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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ESPIÃO QUE MORREU DE TÉDIO / George Mikes
O ESPIÃO QUE MORREU DE TÉDIO / George Mikes

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O ESPIÃO QUE MORREU DE TÉDIO

 

A campainha tocou, um toque longo, agressivo, seguido de duas batidas fortes na porta.

Mal a porta se abriu, um, dois centímetros, foi empurrada com força, e dois homens entraram.

— Você é Arkadi Dmítrievitch Nikítin, estudante de literatura e lingüística? — perguntou o mais baixo e atarracado dos dois, aliás, ambos baixos e atarracados.

— Não, sou a mãe dele — respondeu a velha senhora.

O homem olhou para a velha com um olhar penetrante, como se quisesse verificar a veracidade da afirmação. Depois de uma pausa dolorosa, falou: — Queremos Arkadi Dmítrievitch Nikítin.

O outro homem acrescentou ameaçadoramente, com uma voz incrivelmente profunda: — Seu filho.

— Ele não está em casa — disse Vera Dmítrovna, após ligeira hesitação.

— Onde ele está?

— Ele é estudante. Está na biblioteca da faculdade. Estudando.

A porta da sala de estar abriu-se um pouco e logo surgiu a cabeça de Arkadi Dmítrievitch Nikítin.

— O que é que foi, mãe?

— Arkadi Dmítrievitch Nikítin? — perguntou o mais baixo e atarracado dos homens, sem mostrar o menor sinal de surpresa ou desaprovação.

— Sou eu. — Parecia a confissão de um crime grave.

— É estudante?

— Sim, sou.

— Do Instituto de Lingüística?

— Sim.

— Na Rua Volkhonka?

— Sim.

— Então, por que é que você está em casa às duas e meia da tarde? — perguntou o menos atarracado.

— Em vez de estar estudando na biblioteca da faculdade? — acrescentou o mais atarracado.

Arkadi sentiu-se apanhado e não deu resposta.

— O que é que você estuda? — perguntou o menos atarracado.

— ...quando estuda... — acrescentou o mais atarracado, com muito sarcasmo.

— Línguas modernas.

— O quê?

Arkadi sentiu-se novamente culpado.

— Inglês. — Corou, mas logo acrescentou com alívio: — Inglês e também a língua e a literatura da Quirguízia.

— Como é que pode? — interrompeu o mais atarracado com veemência.

Arkadi passou a sentir-se em terreno mais seguro:

— A Quirguízia é uma das repúblicas constituintes da URSS.

— Eu sei. Mas como é que você pode estudar literatura quirguiz se não existe literatura quirguiz?

— Embora já tenha sido estudada por centenas de eminentes estudantes antes de você — acrescentou o menos atarracado.

Seguiu-se um novo silêncio, breve mas ainda mais doloroso.

— Boris Nikoláievitch Iurozov é seu amigo?

— É meu conhecido.

— Já sei. Você o conhece, mas não o chamaria de amigo?

Arkadi mordeu o lábio, não sabendo o que dizer. Seria perigoso admitir que Boris era o mais antigo e mais querido dos seus amigos; por outro lado, seria fútil — e até talvez mais perigoso — negá-lo.

— Eu o conheço bem, sim — disse afinal.

— Você conhece Olga Korníliievna Makarova?

— Sim. Encontrei-me com ela.

— Quem é ela?

— Uma colega do Instituto de Lingüística e Arte.

— Quando é que você dormiu com ela pela última vez?

Arkadi lançou um apelo à sua mãe, que deixou o hall de entrada e entrou no único quarto do apartamento.

— E então? — perguntou ó mais atarracado.

— Ontem.

O homem aquiesceu. E continuou: — Você conhece Clara Dmítrovna Iakonova?

— Encontrei-me com ela também.

— Encontrou-se com ela... Quem é?

— É minha prima em segundo grau — replicou Arkadi com uma sensação de alívio. Ele não sabia do que é que estava sendo acusado, mas tinha a certeza de que dormir com primas em segundo grau não era incesto.

— Quando é que dormiu com ela pela última vez?

— Anteontem.

Os rostos dos dois homens permaneceram completamente impávidos.

— Você conhece Martha van Sluys?

— Sim, senhores.

— Suponho que já se encontrou com ela também. Quem é?

— A filha da vizinha do lado. — E recordou: — O pai dela é famoso. É líder do Partido Comunista Holandês.

— Quando é que dormiu com ela pela última vez? Arkadi olhou para o relógio: — Há cerca de duas horas. — E como todas as testemunhas meticulosas, ajuntou: — Aproximadamente.

O homem aquiesceu de novo, mas não aprovou: — Em outras palavras, esta manhã, quando sua mãe foi comprar batatas?

— Ela não conseguiu encontrar batatas. — Arkadi protestou como se a falta de batatas fosse, finalmente, o antídoto para todas as acusações que pudessem ter contra ele.

Dois pares de olhos se fixaram longamente nele:

— Você tem que vir conosco.

Arkadi olhou em volta. A idéia de arrumar aquela famosa e notória maleta atravessou sua mente.

— Não traga nada — disse o homem de voz ridiculamente profunda, lendo seus pensamentos.

Um carro Volga, dos grandes, estava estacionado em frente ao edifício. Os três sentaram-se atrás, Arkadi entre os dois homens, ambos de ternos escuros. O motorista arrancou, sem mais instruções.

Os dois homens permaneceram completamente calados durante toda a viagem. Rumaram para o norte, na direção do Kremlin e da Prisão Lubianka. Arkadi sabia muitíssimo bem qual era o problema. O samizdat. Era culpado, claro, e eles sabiam disso. Sabiam de tudo, de Olga, de Clara, de Martha. E, pior ainda, de Boris. Apesar de tudo, havia qualquer coisa de irregular na visita deles. Por que razão aqueles dois homens tinham vindo buscá-lo às duas e meia da tarde e não à hora de costume, às cinco da manhã? Por que é que tinham feito tantas perguntas, quando se sabe muito bem que eles nunca perguntam nada naquela fase? Como norma eles apenas apanham o cara e o deixam cozinhando na solitária até a hora do primeiro interrogatório. E por que é que ninguém tinha ficado para revistar o apartamento?

O samizdat não iriam encontrar, não. Estava em casa de Boris. Bem, talvez fosse essa a razão por que eles não tinham se preocupado em procurar. Tá o tinham achado.

Que loucura. Ele, Arkadi Dmítrievitch Nikítin, um jovem e promissor estudante, um patriota exemplar, um situacionista se não devoto, pelo menos digno da maior confiança, acabava de arruinar não só a sua carreira, como até a própria vida, por causa de uma estúpida história de espionagem. É certo que as histórias de espionagem eram o seu interesse principal e a paixão da sua vida. Nada podia fazer. Já tinha lido dezenas delas. Não havia falta delas na União Soviética, as livrarias estavam cheias. Já tinha visto o filme O segredo do presidente sete vezes. Já tinha lido Operação Rosa, Operação X, Operação Elefante Branco e Operação n°. 24 — o lote completo — mais de uma vez. Eram bastante boas, nada más mesmo, mas ligeiramente repetitivas, feitas por encomenda e moralizantes. Ouvira dizer que as histórias do escritor inglês Ian Fleming eram incomparavelmente melhores e tinham varrido o mundo ocidental alguns anos antes, numa outra era. Por isso, quando surgiu em samizdat uma das histórias de Fleming, Chantagem atômica, ele não pôde resistir. Os dois, Boris e ele, pagaram por ela uma soma extorsiva. Contraíram dívidas, mas compraram a história copiada no mimeógrafo. Valera a pena. A história era viva, excitante, dramática, muito mais bem escrita e muito mais movimentada do que as equivalentes russas. Leram e releram a história, até as páginas ficarem em pedaços. Discutiram e rediscutiram o tema. Chegaram a recitar de cor longas passagens do texto, como quem recita Puchkin ou Lermontov. Ambos queriam ser espiões, da mesma forma que as crianças querem ser pilotos de aviões a jato. Arkadi e Boris sabiam muito bem que havia um elemento de infantilidade nesse desejo, mas receavam também a rotina da vida, longa e insípida, que se desenhava diante deles. Afinal, não havia mal nenhum em servir o país levando ao mesmo tempo uma vida cheia de acontecimentos, recheada de excitações e de perigos.

A leitura do samizdat havia sido feita dezoito meses antes. Desde então nunca mais tocara nele, nem nunca mais o vira — por que o problema tinha surgido só agora? E embora Arkadi soubesse que alguns dos livros desse tal Fleming eram violentamente anti-soviéticos — afinal, o que é que se pode esperar de um escritor burguês e ainda por cima inglês, produto desse detestável sistema capitalista —, a verdade é que no caso específico de Chantagem atômica os russos nem eram mencionados... Mas que tolice a dele esperar que isso pudesse salvá-lo. Livro proibido era livro proibido. Ler samizdat em vez das publicações oficiais do Estado era um crime hediondo, do qual ninguém podia escapar.

O carro estava agora passando pela Rua Ordinka Bolchaia. Obviamente, em direção ao Kremlin e à Prisão Lubianka. Quando atravessaram a Ponte Moskvoretski, o coração de Arkadi parou: todas as suas dúvidas — se é que ainda havia alguma — desapareceram. Atravessaram a Praça Vermelha e viraram à direita. Atingiram a Praça Derjinski. Arkadi logo viu o edifício da prisão e o quartel-general do kgb. Lançou um olhar rápido para o outro lado da rua e viu o Detski Mir, maravilhoso supermercado de brinquedos e artigos para crianças onde o haviam levado em ocasiões felizes no passado. Mesmo em criança ele já sabia que não devia fazer perguntas a respeito do casarão proibido situado em frente à loja, nem a respeito de suas hordas de rígidos guardas. O carro estava diminuindo a marcha e Arkadi viu com espanto que não tinham parado à entrada da Malaia Lubianka, da entrada normal para a prisão, mas diante do número 2 da Rua Derjinski, o quartel-general do kgb.

Por quê? Seria possível que eles tivessem levado tão a sério a leitura de Chantagem atômica, de Ian Fleming? Até mesmo seus guardas tiveram que mostrar os passes três vezes a vários indivíduos de aparência desagradável, que, embora conhecendo-os muito bem, faziam questão de examinar os documentos com o maior cuidado, olhando para as fotografias cinco vezes antes de os deixar passar.

Apesar de todos aqueles terríveis presságios, foi com um suspiro de alívio que ele entrou no edifício. Alguns anos antes, teria levado um tiro por aquele crime. Hoje, graças ao liberalismo da nova era, pegaria apenas quinze anos num campo de concentração na Sibéria. No máximo, vinte.


                   Que há de errado com a "orkochka"?

"Que há de errado com a orkochka?", perguntava Ludmila Orlovskaia a si mesma, deitando leite azedo na sopa. "Não posso dar a ele borch todos os dias. É claro que ele vai reclamar, mas não posso fazer nada. Ontem, tivemos borch à maneira dos russos brancos. Anteontem, borch ucraniano. Segunda-feira, borch azedo. Domingo, borch frio. Sábado, borch vegetariano. Sexta-feira, borch gruziano. E na quinta-feira... O que é que foi na quinta-feira? Oh, sim, borch. Pura e simplesmente borch. Uma vez ou outra, arranjo uma carpa fresca, ou melhor, uma carpa que parece fresca, e então faço para ele uma orkochka. Além disso, desta vez, nem consegui arranjar batatas. Nem eu consegui. Como é que posso fazer borch?"

Começou então a cortar um pepino em fatias finas e, ao mesmo tempo, a pensar se Seriochka estaria de bom humor. Ele tinha aquela reunião com Makarov e os outros chefes de divisão. Aquela noite significava tudo. Poderia animá-lo ou irritá-lo. Se ele estivesse amuado, teria de confortá-lo; mas se ele estivesse feliz e satisfeito com o mundo, poderia mostrar um pouco de melancolia e irritação, falar de seus próprios problemas, reclamar da falta do sal e das batatas, e até chateá-lo. Assim, seria ele a apaziguá-la e a confortá-la. Orkochka em vez de borch não era muito bom augúrio; mas ela conseguiu fazer também um pato no forno, seu prato favorito, compensação mais que suficiente pela presença de orkochka na mesa. Seu homem sempre dizia que ela sabia cozinhar um pato no forno quase tão bem — note, quase — quanto sua mãe. Qualquer mãe tinha de ser sempre a melhor cozinheira do mundo, o que é surpreendente, considerando todas as refeições horríveis que uma pessoa é obrigada a tomar quando é convidada para comer em casa de famílias com crianças. Os rapazes empurram a comida pela goela abaixo com a maior dificuldade. Fazem caretas: "Que é isso, mãe? Rins grelhados outra vez?... Chachlik outra vez?... Cordeiro à moda da Criméia?... OOOOOOah!" E fazem a imitação sonora do vômito. Dali a dez anos os mesmos rapazes estarão orquestrando para suas infelizes esposas as maiores serenatas a respeito da arte culinária das mães: "Oh, como ela preparava os rins! Meu Deus, aquele cordeiro à moda da Criméia era simplesmente divino! E só de pensar no chachlik dela me vêm lágrimas aos olhos de saudade". A única consolação para as esposas é saber que elas também serão mães e servirão mais tarde de paradigma à outra jovem recém-casada.

Ela ouviu a chave rodando na fechadura. Era um mau sinal. Quando de bom humor, ele sempre batia na porta e esperava que ela fosse abrir. Desta vez, porém, ele mesmo abriu a porta, nem sequer chegou a olhar para ela, avançou rapidamente pelo corredor, entrou no quarto e bebeu uma dose monstro de vodca.

Ludmila continuou a fazer a comida.

— Maldito Makarov! — disse Serguei Alexándrovitch Orlovski, rebentando o copo no chão.

("Maldito Makarov" é, na verdade, uma tradução muito fraca do que ele realmente disse. A língua russa é muito rica e muito cheia de imagens. Seriochka, aliás, conhecia muito bem sua língua materna.)

— Alguma coisa errada? — inquiriu Ludmila. Sua voz soou ligeiramente mais alegre e loquaz do que ela pretendia. Seriochka encheu mais um copo de vodca.

— Você não devia beber assim, Seriochka. Lembre-se de que ainda tem de voltar à repartição.

— Isto não é uma bebida. É um tranqüilizante. Ludmila trouxe a sopa.

— Makarov quer mandar mais duzentos e quinze espiões para Londres.

Ludmila pôs o sal na mesa. Ele perguntou:

— O quê? Orkochka outra vez? Será que a gente nunca mais vai ter um borch decente nesta casa?

Ludmila continuou comendo, pensativa. É... A sopa estava precisando de um pouquinho mais de sal.

— Duzentos e quinze para Londres; cento e cinqüenta para Bruxelas; cento e cinqüenta para Haia; cento e vinte para Estocolmo; oitenta para Bonn; duzentos para Paris; trezentos e sessenta para os Estados Unidos. Isso perfaz um total de mil duzentos e setenta e cinco agentes.

— Mil seiscentos e setenta e cinco — corrigiu Ludmila.

— O quê?

— Eu disse: mil seiscentos e setenta e cinco.

— Não. Mil duzentos e setenta e cinco. Acredite. Eu sei contar.

— Mas está errado. Você apenas somou os números como um louco. Esquecendo que mil duzentos e setenta e cinco agentes no estrangeiro significam, no mínimo, mais quatrocentos no Centro.

Seriochka comeu sua orkochka em silêncio, pensativo. Depois, nova explosão:

— Agora você vai me dizer onde é que vou arranjar mil duzentos e setenta e cinco — está bem, mil seiscentos e setenta e cinco — agentes treinados. Aliás, como é que você pode me dizer uma coisa dessas, se nem sabe me dar um simples borch para o almoço?

— Primeiro você me diz onde arranjar batatas para o seu borch. E depois eu lhe digo onde encontrar os agentes.

— Até mesmo Ivan, o Terrível, até ele podia ser amansado com um bom borch.

Levantou-se e avançou em direção ao armário.

— Nem mais um pingo de vodca, Serguei Alexándrovitch — disse ela, friamente.

"Serguei Alexándrovitch" soou formal e proibitivo. Ele voltou e continuou a comer em silêncio.

— Estávamos todos à espera de Makarov na sala de conferências. Todos os chefes de divisão, com seus assistentes e estenógrafas, além de dois assistentes e duas estenógrafas dele. Como se ele precisasse... Nem de uma... A sala estava repleta de microfones escondidos por todos os cantos. Nós sabíamos. Ele sabia que nós sabíamos. Fez-nos esperar durante vinte e cinco minutos, só pelo efeito. Provavelmente esteve sentado em seu gabinete girando os dedões. Depois, para somar insulto com injúria, não usou o elevador. Subiu os oito andares a pé.

— Ele, com cento e oitenta quilos? — admirou-se Ludmila.

— Duzentos! Sempre faz o mesmo. Não se atreve a usar o elevador. É verdade que o elevador está nas últimas, pode cair a qualquer momento. Mas todas as secretárias sobem por ele. E também todos os funcionários, todos os agentes, todas as mulheres da limpeza e todos os chefes de divisão. Mas ele, Makarov, o homem forte, o espião mestre, herói da União Soviética, Ordem de Lênin, que — segundo diz — enfrentou mil mortes, não se atreve a subir pelo elevador.

— Talvez — sugeriu Ludmila — ter enfrentado mil mortes seja suficiente para ele. Uma a mais ele não agüentaria.

— Ele diz que precisa de exercício. Nos outros edifícios, onde os elevadores são um pouco mais seguros, já não precisa de exercício. Mais um copo de vodca, Ludmila?

— Não.

— O Coronel I. A. Makarov, diretor do kgb, herói da União Soviética, ministro adjunto, informou que tinha concordado com o ministro da Segurança, Iu. V. Andropov, em ampliar nossas operações. Corremos o perigo de ficar mais fracos que o gru. O Serviço de Informações do Exército, como um todo, poderá ganhar terreno às nossas custas. Iu. V. Andropov está perdendo terreno dentro do Conselho de Ministros em relação ao seu inimigo e rival, A. A. Grechko. Assim, para restaurar nossa posição e aumentar nosso poder, vamos mandar enxames de agentes para o Ocidente.

— Foi isso o que ele disse?

— Sim, foi isso mesmo.

— Com essas palavras todas?

— Não seja idiota, Ludmila. É claro que não foi assim. Ele falou do imperialismo inimigo, da necessidade de aumentar nossa vigilância, da preservação das gloriosas conquistas socialistas. Mas nós entendemos o que ele queria dizer.

— E o que é que vocês seis disseram?

— Foi um desmaio geral. Guiadzne quase teve um ataque do coração. Ruchikov peidou. Ele sempre peida quando fica preocupado. Quando a tensão é muito grande, dá três peidos curtos consecutivos. Desta vez, foram sete, longos. Marakhlin teve dificuldades em respirar. Depois, todos nós dissemos como estávamos deleitados com as maravilhosas notícias e congratulamo-nos com o camarada ministro com todo o fervor.

— E nenhum de vocês fez objeções? — perguntou Ludmila, recolhendo os pratos de sopa.

— Ah, caímos em cima dele. O diretor de Operações disse que não havia mais nada que espionar. Não havia mais segredos. Sabíamos de tudo o que valia a pena saber. E mais ainda. Estávamos inundados de lixo, de relatórios completamente inúteis sobre assuntos sem importância.

— Ele disse isso?

— Pode apostar...

— Com essas palavras todas?

— Não seja idiota, Ludmila. É claro que ele disse que nossos agentes, com a maior devoção e consciência, estavam realizando no momento verdadeiros milagres, e perguntou se um pouco mais de trabalho da parte desses devotados agentes não seria suficiente para enfrentar as novas exigências, em vez de aumentar o número deles. Makarov olhou para ele com a maior frieza e perguntou ao Camarada Ruchikov se ele realmente estava satisfeito com o andamento das atividades, e se achava que a segurança da União Soviética não' precisava sempre ser reforçada, a fim de proteger as gloriosas conquistas do nosso povo, sob a liderança do Partido. Estaria o Camarada Ruchikov advogando complacência? — essa foi a pergunta de Makarov, olhando inquisitivamente Ruchikov nos olhos. Este assegurou imediatamente que não estava absolutamente advogando complacência, que concordava totalmente com o camarada ministro e o felicitava pela sua perspicácia, sabedoria e sucesso. Mas na verdade ele já tinha ido um pouco longe demais.

— Um pouco longe demais... Quer dizer então que vocês calaram todos a boca e saíram correndo? — inquiriu Ludmila, enquanto trazia o pato ao forno.

— Pato ao forno — exclamou Seriochka com satisfação. — Um ponto brilhante num dia cinzento. Não. Não calamos a boca e não corremos. O diretor de Comunicações perguntou quando é que os novos agentes deviam partir, e foi informado de que o prazo era de dois meses. Então, ele observou que treinar novos agentes — ensiná-los apenas a cifrar e a decifrar mensagens — levaria pelo menos seis meses. Makarov replicou dizendo um montão de bobagens, com as quais o diretor concordou, não sem antes felicitá-lo pela sua perspicácia, sabedoria e sucesso.

— E o que é que você disse, como diretor de Seleção e Treinamento?

— Eu? Eu perguntei a ele de que raio de jeito ele esperava que eu fosse encontrar — nem falei em treinar — mil duzentos e setenta e cinco bastardos, ignorantes, novinhos em folha, em tão pouco tempo.

Serguei experimentou o pato. Depois, acrescentou suavemente: — Não foram essas, de fato, minhas verdadeiras palavras...

— É. Você devia ter dito mil seiscentos e setenta e cinco bastardos, ignorantes — corrigiu Ludmila novamente.

— Makarov me perguntou se eu não tinha confiança na inteligência, no zelo e no patriotismo da juventude soviética. Ou talvez a empreitada estivesse além da minha capacidade e devesse ser entregue a outra pessoa. Eu lhe assegurei que tinha a maior confiança na inteligência, no zelo e no talento de nossos jovens idiotas e que teria o máximo orgulho em proceder à sua instrução. Depois, felicitei-o por sua perspicácia, sabedoria e sucesso. Mas marquei um tento a mais ao lhe pedir o favor de transmitir minhas entusiásticas felicitações, também, ao Camarada Iu. V. Andropov, ministro da Segurança. Ele não vai transmitir nada, eu sei, mas Iu. V. Andropov vai ouvir as gravações da sessão... Este pato, Ludmila, está quase tão bom quanto o da minha querida falecida mãe!

Continuaram a comer em silêncio por um ou dois minutos. Depois, Ludmila perguntou-lhe: — Qual é a situação atual?

— A situação é muito simples. Devido à inveja reinante entre o pessoal da inteligência militar, o gru, e os nossos rapazes do kgb, de um lado, e entre Iu. V. Andropov e A. A. Grechko, dentro do governo, de outro, vamos ter que ampliar nossos serviços em mil duzentos e setenta e cinco — está bem, mil seiscentos e setenta e cinco! — bastardos, indesejáveis, desnecessários, estúpidos agentes de terceira classe, sem treino algum, completamente imprestáveis. Isso vai aumentar o poder e a influência do kgb, o que é, afinal, o objetivo primordial de todas as nossas operações.

— Você também é do kgb, Seriochka. Você também devia estar satisfeito com o fato de seu poder estar aumentando.

— Está delirando, minha filha. Você não vê qual é o problema, Ludmila Gregorovna? Primeiro, a empreitada está condenada ao fracasso, porque não há mais segredos. Não há mais segredos, Ludmila. Quando terminou a última guerra, ficamos correndo atrás do Grande Segredo, o segredo nuclear,- e isso era alguma coisa. Mas agora já o temos. O conhecimento de certos detalhes ainda poderia ser útil, é verdade, mas nada comparado com o Grande Segredo. Estávamos tão bem organizados que até sabíamos das decisões da otan antes mesmo do Presidente Nixon. Agora não existe mais nada a descobrir, não há nada de novo. Nada importante, pelo menos. Nosso problema agora é manter ocupados aqueles sujeitos. Gastam o dinheiro do Estado, levam uma vida boa nas capitais ocidentais e inundam o Centro com intermináveis relatórios sem utilidade nenhuma. Segundo, onde é que vou arranjar os homens? Não podemos verificar os antecedentes de mil seiscentos e setenta e cinco bastardos de um dia para o outro. E muito menos treiná-los. Tal como Guiadzne disse a Makarov, só para lhes ensinar a codificar e decodificar mensagens vai levar seis meses. E que dizer de umas duas dúzias de outras matérias importantes, ainda que elementares? Vigilância, comunicações, montagem de redes, microfotografia, sabotagem? O período normal de treinamento é de dois anos. Dois anos, Ludmila! Seguidos de mais dois anos de estágio. E agora vou ter que apresentar mais de mil homens em dois meses. Esses caras vão ficar loucos. Vamos oferecer reféns para as agências de contra-espionagem do Ocidente. Eles vão até gozar da gente. E quem vai sofrer as conseqüências, quem? Quem é que vai para a rua? Chamado de traidor? De sabotador? Quem? Iu. V. Andropov? Ou Makarov? Nenhum dos dois, e sim o Sr. Serguei Alexándrovitch Orlovski. Eu serei mandado para a Sibéria como inimigo do povo. Ou aposentado em desgraça, se tiver sorte. É essa a situação, Ludmila. Traga a sobremesa.

Ludmila saiu e demorou um bocado.

— Ludmila! — gritou ele. — O que é que você está fazendo?

Ela voltou com um creme à Malakov e replicou: — Pensando.

Serguei saboreou o creme e disse: — Você precisava ver o que mamãe fazia!

Ludmila murmurou qualquer coisa pouco favorável a respeito da profissão da falecida.

— O que é que você estava pensando? — perguntou Seriochka.

— A respeito desses assuntos. Não há problema. Você se sairá bem.

— Por quê?

— Não se preocupe com o fato de os agentes não terem nada o que fazer. Eles vão ter o suficiente com que se ocupar. Os imperialistas ocidentais poderão não ter nada a oferecer, mas eles vão ficar ocupados: uns com os outros. Vocês ampliam os serviços. O gru, também. Conseqüentemente, um quarto dos novos agentes de vocês vai ficar de olhos nos novos agentes do gru. Vão ter que espionar uns aos outros. No mínimo, metade vai se ocupar disso. Com um pouco de sorte, vão ser mil agentes ocupados nesse serviço. Sobram duzentos e setenta e cinco. Agora, não me diga que você não consegue arranjar serviço para uns miseráveis duzentos e setenta e cinco novos agentes!

— Bem... de certa forma...

— Nunca ouviu falar do Professor Parkinsov?

— Arkadi Fiódorovitch Parkinsov, professor de administração estatal na Universidade de Minsk? O homem que ganhou dois prêmios Stálin?

— Não foi culpa dele. Apesar disso, é um homem brilhante. Inventou uma das leis econômicas mais importantes do século: "O trabalho aumenta à medida que aumenta o tempo disponível para a sua execução". Mais ou menos isso. Portanto, não se preocupe. Onde houver agentes haverá sempre trabalho. Quantos mais, melhor.

— Você é uma mulher muito esperta, Ludmila! Este creme à Malakov, afinal, está melhor do que eu a princípio pensava. O de mamãe não era muito melhor. Mas mesmo que o que você disse esteja certo, mesmo assim, nem todos os meus problemas estarão resolvidos.

— Eu já disse: você não tem problemas.

— Ah, não tenho?

— Não, não tem. Você não contou que não há nada o que espionar?

— Nada, nem um pouquinho.

— Então, não importa que seus agentes sejam ineficientes. Só quando as pessoas terão que fazer alguma coisa é preciso treiná-las bem. Eles não vão precisar de mais de dois meses para serem treinados a não fazer nada.

— Três meses. Acho que posso conseguir um mês de prorrogação.

— Não é necessário. Mostre que é um homem brilhante e aceite os dois meses de prazo — disse Ludmila.

Ele continuou comendo o seu creme à Malakov.

— Você é uma mulher muito esperta, Ludmila. Você tem mais bom senso que toda a diretoria reunida. E perdendo seu tempo na cozinha.

— Mas é justamente na cozinha que pretendo perder o meu tempo, Seriochka.

— Pena. Por quê? Por causa daquele lamentável mal-entendido? Os dois anos no campo, na Sibéria? Eles não deixaram você sair oito anos antes do cumprimento da pena? Eles não lhe apresentaram desculpas pomposas? Do que é que você está com medo?

— De mais desculpas pomposas.

Ele colocou seu prato vazio em cima do dela e os talheres sujos em cima, tudo pronto para ser levado para a cozinha. Mas ela não se moveu.

— Além disso, de fato, não estou muito certa de estar perdendo o meu tempo na cozinha, Seriochka.

— Seu pato ao forno, sem dúvida, é uma coisa...

— Não é nisso que eu estava pensando. Às vezes uma mulher pode fazer mais na cozinha do que seis membros da diretoria do kgb em seus gabinetes.

— Como?

Ludmila pareceu não ter ouvido e permaneceu concentrada em seus pensamentos.


                   Boris ou Arkadi?

— A maioria de vocês terá uma atividade legal — informou o instrutor, Camarada Protopopov. — Com algumas poucas exceções.

Havia vinte e cinco agentes na improvisada sala de aula, no quartel-general do kgb, na Rua Derjinski. Devido à extrema urgência do projeto, o diretor de Seleção e Treinamento, Tenente-Coronel Serguei Alexándrovitch Orlovski, deu ordem para que muitas das regras até então consideradas sacrossantas fossem postas de lado. Os vinte e cinco daquela sala tinham destino certo: Londres. Tinham travado conhecimento uns com os outros — o que era um relaxamento sem precedentes de uma das regras mais acatadas. Orlovski considerava esse relaxamento criminoso, mas o que podia ele fazer? Os vinte e cinco não sabiam, claro, que eram apenas parte de um grupo de duzentos e quinze, todos destinados a Londres, e muito menos que esse grupo maior, na realidade, era apenas parte de um exército de mil duzentos e setenta e cinco espiões soviéticos recém-recrutados, prontos para invadir o Ocidente. Todos receberam uma ordem à qual em hipótese alguma deviam desobedecer: ninguém estava autorizado a dizer aos outros seu nome ou qualquer outro detalhe a respeito de sua família, ou a revelar, sob qualquer pretexto, seus antecedentes educacionais. Qualquer transgressão a essa ordem — foram avisados — seria punida não só com a demissão instantânea, mas também com a prisão imediata. Qualquer um que fizesse sequer uma pergunta relacionada com tais assuntos seria processado por crime contra a segurança nacional e condenado às mesmas horríveis conseqüências. Deviam dirigir-se uns aos outros pelo simples tratamento de "camarada". Era-lhes permitido também discutir assuntos relativos aos estudos, mas apenas dentro do edifício do kgb. Fora dele, acaso se encontrassem na rua ou em qualquer outro lugar, deviam ignorar-se mutuamente e não dar qualquer indicação de se terem encontrado antes.

 

Arkadi ficou extremamente feliz quando finalmente transpirou, naquele dia agourento, ao término de uma longa entrevista, tortuosa e ocasionalmente arrepiante, que não seria mandado para a Sibéria por causa do samizdat de James Bond, mas em vez disso recrutado pelo kgb para se transformar num futuro James Bond russo. Esse foi para ele o momento mais feliz de sua vida. Sentiu-se orgulhoso, era a realização de seu mais acalentado sonho. E, no entanto, já existiam certos sinais inquietantes no sonho, desde o seu início.

Começou logo em sua primeira parada, na sala 318, no térreo, onde foi recebido — após uma espera de hora e meia — por um funcionário de óculos, completamente desidratado, do tipo que, pensava ele, só aparecia em filmes medíocres. O funcionário informou-lhe, com uma voz monótona e sem levantar os olhos uma única vez da pilha de documentos à sua frente, que seu salário seria de trezentos e dezessete dólares e oitenta e sete centavos por mês.

— Mas eu pensava que ia para Londres — respondeu Arkadi, surpreso.

— Sim, você vai para Londres, capital da Inglaterra.

— Eu pensei — acrescentou Arkadi timidamente — que lá eles usavam a libra esterlina.

— E usam.

— E que o dólar era a moeda dos imperialistas norte-americanos.

— E é — concordou o camarada desidratado. A seguir, acrescentou:

— Você não sabe que todos os serviços de segurança da URSS fazem suas transações em dólares? Sempre fizemos assim — falou ele, com orgulho.

— Mas por quê? — insistiu Arkadi, ainda surpreso.

— Não sei por quê. Nunca perguntei. Nunca me ocorreu perguntar. Mas se você quiser saber, é melhor entrar em contato com o diretor-chefe de Finanças. — Sua voz não tinha o menor traço de ironia, ameaça ou cortesia. E ele continuou, sem levantar os olhos para o homem que estava sentado à sua frente:

— Trezentos e dezessete dólares e oitenta e sete centavos equivalem a duzentos e setenta e quatro rublos e cinqüenta e sete copeques. Um dólar representa oitenta e seis copeques e meio e cem rublos equivalem a quarenta e seis libras e noventa e três pence. O dólar se desvalorizou recentemente. Isso significa que você vai começar com um corte de sete por cento no seu salário.

Arkadi esperava descobrir um traço de maliciosa alegria na comunicação. Isso até que seria humano. Mas não havia. Arkadi não estava satisfeito com as informações recebidas e mal continha seu espanto diante das prioridades do kgb. Decerto, James Bond não teria sido recrutado daquela maneira, mesmo sendo Londres uma fortaleza do capitalismo. Decerto, o 007 teria começado sua carreira recebendo informações mais excitantes do que as taxas de câmbio em algumas moedas estrangeiras...

— Além disso, você receberá ajuda de custo para despesas autorizadas por seu diretor residente, através de seu contato — continuou o Desidratado. E o pior ainda estava por vir: — Quanto à pensão, nosso sistema não prevê quaisquer contribuições. Todavia, se você for demitido ou se retirar antes dos cinqüenta anos, não terá direito...

A essa altura, ele começou a divagar, explicando todos os benefícios a que Arkadi teria direito se passasse do estágio inferior do funcionalismo para o nível do pessoal mais categorizado, e daí — o que seria improvável — para a classe de dirigentes do kgb. Terminou dizendo: — Os anos passados na prisão contarão em dobro para a sua aposentadoria. Prisão no exterior, claro — acrescentou ele enfaticamente.

Arkadi ficou deslumbrado ao escutar a palavra "prisão". Finalmente, uma palavra que sugeria perigo, mistério, aventura, embora o Desidratado a tivesse pronunciado como se falasse de férias. Havia, contudo, algo de especial: Arkadi compreendeu que um espião aposentado, tendo passado catorze anos numa prisão estrangeira, teria condições de viver muito melhor do que um professor aposentado de inglês e literatura quirguiz que tivesse tido a sorte de permanecer em liberdade a vida inteira. "Foi bom ter mudado de profissão", pensou ele vagamente, na certeza de que o assunto ainda não era atual. A aposentadoria, para ele, só dali a quarenta anos.

Seus pensamentos estavam concentrados no curso de combate sem armas, mas este, como ficou confirmado mais tarde, não fazia parte do currículo. Teve pesadelos em que manejava armas de fogo, aterrorizado diante de pistolas e de rifles e mais aterrorizado ainda, diante da idéia de que os outros pudessem notar seu terror. Mas não precisava se preocupar. Nem chegou a ver pistolas, quanto mais rifles. Uma grande parte do tempo gasto pelos alunos foi dedicado mais uma vez ao estudo da história do Partido Comunista (Bolchevista) da União Soviética. Ele já tinha estudado essa matéria na escola primária; depois, na secundária; a seguir, no clube esportivo, no Komsomol*, na universidade, no curso de danças folclóricas, no clube de xadrez. Como havia nascido em 1952, a história tinha mudado um pouco com o correr dos anos, mas ele nem notou e também não se preocupou com esses detalhes insignificantes. Qualquer pessoa podia acordá-lo às três horas da madrugada e ele seria capaz de contar tudo a respeito do racha verificado em 1903 dentro do Partido Social Democrata russo e, além disso, enumerar uma dúzia de razões válidas segundo as quais Lênin estava sempre certo e Plekhánov, sempre errado.

 

*Organização da juventude comunista soviética. (N. do E.)

 

Ele sabia por que os bolcheviques eram os salvadores do proletariado e os mencheviques, malfeitores e vilões; que as Repúblicas do Turquestão e do Usbequistão se juntaram às quatro originais em 1924; de todos os crimes de Trótski (embora não soubesse se Trótski tinha alguma coisa a ver com a criação do Exército Vermelho) e da traição de Zinoviev, Kamenev, Bukharin e outros. Em suma, sabia de tudo o que devia saber e nem sequer se importava de estudar tudo de novo mais uma vez. De fato, já esperava isso. Tinha de aprender tudo aquilo, na mesma maneira que certos jovens ocidentais têm que estudar o Velho Testamento. Certas crianças acham o assunto mais interessante do que outras. Umas acreditam mais facilmente do que outras. De qualquer forma, tratava-se de coisas acontecidas — se é que aconteceram — há muitos, muitos anos, fatos que se misturaram a lendas e não significavam muito. Mas era preciso estudar a matéria para passar nos exames e prosseguir na vida. Arkadi não fazia objeções. Lamentava apenas que tivesse que perder tanto tempo com as vilanias de Kautski em vez de aprender judô. Mas não havia nada de errado em voltar a estudar mais uma vez a história do Partido. O pior foi ter que aprender contabilidade. Afinal, que relação havia entre a contabilidade e a espionagem? Com certeza, Gordon Lonsdale jamais tinha visto um livro de contabilidade. Nem Abel, nem James Bond. Sua cabeça estava cheia de expressões que nunca tinha ouvido antes: estoques iniciais, depósitos bancários, extratos de contas, fundos perdidos, reservas com correção monetária, materiais inservíveis.

Receberam instruções, também, sobre outros assuntos, mais obviamente relacionados com suas missões futuras. Codificar e decodificar mensagens, por exemplo. Arkadi depositou grandes esperanças no assunto, mas teve uma grande desilusão. Era urna complicação exasperante, com suas muitas salvaguardas implícitas, um exercício que lhe garantia sempre uma terrível dor de cabeça. O Camarada Protopopov, responsável pelo curso, era muito impaciente com os alunos: Ele próprio era capaz de codificar e decifrar mensagens com uma velocidade incrível. Tinham a sensação de que ele quase sempre errava, mas quem teria coragem de lhe pedir uma verificação?

Entre todos os assuntos, o mais interessante tratava da vida na Grã-Bretanha. Ensinavam-lhes os hábitos britânicos, costumes e maneiras. Ao chegar lá, tinham que se comportar naturalmente, com graciosidade fácil, movimentando-se entre os locais como se fossem um deles. Essa matéria era ensinada por Mr. McRoberts, um cavalheiro inglês. Ele se dizia irlandês, mas quem é que se importava com isso? Fazia diferença? Tinha setenta e seis anos de idade, mas parecia mais jovem. Sua aparência era a de quem não tinha um dia além de setenta e quatro. Era um dos poucos sobreviventes — se não o único — de um famoso grupo de engenheiros britânicos da década de 1920-30 e sua maior glória era ter sido amigo de Lênin, ou, pelo menos, ter falado com ele, ou, no mínimo, ter estado a uma distância curtíssima dele. Não era instrutor regular de agentes recém-recrutados, mas tinha sido chamado para aquela emergência. Usava um livro, Little ladies and real gentlemen, the complete etiquete, de Sua Excelência U. T. Billington-Hoare, publicado em Londres em 1927. Era muito consciencioso no ensino de boas maneiras: como dirigir-se ao segundo filho de um conde ou a uma dama da corte, ou como falar com os empregados. Explicou-lhes que uma senhora com qualquer título teria que ser tratada por "Your Ladyship", mas jamais um cavalheiro da corte deveria ser chamado "Your Sirship". E riu. Achou a situação extremamente engraçada, repetiu-a várias vezes, e riu cada vez mais alto a cada repetição. Também lhes ensinou a endereçar envelopes para Sua Reverendíssima, o deão da Catedral de St. Paul, para os deputados e para Sua Excelência o vice-rei das índias. Mr. McRoberts foi cuidadoso ao lembrar a todos que este último posto no momento estava desocupado, mas que gostava de preparar seus alunos para qualquer eventualidade. Ensinou-lhes ainda como se comportar em bodas de prata, que gorjetas dar nas pensões, nos hotéis ou em cruzeiros, como tratar os empregados de uma maneira geral e como tomar a sopa sem fazer ruído. Mr. McRoberts acentuou que era muito importante na Grã-Bretanha começar todas as conversas com uma referência casual às condições do tempo e nunca recusar um convite real, a que se dava o nome de ordem, assim como, também, era muito importante jamais colocar a faca na boca. Arkadi ficou pensando a respeito do tempo. Afinal, o que é que uma pessoa poderia conversar a respeito do tempo?

— Bem... — respondeu Mr. McRoberts quando Arkadi lhe fez a pergunta — apenas uma observação casual. Se estiver chovendo, você diz: "Está chovendo". Se estiver frio, você fala: "Que frio!" Se estiver nevando: "Está nevando". Como vê, não é difícil.

— Não, não é difícil — aquiesceu Arkadi —, mas não será também supérfluo?

Foi a vez de Mr. McRoberts ficar surpreso:

— Supérfluo? Por que razão seria supérfluo?

— Será que uma pessoa precisa dizer a outra que está frio quando está frio?

— Isso me faz lembrar uma coisa — disse Mr. McRoberts, em vez de responder à pergunta. — Vocês jamais devem contradizer qualquer pessoa a respeito do tempo. O que ela disser serve.

Arkadi levantou o braço.

— Sim? — inquiriu Mr. McRoberts com impaciência.

— Mesmo que, durante uma onda de calor em julho, alguém diga: "Está nevando", não se deve contradizê-lo?

— Pelo amor de Deus, não — replicou Mr. McRoberts. (Todos os instrutores do kgb e até os outros funcionários gostavam de invocar a divindade.) — Mas nenhum inglês iria dizer uma coisa dessas. Assim como jamais o tratará de "Your Sirship".

E caiu na gargalhada mais uma vez.

Depois de tantos desapontamentos, receberam então a notícia de que muitos deles teriam sua situação na Grã-Bretanha legalizada. Seriam legais. Arkadi sabia exatamente o que isso significava. Os ilegais seriam os verdadeiros espiões, os agentes, os homens que desafiavam os perigos, que se atracavam com os bandidos nos telhados e que levavam bala, sem piedade, à beira de precipícios. Os legais trabalhavam como diplomatas ou funcionários equivalentes, às vezes disfarçados em terceiros-secretários, dirigiam e supervisionavam os outros, transmitindo as informações para o Centro e, enquanto isso acontecia, gozavam de imunidades diplomáticas ou, pelo menos, da segurança de um gabinete respeitável. Para eles, não havia a mínima chance de serem presos e de ver contados em dobro, para efeitos de aposentadoria, os anos passados na prisão.

Na sexta semana do curso houve uma virada ao gosto de Arkadi, algo mais compatível com o trabalho de espião, mas que, em contrapartida, era muito cansativa. Ele nunca se esquecera, evidentemente, da proibição de mencionar seu nome ou seus antecedentes fosse para quem fosse. E obedecia a essa norma conscientemente. Mas o imprevisto aconteceu: os alunos passaram a ser chamados um a um para fora da classe, e quando chegou a sua vez sentiu que estava indo para uma espécie de treino individual ministrado por algum dos chefões. O funcionário do kgb que tinha vindo buscá-lo bateu na sala 383, também no térreo, abriu a porta e mostrou-lhe o caminho. Atrás da escrivaninha estava um homem de aparência sinistra, com um bigode de meter medo e olhar afiado como faca, em uniforme de capitão. Olhou longamente para Arkadi como se quisesse trespassá-lo com os olhos e depois disse: — Você é Boris Gregórovitch Gurbanov?

— Não, senhor — replicou Arkadi, prestimoso e excitado. — Sou Arkadi Dmítrievitch Nikítin.

Os olhos escuros do capitão flamejavam ameaçadores: "Não me contradiga, homem!"

Arkadi ficou parado, prestando atenção.

— Quem é você? — perguntou o capitão.

— Arkadi Dmítrievitch Nikítin — disse o próprio, mas desta vez muito timidamente.

O capitão deu um murro na mesa com tanta violência que até parecia o disparo de um canhão.

— Quem é você? — trovejou ele.

— Boris Gregórovitch Gurbanov.

— Você nasceu — continuou o capitão com voz normal — em 1951, em Kaluga. Seu pai era ferreiro; sua mãe, filha de um fazendeiro de Iefremov. Quando você tinha seis anos, sua família mudou-se para Bejetsk...

Arkadi recebeu ordens de memorizar todos os pequenos detalhes de seu novo passado, de modo a que pudesse referir-se a ele sem qualquer espécie de hesitação. Recebeu todos os papéis e documentos necessários: certidão de nascimento, diploma universitário, carteira de identidade, referência dos três últimos empregadores. Todos os papéis pareciam genuínos e bem usados — e, na realidade, todos eles eram perfeitamente originais.

— Boris Gregórovitch Gurbanov é um nome real — informou-lhe o capitão. — Ou, pelo menos, era, esta manhã. E estes são seus verdadeiros documentos. E seu passado é, de fato, a verdadeira história de sua vida.

Arkadi estranhou que, tendo que ir para Londres como um legal, eles precisassem disfarçá-lo sob a identidade de um traidor executado. Mas não estava autorizado a fazer perguntas ao capitão. E muito especialmente essa pergunta. De qualquer maneira, já estava tão cansado de esquemas de aposentadoria e de lançamentos contábeis que até aquela cena de capa-e-espada sem sentido lhe parecia ótima.

— Volte aqui na próxima terça-feira, às três horas da tarde — disse o capitão. — Agora pode sair.

Aquela cena de capa-e-espada quase o liquidou. O Camarada Protopopov contou-lhes alguns dias mais tarde que dois deles seriam selecionados para ir à presença do Tenente-Coronel Orlovski, diretor de Seleção e Treinamento. Era uma grande honra ser escolhido para esse encontro. Os emissários deveriam voltar com a mensagem do Camarada Orlovski dirigida aos restantes. Arkadi e um outro jovem, um lituano de nome Smetona, foram os escolhidos como representantes da classe. O encontro com Orlovski foi marcado para as duas e meia da tarde no salão de conferências, e quando Arkadi e Smetona, acompanhados de Protopopov, caminhavam por um corredor em direção ao salão, passaram por um grupo similar, dois alunos e um homem do kgb, obviamente desempenhando o mesmo tipo de missão. Arkadi olhou casualmente para o outro grupo, e um segundo depois seus olhos se acenderam, seus lábios se abriram num largo sorriso e ele gritou: — Boris!

O outro, com a mesma euforia, gritou também: — Arkadi!

Protopopov olhou para eles com um reflexo assassino no olhar:

— Vocês dois — chamou ele cruamente —, sigam-me. Levou os dois para uma sala, ocupada por dois outros jovens, que estavam sentados em cima de uma mesa, batendo papo e fumando. Protopopov disse qualquer coisa para eles em voz baixa e fez depois um sinal rápido. Os dois rapazes saltaram da mesa e saíram logo.

— Loucos incompetentes — berrou Protopopov, dirigindo-se a Arkadi e Boris e espumando de raiva. — Vocês são absolutamente incapazes para missões de responsabilidade. Quantas vezes vocês foram instruídos para não usar nunca — nunca! — seus verdadeiros nomes? Vão já para a rua. Mas já lhes adianto que o caso não vai ficar nisso, não.

O homem estava certo, pensou Arkadi. Que mancada. Que mancada estúpida. E no pior momento, no pior dos piores. Que podia fazer? O que é que devia dizer?

— Qual é o seu nome? — perguntou Protopopov. — Diga-me apenas seu nome de merda.

— Boris Gregórovitch Gurbanov — respondeu Arkadi.

— E o seu?

— Arkadi Korneliovitch Voronkov — replicou Boris, friamente, com muita inocência ofendida na voz.

A melhor coisa a fazer, pensou Arkadi, seria contar a ele que era difícil rever de surpresa um companheiro de infância, seu melhor amigo, e lembrar-se ao mesmo tempo que o nome pelo qual o conhecia a vida inteira não devia ser utilizado. Os agentes do kgb lhe perguntaram até, no primeiro contato, se ele conhecia Boris. Portanto, o fato parecia até importante, ainda que nunca mais o tivesse visto desde o recrutamento. Pensou, então, em apelar para a misericórdia de Protopopov. Era bem verdade que a misericórdia de Protopopov não parecia uma instância muito segura para apelações, mas não havia escolha.

— Será que vocês, idiotas, nem sequer são capazes de aprender seus novos nomes? Nem isso, sequer, está ao seu alcance? Muito bem, não importa. Já não vale a pena se preocuparem, depois do que aconteceu.

— De que é que o camarada instrutor está falando?

— perguntou Boris friamente e com o maior descaramento.

— Eu chamei meu amigo de Boris.

Arkadi entendeu imediatamente. Era uma apelação mais segura do que a outra, dirigida à misericórdia de Protopopov.

— E eu chamei a ele Arkadi — disse Arkadi. Protopopov foi apanhado de surpresa:

— Você chamou a ele Arkadi?

— Evidentemente, senhor — disse Arkadi.

— E você chamou a ele Boris?

— Sim, senhor — disse Boris. — E temos três testemunhas que nos ouviram.

— Vocês estão mentindo — afirmou Protopopov, sem muita convicção na voz. Estava atemorizado pelo receio de que fizessem dele um idiota. — Vocês estão com muita sorte. O camarada diretor está esperando por nós dentro de alguns minutos. Não posso fazê-lo esperar. Podem agradecer a Deus. Mas deixem de ser loucos e tratem de lembrar seus novos nomes.

— Claro que vamos nos lembrar deles, camarada. Sempre o fizemos. Não é verdade, Boris? — perguntou Boris.

— Sem dúvida, Arkadi — disse Arkadi.

— Já chega, basta — rugiu Protopopov. — Não falem um com o outro na minha frente! — O incidente tinha sido para ele uma derrota infame. Mas Arkadi, também, estava tremendo até os ossos.

 

Arkadi, Smetona e Protopopov entraram no salão de conferências, seguidos de Boris e de outros membros de seu grupo. Arkadi ficou surpreso com a quantidade de gente que já se encontrava lá dentro. Havia cerca de cento e cinqüenta homens no salão. Se cada grupo de três representasse uma classe de vinte e cinco... Mas ele estava demasiado perturbado e confuso para fazer qualquer cálculo.

O secretário de Orlovski — um homem com uniforme de capitão do kgb — entrou no salão e pediu silêncio à multidão heterogênea. Segundos depois, apareceu o próprio Orlovski, também ele em uniforme resplandecente. Subiu no estrado e olhou, pesquisador, para os rapazes. Todos se sentiram como se o camarada diretor estivesse observando cada um, pessoalmente, há séculos. Foi então que Orlovski sentou-se e começou a falar. O resto do pessoal ficou mesmo em pé.

— Todos vocês deverão sentir-se sobremaneira honrados por terem sido escolhidos para este serviço. Vão servir à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas no estrangeiro, no Ocidente imperialista, expostos a muitos perigos e tentações — e continuou falando por alguns minutos a respeito de patriotismo, dos deveres a cumprir, da nobreza das missões do kgb, evocando Lênin à razão de três citações por minuto. Confessou que tinha sido seu maior desejo, durante muito tempo, aumentar substancialmente o número de agentes no exterior e, por isso, sentia-se extremamente grato ao Ministro Makarov por ter ele concordado com suas propostas.

— A grande maioria de vocês será digna de toda a confiança, alguns destacar-se-ão, e — quem sabe? — um ou dois dentre vocês tornar-se-ão espiões famosos.

Todos os que estavam no salão tentaram dizer, através de uma expressão solene no rosto: "Eu serei um deles, camarada!" Orlovski continuou:

— Alguns de vocês talvez achem a expressão "espião famoso" curiosa. Uma contradição. Antigamente era; agora, já não é mais. Outrora, já faz muito tempo, nosso país — aliás, todos os países — tinha por hábito negar completamente a utilização de espiões. Mas agora não. Nossa profissão cresceu em respeitabilidade. Tornou-se uma profissão reconhecida, tal como a de médico ou de militar. Nossos melhores espiões, merecidamente, são festejados, respeitados, entrevistados pela imprensa e encorajados a escrever suas memórias. Rudolf Abel é um nome devidamente celebrado em toda a União Soviética. Já publicou dois expressivos ensaios sobre suas aventuras. O Camarada Vladimir Semichastni escreveu um importante trabalho a respeito das obrigações e responsabilidades de nossa grande profissão. O Camarada Gordon Lonsdale escreveu uma história e conseguiu que ela fosse transformada em romance no Ocidente, obtendo assim pilhas e mais pilhas de moedas desprezíveis, mas necessárias à nossa pátria socialista. Kim Philby, esse cavalheiro inglês, é muitíssimo respeitado de Minsk a Vladivostok. E Richard Sorge, evidentemente, foi o maior deles todos, um autêntico herói da União Soviética. Uma das ruas mais bonitas da nossa capital recebeu seu nome: todos vocês devem ter passado por ela muitas vezes. Até um selo comemorativo de quatro copeques foi lançado alguns anos atrás para festejar seus feitos. Esses são os pináculos que hoje em dia estão ao nosso alcance. Mas há profundezas, também. Se os pináculos são extasiantes, as profundezas são aterradoras. A punição para os traidores é a morte. A morte: para eles, possivelmente para as esposas, para os filhos, para as mães, para os pais. Acho bom vocês conservarem sempre bem viva na lembrança a idéia: traição significa morte. E traição é o nome que eu sempre preferi dar a todas as falhas.

Muitos dos rapazes sentiram vontade de voltar para casa.

— O Ocidente imperialista é um lugar horrível, degradante, triste. Na Grã-Bretanha, basta sair do centro das grandes cidades, vocês encontrarão muitas vezes trabalhadores e camponeses esfomeados, vivendo nas sarjetas, enquanto os ricos, lordes, duques e homens de negócios passam e cospem em cima deles. Na França, riem ironicamente na cara deles. Na Alemanha Ocidental, os revanchistas ocupam-se, incessantemente, da preparação de uma nova guerra. Vocês vão achar a miséria, a esqualidez, a exploração, e a pobreza do Ocidente repulsivas, e vão sentir orgulho de ser cidadãos do maior país socialista do mundo.

Todos o olhavam bem nos olhos e começaram a sentir-se orgulhosos.

— Vocês vão achar extremamente difícil resistir às seduções do Ocidente...

Arkadi ficou ligeiramente intrigado. Sedução da sordidez, da miséria, da pobreza, da esqualidez?

— Os capitalistas ocidentais são inteligentes e capazes. Conseguem disfarçar a pobreza em riqueza, a miséria em felicidade, a tirania em liberdade. E usam as palavras com diabólica eficiência. Vocês precisam precaver-se contra as palavras deles, cada uma delas é uma mentira. Eles chamam nossas guerras justas de "agressão", à libertação da Tchecoslováquia de "opressão"; à ajuda oferecida à nossa amiga Hungria, em 1956, de "invasão". Tentam nos convencer de que seu nacionalismo burguês de jeito nenhum é uma forma de exploração; por outro lado, chamam o separatismo traidor dos ucranianos, lituanos, etc, de "autêntico nacionalismo". Isso para nós é incoerência. A democracia burguesa nada tem a ver com a democracia autêntica. Falam muito do Parlamento deles: uma maneira capitalista muito inteligente de oprimir as massas trabalhadoras. De tantos em tantos anos, decidem quais os membros das classes dirigentes que devem representar — mal! — as classes populares. Isso nada tem a ver com o nosso próprio Parlamento, que representa, de fato, os reais interesses dos trabalhadores e camponeses. As tentações vão ser muitas. Mas vocês jamais vacilarão, nem por um momento sequer. Serão guiados. E observados. — Orlovski fez uma pausa e repetiu: — Observados!

Depois, continuou:

— A justiça socialista tornou-se mais branda, nos últimos tempos. Somos suficientemente fortes e, por isso, misericordiosos e humanos. Os criminosos que criticam as lideranças, que lêem literatura subversiva ou que repetem piadas destrutivas, já não são fuzilados — são mandados por vinte ou vinte e cinco anos para campos de trabalho correcionais nas regiões árticas, para serem reeducados. Mas para aqueles que abandonarem as nossas hostes só haverá uma punição: a morte. E se não pudermos alcançá-lo imediatamente, vamos chegar a ele mais tarde. Um ano depois, dez anos. Não importa. Ele jamais poderá dormir em paz. O dia seguinte poderá ser para ele o último. E podemos sempre alcançar sua família. Se a família morrer, ele é o assassino. Obrigado, camaradas — concluiu ele, um pouco abruptamente, levantando-se e saindo do salão de maneira brusca.

Arkadi voltou para casa sentindo-se infeliz e ansioso. As palavras de Orlovski tinham sido suficientemente perturbadoras, ainda mais que pronunciadas depois daquele estúpido incidente com Protopopov.

Outros rapazes, sob pressão, começam a beber. Arkadi faz amor. Correu para Olga Makarova, sua jovem e encantadora colega, fez amor com ela e deixou-a, com uma certa pressa. Precipitou-se na direção da cama de Clara Iakonova, derrubou-a e saiu correndo, quase sem dizer adeus. Passou pela casa de Martha Sluys, deu uma boa fornicada, quase sem respirar, e ao sair parecia um sonâmbulo. Finalmente, foi procurar sua amante, há muito abandonada e quase esquecida, Vera Russikova, com quem passou a noite. Essas atividades deram-lhe um pouco de calma.

 

                   Os patos do Parque Górki

Arkadi entregou seu pedido de demissão a um funcionário do Instituto de Lingüística. A carta tinha sido ditada pelo Camarada Protopopov, que leu para ele o conteúdo de um pedaço de papel que alguém também lhe tinha ditado. Era uma espécie de história da carochinha, explicando que Arkadi fora compelido a desistir de seus estudos durante um período indeterminado, por ter de deixar Moscou em viagem oficial. Talvez voltasse mais tarde. O funcionário que recebeu a carta achou melhor não fazer mais perguntas, quanto mais discutir o assunto. Pegou um enorme carimbo de borracha, esmurrou a carta com ele, colocou a data numa linha pontilhada, usando uma pena e um tinteiro, e terminou desenhando no papel duas ou três pomposas iniciais. Ao concluir, levantou os olhos e fixou a vista em Arkadi, que esperava um aceno, um piscar, um murmúrio ou uma imprecação: sabia que esperar uma palavra seria demais. Mas não aconteceu nada, nem aceno, nem piscar, nem murmúrio, nem imprecação. Assim, Arkadi — depois de fixar o funcionário por alguns momentos bem prolongados — rodou nos calcanhares e deixou o instituto.

Saiu pela Rua Volkhonka e, instintivamente, começou a andar na direção do rio. Era o caminho que ele sempre fazia com Boris. Após as lições, entre as lições, na hora do almoço, costumavam dirigir-se ao Parque Górki — oficialmente denominado Parque Górki de Cultura e Lazer —, onde podiam ficar sentados num banco ou passear, discutindo os acontecimentos do dia, seus estudos, seu futuro, seus pontos de vista a respeito da vida, da política, das garotas, dos espiões. A essa altura, Arkadi estava atravessando justamente a Ponte Krimski e entrando pelo aterro Krimski, quando de repente acordou e verificou onde estava. Acabou decidindo não ir mais ao parque. Para quê? Dirigiu-se à Praça Vermelha, a fim de tomar o metrô para casa. Seu curso no kgb tinha terminado e agora estava livre até ser chamado — podia ser dali a um dia, talvez dali uma semana, um mês. Ele não sabia quanto tempo tinha para comprar algumas coisas e fazer as malas, mas tinha certeza de que naquele momento estava disposto a não fazer nada. Não estava com paciência para enfrentar uma fila, nem para aturar a falta de educação dos balconistas. E muito embora adorasse sua mãe, também não estava disposto a passar o resto do dia com ela. Não, era preferível enfrentar a rudeza dos balconistas. Mas mudou de idéia, novamente, dando meia-volta e dirigindo-se ao aterro Krimski e ao parque.

Ficou perambulando até o lago, onde sentou-se num banco. O tempo estava um pouco frio, mas seco e ensolarado. Havia pouca gente por perto; apenas estudantes e aposentados atreviam-se a ficar naqueles bancos em horas normais de trabalho, a não ser que estivessem em condições de responder a algumas perguntas da polícia. A roda-gigante e os outros brinquedos do parque de diversões faziam parte do cenário. A atenção de Arkadi foi atraída por um homem, sentado num outro banco, mais ou menos a vinte metros de distância, à sua frente. O homem estava virando as páginas de um grande jornal, obviamente estrangeiro, e havia um livro a seu lado. Os parques eram freqüentados também por informantes do kgb, mas aquele homem não parecia ser um deles. Arkadi tinha quase certeza de que era um estrangeiro. É verdade que muitos dos informantes do kgb eram capazes de um disfarce, mas aquele homem parecia distinto demais, intelectual, para ser um informante. A coisa mais impressionante nele era o fato de estar ali sentado. Arkadi tentou fazer um reconhecimento do homem, do modo como tinha sido ensinado pelo Camarada Protopopov. O homem teria provavelmente sessenta anos, mas parecia mais jovem. Tinha rosto comprido, cabelo grisalho, olhos muito tristes e um ar de cultura, distinção e infelicidade. Parecia desamparado, só, deprimido. Arkadi nunca tinha visto um homem como aquele sentado num parque moscovita. O terno escuro era de material de primeira, do tipo ocidental, mas devia ter sido feito em Moscou por algum alfaiate que tentara reproduzir o estilo londrino — como é mesmo que eles o chamam? De Savile Row? — e falhara por completo. Um turista? Impossível. Nenhum turista teria podido livrar-se do seu guia do Departamento de Turismo, e se tivesse, por um acaso, não seria para ficar ali sentado. Estaria correndo feito louco, tentando colher informações, até ser apanhado e chutado para fora do país. Os turistas deviam estar perto, sim, mas na Rua Kaluchskaia, admirando a beleza maravilhosa da Fábrica de Ferramentas Proletariado Vermelho. Seria, então, um embaixador estrangeiro? Ou um adido cultural? Mas os diplomatas estrangeiros não costumam ficar sentados em bancos de jardins às dez e trinta e cinco da manhã. Ou a qualquer outra hora. Nesse momento, apareceu um velhote, decrépito, pálido, vestindo uns trapos sujos, que se encaminhava para o homem sentado no banco. Acabou sentando-se ao lado dele. Era um tártaro ou asiático de alguma espécie. O homem do banco olhou para o recém-chegado. Pareceu ficar satisfeito com a nova companhia. A sombra de um sorriso, amigável, atraente, surgiu em sua face, e ele se dispunha a falar alguma coisa para o pobre velhote. O velhote pareceu ter tido um pressentimento e, pela primeira vez, olhou para o homem a seu lado. Ficou horrorizado. Devia ter estado fora de si ao sentar-se ao lado de um homem tão extraordinário. Levantou-se e afastou-se, rapidamente, quase correndo.

Alguns minutos mais tarde, Arkadi levantou-se, também, tentando mostrar-se tão natural quanto possível. Aproximou-se do homem sentado, que tinha voltado a pegar o jornal e parecia estar totalmente absorvido na leitura. Era o Times, um jornal publicado em Londres. Estava lendo o noticiário esportivo e Arkadi pôde admirar uma fotografia de um homem de branco empunhando um instrumento de madeira muito peculiar — parecia uma pequena pá de carvão —, com o qual tentava acertar em uma bola que não parecia redonda. Bem, todas as bolas são redondas, claro, devia ser uma distorção fotográfica. O homem da fotografia estava com os olhos fixos na bola; o homem sentado no banco tinha os olhos fixos no homem da fotografia. Arkadi olhou rapidamente para o livro, também. O título era Northanger Abbey, mas ele não podia divisar o nome do autor, o que lamentava.

— Sic transit gloria mundi — disse uma voz atrás dele. Arkadi voltou-se em sobressalto, mas logo seus lábios congelados derreteram-se num sorriso amplo e feliz.

— Boris! — exclamou ele. Mas logo acrescentou, receoso: — Desculpe... Será que posso tratá-lo por Boris?

— Aqui, pode — respondeu Boris. — Talvez. Não tenho certeza. Mas, se não puder, como é que vamos nos acostumar com a troca de nossos nomes?

Sentaram-se num banco.

— Podemos falar aqui? — inquiriu Arkadi.

— Nunca se sabe. Muitos desses bancos nos parques têm microfones colocados por nossos estimados colegas. Por isso, é melhor a gente andar de um lado para outro.

Levantaram-se e começaram a andar.

— Isto é — continuou Boris —, se você quer falar subversivamente. O que eu suspeito que você queira. Afinal, o que é que você está fazendo neste lugar?

— Não sei. Tinha que ir ao instituto. Depois, fiquei perambulando por aí, como nós fazíamos antigamente, nos velhos tempos. E você?

— Vim na esperança de encontrar você aqui. Caminharam em silêncio, nenhum deles pronunciando uma palavra sequer, subversiva ou não. Até que, finalmente, Arkadi perguntou:

— Como é que fomos nos meter nisso?

— Você devia agradecer à sua boa sorte. Eu fui recrutado, entrevistado, e me perguntaram se conhecia outro homem em condições para o serviço. Eu recomendei você.

— Entendo... Foi por isso que os caras que vieram ao meu apartamento me perguntaram primeiro se eu conhecia você.

— Que pergunta mais besta de se fazer naquelas circunstâncias...

— Mas por que você não me contou nada? Por que desapareceu assim tão de repente?

— Fui estritamente proibido de ver você, como pode calcular.

Arkadi olhou em volta, receoso. Viu o homem do jornal inglês. Talvez ele fosse, afinal, um informante mesmo.

— E agora está tudo certo?

— Tudo bem — replicou Boris. — Depois do incidente, convenci meu instrutor de que seria muito mais natural a gente se encontrar do que ficar um longe do outro. Éramos velhos amigos e costumávamos nos ver todos os dias. Nossas famílias poderiam estranhar e começar a fazer perguntas. Foi o que eu lhe disse e ele concordou.

Arkadi assentiu. — A propósito, tenho andado muito preocupado com um problema: você destruiu o samizdat de Ian Fleming?

— Passei-o à frente. Está tudo bem.

Havia um senhor idoso sentado em outro banco, lendo alto um livro de histórias para um garotinho — obviamente seu neto — que estava sentado em sua perna. Não ligaram muito para o avô e o neto. Os informantes nunca conseguem se disfarçar assim tão bem.

— Então — perguntou Boris —, você está feliz? Seu sonho se transformou em realidade.

— O que é um sonho? O que é a felicidade?

— Oh, não vamos discutir esse assunto agora, Arkadi. Se os melhores cérebros da raça humana, a começar por Aristóteles — não, desde alguns séculos antes dele —, falharam na tentativa de definir a felicidade, é pouco provável que eu possa fazê-lo, agora, de um momento para outro. Mas se você está se sentindo infeliz, já sabe o que tem a fazer: vá para a cama com uma garota.

— Você é tão frívolo sempre, Boris. Tenho inveja de você. Eu gostaria de ser assim tão superficial a respeito das coisas. E da vida. E da felicidade. Sabe que eu dependo de você. Você é muito mais inteligente do que eu. Você sabe me dar as respostas quando quer ser sério. Pelo menos me diga, por favor: devo estar feliz?

— De uma maneira geral, você devia. Sempre quisemos ser espiões. Sempre tivemos esperança de conseguir evitar a vida rotineira de um professor de inglês numa porcaria de escola qualquer, situada, digamos, em Sosnovoborsk. E agora surgiu a grande chance. Logo, vamos tirar dela o melhor proveito.

— Isso parece muito simples.

— Muito bem. A um nível ligeiramente mais sofisticado: não estamos perdidos de amores pelos nossos dirigentes, burocratas da direita, mas amamos nosso país, a Mãe Rússia, a União Soviética, chame-a como quiser. Nosso povo, é ele que realmente nos importa. E agora podemos servir ao nosso país e nosso povo.

— Oh, não! Vamos servir a nossos dirigentes. Não se iluda.

— Vamos servir ao nosso país. A segurança do Estado está acima da política governamental. Temos que ter uma União Soviética forte e poderosa e depois, então, sim... ter esperança de um autêntico governo comunista. — Baixou a voz, rapidamente. Estavam se aproximando de uma pequena multidão. Havia um soldado jogando xadrez com um operário — o tabuleiro estava em cima do banco —, e em volta deles tinha se juntado um certo número de espectadores. Um ou dois ocasionalmente ofereciam conselhos aos jogadores e estes, por sua vez, diziam-lhes que calassem a boca. O grupo estava profundamente absorvido no jogo e não prestou nenhuma atenção nos dois estudantes.

— Estou preocupado — refletiu Arkadi, olhando para o grupo do xadrez. — Nós, sempre que estivemos andando neste parque, fizemos por vezes severas críticas aos nossos dirigentes. Mas agora, na nossa posição, a menor dúvida será considerada traição. Será que vamos ser traidores? Será que já não somos traidores?

— Ou é sua consciência que o preocupa? Ou está simplesmente com medo?

— Ambas as coisas.

Antes que Boris pudesse falar, Arkadi continuou: — Falam tanto das tentações do Ocidente...

— Das tentações desse Ocidente atacado pela pobreza, miserável, repulsivo — aquiesceu Boris.

— Não quero ser tentado — continuou Arkadi. — Quero permanecer um bom patriota, um bom russo, um bom comunista, como sempre tenho sido.

— Você sempre o foi e sempre o será. Criticar esses burocratas não é traição, mesmo que eles chamem a isso traição. Criticar um tirano também não é traição, a despeito do que esse tirano possa dizer. Nós somos bons comunistas, sem dúvida. Já não tenho tanta certeza a respeito deles. Eles são direitistas reacionários. Entenda, os modernos dirigentes do mundo são completamente permutáveis. Tal como nós. Arkadi ficou sendo Boris; e Boris, Arkadi. Carter poderia ser Brejnev, e Brejnev, Carter. Qualquer um deles poderia dirigir tão bem — ou tão mal — a União Soviética como os Estados Unidos. Isso não envolve princípios. E a lealdade está relacionada apenas com a função.

— Mas nossa função é diferente. Exige de nós um tipo especial de lealdade.

— Existe apenas um tipo de lealdade. Não posso desligar meu cérebro e passar a ser um louco que acha que tudo está certo. Ou um autômato. Mas servirei bem a meu país. E até seus atuais dirigentes — eles são os meus atuais dirigentes, também. Obedecerei estritamente, nos mínimos detalhes, às regras e aos regulamentos. Mas, e as tentações? O que são? O Ocidente é rico, eu sei, mas não assim tão tentador. Nunca mais vamos querer a volta do capitalismo aqui, não queremos reconstituir aqui uma sociedade de corretores de títulos, de especuladores de imóveis e de exploradores. Queremos abolir os nossos chamados milionários proletarizados e não permitiremos que os milionários capitalistas se espalhem novamente por nossas plagas. Nossos dirigentes sabem disso muito bem. Não é disso que eles estão com medo. Eles estão com medo é que a gente volte como autênticos comunistas.

— Mas nós somos autênticos comunistas — disse Arkadi —, mesmo antes da partida.

— Mas eles não suspeitam disso. Se soubessem não nos deixariam ir.

Andaram mais alguns minutos, profundamente concentrados em seus pensamentos. Depois, Arkadi falou novamente:

— Boris, estou com receio. Estou cheio de medo. Quero dar o melhor de mim. Farei o melhor que puder. Afinal, estamos servindo ao nosso país... E não movidos, exclusivamente, por nosso espírito de aventura. Mas se fosse, também, que mal haveria nisso? Serei sempre leal e obediente. Estou com muito medo deles para sequer tentar outra coisa.

— Com medo?

— Claro. É tão fácil dar um passo em falso. Fazer a observação errada. E você sabe qual é a punição para o nosso caso. Às vezes, fico pensando qual será mesmo a nossa maior compensação.

— Maior compensação? — Boris riu. — Você está com a sua maior compensação bem diante dos olhos.

Tinham completado uma volta ao parque e estavam novamente diante do lago. O distinto montão de miséria continuava sentado no banco. Estava tentando dar comida aos patos, mas não com muito sucesso. Jogava-lhes migalhas de pão, retiradas de um saco de papel, mas os patos não se mostravam interessados. Não corriam atrás das migalhas. Talvez não estivessem com fome. Talvez fosse uma questão pessoal.

— Ele? — Arkadi perguntou, atônito. — Você conhece esse homem?

— Na verdade, eu não o conheço. Mas sei quem é. Você não viu a fotografia dele?

— Não, que eu me lembre. Quem é?

— Kim Philby.

Arkadi olhou para ele novamente. É claro, Boris tinha razão.

— Sic transit gloria mundi — disse Boris —, foi esse o tipo de observação que me aventurei a fazer há pouco.

— O mestre espião? — perguntou Arkadi, sentindo-se cair aos pedaços. — O homem que nos foi apontado como exemplo? O homem largamente respeitado em toda a União Soviética?

— Mas ele é respeitado.

— Ele não arranjou um emprego?

— Arranjou. E até muito bom. Talvez seja um de nossos chefes. Aconselha o kgb em assuntos de espionagem na Grã-Bretanha. E também nos Estados Unidos, acho eu.

— Mas ele está lendo o Times. E um romance inglês. Por que não o Pravda? Ou o último romance de K. A. Fedin?

Pararam um pouco, olhando para Philby à distância.

— Ele lê o Times e romancistas ingleses — observou Boris — porque alguns anos na União Soviética fizeram dele um grande e sincero admirador da Grã-Bretanha. Eis a questão. Alguns anos na Grã-Bretanha farão de nós devotados patriotas soviéticos. Devotados admiradores de Brejnev. Talvez até cheguemos a ler K. A. Fedin!

Arkadi estava olhando para o homem.

— Parece inteiramente miserável, só e infeliz.

— Apenas por causa dos patos, que recusam a comida que ele lhes oferece.

Arkadi não conseguia tirar os olhos de Philby. Philby não conseguia tirar os olhos dos patos.

— O que é que ele está realmente fazendo entre nós?

— É bastante óbvio, não? Morrendo de tédio.

Os dois jovens voltaram as costas e dirigiram-se para a Ponte Krimski.

— Acabei de pensar numa coisa horrível — disse Arkadi.

— É o que sempre acontece com você. Arkadi fingiu não ouvir a piada.

— Esse homem atingiu o ponto mais alto. Foi o chefe mais poderoso da espionagem inglesa e, ao mesmo tempo, o maior espião pró-soviético. Realizou todos os seus sonhos. Satisfez todos os seus ideais. Chegou ao pináculo da glória. E, no entanto, agora, é um miserável, um desgraçado. Será que vai acontecer a mesma coisa conosco — até mesmo sem termos ainda chegado ao topo da carreira?

— Nossa situação é diferente. Não estou disposto a ser miserável. Você adora sentir-se miserável. E se não se sente miserável é porque está infeliz. Você é feliz sendo infeliz.

— Quer dizer — concordou Arkadi — que ele também é feliz. É, talvez isso seja a felicidade! Que pensamento horroroso!

Durante alguns minutos Boris deixou-se afundar, também, numa profunda melancolia. Mas não por muito tempo.

— Arkadi, você é um russo autêntico. Com uma alma verdadeiramente russa. Por aquilo que sei dos ingleses, eles podem curá-lo. Se não conseguirem, ninguém mais conseguirá.

 

                   Marx e Spencer

Arkadi estava lendo, não sem uma certa surpresa, a respeito do sistema inglês de vistoria da bagagem dos viajantes. Sentado num Iliuchin, desceria dali a pouco no aeroporto de Londres. Tinha recebido um panfleto em russo, explicando que as pessoas que tivessem alguma coisa a declarar deviam passar por uma porta, e as que não tivessem nada a declarar, por outra. Seria possível? Dependeria tudo inteiramente da pessoa? Seria razoável, realmente, confiar numa pessoa até aquele ponto? Ou seria aquilo uma maneira mesquinha, um truque imperialista para apanhar inocentes espiões russos? Mas o panfleto russo era puramente fatual, obviamente frio diante do sistema, e não previa emboscadas. Poderia haver, contudo, fiscalizações ocasionais. Então, era isso, concluiu Arkadi. Veriam seu passaporte russo, seu rosto russo, suas roupas de corte russo e logo o chamariam para submetê-lo a um vexame. Seria muito melhor seguir direto pela porta de quem tinha "algo a declarar" do que depois ser apanhado como se fosse um safado entre verdadeiros gentlemen ingleses. Portanto, decidiu seguir direto os sinais vermelhos, embora estivesse absolutamente certo de que, de fato, não tinha nada a declarar e muito menos, claro, qualquer tipo de material que o pudesse incriminar.

O aeroporto de Londres pareceu-lhe mais iluminado e consideravelmente mais limpo do que o de Moscou, mas a diferença também não era de espantar. Boris tinha lhe dito que o aeroporto de Moscou era um espetáculo, mas talvez o de Londres também o fosse.

Desejou que Boris estivesse com ele. Estava, porém, sozinho, dependendo exclusivamente de si, um solitário espião aproximando-se de uma enorme e estranha cidade. Sentiu até um pouco de pena de si próprio. Não sabia nada a respeito de Boris ou de qualquer outra pessoa. O avião transportava apenas um terço da capacidade máxima de passageiros. Podia circular à vontade, mas não havia nem uma alma solitária que ele conhecesse. E ele também não tinha facilidade de estabelecer conversação com estranhos. Além disso, também não se atrevia, sabendo que estava sendo observado. Metade dos passageiros, pensava ele, deve estar observando a outra metade; e a outra metade provavelmente está vigiando a primeira metade.

— Seu passaporte, por favor — pediu o funcionário da imigração, impessoalmente.

Arkadi passou-lhe o documento. O funcionário era um homem de pouco mais de trinta anos de idade, bem barbeado, feições agradáveis, e vestido com um uniforme elegantíssimo, deslumbrante.

— Por quanto tempo vai ficar no país? — perguntou o funcionário, ainda folheando o passaporte.

— Não sei.

O funcionário mudou de assunto.

— Qual vai ser sua função aqui?

Arkadi, sempre inclinado a falar a verdade, quase dizia: "Sou um espião. Não muito perigoso, não. De fato, um autêntico principiante. Mas, de qualquer forma, virei fazer um pouco de espionagem, sim, senhor". No entanto, não disse nada daquilo. Fez uma outra declaração perfeitamente aceitável e verdadeira.

— Sou membro da missão comercial russa.

Não houve espanto. Na realidade, pareceu até que o funcionário tinha aproveitado a oportunidade para suspender um bocejo.

— Ultimamente têm chegado muitos colegas seus. Alegra-me saber que nossas relações comerciais com a União Soviética estão sendo muito incrementadas.

Arkadi olhou para o homem com surpresa e hostilidade. Seria uma piada? Teria sido um comentário sarcástico? Agressivo? Impertinente? Ou apenas cortês? Seu rosto impassível nada revelava. "Que país é este?", pensou, quase desesperado. "Na Rússia a gente sempre sabe onde está. Se alguém mostra uma expressão dura, já sabemos que está fazendo uma ameaça. Se ri ruidosamente, é porque disse uma piada." O funcionário inglês simplesmente devolveu-lhe o passaporte com um "muito obrigado" e indicou-lhe o caminho da alfândega. Arkadi, fiel à sua decisão anterior, dirigiu-se à porta dos que tinham "algo a declarar".

— Que tem a declarar? — perguntou o funcionário da alfândega.

— Nada — respondeu ele, ríspido.

Ficou esperando uma explosão ou, pelo menos, um olhar de censura: "Então, com os diabos, o que é que você está fazendo aqui? Não sabe ler?" ou qualquer outra coisa desse tipo. Isso seria o mínimo que o mais gentil dos funcionários russos diria, antecipando a verdadeira bronca que viria depois, tudo por uma questão de exercício da autoridade. Mas não sentiu nenhuma atitude desagradável. O funcionário da alfândega fez um aceno, nem delicado, nem indelicado, nem desaprovador, nem compreensivo. Um aceno completamente impessoal, como tudo o que fazia ou dizia. Virou-se para uma jovem que estava na fila, atrás de Arkadi, e perguntou:

— Que tem a declarar?

O funcionário da alfândega era o primeiro inglês — ou britânico, mas isso era uma distinção que não fazia diferença para ele — que tinha encontrado na Inglaterra. Contando com Mr. McRoberts, o instrutor irlandês da Rua Derjinski, tinha sido o segundo inglês, no total. Achou esse encontro perturbador. Estava — tinha que admitir! — impressionado com a confiança que eles demonstravam no povo. Em Moscou, antes da partida, os funcionários de rostos severos tinham-no tratado como se ele fosse um criminoso. Tinham verificado toda a sua bagagem meticulosamente, ! examinando cada peça, pijamas, meias, cuecas, com o máximo cuidado, contra a luz, abanando todos os livros e esquadrinhando as solas dos sapatos (quatro, no total). Tinham deixado seus pertences espalhados. Tivera que esvaziar os bolsos, também. Depois de analisarem seu conteúdo, ainda o tinham revistado. O inglês, em contrapartida, fora muito agradável, sem fazer espalhafato. E no entanto... Ele sentiu pela primeira vez uma coisa que, subseqüentemente, iria verificar muitas vezes nos contatos com os ingleses. Dava preferência à rudeza eslava, dura, contundente, em comparação com a frieza e a indiferença dos ingleses. Preferia a agressividade russa à cortesia inglesa. A agressão era uma coisa sórdida, podia ser até perigosa, mas significava, pelo menos, um contato humano. A cortesia inglesa parecia à primeira vista uma agradável surpresa, um novo tipo de comunicação entre o povo, mas era inteiramente despersonalizada. Fazia da pessoa um passageiro, um comprador, um inquiridor, um membro da audiência, um cliente, um paciente, e retirava-lhe toda a personalidade. Na Rússia, os balconistas e os funcionários de baixo escalão queriam mostrar seu poder ou, pelo menos, faziam questão de provar que eram tão bons ou melhores do que as pessoas que atendiam. Suas maneiras, muitas vezes, eram revoltantes, mas havia neles uma forma de contato pessoal. Eles queriam impressioná-lo; queriam colocá-lo — a você, pessoalmente — no seu devido lugar. A cortesia britânica, com a sua indiferença, poderia ser mais cruel do que a legendária crueldade russa.

A segunda coisa que o surpreendeu foi sentir, súbita e completamente, a sua nacionalidade. Quando aquele homem olhou para o seu passaporte russo, seus sentimentos patrióticos incharam seu peito até não poder mais. Sentiu-se representante da União Soviética: era a Mãe-Rússia, o governo soviético, o Camarada Brejnev, o Partido Comunista, tudo ao mesmo tempo, diante do inimigo capitalista, imperialista, colonialista, representado pelo funcionário da alfândega que lhe perguntava: "O que tem a declarar?" "Sim", gostaria ele de ter dito, "tenho a declarar meu infinito amor pelo Volga e pela planície ucraniana, pelo Instituto de Lingüística, pela Rua Volkhonka, pelo Parque Górki. Quero declarar aqui, talvez pela primeira vez como adulto, que me sinto como um verdadeiro patriota soviético e que é minha intenção me tornar um espião digno da maior confiança e, se possível, um espião grande e imortal. Fora isso, nada a declarar."

 

Tomou o ônibus e, ao chegar ao terminal aeroviário de Londres Oeste, havia um homenzinho gordo e de rosto redondo, que sem a menor hesitação, como se já o conhecesse de vista há muitos anos, lhe perguntou: — Boris Gregórovitch Gurbanov?

— Sim... — respondeu Arkadi Nikítin com uma sombra de incerteza na voz. — Sim, é claro...

— Eu lhe dou as boas-vindas a Londres em nome da missão comercial da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas — disse o homenzinho, repetindo obviamente uma frase que há muito ele tinha aprendido para ocasiões como aquela. — Meu nome é Ivan Stepánovitch Anatolski.

Arkadi estendeu a mão, que o homenzinho apertou com tal ferocidade que quase a esmagou. "Mas que apertão do homenzinho", pensou Arkadi no momento em que respirava fundo, evitando soltar um grito de dor.

— Gurbanov — disse Arkadi, batendo os calcanhares.

— Anatolski — disse o outro, batendo também os calcanhares.

"Gostaria de saber qual é o verdadeiro nome dele", refletiu Arkadi.

— Não foi fácil chegar aqui hoje à noite — comentou Anatolski. — Mas, como se diz, os amigos são para essas ocasiões.

— Certamente — respondeu Arkadi, distraído.

— Também se costuma dizer que as amizades são como as plantas: se a gente não lhes dá água, elas murcham...

— Já vi que você gosta muito de provérbios — observou Arkadi secamente.

— Não existe provérbio sem um grão de verdade, o que também é um provérbio.

Depois, o homenzinho acrescentou: — Você vai partilhar meu apartamento. Eu estava habituado a viver sozinho. Mas agora vou ter que partilhá-lo com você... — havia um tom de mágoa nas palavras dele.

— Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come — disse Arkadi. Já que o negócio era conversar em provérbios, ele queria mostrar que não ficava atrás.

Ivan não reagiu. Tudo o que disse foi, simplesmente: — Traga suas malas. — E marchou em frente sem ajudá-lo.

Tomaram um táxi e andaram uma boa distância. Percorreram ruas brilhantemente iluminadas, onde o tráfego estava engarrafado. O táxi mal conseguia avançar.

— Cidade bonita — comentou Arkadi.

— Moscou é mais bonita — disse Ivan.

Arkadi não conseguia ver ninguém de boné de pano, de macacão, não conseguia distinguir nem operários, nem camponeses, nem uma camponesa sequer, daquelas de lenço na cabeça, amarrado por baixo cio queixo.

— Onde estão as classes trabalhadoras? — perguntou ele.

— Não é permitida a sua presença nesta parte da cidade — explicou Anatolski. — Os ingleses costumam dizer que a pobreza não é um pecado, mas algo muito pior.

Quer dizer, então, que os ingleses também gostam de provérbios russos — pensou Arkadi. Havia muito pouca gente de uniforme. Até os policiais andavam com um passo descontraído e não havia nenhuma aura de ameaça ou de crueldade pairando ao redor deles. Não havia saliências à volta de suas cinturas e também não carregavam cassetetes. O táxi passou por uma colina e entrou numa área que parecia o campo.

— Onde estamos? —.perguntou Arkadi.

— O lugar aqui tem o nome de Hampstead Heath. Estamos a caminho de um distrito chamado Highgate.

Alguns minutos mais tarde pararam em frente a uma pequena casa. Arkadi pôde ler: "Swain's Lane, n.° 6". A casa estava em más condições de conservação, o que, na realidade, significava que estava duas vezes mais bem conservada do que sua moradia em Moscou. Havia oito apartamentos distribuídos por três andares, não contando o térreo.

— Há apenas russos nesta casa — explicou Ivan. — Portanto, tudo bem. Todo mundo trabalhando na missão comercial.

Fez sinal para que Arkadi subisse. Ele teve que arrastar as malas até o último andar. Ivan abriu o trinco da porta da frente e, depois, a porta de um quarto. Voltando-se para Arkadi, disse: — Você fica aqui!

O quarto era pequeno e austero, mas melhor do que a meia sala que Arkadi partilhava em Moscou com sua mãe.

— Amanhã, você vai prestar homenagem a Karl Marx, em seu mausoléu. Ao meio-dia, deve apresentar-se no gabinete do Camarada Chevtchenko.

— Como vou encontrar esses lugares? — perguntou Arkadi, preocupado.

Ivan não respondeu. Entrou em seu próprio quarto, acompanhado de Arkadi. Encheu um enorme copo de vodca para si próprio e um pequeno para Arkadi.

— Bebendo, morre-se; não bebendo, morre-se também: logo, é melhor beber.

Arkadi bebeu sua vodca de um trago e repetiu suas perguntas: — Como é que vou encontrar o Camarada Marx e o Camarada Chevtchenko?

Ivan afastou as cortinas.

— O cemitério fica aqui mesmo. Se você saltar pela janela, cai nele. Portanto, a respeito de seu funeral, não se preocupe — e riu alto de sua própria piada. Depois, continuou: — Entretanto, não se preocupe também a respeito de amanhã. Irei com você. Ontem, justamente, descobriram que eu ainda não tinha visitado o mausoléu. De modo que, desta vez, não escapo. Depois, eu o levarei até Chevtchenko.

No dia seguinte, Arkadi pôde examinar o cemitério à luz do dia. E pôde ver que o lugar era bastante insignificante. Em Moscou, não se importavam muito' com as condições de vida, mas os cemitérios eram magnificamente tratados. Naquele lugar havia apenas algumas cruzes velhas ou pedras tumulares redondas, a maioria delas encardidas, quebradas, e cobertas de ervas daninhas.

Foi até a cozinha, onde seu companheiro já estava tomando o seu desjejum. Ivan fez-lhe um sinal para que se servisse. Era um desjejum muito pouco russo, começando com um pouco de kasha a que Ivan chamava "porridge" e que, na realidade, era um mingau de aveia, e continuando com café, torradas, ovos fritos e um tipo especial de toucinho, ou bacon, que ele nunca tinha visto na vida. Era gostoso. Qualquer mineiro russo stakhanovista* já ficaria muito contente se tivesse aquilo tudo para o almoço ou para o jantar.

Operário que trabalha segundo o método elaborado por Stakhanov, mineiro soviético que estabeleceu um notável recorde de produção.

 

— A Inglaterra não é uma grande nação — explicou Ivan. — Sua contribuição para a civilização humana tem sido mínima. Mas o desjejum inglês é, sem dúvida, um de seus grandes sucessos.

Dito isto, terminou seu bacon com ovos à velocidade de um relâmpago.

— Aquele que come depressa trabalha depressa — disse ele. — Eis aí um ditado completamente errado. Eu como depressa, mas trabalho muito, muito devagar.

A fechadura rodou na porta da frente, e uma matrona enorme entrou.

— Bom dia, queridos — disse ela.

— Bom dia, Mabel — respondeu Ivan com estranho calor.

— Ah, este é o novato — disse ela, medindo Arkadi.

— É... Este é Mr. Gurbanov. Mabel.

Arkadi levantou-se e bateu os calcanhares: — Gurbanov!

— Como vai, meu querido? — perguntou Mabel.

— Muito obrigado. Não posso reclamar — replicou Arkadi. — O estado geral de minha saúde sempre tem sido satisfatório.

— É bonitão, esse camaradinha, hein? — disse Mabel. — Um rapagão, realmente. Aqui você deve estar feliz, amorzinho, por ter saído daquele terrível país de vocês.

Arkadi ficou profundamente chocado e queria protestar. Não podia deixar a observação passar em brancas nuvens, principalmente na presença de Ivan. Antes, porém, que pudesse abrir a boca, Ivan já dizia:

— Deixe pra lá. Não lhe responda. É uma puta ignorante. Não ligue ao que ela diz. Mas ela é também o nosso maior tesouro. — E quando viu o rosto apreensivo de Arkadi, acrescentou: — Não se preocupe, ela não entende uma palavra de russo. É uma cockney, só fala em baixo inglês.

— Sim, sou uma cockney. E tenho muito orgulho disso. É melhor ser uma cockney que uma russky. Pode crer.

Arkadi olhou para Ivan interrogativamente.

— "Cockney" é a única palavra em russo que ela compreende.

— O que significa?

— Não importa. Ela é cockney. E basta. Você já pode imaginar o resto. É muito difícil encontrar aqui uma faxineira, a questão é essa...

— Eu julgava que o desemprego fosse violento.

— Violento demais. Mas está disfarçado, tão bem disfarçado que é quase impossível conseguir uma faxineira. Mabel odeia a nossa coragem. É uma capitalista, uma pobre explorada, louca e, ainda por cima, cristã. Olhe, você pode ofender quem quer que seja. Pode ofender a todo mundo. Mas não a ela.

Arkadi tentou obedecer às ordens e mostrar-se delicado. Mas o que é que poderia dizer? Lembrou-se das instruções de Mr. McRoberts a respeito do tempo. Mas o que é que se pode dizer a respeito do tempo? Pegou o Morning Star de Ivan e depois de uma breve tentativa memorizou a frase que procurava. Baixou o jornal, dirigiu-se a Mabel e disse-lhe num tom muito amável e ameno: — Tempo nublado, passando a instável, com pancadas esparsas, principalmente na região de Anglia Leste. Os ventos permanecem frescos na direção nordeste...

— O que é que há? — perguntou Mabel com espanto. Arkadi repetiu tudo outra vez.

— Deve ter sido da viagem, amorzinho... — disse Mabel delicadamente. E acrescentou: — Amanhã você se sentirá melhor, não se preocupe. Procure descansar.

Deixaram a mulher no apartamento e dirigiram-se para o cemitério de Highgate.

— Negócio triste, a morte — refletiu Ivan. — Não poupa nem Karl Marx. A morte tanto carrega o gordo czar como o mendigo. Enfim, de qualquer maneira, preciso encontrar a sepultura de Karl Marx...

Deram uma volta, mas não conseguiram encontrar nada. Do lado oposto ao portão principal havia outro portão de ferro. Naquele momento, um microônibus parou em frente ao portão principal, despejando um grupo de chineses. Estavam todos de preto, bastante solenes e formais, todos de chapéu-coco, com exceção de dois, que usavam cartolas, uma espécie de adorno para a cabeça que Arkadi nunca tinha visto antes. O grupo alinhou-se e em fila, numa procissão lenta e solene, entrou no cemitério.

— Nosso problema está resolvido — disse Ivan. — Basta segui-los.

E bastou. Os chineses — cerca de quarenta — chegaram a uma pequena pedra preta e rodearam-na. Um deles deu um passo à frente e começou a discursar. Pareceu muito monótono, muito chinês. O homem continuou e não dava sinais de parar tão cedo. Não havia emoção no discurso dele, nem alterações de volume na voz, nem acelerações, nem retenções. Também não havia expressão alguma no rosto de todos: muito tristes e pesarosos, mas nem mais tristes nem mais pesarosos do que quando saíram do microônibus. Os dois russos tinham ficado, discretamente, à distância. Arkadi ainda tentou espreitar, ver um pouco melhor a pedra tumular, mas sem muito sucesso. Tudo o que conseguiu foi perceber alguns caracteres chineses ou coisa parecida, mas devia ter sido uma ilusão de óptica. Ou será que a solidariedade internacional tinha chegado a tanto? O chinesinho continuava falando e falando. Mas mesmo o discurso mais comprido tem o seu fim, e aquele não era uma exceção. Ao terminar, dois outros homens — um deles de cartola — avançaram e colocaram uma coroa de flores no túmulo. Mal a coroa tocou na pedra, os chineses deram uma volta nos calcanhares e desapareceram em grande velocidade.

Os russos, então, se aproximaram. Em cima, havia, de fato, alguma coisa escrita em chinês. E por baixo do texto em chinês, a tradução:

 

                 Fu Chi-len, 1883 — 1958

                 Fundador do primeiro restaurante chinês em Londres

 

Ficaram em silêncio, por momentos. Depois, Ivan observou: — O Camarada Brejnev tem razão. Não se pode confiar nos chineses.

Ainda refletindo, acrescentou, um pouco contrariado: — Quem for condenado às galés jamais morrerá afogado.

Arkadi não conseguiu entender o profundo significado — se é que havia — daquela frase, mas entendeu perfeitamente que num momento de tensão o outro tinha que recorrer a um ditado.

Depois, Ivan, ainda mais profundamente, concluiu: — É preciso não mencionar este pequeno incidente a ninguém.

Um coveiro que passava por perto indicou-lhes o túmulo de Karl Marx. Deviam ter virado à esquerda, logo à entrada do cemitério. Arkadi, de repente, reconheceu o túmulo à distância. Como é que ele tinha podido enganar-se? Tinha visto o túmulo em fotografias. Havia o pilar cinza e em cima a enorme cabeça escura. Aproximaram-se e, então, puderam ler: "Trabalhadores de todos os países, uni-vos!" E por baixo: "Os filósofos apenas interpretaram o mundo de várias maneiras. A questão está em modificá-lo". E por baixo, ainda, os nomes daqueles que ali tinham sido sepultados, a começar pela esposa de Marx, Jenny von Westphalen, a seguir o próprio Karl Marx, seu neto, Helena Demuth, e, finalmente, a filha de Marx. Helena Demuth?... Quem foi Helena Demuth? Arkadi pretendia perguntar a Ivan, mas mudou de idéia: teria sido uma loucura demonstrar tanta ignorância. Claro que, se ela estava sepultada naquele túmulo, todo mundo devia saber quem ela era. Arkadi deu uma volta para ver a pedra tumular por trás. Havia dois grandes vasos cheios de flores murchas. Mais algumas flores pisadas no chão. E outras, ainda, tulipas e cravos brancos, espalhadas por toda parte. Nada de mais, realmente. Nada de muito impressionante ou imponente. Nem podia se comparar com o mausoléu de Lênin no Kremlin. Arkadi olhou em volta e viu outro túmulo, logo em frente ao de Marx. A inscrição dizia:

Aqui jazem as cinzas de Herbert Spencer

E, agora, quem seria Herbert Spencer? Ele sabia que Spencer tinha muito a ver com Marx. Marx e Spencer, sim, já tinha ouvido falar, sem dúvida. Por isso o tal Spencer tinha sido sepultado ali, é claro. Mas quem seria? Talvez alguém ainda mais importante que Helena Demuth?...

(Mais tarde, verificou que tinha cometido um erro infantil. Tinha realmente aprendido um bocado — quem podia evitá-lo! — a respeito de Marks and Spencer*. Sabia quem era Lorde Marks. Mas continuava no escuro em relação a Spencer. Quem seria?)

 

*Marks and Spencer é uma famosa loja de departamentos bem no centro de Londres. (N. do T.)

 

De pé, junto ao túmulo de Marx, Arkadi tentou mostrar-se o mais emocionado possível. Na realidade, estava apenas pensando se poderia falar com Ivan um pouco mais livremente. Queria saber quais eram as suas funções: seria ele realmente um funcionário da missão comercial? Alguns deviam ser, afinal. Evidentemente, não podia fazer perguntas diretas, mas teria ele coragem de plantar verde para colher maduro, com muito cuidado? Poderia discutir suas impressões sobre o Ocidente? E poderia lhe perguntar se ele sabia alguma coisa a respeito de Boris? Decidiu não perguntar nada. As expressões ortodoxas de Ivan não significavam muita coisa. Ele era basicamente amável, mas sua mania de usar provérbios a toda hora era bastante preocupante. Um homem inclinado como ele a usar idéias e frases feitas estaria propenso, com certeza, a aceitar dogmas. Era melhor ser cuidadoso.

— Quinze para o meio-dia — observou Ivan. — Não podemos chegar atrasados ao encontro com o Camarada Chevtchenko.

 

                   Major Chevtchenko

Chegaram precisamente ao meio-dia. Subiram dois andares e percorreram um corredor. Pararam em frente de uma porta com a plaqueta:

 

         Major L. A. Chevtchenko

         TÊXTEIS

         Roupas íntimas, etc.

 

"Eu me incluo no 'etc.' ", murmurou Arkadi para si próprio.

O escritório era pequeno, mobiliado austeramente com cadeiras de madeira, novas mas baratas, e mesas leves. Havia também os habituais arquivos de metal, horríveis, e as bandejas de entrada e saída de documentos.

A secretária de Chevtchenko fazia muito o tipo da comunista devotada, essa espécie de moça que a gente vê muito nos escritórios de Moscou. Estava vestida com um amassado casaco branco e sapatos de saltos baixos e grossos. Era uma moça rosada, com um corpo não muito bem-feito, cabelos crespos e malcuidados, e sem maquilagem. Obviamente, não estava disposta a fazer concessões à decadência ocidental. Tinha aprendido a olhar para as pessoas com olhos semicerrados e penetrantes, e educara-se para ser desagradável e impessoal.

Ela olhou para os dois homens com seus olhos semicerrados e penetrantes, levantou-se e, sem qualquer tipo de cumprimento, sem sequer dizer uma palavra, dirigiu-se para o gabinete do Camarada Chevtchenko. Ivan observou: — As moças são todas boas. Só não entendo de onde vêm as esposas ruins.

Antes que Arkadi pudesse pensar numa resposta adequada, a moça reapareceu: — Esperem — disse ela.

Durante uma hora inteira, ela nem sequer levantou os olhos para os dois homens. À uma hora, Ivan inquiriu em voz baixa: — Vamos pedir-lhe... ?

Arkadi o interrompeu: — Pedir-lhe? Eu não quero nem dirigir a palavra a essa puta de merda.

Ivan encolheu os ombros: — Sem baixar as costas até o chão será impossível apanhar cogumelos...

O que é que o major poderia estar fazendo aquele tempo todo? Talvez negociando uma remessa enorme de roupas íntimas, pensou Arkadi. Talvez estivesse comprando calcinhas ou ceroulas para o Komsomol. São cerca de trinta milhões de membros — calculou —, logo, isso deve dar uns noventa milhões de pares de calcinhas e ceroulas. Calcinhas e ceroulas de montão!...

Cerca das duas horas da tarde, já estavam com uma fome terrível. Ivan segredou: — Um francês esfomeado come até corvo.

Arkadi, ainda mais esfomeado que Ivan, começou a ficar irritado: — Por que um francês? E por que um corvo?

Ivan deu-lhe uma resposta fria e digna: — Quando Napoleão se retirava de Moscou, seus soldados faziam sopa de corvos.

— Em 1812 — concordou Arkadi, em parte para mostrar que sabia e em parte para apaziguar Ivan.

Às três horas, Ivan segredou novamente: — Temos uma consolação. Pelo menos, ninguém fica com dores de cabeça por causa da bebedeira dos outros.

Arkadi não entendeu a piada, mas, como estava fervendo de raiva, também não fez questão de esclarecer o assunto.

Não havia movimento algum na sala do major. Nada acontecia, também, do lado de fora. Ninguém saía, ninguém entrava. Não havia chamadas telefônicas, nem internas nem externas. A atmosfera não parecia refletir a iminente compra multimilionária de calcinhas para o Komsomol. Não havia comunicação sequer entre o chefão e sua secretária. O lugar era mais sossegado e melancólico que o cemitério próximo. Às quatro, a moça saiu para ir ao banheiro e Ivan disse:

— A igreja está perto, mas a estrada é escorregadia; a taverna está longe, mas vou devagar.

Arkadi já não conseguia reagir. Mas pensou alto:

— Por que esses provérbios sobre bebida e bêbados? Ivan sorriu, mas não deu resposta. Às cinco, disse: — Vou embora. Já não agüento mais. Melhor sair agora do que ficar aqui sentado até a meia-noite. Melhor ser enforcado por causa de um carneiro do que por causa de um cordeiro. Este provérbio é inglês, mas funciona tão bem como o russo.

Momentos depois, acrescentou: — Você fica. Dê uma desculpa qualquer por mim.

Levantou-se e saiu sem prestar atenção à moça. Dali a segundos, voltou.

— Mudou de idéia? — indagou Arkadi.

— Não. Mas me lembrei do provérbio russo: Melhor morrer afogado em alto-mar do que num charco.

E fez sua saída final.

Arkadi sentiu que devia estar confuso e preocupado, mas a fome, a sede, o cansaço e a chatice eram demais. Já tinha ultrapassado a barreira da preocupação.

Cinco minutos depois, uma campainha soou. A secretária — com a cara amarrada, mas, quem sabe, talvez não tivesse outra — entrou na sala do chefe. E voltou com dois cálices de vodca numa bandeja.

— O camarada major disse que você e seu amigo devem beber à sua saúde.

Ela recusava tomar conhecimento oficial da saída de Ivan. "Muito bem", pensou Arkadi, "ele me pediu para disfarçar sua ausência. É o que farei." E emborcou os dois cálices de vodca, um atrás do outro.

Às sete, a campainha soou novamente. A moça entrou e voltou: mais dois cálices de vodca. Baixou a bandeja até a altura dos olhos de Arkadi sem dizer uma palavra. Arkadi bebeu, também sem dizer uma palavra. Quatro vodcas duplas num estômago vazio. Começou a ficar benevolente, a ganhar confiança, a refletir sobre a eternidade. Depois, pensou em sua mãe. A seguir, reviveu as cenas da última noite com Vera Russikova. Oh, Deus, ele precisava de uma mulher. Olhou para a secretária desmazelada. "Não. Ela, não. Aconteça o que acontecer, ela está de fora. Não dá nem para começar." Depois, horrorizado, reviu mentalmente a figura de Mabel, a faxineira cockney. Tentou afastar a imagem, mas teve que admitir: "Sim, mil vezes Mabel do que esta..."

A moça colocou tudo dentro da gaveta, limpou a mesa, tirou seu casaco branco, mostrando um vestido cinza sem qualquer espécie de corte e, sem dizer uma palavra sequer para Arkadi, sem se permitir sequer a bondade de um olhar superficial em sua direção, deixou o escritório, com seu dia de trabalho obviamente terminado.

Às sete e quinze, a campainha soou novamente. Após um momento de hesitação, Arkadi levantou-se e dirigiu-se para a sala do major. No caminho, de repente, sentiu um arrepio de terror. Tinha tido duas horas e um quarto para pensar numa boa desculpa para a ausência de Ivan — e nada! Seus joelhos começaram a tremer. Teve vontade de recuar.

O Major Chevtchenko levantou-se. Uma cortesia rara e estimulante. Era um homem alto, de mais ou menos cinqüenta anos, de rosto vermelho. Havia uma garrafa enorme e muitos copos vazios em cima de sua mesa.

— Camaradas — disse ele.

Arkadi inclinou-se, num cumprimento.

— Lamento, jovens camaradas, tê-los feito esperar um pouco mais que o habitual.

"Ele pensa que eu sou dois", calculou Arkadi. "Está vendo em dobro."

— Sente-se. Nada de formalidades.

O major encheu mais um copo de vodca para ele.

— Mais vodca, camaradas? Não há mal nenhum em beber com moderação.

Olhou para Arkadi e repetiu, com ênfase significativa: — Com moderação.

Depois, perguntou: — Qual dos dois é Gurbanov?

— Sou eu — disse Arkadi.

— Foi o que calculei — acentuou o Major Chevtchenko.

Permaneceu silencioso por alguns momentos. Depois encheu mais um copo e bebeu.

— A vida é triste — declarou, finalmente. — Triste e misteriosa.

Como o major não lhe oferecia a bebida, Arkadi decidiu encher um copo para si, ao mesmo tempo em que fazia uma observação: — Mais misteriosa do que triste.

Aquilo confundiu o major. Refletiu longamente sobre o assunto.

— Por quê?

Arkadi, naquele instante, já não sabia do que é que o outro estava falando. — Por que o quê?

— Por que razão a vida é mais misteriosa do que triste?

A essa altura, a sala começou a rodar em torno de Arkadi, que tentou permanecer sério e digno. Se o Major Chevtchenko — que obviamente já estava bebendo há sete horas ou mais — podia agüentar-se, ele também podia. Mas uma coisa era não cair de quatro e outra, explicar por que a vida era mais misteriosa do que triste. Já nem tinha mais certeza disso. Talvez a vida fosse mais triste do que misteriosa. Mas resolveu endurecer:

— E, camarada major. Apenas isto: é. Não vou dizer por quê. É meu segredo.

O Major Chevtchenko reagiu como se tivesse levado um choque elétrico. Endireitou o corpo e ergueu a cabeça.

— E o seu o quê, Gurbanov? — perguntou, a voz enrouquecida.

A retirada, agora, era impossível. Por isso, Arkadi repetiu, acintosamente: — Meu segredo, camarada major.

— Seu segredo... Seu segredo... — murmurou Chevtchenko. Depois, um pouco surpreendentemente, acrescentou: — Deixe-me abraçá-lo, Gurbanov. Deixe-me beijá-lo.

Arkadi encheu mais um copo de vodca, que tomou de um trago.

— Às suas ordens, camarada major. Abrace-me. Beije-me.

— Sinto que vou chorar... — disse o major, sem fazer um movimento. — Mas não devo. Pode causar má impressão num novo agente ver um major do kgb soluçando.

— De modo nenhum, major. À vontade. Pode soluçar. Soluce, por favor.

— Ou será que você vai pensar, talvez, que sou um homem com coração de elefante?

— Não só isso, camarada major. Eu até acharei que, afinal, a vida é mais triste do que misteriosa.

Olhou para o copo de vodca e encorajou o major mais uma vez: — Soluce, major, soluce.

O major, todavia, em vez de soluçar, tomou mais um copo de vodca e continuou meditando.

— Ele tem um segredo. Já não vejo um homem, ou uma empresa, ou qualquer organização com um segredo há mais de dois anos e meio. Estou controlando, neste momento, centenas de agentes. E nem um segredinho de merda! Agentes, agentes, agentes por toda parte, e nem um segredo para obter.

Arkadi não lhe deu resposta.

— Mistérios, sim. Há mistérios. Por que razão os homens de negócio da Grã-Bretanha não querem fazer negócios? Por que razão não correm atrás deles? Por que razão não os aceitam quando aparecem? Qual é o esquema diabólico por trás de tudo isso? Você sabe, Gurbanov? Será que esse, por acaso, é o seu segredo?

— Não, camarada major.

— Afinal, talvez você tenha razão: a vida é mais misteriosa do que triste.

— É, claro que é — disse Arkadi com firmeza.

— O último segredo que consegui descobrir, faz agora dois anos e meio, foi o plano do exército belga no caso de a Noruega invadir a Holanda. Não me diga que a Noruega não vai invadir a Holanda. Eu sei disso. Os noruegueses sabem disso. Os holandeses sabem disso. O estado-maior da Bélgica também sabe disso. Mas todos os estados-maiores precisam fazer de conta que não sabem. E o pobre do estado-maior belga não é exceção. De qualquer forma, o que é que eles, os belgas, poderão fazer caso a Noruega resolva atacar? Nada. E é isso exatamente o que eles pretendem fazer. E esse foi exatamente o último segredo que consegui obter. Esse, Gurbanov, foi o único segredo que consegui obter para a nossa querida pátria soviética. E mesmo assim isso aconteceu no meu antigo emprego, quando eu me dedicava ainda a assuntos militares, não a assuntos industriais. Tal como o grande Lênin costumava dizer...

Arkadi sentiu sono. A voz do major tornou-se um ronronar, depois transformou-se em música celestial e, finalmente, cessou por completo. Quando Arkadi acordou, às seis e meia da manhã seguinte, verificou que tinha escorregado da poltrona e estava sentado no chão. O Major Chevtchenko, profundamente adormecido, estava caído sobre o braço de sua cadeira, a cabeça pendente no ar, e a palma da sua mão esquerda tocando o carpete. Estava ressonando.

Arkadi tentou levantar-se e escapar sem ser notado. Mas logo que fez o primeiro movimento o major abriu os olhos, ergueu a cabeça e deu um salto.

— Boris Gregórovitch Gurbanov! — exclamou ele, abotoando o colarinho. Estava totalmente recuperado, sóbrio. Reassumira o porte de homem de negócios.

Arkadi pôs-se em posição de sentido: — Sim, senhor.

— Agora que as formalidades sociais terminaram, vou lhe dizer a razão de eu o ter mandado chamar. Estou pensando em indicá-lo para oficial ilegal de apoio. Mas ainda não me decidi. Quero saber mais alguma coisa sobre você.

— Sim, senhor — concordou Arkadi.

— Você irá trabalhar para a Divisão Industrial. O que é uma honra. O futuro nos pertence. A espionagem militar está ficando ridícula. É necessária, mas desesperadamente antiquada. Um pouco como a infantaria. Na era dos foguetes, ninguém vai querer marchar para a frente e para trás no pátio de um quartel.

— Não, senhor.

— Você receberá minhas instruções em breve. Enquanto isso, quero que você leve algumas mulheres para a cama.

— Perdão, senhor.

— A razão principal — posso ver aqui em sua ficha — pela qual você foi escolhido para este serviço está no seu dom-juanismo. Isso é muito importante para nós. Muitos segredos têm sido desvendados na cama, Gurbanov. Mesmo antes de ser encarregado do seu caso especial, Gurbanov, quero que se deite com o máximo de secretárias e outras mulheres ligadas à indústria.

— Será que entendi direito, senhor?

— Não pense que estou sendo superficial ou frívolo. Não foi apenas a indústria eletrônica e de computadores que avançou nos últimos tempos. A espionagem, também. Eu desprezo os segredos militares, Gurbanov. Só os loucos ainda se preocupam com segredos militares. O grande campo de batalha, atualmente, é a fábrica. Sem força industrial não existe poder militar, sem dúvida. Os computadores formam o grande campo de batalha de nossos tempos. Dê-me três dúzias de arquivos — os arquivos que quero — e eu manipularei a Bolsa de Londres para você. Poderei criar o melhor caos econômico da história e obrigar a Grã-Bretanha a ajoelhar-se. Está espantado, Gurbanov.

— Oh, não, senhor. Sim, senhor.

— Os grandes segredos são as memórias dos computadores, Gurbanov. Não me interesso nem um pouco pelo velho microfilme na cabeça de um alfinete trazido por qualquer espião antiquado. Passe, Gurbanov. Morto e desaparecido. As informações, hoje em dia, chegam em torrentes, provenientes dos computadores. Dão o serviço todo de uma vez. Um computador realmente importante pode revelar todos os segredos de uma nação: militares, defensivos, econômicos, industriais, os que você quiser. Acredita, Gurbanov?

— Sim, senhor.

— Os ingleses formam uma nação cavalheiresca. Material maravilhoso para espionar. Eles consideram todos como cavalheiros. Portanto, seja um gentleman, um cavalheiro, Gurbanov. Sempre um cavalheiro. Todos os espiões russos eficientes são cavalheiros. Basta fazer as perguntas e os ingleses lhe darão as respostas certas. Você pede a um homem, de preferência um executivo ligeiramente descontente, uma entrevista, oferece a ele um emprego melhor, faz-lhe vinte perguntas sobre o emprego antigo, e ele dá o serviço todinho. Porque é um cavalheiro. Vinte perguntas. É um antigo jogo de salão dos ingleses. E é o novo jogo de salão dos russos. O meu favorito. Uma entrevista com um executivo descontente é melhor do que cinqüenta microfilmes. Com as secretárias é melhor ainda. As secretárias podem ser quase tão boas quanto os computadores. É por isso que quero que você vá para a cama com elas, com o maior número possível delas.

— E onde vou encontrá-las, camarada major? — perguntou Arkadi, cheio de esperanças.

— Problema seu.

— Sim, senhor.

— Você receberá instruções específicas em breve. Essa é apenas uma missão temporária, para ver do que você é capaz. Minha secretária lhe dirá tudo a respeito de dinheiro, verbas de representação, e de todos os detalhes triviais relativos àquela jovem bonita que você vai encontrar...

— Sim, senhor.

— ...jovem bonita ela não é, evidentemente.

— Não, senhor — disse Arkadi enfaticamente.

— E mantenha os olhos bem abertos. Sempre. Sempre que notar qualquer irregularidade ou fraqueza, um esqueleto na despensa, perversidades, sempre que tenha conhecimento de casos amorosos ilícitos, qualquer coisa do gênero, a respeito das jovens ou — melhor ainda — de seus respectivos chefes, comunique-os a mim sem demora.

— Sim, senhor.

Arkadi estava tentando lembrar o que o major tinha dito que ele seria: oficial ilegal de apoio? Sim, isso mesmo.

— E respeite o limpador de vidros.

— Como assim, camarada major? — Arkadi piscou os olhos. Estaria ele ainda bêbado? Não, não estava. Estava sóbrio como um juiz. Ou, pelo menos, como alguns juizes.

— Respeite o limpador de vidros. E ame-o — repetiu o major com firmeza.

— Sim, senhor.

— Durma com o maior número possível de mulheres — continuou o major —, mas não perca nunca a cabeça. Mantenha-se sempre consciente e devotado. Vigilante e sóbrio.

— Sim, senhor.

— A vigilância é ainda mais importante. Cuidado com os inimigos. Nunca relaxe. São ubíquos.

— Sim, senhor, ubíquos... Há um bocado de ingleses em Londres, senhor.

— Ingleses? Quem é que falou de ingleses? Eles não importam. Você está louco, Gurbanov? Eu estava pensando nos caras do gru. Os membros da nossa inteligência militar. Começaram agora uma ofensiva contra nós, uma ofensiva perigosa. Estão tentando provar sua importância e a incompetência do kgb. É uma luta de vida ou morte, Gurbanov. Fique de olho neles.

— Sim, senhor.

— E não se preocupe com os ingleses.

— Não, senhor.

Não desse jeito, queridinho...

 

Ele não se masturbava desde os dezesseis anos e reparou que estava sem prática. "Infelizmente, é preciso técnica para tudo", pensou, suspirando.

Relembrou os tempos de escola. A partir dos catorze anos, os rapazes passavam a discutir sua vida sexual abertamente e sem muito apego à verdade. Apenas alguns não conseguiam abandonar a timidez e optavam por ficar de fora das discussões. A maioria mentia livremente a respeito de suas experiências: eram fábulas excitantes sobre belas balconistas ou operárias peitudas — até secretárias — com as quais eles tinham tido casos absolutamente incríveis.

Evidentemente, alguns já tinham tido as suas experiências com garotas, mas a grande maioria, quase a totalidade, ainda se masturbava. Arkadi recordou todos os verbos diferentes que descreviam essa atividade, recordou ainda as diferentes técnicas. Até que, finalmente, redescobriu o jeito e foi forçado a admitir que era muito agradável.

— É melhor do que fazer amor — pensou ele —, mas fazer amor é mais social.

Momentos mais tarde, porém, sentiu-se chateado, frustrado, amargurado. Achou que aquela conversa de que mas-turbação enlouquece um cara era papo furado, mas mesmo assim estava furioso. Os outros espiões dormiam com as mulheres mais belas, mais excitantes e mais perigosas do mundo, e ele ali, entregue — por assim dizer — aos seus próprios recursos. Era muito fácil para Chevtchenko dizer: "Vá para a cama com montões de mulheres, Gurbanov!" E depois acrescentar que encontrar as mulheres era problema seu. Mas quem procurar? E onde encontrar? E o que dizer a elas? Como começar? Como é que um cara deve tratar essas garotas inglesas, se tiver a sorte de encontrá-las?

E ali estava ele, novamente, deitado na cama, no apartamento de Ivan, falando consigo mesmo, chateadíssimo: "Não, não, não! A fome sexual é terrível. Pior, talvez, do que a fome pura e simples". Mas recusava-se a ceder, a transformar-se num contumaz onanista. Qualquer coisa, menos isso. Era uma questão de auto-respeito, pensou. Mas por outro lado sentia que estava quase explodindo.

A tentação murchou rápido ao som da chave abrindo a porta. Ivan, àquela hora? Não, era Mabel, evidentemente. Devia ter se lembrado: era dia de ela vir e estava justamente na hora.

— Bom dia, queridinho — disse alegremente. — Ainda sem fazer nada, apenas perdendo tempo, vagabundo...

"Esperando ordens", pensou ele em dizer. Já ia explicar a ela que quando começasse a trabalhar iria trabalhar mesmo, no duro. Mas, depois, sentiu que não estava a fim de papo com Mabel. Ficou tudo num murmúrio.

— Sempre no... Sempre no meu caminho... Como é que eu vou poder fazer o serviço direito, hein? — reagiu ela.

Arkadi não lhe deu resposta.

— Nada mau, nada mau... Apenas um pouquinho emburrado... — dizia Mabel, com a maior delicadeza. Começou a reunir todos os copos sujos, os talheres, e os diversos pratos na pia da cozinha.

Arkadi recordou-se que dias antes, enquanto esperava por Chevtchenko, pensara em Mabel, não exatamente como se ela fosse uma bomba sensual, mas pelo menos como objeto sexual. Não era a mulher dos seus sonhos, mas melhor do que nada. Saudável e forte, pelo menos. Levantou-se e foi até a cozinha. Voltou correndo. Melhor do que nada? Loucura — nada era muito melhor. Mabel era grossa, gorda, musculosa, cheia de banhas, vulgar, sem graça, um monstro. Masturbação era muito mais desejável, mais nobre, mais eficaz para levantar o moral. Mas antes que soubesse o que estava fazendo, já suas mãos remexiam por baixo da blusa de Mabel, Mabel largou calmamente os talheres que estava enxugando, pegou Arkadi pelo pescoço no melhor estilo judoca, jogou seu corpo para a frente e o dele por cima do ombro, fazendo-o rodopiar no ar, até derrubá-lo, com estrondo, no chão. Ele ficou ali deitado, estendido sobre o lado esquerdo, pensando que tinha chegado a sua hora derradeira.

— Você não devia tentar fazer essas coisas, queridinho... — disse Mabel, amigavelmente, voltando a enxugar os talheres. — Eu sou uma garota direita — continuou ela, não prestando atenção ao estado em que Arkadi se encontrava, mas falando docemente, sem qualquer sinal de raiva ou emoção. — Sou fiel a Mr. Uckett, amorzinho. — E dizia "Huckett" sem aspirar o "h", à maneira cockney:

— Mr. Uckett me é fiel, logo eu sou fiel a Mr. Uckett.

Jogou um pouco de água quente na pia e continuou ignorando Arkadi, que lentamente tentava se levantar. Sentia dores por todo o corpo e a cada movimento as dores se tornavam mais penosas.

— Eu gosto de você, queridinho — continuou Mabel.

— Não quero que você pense que eu não gosto. Eu gosto, mas não desse jeito, queridinho.

Ele sentiu que tinha que dizer alguma coisa:

— Desculpe. Não sei o que me passou pela cabeça.

— Assaltado pelo desejo — explicou Mabel. Assaltado pelo desejo. Que idéia horrível. Mas não podia contradizê-la. Ou sorrir. Ou fazer qualquer tipo de observação meio séria. Ela tinha todo o direito de dizer o que disse. Assaltado pelo desejo.

Teve que se deitar. O braço esquerdo estava machucado. O pulso doía-lhe muito. Ao cair, tivera que defender-se com a mão esquerda, machucando-se mais do que a princípio tinha pensado. Algumas das costelas do mesmo lado também estavam doendo diabolicamente. Tinha que verificar. Mas como poderia explicar ao médico — um médico inglês ou até mesmo ao médico russo da missão — que tinha tentado violar uma faxineira cockney, corpulenta, de quarenta e cinco anos, e que ela tinha feito dele gato e sapato? Poderia dizer, evidentemente, que tinha escorregado na neve, ao descer as escadas. O problema era que naquela época a neve mais próxima estava na Groenlândia ou em Murmansk.

Mabel continuou fazendo a limpeza do apartamento, as camas, a lavagem dos banheiros. Foi ficando pensativa, silenciosa. Quando, finalmente, terminou, pegou o chapéu ridículo, prendeu-o na cabeça com um alfinete comprido — um hábito de antes da Primeira Guerra Mundial ou do século passado? — e foi até o quarto de Arkadi.

— Tem alguma coisa errada com você, queridinho?

— Não, obrigado. Tudo bem.

— Espero não ter machucado muito você. Não queria. Mas tinha que pensar em Mr. Uckett.

— Eu sei.

— Uma garota tem que saber defender-se.

— E claro. Claro que tem.

— Sinto muito. Realmente, sinto.

— Bem, a culpa não é sua, Mabel.

Ela explodiu: — No final, a culpa acaba sendo minha. Você vai ficar zangado comigo. E eu perderei meu emprego.

— Oh, não. Não vai perder, não. Eu prometo.

— Vocês, jovens cavalheiros, pensam sempre que o preço das garotas está incluído nos salários delas. E nisso os russos são tão bons ou tão maus quanto os ingleses.

Arkadi queria protestar, mas as dores, profundas, contiveram sua vontade. Acabou chiando, apenas.

— Eu não posso perder meu emprego — continuou Mabel.

— Você não vai perdê-lo. Mas eu julgava que você podia arranjar tantos empregos quantos quisesse. Ou mais.

— Eu sei que posso. Mas como é que vou explicar o caso a Mr. Uckett? Ele vai ficar furioso. Vai me bater.

Mr. Huckett assumiu as proporções de um herói na consideração de Arkadi. Bater em Mabel... Homem forte. Verdadeiro atleta.

— Mas como é que ele vai poder reclamar, Mabel? Estou lhe dizendo que a culpa foi minha, só minha.

— Gostaria de dizer isso para ele?

Arkadi não precisou de muito tempo para chegar a uma conclusão:

— Não faço questão, não.

— Eu sei. Quando chegasse a hora da verdade, você inventaria, uma história qualquer. E eu é que ficaria com a culpa. A culpa seria sempre minha no final. Você vai me pôr na rua, só porque não me submeti aos seus desejos...

Aquilo estava começando a doer mais do que as costelas.

i— ...e ele vai reclamar de mim por ter sido atacada. E vai me bater. Vai me dar muita porrada...

— Mas como é que pode? — perguntou Arkadi, seu espírito de justiça se rebelando. — Como é que ele pode reclamar de você por ter sido atacada?

— E que ele anda sempre dizendo que eu me faço desejada demais. É isso. É o que ele sempre diz. Desejada demais.

Mabel deu uma rápida olhada para o espelho, ajeitou o alfinete comprido, de cabeça vermelha, no chapéu, e depois lançou uma segunda olhada mais ponderada. Um brilho surgiu em seus olhos. Sem dúvida ela não estava nada insatisfeita com o que acabava de ver.

— Desejada demais, diz ele. Realmente, não posso reclamar. Talvez ele tenha razão.

Saiu. E fechou a porta gentilmente. Mas voltou:

— Não se preocupe, queridinho. Suas costelas vão ficar boas. Basta um dia ou dois.

Fechou a porta, novamente, mas desta vez com estrondo. E foi-se.

Arkadi sentiu vontade de chorar. Lembrava-se da cena de um romance policial russo em que Galatin — o James Bond soviético — fazia amor com uma rica herdeira, em Nova York, no terraço do apartamento de cobertura de um edifício de cento e cinqüenta e dois andares. Um helicóptero surgia por cima da cabeça deles (provavelmente, cheio de agentes do fbi), mas, levados pela paixão, não podiam parar. O helicóptero tentou parar, mas também não podia. A garota — uma estonteante beleza capitalista de dezenove anos — jazia nua em cima de uma pele branca de urso polar. Tudo o que tinha no corpo na ocasião era sua tiara de diamantes, os braceletes e broches (Broches? Uma idéia atravessou a mente de Arkadi: como é que podia? Broches pendurados numa garota nua?), sim, broches ornamentados com rubis, esmeraldas e safiras, além de um colar de pérolas de sete voltas!... Jóias, como foi enfatizado, no valor de quarenta e dois milhões de dólares. E ele, Arkadi Dmítrievitch Nikítin, agora mais conhecido por Boris Gregórovitch Gurbanov, jazia ali, possivelmente com algumas costelas quebradas por ter tentado pôr a mão nas tetas já flácidas de uma faxineira cockney, entrando na menopausa: "Desejada demais, diz ele. Talvez tenha razão". Que pretensão!

Minutos antes, ele tinha sentido vontade de chorar. Agora tinha vontade de vomitar.

"Isto é o fim, o fundo do poço", pensou. "Mais baixo ninguém pode descer."

Mas estava errado.

Podia. E ele desceu.

 

         Turfa granulada

 

                   Jardinagem.

A última coisa que Arkadi esperaria do Major Chevtchenko era ouvi-lo falar de jardinagem.

Quem é que pode estar interessado em jardinagem? Quem é que sabe alguma coisa de jardinagem?

Quando recebeu o chamado de Chevtchenko, Arkadi ficou petrificado. Pensou que seria severamente repreendido por não ter dormido com nenhuma mulher. Talvez fosse despedido e mandado de volta para a Rússia por incompetência. Ou — e essa era uma possibilidade que lhe dava, ao mesmo tempo, esperanças e um certo receio — receberia uma nova missão. Chevtchenko murmurara qualquer coisa a respeito dessa possibilidade. Não — não era possível! Era muito mais provável uma bronca geral por causa de algum erro cometido em seu novo serviço. Que serviço! Uma dor de cabeça. Uma dor de barriga. Uma diarréia total. Pior do que a escassez de mulheres. Pior que o inglório incidente com Mabel.

Já tinha sido chamado uma vez à presença do major, depois da primeira entrevista. Esse encontro seguiu o padrão do primeiro, exceto quanto ao horário de início, marcado para as quatro da tarde. Assim teve que esperar apenas três horas antes de ser recebido. Ficaram caindo de bêbados mais uma vez, mas foi o major quem acordou primeiro, à uma e vinte e oito da madrugada. E foi ele quem acordou Arkadi. O Camarada Chevtchenko estava recuperado, vivo, completamente à vontade, e parecia um homem que jamais havia conhecido o significado da palavra "vodca".

— Tenho pensado a respeito do serviço, Gurbanov. "Que serviço?", Arkadi gostaria de saber, mas tudo o que disse foi: — Sim, senhor.

— Decidi que você deve andar antes de correr, por isso vou nomeá-lo apenas oficial ilegal assistente de apoio.

Oh, sim, agora ele se lembrava. O major tinha resmungado qualquer coisa a respeito de indicá-lo para o cargo de oficial ilegal de apoio. E ele tinha ficado de procurar saber o que um raio de oficial ilegal de apoio fazia, mas esquecera o assunto por completo. Estava claro, no entanto, que, fosse lá o que fosse, ser assistente do oficial ilegal de apoio era pior. Mais uma vez, Arkadi começaria com um rebaixamento. Assistente do OIA. Indizivelmente aviltante.

Logo tomou conhecimento de que se tornaria um glorioso auxiliar de escritório. Aliás, nada glorioso, é bom que se note. Os bastardos! Por isso tinham-lhe ensinado contabilidade na Rua Derjinski. O oficial ilegal de apoio tinha que pagar a todos os espiões russos da rede: não só os salários como todas as despesas. Arkadi não sabia que o Capitão Suiumabev, o próprio oia — um quirguiz melancólico, mas consciencioso —, conhecia a respeito dos segredos e mistérios da praça, já que ele falava muito pouco e não lhe dizia nada. Suiumabev — e isso era o máximo que Arkadi conseguira saber — costumava emitir os passaportes falsos para os agentes em perigo. Fornecia-lhes jogos de documentos falsos. Retransmitia instruções pelos vários circuitos. Mas, acima de tudo, tinha que pagar todo mundo. Arkadi estava envolvido apenas na parte mais triste desse trabalho: o pagamento. As somas a pagar variavam muito. Iam desde trinta e quatro cents, a menor, para Sammy comprar comida para o cachorro, até trinta e oito mil setecentos e cinqüenta e seis dólares, a maior, para Xerazade comprar Deus sabe o quê... O pouco que Arkadi sabia — ou intuía — só servia para aumentar sua frustração. Nem os nomes verdadeiros do pessoal ele conhecia. Metade era composta de Toes, Jacks e Berts, e a outra tinha nomes de garotas: Jill, Jean, Faith, Gladys. Alguns tinham nomes românticos e fantasiosos, como aquele Xerazade, o tal que recebia os trinta e oito mil, setecentos e cinqüenta e seis dólares. Havia uma Loelia, uma Hortênsia e uma Cleópatra na lista. Ele sabia que aqueles nomes românticos, lindos, encobriam pistoleiros duros, verdadeiros cascas-grossas, assassinos profissionais, matadores de aluguel — homens sempre dispostos a cometer qualquer crime por recompensa. Imaginava Cleópatra como um cara especialmente horroroso, nariz pequeno, perna de pau, olho de vidro, e riso de King Kong. Mas ele não podia ter nem a mais leve esperança de um dia vir a encontrar Xerazade, Hortênsia, Cleópatra ou até mesmo Jack e Jill. Seu único contato era Hugo. Hugo era, supostamente, um garçom português que encobria sua missão como lavador de pratos num restaurante do Soho. Metade do lado esquerdo do seu rosto tinha sido levada por um tiro — talvez de um cliente que tinha achado a sopa muito fria —, o que lhe dava um ar repulsivo. Hugo tinha que assinar todos os recibos na presença de Arkadi. E feito isso embolsava o dinheiro com uma indiferença superior, quer se tratasse de trinta e quatro centavos ou de trinta e oito mil, setecentos e cinqüenta e seis dólares. Para ele tanto fazia. Mas a assinatura dos recibos era uma manobra um pouco rara: Hugo punha a caneta na boca e escrevia movendo a cabeça para a frente e para trás, tal como fazem alguns artistas manetas dignos de toda a admiração. Arkadi achou o caso estranho porque as mãos de Hugo eram perfeitas. De fato, ele sabia mais: 1) Hugo não era português; 2) não era garçom; 3) não trabalhava no Soho, e 4) suas mãos sempre tinham sido perfeitas. Que seu nome também não era Hugo é até escusado mencionar. Arkadi tentou aprender a assinar seu nome com a boca. A princípio achou difícil manter a caneta em cima do papel — ela tendia a erguer-se da folha —, mas logo que essa dificuldade inicial foi contornada, aprendeu o truque e até julgou aquela maneira de escrever bastante simples, embora ligeiramente cansativa para os músculos do pescoço. Ficou surpreso quando viu que sua "boquigrafia" se parecia muito com sua caligrafia.

Havia certas frases que ocorriam regularmente nas instruções que recebia, e não foi preciso muito para deduzir que "hospital" significava prisão. Sempre que a conta do hospital relativa a alguém tinha que ser paga, isso queria dizer que esse alguém estava na cadeia, precisava de um subsídio para melhorar a comida ou um plano para escapar. "Doutores" eram os policiais. "Sapateiros" eram os caras que falsificavam passaportes, mas seu número diminuía: o passaporte falsificado estava caindo em desuso; os agentes modernos acham muito mais seguro e confortável viajar em primeira classe e com passaportes diplomáticos, falsificados pelo governo e não por sapateiros. Enfim, quando necessários, os passaportes falsificados pelos sapateiros eram chamados de "sapatos". "Caixas de música" eram transmissores sem fio e o "Vizinho" era o Partido Comunista local. O "lar" era a Rússia e o "Centro", o quartel-general do kgb; e "Jersey" — ele achou aquilo estranho — era a Alemanha Ocidental. Por uma semana ou duas, foi até divertido trabalhar na procura dos diferentes significados escondidos, mas depois de algum tempo o jogo de palavras se tornou infantil e o pagamento a falsificadores, pouco mais excitante do que a sapateiros de verdade. Tinha que usar expressões como "ativo" e "passivo", "contas correntes", "despesas gerais" (faziam questão de uma terminologia estritamente comercial), "reavaliação do ativo", "redução do passivo", "amortização do ativo", etc. A tripla conversão de rublos em libras e libras em dólares e vice-versa já seria suficientemente cansativa por si própria, mas suas flutuações diárias no mercado internacional monetário tornavam a operação ainda mais difícil. "Nunca poderia sonhar que um dia ficaria tão ligado ao mercado internacional monetário na minha função de espião soviético", pensou Arkadi com um profundo suspiro, olhando Hugo, que assinava com a boca um recibo de doze mil, quinhentos e setenta e quatro dólares para Putsi, o assassino mongol.

Por duas vezes, Arkadi chegou a pensar em suicídio apenas para aliviar o tédio total. Mas logo decidiu que a monotonia do serviço iria levá-lo à loucura bem cedo. Portanto, para que o esforço extra?

Agora, pela terceira vez a caminho do escritório do Major Chevtchenko, ele procurava adivinhar quais seriam os novos problemas que aquela porcaria de serviço lhe iria causar. Era fácil cometer um erro de cálculo ou fazer um lançamento na conta errada. E ainda que tudo fosse verificado por uma moça, morosa embora sempre risonha, e reverificado pelo próprio Capitão Suiumabev, alguma coisa podia ter escapado aos três.

Mas Chevtchenko nem sequer mencionou a contabilidade. Falou de jardinagem.

Havia cerca de cento e vinte pessoas reunidas no salão térreo. Chevtchenko foi admiravelmente pontual. Apareceu ao soar o longo apito anunciando as onze horas e foi direto ao assunto logo na primeira frase. Deu uma bronca em todo mundo por negligenciarem seus jardins. "Daqui para a frente", vociferou, "têm que cultivar flores, verduras e legumes, cortar a grama, aparar os arbustos e as cercas. E criar rosas. Tantas rosas quantas couberem no raio de seus jardins."

Acontece que uma dessas inglesas piradas, presumidas e florimaníacas, tinha escrito uma carta para o editor do Hampstead and Highgate Gazette, fazendo uma reclamação que Chevtchenko leu alto:

"Prezado editor,

Talvez por sorte ou por azar nosso, uma grande quantidade de amigos russos veio morar entre nós. Alguns de nós rejubilam. Muitos outros ficariam mais satisfeitos em ver alguns outros bairros honrados com a presença deles. Seja como for, tenho certeza de que todos os seus leitores lamentam o fato de nossos hóspedes russos manterem seus jardins num estado de absoluta negligência. Será que eles não têm o senso da beleza? Será que não apreciam a frescura, o colorido, o odor de nossas encantadoras flores inglesas? Os russos são assim, realmente, tão insensíveis? O aspecto mais lamentável do caso está no fato de que eles não só depreciam o valor de suas propriedades (como bons comunistas, acho que não ligam para isso), como em breve rebaixarão toda a vizinhança ao nível de uma favela moscovita .

Saudações,

Mrs. Adela Bibby

277 Woodland Rise, n.º 10"

 

Chevtchenko continuou berrando por mais vinte minutos a respeito da falta total de senso de beleza e de estética da parte de todos. Por que diabos eles eram incapazes de apreciar a beleza dessas malditas flores inglesas — os narcisos, os jacintos, os crisântemos ou... como é que elas se chamam mesmo? Aqueles apenas interessados em mulheres e vodca não traziam muito crédito à sua pátria socialista. Que pusessem seus jardins imediatamente em ordem. E que comparecessem àquela maldita exposição de floricultura em Chelsea, ou seja onde for, dentro de duas semanas.

Na sexta-feira seguinte, os moradores do edifício já tinham formado o inevitável comitê de jardinagem. Reuniram-se num dos apartamentos do andar térreo. Arkadi viu alguns dos moradores pela primeira vez. Eram vinte e sete pessoas morando em oito apartamentos e estavam todos presentes, incluindo três crianças. Eram todos russos e todos (com a exceção das crianças, claro) trabalhavam na missão comercial. Arkadi achou as crianças ainda mais detestáveis do que os adultos: consideravam a jardinagem uma nova aventura, excitante e agradável.

Arkadi esperava que houvesse uma discussão breve e objetiva a respeito dos meios de se colocar os jardins em condições aceitáveis no mais curto prazo e com o menor esforço possível. Mas estava enganado. Um comitê é um comitê. Todo mundo apresentou opiniões sólidas em relação a todos os assuntos e até a ideologia política entrou no bolo. Uma das facções — liderada por uma matrona de blusa vermelha, Nina, o conhecido tipo de comissária — achava que tinham que dar uma resposta conclusiva àquela inglesa decadente e arrogante, assim como a seus seguidores, fazendo de seu jardim uma extraordinária peça de arte florística. Esta sugestão foi considerada absolutamente revoltante pela maioria. Mas Nina era uma informante bem conhecida entre os informantes, por isso ninguém se atreveu a ir contra ela. Todavia, alguém perspicaz sugeriu que eles dessem os primeiros passos primeiro. Criar uma peça de arte florística levaria tempo e Chevtchenko tinha-lhe dado quinze dias; portanto, eles precisavam fazer sem demora o mínimo necessário. Logo que esse mínimo estivesse pronto, então poderiam cuidar para que o jardim deles ficasse famoso, seguindo a sugestão de Nina.

Arkadi era um rapaz de Moscou, sabia muito pouco de jardinagem e seu interesse pelo assunto ainda era menor. Mas havia alguns verdadeiros peritos entre eles, com opiniões formadas e definitivas sobre o assunto. Assim, seguiu-se uma longa discussão a respeito de estrumes. Todos concordaram em que o estrume de cavalo era de longe o melhor, mas escasso e muito caro. Um homenzinho de grandes bigodes pretos disse que o estrume de cavalo estava supervalorizado, mas, não havia dúvida, era maravilhoso para os cogumelos... E dizia isso passando a língua pelos lábios. Arkadi decidiu nunca mais tocar em cogumelos dali em diante. Entretanto, eles continuaram argumentando prolongadamente a respeito das qualidades, respectivamente, do estrume de vaca, do estrume de porco e do estrume de galinha. O Homenzinho do Bigodão contou que estava trabalhando no Departamento Agrícola da missão comercial e que conhecia tudo a respeito de estrumes. Arkadi ficou em dúvida. Ele estava trabalhando no Departamento Têxtil (roupas íntimas) e não sabia nada de roupas íntimas. O Homenzinho do Bigodão prosseguiu dizendo que, graças às suas ligações, talvez conseguisse adquirir estrume de granja (deu a maior ênfase à pronúncia de "estrume" e de "granja") com desconto. Em face de algumas perguntas ingênuas, o Homenzinho do Bigodão (daqui em diante designado por HB) explicou com um sorriso superior que o estrume de granja era uma mistura selecionada de cocô de vaca, de porco e de galinha, e de — aqui sua voz ressoava de orgulho — estrume de cavalo. Não esquecendo as cagadinhas de moscas. Depois, acrescentou que talvez conseguisse fazer com que a encomenda deles tivesse uma proporção de estrume de cavalo maior do que a normal. "Há esnobes e esnobes", pensou Arkadi. A sugestão de HB, no entanto, acabou derrotada, e mais tarde fez-se uma votação entre comprar turfa fertilizada ou turfa granulada. Arkadi nunca tinha ouvido falar de turfa granulada e não sabia o que significava. Mas gostou do som da palavra e votou pela turfa granulada. O Partido Granulado venceu por catorze votos contra treze, porém Nina levantou uma objeção por questão de ordem. As crianças também tinham votado e isso era irregular. Nina falou com profundos sentimentos e patente sinceridade a favor da turfa fertilizada, e alguns começaram a pensar que deveria haver, certamente, qualquer significado ideológico escondido por trás da proposta, alguma coisa que lhes devia ter escapado. Por isso, mudaram de posição. Ao se fazer nova votação, o Partido Fertilizado (o grupo de Nina) obteve uma estrondosa vitória, por maioria de oito votos.

Depois, discutiu-se se deviam plantar legumes e verduras ou flores. A decisão final foi a de plantar ambas as espécies. E então Nina sugeriu que o tomate fosse o único legume plantado por eles. HB, porém, queria plantar rabanetes também. Nina explicou que os tomates eram vermelhos e que seria dignificante para a missão ter um jardim maravilhosamente vermelho. HB contra-argumentou: os rabanetes também são vermelhos. Mas esse fraco argumento foi arrasado por Nina: os rabanetes cresciam embaixo da terra e podiam ser até azuis. Foi realizada mais uma votação, segundo a qual ficou decidido que iriam plantar tomates e rabanetes. A essa altura, Nina levantou-se e declarou que jardim não era quintal e que, portanto, a questão era de plantar apenas flores.

Seguiu-se um bate-boca tremendo a respeito de rosas. Nina queria apenas rosas vermelhas e advogava a compra do tipo Christian Dior 1960 e Prima Ballerina 1957. HB declarou, triunfante, que Prima Ballerina 1957, na realidade, era cor-de-rosa, e perguntou a Nina se ela, de fato, era a favor da rosa cor-de-rosa. Nina bateu em rápida retirada, enquanto alguém observava que, efetivamente, o vermelho sobressaía mais entre as outras cores. Daí, acabaram concordando em plantar Paz 1942 e, também, Virgo 1947.

E assim a reunião continuou por horas e horas (sem comida, mas com freqüentes abluções líquidas). A última grande batalha foi a respeito de ferramentas. Concordaram em comprar uma pá, uma forquilha, um ancinho, uma enxada, uma serra e um formão; também concordaram em não comprar carrinho de mão, varetas, martelo de pedreiro e picareta. Houve uma acalorada discussão a respeito de comprar ou não um regador (decisão: sim) c uma enxadinha (decisão: não). E depois houve uma briga ainda mais feia por causa da espátula. O pessoal de Nina era a favor e os fãs de HB faziam questão fechada contra. Nem os mencheviques enfrentaram os bolcheviques com tanto ardor, determinação e viciosa firmeza quanto os pró-espátula enfrentaram os antiespátula nessa ocasião. Finalmente, veio a votação e Arkadi, embora não tivesse a mínima idéia do que era uma espátula de jardineiro, foi contra a compra, só porque gostava ainda menos de Nina do que de HB. O movimento antiespátula triunfou por um voto, e com isso Arkadi ganhou o ódio fremente, eterno e inextinguível de Nina.


                   Ivy

— Você precisa de uma serra para isso.

Arkadi olhou em volta e imediatamente pensou que estava sonhando.

— Você simplesmente não pode fazer isso com esse machadinho — insistiu ela, mostrando um interesse muito simpático.

A jovem era uma fada, uma deusa, uma ninfa, uma sílfide. Ou, pelo menos, foi isso que pareceu a Arkadi, que já não dormia com uma mulher desde que deixara Moscou. Olhou para as coxas dela, longas e bem-formadas, praticamente descobertas por uma minissaia creme. Seus olhos viajaram para cima, passando pelo pulôver vermelho que cobria dois seios muito pequenos, e lá no topo — a viagem terminou logo, porque a garota não era alta — encontraram um rosto redondo numa moldura de cabelos castanho-claros, quase louros.

— Uma serra? — Arkadi repetia a palavra como se ela tivesse alguma mágica.

A serra é uma ferramenta de jardinagem — foi a idéia que brilhou em sua cabeça — com dentes afiados para cortar madeira em movimentos rotativos ou de vaivém. Por que razão essa ninfa está falando de serras, em vez de falar de amor, luar ou, pelo menos, de narcisos? Mas a única coisa que ele conseguia fazer era repetir a frase: — Uma serra?

— Sim, é claro. Só uma serra poderá cortar esse ramo sem machucar a árvore.

Isso aconteceu dois dias depois da reunião, às onze horas e trinta e dois minutos da manhã de domingo, o primeiro dia da recuperação dos jardins. Os peritos discutiram e tomaram para si os trabalhos mais especializados. A maioria, porém, era formada de principiantes autênticos, e a eles foram dadas as tarefas mais simples, como cavar, limpar, cortar a grama, podar as cercas ou — pior que tudo — reunir e empilhar toda a sujeira no portão de entrada. Arkadi recebeu ordens de HB para cortar a hera. Não fazia a menor idéia do que era hera, onde encontrá-la, como cortá-la e por quê. HB explicou-lhe com surpreendente paciência, mas grande condescendência, que a hera era uma planta parasita que abraçava as árvores e que, se não controlada, acabava por estrangular as ditas árvores e sugar delas sua seiva vital. Deram a Arkadi uma enxada e disseram-lhe para libertar as nove árvores do jardim.

Ficou surpreso ao descobrir que a função, afinal, era muito mais agradável do que supunha. À primeira vista, não sentiu nada de especial. Na realidade, achou até que a função era mais chata do que o serviço no escritório, serviço que, ultimamente, tinha se tornado insuportavelmente entediante. Durante toda a semana, sua missão era a de transformar copeques em centavos e dólares em rublos; tinha que pagar o aluguel a Dmítri (uma respeitável matrona inglesa de setenta e três anos, que permitia ao kgb usar sua casa em Stoke Newington como refúgio). Hugo tinha assinado recibos no valor de vinte e seis mil, setecentos e catorze dólares com a boca. Arkadi teve medo de que o corte da hera rivalizasse, em termos de monotonia, com o serviço de espionagem. Mas nada disso aconteceu. Em primeiro lugar, ele simplesmente adorou trabalhar ao ar livre. Mais tarde, porém, começou a gostar do trabalho em si. A hera era impertinente e forte. Tentou se esconder a fim de desorientar o inexperiente cortador. Uma parte tomou a forma de pequenos rebentos, que podiam ser cortados com um gentil toque da enxada, mas em alguns lugares tornou-se dura como a madeira, difícil de derrubar. Aí ele começou a pensar no significado de seu trabalho e logo o transformou em ideologia. A hera era um parasita. A árvore era a classe trabalhadora; a hera, o explorador capitalista, e ele era o instrumento de liberação das massas do jugo espoliativo. Cortava com firme determinação, com crescente fervor e irritação. Sentiu-se como um herói do proletariado revolucionário. Aí, de repente, sentiu uma ternura toda especial pela hera. Seria possível, realmente, lançar toda a culpa sobre ela? Era também uma criatura de Deus — quer dizer, uma criatura da evolução das espécies — tal como a árvore. Não poderia ser culpada de viver da única maneira possível à sua sobrevivência. Por que as árvores estavam oferecendo mais resistência do que a hera? Por que a árvore tinha mais direito à existência do que a hera? De qualquer forma, a hera não podia simplesmente retirar-se de cena e cometer suicídio como classe. É... Talvez não, pensou ele. No entanto, permanecia a questão: de que lado está você? Ele estava do lado das árvores. Portanto, morte aos exploradores! Morte à hera! Avistou um pedaço particularmente espesso, bem-nutrido, quase tão espesso quanto a pobre árvore, meio morta e definhada, que a hera explorava. Com a ajuda de sua pequena ferramenta barata, atirou-se à moita com fúria desdobrada, que logo se transformou em ódio desvairado. Mas seus progressos foram insignificantes. Hesitou por um momento e perguntou a si mesmo: "Por que estou tão zangado?" Lembrou-se de seu mestre de latim em Moscou — talvez o único ser humano da escola —, que costumava dizer: "Sempre que você ficar muito zangado, faça um exame de consciência; e sempre que sentir indignação moral, suspeite duplamente de você mesmo". É claro, ele tinha razão. O ódio, na maioria das vezes, é uma espécie de auto-aversão. Você odeia seus próprios vícios latentes na pessoa dos outros. "Talvez", pensou Arkadi. "Pode ser que eu, espião inútil e ineficiente, o parasita dos parasitas, esteja lançando sobre a pobre hera todo o ódio que tenho de mim mesmo. Estou me capando a mim mesmo." Ainda tentou rejeitar essa idéia. Não, não estava lutando contra o parasita. Estava lutando contra o capitalista explorador. Sua luta era pela libertação das massas oprimidas. Poderia causar danos à árvore com os seus golpes desvairados, é verdade, mas isso significaria apenas que as próprias massas têm muitas vezes que fazer sacrifícios por conta de um futuro melhor. Aí, ele atacou a hera de novo com ferocidade total.

— Só uma serra poderá fazer o serviço sem ferir a árvore — disse a deusa.

Ele olhou para ela, hipnotizado.

Ela reparou no embaraço dele e riu, bem-humorada:

— Você não parece ter muito futuro como cortador de heras...

Arkadi não podia tirar os olhos das coxas dela. Sabia que as olhava fixamente.

— Afinal, para que essa cavação toda? — perguntou ela.

Seria a classe imperialista falando, o grande inimigo tentando atraí-lo, ou uma pergunta genuína? Parecia bastante inocente.

— Que foi que lhe deu, assim, de repente?

— Nosso jardim será o mais bonito de Highgate. Gostamos muito das adoráveis flores inglesas. Damos uma importância extraordinária aos valores estéticos.

A garota olhou para ele de lado, um tanto surpresa.

— Você é russo?

— Sou um cidadão da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas — replicou Arkadi com a maior dignidade.

— Nunca encontrei um russo, mas uma vez tive um caso com um turco.

— Turco não é russo — disse Arkadi com ar de fria superioridade.

— Esse turco era — insistiu a garota.

— Ah, então, provavelmente, ele era um cidadão da República Soviética do Azerbaijão. É isso?

— Provavelmente — concordou a garota, que nunca tinha ouvido falar de "Azerbaijão" antes.

— Vamos tomar chá juntos um dia desses? — sugeriu Arkadi, num convite meio desajeitado.

— Chá? — inquiriu a garota, com surpresa.

— Sim, chá — confirmou Arkadi.

— Como é que é, Gurbanov? Você continua fazendo o seu trabalho? — gritou em russo HB, do outro lado do jardim.

Arkadi, lembrando-se felizmente das instruções de Chevtchenko a respeito de garotas, gritou em resposta: — Sim, estou.

— Não vou tomar mais o seu tempo — disse a garota, adivinhando do que se tratava.

— Vamos tomar chá à uma, está bem?

— À uma estarei almoçando, não tomando chá.

— Então, às seis, está bem? Numa casa tipicamente inglesa, daquelas que todo mundo conhece por pub.

— As casas tipicamente inglesas só abrem às sete, aos domingos.

— Tudo bem, então, às sete.

— Tem mais: nas casas tipicamente inglesas não servem chá. Servem cerveja. Ou uísque. Ou gim com tônica.

— Vamos beber qualquer coisa, o que você quiser. E discutiremos, então, as diversas maneiras de cortar hera, está bem?

— Puxa, parece muito excitante — confessou a garota. — Não posso resistir a uma proposta dessas. Você fala exatamente como aquele turco de... De onde você disse que ele era?

— Da República Soviética do Azerbaijão.

— É isso aí — concordou a garota, que tinha acabado de ouvir o nome daquela república pela última vez na sua vida. — Esse lugar tem um nome tão romântico, muito mais romântico do que o de Middlessex. Mas nunca se sabe. Não com certeza. Você conhece o Pig & Crown?

— O quê?

— O Pig & Crown.

— O que é isso?

— Uma casa tipicamente inglesa, mais conhecida por pub. Ali na esquina — e apontou na direção do norte.

— Não tem problema, eu chego lá, pode estar certa.

— Às sete, então...

— No Pig & Crown.

— Certo — disse a garota, acrescentando: — E não se esqueça de usar a serra para cortar a hera.

A aparição esvaiu-se, transportada por umas pernas longas e perfeitas.

Arkadi seguiu-a com o olhar. Logo que a viu desaparecer na esquina, começou a sentir-se extremamente nervoso. Era a sua primeira chance com uma garota inglesa. E bonita, ainda por cima. Mas como é que uma pessoa deve se portar com uma garota inglesa? McRoberts tinha lhe ensinado a dirigir-se à segunda filha de uma marquesa, mas não lhe dissera como levar as plebéias para a cama. Não se pode beijar-lhes a mão porque isso as faria rir. Não que as garotas russas não fizessem o mesmo. Nisso a diferença é pouca. O mesmo se pode dizer cm relação aos elogios. Solta-se a cantada e elas começam com as risadinhas. Também já não se pode colocar a alma aos pés delas, porque elas não têm alma e nem sabem do que se trata. Encarnar o papel de herói romântico também já não dá pé, porque romance é uma coisa que desapareceu da Inglaterra há uns cento e cinqüenta anos. Enfim, o que é que se pode fazer? E, mais importante ainda, como é que se puxa o assunto? Como é que se leva a garota para casa? Alguém tinha lhe contado a respeito de convidá-las para ver algumas gravuras, mas isso parecia-lhe um esquema antiquado. As garotas inglesas talvez ficassem ressentidas diante de uma aproximação direta demais. Mesmo que aceitem ir até sua casa, qual deveria ser o passo seguinte? Tinha ouvido dizer que era muito possível uma garota inglesa aceitar de bom grado ir à casa do rapaz para tomar uma bebida e, chegando lá, tomar apenas a bebida. É a coisa mais fácil do mundo uma pessoa errar e não proceder como um gentleman. A garota dá um pulo e sai pela porta afora.

Por outro lado, um cara não pode ficar parado e deixar fugir uma oportunidade dessas. Não podia discutir o problema com Ivan, porque certamente ele responderia com um provérbio russo. Sacudiria os ombros e diria: "Viva cem anos, aprenda em cem anos, e mesmo assim morrerá estúpido". Ou qualquer outra coisa parecida.

Contudo, logo o nervosismo de Arkadi se transformou num estado de espírito doce e romântico. Tudo iria dar certo. A garota iria facilitar as coisas com sua doçura e espontaneidade. Começou então a tratar a hera com extrema ternura. Em vez de atirar-se a ela com a ferocidade odienta que sentia contra os parasitas, via nela, agora, uma planta maravilhosa, abraçando as árvores fortes e másculas e fazendo amor com elas.

Algumas horas depois do almoço, lá por volta das três e meia, mais ou menos, Nina veio até ele, entregou-lhe um papel e foi embora sem dizer uma palavra sequer. Não era bem um papel. Era um envelope amarelecido, barato, dentro do qual havia um pedaço de papel com os seguintes dizeres:

 

           "A planta.

           E que espécie de espinafre?

           Cumpra seu dever.

                        C."

 

A assinatura não estava completa, mas queria dizer Chevtchenko. Por que motivo Chevtchenko estaria interessado em jardinagem? E que espécie de planta ele teria em mente? Talvez fosse o espinafre. O espinafre era uma planta, de acordo. Mas por que espinafre? O que é que o espinafre tinha a ver com roupas íntimas? Ou com qualquer outra coisa?

Olhou para Nina e perguntou-lhe:

— Vamos plantar espinafre?

— Claro que não. Apenas plantaremos flores. Não se lembra de nossa decisão?

— Oh, sim. Claro que sim.

— Por que esse interesse tão repentino por espinafre? — perguntou ela com o olhar fixo em Arkadi. Aliás, a pergunta foi formulada com um ar de interrogatório do kgb, no qual o interrogador estivesse completamente certo de que todas as traições e de que todas as conspirações contra o Estado começassem por um interesse doentio por espinafre.

— Sou louco por espinafres — replicou Arkadi acintosamente, e foi para casa. O conteúdo daquela mensagem permanecia insolúvel e parecia que ia continuar sendo. Arkadi rasgou o papel e jogou os pedaços no cinzeiro. Mas lembrava-se de todas as palavras. Aliás, não era difícil. "A planta. E que espécie de espinafre? (com as palavras 'que' e 'espécie' sublinhadas). Cumpra seu dever. C." Qualquer que fosse o significado, ele agora seria de importância secundária. Trocou de roupa, espalhou uma quantidade enorme de loção no rosto, pediu a Ivan para se tornar invisível pelo menos até a uma hora e rumou para o Pig & Crown.

Primeiro, viu as palavras "saloon" e "public" escritas em destaque, e não tinha a mínima idéia do que significavam. Mas adivinhou que "saloon" era algo superior, e como estava determinado a impressionar o encantador produto do capitalismo britânico, não teve dúvidas: dirigiu-se ao bar do saloon. Olhou em volta. Nada. Então lançou um olhar através do bar para a outra parte e — mais uma vez, não teve dúvidas — a garota estava lá, do outro lado, no public. Arkadi iniciou a caminhada para encontrá-la, mas ela foi mais rápida:

— Julguei — disse a garota — que um bom russo iria para o bar do public.

— Escolhi este lado para agradar a você. Foi uma concessão ao Ocidente decadente.

Ambos riram muito.

— O que vai beber? — perguntou Arkadi.

— Minha bebida preferida é o Dubonnet, mas em sua honra vou tomar vodca.

— Uma vodca dupla?

— Não, simples. Com limão e gelo.

— Se é em minha honra, tem que ser uma vodca dupla e sem limão.

— Está bem. Desta vez será uma concessão do capitalismo decadente.

A garota estava bem-humorada, uma doçura, e até mais bonita do que à tarde. É verdade que suas pernas estavam cobertas pelas calças, mas a maquilagem era das mais atraentes.

— Pensei que vocês, russos, fossem todos formais e duros — disse ela. — Qual é o seu nome?

89

— Boris Gregórovitch.

— Oh... — A garota esmoreceu. O nome parecia-lhe irrepetivelmente longo e difícil de lembrar. — Posso chamar-lhe Harry?

— Harry? — perguntou Arkadi, espantado.

— Sim, Harry...

— Por quê?

— É mais simples.

— Boris não é assim tão complicado...

— Ah, nunca pensei que seu nome fosse Boris. Pareceu uma palavra longa quando você a pronunciou. Está bem, vou chamá-lo de Boris.

— Não — disse Arkadi com firmeza. Com os diabos, por que razão aquela garota iria tratá-lo por Boris? — Chame-me Harry, por favor. Não tem problema.

— Não. Já mudei de idéia. Não quero chamá-lo de Harry. Agora que consegui apanhar um russo, recuso-me a chamá-lo de Harry. Sempre achei que quando encontrasse um russo eu o chamaria de Igor. Assim como o Príncipe Igor, certo?

— Tudo bem. Chame-me Igor, não faz mal. E você, qual é o seu nome?

— Ivy.

— Ivy? Então é por isso que você sabe tanta coisa sobre hera*.

 

* "Ivy", em inglês, significa "hera". (N. do E.)

 

— Pode ser.

Beberam muitos outros drinques, conversando sobre o tempo. Arkadi contou a Ivy que gostava de Londres e Ivy contou que gostaria de um dia viajar até Moscou. Arkadi replicou que ela devia ir a Moscou só quando ele tivesse voltado, para que ele a pudesse levar a dar uma volta pela cidade. Enfim, tiveram um papo exatamente igual a milhões de outros entre jovens casais no dia de seu primeiro encontro.

— Qual é o tipo de trabalho que você faz, Igor? — perguntou a garota.

— Estou trabalhando para a missão comercial, no Departamento de Têxteis. Roupas íntimas...

— Ah, você tem interesse em roupas íntimas?

— Na sua, principalmente...

Arkadi quase mordeu a língua. Pensou que tinha ido longe demais. Mas a garota sorriu, um sorriso breve, e, de fato, não deu muita atenção ao comentário.

— E que é que você faz, Ivy?

— Trabalho na indústria de spinoffee.

— De quê?

— Spinoffee. Não diga que nunca ouviu falar de spinoffee?

— Não estou aqui há muito tempo.

— Então é por isso. Spinoffee é uma invenção maravilhosa. Aliás, muito recente. Há muita gente no país que ainda não ouviu falar dela. Mas vão ouvir, pode estar certo.

— E o que é?

— Café feito de espinafre*.

 

* "Spinoffee", uma palavra criada a partir de "spinach" ("espinafre") e "coffee" ("café"). (N. do E.)

 

— Café feito de quê? — teve que perguntar Arkadi, com angústia na voz, julgando ter ouvido a garota falar de espinafre. A União Soviética, ele tinha que admitir, estava muito atrasada em relação ao Ocidente em muitos aspectos, mas nem eles próprios tinham descido tão baixo: café feito de espinafre?!

— É por isso que eles o chamam de spinoffee. Um nome inteligente, você não acha?

— Não há nada de errado com o nome — concordou Arkadi. — Mas qual é o produto final? Um novo tipo de café? Ou uma nova espécie de espinafre?

— Café. Café muito bom. A idéia também não me agradou quando tomei conhecimento dela, mas é um café realmente bom. Melhor do que muitos cafés instantâneos que se vendem por aí. Não há comparação. E está tendo um sucesso fantástico, pode crer. Será que você gostaria de prová-lo?

A possibilidade atravessou a mente de Arkadi com a velocidade de um relâmpago.

— Adoraria. Vamos até o seu apartamento tomar spinoffee.

Sentiu-se como um cavalheiro medieval. "Quanta galanteria! Banque o trovador", pensou. Por ela, estaria até disposto a fazer coisas piores do que beber spinoffee. Tudo pelo amor de sua bem-amada.

— Não podemos ir a minha casa. Isso está fora de questão.

— Está na hora, meus senhores, por favor...

Três horas tinham voado como se fossem minutos. E nenhum progresso. Arkadi já começava a entrar em pânico. Agora ou nunca, decidiu ele. Qual seria a reação da garota se ele fizesse uma aproximação mais direta? Ela nem ligara para o seu comentário sobre roupas íntimas. Por outro lado, fora incisivamente contra a sugestão de irem para a sua casa. Enfim, não devia se arriscar demais, mas também não podia perder aquela oportunidade. Por isso, acabou fazendo aquilo que a maioria das pessoas faz quando está em dúvida: adiar a decisão. Ainda faltavam cinco ou dez minutos.

— Vou acompanhá-la até sua casa — disse ele.

— Minha casa? — inquiriu a garota, pasma.

— Sim, isso mesmo — replicou Arkadi com firmeza e, ao mesmo tempo, com temor de que a garota não autorizasse nem a sua companhia.

— Até minha casa? — repetiu a garota. — Pensei que você ia me levar para o seu apartamento...

— Bem — disse Arkadi, todo trêmulo por antecipação. Mal podia conter-se. Estava a ponto de saltar em cima dela, ali mesmo, naquele momento...

— Ou será que vocês, russos, não fazem essas coisas?

— Que coisas?

— Foder, menino. Vocês, os russos, não fodem? Arkadi perdeu a fala. Já tinha ouvido muito a respeito da espécie de linguagem que os ingleses costumavam usar atualmente, mas aquilo tinha ido além de todas as suas expectativas. Dava-lhe vontade de violentar a garota ali mesmo, mas a palavra "foder" chocou o puritano que havia nele.

— Você desconhece a expressão? — perguntou a garota inocentemente. — A geração anterior à nossa costumava falar de ato sexual. É a mesmíssima coisa.

Após alguns momentos de hesitação, ela acrescentou:

— Mais ou menos.

Já em seu quarto, Arkadi sentiu um desejo fortíssimo de ajoelhar-se aos pés dela e beijar-lhe as mãos. Depois, decidiu que era melhor beijar a boca direto. Pensou também em despi-la, ou melhor, tirar-lhe as roupas... Todavia, perdeu a chance. A garota já estava sentada à beira da cama e começava a tirar as peças do corpo, uma por uma, da maneira mais prosaica possível, como se fossem casados há pelo menos quinze anos.

Tirando a blusa, disse: — Você vai gostar, pode ter certeza.

— Tenho certeza, sim — respondeu Arkadi, a voz profunda. — Você é muita bonita, lindíssima.

— Estou falando do spinoffee. Você vai gostar, pode crer.

— Ah, disso...

— E realmente muito bom, sabe? E pena que eu não tenha trazido algumas amostras comigo.

— É pena, mesmo.

— Habitualmente, eu trago. Sinto muito. — E aí tirou o sutiã. Arkadi achou que era um sutiã fascinante. Preto. Talvez, afinal, um sutiã preto não seja uma coisa tão sensacional, mas Arkadi nunca tinha visto nada igual. Na Rússia, os sutiãs eram brancos, às vezes cor-de-rosa, mas jamais pretos. Aliás, jamais lhe tinha passado pela cabeça que os sutiãs pudessem ser pretos. Não sabia ao certo por que razão estava tão impressionado com a negritude do sutiã, mas estava. E estava tão impressionado que, por alguns momentos, nem conseguia tirar os olhos dele. Acabou por tirar, mas foi para olhar o corpo dela, muito mais interessante. Seus seios eram maiores e mais cheios do que Arkadi tinha imaginado. Enfiou a cabeça em seu regaço e começou a beijar-lhe as pontas dos seios. Ela nem notou.

— Deixe-me ver... — Abriu a bolsa e fez mais uma pesquisa. — Não, não trouxe nada. Sinto muito, Igor.

— Posso esperar — disse Arkadi —, quer dizer, posso esperar pelo spinoffee. — Já estava empurrando-a para a cama, com um desejo louco, o desejo de um macho que há muito tempo estava a pão e água. Mas ela o conteve:

— Um momento.

Foi ainda procurar na bolsa.

— Não, nem uma amostra sequer.

— Não faz, realmente, diferença alguma.

— ...Não tenho amostras, mas tenho isto aqui... Entregou a Arkadi um folheto extremamente colorido sobre o spinoffee: "Spinoffee, o sonho de milhões de pessoas, agora uma realidade!" Havia a foto de uma xícara de café em porcelana de Sèvres, avaliada em cerca de duas mil libras esterlinas, uma fortuna em qualquer moeda.

— Você, certamente, vai achar esse folheto interessantíssimo — continuou a garota. — Tem tudo a respeito do nosso café. Tudo a respeito de Sir Bruce Braithwaite, nosso presidente. Tudo a respeito de espinafre. Leia.

— Agora não... — disse Arkadi, metade pedindo, metade gritando. Não podia esperar nem mais um momento. Empurrou-a com mais firmeza e com mais paixão do que nunca. Queria deitá-la na cama, chupar seus seios maravilhosos e, ao mesmo tempo, desapertar o cinto, abrir as calças.

— Espere, Igor, só um minuto... Preciso preparar-me, querido.

Conseguiu desembaraçar-se dele e levantou-se. Ainda estava de calças, mas nua da cintura para cima.

— Para que tanta sofreguidão? Tudo tem sua hora. Não foi para isso mesmo que viemos para cá? ... Onde é o banheiro? Ah, já sei...

Fechou a porta por dentro. Arkadi já estava despido e deitado na cama. Escutou a água correndo. Depois, o silêncio. Depois, o barulho de mais água correndo. Papel rasgado. Depois, o som de um lenço de papel puxado da caixa. E logo a seguir o raspar de uma lima. Com os diabos, o que é que ela estará fazendo? As unhas? Primeiro, a história do spinoffee e agora manicura? Ouviu a batida de um copo de vidro na louça e o barulho de um gargarejo. Depois, a retirada da tampa e a água escorrendo. Mas nada de Ivy. De repente, lembrou-se do bilhete de Chevtchenko criptografado. Claro! Era isso! Tudo claro como água. Tinham-no visto falar com a garota no jardim e sabiam quem ela era. O boato é um dos meios mais rápidos de comunicação. "A planta", no bilhete de Chevtchenko, não tinha nada a ver com horticultura. Era a planta da fábrica. "Que espécie de espinafre", claro, era aquilo que eles queriam saber por intermédio dele e da garota. E a garota querendo, desesperadamente, dar a ele todas as informações a respeito do spinoffee, querendo até que ele provasse o seu spinoffee!... Como é que pode? Mas ainda havia uma chance. Aliás, muitas chances. "Cumpra seu dever", concluía o bilhete. Ele tinha que cumprir. Ia cumprir. O seu dever...

Baixou os olhos, fez um exame em si mesmo. À palavra "dever", a evidente prova de seu tesão, que até o momento era simplesmente monumental, começou a mirrar. Mais alguns segundos e estaria, talvez, examinando uma xícara de spinoffee frio, abandonada a perspectiva de abraçar a primeira mulher desde que deixara Moscou.

— Aqui estou eu agora, meu querido russozinho.

E ela lá estava, de fato, graciosamente nua, esbelta, branca, apetecível, maravilhosa, suas cadeiras, suas coxas, longas, macias, acintosamente descobertas, enfim, reveladas e, ao mesmo tempo, por descobrir. Ela mesma tomou a iniciativa, jogou-se para cima da cama de Arkadi e abraçou-o passionalmente.

— Mas, afinal, o que é que há? E, logo a seguir:

— Essa não?!... Você parecia tão excitado... Queria quase me violentar...

Ficou aborrecida, desapontada, partiu para a gozação:

— Ou será que eu tinha razão? Vocês, russos, não fazem essas coisas?

Dali a alguns minutos, entre risadinhas:

— Bem que me avisaram que os russos eram duros e formais. Você, de fato, é um pouco formal, mas quanto a ser duro... Acho que não posso dizer que você é duro, hein?

Não adiantava, não adiantava insistir. Era completamente impossível.

Ele poderia fazê-lo por si mesmo. Mas não por dever patriótico, em nome da pátria.

 

                   Rosamund

Arkadi estava sentado na cama, pondo as meias, num estado de depressão total, incomensurável, tipicamente eslavo. Sabia que tinha falhado como espião, como assistente de oficial ilegal de apoio, como jardineiro e — pior do que tudo! — como homem. Àquela hora, ele não sabia, nem podia imaginar, que, de fato, tinha dado o primeiro passo a caminho da suprema glória, a de ser um dos mais famosos e mais bem-sucedidos espiões de toda a história da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

Já passava um pouco da meia-noite quando Ivy decidiu pôr a roupa de novo. A essa altura, já tinha se tornado definitivamente azeda, recusava-se a falar fosse o que fosse. Pegou o espelho pequeno que trazia na bolsa e deu um retoque rápido nos lábios.

— Será que poderei vê-la outra vez? — perguntou Arkadi, hesitante.

— Para quê? Haveria alguma razão para isso? — respondeu ela, bruscamente, saindo do quarto sem se despedir... Na realidade, até sem olhar para ele!

Não pôde dormir. Sua humilhação era tão profunda quanto surpreendente. Sua autoconfiança tinha, simplesmente, deixado de existir. Ninguém pode confiar em nada neste mundo — essa era a grande verdade, a grande lição que acabara de aprender. Porque, se havia alguma coisa em que pudesse confiar, era no seu próprio tesão. E o que acontecera? Acontecera que o seu velho amigo e companheiro de tantos prazeres tinha falhado. E falhado mais traiçoeiramente do que o kgb. Uma falha que, além de tudo, tinha reduzido suas perspectivas profissionais a menos de zero. Já nem sabia se podia contar com a sua própria vida.

Tinha colocado uma meia quando Ivan apareceu no limiar da porta.

— Como é que foi, ontem à noite? — perguntou ele com olhar cúmplice.

Arkadi procurou uma saída jocosa, quase com lágrimas nos olhos.

— Esplêndido. Foi a maior... — E, logo a seguir, acrescentou: — Obrigado, muitíssimo obrigado por você ter agüentado a barra.

— Ela era bonita?

— Linda!

— Mas você está com um aspecto miserável...

Como Arkadi não respondesse, Ivan encolheu os ombros: — Afinal, qualquer um pode apanhar pulgas até de um cachorro de raça...

Arkadi exaltou-se, pensou em estrangulá-lo. Mas isso apenas iria dar-lhe prazer por alguns minutos. No fundo, só aumentaria seus problemas.

— Não se deixe abater tanto assim, Boris, sejam quais forem suas razões... Lembre-se de que "sem derrotados não haveria vitoriosos".

Mais um provérbio e Arkadi cometeria assassinato. O provérbio veio, mas a contenção também.

— Alegre-se. Afinal, depois da tempestade sempre vem a bonança.

Ivan acrescentou, com prudência: — Estou estudando provérbios ingleses. Sei que você não gosta muito de provérbios. Acha que é apenas conversa fiada. Mas não é. Presunção e água benta, cada um toma a que quer. Conversa fiada, porém, não faz provérbio, não senhor...

E com essa tirada, finalmente, ele foi embora...

— "Depois da tempestade vem a bonança... " — repetia Arkadi consigo mesmo, fumegando. Diante dele, estendia-se a perspectiva de oito horas de contabilidade, sentado diante de Suiumabev, que certamente não diria uma única palavra durante o dia todo. Apenas Hugo — caso aparecesse — viria quebrar a monotonia geral. Todavia, Hugo não era, positivamente, aquilo que se poderia chamar de "bonança", fossem quais fossem os parâmetros. Como encontrar, perguntou a si mesmo, o menor traço de bonança nos acontecimentos da noite anterior? Então, de repente, aflorou-lhe um vago sorriso aos lábios. Claro, havia pelo menos uma consolação: não tinha provado spinoffee...

Apanhou o folheto que a garota lhe tinha dado. Olhou para a xícara de Sèvres, para o café fumegante, para o... spinoffee, o prazer de milhões, um sonho transformado em realidade... Um novo aroma... um novo milagre... Olhou para o rosto tolo e presunçoso de Sir Bruce Braithwaite e sentiu vontade de esmurrá-lo. Só assim encontraria algum alívio para a sua dor. E o que iria dizer ao Major Chevtchenko? Teria que confessar sua falha ignóbil? Como poderia explicar o fato de a garota não querer vê-lo mais? "A planta. Que espécie de espinafre? Cumpra seu dever. C."

Cuspiu no rosto de Sir Braithwaite e abriu o folheto...

Primeiro, não quis acreditar no que via. Estava salvo!

Alguns minutos mais tarde, estava sentado à mesa desenhando. Ivan já tinha saído e não era dia de Mabel. Portanto, estava sozinho, desenhando... E desenhando o quê? Os ingleses eram incríveis. O país era um paraíso para espiões. Imagine-se, o folheto continha uma planta completa da fábrica, mostrando todos os detalhes da construção. A única coisa que precisava fazer era copiar, o que, aliás, era essencial, caso contrário Chevtchenko poderia descobrir a origem da informação.

E havia mais. O folheto resolvia todo o problema do espinafre:

 

"Um dos muitos segredos do spinoffee está no aproveitamento das folhas do espinafre. Jamais aproveitamos as folhas largas, crespas, amassadas ou pontilhadas. Utilizamos exclusivamente a variedade supervitaminada Nova Zelândia. Nosso espinafre é criado em estufas, cuidadosamente tratado em redomas e plantado em definitivo, ao ar livre, em meados de maio".

 

Havia um asterisco. Uma nota de pé de página acrescentava:

 

"O espinafre da Nova Zelândia foi trazido para a Inglaterra por Sir Joseph Banks, que o encontrou no estreito Queen Charlotte, Nova Zelândia, em 1770. Apesar de trazido para Kew Gardens dois anos mais tarde, o espinafre tipo Nova Zelândia nunca se tornou popular neste país e é praticamente desconhecido no continente europeu".

 

Arkadi releu os dois textos dezenas de vezes até decorar todas as palavras. Terminou o desenho, dobrou-o cuidadosamente, colocou-o num envelope e meteu o envelope no bolso. Rasgou o folheto em pedacinhos, jogou-os na privada e puxou a descarga. Como dois pedacinhos coloridos ficaram flutuando, puxou novamente a descarga e testemunhou pessoalmente a passagem definitiva da prova para o eterno esquecimento.

 

— Você sabe muito bem, Camarada Gurbanov, que o camarada major não gosta de receber ninguém antes das sete horas da noite — disse a secretária, descuidada e inapetecível, no seu jeito sempre muito escrupuloso.

— Diga a ele, apenas, que estou aqui — ordenou Arkadi com arrogância. E a mulher, simplesmente, cumpriu a nova ordem.

Foi recebido imediatamente.

— Estou satisfeito por vê-lo, Gurbanov — disse o major, sentado à sua secretária, mas sem pedir a Arkadi que se sentasse. — Faço questão de enaltecer o valor e a importância especial de sua missão.

— Sim, senhor.

— Sei que não é fácil, não é nada fácil... Arkadi, de pé, à sua frente, estava afônico.

— Esse raio de spinoffee já me deu muita preocupação, muita dor de cabeça. Não vou esconder de você, mas a verdade é que Moscou está ficando impaciente comigo. Comigo... Como se a falha fosse minha e não desses agentes, estúpidos, ineficientes e destreinados que nos mandam.

Olhou penetrantemente para Arkadi, que lhe devolveu o olhar sem perturbação alguma.

— Evidentemente, eles gostariam de fabricar café a partir do espinafre. O café é caro; o espinafre, barato. Há anos eles vêm fazendo experiências sem entretanto conseguir obter o tipo certo de espinafre. E de quem é a culpa, Boris?

Arkadi achou desnecessário responder à pergunta, apenas retórica.

— Se o gru conseguir a fórmula primeiro, estamos roubados. Pior do que isso, estamos f...

Jogou-se para trás, encostando-se na cadeira.

— Foi uma coincidência milagrosa você ter encontrado essa garota, Gurbanov. Uma boa profecia. Não sou supersticioso. Desprezo a superstição. Mas acredito em profecias, assim como acredito no toque da madeira. São as únicas coisas razoáveis. Com bases científicas.

— Sim, senhor, camarada major.

— Portanto, foi bom saber que você ia encontrar a tal garota. Uma boa profecia, sem dúvida. Precisamos da planta da fábrica ou do segredo do espinafre deles. Seria demais esperar conseguir ambas as coisas.

Arkadi continuou mantendo a boca fechada.

— Portanto, pelo amor de Deus, de Nossa Senhora, do Diabo, não estrague tudo, Gurbanov. Sei que você tem pouca experiência. A culpa talvez não seja sua. Mas — para o seu próprio bem — não ponha tudo a perder. Será que me fiz entender bem? Agora pode ir, Gurbanov.

Dito isso, voltou aos seus papéis. Arkadi pegou o envelope, tirou-o do bolso. Chevtchenko ergueu a cabeça, surpreso.

— O que é isso? — perguntou com enfado.

— A planta da fábrica.

— O quê?

— A planta da fábrica de spinoffee, camarada major.

Chevtchenko abriu o envelope. Olhou. Olhou novamente. Depois, cedeu:

— Sente-se, Gurbanov.

Arkadi permaneceu de pé e falou, com uma voz comovente, a voz de um oficial fiel e digno da maior confiança, que nada faz a não ser cumprir seu dever: — O espinafre que devemos usar é a variedade Nova Zelândia. Nossos cientistas têm feito experiências com o tipo de folha larga. Ou com o espinafre crespo, amassado ou pontilhado. Devemos usar o tipo Nova Zelândia. E não é tudo...

— Como? Ainda tem mais? — perguntou o major com reverência na voz. — Sente-se, Boris Gregórovitch. Odeio ver você aí em pé.

Arkadi sentou-se.

— Não, não é tudo. O espinafre Nova Zelândia tem que ser criado em estufas. Na realidade, debaixo de redomas. E replantado ao ar livre em meados de maio.

— Em meados de maio... — repetiu Chevtchenko com devoção religiosa.

— Em meados de maio, camarada major. — E acrescentou em voz bem grave: — Em solo ácido.

— Espinafre Nova Zelândia? — perguntou Chevtchenko. Sua voz começou a endurecer, refletindo alguma suspeita.

— Sim, camarada major. Espinafre Nova Zelândia. Uma variedade descoberta por Sir Joseph Banks nas colinas de Queen Charlotte (ele sabia que não eram colinas, mas não se lembrava mais do que se tratava) em 1770.

— Espere um minuto... — interrompeu Chevtchenko. Tinha sido treinado para anotar todo e qualquer nome que escutasse. Procurou uma caneta.

— Qual é o nome?

— Sir Joseph Banks.

— Cavaleiro ou barão?

Arkadi não sabia qual era a diferença. Mas, segundo parecia, só podia ser uma coisa ou outra. Portanto, respondeu sem a menor hesitação:

— Barão.

Chevtchenko escreveu. Arkadi continuou:

— O espinafre Nova Zelândia foi trazido para Kew Gardens em 1772.

— Em que ano? — perguntou Chevtchenko, apanhando novamente a caneta.

— Em 1772, camarada major. Nunca se tornou popular na Inglaterra e permaneceu completamente desconhecido na União Soviética. Daí as dificuldades de nossos cientistas.

— Sempre pensei que nossos cientistas tinham feito tudo. Tudo o que era humanamente possível.

Menos apanhar um dos exemplares dos milhões de folhetos sobre o spinoffee, pensou Arkadi.

— Como é que você soube tudo isso, Gurbanov? — perguntou Chevtchenko com um estremecimento de suspeita.

— Com Ivy, a garota que encontrei.

— E está tudo escrito?

— Não, senhor. Eu não podia tomar notas sem levantar suspeitas por parte dela.

— Então você precisa pôr tudo por escrito, Gurbanov. Tem que ficar tudo por escrito, sem demora.

Começou a andar de um lado para outro.

— Bom trabalho, Boris Gregórovitch.

— Obrigado, camarada major.

— Espinafre Nova Zelândia. Quem havia de dizer? ... Vai ser um baque tremendo para o gru, sem dúvida. E uma vitória para nós, sem mácula.

Continuava andando de um lado para outro:

— Não foi apenas um bom trabalho, Boris, foi um trabalho rápido.

Arkadi sorriu com toda a modéstia que podia.

— Você deve ter dado àquela garota um tratamento especialíssimo, meu rapaz.

Arkadi sorriu com modéstia ainda maior.

— Isso merece uma comemoração, meu filho.

Uma garrafa de vodca e Chevtchenko já estava erguendo o copo:

— Saúde, Boris Gregórovitch Gurbanov, à sua excelsa saúde!

Copos esvaziados, copos cheios. Foi a vez de Arkadi fazer um brinde:

— À sua saúde, camarada major, e aos seus sucessos! Depois, beberam à saúde da União Soviética, do kgb, do Camarada Leonid Brejnev, do Camarada Alexei Nikoláievitch Kossíguin, do presidente, Camarada Nikolai Viktorovitch Podgórni. A seguir, do chefão, Iu. V. Andropov, a Serguei Alexándrovitch Orlovski, diretor de Seleção e Treinamento, mentor de Gurbanov. Finalmente, a tudo e a todos que a bebida ia permitindo lembrar. Às três e meia da tarde, caíram de porre total, prostrados no chão, dormindo um sono solto e profundo.

Já tinha passado das dez da noite quando Arkadi ouviu uma voz muito agradável e ressonante: — Gurbanov!

Abriu os olhos. Era Chevtchenko, olhando para ele lá de cima, o rosto descontraído, a roupa em perfeita ordem, totalmente recomposto e alegre.

Arkadi deu um salto e ficou na expectativa:

— Gurbanov, estive pensando em você...

— Pois não, camarada major!

— Tendo em vista seu sucesso pessoal e seu espírito de iniciativa, ambos demonstrados com a maior eloqüência na sua última missão, decidi confiar a você a realização de um trabalho ainda mais importante... Você vai se encontrar com Rosamund.

— Pois não, camarada major.

— Amanhã, precisamente ao meio-dia, você irá para a Trafalgar Square, ficará na entrada principal da National Gallery, do lado leste. E terá isto debaixo do braço esquerdo (entregou a Arkadi a última edição de uma revista, a Birds and Country Magazine). Rosamund aparecerá carregando duas laranjas em uma das mãos. Não uma laranja, nem três: duas. Não na mão esquerda, na mão direita. Você dirigir-se-á a Rosamund dizendo: "Que lindas laranjas". Rosamund responderá: "Sim, foi uma felicidade tê-las conseguido". Aí você dirá: "São laranjas israelenses, suponho eu". Rosamund: "Claro que não. Libanesas". Logo que essa conversa estiver terminada sem contratempos, você deverá seguir as instruções e ficar inteiramente à disposição de Rosamund. Entendeu? Fui claro?

— Claro como o cristal, camarada major.

— Evidentemente, se acaso qualquer das respostas de Rosamund diferir, nem que seja por pouco, daquilo que eu lhe disse, você apenas tem que seguir seu caminho e mais nada. Se Rosamund se atrasar, nem que seja meio minuto, você não ficará esperando de jeito nenhum. Siga em frente e não volte mais. Ou melhor, volte, volte aqui, a mim, e apresente seu relatório. Alguma pergunta?

— O senhor poderia me dar uma descrição de Rosamund?

— Evidentemente que não.

— E que devo fazer em relação ao Capitão Suiumabev?

— Esqueça-o.

Nenhuma ordem oficial seria obedecida com tanto prazer e com tanto zelo.

 

Da Trafalgar Square, a famosa praça de Londres, qualquer pessoa pode ver o mostrador do não menos famoso Big Ben. Assim, seria fácil chegar na hora. Havia, no entanto, outros detalhes que preocupavam Arkadi. De repente, olhando do alto das escadas da National Gallery, todos os passantes pareciam espiões. Nunca tinha reparado, mas a grande maioria da população de Londres era formada por espiões. Masculinos e femininos. Sentiu-se terrivelmente conspícuo sobraçando a revista Birds and Country Magazine e tinha a forte impressão de que todo mundo — espiões e alguns poucos não-espiões — estava olhando fixa e suspeitosamente para ele. Ainda por cima, uma em cada duas pessoas parecia ter alguma relação com laranjas. Algumas estavam comendo laranjas, outras carregando laranjas em sacolas, outras trazendo laranjas na mão direita. Não duas, três. E na direita, não na esquerda. Seria possível que aquela velha gorda com três laranjas na mão direita fosse Rosamund? E se ele tivesse recebido as instruções erradas? Deveria passar a senha para ela? Para tornar as coisas ainda piores, todo mundo — todas as pessoas que passavam de baixo para cima e de cima para baixo — o olhava como se estivesse disposto a abordá-lo.

Ele porém não vacilou e, de fato, tudo correu com a precisão de um relógio. O título da cena toda poderia ter sido "Laranja mecânica". Precisamente ao meio-dia, no momento em que o Big Ben deu a primeira badalada, Rosamund apareceu em cena, carregando duas laranjas da maneira prescrita. Não havia nada de surpreendente na pontualidade de Rosamund. Não havia nada de surpreendente no fato de a conversa ter seguido — palavra por palavra — as indicações de Chevtchenko. Surpresa mesmo foi o fato de Rosamund ser um homem, carregando uma pequena escada no ombro. E havia uma surpresa ainda maior: Rosamund era Boris Iuruzov, o melhor amigo de Arkadi.

 

                   Entra Oriana

Arkadi desembarcou na estação do metrô em Putney Bridge e virou à esquerda, conforme as instruções. A rua tinha o nome de Ranelagh Gardens, também de acordo com a indicação recebida, e dali ele podia ver as portas do Hurlingham Club. Caminhava devagar, um pouco intimidado pela idéia de entrar num clube inglês de verdade pela primeira vez na vida. Seus sentimentos eram ambivalentes, o que fazia com que odiasse a si mesmo. Era cidadão de um orgulhoso país proletário. Portanto, por que a idéia de se encontrar com algumas relíquias da velha aristocracia inglesa lhe dava tanto pavor? Não, recusar-se-ia a ficar impressionado com os lordes e damas, com as filhas dos viscondes e os embaixadores aposentados, o tipo de gente que, segundo lhe tinham dito, freqüentava aquele clube. Mas não podia evitar: estava realmente impressionado, aterrorizado, diante da idéia de ter que enfrentar a sobrancelha esnobemente erguida de alguns deles. E de fazer alguma coisa errada, ouvindo cochichos e risos pelas costas. Tinha ouvido dizer que o príncipe de Gales jogava — ou costumava jogar — pólo em Hurlingham. Antes, nem sequer sabia que o príncipe de Gales sabia jogar pólo. Sabia, isso sim, que o pai dele jogava, mas ele era o duque de Glasgow — ou de Aberdeen? —, enfim, o duque de alguma cidade escocesa. (Só mais tarde descobriu que ninguém, nem aristocrata, nem plebeu, podia ter jogado pólo em Hurlingham nas três últimas décadas, pela simples razão de que o clube já não possuía cancha de pólo. O príncipe de Gales em questão devia ter sido o Rei Eduardo VII, filho da Rainha Vitória, uma figura de um passado já bem longínquo.) Apesar da imprecisão, a idéia de o príncipe de Gales jogar pólo já era suficientemente apavorante. Arkadi fitava todas as pessoas que entravam pelos portões à sua frente como se cada um fosse íntimo da família real. O que deveria fazer, pensava Arkadi, se visse a própria rainha jogando tênis em qualquer quadra? Ou críquete? Bem, se visse a rainha jogando críquete iria simplesmente ignorá-la. Não com rudeza, é evidente. Ela tinha direito à sua privacidade e desejaria, com certeza, continuar a bater na bola sem ser perturbada. Entretanto, o que aconteceria se os ingleses tivessem alguma maneira especial de saudar sua rainha? Curvar-se diante dela, fazer um aceno e dizer: "Deus salve a rainha"?... Quantas preocupações! ...

Parou na porta, ocasião em que recebeu um olhar inquiridor do porteiro. O homem devia ser um barão falido, com certeza, pensou Arkadi. Caso contrário não teria aquela altivez tão peculiar aos altos escalões da aristocracia britânica. Arkadi mencionou o nome do cavalheiro — membro da missão comercial e do clube, também — de quem ele era convidado. O porteiro procurou entre os convites, encontrou o papel certo e levantou a barreira ornamentada com o sinal de "pare" a fim de deixá-lo entrar. Foi cortês, mas Arkadi pressentiu uma certa condescendência em suas maneiras, uma condescendência reservada, seguramente, a) a pessoas estranhas ao clube e b) a pessoas chegando a pé, em vez de acomodadas em enormes Rolls-Royces, apanágio da maioria dos membros do clube, com certeza.

Seguiu em frente, chegou a um lago artificial e atravessou uma ponte de madeira. O lugar era maravilhoso, sem dúvida. Vários sócios estavam jogando tênis em quadras de grama. Tinha lido a respeito dessa grama e imaginava que fosse muito mais alta, como nas pradarias do oeste selvagem americano, ou nos pampas da Argentina. Chegou a duvidar da possibilidade de a bolsa saltar em tal grama ou de os jogadores correrem de um lado para outro.

Não viu a rainha jogando críquete, mas após passar por algumas árvores chegou à quadra número 5, onde parou para ver dois lordes, aliás, praticando um tênis de boa qualidade. Um deles falhou num smash e soltou um palavrão que até parecia russo. Se tivesse sido russo não poderia ser ouvido nem numa caserna, quanto mais na atmosfera rarefeita daquele lugar. (Só muito mais tarde ele soube que aquele lorde, especificamente, era um veterinário polonês e o outro, seu adversário, gerente da seção de camisaria de uma grande loja.)

Não estava gostando de sua missão. Boris tinha sido pouco comunicativo, prevenindo-o de que poderiam ser observados, de modo que era melhor seguir exatamente as instruções. Acrescentou, porém, que quando voltassem a se encontrar procurariam um jeito seguro de bater um papo. Arkadi lhe perguntara para que servia todo aquele negócio de balde e escada quando podiam ter se encontrado confortavelmente nos escritórios da missão comercial.

— Sou gerente de uma firma de limpeza — respondeu Boris, apontando para a escadinha que estava carregando. Limpeza de janelas, meditou Arkadi, não devia ser muito mais divertido ou excitante do que contabilidade. Pensou também que, se a intenção de um homem é passar despercebido entre a multidão, certamente não vai andar carregando uma escada pelas ruas.

Boris lhe disse para ir ao Hurlingham Club encontrar um carro diferente com a placa HX 4643, descobrir o dono e voltar.

— Não posso dizer mais nada por agora — acrescentou. — Sabemos bastante sobre o dono, aliás, uma mulher. Não estou autorizado, mas posso informar que a dona desse carro fez um comentário... Bem, se tudo der certo, esse caso vai ser de enorme importância. Talvez mude toda a estrutura da economia soviética. Talvez mude até a vida de nosso povo.

— Está brincando...

Boris mostrou um certo embaraço e mudou de assunto.

— Sabe jogar tênis?

— Você sabe muitíssimo bem que não jogo tênis.

— Recebi instruções para lhe fazer essa pergunta... Eles ignoram que eu o conheço. De qualquer maneira, é uma chatice você não saber jogar tênis.

— Jogo xadrez — replicou Arkadi, com ar de quem pede desculpas.

— Você não pode jogar xadrez contra alguém jogando tênis. A mulher em questão, no momento, tem a mania do tênis. Suas manias, assim como as suas paixões, mudam com uma freqüência surpreendente. A onda atual é o tênis. Chega a jogar seis horas por dia. Você tem que dar uma boa olhada nela. E é tudo por enquanto. Mais tarde, eventualmente, você irá para a cama com ela. Mas receberá suas instruções no devido tempo.

Arkadi lembrou-se de Ivy e teve um arrepio. Instruções? Sabia como fazê-lo, mas... E se não pudesse fazê-lo?

Boris lhe deu um número de telefone, que teve de decorar, para o qual devia ligar logo que encontrasse o carro e a dona.

Em seguida, sem dizer mais uma palavra, sem mesmo se despedir, deu meia-volta e desapareceu, a escada balançando no ombro.

Toda a conversa não tinha demorado mais do que cinco minutos.

 

Quando Arkadi telefonou, Boris atendeu, dando o seu número.

— Gurbanov.

— Seis horas, esta noite, à entrada do Parque de Hurlingham. Repito: Parque!

E desligou com ímpeto.

Arkadi procurou num guia e viu que o Parque Hurlingham era público e ficava junto ao clube. Chegou ao lugar combinado exatamente na hora, como acontece com todos os agentes russos, e viu Boris, que avançava em sua direção, vindo do lado oposto. Encontraram-se e entraram no parque, passando por várias quadras de tênis (nada de quadras com grama, é claro) sem trocar uma palavra.

— Lembra-se de nosso último encontro em Moscou? — perguntou Arkadi finalmente.

— Andando em volta de um parque como este. Foi no Parque Górki. Sim, sim, é claro.

— Podemos falar agora? — perguntou Arkadi.

— Sim, podemos.

— Então me diga, por favor, que raio de função é essa de ser gerente de uma firma de limpeza de janelas e andar por aí carregando uma escada nos ombros?

— Não estou carregando a escada — respondeu Boris. Mas ante o olhar aborrecido de Arkadi, sorriu e emendou:

— Falarei depois sobre isso. Primeiro, dê-me o relatório sobre a garota.

Arkadi contou-lhe que não tinha tido qualquer dificuldade em encontrar o HX 4643. Na verdade, difícil teria sido não reparar nele. Mais do que diferente, era um carro notável.

— Pensava que conhecia um pouco de automóveis, mas esse...

Boris interrompeu-o: — Qual a marca? O ano?

— É um Hispano Suiza 1926.

Boris balançou a cabeça. Estava certo.

— O carro é uma autêntica peça de museu — continuou Arkadi. — Mas, ao mesmo tempo, uma belezinha, com o seu motor enorme escondido por baixo de um capo

inacreditavelmente comprido. Verde e cor de chocolate. O carro é aberto, mas os dois lugares de trás têm uma espécie de barraca de praia, das antigas, como cobertura. A cobertura dos dois lugares da frente é o céu. O estepe fica pendurado do lado de fora, coberto com um pano. Não há porta-malas, mas sim um cofre fixado na traseira. Na frente, um emblema, uma cegonha voando, e, por baixo, as palavras: "Hispano Suiza H 6 B".

— Sim, é isso mesmo.

— Parei para ver o carro mesmo antes de olhar para a placa. Um homem de meia-idade, um daqueles tais lordes, aproximou-se e disse: — É o carro de Oriana!

— Oriana? É o nome dela?

— Sim. Mas ele estava muito mais interessado no carro do que em Oriana. Deu-me uma lição, gozando, naturalmente, o prazer de cada palavra dita. Disse algo a respeito de um tal engenheiro suíço, Marc Birkigt, que, por complicações várias, abandonou a Suíça e foi construir uma fábrica em Barcelona a fim de produzir os seus Hispano Suizas. Hispano Suiza — que nome gostoso! Melhor do que Marc Birkigt. Depois, o lorde começou a ficar muito técnico. Discorreu sobre cilindros, cabeças em T e em V, quatro tempos, dois tempos, radiadores, o diabo!

— Isso não é um carro, é uma ostentação — concordou Boris.

— Não tanto, depois de ver Oriana. O lorde me indicou quem era. Estava jogando uma partida de duplas com três homens. Tinha uma fita dourada na cabeça. Os babados das calcinhas eram também dourados. Calçava tênis, meio verdes, meio amarelos. Jogava com raquete de aço azul e bolas vermelhas.

— Bolas vermelhas?

— Bolas vermelhas. E guinchava de raiva ou de deleite cada vez que batia na bola. Tem um cachorro chamado Fritz, que também ladra para as bolas, corre e tenta apanhá-las. Deve ser uma experiência inesquecível jogar contra ela.

Boris continuava escutando intensamente.

— Mais tarde, quando vi como Oriana se vestia fora da quadra, cheguei à conclusão de que seu traje de tenista, comparativamente, era até modesto, a simplicidade em pessoa. Agora, usava um enorme chapéu vermelho (acho que era um sombrero), uma blusa prateada e uma minissaia também vermelha. Aliás, uma minissaia tão mini quanto seu chapéu era máxi. E o cachorro, Fritz, também estava usando um sombrero vermelho.

Parou por alguns momentos. E depois perguntou em tom implorativo:

— Será que vou ter que fazer amor com essa mulher?

— Receio que sim...

Já que Boris não tinha mais perguntas, Arkadi inquiriu:

— Agora, conte-me a respeito desse negócio de limpeza de janelas.

Boris olhou em volta, cuidadosamente, antes de dar qualquer resposta.

— Vou contar. Não devia, mas vou. Mas, aconteça o que acontecer, seja quem for que pergunte, você não sabe de nada, está bem?

— Claro. Dou-lhe minha palavra.

— Somos uma antiga e respeitável firma britânica, a Betteridge & Spalding, estabelecida em 1823. A questão é saber que os limpadores de janelas sempre podem fazer duas coisas: limpar as janelas, função que às vezes até pode não ser bem feita, e colocar aparelhos de escuta em cortinas, empoleirados nas escadas. Na maioria dos casos, nosso trabalho limita-se à primeira parte. Em alguns, fazemos o serviço completo. Sou o gerente, mas às vezes, se as coisas se complicam, tenho que ajudar pessoalmente.

— Parece uma idéia brilhante.

— É uma idéia nojenta. Quase infrutífera. Uma vez ou outra obtemos alguns resultados, escutando as discussões em reuniões de conselho, mas na maioria das ocasiões, quando estão em pauta os verdadeiros segredos, o presidente convida um ou dois caras para o seu gabinete ou, então, começam todos a falar ao mesmo tempo e em voz baixa. Às vezes, dois caras começam a conversa junto aos aparelhos, mas quando chegam ao xis da questão, afastam-se — aparentemente sem razão alguma — para um lugar ainda não controlado. Ademais, o sistema já está um tanto superado. Já existem firmas especializadas em detectar microfones escondidos e muitos dos nossos aparelhos foram removidos. Enfim, a limpeza de janelas ainda pode dar alguns esparsos resultados. De qualquer maneira, meu serviço é esse.

— Uma antiga firma britânica, não é? — insistiu Arkadi.

— Atualmente, sob direção soviética. Mas ninguém sabe...

— E o seu sotaque? Com certeza você não pode esconder o fato de que não nasceu em Bath ou Ipswich, certo?

— Eles sabem que sou russo. Mas sou apenas o gerente. De acordo com a minha história, vivi muito tempo em Praga, e quando a Tchecoslováquia foi invadida me revoltei contra o imperialismo soviético. Sou um grande amigo dos tchecos, herói combatente da livre expressão do pensamento, da não-interferência, da liberdade de ir e vir, coisas assim. Meu coração está do lado ocidental, mas quase não discuto política. Sempre que se fala da invasão da Tchecoslováquia, exalto-me com a mais nobre das indignações, mas evito tocar no assunto.

Como o parque era um pouco acanhado, fizeram a volta várias vezes. Havia uma pista estreita. Havia também um homem solitário, em agasalho de ginástica vermelho, percorrendo a mesma pista em ritmo lento e digno. Era, obviamente, um corredor. Mas não estava só. Como, aliás, a maioria dos corredores. Um garoto, aparentando onze anos, em uniforme escolar, corria a seu lado. Ambos pareciam muito sérios e compenetrados. O garoto não ligava para o corredor. E o corredor não ligava para o garoto. Havia, além disso, um espectador solitário, encostado a uma árvore, mas também esse não lhes prestava atenção. Olhava o espaço, meditando, talvez, sobre os problemas da eternidade ou — quem sabe? — sobre a solidão dos espectadores de corredores de longa distância.

— Não lhe parece um pouco infantil, Boris? — perguntou Arkadi. — Não falo do garoto correndo ao lado desse cara. Mas da nossa própria fantasia.

— A maioria das coisas que os adultos fazem parecem sempre bastante infantis. Ao contrário, as atividades das crianças são quase sempre muito sérias. Nós, o que é que fazemos na maioria dos casos? Tentamos descobrir segredos. E quando os descobrimos, o que é que acontece? O fruto do nosso labor não é reconhecido como a informação certa. Não acreditam nela. E não agem de acordo com ela. Você não pode negar que esse garoto, correndo, está ocupado numa atividade muito mais séria do que aquelas que são exercidas pela maioria dos adultos.

— Está bem, Boris — disse Arkadi com um sorriso amarelo. — Afinal, é essa a maneira que você, como meu chefe, achou que devia usar para me encher de devoção pelos deveres que se apresentam diante de mim.

— Não, de maneira alguma. Esse negócio de agora é uma exceção. É um caso realmente muito importante.

— A tal garota das bolas vermelhas?

— Sim, a garota das bolas vermelhas. Seu nome é Oriana Perring. Aliás, seu verdadeiro nome era Janet, mas não parecia suficientemente romântico, de maneira que foi rebatizada Oriana, por iniciativa própria. É a sobrinha de Wilfred Perring, o grande empresário do setor de alimentos.

— O homem responsável por toda aquela propaganda excelente?

— O homem responsável por toda aquela propaganda excelente e por toda aquela porcaria de comida...

— Deve ser multimilionário.

— Uma vez esteve muito próximo da falência. Foi salvo por um tipo de comida que ele não fabricava.

— Não entendo.

— É uma história muito simples, e não muito rara no mundo podre do capitalismo. Perring fabrica uma pílula que torna supérfluos todos os outros tipos de comida. Chama-se Unalim. Antes, ele fabricava pílulas para os exploradores do Ártico, muito eficientes, mas não eram segredo. Os exploradores podiam viver com essas pílulas, mas não por muito tempo. As pílulas contêm uma boa quantidade de nutrientes, mas poucas proteínas e calorias. Agora porém inventaram um troço que é realmente magnífico. Tem de tudo: proteínas, calorias, sais minerais, tudo. Além disso, é barato. Basta tomar três dessas pílulas por dia. É o suficiente para manter a saúde e a força. Só se precisa juntar um pouco de pão e um copo de leite. Se não houver leite, água também serve.

— Parece utopia, certo?

— Há cem anos mais ou menos também o telefone parecia utopia. Assim como a televisão, há meio século. E pisar na Lua, há uma dúzia de anos. Utopia ou não, os produtores de alimentos levaram essa pílula muito a sério e entraram em pânico. Muitos deles estariam liquidados em pouco tempo. As populações ficariam numa situação muito melhor. Mas quem é que se importa com elas? Por isso, os tais produtores juntaram seus recursos e passaram a dar meio milhão de libras — alguns dizem um milhão — por ano para que Perring não fabricasse a pílula.

— É aí então que nós entramos, não?

— Precisamente. A União Soviética, desde a sua fundação, tem registrado ao longo dos anos recalcitrantes crises de alimentos. Se conseguíssemos passar a mão nessa pílula, não haveria mais lavradores com fome, não haveria mais fome no nosso país.

— Chega a ser difícil de acreditar — interrompeu Arkadi, calmo.

— Isso não seria apenas um grande serviço prestado ao governo soviético, mas também um grande trabalho a favor do povo soviético. Nossa gente ainda hoje sofre de nutrição insuficiente. No futuro, todos comeriam bem. Com essa desgraçada fórmula nas mãos, poderíamos mudar os destinos da União Soviética. Poderíamos duplicar nossa fortuna em um ano. Aumentar nosso poder. E, acima de tudo, livrar nossa gente de um bocado de sofrimento.

— Você, seu cínico, parece bastante entusiasmado.

— E estou. Pela primeira vez estamos fazendo um trabalho que realmente vale a pena. Quantas pessoas no mundo poderão dizer uma coisa dessas? Umas cem? Talvez duzentas? Quem sabe?

Um casal jovem, o homem empurrando um carrinho de bebê, passou por eles, discutindo alto. Nem os notaram.

— Queríamos ser espiões "famosos". Parecia um sonho infantil, mas não tanto. Estávamos tentando fugir da ameaça de uma vida rotineira e triste, mas nunca poderíamos pensar que, levando uma vida mais triste e mais rotineira do que a de um balconista de sapataria, poderíamos fazer algo realmente de utilidade para o povo soviético. Além disso...

Parou de repente, hesitante.

— Além disso? — insistiu Arkadi.

— Além disso, o grU está também atrás do segredo. Se o conseguirem antes de nós... não haverá muita glória sobrando para nós, pode ter certeza. Não podemos falhar — para não falar dos benefícios que conquistaremos para o nosso amado povo.

— Não vai ser fácil — concluiu Arkadi.

— Não, não vai. É muito mais fácil roubar a fórmula no processo de fabricação. Mas a tal pílula não está sendo fabricada. Sua fórmula está fechada a sete chaves em algum lugar. Sua existência só é conhecida de poucas pessoas.

— E essa garota das bolas vermelhas, do sombrero e do Hispano Suiza é uma delas?

— Duvido. Chegou recentemente da Austrália. Seu pai, o irmão mais novo de Perring, aparentemente foi um zero à esquerda e, segundo a tradição inglesa, mandado para a Austrália. Para as colônias, entende? Recebeu um cargo muito bem pago, mas completamente inócuo numa das empresas de Perring em Sydney. Mas ele logo se aborreceu com o trabalho, virou hippy e desapareceu com uma jovem de vinte e um anos, fugindo para a Califórnia. Por isso, Oriana voltou, trazida pelo tio.

— Mas se ela nem sabe...

— Alguma coisa ela sabe. Já deixou escapar um comentário ... Deve ter sido repreendida ou recebido um aviso, porque desde esse comentário tornou-se muito mais discreta. Vive, porém, em casa do tio e tem acesso livre ao "santuário" dele. E é um bocado louca...

— Como assim?

— O suficiente para nossos fins. Excêntrica, irresponsável. Alguns dizem que ela é fascista. Outros, que é maoísta. Talvez ambas as coisas. Ou nenhuma delas. Não tem o que fazer nem sabe o que fazer da vida...

— Portanto, cabe a nós o privilégio de lhe dar uma finalidade e uma missão, certo? — inquiriu Arkadi. — Só me resta aprender a jogar tênis, tornar-me íntimo dela, levá-la para a cama e conseguir o segredo que ela nem sequer ainda possui?

— É... mais ou menos isso. Mas não se preocupe, receberá instruções detalhadas.

Ao se separarem, Boris estendeu-lhe um envelope, acrescentando: — E isso é para as suas despesas. Você vai achar sua missão muito cara.

Só ao chegar a casa Arkadi pôde contar o dinheiro. Eram quinhentas libras em notas de cinco. De repente compreendeu que estava nas nuvens, tinha levantado vôo, já não pertencia ao Departamento de Contabilidade. Dias antes, sua missão teria sido levar aquela soma para Jean ou para Joan, para Xerazade ou Cleópatra. Alguém teria que fazer esse trabalho para ele. Detestara o serviço, mas agora, considerando os riscos da nova missão, a posição de seu sucessor provocou-lhe uma explosão de inveja.


                   O Buckerell Moon

Arkadi estava observando Oriana no snack bar do Hurlingham Club. Oriana já tinha colocado um montão de comida na bandeja, além de saladas, musses de chocolate e três copos de cerveja bem forte. Mal sabia ela o que estava para acontecer. Quando chegou sua vez de pagar, ao aproximar-se do caixa para pousar a bandeja, Arkadi, que não tinha tirado os olhos dela, aproximou-se, virou-se de costas e, dando três passos para trás, bateu na bandeja de Oriana, fazendo-a ir pelos ares. O ruído de copos quebrados foi tremendo, a cerveja derramada produziu um pequeno riacho e o chocolate da musse, esparramado pelo chão, ganhou um aspecto nada agradável.

Arkadi logo concluiu que o acidente tinha sido representado de maneira um pouco desajeitada. Aliás, não era de admirar. Além de ser um principiante total em matéria de derrubar bandejas das mãos de mulheres, estava muito nervoso. Felizmente, porém, encontrava-se entre pessoas decentes e normais, gente cujos pensamentos estavam tão longe de espiões quanto de leis termodinâmicas ou de escrita cuneiforme. Por isso, nada ocorreu a nenhum dos circundantes, a não ser que se tratava de um acidente genuíno e profundamente infeliz.

— Peço mil perdões...

Oriana, de pé, tinha os olhos faiscantes de raiva.

— Seu louco desgraçado...

— Por favor, deixe que eu a ajude.

— De jeito nenhum. Não quero sua ajuda para nada. Um empregado, jovem ruivo e de cabelos compridos, aproximou-se com um pano e um balde com água para limpar a sujeira. Percebia-se que não estava satisfeito, mas encontrava-se numa posição em que nada podia acrescentar aos comentários de Oriana, limitando-se, por isso, a escutá-la aprovativamente. As pessoas na fila esperavam pacientemente em seus lugares, como geralmente fazem os ingleses, seja qual for a situação.

A senhora da caixa olhava ansiosamente na direção de Oriana. A carga toda da bandeja continuava por pagar.

— Por favor, deixe ao menos que eu pague a conta. Por favor...

Pelo olhar, a caixa concordou imediatamente! Sim, ele devia pagar. Oriana disse: — Não é uma questão de pagar ou não pagar. É uma questão de saber como é que pode haver um idiota tão desajeitado como você?

— Foi um erro terrível, uma estupidez de minha parte. Sou um desastrado. Por isso mesmo deixe que pague tudo isso e ainda um outro almoço, está bem? — E então, com o sorriso mais atraente que conseguiu arranjar, acrescentou: — Não diga que nunca provocou um desastre sem querer!

— Sabe que você é um cara simpático? — reagiu Oriana de repente e de maneira surpreendente. O sorriso tinha dado resultado.

— Mas você disse que eu era um louco desgraçado...

— Enfim, há muitos tipos de loucura, não é? Minutos depois, Arkadi estava sentado à mesa com

Oriana e dois de seus companheiros de tênis, saboreando a refeição recém-comprada. Os dois jovens mostravam-se mal-humorados e inamistosos, não escondendo seu aborrecimento perante a intrusão de Arkadi.

— De onde você é? — perguntou Oriana.

— Da União Soviética.

— Um desses refugiados reacionários?

— De jeito nenhum. Estou trabalhando para o governo soviético.

— Então é um reacionário ainda maior! Embaixada?

— Missão comercial.

— Qual é o seu nome?

— Gurbanov.

— Diga-me, Gurbanov — perguntou ela, agressivamente —, quando é que o governo soviético vai pôr a casa em ordem, mantendo uma política coerente em relação à China?

— Não sei. Nunca fui consultado.

— Nunca?

— Nunca. Meu trabalho é vender roupas íntimas para mulheres. Nada a ver com nossa política em relação à China.

Sua resposta obteve um sucesso sem precedentes. Oriana havia esperado o habitual silêncio mal-humorado, seguido de uma palestra longa e envolvente, didática, papagueando os enormes parágrafos do Pravda.

— De qualquer forma — disse ela, ao mesmo tempo que olhava para ele acintosamente —, nunca vi um funcionário russo mais alinhado com a política do governo do que você.

— De que maneira?

— Vocês estão andando para trás, privando o povo de sua comida.

— Parece que você não gosta muito do meu governo.

— Não muito.

— Acho que não está sendo justa. Está mal informada e repetindo, meramente, os slogans hostis da imprensa capitalista. De quem gosta, afinal? Dos americanos, talvez?

— Detesto-os.

— Os chineses?

— São piores.

— Castro?

— Nada mau. Mas ainda não bastante bom.

— Puxa, você é uma mulher complicada...

— Uma vez, há muito tempo, fui maoísta ao quadrado.

— O que significa isso?

— O maoísta ao quadrado acha que até mesmo o Presidente Mao foi reacionário, antiquado e irrecuperável. Você não vai compreender. É comunista ortodoxo, não é?

— Não. Sou maoísta ao cubo.

— E o que é isso?

— Um maoísta que considera reacionários, antiquados e irrecuperáveis até os maoístas ao quadrado.

Oriana soltou uma gargalhada.

— Afinal, não me respondeu: de quem você gosta? — insistiu Arkadi.

— Do povo simples.

Arkadi balançou a cabeça: — Também sou povo.

— Representa o governo.

— Posso representar o governo, mas pertenço ao povo. À espécie humana. Mas, diga-me, o que é que há de tão atraente no povo? Às vezes, acho até que o povo é bem repulsivo.

Oriana riu de novo.

— Você é bem divertido para um russo. Qual é o seu nome mesmo?

— Gurbanov. Boris Gurbanov.

— Posso tratá-lo por...

— ...Boris. É claro.

— Para isso nem faria a pergunta. Não. Quero tratá-lo por Gurbanov, posso? É muito mais excêntrico do que Boris...

Oriana foi jogar tênis e, depois do jogo, miraculosamente, quase se chocou com Arkadi de novo.

— Oh, Gurbanov, ainda aqui? — perguntou, agradavelmente surpresa.

— Estive observando você.

— Loucura. Devia estar observando Miss Goolagong. Ou Billie Jean.

— Prefiro observar você.

— Parece que você entende tanto de tênis quanto de política.

— Bem — replicou Arkadi —, como só os maoístas ao quadrado são suficientemente importantes para...

— Não, não — protestou Oriana —, não estava falando sério. Mas acredito, firmemente, no fundo... Afinal, em que é que acredito firmemente?... Gostaria de saber. Mas acredito, acredito mesmo, numa quantidade de coisas, firmemente. Acredito na juventude e na revolução.

— Como é que você pode acreditar na juventude? O que é que há para acreditar na juventude? Em determinado momento da vida, somos jovens. Depois, a juventude passa e os jovens tornam-se velhos.

— Talvez — admitiu Oriana, pensativa —, mas, veja, a mesma coisa acontece com as revoluções. As revoluções jovens, muitas vezes, transformam-se em velhas revoluções. Acontece até de, muitas vezes, jovens revolucionários transformarem-se em velhos reacionários.

— Em outras palavras, portanto, não acredita nem na juventude, nem na revolução, não é?

— Acredito, sim — disse ela, séria. — Preciso acreditar.

Estavam agora andando à volta do lago artificial.

— O que há de tão maravilhoso na juventude? — perguntou Arkadi. — Evidentemente, é bom ser jovem, mas isso é outra questão. Sou jovem e prefiro continuar jovem. É melhor do que ser velho e decrépito. Embora não tenha pensado muito no problema. De qualquer maneira, o choque entre gerações é o mais antigo do mundo. Todas as gerações jovens se rebelaram contra todas as velhas gerações, e isso significa, claro, que os revolucionários transformaram-se em vítimas de revoluções. E assim por diante, eternamente...

— Não venha com esse papo, Gurbanov — replicou Oriana com azedume. — Já ouvi essa história muitas vezes. Não diga que esta geração não é basicamente diferente de todas as outras. Música pop não é Beethoven. Fomos nós que abrimos as janelas e deixamos entrar o ar fresco. Fomos nós que libertamos o sexo. Fomos nós que libertamos as mulheres. Fomos nós que libertamos o corpo humano. Fomos nós que jogamos o nacionalismo, velho e demente, pela janela. E estamos para jogar o racismo pelo mesmo caminho.

— Um minuto, um minuto — interrompeu Arkadi, cortando seu fluxo de retórica. — Se você continua, não conseguirei me lembrar de todos os pontos e você vai pensar que estou de acordo com alguns. Mesmo nos velhos tempos, nem todos os músicos eram Beethovens. Os Beethovens, você sabe, são bastante raros. E os compositores pop — chame a eles como quiser — ocorrem com muito mais freqüência. Nem o sexo foi inventado por nós. Até os velhos reacionários da Rússia, os czares, os senhores feudais pré-leninistas, conheciam o sexo. Algumas autoridades dizem que até os romanos o praticavam. Sim, afinal, quem somos nós? Sabe, não estou certo de que o nacionalismo tenha sido jogado na lixeira. Mas, se o foi, não foram os jovens, nem os nossos, nem os do Ocidente, os autores da proeza.

— Gurbanov! — resmungou Oriana, tentando fazê-lo parar.

— Agora você vai me escutar. Seja lá o que for que vocês tenham jogado na lixeira, a verdade é que sustentaram o capitalismo, a exploração, a sociedade das especulações bolsistas, dos tubarões, dos latifundiários, dos cambistas especuladores, dos gnomos de Zurique. Vocês não se importam nem um pouco com tudo isso. Não se importam nem com o nacionalismo nem com o racismo. Vocês querem é fumar maconha e cheirar pó. A juventude soviética é diferente. Não fumamos maconha. Não cheiramos pó. Somos muito menos pretensiosos. E nos importamos muito mais com o que se passa à nossa volta.

— Concordo com você quanto à exploração e ao capitalismo — disse Oriana, que agora, finalmente, tivera uma oportunidade para falar. — É por isso que sou uma revolucionária. É por isso que quero destruir a autoridade constituída. Quero que os pobres fiquem ricos. E os ricos fiquem pobres.

— Qual seria a vantagem de fazer os ricos pobres e os pobres ricos? Continuaria havendo ricos e pobres!

— Talvez. Mas adoraria ver meu tio pedindo esmola na rua — disse Oriana com surpreendente franqueza.

— Agora, você está parecendo mais convincente — concordou Arkadi. — Ricos e pobres trocando de posições me parece bastante mais justo do que o confronto entre jovens e velhos. Os jovens ficam velhos, mas os velhos não podem transformar-se novamente em jovens. Bem, não sei... Todos os velhos já foram jovens uma vez na vida, mas nem todos os jovens podem dizer que chegarão à velhice...

— Pare com isso! — gritou Oriana. — Conheço o problema muitíssimo bem. É, aliás, o problema que mais me preocupa. Estou com vinte e sete anos. Minha juventude acabou, foi-se...

— Quer dizer, está indo...

— Não. Foi-se. Todos dizem que não se pode confiar em alguém com mais de dezenove anos.

— Então minha juventude também se foi — disse Arkadi. — Mas é possível, Oriana, você só se revoltar contra a passagem do tempo e contra seu tio?

— Claro que é possível. A única diferença entre os revolucionários é que alguns se revoltam contra os tios e outros, contra os pais. Acho que daria meu voto a qualquer partido que humilhasse meu tio. E a qualquer partido que me fizesse novamente jovem. Não há nada de mal nisso. Todos os revolucionários se tornaram revolucionários por razões pessoais. Lênin, Castro, Robespierre, Espártaco — o bando todo. Minha juventude já passou, mas procuro agir como se fosse jovem. Obedeço às regras dos jovens. Obedeço e me revolto.

Parecia animada e, ao mesmo tempo, triste. De repente, Arkadi sentiu que sua missão poderia ser bem agradável. Gostava dela. Era muito atraente. Agora, que estava excitada, chegava a ser quase bela. Seria bom conhecê-la melhor... Fazer amor com ela. Mas ela ainda era uma estrela distante. Reconhecia que estava querendo chegar à Lua e a discussão só servia para tornar as coisas ainda piores. Tinha sido avisado de que não devia discutir com ela, mas agora o mal já estava feito.

— Estou perfeitamente consciente — disse Oriana — de que estou ficando velha. Gostaria de permanecer jovem, e essa é a razão por que...

Arkadi interrompeu-a: — É por isso que você joga tênis tanto assim?

— Não. Tênis é uma coisa espiritual.

— Espiritual?

— Isso mesmo. Para mim é uma paixão. Uma espécie de revelação. No momento, não estou em grande forma, mas me esforço. E vou ser uma boa tenista. Tenho que ser. Estou procurando por mim mesma. Preciso encontrar meu verdadeiro eu.

— No tênis? Nas bolas vermelhas?

— Não seja sarcástico. Não tente ser sarcástico comigo, Gurbanov!... Sim, no tênis. A cor das bolas não importa. Toda espécie de treino, de talento, de comércio ou de ciência serve para encontrar a verdade. Estude sânscrito ou administração comercial, estude direito ou devote seu tempo consertando cafeteiras elétricas, e verá que está aprendendo a ter disciplina e adotando uma maneira de pensar que o ajudará em todas as situações na vida. Verá que tudo contribui para formar o seu ser e o seu caráter. O tênis, entretanto, é o melhor meio. Exige aptidão física, resistência, e também agilidade mental. Um tenista é obrigado a saber usar bem toda a largura e o comprimento da quadra, a estudar o adversário para entender bem seus pontos fortes e suas fraquezas. É obrigado a conhecê-lo, assim como a suas próprias potencialidades e limitações. Tênis é diálogo. Tênis é uma série de paradoxos e aforismos. Tênis é o caminho imediato para a verdade e para o autoconhecimento. Tênis é vida!...

— Sempre pensei que tênis fosse um jogo...

— Essa é uma noção antiquada e ridícula. Digna do comunismo soviético, que está irrecuperavelmente superado. Eu deixarei que o tênis dê forma à minha vida. O tênis levar-me-á ao encontro de mim mesma.

— Sempre escutei dizer isso a respeito da ioga. Não do tênis.

— Pois estava na hora. Não sei se você continua disposto a se encontrar comigo outra vez. Mas, se está, precisa começar a jogar tênis. Eu quero conhecê-lo. Será que você é um sujeito formidável? Sensível? Astuto ou generoso? Gosta de usar a força ou a cabeça? Na verdade, não me importo em saber quais são realmente suas idéias políticas. Nem quero saber qual é sua religião, se é que tem alguma. O que quero é ver se você é destro, ambidestro ou canhoto. E se é destro, quero saber como é que bate com a esquerda. Se prefere o smash ou a bola curta.

— Você fala de tênis — interrompeu Arkadi, desanimado perante a idéia de ter de aprender a jogá-lo — como Vladímir Ilitch Uliánov, mais conhecido por Lênin, falava de bolchevismo...

— Ou São Paulo, de cristianismo. Mas minha causa é melhor do que a deles.

Arkadi olhou para os seios dela, que oscilavam ao ritmo arfante de seu entusiasmo. E desejou-a loucamente.

— Sim, gostaria de me encontrar novamente com você. Por sua causa vou aprender a jogar tênis, abraço o cristianismo, faço qualquer coisa.

— Tudo, menos seguir o verdadeiro comunismo, tenho certeza. Mas não posso acusá-lo pelas ações de seu governo. Não é consultado, segundo você mesmo disse.

Arkadi recusou-se a voltar à política.

— Quer jantar comigo um dia? Mesmo antes de eu aprender a sacar?

— Um dia? — perguntou Oriana. — Não gosto desse tipo de combinação. "Um dia", geralmente, nunca acontece. E se vai esperar até ganhar pontos, diretamente com o saque, então nosso jantar ficará para as calendas...

— Quer jantar comigo hoje à noite? — perguntou Arkadi, intempestivo, mas esperançoso.

— Por que não? Espere aqui.

Foi trocar de roupa e vinte minutos depois reapareceu, vestindo um cafetã branco, com corrente de ouro à volta da cintura. Vinha também de sombrero púrpura. Fritz, ao lado, também usava um sombrero púrpura.

— Conhece o Buckerell Moon? — perguntou Oriana.

— Não.

— Nunca esteve no Buckerell Moon? — insistiu ela, extremamente surpreendida.

— Estou em Londres há pouco tempo — respondeu ele, desculpando-se.

— O Buckerell Moon não é em Londres. Vou levá-lo até lá. Vamos jantar no Buckerell Moon.

— Vamos.

Entraram no Hispano Suiza, saíram do clube e logo chegaram à rodovia M4. O carro era barulhento, mas corria suavemente e, claro, em alta velocidade. O pára-brisa era antiquado, pequeno, de modo que Arkadi sentia frio e, conseqüentemente, inveja de Fritz, que estava confortavelmente instalado no assento traseiro, resguardado pelo toldo. Andaram um bom bocado, depois entraram na rodovia A30. Oriana conduzia o carro temerariamente, mas com talento. Era' uma dominadora compulsiva de tudo o que se movesse. Vez por outra, gritava para os outros motoristas. No carro era impossível conversar, graças ao ruído ensurdecedor da enorme máquina. A certa altura, porém, quando as obras na estrada obrigaram o carro a reduzir a velocidade ao passo de uma vaca, Arkadi pôde perguntar: — Esse lugar... Como é mesmo o nome?

— Buckerell Moon.

— Ainda está longe?

— Não. Está bem perto.

— Onde fica?

— Perto de Tedburn St. Mary.

— E onde é isso?

— Devon.

— Onde é que fica Devon?

A estrada, porém, voltara a ficar desimpedida. O carro ganhou velocidade. O ruído da máquina abafou a resposta de Oriana.

Três horas e meia mais tarde, Oriana abandonou a estrada principal, andou mais alguns quilômetros por outra, de terra batida, cheia de curvas, e parou a algumas centenas de metros da porta do hotel.

— Peça um quarto em nome de Henry Higgins e senhora, está bem?

— Henry Higgins?

— Sim. Sempre uso esse nome. Você se importa? Não era o nome que causava surpresa a Arkadi. Nunca tinha ouvido falar dele. Não o relacionava com o célebre professor de My fair lady. Ou melhor, Pigmalião, de Bernard Shaw. Não, o que surpreendia Arkadi era a distância: tinham rodado mais de trezentos quilômetros. Mais ainda, estava surpreso com a facilidade da. conquista. Ou melhor, da entrega. Já antecipava o deleitoso momento, embora sentisse ao mesmo tempo uma ponta de dúvida e apreensão. Não podia esquecer o caso de Ivy.

— Traga minha bagagem. Está no porta-malas, lá atrás — foram as instruções de Oriana.

— Bagagem? — Uma surpresa atrás da outra...

— Sempre trago uma valise com roupa no carro. Gosto de estar prevenida...

Foram conduzidos a um quarto no primeiro andar. Não tinha número, mas nome: "Heloise". Mal o empregado que trouxera a mala de Oriana desapareceu, Arkadi quis lhe dar um beijo. Oriana, porém, se esquivou.

— Não seja impaciente, Gurbanov.

— Você é bela, muito... desejável — articulou Arkadi, sério.

— Diga, diga novamente — riu ela. — Você fala como se fosse realmente um russo saído de um romance do século passado. Por favor, repita: desejável.

Para Arkadi, a brincadeira tinha cessado de ser uma brincadeira e o trabalho, cessado de ser um trabalho. Quase explodia de desejo. Esqueceu o kgb, esqueceu até Ivy. Queria possuir aquela mulher, ali e agora. Abraçou-a e puxou-a para si. Sentiu seus seios pequenos, suas coxas compridas, seu púbis, quase a trespassou. Ela também o sentiu. E riu novamente. — Qual é a graça? — indagou Arkadi, sentindo-se ligeiramente irritado.

Tentou beijá-la, afagar-lhe os seios. Mas novamente Oriana riu, desviou os lábios, deixou que ele a beijasse na face e se esquivou, mais uma vez, com facilidade.

— Tem que esperar.

— Esperar, por quê? Não posso. Quero possuir você. Agora. Estou louco por você.

— É tão bonito quando alguém está louco por mim. Quero que você permaneça louco por mim. Enquanto isso, há muita água fria no banheiro.

Abriu a porta do banheiro para ele com uma cortesia trocista.

O relógio marcava cerca de oito horas. Antes do jantar, deram um passeio. Primeiro, no aprazível jardim, depois, já no campo, num lugar de onde podiam ter uma vista estupenda das colinas de Devon, de contornos delicados e agradáveis, assim como da cidadezinha distante, de aparência romântica.

— Fale-me de sua mãe — pediu Oriana.

— Minha mãe?

— Sim, sua mãe. E de seu pai também. E ainda de sua infância. De Moscou. Quero saber tudo a seu respeito.

— Mas não há nada para contar. Tive uma infância absolutamente desinteressante. Aliás, minha vida toda é uma folha de descolorida pacatez.

— O que é rotina e pacatez em seu país pode ser novidade e interessante aqui.

Continuaram conversando. Arkadi contou mais uma vez sua "história", falando mecanicamente, sem vida. Sentia-se pouco à vontade nesse processo e teria preferido contar a ela toda a verdade a seu respeito, mas regras são regras. Por seu lado, Oriana contou mais ou menos o que ele já sabia. O pai dela — que parecia ser o ponto principal da narrativa — era uma nulidade, totalmente irresponsável, tinha abandonado a filha, dado a ela uma decepção tremenda, mas ela o adorava. Seu tio Wilfred era um homem sério, responsável, de bom coração e solícito, mas ela o detestava.

— E o que é que você faz? — perguntou Arkadi. — Já arranjou emprego? Ou está gozando a vida de capitalista ociosa?

— No momento, sim. Mas não vai durar muito. Tio Wilfred vai me dar um trabalho importantíssimo. Embora apenas temporário.

— Fazendo o quê?

— É sigiloso. Haverá uma expedição ao monte Everest. Subindo pelo lado sul. Ou talvez pelo norte. Não sei. De qualquer maneira, pelo lado mais difícil. O lado mais fácil não é suficientemente bom para eles.

— Seu tio vai subir o monte Everest? — perguntou Arkadi, perplexo.

— Claro que não. Mas para a expedição talvez a gente tenha que fabricar uma coisa... a título excepcional... — hesitou, conteve-se. — Bem, você não deve contar isso a ninguém. De qualquer jeito, não vai mesmo interessar-lhe. Ainda que você fosse um espião russo não teria interesse. Não envolve diplomacia. Nem segredos nucleares. Nem mesmo se trata de roupas íntimas para mulheres. Enfim, há um trabalho especialíssimo a fazer nessa expedição e sou eu quem está encarregada da operação.

— Tudo isso parece muito misterioso — disse Arkadi tentando demonstrar aborrecimento e indiferença.

— E é.

— E quando... enfim, quando é que você vai começar o trabalho? — perguntou ele, como se seu único interesse fosse saber quanto tempo Oriana estaria livre.

— Não sei. Em breve, se tudo der certo. Mas não se preocupe. Sempre terei tempo livre para você. Não sou o tipo de pessoa que se mata de trabalho. — E logo acrescentou, pensativa: — Não é verdade. Não vou ter muito tempo livre. Tenho que mudar, e isso é uma coisa que odeio.

— Mudar? Para onde?

— Comprei um apartamento novo. Muito aprazível. Preciso escapar à influência de meu tio a qualquer preço. Por outro lado, odeio — simplesmente detesto e acho insuportável — viver sozinha. Tenho uma verdadeira fobia, mas vou tentar.

— O que dirá seu tio quando você o deixar? — perguntou Arkadi. — Ou ele não se importa?

— Foi absolutamente contra até há pouco. Agora, porém, é totalmente a favor. Ele possui uma fórmula secreta, extremamente secreta... Enfim, não interessa o que é. Interessa, sim, é saber que ele virou maníaco com medo de perdê-la ou de que a roubem. Quer que eu a guarde em meu apartamento. Acha que é o lugar mais seguro. Qualquer pessoa iria procurá-la em sua casa, em seus vários escritórios, em seu cofre de segurança, em qualquer lugar, menos no meu apartamento. Por isso, posso ter meu apartamento quando quiser. Mas estou indecisa. Quero sair da casa dele, mas não estou muito disposta a viver sozinha, junto com uma fórmula secreta.

— Por que não arranjar uma amiga? — articulou Arkadi provocantemente. — Ou, melhor ainda, um amigo?

— Não — foi a resposta curta e incisiva dela, refletindo um certo aborrecimento.

A comida era boa e o vinho, melhor ainda. Arkadi contemplava a mulher com excitação e gozo antecipados. Sugeriu três vezes que já era tempo de subir para Heloise. Finalmente, subiram. E assim que a porta se fechou atrás deles, Arkadi se jogou em cima de Oriana.

— Que barbaridade é essa? Não seja assim tão bárbaro! — repeliu-o com inesperada secura.

— Só um beijinho.

Ainda quis virar a cabeça, mas já era tarde. Arkadi beijou-a apaixonadamente na boca. Ela tolerou, mas não correspondeu. Seu corpo se endureceu. A experiência parecia lhe desagradar.

Logo que conseguiu se libertar, Oriana começou a preparar a cama. Seus movimentos demonstravam grande deliberação.

— Quero ser a primeira a ir ao banheiro — disse, e desapareceu.

Arkadi tirou a roupa e ficou de cuecas. Eram vermelhas, de um vermelho brilhante. Tinham sido compradas no velho e decadente mundo ocidental.

Finalmente, Oriana ressurgiu... ainda completamente vestida, usando seu cafetã branco.

— É todo seu — disse ela, indicando a porta aberta do banheiro.

Arkadi entrou para lavar as mãos. Oriana tinha lhe deixado uma escova de dentes, ainda nova, envolta no habitual plástico. Era muito atenciosa e eficiente e estava muito bem equipada para essas ocasiões. Ela abriu a porta do banheiro.

— Ajude-me aqui — disse ela, arfando.

Estava puxando um colchão para dentro do banheiro.

— Socorro! Está pesado demais.

— Para que isso? — perguntou Arkadi, surpreso.

— Ajude-me e não faça perguntas. Arkadi ajudou.

— Afinal, quem vai dormir neste banheiro? — perguntou, desorientado.

— Você mesmo — disse ela, fechando a porta.

Antes que pudesse reagir, Arkadi escutou a chave dando a volta na fechadura. Ela devia ter posto a chave do lado de fora sem que ele tivesse notado. Estava preso.

Pensou imediatamente na possibilidade de ela chamar a polícia e entregá-lo como espião russo. Devia ter caído numa armadilha. Achava que a enganara provocando — por ordens superiores — a queda da bandeja no Hurlingham Club, mas tinha sido ele, afinal, a vítima da trapaça. Enfim... Talvez, pensou ele, cheio de esperança, a situação não fosse tão desesperadora. Talvez fosse apenas loucura dela. Claro, ela era louca. Ou talvez, ele pensou, mais esperançoso ainda, ela estivesse brincando.

— Deixe-me sair — disse ele, de maneira muito pouco convincente. Não sabia aonde ela queria chegar, mas estava certo de que ela não o deixaria sair.

— Amanhã de manhã, querido — respondeu ela, carinhosamente, quase amorosamente.

Arkadi não era mais um espião russo. Era apenas um macho frustrado, com uma desejável e enlouquecedora mulher a alguns passos de distância e, ao mesmo tempo, completamente fora do seu alcance.

— Pare com essa brincadeira de mau gosto, Oriana — gritou ele, com voz rouca.

— De mau gosto, pode ser. Mas não é brincadeira. Você vai ter que dormir no banheiro.

— Por quê?

— Boa noite, querido.

Percebeu que ela se despia. Ouviu o ruído da corrente que ela usava como cinto. Tentou forçar a porta. Bateu. Encostou o ombro, empurrou. Bateu com violência.

— Não faça isso, Gurbanov, meu amor. Vai causar um escândalo. Além disso, vai lhe custar um dinheirão. Vá dormir, vá, doçura...

— Escute aqui, Oriana...

— Será que não foi bondade minha meter esse maldito colchão no banheiro? Não é melhor do que dormir na banheira? Muito bem. Então, boa noite.

Arkadi estava desesperado.

— Deixe-me sair, sua puta. Não pode fazer isso comigo.

— Que bobagem dizer uma coisa dessas. Claro que posso. E faço. Aliás, estou fazendo...

Arkadi atirou-se à porta com renovada fúria.

— Vai fazer um escândalo, Gurbanov querido.

— Isso mesmo, quero provocar um escândalo, sua puta maldita...

— Está totalmente enganado, meu anjo. Puta é a mulher que dá, não aquela que recusa...

— Então, é pior que puta... Muito pior...

A seguir, depois de fustigar a porta com mais algumas batidas violentíssimas, inquiriu:

— Afinal, qual é sua intenção?

A pergunta lhe deu um arrepio. Sim, afinal, qual seria a intenção dela? Com certeza, devia saber alguma coisa a seu respeito. Seria melhor manter uma atitude menos exigente e menos segura. Era preciso enfrentar a situação: estava preso. Era o fim de uma carreira não muito gloriosa. Percebeu que ela se deitava na cama. Isso quase o enlouqueceu. Viu-a toda nua, nuazinha. Infelizmente, apenas com os olhos da imaginação. Sentiu vontade de violentá-la mesmo através do buraco da fechadura...

Parou de bater na porta e passou a examinar o banheiro. Abriu a janela e descobriu que havia uma tubulação que conduzia diretamente para o jardim. Desceu como um mestre. Era fácil.

Alguns espinhos arranharam sua perna, que começou a sangrar ligeiramente. A grama estava molhada. Pensou "Como é que eu vou explicar isto, se for apanhado? Membro da missão comercial soviética hospedado no Buckerell Moon sob o nome de Henry Higgins encontrado flanando no jardim, usando apenas cuecas vermelhas (revolucionárias?) depois da meia-noite?"

Voltou a subir para o banheiro e, por volta das quatro da madrugada, conseguiu adormecer.

 

                   Unalim

— Chega de vodca. Nem mais uma dose. Nem mais uma gota.

— De fato, você já está suficientemente bêbado.

Ludmila sabia que Orlovski estava bêbado mesmo antes de ele ter entrado no apartamento. Atrapalhou-se todo com a chave e demorou quase um minuto para abrir a porta. Primeiro, ela sentiu raiva, depois essa raiva cedeu lugar a uma terrível angústia. Seriochka tinha um fraco por vodca, sim, mas se chegava para almoçar já bêbado, então, o caso era sério. Devia estar mais preocupado do que habitualmente, o que não era pouco: a vida de um alto funcionário russo, mesmo nos chamados tempos normais, é mais perigosa do que a de um caçador profissional de ursos ou a de um domador de leões. Ou, ainda, mais perigosa do que a de um prisioneiro num campo da Sibéria, que Ludmila conhecia pessoalmente por uma dolorosa, mas felizmente breve, experiência.

— Vou pedir demissão. Vou pedir minha aposentadoria. Vou cavar buracos. Emigrar para a Califórnia...

Ludmila não disse nada. Estava pensando no borch ucraniano e relembrando que tinha colocado nele uma quantidade insuficiente de cenouras. Tinha preparado, também, um kievski (mais ou menos o prato que é oferecido aos clientes nos restaurantes ocidentais com o nome de "galinha à la Kiev") — uma delícia rara. Tudo perdido. No seu estado atual, Seriochka não iria sentir a falta das cenouras, a excelência do kievski, nem o forte odor de alho que predominava por toda a casa. Poderia ter poupado um bocado de dinheiro, evitando, ao menos, o platsek, a famosa sobremesa. Todos aqueles ovos para nada!

— Eles estão torpedeando o caso Unalim — declarou com amargura, ao mesmo tempo em que enchia mais um copo de vodca, dose tripla! — Não, não quero mais, nem uma dose! — E emborcou o copo todo de uma vez só.

— Quem são "eles"? E o que é Unalim?

— Unalim, Ludmila, é o nome de uma pílula. Vem do latim. Por isso, você não poderia mesmo conhecer.

— Nem você, também, caso não lhe tivessem explicado tudo, certo?

Seriochka ignorou a piada e continuou com a maior dignidade.

— "Un" é a abreviatura de "unitas", significando "unidade" ou "unificado". E "alim" é a abreviatura de "alimentum", que significa "nutrição". "Unalim" quer dizer "nutrição unificada". O melhor alimento do mundo.

— Daria preferência à Unalim em 'vez de kievski ou platsek? — inquiriu ela, irritada, pensando em toda a despesa e no trabalho que tivera.

— Daria, sim, Ludmila, daria. Se eu tivesse a pílula inglesa aqui, ou sua fórmula, não me importaria de comer Unalim ao café, ao almoço e ao jantar, durante três semanas. Digamos, uma semana. Não contando os domingos, claro.

Ludmila decidiu não o aborrecer mais. Tentou demonstrar algum interesse pelo assunto: — Uma pílula inglesa? Unalim é feita pelos ingleses?

— É, sim, Ludmila. Você não tem o direito de duvidar da minha palavra. A palavra honesta de um bravo e esforçado trabalhador, Ludmila. Se estou dizendo a você que é inglesa, então é inglesa, certo? Por que você não acredita em mim? Acha que sou um desaforado mentiroso?

Ludmila tinha suas próprias idéias a respeito do assunto, mas como ele estava quase chorando, resolveu guardar essas idéias para outra ocasião.

— Até você está contra mim, Ludmila? Até você, minha única e verdadeira esposa?

Ao mesmo tempo em que falava, estendeu a mão em direção à garrafa de vodca, mas Ludmila foi mais rápida e impediu que ele a alcançasse.

— Já foram inventadas muitas pílulas universais, anteriormente — continuou ele, passando do tom choroso para o didático. — O problema era da proteína. Você também não sabe o que é proteína, Ludmila, mas pode acreditar em mim: o problema era mesmo da proteína. Agora, porém, os ingleses solucionaram o dito problema, mas esse maldito Perring está tentando manter a fórmula em segredo. São as moléculas grandes que causam as dificuldades, Ludmila. Ou... será que são as pequenas moléculas? Não. São as grandes. As moléculas protéicas. Tenho quase certeza de que são as grandes, não as pequenas. Os ingleses, ouvi dizer, retiram suas proteínas do petróleo. Enfim, a verdade é que eles resolveram o problema, Ludmila, e todos os nossos problemas — todos os nossos problemas de nutrição — ficariam também resolvidos, se esses malditos bastardos, estúpidos, cretinos... Parou.

— Por que a surpresa, Seriochka? — perguntou Ludmila, com carinho, sentindo que deveria representar o papel de esposa simpática. — Não há razão para você se sentir surpreendido. Você mesmo previu, claramente, que esses amadores destreinados que mandou para Londres iriam dar com os burros n'água.

— Não deram. Não estou falando dos amadores destreinados. Lolita até que está fazendo um ótimo trabalho.

— Lolita? Quem é Lolita? Qual é seu nome verdadeiro?

— Boris Gregórovitch Gurbanov.

— Eu pedi o nome verdadeiro, Serguei Alexándrovitch.

— Arkadi Dmítrievitch Nikítin. Mas que importa isso? Lolita para você. Lolita para mim. A verdade é que ele é o garanhão do departamento. Leva para a cama qualquer garota num piscar de olhos.

— Gostaria de estar no lugar dele, Serguei Alexándrovitch?

— Pode apostar, Ludmila Afanesievna. Se gostaria... Ludmila trouxe o borch ucraniano.

— Lolita conseguiu uma informação importantíssima a respeito da Unalim. De uma das suas garotas, com certeza.

Provou o borch, mas seus pensamentos estavam longe. Não escutou.

— Essa maldita Unalim. Tornou-se a maior preocupação do kgb. Enfim, compreendo: Unalim, como eu disse a você, resolveria todos os nossos problemas de nutrição. Makarov sonha com a Unalim. Tenho certeza de que perderia pelo menos trinta quilos se se alimentasse apenas de Unalim.

— Não fuja do assunto, Seriochka. Se esse rapaz, Lolita, é assim tão bom em levar para a cama todas as garotas e já conseguiu extrair delas algumas informações importantes ...

— Atenção — Seriochka interrompeu-a, em parte respondendo à pergunta dela e em parte pensando consigo mesmo —, atenção, estou ainda muito longe de ter certeza de que a informação é correta. Parece ainda papo furado. A garota disse a ele que a receita — a fórmula que nós perseguimos — seria contrabandeada da fábrica e depositada num cofre dentro do novo apartamento dela. Isso seria uma maravilha para nós, mas não tem sentido. Por que razão eles fariam isso? Eu simplesmente não posso acreditar.

— Quem está mentindo, então? Lolita? Ou a garota?

— Todo mundo está sempre mentindo, Ludmila. É dessa maneira que o serviço opera. Essas mentiras são os próprios fundamentos da nossa existência. O problema é que... que...

Seu rosto ficou terrivelmente contorcido. Ludmila pensou que ele ia rebentar num tremendo berreiro. Há muitos anos não o via tão deprimido.

— Qual é o problema, Seriochka? — perguntou ela afetuosamente.

— O problema é o seguinte: o gru conseguiu apanhar nossa informação. Ou, possivelmente, conseguiu a informação ao mesmo tempo que nós. É difícil dizer o que é pior...

O caso era sério. E Ludmila sabia. Seriochka tinha toda a razão de estar deprimido. Falhar numa operação já era ruim. Aliás, as falhas, de vez em quando, aconteciam, eram inevitáveis. Mas falhar onde o gru obtinha sucesso era o fim, um desastre astronômico. Poderia significar a queda de Makarov. Talvez, até a do próprio Iu. V. Andropov, o Grande. Mas,'certamente, sem a menor sombra de dúvida, significaria a liquidação total e completa de Serguei Alexándrovitch Orlovski.

— Não — disse Ludmila, abruptamente. — Você sabe exatamente o que aconteceu?

— Se eu sei?... Examinamos cada detalhe centenas de vezes.

— Conte-me.

Orlovski contou-lhe. O homem, Lolita, tinha dormido com a tal garota, Oriana Perring, num lugar chamado Buckerell Moon, no condado de Devon. Foi então que ele soube que a fórmula seria empregada, a título muito excepcional, para fabricar um limitado número de pílulas, que seriam usadas em determinada expedição. Soube também que a dita fórmula seria removida para o novo apartamento da garota, a tal Oriana Perring, onde seria, provavelmente, colocada num cofre.

— O tio da garota, capitalista multimilionário, fabricante de alimentos, tem uma obsessão pela fórmula e decidiu que ela não estaria segura na fábrica. Ninguém jamais imaginaria encontrá-la no apartamento da sobrinha. Ludmila assentiu. Até ali tudo bem.

— Nosso homem, Lolita, chegou ao seu próprio apartamento às onze e trinta da manhã do dia seguinte, depois de dormir com a garota no Buckerell Moon. Mora junto com um outro homem, Ivan Stepánovitch Anatolski, um membro da missão comercial que — inexplicavelmente — acabou se metendo, realmente, num negócio qualquer. Negócio comercial mesmo. Não tem nada a ver com o nosso negócio. Ainda não. Entretanto, como já se esperava que Lolita trouxesse alguma informação de valor, ansiosamente aguardada, seu contato — trabalhando diretamente sob as ordens do diretor residente —, um tal Rosamund, também estava no apartamento, limpando as janelas.

Orlovski parou um segundo. Mas Ludmila não achou nada de extraordinário no fato de um homem chamado Rosamund estar limpando as janelas. Por isso, ele continuou:

— Anatolski estava para sair, deixando os dois — Lolita e Rosamund — sozinhos, quando algo de muito inesperado ocorreu. Mabel fez uma cena terrível, porque...

— Espere um pouco. Quem é Mabel?

— Mabel é a faxineira cockney.

— Cockney?

— Cockney é uma tribo inglesa. Parecida com o quirguiz ou o usbeque. Mabel, como disse, faz a limpeza do apartamento e é muito ciosa a respeito de seu trabalho e de sua posição. Deu um grito, furiosa, dizendo que, se já não servia para limpar janelas, então era melhor não limpar nada e deixar todo mundo na mão. Acrescentou que trazer um estranho para limpar as janelas sem ao menos dizer a ela que os vidros não estavam bem limpos era uma desgraça, e que nunca havia se sentido tão ofendida em sua vida. Aí, colocou o chapéu na cabeça e preparou-se para sair. Tinha que ser impedida.

— Por quê?

— Você pergunta por que razão ela tinha que ser impedida de sair? Acontece que os homens foram instruídos no sentido de evitar escândalos a qualquer preço. E aquela maldita mulher era capaz de ficar andando por todo o bairro de Highgate, em Londres, contando histórias horríveis a respeito desses russos, seres bárbaros, desumanos e incivilizados. Além disso, sabe-se que é extremamente difícil arranjar uma faxineira em Londres. E Anatolski não estava muito disposto a perdê-la. Por isso, disseram logo a ela que no futuro a limpeza das janelas continuaria a ser exclusivamente seu trabalho. Rosamund parou de limpar os vidros e Mabel assumiu o posto, começando a limpar as janelas com grande zelo, em parte para demonstrar que sabia fazer a limpeza muito melhor, mas, principalmente, para sublinhar também sua vitória.

— Bem — interrompeu Ludmila secamente —, esses detalhes, afinal, não são nem muito excitantes, nem relevantes.

— Não. Mas tivemos que examinar tudo novamente, tudo o que aconteceu naquela hora crucial. Ivan foi para o seu quarto. Lolita iniciou seu relatório a Rosamund. E Ivan — quero dizer, Anatolski — saiu de casa vinte minutos depois.

— De que falaram, realmente, enquanto esse tal de Anatolski ainda permanecia em casa?

— De um montão de coisas. Mas eles insistem em que o homem estava bem longe e que seguramente não poderia ter ouvido nada, ainda por cima porque eles falaram o tempo todo em voz baixa. Quando Ivan saiu, Lolita concluiu seu relatório.

— Então, a essa altura, só havia Lolita, Rosamund e a tal mulher quirguiz inglesa no apartamento?

— Sim. E agora ficamos sabendo por nossos espiões no quartel-general do gru, aqui em Moscou, que eles já sabem que a fórmula será usada e que será transferida para o apartamento de Oriana Perring. E, sem dúvida, a esta hora, já sabem também que nós sabemos que eles sabem, porque já foram informados disso pelos espiões que têm em nosso quartel-general...

— Havia microfones de escuta escondidos no tal apartamento?

— Os rapazes verificaram tudo e garantem que não havia absolutamente nada.

— Então, quem é o suspeito? Ivan? Rosamund? Ou Lolita?

— Todo mundo é sempre suspeito. Mas não podemos pôr todos na rua porque aí nunca mais vamos apanhar a fórmula.

Bebeu mais uma dose de vodca. Desta vez, Ludmila nem sequer tentou impedi-lo.

— Iu. V. Andropov já comunicou ao Conselho de Ministros, ao Politburo e ao presidente que estamos a um passo de resolver para sempre nosso eterno problema de falta de alimentos... Que negócio é este, Ludmila? Platsek?

— Platsek.

— Ah, sirva-me, Ludmila. Quero montões de platsek... Antes que fiquemos todos reduzidos à Unalim! Embora — acrescentou ele, com um soluço — esse perigo pareça estar ainda bem longe...

 

                   O apartamento

Arkadi olhou admirado para o homem e pensou: "Está certo, é bom que as pessoas de meia-idade, talvez até algumas já mais idosas, continuem a jogar tênis, mas com certeza chegará um tempo em que, por uma questão de decência, é preciso desistir".

O homem à sua frente usava calças de flanela branca, cada perna parecendo um saco, calçava tênis sujos e vestia uma camiseta já amarelada. Naturalmente, passava dos sessenta. Era baixo, quase anão e muito gordo. Estava diante do pavilhão de tênis do Hurlingham Club, aparentando esperar por alguém. Arkadi nem sequer suspeitava de que o homenzinho estava esperando por ele. O gordinho tinha a cabeça, grande e redonda, coberta com uma peruca ruiva. Além disso, mascava chicletes e a toda hora cuspia para o lado, sem querer saber se havia gente por perto, na trajetória do cuspe.

"Talvez seja até uma boa coisa" pensou Arkadi, "que esses fósseis continuem jogando a vida inteira. Afinal, os principiantes como eu também precisam de um pouco de estímulo. Tem que haver alguém de quem eles possam ganhar..."

Ficou preocupado e tenso. Não gostava da idéia de jogar tênis, nem mesmo de estar ali. Estava disposto a tentar apenas porque Oriana tinha condicionado a continuação de sua amizade ao tênis. Aliás, estava havendo uma partida na quadra e o jogo até parecia fácil e divertido. Talvez o sacrifício, afinal, não fosse assim tão grande. Feitas bem as contas, jogar tênis tinha que ser mais agradável do que assumir a posição de oficial ilegal de apoio. Mas onde estaria Oriana? Nem sinal dela. Não tinha vindo no dia anterior. E também não estava ali agora. Há três dias, voltara com ele (e Fritz) de Buckerell Moon e desde então nunca mais aparecera. Nem um sinal da garota, nem do Hispano Suiza, nem de Fritz. Nem sinal também de seus três jovens companheiros de tênis, aqueles três rabugentos e mal-educados. Era irritante. Mais do que irritante: preocupante. Tinha que entrar em contato com ela de qualquer jeito. Se ela não vinha jogar o seu jogo preferido e adorado, é porque alguma coisa séria tinha acontecido. Será que estava suspeitando dele? Será que o estava evitando deliberadamente? Estaria ela jogando tênis em algum outro lugar?

— Mr. Gurbanov? — Uma voz aguda, ligeiramente vulgar, interrompeu suas divagações. Era do velho te da peruca ruiva.

O homenzinho fez um sinal com a cabeça que queria dizer "siga-me". E ao fazê-lo a peruca mudou um pouco de posição. Foi então que, de repente, Arkadi chegou à conclusão de que aquela múmia, aquele mausoléu de peruca flamejante devia ser o profissional que ele tinha contratado para lhe dar a primeira lição.

Seguiu o homem. O velho te tirou-lhe a caixa das mãos. As seis bolas, todas novas, branquinhas, couberam sem dificuldade na sua mão. Depois, dirigiu-se para o fundo da quadra, contra o sol. Arkadi fez o mesmo, no lado oposto. A múmia, então, bateu uma bola por cima da rede e, enquanto a bola seguia, acendeu um cigarro. Arkadi fez pontaria, mas errou. O profissional não reagiu, nem fez qualquer comentário. Mandou mais uma bola, suave, lenta, na medida certa. Arkadi errou novamente. Olhou para a raquete, para ver se tinha algum furo. Parecia que estava tudo em ordem. Olhou para a bola que acabara de perder. Parecia também do tamanho certo. Veio a terceira bola e aí ele conseguiu acertar, embora com um golpe fraco. A bola bateu na rede: "Preciso bater com mais força", pensou. E a próxima foi parar fora da cerca. Aliás, fora do clube. Aliás, no Parque Hurlingham, no meio de um campo de futebol onde uma dúzia de garotos jogavam futebol. ("Um jogo muito mais razoável", refletiu Arkadi. "É uma pena que não seja o jogo preferido de Oriana.")

— Nunca jogou antes? — perguntou o profissional.

— Nunca.

O velho te abanou a cabeça. — Balance a raquete — disse ele, mas Arkadi não entendeu nada. Então, a múmia fez uma demonstração do movimento circular do braço.

— Agora, repare: não é a força do pulso que dá velocidade à bola, é o balanço da raquete. Além disso, ajude o movimento com o corpo.

Arkadi não fazia nem idéia do que o homem estava falando. Só viu mais uma bola partindo, a peruca do velhote dançando. Fez pontaria e rebateu com força, uma parte dela para contrabalançar a paralisia do medo. Mesmo assim, deu sorte. A bola foi devolvida por cima da rede. E não só: passou sibilando pelo velhote, que não teve tempo nem de preparar o contragolpe.

— Boa bola — comentou.

"Cai? Ou não cai?". Arkadi estava pensando na peruca do homem. Não podia concentrar-se no jogo. Só via a peruca balançando. Parecia que a cada momento ia sair do lugar. "Esse cara pode até ganhar em Wimbledon", pensou, "distraindo os adversários com a maldita peruca."

— Balance a raquete! — gritou o homem. — Olhe para a bola! Corra!

As bolas de Arkadi saíam para o alto, batiam na rede, morriam perto da rede ou saíam disparadas pelo fundo da quadra. A grande maioria perdeu-se pelas tabelas. Por fim, a derradeira humilhação: o velhote decrépito acendeu mais um cigarro, saltou por cima da rede e postou-se no meio da quadra jogando bolas para Arkadi, não com a raquete, mas com a mão, gentil, suave e cuidadosamente. E gritando as instruções. Só meninas de seis anos eram instruídas daquela maneira. Arkadi dirigia olhares furtivos para as outras quadras, onde dois outros profissionais estavam ministrando aulas a dois outros alunos muito mais jeitosos e eficientes, que batiam forte, faziam o smash com toda a propriedade e cortavam na medida certa. Ninguém prestava a menor atenção a ele. Na realidade, o problema era que ele não acertava nem aquelas bolas jogadas de perto. Suas batidas voavam em todas as direções. E, de repente, começou a sentir-se morto de cansaço. Mal tinha saído do mesmo lugar, pensava, e já estava perto do colapso. Olhou para o relógio: ainda faltavam vinte minutos para completar os cinqüenta e cinco da aula. "Os tenistas experimentados", lembrou-se ele em pânico, "costumam jogar hora e meia." Ainda faltavam vinte minutos e ele não agüentava mais. Estava arrebentado. Sempre que a bola ia parar longe, gastava mais tempo do que o necessário para apanhá-la. E assim tentava recuperar o fôlego. Entretanto, receava que o velhote lhe desse um fora. Mas em vez de reclamar, ele se mostrava descontraído, atirando as bolas e esperando pacientemente a volta do aluno. Na verdade, não tinha o menor interesse em apressar o bate-bola com Arkadi. Aliás, nem bate-bola era.

— Balance a raquete. Olhe para a bola. Afaste o braço. Não empurre, bata na bola. Corra, corra, corra mais!

Aulas de cinqüenta minutos. Seria a mesma coisa nos outros clubes? Hurlingham, certamente, era um clube generoso demais. A comissão técnica deveria rever o assunto. Finalmente, o velhote parou e fez mais um movimento com a cabeça, indicando que a aula tinha terminado. A peruca virou mais uma vez, ficando de lado. Arkadi pensou que não teria forças suficientes para andar — andar? —, para rastejar até o vestiário. No momento, não tinha qualquer outra ambição senão a de chegar até o vestiário e sentar-se num banco. Recorrendo à última reserva de forças, conseguiu seguir a múmia, isto é, o professor, que marchava diligentemente, com passadas ligeiras e elásticas, dando a impressão de um homem que acabava de tirar um sono reparador numa sombra fresca. Minutos mais tarde, Arkadi viu que ele voltava para a quadra para dar sua próxima lição. Seu caminhar continuava normal. Tinha acabado o cigarro, mascava chicletes. E cuspia, cuspia alegremente em todas as direções, com a peruca balançando de um lado para outro a cada passada.

Arkadi sentou-se numa cadeira perto do pavilhão de tênis, assistindo a um jogo medíocre com respeito e admiração. Ao menos, aqueles homens estavam acertando na bola, não muito bem, mas o suficiente para jogá-la por cima da rede. Bebeu três chopes e, tendo recuperado um pouco de suas forças, seguiu de metrô para casa. Estava profundamente perturbado com o desaparecimento de Oriana, mas muito mais com o tênis. Poderia levar muito tempo até poder enfrentar Oriana na quadra. Se é que iria enfrentá-la alguma vez.

Encontrou uma carta esperando por ele. Era um cartão impresso, dentro de um envelope sem selo, informando-o de que Miss Oriana Perring estaria em casa na quarta-feira. Coquetel. 18h20, rsvp. Escrito à mão, em cima, no lado esquerdo, havia "Novo lar". A informação mais importante, todavia, era o novo endereço de Oriana e seu número de telefone.

Quase endoidou. Tinha que agir. Tinha que fazer qualquer coisa, mas achava que não devia tomar a iniciativa. Tentou contatar Rosamund, mas não conseguiu. Às oito horas, num impulso, pegou o telefone e discou o número de Oriana.

— Alô? — perguntou uma voz inconfundivelmente agradável e sensual.

— Gurbanov.

— Oh, meu russozinho querido...

A reação não deixava margem a dúvidas.

— Sim, sou eu.

— O que posso fazer por você? Você virá à minha festa?

— Claro, mas gostaria de ver você muito, muito antes.

— Então pode vir.

— Quando?

— Quando? — repetiu ela, parecendo aborrecida. — Quando? Agora mesmo, por que não?

Ao entrar no apartamento em Belgravia, Arkadi apertou a mão dela com um pouco de cerimônia. Oriana ofereceu-lhe o rosto, que ele beijou levemente. O apartamento era atraente, elegante e espaçoso, mas Arkadi estava pouco interessado nesses detalhes. Estava impressionado com o luxo, mas não tinha gosto para apreciar questões de estilo. Oriana insistiu nos comentários sobre candelabros, luminárias e for-ração de poltronas. E a mesinha de café dinamarquesa? Arkadi não a achava um pouco escura demais? Sim, talvez, mas muito pouco. A resposta saiu, mas Arkadi não sabia ao certo qual das mesinhas era a dinamarquesa. Enfim, a verdade era que ele não estava se sentindo muito bem naquele novo ambiente, e o mesmo acontecia com Fritz. Qualquer que fosse sua opinião sobre a mesinha dinamarquesa, Fritz estava obviamente deslocado e com saudades dos recantos familiares de seu antigo lar.

Arkadi, tal como o cachorro, não tinha faro para os detalhes da decoração do apartamento, mas em relação a Oriana todos os seus sentidos estavam excitadíssimos. Ela estava mais bonita e mais atraente do que nunca. Usava uma calça colante cor-de-rosa, uma blusa preta e um turbante também cor-de-rosa. Mostrava-se toda excitada com o novo apartamento e, surpreendentemente, satisfeita em ver Arkadi.

— Procurei você em toda parte no clube, em Hurlingham — disse ele.

— Em Hurlingham? — perguntou ela, surpresa, como se escutasse aquele nome pela primeira vez na vida.

— Comecei a aprender tênis, como você recomendou.

— Tênis? — Oriana repetiu a palavra como se nunca tivesse ouvido falar daquele tipo de jogo.

— Sim, tênis — replicou Arkadi, ligeiramente aborrecido. — Você disse que eu teria que aprender a jogar tênis se quisesse continuar seu amigo. Como quero continuar seu amigo, comecei a ter aulas desse esporte.

— Mas o tênis é um jogo ridículo — disse ela, falando sério. — Um exercício físico rude e primitivo. Já desisti...

— Des... o quê?

— Desisti.

— Mas por quê?...

— Porque você me abriu os olhos.

— Eu? — Arkadi protestou: — Nunca disse nada contra o tênis.

— Eu expliquei a você — você deve estar lembrado — que o tênis representava uma nova vida para mim. O tênis me levaria de encontro ao meu novo eu, ao meu verdadeiro eu. Aí você respondeu que já tinha ouvido esse tipo de conversa a respeito de ioga, mas nunca a respeito de tênis. Você se lembra?

— Sim, vagamente.

— Você estava cem por cento certo. Você abriu um novo mundo para mim. O mundo da ioga, não do tênis. São as assanas que abrem as portas do novo mundo a qualquer um, não o backhand. Uddiyana e nauli podem conduzir você a seu verdadeiro eu, não a bola curta. O tênis é infantil, univalente. A ioga proporciona um tríplice desenvolvimento: físico, mental e espiritual.

Arkadi a escutava com prazer. Podia esquecer a múmia e sua peruca móvel. Mas teria que aprender ioga? Ficar sentado, de pernas cruzadas, numa sala vazia, contemplando o umbigo? Não importava. Seria menos exaustivo e humilhante do que correr atrás daquelas malditas bolas.

— O que é que você prefere, Gurbanov? O que é que eu quero? Não é uma escolha fácil. Ioga da sabedoria? Ioga do espiritualismo elevado? Ioga dos ideais? Ioga da devoção? Ioga da humildade? Enfim, o que é que você acha?

— Ioga da devoção — Arkadi surpreendeu-se com a firmeza de sua decisão.

Oriana encolheu os ombros.

— Talvez. De qualquer maneira, todos começam com a hataioga.

— Começam, é? — perguntou Arkadi, querendo demonstrar grande interesse.

— É, sim, Gurbanov. "Hatha" vem do sânscrito. Você entende sânscrito? Acho que não.

Não mesmo, ela tinha razão. Por isso, explicou:

— "Ha" significa "sol"; "ta" significa "lua". Hataioga quer dizer ioga do sol e da lua. E ioga, na realidade, quer dizer união, a sempre desejada união do homem com deus, do homem com ele mesmo.

Oriana continuou suas explicações durante mais vinte minutos. Por fim, perguntou:

— Você quer ver o apartamento?

Arkadi queria ver o apartamento, claro, por várias razões. Admirou minuciosamente tudo, escutou atentamente todos os planos dela quanto a modificações posteriores, e ofereceu-lhe gratuitamente seus conselhos. "Aqui, vou transformar isso tudo num recanto aconchegante. Minha dúvida está na luz. Lâmpadas azuis ou amarelas? O que é que você acha?" Arkadi votou pelo amarelo. "Não gosto da tonalidade do verde desta cortina. Não é terrível? Encomendei verde, certo, mas, pelo amor de Deus, não este verde. Estou pensando num jirau aqui. Você acha que a sala tem altura suficiente para um jirau?" Arkadi não sabia o que era um jirau, mas considerou a proposta com demorado interesse e chegou à conclusão de que a altura era justamente a mais apropriada, o que deixou Oriana muito feliz. A garagem — a questão era extremamente desagradável para ela — não tinha espaço suficiente para o comprimento do Hispano Suiza. Era uma chatice. Não podia fechar a porta com o carro dentro.

Durante a volta completa, Arkadi não se esqueceu de procurar pelo cofre. Mas não viu nenhum. Oriana abriu um dos armários embutidos para mostrar-lhe suas roupas. No fundo, havia uma caixa metálica pesada, que Arkadi examinou com grande interesse.

— É minha caixa de jóias — explicou Oriana.

— Não é seguro — comentou Arkadi. — Cofre portátil é bobagem. O ladrão pega-o, leva-o para casa e abre-o quando lhe apetecer.

— É bem pesada, sabe?

— Mesmo assim. Com todas as suas jóias, valiosíssimas. E ainda aquela famosa fórmula...

Assim que Arkadi pronunciou suas últimas palavras, pressentiu que tinha cometido uma gafe, uma estupidez. Oriana, por uma fração de segundo, dirigiu-lhe um olhar de surpresa. No entanto, disse apenas: — Minhas jóias não são assim tão valiosas. Verdade seja dita. Apesar disso, não gostaria que fossem roubadas...

Enfim, não havia cofre embutido. Ou viria mais tarde ou eles tinham mudado de planos.

Seguiram para a sala de estar. Arkadi queria perguntar-lhe quando é que ela passaria a ter menos tempo para ele. Em outras palavras, queria saber quando é que ela começaria a trabalhar para seu tio. Decidiu, contudo, que depois daquela gafe a respeito da fórmula era melhor evitar o assunto.

Oriana recomeçou a conversa sobre ioga. Falou da posição do pássaro, do corvo, da tranqüilidade e da meditação tranqüila.

— Ainda sou apenas uma principiante, claro. Leva anos e anos. Mas consigo a parada de cabeça, todos os dias, pelo menos oito minutos por dia.

— Mostre-me — pediu Arkadi.

— Você quer, realmente?

Tirou as calças. Sua calcinha era um pequeno triângulo preto. As coxas eram brancas, o pescoço longo, a nuca linda. "Foi preciso ela tirar as calças para eu reparar na nuca", pensou Arkadi.

— Ajude-me a ficar na posição, de cabeça para baixo — pediu ela. — Não é fácil. O caminho para a união é longo e tortuoso. Deus está muito longe; nosso eu está ainda mais longe.

Para Arkadi o eu dela estava até muito perto.

Ela colocou uma almofada no chão, junto à parede, e inclinou-se para a frente, de modo que sua cabeça encostou na almofada e sua maravilhosa "almofada" apontou para cima.

— Levante minhas pernas. Com cuidado. Eu própria ajudarei ao mesmo tempo. Conserve minhas pernas lá em cima até eu gritar.

Oriana deu um impulso com as pernas e, com a ajuda de Arkadi, elas permaneceram lá em cima, bem perto dele. De cabeça para baixo, Oriana tinha uma expressão serena, muito espiritual, no rosto. A pele das coxas era muito macia, a cintura, fina, os seios, pequenos, claramente discerníveis. Arkadi pensou que seria divertido ficar também de cabeça para baixo e fazer amor com ela naquela posição. Uma posição interessante, sem dúvida, e ainda não recomendada por nenhum livro de ioga, com certeza. Nem mesmo pelo próprio Kama-sutra. Impraticável. Afinal, ele nem sabia fazer parada de cabeça, quanto mais fazer amor... Aliás, o negócio era arranjar outra maneira. O desejo de fazer de qualquer maneira estava aumentando irresistivelmente...

Arkadi reparou no zíper da blusa dela. Puxou-o para cima, o que significava puxá-lo para baixo.

— O que é que você está fazendo? — exclamou Oriana, ao mesmo tempo em que caía da posição e se punha de pé: — Você está doido?

— De certa forma, sim... Estou louco, louco por você... Venha... Venha, querida...

Oriana percebeu a intensidade da voz dele, viu o brilho do desejo em seu olhar. Reconheceu que seria violentada caso não concordasse.

Arkadi sentiu muito menos resistência do que esperava.

— Você precisa mesmo, filhinho? — perguntou ela, com meiguice.

— Se preciso...

Conduziu-a para o sofá grande, com uma coberta alaranjada. Deitou-a de costas e despiu-se com a velocidade de um relâmpago. Debruçou-se sobre ela, totalmente nu. Ali estava Oriana, ainda de blusa, mas aberta na frente. Nem sequer tinha tentado fechá-la. Decidida e impacientemente, Arkadi tentou tirar-lhe a blusa. Mas não é nada fácil tirar uma roupa colante pela cabeça. Ela não ajudou, mas também não resistiu.

Finalmente, conseguiu. E, no mesmo momento, apareceu o sutiã. Era preto. Um sutiã preto? Onde é que ele já tinha visto um sutiã preto antes? E que espécie de sensação ele lhe inspirara? Ivy! Oh, Deus, a última — e a primeira — vez que ele tinha visto um sutiã preto fora no corpo de Ivy!

A lembrança foi fatal. Sua ardente paixão não teria sido sufocada com maior rapidez se alguém lhe tivesse atirado um balde de água gelada. De vergonha, quis desaparecer sem deixar traço. Desejou que o diva se abrisse ao meio e o tragasse. Quis morrer. "Tomara que a terra me seja leve." Já escutara esse clichê muitas vezes, mas só agora conhecia todo o sabor de seu significado. Queria morrer ali mesmo, na hora, para escapar à vergonha e à humilhação.

Oriana levou algum tempo para perceber o que estava acontecendo. Quando entendeu, pareceu ficar deliciada. Felicíssima. Começou a beijar o rosto de Arkadi com um carinho nunca antes demonstrado.

— Querido... — disse ela,,suavemente. — Meu querido e adorado russozinho...

Arkadi — não muito ligado ao hábito de rezar — rezou... Rezou por uma morte rápida e instantânea.

— Você é o único violentador impotente da história. — Disse a frase com afeto, nada de ofensa. — Amorzinho querido... Meu doce e inofensivo russozinho...

Cobriu-o de beijos. Beijou-lhe a nuca, o pescoço, o peito... E foi descendo: beijou-lhe tudo! Seus beijos não produziram nenhum resultado benéfico...

— Não se preocupe, querido... Por favor, não se preocupe. Eu o amo agora... tal como você é. Estou falando realmente a verdade. Esqueça o problema. Esqueça tudo. Aliás, não é problema, não tem importância...

Arkadi olhou para ela, para o seu sutiã preto. Estava mais doce, mais gentil e mais adorável do que nunca. Mas do que é que ela estava falando? Olhou para o pedaço de pelanca caída entre suas pernas. Não servia para nada. E isso não tinha importância?!

— Você não vai querer me ver depois disto, não? — perguntou Arkadi.

— Claro que sim. Estou justamente tentando dizer-lhe isso mesmo. Quero. E quero muito. Só que na próxima semana vai ser um pouquinho difícil. É que vou começar a trabalhar a sério na segunda-feira...


                   Má colheita

Antes de entrar no enorme salão, a secretária parou à porta, completamente perdida. O Camarada Brejnev estava profundamente concentrado em seus pensamentos — a expressão grave, o rosto contraído, as sobrancelhas mais ameaçadoras do que de hábito —, e em tais momentos era difícil decidir qual o melhor caminho. Poderia acontecer que ele simplesmente ignorasse a pessoa em questão, mas também poderia acontecer que essa pessoa fosse posta, aos gritos, pela porta afora. O que a secretária, neste caso, não podia adivinhar era que o chefe naquele momento não estava engolfado pelos pesadíssimos encargos morais da presidência, nem pelos intricados problemas do Oriente Médio, nem ainda pela situação da Tchecoslováquia, "amigavelmente" ocupada pelos russos — estava pensando em sapatos. Seu novo mordomo (um antigo criado stakhanovista a serviço dos líderes do Partido) não limpara os sapatos com a mesma eficiência de seu predecessor. Dizia-se — refletiu Brejnev, com inveja — que Nikolai Viktorovitch Podgórni era um autêntico mestre dos engraxates. E, na realidade, seus sapatos estavam sempre imaculadamente brilhantes. Quem os limparia? — era a pergunta que Brejnev fazia a si mesmo. Seria mesmo o velho Podgórni ou outro qualquer stakhanovista herói do trabalho? De qualquer maneira, Podgórni era o líder do Presidium do Soviet Supremo, portanto chefe do Estado, e seria difícil a Brejnev até pedir-lhe, quanto mais ordenar-lhe, que limpasse seus sapatos. Iria causar má impressão, tanto internamente como no exterior. Simplesmente, não podia fazê-lo. Pelo menos, por enquanto. Talvez dentro de um ou dois anos. Kossíguin? Esse era uma outra história. Para começar, o brilho dos sapatos de Alexei Nikoláievitch Kossíguin não chegava nem à metade do de Podgórni...

A secretária tossiu um pouco, discretamente. Brejnev levantou suas tremendas sobrancelhas.

— Os camaradas Sinítsin e Andropov estão aqui.

Oh, sim, claro. O ministro da Agricultura e o chefe do kgb. Tinha mandado chamá-los. Sinítsin era um homem de pouca influência, mas Andropov ele não podia fazer esperar.

Fez um sinal com a cabeça, estilo da maior gravidade.

Sinítsin, ao entrar no salão, curvou-se profundamente, sorriu obsequiosamente, e tentou mostrar seriedade e importância, como se estivesse atormentado pelos mais graves problemas, aliás, como realmente estava. Curvou-se mais uma vez e esperou. Gostaria de poder beijar a mão de Brejnev, mas o Partido não encorajava tais atitudes.

— Sentem-se, camaradas.

Sinítsin preferiria permanecer de pé, mas uma ordem era uma ordem. Por isso, baixou cuidadosamente seu traseiro até tocar na beirada de uma pequena cadeira, que, por sinal, estava ao lado de uma confortável poltrona. E ficou empertigado, sob atenta expectativa. Já Andropov jogou-se numa enorme poltrona de couro, o olhar vagando no espaço, arrogante e aborrecido.

— Vamos ter mais uma colheita desastrosa, Sinítsin — disse Brejnev, dirigindo-se ao assunto com admirável franqueza e sem rodeios.

— As coisas estão ficando pretas, Camarada Brejnev, mas com determinação proletária nós...

Brejnev fez um gesto de quem não agüentava mais.

— Mais um fracasso. Por quê?

Sinítsin respirou fundo: — Nossas fazendas coletivas, Camarada Brejnev, possuem trezentos e sessenta milhões de hectares, enquanto nossas fazendas estatais, com seus seiscentos e oitenta e quatro milhões de hectares...

— Pode parar, Sinítsin. Sem estatísticas, por favor — observou Brejnev, decididamente irritado. — As estatísticas são para os leitores do Pravda. Diga-me apenas por quê.

Sinítsin tentou novamente.

— Como sabe, Camarada Brejnev, o Terceiro Congresso dos Fazendeiros Coletivos adotou uma resolução fundamental em novembro de 1969, ampliando o poder de planejamento das fazendas coletivas...

— Já percebi. E as fazendas coletivas, sob sua direção, utilizaram a nova dose de poder para planejar, com a maior eficiência, mais um fracasso com o qual vamos ter que enfrentar uma nova onda de fome no país.

— Ainda é prematuro falar de fome, Camarada Brejnev.

— Então, vou ter que esperar o inverno? As pessoas vão ter que passar fome para podermos falar do assunto? É isso? Pare de me alimentar com estatísticas, Sinítsin. Alimente-me com trigo... Com pão, batatas.. E não me venha com o habitual jargão técnico-agrícola. Sou engenheiro, não um miserável mujique. Os vários departamentos estão cheios de arquivos, de dados, de estatísticas, de prognósticos, de desculpas e de explicações. Tudo o que quero saber é a razão por que este país tem que enfrentar este caos de cinco em cinco anos, ou talvez com maior freqüência. Por que não produzimos trigo suficiente?

— Tivemos sol demais na Rússia meridional e na Ucrânia. E sol de menos na Geórgia e no Turquestão.

— E centeio?

— Chuva demais no Usbequistão. E seca na Bielo-Rússia.

— Batatas?

— Estrume insuficiente na Turcomênia. Fungos, viroses, insetos, pestes e o doríforo no Casaquistão.

— Já entendi. Tenho certeza de que você vai dar mais explicações convincentes a respeito da cevada, da aveia, do milho, do trigo-mouro e da beterraba. Fracasso universal.

— Com todo o respeito, Camarada Brejnev, nossa colheita de sementes de girassol é a melhor desde 1962. E o algodão...

Brejnev explodiu: — Algodão? E quem é que vai poder comer algodão?

— Não, senhor, Camarada Brejnev, ninguém pode comer algodão.

— Você é capaz de comer um cozido de algodão?

— Lamento dizer, mas não sou capaz.

— Malditos lavradores, malditas fazendas coletivas, malditos mujiques e cúlaques! Chame-os do que quiser, mas a verdade é que eles derrotaram Khruchov e quase derrotaram também o próprio Stálin.

— É o grande problema da agricultura, Camarada Brejnev. Ióssif Vissariónovitch Stálin adotou medidas extremamente práticas... embora matar quatro milhões de produtores tenha sido levar essas medidas práticas um pouco longe demais.

— Ele não os matou por serem produtores. Como produtores, eram inúteis. Ele os matou por serem consumidores. Diminuiu o número de consumidores em quatro milhões. Mas mesmo isso não foi suficiente. Com os diabos, o que devo fazer? Já não estamos nos dias de Stálin. E eu não mataria quatro milhões de pessoas, mesmo que os dias de Stálin ainda não tivessem passado. Meu caráter é humano. Não mataria mais que um milhão, fosse qual fosse a emergência!

Levantou-se e começou a passear de um lado para outro do salão, falando mais para si mesmo do que para Sinítsin.

— Estamos indo muito bem no Oriente Médio. Temos nossos problemas, mas no conjunto estamos indo bem. Vamos bem, ainda, na Europa e na África. Nosso relacionamento com os Estados Unidos, essas bestas imperialistas, está ficando mais caloroso e amigável. Com os divisionistas chineses, lunáticos como só eles sabem ser, vamos caminhando. Nossas forças nucleares podem rebentar o mundo inteiro e a nossa marinha de guerra domina os mares. O horizonte internacional está brilhante, em termos globais. Mas de que serve isso tudo se, internamente, as colheitas fracassam? O que posso fazer com uma população esfomeada? Eles não comem bombas de hidrogênio. Ou será que comem?

— A colheita não será aquilo que deveria ser, Camarada Brejnev — disse Sinítsin com uma voz ligeiramente trêmula —, mas não vai ser um desastre. Como a capacidade energética das nossas usinas rurais está aumentando...

— Pare com isso. Já disse para parar com essa conversa, Camarada Sinítsin!

Sinítsin respirou profundamente: — E o que é que há a respeito da tal pílula Unalim, Camarada Leonid Ilitch? Se os relatórios falam a verdade, poderíamos alimentar nossa população inteira ao preço de uma fração do custo atual, dando a todos, ainda por cima, maior quantidade de nutrientes. Se a Unalim realmente resolve o problema da sintetização da proteína ou de qualquer composto igualmente nitro-orgânico... O que quero dizer é o seguinte: se eles conseguiram, realmente, sintetizar os aminoácidos... Bem, com a Unalim não teríamos mais problemas. Nunca mais. Isto é, se é que o kgb ou o gru conseguiram obter a fórmula. Disseram-me que ambos estavam prestes a consegui-la.

Andropov deu um pulo na poltrona, como se tivesse sido mordido por uma vespa.

— O país está cheio de boatos a respeito da má colheita — disse Brejnev. — Os jornais continuam informando seus leitores de que esses boatos maliciosos são divulgados pelos nossos inimigos imperialistas, pelos chineses divisionistas e pelos sionistas. Os jornais continuam dizendo que não há motivo para preocupações, que vamos ter uma colheita maravilhosa. Mas o povo não acredita nos jornais. Não sei por quê!

— Posso sugerir uma coisa, Camarada Brejnev — disse Sinítsin. — Podíamos justificar a situação relembrando os crimes dos capitalistas. Que eles constroem edifícios residenciais e para escritórios e deixam que fiquem vazios. Fazem descobertas sensacionais, descobertas que marcam época, e mantêm-nas em segredo só por causa da especulação e do lucro. C) povo pode passar fome, desde que os bolsos deles continuem cheios. Se um artigo pequeno colocado em um de nossos jornais contasse que os exploradores capitalistas e os caçadores de lucros estão tentando esconder a Unalim c que o nosso glorioso gru conseguiu encontrá-la e adquiri-la para benefício de nossas laboriosas massas trabalhadoras... — Reparou em Andropov e logo acrescentou, rapidamente: — E graças ao nosso glorioso kgb, evidentemente...

Brejnev refletiu.

— A idéia não é má. A melhor que já ouvi de você faz meses. Daria segurança à população. Mesmo que a colheita fosse um fracasso, o povo teria o suficiente para comer. E — acrescentou sentenciosamente — esse artigo estimularia a saudável rivalidade socialista entre o gRu e o kgb. Sim, tem sentido isso que você diz.

Sinítsin sentiu-se mais seguro. A entrevista não tinha sido um desastre total. Fornecer uma idéia daquelas valia mais do que produzir uma supercolheita de batatas ou de trigo-mouro.

— Pode sair, Ivan. Saia — disse Brejnev.

O tom foi áspero, mas ele o tinha chamado de Ivan! Sinítsin abandonou a sala em estado de graça, quase feliz.

Logo que a porta se fechou às costas de Sinítsin, Brejnev virou-se para Andropov.

— Muito bem?

— Estou seguindo pessoalmente esse negócio da Unalim. Hoje, segunda-feira, é o dia crucial. Começaram hoje a fabricação do produto. Orlovski está sendo informado de todos os detalhes. Está esperando por mim, agora, em meu gabinete.

— Tenho certeza de que está — disse Brejnev, irritado —, e tenho certeza de que você vai ser duro com ele. Eu imprensei Sinítsin, você vai imprensar Orlovski, ele imprensará Chevtchenko. E Chevtchenko vai dar um duro danado nesse tal de Lolita e em todos os idiotas que estão à sua volta. Mas não quero imprensadas. Quero é a formula da Unalim!

Fez uma pausa e acrescentou maliciosamente: — ...recebendo-a preferencialmente de você. Mas do gru também serve.

Andropov sentiu vontade de estrangular o homem. Sabia que Brejnev não duraria para sempre como chefe do Partido. Ninguém dura para sempre. Mas seu sucessor só poderia ser indicado pelo exército (do qual o gru era um departamento) ou pelo kgb. Se a escolha fosse do kgb, ele — Iu. V. Andropov — seria sem dúvida um dos candidatos. Na verdade, poderia ser o homem... Tudo dependeria de muitas questões, mas essa tal de Unalim poderia ser um dos fatores decisivos. Conseguir trazer a Unalim seria de importância vital. Fracassar no caso, uma derrota terrível. Fracassar e ver a fórmula trazida pelo gru seria de conseqüências fatais. Poderia significar a diferença entre o poder e... E o quê?

Se o exército ganhasse essa batalha, seu futuro seria muito pálido. Não levaria um tiro, é verdade. Também não seria mandado para um centro de reeducação — antigamente chamado campo de trabalho. Mas nomeado diretor da usina elétrica em Alma-Ata ou deputado-chefe da comissão florestal em Kizil Kum. Ou talvez descobrissem um defeito em seu sistema de raciocínio e o mandassem para um asilo de lunáticos... Uma coisa era certa: se ele tivesse que cair faria com que caíssem primeiro Orlovski, Chevtchenko, esse tal de Gurbanov, Rosamund e todo o bando da Unalim. Todos eles estariam precisando de mais reeducação socialista e de mais tratamento drástico do que ele.

— Você terá sua fórmula da Unalim, Camarada Leonid Ilitch — disse ele, tranqüila e firmemente, fitando com gravidade as espessas sobrancelhas de Brejnev.

"Ele não tem medo de mim", pensou Brejnev, "e sabe que tenho medo dele." Devolveu o olhar do outro, sem vacilar, e replicou friamente: — Claro que a terei. O gru me deu a palavra dele, também.

No momento em que Andropov saía lentamente da sala, Brejnev reparou em seus sapatos. Razoavelmente bem lustrosos, pensou, mas nada de espantar. "Posso estar limpando os sapatos dele", constatou Leonid Ilitch, "bem antes de Podgórni ter que limpar os meus."

Suspirou, deu de ombros e refletiu: "Caprichos da democracia".


                   Segunda-feira negra

— Com fritas?

— Duas porções — disse Arkadi.

Olhou para a garota. Era alta, morena e, embora trabalhasse numa lanchonete, em meio à fritura de peixe e de batatas, entre o cheiro de óleo barato e respingos voadores do dito, parecia pronta para subir ao palco e representar o papel principal, muito romântico, de alguma comédia musical. Seus olhos estavam maquilados para o palco. Os cílios postiços eram tão longos que, quando pestanejava, quase batiam na frigideira. Suas pálpebras eram azuis, o cabelo, também de cor azulada e os lábios, vermelhos. Conseguia manter-se impecavelmente limpa numa lanchonete suja, fazendo um trabalho sujo. Era um milagre!

— Mais batatas, Jean? — gritou o cozinheiro. Estava ao lado dela, bem perto, mas tinha que gritar, caso contrário o ruído da fritura do peixe e das batatas abafava sua voz.

— Pode fazer. Todo mundo quer fritas — respondeu ela, voltando-se para Boris, que estava na fila, atrás de Arkadi.

— Fritas?

— Duas porções — disse Boris. — E o que são essas coisas que estão no vidro?

— Cebolinhas em conserva. Vai querer? Uma ou duas?

— Oito — respondeu Boris.

A maioria dos clientes recebiam seu peixe com fritas embrulhado primeiro em papel vegetal e depois num pedaço de jornal: afinal, o país não podia abandonar todas as suas antigas tradições. Boris e Arkadi, tendo indicado que queriam jantar em condições mais condignas, receberam a comida em pequenos pratos de papel, além de faca e garfo (ainda que de frágil plástico branco).

Arkadi pagou a conta dos dois. A garota acionou a caixa, a gaveta abriu-se, tocou a campainha, e o troco voltou:

— Você é uma garota muito bonita, Jean — retrucou Arkadi, numa espécie de gorjeta.

— Obrigada — replicou Jean, obviamente satisfeita com o inusitado cumprimento e acentuando o agradecimento com um tímido baixar das pestanas falsas na direção da frigideira borbulhante.

Boris e Arkadi foram sentar-se numa das mesinhas espremidas a um canto. As cadeiras eram demasiado pequenas para ser confortáveis, a mesa estava engordurada, e havia um resto de bacalhau frito perto do cinzeiro, que estava abarrotado de cinza e pontas de cigarro.

— Estaremos seguros aqui? — perguntou Arkadi, não muito ansioso.

— Como não fomos seguidos — tenho certeza disso —, fica extremamente difícil imaginar que algum dos nossos venha acidentalmente nos encontrar nesta versão inglesa de botequim, neste bairro afastado de Fulham. Além disso, estaremos seguros em qualquer lugar: agora, ninguém proíbe nossos encontros.

— Certo — concordou Arkadi, sua atenção totalmente concentrada no pedaço de bacalhau frito, ainda fumegante, no prato de papel.

— Estava completamente bêbado — disse Boris.

— Chevtchenko está sempre bêbado, mas varia as manifestações da bebedeira com grande habilidade. Em geral, recebe a pessoa quando está meio bêbado e completa a outra metade em sua companhia. Às vezes, recebe quase sóbrio, fica bêbado durante a recepção e resolve os problemas oficiais às duas ou três horas da madrugada. O jeito dele, hoje, foi uma novidade para mim. Já estava caindo de bêbado quando chegamos. Mesmo assim ainda conseguiu ficar mais bêbado, na nossa presença, sem perder a noção de seus atos. E, apesar de tudo, ainda nos deu o seu recado com bastante eficiência.

— O homem está obviamente apavorado. Você viu todos aqueles cartões-postais sobre a mesa dele? Ficou olhando para eles o tempo todo.

— Cenários de neve. Montanhas de picos" brancos. Esquiadores felizes. Acho que ele quer ir se acostumando com as paisagens brancas. Há uma porção de neve lá na Sibéria, sabe?

— Mas não para esquiar...

— É isso o que todos nós veremos, sem dúvida, Chevtchenko, você e eu. — Arkadi fez o comentário com uma expressão séria, mas ainda parecia estar mais interessado no bacalhau do que na Sibéria.

Comeram em silêncio por algum tempo. Boris interrompeu-o:

— É um desastre completo. Parece que tudo o que a gente faz dá errado.

— Vai dar tudo certo — disse Arkadi, chupando uma espinha enorme. Boris levantou a vista para ele:

— Você me surpreende, Arkadi. Você, o eterno pessimista, tentando me animar. Esperava que você chorasse, chorasse muito, lágrimas de um autêntico eslavo. E o que é que acontece? Você me diz que está tudo bem... Por acaso, há alguma razão para esse otimismo?

— Muitas razões — disse Arkadi, enquanto lambia a espinha. — Tenho razão demais para estar confiante. Vai dar tudo certo. Deixe isso comigo.

— Vamos ter que deixar com você mesmo, já que todo o resto deu errado. Chevtchenko deu até um nome a esse dia: Segunda-Feira Negra. Com carradas de razão...

— Sim, foi uma segunda-feira negra, está certo. Mas espere pela Terça-Feira Branca. Ou pela Quarta-Feira Rosa.

— Pobre Ivan, quase deu o golpe do século. Não é tão burro como parece. Podia ter virado herói nacional...

 

Ivan, recrutado para aquela operação de emergência, tinha tido uma idéia muito simples. Como a fórmula não havia sido mandada para o novo apartamento de Oriana, então era só ir buscá-la onde estivesse. Ivan dirigiu-se ao chefe de oficina da Perring e pediu emprego. Não estava muito otimista, porque os jornais estavam cheios de casos de desemprego. Mas não teve dificuldades. Há sempre lugar para mais um na Grã-Bretanha — particularmente em Londres —, desde que esse alguém esteja disposto a aceitar trabalho sujo, braçal, que não exija qualificações. Há muitos jamaicanos, paquistaneses, turcos, iugoslavos e portugueses entre os trabalhadores. E o aparecimento de mais um iugoslavo (Ivan tinha papéis falsos da Iugoslávia) era normal. Os chefes da Perring tratavam os trabalhadores bem. Nenhum sinal de exploração capitalista. Na realidade, Ivan não se lembrava de ter visto antes uma fábrica tão decente quanto aquela, em Harlesden. O assistente do chefe de oficina mostrou-lhe a fábrica toda e explicou-lhe o que tinha que fazer. E por isso Ivan pôde ver a maior parte do estabelecimento industrial. O lugar não se parecia nem um pouco com a fábrica-prisão da era vitoriana. Muito pelo contrário. Era moderna, espaçosa, um pouco barulhenta e malcheirosa, mas cheia de vida. As pessoas pareciam gostar de viver e do trabalho. Viu os parques de recreio na hora do almoço: vários trabalhadores estavam jogando futebol e críquete, e alguns jogavam tênis nas quadras ao lado. Havia outros trabalhadores sentados em bancos, mastigando seus sanduíches, mas a maioria comia no refeitório todo tipo de produtos da Perring, feitos por eles e vendidos a eles a preços reduzidos: ervilhas cozidas Perring, hambúrgueres Perring, cheesebúrgueres Perring, espaguete Perring com molho de tomate ou de queijo, tudo servido com pepino em conserva Perring ou geléia picante de maçã, mais pudim de arroz Perring. E tudo empurrado para baixo com Perring-Cola. Explicaram-lhe o que tinha que fazer: apanhar um carrinho e ir de seção em seção juntando e recolhendo o lixo, despejando os cestos de papéis e deixando os escritórios em razoável estado de limpeza. A limpeza propriamente dita seria feita depois do expediente por outros homens. O assistente mostrou-lhe o lugar onde apanhar o carrinho, qual o itinerário a seguir e onde colocar o lixo.

Na segunda-feira — na hora em que a produção da Unalim ia começar — Ivan chegou ao trabalho às nove horas da manhã, precisamente. Um dos chefes olhou para ele com desaprovação óbvia, muito próxima da repulsa. Fez uma palestra longa e aparentemente instrutiva, impregnada de sarcasmo — chegou a gargalhar duas vezes em conseqüência de suas próprias piadas —, mas como Ivan nunca tinha ouvido falar o inglês com sotaque português, não conseguiu entender uma única palavra. Logo que o chefe terminou sua lengalenga, Ivan foi apanhar o carrinho e deu início às rondas. Fez duas, conforme as instruções. Recolheu o lixo conforme as instruções, despejou o lixo conforme as instruções. Fora das instruções, sorriu para todo mundo, dirigiu algumas palavras como "Desculpe" ou "Quer que eu volte mais tarde?" para a maioria. Queria que seu rosto se tornasse familiar. Na hora de fazer sua terceira ronda, o rosto já devia ser pelo menos vagamente reconhecido. Decidiu fazer uma pequena inovação. Colocou no carrinho um pequeno cartaz, que ele mesmo trouxera de casa e que dizia: correio interno. Por cima do carrinho pôs um cofre de aço, grande e convincente, com uma abertura (a chave estava no seu bolso) e um cartaz: matéria confidencial — COLOCAR AQUI — LACRADO.

Foi recebido com aprovação em todos os lugares. A inovação foi bem aceita. No final da ronda, seu cofre de aço estava cheio de material secreto. Dirigiu o carrinho para o gabinete do engenheiro químico. O chefe colocou uma série de cartas no cofre de Ivan e já ia pôr obviamente algumas fórmulas quando parou. (Ao mesmo tempo, quase parou também o coração de Ivan.) O engenheiro-chefe colocou as fórmulas dentro do envelope, lacrou-o devidamente e introduziu-o na abertura do cofre. Ivan empurrou o carrinho, jogou a correspondência não-confidencial no lixo e transferiu a confidencial para a sua pasta, deixando a Perring e seu emprego para sempre, sem que fosse notado. Meia hora mais tarde, todo o material confidencial, incluindo as fórmulas, estava em cima da mesa de Chevtchenko.

Uma folha de papel entre aquelas colocadas pelo engenheiro-chefe do setor químico da Perring no cofre tinha a palavra "Unalim" como referência e mostrava uma série de fórmulas, longas e complicadas. Chevtchenko chorou de alegria. A Segunda-Feira Negra (a essa altura ainda não reconhecida como tal) parecia ter começado muito bem. Todos acreditavam que Ivan tinha sido bem sucedido na obtenção daquilo que eles procuravam. Os peritos (ligados ao setor de calçados da missão comercial) passaram imediatamente a examinar as fórmulas e, enquanto faziam esse trabalho, Chevtchenko sepultou Ivan sob uma avalanche de elogios. Ivan respondia modestamente: — Achar não alegra, perder não preocupa. — Chevtchenko, ainda animado com a história de Ivan, reconheceu que a epígrafe era simplesmente brilhante.

— O peixe procura os lugares mais profundos. O homem, os melhores. — Chevtchenko não conseguiu entender muito bem o significado da frase, mas continuou dirigindo os melhores elogios a Ivan.

— Elogiar é fácil, difícil é ser sincero.

— Não, não, absolutamente — disse Chevtchenko. Seus elogios eram sinceros, a maneira como ele obteve os documentos, brilhante. Ivan replicou mais uma vez com modéstia: — Todos são feitos da mesma cepa.

Ainda aguardando o resultado, Chevtchenko — subitamente pessimista — manifestou a esperança de que os documentos encontrados por ele, Ivan, fossem realmente a fórmula desejada e não um punhado de notas sem valor.

Ivan se manifestou, também, mas à sua maneira: — Com vinagre não se apanham moscas.

Aquela mosca, porém, havia caído no vinagre. O documento referendado como Unalim não revelava a fórmula. Descrevia, simplesmente, como certos processos, tentados nos laboratórios, eram desnecessários. Chevtchenko ficou amargamente desapontado e lançou toda a culpa sobre Ivan. Era um louco. Ivan encolheu os ombros: — Não julgues os outros por ti.

Mais tarde, refletindo, Chevtchenko achou que o truque de Ivan havia sido muito perigoso. Talvez os tivesse colocado numa posição difícil. E, absolutamente, jamais poderia ter funcionado. Ivan era um louco, e pronto!

— Melhor feliz do que inteligente — disse Ivan, encerrando com isso sua série de provérbios e frases de efeito, já que — logo a seguir — foi expulso do gabinete de Chevtchenko.

Relembrando o acontecido, Arkadi disse a Boris: — Não importa o que Chevtchenko diz. A verdade é que esses papéis sobre a Unalim contêm informações valiosas. Saber o que não deve ser feito só perde para o saber como deve ser feito. No mínimo, poupa-nos a realização de uma enorme quantidade de experiências inúteis.

— Isso é verdade — concordou Boris, saboreando sua cebolinha em conserva. — É verdade quando se tem tempo. Mas estamos atrasados. O documento será mandado para o Centro, sem dúvida. E temos que conseguir a fórmula. Só serve a fórmula. Nada mais interessa.

Conforme chegou a transpirar, a falha de Ivan não foi o pior incidente ocorrido naquela Segunda-Feira Negra. O próprio Boris iria fornecer notícias muito mais horrorosas, verdadeiramente ameaçadoras.

Às dez horas da mesma segunda-feira, Boris colocou a escada e o resto do equipamento no carro para ir limpar as janelas dos escritórios de Wilfred Perring em Harlesden. Os limpadores de janelas são capazes de executar outras funções além de plantar microfones minúsculos nas cortinas: podem também fotografar documentos com minicâmaras equipadas com lentes telescópicas. Enquanto alguém está examinando qualquer documento em sua mesa, o limpador-faxineiro poderá — montado numa escada por trás dele — fazer um instantâneo tranqüilo. Evidentemente, ninguém poderia garantir a Boris que o documento estudado, ao alcance da sua máquina fotográfica, fosse relevante, mas aquele era o seu dia de sorte e não custava nada tentar. Sorte, nada. O chefe do departamento de limpeza parecia embaraçado e aborrecido quando Boris chegou.

— Será que a Betteridge & Spalding não recebeu a minha carta? — perguntou o chefe. — Certamente que não — respondeu ele a si mesmo —, caso contrário você não estaria aqui. Os correios andam uma porcaria nestes dias que correm...

Aconteceu que o contrato com a firma Betteridge & Spalding havia terminado e a limpeza das janelas passaria a ser feita por outra. Na realidade, já havia outro homem pendurado nas janelas desde aquela manhã. O chefe apontou para um cara em cima da escada no fim do escritório, limpando as janelas do gabinete do engenheiro-chefe do setor químico. Boris tentou argumentar, mas o chefe do departamento de limpeza, é claro, recusou-se a discutir o assunto com um faxineiro. Disse que já era tarde demais e nada poderia ser feito a respeito do contrato. Que a firma Betteridge & Spalding lhe telefonasse depois das quatro da tarde. E o caso estava encerrado. O chefe — sempre muito ocupado — virou as costas e foi tratar de outros assuntos. Boris dispôs-se a partir também, cheio de pensamentos sombrios. Logo alcançou o fim do escritório, onde o novo sujeito estava trabalhando. Olhou para ele por alguns momentos, mas o outro ignorou-o. Boris aproximou-se mais da escada, e ao fazê-lo — só Freud poderia explicar! — tropeçou nela, ligeiramente, por engano. Foi então que a tragédia aconteceu. O homem não caiu da escada, nem partiu o pescoço. Muito pior: soltou um palavrão de quatro letras — chort!

"Chort" é um palavrão de quatro letras (o ch conta como uma letra só), mas não é um palavrão muito forte. Apenas significa "diabo!" ou "inferno!". Mas é um palavrão russo. Sem sombra de dúvida, um palavrão muito russo. Portanto, o homem lá em cima da escada era russo. Evidentemente, ainda seria possível que a nova firma tivesse contratado um faxineiro, que, por coincidência, era russo. Mas não era provável. Nada de se iludir! O cara era mesmo do GRU e estava tentando fotografar documentos com lentes telescópicas. Claro, claro como água pura!

Chevtchenko atingiu as profundezas do desespero. Não tinha ilusões a respeito das conseqüências de se deixar ultrapassar pelo GRU na execução de suas missões. Permaneceu silencioso por um longo período. Depois, olhou mais uma vez para a paisagem coberta de neve. As lágrimas afloraram

a seus olhos. Enfiou três vodcas rapidamente pela garganta abaixo. Com isso, começou a recompor-se. O desespero lentamente foi se transformando em raiva. A raiva, em fúria. Dirigida toda contra Arkadi. Afinal de contas, todo o problema era, em primeiríssimo lugar, de sua — dele, Arkadi — responsabilidade. Chamou-o de biscateiro estúpido e desajeitado. Disse que Gurbanov só estava interessado em fazer amor com as garotas e não tinha tempo nem para pensar um pouco na mãe-pátria. Na mãe-pátria do socialismo. Haveria um desastre nacional e Gurbanov seria responsabilizado por ele. E ficou falando e seguindo essa linha de argumentação por bastante tempo. Até que, finalmente, parou. Arkadi pôde, então, falar calmamente:

— Já fiz os meus planos, Major Chevtchenko. Não se esqueça de que os esforços de Rosamund e de Ivan Stepánovitch Anatolski foram apenas complementares. Sei o que estou fazendo e tenho certeza de que serei bem sucedido.

— Sabe? Tem certeza? — perguntou o major, com um acento de raiva venenosa na voz. Então, após uma longa pausa, virou-se e repetiu, esperançoso: — Você sabe mesmo? Tem certeza?

— Tenho certeza, camarada major.

— Mas você tem certeza absoluta, Gurbanov, de que conseguirá a fórmula antes dos homens do gru?

Bem... A respeito dessa questão uma certeza absoluta poderia parecer loucura. Por isso, Arkadi respondeu:

— Não, camarada major, disso eu não posso ter certeza...

— Chort! — exclamou Chevtchenko. — É melhor você ter certeza absoluta, Gurbanov, no interesse de nossa pátria socialista. Para não falar de nossos próprios interesses. E muito menos dos seus interesses pessoais.

 

— Você tem mesmo um plano, Arkadi? — perguntou Boris na lanchonete, comendo peixe e batatas fritas. — Ou estava blefando?

— Oh, não. Tenho mesmo. Um bom plano, por sinal...

— Um plano centralizado em Oriana?

— Não, em Fritz.

— Quem é Fritz?

— O cachorro de Oriana, um dachshund.

— Está brincando? ...

— Não.

— Está louco?...

— Não.

— Quer mais peixe?

— ...Com duas porções de fritas, por favor. Quando Boris voltou com o peixe e as fritas, Arkadi prosseguiu:

— Você me perguntou se eu falava a sério. Dentro de nossos parâmetros, estou falando tremendamente a sério, uma seriedade mortal. Agora, eu pergunto, Boris: estamos metidos num negócio sério? Somos atores de um verdadeiro drama ou de uma farsa?

— Jamais tive certeza da diferença — respondeu Boris.

— Devíamos nos comportar como gente adulta — continuou Arkadi —, mas andamos por aí disfarçados de garis e faxineiros, tentando fotografar documentos do alto das escadas com lentes telescópicas.

— E arranjando esquemas com dachshunds, sem lentes telescópicas...

— Sim, isso também — concordou Arkadi.

— Mas acho que é sério, apesar de tudo — disse Boris. — A vida de milhões, o destino de nações, dependem, realmente, dessas brincadeiras infantis. Missões como a nossa são mais sérias do que descobrir segredos atômicos. Afinal, os segredos nucleares são conhecidos de todo mundo. E, além disso, os segredos nucleares não ajudam ninguém e podem matar a maioria. Por último, precisamos mesmo da Unalim para o futuro bem-estar do nosso povo. De minha parte, estou completamente, de todo o coração, ao lado de nosso povo e de nossos chefes neste caso, Arkadi. Por que razão esses malditos capitalistas devem ficar sentados em cima de uma fórmula e deixar que milhões de pessoas morram de fome ou vegetem por falta de nutrição, apenas para aumentar os lucros desses criminosos? Não, desculpe-me, mas acho que o assunto é sério, muito sério mesmo...

Arkadi continuava comendo seu peixe com fritas em silêncio, pensativo.

— Mas ao mesmo tempo é uma comédia — continuou Boris. — É tudo uma comédia. As pessoas em pé, diante de uma bancada de trabalho, executando o mesmo movimento milhares de vezes por dia e vivendo disso. Pecadores e excêntricos, egoístas, cheios de pompa, sentados, julgando homens decentes. Ignorantes tentando ensinar coisas que nem eles entendem a gente ainda mais ignorante e ganhando somas astronômicas por seus esforços sem sentido, realizados de má fé. Homens sentados dentro de latas apertadas, que os conduzem em alta velocidade a destinos fúteis e ridículos, exibindo rostos sérios. Políticos gritando "Viva a liberdade!" e escravizando milhões de seres humanos. Outros políticos gritando "Abaixo a exploração! Viva o socialismo!" e infernizando as vidas de outros milhões, explorando-os com os mesmos velhos truques capitalistas. Povos — loucos de coração nobre — morrendo por seus ideais, seus sacrifícios sendo usados, distorcidos, esquecidos ou — pior ainda — explorados por gente que esses mesmos povos têm sempre detestado. Poderia continuar, Arkadi, mas não o farei. A vida é uma piada, às vezes sem graça. É tudo uma comédia.

— É tudo uma comédia, sim, menos nosso compromisso de obter a Unalim? Só esse compromisso é sério?

— Só ele é sério, sim. Portanto, vamos conseguir a fórmula da Unalim, mesmo que não possamos evitar que façam de nós uma piada universal.

Tinham acabado de jantar, mas acharam melhor não sair os dois juntos. Boris saiu primeiro.

— Você acha boa — perguntou Arkadi — a idéia de Chevtchenko de fazermos relatórios pormenorizados de todos os nossos movimentos?

— Bem, não devemos falar abertamente. Devemos usar um código.

— Mesmo assim...

— Ele deve ter suas razões.

— Boas?

— Conhecendo o homem, eu diria idiotas. Realmente, não sei. Talvez seja mais simples sabermos sem demora tudo o que está acontecendo. Talvez ele prefira não ser importunado, diretamente, a toda hora, pelo telefone da missão comercial. Ou qualquer outra coisa assim. Sei lá.

Boris desapareceu nas profundezas de Fulham. Arkadi seguiu o mesmo caminho alguns minutos mais tarde e esperou por um táxi. Os táxis não são muito freqüentes nas ruas de Fulham à meia-noite, mas passam de vez em quando, a maioria das vezes retornando de Wimbledon. Arkadi estava profundamente absorvido em seus pensamentos e nem um pouco impaciente com a espera.

— Uma moeda pelos seus pensamentos — ouviu, de repente.

Era Jean, da lanchonete. Boris e ele tinham sido seus últimos clientes. Ela estava arrumada para voltar para casa e, realmente, dava para impressionar.

— Estou esperando um táxi. Quer uma carona?

— Moro muito longe.

— Não importa — disse Arkadi, admirando a bela mulher à sua frente, alta e morena. — Ou você gostaria de ir comigo a uma discoteca para tomar um drinque e dançar um pouco?

— Com prazer.

Mais tarde, ao chegar a casa, Arkadi atirou-se furiosamente a ela, com a ferocidade e a fúria combinadas de todos os rios e vulcões do mundo. Não pensou nem por um segundo em Ivy ou Oriana, nem em espinafre ou sutiãs pretos. Foi um ato de amor, vivido furiosa, passional e selvagemente.

— Você parece um tigre — disse-lhe ela, ao ouvido, sem mostrar desagrado, ao mesmo tempo em que estendia a mão na direção do seu rotineiro cigarro pós-coital.

Mas não chegou a acendê-lo. Jean era a primeira mulher na vida de Arkadi desde que ele tinha saído da Rússia. Nem havia esticado as pernas, já Arkadi voltara à carga, em nova investida carnal.

Na manhã seguinte, Jean não teve pressa. Seu trabalho na lanchonete só começava à tarde. Tomaram o café da manhã juntos, com Ivan longe ou discretamente escondido na casa.

— Quando nos veremos novamente? — perguntou Arkadi.

— Nunca mais...

— Nunca mais?

— Nunca!

— Mas por quê? Eu gosto de você. Gosto muito. Acho você maravilhosa. Você não gosta de mim?

— Gosto. Você não é nada mau. Até que é bom mesmo. Mas há limites para tudo...

— Limites para quê? — perguntou Arkadi, admirado.

— Bem, eu gosto da coisa. Realmente, gosto muito. Não me importo de fazer amor duas vezes seguidas. Duas vezes, para mim, tudo bem. Até tenho uma espécie de admiração pelos homens que conseguem dar três. Virilidade, afinal, é isso mesmo. Mas sete vezes?... O que é que você pensa que eu sou?

— Deixe-me explicar, Jean, por favor...

— Não precisa explicar. Foram sete vezes. Mal pude me mexer. Mas contar eu pude. Sete vezes... Como é que vocês chamam mesmo, no seu país, àqueles caras que ganham medalhas e diplomas e sei lá o que por trabalharem mais do que os outros?

— Stakhanovistas?

— Isso mesmo. Sta... o quê?

— Stakhanovistas.

— Agora, escute aqui: eu quero um namorado. Quero, sim. Realmente, quero ter um namorado. Mas não quero de jeito algum um fodedor stakhanovista. Deus me livre. Obrigada. E passe bem.

Dito isto, saiu para nunca mais voltar.


                   Lanche

— Preciso falar com você, querida — apelava Arkadi ao telefone.

— Não tenho tempo. Desculpe. Podemos nos encontrar para jantar, mas não muito tarde — respondeu Oriana.

— Não. Preciso muito falar com você antes disso. Agora. Mesmo que seja apenas por cinco minutos.

Oriana hesitou, obviamente insatisfeita com a idéia. As gotas de suor frio escorriam pela testa de Arkadi no momento em que ele segurava o telefone. Havia uma reunião marcada para logo depois do almoço e era essencial que ele a visse antes. E depois também.

— Tenho que ver meu tio — disse Oriana.

— Tio Wilfred?

— Não. Tio Harris, o irmão dele.

— Na fábrica? — perguntou Arkadi, na esperança de que o encontro fosse mesmo na fábrica.

— Não. Ele tem um auto-serviço funerário.

— O quê? — Arkadi estava habituado às maneiras extravagantes e frívolas do Ocidente, mas desta vez tinha certeza de que havia ouvido mal.

— Um auto-serviço funerário.

— Mas como é que alguém pode se auto-enterrar?

Arkadi era e permanecia sendo um europeu oriental e odiava que o fizessem de bobo. Tinha medo até de ser vítima de si mesmo. Devia ser — sentia ele nos ossos — uma maneira óbvia e fácil pela qual os mortos conseguiam eles mesmos se enterrar, uma maneira nova que escapara à sua sociedade, toda ela mentalmente atrasada, lenta de raciocínio, de espírito não-comercial.

— Claro que ninguém consegue se enterrar — disse Oriana rindo. — Mas a família do morto poderá fazê-lo. Ou, pelo menos, tratar de grande parte do enterro. As pessoas gostam de fazer isso. Quem ama simplesmente adora ajudar. Meu tio Harris é um cara muito sutil. Foi tudo montado tendo em vista o relacionamento amor-ódio que existe em todas as famílias. Para alegria dos sobreviventes. Parecem tão bons, tão pesarosos, tão aflitos. Chegam a chorar. Cheios de tristeza, mas, ao mesmo tempo, felizes e aliviados. E assim podem ter certeza de que o cunhado ou a sogra amada ou, mais do que todos, o marido ou a esposa querida descansam em paz.

— Você não acha que é um pouco cínico? — inquiriu Arkadi, chocado.

— Um pouco, não. Muito cínico. Mas fez do tio Harris um homem rico. De qualquer forma, Gurbanov, se você realmente insiste em me ver...

— Sim, claro que insisto.

— ...então, apareça no auto-serviço funerário do tio Harris às onze e meia.

Deu-lhe um endereço no bairro de St. John's Wood, não muito longe, e desligou.

Arkadi sabia que todos os seus parceiros, tanto em Londres como em Moscou, deviam estar desesperados àquela hora, esperando que ele fosse bem sucedido. Mas era quase impossível, quase uma quimera.

Mal desligou, fez nova chamada — de acordo com as instruções mais recentes —, dando notícia de seu encontro das onze e meia a Ivan, que telefonou a Boris, que informou Chevtchenko, que, por sua vez, informou Orlovski, no Kremlin.

Todo o esquema parecia louco, mas tinha sido bem estudado. A Segunda-Feira Negra havia parecido ainda mais negra, vista em retrospectiva, no momento em que, depois da partida de Jean, Ivan lhe passou a mensagem de que teria de se apresentar ao Capitão Suiumabev, às nove e meia, precisamente. "Meu Deus", pensou Arkadi, "falhei como espião, e agora eles vão me mandar de volta para aquele lugar cruel de oficial ilegal de apoio. Não posso dizer que estejam sendo injustos comigo", refletiu ele, "mas ainda assim é extremamente humilhante. A injustiça é fácil de agüentar. A justiça é que dói."

— Como é que vai o nosso querido e importante amigo? — saudou Suiumabev com malícia. Estava com inveja de Arkadi. Não fazia idéia de por que o tinham tirado do setor de apoio ilegal, nem em que espécie de missão o tinham engajado, mas não queria, também, que Arkadi soubesse que ele nada sabia. Obviamente, o rapaz tinha sido chamado, promovido e removido para cargo mais alto. Por isso, ele o tratava com inveja e despeito, aliados a uma dissimulada amizade. Não podia perguntar nada. As perguntas estavam proscritas. Além disso, feitas, revelariam sua ignorância.

— Camarada capitão — respondeu Arkadi com frieza. — Estou me apresentando conforme instruções recebidas.

— Sim — concordou Suiumabev. — Seu amigo está esperando por você.

Indicou o antigo gabinete de Arkadi, que abriu a porta e entrou. Hugo, o pseudogarçom pseudoportuguês, estava sentado na sua antiga cadeira. Hugo, que só tinha metade do rosto — o resto havia sido levado por uma bala —, parecia mais repugnante do que nunca. "Será que ele está de fato mais nojento", pensava Arkadi, "ou é só impressão, porque não o vejo há muito tempo?" Hugo não o cumprimentou, nem sequer olhou para ele. Deu-lhe apenas as instruções em termos frios, sóbrios e lúcidos. Era, obviamente, um homem muito mais bem-educado do que Arkadi havia suspeitado. Hugo deu-lhe, também, o instrumento, explicou como usá-lo, e concluiu abruptamente: — Agora vá. E nada de meter os pés pelas mãos.

Hugo nem sequer inquiriu se ele tinha perguntas a fazer. Contou-lhe tudo, com a maior clareza: as perguntas eram desnecessárias. Arkadi saiu, mergulhado em profundas meditações. Logo a seguir telefonou para Oriana.

Às onze e meia, compareceu ao auto-serviço funerário do tio Harris. O Hispano Suiza de Oriana já estava estacionado na rua. Arkadi olhou para a vitrine. Continha um caixão extremamente convidativo, forrado de púrpura e com uma bela coroa de flores em cima, tudo sugerindo que a morte certamente pode ser muito confortável e até luxuosa. "Com o tipo certo de invólucro", pensou Arkadi, "qualquer homem de negócios ocidental, esperto, poderá fazer a morte parecer uma feliz viagem. Um feliz cruzeiro para a eternidade." Mas logo se lembrou de que todos sempre invejam os mortos, até na Rússia. "Os mortos são sempre o centro das atenções. Todo mundo fala deles com bondade. Estão mortos, sim, mas essa é a única desvantagem."

Foi recebido por uma recepcionista muito bonita, de minissaia, toda de preto, e conduzido por ela até os aposentos particulares do tio Harris. Oriana estava só, com Fritz, numa elegante sala de visitas.

— Obrigado, Oriana, por ter permitido que eu viesse. Alô, Fritz.

— Muito bem, o que é que há? — inquiriu Oriana, pouco amistosa.

— O que é que há? — perguntou Arkadi, como se ele não soubesse.

— Por que você queria me ver, assim, com tanta urgência? O que é que você quer me contar?

— Nada de especial. Queria apenas vê-la.

— Por que a urgência? Desejo súbito? Não foi o que pareceu ao telefone.

Arkadi colocou sua pesada pasta em cima da mesa baixa.

— Foi, realmente, uma necessidade súbita. Você significa muito para mim, Oriana.

Ela não respondeu. Ele ficou embaraçado e voltou-se para Fritz.

— Alô, Fritz... Você é um lindo cachorrinho... Oriana estremeceu.

— Estou mais do que lisonjeada por sua inesperada declaração de amor, mas você deve estar maluco. Como a maioria dos russos. De qualquer forma, não podia haver hora e lugar menos apropriados para uma cena romântica. Acho que já lhe disse — se não disse, estou dizendo agora — que às três horas tenho uma reunião importantíssima. Tio Wilfred me colocou à frente de uma operação vital e estou determinada a mostrar-lhe que sou tão eficiente quanto ele. Pois bem, às três temos essa reunião inicial. Antes disso, tenho que ir até a Fortnum and Mason's para comprar qualquer coisa para minha tia, que faz anos amanhã. Preciso comprar também um conjunto bioquímico para viagem e algumas cápsulas de Biv-A-Tabs para mim. Ainda por cima, preciso trocar algumas impressões com tio Harris. Quase não tenho tempo para respirar e você me vem com declarações de amor!...

A referência ao conjunto bioquímico para viagem e ao Biv-A-Tabs deixou Arkadi curioso. O que eram Biv-A-Tabs? Mas estava concentrado no trabalho que tinha em mãos. Aliás, Oriana ainda não tinha terminado.

— Muito bem. Se você queria me ver, olhe para mim e depois vá embora.

— Será que poderíamos nos encontrar mais tarde, já que você está tão ocupada agora?

Oriana olhou para ele como se o estivesse considerando naquele momento pela primeira vez.

— Venha cá, Fritz... Oh, cachorrinho bom, inteligente ... Fritz querido...

— Sim, podemos — disse Oriana. — No bar do Hurlingham Club, às seis.

— Pena não ter trazido um pedaço de salsicha ou coisa parecida comigo para dar a Fritz — respondeu Arkadi, desviando-se da questão.

— Estou profundamente impressionada com seu súbito interesse por Fritz — disse Oriana. — Se gosta realmente dele, pode me fazer um favor. Leve-o a passear um pouco. Vá até aquele parque lá fora e não volte antes que ele faça o que tem a fazer. Esta manhã, infelizmente, não tenho tempo. Que vergonha! Pobre Fritz, deve sentir-se terrivelmente mal. Enquanto isso falo com tio Harris.

Oriana entregou-lhe a correia de Fritz. Arkadi pegou a maleta.

— Você pode deixar isso aqui — disse Oriana.

— Acho melhor levá-la comigo.

— Cheia de importantes segredos de Estado — zombou ela.

— De importantes segredos comerciais — corrigiu Arkadi, antes de sair, acompanhado de Fritz.

Podia sentir as palpitações da excitação nos pulsos. Aquela era, realmente, a primeira dose de boa sorte desde que assumira sua missão em Moscou. Era quase inacreditável. A única criatura com quem ele queria ficar a sós era justamente Fritz, mas não tinha podido imaginar como consegui-lo. Passou-lhe pela mente uma série de planos loucos desde que deixara Hugo, mas cada um parecia mais ridículo, despropositado e ineficiente do que o outro. E agora, como se fosse uma resposta às suas orações, Oriana pedia-lhe — por favor — que fosse dar um passeio com Fritz!

Enfim, desejando conquistar a amizade do cachorro, tirou a correia da coleira logo que saíram de casa. Fritz pulou e correu a uma velocidade muito além daquela que Arkadi se julgava capaz de atingir. A caça começou, mas já estava perdida antes de começar: seria um caso perdido mesmo sem a pesada pasta na mão. Apesar de tudo, Arkadi continuou correndo, com o coração pulsando de pânico, mais do que de exaustão, na direção em que Fritz tinha desaparecido. Quase desmaiou de alívio quando, ao dobrar uma esquina, encontrou o cão farejando a base de um poste. Era tão completa a concentração de Fritz no que estava fazendo que Arkadi pôde até se aproximar e colocar de novo a correia na coleira sem que ele percebesse. Continuaram. Fritz fez novas tentativas para escapar, ficando especialmente excitado quando outro dachshund passou por perto, conduzido por uma bem-vestida senhora de idade. Mas a essa hora a autoridade de Arkadi já tinha sido totalmente restabelecida, a correia firmemente presa à sua mão.

Chegaram ao pequeno parque. Arkadi começou a brincar com o cachorro. Fazia-lhe festas e falava com ele, com voz meiga, de amigo. Fritz apreciava a atenção dispensada, mas, afinal de contas, estava muito mais interessado nas mensagens deixadas por outros cachorros. Portanto, Arkadi permitiu-lhe — para melhor se insinuar — uma excursão pelos postes, pedras, árvores e arbustos. Depois, voltaram ao banco. Arkadi sentou-se e olhou em volta. Não havia muita gente no pequeno jardim. No banco ao lado estava um homem — parecia um estivador, um mineiro ou um mecânico de automóveis em greve — lendo o Morning St ar e tendo outro jornal, o Sun, no banco ao lado, aguardando leitura. Do lado oposto, uma velhota estava tendo uma conversa séria com uma jovem — filha?, ou apenas uma passante? — e havia crianças nos brinquedos do parque, umas no carrossel e outras deslizando no escorregador com rostos muito sérios.

Arkadi abriu a pasta e tirou dela uma lata de comida para cachorro. Na tampa estava escrito: "Ballantine, comida para cachorro, a melhor do mundo, recomendada pelos peritos". Os peritos seriam cachorros ou seres humanos? Arkadi ficou divagando, lendo o resto do rótulo: "Aumente a resistência de seu cachorro. Mantenha seus intestinos puros e limpos. Livre-o de vermes. Faça-o feliz". E por baixo um texto grande, em preto: "Cachorro cansado de Ballantine é cachorro cansado de viver".

Depois, Arkadi tirou um abridor de latas do interior da pasta. Tirou também alguns guardanapos de papel e alguns pedaços de salaminho, cortados fino e embrulhados em celofane. Abriu cuidadosamente a lata. Ficou procurando a ponta do celofane durante um bom minuto, mas acabou conseguindo desembrulhar o salaminho. Cortou três fatias em pedacinhos (a quarta fatia, meteu-a na boca) e misturou o salaminho com a comida de cachorro, para torná-la mais saborosa e irresistível. Foi então que ele retirou da pasta o instrumento que Hugo lhe tinha dado e colocou-o na comida, como mais um ingrediente do lanche de Fritz. Depois, limpou cuidadosamente os dedos, retirando deles todos os traços de comida.

Fritz devorou de uma vez só toda a refeição inesperada. Engoliu também o microfone, com muito gosto.

 

                   Broche de esmeraldas

— Para que serve isso? — perguntou Oriana, entrando no Heloise.

Arkadi estava sentado no chão, as pernas cruzadas, o corpo ereto, a cabeça pendente.

— Uddiyana. Minha assana favorita.

— Você está falando russo?

— Estou falando hindi. Venha, querida, mostre-me sua posição de lótus.

— Não vou lhe mostrar minha lótus. Aliás, não vou lhe mostrar nada...

— Não digo que a uddiyana seja uma grande conquista — disse Arkadi. — É uma simples postura budista, como você sabe. Não exige muita aplicação. Buda sabia o que estava fazendo. Não era muito do tipo esportivo.

— Você também não se parece muito com ele. Não é nenhum Buda.

— Você não pode esperar que eu atinja a perfeição em tão curto tempo. Tampouco que eu comece logo com ioga mudra... Aliás, é até muito bacana de minha parte lançar-me, assim, à ioga, só para lhe agradar.

— Bobagem, Gurbanov. Está dizendo bobagem. E ioga é, também, uma grande bobagem. Já não a pratico mais. É inútil. Uma fraude.

— Uma fraude? — perguntou Arkadi, surpreso e desanimado, ainda sentado no chão, mas parecendo-se menos com Buda do que nunca.

— Uma fraude, sim. Você, certamente, não acredita que essas contorções possam levá-lo a um estado de purificação ou ao seu verdadeiro eu, não é? É uma idéia ridícula. Você acha mesmo que pingar em seu pênis algumas gotas de água serve para alguma coisa?... Aliás, eu não tenho pênis!

— ... Deus seja louvado...

— Não vejo por que você deva louvar a Deus por isso, Gurbanov. Além disso, você não tem razão nenhuma para ser frívolo. Ou leviano. Ou para estar feliz. Pode crer. Mas já chego lá. Deixe-me primeiro acabar com o assunto ioga. Tudo aquilo era desconcertante. Arkadi deu uma olhada rápida para Fritz, que estava descansando, tranqüilamente, numa almofada. "Parece pálido", pensou. Aí, refletiu: "O que é que me leva a pensar que um dachshund preto pareça estar pálido?"

— Há praticantes de ioga — continuou Oriana — que absorvem água pelo ânus e, após anos e anos de prática, são capazes de inverter tudo, de trás para a frente, de baixo para cima, e sentir a água na boca. Você acha que beber água, ou tomar qualquer tipo de refrigerante pelo ânus pode levá-lo à purificação, Gurbanov? Eu chamaria a isso hábito sujo. Houve alguém que chegou a falar de "piscadela anal". Gostaria que eu lhe piscasse o ânus em lugar do olho, Gurbanov?

— Particularmente, não me importaria. Daria preferência ao seu piscar de olhos, Oriana. Mas não seja por isso, querida, dê suas piscadelas mesmo com o traseiro. Realmente, não me importo. Desde que você pisque para mim, tudo bem...

— Não vou piscar — disse Oriana com firmeza. Seus olhos, na realidade, estavam faiscando, não piscando. Aliás, estava extremamente bonita, apesar da roupa estranha que usava. A raiva tornava-a ainda mais bonita. Arkadi tentou utilizar o tempo ganho com a discussão. Parecia claro para ele que alguma coisa tinha saído gravemente errada. Mas se alguma coisa tinha saído errada, por que razão eles estavam ali, no Heloise, no Buckerell Moon?

— Quer dizer, então, que você já abandonou a idéia de ser purificada? — perguntou ele, tentando prolongar a conversa. — Tentei o tênis por sua causa, tentei a ioga para lhe agradar...

— Bem, pode ficar no tênis. É inqualificavelmente inútil, mas melhor do que a ioga... Não, não abandonei a idéia de ser purificada. Na realidade, já encontrei o verdadeiro caminho. O único caminho.

Arkadi não perguntou qual era. Não foi preciso.

— Uma alimentação saudável, Gurbanov. Não preciso de mais nada. É tudo uma questão de composição bioquímica. Se seu corpo tiver a composição certa, os ingredientes verdadeiramente puros, a alma, todo o ser, ficarão verdadeiramente puros. É a maneira cigana de viver. A única e verdadeira maneira de viver. A maneira de Leon Petulengro. As plantas e as ervas contêm todos os segredos, todas as respostas, Gurbanov. A vida é uma progressão de imediatos a ultimatos.

Arkadi não sabia o que aquilo significava e esperava que ela não explicasse, mas sabia também que devia cutucá-la com mais algumas perguntas: quanto mais a conversa se prolongasse, melhor. Fritz ainda continuava com o microfone dentro da barriga e não seria difícil resgatá-lo. Seria até muito fácil arranjar um tête-à-tête com Fritz. Mas primeiro tinha que saber o que havia saído errado, tão errado que fazia com que Oriana não quisesse piscar para ele, anal ou normalmente.

Tinham se encontrado no bar do Hurlingham às seis, como combinado. Ela estava vestida com uma ostentação um tanto exagerada, mesmo para o seu padrão. Arkadi não entendia muito de moda feminina, particularmente de moda feminina ocidental, mas compreendeu imediatamente que o vestido de Oriana era chocante. Ela estava exibindo o que Arkadi conhecia como conjunto-pijama. Era uma mistura de todas as cores do arco-íris, com predominância do verde, do laranja e do púrpura. Havia um montão de balangandãs pendurados nela, incluindo fios de ouro que davam várias voltas em seus pulsos e tornozelos. Trazia também um broche de esmeraldas, enorme, ligeiramente incongruente, na lapela esquerda. E para coroar tudo usava um dos seus chapéus mexicanos, feito com o mesmo material do conjunto. Fritz usava um chapéu semelhante. Ao chegar ao bar, quase nem o cumprimentou. Meteu duas doses duplas de uísque pela garganta, quase sem intervalo, e disse, breve: — Vamos.

Entraram no Hispano, que ela conduziu ao Buckerell Moon, no condado de Devon, a uma velocidade média de cento e setenta quilômetros por hora. Sempre que, deixando a rodovia principal, tinha que entrar numa estrada estreita e sinuosa, baixando a velocidade para cento e trinta quilômetros horários, ela ficava obviamente irritada. Durante toda a viagem não proferiu uma única palavra. Mas, no quarto, logo começou com o negócio da alimentação natural.

— Acabo de deixar minhas cápsulas de Biv-A-Tabs com o chefe de cozinha.

— É tudo o que você vai comer?

— Não. Vou tomar também algumas de Brigaton TF3. Afinal de contas, preciso de ácido paraminobenzóico, não é? E vou tomar ainda um pouco de chá de crisântemos para empurrar tudo para baixo.

— É isso, realmente, o que vamos comer? — perguntou Arkadi, horrorizado.

— Nós? Você, não sei. É isso que eu vou comer. Se quiser continuar comendo essa porcaria de tournedos e lagostas, problema seu...

Arkadi sentiu um grande alívio.

Mas a conversa tinha que parar. Uma espécie de explosão estava para acontecer a qualquer momento. Mas não aconteceu. Alguma coisa de inesperado acabou surgindo — inesperado só para quem não fosse esperto o bastante para se habituar a esperar o inesperado de Oriana.

Por um momento, ela apenas ficou olhando para ele. Depois, a expressão grave e irritada de seu rosto suavizou-se e converteu-se num doce sorriso. Tirou o chapéu mexicano. Em seguida, o conjunto-pijama, todos os fios, o broche de esmeraldas. Arkadi começou a ficar desvairado, mas não fez um movimento sequer. Ela retirou a cinta elástica um pouco desajeitadamente. "As cintas são coisas desajeitadas", pensou ele. "Tomara que não se tornem moda na União Soviética." Finalmente, ela conseguiu desembaraçar-se da cinta. Ficou de calcinhas e sutiã (rosa, não preto desta vez) e sorrindo, sorrindo para ele, convidativamente. Arkadi quase rebentava de desejo, puro, animal. Queria jogar-se sobre ela, mas não tinha coragem. Certamente, havia cometido alguma falta grave no outro dia e agora recusava-se a cair novamente na armadilha.

— Bem? ... — disse Oriana.

Arkadi já não podia agüentar mais. Abraçou-a. Puxou o sutiã dela para cima, a calcinha para baixo. Abriu suas calças, não levou nem um segundo para tirá-las. Fez com que ela se deitasse na cama, forçou um pouco para que ela abrisse as pernas. Oriana, subitamente, parecia não muito disposta, como se tivesse mudado de idéia. Ele, porém, já se preparava para penetrá-la com ferocidade selvagem, quando ela lhe segredou, encorajando-o: — Vem... Vem... Tome-me toda... Gurbanov... Afinal, essa é a sua missão ...

Foi a palavra "missão" que provocou tudo. Toda aquela esplêndida e impetuosa virilidade desapareceu como por encanto. Arkadi, desta vez, não se sentiu como se fosse morrer, nem como se estivesse mergulhando nas entranhas da terra. Apenas queria chorar, chorar de desespero e de vergonha. Oriana olhou para ele com carinho e afeição. Beijou-o. Na testa, mas com amor. E disse:

— Você é impotente... Você é o meu grande amor...

— É horrível, Oriana — reagiu Arkadi. — Não sei o que está acontecendo comigo. Costumava ser um touro em Moscou.

— Mas não é um touro — longe disso! — em Devonshire.

— Não, não em Devonshire.

— A não ser que você seja uma espécie de milagre zoológico: o primeiro touro impotente do mundo.

— É fácil para você fazer piada, mas eu... eu sinto vontade de me matar. Quero acabar com tudo. Minha vida terminou.

— Não, não, absolutamente. Eu o amo tal como você é. Você é o homem dos meus sonhos.

— Mesmo que na cama eu não sirva para nada?

Oriana, obviamente, queria dizer algo mais, mas acabou repetindo apenas: — Só se você não servir para nada na cama.

Ficaram deitados por alguns minutos. Ele, olhando para o seu inútil membro. "Um símbolo fálico!", pensou com tristeza. "Mais símbolo do que fálico."

Vestiram-se e desceram para o jantar. Ela ingeriu suas cápsulas de Biv-A-Tabs, seu Brigaton TF3, mais uma ou duas pílulas do conjunto bioquímico para viagem e levou tudo para o estômago com um chá fumegante de crisântemos cujo cheiro quase fez Arkadi vomitar. Por sua vez, ele começou com um venenoso abacate ao vinagrete, passou a uma porcaria de linguado à bonne femme, e terminou com um prato de horripilantes morangos silvestres ao creme chantilly, cuja aparência, notou Oriana, quase a punha doente. Aliás, ele também não estava muito satisfeito: estava preocupado demais com seus problemas. Sua masculinidade agonizante era terrível; o comportamento estranho e ambivalente de Oriana, sua explosão de raiva e a tentativa posterior de se deixar fornicar era pior ainda. E a necessidade de arranjar um plano para retirar o microfone e o cassete da barriga de Fritz também não o deixava menos preocupado.

Oriana olhou com desaprovação para a meia garrafa de Pouilly Fuissé que ele tinha terminado.

— Álcool. Uma porcaria. Não tocaria nele, nem por amor, nem por dinheiro.

Arkadi achou mais diplomático não se referir às duas doses duplas de uísque que ela tomara no bar do Hurlingham.

— Como é que você pode comer todas essas porcarias? — continuou ela. — Vai ficar doente. Como o pobre Fritz.

— Como Fritz? — Seu coração parecia ter parado de bater.

— Sim. Pobre Fritz. Ficou doente.

Ela falou devagar, deliberadamente. Depois de uma pausa dramática, acrescentou: — Vomitou. Mais uma pausa.

— E imagine o que ele pôs fora?

Ele podia imaginar, mas permaneceu silencioso. Oriana, também. Os segundos pareciam horas.

— Um microfone. Um microfonezinho minúsculo. E um gravadorzinho também minúsculo. Uma doçura. Uma doçura indescritível.

Arkadi ficou sem voz.

— Um microfonezinho feito na Rússia.

— Não brinque. — Foi tudo o que Arkadi conseguiu dizer, com uma voz gutural, rouca, do outro mundo.

— E estou brincando, por acaso? — perguntou Oriana, amigavelmente. — Vamos para o jardim, Gurbanov. Vamos ter um papo particular.

No caminho, ela se virou para o garçom e pediu: — Quatro doses duplas de uísque no jardim, por favor.

— Você sabe que eu não gosto de uísque — disse Arkadi, tentando, num ato de desespero, fazer com que ela se sentisse culpada por sua desconsideração.

— Eu sei. São todas para mim, querido. — E ela não se mostrou nem um pouco culpada.

Acendeu um cigarro logo que se sentaram, embora Arkadi nunca a tivesse visto fumar. Oriana despejou duas das quatro doses duplas no estômago. Estavam debaixo de um enorme guarda-sol vermelho e verde, que contrastava com o conjunto-pijama multicolorido. O broche de esmeraldas brilhou estranhamente com um reflexo da luz. À volta havia rosas e outras flores alienígenas, desconhecidas para Arkadi. Era noite de lua cheia e estava tudo muito romântico.

— Você é um espião russo, querido — disse Oriana, de um modo casual.

— Por que você diz essas coisas?

— Tenho apenas uma razão para dizê-las. Uma única razão. É que você é um espião russo.

— Está me ofendendo, Oriana.

Tentou falar como se estivesse sofrendo, mas não conseguiu atingir o efeito desejado.

— Não, Gurbanov, não perca o seu tempo com hipocrisias. Não estou zangada com você. Veja, não estou reprovando sua conduta por ser russo, nem por ser espião. O homem precisa ter uma profissão. Estou simplesmente apontando um fato: você é um espião russo, bem treinado e profissional.

"Bem treinado, nem tanto", pensou. — Escute aqui, Oriana...

— Não, querido, você agora vai ter que me escutar um pouco. Eu estava lisonjeada porque pensava que você gostava de mim. Acreditava que você estivesse andando atrás de mim. Engoli — ingênua e estupidamente — a idéia de que nosso encontro fora acidental. Que a bandeja derrubada das minhas mãos tinha sido um desses truques do destino para juntar duas pessoas. Não foi nenhum truque do destino, foi um truque do kgb.

— Mas, Oriana, eu gosto de você. Não importa o que você pense, a verdade é que estou apaixonado por você. Muito, muito apaixonado...

— "Muito, muito apaixonado." Emocionante. Talvez. Afinal, é até possível. No entanto, tem que me perdoar se eu continuar duvidando. Você pode ter ficado um pouco apaixonado por mim. Mas no início você não andava atrás de mim, queria era a Unalim.

Arkadi quis protestar.

— Espere. É a sua vez de escutar. Tenho uma porção de coisas para lhe dizer e ainda mal comecei. Esta manhã fiquei satisfeita — embora eu estivesse muito ocupada — ao saber de seu súbito desejo em me ver, até que descobri que você não estava querendo me ver, a mim, mas a Fritz. De início, fiquei até feliz por saber de seu interesse por Fritz — seria uma espécie de interesse indireto por mim —, até que soube que, na realidade, o que você queria mesmo era dar uma "ração" de microfone ao pobre cachorro. E, de fato, ele esteve presente à nossa reunião, aquela onde mais se falou de segredos. Deve ter gravado tudo. Os outros aparelhos de escuta não seguem as pessoas. Fritz segue. Não, não, Gurbanov, não me interrompa. Mas pode responder a uma pergunta. Diga-me, o que é que há assim de tão loucamente fascinante na Unalim? Isto é, fascinante para você...

Arkadi, apesar da aversão, engoliu uma das doses de uísque que restavam. Refletiu por alguns momentos e falou.

— Muito bem, Oriana. Vou lhe contar o que há de tão fascinante para nós na Unalim. Poderei ser enforcado, afogado ou deportado se alguém souber que estou lhe contando isto, mas estou, realmente, apaixonado, e minha franqueza é a prova.

Calou-se. A prova custava a sair. Oriana também não o estimulava. Permanecia em silêncio. Então, Arkadi prosseguiu.

— No dia em que nos encontramos, você disse que acreditava na juventude e na revolução. Que era maoísta em dobro ou coisa parecida. Que seu ponto de vista político tinha por base o amor pelo povo...

— ...e também meu desamor pelo tio Wilfred.

— Sim... Também seu desamor por seu tio Wilfred. Por isso, você já devia ter compreendido que a obtenção da Unalim está ligada a tudo aquilo por que você tem lutado. Espalhar o conhecimento da Unalim representa o que há de melhor para a União Soviética. Guardar esse conhecimento, evitar que sirva ao povo, é um ato ligado ao que há de pior e de mais desprezível no seu sistema. O povo diz que sou comunista. Sou russo. Portanto, suponho que sou comunista. Tal como você nasceu capitalista ou como o homem do bar ali adiante nasceu preto. Eu amo o meu povo. Não amo os outros comunistas. Amo os outros russos.

— Então, você não é assim tão comunista.

— Talvez não. Nunca dei muita importância a esse problema. Nunca sequer pensei nele até vir para cá. Tal como aquele negro, lá em sua terra, em Ghana ou outro lugar qualquer de onde veio, não estava preocupado com sua negritude. Tinha até menos consciência de sua negritude que eu do meu comunismo. Tive que ser, de certa maneira, ensinado a ser comunista. Ele já sabia, desde o início, o que era ser preto. Mas eu pensava, mesmo lá na Rússia, o que me fazia amar o povo russo.

— Oh, eles são adoráveis...

— Acho que não. Sei que vocês, aqui, no Ocidente, têm a impressão de que os russos são um povo maravilhoso, oprimido pelos diabólicos comunistas. Se eles fossem assim maravilhosos não viveriam continuamente sob a opressão. Nós, os russos, precisamos de um czar. Nós somos invertebrados, fracos, patologicamente depressivos. Precisamos dos comunistas. Eles não são diabólicos. Preenchem uma necessidade. Não poderíamos viver sem eles ou sem uma variante qualquer deles. Eles são bons para nossas almas. Se os comunistas forem derrubados — e eu espero que isso não aconteça —, serão substituídos por novos czares. Nós somos o único povo do mundo que poderia ser oprimido por uma verdadeira democracia. Não, Oriana, eu não amo os russos porque eles são adoráveis, mas porque eu mesmo sou russo. Nacionalismo — patriotismo, chauvinismo, chame a isso o que quiser — é um ato de auto-adoração. Não gosto de mim mesmo porque sou adorável. Amo a mim mesmo porque acontece que eu sou eu.

— Isso tudo é muito interessante. Mas onde é que a Unalim entra no negócio?

— Aqui mesmo, neste momento. Nós precisamos da Unalim, vocês não. Ela nos salvaria da fome, ou pelo menos da ameaça da fome, e de muito, muito sofrimento. Teríamos um dos nossos maiores problemas resolvido para sempre, poderíamos nos concentrar na montagem de indústrias e na construção do socialismo e de um futuro mais feliz...

— Cuidado! Está escorregando para a terminologia do Pravda.

— Desculpe. Que o Pravda vá para o inferno! Mas uma coisa é verdade: ninguém mais morreria de fome. Ninguém mais passaria fome. Você já alguma vez sentiu fome? Não a necessidade de uma boa refeição após um exaustivo jogo de tênis. Eu digo fome. Fome, e nada para comer?

Oriana olhou para ele com uma expressão séria, mas não respondeu.

— Vocês estão sentados em cima da Unalim. Evitam que chegue ao povo. Não se importam. Talvez nem estejam realmente necessitados dela. Mas estão evitando que a Unalim chegue ao povo. Seu tio tornou-se um homem rico, justamente por não industrializar esse produto.

— Estamos fabricando a Unalim neste momento. Em quantidade limitada. Meu tio, tenho certeza, teria um colapso se você conseguisse a fórmula.

— Você é uma espécie de esquerdista, com um certo sentimento de humanidade. Todavia, seus pensamentos não vão para os milhões que a Unalim poderá salvar, mas para seu tio, que a Unalim poderá matar.

— Você acha realmente que a Unalim o poderá matar? — perguntou Oriana, melancolicamente.

Passou um garçom. Arkadi encomendou mais quatro doses duplas de uísque. Nem um nem outro disseram coisa alguma até que o garçom voltou e foi embora de novo.

— Gosto de meu novo apartamento — disse Oriana.

— Fico satisfeito em saber disso. Você gosta de seu apartamento, tudo bem. Mas por que é que tem que ser sempre tudo seu? Seu tio. Seu apartamento. Seu gosto. Sua satisfação.

— Escute aqui, seu russozinho atrevido. Adoro meu apartamento, mas ele tem um senão.

— Tem mesmo?

— Não gosto de viver sozinha. Pensei que ia adorar. Mas não. O isolamento transformou-se em solidão. Não agüento. Sou um bocado histérica, como você já teve ocasião de notar...

— Não, não tive...

— Ingênuo. Tão educado, tão polido. A não ser, claro, que você não tenha realmente notado nada. Fico bastante histérica, sozinha, em meu novo apartamento. Sinto que vou começar a gritar até que alguém venha segurar minha mão. Preciso partilhar o apartamento com alguém. Mas partilhar um apartamento envolve um problema de escolha muito difícil. Preciso compartilhá-lo com alguém de quem eu realmente goste. Posso ter as minhas falhas, os meus defeitos, as minhas fraquezas. E ele precisa adaptar-se. Precisa ser paciente, acomodado, um homem que saiba perdoar.

— Um homem? — perguntou Arkadi. — Pensei que você estivesse falando de partilhar seu apartamento com uma moça.

— Não. Quero um homem. O homem dos meus sonhos. Na verdade, o que quero é mesmo partilhar meu apartamento com você, Gurbanov.

— Comigo? — disse ele, sorrindo, incrédulo.

— Sim, com você.

— É impossível. Lamento dizer, mas é impossível. Não posso fazer uma coisa dessas. Por que eu? Não posso... Não poderia nunca... Jamais...

— Você tem muitos pontos positivos, Gurbanov, mas o mais extraordinário de todos eles é, justamente, o fato de não poder. Você não pode...

Arkadi olhou para ela com um ar de suspeita. Nunca se sentia absolutamente seguro em relação aos ingleses. Nunca sabia se estavam falando sério ou brincando.

— Eu sou frígida, Gurbanov. Odeio homens. Não os agüento.

Ela ficou vermelha — pela primeira vez desde que Arkadi a conhecera — e virou o rosto, desviando o olhar. Acrescentou: — É por isso que acho você o maior. Porque você não consegue, não pode...

Arkadi ficou sem fala.

— Esta noite... antes do jantar... — acabou perguntando, suavemente — por quê? Por que você se despiu toda? Por que quis me excitar?

— Queria ter a certeza de que você não pode. A certeza absoluta. Antes de lhe fazer minha proposta.

— Que proposta?

— Já vai ouvir. É uma proposta decente e honesta. Levou o uísque aos lábios e depois perguntou-lhe, num tom vivo, coloquial: — Você nunca sequer suspeitou de que eu era frígida?

— Nunca me ocorreu — disse ele, acrescentando com amargura: — A impotência não é tão óbvia no caso das mulheres.

— Oh, não, é suficientemente óbvia quando uma pessoa está a par desses assuntos. E eu os conheço bastante bem. Tenho consciência do meu problema. Conheço profundamente o meu problema. Na realidade, no meu caso é um problema muito visível. A frigidez é uma espécie de histeria, e eu sou, infelizmente, bastante histérica, como já disse. Veja a minha maneira de vestir. Meu tênis, minha ioga, minha dieta salutar. Minhas paixões mutantes. Minha personalidade como um todo. Estou consciente, sim, de todos os problemas que me afetam. E não posso evitá-los. Aliás, o problema é óbvio demais. Só não sei por que ninguém ainda notou. Nem suspeitou. É um segredo todo meu. Meu único e verdadeiro segredo. E estou disposta a manter este segredo. Quero viver com um homem para que todo mundo veja que estou vivendo com um homem. Com um macho, jovem, bem-apessoado, de causar inveja. Com um homem que não vá passar adiante o meu segredo. Com um homem que tenha uma boa razão para não passar meu segredo adiante.

Oriana acendeu um novo cigarro.

— Além disso, você é um espião, um espião russo. Isso faz com que seja ainda mais atraente. Eu sempre fui muito esquerdista. Sempre quis viver com um espião russo. Com um espião russo muito calado.

Oriana olhou para ele com um olhar investigador.

Arkadi sentiu como se tivesse sido atingido por uma faísca. Uma descarga elétrica não o teria deixado pior do que aquele tipo de chantagem.

— E qual é a sua proposta? Sua voz soava grave, cadavérica.

— Nós temos muito que oferecer um ao outro, Gurbanov. Você pode me dar felicidade. A grande e verdadeira felicidade, estou certa. Nunca encontrei ninguém como você. Impotentes há muitos. Mas em regra têm muitos problemas, complexos nojentos, querem vingar sua impotência na mulher que não podem foder. Aliás, muitas vezes, seus complexos são maiores do que a impotência. Uma vez ou outra, conseguem o objetivo. E eu os odeio por isso. Nesse aspecto, Gurbanov, você parece ser digno da maior confiança.

— Muito obrigado. E o que é que você tem para me oferecer em troca?

— A fórmula, claro — respondeu ela, num tom perfeitamente natural.

— Está aqui, com você? — perguntou ele, rápido demais, sob grande excitação.

Oriana riu.

— Claro que não. Não sou louca, meu querido. Vai ter que esperar um minuto.

Levantou-se e rumou para o hotel. O coração de Arkadi batia aceleradamente. Apesar da resposta, a fórmula estava efetivamente com ela, e ela tinha ido buscá-la. Ele, por seu lado, ia tornar-se o maior benemérito da União Soviética em todos os tempos. Maior do que qualquer dos czares. Maior do que Stálin. Maior do que Brejnev. Maior do que Lênin. Todos eles tinham dado ao povo ideologia pura, teorias dissecadas, mas ele, Arkadi, daria ao povo comida. Ele, Arkadi Dmítrievitch Nikítin, seria lembrado através dos tempos sem fim. É verdade, seria lembrado como Boris Gregórovitch Gurbanov, mas lembrado... De qualquer forma, lembrado. O abolicionista da fome. "Estranhos são os caminhos do destino", refletiu. Tinha sido escolhido para a missão justamente por causa do seu sucesso junto às mulheres. Acabara falhando, falhando miseravelmente com elas. Sua incapacidade estava transformando-o em uma ruína humana. E, no entanto, era essa incapacidade que lhe trazia o grande triunfo. Se não fosse sua impotência, jamais conseguiria a fórmula. Todas as espécies de truques e de estratagemas tinham sido tentados por uma grande organização, desde faxineiros com câmaras telescópicas até cachorros alimentados com microfones: tudo para nada. Acabara sendo a sua falha, sua completa impotência, a ponte para o sucesso. Era a sua impotência o fulcro da salvação para todos os povos soviéticos. A salvação da fome, para sempre. Os caminhos do destino, como ele havia notado antes, eram muitas vezes completamente insondáveis.

Oriana desapareceu por um período surpreendentemente longo. Sua idéia de convidá-lo a viver com ela era um pouco desconcertante. E se ela impusesse essa condição para lhe entregar a fórmula? Enfim, a essa altura, ele teria que mentir, teria que cometer uma fraude, tudo no interesse de alguns milhões de pessoas, no interesse das massas laboriosas. Diria "sim", mas era evidente que a idéia como um todo era impraticável.

Finalmente, ouviu passos. Mas vinham do outro lado da cerca, na estrada. Levantou-se para olhar por cima da cerca e viu o preto do bar descendo apressadamente a estrada. Ia com muita pressa. Quase correndo. Oriana apareceu meio minuto mais tarde, carregando sua bolsa e duas malas verdes, idênticas. Mas seu broche de esmeraldas desaparecera. Sentou-se novamente junto de Arkadi, na confortável cadeira do jardim. Bebeu um pouco de uísque e disse: — O negócio, Gurbanov, é o seguinte: você vem viver comigo e eu lhe dou a fórmula. Entendeu? Mais simples do que isso não existe. Aceita?

— Você trouxe a fórmula? Está com você, aqui?

— Ah, não. Eu disse a você que não a tinha trazido comigo.

— Pensei que você a tivesse ido buscar lá dentro.

— Não. Fui só apanhar estas duas malas. E fiz uma outra coisa. Mas, bem, você aceita a minha proposta ou não aceita?

— Por quanto tempo?

— Parece bem relutante. Pensei que gostasse de mim. Pensei até que gostasse muito.

— Sim, eu gosto. Realmente, gosto. Mas mesmo assim gostaria também de saber por quanto tempo...

— Depois de um tempo talvez você queira me deixar. Vou fazer o possível para torná-lo feliz, para que você não queira me deixar. Mas não posso ter certeza. Essas coisas são sempre muito incertas. E eu não sou, também, a pessoa mais constante e inflexível do mundo. Mas esse é um risco que tenho que correr. É possível ainda que eu queira me livrar de você depois de um certo tempo. Esse é um risco que você tem que correr. Mas à parte todos esses "mas", minha proposta é para vivermos juntos eternamente. Até que a morte nos separe.

— Aceito, Oriana — disse Arkadi, tentando parecer determinado, resoluto, até mesmo ansioso. -— Aceito, sim. Vou com você. Gosto de você. Gosto muito, muito mesmo. Eu a amo. Vou ser feliz com você. E vou fazê-la feliz.

— Oh, estou tão contente.

— Quando é que receberei a fórmula?

— Amanhã à tarde, às três e meia. Na Victoria Station. Você vai trazer uma destas malas verdes. Chega à entrada da plataforma 15 e a coloca no chão. Um jovem vai se aproximar de você, trazendo a outra mala verde, que colocará também no chão, ao lado da sua. E depois perguntará a você: "Este é o trem para Lewes?" Você responderá: "Não sei. Vou para Leatherhead". Lembre-se, é Leatherhead. Uma cidade em Surrey. Se houver o menor engano, ele dirá "obrigado" e levará a fórmula de volta consigo. Se você der a ele a resposta certa — e é claro que você a dará —, o jovem pegará a sua mala, Gurbanov, e deixará a outra no chão, contendo a fórmula.

— A verdadeira fórmula da Unalim?

— A verdadeira fórmula da Unalim.

— Mas, querida... Claro que não me importo... Gosto muito de brincadeiras e adoro viver uma história de capa-e-espada ou à Ia James Bond como qualquer um. Mas você acha que será mesmo necessário seguir esse processo? Não acha que o caminho é desnecessariamente complicado? Você está combinando uma coisa como se estivesse trabalhando para o kgb há mais de dez anos...

— Meu plano é, de fato, um pouco complicado, mas, garanto, não desnecessariamente. Estou sendo vigiada. Sei que estou sendo vigiada, o que é uma sensação estranha. Até mesmo tirar uma fotocópia da fórmula não vai ser nada fácil.

— Muito bem. Você está sendo vigiada. Mais uma razão para me dar a fórmula às três e meia da tarde no seu apartamento, onde poderíamos ficar a sós, sem senhas e contra-senhas, sem quaisquer referências a Lewes e a Leatherhead.

— Oh, não. Você não vai poder nem chegar perto de meu apartamento pelo menos durante uma semana. Daqui a uma semana, justamente, você se mudará para lá.

— Mudarei, é?

— Oh, sim, claro, meu querido — acentuou Oriana. — Espero que ninguém venha a descobrir que os russos conseguiram a fórmula da Unalim. Espero que não venham a anunciar aos quatro ventos que sua organização de espionagem conseguiu roubá-la. Espero muito menos que venham a anunciar o nome do agente. Ou o contato do agente, quer dizer, eu, o meu nome. Espero que nunca venham a dar os louros a quem os merece...

— Isso eles nunca farão, jamais...

— Então, está tudo acertado. Falta apenas mais uma coisa, Gurbanov — acrescentou ela, casualmente. — Uma pequena coisa. Só no caso de você estar tentando dar uma de espertinho e pensando: "Vou receber a fórmula e depois deixá-la esperando..."

— Pensa que sou esse tipo de pessoa? — gritou ele, cheio de indignação moral. — Não, nunca, jamais eu faria uma coisa dessas...

— Todos nós fazemos coisas dessas, Gurbanov. Todos, sem exceção. A única diferença entre o homem honesto e o escroque é que o honesto sempre encontra uma justificativa moral para os seus desvios. O escroque, este, tem a coragem e a decência de assumir suas faltas. De qualquer forma, queridinho, você não vai fazer uma coisa dessas. Veja, meu amor, aprendi uma ou duas coisas com o kgb. Em parte, admito, lendo as histórias extremamente excitantes e extremamente irreais que eu devoro em grandes quantidades. Em parte, com você. Das histórias aprendi que um bom agente precisa estar sempre atento aos pequenos vícios, fraquezas morais, aos esqueletos nos armários, aos segredinhos escusos de todos aqueles com quem ele entra em contato. Jogo. Bebida. Perversão. Homossexualismo.

Oriana pegou o copo. Fez uma pausa: — Mas impotência também serve...

Arkadi fixou-a, horrorizado. Estava calma, serena, quase alegre.

— Se você me enganar, queridinho, vou denunciar sua impotência ao kgb.

— Você nem sabe como entrar em contato com eles.

— O quartel-general do kgb em Moscou é um endereço que até o correio soviético consegue achar. Mas primeiro tentarei a missão comercial em Londres, em Highgate. Não é esse o endereço certo? Tentarei lá a minha sorte. E farei de você o bobo da festa de toda a missão. O bobo da festa de toda a União Soviética. Para obter um pouco mais de efeito, espalharei também uma publicidadezinha pelos nossos jornais aqui. Eles simplesmente adoram esse tipo de fofoca, divertidíssima, condimentadíssima, quando ligada aos espiões russos. Será o primeiro touro impotente, não apenas em termos zoológicos, mas também em toda a história da espionagem mundial.

— Foi tudo muito bem imaginado, não há dúvida — murmurou Arkadi.

— Posso ter muitos defeitos, mas não sou burra — replicou Oriana, com modéstia.

— Por mais esperta que você seja, eles não vão acreditar numa única palavra do que disser. Nem uma. E os jornais daqui jamais irão publicar uma história tão escabrosa — disse Arkadi, com a voz refletindo pânico.

— Você está argumentando, Gurbanov, como se fosse fazer exatamente aquilo que eu sordidamente insinuei. Como se você não estivesse entusiasmado em viver comigo. Eles não acreditarão, diz você. Concordo. Não acreditarão, a menos que sua impotência seja comprovada.

Olhou para Arkadi por um momento. Depois, continuou calma e amistosamente:

— E eu tenho a prova.

Arkadi sorriu. Sorriu sobranceiramente. Agora, a garota espertinha tornara-se boba. Que espécie de prova ela poderia ter da impotência de um homem? Mesmo fotos, tiradas por câmaras escondidas, não constituem prova.

— Eu lhe falei a respeito daquele pouco que aprendi com as histórias de espionagem. Aliás, foi você mesmo que me deu a idéia. O microfone que o pobre Fritz teve que engolir — fabricado na União Soviética — me fez lembrar de todos esses esplêndidos aparelhos de escuta que existem por aí. Pois eu comprei um. Simplesmente maravilhoso. Fabricado na Inglaterra. E a despeito da má reputação da nossa indústria e da nossa capacidade humana, funcionou direitinho. A propósito, o homem que me vendeu o aparelho queria saber de onde vinha a energia que alimentava seu microfone.

— Do corpo de Fritz.

— Bonito. Que bela invenção! Aqui, na Inglaterra, os cachorros são considerados mascotes. Na Rússia, usinas elétricas. Talvez esteja aí a diferença entre os nossos dois sistemas. Meu microfone foi menos bem imaginado, mas funcionou com a mesma eficiência. Meu microfone estava no broche de esmeraldas que você deve ter notado. E o gravador, na bolsa. E gravei quase todas as nossas conversas de hoje. Na cama e fora dela.

— Não é possível. Você não pode ter feito uma coisa dessas...

— Posso. Gravei quando você disse que estava atrás da Unalim, o que é o mesmo que admitir que você é do kgb. Eles não vão gostar nada de ouvir isso. Gravei quando você falou do que há de detestável no povo russo, de suas fraquezas, um povo sem espinha dorsal, invertebrado. Gravei sua opinião sobre os czares vermelhos. Dessa eles não vão gostar mesmo. Você chegou a mandar o Pravda para o inferno, lembra-se? É um pronunciamento inesquecível. Falou, como você disse, "francamente". E acrescentou que poderia ser até enforcado, afogado ou deportado por causa disso. Talvez seja até uma espécie de exagero, embora com o kgb nunca se saiba... Talvez você... Talvez venha a acontecer qualquer dessas coisas...

— Você estava me obrigando, me forçando — exclamou Arkadi com amargura na voz.

— Não. Eu jamais faria isso. E não era preciso. Você foi até bem acessível. Mas agora trata-se apenas de sua impotência. A prova. É uma palavra rude, mas necessária. Você disse que era horrível. Pediu desculpas. Acrescentou que não conseguia entender mais nada: era considerado o touro de Moscou. Disse também, de muitas maneiras, que se considerava um inútil. Queria matar-se. Já não servia como homem para a cama. Está tudo na fita. Está tudo claro, você não acha?

Arkadi olhou para ela com ódio. Depois, fez um movimento repentino e apoderou-se da bolsa. Ela permaneceu imperturbável. Não fez um gesto sequer para recuperá-la.

— Desista, Gurbanov. Minutos atrás, saí e fiz um pacote. Pedi ao Horace, o preto do bar (que é de Trinidad, não de Ghana, só para sua informação), que o pusesse no correio, o broche de esmeraldas, a fita, tudo. Aliás, ele estava de saída, ia para a cidade, e colocou o pacote numa agência. Portanto, não tente derrubar a caixa de coleta mais próxima. Não serviria para nada, a não ser para colocá-lo numa situação ainda mais difícil. De qualquer forma, a verdade é que você não sabe onde está o pacotinho nem para onde ele vai amanhã de manhã...

Ambos tomaram mais um uísque.

— Bem, você virá viver comigo — continuou Oriana. — Vamos tentar tirar o melhor proveito de uma situação ruim, mas esse é o segredo de muitos casais considerados ideais. Você terá sua fórmula, sem dúvida. Sou esquerdista e quero dá-la para a Rússia. E não se esqueça, nunca, de que você gosta muito, muito de mim.

Arkadi pousou o copo vazio.

— Terei a fórmula e terei que viver com você. E, é claro, gosto, gosto muito de você.

Oriana levantou-se:

— E pode, evidentemente, dormir comigo esta noite, na minha cama. Não precisa ficar trancado no banheiro. Meu amor, meu inocente cordeirinho...


                   Um homem de sorte

— Ivan está? — perguntou Arkadi, impacientemente.

— Está sem sorte, homem... Ele saiu. Quem está falando?

— É você, Mabel?

— É, sim. Como é que você adivinhou? ... Mr. Boris? Acho que estou reconhecendo sua voz. Bem que eu disse para mim mesma: é ele, aposto que é Mr. Boris. E é, não é?

Passava um pouco das oito da manhã. Arkadi tinha escapado antes do café da manhã para dar um telefonema do salão de entrada do Buckerell Moon e não havia tempo nem disposição para um prolongado papo com Mabel, muito menos para tentar entender seu sotaque arrevesado.

— Aonde é que ele foi tão cedo? — perguntou, aborrecido.

— Ele nunca diz nada, homem. Tudo o que eu sei é que ele não está em casa.

— Por favor, você poderá dar um recado a ele?

— Sim, posso... Um momento, vou arranjar um papel.

— É um recado muito simples — apelou Arkadi.

— Oh, não, homem. Quero pôr tudo direitinho no papel, se não se importa. Poderá ser muito simples para o senhor. Mas eu não quero problemas. Aliás, tem andado dormindo fora, Mr. Boris. Aposto que tem andado com algumas pobres garotas. Malandro, um grande malandro, é o que o senhor é... Eu sempre digo para mim mesma: a estas horas, Mr. Boris está dormindo com alguma bela mocinha loura por aí...

— Já está com o papel, Mabel?

— Estou com o papel, sim, mas a ponta do lápis quebrou. Diabos o carreguem... Ah, perdoe a linguagem, Mr. Boris. Mr. Uckett, meu homem, não gosta que eu fale assim. Pronto. Agora, qual é o recado?

— Diga a Ivan que eu vou apanhar a mercadoria esta tarde, às três e meia, na Victoria Station.

— Você disse mercadoria? Que mercadoria?

— Ele sabe, Mabel. Basta dizer isso mesmo: que eu vou apanhar a mercadoria às três e meia da tarde, na Victoria Station.

Mabel ficou repetindo tudo lentamente à medida que ia escrevendo no papel.

— ...Victoria... Pronto. É tudo? Ainda bem que você recebeu a mercadoria. Parece tão feliz, homem... Boa sorte...

Pôs o telefone no gancho. Oriana estava descendo as escadas e ele não queria ser visto ao telefone. Mas ela viu e ia começar a dizer qualquer coisa. Acabou, porém, por engolir o comentário.

De volta a Londres, Ivan ficou esperando impaciente-mente por Arkadi no apartamento. É claro que tinha recebido o recado. Gurbanov devia encontrar-se com Boris, imediatamente, na Green Park Station. Tomou um táxi e foi encontrar Boris, que esperava por ele. Tinham pouco menos de duas horas para se encontrar com o emissário de Oriana na Victoria Station.

Deram uma volta pelo St. James's Park, tal como se estivessem andando no Parque Górki, em Moscou, o parque da cultura e do lazer, anos atrás. Ficaram vagueando a passo lento entre escolares, turistas estrangeiros e da província, e executivos japoneses tirando fotos do Palácio de Buckingham. Ficaram olhando para as crianças e suas babás, que davam comida aos cisnes e patos, até sentarem-se num banco de jardim, longe das outras pessoas.

— Esse é o meu relatório oficial — disse Arkadi, concluindo sua história.

— Quer dizer que você vai trocar as malas verdes à entrada da plataforma 15 — disse Boris. — Estará sendo observado por um ou dois dos nossos homens. Você não vai saber quem são, é claro. Logo que tiver a mala certa na mão, você deixará o mensageiro de Oriana partir e depois levará a mala até o nariz como se estivesse verificando a fechadura de perto. Esse será o sinal para os nossos homens de que tudo correu bem. Nosso agente logo ligará para mim e me dará a senha em inglês. Eu, por meu lado, logo transmitirei a mesma senha — em russo — para o Centro.

Arkadi concordou.

— Você sairá da Victoria Station pelo lado da Buckingham Palace Road. Em outras palavras, você virará à esquerda na plataforma 15, depois na primeira à direita, isto é, pelo lado da Alfândega. Atravessará a Buckingham Palace Road no semáforo, entrará na Elizabeth Street e depois na Ebury. Na esquina da Elizabeth com a Ebury, você verá um carro Cortina, azul, com a placa 223 K. Tem mais letras, mas não interessa. Lembre-se apenas de 223 K. Entre no banco traseiro. Haverá um motorista na frente, que você ignorará. Você, aliás, nunca o viu antes. Atrás, haverá um agente dos nossos, a quem você também nunca viu antes. Ele dirá: "Que maleta tão bonita essa..." Você responderá: "Pessoalmente prefiro amarelas". Este trecho é melhor escrever, não pode haver enganos. O carro arrancará em seguida e o deixará em algum lugar, não muito longe. Quando parar — e só quando ele parar —, você entregará a mala ao nosso homem e depois sairá do carro. O carro continuará viagem e você tomará um táxi para casa, apresentando-se a Ivan. Alguma pergunta?

— Não. Tudo entendido.

— Muito bem.

— Escute, Boris... Agora que o assunto oficial já está esclarecido, posso falar com você como amigo?

Boris olhou para o relógio. Arkadi insistiu: — Preciso da sua ajuda. Estou num dilema.

— Vamos andando em direção à Victoria — disse Boris.

— Puxa, você ê meu velho amigo, não é?

— Claro que sou.

— Ainda é o mesmo ser humano, não é?

— Não é assim tão fácil continuar a ser humano. Mas estou fazendo força para isso.

— E posso confiar em você?

— Você não devia ter feito essa pergunta.

— Desculpe. Você tem razão, eu sei. Boris sorriu.

— Fale calmamente, mas não murmure. Como antes. Agora, diga, diga logo.

— Eu contei a você a versão oficial do que aconteceu. É a verdadeira versão. Como dizem os ingleses, é só a verdade, nada mais do que a verdade. Mas não toda a verdade...

Boris continuou andando, ao mesmo tempo em que olhava as botas cor de vinho de um jovem que andava à sua frente.

— Os detalhes, eu omiti — continuou Arkadi. — Sou impotente e estou sendo chantageado. Vítima de chantagem, feita por uma mulher rica e superficial, exatamente o tipo de mulher inglesa, rica e superficial, que nós supostamente devíamos chantagear.

Boris olhou para ele um pouco divertido.

— Dê mais detalhes — disse Boris, finalmente.

— Darei, mas — repito — estou falando com o meu velho amigo Boris, Boris Nikoláievitch Iuruzov, e não a Rosamund.

Boris ficou surpreso. Já não escutava seu próprio nome há muito tempo.

Arkadi contou a ele tudo o que acontecera. Resumidamente, mas por completo.

— Estou me sentindo uma porcaria. Essa maldita impotência me leva à loucura, embora, neste momento, ainda seja uma das minhas preocupações menores. Aliás, pude fazer tudo com Jean, tudo correu bem, nada pode estar organicamente errado. Na realidade, a garota acabou até me deixando porque eu podia demais. Reclamava. Outras reclamam porque eu não consigo fazê-lo nem uma vez sequer.

— Temos apenas dez minutos — interrompeu Boris.

— Eu posso fazê-lo por prazer, mas não por dever. Enfim, não se trata de um problema imediato. Estou numa confusão tremenda, mesmo não contando com isso. Suponha que eu consiga a fórmula. Ainda não está nas minhas mãos, mas vamos supor que eu a consiga. Não tenho certeza, mas suponhamos.

— Suponhamos.

— Então, vou ser obrigado a viver com Oriana. Em si, não será uma vida dura. Ela é adorável, excitante e louca. Boa companhia. Mas, evidentemente, não posso ir viver com ela, a não ser que obtenha licença oficial. Que não posso obter. Como é que um funcionário da missão comercial soviética vai poder sair para viver com a sobrinha louca de um milionário fabricante de alimentos, de quem acabamos justamente agora de subtrair uma fórmula secreta de vital importância? Mas se me recusar a viver com ela, Oriana apresentará as provas.

— Mas não há qualquer problema, Arkadi — disse Boris, com firmeza. — Problema algum. Você pega a fórmula e dá um bolo nela. Espero que sua consciência não lhe cause problemas.

— Não, não causaria. Mas gosto da garota, apesar de tudo. Gosto mais do que o regulamento permite. A consciência, essa, não me daria qualquer problema. Mas a consciência dela também não lhe daria problema. Oriana mandaria a carta.

— Não importa.

— Você acha que não acreditariam nela?

— Bem, acho que acreditariam. A fita deve ser bem convincente.

— Seria incapaz de sobreviver a um escândalo. A vergonha me mataria. Se a vergonha não me matasse, o kgb certamente não falharia.

— Não, não falharia. Na realidade, você é um homem de sorte, é o que você é. Sua posição está fortalecida. É a posição ideal.

— De que você está falando?

— Tendo conseguido realizar o grande golpe, com a obtenção da fórmula, você terá sido o responsável por um dos nossos maiores sucessos, faz muitos, muitos anos. Você será condecorado, elogiado, promovido. Sua posição será invulnerável.

— Seria, seria, é o que você quer dizer, se não fossem as revelações que Oriana pode fazer. Primeiro, eles vão achar que obtive a missão sob falsas premissas. Que sou inútil para as mulheres. Quando devo, não posso.

— Eles não vão se importar com isso. Você cumpriu esplendidamente sua missão. Conseguiu um sucesso total. Na realidade, eles não vão perder a oportunidade de transformá-lo num herói fantástico. Estão precisando de heróis. Aliás, Oriana terá lhe prestado — involuntariamente — um grande serviço.

— Por dizer a eles que sou um fracasso?

— Sim. Exatamente. Isso vai transformar você de um bom agente num agente ideal. Eles vão ficar sabendo, evidentemente, que você é um touro impotente. Que você foi indiscreto. Que você falou demais a respeito dos czares vermelhos e a respeito de outros assuntos similares. Mas isso tudo significa que, além daquela maravilhosa fórmula que você conseguiu, você deu a eles alguma coisa mais, muito valorizada: você deu a eles material de chantagem de primeira classe contra você mesmo. Os tipos vulneráveis, com os quais é fácil fazer chantagem, são os agentes ideais. São seus meninos preferidos. Os agentes mais favorecidos, mais dignos de confiança, em que eles fazem mais fé, são justamente os homossexuais, os voyeurs, os sádicos, os defraudadores, os fugitivos da justiça. Mas os Casanovas impotentes também são tidos em alta consideração. Você é um homem de sorte, Arkadi...

— Devo ser... — murmurou ele, ainda não convencido por completo de sua boa fortuna.

— Dê o bolo nela, sem pestanejar, meu rapaz. Vamos tomar conta dela, de um jeito ou de outro. Deixe para lá. Seu problema é conseguir a fórmula. Conseguida a fórmula, seu futuro estará assegurado. Deixe que ela o denuncie e seu futuro ficará ainda mais seguro.

Olhou para o relógio.

— Faltam oito minutos e meio.


                   Vitória

Arkadi continuava pensando na carta que uma vez tinha recebido de um amigo. Começava assim: "A primeira metade das minhas notícias é ruim. A segunda, também". Sentia, e receava, que esse também poderia ser o seu caso. Por mais que quisesse, não conseguia imaginar que as coisas acontecessem suavemente, sem problemas, que ele, realmente, conseguisse a fórmula e que isso o fizesse benemérito de seu povo, resolvendo um problema que vinha atormentando seu país por séculos e séculos. Sentiu-se tenso e bloqueado.

Estava chegando à Victoria Station, pelo lado da Buckingham Palace Road. Agarrava com força sua mala verde, vazia, passando por carruagens e carros estacionados em fila dupla. Como estava alguns minutos adiantado, reduziu o ritmo das passadas. Havia sido treinado para obedecer à pontualidade máxima em serviço, ensinado a nunca esperar por ninguém, a nunca ficar dando voltas. Se alguém faltasse, não aparecendo pontualmente na hora marcada, ele tinha ordens para abandonar o local e se apresentar ao contato. Parou diante de uma vitrine e reparou num homem que estava vendendo postais ilustrados, mapas e guias de Londres. Uma garota alemã, séria e bonita, mas de óculos, estava olhando as imitações dos nomes de ruas, colocadas numa prateleira. Parecia hesitar entre "Pettícoat Lane, E.l" e "Buckingham Palace, S.W.l". Entretanto, descobriu "City of Westminster" em letras minúsculas, e ladies em letras maiúsculas, pretas. Achou irresistível e perguntou quanto custava.

Arkadi entrou na estação. Olhou na direção da Alfândega de Sua Majestade, que Boris havia mencionado, e reparou num jovem casal que caminhava à sua frente. Escutou suas vozes. Só por isso, pôde chegar à conclusão de que se tratava de homem e mulher. Ambos usavam jeans azuis, muito surrados. Ambos avançavam no mesmo passo indolente. Ambos tinham cabelos compridos. Era impossível distinguir qual era o rapaz e qual era a moça. Exceto, talvez, pelos brincos que o rapaz usava. Notou também a presença de outro casal — pareciam italianos — sentado no chão, junto ao pátio de estacionamento. Estavam encostados às respectivas mochilas, com ar de muito cansaço.

Olhou, depois, para a tabela de horários, com a hora de partida dos trens. Viu as horas: faltavam noventa segundos. Parou e olhou para o horário dos próximos trens para Lewes e Leatherhead. Nem sequer chegou a fixar essa informação, completamente desnecessária. Estava apenas matando o tempo. E continuou caminhando, lentamente. Reparou na fila dos objetos guardados. Havia um montão de jovens esperando vez, de rostos tristes, sofridos.

A plataforma 15 era logo a primeira à sua frente. Eram precisamente três e meia. Ninguém veio ter com ele. Saiu um homem de jeans azuis, novos, da plataforma 15. Como não tinha chegado nenhum trem, certamente, ele tinha estado esperando ali. Carregava um par de esquis nas costas — uma visão nada comum em pleno verão. Arkadi tentou parecer despreocupado. Seria ele o seu homem? Para que entrar na plataforma e esperar lá dentro? E para que os esquis? Apenas para fazer-se ainda mais notado? Mas o homem dos esquis não merecia suas observações. Acabou passando por ele sem lhe dar a menor atenção. Três e trinta e dois. Havia uma prateleira de madeira à entrada da plataforma. Rumou para lá e colocou a mala em cima dela. Ao lado, estava um garoto de uns seis anos comendo balas a uma velocidade terrível. Parecia que queria esgotar todas as balas do pacote marrom antes que sua mãe voltasse do lugar onde tinha ido por um minuto ou dois. O garoto devia estar tomando conta de um cesto cheio de maçãs e revistas, mas permanecia completamente absorvido em suas balas. Três e trinta e quatro. O pai do garoto voltou. Um jovem com barba bem-tratada. À vista, bem que ele parecia um conspirador, mas tampouco era o homem de Arkadi. Inclinou-se sobre a prateleira, com a plataforma 15 às suas costas, e tentou adivinhar quem eram os russos que o estavam observando. Havia uma pequena multidão à sua esquerda, em frente ao escritório da Secretaria de Turismo de Londres. Muita gente parada, em pé. Outros passando. Era praticamente impossível descobrir quem poderia ser espião russo. Talvez todos os turistas, inocentes por natureza, sejam parecidos com espiões russos. Concentrou-se ainda mais e a única coisa que conseguiu notar foi a presença de uma mulher, uma trabalhadora, de costas voltadas para ele, que se parecia com Mabel. "Estranho", pensou ele, "por que cargas-d'água fui pensar em Mabel, entre tanta gente, neste momento?" Três e trinta e seis. Se tivesse sido um encontro oficial, combinado pelo próprio kgb, já não poderia estar ali. Mas o emissário de Oriana não poderia ser julgado pelos mesmos padrões.

Um jovem com uma maleta aproximou-se — era a famosa mala verde — e colocou-a junto da sua. Arkadi reconheceu-o: era um dos jovens que haviam jogado tênis com Oriana, no Hurlingham Club. Arkadi e o jovem, praticamente, nunca tinham trocado uma palavra sequer e agora também não davam sinal de se reconhecer.

— Desculpe — perguntou o jovem —, este é o trem para Lewes?

Arkadi abanou a cabeça.

— Não sei. Vou para Leatherhead.

O jovem pareceu ficar aborrecido. Apanhou uma das malas. Arkadi olhava para ele com olhos de falcão. Apanhou aquela que devia, isto é, a mala vazia de Arkadi. E seguiu andando, apressadamente, na direção da plataforma 1. Se a mala deixada continha alguma coisa ou não, e se continha, se seria a tão cobiçada fórmula ou não, eram questões que Arkadi iria ignorar ainda por muito tempo. Não estava autorizado a abrir a mala e a única coisa que poderia fazer era seguir as instruções. Sabia que estava sendo vigiado e não podia desviar-se nem um milímetro. Levantou a mala como se estivesse examinando a fechadura de perto. Segurou-a bem perto do nariz por dois ou três segundos, para que todos os interessados pudessem ver, e estava para partir em direção à Buckingham Palace Road, quando aconteceu...

Era o primeiro contratempo. Pequeno, mas um contratempo. Sentiu os joelhos tremerem e cederem. Sabia que era dos nervos e, com um grande esforço, conseguiu recompor-se. Mas embora pudesse voltar a contar novamente com seus joelhos, o que poderia fazer contra a irresistível e urgente necessidade de ir ao banheiro que, de repente, parecia tê-lo possuído? Era uma chatice de primeira. Logo quando ele sabia que estava sendo vigiado por um ou dois colegas superiores. Entretanto, o medo que a necessidade causava servia justamente para aumentar ainda mais a necessidade. Não podia argumentar contra os desígnios da natureza. Não foi preciso procurar. Justo à sua frente havia um cartaz: homens. Por baixo, mais informações: duchas e barbeiro junto À plataforma 2. Mas ele não queria ducha nem barbeiro. E jamais poderia ter chegado à plataforma 2 ou a qualquer lugar perto dela. Deu alguns passos e desceu para o banheiro dos homens, sempre agarrando com força sua pequena mala verde.

Arkadi não tinha dúvida, claro, quanto à extrema inconveniência da súbita e irresistível necessidade. Mas não poderia imaginar como ela estava interferindo e mudando o curso da história da União Soviética.

Tudo se passou com a velocidade de um relâmpago. O banheiro estava em obras. Bastante sujo e com um bocado de material de construção e de entulho no centro. Arkadi parou em frente ao primeiro compartimento e leu as instruções: "Coloque uma moeda na ranhura e gire a maçaneta". Procurou a moeda, um pêni, com impaciência. E felizmente encontrou uma. Fez tudo conforme indicado. Mais alguns segundos, dentro do cubículo, e ele poderia voltar novamente ao serviço. Mas esses segundos não iriam passar sem acontecimentos imprevisíveis.

Apareceu uma mão por baixo da porta. Havia um espaço livre, justamente entre a porta e o chão de pedra. A mão aproveitou-se dessa circunstância. Agiu rápido e com eficiência. Antes que Arkadi pudesse entender o que estava acontecendo, já a mala que ele colocara no chão tinha sido apanhada e levada para fora. Desapareceu de vista. Arkadi pôde escutar apenas os passos de alguém se afastando em grande velocidade, embora não corresse. Literalmente, foi apanhado com as calças na mão.

No entanto, segundos depois, já estava no cimo das escadas do banheiro. O rapazinho estava mastigando ruidosamente mais balas, de um novo pacote marrom. Arkadi afastou-se da plataforma 15, olhou à volta em desespero e ainda conseguiu ver uma figura correndo para fora da estação, pela saída principal. Era a figura de uma mulher. Era Mabel.


                   Gente em casas de vidro

Arkadi corria como um campeão. Mabel também. Percebeu que alguém o seguia. Era uma satisfação saber que devia ser um colega e aliado, um dos que estavam observando enquanto apanhava a mala e examinava sua fechadura. Esse homem devia ter ficado horrorizado ao vê-lo descer para o banheiro em vez de seguir para a Buckingham Palace Road. E mais horrorizado ainda com o que vira depois. "E se", pensou Arkadi, cheio de temor, "meu aliado foi embora e o homem atrás de mim é cúmplice de Mabel? ..." Bem, ele não tinha tempo de examinar as várias possibilidades e linhas de ação. Tinha que correr o mais rápido possível. Com rapidez suficiente para apanhar Mabel. E se o companheiro de Mabel — se é que ele era o companheiro de Mabel — o apanhasse primeiro?

Ela já tinha atravessado toda a estação no momento em que a caçada começou. Lá fora, correram em meio a centenas de carros e ônibus que buzinavam feito loucos. Arkadi ficou na esperança de que ela virasse à esquerda e chegasse, depois de uma volta, à esquina da Elizabeth Street com a Ebury, onde o Cortina azul estaria esperando. Mas não teve sorte. Ela continuou em frente, na direção do Hyde Park Corner, o recanto dos comícios. Alguns passantes olharam para ela, outros para ele, outros, ainda, para ambos. O fato de um estar correndo atrás da outra surpreendia a todos com a respeitável lentidão do inglês médio. Mas ninguém fazia um movimento. Eram verdadeiros ingleses ligando apenas para seus próprios problemas.

Arkadi quase a apanhou algumas centenas de metros mais adiante. Mabel era uma mulher bem pesadona e suas saias compridas complicavam, obviamente, ainda mais sua corrida. "A puta", pensou Arkadi, "desceu ao banheiro dos homens confiando certamente em que seria tomada pela mulher da limpeza." Que, de fato, era e é. A raiva de Arkadi lhe deu novas forças. Fez um esforço final e conseguiu alcançá-la. Apanhou-a por trás, jogou-se em cima dela, ambos caíram e rolaram pelo chão.

— Iabu tvaiu match — gritou Mabel com voz de venenosa acrimônia.

O veneno e a acrimônia, porém, significavam muito pouco para Arkadi. O que o surpreendia era o excelente russo dela. Não era apenas fluente e sem sotaque, mas também natural. Tinha escapado num momento de agonia. Era o xingamento de uma mulher habituada a xingar em russo a vida inteira. Uma suspeita desvairada assolou Arkadi dos pés à cabeça. E na luta corporal, atracados no chão, ele ficou em condições de confirmá-la ou não. Esticou a mão e agarrou Mabel entre as pernas. No lugar onde devia encontrar apenas uma ligeira protuberância, havia um saco, um órgão sexual masculino, aliás, muito bem desenvolvido. Mabel era um homem. Não uma faxineira inglesa com sotaque cockney, mas um macho, um macho russo!

O golpe de Arkadi deu a Mabel — ou fosse quem fosse — duas idéias rápidas. A primeira foi dar um murro bem aplicado entre as pernas de Arkadi.

— Ibiona match! — gritou Arkadi em russo, igualmente fluente e sem sotaque. A dor súbita e excruciante fez com que ele largasse Mabel. Ela tirou vantagem disso e, num segundo, levantou-se e correu. Mas a segunda idéia de Mabel era ainda melhor.

— Socorro! Socorro! Ele está tentando me violentar! — gritou.

Até mesmo os fleugmáticos ingleses se interessam por estupro, qualquer estupro. Por isso, desta vez, alguns pararam para olhar.

O sotaque cockney de Mabel funcionou novamente de maneira impecável.

— Ele me apalpou... tocou nas minhas partes íntimas... aqui mesmo... na rua... em público... Ele quer me violentar...

A assistência já era a essa altura suficientemente grande. Portanto, Mabel — já sem fôlego — considerou seguro parar de correr.

Arkadi, que também tinha parado, estava sem saber o que dizer. Tentou pensar numa saída rápida, mas seu cérebro recusava-se a trabalhar. Queria dizer: "É um espião russo", mas não estava muito convencido da sensatez da alusão. Seus superiores poderiam censurá-lo pelo ato de chamar a atenção das pessoas para os espiões russos.

— Ele é um espião russo... — disse Mabel.

A assistência ficou surpresa. Alguns pareciam hostis. Outros desconcertados, porque sabiam que os espiões russos eram capazes de muitas coisas, mas tentar violentar uma velha faxineira inglesa em plena praça pública era demais.

— Ele veio da Rússia para espionar os ingleses e violentar nossas mulheres... — guinchou Mabel, cheia de uma impressionante e — aparentemente — genuína indignação moral.

Era uma afirmação excitante. Arkadi reconheceu que não tinha chance alguma. De um lado, uma velha faxineira inglesa, de perfeito sotaque cockney, honesta e ultrajada. Do outro, um jovem, violento, assaltante, que, se abrisse a boca, teria que dar explicações num inglês com sotaque russo acentuadíssímo. Queria apontar para a mala verde que Mabel trazia na mão e dizer: "Ela roubou minha mala. Fugiu com ela". Mas como a mala continha a fórmula, não era muito conveniente chamar a atenção para ela. Logo seria constatado que a mala continha um valioso segredo industrial, roubado da Perring. Uma simples investigação preliminar confirmaria imediatamente as acusações de Mabel.

— Céus! — exclamou Arkadi atingido por uma idéia súbita: "Mabel deve estar trabalhando para o gru. E eu, louco varrido, dei a ela todos os detalhes do nosso encontro. Três e meia na Victoria Station. Eu disse isso a ela, que anotou tudo direitinho no papel, lentamente, com especial cuidado, para que não se perdesse o mínimo detalhe. E foi por isso que ela — ou melhor, ele — se recusou a ir para a cama comigo nos primeiros tempos. Porque ela era um homem. Uma boa razão, sem dúvida. E lembrar toda aquela conversa de ser fiel a Mr. Huckett... Por isso, a ligeireza de seus golpes de judô... Claro, tinha sido treinado em judô e em caratê toda a vida. E foi ele que mandou o outro russo, limpador de janelas, para a Perring".

Mas Arkadi tinha que abandonar suas memórias recentes — embora desagradáveis — e voltar à realidade do presente.

Uma súbita sensação de apoio começou a chegar. Um apoio bem fraco, mas apoio. Um hippy surgiu dentre a multidão, um hippy de calças de veludo esverdeadas, um pulôver vermelho, cabelos compridos e barba longa. Tinha o queixo largo e Arkadi recordava-se de que, ao se voltar, por um segundo, quando corria atrás de Mabel, era ele quem vinha correndo atrás dele. Podia ser companheiro de Mabel. Mas, instintivamente, Arkadi sentiu que tinha nele um aliado. Não tinha idéia de como é que o homem poderia ajudá-lo, mas já era bom não se sentir tão só, no meio daquela assistência hostil. Ao menos, teria uma testemunha dos fatos quando chegasse a hora de apresentar o relatório do acontecido aos superiores.

Apareceu um policial.

— Está havendo algum distúrbio por aqui? Nem Mabel nem Arkadi disseram uma palavra.

— Ela diz que este homem é um espião russo... — falou um homem de chapéu-coco.

— ...que tentou violentá-la! — acrescentou uma mulher de sacola na mão. Obviamente, estava muito mais interessada no aspecto sexual do que no aspecto político do problema.

— Aqui, na Hobart Place, em praça pública? — perguntou o policial, espantado.

— Não, um pouco mais atrás, em Grosvenor Gardens.

— Aqui mesmo — disse Mabel, recuperando a sagacidade e dominando sua natural alergia pelos policiais ingleses —, ele me derrubou... apalpou-me as partes... todo mundo viu...

Meia dúzia de pessoas começou a dar informações ao policial, falando todas ao mesmo tempo.

— É melhor vocês virem comigo para a delegacia.

— Eu também? — perguntou Mabel, indignada. — Leve os criminosos, mas não uma mulher honesta atacada por espiões russos em praça pública.

— É melhor você vir também. Vamos ter que tirar a limpo este caso. Testemunhas?

Até aquele momento, Arkadi ainda não tinha dito uma palavra. Enquanto o policial estava ocupado escolhendo as testemunhas, Mabel foi se afastando do centro da multidão. E antes que alguém pudesse notar sua falta partiu em alta velocidade, segurando com firmeza a mala verde.

Mas alguém estava de olho nela: o hippy russo. Estava agora correndo atrás de Mabel. O policial hesitou por um momento, mas decidiu, aparentemente, que era melhor ficar com o homem — eventualmente, espião russo — do que caçar a mulher, embora o caso, todo ele, começasse a parecer muito suspeito. Caçando a mulher, pensou o policial, talvez fizesse com que perdesse os dois.

Mabel corria rápido, mas o hippy russo era ainda mais rápido e não havia dúvidas de que ela — ou ele — seria apanhada em pouco tempo. Quando Mabel chegou perto do imponente novo edifício da Corporação de Cooperação Comercial Afro-Européia, os portões de vidro estavam abertos. Mabel aproveitou a chance. Subiu alguns degraus e entrou no espaçoso saguão. O hippy vinha no seu encalço. Viu que podia cortar caminho. Havia algumas pessoas no saguão, mas não era nenhuma multidão. Não havia chance de Mabel se perder entre os presentes.

Nesse momento, porém, ouviu-se um estrondo tremendo, ensurdecedor. O hippy jazia no chão, inconsciente e coberto de sangue.

Não tinha sido fuzilado.

Tinha tentado atravessar o vidro da porta. O vidro tinha feito um bom trabalho, quase cortando-o em tirinhas.

Alguns minutos mais tarde as sirenes gritantes, os uivos lamentosos, das ambulâncias e dos carros da polícia atravessavam o ar e logo a seguir os veículos chegaram, três ou quatro, de todas as direções, a uma velocidade louca.

Uma ambulância branca levou o hippy.

Um carro-patrulha azul-escuro levou Arkadi, o policial e duas testemunhas para a delegacia da Gerald Road.

Enquanto isso, Mabel, a imperturbável faxineira inglesa cockney, atravessava tranqüilamente a Eaton Square, carregando uma pequena mala verde.

 

                   A sombra de Desdêmona

"Já seria bastante impertinência", pensou Serguei Alexándrovitch Orlovski, "que o secretário de Makarov tivesse o desplante de me convocar. A mim, diretor do Departamento de Seleção e Treinamento. Mas, seguramente, foi o máximo da impertinência me fazer esperar esse tempo todo..."

Sua dedução estava errada. O máximo da impertinência ainda estaria por vir.

— Ter conseguido a fórmula da Unalim — como certamente você concordará, Camarada Orlovski — foi um feito glorioso.

— Bem, o trabalho foi nosso — replicou Orlovski com modéstia.

— Foi um grande feito. Na realidade, foi o ponto alto da maravilhosa carreira do Coronel Makarov.

Orlovski quase desmaiou. Estava preparado para tudo, menos para isso. Carreira do Coronel Makarov? O que é que esse porco debochado tinha feito para conseguir a fórmula? Ficar sentado em seu enorme traseiro, chateando meio mundo e a ele, principalmente. Na maior parte do tempo, o desgraçado nem estava a par do que acontecia. Eram esses os pensamentos de Orlovski. Mas o que disse foi: — Sem dúvida, claro que foi. — E sorriu, obsequiosamente.

— Evidentemente, recebemos sua mensagem de que o nosso agente viu um outro agente — Lolita era o nome dele, certo? — fazendo sinal na Victoria Station de que a mala certa estava com ele. A essa altura, ainda não sabemos o que foi que aconteceu com o agente, mas, afinal, a confirmação de nosso homem já é suficiente. Ou, digamos, seria suficiente para que qualquer um se apresentasse e reclamasse a vitória extraordinária. Mas não para o Coronel Makarov. Ele esperou até obter a confirmação de que a fórmula efetivamente tinha chegado.

— O Coronel Makarov é um homem sábio e prudente — disse Orlovski respeitosamente, pensando consigo mesmo que, se não sofresse agora um ataque do coração, estaria salvo para o resto da vida.

— O Coronel Makarov foi ainda mais além — continuou Chittikov, o secretário víbora. — Esperou a confirmação de que a fórmula era efetivamente a fórmula certa, a que continha, realmente, o segredo das moléculas protéicas.

— Quando foi que você recebeu essa confirmação?

A voz de Orlovski revelava sua forte irritação. Na hora em que tudo tinha terminado — e terminado bem —, graças à sua brilhante capacidade organizadora, eles nem sequer se davam ao luxo de notificá-lo a respeito do que acontecia.

— Há cerca de vinte minutos, Camarada Orlovski. Eu pedi a você para vir me ver quase imediatamente.

— Quase. Não imediatamente. Quase imediatamente...

— A razão principal por que eu o mandei chamar é a seguinte...

— Mandou chamar? — Orlovski fumegava. ("Acabarei um dia ajustando contas com você, seu safado!:')

— O Camarada Brejnev comunicou — Chittikov já acrescentava — que se o golpe da Unalim fosse bem sucedido, o Coronel Makarov receberia uma alta condecoração. Herói da União Soviética? A Ordem de Lênin? Quem sou eu para decidir uma coisa dessas? — A pergunta era acompanhada de um sorriso de auto-satisfação e de uma modéstia cretina. Como se ele realmente já soubesse, mas não quisesse dizer nada a Orlovski. — A questão é com o Camarada Brejnev. Ele resolverá. Mas deve ser uma coisa muito elevada, já que o serviço prestado pelo coronel à pátria do socialismo também foi elevadíssimo.

— Foi um feito esplêndido — disse Orlovski, a voz refletindo profunda convicção.

— A cerimônia terá lugar no final da próxima semana. E é aí que você entra, Camarada Orlovski.

Orlovski sorriu. Talvez o homem não fosse afinal uma besta tão disforme.

— O discurso principal será proferido, evidentemente, pelo Camarada Iu. V. Andropov, ministro da Segurança, membro do Politburo da União Soviética. Mas o Coronel Makarov bondosamente anuiu, também, à idéia de que você fizesse um discurso em honra dele. Tem que ser um discurso curto, claro. Apenas algumas palavras emocionadas em nome dos subordinados do Coronel Makarov, todos eles muito agradecidos e honrados.

E como se não fosse ainda o bastante, o secretário acrescentou:

— É uma grande honra para você, Camarada Orlovski.

— Acho que não a mereço, Camarada Chittikov. — A resposta de Orlovski foi dada com tocante modéstia.

A essa altura a porta do gabinete interior abriu-se e apareceu o Coronel Makarov em pessoa. Não parecia nada feliz. Na realidade, com a sua cintura enorme e o rosto vermelho, soprando e bufando por todos os lados, parecia estar muito mais perto de um colapso cardíaco do que Orlovski. E isso, efetivamente, queria dizer muita coisa. O diretor do Departamento de Seleção e Treinamento, vendo à sua frente o chefe, apressou-se a apresentar a ele seus melhores cumprimentos pelo glorioso sucesso, mas foi interrompido bruscamente: — Entre aqui!

Não "Entre, Camarada Orlovski", nem "Entre, Serguei Alexándrovitch". Apenas e só "Entre aqui".

— O caso Unalim... — começou ele aos brados, logo que a porta se fechou.

— Sim, Camarada Makarov.

— Você matou o serviço. Uma porcaria. Um desastre. Um desastre sem precedentes!

Orlovski não ficou surpreso. Pelo menos, em relação a um dos aspectos da questão. Para receber qualquer condecoração Makarov seria o homem. Mas no caso de "um desastre sem precedentes" o problema era dele. Orlovski teria matado o serviço.

— Não entendo. Afinal, Gurbanov não conseguiu a fórmula?

— Conseguiu! — Makarov gritou, os olhos flamejantes.

— Mas não era a fórmula certa?

— Era!

— Mas acabou não chegando a Moscou?...

— Chegou! Mas foi Desdêmona que a mandou!

Orlovski sentiu-se mal. A magnitude do enorme desastre, finalmente, tinha-o atingido. Queria dizer qualquer coisa, mas sua voz não conseguia emergir dos lábios. Não precisava perguntar nada sobre Desdêmona. Sabia tudo a respeito. Era o Major Vladímir Vassílievitch Ivánov. Um dos mais capazes e mais ousados agentes do Serviço Militar de Informações, o gru. Era o homem que, já no passado, lhe tinha causado tantos problemas. Mas nada comparado com o que acabava de acontecer.

— Desdêmona! — grunhiu Makarov. — Por que razão seu homem de confiança, Gurbanov, tinha que entregar a mala a Desdêmona?

Orlovski ainda não tinha recuperado a fala. A notícia de que o pessoal do gru tinha conseguido apoderar-se do resultado do golpe era o desastre mais inimaginável!

— Os pais de Desdêmona, ao que parece, escaparam para Londres logo após a revolução — disse Makarov, amargamente —, e o filho foi para uma escola inglesa ainda criança. Uma escola no East End, ou sei lá como é que chamam essa parte de Londres. Já tinha dez anos quando voltou para a União Soviética. Por isso, fala um inglês perfeito. Aliás, um inglês muito bonito, segundo me disseram.

Orlovski não estava em condições de pagar qualquer tipo de tributo mental à beleza do inglês de Desdêmona.

— Conseguiu emprego como faxineira de Gurbanov.

— Faxineira? Quer dizer, faxineiro, não é, Camarada Makarov?

— Não. Faxineira mesmo. Mulher de limpeza. Esses dois bobalhões, idiotas, Gurbanov e Anatolski, deram-lhe emprego e passaram a vê-lo duas vezes por semana, durante muito tempo, e nenhum deles suspeitou de que estava lidando não com uma faxineira inglesa, mas com um major do Exército Vermelho. A não ser, é claro, que ambos soubessem muito bem do caso e deliberadamente tenham decidido nos trair. O que você sabe a respeito desse tal Gurbanov, Orlovski?

Orlovski tentou ser o mais cuidadoso possível, a fim de se proteger.

— Os novos agentes foram todos recrutados às pressas, como o senhor sabe, coronel, mas Gurbanov sempre se mostrou um agente dedicado e consciencioso até agora, e parece ter realizado um magnífico trabalho em relação ao caso spinoffee!

— É um traidor. Servindo a nosso pior inimigo: o exército. Ou, então, é o maior de todos os idiotas do mundo, o que é pior. Mas para você ele ainda é um agente dedicado e consciencioso. Não me surpreende.

Tirou do bolso um exemplar recente do Vechernaia Moskva, único vespertino da capital soviética. A manchete enorme proclamava aos quatro ventos: "glorioso sucesso do kgb". E por baixo: "Grande golpe do mestre Boris Gurbanov".

Orlovski pensou que fosse ficar doido. Era um caso inacreditável e sem precedentes. Makarov continuava grunhindo.

— O povo está ficando extremamente indócil diante das notícias a respeito de mais uma colheita desastrosa. O país inteiro está fervilhando com rumores e ameaças de fome.

É claro que Orlovski já sabia a história toda de cor. A safra ameaçava ser ainda pior do que, inicialmente, se esperava. O Camarada Brejnev tinha viajado para o Casaquistão e para a Sibéria ocidental. Todos os funcionários envolvidos sentiam que, se a visita pessoal do Camarada Brejnev não pudesse salvar a colheita, então, nada a salvaria. Brejnev fez um discurso maravilhoso, convincente, em Kokchetav (Casaquistão), onde, segundo os jornais, foi recebido por Dinmukhamed Kunaiev, os líderes locais do Partido e outras autoridades. Depois desse discurso, não só patriótico e otimista como até comovente, as coisas ainda ficaram piores. Caíram chuvas pesadas durante toda a noite, que arrasaram as colheitas em perspectiva, se é que ainda restava alguma perspectiva de colheita. Normalmente, quando a colheita era má no Casaquistão, ela era boa nos Urais, mas naquele ano nem isso. Em vez de cento e noventa milhões de toneladas de cereais (ele repetiu esses números milhares de vezes), iriam colher apenas — segundo a imprensa — cento e sessenta e nove milhões. Mas a imprensa estava... não mentindo, que a imprensa soviética nunca mente, mas exagerando um pouco. Na realidade, a colheita não chegaria a cento e cinqüenta e dois milhões de toneladas, e isso representava fome; era um desastre. Os jornais pediam ao público para não desperdiçar nem um pedaço de pão e garantiam que as autoridades tinham a situação sob controle, com as dificuldades contornadas graças à cooperação do povo. Mas um súbito pânico assolou todo o país, especialmente Moscou. O Camarada Brejnev teve que voltar de Kokchetav às pressas.

É claro, Orlovski conhecia muito bem toda essa cantiga, mas Makarov andava divagando.

— Essa é a razão por que nós publicamos a história Unalim. Um tremendo golpe contra os imperialistas. É um escândalo ver que os capitalistas escondiam a nova descoberta, deixando que o povo passasse fome só para que seus lucros particulares continuassem altos. Para que a história fosse ainda mais convincente e atingisse melhor seus objetivos, decidimos dar os nomes dos envolvidos. Foi assim que o nome de Gurbanov foi mencionado. É tarde demais para evitar a revelação. Quer dizer, fizemos dele um herói. Fizemos de um traidor ou de um louco varrido um herói nacional. Hoje, o povo pronuncia seu nome com devoção e chora agradecido por toda parte na União Soviética. Foi isso o que nós fizemos, Orlovski.

Orlovski tinha recuperado a voz. Podia ter dito que nem sequer sabia dos planos para levar a história ao conhecimento do público. Mas achou mais conveniente permanecer em silêncio.

— Gostaria de enfrentar agora Iu. V. Andropov? Orlovski ainda desta vez não disse nada, mas toda a sua atitude e a sua expressão revelavam uma total falta de entusiasmo e de vontade.

— Não está a fim de vê-lo, não é? Pois vai vê-lo, sim, neste momento. Ele mandou chamar por mim. E você vai comigo.

A intenção de Makarov era a de causar-lhe medo e usá-lo como bode expiatório. O convite, porém, representava uma boa notícia para Orlovski. Iu. V. Andropov atingiria Makarov com palavrões muito piores do que aqueles que Makarov tinha usado contra ele. E Makarov não teria condições de se defender atrás de qualquer subordinado. Estaria abaixo da dignidade de Iu. V. Andropov censurar e xingar qualquer elemento abaixo do nível de Makarov. Tal como Brejnev, se quisesse xingar alguém, teria que xingar Andropov. Missão falhada, chute na bunda — em tempos idos, paredão!

Makarov pegou o Vechernaia Moskva com irritação e enfiou-o no bolso externo de seu paletó. Saiu furioso da sala, acompanhado por Orlovski. Chittikov levantou-se. Olhou para Orlovski com sarcasmo e — apesar de toda a aparente reverência e devoção — ainda com sarcasmo maior para Makarov. Orlovski, entretanto, sentiu que o momento era inoportuno para pedir ao Coronel Makarov que esperasse um pouco para telefonar e dizer à mulher que chegaria tarde para o almoço.

Ludmila, de fato, estava ficando nitidamente aborrecida. Seriochka, em geral, nunca se atrasava, e muitas vezes até chegava mais cedo. Por que razão teria que escolher justamente esse dia para chegar atrasado? Logo quando ela queria que fosse especialmente pontual. De manhã, na hora de sair, ele parecia estar na melhor das disposições. O caso da Unalim seria uma grande bênção para o país, um tremendo sucesso para o kgb, e um enorme triunfo pessoal para Seriochka. "Talvez eu ganhe uma medalha, Ludmila. E uma promoção, também, isso nem se fala." Ele sabia perfeitamente que num dia como aquele Ludmila iria fazer um esforço para apresentar uma refeição especial. E ele estava atrasado. Provavelmente, comemorando com seus colegas no escritório. Seria a perda total de seus esforços culinários. Tinha preparado o inevitável borch, tinha tido a felicidade também de encontrar um pouco de sazan, o peixe preferido de Seriochka, mas o ponto mais alto da refeição seria kissel mindal’nii. Estavam habituados a todas as espécies de kissels, um pudim macio que os russos chamam de gelatina, sobremesa bastante comum e popular. Ela já tinha feito kissel de maçã, de cereja e de groselha, para não falar de kissel de frutas variadas. Uns dias antes, porém, tinham ido à casa de um subordinado, uma daquelas noites chatas que não podiam evitar, e a dona da casa serviu kissel de amêndoas — kissel mindal’nii. Seriochka falou do kissel com um entusiasmo incrível. A princípio, Ludmila pensou que era mera questão de delicadeza, mas logo verificou que não. Seriochka não era assim tão delicado. Aí, pensou que talvez ele tivesse outros interesses pela dona da casa, Olga Ivánovna. Mas Olga Ivánovna era baixa e gorda, sem atrativos. Entretanto, Orlovski chegou ao ponto de mencionar as qualidades culinárias de sua mãe, e então Ludmila percebeu que o assunto era sério e que seria melhor tratar de aprender logo a fazer a maldita receita. Por isso, naquele dia, Ludmila tinha se esmerado e sentia um orgulho muito especial em poder bater Olga Ivánovna no seu próprio campo, isto é, no kissel mindal’nii. E era naquele dia, justamente, que Seriochka tinha decidido chegar mais tarde.

Finalmente, ouviu passos. Passos estranhos. Alguém tocou a campainha com agressividade. Curioso. Abriu a porta. Havia dois agentes do kgb na porta, ambos em trajes civis.

— Meu marido ainda não chegou — disse ela com azedume, deduzindo que Seriochka, quando chegasse, ainda teria que atender os dois homens primeiro. Era mais um atraso para servir o almoço.

Os dois homens entraram no apartamento.

— Já sabemos — disse um deles, de cara amarrada.

— E nem vai chegar a casa tão cedo — disse o outro com uma cara ainda mais amarrada.

— Trazem algum recado?

— Queremos falar com você, Ludmila Gregorovna.

— O que é que vocês querem de mim? — perguntou ela em tom hostil. Mas estava com medo. Lembranças.

— Temos um grande favor a pedir-lhe, Ludmila Gregorovna. Você terá uma chance de prestar um grande serviço à sua pátria socialista. Um favor pelo qual lhe seremos eternamente gratos — disse o de cara amarrada.

— Conhecemos você muito bem. Sabemos que não recusará servir a sua pátria — acrescentou o outro, o da cara ainda mais amarrada, em tom ameaçador.

Estavam em pé junto à porta.

— Entrem — disse ela secamente.

Sentaram-se na sala de estar. Ela não lhes ofereceu nada.

— Sim?

— Um dia você fez um comentário curioso — continuou o da cara mais amarrada. — Você disse: "Às vezes uma mulher só na cozinha faz mais do que seis membros da chefia do kgb em seus gabinetes". Você se lembra?

— Não.

— Foi no dia em que seu marido, o camarada diretor, voltou para casa e revelou — contrariamente a todos os regulamentos — informações ultra-secretas de que nós iríamos recrutar mais mil duzentos e setenta e cinco agentes, e você insistiu em que o número certo era mil seiscentos e setenta e cinco.

— Isso foi uma conversa puramente particular.

— Discutindo assuntos de Estado?

— Nós estávamos batendo um papo no nosso apartamento. Meu marido e eu, dois cidadãos perfeitamente dignos da maior confiança e servidores do Estado.

— Muito bem — disse o da cara mais amarrada. — Estava apenas refrescando sua memória, citando apenas um de seus comentários durante uma conversa puramente particular entre dois cidadãos dignos de inteira confiança, discutindo segredos ultra-secretos da organização de segurança do Estado.

— O que vocês querem de mim? — perguntou Ludmila friamente, mas tremendo por dentro.

— Há uma coisa desagradável na operação Unalim, a que foi dirigida por seu marido, o camarada diretor. Ele deve estar discutindo, justamente, o assunto com o Camarada Iu. V. Andropov, ministro da Segurança do Estado, na presença do Camarada Makarov. Devem estar discutindo o caso de uma maneira a mais amigável possível, tenho certeza. Nosso homem, Lolita Gurbanov, obteve a fórmula...

— Que mais desejam? — Lutava para manter o autocontrole, apesar de estar beirando a histeria.

— ...ele obteve a fórmula e nós pensávamos que estava tudo certo.

— A fórmula chegou, não chegou? — perguntou Ludmila.

— Mas há um problema. Aliás, na realidade, um problema trágico, muito desagradável para o kgb. Foi Desdêmona, aliás, o Major Vladímir Vassílievitch Ivánov, do gru, que a entregou ao seu departamento. Todos os créditos foram para o Serviço Secreto do Exército. Um dia grande e glorioso para o país. Um desastre tremendo, insanável, para o kgb — concluiu o da cara amarrada.

— Lamento — disse Ludmila, atordoada pelas novidades. — Meu coração, minha lealdade, estão com o kgb. Mas continuo sem saber em que posso ajudar.

— O camarada diretor vai ser mandado para Londres para investigar o assunto. Ou pelo menos é isso que ele vai pensar que fará. Vai tratar Gurbanov — agora, herói famoso na União Soviética — como um amigo. Pelo menos, até novas ordens.

— O que meu marido poderá fazer em Londres?

— Nada. Realmente, ele vai ser mandado para lá apenas para levar você.

— Eu? — perguntou ela genuinamente surpreendida.

— Sim, você, Ludmila Gregorovna.

Era o da cara amarrada que tinha falado agora. O da cara ainda mais amarrada prosseguiu:

— Você não pode falar a ele de sua missão. Nem mencionar que estivemos aqui com você. Terá que ser mais discreta do que ele naquele dia do recrutamento e em muitos outros dias. Você sabe que temos sempre os modos e os meios de saber se você falou ou não. E eu estou lhe avisando, como amigo: não diga uma palavra sequer.

O homem pronunciou estas últimas palavras lentamente, muito devagar, acrescentando assim maior profundidade ao seu significado. E como se isso não fosse o suficiente, acrescentou: — Você já esteve em apuros antes...

O da cara amarrada, fazendo seu jogo, reprovou as palavras do colega:

— Como é que você pode dizer uma coisa dessas a Ludmila Gregorovna?

— Parem com isso — disse ela. — Conheço muito bem esse jogo. Sim, estive em apuros faz alguns anos. Mas me deixaram sair dois meses depois. Foi tudo um engano.

— Podemos cometer mais um engano — disse o da cara mais amarrada.

— Claro que podem — reconheceu Ludmila.

— Somos apenas seres humanos... Isso Ludmila não podia confirmar.

— Foi apresentado um pedido de desculpas — murmurou ela.

— Podemos apresentar outro pedido de desculpas. Uma pausa curta e ela prosseguiu:

— Continuo sem saber qual é a tal missão.

— Você deve provar sua tese de que uma mulher pode fazer mais na cozinha do que seis chefes do kgb em seus gabinetes.

E deu a ela uma cápsula.

— Boris Gregórovitch Gurbanov — como você poderá ver na edição desta noite do Vechernaia Moskva e amanhã em toda a imprensa soviética — tornou-se uma figura nacional e um herói do kgb. O kgb não tem muitos heróis conhecidos do grande público. Por isso, não queremos que sua reputação seja destruída. Mas queremos que ele seja destruído. Ele será convidado para o almoço que você vai lhe oferecer em Londres, e então você o envenenará.

Ludmila estava horrorizada, mas continuou falando calmamente.

— Gurbanov é traidor?

— Não temos certeza — respondeu o da cara amarrada —, mas preferimos não arriscar.

— É uma questão apenas de prudência — acrescentou o da cara ainda mais amarrada.

— Sua missão é da mais vital importância. Envolve a segurança do Estado. E você não é contra a segurança do Estado, ou é?

Ludmila não respondeu, mas fez uma pergunta:

— Por que não fazem vocês mesmos esse trabalho sujo? Por que não atiram nele de uma vez?

— Atirar nele em Londres? — interrogou o da cara mais amarrada. — Não queremos tiros em Londres, de jeito nenhum. Preferimos antes um infeliz acidente.

— E a polícia inglesa? Talvez façam investigações...

— Não se preocupe com a polícia inglesa. Estará protegida. Não será a primeira vez que fazemos um pequeno trabalho por lá...

O da cara amarrada voltou a falar:

— Seja esperta e discreta, Ludmila Gregorovna. Estará prestando um grande serviço à sua pátria. E a seu marido. Não se pode dizer que ele tenha se coberto de glória com essa operação, e talvez venha a encontrar dificuldades. Você poderá salvá-lo. Só você poderá salvá-lo, Ludmila Gregorovna. Talvez ele até seja promovido se você fizer um bom trabalho. Caso contrário...

E deixou a palavra suspensa no ar. Ludmila fez uma última tentativa:

— Se o problema é do kgb, como se justifica que meu marido não possa saber do caso?

— Nossas instruções vêm de muito alto, de muito mais alto — disse o da cara muito mais amarrada num ritmo lento, teatral e significativo. — Portanto, nem uma palavra para ele, Ludmila Gregorovna. Atente bem ao que estou lhe dizendo!

Olhou para ela com um olhar perfurante, aumentando ainda mais sua imagem histriônica.

Os dois homens levantaram-se. O da cara amarrada falou, tentando ser agradável: — Divirta-se em Londres, Ludmila Gregorovna. Eu nunca estive lá, mas ouvi dizer que o lugar não é tão ruim assim, comparado com esses buracos capitalistas que existem por esse mundo, miseráveis, fedorentos, cheios de miséria por todos os lados.

 

                   Frutas em calda

Ludmila Gregorovna continuou cozinhando. Estava preocupada e infeliz. Nunca tinha matado ninguém.

Sua missão não a deixava apreciar Londres. Era a sua primeira visita à capital britânica e estava muito impressionada. A maioria das pessoas reclama das viagens aéreas: o aeroporto longe, a espera, a reunião em bandos, o percurso do rebanho pelos corredores até o avião, etc, etc. Alguém — era um homem alto, de barbas, que devia ter viajado muito em missões oficiais — falava com nostalgia dos tempos das carruagens puxadas a cavalo. Ludmila não disse nada para não entrar em conflito violento. Para ela, cada fase, cada detalhe da viagem tinha sido excitante e divertido. E, no entanto, havia a missão que tinha pela frente.

Em Londres, foi ver apenas a Torre e os exteriores do Palácio de Buckingham com sua mudança de guarda — tudo manifestações de uma aristocracia que ela, como uma boa comunista, achou fascinantes. Seriochka disse que tinham também que prestar homenagem — foram essas suas palavras textuais — ao túmulo de Karl Marx. Ela esperava que esse negócio de prestar homenagem fosse convenientemente esquecido, mas não se importava de ver todos os lugares da cidade, até as sepulturas. Seu encantamento só era ligeiramente perturbado pela presença de Chevtchenko, esse bêbado fofoqueiro e ordinário que se tornara guia e companheiro de todas as horas em Londres. Ela o detestava.

Ludmila nascera em Voronej, às margens do Don. Seu pai tinha sido funcionário do Departamento de Irrigação de Oksko Donskaia Nizmenmost. Pequeno funcionário, ambicioso, sempre à procura de uma promoção e da aprovação de seus superiores, fora sempre um membro de Partido dos mais devotados e fanáticos. Sempre na linha, sempre apresentando moções de condenação aos traidores — seus heróis de ontem — e expressando sua eterna gratidão a Stálin por salvar o país mais uma vez de um perigo mortal e por acertar mais um novo golpe glorioso nos inimigos do progresso e do socialismo.

A mãe era um tipo muito diferente. Filha de uma família de proprietários de terra e depois empobrecida, numa região não muito distante, Saratov, ela fazia sempre suas críticas. Não escondia o que tinha a dizer, tinha independência. Condenava sempre o marido por todos os defeitos do regime. O pai de Ludmila era rápido quando se tratava de abafar aos gritos, de censurar e até de denunciar qualquer palavra que contivesse a mais ligeira dúvida ou crítica ao regime, fosse ela proferida ou apenas sugerida por qualquer estranho ou amigo. Todavia, invariavelmente, permanecia silencioso diante das invectivas e das vociferações de sua mulher. Ludmila, quando criança, achava a atitude do pai contraditória. Mais tarde, compreendeu que tudo estava perfeitamente de acordo. Seu pai continuava sempre na linha: tanto em sua vida particular como na vida pública. As linhas é que eram diferentes. E as atitudes do pai obedeciam a elas.

Foi essa atitude crítica e a falta de cuidado de saber com quem estava falando, herdadas e copiadas de sua mãe, que levaram Ludmila anos mais tarde a ter problemas. Nessa altura, ela já estava em Moscou e era mulher de Seriochka, um jovem oficial do kgb, trabalhador e ambicioso. Disse qualquer coisa não muito favorável a respeito de os bondes de Moscou andarem sempre superlotados. Essas considerações subversivas — claramente inspiradas pelos inimigos imperialistas — motivaram sua remoção para um campo de reeducação, de onde inesperadamente saiu apenas dois meses mais tarde. O incidente não prejudicou a carreira de Seriochka. Ficou tremendo dos pés à cabeça, receando mais por si do que pela esposa, mas até chegou a ser promovido durante a ausência dela, o que não tinha nada de especial: Molotov fora ministro das Relações Exteriores da União Soviética enquanto sua esposa apodrecia na prisão. Ludmila, passado o período de choque, recobrou sua liberdade de expressão, mas embora tivesse falado bastante com o marido a respeito de suas vivências no campo, nunca lhe perguntou — pelo menos diretamente — por que ele nada tinha feito para libertá-la. Se tivesse sido perguntado, ele teria respondido que Molotov também nunca se tinha mostrado muito inclinado a levantar o assunto de sua mulher diante de Stálin. Na realidade, esse era um assunto que a todo custo ele queria evitar. Seriochka declarara uma ou duas vezes que sempre tivera a certeza absoluta de que ela seria libertada dentro de pouco tempo (por que ele tinha essa certeza nunca explicou) e que sabia também que, ficando quieto, sua atitude iria acelerar, em vez de retardar, sua libertação. Ludmila evitara fazer comentários sobre essas declarações.

Seu casamento com Seriochka, de um modo geral, era um sucesso completo. No início tinham estado profundamente enamorados, cheios de amor um pelo outro. A rotina transformara esse amor, não em tédio e irritação, como acontece em tantos casos, mas sim em afeto e tolerância mútua. Apesar disso, ela não esquecia nem o perdoava por seu egoísmo, sua covardia, sua falta de inteireza, na única ocasião em que ela realmente precisara dele.

Agora, ao preparar aquele almoço naquela estranha cozinha no apartamento temporário de que dispunham no bairro de Highgate, usando todos aqueles ingredientes desconhecidos e embalados de uma maneira inacreditavelmente luxuosa, um autêntico desperdício, ela sentia que estava sendo igualmente egoísta, igualmente covarde, a mesma falta de inteireza — tanto quanto a de Seriochka. Pensou nas habituais desculpas: estava cumprindo ordens; se ela não fizesse o trabalho outra o faria; prejudicaria irreparavelmente sua vida e a de seu marido se se recusasse; voltaria para o campo de concentração, dessa vez por um período muito mais longo — sem que com isso pudesse ajudar o pobre rapaz, Gurbanov. Mas ela sabia que eram apenas desculpas. Assassinato era assassinato. E odiava-se só de pensar no que sua mãe teria dito a respeito dessa atitude. Seria uma consolação muito pequena saber que seu pai aprovaria. E o que diria Seriochka se soubesse? Enfim, ele nada sabia. Ela nem ousava soprar uma palavra sequer ao seu ouvido. Mas tinha certeza de que ele preferia que fosse assim: não saber de nada antes, mas aprovar ou desaprovar depois do acontecido, ou melhor, lavar suas mãos.

Para tornar as coisas piores, o rapaz, Gurbanov, tinha sido promovido a herói nacional pela imprensa soviética. A cada dia seu heroísmo era cada vez maior. Bravo, criativo patriota, a imagem pura do jovem comunista devotado à sua causa. Em outras palavras, detestável — pensou Ludmila. Ela esperava que toda aquela publicidade fizesse com que Gurbanov fosse expulso da Inglaterra, de maneira que ela não precisasse mais cumprir sua missão. Mas os ingleses tinham falhado. Afinal, a fórmula não era segredo de Estado e a Perring não fizera nenhuma queixa.

Gurbanov estava para chegar dentro de alguns minutos. Nesse caso, muito bem, ela queria que a cruel missão chegasse ao fim o mais rápido possível. Mas eles se atrasaram uma hora. Ela teve a esperança ainda de que não viessem mais. Talvez ele, afinal, tivesse sido expulso.

Se viesse, o procedimento planejado por ela era muito simples. Tinha preparado kissel de amêndoas e a sobremesa seria servida a todos na mesa. Mas ela suplantaria Olga Ivánovna — a mulher do kissel de amêndoas que Seriochka havia elogiado tanto —, adicionaria algo mais à receita. Olga Ivánovna servia kissel de amêndoas simples. Ludmila serviria o dela com creme e frutas em calda. A calda de frutas iria para a mesa em dois pratos. Era um tanto difícil encontrar as coisas naquela cozinha estranha, mas o equipamento era completo, melhor do que o de sua cozinha em Moscou. Por fim, encontrou duas conchas de prata para servir a calda, uma grande e outra pequena. Então, colocou algumas gotas de veneno na pequena. Só teria que cuidar para que Gurbanov — e ninguém mais — tirasse a calda de frutas da concha pequena. E isso não seria muito difícil para qualquer dona-de-casa. E ainda menos para ela.

Depois, sabia, seguir-se-iam alguns minutos horríveis, de grande tensão. O veneno, ou fosse lá o que fosse, não teria efeito imediato. Vinte minutos mais tarde, causaria fortes dores de estômago e, um pouco depois, a morte repentina, como se fosse uma espécie de colapso cardíaco. Enfim, talvez, eles acabassem não chegando. Mas se tivessem que vir, que chegassem logo, sem mais atrasos. Provavelmente, aquele horroroso Chevtchenko os estava retendo em algum lugar, com seus intermináveis convites para mais um drinque.

Ludmila tinha esperança, também, de que Gurbanov fosse tão desagradável e detestável quanto as descrições dos heróis sugeriam. Tinha esperança de que ele fosse rude, arrogante e feio. No entanto, quando eles finalmente apareceram, ela o achou encantador, atencioso, cortesmente reticente e extremamente lindo. Seriochka, que teria vindo supostamente para investigar a traição de Gurbanov a favor do gru, parecia satisfeito com as investigações e estava completamente descontraído. Chevtchenko estava bêbado e irritante. Mas seria lógico esperar outra coisa?

Ludmila ofereceu vodca. Chevtchenko tragou logo dois copos cheios. Gurbanov, delicadamente, recusou a oferta, dizendo a ela que já bebera o suficiente. Seriochka não apresentou exatamente uma recusa, mas serviu-se de uma pequena dose e bebeu-a — ao contrário da tradição e de seus hábitos — muito lentamente. Houve um pequeno bate-papo a respeito de Londres e das particularidades do comportamento inglês. Houve também alguns risos meio grosseiros e meio etílicos. E dos comentários de Seriochka e de sua atitude, Ludmila conseguiu entender que Gurbanov tinha sido completamente ilibado de qualquer culpa. Portanto, ela iria assassinar não apenas um jovem encantador, mas um jovem inocente.

Seriochka foi até a cozinha dar uma espiada, como era seu hábito. E voltou, cheio de entusiasmo, quase de imediato:

— Camaradas, não estão perdendo pela demora. Vamos receber de minha mulher, Ludmila Gregorovna, um tratamento generoso, de primeira: borch moskóvski (lambeu os lábios), seguido de frango ao molho de maçãs e, para completar, kissel de amêndoas. Vamos, mais um pequeno trago, mal não faz!

Chevtchenko emborcou três tragos, e não dos pequenos, antes mesmo que o borch viesse à mesa. Ludmila não tinha pressa nenhuma. Sentia enjôo e fraqueza e — ao contrário do que pensara antes — estava resolvida a adiar a cruel façanha. Cada minuto ganho parecia agora de importância vital. O que não tinha acontecido até agora poderia talvez não acontecer. O pânico dominava-a cada vez mais. Sabia, entretanto, que tinha que mudar seu modo de pensar, por mais difícil que isso fosse, e cumprir sua missão. Se não mudasse de atitude acabaria não tendo forças para completar o serviço.

O borch foi um tremendo sucesso. Ao provar o frango ao molho de maçãs, Seriochka comentou:

— Tsiplienoks iablokami... Frango ao molho de maçãs ... Que mulher formidável você é, Ludmila Gregorovna... Sua receita é verdadeiramente fabulosa. "Fabulosa" é a palavra certa. Só minha querida e falecida mãe conseguia fazer melhor. Mais ninguém!

Ludmila dirigiu-lhe um olhar de reprovação. Não era o momento certo para ele começar a falar de sua maldita mãezinha. Aliás, o momento para ela só tinha um significado: faltavam poucos minutos, um quarto de hora no máximo, para que fosse servido o kissel de amêndoas, com cobertura de frutas em calda. Olhou mais uma vez para o rapaz: tão agradável, tão modesto, tão jovem.

— E sua mãe, Major Chevtchenko? — perguntou Seriochka. — Era também uma cozinheira maravilhosa?

— Minha mãe era uma cozinheira terrível — respondeu Chevtchenko. — E uma mãe ainda pior.

A resposta embaraçou todo mundo. Por isso, Orlovski dirigiu-se a Arkadi:

— E sua mãe, Boris Gregórovitch?

— Minha mãe é uma cozinheira muito boa — disse ele com um sorriso —, mas nunca teve a oportunidade de cozinhar coisas tão maravilhosas como as que Ludmila Gregorovna nos está oferecendo. Gostaria que ela estivesse aqui neste momento para poder provar esses pratos deliciosos.

Seriochka, de repente, ficou muito sério, pensativo. E disse:

— Seres estranhos, as mães...

E este pensamento profundo foi o último que ele pronunciou. Levou as mãos ao estômago — ou foi ao coração? —, soltou um grunhido terrível e caiu da cadeira.

Ludmila olhou para ele, horrorizada. Antes que ela, ou qualquer outra pessoa, tivesse pensado em chamar o médico, correu para a cozinha e verificou as duas conchas de prata » que continham as frutas em calda. Metade do conteúdo da concha menor tinha desaparecido. Seriochka tinha provado o doce naquele meio minuto em que estivera na cozinha. Devia ter achado a cobertura irresistível..

Chevtchenko levantou-se e dirigiu-se para o telefone. "Finalmente, alguém resolveu chamar o médico", pensou Ludmila.

Ele, porém, não estava chamando o médico. Ainda não. Tirou do paletó um pedaço de papel com um número de telefone e discou:

— Da — indagou do outro lado uma voz grave.

— Tvorojniki — disse Chevtchenko.

Era a senha combinada, o nome de um outro doce. Talvez tivesse pressentido que o doce seria a guloseima fatal. Enviar essa mensagem de uma palavra só era a única missão de Chevtchenko no negócio todo.

— Da — disse a voz grave, novamente, do outro lado. E desligou.

Chevtchenko nem sequer teve oportunidade de acrescentar qualquer outra coisa. Mas pareceu também não ter essa intenção. Talvez nem tivesse sido informado a respeito ? de quem seria a vítima. Ou talvez estivesse bêbado demais para notar que o homem errado tinha sido morto.

 

                     Derradeiras homenagens

— É você, Gurbanov?

Ele tinha dado a Oriana seu número de telefone, mas tinha lhe dito também repetidamente, e com a maior ênfase, que não lhe telefonasse, a não ser em caso de vida ou morte. Parecia, portanto, que o caso era de vida ou morte.

Arkadi respondeu afirmativamente à pergunta, mas Oriana ficou na dúvida.

— Tem certeza?

— Certeza de quê?

— Certeza de que é você mesmo?

— Sim, claro, é evidente.

— Preciso fazer um teste: qual é a marca de meu carro?

— Hispano Suiza.

— Qual é o nome do nosso hotel em Devon?

— Buckerell Moon.

— Qual o nome do meu cachorro?

— Fritz.

— Como é que eu costumo chamar você?

— Gurbanov. Acho que uma vez você tentou Gurby, mas nenhum de nós gostou.

— Bem, parece que não há dúvidas — disse ela pensativamente. — Isso significa que você está vivo.

— Vivo? E por que não deveria estar vivo?

— As pessoas que não estão vivas — disse Oriana — só podem pertencer a duas categorias. Categoria 1: as que nunca nasceram (talvez seja a categoria mais feliz). Categoria 2: os que estavam vivos e morreram. Julguei que você já pertencia à categoria 2.

Arkadi irritou-se.

— Você quer que eu morra? Lamento desapontá-la, mas estou em plena forma.

— Estou vendo... Mas se é esse o caso, como é que você explica?

— Explicar o quê?

— Se você está vivo, como é que fizeram seu funeral em Moscou? Aliás, um funeral esplêndido, com honras de Estado, discursos e tudo?

— Funeral em Moscou? Com honras de Estado? É mais uma de suas piadas, não?

— Não, absolutamente. Deve ser mais uma das piadas da imprensa russa...

A conversa estava ficando cada vez mais parecida com uma charada.

— Desde quando você está lendo a imprensa soviética?

— Nunca li. Não leio. Nem tenho o menor desejo de ler. Mas o Departamento de Publicidade da Perring lê. Ou leram especialmente nesta ocasião. Posso assegurar, você teve um funeral verdadeiramente espetacular em Moscou. Brejnev, apesar da doença, esteve lá, não quis faltar. Oh, céus, sinto até inveja...

— Você está bem, Oriana? Sente-se bem, sem problemas, descontraída? — perguntou ele, ainda em dúvida.

Mas já a ansiedade começava a dominá-lo. Qualquer que fosse a idéia louca dessa menina, não estava disposto a continuar a conversa ao telefone. Nem Oriana: — Quer vir aqui? Se puder, venha imediatamente.

— À sua casa? Pensei que não podia aparecer por aí. Oriana deu uma risada:

— Considerando que fui chutada do meu emprego e cortada do testamento de meu tio, acho que acabaram-se todos os riscos... Pelo menos, os mais graves.

— Mas isso é terrível — disse Arkadi, realmente preocupado.

— Bem, a posição em T de Mercúrio, Júpiter e Vênus sempre traz desânimo e desastres. '

— Não entendi.

— No meu mapa, Saturno estava em Libra. Não é que eu fui me associar com Leão? Que é que eu poderia esperar?

Mas não importa agora. Venha, venha logo. Venha rápido. Tome um táxi.

Arkadi estava confuso e espantado. Já tinha decidido, firmemente, abandonar Oriana. Afinal de contas, sua lealdade era devida à pátria e ao serviço. Já tinha conseguido o que pretendia, a fórmula da Unalim, e era isso que contava. Um pouco inesperadamente tinha sido transformado em herói nacional e não havia razão nenhuma para enfrentar grandes riscos indo viver com a garota. Suas ameaças — Boris estava perfeitamente certo — perdiam qualquer significado em sua atual posição inatacável. Além disso — e essa era sua justificativa moral —, ela tinha tentado fazer chantagem. Ora, ninguém deve negociar com chantagistas. Mas, afinal, que negócio era esse de sua morte e de seu funeral com honras de Estado? A garota devia estar completamente doida. Aliás, não era novidade nenhuma. Com a conversa dela a respeito de Mercúrio e de Libra, parecia que tinha perdido realmente o juízo.

— É, você parece realmente vivo — declarou ela ao vê-lo. — Mas, então, como é que se explica isto?

E apontou para a mesa. Havia vários jornais russos espalhados, sobressaindo o Pravda e o Izvéstia. Grandes manchetes com o nome dele em lugar proeminente. Fotos, também: a sua, a do pessoal do kgb carregando o caixão, a de Iu. V. Andropov discursando, fazendo o elogio fúnebre. Havia também alguns papéis brancos espalhados, fotocópias de documentos escritos à máquina, as traduções em inglês dos textos russos.

Oriana apanhou o do Pravda e principiou a ler:

— Ouça só: "Leonid Brejnev e os demais líderes do governo soviético também estavam presentes e, visivelmente, exprimiram suas condolências mais sentidas a Vera Dmítrovna, mãe de Boris Gurbanov, o herói morto".

Era tudo verdade, preto no branco. Havia até uma foto de sua mãe — é verdade que ela estava um pouco menos atingida pela dor do que ele gostaria de ver em seu funeral — ao lado de Brejnev. Era a sua mãe. Não a de Gurbanov. Qualquer que fosse a explicação para o caso — e certamente haveria uma — Arkadi gostaria que ela, tal como os seus ilustres acompanhantes, estivesse visivelmente comovida.

Oriana continuou a leitura da tradução.

— "Quatrocentas coroas de flores, vindas de toda a União Soviética, assim como do pcus... " Do pcus, o que é isso?

— Partido Comunista da União Soviética.

— Claro... "Do pcus, do governo soviético e dos países socialistas foram colocadas ao lado da urna do herói morto." Puxa, Gurbanov, até eu estou ficando impressionada...

Ele sorriu modestamente. E ela continuou a leitura, cada vez mais comovida. Visivelmente comovida, de fato.

— "Moscou estava coberta de bandeiras negras quando, ao meio-dia, a urna foi carregada e levada nos ombros para seu destino final. Os acompanhantes, que formavam uma fila de um quilômetro, começaram sua marcha lenta. No caminho, de um lado e de outro, centenas de milhares de pessoas, homens, mulheres e crianças. Todos os escritórios e as lojas fecharam em sinal de luto. O povo enchia as janelas, os balcões, os telhados e até os ramos das árvores, em todo o percurso. Uma hora mais tarde, o cortejo fúnebre parou diante dos líderes russos, do governo e do Partido, com Brejnev à frente. Os funcionários superiores do kgb que tinham carregado a urna depuseram-na em cima de uma carreta de canhão, puxada por um carro de assalto e acompanhada por uma guarda de honra dos serviços de segurança. A carreta atravessou lentamente a Praça Vermelha, enquanto se ouviam os acordes comoventes da Marcha fúnebre de Chopin, tocada por uma banda do kgb, especialmente incrementada para o grande acontecimento."

— Oh, essa Marcha fúnebre — acrescentou Oriana — sempre me faz chorar. Ainda que eu nunca a tenha escutado pela banda do kgb. Meu pobre heroizinho. Com Netuno sob a influência lunar e Saturno na terceira casa, eu devia ter previsto desastre e morte.

— Mas eu estou vivo, mais vivo que... — Arkadi queria falar, mas estava dominado pela comoção. Um funeral assim, era demais. Modéstia à parte, ainda achava que não merecia.

— Continue traduzindo diretamente do Pravda — pediu Oriana.

Arkadi procurou o lugar e continuou:

— "A carreta era seguida pelos parentes do falecido herói e pelos líderes do Partido Comunista e do governo soviético. Unidades do kgb misturavam-se com o povo de Moscou e das repúblicas mais longínquas, aos milhares, enchendo por completo a Praça Vermelha. Aos cinco minutos para as duas, a carreta parou em frente ao Mausoléu de Lênin..."

— Minha nossa, Gurbanov, não é possível. Eles o enterraram no túmulo de Lênin?! — exclamou Oriana, quase perdendo a respiração.

— Espere — pediu Arkadi, sua autoconfiança crescendo consideravelmente. E continuou:

— "A mãe do falecido herói, Vera Dmítrovna, era amparada por Iu. V. Andropov, ministro da Segurança, que liderou os acompanhantes até o cimo do mausoléu. 'O nome de Gurbanov', disse Iu. V. Andropov, em sua oração fúnebre (e aqui a voz de Arkadi chegou a tremer), 'está escrito em letras de ouro nos anais dos serviços de segurança. Tornou-se um símbolo de coragem e devoção pelo povo da União Soviética e dos outros países socialistas. Sua morte prematura servirá de infinita inspiração à juventude soviética.' "

— Leia isso aí novamente — pediu Oriana. — Não entendi bem. Sua morte servindo de inspiração à juventude.

Arkadi não prestou atenção ao que ela disse e continuou lendo:

— " 'Gurbanov', acrescentou Iu. V. Andropov, 'será conhecido no mundo inteiro como representante de um povo heróico, será conhecido como o homem que salvou nosso heróico povo da fome. E o salvou para sempre. Foi ele que integrou a primeira linha de uma família de agentes do kgb, todos bravos e corajosos, todos trabalhando o máximo possível, às vezes mais do que o possível, a favor do socialismo, a favor de um futuro melhor para todos os povos, a favor de uma cooperação internacional ainda mais intensa, a favor do maior de todos os ideais: a democracia. Estamos aqui prestando homenagem a um bravo, a um leal filho da nossa pátria.' "

Arkadi rompeu em soluços, começou a chorar.

— Não mereço, um funeral assim eu não mereço — disse ele com a maior sinceridade.

— Você merece, sim — assegurou Oriana. — Se alguém merece um funeral assim, esse alguém é, sem dúvida, você.

Aí, reconhecendo que Arkadi tinha sido dominado pela emoção, ela disse: — Deixe-me ler o resto, pela versão em inglês... Aqui, é isso... "Os líderes soviéticos e membros do kgb desceram do mausoléu com acompanhamento da Marcha fúnebre e carregaram a urna... "

— Acho que fui cremado — interrompeu Arkadi, pensativamente. Oriana continuou:

— "...carregaram a urna até o muro do Kremlin. Eram seguidos por Vera Dmítrovna, a mãe do falecido herói. Iu. V. Andropov, ministro da Segurança, colocou a urna dentro do muro do Kremlin ornamentado com centenas de coroas de flores. Foi nesse momento, então, que houve um minuto de silêncio anunciado em toda a União Soviética em honra de Boris Gregórovitch Gurbanov. Uma salva de artilharia... "

— Pare! — gritou Arkadi. — Pare com isso! Não agüento mais!

Mas ela continuou, descrevendo como Iu. V. Andropov fechou o túmulo com uma placa de mármore onde estava inscrito o nome do herói. Foi tocado o hino nacional, a última grande homenagem. Depois, a banda do kgb continuou tocando, seguida por uma seleção de representantes máximos dos serviços de segurança, "que tinham seu jovem colega em alta estima e para quem seu nome permanecerá como um exemplo brilhante e gloriosa inspiração por séculos e séculos". '

Arkadi sentiu o coração na boca, não podia falar.

— Você sabe, por acaso, como é que eu morri? — perguntou ele, após longa pausa.

— Não faço idéia. Você sabe?

— Claro que não. Como é que eu poderia saber? Ninguém me conta nada. Se não fosse você eu nem saberia do meu próprio funeral...

— Pode vir morar comigo amanhã? — disse ela, de repente, numa espécie de anticlímax. — Às onze? Não, venha mais cedo. Devo dormir até tarde. ,

Sabia que não poderia vir. Não deixaria o serviço, jamais provocaria ou desertaria de seu país, o país que lhe tinha dado um funeral esplêndido. Por outro lado — a idéia atravessou-lhe a mente como um relâmpago —, se ele tinha sido enterrado com tanta pompa e formalidade, com discursos comoventes e salvas de artilharia, no muro do Kremlin, como é que ele poderia continuar a servir seu país vivo? Eis uma questão, sentiu ele, que merecia ser repensada. Não diria nada por enquanto a Oriana. Além disso, também não estava disposto a uma cena.

— Meu tio ficou muito ferido — contou ela. — Ele ' não gosta de ser traído. Por que esses malditos jornais soviéticos tiveram que vir a público com a história, isso jamais vou entender. Mas eu devia ter previsto, louca como sou, dando a fórmula a você num dia em que Vênus estava numa má posição em relação a Saturno, seguido por Urano. Minha nossa, como é que eu pude ser tão descuidada?

— Desculpe-me, Oriana — interrompeu Arkadi, gentilmente. — Esse negócio de astrologia substitui a alimentação macrobiótica?

— Não. Correm paralelamente. Sempre acreditei em astrologia. Os planetas influenciam o destino humano e os negócios — é apenas uma questão de lógica.

Arkadi não tinha opinião formada sobre o assunto.

— Meu tio — continuou ela — veio para cima de mim, não queria saber. Aliás, não vou aborrecê-lo com detalhes. Chutou-me do trabalho e disse que eu não pusesse nunca mais os pés na porta dele. Nem na porta da fábrica nem na porta de casa. Retirou meu nome de seu testamento. Tudo o que me resta no mundo, agora, Gurbanov, é a estrebaria em Belgravia, cinco casinhas mais em Turnham Green, minhas jóias, minhas peles, e cerca de trezentas mil libras em títulos. Chega a ser patético!

Arkadi parecia distraído, olhando tristemente o espaço, mas na realidade estava calculando mentalmente os juros de trezentas mil libras a seis, seis e meio e sete por cento, fora os impostos — seu treinamento em contabilidade, finalmente, servia para alguma coisa. Pensou também nas tais casinhas em Turnham Green, mas achou indelicado perguntar.

— Confesse, Gurbanov. Você ainda me ama, agora, que sou pobre, que não tenho nada?

Arkadi beijou-a apaixonadamente na face e levantou-se.

— Até amanhã, às onze. Tchau — disse ela. Arkadi sorriu gentilmente e não disse nem que viria nem que não viria. Refletia. Refletia sobre os resultados: mesmo a seis por cento, trezentas mil libras dariam dezoito mil por ano. Isto é, o suficiente para viver tão bem quanto a rainha da Inglaterra. E sem as suas obrigações...

 

                   O final do caso

Ivan bateu à porta de Arkadi às sete horas da manhã.

— Puxa vida! Quem é?... — murmurou Arkadi, cheio de sono.

— Tenho que sair — disse Ivan. Arkadi olhou o relógio.

— Então, vá. Puxa, vá logo, não me chateie.

— O faxineiro vem limpar as janelas às sete e vinte. Deixe-o entrar. É muito importante.

E foi embora, sem dar qualquer outra explicação a respeito de o faxineiro ter que vir limpar as janelas às sete e vinte da manhã.

Se Arkadi não estivesse com tanto sono, teria exigido mais explicações. Às sete e dezenove, viu um carro vermelho parar em frente à casa: "Betteridge & Spalding, Limpeza de Janelas. Fundada em 1823", foi o que ele leu na lateral do carro. Em seguida viu que Boris saía e se dirigia para a porta da casa, carregando uma escada no ombro. Arkadi estava agora completamente acordado. Boris vinha, claro, para falar com ele, e Ivan tinha recebido ordens de dar o fora.

— Boris Gregórovitch Gurbanov — disse Boris, com voz ríspida e sem sorrisos —, tenho uma mensagem oficial a lhe transmitir.

— Sem essa, Boris, deixe disso — respondeu Arkadi.

— Meu nome é Rosamund — falou Boris, em tom severo, sem a menor sombra de sorriso nos lábios.

— Está louco?! — refletiu Arkadi. — Ou será que foi mordido pela mosca da formalidade burocrática? Ou será que eu não estou apenas com sono, mas na realidade sonhando? Sonhando acordado?

Boris continuou:

— Camarada Gurbanov, você causou uma trapalhada terrível em sua última missão. Você se desviou, indesculpavelmente, das instruções recebidas visitando os banheiros da Victoria Station no momento mais inoportuno.

— O momento era extremamente oportuno, posso garantir...

Boris não deu a mínima atenção e prosseguiu:

— ...no momento mais inoportuno. Não contente com isso, você cometeu mais uma falha, indesculpável, permitindo que o gru roubasse a preciosa fórmula de suas mãos. Felizmente, com uma decisão genial, a liderança de nossos serviços conseguiu salvar a situação. Você foi transformado em herói nacional — não por merecimento, evidentemente — e morreu como morrem todos os heróis. Foi-lhe dado um funeral de Estado e você foi enterrado com todas as honras militares.

— Eu sei — disse Arkadi, arrogantemente. Se Boris queria ser formal e pomposo, muito bem, ele podia fazê-lo sentir que fora ele que tinha sido enterrado com todas as honras militares. Não fora Boris, nem qualquer outro, não.

— Se você sabe disso, então, sabe também que já não existe mais. Você não existe mais, Camarada Gurbanov. Tendo sido enterrado, sua utilidade para o kgb e para a União Soviética chegou ao fim. Fica avisado de que não deve voltar

— ou melhor, tentar voltar — à União Soviética nunca mais. Se tentar desobedecer a essa ordem, o kgb cuidará de você.

Dirigiu a Arkadi um olhar gelado e ameaçador. Seria impossível diferenciá-lo de qualquer outro agente do kgb, dos mais odiosos.

— Sugerimos que adote outro nome, que fique aqui na Grã-Bretanha, ou em qualquer outro lugar no Ocidente imperialista, que nunca mais fale de seu passado, que nunca mais mencione o kgb em hipótese nenhuma, e que leve uma vida modesta e apagada. Desde que esteja cumprindo essas determinações, você receberá uma pensão de trezentos dólares por mês. Se preferir, levianamente, desviar-se dessas instruções, por menor que seja o desvio, nunca mais receberá pensão.

Suas palavras soavam cada vez mais sinistras.

— Se pedir asilo político, se contar sua história às autoridades ou à imprensa, se procurar publicidade de qualquer maneira ou sob qualquer forma, nós o mataremos.

Não havia mais rodeios.

E como se ainda não tivesse sido bem claro, colocou os pontos nos is.

— Mataremos você imediatamente. Mas se não o pudermos fazer de imediato, esperaremos. Você não nos poderá escapar. Chegaremos a você mais cedo ou mais tarde. Lembre-se de Leon Trótski.

A referência a Trótski era lisonjeira, mas fez com que Arkadi se sentisse mal.

— Um nome novo?... — pensou Arkadi. — Será que posso escolher Arkadi, Arkadi Dmítrievitch Nikítin, como um pseudônimo?

— Você poderá escolher qualquer nome que deseje, desde que não seja Boris Gregórovitch Gurbanov.

Arkadi compreendeu.

— E é tudo. Ou melhor, está aqui a pensão do primeiro mês. — Entregou a ele um envelope, com várias notas e moedas. — Eis o equivalente a trezentos dólares: cento e vinte e duas libras e noventa e cinco pence, menos quarenta e sete pence de taxas, total de cento e vinte e duas libras e quarenta e oito pence. Assine aqui. Assine Gurbanov pela última vez. No futuro, receberá a pensão todo dia 1.° de cada mês. E não precisará assinar nada.

Colocou o recibo no bolso.

De repente, a rispidez do rosto deu lugar a um largo sorriso.

— Tudo bem, Arkadi. Agora, o negócio oficial acabou. Tinha que levá-lo a sério porque o negócio era sério. Mas agora poderemos falar como nos velhos tempos e como velhos amigos, provavelmente pela última vez em nossas vidas. Embora nunca se saiba ao certo.

— Você acha que ainda poderei voltar para a Rússia um dia?

— Não. Acho que isso nunca vai ser possível. Mas talvez eu venha viver com você no exterior. Posso sentar?

— Claro.

Até aquele momento tinham estado em pé, um em frente ao outro.

— Quero contar a você algumas coisas — prosseguiu Boris —, mas antes gostaria de saber como é que você conseguiu fugir da delegacia de polícia naquela noite em que o Major Ivánov roubou sua mala verde.

— Você não sabe?

— Não. Você se apresentou a Chevtchenko e não me disseram nada. Você sabe como é, ninguém diz nada a ninguém.

— Fizeram-me perguntas — disse Arkadi —, mas eu exibi completa ignorância. Repeti que era membro da missão comercial soviética e pedi para que fosse chamado nosso cônsul. Eles não pareciam satisfeitos em ter que chamá-lo. Melhor assim. Quando me perguntaram a razão por que aquela mulher honesta falando cockney me tinha denunciado como espião russo, disse-lhes que todas as mulheres honestas falando cockney tinham a mania de considerar espiões todos os russos. E que essa atitude tornava a verdadeira amizade entre nossos dois grandes países praticamente impossível.

— Você contou a eles o que havia na mala?

— Claro que não. Isso iria confirmar as alegações daquela ignorante. Não. Eu disse a eles que na mala havia cinqüenta e quatro libras. Isso fez da mulherzinha uma ladra comum. A importância não era muito elevada, mas era ao mesmo tempo uma boa bolada. Puxa, parece que tudo isso aconteceu há séculos...

— É, parece que sim — concordou Boris.

— Diga-me uma coisa, Boris, para onde devo ir?

— Para Oriana. Eu disse a você que não fosse, eu sei. Mas as coisas mudaram. Àquela época, você parecia invulnerável. Hoje, você está morto, enterrado e descansando em paz. Por isso, sua vida está em perigo, não vale dez réis de mel coado.

— É, você já disse isso antes, já teve a bondade de salientar isso — reagiu Arkadi, com um pouco de impaciência.

— Oh, não. Tive a bondade de salientar aquilo que meu superior direto me pediu para salientar. Agora, estou fazendo uma observação de minha própria autoria. Orlovski não morreu do coração, não. Morreu de veneno mesmo. De veneno que era destinado a você.

— A mim?! — exclamou Arkadi, horrorizado. Não é nada agradável saber que a dona da casa, ou os amigos, ou os patrões, estão a fim de nos matar. — Mas por quê?

— Estavam um pouco desconfiados de você. Achavam que você os tinha traído. Suspeitavam que você estava trabalhando de acordo com Ivánov e o gru. Não tinham certeza. Mas queriam ficar seguros.

— Entendo — aquiesceu Arkadi.

— Já que estão atrás de você, é melhor fazer uma retirada estratégica e jamais beber o vinho que eles oferecem.

— Mas se eles mataram Orlovski, por que razão enterraram a mim? E se pensavam que eu era um traidor, por que me deram um funeral de Estado?

— Como você é ingênuo! Eles não tinham outra escolha, Arkadi. Tinham feito de você um herói nacional, em parte para acalmar o povo, agitado pela ameaça da fome, e em parte para glorificar o kgb. Como é que eles iam admitir que seu herói era um traidor e que o kgb tinha sido tolamente enganado pelos seus rivais?

— Mas ainda assim eles não podem enterrar um homem que está vivo e ao mesmo tempo deixar um cadáver por sepultar.

— Não podem? É um dos seus truques mais antigos: Kirov foi morto por Stálin e recebeu um esplêndido funeral de Estado; o búlgaro Dmítrov, também. E muitos outros. De qualquer forma, como eu já disse a você, eles não tinham alternativa. Chevtchenko informou que o homem estava morto e uma hora mais tarde a Rádio Moscou repetia que o herói Gurbanov tinha morrido. Era a morte gloriosa de um herói nacional, talvez envenenado pelos imperialistas, um ato de vingança. Quando se soube que Ludmila Gregorovna tinha envenenado seu próprio marido por engano, já era tarde demais para mudar o curso dos acontecimentos. Sepultaram Orlovski, mas para o povo era você que eles estavam enterrando. E não há o menor receio de que nossos diligentes c criativos jornalistas venham a descobrir a verdade e que o "furo" venha a ser publicado em grande manchete no Pravda. Devo confessar que Iu. V. Andropov foi verdadeiramente impressionante ao afirmar que seu nome estava escrito com letras de ouro nos anais do kgb.

— Até gostei imensamente desse pedaço do discurso — disse Arkadi. — Mas, com os diabos, por que raio de motivo eles tinham que me sepultar com todo aquele barulho?

— Tinham, sim. Claro. Você não entende? O funeral de Estado de um herói do kgb transformou o golpe do GRU num triunfo para o kgb. Era o kgb que estava sendo louvado. Eram as bandas do kgb que estavam tocando as marchas fúnebres. Era Iu. V. Andropov que estava fazendo o elogio fúnebre. Os líderes máximos, lá em cima, estavam sabendo das coisas, claro. Mas até eles foram obrigados a reconhecer que o kgb tinha dado um golpe de mestre em cima do golpe do gru. Meu caro amigo, Arkadi Nikítin, você não morreu em vão!

Arkadi sorriu. Aquele era sem dúvida Boris, velho amigo de outros tempos.

— E ainda fiz um favor a você, companheiro — continuou Boris. — Se alguém souber, estou liquidado. Serei fuzilado. Isso é certo, mas fiz. Achei um jeito de contar à sua mãe que você estava vivo. Ela sabia que estava assistindo ao funeral de uma outra pessoa qualquer. Daí o brilho nos olhos dela durante a comovente cerimônia.

— Obrigado, muito obrigado, rapaz — agradeceu Arkadi calorosamente. Esse era um problema que o estava preocupando desde que lera a notícia do funeral.

— Boris, você acha que eles deixarão que eu fique aqui em Londres? O que devo fazer? — perguntou Arkadi, confuso.

— Vá direto ao MI 5 e conte tudo aos serviços secretos ingleses. Ofereça a eles seus serviços.

— Mas você me disse ainda agora...

— Oficialmente. Agora, estou falando como amigo. Afinal, espionagem é a única profissão de que você conhece alguma coisa. Não muito, mas alguma coisa. Tome cuidado, muito cuidado. Odiaria receber ordens de matá-lo. Deixe os problemas de segurança para os ingleses. Eles estão longe de ser principiantes.

Foi Boris que tirou a garrafa de vodca do armário de Arkadi. Encheu dois copos e levantou o seu:

— Um brinde a Oriana. Dê-lhe um beijo por mim. Afinal, o destino que o espera não é tão ruim assim, certo?

Arkadi olhou para seu copo de vodca, mas não tocou nele.

— É espantoso! Que ironia, Boris! Entrei para o serviço por força de minha fama de garanhão, e depois fui promovido por causa de minha impotência. Você e Ivan fizeram planos brilhantíssimos, mas fui eu que consegui a fórmula sem mexer uma palha. Depois, foi uma mancada que me garantiu um funeral de Estado e agora é o crime deles — a ameaça de assassinato contra mim — que vai me transformar em refugiado sem lar e sem pátria. Tem sentido? Tem?

— Tem, é claro — respondeu Boris em alto e bom som: — O crime compensa e a virtude sempre recebe o castigo que merece.

Esvaziou o copo de um trago só.

— Boa sorte, Arkadi. Talvez a gente volte a se encontrar. Ou talvez não.

E saiu. Alguns segundos depois, Arkadi observava o carro vermelho se afastando e desaparecendo na esquina.

Às onze horas da manhã daquele dia Arkadi apresentou-se ao serviço, desta vez em casa de Oriana. Antes das onze da manhã do dia seguinte estava na rua novamente Chutado, expulso, demitido. Dias depois de seu funeral de Estado em Moscou, era sepultado em Londres, também de um jeito muito menos cerimonioso.

— Faça a mala e saia — foram as ordens de Oriana, usando um robe transparente por cima do corpo nu, antes mesmo de se sentar à mesa para o café da manhã, que, no seu caso, era chá, chá de narciso silvestre e duas fatias de salaminho de avelã. — Você sabe por quê...

Arkadi sabia. Durante todo o dia anterior, sua mente tinha estado em constante tumulto. Tinham acontecido coisas demais num espaço de tempo curto demais. Mabel, sua prisão, sua soltura, sua transformação em herói nacional, sua ameaça de morte, a ruína material de Oriana, a retomada de seu nome verdadeiro na condição de pseudônimo, a mudança para o apartamento de Oriana. Às onze da noite ele estava morto de cansaço e foi para a cama. Uma hora mais tarde, mais ou menos, acordou e sentiu o corpo nu de Oriana ao seu lado. Instantaneamente, verificou que a demissão dos serviços tinha tido pelo menos uma conseqüência agradável: já não era mais por dever patriótico que tinha que fazer amor — por isso, agora, podia... Estendeu a mão, sentiu uma coxa macia, e já era ele, novamente, o Arkadi de outros tempos!

— Eu estava preparada para alguma coisa — gritava Oriana. — Sabia que tinha que agüentar alguma coisa. Sabia que sua impotência era boa demais para ser verdadeira. Sabia que ela não duraria para sempre. Sabia que iria sofrer um pouco, ocasionalmente, mais cedo ou mais tarde. Mas não estava preparada... repito... não estava preparada para agüentar uma indignidade dessas! Sete vezes na primeira noite! Não, senhor, de jeito nenhum!

Arkadi não tinha contado as vezes. Mas devia ser mais ou menos isso: sete! Engraçado. Por que sete? Exatamente o mesmo número que no caso da Jean do Peixe-com-Fritas. Talvez sete fosse a sua necessidade natural.

Arkadi ficou transtornado, desanimado. Havia perdido o emprego e o país. Agora, ia perder também a única amizade que lhe restava.

— Posso explicar, Oriana?

— Não, não pode. Poderia... Poderia explicar duas. Vamos lá: três. Mas sete? Nunca! Saia da minha frente.

— Podemos continuar amigos?

— Não. Meu astrólogo vive me dizendo: "Cuidado com um estranho moreno com caligrafia peculiar".

— Dificilmente posso ser considerado um estranho. E minha caligrafia não tem nada de peculiar.

— Quer dizer que o alfabeto cirílico não é suficientemente peculiar?

— Nunca mais escreverei no alfabeto cirílico.

— Promessas, promessas...

— Mas é verdade, nunca mais. A única pessoa a quem eu poderia escrever é minha mãe. E não posso escrever a ela porque estou morto. Os mortos não escrevem cartas.

— Coisas muito mais estranhas do que essa já aconteceram.

Arkadi levantou-se, foi ao quarto e fez a mala.

— Adeus, Oriana. Eu a amo. Pelo menos, acho que a amo. E tenho certeza de que gosto de você.

— Eu gosto de você também — respondeu Oriana. — Muito mesmo. Mas não agüento outra noite como a de ontem. Esse hábito estúpido, sem sentido, arruína todos os meus casos de amor...

Arkadi estava quase na porta.

— Espere — disse ela, entregando-lhe uma chave e um pequeno pacote. — Quero que você leve uma lembrança minha. É a chave do meu carro. Fique com o Hispano. É seu. Uma recordação. E o pequeno pacote contém um dos sombreros de Fritz.

Tinha que sair. Saiu.

Deram-lhe permissão para ficar na Grã-Bretanha, mas o MI 5 não o considerou como pescaria de primeira. Suas revelações não causaram grande sensação. Seus serviços nunca chegaram a ser utilizados. Ficou rodando no seu Hispano Suiza 1926, número de registro HX 4643, o sombrero suspenso por um fio de prata oscilando junto ao pára-brisa. Não tinha absolutamente nada para fazer, ninguém para ver, nem para conversar. Pela segunda vez, estava para morrer... de tédio!

 

Dezoito meses mais tarde, Ivan e Boris encontraram-se em Berlim Oriental. Tinham sido ambos enviados para a capital de um país aliado e amigo para descobrir alguns detalhes úteis a respeito do fabrico de um novo tipo de ração para gado. Não deviam ter parado, mas pararam. Não deviam ter falado um com o outro, mas falaram.

— Lá vamos nós, novamente, no mesmo barco — disse Boris com um sorriso. — E na República Democrática Alemã, com tanto lugar por aí.

— Onde existem migalhas encontram-se os ratos — respondeu Ivan.

Ficaram parados por um momento, ligeiramente embaraçados. Afinal, por que tinham parado?

— Gurbanov — disse Boris, finalmente —, já pensou nele alguma vez?

— Muitas vezes — respondeu Ivan.

— Teve alguma notícia dele? — perguntou Boris. — Ele está bem? — E para que seu interesse não levantasse suspeitas, acrescentou: — Será que ele ficou rico com a recompensa por sua traição?

Ivan encolheu os ombros: — Para cada trapaceiro existem sete tolos. — Falou e continuou seu caminho.

 

Seis meses mais tarde depois desse encontro, o flagelo da fome atingiu a União Soviética. Cerca de cento e setenta e oito mil pessoas morreram de fome na região de Karaganda. Os jornais se esqueceram de noticiar o caso e, se o tivessem feito, como tudo aconteceu durante a realização do campeonato mundial de futebol, ninguém teria prestado atenção. A Unalim teria salvo todas as vítimas, mas — devido a um lamentável erro burocrático —, ninguém mais se lembrava do que era Unalim.

 

                                                                                George Mikes  

 

                      

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