha - respondeu ela. - vou voltar para o sítio onde começou tudo.
- Fala-me disso - pediu Neumann. - Preciso de pensar noutra coisa além desta estrada no meio de nenhures.
- Fica nas colinas no sopé dos Pirenéus. De manhã, vamos caçar e, à tarde, subimos às montanhas. Há uma maravilhosa ribeira com lagos fundos e frios e ficamos lá toda a tarde, a beber vinho branco gelado e a sentir o cheiro dos eucaliptos. Costumava pensar nisso o tempo todo quando a solidão me invadia. Às vezes, pensava que ia ficar maluca.
- Parece maravilhoso. Se precisares de um moço de estrebaria, diz-me.
Ela olhou para ele e sorriu.
- Tens sido maravilhoso. Se não fosses tu... - exclamou ela, hesitando antes de continuar. - Meu Deus, nem consigo sequer imaginar.
- Não precisas de agradecer. Fico contente por ter podido ajudar. Não quero estragar a festa, mas ainda não estamos livres de perigo.
- Acredita, tenho consciência disso.
Ela acabou o cigarro, abriu uma nesga do vidro da janela e atirou a ponta para o meio da noite. A beata atingiu a estrada e explodiu em faúlhas. Catherine recostou-se e fechou os olhos. Há já demasiado tempo que eram apenas a adrenalina e o medo que a faziam avançar. A exaustão tomou-a de assalto. O balançar suave da carrinha embalou-a, fazendo-a cair num sono leve, meio acordada.
Neumann perguntou:
- Vogel nunca me disse o teu nome verdadeiro. Qual é?
- O meu nome verdadeiro era Anna Katarina von Steiner -
respondeu ela com o sono a infiltrar-se-lhe na voz. - Mas prefiro que me continues a chamar Catherine. É que Kurt Vogel matou Anna antes de a enviar para Inglaterra. Receio bem que Anna já não exista. Anna está morta.
Quando Neumann falou outra vez, a sua voz estava muito longe, no fim de um grande túnel.
- E como é que uma mulher linda e inteligente como a Anna Katarina von Steiner acabou aqui, desta maneira?
- É uma pergunta muito boa - retorquiu ela, com a fadiga a tomar conta de si, adormecendo de seguida.
O sonho é neste momento a única recordação que ela tem disso; há muito que foi expulsa benevolamente dos seus pensamentos conscientes. Vê-o apenas em breves erupções - vislumbres roubados. As vezes, vê-o com os próprios olhos, como se o estivesse a reviver, e, outras
vezes, o sonho obriga-a a vê-lo de novo, como um espectador
numa bancada.
Esta noite está a revivê-lo.
Está deitada à beira do lago; o papá deixa-a ir sozinha. Sabe que ela não se vai aproximar da água - está demasiado fria para nadar- e sabe que ela gosta de estar
sozinha quando pensa na mãe.
É outono. Ela trouxe um cobertor. A erva alta à beira do lago está húmida da chuva da manhã. O vento move-se nas árvores. Um bando de gralhas revolteia
e dispersa-se ruidosamente por cima da cabeça dela. As árvores derramam flamejantes folhas cor de laranja e vermelhas. Ela observa as folhas a descerem suavemente,
como pequenos balões de ar quente, e a pousarem na superfície encrespada
do lago.
E então que, enquanto segue com os olhos a descida das folhas, vê o homem, parado junto às árvores do outro lado do lago.
Ele fica quieto durante muito tempo, a olhar para ela; a seguir, avança na sua direção. Tra botas altas e um casaco que lhe dá pelas coxas. Tem uma caçadeira de carregar pela culatra aninhada no braço direito. O cabelo e a barba são muito compridos, os olhos vermelhos e húmidos. A medida que se aproxima, ela vê que tem algo pendurado no cinto. Percebe que são dois coelhos ensanguentados. Mortos e flácidos, parecem absurdamente compridos e finos.
O papá tem uma palavra para homens como ele: larápios. Chegam às terras das outras pessoas e matam os animais - veados, coelhos efaisões. Ela acha que é uma palavra engraçada, larápios. Parece referir-se a alguém que prepara ovos de manha. Pensa nisso enquanto o homem se aproxima, e isso fá-la sorrir.
O larápio pergunta se pode sentar-se ao lado dela e ela diz que sim.
Ele põe-se de cócoras e pousa a espingarda na relva.
- Estás aqui sozinha?-pergunta.
- Sim. O meu pai diz que não faz mal.
- E onde está o teu pai agora?
- Está em casa.
- E não vem cá?
- Não.
-Quero mostrar-te uma coisa - diz ele. - Uma coisa que te vai fazer sentir ótima.
Os olhos dele já estão muito húmidos. Está a rir-se; tem os dentes pretos e podres. Ela fica com medo pela primeira
vez. Tenta levantar-se mas ele agarra-a pelos
ombros e empurra-a para baixo, deitando-a no cobertor. Ela tenta gritar mas ele abafa o som com a mão grande e peluda. De repente, está em cima dela; ela fica paralisada
debaixo do peso dele. Ele está a levantar-lhe o vestido e a arrancar-lhe a roupa interior.
A dor não se parece com nada que ela já tenha sentido. Parece que está a ser rasgada. Ele prende-lhe os braços atrás da cabeça com a mão e tapa-lhe a boca com a
outra para ninguém a ouvir gritar. Ela sente os corpos ainda quentes dos
coelhos mortos a pressionarem-lhe a perna. A seguir, o rosto do larápio contorce-se como se ele estivesse com dores e tudo aquilo para tão repentinamente como começou.
Ele está outra vez a falar com ela:
- Viste os coelhos? Viste o que eu fiz aos coelhos?
Ela tenta assentir com a cabeça, mas a mão que lhe tapa a boca está afazer tanta força que ela não consegue mexer a cabeça.
- Se alguma vez disseres a alguém o que aconteceu aqui hoje, faço-te o mesmo. E depois faço o mesmo ao teu pai. Dou um tiro aos dois e, a seguir, penduro as vossas
cabeças no meu cinto. Estás a ouvir, rapariga?
Ela começa a chorar.
- És uma rapariga muito má - diz ele. - Oh, sim, dá para ver isso. Acho que até gostaste disto.
A seguir, faz-lhe aquilo outra vez.
Começam os tremores. Nunca tinha sonhado com aquilo desta maneira. Alguém está a chamar o nome dela - Catherine... Catherine... acorda. Porque é que ele me está
a chamar Catherine? O meu nome é Arma...
Horst Neumann sacudiu-a uma vez mais, com violência, e gritou:
- Catherine, raios partam! Acorda! Temos sarilhos!
CINQUENTA E NOVE
LINCOLNSHIRE, INGLATERRA
Eram três da manhã quando o ILysander atravessou as nuvens espessas e aterrou com um forte solavanco numa pequena base da RAF a três quilómetros da cidade de Grimsby.
Alfred Vicary nunca tinha andado de avião e era uma experiência que desejava não repetir tão depressa. O mau tempo sacudiu o avião durante todo o voo, desde que saíram de Londres, e Vicary nunca se tinha sentido tão satisfeito na vida por ver um lugar quando deslizaram na pista em direção ao pequeno barracão de operações.
O piloto desligou o motor enquanto um tripulante abria a porta da cabine. Vicary, Harry Dalton, Clive Roach e Peter Jordan desceram rapidamente. Estavam dois homens à espera deles, um jovem oficial da RAF, de ombros quadrados, e um homem alto e bexigoso, com uma gabardina em mau estado.
O homem da RAF estendeu a mão e tratou das apresentações.
- Chefe de esquadrilha Edmund Hughes. E o superintendente -chefe da polícia do condado de Lincolnshire, Roger Lockwood. Entrem no barracão das operações. É rudimentar, mas seco, e montámos um posto de comando improvisado para os senhores.
Entraram. O oficial da RAF disse:
- Calculo que não seja tão agradável como os vossos aposentos em Londres.
- Até ficaria surpreendido - respondeu Vicary.
Era uma sala pequena, com uma janela com vista para o aeródromo. Havia um mapa de grande escala de lincolnshire pendurado numa parede e uma secretária com dois telefones maltratados do outro lado da sala.
- Serve perfeitamente.
- Temos um rádio e um teleimpressor - anunciou Hughes. -- Até podemos arranjar chá e sanduíches de queijo. Estão com ar de quem podia comer qualquer coisa.
- Obrigado - respondeu Vicary. - Foi um dia longo. Hughes saiu e o superintendente-chefe Lockwood avançou.
- Temos homens em todas as estradas principais até à Wash disse Lockwood, com o dedo grosso a bater no mapa. - Nas aldeias mais pequenas, só há polícias de bicicleta e portanto receio bem que não sejam capazes de fazer muito se os virem. Mas, à medida que se deslocarem para mais perto da costa, vão ter problemas. Barricadas aqui, aqui, aqui e aqui. Os meus melhores homens, carros-patrulha, carrinhas e armas.
- Muito bem. E em relação à costa propriamente dita?
- Temos homens em todas as docas e cais ao longo da costa de Lincolnshire e do Humber. Se tentarem roubar algum barco, vou ser informado.
- E em relação às praias abertas?
- Isso já é outra história. Não tenho meios ilimitados. O exército levou-me muitos dos meus melhores rapazes, tal como a toda a gente. Mas conheço estas águas. Também sou marinheiro amador. E não ia querer sair para o mar esta noite em nenhum barco que saísse de uma praia.
- Este tempo pode ser o nosso melhor amigo.
- É verdade. Outra coisa, major Vicary. Continuamos a ter de fingir que os senhores só andam atrás de um par de criminosos vulgares?
- Por acaso, superintendente-chefe, temos mesmo.
A saída da Al6 para uma pequena estrada secundária estava à frente deles, mesmo à saída da cidade de Louth. Neumann tinha
planeado deixar a Al 6 nessa altura, apanhar a estrada secundária para a costa, mudar para outra estrada secundária e dirigir-se para norte para Cleethorpes. Havia
apenas um problema. Metade da polícia de Louth estava na saída. Neumann conseguia ver pelo menos quatro homens. Quando se aproximou, eles apontaram as lanternas
na sua direção e fizeram-lhe sinal para parar.
Catherine já tinha acordado, sobressaltada.
- O que se passa?
- Fim da linha, receio bem - respondeu Neumann, parando a carrinha. - É evidente que têm estado à nossa espera. Não é com conversas que nos vamos safar.
Catherine pegou na Mauser.
- E quem é que falou em conversas?
Um dos polícias avançou, empunhando uma caçadeira, e bateu ao de leve no vidro da janela de Neumann. Neumann desceu o vidro e disse:
- Boa tarde. Qual é o problema?
- O senhor importa-se de sair da carrinha?
- Por acaso, até me importo. É tarde, estou cansado, está um tempo horrível e quero chegar ao meu destino.
- E pode dizer-me onde isso é?
- Kingston - respondeu Neumann, apesar de conseguir ver que o polícia já estava a duvidar da história. Outro polícia apareceu à janela de Catherine. E outros dois posicionaram-se atrás da carrinha.
O polícia abriu a porta de Neumann de rompante, apontou-lhe a caçadeira à cara e disse:
- Muito bem. Levante as mãos para eu as poder ver e saia da carrinha. Devagarinho.
Jenny Colville estava sentada na parte de trás da carrinha, com as mãos e os pés atados e a boca amordaçada. Doíam-lhe os pulsos. E também o pescoço e as costas. Estava sentada no chão da carrinha há quanto tempo? Duas horas? Três horas? Talvez quatro? Quando a carrinha abrandou, permitiu-se um breve lampejo de esperança.
Pensou: Talvez isto acabe rapidamente e eu possa voltar para Hampton Sands e Mary e Sean e o papá estejam lá e as coisas sejam como eram antes de ele vir e tudo acabe por ser um pesadelo e... deteve-se. Era melhor ser realista. Era melhor pensar naquilo que era realmente possível.
Observou-os no banco da frente. Tinham falado baixinho em alemão durante muito tempo, depois a mulher adormeceu e, naquele momento, Neumann estava a sacudi-la e a tentar acordá-la. Mais adiante, pelo para-brisas, viu luz - feixes de luz balançando para a frente e para trás, como lanternas. Pensou: Os polícias usariam lanternas se estivessem a barricar a estrada. Seria possível? Será que sabiam que eles eram espiões alemães e que ela tinha sido raptada? Estariam à procura dela?
A carrinha parou. Conseguiu ver dois polícias à frente da carrinha e, lá fora, perto da parte de trás, ouviu passos e as vozes de pelo menos mais dois. Ouviu o polícia a bater no vidro. Viu Neumann descer a janela. Viu que ele tinha uma arma na mão. Jenny olhou para a mulher. Também tinha uma arma na mão.
Foi então que se lembrou do que tinha acontecido no celeiro. Duas pessoas atravessaram-se no caminho deles - o pai dela e Sean Dogherty - e tinham-nas matado. Era
possível que também tivessem matado Mary. Não se iriam render só porque alguns polícias da província os mandavam fazê-lo. Também iriam matar os polícias, tal como
tinham matado o pai e Sean.
Jenny ouviu a porta a abrir-se, ouviu o polícia a gritar-lhes para saírem. Sabia o que estava prestes a acontecer. Em vez de saírem, iriam começar a disparar. E
depois os polícias morreriam todos e Jenny ficaria outra vez sozinha com eles.
Tinha de os avisar.
Mas como?
Não podia falar porque Neumann a tinha amordaçado fortemente.
Só podia fazer uma coisa.
Levantou as pernas e pontapeou a parte lateral da carrinha com toda a força possível.
Se a ação de Jenny Colville não teve o efeito pretendido, pelo menos garantiu a um dos polícias - aquele que estava mais perto da porta de Catherine Blake - uma morte mais suave. Quando ele virou a cabeça na direção do som, Catherine levantou a Mauser e deu-Ihe um tiro. O soberbo silenciador da Mauser abafou a explosão da bala, fazendo com que a arma emitisse apenas um estampido grave. A bala estilhaçou o vidro, atingiu o polícia na articulação do maxilar e, a seguir, ricocheteou para a base do crânio. Ele tombou morto na superfície lamacenta da estrada.
O segundo a morrer foi o polícia do lado da porta de Neumann, apesar de não ter sido Neumann a disparar o tiro que o matou. Neumann livrou-se da caçadeira com um golpe da mão direita; Catherine virou-se e disparou pela porta aberta. A bala atingiu o polícia no meio da testa e saiu pela parte de trás do crânio. Ele caiu de costas na estrada.
Neumann caiu da carrinha e aterrou na estrada. Um dos polícias na parte de trás da carrinha disparou por cima da cabeça dele, estilhaçando a janela meio aberta. Neumann apertou o gatilho rapidamente, duas vezes. O primeiro tiro atingiu o polícia no ombro, fazendo-o rodopiar. O segundo atravessou-lhe o coração.
Catherine saiu da carrinha, com a arma nas mãos esticadas para a frente, a apontar para a escuridão. Do outro lado da carrinha, Neumann estava a fazer a mesma coisa, só que continuava deitado de barriga para baixo. Ficaram ambos à espera, sem fazer barulho, à escuta.
O quarto polícia pensou que era melhor fugir e pedir ajuda. Voltou-se e começou a correr pela escuridão. Depois de dar algumas passadas, ficou ao alcance de Neumann. Neumann fez pontaria cuidadosamente e disparou duas vezes. A corrida terminou, a caçadeira bateu com estrépito no alcatrão e o último dos quatro homens caiu morto na estrada molhada da chuva.
Neumann recolheu os corpos e empilhou-os atrás da carrinha. Catherine abriu as portas traseiras. Jenny, com os olhos escancarados
de terror, ergueu as mãos para proteger a cabeça. Catherine levantou a arma bem alto e bateu com ela na cara de Jenny. Um corte profundo abriu-se por cima do olho. Catherine disse:
- A não ser que queiras acabar como eles, não voltes a tentar mais nada desse género.
Neumann pegou em Jenny ao colo e deitou-a na superfície da estrada. Em seguida, com Catherine, colocou os corpos dos polícias mortos no fundo da carrinha. A ideia tinha-lhe surgido instantaneamente. Os polícias tinham vindo de carrinha para aquele sítio; esta encontrava-se estacionada a poucos metros dali, na berma da estrada. Neumann iria esconder os corpos e a carrinha roubada no meio das árvores, onde não pudessem ser vistos, e servir-se da carrinha da polícia para seguir até à costa. Era possível que passassem várias horas até outro polícia aparecer ali e descobrir que os polícias tinham desaparecido. Nessa altura, já ele e Catherine estariam a caminho da Alemanha, a bordo do submarino.
Neumann pegou em Jenny e colocou-a na parte de trás da carrinha da polícia. Catherine subiu para o lugar do condutor e ligou o motor. Neumann dirigiu-se para a outra carrinha e entrou nela. O motor estava a trabalhar. Fez marcha atrás, deu a volta e, a seguir, acelerou pela estrada fora, com Catherine a segui-lo. Tentou não pensar nos quatro cadáveres que se encontravam a poucos centímetros dele.
Dois minutos depois, Neumann virou para um pequeno caminho fora da estrada. Conduziu cerca de duzentos metros, parou e desligou o motor. A seguir, saiu e voltou a correr para a estrada. Catherine tinha invertido a direção da carrinha e estava sentada no lugar do passageiro quando Neumann regressou. Entrou, bateu com a porta e partiu a toda a velocidade.
Passaram o local onde a barricada tinha sido montada e viraram para a pequena estrada secundária. De acordo com o mapa, faltavam cerca de dezasseis quilómetros até à estrada da costa e, a seguir, mais trinta e dois quilómetros até Cleethorpes. Neumann acelerou a fundo e puxou fortemente pela carrinha. Pela primeira vez desde que tinha visto os homens do MI5 em Londres, permitiu-se imaginar que apesar de tudo talvez até conseguissem.
Alfred Vicary andava de um lado para o outro da sala na base da RAF nos arredores de Grimsby. Harry Dalton e Peter Jordan estavam sentados à secretária, a fumar. O superintendente Lockwood encontrava-se sentado ao lado deles, construindo figuras geométricas com os fósforos.
Vicary disse:
- Não estou a gostar disto. Alguém já os devia ter visto. Harry respondeu:
- Todas as estradas principais estão bloqueadas. A dada altura, vão ter de dar de caras com uma barricada.
- Se calhar, talvez não estejam a vir nesta direção. Se calhar, fiz um erro de cálculo terrível. Se calhar, foram de Hampton Sands para sul. Se calhar, a comunicação com o submarino foi um estratagema e estão a caminho da Irlanda numferry.
- Eles estão a vir nesta direção.
- Se calhar, resolveram esconder-se, desistiram. Se calhar, estão enfiados noutra aldeia longínqua, à espera que as coisas acalmem antes de avançarem.
- Eles avisaram o submarino. Têm de ir.
- Não têm de fazer nada. É possível que tenham avistado as barricadas e o aumento do número de polícias e decidido esperar. Podem avisar o submarino na próxima oportunidade e tentar novamente quando as coisas estiverem mais calmas.
- Está a esquecer-se de uma coisa. Eles não têm rádio.
- Nós achamos que não têm. O Harry tirou-lhes um e o Thomasson encontrou um rádio destruído em Hampton Sands. Mas não temos a certeza de que não têm um terceiro.
- Não temos a certeza de nada, Alfred. Fazemos palpites fundamentados.
Vicary andou outra vez de um lado para o outro, a olhar para o telefone e a pensar: Toca, diabos, toca!
Querendo desesperadamente fazer qualquer coisa, levantou o auscultador e pediu à telefonista para ligar para a Sala de Localização de Submarinos, em Londres. Quando apareceu por fim na linha,
Arthur Braithwaite parecia estar dentro de um tubo de lançamento de torpedos.
Vicary perguntou:
- Soube alguma coisa, comandante?
- Falei com a Marinha Real e a guarda costeira local. A Marinha Real está neste preciso momento a deslocar para a área um par de corvetas - números 745 e 128. Vão
estar ao largo de Spurn Head dentro de uma hora e começar as operações de busca logo de seguida. A guarda costeira está a tomar conta das coisas mais perto da costa. E a RAF vai pôr aviões no ar à primeira luz do dia.
- E quando é isso?
- Por volta das sete da manhã. Talvez um pouco depois, por causa da densa cobertura de nuvens.
- Isso pode ser já muito tarde.
- Não lhes vai servir de nada irem antes disso. Precisam de luz para ver. Estariam perfeitamente cegos se fossem agora. Mas há boas notícias. Esperamos uma aberta no tempo pouco antes do amanhecer. O céu vai manter-se encoberto, mas espera-se que a chuva abrande e o vento diminua. Isso vai facilitar a condução das operações de busca.
- Afinal de contas, não tenho a certeza de que sejam assim tão boas notícias. Estávamos a contar com a tempestade para fechar a costa. E o tempo melhor também torna a vida mais fácil aos agentes e ao submarino.
- Bem visto.
- Dei instruções à Marinha Real e à RAF para fazerem a busca o mais discretamente possível. Eu sei que isto soa algo inverosímil, mas tente fazer com que pareça tudo rotina. E diga a todos para terem cuidado com o que dizem pelo rádio. Os alemães também nos ouvem. Lamento não poder ser mais claro, comandante Braithwaite.
- Eu compreendo. vou transmitir essas indicações.
- Obrigado.
- E tente não se enervar, major Vicary. Se esses seus espiões tentarem chegar àquele submarino hoje à noite, vamos detê-los.
Os polícias Gardner e Sullivan pedalavam ao lado um do outro pelas ruas escuras de Louth, Gardner, um homem grande, alto e de meia-idade, e Sullivan um rapaz magro e em boa forma, com pouco mais de vinte anos. O superintendente-chefe Lockwood tinha-lhes ordenado que se dirigissem a uma barricada a sul da aldeia e substituíssem dois dos polícias que lá estavam. Gardner queixou-se enquanto pedalava:
- Porque é que os criminosos de Londres arranjam sempre maneira de acabar aqui, no meio de uma tempestade, és capaz de me explicar?
Sullivan estava entusiasmadíssimo. Esta era a sua primeira grande caça ao homem. E também era a primeira vez que usava uma arma em serviço. Trazia uma espingarda de ferrolho, com trinta anos e saída da sala de armas da esquadra, pendurada ao ombro.
Cinco minutos mais tarde, chegaram à saída onde deveria estar a barricada. O lugar estava deserto. Gardner levantou-se, sem sair da bicicleta. Sullivan deitou a sua no chão, acendeu a lanterna e iluminou a área. Primeiro, viu as marcas dos pneus e, depois, os vidros espalhados.
Sullivan gritou:
- Chega aqui! Depressa!
Gardner desceu da bicicleta e empurrou-a até onde estava Sullivan.
- Jesus Cristo!
- Olha para as marcas. Dois veículos, o deles e o nosso. Quando voltaram para trás, os pneus enlamearam a superfície da estrada. Deixaram-nos umas belas marcas para seguirmos.
- É verdade. Vai ver onde vão dar. Eu volto para a esquadra para alertar Lockwood. E, por amor de Deus, tem cuidado.
Sullivan pedalou pela estrada, segurando a lanterna com uma mão e vendo as marcas a desvanecerem-se gradualmente. Cem metros à frente do local da barricada, o rasto tinha desaparecido. Sullivan avançou mais uns quatrocentos metros à procura de algum sinal da carrinha da polícia.
Andou um pouco mais e foi então que avistou outro conjunto de marcas de pneus. Estas eram diferentes. As marcas tornavam-se mais claras e definidas à medida que pedalava. O veículo que as tinha feito tinha obviamente vindo da direção contrária.
Seguiu as marcas até ao ponto de origem e encontrou o pequeno trilho que ia dar às árvores. Apontou a lanterna para o trilho e viu o par de marcas recentes de pneus. Virou o feixe de luz na horizontal, para o túnel de árvores, mas a luz não era suficientemente potente para penetrar na escuridão. Olhou para o chão - demasiado sulcado e enlameado para manobrar a bicicleta. Desmontou, encostou a bicicleta a uma árvore e começou a andar.
Dois minutos depois, avistou a parte de trás da carrinha. Chamou, mas ninguém respondeu. Olhou com mais atenção. Não era o veículo da polícia; tinha matrícula de
Londres e era um modelo diferente. Sullivan avançou lentamente. Aproximou-se da parte da frente da carrinha pelo lado do passageiro e apontou a lanterna lá para dentro. O banco da frente estava vazio. Apontou o feixe de luz para a parte de trás, na direção da área de armazenamento.
Foi então que viu os corpos.
Sullivan deixou a carrinha no meio das árvores e voltou para Louth, pedalando o mais depressa possível. Chegou à esquadra da polícia e contactou rapidamente o superintendente-chefe
Lockwood na base da RAF.
- Estão os quatro mortos - disse ele, sem fôlego devido à corrida. - Estão estendidos na parte de trás de uma carrinha, mas não é a deles. Parece que os fugitivos levaram a carrinha da polícia. A julgar pelas marcas na estrada, acho que voltaram para trás, no sentido de Louth.
Lockwood perguntou:
- E onde estão os corpos agora?
- Deixei-os no bosque, senhor.
- Volta para lá e fica à espera até que chegue ajuda.
- Sim, senhor. Lockwood desligou o telefone.
- Quatro homens mortos. Meu Deus!
- Lamento, superintendente-chefe. Lá se vão as minhas teorias de eles se terem escondido. Andam obviamente por aqui e são capazes de fazer tudo para escapar, incluindo
assassinar quatro dos seus homens a sangue-frio.
- E temos outro problema... vão num veículo da polícia. Avisar os agentes que dirigem as barricadas vai levar tempo. E, entretanto, os seus espiões estão a aproximar-se
perigosamente da costa - afirmou Lockwood, dirigindo-se para o mapa. - Louth fica aqui, mesmo a sul de nós. Agora, eles podem apanhar uma série de estradas secundárias para o mar.
- Reposicione os seus homens. Coloque-os todos entre Louth e a costa.
- com certeza, mas vai demorar tempo. E os seus espiões já nos levam avanço.
- Outra coisa - atirou Vicary. - Tragam esses mortos para aqui o mais discretamente possível. Quando isto tudo acabar, pode ser necessário engendrar outra explicação para a morte deles.
- E o que digo às famílias deles? - vociferou Lockwood, saindo da sala.
Vicary pegou no telefone. A telefonista fez a ligação para o quartel-general do MI5 em Londres. Uma telefonista do departamento atendeu. Vicary pediu para falar com Boothby e esperou que ele surgisse na linha.
-Sir Basil, receio bem que tenhamos grandes problemas por aqui.
Um vento rigoroso fazia a chuva fustigar a zona do porto de Cleethorpes quando Neumann abrandou e virou para uma fila de armazéns e garagens. Parou a carrinha e desligou o motor. Não faltava muito para o amanhecer. Mesmo à luz fraca, conseguia ver um pequeno cais, com vários barcos de pesca atracados e mais barcos a balouçarem, presos com as suas amarras na água negra. Tinham feito um tempo excelente até à costa. Por duas vezes, tinham encontrado barricadas e, por duas vezes, tinham-nos deixado passar sem perguntas graças à carrinha em que seguiam.
Supostamente, o apartamento de Jack Kincaid ficava por cima de uma garagem. Tinha uma escada exterior de madeira, com uma porta no cimo. Neumann saiu da carrinha e subiu as escadas, puxando instintivamente da Mauser ao aproximar-se da porta. Bateu suavemente, mas ninguém respondeu. Experimentou o trinco; a porta estava destrancada. Abriu-a e entrou.
Foi imediatamente assaltado pelo fedor do lugar: lixo em decomposição, cigarros velhos, corpos sujos, um cheiro opressivo a álcool. Experimentou o interruptor, mas não aconteceu nada. Tirou a lanterna do bolso e acendeu-a. O feixe apanhou a figura de um homem grande a dormir num colchão sem lençóis. Neumann avançou cautelosamente pelo quarto imundo e deu um pequeno toque no homem com a biqueira da bota.
- É o Jack Kincaid?
- Sou. E quem é você?
- Chamo-me James Porter. Ficou de me dar boleia no seu barco.
- Oh, sim, sim.
Kincaid tentou sentar-se no colchão, mas não conseguiu. Neumann apontou-lhe a luz à cara. Tinha pelo menos sessenta anos e a sua cara angulosa mostrava os sinais de um alcoolismo desregrado.
- Bebeu um pouco ontem à noite, Jack? - perguntou Neumann.
- Um pouco.
- Qual é o seu barco, Jack?
- O Camilla.
- E onde está ele exatamente?
- Lá em baixo, no cais. É impossível não dar por ele. Kincaid estava a perder os sentidos outra vez.
- Não se importa que eu o leve emprestado por um bocadinho, pois não, Jack?
Kincaid não respondeu, limitou-se a começar a ressonar profundamente.
- Muito obrigado, Jack.
Neumann saiu do apartamento e voltou a entrar na carrinha.
- O nosso capitão não está em condições de nos levar. Está bêbado que nem um cacho.
- E o barco?
- É o Camilla. Ele diz que está mesmo ali em baixo, no cais.
- E está lá mais qualquer coisa.
- O quê?
- Já vais ver daqui a um instante. Neumann viu surgir um polícia.
- Eles devem estar a vigiar a costa toda - disse Neumann.
- É uma pena. Outra baixa desnecessária.
- Vamos lá a despachar isso. Matei mais gente esta noite do que em todo o tempo que estive nos Fallschirmjàger.
- Porque achas que Vogel te mandou para aqui? Neumann não respondeu.
- Então e a Jenny?
- Ela vem connosco.
- Quero deixá-la aqui. Ela já não nos serve de nada.
- Não me parece. Se a encontrarem, pode dizer-lhes muita coisa. Além disso, se eles sabem que temos um refém a bordo, vão pensar duas vezes sobre as medidas a tomar para nos deter.
- Se estás a sugerir que vão hesitar em disparar sobre nós por termos uma civil britânica a bordo, estás enganada. Estão demasiadas coisas em jogo para isso. Matam-nos a todos, se for necessário.
- Então que seja. Mas ela vem connosco. Quando chegarmos ao submarino, deixamo-la ficar no barco. Os britânicos vão salvá-la e não lhe vai acontecer mal nenhum.
Neumann percebeu que continuar a discutir com ela seria uma perda de tempo. Catherine voltou-se para trás e, em inglês, disse a Jenny:
- Acabaram-se os heroísmos. Se te mexeres, dou-te um tiro na cara.
Neumann abanou a cabeça. Ligou o motor, pôs a carrinha em primeira e seguiu para o cais.
O polícia que se encontrava no cais ouviu o som de um motor parou e olhou para cima. Avistou a carrinha da polícia a dirigir-se para ele. Estranho, pensou, pois só estava previsto ser substituído às oito horas. Viu a carrinha parar e duas pessoas saírem. Esforçou-se por perceber quem eram no meio da escuridão, mas passados alguns segundos deu-se conta de que não eram polícias. Eram um homem e uma mulher, muito provavelmente os fugitivos!
Foi então que teve uma sensação de desânimo. Estava armado apenas com um revólver anterior à guerra e que encravava frequentemente. A mulher vinha na sua direção. O braço dela ergueu-se e houve um clarão, mas praticamente nenhum som, apenas um baque abafado. Sentiu a bala rasgar-lhe o peito e teve consciência da perda de equilíbrio.
A última coisa que viu foi a água suja do Humber a avançar subitamente na sua direção.
lan McMann era um pescador que acreditava que o sangue celta que lhe corria nas veias lhe dava poderes que os meros mortais não possuíam. Ao longo dos sessenta anos passados junto ao mar do Norte, afirmou ter ouvido pedidos de socorro antes de serem enviados. Afirmava ver os fantasmas de homens desaparecidos no mar a pairar por cima dos desembarcadouros e dos portos. Afirmava saber que alguns navios estavam amaldiçoados e que nunca se aproximaria deles. Toda a gente em Cleethorpes aceitava tudo isso como verdadeiro, mas, em privado, sugeria-se que lan McMann tinha passado demasiadas noites no mar.
McMann tinha-se levantado, como habitualmente, às cinco horas, apesar de as péssimas previsões meteorológicas indicarem condições que manteriam todos os barcos fora de água o dia inteiro. Estava a comer papas de aveia ao pequeno-almoço, sentado à mesa da cozinha, quando ouviu um barulho lá fora, no cais.
O bater da chuva tornava difícil distinguir qualquer outro som, mas McMann podia jurar ter ouvido alguém ou qualquer coisa a cair na água. Sabia que havia um polícia lá fora - na noite anterior, tinha-lhe levado chá e uma fatia de bolo antes de se ir deitar - e sabia por que razão lá estava. O polícia estava á procura de dois suspeitos de homicídio de Londres. McMann suspeitava que não fossem suspeitos de homicídio vulgares. Vivia em Cleethorpes há vinte anos
e nunca tinha ouvido falar da polícia local a vigiar a zona
do porto.
A janela da cozinha do chalé de McMann tinha uma vista excelente para o cais e, mais adiante, para a foz do Humber. McMann levantou-se, abriu as cortinas e olhou
lá para fora. Não havia sinal do polícia. McMann enfiou um oleado e um chapéu impermeável, foi buscar a lanterna à mesa ao lado da porta e saiu.
Acendeu a lanterna e começou a andar. Depois de alguns passos, ouviu o barulho do motor a diesel de um barco a pegar. Andou mais depressa, até conseguir ver que
barco era: o Camiíla, o barco de Jack Kincaid.
McMann pensou: Mas ele está maluco, a sair com uma tempestade destas?
Começou a correr e gritou:
- Jack, Jack! Para! Onde pensas que vais?
Foi então que percebeu que o homem que estava a desamarrar o Camiíla do cais e a saltar para o convés de popa não era Jack Kincaid. Alguém estava a roubar o barco.
Olhou em redor, à procura do polícia, mas ele tinha desaparecido. O homem entrou na casa do leme, acelerou e o Camiíla afastou-se do cais.
McMann correu atrás do barco e gritou:
- Volte já aqui!
Nessa altura, uma segunda pessoa saiu da casa do leme. McMann viu o clarão de um disparo, mas não ouviu nada. Sentiu a bala a passar ao lado da cabeça, perigosamente perto. Atirou-se para o chão, escondendo-se atrás de um par de bidões vazios. O cais foi atingido por mais duas balas e depois o tiroteio terminou.
Pôs-se de pé e viu a popa do Camiíla a afastar-se pelo mar.
Foi só então que McMann viu uma coisa a flutuar na água oleosa ao largo do cais.
- Acho que é melhor ser o senhor a ouvir isto, major Vicary. Vicary pegou no auscultador que Lockwood lhe estendeu. lan
McMann estava a telefonar de Cleethorpes. Lockwood disse:
- Comece do princípio, lan.
- Duas pessoas acabaram de roubar o barco de pesca de Jack Kincaid e dirigem-se para alto-mar.
Vicary vociferou:
- Meu Deus! De onde está a ligar?
- De Cleethorpes.
Vicary lançou uma olhadela ao mapa.
- Cleethorpes? Não tínhamos um homem ai?
- Tinham - retorquiu McMann. - Está neste preciso momento a boiar na água com uma bala no coração.
Vicary praguejou em voz baixa e, a seguir, perguntou:
- Quantas pessoas é que lá estavam?
- Que eu visse, pelo menos duas.
- Um homem e uma mulher?
- Demasiado longe e demasiado escuro. Além disso, quando começaram a disparar contra mim, atirei-me para o chão.
- E não viu uma rapariguinha com eles?
- Não.
Vicary tapou o auscultador com a palma da mão.
- Talvez ela ainda esteja naquela carrinha. Ponha um homem lá o mais depressa possível.
Lockwood assentiu com a cabeça. Vicary tirou a mão do auscultador e disse:
- Fale-me do barco que eles roubaram.
- O Camilla é uma embarcação de pesca. O barco está em más condições. Eu não queria estar a bordo do Camilla a ir para o mar alto com uma tempestade destas.
- Só mais uma pergunta. O Camilla tem rádio?
- Não, que eu saiba, não.
Vicary pensou: Graças a Deus! Disse:
- Obrigado pela sua ajuda.
Vicary desligou o telefone. Lockwood estava parado diante do mapa.
- Bem, a boa notícia é que agora sabemos exatamente onde eles estão. Têm de atravessar a foz do Humber antes de atingirem o mar alto. Isso fica apenas a um quilómetro e meio do cais. Não há maneira de conseguirmos impedi-los de fazer isso. Mas se aquelas corvetas da Marinha Real se posicionarem ao largo de Spurn Head, eles nunca vão conseguir passar. Aquele barco de pesca em que vão não está à altura delas.
- Sentia-me melhor se tivéssemos o nosso próprio barco na água.
- Na realidade, isso até se pode arranjar.
- A sério?
- A polícia do condado de Lincolnshire tem um pequeno barco no rio, o Rebecca. Neste momento, está em Grimsby. Não foi concebido para o mar alto, mas pode fazê-lo num aperto. E também é bastante mais rápido do que aquele velho barco de pesca. Se nos pusermos a caminho imediatamente, devemos poder apanhá-los em pouco tempo.
- E o Rebecca tem rádio?
- Sim. Vamos poder falar convosco para aqui.
- Então e armas?
- Posso ir buscar umas espingardas velhas à prisão da esquadra da polícia de Grimsby. Vão dar conta do recado.
- Agora, só precisamos de uma tripulação. Leve os meus homens. Eu fico aqui para poder continuar em contacto com Londres. A última coisa de que precisa é que eu vá a bordo de um barco com um tempo destes.
Lockwood conseguiu esboçar um sorriso, deu uma palmadinha nas costas de Vicary e saiu. Clive Roach, Harry Dalton e Peter Jordan seguiram-no. Vicary pegou no telefone para dar as notícias a Boothby, em Londres.
Neumann não se afastou dos marcadores do canal, com o Camilla a avançar pelas águas agitadas da foz do Humber. O barco tinha cerca de doze metros, era largo e precisava urgentemente de uma pintura. Havia uma pequena cabine à ré, onde Neumann tinha deixado
Jenny. Catherine estava ao lado dele, na casa do leme. O céu estava a começar a clarear ligeiramente a leste. A chuva rufava na vidraça. A bombordo, via as ondas a rebentarem em Spurn Head. O farol estava apagado. Havia uma bússola no painel de instrumentos, ao lado do leme. Neumann colocou o barco numa rota para leste, acelerou a fundo e dirigiu-se para o mar alto.
SESSENTA
MAR DO NORTE, AO LARGO DE SPURN HEAD
O U-509 flutuava logo abaixo da superfície. Eram 5h30. O Kapitànleutnant Max Hoffman estava na sala de comando a espreitar pelo periscópio e a beber café. Os olhos
doíam-lhe por ter passado a noite inteira a olhar fixamente para o negrume do mar. A cabeça
latejava-lhe. Precisava desesperadamente de dormir umas horas.
O seu imediato surgiu na ponte de comando.
- Só nos restam mais trinta minutos, Herr Kaleu.
- Tenho noção do tempo de que dispomos, senhor imediato.
- Não voltámos a receber comunicações dos agentes da Abwehr, Herr Kaleu. Penso que temos de considerar a possibilidade de terem sido capturados ou mortos.
- Já considerei essa possibilidade, senhor imediato.
- Daqui a nada vai amanhecer, Herr Kaleu.
- Sim. É um fenómeno que ocorre todos os dias por volta desta hora. Até no Reino Unido, senhor imediato.
- O que eu quero dizer é que não é seguro ficarmos tão perto da costa inglesa por muito mais tempo. A profundidade nesta zona não é suficiente para nos podermos escapar às wabos britânicas - explicou o imediato, utilizando a gíria comum entre os tripulantes de submarino alemães para se referirem às cargas de profundidade.
- Tenho perfeita consciência dos perigos que a situação envolve, senhor imediato. Mas vamos continuar no ponto de encontro até
não nos restar mais tempo. E depois disso, se eu achar que ainda é seguro, vamos continuar um bocadinho mais.
- Mas, Herr Kaleu...
- Eles enviaram-nos um sinal de rádio fidedigno a avisar-nos de que vinham a caminho. Temos de partir do princípio de que vêm num barco roubado, provavelmente com pouquíssimas condições de navegabilidade, e também temos de partir do princípio de que estão exaustos ou até feridos. Vamos ficar aqui até eles chegarem ou eu estar completamente convencido de que já não vêm. Entendido?
- Sim, Herr Kaleu.
O imediato foi-se embora. Hoffman pensou: Mas que chato do caraças.
O Kebecca tinha cerca de dez metros de comprimento, com um calado raso, um motor interior e uma casa do leme no meio, onde mal cabiam dois homens lado a lado. Lockwood tinha telefonado de antemão e o motor do Rebecca já estava a trabalhar quando eles lá chegaram.
Os quatro homens subiram a bordo: Lockwood, Harry, Jordan e Roach. Um dos rapazes que trabalhava na doca soltou a última amarra e Lockwood conduziu o barco em direção ao canal.
Acelerou a fundo. O ruído do motor aumentou; a proa esguia ergueu-se para fora da água e depois avançou a toda a velocidade pela ondulação provocada pelo vento. A noite clareava no céu a leste. A silhueta do farol era visível a bombordo. O mar à frente deles esta-
va deserto.
Harry baixou-se, levantou o auscultador do rádio e entrou em contacto com Vicary para o pôr ao corrente da situação.
Oito quilómetros para leste do Kebecca, a corveta número 745 navegava num ziguezague entediante por mares revoltos. O capitão e o imediato encontravam-se na ponte de comando, de binóculos encostados aos olhos, a tentarem ver alguma coisa através de uma cortina de chuva. Era escusado. Além da escuridão e da chuva, instalara-se
um nevoeiro que reduzia ainda mais a visibilidade. Face a condições dessas, podiam passar a cem metros de um submarino alemão sem o verem sequer. O capitão dirigiu-se para a mesa das cartas de navegação, onde o navegador estava a preparar a mudança de trajetória seguinte. Quando o capitão deu a ordem, a corveta virou 90 graus para estibordo e embrenhou-se ainda mais no mar. A seguir, ordenou ao operador de rádio que informasse a Sala de Localização de Submarinos do seu novo rumo.
Em Londres, Arthur Braithwaite estava junto da mesa com o mapa, apoiando-se pronunciadamente na bengala. Tinha-se certificado de que todas as atualizações da Marinha Real e da RAF passariam pela sua secretária assim que fossem recebidas. Sabia que as probabilidades de encontrar um submarino naquelas condições meteorológicas e de luminosidade eram remotas, mesmo que o submarino se encontrasse à superfície. Se o submarino estivesse à espreita logo abaixo da superfície, seria quase impossível.
O seu assessor entregou-lhe uma cópia de uma comunicação via rádio. A corveta número 745 tinha acabado de mudar de trajetória e seguia naquele momento em direção a leste. Uma segunda corveta, a número 128, estava a pouco mais de três quilómetros de distância e a avançar para sul. Braithwaite debruçou-se sobre a mesa, fechou os olhos e tentou imaginar a busca na cabeça. Pensou: Maldito sejas, Max Hoffman! Onde raio estás?
O Camilla, embora Horst Neumann não se tivesse apercebido disso, estava precisamente onze quilómetros a leste de Spurn Head. As condições meteorológicas pareciam estar a piorar a cada minuto. A chuva caía, criando uma cortina opaca, e martelava a vidraça da casa do leme, dificultando a visão. O vento e a corrente, ambos a fustigarem o barco a partir do norte, não paravam de os desviar ligeiramente do rumo. com a ajuda da bússola do painel de instrumentos, Neumann esforçava-se por mante-los na sua rota em direção a leste.
O maior problema era o mar. A meia hora anterior tinha sido uma repetição implacável do mesmo ciclo agoniante. O barco escalava uma onda, ficava a balançar-se no cimo dela por um instante e depois caía
a pique na depressão entre as ondas. Lá em baixo, o barco parecia sempre estar prestes a ser engolido por um desfiladeiro verde-acinzentado de água. O convés era constantemente varrido pelas ondas. Neumann já não conseguia sentir os pés. Baixou os olhos pela primeira vez e reparou que estava rodeado por vários centímetros de água gelada.
Ainda assim, milagrosamente, achava que até iriam conseguir. O barco parecia estar a absorver toda a violência que o mar lhe conseguia infligir. Eram 5h30 - ainda lhes restavam trinta minutos até o submarino dar meia-volta. Tinha sido capaz de manter o barco numa trajetória constante e estava convicto de que se estavam a aproximar do ponto certo. E não havia sinal do inimigo.
Só havia um problema: não tinham rádio. Tinham ficado sem o de Catherine, em Londres, e tinham ficado sem o segundo graças ao tiro de caçadeira de Martin Colville,
em Hampton Sands. Neumann tinha esperança de que o barco tivesse um rádio, mas não tinha. O que os impossibilitava de comunicar com o submarino.
Neumann tinha apenas uma opção: ligar as luzes de navegação do barco.
Era um risco, mas necessário. A única maneira de o submarino perceber que eles se encontravam no ponto de encontro era se os conseguisse ver. E a única maneira de o Camilla poder ser visto naquelas condições meteorológicas era se tivesse as luzes ligadas. Mas se o submarino os conseguisse ver, o mesmo seria válido para qualquer navio de guerra ou da guarda costeira britânica que se encontrasse nas proximidades.
Neumann calculou que estivessem a poucos quilómetros do ponto de encontro. Continuou a acelerar a fundo durante mais cinco minutos e, a seguir, baixou-se e carregou num interruptor, e o Camilla encheu-se de luz.
Jenny Colville debruçou-se sobre o balde e vomitou lá para dentro pela terceira vez. Perguntou-se como poderia haver ainda qualquer coisa para lhe sair do estômago. Tentou lembrar-se da última vez que tinha comido. Não jantara na noite anterior por estar zangada
com o pai e também não tinha almoçado nada. Talvez qualquer coisa ao pequeno-almoço, mas isso não tinha sido mais do que uma bolacha e chá.
O estômago entrou novamente em convulsões, mas desta vez não saiu de lá nada. Tinha vivido a vida inteira junto ao mar, mas só andara de barco uma vez - passando o dia a passear pela Wash, com o pai de uma amiga da escola - e nunca sentira nada assim.
Estava completamente paralisada de tão enjoada. Queria morrer, precisava desesperadamente de ar fresco. Não podia fazer nada perante o balançar constante do barco. Tinha os braços e as pernas cheios de nódoas negras por causa das sucessivas pancadas. E depois havia o barulho - o ribombar e o estrépito ensurdecedores e constantes do motor do barco.
Dava a sensação de estar mesmo por baixo dela.
Tudo o que mais queria era sair do barco e regressar a terra. Disse a si própria sem parar que, se sobrevivesse àquela noite, não voltaria a entrar num barco, nunca mais. E foi então que pensou: O que é que vai acontecer quando eles chegarem ao sítio para onde vão? O que vão fazer comigo? com certeza que não vão neste barco até à Alemanha, ou será que vão? O mais provável era irem ter com outro barco. E depois o que é que acontece? Será que a iriam levar de novo com eles ou deixá-la sozinha no barco? Se a deixassem sozinha, era possível que nunca a encontrassem. Poderia morrer sozinha, algures no mar do Norte, numa tempestade igual àquela.
O barco deslizou por mais uma enorme onda abaixo. Na cabine, Jenny foi atirada para a frente, batendo com a cabeça.
O porão tinha duas vigias de cada lado. com as mãos amarradas, desembaciou a vigia de estibordo e espreitou lá para fora. O mar era aterrador, montanhas verdes e ondulantes de água.
Mas havia ali mais qualquer coisa. O mar agitou-se e uma coisa
escura e brilhante irrompeu da superfície. A seguir, o mar entrou
num turbilhão e uma gigantesca coisa cinzenta, como um monstro
marinho num conto infantil, subiu à superfície com a água a escorrer-lhe da pele.
O Kapitánleutnant Max Hoffman, farto de aguentar o submarino a quinze quilómetros de distância da costa, tinha resolvido arriscar e aproximar-se mais dois ou três quilómetros. Estava à espera a treze quilómetros da costa, a espreitar para a escuridão, quando avistou de repente as luzes de navegação de um pequeno barco de pesca. com um grito, Hoffman ordenou que o submarino subisse à superfície e, passados dois minutos, já estava na ponte de comando, a sentir a forte chuvada e a respirar o ar frio e limpo, com os binóculos colados aos olhos.
De início, Neumann pensou que pudesse ser uma alucinação. O vislumbre tinha sido breve - apenas um instante, antes de o barco mergulhar em mais uma depressão entre as ondas e tudo se obliterar uma vez mais.
A proa enterrou-se no mar profundamente, como uma pá na terra, e, durante alguns segundos, toda a coberta ficou submersa na água. Mas, de alguma forma, o barco conseguiu sair dessa depressão e escalar o pico seguinte. No topo da onda seguinte, uma forte chuvada, varrida pelo vento, impedia a visão por completo.
O barco caiu e depois voltou a erguer-se. Foi então que, com o Camilla no cimo de uma montanha de água, Horst Neumann avistou a silhueta inconfundível de um submarino alemão.
Peter Jordan, no convés de popa do Rebecca, foi o primeiro a ver o submarino. Lockwood viu-o passados uns segundos e, a seguir, avistou as luzes de navegação do Camilla a cerca de quatrocentos metros do estibordo do submarino e a aproximar-se rapidamente. Lockwood fez o Rebecca guinar para bombordo, colocando-o em rota de colisão com o Camilla, e pegou no auscultador para contactar Alfred Vicary.
Vicary levantou o auscultador da linha aberta para a Sala de Localização de Submarinos.
- Comandante Braithwaite, está a ouvir-me?
- Sim, estou. E também ouvi a conversa toda que acabou de ter.
- E então?
- Acho que temos um problema grave. A corveta 745 está um quilómetro e meio para sul da posição do submarino. Já contactei o capitão via rádio e ele está a dirigir-se
para lá neste momento. Mas se o Camilla estiver realmente apenas a quatrocentos metros do submarino, vai lá chegar primeiro.
- Maldição!
- Mas ainda tem outro trunfo, senhor Vicary, o Kebecca. Sugiro que o utilize. Os seus homens têm de fazer qualquer coisa para atrasar aquele barco e dar à corveta possibilidade de intervir.
Vicary pousou o auscultador e levantou o do rádio.
- Superintendente Lockwood, daqui Grimsby, escuto.
- Lockwood, escuto.
- Superintendente, ouça com atenção. Vem aí ajuda, mas, enquanto ela não chega, quero que abalroe esse barco de pesca.
Todos eles ouviram - Lockwood, Harry, Roach e Jordan -, pois estavam os quatro apinhados na cabine, abrigando-se do mau tempo.
Lockwood, gritando por cima do barulho do vento e do ribombar dos motores do Rebecca, perguntou:
- Mas ele estará louco?
- Não - respondeu Harry -, apenas desesperado. Consegue lá chegar a tempo?
- Claro, mas vamos ficar de caras para os canhões da coberta daquele submarino.
Olharam todos uns para os outros, sem dizerem nada. Por fim, Lockwood afirmou:
- Estão coletes salva-vidas nesse cacifo aí atrás. E tragam as espingardas. Tenho um pressentimento que podemos precisar delas.
Lockwood olhou novamente para o mar e deu com o Camilla. Fez uma ligeira correção na trajetória e acelerou a fundo.
Na ponte de comando do U-509, Max Hoffman avistou o Rebecca a aproximar-se rapidamente.
- Temos companhia, senhor imediato. Um barco civil, com três ou quatro homens a bordo.
- Estou a vê-los, Herr Kaleu.
- Tendo em conta a velocidade e a trajetória, diria que se trata do inimigo.
- Parecem estar desarmados, Herr Kaleu.
- Sim. Disparem um tiro de aviso com a artilharia da coberta da proa. Disparem para a frente da proa. Não quero que se derrame sangue desnecessariamente. Se eles não desistirem, disparem diretamente para o barco. Mas para a linha de água, senhor imediato, não para a cabine.
- Sim, Herr Kaleu - ripostou o imediato.
Hoffman ouviu ordens a serem gritadas e, passados trinta segundos, o primeiro tiro do canhão Bootskanone na dianteira da coberta do U-509 estava a fazer um arco por cima da proa do Rebecca.
Apesar de os submarinos alemães raramente se envolverem em combates de artilharia à superfície, o projétil de 10,5 centímetros do canhão da coberta era capaz de infligir danos letais, mesmo em barcos grandes. O primeiro tiro passou bem longe da proa do Rebecca. O segundo, disparado dez segundos depois, ficou bem mais perto.
Lockwood virou-se para Harry e gritou:
- Cá para mim, é o último aviso a que temos direito. O próximo tiro vai rebentar connosco. A decisão é sua, mas não vamos poder ajudar ninguém se estivermos mortos.
Harry gritou:
- Dê meia-volta!
Lockwood guinou o Kebecca para bombordo e deu meia-volta. Harry olhou para trás, na direção do submarino. O Camilla estava a duzentos metros e a aproximar-se cada vez mais, e não havia absolutamente nada que eles pudessem fazer. Pensou: Maldição! Onde está essa corveta?
A seguir, levantou o auscultador e informou Vicary de que não podiam fazer nada para os deter.
Jenny ouviu o estrondo do canhão do submarino a disparar e viu o projétil avançar em grande velocidade pela linha de água, em direção a um segundo barco. Pensou:
Graças a Deus! Afinal de contas, não estou sozinha. Mas o submarino voltou a disparar e, uns segundos mais tarde, ela viu o pequeno barco dar meia-volta e perdeu
o ânimo.
A seguir, fez-se forte e pensou: Eles são agentes alemães. Mataram o meu pai e mais seis pessoas esta noite e estão prestes a escapar impunes. Tenho de fazer alguma coisa para os impedir.
Mas que podia ela fazer? Estava sozinha e tinha as mãos e os pés amarrados. Pensou em tentar libertar-se, subir sorrateiramente para o convés e bater-lhes com qualquer coisa. Mas, se a vissem, não hesitariam em matá-la. Talvez pudesse pegar fogo a qualquer coisa, mas depois ficaria encurralada com o fumo e as chamas e seria a única
a morrer...
Pensa, Jenny! Pensa!
Era difícil pensar com o ribombar constante do motor do barco. Estava a deixá-la louca.
E foi então que pensou: Sim, é isso!
Se pudesse de algum modo inutilizar o motor - nem que fosse só por um momento - talvez isso pudesse ajudar. Se estava um barco a persegui-los, era possível que estivessem mais - se calhar, barcos maiores, que poderiam ripostar contra o submarino alemão.
Pelo som, o motor parecia estar mesmo por baixo dela, já que o barulho era tanto. Levantou-se a muito custo e afastou o emaranhado de cordas e lonas em cima do qual tinha estado sentada. E ali estava - uma porta embutida no chão do porão. Conseguiu abri-la e foi dominada de imediato pelo barulho atroador e pelo calor do motor do Camilla.
Olhou para ele. Jenny não percebia nada de motores. Uma vez, Sean tinha tentado explicar-lhe as reparações que estava a fazer na carripana velha que era a sua carrinha. Havia sempre um problema
qualquer com o raio da coisa, mas qual era mesmo? Qualquer coisa a ver com os tubos e a bomba de combustível. De certeza que aquele motor era diferente do motor da carrinha de Sean. Era um motor a diesel, logo para começar; a carrinha de Sean funcionava a gasolina. Mas ela sabia uma coisa: independentemente do tipo de motor, precisava de combustível para trabalhar. Se o abastecimento de combustível fosse cortado, o motor deixaria de funcionar.
Mas como? Olhou com atenção para o motor. Vários tubos metálicos pretos saíam da parte de cima e convergiam num único ponto, na parte lateral do motor. Será que eram os tubos de combustível? E seria o ponto onde se ligavam à bomba de combustível?
Olhou em redor. Precisava de ferramentas. Os marinheiros andavam sempre com ferramentas. Afinal de contas, o que acontece se o motor for abaixo no meio do mar? Descobriu uma caixa de ferramentas metálica na outra ponta da cabine e rastejou até lá. Espreitou pela vigia. O submarino enchia-lhe o seu campo de visão. Já estavam muito perto. Viu o outro barco. Tinha-se afastado. Abriu a caixa e viu que estava repleta de ferramentas imundas e cheias de óleo.
Tirou duas, um alicate laminado e um grande martelo.
Agarrou o alicate com as mãos, virou a ponta para os pulsos e começou a cortar a corda. Demorou cerca de um minuto a soltar as mãos. A seguir, serviu-se do alicate para cortar a corda à volta dos tornozelos.
Rastejou outra vez para junto do motor.
Pousou o alicate no chão e escondeu-o por baixo de uma corda toda emaranhada. Depois baixou-se, pegou no martelo e destruiu o primeiro tubo de combustível. Rompeu-se, ficando a deitar diesel. Rapidamente, bateu com o martelo mais uma série de vezes, até o último tubo de combustível ter sido rebentado.
O motor deixou de funcionar.
Sem o barulho, Jenny pôde finalmente ouvir o bramido do mar e do vento. Fechou a porta que dava para o motor mutilado e sentou-se. Tinha o martelo ao lado da mão direita.
Sabia que Neumann ou a mulher desceriam dentro de poucos segundos para investigar. E, quando o fizessem, perceberiam que Jenny tinha sabotado o motor.
A porta abriu-se de rompante e Neumann desceu a escada de escotilha a toda a velocidade. Tinha o rosto contorcido, como naquela manhã em que Jenny o vira a correr na praia. Olhou para ela e reparou que já não tinha as mãos e os pés amarrados. Baixou os olhos
e reparou que o material que ali se encontrava tinha sido afastado
para um canto.
Gritou:
- Jenny, o que fizeste?
O barco, sem motor a funcionar, deslizava, desamparado, por uma onda.
Neumann debruçou-se e abriu a escotilha.
Jenny agarrou no martelo e pôs-se de joelhos. Ergueu o martelo bem alto e acertou-lhe na nuca com o máximo de força possível. Neumann caiu no chão, com o sangue
a correr do crânio rachado.
Jenny virou a cara e vomitou.
O Kapitánleutnant Max Hoffman viu o Camilla a começar a balançar, desamparado, no mar agitado e apercebeu-se de imediato de que o barco tinha ficado sem motor. Sabia que tinha de agir depressa. Sem propulsão, o barco afundaria. Talvez até se virasse ao contrário. E se os agentes fossem atirados para dentro do gelado mar do Norte, morreriam numa questão de minutos.
- Senhor imediato! Leve-nos até ao barco e tenha um grupo preparado para subir a bordo.
- Sim, Herr Kaleu!
Hoffman sentiu a vibração das hélices do motor a diesel a girarem sob os seus pés à medida que o submarino avançava lentamente.
Jenny receou tê-lo matado. Ele ficou completamente imóvel durante um momento; a seguir, começou a mexer-se e, de alguma forma, conseguiu levantar-se. Quase não se aguentava em pé. Ela poderia facilmente ter-lhe acertado com o martelo novamente, mas não conseguiu arranjar coragem nem vontade para o fazer. Estava indefeso,
agarrado à parede da cabine. O sangue jorrava-lhe da ferida para a cara, pelo pescoço abaixo. Ergueu a mão e limpou o sangue dos olhos.
- Não saias daqui. Se subires para o convés, ela mata-te. Faz o que te digo, Jenny.
Neumann subiu a escada de escotilha com grande dificuldade. Catherine olhou para ele, com a inquietação estampada no rosto.
- Caí e bati com a cabeça quando o barco se inclinou. O motor deixou de funcionar.
Tinha a lanterna ao lado do leme. Pegou nela e avançou pelo convés. Apontou a lanterna para a torre de comando do submarino e lançou um pedido de socorro. O submarino estava a aproximar-se deles com uma lentidão agonizante. Virou-se para trás e fez sinal a Catherine para se juntar a ele na coberta da proa. A chuva limpou-Ihe o sangue da cara. Olhou para cima, sentindo-a a fustigá-lo, e agitou os braços na direção do submarino.
Catherine foi ter com ele. Mal conseguia acreditar. Na tarde anterior, estavam sentados num café em Mayfair, rodeados por agentes do MI5, e agora, milagrosamente, estavam prestes a subir a bordo de um submarino e partir dali para fora. Seis longos e dolorosamente solitários anos - por fim, terminados. Nunca tinha acreditado que esse dia chegasse. Nunca se tinha atrevido realmente a imaginá-lo. A emoção daquele momento apoderou-se dela. Soltou um grito de alegria infantil e, tal como Neumann, voltou a cara para a chuva, agitando os braços na direção do submarino.
A parte da frente de metal do submarino encostou na proa do Camilla. Um grupo avançou apressadamente pelo convés do submarino na direção deles. Catherine abraçou Neumann e apertou-o com muita força.
- Conseguimos - disse ela. - Chegámos a tempo. Vamos para
casa.
Na casa do leme do Rebecca, Harry Dalton descreveu a situação a Vicary, em Grimsby. Vicary, por sua vez, descreveu-a a Arthur Braithwaite, na sala de localização
de submarinos.
- Raios partam, comandante! Onde é que está essa corveta?
- Está mesmo colada a eles. Só que não consegue ver nada por causa do mau tempo.
- Então diga ao capitão para fazer alguma coisa! Os meus homens não podem fazer nada para os deter.
- E que ordens é que eu devo dar ao capitão?
- Para disparar sobre o barco e matar esses espiões.
- Major Vicary, não nos podemos esquecer de que está uma rapariga inocente a bordo.
- Que Deus me perdoe por dizer isto, mas receio bem que não possamos estar preocupados com ela numa altura destas, comandante Braithwaite. Dê ordens ao capitão dessa corveta para atingir o Camilla com todo o arsenal que tiver.
- Entendido.
Vicary pousou o auscultador e pensou: Meu Deus, tornei-me mesmo um sacana completo.
O vento abriu um buraco momentâneo na cortina de chuva e nevoeiro. Na ponte de comando, o capitão da corveta 745 avistou o U-509 e o Camilla a cento e cinquenta metros da sua proa. Pelos binóculos, viu duas pessoas na coberta do Camilla e uma equipa de salvamento no convés do submarino alemão. De imediato, deu ordem para disparar. Segundos depois, o canhão no convés da corveta abriu fogo.
Neumann ouviu os disparos. Os primeiros tiros passaram por cima. A segunda rajada atingiu o submarino com estrondo. A equipa de salvamento atirou-se para o chão do convés para evitar os tiros, ao mesmo tempo que os disparos se deslocavam do submarino para o Camilla. Não havia nenhum sítio na coberta do barco de pesca que servisse de proteção. Os disparos atingiram Catherine. O seu corpo foi estraçalhado num instante, com a cabeça a explodir num clarão de sangue e miolos.
Neumann desatou a correr, tentando chegar ao submarino. O primeiro tiro que o atingiu arrancou-lhe a perna pelo joelho. Gritou e arrastou-se. Um segundo tiro atingiu-o, cortando-lhe a espinha.
Não sentiu nada. O último tiro atingiu-o na cabeça e a seguir fez-se escuridão.
A observar da torre de comando, Max Hoffman ordenou ao imediato que passasse os motores a diesel para a potência máxima e submergisse o submarino o mais rápido possível. Passados poucos segundos, o U-509 estava a afastar-se a toda a velocidade. Dois minutos mais tarde, mergulhou nas profundezas do mar do Norte e desapareceu.
Sozinho no mar e com o convés inundado de sangue, o Camilla começou a afundar-se.
O estado de espírito a bordo do Rebeaa era de euforia. Os quatro homens abraçaram-se ao observarem o submarino a dar meia-volta e a fugir a todo o vapor. Harry Dalton contactou Vicary e deu-lhe a novidade. Vicary fez dois telefonemas, o primeiro para a sala de localização de submarinos, para agradecer a Arthur Braithwaite, e o segundo para Sir Basil Boothby, para o informar de que tinha finalmente terminado tudo.
Jenny Colville sentiu o Camilla estremecer. Atirou-se para o chão, de barriga para baixo, e protegeu a cabeça com as mãos. Os disparos terminaram tão repentinamente como tinham começado. Foi então que ouviu o barulho do submarino a afastar-se e, por fim, apenas o ruído do mar. Estava demasiado aterrorizada para se mexer. O barco balançava loucamente. Imaginou que isso tivesse alguma coisa a ver com o motor avariado. Sem um motor que o fizesse avançar, o barco estava indefeso perante o ataque do mar. Ela tinha de se levantar, ir lá para fora e avisar os outros barcos de que estava ali, viva.
Obrigou-se a levantar-se, foi imediatamente derrubada pelos solavancos do barco e depois levantou-se outra vez. Subir a escada de escotilha revelou-se quase impossível. Conseguiu chegar por fim ao convés. O vento era tremendo. A chuva fustigava-a de lado. O barco parecia estar a deslocar-se em várias direções ao mesmo tempo: para cima e para baixo, para trás e para a frente, e a balançar de um lado para o outro. Era impossível uma pessoa aguentar-se de pé. Ela
olhou para a proa e viu os corpos. Não tinham levado simplesmente um tiro e morrido. Tinham sido triturados, despedaçados, pelos disparos. O convés estava cor-de-rosa com todo o sangue que escorria. Jenny teve um vómito e desviou o olhar. Viu o submarino a mergulhar ao longe e a desaparecer sob a superfície do mar. Do outro lado do barco, viu um navio de guerra, cinzento, não muito grande, a vir na sua direção. Um segundo barco - o que ela já tinha visto pela vigia - estava a aproximar-se depressa.
Agitou os braços, gritou e começou a chorar. Queria dizer-lhes que tinha sido ela a consegui-lo. Ela é que tinha inutilizado o motor para que o barco parasse e os espiões não conseguissem chegar ao submarino. Estava cheia de um enorme e feroz orgulho.
O Camilla subiu uma onda gigantesca. Quando a onda lhe passou por baixo, o barco inclinou-se todo para bombordo. A seguir, caiu a pique na depressão entre as ondas e, ao mesmo tempo, endireitou-se e inclinou-se todo para estibordo. Jenny não conseguiu segurar-se no cimo da escada de escotilha. Foi atirada pelo convés e caiu ao mar.
O frio não se comparava a nada que já tivesse sentido: um frio horrível, entorpecedor e paralisante. Debateu-se para atingir a superfície e tentou abrir a boca para respirar, mas em vez disso engoliu água do mar. Afundou-se, sufocando, engasgando-se, com a água a encher-lhe o estômago e os pulmões. Esperneou até à superfície e conseguiu respirar um pouco antes de o mar voltar a puxá-la para baixo. Foi então que começou a cair, afundando-se lenta e agradavelmente, sem esforço algum. Já não tinha frio. Não sentia nem via nada. Apenas uma escuridão impenetrável.
O Rebecca foi o primeiro a chegar, com Lockwood e Roach na casa do leme e Harry e Peter Jordan na coberta da proa. Harry atou uma corda à bóia de salvamento, atando a outra ponta a um cunho na proa e atirando a bóia para o mar. Tinham visto Jenny subir uma segunda vez à superfície para respirar e desaparecer sob a superfície. Naquele momento, não havia nada, nem um único sinal dela. Lockwood fez avançar o Rebecca a fundo e a direito; a seguir, a poucos metros do Camilla, fez marcha atrás e parou o barco subitamente.
Jordan inclinou-se sobre a proa, à procura de qualquer sinal da rapariga. A seguir, endireitou-se e, sem aviso, mergulhou. Harry gritou a Lockwood:
- Jordan está dentro de água! Não se aproxime mais!
Jordan veio à superfície e tirou o colete salva-vidas. Harry berrou:
- O que está a fazer?
- Não consigo ir até ao fundo com esta maldita coisa enfiada! Jordan encheu os pulmões de ar e desapareceu durante o que
a Harry pareceu ser um minuto. O mar fustigava o Camilla a bombordo, abanando-o de um lado para o outro e impulsionando-o na direção do Kebecca. Harry olhou por cima do ombro e agitou os braços para Lockwood, na casa do leme.
- Recue um ou dois metros! O Camilla está mesmo em cima de nós!
Por fim, Jordan subiu à superfície novamente, trazendo Jenny consigo. Ela estava inconsciente, com a cabeça caída para o lado. Jordan desatou a corda da bóia e atou-a à volta de Jenny, por baixo dos braços. Levantou o polegar para Harry e este puxou-a até ao Rebecca. Clive Roach ajudou Harry a iça-la para o convés.
Jordan estava a espernear furiosamente, tentando manter-se à tona, com as ondas a passarem-lhe por cima da cara, e parecia exausto do frio. Harry desatou rapidamente a corda que prendia Jenny e atirou-a na direção dele - no preciso instante em que o Camilla se virou por fim, arrastando Peter Jordan para as profundezas do mar.
SESSENTA E UM
BERLIM, ABRIL DE 1944
Kurt Vogel estava à espera na antecâmara luxuosamente mobilada de Walter Schellenberg, observando o esquadrão de jovens assistentes a entrarem e a saírem freneticamente do gabinete. Loiros e de olhos azuis, parecia que tinham acabado de sair de um cartaz de propaganda nazi. Já tinham passado três horas desde que Schellenberg convocara Vogel para uma reunião urgente a propósito daquele infelis assunto no Reino Unido, como se referia habitualmente à operação falhada de Vogel. Vogel não se importava de estar à espera; na verdade, não tinha nada melhor para fazer. Desde que Canaris fora demitido e a Abwehr absorvida pelas SS, os serviços secretos militares alemães pareciam um barco sem leme, precisamente quando Hitler mais necessitava deles. As velhas casas geminadas que se espraiavam por Tirpitz Ufer tinham adquirido o aspeto abatido de uma estância de férias decadente. O moral era tão baixo que muitos oficiais se estavam a oferecer para ir para a Frente Russa.
Vogel tinha outros planos.
Um dos assessores de Schellenberg saiu do gabinete, apontou um dedo acusador a Vogel e, sem dizer uma palavra, fez-lhe sinal para entrar. O gabinete era do tamanho de uma catedral gótica, com sumptuosos quadros a óleo e tapeçarias pendurados nas paredes, bem diferente do comedido Covil da Raposa de Canaris, em Tirpitz Ufer. A luz do Sol entrava obliquamente pelas janelas altas. Vogel olhou lá para fora. Os fogos provocados pelo ataque aéreo matinal
iam-se extinguindo ao longo da Unter den Linden e uma fina camada de fuligem cobria o Tiergarten como neve preta.
Schellenberg sorriu calorosamente, apertou com força a mão esquelética de Vogel e fez-lhe sinal para se sentar. Vogel sabia que Schellenberg tinha metralhadoras na secretária e, por isso, não se mexeu um milímetro e manteve as mãos bem à vista. As portas fecharam-se e ficaram os dois sozinhos no gabinete cavernoso. Vogel sentiu que Schellenberg o estava a consumir com os olhos.
Embora Schellenberg e Himmler andassem há vários anos a maquinar contra Canaris, fora uma sucessão de infelizes acontecimentos que aniquilara por fim a Velha Raposa: a incapacidade de prever a decisão da Argentina de cortar todas as ligações com a Alemanha; a perda de um posto vital de recolha de informações para a Abwehr na zona espanhola de Marrocos; a deserção de vários agentes importantes da Abwehr na Turquia, em Casablanca, Lisboa e Estocolmo. Mas a gota de água foi a desastrosa conclusão da operação de Vogel em Londres. Dois agentes da Abwehr - Horst Neumann e Catherine Blake - foram mortos mesmo à vista do submarino. Não puderam transmitir uma última mensagem, a explicar por que razão tinham decidido fugir de Inglaterra, deixando Vogel sem forma de aferir a autenticidade das informações sobre a Operação Mulberry que Catherine Blake tinha roubado. Hitler explodiu quando soube do acontecido. Despediu de imediato Canaris e colocou a Abwehr e os seus dezasseis mil agentes nas mãos de Schellenberg.
Sem saber bem como, Vogel sobreviveu. Schellenberg e Himmler suspeitavam que a operação tinha sido comprometida por Canaris. Vogel, como Catherine Blake e Horst Neumann, era uma vítima inocente da traição da Velha Raposa.
A teoria de Vogel era outra. Suspeitava que todas as informações roubadas por Catherine tinham sido plantadas pelos serviços secretos britânicos. Suspeitava que ela e Neumann tinham tentado fugir do Reino Unido quando Neumann descobriu que Catherine estava a ser seguida pelo inimigo. Suspeitava que a Operação Mulberry não era um complexo antiaéreo com destino ao Pás de Calais, mas sim um porto artificial a caminho das praias da Normandia. E também suspeitava
que todos os outros agentes enviados para o Reino Unido se encontravam corrompidos - que tinham sido capturados e obrigados a colaborar com os serviços secretos britânicos, provavelmente desde o início da guerra.
No entanto, Vogel não tinha provas que servissem para fundamentar nada daquilo - sendo um bom advogado, não tencionava fazer acusações que não pudesse provar. Além disso, mesmo que tivesse provas, não tinha a certeza de que as teria dado a gente como Schellenberg e Himmler.
Um dos telefones na secretária de Schellenberg tocou. Era uma chamada que ele tinha de atender. Cautelosamente, resmungou e falou em código durante cinco minutos enquanto Vogel esperava. O nevão de fuligem tinha diminuído. As ruínas de Berlim brilhavam sob o sol de abril. Os vidros estilhaçados cintilavam como cristais de gelo.
Continuar na Abwehr e cooperar com o novo regime tinha as suas vantagens. Vogel tinha feito Gertrude, Nicole e Lizbet passarem discretamente da Baviera para a Suíça. Como um bom agente que comanda outros, financiara a operação através de uma complexa artimanha, transferindo fundos de contas secretas da Abwehr na Suíça para a conta de Gertrude, ocultando depois essa transferência com o dinheiro que ele próprio possuía na Alemanha. Transferira para fora do país dinheiro que chegaria para viverem confortavelmente durante alguns anos quando a guerra terminasse. E possuía outra mais-valia, as informações que tinha na cabeça. Tinha a certeza de que os britânicos e os americanos pagariam muito bem, tanto com dinheiro como com proteção.
Schellenberg desligou o telefone e fez uma careta, como se lhe doesse o estômago.
- Muito bem - disse ele. - Vamos ao motivo que me levou a chamá-lo cá, capitão Vogel. Chegaram notícias muito interessantes de Londres.
- Ai sim? - retorquiu Vogel, erguendo a sobrancelha.
- Sim. A nossa fonte no MI5 tem uma informação muito importante.
com um floreado, Schellenberg exibiu uma cópia de uma comunicação via rádio e entregou-a a Vogel. Ao lê-la, Vogel pensou: Notável, a subtileza da manipulação. Quando acabou de ler, estendeu o braço sobre a secretária e devolveu a cópia a Schellenberg.
Schellenberg afirmou:
- O MI5 punir disciplinarmente um homem que é amigo pessoal e confidente de Winston Churchill é algo de extraordinário. E a fonte está acima de qualquer suspeita. Fui eu próprio que o recrutei. Não é um dos lacaios do Canaris. Penso que isso prova que as informações roubadas pela sua agente eram genuínas, capitão Vogel.
- Sim, penso que tem razão, Herr Brigadefúhrer.
- O Fúhrer precisa de ser informado disto imediatamente. Vai reunir-se hoje à noite com o embaixador japonês, em Berchtesgaden, para o pôr ao corrente dos preparativos para a invasão. Tenho a certeza de que vai querer transmitir-lhe isto também.
Vogel assentiu com a cabeça.
- vou apanhar um avião que sai de Templehof daqui a uma hora. Gostava que me acompanhasse e informasse o Fiihrer pessoalmente. Afinal de contas, e antes de mais, a operação era sua. Além disso, o homem simpatiza consigo. O senhor tem um futuro francamente brilhante à sua frente, capitão Vogel.
- Obrigado pela proposta, Herr Brigadefúhrer, mas acho que o senhor é que devia dar a novidade ao Fúhrer.
- Tem a certeza, capitão Vogel?
- Sim, Herr Brigadefúhrer, tenho a certeza absoluta.
SESSENTA E DOIS
OYSTER BAY, LONG ISLAND
Foi o primeiro dia bom de primavera - sol quente e um vento suave que soprava do Sound. O dia anterior fora frio e húmido. Dorothy Lauterbach estava preocupada com
a hipótese de o frio estragar a cerimónia fúnebre e a receção. Certificou-se de que todas as lareiras da casa tinham lenha e deu instruções ao responsável pela comida para terem bastante café quente pronto para quando os convidados chegassem. Mas, a meio da manhã, já o sol expulsara as últimas nuvens e a ilha resplandecia. Dorothy transferiu rapidamente a receção da casa para o relvado com vista para o Sound.
Shepherd Ramsey tinha trazido as coisas de Jordan de Londres: a roupa, os livros, as cartas, os documentos pessoais que os homens dos serviços de segurança não tinham confiscado. No avião de carga que o trouxe de Londres, Ramsey folheou as cartas para se certificar de que não faziam referência à mulher com quem Peter tinha um relacionamento em Londres antes de morrer.
Foi uma cerimónia fúnebre muito concorrida. Não havia corpo para enterrar, mas foi colocada uma pequena lápide ao lado da de Margaret. Todo o staffdo banco de Bratton
compareceu, tal como grande parte dos funcionários da Northeast Bridge Company. As famílias da North Shore também estiveram presentes - os Dutton, os Robinson e
os Tetlinger. Billy manteve-se ao lado de Jane e Jane apoiou-se em Walker Hardegen. Bratton recebeu a bandeira americana das mãos de um representante da marinha.
O vento arrancou flores
das árvores e lançou-as para cima da multidão como se fossem papelinhos de Carnaval.
Havia um homem ligeiramente afastado do resto das pessoas, com as mãos cruzadas atrás das costas e a cabeça inclinada para baixo, em sinal de respeito. Era alto e magro e o fato cinzento de lã, com casaco assertoado, era um bocadinho pesado para o quente tempo primaveril.
Walker Hardegen foi a única pessoa que o reconheceu. Mas Hardegen não sabia o nome verdadeiro do homem. Ele usava sempre um pseudónimo que era tão ridículo que Hardegen tinha dificuldade em dizê-lo sem se rir.
O homem era o agente responsável por Hardegen e o pseudónimo que usava era Broome.
Shepherd Ramsey trouxe a carta do homem de Londres. Dorothy e Bratton entraram discretamente na biblioteca e leram-na durante a receção. Dorothy leu-a primeiro, com as mãos a tremerem. Estava mais velha, mais velha e mais grisalha. Uma queda nos degraus gelados da casa de Manhattan, em dezembro, tinha-a deixado com uma anca
partida. O coxear que daí resultara roubara-lhe o antigo físico imponente. Tinha os olhos molhados quando acabou de ler a carta, mas não chorou. Dorothy fazia sempre
as coisas com moderação. Passou a carta a Bratton, que chorou ao lê-la.
Caro Billy,
É com grande tristeza que escrevo esta carta. Tive o prazer de trabalhar com o teu pai apenas por um período muito curto de tempo, mas achei-o um dos homens mais extraordinários
que já conheci. Esteve envolvido num dos projetos mais vitais da guerra. No entanto, devido a exigências de segurança, há uma forte possibilidade de nunca vires
a saber o que o teu pai fez.
Posso dizer-te isto: o trabalho feito pelo teu pai vai salvar inúmeras vidas e
fazer com que os europeus se possam livrar de Mitler e dos nazis de uma vez por todas.
O teu pai deu verdadeiramente a vida para que outros pudessem viver. Foi um herói.
Mas nada que o teu pai tenha conseguido fazer lhe deu tanto prazer e satisfação como tu,
Billy. Quando o teu pai falava de ti, a cara dele alterava-se. Os olhos
iluminavam-se e ele sorria, mesmo que estivesse muito cansado. Eu nunca tive a sorte de ser
abençoado com um filho. Ao ouvir o teu pai falar de ti, dei-me conta da imensidão do meu infortúnio.
Atenciosamente, Alfred Vicary
Bratton devolveu a carta a Dorothy. Ela dobrou-a, voltou a colocá-la no envelope e guardou-a na gaveta de cima da secretária de Bratton. Dirigiu-se para a janela
e olhou lá para fora.
Toda a gente estava a comer e a beber e parecia estar a divertir-se. Para lá da multidão, viu Billy, Jane e Walker sentados na relva junto à doca. Jane e Walker
tinham-se tornado mais do que amigos. Tinham começado uma relação amorosa e Jane até falava em casamento. Dorothy pensou: Seria mesmo perfeito. Billy teria outra
vez uma verdadeira família.
Havia algo de apropriado nisso, uma sensação de conclusão para tudo aquilo, que Dorothy considerava reconfortante. Estava outra vez quente e dentro de pouco tempo seria verão. As casas não tardariam muito a abrir e as festas começariam. A vida continua, disse a si própria. Margaret e Peter já cá não estão, mas não há dúvida de que a vida continua.
SESSENTA E TRÊS
GLOUCESTERSHIRE, INGLATERRA: SETEMBRO
DE 1944
Até Alfred Vicary ficou surpreendido com a rapidez com que conseguira sair. Tecnicamente, tratava-se de uma licença administrativa até serem conhecidas as conclusões do inquérito interno. Vicary sabia que isso era uma terminologia pomposa que correspondia a um despedimento.
Perversamente, seguiu o conselho de Basil Boothby e fugiu para a casa da tia Matilda - nunca fora capaz de se habituar à ideia de que era sua - para ordenar as ideias. Os primeiros dias de exílio foram aterradores. Sentia falta da camaradagem do MI5. Sentia falta do seu gabinetezinho miserável. Até deu por si a sentir falta da cama de campanha, pois tinha perdido a bênção do sono profundo. Culpava a cama de casal de Matilda, que afundava cada vez mais - demasiado mole, com demasiado espaço para ele se debater com os seus pensamentos atormentados. Num raro clarão de inspiração, foi à loja da aldeia comprar uma nova cama de campanha. Instalou-a na sala de estar, ao lado da lareira, um local estranho, sabia-o, mas não planeava receber visitas. A partir dessa noite, começou a dormir tão bem como se poderia esperar.
Passou por um longo e triste período de inatividade. Mas, na primavera, quando o tempo aqueceu, concentrou a ilimitada energia acumulada na sua nova casa. Os vigias que o visitavam de vez em quando viram, horrorizados, Vicary atacar o jardim munido de uma
tesoura de podar, de uma foice e dos óculos em meia-lua. Observaram-no, espantados, a pintar de novo o interior do chalé. Gerou-se uma discussão considerável à
volta da cor por ele escolhida: um branco forte e rotineiro. Será que significava que o seu estado de espírito estava a melhorar ou estaria a transformar a casa
num hospital e a dar entrada por um período prolongado?
A preocupação também era grande na aldeia. Poole, o homem da drogaria, diagnosticou o estado de espírito de Vicary como sendo de luto. Não é possível, disse Plenderleith, o homem da estufa, que dava conselhos a Vicary acerca do jardim. Nunca foi casado, nunca esteve apaixonado, ao que parece. Miss Lazenby, da loja de roupa, decretou que estavam ambos errados. O pobre homem está apaixonado, qualquer pateta vê isso. E, pelo aspeto dele, o objeto da sua devoção não lhe retribui esse amor.
Mesmo que tivesse sabido dessa discussão, Vicary não teria sido capaz de a resolver, já que conhecia tão mal os seus próprios sentimentos como as pessoas que os testemunhavam. O chefe do seu departamento no University College enviou-lhe uma carta. Tivera conhecimento que Vicary já não se encontrava ao serviço do Ministério da Guerra e queria saber quando regressaria à universidade. Vicary rasgou a carta ao meio e queimou-a na lareira.
Já não havia nada em Londres para ele - apenas más recordações -, por isso, manteve-se longe. Só lá foi uma vez, numa manhã da primeira semana de junho, quando Sir Basil o chamou para ouvir os resultados do inquérito interno.
- Olá, Alfred! - gritou Sir Basil quando Vicary entrou no seu gabinete.
Lá dentro, brilhava uma suave luz cor de laranja. Boothby estava exatamente no centro do gabinete, como se quisesse espaço para manobrar para todos os lados. Trazia um fato cinzento que lhe assentava na perfeição e parecia mais alto do que Vicary se lembrava. O diretor-geral estava sentado no elegante sofá, com os dedos entrelaçados como se estivesse a rezar e os olhos fixos num ponto do tapete persa. Boothby com a mão direita em riste como uma baioneta, avançou
na direção de Vicary. Tendo em conta o sorriso caótico estampado na cara de Boothby, Vicary não tinha a certeza se ele estava a planear abraçá-lo ou atacá-lo. E também não tinha a certeza daquilo que receava mais.
Mas o que Boothby fez de facto foi apertar a mão a Vicary com um bocadinho de simpatia a mais e pousar-lhe a sua patorra no ombro. Estava quente e húmida, como se tivesse acabado de jogar uma partida de ténis. Serviu-lhe ele próprio chá e fez conversa de circunstância enquanto Vicary fumava um último cigarro. A seguir, com considerável cerimónia, tirou da secretária o relatório final da comissão de inquérito e colocou-o em cima da mesa. Vicary não quis olhar para o documento diretamente.
Boothby explicou a Vicary, com um prazer excessivo, que não lhe era permitido ler a avaliação feita à sua própria operação. Mostrou-lhe antes um documento de uma
só página, uma versão saneada que supostamente condensava e resumia o conteúdo do relatório. Vicary segurou-o com as duas mãos, mantendo-o bem esticado para que
não tremesse enquanto o lia. Era um documento desprezível e obsceno, mas contestá-lo naquele momento não serviria de nada. Devolveu-o a Boothby, apertou-lhe a mão,
depois a do diretor-geral, e foi-se embora.
Vicary desceu as escadas. Estava alguém no seu gabinete. Era Harry, com uma cicatriz horrível no maxilar. Vicary não era adepto de despedidas prolongadas. Disse
a Harry que tinha sido despedido, agradeceu-lhe tudo o que ele tinha feito e disse-lhe adeus.
Chovia outra vez e o tempo estava frio para junho. O chefe da divisão dos Transportes disponibilizou um carro a Vicary. Vicary recusou educadamente. Abriu o guarda-chuva
e seguiu vagarosamente para Chelsea, com a chuva a cair torrencialmente.
Passou a noite na sua casa em Chelsea. Acordou ao amanhecer, com a chuva a bater nas janelas. Era o dia 6 de junho. Ligou a BBC para ouvir as notícias e ficou a
saber que a invasão estava em curso.
Ao meio-dia, Vicary saiu de casa, esperando ver multidões nervosas e ouvir conversas ansiosas, mas havia um silêncio de morte em Londres. Algumas pessoas aventuravam-se
a ir às compras e outras entravam nas igrejas para rezarem. Os táxis deslocavam-se pelas ruas vazias à procura de clientes.
Vicary observou os londrinos ocupados com a sua vida. Sentiu vontade de correr para eles, sacudi-los e dizer: Não sabem o que é que está a acontecer? Não têm noção
do que foi necessário? Não sabem as coisas inteligentes e perversas que fizemos para os enganar? Não sabem o que é que eles me fizeram a mim?
Jantou no pub da esquina e ouviu os animadores boletins noticiosos na telefonia. Nessa noite, de novo sozinho, ouviu a mensagem do Rei à nação e, a seguir, foi deitar-se.
De manhã, apanhou um táxi para a estação de Paddington e regressou a Gloucestershire no primeiro comboio.
Gradualmente, por altura do verão, os seus dias adquiriram uma cuidadosa rotina.
Levantava-se cedo e lia até ao almoço, que comia todos os dias na aldeia, no Eight Bells: tarte de legumes, cerveja, carne quando constava do menu. Do Eight Bells,
partia para a caminhada que se obrigava a dar diariamente pelos trilhos ventosos em redor da aldeia. A cada dia que passava, o joelho aleijado recuperava um pouco
mais de força e, em agosto, Vicary já fazia dezasseis quilómetros todas as tardes. Deixou de fumar cigarros e passou para o cachimbo. Os rituais do cachimbo - carregá-lo,
limpá-lo, acendê-lo e voltar a acendê-lo - assentavam de modo perfeito na sua nova vida.
Não tinha noção do dia certo em que aquilo tinha acontecido o dia em que tudo se desvaneceu dos seus pensamentos conscientes: o gabinete exíguo, o estrépito dos
teleimpressores, a comida horrível da cantina, o léxico louco daquele sítio. Double Cross... Mulberry... Phoenix... Kettledrum. Até Helen foi empurrada para dentro
de uma sala fechada da sua memória, onde não poderia causar mais danos. Alice Simpson começou a visitá-lo ao fim de semana e passou lá uma semana inteira no início
de agosto.
No último dia do verão, sentiu-se invadido pela suave melancolia que aflige as pessoas do campo quando o tempo quente está a chegar ao fim. Era um crepúsculo glorioso,
com o horizonte raiado de púrpura e cor de laranja, a primeira sugestão do outono no ar. As prímulas e as campainhas há muito tinham desaparecido. Recordou-se de
um fim de tarde assim, meia vida antes, quando Brendan Evans o ensinou a andar de mota nos trilhos da Fens. Ainda não estava frio para
acender lareiras, mas do seu poleiro, no cimo de uma colina, conseguia ver as chaminés da aldeia a deitarem fumo suavemente e sentir o cheiro intenso a madeira verde
no ar.
Foi então que viu tudo a desenrolar-se nas encostas, como a solução para um problema de xadrez. Conseguia ver as linhas de ataque, a preparação, o logro. Nada tinha
sido o que parecia.
Vicary voltou apressadamente para o chalé, telefonou para o departamento e pediu para falar com Boothby. Foi nessa altura que se apercebeu de que era tarde e de
que era sexta-feira - os dias da semana já não significavam nada para ele - mas, por milagre, Boothby ainda lá estava e atendeu o seu próprio telefone.
Vicary identificou-se. Boothby revelou-se genuinamente agradado por ouvir a voz dele. Vicary garantiu-lhe que estava ótimo.
- Quero falar consigo - disse Vicary. - Sobre a Operação Ketdedrum.
A linha caiu num silêncio, mas Vicary sabia que Boothby não tinha desligado o telefone de repente porque o ouvia a mexer-se agitadamente na cadeira.
- Já não pode vir cá. O Alfred épersona nongrata. Por isso, suponho que tenha de ser eu a ir ter consigo.
- Perfeito. E não finja que não sabe como me encontrar porque tenho visto os seus vigias a andarem atrás de mim.
- Amanhã, ao meio-dia - atirou Boothby, desligando o telefone.
Boothby chegou ao meio-dia em ponto, num Humber oficial, vestido para o campo com roupa de tweed, uma camisa aberta no pescoço e um casaco de malha confortável.
Tinha chovido durante a noite. Vicary foi buscar à cave umas botas de borracha tamanho XL para Boothby e percorreram como velhos colegas um prado pontilhado de ovelhas
tosquiadas. Boothby foi falando sobre mexericos do departamento e Vicary, com considerável esforço, fingiu estar interessado.
Passado um bocado, Vicary parou de andar e pôs-se a olhar para longe.
- Nada daquilo era real, pois não? - exclamou. -Jordan, Catherine Blake... - era tudo falso desde o início.
Boothby sorriu sedutoramente.
- Não foi bem assim, Alfred. Mas qualquer coisa do género.
Virou-se e continuou a caminhar, o corpo alto uma linha vertical recortada no horizonte. A seguir, parou e fez sinal a Vicary para se aproximar. Coxeando mecânica
e rigidamente, Vicary seguiu Boothby, batendo nos bolsos à procura dos óculos em meia-lua.
- Foi a natureza da Operação Mulberry que nos colocou um problema - começou a dizer Boothby, sem aviso. - Estavam envolvidas dezenas de milhares de pessoas. Claro
que a grande maioria não fazia ideia daquilo em que estava a trabalhar. Ainda assim, o potencial para ocorrerem fugas de segurança era enorme. As componentes eram
tão grandes que tinham de ser construídas à vista de toda a gente. Os locais de construção estavam espalhados pelo país, mas uma parte foi construída mesmo aqui
perto, nas docas de Londres. Assim que nos informaram do projeto, percebemos que tínhamos um problema. Sabíamos que os alemães seriam capazes de fotografar os locais
a partir do ar. Sabíamos que bastava um espião razoável andar a bisbilhotar as obras para conseguir provavelmente descobrir o que estávamos a preparar. Enviámos
um homem para Sesley para testar o grau de segurança. Já estava a beber chá na cantina com alguns trabalhadores quando alguém se deu ao trabalho de lhe pedir a identificação.
Boothby riu. Vicary observou-o enquanto ele falava. Toda a sua arrogância e todo o seu nervosismo tinham desaparecido. Sir Basil mostrava-se calmo, sereno e simpático.
Vicary pensou que, em circunstâncias diferentes, até poderia ter gostado dele. Apercebeu-se, chocado, de que tinha subestimado a inteligência de Boothby desde o
início. E também ficou espantado com a utilização que ele fazia da palavra nós. Boothby era membro do clube; Vicary tinha apenas sido autorizado a encostar o nariz
ao vidro durante um curto período de tempo.
- O maior problema era a possibilidade de a Operação Mulberry revelar as nossas intenções - recomeçou Boothby. - Se os alemães descobrissem que estávamos a construir
portos artificiais, eram bem
capazes de concluir que pretendíamos evitar os portos altamente fortificados de Calais atacando na Normandia. Como o projeto era tão grande e difícil de ocultar,
tínhamos de partir do princípio de que os alemães acabariam por descobrir o que estávamos a preparar. A nossa solução foi roubar por eles o segredo da Operação Mulberry
e tentar controlar o jogo - explicou Boothby, olhando para Vicary. - Muito bem, Alfred, vamos lá ouvir o que tem para dizer. Quero saber o que conseguiu descobrir
ao certo.
- Walker Hardegen - afirmou Vicary. - Eu diria que começou tudo com Walker Hardegen.
- Muito bem, Alfred. Mas como?
- Walker Hardegen era um banqueiro e um homem de negócios rico, ultraconservador, anticomunista e provavelmente um bocadinho antissemita. Vinha da Ivy League e conhecia
metade das pessoas em Washington. Tinha andado na escola com elas. Os americanos não são assim tão diferentes de nós nesse aspeto. Os negócios dele levavam-no a
Berlim regularmente. E quando homens como Hardegen viajavam para Berlim, iam a jantares e festas de embaixadas. Jantavam com os diretores das maiores empresas alemãs
e com funcionários nazis do partido e dos ministérios. Hardegen falava alemão perfeitamente. E o mais provável era que admirasse algumas das coisas que os nazis
andavam a fazer. Acreditava que Hitler e os nazis funcionavam como um importante amortecedor entre os bolcheviques e o resto da Europa. Eu diria que, durante uma
das visitas dele, terá chamado a atenção da Abwehr ou do SD.
- Bravo, Alfred. Foi a Abwehr, por acaso, e o homem cuja atenção capturámos foi Paul Múller, o diretor das operações da Abwehr na América.
- Muito bem. Múller recrutou-o. Oh, calculo que provavelmente tenha suavizado a coisa. Dito que Hardegen não estaria realmente a trabalhar para os nazis. Estaria
a ajudar na luta contra o comunismo internacional. Pediu informações a Hardegen sobre a produção industrial americana, o estado de espírito em Washington, coisas
desse género. Hardegen aceitou e tornou-se agente. Mas tenho uma pergunta: Hardegen já era um agente americano nessa altura?
- Não - respondeu Boothby, sorrindo. - Não se esqueça, isto passou-se ainda bem no início do jogo, em 1937. Os americanos não eram especialmente sofisticados nessa
altura. Mas sabiam, no entanto, que a Abwehr se encontrava ativa nos Estados Unidos, particularmente em Nova Iorque. Um ano antes, os planos relativos à mira de
bombardeiro Norden saíram do país dentro da pasta de um espião da Abwehr chamado Nikolaus Ritter. Roosevelt tinha dado ordens a Hoover para atuar com dureza. Em
1939, Hardegen foi fotografado a encontrar-se em Nova Iorque com um conhecido agente da Abwehr. Dois meses mais tarde, viram-no novamente, desta vez a encontrar-se
com outro agente da Abwehr na Cidade do Panamá. Hoover queria prendê-lo e levá-lo a julgamento. Meu Deus, os americanos eram mesmo uns lorpas neste jogo. Felizmente,
o MI6 já tinha instalado o seu gabinete em Nova Iorque nessa altura. Intervieram e convenceram Hoover de que Hardegen era mais valioso se continuasse em jogo do
que enfiado numa cela qualquer.
- Então quem é que o controlava, nós ou os americanos?
- Na verdade, era um projeto conjunto. Fornecíamos um fluxo constante de ótimo material aos alemães através de Hardegen, tudo coisas de qualidade superior. Em Berlim,
o estatuto de Hardegen subiu em flecha. Enquanto isso, todos os aspetos da vida de Walker Hardegen foram analisados microscopicamente, incluindo a relação dele com
a família Lauterbach e com um engenheiro brilhante chamado Peter Jordan.
- Por isso, em 1943, quando foi tomada a decisão de efetuar a invasão através do canal da Mancha na Normandia, com a ajuda de um porto artificial, os serviços secretos britânicos e americanos abordaram Peter Jordan e pediram-lhe para passar a trabalhar para nós.
- Sim. Em outubro de 1943, para ser exato.
- Ele era perfeito - prosseguiu Vicary. - Era precisamente o tipo de engenheiro de que o projeto necessitava e era conhecido e respeitado na sua área. Os nazis só precisavam de ir à biblioteca para ler sobre os feitos dele. E a morte da mulher também o tornava vulnerável em termos pessoais. Por isso, no final de 1943, fizeram com que Hardegen se encontrasse com o agente da Abwehr responsável por ele e lhe contasse tudo sobre Peter Jordan. O que é que lhes revelaram na altura?
- Só que Jordan estava a trabalhar num grande projeto de construção relacionado com a invasão. E também demos a entender que ele era vulnerável, como o Alfred disse. A Abwehr mordeu o isco. Múller convenceu Canaris e Canaris passou o assunto a Vogel.
- Então, toda essa coisa foi um estratagema complexo para impingir informações falsas à Abwehr. E Peter Jordan foi o cordeiro sacrificado da praxe.
- Exato. Os primeiros documentos eram propositadamente ambíguos. Estavam abertos à interpretação e à discussão. As unidades Phoenix podiam ser componentes de um porto artificial ou podiam ser um complexo antiaéreo. Queríamos que eles andassem à bulha, discutissem, se esfrangalhassem todos. Tem Sun-Tzu em dia?
- Sabota o teu inimigo, subverte-o, semeia a discórdia entre os seus líderes.
- Exato. Queríamos encorajar a fricção entre o SD e a Abwehr. E também não lhes queríamos facilitar demasiado as coisas. Gradualmente, os documentos da Operação
Kettledrum foram clareando o quadro e esse quadro foi transmitido diretamente a Hitler.
- Mas porquê darem-se a tanto trabalho? Porque é que não utilizaram simplesmente um dos agentes que já tinham mudado de lado? Ou um dos agentes fictícios? Porquê
utilizarem um engenheiro de carne e osso? Porque não inventaram simplesmente um de fio a pavio?
- Por duas razões - respondeu Boothby. - Número um, isso é demasiado fácil. Queríamos que eles se esforçassem para obter as informações. Queríamos influenciar-lhes o pensamento subtilmente. Queríamos que pensassem que eram eles que estavam a decidir apontar baterias a Jordan. Não se esqueça do mantra de um agente da Operação Double Cross: as informações facilmente obtidas são facilmente descartadas. Havia uma cadeia de informações, por assim dizer: de Hardegen para Múller, de Múller para Canaris, de Canaris para Vogel e de Vogel para Catherine Blake.
- Impressionante - afirmou Vicary. - E a segunda razão?
- A segunda razão foi que, no final de 1943, descobrimos que não conhecíamos todos os espiões alemães que atuavam no Reino
Unido. Ficámos a saber de Kurt Vogel, ficámos a saber da rede dele e ficámos a saber que um dos agentes era uma mulher. Mas tínhamos um problema grave. Vogel tinha infiltrado os agentes no Reino Unido tão cuidadosamente que só os conseguiríamos localizar se fizéssemos com que eles se revelassem. Não se esqueça, o Plano Bodyguard estava prestes a começar a carburar a cem por cento, íamos bombardear os alemães com rajadas de informações falsas. Mas não nos podíamos sentir confortáveis sabendo que havia agentes de carne e osso ativos no nosso país. Tínhamos de os identificar a todos. Caso contrário, nunca poderíamos ter a certeza de que os alemães não estavam a receber informações que contradissessem o Plano Bodyguard.
- E como tiveram conhecimento da rede de Vogel?
- Fomos informados.
- Por quem?
Boothby deu alguns passos em silêncio, contemplando a biqueira enlameada das botas de borracha.
- Fomos informados da rede por Wilhelm Canaris - disse por fim.
- Por Canaris?
- Através de um dos emissários dele, na realidade. Em 1943, no final do verão. Isto vai provavelmente chocá-lo, mas Canaris era um dos líderes da Schwarze Kapelle. Queria que Menzies e os serviços secretos o ajudassem a derrubar Hitler e a acabar com a guerra. Num gesto de boa vontade, informou Menzies da existência da rede de Vogel. Menzies informou os serviços de segurança e, em conjunto, engendrámos um estratagema chamado Kettledrum.
- O principal espião de Hitler, um traidor. Extraordinário. E o senhor sabia de tudo isto, claro. Sabia-o na noite em que eu fui destacado para o caso. Aquele relatório acerca da invasão e dos planos de logro... Teve tudo como objetivo assegurar a minha lealdade cega. Motivar-me. Manipular-me.
- Lamento dizê-lo, mas sim.
- Então a operação tinha dois objetivos: enganá-los em relação ao Projeto Mulberry e, ao mesmo tempo, fazer com que os agentes de Vogel se revelassem para os podermos neutralizar.
- Sim - confirmou Boothby. - E mais outra coisa: possibilitar a Canaris um golpe de mestre que lhe permitisse salvar a cabeça
até à invasão. A última coisa de que precisávamos era de Schellenberg e de Himmler a comandarem. A Abwehr estava totalmente paralisada e manipulada. Sabíamos que se Schellenberg assumisse o controlo, ia pôr em causa tudo o que Canaris tinha feito. Mas não fomos bem-sucedidos nesse ponto, claro. Canaris foi despedido e Schellenberg apoderou-se finalmente da Abwehr.
- Então porque é que a Operação Double Cross e o Plano Bodyguard não se desmoronaram com a queda de Canaris?
- Oh, Schellenberg estava mais interessado em consolidar o seu império do que em introduzir uma nova leva de agentes em Inglaterra. Houve uma impressionante reorganização burocrática - gabinetes a trocarem de dono, dossiês a mudarem de mãos, esse tipo de coisas. No estrangeiro, mandou embora agentes dos serviços secretos experientes
que eram leais a Canaris e substituiu-os por sabujos ainda verdes, leais às SS e ao Partido. Enquanto isso, no quartel-general da Abwehr, os agentes responsáveis
faziam todos os possíveis por provar que os agentes a atuarem no Reino Unido eram fidedignos e produtivos. Pondo as coisas de forma simples, era uma questão de vida
ou de morte para esses agentes. Se admitissem que os agentes deles estavam sob controlo britânico, teriam sido enfiados no primeiro comboio a caminho do Leste. Ou
pior.
Caminharam em silêncio durante algum tempo enquanto Vicary assimilava tudo o que lhe tinha sido dito. Tinha a cabeça à roda. E inúmeras perguntas. Temia que Boothby
se pudesse calar a qualquer instante. Ordenou-as por importância, deixando de lado as suas emoções fervilhantes. Passou uma nuvem diante do Sol e de repente fez-se
frio.
- E resultou tudo? - perguntou Vicary.
- Sim, resultou de forma brilhante.
- Então e a emissão do Lord Haw-Haw?
O próprio Vicary tinha-a ouvido, sentado na sala de estar do chalé de Mádida, e tinha sentido um calafrio. Nós sabemos exatamente o que é que vocês pretendem faer
com essas unidades de betão. Pensam que as vão afundar nas nossas costas durante a invasão. bom, vamos ajudar-vos, rapaces...
- Pôs o Supremo Comando Aliado em pânico. Pelo menos, à superfície - acrescentou Boothby presunçosamente. - Um grupo
muito pequeno de oficiais tinha conhecimento do logro da Operação Kettledrum e percebeu que se tratava apenas do último ato. Eisenhower enviou um telegrama para
Washington a pedir cinquenta vedetas para resgatar as tripulações caso as Mulberries fossem afundadas durante a travessia do Canal. Certificámo-nos de que os alemães
sabiam disso. Tate, o nosso agente da Operação Double Cross com uma fonte fictícia dentro do SHAEF, transmitiu ao agente da Abwehr responsável por ele um relatório
do pedido de Eisenhower. Passados vários dias, o embaixador japonês fez uma visita às defesas costeiras e foi informado por Rundstedt. Rundstedt falou-lhe das Mulberries
e explicou-lhe que um agente da Abwehr tinha descoberto que eram torres de artilharia antiaérea. O embaixador enviou por telegrama essa informação aos seus chefes
em Tóquio. Essa mensagem, tal como todas as outras comunicações dele, foi intercetada e descodificada. Nesse momento, soubemos que a Operação Kettledrum tinha resultado.
- E quem dirigiu a operação em termos globais?
- O MI6, na verdade. Foram eles que a iniciaram, foram eles que a conceberam, e nós deixámo-los dirigi-la.
- E quem sabia dentro do departamento?
- Eu, o diretor-geral, Masterman, do Comité da Operação Double Cross.
- E quem era o agente que comandava tudo? Boothby olhou para Vicary.
- O Broome, claro.
- E quem é o Broome?
- O Broome é o Broome, Alfred.
- Só não compreendo uma coisa. Porque é que era necessário enganar o agente responsável pelo caso?
Boothby sorriu tenuemente, como se tivesse sido apoquentado por uma recordação ligeiramente desagradável. Dois faisões irromperam da sebe e voaram disparados pelo
céu cinzento-escuro. Boothby parou e contemplou as nuvens.
- Parece que vem aí chuva - atirou. - Talvez fosse melhor voltarmos para trás.
Deram meia-volta e começaram a andar.
- Nós enganámo-lo, Alfred, porque queríamos que parecesse tudo verdadeiro ao outro lado. Queríamos que o Alfred seguisse os
mesmos passos que em princípio seguiria num caso normal. E também não lhe era necessário saber que Jordan estava a trabalhar para nós desde o início. Não era necessário.
- Meu Deus! - disparou Vicary. - Então comandaram-me, como a qualquer outro agente. Comandaram-me.
- Pode dizer-se isso, sim.
- E porque fui escolhido? Porque não outra pessoa?
- Porque o Alfred, como o Peter Jordan, era perfeito.
- É capaz de me explicar isso?
- Escolhemo-lo por ser inteligente e engenhoso, e, em circunstâncias normais, o Alfred ter-lhes-ia dado água pela barba. Meu Deus, quase percebeu o logro enquanto
a operação estava em curso. E também o escolhemos por a tensão entre nós dois ser lendária afirmou Boothby, parando por uns instantes e olhando para Vicary.
- O Alfred não era propriamente discreto quando me criticava perante o resto do staff. Mas, mais importante do que isso, escolhemo-lo por ser amigo do primeiro-ministro
e a Abwehr o saber.
- E quando me despediram, informaram os alemães através de Hawke e do Pelicano. Esperavam que o sacrifício de um amigo pessoal de Winston Churchill reforçasse a
confiança deles no material da Operação Kettledrum.
- Exato, fazia tudo parte do guião. E resultou, já agora.
- E Churchill sabia?
- Sim, sabia. Foi ele próprio que aprovou tudo. O seu velho amigo traiu-o. Adora a magia negra, o nosso Winston. Se não fosse primeiro-ministro, acho que teria
sido um agente perito em logros. Acho que se divertiu bastante com tudo. Ouvi dizer que aquele discurso de motivação que ele lhe fez nas Salas de Guerra Subterrâneas
foi um clássico.
- Sacanas - murmurou Vicary. - Sacanas manipuladores. Mas a verdade é que, se calhar, me devia dar por feliz. Podia estar morto como os outros. Meu Deus! Já se deram
conta de quantas pessoas morreram por causa do vosso joguinho? Pope, a namorada dele, Rose Morely, os dois homens da Divisão Especial em Earl's Court, os quatro
polícias em Louth, outro em Cleethorpes, Sean Dogherty, Martin Colville.
- Está a esquecer-se de Peter Jordan.
- Por amor de Deus, mataram o vosso próprio agente!
- Não, o A-lfred é que o matou. Foi o Alfred que o pôs a bordo daquele barco. Eu até gostei bastante, devo admitir. O homem cujo descuido pessoal quase nos custou
a guerra morre a salvar a vida de uma rapariga e expia os seus pecados. Era assim que Hollywood teria feito a coisa. E é isso que os alemães pensam que aconteceu
realmente. E, além do mais, o número de vidas que se perderam não é nada comparado com a carnificina que teria ocorrido se Rommel estivesse à nossa espera na Normandia.
- Trata-se tudo de créditos e débitos? É assim que olha para as coisas? Como se fossem uma gigantesca folha de contabilidade? Ainda bem que estou fora! Não quero
fazer parte disso! Não se isso significa fazer coisas dessas. Meu Deus, já devíamos ter queimado pessoas como o senhor na fogueira há muito tempo!
Subiram uma última colina. Ao longe, a casa de Vicary surgiu diante deles. As trepadeiras floridas de Matilda cobriam o muro de calcário que servia de proteção.
Ele queria estar lá - bater com a porta, sentar-se à lareira e nunca mais voltar a pensar em nada daquilo. Sabia que naquele momento isso era impossível. Queria
livrar-se de Boothby. Acelerou o passo, descendo rapidamente a colina e quase perdendo o equilíbrio. Boothby, com o seu corpo alto e pernas atléticas, esforçou-se
por o acompanhar.
- Não é mesmo isso que acha, pois não? O Alfred gostou daquilo. Foi seduzido. Gostou da manipulação e do logro. A sua universidade quer que regresse, mas o Alfred
não tem a certeza se quer voltar para lá porque tem consciência de que tudo aquilo em que acreditava é mentira e de que o meu mundo, este mundo, é que é o verdadeiro.
- O senhor não é o mundo verdadeiro. Não tenho a certeza do que o senhor é, mas não é verdadeiro.
- Pode dizer isso agora, mas eu sei que sente uma falta terrível de tudo aquilo. É bastante parecido com uma amante, o tipo de trabalho que fazemos. Às vezes, não
gostamos muito dela. Não gostamos de nós próprios quando estamos com ela. Os momentos em
que nos sentimos bem são fugazes. Mas quando tentamos deixá-la há sempre qualquer coisa que nos puxa outra vez para ela.
- Receio bem que essa metáfora não me diga muito, Sir Basil.
- Lá está o Alfred outra vez, a armar-se em superior, em melhor do que os outros. Pensei que já tivesse aprendido a lição por esta altura. O Alfred precisa de pessoas
como nós. O país precisa de nós.
Atravessaram o portão e seguiram pelo caminho de entrada. O cascalho estalava sob os seus pés. Vicary lembrou-se da tarde em que tinha sido chamado a Chartwell e
recebido o cargo no MI5. Lembrou-se da manhã nas Salas de Guerra Subterrâneas, das palavras de Churchill: Tem de deixar de lado quaisquer princípios que ainda possua,
deixar de lado quaisquer sentimentos de compaixão que ainda possua, efaer tudo o que for necessário para vencer.
Pelo menos, tinha havido alguém que tinha sido sincero consigo, mesmo que isso tivesse sido mentira na altura.
Pararam ao lado do Humber de Boothby.
- Compreenderá por certo que eu não o convide para entrar e tomar um refresco - disse Vicary. - Quero ir lavar o sangue das mãos.
- A beleza da coisa é essa, Alfred - retorquiu Boothby, mostrando as grandes patorras a Vicary. - Eu também tenho sangue nas mãos. Só que não o consigo ver e mais
ninguém consegue. É uma mancha secreta.
O motor do carro disparou quando Boothby abriu a porta.
- Quem é Broome? - perguntou Vicary uma última vez.
O rosto de Boothby ensombrou-se, como se uma nuvem lhe tivesse passado à frente.
- Broome é Brendan Evans, o seu velho amigo de Cambridge. Contou-nos a sua manobra para entrar para os serviços secretos militares. E contou-nos o que lhe aconteceu
em França. Sabíamos o que o impelia e o que o motivava. Tinha de ser... afinal de contas, estávamos a comandá-lo.
Vicary sentiu a cabeça começar a latejar.
- Tenho mais uma pergunta.
- Quer saber se Helen estava envolvida nisso ou se foi ter consigo de livre vontade.
Vicary ficou em suspenso, à espera de uma resposta.
- Porque não vai ter com ela e lhe pergunta?
A seguir, Boothby desapareceu dentro do carro e foi-se embora.
SESSENTA E QUATRO
LONDRES: MAIO DE 1945
Nessa tarde, às seis horas, Lillian Walford aclarou a garganta, bateu suavemente à porta do gabinete e entrou sem esperar que respondessem. O professor estava lá,
sentado à janela com vista para Gordon Square, com o corpo franzino debruçado sobre um velho manuscrito.
- Se já não tiver mais nada para eu fazer, vou-me embora, professor - disse ela, dando início ao ritual de fechar os livros e endireitar os papéis que parecia acompanhar
sempre as conversas de sexta-feira ao final da tarde entre ambos.
- Não, tenho tudo o que preciso, obrigado.
Ela olhou para ele e pensou: Não, por qualquer razão, duvido muito disso, professor. Havia qualquer coisa nele que tinha mudado. Oh, é verdade que nunca tinha sido do tipo falador; nunca tinha sido pessoa de iniciar uma conversa, a não ser que fosse absolutamente necessário. Mas parecia mais reservado do que nunca, coitadinho. E tinha piorado à medida que o período letivo avançava, em vez de melhorar, como ela tinha esperado. Contavam-se histórias na faculdade, especulações fúteis. Havia quem dissesse que ele tinha enviado homens para a morte ou ordenado execuções. Era difícil imaginar o professor a fazer essas coisas, mas fazia algum sentido, ela tinha de admitir. Alguma coisa o tinha feito fazer um voto de silêncio.
- É melhor não se demorar muito, professor, se quer apanhar o comboio.
.- Estava a pensar em ficar antes em Londres no fim de semana
respondeu ele, sem levantar os olhos do trabalho. - Interessa-me
ver qual é o aspeto da cidade à noite, agora que as luzes estão outra vez a funcionar.
- Ora aí está uma coisa que eu espero mesmo nunca mais voltar a ver, o maldito blackout.
- Algo me diz que não verá.
Ela tirou-lhe o impermeável do cabide atrás da porta e colocou-o na cadeira ao lado da secretária. Pousou o lápis e olhou para ela. O que ela fez a seguir apanhou-os aos dois de surpresa. A mão dela pareceu estender-se para a cara dele de livre vontade, por reflexo, como o faria para uma criancinha que tivesse acabado de se magoar.
- O professor está bem?
Ele afastou-se bruscamente e voltou a olhar para o manuscrito.
- Sim, estou ótimo - respondeu ele.
A voz tinha um tom, uma rispidez que ela nunca lhe tinha ouvido. A seguir, ele murmurou qualquer coisa baixinho que pareceu ser nunca estive melhor.
Ela virou-se e dirigiu-se para a porta.
- Tenha um bom fim de semana - disse.
- É essa a minha ideia, obrigado.
- Boa noite, professor Vicary.
- Boa noite, Miss Walford.
A noite estava quente e, quando atravessou Leicester Square, Vicary já tinha despido o impermeável, levando-o dobrado sobre o braço. O crepúsculo chegava ao fim e as luzes de Londres começaram a acender-se lentamente. Quem diria, Liílian Walford a tocar-lhe na cara daquela maneira! Sempre tinha pensado que era um mentiroso
razoável. Interrogou-se se seria assim tão evidente.
Atravessou o Hyde Park. À esquerda, um grupo de americanos jogava softball à luz ténue. À direita, britânicos e canadianos participavam num barulhento jogo de râguebi. Passou por um local onde apenas uns dias antes se encontrava uma arma antiaérea. A arma tinha desaparecido; apenas se mantinham lá os sacos de areia, como se fossem pedras de ruínas antigas.
Entrou em Belgravia e, por instinto, dirigiu-se para a casa de Helen.
Espero que mudes de opinião, e depressa.
As cortinas opacas estavam levantadas e a casa inundada de luz. Estavam lá mais dois casais. David estava de uniforme, com Helen pendurada no braço. Vicary perguntou-se há quanto tempo estaria ali parado, a observá-los, a observá-la. Para sua grande surpresa - ou seria alívio, talvez -, não sentiu nada por ela. O seu fantasma tinha-o abandonado por fim, desta vez definitivamente.
Afastou-se. King's Road deu lugar a Sloane Square e Sloane Square a sossegadas ruas secundárias de Chelsea. Olhou para o relógio; ainda tinha tempo para apanhar
o comboio. Conseguiu um táxi e, antes de entrar, pediu ao taxista para o levar até à estação de Paddington. Baixou o vidro da janela e sentiu o vento quente na cara.
Pela primeira vez em muitos meses, sentiu qualquer coisa parecida com contentamento, qualquer coisa parecida com paz.
Ligou para Alice Simpson de uma cabine telefónica, na estação, e ela aceitou o convite para ir ter com ele ao campo na manhã seguinte. Desligou o telefone e teve
de correr para apanhar o comboio. A carruagem ia apinhada, mas descobriu um lugar à janela, num compartimento com duas velhas e um soldado com cara de menino, agarrado
a uma bengala.
Olhou para o soldado e viu que ele trazia a insígnia do 2.º Regimento de East Yorkshire. Vicary sabia que ele tinha estado na Normandia - em Sword Beach, para ser
exato - e que tinha sorte em estar vivo. Os East Yorks tinham sofrido muitas baixas nos primeiros minutos da invasão.
O soldado reparou que Vicary estava a olhar para ele e conseguiu esboçar um ligeiro sorriso.
- Foi na Normandia. Quase não cheguei a sair do barco - disse, erguendo a bengala. - Os médicos dizem que vou precisar de usar isto para o resto da vida. Como ficou
com o seu, quer dizer, com o coxear?
- Na Primeira Guerra Mundial, em França - disse Vicary num tom distante.
- E fizeram-no regressar para esta?
Vicary assentiu com a cabeça.
- Um trabalho à secretária, num departamento muito monótono do Ministério da Guerra. Nada de importante, na verdade.
Passado algum tempo, o soldado adormeceu. Por uma vez, nos campos que iam passando, Vicary viu o rosto dela, sorrindo-lhe, apenas por um instante. A seguir, viu o de Boothby. E depois, quando a escuridão se instalou, o seu próprio reflexo a acompanhá-lo em silêncio no vidro da janela.
Daniel Silva
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