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Giulia de Blasco é uma escritora de sucesso que venceu uma difícil batalha contra o cancro e conquistou o amor do cirurgião Ermes Corsini. Apesar disso, Giulia não consegue encontrar a serenidade que tanto deseja. O seu filho Giorgio, de dezasseis anos, atravessa uma adolescência conturbada e acaba por influenciar negativamente a relação de Giulia e Ermes e fazer Giulia questionar as suas capacidades como mãe. É no meio destas dúvidas e incertezas que surge Franco Vassalli, um enigmático e fascinante empresário, habituado a conseguir tudo o que quer... Para Giulia começa assim mais um período dramático e intenso da sua vida.
Depois de Desesperadamente Giulia, Sveva Casati Modignani dá continuação à história de Giulia de Blasco, uma das personagens-chave mais emblemáticas de toda a sua obra.
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- E tu, como é que imaginas um estúdio de televisão? - perguntou o agente Michele DAmico, ao volante do Alfetta azul e branco que deslizava velozmente pela circunvalação do lado oriental de Milão, ao colega que ia sentado ao seu lado em silêncio.
Eram oito horas da manhã e DAmico e Ruta, agentes da polícia, após horas e horas de patrulha tranquila no sector que lhes tinha sido destinado, regressavam à esquadra quando a central, através do rádio, lhes comunicou secamente a ordem para se dirigirem às instalações da Inter-Channel para a notificação de um roubo.
- Estás com a cabeça na lua? Fiz-te uma pergunta - insistiu DAmico, irritado.
- Acerca de como imagino um estúdio de televisão? - retorquiu prontamente o colega. - A mim não me apanhas distraído acrescentou, com orgulho.
- Então? - insistiu DAmico.
- Imagino um sítio cheio de mamas que só de ver dão vontade de trincar - respondeu Francesco Ruta. DAmico abanou a cabeça em sinal de condescendência. Tinha vinte e seis anos e vinha de uma aldeia empoleirada nas Madonie, as montanhas da Sicília; Ruta, pelo contrário, tinha vinte e quatro e tinha nascido e vivido em Foggia. DAmico sentia uma grande vontade de fazer carreira. O diploma de contabilista permitira-lhe a entrada nos gabinetes
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da polícia onde, no entanto, não se sentira muito à vontade, razão pela qual tinha pedido a transferência para as brigadas móveis. Ruta e DAmico formavam há seis meses uma equipa fixa.
- Tu tens o sexo pregado na cabeça - acusou DAmico com ironia.
- E tu és o Nico delia Girandola1.
DAmico riu-se. - Não, não sou o Pico delia Mirandola repetiu, sem lhe chamar a atenção para o erro.
- Isso é um dado certo - rebateu. - Basta pensar em quando precisaste que te esfregassem debaixo do nariz o envelope com o salário dentro - atirou Ruta, com um sorriso trocista.
- Touché - rendeu-se o colega.
- Tu quê?
- Nada, nada - rematou DAmico.
- com aquele teu diploma de contabilista até parece que fizeste a faculdade. És um convencido, cheio de peneiras - provocou Ruta.
DAmico travou de repente e o carro estacou a poucos centímetros do rail de segurança.
- Anda lá para fora, que eu parto-te a cara - gritou, ao mesmo tempo que agarrava o colega pela gola do blusão de pele.
- Olha que a saída para Brugherio é daqui a vinte metros respondeu Ruta, sem lhe dar importância e com um sorriso divertido. Tinha conseguido fazê-lo zangar-se.
DAmico rendeu-se: irritava-se com facilidade e tinha caído na armadilha. Largou a presa e pôs novamente o carro a trabalhar. Arrancou com uma chiadeira de pneus e tomou a saída para Brugherio.
- Tens a certeza de que é por aqui? - perguntou Ruta, enquanto abria um mapa de estradas.
- Pensei que tu soubesses o caminho - respondeu, alterado, e agarrou imediatamente no microfone para entrar em comunicação
1 Giovanni Pico delia Mirandola foi um erudito, filósofo e humanista do Renascimento italiano. (N. da T.)
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com a central. Chegou até eles a voz esganiçada de um operador que DAmico reconheceu imediatamente.
- Então como é, ainda não chegaram? - perguntou o polícia, com uma voz agressiva.
- Dá-me indicações decentes - replicou secamente o siciliano.
- Não estamos propriamente a ir para a RAI do corso Sempione.
- Onde é que estão exactamente? - perguntou a central.
- Circunvalação este. Na saída de Brugherio - respondeu DAmico.
- Já passaram há muito a sede da Inter-Channel. Façam inversão de marcha e ao fim de mais ou menos dois quilómetros virem à direita, ao pé da igreja. Encontram logo as tabuletas com indicações que vos levam até ao destino - concluiu o operador.
- O que é que vem a ser esse Inter-Channel? - perguntou Ruta, agarrando o microfone.
- É um canal com uma certa importância. Uma emissora via satélite que transmite em vinte e cinco estados programas para crianças e jovens.
- E aposto que também sabes de quem é essa espécie de País dos Brinquedos - desafiou Ruta.
- Ganhaste, Sherlock Holmes. Trata-se de um tal Francesco Vassalli, o típico empresário em ascensão - concluiu, satisfeito.
- Ali está a indicação para a Inter-Channel - suspirou DAmico, enquanto virava de repente. - E agora não me queres dizer o que foi que roubaram? - perguntou, tomando novamente conta do microfone.
- A casa da Branca de Neve e dos Sete Anões, o castelo do Príncipe Azul e o bosque do Capuchinho Vermelho - enumerou o operador.
- Estás a gozar connosco? - perguntou DAmico, atarantado com aquela enumeração singular.
- Nunca falei tão a sério - confessou o operador. E acrescentou o clássico: - Terminado.
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- Mãe, queres mais um bocadinho de chocolate? - perguntou o homem sentado ao lado da mulher idosa à mesa do pequeno-almoço.
- Oh, sim, por favor. É uma pena a Pomina só me dar isto quando tu cá estás. Se tu não estiveres, não há chocolate. Só me dá chá, que é uma coisa que me mete nojo - comentou a velhinha com uma expressão infantil e simpaticamente petulante.
Estavam na marquise, com amplas paredes de vidro, no primeiro andar da bonita vivenda Liberty sobre o lago de Como. O sol inundava com uma luz dourada aquele aposento em que predominavam uns ténues tons pastel, uns cadeirões de vime e uma toalha amarelo-claro, bem engomada, enfeitada com delicadas margaridas brancas bordadas a ponto de sombra. A luminosidade singular daquela manhã criava uma atmosfera quase irreal. Também a senhora idosa, de cabelos brancos apanhados num chignon macio na nuca e um delicado vestido de musselina azul-celeste com uma gola de pique branco, parecia a personagem esbatida de um sonho. A velhinha falava a meia-voz e olhava para o homem jovem e bonito que estava sentado ao lado dela com a adoração inocente de uma menina.
- Esta manhã eu estou aqui contigo e por isso podes ter o chocolate todo que quiseres - respondeu o filho a sorrir, ao mesmo
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tempo que lhe servia mais um pouco daquele líquido fumegante e perfumado de um jarro de prata cinzelado de soberba manufactura inglesa.
Ela levou aos lábios a chávena às flores e bebeu com avidez, enquanto o rosto se lhe iluminava de prazer. Pousou delicadamente a chávena meio vazia no pires e estendeu uma mão pousando-a sobre o braço do filho, que estava sentado ao seu lado.
- O chocolate quente - esclareceu a velhinha, - segundo aquilo que eu penso, é a prova mais certa da existência de Deus. Depois, como lhe acontecia cada vez com mais frequência, mudou completamente de tom.
- Franco, és tão bonito - exclamou com uma voz risonha, devorando com os olhos aquele filho extraordinário que tinha um olhar escuro e profundo. O seu perfil parecia talhado pelo cinzel de um escultor: o nariz direito, a testa ampla, as sobrancelhas fartas. O queixo largo e decidido era atenuado, ao centro, por uma covinha. A boca bem desenhada exprimia uma obstinada determinação. Vestia umas calças cinzentas de fazenda e um casaco inglês de quadrados por cima de um pólo de seda cinzento muito claro.
Cobriu, com a sua, a pequena mão da mãe, e começou a acariciá-la delicadamente.
- Sou teu filho, minha velhota querida. Tu vês-me bonito e fantástico porque sou teu filho. - Franco sorriu e pousou um beijo nos cabelos da mãe.
Nesse momento entrou Pomina, uma mulher de meia-idade que parecia encarnar o modelo da empregada perfeita.
- O senhor tem uma chamada - anunciou. - Dos estúdios de Brugherio - acrescentou.
- Diga que não estou - respondeu ele prontamente.
- Parece que é uma coisa urgente - insistiu Pomina.
- Não há nada mais importante do que aquilo eu que estou a fazer - sentenciou.
A empregada eclipsou-se e Franco deixou-se cair novamente naquele clima de afectuosa intimidade com a mãe.
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- Como é que te sentes esta manhã? - perguntou ele, enquanto ela recomeçava a bebericar gulosamente o seu chocolate.
A velhinha, sorridente, não respondia à pergunta mas exprimia toda a sua satisfação relativamente àquele chocolate que tinha já acabado. Pousou a chávena e com um ar vivo perguntou de repente: - Agora posso ir tratar da minha vida?
O filho olhou para ela, desconcertado.
- Porque é que me perguntas? Podes fazer o que te apetecer.
- Eu fiz-te uma pergunta concreta. E gostava de ter uma resposta concreta, sim ou não.
- Está bem. Podes ir - condescendeu Franco, a abanar a cabeça com um ar resignado. Mais uma vez se tinha deixado surpreender por aquele volte-face repentino da mãe, que passava cada vez com mais frequência da lucidez ao torpor.
Ela levantou-se com agilidade do cadeirão e dirigiu-se à porta da marquise que dava para o jardim, com um passo ligeiro e seguro. Prestes a alcançar a porta, parou de repente e, virada para o filho, perguntou quase com um tom de censura: - E tu não vens?
Franco Vassalli, que acabava de abrir um jornal, voltou a fechá-lo e apressou-se a segui-la, onde quer que o quisesse levar.
- Quero sair - disse ela, com ar caprichoso. Abriu a porta de vidro da marquise e começou a descer a escada de pedra cinzenta que conduzia ao jardim em socalcos. O filho seguiu-a docilmente.
Avançaram ao longo de uma alameda ladeada por uma sebe de loureiro e chegaram a um grande canteiro coberto de rosas em vários tons que se misturavam uns nos outros, em gradação, do amarelo ao salmão. Um jardineiro sachava a terra.
- Mãe, vou ter de te deixar - disse Franco, baixinho.
- Quando? - perguntou a senhora, preocupada.
- Dentro de alguns minutos - respondeu, ao consultar o relógio.
- Mas como, ainda agora chegaste e já estás a falar em ir embora? - De repente, o seu olhar tornou-se inquieto.
- Sabes muito bem a quantidade de coisas que tenho para fazer, não sabes?
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- Não, não sei mesmo. Nem quero saber - replicou, amuada, evitando olhá-lo nos olhos.
- Amanhã eu volto - acrescentou o filho.
- É mentira - acusou a mãe. - Sempre disseste mentiras. Quando eras rapaz fazias trinta por uma linha e defendias-te atrás de uma trincheira de mentiras.
- Talvez fosse verdade nessa altura, mas agora mudei. E tu sabes. Já te esqueceste de que amanhã é o teu aniversário?
A expressão da senhora mudou outra vez completamente.
- O meu aniversário - repetiu baixinho. Aproximou-se do filho para se refugiar nos seus braços. - Quantos anos? - sussurrou-lhe ao ouvido. - Quantos anos é que eu faço amanhã? - perguntou num sopro.
- Que importância é que isso tem? - tentou ele desdramatizar.
- Precisamente por isso é que eu queria saber - insistiu ela. Quantos anos faço, meu filho? - Tinha-se afastado de Franco e olhava-o directamente nos olhos. - Vê lá tu - continuou - que já nem me lembro do meu dia de anos. Mas a coisa mais estranha é que nem sequer me lembro do ano em que nasceste. - Cobriu o rosto com as mãos e começou a chorar silenciosamente. Depois passou os dedos pelas faces para enxugar as lágrimas e naquele momento um relâmpago de luz atravessou-lhe os olhos: - Sessenta anos. Sessenta - repetiu a senhora. - Já são muitos anos. Três vezes vinte. Mas eu já não atino com os números. E tu, filho, quantos anos tens?
- Tenho trinta e seis, mãe - disse Franco, com paciência.
- Então amanhã é o meu aniversário - sorriu. - E a prenda? Que prenda me vais dar?
- É surpresa. Mas vai ser uma coisa de que vais gostar muito prometeu, ao mesmo tempo que lhe afagava a face.
- Até amanhã, então - disse a senhora, resignada, e rindo-se sem motivo virou-se para regressar a casa em passos curtos.
Franco Vassalli ficou a observar a mãe enquanto ela se afastava e sentiu-se invadido por uma ternura infinita em relação àquela
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criatura evanescente e frágil que o tinha dado à luz, criado com amor, e que caminhava em direcção ao destino imparável de uma doença que a ciência consegue explicar mas não curar.
- Bom-dia, senhor - cumprimentou-o o jardineiro, que avançava em direcção a ele com um grande cesto de verbena na mão.
- Bom-dia, Aldo - respondeu. - O que é que andas a fazer com essas flores? - perguntou-lhe.
- A senhora mandou-me transplantá-las para o terraço das traseiras - explicou com um ar resignado. - Só Deus sabe como eu tentei de mil e uma maneiras fazê-la entender que a sombra é a morte da verbena. Mas é difícil convencer a senhora. E assim quando as verbenas morrerem vai deitar-me as culpas a mim.
- Tens toda a minha solidariedade - garantiu Franco, enquanto o jardineiro continuava o seu caminho.
Franco olhou para o relógio. Eram nove e meia e tinha de regressar a Milão imediatamente. Às dez tinha um encontro importante nos escritórios da piazza Missori. Entrou novamente em casa e cruzou-se com a empregada, que empurrava o carrinho carregado com a louça do pequeno-almoço que tinham tomado na marquise.
- Diga ao tom que estou pronto para partir - pediu Franco Vassalli.
- O motorista já está à espera no carro - respondeu a empregada.
Queria perguntar onde estava a mãe, mas desistiu quando o falsete sofrido de uma antiga canção de embalar saiu por uma porta entreaberta: Pai Ia ninna, fai Ia nanna bei bambino delia mamma. Quantas recordações lhe suscitavam aquela cantilena e aquela voz que o serenava quando, em criança, a escuridão vinha evocar fantasmas horríveis.
A mãe, na sua mente instável, reconstruía retalhos da sua própria juventude e momentos amargurados da primeira infância de um filho que lhe escapava. Às vezes chegava ao ponto de não o reconhecer, sobretudo quando estava no quarto dos brinquedos
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de Violet, filha única dos senhores Gray, ex-proprietários da casa oitocentista que tinha ainda o seu nome.
Alan Gray era um inglês abastado que amava a Itália e, sobretudo, o lago de Como. A villa Gray espelhava-se no lago e a família Gray passava ali uma grande parte do ano, a receber amigos e a criar a única filha, Violet, como uma flor rara. Uma breve e incurável doença matou Violet aos onze anos. Os Gray regressaram a Inglaterra com os restos mortais da menina adorada. E a villa sobre o lago ficou como a tinham deixado até ao início dos anos cinquenta quando, com o intervalo de um mês, morreram os dois.
Os herdeiros tentaram arrendar ou vender a propriedade, mas não conseguiram por causa de uma cláusula testamentária muito precisa que os Gray tinham deixado escrita. Por sua vontade, com efeito, a casa deveria ser conservada exactamente como estava. Não seria possível efectuar alterações de qualquer tipo, e sobretudo devia permanecer intacto o quarto da pequena Violet. Por isso, a villa Gray tinha ficado tantos anos por ocupar, até que Franco Vassalli aceitou a imposição e arrendou aquela imponente construção para a mãe.
Franco aproximou-se da entrada do quarto de Violet, um aposento com tules e rendas, cheio de brinquedos da época amontoados por todo o lado. O que predominava eram as bonecas com cabeça de porcelana, a maior das quais estava agora nos braços da mãe que a embalava com um amor cheio de paciência. E era para ela que cantava aquela canção de embalar.
Quando o viu levantou-se e apertou a boneca contra o peito.
- Vim incomodar-te? - perguntou-lhe Franco.
- Imagina! Estava a brincar às casinhas. Também queres brincar, papá? - propôs, ao mesmo tempo que arregalava os olhos claros.
- Para começar, não sou o teu papá - respondeu a sorrir.
- Então quem és? - indagou, olhando-o com desconfiança.
- Sou o teu filho. Lembras-te?
- Não. Não me lembro, mas se tu o dizes, eu acredito. Onde disseste que ias?
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- A Milão, como tu sabes. E amanhã volto com uma prenda fantástica para ti.
- Ofereces-me uma boneca nova? - perguntou, entusiasmada.
- Qualquer coisa mais do que isso. E melhor - respondeu Franco com ternura.
- Então vai e volta depressa. Eu acredito em ti. Apesar de seres mentiroso por natureza - acusou-o, enquanto apertava contra si a boneca de porcelana.
Franco beijou a mãe e depois saiu, fechando a porta atrás de si, acompanhado pela melopeia triste e sofrida que a velha senhora tinha recomeçado a cantar.
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- Eh, Rovelli - a voz grave do rapaz atingiu-o com a violência de um murro no estômago. Giorgio, que ia a meio do corredor, estacou. Sem fôlego.
Era intervalo e os alunos precipitavam-se ruidosamente para fora das salas de aula, formando grupos e tomando de assalto uma mesa coberta de sanduíches e bebidas.
- Então? - desafiou-o o rapaz, segurando-o por um ombro. Era um palmo mais alto do que ele. Tinha um rosto magro e ossudo, marcado pelo acne. Os cabelos compridos, sujos e despenteados, desciam-lhe até aos ombros e ensombravam-lhe o rosto. Era mais velho dois anos do que Giorgio e frequentava o último ano do liceu.
- Olá, Filippo - replicou Giorgio, fingindo-se desenvolto. com que então por estes lados? - acrescentou, num tom falsamente irónico. Giorgio tinha medo. E notava-se.
- Deves-me dinheiro. Já te esqueceste? - interrogou Filippo, olhando-o com um ar ameaçador.
- E vou dar-to - prometeu Giorgio.
- Quando? - insistiu o rapaz.
- Quando o tiver - concluiu Giorgio, rapidamente.
- Quando o tiver - troçou Filippo -, são três palavras vazias como canas. Uma boa resposta é: aqui está o dinheiro. Ou então:
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amanhã por esta hora vou pagar-te a minha dívida. Olha que se não me deres uma resposta credível eu rebento-te - ameaçou o rapaz.
Giorgio olhou em volta. Os seus colegas de turma tinham-se dispersado e misturado com os outros alunos. Riam-se, insultavam-se alegremente, comentavam as aulas, criticavam os professores e programavam encontros. Pareciam jovens e felizes. Certamente não estavam preocupados com ele que, atrás de uma coluna, tentava fazer-se pequeno e servil para evitar que as ameaças de Filippo se concretizassem.
Filippo Corsico, filho de um conhecido especialista em direito penal, figurava entre os primeiros de uma lista de alunos a manter sob controlo que o director tinha compilado e que mantinha sempre à mão.
- És maior, mais velho, mais forte e tens razão - tentou Giorgio -, apenas posso contar com a tua benevolência.
O medo levava-o a recorrer a qualquer estratagema. O outro, como única resposta, agarrou-o pela camisola e obrigou-o a segui-lo.
- Anda comigo, palerma - disse baixinho. - Se pensas que me vais obrigar a fazer figura de parvo, estás bem enganado.
Empurrou-o brutalmente pelas escadas abaixo, mantendo debaixo de olho os rapazes em volta, a rir ostensivamente como se aquilo fosse uma brincadeira.
Enfiaram por um corredor curto e inclinado, que levava à sala de projecções.
- Já apanhei mais outro - disse Filippo com um ar triunfante, ao mesmo tempo que atirava literalmente Giorgio para dentro da sala sombria onde outros rapazes, sentados no chão, estavam a fumar. Giorgio foi imediatamente envolvido por um cheiro adocicado. Ao fim de alguns minutos naquela semiobscuridade, começou a identificar as fisionomias dos presentes.
- Queres fumar? - perguntou-lhe um dos do grupo, a sorrir com um ar doce.
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- Se calhar - respondeu, hesitante.
Explodiu um coro de gargalhadas. Também Filippo se riu com os outros. - Anda lá, palerma. Fuma este charro em santa paz sossegou-o, ao mesmo tempo que lhe passava um chillum.
Giorgio aspirou avidamente pelo grosso tubo de barro até encher os pulmões com aquela coisa acre e picante que lhe retirava toda a energia, fazendo-o precipitar-se num estado de obtusa beatitude. Encostou a cabeça à parede e sentiu-se no paraíso.
- Olha que isto não cancela a dívida - precisou Filippo. Era o chefe daquele grupo miserável e não perdia a oportunidade de enfatizar o seu papel.
- Merda - resmungou Giorgio. - A minha mãe fez-me um corte na mesada.
- Problema teu - respondeu um companheiro a rir, enquanto se preparava para aspirar estupidez e torpor através daquele sórdido apetrecho de barro.
- E o teu pai não se chega à frente? - indagou Filippo, já tonto do haxixe.
- E até era capaz. Só que nunca cá está - respondeu Giorgio.
- Pais de merda - interveio um outro. - Só servem para nos dar cabo da cabeça com aqueles sermões moralistas. Para além, é claro, de irem às putas sempre que podem.
Um deles começou a rir num tom abafado mas subtilmente histérico.
- A minha mãe - intrometeu-se um terceiro - dá umas quecas com todos os amigos da família. Depois vem ter comigo e faz-me uns sermões sobre a moral e as boas maneiras. Quando dá uma queca é tal a confusão que até a ouvem na portaria. Eu não lhe peço dinheiro. Abro a carteira e tiro. As carteiras das mães são minas de ouro. Não sabias? - perguntou, voltando-se para Giorgio.
Giorgio não respondeu. Repugnava-lhe a ideia de meter a mão na carteira da mãe. E nem sequer gostava de ouvir falar dos pais daquela maneira. A mãe tinha um amante, Ermes, mas iam casar-se dentro de alguns meses. O comportamento de Giulia, a mãe, não
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podia justificar as suas transgressões. Apesar de a presença de Ermes continuar a fazê-lo sentir-se pouco à vontade.
Pegou no chillum, aspirou voluptuosamente o fumo e depois levantou-se, sentindo um agradável balanço na mente. O torpor estava a apoderar-se dele. A partir daquele momento, e durante várias horas, não ia poder fazer outra coisa senão escutar a sua amada violenta música rock.
- Obrigado pela passa - disse ao fim de algum tempo. Encontramo-nos logo à noite.
- Aguenta aí, espertalhão. Olha que eu quero as minhas trinta mil de volta - disse Filippo.
- Ouve. Se eu não te pedir mais dinheiro emprestado, diminuis-me a dívida?
- Nem pensar - respondeu secamente.
- Mas tu estás cheio de cacau. Que diferença te fazem trinta mil a mais ou a menos?
- É uma questão de princípio - objectou o companheiro.
- Mas se tu defendes que os princípios são uma merda! - reagiu Giorgio que, por efeito do fumo, falava com a cadência lenta de um bêbedo.
- Os teus princípios são uma merda, patarata. Os princípios dos outros, não os meus - provocou. - Os meus princípios são sagrados e invioláveis. Por isso não te esqueças do compromisso assumido.
Filippo Corsico nunca ameaçava em vão. Giorgio sabia-o. Regressou à sala com um vago mal-estar. A aula tinha recomeçado e a professora estava a fazer chamadas. Ele tentou passar despercebido e esgueirou-se para a carteira, ao fundo da sala.
A professora de Italiano, a Dr.a Cazzaniga, observou-o com uma indiferença estudada. Mandou para o lugar a rapariga que estava a interrogar e depois apanhou-o com um tom enérgico: Rovelli, queres vir tu, agora?
- Não, professora - respondeu, dirigindo-se, no entanto, ao estrado. - Acho que não estou preparado.
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- Não me parece que estejas a fazer as honras ao nome que tens. O teu pai é um jornalista e a tua mãe uma escritora. O teu teste de Italiano está desastroso - censurou-o, ao mesmo tempo que lhe entregava uma folha cheia de correcções. - Erros de gramática, Giorgio - acrescentou, tratando-o pelo nome próprio. Erros de escola primária.
Giorgio pegou no teste e regressou ao lugar, indiferente aos olhares e às apreciações dos colegas. Navegava num veleiro negro, num mar sombrio de obtusa imbecilidade, na companhia de uma insensata vertigem que o mantinha prisioneiro num mundo do qual todos eram excluídos: os colegas de escola com as suas gargalhadas, a voz dos professores, o olhar interrogativo da mãe, a eterna alegria do pai, a segurança de Ermes.
Precisava de arranjar o dinheiro para pagar a Filippo, e mais algum, para comprar o "fumo". Porque esse era o único grande prazer da sua vida.
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Giulia sentiu primeiro o seu perfume, depois a tepidez dos lábios na testa. Mas não queria abrir os olhos e acordar completamente. Ronronou de prazer enquanto enterrava a cabeça na almofada de penas.
A voz de Ermes era um sussurro que lhe chegava de planetas distantes.
- Olá, Giulia. vou sair - disse baixinho.
- Que horas são? - balbuciou.
- Sete e meia - respondeu Ermes -, dorme mais um bocadinho. Está-se tão bem na cama nestas manhãs de Outono - prosseguiu, com a voz cheia de uma inveja sorridente.
- E então porque é que não estás aqui também? - implorou Giulia com um fio de voz.
- Tenho de ir para a clínica. Já sabes - justificou-se. - Hoje de manhã tenho uma série de cirurgias complicadas. Nem sei quando vou terminar.
Na noite anterior tinham ido juntos ao teatro. Depois jantaram com alguns amigos. Quando Ermes a levou a casa, ela convidou-o para passar lá a noite.
A escritora Giulia de Blasco e o célebre cirurgião Ermes Corsini eram oficialmente noivos desde o verão anterior; esta definição fazia-a sorrir. Tencionavam casar-se dentro de poucos meses.
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Ermes tinha quarenta e seis anos e Giulia ia fazer quarenta e dois. Amavam-se desde sempre, apesar de as vicissitudes da vida os terem separado e impedido de se casarem muito tempo atrás.
- Se eu fosse uma rapariga como deve ser, devia levantar-me e preparar-te o pequeno-almoço - brincou Giulia, ainda prisioneira do sono e incapaz de vencer a tentação de continuar a dormir. A pouca luz que passava pelas persianas iluminava com discrição o papel de parede em tons pastel, os candeeiros de porcelana com abat-jours rosados, um grande crucifixo de madeira onde há anos se tinha instalado um bicho que, de vez em quando, acordava e agredia a madeira provocando um tac sonoro. A toda a volta do crucifixo estavam penduradas imagens sacras do século XIX dentro de molduras douradas.
Giulia estendeu-lhe os braços e puxou-o para si.
- Acho que nunca vou ser uma boa esposa - afirmou.
- E o que é que fazem as boas esposas? - perguntou Ermes, divertido.
- Preparam um bom café para os maridos que vão trabalhar.
- Mas a Ambra trata desse ritual. Para além do mais, o café não é a tua melhor arma - confessou, com uma ponta de ironia.
- E o que é que eu posso fazer?
- Tu fazes bem em ficar na cama mais umas horas. É o médico quem manda - replicou ele.
Desde que, havia menos de nove meses, Ermes a operara a um tumor no seio, Giulia cansava-se facilmente e abrandara o ritmo de trabalho.
- Está bem, professor Corsini. vou fazer como tu queres. Mas antes dá-me um beijo - pediu-lhe em tom de brincadeira.
Ermes beijou-a. Foi um beijo casto e cheio de amor. Por um instante, Giulia reencontrou as sensações e as emoções dos seus quinze anos, quando Ermes, que era um estudante sem dinheiro e com a cabeça cheia de projectos ambiciosos, pousara os seus lábios nos dela.
- Sorry - disse Giorgio, irrompendo no quarto da mãe.
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O rapaz, filho do casamento de Giulia com o jornalista Leo Rovelli, tinha estacado a poucos passos da cama, petrificado de embaraço.
- Olá, Giorgio - disse Giulia afectuosamente, ao mesmo tempo que se erguia da almofada.
O rapaz voltou-se de repente e, quando chegou à porta, fechou-a ruidosamente atrás de si. Depois precipitou-se pelas escadas abaixo, calcando os degraus com força e fazendo ribombar metade da casa.
- Mas o que foi que lhe deu? - perguntou Ermes a Giulia.
- Não sabia que te ia encontrar aqui - explicou ela.
- Mas já devia estar habituado. Para além do mais somos amigos, ele e eu.
- Não quando te metes na minha cama - disse Giulia. - Professor, acorda. És capaz de ter ouvido falar de um tal Freud. E de um tal complexo de Édipo.
- Chatíssimo, de resto - comentou Ermes. - Estás triste, querida? - perguntou de repente, preocupado.
- Não. Estou só desesperada - suspirou Giulia.
- vou agora descer à cozinha e falo com ele - propôs Ermes.
- Eu falo, querido. Agora vai-te embora, porque se não chegas tarde ao bloco. Como vês - sorriu Giulia -, agora sou eu que mando.
- Como quiseres. Até logo. - Despediu-se com um beijo e saiu do quarto.
Giulia ficou a pensar na maneira de restabelecer com Giorgio o equilíbrio que ela própria, involuntariamente, contribuíra para perturbar.
O rapaz vivia de um modo dramático o delicado período da adolescência. O bode expiatório daquele mal-estar era o rendimento escolar. Passava dias inteiros em cima dos livros e os resultados eram péssimos. Como era evidente, não conseguia concentrar-se, e a sua mente vagueava sabe-se lá por onde. Giulia não era capaz de o ajudar.
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De qualquer modo, decidiu que naquela manhã o ia esperar à saída da escola para irem comer uma piza juntos. Diante de um copo de Coca-Cola tentaria levá-lo a falar dos seus problemas.
Mergulhada naqueles pensamentos, sentiu o ranger do portão do jardim a abrir-se. Era Ambra, a sua governanta-amiga que ia pôr o saco do lixo na rua. Depois ouviu bater a porta de casa: Ermes saía para o hospital. Giorgio, de mochila ao ombro, já tinha certamente saído e devia ir já no autocarro que o levava à escola.
- Finalmente só - disse para si, sabendo que apenas nessas condições podia ruminar com calma os seus pensamentos. Tinha um problema com o filho, a pessoa mais importante da sua vida. Precisava de o enfrentar e resolver.
Foi à casa de banho e tomou um duche longo e quentíssimo. Depois, em frente ao espelho, iniciou aquilo que definia na brincadeira como o seu restauro quotidiano: uma base branca para atenuar as olheiras, uma base rosada para esconder as pequenas imperfeições da pele, uma pincelada de blush e um pouco de rimei nas pestanas. No armário escolheu umas calças verdes de gabardine, uma camisolinha de seda pérola de gola alta e um casaco de tweed aos quadradinhos em tons de verde e castanho.
Giulia pensou no seu último romance. Ia chegar às livrarias dentro de poucos dias e ela, como sempre, estava entusiasmada com isso. Para além das dúvidas e das perplexidades em relação à opinião do público, que havia muitos anos a acompanhava afectuosamente.
Voltou ao quarto e observou-se ao espelho, que lhe devolveu a imagem tranquilizadora de uma mulher agradável. Ouviu tocar a campainha da porta, mas não ficou preocupada. Ambra estava ali para a proteger das agressões externas. Contemplou mais uma vez a sua imagem reflectida no espelho. Tinha os cabelos castanhos e fartos, salpicados aqui e ali por alguns fios de prata. Reparou, conformada, na minúscula e subtil teia de rugas à volta dos olhos. Estás a envelhecer, Giulia, disse para si. O que é que tu querias? Os anos passam para todos, concluiu tristemente.
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No Verão seguinte ia fazer quarenta e dois anos. Uma idade problemática que sublinha os primeiros sinais do declínio. Giulia tinha a certeza de que era desejada por Ermes, que a amava, e também por Leo Rovelli, o primeiro marido. Mas Ermes e Leo conheciam-na desde sempre, tinham-na amado e continuavam a amá-la e a desejá-la. E os outros? O que pensariam dela os homens com quem se cruzava na rua? Por um instante, Giulia sentiu-se perturbada. Depois pensou num pôr-do-sol incandescente que dá o melhor de si antes de ceder o lugar às sombras da noite. Sorriu. Era uma descrição que nunca tinha usado em nenhum dos seus romances.
- Quem é o imbecil - declamou em voz alta - que defende que a adolescência é a idade mais difícil? Haverá alguém que conheça o desespero da idade madura? - concluiu de uma forma teatral.
- Eu - respondeu-lhe Ambra, irrompendo no quarto de Giulia com a expressão dos momentos mais negros.
- Aconteceu alguma coisa? - perguntou Giulia, dirigindo-se a ela.
Como única resposta, Ambra escancarou a janela e começou a desfazer a cama, batendo as almofadas com uma violência inútil e abanando os lençóis com força.
- Aconteceu tudo - gritou, fulminando-a com o olhar. Aconteceu que hoje a minha artrose está a morder como um cão raivoso. Aconteceu que a balança disse que engordei mais dois quilos. E, finalmente, aconteceu que fui roubada - concluiu, ao mesmo tempo que se sentava na cama desfeita e tapava a cara com as mãos para esconder as lágrimas.
- Ambra, minha amiga - Giulia sentou-se junto dela e passou-lhe um braço em volta dos ombros. - Quem foi que te roubou?
- E como é que eu sei? Ouviu a campainha, há bocado?
- Claro que ouvi.
- Pois bem. Era o carteiro. Queria duas mil liras por causa de um envelope que não trazia selos suficientes. Abri a carteira para pegar no dinheiro. E foi então me apercebi de tudo - explicou, com a voz quebrada pelos soluços.
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- Tinhas muito dinheiro contigo? - perguntou Giulia, preocupada.
- Não muito. E o dinheiro ainda lá está. O pior é o resto. Hoje, antes de sair, tinha metido na carteira o fio de ouro da minha pobre mãe para o levar ao ourives e mandar compor, e também o anel com a água-marinha que a senhora me deu quando veio do Brasil. Queria mandá-lo apertar. Está tudo perdido - disse, desatando num pranto desenfreado.
- Não fiques assim - consolou-a. - Para estas coisas há remédio.
- Mas não há remédio para aquelas mãos porcas, nojentas, que conspurcaram a minha alma. Isso é que é violência.
- Agora acalma-te - disse Giulia com ternura. - Diz-me uma coisa - continuou -, já apresentaste queixa?
- Nem sequer sei por onde hei-de começar - respondeu Ambra, desconsolada.
- Então vamos as duas à esquadra - decidiu Giulia. O encontro com Giorgio ficava adiado.
Na esquadra da zona tiveram de esperar muito tempo antes de serem atendidas. Havia muita gente. Dois miúdos queriam participar o desaparecimento de um gatinho. Uma dona de casa tinha sido vítima de um violento roubo por esticão, por dois delinquentes de motorizada. Um barbudo, a tresandar a álcool, tinha sido detido por distúrbios na via pública e actos obscenos. Havia ainda um traficante de haxixe algemado.
- Tenha a bondade, senhora de Blasco - disse um agente que a tinha reconhecido, ao mesmo tempo que lhe abria caminho para um seu gabinete.
- Desculpe por a termos feito esperar tanto tempo - explicou o agente -, mas esta manhã parece que está tudo louco.
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O aposento estava inquinado por uma compacta nuvem de fumo de tabaco. Usando apenas dois dedos, alguns funcionários lançavam-se com violência contra as teclas já gastas das velhas máquinas de escrever.
O agente sentou-se à secretária. - Então, em que lhes posso ser útil? - perguntou com uma cordialidade insólita, voltando-se para Giulia.
- Fui roubada - respondeu Ambra. - Aqueles delinquentes tiraram da minha carteira Um fio de ouro e um anel.
- Onde ocorreu o facto? - perguntou o homem.
- Creio que no autocarro - respondeu Ambra. - Só dei conta mais tarde, quando já estava em casa da senhora - precisou, a olhar para Giulia.
- Pode dar-me uma descrição dos objectos roubados? Assim, começo a lavrar a acta.
O agente, porém, não parecia particularmente interessado em iniciar o processo. Provavelmente sabia, por experiência, que os objectos roubados com destreza dificilmente são recuperados Sobretudo, parecia muito mais interessado na presença de Giulia do que no roubo da pobre Ambra. com efeito, em vez de tomar notas, dirigiu-se à escritora.
- Esta manhã ocorreu um facto que se a senhora soubesse
com a sua imaginação, até podia escrever um romance - disse o homem.
- A sério? E não me conta? - perguntou Giulia com um ar divertido e resignado ao mesmo tempo. Todas as pessoas que encontrava, mais cedo ou mais tarde, acabavam por lhe contar historias que, na opinião delas, continham todos os elementos para um grande romance.
- Imagine - começou o agente com um ar cúmplice, ao mesmo tempo que baixava a voz e se inclinava em direcção a Giulia
- que roubaram a casa da Branca de Neve, o castelo da Bruxa Má, o bosque do Capuchinho Vermemo e o carrossel do País dos Brinquedos.
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- Incrível - exclamou Giulia, sem perceber do que é que o homem estava a falar.
- Incrível, mas verdadeiro - retorquiu o agente. - Fui eu mesmo que recebi a denúncia, hoje de manhã.
- E onde se encontravam todas essas maravilhas? - perguntou. - A quem pertenciam esses retalhos de um sonho?
- Encontravam-se nas arrecadações de uma televisão privada. A Inter-Channel, de Franco Vassalli. Em Brugherio. Conhece?
- Nunca ouvi falar - rematou Giulia, que tinha outros pensamentos bem mais importantes na cabeça.
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O carro-patrulha foi obrigado a parar diante de umas cancelas semelhantes às de uma passagem de nível. Eram accionadas por um homem sentado à frente de uma mesa coberta de telefones, de intercomunicadores e de uma série de comandos com botões dentro de uma cabina de vidro. No topo da guarita transparente havia uma placa de aço que dizia: Inter-Channel. Para lá das cancelas viam-se veículos de vários tipos parados dos dois lados de uma rua que se abria, à esquerda, numa grande área de estacionamento. Ao fundo, um edifício de vidro espelhado e uma série de pequenas construções. À direita havia duas estruturas de cimento cor de barro, compridas e baixas, das quais entrava e saía, num vaivém contínuo, um grande número de pessoas de entre as quais se destacavam os operários de macacão e os figurantes com os seus fatos.
- É por causa do roubo no armazém? - perguntou um homem jovem, de casaco azul, com um ligeiro chumaço por baixo da axila a assinalar a presença de uma arma. Tinha aparecido de repente, inclinado sobre o vidro aberto do carro, enquanto os dois agentes olhavam em volta, curiosos.
- Porque é que não tenta levantar a cancela? - pediu secamente Ruta, que detestava os seguranças particulares e quando via um sentia ferver o sangue.
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- O armazém que procuram fica do outro lado - explicou o jovem guarda, ao mesmo tempo que indicava um ponto distante, para além do edifício futurista de vidro escuro.
- E então? - perguntou Ruta, com ironia.
- Então têm de voltar para trás, virar à direita, continuar durante duzentos metros e depois virar novamente à direita. Há aí um estaleiro para a construção de um novo estúdio de televisão. Vão encontrar um portão que está sempre aberto e, logo a seguir, um armazém. Parem no portão. Estará lá alguém à vossa espera.
- Muito competente, o nosso gentil guarda - provocou Ruta. O guarda não respondeu à provocação.
- Mas será que do ponto em que estamos não se pode continuar directamente até ao armazém? - interveio DAmico para refrear a agressividade do colega.
- O acesso ao armazém está obstruído por um camião que está a descarregar materiais de cenário - explicou o segurança. Iam ter de esperar muito tempo.
- E se afastássemos o camião? - insistiu Ruta.
- Lamento muito. Estão a montar os cenários para uma transmissão e há horários a respeitar.
- Muito bem, o nosso superguarda - provocou de novo o agente -, bem-educado, eficiente, decidido a fazer respeitar as ordens recebidas.
- É uma descrição que me honra muito - sorriu o jovem, impassível. - Sigam as minhas indicações e chegarão num minuto. Se, pelo contrário, estiverem com vontade de conversar, vão ter de encontrar outra pessoa porque eu tenho de voltar ao trabalho.
Ruta olhou para ele com raiva.
- Vá, vamos embora - pediu bruscamente DAmico. Seguindo o percurso indicado, os dois agentes encontraram-se
num beco poeirento de terra batida que delimitava, de um lado, uma vasta extensão de terreno inculto e, do outro, o esqueleto de cimento armado de um edifício em construção. Uma grua alta, amarela, rodava lentamente um braço possante que transportava
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pesadas traves de ferro, ao mesmo tempo que, nas grandes betoneiras, o cimento era amassado com um ruído ensurdecedor. Alguns veículos de lagarta deslocavam-se no terreno acidentado, aumentando aquele fragor infernal.
Levantando uma longa esteira de pó, o carro-patrulha avançou pelo caminho estreito e parou junto de uma cancela metálica de controlo automático completamente aberta. Logo a seguir havia um grande armazém.
Dois homens em fato-macaco azul aproximaram-se do carro.
- Eu sou o Walter - apresentou-se o primeiro, um bonito rapaz moreno, alto, com ombros de lutador. - Sou o responsável pelos armazéns - explicou aos dois polícias que, entretanto, tinham saído do carro. - E este é o Cario - concluiu brevemente.
- Os ladrões entraram por aqui? - perguntou DAmico.
- É a única conclusão possível - respondeu Walter -, apesar de haver um guarda que todas as noites faz uma ronda pelos armazéns. A entrada principal é vigiada ininterruptamente, dia e noite.
O jovem conduziu os polícias até ao interior do armazém através de uma galeria de tecto abobadado que parecia feito de vidro.
- É policarbonato. Um material transparente mas resistente às intempéries e ao calor. É o mesmo tipo de cobertura que é usado para o estádio de San Siro - explicou aos dois polícias, que olhavam em volta com uma curiosidade infantil. - De um dos lados da galeria que, como podem ver, é suficientemente larga para permitir o trânsito de veículos com gruas, há um estúdio de gravação, e do outro ficam as entradas de três armazéns. A ocorrência deu-se nos armazéns dois e três - concluiu, ao mesmo tempo que abria um pesado portão de ferro de dois batentes.
Entraram num armazém com cerca de dez metros de altura e com uma área de cerca de quinhentos metros quadrados. Não havia janelas e a luz provinha das grandes lâmpadas suspensas no tecto.
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Ao longo das paredes, os gigantescos andaimes metálicos continham os objectos mais heterogéneos e singulares, tais como lanças e escudos, fraldas e telefones de todas as épocas, garrafas e espelhos, instrumentos musicais e fogões eléctricos, relógios e baús, bóias e caixas, candelabros e pratos, panelas, uma banheira, vassouras e fantoches de pano. Os andaimes da parede do fundo estavam completamente vazios.
- Ora então - continuou Walter a explicar -, era aqui que estavam os cenários dos espectáculos para crianças. Ontem filmámos duas sessões. Depois desmontámos tudo, transportámos o material do estúdio para aqui e arrumámo-lo naquelas prateleiras. Hoje de manhã, quando abri o armazém, já cá não estava nada.
- São objectos muito caros? - perguntou DAmico.
- Eu não lhes chamaria objectos - respondeu o jovem. - São construções propriamente ditas que se montam e desmontam de cada vez que são usadas. Há partes em madeira, outras em contraplacado, em poliestireno, em laminado, em acrílico. Por exemplo, havia um carrossel com uns cavalos de madeira fantásticos e um castelo desenhado pelo arquitecto Sabelli. Até havia um pequeno bosque idealizado pelo cenógrafo Altamira. Uma autêntica obra-prima em miniatura.
Os polícias escutavam, curiosos. Foi convocado o guarda-nocturno, um homem relativamente jovem mas com os cabelos quase completamente brancos.
- Então o senhor não deu conta de nada? - perguntou Ruta.
- Eu faço a ronda dos estúdios - precisou, ligeiramente pouco à vontade - duas vezes apenas durante a noite: à meia-noite e às três da manhã. Ontem à noite não notei nada de especial. Estava tudo tranquilo, como sempre.
- Se agora quiserem seguir-me, mostro-lhes o que foi roubado do armazém número dois, onde conservamos o guarda-roupa prosseguiu Walter, enquanto conduzia os agentes ao armazém que ficava ao lado. - É uma estrutura que construímos há um ano explicou, com o entusiasmo de quem gosta do seu trabalho.
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Os agentes DAmico e Ruta entraram num espaço idêntico ao dos cenários, mas onde se encontrava uma sucessão de prateleiras criadas por andaimes gigantescos carregados de sapatos, carteiras, chapéus e acessórios de vestuário de todos os tipos, épocas e formatos.
- Ora bem - disse Walter, que tinha conduzido os polícias ao cimo de uma escada de ferro -, aqui estão os fatos das personagens mais queridas das crianças e desapareceram precisamente todos os da Branca de Neve, da Cinderela e do Capuchinho Vermelho.
- É como se alguém tivesse querido montar noutro sítio um espectáculo para crianças - interveio Ruta, que finalmente sorria naquela espécie de País dos Brinquedos.
- É possível - replicou Walter. - A mim parece-me o roubo de um louco. Mas muito bem informado e que sabe como se mexer num ambiente como este.
- Esse louco tinha seguramente cúmplices - observou Ruta. É impensável que uma só pessoa tenha podido levar a cabo esta tarefa.
- Se calhar a coisa é ainda mais complexa - interveio Walter.
- Durante a noite o acesso a todo este sector é impedido por alarme um anti-roubo ultra-sensível. Se alguém tentar passar sem inserir o cartão magnético, o alarme dispara e garanto-lhes que as sirenes são literalmente ensurdecedoras. - Prosseguiu como se estivesse a raciocinar em voz alta: - Só uma pessoa com o cartão magnético podia entrar e sair. E, agora que penso nisso, não houve nenhuma entrada forçada nem sequer no acesso aos armazéns. Os ladrões tinham as chaves - concluiu com convicção.
- Ou um cúmplice que os deixou entrar - admitiu Ruta, que tinha encontrado, ao lado do portão, a alavanca para a abertura electrónica à distância.
- É provável - admitiu Walter. - A partir deste momento, o problema é vosso. As minhas suspeitas - sublinhou, enquanto se dirigia à saída seguido pelos dois agentes e pelo guarda - recaem
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obviamente sobre a concorrência. A Inter-Channel é uma emissora que está a incomodar muita gente. Privar-nos dos cenários e guarda-roupa dos programas de maior audiência, como aqueles que são dirigidos às crianças, precisamente, significa arranjar-nos complicações.
- Pergunto a mim mesmo como conseguiram, em poucas horas, transportar aquela tralha toda - observou DAmico, pensativo. Entretanto tinham saído para o exterior. DAmico aproximou-se de dois camiões estacionados em frente ao armazém: Francesco, anda cá ver - gritou ao colega que estava a tomar notas.
- O que é que foi? - perguntou Ruta, aproximando-se.
- Anda ver o motor desta besta - tinha a mão apoiada sobre um dos lados do capo.
- Ainda está quente - disse Ruta, e voltou-se para o guarda-nocturno: - Quem usou estes camiões esta manhã?
- Tanto quanto eu sei, ninguém. Os camiões estão aí estacionados desde ontem à tarde. E também aí estavam esta noite. Garanto-lhes - respondeu o guarda.
- Tu que dizes? - perguntou DAmico ao colega.
- O mesmo que tu pensas. Ou seja, que alguém, usando o cartão magnético, entrou, pegou nas coisas, carregou-as no camião e, depois de as ter levado ao seu destino, voltou para trás e estacionou o veículo no mesmo sítio - concluiu Ruta, e acrescentou: Vamos fazer um telefonema para a central.
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Quando Giulia voltou da esquadra, eram quase duas horas da tarde. A casa estava deserta. Os seus passos ecoaram no silêncio. Na cozinha era visível a passagem de Giorgio, que tinha comido a refeição preparada por Ambra e deixado pratos sujos, migalhas de pão por todo o lado e duas latas vazias de Coca-Cola.
Havia também uma boa notícia sintetizada numa mensagem que deixou Giulia feliz: vou para casa do Fábio estudar. Vemo-nos ao jantar. Beijos. Giorgio. P.S. para que se saiba, tive dezasseis a História.
Giulia sorriu. Ao fim e ao cabo, o que eram duas latas de Coca-Cola a pingar e meia dúzia de migalhas? No entanto, ao mesmo tempo que exultava com a excelente nota a História, não conseguia esconder de si mesma que, havia já algum tempo, notava no filho qualquer coisa de estranho que lhe provocava amargura e inquietação.
Andava silencioso, fechado em si próprio e, por vezes, captara no seu olhar lampejos de uma raiva sombria e desesperada. Como acontecera naquela manhã ao surpreendê-la nos braços de Ermes.
Começou a meter os pratos sujos na máquina de lavar com resignação e uma dolorosa sensação de angústia. Naquele momento sentia-se triste e só, mas teria sido ainda pior se tivesse gente à volta.
Insistira em levar Ambra a casa, depois da denúncia. E naquele momento sentia-se um contentor vazio, inútil e incómodo:
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sem o filho, sem Ermes, sem a presença reconfortante de Ambra, amiga, irmã, governanta. Tinha amigos e parentes, tinha o amor e o sucesso. E, no entanto, faltava-lhe alguma coisa de muito importante que não sabia definir.
Não tinha fome. Foi até ao escritório e pôs a tocar o último disco de Paolo Conte. Pegou num exemplar do seu último romance. Não estava ainda nas livrarias mas já alguns jornais se interessavam pela obra. O seu editor tinha espalhado por toda a cidade grandes cartazes publicitários. Os dias que precedem a saída de um livro são excitantes e atormentados. Passam devagar, na espera de saber de que maneira os leitores e os críticos, exaltantes ou destrutivos, acolherão o novo livro.
Pensou que tinha escolhido uma estranha profissão, escondida e solitária, que exigia um contínuo confronto com ela própria e com os outros. Uma estranha forma de comunicar com as pessoas.
Que sentido faz tudo isto?, perguntou a si mesma. Alguns meses atrás tinha pensado em procurar a ajuda de um psicólogo.
Depois, decidiu renunciar. O receio de ter de olhar para dentro dos recantos mais obscuros e profundos da sua alma tinha sido mais forte do que o desejo de se deixar ajudar. Quando fora operada ao seio, a estrutura hospitalar tinha-lhe colocado uma psicóloga ao lado. Era da praxe, tal como a radioterapia e os controlos trimestrais. Giulia aceitou tudo, excepto a assistência psicológica.
Abriu o último romance e leu a dedicatória: À minha mãe, que me amou sem me julgar. Sentia muita falta daquela senhora meiga que tinha escolhido a morte, esmagada pelo peso das recordações. E deixara-a a enfrentar sozinha, daí em diante, todos os dias da vida.
Tocou o telefone.
- Olá, amor. - A voz clara de Ermes resgatou-a do fundo dos seus pensamentos e trouxe-a de novo à superfície.
- Finalmente uma voz humana - disse ela. - Estava a sentir-me
tão sozinha.
- Isso é mau - censurou-a. - Mas há remédio para tudo.
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- A sério? - replicou Giulia. - E qual é o remédio do grande feiticeiro branco?
- Procura o passaporte. vou buscar-te daqui a meia hora. Destino, Londres. Vamos ter uma noite só para nós no Claridges.
- Ermes, deixa ver se eu percebo - rebateu ela, hesitante.
- É a força do destino - brincou -, não há nada para perceber. Um doente meu, muito rico e muito caprichoso, reclama-me para uma consulta. Em Londres, precisamente. Chega-te?
- Claro que me chega - Giulia ficou melancólica por um instante.
- E então?
- O Giorgio está a criar-me alguns problemas. Não sei se devo deixá-lo sozinho. Não o vejo desde hoje de manhã. - Estava dividida entre os seus sentimentos de mãe e de mulher apaixonada.
- O Giorgio é um rapaz muito atinado. E se sentes alguma preocupação pede a colaboração da Ambra. Não é a primeira vez que passa a noite com ele.
Era uma perspectiva realmente atraente. Da última vez em que tinha estado no Claridges, Giorgio ainda não tinha nascido. Muitos anos tinham passado desde essa altura.
- Está bem. Fico à tua espera - decidiu Giulia, e pousou o auscultador. Subiu as escadas com um passo ligeiro. Os pensamentos sombrios tinham-se desvanecido e deixou-se contagiar pelo entusiasmo perante a ideia daquela breve fuga romântica. Ia levar uma muda de roupa, uma camisa de seda branca e o estojo da maquilhagem. Deu por ela a cantarolar um velho tema que lhe ensinara o avô Ubaldo quando era pequena: Lontano, lontano sul maré, lê splendide rose morenti... Por um instante recordou a expressão altiva e descarada daquele velho que fora o seu maior amigo e tivera um papel decisivo na sua formação de rapariga rebelde e aventureira.
Acariciava a seda macia da sua roupa interior enquanto a colocava no saco de viagem mas, à recordação alegre daquele passado feliz, veio sobrepor-se a imagem de Giorgio com o seu olhar sombrio e inquieto. Precisava de o avisar imediatamente da sua partida.
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Giulia foi ao quarto do filho para consultar a agenda com os números de telefone dos amigos. Encontrou-a debaixo de uma pilha de discos, no meio da grande desordem que reinava naquilo que Giorgio definia como "o meu refúgio tranquilo". Na letra F encontrou o número de Fábio, o colega de liceu para casa de quem ele tinha ido estudar.
- Sou a mãe do Giorgio Rovelli - disse ao rapaz que atendeu do outro lado da linha. - Podes passar-me o Giorgio, por favor?
Seguiu-se uma pausa de silêncio carregado de embaraço.
- Mas o Giorgio não está aqui - respondeu por fim o rapaz.
- Mas como? Não foi estudar para tua casa? - perguntou Giulia, alarmada.
- Para minha casa? - retorquiu o rapaz, espantado. - Eu pensei que ele estivesse doente. Nem sequer foi à escola, hoje de manhã - acrescentou, desconcertado.
- Sabes onde o posso encontrar? - perguntou Giulia, com um fio de voz.
- Não, lamento muito. Não sei o que dizer - disse Fábio. Giulia desligou a chamada sem se despedir. Sentiu-se de
repente envolvida por uma névoa compacta que lhe provocou um profundo sentimento de angústia.
- E agora... onde estará o meu menino? - murmurou para si própria.
Giorgio mentira-lhe. Porquê? Onde tinha ido naquela manhã?
Giulia começou a abrir gavetas e armários, a remexer no meio dos livros à procura de um indício. Abriu caixas, cofrezinhos, estojos e boiões. Encontrou afias, restos de borrachas velhas, cromos de jogadores de futebol, fotografias de cantores de rock recortadas dos jornais e, de repente, achou na palma da mão um fio de ouro e um anel com uma água-marinha.
Foi acometida por uma violenta sensação de vertigem que a obrigou a sentar-se na cama do filho. Segurou a cabeça entre as mãos e desatou a soluçar.
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O jardineiro, com a ajuda da pá, remexia profundamente o terreno, fazendo aparecer os bolbos das dálias, que libertava da terra com as suas grandes mãos, fortes e calejadas.
- E agora, o que é que estás a fazer? - perguntou a velha senhora que, com os ombros muito direitos, acompanhava aquele trabalho com uma extrema curiosidade.
- Aquilo que faço todos os anos no Outono. Estou a apanhar os bolbos para os meter nas caixas que levo para a estufa. Volto a enterrá-los na Primavera - explicou pacientemente, enquanto continuava o seu trabalho.
- Porquê? - interrogou ainda a senhora, com um ar inquisitorial.
- Se não o fizesse, o frio fazia-as gelar. E então, adeus dálias respondeu.
- A sério? - comentou ela, espantada. Todos os anos, há muito tempo, via o jardineiro repetir aquela operação. Mas a velha senhora não conseguia recordá-lo. - Posso ajudar-te? - propôs.
- Não, não pode, minha senhora. Isto é um trabalho difícil e a senhora não se pode cansar. Se depois se sentir mal, o senhor doutor atira-me as culpas a mim - disse ainda, com muita paciência.
- Não precisas de lhe dizer. E entretanto eu divirto-me um bocadinho. Nunca sei o que hei-de fazer - queixou-se.
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O homem parou de trabalhar, tentando avaliar os prós e os contras daquele pedido. Depois abanou a cabeça.
- Sinto muito, Sr.a Serena. Vai ter de arranjar outra ocupação. Eu agora não lhe posso dar atenção - sentenciou. E continuou a cavar.
- És um velho cretino e antipático - disse ela, amuada. - vou dizer à Pomina e ela vai castigar-te por isso - ameaçou. Depois virou-lhe as costas com ar de despeito e foi-se embora.
- Vai dar uma volta - resmungou o jardineiro que, com o passar do tempo, já se cansava de aturar as birras da patroa.
A velha senhora dirigiu-se ao muro baixo de pedra encimado por lanças de ferro forjado.
Na rua tinha parado um carro, um Alfa azul. Estava um homem sentado ao volante. A rapariga ao lado dele saiu. Era loira. Tinha um corpo forte e sólido, um rosto solar e um olhar azul, honesto.
A senhora encostou-se ao portão, curiosa, enquanto a rapariga olhava para ela a sorrir.
- Bom-dia, minha senhora - disse, como se a conhecesse desde sempre.
- Bom-dia, querida - respondeu Serena Vassalli, com um ar coquete.
- Peço desculpa, mas será que me pode dizer se este é o caminho certo para Como? - perguntou-lhe.
O jardineiro, poucos metros mais adiante, observava de soslaio aquele encontro e teve vontade de se aproximar para responder. Depois resmungou para si próprio: - A velha que se arranje. Assim sempre tem alguma coisa para fazer. - Durante algum tempo ia conseguir trabalhar sem ser incomodado, uma vez que Serena não ia largar a nova presa tão cedo.
- Para Como? - perguntou Serena, espantada. - Mas, minha querida menina, por este caminho vai-se para Milão. - Não era verdade, mas para ela era como se fosse. Entretanto tinha aberto o portão para conversar mais à vontade.
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- A sério? - disse a rapariga. - Então estamos perdidos constatou, olhando em volta com um ar aflito. - Queríamos ir a Como. E agora, como é que fazemos?
Serena saiu para a rua e aproximou-se do carro, que continuava a trabalhar. O homem ao volante era bastante jovem, trazia um blusão de pele e tinha o rosto parcialmente escondido por uns óculos de sol. Olhava fixamente em frente e bufava com impaciência. A velhota não se dignou prestar-lhe muita atenção. Mas sorriu para a rapariga.
- Já lhe explico, minha filha - começou. - O meu filho, o meu rapaz, esta manhã precisamente, partiu para Milão. Sabe, Milão é a minha cidade. Conheço-a bem e sei como se chega lá. Ora, se quer ir para Milão, permita-me que lho diga com extrema franqueza, comete um erro.
A rapariga prestava atenção e esperava com impaciência uma explicação que, no entanto, tardava em chegar.
- Diga-me porquê, minha senhora - pediu a rapariga, curiosa.
- Porque na cidade vive-se mal. Se soubesse como é o trânsito, a confusão. E as margaridas, na varanda, em vez de sol recebem ar poluído! As crianças, então, vivem pessimamente na cidade. Também elas respiram veneno. Tenho mesmo de lhe dizer: o meu pai trouxe-me para aqui porque em casa corria o risco de ficar doente.
Ao mesmo tempo que Serena falava, a rapariga foi retrocedendo até ao carro e abriu a porta, enquanto a velhota a seguia, decidida a não largar a presa.
O jardineiro, de vez em quando, levantava os olhos para eles e abanava a cabeça com um ar compadecido. - Julga ela que é fácil livrar-se da velha - resmungou, com um sorriso de satisfação.
Viu a rapariga convidar a senhora a sentar-se no banco de trás e depois sentar-se ao lado dela. Uma porta bateu e o Alfa arrancou a chiar.
O jardineiro apoiou uma mão no cabo da pá, enfiou a outra debaixo do barrete e ficou assim, a coçar a cabeça durante alguns segundos, incapaz de interpretar aquilo que tinha visto.
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Foi realmente questão de poucos instantes. Depois, de repente, deixou cair a pá ao chão e desatou a correr em direcção à casa. Pomina! Pomina! - gritava a plenos pulmões. - Levaram a patroa!
Pomina tinha aparecido à porta e, do alto da escadaria, tentava dar um sentido aos gritos do jardineiro.
- Levaram a patroa! Agora! - O homem ia subindo os degraus a gritar, ofegante.
- Aldo! Mas o que foi que te deu? - perguntou a empregada, aflita.
- Chama a polícia! Levaram-na embora. Oh, meu Deus do céu! Num carro, fora do portão! Raios me partam. Deixei acontecer uma coisa destas, mesmo debaixo do meu nariz.
Dentro do Alfetta, Serena Vassalli continuava a conversar com a rapariga. Ia tranquila, relaxada, como se estivesse na companhia de uma amiga querida.
- Há tanto tempo que eu não dava uma volta de carro - sorriu, feliz. - O meu filho diz que eu devo estar sossegada. E o médico também diz isso. Sabe, menina, eu tenho muito respeito pelo meu filho. E também lhe tenho um bocadinho de medo. Às vezes fico baralhada e não sei bem se é o meu rapaz ou o meu pai. Isto porque dizem que tenho uma doença na cabeça. Se calhar é mesmo assim, porque não me lembro bem das coisas. E a menina, como se chama?
- Marisol - respondeu a rapariga. E deu um rebuçado à senhora.
- Obrigada - respondeu Serena, muito compenetrada. E acrescentou: - Profissão?
- Acompanhante de senhoras desmemoriadas. - Disse-o a sorrir e a observá-la com uma ponta de ironia.
O homem ao volante conduzia em silêncio. O automóvel parou no parque de estacionamento de um restaurante em Fino
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Mornasco. Ele saiu sem uma palavra e dirigiu-se ao bar. Também Marisol saiu do carro e foi sentar-se no lugar do condutor. Pôs o motor a trabalhar e seguiu a auto-estrada para Milão.
- Marisol, deixa-me aqui atrás, sozinha? - queixou-se a velha senhora.
- Podemos conversar na mesma - disse a rapariga. - Gosto de a ouvir.
Pareciam, a velha e a rapariga, uma avó e uma neta numa viagem de recreio.
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Era sexta-feira, dia dezassete. Um dia venturoso para Franco, que tinha em relação ao número dezassete uma superstição positiva. Como muitas pessoas importantes, e ele era um empresário ao máximo nível, também Franco era supersticioso. À sexta-feira, quando era pequeno, a mãe cozinhava peixe. Sempre bacalhau frito com um molho de cebola, tomate aos pedacinhos e salsa picada. O cheiro agradável da fritura espalhava-se no ar, enquanto Franco, sentado à mesa da cozinha, com um tampo de mármore branco raiado de cinza, trabalhava numa tradução de De bello gallico. E assim, entre um reconhecimento dos espiões de César nas linhas inimigas e uma transferência de legionários em marcha forçada, esperava pela hora de jantar, que coincidiria com o fim do trabalho de Latim.
Um pequeno romântico jantar para os dois, ele e a mãe, sentados um diante do outro, os livros e os cadernos empilhados numa extremidade da mesa, reconfortados pela certeza de que nem o pai nem o irmão estragariam aquela atmosfera mágica. Pietro, o pai, era taxista e acabava o turno de trabalho à meia-noite. O irmão, empregado de mesa no Garden blu, regressava a casa ainda mais tarde.
Franco observava o rosto pálido da mãe, os grandes olhos firmes e luminosos, cheios de amor. Franco amava tudo na mãe, o
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sinal na parte superior da face, a voz pacata, os gestos compostos, a figura ligeira, a modéstia da roupa, comprada nos grandes armazéns, que embelezava com uma flor de organza, uma fita de veludo ou um cinto bordado por ela. Mas aquilo que o deixava em êxtase era o perfume da mãe, que lhe fazia lembrar o das tílias nas noites de Junho. Naquelas longas tardes e nos serões a dois, vividos com tanta intensidade, havia o sentimento de uma relação delicada e forte. Ele estudava, a mãe costurava, passava a ferro e cozinhava. Depois, enquanto comiam, falavam com frases quase sussurradas, por vezes quebradas, mas a harmonia era tal que se entendiam perfeitamente. Bastava que um iniciasse um assunto qualquer para que o outro continuasse a conversa, acompanhada pelo tiquetaque delicado do velho relógio pousado em cima do aparador.
Franco sentia-se invadido por uma tranquila beatitude e gostaria que aqueles momentos não passassem nunca. Mas bastava uma mínima referência aos "outros dois", o pai e o irmão, para que o encanto se quebrasse. A mãe começava a tossir nervosamente, com uma tosse ligeira, seca e irritante, e ele mudava de humor.
Depois, os anos passaram e muita coisa mudou. Ele tornou-se um homem, o pai e o irmão estavam sabe-se lá onde e ele e a mãe ficaram juntos, felizes, até que um dia Franco se apercebeu de que a mãe perdia por vezes a sua habitual lucidez mental.
Levou-a a um especialista, que diagnosticou uma doença muito grave. O médico explicou que se tratava de uma forma de demência senil caracterizada, anatomicamente, por umas placas disseminadas sobre a superfície do córtex cerebral. - Clinicamente
- esclareceu o especialista -, a doença, descoberta em 1905 pelo professor Alzheimer, que lhe deu o nome, manifestava-se com a decadência mental e podia também comportar crises de agressividade e violência.
A doença não chegou a modificar a natureza doce e serena da mãe e Franco continuou a amá-la e a tratar dela como uma filha, dedicando-lhe todo o tempo livre.
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Casou-se e teve duas filhas. Depois divorciou-se e teve outras mulheres. Mas a mais importante, a mais amada foi sempre ela, a mãe.
Era sexta-feira, dia dezassete, e Franco acabava de deixar a villa sobre o lago onde a mãe vivia prisioneira de um mundo irreal.
Mandou o motorista parar o carro na via Torino. Saiu, imediatamente seguido pelo cão, Lupo, um perfeito exemplar de pastor alemão que o seguia para todo o lado, como se fosse a sua sombra.
- Tu és o meu melhor amigo - disse-lhe em voz baixa, e o animal respondeu com um ganido afectuoso.
Franco gostava de caminhar pelas ruas do centro histórico, pelo meio das pessoas, e observar as montras das lojas para escolher um livro ou um disco, ou para se deixar seduzir por uma gravata que nunca iria usar.
Passou diante de uma peixaria. Do lado de fora, em cima de um banco, havia uma tina branca onde o bacalhau tinha sido posto de molho. Parou, e o cão sentou-se aos seus pés. Recordou os cheiros e os sabores da infância, a voz da mãe, o tiquetaque do relógio, e sentiu-se envolver por uma onda de nostalgia.
- Quanto deseja? - perguntou-lhe um empregado, que observava com admiração e algum receio aquele cão imóvel. - Meio quilo está bem? - sugeriu.
- Meio quilo está bem - confirmou Franco mecanicamente, ao mesmo tempo que o vendedor inseria uma tenaz na tina e pescava o bacalhau, que deixou escorregar para dentro de um saco de plástico.
- Mais alguma coisa? - perguntou o homem da peixaria.
- Está bem assim, obrigado - respondeu Franco. Pegou no saquinho que o empregado lhe estendia, pagou e continuou a caminhar ao lado do cão.
Na esquina da via Torino deitou o saquinho de bacalhau num caixote de lixo, esperando assim libertar-se de maus pensamentos, de recordações dolorosas, do mal-estar que o perturbava.
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Na sua agenda, para aquele dia, apenas estava assinalado um encontro do qual podia sair destruído. Tratava-se de uma reunião com os sócios da Inter-Channel, da qual era presidente com plenos poderes. Um deles, o francês Georges Bertrand, queria retirar a Franco o controlo do canal de televisão e instalar-se na poltrona do comando. Para neutralizar o ataque, Franco precisava de doze mil milhões, uma cifra modesta para o mundo da alta finança. O grande Franco Vassalli, porém, arriscava-se a perder aquilo que gostava de definir como a sua criatura, porque, de momento, não possuía os doze mil milhões. Sorriu, revelando classe e fascínio: as suas melhores armas.
Enterrou as mãos nos bolsos da gabardine Burberry bege e estremeceu a um sopro de vento que anunciava o Inverno. Foi quase derrubado por uma multidão de trabalhadores que desciam de um eléctrico e o separaram do cão. Mas tinha a certeza matemática de que Lupo nunca o perderia de vista. A multidão dispersou-se apressadamente e o animal reapareceu ao lado do dono.
O sol irrompeu ao fundo da rua, obstruída pelo trânsito, e bateu nas vidraças de um moderno edifício cuja linearidade futurista não ligava com o estilo oitocentista de uma longa e sólida fileira de imponentes palácios fin de siècle que tinha à volta.
Franco atenuou o brilho agressivo do sol protegendo os olhos com a mão direita. Observou a longa fila de anciões espelhados no último andar daquele edifício moderno, sede da Provest, a sua financeira, e tentou descobrir quais os da sala de reuniões. Eram exactamente as últimas cinco janelas à direita, do lado da piazza Missori.
Tentou imaginar os rostos dos participantes na reunião que, àquela hora, se agitavam já impacientes nas cadeiras dispostas em volta da mesa comprida.
A reunião tinha sido marcada para as dez em ponto. Eram quase dez e meia e ele, o presidente, andava a vagabundear no meio do trânsito citadino, consciente do atraso e decidido a não se incomodar com isso. Que esperassem. E que se preocupassem.
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Teria algum daqueles abutres de colarinho engomado um ritmo de vida tão extenuante como o seu?
Pensou em Madi, a sua secretária. Ninguém, desde criança, a tinha alguma vez tratado pelo verdadeiro nome, Maddalena, demasiado bonito e sensual em relação a ela. Tinha uma figurinha seca, absolutamente desprovida de idade e de beleza. Só os olhos eram bonitos, grandes e azuis, castigados por umas espessas lentes de míope.
Madi tinha trinta e dois anos, mas provavelmente aos dezoito devia ter sido igual e aos sessenta seria a mesma, com mais algumas rugas.
Vestia com uma elegância sóbria, tipicamente inglesa, apesar de, com o ordenado generoso que recebia, se poder dar ao luxo de usar roupas de marca, sapatos feitos por medida e algumas jóias. Mas trabalhar com Franco Vassalli, para ela e para todos os outros colaboradores, significava renunciar a qualquer tipo de vida social.
Franco imaginou-a às voltas com o telefone na vã tentativa de o localizar. Na sala de reuniões, os presentes estavam provavelmente a interpretar o seu atraso como um sinal de guerra. E, com efeito, assim era. Apesar de daquela vez não ser ele o agressor.
- Vamos lá até ao covil dos leões - anunciou por fim com uma voz pacata ao cão, que começou a abanar a cauda. - Nós sabemos muito, não é? - continuou. - Os leões querem despedaçar-nos, mas nós temos dentes afiados. E também temos um parentesco afastado com as raposas. O que não faz mal nenhum. Vais ver como ainda acabamos por sair vencedores - concluiu.
Quando entrou no átrio, veio ao seu encontro um porteiro obsequioso que se apressou a accionar a abertura do elevador particular, que subia directamente até ao último andar do edifício.
Algumas secretárias que se cruzaram com ele no átrio voltaram-se para observar aquele homem tão jovem e tão bonito. Franco Vassalli, para os jornais financeiros, era um empresário de sucesso. Nas revistas cor-de-rosa era definido como um quebra-corações.
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Quando saiu do elevador, atravessou o vestíbulo. O ouro do sol conferia ao ambiente qualquer coisa de mágico. Ao longo da parede esquerda havia um aquário de peixes tropicais de cores berrantes. Na parede da direita destacavam-se dois esplêndidos quadros de Gauguin que representavam raparigas à beira-mar.
Madi, a secretária, foi ao encontro dele com uma respiração ofegante. - Bom-dia, senhor doutor - cumprimentou-o, ao mesmo tempo que se posicionava ao lado dele.
- Bom-dia - resmungou Franco. - Novidades? - perguntou, dirigindo-se ao escritório.
- Péssimas - replicou ela, breve.
- Então? - perguntou bruscamente.
- Houve um roubo nos armazéns da Inter-Channel.
Franco parou de repente e olhou para ela com um ar interrogativo. - Os factos, por favor - ordenou, ávido de pormenores.
- Roubaram os cenários dos espectáculos para crianças.
- Quantas coisas? - perguntou friamente.
- Tudo - concluiu Madi, baixando a voz.
Franco aparou o golpe sem mostrar qualquer emoção particular. - O que é que há mais? - acrescentou.
- Os sócios estão em picos, mais aguerridos do que nunca.
- Vamos dar-lhes uma pancada na cabeça - troçou. - Assim ficam mais calmos - concluiu Franco, sorrindo-lhe inesperadamente de uma forma radiosa, ao mesmo tempo que continuava a caminhar em direcção ao gabinete.
A situação era problemática, mas Franco tinha a certeza de conseguir tirar as cartas boas do baralho. Era uma luta dura mas acabaria por vencer, porque era forte. E porque era sexta-feira, dia dezassete: o seu dia de sorte.
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Giulia aninhou-se no sofá como um gato. Por um momento sentiu-se protegida e quente, mas recaiu quase logo no desconforto. Nada nem ninguém poderia resgatá-la do universo misterioso que é a vida de um adolescente, em particular a do filho.
Ermes, poucas horas antes, tinha tentado inutilmente arrancar-lhe uma palavra, um sinal, uma explicação sobre aquela súbita alteração de programa.
Foi seca e resoluta: - Tenho um problema com o Giorgio. Vais ter de ir sem mim.
Pelo comportamento fechado e doloroso de Giulia, Ermes apercebera-se de que o problema devia ser grave. Partiu sozinho para Londres, vendo desvanecer-se aquela pausa curtíssima e deliciosa.
Giulia desceu até à cozinha, pôs a mesa para dois e sobre o prato de Giorgio colocou o anel e o fio de Ambra. Depois refugiou-se no escritório, desligou o telefone e ficou à espera. Naquelas horas de espera esforçou-se por desdramatizar o comportamento do filho, sem conseguir.
Finalmente ouviu bater a porta de casa. Giorgio acabava de chegar. Giulia olhou para o relógio. Eram sete horas de uma bela tarde de Outono.
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Ouviu chamar e notou um certo mal-estar na voz do filho, uma tonalidade desconhecida. Uma vez que Giulia continuava calada, o rapaz aumentou a intensidade do apelo: - Mãe, onde estás? Será possível que não esteja ninguém em casa? - quase gritou.
Estava dividida entre a ternura que, apesar de tudo, lhe suscitava aquela voz e a raiva e o desconforto que sentia no coração.
Giorgio abriu a porta do escritório e, em vez de entrar impetuosamente, como era seu hábito, ficou imóvel à porta, com a mão no puxador, emudecido pela obscuridade, assustado pelo silêncio inquietante da mãe aninhada no sofá.
- Olá, Giorgio - disse, esforçando-se por parecer natural.
- Porque é que estás aqui às escuras? - indagou Giorgio, desconfiado.
- Estava à tua espera - respondeu Giulia, tentando parecer tranquila.
- E então, não se come?
- Quando quiseres - replicou com um meio sorriso.
- vou lavar as mãos e estou pronto - disse, enquanto se afastava.
- Estou à tua espera na cozinha - disse a mãe.
Giulia sentou-se à mesa no lugar do costume, pousou os cotovelos no tampo e fechou as mãos com força, apoiando o queixo nelas.
Giorgio entrou na cozinha e observou-a, perplexo.
- Senta-te - sugeriu Giulia.
Ele aproximou-se da mesa e viu aquilo que estava em cima do prato. Olhou para a mãe que o perscrutava com olhos severos. Ela viu-o corar e depois empalidecer. Captou no olhar do filho um lampejo de ódio antes de atirar o prato e o conteúdo que o acusava contra a parede de azulejos. O prato explodiu em mil pedaços e o rapaz saiu furiosamente da cozinha sem dizer uma palavra.
- Onde é que vais agora? - gritou Giulia, ao mesmo tempo que se levantava para ir atrás dele.
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- Vou-me embora, e basta - replicou. - Vou-me embora desta
casa de merda.
Giorgio estava a comportar-se como um animal caído numa
armadilha. - Onde é que tu pensas que vais, rapazinho idiota? Giulia estava assustada e não conseguia controlar-se. Tinha-se
aproximado dele e agarrava-o pela gola do blusão. - Não me toques. Tira as mãos de cima de mim - gritou Giorgio com uma voz estridente. Estava já à porta e a mãe segurou-o
por um braço. - Já não te conheço - sussurrou Giulia, olhando
consternada para o filho.
- Já nem eu me reconheço - disse o rapaz, à espera do golpe
de misericórdia.
Mas Giulia abraçou-o de repente e choraram juntos.
- Não sei o que foi que me deu - tentou explicar o rapaz,
lavado em lágrimas. - Precisava de dinheiro. E tu não me dás.
- E a tua semanada? Dez mil liras todos os sábados. - Giulia
tinha recuperado o controlo.
- Uma miséria. Só em cigarros vão trinta mil liras por dia -
atacou Giorgio de novo.
Giulia acabava de fazer uma nova e muito amarga descoberta. - Quer dizer que fumas? - perguntou, aflita.
- Fumo, claro - afirmou Giorgio com dureza.
- Tens quinze anos e fumas - repetiu Giulia lentamente.
- Sim, porquê? Não sou o único. Os meus colegas fumam.
Muitos professores também.
- Nunca me tinhas dito - censurou.
- Não me ias deixar - justificou-se. - Fumar faz-me sentir mais forte e mais seguro.
Nunca como naquele momento Giulia desejou ter um homem ao seu lado. A realidade na qual o filho se movia, e que a implicava a ela, tinha alguma coisa de obscuro e de angustiante. Como em muitos momentos cruciais da sua vida, Giulia estava sozinha a enfrentar uma realidade desconhecida e dolorosa. Levou o filho até à sala de estar e fê-lo sentar-se no sofá ao seu lado, juntando
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todas as suas forças para não se deixar dominar pela angústia. Começou a falar com uma voz tranquila.
- Então tentemos de uma vez por todas começar pelo princípio - propôs Giulia, inclinando-se sobre o filho.
- Qual é o princípio? - perguntou o rapaz.
- Comecemos por dizer que hoje de manhã não foste à escola. Verdadeiro ou falso?
- Verdadeiro - admitiu, com excessiva desenvoltura.
- Porque é que não foste à escola?
- Porque fui a uma manifestação - tartamudeou com pouca convicção.
- Sem ti, o protesto não teria feito sentido, imagino - disse, marcando bem as palavras.
- Não digas isso, mãe - defendeu-se Giorgio, que sabia o quanto a mãe detestava as mentiras.
- E lembrar-me eu que tiveste o descaramento de me deixar uma mensagem em que te gabavas de um dezasseis a História continuou, aumentando o tom de voz, ao mesmo tempo que se levantava como se quisesse dominá-lo.
- Se eu tivesse ido à escola tinha tido uma nota vergonhosa tentou defender-se, agarrando-se às palavras. - Ao fim e ao cabo, escrevi-te aquilo que eu gostava que tivesse acontecido. E também aquilo que tu desejarias de mim.
- Mas como é que te conseguiste lembrar de inventar uma mentira tão grosseira? - replicou, furiosa. - E nem sequer foste a casa do Fábio, de tarde. Onde estiveste?
- No parque, com uns colegas.
- E o que foi que fizeram durante este tempo todo?
- Nada.
- Como nada?
- Sim, estivemos a fumar. A jogar à bola. Mas sobretudo estive muito triste. Por te ter mentido. Por ter roubado as coisas da Ambra. Na nossa escola há um rapaz que anda no último ano e que paga bem a quem lhe levar um fio ou um anel.
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- Bem, como? - perguntou Giulia, esforçando-se por se manter calma, enquanto o coração lhe batia loucamente.
- Sei lá, dez ou quinze mil liras - confessou Giorgio -, mas eu não consegui vender as jóias da Ambra.
- E o que pensavas tu fazer com as coisas da Ambra?
O instinto pedia-lhe que o esbofeteasse. Mas não ia adiantar.
- Ia tentar metê-las outra vez na carteira dela. Mas ela não
estava cá e tu também não. Senti-me só e culpado - admitiu, contra vontade.
Giulia tentou recordar a sua própria adolescência, a do irmão, Benny, agora um advogado de sucesso, e a da irmã, Isabella. Tinham sido os três umas crianças bastante inquietas, muitas vezes infelizes. Mas Giulia, com a sua sensibilidade particular, sofrera mais do que eles. E o filho parecia-se com ela. Muitas vezes acontecia que o castigo moral, que a sua consciência lhe impunha, era ainda mais pesado do que o castigo pela transgressão cometida.
- Sabes que eu e a Ambra fomos à esquadra participar o roubo? - disse Giulia, após uns instantes de silêncio.
Giorgio começou a chorar. com as mãos agarradas aos braços do sofá, tremia, dominado por uma crise irrefreável.
- Vais ter de dizer tudo à Ambra - anunciou Giulia. - É a primeira coisa a fazer.
O rapaz estava fora de si. - Não posso. Tenho vergonha. Quero ir-me embora. Quero fugir. - E chorava, desesperado.
- Mas para onde é que tu queres fugir? - retorquiu Giulia. Onde é que te queres esconder, se dentro de ti se mantém esse desespero? - Agarrou no telefone e ligou a Ambra. - O Giorgio quer falar contigo - disse simplesmente.
O rapaz agarrou no auscultador que a mãe lhe estendia e tentou acalmar-se. Quando falou tinha novamente a voz de um menino às voltas com um problema maior do que ele. - Fui eu confessou à governanta, que o amava como se fosse um filho.
- Foste tu? - perguntou Ambra, surpreendida. - O que foi que tu fizeste?
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- Roubei as tuas coisas da carteira. Desculpa. - E desligou a chamada.
Giulia soltou um suspiro doloroso antes de continuar o seu inquérito. - E agora vamos aos cigarros. Há quanto tempo fumas?
- perguntou, exasperada.
- Desde o Verão passado. Desde que foste de férias com o Ermes e me deixaste aqui sozinho. Até o pai tinha ido para fora. - Estava a jogar a cartada do sentimento para a fazer sentir-se culpada, ou expunha realmente a sua sinceridade e o seu estado de espírito?
- Sabes que fumar faz mal à saúde? - Disse uma banalidade porque não sabia como abordar o assunto.
Regressaram-lhe à ideia as palavras do pai, o professor Vittorio de Blasco, quando ela, ainda uma criança, se apaixonou por Leo, um homem casado. E por muito que o pai a tivesse prevenido, ela não o quis ouvir.
"A experiência não se pode transferir", lamentou-se então o professor. "Vocês, jovens, precisam de bater com a cabeça na parede. Precisam de sentir a dor no coração. Daqui a vinte anos hás-de estar tu diante de um jovem, teu filho, ao qual dirás mais ou menos as mesmas coisas que hoje te digo. E sentirás a mesma dor, a mesma sensação de impotência que eu sinto neste momento." Como eram verdadeiras, aquelas palavras. Giulia apercebia-se agora perfeitamente disso.
Estava uma vez mais sozinha diante do movimento dos afectos oposto à realidade dos factos. Era um novelo inextricável que ela não conseguia pôr em ordem.
O facto de Giorgio fumar e não estudar, muito provavelmente, era também consequência desta confusão.
- O que tencionas fazer, Giorgio? - perguntou finalmente, de lágrimas nos olhos.
- Não sei. E tu? Tu, mãe, o que tencionas fazer?
- Estamos perdidos na mesma névoa - disse Giulia. - Eu propunha que déssemos as mãos e que fôssemos juntos comer uma piza - concluiu, tentando desdramatizar.
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- Eu acho bem - disse o rapaz. - com a condição de me deixares fumar - tentou.
- De acordo - aceitou Giulia, a custo, consciente de que era melhor enfrentar um problema de cada vez.
Quando chegaram à pizaria, Giorgio tirou um cigarro do bolso do blusão e levou-o aos lábios. Giulia sentiu um aperto no coração. Olhou para os lábios pequenos e rosados do filho que aspiravam com avidez o fumo do cigarro e, por um instante, sentiu-se de novo angustiada.
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Franco Vassalli entrou na sala de reuniões precedido pelo cão. O aposento estava decorado com uma elegância sóbria, segundo o gosto tradicional da rica burguesia lombarda: paredes revestidas a madeira clara e candeeiros de latão dourado com abat-jours de vidro verde pousados sobre a longa mesa oval. Na parede do fundo, um retrato de mulher da autoria de Boldini conferia ao espaço um toque oitocentista que contrastava com o espírito aventureiro da Provest, uma financeira nascida oito anos antes, conduzida por um empresário de sucesso que seguia uma política de gestão agressiva e, em certos aspectos, discutível. No entanto, uma vez que todas as metas eram atingidas com vantagem, ninguém tinha a coragem e, talvez, a conveniência de o criticar.
Um funcionário estava a recolher as últimas chávenas de café. Bastou-lhe um olhar do presidente para perceber que devia desaparecer dali rapidamente.
Franco Vassalli aproximou-se do seu lugar de presidente da mesa. Fez um sinal a Madi para que pousasse à sua frente a pasta de documentos que tinha na mão. Todos os olhares convergiam para ele que, de pé, com as mãos apoiadas nas costas da cadeira, os gratificou com um sorriso tranquilizador.
Não pediu desculpa pelo atraso e, finalmente, sentou-se. À sua direita estava o advogado, Mário Tosi, que conhecia nos mínimos
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pormenores os contratos da Inter-Channel. À sua esquerda sentava-se Andrea Conti, administrador-delegado da rede. Tosi e Conti eram presenças puramente formais naquela reunião semestral dos sócios. A ordem do dia e a globalidade dos programas eram do perfeito conhecimento de Franco Vassalli.
Estava também Georges Bertrand, vice-presidente da Inter-Channel, uma espécie de Jean Gabin magro e de idade indefinível, banqueiro de profissão. Detinha quarenta por cento das acções da sociedade. Entre os dois não existia propriamente uma relação idílica, mas tinha havido um tempo em que Vassalli e Bertrand eram amigos. O francês estava sentado ao lado do seu advogado e tinha à frente Alan Gray, o editor inglês que criara a emissora. A ideia tinha sido boa, mas as contas de gestão tinham sido tais que se vira obrigado ao fraccionamento em quotas para fazer sobreviver a sociedade. Alan Gray era um distinto senhor de meia-idade com uns pequenos olhos azuis de expressão serena. Substancialmente, era um optimista. Detinha ainda quinze por cento das acções e estava prestes a ceder uma parte a Bertrand. Essa era a notícia que Vassalli tinha recebido de Londres. A bomba que, segundo o francês, iria explodir naquele dia na sala de reuniões da Provest.
- Creio que é inútil dedicar muito tempo e espaço ao balanço do fim do ano financeiro que agora terminou - começou Franco Vassalli, com um ar despachado. - Sob a minha presidência acrescentou -, a Inter-Channel atingiu rapidamente um balanço positivo. E este ano fechou com um activo de trinta mil milhões. Chegados a este ponto, gostaria de ter tido uma manifestação de apreço. Se não exactamente um aplauso, pelo menos um cumprimento da parte de todos vós. Uma empresa sufocada por dívidas tornou-se um bolo que toda a gente gostaria de provar. Pensava que tínhamos atingido um equilíbrio. Mas afinal parece que o meu amigo Bertrand me quer tirar o controlo da empresa com a cumplicidade e o apoio complacente de Alan Gray.
Franco tinha desferido o seu ataque sem preâmbulos, como era o seu estilo. As acusações secas, como marteladas, eram transmitidas
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com um tom vagamente de salão e com o sorriso de um grande sedutor.
Bertrand corou de cólera e desapontamento por ter perdido a oportunidade do golpe de surpresa.
- Tu fazes e desfazes a teu bel-prazer - interrompeu-o com a intenção de lhe obstruir o caminho. - Não te preocupas em informar-nos sobre as iniciativas que tomas. Falas de um activo de trinta mil milhões que nunca ninguém viu. Tinhas prometido dividendos que não existem. Em compensação, pedes uma comparticipação para novas despesas sobre as quais eu não estou de maneira nenhuma de acordo. Durante dois anos desempenhei o papel de sleeping partner. Agora que acordei vais ter de sentir o peso das minhas decisões - disse, com agressividade.
Até há dois anos, quando Franco Vassalli concluíra as negociações para a sua aquisição, a Inter-Channel era um canal em declínio. Era visto por cerca de doze milhões de famílias na Europa, transmitindo diariamente programas desportivos, sem parar, das oito da manhã à meia-noite. Tinha custos de gestão altíssimos que não garantiam qualquer situação de equilíbrio.
Alan Gray, criador e proprietário da emissora, era descendente daqueles Gray que tinham construído a villa sobre o lago de Como onde vivia a mãe de Franco Vassalli. Por isso se tinham conhecido e tornado amigos.
Quando Gray lhe expôs as suas dificuldades, Franco Vassalli garantiu a sua disponibilidade para recuperar parte da emissora, dívidas incluídas. Garantiu para além disso a inserção de um terceiro sócio, o banqueiro francês Georges Bertrand. Franco prometeu recuperar a empresa em dois anos. Em compensação, pediu o controlo absoluto. Bastou um ano para a pôr novamente de pé. A operação teve um custo doloroso: a anulação dos contratos mais gravosos e uma redução de cinquenta por cento do pessoal. Franco diversificou os programas e ampliou o leque do público. Como consequência, a audiência aumentou para quase vinte milhões de famílias na Europa e os contratos publicitários praticamente
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duplicaram, justificando um incremento de trinta por cento no orçamento.
Franco Vassalli não tencionava parar ali. Tinha outros objectivos em mente. E era ele que ia continuar a dar cartas.
- Eu nem sequer estou interessado em conhecer as tuas decisões
- replicou Vassalli. - Estou a construir um dos canais mais importantes de Itália. A operação comporta custos altíssimos: promoções, aluguer dos espaços e do satélite, diversificação dos programas. Tu vives na óptica do contabilista de terceira ordem. Se conseguisses ver mais ao longe, terias somado as entradas publicitárias deste último ano. Temos contratos com Inglaterra, França, Itália, Bélgica e Alemanha. E tu querias retirar-me o comando deste navio que está a avançar a todo o vapor? E se tu, Alan, dás o teu apoio ao Bertrand, és mais louco do que ele. - O cão continuava imóvel aos seus pés, aparentemente mergulhado num sono profundo.
Franco acabava de desencadear uma batalha. Os seus quarenta e cinco por cento contra os cinquenta e cinco por cento do francês e do inglês juntos.
Franco Vassalli olhou para Alan Gray. Esperava uma tomada de decisão.
- Lamento muito, Franco - interveio Alan. - Não é nada de pessoal, acredita. Mas desta vez estou com o Bertrand.
Vassalli permaneceu impassível e não quis perguntar a razão daquela escolha de campo. Sabia perfeitamente que o inglês estava em maus lençóis com a editora. Tinha gosto e inteligência, mas não era um empresário. Não sabia adaptar-se aos tempos. Precisava de dinheiro e o francês ia dar-lho.
- Ofereço-te seis milhões de libras - declarou Franco.
- São doze mil milhões de liras - murmurou Andrea Conti, que olhou para ele, consternado.
- Em troca de quê? - perguntou o editor inglês. Georges Bertrand tinha-lhe oferecido três milhões para adquirir oito por cento da sua quota. Oito por cento somados aos seus quarenta e cinco permitiam-lhe tornar-se sócio maioritário da Inter-Channel.
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- Estou a oferecer-te o dobro - disse ao inglês.
- Mas se tu não tens nem uma lira - acusou-o Bertrand. Não tens liquidez nenhuma.
- Receberás dentro de dois dias seis milhões de libras. Ou doze mil milhões de liras, se preferires - prometeu a Alan. Ostentava a expressão de um vencedor.
- Não acredites nele, Alan - gritou o banqueiro francês, ao mesmo tempo que se levantava furiosamente da mesa e apontava contra Franco o seu dedo acusador. - Ele não tem um cêntimo.
- Estou de acordo - admitiu Vassalli -, mas também é verdade que mantenho sempre aquilo que prometo. E eu prometo-te
- acrescentou - que vais receber o teu dinheiro até à última lira.
- Daqui até segunda-feira? - perguntou Alan.
- Daqui até segunda-feira - afirmou Franco Vassalli.
- Acredito em ti - disse o inglês, com um sorriso confiante. Depois voltou-se para Bertrand: - Sinto muito. As minhas simpatias vão para o Franco que, não esqueçamos, criou um canal de primeira ordem.
Bertrand não se conformava com a derrota e chegou a implorar ao inglês, mas o jogo, naquele momento, já tinha terminado.
Enquanto Georges Bertrand, já perdedor, tentava esboçar uma reacção inútil, a porta da sala de reuniões abriu-se de repente e Madi, pálida e perturbadíssima, aproximou-se de Franco.
- Preciso de falar consigo - começou com um tom dramático. Ele olhou para ela com ar interrogativo. - Estou a ouvir -
replicou, imperturbável.
- Trata-se de um assunto particular.
- Não há nada de particular que os meus sócios não possam ouvir - esclareceu.
- A sua mãe foi raptada - anunciou a secretária.
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Giulia folheava distraidamente o Corriere delia Será, sentada à mesa da cozinha, enquanto tomava o pequeno-almoço com Ambra. De vez em quanto a governanta observava o belo rosto contraído de Giulia. Não se lembrava de alguma vez a ter visto tão deprimida, nem mesmo quando era mais nova e descobrira as infidelidades conjugais de Leo, o marido.
Nem sequer quando lhe tinha morrido a mãe. Nem quando descobrira que tinha um cancro na mama.
- Quer mais um pouco de café? - perguntou-lhe, na esperança de interromper aquele mutismo sombrio. Como única resposta obteve um resmungo indistinto. - Minha senhora - prosseguiu -, aquilo do Giorgio foi só uma criancice. Já se arrependeu. Eu pessoalmente estou pronta para jurar que ele nunca mais vai fazer uma coisa do género. - O bom senso de Ambra e o instinto de Giulia estavam em confronto.
- Eu também espero que não. - Giulia levantou os olhos do jornal.
Eram as primeiras palavras compreensíveis desde que tinha descido para tomar o pequeno-almoço.
- O Giorgio está a atravessar um período de crise profunda esclareceu.
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- Todos os rapazes estão em crise aos quinze anos e fazem uma data de disparates. O Giorgio é bom. Tem um fundo são. Deixe-o em paz e vai ver que tudo correrá da melhor maneira acrescentou Ambra.
- Espero que tenhas razão, Ambra - suspirou Giulia. - Ontem à noite falei com ele durante muito tempo. O Giorgio está cheio de problemas. Não fumava um maço de cigarros por dia se assim não fosse. E o pior - continuou - é que eu me sinto terrivelmente culpada. Acho que não estive suficientemente perto dele quando mais precisava de mim.
- A sua sensibilidade leva-a a fazer um drama de episódios que são muito frequentes na adolescência.
- Um maço de cigarros por dia sugere-te essas banalidades? retorquiu Giulia, inquieta.
- Então fale com o senhor Rovelli. Sempre é pai dele. Se realmente o Giorgio tem tantos problemas, ele podia ajudá-lo. E ajudá-la a si.
- Sim. Não. Não sei - replicou Giulia. - O Leo foi sempre um desastre como marido e como pai. Para ele está sempre tudo bem. Os problemas não o afectam assim muito. Vive um dia de cada vez. Detesta complicações.
- Ainda bem - interveio Ambra. - A senhora, pelo contrário, gosta delas. Desculpe se tomo a liberdade de lhe dizer isto. Há dezasseis anos que tomo conta de si, do seu filho e desta casa. A senhora arranja sempre qualquer motivo para se afligir. Tente deixar de se preocupar tanto.
Ambra tinha começado a levantar a mesa com gestos bruscos, quase como se quisesse apagar as aflições de Giulia, que continuava calada e pensativa.
Diante do lava-louça, e só para fazer alguma coisa, começou a desfolhar um pé de alface.
- Desculpe, minha senhora, esqueci-me de lhe dizer que esta manhã o senhor doutor ligou, de Londres.
- E só agora é que me dizes isso? - censurou-a.
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- A senhora estava a dormir.
- Podias acordar-me - replicou energicamente.
- O senhor doutor não quis. Diz que regressa logo à tarde e que a vem buscar à noite. Arranje-se muito bem. Parece-me que se trata de um jantarzinho à luz de velas.
Giulia suspirou dolorosamente.
- O que foi? - perguntou Ambra, com ar triste. - Não se alegra nem sequer diante de um jantarzinho íntimo à luz de velas?
- Sinto-me tão velha, querida Ambra - disse, quase a chorar. Há momentos em que tenho a impressão de ter falhado em tudo na minha vida. Chego ao ponto de invejar a minha cunhada Silvana e a minha irmã Isabella. São mulheres satisfeitas, tranquilas, seguras. Vivem uma existência serena, sem angústias, sem doenças.
- E sem sucesso - rebateu Ambra.
- Deus é testemunha de que nunca o procurei.
- O sucesso não vai ter com quem anda atrás dele. As pessoas nascem com a marca do sucesso. E isso dói, minha senhora. Sangra e magoa. Eu conheci-a - continuou Ambra - quando andava a escrever o seu primeiro livro e tinha uma barriga deste tamanho. Crescia um filho dentro de si. Estava na cama para não o perder. E ia construindo o seu primeiro romance. É uma mulher de sorte, minha senhora.
- O Leo andava por esse mundo fora entre entrevistas e farras com mulheres alegres e disponíveis. Queres-me contar a mim essa história do sucesso?
Giulia, naquele momento, gostaria de poder trocar a sua vida com a de Ambra, que era o retrato da saúde e da eficiência. Gostaria de poder trocar a sua vida com a de qualquer uma das mulheres que conhecia. Porque ela não gostava de si. Talvez nunca tivesse gostado, e achava difícil conviver com ela própria.
Trazia dentro dela o fantasma do cancro que a atingira à traição. Apesar das palavras tranquilizadoras de Ermes, não tinha assim tanto a certeza de que estivesse debelado para sempre.
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Às vezes observava o seio ao espelho. Um seio mais pequeno do que o outro. Onde tinha ido parar a harmoniosa simetria dos seus seios? Aos quarenta e dois anos receava ser uma mulher acabada.
Sentia às vezes a necessidade desesperada de falar com alguém sobre as suas angústias, de andar com outros homens para descobrir se era ainda uma mulher desejável, depois daquela súbita diminuição. O amor de Ermes e o desejo intenso com que a procurava não eram para ela provas suficientes. Ermes via nela a adolescente de outros tempos, mas como a veria um outro homem?
Subitamente, Giulia desatou num pranto, sendo logo acolhida pelos braços de Ambra.
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- Oh, que maravilha! - A doce velhinha arregalava os olhos enquanto avançava com um passo hesitante mas ligeiro por um caminho coberto de musgo fino e macio como um tapete. De um lado e de outro do caminho estendia-se, até aos limites extremos de um grande armazém, um prado salpicado de florzinhas cândidas que pareciam flocos de neve acabados de cair.
Contra o céu, que apresentava os tons suaves de um fim de tarde primaveril, erguiam-se árvores de folhas tenras e flores rosadas. No horizonte, distinguia-se o perfil nítido de uma pequena casa branca com as portadas verdes abertas de par em par, cortinas de renda nas janelas e uns magníficos gerânios vermelhos pendurados nas varandas.
- Faz-me lembrar outra casa - disse a senhora, com um ar sonhador. - Era em Canterbury - continuou -, no Kent. Marisol, alguma vez esteve no Kent? Um sítio lindíssimo. O meu Franco estudou no Kent. Royal College, acho que era assim que se chamava a escola. Um curso difícil para rapazes inteligentes como ele. Agora já não me lembro se alguma vez estive num lugar assim. Ou se o vi num postal. Porque, sabe, há coisas de que me lembro e outras que não. Mas desta casa lembro-me bem. É uma maravilha.
- A velha senhora mostrava-se contente e loquaz, ao mesmo tempo
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que avançava naquela paisagem imóvel, a simulação perfeita de um desejo satisfeito.
- Está satisfeita por estar aqui, minha senhora? - perguntou-lhe Marisol. Vestia uma bata branca de enfermeira. Também as meias e os sapatos eram brancos.
- Claro que estou contente por estar aqui. Não vejo a hora de contar isto ao meu pai. Conhece o meu pai? Chama-se Franco. É lindíssimo. Dizem que sou parecida com ele - murmurou a rir, divertida, encolhendo a cabeça nos ombros muito magros. Mas logo voltou a ficar séria e desconfiada.
- Diga-me, Marisol, para onde foi que me trouxe?
- Ao país das fábulas - respondeu a rapariga. - Não era isso que queria? - perguntou, ao mesmo tempo que a conduzia por um caminho que contornava a casa minúscula e desembocava num pátio onde se erguia um grande carrossel luminoso, com cavalos de madeira cujas patas anteriores estavam erguidas numa atitude de quem vai saltar um obstáculo. Os cavalos mantinham um equilíbrio perfeito graças a uma lança às riscas douradas e azuis claras que os trespassava à altura do pescoço e os ancorava solidamente ao chão. E foi a uma dessas lanças que a senhora se agarrou com agilidade para montar a cavalo.
Depois de ter instalado a sua protegida, também Marisol saltou para um cavalo. O carrossel começou a girar lentamente, enquanto a velhota agitava uma mão para cumprimentar sabe-se lá quem. A canção de embalar de Brahms tocada pelo pequeno órgão de uma patética caixa de música, enchia docemente o ar.
A velhinha sorria, extasiada, contagiando também Marisol naquela mágica simulação.
- Que lindo! Que lindo! - não se cansava de repetir, com uma voz agradável. Depois, com a ajuda da rapariga, desceu do cavalo.
- Há tanto tempo eu queria andar de carrossel. Há meses. Talvez há anos. Mas não tinha coragem de pedir ao meu pai. Finalmente acabou a menina por me trazer. Eu sei quem a menina é. Sabia que eu sei?
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Marisol deixou de sorrir. Aquela mulher conseguia sempre surpreendê-la, como se conhecesse o sentido daquela simulação no centro da qual estava ela, com o seu infantil, cândido e intraduzível espanto de menina.
- E quem é que eu sou? - perguntou a rapariga, curiosa.
- O meu anjo-da-guarda. Percebi isso desde o momento em que parou diante do portão da minha casa.
Marisol sorriu então à velha senhora, que queria andar à volta do carrossel. No limite de um breve horizonte, contra um céu rosado, viu a silhueta de um antigo castelo cheio de torres pousado no topo de uma colina verdejante.
- Aquela é a casa do príncipe azul - disse Marisol.
- Era exactamente assim que eu a imaginava, desde sempre explicou a senhora. - E ele, o príncipe azul, onde está?
- Algures no bosque. Saiu a cavalo. Talvez tenha ido à caça. Ou talvez tenha ido à procura da Branca de Neve.
- Mas que estranho - disse a senhora, com um ar desconfiado. - Não ouço cantar os passarinhos. Junto do príncipe e da Branca de Neve há sempre passarinhos a cantar, borboletas a voar e esquilos a saltar. Não há aqui nada disso. Parece uma paisagem artificial - constatou a velhota com lucidez, ao mesmo tempo que se sentava num banquinho de madeira. Inclinou-se para apanhar uma flor.
- Esta margarida também não tem perfume - sublinhou, desiludida. - É falsa, Marisol - disse, arregalando os olhos de surpresa.
- O país das fábulas é uma simulação. Até a erva é falsa. É tudo falso. Mas é bonito. E nós gostamos. Não é verdade? - continuou, mais animada. - Mas as flores, pelo menos isso, deviam ser perfumadas. - Parecia desiludida, enganada. Depois, de repente, o entusiasmo voltou.
- Eu fazia uma brincadeira quando o meu menino era pequeno. Embalava-o e dizia para mim mesma que era filho de um jovem príncipe que me tinha amado muito. Mas a sua família era contrária ao casamento. Sabe... a velha nobreza francesa. Seria uma
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mésalliance1 imperdoável. Mas, como a menina sabe, no coração não se manda. Ele era aviador. Todos os dias, com o seu avião, voava sobre a minha casa na esperança de me ver a mim e ao nosso menino. Chamei-lhe Franco para recordar as origens francesas do pai. Depois um dia o avião não veio. Nem nos dias seguintes. Em suma, nunca mais voltou. Provavelmente o meu belo aviador tinha casado com uma princesa.
- Sabe que eu era capaz de ficar horas e horas a ouvi-la? As suas histórias são mesmo bonitas - disse Marisol, conquistada. Mas agora são horas do remédio. E temos de ir embora.
- Embora do país das fábulas? - perguntou a velhinha, contrariada.
- Não, ficamos aqui enquanto a senhora quiser - prometeu Marisol, ao mesmo tempo que a conduzia em direcção a uma porta de ferro que, uma vez aberta, revelou um breve corredor de uma brancura ofuscante para o qual se abriam outras portas. Marisol abriu uma delas e as duas mulheres entraram numa sala de estar moderna, decorada com móveis em aço e vidro. Havia uma mesa posta para duas pessoas. No meio, uma travessa com presunto e melão, uma pequena taça cheia de fruta fresca, uma tarte de maçã e alguns frascos de medicamentos.
- É mais bonito lá fora - disse a velha senhora.
- Agora vamos fazer um acordo - propôs Marisol. - Primeiro o remédio, depois a refeição. E a seguir vamos outra vez lá para fora - concluiu, com uma firmeza meiga.
- Onde é a casa de banho? - perguntou a senhora.
- Eu vou consigo - respondeu Marisol prontamente. A rapariga levou-a até uma pequena casa de banho, limpa e brilhante.
Fechou a porta quando a senhora entrou. Regressou à sala e tirou da gaveta de um móvel fechado à chave um telefone portátil.
1 Em francês, no original. Dito de um casamento com uma pessoa de posição social inferior. (N. do E.)
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Marcou rapidamente um número e falou: - Está tudo em ordem. Está muito contente por estar aqui. Foi um achado, realmente genial.
Marisol escutou brevemente a voz do interlocutor do outro lado da linha.
- vou já fazer isso - prometeu. Quando a velhinha saiu da casa de banho, Marisol tinha uma Polaroid na mão.
- Quero tirar-lhe uma boa fotografia - disse a enfermeira. Não me faz um sorriso?
- De maneira nenhuma - replicou a senhora, irritada. - Se pensa que eu não sei que hoje é o meu aniversário, está muito enganada. Também sei que o meu filho me ofereceu um presente especial.
- E se o presente especial fosse mesmo o país das fábulas? perguntou Marisol, que estava à espera do momento certo para carregar no botão.
- Mas é claro - exclamou a senhora, feliz -, às vezes não consigo pensar tão bem como queria. A minha pobre cabeça - acrescentou - não se comporta como devia. Ou como eu queria. Mas a vida é tão bonita - concluiu com um sorriso.
A imagem impressa no papel da Polaroid foi a de uma senhora feliz, diante de uma mesa posta com elegância.
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Louis Fournier observava, através dos vidros do seu escritório de Georgetown, a chuva que caía com uma insistência sombria e tamborilava com as pontas dos dedos no tampo da secretária. Era um homem de quarenta anos, mas parecia muito mais velho. A chuva deixava-o melancólico. Precisamente num dia como aquele, em Paris, a mulher deixara-o para ir atrás de um homem rico que podia garantir-lhe as certezas de que precisava. Tinha-se cansado das depressões de Louis, da sua hipocondria queixosa, dos seus medos. Ele próprio não pudera deixar de lhe dar razão. Aquela melancolia crónica sempre o impedira de ser feliz. Para além disso, o outro soubera despertar nela o desejo, proporcionando-lhe a intensidade de uma juventude reencontrada.
Deixaram-se como pessoas civilizadas, com muito sofrimento. Quase logo a seguir, Louis aceitou um cargo nas ilhas Caimão, onde chegou no período das grandes chuvas, que multiplicaram a sua tristeza.
Louis observou as grandes gotas que sulcavam os vidros como as lágrimas que lhe pesavam sobre o coração. Crescia nele dolorosamente a nostalgia de Paris, da única mulher que sempre amara, da sua casa em Neuilly, dos sonhos juvenis, da carreira brilhante que não conseguira fazer.
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Aceitou viver numa ilha que mais cedo ou mais tarde acabaria por se afundar sob o peso dos dólares, que naquele paraíso fiscal confluíam de todas as partes do mundo, movido pelo único sentimento que lhe restava: a avidez de dinheiro.
Georges Bertrand confiara-lhe a direcção dos seus negócios, no limite entre o lícito e o ilícito. Uma hora atrás, de Itália, tinha-lhe ligado Franco Vassalli. Pedia-lhe um empréstimo urgente de seis milhões de libras.
Em cima da secretária de Louis Fournier estavam os faxes que continham os títulos dos jornais italianos com a notícia do rapto de Serena Vassalli. Franco pedia-lhe aquela quantia para pagar o resgate da mãe.
- Louis, é uma questão de vida ou de morte - implorou. Tens de me fazer chegar esta importância dentro de dois dias. Disso depende a segurança da minha mãe.
Louis conhecia-o há cinco anos. Eram quase da mesma idade. Apresentara-lho Bertrand numa festa na casa do banqueiro em Cap Ferrat. Gostava de Franco pela força e pela simpatia que libertava. Era o homem que ele gostaria de ser. E que não seria nunca. Porque Franco tinha mais qualquer coisa, uma qualidade superior que lhe permitia ser o primeiro em tudo.
- Tenho de perguntar ao Bertrand - replicou Louis. Sabia que os dois eram sócios na Inter-Channel e pensava que, perante um acontecimento tão grave, o próprio Bertrand não poria objecções. No entanto, seis milhões de libras sempre eram uma soma muito considerável.
- Não te ponhas a fazer de escudeiro diligente, Louis - disse Vassalli. - Primeiro manda-me o dinheiro. Depois pedes todas as autorizações que quiseres. E não me venhas dizer que precisas de te acautelar com garantias.
- Temos de chegar a um acordo sobre as taxas de juro - replicou Louis. Depois mudou de registo. - Olha lá, Franco, quando é que me restituis o total?
- Daqui a dois meses. Está bem assim? Até 30 de Dezembro.
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- com que garantias podemos contar?
- com a minha palavra. Não te chega?
- Não, isto é, sim. Para mim chegava, mas para o Georges não.
- O meu barco. Serve? - arriscou Franco Vassalli.
Era um Swan de sessenta e cinco pés, à vela, construído na Finlândia pelos estaleiros Norton. Uma autêntica jóia.
- Não, não chega - sentenciou Louis. - Não cobre sequer um terço dessa quantia. E tu bem sabes, meu amigo.
- Então vamos fazer uma coisa. Tu dizes-me o que queres como garantia e eu vejo se te posso dar. Assim encerramos o assunto.
- Seis por cento da Inter-Channel - propôs - e quinhentas mil libras a dois meses. - Parecia-lhe uma transacção correcta relativamente à qual o próprio Bertrand não teria nada a objectar.
- Tudo bem - aceitou Franco. - Manda-me o dinheiro e eu mando-te preparar os documentos para a transferência das quotas.
Louis Fournier tentou imediatamente pôr-se em contacto com Georges Bertrand para lhe comunicar os termos da transacção, mas o francês parecia ter-se volatilizado. Isso não o impediu de confiar no acordo estabelecido com Vassalli. Parecia-lhe um excelente negócio. Ao fim e ao cabo, ganhava de uma só vez o eterno reconhecimento de Vassalli, por o ter ajudado num momento tão dramático, e o de Bertrand, por lhe ter adquirido aquelas quotas da emissora, uma sociedade que lhe interessava particularmente. E quem sabe se Bertrand não se decidiria mesmo a tirá-lo daquela ilha, daquela armadilha onde o tinha instalado aproveitando o seu desespero. Mas se alguma coisa corresse mal? Impossível, pensou Louis. Conhecia bem Franco e a sua honestidade profissional. Ficou sossegado.
Louis ligou para o número directo de Vassalli. O relógio de pulso marcava as onze da manhã. Em Itália era de tarde. Atendeu Madi.
- Este número está sob escuta - comunicou-lhe a secretária ao reconhecer a sua voz. - É por causa do rapto da Sr.a Vassalli.
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- Percebo. E... há novidades? - perguntou cautelosamente.
- Estamos à espera que nos sejam indicadas as modalidades do pagamento. O nosso único pedido é o silêncio da imprensa.
- Diga ao Dr. Vassalli que estou por perto e que vou arranjar maneira de estar junto dele até amanhã - concluiu. Louis não se ia mexer de Georgetown. Usava uma linguagem convencional, que Madi compreendeu imediatamente.
- Transmitir-lhe-ei o recado - concluiu, e desligou a chamada.
Depois bateu à porta do escritório de Franco. - O dinheiro chega amanhã - anunciou. - O Sr. Fournier está à espera dos documentos de garantia do empréstimo.
- Muito bem - disse Franco. Depois sorriu-lhe em reconhecimento. - Tem trabalhado muito, nestes últimos tempos. Porque não tira uma tarde livre?
Madi observou-o através das espessas lentes de míope que tornavam o seu olhar indecifrável.
- Se o senhor doutor assim o deseja - respondeu, hesitante. Franco tinha a certeza de que Madi não o ia abandonar, nem
que fosse por uma hora.
- Faça como entender - comentou, ao mesmo tempo que se levantava da poltrona. - Anda, Lupo - disse ao cão. - Vamos desentorpecer as pernas.
Saíram da sede da Provest e dirigiram-se ao piazzale Cordusio. Entraram no edifício dos Correios e foram até ao sector dos telefones.
Franco marcou um número de Londres: - Está tudo em ordem - disse ao interlocutor distante. Desligou a chamada e saiu com um ar satisfeito. - Está tudo a correr o melhor possível, meu amigo - disse, ao mesmo tempo que acariciava o pêlo macio do cão.
Entrou num café onde bebeu um sumo de toranja. Ofereceu a Lupo uma batata crocante e o seu fiel e inseparável companheiro retribuiu com um olhar de reconhecimento.
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Depois saiu e avançou pela via Dante. Mesmo na esquina da rua a sua atenção foi atraída pela montra de uma grande livraria que ostentava, ao centro, uma fotografia a cores, gigante, de uma bonita mulher e, a toda a volta, dezenas de exemplares de um livro intitulado Como o vento. Giulia de Blasco era o nome da autora.
Franco parou uns instantes a observar com curiosidade, aquele belo rosto de mulher, intenso e tranquilo. Distinguiu uma luz tormentosa naquele olhar límpido que lhe fez lembrar uma pintura oitocentista, um retrato de mulher que tinha visto num antiquário.
Entrou na livraria e comprou um exemplar do romance.
- Óptima escolha - comentou a funcionária, enquanto lhe entregava o talão de compra.
- Já o leu? - perguntou Franco, curioso.
- Ainda não. Só saiu hoje. Mas os romances da Giulia de Blasco, normalmente, são muito bonitos.
Franco Vassalli saiu, mandou parar um táxi e deu a direcção de casa, na via Borgonuovo. Sentia-se sereno e relaxado. Ia jantar a casa do editor Riboldi, mas entretanto ainda tinha umas horas para esquecer os negócios e as aflições na companhia de Giulia de Blasco.
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O editor Giuseppe Riboldi morava num antigo palacete da via Fiori Chiari, no bairro de Brera, que em tempos não muito remotos tinha sido uma casa de passe.
- Isto aqui era um bordel - costumava explicar Riboldi com a sua habitual delicadeza aos convidados que, de todas as vezes que lá iam, tinham de engolir a descrição do dono da casa. - Quando a comprei, o rés-do-chão era todo em azulejo. Os quartos, no andar de cima, eram cheios de espelhos. E de bidés. Se estas paredes falassem... - concluía, divertido.
O bom gosto da Sr.a Riboldi e o talento de um arquitecto da moda tinham transformado o velho prostíbulo numa requintada residência burguesa com três salas de estar no rés-do-chão, um amplo salão virado para um jardim interior e uma sala de jantar austera, sem grandes ornamentos porque, como afirmava o dono da casa, "Quem come não deve ser distraído, pois assim não poderá apreciar a qualidade do meu cozinheiro."
Naquela noite, contra o costume, Giulia chegou com um atraso notável. Antes de sair de casa tinha tido uma conversa desgastante com Giorgio. Um monólogo, mais do que um diálogo, porque o filho se recusava a abrir-se, a falar abertamente com ela. Giulia duvidava até que ele a ouvisse, perdido como andava num mundo inacessível, misterioso e emaranhado no qual se fechava.
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- Sr.a de Blasco - recebeu-a Valerio, o velho empregado do editor -, estão à sua espera. Estavam preocupados por sua causa continuou, enquanto a ajudava a tirar a capa negra de caxemira. Depois, timidamente, entregou-lhe um exemplar do seu último romance. - Não me escreve uma dedicatória antes de passar lá para dentro? - perguntou, hesitante.
Riboldi foi ter com ela ao vestíbulo no momento em que Giulia, de caneta na mão, pensava numa frase simpática para Valerio. O editor recebeu-a literalmente de braços abertos. Parecia Nosso Senhor.
- Cá está finalmente a minha Giulia, forte como o vento começou, satisfeito com aquele jogo de palavras que se referia ao carácter da escritora e ao título do romance.
Enquanto a acompanhava até à sala, o editor continuava a verter sobre ela elogios de todo o tipo.
Coberta de jóias como uma Nossa Senhora, surgiu Erminia Riboldi, "a minha inextinguível consorte", como o marido costumava defini-la. Trazia, como sempre, um vestido muito elegante, apesar de a saia demasiado justa e os saltos demasiado altos a obrigarem a trotar, mais do que caminhar.
- Querida Giulia - sorriu, oferecendo-lhe a face coberta de maquilhagem para um beijo ligeiro -, gastei os meus olhos a ler de um só fôlego o teu belíssimo romance. Lindo. Lindo. Lindo. Se soubesses as lágrimas que derramei! As tuas histórias fazem-me sempre chorar. Divertem-me tanto! - As palavras saíam-lhe da boca como de uma fresca nascente. Mais do que falar, fazia o seu número de sedução. - Anda mostrar-te - continuou, afastando-a um pouco para a admirar melhor. - Estás uma beleza. E que maravilha de vestido. Quem foi que te fez essa obra de arte?
Giulia trazia um vestido justo cinzento-antracite que tinha há vários anos e que usara já outras vezes para ir jantar a casa dos Riboldi.
- É uma coisa velha - disse Giulia, encerrando o assunto. Entraram na sala e Giulia sentiu-se envolvida pelos olhares
dos presentes. Um misto de admiração, de inveja, de cepticismo
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por parte de quem considerava que o seu sucesso se devia mais à sorte do que ao talento.
Estava lá Franco Paolini, o director do Opinione, o semanário líder do grupo que lhe dera o baptismo no mundo do papel impresso. Conheciam-se há vinte anos e Giulia considerava-o um amigo.
Estava também Peggy, a mulher francesa de Paolini, que vivia há muitos anos em Itália e continuava a ostentar absurdos vestidos de chiffon e chapeuzinhos extravagantes.
Giulia foi submersa por uma avalanche de cumprimentos que nem sequer tentou travar apesar de, a partir do momento em que entrou, prestar mais atenção às críticas, que lhe tinham permitido errar menos e apagar dos seus livros muitas ingenuidades. As críticas deixavam-na em crise, mas constituíam um incentivo para melhorar.
O deputado Armando Zani acolheu-a num terno abraço. Como é que está a minha menina? - sussurrou-lhe.
- Bem, quando te vejo - respondeu a sorrir.
Armmando Zani, um herói da resistência, vivera durante a guerra uma brevíssima história de amor com a mãe de Giulia. Ambos sabiam que o fruto secreto daquela paixão era Giulia, precisamente.
Encontravam-se raramente porque Zani, que era um político importante, vivia em Roma.
- Pareces-me nervosa - disse-lhe, beijando-lhe a mão com uma galanteria que conservava ainda vestígios da sua origem camponesa. - Tenho a impressão de que se passa alguma coisa contigo, estás muito tensa - insistiu, falando em voz baixa. Giulia lançou-lhe um falso sorriso tranquilizador.
- Quem é o escritor que não está nervoso quando tem um romance nas livrarias há um dia apenas e ainda não sabe se vai ter sucesso?
Giulia e Armando desejavam ter uma longa e profunda conversa, mas não era aquele o lugar nem o momento para uma afectuosa troca de ideias.
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- Meu caro deputado, agora não monopolize a minha convidada - interrompeu Riboldi com um ar aflito. Deu o braço a Giulia e levou-a até um desconhecido que, em pé, de mãos enterradas nos bolsos das calças, a observava com curiosidade.
Ao vê-lo, a primeira reacção de Giulia foi a de o comparar a um capitão de mercenários. Físico de guerreiro, traços marcados, queixo largo e forte, olhos profundos que brilhavam com uma luz gélida. Giulia atribuiu-lhe uma idade entre os trinta e os quarenta anos.
- Aqui está a estrela da minha editora - disse Riboldi, enfático. Depois voltou-se para Giulia. - Apresento-te Franco Vassalli.
Giulia estendeu-lhe a mão que ele tocou levemente com os lábios.
- Como está? - Um prelúdio banal, sublinhado no entanto por um olhar intenso de Franco que a irritou. Havia uma espécie de irreverência naquela maneira de olhar. Giulia teve a sensação de que ele lhe estava a contar as rugas.
- Li sobre o rapto da sua mãe - disse ela.
- Um episódio que, espero eu, se vai resolver brevemente. Os raptores já entraram em contacto comigo e eu pedi o silêncio da imprensa - explicou com tranquilidade.
- Sei também que a magistratura está a tentar congelar os bens dos familiares das pessoas raptadas - prosseguiu ela.
- Já dispus as coisas de forma a que ninguém possa dificultar a entrega da minha mãe. Quero-a de volta o mais depressa possível
- explicou Franco. Tinha ar de querer encerrar o assunto.
Giulia foi sentar-se ao lado de Erminia, ao mesmo tempo que Valerio lhe entregava um sumo de tomate.
- Trouxe do monte um cesto de porcini. Mandei o cozinheiro fazer aquele risotto de que tu gostas - disse-lhe Erminia. Giulia agradeceu com um sorriso, mas tinha o espírito noutro lugar. Perguntava a si mesma que significado teria a presença de Vassalli naquela casa e naquele jantar. Não lhe constava que os homens da finança tivessem relações com o seu editor. Lembrou-se de que, uns dias antes, o polícia de serviço na esquadra lhe tinha contado o
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singular roubo de alguns cenários dos armazéns da Inter-Channel. Teria aquilo sido um sinal premonitório daquele encontro?
- Querida Giulia, sabes porque é que o Vassalli está aqui? começou Riboldi. - Quer comprar os direitos do teu romance para fazer uma série televisiva. Eh? O que dizes?
Giulia olhou para Vassalli. Tinha uma expressão absorta.
- Comprei o seu romance, atraído pelo título e pela sua fotografia. Comecei a lê-lo e apaixonei-me imediatamente pela história. É estupenda. É um daqueles enredos que, quando ainda conseguia ler, entusiasmavam a minha mãe.
- Pensava que os homens da finança só liam publicações especializadas e as páginas económicas dos jornais. Para além do mais, não sabia que produzia séries televisivas - observou Giulia.
- Eu gosto do espectáculo. Por isso comprei um canal de televisão. A minha estação vai transmitir séries americanas, tão discutidas pelos críticos, mas tão do agrado dos telespectadores. Agora chegou o momento de produzir séries nossas. Como o vento parece-me a história certa para começar em grande estilo. - Parecia convencido do que estava a dizer.
Giulia olhou em volta. Armando sorria-lhe. Riboldi anuía, entusiasmado, e a mulher piscava-lhe o olho. Também Paolini e Peggy pareciam aprovar a ideia.
- Pretendo adquirir os direitos sobre o seu livro, Sr.a de Blasco
- acrescentou Vassalli.
- Tenho de reflectir - respondeu Giulia.
Quando recebia uma notícia extraordinária, para o bem ou para o mal, Giulia não reagia imediatamente. Precisava de a assimilar antes de exprimir uma opinião.
- Se é só isso, tem todo o tempo que quiser - garantiu o empresário. - Cinco minutos chegam?
Vassalli não estava a brincar. Ela olhou para Zani quase como se lhe pedisse ajuda.
- Mantém-los de rédea curta, estes megaempresários - interveio ele em sua ajuda, falando em voz baixa mas de forma a que todos ouvissem e percebessem de que lado estava.
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- vou falar com a Elena Dionisi. É a minha advogada. Por agora é tudo o que lhe posso dizer, Dr. Vassalli - respondeu ela.
Valerio anunciou que o jantar estava na mesa e Giulia sentou-se entre o seu editor e o deputado Zani. Vassalli estava à frente dela e perscrutava-a com intensidade. Giulia, sentindo-se observada, acabava inevitavelmente por encontrar o olhar de Franco mais vezes do que gostaria. Apercebia-se do ruído das conversas sem ouvir nenhuma em particular, enquanto continuava embrenhada em pensamentos confusos.
Gostaria de ter Ermes ao seu lado. Mas ele só ia regressar no fim-de-semana. Instintivamente, olhou para o relógio. Ermes devia ligar por volta da meia-noite e ela, àquela hora, queria estar
em casa.
- Cansada? - perguntou Armando Zani, atencioso. Tranquilizou-o com um sorriso. Ele pensou levá-la a casa
antes de regressar ao Hotel Manzoni, onde ficava habitualmente durante as suas estadias em Milão. Queria conversar um pouco com ela, porque pressentia que Giulia não estava a atravessar um dos melhores momentos da sua existência.
- Está tudo bem, Armando - garantiu-lhe. - É que eu não quero chegar a casa muito tarde.
- Eu levo-a - interveio Vassalli. Mais do que uma oferta, parecia uma ordem. E Giulia apercebeu-se de que não conseguia recusar, apesar de ter preferido regressar com o pai.
Assim, depois do café, saíram juntos para a rua deserta, sob um céu estrelado. O ar muito fresco da noite fazia pensar no Inverno iminente. Giulia apertou a capa com força durante o brevíssimo trajecto que separava a casa de Riboldi do Rolls prateado cuja porta se abria para ela.
Um motorista de farda azul esperava-os. Franco Vassalli olhou em volta, na rua iluminada apenas pela ténue luz dos lampiões, e assobiou ao de leve. Do fundo da rua, um pastor alemão veio ao encontro deles numa corrida vigorosa.
- Bonito, Lupo - disse Vassalli, enquanto lhe afagava a cabeça.
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No carro, o cão aninhou-se aos pés do dono, no tapete de carneira branca.
Giulia admirou o interior da viatura em madeira clara, os estofos de couro vermelho escuro, o telefone e o pequeno televisor.
- Para a via Tiepolo - ordenou ao motorista.
- Como é que sabe a minha morada? - perguntou, curiosa. Ele não respondeu. Limitou-se a esboçar um gesto vago com a
mão. Depois, com uma extrema naturalidade, passou-lhe um braço em volta dos ombros. E fechou-se num absoluto mutismo. Giulia sentiu-se embaraçada. Se Vassalli estava a tentar pô-la pouco à vontade, estava a conseguir lindamente. Decidiu entrar no jogo para perceber quais seriam os limites desta situação que, no fim de contas, estava a aceitar.
O carro parou diante da casa da via Tiepolo. Ela nem sequer teve tempo de se aproximar da porta, porque o motorista já a tinha aberto.
Vassalli deslizou para fora do carro a seguir a ela e, de braço dado, conduziu-a até à porta de casa.
Esperou que ela abrisse a porta. Estava perto dela e sorria. Giulia esteve quase a agradecer-lhe. Depois decidiu que realmente não era caso para isso.
Entrou em casa e nesse momento o braço de Vassalli, que até àquele momento a tinha segurado, apertou o dela com força. Vassalli puxou-a para si e beijou-a na boca com uma violência inesperada.
Giulia foi tão apanhada de surpresa que nem sequer arranjou forças para reagir.
- Boa-noite - disse ele, com um sorriso de vencedor.
Ela observou-o enquanto se dirigia tranquilamente para o Rolls.
com um gesto de fúria fechou a porta com força, acendeu a luz da entrada e encostou-se à parede, ofegante.
- Mas que raio é que me está a acontecer? - perguntou a si mesma em voz alta. Agradava-lhe aquele homem. E também tinha gostado quando a beijara.
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Giulia sorriu no sono. E no sonho. Eram então aquelas flores que flamejavam no horizonte, as esplêndidas rosas que cresciam luxuriantes no jardim do avô Ubaldo? O sumptuoso poente travava a sua inútil batalha contra as trevas que em breve iam triunfar. A passagem da luz do dia à escuridão da noite suscitou nela uma nostalgia subtil.
Quando a metamorfose se concluiu, uma náusea repentina apoderou-se dela. Era uma sensação desagradável e desesperada que a possuía completamente. Giulia acordou sobressaltada quando já não havia esperança de que a náusea pertencesse ao sonho mas sim à realidade. Era mesmo um mal-estar real que flutuava do cérebro até às entranhas, enquanto o coração galopava loucamente.
O que é que lhe estava a acontecer? Um suor frio espalhou-se por todo o corpo. Instintivamente, Giulia agarrou-se ao lençol como um náufrago se agarra à tábua mais próxima. Era uma sensação que nunca tinha experimentado. Não tão forte, pelo menos.
Depois a náusea enfraqueceu lentamente até desaparecer por completo. Tinha ido embora para não voltar, ou tratava-se apenas de uma trégua? Pensou em Ermes, o homem que tinha removido o mal do seu seio, o grande amor da sua vida desde os anos da adolescência. Anos cheios de desejos e de sonhos, anos sofridos, mas cheios de esperança.
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Acendeu o candeeiro da mesa-de-cabeceira e olhou para o despertador. Eram três horas. A casa estava mergulhada num silêncio profundo que lhe restituiu um mínimo de segurança. Era como viajar num majestoso galeão que deslizava lento e seguro no meio da noite.
Sentou-se na cama. Olhou em volta. Observou as flores azuladas do papel de parede que, à luz do candeeiro, criavam figuras estranhas: um perfil de mulher, a cara de um palhaço, uma paisagem lacustre. De repente, com o brilho de um relâmpago, recordou o seu encontro com Franco Vassalli. E aquele beijo. Fechou os olhos e levou as mãos ao rosto como que a criar um escudo de protecção entre ela e uma realidade verdadeiramente perturbadora. Recordou o primeiro beijo de Ermes, um beijo tímido, meiguíssimo, delicado como os seus quinze anos. Tinha-se sentido então subitamente adulta e apaixonada. Comparou-o com o beijo violento de Franco. Não lhe interessava encontrar uma explicação racional para o comportamento daquele homem. O que a estava a perturbar, pelo contrário, era a sua disponibilidade para aquele beijo.
Sentiu-se culpada em relação a Ermes. E se ele a tivesse visto, à porta de casa, enquanto um desconhecido a beijava, o que teria pensado dela? O que sente um homem apaixonado quando vê a sua mulher nos braços de outro?
Quando fechou a porta de casa, depois de Vassalli a ter deixado, Ermes telefonou-lhe.
- Olá, meu amor - começou, com a sua voz clara, tranquila, reconfortante. - Correu bem o teu serão?
- O jantar do costume, com a gente do costume. - Omitiu-lhe o encontro com o empresário e esquivou-se a mais perguntas.
- Quando voltas? - perguntou Giulia.
- Daqui a uns dias. Ligo-te amanhã de manhã. Gosto muito de ti.
- Boa-noite, Ermes. Obrigada. Eu também gosto muito de ti. Depois dirigiu-se às escadas com um passo cansado. Entreabriu com cautela a porta do quarto de Giorgio. O filho estava a
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dormir. Ela baixou-se para apanhar a roupa espalhada pelo chão, dobrou-a e colocou-a ordenadamente em cima da cama. Depois voltou a fechar a porta devagar e entrou no seu quarto.
Tomou um comprimido para dormir e não pensar. No meio do sono, a angústia acordou-a com aquela náusea dilacerante.
Levantou-se, foi à casa de banho e bebeu um copo de água. Olhou-se no espelho. Os caracóis despenteados, os olhos inchados de sono. Passou as pontas dos dedos pelos lábios como se quisesse procurar um sinal do beijo de Franco Vassalli. Pôs a ponta da língua de fora e fez uma careta.
- Vá lá, Giulia, não faças um drama - disse em voz alta. - És uma mulher madura, consciente. O que vêm a ser estas histórias de menina? Aquele fulano não representa rigorosamente nada para ti.
- Quem é esse fulano que não representa nada? - perguntou Giorgio, com uma voz ensonada.
Viu-o atrás dela, reflectido no espelho. - Não estás a dormir?
- perguntou Giulia, voltando-se.
- Acordei. Que horas são? - perguntou o rapaz.
- São três - respondeu, ao mesmo tempo que enterrava os dedos nos cabelos encaracolados de Giorgio.
- Então, mãe, quem é aquele fulano que não representa nada para ti? - insistiu o filho.
- Eu disse isso? - hesitou.
- Disseste exactamente isso - insistiu Giorgio.
- Estava a pensar em voz alta. Os pensamentos são secretos. Sabias?
- Os teus. Porque os meus, tu queres saber.
- Touchée - Giulia sorriu. - A questão é que tu és meu filho e estás a atravessar um momento de crise. É meu dever tentar ajudar-te - disse.
- Tu és minha mãe. Desde que tenho memória, sempre estiveste em crise e nunca deixaste que ninguém te ajudasse - desafiou. - Boa-noite, mãe - rematou Giorgio, gratificando-a com um sorriso irónico.
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- Boa-noite, Giorgio - sussurrou ela, observando-o enquanto se afastava.
Saiu da casa de banho por sua vez, apagou a luz e dirigiu-se ao quarto.
Naquele momento explodiu de novo, violenta, a náusea. Giulia apenas teve tempo de chegar à casa de banho. Vomitou. Depois sentou-se, exausta, na beira da banheira. Pareceu-lhe que a sua vida se estava a apagar. O fantasma da doença nunca a abandonava. Bastava uma pequena indisposição para a levar a crer que aquele terrível mal tinha regressado. De facto, os controlos trimestrais, as mamografias e as análises de sangue indicavam que no seu corpo luzia perenemente um sinal de perigo.
Estremeceu. A náusea tinha passado e regressou ao quarto. Enfiou-se na cama, apagou a luz e esperou que o sono pusesse fim ao turbilhão dos seus pensamentos.
Como todas as manhãs, foi acordada pelos ruídos do costume: a porta de casa a abrir-se, os passos de Ambra às voltas no rés-do-chão a abrir as janelas e a arrumar, a água a correr na casa de banho de Giorgio. Esperou que o rapaz aparecesse à porta do quarto para a cumprimentar; mas ouviu-o descer as escadas com o seu passo pesado: a mesma maneira de andar de Leo.
Resolveu levantar-se e ir ter com ele à cozinha. Tinha de esquecer todos os seus problemas para se concentrar apenas no filho. Pousou os pés no chão e, à traição, como uma punhalada, a náusea voltou a agredi-la, ao mesmo tempo que lhe parecia que o quarto andava à roda. Correu até à casa de banho e vomitou outra vez.
Molhou a cara e olhou-se no espelho. Estava pálida e tinha os olhos marcados por umas olheiras profundas e escuras.
Sentia-se aterrorizada com aquilo que lhe estava a acontecer. Voltou ao quarto e estava a vestir o roupão quando ouviu tocar o telefone na mesa-de-cabeceira.
- Ermes, sinto-me mal - disse de um fôlego, sabendo que o interlocutor matutino não podia ser senão ele.
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- O que foi que te aconteceu? - perguntou, alarmado.
Giulia contou-lhe o que lhe tinha acontecido. - O que é que pode ser? - perguntou-lhe, ansiosa.
- Provavelmente nada. Se calhar é apenas uma banal indigestão. Se calhar é stress. O Giorgio dá-te problemas e tu reages assim. Agora fica sossegada. Veste-te e vai ter com o Dr. Pieroni. Entretanto eu telefono-lhe e aviso-o de que tu vais a caminho. - Ermes tentou assim tranquilizá-la.
Meia hora depois Giulia estava na clínica, e tinha a enfermeira do professor à espera dela.
- Sr.a de Blasco, o senhor professor vai vê-la daqui a uma hora. Entretanto encarregou-me de lhe fazer uma série de exames.
- Oh, meu Deus, mais análises! Mas porquê? - perguntou, desanimada.
- É só uma análise de sangue e outra de urina. O professor Corsini referiu a suspeita de uma intoxicação alimentar - explicou a eficiente enfermeira.
- Mas é claro - disse Giulia para os seus botões. - Porque é que eu não pensei nisso antes. Os cogumelos da Sr.a Riboldi.
Era quase meio-dia quando o professor Mauro Pieroni recebeu Giulia no seu gabinete.
- Querida Giulia - começou. - Fico muito feliz por a ver.
- Como é que eu estou, professor? - perguntou ela, com um fio de voz.
- A julgar pelo aspecto, eu diria que mal. A julgar pelas análises, está óptima - sentenciou, sorridente.
- E então o que é que se passa? - Tinha a garganta seca, o coração a galopar e as mãos transpiradas pela tensão.
- Absolutamente nada. É uma mulher saudável e vai ser uma mãe saudável - concluiu serenamente.
- vou ser... o quê? - perguntou, desorientada.
- Está grávida, Giulia. Não sabia?
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Marta estava instalada na grande concha dourada onde a água perfumada com a essência Edwardian Bouquet borbulhava agitada pelos jactos da hidromassagem. Ergueu os olhos e através da grande placa de vidro que servia de tecto a toda a casa de banho observou as estrelas.
Sorriu à majestade infinita da morte em que pensava cada vez com mais frequência. O que haveria do outro lado? Desejou morrer, apesar de nunca ter feito nada para realizar tal projecto.
Tinha quarenta e sete anos e inumeráveis naufrágios em cima dos ombros. Não conhecia as certezas de uma maturidade serena ao abrigo das agressões do mundo frívolo e vazio no qual sempre vivera.
O luxo da casa de banho tinha sido exigido pelo dono da casa, o cirurgião plástico James Kendall. O projecto de todo aquele faraónico aposento fora confiado a um grande arquitecto francês, que assinou também todos os móveis da villa de Antibes.
Os mármores azuis incrustados de lápis-lazúli e turquesas aveludadas do pavimento, os frescos de paisagens setecentistas nas paredes e as torneiras de ouro em forma de dragões alados já não a encantavam. A riqueza, a profusão do luxo, após o espanto do primeiro momento, há muito que só lhe provocavam enfado. Frívola, mas não estúpida, naquela idade começava a sentir a falta de alguma emoção autêntica.
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Esticou um braço e serviu-se de um pouco de um precioso champanhe cuja garrafa estava pousada na borda da banheira. Bebeu um gole a que se seguiu uma careta de repulsa. O rei do champanhe tinha perdido o gás. Estava quase morno e tinha um sabor nojento. Antes assim. Havia já algum tempo que o álcool lhe envenenava o fígado para além do que é aceitável.
Emergiu da enorme concha como uma Vénus triste e desiludida. Parecia-se com aquele gole de champanhe de excelente marca que já tinha perdido o seu brio e o seu sabor.
Vestiu um roupão branco e sentou-se num cadeirão diante de um grande toucador oval. Observou, absorta, a imagem reflectida de uma mulher que assiste ao seu próprio ocaso.
O pai, Attilio Montini, em tempos um ilustre barão da medicina, retirara-se para o campo depois de a filha ter ido viver para o estrangeiro com James Kendall.
Ermes Corsini, o ex-marido, nunca mais lhe dedicara um pensamento sequer. A forma como se tinham separado, por outro lado, não permitia nenhum remendo. A filha, Tea, ignorava-a. Quanto a James Kendall, o cirurgião plástico com quem vivia há meses, revelara-se o indivíduo mais entediante que alguma vez conhecera. Os milhões que acumulava no exercício de excepcional qualidade da sua profissão resgatavam-no, porém, dessa mediocridade.
Naquela noite, Marta sentia-se irresistivelmente atraída pelo tecto de estrelas na magia do luar. Pensou que James, àquela hora, regressado de Paris, estava à espera dela a bordo do Nautilus, um fantástico barco ancorado ao largo de Cap Ferrat, e que provavelmente se questionava sobre onde ela estaria naquele momento. No da seguinte iam partir para um cruzeiro no Mediterrâneo. Faltava pouco para a meia-noite. Quando se encontrassem, dir-lhe-ia que tinha estado em Monte Cario, a jogar no Casino. Ele ia acreditar. Acreditava sempre nela. A sua fortuna pessoal dava-lhe uma sensação de omnipotência que excluía a possibilidade de ter rivais, mesmo no amor.
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O telefone em forma de concha estava ali, diante dela. Podia ligar, acautelando-se de uma intrusão improvável mas possível. Após uma rápida reflexão, Marta decidiu que não tinha nenhuma vontade de acrescentar mais um anel à cadeia de mentiras que já lhe sufocava a vida.
Levantou-se com agilidade, libertou-se do roupão e, triunfalmente nua, avançou com um passo decidido em direcção ao quarto.
Franco Vassalli, o companheiro ocasional daquela noite, nem sequer levantou os olhos do livro que estava a ler.
Marta considerava que podia confiar na sua graça e na sua beleza, que lhe custavam horas de massagem e uma ginástica massacrante. Pôs-se muito direita à frente dele, aos pés da cama, desafiando-o a ignorá-la. Percebeu imediatamente que era uma batalha perdida. Obviamente, o fascínio do livro era largamente superior ao do seu corpo que, a um olhar atento, ia apresentando os sinais de um lento mas irrefreável declínio.
- Então? - perguntou Marta, com um tom impaciente. Franco Vassali dirigiu-lhe um olhar ressentido. - Conhecemo-
-nos? - brincou, esperando ganhar algum tempo.
Marta corou de cólera. - Grande estúpido - provocou. - Estivemos a fornicar até há meia hora e agora perguntas-me se nos conhecemos? Mas quem é que tu pensas que és? - gritou, ao mesmo tempo que puxava os lençóis e os arrancava da cama.
- Tudo bem - rendeu-se, largando com algum esforço o livro e erguendo os braços em sinal de rendição. - Tudo bem, condessa. O seu encantador discurso convenceu-me.
Marta aceitou aquela picadela de ironia. A perfeição do corpo daquele homem jovem fascinava-a.
- Tudo bem - repetiu Franco. - Desculpa - justificou-se. - A questão é que encontrei uma coisa diferente e melhor de ler do que os orçamentos das empresas. É uma leitura apaixonante acrescentou, ao mesmo tempo que apanhava o livro que tinha caído ao tapete.
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Marta estava pronta para recolher os espinhos. Depois dirigiu o olhar ao livro que Franco Vassalli tinha nas mãos. A sua vista já não tinha a acuidade e a elasticidade de outros tempos, e precisou de alguns segundos para focar a capa. - Como o vento - leu devagar -, de Giulia de Blasco - soletrou.
A sua fúria explodiu como um temporal de Verão. Arrancou o livro das mãos de Franco e começou a rasgá-lo, página após página. - Esta escritora não passa de uma puta - disse, encarniçando-se cada vez mais sobre aquilo que restava do livro. - E tu és o digníssimo leitor de uma grande puta - acusou-o. - Conheço muito bem esta mulher. O que é que tu pensas? - continuou, ao mesmo tempo que a sua fúria aumentava, alimentada pela necessidade desesperada de identificar com alguém e com alguma coisa a causa daqueles quase cinquenta anos falhados que lhe caíam em cima.
- É uma desgraçada - continuou -, levou-me marido, honra e respeitabilidade. - Gritava e sofria, com o rosto inundado de lágrimas e a voz quebrada pelos soluços.
- Vê lá se te acalmas, pequena - sugeriu Franco, desconcertado com aquela cena. Pegou no lençol de seda e tentou tapá-la para lhe restituir um ar de dignidade. - Coragem. Tudo passa. Tentou consolá-la, apertando-a contra si. Mas apercebeu-se de que na origem daquele ataque de fúria devia haver um grande drama que não o deixava indiferente.
Marta levantou-se de repente e atirou aquilo que restava do livro contra uma preciosa peça chinesa que rolou e se estilhaçou no chão.
- Fora da minha casa! - exclamou, recuperando o controlo.
- Sinto muito - replicou, enquanto se vestia. - Não fazia ideia de que tinha destapado um ninho de vespas.
- Mas quando é que um estafermo de um homem há-de fazer uma ideia dos problemas de uma mulher? Vocês são todos iguais.
- Estava mais calma e tinha-se sentado numa chaise longue, aos pés da cama, tapada com o lençol.
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Franco, já completamente vestido, observava-a com uma seriedade afectuosa.
- Posso fazer alguma coisa por ti? - perguntou-lhe. Tinha ficado impressionado com as invectivas de Marta, que abriam uma fenda imprevista na vida de Giulia de Blasco. Acabava de a conhecer, e já se revelava tão perturbadora.
- Não me deixes só - suplicou Marta. Parecia outra mulher. Perdido o verniz cintilante do encontro recente num jantar mundano, desvanecido o chamamento erótico que o atraíra àquela casa principesca, dissipada a fúria vulgar mas convincente com que o agredira enquanto segurava nas mãos o romance de Giulia, tinha agora à frente uma mulher despedaçada, desesperadamente só.
- Atendendo à hora, é melhor eu ir andando - observou Franco. - Gostaria de evitar um encontro com o teu marido.
- Não é meu marido - esclareceu ela. - Não somos casados. Ainda não. E ele não vem aqui - precisou. - Não gosta desta casa. Primeiro quis tê-la. Depois abandonou-a. E eu não posso deixar de lhe dar razão. É um horror, um caríssimo e vulgaríssimo horror.
- Tinha-se levantado da chaise longue e, apertando o lençol em volta do corpo, com o passo altivo de uma actriz dramática, dirigiu-se, seguida por Franco, à escadaria que levava ao rés-do-chão da villa.
- O que é que a Giulia de Blasco tem a ver contigo? - arriscou Franco.
- Mas tu em que mundo vives? - perguntou Marta, espantada.
- No Inverno passado todos os jornais falaram dela e do meu ex-marido.
Marta entrou numa sala de estar com amplos divãs estofados a seda, paredes forradas de damascos antigos, mesinhas de estilo mourisco e chão de tijoleira branca com incrustações de madrepérola. Aproximou-se da mesa das bebidas. Pegou numa garrafa de whisky ao acaso e deitou num copo uma robusta dose daquele líquido cor de âmbar. Bebeu um trago e depois estendeu o copo a Franco, que recusou a oferta.
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- É a amante dele - prosseguiu Marta.
- Queres dizer que te pôs fora de jogo? - indagou.
- Mas a sério que não lês os jornais? - retorquiu, escandalizada.
- Não as crónicas mundanas - esclareceu Franco.
- E as judiciais? - replicou. - Essas devias ler. Sabes o que é uma crónica negra? O meu marido tinha ido parar à cadeia. Uma montagem que não deu em nada - continuou Marta. - Uma acusação lançada ao ar por um cirurgião desconhecido que depois se suicidou. Misérias - declamou com ar teatral. - Só misérias.
Estava a manipular a verdade para sua exclusiva vantagem.
- Quanto à escritora, se me permites, é uma estúpida - repetiu, furiosa. - Há uns anos, eu levei para a cama o marido dela. Leo Rovelli. Conheces?
Franco anuiu. Conhecia-o e apreciava-o.
- Eu acho que se quis vingar apanhando o meu. Não há outra explicação. Porque, sabes, o Ermes Corsini é um chato. Devo dizer-te - contou, enquanto continuava a beber - que por experiência pessoal e directa descobri uma verdade. Os médicos são os tipos mais insuportáveis que uma mulher pode encontrar. O meu pai, antes de mais, depois o Ermes, agora o James. Meu Deus, que tédio. Julgam-se omnipotentes. E, pelo contrário, são apenas uns balões cheios de ar. - Estava embriagada e ria sem razão.
- Quero fazer um filme do romance da Giulia de Blasco anunciou Franco com aparente desinteresse.
- Ora viva! - Marta ergueu o copo e mimou um brinde. - A senhora vai desembarcar no mundo esplendoroso do tecnicolor.
- Só que ela não quer - objectou Franco.
- É uma cretina - constatou, considerando sacrossanto o seu ponto de vista; depois continuou, provocadora. - Porque é que não quer?
- Mandou-me simplesmente dizer pela advogada que a minha proposta não lhe interessa.
- Tenta levá-la pelo lado certo - disse, com um ar insinuante.
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- Já tentei - confessou ele.
- De que maneira? - perguntou Marta, curiosa.
- Beijei-a.
- Tu desiludes-me, rapaz - disse ela, cada vez mais bêbeda. Experimenta enterrar-lhe o teu punhal no coração. Quem sabe se não a consegues convencer.
- Obrigado pela sugestão - disse Franco. Inclinou-se para lhe beijar a mão antes de se ir embora.
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Georges Bertrand leu o fax que Fournier lhe tinha mandado de Georgetown e empalideceu de raiva. Esmagou o botão do intercomunicador e disse de uma forma quase inaudível: - Pierre, anda ter comigo.
Pierre Cortini era um dos mais hábeis especialistas em dinheiro. A sua origem corsa era evidente na expressão decidida e nos olhos vivos. Pierre era o seu assistente. Ocupava o gabinete ao lado do de Bertrand, no primeiro andar da sede parisiense do Banque du Commerce, no boulevard Saint-Germain.
- Quando é que chegou este fax? - sibilou com um tom que não prometia nada de bom, ao mesmo tempo que estendia ao interlocutor o despacho proveniente das longínquas ilhas Caimão.
- Há dois dias - respondeu Cortini. - Eu estava em Tóquio explicou, sabendo que tinha ali um álibi de ferro. O próprio Bertrand o tinha mandado ao Japão para aperfeiçoar uma aliança com um grupo nipónico em grande expansão.
Pierre observava-o por cima dos óculos de presbíope com ar de quem lhe perguntava a ele onde tinha estado durante aqueles dias.
Bertrand tinha o hábito, péssimo para um banqueiro, de se entregar à preguiça alguns dias por mês. A coisa singular era que toda a gente sabia, inclusivamente a mulher, que aquele tempo era
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passado nos braços de madame Leclerc, mulher de um alto funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Toda a gente sabia, inclusivamente o marido enganado, mas toda a gente fazia de conta que não sabia, porque cada um tinha boas razões para ignorar a história.
- Liga para o Fournier. E passa-mo - ordenou. - Quero ouvir da boca daquele desgraçado como é que as coisas se passaram. Falava baixo, aclarando a garganta entre cada duas ou três palavras; um tique que marcava os momentos de cólera mais negra.
Bastava ler a mensagem para perceber como é que as coisas se tinham passado. Para o banqueiro francês seis milhões de libras não eram o fim do mundo, mas ter sido levado era uma frustração insuportável. Pierre detestava Bertrand e o facto de alguém lhe ter dado a volta causava-lhe um prazer subtil. O homem que lhe tinha desferido aquele golpe traiçoeiro era o sócio italiano: Franco Vassalli.
Quando obteve ligação com Fournier, a sua voz tornou-se mais suave.
- Olá, Louis - disse. - Estou a ver que tiveste muito que fazer durante a minha ausência.
O homem de Georgetown percebeu o rancor do banqueiro e o motivo que o provocava.
- Em boa verdade - adiantou-se -, andei algum tempo à tua procura antes de aceitar o pedido do Franco. Depois pensei que, no meu lugar, tu terias feito a mesma coisa. Vocês são amigos continuou -, ele está a atravessar um momento trágico, com a mãe nas mãos dos raptores. Acho até que, ao fim e ao cabo, tu vais tirar grandes vantagens disso. Se o Vassalli não pagar dentro do prazo definido, tu tornas-te sócio maioritário na Inter-Channel. Que está a andar muito bem. - Parecia-lhe ter na mão óptimas cartas, mais do que justificações concretas.
- Então foi assim que pensaste - disse Bertrand. - Suponho que tenhas pensado sobre isso durante muito tempo - troçou.
- Não tanto tempo quanto gostaria - replicou -, mas certamente o tempo suficiente para perceber a importância do negócio.
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- Acho que tu cabes naquela categoria de pessoas que fariam muito bem se não pensassem - provocou.
Louis, naquele momento, começou a temer ter entrado num terrível ninho de vespas. - Não estou a perceber - reagiu, debilmente.
- Cometeste um erro imperdoável - acrescentou com uma ternura quase paterna. - Pensaste pela tua cabeça e erraste. Não se empresta dinheiro sobre palavras. As estatísticas demonstram que a maior parte das vezes não é recuperado.
- Parecia-me que estava a agir pelo melhor - rebateu. - Tu e o Franco são amigos - afirmou mais uma vez, mas sem grande convicção, ao mesmo tempo que um arrepio gelado lhe atravessava a espinha.
- Estás a confundir a amizade com a cumplicidade. Meu caro Louis, eu não tenho amigos. Nem tu os tens. Tanto é verdade que te convido a retirar os teus cacos dessa maldita secretária. Estás despedido!
Louis sentiu-se invadido por uma hilaridade irresistível.
- Nem vais acreditar se eu te disser que também já tinha pensado abandonar este buraco fétido - replicou. - Só não tinha pensado na maneira de o fazer. Ofereceste-ma tu. Obrigado.
- Vai-te embora! - gritou inutilmente o banqueiro, porque o outro já tinha interrompido a comunicação.
Bertrand encaixou o sentido de oportunidade do ex-colaborador e tentou descontrair, redescobrindo o seu grande gabinete de características oitocentistas protegido dos ruídos da avenida por vidros duplos Saint-Gobain. Aquele aposento era a sólida síntese do seu banco. Nas paredes havia retratos dos fundadores e dos seus sucessores: o avô, o pai e o tio. Também o seu retrato havia de entrar naquela galeria, quando o filho, Jean, que estava a aprender a profissão num banco de Wall Street, em Nova Iorque, ocupasse o seu lugar.
Bertrand extraiu do bolso interior do casaco uma pequena agenda de pele azul. Folheou-a e encontrou o número de telefone
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que procurava. À luz dos factos recentes, julgava saber para que tinha servido aquele dinheiro.
Marcou o indicativo de Londres e a seguir um número da City.
- Querido amigo, fala Georges. Como estás? - começou, ostentando unmacordialidade muito parisiense. - Não, não estou em Londres, estou em Paris. - A sua voz mudou de registo. - Preciso de uma informação - continuou, pronunciando claramente as palavras essenciais. - Quero um controlo dos movimentos bancários de Alan Gray, o editor. - Escutou durante alguns instantes a voz do outro lado da linha. - Chegam-me os dos últimos quatro dias. Se encontrares um crédito de seis milhões de libras, tenta descobrir-lhe a proveniência. É tudo. Achas que te posso ligar daqui a uma hora?
Desligou e sentiu o clic do telefone de Pierre que, no gabinete ao lado, pousava por sua vez o auscultador.
Era normal que Pierre ouvisse os seus telefonemas. Também isso fazia parte da estratégia dos negócios. Mas desta vez a coisa era reservada e pessoal, e como tal devia ficar. O erro tinha sido seu, porque não tinha usado o telefone especial, sem extensões. A cólera, má conselheira, levara-o a cometer uma imprudência imperdoável.
Bertrand não confiava em ninguém. Nem no seu assistente. Nem em madame Leclerc. Naqueles dias em que tinham estado juntos mostrara-se mais curiosa do que o habitual. Georges sabia que se servia dele, como ele dela, para obter informações sobre o mundo económico, financeiro e político. Primícias que ela, o marido e o amante sabiam fazer frutificar maravilhosamente. Aquela história de amor era uma cobertura agradável para um acordo tácito a três. Da última vez que se tinham encontrado, a bela Huguette tivera uma insólita queda de estilo.
- Correu bem a reunião de Milão? - perguntou-lhe à queima-roupa depois de ter feito amor, enquanto brincava com um colar de pérolas, provocando o banqueiro.
- Em que sentido? - hesitou, ao mesmo tempo que se tapava com o lençol e interrompia a brincadeira da amante, que o deixava embaraçado. Vestiu o roupão e sentiu-se melhor.
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- No único sentido possível - prosseguiu a mulher. - A batalha para o controlo da Inter-Channel, ganhaste-a tu ou o Vassalli?
- Ganhou ele.
- É um duro - sublinhou ela com uma admiração mal dissimulada.
- Mas há-de encontrar um ainda mais duro que o há-de meter na ordem.
- Por enquanto, ainda não encontrou - replicou Huguette, a sorrir com intenções provocatórias.
- Não. Só encontrou aquele desgraçado do Gray, que se deixou encantar e se pôs do lado dele.
- Que ainda é quem manda.
- com oito quotas a mais em relação ao que tinha antes admitiu.
- Mas se ele não tem uma lira - comentou a mulher, espantada.
- Há-de encontrar o dinheiro em algum sítio .
- Então estás out, meu pobre Georges - concluiu, com um tom falsamente entristecido, apesar de o banqueiro ter captado no seu olhar um lampejo de satisfação pérfida.
De repente, Bertrand teve a certeza de que aos Leclerc não desagradava a vitória de Vassalli. O que lhe estariam a esconder? Havia de descobrir, e então o funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros ia ter algum contratempo desagradável.
Tentava reconstituir o passado recente quando o toque do telefone o afastou dos seus pensamentos.
- Estou a ouvir - disse, ao reconhecer a voz do interlocutor londrino.
- Aquele crédito existe. Vem de Milão, via Genebra. O emissor sobre Genebra é Zeta Rosso - disse o outro.
Foi um murro no estômago para o banqueiro, que conseguiu, no entanto, dominar-se. Zeta Rosso era o nome de código do seu banco em Georgetown.
- Obrigado, amigo - respondeu, depois de ter aclarado a voz.
- Receberá as suas flores no endereço habitual.
As flores eram libras esterlinas, obviamente.
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Agora sabia-o, com toda a certeza. Franco Vassalli tinha-lhe dado a volta. Comprara as acções de Gray com o seu dinheiro: os seis milhões de libras que aquele imbecil do Fournier lhe tinha mandado para o resgate da mãe. As acções prometidas verbalmente nunca mais seriam suas. O sangue afluiu-lhe às têmporas e o coração intensificou o ritmo. Um exame médico teria assinalado um perigoso ataque de hipertensão.
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- Isabella, preciso de me encontrar contigo - disse Giulia à irmã, para quem tinha ligado.
- Oh, meu Deus, o que aconteceu?
- Tenho de falar contigo - rematou Giulia.
- Pois com certeza, minha querida. Estou a perceber.
Não estava a perceber rigorosamente nada, mas era uma característica sua ostentar argúcia e disponibilidade formais. À medida que os anos passavam, estava a ficar cada vez mais insuportável. No entanto, para Giulia continuava a ser uma parte importante da sua vida. E, contra toda a lógica, quanto mais o tempo passava, tornando-a pior, mais Giulia a amava.
- vou a tua casa? - propôs Giulia.
- Já, já? - perguntou, hesitante -, porque, sabes, tenho a casa cheia com os miúdos e os amigos deles. O Alberigo deve estar a chegar para o almoço e...
- Tudo bem, Isabella, faz de conta que eu não disse nada resignou-se.
Mas o tom de Giulia foi tal que a irmã sugeriu: - Sabes o que vou fazer? vou eu ter contigo.
- E os miúdos? E os amigos dos miúdos? E o Alberigo? - enumerou Giulia.
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- Cá se arranjam. Aliás, os miúdos já são muito bem capazes de se amanhar, como tu dizes. - Riu com gosto. - Arranjas sempre umas expressões engraçadas. Vê-se logo que és uma escritora. És um caleidoscópio de comentários. Inesgotável.
- Como tu tens razão, querida Isabella - retorquiu Giulia, irónica, com a certeza de que ia ser tomada à letra. - Então fico à tua espera. - Desligou a chamada para evitar posteriores e inúteis dispêndios de palavras. Deixou-se cair contra as costas da cadeira, diante da mesa de trabalho, e soltou um longo e profundo suspiro.
A notícia que o Dr. Pieroni lhe comunicara tinha sido como um raio num céu sereno. Ela ainda não se tinha refeito e precisava de conversar com Isabella ainda que, bem vistas as coisas, essa fosse a pior das decisões. No entanto, apesar de não serem filhas do mesmo pai, coisa que Isabella não sabia, tinham crescido juntas e conheciam-se profundamente.
Isabella chegou pontualmente atrasada. Elegante como se fosse participar num almoço de gala, carregada de jóias, com um ramo de rosas na mão, entrou de rompante no escritório da irmã deixando atrás de si um rasto de Opium.
- Isabella, és sempre tão inutilmente formal - censurou Giulia, ao mesmo tempo que abraçava a irmã e aquele ramo de flores hollywoodesco.
- Mas o que é que isso tem, tontinha? É só para te transmitir todo o meu afecto - replicou, enquanto se deixava cair alegremente no sofá em frente à secretária de Giulia. - E agora conta-me tudo, tintim por tintim.
- Estou grávida - confessou Giulia num sopro.
Isabella, que velejava em direcção aos quarenta e seis anos e começava a sentir os primeiros sintomas da menopausa, ao ouvir as palavras de Giulia levou instintivamente a mão ao ventre.
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- Ouviste o que eu disse? - perguntou Giulia, instalando-se no sofá ao lado dela.
- Ouvi, e de que maneira. Tens quarenta e dois anos, um filho de quinze. Tiveste um... como é que se chama, no seio. E estás à espera de uma criança. Certo?
- Certo, mas aquele "como é que se chama no seio" já não tenho - precisou Giulia, com decisão.
- Claro, claro - replicou Isabella. - Mas tiveste, e não é preciso ser médico para saber de todas aquelas alterações hormonais com que se depara uma mulher grávida. O que diz o Ermes?
- Ainda não sabe. Está em Roma. Só volta amanhã. Pedi ao Dr. Pieroni para não lhe falar nisso.
- Guardaste o grande anúncio para ti - sorriu. - Sempre o papel de protagonista para a minha irmãzinha. E o que é que o Pieroni vai dizer ao Ermes?
- Que tive uma banal indigestão. Mas isso é o menos. A questão é que não estou contente.
- Os teus receios são mais do que justificados - comentou Isabella, num tom professoral. - Aos quarenta e dois anos, uma gravidez não é fácil de gerir. Mas tu vais conseguir - consolou-a. Depois mudou de rumo. - Felizmente existe o Ermes. Sabes o que te digo, Giulia? Acho que é magnífico rejuvenescer assim na nossa idade. Já estamos quase prontas para ser avós. Mas tu... Não mudas nunca, Giulia. Continuas a ser a mulher das grandes cenas. Mas sabes que tenho alguma inveja de ti? Quiseste o Ermes e tiveste-o. E agora preparas-te para lhe dar o filho que ambos sempre desejaram. Para não falar do impacto publicitário que uma notícia do género vai ter entre os teus leitores. - Entusiasmou-se. - Giulia de Blasco, que acaba de dar à luz um livro, em breve dará à luz um filho. Oh, querida, querida Giulia. - Levantou-se e inclinou-se sobre ela para a abraçar, de lágrimas nos olhos.
- Trava, Isabella, - avisou Giulia -, ou ainda vamos acabar fora da estrada.
Pelo contrário, uma torrente de palavras fluiu da boca de Isabella. - Vai ser preciso dar a notícia ao Benny. O nosso irmão vai
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ficar contente. E vamos ter de fazer uma festa. Uma grande festa. Eu organizo. Garanto-te um sucesso clamoroso. Convidamos também o Leo? O que é que dizes? E temos de arranjar maneira de dizer também ao Giorgio. Quem sabe como irá receber a notícia do irmãozinho. É claro que a princípio vai ficar um bocadinho ciumento. São todos assim, os primogénitos. Tens de ir com muito cuidado. Mas o Giorgio já não é nenhuma criança. Se calhar vai nascer nele uma espécie de sentimento paternal - continuou Isabella, em roda livre. - Mas um bocadinho de cautela não faz mal nenhum. com o Giorgio, quero eu dizer. Olha, do enxoval quem trata é a tia. É verdade, quero mesmo divertir-me a vestir este boneco. Camisinhas bordadas à mão. A primeira de seda, obviamente, porque, como bem sabes, dá sorte. E o berço? - continuou, emocionada. - Imagina que ainda no outro dia vi um no Martinelli: uma nuvem. Sabes o que te digo? vou já comprá-lo. Oh, Giulia, Giulia, abençoadíssima Giulia. - Voltou a sentar-se no sofá. Agitava os braços com um tilintar de berloques valiosos.
- Já chega, Isabella - rematou Giulia com decisão. - Não foi para ouvir este monte de lugares-comuns que te procurei. Foi porque precisava de ti para esclarecer as minhas dúvidas.
- Tudo bem. Eu entendo as tuas razões. Mas acalma-te, minha jóia, e vamos falar. Ou seja, fala tu, uma vez que me procuraste para isso - disse Isabella, mais calma.
- Eu não disse nada ao Ermes e nem sequer lhe vou dizer quando ele voltar. E se tu falares sobre isto com quem quer que seja, eu esgano-te.
Isabella levou instintivamente uma mão em defesa ao pescoço.
Giulia parecia decidida a levar a cabo o seu propósito.
- Mas porquê? - perguntou timidamente.
- Porque não tenho a certeza de querer este filho - respondeu Giulia, perturbada.
- Eu percebo-te. São tantos os problemas, e tão grandes... Preparava-se para recomeçar, mas Giulia não lho permitiu.
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- Só há um. O problema sou eu. Não estou segura de mim. Daquilo que sou e que quero. Já não sei se sou uma mulher ou um animal de laboratório. Não passa um mês sem consultas, análises, radiografias. Exames, exames e mais exames. Já não sei se o Ermes me ama como mulher ou como objecto de estudo. - Estava a ser impiedosa e sabia sê-lo, mas não fazia nada para mitigar as acusações contra tudo e todos, sobretudo contra si mesma.
- Já não sei o que são as minhas hormonas. Se devo amá-las porque me fazem sentir mulher ou odiá-las porque fizeram nascer dentro de mim um cancro. Não sei como conciliar os meus sentimentos de mãe em relação ao Giorgio com os de amante em relação ao Ermes. O meu filho anda em crise e está a dar-me um monte de problemas. Não sei por onde começar para os resolver. Tenho muita vontade de viver e tenho medo de morrer. Toda a gente vê em mim uma mulher de sucesso, mas eu não sei o que é o sucesso. Não o vejo. Não me apercebo dele. Mas toco com uma mão este corpo que desaba e o emaranhado de sentimentos contraditórios em que me debato. Já não suporto o peso da minha infelicidade.
Segurou o rosto entre as mãos e desatou a soluçar.
Giorgio apareceu naquele momento à porta do escritório. Ainda trazia às costas a mochila dos livros. Acabava de chegar da escola.
- Pode saber-se o que se passa agora? - perguntou, ao mesmo tempo que observava a mãe em lágrimas e a tia comovida.
- Nada, querido - garantiu Isabella, enquanto ia ao encontro dele. - A tua mãe precisa de ficar aqui sossegada. Anda. Vamos para outro lado.
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Franco Vassalli acordou com a ténue claridade que entrava pelas persianas do quarto. Lupo, deitado ao lado da cama, apercebeu-se do despertar do dono e levantou-se, encostando o nariz húmido ao rosto de Franco.
- Bom-dia, amigo - saudou-o, fazendo-lhe uma festa.
O relógio digital pousado na mesa marcava as seis e meia da manhã. Franco levantou-se e atravessou o quarto, descalço. Abriu as janelas e a luz cinzenta do novo dia invadiu o aposento, revelando as paredes forradas de algodão com um padrão príncipe-de-Gales, a alcatifa de lã com o mesmo padrão, a cama de casal com uns lençóis imaculados e o cobertor de caxemira vermelha escura. Em volta, poucos móveis essenciais: um sofá, uma mesa Directório coberta de livros e jornais, uma cadeira no mesmo estilo, um televisor e, por cima de uma arca do século XIX, um quadro de Boldini que representava uma rua de Paris.
Tocou a campainha para chamar o empregado. Depois foi à casa de banho, enquanto o empregado lhe preparava a roupa que ia vestir.
Aquela residência da via Borgonuovo era um dos muitos apartamentos da imobiliária Zeta cuja renda a Provest pagava. A imobiliária pertencia a Vassalli. Uma manobra para diminuir os impostos
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e defraudar o fisco na mais absoluta legalidade, como num jogo das caixas chinesas.
O pequeno-almoço foi servido na sala de jantar: sumo de laranja, iogurte e uma grande chávena de café americano. Havia também um razoável maço de jornais diários, que Franco folheou com uma distracção apenas aparente, registando as notícias que mais lhe interessavam.
Ligou para a Inter-Channel a pedir os dados sobre a audiência das transmissões. Estavam em ascensão contínua, sobretudo nos países de língua alemã e inglesa.
Falou com Madi para que convocasse uma reunião com os responsáveis pelos programas e pela publicidade antes das onze da manhã, nos escritórios da Provest.
Saiu com o cão e caminhou pela via Montenapoleone. Eram oito horas. As grades das lojas ainda estavam descidas, mas aquela artéria central começava já a animar-se. Nuvens pesadas de chuva cobriam o céu.
Nas imediações da via Baguttino, Lupo avançou à frente do dono pela via Bagutta e enfiou-se na porta do edifício adjacente ao restaurante homónimo.
O porteiro cumprimentou Franco Vassalli e abriu-lhe gentilmente a porta do elevador. No segundo andar, Franco e o cão entraram no vestíbulo de um apartamento.
- As meninas já estão prontas - disse a sorrir uma simpática empregada negra, vestida de preto e com um pequeno avental branco.
Logo a seguir, duas meninas com cerca de oito anos irromperam com vozes alegres, ao mesmo tempo que o pastor alemão as cumprimentava a ladrar, a abanar a cauda e a cheirá-las avidamente.
- Verónica, Violante - exclamou Franco, apertando-as contra si.
Estavam lindas, com os batinhas brancas e os cabelos apanhados em duas longas tranças.
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- As minhas gémeas adoráveis - disse Franco, com o rosto encostado aos delas. Era uma sensação tão agradável. A empregada regressou com dois blusões azuis e duas pastas.
- Depressa, meninas - pediu ela, enquanto as ajudava a vestir os blusões. - O que diz, senhor doutor, será melhor levarem também o guarda-chuva? - perguntou a seguir.
- Não, não, o guarda-chuva não - protestaram em uníssono as gémeas.
- Iam esquecer-se dele. Não, não chove. E depois é aqui a dois passos - decidiu Franco.
Do fundo do apartamento surgiu uma mulher. Era alta e magra, tinha os cabelos loiros e um rosto rosado de traços delicados. Vestia um pijama de seda azul e estava com um ar ensonado.
Estendeu a face a Franco, que lhe deu um beijo formal.
- Não façam zangar o pai na rua - preveniu as filhas. Depois observou o cão, que estava sentado a olhar para ela de um modo enigmático. - E tu não as lambas, como é teu hábito - censurou-o. Parecia um pacífico quadro de vida familiar, mas para chegar àquela atitude de serenidade tinham sido precisos anos de sofrimento.
- A tua mãe? - perguntou a Franco, quando este estava já à porta com as meninas.
- Estou a tratar do assunto - respondeu ele.
- Preocupado?
- Não - retorquiu. - Vai correr tudo da melhor maneira. Franco estava a entrar no elevador quando a mulher disse
ainda: - Ontem vieram cá dois polícias.
- O que é que eles queriam?
- Aquilo que querem todos os polícias. Saber. Franco anuiu e disse: - Até logo.
Percorreram a via Bagutta. As duas meninas corriam atrás do cão, que se divertia imenso com a brincadeira. Viraram na via SanfAndrea e chegaram à escola, na via delia Spiga, onde afluíam outras crianças acompanhadas pelas mães, pelas empregadas ou pelos motoristas.
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Franco deu um beijo às meninas e, depois de as ver entrar, voltou para trás. Na piazza San Babila, na esquina com o corso Venezia, entrou numa cabina telefónica. Fechou a porta e, naquele momento, o telefone de moedas começou a tocar. Ao terceiro toque Franco levantou o auscultador.
- Cá estou - disse. Ouviu com atenção e depois acrescentou: Pode ser quando vocês quiserem. - Continuou a ouvir e replicou:
- Digamos, sexta-feira. Foi sempre o meu dia de sorte. - Desligou e saiu. Dirigiu-se ao corso Vittorio Emanuele. Entrou numa livraria e comprou dez exemplares do romance de Giulia. Pediu, e conseguiu, que fossem entregues na morada da Provest dali a uma hora.
Atravessou a Galleria dei Toro e chegou novamente à via Montenapoleone. O estabelecimento de Buccellati estava a abrir naquele momento.
Parou a ver a montra, onde estavam expostas algumas peças de prata de autor. Entrou na loja.
- Queria ver aquela caneca de prata que está na montra disse ao empregado. - Aquela que tem uma grinalda de rosas em relevo.
O jovem pousou-a em cima da mesa para que o cliente pudesse admirá-la.
- É uma peça rara, francesa, assinada por Jean Baptiste de Lens, em 1732. O interior é em prata dourada - explicou o empregado, mostrando-lhe o requinte daquele trabalho.
- Queria que fosse cheia de rosas vermelhas e enviada à Sr.a Giulia de Blasco - disse, enquanto se preparava para lhe ditar o endereço.
- Deseja juntar alguma mensagem?
- Claro. - Escreveu de jacto num cartãozinho do joalheiro: "com profunda admiração. Vassalli."
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Quando entrou no escritório, Madi, diligente como sempre, estava à espera dele.
- Quero saber tudo sobre Giulia de Blasco, a escritora - disse, sentando-se à secretária. - Quem é, como vive e com quem. A história do cirurgião e tudo o resto.
Queria verificar as informações de Marta Montini. A secretária tomou rapidamente alguns apontamentos.
- De acordo, senhor doutor. Entretanto instalei os rapazes na sala de reuniões. Chegaram também dez exemplares do romance da Giulia de Blasco. Distribuí-os imediatamente. Fiz bem, não fiz?
Franco anuiu. - Telefone à advogada Elena Dionisi. Marque-me um encontro com ela.
Madi sabia que a Dr.a Dionisi já tinha respondido negativamente à proposta de Franco Vassalli de transpor o romance de Giulia para uma série televisiva. Mas também sabia que, no fim, era sempre ele que ganhava.
Franco entrou na sala de reuniões, onde os directores da estação o esperavam.
- Quero que leiam este romance - começou -, e que o achem lindíssimo. Porque é mesmo. Quero o melhor encenador, um músico que me componha uma banda sonora que faça esquecer a do Love Story e um produtor executivo como deve ser. Já para não falar do realizador. Quero fazer de Como o vento a primeira de várias séries televisivas para a Inter-Channel.
- Já temos os direitos? - perguntou o director de programas.
- Ainda não. A autora tem os seus caprichos, mas no fim vai acabar por mós vender. De qualquer maneira, vamos começar a trabalhar como se os direitos já fossem nossos.
- E onde vai transmitir esta série? Só temos dois canais: as brincadeiras para crianças e a música ligeira - perguntou um dos presentes.
- Estamos em vias de criar um terceiro: filmes, telenovelas e séries. vou agora explicar-vos o programa.
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Eram quase dez horas da noite quando Ermes chegou a casa de Giulia.
- Desculpa, querida. Tive uma tarde infernal no consultório. Já para não falar da manhã tremenda na clínica. Acabei de operar às quatro e por isso as consultas saltaram todas duas horas.
Giulia ajudou-o a despir o sobretudo.
- Imagina. Não há problema nenhum. - A sua voz continha a calma inquietante que precede a tempestade. - A massa que está no forno já está boa para deitar fora. O assado está frio e as batatas metem nojo. Sobra a fruta e o queijo. É um jantar muito frugal, mas sempre é um jantar.
Avançou à frente dele até à sala de jantar. - Eu, como é evidente, a esta hora já não como - disse. - Para não falar do sono. Quando me enervo, a noite para mim está perdida - continuou, tornando-se agressiva.
Giulia tinha dificuldade em dormir desde que tinha sido operada, e se pudesse descarregar em alguém a responsabilidade da sua insónia parecia-lhe sofrer menos.
- Giulia, mas o que é que tu tens? Pareces-me irritada. - Foi até junto dela e abraçou-a.
Ela libertou-se bruscamente.
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- Diz antes que estou furibunda - replicou, ao mesmo tempo que lhe virava as costas e se refugiava na sua poltrona, na sala de estar, a atormentar um comprido colar de pérolas que trazia ao pescoço.
- Querida, desculpa - interveio Ermes, e foi ter com ela. Estou mortificado. Mas não podia fazer outra coisa. Tenho doentes com problemas graves. Precisava de tratar deles. Percebes, não percebes?
- Toda a gente tem os seus problemas - continuou Giulia, decidida a não lhe dar tréguas. - O meu filho tem os seus problemas, o pai do meu filho tem os seus problemas. Tu tens os teus problemas. Pois bem, também eu tenho os meus problemas. Tantos, e tão grandes. A verdade é que já não me apetece ficar a ouvir os dos outros. - A sua voz tinha assumido um tom dramático. Depois, de repente, acalmou. Tinha visto muito cansaço nos olhos de Ermes. Sabia que se dedicava totalmente aos doentes, uma característica terapêutica que às vezes assumia um papel decisivo.
- Oh, Ermes, desculpa. Eu... não sei o que me deu - disse, estendendo-lhe os braços.
Ermes abraçou-a com força.
- Proponho uma solução radical - sussurrou. - Vamos sair para jantar. Eu e tu. Um delicioso jantar à luz de velas, naquele restaurante de que tu gostas tanto.
- Não podemos - rebateu. - Quer dizer, eu não posso sair.
- E porquê? - perguntou Ermes, espantado. - Achas que estou demasiado cansado para fazer uma coisa agradável com a minha mulher?
- O Giorgio saiu - explicou Giulia. - Como vês, são dez horas e ainda não chegou. - Havia uma vibração angustiada na sua voz que o deixou preocupado.
- Disse-te onde ia?
- Nunca me diz onde vai. A única coisa que sabe dizer-me é: "Mãe, vou sair". com quem se dá, com quem sai, com quem anda? Não sei nada, Ermes - confessou, desconsolada.
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- Não o deixes sair - sugeriu simplesmente Ermes. - Só tem quinze anos. Não pode ir e vir a seu bel-prazer. Tu devias... - parou e sorriu amargamente. - Vê lá tu de que púlpito vem o sermão reconheceu. - Logo eu, que nem sequer sei por onde se começa a fazer de pai, com pretensões de te ensinar a ti.
- É tudo muito difícil. - Giulia procurou um sorriso que não conseguiu encontrar - Quando era pequena, os meus pais metiam-me na ordem, a mim e aos meus irmãos. Se fosse preciso, até com uma bofetada bem assente. E nós gostávamos deles. - Deu um longo suspiro, que escondia um soluço.
- O teu filho e a minha filha nasceram e cresceram em famílias complicadas. Quando penso na minha família, também não é que as coisas corressem melhor - comentou o médico.
Ermes recordou a velha e pobre casa da via Beato Angélico, cujas paredes transpiravam miséria. Um pai que entrava e saía da cadeia por pequenos furtos patéticos, uma mãe que trabalhava fora e procurava no vinho uma ilusão de serenidade. Dava à luz um filho atrás do outro, todos concebidos com homens diferentes, e estafava-se para tentar sentá-los à mesa duas vezes por dia.
No entanto, ele e os irmãos amavam aqueles pobres pais.
- Sim, os tempos mudaram. Talvez nós estivéssemos demasiado empenhados a tentar resgatar-nos da miséria. Mas estes, como é que se resgatam do bem-estar?
Giulia recordou com ternura o pai, o professor Vittorio de Blasco, que se matava a dar explicações para comprar aos filhos sapatos ou blusões.
Ermes e Giulia, presos nas recordações, tinham esquecido o jantar e a hora tardia. Giulia, porém, não podia esquecer a criatura que estava a crescer dentro dela. Esteve quase a contar-lhe tudo: Ermes, escuta - hesitou.
- Diz, querida - pediu, ao mesmo tempo que lhe cobria o rosto com muitos beijos.
Ela apercebeu-se de que ainda não estava preparada para abordar o assunto com ele. Mudou de tom. - O que é que eu faço com o Giorgio, que ainda não chegou?
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- Esperas. Esperamos juntos - propôs Ermes. Ouviram rodar a chave na fechadura da porta de entrada.
- É o Giorgio - disse Giulia, com uma sensação de alívio.
- Estás a ver como chegou?
Giorgio apareceu à porta da sala. Tinha o rosto pálido e ensonado.
- Olá aos dois - cumprimentou, com uma ponta de arrogância. - Não há nada que se coma?
- Posso saber onde estiveste até agora? - perguntou Giulia, em tom de censura.
- Na praceta. Aqui atrás. Estivemos a jogar à bola. Qual é o mal? Então, posso comer alguma coisa? - Giulia experimentou uma sensação de libertação.
- Há uma carne assada fria na mesa - sugeriu Giulia. Giorgio dirigiu-se à cozinha. Mas depois de ter dado alguns
passos parou, atraído por alguma coisa de insólito.
- O que é aquilo? - perguntou, indicando uma grande caneca de prata cheia de rosas vermelhas.
- É uma obra de arte - disse Ermes, que não se tinha apercebido da novidade antes de Giorgio ter reparado nela. - De onde veio?
- É um presente do meu editor - mentiu Giulia.
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- Então - começou Elena -, o que é que queres fazer com aquele Vassalli?
- Quinze, dezasseis, dezassete, dezoito - contou Giulia, com o rosto corado de esforço. Inspirou e expirou meia dúzia de vezes, depois levantou as pernas e pousou os pés numa barra.
Estavam no ginásio, uma ao lado da outra, sentadas numa máquina usada para reforçar os músculos adutores. Giulia tinha voltado a frequentar o ginásio uns meses atrás, depois da longa interrupção devida à intervenção ao seio, à radioterapia e às férias de Verão que tinha passado a rever o rascunho do novo romance, a escrever artigos para os jornais e a acompanhar Giorgio, que tinha reprovado a Latim e a Grego.
- Não consigo pôr-me em forma - queixou-se, ofegante, a apalpar os músculos internos das coxas com um ar pouco satisfeito.
- Giulia, queres responder à minha pergunta? - insistiu Elena.
- Não. Não me apetece. - Foi estender-se num banco e começou a exercitar os peitorais com levantamento de pesos.
Elena foi ter com ela, arrancou-lhe os pesos das mãos e disse-lhe: - Queres ouvir, ou tenho de me pôr a gritar? - Tinha levantado um pouco a voz. Alguns dos presentes pararam de fazer exercício para observar com curiosidade as duas mulheres.
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- Tudo bem, Elena. Depois falamos. De acordo? Agora posso fazer a minha série de peitorais em paz? - sibilou Giulia.
Levantava pesos ligeiros, de um quilo e meio. Ermes tinha-lhe recomendado aquilo para não forçar demasiado a musculatura. Os seus peitorais deviam estar tranquilos, pelo menos durante mais alguns meses.
Voltou-lhe aquela náusea repentina como de emboscada e apanhou-lhe o estômago. Levantou-se e foi a correr à casa de banho, onde se libertou do pequeno-almoço. Estava no início do segundo mês de gestação, segundo a informação do Dr. Pieroni. Poderia continuar a fazer ginástica ou seria obrigada a meter-se na cama para levar a bom termo a gravidez, como acontecera com Giorgio? Seria este filho suficientemente forte para se agarrar ao seu útero sem cair? E será que ela ia continuar a querê-lo?
Entrou no balneário a apertar o rosto com uma toalha. Estava exausta.
Elena foi ter com ela, ansiosa. - O que foi? - perguntou, preocupada. - Passa-se alguma coisa?
- Só um pouco de cansaço - respondeu Giulia, sem querer dar muita importância. - E depois estou com alguns problemas.
- Diz-me um. Queres?
- Por exemplo, o Vassalli.
- Esse é um problema que eu resolvo - garantiu Elena. - Basta que me digas um sim ou um não.
Giulia despiu-se e entrou no duche. Elena foi atrás dela e pôs-se ao seu lado.
- Olha, podemos falar para outra vez? - pediu Giulia, para ganhar tempo. As chicotadas de água quente transmitiam-lhe uma sensação de bem-estar.
- Não, não podemos adiar mais. Ele foi ontem ao meu escritório depois de eu lhe ter respondido que não. Oferece-te um monte de dinheiro pelos direitos. Parece-me uma coisa de idiotas, perder uma oportunidade destas.
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- Eu não sei nada dele - replicou Giulia, preocupada. - Pode pegar no meu livro e virá-lo de pernas para o ar. Pode fazer uma porcaria. Naquele romance está o meu trabalho de dois anos.
Saíram do ginásio e entraram no café habitual. Diante de uma chávena de chá, Giulia e Elena acenderam um cigarro.
- Quando um escritor vende os direitos do seu romance para uma adaptação cinematográfica ou televisiva, se não ficar contente com o trabalho que fizerem tern o direito de mandar retirar o seu nome do genérico. Podem usar-se fórmulas como: adaptação livre de... etc. - continuou Elena. - Tu assinas livros, não filmes. Em qualquer caso, não creio que o Vassalli vá fazer uma porcaria. Vai investir milhões. Não é pessoa para deitar dinheiro fora.
- Como é que tu sabes? - perguntou Giulia.
- Obtive as minhas informações. Queres saber quem é? Digo-te já tudo. Trinta e seis anos. Pai taxista e alcoólico que vive não se sabe onde. Um irmão devasso que vive com o pai. A mãe, como tu também sabes, nas mãos dos raptores. Uma mulher lésbica; sentimentalmente, digamos assim, ligada à tua grande amiga Zaira Manodori, a estilista. Duas filhas gémeas com quem ele está assiduamente. Um pastor alemão que nunca o abandona. Muitas relações com mulheres, sempre mais velhas do que ele. Tem uma empresa financeira, a Provest, que opera sobretudo no sector imobiliário. Trabalha com vários bancos que, actualmente, suspenderam todos os contactos directos com ele, por ordem da magistratura, na sequência do sequestro da mãe. Acabou de adquirir a quota maioritária de um canal privado europeu que comprou por uma quantia irrisória e que se tornou, logo a seguir, muito importante. Está a diversificar os programas e vai produzir séries e filmes made in Italy. O teu romance representaria o seu início no sector a nível do mercado europeu. E talvez americano. Chega-te?
- Extraordinário - disse Giulia, espantada. - Como foi que conseguiste essas informações todas?
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- Tenho de zelar pelos teus interesses. Obter informações faz parte da minha profissão. Então - suspirou -, o Vassalli ainda é um problema?
- Mais do que nunca - respondeu Giulia. Bebeu um gole de chá.
- Mas porquê? - perguntou Elena, quase a perder a paciência.
- Porque lhe acho graça. Desde que o vi pela primeira vez, não faço outra coisa senão pensar nele. Como se não bastasse, sinto-me sexualmente atraída por ele. É assim que se diz?
Elena ficou a olhar para ela com um ar aflito.
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O agente Ruta mergulhou com voluptuosidade o brioche no cappuccino e levou-o à boca a pingar, enquanto o colega DAmico bebia um sumo de toranja com a compostura de umgentleman.
O café, às dez horas da manhã, retomava o seu aspecto habitual, após a avalanche quotidiana de operários e empregados que, nas horas de ponta, o tomavam literalmente de assalto.
Um jovem empregado varria o chão coberto de saquinhos de açúcar vazios, migalhas e pontas de cigarros. O proprietário, um sujeito de rosto feroz com uns vistosos bigodes negros, esfregava o aço do balcão, enquanto a mulher, uma loira dos seus trinta anos, pequena e delicada, de grandes olhos azul-celeste, arruinava as chávenas que retirava, quentes e reluzentes, da máquina de lavar.
Lá fora chovia. Uma chuva tépida, suja e pegajosa.
- Então, vamos lá? - disse DAmico ao companheiro.
Ruta pagou a despesa depois de ter engolido rapidamente o último pedaço de brioche. Os dois agentes entraram no carro. Ao volante, DAmico ligou os límpa-pára-brisas que, durante uns momentos, espalmaram contra o vidro uma espécie de lama logo diluída pelos finos e potentes jactos de água. Retomaram a patrulha.
- Porque é que estás tão calado esta manhã? - perguntou Ruta.
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- Estava a pensar no roubo da Inter-Channel. Há qualquer coisa nesta história que não me convence - disse DAmico.
- O sargento Hunter - replicou o colega, irónico, referindo-se ao polícia de uma série televisiva de sucesso - sente cheiro a esturro?
- Estou a falar a sério - replicou, irritado.
- E eu não? - retorquiu a rir, mas depois mudou de tom. O que é que não te convence?
- Que sentido faz roubar cenários que nunca mais vão poder ser utilizados nem vendidos? - questionou. - Que sentido faz os ladrões devolverem ao legítimo proprietário o camião que utilizaram?
- Se entrares em crise por cada roubo que acontece nesta cidade nojenta...
- Repara - continuou a sua reflexão -, na minha opinião, os ladrões actuaram segundo um esquema preciso. Não sei qual, mas deve haver um sentido nesta história aparentemente sem pés nem cabeça - insistiu DAmico.
- A tua mentalidade de contabilista não se coaduna com a imaginação dos delinquentes - objectou Ruta.
- com a matemática aprendes a raciocinar - respondeu, sem reagir à provocação. - E, mais cedo ou mais tarde, com o raciocínio, chegas à solução do problema. Tenta acompanhar-me - continuou. - Um tal Vassalli, há dois dias, colecciona duas desgraças: a primeira é ligeira, o roubo dos cenários. A segunda é grave, o rapto da mãe.
- Que está senil - sintetizou cruelmente Ruta.
- As investigações na villa do lago e o pessoal que foi interrogado confirmam que a senhora brinca com bonecas. Como uma criança - observou DAmico.
- Mas como é que tu sabes isso? - perguntou, curioso.
- Ontem li os relatórios - admitiu DAmico, sabendo que tinha realizado uma acção não completamente lícita.
- Boa! - comentou Ruta, irónico.
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- Portanto, os autores do roubo poderiam ser os próprios raptores. Para manter a velha sossegada criaram-lhe à volta uma espécie de Disneylândia para seu uso e consumo. Encontra os ladrões dos cenários e vais encontrar os raptores - concluiu o jovem polícia.
Um monumental veículo de limpeza urbana, do qual provinham os sons lúgubres de um mecanismo em rotação, impedia a circulação há dez minutos e DAmico começou a buzinar com impaciência, enquanto prosseguia o seu raciocínio. - O Vassalli não faz nada para facilitar a captura dos raptores - continuou. Tem os telefones sob escuta, mas foi apanhado a usar uma cabina pública na piazza Cordusio, e outra na piazza San Babila. Nessa, a chamada estava mesmo a chegar.
- com certeza não lhe identificaram a proveniência - observou Ruta.
- É isso que diz o relatório - confirmou.
- Eh, olha para aquele marroquino - interrompeu Ruta. - Está a vender qualquer coisa ao rapaz.
Num canto escondido da piazzetta di Greco desenrolava-se uma cena triste e habitual. DAmico travou de repente e saltou para fora do carro, seguido pelo colega. Seguraram o rapaz, mas não o norte-africano que, rapidíssimo, tinha escapado.
- Se calhar saltou para aquele furgão - admitiu Ruta, observando um veículo desconchavado que desaparecia numa curva.
- Já o perdemos - constatou amargamente. - Vamos ver agora este cavalheiro - acrescentou, dirigindo-se ao rapaz, que começou a tremer.
Era um estudante, um rosto limpo e ingénuo, de olhar aflito, com a mochila dos livros às costas. Olhava para eles desesperado, paralisado pelo medo.
- Vá, esvazia os bolsos - ordenou o polícia.
- Mostra lá o que tens aí escondido - reforçou o colega com cara de mau.
O rapaz não falava, petrificado de medo.
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- Não percebeste que tens de esvaziar os bolsos? - advertiu Ruta.
- Façam-no os senhores - propôs o rapaz, incapaz de se mover, paralisado como estava.
- Não nos queremos picar com as tuas seringas infectadas. O polícia percebeu que tinha exagerado. Tinha à sua frente um adolescente aterrorizado, mas que não tinha a expressão nem o comportamento do heroinómano. No entanto, como exige o regulamento, calçou umas luvas de borracha e com todas as cautelas esvaziou-lhe os bolsos do blusão, das calças e da mochila. Foi uma cascata de livros e de cadernos, canetas, bilhetinhos, o passe dos transportes, dois isqueiros, um maço de cigarros, a fotografia gasta de uma mulher, talvez a mãe, um cachimbo para fumar e um pedaço de haxixe.
- É um "fumador", o nosso jovem - comentou DAmico com ironia.
Do bolso interior do blusão saiu também o bilhete de identidade.
- Giorgio Rovelli - disse o agente em voz alta. - Nascido em Milão. Residente na via Tiepolo. O que é que fazemos? - perguntou, voltando-se para o colega.
- Levamo-lo para a esquadra e chamamos os pais. A esta hora, devem pensar que está na escola.
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O deputado Zani estava à espera dela no pequeno bar do Hotel Manzoni. Quando Giulia o viu, estava a consultar uns documentos. A mão com que segurava as folhas vibrava com uma leve tremura.
- Olá, Armando - cumprimentou-o com uma voz sorridente, ao mesmo tempo que lhe estendia a mão.
O deputado levantou-se com uma agilidade inesperada. Pegou na mão de Giulia e beijou-a. Depois abraçou-a afectuosamente.
- Senta-te. - Convidou-a a instalar-se no sofá ao lado do seu.
- O que é que tomas? - perguntou, indicando o seu copo de água mineral.
- Nada, obrigada. Diz-me mas é como estás - perguntou Giulia, atenciosa.
Zani tinha-lhe ligado havia uma hora a convidá-la para almoçar. - Quero falar contigo antes de regressar a Roma - disse-lhe então.
Agora estavam sentados um em frente ao outro. - Estou bem, obrigado. Marquei uma mesa no Don Lisander. Vamos lá?
- Pensei que querias falar comigo - disse Giulia.
- Depois - sorriu-lhe.
Caminharam de braço dado pela via Manzoni. Formavam um casal agradável. Ele, uma figura imponente vestida com uma
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elegância muito inglesa. Ela, uma senhora graciosa e jovem. Havia entre eles uma vaga semelhança. Algumas pessoas observaram-nos com interesse, como se tivessem reconhecido o político e a escritora de sucesso que apareciam com alguma frequência na televisão ou nos jornais.
- Quando regressas a Roma? - perguntou Giulia.
- Amanhã à noite - respondeu ele. - Antes disso tenho a sessão de abertura de um congresso de Medicina. Depois vou visitar umas instalações para depuração de água. Finalmente tenho um compromisso tão importante que me esqueci dele - tentou fazê-la rir com um suspiro de resignação. - A minha memória - queixou-se - está a abandonar-me. - Logo de seguida acrescentou: - Não vamos estar sozinhos a almoçar.
- É uma surpresa agradável? Um personagem famoso?
- Não, é apenas um honesto notário. Passou-se um longo instante de silêncio.
- Mas que história é esta? - perguntou Giulia, desconfiada.
- Sabes, minha querida - começou a explicar-lhe tranquilamente -, acho que os testamentos são uma das práticas mais tristes. Detesto as heranças. Mas mais dia, menos dia, vou ter de ir fazer companhia à tua mãe e ao avô Ubaldo. És jovem e não te queria deixar sem alguma coisa com que pudesses contar. Nunca fiz nada por ti - justificou-se. - Perdi os anos mais belos da tua infância - disse, com uma ponta de comoção.
- Pára- interrompeu Giulia -, eu nem quero ouvir essas conversas - protestou, alterada.
- É precisamente para não ouvires estas conversas que decidi oferecer-te, enquanto estou vivo, a minha casa de Roma, com tudo aquilo que está lá dentro. São coisas que te pertencem. Diante de ti e do notário vou assinar o acto de doação.
- És doido se pensas que eu vou aceitar a tua barraca, os teus trastes, os teus malditos farrapos - reagiu Giulia, tentando brincar.
- Vais aceitar a minha decisão - impôs-se Zani -, porque és minha filha. E tens o dever da obediência.
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- Tens mais dois filhos - recordou-lhe.
- Eu sei. Filhos legítimos e cheios de dinheiro. São americanos e já nem sequer se lembram que eu ando neste mundo.
- És louco, Armando - repetiu Giulia mecanicamente.
- Tens o teu trabalho, Giulia. Possuis a moradia onde vives. És uma escritora de sucesso. Mas tens uma longa vida à tua frente e um filho para criar. No teu ex-marido, o brilhante Leo Rovelli, não podes confiar grande coisa. E depois - confessou, com uma voz serena -, não estou lá muito bem de saúde.
- O que é que tens? - perguntou, ansiosa.
- Há alguma coisa que não funciona nos meus rins. Nada de sério... pelo menos para já - tartamudeou. - Mas, em suma... digamos que vivi a vida que queria viver. E tive a melhor e a mais querida das filhas.
- Eu também me curei, pai - tentou animá-lo.
- Se calhar também vai acontecer isso comigo. Até pode ser que o meu mal se mantenha dentro de valores aceitáveis.
- Posso fazer alguma coisa por ti?
- Se tu fosses o Omnipotente, eu não te pedia que acrescentasses um único dia à vida que me resta. Já que és minha filha, peço-te que não me firas com a tua teimosia e que faças tudo como eu te digo.
Giulia entrou no restaurante atrás dele.
- Bom-dia, Sr.a de Blasco. Bom-dia, senhor deputado - disse o mattre, que se pôs imediatamente à disposição deles com alguns empregados.
- Já chegou o nosso convidado? - perguntou Armando.
- Está à espera dos senhores - respondeu o maitre, enquanto os conduzia até uma mesa afastada.
O notário era um profissional romano à moda antiga, um homem de meia-idade, afável e reservado. Mas apenas houve tempo para as apresentações.
- Sr.a de Blasco - anunciou um empregado. - Há uma chamada para si.
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Giulia tentou manter-se calma. Foi ao telefone. Era Ambra do outro lado da linha.
- Minha senhora, fique sossegada - disse logo a governanta. O Giorgio está bem. Só que... fez uma patifaria.
- Que patifaria? - perguntou Giulia com uma voz de gelo. Onde é que está o Giorgio?
- Está na esquadra de Greco-Turco. Vai ter de ir lá buscá-lo.
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Giulia estacionou o velho Mercedes em frente à casa da via Tiepolo. Ambra estava à porta, à espera.
- Sai - ordenou ao filho. Durante todo o trajecto da esquadra até casa não tinham pronunciado uma única palavra.
Giorgio estava com uma expressão dura e tensa.
- Disse-te para saíres - repetiu, ao mesmo tempo que se dirigia à porta do lado dele e a abria.
- Não. Daqui não saio - insistiu o rapaz.
Ambra foi ao encontro deles. - Chegaram, finalmente. Louvado seja Deus.
- Ambra, não te metas nisto - advertiu Giulia, bruscamente. Depois, à força, obrigou o filho a sair do carro e arrastou-o até
casa. Fechou a porta e empurrou-o pelas escadas até ao quarto dele. Já que ia haver guerra, Giulia quis oferecer a Giorgio a vantagem de a combater no seu território.
Entretanto fazia apelo a todos os seus recursos para não perder a calma. Estava desesperada e aterrorizada com aquela descoberta recente.
Giorgio mergulhou literalmente na cama e ficou de barriga para baixo, a cabeça coberta com uma almofada.
Giulia sentou-se num banco com as mãos juntas e apertadas entre os joelhos. Cada um dos dois procurava força e concentração para enfrentar o outro.
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- Chegou o momento da verdade - começou Giulia, ao mesmo tempo que perguntava a si mesma se seria justo ela ter de enfrentar a situação sozinha. Giorgio tinha um pai. Onde é que ele estava naquele momento?
Deixara Armando Zani no restaurante sem lhe dar nenhuma explicação. Mais uma vez, Giulia quis enfrentar o problema sozinha. Chegou à esquadra, onde a trataram com muita compreensão. Os polícias que lá estavam tentaram minimizar a transgressão de Giorgio. O mais simpático dos dois chegou mesmo a sussurrar, para a tranquilizar: - Olhe que o revistámos de cima a baixo. Não é um toxicodependente. Só fuma umas coisas. Mas há muitos rapazes nas mesmas condições. Não é o fim do mundo, Sr.a de Blasco.
Claro. Não era o fim do mundo, mas podia ser o princípio de alguma coisa muito grave.
- Giorgio, estás a ouvir-me? - perguntou Giulia, rompendo o silêncio.
- Não - respondeu ele teimosamente, debaixo da almofada.
- Tentaste roubar a Ambra - acusou-o.
- É verdade. Sinto muito.
- Para que é que precisas de dinheiro?
- Para os cigarros.
- Para os cigarros ou para a ganza?
- Charros! É charros que se diz - corrigiu-a. - Estás a ver que nem sequer sabes do que falas?
- Nem quero saber. Aquilo que eu quero mesmo saber é quando começou esta história - indagou. - E sobretudo quero saber como é que arranjas o dinheiro para comprar estas coisas.
- É inútil eu falar ou explicar-te. De qualquer maneira, tu não podes entender - disse Giorgio, sentando-se de repente na cama, pronto para se defender.
- Pode até ser que eu não entenda, como tu dizes, mas olho para ti e vejo os resultados. Não vais à escola. Não estudas. Contas mentiras a toda a gente. Fumas como um louco e enches os pulmões
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com aquela porcaria. A tua pele transpira tristeza, nicotina e droga.
- Giulia avançava com a determinação de um rolo compressor. Não tens amigos. Recusas-te a praticar desporto. Quando não estás fora de casa, e só Deus sabe onde, fechas-te neste buraco fétido que é o teu quarto e rebentas os tímpanos com aquela mistura explosiva a que tu chamas música. Passas as horas deitado nessa cama. É esta a verdade que eu tenho debaixo dos olhos. Hoje foste detido pela polícia como um pequeno traficante - exagerou. - Pouco faltou para o teu nome acabar no jornal, com as consequências que podes imaginar. - Fez uma pausa e continuou: - Giorgio, por favor, queres dizer-me o que te está a acontecer?
Tinha os olhos cheios de lágrimas e o coração a galopar como um louco. Sentia-se muito mal, mas não ia largar a presa. Precisava absolutamente de tentar reparar a situação. Só esperava que não fosse demasiado tarde.
- Que chatice, mãe - reagiu o rapaz. - Que exagero. Eu não fiz nada de mal. Não estudo, é verdade. Mas é uma crise que mais dia, menos dia, se resolve. Não ando contente, é verdade. Por isso fumo. E depois sinto-me mais relaxado. Não pratico desporto. Mas os desportistas não me interessam. É gente cheia de músculo e vazia de inteligência. Quanto a fumar, tu também fumas. Fuma o pai, fumam muitas das pessoas que conheço e estou convencido de que isto faz realmente mal. E para chegar ao outro fumo, devo dizer-te que é verdade: eu sou um fumador habitual de haxixe. Faz muito menos mal um charro do que um cigarro. Alguém escreveu que a marijuana faz bem. É um fulano do Maio de sessenta e oito. Blumir. Estás a ver quem é?
Lembrava-se daquela espécie de guru fascinante e um pouco fanático que tinha um vasto séquito de imbecis e de desesperados nos anos da contestação. O fumo e os apóstolos da não-violência cuja filosofia, a maior parte das vezes, era o pressuposto para a passagem à heroína e aos alucinogénios.
- Disseste que és o quê? - desafiou Giulia, provocando-o com um olhar insolente, ao mesmo tempo que se levantava.
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Também Giorgio se levantou de repente, fazendo-lhe frente.
- Disse que sou um fumador habitual de haxixe. - Pronunciou as palavras com uma precisão tranquila.
Giulia foi dominada por um impulso irrefreável e, pela primeira vez, esbofeteou-o violentamente na face.
Giorgio, como se tivesse sido atingido pelo seu pior inimigo, reagiu brutal e selvaticamente, e bateu com maldade na mãe, que sentiu cair sobre a face um golpe seco, tão forte que durante alguns segundos a deixou aturdida.
Giulia desejou estar a viver um pesadelo aterrador. Não podia acreditar que o filho lhe tivesse batido. Aquele gesto do rapaz, aquela face dorida, eram apenas fruto da sua imaginação.
Mas aquela rixa sacrílega pertencia à realidade. E ela não podia dar-se por vencida. Atingiu o filho pela segunda vez; e pela segunda vez a mão do rapaz, imediata e feroz, se abateu sobre ela, fazendo-a vacilar.
Giulia precisava de demonstrar a si mesma e ao filho que aquilo que ele acabava de fazer era um delito execrável. Atingiu-o pela terceira vez e pela terceira vez Giorgio retribuiu a bofetada com uma violência inaudita. Atingiu-a entre o maxilar e a orelha e foi como se uma barra de ferro se tivesse abatido sobre ela.
Giulia vacilou e caiu ao chão, aturdida. Num punhado de segundos tinha sofrido a mais ultrajante das violências para uma mãe. Nesse momento, perdendo todo o controlo, sentiu furiosamente irromper da sua garganta um grito lancinante que assustou o rapaz, pálido e trémulo como uma criança, desorientado com o martírio da mãe que, com uma raiva que não era dela, o amaldiçoava.
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- Mãe, suplico-te, perdoa-me - implorou Giorgio, despojado de qualquer energia. Atormentado, olhava para a mãe que, a um canto do quarto, soluçava desesperadamente. - Mãe - repetiu, ao mesmo tempo que se inclinava sobre ela e lhe tocava nos cabelos com a mão com que lhe tinha batido.
- Não me toques - ordenou Giulia, esquivando-se àquele contacto que lhe provocava uma sensação de horror.
- Por favor, mãe - insistiu. - Perdoa-me. Não tenho justificação, eu sei, mas suplico-te, não me amaldiçoes.
com os olhos cheios de lágrimas, ajoelhado diante da mãe, o rapaz olhava para Giulia, dilacerada pela dor.
- Em poucos segundos, destruíste as nossas vidas - disse Giulia, a pensar naquela criatura que trazia dentro de si. Recordou a primeira grande dor de Giorgio em criança quando, no cinema, viu morrer no ecrã a mãe do Bambi, atingida mortalmente por um caçador. Naquele momento apercebeu-se de que a cria não chorava tanto pela morte da mãe quanto pela sua solidão, pela falta de protecção, pela sua vulnerabilidade, num mundo vasto e terrível do qual se arriscava a ser a próxima vítima. Não era pela mãe que sofria, mas por si próprio.
Ardia-lhe a face, doía-lhe o ouvido e o maxilar, mas a dor de Giulia era provocada sobretudo pelas feridas da alma.
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Tinha-se levantado do chão e, de joelhos diante do filho, recuperava a força para o olhar cara a cara.
- O que foi que eu fiz de tão terrível para merecer tudo isto? perguntou a si mesma, desesperada e incrédula.
- Nada, mãe - replicou timidamente o rapaz. - A culpa é só minha e eu não sei porquê - confessou com sinceridade.
Giulia segurou o rosto entre as mãos e começou a soluçar como uma menina.
Quando se acalmou, levantou-se com dificuldade, sentindo-se velha e doente, e foi sentar-se na cama de Giorgio. Tinha a garganta seca e sentia arrepios como se tivesse febre.
Giorgio, sentado num canto, entre a cama e a secretária, continuava calado.
- Agora suplicas-me que não te amaldiçoe - começou Giulia duramente - e que te perdoe. É claro que não te vou amaldiçoar. Como é que eu podia? Seria como amaldiçoar-me a mim mesma. Mas aconteceu alguma coisa que deixou uma marca - sublinhou com coragem. - O equilíbrio entre nós quebrou-se. Haverá outros dias e outras atmosferas, mas nada será como antes. Tu agrediste a tua mãe. Sobre este facto atroz, acho eu, deveríamos reflectir todos
- disse, já sem uma ponta de energia. - A partir de amanhã não terás mais um cêntimo meu: comer, beber, dormir e o passe dos transportes. É tudo. Se achas que tens alguma coisa a dizer-me, estou a ouvir.
- Estou muito confuso, mãe. - Tentou dar uma explicação sobre o que tinha acontecido. - Se calhar não tenho nada para te dizer. Ou talvez tenha. Só que não sei por onde começar. Mas tens de acreditar em mim quando te digo que sinto vergonha por aquilo que fiz. E prometo-te que nunca mais vai acontecer.
Giulia ficou calada durante alguns minutos e depois aproximou-se dele: - Sabes uma coisa, Giorgio? Também eu me sinto culpada por ter desencadeado a tua violência. Imagino o que me deves odiar para teres chegado a este ponto.
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Sentiu que o mundo desabava sobre ela. Giorgio olhava-a com uns olhos desesperados, exprimindo o mal-estar da pessoa apanhada em falta.
- Eu não te odeio - garantiu. - Há alguma coisa em mim que me leva à violência. Até contra mim mesmo. Mas não sou eu. Eu sou o de agora - declarou. - E gosto muito de ti - concluiu, ao mesmo tempo que desatava a chorar.
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O Nautilus, um barco de quarenta metros com três pisos, oscilava nas águas transparentes do porto de Mandràki. Parecia nascido no mar e pronto para enfrentar qualquer viagem. Em volta dele andavam muitas embarcações, pequenas e curiosas como patinhes.
Enquanto se aproximava, a bordo de um barco a motor, Marta contemplou maravilhada aquele rei dos mares, tendo como fundo o palácio do Grão-Mestre de Rodes. Ia haver uma grande festa a bordo naquela noite.
Tinha ido à cidade velha buscar a um ourives os presentes para os convidados: preciosas reproduções em ouro das estátuas do veado e da corça que guardavam o porto. Tinha também adquirido uma grande quantidade de corais, peças de cerâmica, rendas antigas e jornais e revistas de todo o mundo.
O marinheiro que conduzia o bote desligou o motor e deixou que a embarcação se aproximasse do Nautilus por força da inércia, orientando-o, contudo, na direcção da pequena escada que permitiu a Marta subir a bordo.
Dois empregados substituíam as capas brancas dos colchões e dos sofás, no convés, por outras de felpo azul e branco. Alguém tinha renovado os arranjos florais sobre as mesinhas de cerejeira e latão. Apesar de ser Outubro, o clima era particularmente ameno.
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Marta atravessou o convés a dar ordens apressadas e concretas com o tom despachado de quem está habituado a comandar. Chegou à porta do salão principal, revestido a madeira laçada bege clara com sofás e poltronas cor de areia dourada. Os seus olhos atentos aos pormenores notaram que algumas peças de prata, em cima de uma mesa pequena, não tinham sido perfeitamente limpas. Tomou nota disso mentalmente: no momento oportuno chamaria a atenção ao responsável.
Desceu até à cabina principal. Era um aposento amplo onde predominava o tom salmão das paredes e das cortinas. A cama, de três metros por dois, fora cuidadosamente mudada e revestida de uma colcha pérola, bordada à mão, com motivos de conchas e corais.
Em cima da chaise longue estava o último romance de Giulia de Blasco, que Marta tinha acabado de ler naquela noite. Pegou nele e atirou-o para o cesto dos papéis, como gostaria de poder fazer com a autora, apagando-a da face da Terra. Pousou em cima da cama o monte de jornais e revistas, estendeu-se com uma sensação de alívio e agarrou-se ao telefone.
- A minha encantadora Tea - saudou ironicamente a filha, cuja voz tinha reconhecido imediatamente. - Quando é que eu te vejo?
- vou apanhar o voo das duas em Milão - disse a jovem.
- Muito bem - respondeu a mãe. - À chegada vais encontrar o automóvel que te levará até ao cais, onde um barco a motor estará à tua espera.
- Já imaginava que não seria preciso ir a nado.
- A minha menina descobriu o sentido de humor - provocou-a, incapaz de encaixar a piada mais simples.
- Festa grande, suponho - prosseguiu Tea.
- Por isso quero-te lindíssima - ronronou Marta.
- vou fazer o meu melhor. Tive uma boa escola.
- Como é que correm as coisas por aí? - indagou.
- Bem - respondeu Tea, laconicamente.
- Estás de poucas falas - provocou Marta.
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- Mas sinceras - esclareceu a rapariga.
- A equitação? - perguntou a mãe.
- Vai de vento em popa. As aulas multiplicam-se. Eu e o Marcello já comprámos feno para o Inverno inteiro - disse com orgulho.
- Cavalos?
- Catorze, para já.
- Não é grande coisa - considerou Marta.
- É verdade. Mas as coisas estão a correr bem. O Marcello está convencido de que na Primavera vamos poder comprar mais alguns cavalos e contratar outro instrutor.
- Para ti o fedor a estábulo é mais excitante do que o do Chanel n.? 5 - comentou Marta, com irritação.
- Só te peço um favor - pediu Tea -, não ostentes o teu melhor sentido de humor quando falas de mim e do Marcello.
- Está prometido. Serei a vossa melhor publicidade.
- Não é preciso.
- Dá um ar muito chique ter uma filha que vive no campo e tem uma escola de equitação com o último dos condes Belgrano. A propósito, porque não o trazes também? - propôs.
- Porque estamos com falta de pessoal e o Marcello vai ter de aguentar também a minha parte do trabalho, durante a minha estadia em Rodes.
Tea, apesar de tudo, amava a mãe, e aceitara o convite ainda que soubesse que ela lhe ia fazer um inquérito completo para ter notícias de Ermes e de Giulia.
- Extraordinário - disse Marta. - Beijocas beijocas, querida. Até logo à noite - concluiu, ao mesmo tempo que desligava a chamada.
Uma empregada bateu à porta e assomou logo de seguida.
- Chegou o vestido, minha senhora, do atelier de Zaira Manodori-Stampa - anunciou. - Pendurei-o no quarto de vestir. Se me permite, acho que está lindíssimo - acrescentou com admiração. Era uma jovem grega e chamava-se Melina. Considerava Marta uma espécie de divindade. Adorava-a e temia-a. Conhecia dela a generosidade e as fúrias.
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Em algumas ocasiões, Marta chegara até esbofeteá-la, mas Melina continuava a rastejar aos seus pés, porque às divindades tudo se concede. E obter delas os favores e os castigos é, em qualquer caso, um privilégio. Marta mudava de humor e de comportamentos com uma rapidez surpreendente.
Sorriu de satisfação. Seria a rainha da festa, como era justo que fosse. Era a sua festa. O seu noivado ia ser anunciado a cerca de
cinquenta convidados seleccionadíssimos e bisbilhoteiros, e a dois jornalistas de confiança: Lisa Bonner da Vanity Fair e Gunther Patrik do Times.
A notícia ia correr por todo o mundo. Ermes Corsini, que a tinha exilado, convencido de a ter derrotado para sempre, ia ter de se conformar ao vê-la ressurgir, mais resplandecente que nunca. Pensou em Ermes e, logo de seguida, ao rosto dele foi sobrepor-se o de Giulia. Isto bastou para apagar aquela euforia de vitória.
- Desaparece daqui, Melina - ordenou à rapariga, mudando subitamente de humor. A empregada retirou-se rapidamente.
Marta sentia-se devorada pelo ódio e pela inveja em relação a Giulia de Blasco. Recordou o romance que acabara de ler. Era uma intriga animada de personagens verdadeiras cujos destinos se entrelaçavam numa sequência de peripécias enriquecidas por uma extraordinária ironia.
Estava naquelas páginas a história humana de Giulia e de Ermes, e estava também a sua história, reconstruída, tinha de admitir, com garbo e benevolência, resgatando até algumas falhas de estilo que teriam tornado vulgar o romance e impopular a personagem.
Nenhuma das suas personagens era completamente boa ou completamente má. Giulia sabia encontrar o lado bom até nos indivíduos piores e o lado mau nos melhores. Isso Marta tinha percebido.
- Meu Deus, como eu a odeio - pensou. Estava convencida de que, sem o encontro com Giulia, Ermes seria ainda seu marido. Não que se importasse muito com ele. Era a humilhação do abandono que nunca tinha digerido, e a outra, ainda mais grave, do exílio.
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Para além do mais, irritava-a o sucesso de Giulia, que desempenhava, segundo ela, tal como um jogador de póquer profissional, o papel da santinha. Ainda por cima, desde o dia da sua partida de Itália, a comparação entre ela e Giulia fazia realçar o escasso interesse da vida de Marta.
Era filha do último grande barão da Medicina e depois tinha sido mulher do "cavalo branco" da cirurgia. Agora era a namorada de James Kendall, o famoso cirurgião plástico que modificava rostos inadmissíveis, alterando a psicologia das pessoas e influenciando até o seu comportamento. Gabava-se de ter recuperado personagens famosos, que lhe pagavam quantias principescas em troca de um reencontrado gosto pela vida.
Marta começou a folhear distraidamente um jornal italiano. Não havia nada de suficientemente excitante que pudesse aplacar o rancor que a devorava. De repente, numa página de crónica social, captou uma imagem que lhe restituiu a maldade necessária para reagir. Era uma fotografia de Giulia, de rosto contraído e cansado, ao lado do empresário Franco Vassalli.
Leu a legenda: "A escritora Giulia de Blasco e o empresário Franco Vassalli entre os visitantes da exposição de Boldini no Palácio Real. Franco Vassalli, proprietário de um canal de televisão privado, produzirá um filme para a TV retirado do último best-seller da escritora milanesa".
Marta sorriu. Será que tinha chegado a ocasião de ouro? O homem que a humilhara corria o risco, por sua vez, de ser abandonado. Vassalli andava à caça, e aquela jovem presa não lhe podia escapar. Marta conhecia-o bem: não lhe faltavam dinheiro, fascínio, inteligência e todos os atributos para seduzir.
- Imaginas como é que o Ermes vai ficar? - disse em voz alta para a sua imagem reflectida num grande espelho. - É a vida, meu caro. Hoje eu. Amanhã tu.
Estava agora pronta para fazer da sua festa um acontecimento inesquecível.
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Giulia encontrou Franco Vassalli, com a cumplicidade do acaso, numa exposição de Giovanni Boldini.
Mergulhando no passado elegante e melancólico descrito pelo artista nos seus quadros, tentou inutilmente esquecer a tristeza daqueles dias, o presente que tão dolorosamente pesava sobre ela. Tentava evadir-se da escuridão, mas não conseguia sequer descortinar uma fenda de luz.
Estava a atravessar um período terrível. Recusava-se a falar sobre isso até com Ermes. Mas procurara insistentemente Leo. Conseguiu miraculosamente falar com ele ao telefone, num local quase inacessível, nas montanhas do Peru, onde o jornal o tinha enviado atrás de uma expedição arqueológica.
- Como é que conseguiste pescar-me neste buraco esquecido por Deus? - perguntou-lhe o jornalista.
Ouvia-o como se ele estivesse a dois passos dela.
- Tive sorte - rematou.
- E obstinação - rebateu Leo.
- Claro - disse Giulia. - Tudo o que tu quiseres. Mas diz-me exactamente quando regressas - pediu-lhe.
- Eu sei lá! Se calhar, daqui a duas semanas. Talvez três. Se calhar, antes. Ou depois. - Foi evasivo. Como sempre.
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- Quanto mais depressa voltares, melhor. O nosso filho está com problemas. Preciso da tua ajuda.
- Que tipo de problemas? - perguntou.
- Digamos, existenciais.
- Só isso?
- Até é de mais para uma conversa telefónica.
- Não estarás a exagerar? - insistiu.
- É uma história em que estás metido até ao pescoço, juntamente comigo e com o nosso filho.
- Volto o mais depressa possível. - Parecia sincero ainda que, para ele, a sinceridade fosse uma abstracção.
Naquele período Giulia tinha recebido o convite para a exposição de Boldini, o que a fez sair do seu buraco ao fim de vários dias de clausura. Foi à cabeleireira, Miranda Maestri, na via Montenapoleone, arranjar o cabelo. Comprou um vestido elegante para a ocasião e mergulhou naquela multidão anónima.
Ermes tinha-se oferecido para a acompanhar, mas Giulia insistiu em ir sozinha.
Seguindo o percurso artístico do mestre, parou numa pequena sala onde estava exposto um único quadro que representava uma mulher magra, de perfil doce mas decidido, olhar sonhador mas atento, sentada ao lado do vão de uma janela ampla que dava para um jardim. A magia daquela representação estava toda na evanescente figura feminina e nas esplêndidas rosas que tinham as cores de um poente estival. As rosas subiam do exterior e vinham emoldurar a janela.
Giulia abandonou-se à corrente impetuosa das suas recordações. Naquela tela de Boldini estavam as cores de Verão dos campos em volta da casa do avô Ubaldo, onde tinha vivido momentos inesquecíveis da sua vida.
Recordou o avô e a sua matilha de cães e, a custo, conteve um soluço. Tinha os olhos brilhantes e uma grande necessidade de chorar.
- Bons olhos a vejam, Sr.a de Blasco. - Era Franco Vassalli que a cumprimentava. Houve uma troca de sorrisos bastante convencional,
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que o flash de um fotógrafo iluminou e captou. Giulia sentiu um arrepio.
- Comovente, não é? - observou o empresário, referindo-se ao quadro.
- Mais do que isso - precisou ela -, lancinante.
- Imagine que me escapou por uma unha negra - disse, ao mesmo tempo que lhe beijava levemente a mão.
Giulia ficou impressionada com aquela declaração.
- A sério? - perguntou, interessada.
- Tinha-o visto na montra de um antiquário - explicou Vassalli. - Uns dias depois, quando lá fui para o comprar, já lá não estava.
- Os quadros compram-se e vendem-se. Felizmente, sobretudo expõem-se. O que importa é termos a possibilidade de os ver.
- Porquê lancinante? - perguntou ele, curioso com aquela definição.
- É apenas uma impressão associada a uma recordação longínqua.
Caminhavam agora, já noite, sobre o empedrado da praça, seguidos pelo fiel Lupo.
- A mim aquele retrato faz-me lembrar a minha mãe - disse Vassalli, retomando o fio do discurso que se tinha interrompido. Ela - acrescentou, convencido - teria sido um excelente modelo para Boldini.
- Notícias? - perguntou Giulia com cautela, referindo-se ao rapto.
- A Polaroid do costume, apanhada num momento tranquilo. O coração diz-me que ela está bem. A minha mãe sempre se adaptou bem às adversidades, serenamente. Amo-a muito por isso.
Naquelas frases quebradas havia uma tremura de comoção que a sensibilidade de Giulia captou imediatamente.
- Acho que é um sinal de grande coragem e de grande maturidade aceitar serenamente as adversidades - observou Giulia.
- Ou de grande inconsciência - disse ele.
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- Gostava tanto de ser inconsciente - rebateu Giulia.
- Mas você, Giulia de Blasco, como é afinal?
- Frágil, insegura, cheia de espinhos. Uma das minhas maiores dificuldades é conviver comigo mesma. Porque eu não gosto de mim, Dr. Vassalli - confessou, com absoluta sinceridade.
- É mesmo uma pena - disse ele, sorridente. - Porque você tem uma beleza estranha e intensa, realmente especial.
Tinham chegado à via delle Ore. Aquela pequena rua de Milão, naquele momento, estava quase deserta. Os passos de ambos ecoavam no empedrado.
Subitamente Giulia parou e obrigou o empresário a fazer a mesma coisa.
- Mas o que é que você quer de mim? - perguntou de repente.
- Para além dos direitos do romance, quero dizer.
Ele pousou as mãos nos ombros de Giulia e olhou para ela atentamente, como já tinha feito em casa dos Riboldi.
- Quero-te a ti - disse, como um patrão que se impõe. Deixou escorregar as mãos para trás das costas de Giulia, puxou-a para si e beijou-a.
Ela sentiu no rosto a respiração tépida daquele homem. Esqueceu Ermes, que a adorava, a doença que podia acabar com ela, a criança que trazia no ventre, Giorgio, que a detestava. Deixou para trás as angústias da sua vida desordenada e esteve quase a dizer: "Eu também te quero." Mas ficou calada. Em algum lugar, dentro dela, estavam escritas proibições absolutas, limites inultrapassáveis.
- O nosso encontro acaba aqui - opinou com decisão. Mandou parar um táxi com um gesto e entrou a toda a pressa.
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Quando chegou a casa, encontrou Leo à sua espera.
- Chegaste mais cedo do que eu pensava - disse Giulia.
- Quando o grande chefe chama, os discípulos acorrem declamou. Estava na cozinha, às voltas com o fogão, a estrelar ovos enquanto dispunha umas fatias de queijo num prato.
- Quem te abriu a porta? - perguntou Giulia.
- A Ambra. Foi-se embora há pouco. E o Giorgio, onde está?
- A fumar um charro em qualquer parte, suponho - respondeu Giulia, ao mesmo tempo que retribuía o beijo que o ex-marido lhe tinha dado na face.
- A fumar um charro? - replicou Leo, incrédulo.
- Exactamente.
- Exactamente o quê? - perguntou, percebendo finalmente a afirmação de Giulia.
- O nosso filho é um fumador habitual de haxixe. Foi ele próprio que admitiu.
Leo ficou com a faca do queijo no ar.
- Giulia, deixa ver se eu entendo. O Giorgio tem quinze anos, quase dezasseis. E uma vez lá terá fumado um charro. Há muitos rapazes que fazem isso. - Tentou retirar importância ao facto, sem conseguir ficar completamente tranquilo.
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- Podes acreditar que, no que diz respeito aos outros, até estou disposta a bater-me pelo sucesso das campanhas antidroga. Não acho graça nenhuma a que os outros sejam fumadores habituais de drogas. Mas eu estou a falar do nosso filho. Percebes o que eu quero dizer?
- O Giorgio é um rapaz do nosso tempo. Transgrediu, mas fez uma experiência. Ponto final!
- Dois pontos, parágrafo, travessão. Um rapaz que ainda não tem dezasseis anos e que se abandona a estas experiências é um rapaz gravemente em risco.
- Em África e noutros lugares, depois de jantar, assim como nós tomamos uma bebida, entre amigos, fuma-se um charro. Tentou mais uma vez redimensionar o episódio.
- Tu não queres perceber. Eu estou a falar do nosso filho. Não do problema em geral. E o Giorgio não fuma um charro de vez em quando. Aspira de uma coisa horrenda que se chama chillum uma pasta que se chama haxixe. E faz isso todos os dias. Até mesmo duas vezes por dia, há já um ano. Tem uma dependência propriamente dita - esclareceu Giulia.
Leo voltou-se para o fogão, onde os ovos já se estavam a queimar, e ficou a olhar para eles enquanto um cheiro enjoativo se espalhava pela cozinha. A notícia da qual acabava finalmente de tomar consciência tinha-o desorientado. Ficou imóvel, incapaz de reagir. Depois abriu os braços e Giulia refugiou-se neles, ao mesmo tempo que se desfazia em lágrimas.
- Minha terna, queridíssima amiga - confortou-a, esperando dar-lhe algum consolo.
Eram efectivamente dois grandes e leais amigos, que apenas se reencontravam após uma longa separação. Mas quantos anos e quanto sofrimento tinha sido preciso para chegarem àquele resultado!
Como marido, Leo fora um desastre, mas talvez Giulia não tivesse sido também uma companheira fácil.
Tinha infringido as leis burguesas e a mentalidade tradicional ao apaixonar-se por um homem casado e ao ir viver com ele.
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Quando mais tarde se casaram, mais para fazer a vontade à família do que por autêntica convicção, tornou-se uma mulher incómoda que reagia sistematicamente às transgressões do marido.
A sua vida conjugal foi assim uma sequência de tempestades e de bonanças, até à inevitável separação. A partir desse momento, Leo passou a ser o mais querido amigo de Giulia.
- Estou de rastos, Leo - confessou ela, enquanto limpava as lágrimas.
- Agora estamos a sofrer os dois.
- Fica com a tua parte. É justo.
- É assim tão grave a situação do Giorgio? - arriscou.
- O que é que tu achas? - replicou Giulia.
- Acho que sim, se as coisas forem exactamente como me contaste. Mas depois - continuou -, como é que eu faço para exprimir um juízo objectivo? O Giorgio vive contigo. Para ele, eu sou apenas um companheiro ocasional, mais do que um pai. Era mais fácil dizer-lhe que sim do que explicar-lhe as razões de um não. Tu viste-o crescer. - Procurou as palavras certas para formular uma pergunta delicada: - Não te tinhas apercebido de nada?
- Há meses que o vejo descontente, inquieto, fugidio.
- Podias ter falado comigo mais cedo.
- E tu ias tomar as rédeas da situação? Diz lá. É isso?
- Porquê essa agressividade toda? - espantou-se Leo, sentindo-se culpado.
- Fiz-te uma pergunta simples. Agradecia-te que me respondesses. Se possível, com sinceridade.
Leo passou uma mão pelos cabelos fartos como que a juntar as ideias e conseguiu apenas soltar um ambíguo "não sei". Depois acrescentou: - Não há contraprova.
- Estarás porventura a dizer que a culpa é minha?
- Giulia, por amor de Deus, não comeces a armar em vítima.
- E porque não? Eu sou uma vítima.
- O papel de bode expiatório não se adequa a ti.
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- A sério? E, no entanto, este trapo de família, para o bem e para o mal, fui eu que o levei avante. Porque tu nunca estás. Nunca estiveste - reforçou. - Nem sequer quando vivíamos juntos. E não me venhas dizer que não estavas porque o teu trabalho é andar pelo mundo. Quando se quer, consegue-se estar de qualquer maneira, consegue-se fazer sentir a presença de alguma forma. Mas tu, quando regressavas de uma viagem - acusou, impiedosa -, envolvias-te com a primeira mulher disponível. E quando estavas em casa, a tua cabeça estava noutro sítio. Pensaste em tudo na vida, menos no nosso filho. - Tinha assumido um ataque frontal e sentia-se do lado da razão.
- Como é evidente, tu não tens pecados.
Estavam de novo em conflito, como quando viviam juntos.
- Leo, por amor de Deus - disse Giulia, mudando de tom -, não vamos recomeçar a discutir. Desta vez não se trata de nós. Até podemos esfolar-nos um ao outro, se quisermos. Somos adultos, apesar de nem sempre sermos responsáveis. Mas desta vez temos de formar uma parede para proteger este rapaz dos fantasmas que o aterrorizam.
- O que é que o Giorgio vai comer quando chegar a casa? perguntou Leo, preocupado, ao mesmo tempo que olhava para a frigideira queimada.
- O Giorgio vai esvaziar o frigorífico. É uma reacção típica de quem fuma.
- Não estás a pensar preparar-lhe qualquer coisa quente? perguntou ele.
- Ora cá está outra vez o machista - respondeu Giulia, viperina. - Ele tem o seu trabalho. As suas mulheres. E tu, pobre tonta, trata da casa e do fogão.
- Talvez, se o tivesses feito, o Giorgio não estivesse nesta situação - objectou o jornalista com um tom acusador.
- Não devias ter dito isso - reagiu Giulia, furiosa. - Não devias mesmo ter dito isso - repetiu. - Foste tu que me convenceste a trabalhar, porque não tínhamos uma lira. E o nosso filho fui eu que o criei. Que o alimentei. Que o vesti. Alguma vez te preocupaste em
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saber se conseguíamos governar-nos sem ti? Tu precisavas apenas de fazer um brilharete com as tuas conquistas. - Giulia acabava de desferir o seu ataque.
- Agora deixa para lá a história das conquistas - respondeu Leo. - Porque tu também não deste em monja de clausura.
- O que é que estás a tentar atirar-me à cara? A minha história com o Ermes? - replicou.
- Não me venhas agora contar que eu e o Ermes fomos os únicos homens da tua vida.
- Leo, tem pena de mim. Sobretudo quando te agarras a qualquer argumento para suster as tuas acusações insensatas.
- Eu não queria ter um filho - disse, para ganhar distância. Nunca quis. Foste tu que o quiseste, com todas as tuas forças.
- É verdade - admitiu Giulia. - Mas se o tivéssemos querido os dois, talvez a coisa tivesse corrido um pouco melhor. Porque depois - acrescentou -, quando o Giorgio nasceu, tu sempre fizeste o papel do companheiro compreensivo e generoso. E eu o da mãe rígida e severa. Assumia o papel paterno. Só que era um papel que não tinha a ver comigo. Gostava de ter sido para ele apenas uma mãe terna e compreensiva, pródiga e doce.
- Pródiga e doce, sim - admitiu Leo. - E também terna e compreensiva. Mas à tua maneira. O fundamentalismo islâmico é uma brincadeira de crianças comparado com as tuas obsessões. O teu filho devia ser o mais bonito. O mais inteligente. Uma flor na lapela. Um tema de conversa. Um fenómeno a ostentar nos círculos culturais e nos salões. O primeiro na turma e na vida. Estavas disposta a dar-lhe a alma, mas em troca querias um número um. Para obter isso estavas disposta a tudo. E não te custava nada desempenhar esse papel autoritário.
- Enquanto tu lhe piscavas o olho, expressando-lhe a tua cúmplice solidariedade - acusou ela. - Há em ti qualquer coisa de feminino e de perverso. Sempre me impediste de ser uma mãe benevolente, porque no teu ciúme tolo te tinhas apropriado da minha função natural.
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- Ciumento? Feminino? - reagiu, corado como um menino da escola. - Mas o que é que tu estás a dizer? E por que é que só agora surge esta novidade?
- Porque só agora o nosso filho revelou a sua fraqueza. Se tivesse descoberto isto mais cedo, tinha-me comportado de outra forma. E talvez ainda estivéssemos juntos. E talvez o Giorgio fosse um rapaz sereno. E talvez eu não tivesse os problemas todos que tenho - gritou. - Tu não querias crianças porque tu eras uma criança. Como é que um menino mimado pode ser um bom pai?
- Também tu eras uma menina!
- Mas a vida tratou de me fazer crescer. E tu também, ao descarregares em cima de mim todas as responsabilidades, para continuares a viver imperturbável no teu mundo de sonhos. Agora o sonho quebrou-se. Tornou-se um pesadelo. E tu tens de acordar, Leo, porque o que está em jogo é o futuro e a vida do nosso filho.
- Giulia, és mesmo tu?
- Sou uma mãe que quer salvar o filho. E possivelmente também aquilo que resta da sua vida.
- Não sei o que dizer - respondeu ele, sem qualquer agressividade.
- Já é alguma coisa. Porque as palavras não adiantam. Agora é preciso ir aos factos. Chegou o momento de pousar os pés na terra e olhar a realidade de frente.
- Mas a situação está mesmo assim tão feia?
- Até pior, Leo. Eu ainda não te disse tudo - disse ela, ao mesmo tempo que colocava no lava-louça a frigideira queimada. Leo levantou-se, foi até junto dela e segurou entre as mãos o rosto cansado de Giulia.
- O que é que há mais, minha amiga? - perguntou, inquieto. Tinha novamente uma voz preocupada e terna.
- O nosso filho bateu-me, selvaticamente. E nunca, juro-te, foi tão sincero como naquele momento. Ele detesta esta mãe mandona. Não a aceita. Nunca a aceitou. - Começou outra vez a soluçar. - E eu vou ter de fazer com que ele me perdoe por isso.
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- Tu o quê? - perguntou desesperado, vendo nesse momento, claramente, por baixo da maquilhagem, as marcas azuladas deixadas pela mão de Giorgio no rosto da mãe.
- Eu tenho de obter o perdão do meu filho por o ter levado a exercer esta violência sobre mim. E tu vais ter de o ajudar a perdoar-me, Leo - suplicou, a chorar.
Leo abraçou Giulia com força e percebeu que não ia ser fácil para ele decifrar aqueles conceitos que ela acabava de elaborar. Mas soube que conseguiria esclarecê-los sofrendo como ela sofria e tomando para si uma parte da dor de Giulia.
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Georges Bertrand irrompeu pelo gabinete de Pierre Cortini como um touro enraivecido.
- Quero a cabeça do Franco Vassalli - gritou.
- Só isso? - brincou Pierre.
- E vais ser tu a trazer-ma - esclareceu o banqueiro, sem o ouvir.
Pierre baixou os óculos pequenos até à ponta do nariz e levantou os olhos para Bertrand. Era um olhar cheio de ironia e de perplexidade.
- Tudo aquilo que eu posso fazer é entrar em contacto com o Vassalli para tentarmos chegar juntos a um compromisso digno propôs Pierre.
Do intercomunicador saiu a voz da secretária:
- Na três o Sr. Vassalli para o Sr. Bertrand.
- Lúpus in fabula1 - exclamou Pierre. - Queres falar tu com ele, ou preferes que intervenha eu primeiro? - perguntou.
- Deixa-mo, que eu desfaço-o - exagerou. - Liga o gravador e põe-te à escuta.
Locução latina que significa "o lobo na história". Em português: "Fala-se no diabo e ele aparece." (N. do E.)
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Pierre activou o aparelho electrónico que já tinha muitas vezes fornecido provas esmagadoras no decurso de transacções complexas.
- Olá - começou secamente o francês. - Tinha assumido um tom enfático, divertido, que a tremura do lábio superior desmentia, revelando preocupação e nervosismo.
- Num momento como este, não mereço um tom de voz tão glacial - disse Franco, fingindo-se ofendido. - Lamento, meu caro Georges, que tu leves isto tão a mal. Ao fim e ao cabo, foste tu que abriste as hostilidades. Ou já te esqueceste de que há uma semana me querias sacar a minha estação?
- Isso faz parte das regras do jogo - rematou o francês.
- Também pedir dinheiro a um banqueiro para tentar não ser depenado faz parte do jogo - rebateu Vassalli
- Onde é que tu queres chegar? - indagou Bertrand. Talvez não estivesse tudo perdido.
- Digo-te no nosso próximo encontro. Sabes, Georges, é que podes ter o telefone sob escuta. E a divulgação dos teus projectos podia prejudicar-te. Quanto menos se souber por aí, melhor. O nosso mundo está cheio de gravadores - disparou no escuro. Para além do mais, os meus telefones estão sob controlo. Por causa da minha mãe.
- Por esta altura já deves ter arranjado maneira de pagar o resgate, uma vez que tens tantos amigos dispostos a ajudar-te insinuou o banqueiro, referindo-se ao embuste de que tinha sido vítima.
- Há regras impostas pela magistratura que tornam difícil a operação. Aliás, impossível. É um grande problema - queixou-se o italiano.
- Os negócios, pelo contrário, estão a correr bem - sibilou Bertrand, que ainda conservava algum sentido de ironia.
- Felizmente.
- Também tens a parte do Gray. Ele está no sétimo céu graças a todo aquele dinheiro que lhe caiu em cima.
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- E eu também estou - admitiu Vassalli.
- Ouve lá, mas qual é a verdadeira razão deste telefonema? Tu nunca fazes nada sem um motivo - perguntou Bertrand, já impaciente.
- Queria propor-te um negócio. Um grande negócio.
- Deixei-me de grandes negócios, para já.
- Sem saberes de que se trata? Não é nada o teu género - disse Vassalli. - É pena. A tua participação seria apenas de seis milhões de libras. E praticamente seria como se já as tivesses desembolsado.
- De que é que estás a falar? - reagiu o banqueiro.
- De uma nova operação - respondeu Franco, com um tom vago.
- De que tipo - perguntou o francês, curioso.
- Cinema. Estás a ver os irmãos Lumière? Estou a criar uma sociedade de produção cinematográfica - anunciou, com um tom indiferente.
- Porque é que não vens ter comigo para darmos dois dedos de conversa? - O banqueiro estava a pensar numa maneira de o entalar.
- Pode ser - condescendeu Franco. E logo a seguir acrescentou: - Quando nos encontrarmos, estarei na companhia do Louis Fournier. Andava à procura de emprego. Eu tenho um coração mole. E depois o Louis é bom rapaz. É um amigo. Eu nunca me esqueço de quem me ajuda.
Bertrand desligou a chamada sem replicar. Estava demasiado lívido para proferir uma palavra que fosse.
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Giulia, ao volante do seu carro, tomou a saída de Modena norte e seguiu a via Emilia na direcção este. Toda uma sequência de pequenas e médias indústrias e construções modernas fragmentavam a linha harmoniosa do doce planalto da sua infância.
Aqui e ali, em parte destruídas, agonizavam casas rurais em tijolo. Algumas tabernas antigas, onde tinha estado com o avô Ubaldo quando era pequena, prosperavam graças aos clientes de domingo e aos frequentadores nocturnos. Também as filas de amoreiras sobreviviam, intactas. Giulia perguntou a si mesma se ali cresceriam ainda aquelas amoras dulcíssimas que apanhava quando era pequena.
O arco de pedra, que no topo e ao centro tinha esculpido o brasão dos marqueses Manodori-Stampa, surgiu-lhe depois de uma curva. O portão de ferro forjado era o mesmo, cuidadosamente limpo e envernizado.
Uma roseira sem flores envolvia, com o seu tronco nodoso, o pilar do portão. Giulia recordou. Fora ali que, mais de trinta anos antes, vira pela primeira vez a bela Zaira, actual proprietária da mais exclusiva das casas de moda italianas, conhecida em todo o mundo. Giulia tinha então dez anos e estava a passar as férias de Verão com o avô.
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Estacionou o carro diante do portão, saiu e admirou-se por o encontrar fechado. Achava que antigamente nem sequer tinha fechadura.
Do outro lado do portão, onde em tempos ficava a eira que, nas noites de Verão, se enchia de gente e barulho de vozes, viu uma piscina.
Quantos anos tinham passado desde a sua última visita? As casas de lavoura que nesse tempo delimitavam o perímetro do grande pátio tinham sido restauradas e arranjadas por um arquitecto habilidoso. Todas, menos uma: a casa do avô. Essa, por sorte e por vontade de Zaira, tinha ficado como ela a recordava. Tudo o resto era o resultado de um projecto inovador, do qual Zaira lhe falara muito depois da morte do avô Ubaldo.
Naquela época Giulia tinha dezoito anos e estava perdidamente apaixonada por Leo Rovelli. A administração da quinta, onde o avô tinha vivido com os cães, forçara os herdeiros a providenciar no sentido de libertar a habitação porque o contrato de aluguer tinha terminado. Carmen, a mãe, mandou-a a Modena resolver o assunto e Giulia descobriu então que todo o complexo rural tinha sido adquirido por Zaira.
- Comprei uma mão-cheia de recordações - disse-lhe a amiga de infância que, apesar do casamento com o marquês Manodori, não esquecia o seu passado de rapariga pobre.
Desde então tinham passado muitos anos. Giulia continuou a pagar um aluguer, absolutamente simbólico, a Zaira. Não voltara a Modena, mas era importante para ela saber que a casa continuava a existir. Era uma maneira de manter viva a recordação dos anos felizes da infância e do adorado avô Ubaldo.
Agora que estava a atravessar um período tão atormentado, Giulia esperava que aquela casa a ajudasse a reencontrar alguma serenidade. Meteu algumas coisas num saco e partiu de Milão à procura das suas raízes.
Giulia viu uma campainha de latão brilhante, como se usava noutros tempos, inserida numa cavidade da coluna. Tocou.
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Primeiro, ouviu ladrar um cão e, logo a seguir, de uma das casas novas, veio ao seu encontro a abanar a cauda um belíssimo setter irlandês seguido de uma rapariga morena e muito bonita, com uns grandes olhos cor de avelã. Sorria com uma espontaneidade fascinante.
- E tu quem és? - perguntou Giulia, retribuindo o sorriso da adolescente.
- Calado, Tobia - ordenou ao cão. Depois voltou-se para Giulia e respondeu: - Eu sou a Zaira. A filha do guarda. Vem à procura de alguém? - perguntou, demonstrando a sua disponibilidade.
- Estou à procura da casa de Ubaldo Milkovich.
- O camarada Mocho - disse a pequena Zaira. - Toda a gente aqui se lembra dele. Conhecia-o?
- Era o meu avô.
O rosto curioso e interrogativo da adolescente iluminou-se.
- Então a senhora é a escritora - exclamou, ao mesmo tempo que carregava no botão que accionava a abertura do portão. Entre e vire à esquerda. Pode estacionar ali.
- Porque foi que te chamaram Zaira? - perguntou Giulia, que foi ter com ela depois de ter estacionado o carro.
- Porque a marquesa Manodori-Stampa se chama assim. Os meus pais dizem que é um nome que dá sorte. E além disso a própria marquesa foi minha madrinha de baptismo - acrescentou.
Giulia, entretanto, tentava abrir a casa do avô. Da última vez que ali entrara, aquela simpática rapariga ainda não era nascida.
- A marquesa é uma grande modista - comunicou-lhe. - Mas são amigas? - perguntou, curiosa.
- Eu era do teu tamanho quando a conheci. Finalmente a fechadura cedeu.
- Então a marquesa ainda não era uma marquesa - observou a jovem, revelando assim que sabia muito sobre a dona da casa.
- Pois não. Era a filha do guarda. Como tu, agora - respondeu Giulia, entrando na grande cozinha mergulhada na escuridão.
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- Posso ajudá-la, minha senhora? - ofereceu-se a rapariga. Isto aqui está tudo cheio de pó. A minha mãe, de vez em quando, areja os quartos. Ordens da senhora marquesa - confiou-lhe. Mas não se pode tocar em nada. A senhora marquesa diz que a casa de Ubaldo Milkovich deve continuar como está.
Tirou do armário ao lado da lareira um pano e começou a limpar cuidadosamente o pó à mesa que estava no meio do aposento.
- Agradeço-te - disse-lhe Giulia, ao mesmo tempo que lhe tirava o pano das mãos -, mas não tenciono fazer grandes limpezas. Vim aqui sobretudo para estar algum tempo sozinha a descansar. Deves fazer de conta que não estou cá. Prometes-me? Quando precisar de ti, vou à tua procura. - Deu-lhe um beijo na face para se desculpar pela pouca sociabilidade. A pequena Zaira foi-se embora e fechou delicadamente a porta atrás de si.
Giulia abriu as janelas e olhou em volta. Pendurada na parede estava a espingarda de caça que tinha servido ao avô para combater os alemães e os fascistas. Também lá estavam as bicicletas, a do avô e a dela. Em cima de uma mesa estava pousada a colecção inteira dos romances de Salgari e de Raphael Sabatini e os seus diários de quando era pequena.
No aparador encontrou pratos, copos e chávenas de café em porcelana. E a chávena grande onde o avô lhe servia o café com leite de manhã.
Viu também o pequeno armário dos remédios para os cães: pomadas já ressequidas e frascos de gotas vazios. Havia também um pincel da barba e uma bacia onde o avô preparava o sabão para fazer espuma. A peça mais importante era uma navalha de barba Puma com o cabo branco em osso e a lâmina atacada pela ferrugem.
Giulia subiu ao andar superior e retirou cuidadosamente os jornais com que ela própria tinha coberto a cama para a proteger do pó, no velho quarto dos avós. Naquele quarto ela tinha feito amor pela primeira vez na sua vida com Leo, o jornalista famoso, que viria a ser o seu imprevisível marido.
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Abriu o armário. Ainda havia alguma roupa do avô e o seu grande chapéu negro de bandido do qual nunca se separava. A um canto descobriu, limpos e engraxados, os seus velhos sapatos.
Giulia sentiu frio. Desceu à cozinha e acendeu a lareira. Quando as chamas saltaram entre miríades de faúlhas no vórtice ascendente da chaminé, pegou numa cadeira e sentou-se junto ao fogo. Estava completamente só. Fechou os olhos e, ao fim de tantos dias de ansiedade, sentiu finalmente que aquele nó apertado de tensão se começava a desfazer dentro dela.
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- Nunca vi nada parecido. É a festa mais horrorosa em que alguma vez estive. Lagostas insípidas, gelados a derreter, café servido frio. E estes músicos gregos lamechas. Já para não falar das bailarinas, que são patéticas. Mas para que raio de sítio me trouxeste, Zaira?
Dorina Vassalli tinha posto nos ombros a primeira estola que encontrara, certamente não sua, e subido para o convés superior para manter uma distância razoável entre ela e aquela gente com quem não tinha nada a ver.
- Não te comeces a armar em princesa desprezada - criticou Zaira. - Sabes perfeitamente que estas festas são todas iguais. Servem para os donos da casa se porem na montra, para os convidados mostrarem riquezas lícitas e ilícitas e para os jornalistas encherem os jornais de coisas que as pessoas lerão avidamente.
- E o que é que nós temos a ver com isso?
- Tudo e nada. Os convidados são in. Se te excluírem, ficas out. Só isso. Neste caso específico, esta recepção serve para a Marta mostrar o seu barco e fazer saber ao ex-marido que ela está mais que nunca na crista da onda - disse Zaira, ao mesmo tempo que afagava as costas da amiga.
- Não podemos ir embora? Isto é um tédio de morte - queixou-se Dorina.
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- Logo agora que se vai cortar o bolo e fazer o anúncio oficial do noivado da Marta com o cirurgião americano? A anfitriã podia levar a mal. O que me deixaria completamente indiferente se a Marta não fosse uma das minhas melhores clientes.
- Então também tu tens interesse em alimentar esta barafunda.
- É verdade - replicou Zaira, com um ar teatral. - Estou aqui por baixos motivos de interesse. E por nada deste mundo quero contrariar a Marta.
- Gostas dela? - perguntou Dorina, mordida pelo ciúme.
- É difícil negar o facto de ela ser uma bela mulher.
- Perguntei-te se gostas dela - insistiu a amiga.
- O meu tipo és tu - respondeu Zaira a sorrir, ao mesmo tempo que a afagava.
- Mas foi o nome dela que incluíste entre as dez mulheres mais elegantes do mundo. Não o meu.
- Sim, por dinheiro - acrescentou com ironia. - É um tipo de publicidade - explicou - que para um estilista é mais importante do que uma colecção bem conseguida.
- Mas está-me a apetecer ficar um bocado sozinha contigo ronronou Dorina.
- Porquê, a mim não? Tem mais um bocadinho de paciência. Temos a noite toda para nós - sussurrou-lhe ao ouvido, enquanto Dorina se derretia de prazer.
Era bom sentir-se amada e protegida por uma mulher forte e meiga como Zaira. A marquesa tinha-lhe ensinado os prazeres inefáveis da diferença que desaguavam numa ternura nunca experimentada. Dorina Vassalli e Zaira Manodori-Stampa formavam um par estável há alguns anos, e a mulher do empresário tinha encontrado na nova companheira e nas suas carícias o equilíbrio que a virilidade de Vassalli nunca lhe tinha dado.
Do salão em baixo chegava até ali o eco da música e um estalido de aplausos. Zaira chegou-se mais à amiga e beijou-a com paixão.
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Tea Corsini, do outro lado do convés, viu duas mulheres que se beijavam, sentiu-se profundamente pouco à vontade.
Desceu as escadas e tentou passar despercebida por entre os convidados. Também ela não se estava a divertir, e não via a hora de regressar a Marcello e aos seus cavalos.
No meio do salão, sobre uma mesa preparada para o efeito, sobressaía um bolo rectangular de três andares, coberto de glacé branco com complicados frisos dourados. No topo, dois corações de ouro trespassados por uma seta. Em cada coração um nome: Marta e James.
A apoteose do mau gosto, pensou Tea, horrorizada, apesar de admirar a mãe que, naquela noite, estava no máximo do seu esplendor. Marta trazia um vestido de lamé dourado, bordado com pérolas barrocas. Fios de pérolas, ligadas por fios de ouro muito finos, entrançavam os seus cabelos loiros, macios e brilhantes. Parecia saída de uma tela renascentista.
Zaira Manodori tinha posto naquele modelo toda a sua criatividade, obtendo uma autêntica obra de arte que exigira um trabalho prolongado e muito cuidadoso.
James Kendall, ao lado de Marta, tinha um ar tranquilo e ausente. Passava de vez em quando a mão pela testa ampla, quase como que a tentar libertar-se de um torpor sonolento, como se os aplausos e os sorrisos o impedissem de juntar as ideias.
- Um instante de silêncio, por favor - começou. - Parece-me que me cabe a mim dirigir-vos algumas palavras. E vou fazê-lo. Obrigado a todos por terem aceitado o nosso convite. - Falava com uma voz cansada, como se estivesse a declamar um papel que não era seu.
Marta lançava olhares resplandecentes aos convidados. Viu a filha e tentou chamar a sua atenção esboçando um gesto com a mão. Tea sorriu-lhe.
- Eu considero-me um homem afortunado pela mulher que me coube em sorte. Já fui casado duas vezes e fui o mais infeliz dos maridos. Desde que conheci a Marta sinto-me o mais feliz,
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desculpem a palavra antiquada, dos noivos. com a certeza de consolidar esta alegria, pedi a esta maravilhosa criatura para casar comigo.
Enquanto estalavam os aplausos, Marta sussurrou qualquer coisa ao ouvido de James.
- Só mais um instante, por favor - disse o cirurgião. - Neste momento tão bonito, gostaríamos de ter junto a nós Tea, a filha da Marta.
Tea corou e tentou escapar, mas o imperioso chamamento materno capturou-a.
- Meu amor, aqui... aqui junto à tua mãe - solicitou Marta, com um tom autoritário.
Tea inclinou a cabeça em sinal de rendição, apesar de saber que não era o amor materno o que a reclamava, mas a necessidade da mãe em ostentar a harmonia de uma ligação que era, pelo contrário, uma sucessão tempestuosa de abandonos e de breves reconciliações.
Os flashes dos fotógrafos imortalizaram o abraço entre mãe e filha. Aplausos e gritinhos sublinharam a cena.
- Vai ser a Tea a cortar a primeira fatia de bolo - anunciou Marta aos convidados. E logo a seguir, voltando-se para a filha, censurou-a em voz baixa: - És um desastre! Faz um sorriso para a imprensa. Parece que estás num funeral.
Foi nesse momento que o célebre cirurgião plástico abriu e fechou os olhos algumas vezes, inclinou ligeiramente a cabeça e vacilou.
- James, não te armes em engraçadinho - sibilou Marta, receando tratar-se de uma das habituais brincadeiras que o americano gostava de fazer em público.
- Não me sinto bem - disse, ao mesmo tempo que se deixava cair no tapete como um fantoche.
Um silêncio pesado caiu subitamente no salão, enquanto os fotógrafos descarregavam impiedosos as suas máquinas sobre a imobilidade do homem e sobre o espanto da mulher debruçada sobre ele.
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- Não te armes em idiota - sibilou ela, devagar -, estás-me a estragar a festa. - Estava furibunda.
O cirurgião foi levado para o quarto, enquanto Marta continuava a sorrir aos convidados aflitos.
- É um mal-estar passageiro - sossegava-os. - O James viveu um período de muito stress. É uma crise de cansaço. A festa continua. Eu vou descer para ver como ele está.
Tea, indiferente àquela confusão que não lhe dizia respeito, observou de um canto afastado as reacções dos convidados.
Marta entrou como uma fúria no quarto de James onde três médicos, seus colegas, conversavam entre si. Marta dirigiu-se a eles, agressiva.
- Então? - gritou. - Que brincadeira vem a ser esta? Ninguém lhe respondeu e ela calou-se.
Um dos médicos aproximou-se de Marta, segurou-a pelos ombros e olhou-a nos olhos, em silêncio.
- O que é que isto significa? - perguntou ela, com um fio de voz.
- Sinto muito, Marta - murmurou ele. - O James morreu. Marta libertou-se bruscamente dos braços do médico e olhou
em volta, mas já não via mais nada.
- Lá se foi o meu noivo - murmurou, e desatou num pranto, a lamentar-se: - Não se pode ser mais infeliz do que isto!
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Ermes tinha estado intratável durante toda a manhã. No bloco operatório implicava com toda a gente: enfermeiras, instrumentistas e assistentes. Depois da última cirurgia deixou ao assistente os pontos de sutura, passou pelo balneário, lavou-se, atirou com a touca e com a bata para o cesto e desceu até ao bunker do professor Pieroni, onde ficava a secção das altas energias com a bomba de cobalto e o recente ciclotrão para a radioterapia dos tumores. O velho cientista terminara já o seu programa e depois tinha voltado a subir.
Ermes entrou no elevador e carregou com força no botão do terceiro andar, onde ficava o gabinete do chefe. Retribuiu com um aceno de cabeça o cumprimento sorridente da secretária. Precisava de falar imediatamente com Pieroni para ter a confirmação das boas condições de saúde de Giulia, das quais agora duvidava. Giulia parecia atribuir aquele nervosismo que lhe tirava o sono unicamente às preocupações em relação a Giorgio. Mas o comportamento transgressor do filho irrequieto, segundo Ermes, não justificava as apreensões e as reticências da escritora naquele período.
Mudara radicalmente desde a noite em que se tinha sentido mal.
- Está tudo bem, Ermes - garantira-lhe o ilustre colega pelo telefone, depois de ter visto Giulia.
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Mas com o passar dos dias aquele "tudo bem" convencia-o cada vez menos. Porque havia Pieroni de lhe mentir? Excluía a hipótese de ele guardar para si os cuidados reservados aos doentes. O diálogo entre eles era o diálogo contínuo entre a vida e a morte. Os dois aspectos extremos da existência eram para ambos matéria de confronto quotidiano. Para além disso, naquele caso específico, Ermes esperava até receber do colega algum conselho, uma luz que tornasse menos densa a escuridão que o invadia.
Teria ele passado, de repente, a ser o doente?
Giulia mantinha-o à distância. Nos últimos dias nunca tinham conseguido estar juntos. Nos raros encontros, ela mostrava-se distante, inacessível. E agora tinha partido, deixando-lhe uma mensagem.
Preciso de estar sozinha durante algum tempo, escrevera-lhe. Espero que consigas perceber e que saibas esperar. Amo-te. Giulia.
Não lhe disse para onde ia, nem com quem. Ambra, quando ele passou lá por casa, foi tudo menos clara.
- Senhor doutor, sinto muito. Não sei o que lhe hei-de dizer respondeu. - De há um tempo a esta parte, isto parece uma casa de doidos - concluiu.
- Porquê? - insistiu ele.
- Só sei que o Giorgio lhe causa muitos dissabores. Um dia houve uma discussão tremenda entre eles. Depois chegou o Dr. Rovelli e levou o rapaz com ele. No dia seguinte a senhora fez as malas e foi-se embora - confessou Ambra. - Eu não sei mais nada, senhor professor. Acredite.
Mas ele não acreditou e fez-lhe uma pergunta precisa: - Na sua opinião, a Giulia não está bem?
Ambra olhou para ele de cima a baixo, como se não tivesse percebido.
- Bem, bem, não está - respondeu. - Está pálida, não come. Mas eu sei lá - respondeu, aborrecida -, eu não sou médica. Normalmente ela abre-se comigo. Mas desta vez... nada - concluiu, desolada. - Um dia veio cá a D. Isabella. Fecharam-se no escritório. A senhora fartou-se de chorar.
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Ermes foi ter com Isabella.
- Não me obrigues a falar, Ermes - começou ela, em resposta à pergunta que ele ainda não lhe tinha feito. - Não posso.
- Porque é que não podes?
- Prometi solenemente - garantiu, ao mesmo tempo que levava uma mão ao coração.
Ermes ia a contar com a efusiva frivolidade de Isabella para a levar a falar, mas apercebeu-se de que Giulia tinha erigido um muro de silêncio em volta daquele segredo.
Ermes procurou então Leo, telefonando-lhe para o jornal, mas uma secretária respondeu-lhe: - O Dr. Rovelli está de férias.
Nessa altura debateu-se com sentimentos diversos. Sobretudo, achava-se dominado por uma violenta crise de ciúmes, que explodiu nele como uma alergia, que lhe cortava a respiração e a capacidade de raciocinar objectivamente. Convenceu-se de que Giulia tinha partido com o filho e o ex-marido.
As contas batiam certas. Giorgio, em plena crise de adolescência, reclamava, para salvar o seu próprio equilíbrio, a mãe e o pai.
Não lhe tinha também acontecido a mesma coisa com a filha? Apenas alguns meses atrás, Tea tinha requerido uma aproximação entre ele e Marta. Porque não podia ter acontecido a mesma coisa a Giulia?
Naquele momento era um homem inseguro, cheio de dor, atormentado pelo medo de perder aquela mulher. Uma coisa era certa: tudo começara na noite em que Giulia se tinha sentido mal e fora ao consultório do professor Pieroni.
A secretária avançou à frente dele e abriu-lhe a porta do gabinete do chefe de serviço.
- Pode entrar, professor Corsini - disse-lhe, sorridente e cordial.
Ermes aproximou-se da secretária do colega.
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- Quero saber o que tem a Giulia - perguntou sem sequer o cumprimentar.
Pieroni observou-o com aquele seu jeito ao mesmo tempo severo e paternal.
- Porque é que não lhe perguntas a ela? - respondeu o professor, sem atribuir importância à atitude peremptória e impositiva do cirurgião. - Naquilo que me diz respeito, está óptima. Mas se queres saber mais alguma coisa, porque não lhe perguntas a ela? insistiu Pieroni.
- Porque se foi embora - capitulou Dermes.
- Há telefones - sugeriu o outro.
- Não sei para onde foi - continuou, desconsolado.
- Fica sossegado, a Giulia está bem. Que importância pode ter algumas náuseas, alguns vómitos... - sugeriu Pieroni.
Naquele momento Ermes adivinhou a verdade: - A Giulia está grávida - exclamou.
- És tu que estás a dizer isso, não eu - precisou Pieroni, com o rosto intenso iluminado por um sorriso.
- E obrigou-te a prometer que não dizias nada. É isso? - insistiu.
- Mais uma vez, és tu que estás a falar, não eu.
- Mas porque é que ela não me disse nada?
- Tu disseste tudo, Ermes. Eu só te posso garantir que, do ponto de vista físico, a Giulia está bem - concluiu, enquanto o acompanhava à porta.
- Não tens mais nada para me dizer? - insistiu, numa última tentativa.
- Mais nada, Ermes. - Despachou-o da maneira afectuosamente brusca que lhe era habitual.
Ermes caminhou com um passo seguro pelo corredor até ao elevador, com um rosto radioso de felicidade. Pensava em Giulia, no filho que ela lhe ia dar e sentiu-se pai pela primeira vez. Não tinha sido assim com Tea. Lamentou-se por isso, sentindo-se culpado. O seu firme propósito, naquele momento, era o de encontrar Giulia, onde quer que fosse.
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- Original, como se diz por aqui, mas uma grande figura, o seu avô - disse Artemio Zoboli, o pai da pequena Zaíra, enquanto andava às voltas, na grande cozinha, com o fio eléctrico de uma lâmpada. Era um homem jovem e calmo, mas sequioso de aventuras. A vida do avô Ubaldo era uma fonte inesgotável de episódios divertidos, heróicos, eróticos, insólitos.
- Eu era pouco mais do que um rapazinho quando ele morreu
- continuou o guarda. - Foi em Milão, não foi?
- Sim, em Milão - confirmou Giulia a sorrir.
- Nos braços de uma grande actriz - arriscou Artemio.
- Julgo que sim - disse Giulia, que não queria desiludir o seu interlocutor. Na realidade tratara-se de uma voluntariosa reitora de um liceu arrebatada pelo fascínio e pela prepotente sexualidade de Ubaldo Milkovich.
Artemio falava do avô, da sua vida, dos seus amores, e dali resultava um personagem um pouco diferente daquele que Giulia tinha conhecido e amado. Em qualquer caso, ouvia pacientemente a conversa do guarda. Uma das muitas coisas que tinha aprendido é que, na vida, tudo tem um preço. O candeeiro tinha avariado e as histórias de Artemio eram o preço que tinha de pagar para o ter a funcionar de novo.
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- Ora bem, agora já deve estar a funcionar - disse o homem ao mesmo tempo que ligava a ficha. - E realmente funciona acrescentou, enquanto acendia e apagava a lâmpada. - Precisa de mais alguma coisa, minha senhora?
- Mais nada - agradeceu Giulia, acompanhando-o à porta. Quando Artemio saiu, ela aproximou-se da estante. Pegou
num dos muitos cadernos que tinha enchido com anotações quando, na sua juventude, escrevia o seu diário. Sentou-se à mesa, acendeu a luz e começou a ler:
Hoje faço quinze anos. Estou apaixonada pelo Ermes e detesto o mundo inteiro. A caligrafia era ordenada e clara, em alguns pontos hesitante.
com um arrepio pensou no diário de Giorgio, que lhe tinha tirado do quarto antes de partir e que, naqueles dias, tinha lido e relido infinitas vezes. Em todas as páginas descobria um abismo de infelicidade.
Agora tentava confrontar a sua adolescência com a do filho. Da sobreposição emergia apenas a confusão em que Giorgio vivia e a sua própria incapacidade de lhe dar a segurança de que, evidentemente, ele precisava. Nas palavras do filho estava a crónica desolada de um falhanço.
Se ela tinha falhado com Giorgio, com que espírito poderia aceitar a vinda de outro filho?
Entregar Giorgio a Leo tinha sido um sinal de fraqueza, um gesto de rendição para delegar no pai uma responsabilidade que ela não tinha sabido assumir.
- Eu trato de o meter na ordem - prometeu Leo.
Mas o que poderia fazer aquele homem com um rapaz de quem não sabia nada?
"Sou um fumador habitual de haxixe." Aquelas palavras, a dramática síntese de uma dependência confessada quase com orgulho, continuavam a obcecá-la. Como poderia Leo convencê-lo a renunciar àquilo?
- Avô, o que terias tu feito no meu caso? - perguntou, enquanto observava uma fotografia de Ubaldo Milkovich, vestido de
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caçador, a sorrir-lhe dentro de uma moldura de prata pousada no aparador.
- Não teria fugido - pareceu dizer-lhe o avô. - Quem foge, leva atrás de si os problemas, não os resolve. - Sim, parecia-lhe mesmo ouvi-la, a voz quente e convincente do avô.
- Já não há pontos de referência precisos - continuou Giulia em voz alta -, os filhos fogem-nos da mão. E é difícil indicar-lhes valores absolutos em que acreditar.
O avô continuava a sorrir-lhe da moldura.
- Eu falhei como mãe. É justo ter outro filho, na minha idade, com estes pressupostos? E depois deixei que um homem que nem sequer conheço me beijasse - disse, culpabilizando-se.
Tinha caído a escuridão de uma noite carregada de Outono. Naquela conversa silenciosa com o avô, Giulia procurava alguma luz para dissipar as sombras que a aterrorizavam. Era um diálogo intenso, sofrido, que a impedia de ouvir alguém bater insistentemente à porta da cozinha. Mas ouviu a voz de uma menina.
- Minha senhora, abra. Depressa.
- O que foi, Zaira? - perguntou Giulia, aproximando-se da porta.
- Estão a perguntar por si ao telefone. De Milão.
Giulia foi atrás da filha do guarda. Só Ambra sabia o número de telefone de Artemio.
- Giorgio? - perguntou Giulia imediatamente, aterrorizada, quando pegou no auscultador.
- Não, é por causa do deputado Zani. Foi internado no hospital de Niguarda - comunicou-lhe Ambra. - Tem de ir ter com ele depressa. Parece que é muito grave.
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A notícia da faustosa recepção a bordo do Nautilus e da sua trágica conclusão já tinha dado a volta ao mundo. Em todos os jornais apareceram as fotografias de Marta Montini, resplandecente, ao lado do noivo e de Tea. Depois as imagens de James, um corpo sem vida, ceifado por um enfarte fulminante.
A bordo do avião que a levava de volta a Itália, Marta continuava a folhear jornais e a soluçar. Estava sinceramente desesperada com aquela ocasião perdida, a montra estilhaçada, o seu lindo brinquedo desfeito.
- Mãe, acalma-te por favor - sussurrou-lhe Tea, que ia sentada ao lado de Marta e sentia em cima dela os olhares dos passageiros de primeira classe.
- Porque é que eu tenho de me preocupar com esta meia dúzia de imbecis que me estão a ver sofrer? E se calhar até gozam com isso. Será possível que tu não entendas?
Era realmente uma mulher destruída.
- É claro que entendo. Mas não é a dar espectáculo que vais encontrar alívio para a tua dor - insistiu.
- Mas que dor. Isto é uma grande chatice - rebateu. - Tu não estavas lá quando me caíram em cima os advogados daquele grande filho da puta. Deixou-me sem uma lira. Tudo para os filhos e para as duas ex-mulheres. A villa de Antibes. A casa de
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Nova Iorque. A clínica de Los Angeles. O barco. O dinheiro. Tudo para eles. A mim, só os olhos para chorar. Ofereci-lhe oito longuíssimos meses da minha vida. Os meus dias. As minhas noites. Só eu sei o que me custou aturá-lo, chato e vaidoso como era.
- Mãe - disse Tea, escandalizada -, eu julgava que tu gostavas dele.
- Gostar dele? - replicou. - Estava louca por ele. É impossível não amar uma montanha de dólares.
- A tua reserva de brutalidade é inesgotável - constatou a filha.
- A sinceridade é sempre brutal - sentenciou.
A mãe não ia mudar nunca e, no entanto, Tea sentia por ela uma pena infinita.
Quando, depois da morte de James, se tinha atirado em lágrimas para os braços dela, implorando-a que a ajudasse, Tea decidira ligar ao pai.
- A mãe está desfeita - disse-lhe. - Queria levá-la para minha casa - pediu-lhe.
- Tudo bem. Desde que a tenhas sob controlo. É bem capaz de armar confusão - consentiu Ermes. - Apesar de, depois deste golpe...
Marcello estava à espera dela no aeroporto. Marta não se dignou prestar-lhe muita atenção. Sempre o considerara um inepto e tinha feito tudo o que estava ao seu alcance para impedir aquela união com Tea. Os seus sentimentos não tinham mudado, mas devia modificar pelo menos o seu comportamento.
Podia até encontrar hospitalidade em outro sítio, mas corria o risco de entrar em choque com Ermes e com o pai que, praticamente, lhe tinham imposto um exílio perpétuo. Naquele momento, não suportava a ideia de ficar sozinha.
Marta e Tea entraram no Land Rover do conde Marcello Belgrano e partiram para a pequena quinta nos arredores de Cassano dAda.
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Fontechiara era o nome da coudelaria de Tea Corsini e Marcello Belgrano. Uma extensão de dois hectares com uma casa rústica de dois andares, uma grande cavalariça, dividida em dois sectores, que albergava catorze cavalos, e uma mais pequena para quatro póneis.
- Bem-vinda a Fontechiara - disse Marcello, ao mesmo tempo que ajudava Marta a sair do Lana Rover.
- Queres dar uma vista de olhos por aí? - perguntou Tea, que sentia muito orgulho na sua propriedade.
- Como é que não está aqui ninguém? - perguntou Marta, espantada, à espera de um batalhão de instrutores, empregados e moços de estrebaria.
- Estamos nós - disse simplesmente a rapariga.
- Nós quem?
- O Marcello e eu.
- Mas não me digas - retorquiu Marta, a rir - que são vocês que fazem tudo.
- Vê-lo-ás por ti.
- Tu queres que eu acredite - replicou, enquanto observava o picadeiro e a casa onde viviam os dois jovens -, que tudo isto é de facto gerido por vocês?
- Exactamente - interveio Marcello. - Para já não nos podemos dar ao luxo de pagar empregados - explicou.
Marta voltou-se para Tea.
- Queres dizer que investiste aqui dentro todo o capital do teu avô? - perguntou, sempre directa ao cerne da questão.
- Não toquei nesse dinheiro - explicou a filha. - O pai deu-nos uma ajuda para comprar os cavalos. Pedimos emprestado ao banco o resto do dinheiro de que precisávamos.
- Vão depenar-te com as taxas de juro - constatou a mãe.
- Fontechiara já está em actividade. E estamos a pagar as dívidas. Durante todo o verão tivemos alunos das nove da manhã às nove da noite - explicou Marcello, com orgulho, enquanto entravam nas boxes. - Agora, como já está frio, as aulas terminam às sete.
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- Aqui temos os meios-sangues alemães, Hanoveriano e Holstein. Esta é a Ortensia - explicou Tea, indicando uma fantástica égua castanha com um ventre enorme. - Daqui por uns dias vai dar-nos um potro - acrescentou.
Marta ficou impressionada com os grandes olhos lânguidos da égua e com a sua expressão extremamente doce.
- Como vê, as boxes estão divididas com grades de metal para que os cavalos, ao verem-se, se familiarizem uns com os outros explicou Marcello. - Os cavalos, tal como nós, têm uma grande necessidade de conviver - continuou. - E aqui, separados por esta parede, temos quatro puros-sangues irlandeses e os nossos dois árabes, Kacina e Kadim.
- Interessante, muito interessante - disse Marta, com um ar condescendente. - Mas quem é que trata efectivamente da limpeza, do chão, das rações?
- Se quiseres, eu repito, mãe. A resposta é sempre a mesma: o Marcello e eu. Levantamo-nos todos os dias às seis da manhã e
acabamos de trabalhar às dez da noite.
Marta teve um lampejo de admiração por aquela filha tenaz e voluntariosa que durante anos tivera sob o seu domínio; uma criatura frágil e atormentada que agora trabalhava catorze horas por dia e falava com naturalidade e competência do seu trabalho.
- E saem à noite? - perguntou Marta. - Vão divertir-se?
- A nossa maneira de espairecer, felizmente, é o nosso trabalho. À noite fazemos as contas. Entradas, saídas, IVA, facturas. Quem trabalha tanto como nós, ainda que quisesse, à noite não se pode dar ao luxo de uma distracção que não seja o sono - disse Tea.
- Vai ser preciso contratar rapidamente alguém que te dê uma mão - decidiu Marta, com a sua arrogância habitual. - Eu não quero que a minha filha se mate a trabalhar como uma escrava protestou.
- Nós estamos lindamente assim. O Marcello e eu somos os patrões e, como dizem os ingleses, ninguém é escravo do seu próprio cavalo.
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- Se realmente queres assim... - replicou, incrédula.
- Tu não consegues entender isto, eu sei. Mas, pela primeira vez, sou completamente feliz - declarou, olhando-a bem nos olhos e desafiando-a a demonstrar o contrário.
Marcello tinha ido tirar as malas do Land Rover.
- Mas ele - perguntou, observando-o de longe com um ar céptico -, ele - repetiu -, o que meteu nesta empresa?
- Meteu-se a ele próprio. E o amor que tem por mim. Não é pouco, mãe - respondeu Tea, ao mesmo tempo que se dirigia ao companheiro.
Marta continuava convencida de que o arruinado Marcello Belgrano, conde de Sele, era um oportunista, mas apercebia-se de que ia ser difícil libertar a filha daquela ligação.
- Leva as minhas malas para dentro - disse Marta a Marcello, com ar complacente, ao mesmo tempo que avançava à frente dele.
Ele seguiu-a com um carregamento de malas e de chapeleiras.
- A senhora será servida - respondeu, irónico.
- Por favor, Marcello. Acabou de chegar - sussurrou Tea, lançando-lhe um olhar suplicante.
Marta olhou em volta. A filha e o companheiro viviam numa casa rural recuperada. A entrada dava directamente para uma sala de estar mobilada de forma espartana.
- Sinto um vago perfume de estábulo - foi a primeira observação de Marta. - Vai ser preciso tratar disso.
- Não há nenhum vago perfume nem há nada para mudar replicou Tea. - E, de resto, para nós está lindamente assim - acrescentou, decidida. - E tu vais ter de te adaptar.
- Como quiseres, querida. Desde que estejas contente. Onde é o telefone? - perguntou, olhando em volta.
- Lá em baixo. Por favor, usa-o com parcimónia - avisou. Percebes o que quero dizer. Isto é, no sentido da economia, mais do que da discrição. O Marcello e eu fazemos as contas ao centésimo e não nos podemos permitir aos luxos a que estás habituada.
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Havia uma consciência nova na voz e na expressão da filha. Marta olhou para ela, espantada.
- Não foste criada para viver num estábulo - recordou a Tea.
- E, francamente, não percebo o que é que encontras de atractivo nisto tudo. - Apontou para o quarto, perplexa, com um amplo gesto do braço. - Mas dá-me algum tempo para eu mudar um bocado as coisas.
- Desde que te refiras às tuas coisas. As nossas estão muito bem como estão - rebateu com decisão.
Tea suspirou, resignada, e Marta iniciou o primeiro de uma série de telefonemas. Nas barbas da filha e das suas recomendações, o primeiro número que marcou correspondia a um assinante de Nova Iorque.
- Quero falar com o advogado Martin Newton. Sou Marta Montini - disse à telefonista. E, quando teve o advogado em linha:
- Quero mover um processo aos herdeiros do James Kendall.
Tea e Marcello estavam agora sozinhos, nas cavalariças. Marcello abraçou-a.
- Tive saudades tuas - disse.
- Também eu. Foi terrível, garanto-te.
- Posso imaginar, conhecendo a tua mãe. E agora que ela aqui está, o que é que fazemos? Como devemos comportar-nos?
- Continuaremos a vida de sempre e vamos aprender a defender-nos das suas intrusões - respondeu Tea.
- Tenho medo - confessou Marcello.
- De quê?
- Vai tentar mais uma vez afastar-te de mim - confessou Marcello, abraçando-a com força.
- Vai tentar de novo. É mais forte do que ela. Mas nós crescemos ambos. Não nos deixámos cair na armadilha quando éramos dois inconscientes. Imagina agora - concluiu alegremente.
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- Tea, tinhas mesmo de a trazer para aqui?
- É a minha mãe. Cortou as pontes com toda a gente. O que mais podia eu fazer?
Tea refugiou-se nos braços do homem que a tinha ajudado a refazer a sua vida. Mas não sabia que Marta estava já a tramar um plano para os separar.
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Giulia conduziu naquela noite esticando ao máximo o seu velho Mercedes. Conduziu no meio do nevoeiro e da angústia. Mais do que vê-la, intuía a estrada. Imaginava que na escuridão havia gigantes que a esperavam para a agredir e ela se atirava a eles não para os desafiar mas para vencer o desejo de fugir. Porque o instinto lhe sugeria a ruga da morte do pai, que pressagiava iminente.
Tinha ligado a Ermes antes de sair de casa do avô.
- Finalmente, Giulia - exclamou, ao ouvir a voz dela.
- O Armando Zani está muito mal. Foi internado no Niguarda. vou a correr para lá. Ainda vou demorar umas duas horas a chegar. Por favor, vai ao hospital e ajuda-o. - Sabia que Ermes faria tudo o que estivesse ao seu alcance por aquele homem, a quem ela estava tão profundamente ligada.
Era quase meia-noite quando Giulia estacionou o carro no parque gelado e escuro do grande hospital de Milão.
Subiu a correr um lanço de escadas, seguindo as setas que indicavam a recepção.
- O Sr. Armando Zani - disse ao homem corpulento que estava a fumar dentro de uma guarita suja.
O funcionário consultou uma lista de nomes num papel que tinha à frente.
- A senhora é parente? - perguntou, olhando-a com indiferença.
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Giulia respondeu num impulso: - Sou a filha.
- Pavilhão Carati, segundo andar, quarto dezoito - informou o homem.
Giulia saiu para uma alameda varrida por um vento gelado, tenuemente iluminada por uns escassos lampiões. A cidade-hospital fazia-lhe lembrar um cenário de ficção científica.
Edifícios brancos em estilo fascista, de grandes janelas que afagavam a escuridão com uma luz levemente azulada, erguiam-se numa paisagem astral. Nem uma presença, nem uma voz, nem um ruído: apenas medo e dor.
Caminhava devagar, depois da ansiedade com que tinha devorado a estrada de Modena a Milão. Ia ao encontro, sentia-o, de um facto inelutável, que ninguém poderia mudar. Giulia tinha aprendido a reconhecer, se não a decifrar, os sinais do destino.
Apercebeu-se de que estava a tremer por baixo do blusão de lã pesada. Escutava o eco dos seus passos ao longo da alameda deserta e tremia.
Já tinha perdido um pai, o professor Vittorio de Blasco. Mas isso acontecera quando tinha vinte anos. Como reagiria agora a uma nova e dolorosa separação?
O percurso indicado obrigou-a a desembocar numa galeria de arcadas descobertas fustigada pelo vento.
De repente, tropeçou numa coisa macia. Podia ser lixo ou farrapos. Giulia conseguiu não cair e, depois de recuperar o equilíbrio, lançou um grito de terror. No chão, encostado à parede da galeria aberta, estava um ser humano enroscado numa capa ou casaco esfarrapado. Dois olhos ardentes como tições observavam o medo que sentia.
Giulia lembrou-se de ter ouvido e lido sobre vagabundos e drogados que arrastavam o desespero até aos cantos mais escuros dos grandes hospitais. Começou a correr com o coração a saltar-lhe no peito e, finalmente, chegou até uma grande porta de vidro. Abriu-a e entrou num átrio sujo. Carregou com força no botão e esperou a chegada de um elevador que rangia.
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- Puta - grasnou uma mulher atrás dela com uma voz estafada, cheia de fumo e de vinho. Era uma mendiga que estendia ameaçadoramente os braços flácidos e cansados na direcção dela.
Giulia não esperou pelo elevador. Fugiu, trepando pelas escadas, seguida pelos insultos da vagabunda. Em que tremendo planeta tinha ela aterrado? Aquilo era um hospital, um sanatório ou a corte dos milagres? com agilidade, conseguiu criar uma distância razoável entre ela e a mulher.
Chegou ofegante ao segundo andar e empurrou a porta do pavilhão onde o pai estava internado. Mais um átrio, desta vez mais limpo e mais iluminado. Alguns bancos ao longo das paredes. Dois retratos a óleo, provavelmente de generosos benfeitores. Pontas de cigarro nos cantos. Sobretudo, um lamento, um dilacerante lamento, no meio de um vaivém de batas brancas. Giulia deu alguns passos hesitantes em direcção a uma porta pela qual médicos e enfermeiros entravam e saíam.
O lamento tinha-se tornado agora uma voz distinta, uma súplica pungente.
- Ajuda-me, Ermes. Ajuda-me a respirar. Tenho dores. Ar. Quero ar.
Giulia parou à porta, petrificada. Numa maca imaculada, um corpo trespassado por um emaranhado de tubos, de olhos arregalados para ela.
- Giulia. - Armando reconheceu-a imediatamente. Estava reduzido a um coágulo de dor.
Para além dos dois médicos estava também Ermes, que foi ao encontro dela. Agarrou-a bruscamente pelos ombros e empurrou-a para fora.
Estavam outra vez no átrio iluminado e voltou a ouvir o lamento débil do moribundo.
- Está a sofrer muito. Não podes lá ir - impôs Ermes.
- Está a chamar por mim, Ermes. O meu pai está a chamar por mim - disse, confessando um segredo que Ermes conhecia há muito tempo. - Não o deixes sofrer - implorou Giulia, desesperada.
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Ermes obrigou-a a sentar-se num banco e sentou-se ao lado dela, pegando-lhe afectuosamente nas mãos.
- Não sabemos o que lhe aconteceu - tentou explicar-lhe. Não sabemos a razão deste abdómen tenso e dorido. Sabemos que vai morrer se não fizermos alguma coisa imediatamente.
Ermes afastou-se. Giulia tremia e sentia o corpo todo trespassado por agulhas de gelo.
Veio uma enfermeira com um copo de água e uma tacinha de metal com um comprimido dentro.
- Tome, minha senhora - sugeriu. - Foi receitada pelo Dr. Corsini.
Giulia recusou com um gesto de cabeça. Não precisava de calmantes. Precisava, isso sim, de manter íntegra a sua lucidez para tentar perceber aquilo que estava a acontecer, para viver até ao fundo a tragédia do pai.
Ermes voltou junto dela.
- Estão a levá-lo para o bloco operatório. Para a urgência. A esta hora é o único bloco disponível - explicou.
A última imagem que Giulia teve do pai foi a sua cabeça de cabelos cinzentos encaracolados a sair de uma máscara de oxigénio que lhe cobria todo o rosto.
A ambulância partiu a grande velocidade pela alameda tenuemente iluminada por alguns lampiões pálidos. Ela e Ermes seguiram de carro. Giulia continuava a bater os dentes e a tremer.
Quando chegaram à urgência viram um médico que se dirigia a eles.
- Acabou - disse.
Giulia recordou Armando Zani com os olhos de quando era criança. Era lindo, cheio de vida e de coragem. E ela queria continuar a recordá-lo assim.
- Quer vê-lo? - perguntou-lhe o médico.
- Ermes, leva-me para casa - respondeu, ao mesmo tempo que se dirigia à saída com um passo cansado. Aquilo que restava de Armando Zani já nada tinha a ver com ela.
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Foi a voz de Ermes que acordou Giulia. Estava a falar ao telefone. Ela sentou-se a custo no sofá onde tinha adormecido. Ermes tinha-lhe dado um sedativo que a fizera dormir um sono agitado, cheio de pesadelos.
Sentiu na cozinha a presença de Ambra e começou a recordar os acontecimentos da noite anterior.
Ermes concluiu uma breve conversa da qual Giulia não entendeu sequer o sentido. Depois foi até junto dela.
- Como estás? - perguntou-lhe com ternura.
- Tu não dormiste - respondeu Giulia.
- A notícia já chegou a Roma - comunicou-lhe, referindo-se ao telefonema que acabava de receber. - A imprensa foi informada. Os noticiários falam de funeral de Estado. O Benny e a Isabella também ligaram enquanto estavas a dormir. O que é que vais fazer?
- Não quero ver ninguém. Sobretudo, não quero que se saiba nada sobre mim - respondeu, cansada.
- Eu vou ajudar-te - disse Ermes. - Apesar de - acrescentou,
- ninguém saber nada sobre ti. Por aí apenas se sabe que o Zani era um amigo querido da tua família.
- Mas, se a informação passou - replicou, preocupada -, toda a gente vai saber que eu estava no hospital quando ele morreu. É fácil tirar conclusões.
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Ermes acariciou-lhe os cabelos para a acalmar.
- Há bocado ligou de Roma o notário do Armando. Os filhos do Zani estão de partida, dos Estados Unidos. Vêm ao funeral. Também disse que precisa de estar contigo.
- Eu sei - confirmou Giulia. - Eu bem queria evitar tudo isto. Ambra chegou da cozinha com um café.
- Sinto muito, minha senhora - disse ela, enquanto pousava o tabuleiro na mesinha da sala. - Posso fazer alguma coisa por si?
- Já estás a fazer - respondeu Giulia, com um sorriso.
- É tão sem sentido tudo aquilo que se segue à morte de uma pessoa querida.
O telefone interrompeu-a. Ermes atendeu.
- É o Leo - disse. - Quer falar contigo. Já soube.
Giulia agarrou no auscultador. Ouviu Leo, e depois disse: - A minha opinião sincera? Tu e o Giorgio ficam onde estão, por favor. Provavelmente o Armando vai ser transportado para Roma. Eu não vou ao funeral de Estado.
Despediu-se do ex-marido e saiu lentamente da sala de estar. Ermes foi atrás dela até ao jardim, agora despido, onde se tinham conhecido e onde tinha nascido aquele amor. Ela era uma menina e ele tinha vinte anos. Eram pobres, mas o futuro era rico de promessas.
- Giulia, o que vais fazer agora? - perguntou Ermes, que observava impotente aquela prostração.
- vou despedir-me pela última vez do meu pai, antes que os corvos devorem a sua memória - respondeu.
Giulia apanhou uma delicada rosa de Novembro que florescera apesar do frio e pensou que muito em breve estaria murcha.
- É o destino das rosas - disse. - E dos homens - acrescentou.
- O quê? - perguntou Ermes, sem perceber.
- Estava a pensar no meu pai - tentou explicar -, em mini. Em nós - continuou.
- Estás cansada - afirmou ele. - E o frio não ajuda. - Era um convite para regressarem ao interior de casa.
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Mas Giulia não sentia o frio, nem ouvia as suas palavras. Olhava para aquela delicada rosa de Inverno acabada de colher e pensava que Armando Zani, o grande amor da sua mãe, o grande amigo e companheiro de luta do avô Ubaldo, o seu verdadeiro pai, já não existia.
Tinha-se juntado uma pequena multidão de curiosos à entrada da capela do hospital. Quando ela passou, ao lado de Ermes, dispararam os flashes. Os restos mortais do deputado estavam dentro do caixão. Um jovem sacerdote celebrava a missa. Estava presente Isabella, com o marido e os filhos, e Benny, com Silvana e as crianças. Todos a abraçaram. Isabella chorava.
- Sabemos bem do teu afecto por ele - disse a irmã, com uma dignidade convincente. - Uma perda realmente dolorosa - sentenciou.
Giulia e Ermes sentaram-se num banco na primeira fila. O jovem padre pronunciava palavras de circunstância, recordando algumas passagens do Evangelho: - Só aqueles que acreditam em mim alcançarão a vida eterna - disse. E continuou: - A integridade moral deste homem que usou a política como uma espada para combater a corrupção e o pecado é reveladora da sua profunda fé cristã. Estão aqui reunidos alguns amigos do nosso irmão Armando. Cristo está perto deles e do seu sofrimento por esta perda.
Mas quem seria aquele padre que se arrogava o direito de falar de Armando sem o conhecer? Giulia tinha ido ali dizer um último adeus aos restos mortais do pai, mais para cumprir um ritual do que em obediência aos sentimentos que a animavam.
O seu coração e a sua alma eram para Armando vivo, e não para um caixão que não tinha mais emoções para lhe comunicar. Percebeu naquele momento que a missa era obra de Isabella, que nunca deixava de se fazer notar pela sua actividade organizativa.
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Sentiu então o desejo de se rebelar e de sobrepor a sua voz à do sacerdote para neutralizar aquelas banalidades e os lugares-comuns que não faziam justiça à figura de Armando.
Gostaria de ser ela a delinear um perfil daquele grande homem, com a sua coragem, os seus medos, as suas fragilidades, a sua força, os seus pecados, as suas virtudes. Gostaria de poder descrever a sua morte desesperada.
Tinha-o visto sofrer como um animal despedaçado pelos tiros de um caçador, tinha-lhe lido nos olhos arregalados a intensidade intolerável da dor que é a mais atroz das maldições e que retira ao homem todas as defesas e toda a dignidade. Gostaria de poder descrever os seus lamentos aflitivos.
Mas limitou-se a pousar sobre o caixão a rosa de Inverno do seu jardim, que começava já a murchar.
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Madi fechou à chave as gavetas da secretária. Foi à casa de banho arranjar o cabelo e passou um bâton pelos lábios. Estava preocupada por duas razões: o estado de saúde da sua cadelinha L7, uma poodle preta que absorvia todas as suas atenções maternais, e Franco Vassalli, o grande boss, a quem tinha há muito tempo e inutilmente dedicado os seus sentimentos de mulher.
L7 recusava-se a comer há dois dias. Franco Vassalli andava de péssimo humor e, coisa insólita nele, tratava-a como um ser humano. Naquele dia tinha-lhe até oferecido bombons. Um facto absolutamente novo e inexplicável.
Madi receava que Franco Vassalli tivesse pouquíssimas hipóteses de levar a bom porto todas as operações que tinha em suspenso. Antes de mais, a libertação da mãe. Aliás, e porque o conhecia bem, temia que aquela história acabasse por comprometer todas as outras se não se concluísse de forma satisfatória e o mais brevemente possível. Madi conhecia os sentimentos profundos que ligavam Vassalli à mãe.
Eram nove horas da noite de sexta-feira. Tinha dois dias para ela e para a sua L7. A não ser que o patrão lhe pedisse horas extraordinárias.
Bateu à porta do gabinete de Vassalli.
- Entre - disse ele.
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Madi abriu a porta. Franco estava sentado à secretária. Em frente a ele estava o advogado Mário Tosi.
- Se não precisa mais de mim... - começou, apercebendo-se de que os dois homens estavam a discutir animadamente.
- Até segunda-feira - disse Vassalli muito depressa. Naquele momento o telefone da secretária de Madi lançou um
toque petulante. Ela atendeu imediatamente.
- Um momento, por favor. - Entrou em comunicação com Franco: - Está uma senhora na portaria - anunciou. - Diz que se chama Antonella e que tem um encontro consigo.
- Mande-a subir e traga-a até aqui. Depois pode ir. Obrigado
- respondeu Franco e, voltando-se para o mais hábil dos seus advogados - e tu também devias ir, Mário - concluiu, sem dar explicações.
Antonella era um misto de campeã de Wrestling e peixeira de um mercado de bairro. Não muito alta, corpulenta, rija, de rosto largo com o maxilar forte, olhos azuis pequenos e penetrantes, cabelos loiros, pintados, mãos como prensas. Trazia um casaco branco de bom corte e vinha a fumar um cigarro numa longa boquilha negra.
Aquela mulher era um duro golpe para a segurança de Madi. Julgava saber tudo sobre Vassalli, mas havia muitas coisas, evidentemente, que ainda não sabia. Meteu também aquele encontro na conta das coisas estranhas dos últimos dias. Acompanhou aquela espécie de virago até ao gabinete do big boss, voltou a fechar a porta e saiu.
No gabinete presidencial da Provest, Franco Vassalli lia atentamente algumas folhas escritas à máquina que a visitante lhe tinha trazido. Cada uma das folhas tinha um cabeçalho: Antonella Roghi. Informações.
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Chegou ao fim da última página e depois ergueu os olhos para a mulher que, em pé, do outro lado da secretária, lançava fumo como uma locomotiva enquanto o observava com os seus pequenos olhos penetrantes.
- Isto é tudo? - perguntou Franco, a olhar para ela.
- Isto é a resposta às suas perguntas - precisou, com uma voz de timbre cristalino que desmentia o seu mau aspecto.
- Acha que há mais alguma coisa para saber? - perguntou ele.
- Talvez haja mais a fazer - objectou. - Mas trata-se de uma operação arriscada. É difícil prever as reacções de sujeitos como aqueles. - E acrescentou: - Mas provavelmente conhece-os melhor do que eu.
- Conheço-os bem - admitiu.
- Tem a certeza de que não quer pedir uma intervenção da justiça? - perguntou.
- Isto é uma questão pessoal. Não quero nenhuma intervenção externa - decidiu. - Eu cá me arranjo sozinho.
- Nesse caso, desejo-lhe as maiores felicidades. Vai precisar, acredite.
Estava já à porta, pronta para se ir embora. Franco levantou-se, abriu um pequeno cofre de parede e tirou de lá um maço de notas de cem mil liras. Fez menção de o entregar à mulher.
- Agora não - opôs-se ela, recusando o dinheiro com um gesto.
- Era isso mesmo que eu esperava de si - observou Franco, ao mesmo tempo que voltava a meter o dinheiro no sítio. - Arrumamos tudo quando a operação estiver concluída. Ainda vou precisar de si.
- Chame-me quando quiser - disse ela a sorrir, enquanto abria a porta do gabinete e voltava a fechá-la atrás de si. Vassalli pegou nos papéis que a mulher lhe tinha entregado, entrou na casa de banho contígua ao gabinete e queimou-os, deixando cair na sanita os resíduos carbonizados.
Voltou ao gabinete e olhou para o relógio. Eram quase dez horas da noite. Ligou para casa. Atendeu o empregado. - Não vou dormir em casa esta noite - comunicou Franco.
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Abriu uma porta, dissimulada na estante, e entrou num quarto pequeno mas confortável. Despiu-se e enfiou-se debaixo da roupa. Apagou a luz e, na obscuridade, murmurou: - Mãe, não julgues que te abandonei. É que as coisas devem seguir o seu curso. Tem mais um bocadinho de paciência.
Estava a chorar.
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Giulia estava deitada na marquesa. Ermes, com uma sensibilidade absorta, explorava os seios da mulher que amava com mãos experientes.
- Agora põe os braços atrás da cabeça - disse-lhe, com uma firmeza afectuosa. - Isso, muito bem. Deixa estar assim. - Ela obedecia com docilidade às suas instruções.
Ermes começou a explorar as cavidades das axilas, milímetro a milímetro, descendo e subindo em direcção ao pescoço.
- Agora senta-te - pediu-lhe.
Giulia, ao erguer-se da posição em que se encontrava, levantou pudicamente com uma mão a camisa de seda para cobrir o seio.
Virou a cabeça para o outro lado. A observação dos seios era sempre carregada de embaraço e ambiguidade.
Finalmente, Ermes dedicou uma grande atenção aos mamilos, apertando-os entre o polegar e o indicador. Depois foi ele próprio, com um gesto afectuoso, que a tapou com a camisa.
- Está tudo bem - garantiu -, podes acabar de te vestir.
Ela deslizou rapidamente para trás do biombo, enquanto ele se sentava à secretária à espera dela e à procura das palavras certas e convincentes para abordar um problema que dizia respeito aos dois.
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- Vamos ter este filho, se tu o queres realmente - disse, quando ela apareceu à sua frente, completamente vestida.
- Diz-me quais são os riscos que vou ter de correr - perguntou ela, com um tom peremptório. - Diz-mos todos, até ao fundo. Brutalmente, se for preciso.
- A verdade é que a tua gravidez não é um problema. Garanto-te.
- Tenta explicar-me porquê.
- Em tempos pensava-se que a maternidade, numa mulher operada a um tumor num seio, pudesse desencadear novamente a doença. O aumento da progesterona e as alterações hormonais eram considerados factores de risco. Na realidade, verificou-se que não há nenhuma prova científica desta teoria. Aliás, há uma literatura convincente, baseada em factos concretos, que testemunha precisamente o contrário. Eu sou um dos que acreditam que a tua gravidez te vai provocar uma grande vontade de viver.
- Que neste momento não tenho - esclareceu ela.
- Que ainda não tens. Mas somos dois - tentou persuadi-la. Eu vou estar ao teu lado. Sempre. com todas as minhas forças.
- Nunca duvidei de ti, Ermes. É comigo mesma que não posso contar.
- Por isso é que não me tinhas falado no assunto? E que também tinhas imposto ao Pieroni que não me falasse?
Giulia assentiu.
- Sinto muito que tu tenhas sabido por linhas travessas. Da maneira e no momento errados.
- Não há maneiras erradas para se receber o anúncio de uma paternidade. Pelo menos para mim.
- Ermes, não tentes influenciar-me - avisou ela.
- Porque é que dizes isso? - perguntou ele, desconfiado.
- Porque ainda não decidi se vais ser pai. Nem sequer sei se eu quero ser mãe.
- O que é que te impede?
- Por exemplo, a ideia do tempo que poderei ter de passar nesta clínica a submeter-me a centenas de exames.
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- Não mais do que qualquer outra mulher nas tuas condições. Vais fazer regularmente análises de sangue e de urina. Vais fazer os controlos ginecológicos. Como qualquer outra mulher, vais ouvir os batimentos do coração do teu filho a partir do quarto mês. Vais comer carne, fruta e legumes, renunciando, dentro de certos limites, ao pão, à massa e aos doces. E é tudo. Sinceramente.
Ermes abraçou-a. - Está tudo bem, Giulia - tentou tranquilizá-la.
- É uma afirmação? - perguntou.
- É uma realidade.
- Que eu não sinto.
- Giulia, por favor - censurou-a afectuosamente.
- Sinto-me encurralada, Ermes - continuou. - Encostada à parede. Por ti. Por esta gravidez. Pelo fantasma da minha doença. Pelas minhas obsessões. Pelo meu filho. Pelo meu próprio temperamento.
- Um outro filho podia ser uma consolação. Um novo mundo de amor. Um antídoto para as tuas obsessões. Talvez até uma solução para os teus problemas.
Giulia olhou para ele com desconfiança. - De onde é que te vem essa segurança toda?
- De uma longa experiência - replicou pacientemente. Daquele mínimo de conhecimentos acumulados ao longo do tempo. Para além do mais, não te posso esconder que tenho um desejo imenso de ser pai.
- Portanto, se eu decidisse renunciar a este filho - comentou Giulia, com um ar sombrio -, a responsabilidade dessa recusa seria unicamente minha? Essa também é uma boa maneira de me encurralar.
- Acreditas mesmo nisso? - perguntou, olhando-a bem nos olhos com uma sombra de ressentimento.
- Sim... não... não sei.
- Ainda tens um mês para decidir. Mas a decisão final é apenas tua - disse com firmeza. - Entretanto, seja qual for a tua escolha,
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eu vou estar do teu lado. Anda - disse a sorrir, enquanto tirava a bata -, eu levo-te a casa.
No carro, ao lado de Ermes, Giulia estava insolitamente silenciosa. Quase hostil. Pela primeira vez, aquele companheiro demasiado bom, demasiado correcto, demasiado tudo, parecia-lhe um extraterrestre.
- Tu nunca tens dúvidas? - perguntou-lhe bruscamente. Quero dizer, sabes sempre qual é a coisa certa a fazer?
- Naquilo que te diz respeito, sim. A minha serenidade está ligada à tua presença. A minha força vem de ti.
- É mais um peso, aquilo que me ofereces.
Ermes sentia sobre ele o profundo mal-estar de Giulia, que a morte do pai tinha aumentado. Sentia a sua necessidade de isolamento, o desejo de se reencontrar consigo mesma. Tinha já feito uma tentativa para se afastar, refugiando-se na casa do avô.
- Não conheço as minhas intenções, mas gostava imenso de as descobrir - disse ela.
- Na próxima semana vou aos Estados Unidos. vou estar fora quinze dias. Já ando há muito tempo a adiar uma série de encontros na Universidade de Columbia de Nova Iorque. Queres vir comigo? - incitou-a.
- Prefiro ficar sozinha - disse, com uma grande sinceridade. Importas-te?
- Muito. Mas, apesar de seres a mulher mais atraente que alguma vez conheci, recuso-me a passar a vida com medo de te perder.
Giulia acariciou-o. - Agradeço-te.
- Quando eu voltar - disse ele, com uma sombra de comoção -, se ainda me quiseres a mim e ao nosso filho, será por teres amadurecido uma escolha precisa. Livremente.
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Havia algumas embarcações pequenas viradas ao contrário na praia. O mar estendia-se, plano e cinzento, em direcção a um horizonte velado por uma neblina branca. Apesar do sol, sentia-se uma aragem húmida.
Leo estava sentado na borda de um barco e observava o filho que apanhava conchas para as atirar para longe. Tinha um ar triste e aborrecido.
Estavam juntos, ele e o rapaz, há vários dias, e apenas tinham trocado umas poucas palavras. Sempre que Leo tentava aventurar-se na intimidade de Giorgio, o filho fechava-se como um ouriço e negava-se a qualquer diálogo.
- Giorgio - chamou -, há alguma coisa que te apeteça fazer hoje?
O filho respondeu com uma careta. Leo tirou de um bolso do blusão um maço de cigarros. Acendeu um. Giorgio olhou para ele.
- Queres fumar? - perguntou-lhe o pai.
Giorgio anuiu a avançou em direcção a ele como um cachorro, pronto, por um cigarro, a assumir qualquer compromisso. Leo estendeu-lhe o maço. Há três dias que o impedia de fumar e o seu humor tinha piorado. Leo entendia-o bem. Também ele tinha começado a fumar com aquela idade.
E nunca mais parara.
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Giorgio acendeu o cigarro e Leo ficou a vê-lo respirar veneno.
Sentiu um arrepio correr-lhe ao longo da espinha. Aquilo que valia para ele não valia para o filho. Como se, fumando juntos, não corressem o mesmo risco.
Nunca se tinha sentido tão profundamente desconfortável como naqueles dias com Giorgio, que descobria estranho e hostil.
Estavam numa pequena casa de praia que pertencia a Lavinia, a rapariga que vivia com o jornalista havia já algum tempo. No Outono a praia ficava deserta e Leo tinha achado que aquele seria um bom sítio para meter o rapaz na ordem.
Tinha deixado Lavinia em Milão para que ela não perturbasse, com a sua presença, aquilo que Leo considerava uma actividade de recuperação. A sua grande ambição era ter sucesso onde outros tinham falhado, mas bem depressa se apercebeu de que precisava de instrumentos e tempos diferentes daqueles de que dispunha.
Giorgio fumava com a obtusa e provocadora presunção do miúdo desenhado nos cartazes das campanhas antitabaco.
- Se eu ao menos soubesse de que é que tu gostas - pensou Leo em voz alta.
- Apetecia-me fumar outras coisas também. É disso que eu gosto - confessou Giorgio. O "fumo" era o único assunto sobre o qual parecia disposto a conversar. Aspirou avidamente uma baforada e sentou-se ao lado do pai, sobre o ventre largo do barco.
- Eu não consigo entender-te - disse Leo, sentindo e repelindo ao mesmo tempo o desejo de lhe pregar um par de estalos.
- Porque é que não experimentas? Porque é que não fumas um chillum comigo? - perguntou o rapaz, entusiasmado. - Tenho a certeza de que ias gostar. - Um estranho sorriso pairava nos seus lábios.
- Olha que eu já fumei de tudo na vida - confessou Leo. Charros, também. E também o teu maldito chillum. Mas, antes de mais, não tinha a tua idade. E depois fi-lo como tu dizes: para experimentar.
- E não gostaste? - perguntou Giorgio, interessado.
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- Prefiro as mulheres. Parece-me um jogo mais atractivo. Um divertimento mais alegre, onde há vida, não um longo sono sem sonhos. Tu gostavas de meninas. Tinhas um monte de admiradoras. Onde é que elas foram parar?
- São umas chatas - tentou defender-se Giorgio. - Têm o nariz empinado. E sentem-se autorizadas a pregar-nos sermões.
- Se calhar não gostam de ver um amigo armado em cretino, a deixar-se cair no lixo, a espezinhar a sua juventude, só para parecer aquilo que não é.
- Falas tão difícil, jornalista - provocou-o.
- Tradução: se calhar não gostam de ver um imbecil a tentar vestir as roupas do Super-Homem e a só conseguir ser um grandessíssimo palerma.
- Ora, estás a ver? Nem vale a pena falar. Eu sou palerma porque continuo a fumar aquilo que vocês, burgueses, se obstinam em considerar uma porcaria. - Giorgio atirou para longe a ponta do cigarro.
- Tu não és palerma só porque fumas - continuou Leo -, és palerma porque não estudas.
- Sabes o que é que me interessa o Grego e o Latim? A álgebra e a sintaxe?
- O teu avô, o professor De Blasco, criou os filhos com o grego, o latim e a sintaxe.
- Já viste que rico resultado? Uma tonta como a tia Isabella, um sabichão como o tio Benny e uma fanática como a minha mãe.
- Que síntese edificante - constatou Leo. No fundo, era aquilo que ele também pensava. - E eu? Como é que vês o teu pai? - perguntou, já decidido a malhar em ferro quente.
- Tu também fazes parte da família - declarou o rapaz. E continuou: - Eu não faço parte de nada. Sou um prisioneiro de guerra. Das vossas guerras. Vim parar a esta família. E alguém me fez cair numa armadilha.
- Em suma, não se safa mesmo ninguém? - perguntou Leo, irritado.
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- O mítico avô Ubaldo, o meu bisavô. Esse safa-se. E talvez a avó Carmen. Pelo pouco que me lembro. - Um lampejo de ternura brilhou no olhar do rapaz. - Era muito meiga comigo, a avó Carmen. Nunca me gritava e não me obrigava a pensar como os outros.
- Mas o que é que tu estás para aí a dizer, Giorgio? - desmentiu o pai. - Tinhas pouco mais de dois anos quando a avó Carmen morreu.
- Mas lembro-me dela - insistiu o rapaz. - É talvez a única imagem que conservo gravada na minha memória. Foi precisamente aqui, nesta praia, que a vi pela última vez. Estava debaixo de um guarda-sol. Disse-me: "Fica quietinho, Giorgio. Não saias daqui. Eu vou tomar banho". Vi-a entrar na água a caminhar lentamente. Vi-a afastar-se e ficar cada vez mais pequena. Ao fim era só um ponto. Depois também isso desapareceu.
Tinha contado o fim da avó com um ar sonhador, e mesmo depois de se calar ficou-lhe uma expressão absorta no rosto.
Seguiram-se uns longos instantes de silêncio. Os factos, mais ou menos, tinham decorrido assim. Mas lembrar-se-ia Giorgio realmente da tragédia, ou não teria por acaso reconstruído a crónica do suicídio pegando em pormenores de conversas tidas em família ao longo dos anos? A intensidade da narrativa depunha a favor de uma memória muito precoce. Se assim era, o peso daquele drama tinha seguramente exercido influência sobre ele e sobre a sua serenidade.
- Alguma vez perguntaste a ti mesmo porque teria a tua avó acabado assim? - quis saber Leo.
Giorgio pareceu reflectir.
- Não, nunca me questionei sobre isso. Mas é mesmo necessário uma pessoa ter razões para fazer uma coisa? Qualquer coisa?
Tinham começado a caminhar, pai e filho, sobre a areia húmida e compacta.
- Eu diria que sim - replicou Leo. - Eu acho que a tua avó era muito infeliz. E a morte, a certa altura, pareceu-lhe o menor dos males.
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- A mim a ideia do suicídio - interveio Giorgio - não me parece uma grande solução.
- Nem a mim - concordou Leo. - Basta um pouco de paciência. É preciso saber esperar.
- É precisamente a espera que não me convence.
- Então começa a viver - incitou-o o pai.
- É o que eu estou a fazer - reagiu Giorgio.
- Tens mesmo a certeza? Rejeitas a escola. Cospes na família. Deixas-te apanhar por dois polícias a comprar haxixe. Estás no caminho do aturdimento, não no da vida. - Leo sentia-se encorajado pela aparente disponibilidade do rapaz. - Alguma vez abordaste o assunto com a tua mãe? - insistiu.
Giorgio abanou a cabeça.
- Porquê? - insistiu Leo.
- Porque ela não me ia ouvir. Ia dizer que sou um preguiçoso.
- E és. A tua mãe tem o hábito de chegar depressa ao âmago da questão.
- Pai, já estou farto de estar neste sítio - declarou o rapaz, encerrando o capítulo das confissões.
- Onde é que queres ir?
- Não sei. Porque é que não me dás dinheiro? Podia fazer uma viagem. Podia ir a Amesterdão. Estive lá em Julho do ano passado. Só durante quinze dias. Porque depois tive exames de segunda época. Gostava de lá ir outra vez. É um paraíso.
- De droga. - Leo não conseguiu conter aquela afirmação.
- Como podes constatar, não estou em estado de dependência. Estou há três dias sem haxixe e ainda não fiz cena nenhuma.
- Mas só para estabelecer alguns pontos firmes - rebateu o pai -, Amesterdão, podes esquecer.
- Outro ponto firme - disse Giorgio - é que vocês podem esquecer a escola. Porque eu não volto lá.
- Parece-me bem - sorriu Leo, que naquele momento estava capaz de o esbofetear. - A escola é um direito. Qualquer pessoa pode renunciar a ela. Só que, nesse caso, tem uma obrigação: ir trabalhar. Se renuncias à escola, vais ter de ir trabalhar.
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- Porquê? Não preciso de ganhar dinheiro para viver.
- E quem disse?
- É a lei que diz. Até aos dezoito anos, tu ou a mãe têm de me sustentar - declarou, com um cinismo frio.
Leo sentiu-se ferido pela brutalidade do rapaz e pensou naquilo que lhe devia responder, evitando a clássica bofetada que, no entanto, lhe pareceria uma resposta adequada.
- Sabes uma coisa, Giorgio? - disse, parando à frente dele e olhando-o bem nos olhos. - Já me encheste a paciência. Prometi à tua mãe que te levava de volta a casa no teu perfeito juízo. Agora sei que não vou cumprir a promessa. Por isso não lhe vou devolver um estafermo sem nenhuma vontade de se redimir para a submeter aos seus caprichos.
- E o que é que vais fazer, pai? - Convidava-o para a luta com um sorriso que pedia um par de estalos.
- vou fechar-te num colégio - declarou.
- Que nojo - sibilou. - Metes-me nojo, nojo, nojo - repetiu com desprezo. - Tu não me vais fechar em lado nenhum. Vocês metem-me nojo, todos. Não me chateiem mais.
E Giorgio desatou a correr pela praia, para longe do pai e dos seus fantasmas.
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- Vou-me embora amanhã, Giulia - anunciou Ermes. Era noite. Estavam na sala de estar, em casa de Giulia.
- Tens a certeza de que queres ficar sozinha? - perguntou-lhe.
- É a única certeza que tenho.
- O que foi que aconteceu entre nós, Giulia? O que foi que se quebrou na nossa relação? - Perguntas vazias, banais. Ele sabia a resposta mas não podia acreditar que a psicologia de Giulia obedecesse à regra geral de uma grande percentagem de mulheres operadas ao seio.
- Se calhar não aconteceu nada. Tu és o homem que eu sempre quis. E amo-te sinceramente. Devo-te tudo: os meus sonhos de rapariga, a minha vida de mulher. O prazer de estar nos teus braços.
- E então?
- Aconteceu-me qualquer coisa que não te sei explicar, mas que sobretudo não sei explicar a mim mesma. Nasceu dentro de mim a necessidade de me sentir desejada.
- E tem um nome? - perguntou Ermes, surpreendendo-a.
- Quem? - Giulia tentou ganhar tempo.
- O outro - insistiu ele.
- Não. - Deu por ela a mentir, pensando em Franco Vassalli.
- Um desejo genérico, portanto - rebateu ele, controlando-se.
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- Não é fácil para mim revelar-te aquilo que sinto - respondeu, reencontrando algum equilíbrio. - Sempre me senti depositária de uma integridade moral muito precisa. E agora dou-me conta de que há pulsões que contradizem a minha vocação. E quebram este conceito de moralidade. Pode fazer-nos mal, mas é a verdade. E uma vez que te respeito, sinto a necessidade de te dizer esta verdade.
- São tantas as verdades, meu amor. E tão complicadas que nos fazem perder a cabeça. E depois eu não acredito em furores abstractos. Não há delito sem motivo. - Ermes sorriu com amargura. - A tua necessidade de ser cortejada é compreensível. Mas a pulsão, o desejo, para ver se nos entendemos, tem uma mira. É provocado por um encontro. Precisa de um engodo. Que pode ser uma faísca ou um raio.
- Tu sabes coisas de mais. - Giulia tentou brincar.
- Achas? Obviamente não sei que chegue, e sinto-me um verme. Tinha-se levantado e dominava-a do alto da sua estatura.
- Não voltes a dizer isso - pediu Giulia.
- Como não? Tu estás grávida e não sabes se queres um filho. O nosso filho. Dizes que me amas e desejas um bando de pavões em volta. O que queres de mim? O que pretendes que eu faça?
- Que respeites os teus planos.
- Ir-me embora e deixar-te sozinha?
- Foi uma decisão tua.
- Podia até não voltar. Pensaste nisso?
- Podia até mentir-te. Pensaste nisso?
- Seria um sinal de maturidade. Podias ter resolvido sozinha o teu problema.
- E dizer-te depois do facto consumado?
- Tinhas-me evitado uma crise de ciúmes.
- És demasiado seguro de ti para seres ciumento - sublinhou Giulia.
- Mas sou. Pela primeira vez na minha vida sinto-me profundamente, raivosamente ciumento. E quem é ele? - disparou à queima-roupa.
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- A sério que não sei de quem é que estás a falar - mentiu pela segunda vez.
Talvez tivesse exagerado. Talvez fosse de facto terrivelmente imatura. Ermes não lhe deu tréguas.
- Falo daquele que fez nascer dentro de ti todas estas dúvidas, estas perplexidades. Estes desejos.
- Quantas mulheres operaste ao seio na tua vida? - perguntou-lhe. - Quantos percursos clínicos seguiste? Quantas confissões de mulheres ouviste?
- Muitas. Demasiadas. Algumas mulheres traíram os maridos, se é isso que queres saber. Muitas desejaram fazer isso.
- Eu não te traí. Ainda não, pelo menos - disse com crueldade. - E não percebo por que razão o trauma que provoca terramotos psicológicos nas outras deva passar sem danos sobre mim. Sou uma mulher como tantas outras.
- Não - discordou, ao mesmo tempo que a agarrava pelos ombros com raiva. - Tu és a minha mulher.
- E tu és o meu homem, valha-me Deus. Eu sei. E sei que não te quero perder. Mas não podes mudar a minha maneira de pensar e conduzir os meus desejos para onde tu queres. Nem sequer eu posso fazê-lo.
Giulia tinha-se abandonado nos braços de Ermes e chorava.
- Mas porque é que eu tinha de me apaixonar logo por ti? perguntou ele, apertando-a contra o peito. - Logo a mim havia de calhar esta mulher estranha e complicada, imprevisível e desesperada? E se há outro homem na tua vida, diz-me. Não, é melhor não me dizeres nada. Porque eu não seria capaz de suportar isso.
- Não há ninguém, Ermes - afirmou, pensando em Franco Vassalli, nas duas vezes em que a tinha beijado e no prazer que sentira. Agora, nos braços de Ermes, achava que tinha sido uma colegial estúpida. Achava que estava a ser sincera enquanto repetia: - Não há mesmo ninguém, meu amor.
- Acredito, mas eu estou apaixonado e cheio de ciúmes - sorriu de novo. Mas era um sorriso amargo e triste.
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- É um ciúme injustificado - rebateu Giulia, ao mesmo tempo que limpava as lágrimas.
Aquela espécie de psicodrama tinha tido, no fim de contas, um efeito benéfico, apesar de muitos dos nós não se terem desfeito. Giulia sentiu-se livre de um peso, leve e quase feliz.
Subiram juntos a escada até ao quarto. Despiu-se e viu-o despir-se. Amou-o e deixou-se amar com um arrebatamento que há meses não conhecia. Foi como se a onda quente e vibrante de uma renovada vitalidade a tivesse submergido.
Depois tocou o telefone. Era Leo a ligar-lhe de Rimini.
- O Giorgio fugiu - disse. - Andei o dia todo à procura dele. Já avisei a polícia.
205
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A sala de jantar de Dorina Vassalli, no apartamento da via Bagutta, era pequena e acolhedora. As paredes tinham frescos com motivos florais em tons de azul e amarelo-claro. A mesa de vidro era sustentada por duas colunas coríntias em pedra rosada com capitéis de folhas de acanto. As cadeiras eram modeladas em liana rattan e a mesma liana delineava os contornos de um aparador comprido e baixo onde estavam expostos pequenos e preciosos cálices e vasos antigos de vidro de Murano. Naquele aposento íntimo e refinado, como em todo o resto da casa, havia a mão de Zaira. Uma mão subtil, forte e delicada.
A empregada filipina levou para a mesa uma bandeja de cogumelos porcini en croute e logo se espalhou em volta um delicado aroma selvagem.
Franco estava sentado à cabeceira, em frente a Dorina. Estavam as duas gémeas, e Zaira também. Uma singular reunião de família.
- Pai, quando é que pagas o resgate da avó? - perguntou Verónica, que das duas meninas era a mais extrovertida.
- Quando os magistrados e os raptores me permitirem - respondeu.
As meninas não nutriam por aquela avó nenhum afecto particular. Tinham-na visto poucas vezes e, ainda assim, tinham experimentado nesses raros e difíceis encontros sensações contraditórias.
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A avó tinha-se oferecido para brincar às bonecas com elas, mas depois disputava o papel principal da brincadeira e afirmava que as bonecas eram as suas meninas e as meninas eram as suas bonecas.
Uma vez, Serena e as netas chegaram a discutir e a puxar os cabelos umas às outras e Franco, depois disso, evitou qualquer possível ocasião de encontro. E, no entanto, Serena Vassalli continuava a ser um tema de conversa entre Verónica e Violante, que não podiam conceber a complexidade de uma doença mental e se obstinavam em considerar a avó como uma velhinha estranha, muito diferente das avós das amigas.
Houve depois uma troca de frases entre Dorina e Zaira, rapidamente captadas pelas meninas, a propósito da avó Serena: - Ele insiste em deixá-la viver sozinha naquela casa enorme, mas devia interná-la numa clínica - era a constante indicação de Zaira.
- A questão é que ele é doido pela mãe. Apaixonado por ela insinuava Dorina.
Estes comentários enredavam ainda mais uma situação já de si muito complexa. As meninas andavam confusas. A relação entre a mãe e a tia, como se tinham habituado a tratar Zaira, era uma relação insólita. Acontecia por vezes a tia passar a noite em casa delas e dormir na cama com a mãe, um santuário que lhes estava rigorosamente vedado.
com as amigas as coisas passavam-se de uma maneira diferente, e nas camas das mães dormiam os pais.
- Verónica, não atormentes o teu pai com esta história horrível da avó - disse Dorina.
- Desculpa, pai - replicou Dorina -, posso comer mais um bocadinho de cogumelos?
Nas raras ocasiões em que Franco almoçava com elas, as gémeas reconheciam-lhe o papel de líder e pediam-lhe as coisas a ele em vez de pedirem à mãe.
- A verdade é que este silêncio dos raptores, após o primeiro pedido, é realmente estranho - comentou Zaira.
- E preocupante - reforçou Dorina.
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Olharam ambas para Franco, à espera de uma reacção. Argumentos não lhes faltavam. Havia casos em que se passavam meses ou mesmo anos antes que os raptores dessem sinais de vida. Mas a expressão de Franco continuou imperturbável.
- Também queres, Violante? - perguntou ele, ao mesmo tempo que estendia em direcção à outra filha a colher da travessa cheia de cogumelos e croúte, evitando as perguntas das duas mulheres. Olhou para elas com ironia, num desafio.
- Mas que grande bordel - exclamou Violante, estendendo o prato vazio para que o pai a servisse.
- Estás a ouvir a linguagem das tuas filhas? - sublinhou Dorina, feliz por poder orientar a conversa para outro tema.
- A que é que te referes? - perguntou Franco à filha, ignorando a observação de Dorina.
- Tu também não achas que estás a viver num grande bordel? Não é assim que se diz? - insistiu a filha.
Naquele momento, Franco recordou uma cena violenta entre ele e Dorina que se tinha concluído com a mesma expressão usada por ele e que a filha, obviamente, tinha adoptado. Só depois se apercebera de que Violante tinha ouvido e visto tudo. Acontecera quando as meninas tinham quatro ou cinco anos. Franco regressou mais cedo de uma viagem de trabalho, num sábado à tarde, quando as meninas estavam no jardim com a ama.
Encontrou a mulher e Zaira na banheira. E não estavam a fazer abluções inocentes. Observou-as por um longo instante, surpreendido com aquela descoberta esteticamente muito agradável para um homem, mas terrivelmente embaraçosa para um marido.
- Pardon - sussurrou, com o mais cortês dos seus sorrisos. Fechou lentamente a porta da casa de banho, saiu e foi ter com a mãe à villa sobre o lago.
Passou um dia e uma noite a reflectir sobre o seu casamento, que na realidade já não era bem isso desde que as meninas tinham nascido. Porque Dorina se recusava sistematicamente a ter relações com ele.
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No domingo regressou a casa e começou a fazer as malas. Ia mudar-se para outro sítio qualquer.
- Por isso agora já sabes tudo - disse Dorina, que para sua surpresa não parecia nada embaraçada.
- Não tinha considerado a possibilidade de ter como rival uma mulher - respondeu Franco.
- Ela dá-me toda a ternura de que eu preciso e de que um homem nunca seria capaz - tentou explicar.
Franco olhou para ela como se estivesse a vê-la pela primeira vez.
- De onde é que te vem essa segurança toda?
- Do meu psicanalista. Ando a fazer terapia há mais de um ano. E tu nem sequer te apercebeste disso.
- E o teu psicanalista disse-te para ires para a cama com aquela espécie de marquesa que tem mais vinte anos do que tu?
- Ensinou-me pura e simplesmente a aceitar-me como aquilo que sou. Sou lésbica, Franco. E sinto-me bem assim. Enquanto que tu és uma pessoa que ainda não conseguiu resolver a sua relação com a mãe.
- Aquela estilista brasonada é uma conhecida galdéria levantou a voz e corou de raiva.
- Não é a descambar nestas vulgaridades que vais resolver os teus problemas. Assim como não os resolves a andar com todas as mulheres que te aparecerem à frente, como sempre fizeste, para depois chamares pela tua mãe durante o sono, sempre que adormeces - provocou.
Franco agrediu-a na face.
- Fora desta casa - ordenou Dorina, ao mesmo tempo que lhe abria a porta.
- É o que eu estou a fazer - respondeu. - Mas não lhe chames casa. Isto é um bordel.
Violante, atrás da porta do quarto de vestir, viu-o sair a gritar aquelas palavras. E nunca mais as esqueceu.
Dorina, ao aceitar a sua diferença, resolveu uma parte dos seus problemas. Ele continuou a negar os seus, talvez porque tinha medo de os decifrar.
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Olhou para a filha que o fitava e disse: - Sabes uma coisa? Eu acho que há uma explicação para tudo. Basta raciocinar sobre os factos.
- Nem sempre - interveio Verónica, profundamente interessada no assunto. E acrescentou: - A mãe diz que tu estás apaixonado pela avó.
- Achas possível que um filho possa estar apaixonado pela mãe?
- Era uma resposta inconsistente que não convenceu as filhas.
Seguiu-se um silêncio carregado de tensão.
- A Verónica e eu estamos apaixonadas por ti, pai. Porque és lindo e forte. Mas a avó é velha e um bocadinho tonta e por isso, achamos nós, tu não podes ser o namorado dela.
Caiu gelo na sala.
- Vocês estão a confundir a admiração que sentem por mim com amor. É uma coisa completamente diferente. - Franco esforçava-se por conservar a calma, passando por cima das apreciações sobre a avó.
- Eu quando for grande gostava de casar contigo. E a Violante também - confessou ingenuamente a menina.
- Quando vocês forem grandes, eu vou ser um velhote um bocadinho tonto como a avó. - Disse aquilo a rir. Depois fulminou Dorina com um olhar e acrescentou; - Quanto ao resto, será melhor evitar que ouvidos inocentes escutem certas conversas.
Franco levantou-se da mesa e concluiu: - O almoço, para mim, fica por aqui. Tenho de me ir embora. - Estava fora de si. Regressou a casa de péssimo humor. No átrio da sua casa, na via Borgonuovo, encontrou um envelope branco fechado, endereçado a ele, sem selo. Abriu-o. Estava vazio. Aquela ausência de palavras escondia uma mensagem convencional, que Franco decifrou imediatamente.
Dobrou o envelope, meteu-o no bolso e saiu outra vez para a rua. Entrou num café que ficava na esquina com a via Monte di Pietà, inseriu uma moeda de duzentas liras e marcou um número no teclado do telefone público. Depois disse: - Chegou o segundo convite. vou partir. Quando regressar quero arrumar o assunto.
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Ao meio-dia as aulas de equitação em Fontechiara eram interrompidas durante duas horas, uma pausa necessária para o pasto dos cavalos e para o almoço de Tea e Marcello. O veterinário que tinha ido ver Ortensia fora embora há pouco tempo. Segundo as estimativas, faltavam ainda uns dias para o parto da égua. O acontecimento, no entanto, poder-se-ia verificar em qualquer altura nas vinte e quatro horas seguintes. Tea e Marcello entraram em casa para uma refeição rápida.
- A tua mãe onde está? - perguntou Marcello a Tea, quando não viu Marta ao telefone, como sempre.
- Se calhar já desmontou a tenda - exultou Tea.
- Ainda não. Mas estou prestes a cessar este incómodo - respondeu a mãe, apanhando-a de surpresa. Estava no cimo das escadas e começou a descer.
- Estava a brincar, mãe - mentiu Tea.
- Mas eu estou a falar a sério - confirmou ela. - Marcello - disse depois, dirigindo-se a ele com a sua inata atitude de comando -, podes ir ao meu quarto buscar as malas. E tu, Tea, chama um táxi, por favor.
Os dois jovens trocaram um divertido olhar de entendimento antes de cumprirem as respectivas ordens.
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- Adeus para sempre? - perguntou Tea, cheia de esperança, aproximando-se do telefone para chamar um táxi.
- Mas nem por sombras - respondeu, para grande desilusão da filha. - Trata-se apenas de uma breve estadia em Nova Iorque.
- Assim nem sequer vamos ter tempo para sentir a falta das tuas especialidades gastronómicas.
- Pois fiquem sabendo que são as únicas pessoas no mundo para quem cozinhei - esclareceu.
- Estamos-te gratos por isso - interveio Marcello, que vinha a descer como um paquete.
- Porque não vens comigo? - sugeriu à filha. - Uns dias de férias iam fazer-te muito bem.
- Sim, claro. Deixando o Marcello aflito. E com a Ortensia próxima do parto. Mãe, ainda não percebeste como funcionam as coisas aqui na quinta?
- Percebi que vocês precisavam de uns moços de estrebaria, mas que os vossos meios não vos permitem esse luxo.
Marcello passou ao lado dela, lançando-lhe um sorriso forçado, e saiu com as malas.
- Costumas estar com o teu pai? - perguntou Marta, mudando subitamente de assunto. Era a primeira vez que se referia a Ermes
- Não tanto como gostaria. O trabalho absorve-nos demasiado.
- E a escritora dele? - insistiu a mãe.
- O pai e a Giulia amam-se muito - sublinhou Tea.
- O que não impede a vossa Giulia de se entreter com o Franco Vassalli - insinuou.
- Mãe, quando é que paras com a tua má-língua?
- Se conhecesses o Vassalli, sabias que isto não é maledicência. Trata-se de um homem de primeira escolha. E se sou eu que to digo, deves acreditar.
- A Giulia ama o pai - afirmou Tea com convicção. - Daqui a pouco vão casar. A história acaba aqui. O teu táxi está a chegar anunciou, com a intenção de encerrar o assunto.
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- Não tracemos hipóteses para o futuro e dêmos tempo ao tempo - concluiu Marta, lançando a sua última flecha.
Entrou no táxi e dirigiu a Marcello um sorriso afectado. A Tea, de quem se lembrou então que não se tinha despedido, atirou um beijo distraído, soprado na ponta dos dedos. Ia já longe de Fontechiara, embalada na perspectiva dourada de um encontro mundano. Esta perspectiva era para ela uma injecção de vitalidade. Longe do brilho e do alarido dos salões a sua personalidade apagava-se, arrastando-a para a penumbra de um quotidiano insuportável. Decididamente, Marta não sabia viver longe das luzes da ribalta.
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- Eh, tu, vagabundo. Fora daqui - ordenou o camponês, que por pouco não o espetava, enquanto levantava a palha para o cavalo.
Giorgio acordou sobressaltado e arregalou para ele dois grandes olhos assustados. Tinha adormecido de repente, esquecendo fome e cansaço. E sonhava. Era um pesadelo angustiante. Estava nu num autocarro que o levava para a escola e sentia sobre ele os olhares trocistas e o desprezo das pessoas.
Giorgio levantou-se de um salto, com o coração na garganta, ameaçado pelo camponês. A realidade era sempre pior do que o sonho.
- Fora - repetiu o homem, com o ancinho apontado contra ele. Era um homem largo como um armário e forte como um boi que certamente não tinha medo do rapaz.
Giorgio olhou para a porta escancarada atrás do homem e perguntou a si mesmo como poderia sair, uma vez que o camponês lhe impedia a passagem.
O rapaz ergueu as mãos num instintivo gesto de rendição que o camponês interpretou como um sinal de agressão.
- Olha que se te mexes, eu espeto-te - disse-lhe. - E chamo a polícia.
Drogados e marroquinos, empurrados pela fome e pela necessidade de encontrar um refúgio, andavam por aqueles campos,
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tornando-se responsáveis por pequenos furtos e agressões perigosas.
Poucos dias antes, dois drogados, depois de ameaçarem uma mulher com uma seringa, provavelmente infectada, tinham-na obrigado a entregar-lhes uma mão-cheia de moedas e um fio de ouro. Tinham sido apanhados, mas as pessoas estavam alerta. Drogado era sinónimo de infectado. E os forasteiros eram considerados potenciais agressores.
- Eu não me mexo - balbuciou Giorgio. - Deixe-me ir embora.
- Tremia como um cachorro cheio de frio. Lá fora, o cão ladrava furiosamente. Era o mesmo animal, seco e forte, que o rapaz tinha visto com uma corrente antes de se refugiar no estábulo.
Num instante recordou aquilo que tinha acontecido. A fuga para longe do pai, na praia, uma estrada pelo meio dos campos áridos e a incessante caminhada sem rumo com o coração cheio de medo e de desespero. Recordou o frio de Novembro que lhe mordera com agulhas de fogo o rosto e as mãos. A fome escavava-lhe um vazio insuportável no estômago.
Tinha visto ao longe aquela casa rural, que lhe parecera deserta. Aproximara-se cautelosamente da eira. Depois viu um tractor pesado, uma carroça em mau estado, galinhas a esgaravatar no chão e o grande cão a rosnar, preso com uma corrente. Apareceu uma mulher à porta de casa, alertada pelo ladrar do cão, mas nessa altura o rapaz escondeu-se atrás do tractor.
A mulher conseguiu acalmar o cão e continuou a olhar em volta, desconfiada. Não vendo nada de estranho, voltou a entrar em casa, e Giorgio conseguiu chegar a uma zona com muita erva onde ficava o estábulo. A porta cedeu a uma leve pressão e ele sentiu uma tepidez densa que cheirava a palha. Estendeu-se por baixo do alçapão do palheiro e adormeceu imediatamente.
Agora não sabia que horas eram, nem onde estava, e a escuridão da noite no recorte da porta não o ajudava a orientar-se. A atitude do camponês aterrorizava-o. Estava no limite de o agredir, por sentir que tudo estava perdido.
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Fez uma última tentativa.
- Deixe-me ir embora - repetiu, sempre com as mãos no ar.
Via-se que o homem hesitava. - Eu não sou um toxicodependente - disse Giorgio.
O homem não acreditou, uma vez que o rapaz estava num estado deplorável: sujo, a tremer e de olhar alucinado. Podia ser confundido com um toxicómano em crise de abstinência. Finalmente o homem pôs-se de lado, deixando um espaço entre ele e a porta.
Giorgio deu um salto para a frente, desviando-se para evitar a forquilha do camponês, e saiu para a noite e para a liberdade, perseguido pelas imprecações do homem e pelo ladrar do cão. Correu desesperadamente, a tropeçar nos torrões de terra gelada, sem saber para onde ia, espicaçado pelo medo de ser apanhado e entregue à polícia.
Tinha sido terrível quando os dois polícias o haviam surpreendido em Milão e levado para a esquadra, humilhante e doloroso o encontro com a mãe quando o foi buscar. Pavoroso, depois, o que aconteceu a seguir. A realidade estava a ensinar-lhe que, para o pior, nunca há fim.
Agora corria em direcção ao nada num campo gelado e sombrio. Ao longe, viu uma sucessão de luzes em movimento. Uma estrada. Automóveis. Podia chegar lá e pedir boleia. Mas para onde? Continuou a correr em direcção àquela esteira luminosa que sempre era, em qualquer caso, um ponto de referência. Sentia uma dor intensa nos brônquios, que denunciava o excesso de cigarros e o fumo de haxixe.
Continuou a correr e, quando já estava perto da estrada e podia ouvir o barulho dos motores, pôs um pé em falso e caiu numa vala. Não sentiu uma grande dor, mas quando tentou levantar-se apercebeu-se de que o pé já não o aguentava. Então deixou-se cair sobre a terra gelada e começou a chorar. Soluçava e chamava pela mãe.
O medo venceu a dor e, fazendo força sobre o pé são, conseguiu levantar-se e chegar à estrada.
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Pediu boleia, mas ninguém parou, ninguém se importou com os seus gestos dramáticos.
- Parem, por favor - gritava, com a cara suja e sulcada de lágrimas.
Foi um camionista quem parou. Abriu o vidro e enquadrou-o com a luz de uma lanterna eléctrica.
- Não estás nos teus melhores dias - brincou.
- Não - admitiu o rapaz, que olhou para o camionista com afecto. Parecia-lhe um gigante forte e bom.
- Estás em muito mau estado.
- Sim - respondeu, profundamente convicto.
- Para onde queres ir?
- Para Milão.
- Anda, sobe - convidou-o.
O pé já não o aguentava e a dor ofuscava-lhe a visão.
- Não consigo - disse, com um trejeito de dor.
O homem estendeu um braço e puxou-o para dentro do habitáculo quente.
O camionista recomeçou a andar, enquanto Giorgio alargava os cordões da sapatilha que lhe apertava o pé dorido, como uma dentada.
- Está inchado e preto - constatou, assustado.
- Deves tê-lo torcido. Se estivesse partido estavas aí a guinchar como uma águia. Fugiste de casa? - perguntou o camionista.
- Sim - confessou o rapaz.
- Problemas?
- Alguns.
- Realmente, és um rapaz de poucas palavras.
- Onde estamos? - perguntou.
- Quase em Modena. Apanhando a auto-estrada, daqui a duas horas estamos em Milão - respondeu-lhe. - E em Milão, sabes para onde vais?
Não, não sabia. Só sabia que tinha fome, sede, sono, dores no pé e na perna. Desejava mais do que qualquer outra coisa voltar para
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casa da mãe, mas havia uma força misteriosa que o impedia. Giulia atraía-o e repelia-o como uma vertigem. Recordava o seu rosto e o seu perfume, a sua segurança, a sua clareza, a sua lógica desarmante à qual não conseguia fazer frente. E entrava em parafuso. Era a única pessoa no mundo que conseguia fazê-lo entrar em crise, fazê-lo cair no desespero e infundir-lhe sentimentos de ternura.
Podia ir para casa de Ambra, ou pedir asilo à tia Isabella, ou até ao tio Benny. Mas tinha vergonha de regressar à família naquelas condições. O mundo frio, vasto e terrível tinha-lhe dado uma dura lição. Desejava voltar atrás mas temia o juízo das pessoas sobre as quais tinha despejado todo o seu desprezo.
- Em Modena vivia o avô Ubaldo - começou por fim a descontrair-se. - Que era o meu bisavô. Era um partigiano. Um herói
- acrescentou. - Pelo menos é isso que contam. Eu nunca o conheci. Ainda existe a casa dele em Modena. Mas agora não mora lá ninguém.
- Queres que te deixe em Modena? - propôs o camionista.
- Vamos para Milão - decidiu Giorgio.
- Resolveste regressar a casa?
Respondeu que sim, mas na realidade eram as circunstâncias que decidiam por ele. Não tinha escolha.
O homem passou-lhe o termo do café. Giorgio serviu-se de uma boa quantidade no copo de plástico. Estava quente e doce. Pareceu-lhe a melhor coisa que tinha bebido na vida.
- Há quanto tempo é que não te sentas à mesa?
- Há uma eternidade.
O camionista estendeu um braço em direcção à cortina atrás de si e tirou de lá um saco de plástico que tinha dentro dois pães com presunto.
- Come - sugeriu, brusco.
- Porque é que me ajuda com tanto... com tanto afecto? perguntou Giorgio, comovido.
- A minha filha tinha mais uns anos do que tu - começou a contar. - Era linda e sorridente. Depois um dia o sorriso apagou-se.
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A mãe tinha-nos deixado para refazer a sua vida com outro. Eu não tinha muito tempo para lhe dedicar. Por isso começou a andar com uns imbecis. Encontraram-na na casa de banho de um bar em Cinisello Bálsamo, ainda com a seringa enfiada no braço. Morta. Vi-a no mármore da morgue. Continuava muito bonita. - O homem passou uma mão pelos olhos. - Chamava-se Chiara.
Giorgio estremeceu. Depois de um longo silêncio, disse: - Eu não me pico.
O camionista anuiu.
- De Milão eu sigo para França - disse. - Mas como é que tu vais chegar a casa com o pé nesse estado? - perguntou, preocupado.
- Peço boleia - disse Giorgio. A história do homem tinha aumentado o seu mal-estar.
- Tens algum dinheiro contigo?
- O meu pai esvaziou-me os bolsos. Estou sem uma lira e sem um cigarro.
- Antes assim. O dinheiro é a maneira mais eficaz para nos metermos em complicações. E os cigarros também. Talvez se eu tivesse sido menos generoso com a minha filha ela ainda cá estivesse. Talvez. Mas quem sabe.
Giorgio não estava de acordo, mas não o disse.
A seguir a Lodi, o homem entrou numa área de serviço. Estacionou o camião. Depois, amparando o rapaz, entrou no café, aproximou-se da caixa e comprou um cartão telefónico.
Giorgio, a saltitar num pé só, foi até ao telefone.
Marcou os primeiros algarismos do número da mãe, mas parou.
Marcou outro número.
- Olá - disse. - Desculpa se te acordei a esta hora. Lembrei-me de ti.
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Passava pouco da meia-noite quando Giulia recebeu o segundo telefonema de Leo.
- O Giorgio foi visto num estábulo, numa aldeola na zona de Forli - comunicou-lhe.
- Como estava? - perguntou, aterrorizada.
- A dormir. Um camponês surpreendeu-o no palheiro. Fugiu. Teve medo. O camponês telefonou à polícia. Andam à procura dele. Pelo menos, agora sabemos que está vivo - concluiu.
Giulia estava no escritório. Ermes continuava junto dela e tinha-lhe dado um calmante logo a seguir ao primeiro telefonema de Leo.
- E tu onde estás? - perguntou Giulia.
- Na esquadra da polícia - disse Leo.
- Achas que o vão encontrar?
- Eles dizem que sim.
- Não pode ter ido para muito longe, pois não? - perguntou, à procura de respostas que a tranquilizassem, e que o ex-marido não lhe podia dar.
- Talvez ande pelos campos. Talvez tenha chegado à estrada. Talvez tenha até apanhado uma boleia - admitiu Leo.
- E se tivesse voltado para tua casa? - perguntou Giulia.
- Eu saberia. Tenho um vizinho a vigiar a casa. Mas acho que ele vai tentar regressar a Milão - disse Leo.
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- Mantém-me informada - pediu Giulia.
- Eu ligo-te daqui a pouco. Espero dar-te notícias melhores. E desligou a chamada.
Giulia deixou-se cair contra as costas do sofá e fechou os olhos. Ermes acariciou-a. - Vamos encontrá-lo, são e salvo.
- Esperemos - disse ela, e acrescentou: - Estou contente por estares aqui comigo. Até porque tu passaste por este mesmo sofrimento.
- Referes-te a Tea, não é verdade?
- Que já resolveu os problemas dela.
- Também Giorgio os há-de resolver - afirmou Ermes. - Mas será que esse regresso à realidade resolve mesmo os problemas deles e os nossos? Nós próprios temos dificuldade em conviver com as nossas ansiedades. E no entanto, de alguma forma, superámos muitas adversidades.
Giulia refugiou-se nos braços de Ermes.
- Diz-me que esta história vai acabar depressa - suspirou, exausta.
- Antes de nascer o dia, vais ver - tentou sossegá-la.
- Vai acabar bem ou mal? - perguntou-lhe.
- Vai acabar da melhor maneira. - Era isso que ele realmente pensava.
Acreditava em Giorgio. Considerava-o um rapaz sensível, profundamente infeliz, mas bom e honesto.
Giulia bocejou. O calmante começava a fazer efeito.
- E se eu fosse lá? - propôs. - Se eu fosse ter com o Leo? Sempre ia achar que estava mais perto do meu menino. - Tentou levantar-se, mas apercebeu-se de que estava completamente sem forças.
- Se quiseres, eu vou contigo - respondeu Ermes. - Mas se o Giorgio viesse para tua casa? Se de um momento para o outro tocasse à campainha? Se ele ligasse?
- Ele não vem, Ermes - sorriu, resignada. - Eu sinto-o. Porque eu o afastei, entregando-o ao pai. Mais um erro para pôr na minha conta - disse, culpabilizando-se.
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- Chega, Giulia. Não vale a pena atormentares-te.
Ela sossegou. Tinha os olhos fixos no mostrador do relógio e observava o movimento invisível dos ponteiros, a passagem lenta e cansativa do tempo.
Às duas da manhã, o telefone voltou a tocar.
- O Giorgio está a vir para minha casa - anunciou Tea.
- Para tua casa? Como é que sabes? - perguntou Giulia, ansiosa.
- Porque me telefonou há uns minutos. O Marcello já saiu. Foi buscá-lo.
- Onde é que ele está agora?
- Numa estação de serviço, na auto-estrada - respondeu Tea.
- vou já para aí com o teu pai - disse Giulia.
- Ele está aí contigo? - perguntou Tea.
- Está. - Giulia entregou o auscultador a Ermes. Sorria no meio das lágrimas.
- Pai - começou Tea, - o Giorgio tem um tornozelo em muito mau estado. Se calhar fracturou-o ao fugir.
- Eu trato disso - disse Ermes, e pousou o auscultador. - É preciso avisar o Leo. Imediatamente - acrescentou.
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Franco Vassalli enfiou um açaime negro no focinho de Lupo.
- Desculpa, meu amigo. Mas esta é a única maneira de viajar sem arranjar problemas.
Entraram juntos num táxi e o motorista, que não gostava de cães, quando viu o açaime não teve coragem de fazer objecções.
- Para a estação Central - comunicou Franco ao taxista. No átrio, inutilmente faraónico mas não desprovido da sua monumental beleza, comprou um maço de jornais: desde II Manifesto a
17 Sole 24 Ore. Depois pôs-se pacientemente na fila de um dos poucos guichés abertos na bilheteira.
- Santa Margherita Ligure. Segunda classe. Dois bilhetes disse, quando chegou a sua vez.
Às dez horas da noite o fluxo de comboios tinha-se esgotado. Havia poucos viajantes. A carruagem de segunda classe em que entrou levava pouca gente. Franco respirou o ar daquele ambiente impregnado de cheiro a fumo.
Instalou-se num banco de plástico castanho, ao lado da janela. Lupo aninhou-se aos seus pés, desaparecendo praticante debaixo do assento. E, como estavam sós, Franco tirou-lhe o açaime.
O comboio saiu lentamente da estação e uma chuva aborrecida e insistente começou a riscar a janela suja. Abriu um jornal,
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esforçando-se por se concentrar nas notícias para dominar o nervosismo que aquela viagem lhe provocava.
Não conseguia fixar a atenção naquilo que estava a ler. Por fim, rendeu-se. Voltou a dobrar o jornal e juntou-o aos outros. Deixou-se cair contra as costas do assento e, enquanto observava a sua imagem esbatida que o vidro sujo reflectia, pensava em Giulia.
Era o único oásis feliz no marasmo dos seus pensamentos.
- Vais ser minha - surpreendeu-se e murmurar. - Tu também
me queres.
Naqueles dias atormentados, carregados de tensão, lera e relera o último romance de Giulia e parecia-lhe agora conhecer perfeitamente a autora. Em cada frase, em cada personagem, em cada situação, Giulia parecia contar-se a si própria, e dali emergia uma personalidade multifacetada e complexa, feita de coerência e de contradições, de força e de fragilidades. Mas, sobre tudo isso, dominava a sua desconcertante sinceridade.
Nunca tinha conhecido uma mulher tão verdadeira. Para além da sua mãe, obviamente.
Passava da meia-noite quando desceu na estação de Santa Margherita. Estava deserta. Já não chovia e o ar frio e limpo daquela noite carregada de um perfume de mar devolveu a lucidez aos seus pensamentos.
Entrou na praça, seguido por Lupo, e continuou em direcção ao monte. Conhecia de cor aquela estrada que subia até à velha casa do avô paterno, onde passara muitos dos Verões da sua infância.
No interior, uma enorme sala no rés-do-chão tinha, de um dos lados, tanque de granito onde a mãe lavava a louça, a roupa e os dois filhos. Havia um fogão económico a lenha onde se cozinhava e dois catres onde ele e o irmão, Giuseppe, dormiam. Dois quartos no andar superior: um para o avô, o outro para o pai e para a mãe. A casa estava já nessa altura em péssimo estado. Franco e a família, habitualmente, passavam ali todo o mês de Agosto. E era um mês infeliz.
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Às vezes, a meio da noite, era acordado pelos gemidos de dor da mãe e pelos gritos do pai que se lançava sobre ela. E por fim, depois da violência sofrida, a mãe descia até à cozinha a mastigar lágrimas e ultraje e enfiava-se na cama dele.
Franco encolhia-se o mais que podia para arranjar lugar para ela. A mãe limpava as lágrimas na almofada e, os dois juntos, de olhos arregalados, ficavam à espera da madrugada.
- Eu mato-o - prometia Franco à mãe, em voz baixa. - Mais dia, menos dia, eu mato-o.
- Há certas coisas em que nem é bom pensar - ralhava-lhe, assustada com a determinação do rapaz. - Sempre é o teu pai.
Apercebeu-se de que estava a apertar os maxilares porque a ira o dominava.
Havia uma fonte a meio da colina, trinta anos atrás. E ainda lá estava. Lupo bebeu com avidez. Ouviram-se latidos de cães. Lupo arrebitou as orelhas e depois retomou a marcha ao lado do dono.
A estrada, naquele ponto, transformava-se numa vereda íngreme e pedregosa. Exactamente como noutros tempos. Em vez de abrandar, Franco acelerou o passo. E ali estava ela, para além da curva, iluminada apenas pela claridade das estrelas, aquela horrenda choupana. Talvez já fosse assim trinta anos antes, mas ele não se lembrava dela em tão mau estado. Uma luz ténue saía da janela do rés-do-chão. Os vidros estavam fechados, mas as portadas de madeira estavam abertas de par em par como olhos brancos na escuridão. Havia um velho Lancia estacionado diante da casa.
- Lupo, quieto aqui. Espera - ordenou Franco, acompanhando as palavras com um gesto da mão.
O animal deitou-se e apoiou o focinho entre as patas anteriores. Franco chegou à entrada da casa, baixou a maçaneta e abriu a porta.
Estava um homem sentado à mesa, entretido com uma caneca de vinho. Ergueu para ele um olhar vermelho e aquoso. Franco observou o emaranhado de veias avermelhadas que cobriam sobretudo o nariz e as maçãs do rosto daquele homem. Do tecto
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pendiam inúmeros réstias de cebolas e alhos. O fogão estava aceso e aquecia o aposento.
- Olá, pai - disse Franco, muito direito, à entrada da porta.
O homem olhou para ele como se visse um fantasma. Pareceu assustado. Mas recompôs-se de imediato e, fazendo estalar o indicador e o médio da mão direita em direcção a um canto escuro, ordenou: - Tu, vai lá para cima.
Sobre um sofá em mau estado encontrava-se uma mulher meio deitada. Tinha um rosto branco que uma maquilhagem esborratada tornava mais pesado, uns grandes olhos escuros e penetrantes e uns cabelos exageradamente loiros que revelavam na raiz a sua natural cor escura. Vestia um roupão de seda vermelha que deixava a descoberto um ombro cândido e liso.
A mulher sentou-se no sofá, enfiou os pés numas pantufas negras adornadas de plumas e levantou-se, descobrindo uma perna comprida e esguia. Passou a mão numa anca e, com um sarcástico encolher de ombros na direcção de Franco, atravessou a grande cozinha e subiu as escadas.
Franco aproximou-se do pai, que continuava a observá-lo, e pôs-se mesmo à frente dele.
- Quem é vivo sempre aparece - cumprimentou-o, com uma voz empastada de bêbedo.
- Onde está o Giuseppe? - perguntou Franco.
- Desde quando é que te preocupas com o teu irmão? - provocou o pai.
- Desde que sequestrou a nossa mãe - rebateu Franco, esforçando-se por sorrir.
A face enrugada do velho empalideceu aquele mínimo que lhe permitia a taxa de alcoolemia. A mão que segurava o copo começou a tremer.
- Não sei de que é que estás a falar - balbuciou.
- Sempre me ofereceste excelentes razões para te odiar disse-lhe Franco, em voz baixa -, e eu odiei-te com uma paixão que nem podes imaginar. Sempre foste um incapaz. As únicas
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vitórias conseguiste-as sobre os mais fracos, usando a violência. Quando era criança desejei matar-te mais do que uma vez. Agora as coisas não mudaram. Ainda tenho vontade de te ver morto.
Nas mãos do velho apareceu uma navalha de ponta e mola e a lâmina saltou ao mesmo tempo que o homem se punha de pé com uma agilidade inesperada para a sua idade. A julgar pela expressão, seria capaz de o matar.
- Vai para de onde vieste - ameaçou-o -, ou vou ser eu quem te apaga da face da terra.
Franco não se descompôs. Modulou apenas um leve assobio e a porta entreaberta escancarou-se de repente, enquanto Lupo voava sobre o homem e o atirava ao chão.
- Agora vais levar-me à minha mãe - disse Franco. - E mandas vir também a tua rameira - ordenou, ao mesmo tempo que o cão o forçava à imobilidade.
- Chama o teu cão e depois falamos - gritou o velho.
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Os agentes Ruta e DAmico estavam a viver uma noite relativamente tranquila, na ronda de patrulha da zona que lhes tinha sido destinada. As incursões coordenadas das noites anteriores
tinham dispersado um pequeno bando de malfeitores, pelo menos provisoriamente.
- Vamos fazer uma visita a Brugherio - disse Ruta ao companheiro que ia ao volante do Alfetta.
- Isso é uma pergunta ou uma afirmação?
- Como preferires.
- Preferia que pusesses o coração ao largo - disse o siciliano, satisfazendo no entanto o desejo do colega.
- A mim, aquele roubo dos cenários tirou-me o sono - confessou Ruta.
Tinha estado por diversas vezes, depois do dia da primeira inspecção, nos armazéns da Inter-Channel. Fingindo um irresistível interesse pelo funcionamento de uma emissora de televisão, tinha falado com quase todos os empregados. Tinha até estabelecido uma relação cordial com Walter, o responsável pelos armazéns, que acabou por lhe contar os seus problemas sentimentais com uma bela rapariga que, depois de o ter enfeitiçado com uns grandes olhos doces e claros, tinha partido.
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- Chamava-se Marisol - contou-lhe. - Era realmente linda
como o sol. Mas deixou-me de um dia para o outro. Sem uma razão. Sem um adeus. Bela e misteriosa até ao fim.
O Alfetta parou diante do portão dos armazéns da emissora.
- Sabes o que é que eu acho? - disse Ruta. - Acho que aquela rapariga também devia ser cúmplice dos ladrões.
- Que rapariga?
- A Marisol - respondeu Ruta -, a ex-namorada do Walter. Lembras-te quando te contei a história?
- com a obstinada intensidade de uma telenovela - respondeu o amigo, a sorrir.
- Quem entrou aqui dentro tinha o cartão magnético que abre o portão. Conhecia a movimentação dos armazéns e tudo o resto. Não é impossível reproduzir um cartão magnético. A Marisol deu a volta ao ingénuo do Walter, que é muito prestável, para obter aquilo que queria. Depois, deixou-o.
Os dois jovens viram, do outro lado do portão, um guarda-nocturno que fazia a sua ronda de inspecção. Também o guarda os viu e encostou-se às grades.
- Obrigado pela colaboração - gritou, agitando um braço em sinal de saudação.
Ruta saiu do carro e foi ao encontro dele.
- Ora viva - respondeu. - Tudo tranquilo, ao que parece.
- Situação sob controlo - disse o vigilante, que trazia uma vistosa pistola à cintura. - Se derem a volta e vierem pelo outro lado, ofereço-lhes um café.
- Obrigado, mas não. Estamos fora da nossa zona. Temos de regressar.
O agente voltou a entrar no carro.
- Vá, vamos voltar à cidade - pediu DAmico.
Fizeram inversão de marcha. Foi então que viram três carros que avançavam com luzes baixas e que se meteram num caminho por entre os campos.
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- Uma cerveja por uma hipótese plausível sobre aqueles três carros numa estrada no meio dos campos a esta hora da noite desafiou DAmico.
- Negócio fechado - concordou o siciliano. - Apaga as luzes e vamos atrás deles.
Aproximaram-se dos três carros, mantendo-se a alguma distância para não serem notados. Poucos minutos depois, os veículos pararam atrás de uma fileira de choupos. Também o carro da polícia parou, escondido atrás de um velho muro. Os dois agentes vislumbraram umas sombras que, depois de saírem dos automóveis, se aproximaram de uma construção plana, escondida por um tufo de árvores. O céu de Outono, denso de nuvens, não ajudava os dois agentes que observavam a cena de longe.
- E se ligássemos para a central? - perguntou DAmico.
- E se tu estivesses um bocadinho calado - disse o colega, ao mesmo tempo que saía do carro.
- Quais são as tuas intenções? - insistiu DAmico, saindo do
carro por sua vez.
- Perceber o que está a acontecer - respondeu Ruta. DAmico foi atrás dele, apesar de saber que estava a fazer uma
coisa errada.
Caminharam ao longo da fileira de choupos e chegaram ao nível dos três carros.
- Michele - disse Ruta, dirigindo-se ao colega -, não és obrigado a vir atrás de mim. O teu lugar é no carro. Aqui só estamos a arranjar lenha para nos queimarmos.
- Fala por ti - disse DAmico.
Ruta tinha a certeza de ter tropeçado em alguma coisa, provavelmente demasiado grande para ele.
- Consegues ler os números da matrícula? - perguntou o siciliano.
As pessoas que tinham saído dos carros pareciam ter-se dissipado no nada.
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DAmico, com o auxílio da lanterna eléctrica oportunamente protegida com a mão, leu os números da matrícula e decorou-o. Era uma matrícula relativamente recente.
- Vamos tentar arranjar os nomes - sugeriu Ruta.
- Eu vou ao carro e pergunto - decidiu DAmico, e acrescentou: - Digo também qual é o tipo de embrulhada em que nos metemos?
- Boa ideia, mas prematura. Isto é a minha opinião. Mas faz como achares melhor - concluiu Ruta.
- Eu vou e venho.
Apareceu ofegante ao fim de uns dez minutos.
- Então? - perguntou Ruta, em voz baixa.
- Antonella Roghi - disse DAmico, e acrescentou: - Investigações privadas.
Ruta estava com vontade de rir, mas não podia dar-se a esse luxo.
- Cena de romance policial. com detectives privados e esbirros no campo de batalha. Antonella Roghi - repetiu -, e o cheiro a esturro aumenta. É uma pessoa que não se desloca com o seu exército por uma coisa de nada.
O edifício baixo, ao fundo, parecia uma grande caixa a emergir da escuridão.
- Vamos dar uma vista de olhos? - arriscou DAmico, espicaçado pela aventura.
- Achas que esta noite vamos ter uma grande cena? - perguntou Ruta.
- Tudo é possível - disse DAmico.
- Essa Roghi é uma especialista no ramo dos raptos - recapitulou Ruta. - Também chegou antes de nós no caso do industrial de Bresso.
- E agora lixa-nos o caso Vassalli, queres ver?
- Michele, vamos fazer assim. Tu voltas para o carro, eu continuo até onde puder. Se houver problemas, faço um sinal com a lanterna e tu pedes ajuda.
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O siciliano regressou ao carro, enquanto Ruta iniciava a aproximação.
A certa altura a fileira de árvores terminava e abria-se uma clareira. Uma nuvem caprichosa, sob o impulso do vento, começou a navegar para este descobrindo uma meia lua leitosa que iluminou um espaço aberto de terra batida para além do qual se delineava, agora via-o bem, um armazém industrial instalado num terreno ainda muito irregular. Não se ouvia qualquer ruído.
O polícia parou. Se continuasse, acabaria por ficar a descoberto e qualquer pessoa o poderia ver. Era um risco que não queria correr.
Por fim, decidiu-se pela espera. A sua formação de contabilista dizia-lhe que, ao fim, as contas devem bater sempre certas. Valia a pena esperar.
Apesar do frio, começou a sentir sede. Estava capaz de dar uma hora de vida por uma caneca de cerveja. A tensão, em certos momentos, levava-o a desejar as coisas mais estranhas. Levantou-se um vento que captou o ladrar sinistro de um cão. As nuvens começaram a correr velozes em direcção a ocidente, deixando entrever a lua por breves espaços.
Agora Ruta sentia medo e, no entanto, a curiosidade prevalecia sobre os seus receios.
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Ermes tinha-lhe feito uma tala para o tornozelo e para o pé com duas tabuinhas de contraplacado amarradas com uma ligadura.
- É um trabalho rudimentar - explicou -, mas serve para imobilizar o pé até amanhã, quando fizeres uma radiografia.
Giorgio estava estendido na cama de casal, no quarto do andar superior da casa de Fontechiara, ocupado por Marta até ao dia anterior.
- Já não me dói - disse o rapaz, a sorrir. - Só sinto algum incómodo quando tento mexer os dedos.
- É provável que seja só uma entorse - diagnosticou Ermes -, mas vais ter o pé fora de combate durante vários dias.
Levantou a perna do rapaz e enfiou duas almofadas debaixo da barriga da perna. - Tea, arranja-me um saco com gelo - disse Ermes à filha.
- É para já - respondeu a rapariga, solícita, ao mesmo tempo que descia ao andar inferior.
Ermes estava muito contente com a mudança de Tea. De rapariga insatisfeita e problemática tinha-se transformado numa mulher madura e consciente.
Observou o rosto cansado de Giorgio e as olheiras profundas que marcavam o de Giulia.
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- Porque é que não te deitas aqui um bocado com o Giorgio? Tenho a impressão de que umas horas de sono iam fazer muito bem aos dois - aconselhou.
- Perfeito, professor - agradeceu Giorgio com um sorriso inocente, enquanto lhe estendia a mão.
- Tu não estás menos cansado do que eu - interveio Giulia, abraçando Ermes.
- Estou habituado ao cansaço - respondeu ele. - E depois vou ter o tempo todo para dormir no avião.
- Estás mesmo decidido a partir? - perguntou ela, enquanto lhe afagava o rosto.
Ermes recordou as acesas e dolorosas conversas sobre o assunto.
- Mais do que nunca - retorquiu.
- Eu vou contigo até ao carro - ofereceu-se Giulia.
- Tu vais deitar-te ao lado do teu filho. E já - ordenou.
Tea trouxe um saco de gelo, que Ermes pousou no tornozelo do rapaz. Depois estendeu um cobertor por cima de Giulia, que se tinha deitado ao lado de Giorgio. Enquanto se inclinava sobre ela para a abraçar, Giulia perguntou-lhe: - Quanto tempo vais ficar longe?
- O tempo necessário - respondeu, e apagou a luz. - Para mim e para ti - acrescentou, ao mesmo tempo que saía do quarto.
Giulia e o filho adormeceram imediatamente.
- vou preparar-te um café, pai - propôs Tea quando chegaram à sala.
- com certeza - aceitou Ermes, deixando-se cair num sofá.
- Que noite - exclamou Tea, quando regressou com o café, pouco depois.
- Onde está o Marcello? - perguntou Ermes, dando-se conta de que não tinha ainda visto o companheiro da filha.
- Está de urgência - sorriu. - Está nas boxes, onde a Ortensia pode entrar em trabalho de parto de um momento para o outro. Não podemos deixá-la sozinha - explicou.
- Chamaste o veterinário?
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- vou fazê-lo assim que tiver tempo - disse, passando uma mão pela testa. - Depois, em caso de emergência, sempre cá estás tu - brincou -, o cirurgião faz-tudo.
- Não contes comigo para ajudar a tua égua a dar à luz - avisou Ermes.
Tea mudou subitamente de assunto. - Porque é que te vais embora sem a Giulia? - perguntou, enquanto lhe estendia a chávena cheia de um bom café amargo e a ferver.
- A Giulia tem demasiados problemas neste momento para se afastar do filho - confessou.
- E tu, pai? - Recordava as palavras da mãe, uma malévola alusão às relações entre Giulia e Franco Vassalli.
- Eu, o quê?
- És feliz?
- Ora aí está uma bela pergunta, e original. Conheces alguém que o seja verdadeiramente?
- Não respondas com outra pergunta. Sabes muito bem o que é que eu entendo por felicidade.
- vou casar-me com a Giulia quando regressar dos Estados Unidos, se é a isso que te referes - afirmou, enquanto acabava de tomar o café.
- Muito bem. Fico feliz pelos dois - disse Tea.
Ermes levantou-se e abraçou a filha. Depois segurou-lhe o rosto a entre as mãos grandes e quentes, e olhou-a nos olhos.
- Como é que estás com o teu namorado?
- Queres saber se eu também sou feliz? - sorriu-lhe. Ermes anuiu.
- Estou tranquila, pai. E já me parece muito, depois de todas as confusões que arranjei. Para além disso, gosto desta vida aqui na quinta. É a vida activa e vital que sempre desejei, sem o saber. Sabes - anunciou -, quero começar a estudar outra vez.
- Para seres médica?
- Em certo sentido. Quero inscrever-me em Veterinária. Trabalhei durante todo o Verão com o veterinário de Cassano. Aprendi muitas coisas.
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- Eu, para conseguir ser médico, até trabalhei num talho para ter hipótese de pagar os estudos. Tu és uma privilegiada em relação ao teu pai.
- Gosto tanto de ti, pai - sussurrou com pudor. - Ainda que provavelmente nunca te tenhas dado conta, ensinaste-me muitas coisas. Devo-te muito - declarou, abraçando-o com força.
- Obrigada, Tea. É o cumprimento mais bonito que alguma vez recebi.
Saíram de casa. Estava a nascer o dia. O ar estava gelado.
- Tea - gritou Marcello. - Chama o veterinário. Depressa! A Ortensia entrou em trabalho de parto.
- Adeus, pai. - Despediu-se rapidamente, enquanto ele entrava no carro, e logo a seguir correu ao encontro de Marcello: Chama tu o veterinário. Eu vou para junto da Ortensia.
A trabalhar com o Dr. Spadari, Tea tinha assistido a diversos partos. Tinha visto nascer com sucesso uma dezena de poldros e, de todas as vezes, ficara comovida com o milagre da maternidade. Uma alegria que ela nunca poderia ter. O obstetra da clínica onde a mãe a obrigara a abortar tinha-a tornado estéril.
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Tea entrou na boxe de Ortensia num momento em que a égua estava a escoicear e raspar o chão. Afagou-lhe o focinho e começou a falar-lhe com ternura.
- Linda bichinha - acalmou-a -, daqui a pouco vais ser mãe, sabias? Não te assustes e sê forte. A dor que sentes lá dentro é só o teu pequenino que quer ver a luz. Se correr tudo bem, o sol e a tua cria vão nascer ao mesmo tempo.
Ortensia deitou-se. O seu ventre enorme estremecia. Começou a suar. Tea cobriu-a com uma manta ao mesmo tempo que continuava a afagá-la e a falar com ela. Depois pegou na escova de borracha. Ortensia gostava de ser massajada.
Durante alguns instantes pareceu acalmar, mas logo a seguir levantou-se e recomeçou a relinchar e a raspar o chão.
Os cavalos, nas boxes adjacentes, pareciam adivinhar a tensão e estavam estranhamente quietos.
- Sossega, minha doçura. Sossega - disse Tea, que começava a ferver de impaciência. Por que razão Marcello não voltava? Queria sair para o ir procurar, mas não ousava deixar Ortensia sozinha.
Tapou a égua com um cobertor suplementar e tentou dominar o seu próprio nervosismo.
Finalmente chegou Marcello, ofegante da corrida.
- Telefonaste? - perguntou Tea, referindo-se ao veterinário.
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- Não consigo encontrar o Spadari - disse o jovem, abrindo os braços.
- Então como é? A Ortensia está quase a ter o filho. - Tinha levantado a voz, dominada pelo pânico.
- Isso sei eu perfeitamente. Mas ele não está - explicou Marcello. - Liguei para casa, para a clínica, para as coudelarias das redondezas. Não está, e não posso fazer mais nada - concluiu, ao mesmo tempo que segurava o focinho de Ortensia entre os braços e lhe afagava a cabeça.
- Mas ela está pronta. O que fazemos? - perguntou Tea, desesperada.
- Já vimos nascer outros potros. Sabemos como se faz. É uma coisa que normalmente escorrega como azeite. Havemos de nos arranjar sozinhos.
A égua voltou a deitar-se. Estava agitada. Tremia.
- Pega nas luvas esterilizadas - continuou Marcello, com um tom tranquilo -, um par para ti e outro para mim.
Tea sentiu-se mais tranquila com aquelas instruções e apressou-se a fazer o que ele pedia. Ele ajoelhou-se ao lado do traseiro do animal e enfiou uma mão na vagina de Ortensia.
- Já fez a dilatação - constatou -, põe-lhe mais um cobertor. Tea obedeceu. O animal suava agora copiosamente e tinha os
músculos do ventre contraídos.
- Está tudo bem? - perguntou Tea a Marcello, que continuava a sua exploração manual.
- Vamos ter um parto podálico - respondeu, preocupado. Aqui está o casco, preto - exclamou ao vê-lo sair da vagina.
Marcello e Tea estavam aterrados, e para Ortensia o sofrimento era atroz.
- E agora? - perguntou Tea, angustiada.
- Vais fazer exactamente aquilo que eu disser - começou Marcello, levantando-se. - É preciso dar a volta ao potro.
Tea nunca tinha assistido a um parto podálico. Era um acontecimento raro. Marcello, porém, tinha visto um alguns meses antes e lembrava-se das manobras do veterinário.
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- Nunca mais vamos conseguir - disse a jovem, céptica.
- Ouve bem o que eu te digo - respondeu Marcello. - Tu tens o braço mais pequeno do que o meu. Empurra o casco para trás e enfia-o lá dentro. Depois procura com a mão a cabeça do potro. Faz isso depressa, ou vamos perdê-lo. Onde está o soro fisiológico?
- No armário dos medicamentos - respondeu Tez mecanicamente.
- Tu fazes de obstetra enquanto eu preparo o soro para lhe dar. Vai ser preciso um cardiotónico. A pressão deve ter descido. Coragem, Tea.
A égua parecia implorar ajuda.
- Tudo bem, doçura - disse Tea, baixinho. - vou fazer o que puder.
com a mão meteu para dentro o pequeno casco preto. Depois enfiou o antebraço no corpo da égua. Sentia debaixo dos dedos o potro que se mexia para tentar sair.
Marcello regressou com o soro, improvisou um suporte com a forquilha e começou a preparar a agulha e o tubo. Encontrou a veia do pescoço de Ortensia, esterilizou uma parte e enfiou a agulha, segurando-a com um adesivo.
Tea estava a tentar executar a manobra essencial.
- Encontraste a cabeça? - perguntou Marcello.
- Só o focinho - respondeu Tea.
- Sobe mais e procura o pescoço - sugeriu ele.
- Está aqui! - exclamou ela, exultante.
- Puxa-o para ti - ordenou.
- Não vem.
- Porque tens de dar a volta ao potro. Tem cuidado com o cordão umbilical. Não se pode enrolar à volta do pescoço. Mas despacha-te, Tea. O coração da Ortensia não vai aguentar. O cardiotónico não faz milagres.
- E eu não faço o impossível - gritou a rapariga, angustiada.
- Sai daí - disse Marcello, zangado.
- Não. Fui eu que comecei, sou eu que acabo. - O orgulho sobrepôs-se ao medo.
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Ortensia sofria e, com o olhar, implorava piedade. O ventre contraia-se-lhe em espasmos atrozes.
O rosto de Tea iluminou-se de espanto. - Marcello - gritou, com a voz quebrada pela emoção -, está a dar a volta. Aí está... consegui virá-lo. Virei o potro.
- Trá-lo para fora, depressa - incitou Marcello.
- Tenho o focinho na mão!
- Agora puxa-o delicadamente. Ajuda-o.
Poucos instantes depois surgiu o focinho negro e húmido do potro. Tea fez deslizar a sua mão para fora e, logo a seguir, viu-se a cabeça do animal. Mais umas contracções e viu a luz.
Tea e Marcello riam e choravam juntos. A jovem cortou o cordão umbilical e tirou as luvas. Ortensia tinha já começado a lamber a cria para a limpar e enxugar. Marcello limpou a mãe com uma esponja seca e depois, juntamente com Tea, ajudou-a a levantar-se.
- E agora levanta-te tu também, meu jovem - ordenou Tea, apercebendo-se nesse momento de que o pequeno potro era um macho. - Coragem, Pé Negro - insistiu Tea, baptizando-o assim.
O pequeno potro levantou-se com as suas patas débeis e trémulas e, mantendo-se assim num equilíbrio precário, procurou imediatamente a mama da mãe.
- Que maravilha - exclamou Marcello, feliz. - É são e forte.
- Conseguimos, Marcello. Nem posso acreditar - disse Tea, estupefacta e comovida.
- E quem fez o milagre foste tu - afirmou ele com orgulho. Abraçou-a ternamente: - Sabes que horas são, minha menina?
- São nove da manhã - disse uma voz de mulher atrás deles.
Viraram-se os dois para ver quem era.
À porta da box e com os olhos húmidos de comoção, Giulia observava-os há algum tempo. - Eu assisti ao milagre - disse.
- É a primeira fitinha azul de Fontechiara - recordou Tea, enquanto avançava em direcção a ela.
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Regressaram a casa todos juntos. Depois Giulia subiu até ao quarto que tinha dividido com o filho. Giorgio, imobilizado na cama, sorriu-lhe.
- Acho que temos de conversar um bocadinho, eu e tu, mãe propôs ele.
- E eu acho que vou ter de te dizer já uma coisa, Giorgio. Sentou-se ao lado do rapaz.
- Que coisa? - perguntou Giorgio.
- Vais ter um irmãozinho. Ou uma irmãzinha. Ainda não sei. Estou grávida - declarou, com uma serenidade que há muito tempo não conhecia. Pensou em Ortensia e no seu pequeno potro, no esforço e na comoção de Tea e de Marcello, protagonistas de um milagre. Talvez aquele acontecimento extraordinário a tivesse ajudado a decidir.
- Quando nasce? - perguntou Giorgio, sem grande participação aparente.
- No próximo Verão. Se for uma menina, vamos chamar-lhe Carmen. Como a tua avó.
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- Tu sabes onde é o sítio, não sabes? - perguntou Franco à loira, que se sentara ao volante do velho Opel do pai.
Ela assentiu. Tinha-se vestido entretanto e trazia umas calças justas de pele negra, uns mocassins vermelhos e uma blusa de camurça vermelha, cheia de franjas e bordados dourados. Emanava um vago perfume de pó-de-arroz que destoava do seu aspecto geral.
Era a mãe, lembrava-se bem, que de manhã passava no rosto uma borla de pó-de-arroz com aquele cheiro.
O pai sentou-se no banco traseiro e Franco instalou-se ao lado dele. Lupo aninhou-se aos seus pés. O velho Vassalli, com o ar aflito de um ladrão apanhado em flagrante, olhava de lado para o filho, com desprezo e com inveja. Sempre olhara assim, desde que Franco era uma criança, para aquele filho incompreensível e tão diferente dele. Giuseppe, o filho mais velho, pelo contrário, era idêntico a ele, perverso e violento.
O carro avançava com segurança pelas curvas e pelos túneis da auto-estrada para Milão. A loira, apesar da aparência, revelava-se uma condutora veloz e fiável.
Franco recordou o homem violento que fora o seu pai. Tinha um táxi verde que, uma vez por ano, nos meses de Verão, ascendia ao luxo das páginas dos jornais. Mário Vassalli, no vão do motor,
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tinha construído uma espécie de santuário com estátuas de santos e Nossas Senhoras, monstros alados e mártires. Tinha conseguido reproduzir, em miniatura, a rendilhada magnificência da catedral de Milão. O táxi do pai era uma curiosidade turística. Um domingo de manhã, depois da missa solene, tinha sido recebido pelo cardeal, com a família toda.
Franco lembrava-se bem daquele homem violento, devotamente ajoelhado a beijar o anel do alto prelado. Estava feliz por viver aquele momento mágico, que saciava a sua necessidade de protagonismo. Sentia-se satisfeito com o aplauso dos colegas taxistas e com as felicitações que lhe chegavam de todo o lado.
- Mas, apesar de tudo, devo-te a vida - resmungou Franco, seguindo o fio dos seus pensamentos.
- Sim, deves-me a vida - replicou o velho, que tinha captado as palavras sussurradas por Franco. - E a vida tem um preço divagou. - Tu tens dinheiro. Por isso, paga.
- Vais ser tu a pagar - prometeu Franco, assumindo um ar ameaçador. - E vai pagar o teu filho Giuseppe, pelo rapto da minha mãe.
- O que é que tu queres fazer? - provocou-o com gestos de bobo, a agitar as mãos como se fossem dois fantoches. - Queres denunciar-nos? Queres que o teu belo mundo fique a saber de onde vens? E como é que te justificavas? Mesmo agora, que já sabes que os raptores somos nós, ainda te convém pagar.
À saída de Milão o carro entrou na circunvalação, seguindo para este em direcção a Brugherio.
- Vais pagar, meu menino. Eu sei que vais pagar os doze mil milhões do resgate - disse o velho, com uma gargalhada trocista. Eu até podia vender a um jornal sensacionalista uma história assinada por mim e pelo teu irmão Giuseppe - ameaçou.
- Sabes que te arriscas a acabar os teus dias na cadeia, por rapto com objectivo de extorsão? - rebateu Franco.
- Eu estou a dizer que tu vais pagar - teimou o velho.
O Opel passou a sede da estação de Franco Vassalli e continuou durante alguns quilómetros por uma estrada no meio dos
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campos. Parou diante de um armazém construído recentemente. Pertencia a Franco que, no entanto, nunca o tinha visto. Tinha-o adquirido por um preço irrisório na expectativa de o utilizar como armazém suplementar para a sua rede em expansão.
- O Giuseppe está ali dentro com a mãe - disse Franco. - Sai e aparece-lhes. Foi para isso que te trouxe comigo. Não quero brincadeiras - avisou-o. - Se arrancarem um cabelo à minha mãe, juro que te mato.
Franco olhou em volta e viu alguns vultos que deslizavam ao longo da parede. Tudo se passava de acordo com o guião. Sentiu-se mais tranquilo, saiu por sua vez e pôs-se ao lado do pai. O velho deu três pancadas na porta de ferro. Esperou alguns instantes e deu mais duas pancadas. Abriu-se um pequeno postigo.
- És tu - afirmou, surpreendida, uma voz de homem. Franco reconheceu a voz do irmão.
- Abre - ordenou Mário Vassalli.
- Porque é que não avisaste? - perguntou o filho, desconfiado.
- Há novidades. Abre - insistiu o pai.
Ouviu-se disparar o fecho automático e depois o portão começou a deslizar até deixar uma abertura suficiente larga para a passagem de uma pessoa.
Foi uma questão de poucos segundos. Do escuro materializaram-se dez homens que bloquearam Mário e Giuseppe Vassalli. O portão abriu-se completamente e Franco entrou.
Ao seu lado surgiu a figura de Antonella Roghi.
- Conseguimos - disse, com a sua voz cristalina.
- Nunca duvidei disso - esclareceu Franco.
- Olhe que lindo espectáculo eles tinham preparado - disse a mulher, surpreendida, ao observar o ambiente.
Franco olhou em volta, estupefacto: - Ora cá está onde vieram parar os cenários dos espectáculos para crianças. É de uma delicadeza inesperada. Até é provável que a minha mãe tenha gostado da coisa.
Entrou dentro daquele País dos Brinquedos. - A quem é que eu devo agradecer? - perguntou Franco, olhando em volta.
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- A Marisol - respondeu brevemente Antonella Roghi. - Foi ela a artífice desta encenação, guarda-roupa incluído. Pode parecer-lhe absurdo, mas acho que deve estar-lhe grato.
- Tenho realmente a certeza de que a mãe gostou disto tudo repetiu.
- Não. De todo. Desta vez estás redondamente enganado disse Serena Vassalli. Estava submersa num grande cisne de madeira que continha uma cama. Vestia uma camisa de noite comprida branca, que a fazia parecer uma menina.
- Como estás, mãe? - Franco foi ao encontro dela para a abraçar.
- Aqui dentro é tudo a fingir. Sabias? - repeliu-o, amuada.
- Não. Mas se tu mo dizes, eu acredito - respondeu com ternura, afagando-lhe uma face.
- Ouve bem a tua mãe. As flores não são flores - começou a enumerar -, o castelo não é um castelo. E o céu é pintado. Não era esta a prenda de anos de que eu estava à espera - protestou, com uma voz irritada. Tentou sair do cisne mas desequilibrou-se. Franco segurou-a e, finalmente, apertou-a nos braços.
- Mãe, o que é que estás a fazer? Estás a ralhar comigo? - ria, feliz, por terem conseguido escapar ao perigo.
- Só gosto da Marisol. É querida, simpática, verdadeira. E já te aviso, nem penses em levar-me daqui sem ela.
Marisol era a mulher de Giuseppe e estava imóvel entre os dois homens e Antonella Roghi. Fitava-o com o seu belo rosto luminoso.
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- Então, Antonella Roghi, conta-nos lá como é que as coisas se passaram - perguntou Michele DAmico, com um ar de gozo.
A mulher enfiou um cigarro na longa boquilha negra. Acendeu-o, aspirou uma quantidade de fumo e lançou-o no rosto do polícia em ar de desafio.
Estava sentada na placa giratória do carrossel. DAmico tinha montado num cavalo de madeira, enquanto Francesco Ruta, ao lado de Vassali, avançava ao longo de uma vereda de papelão em direcção à casa do Capuchinho Vermelho.
- Não conto nada - disse a mulher com a sua vozinha simpática. - Tenho um cliente que paga e um escritório de advogados que responde por mim - desafiou.
- Sabes, ia ser muito aborrecido para o chefe da polícia se o tirássemos da cama a esta hora - insinuou. - Até podia decidir tratar-te mal por lhe teres estragado a noite.
- Então começa por tirá-lo da cama. Depois logo se vê - replicou, ao mesmo tempo que se levantava e lhe mandava para a cara outra baforada de fumo.
Porque esse era o ponto: os dois agentes já deviam ter ligado para a central há muito tempo. Mas havia caça grossa pelo meio e eles não sabiam o que haviam de fazer. Conheciam histórias de alguns colegas, e também de funcionários brilhantes, transferidos
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de um dia para o outro para ilhas distantes por causa de um movimento em falso. Esta perspectiva não os entusiasmava.
- Francesco, o que estás a fazer? - perguntou Ruta, que não tinha perdido uma única palavra do diálogo entre DAmico e Antonella Roghi.
- Avisa a esquadra - respondeu o colega.
- Para dizer? - hesitou Ruta.
- A verdade. Serena Vassalli foi encontrada em excelentes condições - concluiu DAmico.
- E os raptores?
- Desapareceram sem deixar rastro - tentou o polícia.
- Mas o que é que tu estás para aí a dizer? O velho e o mais novo vi-os eu - disse, levando os dedos às pálpebras.
Franco interveio com uma voz tranquila: - Ouça, tal como eu estava a explicar ao seu colega, amanhã de manhã irei pessoalmente ter com o chefe da esquadra explicar como tudo se passou. Você, acredite, apenas viu os homens da Antonella. Foi ela quem descobriu este refúgio. Quando eu cheguei, a minha mãe estava praticamente livre. E com ela estava apenas uma enfermeira, mandada pela Sr.a Roghi. E um vigilante. Os raptores já se tinham eclipsado quando vocês chegaram. Eu não paguei nenhum resgate e não estou a proteger ninguém, a não ser a tranquilidade da minha mãe.
Serena Vassalli aproximava-se com um ar sorridente. Trazia um roupão de lã branco e macio. DAmico observou-a e coçou a cabeça por baixo do boné.
- Eu pensava que certas coisas só aconteciam em Palermo lamentou-se.
- Porquê? - perguntou-lhe Franco.
- Porque, também aqui, dois e dois podem ser cinco. Antonella Roghi, perigosamente apoiada num pilar de papelão, olhava para eles a sorrir, irónica.
- Vamos para casa, Franco - disse a velha senhora.
Franco Vassalli rodeou com um gesto protector os ombros da mãe.
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- Foi para isso que eu vim - respondeu a sorrir, ao mesmo tempo que se dirigia com ela para a saída do armazém.
- Quero a Marisol comigo - disse ainda a senhora ao ouvido do filho.
- Já está no carro. Está à tua espera - prometeu Franco. Alguém apagou as lâmpadas que tinham iluminado com luz
de dia aquela paisagem de papelão.
Ruta e DAmico dirigiram-se ao carro-patrulha, enquanto o cortejo de viaturas passava por eles levantando uma grande nuvem de pó.
- Desiludiste-me - disse o siciliano ao colega. - Sentiste o cheiro do poder e de amizades fantásticas e assustaste-te.
O outro sorriu com um ar de madura sensatez. - É um nojo, esta história. Não tem nada a ver com poder nem com dinheiro. Ou talvez tenha. Não sei.
Entraram no carro, DAmico ao volante.
- Fazes tu o relatório? - perguntou, enquanto seguia na direcção de Milão.
- O chefe há-de dizer-nos o que fazer - sorriu Ruta.
- Mas o velho e o mais novo, apanhados pelos homens da Antonella Roghi, vi-os eu. E tu também os viste. Onde é que eles terão ido parar?
- Eu esperava não ter de voltar nunca mais àquela ilha horrorosa - disse Louis Fournier a Franco Vassalli.
Estavam parados no estacionamento da área de serviço da circunvalação de Milão, do lado oriental.
- Daqui a quarenta e oito horas estás de volta e nunca mais vais ouvir falar de Georgetown nem das ilhas Caimão - garantiu Franco. - Eu percebo-te, sabes? E sinto muito, por ti. Aquele lugar é uma verdadeira lixeira. Por outro lado, o que é que eu podia fazer? Matá-los? Entregá-los à polícia? Trata-se do meu pai e do meu irmão. E só posso contar contigo.
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- Não vale a pena recriminares-te. Acho que decidiste da melhor maneira - quase se desculpou Fournier.
- A Antonella Roghi vai entregar-tos no aeroporto. Em embalagem de oferta. Só terás de os descarregar em Georgetown e entregá-los àquele francês que tu conheces. Vão habituar-se ao clima e às novas regras.
- E a loira que estava com o teu pai? - perguntou o francês.
- É um dos melhores elementos da Antonella. Foi ela que confirmou as minhas suspeitas ao identificar com toda a certeza os raptores e o armazém onde tinham escondido a minha mãe.
- E a outra? A tua cunhada?
- Acho que está feliz por se livrar de um companheiro violento. Vai ficar lindamente no lago, com a minha mãe - respondeu.
i Despediram-se com um aperto de mão.
Franco viu-o sair da área de serviço, entrou no carro que estava à espera dele e sentou-se ao volante. No assento traseiro, a mãe tinha adormecido com a cabeça apoiada no ombro de Marisol, que sorria.
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Giulia parou o carro diante da casa de Tea, em Fontechiara. Saiu com um grande saco cheio de roupa para Giorgio. Leo estava com ela.
Viram Marcello no picadeiro com alguns alunos a cavalo. Também ele os viu e cumprimentou com um gesto amigável. Tea vinha a sair da boxe com Ortensia e o pequeno Pé Negro.
- Não achas maravilhoso ver aquela cria com a mãe? - perguntou Giulia ao ex-marido.
- É um quadro que nos reconcilia com a vida. A maternidade é a mais delicada e poética de todas as invenções desde os tempos da criação. Lembro-me de ti com o nosso filho quando lhe davas de mamar. Comovia-me aquela vossa intimidade. E também me fazia ciúmes. Porque vocês formavam um pequeno núcleo do qual eu me sentia excluído.
Giulia dirigiu-lhe num olhar perplexo. Tratava-se de uma forma de ciúme de que nunca teria suspeitado nele. Perguntou a si mesma se aquela sensação de exclusão teria tido algum papel nas traições de Leo. Depois rejeitou a hipótese. A traição sexual, para ele, era uma segunda pele.
- vou ser mãe pela segunda vez - confessou-lhe. Ele parou à entrada de casa e fitou-a, estarrecido.
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- Estás a brincar? Não queres ter um filho com a tua idade!
- Um filho que está já a crescer dentro de mim - sorriu. E não me faças sentir mais velha do que aquilo que sou.
- É do Ermes? - perguntou com naturalidade. Giulia anuiu.
- Parabéns - disse Leo, inclinando-se sobre ela para lhe dar um beijo na testa.
Entraram na sala.
- Estou aqui. - A voz do rapaz vinha da cozinha. - Sejam vocês quem forem, avancem e identifiquem-se - brincou.
Encontraram-no na grande cozinha a mexer numa enorme panela uma papa para os cavalos. O pé magoado estava envolvido por uma botinha ligeira de gesso. A entorse estava quase curada.
- Desculpem, mas não posso largar esta papa, porque se pega ao fundo - disse, ao mesmo tempo que estendia em direcção à mãe uma face para beijar.
- E o que é isso? - perguntou Leo, com uma careta de nojo, a espreitar para dentro da panela.
- Sementes de linho, cevada e aveia - explicou Giorgio. - Pus tudo de molho ontem à noite. Estão a cozer há quatro horas. Daqui a pouco está pronto. - Despejou de um saquinho uma quantidade considerável de farelo. - Isto é a cereja em cima do bolo - acrescentou, satisfeito.
- Trouxe-te roupa para vestires - disse Giulia. - Espero que te mudes e depois vamos para casa.
O rapaz apagou a chama e avançou à frente deles, a coxear, até à sala de estar.
Aproximou-se da janela que dava para o picadeiro. Olhou para fora. Alguns alunos estavam a treinar, com muita paciência. Eu gostava de ficar aqui - propôs, sem se virar.
Giulia e Leo olharam um para o outro, perplexos.
- Deixa ver se eu percebo - disse o pai. - Queres ficar aqui. Porquê? E até quando?
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Giorgio virou-se para eles: - Porque eu gosto disto, pai. Aqui faço coisas. Sinto-me útil, importante. Não é como na escola, onde tentam enfiar-me na cabeça noções absurdas que não têm nenhum interesse para mim.
- Uma confissão à maneira - observou Giulia, sentando-se no sofá.
Leo olhava para ela como quem pede um conselho.
- Queriam que parasse com o haxixe? Já parei. E não me custou nada. Mas se querem que eu volte para a escola, a resposta, para já, é não.
- É um rico começo para uma discussão serena - disse Giulia. Leo apelou para o seu próprio autocontrole. - Giorgio, eu
acho que tu devias estudar e viver com a tua mãe. Isto não é uma opção. É um remedeio.
- Será um remedeio, como tu dizes - rebateu o rapaz, mas eu na escola não funciono. Aqui sim. Eu não disse que queria passar a minha vida a mexer papas. Mas, para já, sinto-me bem aqui.
- A Tea e o Marcello acham bem? - perguntou Leo.
- Nem querem outra coisa - respondeu Giorgio.
- Giulia, o que é que tu achas? - questionou Leo.
Giulia recordou a agressividade obtusa, insensata e feroz de Giorgio aquela vida ao deus-dará, o caminho lamacento pelo qual tinha enveredado. Pensou na sua própria incapacidade para o dominar. Na necessidade que ambos tinham de recuperar alguma serenidade.
Olhou para Leo, sabendo que, mais uma vez, estaria sozinha no momento de tomar a decisão.
- Tudo bem, Giorgio. Vais ficar aqui. Pelo menos enquanto a Tea e o Marcello te quiserem cá.
- Obrigado, mãe - disse o rapaz, que lhe sorria com uma nova luz no olhar. - Sabes, em Fontechiara preparam-se acontecimentos épicos. Vai chegar uma equipa cinematográfica. Vão rodar no picadeiro a parte central de um filme tirado do teu último romance.
- A sério? - Giulia fingiu-se admirada.
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- É uma experiência única - disse ele, entusiasmado.
- Creio, no entanto, que vais perder o ano lectivo - observou a mãe. - Por outro lado, ias perdê-lo de qualquer maneira. Esperemos que a nova experiência sirva para te aclarar as ideias.
Giulia pensou mais uma vez em Franco Vassalli. Aquele homem voltava a apresentar-se na sua vida como se os seus destinos devessem de novo encontrar-se depois de se terem cruzado repetidamente.
Não voltara a vê-lo desde aquela noite em que, depois da exposição de Boldini, ele a beijara.
Uns dias antes tinha lido nos jornais a notícia da entrega da mãe. Giulia tinha reencontrado o filho, Franco tinha reencontrado a mãe. Mais uma coincidência? Sentiu-se perturbada e, mais uma vez, atraída por aquele homem estranho. Emergiu com dificuldade dos seus pensamentos. - Tens a minha autorização e a minha bênção - disse, abraçando o filho.
Naquele momento eram felizes os dois.
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Na esquina da Quinta Avenida com a 43a Rua, Ermes parou, atraído por um dos típicos carrinhos que vendiam cachorros-quentes. Não resistiu ao impulso de comprar um. O vendedor preparou-lhe o cachorro e ele devorou-o com avidez, evitando com destreza a multidão de transeuntes que, a cada instante, ameaçava derrubá-lo.
Tinha passado a manhã com um amigo que conhecera muitos anos antes, quando trabalhava como research fellow na Universidade de Columbia, o professor Heini Steiner. Voltaria a estar com o antigo colega ao jantar. Estava ligeiramente envelhecido, o que não o impedira de se divorciar da primeira mulher para ir viver com uma mulher vinte anos mais nova do que ele.
- Vivemos com três cães e dois gatos - contou-lhe. - A Judith é uma rapariga um bocado extravagante. Mas sabe ser uma parceira deliciosa. É fantástica a aquecer comida de lata. Isso no caso de seres corajoso a ponto de aceitares o nosso convite para jantar. Tenho a certeza de que vais gostar.
Passou diante das montras da Tiffany e observou com interesse uma jóia vagamente déco: uma libelinha com asas de esmeralda e olhos de rubi. Pensou em Giulia. Ela ia gostar daquele alfinete.
Comprou-o com o cartão de crédito, meteu o embrulho no bolso e voltou a mergulhar no meio da multidão. Calculou que, se
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continuasse a pé, chegaria ao Pierre, onde estava instalado, em cerca de dez minutos.
Tinha ainda muito tempo para mudar de roupa, vestir um fato-de-treino e ir até Central Park fazer um pouco de jogging. O frio de Nova Iorque acentuava a sua necessidade de movimento. Levou um encontrão de dois transeuntes apressados e, na tentativa de se esquivar de um terceiro, deu ele próprio um encontrão a uma senhora cheia de peles e carregada de sacos e embrulhos. Virou-se para pedir desculpa e apercebeu-se de que a mulher tinha um rosto que lhe era familiar. Reconheceu-a quase imediatamente, apesar dos grandes óculos escuros que lhe escondiam uma parte do rosto.
- Ermes - exclamou ela, a sorrir.
- É o destino - disse para si, recordando outro encontro, naquela mesma rua, alguns anos atrás: o encontro com Giulia. O acaso, contra toda a lógica, desafiando todas as probabilidades, tinha mais uma vez decidido por ele.
- Como dizes? - perguntou Marta, que se tinha posto ao lado dele, desafiando o fluxo pedonal.
Tinham chegado ao nível da Grand Army Square. Ermes olhou-a de frente: - Estou a dizer que não és propriamente a pessoa que eu mais gostaria de encontrar - declarou bruscamente.
- Vá lá, Touro Sentado, porque não enterras o machado de guerra? Agora somos apenas dois ex-cônjuges. Podíamos pelo menos cumprimentar-nos com um mínimo de cortesia.
Arvorava uma expressão doce e submissa que ele conhecia bem. Os modos de Marta já não o enganavam.
- Ouve, eu nem sequer consigo pronunciar o teu nome. Aquilo que havia para enterrar eu já enterrei: o meu passado contigo.
- Foi mesmo uma história assim tão feia? - perguntou, a fazer beicinho.
- Horrível. Por isso é melhor separarmo-nos aqui - disse, a tentar escapar.
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- Ermes, juro-te, eu mudei - replicou ela, tentando detê-lo, e como resultado os embrulhos e os sacos escorregaram-lhe todos das mãos.
- Olha que não parece - constatou ele. - Por onde tu passas, semeias o caos.
Foi obrigado a ajudá-la a apanhar os embrulhos espalhados pelo chão.
- Não te estou a pedir nada. Só um cumprimento amigável. Sem rancores inúteis. Ou então devo pensar que tens medo de mim. Ao fim e ao cabo, temos uma filha.
Queria demonstrar-lhe que não tinha medo dela. - Está bem suspirou, resignado. - Onde queres que te leve?
- A um quarteirão daqui. Tenho casa em Nova Iorque, não sabias? Ou, pelo menos, tinha. Agora estou a fazer uma ocupação, porque a primeira mulher do meu falecido namorado ma quer tirar. Soubeste, com certeza, do meu pobre James?
- Sim, soube - anuiu.
- A propósito - comentou, mudando de assunto -, queria agradecer-te por teres permitido que a Tea me recebesse em casa. Magnânimo como sempre.
Chegaram à entrada de um grande edifício. O porteiro foi ao encontro de Marta para a aliviar da carga e Ermes aproveitou para lhe entregar também os sacos que trazia.
- Porque não sobes? - convidou. - Não tenho pessoal, mas ainda sou capaz de preparar uma sanduíche.
- Não, obrigado - respondeu secamente.
- É pena. Sinto-me tão sozinha! Apetecia-me mesmo dar dois dedos de conversa contigo - queixou-se Marta.
- Marta - retorquiu ele, tratando-a finalmente pelo nome. Sabes uma coisa?
- O que é? - perguntou, com um tom lânguido.
- Quanto menos te vir, melhor me sinto - disse-lhe, retirando-lhe assim qualquer ilusão.
- Caramba, Ermes, olha que não me podes tratar como se eu fosse um chinelo velho. Seja o que for que penses de mim, eu também
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tenho sentimentos. E tu não te mostras melhor do que eu ao fustigar-me com o teu desprezo. - Tinha lágrimas nos olhos. Ele apercebeu-se de que tinha tido a mão mais pesada do que o necessário. Mas aquela reacção vinha-lhe directamente do coração.
- Tudo bem. Peço desculpa - capitulou.
- Então, vamos fumar juntos o cachimbo da paz? - propôs, com um sorriso patético.
- O fumo provoca o cancro. - Tinha recuperado a sua segurança.
- Então brindemos à amizade - disse ela, engolindo o orgulho.
- Qual amizade? - contrariou ele.
- Brindemos à saúde da nossa filha - tentou.
Acabava de tocar numa tecla demasiado delicada para provocar mais uma recusa.
Poucos minutos depois, Ermes encontrava-se num salão imenso, com divãs quilométricos, palmeiras viçosas, mesinhas de madeira laçada e marfim, estatuetas em cerâmica Robj, vasos assinados Daum e tapetes Buchara de cores vivas.
Comparou aquele luxo com a decoração de Giulia e sentiu que aquela casa pequena lhe estava a fazer uma falta terrível.
Marta apareceu a empurrar um carrinho com champanhe, tostas com presunto e cerejas que pareciam artificiais de tão grandes e escarlates que eram.
- É uma consolação para mim, depois de todos os mal-entendidos do passado, encontrar-te como um velho amigo - começou, ao mesmo tempo que servia o champanhe nasflútes.
Ermes olhou para ela. Pairava em volta de Marta um vago perfume de Chanel que ele em tempos detestara. Ainda o incomodava. Perguntou a si mesmo como poderia ter sentido alguma atracção por aquela mulher, completamente artificial. Talvez Marta tivesse também uma alma, mas ele continuava a alimentar sérias dúvidas a esse respeito. Cada gesto, cada palavra, a própria inflexão da voz, tudo era falso. Estava à espera, isso sim, de uma estocada mortal que confirmasse o seu juízo.
- À nossa filha - brindou ele.
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- E à tua Giulia. - Marta ergueu por sua vez a taça com um sorriso extremamente doce.
- Desta não estava eu à espera - disse ele, ficando subitamente pensativo.
- Porque não? Ao fim e ao cabo, agora ela é a tua mulher. Ou estou enganada?
- Marta, deixa a Giulia sossegada - afirmou com decisão.
- Já devia ter imaginado que te ia fazer mal falar dela. Porque a Giulia está em Itália e tu estás aqui, sozinho. Ou estou enganada?
- É uma coisa que não te diz respeito - observou secamente.
- Claro. É verdade. É uma coisa que não me diz respeito disse Marta, humilde e resignada. - Mas é por ti que eu tenho pena. Tu sempre foste um grande ingénuo. Já o eras também comigo, nos primeiros tempos.
- O que é que queres dizer? - exclamou. E amaldiçoou-se por ter entrado pelo seu próprio pé na armadilha de Marta.
- Quero dizer que, ao partires, deixaste o terreno livre ao Franco Vassalli. É um tipo que não perdoa. Isto aqui entre nós, ele tem um fraquinho pela tua escritora.
Ermes levantou-se de um salto: - Eu já sabia que tu ias tentar morder.
- São só algumas considerações sobre a vida e sobre o amor disse ela, para retirar importância ao assunto.
- A tua reserva de veneno é inesgotável. - Ermes sorriu amargamente antes de ir embora.
Se ela o conhecia, e conhecia-o bem, o mal já estava feito. Precisamente como ela queria.
Ermes saiu para a rua. A mão enterrada no bolso do sobretudo apertava com raiva o embrulho da Tiffany que continha a libelinha de esmeraldas e rubis que comprara para Giulia.
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Naquela noite Giulia sonhou que estava a fazer amor com tanta intensidade e paixão que acordou molhada de suor e de desejo. Após alguns instantes de aturdimento, levantou-se e, chegada à casa de banho, enfiou-se debaixo do chuveiro. Quando saiu de lá, sentia-se leve e feliz. Envolveu-se numa toalha macia de felpo. Secou-se com cuidado e começou a espalhar sobre o corpo uma loção hidratante. Entrou no quarto. Antes de se vestir, olhou-se no espelho. Os seios estavam ligeiramente mais cheios e a auréola em volta dos mamilos começava a escurecer. A mama operada, por efeito da gravidez, apenas se diferenciava da outra por uma pequena cicatriz. Ninguém, para além dela própria, podia aperceber-se daquelas imperceptíveis alterações que eram o reflexo exterior do seu novo estado.
O duche não tinha apagado as sensações do sonho, nem ela se importou com isso. Era uma mulher grávida que sentia a necessidade de fazer amor. E não tinha vontade nenhuma de mentir a si própria, repelindo como pecaminosas e transgressoras as pulsões que o sonho tornara manifestas.
O homem do sonho tinha um nome: Franco Vassalli. E sentia-se enfeitiçada, fascinada, presa. Sobre aqueles dois beijos roubados construíra uma paixão.
Vestiu umas cuecas de seda branca, prendeu o ligueiro à cinta e enfiou umas meias cor de areia dourada. Cobriu os seios com
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um top branco e pôs ao pescoço um colar de pérolas. Depois sentou-se no toucador e começou a maquilhar-se.
Apercebeu-se de que estava a executar aquelas operações habituais com um cuidado e uma lentidão insólitos, com o espírito repleto de pensamentos, o corpo tenso como uma corda de violino a captar as vibrações do desejo.
Vestiu uma saia de pregas bastante comprida com uma racha que vinha acima do joelho e uma camisola de caxemira que lhe descia solta até às ancas com um decote estreito e fundo que chegava ao início dos seios. Calçou uns sapatos baixos de atacadores. Voltou diante do espelho. Parecia uma menina. Mas tinha quarenta e dois anos, estava grávida e tinha vontade de fazer amor.
- Giulia, estás escandalosa - disse, olhando-se maliciosamente ao espelho. Não ficou muito satisfeita com aquele comportamento, mas também não se condenou.
Foi ao telefone e marcou o número da advogada Dionisi.
- Fala Giulia de Blasco - disse à secretária.
- vou passar-lhe a senhora doutora.
- Não, não vale a pena incomodar. Queria apenas o número do telefone do Dr. Vassalli - disse muito depressa, para escapar ao interrogatório da amiga.
A secretária ditou-lhe uma série de números. Começou pelo primeiro.
- O Dr. Vassalli, por favor - pediu.
- Quem fala? - quis saber a secretária, delicadamente.
- Giulia de Blasco.
- O senhor doutor está em reunião - respondeu Madi. - Posso ajudar?
- Sim. Diga-lhe que estou à procura dele.
- Aguarde um momento, Sr.a de Blasco. vou ver o que posso fazer.
Esperou alguns intermináveis minutos. Depois, uma voz de homem, quente e vibrante, disse: - Olá, Giulia.
- Podemos encontrar-nos? - perguntou ela.
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- Quando? - apressou-se Franco a responder.
- Agora - disse ela, com uma extrema segurança.
- Onde?
- À entrada dos jardins da via Palestro - propôs Giulia imediatamente, sem saber porquê.
- Lá estarei - respondeu Franco.
Giulia desceu à sala de estar, onde Ambra passava cera no chão e cantava, libertando uma grande alegria.
- vou sair - interrompeu Giulia, que ainda não a tinha cumprimentado.
- Quando volta? - perguntou a mulher.
- Não sei - disse Giulia, sonhadora.
- Agasalhe-se, que lá fora está frio - recomendou-lhe. Giulia enfiou o blusão de carneira e saiu.
Franco e o cão lá estavam, diante do portão do jardim. As alamedas apresentavam-se cobertas por um tapete de folhas flamejantes. As estátuas antigas observavam-nos com olhos vazios.
- Que maravilha ver-te - disse ele, avançando ao encontro dela.
Giulia observou-o com atenção.
- És tão jovem - disse ela a sorrir.
- Dizes isso como se fosse um defeito - objectou ele, e acrescentou: - Quando sorris assim, pareces uma menina.
- Estou a sorrir com todo o meu ser porque te desejo - confessou Giulia.
Outras mulheres lhe tinham dito, com palavras e comportamentos diversos, a mesma coisa, mas nenhuma tivera aquela intensidade simples e verdadeira, aquela expressão de doçura.
Tinham entrado no jardim onde algumas crianças, muito pequenas, brincavam sob o olhar das mães. Giulia continuava a manter aceso aquele sorriso de desejo. Observava o tapete de folhas vermelhas e amarelas que cobria o chão.
Franco puxou-a para si e Giulia, colando-se ao seu corpo, sentiu a consistência viril de um desejo correspondido. Apeteceu-lhe
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que Franco a possuísse por cima daquele tapete de folhas, sob o céu límpido, naquele ar gelado percorrido pelas vozes inocentes das crianças.
Enquanto ela elaborava aquela fantasia, Franco conseguiu surpreendê-la com uma outra decisão súbita. Pegou-lhe na mão e conduziu-a até à villa Reale, que tinha sido, em tempos, a sumptuosa habitação de uma antiga família de Milão.
O edifício albergava o museu de arte moderna, mas a ala direita, onde os salões decorados com frescos conservavam ainda o mobiliário real, era propriedade da Câmara, que ali celebrava casamentos e organizava recepções.
Esquivaram-se com facilidade à vigilância dos dois guardas empenhados numa acesa discussão futebolística e subiram silenciosamente a escadaria de pedra. Franco conhecia a sucessão de salões e de quartos que desembocavam num aposento revestido de tapeçarias setecentistas. Havia uma cama de dossel, recoberta de seda azul-celeste com lírios de França. Franco fechou a porta à chave.
Giulia abandonou o blusão de carneira no chão de mosaico, passou o cordão de seda que marcava o limite para os visitantes e tirou os sapatos e a saia. Franco pegou nela ao colo e pousou-a no centro da grande cama.
Aquilo que aconteceu depois foi uma espécie de milagre. Aos quarenta e dois anos, pela primeira vez na sua vida, Giulia descobriu o encanto de uma relação que excluía qualquer implicação sentimental. Era sexo puríssimo, o mais resplandecente e glorioso. Foi uma sequência de amplexos arrebatadores sem gemidos desesperados.
Como no sonho, mais do que no sonho, a potência da virilidade derretia-se dentro dela numa doçura entorpecedora e dourada, num longuíssimo e feliz orgasmo salpicado de estrelas.
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Os cavalos estavam nervosos. Também Tea e Marcello andavam muito tensos. Fontechiara tinha sido invadida por aquela espécie de grande circo que é uma equipa cinematográfica. Rulotes, camiões, automóveis, materiais de vários tipos, fotógrafos e câmaras, actores, figurantes, secretárias de produção, costureiras, cabeleireiros, maquilhadores, electricistas e maquinistas.
Por todo o lado era um emaranhado de cabos eléctricos, de vozes, de chamamentos com trocas animadas de comentários, de gente que circulava pelo meio daquela fábrica de sonhos improvisada dando e executando ordens, procurando coisas. O cinema tinha levado a desordem para Fontechiara, alterando-lhe os ritmos habituais.
- Achas que esta história ainda vai continuar durante muito tempo? - perguntou Marcello, que sentia já a falta da tranquilidade laboriosa do passado, com o tempo marcado apenas pelas lições dos alunos, no respeito do ritmo biológico dos animais.
- Até parece que vives na lua - respondeu Tea, aborrecida. Sabes tão bem como eu que o trabalho da equipa vai durar pelo menos uma semana. - A ordem equilibrada e tranquila de Fontechiara tinha sido transtornada pelo assalto daqueles estranhos, barulhentos e invasivos.
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- Será que era mesmo necessário? - perguntou ele, quase a censurá-la.
Estavam na sala a tomar o pequeno-almoço. Giorgio, cooperante como sempre, levava para a mesa torradas quentes e mel.
- Desculpem a minha intromissão, mas eu nunca me tinha divertido tanto - confessou candidamente. - Hoje de manhã começam as filmagens e eu não vejo a hora de assistir ao primeiro bater da claquete - Tinham-lhe tirado o gesso e agora mexia-se com relativa facilidade.
Tea e Marcello, envolvidos no início tempestuoso da conversa, nem sequer o ouviram.
- Perguntei-te se era mesmo preciso abrir as portas a esta tropa selvagem - repetiu Marcello.
- Não. A resposta é não - respondeu Tea, furiosa. - Não era preciso, nem sequer obrigatório. Era facultativo. Mas tu sabes, tão bem como eu, o dinheiro que nos dão por cada dia de permanência em Fontechiara. Pagam-nos tão bem que, quando se forem embora, vamos poder comprar dois meios-sangues. E trata-se de os aguentar durante uma semana apenas. Achas pouco? - retorquiu ela, pondo-o perante a realidade.
- com a vossa permissão - interveio Giorgio, com alguma ironia -, vou até às boxes. - Tinha assumido o encargo de mudar a palha do chão três vezes por dia e cumpria-o escrupulosamente. Não se preocupem em acompanhar-me. Eu sei o caminho - acrescentou, para tentar quebrar a tensão. O rapaz saiu e fechou delica-; damente a porta atrás de si.
- Tudo começou com a chegada da tua mãe - queixou-se Marcello. - Antes vivia-se aqui em paz.
- A minha mãe já se foi embora. Será a presença do Giorgio que te perturba?
- Por favor - replicou, esboçando um gesto com a mão.
- Porque, se assim for, podemos sempre convidá-lo a retirar-se
- rematou Tea, que começava já a não aguentar o mau humor de Marcello.
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Interrompeu o pequeno-almoço e, depois de enterrar um chapéu na cabeça, enfiou um blusão velho e preparou-se para sair. Aquela discussão com Marcello estava a tornar-se estéril.
- Fazes-me lembrar tanto a Marta, quando ages assim - provocou ele.
- Era bem melhor não teres dito isso - reagiu Tea, ao mesmo tempo que voltava para trás e olhava para ele com severidade. Achava ofensiva aquela comparação. E depois, em qualquer caso, não gostava de ser comparada com ninguém. Ela era Tea, ponto final.
- Mas disse - insistiu Marcello. - E é exactamente aquilo que penso.
- Esperava de ti colaboração, não acusações insensatas retorquiu. - Também lá estavas quando o director de produção veio com os tripés fazer o reconhecimento do terreno. Também lá estavas quando nos deixou um bom adiantamento. Também lá estavas quando eu assinei o contrato. Se tinhas objecções, porque não as levantaste nessa altura?
- Porque parecia terrivelmente importante, para ti, trazer aquele dinheiro para casa.
- E continua a ser. Fui eu que contraí os empréstimos ao banco. E sou eu, todos os meses, que tenho de ver se as contas batem certo - disse, zangada.
- Então é isso que pensas - respondeu ele, numa fúria. - E, no entanto, eu julgava que também tinha contribuído para planear e levar para a frente esta chafarica. Obviamente, estava enganado. A filha de Marta Corsini, exactamente à maneira da mãe, raciocina como uma máquina registadora. É isso que faz a diferença entre nós. Eu não tenho dinheiro. Nunca tive. E nunca terei. Nem estou disposto a deixar-me tratar como um capacho só para o ter.
- Desculpa, Marcello. Eu não queria - disse Tea, consciente de o ter ferido profundamente.
- Mas conseguiste. A partir deste momento, Fontechiara pertence-te. Em todos os sentidos. Porque eu vou-me embora - declarou, com uma teatralidade excessiva.
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Marcello saiu no momento em que a equipa entrava em acção dentro do picadeiro.
- Marcello, ouve - gritou Tea da entrada da porta. Ele não respondeu nem se voltou. Entrou no Land Rover e ligou o motor.
- Grande confusão que eu armei - disse para si, em voz baixa.
- Agora o que é que eu vou fazer sozinha? - perguntou, aflita.
Não devia, não podia deixá-lo ir embora assim. Se tinham discutido, era por culpa de Marcello, que a tinha comparado com Marta. Mas ela tinha-o humilhado injustamente.
Tea sabia da importância que Marcello tivera no seu renascimento. Quando o conhecera, era uma jovem desesperada e sem objectivos. Marcello e os cavalos tinham sido a sua salvação. Sentiu-se amada e conheceu a alegria de amar, o prazer de se sentir útil, necessária. E tinha bastado uma discussão, a primeira entre eles, para mandar tudo ao ar. Seria realmente assim tão frágil o equilíbrio daquela união?
Tea, indiferente à gente que invadira Fontechiara, correu até às boxes. Giorgio estava a preparar Kacina, a sua égua árabe, para a primeira lição da manhã.
- Deixa. Eu faço isso - disse Tea ao rapaz.
Saltou para a sela e lançou-se na perseguição de Marcello. O Land Rover estava a sair da propriedade e ia seguir pela via Cassanese, mas ela, tomando um atalho pelo meio dos campos, chegaria antes de Marcello ao cruzamento com a estrada para Milão. Queria detê-lo e obrigá-lo a reflectir.
Mas um obstáculo imprevisto surgiu diante do cavalo, que se empinou de repente e fez saltar Tea. Foi projectada para a frente e viu a terra castanha e compacta vir ao seu encontro. Tentou uma cambalhota para amortecer a queda. Depois o mundo desvaneceu-se.
Quando voltou a abrir os olhos, a primeira coisa que viu foi o rosto sorridente de um jovem. Tinha um olhar azul e límpido, cabelos loiros que lhe desciam até ao pescoço e uma voz quente e pastosa que vibrava numa pergunta preocupada.
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- Como estás? - perguntou-lhe em inglês.
Se calhar estava a sonhar, e era um belo sonho. Nunca tinha visto um rosto de homem tão bonito, nem tinha nunca ouvido uma voz tão atraente. Logo a seguir viu gente em volta dela e ouviu alguém comentar o acidente.
A voz do rapaz impôs-se ao ruído de fundo.
- É melhor levá-la para dentro - decidiu. E levantou-a com os seus braços possantes.
Tea fechou os olhos, respirou o seu perfume e esperou que aquilo não fosse um sonho.
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Era americano, tinha vinte e seis anos, um corpo de atleta e um ar impertinente. Chamava-se Rod Ward. Era o protagonista masculino da versão cinematográfica de Como o vento, o último romance de Giulia de Blasco. Tea estava de cabeça perdida por ele.
- Gostas dele, não gostas? - perguntou Giorgio, com um sorriso cúmplice.
Sentia as pernas a tremer sempre que o via. A sua presença provocara-lhe um mal-estar cheio de doçura.
- É um rapaz bonito - disse Tea, com ar de quem não dava importância, enquanto o devorava com os olhos.
Estavam sentados no gradeamento de madeira que delimitava a zona das boxes. A poucos metros deles, os especialistas da equipa preparavam um roseiral seguindo as indicações do cenógrafo, enquanto o americano, sentado nos degraus da rulote, falava com o realizador que, de guião na mão, lhe explicava como devia interpretar a cena que iam gravar a seguir.
Rod parecia atento às sugestões do realizador, mas na realidade espreitava em direcção a Tea. Giorgio e Tea dirigiram-se às boxes.
- A Kacina e o Kadim precisam de ser montados - observou Tea.
- Não contes comigo para o puro-sangue árabe do Marcello esquivou-se Giorgio, preocupado com aquela tarefa.
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- Nem estava a pensar nisso - sossegou-o. - Durante mais algum tempo é melhor montares cavalos tranquilos e fiáveis.
Marcello tinha partido há quatro dias. Tea tinha recuperado bem da queda que, tirando algumas zonas doridas, não tivera consequências.
À noite, todas as noites, Rod manifestara a Tea a sua disponibilidade para montar Kadim, uma vez que o animal precisava disso. O rapaz, antes de ser actor, tinha vivido num rancho no Colorado e sabia tanto ou mais de cavalos do que ela.
Rod, que acabara já o seu trabalho com o realizador, foi ter com Tea e com Giorgio às boxes.
Pegou num braço de Tea: - Este ajudante não te serve - decretou, imaginando que Giorgio pudesse montar Kadim.
- Porque é que não serve? - perguntou ela, com uma voz lânguida.
- Porque estou eu aqui. Tenho duas horas livres de intervalo para o almoço.
- A essa hora os meus cavalos têm outros programas. Muito obrigada, em qualquer caso, pela simpática oferta. - Aquela recusa custou-lhe algum esforço e uma grande emoção, mas não estava disposta a lançar a confusão no ritmo dos animais nem mesmo para cavalgar ao lado de Rod.
- Então fica para logo à noite - replicou ele, enquanto lhe atirava um beijo com a ponta dos dedos.
- Tens a certeza de que consegues? - perguntou Giorgio, preocupado, ao vê-la montar.
Tea não voltara a trabalhar depois do dia da queda. Não fora nada de grave, mas tinha-lhe apetecido fazer o papel da convalescente, receber as visitas de Rod e de outros actores da equipa para sentir que, mesmo na ausência de Marcello, havia quem se preocupasse com ela.
- Para saber, tenho de experimentar - respondeu, com um sorriso cheio de sedução.
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Saíram a passo da propriedade. Tea montava Kacina, Giorgio um animal dócil, adequado ao seu nível de experiência. Avançaram por um caminho que seguia ao lado da estrada.
- Notícias do Marcello? - perguntou o rapaz.
- Regressou ao sótão que tem na cidade - respondeu Tea.
- Foi ele que te disse?
- Fiz meia dúzia de telefonemas.
- Achas que vai voltar? - insistiu Giorgio, preocupado.
- Certamente. Só tenho de ir ter com ele e pedir-lhe de joelhos. É um monstro de orgulho.
- E tu vais, não vais? - suplicou o rapaz. - Vocês não se vão separar, pois não? - Andava à caça de certezas. Parecia-lhe ter encontrado algumas no pequeno universo de Fontechiara e não as queria perder.
- Podes ter a certeza que vou - quis sossegá-lo. - Mas não antes de lhe ter demonstrado que estou com ele porque o amo, não por ser útil ao funcionamento da coudelaria.
- Mas tu precisas do Marcello. Não vais conseguir levar isto avante sozinha.
Kacina mexeu a cabeça com elegância.
- Há alguma verdade naquilo que dizes. Mas o Marcello não pode saber isso.
- Tudo o que quiseres - replicou Giorgio. - Mas juntem-se outra vez, por favor. Estou cansado de gente que se separa. Contava passar algum tempo aqui convosco, com os dois. E agora descubro que te deixaste encantar por um cowboy de celulóide - queixou-se.
- Estou só numa de sedução. Tenho dezoito anos. E na minha idade é permitida uma pequena transgressão.
Giorgio pensou em Marcello. - Ele não ia gostar - disse. - Se o Marcello soubesse, ia sofrer imenso.
- Pior para ele. Desta vez foi ele que as pediu. Portou-se como um cavalo empinado - acusou Tea, que não conseguia ainda identificar a razão daquele violento litígio.
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No entanto, sabia claramente que a história com o americano não se limitava a um jogo de sedução. Gostava de Rod. Se os rapazes com quem tinha andado quando era mais nova tinham sido um antídoto contra a solidão, Rod afagava nela cordas que nunca tinham vibrado antes. Se Marcello era a ternura e o amor, e os outros homens antes dele tinham sido a descoberta do sexo, o que seria aquele rapaz lindíssimo? Tea pôs o seu puro-sangue a trotear, imitada por Giorgio, e deixou-se acariciar pelo vento.
Tinha caído a noite. Fontechiara estava outra vez deserta. Os membros da equipa tinham regressado ao hotel. Todos excepto Rod que, nas boxes, estava a escovar os cavalos com Giorgio e Tea.
Quando o americano se aproximou de Tea com intenções inequívocas, Giorgio deixou o terreno livre, com o coração num tumulto e um violento remoinho no sangue, mantendo todavia uma atitude contida, desmentida por um súbito e violento rubor. Sentia-se intimidado pelo comportamento de Rod, e sentia também uma invencível solidariedade em relação a Marcello, que considerava vítima de uma traição.
- vou tratar do jantar - disse, sentindo-se no dever de justificar aquela retirada.
- Eu vou já ter contigo - gritou-lhe Tea.
- Não, tu não vais - sussurrou-lhe Rod, decidido, mantendo-a presa por um braço. - Há quatro dias que andas a jogar às escondidas comigo. Agora estamos aqui os dois. Sozinhos.
Quando Tea tentou protestar, ele abraçou-a e calou-a com um beijo.
- Não julgues que me encantaste com esse teu ar impertinente
- protestou Tea, com o coração aos saltos, afastando-o de si. Na realidade, aquilo que ela queria afastar era o medo de recomeçar a estragar a sua vida. Repelia-o, apesar do desejo que sentia em relação a Rod ser muito forte.
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- Está caladinha, menina - disse-lhe com mais beijos, ao mesmo tempo que a deitava na palha do chão.
- Não sei nada de ti - protestou ela, aturdida com os beijos e a agressividade do rapaz.
- Sabes quanto basta - disse, enfiando uma mão por baixo da camisola de Tea.
Aquela situação que a aturdia, em vez de a isolar do mundo, trouxe-lhe à memória o rosto sensual da mãe e as figuras indistintas dos homens que tivera e que ela conhecera só em parte.
A coisa que mais desejava era não ser como ela. Não o queria por ela mesma. Por Marcello. Pela sua renovada dignidade.
Escorregou com agilidade para fora dos braços de Rod, pôs-se de pé e disse: - É verdade, Rod. Gosto de ti. E gostava de fazer amor contigo. Mas não o farei.
- És realmente um enigma, miúda - respondeu, furioso. - Se te apetece uma coisa, porque é que não a fazes?
- É uma estúpida questão de fidelidade - respondeu ela a sorrir. - Já alguma vez ouviste falar disso?
- Claro que ouvi falar - admitiu. - Como também ouvi falar de amor platónico, de amor eterno, da santidade da família. Mas nós sabemos que isso são histórias. Não é verdade? - perguntou, ao mesmo tempo que se levantava por sua vez e ia ao encontro dela.
O jovem abraçou-a com a certeza de a possuir, mas sentiu entre os braços um corpo gélido.
- Em relação a alguns valores, as nossas opiniões divergem replicou Tea, com frieza. - E agora, por favor, deixa-me ir.
Era a primeira vez que uma mulher o rejeitava. E não podia acreditar. - Estás a brincar, miúda? - Sentia-se humilhado, ferido, ofendido.
- Deixa ver se eu entendo - tentou ela raciocinar. - Tu queres dar uma queca saudável. Certo? E depois? - continuou Tea. Refiro-me ao meu depois, como é óbvio. Depois volto para o meu namorado e abraço-o a pensar em ti. E espero por uma nova aventura como esta.
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- Nunca mais encontras outro como eu - disse Rod, sem convicção.
- Tipos como tu encontram-se sempre - disse ela, respondendo no mesmo tom. - E nem sequer é preciso ser-se particularmente gira para os encontrar. O mundo está cheio de Rod Wards. Reconheço que ultrapassei os limites do razoável, que te fiz esperar inutilmente. Desejei-te, reconheço-o. E talvez ainda te deseje. Mas preciso de demonstrar a mim mesma, e não ao meu namorado, que sou digna dele e do amor que ele sente por mim.
A respiração quente dos cavalos humedecia o ar, dominado pelo seu cheiro.
- É um conceito ultrapassado - continuou Tea, mantendo um espaço razoável entre ela e Rod -, mas revalorizei-o graças ao Marcello. Porque lhe devo muito. com ele construí uma vida. A ti não devo nada. O que poderia eu construir contigo?
- Uma inesquecível noite de amor. Achas pouco? - disse o actor. Não se conformava com a derrota.
- Uma noite não é nada em relação a toda uma vida - concluiu Tea, e saiu da boxe.
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Chamava-se Serena o Swan de vinte metros ancorado no pequeno porto de Rapallo. Tinha bandeira inglesa e havia dois marinheiros britânicos a bordo, para além do cozinheiro.
- Levantar âncora - anunciou Franco Vassalli ao mais velho dos dois. - Destino Gibraltar. com escala em Menorca.
O homem não deixou transparecer nenhuma surpresa, mas o seu espanto era total. Era a primeira vez que Vassalli decidia uma partida em pleno mês de Novembro, mas, acima de tudo, era a primeira vez que recebia uma mulher a bordo. Sempre navegara sozinho.
- Anda - disse a Giulia. - vou levar-te ao camarote. - Era uma verdadeira fuga do mundo, depois daquela exaltante experiência erótica no quarto da villa Reale.
O camarote principal, na popa, era um aposento extremamente acolhedor, em madeira com aplicações de latão brilhante e uma cama de casal com uma cobertura de vison claro.
Giulia deixou-se cair em cima daquela pele macia.
- Devo ter enlouquecido - confessou, assumindo um comportamento frívolo que não tinha nada a ver com ela.
- Não achas que estás a exagerar? - replicou Franco.
- Já exagerei ao vir aqui, contigo. Nem aos vinte anos imaginei fazer uma loucura destas. Talvez estejamos apaixonados -
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admitiu Giulia. - Ou talvez não, apesar de os sintomas parecerem estes: palavras banais, conversas em roda livre, frases absolutamente desprovidas de bom senso.
- Deixa-te ir, Giulia - sugeriu ele, ao mesmo tempo que se estendia ao lado dela. - Não procures explicações para comportamentos que se explicam por si.
Giulia repeliu-o.
- Porquê? - perguntou ele, espantado.
- Gostaria de sobreviver a esta grandiosa experiência - respondeu, corada.
Não traziam bagagem nem tinham avisado ninguém daquela súbita partida.
- Não tenho roupa para me mudar - confessou Giulia.
- Nem eu - respondeu Franco. - Enquanto os marinheiros tratam de preparar o barco, nós vamos a terra e compramos o que for preciso.
Giulia levantou-se. - Primeiro quero ligar à Ambra. Não gostaria que fosse à polícia para comunicar o meu desaparecimento disse, com uma certa preocupação.
- Giulia, não faças isso - pediu-lhe, levantando-se por sua vez e cobrindo-a de pequenos beijos.
- Porque não? Não posso desaparecer assim. Para a Ambra seria a pior das situações. Porque é que não queres?
- Tenho medo - confessou Franco.
- Tens medo? - perguntou Giulia, espantada. - De quê?
- Tenho medo que se quebre o encanto - confessou com simplicidade, enquanto a envolvia num abraço quente.
- Os sonhos são tenazes. Achas que basta pouco para os dissolver? - Giulia experimentava uma sensação de vergonha em relação àquelas falas de telenovela, mas não conseguia evitá-las.
- Talvez tenhas razão - rebateu Franco. - Aquilo que eu sei com certeza é que estou a apertar o mundo nos meus braços. E não quero que ninguém mo tire - sussurrou-lhe ao ouvido.
Giulia estremeceu de prazer ao som daquelas palavras óbvias e previsíveis e abandonou-se-lhe. Sentiu uma mão de veludo
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acariciar-lhe o seio operado e a voz macia e arrastada do homem que lhe dizia baixinho: - Os teus seios são lindíssimos, Giulia. E gostava que nenhum homem no mundo pudesse tocá-los para além de mim. - O grande medo que pesava sobre Giulia desde a operação dissolveu-se finalmente. Abandonou-se àquela onda de desejo que a prendia numa vertigem extremamente doce.
Giulia e Franco desceram a terra em Portofino e tomaram as lojas de assalto. Giulia aproveitou para ligar a Ambra.
- Não te preocupes comigo - disse à empregada amiga, que estava já apreensiva. - vou estar fora uns dias. Avisa o Giorgio. Sabia que o filho estava em segurança. E isso bastava-lhe.
- A senhora não pode ser menos misteriosa e dizer-me o que é que anda a fazer? - perguntou Ambra.
- Por favor, Ambra. Confia em mim. Garanto-te que me sinto lindamente - respondeu, evasiva.
- Olhe que o Dr. Ermes já ligou três vezes de Nova Iorque comunicou-lhe Ambra, sem esconder um tom de censura.
Naquele momento, Giulia apenas queria o sonho que estava a viver.
- Está bem, Ambra - disse, e desligou rapidamente sem se despedir. Franco vinha em direcção a ela.
- A quem estás a ligar? - perguntou-lhe.
- Tinha-me surgido uma ideia, mas afinal acho que é melhor guardar para nós o nosso segredo. Não ligo a ninguém - mentiu.
- Assim está bem - disse ele, sabendo que ela mentia. Pôs-lhe um braço à volta dos ombros numa atitude de posse
e saíram juntos para a praceta deserta, iluminada pelos lampiões e pela lua.
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Ermes despediu-se de Ambra e desligou a chamada. Logo a seguir enfiou cinco dólares debaixo do telefone de Steiner. Era um simpático costume americano que deixava o hóspede à vontade, permitindo-lhe o uso do telefone sem se sentir em falta. E para além disso não queria fazer pesar o custo dos seus telefonemas para Itália sobre o amigo, que tinha já bastantes problemas económicos causados pelas pesadas exigências da ex-mulher.
Estava no quarto do colega. Um aposento que sintetizava a maneira de viver desordenada e oposta dos seus ocupantes: livros de Medicina, animais de pano, um crucifixo de madeira e uma estrela de David. Uma vista nocturna da Broadway e algumas aguarelas que representavam a catedral de Colónia, cachimbos de madeira, vistosos colares de pedras falsas coloridias, uma colecção de valiosos frascos de cristal e conjuntos de animais em porcelana.
Eram duas personalidades diferentes, a de Heini e a de Judith. Duas idades distantes no tempo mas muito próximas no plano dos sentimentos. Ele no limiar dos cinquenta, ela apenas com vinte.
E, no entanto, naquela vitrina de contrastes reinava uma singular harmonia. Era como se duas gerações em confronto dessem as mãos reconhecendo-se nas desigualdades e achando nelas pontos de referência fundamentais, um incentivo para melhorar a qualidade da sua relação.
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Um dos cães de Judith, um Pomerânia dourado e branco, tinha-se aninhado aos seus pés. Ermes estava sentado na beira da cama, de onde tinha feito o telefonema, e levantou-se com um certo cansaço.
Sentia uma espécie de inveja relativamente ao sorridente entendimento entre Heini e a sua jovem companheira, um entendimento que entre ele e Giulia, havia já algum tempo, se andava a deteriorar. O facto de ele saber, pelo menos em parte, das motivações psicológicas do comportamento dela, não mudava o seu estado de espírito, nem a realidade das coisas.
Giulia já não era a criatura inocente, vulnerável e indefesa que ele amava com todo o seu ser, mas uma pessoa possuída por uma insensata necessidade de se confrontar com tudo, até sexualmente. Ele tinha entendido isso perfeitamente.
Giulia esperara que ele partisse para retomar o voo, mas já não em direcção à familiar solidão representada pela casa do avô Ubaldo em Modena. Tinha em mente outras metas e outros territórios onde provavelmente não criaria raízes, mas onde certamente procuraria uma confirmação da sua feminilidade.
Girava em volta das palavras por medo de se confrontar com uma realidade ainda não comprovada, mas perigosamente intuída, que alimentava nele o menos fiável dos sentimentos: o ciúme.
Era ele, agora, o mais indefeso. Regressou à sala, onde o amigo e a companheira estavam a completar um puzzle gigantesco. Os cães e os gatos tinham ocupado o único sofá. Das colunas harmoniosas da aparelhagem estereofónica explodia a Nona Sinfonia de Beethoven. No ar pairava um aroma de tabaco de cachimbo. A rapariga ergueu para ele um olhar interrogativo.
- Estás com uma cara séria e triste. Porquê? - perguntou afectuosamente.
Ermes não morria de vontade de expor os seus problemas, mas naquela noite, se Judith ali não estivesse, teria despejado em cima do amigo toda a sua amargura.
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- Eu ouvi falar de uma festa - disse, para mudar de assunto. Porque é que não vamos? - propôs.
Heini tinha-lhe dito que uma amiga deles, uma imaginativa representante da pop-art, dava uma festa em sua casa, a poucos quarteirões dali, no bairro chinês.
- Exactamente, porque é que não dão lá um salto? - propôs Judith, que tinha captado a necessidade de Ermes em ficar algum tempo a sós com o amigo.
- Tu não vens? - perguntou Heini.
- Hoje não - respondeu ela, sem se justificar. Foi buscar os sobretudos dos dois homens.
- Eu não venho tarde - garantiu o médico, com uma piscadela de olho.
Quando chegaram à rua, Heini quebrou o silêncio. - Não a encontraste. É isso? - disse, referindo-se ao telefonema de Ermes.
Steiner sabia a história de Giulia, da sua doença, do generoso abandono de Ermes que tinha arranjado como pretexto aquela troca de ideias com os colegas da Universidade de Columbia para a deixar só.
- Levantou voo - respondeu Ermes, deprimido.
- São crises passageiras - generalizou o amigo, para o reconfortar. - Agora - continuou, sorridente -, vamos mergulhar no meio daquela multidão louca em casa da Elsa. Uma dose razoável de álcool e um bocado de barulho são um antidepressivo muito eficaz.
Tinha-se levantado um vento fresco que anunciava neve.
- Tenho medo de a perder - surpreendeu-se Ermes a confessar. - A Giulia é uma jóia rara. E alguém vai acabar por ma tirar. Recordou as insinuações perversas de Marta a propósito de Franco Vassalli.
Heini olhou para o amigo com uma viva preocupação. Espera pela embriaguez de uma longa série de whiskies para dizeres esses disparates - censurou-o.
- Mas se a Giulia se tivesse cansado de mim e tivesse arranjado outro? - replicou Ermes com a ingenuidade de um rapazinho.
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- Isso é um discurso aceitável, que cabe na ordem das coisas possíveis - replicou com calma. - Mas, se eu bem percebi - acrescentou -, tu estás ciumento como uma macaca. Garanto-te que o ciúme nunca reforçou o equilíbrio de um casal. Olha para a Judith
- explicou -, com vinte anos. É bonita, afectuosa e tem muitos amigos com quem se encontra mesmo sem mim. Pois bem, quando sai sozinha e depois regressa a casa, tenho a certeza não só de que não me traiu como também de que me ama mais do que antes. É jovem e precisa de vida em volta dela. Precisa de sorrisos e de um optimismo que eu nem sempre lhe posso dar.
- Estás a dizer que eu devia fazer a mesma coisa com a Giulia?
- perguntou Ermes.
- Isso não é uma pergunta honesta. Eu falei-te de mim, da minha companheira e da forma como estabelecemos a nossa relação. Sintetizei-te uma experiência que não é transferível. Cada um deve estabelecer a sua vida de uma forma compatível com a sua própria sobrevivência.
Ermes passou uma mão pela face que, apesar do frio e dos pequenos cristais de neve que começavam a cair, lhe ardia como se tivesse febre. - Tinha-me parecido fácil decidir a minha partida confessou, sem ter em conta as críticas do colega -, mas assim que cheguei a Nova Iorque, fiquei à espera que viesse ter comigo.
- E afinal não veio - comentou o amigo.
- E eu apercebi-me de que lhe tinha mentido a ela e a mim próprio.
- Há uma solução - disse.
- Qual?
- Amanhã de manhã apanhas o primeiro voo para Milão e deixas de pensar nisso. Mas agora, se ainda conseguires, tenta distrair-te - sugeriu Steiner, ao mesmo tempo que entrava à frente dele no átrio de uma velha casa.
A festa era no segundo andar, mas já no primeiro lanço de escadas se ouvia o ritmo da lambada e um ruído de vozes confuso, cortado por gargalhadas de modulações diversas.
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- Ouve, não me apetece nada mergulhar nesta confusão disse Ermes, retraindo-se diante da porta aberta do apartamento onde a festa decorria em pleno auge. Havia gente de todas as idades e de todas as raças, um ruído ensurdecedor e uma confusão terrível.
- Professor Corsini - cumprimentou-o uma voz feminina, vibrante como um toque de campainha.
Ermes olhou para a rapariga que lhe sorria, tentando recordar onde e como a tinha conhecido, Deteve-se sobre aquele rosto branco, com transparências de pérola, sobre o pequeno nariz petulante que uma leve máscara de sardas tornava mais delicado, sobre a cascata de cabelos flamejantes e o vestidinho azul-cobalto com reflexos prateados.
- Sou a Valentina. A Dra. Valentina Righetti. Diz-lhe alguma coisa este nome? - Riu-se com um ar malicioso.
Finalmente lembrou-se dela. Uma contratação recente da clínica de Milão. Uma especialista em cirurgia dermatológica. - com certeza: cirurgia correctiva. - Cumprimentou-a com um beija-mão cortês.
- Podia estar à espera de tudo menos de o encontrar a si, o severo professor Corsini, nesta espécie de sagração da frivolidade
- disse, ao mesmo tempo que lhe estendia um copo de vinho branco gaseificado.
- Pois é - admitiu ele, a sorrir com um certo embaraço. Nem eu, na verdade, tinha no meu programa um serão assim tão mundano.
Observou-a curioso e admirado. Quando a tinha encontrado na clínica, a Dr.a Righetti parecera-lhe muito diferente da mulher exuberante e desenvolta que tinha agora à frente.
- Sei em que é que está a pensar - disse ela, enquanto lhe abria caminho por entre a multidão, à procura de um improvável canto tranquilo. - Lembrava-se dos meus cabelos apanhados na nuca, da bata branca de um tamanho acima do meu e de uns pesados óculos de míope - explicou, divertida. - É o meu disfarce profissional. Quando saio da clínica, uso sapatos de salto alto, lentes de
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contacto e tento tirar partido dos meus cabelos ruivos e do fascínio das sardas - explicou em tom de brincadeira.
- Você é a dermatologista mais atraente que alguma vez encontrei - disse Ermes, sedutor, levantando a voz para se fazer ouvir no meio daquele ruído.
- Como disse, professor?
- Que é muito atraente - foi obrigado a gritar.
Heini Steiner, que se lançara na vertigem da dança com uma jovem negra vestida de franjas flutuantes que mostravam mais do que aquilo que cobriam, congratulou-se com a situação do colega através de um sorriso cheio de ironia.
- Vindo de si é um elogio muito especial - disse Valentina, que continuava a sorrir-lhe. - Também você é muito atraente. - Lançou-lhe um olhar inequívoco, carregado de malícia. - Quer dançar?
- propôs.
- Obrigado, mas não. Ia sentir-me ridículo. Não haverá antes uma maneira de escapar? Ou vamos ter de esperar pela próxima amnistia? - A sua capacidade de aguentar estava no limite.
- Venha atrás de mim - respondeu ela, ao mesmo tempo que lhe pegava na mão e o conduzia através de uma estreita escada em caracol.
Foram ter a uma espécie de mansarda com o telhado em vidro. Estava bastante fria, mas via-se o céu.
- Sabia, professor, que em Nova Iorque as estrelas estão mais próximas do que em Milão? - surpreendeu-o Valentina, a olhar para cima.
- É uma brincadeira ou uma forma de me deixar atrapalhado?
- Decida você.
- Porque é que está em Nova Iorque? - perguntou ele, mudando de assunto.
- Um congresso. Se preferir, um pretexto para me divertir um bocado. E você? - perguntou, insinuante.
- Uma série de encontros na Universidade de Columbia - respondeu brevemente. - Esta noite, quando me cumprimentou, já estava a ir-me embora, assustado pela confusão e pelo ruído.
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- Fico contente por ter ficado - disse, pronunciando as palavras devagar. Ermes sorriu. Passou-lhe uma mão pelo ombro. Depois afagou-lhe uma face com um gesto afectuoso e protector que ela apreciou.
- vou buscar qualquer coisa para beber - disse e, passando subitamente a tratá-la por tu, ordenou: - Não saias daqui.
Voltou a descer a escada de caracol e achou-se no meio da multidão de convidados. Chegou à porta com dificuldade e escapou pelas escadas. Quando chegou à rua fez sinal a um táxi.
- Hotel Pierre - disse ao motorista. Fugia miseravelmente de uma bela mulher que lhe estava a oferecer um modo de não pensar em Giulia. Giulia pesava-lhe como uma neurose. Detestava-a e sentia a falta dela. Como do ar que respirava.
Quando entrou no apartamento, no quarto andar, a luzinha vermelha do telefone estava a piscar. Levantou o auscultador.
- Há alguma mensagem para mim?
- Há uma chamada para si. Pode continuar em linha - comunicou-lhe a telefonista.
- Giulia - disse em voz baixa, obedecendo a um desejo.
- Lamento desiludir-te, querido. Sou apenas a Marta - choramingou com a sua voz melada.
- O que é que tu queres? - perguntou Ermes, resignado.
- Apenas testemunhar-te o meu pesar pela tua desilusão. Ermes recordou a forma como se tinham separado. As insinuações sobre Giulia.
- O que é que estás a dizer? - tentou aparar o golpe.
- Referes-te àquilo que te queria dizer?
Ermes esteve quase a desligar, mas a curiosidade prevaleceu.
- Não tenciono voltar a ver-te, Marta.
- Eu tenciono. Mas sei perder com um certo estilo. De qualquer maneira, não podes impedir-me de ficar do teu lado e de te exprimir o meu pesar pelos aborrecimentos que a tua Giulia te está a causar. Percebo o quanto isso te pode ferir.
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Ermes empalideceu. Marta estava demasiado segura de si e tinha certamente na mão uma carta vencedora.
- De que é que estás a falar? - perguntou, simulando segurança.
- Não me digas que ainda não sabes aquilo que já toda a gente sabe - espantou-se Marta, com uma teatralidade premeditada.
- O que é que há para saber?
- Lá estou eu com as gafes do costume. É evidente que não sabes - disse perfidamente. - Desculpa, querido. Faz de conta que eu não te telefonei.
Ele ficou calado à espera da estocada que ia chegar, de qualquer maneira.
- Mas talvez seja melhor saberes - continuou ela -, ao fim e ao cabo és um homem da ciência. Estás habituado às verdades mais dolorosas. E depois, mais vale que o saibas por mim. A tua escritora - concluiu, triunfante -, partiu com o Franco Vassalli. Um cruzeiro no Mediterrâneo a bordo do Serena. Os dois. Obviamente sós.
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O sonho onde brilhavam as estrelas dos seus céus infantis ficou subitamente enevoado e apagou-se. Uma sensação de frio gelou-lhe as veias. Uma náusea mórbida e oleosa apossou-se dela e acordou-a.
Responsável por aquele mal-estar era o movimento do barco, a oscilação alternada da proa e da popa para cortar as ondas. Identificada a causa do enjoo, Giulia sentiu-se logo melhor.
Uma voz no escuro, com tonalidades infantis e tons suplicantes, pronunciava frases desconexas cujo sentido não captava. Havia apenas uma palavra clara e bem distinta, repetida como uma obsessão: mãe. Giulia abriu os olhos e na escuridão da cabina viu o relógio digital, na mesa ao lado da cama, que marcava as três da manhã. O vento gemia como um fantasma. Após alguns instantes de aflição, apercebeu-se de que a voz que ouvia no escuro era a de Franco, que dormia ao lado dela. Aquela palavra, afectuosa e dorida, insistentemente repetida, recordou-lhe a história do recente rapto da mãe. Giulia enterneceu-se. Um filho e uma mãe, em qualquer idade, são sempre um extraordinário núcleo de amor.
Pensou em Giorgio. Os dias sombrios da rebelião, apesar de terem passado há pouco, pareciam-lhe agora distantes. Tinham-lhe ficado algumas marcas na alma, e provavelmente também na do
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rapaz, mas o pior parecia já ter passado, apesar de ter ficado um medo impossível de apagar.
Giulia queria acreditar que a vida de Giorgio, depois da tempestade que os tinha derrubado, estava finalmente a encaminhar-se para a normalidade. Pela primeira vez, ao fim de tantas angústias, via uma saída positiva para o futuro do filho e não estava ansiosa por causa dele. Dependeria isso daquela sua fantástica aventura ou de ter instaurado com Giorgio uma relação diferente, fundada numa nova consciência por parte de ambos? Fosse qual fosse a resposta, alguma coisa entre eles tinha certamente mudado, e para melhor.
Giorgio ia precisar de percorrer ainda algum caminho antes de sair definitivamente das suas dificuldades, mas Giulia achava que ele tinha tomado o trilho da salvação.
Imaginou-o adormecido, na tranquilidade de Fontechiara, e sentiu um desejo irresistível de se encontrar no quarto ao lado, para poder levantar-se e ir espiar o seu sono, como fazia quando ele era pequeno.
Mas estava muito longe. Pela primeira vez, desde que partira, explodiu dentro dela a saudade do filho, a necessidade de regressar
a casa.
No sono, Franco mexeu-se e esticou um braço na direcção dela, quase como se estivesse à procura de protecção.
- Mãe, estás aqui? - perguntou com uma voz ensonada. Giulia retraiu-se com uma sensação de embaraço. Acendeu a
luz na mesa-de-cabeceira. Franco abriu os olhos e sorriu-lhe.
- Porque não dormes? - perguntou.
Giulia olhou para ele: - Não durmo porque tu me acordaste confessou. - Estavas a falar enquanto dormias.
- Desculpa - disse.
- Estavas a chamar pela tua mãe - insistiu Giulia, com uma indiferença fingida.
- Os sonhos são misteriosos e incompreensíveis - sentenciou, para evitar que se aprofundasse o assunto. - Talvez não tenha
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ainda conseguido libertar-me da ideia do rapto. Foi terrível. Quando era pequeno - começou a contar - dizia a toda a gente que a minha mãe era a minha namorada. E considerava-a como tal. Recusava os convites dos meus colegas de escola para sair com ela. Eles invejavam-me porque julgavam que eu saía com uma rapariga. Mas eu ia mesmo passear com a minha mãe.
Giulia olhou para ele, perplexa, preocupada e perturbada. Não era aquele o tipo de confissão que esperava de um homem como Franco Vassalli.
- vou beber qualquer coisa - disse Giulia. Deslizou para fora da cama, pegou no roupão e saiu do camarote. O barco abanava com uma intensidade alarmante e ela teve de se agarrar ao corrimão para não cair. Chegou ao salão. O marinheiro mais velho, sentado à mesa de jogo, estava de turno. O homem cumprimentou-a e lançou-lhe um grande sorriso, mostrando uns dentes brancos e fortes.
Era um rosto simples e corajoso, cheio de optimismo e alegria de viver.
- Onde estamos? - perguntou Giulia.
- Estamos a atravessar o golfo de Lyon. Temos um vento entre os quinze e os vinte nós. Isso quer dizer que em dois dias e meio de navegação, se tudo correr bem, chegaremos a Gibraltar - disse o marinheiro.
- Estou a perceber - observou Giulia. - Mas aquilo que eu quero saber exactamente é quando posso desembarcar.
- Dentro de dois dias e meio, minha senhora. A não ser que deseje ir a terra amanhã de manhã. Nesse caso tenho de inverter a rota e regressar a Menorca. No entanto, essa inversão não faz parte do plano de navegação do comandante - explicou pacientemente o inglês.
- O comandante e a sua tripulação estão às ordens da senhora
- interveio Franco, que tinha chegado ao salão. O marinheiro afastou-se.
- És fantástico - exclamou Giulia, reconhecida.
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- Mas as minhas acções devem estar em baixa - replicou ele, enquanto tirava do bar uma garrafa de whisky velho -, pois se assim não fosse não me deixavas pendurado a meio da noite para vires cá acima subverter os meus planos.
Estendeu o copo a Giulia, que recusou. - Prefiro beber água. Pensou no ataque de náuseas que tinha tido.
- Porque é que queres interromper esta viagem? - perguntou Franco, ao mesmo tempo que lhe estendia um copo de água mineral.
- Saudades de casa - justificou-se.
- Tão fortes? - insinuou Franco, pouco convencido. Giulia foi sentar-se num sofá e bebeu um longo gole de água.
- De tal maneira que te peço autorização para desembarcar na escala mais próxima - esclareceu ela.
Franco olhou para ela, incrédulo. - Tínhamos decidido fazer um cruzeiro de oito dias, era uma pequena verificação para uma vida em comum. Navegamos apenas há dois dias. Não queres mesmo esperar pelo fim da viagem? - Sentou-se junto dela e olhou-a daquele seu modo irresistível que a fazia tremer.
Giulia sentiu-se pouco à vontade. Por que razão se punha Franco de repente a falar de vida em comum? Aninhou-se num canto do sofá.
O que fazia ela, Giulia de Blasco, no golfo de Lyon, naquela embarcação elegante, com um homem que praticamente não conhecia? Por que tinha querido experimentar a volúpia da transgressão com um homem diferente, apesar de estar grávida do homem que amava?
Chegou com nitidez à sua memória uma história que remontava aos anos da sua adolescência. Um Verão quente na casa de campo do avô Ubaldo. Estavam sentados à mesa, ela e o avô, na grande cozinha que um sol impiedoso tinha abrasado até ao fim da tarde. Depois, as sombras da noite, perseguidas pelos chilreies das andorinhas, estenderam-se frescas e agradáveis sobre as casas e sobre os campos. Vozes de crianças na eira. Latidos de cães distantes. O velho rádio Marelli transmitia cançonetas. O ar estava
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impregnado do cheiro apetitoso dos cozinhados. Ela e o avô comiam presunto com figos e melão.
- Porque é que estás tão silenciosa? - perguntou o avô.
- Estava a ouvir a rádio - mentiu ela.
O avô abanou a cabeça e acompanhou aquele gesto com um resmungo surdo.
- Vá lá, conta-me tudo direito - replicou o velho. - Eu sei muito bem quando dizes mentiras. E tu também não gostas de as dizer.
- Como é que sabes?
- Leio-to nos olhos.
- Então tanto faz dizer-te a verdade como não.
- Estou a ouvir - disse o velho com uma indiferença fingida,
apesar de na realidade estar morto de vontade de saber.
- Vi a Gilda - confessou Giulia -, nos campos por trás da
Casa Queimada. Estava a fazer amor com um guarda.
Giulia nunca tinha visto um homem e uma mulher a fazer amor. Foi um espectáculo que a deixou curiosa e que a perturbou. Até porque, através do vestido de algodão desabotoado de Gilda, a rapariga viu o ventre inchado e branco sobre o qual o homem se encarniçava com um prazer animalesco.
- Foi pena - suspirou o avô, que continuava a comer. - Era melhor que não tivesses visto aqueles dois. Mas agora... Tenta não lhes dar demasiada importância.
O avô Ubaldo era um homem imprevisível. Conflituoso, mas
também tolerante. Talvez por ter muitos pecados pelos quais ;
pagar, esperava que a indulgência que tinha em relação aos outros recaísse também sobre ele.
- A Gilda está grávida. Eu não imaginava que uma mulher naquele estado fizesse essas coisas - disse Giulia, corando, até por- que nunca teria abordado um assunto tão delicado com outra pessoa que não fosse o avô.
- Pois é, agora já sabes. Não é uma coisa muito edificante, mas antes de condenares, espera até cresceres - comentou com um ar compreensivo.
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- Mas o guarda nem sequer é o marido da Gilda - insistiu ela, que queria esclarecer alguns pontos precisos para perceber melhor.
- Uma mulher grávida continua a ser uma mulher, com os seus desejos. E depois, tratando-se da Gilda, todos os homens são bons. Excepto o marido, obviamente - respondeu Ubaldo a rir.
- A mãe diz que uma mulher grávida é sagrada - insistiu ela. Parecia-lhe imoral e inaceitável que um protector da ordem
pudesse executar uma agressão blasfema sobre uma mulher que esperava um filho.
Agora era a vez dela, Giulia de Blasco, viver aquela experiência ultrajante com um homem que não era o seu. É claro que não tinha uma grande barriga como Gilda, e Franco nem sequer imaginava que ela esperava um filho. Mas esperava. E desejava aquele filho com toda a sua alma.
- Não quero esperar pelo fim desta viagem. E não quero verificar nada. Porque não preciso de verificar nada - acrescentou, exaltada. - Eu já tenho um homem - disse de um fôlego.
Franco sorriu, mas foi um sorriso forçado e doloroso. - Já o tinhas antes de me telefonares e de partirmos para este cruzeiro observou. - Também já o tinhas quando parecias morrer nos meus braços.
Giulia não tentou arranjar desculpas, não considerava que isso fosse uma atitude digna e, sobretudo, não sentia essa necessidade. Os arrepios da transgressão que a tinham envolvido e exaltado já tinham passado.
- Quero voltar para casa - disse com sinceridade.
- Para junto do Ermes Corsini?
- Sim, para junto dele.
- Porquê? - perguntou Franco.
- Porque o amo. - Após um instante de silêncio, Giulia continuou: - Não sei nada de ti. Só sei que gostava de ti e que ainda gosto. Mas o Ermes é o homem da minha vida.
- Eu quero-te, percebes? - retorquiu Franco, agressivo.
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- Não estragues aquilo que houve entre nós - disse Giulia, para o obrigar a reflectir.
Franco sentou-se no sofá e segurou a cabeça entre as mãos. Fizemos amor como se o sexo fosse uma descoberta exclusiva nossa - começou. - Trouxe-te para este barco onde nunca entrou nenhuma mulher para além de ti. Antes de conseguir estar contigo, passei dias e dias a desejar-te. - Franco Vassalli tinha o ar perdido de um estudante perante a sua primeira desilusão amorosa. - Há mulheres mais belas, mais fascinantes do que tu. Mas eu quero-te pelos teus pensamentos, que não conheço. Foi a tua mente que me enfeitiçou - prosseguiu. - Gostava de ser uma criança - prosseguiu, surpreendendo-a -, assim pequenino acrescentou, medindo uma porção de ar entre o polegar e o indicador. - Gostava de entrar dentro de ti, no teu ventre. Como um filho. E viver em sintonia com o teu cérebro. Assim saberia o que sentes e o que pensas. - O seu olhar tornou-se opaco, turvo, e Giulia experimentou uma sensação de medo.
- Levas-me a casa? - perguntou baixinho.
- Claro, se é isso que queres. Desembarcamos em Menorca, que é o porto mais próximo. Entretanto, queres voltar para a cama comigo? Pelo menos até nascer o sol?
Queria aproveitar aquela última oportunidade para tentar reconquistá-la, mas já não era o homem forte e apetecível que Giulia tinha desejado com toda a alma. Era uma criatura vulnerável à procura de ajuda.
Giulia estava já longe dele, daquele mar, daquele barco, daquela experiência perturbadora. Pensava em Ermes, em Giorgio, em Ambra e na nova criança que agora desejava mais do que qualquer outra coisa no mundo.
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Valentina Righetti esperou um bom quarto de hora, a observar uns incompreensíveis quadros nas paredes e a contemplar as estrelas. Rejeitou os avanços de alguns convivas razoavelmente bebidos que chegaram até ali para lhe oferecer companhia, espirrou repetidas vezes por causa do ar gelado que entrava pela caixilharia e finalmente, cansada de esperar por Ermes Corsini, decidiu descer e procurá-lo.
Ermes já lá não estava. Aquele homem atraente, que pensava já ter capturado, quanto mais não fosse para uma breve aventura, tinha desaparecido sem deixar rasto. Mas por que razão a teria largado assim?
Valentina descobriu o seu acompanhante que, com movimentos desajeitados, tentava aprender a lambada com uma morena magra e insinuante.
- Vou-me embora - disse Valentina. - Vemo-nos amanhã.
- Mas nem pensar - replicou ele, abandonando a sua desenfreada professora de danças exóticas, que começou imediatamente a esfregar-se no homem mais próximo. - vou contigo - acrescentou, tomando-lhe o braço.
- Como queiras - acabou por aceitar. - Mas antes vou ter de encontrar o meu casaco de peles.
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No quarto da pintora, capas, sobretudos e casacos de peles tinham sido atirados para cima da cama e formavam uma montanha informe. - Que confusão - observou o homem, enquanto olhava desconsolado para aquele monte de roupa.
Começaram a procurar, às cegas, acrescentando confusão e desordem.
Uma empregada negra apareceu à porta a repetir, incansavelmente, com uma voz monocórdica: - Valentina Righetti.
- Sou eu - disse ela.
- Então faça o favor de ir ao telefone - resmungou a mulher. À cozinha - precisou, antes de mergulhar novamente na multidão de convidados.
Valentina foi atrás dela.
A cozinha parecia um campo de batalha. Por todo o lado, copos e pratos sujos. Restos de comida e de bebidas. Garrafas vazias e pratos de papel. O telefone tinha sido pousado em cima de um prato que tinha restos de massa com molho de tomate. Valentina agarrou no auscultador e aproximou-o do ouvido, tentando limitar os danos.
- Quem é? - perguntou.
- Ermes - respondeu ele do outro lado do fio.
- Conhecemo-nos? - perguntou ela, calmamente.
- Desculpa. Mas não aguentei aquela confusão. Queres vir tomar alguma coisa? - propôs ele.
- Onde? - perguntou ela, com um sorriso radioso.
- Hotel Pierre. Apartamento 406 - indicou Ermes.
Valentina regressou ao quarto onde o seu companheiro travava uma luta desigual com os casacos que se emaranhavam e escorregavam por todos os lados como serpentes.
A rapariga apanhou rapidamente um casaco de peles.
- Foi um golpe de sorte encontrá-lo logo - disse Heini.
- Não é o meu - respondeu ela, a sorrir, com um ar cúmplice.
- Mas é de boa qualidade e fica-me bem. Estou com pressa. Até amanhã - e desapareceu.
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Para Valentina Righetti, como para todas as mulheres da equipa da clínica de Milão, o professor Ermes Corsini representava uma espécie de divindade inacessível. Toda a gente conhecia a sua ligação com a escritora Giulia de Blasco e sabiam que não dirigia um olhar a outras mulheres. Esse facto tornava-o ainda mais apetecível. Tê-lo encontrado sem contar, disponível e imprevisível, tinha feito vibrar nela as cordas da feminilidade. Assim, apesar da humilhação, decidiu aceitar imediatamente o convite.
Valentina chegou ao Pierre com a certeza de estar a viver uma aventura exaltante. Quando bateu à porta do apartamento de Ermes sentia o coração na garganta e o sangue num turbilhão.
- Estou atrasada? - perguntou-lhe, ostentando o olhar mais ingénuo do seu repertório. Ele recebeu-a na luz acolhedora de uma salinha no estilo europeu.
- Pontualíssima - respondeu, enquanto a ajudava a tirar o casaco. Em cima de um carrinho, posto com uma toalha de linho imaculado, estava um balde com uma garrafa de champanhe, uma taça de cristal cheia de fruta fresca e um tabuleiro com tostas de salmão pousadas sobre grandes folhas de alface.
- Por onde começamos? - perguntou Valentina, compondo uma madeixa flamejante. Era muito atraente, e sabia-o.
Ermes abriu a garrafa de champanhe, encheu dois copos e estendeu-lhe um.
- Pelo ponto em que tínhamos ficado -respondeu ele. Valentina mexeu-se para pegar no copo e espreitou para o
outro aposento. O quarto, em tons de cinza e azul, parecia convidativo.
Olhou para Ermes e pareceu-lhe que os seus olhos cinzentos estavam encobertos por uma sombra.
- A nós - brindou Valentina, fazendo tilintar os copos.
- Pois - respondeu ele, um pouco ausente -, a nós - acrescentou, antes de esvaziar o copo. - Mandei arranjar alguma coisa para comer.
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- Para antes ou para depois? - perguntou, maliciosamente.
- Para depois - disse ele, empurrando-a com decisão em direcção ao quarto.
Valentina estava a interpretar um papel que não se adaptava bem a ela, para vencer uma espécie de obsessão que a levava a achar que não sabia despertar a virilidade do parceiro. Tinha havido homens com os quais passara meses a namoriscar antes de chegar à relação sexual. Tinha conhecido outros que, perante a natural conclusão de um encontro amoroso, se deixavam tomar pelo pânico e renunciavam. Alguns tinham sido uma grande desilusão. E Valentina tinha chamado a si a culpa destas derrotas.
Por isso se resignara a mortificar a sua beleza exuberante dentro de uma grande bata branca, ainda que, como qualquer mulher, esperasse dia após dia, ao acordar, encontrar o homem da sua vida. Era evidente que a história com Ermes não iria dar numa relação duradoura, mas bastava-lhe ser desejada.
Valentina não sabia por que razão aquele gélido chefe de serviço se tinha interessado precisamente por ela, nem queria saber. Bastava-lhe participar na realização daquele milagre que a atordoava.
Ermes não se preocupou em despi-la completamente. Fê-la deitar-se na cama e penetrou-a num abraço sem beijos, sem ternura.
Quando Ermes terminou, os olhos dela encheram-se de lágrimas.
Giulia saiu do táxi em frente ao Pierre. Tinha viajado durante todo o dia, a saltar de um avião para outro. Estava exausta e feliz. Atravessou o átrio e chegou à recepção.
- O Sr. Corsini, por favor?
O porteiro, um italiano que trabalhava há mais de vinte anos naquele grande hotel nova-iorquino, estava pronto para dar dois
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dedos de conversa com a bonita compatriota, mas Giulia, depois de algumas frases convencionais sobre o tempo, deu-lhe a entender, simpaticamente, que a conversa estava acabada.
O homem, sem grande vontade, olhou para o pequeno cacifo correspondente ao apartamento de Ermes. - O Sr. Corsini está no quarto - comunicou-lhe. - Quem devo anunciar? - perguntou, preparando-se para levantar o auscultador
- Sou a Sr.a Corsini - mentiu, e acrescentou logo de seguida: Não telefone, por favor. Quero fazer-lhe uma surpresa.
- Que senhora engraçada - comentou o porteiro. - Faça o favor de subir ao apartamento 406 e... felicidades - concluiu, a sorrir com um ar cúmplice.
Giulia subiu até ao quarto andar e bateu à porta. Não tendo obtido resposta, rodou a maçaneta, que obedeceu docilmente, e descortinou uma pequena sala onde tudo parecia predisposto para a receber. Deixou cair o casaco de peles em cima do sofá e aproximou-se da porta do quarto.
Viu Ermes e uma mulher de cabeleira ruiva, numa atitude inequívoca.
- Não é possível - murmurou, levando as mãos ao rosto, e da garganta apertada saiu-lhe uma gargalhada histérica, irreprimível, que atingiu em pouco tempo a máxima intensidade. Ermes levantou-se de repente e dirigiu-se à porta.
- Giulia - chamou em voz baixa.
Ela continuava a rir, incapaz de se controlar, mas a certa altura aquela agitação transformou-se num soluçar desesperado. Valentina tinha-se sentado na cama, petrificada pelo espanto.
Giulia, a chorar, virou-se devagar e saiu, fechando a porta do apartamento atrás de si. Depois deixou-se cair contra a parede do corredor e continuou a soluçar. Um casal jovem passou ao lado dela no momento em que a porta do apartamento se abriu e saiu Valentina, com dignidade, em silêncio.
Duas mãos fortes agarraram-na pelos ombros e obrigaram-na a voltar-se.
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- O que é que estavas à espera de encontrar? - perguntou Ermes, agressivo, olhando-a nos olhos. - Um homem destruído, traído e de braços abertos?
- Não me toques - disse Giulia, que continuava a soluçar. Mas de repente Ermes abraçou-a e manteve-a apertada nos
seus braços, embalando-a como uma criança. - Perdoa-me, Giulia.
Giulia já não tinha naquele momento razões para condenar ou para absolver, e faltava-lhe a lucidez necessária. Sentia-se como um cão escorraçado a quem faltava força para reagir. E depois, por que razão havia de perdoar? Quem a ia perdoar a ela? Tinha batido no fundo e não sabia se ia conseguir arranjar a energia necessária para regressar à superfície.
Disse apenas: - Porquê, Ermes... porquê?
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Marta Corsini vestiu uma camisa de noite em seda cor de marfim, fechada no colarinho e nos punhos por uma tira de renda. Parecia uma colegial e ninguém, pensou ela enquanto se admirava ao espelho, diria que tinha já superado o limiar dos cinquenta anos. Mérito da sua herança biológica e das constantes atenções que dedicava ao seu corpo.
Enfiou-se na cama que durante alguns meses tinha partilhado com James Kendall e onde agora dormia sozinha. Tinha cometido um erro imperdoável. Apostara tudo no célebre cirurgião plástico, convencida de que seria uma jogada vencedora, e afinal acabara por perder a partida. James Kendall tivera o péssimo gosto de morrer de repente, sem a nomear no testamento, sem lhe dar uma recompensa pelo tempo que lhe tinha dedicado. O mínimo que poderia esperar era aquele apartamento em Park Avenue, onde actualmente se encontrava por uma gentil concessão dos filhos de James que, de resto, tinham o direito de a mandar embora a qualquer momento.
Marta era rica, mas não possuía uma casa em Nova Iorque. E isso era desprestigiante para uma mulher da sua condição.
Felizmente não era a única, naquele período, a estar em desgraça. Não é necessariamente verdade que o mal dos outros seja sempre uma meia vitória, mas é em qualquer caso uma pequena satisfação.
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A sombra de um sorriso pairou sobre o seu rosto, enquanto se enroscava nos lençóis de linho bordados à mão. Era consolador saber que também Ermes estava a viver momentos terríveis.
Ao telefonar-lhe para lhe dizer que Giulia estava a fazer um cruzeiro com Franco Vassalli, apercebera-se do seu embaraço e da sua dor. Já era uma consolação.
Pegou no telefone e ligou a Zaira Manodori. Tinha um bom pretexto: falar-lhe de vestidos. Na realidade, apenas queria notícias em primeira mão sobre aquilo que mais lhe interessava.
- Continuas em Nova Iorque? - perguntou a estilista ao ouvir a sua voz ecoar no satélite.
- Continuo. Mas não me esqueci de que se aproxima a abertura do Scala. Queria saber em que ponto está o meu vestido replicou Marta.
- Sossega - garantiu a estilista. - No dia 7 de Dezembro todos os fotógrafos vão estar aos teus pés. Vais ser a mais bonita.
- Como é que está Milão sem mim? - estava a rondar o assunto de longe.
- Como se faltasse a Nossa Senhora - mentiu despudoradamente.
- És uma mentirosa encantadora - disse Marta, com pouca convicção. - Tens notícias do Franco Vassalli? - disparou finalmente.
- Interrompeu o cruzeiro no Mediterrâneo. Hoje de manhã passou pela casa da Dorina para ver as meninas - informou.
- Já sabes que eu não quero saber dessas duas bonecas para nada, Zaira. Não me deixes ansiosa - suplicou-lhe. - Porque é que interrompeu o cruzeiro? - perguntou Marta, ansiosa.
- A Giulia deixou-o ficar - anunciou Zaira, com alguma satisfação.
Foi uma pancada que a deixou aturdida. - A Giulia fez isso? perguntou Marta, escandalizada, como se a escritora tivesse cometido um delito.
- A julgar pela cara do Franco, que é a dos piores momentos, parece mesmo que sim.
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- Podia tratar-se de um problema de negócios - admitiu Marta.
- Sim, podia, mas não é - contradisse Zaira. - Quando muito, negócios de coração. Porque a Giulia quis desembarcar em Menorca, de onde partiu para Nova Iorque. Não é de excluir a hipótese de te encontrares com ela, se continuares aí.
Marta tinha também encontrado Ermes por acaso, mas não tinha a mínima intenção de se transformar em detective para ver a sua pior inimiga.
- Se tens na manga mais algum pormenor, diz-me sem me fazeres penar muito - insistiu.
- Sabes, isto é o assunto do dia - insistiu Zaira com uma ponta de sadismo. - Mas trata-se apenas de ilações. Porque o Franco não disse nada à ex-mulher. E tu também conheces bem a proverbial discrição da Giulia. As notícias que te dei são as que foram fornecidas pelos marinheiros.
- Não me peças apreciações sobre ela - respondeu Marta, viperina. - Porque a coisa melhor que te podia dizer é que a tua amiga escritora é uma grande puta.
- Queridíssima Marta - respondeu Zaira, despedindo-se. Adeus. Espero-te em Milão para a última prova do vestido antes do fim do mês.
- Lá estarei - disse Marta, furibunda. Desligou a chamada, esquecendo-se até de responder à despedida da estilista.
Deixou cair a cabeça na almofada, fechou os olhos e foi dominada por uma grande vontade de chorar. Ermes e Giulia estavam certamente juntos para recomeçar a sua história de amor. Quantas coisas teriam para dizer um ao outro, quantas emoções para viver. Porque, Marta tinha a certeza disso, Ermes ia perdoar a Giulia aquela transgressão.
Marta chorou de raiva sobre a sua solidão, naquela casa lindíssima, de onde podia ser despejada a qualquer momento. Que futuro tinha ela, sem um marido, sem um companheiro?
Havia uma caixa de bombons em cima da mesa-de-cabeceira. Pegou num punhado deles e devorou-os, conseguindo algum alívio com isso e esquecendo a ruína que representavam para a sua linha.
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Depois consultou a agenda telefónica e encontrou o número que procurava, o da casa de Milão de Franco Vassalli.
- Fala Marta Corsini e preciso de falar com o Dr. Vassalli disse ao empregado que atendeu.
Pouco depois ouviu a voz de Franco. Reconheceu-a imediatamente e percebeu que estava cheia de tristeza.
- Queres um ombro para chorar? - ofereceu-se. E acrescentou: - O que é que dizes a jantar com uma velha amiga?
- vou agora para Paris - comunicou rapidamente.
- Então marcamos para amanhã à noite, às nove em ponto, no Tour dArgent - precisou Marta.
- És fantástica - respondeu Franco a rir.
- E irresistível, espero.
- Irresistível - confirmou ele. - Conseguiste proporcionar-me um momento de puro divertimento.
- Apareces?
- Apareço - prometeu.
Marta tinha um encontro com o advogado Martin Newton às nove da manhã. Teria tempo para apanhar o Concorde e assim chegaria pontualíssima a Paris e ao encontro com Vassalli. Sentia-se já melhor e estava pronta para recomeçar. Pousou o telefone, tomou um tranquilizante e adormeceu imediatamente.
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Ermes mantinha Giulia apertada nos seus braços: - Ainda estás mais bonita do que aquilo que eu me lembrava.
Tinha-a convencido a regressar à sala do apartamento no Pierre e estava sentado no sofá ao lado dela.
- Passou apenas uma semana depois do nosso último encontro
- disse Giulia, espantada, e acrescentou: - Tu eras, e és, o homem da minha vida. O único.
A tempestade recente parecia ter passado.
- Foi para me dizeres isso que vieste até aqui? - perguntou Ermes.
Giulia anuiu.
- Isso já eu sei, desde que éramos crianças. Lembras-te do nosso primeiro encontro? - perguntou, começando a escavar o passado.
- Tu estavas a abater uma árvore pequena no jardim da minha casa. Era uma maneira de pagares as lições de Grego e de Latim que o meu pai te dava - recordou Giulia.
- O professor Vittorio de Blasco - completou ele.
- Fiquei fascinada com a tua beleza - brincou ela. Percebo perfeitamente - replicou, entrando no jogo.
- eu ofereci-te um café - continuou Giulia a sorrir.
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- Excelente. E tu estavas com uma grande constipação. Os olhos brilhantes de febre e o nariz vermelho.
- Depois beijaste-me. E foi o meu primeiro beijo a sério.
- E pensar eu que te deixei partir - exclamou.
- Eu estava convencida de que já não era uma mulher desejável. Achava que o teu amor estava contaminado pela piedade em relação à paciente atingida por um mal atroz. Agora tenho a certeza de que não era assim. É a ti que eu quero, Ermes, e só a ti declarou com convicção.
- Eu sei, Giulia - disse ele.
- Não, tu não sabes nada. Nem sequer sabes o que foi que eu fiz e como vivi nestes dias de separação - replicou prontamente.
- Não quero saber nada sobre os dias anteriores.
- Mas tens de saber - insistiu ela. - Não deve haver segredos entre nós. Tenho de te dizer o que aconteceu.
- Não quero saber nada - repetiu Ermes, levantando-se de repente do sofá.
- Então vamos dormir - disse ela, resignada. - Estou exausta. Estou literalmente feita em cacos.
- vou pedir para te arranjarem um quarto confortável - disse ele, voltando-lhe as costas.
Giulia olhou para ele, perplexa e magoada. - Mas que conversa é essa? Eu vou dormir aqui. Contigo.
- Ouve bem o que eu te vou dizer. - Voltou-se e olhou-a bem nos olhos. - Sou eu que não consigo dormir contigo. - Pronunciou estas palavras dolorosamente.
Giulia sentiu faltar-lhe o chão debaixo dos pés, como se estivesse a precipitar-se num abismo sombrio.
- Para que é esta brincadeira horrorosa? Para me fazeres mal?
- perguntou, desorientada.
- Conheces-me bem. Não sou capaz de brincar com uma coisa tão importante - retorquiu Ermes.
- Mas então, estás a dizer-me... - deteve-se.
- Estou a dizer-te que acabou, Giulia. Que só neste momento me apercebo de que a nossa história acabou.
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- Ficaste com ciúmes por causa do Franco Vassalli? - tentou, à espera de uma tábua de salvação. - Queres castigar-me? - Giulia estava desesperada.
Ermes segurou delicadamente entre as mãos o belo rosto comovido de Giulia. - Quando muito, estou a castigar-me cruelmente a mim mesmo. Sei perfeitamente o que perco, mas também sei que não poderei continuar a viver contigo depois do que aconteceu.
Giulia passou da comoção ao furor. - Não acredito. Eu conheço-te e sei que gostas de mim. E quando duas pessoas gostam uma da outra, ficam juntas - gritou. - Eu estou a alimentar o nosso filho com o meu sangue. Uma criança tua e minha. Percebes isso?
- Essa criança que trazes dentro de ti é só tua. Afirmaste-o em alta voz. Podia ser minha, mas não foi. Tu reivindicaste a posse exclusiva dela. Assim como, sozinha, quiseste fazer escolhas cuja responsabilidade vais ter de assumir.
Sofriam os dois, profundamente.
- Amo-te, Ermes - murmurou Giulia.
- Eu também te amo, mas há alguma coisa em mim que me impede de seguir em frente.
Giulia agarrou no casaco de peles que tinha abandonado sobre uma cadeira e saiu, batendo com a porta.
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O Concorde acabava de partir de Nova Iorque com destino a Paris. Dentro de um avião, Marta sentia-se tão bem como se se encontrasse no seu ambiente natural. Organizava as ideias, fazia projectos, aperfeiçoava as suas estratégias.
Desta vez recordava o recente encontro com o advogado Martin Newton. Era um profissional estimado e temido, que tinha o seu escritório em Broad Street, no Financial District. Tinha sido um grande amigo de James Kendall e nunca lhe escondera a sua simpatia e a sua admiração por Marta.
- Marta e Martin, dois nomes que parecem feitos de propósito para formar um par - dissera-lhe alguns meses atrás, quando se conheceram. E já nessa altura a aproximação era qualquer coisa mais do que um simples comentário.
Martin Newton era do tipo de Clark Gable. Navegava placidamente em direcção aos sessenta anos e era o viúvo mais cortejado entre as divorciadas que frequentavam as altas esferas.
James contara a Marta que a mulher do advogado Newton descendia de uma nobre família de Thanet e que, ao morrer, deixara um vazio que nenhuma mulher conseguiria nunca preencher.
Estava viúvo há vinte anos e sobre ele nunca fora construído nenhum mexerico relativamente à vida sentimental. O trabalho parecia absorvê-lo completamente.
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- É realmente um prazer voltar a ver-te - dissera-lhe nessa manhã enquanto avançava ao encontro dela e lhe beijava a mão. Recebeu-a no seu escritório de paredes revestidas a madeira e sofás em pele, com livros antigos e uma pesada secretária de mogno.
Não havia nada de convencional no cumprimento de Martin, mas um sentimento de sincera admiração que a lisonjeava. Naquela manhã, Marta vestia um tailleur de caxemira cor de salva com uma camisa de seda azul e uma gravata regimental de riscas salva e azul. Um fato assinado por Zaira Manodori, que conferia um toque de classe à sua beleza loira.
- Sei que te confiei um encargo que é tudo menos agradável começou ela, comodamente sentada no sofá, com as longas pernas cruzadas e um sorriso radioso.
Marta referia-se ao seu pedido para a impugnação do testamento de James, que segundo ele não teria qualquer valor por ter sido redigido antes do noivado.
- Eu não diria desagradável, mas delicado e complexo - rebateu Martin, ao mesmo tempo que se instalava diante de Marta no outro sofá. - Uma tarefa difícil para uma contestação mais do que legítima, do ponto de vista moral. Mas mais complexa a nível legal. Deixa-me estudar o problema - acrescentou, com um lampejo de inteligência no olhar -, e verás que vamos tentar resolvê-lo. Sei o quanto o James te amava e tenho a certeza de que, logo a seguir à oficialização do noivado, se ia certamente preocupar contigo.
- Esse teu testemunho dá-me um grande conforto - disse Marta, lançando-lhe um sorriso suave e cheio de dor sincera.
- Fazes-me lembrar a minha Jane - sussurrou o advogado. Doce, loira, requintada. A mesma postura. Os mesmos traços ligados à aristocracia europeia. Nada a ver com a exuberância das mulheres americanas, demasiado explícitas e sem subtilezas na linguagem e na expressão.
Estava no bom caminho. Naquele momento, Marta teve a certeza de que se lhe tivesse dado apenas um pouco de corda acabaria por o ter aos pés. Mas não era isso que ela queria. Não naquele
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momento. Agora precisava de um advogado maduro e valente que a ajudasse a levar para casa as migalhas da herança de Kendall, e de um amante jovem e vigoroso que aplacasse os seus últimos ardores e a fizesse sentir-se viva.
Marta olhou através da janela rasgada que dava para a vertigem de Wall Street, com os arranha-céus que se recortavam contra o cinzento plúmbeo daquele Novembro gelado.
- É mesmo assim, Marta - continuou Martin. - Quanto mais olho para ti, mais vejo a minha Jane.
Marta formulou mentalmente aquilo que considerava como os mais eficazes esconjuros. - Se amavas a Jane como o James me amou a mim, ela deve ter sido uma mulher muito feliz - desviou habilmente o assunto. Tinha conseguido encaixar-se no papel da viúva inconsolável, destilando uma quantidade de suspiros suficiente, mas não exagerada.
- O meu pobre James - acrescentou - não descansaria em paz se soubesse em que situação me deixou.
- Vamos tentar remediar isso...
- Porque, estás a ver, Martin - interrompeu-o -, eu não quero uma recordação do James por avidez. Não tenho necessidade nenhuma disso. E tu bem sabes. Não chegaria todo o dinheiro do mundo para aliviar a minha dor - lamentou-se, fazendo aparecer como por magia nas suas mãos um diáfano lencinho de cambraia.
- O problema é estritamente moral - continuou. - Que os filhos tenham aquilo que lhes toca, parece-me sagrado. Mas que para as duas ex-mulheres vá um terço da herança, parece-me sumamente imoral. Ele detestava-as. Como o demonstra o facto de se ter divorciado. Permitir àquelas duas mulheres ficar com tudo seria como impedir-me de ser a sua viúva. A única pessoa digna desse nome. Deus é testemunha da minha devoção e do meu amor por ele. - Estancou as lágrimas, salvando assim a cara e a maquilhagem.
- Marta, minha queridíssima amiga - tranquilizou-a, pegando-lhe nas mãos, - se não existe uma maneira para se fazer justiça,
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havemos de a inventar. A tua dor vai ter um testemunho tangível, um sinal concreto, prometo-te.
E naquele momento, fixando os seus olhos cheios de promessas no olhar enternecido do homem, Marta ficou a saber que o grande advogado ia fazer todos os possíveis, e ainda mais alguma coisa, para resolver aquele problema "moral" que a angustiava.
Um comissário de bordo obsequioso apressou-se a servir-lhe o jantar, que Marta recusou, pedindo, em vez disso, um sumo de laranja. Depois retirou também os auscultadores para a audição de um filme que estava a ser projectado. Aconchegou-se bem nas costas do assento e tentou dormir. Queria relaxar para se apresentar na sua melhor forma no encontro com Franco Vassalli.
O avião aterrou em Charles de Gaulle ao mesmo tempo que Paris se acendia em mil luzes. Um táxi levou-a ao Victoria Palace, onde teve ainda tempo de efectuar um cuidadoso restauro.
Às nove em ponto estava no número 15 do Quai Tournelle, no Tour dArgent. Vassalli estava à espera dela.
- Pontual como o primeiro dia do ano - brincou Franco, indo ao encontro dela. - Não me parece uma prerrogativa tua.
- A pontualidade? - perguntou, estendendo-lhe a mão para que a beijasse. - Depende de quem estiver à minha espera.
- Devo sentir-me lisonjeado?
- Não comeces a imaginar coisas. Referia-me ao célebre canard au sang. Especialidade da casa - replicou, acomodando-se na cadeira que um maitre solícito e impecável tinha afastado para ela.
- És sempre a mesma - disse ele a sorrir, sentando-se por sua vez. - Tira lá a máscara, Marta Corsini - acrescentou, apontando contra ela um dedo acusador. - Como se não soubéssemos que atravessaste o oceano exclusivamente para me veres.
- E para saber, querido. Estou literalmente a morrer de vontade de saber - confessou Marta.
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- Isso é óbvio - respondeu ele a rir. - Mas dá-se o caso de eu não ser uma senhora enfadada com vontade de mexericos. Sobretudo se as divagações sobre o tema têm a ver com a minha vida privada - esclareceu Franco, enquanto uma empregada lhes servia tostas com rim e uma garrafa do melhor Borgonha.
- Antes de mais, não são mexericos, mas informações correctas - replicou ela -, que também dizem respeito à minha vida, se me permites.
- Em que sentido? - Franco estava estupefacto.
- No sentido em que aquela pseudo-escritora com quem tentaste uma circum-navegação do globo é a amante do meu marido.
- Um lampejo de ódio passou no seu olhar.
- Do teu ex-marido - corrigiu ele. - Em qualquer caso, entre mim e a Giulia não houve nada. Apesar de eu ter feito todos os possíveis para que as coisas corressem de outra maneira - mentiu, com grande naturalidade.
- Não preciso de mais provas para saber que tu és um cavalheiro. - Sorriu, incrédula.
- E, no entanto, as coisas correram exactamente como eu te disse - continuou, insistindo na sua versão dos factos.
- E eu não acredito em ti. Isso, se me permites, vai ser o maior boato dos últimos anos - disse, mas a sombra da dúvida quebrou-lhe a voz.
- Às vezes a verdade parece incrível mas, felizmente, eu não preciso de provar a minha a ninguém. - Bebeu um gole de vinho e saboreou aquele paladar requintado. - É mesmo assim, querida Marta. Estive três dias e três noites no mar com a Giulia de Blasco
e não aconteceu nada - retorquiu Franco, com um tom sincero. Continua apaixonada pelo Ermes Corsini.
De Giulia de Blasco esperava tudo, menos aquela rigorosa coerência sentimental. Tudo, menos que Giulia saísse também vitoriosa naquele confronto com Franco Vassalli, revelando-se, mais uma vez, a mais forte, a mais singular, a mais imprevisível.
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- Então é duplamente insuportável - exclamou Marta, perdendo toda a contenção. - Então porque é que ela aceitou sair de barco contigo, conhecendo as tuas intenções - insistiu.
- Necessidade de evasão. Acho que é assim que se diz. Ou talvez necessidade de provar a sua própria capacidade de resistir à tentação. - Franco Vassalli era convincente. - Talvez a intenção fosse transgredir, mas no fim prevaleceu a coragem, ou talvez a maldade.
- Que pena - confessou Marta. - Privas-me de um argumento decisivo. - Naquele momento já acreditava nele. - Quem quis interromper a viagem? - perguntou.
- Queres saber se me mandou passear?
- A síntese é essa.
- Então devo confessar-te que foi mesmo ela que me mandou passear.
- E eu que estava à espera de conhecer os pormenores picantes de uma crónica amorosa. Obrigaste-me a fazer uma viagem para nada. E que viagem - lamentou-se, revelando finalmente a verdadeira razão da sua deslocação a Paris. Para se consolar bebeu de uma só vez o copo de Borgonha.
- Pois eu garanto-te que não atravessaste o oceano em vão respondeu Franco, para surpresa de Marta -, porque tenho uma coisa interessante para ti. Mais interessante, mais rentável e mais nobre do que um mexerico.
- Eu estou a precisar de uma consolação - disse ela. - Não me deixes curiosa. De que se trata?
- Trabalho. Estás com vontade de trabalhar para mim? - perguntou-lhe.
- Estás a brincar - retorquiu, escandalizada. - Nunca trabalhei um único dia da minha vida.
- Estás sempre a tempo de começar. E garanto-te que a minha proposta é verdadeiramente aliciante. Estou a produzir séries televisivas. E ando à procura de sócios - disse.
- E de dinheiro - disse ela prontamente.
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- Que tu tens e podes investir da melhor maneira - sugeriu Franco, com um tom profissional.
- Nunca ouvi dizer que o cinema italiano fosse um investimento.
- Mas é. Não se trata de cinema puro e simples, mas de cinema para a televisão. O Georges Bertrand e a Huguette Leclerc, a amante dele, que tu bem conheces, são os meus sócios franceses. Preciso de um sócio italiano, que seja também um amigo, para fazer pender a agulha da balança para o lado certo.
- O lado certo, obviamente, é o teu.
- Estou a ver que passaste no exame - comentou ele, irónico.
- E quanto custa esse pequeno investimento? - quis saber Marta, cautelosa.
- Uns vinte mil milhões. E tu tens esse dinheiro - declarou.
- Se chegar a bom porto uma certa operação em Nova Iorque, vou ter muito mais do que isso - disse ela. - Mas o que é que tu me davas em troca dessa intervenção?
- Terás as acções correspondentes à tua parte, os dividendos e uma retribuição a estabelecer. Porque tu vais ficar ao lado da produção, vais intervir na escolha de guiões e na dos actores. Tens gosto, talento e intuição. E, sobretudo, tens a minha confiança.
- Poderei também chumbar iniciativas em curso? - quis saber.
- Se te referes ao romance da Giulia, está fora de questão. Irias contra os teus interesses. E não nos podemos permitir uma coisa dessas, porque íamos prejudicar a sociedade.
Era um discurso claro, simples e sem rodeios, uma linguagem que ela percebia perfeitamente. Marta fez um sinal ao empregado, que se apressou a encher os copos.
- Sabes, Franco, essa ideia começa a divertir-me. Quando começamos? - perguntou.
- Já começámos - disse ele, erguendo o copo para brindar à nova aliança.
Ao fim e ao cabo, Marta era mais fácil de persuadir do que imaginara. Era uma companhia agradável e Franco não queria passar os dias a chorar sobre o amor perdido de Giulia.
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Franco Vassalli chegou ao aeroporto no momento em que aterrava o voo proveniente do Panamá. Descobriu Louis Fournier quando este vinha a sair da alfândega. Levantou o braço para chamar a sua atenção.
- Como é que correu? - perguntou, estendendo-lhe a mão.
- Tudo direitinho - disse o francês. - O velho e o filho não te vão incomodar mais. Queres saber todos os pormenores, ou basta-te o resumo? - perguntou, enquanto se deixavam transportar pelo tapete rolante em direcção à saída do moderno aeroporto parisiense.
- Poupa-me certas misérias - disse Franco, encerrando o assunto. - Diz-me antes porque demoraste mais do que o previsto
- quis saber.
- Decidi pôr o preto no branco. Tenho aqui uma longa confissão escrita e assinada. Agora estás em terreno seguro. Como é evidente, foi retirado o passaporte aos dois.
- E a parte económica? - perguntou, preocupado.
- Têm com que viver até ao fim dos seus dias. Como tu querias. Está tudo em ordem - concluiu satisfeito o francês, que tinha em relação a Franco motivos sérios de profundo reconhecimento.
- Agradeço-te - disse Franco.
- Eu é que devia passar o resto da minha vida a agradecer-te. De resto, a tua mãe, como está? - quis saber Louis.
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- Está lindamente, com aquela rapariga. Parece que nasceram para viverem juntas. A Marisol não teve uma vida fácil com o meu irmão. Agora sente-se no paraíso.
- E tu? Não pareces estar na tua melhor forma - disse o francês, observando-o intensamente.
- É só impressão tua - respondeu, evasivo. Na realidade, trazia no rosto e no coração os sinais da sua desilusão. A recordação de Giulia enchia-lhe ainda os pensamentos e, pela primeira vez, sentia-se cansado.
Franco dirigiu-se ao Rolls que o esperava. Ao lado do motorista estava a fidelíssima Madi. Vassalli, com um sinal, convidou a secretária a instalar-se no assento posterior, ao seu lado.
- Onde é que vamos? - perguntou o francês.
- Vamos ter com um velho amigo teu - respondeu Franco. O Georges Bertrand está à nossa espera no escritório dele, no boulevard Saint-Germain - anunciou Vassalli.
- Não é uma perspectiva lá muito excitante, pelo menos para mim - resmungou Louis, recordando a forma como o banqueiro parisiense o tinha liquidado.
- Vai ser, Louis, depois de eu te expor os termos de um novo acordo que prevê também a participação da Sr.a Montini - garantiu Franco.
- E o que é que eu tenho a ver com tudo isso? - perguntou Louis.
- Tu vais ser o director-geral da nova empresa de produção cinematográfica - afirmou Franco.
- Há só um pormenor irrelevante. É que eu não percebo nada de cinema - protestou. Não estava à espera de ser catapultado, sem o seu consentimento, para um trabalho em que iria brilhar pela incompetência. Sabia que Vassalli pretendia a máxima disponibilidade por parte dos seus colaboradores, mas estava a pedir-lhe muito.
- Eu não sei nada de cinema - repetiu.
- Mas sabes tudo de dinheiro, e é de dinheiro que vamos falar com o Bertrand - garantiu o presidente da Inter-Channel, infundindo-lhe assim uma nova confiança.
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Foi Pierre Cortini quem fez as honras da casa quando Franco entrou nos escritórios do Banque de Commerce com Fournier e Madi.
- O senhor presidente vem já - disse o corso, ao mesmo tempo que convidava os hóspedes a instalarem-se à mesa das negociações.
Pierre não conseguia nutrir pelo italiano a mesma aversão visceral que Bertand tinha por Vassalli. Gostaria de o ter como chefe e olhou com inveja para Fournier, que estava do outro lado da barricada.
Não que acreditasse muito na solidez económica da outra parte. Sabia que Vassalli era o clássico exemplo do empresário em ascensão que tinha construído um castelo de areia vendendo-o por rocha dura. Bastaria uma onda forte para o esfarelar.
Mas agora o mar estava calmo e sem vento, o castelo recortava-se com nitidez contra o céu em toda a sua imponência, e quem tivesse um certo espírito de aventura podia submeter-se ao seu fascínio. Muito mais divertido, em qualquer caso, do que trabalhar para a Banque de Commerce e para um patrão cinzento, desprovido de imaginação, roído de inveja contra todos, amigos e inimigos.
A experiência, porém, tinha-lhe ensinado que, mais cedo ou mais tarde, os tipos como Franco Vassalli acabam por saltar, juntamente com todas as suas sociedades.
Vassalli não tinha dinheiro, nem parecia importar-se com isso. Expandia-se e crescia pondo em prática estratégias económicas complexas, mas os capitais que resultavam no papel nem sempre estavam disponíveis no banco. Nos bancos apenas havia contas no vermelho.
E, no entanto, as instituições de crédito continuavam a financiá-lo, como, de resto, Bertrand estava a fazer. Era preciso fascínio, inteligência, capacidade de decisão e carisma para continuar a expandir-se sobre a areia como fazia aquele homem da finança italiano.
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- Cá estás tu, meu grande vigarista - começou com brutalidade o banqueiro, ao mesmo tempo que entrava na sala de reuniões e apontava com decisão para Vassalli.
- Não seria melhor ouvires primeiro aquilo que tenho para dizer, antes de abrires as hostilidades? - perguntou Franco, sem se descompor.
O banqueiro sentou-se à cabeceira da mesa sem se dignar olhar para Louis Fournier que, durante cinco anos, tinha trabalhado assiduamente para ele.
- Lixaste-me seis milhões de libras - gritou. - Pretendes agora uma demonstração de regras de boa educação?
- Eu nunca roubei ninguém, Georges - precisou. - Apenas te pedi um empréstimo que o Louis, na tua ausência, gentilmente me concedeu. E estou aqui para to restituir - disse Franco. Depois voltou-se para Madi: - Entregue-lhe o cheque, por favor - pediu-lhe.
A secretária estendeu ao banqueiro um cheque do Chase Manhattan Bank.
Bertrand pegou nele e deu-lhe várias voltas, como se fosse o primeiro cheque da sua vida. Era um cheque ao portador assinado por Marta Montini: seis milhões de libras. O banqueiro, que não queria acreditar nos seus olhos, deixou escapar um comentário infeliz motivado pela emoção que aquele evento lhe provocava: Sem cobertura? - disse a rir.
Franco Vassalli dirigiu-lhe um olhar de compaixão. - Tenta depositá-lo - respondeu.
- Quem é esta Marta Montini? - perguntou, dirigindo-se ao seu colaborador.
O corso encolheu os ombros e, por detrás das lentes, os seus olhos sorriram, enigmáticos.
- Um novo accionista da sociedade de produção cinematográfica - respondeu Franco, imperturbável. E acrescentou: - Tenho três produções em curso. Três filmes para a televisão, que já vendi para toda a Europa, através da Provest. As negociações com os americanos estão em bom ritmo. Tenho um plano para produzir
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mais dez filmes a nível internacional e ofereço-te a possibilidade de entrar no programa. É uma pura formalidade a título de compensação porque, como vês, prevendo a tua resposta negativa, quero saldar o meu débito. Parece-me tudo de uma clareza exemplar. É a tua desconfiança estrutural que te impede de fazer uma avaliação correcta.
- E o que é que ele está aqui a fazer? - perguntou o banqueiro, apontando um dedo acusador em direcção a Fournier.
- Trabalha para mim. É uma pessoa capaz e tem o sentido da amizade.
- Depende do ponto de vista, como bem sabes. Por aquilo que me diz respeito, não é de confiança. Aquilo que me fez a mim, podia fazê-lo a ti também - preveniu-o.
Vassalli não o ouviu, e esclareceu: - Será o director-geral da nova sociedade.
- Então está destinada à falência - prognosticou Bertrand, ao mesmo tempo que se levantava e entregava o cheque a Pierre Cortini. Depois voltou-se para Franco: - Tiveste razão em prever a minha recusa à tua proposta. Como foi que a definiste? - perguntou a si mesmo, levando uma mão à testa -, ah, sim, a título de compensação. Pois bem, nada feito. Mas devo lembrar-te que ainda me deves os juros relativos a este empréstimo, extorquido com um engano e com a cumplicidade deste cavalheiro.
Franco esperou que Bertrand chegasse à porta para dizer: Vais receber os juros, mas entretanto devo dizer-te que estás a deitar fora um grande negócio.
- Tentarei sobreviver - respondeu, irónico, reduzindo os seus olhos pequenos e penetrantes a duas fendas.
- É pena. É mesmo pena - repetiu Vassalli.
Mas onde quereria chegar aquele maldito italiano, que nunca dizia uma palavra a mais se não fosse estritamente indispensável e funcional para o negócio de que estava a tratar?
- Não vejo a razão dessa tua preocupação - retorquiu o banqueiro, que começava a ficar preocupado.
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- O facto é que eu te tinha preferido a um sócio de muito respeito. Um compatriota teu. Aliás, uma tua compatriota - precisou Franco. - À qual agora deverei dirigir-me, tendo já a garantia da sua disponibilidade e da sua quota através do Credit Lyonnais.
- A Huguette... a Huguette Leclerc - balbuciou Bertrand, empalidecendo como se tivesse tido uma síncope.
- Resposta correcta, George - respondeu Franco, agressivo. Huguette Leclerc, a sua amante, a mulher que com a sua ajuda
tinha acumulado uma enorme fortuna, tinha-se aliado a Vassalli contra ele. E talvez a terna e apaixonada parceira de tantos momentos de amor não tivesse apenas relações de negócios com o seu pior inimigo, que gozava da fama de grande amante.
- És um canalha, Franco Vassalli - insultou-o. Estava lívido de raiva.
- Eu sei - disse Vassalli, lançando-lhe um sorriso muito doce -, é essa a minha força.
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Giulia voou de Nova Iorque para Milão a recordar a sua longa, terna e atormentada história com Ermes, e a tentar entender as razões daquele fracasso. Sentia que tinha justificações para o comportamento que a empurrara para os braços de Franco Vassalli, mas Ermes repelira-a sem apelo, infligindo-lhe o mais duro dos castigos. Seria possível que ele não se apercebesse de que, daquela experiência errada, o seu amor por ele tinha saído vitorioso?
Ao volante do velho Mercedes, Giulia chegou a Fontechiara. Estacionou diante da casa de Tea, saiu do carro e olhou em volta. Tinha caído um nevoeiro que pendurava nas árvores farrapos leitosos, esfumando os contornos dos edifícios.
Na luz opalescente do picadeiro, viu Tea e Giorgio que cavalgavam dois meios-sangues claros e ouviu o rumor abafado dos cascos e a respiração dos cavalos. O resto era silêncio. Parecia uma imagem sem tempo e tinha os contornos de um sonho. Giulia respirou aquele ar húmido e frio e a sua inquietude adquiriu alguma consolação com isso. Apertou com mais força o casaco de carneira
e estremeceu.
Levantou um braço num gesto de saudação em direcção a Giorgio e a Tea, que a tinham já reconhecido e vinham ao seu encontro.
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Seria mesmo o seu filho aquele rapaz fantástico, de cabelos compridos e loiros, que espicaçava o cavalo para correr ao encontro dela?
O frio corava-lhe o rosto e liquefazia alegremente o ouro do seu olhar.
- Mãe - disse, enquanto descia do cavalo e a abraçava.
- Continuas a crescer, Giorgio. Já estás mais alto do que eu disse, admirada.
- É a ordem natural das coisas. Imagina se fosses tu a crescer brincou.
Chegou também Tea e abraçou Giulia. - Voltaste para ficar ou só para descansares antes de levantar voo outra vez?
Giulia fugiu à pergunta. - Gela-se aqui. Não podemos entrar em casa? - lamentou-se.
Na sala sentia-se um calor confortável, com a lareira acesa. As chamas mordiam um tronco robusto, provocando um alegre crepitar.
Sentaram-se num sofá em frente à lareira e Giorgio ia virando o tronco com um atiçador para intensificar aquele turbilhão de faúlhas.
Tea, na cozinha, preparava o café que já espalhava no ar um perfume convidativo.
- No outro dia esteve cá o pai - começou Giorgio. - Queria notícias tuas.
- A sério? - perguntou Giulia, distraidamente.
- A sério, mãe. Nem sequer a Ambra sabia onde estavas. Estávamos preocupados contigo. - Havia uma sombra de ressentimento na sua voz.
- Pois é. Ficamos mal quando alguém se vai embora sem dizer para onde - comentou Giulia.
- Fizeste isso para ficarmos quites? - acusou o rapaz.
- Não era essa a intenção - justificou-se ela. - Limitei-me a seguir o instinto.
- E correu-te bem?
- Responde tu. O Ermes deixou-me - confessou, e foi como se se tivesse definitivamente livrado de um peso.
- Não acredito - disse Giorgio, que continuava a mexer no fogo.
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- Nem eu - acrescentou Tea, que vinha da cozinha com o tabuleiro do café e tinha apanhado no ar a confissão de Giulia.
- O meu pai é doido por ti.
- Fui eu que o provoquei - disse Giulia, para o defender.
- E assim o meu irmãozinho não vai ter um pai - respondeu a jovem, melancólica. - E a história recomeça.
- Vai ter uma mãe. E dois irmãos fantásticos - sentenciou Giulia, ao mesmo tempo que levava aos lábios uma chávena de café a ferver.
O calor do fogo, alegre e crepitante, não era suficiente para apagar aquela tristeza.
- Parece-me que falta aqui alguém - observou Giulia, olhando em volta.
- O Marcello foi-se embora - esclareceu Tea. - Somos as duas mulheres mais abandonadas do velho continente! - exclamou, com um tom de voz que pretendia ser brincalhão, mas não o era.
- Divergência de opiniões? - perguntou Giulia.
- Mais ou menos. Mas ele é teimoso como um burro. E não vai voltar se não for eu a pedir-lhe - explicou.
- Porque não o fazes?
- Porque tenho o meu orgulho. A minha dignidade - declarou Tea.
- Em nome da dignidade fazem-se muitos disparates - comentou Giulia com um sorriso amargo, abanando a cabeça.
- O que é que me aconselhas?
- Ainda o amas?
- Mais do que nunca.
- Então vai ter com ele. No amor, o orgulho é um sentimento insensato.
- E tu continuas a amar o Ermes? - interveio Giorgio.
- Mais do que nunca - respondeu ela, usando as mesmas palavras de Tea.
- E porque não vais ter com ele? - sugeriu por sua vez o rapaz. Giulia calou-se. Não podia contar a Giorgio e a Tea tudo
aquilo que tinha acontecido. Por fim disse: - Eu acho que o tempo
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há-de compor as coisas. O avô Ubaldo dizia que o tempo sara as feridas e remenda os farrapos. E há-de também dar um pai a esta criança - concluiu, levando uma mão ao ventre.
Tea olhou para o relógio e depois levantou-se. - Peço desculpa
- disse. - Tenho de tratar dos meus animais. Eles não têm nada a ver com as histórias dos nossos abandonos.
- vou contigo - ofereceu-se Giorgio, preparando-se para ir atrás dela.
- Não. Espera. Quero falar contigo um instante - propôs Giulia.
- Eu não posso ir embora de Fontechiara - disse Giorgio, adivinhando a pergunta que a mãe lhe ia fazer. - A Tea está só.
- Onde é que foi parar aquele cortejo cinematográfico? - perguntou, para ganhar tempo, apanhada sem contar pela prontidão do rapaz.
- Desmontaram a tenda ontem, precisamente - respondeu ele. - Havia um actor, um tal Rod Ward, que fez uma corte cerrada à Tea. Mas ela soube metê-lo na ordem. Agora estamos sós explicou -, e a Tea precisa mesmo de mim.
- Eu também estou só e preciso de ti - disse Giulia, com um ar sombrio.
Giorgio reagiu com uma certa dureza: - De que é que me queres convencer, mãe? Tu nunca precisaste de ninguém. E, sobretudo, não de mim.
- Talvez nunca tenha estado tão só como agora - respondeu com tristeza.
- Porque é que não me dizes que me queres meter na ordem e obrigar-me a retomar os estudos?
- Digo-to claramente. Quero que voltes à escola.
- Não posso, mãe - respondeu, assustado. - Estou atrasado em relação aos programas e não abro um livro desde o início do ano. Não vou conseguir. E depois tenho medo do confronto com os meus colegas. Para além disso - arranjou finalmente força para confessar -, há um rapaz do último ano a quem devo dinheiro. E não quero enfrentá-lo.
- É o que te subsidiava para comprares haxixe?
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- Podias dar-lhe tu o dinheiro que lhe devo? - propôs timidamente Giorgio. - Não é assim tanto como isso. São trinta mil liras.
- O rapaz estava embaraçado perante o olhar tranquilo mas decidido da mãe.
- Não, Giorgio - disse Giulia. - Quando voltares a ver o teu colega vais ter de te arranjar sozinho. Não tenho outra maneira de te ajudar. Quanto à escola - esclareceu -, há colégios particulares.
- Custam uma fortuna - respondeu Giorgio, escandalizado. Estás pronta para pagar uma fortuna - acrescentou, sombrio - e fazes um drama por causa de trinta mil liras. Não te parece um contra-senso?
- O problema do fumo é um problema teu - tentou explicar-lhe.
- Tu começaste. Tu decidiste parar. Se te desse trinta mil liras seria como intrometer-me num assunto que não me diz respeito, nem deve dizer.
Giorgio não entendeu a coerência do raciocínio de Giulia, mas apercebeu-se de que era inútil insistir.
- Não estou preparado para voltar para casa, mãe - retorquiu
o rapaz.
Giulia ficou triste. - Estou muito desiludida - disse.
- Comigo? - perguntou Giorgio, hesitante.
- Não, comigo mesma - concluiu a mãe.
- O que é que tu tens a ver com isto?
- Considero-me um desastre. Como mãe e como mulher. Espantou-o a amargura de Giulia. - Eu acho que tu és a melhor
das mães - consolou-a. - Acho que um dia vamos ser felizes, todos nós.
- Talvez a felicidade seja uma mulher como eu, que espera um segundo filho ao mesmo tempo que tenta reconquistar o primeiro.
Giorgio abraçou-a. - Marcamos um encontro a meio caminho, mãe - propôs. - vou esperar que o Marcello volte. Depois vou para casa.
- Esperemos que o Marcello volte depressa - concluiu Giulia, resignada.
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Escurecia cedo e às sete horas já parecia noite. O ar estava frio e a atmosfera melancólica.
Tea, nas boxes, estava a mudar a palha do chão. Giorgio distribuía a última ração do dia pelos animais. Era um trabalho duro, sobretudo desde que Marcello se tinha ido embora.
A ausência de Marcello fazia-se sentir também a nível dos lucros. Mesmo a trabalhar a tempo inteiro, Tea tinha sido obrigada a cancelar muitas aulas.
Na noite anterior, ao fazer as contas, tinha dado conta de que os lucros das últimas duas semanas tinham caído praticamente para metade. Aquela pequena empresa estava a aguentar-se com o dinheiro pago pela rodagem do filme. Tea não queria tocar nessa quantia para a administração normal. O seu projecto era utilizá-la para adquirir dois cavalos valiosos. Mas agora isso era apenas um sonho. Giorgio fazia os possíveis por a ajudar mas, porque não tinha a competência necessária, não podia tomar o lugar de Marcello e dar as aulas.
Tea andava exausta e preocupada. Sentia-se no limite das suas forças.
Giorgio chegou a correr ao sector reservado aos puros-sangues, a chamar por Tea aos berros.
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- O que é que foi? - perguntou Tea, passando as costas da mão pela testa coberta de suor. Estava tensa.
- O Credit Cará não está bem - anunciou Giorgio.
Era um macho fantástico, de pêlo negro, corpo esguio e postura elegante.
Tea largou o que estava a fazer e correu para as boxes.
- Tem uma cólica - diagnosticou.
O animal tremia, sacudido por uns arrepios violentos que indicavam fortes dores de barriga.
- O que é que fazemos? - perguntou o rapaz, angustiado. Sentia-se impotente perante uma emergência.
- É preciso chamar o veterinário. Entretanto cobre-o bem. Eu vou a casa telefonar. vou também buscar um xarope para acalmar a dor. Mas o que é que pode ter sido? - perguntou a si mesma.
Tea inclinou-se para examinar a palha.
- Ganhou bolor - constatou, enquanto esfarelava a mistura de palha e turfa e a cheirava. - Mudou o tempo e isto ganhou bolor. É essa, com certeza, a causa do mal.
Estava preocupada. Uma cólica era sempre um risco muito grande para um cavalo. Sem uma intervenção imediata, Credit Cará podia até morrer.
- Atenção, Giorgio - explicou-lhe -, mantém-no quente. E fala com ele. Ele precisa de ouvir a nossa voz.
Correu em direcção a casa a tropeçar no escuro. Não queria perder nenhum cavalo, e sobretudo não queria perder aquele cavalo. Não só pelo valor do animal, que era considerável, mas pelo afecto que os unia. Aquele puro-sangue tinha sido o primeiro da coudelaria, depois de Kacina e Kadim. Oferecera-lho o pai.
O veterinário atendeu ao segundo toque.
- Fala Tea Corsini - disse ela. - Tenho um puro-sangue irlandês que está mal. Comeu palha com bolor. - Tinha a respiração ofegante devido à ansiedade e à corrida.
- Já vou - garantiu o médico.
Tea deixou-se cair numa cadeira ao lado da mesa. De repente, começou a tremer. Sentia-se mal. Parecia-lhe que tinha a cabeça
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presa numa dentada. Doía-lhe o corpo todo. Tinha de reagir. Levantou-se e foi buscar o xarope ao armário dos medicamentos. Depois enfiou mais uma camisola para vencer os arrepios de frio e correu de novo em direcção às boxes.
Encontrou Giorgio afectuosamente debruçado sobre o cavalo que, estendido no chão, escoiceava como se quisesse atingir a dor que o atormentava.
- Está doente por minha culpa - disse o rapaz. - Devia ter dado conta de que ele estava a comer palha com bolor - repetia, com o desespero de uma criança.
- Giorgio, por amor de Deus, pára com isso - reagiu a rapariga. - Ajuda-me mas é a fazê-lo engolir esta coisa - ordenou-lhe, enquanto despejava o xarope para dentro de uma tigela de plástico.
Quando o veterinário chegou ficou mais preocupado com Tea do que com o cavalo.
- Seria melhor teres chamado um médico para ti - disse. Depois, voltando-se para Giorgio: - Vai com a Tea para casa. E mede-lhe a febre. Eu trato do cavalo.
Os dois jovens dirigiram-se a casa.
- Sentes-te mal, Tea? - perguntou Giorgio, preocupado.
- Se tentares também assumir a responsabilidade do meu mal-estar, juro que te dou um par de estalos - retorquiu, zangada. Depois, a bater os dentes de febre e de frio, disse: - O Marcello faz aqui muita falta. Aquele teimoso tem de voltar - e avançou decidida para as traseiras da casa, onde o seu carro estava estacionado.
- Onde vais, Tea? Estás com febre. Anda para casa - pediu Giorgio.
- Entrego-te Fontechiara, Giorgio. Eu vou buscar o Marcello disse, enquanto entrava no carro. Ligou o motor e arrancou a toda a velocidade.
Em meia hora chegou a Milão. Mergulhou no trânsito do fim de tarde com alguma dificuldade. A cabeça latejava-lhe dolorosamente.
Estacionou o carro num sítio proibido, diante de um antigo edifício da via Senato que tinha pertencido à família de Marcello.
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Agora era a sede de uma grande companhia de seguros. Marcello morava na mansarda, da qual tinha o usufruto. Já nem essa lhe pertencia.
Tea recordou todas as vezes em que tinha estado naquela casa onde ela e Marcello se tinham amado. Ali tinham concebido o filho que não chegara a nascer e que, por ordem de Marta, tinha sido eliminado numa clínica da Suíça.
Era então apenas uma rapariga perdida e cheia de medos. O conde Marcello Belgrano, a quem decidira confiar a sua juventude, era um alcoólico pobre que, para sobreviver, dava aulas de equitação, mantendo um cavalo. Os cavalos eram a sua grande paixão. Ele, Tea e os cavalos tinham-se salvado todos juntos.
Tocou à campainha mas ninguém respondeu. Pensou que Marcello tivesse saído para jantar e resignou-se a esperar por ele. Sentou-se no chão, diante da entrada. Pousou a cabeça nos joelhos e acalmou-se.
Sentiu uma mão enterrar-se-lhe nos cabelos, depois um fresco perfume de Floris que conhecia bem, e por fim uma voz quente e tranquilizadora.
- Pareces um potro encharcado - disse Marcello.
Ela abriu os olhos. Ele tinha-se acocorado ao lado dela. Tinha na mão as chaves de casa.
- Estou péssima - queixou-se Tea.
- Já reparei - disse Marcello. Ajudou-a a levantar-se, abriu a porta e mandou-a entrar.
Tea foi a cambalear até à cama, deixou-se cair e disse: - Preciso de ti, que regresses a Fontechiara. Eu, sozinha, já não consigo aguentar.
Não eram exactamente estas as palavras que gostaria de lhe dizer. Gostaria de lhe ter falado do seu amor por ele, do futuro dos dois. Mas tinha febre e a cabeça latejava dolorosamente.
Tinha a certeza de que Marcello ia entender.
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Agora Georges Bertrand sabia a quem devia agradecer. Tinha sido Huguette a informar Franco Vassalli da sua intenção de subir na Inter-Channel. Huguette nunca fazia nada sem o acordo do marido, nem mesmo nos jogos amorosos com o banqueiro. Se o subsecretário tinha favorecido aquela operação era porque estava à espera, da parte de Franco Vassalli, do apoio da sua emissora televisiva para a próxima campanha eleitoral. Lecrerc e o seu partido estavam a explorar todas as fontes de informação possíveis para divulgação partidária.
O homem político tinha obtido aquilo que Georges Bertrand lhe negaria, porque apoiava o partido contrário ao seu.
- E já que estavam com a mão na massa, deram-lhe uma ajudinha nesta iniciativa cinematográfica, que provavelmente irá dar grandes lucros - lamentou-se Bertrand. - Achas isto correcto?
Pierre Cortini ouviu-o, com um sorriso irónico.
- A correcção, nos negócios, é como a boa educação na cama
- replicou. - Geralmente não produz resultados positivos.
- Ainda arranjas maneira para os justificar - reagiu, cheio de raiva.
- Eu acho que se em tempos tu não tivesses soprado no fogo, nada disto teria acontecido. A rede televisiva europeia é um negócio do italiano, agora. Está no activo. Se tu tivesses esperado, mais
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cedo ou mais tarde terias tido vantagens nisso. Os lucros estão a aumentar, ainda que em menor medida, depois de teres perdido uma parte do teu pacote. Mas os favores políticos, podes esquecer. Os programas, é ele que os faz.
- Mas tu de que lado estás? - perguntou, furioso.
- Do teu, obviamente, uma vez que trabalho para ti e que tu, por isso, me pagas. Mas comportas-te como se eu fosse o teu pior inimigo - acusou-o, sabendo que arriscava. - Tinha-te avisado para não passares uma rasteira ao Vassalli. Ele não é um banqueiro, é um homem da finança. E não raciocina em termos de custos e ganhos. A realidade dele exprime-se na óptica da expansão. É um especialista em jogos de azar. Inteligente e cheio de sorte. Sabe resolver com destreza todas as combinações possíveis. É um vencedor.
- Mas não infalível.
- Ninguém o é.
Bertrand fez um esgar de desprezo. - E os Leclerc, que papel têm eles nesta representação? - provocou o banqueiro.
- São figuras de passagem - respondeu Cortini, seguro. - As figuras pardas do costume, que alternam altos e baixos sem mudar substancialmente o curso dos acontecimentos. Gente que ataca onde pode, como pode e enquanto pode. Às vezes acabam mal, mas nunca deixam vestígios da sua passagem.
- Disseste bem. Às vezes acabam mal. Estava a pensar nas minas da África do Sul. Em que ponto é que isso está? - perguntou Georges.
- Falido. Hoje vendi as últimas acções aos Leclerc. O anúncio oficial da falência será dado apenas amanhã de manhã, na abertura da Bolsa.
Os lábios de Georges abriram-se num largo sorriso.
- Vês como é preciso pouco para me fazer feliz?
- É tão raro ver-te sorrir - disse Pierre, ao mesmo tempo que se levantava para se despedir. - Aquilo que te lixa - acrescentou -, é que gozas mais com as desgraças dos outros do que com os teus sucessos.
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- Tu não gostas de mim, pois não? - perguntou Georges, com uma espécie de prazer sádico.
- É fundamental para ti saber isso? - perguntou o corso, olhando-o por cima dos óculos em meia-lua.
- Não - respondeu Bertrand. - Por outro lado, nunca tive pretensões de te agradar. Pago-te e tu fazes o que deves. De acordo com o contrato.
- Agradeço-te pelo esclarecimento - disse Pierre, antes de desaparecer do outro lado da porta.
Bertrand olhou para fora, através dos vidros riscados pela chuva. A avenida estava cinzenta e brilhante como um rio. Os carros passavam velozmente, levantando esguichos de água. Havia dois dias que chovia abundantemente sobre Paris. O ar gelado, proveniente do mar do Norte, tornava o clima insuportável. Era decididamente o pior Novembro dos últimos vinte anos.
O banqueiro consultou o relógio. Eram horas do chá, e também do encontro com Huguette.
Do boulevard Saint-Germain à rue dês Beaux-Arts o percurso era breve, e Bertrand decidiu fazê-lo a pé, desafiando a chuva e o vento. Vestiu a Burberry forrada de caxemira escocesa, pegou no seu guarda-chuva Brigg e saiu. Parou no Deux Magots, onde bebeu um grogue muito quente antes de chegar àquela pequena rua do Quartier Latin.
Subiu ao segundo andar de um palacete antigo que se dizia ter pertencido a Madame Pompadour, restaurado e dividido em pequenos apartamentos onde habitavam artistas de sucesso e gente rica.
Abriu a porta com as suas chaves e foi imediatamente recebido pelos latidos petulantes de Fortune, o minúsculo Yorkshire de Huguette. Nunca tinha havido grande relação entre o pequeno animal peludo e o banqueiro. Agora parecia que Fortune se apercebia da hostilidade do visitante, porque se mostrava particularmente agressivo.
- Está calado - resmungou o banqueiro, ameaçando-o com o guarda-chuva. O cachorrinho foi-se embora a correr e a ganir como se tivesse realmente sido atingido.
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- És tu, querido? - A voz melada de Huguette chegou-lhe vinda da sala.
Bertrand não se preocupou em responder. Pousou o guarda-chuva e tirou o chapéu e a gabardine. Pensou em tomar um duche. Ao fim e ao cabo, a água quente estava incluída no preço do aluguer. O contrato terminava no fim do mês e ele não ia renová-lo. Porque não aproveitar? A poupança, como afirmava o avô, é a primeira regra da economia. E, fiel ao seu princípio, o avô, que nunca tinha esbanjado um cêntimo em toda a vida, tomava banho uma vez por semana, na mesma água em que se tinham lavado primeiro as crianças e depois a mulher.
Bertrand, sem se aproximar da sala de estar, foi directamente para a casa de banho. Tomou um duche e limpou-se cuidadosamente com a toalha de felpo, saboreando antecipadamente o prazer de comunicar a Madame Leclerc aquela funesta notícia.
Voltou a colocar no pulso o seu Piaget, massajou o rosto com água-de-colónia e vestiu-se novamente. Entrou na sala de estar no momento em que Huguette, muito atenta, fazia umas palavras cruzadas. Vestia um roupão de lã vaporoso. Os cabelos loiros e abundantes estavam apanhados com uma fita cor-de-rosa. Era uma bela mulher, desejável e atraente. Estava semideitada no sofá e Fortune, enroscado no seu colo, rosnava e arreganhava os dentes. No ar pairava um aroma intenso a Opium.
- Então, voltaste a vestir-te? - perguntou, espantada. Georges foi sentar-se no sofá à frente dela.
- Pelo menos, é o que parece - respondeu, preparando-se para se servir dos habituais dois dedos de calvados da sua reserva pessoal, da qual havia numa garrafa pousada em cima da mesa.
- Meu querido, hoje estás mais negro que o céu de Paris. O que foi que te aconteceu, meu amorzinho? - gemeu.
- Não me chames meu amorzinho, porque me irrita - rosnou, antes de levar o copo aos lábios.
- Georges, eu não te entendo - lamentou-se ela, ao mesmo tempo que se sentava e arregalava para ele os seus olhos lânguidos.
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Fortune tinha levantado as orelhas e, através do pêlo que lhe escondia os olhos, observava o banqueiro com um ar agressivo.
- Chegas e nem sequer me cumprimentas - continuou ela. Vais para a casa de banho, tomas um duche e regressas completamente vestido, como se tivesses de sair. E ainda por cima nem sequer me dás um beijo. O que se passa contigo, Georges?
- Comigo, nada. Mas contigo vai passar-se alguma coisa. Fortune rosnou ao hóspede, quase como se a ameaça tivesse
também a ver com ele.
- Alguma coisa que eu não sei, evidentemente - replicou ela, nada preocupada. - E que tu talvez saibas.
- Claro - rejubilou o banqueiro. - Porque eu vou deixar-te, minha linda Huguette.
Bertrand disparou o tiro e esperou pelo estrondo. Não houve. Porque a mulher, depois de ter reflectido um longo instante, respondeu: - Sabes como se diz, Georges? Rei morto, rei posto. Se era para me dares essa notícia, escusavas de te dar ao trabalho de vir aqui. com este tempo horrível. com esse reumatismo que te envenena a existência. Bastava um telefonema. Entre gente de bem há certas coisas que se compreendem. Sem cenas deploráveis. - E acrescentou com ironia: - Meu amorzinho.
- Nem sequer me perguntas porque te deixo?
- Lá terás as tuas razões.
- Fria e calculista, como sempre - constatou ele. - Mas há um final com surpresa - anunciou.
- Que vamos adiar para o próximo episódio - disse ela, afagando Fortune.
- Não vai haver outros episódios - garantiu ele, ao mesmo tempo que terminava o seu calvados. - A novela acaba aqui.
- Estou ansiosamente à espera. - Abraçou-se a Fortune e fingiu que estava a tremer.
- Aquela montanha de milhões que investiste nas acções das minas da África do Sul, seguindo a minha sugestão - disparou de repente -, já não existe.
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Viu-a murchar como uma flor envelhecida numa jarra.
- Estás a brincar - disse ela, ao mesmo tempo que atirava para o chão o cachorro, que desapareceu debaixo do sofá.
- A Sociedade Mineira central e a empresa a ela associada faliram. E tu hoje perdeste vinte e cinco milhões de francos. Não estou a brincar. É uma notícia em primeira mão - concluiu Georges, ao mesmo tempo que se levantava.
- Fizeste de propósito? - perguntou ela, com uma voz que mal se ouvia.
- Fiz de propósito - confirmou.
- Mas porquê? - indagou, ainda incrédula, e com os grandes olhos negros esbugalhados.
- Tenta pensar na brincadeira que querias fazer nas minhas costas com o Franco Vassalli. Foste tu que lhe contaste que eu queria deixá-lo em minoria na Inter-Channel. E também foste tu quem financiou a sua sociedade de produção cinematográfica. Sentias-te bem protegida. E divertias-te a fazer jogo duplo. Pobre Mata Hari. Agora vais ter de te entender com o teu marido. Tão agarrado ao dinheiro. Como é justo que seja para um homem que o ganhou honestamente. Vai ficar muito aborrecido, o senhor subsecretário.
O banqueiro dirigiu-se à entrada. Ostentava um olhar radioso.
- Georges - chamou Huguette. - Volta aqui. Havia nela a beleza e a palidez de uma estátua.
- Dá cumprimentos meus ao teu marido - disse ele, sem sequer se voltar. Fechou a porta atrás de si e deixou-a sozinha.
Em meia hora liquidara uma amante que estava a tornar-se uma rotina enfadonha, vingara-se dos favores que ela tinha feito ao italiano e deixara-a numa situação económica tal que a obrigaria a vender a sua quota de participação na sociedade de produção cinematográfica de Vassalli, que estava a tornar-se um importante negócio.
Ia recuperar a quota de Huguette. E então Franco Vassalli ia ter de se entender com ele.
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Giulia ia tomando notas para um novo romance. Na tranquilidade do seu escritório, esboçava ideias e personagens ainda frágeis e indecisas que nasciam na sua mente, sem um papel e sem uma personalidade bem delineados.
Era a fase mais confusa, mais cansativa, mas também a mais bela e a mais absorvente.
Agora, na velha casa de família vivia apenas ela, com Ambra, que chegava de manhã e ia embora à noite, queixando-se porque não havia quase nada para fazer.
Às vezes, raramente, tocava o telefone. Era quase sempre Riboldi, o seu editor, que lhe dava alguma boa notícia sobre a venda dos seus romances, sobre as traduções em novos países, sobre os jornais que falavam dela.
Giulia andava tranquila e acontecia-lhe às vezes adormecer à mesa de trabalho. Dormia muito, mesmo durante o dia. Mexia-se pouco e comia com apetite. Estava a engordar. De vez em quando pousava uma mão no ventre e esperava sentir mexer o bebé.
Ainda era cedo, bem sabia, mas Giulia esperava ansiosamente aquele momento.
A vida que crescia dentro dela, e que ela protegia com todas as suas forças, era um escudo que a defendia das intrusões exteriores e do stress. Pensava muitas vezes em Ermes, mas já sem sofrimento.
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Ouviu tocar a campainha de casa. Os passos de Ambra precipitaram-se em direcção à porta e depois ouviu um vozear alegre. Passou instintivamente uma mão pelos cabelos, tentou pôr alguma ordem na mesa, recolhendo as folhas de apontamentos, e levantou os olhos no momento em que a porta do escritório se abriu de repente e ela viu Giorgio a sorrir. Atrás dele estava Leo.
- Estás a ver como voltei? - disse o rapaz, muito prazenteiro.
- Entra - disse ela, ao mesmo tempo que se levantava e ia ao encontro dele.
Giorgio atirou-se para os braços abertos da mãe. Leo observava-os com um sorriso de felicidade.
- Isto é que foi mesmo uma grande surpresa - disse Giulia, estendendo a cara a Leo para lhe dar um beijo.
- Foi ele que me chamou - explicou Leo. - Queria voltar para o pé de ti. Imediatamente.
Giulia anuiu.
- Vamos à cozinha - sugeriu. - A Ambra deve estar com certeza a preparar qualquer coisa boa para nós.
- Há um mês que não o via - começou Ambra, com a sua voz alegre. - Como ele cresceu, o meu menino. - Começou a despentear-lhe o cabelo, como fazia quando Giorgio era pequeno, e a dar-lhe beijos nas faces.
- Já pus o café ao lume para si, senhor doutor - continuou, voltando-se para Leo. - Fiz bem?
- Perfeito. Sabes muito bem como me fazer feliz.
- E a senhora, o que quer tomar?
Tinha deixado o café havia já algumas semanas.
- Um chá muito fraco - disse, sentando-se à mesa com Leo e com Giorgio. - Então resolveste voltar - acrescentou, dirigindo-se ao filho.
- Tinha-te prometido que, assim que o Marcello chegasse, eu voltava para junto de ti - recordou-lhe. - E, para além disso, começava a sentir-me pouco à vontade no meio daqueles dois, que passam a vida a beijocar-se.
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- Em Fontechiara, os castelãos reivindicavam a sua privacidade - interveio Leo. - E com alguns rodeios deram-lhe a entender que era melhor voltar para casa.
- É isso - disse Giorgio a sorrir. - Precisavam de ficar à vontade deles. Mas senti-me muito bem em Fontechiara. Da mesma forma que me sinto feliz por estar aqui contigo. Agora. Estou a falar a sério.
Giulia olhou para Leo com um ar interrogativo, esperando que as coisas tivessem corrido realmente daquela forma.
- Ainda demos dois dedos de conversa, nós os dois, durante a viagem - disse Leo. - E a conclusão é esta: o Giorgio quer voltar à escola.
- Será que posso acreditar? - perguntou Giulia, pouco convencida.
Giorgio olhou para ela com uma serenidade insólita.
- Vamos fazer uma tentativa, mãe. Está a chegar o Natal e vamos ter duas semanas de férias. Se tu estiveres disposta a pagar-me umas explicações, eu tento pôr-me a par dos programas. Assim, em Janeiro posso tentar fazer provas de recuperação do primeiro trimestre. E às tantas até posso ter bons resultados em algumas disciplinas - disse Giorgio, enquanto devorava os sonhos que Ambra tinha disposto num prato, no centro da mesa.
Giulia observava-o com um ar pensativo. - Estarei a sonhar?
- A questão é que estou farto de apanhar bordoadas. Também quero ser eu a dar algumas. Tenho cá dentro uma vontade de fazer coisas que tu nem imaginas.
- Então? Vamos oferecer-lhe essas tais explicações? - perguntou Leo.
- Parece-me óbvio. Quando queres começar?
- Já. Se estiveres de acordo. vou ligar a alguns colegas a pedir o contacto dos professores que lhes dão explicações.
- Este rapaz tem o talento de um empresário - comentou Leo.
- Nunca vais ser jornalista.
- Já te vais embora? - perguntou Giulia a Leo, ao vê-lo olhar para o relógio com impaciência.
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- Já me conheces - respondeu ele.
- Eu podia escrever um tratado sobre ti. Então, já vais?
- Tenho um voo para Londres daqui a hora e meia.
- Um grande serviço, imagino. Tipo: os ingleses e o amor. Leo explodiu numa sincera gargalhada. - Errado: os ingleses e
os impostos.
- O primeiro tema tinha mais a ver contigo.
- O ciúme continua a ser a tua pior arma.
- Tenho mais em que pensar e com que me preocupar, meu amigo.
- O senhor doutor é que tem sorte, sempre a viajar. Hoje aqui, amanhã acolá. Se eu voltar a nascer, também vou ser jornalista disse Ambra, enquanto o acompanhava à porta.
Giulia e o filho ficaram sozinhos.
- Então, estes anúncios sobre os estudos eram fumo para os olhos do teu pai? Se assim é, podes dizer-me agora. Tenho muita dificuldade em acreditar que um rapaz como tu, há tanto tempo à solta, possa ter em poucas semanas equilibrado os seus próprios mecanismos a tal ponto que queira agora tentar a recuperação de um ano lectivo inteiro.
Giorgio olhou para ela com dureza.
- Não precisas de recorrer às tuas filosofias nem aos grandes discursos, mãe. Vamos lá ver se nos entendemos com palavras simples - replicou, decidido. - Eu não recuperei o meu equilíbrio, pelo simples facto de que nunca o tive. Encontrei-o. É diferente precisou.
- Sempre foste muito bom a pôr os pontos nos is. Mas eu não sonhei com aquela tua admissão de seres um fumador de haxixe insistiu Giulia, impiedosamente. - E tenho uma suspeita de que todas estas tuas boas intenções podem ser apenas um fogo de palha.
- Implacável como sempre, a grande Giulia de Blasco - disse Giorgio, acutilante. - Não te posso garantir o futuro. Mas posso dar-te garantias sobre o presente. Posso dizer-te quais são as
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minhas intenções agora. Porque, sabes, mãe, em Fontechiara, durante estas semanas, tive hipótese de reflectir. Quando te disse que estou farto de apanhar bordoadas, não estava a mentir. Fumar haxixe era uma coisa de que eu gostava e ainda gosto. Mas se continuasse por esse caminho não ia chegar a nada de sério. Percebi isso quando comecei a trabalhar catorze horas por dia e chegava ao fim cansado mas mais feliz do que quando fumava. Conheci outra alegria, maior.
Giulia ouvia-o cada vez com mais atenção.
- Sabes - continuou Giorgio, depois de ter retirado dos cantos da boca algumas migalhas. - A Tea, o Marcello e eu fomos todos drogados. Eu, como tu dirias, inebriava-me com haxixe, o Marcello com o álcool e a Tea com o sexo. Cada um de nós, mais ou menos a custo, se libertou das suas próprias obsessões. Vocês acham generalizou - que a droga é só o haxixe e a heroína. Os cigarros também são uma droga. Até a ambição exacerbada de afirmação é uma droga. Assim como os calmantes, que vocês tomam com a cumplicidade do médico, são droga. Sabes o que eu te digo, mãe? Eu libertei-me da minha dependência, a Tea saiu da obsessão dela e o Marcello atirou para trás das costas um passado de alcoólico. Mas será que tu algum dia te vais libertar da droga do sucesso? Do frenesim de ser conhecida? Do prazer que sentes quando passas de uma entrevista televisiva a uma conferência de imprensa? Será que o meu pai algum dia se vai libertar da mania da notícia de sensação? E o Ermes, que se alimenta de bloco operatório, para além da missão que desempenha, alguma vez se vai libertar daquela necessidade obsessiva? Somos todos drogados, mãe. Trata-se, quando muito, de estabelecer o efeito mais ou menos devastador que essas mesmas drogas têm sobre cada um de nós.
Giulia olhou para ele, aflita e consternada.
- És um argumentador pouco fiável, Giorgio Rovelli, mas eu gosto muito de ti. - Abraçou-o para lhe testemunhar o seu afecto, mas também para se proteger dos seus golpes.
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Franco Vassalli chegou à villa Gray com a primeira luz da madrugada. Marisol tinha-o apanhado pelo telefone em Paris. A mãe estava mal e perguntava por ele. Franco tinha tirado da cama Louis Fournier, na sua casa de Neuilly.
- Tenho de ir ao lago. Tratas tu da reunião de amanhã. Se estiveres com algum problema, tens lá a Madi. Ela está ao corrente de tudo. Arranja maneira de o Bertrand não influenciar os Leclerc de maneira nenhuma: o subsecretário é um aliado precioso - disse-lhe.
- Mas que horas são? - perguntou o francês, ainda desorientado com aquele despertar repentino.
- São duas da manhã - respondeu Franco. - Avisa também a Sr.a Montini da minha partida.
A villa sobre o lago estava mergulhada no silêncio. As luzes no primeiro andar estavam todas acesas e, quando Franco tocou para lhe abrirem o portão, ouviu Lupo ladrar e depois correr ao encontro dele como um raio.
Pomina apareceu à porta para o receber.
- Como está? - perguntou Franco, referindo-se à mãe, enquanto subia as escadas seguido pelo cão.
A velha empregada ajudou-o a tirar o sobretudo de caxemira.
- O coração já não cumpre o seu dever - disse apenas.
- E o médico?
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- Foi-se embora há pouco tempo.
- O que é que ele diz?
Pomina, como única resposta, abanou a cabeça, desolada. Apareceu também Aldo, o jardineiro, que vinha da cozinha. Ninguém dormia naquela noite na villa Gray.
- Ainda bem que chegou, senhor doutor - exultou o homem, atribuindo à presença do patrão capacidades milagrosas. - A senhora não pára de chamar por si.
Franco voou pelas escadas acima e parou alguns instantes diante da porta entreaberta de Serena. O coração batia desordenadamente.
Entrou, controlando a respiração ofegante da corrida. O quarto estava iluminado por um candeeiro de mesa coberto com um lenço azul. Marisol estava sentada num cadeirão estilo império ao lado da cama. A velhinha, com a cabeça enterrada na almofada, parecia dormir.
Franco avançou em bicos de pés para não a acordar. Marisol levantou-se, cumprimentando-o com um sorriso. Depois saiu, para que ele pudesse ficar sozinho com a mãe. Franco parou aos pés da cama e contemplou aquele rosto diáfano onde eram ainda reconhecíveis os traços de uma delicada beleza juvenil.
Sentou-se no lugar de Marisol e ali ficou, em silêncio, a vigiar o sono da mãe. Não sabia ainda o que tinha acontecido para perturbar um equilíbrio que parecia estável. Viu uma bomba de oxigénio aos pés da cama, e em cima da mesinha uma série de medicamentos. A mãe repousava, tranquila.
A velha senhora mexeu ligeiramente as pálpebras e Franco afagou a mão de Serena. Um gesto afectuoso e habitual que o reportou aos anos da infância, quando a sua mão pequena de criança tocava ao de leve a mão delicada da mãe. E depois a mãe pegava nela, levava-a aos lábios e beijava-a. Recordava a sua voz melodiosa que dizia: - Meu amor. Tu és o meu grande amor. És a minha alegria. Não podia viver sem ti.
Palavras enfeitiçadas que o faziam estremecer e exultar, que o assustavam como uma sentença que o acorrentava a ela. Quantas
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vezes renunciara a brincar com os amigos, a um passeio da escola, a um encontro com uma rapariga para estar com ela. Quanta gratidão lhe dera a mãe, em troca dessa dedicação.
Apenas uma vez se tinha zangado. Foi quando Franco, que era já um homem, lhe disse que ia casar com Dorina.
- Não é mulher para ti - replicou. E uma vez que ele se mostrou irredutível, concluiu: - Nunca te perdoarei esta escolha.
Mas perdoou, ainda antes que a sua mente começasse a vacilar na opressão daquela doença precoce.
Franco levantou-se e saiu do quarto. No corredor, Marisol estava à espera dele.
- Parece-me que está a repousar, sossegada - disse Franco.
- Era de esperar. O médico deu-lhe um sedativo.
- O que foi que aconteceu exactamente? - perguntou, ao mesmo tempo que avançava diante dela em direcção à sala de estar, no rés-do-chão.
- A tua mãe sentiu-se mal há dois dias - começou ela a contar.
- Aconteceu depois da visita da Dorina.
Tinha sido Franco a pedir à ex-mulher que fosse cumprimentar Serena.
- A tua mãe tinha começado um dos seus dias bons - continuou Marisol. - Recebeu a Dorina com satisfação. Estiveram aqui a conversar durante horas. A tua mãe queria que a tua mulher lhe dissesse porque é que não aparecias por aqui há tantos dias. Estava muito lúcida, garanto-te. A Dorina, a certa altura, disse-lhe que tinhas ido fazer um passeio de barco com uma mulher. Uma escritora bonita e famosa, explicou a Dorina. Então ela quis saber tudo sobre essa mulher que andava a viajar com o filho. Estava alegre, feliz. Quando a Dorina se foi embora, mudou subitamente de humor. Começou a praguejar contra aquela escritora. Teve um ataque de fúria. Partiu o serviço de chá. Depois sentiu-se mal. Dores no peito, nos ombros, no braço. Sintomas típicos de um enfarte. Chamei o médico. Fez-lhe um electrocardiograma. O coração não vai aguentar por muito tempo. Ela recusou-se a ser internada.
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Franco empalideceu. A mãe fazia uma cena daquelas porque ele tinha passado umas breves férias com uma mulher. Não podia acreditar.
- Tens a certeza de que as coisas se passaram assim mesmo?
- A Pomina também estava presente quando foi aquele fim do mundo - disse Marisol, apresentando assim o peso de um testemunho de respeito. - Ela, assim pequenina e frágil, conseguiu arranjar a força e a agressividade de um tigre.
Um arrepio de horror percorreu-lhe a espinha. Por que razão havia a mãe de se virar contra uma mulher que estava com ele? Porquê tanta maldade?
- vou lá para cima e fico com a minha mãe - disse Franco. Vai descansar. - Regressou ao quarto no primeiro andar. Serena tinha aberto os olhos e observava-o.
- Olá, mãe - disse Franco a sorrir.
- Sempre te resolveste a vir - sussurrou ela.
- Eu venho sempre ter contigo, já sabes.
- Excepto quando vais dar umas voltas com as tuas mulheres
- disse com um fio de voz, olhando-o com um lampejo de ódio.
Subitamente, Franco leu naquele olhar uma verdade da qual nunca tinha querido aperceber-se. com a sua aparente fragilidade, a mãe tivera-o na mão durante toda a vida. Só agora se dava conta daquele amor mórbido, do ciúme irrefreável com que o tinha feito prisioneiro, desde sempre.
Serena Vassalli morreu ao fim da tarde. Franco ficou ao lado dela durante todo o dia, dominado por sentimentos intensos e contraditórios. Uma alternância de raiva, desespero, tristeza e uma estranha e incrível sensação de paz.
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Tinha sido uma daquelas manhãs que Ermes definia como boas. As cirurgias tinham corrido bem, sem complicações. A equipa funcionara maravilhosamente. Saiu do bloco operatório depois do meio-dia e comeu qualquer coisa na cantina da clínica, depois viu os doentes, para controlar o estado pós-operatório, e programou o trabalho para o dia seguinte. Passou o resto da tarde no consultório.
Estava a tirar a bata para regressar a casa quando a secretária o deteve.
- Está ali uma paciente sua que deseja falar-lhe, senhor professor - avisou a sua colaboradora.
- Mas já não acabaram as consultas? - perguntou, espantado.
- É verdade. Mas a senhora chegou há uns minutos. Sem hora marcada - tentou explicar a secretária. - Diz que não se trata de uma consulta. Tenho a impressão de que tem um problema importante para lhe colocar - insistiu.
- Como se chama? - perguntou Ermes.
- Sara Shaky. Está aqui a síntese do processo clínico - disse, ao mesmo tempo que lhe entregava uma ficha que resumia a história da paciente.
Ermes voltou a abotoar a bata, sentou-se à secretária e olhou para o documento. Reconstituiu o caso.
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Sara Shaky era uma francesa casada com um italiano. Tinha quarenta anos e era decoradora de interiores. Agora lembrava-se: um tumor avançado que requererá a extracção total de uma mama. A mulher nunca se conformara com aquela amputação e tinha sido acompanhada por um psicólogo, com resultados modestos.
- Mande-a entrar - disse o médico.
Sara Shaky entrou com um passo hesitante e um sorriso forçado, apertando contra o peito uma pasta de pele castanha. Era uma mulher bonita e elegante. Alta e bem feita, de cabelos loiros, fartos e bem tratados, um rosto agradável e impecavelmente maquilhado, um vestido de malha muito simples adornado com um cinto largo de metal dourado. Poucas jóias, tão bonitas e valiosas que pareciam falsas.
- Agradeço-lhe muito por me ter recebido, senhor professor disse, ao mesmo tempo que lhe estendia a mão.
Ermes levantou-se e convidou-a a sentar-se diante dele.
- Foi uma decisão difícil - sussurrou a mulher -, esta de vir ter consigo, quero dizer. Mas encontro-me numa situação tremenda. E não sei a quem pedir ajuda - começou.
- Apanhou algum susto com os controlos trimestrais? - indagou cautelosamente.
- Não, os controlos correram lindamente - explicou. - Fisicamente não tenho problemas. Mas a minha situação é igualmente grave. - O seu olhar vazio denunciava uma grande dor, um tormento sem lágrimas.
- Qual é o problema, minha senhora? - insistiu Ermes.
- O meu marido - respondeu.
Ermes sorriu para pôr a paciente mais à vontade. - Ajude-me a perceber, minha senhora - pediu-lhe.
A experiência veio em seu auxílio. Por vezes acontecia que certos maridos, apaixonados até ao momento da cirurgia, rejeitavam a mulher depois de esta ter extraído o útero ou uma mama. Desencadeava-se nesses homens um mecanismo infantil que os
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levava a considerar a companheira como um brinquedo estragado, para deitar fora.
Mas Ermes, que antes e depois da intervenção tinha o hábito de falar com as doentes e com os seus parceiros, lembrava-se do marido de Sara, titular de um conceituado escritório de advogados. E lembrava-se das suas palavras.
- Acho que vou amar a minha mulher ainda mais do que antes - dissera-lhe então. - Eu não estou apaixonado por um seio. É ela que eu amo profundamente.
O que teria acontecido entretanto?
- O meu marido já não me quer - confessou.
- O que foi que aconteceu?
A mulher olhou-o directamente nos olhos, sem hesitação e sem vergonha.
- Aconteceu que eu o traí - disse.
Ermes pensou em Giulia.
- Traiu como? - perguntou-lhe.
- Traí da forma mais banal, mais estúpida, mais clássica - explicou a mulher. - Aconteceu no Outono, durante um fim-de-semana na montanha. Ele, quero dizer, o outro, começou a fazer-me uma corte cerrada, apesar de saber da minha diminuição física. Apesar das constantes atenções do meu marido, sentia-me tudo menos atraente. O meu marido podia fingir que me desejava. Podia amar-me por piedade, por generosidade. Mas eu precisava de saber que me desejavam por mim mesma, pelo fascínio que conseguia ainda exercer sobre um homem. Assim disparou em mim um mecanismo perverso que me empurrou para os braços de outro.
- com que resultado? - perguntou Ermes, ao mesmo tempo que o sangue lhe pulsava nas têmporas.
- Eu desejo o meu marido e tenho a certeza de que o amo mais do que antes.
Ermes olhava-a nos olhos. - Continue, por favor - pediu-lhe.
- Não há mais nada. Para além do facto de o meu marido ter sabido da minha traição.
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- Foi a senhora que lhe disse?
- Eu não sou nenhuma criança. Não havia necessidade de o fazer sofrer por causa de um episódio que não se repetiria nunca mais. Alguém lhe contou. E ele saiu de casa.
- Só lhe posso dizer que episódios como esse são bastante frequentes entre mulheres operadas ao seio - tentou explicar Ermes.
- Senhor professor, eu vivo na angústia de que este mal terrível que me atingiu surja de novo. É um tormento que talvez não justificasse a minha transgressão, mas pode ser uma boa explicação - disse a mulher, dolorosamente.
- Procure o seu marido, minha senhora - sugeriu Ermes. Fale-lhe com a mesma franqueza com que falou comigo. Eu acho que ele vai entender. Se ele mantiver a mesma posição, diga-lhe para me telefonar - acrescentou. - Mas entretanto nunca deixe de gostar de si. É muito importante que sinta vontade de viver.
A paciente foi-se embora, agradecendo-lhe comovidamente, e ele ficou ancorado à sua secretária mesmo depois de a funcionária ter fechado o consultório.
Naquela mulher amputada de um seio, que por uns instantes tinha encontrado satisfação ao suscitar emoções num homem que não era o marido, Ermes tinha visto Giulia. Quantas analogias entre ela e Sara. A mesma transgressão, um resultado idêntico: um amor mais forte pelo companheiro da sua vida.
Ermes aproximou-se da janela. Do lado de lá dos vidros, na escuridão da noite, resplandeciam as montras e as luzes para as festas que se aproximavam.
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Giulia saiu do consultório do obstetra com uma certeza mais e um novo prazer. Era uma mãe forte e ia ter uma gravidez normalíssima.
- Está no fim do terceiro mês e está tudo a correr o melhor
possível - garantiu o especialista.
Não ia ser obrigada a ficar na cama como nos tempos de Giorgio, pelo contrário, poderia ter a satisfação de dar longos passeios.
- Se lhe apetecer, até pode nadar. Uma hora por dia na piscina só lhe pode fazer bem - sugeriu o médico, que a aconselhava a limitar-se a uma ginástica suave.
Sentia-se quase feliz. Faltava-lhe apenas um elemento fundamental: Ermes.
Intimamente, Giulia sentia que não o tinha perdido, apesar de, objectivamente, Ermes não dar sinais de querer voltar. Confiante na atmosfera natalícia, decidiu dar mais um passo para se aproximar dele.
Entrou numa loja de utilidades no corso Matteotti e comprou uma botija de água quente, branca com pequenos corações vermelhos. Escreveu rapidamente um bilhete: "Se isto não bastar para te aquecer o coração, já sabes onde me encontras. Feliz Natal. Giulia."
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Escreveu num envelope o endereço de Ermes, meteu o bilhete dentro e passou tudo para as mãos do funcionário, que a conhecia bem. - Mande entregar isto na véspera do Natal, por favor - disse.
O homem, um jovem de rosto cordial, garantiu-lhe: - Pode ficar sossegada, Sr.a de Blasco.
Preparava-se para sair quando uma robusta e melodiosa voz feminina a chamou.
Giulia voltou-se. Do alto de uma macia montanha de zibelina, despontava o rosto de uma mulher bonita, muito sofisticada.
- Zaira - exclamou Giulia, ao reconhecê-la.
- O que fazes aqui, minha querida? - perguntou a estilista, abraçando-a.
- Nada. Estava só a espreitar - hesitou, como se receasse revelar aquele segredo. - E tu, o que fazes numa loja deste tipo?
- Presentes úteis e inteligentes - brincou. - Como vês, conservei os meus hábitos camponeses. Há um século que não nos vemos.
- Digamos que desde o Verão passado - esclareceu Giulia.
- Como é que me achas?
- Se é ao lifting que te referes, devo dizer-te que está perfeito. Estás cada vez mais bonita.
- Eu esperava que não se notasse - respondeu, amuada e desiludida.
- E não se nota - sussurrou-lhe ao ouvido. - Só que eu conheço-te muito bem, se me permites. Porque não vamos tomar alguma coisa juntas? - propôs Giulia, indicando o SantAmbroeus, que ficava mesmo do outro lado da rua.
Tinha caído a noite. As duas mulheres entraram naquele famoso café de Milão, sentaram-se a uma mesa e pediram chocolate quente.
- Como nos velhos tempos - disse Giulia, com um lampejo de cumplicidade.
Zaira observou-a com admiração.
- Estás com uma pele resplandecente, pareces de porcelana. Rejuvenesces a olhos vistos. Podes dizer-me como é que fazes? perguntou.
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- É um segredo da casa - brincou Giulia -, que em breve toda a gente vai saber.
- E não queres confiá-lo em primeira mão a uma velha admiradora tua? - sugeriu Zaira. - Um novo filme? Um novo livro? Uma nova tradução? - indagou, provocante.
- Uma nova criança. Estou grávida, Zaira - anunciou Giulia.
- Deixas-me sem palavras - retorquiu a estilista. - E o pai quem é?
- Quem queres que seja? O Ermes, como é óbvio.
- E o Franco Vassalli não tem nada a ver com isso?
- Não, não tem nada a ver com isto - replicou com severidade.
- Acredito - disse Zaira. - Mas andaste uns dias no mar com ele. Ou não?
- Como é que tu sabes? - perguntou Giulia, corando.
- Digamos que sou muito amiga da ex-mulher dele - respondeu Zaira, com um sorriso.
Giulia percebeu imediatamente de que tipo de amizade se tratava.
- Não sabia dessa, digamos assim, amizade.
- Tu nunca sabes nada daquilo que as pessoas fazem - censurou Zaira. - Mas vê lá se me explicas que segredo esconde uma mulher como tu que, estando grávida, vai passear pelo Mediterrâneo com o Franco Vassalli.
- Sexo - sussurrou Giulia, com um olhar malicioso.
- És pura e simplesmente escandalosa - respondeu Zaira a rir, divertida. - Se eu não te conhecesse, acreditava em ti.
- Gostava muito de saber quem foi que contou esta história à mulher do Franco Vassalli - indagou Giulia.
- Bisbilhotice de marinheiros. Vocês embarcaram diante dos olhos de toda a gente.
- Agora percebo - disse Giulia.
- Mas deixa-me tocar na tua barriguinha - suplicou Zaira. Dá sorte.
Giulia levantou-se.
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- Ainda não se vê - disse.
Vestia uma camisola de gola alta cor de alfazema e uma saia bege bastante justa.
- Então, deixas-me tocar? - insistiu Zaira, esticando a mão. Giulia riu-se e virou-se para se esquivar àquele gesto demasiado íntimo da amiga, voltando-lhe assim as costas.
Foi nesse momento que o belo rosto de Zaira foi invadido pelo terror.
- Meu Deus, Giulia, o que é que te está a acontecer? - disse-lhe em voz baixa.
- O que foi, Zaira? - perguntou alarmada.
- Cobre-te, depressa - ordenou a amiga, ao mesmo tempo que pousava o seu casaco nos ombros de Giulia. - Tens uma mancha de sangue na saia - explicou, tentando manter a calma.
- Não é possível. - Giulia estava aterrorizada. - Estive no obstetra há uma hora. Estava tudo bem.
- Não te preocupes - sossegou-a. - Eu vou já levar-te à clínica. À porta estava o motorista de Zaira, ao volante de uma limusina. A estilista levou a amiga até ao carro e ajudou-a a estender-se no banco de trás.
- Depressa, para a Clínica Milanese - ordenou. - A correr. Giulia chorava, com a cabeça reclinada sobre o ombro de
Zaira.
- Quero o Ermes - murmurava, desesperada.
- Está sossegada, Giulia. Estou a levar-te para junto dele garantiu a amiga.
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Pomina, Aldo e Marisol estavam sentados à mesa da cozinha da villa Gray. Era uma daquelas cozinhas que tinham desafiado duas guerras sem alterações revolucionárias. As paredes eram revestidas de azulejos brancos que terminavam à altura de uma pessoa com um friso de majólica de flores azuis.
Havia ainda um lava-louça de mármore com veios cinzentos e um longo escorredor de loiça do mesmo material com uma grade de latão brilhante. Funcionava ainda um fogão económico a lenha que tinha o duplo objectivo de aquecer e cozinhar. Havia uma mesa com tampo de mármore e pernas torneadas; e havia um armário branco que ocupava uma parede inteira, com portinhas de vidro esmerilado que deixavam entrever serviços de pratos e de copos.
A única concessão ao progresso dos tempos era um grande frigorífico que produzia gelo, e uma eficiente máquina de lavar louça.
Num canto diante da janela tinha sido instalada uma pequena árvore de Natal luminosa e dourada. No fogão fervia a água para o pequeno-almoço e no forno tinham sido metidas fatias de pão para torrar.
Eram sete horas da manhã. Do lago subia uma neblina alvacenta e esfarrapada.
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Franco Vassalli tinha ido ao funeral da mãe. Ele e o cão. Sozinhos. Não tinha querido fazer publicidade a um acontecimento que, em definitivo, apenas lhe dizia respeito a ele. Até as filhas e os colaboradores mais fiéis tinham sido excluídos da cerimónia.
Serena Vassalli foi sepultada num pequeno cemitério de aldeia, numa encosta a cinco quilómetros da casa.
Agora estavam os três reunidos à mesa da grande cozinha, à espera do regresso de Franco. Todos se interrogavam sobre o seu futuro. Tinham a certeza de que o patrão ia restituir a villa ao antigo proprietário, o inglês Alan Gray. O que ia ser deles? Pomina e Aldo trabalhavam naquela casa havia dez anos. Marisol há poucas semanas apenas, mas no fundo do seu coração esperara continuar a viver na tranquilidade daquele refúgio. Nos poucos anos de casamento com Giuseppe Vassalli tinha passado momentos demasiado sombrios para não considerar a villa Gray como um paraíso.
Quando ouviu o carro de Franco no jardim, Pomina levantou-se para o receber.
- Posso servir-lhe o pequeno-almoço? - perguntou, assumindo o ar compungido que as circunstâncias exigiam. Aquela era com certeza a última vez que o patrão voltava à villa e, muito provavelmente, era o seu último encontro.
Franco sorriu-lhe com a cordialidade do costume.
- Se não te importas, leva-me o café ao escritório - disse ele, com o tom calmo de sempre, enquanto atravessava o átrio seguido pelo cão.
O escritório era um aposento austero com lambris de cerejeira, estantes em estilo Liberty, preciosas estatuetas de bronze e uma colecção de peças de cerâmica inglesas.
Deixou-se cair no sofá de couro e telefonou a Alan Gray. O editor inglês atendeu da sua casa de Chelsea.
- Alan, acabo de enterrar a minha mãe - disse Franco, sem medir as palavras e com um ar de desapego.
- Sinto muito. Não sabia - lamentou, sem no entanto embarcar num daqueles habituais discursos de circunstância.
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- Ninguém sabe. É um assunto estritamente privado. Espero que me entendas.
- Perfeitamente. Posso fazer alguma coisa por ti? )
- O que é que vais fazer da tua villa no lago? - perguntou.
- Estás interessado nela? - perguntou o inglês.
- Queria-a tal qual está. Respeitando as regras dos primeiros proprietários - declarou Franco. - Qual será o valor do imóvel?
- Anda à volta dos dois mil milhões. Fazendo a conta em liras, como é óbvio - respondeu Gray, que estava bem informado e tinha uma extraordinária familiaridade com os números.
- Ofereço-te uma participação na Provest-film. Produções para a televisão.
- Fala-se bem disso por aí - disse o editor. - Dizem que tu andas a confeccionar produtos de muito respeito - acrescentou.
- Então, vamos nisso?
- Entra em contacto com o meu advogado. Pela parte que me toca, a villa Gray é tua.
- Agradeço-te a confiança - rematou Vassalli. Pomina chegou com o café.
- O que vai ser de nós, agora? - perguntou, hesitante.
- Não houve mudança nenhuma - garantiu ele. - Vai haver um outro hóspede, dentro de pouco tempo. E eu também vou cá estar muitas vezes. Diz isso ao jardineiro e à Marisol.
Franco subiu ao primeiro andar e entrou no quarto que pertencera à mãe. Olhou em volta, primeiro timidamente, depois abriu um armário de madeira que tinha uma grande porta de espelho. Foi invadido por um perfume fresco de alfazema. Estavam ali todas as roupas de Serena. Tocou levemente naqueles tecidos delicados.
Eram vestidos que tinham pelo menos vinte anos, porque Franco se lembrava deles desde os tempos do liceu. Naquelas
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roupas e naquele perfume estava a história da sua vida e das suas angústias, sempre habilmente escondidas.
Naquela manhã, no cemitério, ao ler os certificados que um funcionário da câmara lhe tinha levado, fizera uma descoberta desconcertante.
A mãe tinha casado ao quinto mês de gravidez. Porque o seu irmão, Giuseppe, tinha nascido exactamente quatro meses depois do casamento. Aquele casamento com o taxista violento fora, pois, um casamento reparador. E talvez aquele homem, ao seduzi-la quando ela era ainda uma rapariga, não tivesse sido assim tão violento. E ela alguma coisa havia de ter sentido, naquele primeiro encontro de amor livre das obrigações e das imposições do matrimónio.
Serena chamava-se Maggi em solteira. Os pais tinham um pequeno estabelecimento de ourivesaria no corso Magenta e esperavam um casamento mais rico. Talvez ela própria aspirasse a alguma coisa melhor. O que teria acontecido quando a sua incipiente maternidade a obrigara a casar com o taxista, que viria a revelar-se um companheiro violento e insensível? Detestara-o pela sua mediocridade ou teria contribuído com o seu ressentimento
para a provocar?
Franco abriu uma gaveta da cómoda que parecia conter a alma da mãe. Havia um raminho de flores secas apertadas com uma pequena fita de veludo. Quem lhe teria oferecido aquelas flores tão zelosamente guardadas? Numa caixa viu um monte de pingentes, alguns verdadeiros, outros falsos, todos igualmente patéticos. Franco acariciou frasquinhos de perfume velhos, uma caixa de pó-de-arroz e saquinhos de alfazema.
Havia um álbum de pele azul onde tinham sido conservadas com cuidado fotografias a preto e branco. Reconheceu-se em algumas delas. Noutras aparecia com o irmão. A mãe, em algumas imagens, tinha riscado o rosto de Giuseppe com uma cruz. Porquê?
Seria por ter sido concebido antes do casamento? Porque no aspecto físico e no carácter era a cópia exacta do pai? Ou teria Serena começado a detestar aquele filho ainda antes de ele nascer?
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A figura da mãe tornava-se cada vez mais complexa e indecifrável. Havia muitas cartas atadas com uma fita cinzenta. Eram endereçadas a ela. com quem teria ela mantido aquela estreita correspondência? Certamente, não com o pai. Esteve quase a desatar o nó e a pousar os olhos naqueles segredos perfumados. Parou a tempo. Que direito tinha ele de indagar sobre um passado que a mãe lhe tinha escondido? Saiu do quarto, fechou a porta à chave e regressou ao escritório para esconder a chave no fundo de uma gaveta da secretária.
Talvez um dia voltasse àquele quarto para aprofundar a investigação. Mas naquele momento não tinha ânimo para o fazer.
Tocou a campainha. Pouco depois apareceu Pomina.
- O quarto da minha mãe - explicou Franco - vai ficar fechado. Para toda a gente.
- Como desejar, senhor doutor.
Diz ao motorista que dentro de meia hora partimos para Milão - ordenou.
- Depois acrescentou: - Hoje é sexta-feira, não é verdade?
- A última sexta-feira antes do Natal - esclareceu a empregada. Franco sorriu a uma recordação longínqua. A uma outra
sexta-feira, o seu dia de sorte.
- Podes preparar-me bacalhau para o jantar? - perguntou a Pomina.
- Então o senhor doutor ainda volta a casa? - perguntou, cheia de entusiasmo.
- E provavelmente não venho sozinho - anunciou Franco. Depois agarrou-se ao telefone. Ligou para Milão, Paris, Nova
Iorque. com Nova Iorque examinou a possibilidade de desembarcar com a produção da sua rede naquele planeta proibido aos europeus.
Na auto-estrada a caminho do aeroporto, o trânsito denso abrandou na proximidade de Mecenate e, ao fim de poucos quilómetros,
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tornou-se uma coluna imóvel e desesperada com gente a espreitar pela janela e a produzir o espectáculo habitual de quem quer descobrir a causa do engarrafamento.
Só mais tarde se viria a saber que tinha havido um acidente perto do desvio. Passaram três quartos de hora antes que o trânsito normalizasse. Assim, Franco chegou a Linate com uma hora de atraso relativamente à chegada do voo de Paris.
Foi unicamente por escrúpulo que entrou no sector das chegadas internacionais porque, conhecendo-a como a conhecia, podia supor razoavelmente que ela não ia ficar à espera dele. Mas viu-a, incrivelmente calma, diante da loja de souvenirs, numa espera cheia de confiança.
- Olá, Marta. Desculpa o atraso - tentou justificar-se. - Houve um acidente e...
Marta ostentava uma maturidade insólita no olhar límpido e na expressão absorta. Abraçou-o e beijou-o nas duas faces.
- Não precisas de te desculpar por isso - afirmou, conseguindo comunicar-lhe uma serenidade nova.
O motorista, que ia atrás de Franco, pegou nas malas e dirigiu-se à saída.
- Fizeste boa viagem? - perguntou Franco.
- Um sopro sobre uma nuvem - disse alegremente. - Como está a tua mãe?
- Morreu. Não foi possível salvá-la.
Marta conseguiu até não se espantar com a fatalista resignação de Franco, que sabia ser extremamente ligado à mãe. Limitou-se a abraçá-lo com mais força, por um momento.
Entraram no carro e mudaram imediatamente de assunto.
- Soubeste dos acordos franceses em relação à Provest-film? perguntou ela.
- O Fournier mandou-me ontem um relatório pormenorizado. Bem-vinda a bordo. Não vai ser um cruzeiro tranquilo, mas uma viagem cheia de aventura - prometeu Franco.
- A aventura é o sal da vida - esclareceu ela, em tom de brincadeira.
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- Queres que te leve à coudelaria da tua filha? - perguntou Franco, apesar de já saber qual seria a resposta.
- Para te dizer a verdade, acho que ia estar a mais em Fonte chiara. A Tea voltou a viver com o seu conde arruinado.
- Sempre inflexível e definitiva - censurou-a com bonomia.
- Não. Já não é assim. Eu mudei. Acredita. E mudei de opinião também sobre a Tea e o Marcello. E sabes uma coisa? Acho que vão ser felizes juntos. Fui estúpida e injusta ao querer para a Tea uma coisa diferente, mais interessante e mais excitante. A Tea é mesmo filha do pai. Imagina que até se matriculou em Medicina.
- Onde queres que te leve, então? - perguntou Franco.
- Porque não me fazes uma proposta? - Estava com ar de quem se dispunha a aceitar as suas decisões.
- O que dizes a uma villa sobre o lago de Como? Faltam poucos dias para o Natal e aquilo é muito sossegado.
Um lampejo da antiga perfídia brilhou no olhar de Marta.
- A Giulia de Blasco deixou-te ficar e tu já arranjaste uma maneira de lamber as feridas. É isso? - provocou-o, ao mesmo tempo que o carro se enfiava no meio do trânsito.
A coisa era mais ou menos assim, mas Franco Vassalli nunca seria capaz de o admitir.
- O lago é um bom sítio para reflectir e recuperar alguma paz
- disse. - E uma pessoa como tu - acrescentou - é ideal para reencontrar o sentido da vida.
Marta explodiu numa gargalhada sincera.
- Estás a pedir realmente muito a uma mulher de cinquenta anos que ainda não se entendeu a si mesma.
- Pareces-me diferente - replicou Franco.
- O facto é que me cansei de lutar contra todos. A discussão e a intriga, agora, deprimem-me em vez de me darem alegria. Imagina que até liguei para o meu advogado em Nova Iorque para lhe dizer que não tenciono prosseguir contra os herdeiros do James. Pousei as armas, em suma - confessou, resignada.
- Mais uma razão para tentares viver comigo - replicou Franco, decidido a dar uma arrumação à sua vida sentimental.
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- Estava à espera de uma proposta para o serão - disse Marta, espantada, com uma ponta de ironia.
- Mas afinal trata-se de um tempo indeterminado.
- Que pode querer dizer até amanhã - comentou ela.
- Ou até daqui a vinte anos - concluiu Franco a sorrir. Havia uma luz maternal no olhar de Marta, um sentimento de
protecção de que Franco sentia necessidade. Agora apercebia-se de que Marta Montini tinha superado as tempestades de uma vida desordenada e que lhe poderia dar alguma coisa que nunca obteria de Giulia: uma serenidade duradoura, pelo menos no plano sentimental.
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- No que diz respeito ao seu estado, não vejo motivos de preocupação, Sr.a de Blasco - disse sorridente o Dr. Morelli, um homem tranquilo que inspirava confiança. E Giulia começou a descontrair, apesar de a cadeira do ginecologista não ser o melhor lugar para uma mulher se libertar da tensão, do medo e do stress. - O colo do útero - continuou, depois de ter feito uma série de exames está perfeitamente fechado. De momento não há sinais de qualquer ameaça de aborto.
Giulia estava no serviço de obstetrícia da clínica de Ermes.
- Mas então porque é que estou a perder sangue? - perguntou.
- A ecografia que acabei de fazer indica, sem possibilidade de equívoco, a presença do batimento cardíaco do feto. O seu bebé, para já, está bem - comunicou-lhe, com um tom muito seguro.
- Mas ainda não me disse porque é que eu estou a perder sangue - insistiu Giulia.
- A senhora perdeu sangue. Mas agora já não está a perder. Porque a hemorragia parou. A perda de sangue de há pouco apenas indica que existe um problema de aderência da placenta ao revestimento da parede uterina - explicou o especialista. - Mais nada.
Giacomo Morelli era um obstetra jovem, com a escola do professor Brandani. Era sério, atento e estava completamente actualizado. E, no entanto, Giulia não se sentia tranquila.
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- Foi consigo que eu tive consulta hoje de manhã - protestou.
- E disse-me exactamente que estava tudo a correr o melhor possível. Porque é que eu tive uma hemorragia logo a seguir?
- Não lhe posso dar uma resposta precisa. Porque as causas podem ser diversas. Vamos ter de aprofundar a investigação disse o obstetra. - Este pequeno coágulo poderia ser o resultado de stress psicológico. - O especialista parecia sincero.
- Dr. Morelli, eu não quero perder este filho. Amo-o e desejo-o. Se tiver de ficar em repouso durante os seis meses que faltam, ficarei. Já fiz o mesmo com o Giorgio, há dezassete anos.
- O repouso forçado não vai, de facto, ser necessário - garantiu-lhe. - Quando muito, durante períodos muito breves. A gravidez na cama é um conceito ultrapassado. Porque está visto, e largamente demonstrado, que se uma mulher tiver de abortar, isso acontece também em situações de absoluto repouso. A gravidez é um estado natural e como tal deve ser mantida. A senhora vai poder continuar a fazer a sua vida de sempre. No sentido em que poderá sair, ir ao restaurante, sentar-se à sua mesa de trabalho ou dar uma volta pelo campo. Agora vou pô-la em repouso dois ou três dias, aqui na clínica. Dentro de quarenta e oito horas, se uma nova ecografia der bons resultados, poderá regressar a casa, e de metropolitano - garantiu o médico.
Giulia preparou-se para sair da marquesa, mas ele deteve-a.
- Eu disse em repouso durante dois ou três dias - insistiu. Estava disposta a ficar na cama durante seis meses. Eu reduzi-lhe a pena para dois dias - brincou. - vou mandá-la levar de maca até ao seu quarto, que já está pronto para si no serviço do professor Corsini.
- Onde é que ele está? - perguntou, preocupada.
- Aqui fora. À sua espera.
À espera dela, juntamente com Ermes, estava também Zaira, que pouco antes tinha levado Giulia até à clínica.
- Então? - perguntou o cirurgião, observando o colega.
- Não há qualquer problema - garantiu Morelli. - A senhora está bem. A dor supra-púbica parou. Terminou também a perda
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de sangue. Não há terapia, para além de dois ou três dias de cama
- concluiu o obstetra.
- Então vamos levar-te para cima - disse Ermes, segurando uma mão de Giulia entre as suas.
- Não era nestas condições que eu estava à espera de voltar a ver-te - murmurou ela, de forma a que Zaira não ouvisse.
Ermes olhava para ela com tal intensidade que Zaira comentou, muito coquete: - A minha tão conhecida sensibilidade sugere-me que me ponha daqui para fora.
- Agradeço-te por me teres trazido aqui - disse Giulia.
A amiga inclinou-se sobre a maca e deu-lhe um beijo ligeiro na face.
- Virei o mundo de pernas para o ar por tua causa, Giulia. Esta noite vais receber camisas e roupões de seda, chinelos de veludo, talco e perfumes. Vais ser a paciente mais elegante e mais mimada da clínica - disse, enquanto se afastava em direcção à saída.
- Aqui está um caso típico de doença incurável - brincou Ermes, referindo-se a Zaira, que tinha já desaparecido do outro lado da porta de vidro.
Um enfermeiro empurrou a maca até ao elevador, enquanto Ermes tomava conta do processo clínico de Giulia. O elevador subia até ao oitavo andar e Ermes ia lendo as anotações do diagnóstico do colega.
- Não devias ficar no meu serviço - disse, quando entraram no quarto onde se destacava um grande ramo de rosas escarlates numa jarra de cristal. - Mas para um director sempre se abre uma excepção.
Ermes ajudou a enfermeira a instalar Giulia na cama e, quando a mulher saiu, sentou-se numa cadeira à cabeceira.
- Devo considerar-te como um bom samaritano que provisoriamente trata de mim? - perguntou Giulia.
- Deves considerar-me como aquilo que sou e sempre fui: o teu homem. E também o pai desta criança - precisou, ao mesmo tempo que pousava uma mão leve sobre o ventre de Giulia.
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- Em Nova Iorque não pensavas assim - disse Giulia. - Nem sequer admitias que eu tivesse alguma justificação.
- Em Nova Iorque falava o orgulho ferido e o ciúme.
- A rapariga de cabelo ruivo também era resultado desse ciúme?
- insinuou Giulia.
- Era uma tentativa de me libertar de um pesadelo - disse. Tentativa falhada - esclareceu.
Ermes debruçou-se sobre ela e abraçou-a com força.
- Era preciso mais um grande medo para voltar a unir-nos disse Giulia, comovida.
Ermes segurou entre as suas uma mão de Giulia e beijou-a. Sabia, sempre soubera, que não podia viver sem ela: Giulia era o seu passado, a sua juventude, os seus sonhos. Giulia era o seu presente, a sua realidade, a sua fantasia. Giulia era aquele filho quer ia nascer. Giulia era a vida.
Pensou nos longos dias passados sem ela. - Na realidade, nunca nos separámos, meu amor. Aconteça o que acontecer, não haverá nunca nada nem ninguém que nos possa separar, porque eu trago-te sempre aqui - disse, indicando o coração. - E aqui acrescentou, levando uma mão à testa.
- Eu sei. Passa-se o mesmo comigo - respondeu ela a sorrir.
- Comportámo-nos como duas crianças egoístas e conflituosas. Mas agora acabou - replicou Ermes. - Amo-te tanto, Giulia.
Alguém bateu à porta, pondo fim àquelas efusões.
- Entre - disse Ermes.
A porta abriu-se. Entrou um rapaz carregado de caixas cheias de fitas.
- É da parte da marquesa Manodori - anunciou o rapaz, olhando em volta à procura de um espaço para pousar a encomenda.
- A Zaira mandou-me um enxoval de noiva - brincou Giulia, indicando ao rapaz o sofá por baixo da janela - Ponha tudo ali em cima. E diga à senhora que eu agradeço muito - acrescentou.
Quando o rapaz foi despedido com uma lauta gorjeta, Giulia disse: - Anda, vamos abrir algumas daquelas caixas. - Estava excitada como uma menina.
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Os embrulhos continham exactamente aquilo que a estilista tinha prometido: camisas e roupões de seda, chinelos de veludo, talco e perfumes.
Havia também um bilhete: "bom Natal para ti, para o Ermes e para o vosso maravilhoso bebé."
Giulia saboreou o paladar da felicidade. Tinha Ermes ao lado dela, tinha dentro de si aquela personagem cada vez menos misteriosa que era a criança de ambos, sentia a esperança e o amor. Já não aquele sentimento obstinado e caprichoso de um momento, não o furor e as chamas de outro tempo, mas aquela doce e terna ligação que persiste através de muitas vicissitudes e dura toda uma vida.
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Era uma quente e colorida manhã de Maio. No pátio da casa da via Tiepolo o sol penetrava, vibrante, através das glicínias em flor. Giulia estava sentada num cadeirão de vime diante da máquina de escrever. Trazia um vestido pré-mamã de um rosa intenso que sublinhava o seu estado e a rejuvenescia.
Trabalhava sobre o último capítulo de um novo romance. Os dedos voavam sobre as teclas. A história fluía da sua mente com uma extrema limpidez e todos os dias, quando terminava um capítulo, sabia exactamente aquilo que ia escrever no dia seguinte. Nunca lhe tinha acontecido escrever um romance com tanta rapidez, sem esforço. Esperou que também a sua gravidez se concluísse da mesma forma.
O seu ventre enorme, apesar de lhe dificultar os movimentos, era um fardo agradável. Às vezes sentia o bebé a dar pontapés contra as paredes do útero e então pousava a mão sobre o ponto correspondente àquele esticão e ria-se. A vivacidade da criança dava-lhe alegria.
A ecografia tinha identificado o sexo do bebé: uma rapariga.
Ermes e Giulia receberam com alegria e comoção aquela notícia. Viviam juntos desde o dia em que se tinham reencontrado.
Giulia sabia que o parto estava agora iminente. Segundo os seus cálculos, faltavam apenas seis dias. Tinha estado na consulta do
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Dr. Morelli para um exame de controlo e o ginecologista reservara-lhe um quarto no serviço de obstetrícia da Clínica Milanese. O seu bebé e o seu romance estavam mesmo a chegar. E tudo fazia prever que o livro ia cortar a meta primeiro. Se Giulia escrevesse o último capítulo até ao fim da tarde, teria quase uma semana para o rever antes de o entregar ao editor.
Estava mergulhada nestes pensamentos quando sentiu uma mão acariciar-lhe os cabelos na nuca. Aquele contacto fê-la estremecer.
- Olá, mamã. Como estás?
- Mais dia, menos dia, ainda me matas, com essa tua mania de apareceres do nada - sorriu.
Giorgio estava ao seu lado. Tinha na mão um pão com compota. Migalhas de pão nos lábios sublinhavam-lhe a gula, fazendo-o parecer mais novo do que os seus dezassete anos.
- Em que ponto estamos? - perguntou o rapaz.
- Estou a acabar o romance - respondeu, ao mesmo tempo que o convidava para se sentar ao lado dela.
- Referia-me à tua barriga - esclareceu ele.
- Acho que os vou desenfornar ao mesmo tempo: livro e bebé. E tu, em que ponto estás? - perguntou, olhando-o nos olhos. Tinha um olhar sereno. Sorria muitas vezes e fazia-lhe festas. Estava mesmo mudado, o seu menino.
- Estou a fazer uma revisão geral. Na próxima semana começam os exames finais. Tenho de conseguir. Não posso ter exames em Setembro. A Tea e o Marcello convidaram-me para passar este Verão em Fontechiara. Aqueles dois estão a precisar de uma ajuda. E eu estou a precisar da atmosfera de Fontechiara. Não imaginas que animais maravilhosos são aqueles cavalos, mãe.
- Não tenho a tua experiência - brincou -, mas acho que sei acrescentou, recordando o parto de Ortensia.
- Como vês, não me posso dar ao luxo de ficar com exames de segunda época com aquele trabalho todo à minha espera em Fontechiara.
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Era um prazer olhar para ele e ficar a ouvi-lo, Giulia recordava o passado, todos os problemas e sofrimento que aquele filho lhe tinha dado, e parecia-lhe um sonho assistir àquda transformação extraordinária.
Surpreendia-se a perscrutá-lo com apreensão, enquanto perguntava a si mesma se a nova consciência de Giorgio seria definitiva.
- Não faças um drama se por acaso não passares em Junho animou-o.
- Acho que vou conseguir. A propósito, não podes falar com a minha professora de Literatura? Eh, mãe? Tu sabes dizer as palavras certas no momento oportuno. Se não, para que é que serve uma mãe importante? - Encostou-se a ela em ar de brincadeira
para a convencer.
- E o que é que tu queres que eu lhe diga?
- Para não ser impiedosa nas perguntas que me vai fazer, por exemplo. Dar-me a entender em que temas é que eu me devo preparar melhor.
- vou ver o que posso fazer - respondeu, a sorrir.
- Eu sabia que podia contar contigo - disse ele, levantando-se.
- vou voltar para o meu quarto, vou estudar - acrescentou, enquanto engolia a última dentada.
Foi então que Giulia sentiu uma guinada nos rins. Uma dor aguda e violentíssima. Mas passou logo. Foi de tal maneira rápido que ela pensou que tinha sido uma impressão. E, no entanto, aquela fisgada tinha-lhe cortado a respiração por uns instantes. Sossegou e ergueu o rosto para o filho, que lhe deu um beijo.
Giorgio entrou em casa e ela recomeçou a escrever. Passaram alguns minutos e outra guinada, menos dolorosa mas mais insistente, atravessou-lhe os rins.
- Oh, meu Deus, é agora - disse, parando o que estava a fazer. Também quando Giorgio nasceu as dores tinham começado da mesma maneira.
Giulia decidiu não dar ouvidos àqueles sinais que podiam depender de causas diversas. Uma corrente de ar, por exemplo.
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Continuou a martelar na sua fiel Valentina vermelha. Escreveu quase meia página antes que uma terceira fisgada, mais prolongada do que as anteriores, a agredisse.
"Não vale a pena inventar desculpas", pensou. "É mesmo agora." E sorriu ao pensar que, se a criança tivesse tido a bondade de esperar algumas horas, ela tinha conseguido acabar o romance.
Levantou-se, entrou em casa e chamou Ambra
- Não me queres preparar um chá? - pediu. E acrescentou:
- E um pãozinho com compota como aquele que deste ao Giorgio.
- Agora também lancha? - perguntou a empregada, espantada.
- Excepcionalmente, sim - respondeu Giulia, enquanto se dirigia ao escritório. Telefonou ao Dr. Morelli.
- Lamento, Sr.a de Blasco - disse a enfermeira. - O Sr. Doutor não está. Não pode esperar até amanhã?
- Eu até podia. Mas o meu bebé não pode - disse, sustendo a respiração porque uma nova guinada lhe agredia os rins. - Acho
que quer nascer agora.
- Peça para a trazerem já para a clínica, minha senhora. Está cá o obstetra de serviço. Entretanto eu vou tentar localizar o Dr. Morelli.
Giulia foi à cozinha e bebeu um gole de chá. Depois perguntou a Ambra: - A minha mala está pronta?
- Que mala? - perguntou, espantada.
- Acho que vais ter de ir comigo até à clínica - disse, num tom calmo e sorridente.
- Chegaram as dores? - perguntou Ambra, alarmada.
- Parece-me bem que sim - admitiu Giulia.
- Então temos de nos despachar. De que é que estamos à espera?
- Como o pão noutra altura - concluiu, um pouco contrariada.
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Giulia estava na sala de preparação para o parto. Já lhe tinham rebentado as águas e o Dr. Morelli auscultava com o estetoscópio os batimentos cardíacos do bebé. Ela respirava com movimentos breves e frequentes, como lhe tinha sido ensinado no curso de preparação para o parto. Ermes aproximou-se dela. - Como é que estás? - perguntou baixinho.
- Mal, obrigada - respondeu ela.
Tinha uma expressão dura, devido à dor e à tensão, e a testa
coberta de suor. As dores eram muito fortes e cada vez mais próximas.
- Aperta a minha mão com força - disse ele. Tinha vestido a
bata e uma enfermeira estava a apertar-lhe uma máscara no pescoço.
- Eu acho que vou ter esta criança aqui mesmo, Ermes ameaçou Giulia -, vou tê-la agora, já, se não se despacham a levar -me para a sala de partos.
Ermes olhou para o obstetra, que anuiu.
- Vamos lá deixar nascer esta menina - disse Morelli, ao
mesmo tempo que fazia um sinal à parteira.
- Tenho medo - disse Giulia, apertando a mão de Ermes.
- É normal. Não há motivo para preocupações - garantiu-lhe.
- E depois já tiveste um filho. Sabes como funcionam estas coisas
- sussurrou.
- Já foi há muito tempo - queixou-se ela.
Era já noite, e o trabalho de parto arrastava-se há várias horas. Estava exausta. Na sala de partos deitaram-na numa maca pequena e pousaram-lhe as pernas nos apoios laterais. E ela não conseguiu conter um grito.
Um olhar de entendimento passou entre Ermes e o obstetra, que tinha já efectuado um pequeno corte para facilitar a passagem da criança sem lacerações.
- Estou a ver a cabeça - anunciou Morelli. - Faça força, minha senhora. O mais que puder - incitou-a.
Giulia concentrou naquele impulso toda a potência dos seus
abdominais. E sentiu imediatamente um alívio.
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- A cabeça já está cá fora - disse-lhe Ermes, enquanto lhe enxugava o suor da testa com uma gaze esterilizada.
Sentiu ainda uma guinada dolorosa e, finalmente, a libertação, seguida após alguns instantes pelo pranto desesperado de uma criança.
- A nossa filha nasceu - disse Ermes, ao mesmo tempo que levantava o bebé. - É lindíssima.
O obstetra estava a coser as feridas do parto, enquanto duas enfermeiras lavavam a menina, que gritava com todas as suas forças.
- Como te sentes, agora? - perguntou Ermes, inclinado sobre Giulia.
- Cansada - respondeu ela, com um pálido sorriso -, mas feliz. Uma enfermeira colocou ao lado dela um corpinho avermelhado e enrugado.
- Ainda não me disseste como se chama - disse Ermes, radiante.
- Se achares bem, gostava de lhe chamar Carmen, como a minha mãe - respondeu ela num sopro, apertando a sua menina contra si.
- Sim, Giulia, vamos chamar-lhe Carmen - confirmou ele, debruçando-se para afagar a mãe e a filha.
Carmen e Giulia navegavam num mar sereno, inundado de sol. Os pensamentos sombrios estavam agora distantes. Talvez nunca tivessem existido. Uma mulher e uma menina iam conhecer juntas o esplendor da vida.
Sveva Casati Modignani
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