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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ESTRANHO - P.2 / Camilla Läckberg
O ESTRANHO - P.2 / Camilla Läckberg

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Patrik dormiu o caminho todo até Borås. Estava exaurido depois de tudo o que acontecera nas últimas semanas e depois de ter passado a noite acordado lendo os documentos de Gradenius. Quando acordou, já nos arredores de Borås, sentiu torcicolo por dormir com a cabeça apoiada na janela. Com uma careta, massageou o local dolorido enquanto piscava para se acostumar à luz.

 

– Estaremos lá em cinco minutos – disse Martin. – Conversei com Eva Olsson e peguei instruções de como chegar à casa dela. Acho que estamos perto.

 

– Que bom – disse Patrik, tentando organizar os pensamentos antes da entrevista. A mãe de Rasmus Olsson havia soado tão impaciente quando eles telefonaram para ela. Ela os convidou para ir à casa dela ter uma conversa.

 

– Finalmente – ela disse. – Finalmente, alguém vai me ouvir.

 

Patrik sinceramente esperava que eles não tivessem que decepcionar a mulher. As instruções que ela dera a Martin foram excelentes e não demorou muito até encontrarem o quarteirão do prédio onde ela vivia. Apertaram o botão para seu apartamento e ouviram o som do portão eletrônico se abrindo. Dois andares acima e a porta se abriu assim que chegaram ao andar. Uma mulher baixa, de cabelos escuros, estava esperando por eles. Cumprimentaram-se e ela os levou à sala de estar. Tinha posto a mesa para o café com uma toalha de renda, lindas xícaras, guardanapos elegantes e garfos para bolo. Havia leite em um bulezinho fino e açúcar em um açucareiro com pinças de prata. Tudo era tão delicado e refinado que a mesa parecia ter sido posta para um chá de bonecas. Cinco tipos de docinhos também estavam dispostos em um prato de porcelana decorado no mesmo padrão que as xícaras.

 

 

 

 

– Por favor, sentem-se – ela disse, apontando para o sofá com encosto floral. O apartamento era tomado por luz. A janela tripla mantinha lá fora o ruído do tráfego na rua; o único som era o tique-taque de um antigo relógio na parede. Patrik reconheceu o elaborado desenho em ouro e a forma do relógio. Sua avó tinha um igualzinho.

 

– Vocês bebem café? Senão, eu tenho chá – ela dirigiu-lhes um olhar ansioso. Queria tanto agradá-los que isso cortou o coração de Patrik. Ele teve a impressão de que ela não recebia muitas visitas.

 

– Adoraríamos um café – ele disse e sorriu. Enquanto ela os servia com cuidado, ele pensou que ela parecia tão pequena e delicada quanto as xícaras. Devia ter entre cinquenta e sessenta anos, ele supôs, mas era difícil dizer, porque ela tinha um ar de eterna tristeza. Como se o tempo tivesse parado. Estranho como ela parecia saber o que ele estava pensando.

 

– Faz quase três anos e meio que Rasmus morreu – ela disse. Olhou para as fotografias que estavam distribuídas em uma escrivaninha, a um dos lados da sala. Patrik olhou também e reconheceu o homem das fotos da pasta que Gradenius lhe dera. Mas as circunstâncias daquelas imagens guardavam pouca semelhança com os retratos naquela sala.

 

– Posso pegar um docinho? – Martin perguntou.

 

Eva Olsson assentiu, tirando os olhos das fotos de seu filho.

 

– Sim, por favor. Fique à vontade.

 

Martin pegou um doce e colocou-o no pratinho à sua frente. Olhou para Patrik, que respirou profundamente antes de falar.

 

– Como eu lhe disse ao telefone, estamos investigando novamente a morte de Rasmus.

 

– Sim, compreendo – disse Eva, cujos olhos mostravam uma centelha de interesse além da tristeza – O que me intriga é por que a polícia de... Tanumshede, é isso?... é que está investigando. Não deveria ser a polícia aqui de Borås?

 

– Sim, tecnicamente deveria. Mas a investigação aqui foi encerrada e nós achamos que pode haver uma conexão com um caso que temos em nosso distrito.

 

– Um caso diferente? – disse Eva, surpresa, parando com a xícara a meio caminho dos lábios.

 

– Sim. Eu não posso dar detalhes no momento – disse Patrik –, mas nos ajudaria muito se pudesse nos contar tudo o que aconteceu quando Rasmus morreu.

 

– Bem – ela começou a dizer, mas hesitou. Patrik percebeu que não importava quanto ela estivesse feliz por investigarem a morte de seu filho, ela se sentia aterrorizada por desenterrar antigas memórias. Ele deu-lhe tempo para organizar os pensamentos. Depois de alguns momentos, ela continuou, com um ligeiro tremor na voz.– Era dia 2 de outubro, três anos atrás, hoje quase três anos e meio. Rasmus... estava morando aqui comigo. Ele não conseguia arrumar um lugar para si. Então eu o deixei viver comigo. Ele ia para o trabalho todo dia, saía às oito horas. Tinha aquele emprego havia oito anos e se dava bem com todos. Eles eram muito bons para ele– ela sorriu à lembrança. – Ele sempre costumava vir para casa às três. Nunca se atrasava mais de dez minutos. Nunca. E então... – as palavras pararam em sua garganta, mas ela prosseguiu. – E então eram três e quinze, depois três e meia e finalmente quatro. A essa altura, eu já sabia que havia algo errado. Sabia que algo tinha acontecido. E liguei para a polícia na hora, mas eles não me deram atenção. Me disseram que ele provavelmente logo estaria em casa, que ele era um adulto e que não podiam colocar um aviso de pessoa desaparecida ainda, não com motivos tão escassos. De minha parte, eu não acho que há motivo mais forte que a intuição de uma mãe, mas quem sou eu para saber? – ela deu-lhe um sorriso abatido.

 

– Como... – Martin não conseguia encontrar a maneira correta de dizer – de quanta ajuda Rasmus necessitava diariamente?

 

– Você quer dizer “o quão retardado ele era”? – Eva disse prontamente e Martin concordou, relutante.

 

– A princípio, nenhuma. Rasmus tinha as melhores notas em quase todas as matérias e ajudava muito em casa também. Éramos só nós dois desde o começo – ela sorriu novamente, um sorriso tão cheio de amor e sofrimento que Patrik teve que desviar o olhar. – Foi só depois que se envolveu em um acidente de carro, quando tinha dezoito anos, que ele... mudou. Sofreu um trauma na cabeça e nunca mais foi o mesmo. Não podia cuidar de si mesmo, fazer planos para a vida ou mudar-se da casa da mãe, como a maioria dos rapazes na idade dele. Ele ficou aqui comigo. E nós construímos uma vida juntos. Uma vida boa; eu acho que tanto Rasmus quanto eu a víamos assim. Era o melhor que podíamos fazer dadas as circunstâncias, pelo menos. É claro que ele tinha seus momentos ruins, mas nós os enfrentávamos juntos.

 

– Esses momentos ruins foram a razão para a polícia não investigar a morte dele como assassinato, estou certo?

 

– Sim. Rasmus tentou se matar uma vez. Dois anos após o acidente. Quando ele finalmente se deu conta de quanto havia mudado e de que nada mais seria igual. Mas eu o encontrei a tempo. E ele me prometeu que jamais tentaria de novo. Eu sei que ele cumpriu sua promessa – ela olhou primeiro para Patrik e depois para Martin.

 

– O que aconteceu então? O que aconteceu no dia em que ele morreu? – Patrik perguntou com cautela. Pegou uma tortinha de avelãs e amêndoas. Seu estômago estava roncando, dizendo a ele que já passava da hora do almoço, mas ele poderia enganar a fome por algum tempo se comesse um pouco de açúcar.

 

– Eles tocaram a campainha. Pouco antes das oito. Eu soube assim que os vi – a sra. Olsson pegou seu guardanapo e com cuidado enxugou uma lágrima que descia por seu rosto. – Eles me disseram que haviam encontrado Rasmus. Que ele tinha pulado de uma ponte. Isso... isso... era tão absurdo. Ele jamais faria isso. E eles disseram que parecia que ele tinha bebido muito álcool antes disso. Mas isso não fazia sentido nenhum. Rasmus nunca tocou em álcool. Não o faria, depois do acidente. Não, estava tudo errado e eu disse isso para eles. Mas ninguém acreditou em mim – ela baixou os olhos e enxugou mais uma lágrima. – Eles encerraram o caso depois de um tempo, determinando a causa da morte como suicídio. Mas eu telefonava para o inspetor Gradenius de vez em quando, só para ele não esquecer. Eu acho de verdade que ele acreditava em mim. Pelo menos em parte. E agora vocês aparecem.

 

– Sim – disse Patrik, parecendo pensativo. – Agora a gente aparece.

 

Ele sabia muito bem como era difícil para os familiares aceitarem a ideia de suicídio. Como eles buscavam qualquer razão para explicar por que a pessoa que tanto amavam escolheria deixá-los voluntariamente e causar-lhes tanta dor. Não raro, eles sabiam, lá no fundo, que realmente fora suicídio. Mas nesse caso, Patrik estava inclinado a acreditar nas afirmações da mãe. O relato dela levantava tantas perguntas quanto os relatos sobre a morte de Marit, e sua intuição de que existia uma conexão se intensificou ainda mais.

 

– Você ainda tem as coisas dele em seu quarto? – ele disse impulsivamente.

 

– Sim, claro – disse Eva, levantando-se. Pareceu grata pela interrupção. – Deixei seu quarto intocado todo esse tempo. Pode parecer sentimental, mas é tudo o que eu tenho de Rasmus. Às vezes eu entro lá e me sento na beirada da cama e converso com ele. Conto como está meu dia, como está o tempo lá fora, o que está acontecendo no mundo. Sou uma velha louca, não? – ela disse com uma risada que iluminou seu rosto todo.

 

Patrik pôde ver que ela devia ter sido muito bonita quando jovem. Não linda, mas bonita. Passaram por uma foto no corredor que confirmou isso. Uma jovem Eva segurando um bebê nos braços. Seu rosto brilhava de felicidade, mesmo sabendo que seria difícil criar um bebê sozinha. Especialmente naquela época.

 

– Aqui está – disse Eva, mostrando a eles um cômodo no fim do corredor. O quarto de Rasmus era tão elegante e organizado quanto o restante do apartamento, mas tinha sua própria atmosfera. Era óbvio que ele mesmo o havia decorado.

 

– Ele gostava de animais – Eva disse com orgulho, sentando-se na cama.

 

– Sim, dá para ver – disse Patrik, rindo. Havia imagens de bichos em todos os lugares. Ele tinha travesseiros e uma colcha de animais e um grande tapete com motivo de tigre no chão.

 

– Seu sonho era trabalhar como tratador no zoológico. Todos os outros meninos queriam ser bombeiros e astronautas, mas Rasmus queria ser um tratador de zoológico. Achei que essa fase passaria, mas ele estava muito determinado. Pelo menos até... – a voz dela murchou. Ela pigarreou e passou a mão com cuidado sobre a colcha. – Depois do acidente, ele ainda manteve um interesse grande por animais. Foi... um milagre o deixarem trabalhar na pet shop. Ele amava seu trabalho e era bom no que fazia. Ele era responsável por alimentar os animais e limpar as jaulas e os aquários. E ele fazia um ótimo trabalho.

 

– Podemos dar uma olhada?

 

Eva levantou-se.

 

– Levem o tempo que quiserem, perguntem o que quiserem para poderem fazer o seu melhor e dar paz a mim e a Rasmus.

 

Ela saiu do quarto e Patrik trocou um olhar com Martin. Eles não precisavam dizer nada. Ambos sentiram a responsabilidade que pesava em seus ombros. Eles são queriam acabar com a esperança da mãe de Rasmus, mas era impossível prometer que a investigação levaria a algum lugar. Mesmo assim, eles tinham a intenção de fazer tudo o que estivesse ao seu alcance.

 

– Eu olho as gavetas e você pode verificar os armários – disse Patrik, puxando a primeira gaveta da escrivaninha.

 

– Certo – disse Martin, dirigindo-se à parede que continha armários brancos simples. – Há algo em particular que estamos procurando?

 

– Não faço ideia, para ser sincero – disse Patrik. – Qualquer coisa que possa nos dar uma pista de que tipo de conexão pode haver entre Rasmus e Marit.

 

– Ok – Martin suspirou. Já era difícil encontrar algo quando sabiam o que procurar; buscar algo desconhecido e indeterminável era uma tarefa virtualmente impossível.

 

Por uma hora, eles vasculharam tudo no quarto de Rasmus. Não encontraram nada que chamasse sua atenção. Absolutamente nada. Desanimados, voltaram até onde estava Eva, que limpava a cozinha. Ela veio ao encontro dos dois na porta.

 

– Obrigado por nos deixar olhar o quarto de Rasmus.

 

– De nada – ela disse, olhando para eles com uma expressão de esperança. – Encontraram algo? – o silêncio dos dois foi a resposta, e a esperança foi substituída por tristeza.

 

– Estávamos procurando uma conexão com uma vítima em nosso distrito. Uma mulher chamada Marit Kaspersen. Soa familiar? Talvez Rasmus a tenha conhecido em algum lugar.

 

Eva pensou, mas lentamente sacudiu a cabeça.

 

– Não, acho que não. Eu não reconheço o nome.

 

– A única conexão aparente que encontramos é que Marit também não bebia álcool, mas também tinha uma grande quantidade de álcool no sangue quando morreu. Rasmus não era membro de alguma sociedade de ajuda a alcoólicos, era? – perguntou Martin.

 

Novamente, Eva sacudiu a cabeça.

 

– Não, nada disso – ela hesitou por um momento e então disse. – Não, ele não pertencia a nenhum grupo desse tipo.

 

– Está bem – disse Patrik. – Obrigado por sua ajuda, nós manteremos contato. Tenho certeza de que teremos mais perguntas.

 

– Pode me ligar à noite se quiserem. Eu estou sempre aqui.

 

Patrik teve que resistir à vontade de caminhar alguns passos e dar um abraço forte naquela mulher de olhos castanhos tão tristes.

 

Quando eles estavam prestes a sair pela porta, ela os deteve.

 

– Esperem. Há mais uma coisa que pode ser do seu interesse – virou-se e foi ao seu quarto. Voltou depois de uns instantes. – Esta é a mochila de Rasmus. Ele sempre andava com ela. Ele estava com ela quando... – sua voz falhou. – Eu não consegui tirá-la da sacola em que veio quando voltei da polícia. Eva deu a Patrik a sacola transparente contendo a mochila.

 

– Leve-a com você. Pode ter algo interessante.

 

Quando a porta se fechou atrás deles, Patrik ficou com a sacola nas mãos. Olhou para a mochila. Ele a reconheceu das fotos tiradas na cena do suposto suicídio de Rasmus. O que não era visível nas fotos, que foram tiradas à noite, era que estava coberta de manchas escuras. Patrik viu que era sangue seco. O sangue de Rasmus.

 

Ela folheava impacientemente o diário enquanto falava ao telefone.

 

– Sim, eu o tenho aqui.

 

– Mas quanto está disposto a pagar?

 

– Só isso? – ela fez uma careta de decepção.

 

– Mas é coisa boa. Você poderia fazer uma série inteira.

 

– Não, então vou ligar para Hänt.

 

– Está bem, dez mil servem. Posso mandar entregar amanhã. Mas o dinheiro tem que estar na minha conta até lá, senão eu desfaço o negócio.

 

Satisfeita, Tina fechou o celular. Saiu do centro comunitário e sentou-se em uma pedra para ler. Ela nunca chegou a conhecer Barbie. Nem quis, para falar a verdade. Mas era estranho entrar na cabeça dela depois do ocorrido. Ela virava as páginas do diário dela, lendo vorazmente. Já podia imaginar como alguns trechos ficariam nos jornais sensacionalistas, com as melhores partes sublinhadas. O que mais a desalentava sobre o diário é que Barbie não era estúpida como Tina imaginara. Seus pensamentos e suas observações eram bem formulados e ocasionalmente até bem espirituosos. Mas Tina franziu a testa quando chegou à parte que a fez decidir vender a coisa aos jornais sensacionalistas. Ela ia arrancar essa página antes, claro. Dizia:

 

Ouvi hoje quando Tina apresentou sua música. Ela vai cantar à noite no centro comunitário. Pobre Tina. Não faz ideia de como é terrível. Me pergunto como é isso; como algo que soa tão ruim do lado de fora pode soar tão bem do lado de dentro da pessoa que está cantando? Porque é nisso que se baseia todo o conceito do Idol, então não devia ser tão complicado. Claramente foi a mãe que colocou essa ideia na cabeça dela, de que ela poderia ser cantora. A mãe de Tina deve ser surda. É a única explicação em que consigo pensar. Mas com que cara vou dizer isso para Tina? Então eu finjo, mesmo sabendo que basicamente eu estou lhe fazendo um desserviço. Eu converso com ela sobre sua carreira na música, todo o sucesso que ela vai fazer, todos os shows, todas as turnês. Mas me sinto muito mal, porque estou mentindo para ela. Pobre Tina.

 

Com raiva, Tina arrancou aquela página e rasgou em pedacinhos. Aquela puta! Se antes ela guardava alguma pena pela morte de Barbie, certamente não sentia mais. Aquela vagabunda teve o que mereceu! Ela não sabia do que estava falando. Tina enterrou os pedaços de papel com seu salto.

 

E então ela chegou a uma parte que a surpreendeu. Em uma das páginas, que fora escrita logo que eles chegaram a Tanumshede, Barbie havia escrito:

 

Há algo familiar nele. Eu não sei o que é. Parece que meu cérebro funciona em capacidade máxima tentando encontrar algo que está enterrado ali. Mas eu não sei o que poderia ser. Algo na forma como ele se movimenta. Algo no modo como ele anda. Sei que já o vi, mas não sei onde. Tudo que sei é que sinto um desconforto que só piora. É como se algo se revirasse no meu estômago e eu não conseguisse impedir. Não até agora. Penso tanto em papai ultimamente. Não sei por quê. Achei que tivesse bloqueado essas lembranças há muito tempo. Simplesmente dói demais lembrar. Dói demais ver seu sorriso, ouvir aquela voz forte e sentir seus dedos na minha testa quando ele penteava meus cabelos para trás para me dar um beijo de boa-noite. Todas as noites. Sempre um beijo na testa e um na ponta do meu nariz. Eu me lembro disso agora. Pela primeira vez em anos, eu consigo me lembrar. E eu vejo a mim mesma, meio que de fora. Vejo o que fiz comigo mesma, o que deixei os outros fazerem comigo. Posso ver os olhos de papai sobre mim agora. Vejo sua confusão, sua decepção. A Lillemor dele está tão longe agora. Está escondida atrás de toda essa angústia e água oxigenada e terror e silicone. Eu vesti uma fantasia de baile de máscaras em que eu pudesse me esconder. Assim os olhos de papai não conseguiriam me encontrar, não poderiam olhar para mim. Dói demais lembrar da forma como ele me encarava. O jeito como éramos só eu e ele por tantos anos. Como era seguro e caloroso. A única forma de sobreviver ao frio que veio depois era esquecer o calor. Mas agora eu o sinto novamente. Eu me lembro. Eu sinto. E algo me chama. Papai está tentando me dizer algo. Se pelo menos eu soubesse o quê. Mas tem algo a ver com ele. Disso eu já sei.

 

Tina leu aquele trecho várias vezes. De que diabos Barbie estava falando? Ela havia reconhecido alguém aqui em Tanumshede? A curiosidade de Tina estava definitivamente aguçada. Prendeu seus longos cabelos escuros em um rabo, que deixou cair sobre um dos ombros. Com o diário no colo, ela acendeu um cigarro e deu duas prazerosas tragadas antes de continuar a leitura. Exceto pela parte que acabara de ler, não encontrou mais nada de interessante. Algumas impressões do que Barbie achava dos outros participantes, alguns pensamentos sobre o futuro, o mesmo tédio que todos estavam começando a sentir com a vida aqui. Por um instante, Tina pensou que a polícia poderia estar interessada no diário. Mas então viu os pedacinhos da página que arrancou e rejeitou a ideia. Ela ia adorar ver os pensamentos íntimos de Barbie em letras garrafais nos jornais. Bem feito para ela, aquela vaca mentirosa e hipócrita.

 

Pelo canto do olho, viu Uffe caminhar em sua direção. Sem dúvida, queria filar um cigarro. Ela apressou-se em esconder o diário dentro da jaqueta e assumir uma postura inocente. Era sua descoberta, e ela não tinha a menor intenção de compartilhá-la.

 

O desejo pelo mundo lá fora só fez crescer. Às vezes, ela os deixava correr na grama, mas apenas por pouco tempo. E sempre com um olhar ansioso que o fazia ficar procurando os monstros que ela dizia estarem escondidos lá fora, os monstros contra quem só ela poderia protegê-los.

 

No entanto, apesar do terror, era maravilhoso. Poder sentir os raios de sol aquecendo seu corpo e a maneira como a grama fazia cócegas nas solas de seus pés. Eles enlouqueciam, ele e a irmã, e às vezes nem ela conseguia evitar sorrir com o modo que corriam. Uma vez ela brincara de pega-pega com eles e rolara com eles na grama. Naquele momento, ele sentira felicidade pura e genuína. Mas o som de um carro a distância a faz levantar-se e, com medo nos olhos, gritar para que corressem para dentro. Eles tiveram que correr tão depressa! E perseguidos pelo terror sem nome, eles correram para a porta e para cima, para seu quarto. Ela correu atrás deles e trancou todas as portas da casa. Então eles se encolheram no quarto, abraçados, trêmulos, amontoados no chão. Ela prometia para eles repetidamente que ninguém os levaria embora. Ninguém poderia machucá-los de novo.

 

Ele acreditara nela. Era grato por ela os proteger, como um último sentinela contra todos aqueles que queriam feri-los. Porém, ao mesmo tempo, ele não conseguia evitar o desejo de voltar lá para fora. Para o brilho do sol. Para a grama sob os pés. Para a liberdade.

 

Gösta olhou furtivamente para Hanna enquanto se dirigiam para o edifício de Kerstin. Ele descobriu que em pouquíssimo tempo ele já estava encantando com Hanna Kruse. Não daquele jeito sujo de velhote, era mais um sentimento paternal. Ela também o fazia se lembrar bastante de sua falecida esposa quando jovem. Também era loira, de olhos azuis e, assim como Hanna, pequena, porém forte. Mesmo assim, era óbvio que conversar com parentes não era uma das tarefas preferidas de Hanna. Pelo canto do olho, ele pôde ver como ela comprimia a mandíbula e teve que refrear a vontade de colocar a mão em seu ombro para transmitir-lhe segurança. Algo lhe dizia que ela não ia gostar. Ele estava arriscado a receber um soco de direita.

 

Eles haviam telefonado antes para avisar a Kerstin que estavam a caminho e, quando ela abriu a porta, Gösta viu que ela havia tomado um banho rápido antes que chegassem. Seu rosto não tinha maquiagem nenhuma e mostrava a mesma resignação que ele já tinha visto tantas vezes antes. Era uma expressão que aparecia no rosto dos entes queridos quando o pior do choque já passara, tornando o luto mais nu e agudo. Só agora é que o caráter definitivo do que ocorrera se instalava em seu cérebro.

 

– Entrem – disse Kerstin, e ele notou que sua pele tinha a palidez esverdeada de quem não saía ao sol havia muito tempo.

 

Ainda assim Hanna parecia resoluta quando se sentaram à mesa da cozinha. O apartamento estava limpo, mas tinha de cheiro de lugar fechado, o que confirmava a impressão de Gösta de que Kerstin aparentemente não havia deixado o apartamento desde que Marit morrera. Perguntou-se como ela obtinha comida, se ela tinha alguém que fizesse compras. Como se respondesse à sua pergunta, ela abriu a geladeira e pegou leite para o café e uma olhadela mostrou que estava bem abastecida. Ela também serviu roscas que pareciam ter vindo da padaria, então alguém aparentemente a estava ajudando com as compras.

 

– Sabemos de mais alguma coisa? – ela perguntou, cansada, quando se sentou. Mas parecia estar fazendo a pergunta simplesmente porque era um dever, não porque se importasse. Aquele era outro efeito de enfrentar a dura realidade. Ela havia caído em si de que Marit se fora para sempre. Essa noção poderia encobrir por um tempo o desejo por respostas, por uma explicação. Apesar de variar bastante, como Gösta havia aprendido nos seus quase quarenta anos nesse trabalho. Para alguns dos entes queridos, a busca por uma explicação era mais importante que qualquer coisa, mas, na maioria dos casos, era mais um meio de postergar o reconhecimento e a aceitação dos fatos. Mas ele já vira parentes que viveram em contradição por muitos anos, às vezes até sua própria jornada rumo ao túmulo. Kerstin não era um desses. Ela havia encarado a morte de Marit, e esse encontro pareceu ter sugado toda a sua energia. Serviu o café como em câmera lenta.

 

– Perdão, alguém prefere chá? – ela perguntou confusa.

 

Gösta e Hanna balançaram a cabeça. Ficaram quietos por um minuto antes de Gösta finalmente responder a pergunta feita por Kerstin.

 

– Sim, temos novas pistas que estamos investigando – ele parou, incerto do que dizer a ela. Hanna assumiu.

 

– Encontramos informações que apontam para uma conexão com outro assassinato. Em Borås.

 

– Borås? – Kerstin ecoou, e, pela primeira vez desde que chegaram, viram uma centelha de interesse em seus olhos. – Mas... Eu não entendo. Borås?

 

– Sim, nós também ficamos surpresos – disse Gösta, pegando uma rosca. – E é por isso que estamos aqui. Para ver se há alguma conexão entre Marit e a vítima de Borås.

 

– O que... quem? – os olhos de Kerstin moviam-se. Ela colocou os cabelos atrás da orelha direita.

 

– Era um homem na casa dos trinta anos. Rasmus Olsson era seu nome. Morreu há três anos e meio.

 

– Mas eles nunca solucionaram o caso?

 

Gösta olhou para Hanna.

 

– Não. A polícia de lá concluiu que foi suicídio. Havia vários indícios de que... – ele atirou as mãos para cima.

 

– Mas Marit nunca morou em Borås. Pelo menos não que eu saiba. Se bem que vocês talvez queiram verificar isso com Ola.

 

– Claro que iremos ter uma conversa com Ola também – disse Hanna.

 

– Mas não há uma possível conexão que você saiba? Uma das similaridades em ambas as mortes é que... – ela hesitou – na hora da morte, eles haviam sido forçados a ingerir uma enorme quantidade de álcool, apesar de jamais terem bebido. Marit não era membro de nenhum grupo de apoio a alcoólicos, era? Ou membro de alguma congregação religiosa?

 

Kerstin riu e seu sorriso deu-lhe um pouco de cor.

 

– Marit? Religiosa? Não, eu saberia se ela fosse. Nós sempre íamos à missa no dia de Natal, mas foram provavelmente as únicas vezes que ela pôs os pés em uma igreja em Fjällbacka. Ela era como eu. De maneira alguma ativamente religiosa, ainda que mantivesse algo de sua fé da época da infância, uma convicção de que havia algo maior. Eu espero que sim, pelo menos, agora mais do que nunca – ela acrescentou baixinho.

 

Nem Hanna nem Gösta disse uma palavra. Hanna olhou para a mesa e Gösta achou ter visto seus olhos marejarem. Ele compreendia. Se bem que fazia anos que ele não chorava na presença de alguém em luto. Mas eles estavam ali para trabalhar, então ele continuou, cauteloso:

 

– E o nome Rasmus Olsson não parece familiar?

 

Kerstin sacudiu a cabeça e aqueceu as mãos na xícara de café.

 

– Não, nunca ouvi esse nome antes.

 

– Então nós não vamos nos aprofundar por ora. Claro que também vamos falar com Ola. E, se você se lembrar de qualquer coisa, ligue para nós, por favor – Gösta se levantou e Hanna o seguiu. Parecia aliviada.

 

– Eu manterei contato, de qualquer forma – disse Kerstin, permanecendo sentada.

 

À porta, Gösta não resistiu, virou-se e disse a ela:

 

– Vá lá fora e dê um passeio, Kerstin. O tempo está tão bom. E você precisa de um pouco de ar fresco.

 

– Agora você parece Sofie – disse Kerstin, sorrindo novamente. – Mas eu sei que está certo. Talvez eu dê um passeio esta tarde.

 

– Que bom – disse Gösta e fechou a porta. Hanna não olhou para ele. Ela já estava a caminho da delegacia.

 

Patrik colocou cuidadosamente sobre a mesa a sacola plástica contendo a mochila. Não sabia se era necessário, já que a polícia de Borås havia examinado a mochila três anos e meio atrás, mas por segurança calçou luvas de borracha e não só por razões técnicas. Ele não gostava da ideia de tocar o sangue seco no objeto.

 

– Que vida solitária. Trágica pra caramba – disse Martin, que estava ao lado dele observando.

 

– Sim, parece que o filho era a única pessoa que ela tinha na vida – disse Patrik com um suspiro, enquanto abria a mochila.

 

– Não deve ter sido fácil. Ter um filho e criá-lo sozinha. E depois o acidente... – Martin fez uma pausa. – E depois o assassinato.

 

– E depois ninguém acreditar nela – Patrik acrescentou, enquanto pegava um objeto da mochila. Era um Freestyle, e Patrik imaginou que a marca dizia mais sobre a falta de interesse de Rasmus em tecnologia do que gostaria. Esses tocadores de música não se chamavam mais assim, ele sabia, mas não saberia que nome tinham hoje. Um tipo de radinho de pilha com fones de ouvido. Se bem que ele duvidava que ainda funcionasse. Parecia ter tomado um belo golpe na queda da ponte e quase desmontou de maneira preocupante quando Patrik o pegou.

 

– De que altura ele caiu? – perguntou Martin, puxando uma cadeira e sentando-se ao lado da mesa de Patrik.

 

– Dez metros – disse Patrik, ainda concentrado em esvaziar a mochila.

 

– Nossa! – disse Martin, fazendo uma careta. – Não deve ter sido uma bela vista.

 

– Não – disse Patrik. As fotos da cena vieram à sua mente. Ele mudou de assunto.

 

– Fico um pouco preocupado sobre como dividir nossos recursos, agora que temos que trabalhar em duas investigações ao mesmo tempo.

 

– Eu sei – disse Martin. – E acho que sei no que está pensando. Que cometemos um erro ao deixar a mídia nos forçar a uma situação em que deixamos de lado a investigação da morte de Marit. Mas o que passou passou e não podemos mudar nada agora. Exceto distribuir de maneira mais sábia as tarefas entre nossa equipe.

 

– Sim, sei que está certo – disse Patrik, pegando uma carteira, que colocou sobre a mesa. – Mas ainda é difícil para mim esquecer todas as coisas que devíamos ter feito de forma diferente. E eu não tenho a menor ideia de como proceder com a investigação da morte de Lillemor Persson.

 

Martin pensou por um instante.

 

– Tudo que temos agora, da forma como eu vejo, são os pelos de cachorro e os vídeos que pegamos com a produção.

 

Patrik abriu a carteira e começou a examiná-la.

 

– É, foi o que eu pensei. Os pelos de cachorro são uma pista muito interessante e temos que continuar buscando. De acordo com Pedersen, é uma raça incomum; talvez haja uma lista de criadores, clubes, algo que possamos usar para rastrear o dono. Digo, com apenas duzentos cães dessa raça na Suécia, deve ser relativamente fácil encontrar um dono nessa área.

 

– Parece razoável – disse Martin. – Quer que eu faça isso?

 

– Não, eu estava pensando que Mellberg deveria fazê-lo. Assim o serviço será feito corretamente.

 

Martin lançou-lhe um olhar perverso e Patrik riu.

 

– Estou brincando! É claro que eu quero que você faça!

 

– Hahaha, muito engraçado – Martin ficou sério e se inclinou sobre a mesa. – O que conseguiu aí?

 

– Nada particularmente excitante. Duas notas de vinte, uma de dez, um cartão de identificação e um pedaço de papel com o endereço de casa e os telefones de sua mãe, tanto o residencial quanto o celular.

 

– Só isso?

 

– Não, aqui está uma foto dele e Eva – ele a segurou para Martin ver. Um Rasmus jovem com o braço em torno dos ombros da mãe, ambos sorriam para a câmera. Rasmus se impunha sobre a mãe e havia algo de protetor em sua postura. Deve ter sido tirada antes do acidente. Depois daquilo, seus papéis se inverteram. Patrik pôs a foto de volta na carteira, com cuidado.

 

– Há tanta gente sozinha – disse Martin, olhando para o nada.

 

– É, com certeza. Está pensando em alguém em particular?

 

– Bem... Eu estava pensando em Eva Olsson. Mas também em Lillemor. Imagine não ter ninguém para chorar sua morte. Ambos os pais mortos. Nenhum outro parente. Ninguém para notificar. A única coisa que ela deixa são umas duzentas horas de reality shows gravados, que vão acumular pó em algum arquivo.

 

– Se ela morasse mais perto, eu teria ido ao seu funeral – Patrik disse baixinho. – Ninguém merece ser sepultado sem ter alguém para lamentar sua morte. Mas ouvi dizer que o enterro será em Eskilstuna, então eu não vou conseguir comparecer.

 

Ficaram em silêncio por um momento. Podiam visualizar um caixão sendo baixado ao túmulo, sem família e amigos presentes. Tão triste.

 

– Um bloco de notas! – Patrik exclamou de repente, quebrando o silêncio. Era um livro preto, grosso, com extremidades douradas. Parecia que Rasmus cuidava muito bem dele.

 

– O que há nele? – disse Martin.

 

Patrik folheou algumas das páginas, que estavam completamente preenchidas.

 

– Acho que são lembretes sobre os animais na pet shop. Olhe aqui: “Hércules, ração três vezes por dia, dar água fresca com frequência, limpar gaiola todos os dias. Gudrun, um rato por semana, limpar terrário uma vez por semana”.

 

– Parece que Hércules é um coelho ou porquinho-da-índia ou algo assim e eu chutaria que Gudrun é uma cobra – Martin sorriu.

 

– Sim, ele era realmente meticuloso, aquele Rasmus. Como a mãe disse – Patrik passou os olhos por todas as páginas no bloco. Todas pareciam ter anotações sobre os animais. Não havia nada que chamasse sua atenção.

 

– Parece que isso é tudo.

 

Martin suspirou.

 

– Bem, eu não esperava que fôssemos encontrar algo de fazer tremer a terra. Mas não custava ter esperança.

 

Patrik estava devolvendo o bloco de notas ao fundo da mochila, quando um som chamou sua atenção.

 

– Espere, tem algo aqui.

 

Ele pegou o bloco novamente, colocou sobre a mesa e enfiou a mão no fundo da mochila. Quando retirou o que estava bem lá no fundo, ele e Martin trocaram um olhar incrédulo. Não era algo que esperavam encontrar. Mas provou que indubitavelmente havia uma conexão entre a morte de Rasmus e a de Marit.

 

Ola não parecia particularmente feliz quando Gösta ligou para seu celular. Ele estava no trabalho e preferia que eles esperassem para entrevistá-lo. Gösta, irritado com a atitude arrogante de Ola, não estava com humor generoso; ele marcou um encontro com Ola para dali meia hora. Ola resmungou algo sobre “o poder da autoridade” em seu melódico sotaque norueguês/sueco, mas nem pensou em protestar.

 

Hanna ainda parecia estar de mau humor, e Gösta se perguntou por que enquanto entravam no carro e iam para Fjällbacka. Tinha a sensação de que poderiam ser problemas domésticos, mas ele não a conhecia bem o bastante para perguntar. Só torcia para não ser nada sério. Ela não parecia nem um pouco interessada em papo furado, então ele a deixou em paz. Assim que passaram pelo campo de golfe em Anrås, ela olhou pela janela e perguntou:

 

– Esse campo de golfe é bom?

 

Gösta estava mais do que disposto a aceitar essa trégua.

 

– É maravilhoso! O sétimo buraco em particular é bem desafiador. Eu até já fiz um hole-in-one uma vez aqui. Mas não no sétimo buraco.

 

– Bem, eu aprendi o suficiente sobre golfe para saber que um hole-in-one é bom – disse Hanna, dando o primeiro sorriso do dia. – Eles abriram um champanhe no clube? Não é esse o costume?

 

– Pode apostar! – disse Gösta, seu rosto se iluminou com a lembrança. – Eles me ofereceram champanhe e no geral foi uma grande rodada de golfe. Minha melhor até hoje, na verdade.

 

Hanna riu.

 

– Não deve ser exagero dizer que você foi picado pelo mosquito do golfe.

 

Gösta olhou para ela com um sorriso, mas teve que voltar os olhos para a estrada quando entraram em uma faixa estreita logo após Mörhult.

 

– Bem, eu não tenho muito mais o que fazer – ele disse e seu sorriso morreu.

 

– Você é viúvo, pelo que sei – Hanna disse, gentilmente. – Não tem filhos?

 

– Não – ele não continuou. Não queria falar sobre o garoto, que agora seria um adulto se tivesse sobrevivido.

 

Hanna não perguntou mais nada, e eles permaneceram em silêncio até chegar ao destino. Quando saíram do carro, viram muitos olhos curiosos voltarem-se para eles. Um Ola irritado veio ao encontro dos dois assim que passaram pelas portas.

 

– Bem, eu realmente espero que isso seja importante para me perturbarem no meu trabalho. Todos vão falar nisso por semanas.

 

Gösta entendeu o que ele queria dizer e, na verdade, eles poderiam ter esperado mais uma hora. Mas havia algo em Ola que não agradava Gösta. Sua reação poderia até não ser digna ou profissional, mas era como ele se sentia.

 

– Vamos para o meu escritório – disse Ola. Gösta tinha ouvido Patrik e Martin descreverem a casa extremamente organizada de Ola, então não ficou surpreso quando viu o escritório. Hanna, por outro lado, conhecia tal informação, então ergueu uma sobrancelha. A mesa era clinicamente limpa. Nem uma caneta, nem um clipe de papel maculavam sua superfície brilhante. A única coisa sobre a mesa era um mata-borrão verde colocado exatamente no meio da mesa. Em uma das paredes, havia uma estante lotada de pastas de correspondência. Dispostas perfeitamente em fileiras retas, com etiquetas em caligrafia perfeita. Não havia nada fora do lugar.

 

– Sentem-se – disse Ola, apontando as cadeiras para visitantes. Ele sentou-se atrás de sua mesa e debruçou-se no tampo. Gösta não conseguiu evitar de pensar se ele iria ficar com manchas brilhantes nos cotovelos do paletó, por conta das grandes quantidades de lustra-móveis que já deviam ter sido aplicadas para deixar a mesa tão brilhante. Ele provavelmente conseguia ver o próprio rosto nela.

 

– Então, do que se trata?

 

– Estamos investigando uma possível conexão entre a morte de sua ex-esposa e outro assassinato.

 

– Outro assassinato? – disse Ola, parecendo por um instante deixar cair sua máscara de autocontrole. Um segundo depois, ela estava de volta no lugar.

 

– Que assassinato? Daquela loira burra?

 

– Você quer dizer Lillemor Persson? – disse Hanna. Sua expressão demonstrava claramente o que ela achava de Ola falar de forma tão depreciativa sobre a garota assassinada.

 

– Sim, certo – Ola fez um gesto de desdém, mostrando com igual clareza que não se importava o mínimo com a opinião de Hanna sobre o modo como se expressava.

 

Gösta sentiu que gostaria muito de provocar o cara. Tinha uma vontade enorme de pegar as chaves de seu carro e fazer um arranhão de lado a lado naquela mesa brilhante. Qualquer coisa para desequilibrar Ola e corromper sua perfeição repulsiva.

 

– Não, nós não estamos falando do assassinato de Lillemor Persson – o tom de Gösta era frio. – Estamos falando de um assassinato em Borås. O nome da vítima era Rasmus Olsson. Sabe quem é?

 

Ola pareceu genuinamente chocado. Mas isso não significava nada. Gösta já se deparara com inúmeros bons atores ao longo de sua carreira. Alguns eram bons o suficiente para trabalhar no Royal Dramatic Theatre.

 

– Borås? Rasmus Olsson? – suas palavras soavam como um eco da conversa que tiveram com Kerstin uma hora antes. – Não, não reconheço esse nome. Marit nunca morou em Borås. E ela não conhecia nenhum Rasmus Olsson. Pelo menos não enquanto estivemos juntos. Depois disso, eu não tenho ideia do que ela fez. Tudo é possível, considerando a profundidade do poço em que ela se enfiou – sua voz transbordava desprezo.

 

Gösta meteu a mão no bolso e tocou as chaves do carro. Seus dedos coçavam para desfigurar aquela mesa.

 

– Então você não sabe de nenhuma conexão entre Marit e Borås ou a pessoa que mencionamos? – Hanna repetiu a pergunta de Gösta e Ola olhou para ela.

 

– Não estou sendo claro? Em vez de me forçar a repetir tudo, talvez vocês devessem estar tomando notas.

 

Gösta apertou as chaves. Mas Hanna não pareceu abalada pelo tom sarcástico de Ola. Ela prosseguiu, calmamente:

 

– Rasmus também era abstêmio. Poderia ser essa a conexão? Algum tipo de grupo de ajuda a alcoólicos ou coisa assim?

 

– Não. Não há conexão e eu não entendo por que estão fazendo tanto alarde do fato de Marit não beber. Ela só não se interessava – ele levantou-se. – Se não têm mais nenhuma pergunta relevante, vou voltar ao trabalho. Da próxima vez, prefiro que me visitem em minha casa.

 

Na falta de mais perguntas e sinceramente querendo sair daquele escritório e de perto de Ola, Gösta e Hanna levantaram-se. Nem se incomodaram em cumprimentá-lo ou dizer adeus. Tamanhos gracejos pareciam perda de tempo.

 

O encontro com Ola não rendeu nenhuma informação nova. E ainda assim, havia algo que incomodava Gösta enquanto ele e Hanna se dirigiam de volta a Tanumshede. Havia algo na reação de Ola, algo dito ou velado, que continuava atazando-o. Mas não conseguia definir o que era.

 

Hanna também estava em silêncio. Olhava para a paisagem e parecia envolvida em seu próprio mundo. Gösta pensou em dar-lhe a mão e dizer algo consolador. Mas deixou estar. Nem sabia se havia algo pelo que consolá-la.

 

Com o pai no trabalho, era gostoso e calmo estar no apartamento. Sofie preferia ficar em casa sozinha. Seu pai estava sempre pegando no seu pé sobre a lição de casa, perguntando onde ela esteve, para onde ia, com quem falava ao telefone, por quanto tempo. Chato, chato, chato. E além disso, ela tinha que verificar a toda hora se tudo estava perfeitamente em ordem. Nada de marcas de copo na mesa de centro, nada de louça suja na pia; seus sapatos tinham que estar em linhas retas na sapateira, não podia haver fios de cabelo na banheira depois de ela sair do banho. A lista não tinha fim. Ela sabia que essa fora uma das razões para Marit ter decidido ir embora; Sofie ouvia as discussões e, quando tinha dez anos, já conhecia cada nuance das brigas. Mas sua mãe agarrara a oportunidade de ir embora. E enquanto Marit era viva, Sofie tinha aproveitado a chance de ter um espaço para respirar a cada duas semanas, longe da perfeição absoluta exigida por seu pai. Com Kerstin e Marit, ela podia colocar os pés na mesinha de centro, guardar a mostarda na prateleira da geladeira em vez de na porta e deixar as franjas do tapete rya em uma bagunça controlada, em vez de deixá-las linhas retas e penteadas. Era maravilhoso e isso também a tornava apta a suportar a semana seguinte, de rigorosa disciplina. Mas agora não havia mais liberdade, não havia mais escapatória. Ela estava presa ali, entre todas as coisas brilhantes e limpas, onde ela sempre estava sendo interrogada e questionada. O único momento em que podia respirar era quando voltava mais cedo da escola. Era quando ela se permitia pregar pequenas peças rebeldes. Como se sentar no sofá branco com seu chocolate quente, tocando música pop no CD player de Ola e bagunçando as almofadas do sofá. Mas ela colocava tudo de volta no lugar antes que ele chegasse em casa. Nem um traço de desordem evidente quando Ola entrava pela porta. Sua única preocupação era que um dia ele voltasse cedo do trabalho e a pegasse no flagra. Mas isso era altamente improvável. Seu pai teria de estar à beira da morte para sequer pensar em sair do trabalho um minuto antes. Como gerente da empresa, ele sentia a necessidade de dar o exemplo e tinha tolerância zero para atrasos, licença para doença ou ir para casa mais cedo – tanto para ele quanto para seus subordinados.

 

Era Marit quem representava o carinho. Sofie via isso claramente agora. Ola representava tudo o que era óbvio, limpo e frio, enquanto Marit era a segurança, o carinho e uma pitada de caos e alegria. Sofie sempre se perguntara o que eles tinham visto um no outro. Como duas pessoas tão diferentes se encontraram, se apaixonaram, se casaram e tiveram uma filha? Para Sofie, isso era um mistério desde que ela conseguia se lembrar.

 

De repente, algo ocorreu a ela. Ainda faltava uma hora para seu pai chegar do trabalho. Foi até o quarto de Ola, que antes pertencia à sua mãe. Sabia onde tudo estava guardado. No armário no canto oposto. Uma grande caixa com todas as coisas que Ola chamava de “Bobagem sentimental de Marit”, mas da qual ainda não tinha se livrado. Sofie se surpreendeu que sua mãe não tivesse levado a caixa com ela quando se fora, mas talvez quisesse deixar tudo para trás quando começou uma nova vida. Tudo que ela queria levar consigo era Sofie. Isso bastava.

 

Sofie sentou-se no chão e abriu a caixa. Estava cheia de fotografias, notícias de jornal, um cacho dos cabelos de Sofie de quando era bebê e as pulseiras de plástico que haviam sido colocadas nela e em Marit na maternidade, para mostrar que uma pertencia à outra. Sofie pegou uma caixinha que fazia barulho e, quando abriu, ficou com nojo ao ver dois dentinhos dentro. Só podiam ser dela. Mas isso não os tornava menos nojentos.

 

Ela passou meia hora olhando lentamente o conteúdo da caixa. Depois de examinar todos os objetos, ela os separou em pilhas no chão. Foi um choque ver que as fotos de Marit adolescente mostravam uma garota idêntica a ela. Ela nunca achara as duas muito parecidas. Mas isso a deixou feliz. Ela olhou com atenção para a foto do casamento de Marit e Ola, em uma tentativa de antever todos os problemas que se seguiriam. Ali eles já sabiam que seu casamento jamais iria durar? Ela podia quase sentir que sim. Ola parecia severo, mas satisfeito. Marit tinha uma expressão quase de indiferença; parecia ter bloqueado qualquer emoção. Ela definitivamente não parecia uma noiva feliz e radiante.

 

Os recortes de jornal estavam ficando amarelados e farfalharam quando ela os tocou. Lá estava o anúncio do casamento, do nascimento de Sofie, instruções de como tricotar meias para bebê, receitas para jantares festivos, artigos sobre doenças infantis. Sofie sentiu como se estivesse segurando a vida de sua mãe nas mãos. Quase podia sentir Marit sentada ao seu lado e rindo dos artigos que havia guardado, sobre como limpar um forno e como preparar o pernil de Natal perfeito. Sentiu Marit pôr a mão em seu ombro e sorrir quando Sofie pegou uma foto de sua mãe na maternidade, segurando um pacotinho vermelho e enrugado. Marit estava tão feliz naquela foto. Sofie pôs a mão no próprio ombro, imaginando que ela estivesse sobre a mão de sua mãe. Sentia o calor se espalhar da mão de Marit para a sua. Mas a realidade estava de volta. Ela experimentou apenas a lã de sua blusa sob a mão, que estava fria como gelo. Ola sempre deixava o aquecimento da casa em nível baixo para economizar na conta de eletricidade.

 

Quando ela chegou ao artigo que estava no fundo da caixa, de início pensou que teria sido colocado lá por engano. Ela não conseguia entender o sentido do título e virou o artigo para ver o que havia na parte de trás que pudesse ter feito Marit arrancá-lo do jornal. Mas era apenas um anúncio de detergente para roupas. Ansiosa, começou a ler o artigo e depois de apenas uma frase sentiu seu corpo endurecer. Com olhos incrédulos, ela continuou lendo até ter engolido cada sentença, cada letra de cada palavra. Isso não podia estar certo. Simplesmente não podia.

 

Sofie cuidadosamente devolveu tudo na caixa e a colocou em seu lugar dentro do armário. Em sua mente, os pensamentos giravam desordenadamente.

 

– Annika, pode me ajudar com uma coisa? – Patrik largou-se em uma cadeira no escritório de Annika.

 

– Claro, sem problemas – ela disse, olhando para ele preocupada. – Você está péssimo.

 

Patrik não tinha alternativa exceto rir.

 

– Obrigado, agora eu me sinto muito melhor.

 

Annika não se incomodou com seu tom sarcástico, mas continuou repreendendo-o.

 

– Vá para casa, coma, descanse. O ritmo em que vem trabalhando é desumano.

 

– Sim, obrigado, eu sei – Patrik disse, com um suspiro. – Mas que diabos vou fazer? Duas investigações de assassinato ao mesmo tempo, a mídia nos atacando como se fosse uma alcateia e agora uma delas aponta para uma conexão bem longe da divisa do condado. É para isso que eu quero sua ajuda, na verdade. Poderia entrar em contato com os demais distritos de polícia do país e fazer uma pesquisa sobre todos os casos não resolvidos ou investigações de acidentes fatais ou suicídios com essas características?

 

Ele entregou a Annika uma lista com alguns pontos que ele reunira. Ela os leu com cuidado, ficou sobressaltada com o último e olhou para ele.

 

– Você acha que tem mais casos?

 

– Eu não sei – disse Patrik, fechando os olhos por um momento, enquanto massageava o dorso do nariz. – Mas talvez encontremos a ligação entre a morte de Marit Kaspersen e o caso em Borås, e eu só quero ter certeza de que não há casos similares.

 

– E você está pensando em um criminoso em série? – disse Annika, obviamente um tanto relutante à simples menção da ideia.

 

– Não, na verdade não. Não por ora, pelo menos. Mas podemos ter perdido alguma conexão óbvia entre as duas vítimas. Apesar de a definição de criminoso em série ser duas ou mais vítimas em seguida, acredito que tecnicamente seja isso que estamos procurando – sorriu para ela, sardônico. – Mas não diga isso para a imprensa. Pode imaginar o bafafá que isso causaria. Pense nas manchetes: “Serial killer ataca Tanumshede” – ele riu, mas Annika não viu graça naquilo.

 

– Eu vou mandar um pedido de busca. Mas vá para casa agora. Nesse exato minuto.

 

– São só quatro da tarde – Patrik protestou, apesar de não querer outra coisa senão aceitar o conselho de Annika. Ela tinha um ar maternal que fazia até homens crescidos quererem se sentar no colo dela e deixar que ela acariciasse seus cabelos. Patrik pensou que era uma pena ela não ter seus próprios filhos. Sabia que Annika e seu marido Lennart haviam tentado por anos, sem sucesso.

 

– Você não ajuda a ninguém no estado em que está, então vá para casa, descanse e volte amanhã, com energia renovada. E eu cuido disso, você sabe que sim.

 

Patrik lutou consigo mesmo por um momento e com sua consciência pesada, mas decidiu que Annika estava certa. Ele se sentia esgotado e inútil para qualquer coisa.

 

Erica pôs a mão na de Patrik e virou-se a fim de olhar para ele. Ela desviou o olhar para a água, enquanto andavam pela praça Ingrid Bergman. Respirou fundo. O ar estava frio, mas fresco devido à primavera, e o pôr do sol dava uma coloração avermelhada ao horizonte.

 

– Que bom que você conseguiu vir para casa mais cedo hoje. Você parece tão cansado ultimamente – ela disse enquanto inclinava a cabeça para encostar o rosto no ombro dele. Patrik a puxou para mais perto.

 

– Estou feliz por ter voltado também. E eu não tive escolha, na verdade; Annika praticamente me empurrou para fora da delegacia.

 

– Me lembre de agradecer a ela na primeira oportunidade – Erica sentia o coração leve, mas parecia pesada sobre seus pés. Eles tinham chegado apenas na metade do caminho para o monte Långbacken e tanto ela quanto Patrik já estavam um pouco sem ar.

 

– Nós não estamos exatamente na melhor forma, não é? – ela disse, arfando como um cão para mostrar como estava sem fôlego.

 

– Não, acho que não – disse Patrik, também arfando. – Pra você tudo bem, com um trabalho em que pode ficar sentada o dia todo, mas eu na polícia é uma desgraça.

 

– De jeito nenhum – disse Erica, beliscando a bochecha dele. – Você é o melhor que eles têm.

 

– Que Deus ajude os habitantes da comunidade de Tanumshede, nesse caso – ele disse, rindo. – Devo dizer que a dieta da sua irmã funcionou, pelo menos um pouco. Minhas calças estavam um pouco mais largas, hoje de manhã.

 

– Isso é bom. Mas você reparou que faltam apenas algumas semanas, não? Então temos que nos esforçar até lá.

 

– E então nós vamos poder nos empanturrar e engordar juntos – disse Patrik, virando à esquerda, no mercado de Eva.

 

– E envelhecer. Nós podemos envelhecer juntos.

 

Ele a puxou para mais perto e disse, sério:

 

– E envelhecer juntos. Você e eu. Num asilo. E Maja virá nos visitar uma vez por ano. Porque nós vamos ameaçar deixá-la fora do testamento se não vier.

 

– Pare, você é horrível – disse Erica, dando-lhe um soco no braço. – Nós vamos morar com Maja quando formos velhos, você sabe. O que significa que teremos que afugentar todos os futuros pretendentes dela.

 

– Sem problemas. Eu tenho porte de arma.

 

Chegaram à igreja e pararam por um momento. Ambos olharam para o campanário que se impunha sobre eles. A igreja era uma estrutura sólida, construída em granito e localizada no ponto mais alto da cidade de Fjällbacka, com vista para milhas e milhas de água.

 

– Quando era pequena, eu sonhava em me casar aqui – Erica disse. – E esse dia sempre pareceu tão longe. Mas agora estou aqui. Agora sou adulta, tenho uma filha e estou me casando. Não parece meio absurdo às vezes?

 

– Absurdo é só o começo – disse Patrik. – Não se esqueça de que eu, além disso, sou divorciado. Isso, em ser adulto, conta muitos pontos.

 

– Claro. Como eu me esqueceria de Karin? – Erica disse, rindo. E mesmo assim havia amargura em sua voz, como sempre existia quando ela falava da ex-esposa de Patrik. Erica não tinha uma natureza ciumenta e definitivamente não queria que Patrik fosse um virgem de trinta e cinco anos quando o conheceu, mas pensar nele com outra mulher não era nada agradável.

 

– Vamos ver se está aberta? – disse Patrik, indo em direção à porta da igreja.

 

Encontram-na destrancada e entraram cautelosamente, incertos se estariam quebrando alguma regra. Alguém no altar virou-se para eles.

 

– Olá – era o pastor de Fjällbacka, Harald Spjuth, que estava alegre como sempre. Patrik e Erica só tinham ouvido coisas boas sobre ele e não viam a hora que ele os casasse.

 

– Vieram ensaiar um pouco? – ele disse, vindo cumprimentá-los.

 

– Não, estávamos passeando e pensamos em entrar – disse Patrik, apertando a mão do pastor.

 

– Bem, deixem-me parar de incomodá-los – disse Harald. – Estou só mexendo nas coisas, fiquem à vontade. E se tiverem qualquer dúvida antes da cerimônia, podem perguntar. Pensei em fazermos um ensaio uma semana antes.

 

– Parece ótimo – disse Erica, gostando mais dele a cada minuto. Ela ouvira falar que ele encontrara um amor na maturidade e agora tinha companhia no presbitério e isso a agradava muito. Nem as mais idosas e devotas senhoras manifestaram qualquer reclamação sobre o fato de Harald ainda não ter se casado com Margareta, que ele conheceu em uma página de relacionamentos. Estavam “vivendo em pecado” juntos no presbitério. Tamanha tolerância dizia muito sobre sua popularidade.

 

– Pensei em termos rosas vermelhas e cor-de-rosa para decorar a igreja. O que acha disso? – disse Erica, olhando em volta.

 

– Acho muito bom – disse Patrik, distraidamente. Quando viu a expressão no rosto dela, sentiu uma pontada de culpa. – Erica, sinto muito que você tenha que carregar um fardo tão pesado. Eu queria poder me envolver mais com os planos, mas... – Erica pegou a mão dele.

 

– Eu sei, Patrik. E você não precisa ficar se desculpando. Eu tenho Anna para me ajudar. Nós vamos cuidar de tudo. Quero dizer, é uma cerimônia pequena, não pode ser difícil.

 

Patrik ergueu a sobrancelha e ela riu.

 

– Está bem, está dando muito trabalho. E exigindo muito planejamento. E tentar manter sua mãe no lugar dela não está sendo fácil. Mas é divertido também. É mesmo, de verdade.

 

– Tudo bem então – disse Patrik, sentindo-se um pouquinho menos culpado.

 

Quando saíram da igreja, o pôr do sol tinha dado lugar à noite. Eles lentamente fizeram o caminho de volta, por Långbacken e para o sul, na direção de Sälvik. Os dois aproveitaram o passeio e o tempo para conversar, mas estavam ansiosos para voltar para casa antes da hora de colocar Maja para dormir.

 

Fazia tempo que Patrik não se sentia tão contente com sua vida. Graças a Deus havia coisa que compensavam toda a parte ruim. Aquilo o enchia de energia o bastante para ser capaz de seguir em frente.

 

A escuridão descia sobre Fjällbacka. O campanário da igreja agigantava-se sobre a cidade. Observando-a. Protegendo-a.

 

Em seu apartamentinho em Tanumshede, Mellberg corria como um louco. Agora se dava conta de como tinha sido idiota de convidar Rose-Marie para jantar tão em cima da hora. Mas ele tinha tanta saudade dela. Queria ouvir sua voz, conversar com ela, saber como foi seu dia, saber o que estava pensando. Então, ele telefonou. E ouviu a si mesmo perguntando se ela gostaria de vir jantar com ele às oito.

 

Então agora ele estava ligado à toda no “modo pânico”. Correu da delegacia para casa às cinco e olhava atordoado para todas as mercadorias no supermercado. Seu cérebro estava paralisado. Nenhuma ideia do que fazer para o jantar vinha à mente e, considerando suas limitadas habilidades na cozinha, isso não era lá muito estranho. Mellberg tinha instinto de autopreservação suficiente para saber que provavelmente era melhor não arriscar nada em alta gastronomia; algo pronto para comer seria melhor. Perambulou pelas gôndolas, desamparado, até que Mona, uma mocinha amigável que trabalhava lá, veio até ele e perguntou se procurava algo em particular. Mellberg desembuchou seu dilema abruptamente e ela o guiou calmamente até o balcão de comida pronta. Começou com frango grelhado, depois ela o ajudou a encontrar a salada de batatas, alface e vegetais para uma salada variada, baguetes saídas do forno e sorvete para a sobremesa. Podia até não ser digno de um gourmet, mas pelo menos era algo que ele não podia estragar.

 

Quando chegou em casa, correu por uma hora tentando restaurar a ordem que seu apartamento não via desde a sexta-feira anterior. Agora lá estava ele tentando fazer a melhor apresentação possível. Acabou sendo um desafio maior que imaginava. Com as mãos engorduradas, olhou para o frango, que parecia olhar de volta para ele com desprezo. Um feito, considerando que a cabeça do bicho fora cortada havia tempos.

 

– Como diabos...? – ele praguejou, puxando uma asinha. Como iria arrumar essa coisa de maneira apetitosa no prato para servir? Era escorregadio como uma enguia. Finalmente, ele se cansou de tentar fazê-lo de forma organizada e simplesmente arrancou um peito e uma coxa para cada um deles e os colocou no prato. Aquilo ia servir. Então acrescentou uma bela colherada de salada de batatas ao lado e começou a preparar a salada. Fatiar pepinos e tomates pelo menos era algo que ele conseguia fazer. Despejou a salada em uma tigela plástica grande. Era vermelha e estava um pouco arranhada, mas ele não tinha muito em termos de louça para servir. E a coisa mais importante era o vinho, de qualquer forma. Ele abriu um vinho tinto e pôs sobre a mesa. Só para garantir, tinha duas outras garrafas no armário. Não queria deixar nada para a sorte. “É hoje”, ele pensou, assobiando alegremente. Pelo menos ela não poderia reclamar que ele não havia se esforçado. Ele nunca tivera tanto trabalho com uma mulher. Jamais. Nem se juntasse todas elas.

 

O último detalhe necessário para criar um clima era a música. Sua coleção de CDs era bem escassa, mas ele tinha um com os grandes sucessos de Sinatra. Ele o havia comprado em uma promoção no posto de gasolina. No último instante, pensou que deveria acender algumas velas também, e então deu um passo atrás e admirou a cena. Mellberg estava muito satisfeito consigo mesmo. Ninguém poderia dizer que ele não era um diabinho romântico.

 

Tinha acabado de trocar de camisa quando a campainha tocou. Viu pelo relógio que ela estava dez minutos adiantada, então rapidamente enfiou a camisa para dentro da calça.

 

– Droga – ele praguejou, quando viu que seu penteado, que cobria a calvície, havia despencado. Quando a campainha tocou novamente, ele correu para o banheiro para tentar pentear os fios de volta de um lado para o outro da cabeça. Estava acostumado a fazer isso, então em pouco tempo conseguiu uma cobertura minuciosa de sua careca. Depois de uma última olhada no espelho, pensou que estava bem estiloso.

 

Pelo olhar admirado que recebeu de Rose-Marie quando abriu a porta, ele soube que ela concordava com sua opinião. Só de vê-la, ele ficou sem fôlego. Ela usava um vestido vermelho brilhante, com um pesado colar de ouro como única joia. Enquanto pegava seu casaco, inalou a essência de seu perfume e fechou os olhos por um momento. Ele não sabia o que havia naquela mulher que o afetava tanto. Sentiu as mãos trêmulas quando pendurou o casaco dela e forçou-se a respirar fundo para se equilibrar. Não seria bom agir como um adolescente nervoso.

 

A conversa fluiu com facilidade durante o jantar. Os olhos de Rose-Marie dançavam à luz das velas. Mellberg contou a ela muitas histórias de sua carreira na polícia, encorajado por seu interesse óbvio. Eles beberam duas garrafas de vinho, da entrada à sobremesa. Então foram para o sofá da sala, para beber café e conhaque. Mellberg sentia a tensão no ar e sabia que iria se dar bem essa noite. Rose-Marie dirigiu-lhe um olhar que só poderia significar uma coisa. Mas não queria pôr tudo em risco, dando o bote no momento errado. Ele sabia quanto as mulheres são sensíveis quando o assunto é o momento certo. Finalmente, não pôde mais resistir. Viu as faíscas nos olhos de Rose-Marie, bebeu um bom gole de conhaque e se lançou para o ataque.

 

Ah, sim, ele se deu bem. Mellberg pensou que tinha morrido e ido para o paraíso. Naquela noite, ele adormeceu com um sorriso nos lábios enquanto flutuava em direção a um sonho com Rose-Marie. Pela primeira vez na vida, Mellberg estava feliz nos braços de uma mulher. Virou-se de barriga para cima e começou a roncar. No escuro, ao seu lado, estava Rose-Marie, olhando para o teto. Ela também sorria.

 

– Que diabos é isso? – Mellberg entrou como uma tempestade na delegacia, às dez da manhã. Ele já não tinha o melhor humor de manhã, mas hoje ele parecia mais esgotado que o normal.

 

– Você viu isso? – ele agitou um jornal e passou rapidamente por Annika, abrindo a porta de Patrik sem bater.

 

Annika esticou o pescoço para ter uma melhor visão do que estava acontecendo, mas podia ouvir apenas palavrões esparsos vindos do escritório de Patrik.

 

– Do que está falando? – disse Patrik calmamente, assim que Mellberg terminou de vomitar insultos. Fez um gesto para que o chefe se sentasse. Mellberg aparentava estar a ponto de ter um infarto e Patrik, mesmo que em seus momentos de fraqueza pudesse ter desejado a morte do homem, não queria que ele morresse em seu escritório.

 

– Você viu isso? Aqueles malditos... – Mellberg estava tão furioso que nem conseguia falar. Em vez disso, bateu com o jornal na mesa de Patrik. Sem saber para onde deveria olhar, mas cheio de pressentimentos, Patrik virou o jornal para poder ler a manchete. Quando viu as letras em preto, também sentiu a raiva ferver dentro de si.

 

– Mas que merda! – ele disse e Mellberg só conseguiu assentir e cair na cadeira diante da mesa de Patrik, com um estrondo.

 

– Onde eles conseguiram essa porra? – disse Patrik, balançando o jornal.

 

– Não tenho a menor ideia – disse Mellberg. – Mas quando eu pegar o infeliz, eu vou...

 

– O que mais diz aqui? Vamos ver, caderno principal – com dedos trêmulos, Patrik abriu o jornal e começou a ler, sua expressão ficando mais nervosa a cada segundo.

 

– Aqueles... aqueles... malditos...

 

– Sim, é uma organização excelente, o terceiro estado do poder – disse Mellberg, sacudindo a cabeça.

 

– Martin precisa ver isso – disse Patrik, ficando de pé. Ele foi para a porta, chamou o colega e voltou a sentar-se.

 

Alguns segundos depois, Martin estava parado na porta.

 

– Pois não?

 

Sem uma palavra, Patrik segurou a primeira página do jornal vespertino. Martin leu, em voz alta:

 

– “Hoje: Exclusivo – trecho do diário da vítima de assassinato. Ela conhecia seu algoz?” – ele ficou sem palavras e olhou incrédulo para Patrik e Mellberg.

 

– No caderno principal há um trecho real do diário dela – Patrik disse, sombriamente. – Aqui, leia – ele deu o jornal a Martin. Ninguém disse uma palavra enquanto ele lia.

 

– Isso aqui está certo? Acham que é real? Ela tinha mesmo um diário? Ou o jornal inventou tudo?

 

– Teremos que descobrir. Não há tempo a perder. Quer vir conosco, Bertil? – ele perguntou, obedientemente.

 

Mellberg pareceu considerar por um instante, mas depois sacudiu a cabeça.

 

– Não, eu tenho coisas importantes a cuidar. Vão vocês dois.

 

Cansado como Mellberg parecia, a coisa importante provavelmente consistia em tirar uma soneca, Patrik pensou. Mas estava feliz por Mellberg não vir com eles.

 

– Então, vamos embora – Patrik disse, acenando para Martin.

 

Rapidamente estavam no centro comunitário. A delegacia de polícia ficava em uma ponta da curta avenida principal de Tanumshede e o centro comunitário, na outra, por isso levou menos de cinco minutos para chegarem lá à pé. A primeira coisa que fizeram foi bater na porta do ônibus que estava estacionado do lado de fora. Se tivessem sorte, o produtor estaria lá, senão teriam que telefonar para ele.

 

Estavam com sorte, porque a voz que lhes disse para entrar pertencia inquestionavelmente a Fredrik Rehn. Estava dando uma olhada na transmissão da manhã, com um dos técnicos, e virou-se irritado quando entraram.

 

– O que é dessa vez? – ele disse, não escondendo o fato de que via a investigação policial como uma interrupção problemática ao seu trabalho. Mais precisamente, ele adorava a atenção que a investigação trazia à série, mas detestava que a polícia ocasionalmente o fizesse perder tempo e incomodasse o elenco.

 

– Gostaríamos de ter uma conversa com você. E com o elenco. Chame o grupo todo e diga a eles para virem ao centro comunitário. Agora – a paciência de Patrik estava diminuindo e ele não tinha a menor intenção de perder tempo com frases polidas.

 

Fredrik Rehn, que não entendia a gravidade da raiva que estava enfrentando, tentou protestar com uma voz manhosa:

 

– Mas eles estão trabalhando. E nós estamos filmando. Você não pode simplesmente...

 

– AGORA! – gritou Patrik, e tanto Rehn quanto os técnicos pularam de medo.

 

Resmungando, o produtor pegou seu telefone e começou a ligar para o celular de cada um dos participantes. Depois de cinco ligações, ele voltou-se para Patrik e Martin e disse, azedo:

 

– Missão cumprida. Ele estarão aqui em poucos minutos. Posso perguntar o que é tão importante assim para vocês terem invadido este lugar aqui e me interrompido no meio de um projeto de milhões de coroas? O qual, a propósito, é apoiado pelo governo local, por conta do enorme benefício que proporcionará a esta comunidade!

 

– Te digo em poucos minutos – disse Patrik, enquanto deixava o ônibus com Martin. Pelo canto do olho, ele viu Rehn pegar o telefone novamente.

 

Um a um, os membros do elenco se agruparam no centro comunitário. Alguns pareciam irritados por terem sido tirados do trabalho tão de repente, enquanto outros, como Uffe e Calle, pareciam agradecer pela interrupção.

 

– O que houve? – disse Uffe, sentando-se na beira do palco grande. Pegou um maço de cigarros e começou a acender um. Patrik pegou o cigarro ainda apagado de sua boca e o atirou em uma lata de lixo.

 

– É proibido fumar aqui.

 

– Que porra é essa? – disse Uffe com raiva, mas não ousou protestar com muito mais vigor. Algo na expressão de Patrik e Martin lhe dizia que eles não estavam ali para falar de normas anti-incêndio.

 

Exatamente oito minutos depois de Patrik bater na porta do ônibus, a última participante entrou.

 

– O que foi agora? Que clima de funeral está nesse lugar – disse Tina, rindo, enquanto se jogava em uma das camas.

 

– Cale a boca, Tina – disse Rehn, apoiando-se contra a parede de braços cruzados. Tinha a intenção de assegurar que a interrupção fosse o mais breve possível. E já havia começado a telefonar para seus contatos. Não estava disposto a aguentar nenhum abuso de autoridade. Ele era bem pago demais para isso.

 

– Vocês todos estão aqui porque nós queremos saber uma coisa – Patrik olhou para todos, encarando um participante por vez. – Eu quero saber quem encontrou o diário de Lillemor. E quem o vendeu a um jornal sensacionalista.

 

Rehn franziu testa. Parecia perplexo.

 

– Diário? De que porra de diário você está falando?

 

– Do diário do qual o Evening News publicou trechos hoje – disse Patrik sem olhar para ele. – Em toda a primeira página.

 

– Estamos na primeira página hoje? – disse Rehn, iluminando-se. – Cara, isso é ótimo. Eu tenho que ver isso...

 

Um olhar de Martin o calou. Mas ele não conseguiu reprimir um sorriso. Uma manchete valia ouro em divulgação. Nada alavancava mais a audiência.

 

O elenco todo permaneceu em silêncio. Uffe e Tina eram os únicos que olhavam para os detetives. Jonna, Calle e Mehmet olhavam para o chão, parecendo desconfortáveis.

 

– Se eu não descobrir de onde esse diário veio – Patrik continuou –, quem o encontrou e onde ele está agora, vou fazer tudo o que estiver em meu poder para fechar este bordel. Vocês só foram autorizados a seguir filmando porque nós os autorizamos a fazê-lo, mas se não me disserem agora... – ele deixou as palavras pairando no ar.

 

– Gente, alguém abra a boca – disse Rehn, soando estressado. – Se vocês sabem de alguma coisa, desembuchem. E se souberem de algo e se recusarem a falar, eu vou espremer a verdade de vocês e cuidar pessoalmente que nunca mais cheguem perto de uma câmera na vida – ele baixou a voz e sibilou. – Quem não abrir a boca agora está fora. Entenderam?

 

Todos se contorceram. O silêncio era total no grande salão do centro comunitário. Finalmente, Mehmet pigarreou.

 

– Foi Tina. Eu a vi pegá-lo. Barbie o mantinha debaixo do colchão.

 

– Cale a sua maldita boca, seu wog idiota! – Tina rosnou, seus olhos atirando adagas na direção de Mehmet. – Eles não podem fazer nada. Não entende? Ah, você é tão estúpido... Tudo que tinha de fazer era manter sua boca fechada.

 

– Agora é a sua vez de calar a boca! – gritou Patrik, dirigindo-se a Tina. Ela parou de falar, como instruída, e pela primeira vez pareceu um pouco assustada.

 

– Para quem você deu o diário?

 

– Não posso revelar minhas fontes – Tina murmurou em uma última tentativa de ser insolente.

 

Jonna suspirou e disse:

 

– Você é a fonte, sua burra – ela ainda olhava para o chão e não parecia dar a mínima para o fato de que Tina a encarava.

 

Patrik repetiu a pergunta, dando ênfase a cada palavra, como se estivesse falando com uma criança:

 

– Para-quem-você-deu-o-diário?

 

Tina relutantemente deu o nome do jornalista e Patrik virou-se sem desperdiçar mais nem uma palavra com ela. Se ele começasse a falar, tinha medo de não conseguir parar.

 

Quando ele e Martin passaram por Fredrik Rehn, o produtor disse, desnorteados:

 

– E agora, o que acontece? Você não falou sério quando... Quero dizer, nós podemos continuar gravando, não podemos? Meu chefe... – Rehn percebeu que falava para ouvidos moucos e calou-se.

 

Já na porta, Patrik virou-se:

 

– Vocês podem continuar se fazendo de tolos na TV. Mas se voltarem a interferir na investigação novamente, de qualquer forma que seja... – deixou a ameaça inacabada no ar.

 

Deixou atrás de si um elenco quieto e deprimido. Tina parecia esmigalhada, mas olhou para Mehmet de uma forma que dava a entender que tinha mais o que dizer a ele.

 

– De volta ao trabalho. Temos que compensar o tempo de câmera – Rehn os enxotou do centro comunitário. Eles se encaminharam para a avenida principal. O show tinha que continuar.

 

– Que diabos aconteceu? – Simon olhou preocupado para Mehmet, que punha seu avental de volta.

 

– Nada. Só um monte de merda.

 

– Acha mesmo que isso é saudável? Continuar filmando depois que a garota foi morta? Parece um pouco...

 

– Um pouco o quê? – disse Mehmet. – Um pouco insensível? Um pouco de mau gosto? – ele ergueu a voz. – E nós somos só um bando de cretinos acéfalos que bebem e trepam na TV e voluntariamente se fazem de palhaços. Certo? É o que está pensando, não é? Já parou para pensar que pode ser uma alternativa melhor do que aquilo que temos em casa? De que é uma chance de escapar de algo que vai nos pegar no final? – as palavras morreram em sua garganta, e Simon gentilmente empurrou-o em direção a uma cadeira nos fundos da padaria.

 

– E o que é, então? Para você, eu quero dizer – disse Simon e sentou-se de frente para ele.

 

– Para mim? – a voz de Mehmet estava carregada de amargura. – É uma forma de me rebelar. Passar por cima de tudo o que tem valor. Deixar tudo em frangalhos, até eles não conseguirem mais tentar me fazer colar os pedacinhos de volta – escondeu rosto nas mãos e soluçou. Simon passou a mão pelas costas de Mehmet em ritmo

suave e reconfortante.

 

– Você não quer viver a vida que eles querem que você viva?

 

– Sim e não – Mehmet ergueu os olhos e olhou para Simon. – Não é que eles estejam me forçando, na verdade, ou ameaçando me mandar de volta à Turquia ou coisa parecida. Não é o tipo de coisa que vocês suecos sempre acham ser o primeiro item na lista de todo imigrante. É mais uma questão de expectativas. E sacrifícios. Mamãe e papai se sacrificaram tanto por nós, por mim. Para que nós, seus filhos, pudéssemos ter uma vida melhor, em um país onde temos todo tipo de oportunidades. Eles deixaram tudo para trás. Seus lares, suas famílias, o respeito que tinham pelos amigos, suas profissões, tudo. Única e exclusivamente para que nós tivéssemos uma vida melhor que a deles. Para eles, a coisa só piorou. Eu posso ver. Vejo a saudade em seus olhos. Vejo a Turquia em seus olhos. Aquele país não significa a mesma coisa para mim. Eu nasci aqui, na Suécia. A Turquia é um lugar que visitamos no verão, mas não está no meu coração. Só que eu também não pertenço a este lugar. A este país onde eu deveria realizar os sonhos deles, suas esperanças. Eu não sou o tipo estudioso. Minhas irmãs são, mas, por estranho que pareça, eu, o filho, não sou. Eu carrego o nome do meu pai. Sou aquele que vai levá-lo para as próximas gerações. Eu só quero trabalhar. Com minhas mãos. Eu não tenho grandes ambições. Para mim, basta ir para a casa e sentir que fiz um bom trabalho com minhas mãos. Eu não sou o tipo estudioso. Mas meus pais se recusam a entender. Então eu terei que esmagar seus sonhos de uma vez por todas. Espezinhá-los. Até só sobrar farpas – as lágrimas rolavam pela face de Mehmet, e o calor que irradiava das mãos de Simon apenas intensificava a dor. Ele estava tão cansado de tudo. Estava tão cansado de nunca ser bom o bastante. Estava tão cansado de mentir sobre quem era.

 

Lentamente, levantou a cabeça. O rosto de Simon estava a apenas poucos centímetros do seu. Simon olhou para ele, intrigado, enquanto suas mãos quentes, que cheiravam a pão fresco, limpavam as lágrimas de Mehmet. Então, Simon gentilmente roçou os lábios contra os seus. Mehmet ficou surpreso como aquilo parecia tão certo, ter os lábios de Simon colados aos seus. E então ele se perdeu em uma realidade que sempre vislumbrou, mas nunca ousou ver.

 

– Eu gostaria de conversar com Bertil. Ele está? – disse Erling, piscando para Annika.

 

– Pode entrar – ela disse, seca. – Você sabe onde fica o escritório dele.

 

– Obrigado – disse Erling, piscando novamente. Não conseguia entender por que seu charme não parecia funcionar com Annika, mas ele se consolou, pensando que era apenas uma questão de tempo.

 

Ele se apressou em direção ao escritório de Mellberg e bateu na porta. Não houve resposta, então bateu outra vez. Dessa vez um murmúrio vago se ouviu, misturado a sons misteriosos. Erling se perguntou o que Mellberg estaria fazendo lá dentro. Finalmente a porta se abriu. Ele parecia sonolento. Atrás dele, um cobertor e um travesseiro estavam no sofá. Havia também a clara marca do travesseiro no rosto de Mellberg.

 

– Ora essa, Bertil, está tirando uma soneca no meio da manhã? – Erling havia pensado muito em que comportamento usar com o chefe de polícia e decidido começar de forma leve, com tom camarada e então ir mudando para uma abordagem mais séria. Ele normalmente não tinha muita dificuldade em lidar com Mellberg. Sempre que questões municipais que envolviam a polícia vinham parar em sua mesa, ele obtinha uma cooperação indolor e suave, com a ajuda de adulações e suborno na forma de garrafas de uísque bom. Não via razão para não acontecer o mesmo dessa vez.

 

– Bem, você sabe – disse Mellberg, parecendo um pouco desconcertado. – Tem muita coisa acontecendo ultimamente e é bastante cansativo.

 

– Sim, compreendo que você tem trabalhado muito – disse Erling. Para sua surpresa, viu um intenso rubor se espalhar pelas faces do delegado.

 

– Como posso te ajudar? – disse Mellberg, guiando-o para uma cadeira. Erling sentou-se e disse, com expressão de profunda preocupação:

 

– Bem, eu recebi um telefonema agora há pouco. Do produtor de Sodding Tanum, Fredrik Rehn. Evidentemente alguns de seus policiais foram ao centro comunitário e causaram uma comoção. E eles claramente ameaçaram cancelar a produção. Devo dizer que fiquei tão surpreso quanto receoso quando soube disso. Pensei que estávamos de acordo e que havíamos estabelecido boa cooperação. Então, Bertil, eu fiquei realmente decepcionado. Há alguma explicação? – ele olhou carrancudo para Mellberg, expressão que já havia causado medo a diversos oponentes ao longo de sua carreira. Pela primeira vez, no entanto, o chefe não se deixou acovardar. Ele apenas olhou para Erling em silêncio, sem tentar responder à acusação. Erling começou a se sentir desconfortável. Talvez devesse ter trazido uma garrafa de uísque. Só por precaução.

 

– Erling... – Mellberg disse e seu tom de voz fez Erling W. Larson sentir que talvez tivesse ido longe demais dessa vez.

 

– Erling... – Mellberg repetiu e o vereador se contorceu. Por que esse cara não ia direto ao assunto? Ele só tinha que responder a uma pergunta simples. O único interesse de Erling era o bem da comunidade. Por que aquilo era tão difícil de entender?

 

– Estamos conduzindo uma investigação de homicídio – disse Mellberg, encarando Erling Larson. – Alguém ligado à produção não só escondeu provas importantes de nós como as vendeu para a imprensa. Nesse momento, eu estou inclinado a concordar com meus colegas que a melhor solução seria acabar com a coisa toda.

 

Erling sentia-se começar a transpirar. Rehn não se incomodara em informá-lo desse pequeno detalhe. Isso era ruim. Muito ruim. Ele gaguejou:

 

– Está... está no jornal de hoje?

 

– Sim – disse Mellberg –, na primeira página e depois no caderno principal do jornal. Trechos do diário que a mulher assassinada aparentemente mantinha, apesar de não sabermos disso. Alguém nos privou dessa informação. Em vez disso, o indivíduo decidiu procurar o Evening News e vender o diário. Nesse momento, meus investigadores Hedström e Molin estão trabalhando a fim de recuperar o diário, para que possamos averiguar se é ou pode ser útil para encontrar o assassino.

 

– Eu não tinha ideia – disse Larson, repassando na mente a conversa que teria com Rehn assim que saísse da delegacia. Entrar em uma reunião de negócios sem ter todas as informações à mão era como ir à guerra sem armas; isso era algo que mesmo um iniciante sabia. Aquele idiota. Mas Rehn não podia achar que se safaria por fazer joguinhos com a Câmara Municipal de Tanumshede.

 

– Dê-me uma boa razão para eu não acabar com esse projeto agora mesmo, nesse instante.

 

Erling ficou em silêncio. Sua mente se esvaziara completamente. Todos os argumentos voaram pela janela. Ele olhou para Mellberg, que riu.

 

– Finalmente, sem defesa. Nossa, eu nunca pensei que veria esse dia chegar. Mas vou ser justo. Sei que tem muita gente que gosta de ver essa merda na TV. Então vamos deixar aquilo continuar por mais um tempo. Mas ao primeiro sinal de problemas... – Mellberg apontou-lhe um dedo ameaçador e Erling assentiu, grato. Que sorte. Ele tremeu ao pensar como seria humilhante apresentar-se diante da Câmara e confessar que o projeto não poderia continuar. Estava quase saindo quando ouviu Mellberg dizer algo. Virou-se.

 

– Sabe, meu suprimento de uísque em casa está acabando. Você não teria uma garrafa sobrando, teria?

 

Mellberg piscou e Erling deu-lhe um sorriso forçado. Ele adoraria forçar a garrafa garganta abaixo de Mellberg. Em vez disso, ouviu-se dizer:

 

– Certamente, Bertil. Eu cuidarei disso.

 

A última coisa que viu antes de a porta fechar atrás de si foi o sorriso satisfeito de Mellberg.

 

– Isso foi baixo – disse Calle olhando para Tina enquanto ela colocava bebidas na bandeja para levar a uma mesa.

 

– Como se você fosse o maior cumpridor da lei. Fácil para você dizer, nadando no dinheiro do papai! – Tina rebateu, quase virando o copo de cerveja que acabava de pôr na bandeja.

 

– Sabe, há coisas que as pessoas não fazem por dinheiro.

 

– Há coisas que as pessoas não fazem por dinheiro – Tina imitou em falsete, com uma careta. – Jesus Cristo, como você pode ser tão repugnantemente convencido? E aquele babaca do Mehmet! Eu vou matar aquele merda!

 

– Ah, pare com isso – disse Calle, apoiando-se no balcão. – Eles estavam ameaçando cancelar o programa todo a não ser que alguém abrisse a boca. Mas você parecia mais interessada em salvar sua própria pele. Você não tem o direito de nos arrastar para o fundo do poço com você.

 

– Eles estavam blefando, não percebe? Não iriam parar a única coisa que já chamou a atenção para essa cidade, de jeito nenhum. Eles estão vivendo disso!

 

– Bem, de qualquer forma eu não acho que seja culpa de Mehmet. Se tivesse visto você pegar o diário, eu também teria dedurado.

 

– Aposto que sim, seu fracote – disse Tina. Ela estava tão nervosa que suas mãos tremiam enquanto segurava a bandeja. – O seu problema é que você passa tanto tempo em Stureplan que acha que a vida é só aquilo. Mostra o cartão de crédito do papai, desliza vida afora, se recusa a fazer qualquer coisa útil e vive nas costas de todo mundo. É tão patético! E aí acha que pode me dizer o que é certo e o que é errado! Pelo menos estou fazendo algo da minha vida e tenho um pouco de ambição. E eu tenho talento, não importa o que aquela puta da Barbie disse!

 

– Ah, então é isso – disse Calle, com desdém. – Ela escreveu algo sobre sua tal carreira com cantora e você ficou tão furiosa que decidiu atirá-la para os lobos da mídia. Eu ouvi o que você falou na noite em que ela morreu. Você não suportou o fato de que ela estava dizendo o que todos achavam.

 

– Ela estava mentindo, aquela vagabunda. Negando que falou para todo mundo que eu nunca serei alguém, que eu não tenho talento. Ela disse que não tinha falado nada, que estavam tramando contra ela e que alguém estava mentindo. Mas então eu vi o que ela escreveu no diário e era verdade afinal! Ela tinha mesmo espalhado mentiras sobre mim para todos os outros – Tina derrubou um dos copos. O copo estourou, derramando cerveja para todo lado. – QUE MERDA! – disse Tina, pousando a bandeja com as cervejas que sobraram. Pegou uma vassoura e começou a recolher os cacos de vidro. – Meu Deus! Inferno do caralho!

 

– Ei! – Calle disse, calmo. – Eu nunca ouvi Barbie dizer uma palavra ruim a seu respeito. O que eu sabia é que ela tentava te encorajar. E você disse a mesma coisa na última sessão com Lars. Chorou lágrimas de crocodilo também, se bem me lembro.

 

– Não achou que eu seria tão estúpida de falar mal de gente morta, achou? – ela disse, varrendo o último caco.

 

– Não importa o que ela escreveu no diário, você não pode culpá-la. Ela estava apenas escrevendo a verdade. Você não canta nada e, se eu fosse você, começaria a preencher uma ficha para trabalhar no McDonald’s agora mesmo – ele riu e deu uma olhadinha para a câmera.

 

Tina largou a vassoura no chão e deu um passo na direção dele. Deixou seu rosto bem próximo do dele e sibilou:

 

– Cuidado com o que fala, Calle. Você não foi o único que ouviu o que foi dito na noite em que ela morreu. Você também pegou pesado com ela. Algo sobre sua mãe ter cometido suicídio por causa do seu pai. Mas ela disse que não falou nada também. Então eu ficaria de boca fechada se fosse você.

 

Ela pegou a bandeja e saiu para o restaurante. O rosto de Calle perdeu a cor. Por dentro, repassava todos os xingamentos e as palavras duras que lançara a Barbie naquela noite. Também se lembrou do olhar de incredulidade de todos quando ele gritou acusações para ela. Suas lágrimas enquanto assegurava não ter dito, e que jamais diria, nada daquilo. O pior é que ele não conseguia se livrar da sensação de que ela estava falando a verdade.

 

– Patrik, tem um minuto? – Annika parou de falar quando viu que ele estava ao telefone.

 

Ele mostrou um dedo como sinal para ela aguardar. Parecia estar terminando a conversa.

 

– Está bem, combinado – Patrik disse, irritado. – Nós temos acesso ao diário e vocês recebem a informação em primeira mão quando pegarmos o criminoso.

 

Ele bateu o telefone e virou-se para Annika com expressão esgotada.

 

– Maldito idiota – ele disse, suspirando.

 

– O repórter do Evening News? – disse Annika, sentando-se.

 

– Sim. Agora nós oficialmente fizemos um pacto com o diabo. Eu poderia ter tirado o diário das mãos dele, mas levaria tempo. Já estamos nesse jogo de xadrez com eles há três dias. Então é assim que a coisa vai ser. Vamos ter que alimentá-los.

 

– Certo – disse Annika. Só agora Patrik notava que ela estava impaciente para dizer algo.

 

– E no que você está pensando?

 

– A notificação que enviei na segunda-feira deu resultado – ela disse, incapaz de esconder sua satisfação.

 

– Já? – disse Patrik, surpreso.

 

– Sim, nesse caso, a atenção que a mídia ultimamente tem dado a Tanumshede valeu a pena.

 

– Então, o que você tem aí? – uma ponta de excitação apareceu em sua voz.

 

– Aparentemente mais dois casos – ela disse, olhando para suas anotações. – Pelo menos, a forma como eles morreram se encaixa cem por cento. E... em ambos os casos a polícia encontrou as mesmas anomalias que verificamos depois que Rasmus e Marit morreram.

 

– Está brincando? – disse Patrik, inclinando-se para a frente. – Diga tudo o que sabe.

 

– Um caso é de Lund. Um homem de uns cinquenta anos morreu seis anos atrás. Era um alcoólatra grave e, mesmo que tenham notado alguns ferimentos questionáveis, assumiu-se que ele bebera até a morte – ergueu os olhos para Patrik, que fez menção para ela prosseguir. – A segunda morte aconteceu dez anos atrás. Dessa vez em Nyköping. Uma mulher em torno de setenta anos. O caso foi apontado como assassinato, mas nunca foi solucionado.

 

– Então temos mais dois assassinatos – disse Patrik, sentindo a carga da responsabilidade em seus ombros. – Temos um total de quatro homicídios que parecem estar ligados.

 

– É o que parece – disse Annika, tirando os óculos e os rodando nos dedos.

 

– Quatro assassinatos – Patrik disse, exausto. A fadiga tinha lhe conferido uma palidez cinzenta no rosto.

 

– Quatro. Sem falar no de Lillemor Persson. Devo dizer que acho que atingimos o limite de nossa capacidade agora – disse Annika, gravemente.

 

– O que está dizendo? Não acha que damos conta da investigação? Acha que devemos chamar a Polícia Criminal Nacional? – Patrik olhou-a pensativo, sentindo que ela poderia estar certa. Por outro lado, eles eram os profissionais que veriam o panorama geral, os que poderiam juntar as peças do quebra-cabeça. Seria necessária a cooperação entre os distritos, mas ele ainda estava convencido de que dariam conta. – Vamos começar sozinhos e depois ver se precisamos de ajuda – ele disse e Annika concordou. Se isso era o que Patrik queria, então era assim que as coisas seriam feitas.

 

– Quando pretende apresentar essa informação para Mellberg? – ela disse, agitando suas anotações.

 

– Assim que falarmos com os responsáveis pelas investigações em Lund e Nyköping. Você tem os dados de contato?

 

Annika fez que sim.

 

– Vou deixar minhas anotações com você. Tudo de que precisa está aí.

 

Ele lançou-lhe um olhar agradecido. Ela parou na porta.

 

– Criminoso em série, você acha? – ela disse, mal acreditando no que estava dizendo.

 

– É o que parece – disse Patrik. E então pegou o telefone e começou a fazer ligações.

 

– Que casa linda você tem – Anna passou os olhos por todo o andar térreo da residência.

 

– Bem, é um pouco frio. Pernilla levou metade da mobília e eu... não consegui comprar substitutos. E agora não parece boa ideia. Eu tenho que vender a casa e não vai caber tudo no novo apartamento.

 

Anna olhou-o com compaixão.

 

– Isso é duro mesmo – ela disse e Dan concordou.

 

– Sim, é. Mas quero dizer, comparado ao que você passou, bem...

 

Anna sorriu.

 

– Não se preocupe. Eu não espero que as pessoas comparem seus problemas aos meus. Todos têm seus próprios problemas. Eu compreendo.

 

– Obrigado – disse Dan, com um sorriso largo. – Então, o que está dizendo é que eu tenho o direito de lamuriar quanto quiser?

 

– Bem, talvez nem tanto – disse Anna, rindo. Ela foi até a escada e apontou para cima com uma interrogação no olhar.

 

– Claro, suba e dê uma olhada. Eu até arrumei as camas e peguei a roupa suja do chão hoje, então não há perigo de que você seja atacada por cuecas.

 

Anna fez uma careta e riu novamente. Ela ria bastante ultimamente. Como se tivesse que compensar sua cota de meses. E de certa forma, era isso que estava fazendo.

 

Quando ela voltou ao andar de baixo, Dan havia preparado alguns sanduíches para eles.

 

– Humm, parece bom – ela disse, sentando-se à mesa.

 

– Eu achei que você devia estar com fome. Sanduíches são tudo que posso oferecer. As meninas deixaram a geladeira vazia, e eu não tive tempo de fazer compras.

 

– Sanduíche está ótimo – disse Anna, dando uma mordida no pão com queijo.

 

– Como vão os preparativos? – Dan perguntou. – Pelo que sei, Patrik tem trabalhado direto e faltam menos de quatro semanas para o Dia D!

 

– É, pode-se dizer que temos que nos mexer... mas Erica e eu estamos fazendo o melhor possível. Acho que vamos conseguir. Desde que a mãe de Patrik fique longe.

 

– Como assim? – Dan perguntou e ouviu uma descrição espirituosa da última visita de Kristina.

 

– Você só pode estar brincando – ele disse, mas ria mesmo assim.

 

– Eu juro – disse Anna. – Foi ruim mesmo.

 

– Pobre Erica – disse Dan. – E eu que pensei que a mãe de Pernilla tivesse dado trabalho quando nos casamos – ele sacudiu a cabeça.

 

– Sente saudade dela? – Anna perguntou e Dan fingiu não entender.

 

– Da mãe de Pernilla? Não, nem um pouquinho.

 

– Ah, qual é, você sabe o que eu quero dizer – ela lhe lançou um olhar inquisidor.

 

Dan parou para pensar um momento.

 

– Não, posso dizer honestamente que eu não sinto mais. Senti por um tempo, mas não tenho certeza se era de Pernilla que eu tinha saudade. Era mais do que nós tínhamos, como uma família, se é que me entende.

 

– Sim e não – disse Anna, de repente parecendo extremamente triste. – O que acho que quer dizer é que sente saudade da rotina diária, da segurança, do que é previsível. Eu nunca tive isso com Lucas. Jamais. Mas no meio do medo, e depois do terror, provavelmente era isso que eu mais desejava. Rotina diária. Um pouco de previsibilidade. Uma vida normal.

 

Dan pegou sua mão.

 

– Você não tem que falar sobre isso.

 

– Tudo bem – ela disse, engolindo as lágrimas. – Tenho falado tanto nessas últimas semanas que estou cansada de ouvir minha própria voz. E você já ouviu demais as minhas mazelas. Você deve estar bem cansado de me ouvir – ela riu e enxugou as lágrimas no guardanapo de papel.

 

Dan ainda segurava sua mão.

 

– Eu não me canso de te ouvir. Até onde eu sei, você pode continuar falando vinte quatro horas por dia, sete dias por semana.

 

Um silêncio confortável se seguiu enquanto eles se olhavam. O calor da mão de Dan se espalhou pelo corpo de Anna, derretendo o gelo em pontos que ela nem sabia estarem congelados. Dan abriu a boca para dizer algo, mas então o celular de Anna tocou. Ambos tiveram um sobressalto e Anna puxou a mão para pegar o telefone. Olhou no visor.

 

– Erica – ela disse e levantou-se para atender a chamada.

 

Dessa vez, Patrik escolheu reunir seus colegas na cozinha. O que pretendia apresentar era um tanto impressionante, para dizer o mínimo, e café forte e algumas rosquinhas provavelmente seriam bem-vindos. Esperou que todos se sentassem, mas permaneceu de pé. Todos olharam para ele com expectativa ao entrar. Era óbvio que algo estava acontecendo, mas Annika não havia dito uma palavra, então ninguém sabia do que se tratava. Apenas que era algo grande. Isso eles podiam ver pela expressão resoluta de Patrik. Um pássaro passou voando pela janela da cozinha, e os olhos de todos seguiram o movimento em reflexo, mas rapidamente se voltaram para Patrik.

 

– Sirvam-se de café e rosquinhas e então daremos início – Patrik disse em voz solene. Todos serviram-se de uma xícara e murmuraram entre si para que a cesta de roscas passasse por todos. Depois ficaram em silêncio.

 

– Annika enviou uma notificação de alerta nacional a meu pedido na segunda-feira. Perguntando por mortes que mostrassem similaridades com o caso de Rasmus e o de Marit.

 

Hanna ergueu a mão.

 

– O que exatamente dizia a notificação?

 

– O que enviamos foi uma lista de itens comuns a ambos os crimes. Na prática, envolviam dois aspectos: o modo como morreram e os objetos encontrados perto dos corpos.

 

A última das informações era novidade para Gösta e Hanna, então eles se inclinaram para a frente a fim de ouvir mais.

 

– Que tipo de objetos? – disse Gösta.

 

Patrik olhou para Martin e disse:

 

– Quando Martin e eu examinamos a mochila que Rasmus tinha consigo quando morreu, encontramos algo que também vimos perto de Marit. No caso dela, estava no banco do passageiro. De início, não prestamos muita atenção a isso, já que achamos que era só lixo no carro. Mas quando encontramos a mesma coisa na mochila, então... – ele jogou as mãos para cima.

 

– Bem, e o que é? – Gösta projetou-se para a frente mais ainda.

 

– Uma página arrancada de um livro. Um livro infantil – Patrik disse.

 

– Um livro infantil? – Gösta repetiu, incrédulo. Hanna também parecia confusa.

 

– Sim, as páginas eram de João e Maria. Sabem, da fábula dos irmãos Grimm.

 

– Está brincando! – disse Gösta.

 

– Infelizmente, não. E não é só isso. Essa informação, combinada a detalhes que conhecemos sobre o motivo da morte de Rasmus e Marit, nos levou a dois outros casos que podem estar conectados com os nossos.

 

– Dois outros casos? – agora era Martin que parecia incrédulo.

 

Patrik assentiu.

 

– Sim, a informação chegou esta manhã. Dois outros crimes se encaixam no padrão. Um em Nyköping e outro em Lund.

 

– Mais dois casos? – Martin parecia estar tendo problemas para absorver os fatos que Patrik apresentava. E ele entendia por quê.

 

– E você tem mesmo certeza de que os quatro casos estão ligados? – disse Hanna. – A coisa toda parece tão inacreditável.

 

– As vítimas todas morreram da mesma forma e havia páginas arrancadas do mesmo livro próximas a cada corpo. Podemos assumir que os casos estão relacionados – Patrik disse secamente. Ele na verdade estava um pouco surpreso e ofendido por duvidarem dele.

 

– De qualquer forma, vamos dar continuidade à investigação, ou investigações, baseados no pressuposto de que há uma conexão.

 

Martin ergueu a mão.

 

– As outras vítimas também eram abstêmias?

 

Patrik sacudiu a cabeça, devagar. Essa era a coisa que mais o incomodava.

 

– Não – ele disse. – A vítima em Lund era um alcoólatra comprovado, e a polícia não tinha informações sobre vícios da vítima de Nyköping. Mas eu acho que você e eu devíamos ir até lá e conversar com eles. Verificar os detalhes.

 

Martin concordou.

 

– Claro. Partimos quando?

 

– Amanhã – disse Patrik. – Se ninguém tiver nada a acrescentar, talvez possamos terminar a reunião e voltar ao trabalho. Se algo tiver ficado obscuro, sugiro que leiam o resumo que preparei. Annika fez cópias para cada um pegar na saída.

 

Enquanto saíam, ninguém falou nada. Estavam todos pensando no escopo da investigação que agora tinham diante de si. E todos tentavam aceitar a ideia de que “serial killer” passaria a fazer parte de seu vocabulário. Aquilo nunca fora necessário na história da polícia de Tanumshede. Não era um marco agradável.

 

Gösta virou-se quando ouviu alguém atrás de si na porta.

 

– Martin e eu partimos amanhã. Devemos ficar fora por dois dias – disse Patrik.

 

– Sim? – disse Gösta.

 

– Pensei que você e Hanna poderiam trabalhar em outras frentes nesse período. Examinar o arquivo de Marit, por exemplo. Eu já li aquilo tantas vezes que acho que seria bom ter um par de olhos novos analisando os dados. E façam o mesmo com tudo que temos de Rasmus Olsson. Martin começou a compilar uma lista de pessoas que possuem cães da raça galgo espanhol. Seria bom se conseguisse dar sequência a esse trabalho também. Converse com Martin hoje à tarde e veja até onde ele foi. O que mais? Ah, sim, o repórter do Evening News enviou por fax algumas cópias do diário de Lillemor. Vamos pegar o original também, mas esse está vindo pelo correio e não podemos ficar esperando. Estou levando cópias comigo no carro, mas você e Hanna podem dar uma olhada nelas também.

 

Gösta balançou a cabeça cansado.

 

– É isso – disse Patrik. – Estamos saindo. Você pode passar essas tarefas para Hanna?

 

Gösta concordou. Ainda mais cansado. Era uma droga ter que trabalhar tanto. Assim estaria exausto quando a temporada de golfe começasse.

 

À noite era a hora em que o terror parecia mais próximo. E se eles viessem quando ele estivesse dormindo? E se ele não conseguisse acordar? Antes de ser tarde demais. Ele e sua irmã tinham cada um sua própria cama no quarto. Ela normalmente os punha na cama à noite, puxava as cobertas até o queixo deles e depois os beijava, ele primeiro e depois ela, na testa. Um suave “boa-noite” e então ela apagava a luz. E trancava a porta. Era quando o mal reinava livre em suas mentes. Mas eles haviam inventado uma forma de se consolar. Com passos cuidadosos, ele se esgueirava até a cama da irmã e deitava-se junto a ela debaixo das cobertas. Eles nunca conversavam, apenas ficavam deitados bem juntos e sentiam o calor da pele um do outro. Tão próximos que sua respiração se tornava uma só, o ar quente de sua própria expiração, que preenchia seus pulmões e aquecia seu coração, dando-lhes uma sensação de segurança.

 

Às vezes, ficavam acordados assim. Ambos viam o medo nos olhos do outro, mas não conseguiam esboçar palavras. Nessas horas, ele às vezes sentia tanto amor pela irmã que parecia que poderia explodir. O sentimento tomava todo o seu ser e o fazia querer acariciar cada centímetro de seu corpo. Ela era tão indefesa, tão inocente, tão assustada com o que havia lá fora. Muito mais assustada do que ele. Para ele, o medo na verdade se misturava ao anseio pelo que havia lá fora. Ao que ele poderia ter acesso, se não fosse um pé-frio e se o desconhecido não estivesse esperando lá fora.

 

Às vezes, enquanto ficava lá deitado à noite, com sua irmã nos braços, ele se perguntava se o terror tinha qualquer conexão com a mulher com a voz brava. E então o sono o dominava. E com ele, vinham as memórias.

 

Martin sofrera a vida toda de enjoo, mas ainda tentou ler as páginas que haviam sido copiadas do diário de Lillemor.

 

– Quem é esse “ele” de que ela tanto fala? A pessoa que ela reconheceu? – ele disse espantado, lendo para ver se encontrava mais pistas.

 

– Não diz – disse Patrik, que já tinha lido as páginas antes de saírem. – Ela não parece ter muita certeza se o viu mesmo e onde.

 

– Mas ela escreve que ele a deixa desconfortável – disse Martin, apontando um trecho na página que estava lendo. – Dessa forma, parece improvável ser uma coincidência que ela tenha sido assassinada.

 

– Sim, estou inclinado a concordar com você – disse Patrik, acelerando para ultrapassar um caminhão. – Mas não há mais nada que possa ser uma pista, não no diário pelo menos. E poderia ser qualquer um. Alguém na cidade, alguém no grupo, alguém da produção. Tudo que sabemos é que é um homem – notou que Martin começava a respirar fundo. – Como está? Está se sentindo mal? – uma olhada para seu colega confirmou. As sardas de Martin eram de um vermelho brilhante em seu rosto, que estava mais pálido que o normal, e seu peito subia e descia enquanto ele respirava com dificuldade.

 

– Quer que eu deixe entrar um pouco de ar? – disse Patrik, sem saber o que fazer. Sentia-se mal por seu colega, mas não tinha a menor vontade de dirigir até Lund em um carro cheirando a vômito. Martin assentiu com a cabeça, então Patrik apertou o botão para abrir a janela do lado do passageiro. Martin apoiou-se na porta, inspirando com sofreguidão, apesar de o ar estar misturado à fumaça dos escapamentos e não proporcionar tanto alívio quanto ele esperava.

 

Muitas horas depois, entravam no estacionamento da delegacia de Lund, as pernas dormentes e as costas doendo. Não se permitiram mais que uma breve pausa para ir ao banheiro e esticar as pernas, já que estavam ambos excitados com o que a reunião com o superintendente Kjell Sandberg poderia revelar. Tiveram que esperar poucos minutos na recepção até ele descer. Na verdade, ele deveria estar de folga nesse sábado, mas depois do telefonema de Patrik, concordara voluntariamente em vir à delegacia.

 

– Como foi a viagem? – disse Kjell Sandberg, mostrando o caminho de forma ágil. Era um homem muito pequeno (em torno de um metro e cinquenta e dois, Patrik supôs), mas parecia compensar sua baixa estatura com uma quantidade enorme de energia. Quando ele falava, usava o corpo todo e gesticulava muito. Martin e Patrik tiveram dificuldade para acompanhá-lo, já que ele praticamente corria à frente deles. A marcha finalmente os levou para uma sala de descanso, e Kjell fez um gesto para que Patrik e Martin entrassem primeiro.

 

– Achei que poderíamos nos sentar aqui em vez de no meu escritório – disse Kjell, apontando para uma mesa com uma pilha de pastas. A de cima estava com uma etiqueta que dizia “Börje Knudsen”, que Patrik havia aprendido no dia anterior ser o nome da vítima número três, ou dois, na contagem cronológica. Eles se sentaram, e Kjell empurrou a pilha de arquivos para Patrik.

 

– Passei o dia de ontem lendo tudo novamente. Depois que recebemos sua notificação, bem, eu devo dizer que comecei a pensar em vários casos de maneira diferente da que víamos na época. Ele sacudiu a cabeça lamentando-se, como se estivesse pedindo desculpas.

 

– Então não houve suspeita alguma na época, seis anos atrás? Nenhuma intuição de que algo não era o que parecia? – disse Patrik, com cuidado para não soar acusatório.

 

Kjell sacudiu a cabeça novamente. Seu bigodão movia-se comicamente quando ele mexia a cabeça.

 

– Não, nós honestamente não fazíamos ideia de que houvesse algo de suspeito na morte de Börje. Vocês têm que entender que Börje era um desses boêmios que nós já esperávamos encontrar morto algum dia. Ele esteve a ponto de morrer de tanto beber várias vezes, mas sempre escapava. Dessa vez nós pensamos que... Bem, nós simplesmente cometemos um erro – ele disse atirando as mãos para cima. Tinha uma expressão triste no rosto.

 

Patrik disse, consolador:

 

– Pelo que vejo, é um erro passível de se cometer nessa situação em particular. E por um bom tempo nós achamos que o nosso assassinato era um acidente também – essa admissão pareceu fazer Kjell se sentir melhor.

 

– O que o fez responder à nossa notificação? – perguntou Martin, tentando não olhar demais para o bigode pululante. Ele ainda estava um pouco pálido por conta da viagem e com agrado enfiou dois biscoitos na boca. Aquilo ajudou um pouco. Normalmente levava uma hora e pouco após uma longa viagem de carro até ele se sentir normal outra vez.

 

De início, Kjell não disse nada enquanto folheava a pilha de pastas, procurando por algo. E então ele pegou um arquivo, que abriu e colocou diante de Patrik e Martin.

 

– Vejam isso. Aqui estão as fotos de Börje quando nós o encontramos. Ele estava morto em seu apartamento fazia dez dias, então não é uma visão bonita – ele acrescentou. – Ninguém notou até o corpo começar a feder.

 

Kjell estava inegavelmente certo: era mesmo uma cena horrível. Mas o que chamou a atenção deles era algo que Börje tinha na mão. Parecia um pedaço de papel amassado. Quando folhearam as fotos, viram uma foto em detalhe do papel, depois de ter sido tirado da mão de Börje e desamassado. Era uma página do mesmo livro que Patrik e Martin conheciam tão bem. João e Maria, dos irmãos Grimm. Eles se entreolharam e Kjell disse:

 

– Sim, é uma coincidência estranha demais para ser acidente. E eu me lembrei disso porque parecia muito bizarro que Börje estivesse segurando uma página de um livro infantil. Ele não tinha filhos.

 

– Você ainda tem a página? – Patrik prendeu a respiração e sentiu seu corpo retesar-se de ansiedade. Kjell não disse uma palavra, mas um sorriso brincou nos cantos de sua boca e ele pegou um saco plástico que havia sido colocado na cadeira ao lado da dele.

 

– Uma combinação de sorte e habilidade – ele disse, sorrindo.

 

Patrik reverentemente pegou o saco plástico e estudou o conteúdo. Então entregou-o a Martin, que também examinou a página com excitação.

 

– E quanto ao resto? Os ferimentos e a causa da morte? – Patrik perguntou, tentando estudar as fotos do corpo de Börje mais de perto. Achou que podia ver sombras azuladas em torno da boca, mas o corpo estava em tal estado de decomposição que era difícil dizer – ele podia sentir seu estômago se revirar.

 

– Infelizmente, não tenho nenhuma informação sobre o trauma. Como eu disse, o corpo dele não dava condições para uma autópsia e Börje estava sempre em mau estado, então a pergunta é: será que nós teríamos investigado mesmo se... – sua voz morreu na garganta e Patrik compreendeu o que ele quis dizer. Börje era um bêbado que frequentemente se metia em brigas. O fato de ele presumivelmente ter bebido até morrer não dera nenhuma razão para uma investigação minuciosa. É claro que agora eles descobriam que sua suposição estava errada, mas Patrik não os podia culpar. Era fácil ver as coisas com clareza em retrospectiva.

 

– Mas ele tinha uma grande quantidade de álcool no corpo?

 

Kjell concordou e seu bigode pulou.

 

– Sim, essa parte está correta. Mas mesmo assim... Ele tinha um nível anormalmente alto de álcool no sangue, mas sua tolerância também havia crescido ao longo dos anos. A conclusão do médico legista era que Börje simplesmente bebeu uma garrafa toda e morreu de intoxicação por álcool.

 

– Ele tem algum parente com quem possamos falar?

 

– Não, Börje não tinha ninguém. As únicas pessoas com quem ele tinha contato eram policiais e seus companheiros de bebedeira. Além de qualquer um que ele conhecesse durante seus períodos na cadeia.

 

– Pelo que ele cumpriu pena?

 

– Ah, houve vários motivos. A lista está na pasta de cima, com as datas. Agressão, intimidação, dirigir embriagado, homicídio culposo, assalto, o que imaginar. Ele provavelmente passou mais tempo dentro do que fora, eu acho.

 

– Posso levar esse material comigo? – perguntou Patrik, cruzando os dedos.

 

Kjell assentiu.

 

– Sim, essa era a ideia. Prometa que vai nos avisar se pudermos ajudar mais. Eu vou investigar mais um pouco também, verificar se podemos desenterrar mais alguma coisa que possa lhes auxiliar.

 

– Agradecemos muito – disse Patrik enquanto ambos se levantavam para sair.

 

A caminho da saída, tiveram que dar uma corridinha para acompanhar Kjell.

 

– Vão voltar hoje à noite mesmo? – ele perguntou quando chegavam à entrada principal.

 

– Não, nós reservamos um quarto no Scandic. Assim podemos examinar o material à vontade antes de nossa próxima parada amanhã.

 

– Nyköping, certo? – de repente, Kjell ficou muito sério. – Não é muito comum para um assassino espalhar seus atos em lugares tão distantes.

 

– Não – disse Patrik, como a mesma seriedade. – Não é muito comum. Não é comum mesmo.

 

– Qual deles você quer? Rastrear os au-aus ou estudar o arquivo de Marit? – Gösta não conseguia esconder sua frustração quanto às tarefas que haviam lhe passado. Hanna também não parecia propriamente feliz. Ela provavelmente aguardara ansiosa por uma relaxante manhã de sábado, em casa, com seu marido. Mas Gösta tinha que admitir relutantemente que, se havia razões para fazer hora extra, esta certamente era uma delas. Uma investigação envolvendo cinco assassinatos não aparecia todos os dias na delegacia.

 

Ele e Hanna haviam se instalado na mesa da cozinha para enfrentar o trabalho que Patrik havia pedido que fizessem, mas nenhum dos dois se sentia minimamente entusiasmado. Gösta olhou para Hanna enquanto ela se servia de café, de pé à beira da pia. Ela já não era gorda quando começou a trabalhar na delegacia, mas agora ela, mais do que magra, estava cadavérica. Ele perguntou-se novamente como era a vida doméstica dela. Havia algo na expressão de Hanna que parecia tenso, quase atormentado, ultimamente. Talvez ela e o marido não pudessem ter filhos, especulou. Ela tinha quarenta anos e nenhum filho. Ele desejou poder oferecer um ombro amigo para qualquer coisa que ela quisesse lhe dizer, mas tinha a sensação de que tal oferta não seria bem recebida. Hanna puxou para trás uma mecha dos cabelos loiros. Ele pensou de repente que havia tanta vulnerabilidade, tanta incerteza naquele gesto simples. Hanna Kruse era certamente uma mulher de contradições. Na superfície era forte, resoluta e corajosa. Ao mesmo tempo, ele pensava que por breves momentos, em certos gestos, conseguia ler algo completamente diferente, algo... partido; era o mais próximo que ele era capaz de encontrar para descrevê-la. Mas, quando ela virou-se para ele, Gösta imaginou se não estava alucinando demais. A expressão dela agora era dura. Tinha um rosto forte. Nenhuma fraqueza evidente.

 

– Eu pego o arquivo de Marit – ela disse ao se sentar. Você pega os cachorros. Está bem assim? – ela olhou para ele sobre a borda da xícara.

 

– Claro, tudo bem. Eu disse que você poderia escolher.

 

Hanna sorriu e a forma como isso suavizou seu rosto fez Gösta sentir mais dúvida sobre suas especulações.

 

– É uma droga termos que trabalhar, não acha, Gösta? – ela disse, dando uma piscadela.

 

Ele não conseguiu evitar sorrir de volta. Afastou seus pensamentos sobre a vida privada de Hanna e decidiu simplesmente aproveitar a companhia de sua nova colega. Ele gostava mesmo dela.

 

– Está bem, eu pego os vira-latas – ele disse, ficando de pé.

 

– Au-au! – ela respondeu, rindo. E então começou a folhear os papéis à sua frente.

 

– Soube que houve certo drama aqui – disse Lars, com um olhar severo para os membros do elenco sentados em torno dele em círculo. Ninguém disse uma palavra. Ele tentou novamente.

 

– Alguém pode, por favor, me dar uma pista do que aconteceu?

 

– Tina se fez de palhaça – resmungou Jonna.

 

Tina olhou-a com desprezo.

 

– Fiz o caralho! – ela olhou para todos no círculo. – Vocês só estão com inveja porque não o encontraram e pensaram o mesmo!

 

– Eu nunca faria algo tão desprezível – disse Mehmet, olhando para as pontas dos sapatos. Ele andava com um desânimo fora do normal nos últimos dias. Lars mudou o foco para ele.

 

– Como vai, Mehmet? Você parece meio pra baixo.

 

– Não é nada – ele disse, ainda olhando intensamente para os próprios sapatos. Lars dirigiu-lhe um olhar inquisitivo, mas não o pressionou. Talvez as coisas transcorressem melhor na sessão individual. Lars voltou a Tina, que balançava a cabeça de maneira desafiadora.

 

– O que havia no diário que te chateou tanto? – ele disse, gentilmente. Tina fingiu fechar os lábios com zíper. – O que a fez considerar justificado deixar Barbie... Lillemor vulnerável dessa forma?

 

– Ela escreveu no diário que Tina não tem talento nenhum – disse Calle, solícito. Sua relação com Tina estava extremamente gélida desde a discussão no restaurante, e ele prontamente aproveitou a oportunidade de provocá-la. O comentário que ela fizera sobre ele ainda magoava, então sua voz tinha um tom de escárnio. – E não dá para culpar Barbie – acrescentou, friamente. – Ela só estava dizendo a verdade.

 

– Cale a boca, cale a boca, cale a boca! – Tina gritou histérica. Saliva projetava-se de sua boca.

 

– Vamos nos acalmar – disse Lars, sua voz taxativa. – Lillemor escreveu algo depreciativo sobre você em seu diário, então achou que poderia difamar a memória dela – olhou para Tina, inflexível, e ela evitou os olhos dele. Aquilo parecia tão... perverso e desprezível dito por ele daquela forma.

 

– Ela escreveu merda sobre todos vocês – ela disse, olhando para o grupo, na esperança de transferir para os demais um pouco de seu desprazer em relação a Lars. – Ela escreveu que você é um moleque mimado, Calle. E disse que você, Uffe, é uma das pessoas mais estúpidas que ela já conheceu, e que Mehmet é tão inseguro e preocupado em não conseguir agradar a família que seria melhor ele aprender a ter colhões! – fez uma pausa quando virou-se para Jonna. – E você... Ela disse que é tão patético isso de você se cortar. Ninguém foi poupado. Agora vocês sabem. Alguém ainda acha que devemos “honrar a memória de Barbie” ou qualquer dessas baboseiras que vocês têm falado? Se vocês se sentem culpados pelo que disseram a ela na festa, esqueçam! Ela teve o que mereceu! – Tina jogou os cabelos para trás, desafiando alguém a contradizê-la.

 

– Ela mereceu morrer também? – disse Lars, calmamente.

 

O silêncio se instalou no recinto. Tina roía uma unha, nervosa. Então levantou-se abruptamente e saiu correndo. Todos os olhos a seguiram.

 

A estrada se estendia sem fim à frente deles. Todas aquelas horas viajando de carro estavam começando a cansar Patrik. Ele virou a cabeça a fim de olhar para seu colega, no banco do motorista. Martin tinha se oferecido para dirigir hoje, na esperança de afastar a náusea. Até agora estava funcionando, e eles tinham menos que cem quilômetros até chegar a Nyköping. Martin bocejou e Patrik fez o mesmo. Os dois riram.

 

– Acho que ficamos acordados até muito tarde na noite passada – disse Patrik.

 

– É, eu também acho. Mas havia muito a estudar.

 

– É – disse Patrik. Trabalharam ardua e repetidamente nos detalhes do caso na noite anterior, no quarto de hotel de Patrik. Martin ficou fora de seu próprio quarto até altas horas. Ainda levara mais uma hora para os dois finalmente adormecerem, com todos os pensamentos e pontas soltas maquinando na mente deles.

 

– Como está Pia? – disse Patrik para fugir do assunto dos assassinatos.

 

– Ótima! – Martin iluminou-se. – Os enjoos matinais já passaram. Na verdade, ela se sente fantástica agora. Cara, eu estou tão animado!

 

– Sim, eu sei como é – Patrik estava pensando em Maja. Queria tanto estar em casa com ela e Erica que doía.

 

– Pia vai fazer um ultrassom para descobrir o sexo do bebê? – Patrik perguntou enquanto saíam da estrada principal, em direção a Nyköping.

 

– Bem, eu ainda não sei. Mas acho que não – Martin disse, prestando atenção às placas ao longo da estrada. – O que vocês fizeram? Vocês quiseram saber antes?

 

– Não. Parece que assim estaríamos trapaceando. Queríamos que fosse surpresa. E com o primeiro filho não importa muito, na verdade. Mas no segundo, seria legal se fosse menino, para termos um de cada.

 

– Vocês não estão...? – Martin virou-se para Patrik.

 

– Não, não, não – Patrik riu. – Ainda não, graças a Deus. Já temos bastante trabalho nos acostumando a viver com Maja. Mas talvez mais tarde...

 

– O que Erica acha disso? Considerando o problema que ela teve... – Martin parou, sem saber se havia problema em falar no assunto.

 

– Nós na verdade não conversamos sobre isso. Eu apenas supus que teríamos dois – disse Patrik, pensativo. – Bem, chegamos, afinal – notou, feliz por dar um fim ao assunto.

 

Eles saíram do carro com as pernas doloridas e espreguiçaram-se antes de entrar na delegacia. A rotina estava começando a parecer familiar, pelo menos para Patrik. Era a terceira vez em pouco tempo que ele visitava uma nova delegacia em uma nova cidade.

 

Quando conheceram o superintendente, Patrik viu mais uma vez, perplexo, como a polícia na Suécia era tão pouco homogênea. E como ele jamais conhecera alguém cuja aparência fosse tão diferente da imagem que havia criado com base no nome. Para começar, Gerda Svensson era muito mais jovem do que ele imaginara, por volta dos trinta e cinco. E apesar de seu nome extremamente sueco, sua pele tinha a mesma cor e brilho que mogno escuro. Era uma mulher de beleza impressionante. Patrik percebeu que estava de boca aberta, como um peixe, e um breve olhar para Martin mostrou-lhe que seu colega também estava agindo como um bobo. Patrik cutucou Martin nas costelas e então estendeu a mão para a superintendente Svensson.

 

– Meus colegas estão nos aguardando na sala de conferências – disse Gerda Svensson enquanto mostrava o caminho. Sua voz era grave e suave ao mesmo tempo, e extremamente agradável. Patrik podia sentir que era difícil tirar os olhos dela.

 

Eles não disseram nada enquanto caminhavam para a sala de conferências. O único som era o tamborilar de seus sapatos no assoalho. Quando entraram na sala, dois homens se levantaram e vieram até eles com as mãos estendidas. Um tinha por volta de cinquenta anos, era baixo e largo, mas com um brilho nos olhos e um sorriso caloroso. Apresentou-se como Konrad Meltzer. O outro tinha mais ou menos a idade de Gerda, era um loiro grande e altivo. Patrik não conseguiu evitar de pensar que ele e Gerda formavam um par espetacular. Quando ele se apresentou como Rickard Svensson, Patrik descobriu que seu palpite estava correto: eles eram mesmo um casal.

 

– Pelo que percebi, vocês têm um bom número de informações sobre um de nossos casos de assassinato que nunca foram solucionados – Gerda sentou-se entre Konrad e seu marido e nenhum deles pareceu se incomodar por ela assumir o controle. – Fui eu quem conduziu a investigação da morte de Elsa Forsell – disse ela, como se lesse a mente de Patrik. – Konrad e Rickard trabalharam comigo e nós dedicamos um bom tempo a essa investigação. Infelizmente, chegamos a um ponto em que não conseguimos avançar. Até que sua notificação chegou, anteontem.

 

– Soubemos que seu caso estava conectado com o nosso no instante que lemos sobre a página do livro – disse Rickard, entrelaçando as mãos sobre a mesa. Patrik se perguntou como seria ter sua esposa como chefe. Mesmo se considerando um homem liberal, ele sabia que seria um problema ter Erica como sua superior. Por outro lado, ela também não gostaria de tê-lo como chefe.

 

– Rickard e eu nos casamos depois do fim da investigação. Desde então trabalhamos em unidades diferentes – Gerda olhou para ele e Patrik se sentiu enrubescer. Por um momento ele se perguntou se ela realmente podia ler sua mente, mas logo percebeu que provavelmente não era tão difícil adivinhar o que ele estava pensando. Sem dúvida Patrik não era o primeiro.

 

– Onde a página do livro foi encontrada? – ele disse para mudar de assunto. Um sorrisinho brincava nos cantos da boca de Gerda, sinalizando que ela viu que ele compreendera a mensagem, mas foi Konrad que falou em seguida.

 

– Estava enfiada numa Bíblia, ao lado dela.

 

– Onde ela foi encontrada?

 

– Em seu apartamento. Por um dos membros da congregação.

 

– “Congregação”? – disse Patrik. – Que tipo de congregação?

 

– A Cruz da Virgem Maria – respondeu Gerda. – Uma congregação católica.

 

– Católica? – disse Martin. – Ela era de algum país mais ao sul?

 

– Existem católicos na Escandinávia também – disse Patrik, um pouco constrangido pela ignorância de Martin. – A religião é praticada no mundo todo e há alguns milhares de católicos aqui na Suécia.

 

– Exatamente – disse Rickard. – Há na verdade mais ou menos cento e sessenta mil católicos na Suécia. Elsa era fiel havia muitos anos, e a congregação era basicamente sua família.

 

– Ela não tinha nenhum parente? – perguntou Patrik.

 

– Não, não conseguimos encontrar ninguém próximo a ela – disse Gerda. – Nós fizemos muitas entrevistas com membros de sua congregação, para ver se havia algum cisma ali, algo que pudesse ter levado ao assassinato de Elsa. Mas não resultou em nada.

 

– Se quiséssemos conversar com alguém da congregação que fosse próximo a Elsa, quem seria? – Martin empunhou sua caneta, pronto para tomar notas.

 

– O padre, sem dúvida. Padre Silvio Mancini. E ele sim é do sul da Europa – Gerda deu uma piscadela para Martin, que enrubesceu.

 

– Ao que parece, a vítima de Tanumshede também apresentou indícios de ter sido amarrada? – Rickard dirigiu a pergunta a Patrik.

 

– Sim, é verdade. Nosso médico legista encontrou sulcos deixados por corda nos braços e nos punhos. Isso foi uma das coisas que os levaram a determinar a morte de Elsa como homicídio já de início?

 

– Sim – Gerda pegou uma foto e a deslizou até o outro lado da mesa, para Patrik e Martin. Eles olharam para ela por alguns segundos e viram que as marcas de corda eram bem evidentes. Elsa Forsell havia, sem a menor dúvida, fora amarrada. Patrik também reconheceu as estranhas marcas azuladas em torno da boca.

 

– Vocês também encontraram traços de fita adesiva? – ele olhou para Gerda, que concordou.

 

– Sim, vestígios de fita adesiva marrom comum – ela pigarreou. – Como devem imaginar, nós estamos muito interessados em ver todas as informações que vocês têm sobre esses dois homicídios. Nós, é claro, vamos compartilhar tudo o que possuímos. Eu sei que às vezes existe uma certa rivalidade entre distritos de polícia, mas nós sinceramente esperamos que possamos cooperar e manter os canais abertos. – aquilo não era um pedido, mas uma afirmação fria. Patrik concordou sem hesitar.

 

– É claro. Precisamos de toda a ajuda que conseguirmos. Incluindo a sua. Então, por favor, vamos compartilhar cópias de todo o material que ambos temos. E podemos manter contato por telefone.

 

– Que bom – disse Gerda.

 

Patrik notou o olhar admirado que ela recebeu de seu marido. O respeito de Patrik por Rickard Svensson cresceu. Era preciso ser homem o bastante para dar valor a ter uma esposa em posição hierárquica superior.

 

– Sabem onde podemos encontrar o padre Mancini? – disse Martin enquanto se levantavam para ir embora.

 

– A congregação católica fica no centro da cidade – Konrad rabiscou o endereço e deu o pedaço de papel a Martin. Ele também explicou o caminho. – Depois que conversarem com padre Silvio, vocês podem voltar e pegar um pacote com todo o material na recepção – disse Gerda enquanto cumprimentava Patrik. – Eu vou providenciar que cópias de tudo sejam feitas para vocês.

 

– Obrigado por sua ajuda – disse Patrik, e era mesmo como se sentia. A cooperação entre distritos não era, como Gerda observara, uma coisa muito comum na polícia, por isso ele estava muito contente que essa investigação teria um rumo diferente.

 

– Quando você vai parar com essa estupidez?

 

Jonna fechou os olhos. A voz de sua mãe ao telefone era sempre tão dura, tão acusatória.

 

– Papai e eu conversamos e nós realmente achamos que é irresponsável de sua parte desperdiçar sua vida assim. E nós temos que pensar também em nossa reputação no hospital; você precisa entender que nos faz passar vergonha!

 

– Eu sabia que isso tinha alguma coisa a ver com o hospital – Jonna murmurou.

 

– O que você disse? Você precisa falar alto para eu poder ouvir o que você está dizendo, Jonna. Você já tem dezenove anos e precisa aprender a articular as palavras da maneira correta. E eu tenho que dizer que esses artigos recentes nos jornais têm nos chateado especialmente, a seu pai e a mim. As pessoas estão começando a se perguntar que tipo de pais nós somos. E nós fizemos nosso melhor, posso te assegurar. Mas papai e eu temos um trabalho importante e você já tem idade suficiente, Jonna, para entender isso. Você precisa mostrar um pouco de respeito pelo que nós fazemos. Sabe, ontem eu fiz uma cirurgia em um menino russo, que veio até aqui em busca de tratamento para curar um defeito grave no coração. Ele não conseguiu fazer a cirurgia em sua terra natal, mas eu pude ajudá-lo! Graças a mim, ele vai sobreviver e ter uma vida útil! Eu acho que você deve mostrar um pouco mais de humildade para com a vida, Jonna. Tudo foi sempre tão fácil para você. Alguma vez já te negamos alguma coisa? Você sempre teve roupas, um teto, comida na mesa. Pense em todas as crianças que não têm nem metade disso, não, nem um décimo de tudo o que você recebeu. Eles agradeceriam se estivessem no seu lugar. E eles definitivamente não fariam idiotices nem feririam a si mesmos. Não, eu acho que você está sendo egoísta, Jonna. Está mais do que na hora de você crescer! Papai e eu achamos que...

 

Jonna desligou o telefone e deslizou lentamente até sentar-se no chão, com as costas contra a parede. A ansiedade cresceu mais e mais até parecer querer jorrar garganta afora. Consumia cada parte de seu corpo, fazendo-a sentir que ia explodir. A sensação de não ter para onde ir, para onde fugir, a subjugava agora como já acontecera várias vezes. Com as mãos trêmulas, ela pegou a lâmina que sempre guardava na carteira. Seus dedos tremiam tanto que ela derrubou a lâmina e com um palavrão tentou pegá-la do chão. Cortou os dedos várias vezes, mas conseguiu pegá-la e então a passou lentamente pela parte de baixo de seu antebraço direito. Profundamente concentrada, olhava para a lâmina enquanto a baixava contra a pele coberta de cicatrizes, que parecia uma paisagem lunar, alternando pele branca e rosada, com sulcos vermelhos precisos, como rios minúsculos. Quando a primeira gota de sangue pingou, ela sentiu a ansiedade diminuir. Pressionou mais e o pequeno riacho transformou-se em um rio, vermelho e pulsante. Jonna assistiu com alívio escrito por todo o seu rosto. Ergueu a lâmina e desenhou um novo rio entre as cicatrizes. E então levantou a cabeça e sorriu para a câmera. Parecia quase em êxtase.

 

– Estamos procurando o padre Silvio Mancini – Patrik mostrou seu distintivo para a mulher que abriu a porta. Ela deu um passo para o lado e chamou:

 

– Silvio! A polícia está aqui a respeito de alguma coisa!

 

Um homem de cabelos brancos, vestindo jeans e um suéter veio até eles. Patrik esperava que aparecesse com toda a indumentária de clérigo, não em roupas casuais. Ele sabia que o padre não andava de batina o tempo todo, mas mesmo assim levou um segundo para se recuperar da surpresa.

 

– Eu sou Patrik Hedström e esse é Martin Molin – ele disse, apontando para o colega. O padre balançou a cabeça e mostrou-lhes um jogo de sofás. O santuário era pequeno, mas bem cuidado e havia vários dos atributos que Patrik, com seus conhecimentos de leigo, associava ao catolicismo, como imagens da Virgem Maria e um crucifixo grande. A mulher que abrira a porta para eles trouxe café e bolo. O padre Silvio agradeceu carinhosamente. Ela sorriu em resposta, mas retirou-se logo em seguida. O padre Silvio voltou sua atenção a eles e perguntou em sueco perfeito, mas com inconfundível sotaque italiano:

 

– Sim, o que posso fazer pela polícia?

 

– Gostaríamos de fazer algumas perguntas sobre Elsa Forsell.

 

Padre Silvio suspirou.

 

– Eu tinha esperança de que mais cedo ou mais tarde a polícia encontrasse algum tipo de pista. Mesmo acreditando piamente no fogo do purgatório, prefiro que o assassino receba a punição ainda em vida – ele sorriu, demonstrando bom humor e compaixão ao mesmo tempo. Patrik teve a impressão de que ele e Elsa eram próximos, o que se confirmou pelo comentário seguinte de padre Silvio.

 

– Elsa foi uma boa amiga por muitos e muitos anos. Era muito envolvida com os assuntos da congregação, e eu era também seu confessor.

 

– Elsa nasceu católica?

 

– Não, não nasceu – padre Silvio disse, rindo. – Poucos nascem católicos na Suécia, a não ser os que vêm de família que tenha imigrado de um país católico. Mas ela veio a uma de nossas missas e, sim, eu acredito que ela sentiu ter encontrado um lar. Elsa era... o que você pode chamar de uma alma perdida. Ela estava procurando alguma coisa e sentia que havia encontrado isso conosco.

 

– E o que ela procurava? – disse Patrik. Todo o comportamento do padre era um testemunho do fato de que ele era um homem de grande compaixão, um homem que irradiava calma e paz. Um verdadeiro homem de Deus.

 

Padre Silvio levou um tempo para responder. Parecia querer pesar as palavras, mas finalmente olhou bem nos olhos de Patrik e disse:

 

– Perdão.

 

– Perdão? – perguntou Martin.

 

– Perdão – o padre Silvio repetiu calmamente. – É o que todos nós buscamos, a maioria sem saber. Perdão por nossos pecados, por nossas falhas, por nossas deficiências e erros. Perdão por coisas que fizemos... e por coisas que não fizemos.

 

– E Elsa Forsell buscava perdão pelo quê? – Patrik perguntou baixinho, olhando atentamente para o padre. Por um momento pareceu que padre Silvio estava a ponto de dizer-lhes algo. Então baixou os olhos e disse:

 

– A confissão é um sacramento. E o que importa? Todos nós temos algo pelo que ser perdoados.

 

Patrik intuiu que havia algo mais por trás daquelas palavras, mas conhecia o bastante sobre o voto de silêncio de um padre para tentar pressionar o clérigo.

 

– Por quanto tempo Elsa foi membro de sua igreja? – perguntou.

 

– Por dezoito anos – disse o padre Silvio. – Como eu disse, nos tornamos grandes amigos ao longo dos anos.

 

– Sabe se Elsa tinha algum inimigo? Alguém poderia querer fazer mal a ela?

 

Novamente o padre hesitou, depois sacudiu a cabeça.

 

– Não, não sei nada sobre isso. Elsa não tinha mais ninguém a não ser nós, amigo ou inimigo. Nós éramos a família dela.

 

– Isso é comum? – perguntou Martin, e não conseguia esconder um tom cético.

 

– Sei no que está pensando – o homem de cabelos brancos disse calmamente. – Mas nós não temos princípio de não admissibilidade nem restrições com relação a nossos devotos. A maior parte deles tem família e amigos, como em qualquer congregação cristã. Mas Elsa só tinha a nós.

 

– Com relação ao modo como ela morreu – disse Patrik –, alguém forçou uma grande quantidade de álcool garganta abaixo. Qual era a opinião de Elsa no que dizia respeito ao álcool?

 

Mais uma vez, Patrik pensou ter sentido certa hesitação, uma relutância para falar, mas em vez disso o padre disse, rindo:

 

– Elsa era provavelmente como a maioria nesse ponto. Ela poderia beber uma taça de vinho ou duas em um sábado à noite, às vezes. Mas nunca em excesso. Não, eu diria que ela tinha um comportamento normal no tocante ao álcool. Eu a ensinei a apreciar vinhos italianos, a propósito, e nós ocasionalmente fazíamos degustações aqui. Isso era comum.

 

Patrik ergueu uma sobrancelha. O padre católico estava verdadeiramente o surpreendendo.

 

Após uma pausa para considerar se tinha mais alguma coisa a perguntar, Patrik colocou seu cartão sobre a mesa diante deles.

 

– Se lembrar de mais alguma coisa, por favor, ligue para nós.

 

– Tanumshede – disse o padre Silvio, lendo o cartão. – Onde é isso?

 

– Na costa oeste – disse Patrik, levantando-se. – Entre Strömstad e Uddevalla.

 

Patrik observou com espanto toda a cor se esvair do rosto de padre Silvio. Por um momento, ele parecia tão pálido quanto Martin estivera durante a viagem para Lund, no dia anterior. E então o padre se recompôs e concordou com um gesto breve. Atônitos, Patrik e Martin se despediram, ambos com a sensação de que padre Silvio sabia muito mais do que estava dizendo.

 

Havia um ar de expectativa na delegacia. Todos estavam ansiosos para ouvir o que Patrik e Martin tinham encontrado durante sua excursão no fim de semana. Patrik dirigiu diretamente para a delegacia quando voltaram de Nyköping e passara algumas horas se preparando para a reunião. Por isso as paredes de seu escritório estavam cobertas de fotografias e anotações, e ele havia rabiscado lembretes e desenhado flechas aqui e ali. Parecia caótico, mas ele logo poria ordem na confusão.

 

O local ficou apertado quando todos se reuniram em seu escritório, mas ele não quis colocar o material da investigação em nenhum outro lugar, então era ali que teriam de se encontrar. Martin chegou primeiro e sentou-se no fundo, depois Annika, Gösta, Hanna e Mellberg se apresentaram. Ninguém disse uma palavra enquanto inspecionavam o material colado nas paredes. Cada um deles tentava encontrar o fio da meada que os levaria a um assassino.

 

– Como sabem, Martin e eu visitamos duas cidades nesse fim de semana, Lund e Nyköping. Ambas as delegacias haviam nos contatado porque tinham casos que se encaixavam no critério que levantamos com base nos assassinatos de Marit Kaspersen e Rasmus Olsson. A vítima de Lund – ele virou-se e apontou para uma fotografia na parede – era Börje Knudsen. Ele tinha cinquenta e dois anos e era um conhecido alcoólatra. Foi encontrado em seu apartamento. Já estava morto havia tanto tempo que infelizmente foi impossível distinguir quaisquer traços dos tipos de ferimento que documentamos nas outras vítimas. Por outro lado – Patrik fez uma pausa para beber um gole d’água de um copo que estava sobre sua mesa –, ele tinha isso na mão – ele apontou para um saco plástico preso na parede por um percevejo, ao lado da fotografia, contendo a página do livro infantil.

 

Mellberg levantou a mão.

 

– Tivemos resposta do LNC se há alguma impressão digital nas páginas que encontramos ao lado de Marit e Rasmus?

 

Patrik estava surpreso por seu chefe estar tão alerta.

 

– Sim, tivemos resposta e as páginas foram devolvidas – ele apontou para as páginas penduradas ao lado das fotos de Marit e Rasmus. – Infelizmente não havia digitais nelas. A página encontrada com Börje nunca foi examinada, por isso vai para o LNC hoje. Entretanto, a página do livro encontrada com a vítima de Nyköping, Elsa Forsell, foi examinada durante a investigação. Com resultado negativo.

 

Mellberg assentiu para indicar que estava satisfeito com a resposta.

 

Patrik prosseguiu:

 

– O caso de Börje foi classificado como acidente; eles acreditavam que ele simplesmente tinha bebido até morrer. A morte de Elsa Forsell, no entanto, foi investigada por nossos colegas de Nyköping como um homicídio, mas eles nunca encontraram o criminoso.

 

– Eles tinham algum suspeito? – perguntou Hanna. Ela parecia resoluta e concentrada, mas um tanto pálida. Patrik ficou preocupado que ela pudesse estar ficando doente. Ele não podia se dar ao luxo de perder ninguém nessa situação.

 

– Não, não havia suspeitos. Ela só tinha contato com os membros de sua congregação católica e ninguém parecia ter nada contra ela. Ela também foi morta em seu apartamento – ele apontou para a fotografia tirada na cena do crime – e enfiada em sua Bíblia, ao lado do corpo eles encontraram isto – ele moveu seu dedo para apontar para a página de João e Maria.

 

– Que tipo de doente é essa pessoa? – disse Gösta, incrédulo. – O que esse conto de fadas tem a ver com qualquer coisa?

 

– Não tenho ideia, mas sinto que é a chave para toda a investigação.

 

– Temos que torcer para a imprensa não descobrir isso – Gösta murmurou. – Senão, isso vai se transformar em “O Assassino de João e Maria”, considerando quanto eles gostam de dar apelidos a criminosos.

 

– Bem, eu não preciso enfatizar a importância de que isso não vaze para a imprensa – disse Patrik, evitando cuidadosamente olhar para Mellberg. Apesar de ser o chefe, ele era um língua solta. Mas mesmo Mellberg parecia estar farto da atenção da imprensa nas últimas semanas, porque concordou.

 

– Você teve alguma intuição de qual seria o ponto em comum entre os assassinatos? – disse Hanna.

 

Patrik olhou para Martin, que disse:

 

– Não, infelizmente voltamos à estaca zero. Börje definitivamente não era abstêmio e Elsa parecia ter um comportamento normal quanto ao álcool, nem abstêmia nem consumidora exagerada.

 

– Então não temos nenhuma ideia de como os assassinatos estão relacionados? – Hanna disse, parecendo preocupada.

 

Patrik suspirou e virou-se para deixar os olhos varrerem o material pendurado nas paredes.

 

– Não – ele disse. – Tudo que sabemos é que provavelmente a mesma pessoa cometeu todos os crimes; fora isso não há nenhum ponto em comum entre eles. Não há nada que indique que Elsa e Börge tivessem qualquer conexão com Marit ou Rasmus ou com os lugares onde viviam. Mas é claro que teremos que voltar a conversar com os parentes de Marit e Rasmus para ver se eles reconhecem o nome de Börje ou Elsa ou se sabem se Marit ou Rasmus já moraram em Lund ou Nyköping. No momento, estamos tateando no escuro, mas deve haver uma conexão. Tem de haver! – disse Patrik, frustrado.

 

– Você pode marcar os locais no mapa? – disse Gösta, apontando o mapa da Suécia que havia nos fundos da sala.

 

– Claro! É uma boa ideia – disse Patrik, pegando alguns percevejos coloridos de uma caixa na gaveta de sua escrivaninha. Cuidadosamente, fixou os quatro percevejos no mapa: um em Tanumshede, um em Borås, um em Lund e um em Nyköping.

 

– O assassino pelo menos está se concentrando na região sul da Suécia. Isso de alguma forma reduz a área de busca – disse Gösta, azedo.

 

– Sim, damos graças ao mínimo que conseguimos – disse Mellberg com um risinho, mas se conteve quando ninguém pareceu achar seu comentário engraçado.

 

– Então, temos muito a fazer agora – disse Patrik, sério. – E não podemos perder o foco no caso Persson também. Gösta, conseguiu algo com a lista de criadores de cães?

 

– Está pronta. Consegui localizar cento e sessenta criadores. Deve haver alguns que não estão incluídos em nenhuma lista oficial. Mas é o mais perto que conseguimos chegar.

 

– Siga com esses que você tem, compare com a lista de endereços e veja se algum pode estar ligado a essa região.

 

– Com certeza – disse Gösta.

 

– Pensei em ver se é possível conseguir mais informações com as páginas do livro – disse Patrik. – Martin e Hanna, vocês podem falar com Ola e Kerstin novamente e ver se eles reconhecem o nome de Börje ou Elsa? Falem também com Eva, a mãe de Rasmus Olsson. Mas façam isso por telefone, pois preciso de vocês aqui.

 

Gösta levantou a mão, hesitante.

 

– Acha que devo conversar com Ola Kaspersen outra vez? Hanna e eu falamos com ele na sexta-feira e eu tive a sensação de que ele não disse tudo o que sabe.

 

Hanna olhou para Gösta.

 

– Eu não notei isso – ela disse, insinuando que Gösta estava falando besteira.

 

– Mas você deve ter notado quando... – Gösta virou-se para discutir com Hanna, mas Patrik o interrompeu:

 

– Vocês dois vão a Fjällbacka e falem com Ola. Annika pode cuidar da lista de criadores de cães. Eu gostaria de ver a lista, então deixe-a na minha mesa quando estiver pronta.

 

Annika concordou e fez uma anotação.

 

– Martin, você assiste à gravação da noite em que Barbie morreu. Podemos ter deixado algo passar ali, então veja os registros quadro a quadro.

 

– Pode deixar – disse Martin.

 

– Então, mãos à obra – disse Patrik, colocando as mãos na cintura. Todos se levantaram e saíram. Sozinho na sala, Patrik olhou em volta novamente. A tarefa era um desafio assustador. Como iriam encontrar uma conexão no meio de tudo aquilo?

 

Ele tirou da parede as quatro páginas arrancadas e teve um branco mental. Como ele tiraria qualquer informação adicional daquelas páginas? Uma ideia lhe ocorreu. Patrik vestiu o paletó, colocou cuidadosamente as páginas em uma pasta e saiu rapidamente da delegacia.

 

Martin colocou os pés sobre a mesa, com o controle remoto na mão. Estava ficando cansado daquilo tudo. Fora tudo muito árduo, difícil, tenso nas últimas semanas. Acima de tudo, havia tido pouco descanso e passado pouquíssimo tempo com Pia e a “almazinha”, que era o nome do projeto em andamento dos dois.

 

Apertou “play” e deixou a fita iniciar para depois passar para câmera lenta. Já tinha visto o vídeo uma vez e questionava a utilidade de assistir a ele novamente. Como podiam saber se o assassino ou alguma pista havia sido captada em vídeo? Aparentemente Lillemor encontrou sua morte depois de fugir do centro comunitário. Mas Martin estava acostumado a fazer o que lhe pediam e não estava preparado para discutir com Patrik.

 

Sentiu-se sonolento pela posição em que se encontrava e por estar olhando para a TV. O avançar lento só aumentou sua fadiga e teve que forçar suas pálpebras a permanecerem abertas. Nada novo apareceu na tela. Primeiro veio a discussão entre Uffe e Lillemor. Ele mudou para velocidade normal a fim de poder ouvir o áudio e mais uma vez achou que a briga havia sido horrível. Uffe acusava Lillemor de falar mentiras sobre ele, de ter dito aos outros que ele era estúpido, burro, um “Neandertal”. E Lillemor se defendia com lágrimas nos olhos, dizendo que não havia falado nada daquilo a ninguém, que era mentira, que alguém estava armando para ela. Uffe parecia não acreditar nela, e a altercação tornou-se mais física. Nessa hora Martin viu a si mesmo e Hanna entrar em quadro e separar a briga. A câmera ocasionalmente fechava o foco em seus rostos e ele viu que aparentavam estar tão determinados quanto de fato se mostravam no momento.

 

Depois vieram quase quarenta e cinco minutos de gravação em que nada aconteceu. Martin tentou prestar o máximo de atenção que pôde, procurando encontrar coisas que pudesse ter deixado passar da primeira vez, talvez algo que tenha sido dito, algo sobre outras pessoas. Mas nada era particularmente interessante. Não havia nada de novo. E o sono constantemente ameaçava fechar seus olhos. Ele pausou e foi pegar uma xícara de café. Precisava de toda ajuda possível para se manter acordado. Depois de apertar “play” outra vez, sentou-se bem ereto e continuou a ver a fita. Uma briga começou entre Tina, Calle, Jonna, Mehmet e Lillemor. Ele ouviu deles as mesmas acusações que escutara de Uffe. Eles gritavam com Lillemor, empurrando-a e perguntando que porra de ideia era aquela de ela sair falando mal de todos. Viu Jonna atacá-la com violência. Lillemor defendeu-se novamente, chorando tanto que a maquiagem corria por seu rosto, como riachos escuros. Martin sentiu-se tocado pela forma como de repente ela parecia pequena, indefesa e jovem por trás daqueles cabelos, maquiagem e silicone. Era só uma garotinha. Ele bebeu um gole do café e viu na tela como ele e Hanna intercederam para separar a briga. A câmera às vezes seguia Hanna, que conduziu Lillemor para um canto e às vezes o seguia. Com expressão furiosa no rosto, ele deu uma bronca nos participantes. Então a câmera virou para o estacionamento e ele viu Lillemor correndo na direção do centro da cidade. A câmera aproximou o foco de suas costas enquanto ela se afastava, depois em Hanna falando ao telefone e então em Martin, que ainda parecia enfurecido, enquanto via Lillemor fugir.

 

Depois de mais uma hora, ele vira nada mais que jovens bêbados e o elenco participando ativamente da festa. Lá pelas três da manhã, o último convidado foi embora, e as câmeras pararam de filmar. Martin ficou ali, olhando através da tela escura, enquanto voltava a fita. Não poderia dizer que encontrara nada de novo, que pudesse ser um passo adiante. Mas algo remoía em seu subconsciente, como um cisco em seu olho. Olhou para a tela escura e apertou “play” outra vez.

 

– Eu só tenho uma hora para o almoço – disse Ola, pouco amistoso, quando abriu a porta. – Então, sejam rápidos – Gösta e Hanna entraram e tiraram os sapatos. Nunca tinham estado na casa de Ola, mas não ficaram surpresos em ver quão organizada e limpa era. Tinham visto seu escritório, afinal.

 

– Eu vou comer enquanto conversamos – disse Ola, apontando para um prato com arroz, filé de frango e ervilhas. Sem molho, Gösta notou, ele que jamais pensaria em comer uma refeição sem molho. Por outro lado, ele era abençoado por ter um metabolismo que evitava o ganho de peso. Ele ainda não tinha barriga, apesar de sua dieta altamente calórica. Talvez Ola não tivesse essa sorte.

 

– O que querem agora? – disse Ola, espetando cuidadosamente algumas ervilhas com o garfo. Gösta observou fascinado como Ola parecia ter aversão por misturar diferentes tipos de alimento na mesma garfada. Ele comia meticulosamente as ervilhas, depois o arroz e depois o frango, separadamente.

 

– Nós obtivemos algumas informações novas desde a última vez – Gösta disse, seco. – Os nomes Börje Knudsen ou Elsa Forsell soam familiares?

 

Ola franziu a testa e virou-se quando ouviu um som atrás de si. Sofie entrou no recinto e olhou intrigada para Gösta e Hanna.

 

– O que está fazendo em casa? – disse Ola furioso, encarando a filha.

 

– Eu... eu não me sinto bem – ela disse. Ela parecia mesmo estar doente.

 

– O que há com você? – Ola disse nem um pouco convencido.

 

– Eu passei mal. Vomitei – e suas mãos trêmulas, combinadas com uma camada fina de suor em sua pele, pareceram convencer seu pai.

 

– Vá se deitar, então – ele disse em um tom de voz ligeiramente mais doce. Mas Sofie sacudiu a cabeça, negativamente.

 

– Não, eu quero me sentar aqui com você.

 

– Eu disse para ir se deitar – a voz de Ola era firme, mas o olhar de sua filha era ainda mais teimoso. Sem responder, ela se sentou em uma cadeira na ponta mais distante. Mesmo parecendo obviamente desconfortável por tê-la ali, Ola não disse nada, porém comeu mais uma garfada de arroz.

 

– O que você estava perguntando? Quais eram os nomes mesmo? – perguntou Sofie, dirigindo a Gösta e Hanna um olhar vazio. Ela parecia ter febre.

 

– Estávamos perguntando se seu pai, ou você, já ouviram os nomes Börje Knudsen ou Elsa Forsell.

 

Sofie pareceu pensar por um momento, depois balançou a cabeça negativamente e olhou para o pai inquisitiva.

 

– Pai, reconhece esses nomes?

 

– Não – disse Ola. – Nunca ouvi esses nomes. Quem são?

 

– Outras duas vítimas de homicídio – disse Hanna, baixinho.

 

Ola teve um sobressalto e parou com o garfo na metade do caminho em direção à boca.

 

– O que você disse?

 

– Duas pessoas que foram vítimas do mesmo assassino que matou sua ex-esposa. E sua mãe – Hanna acrescentou suavemente sem olhar para Sofie.

 

– Que diabos estão dizendo? Primeiro vocês vêm aqui e perguntam daquele tal Rasmus. E agora aparecem com mais dois? O que a polícia está fazendo, afinal?

 

– Estamos trabalhando dia e noite – disse Gösta, ácido. Havia algo naquele cara que realmente o aborrecia. Respirou fundo e disse: – As vítimas viviam em Lund e Nyköping. Marit tinha alguma ligação com essas cidades?

 

– Quantas vezes vou ter que te dizer? – Ola vociferou. – Marit e eu nos conhecemos na Noruega, nos mudamos para cá juntos para trabalhar quando tínhamos dezoito anos. E não vivemos em outro lugar senão aqui desde então! Você é retardado ou o quê?

 

– Papai, acalme-se – disse Sofie, pondo a mão no braço dele. Aquilo pareceu ajudar e ele disse calmamente com a voz gélida:

 

– Eu acho que vocês deviam fazer seu trabalho em vez de correr até aqui para nos interrogar. Nós não sabemos de nada!

 

– Talvez você não saiba que sabe de algo – disse Gösta. – É nosso trabalho descobrir tudo o que pudermos.

 

– Acha que sabemos algo sobre por que minha mãe foi morta? – Sofie disse com tristeza na voz. Pelo canto do olho, Gösta viu Hanna virar a cabeça. Apesar de sua aparência durona, parecia atormentá-la falar com os parentes. Uma característica penosa, porém de alguma forma positiva para um policial ter. Gösta mesmo sentia que tinha ficado meio endurecido em tantos anos na polícia. Em um momento de clareza, percebeu que talvez fosse esse o porquê de sua repulsa em relação ao trabalho nos anos mais recentes. Sua cota de miséria estava preenchida e psicologicamente ele simplesmente se fechara.

 

– Não podemos discutir isso agora – ele disse a Sofie, que realmente aparentava estar passando mal. Ele torceu para que não fosse contagioso. Aparecer na delegacia com uma gastroenterocolite nesse momento e deixar todo mundo doente não o tornaria muito popular.

 

– Não há nada, nada mesmo, que você não tenha nos contado sobre Marit? Algo que queira nos dizer agora? Algo que seja útil para encontrar uma conexão entre Marit e as outras vítimas? – Gösta olhou fixamente para Ola. Estava com a mesma sensação que teve quando conversaram com ele na empresa. Havia algo que ele não queria contar.

 

No entanto, sem piscar, Ola disse com os dentes cerrados:

 

– Nós-não-sabemos-de-nada! Vá lá e fale com aquela sapatão, talvez ela saiba de algo!

 

– Eu... eu... – Sofie gaguejou, olhando incerta para seu pai. Ela parecia querer formar palavras, mas não sabia como. – Eu... – ela começou novamente, mas um olhar de Ola a fez calar-se. Então ela saiu correndo da cozinha, cobrindo a boca com a mão. Do banheiro, ouviu-se o som dela vomitando.

 

– Minha filha está doente. Eu gostaria que vocês fossem embora agora.

 

Gösta olhou para Hanna e ela deu de ombros. Eles dirigiram-se para a porta. Ele se perguntou o que Sofie tentou dizer a eles.

 

A biblioteca estava calma e silenciosa na manhã de segunda-feira. Antes, ela ficava localizada a uma distância confortável para ir à pé da delegacia, mas agora que havia se mudado para um novo edifício, Patrik tinha que ir de carro. Não havia ninguém atrás do balcão quando ele entrou, mas depois que ele disse um cauteloso “Olá”, a bibliotecária de Tanumshede surgiu por trás de uma das prateleiras.

 

– Oi, o que está fazendo aqui? – disse Jessica, surpresa, erguendo uma sobrancelha. Patrik percebeu que fazia um tempo que não punha os pés na biblioteca. Desde o ensino médio, mais ou menos. Quantos anos fazia? Ele não quis pensar nisso. Definitivamente não desde quando Jessica tornou-se a bibliotecária, de qualquer forma, já que ela tinha a mesma idade que ele.

 

– É, oi. Eu gostaria de saber se você pode me ajudar com uma coisa – Patrik colocou a pasta sobre a mesa em frente ao balcão de saída de livros e tirou com cuidado os sacos plásticos com as páginas do livro. Jessica veio até ele para olhar o que ele colocava à sua frente. Ela era alta e magra e tinha, na altura dos ombros, cabelos loiros cor de mel, que estavam presos em um prático rabo de cavalo. Um par de óculos descansava sobre a ponta de seu nariz, e Patrik pensou se usar óculos era um pré-requisito para entrar no curso de Biblioteconomia.

 

– Claro, basta me dizer com o que você precisa de ajuda.

 

– Eu tenho algumas páginas de um livro infantil aqui – disse Patrik, apontando para as páginas arrancadas. – Gostaria de saber se é possível dizer de que livro vieram ou, mais precisamente, qual é a ordem correta delas.

 

Jessica colocou os óculos no lugar e cuidadosamente pegou os sacos plásticos e começou a estudá-los. Posicionou-os em uma linha reta e depois os moveu para lá e para cá.

 

– Agora estão em ordem – ela disse, satisfeita.

 

Patrik inclinou-se e olhou. Sim, ela estava certa. Agora a história se desenrolava como devia, a começar pela página que estava na Bíblia de Elsa Forsell. Aquela tinha sido uma ideia brilhante, a sua. As páginas agora estavam na mesma ordem dos assassinatos. Primeiro vinha a página de Elsa Forsell, depois a de Börje Knudsen, depois a de Rasmus Olsson e finalmente a que haviam encontrado ao lado de Marit Kaspersen no carro. Ele dirigiu a Jessica um olhar agradecido.

 

– Você já me ajudou – ele disse, estudando as páginas novamente. – Pode me dizer algo sobre o livro? De onde vem?

 

A bibliotecária pensou por um momento e então deu a volta no balcão e começou a digitar algo no computador.

 

– Eu acho que o livro parece bem antigo. Provavelmente já foi publicado há um bom tempo. Dá para ver pelo estilo das ilustrações e pela forma como o sueco soa no texto.

 

– Que idade você diria que tem? – Patrik não conseguia esconder a ansiedade na voz.

 

Jessica olhou para ele por sobre os aros dos óculos. Por um momento, pensou que ela tinha uma incrível semelhança com Annika. Então ela disse:

 

– É isso que estou tentando descobrir. Se pelo menos eu conseguisse um pouco de silêncio por um minuto.

 

Patrik sentiu-se como um menino após tomar uma bronca na escola. Manteve a boca fechada enquanto olhava os dedos de Jessica voando sobre o teclado.

 

Depois de um tempo, que pareceu uma eternidade para Patrik, ela disse:

 

– A história de João e Maria foi publicada em várias edições aqui na Suécia ao longo dos anos. Mas eu ignorei todas as que vieram depois de 1950, então elas são em número consideravelmente menor. Antes de 1950, vejo dez edições. Eu diria que essa é uma das edições dos anos 1920. Vou ver se consigo localizá-la em um site de sebo e encontrar uma boa imagem dessas edições – ela digitou mais um pouco e Patrik teve que impedir a si mesmo de bater o pé no chão de impaciência.

 

Finalmente ela disse:

 

– Veja. Essa imagem lhe parece familiar?

 

Ele dirigiu-se para o lado dela e sorriu de satisfação quando viu uma imagem de capa que era definitivamente desenhada no mesmo estilo que as ilustrações das páginas que eles haviam encontrado ao lado das vítimas.

 

– Essa é a boa notícia – disse Jessica. – A má é que ele não é um livro único. Saiu em 1924 e mil cópias foram impressas. E não há garantia de quem quer que o possuísse o tenha comprado ou ganhado de presente quando foi lançado. Ele ou ela pode tê-lo encontrado em um sebo qualquer. Na busca em sites que listam os livros em estoque, encontrei dez cópias à venda em diferentes partes do país hoje.

 

Patrik sentiu seu humor despencar. Sabia que era um tiro no escuro, mas ainda alimentava uma mínima esperança de encontrar uma pista por meio do livro. Voltou para o balcão e olhou com raiva para as páginas dispostas sobre a mesa. O que mais queria era despedaçá-las por pura frustração, mas se conteve.

 

– Notou que falta uma página? – Jessica perguntou, indo para o lado dele. Patrik olhou para ela, atônito.

 

– Não, eu não pensei nisso.

 

– Dá para ver pela numeração das páginas – ela apontou para uma das folhas. – A primeira folha que você tem são as páginas cinco e seis e daí pula para nove e dez, e onze e doze e a última é treze e catorze. Então a folha com as páginas sete, e oito, está faltando.

 

Os pensamentos de Patrik rodavam. Ele entendeu com a velocidade de um relâmpago o que aquilo significava. Em algum lugar, havia outra vítima.

 

Ele não devia. Ele sabia disso. Mas não podia aguentar. Sua irmã não gostava quando ele implorava, quando suplicava por algo que era inacessível. Mas algo dentro dele o obrigava. Ele tinha que descobrir o que havia lá fora. O que havia além da floresta, além do campo. Para onde ela ia todos os dias quando os deixava sozinhos em casa. Ele simplesmente tinha que descobrir como era, a existência de que eram lembrados quando um avião passava sobre eles no céu ou quando ouviam o som de um carro bem longe.

 

De início ela recusara. Disse que estava fora de questão. O único lugar onde eles estavam a salvo, onde ele, seu pé-frio, estava seguro, era na casa, no santuário deles. Mas ele continuou pedindo. E a cada vez que pedia, achava que via sua resistência diminuir. Sabia que soava insistente, como o tom teimoso aparecia em sua voz toda vez que falava do desconhecido, que ele queria ver, pelo menos uma vez.

 

Sua irmã sempre ficava calada ao seu lado. Olhando os dois, com um bicho de pelúcia nos braços e um dedo na boca. Ela nunca dizia nada sobre ter a mesma sensação de nostalgia. E ela jamais ousaria pedir. Mas às vezes ele via um lampejo do mesmo desejo em seus olhos, quando ela se sentava no banco próximo à janela e olhava para a floresta que parecia não ter fim. Nessa hora ele podia ver que a vontade dela era tão forte quanto a sua.

 

Por isso continuava pedindo. Suplicava, implorava. Ela o lembrava da história que tanto liam. Sobre os irmãos curiosos que se perderam na floresta. Eles estavam sozinhos e assustados, mantidos presos por uma bruxa má. Eles poderiam se perder lá fora. Era ela quem os protegia. Eles queriam se perder, por acaso? Queriam se arriscar a nunca encontrar o caminho de casa? Afinal, ela já os tinha salvado da bruxa má uma vez... Sua voz era sempre tão baixa, tão triste quando respondia suas súplicas com mais perguntas. Mas algo dentro dele o obrigava a seguir pedindo, mesmo que a agonia despedaçasse seu peito quando a voz dela tremia e as lágrimas enchiam seus olhos.

 

Mas a tentação de saber o que havia lá fora era forte demais.

 

– Bem-vindos! – Erling acenou para que eles entrassem no hall e endireitou a postura quando viu o operador de câmera seguindo-os.

 

– Viveca e eu achamos ótimo que você tenha concordado em vir a um jantarzinho de despedida. Aqui em nosso humilde lar – acrescentou para a câmera com um risinho. Os espectadores provavelmente apreciariam essa espiadela na vida dos “ricos e famosos”, como dissera a Fredrik Rehn quando lhe apresentara a ideia. Fredrik, é claro, achou uma ideia de gênio convidar o elenco para um jantar de despedida na casa do homem mais rico da cidade. Era sem dúvida nenhuma incrivelmente adequado.

 

– Entrem, entrem – disse Erling, levando-os para a sala. – Viveca já virá para oferecer-lhes uma bebida e dar-lhes as boas-vindas. Ou será que vocês não bebem? – ele disse com uma piscadinha, rindo profusamente de sua própria piada. Satisfeito, imaginou que a audiência veria que ele não era um burocrata chato comum, num terno apertado demais. Não, ele sabia como animar as coisas. Nas reuniões, ele sempre era o cara que contava as melhores histórias de quando estava na sauna com os amigos. Na verdade, ele era conhecido no mundo dos negócios como um verdadeiro brincalhão. Um homem de negócios implacável, mas divertido. – Vejam só, aí vem Viveca com os drinques – ele disse, apontando para sua esposa, que permaneceu calada. Eles haviam conversado sobre isso antes de os convidados e a produção chegarem. Ela concordara em ficar em segundo plano e deixar que ele tivesse seu momento sob os holofotes. Afinal, era ele quem tornara tudo aquilo possível. – Achei que deviam saborear uma bebida de adulto, para variar – disse Erling, sorrindo. – Um genuíno Dry Martini, como nós o chamamos em Estocolmo – riu novamente, um pouco alto demais, mas queria ter certeza de que seria captado pela câmera. Os jovens cheiraram suas bebidas, ressabiados, cada um deles com uma azeitona espetada por um palito.

 

– Temos que comer a azeitona? – perguntou Uffe, franzindo o nariz em desagrado.

 

– Não, não precisa. É mais para decoração.

 

Uffe assentiu e virou a bebida, tomando cuidado para driblar a azeitona.

 

Alguns dos outros seguiram seu exemplo. Erling, um pouco espantado e segurando seu copo para o alto, disse:

 

– Bem, eu tinha a intenção de fazer um brinde a vocês, mas alguns estão obviamente com sede. Então, saúde! – ergueu seu copo mais um pouco, recebeu um murmúrio vago como resposta e então bebeu um gole de seu Dry Martini.

 

– Posso beber mais um? – disse Uffe, estendendo o copo para Viveca. Ela olhou para Erling, que concordou. Tanto faz, as crianças precisavam se divertir.

 

Quando a sobremesa foi servida, Erling W. Larson estava começando a se arrepender. Lembrava-se vagamente de que Fredrik Rehn o havia alertado a não servir muito álcool durante o jantar, mas ele estupidamente decidira ignorar o conselho de Rehn. Se bem lembrava, Erling pensava que nada poderia ser pior que aquela vez em 1998, quando toda a equipe da gerência fez uma viagem de negócios a Moscou. O que acontecera lá era meio nebuloso em sua mente, mas ele podia se lembrar de imagens isoladas, que incluíam caviar russo, uma quantidade absurda de vodca e um bordel. O que Erling não considerou é que uma coisa era ficar chapado em uma viagem de negócios e outra bem diferente era ter cinco jovens bêbados em sua própria casa. Até cardápio fora um desastre. Eles mal tocaram as torradas com ovas de peixe branco, e o risoto com coquilles Saint-Jacques foi recebido com sons imitando vômito, especialmente por aquele bárbaro do Uffe. O clímax da noite parecia estar acontecendo agora, quando ele podia ouvir sons de gente vomitando vindo do banheiro. Pensando que eles pelo menos tinham comido a sobremesa, viu com horror como a musse de chocolate estava sendo regurgitada sobre o lindo e recém-instalado piso.

 

– Encontrei mais vinho, Earl, minha pérola – Uffe balbuciou, voltando triunfante da cozinha com uma garrafa de vinho aberta na mão. Com um frio no estômago, Erling percebeu que Uffe decidira abrir um de seus melhores e mais caros vinhos vintage. Erling sentiu a raiva borbulhando por dentro, mas conteve-se quando notou que a câmera dava um zoom em seu rosto na esperança de captar aquela exata reação.

 

– Imagine só que sorte – ele disse com os dentes cerrados e um sorriso de crocodilo. E então olhou para Fredrik Rehn pedindo ajuda. Mas o produtor parecia pensar que o vereador havia pedido por isso e, em vez de ajudar, ergueu o copo vazio para Uffe.

 

– Me sirva um pouco, Uffe – ele disse, deliberadamente ignorando Erling.

 

– Para mim também – disse Viveca, que passara a noite toda em silêncio, mas agora olhava desafiadoramente para seu marido. Erling estava fervilhando por dentro. Isso era um motim. Ele sorriu para a câmera.

 

Faltava menos de uma semana para o casamento. Erica estava começando a ficar nervosa, mas todas as providências tinham sido tomadas. Ela e Anna haviam trabalhado como maníacas para deixar tudo em ordem: flores, cartões indicando onde os convidados iriam ficar, tudo. Erica lançou um olhar preocupado para Patrik, que estava sentado diante dela à mesa do café da manhã, mastigando apaticamente. Ela havia preparado chocolate quente e pão com queijo e caviar, seu café da manhã favorito. Aquilo normalmente a fazia ficar enjoada só de olhar. Agora ela estava preparada para fazer qualquer coisa para ele se alimentar. Pelo menos ele não teria problemas para entrar no smoking, ela pensou.

 

Ultimamente, Patrik caminhava pela casa como um fantasma. E vinha para casa para comer, cair na cama e depois pegar o carro e ir para a delegacia bem cedo na manhã seguinte. Seu rosto estava cinzento e abatido, marcado pela fadiga e frustração, e ela até começara a sentir certo humor depressivo. Uma semana atrás, ele havia dito a ela que devia haver outra vítima em algum lugar. Eles fizeram outra notificação para todos os distritos no país, mas sem resultado. Com desespero na voz, ele também lhe dissera que eles reexaminaram todo o material que tinham uma, duas, três, várias vezes sem encontrar nada que fizesse a investigação seguir em frente. Gösta havia conversado com a mãe de Rasmus pelo telefone, mas ela também não reconhecia os nomes de Elsa Forsell e Börje Knudsen. A investigação estava estagnada.

 

– O que está em pauta hoje? – disse Erica, tentando manter o tom neutro.

 

Patrik mordiscava a borda da torrada como um rato; nos últimos quinze minutos ele não tinha conseguido comer nem metade. Ele disse mal-humorado:

 

– Esperar por um milagre.

 

– Mas você não pode aceitar ajuda de fora? Dos outros distritos envolvidos? Ou da... Polícia Criminal Nacional ou coisa parecida?

 

– Estou em constante contato com Lund, Nyköping e Borås. Eles também estão trabalhando duro. E quanto à PCN... Bem, eu tinha esperanças de que nós conseguíssemos sozinhos, mas estamos inclinados a pedir reforços – pensativo, ele deu mais uma minimordida, e Erica esticou-se para acariciar seu rosto.

 

– Você ainda quer seguir com os planos para sábado?

 

Ele olhou para ela surpreso e depois sua expressão se suavizou. Ele pegou a mão dela e deu um beijo bem na palma.

 

– Querida, é claro que sim! Nós vamos ter um dia fantástico no sábado, o melhor de nossas vidas, exceto pelo dia em que Maja nasceu, é claro. E eu prometo estar feliz e animado e completamente concentrado em você e no nosso dia. Não se preocupe. Eu não vejo a hora de me casar com você.

 

Erica dirigiu-lhe um olhar inquisitivo, mas não viu nada a não ser sinceridade nos olhos dele.

 

– Tem certeza?

 

– Tenho certeza – Patrik sorriu. – E não pense que eu não vejo o enorme esforço que você e Anna fizeram para planejar tudo.

 

– Eu sei que você está com a cabeça cheia. E eu acho que isso fez bem a Anna – Erica disse olhando para a sala, onde Anna estava sentada com Emma e Adrian vendo TV. Maja ainda estava dormindo e, apesar do humor melancólico de Patrik, era maravilhoso tê-lo só para si por um momento.

 

– Eu só quero... – Erica parou.

 

Patrik pareceu ler seus pensamentos:

 

– Você gostaria que seus pais estivessem lá.

 

– Sim, ou não... Para ser bem sincera, eu queria que papai estivesse lá. Mamãe provavelmente estaria desinteressada como sempre esteve por tudo que Anna e eu fizéssemos.

 

– Você e Anna conversaram mais sobre Elsy? Sobre o porquê de ela ser como era?

 

– Não – disse Erica, pensativa. – Mas eu pensei muito nisso. É estranho que saibamos tão pouco sobre a vida dela antes de conhecer papai. A única coisa que ela disse é que os pais dela tinham morrido havia muito tempo – é tudo que Anna e eu sabemos. Nunca vimos nenhuma foto deles. Não é estranho?

 

Patrik concordou.

 

– Sim, definitivamente é esquisito. Quem sabe você não devesse fazer uma pesquisa sobre sua genealogia? Você é boa em investigar essas coisas, desenterrar fatos. É só uma questão de começar assim que passar o casamento.

 

– Passar? – disse Erica em tom agourento. – Você pensa no nosso casamento como algo pelo qual temos que “passar”...

 

– Não – Patrik disse, mas não conseguia pensar em nada melhor para dizer. Em vez disso, ele mergulhou a torrada no chocolate quente. Sabia quando era melhor se poupar. E deixar a comida silenciar qualquer coisa que pudesse dizer.

 

– Bem, hoje a diversão acaba.

 

Lars quis encontrá-los em condições menos formais que o normal, então os convidou para um café e bolinhos no Café e Refeições do Pappa que, sem surpresa, ficava localizado na rua principal de Tanumshede.

 

– Vai ser muito bom ir embora daqui – disse Uffe, enfiando um doce na boca.

 

Jonna olhou para ele com nojo, mordendo uma maçã.

 

– Que tipo de planos vocês fizeram? – disse Lars, fazendo barulho para beber seu chá. Os membros do elenco haviam acompanhado, fascinados, ele mergulhar seis cubos de açúcar em sua xícara.

 

– O de sempre – disse Calle. – Ir para casa e ver meus amigos. Sair e encher a cara. As gatas no Kharma estão com saudade de mim – ele riu, mas seus olhos estavam embotados e cheios de desesperança.

 

Os olhos de Tina brilharam.

 

– Não é lá que a princesa Madeleine sempre vai?

 

– Ah, sim, Maddie – disse Calle, casualmente. – Ela saiu com um dos meus amigos.

 

– Saiu? – disse Tina, impressionada. Pela primeira vez em um mês, ela olhou para Calle com algum respeito.

 

– É, mas ele terminou com ela. Mamãe e papai ficavam se metendo demais.

 

– Mamãe e... Ahhhhh! – disse Tina e seus olhos se arregalaram mais ainda. – Legal.

 

– E o que você vai fazer? – Lars perguntou para Tina. Ela estalou o pescoço.

 

– Vou sair em turnê.

 

– Em turnê? – Uffe debochou, pegando outro doce. – Você vai sair com o Boozer e talvez cante uma música ou duas e depois fique mofando no bar. Eu não chamaria isso de turnê.

 

– Sabe, tem um monte de clubes ligando pra me convidar para cantar “I want to be your little bunny” – Tina disse. – Boozer disse que várias gravadoras vão ligar também.

 

– Claro, e o que Boozer diz é sempre verdade – Uffe bufou, revirando os olhos.

 

– Porra, vai ser ótimo me livrar de você. Você é tão... negativo o tempo todo! – Tina vociferou para Uffe e deu-lhe as costas. Os demais estavam curtindo a cena.

 

– E quanto a você, Mehmet?

 

Todos se viraram para olhar para Mehmet, que não tinha aberto a boca desde que entraram no café.

 

– Eu vou ficar aqui – ele disse, esperando de maneira desafiadora por uma reação. Eles não o decepcionaram.

 

Cinco pares de olhos incrédulos voltaram-se para ele.

 

– O quê?

 

– Você vai ficar? Aqui? – Calle olhava como se Mehmet tivesse se transformado em um sapo diante de seus olhos.

 

– Sim, eu vou trabalhar na padaria. Vou alugar meu apartamento por uns tempos.

 

– E onde você vai morar? Com Simon ou coisa assim?

 

As palavras de Tina ressoaram no café, e o silêncio de Mehmet fez os olhares chocados se espalharem por toda a mesa.

 

– Vai mesmo? Qual é o esquema, vocês dois são um casal ou o quê?

 

– Não, não somos! – Mehmet retorquiu. – Não que seja da sua conta. Nós somos só... amigos.

 

– Simon e Mehmet, sentados numa árvore, se BEI-JAN-DO – Uffe cantou e ria tanto que quase caiu da cadeira.

 

– Corta essa, deixa o Mehmet em paz – disse Jonna quase num sussurro, que estranhamente fez os outros se calarem. – Eu acho que é uma decisão corajosa, Mehmet. Você é melhor que todos nós!

 

– O que quer dizer com isso, Jonna? – disse Lars, gentilmente, virando a cabeça para o lado. – De que modo Mehmet é melhor?

 

– Ele simplesmente é – disse Jonna, puxando as mangas para baixo. – Ele é bom. Gentil e atencioso.

 

– E você não é boa? – Lars perguntou. A pergunta parecia ter muita ambiguidade.

 

– Não – Jonna disse num fio de voz. Em sua mente, ela repassava a cena do lado de fora do centro comunitário e o ódio que ela sentiu de Barbie. Como ficara magoada com o que Barbie dissera a seu respeito e quanto ela quis magoá-la também. Ela havia sentido verdadeira satisfação no instante em que cortou a pele de Barbie com a faca. Uma pessoa boa não teria feito isso. Mas ela não disse nada. Preferiu olhar pela janela o tráfego que passava. Os câmeras já tinham feito as malas e ido embora. Era o que ela tinha que fazer também. Ir para casa. Para um apartamento enorme e vazio. Para os bilhetes na mesa da cozinha lhe dizendo para não esperar acordada. Para as apostilas sobre vários cursos de formação profissional que eram deixadas de propósito na mesa de centro. Para o silêncio.

 

– E o que você vai fazer agora? – Uffe perguntou para Lars em tom um pouco sarcástico. – Agora que não tem que nos mimar?

 

– Eu vou achar um jeito de me manter ocupado – disse Lars, dando um gole em seu chá doce. – Vou trabalhar no meu livro, talvez abrir meu próprio consultório. E quanto a você, Uffe? Você não disse o que vai fazer.

 

Com inocência estudada, Uffe deu de ombros.

 

– Ah, nada especial. Deve rolar uma turnê pelos bares por um tempo. Eu sem dúvida vou ter de escutar aquela maldita “I want to be your little bunny” até ela escorrer pelos meus ouvidos – ele encarou Tina. – E depois, bem, sei lá. Eu dou um jeito – por um momento, a incerteza era visível por trás da máscara de durão. Logo ela se foi e ele riu. – Vejam só o que eu faço! – ele pegou a colher de café e pendurou em seu nariz. Ele não ia perder tempo se preocupando com o futuro, de jeito nenhum. Caras que conseguem equilibrar colheres na ponta do nariz sempre se viram.

 

Quando saíram do café e se dirigiam até o ônibus que os esperava para levá-los de Tanum Shede, Jonna parou por um momento. Durante um instante, ela pensou ter visto Barbie sentada entre eles. Com aqueles cabelos loiros longos e as unhas postiças que a impediam de fazer quase tudo. Rindo, com aquela expressão dela suave e doce. Todos apontavam isso como um sinal de fraqueza, mas Jonna agora percebia que estavam errados. Não era só Mehmet. Barbie também era boa. Pela primeira vez, ela parava para pensar naquela sexta-feira em que tudo deu errado. Sobre quem havia dito o que na verdade. Sobre quem estivera espalhando aquelas histórias, que Jonna agora sabia serem mentiras. Sobre quem os manipulara como marionetes. Algo estava remoendo no fundo de sua mente, mas, antes que o pensamento emergisse completamente, o ônibus deixou Tanumshede. Ela olhou pela janela. O assento ao lado do seu estava notavelmente vazio.

 

Lá pelas dez da manhã, Patrik começava a se arrepender de não ter se esforçado para comer mais no café da manhã. Seu estômago roncava, então ele foi à sala de descanso procurar algo comestível. Estava com sorte. Havia uma solitária rosca de canela em um saco sobre a mesa, e ele a enfiou vorazmente na boca. Não era o melhor lanche do mundo, mas ia servir. Voltou para seu escritório, ainda de boca cheia, quando o telefone tocou. Viu que era Annika e tentou engolir o último pedaço, mas ficou entalado em sua garganta.

 

– Alô? – ele disse tossindo.

 

– Patrik?

 

Ele engoliu algumas vezes e conseguiu deglutir o resto da rosca.

 

– Sim, sou eu.

 

– Tem alguém aqui para te ver – Annika disse e pelo tom de sua voz, ele percebeu que era importante.

 

– Quem é?

 

– Sofie Kaspersen.

 

Ele sentiu uma faísca de interesse. A filha de Marit? O que ela poderia querer?

 

– Mande-a entrar – ele disse e foi para o corredor esperar por Sofie. Ela estava pálida e abatida e ele lembrou-se vagamente de Gösta ter dito que ela estava ruim do estômago quando eles visitaram Ola e a garota.

 

– Soube que esteve doente. Está se sentindo melhor agora? – ele disse, conduzindo-a a seu escritório.

 

Ela balançou a cabeça.

 

– Sim, tive uma febre estomacal. Mas já estou melhor. Perdi alguns quilos, só isso – ela disse com um sorriso irônico.

 

– Ah, então eu devia pegar isso aí também – ele disse rindo, de forma a suavizar o clima. Houve uma pausa constrangedora. Patrik esperou que ela falasse.

 

– Você encontrou mais alguma coisa... sobre a minha mãe? – ela disse finalmente.

 

– Não, demos com a cara na parede.

 

– Então vocês não sabem qual é a conexão entre ela... e os outros?

 

– Não – Patrik disse novamente, perguntando-se aonde ela queria chegar. Prosseguiu com cuidado. – Há algo que nós obviamente não descobrimos ainda. Algo que não sabemos... sobre sua mãe e os outros.

 

– Humm – foi tudo que Sofie disse.

 

– É importante que saibamos de tudo, para podermos encontrar quem tirou sua mãe de você – ele podia ouvir a súplica em sua voz, mas também via que Sofie queria dizer algo a ele. Algo sobre sua mãe.

 

Após uma longa pausa, a mão dela tocou gentilmente a manga de seu paletó. Com os olhos baixos, ela tirou uma folha de papel e entregou a Patrik. Ela ergueu os olhos novamente quando ele começou a ler, estudando-o com atenção.

 

– Onde encontrou isso? – Patrik disse quando terminou de ler. Sentia seu estômago formigar.

 

– Numa gaveta. No quarto do meu pai. Mas estava com as coisas que mamãe tinha guardado. Estava com algumas fotos e outras coisas.

 

– Seu pai sabe que você encontrou isso?

 

Sofie balançou a cabeça. Seus cabelos lisos e escuros dançaram em torno de seu rosto.

 

– Não, e ele não vai ficar feliz com isso. Mas os detetives que vieram em casa semana passada disseram para entrar em contato se soubéssemos de algo e eu achei que tinha que te dizer. Pelo bem de mamãe – ela acrescentou e voltou a estudar suas cutículas.

 

– Você fez a coisa certa – disse Patrik. – Nós precisávamos dessa informação, e eu acredito que você nos deu a chave – ele não conseguia esconder a excitação. Tantas coisas se encaixavam agora. Outras peças do quebra-cabeça rodavam em sua mente: a ficha criminal de Börje, os ferimentos de Rasmus, a culpa de Elsa – tudo fazia sentido.

 

– Posso ficar com isso? – ele agitou o papel.

 

– Poderia fazer uma cópia? – Sofie disse.

 

– Certamente. E se seu pai armar confusão, diga para ele me ligar. Você fez a coisa certa.

 

Ele tirou uma cópia na máquina no corredor, devolveu o original a Sofie e a levou até a porta. Ficou olhando enquanto ela caminhava penosamente pela rua, com as mãos enfiadas nos bolsos. Parecia estar indo na direção da casa de Kerstin. Ele esperava que sim. Aquelas duas precisavam uma da outra mais do que podiam imaginar.

 

Com triunfo nos olhos, ele voltou para dentro, a fim de colocar tudo em movimento. Depois de muito tempo, finalmente tinham um progresso!

 

A última semana havia sido a melhor na vida de Bertil Mellberg. Ele mal podia acreditar no que estava acontecendo. Rose-Marie tinha passado a noite lá mais duas vezes e, mesmo que suas atividades noturnas estivessem começando a deixar suas marcas em forma de olheiras, valia a pena. Ele se pegou andando e cantarolando e até deu um pulinho de alegria. Mas só quando ninguém estava olhando.

 

Ela era fantástica. Ele não acreditava na sorte que teve. Era incrível como essa beleza de mulher o havia elegido como seu escolhido. Não, ele não entendia. E eles já começavam a falar no futuro. Haviam concordado timidamente que tinham mesmo um futuro juntos. Disso não havia dúvida. Mellberg, que sempre tivera uma relutância sadia por assumir um relacionamento longo, agora mal podia se conter.

 

Eles tinham falado muito sobre o passado também. Ele havia contado a ela sobre Simon e orgulhosamente mostrara a ela uma foto do filho que havia entrado tão tarde em sua vida. Rose-Marie comentara como ele era bonito, tão parecido com seu pai; disse que não via a hora de conhecê-lo. Ela tinha uma filha que morava no norte, em Kiruna, e outra nos Estados Unidos. Tão longe, as duas, ela disse com tristeza na voz e mostrou a ele fotografias de seus dois netos que viviam na América. Talvez pudessem viajar para lá no verão seguinte, Rose-Marie sugeriu e ele concordou prontamente. América – ele nunca havia sonhado em viajar para tão longe. Para falar a verdade, ele nunca havia atravessado as fronteiras da Suécia. Uma viagem breve atravessando a ponte para Svinesund, na Noruega, mal contava como excursão internacional. Mas Rose-Marie estava abrindo todo um novo mundo para ele. Ela estava começando a pensar em comprar uma casa compartilhada na Espanha, como ela lhe disse uma noite, enquanto deitava em seus braços. Uma casa de estuque branco com uma varanda, vista para o Mediterrâneo, piscina particular e buganvílias subindo ao longo da fachada, tão perfumadas no clima quente. Mellberg podia imaginar. Como ele e Rose-Marie se sentariam na varanda em uma noite quente de verão, abraçados, bebericando drinques gelados. Um pensamento lhe ocorreu e recusou-se a ir embora. Na escuridão do quarto, ele virara o rosto para encará-la e solenemente sugeriu que eles comprassem a casa juntos. Esperou nervosamente por uma reação dela; de início Rose-Marie não ficara tão entusiasmada quanto ele esperava. Parecia um pouco desconfortável. Então eles conversaram sobre providenciar documentos de tudo, para não haver discussões sobre dinheiro. Com certeza, aquilo não seria o suficiente. Ele sorriu e beijou a ponta de seu nariz. Ela ficava tão linda preocupada. Mas finalmente eles concordaram em fazê-lo.

 

Enquanto Mellberg ficava ali, sentado na poltrona de seu escritório, de olhos fechados, ele quase podia sentir a brisa morna em seu rosto. O perfume de óleo bronzeador e pêssegos frescos. As cortinas flutuando com o vento que trazia o cheiro do mar. Ele se viu inclinando-se sobre Rose-Marie, levantando a aba de seu chapéu de sol e... Uma batida na porta o acordou de seu sonho.

 

– Entre – ele disse, contrariado, tirando rapidamente os pés da mesa e mexendo nos papéis que estavam espalhados diante dele. – Espero que seja importante, estou muito ocupado – ele disse a Hedström, que entrava.

 

Patrik assentiu e sentou-se.

 

– É muito importante – ele disse, colocando a cópia do papel de Sofie na mesa.

 

Mellberg leu. E dessa vez concordou.

 

Havia algo na primavera que sempre deixava Annika triste. Ela ia para o trabalho, fazia o que tinha que fazer, voltava para casa, ficava com Lennart e os cachorros e depois ia para a cama. A mesma rotina que nas outras estações, mas na primavera ela tinha a sensação de que nada fazia sentido. Ela tinha uma vida muito boa, na verdade. Ela e Lennart tinham um casamento melhor e mais estável que a maior parte das pessoas que ela conhecia; os cães eram membros amados da família e ela e seu marido eram fanáticos por corridas de arrancada, o que os levava para todos os cantos da Suécia, para competições em vários locais. Também os levaram a fazer muitos amigos. No verão, no outono e no inverno isso bastava. Mas por alguma razão, ela sempre sentia que algo faltava na primavera. Era a época em que seu desejo por ter filhos vinha com força total. Ela não sabia por quê. Talvez porque seu primeiro aborto natural tivesse ocorrido na primavera. Dia 3 de abril, uma data que sempre ficaria gravada em seu coração. Mesmo tendo sido mais de quinze anos atrás. Oito outros abortos naturais se seguiram, incontáveis visitas ao médico, exames, tratamentos. Mas nada adiantara. E finalmente eles aceitaram a situação e tentaram viver o melhor possível. Claro que discutiram sobre adoção também, mas nunca conseguiram fazer acontecer. Todos aqueles anos de cálculos errados e decepções os fizeram sentir-se vulneráveis e inseguros. Eles não ousaram arriscar-se novamente. E apesar do fato de Annika sentir que tinha uma boa vida durante boa parte do ano, ela sempre tinha saudade de seus filhos não nascidos na primavera. Seus garotinhos e suas garotinhas, que por alguma razão não estavam preparados para a vida, tanto em seu ventre quanto fora dele. Às vezes ela os imaginava em sua mente como anjinhos, pessoas pequeninas flutuando em torno dela como promessas. Dias como aquele eram difíceis. E hoje era um desses dias.

 

Annika piscou para afastar as lágrimas e tentou se concentrar na tabela do Excel em seu computador. Ninguém na delegacia conhecia nada sobre sua tragédia pessoal. Tudo o que sabiam era que Annika e Lennart nunca tiveram filhos, e ela não se prestaria à vergonha de choramingar no meio da recepção. Apertou os olhos para tentar combinar as informações nas células diante dela. O nome do criador de cães à esquerda e o endereço à direita. Aquilo havia tomado mais tempo do que ela presumira, mas agora tinha todos os endereços cadastrados na lista. Ela salvou o arquivo em um CD e tirou-o do computador. Os querubins pairavam em torno dela, perguntando quais seriam seus nomes, que brincadeiras eles teriam feito juntos, o que seriam quando crescessem. Annika sentiu os soluços chegando novamente e olhou para o relógio. Onze e meia; hoje ela ia para casa almoçar. Sentia que precisava de mais paz e quietude, sozinha. Mas primeiro tinha que levar o CD para Patrik. Sabia que ele queria todas as informações o mais rápido possível.

 

No corredor, ela encontrou Hanna e viu uma oportunidade de evitar o olhar penetrante de Patrik.

 

– Olá, Hanna – ela disse. – Pode dar isso aqui para Patrik? É uma lista com os criadores e seus endereços. Eu... eu tenho que ir para casa almoçar hoje.

 

– O que houve? Você não está se sentindo bem? – Hanna disse com preocupação, pegando o CD.

 

Anna forçou um sorriso.

 

– Eu estou bem. Só gostaria de comer uma refeição caseira hoje.

 

– Está bem – disse Hanna. – Eu vou deixar o CD com Patrik. Nos vemos mais tarde.

 

– Até mais – disse Annika, se apressando em direção à porta. Os querubins a seguiram até sua casa.

 

Patrik ergueu os olhos quando Hanna entrou.

 

– Aqui, um CD de Annika. Os criadores de cães – ela deu o disquete a ele e Patrik o colocou em cima da mesa.

 

– Sente-se um pouco – ele disse, apontando para uma cadeira. Ela sentou-se e Patrik deu-lhe um olhar inquisitivo.

 

– Como está sendo seu primeiro mês? Está gostando de trabalhar aqui? Um pouco caótico no início talvez? – ele sorriu e ganhou um sorriso de volta. Para ser completamente honesto, ele andava meio preocupado com sua nova colega. Ela parecia exausta. Claro, todos eles estavam com o mesmo aspecto depois das últimas semanas, mas havia algo mais. Algo em seu rosto, algo além de exaustão normal. Seus cabelos loiros estavam penteados para trás em um rabo de cavalo como sempre, mas não tinham brilho nenhum e ela carregava olheiras profundas.

 

– As coisas estão indo muito bem – ela disse alegre, sem parecer perceber que ele a estava escrutinando. – Eu estou aproveitando muito e gosto de estar ocupada – ela olhou em volta para todos os documentos e fotografias pendurados nas paredes e fez uma pausa. – Isso soou insensível. Mas você entende o que eu quero dizer.

 

– Eu sei – disse Patrik, sorrindo. – E Mellberg? Ele está... – ele procurou a palavra correta – ele tem se comportado bem?

 

Hanna riu e por um momento seu rosto se suavizou e Patrik reconheceu a mulher que começara a trabalhar com eles cinco semanas atrás.

 

– Eu mal o vi, para dizer a verdade, então sim, pode-se dizer que ele se comportou bem. Se há algo que eu aprendi nessas semanas, é que todos aqui veem você como quem está no comando. E que você faz jus ao posto.

 

Patrik sentiu-se enrubescer. Não era sempre que recebia um elogio e não sabia como lidar com isso, na verdade.

 

– Obrigado – ele resmungou e rapidamente mudou de assunto. – Vou fazer uma repassagem em uma hora. Pensei em nos reunirmos na sala de descanso. Aqui é muito apertado.

 

– Você tem algo novo? – Hanna disse, sentando-se mais ereta na cadeira.

 

– Sim, pode-se dizer que sim – disse Patrik e não conseguiu reprimir um sorriso. – Podemos ter encontrado a chave que conecta os casos – seu sorriso cresceu.

 

Hanna sentou-se mais ereta ainda.

 

– A conexão? Você encontrou?

 

– Bem, não fui eu. Ela chegou até mim, poderia se dizer. Mas primeiro eu tenho que fazer dois telefonemas para confirmar algumas coisas, então não quero dizer nada antes da reunião. Até agora eu só contei a Mellberg.

 

– Está bem. Então te vejo em uma hora – disse Hanna, levantando-se para sair.

 

Patrik não conseguia se livrar da sensação de que algo estava errado. Mas ela provavelmente lhe contaria no momento certo. Pegou o telefone e discou o primeiro número.

 

– Encontramos a conexão que procurávamos – Patrik olhou em volta, desfrutando o efeito de seu anúncio. Seus olhos pararam por um momento em Annika e ele viu que ela tinha os olhos vermelhos. Isso não era normal. Annika era sempre alegre e positiva em todas as situações e ele fez uma nota mental de conversar com ela depois da reunião para ouvir como ela estava. – A peça crucial do quebra-cabeça foi trazida hoje por Sofie Kaspersen. Ela encontrou um artigo de jornal antigo entre as coisas de sua mãe e decidiu entregá-lo para nós. Gösta e Hanna visitaram Sofie e seu pai semana passada e aparentemente causaram boa impressão nela, o que a levou a tomar a decisão de entrar em contato conosco. Bom trabalho! – ele disse, com um gesto de aprovação para os dois. – O artigo... – ele não resistiu e fez uma pausa de efeito enquanto sentia a tensão crescendo no recinto. – O artigo trata do fato de que, vinte anos atrás, Marit esteve envolvida em um acidente de carro que resultou em uma morte. O carro dela colidiu com o de uma senhora, que faleceu. Quando a polícia chegou à cena, Marit apresentava um alto nível de álcool no sangue. Ela foi sentenciada à prisão por onze meses.

 

– Por que não soubemos disso antes? – perguntou Martin. – Isso foi antes de ela se mudar para cá?

 

– Não. Ela e Ola tinham vinte anos e viviam aqui há um ano quando isso ocorreu. Mas faz muito tempo, as pessoas se esquecem e devia haver um pouco de compaixão por Marit também. Seu nível de álcool estava ligeiramente acima do limite. Ela pegou o carro após um jantar na casa de um amigo, quando tinha bebido um pouco de vinho. Sei disso porque encontrei os documentos sobre o acidente. Nós os tínhamos nos arquivos.

 

– Tínhamos isso em arquivo o tempo todo? – disse Gösta incrédulo.

 

Patrik assentiu.

 

– Sim, eu sei, mas não é tão absurdo não termos encontrado. Isso aconteceu há tanto tempo que nem estava nos registros digitais e não havia razão para ver os documentos lá embaixo um por um. E definitivamente não havia motivo para procurar por sentenças por embriaguez em todas as caixas arquivadas.

 

– E mesmo assim... – Gösta resmungou, parecendo derrotado.

 

– Eu verifiquei em Lund, Nyköping e Borås. Rasmus Olsson tornou-se inválido quando bateu o carro em uma árvore e seu passageiro, um amigo da mesma idade, morreu. Rasmus estava bêbado quando o acidente ocorreu. Börje Knudsen tem uma ficha policial mais longa que meu braço. Um dos itens é o relatório de um acidente ocorrido quinze anos atrás, quando causou uma colisão frontal na qual uma menina de quinze anos morreu. Então esse é o denominador comum de três dos quatro casos; todos dirigiram embriagados e mataram alguém por conta disso.

 

– E Elsa Forsell? – perguntou Hanna, olhando para Patrik. Ele jogou as mãos para o alto.

 

– Esse é o único caso para o qual ainda não consegui encontrar confirmação. Não há registros de sentenças contra Elsa em Nyköping, mas o padre de sua congregação falou muito sobre a “culpa” de Elsa. Acho que há alguma coisa aí, mas ainda não a encontramos. Vou telefonar para o padre Silvio depois de nossa reunião e ver se consigo tirar mais alguma coisa dele.

 

– Bom trabalho, Hedström – disse Mellberg inesperadamente de seu lugar à mesa da cozinha. Todos se viraram a fim de olhar para ele.

 

– Obrigado – disse Patrik, espantado. Um elogio de Mellberg era como... não, ele nem conseguia pensar em algo para comparar. Simplesmente ninguém recebia elogios de Mellberg. Jamais. Ligeiramente desconcertado pelo comentário inesperado, Patrik prosseguiu: – O que temos que fazer agora é começar a trabalhar com essa nova premissa. Encontrar tudo o que pudermos sobre os acidentes. Gösta, você pega o caso de Marit; Martin, você pega Borås; Hanna, você pega Lund, e eu vou tentar descobrir mais sobre Elsa Forsell em Nyköping. Alguma pergunta?

 

Ninguém disse nada, então Patrik encerrou a reunião. E foi direto telefonar para Nyköping. Havia um frenesi, uma tensa energia pairando no ar na delegacia. Era tão palpável que Patrik sentia que a podia tocar. Ele parou no corredor, respirou profundamente e então foi fazer suas ligações.

 

Sempre que padre Silvio viajava para casa a fim de visitar a família e os amigos na Itália, ouvia a mesma pergunta. Como ele aguentava viver lá no frio do Norte? Os suecos não eram muito esquisitos? Pelo que ouviam, os suecos sempre ficavam em casa e mal falavam uns com os outros. E eles não sabiam beber, em absoluto. Bebiam como esponjas e sempre abusavam. Por que ele iria querer viver ali?

 

Silvio normalmente bebia uma taça de um bom tinto, olhava os campos de oliveiras de seu irmão e respondia:

 

– Os suecos precisam de mim – E era assim que se sentia. Parecia uma aventura quando ele se mudou para a Suécia, quase trinta anos atrás. A oferta de um posto temporário na Congregação Católica de Estocolmo apresentou-se como a oportunidade que ele sempre quis, uma chance de se mudar para o país que sempre lhe pareceu tão mítico e estranho. Talvez não fosse tão estranho. E ele quase morreu congelado naquele primeiro inverno até aprender que três camadas de roupa eram obrigatórias se quisesse sair de casa em janeiro. Mas ainda assim, foi amor à primeira vista. Ele amava a luz, a comida, a aparente frieza dos suecos, mas seu interior brilhante. Aprendeu a apreciar e compreender os pequenos gestos, os comentários discretos, a amabilidade oculta que encontrou nos nortistas de cabelos claros. Se bem que o estereótipo não era verdadeiro. Ele ficara maravilhado quando aterrissou em solo sueco e viu que nem todos os suecos eram loiros de olhos azuis.

 

Em todo caso, ele ficou. Após dez anos como assistente na congregação de Estocolmo, agarrou a oportunidade de ser o titular de sua própria igreja em Nyköping. Com o passar dos anos, um certo sotaque de

Sörmland surgiu em seu sueco-italiano e ele se deleitava com a diversão que essa mistura inusitada causava. Se havia uma coisa que os suecos faziam raramente, era rir. As pessoas em geral não associavam o catolicismo à alegria e ao riso, mas para ele a religião era exatamente isso. Se o amor por Deus não era algo brilhante e prazeroso, o que mais poderia ser?

 

Aquilo havia surpreendido Elsa de início. Ela o procurara talvez na esperança de encontrar uma maldição e um cilício. Em vez disso encontrou um aperto de mão e um olhar amistoso. Eles haviam conversado muito sobre isso. Da culpa dela, de sua necessidade de ser punida. Ao longo dos anos, ele a guiou gentilmente por todos os diferentes conceitos de culpa e de perdão. A parte mais importante do perdão era o remorso. Remorso verdadeiro. E isso era algo que Elsa tinha em abundância. Por mais de trinta e cinco anos, ela vinha sentindo remorso a cada segundo de cada dia. Era tempo demais para carregar um fardo tão grande. Alegrava-o saber que fora capaz de amenizar um pouco a carga que ela levava, para que Elsa pudesse respirar de maneira mais livre, pelo menos por alguns anos. Até ela morrer.

 

O padre Silvio fechou o semblante. Vinha pensando muito na vida de Elsa – e em sua morte – desde que a polícia batera à sua porta. Pensara muito nela antes também. Mas as perguntas dos policiais libertaram um fluxo de emoções e memórias. Mesmo assim o sacramento da confissão era santo. A confiança entre um padre e o paroquiano não podia ser quebrada. Ele sabia disso. Ainda assim, os pensamentos remoíam em sua cabeça, fazendo-o querer quebrar a promessa que Deus o mandara cumprir. Mas sabia que era impossível.

 

Quando o telefone tocou em sua mesa, ele sabia instintivamente o que era. Atendeu parte ansioso, parte temeroso:

 

– Padre Silvio Mancini.

 

Ele sorriu quando ouviu o detetive de Tanumshede se identificar. Ouviu por um tempo o que Patrik Hedström tinha a dizer e balançou a cabeça.

 

– Infelizmente, eu não posso falar sobre o que Elsa me confidenciou.

 

– Não, isso está incluído no voto de confidencialidade.

 

Seu coração batia forte. Por um momento, pensou ter visto Elsa sentada na cadeira diante dele. Elsa com sua postura ereta, os cabelos curtos brancos e o corpo magro. Ele tentara engordá-la com macarrão e doces, mas nada parecia dar jeito. Ela dirigiu-lhe um olhar bondoso.

 

– Eu sinto muito, mas eu simplesmente não posso. Você terá que encontrar outro meio de...

 

Elsa fez um gesto de cabeça cheio de urgência do lugar onde estava sentada e padre Silvio tentou entender o que ela queria dizer. Será que Elsa queria que ele falasse? Mas isso não adiantava, mesmo assim ele não poderia. Elsa continuou olhando para padre Silvio e ele teve uma ideia. Disse suavemente:

 

– Eu não posso revelar o que Elsa me disse. Mas posso lhe dizer coisas que todos sabiam. Elsa era de sua região do país. Ela era de Uddevalla.

 

De seu lugar, de frente para ele, Elsa sorriu. E se foi. Padre Silvio sabia que não fora real, que ela era apenas fruto de sua imaginação. Mas mesmo assim tinha sido maravilhoso vê-la outra vez.

 

Quando desligou, ele sentiu paz. Não tinha traído Deus nem Elsa. Agora o resto era com a polícia.

 

Erica viu que algo tinha acontecido assim que Patrik passou pela porta. Havia uma leveza em seus passos e ele parecia relaxado como havia muito tempo não estava.

 

– As coisas correram bem hoje? – ela perguntou com cuidado, segurando Maja quando foi ao seu encontro. Sorrindo de felicidade, Maja estendeu os braços para o pai e ele a pegou no colo.

 

– As coisas foram fantásticas! – ele disse, fazendo alguns passos de dança com a filha. Ela riu tanto que quase engasgou. Papai era hilário. Ela obviamente já tinha decidido isso.

 

– Conte mais – disse Erica, indo para a cozinha a fim de terminar de preparar o jantar. Patrik e Maja a seguiram. Anna, Emma e Adrian estavam assistindo a um desenho e acenaram distraídos para Patrik quando ele entrou. A TV demandava toda a atenção deles.

 

– Encontramos a conexão – ele disse, pondo Maja no chão. Ela ficou lá por uns instantes, dividida entre o papai de um lado e Björne do outro, mas finalmente escolheu o mais peludo dos dois e engatinhou para a TV.

 

– Sempre rejeitado, sempre o número dois – Patrik suspirou, olhando Maja ir embora.

 

– Humm, mas para mim você é sempre o número um – disse Erica e deu-lhe um abraço forte antes de voltar a cozinhar. Patrik sentou-se para observá-la.

 

Erica pigarreou e olhou para os vegetais na pia.

 

Patrik prontamente pulou da cadeira e começou a cortar pepinos para a salada.

 

– Se você disser “pule”, eu pergunto “a que altura?” – ele disse rindo, dando um passo para o lado a fim de escapar do chute de brincadeira que tinha sua canela como alvo.

 

– Espere só, depois de sábado eu vou manejar o chicote com vigor renovado – disse Erica, tentando parecer séria. Ela estava feliz por ele nem estar pensando no casamento.

 

– Eu acho que você já faz um ótimo trabalho com ele – Patrik disse, inclinando-se para beijá-la.

 

– Peguem leve aí! – Anna gritou da sala. – Dá pra ouvir vocês se beijando. Há crianças no recinto – ela riu.

 

– Humm, talvez seja melhor guardarmos isso para mais tarde – disse Erica piscando para Patrik. – Agora me conte mais sobre o que aconteceu.

 

Patrik deu-lhe um breve resumo do que tinham encontrado, e o sorriso desapareceu do rosto de Erica. Era tanta tragédia, tantas mortes misturadas no caso e, apesar do fato de a investigação ter dado um enorme passo adiante, ela compreendia que as coisas ainda seriam difíceis no futuro.

 

– Então a vítima de Nyköping também tinha matado alguém em um acidente?

 

– Sim – Patrik disse, cortando tomates. – Não em Nyköping, mas em Uddevalla.

 

– Quem foi morto? – disse Erica, mexendo seu cozido de carne de porco.

 

– Não sabemos os detalhes ainda. O acidente foi muito anterior aos outros, então deve levar um tempo para encontrarmos mais informações. Mas conversei com nossos colegas em Uddevalla hoje e eles vão mandar todo o material assim que conseguirem reunir tudo. Algum coitado vai ter que se arrastar entre caixas empoeiradas por algum tempo.

 

– Então alguém está assassinando motoristas embriagados que mataram alguém. E o primeiro acidente aconteceu trinta e cinco anos atrás, enquanto o último foi... Quando foi o último?

 

– Há dezessete anos. Rasmus Olsson.

 

– E os locais estão espalhados por toda a Suécia – disse Erica enquanto mexia a comida. – De Lund até aqui. Quando o primeiro assassinato aconteceu?

 

– Dez anos atrás – Patrik respondeu, obedientemente, observando sua futura esposa. Erica estava acostumada a lidar com fatos e analisá-los, e ele considerava bem-vinda a ajuda de sua mente afiada.

 

– Então o assassino se movimenta em uma área geográfica grande, deu um bom tempo entre os crimes e a única coisa que as vítimas têm em comum é que foram mortas por causa de um acidente fatal que causaram por dirigir bêbadas.

 

– É, isso mesmo – disse Patrik suspirando. A situação soava tão sem solução quando Erica a resumia. Ele despejou os vegetais em uma tigela grande, misturou-os e colocou a salada na mesa da cozinha. – Não se esqueça de que é provável que esteja faltando uma vítima – ele disse baixinho enquanto se sentava. – Ao que parece, a vítima que não encontramos ainda é a número dois. Mas tenho certeza de que há outra. Alguém que deixamos passar.

 

– Não é possível tirar mais informações das páginas do livro? – Erica perguntou, colocando a panela do cozido num descanso sobre a mesa.

 

– Acho que não. Agora estou apostando minhas esperanças em podermos desenvolver algo que possa nos levar adiante a partir dos detalhes do acidente de Elsa Forsell. Ela foi a primeira vítima e algo me diz que é a mais importante.

 

– Humm, você pode estar certo – disse Erica, e em seguida chamou Anna e as crianças para jantar. Depois eles poderiam conversar mais.

 

Dois dias se passaram desde que eles haviam descoberto o que as vítimas do serial killer tinham em comum. A euforia inicial havia diminuído e o desânimo tomava o seu lugar. Eles ainda não entendiam por que o território geográfico era tão grande. Será que o assassino viajava em sua caçada por vítimas ou ele realmente havia morado em todas essas cidades? Havia perguntas demais. Haviam olhado atentamente todo o material disponível sobre os acidentes envolvendo as vítimas, mas não encontraram em lugar nenhum algo que os conectasse. Patrik estava cada vez mais inclinado a acreditar na ideia de que não havia ligação pessoal entre as vítimas, mas que o assassino era uma pessoa cheia de ódio que escolhia seus alvos baseado nos atos destes. Nesse caso, parecia que o criminoso não se importava com o fato de que vários deles haviam demonstrado arrependimento real após os eventos. Elsa lutava com a culpa e buscou redenção na religião; Marit nunca mais tocou em álcool; o mesmo aconteceu com Rasmus, mas ele não podia beber de qualquer forma, por razões fisiológicas, por conta dos ferimentos que sofreu no acidente. Börje era a exceção. Continuara a beber e a dirigir embriagado e não parecia se preocupar com a menina cuja morte estava em sua consciência.

 

Mas era impossível chegar a qualquer conclusão enquanto faltasse uma vítima para completar o quadro. Quando o telefone tocou às nove horas da manhã de quarta-feira, Patrik não tinha ideia de que aquela ligação o levaria à última peça do quebra-cabeça.

 

– Patrik Hedström – ele atendeu, colocando a mão no bocal para que a pessoa não o ouvisse bocejar. Consequentemente, ele não entendeu o nome do interlocutor.

 

– Me desculpe, como é seu nome?

 

– Meu nome é Vilgot Runberg, e eu sou o superintendente da delegacia de Ortboda.

 

– Ortboda? – disse Patrik, vasculhando com fervor sua memória geográfica.

 

– Próximo a Eskilstuna – disse o superintendente Runberg, impaciente. – Mas é uma delegacia pequena, somos apenas três trabalhando aqui – ele tossiu, afastando-se do bocal, mas depois continuou. – É o seguinte, eu acabei de voltar de duas semanas de férias na Tailândia.

 

– Verdade? – disse Patrik, perguntando-se aonde aquilo ia chegar.

 

– Sim, por isso eu não tinha visto a notificação que você enviou. Até agora.

 

– Entendi – disse Patrik, com muito mais interesse. Sentiu seus dedos começarem a formigar de expectativa com o que estava por vir.

 

– Sim, meus colegas mais jovens são relativamente novos na área, então eles não sabiam nada sobre isso. Mas eu reconheço o caso. Sem dúvida, fui eu quem o investigou há oito anos.

 

– Que caso? – disse Patrik, sua respiração foi ficando mais curta e acelerada. Ele pressionou o fone contra a orelha, com medo de perder qualquer palavra.

 

– Tivemos um homem aqui há oito anos que... bem, eu achava que havia alguma coisa estranha sobre aquilo tudo. Mas ele tinha um histórico de abuso de álcool e... – Runberg fez uma pausa constrangida, aparentemente relutante em admitir o erro que cometera. – Bem, nós só pensamos que ele teve uma recaída e bebeu até a morte. Mas os ferimentos que você menciona, eu tenho que admitir que, relembrando, tive dúvidas sobre o que eram – a linha ficou silenciosa e Patrik compreendeu quanto deveria estar custando ao superintendente ter aquela conversa.

 

– Qual era o nome do homem? – disse Patrik, para quebrar o silêncio.

 

– Jan-Olov Persson – disse o superintendente Runberg. – Ele tinha quarenta e dois, trabalhava como marceneiro. Viúvo.

 

– E ele era alcoólatra?

 

– Sim, teve problemas sérios por um tempo. Quando sua esposa morreu, ele, bem, ficou despedaçado. Foi uma história bem triste. Uma noite, ele pegou o carro depois de beber e atropelou um jovem casal que estava caminhando. O homem morreu e Jan-Olov passou um tempo na cadeia. Mas depois que ele saiu, nunca mais tocou em álcool. Ele tomou jeito, trabalhou, cuidou de sua filha.

 

– E de repente foi encontrado morto por envenenamento por álcool?

 

– Sim – Runberg suspirou. – Como eu disse, nós pensamos que ele havia tido uma recaída e as coisas tinham fugido ao controle. A filha de dez anos o encontrou. Ela disse que havia encontrado um estanho, um homem, na porta, mas nós não acreditamos nela. Achamos que tinha sido o choque ou que ela queria apenas proteger seu pai... – sua voz morreu, e a vergonha pesou em seu silêncio.

 

– Havia uma página de livro ao lado dele? De um livro infantil?

 

– Eu tentei me lembrar disso quando vi sua notificação. Mas não consegui me lembrar de nada. Se havia uma página de livro, nós não demos muita importância. Provavelmente suspeitamos que pertencesse à menina.

 

– Então não há mais nada relacionado a isso? – Patrik pôde ouvir como soava decepcionado.

 

– Não, não temos muito mais sobre a investigação. Como eu disse, nós pensamos que o cara havia morrido de tanto beber. Mas posso te enviar o pouco que temos.

 

– Você tem um aparelho de fax? Pode me mandar por fax? Seria bom ter essas informações o mais rápido possível.

 

– Claro – disse Runberg e então acrescentou. – Pobre menina. Que vida. Primeiro a mãe morreu quando ela era pequena e o pai foi para a cadeia. Depois ele morreu e a deixou completamente só. E agora eu leio nos jornais que a garota foi assassinada na sua cidade. Eu acho que ela estava em um reality show. Eu nunca a teria reconhecido pelas fotos. Lillemor não parecia mais a mesma. Aos dez anos ela era morena, magra e agora... bem, muita coisa aconteceu com o passar dos anos.

 

Patrik sentiu as paredes ruindo à sua volta. De início, ele não conseguiu processar a informação. Então de repente se deu conta do que Vilgot Runberg estava dizendo. Lillemor, Barbie, era a filha da segunda vítima. E oito anos antes, ela tinha visto o assassino.

 

Quando Mellberg entrou no banco, havia muitos, muitos anos não se sentia mais feliz e seguro. Ele, que detestava gastar dinheiro, agora ia gastar duzentos mil – e sem a menor hesitação. Estava comprando um futuro, um futuro com Rose-Marie. Sempre que fechava os olhos, o que acontecia com frequência durante o expediente, podia sentir o perfume dos hibiscos, do sol, da água salgada e de Rose-Marie. Ele mal podia acreditar em sua sorte e como sua vida havia mudado em poucas semanas. Em junho eles iriam até lá para ver a casa pela primeira vez e ficar lá por quatro semanas. Ele já estava contando os dias.

 

– Eu gostaria de transferir duzentas mil coroas – ele disse, deslizando pelo balcão o papel com o número de sua conta para a atendente. Sentiu orgulho. Poucos eram os que conseguiam economizar tanto com um salário de policial, mas cada centavo ajudara e agora ele tinha um belo pé-de-meia. Sim, pouco mais que duzentas mil coroas. Rose-Marie ia depositar a mesma quantia e eles fariam um empréstimo para completar o restante, ela disse. Contudo, quando ela ligou ontem, disse que era importante que fechassem o negócio rapidamente, porque outro casal também havia manifestado interesse pelo imóvel.

 

Ele saboreou as palavras. “Outro casal.” Imagine só, em idade avançada ele ter se tornado parte de um “casal”. Ele riu sozinho. Sim, além disso, ele e Rose-Marie, eram páreo para muito casal jovem na cama. Ela era simplesmente maravilhosa. Em todos os sentidos.

 

Estava prestes a sair, após realizar sua operação, quando de repente teve uma brilhante ideia.

 

– Quanto eu tenho sobrando na conta? – perguntou para a atendente, ansioso.

 

– Dezesseis mil e quatrocentos – ela disse. Mellberg hesitou por um milésimo de segundo antes de tomar uma decisão.

 

– Eu gostaria de retirar tudo. Em dinheiro.

 

– Em dinheiro? – disse a atendente e ele confirmou. Um plano tomava forma em sua mente e, quanto mais ele pensava nisso, mais certo tudo parecia. Cuidadosamente, guardou o dinheiro na carteira e voltou para a delegacia. Nunca pensou que gastar dinheiro o faria se sentir tão bem. Ele jamais poderia imaginar.

 

– Martin – Patrik arfava quando correu para o escritório do colega e Martin se perguntou o que estava acontecendo – Martin – Patrik repetiu, mas sentou-se para recobrar o fôlego.

 

– Foi exercício demais correr de sua sala até aqui? – Martin disse sorrindo. – Você deveria tentar entrar em forma.

 

Patrik fez um gesto de desdém e dessa vez não aproveitou a chance para devolver a provocação.

 

– Elas estão ligadas – ele disse, projetando-se para a frente.

 

– Quem está ligada? – Martin perguntou, tentando descobrir o que dera em Patrik. Ele estava agindo como um louco.

 

– Nossas investigações – disse Patrik, triunfante.

 

Martin ficou ainda mais confuso.

 

– Bem, estão sim – ele disse, intrigado. – Nós já confirmamos que embriaguez ao volante é o denominador comum – ele fechou a cara e tentou entender o delírio de Patrik.

 

– Não, não aquelas investigações. Nossas investigações distintas. O assassinato de Lillemor... está conectado com os outros. É o mesmo criminoso.

 

Agora Martin tinha certeza de que Patrik devia ter enlouquecido. Perguntou-se se teria a ver com o estresse. Todo aquele trabalho ultimamente combinado ao estresse da proximidade do casamento. Até a pessoa mais calma poderia...

 

Patrik pareceu saber o que Martin estava pensando e o interrompeu irritado:

 

– Eles têm ligação, estou te dizendo. Ouça aqui.

 

Contou brevemente o que Runberg dissera e, quanto mais ele falava, mais atônito Martin ficava. Ele mal podia acreditar. Aquilo soava tão improvável. Olhou para Patrik e tentou absorver todos os fatos.

 

– Então, o que você está dizendo é que a vítima número dois é Jan-Olov Persson, que era pai de Lillemor Persson. E Lillemor viu o assassino quando tinha dez anos de idade.

 

– Sim – disse Patrik, aliviado por Martin finalmente ter compreendido. – É verdade! Pense no que ela escreveu em seu diário. Que ela reconhecia alguém, mas não conseguia se lembrar de onde. Um breve encontro oito anos atrás, quando tinha apenas dez anos; não deve ter sido uma lembrança muito clara, dadas as circunstâncias.

 

– Mas o assassino sabia quem ela era e estava com medo de que

Lillemor pudesse ligá-lo ao ocorrido.

 

– E por isso ele tinha que matar a garota antes que ela o identificasse, ligando-o, desse modo, à morte de Marit.

 

– E, por conseguinte, aos outros assassinatos – Martin acrescentou, agora muito excitado.

 

– Tudo se encaixa, não acha? – disse Patrik, com a mesma excitação na voz.

 

– Então, se pegarmos a pessoa que matou Lillemor Persson, também solucionaremos os outros assassinatos – Martin disse, num fio de voz.

 

– Sim. Ou vice-versa. Se solucionarmos os outros casos, encontraremos a pessoa que matou Lillemor.

 

– Certo – ambos ficaram em silêncio por um momento. Patrik queria gritar “Eureka!”, mas percebeu que não era lá muito apropriado.

 

– O que temos no momento para prosseguir com a investigação de Lillemor? – Patrik perguntou retoricamente. – Temos os pelos de cachorro e a fita da noite da morte. Você assistiu à gravação novamente na segunda-feira. Viu mais alguma coisa que possa interessar?

 

Algo se remexeu no subconsciente de Martin, mas recusou-se a vir à tona, então ele sacudiu a cabeça.

 

– Não, não vi nada de novo. Só o que Hanna e eu colocamos no relatório daquela noite.

 

– Então temos que começar a verificar a lista dos criadores de cães. Annika me entregou outro dia – ele se levantou. – Eu vou dar a notícia aos outros.

 

– Faça isso – disse Martin, distraído. Ainda estava tentando se lembrar do que havia escapado de seu pensamento. Que diabos tinha visto no vídeo, mesmo? Ou não tinha visto? Quanto mais tentava localizar com precisão, mas a coisa lhe fugia. Ele suspirou. Era melhor esquecer por enquanto.

 

A notícia caiu como uma bomba na delegacia. A princípio, todos reagiram com a mesma incredulidade de Martin, mas, quando Patrik apresentou os fatos do caso, todos aceitaram a notícia com muito entusiasmo. Assim que estavam todos informados, Patrik voltou à sua mesa e tentou formular uma estratégia de como deveriam proceder.

 

– É uma notícia chocante, essa que você descobriu – disse Gösta, da porta. Patrik apenas assentiu.

 

– Venha cá, sente-se – ele disse e Gösta sentou-se na cadeira do visitante. – O único problema é que eu não sei como juntar tudo – disse Patrik. – Pensei em checar a lista de criadores que você compilou e examinar os documentos que vieram de Ortboda – apontou para o fax em sua mesa. Havia chegado dez minutos antes.

 

– Sim, há muito o que checar – Gösta suspirou, olhando para todas as coisas penduradas nas paredes. – É como uma teia gigantesca, mas sem nenhuma pista de onde a aranha foi parar.

 

Patrik riu.

 

– É uma ótima analogia. Eu não sabia que tinha uma veia poética tão desenvolvida, Gösta.

 

Gösta só resmungou uma resposta. Em seguida, levantou-se e andou lentamente pela sala, seu rosto a apenas centímetros de distância das fotografias e dos documentos pendurados.

 

– Tem de haver algo, um detalhe que perdemos – ele disse.

 

– Bem, se você encontrar algo, eu ficarei mais que agradecido. Eu devo ter olhado para tudo isso até ficar cego – Patrik fez um gesto que abarcava todo o pequeno escritório.

 

– Pessoalmente, eu não entendo como você consegue trabalhar com essas fotos à sua volta – Gösta apontou para os retratos dos corpos, que estavam dispostos na ordem em que tinham sido mortos. Elsa mais perto da janela e Marit perto da porta.

 

– Você ainda não pendurou Jan-Olov – Gösta disse secamente, apontando para o espaço à direita de Elsa Forsell.

 

– Não. Ainda não tive tempo – disse Patrik, olhando para seu colega. Às vezes o homem tinha uma vontade repentina de trabalhar, o bom Gösta Flygare, e esse claramente era um desses momentos.

 

– Quer que eu saia do seu caminho? – disse Patrik quando Gösta tentou se espremer atrás de sua poltrona.

 

– Sim, isso ajudaria muito – disse Gösta, afastando-se para deixar o colega passar. Patrik encostou-se na parede oposta e cruzou os braços. Era provavelmente uma boa ideia que outra pessoa desse uma olhada.

 

– Você já pegou de volta todas as páginas que estavam com o LNC, pelo que vejo – Gösta virou-se a fim de olhar para Patrik.

 

– Elas chegaram ontem. A única página que não tenho é a de Jan-Olov. Mas a polícia não a possuía.

 

– Isso é uma pena – disse Gösta, ainda voltando no tempo em direção a Elsa Forsell. – Eu me pergunto por que João e Maria especificamente – ele disse, pensativo. – É aleatório ou tem algum significado?

 

– Eu adoraria saber. Há muito mais que eu gostaria de saber também.

 

– Humm – disse Gösta, agora parado diante das fotos e dos documentos que tratavam de Elsa.

 

– Eu telefonei para Uddevalla – disse Patrik, antecipando-se à pergunta de Gösta. – Eles ainda não encontraram os arquivos do acidente dela. Mas vão mandá-los por fax assim que os localizarem.

 

Gösta não respondeu. Ficou lá em silêncio por um momento, olhando o que estava exposto na parede. O sol de primavera entrava pela janela, iluminando alguns dos papéis com sua luz brilhante. Ele franziu a testa. Deu meio passo atrás. Depois se aproximou novamente, dessa vez tão perto que quase colou a orelha na parede. Patrik o observou, admirado. O que ele estava fazendo?

 

Gösta pareceu estar estudando a folha do livro pela lateral. A página de Elsa era a primeira do conto de fadas, e a história de João e Maria começava ali. Com uma expressão triunfante, Gösta virou-se para Patrik.

 

– Venha cá onde eu estou – disse Gösta, dando um passo para o lado.

 

Patrik correu para assumir a mesma posição, alinhou a cabeça à parede, como Gösta havia feito. E ali, na contraluz da janela, ele viu o que seu colega havia descoberto.

 

Sofie se sentia congelada por dentro. Olhava o caixão sendo baixado para o túmulo. Olhava, mas não compreendia. Não conseguia compreender. Como podia ser sua mãe deitada no caixão?

 

O pastor falou, ou pelo menos seus lábios se moviam, mas Sofie não ouvia o que era dito por conta do zumbido em seus ouvidos, que emudecia tudo o mais. Ela olhou para seu pai. Ola parecia solene e retraído, com a cabeça baixa e abraçado à vovó. Os avós maternos de Sofie haviam chegado da Noruega no dia anterior. Eles estavam diferentes de como ela se lembrava deles, apesar de tê-los visto no Natal passado. Mas eles pareciam mais baixos, mais magros, de cabelos mais brancos. Vovó tinha rugas no rosto que não estavam lá antes e Sofie não soube como abordá-la. Vovô também havia mudado. Estava mais quieto, mais aéreo. Ele sempre fora alegre e exaltado, mas dessa vez ele ficara apenas vagando pela casa, falando somente quando conversavam com ele.

 

Pelo canto do olho, Sofie viu algo se movendo próximo ao portão, do outro lado do átrio. Virou o rosto e viu Kerstin ali com seu casaco vermelho, suas mãos agarradas às grades do portão. Sofie teve que desviar o olhar. Sentiu vergonha. Porque era seu pai quem estava lá e não Kerstin. Vergonha por não ter lutado pelo direito de Kerstin estar lá para dar adeus a Marit. Mas seu pai fora tão agressivo, tão determinado. E ela simplesmente não conseguia mais brigar com ele. Ele a estava repreendendo desde que descobrira que ela havia dado para a polícia o artigo sobre Marit. Ola disse que ela desgraçara a família toda e que o fazia passar vergonha. E então ele começou a falar sobre o funeral, dizendo que seria apenas para parentes próximos, a família de Marit. Ele esperava que “aquela pessoa” não ousasse aparecer. Por isso Sofie apenas se calou. Sabia que era errado, mas papai estava tão cheio de ódio, tão furioso que ela sabia que tentar protestar iria lhe custar muito.

 

No entanto, quando Sofie viu o rosto de Kerstin de longe, sentiu-se arrependida. Ali estava a companheira de sua mãe, sozinha, sem chance de dar um último adeus. Sofie deveria ter sido mais corajosa. Deveria ter sido mais forte. Kerstin nem sequer fora mencionada no obituário no jornal. Em vez disso, Ola publicou uma nota de falecimento em que ele, Sofie e os pais de Marit eram listados como os parentes mais próximos. Mas Kerstin havia mandado um feito por ela própria. Ola ficou lívido quando o viu no jornal, mas não podia fazer nada quanto a isso. De repente, Sofie estava tão cansada de tudo: de toda a hipocrisia, de toda a injustiça. Deu um passo pelo caminho de brita, hesitou por um segundo e então correu na direção de Kerstin. Por um momento, sentiu novamente a mão de Marit em seu ombro e sorriu quando se atirou nos braços de Kerstin.

 

– Sigrid Jansson – disse Patrik estreitando os olhos. – Olhe aqui, não diz Sigrid Jansson?

 

Ele saiu da frente para que Gösta pudesse dar uma olhada na página e no nome que estava visível à luz do sol de primavera.

 

– É o que parece para mim – disse Gösta, satisfeito consigo mesmo.

 

– Engraçado o LNC não ter notado isso – disse Patrik, mas então se lembrou de que havia pedido apenas para procurarem impressões digitais. Mas aparentemente a dona do livro tinha escrito seu nome na primeira página, e a caneta havia marcado a página seguinte, a primeira de texto, a que fora encontrada ao lado do corpo de Elsa Forsell.

 

– O que faremos agora? – disse Gösta, ainda com a mesma expressão satisfeita no rosto.

 

– O nome não é particularmente incomum, mas vamos ter que começar buscando todas as Sigrid Janssons na Suécia e ver o que aparece.

 

– O livro é velho. A dona pode estar morta.

 

– Certo – Patrik pensou por um momento antes de responder.

 

– É por isso que teremos que expandir a busca para incluir as que não estão mais vivas hoje. Teremos que incluir, digamos, mulheres que nasceram no século dezenove.

 

– Parece um bom plano – disse Gösta. – Acha que significa alguma coisa Elsa ter ficado com a primeira página? Será que ela tem alguma ligação com a tal Sigrid Jansson?

 

Patrik encolheu os ombros. Nada mais o surpreendia nesse caso. Parecia que tudo era possível.

 

– É algo que teremos de checar. E talvez a gente descubra mais quando Uddevalla retornar a ligação.

 

Como se esperasse a deixa, o telefone da mesa de Patrik tocou.

 

– Patrik Hedström – ele disse acenando para Gösta ficar na sala quando ouviu quem estava do outro lado da linha.

 

– Um acidente, 1969. Sim... Sim... Não... Sim.

 

Gösta transferia o peso de um pé para o outro, impaciente. Pela expressão de Patrik, notou que ele havia escutado algo crucial. O que acabou se confirmando.

 

Quando Patrik desligou, disse vitorioso:

 

– Era de Uddevalla. Eles encontraram as informações sobre Elsa Forsell. Ela estava guiando em uma colisão frontal com outro carro, em 1969. Estava bêbada. E adivinhe o nome da pessoa que morreu?

 

– Sigrid Jansson – Gösta sussurrou.

 

Patrik confirmou.

 

– Você vem comigo para Uddevalla?

 

Gösta apenas bufou. É claro que ia.

 

– Para onde foram Patrik e Gösta? – perguntou Martin saindo do escritório vazio de Patrik.

 

– Foram para Uddevalla – disse Annika, olhando por sobre os aros dos óculos. Ela tinha um carinho especial por Martin. Havia algo nele que a fazia pensar em um filhote de cachorro, algo puro, que trazia à tona seus instintos maternais. Antes de conhecer Pia, ele passara horas e horas no escritório dela discutindo suas desilusões amorosas. Apesar de Annika estar feliz por ele agora estar em um relacionamento estável, às vezes sentia saudade daqueles tempos.

 

– Sente-se – ela disse e Martin obedeceu. Não obedecer Annika era impossível para qualquer um na delegacia. Nem mesmo Mellberg ousava não o fazer.

 

– Como você está? Está tudo bem? Vocês dois gostam de sua casa? Fale – ela lançou-lhe um olhar inflexível. Para sua surpresa, viu um sorriso enorme se abrir no rosto de Martin e ele mal podia permanecer sentado.

 

– Eu vou ser pai – ele disse e seu sorriso se abriu ainda mais. Annika sentiu seus olhos se encherem de lágrimas. Não de inveja ou tristeza por ela mesma não ter tido essa experiência, mas por pura e genuína alegria por Martin.

 

– O que está dizendo? – ela disse, rindo, enquanto enxugava uma lágrima que rolava por sua face. – Meu Deus, que boba que eu sou, chorando aqui – ela falou envergonhada, mas viu que Martin também estava emocionado. – Para quando é o bebê?

 

– Para o fim de novembro – disse Martin, com outro enorme sorriso.

 

Seu coração se aquecia por ver Martin tão feliz.

 

– Fim de novembro – ela disse. – Sim, devo dizer... Bem, não fique sentado aí, me dê um abraço! – ela abriu os braços e Martin veio até ela e deu-lhe um abraço apertado. Eles falaram por mais um tempo sobre o feliz evento que se aproximava, mas então Martin ficou sério e seu sorriso se esvaiu.

 

– Acha que vamos chegar ao fundo disso tudo?

 

– Os assassinatos, você diz? – Annika sacudiu a cabeça. – Não sei. Temo que seja um fardo grande demais para Patrik dessa vez. É muito... complicado.

 

Martin concordou.

 

– Eu pensei a mesma coisa. O que eles foram fazer em Uddevalla, a propósito?

 

– Não sei. Patrik só disse que ligaram de lá a respeito de Elsa Forsell e que ele e Gösta estavam a caminho para descobrir mais. Uma coisa é certa. Os dois estavam muito sérios.

 

A curiosidade de Martin definitivamente cresceu.

 

– Devem ter encontrado algo importante sobre ela. Só me pergunto o quê...

 

– Vamos descobrir hoje à tarde – disse Annika, mas não podia evitar especular sobre o que teria feito Patrik e Gösta saírem com tanta pressa.

 

– É, acho que vamos – disse Martin, levantando-se para voltar a seu escritório. De repente, ele queria muito que novembro chegasse.

 

Levou quatro horas para Gösta e Patrik voltarem para a delegacia. Assim que entraram, Annika pôde ver que tinham notícias importantes.

 

– Reunião na sala de descanso – Patrik disse sem rodeios e foi pendurar o paletó. Cinco minutos depois, todos estavam presentes.

 

– Duas coisas decisivas aconteceram hoje – disse Patrik, olhando para Gösta. – Primeiro, Gösta descobriu que era possível ler um nome na página de Elsa Forsell. O nome era Sigrid Jansson. E nós recebemos um telefonema de Uddevalla, então fomos lá para saber de todos os detalhes. E tudo se encaixa.

 

Ele fez uma pausa, bebeu um copo d’água e encostou-se na pia. Todos olhavam para ele, ansiosos para saber o que ele diria depois.

 

– Elsa Forsell era a motorista num acidente fatal ocorrido em 1969. Como as outras vítimas, ela estava dirigindo bêbada e foi sentenciada à prisão por um ano. O carro contra o qual ela se chocou era guiado por uma mulher na casa dos trinta anos, que tinha duas crianças consigo no carro. A mulher morreu na hora, mas as crianças sobreviveram milagrosamente sem um arranhão – ali ele fez outra pausa de efeito e então disse: – O nome da mulher era Sigrid Jansson.

 

Os outros tiveram um sobressalto. Gösta balançou a cabeça, satisfeito. Fazia tempo que ele não se sentia tão bem a respeito de sua contribuição em um caso.

 

Martin ergueu a mão para dizer algo, mas Patrik o interrompeu.

 

– Não, esperem, tem mais. De início, a polícia pensou que obviamente as crianças no carro fossem de Sigrid. Mas o problema é que ela não tinha filhos. Ela era uma reclusa que morava no campo, perto de Uddevalla, na casa onde vivera desde criança, que havia herdado depois da morte dos pais. Ela trabalhava como atendente em uma elegante butique de roupas no centro da cidade e era sempre educada e agradável com os clientes. Mas quando a polícia entrevistou seus colegas, eles disseram que ela era muito fechada. Até onde sabiam, ela não tinha parentes ou amigos. E definitivamente não tinha filhos.

 

– Então... de quem eles eram? – disse Mellberg, coçando a testa.

 

– Ninguém sabe. Não havia denúncias de crianças desaparecidas naquela idade. Ninguém ligou para reclamá-los. Quando a polícia foi até a casa de Sigrid averiguar, era possível ver que as duas crianças viviam mesmo com ela. Nós conversamos com um dos oficiais que estavam lá quando o acidente aconteceu. Ele nos disse que as crianças dividiam um quarto que estava cheio de brinquedos e coisas de criança. Mas Sigrid nunca tivera um parto, como mostrou a autópsia. Também colheram amostras de sangue para determinar se havia uma ligação entre ela e as crianças, mas o tipo sanguíneo delas não batia com o de Sigrid.

 

– Então Elsa Forsell foi a causa de tudo – disse Martin.

 

– Sim, é o que parece – disse Patrik. – É como se seu acidente pusesse em movimento toda uma cadeia de homicídios. Aparentemente, o assassino começou por ela.

 

– Onde estão as crianças agora? – Hanna perguntou, dando voz ao que todos estavam pensando.

 

– Estamos trabalhando nisso – disse Gösta. – Nossos colegas em Uddevalla estão tentando conseguir os documentos da assistência social, mas isso pode demorar um pouco.

 

– Temos que continuar trabalhando na investigação com base na informação que temos – Patrik disse. – Mas a chave do caso é Elsa Forsell, então vamos nos concentrar nela.

 

Todos saíram da sala de descanso, mas Patrik chamou Hanna de volta.

 

– Sim – ela disse. Quando Patrik viu como Hanna estava pálida, ficou mais determinado ainda a conversar com ela.

 

– Sente-se – ele disse, também acomodando-se em uma das cadeiras. – Como está indo? – ele disse, estudando-a com atenção.

 

– Mais ou menos, para ser sincera – ela disse, baixando os olhos. – Tenho me sentido péssima há dias e acho que estou ficando com febre.

 

– Sim, eu notei que está fora do seu normal ultimamente. Acho que é melhor ir para casa e descansar. Não vai ajudar nada brincar de mulher de aço e continuar trabalhando se está doente. Você precisa pegar leve, para poder voltar com as forças renovadas.

 

– Mas a investigação...

 

Patrik se levantou.

 

– É uma ordem. Vá para casa e descanse – ele disse, forjando um tom de voz mal-humorado.

 

– Sim, chefe – Hanna disse e sorriu enquanto batia continência de brincadeira. – Eu só tenho que terminar umas coisas antes. Elas não podem esperar até mais tarde.

 

– Está bem, é com você. Mas depois vá direto para casa, inspetora!

 

Hanna deu um sorriso sem vontade e foi embora. Patrik a observou, preocupado. Ela não parecia bem mesmo.

 

Virou-se para olhar pela janela e se permitiu sentar por um momento. Havia acontecido tanta coisa nesses últimos dias, tanta coisa fora descoberta. Mas parecia que a última grande batalha ainda estava por vir. Patrik tinha a nítida sensação de que as crianças precisavam ser encontradas logo. Aquelas crianças que pareciam ter surgido do nada. O importante agora era descobrir o que aconteceu com elas.

 

– Serviu perfeitamente! – Anna sorriu e Erica tinha que concordar. O vestido precisava ser ajustado aqui e ali, mas uma vez que as alterações fossem feitas, ele cairia como um sonho. Um pouco do peso extra da gravidez que tão teimosamente se agarrava a ela tinha sumido e Erica se sentia mais magra e mais animada como resultado da mudança na dieta.

 

– Você vai ficar tão bonita! – Anna disse enquanto elas voltavam da prova do vestido.

 

Erica sorriu para a irmã, que estava quase tão entusiasmada com o casamento no sábado quanto ela mesma. Olhou para Maja, que estava dormindo na cadeirinha.

 

– Estou preocupada com Patrik – disse Erica e seu sorriso esmoreceu. – Ele anda tão tenso. Acha que ele vai conseguir curtir o casamento?

 

Anna olhou para ela por um momento e pareceu estar em dúvida se dizia algo. Finalmente se decidiu:

 

– Isso era para ser uma surpresa – ela disse. – Mas conversamos com a turma e todos concordaram em deixar de lado ambas as despedidas de solteiro de vocês. Não parecia certo se entregar a esse tipo de distração boba. Em vez disso, nós reservamos um quarto com direito a jantar num hotel, na sexta-feira à noite. Assim vocês podem relaxar em paz com sossego antes do sábado. Espero que goste.

 

– Meu Deus, que lindo! E é uma ótima ideia. Eu não acho que Patrik aceitaria uma despedida de solteiro nesse momento. Vai ser maravilhoso ter uma noite sossegada na sexta-feira. Acredito que não vai haver nenhum momento de tranquilidade no sábado.

 

– Não, eu também acho que não – Anna disse, rindo, aliviada que a irmã tenha aprovado a ideia.

 

Erica mudou de assunto:

 

– Anna, eu decidi fazer uma investigação. Sobre mamãe.

 

– Investigação? O que quer dizer?

 

– Bem, traçar uma árvore genealógica. Descobrir de onde ela veio e coisas assim. Talvez encontrar algumas respostas.

 

– Acha que vai fazer algum bem? – disse Anna, cética. – Claro, você deve fazer o que achar melhor, mas mamãe não era particularmente sentimental por natureza. É provavelmente por isso que ela não tenha guardado nada do passado ou nos contado nada sobre sua infância. Você sabe como ela não tinha o menor interesse em documentar a nossa.

 

A risada de Anna tinha um pouco de amargura que surpreendeu Erica. Sua irmã sempre fingira não se incomodar com a frieza da mãe.

 

– Mas você não tem a menor curiosidade? – Erica perguntou, olhando de lado a irmã.

 

Anna olhou pela janela do lado do passageiro.

 

– Não – ela disse depois de um breve, mas significativo, momento de hesitação.

 

– Eu não acredito. Mas de qualquer forma, vou começar a investigar. Se você quiser ouvir o que eu encontrar, é só me avisar. Mas a decisão é sua.

 

– E se você não encontrar resposta nenhuma? – disse, Anna, voltando-se para Erica. – E se você descobrir que ela teve uma infância comum, uma adolescência comum. E que não há outra explicação exceto o fato de que ela simplesmente não tinha o menor interesse em nós. O que vai fazer?

 

– Conviver com isso – Erica disse, em voz baixa. – Como eu sempre fiz.

 

Elas permaneceram em silêncio até o fim da viagem para casa. Ambas mergulhadas em seus próprios pensamentos.

 

Patrik repassou a lista pela terceira vez, enquanto tentava não ficar encarando o telefone. A cada vez que tocava, ele torcia para ser Uddevalla com mais informações sobre as crianças. Mas se decepcionava todas as vezes.

 

Também se decepcionou com a lista de criadores de cães e seus endereços. Eles estavam espalhados por toda a Suécia e não havia nenhum nas imediações de Tanumshede. Ele sempre soube que seria um tiro no escuro, mas ainda assim tinha alguma esperança. Só para ter certeza, ele lentamente verificou a lista uma quarta vez. Cento e cinquenta e nove nomes. Cento e cinquenta e nove endereços, mas o mais próximo era em Trollhättan. Patrik suspirou. Boa parte de seu trabalho consistia em tarefas entediantes e em perda de tempo, mas, depois dos eventos das últimas semanas, ele quase se esquecera disso. Girou a cadeira e olhou para o mapa da Suécia na parede. Os percevejos pareciam olhar para ele, desafiando-o a encontrar um padrão, decifrar o código que representavam. Cinco percevejos, cinco locais diferentes, espalhados pela metade sul daquele país comprido que era a Suécia. O que fez o assassino se mudar de um lugar para o outro? Teria sido o trabalho? Teria sido a passeio? Seria uma tática planejada para confundir? O assassino teria residência fixa em algum outro lugar? Patrik não acreditava na última opção. Algo lhe dizia que a resposta estava no padrão geográfico, que o assassino, por alguma razão, havia seguido. Também achava que o criminoso estava ali na área. Era mais uma intuição e era tão forte que ele se pegava examinando minuciosamente todas as pessoas que via na rua. Aquele seria o assassino? Ou aquele outro? Quem estaria se escondendo por trás do disfarce de cidadão comum?

 

Patrik suspirou e ergueu os olhos quando Gösta entrou após bater discretamente.

 

– Bem – Gösta disse, sentando-se –, é isto: algo aqui em cima vem fazendo hora extra – ele tocou a têmpora – desde que soubemos das crianças, ontem. Provavelmente não é nada. E pode soar um pouco forçado.

 

Ele começou a gaguejar e Patrik teve que reprimir o desejo de sacudir Gösta para fazê-lo parar de resmungar.

 

– Bem, eu estava pensando no caso que aconteceu em 1967. Em Fjällbacka. Eu era um novato aqui na época.

 

Patrik olhava para ele com crescente irritação. Isso era o que se poderia chamar de enrolação!

 

E então Gösta pegou ritmo, quando continuou:

 

– Como eu disse, eu não tinha muito tempo de serviço aqui quando recebemos uma ligação a respeito de duas crianças que tinham se afogado. Gêmeos. Três anos de idade. Viviam com a mãe na ilha de Kalvö. O pai se afogara alguns meses antes, quando caiu e atravessou uma fina camada de gelo, e a mãe aparentemente começara a beber muito. E nesse dia, foi em março, se me lembro bem, ela levou o barco da família a Fjällbacka e dirigiu até Uddevalla para resolver alguns assuntos. Quando voltavam à ilha, caiu uma tempestade. De acordo com a mãe, o barco virara um pouco antes de chegarem à ilha e ambas as crianças se afogaram. Ela havia nadado até a praia e pedido socorro pelo rádio.

 

– Tudo bem – disse Patrik. – Mas por que você pensou que isso tem ligação com o nosso caso? As crianças se afogaram afinal de contas, então elas não poderiam estar com Sigrid Jansson no carro dois anos depois.

 

Gösta hesitou.

 

– Mas havia uma testemunha... – fez uma pausa, então prosseguiu. – Uma testemunha que dizia que a mãe, Hedda Kjellander, não estava com as crianças no barco quando saiu.

 

Patrik ficou em silêncio por um bom tempo.

 

– Por que ninguém investigou isso?

 

Gösta pareceu deprimido.

 

– A testemunha era uma senhora. Um pouco excêntrica, pelo que diziam. Ela ficava o dia todo na janela, olhando tudo com seus binóculos e de vez em quando dizia ver coisas... Monstros do mar e coisas assim – disse Gösta, mas ainda parecia deprimido.

 

Ele disse que às vezes pensava nesse caso. Sobre os gêmeos, cujos corpos jamais apareceram em lugar nenhum. Mas ele sempre reprimia o pensamento e se convencia de que fora um trágico acidente. Nada além disso.

 

– Depois de conhecer a mãe, Hedda, eu também não consegui acreditar que ela estivesse mentindo. Ela estava tão desesperada. Tão arrasada. Não havia razão para acreditar... – as palavras morreram e ele não ousou olhar para Patrik.

 

– O que aconteceu com ela? Com a mãe?

 

– Nada. Ela ainda vive na ilha. Raramente aparece na cidade. Ela recebe comida e bebida em domicílio. Se bem que é na bebida que ela está mais interessada.

 

Patrik ouviu a ficha cair.

 

– É da “Hedda de Kalvö” que você está falando? – ele não acreditava. Mas nunca soubera que Hedda havia tido dois filhos. Toda a fofoca que ouvira é que ela havia sofrido duas tragédias e que desde então se dedicava a beber até cair.

 

– Então você acha...

 

Gösta deu de ombros.

 

– Eu não sei o que pensar. Mas é uma coincidência notável. E as idades batem – ele disse baixinho e deixou Patrik considerar o que acabava de dizer.

 

– Eu acho que temos que ir conversar com ela.

 

Gösta concordou.

 

– Podemos pegar nosso barco – disse Patrik, levantando-se. Gösta ainda parecia deprimido quando Patrik virou-se para ele. – Foi há muito tempo, Gösta. E eu não posso dizer que teria feito algo diferente. Eu provavelmente chegaria à mesma conclusão. E além disso, você não estava no comando.

 

Gösta não tinha tanta certeza de que Patrik largaria o caso tão facilmente. E ele teria pressionado mais seu chefe. Mas o que estava feito está feito. Não adiantava ficar remoendo nisso.

 

– Você está doente? – preocupado, Lars sentou-se na beira da cama e colocou a mão fresca na testa de Hanna. – Você está queimando em febre – ele disse, puxando as cobertas até o queixo dela. Ela tremia de frio e tinha a sensação de estar congelando, mesmo suando tanto.

 

– Eu só quero ficar sozinha – ela disse, virando-se de lado.

 

– Eu estava apenas tentando ajudar – disse Lars, magoado, retirando a mão que estava sobre as cobertas.

 

– Você já me ajudou bastante – disse Hanna, amarga, com os dentes batendo.

 

– Você ligou avisando que estava doente? – ele se sentou de costas para ela e olhou pela porta do terraço. Havia uma distância tão grande entre eles que seria o mesmo que estarem em continentes diferentes. O coração de Lars estava apertado. Parecia medo, mas um medo tão profundo, tão penetrante que ele não conseguia se lembrar da última vez que sentira algo assim. Respirou fundo.

 

– Se eu mudar de opinião sobre ter filhos, isso transformaria tudo?

 

O bater de dentes parou por um segundo. Hanna sentou-se, ajeitando-se nos travesseiros, mas manteve as cobertas até a altura do queixo. Ela tremia tanto que sentia a cama tremer também. A ansiedade era tão forte que Lars quase podia esticar a mão e tocá-la. Ele sempre se sentia assim quando Hanna ficava doente. Não o perturbava ficar doente ele próprio. Mas quando Hanna passava mal, ele sentia como se estivesse com os mesmos sintomas.

 

– Isso mudaria tudo – Hanna disse, encarando-o com olhos brilhantes devido à febre. – Isso mudaria tudo – ela repetiu, mas, após um momento, acrescentou. – Mudaria mesmo?

 

Ele deu-lhe as costas e olhou o telhado da casa vizinha.

 

– Provavelmente sim – ele disse sem muita certeza de estar falando a verdade. – Mudaria.

 

Ele se virou. Hanna havia caído no sono. Ele olhou para ela por um bom tempo. Depois saiu do quarto na ponta dos pés.

 

– Acha que pode encontrá-la? – Patrik virou-se para Gösta quando saíram do pórtico com o barco, em Badholmen.

 

Gösta assentiu.

 

– Claro que posso.

 

Passaram a viagem a caminho da ilha de Kalvö em silêncio. Quando atracaram no píer velho e gotejante, o rosto de Gösta ficou cinzento. Ele estivera ali várias vezes desde aquele dia, trinta e sete anos atrás, mas era sempre aquela primeira visita que vinha à sua memória.

 

Caminharam lentamente até o chalé, que ficava no ponto mais alto da ilha. Era óbvio que nenhum reparo era feito ali havia muito tempo, e o mato havia crescido em torno do caminho de grama ao redor da casa. Fora isso, só havia granito até onde os olhos podiam alcançar, apesar de que um exame mais apurado revelava que havia sinais de plantas que esperavam que o calor da primavera chegasse e as despertasse. A casa era branca e a tinta estava descascando em pedaços grandes, que expunham a madeira que ficava por baixo, cinza e surrada pelo vento. As telhas estavam quebradas e faltavam algumas aqui e ali, como uma boca sem alguns dos dentes.

 

Gösta tomou a frente e bateu com cuidado na porta. Não houve resposta. Bateu mais forte.

 

– Hedda? – ele bateu o punho com ainda mais força na porta de madeira e então testou para ver se abriria. A porta não estava trancada e abriu-se.

 

Quando eles entraram, automaticamente tiveram que cobrir o nariz com o braço por causa do fedor. Era como entrar em um chiqueiro. Por todos os lados havia lixo, restos de comida, jornais velhos e, acima de tudo, garrafas vazias.

 

Gösta avançou para dentro da sala e chamou:

 

– Hedda?

 

Nenhuma resposta.

 

– Vou procurar por ela – Gösta disse e Patrik só pôde concordar com a cabeça. Estava além de sua compreensão como alguém conseguiria viver daquele jeito.

 

Depois de alguns minutos, Gösta voltou e acenou para Patrik acompanhá-lo.

 

– Ela está deitada na cama. Derrubada. Teremos que tentar trazê-la de volta. Pode fazer um café?

 

Patrik olhou a cozinha, perdido. Finalmente, encontrou uma embalagem de café instantâneo e um bule vazio. Parecia ser usado principalmente para ferver água, já que estava relativamente limpo comparado ao restante dos utensílios.

 

– Está bem, vamos lá – Gösta entrou na cozinha arrastando um arremedo de mulher. Apenas um murmúrio atordoado saiu dos lábios de Hedda, mas ela até conseguiu pôr um pé diante do outro e chegar à cadeira na cozinha que era o objetivo de Gösta para ela. Ela caiu no assento, apoiou a cabeça nos braços e começou a roncar.

 

– Hedda, não durma novamente. Você precisa ficar acordada.

 

Gösta sacudiu seu ombro gentilmente, mas não recebeu resposta. Fez um sinal para o bule no fogão, onde a água fervia.

 

– Café – ele disse e Patrik se apressou em servir um pouco na xícara que parecia menos imunda. Ele mesmo não tinha a menor vontade de beber café.

 

– Hedda, precisamos conversar um pouco com você – houve apenas um balbucio em resposta. Mas depois ela endireitou-se, contorcendo-se na cadeira, e tentou fixar o olhar.

 

– Somos da polícia de Tanumshede. Patrik Hedström e Gösta Flygare. Você e eu já nos encontramos várias vezes.

 

Gösta falava de maneira bem clara, esperando que pelo menos algumas palavras fossem compreendidas. Fez sinal para Patrik se sentar e ambos se posicionaram de frente para Hedda à mesa da cozinha. A toalha um dia havia sido branca com pequenas rosas, mas agora estava coberta por tantos restos de comida e gordura que mal se via a estampa. Era igualmente impossível saber como Hedda fora um dia. O álcool destruíra sua pele, que parecia feita de couro e estava extremamente enrugada. Havia uma grossa camada de gordura em todo o seu corpo. Seus cabelos deviam ter sido loiros um dia, mas agora eram grisalhos e estavam presos em um rabo de cavalo malfeito. Pela aparência, não eram lavados havia muito tempo. Ela usava um cardigã cheio de furos, que obviamente fora comprado havia anos, quando ela era bem menor. Estava apertado nos ombros e nos seios.

 

– Que diabos... – as palavras morreram e foram substituídas por um resmungo arrastado enquanto ela se sacudia para a frente e para trás na cadeira.

 

– Beba um pouco de café – disse Gösta, soando surpreendentemente gentil. Empurrou a xícara na direção dela, de modo que ela entrasse em seu campo de visão.

 

Hedda obedeceu, dócil, pegando a pequena xícara de porcelana com as mãos trêmulas. Bebeu cada gota do café. Depois largou a xícara de lado e Patrik a pegou antes que caísse pela borda da mesa.

 

– Queremos falar sobre o acidente – disse Gösta.

 

Hedda ergueu a cabeça com enorme esforço e estreitou os olhos na direção dele. Patrik decidiu ficar quieto e deixar Gösta conduzir a conversa.

 

– O acidente? – disse Hedda. Seu corpo parecia um pouco mais estável na cadeira.

 

– Quando as crianças morreram – Gösta manteve o olhar fixo nela.

 

– Eu não quero falar sobre isso – murmurou Hedda, agitando a mão.

 

– Nós temos que falar sobre isso – Gösta insistiu, mas no mesmo tom suave.

 

– Elas se afogaram. Todo mundo se afoga. Você sabe – ela ergueu um dedo no ar –, você sabe, primeiro Gottfrid se afogou. Ele estava saindo para pescar cavalinhas e não o encontraram por uma semana. Eu esperei por ele uma semana, mas, ao pôr do sol do dia em que ele saiu, eu já sabia que ele não voltaria para mim e para as crianças – ela soluçou e parecia estar anos atrás no tempo.

 

– Quantos anos tinham as crianças na época? – Patrik perguntou.

 

Hedda virou-se para ele pela primeira vez.

 

– Crianças, que crianças? – ela parecia confusa.

 

– Os gêmeos – disse Gösta e a fez voltar a olhar para eles. – Quantos anos tinham os gêmeos?

 

– Tinham dois, quase três anos. Duas crianças levadas. Eu só conseguia cuidar deles com a ajuda de Gottfrid. Quando ele...

 

Sua voz morreu novamente e Hedda olhou em volta pela cozinha, como se procurasse alguma coisa. Seus olhos pararam em um dos armários. Ela se levantou com esforço e se arrastou até ele, abriu a porta e pegou uma garrafa.

 

– Querem um gole? – Hedda estendeu a garrafa para ele e, quando ambos sacudiram a cabeça negativamente, ela riu. – Que bom, porque eu não ia dar mesmo. – Sua risada parecia mais um cacarejo, e ela trouxe a garrafa para a mesa e sentou-se outra vez. Nem se incomodou em pegar um copo, levou a garrafa aos lábios e bebeu. Patrik sentiu a própria garganta arder só de olhar para ela.

 

– Quantos anos tinham os gêmeos quando se afogaram? – Gösta perguntou.

 

Hedda não pareceu ouvi-lo. Ela olhava para o nada.

 

– Ela era tão elegante – balbuciou. – Um colar de pérolas e um casaco e tudo. Ela era uma boa mulher.

 

– Quem era? – disse Patrik, sentindo uma ponta de interesse. – Que moça? – mas Hedda já tinha perdido a linha de pensamento.

 

– Quantos anos tinham as crianças quando se afogaram? – Gösta repetiu, com ainda mais clareza.

 

Hedda virou-se para ele com a garrafa parada no ar e a meio caminho de seus lábios.

 

– As crianças não se afogaram, não é?

 

Ela bebeu mais um gole.

 

Gösta olhou significativamente para Patrik e se inclinou para a frente.

 

– As crianças não morreram afogadas? Para onde elas foram?

 

– O que quer dizer com “elas não morreram afogadas”? – Hedda de repente tinha um olhar amedrontado. – É claro que morreram, claro, morreram sim... – bebeu mais um pouco e seus olhos ficaram ainda mais vidrados.

 

– O que aconteceu, Hedda? Elas morreram ou não? – Gösta notava o desespero na própria voz, mas isso só pareceu guiar Hedda mais para dentro da névoa. Agora ela já não respondia, apenas sacudia a cabeça.

 

– Acho que não vamos conseguir tirar mais nada dela – Gösta disse para Patrik com voz lamentosa.

 

– Não, também acho que não. Vamos ter que tentar descobrir algo de outro jeito. Talvez devêssemos vasculhar o local um pouco.

 

Gösta concordou e virou-se para Hedda, cuja cabeça já ia de encontro à mesa novamente.

 

– Hedda, podemos examinar as suas coisas?

 

– Uhum – ela respondeu e caiu no sono.

 

Gösta colocou sua cadeira ao lado da dela, para que ela não rolasse para o chão e então começou a vasculhar a casa com Patrik.

 

Uma hora mais tarde e não tinham encontrado nada. Não havia nada exceto lixo e mais lixo. Patrik desejou ter trazido luvas consigo e tinha a impressão de estar com o corpo todo coçando. Mas não havia sinal de que crianças um dia já haviam morado naquela casa. Hedda devia ter jogado fora tudo o que pertencia a elas.

 

As palavras de Hedda sobre uma “senhora elegante” ecoavam em sua cabeça. Ele não conseguia se livrar delas, mas sentou-se ao lado de Hedda e tentou gentilmente trazê-la de volta mais uma vez. Relutantemente ela se endireitou, mas sua cabeça caiu para trás antes que conseguisse estabilizá-la na posição correta.

 

– Hedda, você tem que me responder. A senhora elegante, ela está com seus filhos?

 

– Eles me davam tanto trabalho. E eu só tinha que fazer umas coisas em Uddevalla. Tinha que comprar mais bebida também, porque eu estava sem – ela murmurou e olhou pela janela, para a água que brilhava ao sol de primavera. – Mas eles continuavam fazendo tanta bagunça. Ela era tão boazinha. Ela podia ficar com eles, me disse. Então ela ficou.

 

Hedda virou os olhos para Patrik e ele viu, pela primeira vez, uma emoção genuína em seus olhos. Bem lá no fundo, havia tamanha dor e culpa que apenas o álcool poderia afogar.

 

– Mas eu me arrependi – ela disse, com lágrimas enevoando seus olhos. – Mas eu já não conseguia mais encontrá-las. E eu procurei tanto. Mas elas sumiram. E a moça elegante também. Aquela que usava colar de pérolas – Hedda pôs a mão no pescoço, onde havia visto o colar e disse: – Ela foi embora.

 

– Mas por que você disse que elas se afogaram? – pelo canto do olho, Patrik viu Gösta ouvindo tudo da porta.

 

– Eu estava com vergonha... e talvez elas tivessem uma vida melhor com a mulher. Mas eu estava com vergonha.

 

Ela olhou para a água outra vez e eles ficaram parados por algum tempo. O cérebro de Patrik trabalhava acelerado para absorver o que acabava de ouvir. Não era difícil constatar que a “moça elegante” provavelmente era Sigrid Jansson e que, por alguma razão, ela havia levado os filhos de Hedda. O motivo, eles provavelmente jamais saberiam.

 

Quando ele lentamente se levantou e se virou para Gösta, com as pernas bambas de tanto ouvir misérias, viu que o parceiro tinha algo nas mãos.

 

– Encontrei uma fotografia – ele disse. – Debaixo do colchão. Uma foto dos gêmeos.

 

Patrik pegou a foto e olhou para ela. Duas crianças pequenas, de mais ou menos dois anos, sentadas no colo de seus pais, Gottfrid e Hedda. Pareciam felizes. A foto devia ter sido tirada um pouco antes de Gottfrid morrer. Antes de tudo ruir. Patrik estudou o rosto das crianças. Onde estavam agora? E seria um deles um assassino? Nenhum dos rostos redondos revelou coisa alguma. Hedda dormira novamente na mesa da cozinha, e Patrik e Gösta saíram e aspiraram profundamente o ar fresco do oceano para dentro dos pulmões. Patrik cuidadosamente guardou na carteira a foto bastante manuseada. Ele providenciaria que Hedda a tivesse de volta em breve. Mas, nesse momento, eles precisavam dela para ajudá-los a encontrar um assassino.

 

Durante a viagem de volta, eles estavam tão silenciosos quanto na ida. Mas dessa vez o silêncio estava marcado pelo choque e pelo pesar. Pesar por ver como, às vezes, os seres humanos podem ser frágeis e pequenos. Choque pelo escopo dos erros que as pessoas eram capazes de cometer. Em sua mente, Patrik via Hedda vagando pelas ruas de Uddevalla. Como ela procurara pelas crianças que, em um ataque de desespero, de exaustão e de necessidade do vício, havia dado a uma completa estranha. Ele sentiu o pânico que Hedda deve ter passado quando compreendeu que não conseguiria encontrar os gêmeos. E o desespero que a levou a dizer que morreram afogados, em vez de admitir que os entregara a uma estranha.

 

Eles não falaram até Patrik terminar de amarrar o barco a um dos pórticos no porto em Badholmen.

 

– Bem, agora pelo menos sabemos – disse Gösta e seu rosto revelava a culpa que ainda sentia.

 

Patrik deu batidas leves em seu ombro, enquanto se dirigiam para o carro.

 

– Você não tinha como saber – ele disse. Gösta não respondeu e Patrik pensou que nada do que ele dissesse ajudaria. Isso era algo com que Gösta teria que lidar sozinho.

 

– Precisamos descobrir logo onde essas crianças foram parar – Patrik disse enquanto voltavam a Tanumshede.

 

– Nada ainda da assistência social em Uddevalla?

 

– Não. Provavelmente não deve ser fácil encontrar informação tão antiga. Mas eles têm que estar em algum lugar. Duas crianças de cinco anos de idade não desaparecem do nada.

 

– Que vida miserável ela viveu.

 

– Hedda? – disse Patrik, apesar de entender que era dela que Gösta estava falando.

 

– Sim. Imagine viver com essa culpa. A vida toda.

 

– Não é de admirar que ela venha tentando se entorpecer da melhor maneira que consegue – disse Patrik.

 

Gösta não respondeu. Apenas olhou pela janela. Finalmente disse:

 

– O que vai fazer agora?

 

– Até descobrirmos para onde as crianças foram, teremos que continuar trabalhando com o que já temos. Sigrid Jansson, os pelos de cachorro de Lillemor, tentar encontrar uma conexão entre os locais das mortes.

 

Entraram no estacionamento da delegacia e seguiram para a entrada, com expressão pesarosa. Patrik parou na recepção por um momento para contar a Annika o que acontecera e depois foi para seu escritório. Ainda não tinha forças para repetir a história para os demais.

 

Tirou cuidadosamente a fotografia da carteira e a estudou. Os olhos dos gêmeos o encaravam de volta, revelando nada.

 

Finalmente ela havia se rendido. Só uma volta de carro. Uma pequena expedição ao mundo imenso e desconhecido. E depois voltariam para casa. E ele pararia de pedir.

 

Ele concordara, ansioso. Mal conseguia se conter. E um olhar na direção de sua irmã mostrava que ela estava tão excitada quanto ele.

 

Ele se perguntou o que eles veriam. Como era lá fora. Além da floresta. Um pensamento não o deixava em paz. E se a outra estivesse lá fora? A mulher com a voz áspera? Ela teria aquele cheiro que era como uma lembrança em suas narinas, salgada e fresca? E a sensação do barco sacudindo e o sol sobre o mar e os pássaros ao redor e... Ele mal podia esquadrinhar todas as expectativas e impressões. Um pensamento zunia em sua cabeça. Eles iam dar uma volta de carro com ela. No mundo lá fora. Não era problema algum para ele prometer, de sua parte, nunca mais pedir. Uma vez bastaria. Estava bem convencido disto. Esta era a única coisa que queria. Só uma vez.

 

Com expressão preocupada, ela abriu a porta do carro para eles e os observou escalar o banco de trás. Afivelou seus cintos de segurança e sacudiu a cabeça enquanto sentava-se ao volante. Ele se lembrava de ter rido. Uma risada aguda e histérica quando a tensão acumulada finalmente tinha permissão para ser liberada.

 

Quando pegaram a estrada, ele olhou de relance para a irmã. E então segurou sua mão. Estavam a caminho.

 

Patrik sentou-se diante da tela com a lista de criadores de cães e a leu cuidadosamente mais uma vez. Ele havia informado Martin e Mellberg sobre o que ele e Gösta descobriram na ilha e pedira a Martin que ligasse para Uddevalla novamente e tentasse conseguir mais informações sobre os gêmeos. Fora isso, não havia muito mais o que fazer no momento. Ele havia obtido livre acesso a todos os documentos com relação à morte de Sigrid Jansson provocada, por Elsa Forsell, mas nada parecia dar pistas para seguir adiante.

 

– Como vão as coisas? – disse Gösta da porta, olhando para dentro.

 

– Não vão – disse Patrik, soltando a caneta que tinha na mão. – Estamos de mãos atadas até sabermos mais sobre as crianças – suspirou, correndo as mãos pelos cabelos e as entrelaçando na nuca.

 

– Há algo que eu possa fazer? – disse Gösta, usando de tato.

 

Boquiaberto, Patrik olhou bem para ele. Não era comum Gösta entrar e pedir para trabalhar. Patrik pensou por um momento.

 

– Já repassei essa lista de criadores de cães umas cem vezes. Mas não acho nenhuma conexão com nosso caso. Pode verificá-la novamente? – Patrik atirou o disquete para ele, e Gösta pegou-o no ar.

 

– Claro – ele disse.

 

Cinco minutos depois, Gösta voltou com uma expressão espantada.

 

– Você por acaso apagou alguma linha? – ele disse.

 

– Apaguei? Não, o que quer dizer?

 

– Porque quando eu compilei a lista, havia cento e sessenta nomes. Agora há apenas cento e cinquenta e nove.

 

– Pergunte a Annika. Foi ela quem combinou os nomes aos endereços. Talvez ela tenha deletado algum por engano.

 

– Humm – Gösta disse, cético, e foi ver Annika. Patrik levantou-se e seguiu-o.

 

– Vou verificar – disse Annika, procurando a tabela de Excel em seu computador. – Mas eu me lembro de que tinha cento e sessenta linhas. Era bonito, um número redondo – ela buscou em suas pastas até encontrar o arquivo que procurava.

 

– Ahá, cento e sessenta – ela disse, virando-se para Patrik e Gösta.

 

– Eu não entendo – disse Gösta, olhando para o disquete em sua mão. Annika pegou-o e inseriu no computador, abrindo o mesmo documento, colocando-os lado a lado na tela, para que pudessem compará-los. Quando o nome que faltava apareceu, Patrik sentiu algo fazer um clique em sua mente. Virou-se depressa, correu pelo corredor até seu escritório e ficou ali, observando o mapa da Suécia. Um a um, olhou para os percevejos que marcavam as cidades das vítimas. O que antes era um padrão indecifrável agora se tornava mais claro. Gösta e Annika o haviam seguido até seu escritório e agora pareciam perplexos enquanto Patrik começou a tirar papéis da gaveta de sua mesa.

 

– O que está procurando? – disse Gösta, mas Patrik não respondeu. Papel após papel foi tirado e jogado no chão. Na última gaveta, ele encontrou o que procurava. Ele se levantou com expressão excitada e começou a ler o documento com atenção, às vezes adicionando novos percevejos ao mapa. Lenta, mas minuciosamente, cada local marcado ganhou um novo percevejo ao lado do antigo. Quando terminou, ele se virou.

 

– Agora eu sei.

 

Dan finalmente tomara uma decisão. Entrou em contato com um corretor imobiliário. A imobiliária que procurou ficava do outro lado da rua, e ele finalmente se decidira a ligar para o número que via pela janela da cozinha todos os dias. Agora que as engrenagens estavam em movimento, tudo caminhava surpreendentemente depressa. O rapaz que atendera disse que poderia olhar a casa na hora, o que para Dan era perfeito. Ele não queria arrastar as coisas sem necessidade.

 

E agora vender a casa não parecia mais um problema tão grande. Todas as conversas que vinha tendo com Anna, tudo o que soube sobre o inferno pelo qual Lucas a fizera passar, tudo aquilo tornava seu empenho em manter a casa tão... ridículo, para ser brutalmente honesto. O que importava onde morava? O importante é que as meninas viessem visitá-lo. Que ele pudesse abraçá-las, enfiar o nariz em seus pescoços e ouvi-las contar sobre seu dia. Nada mais importava. E quanto a seu casamento com Pernilla, estava definitivamente acabado. Ele já se dera conta disso havia tempos, mas não estava pronto para aceitar as consequências. Agora era hora de mudar radicalmente. Pernilla tinha sua própria vida, e ele, a dele. Dan só esperava que um dia pudesse retomar a amizade que havia sido a base de seu casamento.

 

Seus pensamentos foram parar em Erica. Em apenas dois dias, ela estaria casada. Aquilo também lhe parecia correto. Ela estava dando um passo adiante, assim como ele. Ele estava sinceramente feliz por ela. Foram um casal havia tanto tempo; eles eram jovens na época, pessoas totalmente diferentes. Mas sua amizade só se fortaleceu com o passar dos anos, e ele sempre desejara algo assim para ela. Filhos, união, um casamento religioso, com o qual Dan sabia que Erica sempre sonhara – apesar de jamais admitir. E Patrik era perfeito para ela. Terra e ar. Era como ele pensava nos dois. Patrik era tão solidamente ancorado no chão em que pisava, estável, inteligente, calmo. E Erica era uma sonhadora, com a cabeça sempre nas nuvens e mesmo assim com coragem e inteligência que a impediam de flutuar para muito longe. Eles realmente combinavam.

 

E Anna. Ele pensava muito nela ultimamente. A irmã que Erica sempre superprotegera, que ela via como fraca. O engraçado é que Erica se via como a prática, e Anna como a sonhadora. Durante as últimas semanas, ele havia conhecido Anna melhor e descobrira que na verdade ocorria o inverso. Anna era a prática, a que via a realidade como ela era. Se não era assim antes, ela havia aprendido a sê-lo durante seus anos com Lucas. Mas Dan percebeu que Anna deixava Erica manter essa ilusão. Talvez ela compreendesse a necessidade de Erica de ser a responsável, aquela que sempre cuidou da irmã caçula. De certa forma, também era verdade; ao mesmo tempo ela não raro subestimava Anna e continuava tratando-a como criança, do jeito que só os pais poderiam fazer.

 

Dan levantou-se, pegou o telefone e a lista telefônica. Era hora de começar a procurar uma nova casa.

 

O clima era pesado e aflitivo na delegacia. Patrik havia convocado uma reunião no escritório do chefe. Todos estavam em silêncio, olhando para o chão, incapazes de entender, incapazes de absorver o incompreensível. Patrik e Martin tinham pegado juntos a TV e o videocassete. Assim que Martin soube de tudo, lembrou-se do que havia fugido de sua mente quando assistiu aos registros da última noite de vida de Lillemor.

 

– Vamos ter que ver tudo isso passo a passo. Antes de fazermos qualquer coisa – Patrik disse quando finalmente quebrou o silêncio. – Não há espaço para erros – todos concordaram.

 

– A primeira ficha caiu quando descobrimos que um nome havia sido apagado da lista de criadores de cães. Originalmente, havia cento e sessenta nomes, tanto quando Gösta compilou a lista como quando Annika atribuiu endereços atualizados a eles. Quando eu recebi a relação, havia apenas cento e cinquenta e nove. O nome que faltava era Tore Sjöqvist, com residência em Tollarp.

 

Ninguém reagiu, então Patrik prosseguiu.

 

– Eu voltarei a isso mais tarde. Mas foi o que me levou a encaixar a última peça do quebra-cabeça.

 

Todos sabiam o que vinha em seguida, e Martin enterrou o rosto nas mãos e fechou os olhos, com os cotovelos pousados nos joelhos.

 

– Eu já havia reparado que os locais onde as vítimas foram mortas parecia familiar. E quando finalmente entendi, não demorou para confirmar a conexão – ele fez uma pausa e pigarreou. – Os locais dos assassinatos correspondem cem por cento com os lugares onde Hanna já trabalhou – disse, em voz baixa. – Eu já os havia visto em seu currículo antes de a contratarmos, mas... – ele atirou as mãos para o alto e deixou Martin assumir o comando.

 

– Algo que vi no vídeo da noite em que Lillemor morreu me incomodava. E quando Patrik me contou sobre Hanna... Bem, é melhor mostrarmos de uma vez.

 

Ele fez um sinal para Patrik, que apertou “play”. Eles já tinham avançado para o trecho certo e levou poucos segundos até a cena da discussão violenta aparecer na tela, seguida pela chegada de Martin e Hanna. Eles podiam ver Martin conversando com Mehmet e os demais. A câmera então seguiu Lillemor, que fugira na direção do centro da cidade, confusa e inconscientemente correndo na direção da própria morte. E então a câmera aproximou-se de Hanna, que falava ao telefone. Patrik congelou a imagem e olhou para Martin.

 

– Foi isso que me incomodou, apesar de eu não ter percebido o porquê até agora – Martin disse. – Para quem ela estava ligando? Eram quase três horas da manhã e nós éramos os únicos trabalhando, então ela não podia estar telefonando para nenhum de vocês.

 

– Pegamos uma lista das chamadas dela com a operadora e era uma ligação feita para sua própria casa. Para seu marido, Lars.

 

– Mas por quê? – disse Annika e o espanto em seu rosto era compartilhado por todos.

 

– Eu pedi a Gösta para verificar o registro pessoal de cidadãos. Hanna e Lars Kruse têm, sim, o mesmo sobrenome. Mas eles não são casados. Eles são irmãos. Gêmeos.

 

Annika teve um sobressalto. Houve um silêncio macabro no recinto depois que Patrik lançou aquela bomba.

 

– Hanna e Lars são os gêmeos desaparecidos de Hedda – disse Gösta, à guisa de explicação.

 

– Sim, e nós ainda não recebemos as informações de Uddevalla – disse Patrik. – Mas aposto qualquer coisa como vamos descobrir que os nomes são Lars e Hanna e que eles assumiram o sobrenome Kruse em algum momento por meio de adoção.

 

– Então ela ligou para Lars? – disse Mellberg, que parecia estar tendo alguma dificuldade para acompanhar todas as revelações repentinas.

 

– Nós achamos que ela ligou para Lars, que pegou Lillemor. Ela pode ter dito para ele pegá-la. Lars conhecia todos os membros do elenco e não teria parecido uma ameaça. E não se esqueçam do fato de que Lillemor havia escrito em seu diário que achava que reconhecia alguém, uma pessoa que considerava desagradável. Tudo leva a crer que essa pessoa era Lars. O que ela se lembrava era do encontro com o homem que ela achava ser o assassino de seu pai – Martin franziu a testa.

 

– Mas aparentemente ela não conseguia se lembrar de onde conhecia Lars; ela não o associava àquela lembrança. E ela nem tinha certeza de realmente reconhecê-lo. No estado em que se encontrava, ela provavelmente aceitaria agradecida o socorro de qualquer um, desde que pudesse fugir da equipe de TV e do elenco que havia brigado com ela – Patrik hesitou, mas prosseguiu. – Eu não tenho provas disso, mas também acredito que Lars foi quem deu início à briga naquela noite.

 

– Como assim? – Annika perguntou. – Ele nem estava lá.

 

– Não, mas havia algo nos depoimentos do elenco que não parecia certo. Olhei rapidamente as transcrições antes dessa reunião e todos os que discutiram com Lillemor disseram que “alguém disse para eles que Barbie estava falando mal deles” ou outras palavras nesse sentido. Não tenho provas concretas, mas minha intuição é de que Lars usou as conversas individuais que teve com o elenco mais cedo naquele dia para semear a discórdia entre eles e Lillemor. Considerando todas as informações íntimas e privadas que eles devem ter lhe dado, seria fácil para ele causar danos graves e dirigir a ira de todos contra Lillemor.

 

– Mas por quê? – disse Martin. – Ele não podia prever que a noite transcorreria como transcorreu e que Lillemor fugiria daquele jeito.

 

Patrik balançou a cabeça.

 

– Não, sem dúvida foi pura sorte. Um oportunidade surgiu e ele e Hanna a aproveitaram. Não, eu acho que a ideia básica era criar uma distração para Lillemor. Ele sabia quem ela era, sabia que Lillemor o vira naquela vez, oito anos atrás e tinha medo de que ela se lembrasse. Então Lars iria dar a ela outra coisa para pensar. Mas quando a oportunidade surgiu, então... ele decidiu resolver o problema de maneira mais permanente.

 

– Lars e Hanna matavam as vítimas juntos? E por quê?

 

– Não sabemos ainda. Tudo leva a crer que Hanna rastreava os nomes e endereços das vítimas, já que ela tinha acesso a esse tipo de informação nas delegacias em que trabalhava.

 

– Mas ela nem havia começado a trabalhar aqui quando Marit foi morta.

 

– Não, mas informações assim também podem ser encontradas em arquivos de jornais. Foi provavelmente como ela encontrou Marit. Eu não tenho ideia do porquê. Mas tudo está provavelmente ligado ao acidente original, quando Elsa Forsell matou Sigrid Jansson. Hanna e Lars estavam no carro. Eles haviam sido sequestrados por Sigrid Jansson quando tinham três anos e viviam em isolamento na casa dela havia mais de dois anos. Quem sabe a que tipo de trauma eles foram submetidos?

 

– Mas e quanto ao nome na lista de endereços? Por que fez você pensar em Hanna? – Annika olhou para ele, em dúvida.

 

– Primeiro porque recebi o CD de Hanna, já que você pediu que ela me entregasse. Sua lista original possuía cento e sessenta nomes; a que encontrei no CD tinha um a menos. A única pessoa que poderia ter apagado o nome era Hanna. Ela sabia que havia uma chance de eu reconhecer o nome. Quando ela começou a trabalhar aqui na delegacia, me disse que ela e Lars tinham alugado a casa de um Tore Sjöqvist, que estava se mudando para Skåne por um ano. Então, quando o nome apareceu, juntamente com um endereço em Tollarp, não foi difícil somar dois mais dois – Patrik fez uma pausa. – Eu achei que era necessário repassar tudo mais uma vez. O que vocês acham? Tem algum furo no meu raciocínio? Há dúvidas de que temos o bastante para seguir adiante?

 

Todos sacudiram a cabeça negativamente. Não importava quanto tudo aquilo soasse inacreditável, havia uma lógica assustadora no relato de Patrik.

 

– Que bom – disse Patrik. – O mais importante agora é agirmos antes de Hanna e Lars descobrirem que sabemos. E também é extremamente importante que eles não saibam nada a respeito de sua mãe e de como desapareceram, porque eu acho que pode ser perigoso para...

 

Ele parou quando Annika arfou.

 

– Annika? – Patrik viu com crescente desconforto toda a cor se esvair do rosto dela.

 

– Eu contei a ela – Annika disse com tensão na voz. – Hanna ligou logo que vocês voltaram de Kalvö. Ela não parecia nada bem. Disse que tinha dormido um pouco e estava se sentindo melhor e que provavelmente não teria que ficar em casa por mais que um dia ou dois. E eu... eu... – Annika gaguejou, mas se recompôs e olhou para Patrik. – Eu disse que queria mantê-la atualizada, então contei sobre o que você tinha encontrado. Sobre Hedda.

 

Por um segundo, Patrik ficou imóvel. Então disse:

 

– Você não tinha como saber. Mas é melhor irmos para a ilha. Agora!

 

De repente houve um rompante de atividade na delegacia de Tanumshede.

 

Patrik sentiu o pânico se instalar como um nó apertado em seu estômago enquanto se via na proa do Minlouis, barco da Sea Rescue Society, correndo em direção a Kalvö. Ele apressava o barco mentalmente, mas esse já se encontrava em velocidade máxima. Tinha medo de que já fosse tarde demais. Quando entraram nos carros de polícia e ligaram as sirenes azuis, para chegar o mais rápido possível a Fjällbacka, receberam uma chamada de um proprietário de barco. Ele lhes disse, inflamado, que seu barco havia sido confiscado por uma policial em companhia de um homem desconhecido. Começou a reclamar sobre banditismo e como seriam todos mandados para o inferno se aparecesse o menor arranhão em seu barco. Patrik simplesmente desligou o telefone. Não tinha tempo para reclamações no momento. O importante era que agora sabiam que Lars e Hanna tinham conseguido um barco. E que estavam a caminho de Kalvö. E da mãe deles.

 

O barco de resgate mergulhou entre duas ondas, e uma chuva de água salgada caiu sobre Patrik. Uma tempestade se aproximava e a superfície plácida em que Gösta e Patrik haviam navegado mais cedo fora substituída por ondas quebrando ininterruptamente e águas cinzentas. Na mente de cada um, novos cenários se apresentavam, novas imagens do que veriam quando chegassem. Gösta e Martin estavam encolhidos no interior do barco, mas Patrik sentiu a necessidade de ar fresco para se concentrar no que haveria pela frente. Sabia que, o que quer que acontecesse, não haveria final feliz.

 

Chegaram à ilha após o que pareceu ser uma viagem interminável naquele barco, mesmo tendo levado apenas cinco minutos. Viram o barco roubado amarrado fortuitamente no píer de Hedda. Peter, que era o capitão do barco de resgate, atracou com habilidade, mesmo sendo a embarcação maior que o píer. Sem hesitar, Patrik pulou na areia, seguido por Martin. Ambos ajudaram Gösta a desembarcar. Patrik havia tentado persuadir o colega mais velho a ficar na delegacia, mas Gösta Flygare demonstrara surpreendente obstinação e insistira em ir. Patrik cedeu. Agora ele se arrependia da decisão, mas era tarde demais para especular sobre isso.

 

Ele fez um gesto na direção do chalé, que parecia perfidamente vazio e ermo. Não se ouvia som algum vindo de lá. Quando destravaram suas pistolas, Patrik pensou ter ouvido o som ecoar por toda a ilha. Foram agachados até o chalé e ajoelharam-se sob as janelas, do lado de fora. Agora Patrik ouvia vozes da parte de dentro e cautelosamente olhou pelos vidros imundos e incrustados de sal. Primeiro, viu apenas a sombra de alguém se mexendo, mas assim que seus olhos se ajustaram à luz fraca, ele pôde distinguir duas pessoas andando na cozinha. As vozes aumentavam e baixavam de volume, mas era impossível compreender o que diziam. De repente, Patrik se pegou sem saber o que fazer, mas tomou uma decisão. Fez um gesto na direção da porta. Moveram-se com cuidado para lá e Martin e Patrik se posicionaram um de cada lado dela, enquanto Gösta ficou um pouco mais longe.

 

– Hanna? Sou eu, Patrik. E alguns dos outros estão aqui também. Está tudo bem?

 

Não houve resposta.

 

– Lars? Sabemos que está aí com sua irmã. Não faça nada estúpido. Ninguém mais precisa morrer.

 

Nenhuma resposta ainda. Patrik começou a ficar nervoso, e a mão que segurava a pistola estava cada vez mais suada.

 

– Hedda? Você está bem? Estamos aqui para te ajudar! Lars e Hanna, não machuquem Hedda. Ela fez algo terrível, mas creiam, ela já foi punida por isso. Olhem em volta, vejam como ela tem vivido. Hedda viveu no inferno por causa do que fez a vocês.

 

O silêncio foi sua única resposta e ele amaldiçoou baixinho. Então a porta se abriu um pouco e Patrik segurou a arma com firmeza. Pelo canto do olho, viu que Martin e Gösta fizeram o mesmo.

 

– Estamos saindo – disse Lars. – Não atire ou eu atiro nela.

 

– Está bem, está bem – disse Patrik, tentando soar o mais calmo possível.

 

– Baixem as armas. Eu quero vê-las no chão – disse Lars. Eles ainda não podiam vê-lo pela fresta da porta.

 

Martin olhou para Patrik, que fez um gesto e lentamente soltou a arma. Gösta e Martin seguiram seu exemplo.

 

– Chutem-nas para longe – Lars disse, de forma sombria, e Patrik deu uma passo à frente e chutou as três pistolas, que saíram de seu alcance.

 

– Saia da frente.

 

Mais uma vez, eles obedeceram e aguardaram, tensos, que algo acontecesse. Lentamente, muito lentamente, um centímetro por vez, a porta se abriu. Patrik esperava ver Hedda, mas enxergou Hanna em seu lugar. Ela ainda parecia doente, com suor na testa e olhos brilhando de febre. Seu olhar encontrou o dele, e Patrik se perguntou como pudera ter sido tão ludibriado. Como era possível ela ter sido capaz de ocultar por tanto tempo toda aquela maldade por trás de uma fachada tão normal? Por um segundo, ele pensou que ela queria se explicar, mas então Lars a empurrou para a frente e a pistola que ele apontava para sua têmpora pôde ser vista. Patrik reconheceu a arma. Era o revólver de trabalho de Hanna.

 

– Saia de perto, vá para mais longe – Lars sibilou e, em seus olhos, Patrik não viu nada a não ser escuridão e ódio. Seus olhos foram de um lado para o outro e algo em sua expressão disse a Patrik que Lars havia finalmente deixado cair a máscara e que não conseguiria mais viver uma vida dupla. A loucura – ou a maldade, ou o que quer que aquilo se chamasse – finalmente vencera. A luta havia acabado contra aquela parte de sua personalidade que não desejava nada além de uma vida normal, com emprego e família.

 

Os policiais se moveram para ainda mais longe e Lars passou por eles, segurando Hanna como um escudo à sua frente. A porta do chalé ficou aberta e, quando olhou para dentro, Patrik entendeu por que Hedda não poderia ser usada como escudo. Horrorizado, viu que ela estava amarrada a uma cadeira. O mesmo tipo de fita que havia deixado traços de adesivo nas outras vítimas estava colada em sua boca e havia um buraco no meio dela, grande o bastante para passar o gargalo de uma garrafa. Hedda havia morrido da mesma forma como vivera. Repleta de álcool.

 

– Posso entender por que você queria Hedda morta. Mas por que os outros? – Patrik não pôde resistir e fez a pergunta que dominava sua vida havia semanas.

 

– Ela tirou tudo. Tudo o que tínhamos. Hanna a descobriu sem querer e nós dois sabíamos o que tinha que ser feito. Então ela morreu da mesma coisa que arruinou nossas vidas. A bebida.

 

– Está falando de Elsa Forsell? Nós sabemos que vocês estavam no carro quando Elsa Forsell causou o acidente que matou Sigrid, a mulher com quem viviam.

 

– Nós tínhamos uma vida boa – disse Lars, com voz aguda. Caminhava de costas lentamente em direção ao píer. – Ela cuidou de nós. Ela jurou que nos protegeria.

 

– Sigrid? – Patrik disse, movendo-se com cuidado na mesma direção que Lars e Hanna.

 

– Sim, mas nós não sabíamos que esse era seu nome. Nós a chamávamos de mamãe. Ela nos disse que era isso que ela era. Nossa nova mamãe. E nós tínhamos uma vida boa. Ela brincava conosco. Nos abraçava. Lia histórias para nós.

 

– João e Maria? – Patrik continuou indo em direção ao píer e pelo canto dos olhos via Gösta e Martin seguindo-o.

 

– Sim – disse Lars, falando perto do ouvido de Hanna. – Ela lia para nós. Aquele livro. Você se lembra, Hanna, como era lindo? Como ela era bonita? Como cheirava bem? Você se lembra?

 

– Eu me lembro – Hanna disse e fechou os olhos. Quando os abriu novamente, estavam cheios de lágrimas.

 

– Foi a única coisa que nos deixaram guardar depois que ela morreu. O livro. Nós quisemos mostrar a eles como era pouco o que sobrou. É tudo o que resta quando você destrói a vida de alguém.

 

– Mas Elsa não bastou – disse Patrik, mantendo os olhos fixos em Lars.

 

– Havia tantos outros que fizeram o que ela fez. Tantos... – disse Lars, deixando as palavras morrerem. – Em todos os lugares aonde íamos. Todos os lugares precisavam ser... limpos.

 

– Assassinando a pessoa que matou alguém enquanto dirigia bêbada?

 

– Sim – disse Lars, sorrindo. – Só assim poderíamos ter paz. Tínhamos que mostrar que não íamos tolerar esse tipo de crime, que jamais esqueceríamos. Você não pode simplesmente destruir a vida de alguém assim... e sair impune.

 

– Do jeito que Elsa saiu depois de matar Sigrid?

 

– Sim – disse Lars e a escuridão em seus olhos se aprofundou. – Como Elsa.

 

– E Lillemor?

 

Agora eles estavam quase no píer, e Patrik se perguntou o que fariam se Hanna e Lars pegassem o barco de resgate, que era muito mais rápido que o outro. Eles jamais conseguiriam alcançá-los. Mas o capitão parecia ter tido o mesmo pensamento, porque estava se afastando da doca, de modo que apenas o barco menor ficou ali.

 

– Lillemor – Lars debochou –, um ser humano estúpido e sem valor. Exatamente como o resto da ralé com quem fui forçado a trabalhar. Eu nunca a teria reconhecido, mas me lembrei de seu nome quando vi de onde ela era. Eu sabia que tinha que fazer alguma coisa.

 

– Então você disse aos outros que ela estava falando mal deles, de forma a criar o caos e distraí-la.

 

– Você não é tão burro – Lars disse, com um sorriso, dando o primeiro passo para trás, chegando ao píer.

 

Por um segundo, Patrik considerou tentar dominá-lo. Mas, mesmo sentindo que Lars estava apenas blefando ao manter a irmã como refém – afinal fizeram tudo juntos –, Patrik não ousaria. Não tinha arma; ela estava lá no topo, como as de Martin e Gösta, então nessa situação Lars e Hanna tinham vantagem.

 

– Fui eu quem ligou para Lars – Hanna disse com voz ríspida.

 

– Nós sabemos – disse Patrik. – Temos isso gravado em videotape. Martin assistiu, mas nós não entendemos...

 

– Não, como poderiam? – ela disse com um sorriso triste.

 

– Então Lars a pegou depois de você ligar para ele.

 

– Sim – disse Hanna, embarcando com cuidado. Ela sentou-se na depressão no centro do barco, enquanto Lars se acomodou ao lado do motor e girou a chave da ignição. Nada aconteceu. Lars fez uma careta e tentou novamente. O motor emitiu um grunhido, mas não deu a partida. Patrik olhava admirado, mas percebeu o que estava acontecendo quando olhou para o barco de resgate que estava afastado, balançando ao sabor da maré, a uma distância segura da ilha. O capitão mostrou um galão de combustível e Patrik compreendeu que ele o havia confiscado. Um camarada audacioso, esse Peter.

 

– Não tem combustível – disse Patrik, soando mais calmo do que estava na verdade. – Então não há para onde fugir. O reforço está a caminho, então o melhor a fazer é se renderem e cuidar para que ninguém mais se machuque – Patrik soava ridículo, mas não conseguia pensar nas palavras certas. Se é que havia alguma.

 

Sem responder, Lars soltou a corda e chutou o barco para longe da doca. A corrente o pegou na hora e eles começaram a se afastar da margem, devagar.

 

– Vocês não vão a lugar nenhum – disse Patrik enquanto avaliava suas possibilidades. Mas não havia nenhuma. A única alternativa era assegurar-se de que Lars e Hanna seriam pegos. Sem motor, eles não iriam muito longe; provavelmente parariam na margem de alguma das ilhas próximas. Patrik fez uma última tentativa.

 

– Hanna, é óbvio que você não foi o cérebro por trás de todos esses eventos. Você ainda tem uma chance de se salvar.

 

Hanna não respondeu. Simplesmente encarava Patrik. Então segurou a mão de Lars que ainda empunhava a pistola. Ele não apontava mais para a cabeça dela, mas se segurava no banco do remador, onde ela estava sentada. Com a mesma calma incomum, ela pegou a mão de Lars e a ergueu, para que ele apontasse novamente a arma para sua têmpora. Patrik viu o olhar intrigado de Lars. Então, por um breve segundo, sua expressão era de puro terror. No instante seguinte, uma calma estranha o atingiu. Hanna disse algo para Lars que ninguém na ilha pôde ouvir. Ele respondeu algo, depois a abraçou, de modo que ela descansava em seu peito. Hanna colocou o dedo sobre o dele. E puxou o gatilho. Patrik sentiu-se pular; atrás dele, Martin e Gösta tiveram um sobressalto. Incapazes de se mover, incapazes de dizer uma palavra, eles observaram Lars sentar-se com cuidado na beirada do barco, ainda segurando o corpo agora sem vida e ensanguentado de Hanna em um abraço terno. O sangue havia espirrado em seu rosto e parecia que ele estava usando camuflagem de guerra. Com a mesma expressão calma, ele olhou para todos uma última vez. Depois apontou a arma para a própria cabeça. E puxou o gatilho.

 

Quando caiu para trás, para além da borda, Hanna tombou com ele. Os gêmeos de Hedda desapareceram sob a superfície da água. Para as profundezas, como Hedda um dia os havia sentenciado à morte.

 

Depois de alguns segundos, os anéis desenhados na superfície da água se foram e não havia mais sinal de onde haviam afundado. O barco coberto de sangue balançava com as ondas e ao longe, como em um sonho, Patrik viu mais barcos se aproximarem. Era o reforço a caminho.

 

Quando o choque da colisão transformou tudo em um pesadelo, ele soube que a culpa era dele. Ela tinha razão. Ele era um pé-frio. Ele não dera ouvidos a ela, mas insistiu e implorou e nunca desistiu até ela se render. E agora o silêncio era ensurdecedor. O som dos carros batendo um contra o outro havia sido substituído por uma calmaria terrível, e a pressão do cinto de segurança machucava seu peito. Pelo canto do olho, viu sua irmã se mexer; ele não ousava olhar para ela. Mas, quando o fez, viu que ela também não parecia ferida. Lutou contra a vontade de chorar quando ouviu sua irmã começar a choramingar baixinho e depois se entregar a gemidos e soluços terríveis. De início, não ousou olhar para o banco da frente. O silêncio lhe dizia o que iria encontrar. Sentia que a culpa o estrangulava. Soltou o cinto de segurança com cuidado e lentamente se inclinou para a frente, cheio de medo. O que viu o fez se encolher, e o movimento rápido intensificou a dor em seu peito. Os olhos dela o encaravam, cegos e mortos. O sangue havia escorrido por sua boca, e sua roupa estava ensopada de vermelho. Ele pensou ter visto uma acusação em seu olhar vazio. Por que você não me ouviu? Por que não me deixou cuidar de você? Por quê? Por quê? Seu azarado. Olhe para mim agora.

 

Ele soluçou e arfou, procurando forçar um pouco de ar para dentro da garganta, que parecia tão apertada. Alguém tentou abrir a porta pelo lado de fora e ele viu o rosto de uma mulher olhando para ele, em choque. A mulher se movia de maneira estranha, cambaleante e com surpresa ele reconheceu o cheiro daquela outra. Aquela que existia apenas em sua memória. Ele sentiu o mesmo odor forte que saía da boca dela, impregnado em sua pele e em suas roupas. Tudo que era suave tinha desaparecido. Então sentiu-se ser tirado do carro e compreendeu que a mulher vinha do outro automóvel, o que havia batido de frente com o deles. Ela deu a volta para tirar a irmã de lá e ele prestou atenção a ela. Ele jamais esqueceria seu rosto.

 

Depois vieram muitas perguntas. Muitas perguntas estranhas.

 

“De onde vocês são?”, questionaram. “Da floresta”, eles responderam, sem entender por que aquela resposta causara expressões tão frustradas. “Sim, mas de onde vocês vieram antes daquilo, antes da casa na floresta?” Eles só ficavam olhando para as pessoas que perguntavam, sem entender o que deveriam dizer. “Da floresta” era a única resposta que podiam dar. É claro que ele pensou no lugar salgado, com os pássaros guinchando. Mas nunca disse nada sobre aquilo. Tudo que conhecia era a floresta.

 

Ele tentava não pensar especialmente nos anos que se seguiram àquelas perguntas. Se soubesse como o resto do mundo era frio e mau, jamais teria insistido para que ela os levasse para fora da floresta. Ele teria ficado feliz naquela casinha, com ela, com a irmã, em seu próprio mundo que, olhando em retrospectiva, parecia tão maravilhoso em comparação. Mas era uma culpa que ele teria que carregar. Ele causara o acidente. Ele não acreditara que era um pé-frio. Não acreditara que trazia infortúnio para si e para os outros. Ele era o culpado pelo olhar morto nos olhos dela.

 

Durante os anos que se seguiram, a irmã era a única razão para ele seguir adiante. Os dois estavam unidos contra todos os que tentavam destruí-los e torná-los tão feios quanto o mundo lá fora. Eles eram diferentes. Juntos, eles eram diferentes. Na escuridão da noite, eles sempre encontravam consolo um no outro e eram capazes de escapar aos horrores do dia. Sua pele contra a dela. Seu hálito misturado ao dele.

 

E finalmente ele também havia encontrado uma forma de compartilhar a culpa. Sua irmã estava sempre lá para ajudá-lo. Sempre juntos. Sempre. Juntos.

 

Os primeiros acordes da Marcha Nupcial de Mendelssohn ecoaram pela igreja. Patrik sentiu a boca secar. Olhou para Erica a seu lado e lutou contra as lágrimas. Tinha que impor-se algum limite. Não seria bonito entrar na igreja chorando. Mas ele estava tão incrivelmente feliz. Apertou a mão de Erica e recebeu um sorriso largo como resposta.

 

Ele não acreditava como ela estava bonita. Ou que estava ao seu lado. Por um segundo, teve um lampejo de seu primeiro matrimônio, quando se casara com Karin. Mas a lembrança se foi tão rapidamente quanto veio. No que dependesse dele, essa era sua primeira vez. Essa era para valer. Tudo o mais tinha sido apenas uma prova de roupa, um desvio, uma preparação para o momento em que ele iria caminhar em direção ao altar com Erica e jurar amá-la na saúde e na doença, por toda a sua vida.

 

Agora as portas da igreja se abriam e eles começaram a caminhar lentamente, enquanto o órgão era tocado e todos os rostos sorridentes se viravam em sua direção. Ele olhou mais uma vez para Erica, e seu sorriso cresceu mais ainda. O vestido dela tinha corte simples, com detalhes bordados de branco sobre branco e caía-lhe perfeitamente. Seus cabelos estavam presos de maneira despojada, com alguns cachos soltos aqui e ali. Flores brancas estavam presas como pequenas joias em seus cabelos e ela usava brincos de pérolas simples. Estava tão linda. Mais uma vez surgiram lágrimas em seus olhos, mas ele as afastou com teimosia. Estava determinado a passar por aquilo sem chorar e ponto final.

 

Eles viam amigos e parentes sentados nos bancos. Todos da delegacia estavam lá. Até Mellberg havia se enfiado em um terno e arrumado os cabelos com mais cuidado. Nem ele nem Gösta vieram acompanhados, enquanto Martin, que era padrinho de Patrik, estava com sua Pia, e Annika, com seu Lennart. Patrik ficou feliz por vê-los todos lá. Juntos. Dois dias antes, ele não achava que seria capaz de manter a cerimônia. Quando viu Hanna e Lars desaparecerem nas profundezas, foi tomado por tristeza e exaustão tão dolorosas que não podia nem sequer imaginar celebrar um casamento. Mas ao chegar em casa, Erica o colocara na cama e ele dormira por vinte e quatro horas direto. E quando Erica disse a ele, um tanto tímida, que eles tinham ganhado uma noite com jantar em um hotel e perguntou se Patrik estava disposto, ele disse que era exatamente disso que precisava. Passar um tempo a sós com Erica, fazer uma boa refeição, dormir ao lado dela e conversar bastante.

 

Naquele dia, ele se sentiu mais que preparado. A escuridão, o mal, agora pareciam tão distantes, banidos de um lugar como este. De um dia como este.

 

Eles chegaram ao altar e a cerimônia começou. O pastor Harald falou sobre o amor exigir paciência e gentileza, falou sobre Maja e sobre como Patrik e Erica haviam se encontrado. Ele fora extremamente feliz em encontrar as palavras certas para descrever os dois e a forma como viam a vida juntos.

 

Maja ouviu seu nome ser mencionado e decidiu que não queria mais ficar sentada no colo do avô; queria ficar com a mamãe e o papai, que por alguma razão estranha estavam de pé nessa casa desconhecida, usando roupas engraçadas. Kristina tentou por um momento manter Maja sentada e quieta, mas depois de um gesto de Patrik, soltou-a em direção ao altar e a deixou engatinhar até lá. Patrik a pegou e, com Maja no colo, colocou a aliança no dedo de Erica. Quando finalmente se beijaram pela primeira vez como marido e mulher, Maja apertou o rostinho contra o deles com uma risada, encantada com aquela brincadeira divertida. Naquele momento, Patrik se sentiu o homem mais rico do mundo. As lágrimas vieram novamente e dessa vez ele não conseguiu segurá-las. Fingiu abraçar Maja para limpar as lágrimas na roupa da filha, mas logo percebeu que não enganava a ninguém. E o que importava, na verdade? Quando Maja nasceu, ele chorou sem reservas, então ele podia se permitir uma ou duas lágrimas no dia de seu casamento também.

 

Martin segurou Maja enquanto Patrik e Erica saíam da igreja sem pressa. Depois de esperar na sacristia até que todos saíssem, foram para os degraus da igreja, onde receberam uma chuva de arroz, ao som de cliques e à luz dos flashes das câmeras. As lágrimas voltaram. Patrik deixou que corressem.

 

Erica descansou um pouco os pés, movendo os dedos, agora misericordiosamente livres dos sapatos brancos de salto alto. Pelo amor de Deus, como seus pés doíam. Mas ela se sentiu incrivelmente satisfeita com o dia. O casamento fora maravilhoso. A recepção no hotel fora soberba e houve vários discursos solenes. O que mais a tocara foi o de Anna. Sua irmã teve que parar várias vezes porque sua voz falhava e as lágrimas rolavam. Ela falou sobre quanto amava a irmã e intercalou os momentos sérios de seu discurso com histórias engraçadas de sua infância. Depois ela tratou brevemente do momento difícil que haviam passado recentemente e concluiu dizendo que Erica sempre fora tanto uma irmã quanto uma mãe para ela, mas agora ela também havia se tornado sua melhor amiga. Aquelas palavras aqueceram o coração de Erica e ela teve que enxugar as lágrimas com o guardanapo.

 

Mas agora o jantar tinha terminado e todos dançavam havia algumas horas. Erica se preocupava em como estaria o humor de Kristina, considerando todas as objeções que tivera quanto aos planos para a cerimônia. Mas sua sogra a surpreendera. Ela estava dando um show na pista de dança, inclusive com Lars, o pai de Patrik, e agora bebia licor e conversava com Bittan, a namorada dele. Erica estava boquiaberta.

 

Quando seus pés se recuperaram um pouco, Erica decidiu sair e tomar um pouco de ar fresco. Dentro do salão, estava quente e abafado, com tanta gente dançando e transpirando, e ela queria sentir a brisa fria em sua pele. Com uma careta, calçou os sapatos novamente. Quando estava prestes a se levantar, sentiu uma mão quente em seu ombro.

 

– E como está minha querida esposa?

 

Erica ergueu os olhos para Patrik e pegou sua mão. Ele parecia feliz, mas um pouco desarrumado. Seu paletó já não lhe caía tão bem quanto antes, após dançar alguns passos de jive com Bittan. Erica notou que seu marido não era o melhor dançarino do mundo quando se tratava do jive. Mas ganhou pontos pelo entusiasmo.

 

– Pensei em sair e tomar um pouco de ar, quer vir? – disse Erica, apoiando-se nele, sentindo a dor voltar a golpear seus pés.

 

– Para onde tu fores, eu irei – Patrik recitou e Erica percebeu, divertida, que ele sem dúvida já estava um pouco bêbado. O bom é que eles só tinham que subir um lance de escadas mais tarde.

 

Saíram para os degraus que conduziam ao pátio superior e Patrik estava a ponto de abrir a boca para dizer algo quando Erica pediu que fizesse silêncio. Algo lhe chamou a atenção.

 

Fez um gesto para que Patrik a seguisse. Foram calmamente em direção às pessoas que Erica tinha visto. Ninguém poderia dizer que se moviam sem fazer barulho. Patrik ria e estava quase caindo sobre uma urna cheia de flores, mas o casal que estava abraçado em um canto escuro do jardim não parecia ter se dado conta do ruído.

 

– Quem está lá se beijando? – Patrik disse, sussurrando alto.

 

– Shhii! – Erica disse outra vez, mas ela também não conseguia evitar o riso. Todo o champanhe e todo o vinho bom que acompanharam o jantar tinham lhe subido à cabeça. Deu mais um passo à frente. Então parou de repente e virou-se para Patrik, que abruptamente chocou-se contra ela. Ambos abafaram as risadas.

 

– Vamos voltar – disse Erica.

 

– Por quê? Quem é? – disse Patrik, esticando o pescoço para tentar ver alguma coisa. Mas o casal estava tão unido que era difícil reconhecer os rostos.

 

– Seu idiota, é Dan. E Anna.

 

– Dan e Anna? – disse Patrik, com um olhar encabulado. – Eu nem sabia que eles estavam interessados um no outro.

 

– Homens – Erica bufou, com desdém. – Vocês nunca reparam em coisa alguma. Como conseguiu não perceber? Eu sabia que algo estava acontecendo ali antes mesmo deles!

 

– Então está tudo bem? Quero dizer, sua irmã e seu ex? – disse Patrik sem graça, cambaleando um pouco enquanto voltavam para dentro do hotel.

 

Erica deu mais uma olhada para trás, para o casal que parecia distraído do resto do mundo.

 

– Bem? – Erica riu. – Está mais do que bem. É fantástico!

 

E então ela arrastou seu marido para a pista de dança, tirou os sapatos e saiu dançando descalça. Bem mais tarde, o Garage tocou “Wonderful tonight”, a balada que era sempre seu número final, dedicada ao feliz casal. Erica se agarrou a Patrik, apoiou o rosto em seu ombro e fechou os olhos.

 

O casamento de Patrik tinha sido uma festa divertida. Boa comida, bebida grátis, e Mellberg tinha certeza de que causara boa impressão na pista de dança. Mostrou para os jovenzinhos que entendia do riscado. Apesar de nenhuma das senhoras presentes ser páreo para Rose-Marie. Ele sentira sua falta, mas não conseguiu arrumar coragem a fim de pedir permissão a Patrik para levar uma acompanhante tão em cima da hora. Mas eles se veriam naquela noite.

 

Ele havia feito nova tentativa de arrumar a cozinha e ficou incrivelmente satisfeito com seu esforço. Ajeitou a mesa com a porcelana boa, e as velas estavam acesas. Foi com expectativa tensa que preparou tudo para esse jantar. A ideia que lhe ocorrera quando estava no banco, de transferir o dinheiro para a compra do apartamento compartilhado na Espanha, ainda o agradava. É claro que era tudo muito repentino, mas eles não eram mais crianças, ele e Rose-Marie. Já que havia encontrado o amor na sua idade, não havia sentido em perder tempo.

 

Ele havia pensado bastante em como fazê-lo. Quando viu a mesa posta de maneira tão elegante e a comida, pretendia dizer que queria que tudo estivesse perfeito, porque tinham que celebrar a compra juntos. Aquilo daria certo. Ele achava que ela não suspeitaria de nada. Então, depois de muita agonia, decidiu que usaria a sobremesa, uma musse de chocolate, como o esconderijo para sua grande surpresa. O anel. Aquele que havia comprado na sexta-feira e planejado dar a ela enquanto fazia o pedido que jamais fizera a mulher nenhuma. Mellberg mal podia se conter; desejava ver a expressão no rosto dela. Ele não havia economizado no anel. Somente o melhor era bom o bastante para sua futura esposa, e ele sabia que ela ficaria extasiada quando visse a aliança.

 

Olhou para o relógio. Cinco minutos para as sete. Cinco minutos até ela tocar a campainha. Na verdade, ele iria fazer uma cópia da chave para Rose-Marie imediatamente. Mellberg não podia deixar sua noiva parada lá, tocando a campainha como uma visita.

 

Às sete e cinco, Mellberg estava começando a ficar ligeiramente nervoso. Rose-Marie era sempre tão pontual. Ele mexeu um pouco na mesa posta, ajustou os guardanapos nos copos, moveu os talheres meia polegada para a direita e depois os deixou na posição original.

 

Às sete e meia, ele estava totalmente convencido de que ela devia estar morta em uma vala qualquer. Podia até ver seu carrinho vermelho batendo contra um caminhão ou um daqueles jipes imensos que as pessoas insistiam em guiar, que podiam demolir tudo em seu caminho. Talvez devesse ligar para o hospital. Vacilou para a frente e para trás, mas então percebeu que era melhor ligar para o celular dela. Mellberg deu um tapa na própria testa. Por que não pensou nisso antes? Discou de memória o número do celular de Rose-Marie, mas franziu a testa quando ouviu a mensagem da operadora: “Este número está fora de serviço”. Tentou discar novamente; devia ter errado um dígito. Mas a mesma mensagem foi ouvida novamente. Estranho. Ele teria que ligar para a irmã dela a fim de saber se Rose-Marie havia se atrasado por alguma razão. De repente se deu conta de que ela nunca lhe dera o número de telefone de sua irmã. E ele não tinha ideia de qual era seu nome. Tudo que sabia é que ela vivia em Munkedal. Ou não?

 

Agora um pensamento perturbador começava a se criar na mente de Mellberg. Ele o rejeitou, recusou-se a aceitar, mas prontamente viu a cena em que estava no banco e imaginou-a sendo reproduzida em câmera lenta. Duzentas mil coroas. Ele havia transferido aquele montante para a conta espanhola que Rose-Marie havia lhe passado. Duzentas mil. Dinheiro para comprar um apartamento. Agora ele não conseguia mais afastar o pensamento. Ligou para o auxílio à lista para saber se tinham algum número ou endereço para ela. Não encontraram nenhum registro naquele nome. Desesperadamente, tentou se lembrar se havia visto qualquer prova, documento de identidade ou algo assim, que confirmasse que o nome dela era o que ela dizia ter. Descobriu, com horror crescente, que nunca vira nada disso. A dura verdade é que ele não sabia qual era o nome dela, onde morava ou quem realmente era. Mas em uma conta na Espanha, ela agora tinha duzentas mil coroas. O dinheiro dele.

 

Como um zumbi, foi até a geladeira, pegou a porção dela da musse de chocolate e sentou-se à mesa do jantar posta de forma tão festiva. Lentamente, ele enfiou a mão no pote de vidro e enterrou os dedos na musse marrom. O anel brilhou através do chocolate quando ele o tirou. Mellberg o segurou e olhou para ele. Colocou-o gentilmente na mesa e, com lágrimas correndo pela face, começou a se empanturrar de musse de chocolate.

 

– Foi certamente um dia fantástico.

 

– Humm – disse Patrik fechando os olhos. Eles tinham decidido previamente não sair em lua de mel logo depois do casamento, e sim fazer uma viagem mais longa com Maja quando ela fosse alguns meses mais velha. A Tailândia estava no topo da lista no momento. Mas parecia estranho voltar à vidinha cotidiana tão cedo. Eles passaram o domingo dormindo até tarde, bebendo muita água e falando dos eventos de sábado. Na segunda-feira, Patrik decidiu tirar o dia de folga. Ele queria que os dois tivessem a chance de relaxar e digerir tudo, antes que a rotina diária tomasse conta novamente. Considerando todo o trabalho que ele fizera nas últimas semanas, ninguém na delegacia levantou a menor objeção. Então agora ele e Erica estavam deitados no sofá, abraçados. Tinham a casa para si. Adrian e Emma estavam na creche e Anna tinha levado Maja para a casa de Dan, para que os recém-casados pudessem ter um dia de paz e sossego. Não que ela precisasse de alguma desculpa para estar com Dan. Ela e as crianças já haviam passado o dia anterior na casa dele também.

 

– Você nem suspeitava? – Erica disse com cautela quando viu Patrik imerso em pensamentos.

 

Patrik entendeu na hora o que ela queria dizer. Pensou um pouco.

 

– Não. Na verdade, não suspeitei. Não havia nada de... anormal em Hanna. Eu notei que algo pesava sobre ela, mas achei que fossem problemas em casa. E eram, mas não da maneira como nós pensamos.

 

– E o fato de viverem juntos? Mesmo sendo irmãos?

 

– Nós nunca vamos saber todas as respostas, mas Martin ligou e disse que eles finalmente receberam os relatórios da assistência social. Aqueles dois passaram um inferno como filhos adotivos depois do acidente. Imagine como deve tê-los afetado primeiro terem sido sequestrados de sua mãe e depois forçados a viver no isolamento com Sigrid. Isso deve ter gerado alguma forma de laço anormal entre eles.

 

– Humm – disse Erica, mas ainda achava difícil imaginar isso. A coisa toda ia além da compreensão. – Mas como eles conseguiam manter separadas as duas diferentes faces de sua vida? – ela disse, depois de instantes.

 

– O que quer dizer? – disse Patrik, beijando a ponta de seu nariz.

 

– Bem, quero dizer, como podiam viver uma vida normal? Estudar? E até se tornarem uma policial e um psicólogo? Mas ao mesmo tempo viver com todo o... mal que fizeram?

 

Patrik demorou um tempo para responder. Não entendia a situação toda também, mas tinha pensado muito nisso desde que havia descoberto a identidade do assassino e achava que tinha chegado a uma conclusão.

 

– Acho que é exatamente isso. Eram duas partes separadas. Uma delas vivia uma vida normal. A mim parecia que Hanna queria mesmo ser uma detetive de polícia e fazer algo significativo. E ela era uma boa policial. Sem dúvida. Lars e eu nunca nos encontramos até pouco antes de... – ele parou. – Bem, a ideia que eu tinha dele era mais difusa. Mas ele era obviamente inteligente e eu acho que sua intenção também era ter uma vida normal. Ao mesmo tempo, o segredo que escondiam devia assombrar sua psique. Então quando aconteceu de darem de cara com Elsa Forsell, na época em que Hanna entrou para a polícia de Nyköping, isso deve ter desencadeado algo dentro deles, algo que deve ter ficado apodrecendo por um bom tempo. Bem, essa é minha teoria, pelo menos. Mas jamais saberemos com certeza.

 

– Humm – disse Erica pensativa. – É um pouco a forma como eu me sinto a respeito de mamãe – ela disse, afinal. – Como se ela vivesse duas vidas separadas. Uma conosco, papai, Anna e eu. E outra dentro de sua cabeça, em que não nos era permitido entrar.

 

– Foi por isso que você decidiu fazer uma pesquisa sobre ela?

 

– Sim – disse Erica. – Eu não tenho certeza, mas sinto que há algo que ela escondia de nós.

 

– Mas não tem ideia do que poderia ser? – Patrik olhou para ela e penteou para trás uma mecha de seus cabelos.

 

– Não, e não sei por onde começar. Não sobrou nada. Ela nunca guardou nada.

 

– Tem certeza? Você já procurou no sótão? Da última vez que estive lá, vi um monte de lixo velho.

 

– Tenho certeza de que a maioria é do papai. Mas... acho que podemos dar uma olhada. Só para ter certeza – ela sentou-se. Um tom ansioso apareceu em sua voz.

 

– Agora? – disse Patrik, que não estava nem um pouco inclinado a deixar o calor de um sofá confortável para ir a um sótão frio e úmido, que também estava cheio de teias de aranha. Se havia algo que ele odiava, eram aranhas.

 

– Sim, agora. Por que não? – Erica disse, já a caminho do andar de cima.

 

– Claro. Por que não? – Patrik suspirou, levantando-se relutantemente. Ele sabia que era melhor não protestar quando Erica punha algo na cabeça.

 

Quando chegaram ao sótão, Erica se arrependeu da ideia por um momento. Parecia mesmo que só havia lixo lá em cima. Mas não faria mal dar uma olhada. Ela se abaixou para não bater a cabeça nas vigas de madeira do teto enquanto começava a mudar coisas de lugar e erguer tampas de caixas aqui e ali. Com cara de nojo, ela limpou as mãos nas calças. Aquilo estava mesmo empoeirado. Patrik também começou a vasculhar, apesar de agora duvidar se sua ideia daria algum resultado. Erica provavelmente estava certa. Ela conhecia melhor a mãe. Se ela disse que Elsy não guardava nada, então... De repente, seus olhos captaram algo que chamou sua atenção. Lá no fundo do sótão, encaixado debaixo da inclinação do telhado, havia um baú velho.

 

– Erica, venha cá.

 

– Encontrou alguma coisa? – ela disse e foi até ele, dobrando-se para a frente.

 

– Não sei, mas esse baú me parece bastante promissor.

 

– Pode ser de papai – ela disse, pensativa, mas algo lhe dizia que o baú não era dele. Era feito de madeira, pintado de verde, com um padrão elegante, embora apagado, pintado na superfície. O trinco estava enferrujado, mas o baú não estava trancado, então ela cuidadosamente levantou a tampa. Em cima de tudo, havia fotografias de duas crianças. Quando ela as pegou, viu que havia algo escrito no verso. “Erica, 3 de dezembro de 1974”, estava escrito em uma delas, e na outra estava escrito “Anna, 8 de junho de 1980”. Atônita, viu que era a letra de sua mãe. Mais abaixo, dentro do baú, havia uma pilha de desenhos e coisas que ela e Anna tinham feito na aula de artes, misturadas a decorações de Natal e coisas que tinham feito em casa. Todas as coisas com as quais ela sempre pensou que sua mãe não se importava.

 

– Veja – ela disse, ainda incapaz de absorver o que via –, veja o que mamãe guardou – ela cuidadosamente pegou uma coisa após a outra. Era como uma viagem no tempo, de volta à sua infância. E à de Anna. Erica sentiu as lágrimas chegando, e Patrik acariciou suas costas.

 

– Mas por quê? Nós pensávamos que ela não... Por quê? – Erica enxugou as lágrimas na manga da blusa e voltou a remexer no baú. Ali pela metade, suas relíquias infantis terminaram e coisas mais antigas começaram a aparecer. Ainda com expressão incrédula, Erica pegou um punhado de fotografias em preto e branco e examinou-as, sem fôlego.

 

– Sabe de onde são essas fotos? – disse Patrik.

 

– Não faço ideia – ela disse, balançando a cabeça. – Mas pode apostar que vou descobrir!

 

Avidamente, ela cavou mais fundo, mas parou quando sua mão se fechou em torno de um objeto macio com algo duro e afiado dentro. Ergueu para ver o que era. Tinha em sua mão um pedaço sujo de tecido, que um dia havia sido branco, mas agora estava amarelado e coberto com feias manchas de ferrugem. Algo era envolvido pelo tecido. Erica abriu-o cuidadosamente e teve um susto quando viu o que era. Dentro do pano havia uma medalha, cuja origem ela não tinha dúvida. Não havia como confundir uma suástica. Calada, mostrou a medalha para Patrik, cujos olhos se arregalaram. Ele então olhou para o tecido, que Erica havia largado de qualquer jeito no colo.

 

– Erica?

 

– Sim? – ela disse, seu olhar ainda fixo na medalha que tinha na mão.

 

– Você deveria ver isso – Patrik disse.

 

– O quê? O que é? – ela disse, confusa e então notou para onde Patrik apontava. Soltou a medalha nazista e abriu o pedaço de tecido. Mas não era meramente um pedaço de tecido. Era um pagãozinho, bem à moda antiga. E ela percebeu que as manchas marrons nele não eram de ferrugem, afinal. Eram de sangue.

 

De onde vinha aquela roupinha? Por que estava coberta de sangue? E por que sua mãe guardou-a em um baú no sótão, juntamente com uma medalha da Segunda Guerra Mundial?

 

Por um momento, Erica considerou guardar tudo de volta no baú e fechá-lo.

 

Mas como Pandora, ela estava curiosa demais para deixar o baú permanecer trancado. Ela tinha que descobrir a verdade. Não importava qual fosse.

 

 

                                                                                                    Camilla Läckberg

 

 

 

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