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Series & Trilogias Literarias
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PICCADILLY, LONDRES
EM LONDRES ERA 13H10, e Yuri Volkov estava alguns minutos atrasado. Oficialmente, Volkov tinha um posto de baixo nível na seção consular da embaixada russa. Na verdade, ele era o agente sênior na Estação do SVR em Londres, abaixo apenas do próprio chefe da Estação, Dmitry Ulyanin. A inteligência britânica sabia a verdadeira natureza do trabalho dele, e era o alvo de regular vigilância física do MI5. Em boa parte daquela uma hora, Volkov tinha tentado se livrar de uma equipe de duas pessoas do A4, um homem e uma mulher fingindo ser um casal. Agora, enquanto caminhava pelas ruas lotadas de Piccadilly, confiava que estava finalmente sozinho.
O russo cruzou a Regent Street e se enfiou na estação Piccadilly Circus do metrô. A estação estava entre as linhas Piccadilly e Bakerloo. Volkov passou um cartão pré-pago pelo scanner e desceu a escada rolante para a plataforma Bakerloo. E lá ele viu o alvo, um homem careca com queixo pequeno, quarenta e poucos anos, usando um terno barato e uma capa de chuva. Era o tipo de homem que as jovens instintivamente evitavam no metrô. E com bons motivos, pensou Volkov, porque o vício dele eram as jovens. O SVR tinha encontrado uma para ele, uma criança de 13 anos de algum lugar perdido na Sibéria e tinham entregado em uma bandeja. E, agora, eram donos dele. Era uma engrenagem na vasta máquina da inteligência, mas questões importantes passavam rotineiramente por sua mesa. Ele tinha pedido uma reunião urgente, o que significava que provavelmente tinha algo importante para contar.
Um sinal pendurado no teto piscava para indicar a aproximação de um trem indo para o norte. O homem com capa de chuva foi até a ponta da plataforma e Volkov, dez passos à esquerda, fez o mesmo. Eles olhavam para frente, cada um em seu espaço privado, quando o trem chegou à estação e expeliu uma multidão de passageiros. Então os dois homens entraram no mesmo vagão por portas diferentes. O homem com capa de chuva se sentou, mas Volkov ficou de pé. Ele se aproximou a 1,5 metro do homem, uma distância apropriada para transmissão segura, e agarrou um dos ferros. Quando o trem começou a avançar, o homem de capa de chuva tirou um smartphone, apertou alguns botões e depois colocou o telefone de novo em seu bolso. Dez segundos depois, o aparelho no bolso de Volkov vibrou três vezes, o que significava que a informação tinha sido transmitida com sucesso. E era tudo. Nada de dead drops, nada de reuniões pessoais e era tudo bastante seguro. Mesmo se o MI5 conseguisse capturar o telefone do espião, não haveria traço da atividade.
O trem entrou na estação do Regent’s Park, recebeu e expulsou alguns passageiros e começou a se mover de novo. Dois minutos depois chegou em Baker Street, onde o homem de capa de chuva desceu. Yuri Volkov ficou no metrô até a estação Paddington. Dali era uma curta caminhada de volta à embaixada russa.
Estava no lado norte de Kensington Palace Gardens, atrás de um cordão de segurança britânico. Volkov entrou no prédio e desceu até a Estação, onde entrou no cofre de comunicações seguras. Tirou o aparelho do bolso. Media cerca de sete por doze centímetros, o tamanho de um HD externo médio. Conectou a um computador e digitou a senha necessária. Instantaneamente, o aparelho começou a zumbir, e o arquivo que ele continha passou para o computador. Quinze segundos se passaram enquanto o material era desencriptado. Então apareceu na tela.
— Meu Deus — foi tudo que Volkov falou. Imprimiu uma cópia da mensagem e foi procurar Dmitry Ulyanin.
Ulyanin estava em seu escritório, telefone no ouvido, quando Volkov entrou sem bater e colocou a mensagem na mesa. Ele olhou para ela por um momento, sem acreditar, antes de desligar sem falar nada.
— Achei que você tinha visto Shamron em Vauxhall Cross.
— Eu vi.
— E o caixão que colocaram naquele avião?
— Devia estar vazio.
Ulyanin bateu o punho na mesa, derrubando o chá da tarde. Levantou o papel e perguntou:
— Você sabe o que vai acontecer quando isso chegar em Moscou?
— Alexei Rozanov vai ficar muito bravo.
— Não é com Alexei que ficaria preocupado. — Ulyanin jogou o papel impresso por cima da mesa. — Envie a Yasenevo imediatamente. A operação era de Alexei, não minha. Ele que limpe a sujeira.
Volkov voltou ao cofre de comunicação e escreveu a mensagem. Mostrou o rascunho para Ulyanin aprovar, e depois de uma breve discussão, foi Ulyanin que apertou o botão enviando a notícia por vias seguras até o Moscou Center. Ele voltou a seu escritório enquanto Volkov esperou a confirmação de que a mensagem tinha sido recebida. Demorou 15 minutos para chegar.
— O que ele disse? — perguntou Ulyanin.
— Nada.
— O que você está falando?
— Alexei não está em Moscou.
— Onde ele está?
— Em um avião indo para Hamburgo.
— Por que Hamburgo?
— Uma reunião. Algo importante, aparentemente.
— Vamos torcer para que ele verifique suas mensagens logo, porque Gabriel Allon não fingiu estar morto por nada. — Ulyanin olhou para os papéis molhados de chá em sua mesa e balançou a cabeça lentamente. — Isso é o que acontece quando você manda um irlandês fazer o trabalho de um russo.
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FLEETWOOD, INGLATERRA
QUINN ABRIU UM OLHO lentamente, depois o outro. Viu seu braço ao redor dos seios de uma mulher e sua mão segurando o cabo de uma pistola Makarov, um dedo descansando alerta na trava. O quarto estava na semiescuridão; uma janela aberta deixava entrar o cheiro forte do mar. Na passagem de sono para consciência, Quinn lutava para lembrar onde estava. Estava em sua casa na ilha Margarita? Ou talvez de volta a Ras al Helal, o campo de treinamento de terroristas na Líbia. Ele tinha boas lembranças do tempo em que passou no campo. Tinha feito um bom amigo ali, um palestino. Quinn tinha ajudado o palestino a superar um problema simples que estava tendo com seu projeto. Em troca, ele tinha dado a Quinn um caro relógio suíço, pago pelo próprio Yasser Arafat. Estava gravado no relógio mais nenhum erro de temporizador...
Quinn olhou o relógio e viu que eram quatro e meia da tarde. Através da janela aberta veio o som de dois homens conversando em um sotaque de Lancashire. Ele não estava na ilha Margarita ou no campo da costa líbia. Estava em Fleetwood, Inglaterra, em um hotel na Esplanade, e a mulher dormindo debaixo do braço dele era Katerina. Não era um abraço de afeição. Quinn a mantinha apertada contra seu corpo para que ele pudesse descansar. Tinha dormido mais de seis horas, o suficiente para aguentar até a próxima fase da operação.
Quinn levantou o braço e saiu da cama gentilmente, para não acordar Katerina. O serviço de café e chá estava em uma mesa perto da janela. Quinn encheu a chaleira elétrica, colocou um saquinho de Twinings em um bule de alumínio e olhou pela janela. O Renault estava estacionado na rua. Um saco de lona contendo as armas ainda estava no porta-malas. Quinn achou melhor deixar o saco no carro em vez de trazê-lo para o hotel. Significava que haveria menos armas ao alcance da maior assassina do SVR.
Quinn carregou a Makarov até o banheiro e tomou um banho rápido, deixando a cortina aberta, assim ele poderia ver Katerina no quarto. Ela ainda estava dormindo quando ele saiu. Preparou chá e serviu duas xícaras, uma com leite, a outra com açúcar. Então acordou Katerina e entregou a ela a xícara com açúcar.
— Vista-se — ele disse friamente. — É hora de mostrar ao Moscou Center que você ainda está viva.
Katerina passou um bom tempo no chuveiro e se vestiu com excessivo cuidado. Finalmente, colocou o casaco e seguiu Quinn até o lobby, onde uma mulher de cabelos grisalhos de sessenta anos estava sentada em um canto fazendo bordado. Quinn se aproximou e perguntou onde ele poderia encontrar um cyber café.
— Lord Street, querido. Em frente à lanchonete.
Era uma caminhada de cinco minutos, que eles fizeram em silêncio. A Lord era longa e reta, cheia de lojas dos dois lados. A lanchonete estava no meio; o cyber café, como tinha sido dito, estava bem em frente. Quinn comprou trinta minutos e levou Katerina até um terminal no canto. Ela escreveu um novo e-mail para o mesmo endereço do SVR e olhou para Quinn, procurando orientação.
— Diga a Alexei que seu telefone está no fundo do mar do Norte e que você está sob meu controle. Diga para depositar vinte milhões de dólares na minha conta em Zurique. Ou vou cancelar a segunda fase da operação e manter você como garantia até receber todo o pagamento.
Katerina começou a digitar.
— Em inglês — falou Quinn.
— Não combina comigo.
— Não me importa.
Katerina apagou o texto em alemão e recomeçou em inglês. Ela conseguiu fazer as exigências de Quinn parecerem uma simples disputa de negócios entre duas empresas trabalhando no mesmo projeto.
— Adorável — disse Quinn. — Agora envie.
Ela clicou no ícone SEND e imediatamente apagou o e-mail da caixa de enviados.
— Quanto tempo demora para responderem?
— Não muito — ela disse. — Mas por que você não vai até o bar e pega algo para bebermos, assim não parecemos um casal de assassinos esperando uma resposta da sede.
Quinn entregou a ela uma nota de dez libras.
— Leite, sem açúcar.
Katerina se levantou e caminhou até o bar. Quinn segurou o queixo com a mão e olhou para a tela do computador.
Os trinta minutos terminaram sem resposta de Moscou. Quinn enviou Katerina até o balcão para comprar mais tempo e outros 15 minutos se passaram antes de um e-mail finalmente aparecer na caixa de entrada dela. O texto estava escrito em alemão. A expressão de Katerina se fechou quando leu.
— O que diz? — perguntou Quinn.
— Diz que temos um problema.
— Qual é o problema?
— Eles ainda estão vivos.
— Quem?
— Allon e o inglês. — Ela tirou o olhar da tela e virou-se para Quinn, séria. — Aparentemente, aquela história sobre a morte de Allon era mentira. O Moscou Center acha que estão procurando por nós.
Quinn sentiu o rosto ficar vermelho de raiva.
— Alexei concordou em depositar meu dinheiro?
— Talvez você não tenha ouvindo. Você fracassou em cumprir os termos do seu contrato, o que significa que não há dinheiro. Alexei sugere que você me deixe sair do país imediatamente. Ou vai passar o resto da sua vida se escondendo de pessoas como eu.
— E a segunda fase da operação?
— Não existe operação, Quinn. Não mais. Alexei mandou que abortássemos.
Quinn olhou para a tela por um momento.
— Diga a Alexei que não fiz tudo isso em troca de nada — ele falou finalmente. — Diga que vamos continuar com a segunda fase. Diga para confirmar o local.
— Ele não vai concordar.
— Diga a ele — falou Quinn entre os dentes.
Katerina despachou um segundo e-mail, novamente em inglês. Dessa vez, eles tiveram de esperar somente dez minutos por uma resposta. Veio na forma de um endereço. Katerina colou em um site de busca e apertou a tecla ENTER. Quinn sorriu.
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THAMES HOUSE, LONDRES
MILES KENT ERA A única pessoa na Thames House que podia atravessar as muralhas do escritório de Amanda Wallace sem ter hora marcada. Ele entrou às seis e meia daquela tarde, quando ela estava se preparando para um fim de semana prolongado em Somerset com seu marido Charles, um rico filho do Eton College que ganhou algum dinheiro em Londres. Amanda adorava Charles e parecia não notar o fato de que ele estava tendo um tórrido caso com sua jovem secretária. Kent tinha pensado frequentemente em falar sobre o caso com Amanda — era um potencial risco de segurança, afinal — mas tinha decidido que algo assim podia ser desastroso. Amanda poderia ser cruel e vingativa, especialmente com aqueles que via como ameaça ao seu poder. Charles não sofreria nenhuma sanção por suas indiscrições, mas Kent poderia muito bem ser chutado do serviço no auge de sua carreira. E depois? Ele teria de conseguir um emprego em uma empresa de segurança privada, a única escapatória para espiões e policiais secretos caídos em desgraça.
— Espero que isso não demore muito, Miles. Charles está a caminho.
— Não vai — disse Kent quando se sentou em uma das cadeiras na frente da mesa de Amanda.
— O que você tem?
— Yuri Volkov.
— O que tem?
— Esteve ocupado hoje.
— Por quê?
— Deixou a embaixada a pé ao meio-dia. Uma equipe A4 o seguiu por cerca de uma hora. E ele conseguiu enganá-los.
— Eles o perderam? É isso que está falando?
— Isso acontece, Amanda.
— Tem acontecido muito ultimamente. — Ela colocou o material que ia ler no fim de semana em sua mala. — Onde foi o último lugar que a equipe viu o alvo?
—Oxford Street. Eles voltaram à Thames House e passaram o resto da tarde juntando os movimentos seguintes de Volkov usando CCTV.
— E?
— Ele desceu por Piccadilly para ter certeza de que estava limpo. Então entrou no metrô em Circus e pegou um trem.
— Para Piccadilly ou Bakerloo?
— Bakerloo. Foi até a estação Paddington e depois voltou para a embaixada a pé.
— Se encontrou com alguém?
— Não.
— Matou alguém?
— Não que saibamos — disse Kent com um sorriso.
— E quando ele estava no trem?
— Simplesmente ficou ali.
Amanda acrescentou outro arquivo em sua mala.
— Parece, Miles, que Yuri Volkov deu uma caminhada.
— Espiões russos não dão caminhadas sem motivo. Eles dão caminhadas porque estão espionando. É o que fazem.
— Onde ele está agora?
— Dentro da embaixada.
— Algo estranho?
— O GCHQ pescou muito trânsito de mensagens de alta prioridade pouco depois que ele voltou, todas fortemente encriptadas com coisas que não foram capazes de abrir.
— E você acha tudo isso suspeito?
— Para dizer o mínimo. — Miles Kent ficou em silêncio por um momento. — Tenho um mau pressentimento sobre isso, Amanda.
— Não posso fazer nada com maus pressentimentos, Miles. Preciso de inteligência que possa ser acionada.
— Foi o mesmo mau pressentimento que tive antes de aquela bomba explodir na Brompton Road.
Amanda fechou a mala e voltou a se sentar.
— O que você propõe?
— Estou preocupado com a viagem de trem.
— Achei que você tinha dito que ele não fez contato com ninguém.
— Não houve nenhum contato físico ou comunicação, mas isso não significa nada. Gostaria de autorização para fazer uma revisão de todas as pessoas que estavam no mesmo vagão que ele.
— Não podemos usar esses recursos, Miles. Agora não.
— E se não tivermos escolha?
Amanda ficou pensativa por um momento.
— Certo — ela falou. — Mas D4 vai ter de bancar o gasto. Não quero que tire gente de nenhum outro departamento.
— Certo.
— Que mais?
— Poderia ser uma boa ideia conversar com nossos amigos do outro lado do rio — disse Kent, apontando para a fachada branca de Vauxhall Cross. — Não queremos ser pegos de surpresa de novo.
Kent se levantou e saiu. Sozinha, Amanda pegou o telefone e ligou para o celular do marido, mas ele não atendeu. Ela deixou uma breve mensagem dizendo que ia se atrasar e desligou. Levantou o fone de um aparelho conectado diretamente com Vauxhall Cross.
— Sei que é apenas quinta-feira, mas queria saber se poderia tentá-lo com uma bebida.
— Hemlock? — perguntou Graham Seymour.
— Gim — disse Amanda.
— Meu escritório ou o seu?
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LORD STREET, FLEETWOOD
QUINN E KATERINA SAÍRAM do cyber café na Lord e voltaram ao hotel. Quinn passou calmamente pelas fachadas, mas Katerina estava apreensiva e preocupada. Os olhos dela se moviam incansáveis pela rua, e uma vez, quando um par de adolescentes passou por eles, enfiou as unhas dolorosamente no bíceps de Quinn.
— Algo a incomoda? — perguntou Quinn.
— Duas coisas, na verdade. Gabriel Allon e Christopher Keller. — Ela olhou bem para Quinn. — Foi uma mensagem de texto muito cara que você enviou a Allon. Alexei nunca vai pagar seu dinheiro agora.
— A menos que eu cumpra os termos do contrato.
— Como você pretende fazer isso?
— Matando Allon e Keller, claro.
O isqueiro de Katerina se iluminou.
— Você só tem uma chance com homens assim — ela disse, soltando uma nuvem de fumaça no frio ar noturno. — Você nunca vai conseguir encontrá-los de novo.
— Não preciso encontrá-los.
— Então como pretende matá-los?
— Eles virão até mim.
— Com o quê?
— O último alvo — disse Quinn.
Katerina olhou para ele, incrédula.
— Você está louco — ela disse. — Nunca vai conseguir fazer isso sozinho.
— Não estarei sozinho. Você vai me ajudar.
— Não tenho interesse em ajudá-lo.
— Infelizmente você não tem escolha.
Eles chegaram de volta ao hotel. Katerina jogou o cigarro na calçada e seguiu Quinn. A mulher de cabelo grisalho ainda estava fazendo seu bordado no canto. Quinn a informou que eles iam partir em poucos minutos.
— Tão cedo? — ela perguntou.
— Desculpa — disse Quinn —, mas aconteceu um imprevisto.
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HAMBURGO
NAQUELE MESMO MOMENTO, O voo 171 da Austrian Airlines de Viena tocou o solo de Hamburgo e começou a se aproximar do portão. Sem que ninguém soubesse, os passageiros incluíam um agente de inteligência iraniano e seu encarregado israelense. Os dois homens estavam sentados a várias fileiras de distância e não fizeram contato durante o voo. Nem falaram enquanto caminhavam pelo terminal até o controle de passaporte. Lá eles entraram na mesma fila e os dois foram admitidos na Alemanha após uma superficial inspeção dos documentos. No apartamento de Hamburgo, Gabriel comemorou sua primeira pequena vitória. Cruzar fronteiras era sempre complicado para iranianos, até para os que tinham passaportes diplomáticos.
O Departamento de Viagem do VEVAK tinha conseguido um carro para Reza Nazari através do consulado iraniano. Ele o pegou no terminal de desembarque e foi direto ao hotel Marriott, em Neustadt. Chegou às 19h45, fez check-in, e subiu para seu quarto, deixando a placa de “Não Perturbe” na fechadura antes de entrar. Dois minutos depois ouviu uma batida na porta. Abriu e Yaakov Rossman entrou.
— Alguma última dúvida? — ele perguntou.
— Nenhuma dúvida — respondeu Nazari. — Só uma exigência.
— Você não está em posição de fazer exigências, Reza.
Nazari deu um fraco sorriso.
— Alexei sempre me liga antes de nos encontrarmos. Se eu não atender, ele não aparece. Simples assim.
— Por que não mencionou isso antes?
— Devo ter esquecido.
— Você está mentindo.
— Se você acha.
O iraniano ainda estava sorrindo. Yaakov estava olhando para o teto de tanta raiva.
— Quanto vai me custar para você atender o telefone? — ele perguntou.
— Quero ouvir o som da voz da minha esposa.
— Não é possível. Agora não.
— Tudo é possível, sr. Taylor. Especialmente esta noite.
Até aquele momento, Reza Nazari tinha sido um prisioneiro modelo. Mesmo assim, Gabriel tinha antecipado um ato final de desafio. Só nos filmes, Shamron sempre dizia, os condenados aceitavam a forca sem lutar, e só em salas de planejamento operacionais agentes coagidos encaravam seu momento de traição total sem um último ultimato. Nazari poderia ter feito várias exigências. Sua insistência em falar com sua esposa o elevava, por menor que fosse o ato, aos olhos daqueles que tinham o destino dele em suas mãos. Na verdade, poderia muito bem ter salvado a vida dele.
Os arranjos para um contato de emergência entre Nazari e sua esposa tinham sido feitos logo depois do interrogatório inicial na Áustria. Yaakov só tinha de ligar para um número em Tel Aviv, e a ligação seria roteada para uma casa no leste da Turquia onde uma equipe do Escritório estava cuidando da esposa e dos filhos de Nazari. A conversa seria gravada no Boulevard Rei Saul e um falante de persa estaria ouvindo em caso de alguma irregularidade. O único perigo era que os russos e os iranianos poderiam estar ouvindo, também.
Com a aprovação de Gabriel, Yaakov fez a ligação às 20h05. Às 20h10, a esposa de Nazari estava na linha e o tradutor estava a postos no Boulevard Rei Saul. Yaakov entregou o telefone a Nazari.
— Sem lágrimas, nem adeus. Só pergunte como foi o dia dela e faça o máximo possível para parecer normal.
Nazari pegou o telefone e colocou na orelha.
— Tala, minha querida — ele falou, fechando os olhos com alívio. — É tão bom ouvir sua voz.
A conversa levou um pouco mais de cinco minutos, mais do que Gabriel teria preferido. Ele não quis arriscar uma transmissão ao vivo para Hamburgo, então teve de esperar vários outros minutos para saber que a ligação tinha sido completada sem problemas. Do lado de fora, o relógio da igreja de St. Michael marcava 20h20. Com uns poucos cliques no teclado de seu computador, ele colocou sua equipe no lugar. A primeira crise da noite tinha sido evitada. Tudo que ele precisava agora era de Alexei Rozanov.
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NEUSTADT, HAMBURGO
APENAS 150 METROS SEPARAVAM o hotel Marriott do restaurante Die Bank — uma caminhada de talvez uns três minutos, dois se estivesse atrasado para o horário da reserva. Os convidados que saíram do hotel às 20h37 não tinham pressa porque, como muitos em Hamburgo aquela noite, conseguiram reservar uma mesa. Os nomes deles eram Yossi Gavish e Rimona Stern, apesar de estarem registrados no hotel com apelidos operacionais. Yossi era analista sênior na divisão de Pesquisa do Escritório, tinha um talento para o dramático e era bom trabalhando em campo. Rimona era a chefe da unidade do Escritório que espionava o programa nuclear iraniano. Dessa forma, era a principal receptora da falsa inteligência de Reza Nazari. Ela nunca tinha se encontrado com o espião iraniano pessoalmente e não queria ficar no mesmo aposento com ele esta noite. Na verdade, mais cedo, havia declarado sua preferência por mandar Nazari de volta a Teerã em um caixão. Sua raiva não surpreendeu Gabriel. Rimona era a sobrinha de Ari Shamron e, como seu famoso tio, não aceitava bem traições, especialmente quando envolvia iranianos.
Ela era analista por treinamento e experiência, mas compartilhava os instintos naturais de Yossi no campo. Quando caminhava pela elegante rua, uma bolsa na vitrine da Prada pareceu chamar sua atenção. Ela parou ali por um momento enquanto um carro passou por ela e Yossi, fazendo o papel do marido chateado, olhava para o relógio. Era 20h41 quando eles passaram pela imponente entrada do Die Bank. O maître informou que não havia mesas disponíveis, então eles se dirigiram ao bar para esperar que alguém cancelasse. Rimona se sentou de frente para a entrada, Yossi, para o salão. Do bolso do terno ele tirou uma caneta dourada idêntica à que Gabriel dera a Reza Nazari. Yossi girou a tampa para a direita e depois colocou-a de novo em seu bolso. Dois minutos depois, uma mensagem de texto apareceu em seu celular. O transmissor estava funcionando, o sinal era forte e claro. Yossi chamou uma garçonete e pediu bebidas. Eram 20h44.
Nas ruas ao redor do Die Bank, o resto do time de Gabriel estava se posicionando em silêncio. Em Poststrasse, Dina Sarid estava estacionando um sedan Volkswagen em frente a uma loja Vodafone. Mordecai se sentou ao lado dela no banco do passageiro e, atrás, Oded estava fazendo exercícios de respiração profunda para desacelerar o coração, que batia muito rápido. Cinquenta metros à frente, na rua, Mikhail Abramov se sentava em uma moto estacionada, olhando os pedestres com uma expressão de profundo tédio no rosto. Keller se sentou perto dele em outra moto. Estava olhando o celular. A mensagem dizia que o homem do momento ainda não tinha aparecido. Eram 20h48.
Às 20h50, Alexei Rozanov ainda não tinha feito contato com Reza Nazari. Gabriel estava na janela do apartamento seguro olhando o relógio no alto da Igreja de St. Michael quando mais dois minutos se passaram sem nenhuma ligação. Eli Lavon parou perto dele, uma presença consoladora, um amigo de luto no túmulo de um velho amigo.
— Você precisa mandá-lo, Gabriel. Ou vai se atrasar.
— E se ele não deveria ir ao restaurante até receber a ligação de Alexei?
— Ele vai ter de inventar uma desculpa.
— Talvez Alexei não acredite.
Gabriel parou, depois acrescentou:
— Ou talvez ele não venha.
— Está se preocupando à toa.
— Uma bomba de 225 quilos explodiu na minha cara há duas semanas. Tenho o direito.
Mais um minuto se passou sem nenhuma ligação. Gabriel caminhou até o laptop, escreveu uma mensagem e clicou SEND. Então voltou para a janela e ficou na frente de seu mais antigo amigo no mundo.
— Já decidiu o que vai fazer? — perguntou Lavon.
— Sobre o quê?
— Alexei.
— Vou dar ele a chance de assinar minha certidão de óbito.
— E se ele concordar?
Gabriel tirou o olhar do relógio e se virou para Lavon.
— Quero que meu rosto seja o último que ele vai ver.
— Chefes não matam agentes da KGB.
— Chama-se SVR agora, Eli. E não sou chefe ainda.
— Seu telefone, me dê — disse Yaakov.
— Por quê?
— Só me dê essa coisa. Não temos muito tempo.
Reza Nazari entregou o celular. Yaakov tirou o cartão SIM e inseriu em um aparelho idêntico. Nazari hesitou antes de aceitar.
— Uma bomba? — ele perguntou.
— Seu telefone para a noite.
— Devo presumir que está comprometido.
— Completamente.
Nazari enfiou o celular no bolso do casaco, perto da caneta.
— O que acontece no final do jantar?
— Não saia, de jeito nenhum — disse Yaakov —, pela porta ao mesmo tempo que ele. Vou pegá-lo na frente do restaurante quando Alexei não estiver mais.
— Não estiver mais?
Yaakov não falou mais nada. Reza Nazari vestiu o casaco e desceu para o lobby.
Eram 20h57.
Como o Marriott era um hotel norte-americano, sua entrada continha postes de aço inoxidável e feios vasos de concreto para proteger o prédio contra ataques terroristas. Reza Nazari, funcionário do maior patrocinador estatal de terrorismo internacional do mundo, passou pelas defesas sob o olhar cuidadoso de Yaakov e saiu na rua. Estava sem trânsito e as calçadas estavam desertas. Nada nas vitrines diminuiu o progresso de Nazari, apesar de que ele parecia notar os dois homens em motocicletas na pequena esplanada em frente ao Die Bank do outro lado da rua. Ele entrou no restaurante precisamente às nove e se apresentou ao maître.
— Romanov — disse o iraniano, e o maître passou um dedo bem cuidado pela lista de reservas.
— Ah, sim, aqui está. Romanov.
Nazari tirou o casaco e foi levado até o salão com teto alto. Passando pelo bar, notou uma mulher com cabelo cor de areia olhando para ele. O homem sentado ao lado dela estava digitando algo no celular — confirmação da chegada do agente, pensou Nazari. A mesa estava no canto do restaurante, debaixo de uma inquietante fotografia em preto e branco de um homem careca com cara de maníaco. Nazari se sentou de frente para o salão. Isso iria deixar Alexei bravo, mas àquela altura, os sentimentos de Alexei era o que menos o preocupava. Estava pensando somente em sua esposa e seus filhos, e na lista de perguntas que Allon queria respondidas. Um garçom encheu seu copo com água; um sommelier ofereceu uma lista de vinho. Então, às 21h07, ele sentiu seu novo celular vibrar em seu peito com um padrão pouco familiar. Não reconheceu o número. Mesmo assim, aceitou a ligação.
— Onde você está? — perguntou uma voz em russo.
— No restaurante — respondeu Nazari no mesmo idioma. — Onde está você?
— Alguns poucos minutos atrasado. Mas estou perto.
— Devo pedir uma bebida?
— Na verdade, precisamos fazer uma pequena mudança.
— Pequena?
Rozanov explicou o que queria que Nazari fizesse. Então, disse:
— Dois minutos. Entendeu?
Antes que Nazari pudesse responder, a conexão foi cortada. Nazari rapidamente discou para o homem que ele conhecia como sr. Taylor.
— Ouviu isso?
— Cada palavra.
— O que quer que eu faça?
— Se eu fosse você, Reza, estaria parado na frente do restaurante em dois minutos.
— Mas...
— Dois minutos, Reza. Ou não tem mais acordo.
O carro era uma Mercedes Classe S, placa de Hamburgo, preta como um carro funerário. Apareceu no alto da rua quando Reza Nazari estava se levantando e passou lentamente pelas lojas escuras antes de parar na frente do Die Bank. Um manobrista se aproximou, mas o homem no banco do passageiro mandou que fosse embora. O motorista estava segurando o volante com as duas mãos como se tivesse uma arma apontada para a cabeça, e no banco de trás um homem segurava um celular, tenso. Da esplanada do outro lado da rua, Keller conseguia vê-lo muito bem. Rosto largo, com pouco cabelo. Um chefe do Moscou Center, se é que isso existe.
— É ele — disse Keller pelo microfone de seu rádio. — Diga a Reza para ficar no restaurante. Vamos pegá-lo e acabar com isso.
— Não!— gritou Gabriel.
— Por que não?
— Porque quero saber por que ele mudou os planos. E quero o Quinn.
O rádio fez um barulho quando Gabriel desligou. Então a porta do restaurante abriu e Reza Nazari saiu para a rua. Keller franziu a testa. Os melhores planos, ele pensou.
Alexei Rozanov ainda estava ao telefone quando Nazari entrou no carro. Quando o carro saiu acelerando, ele olhou para a esplanada onde os dois homens permaneciam sentados em suas motocicletas. Não fizeram nenhuma tentativa de segui-lo, pelo menos não que Nazari pudesse detectar. Ele se segurou no descanso para braços quando o carro virou a esquina a toda velocidade. Então, olhou para Alexei Rozanov quando o russo desligou o telefone.
— O que está acontecendo? — perguntou Nazari.
— Não achei que seria uma boa ideia deixá-lo sentado em um restaurante em Hamburgo.
— Por que não?
— Porque temos um problema, Reza. Um problema muito sério.
57
HAMBURGO
– COMO ASSIM ELE AINDA está vivo?
— Isso mesmo — respondeu Alexei Rozanov direto — Gabriel Allon ainda está caminhando pela face da Terra.
— Sua morte apareceu nos jornais. O Escritório confirmou.
— Os jornais não sabem de nada. E o Escritório — acrescentou Rozanov — estava mentindo, claro.
— O seu serviço o viu?
— Não.
— Ouviu a voz dele?
Rozanov balançou a cabeça.
— Então, como você sabe?
— Nossa informação vem de uma fonte humana. Contaram que Allon sobreviveu à explosão apenas com feridas superficiais e foi levado a uma casa do MI6.
— Onde ele está agora?
— Nossa fonte não sabe.
— Quando você descobriu isso?
— Poucos minutos depois que meu avião pousou em Hamburgo. O Moscou Center me aconselhou a cancelar nossa reunião.
— Por quê?
— Porque só há uma razão pela qual Gabriel Allon fingiria estar morto.
— Ele tem a intenção de nos matar?
O russo ficou silencioso.
— Você não está realmente preocupado, está, Alexei?
— Pergunte a Ivan Kharkov se eu deveria estar preocupado com a propensão de Gabriel Allon por vingança. — Rozanov olhou sobre o ombro. — A única razão pela qual vim aqui essa noite foi porque o Kremlin está nervoso com a perspectiva de material radioativo nas mãos de terroristas chechenos.
— O Kremlin tem boas razões para estar preocupado.
— Então é realmente verdade?
— Totalmente.
— Estou aliviado, Reza.
— Por que estaria aliviado com os chechenos serem capazes de fazer uma bomba atômica?
— Porque o momento para isso aparecer foi bastante interessante, não acha? — Rozanov olhou pela janela. — Primeiro, Allon finge a própria morte. Então uns cinquenta quilos de material altamente radioativo desaparecem de um laboratório iraniano... E agora estamos aqui, juntos, em Hamburgo.
— O que você está sugerindo, Alexei?
— Nem o SVR nem a FSB encontraram inteligência que sugerisse que os chechenos conseguiram material nuclear iraniano. Eu não estaria aqui se não fosse pelo seu e-mail.
— Enviei aquele e-mail porque os relatórios são verdade.
— Ou talvez tenha mandado porque Allon mandou.
Dessa vez foi Nazari que olhou pela janela.
— Você está começando a me deixar nervoso, Alexei.
— Essa foi a minha intenção. — O russo ficou em silêncio por um momento. — Você é o único que poderia ter dado meu nome a Allon, Reza.
— Está esquecendo o Quinn.
Rozanov acendeu um Dunhill, pensativo, como se estivesse movendo peças em um tabuleiro de xadrez mental.
— Onde está ele? — perguntou Nazari.
— Quinn?
Nazari assentiu.
— Por que você perguntaria algo assim?
— Ele era nosso.
— Isso é verdade, Reza. Mas agora pertence a nós. E a localização dele não é problema seu.
Nazari abriu o casaco para pegar um cigarro, mas Rozanov segurou seu punho com uma força surpreendente.
— O que está fazendo? — perguntou o russo.
— Ia pegar um cigarro.
— Você não trouxe uma arma essa noite, não é, Reza?
— Claro que não.
— Deveria ter trazido. — Rozanov sorriu, frio. — Esse foi outro erro da sua parte.
A Mercedes estava indo para o oeste na Feldstrasse, uma rua movimentada ligando Neustadt com o bairro de St. Pauli. Dois homens em motocicletas estavam seguindo, junto com dois carros, cada um contendo três agentes do serviço de inteligência secreto de Israel. Nenhum deles sabia o que estava acontecendo entre Alexei Rozanov e Reza Nazari. Só Gabriel e Eli Lavon, em frente ao laptop no apartamento, estavam a par da tensa confrontação. A caneta no bolso do iraniano não era mais relevante — estava muito longe do receptor — mas o celular de Nazari estava fornecendo uma clara cobertura de áudio.
Por enquanto o áudio tinha ficado quieto, o que nunca era um bom sinal. Ninguém no carro estava falando. Parecia que ninguém estava respirando. Gabriel tentou imaginar a cena ali dentro. Dois homens na frente, dois atrás, um era refém. Talvez Alexei tivesse mostrado uma arma. Ou talvez, pensou Gabriel, mostrar um armamento não fosse necessário. Talvez Nazari, destroçado por dias de medo, já tivesse assinalado sua culpa.
Gabriel olhou para as luzes piscando em seu computador e perguntou:
— O que Alexei está fazendo?
— Consigo imaginar várias possibilidades — respondeu Lavon. — Nenhuma delas boa.
— Por que não uma ação evasiva? Por que nenhum movimento de contravigilância?
— Talvez Alexei não acredite.
— Acredite em quê?
— Que você tenha conseguido encontrá-lo tão rapidamente.
— Ele me subestima. É isso que está falando, Eli?
— Difícil de acreditar, mas...
Lavon ficou em silêncio quando ouviram o som da voz de Rozanov. Estava falando em russo.
— O que ele está falando?
— Está dando indicações ao motorista.
— Onde eles estão indo?
— Não está claro. Mas suspeito que a algum lugar onde eles possam fazer uma boa inspeção nele.
— Eu não me importaria de ouvir as perguntas.
— Pode ficar feio. — Lavon hesitou.— Feio e terminal.
Gabriel olhou a luz se movendo pela tela do computador. O carro estava virando na Stresemannstrasse, uma estrada mais larga, com trânsito mais rápido.
— Não é um lugar ruim — disse Gabriel.
— Não fica muito melhor, na verdade.
Gabriel levou o rádio até os lábios e deu a ordem. Em segundos, mais duas luzes piscando apareceram na tela. Uma era Mikhail. A outra era Keller.
— Assassinatos são sempre mais limpos que sequestros — disse Lavon, baixinho.
— É, Eli, eu sei disso.
— Então por que não terminar isso aqui e agora?
— Eu acrescentei outra pergunta à minha lista.
— Qual é?
— Quero saber o nome do homem que contou aos russos que estou vivo.
As luzes de Mikhail e Keller estavam se aproximando. A Mercedes ainda estava andando à mesma velocidade.
— Vamos esperar que não haja danos colaterais — disse Lavon.
É, pensou Gabriel, quando ouviu tiros. Vamos esperar.
Há bairros de Hamburgo onde os alemães se escondem atrás de deselegantes fachadas inglesas. O ponto onde a Mercedes acabou encalhando era um desses lugares — um triângulo comum, pequeno e com grama, bordeado de um lado pela rua e, de outro, por duas casas de telhado vermelho onde poderíamos pensar que os ocupantes estavam bebendo chá e assistindo ao noticiário na BBC. Para chegar aí, o carro teve de primeiro passar desgovernado por duas faixas do trânsito ao contrário. Pelo caminho, derrubou um poste e esmagou um pequeno cartaz na calçada antes de parar em um jovem e lindo olmo. Mais tarde, os vizinhos tentariam muito salvar a árvore, mas sem sucesso.
Os dois homens no banco da frente do carro estavam mortos muito antes de o carro parar. Não foi a batida que os matou, mas as balas que foram atiradas com exatidão em suas cabeças enquanto o carro ainda estava se movendo. Testemunhas diriam que foram dois homens de motocicleta, um alto e magro, o outro, mais forte. Cada um atirou só uma vez, e estavam tão perfeitamente sincronizados que quase não deu para distingui-los. Vídeos de vigilância mais tarde confirmariam os relatos. Um detetive de Hamburgo chamou de “o mais lindo assassinato já visto”, um comentário de mau gosto que levaria a uma bronca de seu superior. Corpos mortos em solo alemão nunca eram lindos, diria o superior. Especialmente russos mortos. Não importava que fossem dois gorilas do Moscou Center. Ainda era um absurdo.
Os dois motociclistas fugiram rapidamente e não foram mais vistos. Nem as autoridades localizaram o sedan Volkswagen que apareceu segundos depois do acidente. Um homem muito grande saiu e abriu a porta do passageiro de trás da Mercedes como se fosse feita de papel maché. Uma testemunha falaria de uma breve, mas severa surra, apesar de que outros relatos seriam diferentes. Independentemente do que tenha acontecido, o homem alto com jeito de eslavo que saiu da Mercedes estava confuso e sangrando. Como ele chegou ao Volkswagen novamente foi alvo de certa controvérsia. Alguns dizem que subiu no Volkswagen por vontade própria. Outros dizem que foi obrigado a entrar no carro porque o homem gigante estava naquele instante quebrando seu braço. Toda a manobra demorou apenas dez segundos. Então, o Volkswagen e o infeliz eslavo desapareceram. O mesmo policial de Hamburgo não viu talento artísticos no trabalho do gigante, mas não ficou menos impressionado. Qualquer tonto pode puxar um gatilho, ele disse aos colegas, mas só um verdadeiro profissional pode agarrar um chefão do Moscou Center como se fosse uma maçã de uma árvore.
Acabou sobrando só o passageiro que estava sentado atrás do pobre motorista. Todas as testemunhas declararam que ele saiu do carro sozinho e todos sugeriram que ele não era, sem dúvida, russo — um árabe, talvez, podia ser um turco, mas não era russo. Nem em um milhão de anos. Por alguns segundos ele pareceu confuso de onde estava e sua situação. Então notou um homem com o rosto marcado acenando para ele da janela aberta de outro carro. Enquanto caminhava sorrindo na direção dele, estava repetindo a mesma palavra. A palavra era “Tala”. Nisso as testemunhas estavam em completo acordo.
58
HAMBURGO
HÁ UMA ROTINA RESTRITA para sair de uma propriedade segura do Escritório, regras a seguir, rituais a observar. São prescritos por Deus e marcados na pedra. São invioláveis, mesmo quando há um par de russos mortos na grama de uma calçada, e até quando o prêmio maior está deitado, amarrado na parte de trás de um carro de fuga. Gabriel e Eli Lavon participavam da purificação do apartamento seguro agora, em silêncio e automaticamente, mas com a devoção de fanáticos. Como seus inimigos, eles eram verdadeiros crentes.
Às nove e meia, trancaram a porta e desceram para a rua. Seguiram outro ritual: a inspeção do carro para ver se havia alguma bomba. Sem encontrar algo fora do normal, eles entraram. Gabriel permitiu que Lavon dirigisse. Ele era um artista do asfalto por instinto, não um grande motorista, mas seu cuidado natural quando dirigia era, naquele momento, algo bom.
De Hamburgo eles dirigiram para o sul, até uma cidade chamada Döhle. Depois dela, havia uma fileira de densas árvores acessadas somente por uma estrada secundária com uma placa onde se lia privado. Mikhail havia encontrado esse lugar um dia antes, junto com três lugares bons, como plano B. O plano B não foi necessário; o bosque estava deserto. Lavon apagou as luzes quando entrou e continuou somente com o brilho amarelo das luzes de estacionamento. As árvores eram uma mistura de sempre-vivas e decíduos. Gabriel teria preferido bétulas, mas bosques de bétulas não eram comuns no oeste da Alemanha. Só no leste.
Finalmente, as luzes iluminaram um sedan Volkswagen esperando em uma pequena clareira. Mikhail estava encostado no para-lama dianteiro, os braços cruzados; Keller, perto dele, fumava um cigarro. Aos pés deles estava Alexei Rozanov. Tinha fita sobre sua boca e também nas mãos. Não que isso fosse necessário. O agente do SVR ia da consciência ao coma.
— Ele falou algo?
— Ele não teve muita chance — respondeu Keller.
— Ele viu o rosto de vocês?
— Acho que sim, mas duvido que vá se lembrar.
— Tentem acordá-lo. Preciso falar algo com ele.
Keller pegou uma garrafa de água mineral do carro e jogou sobre o rosto de Rozanov, até que o russo se mexeu.
— Coloque-o de pé — disse Gabriel.
— Duvido que ele consiga ficar.
— Façam o que falei.
Keller e Mikhail pegaram Rozanov pelos braços e o levantaram. Como previram, o russo não ficou na vertical por muito tempo. Eles o levantaram de novo, mas dessa vez ficaram segurando seus braços. A cabeça tinha caído para frente, o queixo estava no peito. Ele era mais alto do que parecia nas fotografias de vigilância e mais pesado — mais de noventa quilos de músculos antes bem tonificados e que estavam virando gordura. Ele tinha organizado uma boa operação, mas Gabriel tinha organizado uma melhor. Ele tirou a Glock do cinto de sua calça e usou o cano para levantar o queixo de Rozanov. Demorou uns segundos para os olhos do russo acertarem o foco. Quando acertaram, não havia nenhum traço de medo ou reconhecimento. Ele é bom, pensou Gabriel. Arrancou a fita da boca do russo.
— Você não parece terrivelmente surpreso por me ver, Alexei.
— Já nos encontramos? — murmurou o russo.
Gabriel deu um breve sorriso.
— Não — falou depois de um momento — não tive o desprazer antes. Mas conheço bem seu trabalho. Muito bem, na verdade. Capítulo e versículo. Há somente uns poucos detalhes que preciso esclarecer.
— O que está oferecendo, Allon?
— Nada.
— Então não vai ter nada em troca.
Gabriel apontou a arma para o pé direito de Rozanov e puxou o gatilho. O barulho do tiro ecoou entre as árvores. Assim como os gritos do russo.
— Está começando a sentir a gravidade da sua situação, Alexei?
Rozanov estava nesse momento incapaz de falar, então Gabriel falou por ele.
— Você e seu serviço deixaram uma bomba na Brompton Road, em Londres. Meu amigo e eu éramos o alvo, mas matou 52 pessoas inocentes. Você matou Charlotte Harris, de Shepherd’s Bush. Você matou o filho dela, que se chamava Peter, como uma homenagem ao avô. É por causa deles que você está aqui essa noite. — Gabriel apontou a Glock para o rosto de Rozanov. — Como você se declara, Alexei?
— Eamon Quinn plantou a bomba — sussurrou Rozanov. — Não fomos nós.
— Você pagou para ele fazer isso, Alexei. E deu a ele uma ajudante chamada Katerina.
Rozanov olhou para o alto e fixou os olhos em Gabriel através de uma névoa de dor.
— Onde está o Quinn? — perguntou Gabriel.
— Não sei onde ele está.
— Onde? — perguntou Gabriel de novo.
— Estou dizendo, Allon. Não sei onde ele está.
Gabriel apontou a arma para o pé esquerdo de Rozanov e puxou gatilho.
— Jesus! Pare, por favor!
O russo não estava mais chorando de dor. Estava chorando como uma criança — chorando, pensou Gabriel, como os sobreviventes sem membros de uma das bombas de Quinn. Quinn, que poderia fazer uma bola de fogo viajar a trezentos metros por segundo. Quinn, que estava em um campo na Líbia com um palestino chamado Tariq al-Hourani.
Você acha que eles se conheceram?
Difícil imaginar que não.
— Vamos começar com algo simples — disse Gabriel calmamente. — Como você conseguiu meu número de celular?
— Aconteceu quando você estava em Omagh — disse o russo. — No memorial. Uma mulher estava seguindo você. Ela fingiu tirar sua foto.
— Eu me lembro dela.
— Ela atacou via wireless seu BlackBerry. Não conseguimos decriptar seus arquivos, mas fomos capazes de conseguir seu número.
— Que deu a Quinn.
— Isso.
— Foi Quinn que me enviou aquela mensagem de texto em Londres.
— “Os tijolos estão na parede.”
— Onde ele estava quando enviou?
— Brompton Road — disse o russo. — Em segurança, fora da zona de explosão.
— Por que deixou que ele fizesse aquilo?
— Ele queria que você soubesse que foi ele.
— Orgulho profissional?
— Aparentemente, teve algo a ver com um homem chamado Tariq.
Gabriel sentiu seu coração apertar.
— Tariq al-Hourani?
— É, esse mesmo. O palestino.
— O que tem o Tariq?
— Quinn disse que queria pagar uma velha dívida.
— Ah, me matando?
Rozanov assentiu.
— Evidentemente, eles eram muito amigos.
Tinha de ser verdade, pensou Gabriel. Não havia maneira de Alexei Rozanov conhecer Tariq.
— Quinn sabe que ainda estou vivo?
— Ele foi avisado hoje.
— Então você sabe onde ele está?
Rozanov não falou nada. Gabriel apertou a Glock contra o joelho do russo.
— Onde ele está, Alexei?
— Voltou para a Inglaterra.
— Em que lugar da Inglaterra?
— Não sei.
Gabriel apertou mais forte a Glock contra o joelho do russo.
— Eu juro, Allon. Não sei onde ele está.
— Por que ele voltou para a Inglaterra?
— A segunda fase da operação.
— Onde vai acontecer?
— Guy’s Hospital, Londres.
— Quando?
— Amanhã às três da tarde.
— E o alvo?
— É o primeiro-ministro. Quinn e Katerina vão matar Jonathan Lancaster amanhã à tarde em Londres.
59
NORTE DA ALEMANHA
O RUSSO ESTAVA FRACO, PERDENDO sangue, perdendo a vontade de viver. Mesmo assim, Gabriel repassou tudo com ele, passo a passo, acordo por acordo, traição por traição, desde o triste começo da operação até o e-mail que tinha chegado ao Moscou Center no começo daquela tarde. O e-mail que tinha sido enviado de um aparelho inseguro porque o celular do SVR que pertencia a Katerina Akulova tinha transmitido seu último sinal do fundo do mar do Norte. Quinn, disse Rozanov, tinha resolvido trabalhar sozinho. Quinn estava fora do controle do Moscou Center. Quinn tinha se rebelado.
— Onde eles estavam quando enviaram o e-mail?
— Não conseguimos rastrear a fonte.
Gabriel pisou forte no pé direito ferido de Rozanov. O russo, quando recuperou a capacidade de falar, disse que o e-mail tinha sido enviado de um cyber café na cidade de Fleetwood.
— Eles têm um carro? — perguntou Gabriel.
— Um Renault.
— Modelo?
— Acho que é um Scénic.
— Que tipo de ataque vai ser?
— Estamos falando de Eamon Quinn. O que você acha?
— Dentro do veículo?
— Essa é a especialidade dele.
— Carro ou caminhão?
— Van.
— Onde está?
— Uma garagem no leste de Londres.
— Em que lugar do leste de Londres?
Rozanov repetiu um endereço de Thames Road, em Barking, antes de seu queixo cair sobre o peito, exausto. Com um olhar, Gabriel mandou Keller e Mikhail soltarem o russo. Quando eles fizeram isso, o russo caiu para frente como uma árvore e terminou no chão duro do bosque. Gabriel virou-o e apontou a arma sobre seu rosto.
— O que está esperando? — perguntou Rozanov.
Gabriel olhou para o russo na ponta de sua arma, mas não disse nada.
— Talvez seja verdade o que dizem sobre você.
— O que dizem?
— Que você é muito velho. Que não tem mais estômago para isso.
Gabriel sorriu.
— Tenho mais uma pergunta para você, Alexei.
— Contei tudo que sei.
— Exceto como descobriu que eu ainda estava vivo.
— Descobrimos através de uma interceptação de comunicações.
— Que tipo de interceptação?
— Voz — disse Rozanov. — Ouvimos sua voz...
Gabriel apontou a arma para o joelho de Rozanov e atirou. O russo travou em agonia.
— Nós... tínhamos... uma... fonte.
— Onde?
— Dentro... do... Escritório.
Gabriel atirou de novo no mesmo joelho.
— É melhor me dizer a verdade, Alexei. Ou vou desperdiçar todas minhas balas transformando seu joelho em mingau.
— Fonte — sussurrou Rozanov.
— É, eu sei. Você tinha uma fonte. Mas quem era?
— Ele trabalha...
— Onde ele trabalha, Alexei?
— MI6.
— Em que departamento?
— Pessoal e...
— Pessoal e Segurança?
— Isso.
— O nome, Alexei. Diga o nome.
— Não posso...
— Diga quem é, Alexei. Diga para eu parar com a dor.
PARTE TRÊS
PAÍS DOS BANDIDOS
60
VAUXHALL CROSS, LONDRES
APROXIMADAMENTE UMA HORA DEPOIS da morte de Alexei Rozanov, Graham Seymour recebeu a primeira comunicação de seu mais novo agente clandestino. Afirmava que a vida do primeiro-ministro Jonathan Lancaster estava em perigo mortal e que a inteligência russa tinha recrutado um espião dentro do MI6. Foi, Seymour diria mais tarde, uma forma bastante auspiciosa de começar uma carreira.
Dada as circunstâncias, Seymour achou que era melhor enviar um avião particular. Pegou Gabriel e Keller no Le Bourget em Paris e levou-os ao aeroporto da cidade de Londres, em Docklands. Um carro do MI6 então os transportou em alta velocidade a Vauxhall Cross, onde Seymour esperava em uma sala sem janelas no andar mais alto, telefone no ouvido. Ele desligou quando Gabriel e Keller entraram e olhou para eles por um instante, com olhos cinzentos e sem expressão.
— Há algum áudio? — ele finalmente perguntou.
Gabriel tirou seu BlackBerry, levou a gravação até a passagem importante e apertou o botão PLAY.
— Onde vai acontecer?
— Guy’s Hospital, Londres.
— Quando?
— Amanhã às três da tarde.
— E o alvo?
— É o primeiro-ministro. Quinn e Katerina vão matar Jonathan Lancaster amanhã à tarde em Londres.
Gabriel clicou em PAUSE. Seymour olhou para o telefone.
— Alexei Rozanov?
Gabriel assentiu.
— Talvez você devesse passar desde o começo.
— Na verdade, acho que deveríamos começar pelo fim.
Gabriel deslizou a seta e clicou em PLAY pela segunda vez.
— O nome, Alexei. Diga o nome.
— Não posso...
— Diga quem é, Alexei. Diga para eu parar com a dor.
— Grrrrr...
— Desculpa, Alexei, mas não entendi.
— Grimes...
— Esse é o sobrenome dele?
— Isso.
— E o primeiro nome, Alexei? Diga o primeiro nome dele.
— Arthur.
— Arthur Grimes, esse é o nome dele?
— Isso.
— Arthur Grimes do Departamento de Pessoal e Segurança do MI6 é um agente pago da inteligência russa?
— Isso.
Em seguida houve algo que pareceu bastante com um tiro. Gabriel clicou no ícone de PAUSE. Seymour fechou os olhos.
Às nove daquela manhã, uma equipe do Setor AIA do MI5 entrou no edifício em Thames Road 22 no setor Barking do leste de Londres. Não encontraram veículo de nenhum tipo e nenhuma prova visível que sugerisse que uma bomba tinha sido construída no local. Ao mesmo tempo, uma segunda equipe MI5 entrou no cyber café na Lord, em Fleetwood. Em um pequeno golpe de sorte, um dos empregados tinha trabalhado na tarde anterior e se lembrava de ver um homem e uma mulher que combinavam com as descrições de Quinn e Katerina. O empregado também se lembrava do computador que o casal tinha usado. A equipe do MI5 levou a máquina e carregou em um helicóptero da Marinha. Ia chegar a Londres não depois de meio-dia. Amanda Wallace tinha insistido que o laboratório de informática do MI5 fizesse a busca de evidências. Graham Seymour, por razões políticas, tinha concordado com a exigência.
— Onde está Grimes? — perguntou Gabriel.
— Ele entrou no prédio há poucos minutos. Uma equipe está revirando seu apartamento agora mesmo. É uma operação complicada. Grimes é o superior imediato deles.
— Quanto ele sabe?
— Ele está envolvido no processo de veto de agentes atuais e prováveis do MI6. — Seymour olhou para Keller. — Na verdade, falei com ele há alguns dias sobre um projeto especial que iríamos realizar em breve.
— Sobre mim? — perguntou Keller.
Seymour assentiu.
— Grimes também investiga alegações de quebras de segurança, o que significa que está em perfeita posição para proteger outros espiões ou contraespiões russos. Se ele realmente passou para o SVR, vai ser o maior escândalo para a inteligência ocidental desde Aldrich Ames.
— E é por isso que você não mencionou nada disso para Amanda Wallace.
Seymour não falou nada.
— Grimes saberia que Keller e eu estávamos em Wormwood Cottage?
— Ele geralmente não lida com casas seguras, mas certamente sabe quando alguém importante está hospedado em alguma delas. De qualquer forma — acrescentou Seymour — vamos saber em poucos minutos se ele era a fonte do vazamento.
— Como?
— Yuri Volkov vai nos contar.
— Quem é Volkov?
— É o segundo chefe do SVR na embaixada russa. O MI5 está convencido que ele se encontrou com alguém ontem à tarde no metrô. Um dos meus homens está na Thames House revisando as filmagens agora. Na verdade...
O telefone interrompeu Seymour. Ele levantou o aparelho e ouviu em silêncio por alguns segundos. Então, desligou a ligação e fez outra com seu celular.
— Não o percam de vista. Nem por um minuto. Se ele perder as estribeiras, você também perde.
Seymour desligou o telefone e olhou para Gabriel e Keller.
— Eu deveria ter me aposentado quando tive a chance.
— Isso teria sido um grande erro — disse Keller.
— Por quê?
— Porque teria perdido a chance de acertar as contas com Quinn.
— Não tenho certeza se quero outra chance. Afinal — acrescentou Seymour —, não me saí muito bem na partida. Na verdade, o placar é dois a zero para ele.
Um pesado silêncio caiu sobre a sala sem janela. Seymour e Keller estavam olhando para o telefone. Gabriel olhava para o relógio.
— Quanto tempo você pensa em esperar, Graham?
— Antes do quê?
— Antes de me deixar conversar tranquilamente com Arthur Grimes.
— Você não vai chegar nem perto dele. Ninguém vai — acrescentou Seymour. — Não por muito tempo. Poderia demorar meses antes de estarmos prontos para começar a interrogá-lo.
— Não temos meses, Graham. Temos até as três horas.
— Não havia nenhuma bomba naquele depósito em Barking.
— Não são exatamente notícias encorajadoras.
Seymour estudou o relógio.
— Vamos dar ao laboratório do MI5 até as duas para localizar a troca de e-mail. Se eles não encontrarem, vamos falar com Grimes.
— O que você pretende falar com ele?
— Vou começar com sua viagem de metrô com Yuri Volkov.
— E sabe o que ele vai falar para você?
— Não.
— “Que Yuri?”
— Você é um bastardo fatalista.
— Eu sei — disse Gabriel. — Evita que me desaponte depois.
61
BRISTOL, INGLATERRA
ÀS NOVE DA MANHÃ, a Rádio BBC 4 transmitiu sua primeira matéria do incidente em Hamburgo. O informe era breve e fragmentado. Dois homens tinham sido assassinados, dois outros estavam desaparecidos. Os homens mortos eram russos; dos desconhecidos pouco se sabia. A chanceler alemã disse que estava profundamente preocupada. O Kremlin disse que estava indignado. Nestes dias, isso era comum.
Quinn e Katerina ouviram a notícia enquanto dirigiam pela M5 ao norte de Birmingham. Uma hora depois, eles ouviram uma atualização sentados na frente da Marks & Spencer, no Cribbs Causeway Retail Park, em Bristol. A versão das dez horas continha uma única novidade. De acordo com a polícia alemã, os mortos estavam carregando passaportes diplomáticos. Katerina desligou o rádio quando um especialista em política estrangeira da BBC estava explicando como o incidente ameaçava se tornar uma crise total.
— Agora sabemos por que Allon fingiu a própria morte — ela disse.
— Por que Alexei estaria em Hamburgo ontem à noite?
— Talvez tenha sido enganado.
— Por quem?
— Allon, claro. Ele provavelmente está interrogando Alexei agora mesmo. Ou talvez Alexei já esteja morto. De qualquer forma, temos de supor que Allon sabe onde estamos, o que significa que temos de deixar a Inglaterra imediatamente.
Quinn não respondeu.
— E se eu puder provar que Alexei estava naquele carro? — perguntou Katerina.
— Outro e-mail para o Moscou Center?
Ela assentiu.
— Sem chance.
Ela olhou para os outros veículos no estacionamento.
— Eles poderiam estar nos vigiando agora mesmo.
— Não estão.
— Tem certeza?
— Eu luto com eles há muito tempo, Katerina. Tenho certeza.
Ela não parecia convencida.
— Não sou uma jihadista, Eamon. Não vim aqui para morrer. Quero sair da Inglaterra. Vamos fazer contato com o Centro e organizar um pagamento pelo meu retorno seguro.
— É exatamente o que vamos fazer — disse Quinn. — Mas temos de resolver uma questão antes.
Katerina olhou duas mulheres caminhando para a entrada de Marks & Spencer.
— Por que estamos aqui? — ela perguntou.
— Vamos fazer umas compras.
— E depois?
— Vamos fazer uma caminhada.
62
DOWNING STREET, 10
GRAHAM SEYMOUR DEIXOU VAUXHALL Cross pouco depois do meio-dia para falar com o primeiro-ministro Jonathan Lancaster em Downing Street. Ele contou a Lancaster que era quase certo que Eamon Quinn estava de volta ao país para planejar outro ataque — talvez no Guy’s Hospital durante a aparição do primeiro-ministro, talvez em outro alvo. Eles saberiam mais, explicou Seymour, quando o laboratório do MI5 completasse a varredura no computador de Fleetwood. Ele não fez menção a Arthur Grimes e seu encontro secreto com Yuri Volkov da embaixada russa. Para Seymour, más notícias devem ser divulgadas em pequenas porções.
— A Amanda acabou de sair — disse o primeiro-ministro. — Ela me aconselhou a cancelar a visita ao Guy’s Hospital. Também achou que poderia ser uma boa ideia se eu ficasse trancado dentro do edifício até o Quinn ser capturado.
— Amanda é uma mulher sábia.
— Quando ela concorda com você. — O primeiro-ministro sorriu. — É bom ver que vocês dois estão trabalhando bem juntos. — Ele fez uma pausa, depois perguntou: — Vocês estão trabalhando bem juntos, não estão, Graham?
— Sim, primeiro-ministro.
— Então vou falar a mesma coisa que disse a ela — continuou Lancaster. — Não vou mudar minha agenda por causa de nenhum terrorista do IRA.
— Isso não tem nada a ver com o IRA. São apenas negócios.
— Uma razão melhor ainda. — O primeiro-ministro se levantou e acompanhou Seymour até a porta. — Mais uma coisa, Graham.
— Sim, primeiro-ministro?
— Nenhuma prisão nesse caso.
— Perdão, senhor?
— Você ouviu. Nenhuma prisão. — Ele colocou a mão no ombro de Seymour. — Sabe, Graham, às vezes a vingança é boa para a alma.
— Não quero vingança, primeiro-ministro.
— Então sugiro que encontre alguém que queira e coloque-o bem perto de Eamon Quinn.
— Acredito que tenho o homem certo. Dois homens, na verdade.
O carro de Seymour estava esperando em frente à famosa porta preta de Downing Street. Ele o levou de volta a Vauxhall Cross, onde encontrou Gabriel e Keller na sala sem janelas do último andar. Parecia que não tinham se mexido desde que ele saiu.
— Como ele estava? — perguntou Gabriel.
— Decidido a ponto de ser cabeça-dura.
— A que horas seu comboio deixa Downing Street?
— Duas e quarenta e cinco.
Gabriel olhou para o relógio. Faltavam cinco para as duas.
— Sei que dissemos duas horas, Graham, mas...
— Vamos esperar até as duas.
Os três homens se sentaram quietos e silenciosos, esperando os cinco minutos finais passarem. Ao toque de duas horas, Seymour ligou para Amanda Wallace do outro lado do Tâmisa e perguntou sobre o status da busca no computador.
— Estão perto — disse Amanda.
— Quanto?
— Dentro de uma hora.
— Isso não é suficiente.
— O que quer que eu faça?
— Entre em contato assim que tiver algo.
Seymour desligou e olhou para Gabriel.
— Poderia ser melhor se vocês não estivessem aqui.
— Poderia ser — disse Gabriel —, mas eu não perderia isso de jeito nenhum.
Seymour pegou o telefone de novo e ligou.
— Arthur — ele disse, animado. — É o Graham. Ainda bem que o encontrei.
Sete andares abaixo de Graham Seymour, um homem em um cubículo cinzento desligou o telefone. Como todos os cubículos em Vauxhall Cross, não tinha nome, só uma série de números separados por uma barra. Era estranho que Graham Seymour tivesse falado o nome dele porque a maioria das pessoas em Vauxhall Cross se referia a ele por seu departamento, que era o Pessoal. Vai procurar o Pessoal. Esconda-se, aí vem o Pessoal. O nome dele era uma calúnia, um insulto. Ele era odiado e causava ressentimento. Principalmente, era temido. Era quem expunha os segredos de outros homens, o cronista de suas falhas e mentiras. Conhecia seus casos, seus problemas com dinheiro, sua fraqueza por álcool. Tinha o poder de arruinar carreiras ou, se quisesse, de salvá-las. Era juiz, jurado e executor — um deus em uma caixa cinzenta. E, mesmo assim, também tinha um segredo escondido. De alguma forma, os russos tinham descoberto. Tinham dado a ele uma garotinha, uma Lolita, e em troca tinham destroçado sua dignidade.
É o Graham. Ainda bem que o encontrei...
Interessante escolha de palavras, pensou Grimes. Talvez tivesse sido um lapso freudiano, mas ele suspeitava de outra coisa. O momento da reunião com Seymour — um dia depois que Grimes tinha feito uma transmissão wireless no metrô — era nefasto. Tinha sido um encontro afoito, uma reunião às pressas. E, durante o encontro, parece que ele se expôs.
Ainda bem que o encontrei...
Seu terno estava pendurado em um cabide na parede, perto de uma foto de sua família, a última tirada antes do divórcio. No corredor, Nick Rowe estava flertando com uma garota bonita do Registro — Rowe esteve rondando Grimes o dia todo. Ele passou pela dupla sem uma palavra e foi até os elevadores. Um elevador apareceu no instante em que pressionou o botão. Claro, pensou, não é por acaso.
O elevador subiu tão silencioso que Grimes nem percebeu o movimento. Quando as portas se abriram, ele viu Ed Marlowe, outro homem do seu departamento, parado no vestíbulo.
— Arthur! — ele chamou, como se encontrar Grimes fosse algo difícil. — Vamos tomar algo mais tarde? Tenho umas coisas para discutir.
Sem esperar uma resposta, Marlowe se enfiou entre as portas do elevador que estavam se fechando e desapareceu. Grimes saiu do vestíbulo para a luz brilhante do pátio. Era o Valhalla da espionagem, a Terra Prometida. A sala onde Graham Seymour esperava era à direita. À esquerda havia uma saída que levava ao terraço. Grimes virou à esquerda e saiu no terraço. O vento frio o atingiu como um tapa. Embaixo dele fluía o Tâmisa, escuro, pesado e de certa forma apaziguador. Grimes respirou fundo e calmamente organizou seus pensamentos. Tinha a vantagem de conhecer as técnicas deles. Seu cubículo estava em ordem. Assim como seu apartamento, suas contas bancárias, seus computadores e seus telefones. Eles não tinham nada contra ele, nada a não ser uma viagem no metrô com Yuri Volkov. Ele iria vencê-los. Estava acima de qualquer suspeita, pensou. Ele era o Pessoal.
Bem aí, ele ouviu um barulho nas suas costas, uma porta se abrindo e fechando. Ele se virou lentamente e viu Graham Seymour parado no terraço. O cabelo grisalho dele estava se movendo no vento e ele estava sorrindo — o mesmo sorriso, pensou Grimes, que tinha facilitado sua ascensão na escada das promoções, enquanto homens melhores eram deixados para trabalhar nas salas de caldeira da inteligência. Seymour não estava sozinho. Atrás dele havia um homem menor com olhos estranhamente verdes e a testa cinzenta. Grimes o reconheceu. Sentiu um aperto na barriga.
— Arthur — disse Seymour com a mesma falsa cordialidade que tinha usado no telefone um momento antes. — O que está fazendo? Estamos esperando por você lá dentro.
— Desculpa, Graham. Não é sempre que tenho motivo para subir aqui.
Grimes sorriu em resposta, apesar de que não era um sorriso igual ao de Seymour. Gengiva e dente, ele pensou, e mais do que um traço de culpa. Virando-se, olhou para o rio de novo e de repente estava correndo. Uma mão tentou agarrá-lo quando ele se jogou por cima da balaustrada e, quando passou pelo terraço seguinte, imaginou que estava voando. Então, o chão veio correndo para recebê-lo e ele aterrissou com um barulho que parecia como o de uma fruta se partindo.
Foi uma queda de vários andares, suficiente para matar um homem, mas não instantaneamente. Por alguns instantes, notou os rostos conhecidos ao redor dele. Eram rostos de arquivos, rostos de agentes do MI6 cujas vidas ele tinha revirado como queria. E, mesmo em seu sofrimento, ninguém se referia a ele por seu nome. O Pessoal tinha caído do terraço, eles disseram. O Pessoal estava morto.
63
CORNUALHA, INGLATERRA
NA MARKS & SPENCER, em Bristol, Quinn e Katerina compraram dois pares de botas de caminhar, duas mochilas, binóculos, bastões de caminhadas e um guia para Devon e Cornualha. Colocaram as mochilas no porta-malas do Renault e foram para o oeste até a cidade de Helston. Vizinha a eles estava a Base Aérea Naval de Culdrose, a maior base de helicópteros da Europa. Quinn sentiu o peito apertar quando dirigia em torno da alta cerca com arame farpado na ponta. Então um Sea King voou por cima da estrada e ele, de repente, estava de volta ao País dos Bandidos de South Armagh. Sua guerra havia terminado, ele falou. Hoje sua guerra estava aqui.
Cinco quilômetros ao sul da base aérea estava a vila de Mullion. Quinn seguiu as placas até o Old Inn e encontrou um estacionamento bem do outro lado da rua, perto da loja de surfe Atlantic Forge. Eles colocaram as botas de caminhada e os casacos impermeáveis; então, Quinn enfiou o mapa, o guia e os binóculos na mochila de lona. Deixou a sacola de armas no carro e carregou só a Makarov. Katerina estava desarmada.
— Qual é a nossa história? — ela perguntou quando terminou de se vestir.
— Estamos de férias.
— No inverno.
— Sempre gostei de sair de férias no inverno.
— Onde estamos hospedados?
— Sua escolha.
— Que tal o Godolphin Arms, em Marazion?
Quinn sorriu.
— Você é muito boa, sabe.
— Melhor do que você.
— Consegue fingir um sotaque britânico?
Ela hesitou, depois disse:
— Acho que consigo.
— Você é bancária de Londres. E eu sou seu namorado panamenho.
— Que sorte a minha.
Eles saíram da vila pela Poldhu Road, Quinn do lado da rua, Katerina ia segura do outro lado. Depois de um quilômetro, apareceu uma parada na sede e uma pequena placa apontava para uma trilha pública. Eles passaram por uma barreira para o gado e cruzaram o campo de uma fazenda na South West Coast Path. Seguiram para o norte pelo alto das colinas até Poldhu Beach, depois pela beira do Mullion Golf Club até a antiga igreja de St. Winwaloe. Após fazerem uma breve visita à igreja para manter o disfarce, eles continuaram para o norte até Enseada de Gunwalloe. A casa estava solitária no alto das colinas na parte mais ao sul, protegida por um jardim natural de relva-do-olimpo e festuca. Dois carros estavam estacionados na entrada.
— É essa — disse Quinn.
Ele soltou a mochila, tirou os binóculos e varreu o alto das colinas, como se estivesse admirando a vista. Então, olhou direto para a casa. Um dos carros estava vazio, mas no outro havia dois homens. Quinn verificou as janelas da casa. As cortinas estavam bem fechadas.
— Temos companhia — disse Katerina.
— Eu vi — disse Quinn, baixando o binóculo.
— O que vamos fazer?
— Vamos caminhar.
Quinn devolveu o binóculo à mochila e voltou a colocá-la no ombro. Ele e Katerina voltaram a caminhar na mesma direção. Uns cem metros à frente, um homem estava caminhando na direção deles pelas colinas. Não era alguém fazendo trilha, pensou Quinn. Movimentos disciplinados, leves, uma arma debaixo do casaco. Era um ex-militar, talvez até um ex-SAS. Quinn sentiu a pistola Makarov pressionando contra a base da sua espinha. Gostaria de estar mais preparado, mas era muito tarde para mudar agora.
— Comece a falar — murmurou Quinn.
— Sobre o quê?
— Sobre como você se divertiu com Bill e Mary no fim de semana passado e como gostaria de poder comprar um lugar no campo. Talvez uma pequena casa em Cotswolds.
— Eu odeio Cotswolds.
Mesmo assim, Katerina falou com entusiasmo apaixonado sobre Bill e Mary e a fazenda deles perto de Chipping Campden. E como Bill ficava paquerador quando bebia e como Mary estava secretamente apaixonada por Thomas, um colega bonitão do escritório que Katerina sempre achou que fosse gay. Foi aí que o ex-soldado se aproximou deles. Quinn ficou atrás de Katerina para dar passagem para o homem. Ela diminuiu o suficiente para desejar a ele uma agradável manhã, mas Quinn ficou olhando para o chão e não falou nada.
— Você viu como ele estava olhando para nós? — perguntou Katerina quando eles ficaram sozinhos.
— Continue andando — falou Quinn. — E não olhe para trás de jeito nenhum.
A casa estava agora diretamente na frente deles. O caminho costeiro passava por trás dela, seguindo um campo verde. Um pequeno diferencial na elevação permitiu que Quinn olhasse inocentemente por cima de uma sebe protetora e visse o rosto dos dois homens sentados no carro estacionado. Katerina estava falando bastante mal de Mary, e Quinn estava assentindo lentamente, como se achasse os comentários dela estranhamente perceptivos. Então, aproximadamente uns cinquenta metros depois da casa, ele parou na beira do precipício e olhou para baixo, na enseada. Um homem estava pescando na forte arrebentação. Atrás dele, uma mulher caminhava por uma faixa de areia dourada, seguida por um homem cujo casaco era da mesma cor do usado pelo ex-soldado na colina. A mulher estava se afastando deles, lentamente, sem objetivo, como um prisioneiro fazendo seus exercícios permitidos no pátio. Quinn esperou até ela se virar antes de usar o binóculo. Então, os entregou a Katerina.
— Não preciso disso — ela falou.
— É ela?
Katerina olhou para a mulher caminhando em sua direção pela beira da água.
— É — ela respondeu finalmente. — É ela.
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GUY’S HOSPITAL, LONDRES
NOS MINUTOS SEGUINTES AO suicídio de Arthur Grimes, Graham Seymour novamente pediu que Jonathan Lancaster cancelasse sua visita ao Guy’s Hospital. O primeiro-ministro se manteve firme, apesar de ter concordado em acrescentar dois homens à segurança. Dois homens que compartilhavam sua opinião de que vingança poderia ser bom para a alma. Dois homens que queriam Eamon Quinn morto. O chefe do SO1, a divisão da Polícia Metropolitana que protege o primeiro-ministro e sua família, ficou, como era de se prever, chocado com a ideia de acrescentar dois caras de fora em sua equipe, sendo que um era agente de um serviço de inteligência estrangeiro, e o outro era um homem violento com um passado duvidoso. Mesmo assim, deu a eles rádios e credenciais que abririam qualquer porta no hospital. Também deu uma pistola Glock 17 de 9 mm. Era uma brecha para cada protocolo de proteção conhecido, mas que tinha sido ordenado pelo próprio primeiro-ministro.
Não havia tempo para Gabriel e Keller irem a Downing Street, então uma BMW da Polícia Metropolitana levou-os de Vauxhall Cross e pegou Kennington Lane para Southwark. O histórico Guy’s Hospital, uma das estruturas mais altas de Londres, ficava no final de um emaranhado de ruas perto do Tâmisa, não muito longe da ponte de Londres. A unidade MPS deixou-os do lado de fora do arranha-céu futurista conhecido como Shard. Era proibido estacionar na rua em circunstâncias normais e agora, com a iminente chegada do primeiro-ministro, estava vazia de trânsito. No entanto, havia vários veículos estacionados na Weston, incluindo uma van comercial branca que parecia bastante pesada. Por ordem de Gabriel, a Polícia Metropolitana rastreou o dono. Era um empreiteiro, veterano da Marinha, que estava fazendo uma reforma em um prédio próximo. A van estava cheia de telhas.
A última rua perto do complexo era Snowfields, um beco estreito sem lugar para estacionar e, naquele dia, não havia outros carros a não ser viaturas. Gabriel e Keller seguiram até o portão três, a principal entrada do hospital, e passaram pelo cordão de segurança. O Secretário de Estado de Saúde esperava do lado de fora, junto com uma equipe do Serviço Nacional de Saúde e uma grande delegação da equipe do hospital, muitos de casacos brancos. Gabriel passou em silêncio por eles, procurando pelo rosto que tinha desenhado na casa em Galway, procurando pela mulher que tinha visto pela primeira vez em uma rua tranquila em Lisboa. Ligou para Graham Seymour na sala de operações de Vauxhall Cross.
— Quanto falta para o primeiro-ministro chegar?
— Dois minutos.
— Alguma notícia do computador de Fleetwood?
— Estão perto.
— Foi o que disseram há uma hora.
— Eu ligo assim que tiverem algo.
A linha ficou muda. Gabriel enfiou o telefone no bolso e olhou para o portão três. Um momento depois duas motocicletas batedoras apareceram, seguidas por uma limousine Jaguar personalizada. Jonathan Lancaster desceu do assento traseiro e começou a apertar mãos.
— Ele realmente precisa fazer isso? — perguntou Keller.
— Infelizmente, acho que é congênito.
— Vamos esperar que Quinn não esteja na vizinhança. Ou poderia ser fatal.
O primeiro-ministro apertou a última mão oferecida. Olhou para Gabriel e Keller, assentiu uma vez e entrou. Eram três horas em ponto.
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ENSEADA DE GUNWALLOE, CORNUALHA
NO MOMENTO EM QUE Jonathan Lancaster desapareceu pelas portas do Guy’s Hospital, começou a chover no centro de Londres, mas na distante Cornualha ocidental, o sol fraco brilhava através de uma abertura nas camadas estratificadas das nuvens. O clima limpo era uma vantagem operacional, pois dava crédito à presença de Katerina na praia de Enseada de Gunwalloe. Ela tinha chegado ali às 14h50, cinco minutos depois de deixar Quinn perto da antiga igreja. O Renault estava no estacionamento em cima da enseada e na mochila ao seu lado havia um Samsung descartável e uma submetralhadora Skorpion com um silenciador ACC Evolution-9.
Você sempre gostou da Skorpion, não é, Katerina?
Durante a viagem da igreja à enseada, ela tinha pensado brevemente em fugir da Inglaterra e deixar Quinn sozinho. Mas, em vez disso, ela tinha preferido ficar e ver sua missão terminada. Ela tinha certeza agora de que Alexei estava morto. Mesmo assim, sabia que seria pouco inteligente voltar à Rússia tendo falhado em sua missão. Era o czar que a enviara de volta à Inglaterra, não Alexei. E como todos os russos, Katerina sabia que não era bom desapontar o czar.
Ela olhou a hora. Eram 15h05. Quinn estaria perto da casa. Talvez um dos seguranças se aproximaria dele, da forma como o ex-soldado tinha feito aquela manhã. Se isso acontecesse, Quinn iria matá-lo, e então só haveria três homens protegendo o alvo — os dois fora da casa e aquele que estava pescando na enseada. Katerina tinha certeza de sua identidade. Ela conseguia ver o contorno de uma arma debaixo do casaco, e o rádio em miniatura que ele tinha usado para alertar seus colegas da presença de uma visitante na enseada. Com uma curta ordem, o rádio do guarda iria, sem dúvida, mandar algum tipo de sinal de emergência. Ou talvez ele nem teria tempo para um alerta de rádio. De todas as formas, o destino do guarda seria o mesmo. Ele estava vendo seu último pôr do sol.
Ele tirou um peixe do mar, colocou em um balde amarelo na linha do horizonte e preparou outra isca. Então, depois de cumprimentar Katerina com um aceno, se enfiou no mar de novo e jogou sua linha. Sorrindo, Katerina levantou a aba de sua mochila, expondo a ponta da Skorpion. Estava em modo automático, o que significava que seria capaz de atirar vinte balas em menos de um segundo com razoável precisão. Quinn estava armado da mesma forma.
Bem naquele momento o celular vibrou e uma mensagem de texto apareceu na tela: OS TIJOLOS ESTÃO NA PAREDE... Ele tinha de fazer isso, ela pensou. Ele tinha de deixar os britânicos saberem que era ele. Jogou o celular na mochila, segurou a Skorpion e olhou para o homem nas ondas. De repente, ele levantou a cabeça rapidamente e olhou para a esquerda, para o alto da colina. Tarde demais, ele se virou, para encontrar Katerina avançando pela areia, a Skorpion em suas mãos esticadas.
Vinte balas em menos de um segundo, com razoável precisão...
As próximas ondas que chegaram à areia estavam vermelhas com o sangue do segurança morto do MI6. Katerina calmamente recarregou a Skorpion e subiu o íngreme caminho até o estacionamento. Estava deserto, exceto pelo Renault. Ela se sentou atrás do volante, ligou o motor e desceu a estrada até a casa.
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THAMES HOUSE, LONDRES
NADA NA TROCA DE mensagem era expressamente suspeito, mas para os olhos experientes do técnico do MI5, tudo tinha cheiro de pouco autêntico. Assim como os endereços dos dois participantes. Ele mostrou a impressão para seu superior e o superior mostrou a Miles Kent. Kent ficou mais intrigado com um endereço que apareceu no final do e-mail. O endereço parecia familiar, então ele rapidamente buscou em um banco de dados do MI5 e ali descobriu uma combinação alarmante. Sua próxima parada foi a sala de operações onde Amanda Wallace estava monitorando a visita do primeiro-ministro ao Guy’s Hospital. Ele colocou a impressão na frente dela. Amanda leu e franziu a testa.
— O que significa?
— Olhe bem o endereço.
Amanda leu.
— Não é aquela casa onde Allon morava?
Kent assentiu.
— Quem vive ali agora?
— Você provavelmente deveria perguntar a Graham Seymour.
Amanda pegou o telefone.
Cinco segundos depois, do outro lado do Tâmisa, em outra sala de operações, Graham Seymour atendeu a ligação.
— O que você tem?
— Um problema.
— Qual é o problema?
— Tem alguém morando na casa de Allon na Cornualha ocidental?
Seymour hesitou, depois disse:
— Desculpa, Amanda, mas não é algo que posso comentar.
— Meu Deus — ela suspirou, preocupada. — Tinha medo de que fosse falar isso.
A casa tinha sido oficialmente declarada uma casa segura do MI6, então não possuía nenhuma linha de telefone ativa, nem seus ocupantes atuais tinham recebido um celular, para evitar que ela dissesse algo em um momento de descontração que divulgasse sua localização aos inimigos. Todas as tentativas de entrar em contato com os guardas não funcionaram. Os telefones deles não foram atendidos. Os rádios não respondiam.
Uma ligação, no entanto, foi atendida sem demora. Foi a ligação que Graham Seymour fez para o celular de Gabriel às 15h17. Gabriel estava no auditório do Guy’s Hospital, onde o primeiro-ministro estava a ponto de oferecer um remédio para as doenças que o sagrado sistema de saúde estatal da Grã-Bretanha estava enfrentando. Seymour estava assistindo a uma transmissão ao vivo do evento na tela da sala de operações. Ele falou com mais calma do que teria pensado possível, dada as circunstâncias.
— Infelizmente, o primeiro-ministro não era o alvo. Há um helicóptero esperando por você e Keller em Battersea. A Polícia Metropolitana vai dar uma carona até lá.
A linha ficou muda. Seymour desligou e ficou olhando para a tela vendo dois homens saírem correndo do auditório.
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CORNUALHA OCIDENTAL
MADELINE HART NÃO OUVIU os tiros, só o barulho forte da madeira estilhaçando. Depois viu o homem passando pela porta da frente quebrada da casa, uma submetralhadora feia nas mãos. Ele deu um soco em sua barriga — um golpe brutal que a deixara incapaz de fazer qualquer som ou respirar — e enquanto se recuperava, ele amarrara suas mãos e sua boca com fita e cobrira sua cabeça com um saco de pano preto. Mesmo assim, ela percebeu a presença de um segundo intruso, menor do que o primeiro, mais leve. Juntos, eles a colocaram de pé e a tiraram do quarto com vista. Do lado de fora, um telefone tocava sem ser atendido — o telefone, ela presumiu, de um dos guardas de segurança. Os intrusos a forçaram a entrar no porta-malas de um carro e fecharam a tampa como se fosse um caixão. Ela ouviu os pneus cantando sobre as pedras e, ao longe, as ondas quebrando na enseada. Madeline então se afastou do mar e só havia o barulho do pneu contra o asfalto. E vozes. Duas vozes, um homem e uma mulher. O homem quase certamente era da Irlanda, mas o sotaque abafado da mulher não traía sua nacionalidade. Madeline tinha certeza apenas de uma coisa: ela já tinha ouvido essa voz antes.
Ela não conseguia perceber em que direção estavam indo, só que a estrada estava em condições medianas. Uma estrada secundária, ela pensou. Não que isso importasse muito; seu conhecimento da geografia da Cornualha era limitado pelo fato de que ela tinha permanecido como uma quase prisioneira na casa de Gabriel. É, houve uns passeios ocasionais até Lizard Point para tomar chá com bolinhos no café no alto das colinas, mas na maior parte do tempo ela não saiu da praia em Enseada de Gunwalloe. Um homem da sede do MI6 em Londres vinha até a Cornualha regularmente para conversar sobre sua segurança — ou, como ele dizia, para mantê-la na linha. Sua apresentação raramente variava. Sua deserção, ele falou, tinha sido um grave embaraço para o Kremlin. Era só uma questão de tempo antes que os russos tentassem corrigir a situação.
Aparentemente esse momento tinha chegado. Madeline supôs que seu sequestro estava ligado ao atentado contra a vida de Gabriel. O homem com o sotaque irlandês era, sem dúvida, Eamon Quinn. E a mulher? Madeline ouvia agora o baixo murmúrio de sua voz e a mistura peculiar de sotaques alemão, britânico e russo. Então ela fechou os olhos e viu duas garotas sentadas em um parque em uma vila inglesa montada como um cenário de filme. Duas garotas que tinham sido tiradas de suas mães e criadas por lobos. Duas garotas que um dia seriam enviadas ao mundo para espionar por um país que nunca tinham realmente conhecido. Agora parecia que alguém no Moscou Center tinha despachado uma das garotas para matar a outra. Só um russo poderia ser tão cruel.
Madeline não tinha muita noção do tempo, mas ela reconheceu que tinham se passado vinte minutos antes de o carro parar. O motor foi desligado, e dois pares de mãos a levantaram — um masculino e outro claramente feminino. O ar tinha um cheiro acre com iodo, o chão tinha pedras e parecia instável. Ela podia ouvir o mar e, no alto, os gritos das gaivotas voando em círculo. Quando se aproximaram da beira da água, um motor foi ligado e ela sentiu o cheiro da fumaça. Eles a empurraram para a água e a forçaram a entrar em um pequeno barco. Instantaneamente, o barco começou a se mover e, subindo por causa de uma onda, partiu para o mar. Encapuzada e amarrada, Madeline ouviu o motor chacoalhando por baixo da superfície da água. Você vai morrer, ele parecia dizer. Você já está morta.
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ENSEADA DE GUNWALLOE, CORNUALHA
O HELICÓPTERO ESPERANDO EM BATTERSEA era um Westland Sea King de transporte com motores Gnome da Rolls-Royce. Levou Gabriel e Keller pelo sul da Inglaterra a duzentos quilômetros por hora, pouco menos que a velocidade máxima. Chegaram a Plymouth às seis, e alguns minutos depois, Gabriel viu o farol em Lizard Point. O piloto queria descer em Culdrose, mas Gabriel o convenceu a ir direto para Gunwalloe. Quando passaram sobre a casa, as luzes azuis dos veículos policiais piscavam na entrada e no caminho do Lamb and Flag. As luzes brilhavam na enseada também. Era uma cena de crime. Gabriel ficou mal de repente. Seu adorado santuário na Cornualha, o lugar onde ele tinha encontrado paz e se recuperado depois de uma das operações mais difíceis, agora era um lugar de morte.
O piloto deixou Gabriel e Keller na parte norte da enseada. Eles cruzaram a praia correndo e pararam perto das luzes colocadas na cena de crime. Ali havia o cadáver de um homem. Tinha recebido vários tiros no peito. A pouca dispersão sugeria um atirador muito bem treinado. Ou talvez, pensou Gabriel, o assassino tinha sido uma mulher. Ele olhou para os quatro homens parados ao redor do corpo. Dois estavam usando uniforme da polícia de Devon e Cornualha. Os outros dois eram detetives de civil do Setor de Crimes Graves. Gabriel ficou pensando há quanto tempo estariam ali. Tempo suficiente, ele pensou, para iluminar a enseada como um estádio de futebol à noite.
— Vocês realmente precisam usar essas luzes fortes? Ele não vai sair daqui.
— Quem está perguntando? — respondeu um dos detetives.
— MI6 — falou Keller, em voz baixa. Era a primeira vez que ele tinha se identificado como empregado do Serviço Secreto de Sua Majestade, e o efeito na audiência foi instantâneo.
— Vou precisar de alguma identificação — disse o detetive.
Keller apontou para o Sea King no final da enseada e disse.
— Essa é a minha identificação. Agora faça o que ele está dizendo e apague as malditas luzes.
Um dos oficiais uniformizados apagou as luzes.
— Agora diga para apagarem as luzes dos carros.
O mesmo oficial deu a ordem pelo rádio. Gabriel olhou para a casa e viu as luzes azuis se apagarem. Então olhou para o cadáver caído a seus pés.
— Onde vocês o encontraram?
— Você é do MI6, também? — perguntou o policial de civil.
— Responda a pergunta — falou Keller, ríspido.
— Estava na beira da água.
— Ele estava pescando? — perguntou Gabriel.
— Como você sabia?
— Chute.
O detetive se virou e apontou para as colinas.
— Quem atirou estava ali. Nós encontramos vinte cápsulas. — Ele olhou para o corpo. — Obviamente, a maioria encontrou o alvo. Ele estava provavelmente morto antes de cair na água.
— Alguma testemunha?
— Nenhuma que tenha aparecido.
— E as pegadas perto das cápsulas?
O detetive assentiu.
— Quem atirou estava usando botas de caminhada.
— Que tamanho?
— Pequeno.
— Era uma mulher?
— Pode ter sido.
Sem outra palavra, Gabriel levou Keller pelo caminho até a casa. Eles entraram pelas portas francesas do terraço. A sala de estar de Gabriel tinha sido convertida em um posto de comando. A porta da frente quebrada estava presa por uma dobradiça e, através da abertura, ele observou mais dois corpos caídos da entrada. Um detetive alto se aproximou e se apresentou como DI Frazier. Gabriel aceitou a mão do detetive, mas não se identificou. Nem Keller.
— Qual de vocês é do MI6? — perguntou o DI.
Gabriel olhou para Keller.
— E você? — o detetive perguntou a Gabriel.
— É um amigo do serviço — disse Keller.
O desdém pelas irregularidades estava escrito claramente no rosto do detetive.
— Temos quatro fatalidades até onde sabemos — ele falou. — Uma na enseada, duas do lado de fora da casa e uma quarta no caminho costeiro. Ele foi atingido uma vez no peito e outra na cabeça. Nem teve a chance de tirar sua arma. Os que estavam na entrada foram atingidos múltiplas vezes, como o cara na enseada.
— E a mulher que vive aqui? — perguntou Gabriel.
— Não foi encontrada.
O detetive caminhou até o cavalete de Gabriel, sobre o qual estava pendurado um mapa da Cornualha ocidental.
— Temos duas testemunhas da vila que notaram um Renault indo em alta velocidade pouco depois das três essa tarde. O carro ia para o norte. Estabelecemos barreiras nas estradas aqui, aqui e aqui — ele acrescentou, tocando o mapa em três lugares. — Nenhuma testemunha conseguiu ver o motorista, mas os dois disseram que a passageira era uma mulher.
— Suas testemunhas estão corretas — disse Gabriel.
O detetive se virou do mapa.
— Quem é ela?
— Uma assassina da inteligência russa.
— E o homem dirigindo o carro?
— Ele já foi o melhor montador de bombas do IRA Autêntico, o que significa que você está perdendo tempo com essas barreiras na estrada. Precisa concentrar seus recursos na costa oeste. Deve também verificar o porta-malas de todo carro que cruzar pelas balsas irlandesas essa noite.
— O homem do IRA Autêntico tem nome?
— Eamon Quinn.
— E a russa?
— Seu nome é Katerina. Mas o mais provável é que se apresente como alemã. Não seja enganado por sua aparência — acrescentou Gabriel. — Ela colocou vinte balas no coração daquele segurança na enseada.
— E a mulher que sequestraram?
— Não é importante quem ela é. Será a que estiver com o saco na cabeça.
O detetive se virou de novo e estudou o mapa.
— Sabem o tamanho da costa da Cornualha?
— Mais de seiscentos quilômetros — respondeu Gabriel — com dezenas de pequenas enseadas. Por isso é o paraíso dos contrabandistas.
— Algo mais que você pode me contar?
— Tem chá na despensa. E biscoitos também.
69
ENSEADA DE GUNWALLOE, CORNUALHA
ÀS OITO DA NOITE, eles trouxeram o corpo da enseada iluminada por tochas e colocaram na entrada, perto dos outros. O morto não ficou muito tempo lá; em uma hora uma procissão de vans chegou para transportá-los para o laboratório do legista em Exeter. Ali um profissional altamente treinado declararia o óbvio, que quatro homens de emprego secreto tinham morrido por causa de feridas de bala em seus órgãos vitais. Ou, talvez, pensou Gabriel, o legista nunca veria os corpos. Talvez Graham Seymour e Amanda Wallace conseguiriam varrer toda a sangrenta confusão para debaixo do tapete. Quinn tinha conseguido deixar outro escândalo na porta da inteligência britânica — um escândalo que teria sido evitado se o laboratório do MI5 tivesse encontrado uma troca de e-mails uns minutos antes. Gabriel não podia evitar sentir que tinha alguma responsabilidade. Nada disso teria acontecido, ele pensou, se não tivesse colocado uma cópia de Uma janela para o amor no colo de uma linda jovem no Museu Hermitage, em São Petersburgo.
Acredito que isso seja seu...
Haveria tempo para recriminações depois. Por enquanto, encontrar Madeline era a única preocupação de Gabriel. A polícia de Devon e Cornualha estava vasculhando cada praia e enseada na região — qualquer lugar onde um pequeno barco pudesse ancorar. Além disso, Graham Seymour tinha pedido que a Guarda Costeira fizesse patrulhas na região sudoeste da Inglaterra. Todos passos prudentes, pensou Gabriel, mas provavelmente era muito pouco e muito tarde. Quinn tinha desaparecido. E também Madeline. Mas por que raptá-la? Por que não deixá-la morta com seus guardas como um aviso para qualquer outro espião russo pensando em desertar?
Gabriel não aguentava ficar dentro da casa — não com a polícia bagunçando tudo, nem com os buracos de bala na porta e as memórias que o perseguiam em cada canto —, então ele e Keller se sentaram fora, no terraço, bem agasalhados. Gabriel ficou olhando as luzes de um grande cargueiro no Atlântico e ficou pensando se Madeline estaria nele. Keller fumava um cigarro e olhava para o Sea King. Ninguém invadiu o silêncio deles até pouco depois das dez, quando o detetive informou que um Renault Scénic tinha sido encontrado na entrada de uma remota enseada em West Pentire, na costa norte da Cornualha. O veículo estava vazio exceto por uma sacola de compras da Marks & Spencer.
— Não teria nenhum recibo? — perguntou Gabriel.
— Infelizmente, não. — O detetive ficou em silêncio por um momento. — Meu DCI está em contato com a Organização Interna — ele disse finalmente. — Sei quem é você.
— Então vai aceitar nossas desculpas pela forma como falamos com seus homens mais cedo.
— Não é necessário. Você pode querer retirar algo de valor da casa antes de ir. Aparentemente, o MI6 está enviando uma equipe para limpar o lugar.
— Peça que tratem com cuidado meu cavalete — pediu Gabriel. — Tem valor sentimental.
O detetive se retirou, deixando Gabriel e Keller sozinhos. As luzes do cargueiro tinham desaparecido na noite.
— Aonde você acha que ele a levou? — perguntou Keller.
— Algum lugar onde se sente confortável. Algum lugar onde ele conheça o terreno e os atores. — Gabriel olhou para Keller. — Conhece algum lugar assim?
— Infelizmente, só um.
— País dos Bandidos?
Keller assentiu.
— E se ele conseguir levá-la lá, terá uma importante vantagem.
— Temos uma vantagem também, Christopher.
— Qual é?
— Stratford Gardens, número oito.
Keller estava olhando de novo para o Sea King.
— Pensou na possibilidade de que seja exatamente isso que Quinn quer?
— Atacar a gente de novo?
— Isso.
— Faz alguma diferença?
— Não — falou Keller. — Mas poderia ser algo em que você não deveria se envolver. Afinal...
Keller deixou o pensamento sem terminar porque era óbvio que Gabriel não estava mais ouvindo. Tinha tirado o BlackBerry do bolso e estava ligando para Graham Seymour em Vauxhall Cross. A conversa deles foi breve, não mais do que dois minutos. Então Gabriel voltou a colocar o celular no bolso e apontou para a enseada, onde trinta segundos depois o motor do Sea King começou a fazer barulho. Lentamente, ele se levantou e seguiu Keller em silêncio até a praia. Ele viu a casa pela última vez como tinha visto pela primeira, de dois quilômetros do mar, sabendo que nunca mais colocaria os pés ali. Quinn tinha destruído isso para ele, assim como tinha ajudado Tariq a destruir Leah e Dani. Era algo pessoal agora, ele pensou. E ia ser bastante confuso.
70
CONDADO DE DOWN, IRLANDA DO NORTE
NAQUELE EXATO MOMENTO, O Catherine May, um barco de pesca comercial Vigilante 33, estava fazendo 26 nós cruzando o Canal de St. George. Jack Delaney, ex-membro do IRA que se especializou em contrabando de armas e movimento de aparelhos explosivos, estava no leme. O irmão mais novo de Delaney, Connor, estava inclinado na escada, fumando um cigarro. Às três da manhã eles deviam chegar a leste de Dublin, e às cinco iriam chegar à boca de Carlingford Lough, a enseada glacial que forma a fronteira entre a República da Irlanda e Ulster. O antigo porto de pesca de Ardglass ficava aproximadamente a trinta quilômetros ao norte. Quinn esperou até conseguir ver as primeiras luzes do farol de Ardglass antes de ligar seu celular. Ele escreveu uma breve mensagem e com considerável relutância enviou, de forma insegura. Dez segundos depois veio a resposta.
— Merda — disse Quinn.
— Qual é o problema? — perguntou Jack Delaney.
— Ardglass está muito quente para pararmos ali.
— E que tal Kilkeel?
Kilkeel era um porto de pesca localizado a cerca de cinquenta quilômetros ao sul de Ardglass. Era uma cidade de maioria protestante onde o sentimento legalista era bastante profundo. Quinn fez a sugestão em um segundo texto. Quando recebeu a resposta dois segundos mais tarde, ele olhou para Delaney e balançou a cabeça.
— Aonde quer que a gente vá?
— Ele diz que Shore Road está calma.
— Onde?
— Ao norte do castelo.
— Não é um dos meus pontos favoritos.
— Podemos chegar e sair antes do nascer do sol?
— Sem problema.
Jack Delaney aumentou a velocidade e estabeleceu o curso para a parte ao sul da península de Ards. Quinn olhou para a cabine em frente e viu Madeline deitada, amarrada e encapuzada em um dos dois ancoradouros. Ela tinha passado a viagem em silêncio. Katerina, que tinha ido várias vezes ao banheiro por se sentir enjoada, estava fumando um cigarro sentada em frente à mesa da proa.
— Como está se sentindo? — perguntou Quinn.
— Você se importa?
— Não muito.
Ela acenou para o farol de Ardglass e disse:
— Parece que perdemos nossa saída.
— Mudança de planos — disse Quinn.
— Polícia?
Quinn assentiu.
— O que você esperava?
— Fique pronta — ele disse. — Temos mais uma viagem de barco.
— Que sorte a minha.
Quinn desceu pela escadinha e foi até o deque. A noite estava clara e havia um borrifo de estrelas brilhando forte no céu escuro. A costa norte de Ardglass era formada principalmente por fazendas, com algumas poucas casas espalhadas de frente para o mar. Quinn varreu a paisagem com seus binóculos, mas ainda era muito escuro para ver qualquer coisa. Eles passaram por Guns Island, um pedaço de terra verde desabitada a 180 metros da vila de Ballyhornan, e poucos minutos mais tarde deram a volta ao promontório rochoso que guardava a entrada de Strangford Lough. Marcadores do canal apontavam para a rota norte. As primeiras luzes estavam começando a aparecer nas casas ao longo da Shore Road, suficientes para que Quinn pudesse discernir a silhueta do castelo Kilclief. Então ele viu três explosões de luz um pouco mais distante da costa. Ele enviou uma mensagem de texto que consistia apenas em um sinal de interrogação. A resposta dizia que a porta da frente estava totalmente aberta.
Quinn preparou o bote e voltou à cabine. Ele apontou para o ponto onde tinha visto as explosões de luz e instruiu Jack Delaney para ir até lá. Então, desceu as escadas até a cabine e tirou o capuz da cabeça de Madeline. Um par de olhos se fixaram na semiescuridão.
— Hora de descer em terra — disse Quinn. — Seja uma boa menina, ou vou colocar uma bala na sua cabeça. Entendido?
Frios, os dois olhos se fixaram nele. Não havia medo, pensou Quinn, só raiva. Ele tinha de admitir que admirava a coragem dela. Colocou o capuz preto em sua cabeça e a levantou.
Connor Delaney levou-os rápida e diretamente. Quinn desceu quando a água estava rasa. Então, com a ajuda de Katerina, tirou Madeline do bote e marchou com ela até o carro estacionado na beira da estrada. O carro era um Peugeot 508, cinza-escuro. O porta-malas estava aberto. Quinn forçou Madeline para dentro e fechou a tampa. Então, ele e Katerina entraram no carro: ela no banco de passageiro, ele se esticou no banco de trás, a Makarov apontada para a espinha dela. Atrás do volante, usando um caban e um chapéu de algodão, estava Billy Conway.
— Bem-vindo de volta — ele falou. Então, ligou o motor e saiu para a estrada.
Eles foram a oeste em direção a Downpatrick. Quinn virava o rosto instintivamente quando uma unidade do PSNI se aproximava da direção oposta, as luzes piscando.
— Onde você acha que ele vai tão cedo em uma adorável manhã de sábado?
— Está assim em todos os seis condados. — Billy Conway olhou para o espelho retrovisor. — Suponho que você seja a causa disso.
— Acho que sim.
— Quem é a garota no porta-malas?
Quinn hesitou antes de responder.
— A garota russa que estava dormindo com o primeiro-ministro?
— Essa mesma.
— Cristo, Eamon. — Billy Conway dirigiu em silêncio por um momento. — Você não me contou que ia trazer uma refém.
— A situação mudou.
— Que situação?
Quinn não falou mais nada.
— O que você vai fazer com ela?
— Ficar com ela.
— Onde?
— Em algum lugar onde ninguém vai encontrá-la.
— South Armagh?
Quinn ficou em silêncio.
— É melhor avisar que estamos indo.
— Não — disse Quinn. — Sem telefonemas.
— Não podemos simplesmente aparecer na porta deles.
— Podemos sim.
— Por quê?
— Porque sou Eamon Quinn.
Outra unidade PSNI estava vindo na direção deles por Downpatrick. Quinn abaixou a cabeça. Billy Conway segurou forte o volante com as duas mãos.
— Por que você trouxe aquela garota aqui, Eamon?
— Migalhas de pão — respondeu Quinn.
— Para quê?
— Dirija, Billy. Vou contar o resto quando chegarmos ao País dos Bandidos.
71
ARDOYNE, BELFAST OCIDENTAL
O SEA KING TINHA DESCIDO em JHFS Aldergrove, o heliporto adjacente ao aeroporto de Belfast. Amanda Wallace, do MI5, tinha conseguido um carro, um Ford Escort azul-claro com cinco anos de uso e quase duzentos mil quilômetros rodados. Ela também abriu as portas de uma casa segura do MI5 em um setor protestante do norte de Belfast. Dois oficiais do Setor T, a divisão de terrorismo irlandês do MI5, estavam esperando na casa quando Gabriel e Keller chegaram logo depois da meia-noite. Nenhum dos dois sabia o nome ou o rosto de Keller, apesar de que a identidade de Gabriel era difícil de esconder. Eles passaram uma noite juntos monitorando a busca pelo barco que tinha levado Madeline Hart da enseada isolada na costa norte da Cornualha. Às seis da manhã tinha ficado claro que o barco não seria encontrado, pelo menos com Madeline ainda a bordo. Os cidadãos britânicos, no entanto, não sabiam nada sobre seu sequestro. Nem sabiam que um oficial do SIS tinha se suicidado de um terraço de Vauxhall Cross. A história principal do programa Breakfast da BBC tinha a ver com o plano controverso do primeiro-ministro de reformar o Serviço Nacional de Saúde. A reação foi universalmente hostil.
Às seis e meia Gabriel e Keller deixaram a casa segura e entraram no Ford. Eles passaram os trinta minutos seguintes dirigindo em círculos pelos setores norte e leste da cidade para ter certeza de que não estavam sendo seguidos pelo MI5 ou qualquer outra entidade da inteligência britânica. Então, às sete horas, eles entraram em Crumlin Road e foram para a católica Ardoyne. Keller estacionou em uma parte de Stratford Gardens e desligou o motor. As luzes iluminavam algumas poucas janelas; tirando isso, a rua estava escura.
— Quanto tempo até seus amigos aparecerem? — perguntou Gabriel.
— É cedo — disse Keller vagamente.
— Isso não parece muito encorajador.
— Estamos no oeste de Belfast. É difícil ser otimista.
Por vários minutos, Stratford Gardens não se moveu. Keller olhou toda a rua procurando evidências, mas Gabriel só tinha olhos para a porta do número oito. Ela se abriu às 7h45 e duas figuras surgiram, Maggie e Catherine Donahue, a esposa e a filha de um homem que poderia fazer uma bola de fogo viajar a milhares de metros por segundo. A esposa e a filha do homem que tinha ajudado Tariq al-Hourani a resolver os problemas que estava tendo com temporizadores e detonadores. Catherine Donahue estava usando um uniforme de hóquei debaixo de um casaco cinza. Sua mãe estava usando moletom e tênis. Elas cruzaram o portão de metal no final do jardim e viraram à direita, em direção a Ardoyne Road.
— Onde é o jogo dela? — perguntou Gabriel.
— Lisburn. O ônibus sai às oito e meia.
— Ela não pode ir sozinha?
— Elas precisam passar por uma área protestante para chegar a Our Lady of Mercy. Houve muitos problemas nesses anos.
— Ou talvez estejam querendo escapar.
— Vestidas assim?
— Siga as duas — falou Gabriel.
— E se meus amigos aparecerem?
— Acho que posso me cuidar.
Gabriel saiu do carro sem outra palavra. O portão do número oito deu um gemido forte quando abriu, mas a porta da frente cedeu em silêncio. Ao entrar, ele rapidamente tirou uma arma das costas — a Glock 17 que tinha recebido do SO1, para proteção do primeiro-ministro. Uma televisão estava ligada na sala; Gabriel não mexeu nela e subiu a escada, a arma na mão. Ele encontrou os dois quartos desarrumados, mas vazios. Então desceu e entrou na cozinha. Havia uns poucos pratos na pia e, no balcão, uma chaleira com chá. Ele pegou uma xícara do armário, se serviu um pouco e sentou-se à mesa da cozinha para esperar.
Demorou 15 minutos para Maggie Donahue levar sua filha aos portões da escola. Sua viagem de volta teve um incidente, pois em Ardoyne Road, ela entrou em confronto com duas mulheres protestantes do conjunto habitacional Glenbryn que ficaram bravas por ela, uma católica, ousar caminhar por uma rua legalista. Como resultado, estava muito brava quando entrou em Stratford Gardens. Ela enfiou a chave na fechadura e bateu a porta com tanta força que fez tremer as janelas da casa. Alguém na televisão estava reclamando do preço do leite. Ela colocou no mudo antes de ir à cozinha lavar os pratos. Vários segundos se passaram antes que percebesse o homem bebendo chá em sua mesa.
— Jesus Cristo! — ela gritou, espantada.
Gabriel simplesmente franziu a testa, como se não aprovasse aqueles que usam o nome do Senhor em vão.
— Quem é você? — ela perguntou.
— Eu estava a ponto de fazer a mesma pergunta — respondeu Gabriel, calmamente.
Ela não percebeu o sotaque dele. Então, um olhar de reconhecimento iluminou seu rosto.
— Você é aquele que...
— É — ele disse, cortando. — Sou eu mesmo.
— O que está fazendo na minha casa?
— Eu perdi algo da última vez que estive aqui. Queria que você me ajudasse a encontrar.
— O quê?
— Seu marido.
Ela tirou um celular do bolso de seu moletom e começou a digitar. Gabriel colocou a Glock em sua cabeça.
— Pare — ele falou.
Ela congelou.
— Passe o telefone.
Ela entregou a ele. Gabriel olhou para a tela. O número que ela tinha tentado discar tinha oito dígitos.
— O número de emergência da Polícia da Irlanda do Norte é um-zero-um, não é?
Ela ficou em silêncio.
— Então para quem você está ligando? — Como a resposta foi mais silêncio, Gabriel enfiou o telefone no bolso de seu casaco.
— É meu — ela falou.
— Não é mais.
— O que você quer?
— Por enquanto — disse Gabriel — gostaria que você se sentasse.
Ela olhou para ele, mais desprezo do que medo. Era de Ardoyne, pensou Gabriel. Não ficava com medo assim facilmente.
— Sente-se — ele disse de novo, e ela finalmente obedeceu.
— Como você entrou aqui? — ela perguntou.
— Você deixou a porta da frente destrancada.
— Mentira.
Gabriel colocou uma fotografia na mesa e virou para que ela pudesse ver a imagem claramente. Mostrava sua filha parada em uma rua de Lisboa ao lado de Eamon Quinn.
— Onde conseguiu isso? — ela perguntou.
Gabriel olhou para o teto.
— Do quarto da minha filha? — ela perguntou.
Ele assentiu.
— O que estava fazendo lá?
— Estou tentando evitar que seu marido realize outro assassinato em massa.
— Eu não tenho marido.
Fez uma pausa e acrescentou:
— Não tenho mais.
— Esse é o seu marido — disse Gabriel, batendo na fotografia com a ponta da Glock. — Seu nome é Eamon Quinn. Ele colocou bombas em Bishopsgate e Canary Wharf. Colocou bombas em Omagh e na Brompton Road. Encontrei roupas dele no seu armário. Encontrei o dinheiro dele, também. O que significa que você vai passar o resto da sua vida presa, a menos que me conte o que eu quero saber.
Ela olhou para a fotografia por um momento, sem falar nada. Havia outra coisa no rosto dela agora, pensou Gabriel. Não era desprezo. Era vergonha.
— Ele não é meu marido — ela disse finalmente. — Meu marido morreu há mais de dez anos.
— Então por que sua filha está parada em uma rua em Lisboa com Eamon Quinn?
— Não posso contar isso.
— Por que não?
— Porque ele vai me matar se eu contar.
— Quinn?
— Não — ela disse, negando com a cabeça. — Billy Conway.
72
CROSSMAGLEN, CONDADO DE ARMAGH
A PEQUENA FAZENDA QUE ESTAVA bem ao oeste de Crossmaglen tinha sido do clã Fagan por gerações. Seu atual ocupante, Jimmy Fagan, nunca tinha se importado muito com agricultura e, no final dos anos oitenta, abriu uma fábrica em Newry que produzia portas de alumínio e janelas para a crescente indústria de construção de South Armagh. Sua principal ocupação, no entanto, era o republicanismo irlandês. Um veterano da famosa Brigada South Armagh do IRA, tinha participado em alguns dos ataques a bomba e emboscadas mais sangrentas do conflito, incluindo um ataque a uma patrulha britânica perto de Warrenpoint que deixou dezoito soldados britânicos mortos. No total, a Brigada South Armagh foi responsável pela morte de 123 militares britânicos e 42 oficiais da Royal Ulster Constabulary. Por um tempo, a pequena área de fazendas e colinas era o lugar mais perigoso do mundo para um soldado — tão perigoso, na verdade, que o Exército Britânico foi forçado a abandonar as estradas para o IRA e viajar somente de helicóptero. No final, a Brigada South Armagh começou a atacar os helicópteros, também. Quatro foram derrubados, incluindo um Lynx que foi atingido por um morteiro perto de Crossmaglen. Jimmy Fagan tinha apertado o gatilho. Eamon Quinn tinha criado e construído.
Durante a pior parte dos conflitos, havia uma torre de observação no centro de Crossmaglen. Agora a torre não existia mais e no coração da vila havia um parque verde com um memorial para os voluntários mortos do IRA. Billy Conway deixou Quinn na frente do hotel Cross Square; ele deu a volta na esquina até o bar Emerald, na Newry. As cores dos Crossmaglen Ranger tremulavam na entrada. Parecia que o futebol tinha substituído a rebelião como o passatempo principal da cidade.
Quinn abriu a porta e entrou. Instantaneamente, várias cabeças se viraram para ele. A guerra poderia ter terminado, mas em Crossmaglen a suspeita contra gente de fora era mais forte do que nunca. Quinn conhecia vários homens no salão. Eles, por outro lado, pareciam não reconhecê-lo. Ele pediu uma Guinness no bar e levou até a mesa onde Jimmy Fagan estava sentado com dois outros ex-membros da Brigada South Armagh. O cabelo meio grisalho de Fagan estava bem curto e seus olhos pretos pareciam menores com a passagem dos anos. Eles olharam bem para Quinn, sem traço de reconhecimento.
— Posso ajudá-lo, amigo? — Fagan perguntou finalmente.
— Posso me sentar?
Fagan apontou para uma mesa vazia do outro lado do salão e sugeriu que Quinn poderia ficar mais confortável ali.
— Mas eu prefiro me sentar com você.
— Vai dar uma volta, amigo — Fagan falou tranquilo. — Ou você vai acabar se metendo em confusão.
Quinn se sentou. O homem sentado à esquerda dele segurou seu punho.
— Calma — murmurou Quinn. Então, olhou para Fagan. — Sou eu, Jimmy. É o Eamon.
Fagan olhou muito para o rosto de Quinn. Então percebeu que o estranho sentado do outro lado da mesa estava dizendo a verdade.
— Cristo — ele sussurrou. — O que está fazendo aqui?
— Negócios — disse Quinn.
— Isso explicaria por que a RUC está toda agitada de repente.
— Eles se chamam PSNI agora, Jimmy. Não ouviu falar?
— Os acordos da Sexta-Feira Santa perdoaram meus pecados — disse Fagan, após um momento —, mas não os seus. Seria melhor para todos nós se você terminasse sua cerveja e fosse embora.
— Não posso, Jimmy.
— Por que não?
— Negócios.
Quinn bebeu a espuma de sua Guinness e olhou ao redor. O cheiro de madeira polida e cerveja, o murmúrio tranquilo das vozes com sotaque de Armagh: depois de todos os anos escondido, todos os anos vendendo seus serviços para quem pagasse mais, ele finalmente estava de volta.
— Por que está aqui? — Fagan perguntou.
— Estava pensando se estaria interessado em um pouco de ação.
— O que ganho com isso?
— Dinheiro.
— Chega de bombas, Eamon.
— Não — disse Quinn. — Nada de bombas.
— Que tipo de trabalho?
— Emboscada — disse Quinn. — Como nos velhos tempos.
— Quem é o alvo?
— Aquele que escapou.
— Keller?
Quinn assentiu. Jimmy Fagan sorriu.
A fazenda tinha duzentos acres — ou 240, dependendo de para qual membro do clã Fagan você perguntasse. Era formada principalmente por pasto, dividido em pedaços menores por cercas de pedra baixas; algumas tinham sido levantadas muito antes que os primeiros protestantes tivessem colocados os pés na terra, era o que dizia a lenda. A Irlanda estava do outro lado da colina. Em nenhuma das estradas havia nem uma sugestão de fronteira.
Na parte mais alta da terra havia uma casa de tijolos de dois andares onde Fagan, viúvo, morava com seus dois filhos, os dois veteranos do IRA e do rejeicionista IRA Autêntico. Havia um grande celeiro de alumínio enrugado e uma segunda estrutura, no fundo da propriedade, em que ele havia escondido armas e explosivos durante a guerra. Foi ali, no verão de 1989, que uma versão mais jovem de Christopher Keller sofreu um brutal interrogatório nas mãos de Eamon Quinn. Agora Madeline e Katerina assumiram o lugar de Keller. Quinn deixou comida e cobertores suficientes para que aguentassem a fria tarde de dezembro e trancou a porta com dois fortes cadeados. Então caminhou com Billy Conway pelo caminho de terra que levava à casa principal. Conway estava olhando para o chão, as mãos enfiadas no bolso da frente de seu casaco. Parecia muito preocupado. Estava sempre assim.
— Quanto tempo temos? — ele perguntou.
— Se eu tivesse de chutar — respondeu Quinn —, ele já está aqui. Allon, também.
— Procurando por mim, sem dúvida.
— Só podemos esperar.
— E se Keller quiser me ver? O que acontece?
— Você faz o jogo duplo, Billy, como sempre fez. Diga que estão perdendo tempo procurando por mim no norte. Diga que ouviu um rumor de que estou na República.
— E se ele não acreditar em mim?
— Por que não acreditaria, Billy? — Quinn colocou a mão no ombro de Conway e sorriu. — Você era o melhor agente dele.
73
ARDOYNE, BELFAST OCIDENTAL
KELLER ESTACIONOU O CARRO bem na frente da casa e entrou correndo no jardim. Ele abriu a porta e seguiu o som das vozes até a cozinha. Ali, encontrou Gabriel e Maggie Donahue sentados à mesa, cada um com uma xícara de chá. Havia uma pilha grande de notas usadas, algumas peças de roupa masculina, vários artigos de toalete, uma fotografia e uma Glock 17. A Glock estava poucos centímetros além do alcance de Maggie Donahue. Ela estava sentada reta, com um braço sobre a cintura, como se estivesse se protegendo, e um cigarro queimando entre os dedos da mão levantada. Keller percebeu que ela estivera chorando alguns minutos antes. Agora seus traços duros tinham colocado a máscara de reserva e desconfiança de Belfast. Gabriel estava inexpressivo, um padre com uma arma e uma jaqueta de couro. Por alguns segundos, ele pareceu não perceber a presença de Keller. Então olhou para ele e sorriu.
— Sr. Merchant — falou cordialmente —, que bom que veio. Gostaria que conhecesse minha nova amiga Maggie Donahue. Maggie estava me contando como Billy Conway a forçou a colocar essas coisas na casa dela. — Gabriel acrescentou: — Maggie vai nos ajudar a encontrar Eamon Quinn.
74
CROSSMAGLEN, CONDADO DE ARMAGH
A ESTRUTURA DE METAL ENRUGADO no centro da fazenda Fagan media seis por 12, com fardos de feno em uma ponta e uma grande quantidade de ferramentas enferrujadas e equipamentos em outra. Tinha sido criada de acordo com as exatas especificações de Jimmy Fagan e montada em sua fábrica em Newry. A porta externa era bastante pesada e o chão levantado continha uma portinhola bem escondida que levava a um dos maiores esconderijos de armas e explosivos na Irlanda do Norte. Madeline Hart não sabia nada disso. Ela só sabia que não estava sozinha; o cheiro de tabaco velho e xampu de hotel barato mostravam isso. Finalmente, uma mão tirou o capuz da cabeça dela e gentilmente tirou a fita de sua boca. Mesmo assim, ela não tinha noção de onde estava, pois a escuridão era absoluta. Ficou sentada silenciosamente, de costas para os fardos de feno, as pernas esticadas. Então perguntou:
— Quem está aí?
Um isqueiro se acendeu, um rosto se inclinou para perto da chama.
— Você — sussurrou Madeline.
O isqueiro se apagou, a escuridão voltou. Então uma voz falou com ela em russo.
— Desculpa — falou Madeline —, mas não entendo.
— Disse que deve estar com sede.
— Muita — respondeu Madeline.
Uma garrafa de água se abriu com um ruído. Madeline encostou os lábios no plástico e bebeu.
— Obrigada...
Ela parou. Não queria mostrar a gratidão desamparada do cativo por seu captor. Então, percebeu que Katerina também era cativa.
— Deixe-me ver seu rosto de novo.
O isqueiro se acendeu pela segunda vez.
— Não consigo vê-la muito bem — disse Madeline.
Katerina aproximou o isqueiro do seu rosto.
— Como estou? — ela perguntou.
— Exatamente como estava em Lisboa.
— Como sabe sobre Lisboa?
— Um amigo meu estava observando você do outro lado da rua. Ele tirou uma foto sua.
— Allon?
Madeline não falou nada.
— É uma pena que você o tenha conhecido. Ainda estaria vivendo como uma princesa em São Petersburgo. Agora está aqui.
— Onde é aqui?
— Nem eu tenho certeza. — Katerina tirou um cigarro do maço e depois ofereceu para Madeline. — Fuma?
— Deus, não.
— Você sempre foi a garota boazinha, não é mesmo? — Katerina encostou a ponta do cigarro na chama e deixou que ela se apagasse.
— Por favor — disse Madeline. — Fiquei no escuro por muito tempo.
Katerina acendeu de novo o isqueiro.
— Caminhe um pouco — disse Madeline. — Quero ver onde estamos.
Katerina andou com o isqueiro pelo perímetro do galpão, parando na porta.
— Tente abri-la.
— Não pode ser aberta por dentro.
— Tente.
Katerina se encostou na porta, mas ela nem se mexeu.
— Alguma outra ideia brilhante?
— Acho que poderíamos colocar fogo no feno.
— A essa altura — disse Katerina — tenho certeza de que ele ficaria mais do que feliz em deixar que a gente morra queimada.
— Quem?
— Eamon Quinn.
— O irlandês?
Katerina assentiu.
— O que ele vai fazer?
— Primeiro, vai matar Gabriel Allon e Christopher Keller. Depois vai me trocar por vinte milhões de dólares com o Moscou Center.
— Eles vão pagar?
— Talvez. — Katerina fez uma pausa e acrescentou: — Especialmente se o acordo incluir você.
O isqueiro se apagou. Katerina se sentou.
— Como devo chamá-la? — ela perguntou.
— Madeline, claro.
— Não é seu verdadeiro nome.
— É o único nome que tenho.
— Não, não é. Nós a chamávamos de Natalya no campo. Não se lembra?
— Natalya?
— É — ela disse. — Pequena Natalya, filha do general da KGB. Tão bonita. E aquele sotaque inglês que lhe deram. Você parecia uma bonequinha. — Ela ficou em silêncio por um momento. — Eu adorava você. Você era tudo que eu tinha naquele lugar.
— Então por que me sequestrou?
— Na verdade, eu devia matar você. O Quinn, também.
— Por que não matou?
— Quinn mudou os planos.
— Mas você teria me matado se tivesse a chance?
— Eu não queria — Katerina respondeu depois de um momento. — Mas, sim, acho que teria matado.
— Por quê?
— Antes eu que outra pessoa. Além disso — ela acrescentou —, você traiu seu país. Você desertou.
— Não era meu país. Não pertencia àquele lugar.
— E aqui, Natalya? Você pertence a esse lugar?
— Meu nome é Madeline. — Ela não falou nada por um tempo. — O que vai acontecer se eu voltar à Rússia?
— Suponho que vão passar vários meses arrancando todo conhecimento que puderem de seu cérebro.
— E depois?
— Vysshaya mera.
— A mais alta medida de punição?
— Achei que não falasse russo.
— Um amigo me ensinou essa expressão.
— Onde está seu amigo agora?
— Ele vai me encontrar.
— E aí Quinn vai matá-lo. — Katerina acendeu de novo o isqueiro. — Está com fome?
— Faminta.
— Acho que nos deixaram umas tortas de carne.
— Eu adoro tortas de carne.
— Deus, mas você é tão inglesa. — Katerina desembrulhou uma das tortas e colocou com cuidado nas mãos de Madeline.
— Seria mais fácil se você cortasse a fita adesiva.
Katerina fumou contemplativamente na escuridão.
— Quanto você se lembra? — ela perguntou.
— Sobre o campo?
— Isso.
— Nada — disse Madeline. — E tudo.
— Não tenho fotos minhas de quando era jovem.
— Nem eu.
— Lembra-se de como eu era?
— Você era linda — disse Madeline. — Eu queria ser exatamente como você.
— Isso é engraçado — respondeu Katerina —, porque eu queria ser como você.
— Eu era uma criança muito chata.
— Mas você era uma boa garota, Natalya. E eu era totalmente diferente.
Katerina não falou mais nada. Madeline levantou as mãos amarradas e tentou comer mais torta.
— Não pode cortar a fita adesiva? — ela pediu.
— Eu gostaria, mas não posso.
— Por que não?
— Porque você é uma boa garota — disse, esmagando o cigarro no chão do galpão. — E só vai me atrapalhar.
75
UNION STREET, BELFAST
TINHA PASSADO UNS MINUTOS depois do meio-dia quando Billy Conway entrou no Tommy O’Boyle’s na Union. Rory Gallagher, um cara que tinha sido do IRA, estava limpando os copos de pint atrás do balcão.
— Eu estava a ponto de mandar um grupo de busca — ele falou.
— Longa noite — respondeu Conway. — Mais longa do que esperava.
— Problemas?
— Complicações.
— Vai ter mais, infelizmente.
— O que você está falando?
Gallagher olhou para a escada.
— Você tem companhia.
Os pés de Keller estavam sobre a mesa de Billy Conway quando a porta do escritório se abriu com um rangido. Conway ficou parado na entrada. Parecia que tinha visto um fantasma. De certa forma, pensou Keller, era verdade.
— Oi, Billy. Bom ver você de novo.
— Eu achei...
— Que eu estivesse morto?
Conway não falou nada. Keller se levantou.
— Vamos dar uma volta, Billy. Precisamos conversar.
A ocasião do retorno de Christopher Keller à Irlanda do Norte tinha precipitado uma das maiores reuniões da Brigada South Armagh do IRA Provisório desde a assinatura do Acordo da Sexta-Feira Santa. No total, 12 membros da unidade estavam naquele mesmo momento reunidos ao redor de Eamon Quinn e Jimmy Fagan na cozinha da fazenda em Crossmaglen. Oito dos presentes tinham cumprido longas sentenças na prisão de Maze, sendo libertados nos termos do acordo de paz. Outros quatro tinham trabalhado com Quinn no IRA Autêntico, incluindo Frank Maguire, cujo irmão Seamus tinha morrido nas mãos de Keller em Crossmaglen, em 1989.
Como sempre nessas reuniões, o ar estava pesado com a fumaça dos cigarros. Espalhado no centro da mesa havia um mapa da Ordnance Survey, já gasto e rasgado nas pontas, da região de South Armagh. Era o mesmo mapa que Fagan tinha usado durante o planejamento do massacre de Warrenpoint. Na verdade, algumas de suas marcas e anotações originais ainda estavam visíveis. Ao lado do mapa havia um celular, que às 12h15 começou a tocar. Era uma mensagem de texto de Rory Gallagher. Quinn sorriu. Keller e Allon logo estariam vindo para eles.
Keller e Billy Conway realmente deram uma volta, mas só até York Lane. Era uma rua calma, sem comércio ou restaurantes, só uma igreja num canto e uma fileira de prédios industriais do outro. Gabriel estava estacionado em um lugar onde não havia câmeras de segurança. Keller enfiou Billy Conway no banco do passageiro e entrou atrás. Gabriel, olhando para frente, calmamente ligou o motor.
— Onde está Eamon Quinn? — ele perguntou a Billy Conway.
— Eu não vejo Eamon Quinn há 25 anos.
— Resposta errada.
Gabriel quebrou o nariz de Conway com um soco. Então ele engatou a marcha e saiu do meio-fio.
O Ford Escort de Gabriel e Keller estava conectado a um satélite, um fato que Amanda Wallace tinha se esquecido de mencionar a eles. Por isso, o MI5 esteve seguindo o carro a manhã toda quando ele foi de Aldergrove até a casa segura, e depois até Stratford Gardens e York Lane. Além disso, o MI5 estava monitorando os movimentos do carro com a ajuda da rede CCTV de Belfast. Uma câmera na Frederick capturou uma imagem clara do homem no banco de passageiro — um homem que parecia estar sangrando muito pelo nariz. Um técnico do MI5 aumentou a imagem e enviou-a para uma das telas no centro de operações na Thames House. Graham Seymour estava vendo a mesma imagem em Vauxhall Cross.
— Você o reconhece? — perguntou Amanda Wallace.
— Já faz muito tempo — respondeu Seymour —, mas acredito que é Billy Conway.
— O Billy Conway.
— Em carne e osso.
— Ele era um dos nossos, não era?
— Não — falou Seymour. — Ele era meu. E Keller ajudou a recrutá-lo.
— Então por que está sangrando?
— Talvez nunca tenha sido realmente nosso, Amanda. Talvez fosse do Quinn o tempo todo.
Seymour ficou olhando o carro entrar na estrada M2 e ir para o norte. É a parte maravilhosa do nosso negócio, ele pensou. Nossos erros sempre voltam para nos assombrar. E, no final, todas as dívidas são pagas.
76
FLORESTA CREGGAN, CONDADO DE ANTRIM
ELES NÃO PERGUNTARAM MAIS nada a Billy Conway e ele tampouco fez alguma pergunta. O sangue escorreu livremente de seu nariz quebrado durante a viagem ao norte até Larne, mas quando chegaram a Glenarm uma crosta preta tinha se formado ao redor de seu nariz. Keller indicou para Gabriel seguir a Carnlough Road, depois continuar para o norte por Killycarn. Eles seguiram até virar uma estrada de terra. Então seguiram um pouco mais, até desaparecer a última fazenda e a floresta Creggan aparecer. Keller mandou Gabriel parar e desligar o motor. Então, olhou para Billy Conway.
— Lembra-se desse lugar, Billy? Costumávamos vir até aqui nos velhos tempos quando você tinha algo importante para me contar. A gente vinha até aqui no velho Granada e tomava umas cervejas enquanto ouvíamos as armas em Creggan Lodge. Lembra, Billy?
A voz de Keller tinha assumido o sotaque de Belfast ocidental, Falls Road com um toque de Ballymurphy. Billy Conway não falou nada. Estava olhando para a frente. Um olhar perdido, pensou Gabriel. O olhar de um morto.
— Sempre cuidamos bem de você, não foi, Billy? Pagamos bem. Protegemos você. Mas você não precisava de proteção, não é, Billy? Estava trabalhando para o IRA o tempo todo. Trabalhando para Eamon Quinn. Você é um traidor, Billy. Um maldito, safado, traidor. — Keller colocou sua Glock na nuca dele. — Não vai negar isso, Billy?
— Isso foi há muito tempo.
— Não tanto — falou Keller. — Não foi o que me disse no dia em que renovamos nossa amizade em Belfast? O dia em que encontrou Maggie Donahue para mim. O dia em que me mandou para uma armadilha. — Keller pressionou a ponta da arma contra o crânio de Conway. — Não vai negar isso, Billy?
Billy Conway ficou em silêncio.
— Você sempre foi honesto, Billy.
— Você nunca deveria ter voltado.
— Graças a Quinn, não tivemos muita escolha. Quinn me trouxe aqui de volta. E você garantiu que eu encontraria as coisas que ele queria que eu encontrasse. Uma esposa e uma filha. Uma pilha de dinheiro. Uma passagem de trem. Uma fotografia de uma rua de Lisboa. Maggie Donahue não queria participar daquilo. Ela estava muito ocupada tentando sobreviver em um buraco como Ardoyne sem marido. Mas você a ameaçou para que fizesse isso. Disse que a mataria se ela fosse à polícia. A filha dela, também. E ela acreditou em você, Billy, porque sabe o que acontece com traidores em Belfast ocidental. — Keller colocou a ponta da arma contra o rosto de Billy Conway. — Negue isso, Billy.
— O que você quer?
— Quero que jure que nunca vai chegar perto daquela mulher e da filha dela de novo.
— Eu juro.
— Muito esperto, Billy. Agora saia do carro.
Conway não se mexeu. Keller acertou o nariz quebrado com a arma.
— Mandei sair!
Conway soltou o cinto de segurança e desceu do carro. Keller o seguiu.
— Comece a andar — ele disse. — E enquanto estiver andando, me diga onde posso encontrar Eamon Quinn.
— Não sei onde ele está.
— Claro que sabe, Billy. Você sabe de tudo.
Keller empurrou Conway pelo caminho e foi atrás dele. Das árvores da floresta Creggan veio o barulho de uma 12 mm de um caçador. Conway congelou. Com um golpe do cano da Glock, Keller o empurrou.
— Como Quinn saiu da Inglaterra?
— Os Delaney.
— Jack e Connor?
— É.
— Ele não estava sozinho, estava, Billy?
— Tinha duas mulheres com ele.
— Onde os Delaney deixaram todos eles?
— Shore Road, perto do castelo.
— Você estava lá?
— Fui eu que os peguei.
— Que marca de carro você tem?
— Peugeot.
— Roubado, emprestado ou alugado?
— Roubado. Placas falsas.
— O favorito de Quinn.
Mais dois tiros, mais perto. Vários faisões saíram voando de um campo. Pássaros espertos, pensou Keller.
— Onde ele está, Billy? Onde está o Quinn?
— Está em South Armagh — disse Conway depois de um momento.
— Onde?
— Crossmaglen.
— A fazenda de Jimmy Fagan?
Conway assentiu.
— O mesmo lugar que levamos você aquela noite. Quinn disse que quer pregar você na cruz por seus pecados.
— Levamos? — perguntou Keller.
Houve um silêncio.
— Você estava lá, Billy?
— Durante uma parte — admitiu Conway. — As duas mulheres estão no mesmo prédio em que Quinn o amarrou naquela cadeira.
— Tem certeza?
— Eu mesmo as coloquei ali.
Eles tinham chegado ao limite das árvores. Billy Conway parou de repente.
— Vire-se, Billy. Tenho mais uma pergunta.
Billy Conway ficou parado por um bom tempo. Então virou-se lentamente para encarar Keller.
— O que você quer saber? — ele perguntou.
— Quero um nome, Billy. O nome do homem que contou a Eamon Quinn que eu estava apaixonado por uma garota de Ballymurphy.
— Não sei quem foi.
— Claro que sabe, Billy. Você sabe de tudo.
Conway não falou nada.
— O nome dele — falou Keller, apontando a arma para o rosto de Conway. — Diga o nome dele.
Conway levantou o rosto para o céu cinzento e falou o próprio nome. A visão de Keller ficou embaçada de raiva e ele sentiu que suas pernas começaram a tremer. A arma forneceu uma sensação de equilíbrio. Ele não se lembra de ter puxado o gatilho, só sentiu o coice controlado da arma em sua mão e uma nuvem de vapor. Ele se ajoelhou até ter certeza de que Billy Conway estava morto. Então se levantou e voltou para o carro.
77
RANDALSTOWN, CONDADO DE ANTRIM
NOS ARREDORES DE RANDALSTOWN, o celular do MI6 de Keller começou a vibrar. Ele tirou do bolso do casaco e olhou para a tela.
— Graham Seymour.
— O que ele quer?
— Ele está perguntando por que Billy Conway não está mais no carro.
— Estão nos espionando.
— É evidente.
— O que vai falar para ele?
— Não tenho certeza. É um território novo para mim.
Keller levantou o telefone e perguntou:
— Você acha que isso está sendo usado como um transmissor?
— Pode ser.
— Talvez deveria jogar pela janela.
— O MI6 vai descontar do seu salário. Além disso — acrescentou Gabriel —, poderia ser útil no País dos Bandidos.
Keller colocou o telefone no console.
— Como é? — perguntou Gabriel.
— O País dos Bandidos?
— Crossmaglen.
— É o tipo de lugar que inspira canções. — Keller olhou pela janela por um momento antes de continuar. — South Armagh estava totalmente sob o controle dos provos durante a guerra, um estado do IRA de fato, e Crossmaglen era sua cidade sagrada.
Ele olhou para Gabriel e acrescentou:
— A Jerusalém deles. O IRA nunca precisou adotar uma estrutura de célula ali. Operava como um batalhão. Um exército— acrescentou Keller. — Eles passavam os dias trabalhando em seus campos e à noite iam matar soldados britânicos. Antes de cada patrulha eram lembrados de que debaixo de cada arbusto ou pilha de pedras havia provavelmente uma bomba ou um atirador. South Armagh era uma galeria de tiro e nós éramos os alvos.
— Continue.
— Chamávamos Crossmaglen de CMG — Keller continuou depois de um momento. — Tínhamos uma torre de observação na praça principal chamada Golf Five Zero. Você corria risco de vida sempre que entrava. As barracas não tinham janelas e eram à prova de morteiros. Era como servir em um submarino. Quando fugi da fazenda de Jimmy Fagan aquela noite, nem tentei chegar a CMG. Sabia que nunca chegaria ali vivo. Em vez disso, fui para o norte até Newtownhamilton. Chamávamos de NTH.
Keller sorriu e disse:
— Costumávamos brincar que significava “Nenhum Terrorista Hoje”.
— Lembra-se da fazenda de Fagan?
— Não é algo que possa esquecer — respondeu Keller. — Está na estrada Castleblayney. Uma parte das terras dele estão perto da fronteira. Durante a guerra era uma das maiores rotas de contrabando entre a Brigada South Armagh e os elementos do IRA na República.
— E o galpão?
— Está situado na ponta de um grande pasto, cercado por muros de pedra e guardiães. Se o PSNI chegar perto daquela fazenda, Fagan e Quinn vão ficar sabendo.
— Está imaginado que Madeline está lá?
Keller não falou nada.
— E se Conway estava mentindo de novo? Ou se Quinn já a tirou de lá?
— Não tirou.
— Como pode ter certeza?
— Porque assim é o Quinn. A questão é: — disse Keller — contamos a nossos amigos em Vauxhall Cross e Thames House o que sabemos?
Gabriel olhou para o celular do MI6 e disse:
— Acho que acabamos de fazer isso.
Eles passaram por baixo de um grupo de câmeras da CCTV que vigiava a M22. Keller tirou um cigarro do maço e o girou apagado entre as pontas dos dedos.
— Não tem como pisarmos em South Armagh sem sermos vistos.
— Então vamos pela porta dos fundos.
— Não temos capacidade de visão noturna ou silenciadores.
— Nem rádios — acrescentou Gabriel.
— Quanta munição você tem?
— Um pente cheio e um de reserva.
— Tenho uma bala a menos — falou Keller.
— Uma pena.
O celular de Keller vibrou pela segunda vez.
— O que ele quer? — perguntou Gabriel.
— Está perguntando para onde vamos.
— Acho que não estão ouvindo, afinal.
— O que devo falar para ele?
— Ele é seu chefe, não meu.
Keller digitou uma mensagem e devolveu o telefone ao console.
— O que você falou?
— Que estamos investigando uma potencial informação.
— Vai ser um ótimo agente do MI6, Christopher.
— Agentes do MI6 não atuam em South Armagh sem apoio. — Keller disse. — E nem um homem que está a ponto de ser o chefe da inteligência israelense, sem mencionar pai de duas crianças.
A estrada se transformava em uma autoestrada. Eram duas e meia da tarde. O pôr do sol aconteceria em noventa minutos. Keller acendeu o cigarro e viu como Gabriel instintivamente abria a janela para ventilar a fumaça.
— Sabe — disse Keller —, nada disso teria acontecido se você tivesse mandado Graham Seymour passear quando ele foi até Roma. Você estaria trabalhando no seu Caravaggio e eu estaria bebendo uma taça de vinho no meu terraço na Córsega.
— Alguma outra pérola de sabedoria, Christopher?
— Só uma pergunta.
— Qual?
— Quem é Tariq al-Hourani?
Em Londres a mesma imagem de vídeo piscou nos centros operacionais da Thames House e Vauxhall Cross — uma luz azul piscando indo para o oeste cruzando pelo Ulster na A6. Quando a luz chegou a Castledawson, virou para o sul em direção a Cookstown. Graham Seymour mandou um terceiro texto para o celular de Keller, mas dessa vez não houve resposta, um fato que ele compartilhou, relutante, com Amanda Wallace do outro lado do rio.
— Onde você acha que eles estão indo? — ela perguntou.
— Se eu fosse chutar, diria que estão voltando ao lugar onde tudo isso começou.
— O País dos Bandidos?
— A fazenda de Jimmy Fagan, para ser mais preciso.
— Eles não podem ir lá sozinhos.
— Não tenho certeza se temos como impedi-los nesse ponto.
— Pelo menos ligue o celular de Keller para podermos escutar o que estão falando.
Seymour fez contato visual com um dos técnicos e deu a ordem. Um momento depois, ele ouviu Gabriel explicando como Eamon Quinn, em um campo de treinamento terrorista na Líbia, tinha feito amizade com um homem chamado Tariq al-Hourani. Não, pensou Seymour. Não havia como pará-los agora.
78
CROSSMAGLEN, SOUTH ARMAGH
ELES PARARAM EM COOKSTOWN tempo suficiente para comprar um mapa da Ordnance Survey, uma latinha de cera preta para sapatos e duas facas de cozinha antes de retomar o caminho para Omagh. Uma chuva fraca começou a cair, o suficiente para que Keller tivesse que manter o para-brisa funcionando até Castleblayney, na República, do outro lado da fronteira. Bem do lado de fora da cidade estava Lough Muckno. Keller seguiu uma faixa da estrada ao redor da margem sul do lago, em um vale pontilhado de pequenas fazendas. Cada uma das casas representava uma armadilha em potencial. Fronteira ou não, eles estavam agora no País dos Bandidos.
Finalmente, Keller colocou o carro em um arbusto de abrunheiro denso nas margens do rio Clarebane, desligando o motor e apagando as luzes. O celular do MI6 estava no console, brilhando com mensagens de texto não lidas de Vauxhall Cross. Gabriel entregou para Keller e disse:
— Poderia ser hora de deixar Graham saber onde estamos.
— Algo me diz que ele já sabe.
Keller ligou para o número de Seymour em Londres. Seymour atendeu imediatamente.
— Já era hora — ele gritou.
— Está vendo onde estamos?
— Pelos meus cálculos, vocês estão a menos de um quilômetro da fronteira.
— Alguma chance de nos dar alguma cobertura?
— Já está a caminho.
— Não falei o que precisamos.
— Falaram, sim. E mais uma coisa — disse Seymour. — Vou precisar de um recibo daquelas facas. O mapa e a cera para sapatos também.
Às duas horas da tarde, tinha ficado evidente a Eamon Quinn que Billy Conway estava com sérios problemas. Às quatro, Quinn presumiu que Conway estava sob custódia britânica ou, mais provavelmente, caído em algum lugar da província com uma bala na cabeça. Claramente, a morte dele não tinha sido nada agradável. Antes disso, ele teria divulgado duas informações: a localização exata de Madeline Hart e a verdade sobre seu papel na morte de Elizabeth Conlin, 25 anos antes. Quinn não tinha dúvidas de como seu antigo adversário iria reagir. Keller era um veterano da SAS transformado em assassino profissional. Ele voltaria à fazenda de Jimmy Fagan. E Quinn estaria esperando.
Às quatro e meia, quando o sol estava baixando nas colinas, Quinn despachou 12 homens para os duzentos acres da fazendo do clã Fagan. Doze veteranos da lendária Brigada South Armagh. Doze atiradores treinados com muito sangue britânico nas mãos. Doze homens que queriam Christopher Keller morto tanto quanto Quinn. Além disso, Jimmy Fagan colocou outros oito homens em vários pontos ao redor de South Armagh para servir como patrulheiros — incluindo Francis McShane, que estava sentado atrás do volante de um carro estacionado em frente à base da PSNI, em Crossmaglen.
Quinn e Fagan se sentaram na cozinha da fazenda, fumando, esperando. A Makarov de Quinn estava na mesa, um silenciador na ponta. Perto dela havia um telefone e perto do telefone estava o velho mapa do que já tinham sido os trezentos quilômetros quadrados mais perigosos do mundo. Os olhos de Quinn viajaram de leste a oeste: JONESBOROUGH, FORKHILL, SILVERBRIDGE, CROSSMAGLEN... Locais de glória, ele pensou. Locais de morte. Essa noite, ele escreveria mais um capítulo na lenda.
Quinn olhou para o relógio, que tinha ganhado de um homem chamado Tariq al-Hourani em um campo perto do mar. Eram 19h15. Ele tirou o relógio e leu a inscrição na parte de trás.
Mais nenhum erro de temporizador...
Depois de escurecer os rostos com a cera para sapatos, Gabriel e Keller caminharam pelas margens do rio Clarebane; Keller ia à frente, Gabriel, um passo atrás. As nuvens obscureciam a lua e as estrelas; o barulho da chuva cobria suas pegadas. Keller fluía como água sobre a terra, rápido, sem um som. Gabriel, o soldado secreto da rua, fazia o melhor para imitar os movimentos de seu amigo. Keller segurava a arma com as duas mãos, no nível dos olhos. Gabriel, atrás dele, apontava o revólver para baixo e para a direita.
Cinco minutos depois de deixar o carro, Keller parou e, com a ponta de sua Glock, fez um gesto reto apontando para o chão. Significava que tinham chegado à fronteira de Ulster. Ele virou para o norte e levou Gabriel por vários pastos, cada um dividido por cercas vivas. A fronteira estava a poucos metros à direita. Antes, havia torres de vigilância usadas por granadeiros e hussardos, mas agora apenas silos de grãos e celeiros marcavam o horizonte. Keller, o sobrevivente ensanguentado de uma luta suja em South Armagh, movia-se lentamente, plantando cada passo como se houvesse uma mina debaixo de seus pés, separando cada cerca-viva como se o assassino estivesse esperando do outro lado.
Depois de caminharem cerca de um quilômetro dessa maneira complicada, Keller levou Gabriel até um caminho de pedras entre duas lagoas. De frente para eles havia uma fileira de árvores e, depois delas, estava a fazenda de Jimmy Fagan, na Irlanda do Norte. Keller foi avançando, de uma árvore a outra, e depois parou. A uns nove metros, coberto no escuro, havia um homem com uma AK-47. A arma tinha um silenciador de fibra de carbono, uma arma séria para um predador sério. Keller cuidadosamente removeu seu celular do MI6 e enviou uma mensagem de texto pré-digitada para Vauxhall Cross. Então tirou a faca de seu bolso e esperou.
Como era uma questão doméstica, Graham Seymour permitiu que Amanda Wallace fizesse a ligação. Chegou à base da PSNI em Crossmaglen às 19h27 e em um minuto várias unidades estavam saindo para a Newry, as luzes girando. Às sete e meia da noite, o celular de Jimmy Fagan estava zumbindo com mensagens de texto de seus vigilantes.
— Quantas unidades? — perguntou Quinn.
— Seis, pelo menos, incluindo alguns rapazes em posições táticas.
— Onde eles estão indo?
— Descendo pela Dundalk Road.
— O lado errado — disse Quinn.
— Nem perto.
Outro texto chegou ao telefone de Fagan.
— O que diz?
— Estão virando à direita em Foxfield.
— Ainda no lado errado.
— O que você acha que isso quer dizer?
— Quer dizer que você deveria dizer aos seus rapazes para ficarem preparados, Jimmy.
— Por quê?
Quinn sorriu.
— Porque estão aqui.
Às 19h31, o homem parado a nove metros de Christopher Keller tirou a mão direita da AK-47 e usou-a para tirar um celular do bolso. O telefone brilhou levemente e, no brilho de sua tela, Keller viu o rosto do homem que logo estaria morto. Tinha a idade, a altura e o mesmo corpo que Keller. Poderia ter sido um fazendeiro. Poderia ter dirigido um caminhão ou tido empregos estranhos. Em outra vida ele tinha sido o inimigo de Keller. Agora era o inimigo de novo.
Como todos os veteranos da Brigada South Armagh, o homem parado a nove metros de Keller conhecia cada centímetro da sua terra manchada de sangue. Ele conhecia cada valeta, cada galho de árvore, todo buraco onde uma arma tinha sido escondida ou uma armadilha com bomba tinha sido enterrada. Ele sabia, também, a diferença entre o som de um animal e o som de um homem. Tarde demais, ele tirou os olhos de seu telefone e viu Keller caminhando para ele, uma faca em uma mão, uma arma na outra. Keller forçou o homem a ficar no chão. Então, levou a faca até sua garganta e a manteve aí até as mãos do homem soltarem o celular e a AK-47. Keller segurou a arma; Gabriel, o celular. Então eles avançaram silenciosamente pelo campo, em direção ao galpão de metal, seis por 12 metros, onde Keller deveria ter morrido há muito tempo.
— Todo mundo respondeu? — perguntou Quinn.
— Todo mundo menos Brendan Magill.
— Onde ele está?
— Lado oeste da propriedade, contra a fronteira.
— Tente de novo.
Jimmy Fagan enviou a Magill uma mensagem de texto. Depois de noventa segundos não houve resposta.
— Parece que nós os encontramos — disse Quinn.
— E agora?
— Mate a isca. E depois me traga Keller e Allon vivos.
Fagan digitou a mensagem e apertou SEND. Quinn levou a Makarov para fora para ver os fogos de artifício.
Dez metros além do ponto onde Brendan Magill estava caído morto havia um muro de pedra que seguia o eixo norte-sul. Gabriel se escondeu atrás dele depois que uma bala passou a poucos centímetros de sua orelha direita. Keller se jogou no chão perto dele quando os tiros atingiram as pedras do muro, fazendo voar faíscas e fragmentos. A fonte dos tiros ficou em silêncio, então Gabriel só tinha uma vaga ideia da direção em que estava vindo. Ele levantou a cabeça acima do muro para procurar alguma luz, mas outra rajada de tiros obrigou-o a se abaixar. Keller estava agora se arrastando para o norte pela base do muro. Gabriel o seguiu, mas parou quando Keller de repente atirou com a AK-47 do morto. Um grito distante indicou que os tiros de Keller tinham atingido seu alvo, mas em um instante eles estavam sendo atacados de várias direções. Gabriel deitou no chão ao lado de Keller, a Glock em uma mão, o telefone do morto na outra. Depois de uns segundos ele percebeu que estava pulsando com uma mensagem. O texto era aparentemente de Eamon Quinn e dizia: MATE A GAROTA...
79
CROSSMAGLEN, SOUTH ARMAGH
NO MEIO DO MONTE de implementos agrícolas quebrados e desmembrados do galpão de Jimmy Fagan, Katerina tinha encontrado uma foice, enferrujada e suja, uma peça de museu, talvez a última foice de toda a Irlanda, norte ou sul. Ela segurou com força nas mãos e ouviu o som de homens correndo pelo caminho. Dois homens, ela pensou, talvez três. Ela se posicionou encostada na porta deslizante do galpão. Madeline estava no lado oposto do espaço, encapuzada, as mãos amarradas, encostada nos fardos de feno. Seria a primeira e única coisa que os homens viriam ao entrar.
Abriram os cadeados, a porta correu, apareceu uma arma. Katerina reconheceu sua silhueta: uma AK-47 com um silenciador. Ela conhecia bem. Tinha sido a primeira arma que ela tinha usado no campo. A grande AK-47! Liberadora dos oprimidos! A arma estava apontada para cima em um ângulo de 45 graus. Katerina não tinha opção a não ser esperar até ela se abaixar na direção de Madeline. Então levantou a foice e girou com toda a força que tinha em seu corpo.
A menos de duzentos metros, agachado atrás de um muro de pedra no lado ocidental da propriedade de Jimmy Fagan, Gabriel mostrou a mensagem de texto para Christopher Keller. Keller imediatamente olhou por cima do muro e viu rápidas luzes na porta do galpão. Quatro luzes, quatro tiros, mais do que suficientes para eliminar duas vidas. Uma rajada de AK-47 obrigou-o a se abaixar de novo. Com os olhos selvagens, ele agarrou Gabriel pelo casaco e gritou:
— Fique aqui!
Keller se arrastou pelo muro e desapareceu de vista. Gabriel ficou ali por alguns segundos enquanto as balas caíam sobre sua posição. Então, de repente ele estava de pé e correndo pelo pasto escurecido. Correndo para um carro em uma praça cheia de neve em Viena. Correndo para a morte.
O golpe que Katerina acertou no pescoço do homem segurando a AK-47 resultou em uma decapitação parcial. Mesmo assim, ele conseguiu apertar o gatilho antes que ela arrancasse a arma dele — um tiro que acertou os fardos a poucos centímetros da cabeça de Madeline. Katerina jogou o homem morto de lado e rapidamente acertou dois tiros no peito do segundo homem. O quarto tiro foi para a criatura parcialmente decapitada estrebuchando a seus pés. No léxico do SVR, era um tiro de controle. Também era um tiro de misericórdia.
Quando o tiroteio terminou, Madeline arrancou o capuz. Suas mãos ainda estavam amarradas. Katerina cortou a fita e a ajudou a se levantar. Do lado de fora, a batalha continuava. De sua perspectiva no centro da propriedade, as linhas eram claramente traçadas em riscos de fogo branco. Duas figuras estavam avançando pelo pasto do oeste, sob fogo pesado de várias posições. Outro homem estava parado na varanda da casa distante, assistindo ao espetáculo como se tivesse sido organizado para sua diversão pessoal. Katerina suspeitava de que os dois homens se aproximando do oeste eram Gabriel Allon e Christopher Keller, e o homem na varanda era Quinn.
Katerina forçou Madeline a se agachar. Então se ajoelhou e atirou quatro vezes contra um dos homens de Quinn. Instantaneamente, o fogo que vinha daquela posição parou. Mais quatro tiros eliminaram um segundo membro do time de Quinn, e um único tiro bem feito erradicou um terceiro. A pose de Quinn não era mais tão tranquila. Katerina atirou várias vezes contra ele, obrigando-o a voltar para a fazenda. Então, Katerina se virou para Madeline, mas ela havia desaparecido.
Descia correndo a colina em direção a Allon e Keller, cansada e desequilibrada, como uma boneca que tivesse recuperado a vida. Katerina gritou para que se abaixasse, mas não funcionou; medo e gravidade mantinham Madeline em seu caminho. Katerina se virou para olhar para Quinn, e foi então que o tiro a atingiu. Um tiro perfeito, bem no peito. Katerina nem sentiu seu impacto, nem sentiu dor. Ela caiu de joelhos, as mãos esticadas ao longo do corpo, o rosto voltado para o céu escuro. Quando caiu na terra de South Armagh, imaginou que estava se afogando em um lago de sangue. Uma mão tentava puxá-la para a superfície. Então, a mão a soltou e ela estava morta.
O tiroteio havia terminado quando Madeline colapsou nos braços de Gabriel. Keller deixou para trás a AK-47 e, armado só com a Glock, cruzou o pasto em direção à casa de Jimmy Fagan. Havia buracos de bala na fachada e uma cortina voava da porta aberta. Keller pressionou seu rosto contra os tijolos, ouvindo algum som de dentro, e depois pulou para dentro com os braços esticados. Ele estava a ponto de atirar em Jimmy Fagan, mas parou quando percebeu o olhar sem vida em seus olhos e o buraco de bala no centro de sua testa. Keller rapidamente procurou na casa, mas Quinn não estava em nenhum lugar. Mais uma vez, Quinn sabiamente, tinha fugido do campo de batalha. Quinn, pensou Keller, morreria outro dia.
PARTE QUATRO
CASA
80
SOUTH ARMAGH — LONDRES
ERA O TIPO DE noite sobre as quais eles costumavam escrever canções. Oito homens mortos nas colinas verdes de South Armagh, seis por armas de fogo, dois por facas. Seus nomes estavam no quadro de honra da unidade mais famosa do IRA: Maguire, Magill, Callahan, O’Donnell, Ryan, Kelly, Collins, Fagan... Oito homens mortos nas colinas verdes de South Armagh, seis por armas de fogo, dois por facas. Era o tipo de noite sobre a qual eles costumavam escrever canções.
No futuro imediato, no entanto, não haveria baladas, apenas questionamentos. Entre os fatos nunca firmemente estabelecidos, por exemplo, estava quem tinha ligado para a polícia ou por quê. Até o delegado do PSNI, quando pressionado por repórteres, não conseguiu apresentar o registro que mostrava a hora ou a origem da ligação de emergência. Quanto ao motivo por trás do derramamento de sangue em Crossmaglen, ele só podia especular. A explicação mais plausível, ele disse, era que foi o resultado de uma longa disputa entre facções dissidentes do movimento republicano — apesar de não poder descartar a possibilidade de que drogas ilegais tinham tido seu papel. Ele até sugeriu que poderia existir uma ligação entre o massacre em Crossmaglen e o desaparecimento ainda não resolvido de Liam Walsh, um traficante com conhecidas ligações com o IRA Autêntico. E, apesar de não saber, sobre isso o delegado estava inteira e inquestionavelmente correto.
Suas teorias sobre a origem do massacre caíram razoavelmente bem no mundo, mas não nas comunidades de clãs de South Armagh. Nos bares onde eles estavam bebendo e nas caixas pretas onde confessavam seus pecados, era tudo conhecido. Os assassinatos não tiveram nada a ver com feudos ou drogas. Era coisa do Quinn. Eles sabiam outras coisas também, coisas que o delegado nunca mencionou na imprensa. Sabiam que havia duas mulheres presentes naquela noite, assim como um antigo membro da SAS chamado Christopher Keller. Uma das mulheres tinha sido morta, com um tiro no coração dado a quase cem metros por ninguém menos que o próprio Quinn. No final, Quinn tinha desaparecido sem deixar rastro. Eles iam encontrá-lo e dar a bala que ele tanto merecia, a bala que deveriam ter dado depois de Omagh. E depois iam encontrar o SAS chamado Keller e matá-lo, também.
Eles decidiram isso entre eles, como faziam com a maioria das coisas, e continuaram com suas vidas. Oito nomes foram acrescentados ao memorial do IRA em Cross Square, oito túmulos foram abertos no cemitério de St. Patrick. Na missa, o padre falou da ressurreição, mas, depois, nos cantos escuros do bar Emerald, eles só falaram em vingança. Oito homens mortos nas colinas verdes de South Armagh, seis por armas de fogo, dois por faca. Era coisa do Quinn. E Quinn ia pagar.
Naquele mesmo dia, em Londres, o diretor-geral do Serviço de Inteligência Secreto de Sua Majestade, Graham Seymour, anunciou que quatro agentes de segurança do MI6 tinham sido mortos em uma casa em uma parte remota da Cornualha ocidental. Além disso, falou Seymour, um empregado do departamento de pessoal do MI6 tinha cometido suicídio ao pular do terraço de Vauxhall Cross. Seymour se recusou a dizer se os dois eventos estavam ligados, mas a imprensa viu o momento dos anúncios como uma prova de que estavam. Foi um dos dias mais negros na orgulhosa história do serviço, e as consequências logo se espalharam por outros acontecimentos no mar da Irlanda. A imprensa britânica quase não notou quando o corpo de um dono de bar em Belfast chamado Billy Conway foi encontrado em uma floresta no condado de Antrim — ou, três dias depois, quando alguém fazendo uma caminhada tropeçou no corpo parcialmente decomposto de Liam Walsh na divisa do condado de Mayo. Cápsulas de nove milímetros foram recuperadas das duas vítimas, apesar de a análise de balística determinar que tinham vindo de duas armas diferentes. A Garda Síochána e o PSNI investigaram as mortes como incidentes separados. Não foi encontrada nenhuma conexão.
Na Alemanha, a polícia tinha feito uma descoberta perturbadora: outro corpo, outra bala de 9mm. O corpo pertencia a um homem que mais tarde seria identificado como um agente da inteligência russa chamado Alexei Rozanov. Ninguém sabia quem atirou. Possivelmente ele estava ligado à equipe de agentes que tinha matado o motorista e o guarda-costas russo em Hamburgo. Entre os aspectos mais perturbadores da descoberta estava o fato de que o passaporte do russo tinha sido encontrado enfiado em sua boca. Claramente, alguém quis enviar uma mensagem. E, até onde se sabe, a mensagem tinha sido recebida. O BfV, serviço de inteligência da Alemanha, detectou um forte aumento no nível de atividade russa. A contraparte britânica do BfV, o MI5, notou uma mudança parecida no perfil russo em Londres. Em Moscou, o Kremlin não escondeu seus sentimentos. O presidente russo jurou que os assassinos de Alexei Rozanov iriam receber “a maior medida” de punição possível. Quem acompanhava a inteligência russa sabia o que isso significava. O mais provável é que outro corpo logo iria aparecer.
Mas havia uma ligação entre os eventos na Alemanha, na Grã-Bretanha e nos 32 condados da Irlanda e de Ulster? Uma estrela desconhecida sobre a qual eles giravam em uma órbita bem marcada? Alguns canais de comunicação menores achavam que sim, e não demorou muito para que organizações prestigiosas chegassem à mesma conclusão. O DerSpiegel, da Alemanha, há muito um farol de jornalismo investigativo, ligou Israel ao assassinato de Alexei Rozanov e sua equipe de segurança — uma ligação que o escritório do primeiro-ministro israelense, em um raro comentário sobre questões de inteligência, negou totalmente. Logo depois, o The Irish Times sugeriu uma mão britânica no sequestro e morte de Liam Walsh, enquanto a RTÉ explorava o suposto papel de Walsh no atentado à bomba de Omagh, em agosto de 1998. O Daily Mail publicou com exclusividade o rumor de que o empregado do MI6 que tinha se suicidado era, na verdade, um espião da Rússia.
O Ministério de Relações Exteriores britânico negou a notícia, apesar de sua credibilidade ter sido questionada dois dias depois, quando o primeiro-ministro Jonathan Lancaster anunciou um conjunto draconiano de sanções econômicas e diplomáticas contra a Rússia e os agentes da ex-KGB que controlavam o Kremlin. Os motivos eram “um padrão de comportamento russo no solo russo e em outros países”. Incluídos nas sanções estavam um congelamento dos ativos em Londres de vários oligarcas pró-Kremlin e restrições a viagens para a Grã-Bretanha. Com grande fanfarra, o presidente russo anunciou um pacote de sanções retaliatórias. As ações russas desabaram com as notícias. O rublo caiu para o câmbio mais baixo em comparação com as principais moedas ocidentais.
Mas por que o primeiro-ministro britânico tinha atuado tão duramente? E por que agora? Os fofoqueiros acharam sua explicação inicial muito fraca. Claramente, diziam, deveria haver algo mais do que um mau comportamento russo. Afinal, os russos estavam se comportando mal há anos. E assim os repórteres pesquisaram, e os colunistas opinaram, e os analistas de televisão especularam e criaram teorias, algumas plausíveis, outras, não. Alguns conseguiram chegar perto da verdade, mas nenhum iria encontrar a fraca linha, parcialmente apagada, que ia de um homicídio nas margens de um lago russo congelado, do assassinato de uma princesa e culminando no derramamento de sangue nas colinas verdes de South Armagh. Nem iria ligar a aparentemente desconectada série de eventos com o lendário agente de inteligência israelense que morreu em um ataque à bomba na Brompton Road de Londres.
Mas ele não estava morto, claro. Na verdade, com um pouco de sorte, a imprensa britânica poderia tê-lo encontrado em Londres durante as tensas 48 horas imediatamente depois dos assassinatos em Crossmaglen. Seus movimentos foram ligeiros e o tempo era muito controlado, pois ele tinha importantes questões pessoais para resolver em casa. Ele resolveu algumas em Vauxhall Cross e acertou outras do outro lado do rio, em Thames House. Teve um jantar de negócios com a equipe da Estação Londres do Escritório, e no final da manhã seguinte apareceu sem avisar em uma galeria de arte em St. James para contar a um velho amigo que ainda estava entre os vivos. O velho amigo ficou aliviado ao vê-lo, mas bravo por ter sido enganado. Foi, pensou Gabriel, cheio de remorso, algo muito cruel.
De St. James ele viajou até uma casa vitoriana de tijolos vermelhos na área rural de Hertfordshire, que já tinha servido como campo de treinamento para novos recrutas do MI6. Agora Madeline Hart era a única moradora. Gabriel caminhou com ela por uma área tomada pelo nevoeiro, seguidos por uma equipe de guarda-costas. Eram quatro — o mesmo número que tinha morrido nas mãos de Quinn e Katerina na Cornualha.
— Você vai voltar lá alguma vez? — ela perguntou.
— Para a Cornualha?
Madeline assentiu lentamente.
— Não — falou Gabriel. — Acho que não.
— Desculpe — ela disse. — Parece que arruinei tudo. Nada disso teria acontecido se você tivesse me deixado em São Petersburgo.
— Se quiser culpar alguém — falou Gabriel — culpe o presidente russo. Ele enviou sua amiga para matar você.
— Onde está o corpo dela?
— Graham Seymour ofereceu ao chefe do SVR em Londres.
— E?
— Parece que o SVR não está interessado. Afirmam que não sabem quem é ela.
— Onde vai terminar?
— Um túmulo sem marcas de um cemitério comum.
— O típico fim russo — disse Madeline, sombria.
— Antes ela do que você.
— Ela salvou minha vida. — E olhando para Gabriel e acrescentou: — A sua também.
Ele deixou Madeline no meio da tarde e viajou para Highgate, onde pagou uma dívida pendente com uma das mais importantes repórteres políticas de Londres. Quando terminou a reunião, era quase cinco da tarde. O voo para casa era às dez e meia da noite. Ele entrou correndo no carro da embaixada. Gabriel tinha mais um lugar para passar. Uma última restauração.
81
VICTORIA ROAD, SOUTH KENSINGTON
ERA UMA PEQUENA CASA com um portão de ferro e uns poucos degraus que levavam a uma porta branca. Havia vasos de flores na pequena varanda e na janela da sala havia uma luz acesa. A cortina estava aberta uns poucos centímetros; através dela, Gabriel podia ver um homem, o dr. Roberto Keller, sentado reto na cadeira de balanço. Ele estava lendo um jornal. Gabriel não conseguia discernir qual porque o vidro do carro estava molhado pela chuva e a fumaça de cigarro embaçava o interior. Keller não tinha parado de fumar desde que se encontrou com Gabriel em uma esquina de Holborn, seu temporário endereço em Londres. Agora ele estava olhando para a casa de seu pai como se fosse o alvo de uma operação de vigilância. Gabriel percebeu, de repente, que era a primeira vez que ele tinha visto Keller nervoso.
— Ele está velho — disse finalmente. — Mais velho do que imaginei que seria.
— Já faz muito tempo.
— Então acho que não vai se importar se nos sentarmos aqui por um ou dois minutos.
— O tempo que você precisar.
— A que horas é o seu voo?
— Não é importante.
Gabriel deu uma olhada discreta no relógio.
— Eu vi isso — falou Keller.
Na janela do outro lado da rua, uma mulher velha estava colocando uma xícara e um pires no cotovelo do homem lendo o jornal. Keller se virou — com vergonha ou angústia, Gabriel não conseguia saber.
— O que ela está fazendo agora? — perguntou Keller.
— Está olhando pela janela.
— Ela nos viu?
— Acho que não.
— Já foi embora?
— Já.
Keller voltou a olhar.
— Que tipo de chá ela bebe? — perguntou Gabriel.
— É uma mistura especial que compra de um homem na New Bond.
— Talvez você devesse tomar.
— Um minuto. — Keller apagou o cigarro e imediatamente acendeu outro.
— Você precisa?
— Nesse momento é do que eu mais preciso — disse Keller.
Gabriel baixou o vidro uns centímetros para ventilar a fumaça. O vento noturno jogou a chuva contra seu rosto.
— O que vai falar para eles?
— Estava pensando se você tinha alguma sugestão.
— Poderia começar com a verdade.
— Eles estão velhos — disse Keller. — A verdade poderia matá-los.
— Então dê em pequenas doses.
— Como um remédio — disse Keller. Ele estava olhando para a casa. — Ele queria que eu fosse médico. Sabia disso?
— Acho que você já mencionou.
— Dá para me imaginar como médico?
— Não — falou Gabriel. — Acho que não.
— Também não precisava dizer dessa maneira.
Gabriel ficou ouvindo a chuva batendo no teto.
— E se não me aceitarem de volta? — Perguntou Keller depois de um momento. — E se me mandarem embora?
— É disso que tem medo?
— É.
— São seus pais, Christopher.
— Obviamente você não é inglês. — Keller limpou um pedaço do vidro embaçado e olhou para a chuva. — Estou molhado desde o dia em que voltei a esse maldito país.
— Chove na Córsega, também.
— Não como aqui.
— Já decidiu onde vai morar?
— Em algum lugar perto deles — respondeu Keller. — Infelizmente, terão de continuar fingindo que estou morto. É parte do meu acordo com o MI6.
— Quando você começa?
— Amanhã.
— Qual é sua primeira missão?
— Encontrar o Quinn. — Keller olhou para Gabriel.— Gostaria de qualquer ajuda que seu serviço puder fornecer. Aparentemente, tenho de seguir as regras do MI6.
— Que pena.
A mãe de Keller apareceu na janela de novo.
— O que ela está olhando? — ele perguntou.
— Poderia ser qualquer coisa — falou Gabriel.
— Você acha que ela vai ficar orgulhosa?
— Do quê?
— Do fato de que trabalho para o MI6 agora.
— Sei que vai.
Keller segurou a maçaneta, depois parou.
— Já estive em várias situações perigosas antes... — Sua voz desapareceu. — Posso ficar sentado aqui mais um pouco.
— O tempo que você precisar.
— A que horas é o seu voo?
— Eu mando atrasar se for preciso.
Keller sorriu.
— Vou sentir saudades de trabalhar com você.
— Quem disse que não podemos mais trabalhar juntos?
— Você vai ser chefe logo. E chefes não andam com plebeus como eu. — Keller colocou as mãos na maçaneta e olhou para a janela da casa. — Conheço aquele olhar.
— Que olhar?
— O olhar no rosto da minha mãe. Ela sempre olhava assim quando eu estava atrasado.
— Você está atrasado, Christopher.
Keller se virou de repente.
— O que você fez?
— Vá — disse Gabriel, oferecendo a mão. — Você já os deixou esperando por muito tempo.
Keller desceu do carro e cruzou correndo a rua molhada. Ele se atrapalhou um momento com o portão do jardim, depois subiu os degraus quando a porta da frente se abriu. Os pais estavam na entrada, se abraçando para terem apoio, não acreditando em seus olhos. Keller levou o dedo até seus lábios e juntou-os em seus fortes braços antes de fechar a porta. Gabriel o viu uma última vez quando passou na frente da janela da sala. Então a cortina se fechou e ele desapareceu.
82
RUA NARKISS, JERUSALÉM
AQUELA MESMA TARDE UM cessar-fogo entre Israel e Hamas colapsou e a guerra foi retomada na Faixa de Gaza. Quando o voo de Gabriel se aproximava de Tel Aviv, havia explosões e riscos de luz no horizonte do lado sul. Um foguete do Hamas apontava perigosamente perto do aeroporto Ben-Gurion, mas foi varrido do céu por uma bateria antimísseis da Cúpula de Ferro. Dentro do terminal tudo parecia normal, exceto por um grupo de turistas cristãos que se juntavam espantados ao redor de um monitor de televisão. Nenhum notou o falecido futuro chefe da inteligência israelense quando ele passou pelo saguão, uma mochila no ombro. No controle de passaporte, ele passou pela longa fila e cruzou por uma porta reservada ao pessoal de campo do Escritório voltando de missões no exterior. Quatro agentes de segurança do Escritório estavam bebendo café na sala de espera do outro lado. Deixaram que ele passasse por um corredor muito iluminado até uma porta segura, onde havia dois SUV feitos nos Estados Unidos estacionados no escuro da madrugada. Gabriel entrou em um. A porta blindada se fechou com um estrondo.
No banco estava uma cópia do resumo de inteligência do dia, cortesia de Uzi Navot. Gabriel abriu a capa quando o comboio pegou a Highway 1 e começou a subir o Bab al-Wad, o desfiladeiro que parece uma escadaria separando a planície costeira de Jerusalém. O resumo parecia um catálogo de horrores de um mundo que tinha ficado louco. A Primavera Árabe tinha se transformado na Calamidade Árabe. O islamismo radical agora controlava uma faixa de território que ia do Afeganistão à Nigéria, uma conquista que nem Bin Laden teria achado possível. Poderia ser engraçado se não fosse tão perigoso — e tão previsível. O presidente norte-americano tinha permitido que a velha ordem fosse derrubada sem uma alternativa viável para substituir, um ato temerário sem precedentes na diplomacia moderna. E por alguma razão ele tinha escolhido esse momento para jogar Israel aos lobos. Uzi tinha sorte, pensou Gabriel quando fechou o resumo. Uzi tinha conseguido tapar o buraco na represa com o dedo. Agora Gabriel teria de construir a arca para a enchente que estava vindo, e não havia nada que pudesse impedi-la.
Quando chegaram perto de Jerusalém, as estrelas estavam desaparecendo e os céu acima da Cisjordânia estava começando a se acender. O trânsito da manhã começava na estrada de Jafa, mas a rua Narkiss dormia debaixo da vigilância do Escritório. Eli Lavon não tinha exagerado no tamanho da segurança. Havia equipes nos dois lados da rua e outra na frente do pequeno prédio de calcário no número 16. Quando Gabriel passou pelo jardim, percebeu que não tinha a chave. Não era problema; Chiara tinha deixado a porta destrancada. Ele colocou a mochila no chão do vestíbulo. Então, depois de notar a condição imaculada da sala de estar, pegou-a de novo e carregou pelo corredor.
A porta do quarto de hóspedes estava entreaberta. Gabriel a empurrou e olhou dentro. Já tinha sido seu escritório. Agora havia dois berços, um rosa e o outro azul. Girafas e elefantes marchavam pelo tapete. Nuvens rechonchudas voavam pelas paredes. Gabriel sentiu uma pontada de culpa; na sua ausência, Chiara deve ter feito todo o trabalho sozinha. Quando passou a mão pela superfície do trocador de fraldas, foi tomado por uma lembrança. Era a noite de 18 de abril de 1988. Gabriel tinha voltado para casa depois do assassinato de Abu Jihad, em Túnis, e encontrou Dani com uma febre feroz. Ele segurou a criança febril nos braços aquela noite enquanto imagens de fogo e morte passavam incessantemente por seus pensamentos. Três anos depois, a criança estava morta.
Aparentemente, teve algo a ver com um homem chamado Tariq...
Gabriel fechou a porta e foi até o quarto. Seu retrato de corpo inteiro, pintado por Leah depois da Operação Ira de Deus, estava na parede. Debaixo dele dormia Chiara. Ele colocou a mochila no chão do armário, tirou os sapatos e a roupa, deitando na cama ao lado dela. Ela ficou imóvel, aparentemente sem notar a presença dele. Então, de repente, perguntou:
— Você gosta, querido?
— Do quarto das crianças?
— É.
— Ficou lindo. Só queria que você tivesse me deixado pintar as nuvens.
— Eu queria — ela respondeu. — Mas tinha medo que pudesse ser verdade.
— O quê?
Ela não falou mais nada. Gabriel fechou os olhos. E pela primeira vez em três dias, ele dormiu.
Quando finalmente acordou era o final da tarde e as sombras se estendiam pela cama. Ele virou os pés para a porta e foi até a cozinha pegar um pouco de café. Chiara estava vendo a guerra na televisão. Uma bomba israelense tinha acabado de cair em uma escola palestina ocupada exclusivamente por mulheres e crianças — ou era o que afirmava o Hamas. Parecia que nada tinha mudado.
— Precisamos ver isso?
Chiara abaixou o volume. Ela estava usando uma calça de seda larga, sandálias douradas e uma blusa de gestante que cobria elegantemente seus seios e sua barriga enormes. O rosto não tinha mudado. Parecia que estava mais linda e radiante do que Gabriel podia se lembrar. De repente, ele se arrependeu do mês que tinha perdido.
— Tem café na garrafa térmica.
Gabriel serviu uma xícara e perguntou a Chiara como estava se sentindo.
— Como se estivesse a ponto de estourar.
— E está?
— O médico disse que podem nascer a qualquer momento.
— Alguma complicação?
— Estou começando a ter menos fluído amniótico e uma das crianças é um pouco menor que a outra.
— Qual?
— A menina. O menino está ótimo. — Ela olhou para ele por um instante. — Sabe, querido, vamos ter de escolher um nome para ele em algum momento.
— Eu sei.
— Seria melhor se fizéssemos isso antes que eles nascessem.
— Acho que sim.
— Moshe é um bom nome.
— É.
— Sempre gostei de Yaakov.
— Eu também. Ele é um bom agente. Mas certo iraniano ficaria feliz se nunca mais o visse de novo.
— Reza Nazari?
Gabriel levantou a vista do seu café.
— Como sabe o nome dele?
— Recebi relatórios regulares durante sua ausência.
— Quem passava?
— Quem você acha? — Chiara sorriu. — Eles vêm jantar, por falar nisso.
— Não pode ser outra noite? Acabei de chegar em casa.
— Por que não diz para ele que está muito cansado? Tenho certeza de que ele vai entender.
— Seria mais fácil — disse Gabriel, cansado —, convencer o Hamas a parar de jogar foguetes na gente.
No final da tarde, Gabriel tomou um banho e se vestiu. Então foi em seu comboio até o mercado Mahane Yehuda onde, seguido por seus guarda-costas, garantiu as provisões necessárias para o jantar daquela noite. Chiara passou uma lista, que ele deixou amassada no bolso do casaco. Em vez disso, fez as compras por instinto, seu método preferido, e cedeu a todo desejo e capricho: nozes, frutas secas, húmus, baba ghanoush, pão, salada israelense com queijo feta, arroz e carne preparados, e várias garrafas de vinho da Galileia e de Golã. Algumas cabeças se viravam ao vê-lo passar; tirando isso, sua presença no mercado lotado passou despercebida.
Quando o comboio de Gabriel voltou à rua Narkiss, uma limousine Peugeot estava parada na porta. Subindo, ele encontrou Chiara e Gilah Shamron na sala, cercada por bolsas de roupas e outros suprimentos. Shamron já tinha saído para o terraço para fumar. Gabriel preparou as saladas e colocou-as como um bufê no balcão da cozinha. Colocou o arroz e a carne no forno e serviu duas taças de seu sauvignon blanc israelense favorito, que levou para o terraço. Estava escuro e um vento frio começava a soprar. O cheiro do tabaco turco de Shamron se misturava com o sabor forte dos eucaliptos que havia no jardim em frente ao prédio. Era, pensou Gabriel, um aroma estranhamente reconfortante. Ele entregou a Shamron uma taça de vinho e se sentou perto dele.
— Futuros chefes do Escritório — disse Shamron em um tom de censura leve — não vão fazer compras no mercado Mahane Yehuda.
— Vão se a esposa deles está do tamanho de um zepelim.
— Eu não falaria isso em voz alta se fosse você. — Shamron sorriu, inclinou sua taça na direção de Gabriel. — Bem-vindo de volta ao lar, meu filho.
Gabriel bebeu do vinho, mas não falou nada. Estava olhando para o céu do sul, esperando um rastro de foguete, o clarão de um ataque de míssil da Cúpula de Ferro. Bem-vindo de volta ao lar...
— Tomei um café com o primeiro-ministro essa manhã — Shamron estava dizendo. — Ele manda um abraço. Também gostaria de saber quando você pretende fazer seu juramento.
— Ele não sabe que estou morto?
— Boa tentativa.
— Vou precisar de algum tempo com meus filhos, Ari.
— Quanto tempo?
— Presumindo que estejam saudáveis — disse Gabriel pensativo —, eu acharia que uns três meses.
— Três meses é muito tempo para ficarmos sem chefe.
— Não vamos ficar sem chefe. Temos o Uzi.
Shamron deliberadamente esmagou seu cigarro.
— Ainda tem a intenção de mantê-lo?
— Pela força, se for necessário.
— Como devemos chamá-lo?
— Vamos chamá-lo de Uzi. É um nome muito legal.
Gabriel olhou para os jovens guarda-costas na rua silenciosa. Nunca mais poderia aparecer em público sem eles. E nem sua esposa e seus filhos. Shamron começou a acender um cigarro, mas parou.
— Não posso dizer que o primeiro-ministro vai ficar feliz com uma licença paternidade de três meses. Na verdade — ele acrescentou —, ele estava se questionando se você estaria disposto a realizar uma missão diplomática em nome dele.
— Onde?
— Washington — disse Shamron. — Nosso relacionamento com os norte-americanos poderia passar por uma reforma. Você sempre se deu bem com os norte-americanos. Até o presidente parece gostar de você.
— Não iria tão longe.
— Vai fazer a viagem?
— Alguns quadros não podem ser recuperados, Ari. Assim como alguns relacionamentos.
— Você vai precisar dos norte-americanos quando se tornar chefe.
— Você sempre me falou para ficar longe deles.
— O mundo mudou, meu filho.
— Isso é verdade — disse Gabriel. — O presidente norte-americano escreve cartas de amor ao aiatolá. E nós... — Ele deu de ombros, indiferente, mas não falou mais nada.
— Presidentes norte-americanos vêm e vão, mas nós, espiões, ficamos.
— Assim como os persas — lembrou Gabriel.
— Pelo menos Reza Nazari não vai fornecer outra taqiyya ao Escritório. Saiba — acrescentou Shamron — que eu nunca gostei muito dele.
— Por que você não falou nada?
— Eu falei. — Shamron finalmente acendeu outro cigarro. — Ele está de volta a Teerã, por falar nisso. É melhor que fique lá. Ou os russos provavelmente vão matá-lo. — Shamron sorriu. — Sua operação conseguiu plantar uma semente de desconfiança entre dois dos nossos adversários.
— Que possa crescer e virar uma grande árvore.
— Quanto tempo até a próxima bomba?
— O artigo dela vai aparecer na edição de domingo.
— Os russos vão negar, claro.
— Mas ninguém vai acreditar neles — disse Gabriel. — E eles vão pensar duas vezes antes de tentar me acertar de novo.
— Você os subestima.
— Nunca.
Fez-se silêncio entre eles. Gabriel ouviu o vento se movendo no eucalipto e o som da voz gentil de Chiara vindo da sala de estar. Parecia que South Armagh tinha acontecido em outra vida. Até Quinn parecia muito longe. Quinn, que poderia fazer uma bola de fogo viajar a trezentos metros por segundo. Quinn, que na Líbia ficou amigo de um palestino chamado Tariq al-Hourani.
— É assim que você imaginou que seria? — perguntou Shamron, com voz baixa.
— Voltar para casa?
Gabriel olhou para o céu ao sul e esperou um clarão de fogo.
— Foi — falou depois de um momento. — Foi exatamente assim que imaginei que seria.
83
RUA NARKISS, JERUSALÉM
ASSIM COMO EM TODAS as ocasiões importantes de sua vida, Gabriel se preparou para o nascimento de seus filhos como se estivesse em uma operação. Ele planejou a rota de fuga, preparou o plano B e depois planejou o plano B de seu plano B. Era um modelo de economia e cronometragem, com poucas partes móveis, exceto a estrela do show. Shamron fez uma revisão completa, assim como Uzi Navot e o resto da lendária equipe de Gabriel. Sem exceção, todos declararam que era uma obra-prima.
Não que Gabriel tivesse muito mais a fazer. Pela primeira vez em anos ele não tinha trabalho e nem perspectiva. Ele tinha conseguido deixar o Escritório esperando e não havia quadros a restaurar. Chiara era seu único projeto agora. O jantar com os Shamrons acabou sendo a última aparição pública de sua mulher. Ela estava muito desconfortável para receber visitantes e até breves ligações telefônicas a deixavam cansada. Gabriel a perseguia como um garçom, sempre disposto a encher um copo vazio ou enviar uma refeição insatisfatória de volta para a cozinha. Era irrepreensível em seu comportamento e sempre ajustado com as exigências dela, fossem físicas ou emocionais. Até Chiara parecia ficar ressentida com a perfeição da conduta dele.
Por causa da idade e de um histórico reprodutivo complicado, a gravidez de Chiara era considerada de alto risco. Por isso, seu médico insistiu em vê-la em intervalos curtos na semana para um ultrassom. Na ausência de Gabriel, ela viajou até o Centro Médico Hadassah acompanhada por seus guarda-costas e, em uma ocasião, por Gilah Shamron. Agora Gabriel foi com ela, com toda a loucura de seu comboio oficial. Na sala de exames ele seria o protetor de Chiara enquanto o médico passava a sonda por sua barriga lubrificada. No começo da gravidez, o ultrassom tinha mostrado duas crianças completas e separadas. Agora era difícil saber onde terminava uma criança e começava a outra, embora, de vez em quando, a máquina oferecesse uma visão absurdamente limpa de um rosto ou uma mão que faziam o coração de Gabriel bater com rapidez. As imagens fantasmagóricas pareciam raios-X representando o rascunho de um quadro. A perda de líquido amniótico aparecia como ilhas de cor preta sólida.
— Quanto tempo ela tem? — perguntou Gabriel, com a gravidade de um homem que realizava a maioria de suas conversas em apartamentos e em celulares seguros.
— Três dias — disse o médico. — Quatro, no máximo.
— Alguma chance de que possam nascer antes disso?
— Há uma chance — respondeu o médico — de que ela possa entrar em trabalho de parto ao voltar para casa hoje. Mas não é provável que aconteça. Ela vai ficar sem líquido muito antes de entrar em trabalho de parto.
— E aí?
— Uma cesariana é mais segura.
O médico pareceu sentir o desconforto dele.
— Sua esposa vai ficar bem. — Então, com um sorriso, acrescentou: — Fico feliz por não estar morto. Precisamos de você. E seus filhos também precisam.
As visitas ao hospital eram a única quebra das longas e monótonas horas de descanso e espera. Inquieto com a inatividade, Gabriel queria um projeto. Chiara permitiu que ele fizesse a mala para o hospital, o que consumiu cinco minutos. Depois, foi à procura de algo mais para fazer. Sua busca o levou ao quarto das crianças, onde ficou parado um longo tempo na frente das nuvens de Chiara, uma mão apertando o queixo, a cabeça um pouco de lado.
— Você ficaria muito chateada — ele perguntou a Chiara — se eu retocasse as nuvens um pouco?
— O que tem de errado com elas?
— São lindas — ele disse rapidamente.
— Mas?
— São um pouco infantis.
— São para crianças.
— Não foi o que eu quis dizer.
Reclamando, ela aprovou a missão, desde que ele só usasse tintas seguras para crianças e que o trabalho estivesse terminado em 24 horas. Gabriel correu até uma loja de tintas próxima com seus guarda-costas a tiracolo e voltou rapidamente com os suprimentos necessários. Com uns poucos golpes de um rolo — um instrumento que ele nunca tinha usado antes — apagou o trabalho de Chiara debaixo de uma camada de tinta azul clara. Ficou molhado demais para trabalhar mais aquela tarde, então ele se levantou cedo na manhã seguinte e rapidamente decorou a parede com várias nuvens brilhantes estilo Ticiano. Finalmente, acrescentou um pequeno anjinho, um menino que estava olhando para baixo na ponta da nuvem mais alta do cenário. A figura tinha sido inspirada na Virgem e menino em glória com santos, de Veronese. Com lágrimas nos olhos e uma mão trêmula, Gabriel deu ao anjo o rosto de seu filho como lembrava na noite da morte dele. Então colocou seu nome e a data, e estava terminado.
Mais tarde, naquele mesmo dia, The Sunday Telegraph, de Londres, publicou um artigo exclusivo expondo as ligações da Rússia e seus serviços de inteligência com o assassinato da princesa, o atentado à bomba na Brompton Road, a morte de quatro agentes de segurança do MI6 na Cornualha ocidental, e o banho de sangue em Crossmaglen, Irlanda do Norte. A operação, disse o jornal, era uma represália pela revogação dos lucrativos direitos de exploração de petróleo no mar do Norte e a deserção de Madeline Hart, a agente russa que tinha compartilhado brevemente a cama do primeiro-ministro Lancaster. O presidente da Rússia tinha ordenado; Alexei Rozanov, o agente do SVR recentemente encontrado morto na Alemanha, supervisionou sua implementação. Seu principal operador foi Eamon Quinn, o criador da bomba de Omagh, que tinha se transformado em mercenário internacional. Quinn agora estava desaparecido e era alvo de uma caçada global.
A reação à matéria foi rápida e explosiva. O primeiro-ministro Lancaster denunciou as ações do Kremlin como “bárbaras”, um sentimento que encontrou eco do outro lado do Atlântico, em Washington, onde políticos dos dois lados da divisão pediram a expulsão da Rússia do G8 e de outros clubes econômicos do ocidente. Em Moscou, um porta-voz do Kremlin rejeitou a matéria do Telegraph como peça de propaganda anti-Rússia e exigiu que a repórter, Samantha Cooke, revelasse as identidades de suas fontes — algo que ela se recusou terminantemente a fazer em várias entrevistas na televisão. Quem sabia sugeriu que os israelenses claramente tinham ajudado. Afinal, eles apontavam, a operação russa tinha matado uma lenda local. Se alguém queria o sangue russo, eram os israelenses.
Nenhum oficial israelense concordou em falar sobre a matéria do Telegraph — nem o escritório do primeiro-ministro, nem o ministro de relações exteriores e certamente nem o Boulevard Rei Saul, onde as linhas externas tocavam sem serem atendidas. Uma pequena matéria em um site israelense de fofocas provocou um comentário, no entanto. Afirmava que o mesmo lendário agente israelense que tinha morrido no ataque à bomba na Brompton Road tinha sido visto recentemente no mercado Mahane Yehuda com roupas horríveis. Um ajudante não identificado em um ministério não divulgado rejeitou a notícia como “besteira”.
Mas seus vizinhos na rua Narkiss, se não quisessem protegê-lo, teriam contado uma história diferente. Da mesma forma, a equipe do Centro Médico Hadassah, e o par de rabinos que viram Gabriel aquela mesma tarde colocando uma pedra em cima de uma sepultura no monte das Oliveiras. Eles não tentaram falar com ele, pois viram que estava sofrendo. Ele deixou o cemitério no final da tarde e cruzou Jerusalém até o monte Herzl. Havia uma mulher ali que precisava saber que ele estava entre os vivos, mesmo se não se lembrasse de quando ele morreu.
84
MONTE HERZL, JERUSALÉM
DURANTE A VIAGEM DO monte das Oliveiras, uma suave neve começou a cair sobre a cidade fraturada de Deus em cima da colina. Revestia a pequena entrada circular do Hospital Psiquiátrico do Monte Herzl e cobria de branco os galhos dos pinheiros do jardim murado. Dentro da clínica, Leah olhava a neve cair pelas janelas da sala comum. Estava sentada em sua cadeira de rodas. O cabelo estava grisalho e cortado curto; as mãos estavam torcidas e brancas, cheia de cicatrizes. O médico dela, um homem com jeito de rabino, de rosto redondo e uma barba incrível de muitas cores, tinha tirado os outros pacientes da sala. Ele não parecia totalmente surpreso ao descobrir que Gabriel ainda estava vivo. Já cuidava de Leah há mais de dez anos. Sabia coisas sobre a lenda que outros não sabiam.
— Você deveria ter me alertado de que era tudo um truque — disse o médico. — Poderíamos ter feito algo para protegê-la. Como se poderia esperar, sua morte causou uma forte comoção.
— Não havia tempo.
— Tenho certeza de que teve boas razões — disse o médico, com tom de censura.
— Tive. — Gabriel deixou passar uns segundos para amenizar a conversa. — Nunca sei quanto ela entende.
— Ela sabe mais do que você acredita. Tivemos uns dias bem ruins.
— E agora?
— Ela está melhor, mas você precisa ser cuidadoso. — Ele apertou a mão de Gabriel. — Fique o tempo que você quiser. Estarei no meu consultório se precisar de algo.
Quando o médico saiu, Gabriel cruzou em silêncio os azulejos de calcário da sala comum. Uma cadeira tinha sido colocada ao lado de Leah. Ela ainda estava olhando a neve. Mas sobre qual cidade estava caindo? Era em Jerusalém? Ou era presa no passado? Leah sofria de uma combinação especialmente aguda de transtorno de estresse pós-traumático e depressão psicótica. Em suas memórias pouco sólidas, o tempo era esquivo. Gabriel nunca sabia qual Leah ele iria encontrar. Em um minuto ela podia ser a incrivelmente talentosa pintora por quem ele tinha se apaixonado na Academia de Arte e Design de Bezalel, em Jerusalém, mas no minuto seguinte, ela poderia se apresentar como a mãe madura de um lindo menino que tinha insistido em acompanhar seu marido em uma viagem a trabalho para Viena.
Por vários minutos ela ficou olhando a neve, sem piscar. Talvez não tivesse notado a presença dele. Ou talvez estivesse punindo-o por permitir que achasse que estava morto. Finalmente, sua cabeça se virou e os olhos dela viajaram por ele, como se estivessem procurando um objeto perdido nos armários desarrumados de sua memória.
— Gabriel? — ela perguntou.
— Sou eu, Leah.
— Você é real, meu amor? Ou estou tendo alucinações?
— Sou real.
— Onde estamos?
— Jerusalém
A cabeça dela se virou e ficou olhando a neve.
— Não é linda?
— É, Leah.
— A neve absolve Viena de seus pecados. A neve cai sobre Viena enquanto os mísseis caem sobre Tel Aviv. — Ela se virou de novo para ele. — Eu ouvi à noite — ela disse.
— O quê?
— Os mísseis.
— Você está segura aqui, Leah.
— Quero falar com minha mãe. Quero ouvir o som da voz da minha mãe.
— Vamos ligar para ela.
— Não deixe de ver se Dani está bem preso na sua cadeirinha. As ruas estão escorregadias.
— Ele está bem, Leah.
Ela olhou para as mãos dele e notou que havia tinta. Pareceu puxá-la de volta ao presente.
— Esteve trabalhando? — ela perguntou.
— Um pouco.
— Algo importante?
Ele respirou fundo e disse:
— Um quarto para as crianças, Leah.
— Para seus filhos?
Ele assentiu.
— Eles já nasceram?
— Logo — ele respondeu.
— Um menino e uma menina?
— Isso, Leah.
— Como vai se chamar a garota?
— Ela vai se chamar Irene.
— Irene é o nome da sua mãe.
— Isso mesmo.
— Ela morreu, sua mãe?
— Há muito tempo.
— E o menino? Qual vai ser o nome do menino?
Gabriel hesitou, depois disse:
— O menino vai se chamar Raphael.
— O anjo da cura. — Ela sorriu e perguntou: — Você está curado, Gabriel?
— Não muito.
— Nem eu.
Ela olhou para a televisão, havia assombro em seu rosto. Gabriel segurou a mão dela. As cicatrizes a deixavam fria e dura. Era como um pedaço de tela de pintura. Ele gostaria de retocá-la, mas não podia. Leah era a única coisa no mundo que ele não podia restaurar.
— Você está morto? — ela perguntou de repente.
— Não, Leah. Estou aqui com você.
— A televisão disse que você morreu em Londres.
— Era algo que tínhamos de falar.
— Por quê?
— Não é importante.
— Você sempre fala isso, meu amor.
— É mesmo?
— Só quando realmente é verdade. — Ela olhou para ele. — Onde você estava?
— Estava procurando o homem que ajudou Tariq a construir a bomba.
— Conseguiu encontrá-lo?
— Quase.
Ela apertou a mão dele.
— Isso foi há muito tempo, Gabriel. Não vai mudar nada. Ainda vou ficar do jeito que estou. E você ainda estará casado com outra mulher.
Gabriel não conseguiu aguentar mais o olhar acusador dela, então se virou para admirar a neve. Uns poucos segundos depois, ela fez o mesmo.
— Você vai me deixar vê-los, não vai, Gabriel?
— Assim que puder.
— E vai cuidar bem deles, especialmente do menino?
— Claro.
Os olhos dela se abriram de repente.
— Quero ouvir o som da voz da minha mãe.
— Eu também.
— Não deixe de ver se o Dani está bem preso na cadeirinha.
— Pode deixar — disse Gabriel. — As ruas estão escorregadias.
Durante a viagem de volta para a rua Narkiss, Gabriel recebeu uma mensagem de texto de Chiara perguntando quando ele voltaria para casa. Ele não se preocupou em responder porque estava bem na esquina. Subiu o jardim correndo, deixando uma trilha de reveladoras pegadas tamanho 42 na camada de neve e pegou as escadas até seu apartamento. Ao entrar, ele viu a mala que tinha feito com tanto cuidado no corredor. Chiara estava sentada no sofá, vestida e com casaco, cantando baixinho enquanto folheava uma revista.
— Por que não me contou antes? — Gabriel perguntou.
— Achei que seria uma bela surpresa.
— Odeio surpresas.
— Eu sei. — Ela deu um lindo sorriso.
— O que aconteceu?
— Não estava me sentindo bem, então liguei para o médico. Ele achou que deveríamos resolver logo isso.
— Quando?
— Esta noite, querido. Precisamos ir para o hospital.
Gabriel ficou parado como uma estátua de bronze.
— Esta é a parte onde você me ajuda a me levantar — disse Chiara.
— Ah, sim, claro.
— E não se esqueça da mala.
— Espere... o quê?
— A mala, querido. Vou precisar das minhas coisas no hospital.
— Claro, o hospital.
Gabriel ajudou Chiara a descer as escadas e cruzar o jardim na frente, enquanto se xingava por ter negligenciado o fator neve no planejamento. No banco de trás da SUV, ela deitou a cabeça no ombro dele e fechou os olhos para descansar. Gabriel inalou o intoxicante perfume de baunilha e olhou a neve dançando contra o vidro. É lindo, ele pensou. É simplesmente a coisa mais linda que ele já tinha visto.
85
BUENOS AIRES
NÃO QUE ELES NÃO tivessem nada melhor para fazer aquela primavera. Afinal, até o observador mais casual — os mortos-vivos históricos, como Graham Seymour geralmente os chamava quando estava de mau humor — perceberia que o mundo estava caminhando para o descontrole. Sem recursos, Seymour indicou somente um agente para a tarefa. Não importava; um agente era tudo de que ele precisava. Ele deu ao homem uma maleta cheia de dinheiro e considerável liberdade operacional. A maleta veio de uma loja da rua Jermyn. O dinheiro era norte-americano, pois nas regiões inferiores do mundo da espionagem, o dólar continuava sendo a moeda de troca.
Ele viajou usando muitos nomes naquela primavera, nenhum deles era o verdadeiro. Na verdade, naquele específico momento de sua vida e carreira, ele realmente não tinha nome. Seus pais, com quem ele tinha se reunido recentemente, o chamavam pelo nome que tinham dado quando ele nasceu. No trabalho, no entanto, ele era conhecido somente por um número de quatro dígitos. Seu apartamento em Chelsea estava, oficialmente, em nome de uma empresa que não existia. Ele só tinha pisado ali uma vez.
Sua busca o levou a muitos lugares perigosos, o que não era nenhum problema, pois ele era um homem perigoso. Passou vários dias em Dublin nas arriscadas interseções de drogas e rebelião, e depois apareceu em Lisboa perseguindo a possibilidade de que a conexão de sua presa com a cidade fosse mais do que algo simplesmente aparente. Um rumor o levou a uma esquecida vila na Bielorrússia; um e-mail interceptado, a Istambul. Ali, ele conheceu uma fonte que afirmava ter visto o alvo na região da Síria controlada pelo EI. Com a relutante bênção de Londres, ele cruzou a fronteira a pé e, disfarçado de árabe, chegou à casa onde diziam que o alvo estava vivendo. A casa estava vazia, exceto por uns pedaços de cabos e um caderno que continha vários diagramas de bombas. Ele levou o caderno de volta para a Turquia. No caminho viu imagens de brutalidade que não esqueceria tão cedo.
No final de fevereiro ele foi à Cidade do México, onde um suborno levou a uma dica que o mandou ao Panamá. Ele passou uma semana ali vigiando um condomínio vazio na Playa Farallón. Então, seguindo um palpite, viajou ao Rio de Janeiro, onde um cirurgião plástico com uma clientela dúbia admitiu que tinha recentemente alterado a aparência do alvo. De acordo com o médico, o paciente afirmou que estava vivendo em Bogotá, mas sua visita à cidade só o levou a uma mulher triste que poderia ou não carregar um filho dele. A mulher sugeriu que procurasse em Buenos Aires, e ele foi para lá. E foi naquela cidade, em uma tarde fria do meio de abril, que uma velha dívida foi paga.
Ele estava cozinhando em um restaurante chamado Brasserie Petanque, no bairro de San Telmo. Seu apartamento ficava na esquina, no terceiro andar de um prédio que parecia ter sido arrancado do boulevard Saint-Germain. Do outro lado da rua havia um café onde Keller estava sentado tomando algo em uma mesa na rua. Ele usava chapéu com aba e óculos de sol; o cabelo apresentava o brilho saudável de um homem que tinha ficado grisalho de forma prematura. Ele parecia ler uma revista literária em espanhol. Mas não estava.
Deixou uns poucos pesos na mesa, cruzou a rua e entrou no vestíbulo do prédio. Um gato malhado circulou seu pé enquanto ele lia o nome na caixa de correspondência do apartamento 309. No andar de cima, encontrou a porta do apartamento trancada. Não era problema; Keller tinha adquirido uma cópia da chave do zelador do edifício pagando quinhentos dólares por ela.
Ele tirou a arma quando entrou e fechou a porta. O apartamento era pequeno e com poucos móveis. Perto da porta havia uma pilha de livros e um rádio de ondas curtas. Os livros eram grossos, pesados e usados. O rádio era de uma qualidade raramente vista nos dias de hoje. Keller o ligou e colocou em volume muito baixo. My funny valentine, de Miles Davis. Ele sorriu. Estava no lugar certo.
Keller desligou o rádio e moveu a cortina que cobria a última janela de Quinn no mundo. E ali ele ficou com a disciplina de um especialista em observação pelo resto da tarde. Finalmente, apareceu um homem no café e se sentou na mesma mesa que Keller havia deixado pouco tempo antes. Bebeu cerveja local e estava vestido com roupas locais. Mesmo assim, era claro que ele não era nativo da Argentina. Keller levantou um telescópio monocular em miniatura e estudou o rosto do homem. O brasileiro fez um excelente trabalho, pensou. O homem na mesa estava irreconhecível. A única coisa que o traía era a forma como ele usava a faca quando o garçom trouxe a carne. Quinn era um mestre na técnica, mas ele sempre fazia seu melhor trabalho com uma faca.
Keller ficou na ponta da janela com o telescópio em miniatura no olho, olhando, esperando, enquanto Quinn consumia a última refeição de sua vida. Quando terminou, pagou a conta, levantando-se e cruzou a rua. Keller enfiou o telescópio no bolso e ficou no hall de entrada, a arma na mão. Depois de um momento, ouviu passos no corredor e o barulho da chave entrando na fechadura. Quinn não viu o rosto de Keller e não sentiu as duas balas — uma por Elizabeth Conlin, a outra por Dani Allon — que terminaram com a vida dele. Por isso, pelo menos, Keller sentiu pena.
NOTA DO AUTOR
O ESPIÃO INGLÊS É UMA obra de ficção e deve ser lida apenas como tal. Nomes, personagens, lugares e incidentes retratados na história são produto da imaginação do autor ou foram usados de maneira ficcional. Qualquer semelhança com pessoas reais, mortas ou vivas, empresas, eventos ou locais é total coincidência.
Existe realmente uma adorável casa no lado sul da enseada de pesca de Gunwalloe que sempre lembrou ao autor o quadro La cabane des douaniers a pourville, de Monet, mas até onde sei nem Gabriel Allon nem Madeline Hart viveram ali. Nem os leitores deveriam ir procurar por Gabriel na rua Narkiss, 16, pois ele e Chiara estão muito ocupados neste momento. Relatórios de Jerusalém indicam que mãe e filhos estão bem. O pai é outra história. Mais sobre isso nos próximos livros da série.
Visitantes à cidade de Fleetwood no norte da Inglaterra vão procurar em vão por um cyber café em frente a uma lanchonete. Não há nenhum pub em Gunwalloe chamado Lamb and Flag, nem existe um bar em Crossmaglen chamado Emerald, apesar de existirem vários parecidos. Desculpas à gerência do restaurante Le Piment, em São Bartolomeu, por colocar um terrorista do IRA em sua pequena, mas gloriosa cozinha. Desculpas também ao restaurante Die Bank, em Hamburgo; ao hotel InterContinental, em Viena; e especialmente ao hotel Kempinski, em Berlim. O quarto 518 deve ter ficado uma bagunça.
Para registro, eu sei que a sede do serviço secreto de inteligência de Israel não está mais localizada no Boulevard Rei Saul, em Tel Aviv. Meu serviço fictício continua ali, em parte porque gosto mais do nome do que da localização atual, que não vou mencionar. Também fui perguntado muitas vezes se Dom Anton Orsati foi inspirado em um indivíduo real. Não foi. O Dom, seu vale e seu empreendimento único foram todos inventados pelo autor.
O espião inglês é a quarta aventura de Gabriel Allon a apresentar o melhor assassino do Dom: o ex-combatente da SAS Christopher Keller. O livro termina no lugar onde a história de Keller começou, nas perigosas colinas verdes de South Armagh. Durante o pior da longa e sangrenta guerra na Irlanda do Norte, a região realmente foi o lugar mais perigoso do mundo para usar um uniforme de policial ou soldado. A maior perda de vidas aconteceu em 27 de agosto de 1979, quando duas grandes bombas mataram 18 soldados britânicos em Warrenpoint. O ataque ocorreu horas depois que lorde Mountbatten, um estadista britânico e parente da rainha Elizabeth II, foi morto por uma bomba do IRA escondida em seu barco de pesca — um incidente que sugeriu as passagens iniciais de O espião inglês. Claramente, peguei emprestado muito da vida de Diana, a princesa de Gales, quando montei minha princesa fictícia, mas de nenhuma maneira foi minha intenção sugerir que a morte de Diana foi um assassinato. Ela morreu em um túnel de Paris porque um homem bêbado estava ao volante de seu carro, não como resultado de uma conspiração internacional.
A longa luta da República da Irlanda contra as drogas ilegais está bem documentada. Muito menos conhecido, no entanto, é o papel exercido no comércio de drogas pelos elementos do IRA Autêntico, o grupo terrorista republicano dissidente formado em 1997. A organização, que incluiu vários membros da Brigada South Armagh do IRA, realizou uma série de atentados à bomba devastadores na primavera e no verão de 1998, quando a Irlanda do Norte estava tentando conseguir a paz. O ataque mais mortal foi a bomba no mercado da cidade de Omagh, em 15 de agosto, que matou 29 pessoas e deixou mais de duzentas outras feridas. Detalhes específicos do ataque que aparecem no livro são precisos, apesar de eu ter me permitido uma licença quando retratei as ações do meu espião britânico, Graham Seymour. Eamon Quinn e Liam Walsh não estavam no carro- bomba naquele dia, pois são invenções do autor.
No momento em que escrevo, os verdadeiros terroristas ainda não foram oficialmente identificados. Só eles sabem por que estacionaram o carro-bomba no lugar errado na Lower Market Street. E só eles sabem por que permitiram que fossem dados avisos imprecisos para a mídia e a Royal Ulster Constabulary, criando assim as circunstâncias para uma perda catastrófica de vidas inocentes. Claro que a polícia e os serviços de inteligência da Irlanda e do Reino Unido sabem os nomes deles. Mas 17 anos depois do ataque, ninguém foi condenado pelo maior assassinato em massa da história britânica ou irlandesa. Em junho de 2009, um juiz da Irlanda do Norte mandou quatro homens — Michael McKevitt, Liam Campbell, Colm Murphy e Seamus Daly — pagarem um milhão e meio de libras às famílias das vítimas de Omagh. Até hoje, nenhum dinheiro trocou de mãos. Em abril de 2014, Seamus Daly foi preso em um shopping center em South Armagh, onde estava vivendo, acusado por 29 homicídios. Se seguirmos casos antigos, as chances de uma condenação são remotas. Em 2002, o Tribunal Penal Especial da Irlanda condenou Colm Murphy por conspiração no atentado, mas o veredicto foi anulado na apelação. O sobrinho de Murphy enfrentou julgamento na Irlanda do Norte, em 2006, mas foi inocentado.
Depois do Acordo da Sexta-Feira Santa, a inteligência britânica descobriu que terroristas do IRA com muito conhecimento estavam vendendo sua expertise no mercado. Entre os países onde ex-terroristas do IRA negociaram seu serviço mortal estava a República Islâmica do Irã. O historiador Gordon Thomas, em sua história do MI6 chamada Secret Wars, escreveu que uma delegação de terroristas do IRA viajou secretamente para Teerã, em 2006, para ajudar o país a construir uma arma antitanque para um cliente libanês, o Hezbollah — uma arma que poderia criar uma bola de fogo capaz de viajar a trezentos metros por segundo. O Hezbollah usou a arma contra tanques israelenses e veículos armados, mas soldados britânicos servindo no Iraque também foram alvos da tecnologia desenvolvida pelo IRA. Em 2005, oito soldados britânicos foram mortos em Basra por uma sofisticada bomba na estrada que era idêntica às bombas usadas pelo IRA em South Armagh. Especialistas em contraterrorismo especularam que o desenho da arma chegou ao Iraque como resultado da longa associação do IRA com a OLP. As duas organizações desfrutaram do patrocínio de Muamar Kadafi, da Líbia, e treinaram nos infames campos do deserto, onde compartilharam conhecimento e recursos. A Líbia realmente supriu todo o Semtex usado pelo IRA durante a guerra na Irlanda do Norte.
Mas a Líbia não foi o único estado patrocinador do IRA. A KGB também forneceu apoio material para os terroristas em uma tentativa de criar caos na Grã-Bretanha e enfraquecer a aliança do Atlântico. Muito mudou no quarto de século desde o colapso da União Soviética, mas fomentar a discórdia dentro da aliança ocidental continua a ser um objetivo primário da Rússia de Vladimir Putin. Na verdade, Putin gostaria de ver o colapso completo da OTAN, assim poderia reconstituir o império perdido da Rússia sem o intrometido ocidente no caminho. Sob sua liderança, a Rússia está novamente afunilando dinheiro para partidos políticos extremistas na Europa ocidental tanto de esquerda quanto de direita. Parece que Putin não se importa muito com a política de seus amigos, desde que sejam oposição aos Estados Unidos e vejam o mundo mais ou menos de forma parecida com a que ele vê. Além disso, Putin não tem realmente uma política própria. Ele é um cleptocrata e não tem outra filosofia a não ser a de exercício cínico do poder.
Gabriel Allon enfrentou a Rússia pela primeira vez em Moscow Rules, que foi publicado no verão de 2008, quando Moscou estava inundada da renda do petróleo e os críticos do Kremlin estavam sendo assassinados nas ruas. Infelizmente, o livro provou ser presciente. Considerem as últimas atitudes do Kremlin: apoiou o criminoso regime na Síria; concordou em vender sofisticados mísseis antiaéreos ao Irã; a Crimeia e o leste da Ucrânia estão sob controle russo; os bombardeios russos com armas nucleares estão zumbindo por cima dos aliados da OTAN... Na verdade, um par de bombardeios russos recentemente deram um passeio pelo Canal da Mancha com seus transponders desligados, atrapalhando a aviação civil por horas. Enquanto o ocidente enfrenta cortes de orçamento em suas defesas, o exército vermelho está se modernizando a um ritmo furioso. Putin falou abertamente sobre o uso de armas nucleares táticas para preservar suas conquistas.
O secretário de relações exteriores britânico, Philip Hammond, está corretamente alarmado com o que está vendo. Em março de 2015, ele descreveu a Rússia como “a maior ameaça” à segurança britânica. Uma semana depois, no entanto, o presidente Obama ofereceu uma visão completamente diferente, caracterizando a Rússia como “uma potência regional” que estava agindo por fraqueza em vez de força. A implicação é que, ao invadir a Ucrânia e anexar a Crimeia, Vladimir Putin está, na verdade, perdendo. Só que não. Putin está ganhando, o que significa que a Ucrânia é apenas um preview das próximas atrações.
Daniel Silva
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