Biblio VT
Nas montanhas de um mundo distante existe o Reino de Gadianton, lugar onde vivem os Henots, seres que só morrem aos cem anos de idade, e depois de conhecerem a morte por alguns instantes, ressurgem para um estado de imortalidade e juventude eterna. Também vivem lá seres mais vulneráveis e imperfeitos, totalmente suscetíveis à morte.
Além das fronteiras de Gadianton existiu um reino oposto chamado Zaraenla. Naquele lugar obscuro, feiticeiros governavam de modo ditador e opressivo os pobres seres mortais impedidos de ultrapassar suas fronteiras. Não havia henots por lá.
Kaedras, um ser henot, rei de Gadianton, casou-se com uma mulher mortal em seus primeiros vinte anos de vida, ela viveu muito tempo, mas morreu, tendo deixado uma linda filha henot, a princesa Ethy.
A princesa era alta, tinha cabelos compridos e dourados, mais dourados do que o ouro, até brilhavam com a luz do dia. Todos amavam o rei Kaedras que lamentava não poder libertar os zaraenlanes cativos do outro lado das fronteiras.
Seu palácio era a verdadeira representação do que existe de mais belo no universo em termos de metais precisos de decoração. As casas dos gadiantons também não ficavam para trás, feitas de matéria prima nobre, pedras preciosas, materiais raros. E apesar de serem governados por um rei todos tinham liberdade de escolher.
Em Zaraenla os nirarrotes queriam fazer seu povo acreditar que viviam em um estado de liberdade e igualdade. Ensinavam a todos que a opressão era a melhor maneira de se fazer justiça e manter o controle e a ordem, caso contrário tudo estaria arruinado.
Todos se conformavam, o governo lhes dava o trabalho e a comida e não objetivavam nada além disso. Os gadiantons diziam “É melhor que não causemos guerra tentando libertá-los e que assim eles vivam do que lutando pela sua liberdade causemos a morte de muitos.”
Durante sua juventude a princesa Ethy construiu uma forte amizade com o guerreiro Aman, rapaz forte, principalmente de caráter. E mesmo sendo um ser mortal ele possuía um poder especial, algo que sobrepujava a grandeza dos henots. O sentimento que unia Ethy e Aman era muito sublime, quase inexplicável à mera razão humana.
Quando Aman se ausentava a princesa Ethy sentia – se mal, e até o clima e a natureza demonstravam o mesmo: o céu escurecia, as folhas das árvores secavam e caíam, até o humor das pessoas se alterava.
Nem mesmo a princesa e o guerreiro entendiam por que as coisas eram assim. Pelo menos para Ethy tudo ainda permanecia um mistério.
No despertar de mais um amanhecer Ethy acordou com uma daquelas estranhas sensações de dúvida. Não pôde fazer outra coisa, foi direto à sala do trono conversar com o rei Kaedras. Em passos apressados ela aproximou-se, seus cabelos dourados brilhavam ao refletirem a luz do sol.
— Pai, não aceito mais pretextos, quero saber por que aquelas coisas acontecem quando Aman está longe daqui. Por que me sinto tão mal quando ele está ausente? – A princesa exigiu respostas.
Foi então que Kaedras entendeu que já era chegado o momento de contar toda a verdade para a sua amada filha. Ele abraçou-a, sentou – se na poltrona real, e então começou a revelar-lhe a verdade:
— Minha filha, também acredito que finalmente chegou a hora de você saber toda a verdade. Ethy, o livro do destino do Reino de Gadianton diz que chegará um tempo em que para o nosso mundo ter a proteção e o equilíbrio em todas as coisas deverá acontecer a união de duas grandes forças. Ninguém sabe ao certo quando nem como essa união acontecerá.
— Mas, pai, isso não responde a minha dúvida. O que isso tem a ver comigo e com o Aman?
— Ethy, você e o Aman são essas duas forças que deverão se unir um dia - o rei afirmou com certeza.
Ao ouvir as palavras de seu pai, a princesa empalideceu, sua face já tão branca revelou o choque em receber a notícia tão inesperada. Ela não podia acreditar, saiu correndo dali e passou horas refletindo na sacada de seu quarto, tendo por companhia apenas a mais bela paisagem dos jardins do palácio de Gadianton.
A princesa enfim pôde compreender que a ausência de Aman fazia aquelas coisas ruins acontecerem, ele não podia ficar longe de Ethy, pois ambos eram as forças que se completavam e que um dia deveriam se unir para sempre.
Ainda da sacada, Ethy avistou o guerreiro Aman se aproximando do palácio. Sem pensar duas vezes ela foi ao seu encontro. Ansiosa desceu as escadas, entrou no pátio, ele estava no jardim.
— Aman, que bom que está aqui! Preciso falar com você e tem que ser agora.
— Princesa Ethy, está acontecendo alguma coisa? Parece tão angustiada – ele perguntou preocupado.
— Venha comigo, Aman, vamos conversar no pátio interno do palácio! Não quero que ninguém nos escute – ela pediu.
Aman a acompanhou, dentro de si ele carregava um misto de ansiedade e receio pelo que a princesa poderia lhe falar. Sentaram – se à beira da fonte que ficava bem no meio do pátio.
Com o olhar fixo no rosto de Ethy o jovem guerreiro perguntou:
— Então, o que está acontecendo? O que tem a me dizer, princesa?
— Nesta manhã tive uma conversa definitiva com meu pai sobre você e eu. Quis saber por que todas aquelas coisas estranhas acontecem comigo e com o nosso mundo quando você está longe de mim.
— Isso é algo que também me intriga, mas nunca ousei perturbar o rei com esses questionamentos. Sou apenas um simples guerreiro.
— Meu pai me disse uma coisa muito difícil de aceitar.
— Difícil de aceitar? O que o rei Kaedras te disse de tão absurdo?
— Ele me disse que eu e você somos as duas forças que deverão se unir um dia para que o nosso mundo fique protegido para sempre. Está no livro das profecias. Aman, você já sabia disso? – Os olhos de Ethy lacrimejavam.
Aman abaixou a cabeça, levantou-a e respondeu:
— Ethy, eu ouvi essa história da boca de um feiticeiro inimigo e não acreditei que pudesse ser verdade. Mas agora que o rei confirmou, tudo começa a fazer sentido. O correto seria que ninguém mais soubesse disso. Podem querer nos destruir ou mesmo nos separar pra sempre. Se somos as duas forças, precisamos ficar juntos.
— E o que tudo isso significa?
— Significa que nós nunca poderemos nos separar definitivamente, ou melhor, que seremos unidos para sempre algum dia. Caso contrário Gadianton estará em perigo, vulnerável ao ataque dos inimigos do reino.
— Mas isso não é justo, Aman! Quer dizer que não terei mais liberdade para escolher! – ela exclamou indignada.
— Princesa, você não gosta de mim, gosta?
— É certo que eu gosto de você. O fato é que parece uma prisão essa ideia de não podermos estar longe um do outro – declarou angustiada.
— Isso é uma determinação da natureza, e as coisas da natureza não dependem da nossa vontade. Acredito que o rei quer que eu me case com você. Mesmo sabendo que provavelmente essa não será a maneira pela qual se cumprirá a profecia, talvez ele acredite que assim estaremos cada vez mais próximos, que você sendo a rainha e eu o rei protegeremos Gadianton.
— Não! O casamento não poderá nos manter unidos pra sempre porque você é um ser humano e um dia morrerá, e eu ressurgirei após meus cem anos e serei imortal, viverei para sempre e você nem estará mais aqui, como poderíamos estar juntos para sempre? Mal sabemos como isso será possível, tampouco o momento em que acontecerá. – Ethy tentou se livrar da ideia de estar ligada à Aman para sempre.
— Esse é o medo do rei. Ele teme a minha morte. Como disse, você será imortal e eu me tornarei pó sob o solo desse mundo. Seu pai teme que eu morra antes que nossa união se realize. Mas não deveria temer, pois carrego comigo em meu pescoço a poderosa e sagrada pedra verde, a Urim – Tumim. Desde que nasci os feiticeiros do reino a consagraram para a minha proteção, sempre me disseram que eu era um guerreiro especial, que protegeria Gadianton dos nossos inimigos.
— E você tem protegido lutando em várias batalhas para defender nosso reino.
— Essa pedra sempre me guiará e me protegerá. Vou falar com o rei agora mesmo. – Aman levantou-se e foi em direção à sala do trono.
Ethy segurou-o pelo braço e pediu que esperasse.
— Aman, espere!
— Diga. – Ele virou-se em direção a ela novamente.
— Como sabe que você é a força que se unirá a mim?
— O livro das profecias fala que a primeira força é o fruto de um ser humano e um henot, ou seja, esse fruto é você, e a segunda força é o guerreiro que carregaria consigo a insígnia do zodíaco. Eu sempre soube dessas coisas, mas não tinha certeza que seria eu. Agora que seu pai confirmou, tudo está mais que claro – ele afirmou virando-se de costas, e prosseguiu dizendo: - Agora levante minha vestimenta e veja bem o que há em minhas costas.
Um pouco nervosa, com as mãos trêmulas, a princesa ergueu a vestimenta de Aman e contemplou em suas costas a insígnia do zodíaco.
— É um unicórnio! Há a imagem de um unicórnio em suas costas! É a insígnia do zodíaco. Então somos as forças que deverão se unir – ela exclamou, não querendo acreditar na verdade que acabava de descobrir.
A insígnia era enorme, cobria todas as costas de Aman.
Diante disso Ethy ficou ainda mais insegura, não sabia como reagir nem quais atitudes tomar em um momento como aquele.
Naquele dia a princesa se pôs a meditar sentada na sacada de seu quarto, dessa vez durante o resto dia. Zesrone, um henot imortal e seu amigo foi procurá-la e a encontrou meditando.
— Zesrone, você por aqui? – Ficou surpresa ao vê-lo.
— Princesa, senti vontade de te ver. Achei que não estivesse bem. – Ele afagou os cabelos dela.
— E não estou bem. Acabo de descobrir que não tenho liberdade e que o meu destino já está predeterminado. – Ela estava cabisbaixa.
— Então você já sabe quem são as duas forças que deverão se unir! O rei me disse que você e Aman se casarão.
— Não estou certa disso, Zesrone. Meu pai está temeroso e pensa ser essa uma segurança de que Aman e eu não nos separaremos.
— Se eu bem conheço o rei Kaedras a vontade dele será cumprida. No mundo dos henots é assim, devemos obediência. – Zesrone continuou afagando os cabelos dela enquanto falava.
— É triste, mas como disse o Aman, nada podemos fazer contra as leis da natureza.
A princesa abraçou Zesrone e chorou em seus ombros.
— Estou aqui pra te ajudar, minha princesa. – Ele abraçou-a ainda com mais força.
Na verdade, o objetivo de Zesrone era ouvir Ethy dizer “Não me casarei com Aman, pois não o amo”, e isso porque ele a amava.
Desde os tempos de sua mortalidade Zesrone amou a princesa. Ele era quase um imortal quando ela nasceu, mas ao observá-la crescer um sentimento elevado despertou dentro de seu coração. E agora que já era um eterno jovem imortal pretendia conquistar o amor de Ethy.
O conselho dos nirarrotes se reuniu com o propósito de decidir a melhor maneira de invadir o Reino de Gadianton e dominá-lo. O chefe dos conselheiros Coriantomr começou a falar. Todos ao redor da grande mesa ouviam-no atentamente:
— Meus nobres conselheiros, entendi que a melhor maneira de ganharmos mais poder e eliminar de vez toda e qualquer ameaça contra o nosso reino é invadir e tomar o governo de Gadianton.
— Oh! – todos exclamaram assustados.
— Não conseguiremos tomar posse do governo de Gadianton devido às duas forças que o protegem – relembrou-lhe um dos conselheiros.
— Caros Nirarrotes, as duas forças ainda não se uniram. E jamais se unirão! Porque momentos antes da invasão mandarei uma delas embora no portal das dimensões, das quais ninguém consegue sair. A primeira força se refugiará no bosque sagrado onde estará livre da influência do mal e nada podemos fazer contra ela, mas a segunda força é apenas um ser humano, tão mortal quanto qualquer inseto! Mandarei embora a segunda força, ele possui a insígnia do zodíaco nas costas, e estando longe Gadianton não terá proteção! Lá ele será atormentado, sofrerá e certamente morrerá, pois nenhum ser humano por mais forte que seja pode suportar um tormento tão grande, especialmente na sexta dimensão! – disse Coriantomr, erguendo seu cetro em sinal de poder.
Tudo parecia estar bem em Gadianton quando de repente, os nirarrotes invadiram o reino.
— Ethy, pegue suas coisas, vamos imediatamente para o palácio do Bosque Sagrado! Estamos sendo invadidos pelo exército dos nirarrotes! Eles quebraram o acordo de paz – Zesrone disse depois de entrar apressado no quarto da princesa.
— O quê? Como eles conseguiram entrar aqui? Oh, não! Onde está Aman? Ainda não o vi hoje! – Ethy perguntou nervosa.
— Nós o procuramos por toda a parte, mas ninguém o encontrou. Tememos que Aman esteja preso, ou pior, tememos que Coriantomr tenha o lançado no portal das seis dimensões, a sequência de seis mundos dos quais até hoje ninguém conseguiu sair. Se isso aconteceu mesmo Aman terá que encontrar a saída de cada mundo até retornar à Gadianton. São mundos extremamente difíceis de acontecimentos imprevisíveis.
— Não entendo, ele tem a pedra que o protege. Se o Urim-Tumim é tão poderoso por que permitiu que o levassem? Oh! Agora eu lembrei. Aman deixou comigo a outra metade da pedra. Está aqui. Ele parecia pressentir que algo ruim estava prestes a acontecer. A metade da pedra está comigo, veja! – ela segurou com força a metade da pedra e sentiu algo muito forte em seu coração. - Zesrone, agora posso sentir, Aman está mesmo longe de nós, ele foi lançado nas seis dimensões!
Ethy começou a chorar sem parar. Seus cabelos dourados se tornaram cinzas de tanta tristeza.
— Se acalme, Ethy. A outra metade da pedra guiará Aman e o trará de volta para nós, acredite. – Zesrone demonstrou compaixão e abraçou-a. – Ele é um grande guerreiro, já lutou por Gadianton em outras batalhas, até longe daqui. – Zesrone consolou-a, continuou segurando-a em seus braços. – Agora temos que ir logo para o Bosque Sagrado. Não podemos ficar sob influência do mal, embora não nos mate o mal nos enfraquece, você sabe. O rei está a nossa espera e nos espera.
— Pra que nos esconder? Por que não os enfrentamos junto com o nosso povo? – Ethy demonstrou destemor.
— Princesa, deixemos que os henots telestes façam isso, eles foram preparados para enfrentar o mal. E nós os ajudaremos lhes dando um pouco de nossa força através dos nossos pensamentos. Agora vamos depressa! – Zesrone pediu aflito.
Eles foram para o Bosque Sagrado onde os henots imortais, que já passaram pela transformação após completarem 100 anos, viviam em lindas habitações, mas a princesa não conseguia conter sua angústia que transparecia em todo o seu corpo. Sua voz quase não saía. Gadianton se tornou um mundo de lágrimas e infelicidade.
Coriantumr alcançou seu objetivo, Gadianton foi dominada pelos Nirarrotes, que então ameaçaram matar o povo caso os henots telestes não trabalhassem para eles extraindo os preciosos minérios do solo e construindo ostentosos palácios e prédios para usufruto e enriquecimento dos conselheiros nirarrotes.
Os inimigos tomaram posse também das propriedades do rei, inclusive do palácio. Os henots telestes aceitaram o trabalho forçado com a intenção de salvar o povo da escravidão e da morte.
O céu de Gadianton se tornou cinza, as árvores secaram, toda a natureza se alterou, e sua única esperança era que Aman voltasse algum dia.
O jovem guerreiro acordou ainda sem entender ao certo o que estava acontecendo, Aman levantou – se e observou tudo ao seu redor. Depois de alguns instantes as coisas se tornaram ainda mais obscuras à sua mente.
Aman não sabia onde estava, não se lembrava de onde veio, não recordava seu próprio nome. Ele perdeu completamente a memória. A única coisa que carregava consigo e que talvez pudesse ajudá-lo era a metade do Urim-Tumim. Ao mirar aquela pedra verde ele sentia apenas uma coisa: que ela era importante, porém não sabia ao certo para que servia.
O guerreiro percebeu uma estrada de terra mais adiante por onde decidiu caminhar, mas ao se aproximar dela gritou de susto com a visão que de repente surgiu diante dele. Sem explicação aparente a estrada se transformou em um enorme e profundo buraco, tão profundo que se alguém caísse dentro dele provavelmente não sairia jamais.
Após uma leve tontura Aman voltou a si e avistou novamente a estrada de terra. O buraco desapareceu tão repentinamente quanto surgiu.
Mais adiante havia uma casa, muito simples, mas que parecia ser habitada logo à primeira vista. O jovem sem memória decidiu bater à porta. Uma senhora, nem bonita nem feia, nem simpática nem antipática atendeu-o:
— O que deseja, rapaz?
— Senhora, eu estou perdido, e não me lembro de nada, gostaria de saber onde estou! – ele demonstrou sua aflição.
— Entre, pobre jovem - ela o convidou.
Já dentro da casa ela o questionou:
— Então está perdido e não se lembra de nada?
— Sim, eu não lembro de onde vim, nem mesmo quem sou, não me lembro do meu próprio nome. Quando abri meus olhos já estava aqui. Acordei na floresta. Levantei-me e decidi caminhar por uma estrada, mas ao me aproximar me assustei, pois algo muito estranho ocorreu.
— O que aconteceu?
— De repente a estrada se tornou um enorme e profundo buraco. Instantes depois o buraco desapareceu e se tornou estrada novamente. O que foi isso? – ele perguntou curioso.
— Oh, meu rapaz! Bem-vindo à Unolaum. Logo se percebe que você não é daqui. Nós que vivemos nesse mundo desde nascidos já estamos acostumados com as ilusões.
— Ilusões?
— Sabemos, ou pelo menos acreditamos que já sabemos distinguir o que é real do que é apenas uma ilusão. Este é o mundo das ilusões mais improváveis.
— Então precisam conviver com miragens?
— Sim, algumas boas e outras ruins, que no fim fazem mal de qualquer jeito. Muitos aqui ainda sofrem com as ilusões que sempre aparecessem em nosso caminho das mais diversas formas, ao caminharmos pela estrada, ou ao olharmos para o lado de fora. Às vezes aparecem monstros, às vezes coisas boas como mesas cheias de comida também aparecem, mas é tudo miragem.
— Viver assim, cercado por imagens que não são reais e que se confundem com a realidade não é bom. Temos que viver o que existe de verdade.
— Os mais jovens ainda se enganam, muitas vezes nós mesmos adultos nos deixamos enganar. E foi isso que aconteceu com você. Enxergou aquele buraco que na verdade era só uma ilusão para lhe causar medo.
— Isso é terrível.
— O pior de tudo é que quando a ilusão é um monstro nos causa um pavor desnecessário. Mesmo quando temos certeza de que não é real ainda assim tememos. E quando a ilusão é uma coisa boa, por exemplo, as mesas cheias de comida nos causam decepção por ser só uma ilusão. Dia desses eu estava me olhando no espelho e me enxerguei uma mulher jovem e bonita, pensei até por uns segundos “Rejuvenesci”, instantes depois era só eu, a velha de sempre! – a senhora explicou-lhe com irradiando decepção na face.
— E não há nada que possam fazer para acabar com essas ilusões? – Aman estava mesmo aflito.
— Sim, existe, mas ninguém se atreve. Há três dias daqui existe uma grande montanha e logo no começo dela há uma espada, a espada de prata. Se essa espada for cravada no topo da montanha as ilusões acabarão – ela revelou a solução para o problema.
— E por que ninguém fez isso até agora?
— Não é tão simples assim! Ocorre que para chegar ao topo da montanha antes é preciso enfrentar o grande monstro que vigia o lugar. Ninguém sabe se aquele monstro é real ou só uma ilusão. E por causa dessa dúvida ninguém ousa enfrentá-lo até o fim.
— Mas esse mundo não pode continuar assim.
— Muitos até já tentaram, mas não tiveram sucesso, os que não falecem de susto ficam traumatizados, paralisam e voltam pra trás. Se aquele monstro for real quem encarar a luta até o fim certamente morrerá. Pois não é qualquer monstro! É mais feio e horroroso que os dragões de dez cabeças que estamos acostumados a ver em nossas ilusões.
— Mas por outro lado, se for apenas mais uma ilusão todos perderão a chance de ser livres! Eu irei até a montanha, enfrentei o monstro, seja ele real ou imaginário, e cravarei a espada em seu topo! – Aman declarou corajoso.
— Para chegar lá basta seguir em direção ao deserto. Veja, esse é o caminho – ela disse, apontando através da janela da casa.
Aman levantou-se pra seguir seu caminho, a senhora o alertou:
— Tenha cuidado! Oasis maravilhosos costumam surgir no caminho para iludir os viajantes!
Não demorou muito para que o famoso dragão de dez cabeças aparecesse diante de Aman. Porém, mesmo assustado, ele não se importou e seguiu em direção ao deserto. A sede do guerreiro se tornou intensa. A água que carregava no pequeno cântaro foi insuficiente, já estava caminhando pouco mais que um dia que, aliás, foi muito quente, sem contar que ele também estava cansado. Ainda não havia chegado ao deserto. Avistou um rio mais adiante, perfeito para matar sua sede e encher seu cântaro.
Tranquilamente Aman dirigiu-se até a margem do rio onde pretendia matar a sua sede, inclusive tinha as águas mais límpidas que ele já viu até então.
Ele mergulhou suas mãos no rio, ao retirar um pouco d’água gritou de susto e se afastou. Ao invés de água límpida e corrente ele avistou diante de si aranhas, muitas aranhas, de todas as espécies e tamanhos!
Era um verdadeiro rio de aranhas, todas amontoadas andando umas sobre as outras. Ligeiramente veio à tona a ideia de que aquilo era apenas uma ilusão, isso já era o suficiente para que ele prosseguisse e tomasse a água.
Mas ele não conseguia beber a água, foi pego de surpresa, aquela imagem das aranhas peçonhentas era mais forte que a realidade. Tudo isso pra tentar impedi-lo de saciar sua sede. Aman respirou fundo várias vezes, mas a imagem não sumia, estava assim diante de um desafio.
Decidiu ir adiante, fechou os olhos e levou suas mãos novamente para dentro do rio meditando a seguinte frase “É apenas uma ilusão. As aranhas não existem, é apenas ilusão.” Ele trouxe a água até a sua boca com as mãos um pouco trêmulas, lavou seu rosto, e ao abrir os olhos pôde enxergar o rio de águas límpidas novamente.
No fim do terceiro dia, pouco antes de chegar à montanha, Aman avistou um belo Oasis. Correu ao encontro do mesmo se esquecendo de que era só uma miragem, e, mais uma vez ficou decepcionado. O Oasis era na verdade um ninho de cobras.
Depois de atravessar o deserto finalmente, vencendo as ilusões, Aman viu a grande montanha. Ao redor havia muitas árvores com frutas e uma enorme cachoeira. Dessa vez era tudo verdade, nada imaginário. Era tudo tão real que ele pôde matar sua fome com as frutas daquelas árvores. Após um mergulho na cachoeira e uns momentos de descanso o guerreiro se preparou para pegar a espada prateada e enfrentar o monstro.
Ele olhou ao redor, logo percebeu a espada mais adiante, entre as pedras. Respirou fundo, foi até as pedras e pegou a espada, que inclusive era muito pesada. “Até o momento tudo certo, até agora nenhum monstro!” ele comentou consigo, mas instantes seguintes, ao se aproximar pra subir a montanha, o monstro apareceu.
Aquela criatura era mais feia e mais assustadora que o dragão de dez cabeças e com toda a sua ira lançava seus tentáculos para atingir Aman que corajosamente se esquivava. O jovem guerreiro ergueu a espada e começou a cortar os tentáculos daquele ser horroroso. Mas quanto mais ele cortava mais tentáculos surgiam.
Mesmo assim Aman não desistia. Embora seus braços já estivessem cansados lembrou – se que seu objetivo mais importante naquele momento era cravar a espada no topo da montanha.
Depois de lutar com todas as suas forças algo inesperado aconteceu. O monstro foi diminuindo cada vez mais de tamanho até que desapareceu completamente.
— Esse monstro não existia. Era mesmo apenas uma ilusão – exclamou aliviado.
Aman amarrou a espada em sua roupa e começou a escalar a montanha. Mas sua paz durou pouco, pois no meio do caminho sobreveio-lhe uma escuridão acompanhada de uma névoa densa. A escuridão era tão absoluta que em certo momento ele não conseguia mais enxergar nada. Seguiu em frente apenas tendo a certeza que estava na direção certa por não se desviar do caminho.
Conforme se aproximava do topo o ambiente ao seu redor foi clareando. Escorregou algumas vezes, mas não caiu. E quando finalmente chegou ao topo da montanha e cravou a espada pôde sentir a alegria de ter libertado aquele lugar das ilusões. Naquele momento o vento soprou mais forte levantando a poeira. Aman fechou seus olhos para protegê-los. Sem esperar foi levado para outro mundo.
A cada passagem para outro mundo a sede de Aman era maior. Elquena era um lugar um pouco diferente do mundo anterior, as casas eram de alvenaria com teto de palha, havia pessoas sérias ou tristes andando pelas ruas, sem olhar para os lados. Logo de início Aman parou um moço que passava e interrogou-lhe onde haveria um poço no qual ele pudesse beber um pouco de água.
— Água? Siga em frente, depois daquele mercado vire à direita e encontrará um poço! – respondeu-lhe o rapaz.
— Obrigado – o guerreiro agradeceu.
Aman seguiu a orientação do jovem aparentemente confiável, mas ao invés de um poço com água, ele se deparou com uma redoma de areia movediça dentro da qual quase caiu. Aman ficou espantado com aquilo e saiu dali.
Continuando sua jornada ouviu coisas estranhas e bizarras pelo caminho. Pessoas passavam por ele e gritavam coisas do tipo “Cuidado,tem um leão feroz vindo atrás de você” “ Olhe,tem uma cobra enrolando na sua perna!”, ou então, pessoas o abordavam oferecendo-lhe bebidas e comidas podres e fedorentas afirmando “Beba, essa bebida é deliciosa, coma”.
Não demorou a Aman ter certeza de que estava em uma terra de malucos. Ele bateu à porta de uma casa para pedir explicações. Um rapaz muito simpático o atendeu e logo reconheceu que o guerreiro era mais um peregrino perdido.
— Por favor, poderia me dizer onde eu estou? – Aman perguntou.
— Oh, mais um peregrino perdido! Entre – o rapaz o convidou.
Já dentro de casa:
— Mas me diga, de onde você vem, guerreiro?
— Eu não sei de onde venho, nem mesmo qual é o meu nome. Estava perdido no mundo das ilusões e depois de enfrentar monstros imaginários vim parar aqui – Aman respondeu desconsolado.
— Eu lamento. Suponho que seja mais um perdido nas dimensões, vítima de algum feitiço. É sempre assim. Os feiticeiros adoram jogar as pessoas aqui, pois sabem que elas não conseguem sair. Mas respondendo sua pergunta, aqui é Elquena.
— Elquena! Bonito nome. É uma pena que as pessoas nesse lugar sejam um pouco estranhas.
— Estranhas como?
— Logo que cheguei perguntei a um rapaz onde poderia encontrar água e ele me disse que depois do mercado de verduras havia um poço, mas não tinha poço nenhum e sim uma redoma de areia movediça. Eu quase caí dentro! Depois pessoas passavam gritando pra mim coisas absurdas, e me oferecendo bebidas e comidas podres e fedidas dizendo que eram deliciosas. E eu me perguntei: Quem aceitaria experimentar coisas assim visivelmente podres? – Aman falou intrigado.
— Pois acredite, há pessoas que experimentam mesmo vendo que essas coisas não prestam. Tudo isso que você presenciou é algo muito comum aqui em Elquena. A maioria das pessoas nesse mundo sente prazer em mentir e brincar com a verdade. Porém eles mesmos não comem do manjar que oferecem, apenas incentivam os outros a fazerem o que eles não fazem por saberem que é mau. De fato, é difícil saber quando alguém está falando a verdade em Elquena. Bom, não sabe o seu nome, mas eu sei o meu, me chamo Lamoni.
— É um prazer, Lamoni. E lamento pelas mentiras.
— É doloroso.
Naquele momento Caéz, irmão de Lamoni, entrou na sala, intrometeu-se na conversa:
— Lamoni, meu irmão, em certas circunstâncias a mentira é necessária. Por exemplo, quando estou triste minto que estou feliz para que as pessoas não sintam pena de mim. Ou quando o dia está feio, frio e cinzento, eu olho para o céu e afirmo “Que dia lindo!” Eu minto que o dia está lindo para poder suportá-lo.
— Ainda assim acho que a verdade é sempre a melhor opção em qualquer situação. Por mais que você tente se enganar dizendo que o dia está lindo para iludir a sua mente, o fato é que o dia está péssimo e isso prevalece, suporte o dia sem mentiras. Eu tenho certeza de que as ilusões boas ou ruins não são legais. É melhor vivermos a realidade. – Aman defendeu sua verdade.
— Concordo! – Lamoni disse.
Aman ficou cabisbaixo demonstrando preocupação.
— Mas o que há, peregrino? Por que esse semblante preocupado?
— Você disse que ninguém consegue sair daqui? – Aman perguntou desiludido.
— Pelo menos até agora não conheci ninguém que tivesse conseguido. Mas alguns dizem que há uma saída. Basta seguir sempre em direção ao sol. Ouvi dizer que pessoas até já fizeram essa caminhada e chegaram lá, mas segundo eles tudo que encontraram foi um grande abismo – Lamoni respondeu o deixando ainda mais sem esperança de sair daquele lugar.
— Sinto que devo sair deste mundo o mais rápido possível. Seguirei agora mesmo em direção ao sol – Aman declarou determinado, levantando-se.
O jovem guerreiro teve uma leve tontura. Caéz percebeu sua fraqueza e sua sede e deu-lhe comida e água.
— Peregrino, você está se sentindo bem?
— Sim, obrigado, Caéz. Foi apenas uma tontura, algo um pouco estranho, veio à minha mente, uma imagem, o rosto de uma mulher – Aman explicou.
— Talvez seja alguma lembrança de seu mundo. Quem sabe recupere a memória, às vezes os feitiços falham! Mas você também está um pouco fraco. Descanse e depois siga viagem. Assim será melhor, terá mais força para a caminhada – Lamoni sugeriu.
— Sim, obrigado, Lamoni – Aman lhe agradeceu.
Aman descansou um dia inteiro antes de começar sua caminhada em direção ao sol. Caéz deu-lhe comida e água para a viagem. E no amanhecer do dia seguinte o guerreiro seguiu em sua jornada.
— Adeus, peregrino, vá em paz! – Caéz se despediu.
— Adeus, Caéz, adeus Lamoni, muito obrigado por tudo – Aman agradeceu.
— Peregrino, o que fará se encontrar apenas o abismo? – Lamoni perguntou.
— Ainda não sei. Mas irei sempre adiante – Aman respondeu, estava disposto a enfrentar o medo.
Foram longos dias de caminhada em direção ao sol. No despertar de cada dia Aman seguia o astro rei e durante a noite descansava.
Durante todo o trajeto Aman ouviu dezenas de mentiras, as mais bizarras e muito engraçadas, do tipo “Olha uma cascavel no seu pé!” “Corra aí vem um dragão de sete cabeças para nos matar”. E novamente ele encontrou aqueles que lhe ofereciam manjares podres afirmando que eram maravilhosos. E tudo que Aman fez foi ignorá-los completamente, pois se lhes desse atenção provavelmente não chegaria onde pretendia.
Alguns dias depois quando já não havia mais o que andar, tudo que Aman encontrou diante de si foi um escuro e enorme abismo, exatamente como Lamoni havia lhe dito. Espantado com essa realidade ele voltou atrás para pedir ajuda. Viu uma moça e perguntou-lhe se havia alguém que pudesse explicar qual seria a saída daquele mundo e qual o motivo da existência daquele abismo.
— Naquela casa vive uma senhora, ela é um pouco esquisita, dizem que é feiticeira. Talvez ela possa ajudar. – A moça indicou-lhe.
Não foi fácil para Aman acreditar nela, afinal estava na terra dos mentirosos. E se naquela casa morasse alguém que não fosse a tal feiticeira e ele saísse prejudicado de algum modo? Então ele decidiu fazer essa mesma pergunta para mais algumas pessoas que lhe confirmaram a mesma coisa.
Devagar ele se aproximou da casa, bateu à porta, a mulher abriu, ela era velha e tinha aparência de feiticeira.
— O que deseja, meu rapaz?
— Boa tarde, senhora. Eu sou um viajante perdido nessa dimensão, me disseram que para sair desse mundo bastava que eu seguisse em direção ao sol, fiz isso durante alguns dias, mas tudo que encontrei foi um escuro e infinito abismo diante de mim. Então pedi ajuda aos que passavam e todos me disseram que a senhora poderia me ajudar – explicou – se.
— Eu entendo o seu medo, e ainda lhe digo que a saída desse mundo é o próprio abismo. Você encontrou a saída. Felicito-o – a feiticeira respondeu.
— O quê? O abismo é a saída? Não entendo. – Espantou – se, arregalando os olhos.
— Para sair desse mundo basta se jogar dentro do abismo, de olhos fechados se preferir.
— Não está falando sério! Está me dizendo que para sair daqui tenho que me jogar dentro daquele abismo escuro e tenebroso?
— Sim, é isso mesmo. Sabe, muitos viajantes perdidos igual a você ao se depararem com o abismo de tanto pavor voltam atrás e desistem de ir embora sem mesmo saber que o abismo é a saída. É terrível para eles esse buraco sombrio e asqueroso.
— E como você sabe disso?
— É muito simples, meus pais eram feiticeiros iguais a mim. Eles descobriram essa passagem através dos papiros escritos. Na verdade, os abismos são portais para outros mundos.
— E se estiver mentindo pra mim? Aqui é o mundo dos mentirosos onde as pessoas enganam por prazer. No trajeto pra cá ouvi mais de cem mentiras! Se eu me jogar naquele abismo e você estiver mentindo certamente morrerei. Como posso saber se está dizendo a verdade? – Aman perguntou exaltado.
— É muito simples, basta acreditar no que eu digo e confiar em mim.
— Confiar na senhora? Mas como posso confiar em alguém que eu não conheço? E mesmo que as pessoas aqui fossem honestas seria quase impossível acreditar que aquele enorme abismo é o caminho que me levará onde preciso chegar.
— Você tem apenas duas alternativas, ou você acredita em mim e se joga no abismo ou jamais sairá daqui e morrerá na eterna dúvida – ela sentenciou.
Naquele instante, mais uma vez a imagem de Ethy veio à mente de Aman, ele, porém não se lembrava de que era o rosto da princesa. Teve um forte sentimento no coração e sem pensar duas vezes saiu correndo de onde estava, fechou os olhos e se jogou no abismo.
Aman abriu olhos.
— Estou vivo! – exclamou a si mesmo surpreso por não ter morrido naquele abismo.
Mais uma vez ele estava em outro mundo. Observou ao redor como de praxe, a sua volta tudo sombrio, casas enfileiradas, de madeira e tetos de palha, era um vilarejo simples. Ao se aproximar logo avistou pessoas estranhas passando, usavam mantos e capuzes na cabeça. Evitavam mostrar o rosto e não se importavam com a presença de Aman ali.
Percebeu que o rosto dos homens e mulheres era envelhecido e muito enrugado. Além de tudo carregavam em sua face uma expressão de infelicidade.
Mais adiante, Aman contemplou algo que o deixou paralisado de emoção, seus olhos arregalaram de espanto e até abriu a boca. Em toda a sua vida nada o impressionara tanto. Ele esfregou os olhos para ter certeza de que aquilo que estava vendo era verdade.
Uma mulher usando um vestido simples, mas extremamente linda estava diante de Aman debruçada na beira de um poço. Os cabelos dela eram lisos, compridos, negros e brilhantes como a noite de céu estrelado. Seus olhos eram azuis de cristal tal qual o azul dos límpidos mares, e sua pele branca e macia como as plumas mais belas.
Aman se aproximou devagar, ainda trêmulo de admiração. Percebendo o seu espanto a mulher perguntou:
— O que há, senhor? Eu sei, está espantado por ver como sou feia e diferente de todos aqui. Já estou acostumada. Sei que sou estranha e horrorosa – ela afirmou convencida do que dizia.
— Horrorosa? Você é a mais mulher mais linda que já vi em toda a minha vida. Seus cabelos negros brilham como a noite de céu estrelado – Aman declarou quase sem fala.
— Desculpe, senhor, mas sei que sou uma aberração. Não me pareço nem um pouco com as pessoas normais que vivem aqui – ela insistiu.
— É claro que não parece, as pessoas aqui são velhas e enrugadas, você é simplesmente bela. Por que se acha horrorosa, quem lhe disse isso?
— Ninguém me disse, e nem precisa, me sinto assim. Basta me olhar no espelho e já vejo tudo.
— Você parece ser tão triste. Por que se sente inferior? Até agora você é a pessoa mais normal que vi nesse lugar. E a propósito que lugar é esse?
— Aqui é Ninrode. A maioria dos habitantes daqui são bruxos e bruxas. Oh! Se ao menos eu pudesse voltar para o meu reino talvez eu fosse mais feliz.
— Que reino? – ele perguntou curioso.
— Eu também não sou daqui. Sou filha de um rei de um reino distante. Eu era um bebê quando um grupo de bruxos e bruxas me roubou dos meus pais, por vingança. Ouço falarem sobre essa história entre si desde que eu era criança. Eles pensam que eu não sei de nada, mas nunca tiveram cuidado em manter essa verdade bem longe dos meus ouvidos. Sei também que meu nome verdadeiro é Colobe. Eles me tratam como uma serviçal. Trabalhar para eles em troca de nada é só o que faço. Pobre papai! Deve ter me procurado, mas nunca me encontrou – revelou – se.
— Então você é uma princesa! E por que ainda não foi embora daqui em busca do seu reino?
— Ainda não tive ânimo nem coragem. Além de tudo eu nem sei o caminho. Sou tão diferente! – a princesa justificou sua confirmação.
— Princesa Colobe, eu posso levá-la de volta ao seu reino.
— Eu agradeço, mas como disse, não conheço o caminho, não sei onde é esse reino nem mesmo seu nome – ela ressaltou.
— Não há problema. Nós o encontraremos, precisamos primeiro sair deste vilarejo horrível – Aman tentou convencê-la.
Dias se passaram até que a princesa Colobe decidisse aceitar conduzida por Aman até seu reino natal. A linda princesa estava tão acostumada com sua vida oprimida que tinha medo de ir embora e se libertar e ser quem era de verdade, a filha de um rei.
Com dificuldade Aman conseguiu convencê-la, marcaram a partida para a madrugada.
Tudo escuro, ninguém por perto, o guerreiro perdido buscou Colobe que já o esperava próximo ao poço. A fuga foi tranquila, os bruxos quase não se importavam mais com a princesa, pois dela já haviam tirado tudo que queriam.
Aman e Colobe caminharam muito além de Ninrode até o fim daquela madrugada.
— Aceitei a sua ajuda, mas até agora não me disse o seu nome – Colobe quis saber.
— Não lembro o meu nome, nem mesmo de onde venho. Também estou à procura do meu lugar – Aman respondeu.
— Mas se não lembra o seu próprio nome nem mesmo de onde veio como poderá me ajudar a voltar para o meu reino?
— Apenas sinto que ao lhe ajudar encontrarei o meu destino.
— E o que é essa pedra verde que carrega no pescoço? Está pela metade.
— Não tenho certeza, porém essa pedra tem me fortalecido e cada vez que eu preciso de algo e olho pra ela sou guiado.
— Quanto mistério! Já que não lembra o seu nome vou chamá-lo de Jovem Guerreiro! O que acha? – ela sugeriu entusiasmada, sorriu, ele também lançou-lhe um sorriso.
— Gostei. É até superior à minha condição atual. – Ele sorriu mais uma vez.
Colobe cansou-se durante o trajeto. Eles haviam chegado a um lindo bosque.
— Jovem Guerreiro, podemos parar e descansar um pouco? Não sou tão forte assim – ela pediu.
— Sim, princesa. Descanse. Também me recostarei em uma árvore para repousar. Logo ali há um rio, depois podemos encher nossos cântaros.
— Lavarei o meu rosto.
Colobe lavou o rosto, se recostou em uma árvore próxima ao rio e dormiu. Aman também dormiu, dormiu seu primeiro sono depois de iniciar aquela nova jornada.
Eles caminharam por mais alguns dias na direção em que Aman sentia que deveriam ir.
Nada de especial aconteceu até aquele momento, sobre os ombros desses dois viajantes, que mal sabiam para onde ir, pesava a obrigação de apenas seguir em frente. E a beleza rara da princesa já não impressionava mais Aman.
Durante a caminhada, subitamente, Colobe sentiu uma forte dor no peito seguida de uma estranha tontura. Com as mãos no coração ela caiu de joelhos no chão.
— Princesa! Você está bem? – o Jovem Guerreiro perguntou assustado, tentando erguê-la.
— Sinto uma dor no coração. Veio de repente. Uma tontura atormentou minha cabeça. Eu sei, foram eles, os bruxos. Certamente com raiva por eu ter me libertado eles lançaram alguma maldição sobre mim – Colobe disse sussurrando.
Ela ainda estava de joelhos quando Aman inclinou-se diante dela e disse:
— Princesa, olhe pra mim.
Ela ergueu a cabeça com lágrimas nos olhos e o encarou.
— Colobe, esqueça os bruxos, porque eles nem se lembram mais de você – Aman a aconselhou, colocou o Urim-Tumim no coração dela por alguns instantes.
— A dor passou. – Ela respirou fundo de alívio.
— Princesa Colobe, você é forte. Descansaremos um pouco mais e depois continuaremos nossa jornada – ele disse, levantando-a pelo braço.
Sim, tudo bem. – Ela recostou-se em uma árvore.
Os dias foram difíceis para Aman e a princesa. Quando já tinham quase certeza que não chegariam a reino algum avistaram uma linda cidade adiante.
— Princesa Colobe, encontramos o seu reino! Está logo ali! – Aman exclamou contente.
— Não seja tão otimista, Jovem Guerreiro. O que faz você acreditar que aquele lugar é mesmo o meu reino? – interrogou descrente.
— Não poderíamos ter seguido em frente por tanto tempo sem chegar a lugar nenhum! – Aman respondeu confiante.
Ao adentrarem a cidade Aman se surpreendeu com a beleza das pessoas que lá viviam. Naquele lugar homens, mulheres e crianças eram infinitamente belos tal qual Colobe. E a princesa também se surpreendeu, na verdade entrou em choque ao ver que existiam pessoas iguais a ela.
— Mas, essas pessoas, se parecem comigo! – exclamou espantada.
— Sim. Veja com seus olhos. Você não era a única a ser assim!
Aman abordou uma moça que passava:
— Moça, que lugar é esse?
— Aqui é o reino de Siblon – ela respondeu.
— Jovem Guerreiro, vamos parar um pouco para descansar – a princesa pediu.
— Não, Colobe. Agora que finalmente chegamos vamos direto ao castelo falar com o rei. – Ele pegou na mão dela.
Caminharam mais alguns metros, Aman abordou um soldado que passava:
— Sou um jovem guerreiro e preciso falar com o rei.
Aman explicou tudo ao soldado que prontamente o levou até o rei que se chamava Mosias.
— Majestade, o jovem guerreiro está aqui – o soldado anunciou.
Aman entrou observando tudo ao seu redor. Diante do rei iniciaram a conversa:
— Então, o que tem a me dizer, jovem estrangeiro? – O rei Mosias estava curioso pra saber o que um rapaz estranho tinha a lhe dizer de tão importante.
Aman se aproximou mais do trono e disse:
— Gostaria de saber se Vossa Majestade é feliz.
— Que pergunta absurda! Que estranho se importaria em saber se um rei que mal conhece é feliz? Mas que seja. Se veio até aqui para saber isso terá a sua resposta. Eu não sou feliz.
Desde que um grupo de bruxos e bruxas roubou minha filha de mim não tive mais felicidade. E isso já faz vinte anos. – o rei respondeu irradiando tristeza no olhar.
— Então a partir de agora terá felicidade! Majestade, sou um viajante perdido e em um vilarejo de bruxos chamado Ninrode encontrei uma linda moça a qual faziam de serviçal. Ela me contou sua história e me disse que também não era de lá pois havia sido roubada quando criança de seus pais que eram reis. E disse ainda que seu nome verdadeiro é Colobe mas que não sabia o nome de seu reino nem o caminho pra chegar até ele. Eu trouxe sua filha de volta – Aman disse contente por ter tornado real a felicidade do rei.
— O que está me dizendo? Como posso acreditar em você? E como conseguiu chegar até aqui se nem sabia o nome do meu reino tampouco o caminho? – O rei estava desconfiado.
— Pra chegar até aqui segui o caminho que senti que era o correto e não o mais fácil. Confesso que durante o trajeto pensei em desistir ou mudar a direção porque estava muito cansado e pensava que não chegaria a lugar nenhum. A princesa também se sentiu assim. Estávamos quase descrentes quando finalmente encontramos o seu reino – explicou. – Majestade, veja você mesmo, tragam Colobe até aqui.
Os soldados conduziram a princesa até o rei.
— Pai! Sou eu, Colobe! – Ela se revelou.
Ao ver o rosto e os olhos da princesa o rei Mosias reconheceu que ela era sua filha. Levantou-se do trono, aproximou-se dela, examinou seus ombros e constatou sua marca de nascença.
— Por todos os mundos! Você é minha filha Colobe! – ele exclamou, abraçou-a.
— Meu pai, é maravilhoso encontrá-lo de novo! – A princesa chorou de emoção.
Mas a princesa também teve uma grande tristeza em meio a toda essa alegria. Recebeu a notícia de que sua mãe faleceu já há dez anos, ela morreu acreditando que Colobe voltaria algum dia.
Aman permaneceria em Siblon por mais sete dias até que acontecesse a grande festa de comemoração em agradecimento a ele.
— Jovem Guerreiro, gostaria de lhe recompensar por seus feitos entregando minha filha a você. Ela será sua esposa. E você um dia será o rei de Siblon – o rei Mosias lhe propôs.
— Sou imensamente grato por sua generosidade, rei Mosias. A princesa Colobe é uma mulher maravilhosa, mas eu não posso continuar aqui por muito tempo. Terei que ir embora conforme já havia explicado. – Aman desiludiu o rei.
— Entendo! Se é assim, o que posso fazer para lhe recompensar por ter devolvido a minha felicidade?
— Desejo apenas saber onde é a saída deste mundo. Depois da festa irei embora. Devo seguir o meu caminho de volta.
— Se é isso que você prefere, depois da festa lhe mostrarei um de nossos portais secretos – o rei prometeu.
Três dias se passaram. Aman estava na sacada do castelo admirando o reino quando Colobe se aproximou:
— Admirando o reino?
— Sim, princesa Colobe! É muito lindo esse lugar.
— Você parece muito pensativo. Algo especial?
— É que de vez em quando vem a imagem de um rosto em minha mente. É o rosto de uma mulher que não lembro quem é.
— Jovem Guerreiro, gostaria que você ficasse aqui comigo, poderá ter todo esse reino. Se você for embora acreditarei que sou mesmo feia. – A princesa expressou sua vontade.
Aman virou – se, os dois estavam frente a frente, afagando os cabelos da princesa e a olhando fixamente ele disse:
— Colobe, estou feliz por tê-la trazido de volta. Você e esse reino possuem uma beleza que desafiam qualquer descrição. Quando a vi pela primeira vez eu tremi. Pois jamais tinha visto uma beleza assim tão rara. Mas entenda, preciso voltar pra minha casa que não é aqui, sou de outro mundo. Nada mais justo, você também encontrou o seu lar. Sabe, se eu seguir a vontade da minha emoção ficaria aqui com você pra sempre, mas se eu seguir a voz da razão que fala alto em minha mente terei que ir embora a busca do meu lugar.
— E o que vai seguir? – Colobe perguntou triste e cabisbaixa.
— Seguirei a voz da razão!
— Mas durante toda nossa viagem pra cá você ouviu apenas o seu coração, o seu sentimento. Por que agora tem que ouvir a razão?
— Sim, é verdade, muitas vezes sou guiado apenas pelo sentimento e emoção, mas isso somente quando não conheço o caminho. Agora sei que devo partir e que há uma saída. As coisas nem sempre são do jeito que nós queremos. A vida é assim, às vezes a voz da emoção e tantas outras a voz da razão – ele justificou sua decisão.
Colobe se retirou aflita e passou os dias seguintes chorando, trancada no quarto. Ela não se levantou nem mesmo para a refeição matinal. À mesa o rei a esperava e Aman também. Percebendo sua ausência o guerreiro questionou:
— Onde está Colobe?
— Ela está trancada no quarto e disse que não sairá de lá até que você vá embora. Lamento, Jovem Guerreiro, que minha filha esteja sofrendo por você – o rei esclareceu.
— Rei Mosias, lamento que ela esteja reagindo assim.
— A Colobe o ama e você sabe disso. Passaram dias e dias viajando juntos. Ponha – se no lugar dela. E não estou dizendo isso porque ela é minha filha.
— Está certo, vou falar com ela. – Aman levantou-se da mesa.
Ele bateu à porta, pediu permissão e entrou no quarto de Colobe. Aman deparou-se com ela em prantos, debruçada na cama.
— Princesa Colobe, por que está chorando? Não fique assim. – Ele sentou-se ao lado dela.
— A verdade é que não eu conseguirei viver sem você, Jovem Guerreiro. – A pobre donzela derramou seu pranto.
— Você está errada, conseguirá sim. E já conseguiu, você viveu por tantos anos na condição de serviçal sem sua família, longe do seu reino, com pessoas estranhas que lhe oprimiam. Agora que de fato é uma princesa, está junto de seu pai e cercada por aqueles que te amam conseguirá mais ainda viver e ser feliz. Você está melhor do que antes, não se apegue a mim, agora que você é livre não seja escrava de si mesma, não seja escrava de um sentimento mais uma vez. – Aman tentou abrir os olhos dela.
— Você está dizendo a verdade, mas acontece que antes eu não te conhecia.
— Por favor, não sofra. Pense bem, se você viveu tanto tempo com aqueles bruxos, conformada em ser apenas uma serva e sem vontade de ir embora, com certeza suportará viver sem mim.
Aman abraçou Colobe que não parava de chorar, suas lágrimas molharam os ombros do guerreiro.
A grande festa de comemoração do rei foi inesquecível. Apesar da tristeza da princesa em saber que seu amado iria embora ela fez questão de aproveitar o máximo possível a companhia de Aman enquanto ainda era tempo.
No começo da festa Colobe ainda estava cabisbaixa em um canto, enquanto todos dançavam alegres no meio do grande salão. Ao vê-la, Aman se aproximou:
— Princesa Colobe, quer dançar comigo? – ele pediu estendendo suas mãos para ela e sorrindo.
— Danço hoje com você e amanhã não estará mais aqui, pra que dançar? – ela respondeu com um olhar triste.
— Ao menos terá uma boa lembrança! – Aman insistiu.
Pela primeira vez a princesa Colobe sorriu de verdade, ela pegou nas mãos do Jovem Guerreiro e assim os dois dançaram juntos até a festa acabar.
Foram para a sacada do palácio e conversaram:
— Jovem Guerreiro, hoje foi a noite mais linda da minha vida, e a mais divertida também. Obrigada pela bela lembrança que jamais se apagará da minha mente.
— Eu que sou grato por ter te conhecido e chegado até aqui. Toda vez que eu olhar para o céu noturno repleto de estrelas vou me lembrar dos seus cabelos negros e brilhantes – Aman disse enquanto afagava os cabelos de Colobe, ele sorriu e abraçou sua amada.
No dia seguinte, conforme o trato, o rei Mosias levou Aman até um dos portais dimensionais.
— Aqui está, jovem Guerreiro, este é o portal, depois que eu fizer os sinais você pode atravessá-lo – o rei Mosias explicou-lhe.
— Por que não segue a vontade do seu coração, Jovem Guerreiro? Ainda há tempo – Colobe insistiu.
— Muitas vezes a nossa vontade nem sempre é o melhor para nós, princesa Colobe. Adeus! – Aman afirmou.
— Estarei sempre triste ao me lembrar de você – a princesa disse a Aman em uma última tentativa de comovê-lo.
— Não fique triste quando se lembrar de mim, Colobe. Mas seja feliz por saber que eu serei feliz em seguir o meu caminho e voltar pra minha casa, adeus! Adeus, rei Mosias! – o Jovem Guerreiro despediu-se pela última vez.
— Adeus, mais uma vez lhe agradeço por tudo! – disse o rei Mosias fazendo os sinais.
Aman atravessou o portal.
Aman sequer tinha ideia de onde iria parar ao atravessar aquele portal. Ele acordou em uma cidade enorme e muito diferente de todas as outras pelas quais havia passado.
Ao seu redor havia carros voadores, altos prédio de metal, dessa vez se deparou mais com máquinas do que com seres humanos, percebeu que estava em um mundo mais evoluído que todos os outros.
As poucas pessoas que passavam pelo solo pavimentado, também de metal, usavam roupas prateadas, douradas ou coloridas, tudo parecia o futuro de um mundo mais tecnológico e menos mágico.
Sem muitas alternativas ele entrou em um dos prédios e procurou informações. Pessoas circulavam no interior do prédio que parecia ser um local de comércio e entretenimento, coisa que não existia em Gadianton. Aman abordou logo de início uma moça que passava.
— Moça, com licença, poderia me dizer que lugar é esse?
— O quê? Não me diga que você é mais um sujeito perdido vindo das dimensões vizinhas! – A moça estava sorridente.
— Sim, mas por que mais um? Já sei, não sou o primeiro.
— E nem poderia. Mas seja bem-vindo à Moronia, o lugar mais evoluído tecnologicamente do que qualquer outro que você já passou, eu tenho certeza – ela afirmou com orgulho. – E então, você fala o nosso idioma! Isso é incrível! Os outros perdidos não falavam não! Comunicavam- se por gestos até aprenderem algo.
— Em cada mundo que entro falo o idioma próprio do lugar. Não sei ao certo como isso é possível. Apenas acredito que essa pedra verde que carrego comigo permite que eu consiga fazer isso – ele explicou.
— Você é muito especial, e pelo que percebo está sem memória.
— Sim, não lembro nem mesmo o meu próprio nome. Fui lançado nas dimensões provavelmente por feiticeiros que além de tudo me fizeram esquecer até quem sou. No mundo anterior pelo qual passei eu era chamado de Jovem Guerreiro.
— Ora, Jovem Guerreiro, vou me apresentar, meu nome é Caroni. E já que você está aqui vou lhe mostrar tudo. Esse prédio é o nosso local de comprar coisas e nos divertirmos. Aqui tem salas de danças, jogos e simulações de voos espaciais, observe – Caroni disse-lhe mostrando tudo ao redor.
— É incrível, não vi nada disso em nenhum dos mundos que passei. – Ele estava admirado.
Caroni levou Aman para conhecer a cidade de carro. Ele se impressionava cada vez mais com as coisas que via. Em certo momento do passeio, ainda dentro do carro ele perguntou:
— Mas diga, Caroni, qual é o problema desse mundo?
— Por que essa pergunta? Estamos passeando, nos distraindo, não deveria pensar em problemas.
— Acontece que em cada mundo pelo qual passei as pessoas tinham um grande problema. E com certeza esse mundo também deve ter algum.
— Jovem Guerreiro, percebo você gosta mesmo dos problemas.
— Por que diz isso? Prefere fingir que eles não existem?
— Às vezes fingir é mais fácil – Caroni confessou enquanto sobrevoavam os edifícios - Bom, então respondendo a sua pergunta vou levá-lo agora mesmo até um lugar, e isso completará o nosso passeio.
Caroni parou o carro em frente a outro grande edifício.
— Vamos entrar, Jovem Guerreiro.
Saíram do carro e entraram no edifício. Passaram por alguns corredores e ela foi lhe explicando tudo.
— Jovem Guerreiro, observe as pessoas que estão deitadas nas camas dessas salas.
— Elas não me parecem muito bem.
— E não estão. Aqui é um lugar onde nossos médicos tratam as pessoas doentes – Caroni esclareceu.
— Entendo. Todas essas pessoas estão doentes. É visível.
— Nossa ciência é muito avançada e possuímos cura para praticamente todas as doenças. Ninguém fica aqui por mais que poucos dias.
— Então qual é o problema?
— O problema está na próxima sala. Veja você mesmo! – Caroni disse, parando em frente à outra sala.
Aman observou o interior da sala pela janela de vidro e sua face empalideceu de espanto.
— Que horror! Essas pessoas estão pior que todas as outras que vimos. Elas estão praticamente imóveis e quase desfiguradas. Que doença é essa? – ele perguntou horrorizado.
— E isso não é tudo, há mais salas repletas de pessoas nessa condição. Esse é nosso grande problema. Temos a cura para todas as doenças exceto para esta que é mais terrível de todas!
— Não sei o que dizer.
— Não diga nada. Todos nós estamos horrorizados com essa situação. O pior de tudo é saber que essa doença tem cura, mas não temos acesso a essa cura.
— Não entendi.
— Jovem Guerreiro, existe um cientista muito importante chamado Motray que trabalhava para o nosso governo pesquisando a cura para essa terrível doença. Ele sempre escrevia suas anotações e descobertas em código, um código que somente ele sabe.
— E que houve com esse cientista?
— Pouco antes do Motray descobrir a cura para essa doença o governo o acusou de crimes que ele não cometeu, e o expulsou de seu cargo. Ele foi muito humilhado e desonrado. Depois disso ele anunciou que havia enfim descoberto a cura, mas que por vingança não a revelaria a ninguém.
— Que coisa triste ser acusado de algo que não fez.
— Tempos após o ocorrido ficou provado Motray era inocente de todas as acusações, o governo lhe pediu desculpas e lhe ofereceu muito dinheiro para que revelasse a cura, mas ele não aceitou as desculpas e não revelou a cura. Está tudo escrito em código, nos registros do laboratório do governo, e até agora ninguém conseguiu decifrá-lo.
— E por isso as pessoas estão aqui morrendo com essa doença.
— Quem dera se elas morressem, mas essa doença não mata, apenas faz com que a pessoa sofra enquanto viver, sentindo dores e inválida na cama.
— Isso é asqueroso! E os médicos têm acesso a esse código?
— Sim, mas como eu disse, ninguém até agora conseguiu traduzi-lo. O código também tem o seu nome. É o Código de Motray! Ninguém foi capaz de convencê-lo de que as pessoas doentes não podem pagar pela injustiça que fizeram com ele. O governador pediu perdão e até renunciou ao seu cargo como forma de remissão. Porém nada adiantou. E o novo governador também já não tem mais esperanças.
— Caroni, isso é muito triste, de todos os mundos que passei este é o pior! – Aman afirmou convicto.
— Vamos até a minha casa. Lá conversaremos melhor sobre isso. Poderá também conhecer minha família – Caroni o convidou.
Eles sobrevoaram a cidade por mais alguns minutos até chegarem à casa de Caroni.
Ela estacionou dentro de um prédio enorme e muito alto onde cada carro era estacionado no andar onde seu dono morava. A casa de Caroni ficava no trecentésimo andar.
Aman ainda não estava muito acostumado com a tecnologia. Depois de passarem por alguns corredores finalmente chegaram à casa de Caroni.
— Oi, pai! Trouxe visita, é um amigo – ela anunciou.
— Uma visita! Quem é esse simpático rapaz? – seu pai a questionou.
— Esse aqui é o Jovem Guerreiro.
— Jovem Guerreiro, esse é meu pai Eartrom. – Ela apresentou-os.
— É um prazer conhecê-lo, senhor Eartrom.
— Seu nome é esse mesmo Jovem Guerreiro? – Eartrom quis saber.
— Bom, pai, na verdade ele não lembra o próprio nome, chamavam-no assim no mundo anterior onde ele estava. É um viajante perdido nas dimensões.
— Agora entendo. É mais um pobre amaldiçoado por algum feitiço. Existem muitos por aqui. E pra piorar está sem memória, você deve ter sido muito odiado por alguém em seu mundo! – Eartrom se apiedou de Aman.
— Mostrei-lhe a cidade e também o hospital – Caroni salientou.
— Pois não deveria minha filha, aquilo não é coisa pra se mostrar a um visitante – Eartrom reprovou a atitude da filha.
— Ora, não se preocupe senhor, não tenho medo da realidade – Aman ressaltou.
— Trouxe-o até aqui para que explique a ele tudo sobre o que está acontecendo aqui em Moronia. Tudo sobre a terrível doença. O Jovem Guerreiro se ofereceu para falar com o doutor Motray.
— O quê? Falar com aquele cientista sem coração? Muito nobre a sua intenção, rapaz, mas aquele homem não se compadece nem mesmo vendo as crianças semimortas na cama daquele hospital, tampouco dará ouvido a um desconhecido.
— Por que se sentem tão vencidos? Passei por três mundos anteriores a esse, todos tinham grandes problemas e com um pouco de coragem consegui solucioná-los, confesso que pra mim o mais cruel é esse, porém não o mais difícil de ser resolvido. Quero conversar com esse cientista e convencê-lo de que a misericórdia é mais importante do que a honra. O senhor poderia me levar até lá? – Aman insistiu.
Entreolharam-se, Eartrom não acreditava que aquele pobre jovem amaldiçoado e aparentemente incapaz convenceria o nobre cientista sem coração a revelar a cura para salvar a vida dos doentes.
— Estou perplexo, mas se faz tanta questão disso, amanhã mesmo posso levá-lo de carro até a casa do doutor Motray. Ele mora isolado no alto de uma montanha. Inclusive ele é um dos homens mais ricos aqui em Moronia, sempre foi um célebre cientista, pelo menos até a ocorrência desses fatos. Mas me diga, pretende ir embora daqui?
— Sim, senhor Eartrom, logo que a cura for revelada. Caroni me falou a respeito dos portais.
— De fato, temos portais vigiados e guardados por nosso exército, para ir embora você terá que falar com o governador.
— Que assim seja – Aman concordou.
Aman tinha certeza de que poderia convencer Motray a revelar a cura. Por isso se preparou para a grande e definitiva conversa que teriam. Naquela noite ele dormiu o verdadeiro sono do descanso, essa era a tranquilidade que sua autoconfiança lhe dava. Depois de ter lutado contra o terrível monstro na montanha e ter se jogado no abismo profundo, convencer um mero cientista parecia algo tão simples.
Ao chegarem ao topo da montanha Aman contemplou a mansão do cientista Motray. Era mesmo muito linda aquela casa, parecia ser feita de pedra.
— Chegamos, essa é a casa. Espero você aqui. Boa sorte – disse Eartrom.
— Terei uma conversa sincera com esse cientista – disse Aman corajosamente, indo em direção à porta.
Ele apertou o que presumiu ser a campainha da casa. Um sujeito usando um tipo de uniforme abriu a porta, era um empregado. Em um tom meio antipático questionou:
— Quem é você e o que quer aqui?
— Eu sou o Jovem Guerreiro, gostaria de falar com o doutor Motray.
— Infelizmente não será possível. O doutor Motray está ocupado agora. E se for mais um daqueles agentes contratos pelo governo pra tentar convencer o doutor a revelar a cura desista, já lhe adianto que ele não te ouvirá.
— Não, não sou nenhum agente do governo. Aliás, o governador nem sabe que estou aqui, nem mesmo conheço o governador – Aman esclareceu.
— Então, o que quer?
— Quero apenas conversar com o doutor – arriscou.
— Tudo bem, aguarde aqui fora enquanto aviso o doutor sobre sua presença – o empregado disse, se retirando.
Minutos depois ele retornou, abriu a porta e declarou:
— O doutor Motray permitiu a sua entrada, mas alertou que você deve ser breve.
— Obrigado – agradeceu.
— Me acompanhe, o levarei até a sua sala.
— Sim. – Acompanhou-o esperançoso.
O doutor o aguardava em sua magnífica sala sentado em sua poltrona. A primeira vista Aman assustou-se pela aparência mal humorada do cientista.
— Então, o que você quer? – o doutor perguntou.
— Serei breve e direto, venho lhe pedir que decifre o código e revele a cura.
— Eu sabia que era só mais um agente do governo! Fora da minha casa! – o doutor exclamou exaltado.
— Não doutor! Não sou agente do governo! Nem mesmo sou deste mundo! Sou um ser perdido nas dimensões e não lembro meu próprio nome – Aman declarou, ficou cabisbaixo ao relembrar de sua condição.
— Se não é deste mundo porque se envolve nessa história?
— Doutor, esse é o quarto mundo por que passo, em todos os outros encontrei problemas muito difíceis de serem resolvidos, para chegar aqui tive até que me jogar num abismo horroroso, mas ainda assim nenhum deles é tão cruel quanto o mal que aflige este mundo.
— Entendo, abismos costumam ser portais para outros mundos e dimensões, a grande saída para os perdidos iguais a você. Ainda assim não pense que me comoverá com sua exemplar experiência de superação. Não revelarei a cura nem mesmo se eu sofresse com essa doença. Até porque isso jamais acontecerá, e se acontecer não há problemas, eu sei a cura, que inclusive é muito simples – Motray afirmou.
— Sabe doutor, confesso que aqui em Moronia estou diante do caso mais ridículo e ao mesmo tempo mais absurdo. Não acha que é muito orgulho da sua parte? Não acha que é muito egoísmo sacrificar a vida de adultos e crianças inocentes só por causa de uma injustiça que você sofreu? – Aman o questionou.
— Escute aqui, jovenzinho, acha pouco ser chamado de ladrão e acusado de um crime que não cometeu, pelo seu próprio governador diante de toda a nação, e por isso perder seu cargo e sua honra e ser entregue ao desprezo público? Não você não sabe o que é isso.
— Mas o ex-governador lhe pediu desculpas e declarou sua inocência perante todos, e até renunciou ao posto de governador. Pelo que ouço até hoje ele é um homem amargamente arrependido, e também não era pra menos, por causa da injustiça dele hoje seu povo sofre.
— Se tudo fosse tão simples assim. O pedido de desculpas do ex-governador jamais apagará toda desonra e humilhação que passei, não enxugará as lágrimas que derramei sozinho quando todos apontavam pra mim e diziam “Vejam, ali está o homem corrupto!” Sempre fui fiel ao governador e foi assim que ele me retribuiu, com calúnias. Por isso jamais me rebaixarei novamente, nem por todo dinheiro desse mundo! – Motray estava firme em sua convicção.
— Mas isso não será se rebaixar. Não entende que nesse caso a misericórdia é mais importante do que a honra e do que a justiça? Lembre-se das pessoas agonizando aos poucos sem a esperança de pelos morrerem pra terem findada a sua dor – Aman argumentou.
O doutor Motray ficou calado, houve um instante de silêncio, até que ele se manifestou:
— Está certo! Revelarei a cura, mas somente com uma condição.
— E qual é a condição?
— Revelarei a cura se o ex-governador vier até aqui e de joelhos implorar a minha misericórdia. Ainda terá que gravar isso e se autodeclarar inútil! – o doutor propôs.
— Isso que está pedindo é um absurdo!
— Esta é minha condição! Se ele quer tanto a cura diga a ele que venha até aqui e faça isso – sentenciou.
Aman saiu totalmente decepcionado daquela mansão. Sua certeza de que convenceria o doutor a revelar a cura foi totalmente destruída pela realidade, sentiu que sua conversa foi inútil. Dentro do carro, a caminho da casa de Eartrom contou-lhe tudo o que havia conversado com o doutor, inclusive sua proposta absurda.
— E então Jovem Guerreiro, está decidido a falar com o ex – governador sobre a proposta do doutor Motray?
— Sim, embora não acredite nem um pouco que o ex-governador vá aceitar – respondeu cabisbaixo.
— Não fique triste, você fez o que pôde e inclusive foi o que chegou mais perto de conseguir, Jovem Guerreiro – Eartrom o consolou.
— É verdade. Não fique triste, Jovem Guerreiro! Já sei! Tive uma grande ideia! Vamos passear um pouco pela cidade! Vamos até aquele edifício que você adorou para nos divertirmos. Papai, vou pegar o carro! – Caroni sugeriu animada, puxando Aman pelo braço.
— Sim, filha, se é para uma boa causa, leve – o para se distrair! – Eartrom concordou.
Aman apenas sorriu e acompanhou Caroni.
Dois dias depois ele foi levado por Eartrom até a casa do ex-governador. O prédio em que ele morava era enorme, mais ou menos uns quatrocentos andares. Ao chegar lá Aman fez o que sempre esteve acostumado a fazer desde que fora lançado nas dimensões, bateu à porta, tocou a campainha.
Dessa vez uma mulher usando um daqueles uniformes o recepcionou:
— O que deseja?
— Desejo falar com o ex-governador.
— É algum desses repórteres? Se for ele não falará com você.
— Não, não sou nenhum repórter. Diga a ele que sou um jovem peregrino que precisa de uma resposta para uma pergunta simples.
— Tudo bem, vou avisá-lo. Espere aqui.
Para a surpresa de Aman alguns minutos depois o próprio ex-governador veio ao seu encontro.
— Pelo que vejo você não é nenhum repórter. Entre – o ex-governador o chamou.
Aman entrou, enfim estava frente a frente com quem talvez aceitasse estabelecer o fim do sofrimento de centenas de pessoas.
— Então, quem é você e o que quer aqui? – perguntou.
— Venho para lhe dizer que o grande milagre que todos esperam está em suas mãos, senhor ex-governador.
— O que está dizendo?
— Sou um viajante perdido nas dimensões, e, além disso, perdi minha memória, não lembro nem meu próprio nome. Quando cheguei a este mundo me surpreendi com toda essa tecnologia que vocês têm. Mas logo fiquei horrorizado quando vi a crueldade que está acontecendo.
— Que crueldade?
— Aquelas pessoas doentes, agonizando sem poder contar com o alívio da morte, e seus médicos desesperados tentando decifrar o código no qual está a cura – Aman expressou sua indignação.
— Oh, não! Essa história de novo não! – gritou o ex-governador angustiado.
— Indignado decidi ir até o cientista Motray pra tentar convencê-lo a revelar a cura. Ele é um homem muito severo. Depois de tanto insistir ele propôs o seguinte, se você for até ele, implorar misericórdia de joelhos e se autodeclarar inútil ele revelará a cura, e ainda tudo deverá ser gravado. E então, fará isso? – disse já cansado.
— Você não pode estar falando a verdade! Já estou sendo torturado demais com o arrependimento, ele ainda quer que eu me humilhe dessa forma? Não! Jamais farei isso! – exclamou relutante.
— E todas aquelas pessoas sofrendo? A cura delas agora só depende de você! Não entende que nesse caso a misericórdia é mais importante do que a honra do que a justiça?
— A única coisa que sei é que não quero nunca mais nem chegar perto daquele cientista.
— Mas pense bem, foi você que cometeu a injustiça contra ele.
— Não quero mais falar sobre isso! Saia já da minha casa! – o ex-governador gritou furioso.
Aman saiu de lá arrasado, entrou no carro de cabeça baixa e ficou mudo, estava sem palavras.
— E então? – perguntou Eartrom.
— Ele me tratou pior que o doutor – Aman respondeu cabisbaixo e com lágrimas nos olhos.
— Bom, agora só lhe resta pedir permissão ao governador para atravessar o portal e seguir o seu caminho. Acredito que amanhã mesmo se quiser podemos ir até o prédio do governo. Estarei com você lá, posso testemunhar sua situação. – Eartrom sugeriu enquanto dirigia.
— Sim, obrigado – agradeceu com voz fraca.
Dois dias depois lá estava Aman indo para ao prédio do governo acompanhado por Eartrom que notou o Jovem Guerreiro muito pensativo durante o trajeto. Eartrom falava, mas parecia que Aman estava com sua cabeça em outro lugar:
— Anime-se, Jovem Guerreiro, entrei em contato com o conselho do governo e expliquei sua situação a eles, já devem estar nos esperando, logo poderá atravessar o portal e seguir o seu caminho! Está me ouvindo? – perguntou num tom mais alto enquanto dirigia o carro.
Aman chacoalhou a cabeça como quem acabara de acordar:
— Oh! Sim!
Ao entrarem na sala do governador todos os esperavam.
— Então é você o guerreiro perdido?
— Sim, sou eu.
— E pelo que disseram você deseja permissão para atravessar o portal e tentar chegar de volta ao seu mundo, não é mesmo?
— Sim.
— Bom, pelas informações que recebemos este é o quarto mundo pelo qual passa, e esta é uma sequência de seis mundos paralelos. Isso significa que para chegar de volta ao seu mundo faltam apenas dois mundos. Porém lhe avisamos logo que talvez um desses mundos pelos quais ainda vá passar pode não haver saída. Tem certeza que quer se arriscar? – disse um dos conselheiros do Governador.
— Desejo mesmo atravessar o portal e seguir em frente, porém antes quero falar com o governador – Aman declarou com ousadia.
— E o que quer falar com o governador?
— Como eu já disse, é com o governador que eu quero falar.
— Pois então fale, eu estou aqui – autorizou o governador, entrando de surpresa na sala. – Diga logo o que tem a me dizer, estou lhe escutando.
Todos entreolharam-se espantados, houve silêncio por alguns instantes, e todos se perguntavam o que um jovem perdido e sem muita esperança teria para falar com alguém tão importante tal qual o governador.
— Senhor governador, quando cheguei a este mundo me surpreendi com toda a sua tecnologia, principalmente com os carros que voam. Toda a sua evolução me deixou admirado.
— Fico feliz em saber.
— Porém quando fui ao grande edifício onde tratam os doentes e conheci o terrível relato sobre a doença que vos assola e o a história do cientista injustiçado me entristeci e até confessei que de todos os mundos pelos quais passei este é o pior.
— Infelizmente coisas ruins acontecem quando menos esperamos.
— Decidi falar com o doutor Motray para tentar convencê-lo de que nesse caso a misericórdia é mais importante do que a honra e do que a justiça. Ele até me escutou e fez uma proposta, ele disse que se o ex-governador fosse até a casa dele, se ajoelhasse a seus pés implorando misericórdia e se autodeclarasse inútil ele revelaria a cura pela qual todos anseiam. Ainda exigiu que tudo fosse gravado.
— E ele nem te escutou, não é mesmo?
— Fui até o ex-governador, expliquei a situação e a proposta do doutor. Disse ainda que agora a cura desse mal estava em suas mãos. Falei sobre a misericórdia, mas ele reforçou que jamais fará tal coisa humilhante e pior, me expulsou aos gritos de sua casa. Senhor governador, diante de tais fatos estou aqui para lhe dizer que eu traduzirei o código de Motray. – Aman mostrou sua força.
Houve mais um instante de silêncio, não podiam acreditar nas palavras de Aman, parecia mais uma piada. Ele queria traduzir o código, mas riram dele.
— Você é cientista? – o governador lhe perguntou.
— Eu nem sei quem sou. Mas sinto que posso fazer isso – Aman respondeu.
— Jovem Guerreiro, não lembra seu próprio nome! – Eartrom comentou.
— Não sou cientista e de fato não lembro nem próprio nome. Mas insisto em tentar traduzir o código.
— Se não é cientista, e nem lembra seu próprio nome como pretende traduzir o código? Nem conhece nosso idioma. Caro Jovem, tem minha permissão para atravessar o portal e seguir adiante até seu mundo. É muito nobre a sua intenção, porém sabemos que você não será capaz de traduzir o código de Motray. Temos uma equipe de médicos que já estão tentando fazer isso. - salientou o governador.
— Não percebem? Eu não conheço o idioma de vocês, porém estou falando e todos estão entendendo o que eu falo e também estou entendendo vocês. Isso também aconteceu em todos os mundos pelos quais passei. Caroni me disse que os outros viajantes perdidos nas dimensões nunca conseguiram se comunicar com vocês por palavras, apenas por gestos. Veja essa pedra verde em meu pescoço. Sinto que ela é a responsável por toda ajuda que recebo, por isso acredito que eu posso traduzir o código. Senhor governador, apenas permita que eu tente fazê-lo.
O governador pensou, pensou, e decidiu permitir que Aman traduzisse o código, não porque acreditasse que Aman era capaz, mas sim para mostrar a Aman que ele não conseguiria:
— Está certo, há uma sala aqui na qual você poderá ficar enquanto tenta traduzir o código, lhe entregarei uma cópia dos escritos.
— Jovem Guerreiro, e se você não conseguir? Vai se sentir fracassado – Eartrom o alertou.
— E se eu não tentar me sentirei um covarde! – o guerreiro desacreditado respondeu com bravura.
Aman se preparou durante sete dias seguidos para realizar a tradução, nesse tempo conheceu e estudou o alfabeto de Moronia. E nos quinze dias seguintes iniciou a tradução do código.
Ele sentou-se a mesa, abriu o livro com os escritos do doutor Motray e se deparou com muitas páginas repletas de símbolos estranhos, os quais nunca tinha visto antes. Colocou umas folhas ao lado do livro nas quais transcreveria a tradução do código no idioma de Moronia.
Fixou os olhos nos códigos, pegou o Urim-Tumim e lentamente passou a pedra sobre os símbolos. Conforme fazia isso os significados vinham-lhe à mente. Aman fez isso por quinze dias e finalmente conseguiu traduzir o código. Houve momentos em que parecia que os significados não chegariam, porém ao tentar novamente ele sempre conseguia.
Com toda a honra e paz na alma Aman entregou a tradução do código ao governador que por sua vez entregou aos médicos que então confirmaram que a cura havia sido descoberta, ou melhor, havia sido desvendada.
Aquele jovem perdido nas seis dimensões, sem memória, recebeu a gratidão do governador, mas pediu que o povo de Moronia não soubesse que foi ele o tradutor do código, e isso para evitar que os corações fragilizados o idolatrassem.
Depois de tudo Aman ainda passeou mais uma vez pela cidade no carro voador com Caroni que fez questão de levá-lo pra dançar no grande edifício de comércio e diversões. Moronia estava feliz agora e os doentes curados e livres de seu tormento.
Enfim chegou a hora de partir e atravessar o portal, Eartrom e Caroni o acompanharam até o local de partida, o local um campo enorme vigiado por soldados do governo.
— Eartrom, Caroni, agradeço muito por tudo que fizeram por mim, principalmente a você Caroni pelos nossos passeios e danças – agradeceu Aman diante do portal, todos sorriram.
— Não precisa agradecer, Aman, foi muito divertido, não vou esquecer aquele seu passo de dança balançando pé pra trás! Vou contar um segredo, estou amando estar aqui, sempre quis ver de perto um portal se abrir! – Caroni demonstrou sua alegria em palavras.
— Eu é que agradeço a você, Jovem Guerreiro, por tudo que fez por nós e por tudo que me ensinou. Agora tenho certeza que você encontrará o seu mundo. Adeus! – Eartrom agradeceu o abraçando.
— Adeus! – disse Aman mais uma vez.
— Adeus! – todos disseram.
Após a despedida o portal foi aberto pelos soldados e Aman atravessou-o.
Quando chegou ao novo mundo Aman caminhou por uma estrada de Terra durante alguns dias. Aquele era um lugar muito parecido com o primeiro mundo onde esteve. Tudo normal, céu, árvores, rios e silêncio.
Demorou um pouco até que avistasse uma cidade. De sede ele não sofria, pois havia os rios, porém a fome e o cansaço lhe esmagavam o corpo. Sem mais alternativas entrou na cidade, parou a primeira pessoa que viu e perguntou com voz fraca:
— Por favor, poderia me dizer onde estou?
— Oh! Você está bem? Parece fraco, pelo que vejo não é daqui. Você está em Siavert – a mulher respondeu. – Eu me chamo Manti, e você?
— Sou o Jovem Guerreiro. Viajo perdido pelas dimensões em busca do meu mundo – explicou.
— Dimensões? Não sei nada sobre nenhuma outra dimensão, e também nada sei sobre qualquer outro mundo que não este onde estamos agora. Mas vejo que você não é daqui, que mesmo está perdido e muito cansado. Venha comigo, vamos até minha casa. Lá moram meu filho, meu marido Jarede, meu sobrinho Helaman e sua mãe Zarctra, talvez algum deles possam te ajudar – Manti o convidou, comovida com a situação daquele pobre andarilho.
De tanta fome e cansaço Aman não disse nada, apenas acompanhou Manti até sua casa. Ele foi bem recebido, e ao redor da mesa na qual também estava Helaman, o Jovem Guerreiro contou sua história desde o momento em que tinha lembrança e concluiu:
— Enfim, sou um ser perdido, preciso encontrar algum portal que seja a saída deste lugar e seguir o meu caminho até encontrar o meu mundo.
— Jovem Guerreiro, se ainda não sabe pra onde ir podemos hospedá–lo aqui em nossa casa até decidir o que fará. No entanto eu nunca ouvi falar sobre uma saída neste mundo tampouco sobre portais. Também não conhecemos ninguém que saiba. Por isso tenho certeza de que a saída que você procura não existe! – Jarede afirmou convicto.
Ao ouvir essas palavras desalentadoras Aman abaixou a cabeça de tanta tristeza, saiu daquela casa e passou horas sentado, meditando à beira do rio.
Helaman o procurou por toda a parte até encontrá-lo lá:
— Então está aí, Guerreiro Perdido! Está triste porque a saída que procura não existe? Eu lamento, mas essa é a realidade – Helaman disse, aproximando-se.
— Na verdade, eu já sabia dessa possibilidade. No mundo anterior em que eu estava fui avisado de que provavelmente aqui eu não encontraria nenhuma saída pela qual eu pudesse seguir em frente em meu caminho – Aman contou – lhe.
— Então, por que veio pra cá?
— Não sei direito. Apenas sinto que preciso seguir em frente mesmo sem saída nenhuma – o Jovem Guerreiro afirmou cabisbaixo.
— Sendo assim anime-se! Se você acredita que isso pode mudar então não há problemas. Venha, vamos pra casa, não esteja aqui sozinho – Helaman tentou confortá-lo.
Os dias que se seguiram foram difíceis para aquele Aman que sem saber o que faria por mais vezes passou horas chorando à beira do rio, e em um desses momentos teve uma conversa com Helaman:
— Engraçado, estou há alguns dias aqui e ainda não surgiu nenhum mal para que eu resolvesse – Aman questionou.
— Do que está falando? Não lhe é suficiente o mal que está sofrendo?
— É que em todos os mundos pelos quais passei solucionei problemas e males alheios. Por isso acho estranho que não haja nada aqui.
O semblante de Helaman mudou de repente, uma angústia súbita o dominou.
— O que você tem? Mudou o semblante!
— Você está certo, Jovem Guerreiro. Temos sim um grande mal que nos aflige aqui. Porém preferimos não comentar nada para que nossa dor não se torne maior – Helaman confessou.
— Algo relacionado com a morte de seu pai?
— Como sabe?
— Vejo em seus olhos. Além de tudo percebi que há grande tristeza no rosto de sua mãe.
— Aqui em Siavert existe um mal fatal que mata em algumas horas. Ocorre que não sabemos de onde provém esse mal. Foi por isso que meu pai morreu. Até hoje minha mãe não aceita esse fato. Isso acontece sempre com os trabalhadores do Vale dos Minérios e também com alguns que passam por lá. Meu pai era um minerador. Um dia, de repente, depois de chegar do trabalho ele passou muito mal, adoeceu e morreu. Nossos maiores sábios já foram até o vale, mas não encontraram nada de errado por lá – Helaman esclareceu.
— Pelo que entendi não são todos que adoecem ao voltar do vale, não é mesmo? – Aman perguntou com ar de investigação.
— Sim, não são todos. Inclusive alguns trabalham lá há anos e nunca sofreram com nenhum mal.
— Me leve até o vale. Quero conhecê-lo – Aman pediu inspirado.
— Sim. Vamos agora mesmo. – Helaman levantou enérgico como que desejoso de cumprir uma ordem.
Ao chegarem ao Vale dos Minérios, Aman observou tudo com atenção. Durante horas analisou as ações dos trabalhadores e das pessoas que por lá passavam. Porém não conseguiu encontrar nada de errado. Tudo parecia estar perfeitamente tranquilo e dentro de sua própria ordem.
Mais adiante havia um manancial e o Jovem Guerreiro notou que alguns trabalhadores quando paravam para descansar saciavam sua sede com a água daquele manancial, outros trabalhadores não, pois já traziam sua própria água em botijas. Porém a princípio esse fato não lhe chamara muita atenção.
— Helaman, não parece haver nada de errado por aqui. Inclusive esse lugar é muito bonito. Vamos descansar um pouco, me espere aqui, vou até o manancial encher meu cântaro.
Ao se aproximar do manancial Aman exclamou surpreso:
— Oh! Essa água é a mais límpida que já vi!
O manancial transmitia um frescor e tranquilidade, sua água era límpida demais. Aman encheu sua botija com água e foi descansar recostado em uma árvore.
Aparentemente tudo estava em paz, Aman e Helaman tiveram um sono tranquilo debaixo das árvores enormes. Ao despertar, o Jovem Guerreiro sentiu sede. Quando aproximou sua boca de seu cântaro para beber a água sentiu um odor fétido e assustou - se. Mas pior que aquele odor fétido foi o que ele viu enquanto despejava toda a água no chão.
Ele gritou, gritou de desespero, aquela água límpida retirada do manancial se tornou escura, totalmente suja e cheia de bichos. Naquele mesmo instante ele correu de volta ao manancial encheu suas mãos com aquela água aparentemente límpida, aguardou alguns segundos, e bem diante de seus olhos a água daquele maravilhoso manancial se tornou tão escura quanto uma tempestade violenta e tão suja e fedorenta quanto um depósito de carniça com bichos. Helaman estava acordando, ainda deitado a alguns metros, quando Aman o chamou gritando:
Helaman, corra! Venha até aqui!
Ao seu lado seu amigo foi testemunha:
— Helaman, veja com seus próprios olhos a causa da morte de seu pai e dos trabalhadores deste vale. É a água deste manancial tão escura e tão podre, que eu quase bebi sem saber. Parece limpa, mas na verdade é suja e cheia de bichos. Os mineradores que vimos beber dela hoje com certeza serão os próximos a morrer. Ela só tem aparência de pureza, mas é tão podre feito um monte de carniça – Aman exclamou abismado.
— Sim, Jovem Guerreiro, estou vendo e quase não acredito! Certamente eles bebem-na sem perceber de sua imundície, pois possui essa aparência justamente para iludir os que têm sede. Precisamos avisar a todos que não bebam mais dessa água! – exclamou espantado.
Aman e Helaman comunicaram sua grande descoberta a todos os habitantes de Siavert, e também aos sábios e governadores. Assim todos puderam viver em paz, ao menos com suas almas livres da dúvida que os escravizava.
O tempo passou tão rápido em Siavert. Já alguns dias sem ver Helaman, o Jovem Guerreiro decidiu visitar o amigo. Mas ao chegar a casa dele deparou – se com a senhora Zarctra, mãe de Helaman, chorando sentada em uma pedra.
— Senhora Zarctra, por que está chorando? – perguntou comovido.
Ela ergueu a cabeça com a face lavada em lágrimas de angústia e disse:
— Jovem Guerreiro, tenho vergonha de dizer – afirmou abaixando a cabeça novamente.
— Não tenha vergonha, nem sofra sozinha, me diga, o que aconteceu?
— Você não vai acreditar. O Helaman bebeu a água daquele manancial e agora agoniza na cama, está entre a vida e a morte! E eu o alertei tanto sobre o perigo de se aproximar daquele manancial. E ele me dizia “Eu já sei”, “ Eu já sei”, mas parece que ele preferiu não me escutar.
— Senhora Zarctra, não lamente, nem se lastime por isso. O próprio Helaman junto comigo descobriu que aquela água era podre. E se isso aconteceu foi porque ele escolheu assim. Portanto tenha apenas sua consciência tranquila por ter feito a sua parte em relembrá-lo do que ele já sabia. Esteja em paz – ele a consolou, abraçou-a.
Aman pediu que Zarctra o acompanhasse até o leito de Helaman, diante do amigo quase morto na cama fez a pergunta:
— Meu amigo, o que você fez? Bebeu daquela água a qual você mesmo descobriu que é podre?
— Sim, mas se eu tivesse outra chance jamais teria feito isso. Eu sabia que era uma água podre e má, mesmo assim a bebi, pois ao passar por lá estava com sede e não pensei nas consequências. No entanto agora aprendi por minha própria experiência que errei! Meu amigo, me ajude! – Helaman rogou com voz agonizante.
Zarctra observava tudo chorando. Aman por sua vez tirou o Urim-Tumim de seu pescoço:
— Helaman, feche os olhos e respire fundo – ele pediu colocando a pedra verde na cabeça de Helaman que obedeceu a ordem. – Meu amigo, seja curado! – o Jovem Guerreiro pronunciou a palavras.
Durante alguns dias Helaman dormiu um sono profundo. E ao retornar para visitá-lo, dias depois, Aman encontrou seu amigo de pé, sorrindo:
— Jovem Guerreiro, meu grande amigo, que bom vê-lo aqui em minha casa! – jubilou o abraçando.
— Helaman, você está muito bem!
— Sim, eu sobrevivi. Agora que aprendi estou curado!
Eles conversaram muito e degustaram um delicioso banquete preparado por Zarctra especialmente para recepcionar o Jovem guerreiro.
No fim daquele dia ao sair da casa do amigo, Aman teve uma leve tontura e quando abriu os olhos não estava mais em Siavert.
Algo terrível estava acontecendo naquele lugar. Ainda um pouco tonto sem entender o que sucedia, Aman olhou a sua volta e se assustou muito mais que das outras vezes, ouviu estrondos, gritos, pedidos de socorro. Viu pessoas ensanguentadas, outras mutiladas e algumas já mortas, sendo carregadas para o que parecia ser um campo de feridos.
O número de mutilados era cada vez maior. Pessoas se rastejando passavam ao lado de Aman. Transtornado com aquela cena, ele questionou um dos que passavam:
— O que está acontecendo aqui?
— Você é cego? Estamos em meio a uma guerra que não termina! – o homem respondeu desesperado.
— Que guerra é essa e por que não termina?
— Monstros horríveis invadiram nosso mundo, e mais adiante, ali na trincheira eles guerreiam contra nós. Essa guerra só termina quando alguém de livre e espontânea vontade, sem medo e livre dos maus pensamentos, permitir que um dos monstros crave a lança em seu coração! Os monstros não sabem disso, pois se soubessem cortariam apenas nossas cabeças! Temos nossas armas e espadas, mas eles têm lanças poderosas e tudo que mais querem é cravá-las em nosso coração – explicou-lhe, gritando no meio daquela confusão mortal.
— E por que um de vocês não se arrisca? Alguém precisa sacrificar a própria vida para acabar com esse sofrimento! – Aman perguntou aflito.
— Muitos já tentaram e deram a sua vida, mas como sentiram medo e não se sentiram livres seu sacrifício foi em vão. Parece que todos aqui ainda não estão livres do medo nem dos maus pensamentos. É por isso que a guerra nunca termina. – O homem seguiu adiante.
O Jovem Guerreiro novamente olhou ao seu redor, estava diante de muita destruição. Naquele instante uma terrível dor dominou sua cabeça. Ele gritou. Em seguida algo extraordinário aconteceu, ele recuperou sua memória, lembrou-se de tudo, de quem ele era, de onde veio, seu nome, lembrou-se de Ethy, de seu mundo e por que estava ali.
Vislumbrou com atenção a Urim-Tumim em seu pescoço e não teve dúvidas de quem era ele mesmo, Aman, quem deveria sacrificar sua própria vida em favor de todos. Ele respirou fundo. Nesse momento imagens de Gadianton vieram-lhe à mente.
Correu para o meio da batalha e se colocou diante dos monstros que eram enormes e tinham pernas e braços longos.
Um dos monstros, maior que todos os outros, se aproximou com a lança apontada para o coração de Aman onde ferozmente cravou-a. Com o grito abafado pela dor e os olhos bem abertos Aman sentiu a lança afiada atravessar seu coração. Ele não teve medo, nem maus pensamentos, sentiu-se livre mesmo diante da morte.
Lágrimas correram pelo seu rosto, sangue escorreu pelo seu corpo. E depois de dar seu último suspiro seus olhos se fecharam. Aman perdeu suas forças e caiu morto no chão.
A guerra acabou!
Aman acordou, depois de abrir os olhos respirou fundo e pôde ver que a lança não estava mais cravada em seu peito. Observou tudo ao redor, percebeu que estava em outro mundo. Ele estava no Bosque Sagrado, a moradia dos seres imortais!
Finalmente conseguiu voltar para o seu mundo, o reino de Gadianton. Haviam se passado cem anos desde que Aman havia sido lançado nas seis dimensões, mas para ele nem tanto. Nesse período o rei Kaedras e a princesa Ethy conheceram a morte por alguns instantes e ressurgiram para a imortalidade e juventude eternas. A princesa se casou com Zesrone depois que se tornou imortal já há vinte anos.
O corpo de Aman já não era mais o mesmo, nele não havia nem mesmo uma mancha de sangue, pelo contrário, seu corpo e suas vestes se tornaram brancos. Ele ganhou a imortalidade e se tornou um henot.
— Me tornei imortal, sinto que em minhas veias não há mais sangue e sim uma energia que torna meu corpo glorificado e brilhante! Por isso estou aqui no Bosque Sagrado! – ele disse a si mesmo ao contemplar-se.
Depois de caminhar um pouco pelo bosque muitos henots que por ele passavam não o reconheceram. Até que encontrou Zesrone e então revelou-se:
— Zesrone! – Ele olhou. – Sou eu, o guerreiro Aman!
Zesrone o observou por alguns instantes e exclamou após reconhecê-lo:
— Guerreiro Aman, é você mesmo?! Enfim voltou! E se tornou imortal. Agora também é um Henot! Está aqui no Bosque Sagrado!
— Sim! Depois de sacrificar minha própria vida em favor de muitos no último mundo pelo qual passei e conhecer a terrível morte fui conduzido de volta a este mundo e ganhei a imortalidade. Veja a outra metade da pedra Urim-Tumim permanece aqui comigo e me protegeu durante todo esse tempo.
— Venha, Aman. Vou anunciá-lo ao novo rei! – Zesrone exclamou admirado.
Depois de se tornar imortal o rei Kaedras passou o trono à princesa Ethy que por sua vez entregou o mesmo a seu irmão mais novo chamado Nesser.
Enquanto caminhavam, Zesrone explicou a Aman todas as mudanças que haviam ocorrido em Gadianton durante todo aquele tempo.
— Então aqui já se passaram cem anos desde que fui lançado nas dimensões! E agora temos um novo rei!
— Sim, Aman, saiba que pouco antes de se tornar imortal Kaedras já não acreditava mais que você voltaria. Mas não é só isso. Eu me casei com a princesa Ethy logo depois que ela se tornou imortal, como eu.
— Casou-se com a princesa mesmo sabendo que não ficará com ela pra sempre? Zesrone, Ethy e eu termos que nos unir de maneira definitiva.
— Mesmo sabendo disso decidimos nos casar, fizemos companhia um ao outro, eu a confortei nos momentos de maior fraqueza causada pela sua ausência, Aman. Achamos que você nunca mais voltaria.
— Fico feliz que você tenha ajuda a princesa a suportar a minha ausência.
Depois de ser apresentado ao rei Nesser, Aman foi anunciado à Kaedras:
— Kaedras, aqui está o guerreiro Aman, imortal e glorificado!
Ao vê-lo face a face Kaedras bradou de emoção. Lágrimas de felicidade corriam pelo rosto do antigo rei e exclamou:
— Se os meus olhos não vissem não acreditaria! Aman, é você mesmo!
Eles se abraçaram.
A emoção de Ethy ao reencontrar Aman, depois de tanto tempo, foi tão forte que depois de abraçá-lo ela quase não conseguiu parar de chorar de tanta alegria. Quanto mais Ethy derramava lágrimas, mais forte se tornava o brilho de seu cabelo dourado.
— Eu quase não creio. Aman, você está aqui de volta. E agora é imortal! Estamos sofrendo tanto com o domínio dos nirarrotes! Duas gerações de seres humanos já nasceram escravizadas por eles – Ethy lamentou.
— Ethy, agora que estou aqui eu e você libertaremos Gadianton, libertaremos os seres humanos da escravidão e de todo mal que há neste mundo! – declarou majestoso.
— Sim. Aman, eu me casei com Zesrone.
— Eu sei, ele me contou tudo. Princesa, fico feliz que ele tenha te ajudado a superar a minha ausência.
— Nosso povo é maravilhoso, pois são uno de coração, mesmo sofrendo com a escravidão eles nunca se revoltaram contra o rei.
— Todos aqui temos uma única vontade, nos livrar do mal. Passei por mundos em que seus habitantes eram desunidos e sofriam com vários males. Conheci uma princesa perdida que acreditava ser menos do que ela era e se sentia inferior por isso, ajudei-a voltar pra casa. Suportei pessoas mentirosas e tive que me jogar num enorme abismo profundo, escuro e tenebroso. Vi pessoas agonizando por causa de uma injustiça. E por fim, depois de tantas outras coisas, sacrifiquei minha própria vida e conheci a dolorosa morte para que uma guerra acabasse. Agora estou aqui, de volta ao meu mundo, só que agora em um estado imortal! – Aman declarou emocionado, com olhos lacrimejantes.
— Como suportou tudo isso se você era apenas um ser humano? – Ethy questionou admirada com o milagre.
— Os nirarrotes acreditavam que eu jamais suportaria e não sairia das dimensões porque sabiam das lutas e obstáculos que eu enfrentaria por lá. Mas eles nem imaginam que eu venci todas elas e voltei para libertar nosso povo dessa escravidão. Suas atitudes malignas nunca poderiam durar para sempre!
Mais uma vez se abraçaram.
Ethy e Aman reuniram um exército de henots telestes e partiram em direção ao edifício do governo dos nirarrotes para expulsá-los de seu meio. À frente do exército as duas forças pararam diante do edifício e mentalmente ordenaram que os nirarrotes saíssem dali.
Com seus cetros e exército os nirarrotes se colocaram diante dos henots, só não imaginavam era Aman, a segunda força, agora imortal, liderava os henots. Não puderam reconhecer sua face.
O chefe dos seres do mal se pôs diante de seu exército e enfrentou as duas forças dizendo:
— Mas o que é isso? Quem vocês pensam que são para ousar nos enfrentar? Se não forem embora agora mataremos os seres humanos! – declarou imponente, erguendo seu cetro.
— Somos as duas forças imortais e eternas que destruirão o mal e protegerão Gadianton para sempre! – Aman declarou ao lado de Ethy.
— Ethy! – ela pronunciou seu próprio nome com vigor.
— Aman! – ele também gritou o próprio nome em sinal de poder. – Ordenamos que saiam agora e libertem este povo e este lugar de sua maldade! Todos vocês estão expulsos daqui para sempre! – ele proclamou.
Todos os henots fecharam os olhos e ordenaram mentalmente a destruição dos nirarrotes. Naquele mesmo instante os seres malignos que ali estavam gritaram forte, pois uma repentina e insuportável dor tomou-lhes a alma. Eles foram perdendo suas forças aos poucos até morrerem em alguns instantes, e isso porque não suportaram a presença de Ethy e Aman. Os nirarrotes que se arrependeram naquele instante não morreram, apenas foram banidos para longe.
E assim houve paz. A beleza, o sol, a alegria e a liberdade voltaram a reinar em Gadianton. E o povo de Zaraenla tornou-se livre para estabelecer seu próprio governo.
Algum tempo depois do retorno da paz, enquanto dormia um sono profundo recostado em uma árvore no Bosque Sagrado, Aman teve um sonho. Um sonho que revelou – lhe o que todos em Gadianton a partir de sua libertação queriam saber: como e quando a união das duas forças aconteceria. Ao despertar do sono ele respirou fundo, refletiu um pouco e foi ao encontro de Ethy.
— Ethy, acabo de acordar de um sono profundo durante o qual tive um sonho que me revelou aquilo que ansiamos saber já há mais cem anos – Aman iniciou a revelação.
— O que é? – Ethy está ansiosa pra saber.
— Devemos caminhar até o monte Zaraenla, subir ao topo, quando chegarmos lá temos que unir as duas metades da Urim-Tumim e juntos erguê-la em direção à constelação de unicórnio. Devemos ainda reunir uma legião de henots telestes para nos vigiar e acompanhar até lá.
— E depois disso o que acontece?
— Talvez você e eu sejamos levados para outro mundo. Lamento por Zesrone. Sei que ele sentirá a sua falta.
— Eu vou conversar com ele. A separação será dolorosa, mas necessária. Se é assim que tem que ser, faremos isso.
— Vou me preparar.
— Tem certeza que tem que ser no monte Zaraenla? Além de ser longe eu não sou uma henot teleste e nesse monte ainda há uma influência do mal deixada pelos nirarrots, eu enfraqueço diante disso.
— Sim. Tenho certeza. Mas não tema. Enfrentamos juntos os nirarrotes, e não sentiu nenhum pouco de fraqueza.
— Mas foi diferente, Gadianton sempre foi o meu lugar e estávamos os expulsando de nosso meio e eu não toquei neles, naquele monte a energia ruim é constante. Terei que tocar no monte para escalá-lo. Ainda receio não suportar – ela justificou seu receio.
— Mais uma vez digo não tema. Seu pai Kaedras liderará a legião de henots que nos acompanhará e nos vigiará para que alcancemos em paz o topo do monte Zaraenla. Ethy, estaremos juntos – ele garantiu, abraçou-a.
A legião de henots liderada por Kaedras, Zesrone e Nesser, acompanhou Ethy e Aman até o monte. Eles caminharam durante horas e a noite já havia chegado, o céu estava repleto de estrelas.
Conforme se aproximavam do monte Zaraenla, Ethy sentia-se fraca a ponto de se arrastar para andar.
— Aman, estou me sentindo muito fraca por causa da influência do mal que há nesse monte. Não conseguirei chegar ao seu topo. Não consigo andar. Não tenho forças – manifestou sua debilidade sussurrando.
— Estamos quase conseguindo cumprir nosso propósito. Vença a sua fraqueza. Você é imortal e eu estou aqui do seu lado. Nós conseguiremos. – Ele a fortaleceu segurou-a pelo braço.
Antes que eles começassem a escalar o monte, Kaedras abraçou sua filha e também a Aman. Depois, juntou-se à legião de henots que se colocaram ao redor do monte Zaraenla e vigiaram as duas forças que seguiam rumo ao topo.
Conforme tentava vencer sua fraqueza Ethy conseguia escalar o monte e ganhava mais energia.
No começo tudo estava em paz. Porém, após uns instantes, lhes sobreveio uma terrível tempestade, a qual os fazia escorregar, e os raios violentos caíam ao seu lado.
A tempestade passou, uma neve intensa afligiu o monte Zaraenla e fez com que Ethy e Aman tremessem de frio logo quando estavam quase chegando.
Chegaram ao topo! Mas antes que se erguessem tiveram que suportar a imagem do passado de guerras e escravidão do povo de Gadianton, que surgiram em suas mentes. Instantes depois respiraram fundo e se ergueram, enfim, já de pé no topo do monte, um grande alívio e uma paz intensa dominaram suas almas. Sorriram e se abraçaram.
— Agora eu entendo. A Urim-Tumim permitiu que eu fosse lançado nas dimensões para que através das minhas obras eu vencesse as batalhas e ganhasse a imortalidade, e assim eu pudesse me unir a você agora, para sempre – Aman declarou solenemente.
— Sim. A hora chegou. A profecia se cumprirá neste momento – Ethy encerrou suas palavras, olhou para o céu.
Ethy e Aman frente a frente uniram as duas metades da pedra Urim-Tumim e juntos ergueram-na em direção à constelação de unicórnio.
Uma intensa luz azul, vinda do céu, envolveu-os, e de repente, eles foram transladados para o infinito das constelações onde habitam os seres que alcançaram a perfeição através do sacrifício.
Jamila Mafra
O melhor da literatura para todos os gostos e idades