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O EXÉRCITO PERDIDO DE CAMBISES / Paul Sussman
O EXÉRCITO PERDIDO DE CAMBISES / Paul Sussman

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O EXÉRCITO PERDIDO DE CAMBISES

Primeira Parte

 

   "A força que foi enviada contra os amonitas partiu de Tebas com seus guias e pode ser rastreada até a cidade de Oásis, o que... equivale a sete dias de viagem através das areias, partindo de Tebas. A notícia que se tem é que conseguiu chegar até este ponto; porém, sobre o seu destino, a partir daí, nada se sabe. Jamais alcançou os amonitas, tampouco retornou ao Egito. Há, contudo, uma história contada pelos próprios amonitas e por outros que deles a ouviram, segundo a qual quando os homens deixaram Oásis, e já atravessando o deserto, chegando a um local a cerca de meio caminho entre a cidade e a fronteira dos amonitas, uma ventania de extrema violência vinda do sul, no momento em que faziam a refeição da metade do dia, soterrou-os em tamanha quantidade de areia que os fez desaparecer para sempre."

           Heródoto, As Histórias, Livro Três.

 

O DESERTO OCIDENTAL, 523 A.C.

     A mosca estivera importunando o grego por toda a manhã. Como se já não bastassem o calor de fornalha do deserto, a marcha forçada e as rações rançosas, agora sofria mais este tormento. Ele amaldiçoou os deuses e assentou um forte tapa no rosto, provocando uma chuva de gotas de suor, e mesmo assim sem lograr atingir o inseto.

     — Malditas moscas! — resmungou raivoso.

     — Ignore-as — aconselhou o seu companheiro.

     — Não consigo. Estão me deixando maluco. Se eu não soubesse que é impossível, diria que foram enviadas por nossos inimigos.

     Seu companheiro deu de ombros:

     — Quem sabe? Dizem que os amonitas têm estranhos poderes. Soube que podem se transformar em bestas selvagens. Chacais, leões e outros animais semelhantes.

     — Eles podem se transformar no que quiserem — rosnou o grego. — Quando puser minhas mãos neles, vou fazê-los pagar por esta marcha amaldiçoada. Faz quatro semanas que estamos neste deserto! Quatro semanas!

     Ele tirou o odre do ombro e bebeu, fazendo uma careta, um gole do líquido quente e oleoso. O que não daria por uma caneca de água fresca das nascentes das colinas de Naxos; uma água que não tivesse aquele gosto, como se meia centena de prostitutas com varicela tivessem acabado de banhar-se nela!

     — Vou desistir desse trabalho de mercenário — grunhiu. — Esta será minha última campanha.

     — Você vive dizendo isso.

     — Desta vez é sério. Vou voltar para Naxos, encontrar uma esposa, um belo pedaço de terra. Oliveiras... pode-se ganhar bastante dinheiro com isso, você sabe.

     — Duvido que você agüente essa vida.

     — Mas é claro que agüento — replicou o grego, dando, em vão, outro tapa tentando matar a mosca. — É o que vou fazer, você vai ver. Desta vez é diferente.

     E desta vez foi diferente. Durante vinte anos, ele lutara nas guerras alheias. Já fazia tempo demais e ele sabia disso. Não podia mais suportar marchas como aquelas. E a dor do ferimento da velha flechada estava ainda mais forte este ano. Agora, mal podia levantar o braço do escudo acima da altura do tórax. Esta seria a última expedição, estava decidido. Ia voltar para Naxos e plantar oliveiras na ilha onde nasceu.

     — Afinal de contas, quem são esses amonitas? — perguntou, engolindo mais um gole de água.

     — Não tenho a menor idéia — replicou seu companheiro. — Eles têm um templo que Cambises quer ver destruído. Ao que parece, existe um oráculo por lá. É tudo o que eu sei.

     O grego resmungou, mas não quis prosseguir com a conversa. Na verdade, não tinha muito interesse naqueles contra quem tinha de lutar. Líbios, egípcios, cários, hebreus, e mesmo seus conterrâneos, os gregos... Para ele, eram todos a mesma coisa. O que tinha de fazer era cair sobre eles, matar quem tinha de matar e ingressar na expedição seguinte, quando não acontecia de ser contra o próprio povo que lhe havia pago pela guerra anterior. Hoje, seu amo era Cambises, da Pérsia. E, no entanto, não fazia muito tempo, havia lutado contra aquele mesmo Cambises, no exército egípcio. Eram assim as coisas, na sua profissão.

     Ele bebeu mais um gole de água, permitindo ao seu espírito vagar de volta para Tebas, para o seu último dia lá, antes que partissem na travessia do deserto. Ele e um amigo, Phaedis da Macedônia, carregando consigo um odre de cerveja, cruzaram o Iteru, o grande rio, na direção do vale que chamavam de Portais dos Mortos, onde, segundo diziam, muitos grandes reis foram enterrados. Passaram a tarde bebendo e explorando os arredores, descobrindo afinal um estreito túnel ao pé de um despenhadeiro de cascalhos para dentro do qual, ousadamente, ambos rastejaram. Lá dentro, as paredes e o teto tinham sido cobertos com imagens pintadas e o grego, puxando sua faca, começara a talhar o seu nome no reboco fresco: AYMMAXOZ O MENENAOY NAEIO2 TAYTA TA AYMAZTA EIAON AYPION TOIZ THI AMMONIAI EAPAI ENOIKOYSIN EIUSTPATEYZQ EIFAP... "Eu, Dymmachus, filho de Menendes de Naxos, vi estas maravilhas. Amanhã marcharei contra os amonitas. Possa eu..."

     Mas, antes que pudesse terminar, o pobre Phaedis, seu velho amigo, ajoelhara-se sobre um escorpião, deixando escapar um tremendo berro e a seguir escapulindo atropeladamente para fora do túnel feito um gato assustado. Como ele riu!

     Só que ele é que acabou sendo a piada, afinal, pois a perna de Phaedis inchara, ficando da largura de um tronco de árvore, impedindo-o de marchar com o exército no dia seguinte. E assim Phaedis escapara daquelas quatro semanas de tormento no deserto. Pobre Phaedis? Que sorte a dele, isso sim! Ele ria só de lembrar.

     Dymmachus foi despertado do seu devaneio pela voz do companheiro.

     — Dymmachus! Ei, Dymmachus!

     — O que foi?

     — Olhe aquilo ali, seu idiota. Ali adiante.

     O grego levantou os olhos e fixou-os à frente, ao longo da linha da tropa em marcha. Estavam atravessando um largo vale entre dunas altas e, bem adiante, com o contorno deformado pelo intenso brilho do sol da metade do dia, erguia-se uma enorme rocha em formato de pirâmide, os lados tão uniformes que parecia que alguém os havia cortado para ganharem aquela forma. Havia alguma coisa sutilmente ameaçadora naquela rocha, destacando-se silenciosa e solitária em meio à paisagem monótona, e o grego, involuntariamente, levou a mão ao amuleto de Isis no seu pescoço, sussurrando uma rápida oração para afugentar os maus espíritos.

     Prosseguiram a marcha por mais meia hora antes de ordenarem uma parada para a refeição do meio-dia, quando a companhia do grego já quase se alinhava com uma das laterais da rocha. Ele deu alguns passos vacilantes na direção dela e arriou na faixa de sombra junto a sua base.

     — Quanto falta ainda? — grunhiu. — Oh, Zeus! Quanto ainda falta? Garotos se aproximaram trazendo pão e figos, e os homens comeram e beberam. A seguir, alguns deles foram gravar seus nomes na superfície da rocha. O grego inclinou-se para trás e fechou os olhos, deliciando-se com uma súbita brisa. Sentiu a picada de uma mosca na face. A mesma, ele tinha certeza, que o tinha atormentado por toda a manhã. Desta vez não fez nenhuma tentativa de matá-la, deixando-a vagar sem rumo pelos seus lábios e pálpebras. Ela voou, pousou novamente, voou e pousou, testando a sua reação. Mas ele continuava imóvel, e o inseto, animado pela falsa sensação de segurança, finalmente resolveu pousar na sua testa. Com infinito cuidado o grego ergueu a mão, manteve-a por um momento a cerca de 20 centímetros da face, então deu um tapa violento na própria têmpora.

     — Peguei você, sua amaldiçoada! — gritou, fixando os olhos no que restou da mosca, esmagada na palma da mão. — Finalmente!

     O seu triunfo durou pouco, no entanto, porque naquele instante um débil murmúrio alarmado começou a se erguer da retaguarda da coluna.

     — O que houve? — perguntou, limpando a mão dos resquícios da mosca e pondo-se alerta. — Um ataque?

     — Não sei — disse alguém ao seu lado. — Alguma coisa está acontecendo lá atrás.

     O alarido aumentava. Quatro camelos passaram trotando, a carga dos animais desprendendo-se e caindo no seu rastro, os focinhos espalhando gotas espumentas. Ouviam-se gritos e berros abafados. A brisa, também, aumentava de intensidade, bafejando no seu rosto, fazendo o seu cabelo revolver-se e dançar.

     O grego protegeu os olhos para fitar o sul ao longo do vale. Uma espécie de escuridão parecia aproximar-se por detrás deles. Uma carga de cavalaria, ele pensou a princípio. Mas, em seguida, uma rajada furiosa de vento açoitou seu rosto e ele escutou claramente o que até então não passara de um grito truncado.

     — Oh, Isis! — sussurrou.

     — O quê? — exclamou o seu companheiro.

     O grego virou-se para ele. Havia medo nos seus olhos.

     — Uma tempestade de areia.

     Ninguém se moveu nem disse coisa alguma. Todos já haviam ouvido falar das tempestades de areia do deserto ocidental, que chegavam como de lugar nenhum e engoliam tudo à sua passagem. Cidades inteiras haviam sido devoradas por elas, dizia-se, civilizações inteiras perdidas para sempre.

     — Se você se deparar com uma tempestade de areia, só há uma coisa a fazer — explicara-lhes um dos guias libaneses.

     — O quê? — interrogaram.

     — Morrer — replicara ele.

     — Salve-nos! — alguém exclamou, apavorado. — Que os deuses possam nos proteger!

     E então, subitamente, todo mundo estava correndo e gritando.

     — Salve-nos! — berravam. — Tende piedade de nós!

     Alguns desvencilharam de suas cargas e saíram correndo, enlouquecidos, pelo vale afora. Outros avançavam com dificuldade tentando alcançar a lateral da duna, ou caíam ajoelhados, ou agachavam-se junto à pirâmide de pedra, procurando abrigo. Um homem caiu com o rosto enterrado na areia, soluçando. Outro foi esmagado por um cavalo enquanto lutava para montá-lo.

     O grego era o único a permanecer em seu lugar. Nem se movia nem falava, pôs-se de pé, somente isso, os membros paralisados parecendo de chumbo, enquanto a muralha escura rolava inexoravelmente para cima dele, parecendo mais e mais veloz, à medida que se aproximava. Mais animais de carga passaram trotando, e homens também, correndo já sem suas armas, as faces retorcidas de terror.

     — Corram! — gritavam. — Metade do exército já foi coberta! Corram ou estarão perdidos!

     O vento rugia agora, fustigando com lençóis de areia seus pés e cinturas. Havia um rugido, também, como uma queda d'água ondulante. O sol reduzia sua intensidade.

     — Vamos, Dymmachus, vamos sair daqui — gritou o seu companheiro. — Se ficarmos vamos ser enterrados vivos.

     No entanto, o grego não se mexia. Um leve sorriso entortava-lhe a boca. De todos os modos de morrer que havia imaginado, e foram tantos, este nunca lhe havia cruzado o pensamento. E também que fosse esta a sua última campanha! Era tão cruel que parecia ridículo. O sorriso tornou-se mais largo na boca e, a despeito dele mesmo, transformou-se numa risada descontrolada.

     — Dymmachus, seu idiota! O que está acontecendo com você?

     — Vá — exclamou o grego, gritando para conseguir ser ouvido acima do bramido da tempestade. — Corra, se é o que está querendo! Não faz diferença. Quanto a mim, vou morrer parado exatamente aqui.

     Ele sacou a sua espada e manteve-a à frente, vislumbrando a imagem de uma serpente que se enrascava na lâmina brilhante, as mandíbulas abrindo-se para abocanhar a ponta da espada. Ele a tinha conquistado há vinte anos, na sua primeira campanha, contra os lídios, e desde então trazia-a consigo, sua mascote da sorte. O grego correu o polegar ao longo da lâmina, experimentando-a, enquanto o companheiro girava nos calcanhares e saía em disparada.

     — Você enlouqueceu! — gritou-lhe por cima dos ombros. — Idiota! Louco!

     Dymmachus ignorou-o. Apertou o cabo da espada e encarou a vultosa escuridão cada vez mais perto. Logo estaria sobre ele. O grego flexionou os músculos.

     — Venha então — sussurrou. — Vamos ver do que você é capaz! Subitamente, sentiu a cabeça leve. Era sempre assim na batalha: o medo inicial, os membros pesados, e depois a repentina vaga do prazer da luta. Talvez, plantar oliveiras não fosse para ele, afinal. Ele era um machimos. Lutar estava em seu sangue. Talvez fosse melhor assim. Entoou então uma velha canção egípcia para afugentar,o mau-olhado:

    

     A seta de Sakhmet está em você!

     A mágica de Toth está no seu corpo!

     Ísis o amaldiçoa!

     Néftis o castiga!

     A lança de Hórus está em sua cabeça!

    

     E então a tempestade o atingiu, pulsando sobre ele com a força de mil carruagens. O vento quase varreu-lhe os pés da areia, cegando-o, encrespando-lhe a túnica, rasgando-lhe a carne. Formas espectrais assomavam através da escuridão, braços agitando-se, os seus gritos sufocados pelo rugido ensurdecedor. Um dos estandartes do exército, arrancado de sua armação, voou-lhe de encontro às pernas, enganchando-se ali por um momento para depois libertar-se e desaparecer no redemoinho.

     O grego desferia golpes no vento com sua espada, mas a tormenta era forte demais para ele, empurrava-o para trás, para os lados, e vez por outra o forçava a cair sobre os joelhos. Um punhado de areia penetrou-lhe na boca, sufocando-o. De algum modo, no entanto, conseguiu erguer-se novamente, porém foi derrubado quase de imediato, e dessa vez não conseguiu mais se levantar. Uma onda de areia cobriu-o.

     Por alguns momentos ele debateu-se, resistiu, e então ficou imóvel. Sentiu de repente um imenso cansaço, mas também uma imensa serenidade, como se estivesse flutuando debaixo d'água. Havia imagens deslizando através do seu espírito — Naxos, onde havia nascido e se criado, o túmulo em Tebas, Phaedis e o escorpião, a sua primeira campanha, tantos e tantos anos atrás, contra os ferozes lídios, quando ele conquistara a sua espada. Com um último e supremo esforço de vontade, levantou a espada no ar acima dele, e assim, mesmo depois de ter sido soterrado, sua lâmina pesada ainda se projetava acima da superfície das areias, a serpente gravada na lâmina, enroscada nela, marcando o local onde ele havia tombado.

    

CAIRO, SETEMBRO DE 2000

     A limusine saiu lentamente através dos portões da embaixada, comprida, polida, e tão negra como uma baleia, fazendo uma pausa breve, antes de seguir para entrar no tráfego. Dois motociclistas da polícia tomaram suas posições à frente dela, dois atrás.

     Por uma centena de metros o comboio continuou em frente, árvores e edifícios deslizando de ambos os lados, depois dobrou à direita e novamente à direita, para o Corniche el-Nil. Outros motoristas lançavam olhares, tentando ver quem se encontrava no interior do veículo, porém os vidros das janelas eram escuros demais e impediam que enxergassem qualquer coisa do seu interior, exceto silhuetas borradas de duas cabeças humanas. Uma bandeirola americana tremulava.na extremidade de sua lateral, na esquerda dianteira.

     Após um quilômetro, o comboio chegou a uma confusa confluência de estradas e viadutos. O líder dos motociclistas diminuiu a marcha, ligou a sirene e seguiu adiante, guiando a limusine com todo cuidado pelo labirinto pavimentado e subindo a seguir uma auto-estrada elevada onde o trânsito não era tão pesado. O comboio ganhou velocidade, acompanhando as placas para o aeroporto. Os motociclistas na traseira inclinaram-se um pouco à frente, aproximando-se, e iniciaram uma conversa.

     O deslocamento de ar foi repentino, e tão abafado que não se tornou evidente, de imediato, que ocorrera uma explosão. Houve primeiro um rumor seco e surdo, e a limusine foi projetada no ar, dando uma guinada que a fez atravessar a faixa central da auto-estrada, colidindo contra uma parede de concreto. Foi somente quando uma nova explosão, mais alta agora, fez estremecer o veículo já avariado, e um jato de fogo subiu do seu fundo, que ficou claro que não fora apenas um acidente de estrada.

     Os guardas frearam bruscamente, fazendo as motos derraparem. A porta da frente da limusine escancarou-se e o motorista jogou-se para fora, gritando, com seu paletó em chamas. Dois dos motociclistas jogaram suas jaquetas sobre ele, abafando o fogo; os demais tentaram alcançar as portas traseiras do carro. Mãos frenéticas davam murros na lataria do interior da limusine, enquanto uma mortalha de fumaça negra a envolvia e já se erguia do veículo para o céu. O ar tornou-se carregado do cheiro acre da gasolina e da borracha queimadas. Os carros reduziram a marcha e pararam, seus motoristas estupidificados. Na dianteira da limusine, a bandeira americana em chamas rapidamente reduziu-se a cinzas.

    

O DESERTO OCIDENTAL, UMA SEMANA DEPOIS

     Puta que pariu!

     — O motorista soltou um berro de alegria quando seu Toyota com tração nas quatro rodas projetou-se do topo da duna e decolou, suspenso no ar como um desajeitado pássaro branco, antes de bater com um baque surdo no solo, do outro lado. Por um momento pareceu que ele fosse perder a direção, o veículo deslizando para baixo num ângulo perigoso, mas ele conseguiu controlá-lo e, alcançando o fundo do declive, apertou o pé no acelerador novamente, ganhando impulso e logo alcançando o topo da duna seguinte.

     — Puta que pariu, porra, caralho! — ele berrou.

     E continuou berrando por mais vinte minutos, a música altíssima saindo do estéreo do jipe, seus cabelos louros açoitados pelo vento, até que freou derrapando junto a uma beirada de areia bastante alta e desligou o motor do carro. Deu uma tragada em seu baseado, sacou seus binóculos e saltou, as botinas triturando ruidosamente a areia.

     O deserto estava sinistramente silencioso, o calor tornava o ar mais espesso. A palidez do céu parecia fazer pressão sobre a paisagem em volta.

     Ele ficou observando por alguns instantes a desordenada colagem das dunas e fossos de cascalho que se espalhava ao seu redor, um cenário estranhamente fora do mundo, privado de vida e movimento, e então, dando mais uma tragada no baseado, elevou os binóculos e focalizou-os em direção noroeste.

     Uma escarpa em formato de lua crescente de pedra calcária atravessava a sua linha de visão, com a mancha de um oásis verde-escuro traçada ao fundo. Minúsculas vilas esbranquiçadas distribuíam-se entre bosques de palmeira e lagos salgados, e uma mancha branca maior no extremo oeste da paisagem marcava uma pequena cidade.

     — Siwa — sorriu o homem, exalando um anel de fumaça pelas narinas. — Graças a Deus.

     Ele permaneceu naquele local por alguns minutos, deslocando os binóculos para várias direções, e então voltou para o jipe, deu partida no motor, a zoada do seu estéreo ecoando novamente através das areias.

     Aos solavancos pelo deserto, rodando numa estrada de terra batida, ele alcançou o limiar do oásis uma hora depois. Três antenas de rádio e uma torre de água de concreto elevavam-se à direita. Um bando de cães selvagens chegou latindo junto às calotas do veículo.

     — Ei, caras, também estou contente em ver vocês! — Ele riu, tocando a buzina, e começou a fazer o jipe dar arrancos para a frente e à ré, levantando nuvens de poeira e forçando os cães a se dispersarem.

     Ele passou por duas parabólicas, conectadas a satélites, e um acampamento militar improvisado, antes de entrar numa estrada pavimentada que o levou ao centro de um grande conglomerado que já havia avistado do topo da duna: Siwa Town.

     O lugar estava praticamente deserto. Duas carroças puxadas a burro avançavam ruidosamente pela estrada e, na praça principal, um grupo de mulheres agrupava-se ao redor de uma imunda barraca de vegetais, seus xales de algodão cinza puxados sobre os rostos. Todas as demais pessoas haviam se refugiado nos prédios devido ao calor do meio-dia.

     Ele encostou o carro num dos lados da praça, logo abaixo de uma barreira de pedras encimada por edificações em ruínas e, pegando um grande envelope de papel pardo do banco traseiro, saltou e atravessou a praça, não se preocupando em trancar as portas do veículo. Parou num armazém geral e conversou brevemente com o proprietário, passando-lhe um pedaço de papel e um maço de dinheiro, e fazendo um sinal de cabeça indicando o Toyota, depois seguiu adiante, virando numa rua transversal, e entrou num prédio decrépito com o letreiro Welcome Hotel pintado na lateral. Assim que entrou, um homem atrás de um balcão saltou à frente com um grito de alegria e apressou-se em cumprimentá-lo.

     — Dr. John! O senhor está de volta! Que bom vê-lo!

     Ele falou em berbere e o jovem respondeu no mesmo dialeto.

     — Bom ver você também, Yakub. Como vão as coisas?

     — Bem. E o senhor, como está?

     — Sujo — respondeu o jovem, sacudindo a poeira da camiseta com a inscrição LOVE EGYPT. — Preciso de uma chuveirada urgente.

     — Sem dúvida, sem dúvida. O senhor sabe onde fica a ducha. Água quente, não, receio, mas, fria, toda que quiser. Mohammed! Mohammed!

     Um garoto apareceu vindo da sala ao lado.

     — O dr. John está de volta. Traga-lhe uma toalha e sabão para ele tomar uma ducha.

     O garoto saiu apressado, suas sandálias estalando alto contra os ladrilhos do assoalho.

     — Quer comer? — perguntou Yakub.

     — Claro. Quero comer. Faz oito semanas que só ponho na boca feijão e sardinha em lata. Toda noite sonhava com os frangos ao curry do Yakub.

     O homem riu.

     — E vai querer também batatas fritas para acompanhar?

     — Quero batatas fritas. E pão fresco. E um refrigerante gelado. Quero tudo que você puder me servir.

     Yakub riu mais ainda.

     — O mesmo velho dr. John de sempre!

     O garoto reapareceu trazendo a toalha e uma barra de sabão, entregando-as logo em seguida.

     — Primeiro, preciso dar um telefonema — disse o jovem.

     — Sem problema. Venha. Venha.

     O proprietário conduziu-o a uma sala em grande desordem, com uma armação com cartões-postais, todos com os cantos já dobrados, encostada na parede, e um telefone em cima de um arquivo de fichas. Deixando o seu envelope sobre uma cadeira, o jovem pegou o fone e fez a discagem. Ouviu alguns toques, até que uma voz ecoasse do outro lado da linha.

     — Alô — disse, agora falando em árabe —, quero por favor falar com... Yakub fez-lhe um aceno e deixou-o a sós. Dali a dois minutos, retornou

     com uma garrafa de refrigerante, mas o seu hóspede continuava ao telefone, e assim deixou a garrafa sobre o fichário e saiu para começar a cuidar da refeição.

     Trinta minutos mais tarde, banhado e barbeado, o cabelo escovado para trás da testa queimada pelo sol, o jovem estava sentado no jardim do hotel à sombra de uma palmeira nodosa, devorando ferozmente sua comida.

     — Então, o que está acontecendo pelo mundo, Yakub? — perguntou, partindo um pedaço de pão e besuntando-o com o molho da beirada do prato.

   Yakub bebericava seu refrigerante.

     — Já soube do embaixador americano?

     — Nada. É como se eu tivesse estado em Marte nos dois últimos meses.

     — Explodiram com ele.

     O jovem deixou escapar um assovio baixo.

     — Uma semana atrás — completou Yakub. — No Cairo. A Espada da Vingança.

     — Ele morreu?

     — Não, sobreviveu. Por pouco. O jovem soltou um gemido.

     — Que pena! Acabe com todos os burocratas e o mundo será um lugar bem mais saudável. Esse curry está soberbo, Yakub.

     Duas moças européias levantaram-se de uma mesa no outro extremo do jardim e passaram por eles. Uma delas voltou-se, dando uma olhada no jovem, e sorriu. Ele a cumprimentou com um gesto de cabeça.

     — Acho que ela gostou de você — brincou Yakub, depois que elas se afastaram.

     — Pode ser — o jovem deu de ombros para o companheiro. — Mas quando eu contar a ela que sou um arqueólogo, vai querer uma boa distância de mim. A primeira regra da arqueologia, Yakub... Nunca diga a uma mulher o que você faz. É o beijo da morte.

     Ele terminou seu curry com batatas fritas e reclinou-se, as moscas zumbindo na árvore acima da sua cabeça. O ar estava impregnado com o cheiro do braseiro, da fumaça de lenha e da carne tostada.

     — Bem, quanto tempo está planejando ficar por aqui? — perguntou Yakub.

     — Em Siwa? Mais uma hora, acho.

     — E depois, volta para o deserto?

     — Depois, volto para o deserto. Yakub assentiu com a cabeça.

     — Já está lá há um ano. Você volta, compra suprimentos e depois desaparece outra vez. O que anda fazendo lá no meio do nada?

     — Medições — sorriu o jovem. — E cavo buracos. E desenho diagramas. Mas, quando o dia está realmente bonito tiro fotos, também.

     — E o que está procurando? Um túmulo? O jovem deu de ombros.

     — Acho que pode chamar assim.

     — Mas já encontrou alguma coisa?

     — Quem sabe, Yakub? Talvez. Talvez não. O deserto é hábil em pregar peças na gente. A gente pensa que encontrou alguma coisa, daí vai ver e não encontrou nada, realmente. E quando a gente pensa que não encontrou porcaria nenhuma, de repente descobre algo que vale a pena. O Saara, como dizemos lá na minha terra, é um grande filho da puta enganador.

     Para dizer isso, ele falou em inglês, e Yakub repetiu as palavras, lutando para tirá-las da boca.

     O jovem achou graça, tirando cigarros e uma pequena bolsa de maconha do bolso da camisa.

     — Isso mesmo, Yakub. E isso nos dias em que a gente está com sorte.

     Ele enrolou um baseado com habilidade, acendendo-o e tragando profundamente, depois inclinando a cabeça para trás contra o tronco da palmeira e exalando a fumaça, satisfeito.

     — O senhor fuma demais essa porcaria, dr. John — advertiu o egípcio.

     — Vai acabar fazendo mal.

     — Ao contrário, meu amigo — suspirou o jovem, fechando os olhos,

     — Aqui no deserto é a única porra que consegue manter minha sanidade.

     Ele deixou o hotel uma hora mais tarde, o envelope pardo ainda seguro em sua mão. A tarde agora adiantada, com o sol mergulhando no oeste, sua coloração passando de um amarelo aguado para um alaranjado cítrico. Ele atravessou de volta a praça, até o jipe, agora carregado de caixas com provisões. Entrando no veículo, deu partida e, indolentemente, conduziu-o pelos cinqüenta metros até a entrada da única garagem da cidade.

     — Complete — disse ao frentista. — Encha também os galões de reserva. E ponha água nos recipientes plásticos. A da bica serve.

     Ele jogou as chaves para o frentista e caminhou cerca de cem metros estrada acima até o correio. Já dentro, abriu o envelope pardo, retirou uma série de fotografias, examinou-as, em seguida recolocou-as no envelope, lambendo-lhe a aba e fechando-o.

     — Quero enviar esta correspondência. Registrada — disse ao homem no balcão.

     O homem pegou o envelope, pesou-o e, puxando um formulário da gaveta embaixo da escrivaninha, começou a preenchê-lo.

     — Professor Ibrahim az-Zahir — disse ele, lendo o nome escrito na parte frontal, enunciando-o para ter certeza de que tudo estava correto. — Universidade do Cairo.

     O jovem recebeu uma cópia do formulário, pagou e, deixando o envelope, voltou a pé para a garagem. O tanque do jipe, os tanques reservas e os recipientes de água estavam cheios agora e, com uma última olhada ao redor da praça do mercado, ele tornou a subir no veículo, ligou o motor e conduziu-o lentamente para fora da cidade.

     Parou por instantes no limiar do deserto e olhou, pensativo, para a cidade que deixava para trás. Depois, ligando o estéreo, acelerou o motor e tocou à frente, penetrando através do terreno arenoso.

     O seu corpo foi encontrado dois meses mais tarde. Ou pelo menos o que restou dele, carbonizado na fornalha do jipe incendiado. Um grupo de turistas num safári pelo deserto deu por acaso com o veículo a cerca de cinqüenta quilômetros ao sudeste de Siwa, capotado ao pé de uma duna, casco de metal disforme com algo dentro que lembrava uma forma humana. Ele tinha, assim parecia, capotado ao tentar transpor a duna, embora não fosse uma duna particularmente escarpada e, curiosamente, houvesse outras marcas de pneus por perto, como se ele não estivesse sozinho quando o acidente aconteceu. O corpo estava tão desfigurado que só pôde ser identificado conclusivamente pelos registros das arcadas dentárias que foram enviados dos Estados Unidos.

    

LONDRES, QUATORZE MESES MAIS TARDE

     A Dra. Tara Mullray afastou uma mecha de cabelo cor de cobre dos -olhos e seguiu em frente, caminhando pela plataforma suspensa. As lâmpadas tornavam o ambiente muito quente e um lustre de suor formou-se sobre sua testa, de pele macia e pálida. Abaixo, através dos orifícios de ventilação nos topos dos tanques, relanceou os olhos sobre as cobras, porém não lhes deu atenção maior do que as cobras a ela. Já trabalhava no viveiro de répteis fazia uns quatro anos, e qualquer novidade sobre seus habitantes já se esgotara muito tempo atrás.

     Ela passou pela píton africana, pela Bit arietans, pela víbora Echix pyramidum e pela víbora do Gabão, detendo-se finalmente acima da naja. A serpente estava encolhida no canto do seu tanque, porém, assim que ela se aproximou, levantou a cabeça, a língua vibrando, o seu corpo grosso, marrom-oliva, movendo-se de um lado para o outro como um metrônomo.

     — Olá, Joey — disse ela, deixando no chão o depósito e o gancho de serpentes que vinha carregando e acocorando-se na plataforma. — Tudo bem com você?

     A cobra testou o lado interno da tampa do tanque, irrequieta. Ela calçou um par de luvas de couro grosso e também óculos de proteção, pois a cobra poderia, e foi de fato o que fez, cuspir veneno.

     Certo, você é um amor de garoto — disse ela, agarrando o gancho.

     Hora de tomar seu remédio.

     Ela se inclinou à frente e soltou a tampa do tanque, inclinando-se para trás, quando a cabeça da cobra se ergueu para aproximar-se dela, suas aletas ligeiramente inchadas. Com movimentos precisos, tantas e tantas vezes ensaiados, ela agarrou o pegador da tampa do depósito, prendeu a cobra no gancho e, mantendo os olhos sobre ela o tempo todo, soltou-a já dentro do depósito, tampando-o rapidamente. Do interior do depósito veio um suave rumor rastejante, produzido pela cobra, que agora explorava seu novo ambiente.

     — É para o seu próprio bem, Joey— disse ela. — Não vá ficar zangado. A naja era a única da coleção de que ela não gostava. Com as outras, mesmo a taipan, ela se sentia perfeitamente à vontade. Mas a naja sempre a deixava nervosa. Era astuciosa e agressiva, e tinha um péssimo temperamento. Joey a tinha picado uma vez, coisa de um ano atrás, enquanto ela o removia do tanque para limpeza. Ela a tinha fisgado muito embaixo, no corpo, e a serpente de pescoço negro conseguira girar e dar o bote sobre as costas de sua mão desprotegida. Felizmente foi apenas uma picada enxuta, sem injeção de veneno, mas bastou para abalá-la. Em quase dez anos trabalhando com cobras, nunca fora picada. E, desde então, passou a tratar a naja com a máxima cautela, usando luvas quando tinha de lidar com ela, cuidado que não tomava com as demais. Verificou a tampa para se assegurar de que estivesse bem fechada e, erguendo o depósito, fez o caminho de volta pela passarela, atenta a cada passo, ao descer as escadas e depois atravessando um longo corredor até o seu escritório. Podia sentir a cobra movendo-se no interior do depósito e isso a fez diminuir as passadas, tentando não balançá-la demais. Não havia por que perturbar a serpente mais do que o necessário.

     No escritório, Alexandra, sua assistente, já a aguardava. Juntas, removeram a cobra do depósito e a colocaram sobre um banco. Alexandra mantendo-a esticada enquanto Tara inclinava-se para examiná-la.

     — Já devia ter cicatrizado — suspirou, observando uma área na metade da extensão das costas da cobra, onde as escamas estavam inchadas e feridas.

     — Deve ter esfregado as costas na rocha novamente. Acho que deveríamos deixar o seu tanque descoberto por enquanto, para ela melhorar.

     Retirou um pouco de anti-séptico do armário e começou gentilmente a untar o ferimento. A língua da cobra vibrou de novo, entrando e saindo, e os olhos pretos levantaram-se para ela ameaçadoramente.

     — A que horas é o seu vôo? — perguntou Alexandra.

     — Às seis — respondeu Tara, olhando para o relógio na parede. — Preciso sair logo que termine isto aqui.

   — Gostaria que o meu pai morasse no exterior. Faz a relação parecer muito mais exótica.

     Tara sorriu.

     — Você poderia chamar minha relação com meu pai de muitas coisas, Alex, mas não de exótica. Tome cuidado com a cabeça dela, agora.

     Ela acabou de limpar a área afetada e, espremendo sobre o dedo um pouco de creme, espalhou-o ao longo do flanco da cobra.

     — Enquanto eu estiver fora ela vai precisar ser limpa dia sim, dia não, certo? E continue com os antibióticos até sexta-feira. Não quero que a inflamação subcutânea se espalhe.

     — Pode ir tranqüila, boa viagem — disse Alexandra.

     — Vou telefonar no final da semana para saber se aconteceu alguma complicação.

     — Quer parar de se preocupar? Vai dar tudo certo. Acredite ou não, o zôo pode sobreviver sem você por duas semanas.

     Tara sorriu. Alexandra tinha razão. Ela ficava sempre ligada demais em seu trabalho. Era uma característica que herdara do pai. Eram as primeiras férias, propriamente falando, que tirava em dois anos, e sabia que tinha de aproveitar ao máximo. Apertando o braço de sua assistente, disse:

     — Desculpe, estou exagerando, não é?

     — Bem, você não acha que as cobras vão sentir saudades de você, acha? Elas não têm sentimentos.

     Tara torceu a boca, fingindo indignação.

     — Como se atreve a falar assim das minhas crianças? Elas choram de saudade de mim toda noite que passo fora.

     Ambas acharam graça. Tara pegou o gancho de serpentes e, juntas, recolocaram a cobra no depósito.

     — Tem certeza de que vai saber colocá-la de volta?

     — Claro — afirmou Alexandra. — Pode ir sossegada.

     Tara apanhou o seu casaco, o capacete, e dirigiu-se para a porta.

     — Antibióticos até sexta-feira, lembre-se.

     — Vá embora, pelo amor de Deus!

     — E não se esqueça de retirar a pedra dela.

     — Meu Deus, Tara!

     Alexandra agarrou um pedaço de pano e arremessou-o. Tara agachou-se, rindo, e fugiu corredor abaixo.

     — E não se esqueça de usar os óculos protetores quando for apanhá-la — advertiu falando por sobre os ombros. — Você sabe como a safada fica depois que é medicada!

     O tráfego da tarde estava pesado, mas ela era bastante hábil em se enfiar nas brechas com sua motobike, cruzando o Tâmisa pela Ponte Vauxhall e indo a toda, nos últimos três quilômetros até Brixton. De vez em quando, consultava o relógio. O seu vôo estava marcado para dali a três horas e ela não tinha sequer arrumado a mala.

     — Que merda! — resmungou por dentro do seu capacete. Morava sozinha, num apartamento de subsolo cavernoso atrás de Brockwell Park. Comprara-o havia cinco anos com o dinheiro que a mãe lhe deixara, e sua melhor amiga, Jenny, tinha se mudado para o quarto vago como locatária.

     Durante alguns anos, levaram uma vida ao estilo boêmio, livre de preocupações, dando festas uma atrás da outra, trocando toda hora de namorados, sem levar nenhum a sério. Então Jenny encontrara Nick e, alguns meses depois, foram morar juntos, deixando Tara para cuidar sozinha do apartamento. O pagamento da hipoteca quase a levou à falência, mas ela não quis mais nenhum inquilino. Começou a gostar de ter seu próprio espaço. Vez por outra, se perguntava se algum dia se acertaria com um homem, como Jenny. E houve uma vez, anos atrás, em que apareceu uma pessoa, mas fazia um bocado de tempo. De modo geral, sentia-se feliz vivendo sozinha.

     Encontrou o apartamento em total desordem, quando entrou. Serviu-se de um copo de vinho, ligada num CD de Lou Reed, e dirigiu-se para o estúdio, onde com um tapa acionou o botão da sua secretária eletrônica. Uma voz metálica feminina anunciou: "Você tem seis mensagens."

     Duas eram de Nigel, um velho amigo da universidade, a primeira convidando-a para jantar no sábado, a segunda cancelando a primeira porque ele se lembrou que ela ia viajar. Outra era de Jenny, prevenindo-a para não sair em nenhuma excursão em camelos, porque todos os cameleiros eram tarados. Outra era da escola confirmando a palestra que daria sobre serpentes, outra era de Harry, um operador da bolsa que já a vinha perseguindo havia dois meses sem que ela respondesse a seus recados, e a última era de seu pai.

     — Tara, eu estava pensando... Será que você me poderia trazer umas garrafas de scotch? E o Times7. Se houver algum problema, me comunique, se não me encontrarei com você no aeroporto. Eu estou... ha... querendo ver você. Sim... ha... espero ansiosamente por ver você. Tchau, então.

     Ela sorriu. Ele sempre ficava sem jeito quando tentava dizer alguma coisa afetuosa. Como a maioria dos acadêmicos, o professor Michael Mullray só se sentia à vontade no mundo das idéias. As emoções atrapalham quem tenta pensar com clareza. E foi por isso que ele e sua mãe se separaram. Porque ele não podia suportar a necessidade de afeto de sua mãe. Mesmo por ocasião da morte dela, seis anos atrás, ele teve que se esforçar para mostrar alguma emoção. No funeral, sentara-se no fundo, sozinho, sem qualquer expressão, perdido nos próprios pensamentos, e saiu imediatamente depois da cerimônia para fazer uma conferência em Oxford.

     Tara terminou o vinho e foi para a cozinha reencher o copo. Sabia que seria melhor deixar em ordem o apartamento, mas estava apertada de tempo, então contentou-se em jogar fora o lixo e tomar um banho, para depois ir para o quarto arrumar o que ia levar.

     Não via o seu pai havia quase um ano, desde a última vez em que ele estivera na Inglaterra. Vez por outra, falavam-se pelo telefone, uma conversa mais funcional do que afetiva. Talvez ele lhe falasse sobre algum novo objeto que houvesse desencavado, ou sobre um curso que estivesse dando; ela conseguiria se lembrar de alguma fofoca sobre seus amigos e colegas de trabalho para lhe contar. Os telefonemas raramente duravam mais que alguns poucos minutos. Todos os anos ele lhe enviava um cartão de feliz aniversário, que todos os anos chegava uma semana atrasado.

     Portanto, ficou bastante surpresa quando, no mês anterior, sem mais nem menos, seu pai telefonara convidando-a para passar as férias com ele. Ele já vivia fora do país há cinco anos e fora a primeira vez que sugerira que viesse visitá-lo.

     A temporada está quase no final — disse ele. — Por que não pega um avião e vem para cá? Você pode ficar no alojamento da escavação, e eu a levaria para conhecer os arredores.

     A sua primeira reação fora de apreensão. Ele estava velho, já bem entrado na faixa dos setenta, e tinha um coração fraco, que o forçava a viver sob tratamento contínuo. Talvez fosse a maneira de dizer que a sua saúde estava declinando e que queria algo do tipo uma reaproximação com ela, antes do fim. No entanto, às suas perguntas, ele insistira que estava perfeitamente bem e apenas havia pensado que seria bom para pai e filha passarem um pouco de tempo juntos. Não era bem do feitio dele e Tara ficou desconfiada, mas, no final das contas, pensou, ora dane-se!, e reservou a passagem. Ao lhe telefonar para avisar quando chegaria, ele lhe pareceu sinceramente satisfeito.

     — Esplêndido! — exclamou. — Vai ser como nos velhos tempos.

     Ela colocou suas roupas sobre a cama, escolhendo com cuidado as peças que desejava levar e jogando-as numa grande bolsa de viagem. Sentiu vontade de fumar um cigarro, mas resistiu à tentação. Havia parado de fumar fazia quase um ano e não queria recomeçar, e não apenas porque, se conseguisse completar um ano sem fumar, ganharia cem libras de Jenny. Como sempre fazia quando a vontade de fumar apertava, pegou um cubo de gelo do freezer e pôs-se a sorvê-lo.

     Tara se perguntou se deveria ter comprado um presente para o pai, mas agora não havia mais tempo e, fosse como fosse, mesmo se tivesse comprado alguma coisa, ele quase com certeza não ia gostar do presente. Tara recordou a dolorosa decepção de muitos natais, ela ainda criança, quando se punha a pensar durante semanas o que lhe daria, apenas para ele abrir o seu presente, tão cuidadosamente escolhido, e murmurar um agradecimento sem entusiasmo: "Encantador, querida. Justamente o que eu queria", para logo a seguir desaparecer por trás de seu jornal novamente. Ela lhe compraria uma garrafa de uísque no duty-free, o Times, e talvez uma loção após-barba, e isso teria de servir.

     Jogando algumas últimas bugigangas na mochila, entrou no banheiro e tomou uma chuveirada. Uma parte dela estava morrendo de medo da viagem. Sabia que acabariam brigando, por mais que tentassem seria difícil evitar. Ao mesmo tempo, não podia deixar de sentir-se emocionada. Já fazia um bom tempo desde a última vez em que estivera no exterior e se as coisas ficassem muito ruins, sempre podia dar o fora e sair viajando por conta própria durante alguns dias. Não era mais uma criança, dependente do pai. Podia fazer o que quisesse. Aumentou a temperatura do chuveiro e inclinou a cabeça para trás para que a água corresse pelos seios e estômago. E começou a cantarolar.

     Mais tarde, já tendo trancado todas as janelas, saiu de casa carregando sua bolsa de viagem, e bateu a porta atrás de si. Estava escuro agora e um leve chuvisco começara a cair, fazendo a calçada brilhar sob as luzes da rua. Normalmente, um tempo desses a deixava deprimida, mas não esta noite.

     Checou se estava com seu passaporte e as passagens, e encaminhou-se para a estação, sorrindo. No Cairo, pelo que sabia, nunca fazia menos de trinta graus.

    

CAIRO

     Está na hora de fechar por esta noite, minha pequena — disse o velho Iqbar. — Hora de você ir para casa, onde quer que seja.

     A menina permaneceu imóvel, brincando com os cabelos. O seu rosto estava sujo e um pouco de muco brilhoso saía do seu nariz.

     — Você já pode ir — disse Iqbar. — Pode ir, e volte amanhã para me ajudar, se quiser.

     A garota não respondeu, apenas ficou olhando para ele. Iqbar deu um passo na direção dela, mancando acentuadamente e respirando com dificuldade.

     — Vamos, vamos, sem brincadeiras. Sou um homem velho e estou cansado.

     A loja estava começando a ficar às escuras. Uma única lâmpada sem lustre emitia uma luz débil, porém, nos cantos, as sombras tornavam-se cada vez mais densas. Pilhas de pequenos artigos misturados afundavam lentamente na escuridão, como se mergulhassem numa superfície líquida. Lá de fora veio o grasnado triste de uma buzina e o som de alguém martelando.

     Iqbar deu mais um passo à frente, a barriga saliente por baixo do seu djelaba. Seus dentes, estragados e manchados, pareciam algo ameaçadores. A sua voz, contudo, era gentil e a menina não demonstrava ter nenhum receio dele.

     — Você vai para casa ou não vai? A garota balançou a cabeça.

     — Nesse caso — disse ele, voltando as costas e arrastando os pés em direção à entrada da loja —, terei de fechar você aqui dentro para passar a noite. E é claro que é à noite que os fantasmas costumam aparecer. — Ele parou à porta e retirou um feixe de chaves do bolso. — Já contei a você sobre esses fantasmas? Tenho certeza de que falei com você. Todos os antiquários da cidade são mal-assombrados. Por exemplo, naquela velha lâmpada ali — ele apontou para uma lâmpada de latão colocada numa prateleira —, mora um gênio chamado al-Ghul. Ele tem mil anos de idade e consegue assumir a forma que bem entenda.

     A garota arregalou os olhos para a lâmpada, espantada.

     — E está vendo aquela velha arca de madeira ali, no canto, aquela com uma grande fechadura e as braçadeiras de ferro? Bem, tem um crocodilo ali dentro. Um enorme crocodilo verde. Durante o dia ele dorme, porém à noite sai para caçar crianças. Para quê? Para devorá-las, é claro. Ele as pega na sua bocarra e as engole inteirinhas.

     A garota mordeu os lábios, os olhos indo e voltando rápido da arca para a lâmpada.

     — E aquela faca, pendurada ali na parede, com a lâmina encurvada. Ela pertenceu a um rei. Um homem muito cruel. Todas as noites, ele volta, pega a faca e corta a garganta de qualquer pessoa em quem consegue pôr as mãos. Ah, sim, esta loja está cheia de fantasmas. Portanto, se pretende passar a noite aqui, minha pequena amiga, esteja à vontade.

     Sorrindo furtivamente para si mesmo, escancarou a porta, fazendo retinir uma armação de pequenos sinos de latão. A menina deu alguns passos à frente, com medo de ser trancada dentro da loja. No que a ouviu mover-se, Iqbar voltou-se, erguendo as mãos, como se fossem garras, e soltou um rosnado. A garota gritou e riu ao mesmo tempo, e escapuliu para dentro das sombras nos fundos da loja, onde se agachou atrás de um par de velhas cestas de vime.

     — Então, ela quer brincar de esconde-esconde, não é? — grunhiu o velho, indo atrás dela com um sorriso no rosto. — Ora, não vai ser fácil conseguir se esconder de Iqbar. Ele pode ter apenas um olho, mas é um olho muito bom. Ninguém consegue se esconder do velho Iqbar.

     Ele a via tentando se ocultar atrás das cestas, espiando pela brechas entre elas. Não quis estragar sua alegria depressa demais e assim, arrastando os pés, fingiu não vê-la, ao passar por ela, e abriu as portas de um velho guarda-louças de madeira.

     — Será que ela está aqui dentro? — Iqbar fez que espiava dentro do guarda-louças. — Não, não está no guarda-louças. Ela é mais esperta do que pensei.

     O velho fechou o guarda-louças e entrou num aposento na parte de trás da loja, onde foi fazendo o máximo barulho que pôde, abrindo gavetas e esbarrando nos arquivos.

     — Você está aqui dentro, monstrinho? — gritou, divertindo-se. — Escondeu-se no meu escritório secreto? Oh, ela é uma sabichona, não é?

     Continuou ainda algum tempo fazendo estardalhaço e depois saiu, os passos titubeantes, parando exatamente junto das cestas. Podia ouvir as risadinhas reprimidas da garota.

     — Agora, deixe-me pensar. Ela não estava no guarda-louças e não estava no escritório. Tenho certeza de que não seria tola bastante para esconder-se na arca de madeira com o crocodilo. Assim, se não me engano, há apenas um único lugar em que ela pode estar. E é bem aqui atrás destas cestas. Vamos ver se o velho Iqbar está certo.

     Ele se abaixou. E nesse instante os sinos na porta reuniram, desafinados, e alguém entrou na loja. Ele se virou, espigando-se. A menina permaneceu onde estava escondida.

   — Já estávamos fechando — disse Iqbar, arrastando os pés na direção dos dois homens parados no vão da porta. — Mas, se os senhores querem apenas dar uma espiada por aí, por favor, não tenham pressa.

     Os homens ignoraram-no. Eram jovens, com pouco mais de vinte anos, barbados; ambos vestidos com túnicas pretas, sujas, com um imma preto atado em torno da testa. Olharam em volta da loja por um momento, medindo-a de cima a baixo, e então um deles deu um passo para fora, fazendo um sinal. Tornou a voltar um instante depois, seguido por outro homem, um homem branco.

     — Em que posso ajudá-los? — perguntou Iqbar. — Estão procurando por alguma coisa em particular?

     O recém-chegado era um gigante, alto e de ombros largos, grande demais para o terno de linho barato que usava, bastante apertado em suas coxas grossas e em seus ombros maciços. Mantinha um charuto aceso, já fumado pela metade na mão e uma pasta, na outra, as letras CD estampadas no couro marrom já gasto. O lado esquerdo da face, da têmpora até quase chegar à boca, estampava um lívido sinal de nascença púrpura. Iqbar sentiu um arrepio de medo.

     — Posso ajudá-lo? — ele repetiu.

     O homem gigante fechou a porta da loja gentilmente, girando a chave na fechadura e fazendo um sinal para seus acompanhantes, que se adiantaram para Iqbar, sem expressão alguma no rosto. O lojista recuou até esbarrar no balcão da loja.

     — O que vocês querem? — disse, começando a tossir. — Por favor, o que desejam?

     O gigante caminhou até junto de Iqbar e parou diante dele, as suas barrigas quase se tocando. Ele o fitou durante um momento, sorrindo, e depois, levantando o charuto, apagou-o no tapa-olho do velho. Iqbar berrou, levando as mãos ao rosto.

     — Por favor, por favor! — exclamou, tossindo. — Não tenho dinheiro. Sou um homem pobre!

     — Você está com uma coisa que nos pertence — disse o gigante. — Uma antigüidade. Chegou para você ontem. Onde está?

     Iqbar estava encurvado, os braços em volta da cabeça, protegendo-a.

     — Não sei do que está falando — falou ofegante. — Não tenho nenhuma antigüidade aqui. É ilegal negociar com elas!

     O gigante fez um sinal para os seus dois capangas, que agarraram o velho pelos cotovelos, forçando-o a ficar ereto. Iqbar voltou a cabeça para um lado, face comprimida contra o ombro, como se estivesse tentando se esconder. O turbante de um dos homens deslizou ligeiramente para cima, revelando uma cicatriz espessa correndo para o centro da testa, lisa e pálida como se uma sanguessuga estivesse presa à pele. A visão pareceu aterrorizar o velho.

     — Por favor! — ele gemeu. — Por favor!

     Onde está? — repetiu seu inquisidor.

     Por favor, por favor!

     O gigante murmurou alguma coisa para si mesmo e, colocando sua pasta no chão, retirou o que parecia uma pequena pá de pedreiro. A lâmina com formato de diamante estava suja, a não ser nas bordas, onde o metal brilhava como se tivesse sido amolado.

     Você sabe o que é isto? — perguntou.

     O velho fitava a lâmina, mudo de terror.

     — É uma pá arqueológica — sorriu o gigante. — Nós a usamos para desbastar o solo, cuidadosamente... assim.

     Ele fez a demonstração, passando a pá de um lado para o outro diante da face aterrorizada do homem velho.

     — Mas também tem outras utilidades.

     Com um movimento rápido — surpreendentemente rápido para um homem do seu tamanho — ele riscou o ar com a espátula, produzindo um rasgão no rosto de Iqbar. A pele abriu-se como uma boca e o sangue jorrou sobre a túnica do velho. Iqbar gritava e se debatia pateticamente.

     — Agora — disse o gigante — lhe pergunto mais uma vez. Onde está a peça?

     Por detrás das cestas de vime, a menina rezou para algum gênio, sair de sua lâmpada e vir ajudar o velho.

     Já passava da meia-noite quando o avião tocou o solo.

     — Bem-vindos ao Cairo — disse a aeromoça, enquanto Tara deixava a cabine, recebendo em cheio uma baforada quente e fumaça de diesel. — Tenha uma boa estada aqui.

     O vôo transcorrera sem nenhuma anormalidade. Ela havia se sentado numa poltrona do corredor, junto a um casal com rostos avermelhados, que passara a primeira metade da viagem prevenindo-a contra problemas estomacais que estaria propensa a sofrer devido à comida egípcia e a segunda, dormindo. Tara bebeu algumas doses de vodca, assistiu à metade do filme projetado durante o vôo, comprou uma garrafa de scotch no carrinho de duty-free e depois inclinou a poltrona para trás e ficou olhando para o teto. Teve vontade de fumar, como sempre acontecia quando voava, mas, em vez de ceder, pediu os cubos de gelo habituais.

     Seu pai trabalhava no Egito desde que ela era criança. Segundo as pessoas que entendiam do assunto, ele era um dos mais renomados arqueólogos contemporâneos. "Ele está à altura de um Petrie e de um Carter", um dos colegas dele dissera-lhe certa vez. "Se tem alguém vivo que tenha dado mais para o avanço do nosso conhecimento sobre o Antigo Reinado, ainda estou por conhecer."

   Ela devia se sentir orgulhosa. Mas a verdade é que as conquistas acadêmicas do pai nunca a entusiasmaram. Tudo o que sabia, e tudo o que soubera durante sua primeira infância foi que ele parecia mais feliz num mundo que já estava morto havia quatro mil anos do que com a família. Mesmo o seu nome, Tara, tinha sido escolhido porque incorporava o nome do deus-sol egípcio Rá.

     Todo ano, ele viajava para o Egito, para realizar suas escavações. No início, ficava fora apenas durante um mês, se tanto, partindo em novembro e voltando pouco antes do Natal. No entanto, à medida que Tara ia crescendo e o casamento dos seus pais lentamente desmoronava, começou a passar cada vez mais tempo fora.

     — Seu pai está com outra mulher — sua mãe lhe dissera, certa ocasião. — O nome dela é Egito. — Era para ser uma piada, mas nenhuma das duas achou graça.

     Então veio o câncer, e sua mãe entrou num rápido declínio. Foi nessa época que, pela primeira vez, Tara começou realmente a odiar o seu pai. Enquanto a doença mastigava os pulmões e o fígado de sua mãe e o pai mantinha a distância habitual, incapaz até mesmo de oferecer algumas palavras de consolo, ela sentiu uma espécie de fúria consumindo-a contra este homem que parecia dar mais valor a túmulos e velhos fragmentos de cerâmica do que à sua própria carne e sangue. Alguns dias antes da morte da mãe, Tara telefonou para o Egito para lhe dizer palavrões aos gritos, surpreendendo até mesmo a si mesma com a violência da sua raiva. No funeral, mal se falaram, e logo a seguir ele se mudara definitivamente para o Egito, dando aulas durante oito meses ao ano na Universidade Americana do Cairo e escavando nos outros quatro. Ficaram sem trocar sequer uma palavra durante quase dois anos.

     No entanto, e apesar de tudo, ela guardava também algumas boas lembranças dele. Certa vez, por exemplo, ainda criança, ela estava chorando por uma razão qualquer e, para fazê-la parar, ele executou um truque de mágica, fazendo parecer que tirava fora o polegar da mão. Ela riu às gargalhadas e insistiu para que ele repetisse o truque, de novo e de novo, fixando os olhos, maravilhada, e ele fazendo de conta vezes seguidas que separava o seu polegar da mão, simulando, ainda, gemidos de dor, enquanto fazia o dedo arrancado dançar no ar.

     Na manhã do seu aniversário de quinze anos — e esta era a sua lembrança favorita —, no que Tara acordou, encontrou um envelope endereçado a ela, sobre a colcha da cama. Ao abri-lo, encontrara a primeira pista de uma trilha do tesouro que a levou a percorrer toda a casa e o jardim até que acabou conduzindo-a ao sótão, onde encontrou um finíssimo colar de ouro escondido no fundo de um velho baú. Cada pista era um verso rimado, escrito sobre pergaminho, com desenhos e símbolos acrescentando um ar ainda mais misterioso à brincadeira. Seu pai devia ter gastado muitas horas fazendo tudo aquilo. Mais tarde, ele levou Tara e a mãe para jantar fora, regalando ambas com maravilhosas histórias de escavações e descobertas, e personagens excêntricos do meio acadêmico.

     — Você está muito bonita, Tara — dissera-lhe, inclinando-se à frente para ajustar o novo colar de ouro, que ela tivera o cuidado de usar. — A garota mais bonita do mundo. Estou muito, muito orgulhoso de você.

     Momentos como estes — mesmo escassos e pouco usuais — compensavam de certo modo a frieza de seu pai e seu alheamento, e era o que a ligava a ele. Fora esta a razão pela qual lhe telefonara dois anos depois do funeral de sua mãe, pedindo uma reconciliação após o longo silêncio entre ambos. E, num certo sentido, foi esse também o motivo pelo qual estava viajando agora para o Egito. Porque sabia que no fundo, ao seu modo e a despeito das suas inumeráveis falhas, ele era um homem bom, que ele a amava e que precisava dela também, assim como ela precisava dele. E, é claro, havia a esperança — como acontecia sempre que se encontrava com ele — de que talvez desta vez as coisas fossem diferentes. Talvez eles não brigassem, não acabassem aos gritos um com o outro. Talvez, pudessem aproveitar satisfeitos e muito à vontade a companhia um do outro, como se comportam pai com filha. Talvez desta vez conseguissem fazer as coisas andarem bem.

     "Mas é um risco e tanto!" refletiu consigo mesma, enquanto o avião aterrissava. "Você vai é ficar satisfeita de revê-lo por uns cinco minutos, e então começarão a discutir novamente."

     — Suponho que saiba — falou sua vizinha de poltrona jovialmente — que os acidentes de avião acontecem mais na hora do pouso do que durante o vôo.

     Tara pediu mais cubos de gelo à comissária de bordo.

     Finalmente, quase uma hora depois de haver aterrissado, ela apareceu no saguão de chegada do aeroporto. Houve uma espera interminável na inspeção dos passaportes, seguida de outra demora, na liberação das bagagens, onde os guardas de segurança executavam uma revista aleatória.

     — Sayfal-Tha'r—um companheiro de viagem dissera-lhe, balançando a cabeça. — Quantos problemas ele causa. Esse homem pode levar o país à paralisia!

     Antes que Tara pudesse perguntar do que estava falando, ele já havia localizado a sua bagagem e fazia sinal para um carregador apanhá-la, mergulhando em seguida na multidão. A sacola de Tara surgiu alguns minutos mais tarde e tudo o mais no momento fora esquecido, ela a pendurou no ombro e encaminhou-se para a alfândega, o coração saltando de tanta expectativa.

     Desde a primeira conversa com o pai, começara a se imaginar indo ao seu encontro no saguão de chegada, ele de pé, esperando, os dois aos gritos de alegria e correndo um para o outro de braços abertos. Mas, efetivamente, a única pessoa que a cumprimentou foi o chofer de táxi, caçando passageiros. Ela percorreu os olhos ao longo da fileira de rostos alinhados junto à barra que delimitava o saguão de chegada, mas seu pai não era nenhum deles.

     Mesmo àquela hora, o terminal estava movimentado. Parentes dando-se as boas-vindas e se despedindo ruidosamente, crianças correndo e brincando entre as cadeiras de plástico, turistas de excursões apinhados em torno de representantes das agências de aparência exausta. Policiais de uniforme preto circulando ostensivamente com os cinturões em que encaixavam seus coldres com armas atravessados no peito.

     Ela esperou, por algum tempo, na barra divisória, depois começou a vaguear pelo saguão. Saindo do terminal, o representante de uma agência de turismo confundiu-a com alguém do seu grupo e tentou empurrá-la para dentro de um ônibus. Ela retornou para o interior do terminal, percorreu-o por mais alguns instantes até encontrar um lugar onde fazer câmbio, depois comprou um copinho de café e foi se sentar num lugar que oferecia uma boa visão tanto da entrada do terminal quanto da cancela de chegada.

     Depois de uma hora, telefonou para o pai de um telefone público, porém ninguém respondeu, nem do alojamento da escavação, nem do apartamento que ele mantinha no centro de Cairo. Ela se perguntou se o táxi dele poderia ter ficado detido no trânsito — presumia que teria vindo pegá-la de táxi, ele nunca aprendera a dirigir — ou se adoecera ou, com o seu pai era sempre uma possibilidade, simplesmente se esquecera de que ela estaria chegando.

     Mas, não, ele não se esqueceria. Não desta vez. Não depois de ter demonstrado tanta satisfação com sua chegada. Ele estava atrasado. Era tudo. Apenas atrasado. Tomou mais um copinho de café, instalou-se numa cadeira e abriu um livro.

     "Droga!", ela pensou. "Esqueci de comprar para ele o Times."

    

LUXOR, NA MANHÃ SEGUINTE

     O inspetor Yusuf Ezz el-Din Khalifa levantou-se antes do alvorecer e, após ter tomado um banho de chuveiro e ter-se vestido, foi para a sala de estar fazer as suas orações matinais. Sentia-se cansado e irritadiço, como de costume, toda manhã. O ritual religioso, levantar-se, ajoelhar-se, curvar-se e proferir as orações, clareava-lhe a cabeça. No instante em que o concluía, sentia-se mais leve, calmo e fortalecido. Como acontecia todas as manhãs.

     — Wa lillah al-shukr — dissecara si mesmo, indo para a cozinha fazer o café. — Graças sejam dadas a Deus. Grande é o seu poder.

     Pôs um pouco de água para ferver, acendeu um cigarro e ficou observando uma mulher lá fora que estendia a roupa lavada no telhado oposto, justamente abaixo do nível da janela da sua cozinha, a uns três metros de distância. Várias vezes já tinha se perguntado se conseguiria pular do seu edifício para o dela, vencendo a estreita aléia que os separava. Nos dias de sua juventude, provavelmente já teria feito uma tentativa. Seu irmão, Ali, com toda certeza, teria se mostrado mais do que disposto a aceitar o desafio. No entanto, Ali estava morto, e ele próprio agora tinha responsabilidades. Era uma altura de uns vinte metros do chão e, com mulher e três crianças pequenas, não podia dar-se o luxo de correr tal risco. Ou talvez fosse apenas uma desculpa. Além do mais, jamais gostara muito de alturas.

     Misturou café e açúcar à água fervendo, deixando-a borbulhar até a beirada do frasco antes de despejá-lo dentro de um copo. A seguir, foi para dentro da casa, até o vestíbulo da frente, um enorme espaço sombrio para o qual todos os quartos do apartamento se abriam. Há seis meses estava construindo uma fonte ali, e o chão era um amontoado assustador de sacos de cimento, lajotas e tubos de plástico. Era uma fonte pequena, nada demais, e a tarefa deveria ter durado algo em torno de duas semanas. Mas sempre aparecia alguma coisa para tirá-lo do trabalho, as semanas estendiam-se em meses e o trabalho ainda estava na metade. Na verdade, não havia espaço para a tal fonte, e sua mulher vivia reclamando amargamente da bagunça e das despesas, mas ele sempre quisera uma fonte e, fosse como fosse, traria um pouco de colorido àquele apartamento tão monótono. Ele se agachou e enfiou o dedo num monturo de areia, pensando que talvez tivesse tempo suficiente para assentar algumas telhas antes de sair para o escritório. O telefone tocou.

     — É para você — disse a sua mulher sonolenta, no que ele entrou no quarto de dormir. — Mohammed Sariya.

     Ela lhe passou o fone e deslizou para fora da cama, erguendo o bebê do seu berço e desaparecendo em direção à cozinha. Seu filho entrou, pulou para a cama e começou a dar saltos animados junto dele.

     — Bass, Ali! — disse ele, empurrando o garoto. — Pare! Alô, Mohammed. É cedo ainda. O que aconteceu?

     A voz do seu assistente soou no outro extremo da linha. Khalifa segurou o fone com a mão direita enquanto usava a esquerda para defender-se do filho.

     — Onde? — perguntou.

     O assistente respondeu. Pela voz, parecia nervoso.

     — Você está aí, agora?

     O filho de Khalifa estava rindo e tentando atingi-lo com um travesseiro.

     — Já falei para parar, Ali. Desculpe, o que foi que você disse? Certo, fique onde está. E não deixe ninguém chegar perto. Vou para aí imediatamente.

     Ele recolocou o fone no lugar e, agarrando o filho, virou-o de cabeça para baixo e beijou os seus pés nus, um de cada vez. O garoto estremecia de tanto rir.

     — Me vira, pai — gritava. — Me vira de cabeça para cima.

     — Vou virar, sim, e depois vou jogar você pela janela — disse Khalifa. — Assim quem sabe você voa para longe e me deixa um pouco em paz.

     Ele jogou o garoto na cama e foi para a cozinha, onde Zenah, sua esposa, preparava mais café, o bebê sugando-lhe o peito. Da sala, veio o som de sua filha cantando.

     — Como ele está? — perguntou, beijando a esposa e fazendo cócegas nos dedos dos pés do bebê.

     — Faminto — ela sorriu. — Como o pai dele sempre está. Quer o café da manhã?

     — Não dá tempo — disse Khalifa. — Tenho de ir para a margem oeste.

     — Sem tomar café?

     — Aconteceu uma coisa.

     — O quê?

     Ele olhou para a mulher estendendo roupa lavada sobre o teto no outro lado da rua.

     — Um cadáver — respondeu. — Acho que não vou voltar para o almoço.

     Khalifa cruzou o Nilo numa das lanchas com motor brilhantemente pintado que faziam a travessia nos dois sentidos entre as duas margens. Normalmente, teria usado o barco, mas a pressa era tanta que preferiu pagar mais e tomar uma lancha para transporte individual. Justo no momento em que iam partir, um senhor idoso chegou apressado com uma caixa de madeira segura debaixo do braço. Ele se agarrou na balaustrada do barco e subiu a bordo.

     — Bom dia, inspetor — disse, ofegante, colocando a caixa aos pés de Khalifa. — Quer engraxar?

     Khalifa sorriu.

     — Você não deixa passar nenhuma chance, não é, Ibrahim?

     O velho deu uma risada mais parecida com um cacarejo, revelando duas fileiras de dentes de ouro desiguais.

     — Um homem precisa comer. E um homem precisa andar com sapatos limpos, também. Assim, ajudamos um ao outro.

     — Vá em frente, então. Mas, seja rápido. Tenho mais o que fazer do outro lado e não posso ficar à toa enquanto atracamos.

     — Você me conhece, inspetor. O engraxate mais rápido de Luxor.

     Ele tirou da caixa alguns trapos, escova e polidor, e deu um tapinha na caixa, indicando que Khalifa devia pôr os pés em cima dela. Um menino sentou-se silenciosamente na popa, cuidando do motor, com a fisionomia impassível.

     Deslizaram pela água transparente, as colinas de Tebas surgindo à frente, mudando de cor de cinzento para marrom e depois para amarelo sob a luz do dia que ia se firmando. Outras lanchas passavam por eles, por ambos os lados, e uma, mais distante, à direita, levando um grupo de turistas japoneses. Provavelmente para um passeio de balão por sobre o Vale dos Reis, pensou Khalifa, para admirar o nascer do sol. Aí estava uma coisa que ele sempre desejou fazer, mas a trezentos dólares por passeio, não era para ele. E provavelmente, com os salários pagos pelo departamento de polícia, nunca seria.

     Chegaram à margem ocidental, passando por uma brecha entre duas outras lanchas e avançando ruidosamente sobre a margem de cascalho. O velho deu um último e rápido polimento na ponta dos sapatos de Khalifa e bateu palmas com as mãos sujas de graxa, indicando que havia terminado o serviço. O detetive estendeu-lhe duas libras egípcias, deu o mesmo para o garoto e pulou para a praia.

     — Eu espero pelo senhor — disse o garoto.

     — Não precisa — replicou ele. — Até a próxima, Ibrahim.

     O detetive virou-se e subiu até o topo do banco de areia onde uma grande aglomeração estava aguardando a próxima barca. Abriu caminho em ziguezague através da multidão, espremendo-se por uma brecha entre uma parede e uma pesada cerca de arame enferrujado, seguindo depois por uma trilha estreita e poeirenta ao longo do rio. Havia fazendeiros nos campos, colhendo milho e cana-de-açúcar, e dois homens estavam mergulhados até a cintura numa vala de irrigação, eliminando da terra as ervas daninhas. Grupos de crianças, trajando camisas brancas muito limpas, passavam correndo por ele, a caminho da escola. O calor estava aumentando. Khalifa acendeu outro cigarro.

     Levou uns vinte minutos para alcançar o corpo. Já então os edifícios do lado ocidental de Luxor pareceram afastar-se, tornando-se um borrão distante, e os sapatos que ele acabara de engraxar estavam cobertos de poeira branca. Ele emergiu de uma floresta de juncos e logo à sua frente estava o sargento Sariya, agachado na margem, junto ao que parecia uma maçaroca de trapos molhados. Ele se ergueu à aproximação de Khalifa.

     — Já telefonei para o hospital — disse ele. — Estão mandando alguém para cá.

     Khalifa assentiu com a cabeça e desceu para a beira da água. O corpo estava caído de bruços, braços estendidos, rosto enterrado na lama, a camisa rasgada e suja de sangue. Da cintura para baixo ainda se encontrava dentro d'água, a batida das ondas movimentando-o de um modo que parecia alguém remexendo-se dormindo. Um tênue odor de algo deteriorado subiu-lhe até às narinas.

     — Quando ele foi encontrado?

     — Logo antes do amanhecer — respondeu o subdelegado. — Devia estar flutuando rio acima e foi apanhado pela hélice de um barco. É por isso que os braços estão tão lacerados.

     — Estava deste mesmo jeito quando você chegou aqui? Não tocou em nada?

     Sariya fez que não com um movimento de cabeça. Khalifa agachou-se ao lado do corpo, examinando a área ao redor. Levantou o pulso, observando uma tatuagem na metade do antebraço.

     — Um escaravelho — disse ele, sorrindo sutilmente. — Muito inapropriado.

     — Por que inapropriado?

     — Para os egípcios antigos, o escaravelho era um símbolo de renascimento e renovação. O destino para nosso amigo aqui vai ser bastante diferente — observou, largando o pulso do cadáver de volta no chão. — Você não tem idéia de quem nos chamou aqui?

   Sariya sacudiu a cabeça.

     — Não quis dar o nome. Telefonou para a estação de um telefone público e disse que encontrou o corpo quando desceu até aqui para pescar.

     — Tem certeza de que era um telefone público?

     — Toda. A ligação caiu, interrompendo uma frase dele no meio, como alguém que fica sem dinheiro.

     Khalifa permaneceu alguns instantes em silêncio, pensando, e depois ergueu a cabeça, indicando um agrupamento de árvores à distância de cinqüenta metros além do qual se poderia ver o teto de uma casa. O fio escuro e fino de um cabo de telefone era nitidamente distinguível, abaixo do seu beiral. Sariya elevou as suas sobrancelhas.

     — E daí?

     — O telefone público mais próximo fica a dois quilômetros daqui, lá na cidade. Por que ele não fez a chamada dali?

     — Pode ser que estivesse em estado de choque. Não é todo dia que cadáveres são trazidos pela água, até aqui, nessas margens.

     — Precisamente. Era de se esperar que ele quisesse dar a notícia o mais depressa possível. E por que não deixaria o nome? Você sabe como é o pessoal destas redondezas. Nunca perde a oportunidade de aparecer nos noticiários.

     — Você acha que ele poderia estar sabendo de alguma coisa? Khalifa deu de ombros.

     — É apenas estranho. Como se não quisesse que alguém ficasse sabendo que fora ele quem encontrara o cadáver. Como se estivesse com medo.

     Ouviu-se ruído na água, e uma garça saiu voando dentre os juncos, batendo desajeitadamente as asas num trajeto em forma de arco, no ar, rio abaixo. Khalifa observou-a por um momento, então, balançando a cabeça, voltou a sua atenção para o corpo. Começou a remexer nos bolsos das calças, de onde retirou um canivete, um isqueiro barato e um pedaço de papel encharcado, dobrado, que colocou sobre as costas do corpo e desdobrou cheio de cuidados.

     — Uma passagem de trem — disse, aproximando o rosto para examinar as letras desbotadas. — De volta do Cairo. Datada de quatro dias atrás.

     Sariya deu-lhe um saco plástico, onde ele deixou cair os objetos.

     — Vamos, me dê uma ajuda aqui.

     Juntos, agacharam-se junto ao corpo e, colocando as mãos por debaixo, giraram-no, deitando-o de costas, a lama sendo esmagada por debaixo de seus pés. Ao ver o rosto, Sariya cambaleou e teve uma violenta ânsia de vômito.

     — Allah u akbar— exclamou, tossindo. — Deus todo-poderoso!

     Khalifa mordeu os lábios, forçando-se a olhar. Já vira cadáveres antes, é claro, mas nenhum tão brutalmente mutilado. Mesmo coberto com uma máscara de lama, era evidente que não restava muito do rosto. A órbita do olho esquerdo estava vazia, o nariz virara uma massa de carne e cartilagem retalhadas. Khalifa ainda ficou um momento examinando o que via, lutando para formar a imagem de algo que algum dia poderia ter sido um rosto com vida. Então, erguendo-se novamente, dirigiu-se até Sariya e pousou a mão no ombro dele.

     — Você está bem?

     Sariya assentiu de cabeça, bloqueou uma das narinas com um dedo e assoou fortemente, fazendo uma pequena massa de muco projetar-se na lama.

     — Mas o que foi que aconteceu com ele?

     — Não sei. Talvez uma hélice, como você disse. Só que não vejo como uma hélice poderia ter arrancado fora o olho, ou causado esse tipo de ferimentos.

     — Você está querendo dizer que alguém fez isso deliberadamente?

     — Não estou querendo dizer nada. Apenas que uma hélice esfacelaria a carne completamente, não a fatiaria dessa maneira. Repare como a pele... — Ele pressentiu que o seu assistente estava prestes a ser acometido de uma nova crise de náusea e parou a frase no meio, não desejando incomodá-lo mais. — Vamos esperar o resultado da autópsia — disse apenas, depois de uma pausa.

     Ele acendeu dois cigarros e passou um para Sariya, que inalou uma baforada profunda, mas logo a seguir arremessou-o de lado e cambaleou até a margem para vomitar. Khalifa voltou-lhe as costas e encaminhou-se de volta à linha da água, vasculhando com os olhos a margem oposta. Uma procissão de embarcações, das que costumavam percorrer o Nilo, estava enfileirada ao longo da elevação que acompanhava a margem, e além delas, pouco visível, a primeira torre do Templo de Karnak. Uma faluca atravessou sua linha de visão, a enorme vela triangular cortando o céu como se fosse uma lâmina. Ele despachou com um peteleco o cigarro, jogando-o dentro da água, e suspirou. Suspeitava que ia demorar um pouco até ter a chance de trabalhar na sua fonte novamente.

     Enquanto o inspetor Khalifa permanecia junto ao rio, um grupo de turistas montados em mulas começava a subir as colinas às suas costas. Eram vinte ao todo, na maioria americanos, avançando em fila indiana, com um garoto egípcio à frente como guia e outro no final da fila, para garantir que ninguém ficasse para trás. Alguns agarravam-se nervosos às suas selas, tensos por causa dos precipícios, fazendo caretas a cada solavanco. Uma em particular, uma mulher robusta com os ombros vermelhos de queimaduras do sol, não estava se divertindo nem um pouco com a experiência.

     — Ninguém avisou que a gente ia passar tão junto de um despenhadeiro como esse — ela não parava de gritar. — Disseram que ia ser um caminho fácil. Deus do céu!

     Outros, no entanto, pareciam mais relaxados, virando-se de um lado para o outro nas selas para melhor aproveitarem o espetáculo da paisagem. O sol estava alto agora e a planície abaixo deles pulsava e reluzia sob o calor. Ao longe, era possível enxergar a linha prateada e serpenteante do Nilo, mais adiante a massa compacta do lado oriental de Luxor, e para além o borrão quase indistinto do deserto e das montanhas, não mais do que uma mancha contra o céu palidamente azul. A todo momento, o guia detinha a marcha para apontar algumas das paisagens abaixo: o Colosso de Mêmnon, parecendo àquela distância apenas brinquedos, as ruínas do que restou de Ramesseum, o vasto conjunto do templo mortuário de Ramsés III em Medinet Habu. Os que não estavam amedrontados demais, erguiam suas câmeras e batiam fotos. Fora os ruídos do tropel das mulas, o barulho que seus cascos produziam esmagando a areia e o alvoroço da mulher com queimaduras de sol, eles seguiam praticamente em silêncio, fascinados pelo cenário.

     — Faz Minnesota parecer uma merda — murmurou um homem para a sua mulher.

     Finalmente, chegaram ao ponto mais alto das colinas, onde a trilha alargava-se e ficava mais plana, permanecendo assim por algum tempo, antes de embicarem de novo no declive de um vasto vale rochoso.

     — Ali à frente é o Vale dos Reis — gritou o guia. — Cuidado. Segurem-se! A descida é um bocado inclinada.

     — Meu Deus — soou uma voz trêmula atrás dele.

     Tinham apenas iniciado a travessia do espinhaço, as mulas ziguezagueando entre rochas espalhadas, quando um homem subitamente saltou da sombra de enorme rocha arredondada pela erosão, onde estivera deitado.

     Seu djellaba estava sujo e rasgado, e seus cabelos emaranhados caíam bem abaixo dos ombros, dando-lhe aspecto desleixado e mesmo selvagem. Na mão, segurava algo embrulhado em papel pardo. Ele se adiantou ligeiro, em direção aos turistas.

     — Olá olá, bom dia boa noite — disse, emendando as palavras umas nas outras. — Olhem aqui por favor amigos. Tenho uma coisa de que sei que vão gostar.

     O guia das mulas gritou qualquer coisa para ele em árabe, mas o homem o ignorou e dirigiu-se a um dos turistas, uma jovem usando um chapéu de sal de abas largas. Erguendo o objeto em sua mão, desembrulhou-o, exibindo um gato talhado numa pedra escura.

     — Veja senhora um trabalho muito bonito. Compre, compre. Eu muito pobre preciso comida. Você linda senhora compre!

     Estendeu a escultura para ela com uma mão, ao mesmo tempo levando a outra à boca indicando sua fome.

     — Compre compre. Não como faz três dias. Por favor compre. Fome. Fome. A mulher olhava fixamente à frente, sem demonstrar dar-se conta da presença dele. Depois de segui-la aos tropeços por alguns metros, o homem desistiu e voltou sua atenção para o homem que vinha atrás dela.

     — Olhe, olhe senhor bela escultura. Muito boa qualidade. Quanto quer pagar dê o preço dê o preço.

     — Ignore-o — disse o guia por cima do ombro. — Ele é maluco.

     — Sim sim maluco — riu-se o esfarrapado, girando o corpo em duas voltas completas e golpeando o chão duramente com os pés, numa espécie de dança. — Maluco maluco. Por favor senhor não compra não comida eu morro de fome. Da melhor qualidade diga quanto quer pagar senhor.

     O homem também ignorou-o e a figura maltrapilha começou a percorrer para cima e para baixo a fila de mulas, seus gritos tornando-se cada vez mais roucos e desesperados.

     — Se não gostam de gatos tenho outras esculturas. Muitas muitas esculturas. Por favor compre. Antigüidades? Tenho antigüidades. Três mil por cento genuínas. A senhora precisa de guia eu sou um guia muito bom conheço todas estas colinas cada pedacinho delas. Mostro o vale de reis e rainhas muito barato. Mostro túmulo muito bonito. Novo túmulo ninguém mais conhece. Preciso comer. Não como faz três dias.

     Agora, a fila já apertava o passo das montarias e ia deixando-o para trás. De passagem, o garoto da retaguarda deu-lhe um chute nas costelas para tirá-lo de vez do caminho. O homem esfarrapado caiu ao chão numa nuvem de poeira, enquanto os turistas seguiam adiante.

     — Obrigado obrigado obrigado! — ele gritou, rolando no chão como um animal ferido, seu cabelo esvoaçando de um lado para o outro. — Muito gentil o amável turista me ajude. Não quer gato não quer ver túmulo não quer guia. Eu vou morrer! Eu vou morrer!

     Ele esfregava o rosto no chão, chorava, batia com os punhos na areia.

     No entanto, os turistas não o viam mais, pois já haviam contornado a extremidade de uma rocha que emergia do solo e iniciavam a descida para o Vale dos Reis. Como alertara o guia, era um caminho escarpado, com um declive praticamente vertical para a direita. A mulher com os ombros queimados pelo sol agarrou-se ao pescoço de sua mula, trêmula, agora amedrontada demais até para continuar com suas queixas. Os gemidos do homem louco gradualmente foram se tornando mais fracos até desaparecerem totalmente.

    

CAIRO

     Tara esperou no aeroporto até depois das dez da manhã, e já então tinha os olhos avermelhados por causa da falta de sono e estava zonza, de tão cansada. Telefonara para o pai a cada meia hora, percorrendo vezes seguidas o saguão, chegando mesmo a tomar um táxi até o terminal doméstico, prevendo a possibilidade de ele ter ido esperá-la no lugar errado. Tudo inútil. Ele não estava no aeroporto, não estava no alojamento da escavação, não estava em seu apartamento no Cairo. Suas férias estavam dando para trás, antes mesmo de começar. Ela pôs-se de pé sobre seu assento pela milionésima vez, vasculhando com o olhar todo o amplo saguão. No entanto, havia tantas pessoas passando, em todas as direções que, mesmo que seu pai estivesse em meio àquela multidão, ela não seria capaz de distingui-lo. Tara desceu ao chão, foi para o telefone público e ligou para o alojamento da escavação em Saqqara e para o apartamento no Cairo, uma última vez. Então, jogando a bolsa de viagem sobre o ombro e colocando os óculos escuros, saiu do terminal e fez sinal para um táxi.

     — Cairo? — perguntou o motorista, um homem robusto com bigode espesso e dedos manchados de nicotina.

     — Não — Tara replicou, afundando cansada no assento traseiro. — Saqqara.

     O seu pai estivera fazendo escavações em Saqqara, necrópole do antigo Egito, capital Mênfis, durante a maior parte dos seus cinqüenta anos.

     Já fizera escavações também em outros locais por todo o Egito, de Tanis e Sais, no norte, a Qustul e Nauri, na região superior do Sudão. No entanto, Saqqara sempre fora o seu verdadeiro amor. Em todas as temporadas, ele se instalaria na sua casa de escavação e lá permanecia por três a quatro meses ininterruptos, trabalhando arduamente numa pequena área de ruínas desgastadas pelas areias, revelando cada vez alguns metros a mais de história. Havia temporadas em que ele não realizava escavação alguma, e dedicaria o tempo à restauração dos achados ou registrando o que encontrara no ano anterior.

     Era uma existência frugal, quase monástica—apenas ele, um cozinheiro e um pequeno grupo de voluntários. Mas, era o único lugar no mundo, assim Tara acreditava, onde ele se sentia verdadeiramente feliz. As suas cartas pouco freqüentes revelavam, nas breves descrições dos progressos do seu trabalho, uma satisfação que parecia totalmente ausente nas outras áreas da sua vida. E por isso tinha se mostrado surpresa quando a convidara a passar aqueles dias com ele — este era o seu mundo, o seu lugar especial, e um convite desses só podia ser um gesto de boa-fé.

     O trajeto, vindo do aeroporto, não foi nada confortável. O motorista parecia não pensar duas vezes antes de entrar em curvas fechadas ou ao enfrentar tráfego mais pesado. Num trecho de estrada ao longo de um fétido canal de águas esverdeadas, ele passou para a outra pista para ultrapassar uma caminhonete e imediatamente deu com um imenso caminhão de transporte de carga, vindo em sentido oposto. Tara presumiu que ele voltaria à sua pista. Nem pensar. O que ele fez foi apertar com toda força a buzina e meter o pé no acelerador, para ultrapassar a custo a caminhonete, que, em resposta, acelerou como se estivesse apostando corrida. O caminhão vindo contra eles parecia ficar ainda maior a cada segundo. Tara sentiu um nó no estômago, convencida de que iam bater. Somente no último instante, quando a colisão parecia inevitável, foi que o motorista deu uma guinada para a direita no volante, fechando a caminhonete e evitando bater na dianteira do caminhão por uma questão de centímetros.

     — Ficou com medo? — ele riu e acelerou o táxi novamente.

     — Fiquei — replicou Tara, lacônica. — Com muito medo.

     Enfim, e para o seu grande alívio, viraram à direita, deixando a estrada principal, e depois de seguir por uma estrada menor, ladeada de árvores, por alguns quilômetros, pararam ao pé de um despenhadeiro arenoso, acima do qual podia-se enxergar os níveis superiores de uma pirâmide em degraus.

     — A senhora compra entrada ali — disse o motorista, apontando para uma bilheteria num prédio à direita.

     — Preciso comprar? — perguntou ela. — O meu pai trabalha aqui. Vim fazer uma visita a ele.

     O motorista debruçou-se para fora e gritou alguma coisa para o homem sentado na janela. Trocaram algumas breves palavras em árabe e, então, outro homem, jovem, saiu do prédio e inclinou-se para a janela do táxi, examinando Tara.

     — O seu pai trabalha aqui? — O seu inglês tinha um forte sotaque.

     — Sim — disse ela. — Professor Michael Mullray.

     — Excelente! — O homem sorriu abertamente. — Todo mundo conhece o Doktora. O mais famoso egiptológico do mundo. Ele meu bom amigo. Ele me ensina inglês. Eu mesmo levo você para o alojamento da escavação.

     Ele deu a volta até o outro lado do táxi e entrou, sentando-se no assento do carona. A seguir, deu instruções ao motorista.

     — Meu nome Hassan — disse, assim que o veículo recomeçou a se mover. — Trabalho na teftish principal. Seja muito bem-vinda. — Ele estendeu a mão, que Tara apertou.

     — Meu pai devia me pegar no aeroporto — explicou ela. — Acho que nos desencontramos. Sabe se ele está aqui?

     — Sinto muito, acabo de chegar. Ele provavelmente está na casa da escavação. Você se parece nele, sabe?

     — Com ele — corrigiu Tara, sorrindo. — Eu me pareço com ele. O homem riu também e disse, com todo o cuidado:

     — Você se parece com ele. E você é boa professora, parecida nele também.

     Seguiram a estrada até o topo da escarpa e depois viraram à direita numa trilha esburacada que acompanhava a borda de um platô do deserto.

     A pirâmide em degraus ficara para trás, e havia duas outras pirâmides próximas, ambas em ruínas e meio tombadas, de modo que Tara teve a impressão de que todas eram imagens da mesma pirâmide em diferentes fases de destruição. À direita, os campos divididos como colchas de retalhos na planície às margens do Nilo, bruxuleando ao calor da manhã; à esquerda, o deserto se abria, ondulado, na direção do horizonte, uma paisagem árida, vazia e desolada.

     Uns cem metros mais à frente na trilha, passaram por dentro de um pequeno povoado, e Hassan fez sinal para o motorista parar.

     — É este teftish — disse ele, indicando um grande edifício amarelo à direita. — O escritório central de Saqqara. Eu fico aqui. Beit Mullray, o alojamento da escavação de seu pai, mais além. Eu digo ao motorista como chegar lá. Se tiver alguma dificuldade é só voltar aqui.

     Ele saltou do carro, disse alguma coisa ao motorista e o veículo partiu novamente, continuando por mais dois quilômetros antes de parar no acostamento ao lado de uma casa baixa de um único andar, situada bem na beirada do escarpamento.

     — Beit Mullray — anunciou o motorista.

     Era um prédio comprido, mal construído, pintado num cor-de-rosa pastel, disposto em volta de três laterais de um pátio arenoso, no centro do qual ficava uma enorme peneira de escavação feita de madeira e tela de arame. Havia uma precária torre de madeira com um tanque de água em cima da extremidade do edifício, uma pilha de engradados de madeira na outra, com um cão esquálido e sarnento dormitando na sua sombra, que se projetava junto a eles. Todas as janelas estavam fechadas, com as venezianas abaixadas. Não parecia haver ninguém no local.

     O motorista disse que a esperaria, prometendo que, se ela não encontrasse seu pai ali, poderia levá-la de volta para o Cairo, onde conhecia vários hotéis muito bons. Ela recusou a oferta e, retirando sua bagagem do porta-malas do carro, pagou a corrida e encaminhou-se para a casa. O táxi deu uma ré e partiu, levantando uma nuvem de poeira.

     Tara atravessou o pátio, reparando no que parecia ser uma fileira de blocos de pedras pintados, cobertos por uma lona, no canto, e bateu à porta da frente. Nenhuma resposta. Ela experimentou a maçaneta. A porta estava trancada.

     — Papai! — chamou. — É Tara! Nada.

     Deu a volta até os fundos da casa. Um comprido terraço sombreado em toda sua extensão, com vasos de gerânios ressecados e cactos, alguns limoeiros retorcidos e dois bancos de pedra. A vista para o lado oeste, atravessando a planície verde do Nilo, era fabulosa, mas ela sequer reparou nisso. Tirando os óculos de sol, esticou-se até uma das janelas com as venezianas fechadas e tentou enxergar alguma coisa por entre as ripas descascadas. Estava escuro lá dentro e, a não ser a borda de uma mesa com um livro sobre ela, não conseguiu ver nada. Experimentou outra veneziana, mais adiante, distinguindo uma cama com um par de botas do deserto bastante gastas enfiadas por debaixo dela e, então, retornou à frente da casa e bateu à porta novamente. Ainda nada. Tara encaminhou-se novamente até a altura da trilha, e ficou ali parada alguns instantes, olhando para ambos os lados, depois voltou para o terraço e sentou-se num dos bancos de concreto.

     Começava a ficar preocupada. Seu pai já a havia desapontado em várias ocasiões — vezes demais até para conseguir lembrar —, porém sentia que estava acontecendo alguma coisa diferente. Talvez tivesse sido acometido de alguma doença, ou quem sabe sofrera um acidente qualquer? Diversas cenas começaram a atravessar sua mente, cada qual mais preocupante do que a anterior. Ela se levantou e foi bater nas persianas novamente, mais por frustração do que por esperança.

     — Onde você está, papai? — resmungou para si mesma.—Que merda, onde é que você se meteu?

     Esperou na casa durante quase duas horas, perambulando pelos arredores, espiando através das persianas, ocasionalmente martelando a porta, bagas de suor borbulhando através da testa, olhos pesados de exaustão. Um grupo de crianças brincando no vilarejo mais abaixo avistou-a e subiu correndo o declive arenoso nos fundos do prédio, gritando.

     — Canetas para a escola! Canetas para a escola!

     Ela catou algumas canetas em sua bolsa de viagem e distribuiu-as, perguntando se alguma delas havia visto um homem alto com cabelos brancos. As crianças pareceram não entender e, uma vez já com as canetas nas mãos, desapareceram escorregando de volta pelo declive, deixando Tara sozinha com as moscas, o calor, o silêncio e a casa fechada.

     Por fim, com o sol já no seu zênite e ela já tão cansada que quase não conseguia se manter acordada, decidiu ir procurar Hassan, o homem que encontrara mais cedo. Sabia que, se o pai tivesse apenas ficado retido em algum lugar, iria se zangar por ela ter armado um estardalhaço, só que agora estava preocupada demais para se ocupar com isso. Com a última caneta que lhe restara, escreveu um bilhete apressado explicando o que ia fazer e deu um jeito de prendê-lo na fresta da porta da frente. Então, tomou a trilha poeirenta em direção ao vulto denteado da pirâmide de degraus, o sol castigando-a, o mundo silencioso em volta à exceção dos ruídos de seus passos sendo triturados e, vez por outra, o zumbido de uma mosca que vinha persegui-la.

     Estava andando fazia cinco minutos, de cabeça baixa, quando algo puxou seu olhar para a direita, um lampejo momentâneo. Ela se deteve para olhar melhor, protegendo os olhos com a mão. Havia alguém ali, de pé, a cerca de uns duzentos metros, já em meio ao deserto, no topo de uma duna. A distância entre eles era muito grande, e o sol estava demasiadamente brilhante, para que pudesse enxergá-lo direito. Percebeu apenas que parecia bastante alto e que estava vestido de branco. Houve outro breve lampejo e ela se deu conta de que a pessoa devia estar olhando através de binóculos, com o sol refletindo-se nas lentes.

     Seguiu em frente, supondo que se tratasse de um turista explorando as ruínas. Então, ocorreu-lhe o pensamento de que talvez fosse um arqueólogo que conhecesse seu pai. Voltou-se naquela direção com a intenção de chamá-lo, quem quer que fosse, mas a pessoa já havia desaparecido. Ela passou os olhos pelos pequenos morros de areia e cascalho, mas não avistou ninguém e, após um momento, continuou seu caminho, perguntando-se se não fora uma espécie de alucinação causada pelo cansaço e pela preocupação. Tinha a sensação de que o cérebro estava flutuando dentro de sua cabeça, e as têmporas começaram a latejar. Desejou ter trazido um pouco de água.

   Levou mais uns vinte minutos para alcançar o teftish, e nessa altura sua blusa estava encharcada de suor e os membros doíam. Finalmente, encontrou Hassan e lhe explicou o que estava acontecendo.

     — Tenho certeza de que tudo está OK — disse ele, oferecendo-lhe uma cadeira no seu escritório. — Talvez seu pai tenha saído a passeio. Ou para escavar.

     — Sem deixar um bilhete?

     — Não estaria esperando por você no Cairo?

     — Telefonei várias vezes para o apartamento dele e ninguém atende.

     — Ele sabia que você chegava hoje?

     — Claro que sabia que eu chegava hoje — replicou Tara. Houve um momento de silêncio. — Sinto muito — disse. Estou cansada e muito preocupada.

     — Posso entender, srta. Mullray. Por favor, fique calma. Nós vamos encontrá-lo.

     Ele pegou o walkie-talkie que estava sobre a sua escrivaninha, pressionou um botão lateral e começou a falar, pronunciando com todo cuidado as palavras Doktora Mullray. Ouviu-se um estalido de estática e, a seguir, várias outras vozes, uma após a outra, respondendo. O funcionário escutou a todos, falou alguma coisa, novamente, e depois tornou a colocar o walkie-talkie no lugar.

     — Ele não está na escavação. Ninguém o viu. Espere aqui, por favor. Hassan dirigiu-se a uma outra sala, no lado oposto do corredor. Tara

     escutou algumas vozes falando baixo, e um minuto depois ele retornava.

     — Ele foi ao Cairo ontem pela manhã, depois voltou a Saqqara à tarde. Ninguém mais o viu, depois disso.

     Hassan levantou o fone do gancho. Teve outra breve conversação, enfatizando as palavras Doktora Mullray. Seu cenho estava franzido quando recolocou o fone no lugar.

     — Aquele Ahmed. Ele levou seu pai no táxi. Ahmed diz que seu pai disse a ele para vir a Beit Mullray na noite passada, para levar ele para o aeroporto. Mas, quando Ahmed chegou, seu pai não apareceu. Agora estou preocupado também. Doktora não faz dessas coisas.

     Ele ficou em silêncio por um momento, tamborilando os dedos na escrivaninha, depois, abriu uma gaveta e apanhou um molho de chaves.

     — Estas aqui... chaves de reserva do alojamento da escavação — explicou. — Vamos até lá.

     Saíram do escritório e ele apontou para um Fiat branco, já bastante usado, estacionado do lado de fora.

     — Vamos de carro. Mais rápido.

    E ele dirigiu bastante rápido, de fato, o carro dando pulos e solavancos ao longo da trilha esburacada, derrapando ao frear na frente da casa. Eles desceram e foram até a porta da frente, e Tara imediatamente percebeu que o bilhete que deixara tinha desaparecido. Sentiu o coração acelerar e, adiantando-se, experimentou a maçaneta da porta. Ainda estava trancada e não houve resposta às batidas frenéticas. Hassan escolheu uma chave do molho, enfiou-a na fechadura girando duas vezes, a porta abriu-se e ele entrou. Tara seguiu-o.

     Viram-se numa sala comprida, pintada de branco, com uma mesa de jantar retangular no extremo mais próximo a eles, e no outro dois sofás puídos e uma lareira. Outros aposentos se abriam para ambos os lados, num dos quais Tara pôde divisar a quina de uma cama de madeira. Estava escuro e frio e havia um sutil aroma adocicado no ar, que ela após certo tempo identificou como cheiro de fumaça de charuto.

     Hassan atravessou a sala e abriu uma janela. A luz do sol espalhou-se pelo assoalho. Imediatamente, ela viu o corpo, caído de encontro à parede oposta.

     — Oh, Deus — balbuciou. — Oh, não!

     Com duas rápidas passadas, chegou junto dele e caiu de joelhos, segurando sua mão. Estava fria e rígida. Tara sequer tentou reanimá-lo.

     — Papai — sussurrou, alisando seus cabelos grisalhos. — Oh, meu pobre pai.

    

LUXOR

     O inspetor Khalifa olhava fixamente para o cadáver, recordando o dia em que trouxeram o corpo do seu pai para casa.

     Ele tinha seis anos, na época, e na realidade não entendeu o que estava acontecendo. Carregaram o corpo para a sala de estar e o estenderam sobre a mesa. Sua mãe, chorando muito, vestindo sua túnica preta, tinha se ajoelhado aos pés do morto, enquanto ele e Ali, seu irmão, haviam se postado lado a lado, de mãos dadas, junto à cabeceira da mesa, sem conseguir desviar os olhos daquelas faces pálidas, cobertas de poeira.

     — Não se preocupe, mãe - tinha dito Ali —, vou tomar conta de você e do Yusuf. Eu juro.

     O acidente tinha acontecido a apenas alguns quarteirões de onde moravam. Um ônibus de turismo, numa velocidade excessiva para aquelas ruas estreitas, derrapou, perdeu a direção e colidiu contra o frágil andaime de madeira sobre o qual seu pai estava trabalhando, fazendo desabar toda a estrutura. Três homens morreram, seu pai fora um deles, esmagado debaixo de uma tonelada de tijolos e madeirames. A companhia de turismo se recusara a aceitar a responsabilidade pelo acidente e nenhuma indenização fora paga. Os passageiros do ônibus escaparam ilesos.

     Naquela época, viviam em Nazlat al-Samman, aos pés do platô de Gizé, numa choça isolada, feita de tijolos de barro cru, de cujo teto se avistava a Esfinge e as pirâmides.

     Ali fora o mais velho por seis anos, forte, inteligente e destemido. Khalifa o idolatrava, seguindo-o para todo lugar, imitava a sua maneira de andar e repetia coisas que ele dizia. Naquela idade, quando ficava chateado, costumava murmurar Dammitl, uma palavra que havia aprendido do seu irmão, que por sua vez a aprendera de um turista britânico.

     Depois da morte do pai, fiel a sua palavra, Ali abandonou a escola e foi trabalhar para sustentá-los. Conseguiu um emprego nos estábulos dos camelos, retirando o estrume e fazendo a limpeza, consertando selas, conduzindo os camelos para o alto do platô de onde os turistas os tomavam a passeio. Khalifa recebera permissão para ajudá-lo aos domingos, mas não durante a semana. Ele chegara a implorar para ajudar o irmão todos os dias, mas Ali insistira que o que ele deveria fazer era concentrar-se nos estudos.

     — Aprenda, Yusuf — exigia ele. — Preencha sua mente. Faça tudo o que não posso fazer. Faça com que eu me orgulhe de você.

     Somente anos mais tarde ele descobrira que, todo dia, além de comprar comida e roupas e pagar-lhes o aluguel, Ali guardava um pouco dos seus minguados ganhos a fim de que, quando chegasse a ocasião, Khalifa pudesse pagar uma universidade. Era muito o que ele devia ao seu irmão. Devia-lhe tudo. E foi por isso que dera o nome dele ao seu primeiro filho — para mostrar o quanto lhe era reconhecido.

     Seu filho, no entanto, nunca conhecera o tio, e jamais o conheceria. Ele se fora para sempre. E quanta saudade sentia dele! E quanto também desejava que as coisas tivessem corrido de modo diferente.

     Ele balançou a cabeça e voltou a se concentrar no problema que tinha em mãos. Estava numa sala de teto branco no subsolo do hospital geral de Luxor e tinha a sua frente o corpo, que haviam encontrado naquela manhã, estendido sobre uma mesa de metal, nu. Um ventilador girava acima de sua cabeça; uma única lâmpada sem lustre acrescentava-se à atmosfera estéril e fria. O dr. Anwar, patologista local, achava-se curvado sobre o corpo, cutucando-o com as mãos enluvadas.

     — Muito curioso — continuava a resmungar para si mesmo. — Nunca vi nada parecido. Muito curioso.

     Eles haviam fotografado o cadáver no local onde fora encontrado, jogado na margem rasa do rio, e a seguir o colocaram num saco de cadáveres com zíper, trazendo pura Luxor de barco. Tiveram de preencher muita papelada para poderem mandá-lo para ser examinado e a tarde já estava adiantada. Ele tinha mandado Sarya levantar qualquer registro de pessoa desaparecida, num raio de trinta quilômetros, poupando assim o seu assistente da desagradável tarefa de testemunhar a autópsia. Ele próprio estava achando difícil evitar as náuseas. Estava desesperado por um cigarro e, vez por outra, enfiava instintivamente a mão no bolso procurando o maço de Cleópatra, mesmo não se atrevendo a tirar os cigarros. Como era notório, o dr. Anwar era rigorosamente contra o fumo no seu necrotério.

     — Então o que pode você me dizer? — perguntou Khalifa, inclinando-se sobre a parede fria de azulejos, torcendo sem se dar conta um dos botões de sua camisa.

     — Bem — disse Anwar, fazendo uma pausa breve para pensar. — Sem dúvida, ele está morto — disse, soltando uma gargalhada acompanhada de palmadinhas que, prazerosamente, dava em sua barriga. As péssimas piadas de Anwar eram tão notórias quanto a sua repugnância contra cigarros. — Desculpe — emendou-se. — Foi de muito mau gosto.

     O médico deixou escapar outra risadinha, mas logo a expressão de seu rosto ficou séria novamente.

     — O que você quer saber?

     — Idade.

     — Difícil precisar, mas eu diria que beirando os trinta anos, talvez um pouco mais velho.

     — Hora da morte?

     — Cerca de dezoito horas atrás. Talvez vinte. Vinte e quatro no máximo.

     — E ele ficou dentro d'água todo esse tempo?

     — Eu diria que sim... isso mesmo.

     — E por qual distância você acha que ele pode ter sido carregado pelo rio, nessas vinte e quatro horas?

     — Não tenho a menor idéia. Cuido de cadáveres, não de correntezas. Khalifa sorriu.

     — OK, causa da morte.

     — Achei que isso era óbvio — observou Anwar, baixando o olhar para o rosto mutilado. Já o haviam limpado da lama e parecia, se isso fosse possível, até mesmo mais horrendo do que quando Khalifa o vira inicialmente, uma massa toscamente retalhada de carne. Havia ulcerações em todos os outros pontos do corpo, também — nos braços, ombros, em todo o abdômen e no alto das coxas. Havia até mesmo uma pequena marca de perfuração no saco escrotal, que Anwar teve grande prazer em indicar. "Vez por outra", Khalifa pensou, "o homem entusiasma-se um pouco demais pelo seu trabalho."

     — O que quero saber é...

     — Sim, sim, já sei — cortou o patologista. — Eu estava brincando. Você quer saber o que causou as lesões.

     Ele recostou-se na mesa de exame, atrás dele, e puxou fora as luvas, a borracha estalando ao descolar-se das mãos.

     — OK, vamos começar pelo mais importante. Ele morreu de choque e hemorragia, ambos resultantes dos ferimentos que está vendo. Havia uma quantidade relativamente pequena de água nos pulmões, o que significa que ele não teria se afogado e então sofrido os ferimentos posteriormente. Tudo isso foi feito em terra seca e só depois o corpo foi atirado no rio. Provavelmente, não muito longe de onde foi encontrado.

     — Não poderiam ter sido os hélices do barco, então?

     — De maneira alguma. Aí, teríamos um tipo completamente diferente de ferimentos. Menos limpo. A carne teria sido mais lacerada.

     — Um crocodilo?

     — Não seja estúpido, Khalifa. Este homem foi deliberadamente mutilado. E, além do mais, para sua informação, não existem crocodilos no norte de Assuã. E com certeza nenhum que fume. — Ele apontou os braços do homem, o tórax e a face. — Três marcas de queimaduras. Aqui, aqui e aqui. Provavelmente charuto. Grandes demais para que sejam de cigarro.

     Ele remexeu no bolso e retirou um saquinho de castanhas de caju, oferecendo-as a Khalifa. O detetive recusou.

     — Como queira — disse Anwar, inclinando a cabeça para trás e despejando uma grande quantidade de castanhas dentro da boca. Khalifa ficou observando, admirando-se de como ele conseguia comer a apenas alguns metros daquele rosto macerado.

     — E os cortes? O que os causou?

     — Não faço idéia — resmungou Anwar, mastigando. — Uma espécie de objeto de metal, obviamente afiado. Possivelmente uma faca, se bem que já vi toda espécie de ferimento a faca e nenhum que se pareça exatamente como este.

     — Como assim?

     — Ora, os cortes são pouco definidos. É difícil de explicar. Mais uma impressão do que propriamente ciência. É evidente que foram causados por alguma espécie de lâmina afiada, mas nada que me pareça familiar. Olhe este aqui, por exemplo. — Ele apontou para um rasgão no peito do homem. — Se uma faca tivesse feito esse ferimento, ele seria mais estreito e não tão... qual é a palavra?... Ele foi estripado. E olhe, o corte é ligeiramente mais profundo numa das extremidades. Não me peça para ser mais preciso, Khalifa, porque não posso. Apenas acredite que estamos tratando aqui com uma arma pouco usual.

     O inspetor puxou um pequeno bloco do bolso e tomou algumas anotações. A sala ecoava com o ruído da mastigação de Anwar.

     — Tem algo mais a me dizer sobre ele?

     — Ora, ele gostava de beber. Está com níveis altos de álcool no sangue. E parece que tinha interesse no Egito antigo.

     — A tatuagem do escaravelho?

     — Exatamente. E não é um desenho dos mais comuns. E olhe aqui também.

     Khalifa aproximou-se.

     — Está vendo esta contusão em volta dos braços? Aqui, e aqui, onde a carne está descorada? Este homem foi pego à força... assim.

     Anwar foi para as costas de Khalifa e agarrou seus braços, seus dedos cravando-se na carne.

     — A contusão no braço esquerdo é mais ampla e estende-se em volta do braço, mais adiante, sugerindo que, provavelmente, ele foi agarrado por duas pessoas, e não apenas uma, cada qual de maneira um pouco diferente.

     Pela profundidade da contusão, diria que ele se envolveu-se numa luta e tanto.

     Com a cara enfiada em seu bloco de anotações, Khalifa assentiu de cabeça.

     — Eram no mínimo três — completou. — Dois segurando e mais outro com a faca, ou fosse lá o que fosse.

     Anwar concordou com um movimento de cabeça, depois, cruzando a porta, pôs a cabeça para fora do corredor e gritou para alguém no extremo oposto. Um instante depois, dois homens apareceram trazendo uma maca com rodas, sobre a qual colocaram o corpo. Cobriram-no com um lençol e levaram-no para fora da sala. Anwar terminou as suas castanhas e, dirigindo-se para uma pequena pia, começou a lavar as mãos. A sala estava em silêncio a não ser pelo barulho do ventilador.

     — Francamente, estou chocado — disse o patologista, o tom da sua voz subitamente desprovido da galhofa usual. — Estou neste trabalho faz trinta anos e nunca vi nada semelhante. É...—ele fez uma pausa, ensaboando as mãos vagarosamente, de costas para Khalifa—algo sacrílego — concluiu.

     — Nunca vi você como um sujeito religioso.

     — E não sou. Mas não existe outra maneira para descrever o que aconteceu a este homem. Quero dizer, não se limitaram a matá-lo. Eles trincharam o pobre desgraçado. — Ele se virou, afastando-se das torneiras e começou a secar as mãos. — Pegue quem fez isso, Khalifa. Pegue esses caras bem depressa e meta-os na prisão.

     A gravidade do tom de voz do médico surpreendeu Khalifa.

     — Vou fazer o possível — assegurou. — Se surgir mais alguma coisa, por favor, assegure-se de que eu seja informado.

     O detetive guardou seu bloco de anotações e dirigiu-se à porta. Estava a meio caminho quando Anwar o chamou.

     — Há mais uma coisa.

     Khalifa voltou-se.

     — Apenas um palpite, mas talvez ele tenha sido um escultor. Desses que fazem esculturas para os turistas, coisas assim. Havia um bocado de poeira de alabastro sob as unhas dos dedos, e seus braços eram bastante musculosos, o que pode indicar que ele estivesse acostumado a trabalhar com um martelo e uma talhadeira. Pode ser que eu esteja errado, mas é por onde começaria a investigação. Nas lojas de alabastro.

     Khalifa agradeceu e retomou o seu caminho, descendo o corredor, já retirando os cigarros do bolso. A voz de Anwar ressoou às suas costas.

     — Nada de fumar até que esteja fora do hospital!

    

CAIRO

     Ele odiava charutos — disse Tara.

     O funcionário da embaixada encarou-a:

     — O quê?

     — Charutos. Meu pai os odiava. Qualquer espécie de fumo, na verdade. Dizia que era um hábito repulsivo. Como o de ler o Guardian.

     — Ah — disse o funcionário diplomático, perplexo. — É mesmo?

     — Quando entramos na casa de escavação, tinha lá um cheiro. A princípio não consegui identificá-lo. Depois, percebi que era fumaça de charuto.

     O funcionário, um assistente do adido chamado Crispin Oates, voltou os olhos para a estrada, buzinando insistentemente contra um caminhão à frente.

     — E isso tem algum significado?

     — Como eu disse, meu pai detestava fumo. Oates deu de ombros.

     — Pode ter sido outra pessoa, fumando.

     — Mas essa é justamente a questão — disse Tara. — Era proibido fumar na casa de escavação. E era uma regra sem exceções. Sei disso porque ele me escreveu uma vez dizendo que tinha dispensado um voluntário por desobediência.

     Uma motocicleta ultrapassou-os, e depois deu uma guinada, tomando a frente deles e forçando Oates a frear.

     — Maldito idiota!

     Ficaram em silêncio durante um momento.

     — Não estou entendendo direito aonde a senhorita quer chegar—disse ele, afinal.

     — Nem eu — suspirou Tara. — Só que... não devia haver cheiro de fumaça de charuto na casa de escavação. Não consigo parar de pensar nisso.

     — Tenho certeza de que é apenas... bem, você sabe, o choque. Tara suspirou.

     — Sim — replicou, contrariada. — Deve ser isso mesmo.

     Eles atravessavam uma auto-estrada elevada, já chegando ao centro de Cairo. Era quase noite e as luzes da cidade espalhavam-se por toda distância em volta e abaixo deles. Ainda estava quente e Tara baixara o vidro da janela, de modo que o seu cabelo esvoaçava para trás como um rastro de vapor. Ela sentiu-se estranhamente desligada, como se os acontecimentos das últimas horas não tivessem passado de uma espécie de sonho.

     Tiveram que ficar esperando, com o corpo do pai, durante uma hora até que o médico chegasse. Ele examinara o corpo rapidamente, antes de dizer o que já sabiam — que o homem idoso estava morto, provavelmente de um ataque coronariano agudo, embora outros exames fossem necessários. Uma ambulância chegara, seguida logo depois por dois policiais, ambos de terno, que fizeram a Tara uma série de perguntas de rotina sobre a idade do seu pai, estado de saúde, nacionalidade, profissão.

     — Ele é um arqueólogo de campo! Faz escavações — replicara ela, irritada. — Que diabo mais vocês acham que ele estava fazendo aqui?

     Ela mencionara a fumaça de charuto, explicando, como mais tarde explicou a Oates, que o fumo era proibido no alojamento da escavação. Os policiais tomaram nota, mas não consideraram a questão especialmente importante. Tara não insistiu. Em nenhum momento chegara a chorar. Na verdade, sua reação imediata à morte do pai foi não ter absolutamente nenhuma reação. Ficou observando o corpo ser colocado na ambulância, sem conseguir sentir coisa alguma, fosse o que fosse, como se desconhecesse aquela pessoa.

     — Papai está morto — murmurou, como se tentasse provocar alguma reação em si mesma. — Ele está morto. Morto.

     Mas as palavras não lhe causaram qualquer impressão. Ela tentara recordar alguns dos momentos bons que compartilharam — livros apreciados por ambos, dias de folga no zôo, a trilha do tesouro que ele preparara para o seu aniversário de quinze anos —, mas fora incapaz de sentir-se emocionalmente ligada a esses episódios. A única coisa que sentia—e tinha grande vergonha disso — era um profundo desapontamento por sua viagem ter sido estragada.

     "Vou passar os próximos quinze dias preenchendo formulários e tomando providências para os funerais", pensou. "Que merda de férias!"

     Oates chegara bem no momento em que a ambulância estava partindo. A embaixada fora a primeira a ser informada da morte do pai de Tara. Um sujeito louro, sem queixo, beirando os trinta anos, o típico inglês. Ele expressou suas condolências polidamente, porém sem nenhuma convicção, o que sugeria que já passara por muitas situações iguais.

     Havia conversado com o legista, num árabe balbuciante, e perguntara a Tara onde ela ia ficar.

     -— Aqui — ela lhe respondera. — Ou pelo menos era isso que estava planejando. Acho que agora não vai ser muito apropriado.

     Oates concordara.

     — Acho que o melhor é levar a senhorita de volta ao Cairo e instalá-la em algum hotel na cidade. Vou dar alguns telefonemas.

     Ele puxou um celular do bolso do terno — "Como um ser humano consegue usar ternos neste calor?", pensou Tara — e saiu do alojamento da escavação, voltando alguns minutos depois.

     — Tudo arrumado — disse ele. — Colocamos você no Ramesses Hilton. Acho que já não resta muito que se possa fazer por aqui. Portanto, logo que esteja pronta...

     Ela se deixou ficar um momento ainda no alojamento da escavação, percorrendo com os olhos as estantes de livros e os sofás roídos por traça, imaginando seu pai descansando naqueles ambientes, depois de passar o dia na sua escavação. Logo, juntava-se a Oates no carro dele.

     — Engraçado — comentou ele, ligando o motor. — Estou no Cairo há três anos e é a primeira vez que venho a Saqqara. Para falar a verdade, nunca tive muito interesse em arqueologia.

     — Nem eu — replicou ela, melancólica.

     Já estava escuro quando chegaram ao hotel, um feio arranha-céu de concreto erguendo-se rumo ao Nilo, na extremidade de uma interseção de estradas com tráfego pesado. O interior era fartamente iluminado e vistoso, com um vestíbulo de mármore cavernoso dando para vários bares, saguões e vitrines de lojas, através do qual fluía uma torrente constante de carregadores com uniformes vermelhos e muitas malas de grifes elegantes. Estava fresco — quase frio —, o que fez Tara sentir-se aliviada depois do calor do lado de fora. Seu apartamento ficava no 14° andar. Era espaçoso, bem arrumado, impessoal, sem vista para o rio. Ela largou a sua mochila sobre a cama e chutou para longe os sapatos.

     — Vou deixar a senhorita à vontade, então — disse Oates, hesitante, na porta. — O restaurante é muito bom, ou, caso prefira, há o serviço de quarto.

     — Obrigada — disse Tara. — Não estou com muita fome.

     — Claro, entendo perfeitamente. — Ele pôs as mãos na maçaneta da porta. — Há muitas formalidades a serem cumpridas amanhã. Assim, se concordar, eu a pegarei, digamos, às onze da manhã e a levarei direto para a embaixada.

     Tara concordou.

     — Só mais uma pequena coisa. É melhor não sair à noite. Ainda mais se estiver sozinha. Não quero alarmá-la, mas a coisa anda meio arriscada para turistas, no momento. Um pouco de agitação dos fundamentalistas. Ataques, você sabe. Melhor prevenir do que lamentar depois.

     Tara lembrou-se do homem que encontrara no aeroporto perto da esteira de bagagem.

     — Sayf al-Tamar— disse ela, recordando o nome que ele mencionara.

     — Al-Tha'r — corrigiu-a Oates. — Al-ta-ar. Sim, é o bando dele. Malditos lunáticos. Quanto mais as autoridades se esforçam para pôr as mãos nele, mais perturbações causam. Há partes do país atualmente que são verdadeiros territórios proibidos para nós. — Ele lhe entregou seu cartão. — Seja como for, telefone-me se precisar de qualquer coisa, e tenha uma boa noite de sono.

     Sempre formal, apertou sua mão e, em seguida, abriu a porta, saindo.

     Assim que ele foi embora, Tara foi pegar uma cerveja no frigobar e jogou-se sobre a cama. A seguir, telefonou para Jenny na Inglaterra e deixou um recado na secretária eletrônica, dizendo-lhe onde se encontrava e pedindo para que lhe telefonasse o mais rápido possível. Havia outras chamadas que sabia que deveria fazer — para a irmã do seu pai, para a Universidade Americana, onde ele tinha sido professor visitante de Arqueologia do Oriente Médio —, mas decidiu deixá-las para o dia seguinte. Então, foi para a sacada e ficou observando as ruas lá embaixo.

     Um Mercedes preto acabara de estacionar na calçada do hotel, bloqueando a rua, forçando os carros atrás a se desviarem, o que não devia estar deixando-os nada contentes, a julgar pelas imprecações que Tara escutava a distância.

     A princípio, Tara não prestara muita atenção ao carro. Depois, a porta do passageiro se abriu e uma pessoa saltou para a calçada. Subitamente, Tara ficou tensa. Não dava para ter certeza se era o homem que vira em Saqqara — aquele que a ficara observando, quando ela caminhava ao longo do escarpamento —, entretanto, alguma coisa lhe dizia que era ele mesmo. Estava usando um terno claro e, mesmo daquela altura, era uma figura enorme, fazendo os pedestres em torno dele, parecerem anões.

     Ele se abaixou para dizer alguma coisa ao motorista do Mercedes, que deu partida, retornando ao tráfego. O homem grande ficou observando o carro se afastar e, em seguida, de repente, virou-se, olhando para cima, direto para ela, ou pelo menos foi o que Tara imaginou, se bem que, na verdade, estava longe demais para ela ter certeza da direção para a qual os olhos dele estavam voltados. Tudo durou apenas um momento, então ele baixou novamente a cabeça e caminhou na direção da entrada lateral do hotel, levando a mão à boca e soltando fumaça do que parecia um enorme charuto. Tara deu de ombros e, deixando o balcão, fechou as portas corrediças e trancou-as.

    

O RIO NILO, ENTRE LUXOR E ASSUÃ

     A espuma ia se formando na proa do SS HORUS à medida que a embarcação subia lentamente o rio, com suas luzes despejando um fulgor algo sinistro sobre a água. Sombrias florestas de juncos desfilavam nas margens, onde a grandes intervalos viam-se pequenas cabanas e casas. No entanto, já passava da meia-noite e restavam poucas pessoas no convés para vê-las. Havia somente um jovem casal trocando carícias, na popa, os seus rostos colados, e, sob um toldo na parte de trás do navio, um grupo de senhoras idosas jogando cartas. A maioria dos passageiros ou tinha se retirado para suas cabines para dormir ou estava sentada no salão, assistindo ao espetáculo do final da noite — um egípcio barrigudo cantando sucessos mais populares acompanhado de um playback.

     Houve então duas explosões, quase simultâneas. A primeira foi próxima à proa do barco, tragando o jovem casal. A segunda, no salão principal, lançando mesas, cadeiras e fragmentos de vidro em todas as direções. O cantor foi atirado sobre seu aparelho de playback, o rosto enegrecido pelo calor; um grupo de mulheres próximas ao palco tombou em meio a uma saraivada de estilhaços de madeira e metal. Ouviram-se choro e gemidos, e os gritos de um homem cujas pernas haviam sido decepadas logo abaixo dos joelhos. As senhoras que jogavam cartas não foram atingidas, mas ficaram paralisadas debaixo do seu toldo. Uma delas começou a chorar.

     Afastados do rio, para além do juncal, acocorados numa pedra que emergia da superfície do rio, três homens olhavam na direção do navio. O brilho das chamas que tomavam o convés iluminava as suas faces barbadas, revelando uma profunda cicatriz vertical na testa de ambos. Eles sorriam.

     — Sayf al-Tha'r — um deles sussurrou.

     — Sayf al-Tha'r — repetiram seus companheiros.

     A seguir, trocaram sinais de assentimento e, erguendo-se, desapareceram dentro da noite.

    

CAIRO

     Como combinado, Oates encontrou Tara no saguão do hotel às onze da manhã e levou-a de carro para a embaixada, a dez minutos de distância.

     Apesar de exausta, Tara não dormira bem. A imagem do homem gigante não a abandonou um instante sequer, deixando-a inexplicavelmente nervosa. Havia finalmente deslizado para um sono leve, mas então o telefone tocara, despertando-a novamente. Era Jenny.

     As duas conversaram durante quase uma hora e a sua amiga ofereceu-se para pegar o próximo vôo. Tara sentira-se tentada a aceitar, mas, ao final, lhe dissera para não se preocupar. Tudo estava sendo bem cuidado e, além do mais, ela provavelmente estaria em casa dentro de alguns dias, depois de cumpridas todas as formalidades. Combinaram de se falar novamente no dia seguinte e desligaram. Tara assistiu a um pouco de tevê, passando displicentemente da CNN para a MTV Ásia, depois para a BBC Mundial, até que finalmente recomeçou a cochilar.

     Já era noite alta quando acordou uma segunda vez, sentindo de repente

     algo estava errado. O mundo tinha ficado silencioso e o quarto estava repleto de vultos, embora a lua brilhasse através de uma estreita brecha nas cortinas, lançando um fantasmagórico reflexo de luz sobre o espelho na parede oposta.

     Ela rolou por um tempo na cama, tentando decifrar o que a estava incomodando, mas logo virava-se de lado, tentando voltar a dormir. Ao fazer isso, escutou um rangido muito baixo, vindo da porta. Ficou escutando por vários segundos até se dar conta de que era o som da maçaneta da porta girando.

     — Ei!

     A sua voz soara anormalmente esganiçada.

     O rangido parou um momento, mas logo recomeçou. Com o coração acelerando, ela foi até a porta, onde ficou olhando a maçaneta, vendo-a deslocar-se milimetricamente para baixo e para cima, como em câmera lenta. Teve o impulso de gritar novamente, mas, em vez disso, apenas agarrou a maçaneta, imobilizando-a. Houve uma breve resistência do outro lado e depois um ligeiro patinhar de pés. Tara contou até cinco e abriu a porta, mas o corredor estava vazio. Ou quase vazio, porque pelo menos uma coisa ainda permanecia por lá: cheiro de fumaça de charuto.

     Depois disso, mantivera as luzes acesas durante o resto da noite, somente caindo no sono de novo quando o dia começou a raiar. Quando Oates lhe perguntou se tivera uma boa noite, a sua resposta fora bastante concisa:

     — Não, foi uma merda.

     Oates entrou com o carro através do portão da embaixada, que tinha paredes externas de cor creme, mostrando de passagem sua identificação ao guarda. Parou num pequeno estacionamento e conduziu Tara para o interior do edifício pela porta lateral. Eles desceram um longo corredor e subiram alguns degraus até uma fileira de escritórios no primeiro andar, onde foram recebidos por um homem magro, ligeiramente despenteado, de cabelos brancos, sobrancelhas espessas e óculos pendurados em volta do pescoço.

     — Bom dia, srta. Mullray. — Ele sorriu, estendendo-lhe a mão. — Charles Squires, adido cultural. — Tinha um tom de voz agradável, tipo protetor, diferente do seu aperto de mão, que era um tanto afetado. — Crispin, por que não providencia café? Estaremos em meu escritório.

     Ele conduziu Tara através de uma porta dupla até uma sala grande, ensolarada, com quatro cadeiras rodeando uma mesa. Havia outro homem de pé, junto à janela.

     Este é o dr. Sharif Jemal, do Conselho Supremo de Antigüidades — apresentou Squires. — Ele fez questão de estar aqui presente esta manhã.

     O homem era baixo e espadaúdo, com um rosto acentuadamente marcado por varíola. Ele adiantou-se na direção de Tara.

     — Permita-me que lhe ofereça as minhas condolências pela morte de seu pai — disse solenemente. — Ele era um grande estudioso e um verdadeiro amigo deste país. Sua perda será muito sentida.

     — Obrigada—disse Tara. Os três sentaram-se.

     — O embaixador envia suas desculpas — continuou Squires. — Dada a eminência do seu pai, ele gostaria de estar aqui pessoalmente. Infelizmente, como a senhorita deve ter sabido, houve outro incidente terrorista na noite passada, perto de Assuã, e duas das vítimas eram britânicas. Assim, ele está um tanto preocupado no momento.

     Ele sentou-se muito ereto, enquanto falava, as mãos magras sem pêlos entrelaçadas no colo.

     — Sei que falo por ele, contudo, e na verdade por toda a embaixada, quando digo o quanto ficamos tristes ao sabermos da morte do seu pai. Tive o prazer de encontrá-lo em várias ocasiões. É uma grande perda.

     Oates voltou trazendo uma bandeja.

     — Com leite? — perguntou Squires.

     — Preto, sem açúcar — disse Tara. — Muito obrigada.

     Squires fez um sinal de cabeça para Oates, que servia café nas xícaras e as passava. Havia um silêncio incômodo na sala.

     — Quando era estudante, tive a felicidade de passar uma temporada com o seu pai em Saqqara—disse, finalmente, Jemal.—Foi em 1972. O ano em que descobrimos o túmulo de Ptah-hotep. Jamais esquecerei a excitação quando entramos na câmara funerária pela primeira vez. Estava praticamente intacta, intocada desde o dia que fora selada. Havia uma magnífica estátua de madeira próxima à entrada, mais ou menos desta altura — ele indicou com a mão —, assombrosamente realista, com olhos embutidos, em perfeitas condições. Está atualmente no Museu do Cairo. Gostaria de levar você para vê-la.

     — Eu adoraria — disse Tara, tentando parecer entusiasmada.

     — O seu pai ensinou-me muita coisa — continuou Jemal. — Devo muito a ele. Era um grande homem.

     Ele pegou um lenço e assoou-se ruidosamente, aparentemente dominado pela emoção. Os quatro deixaram-se cair em silêncio, bebendo o café em pequenos goles. Demorou um instante antes de Squires voltar a falar.

     — O doutor assegurou-me que a morte do seu pai foi rápida e sem dor. Ao que tudo indica, foi um enfarte. A morte deve ter sido quase instantânea.

     Tara assentiu de cabeça.

     — Ele estava tomando remédios para o coração — afirmou ela.

     — Por favor, não me entenda mal — disse Jemal —, mas creio que se o seu pai tivesse escolhido qualquer lugar para morrer teria sido Saqqara. Ele sempre se sentiu feliz ali.

     — Sim — reforçou Tara. — Era como se fosse o seu verdadeiro lar. Oates começou a reencher as suas xícaras.

     — Receio que haja ainda várias formalidades a ser preenchidas — falou Squires, quase pedindo desculpas. — Para tudo isso, Crispin aqui pode prestar-lhe ajuda. — Ele cobriu a xícara com a mão. — Chega para mim, muito obrigado. E em algum momento, a senhorita vai ter de decidir o que fazer com o corpo do seu pai, se vai ficar no Egito ou retornar para a Inglaterra. No momento, contudo, simplesmente quero ressaltar que qualquer coisa de que venha a precisar nessa situação difícil, é só pedir.

     — Muito obrigada —disse Tara. Ela permaneceu em silêncio por um momento, brincando com a xícara entre as mãos. — Houve... bem...

     Ela fez uma pausa, hesitante. Squires ergueu as sobrancelhas.

     — Não sei realmente como explicá-lo. Parece tão ridículo. É apenas...

     — Sim?

     — Bem... — Fez nova pausa. — Quando entrei no alojamento da escavação ontem senti cheiro de fumaça de charuto. Estranhei muito, porque meu pai nunca permitiu que se fumasse em qualquer lugar onde estivesse. Mencionei isso à polícia. E a Crispin.

     Oates assentiu de cabeça. Jemal retirou do bolso um cordão de contas de preocupação de jade, passando-as uma a uma entre o polegar e o indicador. Tara pôde sentir o olhar fixo dos três sobre ela.

     — Pouco antes, avistei um homem, um homem bastante grande...

     — Um homem grande? — perguntou Squires, inclinando-se ligeiramente à frente.

     — Sim, muito alto, bem maior do que o normal. Sinto muito, soa tudo bastante estúpido quando eu conto, mas...

     O inglês lançou uma olhadela para Jemal e, com um aceno de mão, estimulou-a a prosseguir. As contas de preocupação começaram a chocalhar mais depressa, como se alguém estivesse sapateando.

     — Bem, ele parecia estar me observando com binóculos.

     — O homem grande? — quis confirmar Jemal.

     — Sim. E nesta noite, vi o mesmo homem, ou pelo menos me pareceu que fosse o mesmo homem. Ele estava entrando no hotel e tenho certeza de que fumava um charuto. Mais tarde, no meio da madrugada, escutei alguém tentando entrar no meu quarto. Quando abri a porta, não havia ninguém, mas, fosse quem fosse, deixou um cheiro de fumaça de charuto no corredor.

     Ela sorriu constrangida, consciente de que a coisa toda parecia paranóica. Eventos que na sua cabeça haviam parecido suspeitos e ameaçadores, mas agora, recontados diante de outras pessoas, soavam como nada mais do que coincidências.

     — Eu avisei que ia parecer ridículo — murmurou Tara.

     — De modo algum — protestou Squires, inclinando-se à frente e apoiando a mão no braço dela. — Trata-se de uma situação muito perturbadora para você. Dadas as circunstâncias, não chega a surpreender que se sinta ligeiramente... insegura. Afinal, está num país estrangeiro, alguém que lhe é muito próximo morreu. É fácil perder o sentido crítico em tais situações.

     Ela sentiu que ele estava apenas sendo educado.

     — Foi só que tive essa impressão de que alguma coisa estava acontecendo e... — ela ia dizendo — ... que era alguma coisa...

     — Sinistra?

     — Exatamente. Squire sorriu, sutilmente.

     — Acho que não deveria preocupar-se, srta. Mullray. O Egito é um país onde é fácil imaginar que alguma coisa está sempre acontecendo às nossas costas, quando na realidade não há nada de anormal. Não concorda, dr. Jemal?

     — Certamente — riu Jemal com desdém. — Não se passa um dia sem que eu pense que alguém está tentando me pegar em alguma armadilha. Só que, no Departamento de Antigüidades, isso acontece de verdade!

     Os três homens acharam graça.

     — Tenho certeza de que todas as coisas que mencionou têm explicação perfeitamente inofensiva—disse Squires. Depois de uma pausa, acrescentou: — A menos, é claro, que não esteja nos contando tudo. — Havia um tom de pilhéria nessas palavras, mas também algo vagamente ameaçador no seu tom de voz, como se ele a estivesse acusando de esconder algo. — Você nos contou tudo? — perguntou.

     Um breve silêncio.

     — Acho que sim — disse Tara.

     Squires fitou-a por um momento, depois endireitou-se na cadeira e riu novamente.

     — Bem, então, aí está. Acho que pode dormir tranqüila na sua cama esta noite, srta. Mullray. Posso oferecer-lhe um biscoito?

     Conversaram polidamente por mais uns dez minutos, ao fim dos quais Squires levantou-se, acompanhado pelos outros dois.

     — Acho que já tomamos bastante do seu tempo. Crispin vai levá-la ao seu escritório, onde a ajudará com toda a papelada que se fizer necessária.

     Ele entregou-lhe seu cartão e dirigiu-se à porta.

     — Sinta-se à vontade para telefonar se ainda tiver mais alguma coisa para discutir. É o meu telefone direto. Faremos tudo que for possível para assisti-la.

     Ele apertou-lhe as mãos, e acompanhou-a até a ante-sala. Jemal deu-lhe a mão para despedir-se.

     — Venha — disse Oates. — Vamos oferecer-lhe um lanche.

     Durante algum tempo, Squires e Jemal mantiveram-se em silêncio, os dois sentados, o primeiro olhando fixamente para fora, através da janela, o outro manipulando suas contas de preocupação. Finalmente, Jemal falou.

     — Ela está dizendo a verdade?

     — Oh, eu diria que sim, certamente — respondeu Squires, o vislumbre de um sorriso brincando ao redor dos seus lábios pálidos e finos. — Ela não sabe de nada. Ou pelo menos não crê que saiba de alguma coisa.

     Ele enfiou a mão no bolso e puxou uma bala, que começou a desembrulhar.

     — Então, o que está acontecendo? — perguntou Jemal. Squires arqueou as sobrancelhas.

     — Ora, essa é a pergunta, não é? Ao que parece, Dravic está envolvido, mas como Mullray entrou nisso tudo... você sabe tanto quanto eu. Tudo é muito misterioso.

     Ele acabou de desfazer o embrulho e levou a bala à boca, sugando-a com ar contemplativo. A sala ecoou o chocalhar rítmico das contas de preocupação.

     — Você contou ao Massey? — perguntou Jemal. — Os americanos precisam ser informados.

     — Tome cuidado, meu velho. Eles não estão muito contentes, mas isso já era esperado.

     — Então, o que faremos agora?

     — Não há muito que possamos fazer. Não podemos deixar que saibam que sabemos sobre o túmulo. Isso seria fatal. Temos apenas que ficar sentados, parados, e esperar que as coisas funcionem.

     — E se não funcionarem?

     Squires balançou a cabeça, mas não respondeu. Jemal continuava passando suas contas entre os dedos.

     — Não gosto nada disso. Não deveríamos desistir de tudo?

     — Ora, vamos, é uma oportunidade que aparece uma vez na vida. Pense no que podemos ganhar.

   — Não sei. Não sei mais. Está ficando fora de controle. — O egípcio se pôs de pé e começou a caminhar pela sala. — E quanto à moça?

     Squires tamborilou os dedos ligeiramente no braço do sofá, rodopiando a bala com a língua.

     — Parece-me — disse ele, depois de uma longa pausa — que ela pode realmente ser útil. Pode nos auxiliar a esclarecer a situação. Contanto que não ponha a cabeça para fora. Isso não seria produtivo, em absoluto. Acha que pode conduzir as coisas aí pelo seu lado?

     — A polícia faz o que eu mando — resmungou Jemal. — Eles não perguntarão nada que seja desnecessário.

     — Sem dúvida. Então, creio que serei capaz de tomar conta da srta. Mullray, com Crispin mantendo-a sob vigilância. E também consegui outras pessoas para trabalhar no assunto. O mais importante é que não percebam que a estamos usando. Isso seria fatal. — Ele se levantou e caminhou até a janela, fixando o olhar no gramado perfeitamente aparado do jardim da embaixada. — Tudo o que devemos fazer é jogar nossas cartas com cautela. Se fizermos isso, creio de fato que alcançaremos nosso objetivo.

     — É o que espero — disse Jemal. — Para o bem de todos nós. Porque, se não, estamos todos fodidos.

     Squires soltou uma risada.

     — Você usa as palavras com muita exatidão, meu velho.

     Seus dentes então partiram a crosta da bala com força, produzindo um ruído forte de esmagamento.

    

LUXOR

     Khalifa nunca imaginou que houvesse tantas oficinas de alabastro em - Luxor. Sabia que havia muitas delas, é claro, no entanto, somente quando começou a visitá-las uma por uma, deu-se conta da enorme tarefa que representava rastrear a que queria encontrar.

     Ele e Sariya tinham iniciado a procura no final da tarde anterior, imediatamente após a autópsia, ele na margem oeste, Sariya na margem leste, percorrendo todas as oficinas com uma fotografia da tatuagem do escaravelho, perguntando se alguém a reconhecia. Continuaram até tarde da noite, e retomaram a busca às seis daquela manhã. Era agora meio-dia e, pelos cálculos de Khalifa, já tinham visitado cerca de cinqüenta oficinas sem qualquer resultado. Começava a se perguntar se Anwar os tinha posto a caçar fantasmas.

     Ele parou em frente de mais uma oficina: Rainha Tiye do Alabastro, a melhor em Luxor. Na fachada, fora pintado um avião e um camelo, ao lado da pedra negra da Caaba — sinal de que o proprietário tinha realizado sua hajj a Meca. Um grupo de trabalhadores estava sentado de pernas cruzadas na sombra debaixo de um toldo, cinzelando pedaços de alabastro, os braços e as faces brancas por causa da poeira. Khalifa cumprimentou-os com um movimento de cabeça e, acendendo um cigarro, entrou. Um homem emergiu da sala traseira para cumprimentá-lo, sorrindo.

     — Polícia — disse Khalifa, exibindo o seu distintivo. O sorriso do homem murchou.

     — Temos o alvará de licença — disse ele.

     — Quero fazer algumas perguntas ao senhor. Sobre os seus operários.

     — É sobre o seguro?

     — Não, nada sobre seguro e nada sobre seu alvará. Estamos procurando uma pessoa desaparecida. — Ele puxou uma fotografia do bolso e estendeu-a. — Reconhece esta tatuagem?

     O homem pegou a fotografia e examinou-a.

     — Então?

     — Talvez.

     — Como assim? Você a reconhece, ou não?

     — Sim, certo. Eu a reconheço. "Finalmente", pensou Khalifa.

     — É um dos seus operários?

     — Era, eu o demiti há uma semana. Por quê? Ele está com problemas?

     — É uma maneira de dizer a coisa, sim. Ele está morto.

     O homem baixou de novo a vista para a fotografia.

     — Assassinado — acrescentou Khalifa. — Achamos o seu corpo no rio ontem.

     Houve uma pausa e então o homem devolveu a fotografia, virou-se e disse:

     — É melhor você entrar.

     Passaram através de uma cortina de contas, entrando numa grande sala nos fundos da loja. Havia uma cama baixa encostada a uma parede, uma televisão numa mesinha e uma mesa posta para o lanche, com pão, cebolas e uma fatia de queijo. Acima da cama, uma fotografia em sépia pendurada, com um homem idoso e barbado, usando fez e djellaba — um ancestral do proprietário da loja, Khalifa presumiu — e ao lado, numa moldura, o primeiro sura do Corão. Uma porta aberta conduzia a um quintal onde havia mais homens trabalhando. O proprietário da loja fechou a porta com um chute.

     Ele se chamava Abu Nayar — disse, voltando-se para Khalifa. —

     Trabalhou aqui por cerca de um ano. Era um bom artesão, mas um bêbado. Estava sempre chegando atrasado e não se concentrava no trabalho. Sempre criava problemas.

     — Sabe onde ele morava?

     — Old Qurna. Lá perto do túmulo de Rekhmire.

     — Família?

     — Esposa e duas crianças. Garotas. Ele tratava a mulher como um cachorro. Batia nela. Você sabe.

     Khalifa tragou seu cigarro, examinando com interesse um busto de pedra calcária pintada, no canto, uma imitação da famosa cabeça de Nefertiti que estava no Museu de Berlim. Sempre teve vontade de ver o original, desde criança era atraído pelas reproduções nas vitrinas das oficinas em Gizé e no Cairo. Mas, agora, duvidava que chegasse a ver a escultura original. Para ele, o preço de uma viagem a Berlim era tão inacessível quanto o de uma excursão de balão sobre o Vale dos Reis. Ele voltou-se para o proprietário da oficina.

     — Esse Abu Nayar tinha inimigos que você conheça? Qualquer pessoa que pudesse lhe guardar rancor?

     — Por onde quer que eu comece? Ele devia dinheiro a todo mundo, costumava insultar qualquer um que encontrasse, metia-se em brigas. Sei de umas cinqüentas pessoas que gostariam de vê-lo morto. Talvez, cem.

     — Alguém em particular? Alguma rivalidade entre clãs?

     — Não que eu saiba.

     — Esteve envolvido em alguma coisa ilegal? Drogas? Antigüidades?

     — Como eu ia saber?

     — Porque todo mundo nestas redondezas sabe de tudo sobre todo mundo. Vamos, nada de brincadeiras.

     O homem coçou o queixo e arriou-se pesadamente na beirada da cama. Lá fora, os operários começaram a cantar uma canção folclórica, um dos homens dizia o verso, os outros juntavam-se ao coro.

     — Nada de drogas — disse ele depois de uma longa pausa. — Ele não estava envolvido com drogas.

     — E antigüidades?

     O homem deu de ombros.

     — E em antigüidades? — pressionou Khalifa. — Ele negociava?

     — Miudezas, talvez.

     — Que espécie de miudezas?

     — Nada de mais. Alguns shabtis, alguns escaravelhos. Todo mundo faz esse tipo de negócio, pelo amor de Deus. Não é grande coisa.

     — É ilegal.

     — É sobrevivência.

     Khalifa apagou seu cigarro num cinzeiro.

     — Alguma coisa valiosa? — perguntou.

     O proprietário da loja deu de ombros novamente e, inclinando-se para a frente, ligou a televisão.

     — Nada que valesse matá-lo — disse ele.

     Um programa de perguntas e respostas surgiu entre os chuviscos da tela em preto-e-branco. Ele ficou parado, um instante, assistindo. Depois de uma pausa longa, suspirou.

     — Havia uns boatos.

     — Boatos?

     — De que ele encontrara alguma coisa.

     — O quê?

     — Só Deus sabe. Um túmulo. Algo grande. — O homem inclinou-se à frente e ajustou o volume. — Mas, ora, há sempre boatos assim, não há? Toda semana alguém encontra um novo Tutankâmon. Quem vai saber quando uma coisa dessas é verdade?

     — Mas essa era verdade?

     O dono da loja deu de ombros mais uma vez.

     — Talvez, talvez não. Eu não quis saber. Tenho meu trabalho e isso tudo que me interessa.

     Ele caiu em silêncio, concentrando-se no programa. Do lado de fora, os homens ainda cantavam, o som metálico de suas ferramentas ecoando monotonamente no ar parado da tarde. Quando o homem falou, sua voz soou baixa, quase um sussurro.

     — Há três dias, Nayar comprou para a mãe um aparelho de televisão e uma geladeira nova. É muito dinheiro para um homem que está sem trabalho. Tire a sua própria conclusão. — Ele irrompeu numa gargalhada. — Olhe só esse sujeito — gritou, apontando para um participante que acabava de responder uma pergunta incorretamente. — Que imbecil!

     Havia qualquer coisa forçada na sua gargalhada. As suas mãos, o detetive notou, estavam tremendo.

     Khalifa sempre fora fascinado pela história do seu país. Ele lembrava que, quando criança, ficava no teto da casa onde morava, observando o nascer do sol acima das pirâmides. Outras crianças na sua aldeia encaravam os monumentos com naturalidade. Mas, Khalifa, não. Para ele, sempre houvera algo mágico a respeito deles, grandes triângulos assomando em meio ao nevoeiro da manhã, portais para diferentes mundos e eras. Crescer tão próximo a eles tinha lhe transmitido um desejo insaciável de aprender mais sobre o passado.

     Era um desejo que compartilhara com o seu irmão Ali, que, se isso fosse possível, era ainda mais fanático em sua paixão pela história, a qual lhe oferecia um santuário contra a vida árdua que levava. Todas as noites, ele retornava do seu trabalho, exausto e imundo, e depois de comer e tomar banho, ia sentar-se num canto do quarto, onde afundava-se na leitura de algum dos seus livros sobre arqueologia. Reunira uma grande coleção dessas obras, alguns emprestados da escola da mesquita local, muitos provavelmente roubados — e não havia nada que o jovem Khalifa amasse mais do que se sentar ao seu lado, enquanto ele lia em voz alta, junto à luz bruxuleante de um candeeiro.

     — Fale-me sobre Rasses, Ali — ele pedia, lamuriento, aninhando-se por cima do ombro do irmão.

     — Ramsés—Ali o corrigia, sorrindo. — Ora, houve certa vez um grande rei chamado Ramsés II, que era o mais poderoso em todo o universo. Ele possuía uma carruagem dourada e uma coroa feita de diamantes...

     "Como eram afortunados por serem egípcios", Khalifa costumava pensar. "Que outro país possuía na terra tal riqueza de histórias fabulosas para serem passadas a suas crianças? Obrigado, Alá, por ter-me feito nascer nesta terra maravilhosa."

     Os dois haviam realizado mini-escavações no platô de Gizé, achando pedras e velhos cacos de cerâmica, já se imaginando como famosos arqueólogos. Certa vez, pouco depois da morte do pai, tinham descoberto uma pequena cabeça de faraó de calcário, próximo à base da Esfinge, e Khalifa ficou mudo de excitação, pensando que, uma vez na vida, haviam encontrado algo genuinamente antigo e valioso. Somente anos mais tarde descobrira que Ali a havia enterrado naquele local, para tirar a morte do pai dos pensamentos do seu irmão caçula. Tinham pegado carona para viajar até o sul, Saqqara, Dhashur e Abusir, e ao centro do Cairo, onde, metendo-se no meio de excursões escolares, conseguiram entrar sem pagar no Museu de Antigüidades. Ainda hoje, ele poderia visualizar o museu inteiro, dentro de sua cabeça, de tão bem que chegou a conhecê-lo naquelas sorrateiras excursões da infância. Em uma dessas visitas, ficaram amigos de um professor idoso, al-Habibi. Tocado pelo entusiasmo juvenil deles, o professor mostrara-lhes todo o acervo, destacando os objetos mais importantes e estimulando o seu interesse. Anos mais tarde, quando Khalifa ganhou um cargo na universidade para pesquisar história antiga, o mesmo professor al-Habibi se tornara seu orientador.

     Sim, ele amava o passado. Havia alguma coisa mística relacionada ao passado, algo que brilhava, uma corrente feita de ouro que se estendia até o alvorecer do tempo. Ele amava o passado, por seu colorido e sua enormidade, e pela maneira como fez o presente parecer muito mais rico.

     E, principalmente, o amava porque Ali o tinha amado. Era alguma coisa especial que haviam compartilhado: uma paixão em comum da qual ambos tinham drenado força e vitalidade. Em algum momento, suas mãos se haviam procurado, e se tocado, e era como se ainda acontecesse, mesmo que Ali estivesse morto e perdido para sempre. O velho mundo era para Khalifa, acima de tudo, uma afirmação do seu amor por aquele ente querido que se fora.

     — Quem eram os faraós da Décima Oitava Dinastia? — Ali costumava perguntar-lhe, testando-o. E Khalifa recitaria os nomes, com grande hesitação:

     — Ahmósis, Amenófis I, Tutmés e II, Hatchepsut, Tutmés III, Amenófis II, Tutmés IV, Amenófis III, Akhenaton, e... e... droga, eu sempre me esqueço deste... é...

     — Smenkhkare — Ali lhe lembraria.

     — Maldição! Esse, eu sabia! Smenkhkare, Tutankâmon, Ay, Horemheb.

     — Aprenda, Yusuf! Aprenda e cresça! Bons tempos.

     Ele demorou um pouco até encontrar a casa de Nayar. Era uma habitação oculta por trás de um apinhado de outros domicílios, na metade da subida de uma colina e por trás de uma fileira de covas que, no passado, tinham sido usadas para antigas sepulturas, mas que agora estavam cheias de lixo e lama. Um bode emaciado estava amarrado do lado de fora, as costelas aparecendo através da pele como as barras de um xilofone.

     Ele bateu à porta, que depois de uma pausa breve foi aberta por uma pequena mulher com olhos verdes brilhantes.

     Ela era jovem, 25 anos no máximo, e devia ter sido bonita. À semelhança de tantas mulheres fellaha, contudo, o desgaste de uma gravidez depois da outra e a dureza da vida diária a tinham envelhecido antes do tempo. Sua face esquerda, Khalifa notou, mostrava sinais de contusões.

   — Sinto muito incomodá-la — disse ele gentilmente, mostrando-lhe seu distintivo. — Eu preciso... — Ele fez uma pausa, procurando os termos exatos. Era o tipo de coisa que já fizera várias vezes, e no entanto não conseguia se habituar. Lembrou-se de como a sua mãe havia reagido quando lhe trouxeram a notícia da morte do seu pai, e de que ela havia tido um colapso nervoso, começando a arrancar os cabelos e urrar feito um animal ferido. Odiava a idéia de causar um sofrimento desses.

     — O que foi? — sobressaltou-se a mulher. — Ele embriagou-se de novo, não foi?

     — Posso entrar?

     Ela deu de ombros e voltou-se para dentro de casa, conduzindo-o para a sala, onde duas garotinhas estavam brincando juntas, sentadas no chão de concreto nu. Estava frio e escuro no interior da casa, como se ali dentro fosse uma gruta, sem outros móveis além de um sofá ao longo da parede e uma televisão sobre uma mesa no canto. Uma televisão nova, Khalifa notou.

     — Então?

     — Lamento ter más notícias — disse o detetive. — O seu marido, ele está...

     — Preso?

     Khalifa mordeu os lábios.

   — Morto.

     Por um momento apenas, ela encarou-o, depois arriou pesadamente sobre o sofá, cobrindo o rosto com as mãos. Khalifa presumiu que estivesse chorando e deu um passo à frente para confortá-la. Mal tinha se aproximado, percebeu que os ruídos abafados que vinham por entre os seus dedos não eram soluços, absolutamente, mas risadas.

     — Fatma, Iman — disse ela, chamando as duas garotas com um aceno. — Aconteceu uma coisa maravilhosa.

    

CAIRO

     A terminado na embaixada, Tara quis ir ao apartamento do pai para examinar os seus pertences.

     Ele tinha levado pouca coisa para a temporada de quatro meses em Saqqara — uma muda de roupas, alguns cadernos de anotações, uma câmera. A maioria dos seus objetos tinha ficado no apartamento no Cairo. Era onde ele deixava seus diários, slides, roupas, vários artefatos que as autoridades egípcias tinham permitido que ficassem para ele. E, é claro, seus livros, uma vasta coleção, vários milhares de volumes, todos encadernados em couro, que viera reunindo ao longo de toda a sua vida. "Com livros", ele costumava dizer, "mesmo a choupana mais pobre do mundo se transforma num palácio. Eles fazem tudo parecer muito mais suportável."

     Oates ofereceu-se para levá-la no carro, mas o apartamento ficava a uma distância de apenas alguns minutos a pé e, além do mais, ela gostaria de ficar sozinha por alguns momentos. Oates telefonou antes para se certificar de que o zelador tinha um jogo de chaves de reserva, fez um mapa do caminho até lá e a acompanhou até os portões da entrada.

     — Telefone quando estiver de volta ao hotel — pediu ele. — E, como mencionei antes, tente não ficar na rua depois que escurecer. Principalmente com essa coisa que aconteceu com o tal barco no rio.

     Ele sorriu e desapareceu para dentro da embaixada.

     A tarde já estava bastante adiantada e o sol poente projetava padrões mosqueados na calçada desnivelada. Ela deu uma olhada em volta, observando as guaritas policiais ao longo da parede externa da embaixada, um mendigo agachado junto ao meio-fio, um homem empurrando uma carreta com uma pilha de melancias. Depois, estudando brevemente o mapa, começou a andar.

     Oates tinha lhe explicado que esta parte do Cairo era conhecida como Garden City e, ao atravessar o labirinto de avenidas arborizadas, entendeu a razão do nome. Era uma região mais sossegada, ou mesmo parada, do que o resto da metrópole, um remanescente da era colonial, com enormes vilas poeirentas, árvores em todo lugar e arbustos florescentes — hibisco, oleandro, jasmim, jacarandá-púrpura. No ar ecoava o chilrear de pássaros, tudo em volta recendia a um pesado aroma de relva cortada e flores de laranjeira. Parecia haver muito pouca gente nas ruas, somente algumas mulheres empurrando carrinhos de criança e uns raros executivos de terno. Muitas das vilas tinham limusines estacionadas na frente e policiais de guarda na entrada.

     Ela caminhou por cerca de dez minutos até alcançar Sharia Ahmed Pasha, e depois até a esquina onde ficava o prédio do seu pai, uma construção da virada do século XIX, com enormes janelas e intrincadas sacadas de ferro batido. No passado, deveria ter sido um prédio amarelo, de tom alegre. Agora, o seu exterior era cinzento, escurecido pela poeira e fuligem.

     Tara galgou os degraus da entrada, empurrou a porta para abrir e penetrou num refrescante saguão de mármore. A um canto, sentado a uma escrivaninha, estava um velho, presumivelmente o zelador. Ela se aproximou dele e, após uma conversa confusa conduzida na linguagem dos sinais, conseguiu informar quem era e por que tinha vindo. Resmungando, o homem se pôs de pé, tirou um jogo de chaves de uma gaveta e, arrastando os passos, dirigiu-se até um elevador de gaiola no canto. Depois de empurrar para o lado a porta de grade, convidou-a a entrar.

     O apartamento ficava no terceiro andar no final de um corredor silencioso e lúgubre. Detiveram-se em frente da porta e o zelador foi enfiando as chaves na fechadura. Precisou fazer três tentativas antes de encontrar a chave correta.

     — Obrigada — agradeceu Tara, no que ele abriu a porta. Ele permaneceu onde estava.

     — Obrigada — repetiu ela.

     No entanto, ele não fez menção nenhuma de se mover de onde estava. Fez-se um silêncio embaraçoso e, então, dando-se conta do que ele esperava dela, Tara puxou sua carteira e lhe deu alguns trocados. Ele examinou as cédulas, lamentou-se, e saiu arrastando os pés corredor abaixo, deixando as chaves na porta. Ela esperou até que ele desaparecesse e só então virou-se e entrou no apartamento, levando as chaves e fechando a porta atrás de si.

     Tara viu-se então num vestíbulo escuro, com assoalho de madeira, que se abria para cinco aposentos — o quarto, um banheiro, uma cozinha e dois outros ambientes, ambos entulhados de livros. Todas as janelas estavam fechadas, com as persianas abaixadas, dando ao lugar um aspecto de bolorento e abandonado. Por um breve momento, ela pensou distinguir um odor remanescente de fumaça de charuto, mas era tênue demais para ela ter certeza e, depois de farejar o ar uma ou duas vezes, desistiu. Provavelmente, seria apenas cera de assoalho ou outra coisa qualquer, pensou.

     Tara encaminhou-se para a sala, acendendo a luz ao entrar. Havia livros e papéis espalhados por toda a volta, pilhas e pilhas, como se fossem monturos de folhas de árvores. Nas paredes viam-se quadros pendurados mostrando fotos de escavações e monumentos; no canto mais afastado da entrada da sala, havia uma escrivaninha empoeirada tomada de cacos de cerâmica de barro e de shabtis esmaltados. Não havia plantas.

     "Como um lugar preservado para a posteridade", pensou Tara. "Para mostrar como as pessoas viviam num tempo diferente."

     Ela perambulou pela sala, catando um ou outro objeto, remexendo nas gavetas, procurando vestígios do pai. Encontrou um dos seus diários, do começo dos anos 1960, quando ele escavara no Sudão, sua caligrafia miúda, Precisa, intercalada com desenhos quase apagados, feitos a lápis, dos objetos que descobrira. Num dos aposentos, achou alguns dos livros que ele escrevera—A vida na Necrópolis: Escavações em Saqqara, 1955-85; De Snofru a Shepseskaf— Ensaios sobre a Quarta Dinastia; O túmulo de Mentu-Nefer; Reinado e colapso do Primeiro Período Intermediário. A seguir, ela folheou um álbum de fotos — retratos tirados de uma grande trincheira escavada na areia que, à medida que se avançava no álbum, mostrava-se mais e mais profunda até que, nas últimas páginas, começaram a emergir os contornos do que parecia uma grande parede de pedra. Parecia não haver nada no apartamento que não se referisse ao trabalho do pai. Nada que lembrasse calor humano, amor, sentimentos. Nada do presente.

     Então, quando já começava a se sentir oprimida pelo ambiente, duas surpresas. Junto à cama — uma cama dura e estreita, como um catre de prisão —, encontrou uma fotografia de seus pais no dia do casamento, o seu pai sorrindo, com uma rosa branca na lapela.

     E na escrivaninha empoeirada na sala de estar, enfiada entre duas louças de cerâmica, o desenho de um anjo feito por mão de criança, as pontas das asas pintadas de prateado brilhante. Ela tinha feito aquele desenho havia anos, no jardim-de-infância, para o Natal. E o pai o havia conservado todo este tempo. Ela pegou o desenho, virou-o, e leu nas costas, naquela caligrafia emaranhada de criança: "Para o papai."

     Por alguns momentos, seus olhos ficaram presos ao papel, em seguida, subitamente, incontrolavelmente, começou a chorar, desabando numa cadeira seu corpo abalado por violentos soluços.

     — Oh, papai — ela sussurrou. — Sinto muito. Sinto muito.

     Pouco depois, quando as lágrimas diminuíram, ela pegou as fotos do quarto e as colocou em sua mochila, junto com o desenho. E apanhou também uma fotografia do pai ao lado de um grande sarcófago de pedra, ladeado por dois trabalhadores egípcios. (Tara recordou que ele lhe explicara, quando ela era criança, que a palavra sarcophagus veio do grego, significando devorador de carne, uma imagem que a perturbou tanto que ela não conseguira dormir naquela noite.)

     Ela estava tentando se decidir se deveria levar também alguns dos livros quando o telefone tocou. Tara ficou parada, por instantes, sem saber se deveria ou não atender. Mas logo resolveu que atenderia e atravessou às pressas a sala de estar, até a escrivaninha, no extremo oposto, onde estava o telefone, em cima de uma pilha de manuscritos. Mas, no que ela ia suspender o fone, a secretária eletrônica soltou um clique e, de repente, a voz de seu pai preencheu toda a sala.

     "Alô, aqui é Michael Mullrray. Estou fora até a primeira semana de dezembro. Assim, por favor, não deixe mensagem. Você poderá me ligar quando eu estiver de volta, ou, se for um assunto acadêmico, contatar direto a universidade no número 7943967. Obrigado. Até breve."

     A surpresa de ouvi-lo paralisou-a, como se uma parte de seu pai não estivesse totalmente morta, ainda, mas vagando em uma espécie de limbo eletrônico, nem neste mundo nem inteiramente desligado dele. Quando ela recobrou-se, a máquina já tinha emitido o seu bip e começara a gravar.

     A princípio, pensou que a pessoa no outro lado da linha houvesse desligado, porque não escutou ninguém falando. Então, ela captou algo como um chiado tênue, ou um sussurro, talvez nada além do ruído baixo de alguém respirando no fone, e se deu conta de que a outra pessoa ainda estava na linha, embora não estivesse falando. Tara deu mais um passo em direção ao telefone, e chegou a estender o braço para suspender o receptor, então recuou de novo. E a outra pessoa ainda não havia desligado — ela sabia instintivamente que era um homem —, apenas esperava, respirando, tentando escutar, como se soubesse que ela estava no apartamento e desejasse que ela soubesse que ele sabia. O silêncio pareceu durar toda uma eternidade, antes que soasse outro clique, seguido do zumbido metálico da máquina, retornando a fita. Por um momento, ficou congelada, mas então, juntando suas coisas, apressou-se a deixar o apartamento, batendo a porta e trancando-a. De súbito, começara a se sentir ameaçada pelo interior sombrio do edifício, pelo elevador barulhento, pelo silêncio. Tara atravessou rapidamente o corredor, querendo sair dali. De passagem, alguma coisa atraiu a sua atenção, um grande besouro no chão limpo de mármore. Ela diminuiu o passo para examiná-lo e imediatamente percebeu que não era absolutamente um besouro, mas um grosso naco de cinza de charuto, do tamanho de uma peça de gamão. Tara começou a correr.

     O elevador não estava no andar e, sem querer esperar por ele, tomou as escadas, saltando os degraus de dois em dois, desesperada agora para voltar ao ar livre. Alcançou o térreo, então, e virou na direção do saguão, porém subitamente o seu caminho foi bloqueado. Ela soltou um grito assustado. Era apenas o zelador.

     — Sinto muito — disse, esbaforida. — Você me surpreendeu.

     Tara lhe entregou as chaves, ele recebeu-as e disse qualquer coisa em sua voz baixa e rouca.

     — O quê?

     Ele repetiu o que havia dito.

     — Não entendo... — A voz dela estava começando a ficar esganiçada. Estava desesperada para sair.

     O zelador continuava a dizer alguma coisa, tentando se fazer entender, e então meteu a mão num bolso. De repente, ela sentiu-se tomada pelo medo irracional de que ele fosse sacar alguma espécie de arma, quando tirou fora a mão, apontando-a em direção ao rosto de Tara. Ela curvou o corpo para trás, tomando distância e erguendo o braço para se proteger. Era apenas um envelope. Um pequeno envelope branco.

     — Professor Mullray — disse ele, agitando o envelope diante do rosto dela. — Aqui, professor Mullray.

     Ela ficou olhando para o zelador, por um momento, ofegante, mas, depois, riu.

     — Obrigada — disse, pegando o envelope. — Obrigada.

     O zelador virou-lhe as costas e foi para sua escrivaninha, arrastando os pés. Ela se perguntou se estaria esperando mais uma gorjeta, porém não era o que parecia, e assim Tara se apressou em atravessar a porta do prédio e sair para a rua, sentindo-se contente com todo aquele espaço agora ao seu redor, e o calor ao ar livre. Ela passou por algumas crianças em uniforme escolar, suas camisas brancas e engomadas, e por um homem também de uniforme, com um caleidoscópio de fitas de medalhas no peito. No outro lado da rua, um jardineiro de macacão regava uma fileira de roseiras empoeiradas com uma mangueira.

     Tendo avançado uns vinte metros, olhou para o envelope na sua mão. Instantaneamente, a cor drenou-se da sua face.

     — Oh, não — murmurou Tara, com o olhar fixado naquela caligrafia tão familiar. — Não depois de todo este tempo, não agora.

     O jardineiro arregalou os olhos para ela e então, virando a cabeça para um lado, começou a falar com a boca colada ao seu colarinho.

    

NORTE DO SUDÃO, PERTO DA FRONTEIRA EGÍPCIA

     O garoto emergiu da tenda e começou a correr, levantando borrifos de areia da sola dos pés, dispersando um rebanho de cabras à frente. Passou pela fogueira apagada do acampamento, por um helicóptero coberto de redes, pilhas de engradados, até finalmente deter-se diante de outra tenda, esta ligeiramente afastada do acampamento principal. Ele puxou um pedaço de papel de dentro de suas roupas e, afastando a aba que fechava a entrada, entrou.

     Havia um homem de pé no interior da tenda, os olhos fechados, lábios movendo-se como se recitasse algo somente para si. Tinha um rosto comprido, afilado, barbado, um nariz adunco e, entre os olhos, uma cicatriz vertical profunda, a pele riscada muito lisa e brilhante, como se tivesse sido polida vigorosamente. Ele sorria sutilmente, como se em estado de êxtase.

     O homem ajoelhou-se, colocando as palmas da mão estendidas contra o chão, colando o nariz e a testa no piso acarpetado, alheio à presença do garoto, que permaneceu parado onde estava, observando, uma expressão reverente no rosto. Um minuto se passou, dois, três, e no entanto o homem de nariz adunco continuou as suas preces, curvando-se, erguendo-se, recitando, sem que o sorriso embevecido abandonasse seu rosto por um único instante. Parecia que não iria mais interromper sua oração, e o garoto estava prestes a deixar a tenda, quando o devoto baixou a cabeça para o chão uma última vez, murmurou amém, ficou de pé e voltou-se. O garoto adiantou-se e lhe entregou o pedaço de papel.

     — Acabou de chegar, mestre. Do Doktora Dravic.

     O homem pegou o papel e leu-o, os seus olhos verdes crescendo na semi-escuridão.

     Havia nele qualquer coisa ameaçadora, um rumor de violência contida, mas, estranhamente, também certa gentileza na maneira como desceu a mão livre sobre a cabeça do garoto, como a assegurar-lhe confiança. O garoto tinha os olhos baixos, fitando os pés daquele homem com uma combinação em igual medida de temor e adoração.

     O homem terminou de ler o pedaço de papel e o entregou de volta ao garoto.

     — Alá, abençoado seja o seu nome, dá e Alá, abençoado seja o seu nome, toma.

     O garoto continuou fitando o chão.

     — Por favor, mestre — sussurrou. — Eu não compreendo.

     — Não cabe a nós compreender, Mehmet — sentenciou o homem, erguendo o queixo do garoto de modo que o olhasse nos olhos. O garoto também tinha uma cicatriz profunda logo abaixo do centro de sua testa.

     — Devemos simplesmente saber que Deus tem um propósito e que somos parte desse propósito. Não questionamos o Todo-Poderoso. Somente cumprimos o que nos é atribuído. Sem questionar. Sem hesitar.

     — Sim, mestre — sussurrou o garoto, subjugado.

     — Ele nos reservou uma grande tarefa. Uma busca. Se formos bem-sucedidos, a recompensa será grande. Se falharmos...

     — E aí, mestre? E se falharmos? — O garoto pareceu terrificado. O homem afagou os seus cabelos, confortando-o.

     — Não falharemos. — Ele sorriu. — A estrada pode ser dura, porém atingiremos o seu fim. Já não disse a você? Somos os escolhidos de Deus.

     O garoto sorriu e impulsivamente enlaçou a cintura do homem com seus braços, abraçando-o. O homem afastou-o.

     Há muito trabalho a fazer. Chame o dr. Dravic. Diga-lhe que deve encontrar a peça que falta. Entende? Ele precisa encontrar a peça que falta. Ele precisa encontrar a peça que falta — repetiu o garoto.

     — Enquanto isso, tudo continua conforme combinado. Nada muda. Pode lembrar-se disso?

     — Sim, mestre.

     — Levantamos acampamento em uma hora. Vá.

     O garoto deixou a tenda e saiu em disparada. Sayf al-Tha'r ficou observando-o afastar-se.

     Eles o tinham encontrado quatro anos atrás, um órfão de rua, cavoucando para achar comida como um bicho, entre os refugos do Cairo. Analfabeto, sem parentes, selvagem, foi banhado e alimentado, e com o tempo tornou-se um deles, recebendo a marca da fé na testa e jurando vestir apenas o preto, cor da força e da lealdade.

     Era um bom garoto — simples, inocente, devotado. Havia outros como ele na região, centenas deles, milhares. Enquanto o rico enchia a sua barriga e adorava os seus falsos ídolos, crianças como Mehmet passavam fome. O mundo estava doente. Tomado pelas trevas. Dominado pelo Kufr. Ele, contudo, estava lutando para consertar tudo. Para defender o oprimido. Combater o infiel. Restaurar as leis dos fiéis.

     E, agora, subitamente, magicamente, os recursos de que necessitava para completar sua tarefa lhe haviam sido indicados. Indicados, e nada mais. Deus dá, Deus toma. Era frustrante. Entretanto, sabia que havia um propósito nisso. Deus sempre tem um propósito. E neste caso? Para pôr à prova o seu servo, é claro. Para testar a sua fidelidade. Uma vida fácil produz apenas uma fé fragilizada. Enquanto na adversidade descobre-se a profundidade da fé. Alá estava testando a sua devoção. E ele não o desapontaria. A peça seria encontrada. Não importava quantas mortes fossem necessárias. Ele, o servo, não falharia para com seu amo. E o amo, ele sabia, tampouco o desapontaria enquanto ele não fraquejasse. Ficou observando o garoto por mais algum tempo e então, voltando à tenda, ajoelhou-se, inclinou a cabeça até o chão e retomou suas preces.

    

CAIRO

     Tara abriu o envelope assim que se viu de volta ao hotel. Sabia que não devia fazê-lo, que devia simplesmente jogá-lo fora, mas não conseguiu resistir. Mesmo depois de seis anos, ainda havia uma parte dela que não era capaz de deixá-lo ir.

     — Seu desgraçado! — murmurou, enfiando o dedo por baixo da aba do envelope e rasgando-o. — Você tinha de voltar, seu desgraçado! Seu desgraçado!

     Olá, Michael,

     Vou ficar na cidade por algumas semanas. Você já voltou de Saqqara? Se assim for, convido você para um drinque. Estou no Hotel Salah al-Din (753127), no entanto, você vai me encontrar, quase todas as noites, no salão de chá na esquina de Ahmed Maher com Bursaid. Acho que o nome do lugar é Ahwa Wadood.

     Espero que a temporada esteja correndo bem, e tomara que possamos nos ver.

     Daniel L.

     Teve notícias de Schenker? Estão achando que ele encontrou o túmulo de Imhotep! Caralho!

     Ela sorriu, a contragosto. Típico de Daniel, fingir seriedade e depois pontuá-la com um expletivo vulgar. Pela primeira vez, novamente, depois de tanto tempo, sentiu aquele aperto na garganta, um vazio no fundo do estômago. Meu Deus, ele a magoara tanto!

     Releu o bilhete, em seguida o amassou até transformá-lo numa bola de papel, arremessando-a para o outro lado do quarto. Agarrando uma garrafa de vodca do frigobar, saiu para a sacada, porém voltou quase imediatamente e atirou-se na cama, fixando os olhos no teto. Passaram-se cinco minutos, dez, doze. Então, levantou-se, pegou a sua mochila e deixou o quarto.

     — Salão de Chá Ahwa Wadood — disse ao primeiro motorista na fila de táxis do lado de fora do hotel. — Esquina de Ahmed Maher com...

     — Bursa'id — completou o homem, abrindo a porta para ela. — Sei onde fica.

     Ela entrou no táxi e o veículo deu partida.

     "Sua idiota", recriminou-se Tara em pensamentos, observando, através da janela, as vitrines brilhantemente iluminadas das lojas. "Sua fracota imbecil! Criatura desprezível!"

     Do outro lado da rua, um Mercedes empoeirado deslizou de junto do meio-fio e sorrateiramente colocou-se na traseira do táxi, uma pantera no encalço de sua presa.

     Ela lembrava muito bem a primeira vez em que haviam se encontrado. Fora há quanto tempo? Meu Deus, quase oito anos.

     Ela estava no segundo ano do University College London, estudando zoologia, dividindo um apartamento com três amigas. Seus pais estavam morando em Oxford, o casamento deles rapidamente se aproximando de um colapso, e certa noite ela fora jantar na casa deles.

     Era para ser uma reunião familiar, apenas eles três, o que já era suficientemente complicado, já que seus pais mal estavam se falando, na época. Logo que chegou, no entanto, o pai a avisara que teriam um colega dele como convidado.

     — Um sujeito bom para conversar — comentou ele —, meio inglês, meio francês, pouco mais velho do que você. Está fazendo um Ph.D. em práticas funerárias do Ultimo Período, na Necrópole de Tebas. Acabou de voltar após três meses escavando no Vale dos Reis. Um autêntico gênio. Sabe mais sobre iconografia de túmulos e sobre livros de vida depois da morte do que qualquer pessoa que eu conheça.

     — Parece fascinante — resmungou Tara.

    — Sim, acho que você vai gostar dele — disse seu pai, sorrindo, sem se dar conta da ironia. — Ele é um sujeito estranho. Muito envolvido com o trabalho. Claro que todos somos assim, em certa medida, mas ele parece um caso particular. Dá a impressão de que cortaria a própria mão se achasse que isso poderia aumentar o seu conhecimento do assunto. Ou a mão de qualquer pessoa, aliás. É um fanático.

     — Somente alguém da mesma espécie pode reconhecer seu semelhante.

     — É verdade, acho... Mas, pelo menos, tenho você e sua mãe. Daniel não parece ter ninguém. Fico preocupado com ele, para ser sincero. É exageradamente obsessivo. Se não tiver muito cuidado, vai acabar levando a si mesmo para uma sepultura, antes do tempo.

     Tara bebeu a sua vodca costumeira de antes do jantar. Práticas funerárias do Ultimo Período. Deus do céu!

     O convidado estava quase uma hora atrasado e já discutiam se deveriam começar o jantar sem ele, quando a campainha tocou. Tara foi atender, ligeiramente embriagada a essa altura e forçando-se a ser educada.

     "Com um pouco de sorte, ele vai embora logo após o jantar", pensou. "Por piedade, faça com que ele vá embora logo após o jantar."

     Ela se deteve por um momento para se recompor, em seguida encaminhou-se até a porta e abriu-a.

     "Oh, Meu Deus, você é lindo!"

     Mas isso, afortunadamente, foi apenas um pensamento, não exprimido em voz alta, se bem que algum sinal de surpresa deve ter transparecido no seu rosto, já que ele era exatamente o contrário de tudo o que estivera esperando: alto, moreno, com as maçãs do rosto salientes e olhos castanhos tão escuros que eram praticamente pretos, como poças de água enegrecidas pelo acúmulo de musgos. Ela ficou lá em pé, parada, contemplando-o.

     Sinto muito pelo atraso — disse ele, seu sotaque inglês com uma leve vibração gaulesa no final das vogais. — Tinha trabalho para concluir.

     — As práticas funerárias do Último Período na Necrópole de Tebas — replicou ela, parecendo embaraçosamente embaraçada.

     Ele riu.

     — Na verdade, eu estava preenchendo um pedido de financiamento. Provavelmente, algo um pouco mais interessante. — Ele estendeu a mão.

     Daniel Lacage.

     Ela a apertou.

     — Tara Mullray.

     Permaneceram apertando-se as mãos por um instante a mais do que o necessário e então foram para a sala.

     O jantar foi maravilhoso. Daniel e o pai de Tara passaram a maior parte do tempo trocando idéias sobre um ponto obscuro a respeito da história do Novo Reinado — se teria ou não havido uma co-regência entre Amenófis III e o seu filho Akenaton. Ela já escutara discussões como essas — e fugira delas — uma centena de vezes antes. Com Daniel envolvido, no entanto, a argumentação assumia uma curiosa proximidade, como se os estivesse afetando naquele momento e naquele lugar, e não como se fosse um debate acadêmico monótono sobre um tempo tão distante que mesmo a história o tinha esquecido.

     — Sinto muito — disse ele, sorrindo para Tara, no momento em que a mãe dela servia o pudim. — Isto deve ser uma tortura para você.

     — De jeito nenhum — ela replicou. — Pela primeira vez em minha vida, o Egito está me parecendo de fato interessante.

     — Muitíssimo obrigado — disse o pai rispidamente.

     Após o jantar, os dois dirigiram-se para o jardim dos fundos para fumar um cigarro. Era uma noite quente, o céu apinhado de estrelas, e caminharam um pouco pelo gramado, sentando-se depois num balanço rústico.

     — Acho que, lá dentro, você estava sendo apenas educada — disse ele Pondo dois cigarros na boca, acendendo-os e passando um para ela. — Não havia necessidade disso.

     — Não sou educada — respondeu ela, aceitando o cigarro. — Ou pelo menos não esta noite.

     Ficaram ali sentados, em silêncio, durante algum tempo, balançando-se gentilmente para a frente e para trás, os corpos próximos porém não ainda se tocando. Ele tinha um perfume, não era loção após-barba, alguma coisa mais encorpada, menos manufaturada.

     — Papai contou que você esteve escavando no Vale dos Reis — disse ela, afinal.

     — Na verdade, um pouco para cima, lá nas colinas.

     — Está procurando alguma coisa em particular?

     — Oh, alguns túmulos do Último Período. Da vigésima sexta dinastia. Nada muito interessante.

     — Achei que fosse um fanático sobre o assunto.

     — E sou — replicou ele. — Só que esta noite, não.

     Eles riram, os olhos fixos um no outro por um certo momento, depois voltando-se para olhar o céu. Acima deles os galhos de um velho pinheiro torciam-se como braços entrelaçados. O silêncio que se seguiu foi bastante comprido. Finalmente, ele falou:

     — É um lugar mágico, sabe? O Vale dos Reis. — Sua voz soava baixo, quase um sussurro, como se estivesse falando para si mesmo e não para ela. — Faz a gente sentir um arrepio descendo pela espinha só de pensar nos tesouros que já foram enterrados ali. Quero dizer, olhe só o que acharam com Tutankâmon. E ele era um faraó menor. Um ninguém. Pense no que deve ter sido enterrado com um soberano verdadeiramente grande... Um Amenófis III, ou um Horemheb, ou um Seti I.

     Ele reclinou a cabeça para trás, sorrindo, subitamente perdido em seus pensamentos.

     — Com freqüência fico conjeturando como que deve ser encontrar algo assim. Claro que nunca acontecerá de novo. Tutankâmon é um caso único, a chance de seu túmulo ter sobrevivido era de uma em um bilhão. Só que não consigo parar de pensar nisso. A excitação. A comoção. Nada jamais poderia se comparar a isso. Nada neste mundo. Mas, então, é claro que...

     Ele suspirou.

     — O quê?

     — Ora, é algo que provavelmente não duraria, a excitação. Essa é a coisa da arqueologia. Um achado nunca é o bastante. A gente está sempre tentando se superar. Olhe só o Carter. Depois de tirar tudo do túmulo de Tutankâmon, passou os últimos dez anos da vida anunciando a todos que sabia onde Alexandre, o Grande, estava enterrado. Qualquer um consideraria que o maior achado da história da arqueologia seria o bastante, mas não foi. É como um dilema. A gente passa a vida inteira escavando os segredos do passado e ao mesmo tempo se preocupando com a possibilidade de que um dia não haverá mais nenhum segredo deixado para ser descoberto.

     Ele ficou em silêncio por algum tempo, o cenho franzido, então esmagou o cigarro no braço do balanço e soltou uma risada. — Escute, aposto que você ia preferir estar lá dentro ajudando a lavar os pratos.

     Seus olhos encontraram-se novamente e, como se agissem independentemente do resto do corpo, os dedos escorregaram através do assento e se tocaram. Foi um gesto inocente, quase imperceptível, e, contudo ao mesmo tempo carregado de intenções. Eles desviaram os olhos. Mas as pontas dos dedos permaneceram em contato, algo irreversível fluindo entre eles.

     Encontraram-se em Londres, três dias mais tarde, e em uma semana já haviam se tornado amantes.

     Fora um tempo mágico, o melhor de sua vida. Ele tinha um apartamento em Gower Street — um minúsculo sótão com duas estreitas clarabóias e sem aquecimento central —, e essa tinha sido a alcova dos dois. Faziam amor dia e noite, jogavam gamão, faziam piqueniques entre os lençóis, faziam amor novamente, devoravam um ao outro.

     Ele era um desenhista brilhante, e ela havia se deitado sobre a cama, nua, tímida e ruborizada, para que ele a desenhasse, esboços a lápis, carvão, craiom, cobrindo folhas e folhas com sua imagem, como se cada desenho fosse de alguma forma uma afirmação oficial de seu caso de amor.

     Um amigo de Daniel lhe emprestava uma velha motocicleta Triumph e, nos fins de semana, os dois saíam para uma volta no campo. As mãos de Tara agarradas à cintura dele, eles procuravam cantos secretos nos quais pudessem ficar sozinhos, juntos — uma floresta silenciosa, uma margem de rio deserta, alguma estreita faixa de litoral sem ninguém à vista.

     Ele a levou numa excursão pelo Museu Britânico, assinalando alguns objetos que lhe eram particularmente especiais, que lhe causavam entusiasmo, explicando sua história: um tablete de escrita cuneiforme de Amarna, um hipopótamo azul vitrificado, um fragmento da época de Ramsés com a figura de um homem possuindo uma mulher por detrás.

     — "Sereno é o desejo de minha pele" — disse ele, traduzindo o texto em hieróglifo abaixo de uma das faces da pedra.

     — Mas o meu não é — riu ela, agarrando o rosto dele e beijando-o apaixonadamente, sem ligar para os turistas em volta.

     Juntos, visitaram também outras coleções — o Petrie, o Bodleian, o Sir John Soane Museum para ver os sarcófagos de Seti — e ela por sua vez levou-o ao zoológico de Londres, onde uma amiga sua, que estava trabalhando lá, trouxe uma píton para Daniel segurar, coisa que ele não achou nada divertida.

     Por essa época, finalmente, os pais dela haviam se separado, mas Tara estava tão envolvida no seu relacionamento com Daniel que o episódio praticamente não a afetou. Tara graduou-se no curso que fazia e iniciou os estudos para o Ph.D., ainda desligada do que estava acontecendo, como se tudo o mais fosse parte de algum universo paralelo, distante da realidade inteiramente absorvente do seu relacionamento com Daniel. Ela tinha sido tão feliz. Tão completa.

   — O que mais pode haver? — perguntou ela, certa noite, os dois deitados juntos depois de fazerem amor como num surto, especialmente intenso.

     — O que mais você poderia querer? — perguntou Daniel.

     — Nada — replicou ela, aconchegando-se a ele. — Nada neste mundo.

     — Daniel é uma pessoa de enorme talento — seu pai lhe dissera quando ela lhe contou sobre o relacionamento deles. — Um dos mais brilhantes estudantes que já tive o privilégio de ter em minhas classes. Vocês formam um belíssimo casal. — Ele fez uma pausa e depois acrescentou: — Mas, tome cuidado, Tara. Como Woa pessoa talentosa, ele tem uma espécie de sombra sobre si. Não o deixe magoá-la.

     — Ele não vai fazer isso, papai—replicara.—Sei que ele não vai fazer isso. Curiosamente, no seu íntimo, ela sempre culpou o pai, e não Daniel,

     por ele tê-la de fato magoado, como se tivesse sido o aviso que houvesse fraturado a relação dos dois, e não a pessoa sobre a qual fora prevenida.

     O Salão de Chá Ahwa Wadood era um estabelecimento decadente, com serragem no chão e mesas abarrotadas de homens idosos bebendo chá e jogando dominó. Ela o viu assim que entrou, no outro extremo do salão, fumando um cachimbo shisha, cabeça encurvada sobre um tabuleiro de gamão totalmente absorto. Não mudara quase nada. Desde a última vez em que se viram, seis anos atrás, apenas seu cabelo estava um pouco mais comprido, seu rosto mais queimado pelo sol. Ela o ficou observando fixamente por um momento, lutando contra um ataque de náuseas, e então encaminhou-se para onde ele estava. Antes que Daniel erguesse os olhos, ela já se havia postado bem à frente dele.

     — Tara!

     Os olhos escuros dele arregalaram-se. Por um longo momento, ficaram olhando um para o outro, sem dizer nada, e em seguida, inclinando-se sobre a mesa, ela ergueu a mão e lhe deu uma bofetada.

     — Seu sacana — sibilou ela.

    

LUXOR, AS COLINAS DE TEBAS

     O louco agachou-se junto à fogueira, espetando as brasas com um graveto. Ao seu redor, os rochedos íngremes avultavam grandes e silenciosos. Além dele, o outro único sinal de vida era o ocasional uivo de um cão selvagem. Sobre seus ombros uma deslumbrante lua em curva, suspensa contra a noite.

     Ele observava fixamente as chamas bruxuleantes, sua face encovada e empoeirada, os nós de seus cabelos sujos balançando sobre os ombros do djellaba puído. Ele podia enxergar deuses no fogo: estranhas figuras com corpos humanos e cabeças de bestas. Havia um com cabeça de chacal, outro semelhante a um pássaro e outro com uma touca alta e um alongado focinho de crocodilo. As figuras o assustavam, mas também o deliciavam. Ele começou a balançar os quadris, os lábios trêmulos, mesmerizado pelas imagens de fogo aos seus pés.

     Agora as chamas lhe revelavam outros segredos; uma sala escura, um caixão, jóias, objetos empilhados contra uma parede, espadas, escudos, facas. Sua boca imobilizou-se, aberta, de tanta admiração.

     As chamas escureceram-se, porém apenas por instantes, e quando se avivaram novamente a sala desaparecera e no seu lugar havia outra coisa. Um deserto. Quilômetros e mais quilômetros de areia ardente, e através dela um grande exército marchando. Ele escutou o rumor de patas, o tilintar de armaduras, uma canção avolumando-se. E também outro som, distante, como o rosnado de um leão. Parecia vir debaixo da areia, num crescendo, até que todos os demais sons perderam-se dentro dele. As pálpebras do homem começaram a tremer e sua respiração tornou-se mais apressada. Ele levantou as mãos finas e manteve-as tapando os ouvidos, pois o ronco começava a feri-los. As chamas saltavam, um vento começou a soprar e então, diante de seu olhar horrorizado, as areias do deserto começaram a borbulhar e a espumar como água. E se agitavam, encapelavam-se, e a seguir ergueram-se bem alto à frente dele, crescendo como uma onda gigantesca de um maremoto, mais e mais alta, engolfando o exército inteiro. Ele gritou e arremessou-se para trás, sabendo que também desapareceria debaixo da areia, se não fugisse. Pulou, colocando-se de pé, e saiu correndo loucamente, avançando pelas colinas, uivando...

     — Não! — Seus gritos ecoavam dentro da noite. — Que Alá me proteja! Que Alá tenha piedade de minha alma! Nãooo!

    

CAIRO

     Tenny a descrevera como a semana Mike Tyson de Tara. Primeiro, Daniel a deixara, depois, quase imediatamente, descobrira que sua mãe tinha um câncer inoperável. Dois golpes letais, vindos do nada, um seguido do outro, nocauteando-a.

     — Opa! — Jenny exclamara. — É assim que faz o Mike Tyson, quando ele pega pra valer.

     Revendo o passado — e nos últimos seis anos ela não fizera outra coisa senão rever o passado, a coisa toda girando dentro da sua cabeça como se fosse sempre a mesma fita de vídeo —, percebia que os sinais estiveram presentes desde o começo.

     A despeito da intimidade deles, uma parte de Daniel sempre se mantivera alheia. Eles acabavam de fazer amor e, imediatamente, ele sumiria tragado por suas leituras, como se a intensidade dos sentimentos que haviam brotado dele o alarmasse. Conversavam muito, mas, de certa forma, ele nunca revelou qualquer coisa sobre si mesmo. Depois de mais de um ano juntos, ela ainda não havia descoberto quase nada sobre o passado dele, como um escavador que tenta cavar e cavar, e acaba sempre batendo em pedra sólida, quase rente à superfície. Ele nascera em Paris, perdera seus pais num acidente de carro quando tinha dez anos, veio morar com uma tia na Inglaterra, fizera seus primeiros estudos universitários em Oxford. E era tudo. Como se ele submergisse na história do Egito para compensar a falta de uma história pessoal.

     No entanto, os sinais sempre estiveram presentes. Mas ela os desconsiderara. Recusara-se a reconhecê-los. E o havia amado tanto...

     O final chegara completamente sem aviso. Certa tarde, quando já havia dezoito meses que estavam juntos, entrara no apartamento dele, haviam se abraçado, haviam até mesmo se beijado, mas então ele se afastou.

     — Tive notícias hoje do Conselho Supremo de Antigüidades — anunciou ele, olhando fixamente em sua direção, mas para baixo, evitando o contato visual. — Recebi a concessão para escavar no Vale dos Reis. Para dirigir minha própria expedição.

     — Daniel, isso é maravilhoso! — gritou ela, aproximando-se e lançando os braços em torno dele. — Estou tão orgulhosa de você!

     Tara pendurou-se nos ombros dele por um momento, depois afastou-se, sentindo que ele não retribuía o abraço, que havia mais para ser dito.

     — O que foi?

     Os olhos dele pareciam mais escuros do que o habitual.

     — Isso significa que tenho de morar no Egito por algum tempo. Ela riu.

     — Mas é claro que você tem de morar no Egito. O que você estava esperando? Passar lá somente os finais de semana?

     Ele sorriu, mas havia algo vazio na expressão do seu rosto.

     — É uma grande responsabilidade, Tara. Tive a permissão para escavar em um dos maiores sítios arqueológicos do mundo. Uma enorme honra. Vou precisar focalizar toda a minha atenção nisso.

     — Claro que vai ter de focalizar toda a sua atenção nisso.

     — Toda a minha atenção.

     Algo na maneira como enfatizou o toda provocou um ligeiro estremecimento, que a percorreu por inteira, como o aviso de um terremoto mais forte, prestes a acontecer. Tara recuou alguns passos, seus olhos caçando os dele, mas foi incapaz de capturá-los.

     O que está dizendo, Daniel? — Silêncio... Ela aproximou-se novamente, tomando as mãos dele. — Está tudo bem. Posso viver sem você por alguns meses. Vai ser bom.

     Havia uma garrafa de vodca sobre a escrivaninha atrás dele e, tirando suas mãos das dela, ele a apanhou e serviu-se de um copo.

     — É mais do que isso, Tara.

     Outro tremor a percorreu, mais forte, desta vez.

     — Não estou entendendo...

     Ele engoliu a vodca de um único gole.

     — Acabou, Tara.

     — Acabou?

     — Sinto muito por ser tão grosseiro, mas não posso colocar a coisa de outra maneira. Venho esperando uma oportunidade como esta por toda a minha vida. Não posso permitir que qualquer coisa atrapalhe. Nem mesmo você.

     Ela permaneceu olhando para ele por um momento e então, como se tivesse recebido um soco no estômago, cambaleou para trás, amparando-se no umbral da porta, procurando apoio. A sala ao seu redor espessou-se, tornou-se indistinta.

     — E como eu iria... atrapalhar?

     — Não consigo explicar, Tara. É só que preciso me concentrar no trabalho. Não posso ter nenhum... estorvo.

     — Estorvo! — Ela lutou para controlar a voz, para encontrar palavras. — É isso que represento para você, Daniel? Um estorvo?

     — Não é isso. É que apenas preciso... ficar livre para realizar o meu trabalho. Não posso ter laços me prendendo. Sinto muito. Sinto mesmo. Este último ano com você foi a melhor coisa da minha vida. Só que...

     — Você encontrou algo melhor. Houve uma pausa.

     — Sim — disse ele, afinal.

     Ela escorregou para o assoalho então, envergonhada por suas lágrimas, mas incapaz de controlá-las.

     — Meu Deus — soluçava. — Oh, meu Deus, Daniel, por favor, não faça isso comigo.

     Quando saiu, vinte minutos mais tarde, sentia-se como se tudo dentro dela tivesse sido raspado para fora. Durante dois dias, não teve mais notícias de Daniel e, por fim, incapaz de manter-se longe, retornou ao apartamento dele. Bateu na porta, mas ninguém abriu.

     — Ele se mudou — informou um estudante que morava no andar de baixo. — Foi para o Egito, ou um lugar desses qualquer. Na semana que vem vai chegar um novo inquilino.

     Ele não lhe deixara sequer um bilhete.

     Teve vontade de morrer. Chegou até a comprar cinco frascos de aspirinas e uma garrafa de vodca.

     Naquela semana, no entanto, recebera a notícia do câncer de sua mãe e isso, por alguma razão, atenuara o sofrimento da dolorosa partida de Daniel, uma agonia cancelando a outra.

     Tara cuidara da mãe durante os quatro breves meses que ela ainda teve de vida, e no redemoinho de ter acompanhado sua lenta depauperação, conseguiu superar o final do relacionamento. Quando a mãe por fim morreu, Tara organizou o funeral e depois viajou para o exterior por um ano, primeiro para a Austrália, depois para a América do Sul. Na volta, comprou o seu apartamento, arranjou um emprego no zôo, restabelecendo assim alguma espécie de equilíbrio.

     No entanto, a dor jamais a deixara inteiramente. Tinha havido outras relações, porém ela sempre se conservou retraída, não querendo arriscar a sofrer mesmo uma fração do tormento que vivenciara com Daniel.

     Nunca mais o vira, nem tivera notícias dele novamente. Até aquela noite.

     — Acho que fiz por merecer isso — disse ele.

     — Fez, sim — replicou ela. — E muito.

     Haviam deixado o salão de chá, olhares e sussurros às suas costas, e agora estavam descendo a Ahmed Maher rumo ao coração do bairro islâmico, passando por quiosques vendendo lâmpadas e cachimbos de shisha, roupas e vegetais. O ar estava saturado de odores agridoces de condimentos, e também de esterco e mercadoria barata, uma centena de ruídos diferentes assaltavam os seus ouvidos — martelos batendo, música, apitos e, saindo de uma porta de loja, o lento e rítmico rangido de uma enorme máquina de fazer aletria.

     Chegaram a um cruzamento e viraram à esquerda, atravessando um portal de pedra com entalhaduras ornamentais, dois minaretes despontando bastante altos sobre eles. Uma estreita rua estendia-se adiante, ainda muito mais apinhada de gente do que a que haviam deixado. Cinqüenta metros à frente, entraram numa aléia estreita e detiveram-se diante de uma pesada porta de madeira. Uma placa na parede dizia Hotel Salah al-Din. Daniel abriu a porta e entraram num pequeno pátio arenoso, com uma fonte inteiramente seca ao centro e uma galeria de madeira correndo acima das suas cabeças.

     — Lar doce lar — disse ele.

     O quarto era no andar superior, abrindo-se para a galeria, simples mas limpo. Ele acendeu a luz, baixou as venezianas da janela e serviu para ambos uma dose generosa de uísque. Da rua embaixo, vinha o ruído de rodas de carroças e o murmúrio de vozes humanas. Ficaram em silêncio por um longo tempo, até que finalmente ele falou:

     — Não sei o que dizer.

     — Quem sabe... eu sinto muito?

     — Ia adiantar alguma coisa?

     — Seria um começo, sim.

     — Então, sinto muito, Tara. Sinto de verdade.

     Havia um pacote de charutos tipo cheroot sobre a mesa junto dele. Daniel puxou um deles e acendeu-o, exalando uma nuvem densa de fumaça. Parecia constrangido e nervoso, seus olhos passando rapidamente por ela e desviando-se logo a seguir. Na luz brilhante e fria do quarto, ela pôde ver que ele envelhecera mais do que tinha pensado à primeira vista. Havia médias grisalhas em meio aos seus cabelos escuros e rugas cortando a testa. No entanto, ainda era bonito. Meu Deus, como era bonito.

     — Quando começou a fumar essa coisa? — perguntou. Ele deu de ombros.

     — Alguns anos atrás. Carter costumava fumar charutos como estes. Achei que podia atrair um pouco da sorte que ele teve.

     — E conseguiu?

     — Para dizer a verdade, não.

     Ele tornou a encher o seu copo e o dela também. Escutou-se o som alto de uma buzina, lá embaixo, uma moto tentando abrir caminho entre a multidão.

     — Então, como foi que você me encontrou? — perguntou ele. — Não acho que tenha entrado naquele salão de chá por acaso.

     — Li o bilhete que você deixou para o meu pai.

     — Ah, claro. Como está ele? Ela contou.

     — Deus do céu! Sinto muito. Não sabia de nada. É verdade, não sabia. Ele colocou o copo de lado e aproximou-se dela, estendendo os braços como se para abraçá-la. Mas ela ergueu a mão, contendo-o, e ele deixou cair os braços junto ao corpo.

     — Sinto muito, Tara. Se houver alguma coisa que eu possa fazer...

     — Já está tudo sendo providenciado.

     — Mas, se precisar...

     — Já está tudo sendo providenciado.

     Ele assentiu de cabeça e afastou-se. Fez-se mais um longo silêncio. Ela se perguntou o que estava fazendo ali, o que podia estar querendo. Novelos de fumaça do cheroot rodeavam a lâmpada.

     — E aí, o que você tem feito nos últimos seis anos? — perguntou Tara, enfim, consciente de que a pergunta parecia absolutamente superficial.

   Daniel bebeu o seu uísque de um único trago.

     — O de sempre... Escavações. Um pouco de leitura. Escrevi alguns livros.

     — E está morando aqui, agora?

     Ele fez um movimento negativo com a cabeça.

     — Em Luxor. Estou no Cairo apenas por alguns dias. Negócios.

     — Não sabia que você ainda mantinha contato com papai.

     — E não mantinha — respondeu. — Nunca mais nos falamos desde... — Ele interrompeu-se e serviu-se de outro uísque: — Pensei que seria bom nos vermos. Não sei por quê. Pelos velhos tempos, essas coisas. Duvido que ele tivesse me procurado. Passou a me odiar pelo que fiz.

     — Então somos dois.

     — Sim — murmurou. — Acho que é isso mesmo.

     Terminaram a garrafa de uísque, garimpando novidades um do outro, patinando sobre a superfície das coisas, sem ir fundo demais. Lá fora, o barulho na rua cresceu até atingir o pico, depois, lentamente, começou a dissipar-se, à medida que as lojas iam se fechando, com a noite, e os transeuntes iam rareando na rua.

     — Você nem sequer escreveu para mim — disse ela, brincando com o copo. Já era tarde agora, sua mente turvada pelo uísque e pela exaustão. A rua lá fora estava vazia e silenciosa, pedaços de papéis eram carregados pelo vento como se a carne da cidade estivesse se descarnando.

     Você gostaria que eu tivesse escrito?

     Ela pensou e depois sacudiu a cabeça.

     —Não.

     Estava sentada na beirada da cama. Daniel estava num sofá empoeirado, encostado à parede oposta.

     — Você ferrou com a minha vida — disse ela.

     Ele ergueu a vista para ela e seus olhos se encontraram brevemente, até que Tara inclinou a cabeça para trás e terminou sua bebida.

     — Seja como for, é tudo passado agora. Terminou.

     E no mesmo instante em que dizia essas palavras, sabia que não eram verdadeiras. Que ainda havia alguma coisa para acontecer. Algum desfecho mais profundo.

     Na rua, antes do grande portal de pedra que haviam atravessado horas atrás, o Mercedes preto empoeirado encontrava-se silenciosamente estacionado junto ao meio-fio, aguardando.

    

LUXOR

     - Você não sabe de nada sobre um novo achado? — perguntou Khalifa, entediado, esmagando a ponta do seu cigarro numa xícara de café vazia.

     O homem diante dele balançou a cabeça.

     — Um túmulo? Um esconderijo? Qualquer coisa fora do comum? Outro balançar de cabeça.

     — Vamos, Omar. Se alguma coisa está acontecendo por aí, cedo ou tarde vamos descobrir. Por que não conta de uma vez?

     O homem deu de ombros e assoou o nariz na manga da sua túnica.

     — Não sei de nada — disse. — Absolutamente nada. Está perdendo seu tempo comigo.

     Eram oito da manhã e Khalifa passara a noite inteira acordado. Seus olhos ardiam, a boca estava seca e a cabeça latejando. Fazia já dezessete horas, com apenas breves intervalos para as preces e para comer qualquer coisa, que ele e Sariya estavam entrevistando todos os indivíduos de Luxor com ligações conhecidas com o comércio de antigüidades, esperando encontrar uma pista no caso Abu Nayar. A tarde inteira do dia anterior, toda a noite e toda a manhã, um fluxo constante de notórios atravessadores, passando pelo distrito policial em Sharia el-Karnak, e todos respondendo exatamente a mesma coisa: não, não sabiam de nada a respeito de novas antigüidades chegando ao mercado; e, sim, se lembrassem de alguma coisa, se algo lhes ocorresse, entrariam em contato. Era como ser forçado a escutar a mesma fita gravada, vezes e vezes seguidas.

     Khalifa acendeu outro cigarro. Não que estivesse com vontade de fumar, apenas precisava de alguma coisa para manter-se acordado.

     — Mas como é que pode? Você acha que alguém como Abu Nayar poderia comprar um aparelho de televisão novo e uma geladeira para a sua mãe? — perguntou ele.

     — Mas que diabo! Como é que vou saber? — grunhiu Omar, um homem pequeno, cabelos duros como arame e nariz bulboso. — Eu mal o conhecia.

     — Ele encontrou alguma coisa, não foi?

     — Você é que está dizendo.

     — Ele encontrou alguma coisa e por isso foi morto. E você sabe o que ele encontrou.

     — Não sei de nada.

     — Você é um Abd el-Farouk, Omar! Nada acontece em Luxor sem que a sua família tome conhecimento.

     —Mas, neste caso em particular, não sabemos de nada. Quantas vezes vou ter de repetir? Não sei de nada. Nada. Nada.

     Khalifa se pôs de pé e foi até a janela, soltando baforadas do cigarro. Sabia que estava perdendo tempo. Omar não iria lhe dizer coisa alguma e ponto final. Poderia ficar fazendo perguntas a ele até cansar, e não faria a menor diferença. Ele soltou um profundo suspiro.

     — Tudo bem, Omar — disse sem se virar. — Já pode ir. Entre em contato, se lembrar de alguma coisa.

     — Com certeza! — disse Omar rapidamente, levantando-se e indo para a porta. — Eu ligo para você na mesma hora.

     E mais rapidamente ainda saiu da sala, deixando Khalifa e seu assistente a sós.

     — Quantos faltam? — perguntou Khalifa.

     — Era o último — respondeu Sariya, inclinando-se à frente e esfregando os olhos. — Já falamos com todos. Não há mais nenhum.

     Khalifa arriou numa cadeira e acendeu outro cigarro, sem notar que havia deixado um queimando no cinzeiro sobre o peitoril da janela.

     Talvez estivesse no caminho errado. Talvez a morte de Nayar não tivesse relação com antigüidades. Considerando tudo que havia escutado sobre a vítima, não faltavam razões para alguém desejar sua morte. E o fato é que ele não tinha nenhuma prova ligando o caso a antigüidades. Absolutamente nenhuma.

     No entanto, tinha aquela sensação — algo que não poderia explicar direito —, mas havia algo lhe dizendo que a morte de Nayar estava ligada ao comércio de artefatos antigos, do mesmo modo que arqueólogos pressentem, lá no fundo, quando estão próximos de um achado importante. Era como um sexto sentido, um instinto. E no instante em que vira o cadáver com a tatuagem do escaravelho, sentira que era um caso em que o presente somente poderia ser explicado pelo passado.

     E havia algumas pistas. No mínimo o suficiente para que a sua linha de investigação não parecesse totalmente sem sentido. Nayar estava efetivamente envolvido com o comércio de antigüidades. E efetivamente pusera as mãos numa boa soma de dinheiro — e era evidente que se tratava de mais dinheiro do que poderia ganhar nos biscates que fazia para manter a família. A esposa, quando Khalifa a interrogara brevemente na tarde anterior, negara saber se o marido estava ou não de posse de qualquer artefato, o que não seria nada surpreendente, a não ser pelo fato de ela ter feito isso antes que ele tivesse mencionado o assunto, como se estivesse preparada para responder a essa pergunta. E havia ainda a reação dos atravessadores que ele interrogara.

     — Medo — exclamou, soprando um anel de fumaça para o teto e observando-a enquanto se expandia, à medida que subia no ar, para depois se dissipar lentamente.

     — O quê?

     — Eles estavam com medo, Mohammed. Os atravessadores. Todos eles, apavorados.

     — Não me surpreende. Podem pegar cinco anos por fazer negócios com antigüidades roubadas.

     Khalifa soprou novo anel.

     — Não era de nós que tinham medo. De alguma outra coisa. Ou de outra pessoa.

     Sariya estreitou os olhos.

     Não estou entendendo.

     Alguém os ameaçou, Mohammed. Estavam disfarçando, mas todos estavam morrendo de medo. Dava para ver, quando lhes mostramos as fotos de Nayar. Ficavam pálidos, como se pudessem ver a mesma coisa acontecendo a eles. Todos os atravessadores de antigüidades em Luxor estão se cagando nas calças. Nunca tinha visto nada parecido.

     — Você acha que eles sabem quem matou Nayar?

     — Eles suspeitam, é claro. Mas não vão falar. O fato é que estão com muito mais medo do pessoal que retalhou Nayar do que de nós.

     Sariya bocejou. Khalifa notou que a boca dele parecia ter mais próteses do que dentes.

     — Então, com quem diabos você acha que estamos lidando? — perguntou o sargento.—A máfia daqui? Gente do Cairo? Fundamentalistas?

     Khalifa deu de ombros.

     — Pode ser qualquer um desses, ou nenhum deles. Só tenho uma certeza... É coisa grande!

     — Você acha mesmo que Nayar pode ter encontrado um novo túmulo?

     — É possível. Ou quem sabe alguém achou e Nayar ficou sabendo. Ou talvez se trate apenas de alguns objetos. Mas é alguma coisa valiosa. Alguma coisa que faça valer a pena matar uma pessoa.

     Ele jogou o cigarro pela janela. Sariya bocejou novamente.

     — Sinto muito, senhor — disse ele. — Não tenho dormido muito ultimamente, ainda mais com o novo neném.

     — É claro — sorriu Khalifa. — Tinha esquecido. Quantos são agora?

     — Cinco.

     Khalifa balançou a cabeça.

     — Não sei onde você arranja tanta energia. Três quase me mataram.

     — Você devia comer mais grão-de-bico — recomendou Sariya. — É o que dá resistência, você sabe! Potência!

     A espontaneidade do seu assistente ao lhe dar o conselho divertiu Khalifa e ele começou a rir às gargalhadas. Por um momento, Sariya pareceu ofendido. Depois, também começou a rir.

     — Vá para casa, Mohammed — disse Khalifa. — E coma grãos-de-hoje, depois durma um pouco, relaxe. Mais tarde, vá à margem oeste conversar com a esposa e a família de Nayar. Veja o quanto consegue desencavar.

     Pondo-se de pé, Sariya pegou seu paletó das costas da cadeira e encaminhou-se para a porta. De repente, voltou-se.

     — Senhor?

     — Hum?

     Ele torcia a manga da camisa, sem olhar diretamente para Khalifa.

     — Acredita em maldições?

     — Maldições?

     — Sim. Maldições antigas. Como, por exemplo, a maldição de Tutankâmon.

     Khalifa sorriu.

     — Como aquelas que dizem que aqueles que perturbam o sono dos mortos encontrará um fim terrível?

     — Algo assim.

     — Você acha que é com isso que podemos estar lidando aqui? Uma maldição?

     Sariya deu de ombros esquivamente.

     — Não, Mohammed. Não acredito em nada disso. Tudo não passa de um bando de superstições idiotas, já que está me perguntando.— Ele pegou o seu maço de cigarros, mas, vendo que estava vazio, amassou-o, transformando-o numa bola, e arremessou-o para o canto da sala. — Mas acredito no diabo. Alguma coisa sombria que toma conta da mente e do coração de um homem e o transforma num monstro. Já vi isso acontecer. E, aqui, é o diabo que estamos procurando. O diabo de verdade.

     Ele inclinou-se à frente e começou a massagear os olhos com os polegares.

     — Que Alá nos guie — murmurou. — Que Alá nos dê força.

     Mais tarde, depois de comer dois ovos cozidos e queijo como desjejum, Khalifa cruzou o rio, pegou um táxi e seguiu nele até Dra Abu el-Naga, onde desceu, pagou as vinte e cinco piastras da tarifa e começou a subir a estrada na direção do Templo de Hatchepsut, em Dei rel-Bahri.

     Aquele templo era um de seus monumentos favoritos. Um complexo de tirar o fôlego composto de diversos salões, terraços e colunas, cortados na pedra viva na base da face de um penhasco de uma centena de metros de altura. Todas as vezes em que se deparava com o monumento, sentia-se atordoado com sua ousadia. Era uma das maravilhas de Luxor. De todo o Egito. Do mundo.

     E, no entanto, algo do seu brilho se perdera. Em 1997, 62 pessoas, a maioria turistas, haviam sido massacradas ali por fundamentalistas. Khalifa estava interrogando um suspeito, nas proximidades, e fora um dos primeiros policiais a chegar à cena do crime. Passara meses despertando durante a noite, coberto de suor, escutando novamente o ruído de seus pés patinando no assoalho empapado de sangue. Agora, toda vez que via o templo, sua admiração era cortada por um calafrio de náuseas.

     Ele seguiu adiante até chegar a uma fileira de lojas de suvenires empoeiradas, no lado direito da estrada. Os proprietários postavam-se de pé diante delas, chamando os turistas que passavam, insistindo para que viessem ver seus cartões-postais, jóias, chapéus de sol e esculturas de alabastro, cada um proclamando que as suas mercadorias eram de longe as mais baratas e as melhores de todo o Egito. Um deles avançou para Khalifa brandindo uma camiseta com a estampa de um berrante hieróglifo na frente, porém o detetive afastou-o com um gesto, tomou a direita, atravessou um estacionamento de carros pavimentado e deteve-se em frente a um toalete móvel.

     — Suleiman! — chamou. — Suleiman, você está aí?

     Um homenzinho num djellaba verde-claro emergiu lá de dentro, claudicando ligeiramente. Uma cicatriz comprida corria em diagonal, atravessando a sua testa, partindo de junto do olho esquerdo e desaparecendo mais acima, por debaixo da linha do cabelo.

     — Inspetor Khalifa, é você?

     — Salaam Alekun. Como vai, meu amigo?

     — Kwayyis, hamdu-lillah — sorriu o homem. — Bem, graças a Alá. Aceita chá?

     — Obrigado.

     — Sente-se, sente-se!

     O homem apontou para Khalifa um banco na sombra junto a um edifício e pôs para ferver uma chaleira atrás do trailer. Quando o chá ficou pronto, ele serviu duas xícaras e levou-as até onde estava Khalifa, procurando sentir com cuidado os passos naquele chão irregular, como se tivesse medo de tropeçar. Ofereceu uma xícara a Khalifa e sentou-se, colocando a sua sobre o banco, junto a ele. Khalifa pegou a mão do homem e enfiou nela uma sacola de plástico.

     — Cigarros.

     Suleiman remexeu na sacola com suas mãos desajeitadas, manuseou e retirou de dentro dela um maço de Cleópatra.

     — Não devia fazer essas coisas, inspetor. Sou eu quem estou em dívida com o senhor.

     — Você não me deve coisa alguma.

     — Fora a minha vida.

     Quatro anos atrás, Suleiman al-Rashid estava trabalhando como guarda no templo. Quando os fundamentalistas irromperam no local, fora baleado na cabeça, tentando proteger um grupo de mulheres e crianças suíças. Na balbúrdia depois do atentado, todo mundo supôs que ele estivesse morto. Mas Khalifa examinou-o, encontrando um fraquíssimo batimento em seu pulso, e chamou os médicos para cuidarem dele. Ficou entre a vida e a morte por várias semanas, mas conseguiu sobreviver, afinal. No entanto, as lesões que sofreu o deixaram cego, e ele não pôde reassumir suas funções como guarda. Agora, cuidava de um dos conjuntos de banheiros do lugar.

     — Como está a cabeça? — perguntou Khalifa. Suleiman deu de ombros e esfregou as têmporas.

     — Mais ou menos. Hoje, está doendo um pouco.

     — Tem visto o médico regularmente?

     — Médicos! Bah! Que inúteis!

     — Se tem sentido dor, precisa ser examinado.

     — Estou bem, obrigado.

     Suleiman era um homem orgulhoso e Khalifa sabia muito bem que não deveria pressioná-lo além de um certo ponto. Então, perguntou pela mulher e pela família dele, e brincou com ele por que seu time, el-Abli, tinha perdido para o time de Khalifa, El amalek, no último campeonato do Cairo. Depois, caíram em silêncio. Khalifa ficou parado, observando um grupo de turistas descendo de seus ônibus.

     — Estou precisando de sua ajuda, Suleiman — disse, afinal.

     — Claro, inspetor. Qualquer coisa. Sabe muito bem que basta me pedir. Khalifa tomou um gole do seu chá. Não se sentia bem em envolver o amigo, jogando com seu senso de obrigação. Suleiman já tinha problemas de sobra. Mas ele precisava de informações. E Suleiman estava sempre de ouvidos atentos.

     — Acho que alguém encontrou alguma coisa importante — disse. Um túmulo, um esconderijo. Algo grande. Ninguém fala a respeito, o que não chega a surpreender, exceto pelo fato de que não é só a ganância que os está mantendo calados, é medo. Estão apavorados. — Ele acabou de tomar cirá — Você ouviu alguma coisa?

     Suleiman não disse nada, apenas continuou coçando as têmporas.

     Não gosto de ficar perguntando coisas a você, pode crer. Mas já mataram um homem e não quero outros cadáveres.

     No entanto, Suleiman continuou calado.

     — Há um túmulo novo? — perguntou Khalifa. — Nada acontece por aqui sem que você acabe sabendo.

     Suleiman ajeitou-se no banco e apanhou o seu chá, começando a sorver pequenos goles, vagarosamente.

     — Tenho escutado algumas coisas — disse, o olhar morto direcionado à frente. — Nada muito certo. Como você já disse, o pessoal está apavorado.

     Ele virou a cabeça de súbito, voltando-se para as colinas, correndo os olhos sem visão pelos paredões de pedras com seu brilho castanho-amarelado.

     — Está achando que estamos sendo observados? — perguntou Khalifa, seguindo a direção para a qual voltara-se Suleiman.

     — Sei que estamos sendo vigiados, inspetor. Eles estão em todo lugar. Como formigas.

     — Quem está em todo lugar? O que é que você sabe, Suleiman? O que foi que andou ouvindo?

     Suleiman continuou a dar goles em seu chá. Seus olhos, Khalifa notou, começaram a lacrimejar.

     — Rumores — ele murmurou afinal. — Palpites. Uma palavra aqui, outra ali.

     — Dizendo...?

     A voz de Suleiman transformou-se num sussurro.

     — Que encontraram um túmulo.

     — E?

     — Que há alguma coisa extraordinária nele. Algo sem preço. Khalifa girou a xícara em sua mão, remexendo a borra de chá acumulada no fundo.

     — Tem idéia de onde foi?

     Suleiman acenou com os olhos para os lados das colinas.

     — Em algum lugar lá em cima. Um estremecimento na cabeça.

     — Tem certeza?

     — Tenho.

     Uma pausa longa. O asfalto do estacionamento ondulava sob a ação do calor. De algum lugar atrás deles soou o zurro de uma mula. Ali perto, um casal europeu estava pechinchando com um motorista de carro quanto ao preço de um passeio rio abaixo.

     — Por que todo mundo está tão assustado, Suleiman? — perguntou Khalifa, com cuidado. — Quem os está apertando?

     Silêncio.

     — Com quem estou lidando?

     Suleiman ficou de pé, apanhou as duas xícaras vazias. Parecia não ter ouvido a pergunta.

     — Suleiman? Quem sãos esses sujeitos?

     Suleiman encaminhou-se para o trailer dos toaletes. Quando falou, não voltou a cabeça.

     — Sayf al-Tha'r — disse ele. — É de Sayf al-Tha'r que têm medo. Sinto muito, inspetor, tenho muito o que fazer. É melhor ir embora agora.

     Ele galgou com dificuldade os degraus do trailer e desapareceu no seu interior, fechando a porta.

     Khalifa acendeu um cigarro e recostou-se contra a parede.

     — Sayf al-Tha'r — sussurrou. — Eu sabia que era você.

   

ABU SIMBEL

     O jovem egípcio misturou-se à multidão, o seu boné de beisebol puxado para baixo, cobrindo os olhos. Não parecia em nada diferente dos demais turistas caminhando ao redor dos pés das quatro estátuas gigantes, a não ser por estar balbuciando algo consigo mesmo e por mostrar pouco interesse pelas enormes figuras sentadas eretas, erguendo-se acima dele. Sua atenção estava concentrada nos três guardas de uniforme branco sentados um banco ali perto. Ele consultou o seu relógio, tirou a bolsa de viagem dos ombros e começou a desafivelar as correias.

     Era meio-dia. Dois ônibus cheios de turistas americanos acabavam de chegar, vomitando uma corrente de passageiros sobre o asfalto, todos usando camisetas amarelas. Os vendedores de cartões-postais e de quinquilharias cercaram-nos imediatamente.

     O jovem estava agora com a mochila aberta. Ele a apoiou num joelho e remexeu no seu interior. À sua esquerda, um grupo de turistas japoneses se agrupava em volta da guia, que sustentava no ar um espanta-moscas, para que todos vissem onde ela estava.

     — O grande templo foi construído pelo faraó Ramsés II, no século XIII a.C. — ela gritou —, e foi dedicado aos deuses Re-Harakhty, Amun e Ptah...

     Um dos guardas observava o jovem egípcio. Seus dois companheiros fumavam, entretidos numa conversa.

     — As quatro estátuas sentadas representavam o Rei-Deus Ramsés. Têm mais de vinte metros de altura...

     Os turistas americanos começavam a chegar, rindo e conversando. Um deles tinha uma câmera de vídeo e dava instruções a sua mulher, dizendo-lhe para ir adiante, mover-se para a esquerda, olhar para cima, sorrir. O jovem egípcio se pôs de novo de pé, um braço ainda dentro da mochila. O guarda continuava olhando-o fixamente, então cutucou levemente seus companheiros com o cotovelo. Eles interromperam a conversa e começaram a observá-lo também.

     — As estátuas menores, entre as pernas de Ramsés, representam a mãe do rei, Muttuya, sua esposa favorita, Nefertari, e alguns de seus filhos...

     De repente, ouviu-se bem alto a voz do jovem. Várias pessoas voltaram-se em sua direção. Ele fechou os olhos por um instante e então, abrindo um sorriso, retirou o seu braço da mochila, uma submetralhadora Heckler & Koch presa à mão dele. No mesmo movimento, arrancou o boné da cabeça, revelando uma profunda cicatriz vertical correndo entre as sobrancelhas.

     — Sayf al-Tha'r! — gritou e, apontando a arma para a multidão, pressionou o gatilho. Houve o ruído de um clique, porém não seguido de fogo.

     Os três policiais saltaram de pé, tentando apontar seus rifles. Todas as outras pessoas apenas permaneceram imóveis, horrorizadas, como se estivessem presas a raízes. Por um momento, tudo ficou parado. O atirador apertava as mãos freneticamente em torno de sua arma, depois pressionou o gatilho novamente e desta vez a Heckler & Koch disparou. Um furioso crepitar começou a ressoar e as balas ceifaram a multidão, rasgando-lhe as carnes, quebrando-lhe os ossos, espalhando areia misturada ao sangue. As pessoas, em pânico, começaram a correr, umas fugindo do pistoleiro, outras, confusas, correndo diretamente em sua direção, gritos de dor e terror enchendo o ar. O homem com a câmera de vídeo dobrou-se ao meio; os três guardas foram jogados para trás e depois tombaram. Acima do roncar da sua arma e dos gritos de angústia, o jovem podia ser ouvido cantando e rindo.

     A saraivada de balas durou talvez dez segundos, o bastante para deixar uma manta de cadáveres aos pés das gigantescas estátuas. Então, a Heckler & Koch engasgou novamente e o ar foi preenchido por um estranho silêncio. O atirador lutou com sua arma por alguns momentos, depois, jogando-a fora, fugiu, penetrando no deserto.

     Não foi muito longe. Cinco dos vendedores de bugigangas saíram em sua perseguição e, conseguindo derrubá-lo no chão, começaram a chutá-lo com os pés descalços, a cabeça dele indo para a frente e para trás como uma bola.

     — Sayf al-Tha'r — gritou ele rindo, o sangue jorrando do nariz e boca. — Sayfal-Tha'r!

    

CAIRO

     Tara acordou sobressaltada. Sentou-se ainda grogue, olhando ao redor, vendo que estava na cama do quarto de hotel de Daniel. Por um momento horrível ela pensou que talvez... Depois se percebeu ainda inteiramente vestida e, simultaneamente, notou os lençóis estendidos sobre o sofá oposto, onde, tudo indicava, ele tinha dormido. Consultou o seu relógio. Era quase meio-dia.

     — Merda! — Resmungou, cambaleando ao se pôr de pé, a cabeça latejando.

     Havia uma garrafa de água mineral ao lado da cama e, desatarraxando a tampa, sorveu um generoso gole. Escutou um alarido subindo da rua. Mas nenhum sinal de Daniel. Nenhum bilhete.

     Alguma coisa dentro dela a fazia sentir-se inexplicavelmente suja por causa do encontro da noite anterior, como se, tendo cedido ao seu impulso de vir até ali, tivesse se rebaixado. Quis ir embora depressa, antes que ele voltasse e, terminando a água, escrevinhou um bilhete desculpando-se por ter caído no sono. Depois, apanhou a sua mochila e saiu. Não informou onde estava hospedada.

     De volta à rua, a princípio encaminhou-se para os enormes portais de pedra que haviam atravessado na noite anterior. Então, subitamente temerosa com a possibilidade de esbarrar com Daniel, voltou atrás e tomou a direção oposta, seguindo a rua estreita, entrando mais e mais no velho quarteirão islâmico.

     Estava quente, o ar carregado de poeira, e havia uma multidão acotovelando-se em volta dela — mulheres carregando cestas de pães recém-saídos do forno, sobre a cabeça, mercadores apregoando suas mercadorias, crianças balançando sobre o lombo de mulas. Noutras circunstâncias, poderia ter apreciado a cena: os cheiros e sons tão exóticos, os quiosques coloridos com suas cestas de tâmaras e pétalas de hibiscos secas, as gaiolas apinhadas de coelhos, patos e frangos.

     Mas, naquela situação, sentiu-se cansada e confusa. Repentinos e estridentes ruídos assaltavam os seus ouvidos—o barulho metálico dos martelos, uma buzina estridente, música tocando a todo volume num rádio — tudo aquilo perfurava sua cabeça, desorientando-a. O cheiro de lixo misturado ao de condimentos provocava-lhe alguma náusea, e ao mesmo tempo havia algo claustrofóbico no jeito como a multidão a espremia de todos os lados, sufocando-a no movimento dos corpos. Ela passou por um grupo de garotos descarregando folhas de latão da traseira de um caminhão, uma garota em pé em cima de uma pilha de sacos de juta, dois velhos jogando dominó no meio-fio, e todos pareciam estar olhando para ela. Um homem num estrado de madeira gritou alguma coisa, porém ela o ignorou e prosseguiu forçando passagem através da multidão, esbarrando nas pessoas, lutando para respirar, desejando por tudo estar de volta ao seu apartamento no hotel, fresco, quieto e seguro.

     Depois de cerca de dez minutos, deparou com um açougueiro, matando frangos junto ao meio-fio. Uma por uma, tirava as aves da gaiola, empurrando seus bicos para trás com os polegares, fazendo a seguir um corte em suas gargantas, para depois atirá-las dentro de um barril de plástico azul, suas asas ainda estremecendo debilmente. Um semicírculo de espectadores reuniu-se para observar e Tara juntou-se a eles, nauseada pela cena, porém curiosamente compelida também por ela.

     A princípio não notou aqueles homens, tão fascinada pela visão da faca do açougueiro penetrando na carne rosa-pálida da garganta dos frangos.

     Foi somente depois de estar sendo observada havia alguns minutos que levantou a vista por acaso e os viu, de pé, no outro lado da rua. Eram dois, com suas barbas, djellabas pretos e immas da mesma cor, bem enterrados nas cabeças. Ambos olhavam fixa e diretamente para ela.

     Tara sustentou o olhar deles por um momento, então retornou a sua atenção para o açougueiro. Mais duas aves tinham sido abatidas, quando ela tornou a relancear para cima. Eles ainda estavam com os olhos fixos nela, expressões duras no rosto, inflexíveis. Havia algo de ameaçador neles e, afastando-se da multidão, Tara desceu a rua. Os homens esperaram alguns segundos, depois a seguiram.

     Uns cinqüenta metros à frente, ela parou diante de uma loja que vendia tabuleiros de gamão. As figuras de preto também se detiveram, sem fazer nenhum esforço para disfarçar o fato de a estarem observando. Ela retomou o caminho e, mais uma vez, os homens se movimentaram atrás dela, conservando cerca de trinta metros de distância, os olhos nunca se afastando de Tara. Ela apressou os passos e virou para outra rua. Dez passos, quinze, vinte, e lá estavam eles outra vez, bem atrás dela. Seu coração começou a acelerar. Era uma rua ainda mais estreita do que a anterior e parecia ficar mais estreita quanto mais seguia adiante, as linhas dos prédios ao longo se aproximando, como as mandíbulas de um torno de serralheiro, a multidão tornando-se cada vez mais comprimida. Ela podia sentir os seus perseguidores cada vez mais próximos. Outra rua abriu-se mais adiante e à direita e, desvencilhando-se do apinhado de pessoas, Tara mergulhou por ela.

     Era uma rua deserta e, por um momento, sentiu-se aliviada, feliz por ver-se livre da multidão. Então, começou a se perguntar se não teria cometido um erro. Aqui, estava completamente desprotegida, não havia a quem pedir ajuda. A falta de gente na rua subitamente tornou-se ameaçadora. Ela fez meia-volta, tencionando retornar, mas os homens haviam se aproximado mais rápido do que ela esperava e estavam a apenas dez metros dela. Por um instante, ficou paralisada, olhando fixamente para eles, então voltou-se e começou a correr. Mais cinco segundos se passaram, e ela já podia escutar as passadas deles, logo atrás dela, perseguindo-a.

     — Alguém me ajude! — ela gritou, sua voz soando abafada e fraca, como se estivesse gritando com a boca coberta por um pano.

     Cinqüenta metros adiante, deu uma guinada para a esquerda numa outra rua, depois para a direita, depois novamente para a esquerda, não mais se importando para onde estivesse indo, apenas querendo fugir. Pesadas portas de madeira faiscavam à sua passagem e a certa altura deteve-se e bateu a uma delas. Não houve nenhuma resposta e, após alguns segundos, recomeçou a correr, aterrorizada com a possibilidade de, se esperasse um pouco mais, ser agarrada. O ruído das passadas de seus perseguidores parecia ecoar por toda volta, ampliado e distorcido pelas ruas estreitas, de forma que dava a impressão de virem tanto da frente quanto de trás. Ela tinha perdido todo o sentido de direção. Sua cabeça latejava. Sentia-se prestes a vomitar de tanto medo. Por um intervalo de tempo que já parecia durar um século, continuou correndo, em ziguezague, agora, penetrando cada vez mais e mais fundo naquele labirinto de ruas transversais, até que finalmente foi dar numa pequena praça ensolarada, de onde saíam várias ruas, em diferentes direções. Havia uma palmeira murada no centro, com um velho sentado debaixo dela. Ela correu para ele.

     — Por favor — implorou. — Por favor. O senhor pode me ajudar?

     O homem levantou a cabeça para olhá-la. Ambos os olhos eram cor de leite. Ele estendeu a sua mão.

     — Baksheesh — ele murmurou. — Baksheesh.

     — Não — ela sibilou, desesperada. — Nada de baksheesh. Me ajude!

     — Baksheesh — ele repetiu, agarrando a manga dela. — Dê baksheesh. Ela tentou se desvencilhar, mas ele não a soltou, seus dedos agarrando-lhe a camisa como se fossem garras.

     — Baksheesh! Baksheesh!

     Soou então um grito e, depois, o barulho de passos correndo. Ela voltou-se apavorada. Havia quatro ruas dando para a praça, incluindo aquela por onde tinha vindo. Ela passou os olhos de uma para outra, tentando descobrir de onde partia o som, a praça inteira pulsando com o som dos passos, como se alguém estivesse tocando tambor. Por um momento, ficou paralisada, incapaz de decidir que direção tomar. Então, com o terror dando-lhe uma força inesperada, arrancou o braço das mãos do cego e disparou a correr em direção à entrada da rua oposta à que tinha descido. Enquanto se aproximava, divisou duas figuras barbadas saindo de uma esquina logo adiante e avançando direto para ela. Tara recuou, tentando alcançar uma outra rua, mas então, subitamente levada por algo instintivo que não saberia explicar, deu nova guinada e correu na direção da rua que tinha dado na praça.

     Ela se deteve um instante, na boca da rua, e voltou-se ofegante. Os dois homens vestidos de preto estavam entrando na praça. Eles a avistaram e retardaram o passo, voltando-se para a direita deles, na direção da rua em que esteve prestes a entrar. Tudo ficou parado por um segundo, então uma enorme figura surgiu, o mesmo homem que ela vira em Saqqara e na calçada do seu hotel. O terno dele estava amarrotado e seu rosto, redondo como uma torta e muito liso, empapado de suor. Por um momento, ficou imóvel, de pé, olhando para ela, com a respiração pesada, a seguir enfiou a mão no bolso e tirou o que parecia uma pá de pedreiro.

     — Onde está? — rosnou ele, avançando para Tara. — Onde está a peça?

     — Não sei do que está falando — respondeu ela, arfando. — Você se enganou de pessoa.

     — Onde está? — insistiu o grandalhão. — A peça que falta. Os hieróglifos. Onde estão?

     Ele estava na metade da praça agora, quase junto à palmeira.

     — Baksheesh! — gemeu o cego, agarrando o paletó de linho do gigante e retendo na mão o tecido. — Baksheesh.

     O gigante tentou soltar-se, mas não conseguiu. Então, gritou uma imprecação contra o cego, erguendo o cabo da espátula e golpeando o nariz do homem. Ouviu-se um estalo alto, como um graveto se partindo, e um ensurdecedor grito de dor. Tara não esperou para ver o que havia acontecido. Virou-se à frente e fugiu em disparada. Lá de trás, ouvia-se o ribombar de passos, perseguindo-a.

     Ela correu, correu, o sangue explodindo em seus ouvidos, tomou a esquerda e atravessou um arco, entrando numa espécie de túnel, que a levou para um pátio repleto de mulheres lavando roupas. Passou correndo, ainda, por elas e cruzou um portão para a rua. Agora, havia mais pessoas à vista. Entrou à direita, tomando outra rua, e subitamente viu-se cercada de transeuntes, lojas e quiosques. Por um momento, reduziu o passo, desesperadamente procurando respirar, mas logo apressou-se outra vez. Quase imediatamente, no entanto, mãos fortes agarraram-na e a fizeram voltar-se.

     — Não! — gritou. — Não! Me solte!

     Ela debateu-se, desferindo socos.

     — Tara!

     — Me solte!

     — Tara!

     Era Daniel. Acima dele, erguiam-se os minaretes gêmeos, perfurando o céu pálido da tarde, e o portão de pedra próximo ao hotel. Ela tinha dado a volta completa,

     — Estão tentando me matar — falou com voz ofegante. — Estão tentando me matar e acho que foram eles que mataram papai também.

     — Quem? Quem está tentando matar você?

     — Eles.

     Ela se virou, apontando. No entanto, as ruas estavam tão apinhadas de gente que, mesmo que seus perseguidores estivessem em meio à multidão, teria sido impossível localizá-los. Ela procurou-os por alguns segundos e depois, virando-se de volta para Daniel, enterrou sua face nos ombros dele, buscando apoio.

 

LUXOR

     Já afastando-se do Templo de Hatshepsut, e ruminando a respeito do que Suleiman lhe dissera, Khalifa passou por dois jovens que vinham da Dra Abu el-Naga, montados em camelos. Riam um com o outro, golpeando os animais com suas varas, atiçando as desajeitadas bestas à frente com os tradicionais gritos dos condutores de camelo: Yalla besara! e Yalla nimsheh! (Depressa! Ande!). Khalifa voltou-se para observá-los e, de repente, o presente evaporou-se e ele voltou a ser uma criança, retornando aos estábulos de camelos em Gizé com seu irmão Ali, naqueles bons tempos de antigamente, antes de tudo ruir.

     Khalifa nunca teve certeza de quando Ali tivera seu primeiro contato com Sayf al-Tha'r. Não fora uma ligação repentina. Acontecera aos poucos; algo que, gradual e inexoravelmente, fora afastando o irmão dos amigos e da família e carregando-o para os braços da violência. Khalifa nunca deixou de pensar que, se ao menos tivesse percebido mais cedo o quanto Ali estava mudando, ficando mais rígido, talvez pudesse ter feito alguma coisa. Mas não havia percebido nada. Ou, no mínimo, tentara se convencer de que as coisas não estavam tão ruins quanto pareciam. E por causa disso Ali morrera, por culpa dele.

     O islamismo sempre fizera parte de suas vidas e, como em qualquer outra grande religião, embutia um tanto de ira. Khalifa recordou que o imã, na sua mesquita local, nas sextas-feiras do khuthar, pregava contra o sionismo, os americanos e o governo egípcio, alertando para o fato de o Kufr estar tentando destruir o ummah, a comunidade muçulmana. Não havia dúvida de que as suas palavras haviam plantado sementes no espírito de Ali.

     Para falar com sinceridade, havia plantando sementes no espírito de Khalifa também, já que muito do que o imã dizia era verdade. Havia maldade e corrupção no mundo. O que os israelenses estavam fazendo contra os palestinos era imperdoável. O pobre e o necessitado eram ignorados enquanto o rico enchia os bolsos.

     Khalifa, entretanto, jamais fora capaz de fazer a conexão entre isso e o uso da violência. Já Ali tinha lentamente começado a construir essa ponte.

     Tudo havia começado de modo bastante inocente. Conversas, leituras, uma ou outra reunião. Ali tinha começado a comparecer a comícios, distribuindo folhetos e até mesmo discursando em público. Ele dedicava cada vez menos tempo aos seus livros de história, mais e mais a tarefas religiosas. "O que é história sem verdade?" disse ela a Khalifa, certa vez. "E a verdade não é encontrada nos feitos dos homens, porém na palavra de Deus."

     Muito do que ele fazia eram boas ações, e fora isso que persuadira Khalifa de que não havia necessidade de temer as mudanças que vinham sendo geradas no íntimo dele. Ele coletava dinheiro para os pobres, empregava Parte do seu tempo ensinando crianças analfabetas, falando em defesa daqueles que não tinham voz.

     No entanto, também, sua retórica foi endurecendo aos poucos, o ódio insinuando-se em seu espírito. Ele se envolveu com organizações fundamentalistas, juntando-se primeiro a uma, depois a outra, cada qual um pouco mais radical do que a anterior, sendo sugado cada vez para o fundo do redemoinho, a fronteira entre a fé e a ira tornando-se cada vez menos nítida. Até que, enfim, inevitavelmente, fora para Sayf al-Tha'r.

     Sayf al-Tha'r. O nome gravara-se no espírito de Khalifa como marca a fogo é impressa no lombo de um touro. Fora ele quem corrompera Ali. Fora ele que o fizera praticar os atos que praticara. Fora ele, em última instância, que o tinha enviado para a morte naquele dia terrível, quatorze anos atrás.

     E agora, com este caso, o círculo se completara. Agora, Khalifa não se sentia apenas investigando uma morte. Agora, havia outra que ele pretendia vingar. Sayf al-Tha'r. Sempre soube que era ele. Sempre soube. Cedo ou tarde, o passado sempre nos alcança, não importa o quanto se fuja dele.

     Uma buzina estridente o puxou de volta ao presente. Ele estava caminhando como que a esmo pelo meio da rua e um ônibus turístico vinha em sua direção, buzinando insistentemente. Ele deu um passo para o meio-fio, procurando com os olhos os dois condutores de camelo, mas eles haviam desaparecido ao virar numa esquina. Khalifa acendeu um cigarro, esperou que o ônibus passasse, depois retomou seu caminho, a estrada adiante reluzindo ao calor do meio-dia.

    

CAIRO

     — Eu não deveria ter deixado você — disse Daniel.

     — Esta manhã ou seis anos atrás. Ele voltou-se para ela.

     — Estava falando especificamente desta manhã.

     Estavam de volta ao quarto do hotel dele. Tara no sofá, as pernas encolhidas, alcançando o queixo, Daniel em pé junto à janela. Ela havia tomado uma dose de uísque, mas ainda estava tremendo, as imagens de tudo o que lhe acontecera ainda há pouco muito nítidas em sua mente.

     — Tive que me encontrar com uma pessoa no museu — explicou ele.

     — Demorou mais tempo do que eu esperava. Devia tê-la avisado sobre os becos dos arredores. Às vezes, é um lugar perigoso para estrangeiros, principalmente mulheres. Há ladrões, batedores de carteiras...

     — Aqueles sujeitos não eram batedores de carteiras — interrompeu-o Tara, descansando a testa sobre os joelhos. — Eu já os havia visto.

     Daniel ergueu as sobrancelhas.

     — Um deles, pelo menos — explicou Tara. — Eu o vi em Saqqara no dia em que encontrei o corpo do papai. E depois, mais tarde, no hotel. E ele não era egípcio.

     — Está me dizendo que alguém anda seguindo você com algum propósito?

     — Estou.

     Daniel ficou em silêncio por alguns instantes e depois, indo até o sofá, sentou-se e tomou-lhe a mão.

     — Olhe, Tara, sei que você passou por um bocado de tensão nos últimos dois dias. Primeiro o seu pai, agora essa coisa... Acho que talvez você esteja lendo demais sobre...

     Ela afastou a mão dele.

     — Não fique tentando ser condescendente comigo, Daniel. Não estou tendo uma fantasia histérica. Esse homem está me seguindo. Não sei por que, mas ele está me seguindo.

     Ela se pôs de pé e foi até a janela, parando onde Daniel tinha estado e olhando para fora, por cima da confusão de telhados. O ar estava quente e ela sentia gotas de suor descendo-lhe dos seios.

     — Ele falou algo a respeito de uma peça perdida. Insistia em me perguntar onde estava a tal coisa. Parece que acha que estou com algo dele. Sabe lá Deus o quê. Mas acha que está comigo. — Ela se virou. — E ele devia acreditar também que o meu pai estava com essa peça. Ele esteve no alojamento da escavação. E acho que também andou procurando no apartamento do meu pai. Deixou um cheiro de fumaça de charuto. Alguma coisa está acontecendo, Daniel. Você tem de acreditar. É alguma coisa ruim.

     Daniel não disse nada, apenas se recostou no sofá olhando para ela intensamente, seus olhos castanho-escuros percorrendo o rosto de Tara. Ele puxou um cheroot do bolso da camisa e o acendeu.

     — Alguma coisa está acontecendo — repetiu ela, virando-se novamente para a janela. — Por favor, acredite em mim.

     Houve um breve silêncio e a seguir o ouviu se levantando e aproximando-se dela. Daniel colocou a mão sobre o ombro de Tara, que, com um repuxão, livrou-se dela. Mas Daniel a colocou de volta e desta vez ela a deixou ficar. Podia sentir a força dele, queimando, através da palma de sua mão.

     — Acredito em você, Tara — disse gentilmente.

     Ele a fez virar-se e tomou-a nos braços. Por um momento ela resistiu, porém por não mais do que um momento. Ela o sentia tão forte, tão seguro. Enterrou o rosto no ombro dele, as lágrimas derramando-se dos olhos.

     — Não sei o que fazer, Daniel. Não sei o que está acontecendo. Alguém está tentando me matar e nem mesmo sei por quê. Tentei contar isso ao pessoal da embaixada. Mas não acreditaram em mim. Pensaram que eu estava imaginando coisas, mas não estou. Não estou.

     — Certo, certo — disse ele. — Tudo vai terminar bem.

     Ele apertou os braços em torno dela e Tara o deixou fazer isso, sabendo o quanto era perigoso ficar tão junto dele, mas incapaz de se defender. Lá fora, soou uma buzina, bem alto, um carro forçando passagem através da multidão.

     Permaneceram naquela posição por algum tempo, até que ele, carinhosamente, deixou-a se afastar, esfregando os dedos logo abaixo dos olhos dela para limpar as manchas de lágrimas.

     — Você disse que eram três...

     Ela confirmou com um gesto de cabeça.

     — Dois egípcios e um cara branco — disse. — O cara branco era enorme e tinha uma marca de nascimento no rosto. E é como eu falei, já o tinha visto antes. Em Saqqara e na calçada do meu hotel.

     — Conte de novo: o que, exatamente, ele disse a você?

     — Ele me perguntou onde estava... Ficava só repetindo "Onde está? Onde está a peça que falta?"

     — Mais nada?

     — Disse alguma coisa sobre hieróglifos. Os olhos de Daniel se estreitaram.

     — Hieróglifos?

     — Sim, ele perguntou: "Onde estão? Onde estão os hieróglifos?"

     — Tem certeza de que usou essa palavra? Hieróglifos? Certeza mesmo?

     — Acho... que sim. Eu estava tão nervosa!

     Daniel tragou lentamente seu cheroot e tiras de fumaça espiralada azul-acinzentada saíram-lhe do canto da boca.

     Hieróglifos? — repetiu ele, mais para si mesmo do que para ela. —

     Hieróglifos? Mas que hieróglifos? — Ele deu nova tragada no cheroot e deu algumas passadas através do quarto, refletindo. — Você não comprou nada aqui no Egito? Nenhuma antigüidade? Qualquer coisa?

     — Não tive tempo para isso.

     — E está me dizendo que este homem esteve na casa da escavação do seu pai?

     — Sim. Tenho certeza.

     Ele ficou em silêncio, esfregando as têmporas, pensando. Uma vespa entrou pela janela e pousou na borda do copo de uísque de Tara. Silêncio.

     — Bem, então, eles obviamente acham mesmo que você está com alguma coisa que lhes pertence — observou ele, afinal. — E presumivelmente chegaram a esta conclusão porque acham que seu pai estava com essa tal coisa, antes. Assim, temos de responder a duas perguntas: primeiro, que objeto é esse? E segundo, por que acham que o seu pai estava de posse dele?

     Daniel encaminhou-se para o sofá e sentou-se, perdido em seus pensamentos. Ela se lembrou dele assim, do tempo em que viveram juntos, lembrou que ele costumava ficar sentado, às vezes, numa espécie de transe, refletindo sobre algum problema, o cérebro funcionando como uma máquina, a expressão em seu rosto, meio tensa, mas também um tanto risonha, como se vivenciasse um processo que ao mesmo tempo lhe causasse dor e prazer. Ficou um minuto inteiro em silêncio, antes de se pôr de pé novamente.

     — Vamos.

     Ele apanhou seus cheroots e encaminhou-se para a porta.

     — Para onde? A polícia? Ele grunhiu.

     — Não, se você quiser encontrar respostas. Lá, só vão pegar seu depoimento e esquecer o caso. Sei muito bem como eles são.

     — Então, para onde?

     Ele alcançou a porta e abriu-a com um puxão.

     — Saqqara. O alojamento da escavação do seu pai. É por lá que começamos. Você vem?

     Ela fitou-o profundamente nos olhos. Havia tanto ali que ela reconhecia — a energia, a determinação, o vigor. E havia algo mais, também. Algo que ainda não tinha visto nele. Demorou um instante para decifrar o que era — culpa.

     — Vou — respondeu finalmente, apanhando sua mochila e alcançando-o já no corredor. — Estou indo.

    

LUXOR

     No seu caminho para casa, vindo de Deir el-Bahri, Khalifa parou para ver o dr. Masri al-Masri, diretor de antigüidades de Tebas Ocidental.

     Al-Masri era uma lenda no Serviço de Antigüidades. Tinha sido incorporado ao departamento ainda jovem e, agora com quase setenta anos, por direito, devia estar ocupando uma posição mais elevada. Por diversas vezes já lhe haviam sido oferecidos cargos bastante importantes, mas sempre recusara. Era um nativo desta parte do mundo e sentia uma afinidade particular com seus monumentos. Devotara a vida à sua preservação e proteção e, embora não tivesse nenhuma qualificação acadêmica formal, era universalmente chamado de o Doutor, tanto por respeito como por medo. Seu temperamento, assim se dizia, era pior do que o de Seth, o deus egípcio do trovão.

     Quando Khalifa chegou, El estava numa reunião, por isso o detetive sentou-se numa amurada do lado de fora do escritório e acendeu um cigarro, contemplando, do outro lado da estrada, as dispersas ruínas do templo mortuário de Amenófis III. Por cima do ombro, chegou-lhe o alarido de uma discussão acirrada.

     Houve uma época em que Khalifa tinha desejado trabalhar no Serviço de Antigüidades. Era o que teria acontecido se Ali não houvesse sido arrebatado deles, deixando-lhe, sozinho, a responsabilidade de cuidar da mãe. Naquela época, estava na universidade e ainda tentara continuar os estudos, por algum tempo, ganhando seu dinheiro como guia turístico, em brechas de horário. Mas não conseguia ganhar o suficiente, em especial depois de ter se casado com Zenab e com ela ficando grávida do seu primeiro filho.

     Assim, Khalifa abandonou a egiptologia e entrou para a força policial. Sua mãe e Zenab lhe haviam implorado para não fazê-lo, assim como o seu mentor, professor al-Habibi, porém ele não encontrara outra maneira de prover uma vida decente para sua família. O pagamento não era nada excepcional, mas era melhor do que o de um inspetor júnior de antigüidades e pelo menos a força policial oferecia alguma segurança para o futuro.

     Ficou muito triste na época e, de certa maneira, essa história ainda o deixava triste. Teria sido bom trabalhar entre os objetos e monumentos que tanto amava. Nunca se arrependeu da decisão de colocar os seus entes queridos em primeiro lugar. E, fosse como fosse, a arqueologia e o trabalho de detetive tinham similaridades. Ambos giravam em torno de seguir pistas, analisar indícios, solucionar mistérios. A única diferença, na verdade, era que, enquanto a arqueologia desencavava da terra coisas maravilhosas, no mais das vezes, a tarefa do detetive era deparar com coisas terríveis.

     Ele deu uma tragada no cigarro. A discussão às costas dele estava se tornando ainda mais áspera. Khalifa escutou barulho de marteladas, como se alguém estivesse batendo com os punhos sobre uma mesa, e então subitamente a porta do escritório de al-Masri escancarou-se e um homem magro e rijo, num djellaba sujo, saiu de lá de dentro. Ele ainda voltou-se, por um breve instante, para gritar:

     — Espero que um cão cague sobre a sua sepultura!

     E, em seguida, dirigiu-se para fora do edifício, com passadas pesadas e gesticulando selvagemente com os braços.

     — E torço para que dois cães caguem na sua! — berrou al-Masri às costas dele. — E que mijem sobre ela também!

     Khalifa sorriu intimamente e, atirando fora o cigarro, pôs-se de pé. A porta do escritório estava aberta e, aproximando-se, meteu a cabeça para dentro.

     — Ya Doktora?

     O velho doutor estava sentado a uma mesinha de madeira compensada, Por trás de pilhas e pilhas de papéis. Era alto e magro, com faces alongadas, Pele escura e cabelos crespos, cortados rente — um típico saidee, um nativo do alto Egito. Ele levantou a vista.

     — Khalifa — grunhiu. — Que bom, entre, entre.

     O detetive entrou, e al-Masri apontou-lhe uma das cadeiras de braço enfileiradas contra a parede.

     — Maldito camponês idiota — ele disparou, com um gesto indicando a porta. — Descobrimos o que parece ser uma extensão do templo mortuário de Seti I, num dos seus campos, e ele quer arar tudo e plantar molochia por lá.

     — Todo mundo precisa comer — sorriu Khalifa.

     — Não se isso ocasionar a destruição da nossa história. Ah, não. Ele que morra de fome! Bárbaro ignorante.

     Al-Masri golpeou a escrivaninha com o punho, mandando um maço de papéis em revoada para o chão. A seguir, abaixou-se para recolhê-los e, com a cabeça encoberta pela escrivaninha, ofereceu:

     — Chá?

     — Obrigado.

     Al-Masri deu um berro e um jovem entrou.

     — Traga duas xícaras de chá, pode ser, Mahmoud? — Ele rearrumou os papéis, colocando-os numa pilha, depois movendo-os para outra, então separando metade numa pilha, metade em outra diferente, até que, afinal, abriu uma gaveta e enfiou-os dentro dela. — Que vão para o inferno. Não quero mesmo ler nada dessa porcaria!

     Ele tornou a se sentar e voltou o olhar para Khalifa, as mãos cruzadas atrás da cabeça.

     — Então, o que posso fazer por você? Veio pedir emprego?

     O doutor conhecia a história de Khalifa e adorava implicar com ele a esse respeito, mas sempre de maneira amistosa. Apesar de nunca haver confessado, admirava o detetive. Sabia que Khalifa era uma das poucas pessoas cuja paixão pelo passado quase rivalizava com a que ele próprio sentia.

     — Não exatamente — sorriu Khalifa.

     O detetive inclinou-se à frente e apagou o cigarro num cinzeiro sobre a escrivaninha. A seguir colocou al-Masri a par do assassinato de Abu Nayar. O veterano arqueólogo escutou em silêncio, vez por outra estalando os dedos por trás da cabeça.

     — Por acaso não ouviu nada a esse respeito? — perguntou Khalifa, ao final.

     Al-Masri riu desdenhosamente...

     — Claro que não. Nada. Se acontecer uma nova descoberta por aqui seremos os últimos a saber. Deve ter gente mais bem informada sobre o assunto lá na Lua.

     — Mas é possível que algo tenha sido achado?

     — É sempre possível, sem dúvida. Diria que, até hoje, tenhamos descoberto apenas vinte por cento do que deixou o Egito antigo. Talvez, menos. As colinas de Tebas estão cheias de túmulos não descobertos. Haverá coisas ali a ser encontradas pelos próximos quinhentos anos.

     Mahmoud voltou trazendo o chá.

     — Acho que pode ser alguma coisa grande — sugeriu Khalifa, pegando uma xícara da bandeja oferecida e sorvendo goles curtos. — Há pessoas dispostas a matar por isso. Ou a guardar segredo.

     — Há pessoas por aqui que são capazes de matar uns míseros shabtis.

     — Não, muito mais que isso. As pessoas estão apavoradas. Interrogamos todos os atravessadores de antigüidades em Luxor e todos estão se cagando de medo. É alguma coisa bastante importante.

     O velho pegou sua xícara e bebericou-a. Ele parecia tranqüilo, mas dava para Khalifa sentir seu interesse. Sorveu outro gole do chá e, então, deixando a xícara de lado, ficou de pé e começou a perambular pela sala.

     — Intrigante — murmurou para si mesmo. — Muito intrigante.

     — Tem alguma idéia de quem possa ser? — indagou Khalifa. — Um túmulo real?

     — Hummm? Não, pouco provável. Muito pouco mesmo. A maioria das grandes sepulturas reais já foram descobertas, exceto Tutmés II e Ramsés VIII. E, talvez a de Smenkhkare, se você aceitar que o corpo na KV55 era de Akhenaton, o que, pessoalmente, não acredito.

     — Pensei que o túmulo de Amenófis ainda estivesse perdido — observou Khalifa.

     — Bobagens! Ele foi sepultado na KV39, como qualquer arqueólogo de bom senso sabe. Seja como for, a questão é que, se for mesmo um dos Principais túmulos reais, quase com certeza estaria no Vale dos Reis, e ninguém vai conseguir manter um achado desse porte por lá em segredo, não importa quantas pessoas saia matando. O lugar é tão cheio de turistas que a gente mal consegue se mexer.

     Suas mãos fecharam-se por trás das costas, os polegares girando lentamente. Vez por outra sua língua escorregava por sobre o lábio inferior.

     — E o Vale Ocidental? — perguntou Khalifa, referindo-se a um desfiladeiro menor e menos freqüentado, uma ramificação que saía da metade do vale principal.

     — Claro, é menos movimentado, mas ainda assim saberíamos se alguma coisa fosse encontrada por lá. Não é tão deserto assim.

     — Quem sabe um esconderijo de múmias?

     — Só que não existem mais múmias escondidas. Pelo menos, nenhuma tão importante, a não ser uma ou duas do último período Ramsés, e não consigo ver ninguém achando algo que valha a pena matar por uma coisa dessas.

     — Uma sepultura real menos importante, então? Um príncipe. Uma princesa. Uma rainha secundária.

     — Mas ainda assim teriam sido sepultados no Vale dos Reis ou no Vale das Rainhas. Em algum lugar perto do centro da necrópole. Esse pessoal gostava de ficar bem grudado um no outro.

     Khalifa inclinou-se à frente e acendeu um cigarro.

     — Um funcionário importante? Um nobre?

     — É mais provável — admitiu o velho —, se bem que ainda ficaria surpreso. Quase todos os túmulos de funcionários importantes que encontramos ou ficava no Vale ou próximo dele. Próximo demais para tornar possível uma escavação clandestina. E essas sepulturas raramente contêm alguma coisa valiosa. Historicamente valiosa, sim, claro, mas nada de ouro ou coisa semelhante. Pelo menos nada que faça valer a pena matar alguém. A exceção óbvia seriam Yuya e Wuju, mas esses eram casos únicos.

     Ele parou diante da janela, seus polegares diminuindo o movimento de rotação até ficarem quase parados.

     — Você me deixou intrigado, Khalifa. Alguém encontrar um novo túmulo, em si, não surpreende. Como eu disse, as colinas estão cheias dessas merdas. Mas, alguém esbarrar com um túmulo cujo conteúdo faça valer a pena cometer assassinatos, e que esse túmulo seja suficientemente afastado dos lugares mais explorados para alguém conseguir mantê-lo completamente em segredo, bem, isso não pode ser nada muito comum.

     — E você nem imagina o que possa ser, então?

     — Não mesmo! Claro que há muitas histórias sobre tesouros fabulosos enterrados mais para cima, nas colinas. Dizem que os sacerdotes de Karnak teriam escondido todo o ouro dos templos em uma caverna subterrânea lá por Qurn, ou um lugar próximo, para impedir que caísse nas mãos dos invasores persas. Dez toneladas de ouro, segundo se estima. Mas não passam de histórias de esposas velhas. Não, inspetor, acho que sei tão pouco disso quanto você.

     O doutor voltou a sua escrivaninha e deixou-se cair sentado pesadamente. Khalifa terminou o seu chá e levantou-se. Ele não dormia desde a noite anterior e sentiu-se subitamente exausto.

     — Tudo bem — disse —, mas se ouvir qualquer coisa, por favor, me conte. E nada de investigações de amadores. Trata-se de uma questão de polícia.

     Al-Masri fez um gesto desdenhoso com a mão.

     — Você acha mesmo que eu iria sair por conta própria por essas colinas, tentando encontrar a merda desse seu túmulo?

     — Definitivamente, sim. Acho que faria isso mesmo — replicou Khalifa, sorrindo alegremente para o velho.

     Al-Masri encarou-o de mau humor por um momento, parecendo aborrecido, mas depois soltou uma risada.

     — Certo, inspetor. Faça as coisas do seu jeito. Se eu descobrir qualquer coisa, será o primeiro a saber.

     Khalifa dirigiu-se para a porta.

     — Ma'a salama, ya Doctora. A paz esteja com o senhor.

     — E com você também, inspetor. Embora, se o que acaba de me dizer tenha algum fundo de verdade, paz é a última coisa que vai conseguir.

     Khalifa assentiu de cabeça e saiu do escritório.

     — Ah, inspetor — chamou-o de volta al-Masri. Khalifa enfiou a cabeça outra vez pela porta.

     — Se algum dia vier aqui para pedir um emprego, ficarei bastante feliz em lhe arranjar. Bom dia.

    

SAQQARA

     Tomaram um táxi para Saqqara, seguindo a mesma estrada que Tara havia percorrido, dois dias antes. Hassan, que a acompanhava quando encontraram o corpo do pai, não estava no escritório. Um dos seus colegas a reconhecera, porém, e entregou-lhe as chaves do alojamento da escavação. Tomaram o carro, então, seguindo ao longo do escarpamento e pararam diante da casa, dizendo ao motorista que esperasse.

     O interior estava escuro e frio. Daniel abriu algumas janelas e baixou as persianas. Com tristeza, ela passou o olhar em volta, detendo-se nas paredes caiadas, os sofás puídos, as estantes com armações frouxas, pensando no quanto seu pai era feliz naquele lugar, como o alojamento, de certo modo, havia se tornado parte tanto da vida dela quanto da dele. Enxugou os olhos na manga de sua blusa e voltou-se para Daniel, que olhava fixamente um quadro emoldurado na parede.

     — Então, o que exatamente estamos procurando? — perguntou Tara.

     — Não faço idéia — disse ele, dando de ombros. — Alguma coisa que pareça antiga, acho. Algo com hieróglifos.

     Ele desviou sua atenção da figura e começou a examinar uma das prateleiras. Tara jogou a sua bolsa de viagem sobre uma cadeira e entrou num dos cômodos que saíam da sala. Havia uma cama estreita num canto, um guarda-roupa encostado à parede e, pendurada na porta, uma velha jaqueta safári com remendos. Ela enfiou a mão num dos bolsos e puxou uma carteira. Tara mordeu o lábio. Era do seu pai.

     — Este quarto era do papai — disse.

     Ele reuniu-se a ela e, juntos, vasculharam os pertences do seu pai. Não havia muita coisa, apenas algumas roupas, algum equipamento fotográfico, dois ou três cadernos de notas e, sobre uma cadeira junto à cama, um diário encadernado em couro. Os apontamentos eram breves e nada reveladores, relacionados quase exclusivamente com os progressos da temporada. Havia várias menções a Tara — que ele apelidou de T—, sendo o último do dia anterior à chegada dela ao Egito, o penúltimo dia da vida dele:

     Manhã no Cairo. Reunião na American Uni, reit., currículo para o próximo ano. Almoço no Serviço de Antigüidades. Tarde, compras em Khan al-Khalili para a chegada de T. Volta, sáb., final da tarde.

     E era tudo. Nada que lançasse qualquer luz sobre os eventos recentes. Acabaram deixando o diário de lado.

     — Talvez eles já tenham encontrado seja lá o que estivessem procurando — sugeriu ela.

     — Duvido. Do contrário, por que estariam caçando você?

     — Mas como vamos saber que está aqui e não no Cairo?

     — Não sabemos. Estou apenas com o palpite de que, seja lá o que for, seu pai teve a tal coisa em seu poder apenas por poucos dias. E já que é aqui que ele estava morando, de fato, nos últimos três meses, faz sentido começar procurando aqui. Vamos tentar nos outros quartos.

     Eles passaram uma hora vasculhando a casa, examinando todas as gavetas e armários, e até se agacharam, para esquadrinhar debaixo das camas. Nenhum resultado. Fora o equipamento de câmera do seu pai, não havia nada que despertasse interesse até mesmo a um ladrão comum.

     — Acho que estava enganado — concluiu Daniel por fim, exausto. Tara estava em um dos quartos de dormir. A adrenalina a bombeara o

     tempo todo, enquanto faziam a busca. Mas agora estava vencida por uma súbita fadiga. A dor da morte do pai, temporariamente esquecida, voltou, inundando-a mais intensamente do que antes, uma esmagadora sensação de perda e de inutilidade. Passou a mão pelos cabelos e arriou-se sobre a cama, recostando-se no travesseiro. Alguma coisa produziu um ruído de trituração por baixo dela. Sentou-se de novo e levantou o travesseiro. Havia um pedaço de papiro dobrado, sobre o lençol, com o seu nome, Tara, escrito em tinta preta. Ela o abriu e leu.

     — Daniel — chamou —, venha cá olhar isto aqui.

     Ele entrou no quarto e ela lhe passou o papiro. Ele leu em voz alta:

     Primeira de oito, primeiro elo numa cadeia,

     Indício a indício, como um caminho de pedras,

     Ao final o prêmio, alguma coisa escondida,

     Mas será um tesouro, ou apenas ossos antigos?

     Os deuses podem ajudar você, se pedir a eles educadamente,

     A Imhotep, talvez, ou a Isis ou a Seth,

     Se bem que, pessoalmente, eu olharia um pouco mais perto de casa, Pois ninguém sabe mais do que o velho Mariette.

     — Você não é um pouco velha para sair caçando tesouros? — brincou ele.

     — Quando fiz quinze anos, papai montou uma trilha do tesouro como presente de aniversário — disse ela, sorrindo tristemente ao lembrar.—Foi uma das poucas vezes em que senti que ele realmente gostava de mim. Acho que isso aqui é o jeito dele de tentar curar velhas feridas. Uma espécie de presente de paz.

     Daniel apertou-lhe o ombro e baixou os olhos de novo para o papiro.

     — Fico me perguntando.... — murmurou para si mesmo.

     — Você acha que talvez...

     — Que o tesouro do seu pai seja a tal coisa que estamos procurando? Não faço idéia. Mas é óbvio que vale a pena encontrá-lo.

     Com passadas largas, ele retornou à sala.

     — Mariette é Auguste Mariette — disse ele por cima do ombro —, um dos fundadores da egiptologia. Ele trabalhou um bocado aqui em Saqqara. E descobriu o Serapeum.

     Tara seguiu-o e juntou-se a ele diante do quadro para o qual estivera olhando antes.

     — Auguste Mariette — ele identificou-o.

   O quadro mostrava um homem barbado, de terno, e com o tradicional adorno de cabeça egípcio. Ele afastou o quadro da parede e virou-o. Colado às costas, havia outro papiro dobrado.

     — Bingo. — Os seus olhos estavam brilhando.

     — Vá em frente, então — incentivou ela, a adrenalina recomeçando a bombear. — Vamos ver o que tem nele.

     Daniel descolou-o da moldura e o desdobrou.

     A rainha de um faraó, porém ela também faraó,

     Governou entre o marido e o filho do marido,

     Nefertiti é o seu nome, um belo nome,

     E com ela eis chegada a bela.

     O marido herético, o amaldiçoado Akhenaton,

     Abandonado pelos deuses porque aos deuses ele abandonou,

     Juntos eles vivem, mas onde ela vive?

     A resposta, talvez, você encontrará num livro.

     — Que diabos isso significa? — perguntou Tara.

     — Nefertiti foi a principal esposa do faraó Akhenaton — explicou. — Seu nome significa A Bela Chegou. Depois da morte de Akhenaton, ela trocou de nome para Smenkhkare e reinou como um faraó, plenamente. Quem a sucedeu foi Tutankâmon, filho de Akhenaton com outra esposa.

     — Ah, sim, claro... — resmungou Tara.

     — As gerações posteriores detrataram Akhenaton porque ele abandonou os deuses tradicionais do Egito em favor do culto de um único deus: Aton. Ele e Nefertiti construíram uma nova capital duzentos quilômetros ao sul daqui. Era chamada de Akhetaton, o horizonte de Aton, se bem que hoje é conhecida por seu nome árabe, Tel el-Amarna. Já escavei lá uma vez. — Ele cruzou a sala na direção da estante. — Parece que precisamos encontrar um livro sobre Amarna.

     Ela se reuniu a ele e juntos correram os olhos rapidamente ao longo das fileiras de livros. Havia vários com títulos com o nome Amarna, mas nenhuma pista dentro de qualquer um deles. Havia outra estante de livros em um dos quartos e também a vasculharam, mas sem melhor resultado. Tara sacudiu a cabeça, frustrada.

     — Uma merda dessas é bem típica do papai. Quero dizer, se nem ao lado de um egiptólogo consigo encontrar essas pistas, como é que ia me virar sozinha? Ele jamais conseguiu entender que não tenho o menor interesse nessa porcaria!

     Daniel não a ouvia. Ele estava acocorado, olhos estreitados.

     — Onde ela viveu? — ruminava. — Onde Nefertiti viveu? Subitamente ele saltou de pé.

     — Merdel — berrou. — Eu sou um idiota.

     Daniel correu de volta para a sala, ajoelhou-se diante da estante de livros e deslizou os dedos ao longo da fileira de volumes. Puxou um para fora, um livro fino.

     — Eu estava tentando ser esperto demais. O enigma era mais literal do que parecia. — Ele ergueu o livro, apontando para o seu título: Nefertiti viveu aqui. Estava sorrindo, satisfeito consigo mesmo. — Provavelmente o melhor livro sobre escavação que já foi escrito. É de Mary Chubb. Eu a encontrei certa vez. Mulher fascinante. Vamos ver o que essa pista diz.

     O poema seguinte — sobre as dinastias do antigo Egito — mostrou ser mais fácil do que o anterior, levando-os a um pôster com a máscara de Tutankhâmon, na cozinha. O enigma cinco estava dentro de uma ânfora, em um dos quartos; o seis, enfiado numa fresta da chaminé, e o sete, escondido atrás do reservatório de água no banheiro. O oito, o enigma final, estava enrolado dentro de um tubo de papel de desenho, dentro de um guarda-louça na sala. A essa altura, estavam ambos bastante tensos de tanta expectativa. Leram o último verso juntos, em voz alta, tropeçando nas palavras, na pressa para desvendar o seu significado.

     Afinal, a última pista, a oitava das oito, A mais difícil de todas, então use a cabeça, Perto de onde você está, porém não dentro, Um banco de cinco mil anos para os mortos Quinze passos para o sul (ou quinze para o norte). Direto no centro, agora use os seus olhos, procure pelo sinal de Anúbis o Chacal, Pois Anúbis é aquele que guarda o tesouro.

     Banco para mortos? — perguntou ela.

     — Uma mastaba — replicou Daniel. — Um tipo de túmulo retangular feito de tijolos de barro. Mastaba é banco em árabe. Vamos.

     Tara agarrou de passagem sua bolsa de viagem e seguiu-o para fora da casa, estremecendo com a lufada de calor, depois do frio lá dentro. O motorista do táxi estacionara o carro numa sombra diante da casa e inclinara para trás o assento, descalçando os pés e pondo-os para fora da janela. Daniel deteve-se por alguns momentos olhando em volta, protegendo os olhos com as mãos, e em seguida apontou para um outeiro oblongo, elevando-se da areia cinqüenta metros acima deles, mais para a esquerda.

     — Tem de ser aquilo ali — disse ele. — Não estou vendo nenhuma outra mastaba.

     Correram pela trilha até o outeiro e, quando chegaram mais perto, Tara constatou que era feita de tijolos de barro amarronzados, gastos pela exposição ao relento. Daniel foi até uma das extremidades e contou quinze passos ao longo da lateral, chegando aí o topo da mastaba quase à altura do seu pescoço.

     — Está em algum lugar por aqui — disse ele, indicando o centro da parede. — Temos de achar a figura de um chacal.

     Agacharam-se e correram os olhos por toda a superfície desnivelada. Tara encontrou-a quase de imediato.

     — Aqui! — gritou.

     Gravada na face de um dos tijolos, quase apagada, estava a figura de um chacal reclinado, garras esticadas, orelhas eretas. O tijolo parecia estar solto e, passando os dedos ao seu redor, Tara conseguiu ir retirando-o da parede. Era evidente que havia sido removido antes porque desprendeu-se com muita facilidade, revelando uma cavidade profunda. Daniel arregaçou a manga, verificou às pressas se não havia escorpiões, depois enfiou a mão dentro do buraco, retirando uma caixa de papelão achatada. Ele a colocou sobre o joelho e começou a desfazer o nó com a qual se encontrava amarrada.

     — O que é isso? — perguntou ela.

     — Não tenho certeza — respondeu Daniel. — É bastante pesada. Acho que deve ser...

     Uma sombra vinda de cima caiu sobre eles, acompanhada de um estalido metálico. Surpresos, levantaram a vista. De pé, no topo da mastaba, uma metralhadora na mão, achava-se um homem barbado vestido com uma túnica preta e um turbante puxado para baixo na cabeça. Ele lhes indicou que deviam ficar de pé, dizendo alguma coisa em árabe.

     — O que foi que ele disse? — A voz de Tara estava tensa de terror.

     — A caixa — disse Daniel. — Ele quer a caixa.

   Ele já ia estendendo o braço para entregar a caixa ao homem, quando Tara o deteve.

     — Não — exclamou.

     — O quê?

     — Não até a gente descobrir o que tem dentro dela.

     O homem falou novamente, agitando a arma. Novamente Daniel tentou entregar a caixa, mas Tara reteve o braço dele, puxando-o para trás.

     — Eu disse não — sibilou ela. — Não até descobrirmos por que essa gente está fazendo isto.

     — Mas que merda, Tara. Isso não é uma brincadeira! Ele vai nos matar. Conheço essa gente!

   O homem estava começando a ficar mais e mais nervoso. Apontou a arma para a cabeça de Tara, depois para a de Daniel, a seguir para o topo da mastaba, descarregando uma rajada de balas nos tijolos de barro. Explosões de poeira se espalharam ao redor dos seus pés, cobrindo suas faces. Daniel deu um puxão violento com o braço e jogou a caixa sobre o túmulo.

     — Deixe ele ir, Tara. Quero saber tanto quanto você o que tem aí dentro, mas não vale a pena. Acredite em mim, é melhor deixar que ele a leve.

     Mantendo-os sob mira, o homem agachou-se, soltando uma das mãos da metralhadora para apanhar a caixa. Ela estava ligeiramente à sua esquerda e seus dedos não a encontravam. Por um instante, desviou os olhos deles e Tara, naquela fração de segundo, quase sem se dar conta do que fazia, esticou o braço, agarrou-lhe a túnica e deu um violento puxão. O homem soltou um berro e, desequilibrando-se, na borda da mastaba, tombou para a frente, batendo a cabeça na areia entre eles, seu pescoço torcendo-se num estranho ângulo.

     Por um momento, Tara e Daniel ficaram paralisados. A seguir, olhando de soslaio para Tara, Daniel ajoelhou-se e ergueu a mão do homem, procurando-lhe o pulso.

     — Ele está desmaiado? — e ela já sussurrava, por alguma razão.

     — Está morto.

     — Oh, meu Deus! — Tara levou as mãos à boca. — Oh, meu Deus! Daniel olhava fixamente o corpo do homem. Então, agarrou seu imma preto de lã e puxou-o, revelando uma cicatriz vertical profunda que atravessava a parte superior da testa. Ainda ficou olhando fixamente para a cicatriz, por alguns segundos, depois pôs-se de pé abruptamente e agarrou Tara pelo braço.

     — Vamos cair fora daqui.

     Ele já ia empurrando-a, mas, alguns metros à frente, Tara soltou-se e correu de volta para junto da mastaba, apanhando a caixa que ficara no topo do pequeno outeiro.

     — Pelo amor de Deus! — gritou Daniel, seguindo-a e agarrando-a pelo ombro. — Deixe essa caixa aí! Há coisas acontecendo aqui... você não compreende? Vão chegar mais desses caras e...

    Ela deu de ombros.

     — Eles mataram meu pai — respondeu com voz desafiadora. — Você pode fazer o que achar melhor, mas não vou deixar que fiquem com esta caixa. Está entendendo, Daniel? Eles não vão ficar com ela.

     Seus olhos encontraram-se brevemente. Em seguida, Tara arremeteu à frente, passando por ele, com apenas um olhar para trás, em direção ao alojamento. Ela enfiou a caixa dentro da mochila enquanto o olhar de Daniel fixava-se em suas costas, com uma expressão de fúria impotente contorcendo-lhe o rosto. Mas logo ele a seguia, resmungando para si mesmo.

     O tiroteio despertara o motorista, que estava de pé no meio da pista, observando-os.

     — O que acontecer?. — perguntou ele, quando se aproximaram.

     — Nada — retrucou Daniel. — Leve-nos de volta para o Cairo.

     — Eu ouvir tiros.

     — Faça o favor de dar partida logo nessa merda de...!

     Ouviu-se o crepitar de disparos. Voltando-se, avistaram duas figuras vestidas de túnicas pretas, descendo a trilha correndo em direção a eles. Mais disparos, vindo por trás desta vez. E outras duas figuras emergiram do deserto, avançando direto sobre eles, manchas pretas contra o reflexo amarelo tremeluzente da areia. O motorista deu um berro e atirou-se no chão.

     — Eu disse que iam aparecer mais desses sujeitos! — gritou Daniel— Para o alojamento da escavação! Depressa!

     Ele agarrou o braço de Tara e correram em direção à casa. Uma bala passou raspando pela cabeça dela, outra levantou um borrifo de areia bem na frente deles. Alcançaram a lateral da casa e pularam para o terraço dos fundos. Mais além, um declive arenoso descia bastante inclinado até o vilarejo embaixo, onde as pessoas já saíam de suas casas, olhando para o alto, perguntando-se o que seria todo aquele barulho.

     — Desça o declive — gritou Daniel.

     — E você, o que vai fazer?

     — Faça o que digo. Eu sigo você.

     — Não vou deixá-lo para trás!

     — Deus do céu!

     Escutaram então o ruído de passos em correria. Daniel passou os olhos freneticamente em volta, viu um velho touria encostado num banco e, agarrando-o, voltou correndo para a lateral da casa, espremendo-se contra a parede. O ruído surdo de pés aumentou ainda mais. Ele levantou o touria, arquejou duas vezes, depois girou-o com toda força que pôde, no instante em que um de seus perseguidores surgia dobrando a esquina da casa. A cabeça de metal da enxada esmagou o rosto do homem com um ruído nauseante, lançando-o sobre a vegetação rasteira, sua mão ainda agarrada na Heckler & Koch. Daniel saltou à frente e apanhou a arma.

     — Agora! — gritou. — É a nossa chance!

     Eles correram até a beirada do terraço e saltaram, caindo juntos no declive e descendo aos tropeços em meio a uma nuvem de poeira, sem que Tara largasse sua bolsa de viagem um só instante. Havia uma faixa de areia no sopé da descida, e adiante uma trilha, depois o vilarejo, estendendo-se ao longo da orla de uma densa floresta de palmeiras. Um carro avançava sacolejando em direção a eles, e Daniel acelerou mais ainda a corrida, tentando alcançá-lo, fazendo sinais para que ele parasse. O motorista reduziu a marcha e, vendo a arma, freou, derrapando. Lá de cima, vieram disparos, e Daniel virou-se, fazendo fogo também. Ouviu-se um alarido de gritos e os habitantes do vilarejo começaram a correr, dispersando-se. Daniel disparou outra vez, mantendo o dedo no gatilho, varrendo o declive até que o pente de munição ficasse vazio. Ele jogou fora a arma e voltou-se para o carro. O motorista havia fugido, deixando as chaves na ignição e o motor ligado. Daniel pulou para o assento da frente, tomando o volante.

     — Entre, Tara — gritou. — Entre logo!

     Ela mergulhou para o assento do carona e Daniel imediatamente pressionou o pé no acelerador, as rodas levantando uma onda de cascalho, enquanto o carro descia a trilha. Uma bala estilhaçou uma das janelas traseiras, outra perfurou o capô. O carro passou num buraco, batendo com força no fundo, descontrolando-se, e por um instante pareceu que iriam colidir contra um paredão, mas Daniel conseguiu recuperar a direção e acelerar novamente, com o eco dos tiros bem atrás deles e o alojamento da escavação perdido atrás de uma cortina de poeira.

     — Não faço a menor idéia do que tem aí nessa merda dessa caixa — resmungou Daniel —, mas depois de tudo o que a gente passou, espero que tenha valido a pena.

    

LUXOR

     Khalifa chegou em casa já no meio da tarde e estava se sentindo tão - exausto que mal podia manter os olhos abertos. Assim que atravessou a porta, seu filho pulou sobre ele.

     — Papai! Papai! Você me dá uma trombeta no Abu Haggag?

     A festa do Abu el-Haggag começaria em dois dias. Fazia semanas que Ali e seus colegas de escola estavam decorando uma balsa para a procissão das crianças e o garoto mal podia conter a excitação, à espera dos festejos.

     — Você me dá uma? — ele gemeu com voz esganiçada, puxando a ponta do paletó de Khalifa. — Mustafá ganhou uma. E o Said também.

     Khalifa levantou o garoto e desmanchou seu cabelo.

     — Claro que dou.

     Ali abanava os braços, feliz.

     — Mamãe! — gritou. — Papai prometeu me dar uma trombeta no Abu Haggag!

     Khalifa jogou o garoto sobre um ombro e, precisando ver bem onde pisava por entre o material de construção espalhado pelo hall da frente, dirigiu-se até a sala. Zenab estava sentada no sofá com o bebê no colo. Ao seu lado, sentavam-se a irmã dela, Sama, e o marido, Hosni. Khalifa soltou um muxoxo contrariado.

     — Olá, Sama. Olá, Hosni—cumprimentou, colocando o garoto no chão. Hosni levantou-se e os dois trocaram um abraço. Ali fez a volta e

     escondeu-se atrás do sofá.

     — Eles acabam de voltar do Cairo — explicou Zenab, com um tênue tom acusatório na voz. Ela estava sempre pedindo a Khalifa para passar alguns dias na capital, mas, por uma razão ou outra, ele nunca arranjava tempo. E, fosse como fosse, iriam se apertar muito para pagar pela viagem.

     — Viemos de avião — disse Sama, exibindo-se. — É muito mais rápido do que de trem.

     — Negócios — acrescentou Hosni. — Tive uma reunião com um novo fornecedor.

     Hosni trabalhava em óleos comestíveis e raramente falava sobre qualquer outro assunto.

     — Eu lhe digo, estamos lutando para atender toda a demanda de hoje em dia — continuou. — As pessoas precisam comer e para comer precisam de óleo comestível. É um mercado cativo.

     Khalifa assumiu uma expressão que, assim ele esperava, demonstrava interesse.

     — Não sei se Zenab lhe contou, mas estamos em vias de lançar um novo produto, óleo de gergelim. É um pouco mais caro do que o tradicional, mas a qualidade é excepcional. Posso mandar algumas latas para vocês, se quiser.

     — Obrigado — disse Khalifa. — Gostaríamos muito, não é verdade, Zenab?

     Ele olhou para a esposa, que sorria afetadamente. Sempre ficava satisfeita quando ele tentava mostrar entusiasmo pelo trabalho de Hosni.

     — Venha, Sama — disse ela, ficando em pé.—Vamos deixar os homens conversarem a sós. Aceita um copo de karkadee, Hosni?

     — Adoraria.

     — Yusuf?

     — Por favor.

     As irmãs desapareceram na cozinha. Khalifa e Hosni sentaram-se, tentando evitar o olhar um do outro, constrangidos. Houve um demorado silêncio.

     — Então, como vai a força policial? — perguntou Hosni, afinal— Pegou algum assassino hoje?

     O cunhado tinha menos interesse no trabalho de Khalifa do que Khalifa no dele. Na verdade, esnobava um pouco o detetive. Trabalhando todas as horas que Deus lhe dava e por um salário tão mísero! Definitivamente, Zenab tinha se casado com alguém que não estava à sua altura. Bem, poderia ter escolhido alguém pior. Mas também poderia ter se dado muito melhor. Alguém no negócio de óleos comestíveis, por exemplo. Era onde o futuro estava. Um mercado cativo. E com esse novo óleo de gergelim, as coisas iam realmente decolar.

     — Não, hoje, não — Khalifa estava dizendo.

     — Como? Desculpe, mas...

     — Não peguei nenhum assassino hoje.

     — Ah, sim — disse Hosni. — Bom. Quer dizer, mau. — Ele interrompeu-se, confuso, tentando recuperar o fio da conversa. — Ei, soube que você se candidatou a um pedido de promoção. Acha que vai conseguir?

     Khalifa deu de ombros.

     — Insha-Allah. Se Alá quiser.

     — Creio que é mais o caso de se o seu chefe vai querer!

     Hosni soltou uma risada com a própria piada, esmurrando o braço do sofá.

     — Sama! — chamou. — Ei, Sama! Yusuf disse que vai conseguir a promoção se Alá quiser e eu disse que era mais um caso de se o chefe dele vai querer ou não.

     Ouviu-se uma espécie de zurro na cozinha, Sama evidentemente achando o comentário tão engraçado quanto o marido havia achado. Ali apareceu de detrás do sofá, prestes a atingir Hosni na cabeça com uma almofada. Khalifa lançou um olhar sobre ele e o garoto desapareceu novamente.

     — E como vai indo a sua fonte? — perguntou Hosni depois de outro longo silêncio, lutando por encontrar alguma coisa para dizer.

     — Oh, nada mau. Gostaria de olhar?

     — Por que não?

     Os dois homens foram para o hall, percorrendo o tumulto de sacos de cimento e latas de tinta, examinando o pequeno e malfeito tanque de plástico do qual, assim esperava Khalifa, uma fonte de água iria um dia jorrar.

     — Está um pouco apertado por aqui — observou Hosni.

     —- Vai haver mais espaço quando todo esse entulho for jogado fora.

     — De onde vai puxar a água?

     — Vamos bombeá-la da cozinha.

     Hosni coçou o queixo, um tanto aturdido por todo aquele empreendimento.

     — Não sei por que você simplesmente não...

     Ele foi interrompido por Ali, que escolheu aquele momento para vir correndo atrás deles e tropeçar num balde com pincéis de molho em aguarrás. Um líquido viscoso branco-acinzentado espalhou-se pelo chão de concreto.

     — Droga, Ali — exasperou-se Khalifa. — Zenab! Traga aqui um pano, por favor!

     Vindo dar uma olhada na bagunça feita, a mulher de Khalifa sentenciou:

     — Não vou arruinar nenhum dos meus panos enxugando isso. Use folhas de jornal.

     — Mas não tenho nenhum jornal aqui.

     — Tenho um al-Ahram velho na minha maleta — ofereceu Hosni. — Pode usar à vontade.

     Hosni trouxe o jornal da sala e começou a cobrir a poça de aguarrás com as folhas.

     — Está vendo só? — disse. — É só botar em cima. Folhas de jornal são um ótimo absorvente.

     Ele destacou outra folha e já ia colocá-la estendida sobre o chão, quando Khalifa agarrou o seu braço:

     — Espere!

     O detetive ajoelhou-se.

     — Qual é a data deste jornal?

     — Humm...

     — Qual é a data?

     Havia uma certa urgência na sua voz.

     — É de ontem — disse Hosni, perplexo.

     Um dos joelhos de Khalifa estava na poça de aguarrás, mas ele sequer Percebia isso. Ele estava todo curvado sobre o jornal, lendo algo no canto inferior da página, os dedos indo e voltando nervosamente sobre as linhas do texto. Ali aproximou-se e ajoelhou-se junto ao pai, também correndo seus dedos sobre a página, para imitá-lo.

     — De ontem — Khalifa disse para si mesmo ao terminar de ler o artigo. — Ontem. Deixe-me ver... Nayar foi assassinado na sexta-feira, foi no mesmo dia... Droga! — exclamou, ficando de pé num pulo, uma mancha escura agora se espalhando lentamente pelo joelho.

     — Droga — gritou Ali, também saltando de pé.

     — O que houve? — indagou Hosni. — Do que se trata?

     Khalifa ignorou-o e correu para a cozinha, esquecido subitamente da sua exaustão.

     — Zenab, preciso sair.

     — Sair? E vai aonde?

     — Cairo.

     — Cairo!

     Por um momento, pareceu que ela iria fazer um estardalhaço. Mas, em seguida, se aproximou dele e beijou-o na testa.

     — Vou apanhar para você umas calças limpas.

     No corredor Hosni estava abaixado, lendo o artigo que chamara a atenção de Khalifa. Havia uma fotografia de um velho muito feio, com um tapa-olho, e, acima da foto, a manchete: Comerciante de Antigüidades Brutalmente Assassinado. Ele balançava a cabeça, pesaroso. Era o tipo de coisa que jamais acontecia no ramo de óleos comestíveis.

    

CAIRO

     Não houve uma palavra entre eles, em toda a volta até o Cairo. Daniel concentrou-se na direção, olhos nervosamente checando a cada instante o retrovisor, para ver se não estavam sendo seguidos. Tara passou o tempo todo com os olhos fixos na bolsa de viagem, sobre o seu colo. Somente quando alcançaram a estrada principal Cairo-Gizé e viraram à direita, pegando tráfego pesado em direção ao centro da cidade, Daniel quebrou o silêncio.

     — Sinto muito, Tara, mas é que você simplesmente não está entendendo o quanto isso tudo é perigoso. Aqueles homens... são seguidores de Sayf alTha'r. A cicatriz na testa é a marca deles.

     Ela estava distraída, brincando com o zíper da bolsa de viagem. — Quem é esse Sayf al-Tha'r? Toda hora escuto o nome dele.

     — É um líder fundamentalista — disse Daniel, desviando-se de um ciclista que avançava oscilante à frente deles, com uma bandeja de pastéis sobre a cabeça. — O nome significa Espada de Vingança. Ele prega uma Mistura de nacionalismo egípcio e extremismo islâmico. Ninguém sabe sobre ele, exceto que começou a aparecer no final dos anos oitenta e, de lá para cá, matou um bocado de gente. Principalmente, ocidentais. Faz mais ou menos um ano, ele matou com uma bomba o embaixador americano. O governo colocou a cabeça dele à prêmio por uma recompensa de um milhão de dólares.

     Ele fitou-a de relance, sorrindo mal-humorado.

     — Está vendo que beleza, Tara? Você acaba de fazer um inimigo do homem mais perigoso do Egito. Deus do céu.

     Prosseguiram pela estrada em silêncio por mais alguns poucos quilômetros, a cidade começando a se adensar ao redor deles, até que finalmente alcançaram um elevado e pararam num engarrafamento. O carro permaneceu imobilizado por cerca de cinco minutos. Então, praguejando, Daniel tomou um desvio à esquerda, procurando caminho desimpedido pelas diversas travessas, até estacionarem numa rua repleta de lixo nas calçadas e saltarem do carro.

     — Devíamos tentar ficar fora das ruas — disse ele, olhando em volta. — Aqui, estamos expostos demais. Não acredito que estejam nos seguindo, mas nunca se sabe. Tem gente deles em toda parte.

     Eles começaram a andar, chegando a uma cerca em volta do que Tara inicialmente pensou que fosse um enorme parque, mas logo percebeu que se tratava na realidade de um zôo. Havia uma entrada, trinta metros à frente, e, pegando-a pelo braço, Daniel dirigiu-se para lá.

     — Vamos entrar aqui. É menos provável sermos notados. E devem ter um telefone público que possamos usar.

     Compraram o ingresso de vinte piastras e passaram pela roleta. O barulho da cidade pareceu ficar cada vez mais distante e de repente tudo ficou quieto. Pássaros cantarolavam nas árvores, famílias inteiras passeando juntas, jovens namorados sentados nos bancos de mãos dadas. De algum lugar nas proximidades escutava-se o murmúrio de água correndo.

     Acabaram entrando por uma alameda sombreada, os olhos varrendo tudo em volta em busca de sinais de seus perseguidores. Passaram pelo cercado do rinoceronte, pela casa dos macacos, pela piscina do leão-marinho e por um lago cheio de flamingos, até que afinal encontraram um banco debaixo de uma figueira ressecada, onde se sentaram. Havia uma cabine de telefone a cinco metros de distância e, em frente, um elefante de aspecto raivoso numa jaula, com uma pata presa às barras por uma corrente pesada. Daniel vasculhou os arredores com o olhar, depois apanhou a bolsa de viagem de Tara e tirou a caixa.

     — Primeiro, o mais importante. Vamos ver o que é isso — disse.

     Deu mais uma olhada em volta, depois ele desfez o nó do barbante e levantou a tampa. Dentro dela, sobre um forro de palha, havia um objeto achatado, embrulhado em jornal. E havia também um pequeno cartão colado com fita adesiva a ele:

     Tara. Achei que isto lhe agradaria. Amor, como sempre, papai.

     Ele relanceou os olhos para ela, depois removeu o objeto da caixa e rasgou o papel. Era um fragmento que parecia feito de argamassa, com a forma grosseiramente quadrada, as bordas quebradas e desiguais. A superfície era pintada de amarelo pálido, com três colunas de hieróglifos pretos correndo para baixo e, à esquerda, parte de uma quarta coluna. Uma fileira de serpentes com as cabeças desenhadas por detrás corria ao longo da borda inferior — e foi o que fez Tara pensar que era a razão de seu pai tê-lo escolhido como presente para ela.

     Daniel colocou a peça em sua mão, virada para cima, movendo a cabeça num sinal de reconhecimento.

     — Você sabe do que se trata? — perguntou ela.

     Ele não respondeu de imediato e ela teve que repetir a pergunta.

     — Reboco de gesso — disse ele, absorto. — Tirado da decoração de um túmulo. Os hieróglifos fazem parte de um texto maior... Veja, esta peça foi cortada no meio de uma palavra. Belíssimo artesanato. Realmente, muito bom. — Ele sorriu para si mesmo.

     — É autêntica?

     — Sem dúvida. Último Período, pelo que parece. Grego, talvez, ou romano. Possivelmente, do período de ocupação persa, não muito antes disso. Tenho quase certeza de que vem de Luxor.

     — Como pode afirmar isso?

     Com um movimento de cabeça, ele apontou o jornal no qual o objeto havia sido embrulhado. Na parte superior, havia dizeres em árabe.

     — Al-Uqsur — ele traduziu. — Luxor. É um jornal local.

     Ela tomou-lhe o fragmento e examinou-o, balançando a cabeça.

     — Não posso entender por que papai a teria comprado, se é autêntica. Ele ficava revoltado com o comércio ilegal de antigüidades. Ficava sempre repetindo que era uma atividade bastante prejudicial.

     Daniel deu de ombros.

     — Talvez tenha pensado que fosse falsa. Não era um especialista nesse período, afinal de contas. Só um especialista em arte mortuária do Último Período poderia distinguir com exatidão. Se fosse algo do Antigo Reinado, era de se esperar que ele o tivesse reconhecido no ato.

     — Pobre papai — suspirou ela. — Ficaria arrasado se tivesse se dado conta. — Ela lhe devolveu a peça. — Então, o que os hieróglifos significam?

     Ele assentou o fragmento no colo e passou a escrutinar o texto.

     — Lê-se da direita para a esquerda. Veja, o texto sempre corre de encontro às faces desenhadas. Na primeira coluna temos abed, que significa mês, e essas pinceladas são o número três, e a seguir peret, que era uma das divisões do ano egípcio grosseiramente equivalente ao nosso inverno. Assim, terceiro mês de peret. Então, temos — ele apertou os olhos, concentrando-se —, parece, um nome, ib-wer-imenty, Grande Coração do Ocidente;

     íh-wer, grande coração; imenty, Ocidente. Não é um nome próprio, mais uma espécie de epíteto. Sem dúvida, não é parte de um título real. Ou pelo menos nada de que tenhamos ouvido falar.

     Ele ficou alguns segundos refletindo, repetindo para si mesmo o nome,

     depois moveu o dedo para a segunda coluna do texto.

     — Esta palavra no topo é mer, que significa pirâmide. A seguir, item, que é uma unidade de medida antiga, e então um número, noventa. Assim, a pirâmide noventa item. Então a próxima coluna começa com kheper-en, ao que parece, se bem que estes dois hieróglifos do topo estejam partidos, então... — Ele ergueu um pouco o fragmento, tentando pegar mais da luz. — Não, é kheper-en, mesmo, aconteceu, e então dja wer, uma grande tempestade. Então esta figura cortada à esquerda parece ser outro número, mas é impossível dizer qual. É só.

     Ele examinou o fragmento por mais um instante, revirando-o nas mãos, balançando a cabeça, depois devolveu-o à caixa, que enfiou de volta na bolsa de Tara.

     — Se vem mesmo de um túmulo tebano do Último Período, é uma peça bastante rara — disse. — Não se consegue muitas peças de decoração mortuária de depois do Novo Reinado. Assim mesmo, no entanto, duvido que valha mais do que algumas centenas de dólares. Nada que valesse a pena sair matando alguém.

     — Então por que essa gente quer tanto esta coisa?

     — Só Deus sabe. Talvez, estejam querendo a versão completa do texto do qual fazia parte, seja lá qual for. Mas por que esse texto seria tão importante, não faço idéia. — Ele puxou um cheroot do bolso da camisa, acendeu-o e expeliu uma nuvem de fumaça. — Espere aqui.

     Daniel foi até a cabine telefônica e, puxando o fone, enfiou o cartão na renda do aparelho e discou. Durante um momento, continuou olhando para ela, depois virou-se e começou a falar. A conversa durou cerca de três minutos e, num determinado instante, pareceu estar gesticulando, com raiva, depois recolocou o fone no gancho e retornou ao banco. A sua testa, notou ela, estava pontilhada de gotas de suor.

     — Eles estiveram no meu hotel. Três deles. Viraram o meu quarto de cabeça para baixo, pelo que entendi. O proprietário ficou horrorizado, pobre coitado. Meu Deus, que confusão!

     Ele se curvou à frente, esfregando o rosto com as mãos. Uma garotinha passou correndo, encarou-os, e depois saiu correndo novamente, rindo. Em algum lugar nas proximidades um macaco estava guinchando.

     — Deveríamos ir à polícia — disse Tara.

     — Acontece que roubamos um carro e matamos dois cidadãos egípcios. Nem pensar, porra!

     — Foi legítima defesa! Eles eram terroristas!

     — Mas não é necessariamente como a polícia veria a coisa. Acredite-me. Sei como pensam.

     — Nós temos de...

     — Eu disse não, Tara! Só iria piorar as coisas. Se é que é possível piorar ainda mais essa porcaria toda.

     Houve um silêncio tenso.

     — Então, o que vamos fazer? — perguntou ela. — Não podemos simplesmente ficar sentados aqui a vida inteira.

     Outro silêncio.

     — A embaixada — disse ele, finalmente. — Vamos para a embaixada britânica. É o único lugar seguro. Estamos totalmente perdidos nesta história. Precisamos de proteção.

     Tara assentiu com a cabeça.

     — Você tem o número? — perguntou ele.

     Ela remexeu desajeitadamente em sua bolsa de viagem e tirou fora o cartão que Squires lhe dera no dia anterior.

     — Certo. Ligue para eles. Conte tudo o que aconteceu. Diga que precisamos de ajuda. Urgentemente.

     Ele lhe passou o seu cartão telefônico, ela foi até a cabine e discou. Responderam-lhe depois de apenas dois toques.

     — Charles Squires. Aquela voz calma avuncular.

     — Sr. Squires? É Tara Mullray.

     — Olá, srta. Mullray. — Ele não pareceu especialmente surpreso em ouvir-lhe a voz. — Está tudo bem?

     — Um amigo?

     — Sim. Um arqueólogo. Daniel Lacage. Ele conhecia meu pai. Olhe, estamos com problemas. Não posso explicar pelo telefone. Muita coisa aconteceu.

     Uma pausa.

     — Pode ser um pouco mais específica?

     — Alguém está tentando nos matar.

     — Matar você?

     — Sim. Matar a nós dois. Precisamos de proteção. Mais outra pausa.

     — Tem algo a ver com o homem do qual me falou ontem? O homem que você disse que a estava seguindo?

     — Sim. Nós encontramos uma coisa e eles estão tentando nos matar por causa disso.

     Ela tinha consciência de que não estava dizendo nada que fizesse sentido.

     — Certo — replicou ele brandamente.—Vamos simplesmente manter a calma. Onde você está?

     — No Cairo. No jardim zoológico.

     — Mais ou menos em que lugar do jardim zoológico?

     — Ha... perto da jaula do elefante.

     — E está com esse artefato?

     — Estou.

     Ele permaneceu um momento em silêncio. Ela teve a impressão de que ele pusera a mão tapando o receptor enquanto falava com alguém ao lado dele.

     — Certo, estou mandando Crispin para aí imediatamente. Você e o seu amigo fiquem onde estão. Está me entendendo? Simplesmente permaneçam exatamente onde estão. Estaremos com vocês o mais depressa possível.

     — Combinado.

     — Tudo vai dar certo.

     — Claro. Muito obrigada.

     — Logo nos veremos. Ele desligou.

     — Então? — perguntou Daniel quando ela voltou a se sentar.

     — Ele está mandando alguém nos pegar. Disse que devemos permanecer aqui.

     Ele assentiu e eles caíram em silêncio. Daniel expelindo baforadas do seu cheroot. Tara com olhar fixo em sua bolsa de viagem. Ele tivera a esperança de que o misterioso objeto forneceria uma resposta qualquer para o que estava acontecendo, mas, em vez disso, parecia tornar as coisas ainda mais obscuras, como se um código já suficientemente complexo tivesse adquirido uma linha extra de inscrições. Ela se sentia atordoada e morrendo de medo.

     — Talvez o dr. Jemal possa nos ajudar — disse ela, afinal. Daniel ergueu as sobrancelhas, intrigado. — Ele é um velho colega de meu pai — explicou Tara. — Eu o conheci ontem na embaixada. Talvez ele saiba por que o objeto é tão importante.

     Daniel deu de ombros.

     — Não sei quem ele é.

     — É o subchefe do Serviço de Antigüidades.

     — O subchefe do Serviço de Antigüidades chama-se Mohammed Fesal.

     — Ah, bem... Ele é alguma coisa no Serviço de Antigüidades, seja lá o que for.

     Houve uma pausa. Daniel soltou uma baforada do seu cheroot.

     — Jemal?

     — Sim. Dr. Sharif Jemal. Como o Omar Sharif.

     — Nunca ouvi falar de um dr. Sharif Jemal.

     — E deveria?

     — Se ele é um funcionário importante no Serviço, sim, é óbvio. Tenho que lidar com esses caras todos os dias. — Ele ergueu o cheroot novamente, mas desta vez não o tragou, apenas o deixou suspenso diante do seu rosto. — O que mais ele disse, esse dr. Jemal?

     — Pouca coisa. Disse que trabalhou com meu pai em Saqqara. Eles descobriram um túmulo juntos. Em 1972. No ano em que nasci.

     — Que túmulo?

     — Não consigo me lembrar. Hotep ou coisa assim.

     — Ptah-hotep?

     — Sim, isso mesmo.

     O cheroot ainda estava suspenso diante da boca de Daniel. Ele fixou o

     olhar nela.

     — Com quem você falou, Tara?

     — O quê?

     — Na embaixada. Com quem você acabou de falar?

     — Por quê? Alguma coisa errada?

     As gotas de suor na testa dele pareceram ter se multiplicado. Havia tensão nos seus olhos.

     — O seu pai encontrou o túmulo de Ptah-hotep em 1963. O ano em que eu nasci. E ele o encontrou em Abydos, não em Saqqara. — Subitamente, ele atirou fora o cheroot e se pôs de pé. — Com quem você acabou de falar? — A voz dele soou rápida, nervosa.

     — Charles Squires. O adido cultural.

     — E o que ele disse?

     — Disse apenas que a gente deveria esperar aqui. Eles vão mandar alguém ao nosso encontro.

     — Só isso? E você lhe disse onde estávamos?

     — Claro que sim. Do contrário, como ele iria nos encontrar?

     — E a peça? Você mencionou a peça?

     — Sim. Eu disse que nós...

     — O que foi?

     Um súbito tinido de alarme desceu por sua espinha.

     — Ele perguntou se ainda tínhamos o artefato conosco.

     — E então?

     O tinido estava ficando mais forte.

     — Eu não disse a ele que era um artefato. Apenas disse que tínhamos encontrado uma... coisa.

     Por um momento ele ficou imóvel, em seguida ergueu-a com um puxão brusco.

     — Vamos embora daqui.

     — Mas isso é loucura. Loucura. Por que a embaixada ia mentir para nós?

     — Não sei. Mas esse dr. Jemal evidentemente não é quem diz ser e, Portanto, o seu amigo adido cultural também não é.

     — Mas, por quê? Por quê?

     — Já disse que não sei! Temos que sair daqui. Vamos!

     O nervosismo em sua voz era inegável. Daniel agarrou a bolsa e puxou-a. Começaram a correr, contornando a jaula do elefante e seguindo um caminho que subia pela encosta de uma colina arborizada. Quando chegaram ao topo, viraram-se e olharam para trás.

     — Olhe!

     Ele apontava para baixo, para um ponto onde três homens, bastante visíveis por causa de seus ternos e óculos escuros, acabavam de chegar ao banco no qual estiveram sentados. Um deles foi até a cabine de telefone e examinou seu interior.

     — Quem são eles? — sussurrou Tara.

     — Não sei. Mas não estão aqui dando um passeio vespertino, isso é certo. Vamos dar o fora, antes que nos vejam.

     Eles voltaram-se apressados, ganhando o outro extremo da colina e a seguir deixando o zoológico. Já na rua, Daniel fez sinal para um táxi, no qual entraram afobadamente.

     — Tenho a sensação de que estamos encrencados, Tara — disse Daniel, olhando ansioso pelo pára-brisa traseiro. — E muito.

     Squires apanhou o telefone quase precedendo o primeiro toque.

     — Sim?

     A voz no outro lado da linha soou por um breve momento. Ele escutou, segurando o fone com uma das mãos enquanto a outra lentamente desembrulhava uma bala. Ele não disse coisa alguma, e seu rosto permaneceu impassível. Quando a outra pessoa calou-se, ele disse:

     — Muito obrigado. Continue procurando — e recolocou o fone no lugar. A bala estava agora desembrulhada. Em vez de levá-la à boca, ele a

     colocou com cuidado na escrivaninha, à sua frente. Em seguida, fez três chamadas, uma após a outra, em rápida sucessão. Nas três chamadas, no que o telefone era atendido, ele dizia apenas: "Ficou com ela!", e em seguida desligava. Somente após a terceira chamada esticou a mão, pegando a bala, e colocou-a sobre a língua.

     Ele permaneceu imóvel por certo tempo, olhos semicerrados, as pontas dos dedos apenas tocando a face, como se estivesse rezando. Somente quando o último resto da bala dissolveu-se em sua boca, ele se inclinou à frente, abriu uma gaveta e tirou um grande livro de capa dura. Na capa estava uma fotografia de uma parede coberta de hieróglifos multicoloridos, e o título práticas funerárias do Último Período na Necrópole de Tebas. O autor era Daniel Lacage.

     Ele fez os óculos escorregarem para cima de seu nariz e abriu o volume, cruzando suas pernas finas e sorrindo para si mesmo.

    

LUXOR

     Os assassinatos estão ligados — insistiu Khalifa. — Tenho certeza disso.

     Ele estava sentado num escritório amplo, meticulosamente arrumado, no primeiro andar do quartel-general da polícia de Luxor. Diante dele, por trás da escrivaninha, reclinado numa extravagante cadeira executiva de couro preto, estava o inspetor-chefe Abdul ibn-Hassani, seu chefe. Khalifa estava sentado num banco baixo, um arranjo de assentos imaginado para enfatizar a posição hierarquicamente superior de Hassani no departamento de polícia. O chefe raramente perdia uma oportunidade de mostrar a seus homens quem mandava por ali.

     — Certo, repasse tudo para mim mais uma vez — suspirou Hassani. — E mais devagar, agora.

     Ele era um homenzarrão com os ombros largos de um lutador de luta-livre e cabelo cortado à escovinha, o rosto lembrando vagamente o do presidente Hosni Mubarak, cujo retrato estava pendurado na parede atrás dele.

     Ele e Khalifa nunca se entendiam. Khalifa detestava a obsessão do chefe de fazer tudo segundo as regras; Hassani tinha suas desconfianças a respeito da educação universitária de Khalifa, de sua propensão a se deixar levar pela intuição, em vez de se ater aos fatos e evidências concretas, e de sua fascinação pelo passado antigo. O chefe era um pragmático. Não tinha tempo para coisas que haviam acontecido milhares de anos atrás. Estava interessado apenas em resolver crimes, aqui e agora. E isso se faria com trabalho duro, atenção aos detalhes e respeito aos superiores, não sonhando acordado com pessoas com nomes impronunciáveis que já haviam morrido havia três milênios. A história era uma distração, uma indulgência. E Khalifa era, em sua opinião, uma pessoa indulgente, dispersa. Esse era o motivo pelo qual estava protelando sua promoção. O homem não tinha jeito para a coisa. Devia estar trabalhando numa livraria, não num distrito policial.

     — De acordo com a notícia do jornal—relatou Khalifa —, este homem, Iqbar, foi encontrado em sua loja com a face e o corpo inteiramente retalhados.

     — Qual jornal?

     — Al-Ahram.

     Hassani bufou e mandou que Khalifa continuasse, com um aceno.

     — O mesmo tipo de lesões que encontramos em nosso homem. Nayar era um atravessador de antigüidades. Iqbar também. Ou pelo menos ele tinha um antiquário, o que coloca os dois no mesmo ramo. Dois homens, ambos no mesmo negócio, assassinados da mesma forma, com um dia de diferença um do outro. Tem que ser mais do que uma coincidência. Principalmente, se observarmos o tíquete de trem que estava com Nayar. Ele esteve no Cairo um dia antes de Iqbar ser assassinado. Tem de haver uma ligação.

     — Mas temos alguma evidência concreta? Não quero saber de adivinhações. Quero fatos.

     — Bem, ainda não examinei o relatório do legista do Cairo...

     — Sendo assim, talvez as duas mortes não tenham tanta relação assim. Você sabe que os jornais exageram. Principalmente esses mais sensacionalistas, como al-Ahram.

     — Ainda não vi o relatório do legista — repetiu Khalifa —, mas sei que ambos foram mortos da mesma maneira. Os casos estão conectados. Tenho certeza.

     — Então, prossiga — suspirou Hassani, contrariado. — Qual é a sua teoria?

     — Acho que Nayar encontrou um túmulo...

     — Eu já devia saber que os túmulos entrariam nesta história, de um jeito ou de outro!

     — Ou outra pessoa qualquer encontrou algo parecido e Nayar ficou sabendo. Seja como for, foi alguma coisa grande. Ele foi para o Cairo, vendeu a Iqbar alguns artefatos. Recebeu o pagamento. Torrou o dinheiro. Provavelmente, pensou que estivesse feito para vida inteira. Acontece que alguém mais sabia do túmulo. E essa outra pessoa não gostou da idéia de dividir os achados.

     — Isso é especulação, Khalifa. Mera especulação. O detetive ignorou-o e prosseguiu.

     — Talvez Nayar tenha pegado algo valioso e essas pessoas quisessem recuperar o tal objeto. Talvez o simples fato de que ele sabia do túmulo tenha sido o suficiente para emitirem a sentença de morte. Provavelmente, ambas as coisas. Seja qual for o caso, essas pessoas o pegaram e torturaram para descobrirem quem mais sabia sobre a descoberta, então foram ao Cairo e fizeram a mesma coisa com Iqbar. E, se não os prendermos, vão fazer a mesma coisa a outras pessoas. Se já não fizeram, sem que saibamos até agora.

     — Mas quem são essas tais pessoas? Quem são esses lunáticos que, segundo você alega, estão dispostos a trinchar pessoas por causa de alguns poucos objetos poeirentos?

     Ele soava como se debochasse de uma criança excessivamente imaginativa. Khalifa fez uma pausa, antes de responder.

     — Tenho razões para supor que Sayf al-Tha'r está envolvido no caso. Hassani explodiu:

     — Pelo amor de Deus, Khalifa! Como se não bastasse você dizer que estamos lidando com um saqueador de túmulos que é também um serial killer, agora quer também meter o maldito do Sayf al-Tha'r nessa história? E quais são os indícios?

     — Tenho um informante.

     — Que informante?

     — Alguém que trabalha em Deir el-Bahri. No templo. Já foi um guarda.

     — E hoje em dia?

     Ele foi ferido no incidente.

     E hoje em dia? O que esse seu informante faz atualmente?

     Khalifa mordeu um lábio, já antevendo a reação de Hassani.

     Ele cuida dos toaletes do monumento.

     Mas que maravilha! — rosnou o chefe. — O grande informante do Khalifa: o encarregado dos toaletes.

     Ele sabe mais do que acontece em Luxor do que qualquer outra pessoa que eu conheça. E é totalmente confiável.

     — Tenho certeza de que é confiável quando se trata de limpar merda. Mas para um trabalho policial? Faça-me o favor!

     Khalifa acendeu um cigarro e deixou os olhos correrem para fora da janela. O escritório do chefe dava vista diretamente para o templo de Luxor, uma das melhores vistas do monumento que alguém poderia ter na cidade. Uma pena que fosse desperdiçada com uma besta como Hassani. Lá de fora, veio o chamado de um muezim, convocando a todos para as orações do meio da tarde.

     — Todos os atravessadores da cidade estão apavorados — disse Khalifa, afinal. — Todos a quem interroguei sobre o caso. Há alguma coisa fora do comum acontecendo, chefe.

     — Mas é claro que há — replicou Hassani abruptamente. — E está acontecendo bem dentro da sua cabeça.

     — Se eu pelo menos pudesse ir ao Cairo por um dia, circular um pouco por lá e ver o que descubro...

     — Perda de tempo! Besteira! Esse tal Nayder, ou seja lá qual for o nome dele, provavelmente foi cortado a faca por alguém a quem devia dinheiro... Você disse que ele estava devendo dinheiro, não disse?

     — Disse, sim, senhor, mas...

     — Ou por alguém a quem andou insultando... Você disse que ele costumava tratar mal as pessoas, não disse?

     Khalifa deu de ombros.

     — E o tal Iqbar foi cortado por um ladrão, se é que ele foi mesmo tão cortado assim, o que, conhecendo o al-Ahram, é pouco provável. E eles não foram cortados pela mesma pessoa. Você anda lendo demais.

     — Mas eu tenho esse palpite...

     — Palpites não têm nada a ver com trabalho policial. Somente fatos.

     Pensamentos claros. Evidências concretas. Palpites só servem para confundir a coisa toda.

     — Como no caso al-Hamdi? Hassani encarou-o, furioso.

     O caso Ommaya al-Hamdi havia chocado a todos, até mesmo a Hassani. O corpo dela havia sido encontrado no fundo de um poço. Ela estava nua, havia sido estrangulada, e tinha apenas quatorze anos.

     Um garoto do vilarejo, um retardado mental, foi logo preso e, debaixo de pesado interrogatório, confessou o crime. No entanto, Khalifa não estava convencido, sentindo que as coisas não estavam tão explicadas quanto pareciam. Suas dúvidas provocaram a ira de Hassani e piadinhas entre seus colegas. Mas ele os ignorou e prosseguiu na investigação, por conta própria, e acabou provando que o culpado havia sido um primo da garota, que estava apaixonado por ela. Khalifa jamais recebeu nenhum reconhecimento pelo seu papel na solução do crime, mas, desde então, seus palpites vinham sendo tratados um pouco mais respeitosamente.

     — Certo, o que exatamente você está pedindo?

     — Quero ir ao Cairo — respondeu, sentindo que seu chefe se enfraquecera. — Lá, vou ver o que é possível descobrir sobre o assassinato de Iqbar e se o caso pode jogar alguma luz neste com que estamos lidando aqui. Preciso apenas de um dia.

     Hassani girou a bordo de sua poltrona, de modo a ficar de frente para a janela. Seus dedos tamborilavam sobre a escrivaninha. Escutou-se uma batida na porta.

     — Espere! — gritou ele.

     — Posso pegar o trem noturno — disse Khalifa. — Com isso se poupa a despesa com a passagem de avião.

     — Mas, que merda, é claro que você vai pegar o trem noturno — retrucou de supetão. — Não somos uma companhia de turismo, porra! — Ele girou na poltrona novamente, voltando a ficar de frente para o detetive. — Um dia. É só o que você tem. Somente um dia. Vá esta noite. Volte amanhã à noite. E quero um relatório sobre a minha escrivaninha logo cedo, na manhã seguinte. Entendeu?

     — Perfeitamente, senhor.

     Khalifa pôs-se de pé e encaminhou-se para a porta.

     Espero que esteja certo a respeito dessa história—grunhiu Hassani.

     Para o seu próprio bem. Porque, se não estiver, vou ter você em menor conta ainda do que já tenho.

     — E se eu estiver certo, chefe?

     — Fora!

    

CAIRO

     Aonde ir vocês? — perguntou o motorista do táxi.

     — Para qualquer lugar — respondeu Daniel. — Para o centro.

     — Midan Tahrir?

     — Está ótimo!

     Seguiram no veículo por alguns minutos, então Daniel, inclinando-se à frente, disse ao motorista:

     — Não, Midan Tahrir, não. Zamalek. Leve-nos a Zamaleck. Sharia Abdul Azim.

     O motorista assentiu com a cabeça e Daniel se recostou novamente no banco.

     — Aonde estamos indo? — perguntou Tara.

     — Vamos ver o meu despachante, Mohammed Samali. Ele é, provavelmente, a última pessoa no Cairo em quem se pode confiar, mas, no momento, não consigo pensar em ninguém mais que possa nos ajudar.

     Acomodaram-se no assento e ficaram observando a vista através da janela, o táxi lentamente avançando em meio ao tráfego. Alguns minutos depois, Daniel segurou na mão de Tara. Nenhum dos dois disse nada, nem sequer trocaram um olhar.

     Zamalek era um bairro suntuoso e arborizado, composto exclusivamente de vilas e de prédios residenciais bastante altos. Eles pararam diante de um edifício moderno e luxuoso, com jardins bem-cuidados e um foyer com fachada envidraçada. Depois de pagar ao motorista, subiram a escadaria até a entrada da frente. Na parede externa, havia um interfone com painel de metal polido. Daniel pressionou o botão do número 43.

     Aguardaram trinta segundos, então ele pressionou de novo o botão. Mais uma espera demorada, então uma voz saiu do painel:

     — Sim?

     — Samali? É Daniel Lacage.

     — Daniel? Mas que surpresa maravilhosa! — A voz soava delicada, musical, levemente ceceante. — Infelizmente, me pegou num momento inoportuno. Seria possível você...

     — É urgente. Preciso conversar com você. Agora! Houve uma pausa.

     — Espere cinco minutos aí embaixo, depois suba. Quarto andar, mas isso você já sabe.

     Escutaram um estalido e a porta se abriu. Eles entraram num foyer acarpetado, o ar no interior repentinamente mais frio em função do ar-condicionado. Como lhes foi pedido, esperaram por cinco minutos e só então tomaram o elevador até o quarto andar. O apartamento de Samali ficava na metade de um comprido corredor com retratos de antigos monumentos pendurados nas paredes. Eles bateram à porta e logo a seguir ouviram o barulho de pés se aproximando maciamente.

     — Tome cuidado com o que vai dizer a ele — sussurrou Daniel. — E mantenha essa caixa na sua bolsa. É melhor que ele não a veja. Samali venderia a própria mãe, se pudesse obter algum lucro na transação. Quanto menos detalhes ele ficar sabendo, melhor.

     Ouviram-se os estalidos de uma seqüência de fechaduras sendo destrancadas.

     — Mil desculpas por tê-los feito esperar. Por favor, entrem.

     Samali era alto e muito magro, completamente careca, com a pele tenuamente lustrosa, como se usasse algum creme hidratante. Ele se virou para o interior do apartamento e conduziu-os por um hall até um salão, tipicamente minimalista, com assoalho de madeira clara, paredes brancas e pouco mobiliário, todo em metal e couro. Através de uma porta lateral, Tara viu dois rapazes, um deles vestindo um roupão de banho. A porta fechou-se quase imediatamente, entretanto, e os rapazes sumiram atrás dela.

     — Creio que não nos conhecemos — sorriu Samali.

     — Tara Mullray — apresentou Daniel. — Uma velha amiga.

     — Encantado.

     Ele adiantou-se, pegou a mão de Tara, ergueu-a e aplicou-lhe um beijo em seus dedos, suas narinas dilatando-se momentaneamente, como se farejasse a pele dela. Ele baixou a mão de Tara e apontou-lhes um grande sofá.

     — Bebem alguma coisa?

     — Uísque — disse Daniel.

     — Srta. Mullray?

     — O mesmo. Obrigada.

     Ele dirigiu-se a um bar e, pegando do decantador, serviu dois copos, colocando em cada uma pedra de gelo. Entregou-lhes os copos e sentou-se em frente a eles, pegando uma piteira de jade e encaixando nela um cigarro.

     — Não bebe com a gente? — perguntou Daniel.

     — Prefiro ficar vendo vocês beberem — disse Samali, sorrindo.

     Ele acendeu o cigarro e tragou profundamente da ponta da piteira. Suas sobrancelhas eram muito finas e escuras e Tara de repente deu-se conta de que eram realçadas com delineador.

     — Então — disse ele —, a que devo a honra?

     Daniel levantou os olhos para ele e, então, desviou-os para a janela, os dedos nervosamente tamborilando na borda do sofá.

     — Precisamos de ajuda.

   — Mas é claro que precisam... — disse Samali, sempre sorridente. Ele voltou-se para Tara, cruzando as pernas e alisando o tecido de suas calças com as mãos.

     — Sou aquilo que, de um modo um tanto grosseiro, chamam de despachante, srta. Mullray. Ou um... quebra-galhos, perdoe o termo. Parte de uma espécie sempre denegrida, até que alguém precisa de fato de meus serviços. Então, de uma hora para outra, eu me torno indispensável. É uma vocação, tem suas recompensas — e ele fez um gesto com a mão exibindo o luxuoso apartamento —, embora não sejam do tipo espiritual. Um homem em minha profissão logo percebe que nunca receberá uma visita de caráter meramente social. Há sempre... qual é mesmo a palavra?... um propósito.

     Ele falava em tom jocoso, mas seus olhos mantinham um brilho gélido como se entendesse que a polidez deles era apenas uma encenação e quisesse que soubesse que a dele também era. Samali inclinou a cabeça para trás e tirou uma tragada profunda de sua piteira, fitando o teto.

     — Bem, então... Do que está precisando, Daniel? Problemas com a sua concessão para escavações? Ou talvez Steven Spielberg esteja interessado em filmar o seu trabalho e você necessita de ajuda para conseguir as autorizações?

     Ele deu uma risadinha, deliciado com a própria piada. Daniel terminou seu uísque num só gole e pôs o copo de lado.

     — Preciso de informações — respondeu ele, laconicamente.

     — Informações — arrulhou Samali. — Mas que lisonjeiro. Um estudioso com a sua reputação vir a mim em busca de assessoria. Não consigo imaginar o que eu poderia saber que você não saiba, mas, por favor, pergunte à vontade.

     Daniel curvou-se à frente, o forro de couro crepitando por baixo dele. De novo seus olhos fixaram-se por um instante em Samali e de novo desviaram-se para a janela, evitando cruzar olhares com o outro homem.

     — Preciso de informações sobre Sayf al-Tha'r. Uma brevíssima pausa.

     — Alguma coisa em particular, ou apenas um resumo geral?—indagou Samali.

     — Preciso saber da relação entre Sayf al-Tha'r e antigüidades. Novamente, uma ligeira hesitação da parte de Samali.

     — Posso perguntar por quê?

     — É melhor eu não entrar em detalhes. Para a sua segurança, tanto quanto para a nossa. Há uma antigüidade em particular que acredito que ele esteja querendo e precisamos saber por quê.

     — Mas quantos mistérios, Daniel!

     Ele ergueu a mão e começou a examinar as unhas. Tara pensou escutar alguns sussurros na sala ao lado.

     — Essa antigüidade tão misteriosa... — disse Samali. — Eu estaria correto em pensar que esteja nessa caixa na bolsa da srta. Mullray?

     Nem Tara nem Daniel responderam.

     — Pelo silêncio de vocês, presumo que sim. — Ele voltou os olhos para Tara. — Eu podia vê-la, por favor?

     Ela fixou os olhos nele por um instante, depois voltou-se para Daniel, e a seguir para a bolsa em seu colo. Houve um instante de silêncio entre eles, depois escutou-se a risadinha gutural de Samali.

     — Tenho certeza de que o dr. Lacage disse a você para não mostrá-la a mim. É uma outra lição que logo se aprende neste meu ramo. É muito raro que confiem em nós.

     Samali encarou-os por um momento, depois abanou a mão.

     — Não importa. Guardem o segredo de vocês, se assim preferirem. É só que torna mais difícil para mim responder à sua pergunta. É como tentar jogar uma mão de pôquer sem ver todas as suas próprias cartas.

     Ele voltou a examinar suas unhas.

     — Então, querem saber sobre a Espada da Vingança e sua ligação com antigüidades, é isso? — Ele ficou um instante refletindo. — Trata-se de uma linha de inquirição extremamente perigosa. Mas eu me pergunto...

     — O que vai ganhar com isso? — Daniel pôs-se de pé, pegou o seu copo, foi até o bar, serviu-se de nova dose. Suas mãos pareciam trêmulas. — Nada. Estou pedindo que nos ajude apelando para a sua bondade.

     As sobrancelhas de Samali deram um pulo para o alto.

     — Mas, ora vejam... Primeiro, sou considerado a fonte de toda a sabedoria, e a seguir o grande filantropo. Quando terminarmos esta conversa, vou ter dificuldade de saber quem sou.

     — Posso lhe dar algum dinheiro, trezentos dólares, talvez quatrocentos, se isso puder resolver.

     Samali soltou um muxoxo.

     — Ora, por favor, Daniel. Posso ser um homem que venceu por conta própria, mas pelo menos ganhei a vida com muito estilo. Não sou uma puta de rua, pegando uns trocados pelos meus serviços. Pode guardar os seus quatrocentos dólares.

     Ele deu uma nova tragada na sua piteira, agora mais lenta, sorrindo sutilmente, como se apreciasse ter deixado Daniel tão pouco à vontade.

     — Se bem, é claro, que nada no mundo é inteiramente de graça. Especialmente informações a respeito de alguém tão perigoso quanto Sayf alTha'r. Então, vamos apenas deixar entendido que você vai ficar me devendo. Um dia, posso cobrar a dívida de você. Concorda?

     Eles se encararam por um momento, então Daniel sorveu todo o uísque em seu copo e disse:

     — Concordo!

     Ele serviu-se de uma generosa dose e retornou ao sofá. O cigarro de Samali já havia sido totalmente consumido e, inclinando-se à frente, ele soltou-o da piteira sobre um cinzeiro de metal.

     — É claro que não tenho ligações com a organização de Sayf al-Tha'r. Vamos deixar isso bem entendido já de princípio. Qualquer coisa que eu vá lhes contar é puramente de ouvir dizer.

     — Prossiga.

     — Bem — começou ele, alisando de novo as calças —, ao que parece nosso prezado amigo, nos últimos anos, vem financiando suas operações, secretamente, por meio da venda de antigüidades. — Samali encaixou outro cigarro na piteira. — Pelo que se sabe, ele conhece mais sobre artefatos egípcios do que qualquer especialista, de modo que esta é uma óbvia fonte de recursos para ele. Aliás, a única, já que suas atividades o isolaram de todos os demais grupos fundamentalistas no Egito. Até mesmo al-Jihad não quer ter contato com ele.

     Samali pôs-se de pé e deu alguns passos lentos em direção à janela, o sol do cair da tarde refletindo-se em sua careca de um modo que dava a impressão de ser feita de bronze polido.

     — Ele dirige uma verdadeira indústria informal, pelo que se sabe. Os artefatos são roubados de escavações, ou de túmulos recém-descobertos, ou ainda de reservas técnicas de museus. Então, são enviados para o sul, para o Sudão, e despachados de navios para atravessadores na Europa e no Extremo Oriente, que os vendem a colecionadores particulares. Os ganhos são discretamente trazidos de volta para cá e empregados em... Bem, creio que vocês sabem perfeitamente como esse dinheiro é empregado.

     — Um homem muito grande — disse Tara —, com uma marca de nascença na face. Você o conhece?

     Samali permaneceu junto à janela, olhando para a rua, lá embaixo.

     — Dravitt — disse ele. — Drakich. Dravich. Algo assim. Alemão, creio eu. Ele é os olhos e ouvidos de Sayf al-Tha'r no Egito. Receio não poder lhe dizer muita coisa a respeito dele. A não ser que as histórias sobre esse indivíduo não são nada agradáveis.

     Samali voltou-se para eles.

     — Não sei o que você tem aí nessa caixa, Daniel, mas se, como você diz, Sayf al-Tha'r a quer, garanto a você que, cedo ou tarde, ele a terá. Antigüidades são o ar que ele respira. E quando o que está em jogo é obtê-las, ele age de maneira bastante rude.

     — Mas não se trata de algo valioso — disse Daniel. — Por que ele estaria tão desesperado para pôr as mãos nesse objeto?

     Samali deu de ombros.

     — Como posso lhe dizer, se é algo que você não quer me mostrar? Só vou repetir: se Sayf al-Tha'r a quer, Sayf al-Tha'r vai tomá-la de você.

     Ele encaminhou-se lentamente de volta para a poltrona e, pegando o isqueiro, acendeu seu cigarro.

     — Acho que vou tomar um drinque, afinal — disse. — Esta tarde ficou estranhamente quente, de repente.

     Ele foi até o bar e serviu-se um copo de um licor amarelo-opalescente.

     — E a embaixada britânica? — perguntou Tara.

     Houve uma pausa momentânea, depois um sonoro tilintar, quando Samali colocou um cubo de gelo em seu copo.

     — A embaixada britânica?

     Sua voz parecia indicar desconhecimento do assunto, embora tenha soado levemente mais aguda, como se alguém tivesse apertado seu pescoço.

     — Parece que eles querem a tal coisa, também — explicou Daniel. —Ou, pelo menos, o adido cultural está interessado nela.

     Outro tilintar. Samali deixou o pegador de gelo de lado e, erguendo seu copo, sorveu um longo gole, ainda de costas para eles.

     — Mas por que diabos você acha que o adido cultural tem tal interesse? Samali sorveu novo gole e encaminhou-se para a janela, sem pressa. Por um longo momento, agora, fez-se silêncio.

     — Vou lhes dar um pequeno conselho — disse, enfim —, e vou dá-lo de graça. Livrem-se dessa antigüidade, seja lá o que for, e saiam do Egito, façam isso logo, façam isso hoje. Porque, se não, vocês vão morrer.

     Um calafrio percorreu a espinha de Tara. Involuntariamente, ela agarrou a mão de Daniel. A palma de sua mão estava molhada de suor.

     — O que mais sabe, Samali? — perguntou Daniel.

     — Muito pouco. E fico satisfeito que seja assim.

     — Mas você sabe de alguma coisa mais?

     — Por favor — pediu Tara.

     Mais uma vez, fez-se um longo silêncio. Samali terminou seu drinque e ficou de pé, imóvel, o braço ao longo do corpo, segurando o copo, dando baforadas seguidas em sua piteira. As janelas pareciam ter vidros bastante grossos, porque não se ouvia qualquer barulho vindo da rua. Os sussurros na sala ao lado haviam parado.

     — Pode haver... como vou dizer isso?... uma espécie de intermediação — disse, afinal, pronunciando as palavras lentamente — para as antigüidades roubadas. No interior da embaixada britânica. E também na americana. Isso, se o que andei escutando tiver fundamento. Mas são meros boatos, entendem? Boatos gerados por boatos. Coisas deixadas no ar. Segundo se diz, alguns objetos são roubados de museus, tirados então do país aproveitando-se da imunidade diplomática, e vendidos no exterior, com os ganhos sendo depositados em contas secretas em alguns bancos, tudo com ar de novelas de espionagem.

     — Deus do céu! — murmurou Daniel.

     — Oh, essa é apenas parte da história — observou Samali. — Os embaixadores organizam a exportação de artefatos. No entanto, é o nosso próprio serviço de segurança que os rouba. Ou, pelo menos, um membro da equipe do serviço de segurança. Isso vai longe, Daniel. Essas pessoas têm conexões em toda parte. Veja, podemos até estar sendo vigiados, e mesmo escutados, neste exato momento.

     — Temos de ir à polícia — disse Tara. — Temos de ir. Samali sorriu causticamente:

     — Não está escutando o que estou lhe dizendo, srta. Mullray. Essas pessoas são a polícia. São o sistema. Não há como enfatizar mais o poder de que dispõem. Eles a manipulam sem que você nem ao menos se dê conta. Comparado a eles, Sayf al-Tha'r é o seu melhor aliado.

     — Mas por quê? — perguntou-se Daniel. — Por que tanta coisa a respeito desta peça, em particular?

     Samali deu de ombros.

     — Quanto a isso, como já lhe disse, não tenho nenhuma resposta. O que estou vendo aqui é que, de um lado, temos as embaixadas e seus serviços secretos... — Ele ergueu a mão, ainda segurando o copo. — E, de outro, temos Sayf al-Tha'r... — e ele ergueu a outra mão. — Entre ambos, prestes a serem espatifados em um milhão de pedaços...

     — Nós — murmurou Tara, com seu estômago se retorcendo. Samali sorriu.

     — O que podemos fazer? Para onde podemos ir?

     O egípcio não respondeu. Daniel estava sentado na borda do sofá, olhos fixos no chão. Tara começou a sentir de repente a caixa em seu colo como se pesasse uma tonelada. E suas pernas até mesmo doíam com o peso. O silêncio no ar parecia latejar.

    — Precisamos de um meio de transporte — falou Daniel, afinal. — Um carro, uma moto, qualquer coisa. Você pode cuidar disso?

     Samali baixou os olhos para eles por um momento e então, seu olhar sutilmente mais brando, atravessou a sala, pegou o telefone, discou e falou algumas palavras breves no fone. No outro lado da linha, escutou-se um murmúrio baixo, e então ele desligou.

     — Vai haver uma moto lá embaixo em cinco minutos — disse ele. — As chaves vão estar na ignição.

     — Quanto? — perguntou Daniel.

     — Ora, é de graça — sorriu Samali, debochado. — Nem mesmo eu sou mercenário o bastante para tirar dinheiro de um homem condenado.

     Estava quente no quarto, mas Tara percebeu que tremia descontroladamente.

     A moto — uma Jawa alaranjada bastante rodada — esperava por eles, justamente como disse Samali. Não havia nenhum sinal da pessoa que a tinha deixado ali. Daniel pisou com força no pedal de ignição, dando partida no motor. Tara abraçou-se às costas dele, deixando a mochila em seu ombro,

     a caixa dentro.

     — Então, para onde vamos? — perguntou Tara.

     — Para o único lugar onde poderemos descobrir por que este artefato é tão importante — respondeu.

     — E que lugar é esse?

     Ele engrenou a moto, pressionou o acelerador e tomou rapidamente a rua. O cabelo de Tara revoou para trás.

     Da janela do seu apartamento, Samali ficou observando, enquanto eles desapareceram, dobrando uma esquina. A seguir, ele foi até o telefone, ergueu o fone e discou.

     — Acabaram de sair — disse. — E estão com a peça.

    

NORTE DO SUDÃO

     O helicóptero voou rasante pelo acampamento, aterrissando sobre uma pequena área aplainada, cem metros adiante. A ventania provocada por suas pás levantou uma cortina de poeira e de cascalho, que chicotearam as tendas como se fosse granizo. O garoto que viera recebê-los virou-se de costas e protegeu o rosto com um braço. Quando o helicóptero já estava no chão e o rotor quase já havia parado, ele correu para o aparelho e abriu a porta em sua lateral.

     Um homem, num terno amarrotado, saltou para fora, uma maleta numa das mãos e um charuto na outra. Sua altura pareceu esmagar o garoto.

     — Ele está aguardando o senhor, a Doktora.

     Encaminharam-se então para o acampamento, o garoto mantendo os olhos fixos no chão, sempre evitando olhar diretamente para o rosto do homem, que o amedrontava por causa da horrenda mancha púrpura em sua face. O homem caminhava ao seu lado, deixando a maleta balançar, alheio ao garoto.

     Contornaram a margem do acampamento, indo até uma tenda pouco afastada das demais. O garoto puxou a aba, na parte frontal da tenda, abrindo-a, e entrou. O homem jogou fora seu charuto, dando uma parada antes de entrar.

     — Seja bem-vindo, dr. Dravic — soou a voz lá de dentro. — Que tal um pouco de chá?

     Sayf al-Tha'r estava sentado de pernas cruzadas no centro da tenda, suas faces parcialmente ocultadas pela penumbra. Havia um livro junto a ele, embora estivesse escuro demais para se enxergar qual seria.

     — Prefiro uma cerveja — respondeu Dravic, irritado.

     — Como o senhor bem sabe, o álcool é proibido aqui. Mehmet, traga para o sr. Dravic um pouco de chá.

     — Sim, mestre. — O garoto saiu.

     — Por favor...

     O gigante curvou-se à frente e arriou sobre o chão acarpetado. Era evidente que ele não estava acostumado a sentar-se no chão porque imediatamente começou a se remexer, procurando uma posição mais confortável. Finalmente, sentou-se com uma perna dobrada por baixo dele e a outra, dobrada também, mas semi-erguida, com o joelho na altura de seu peito.

     — Não entendo por que vocês não podem ter cadeiras por aqui — resmungou.

     — Preferimos viver com mais simplicidade.

     — Ótimo para vocês, mas não para mim.

     — Então, sugiro que, na próxima vez, traga sua própria cadeira.

   A voz de Sayf al-Tha'r não soava zangada, apenas firme. Dravic ainda resmungou alguma coisa, mas não insistiu. Ele parecia subjugado na presença do outro homem, ou mesmo perturbado. Puxou um lenço do bolso e esfregou as sobrancelhas que, nos dois minutos, desde que saltara do helicóptero, já haviam ficado empapadas de suor.

     — Então? — indagou Sayf al-Thar. — Você ainda não a conseguiu? Ao contrário de Dravic, ele estava muito à vontade, sentado no chão, as mãos descansando sobre os joelhos.

     — Não — resmungou o alemão. — Estava em Saqqara, como eu disse que estaria, mas a garota fugiu com ela antes que eu pudesse detê-la. Dois de nossos homens foram mortos.

     — A garota os matou?

     — Ela e um sujeito que a acompanhava. Um arqueólogo. Daniel Lacage.

     — Lacage? — Os olhos verdes do homem reluziram na escuridão.

     Que... interessante. O livro dele sobre a iconografia dos túmulos do Último Período é um dos meus favoritos.

     Dravic deu de ombros:

     — Eu não o li.

     — Mas deveria. É um estudo excelente.

     Um espasmo de contrariedade percorreu o rosto do gigante. Não era a primeira vez que se perguntava por que Sayf al-Tha'r havia feito questão de contratá-lo se os seus conhecimentos sobre o antigo Egito eram, obviamente, tão amplos. Era como se estivesse debochando dele. Enfatizando sempre que ele, um egípcio, conhecia muito mais o passado de seu país do que qualquer estrangeiro jamais conseguiria conhecer. Aquele bundão negro! Se dependesse de pessoas como ele, o Egito não teria mais passado nenhum. Tudo teria sido escavado muito tempo atrás e vendido pela primeira pechincha que fosse oferecida. Os punhos de Dravic fecharam-se, depois abriram-se, com os nós dos dedos empalidecidos.

     Mehmet entrou trazendo o chá, entregando um copo para Dravic e colocando o outro no chão, à frente de seu mestre.

     — Obrigado, Mehmet. Espere aí fora.

     O garoto tornou a sair, sempre evitando olhar para Dravic.

     — Por que Lacage está ajudando a garota? — perguntou Sayf al-Tha'r.

     — Só Deus sabe. Ela passou a noite com ele, foram para Saqqara esta tarde, apanharam a peça e desapareceram outra vez.

     — E neste momento?

     — Neste momento, não sei onde estão.

     — Eles chegaram a ir à polícia?

     — Não. Teríamos sabido se tivessem feito isso.

     — E a embaixada?

     — Não. Estivemos vigiando o dia inteiro.

     — Então, para onde?

     — Pelo que estou sabendo, podem estar até na Lua. Já lhe disse, eles desapareceram. Podem estar em qualquer lugar.

     — Mas estariam atrás do tesouro por conta própria? É isso?

     — Olhe aqui, porra, eu não sei, entendeu? Não sou um telepata. Houve um discreto retesamento em torno da boca de Sayf al-Tha'r, o Primeiro sinal de contrariedade.

     — É uma pena que você não tenha sido mais cuidadoso em Saqqara, dr. Dravic. Se tivesse usado de menos brutalidade com aquele senhor, isso nos teria poupado muitos aborrecimentos.

     — Já disse que não foi minha culpa — protestou o gigante. — Não pus sequer um dedo naquele velho filho da puta. Ficamos à espera dele dentro do alojamento, mas antes que sequer tivéssemos chance de começar o interrogatório, ele teve uma porra de um enfarte. Foi dar com os olhos na espátula e caiu morto na minha frente. Não cheguei sequer a tocar nele.

     — Então, é uma pena que você não tenha vasculhado o alojamento da escavação mais meticulosamente.

     — A peça não estava lá. Foi por isso que não pudemos encontrá-la. Estava escondida do lado de fora, num buraco da parede de uma das mastabas.

     Sayf al-Tha'r assentiu lentamente com um movimento de cabeça e, sem tirar os olhos de Dravic, apanhou seu chá. Ergueu o copo até a boca e sorveu, de leve, um gole, apenas umedecendo os lábios com o líquido e nada mais. Dravic também ergueu seu copo e sorveu-o ruidosamente. O suor brotava de suas faces. Estava com dificuldade de respirar, de tanto calor.

     — Vamos encontrá-los—assegurou ele.—É apenas questão de tempo.

     — Tempo é algo de que não dispomos, dr. Dravic, como bem sabe. Não podemos manter tudo isto em segredo para sempre. Precisamos da peça imediatamente.

     — Estamos vigiando as estações de trem, os terminais de ônibus, o aeroporto. Temos homens por toda parte. Vamos encontrá-los.

     — Espero que sim.

     — Nós vamos encontrá-los..

     Mais uma vez, Dravic parecia precisar se esforçar para conter sua irritação. Então, como se para dissipar a própria raiva, irrompeu numa risada, enxugando a fronte com o lenço.

     — Meu Deus! Se essa coisa toda der certo, vamos nos tornar milionários. O comentário pareceu interessar a Sayf al-Tha'r. Ele inclinou-se levemente à frente.

     — E isso o excita, dr. Dravic? A idéia de tornar-se um milionário?

     — Está brincando? É claro que sim. E não excita você?

     — O quê? Ter um milhão de libras esterlinas para gastar comigo mesmo?

     Para desperdiçar em luxo inútil, enquanto nos bairros miseráveis crianças morrem de fome? — Sayf al-Tha'r sorriu. — Não, não me excita. Nem um pouco. Fico enfastiado com essa idéia. — Ele levou o copo de chá aos lábios novamente. — Por outro lado, ter essa fortuna toda para disseminar a palavra de Deus... — Um sorriso aberto tomou conta de seu rosto. — Um milhão de libras esterlinas para derrotar os opressores e restaurar a lei da Sharia. Para purificar a terra e cumprir os desígnios de Deus. Isso, sim, me excita, dr. Dravic. E me excita bastante.

     — Foda-se Deus! — gargalhou Dravic, enxugando agora o suor da nuca. — Eu fico com o dinheiro para mim mesmo!

     Subitamente, o sorriso de Sayf al-Tha'r desapareceu. Ele encarou Dravic e seus dedos se apertaram tão fortemente em torno do copo que parecia que ia quebrá-lo a qualquer momento.

     — Tenha cuidado com suas palavras — sibilou ele. — Muito cuidado. Ofensas como essas os homens não devem proferir.

     Seus olhos estavam cravados nos de Dravic, muito verdes, sem pestanejar, como se não tivessem pálpebras. O gigante enxugou mais uma vez as sobrancelhas, não conseguindo sustentar o olhar do outro homem.

     — Muito bem, muito bem... — murmurou — Você tem as suas prioridades, eu tenho as minhas. Vamos deixar assim.

     — Sim, vamos — assentiu Sayf al-Tha'r. — Vamos deixar assim. Permaneceram em silêncio por alguns momentos, e então Sayf al-Tha'r

     chamou o garoto para dentro.

     — Mehmet, acompanhe o dr. Dravic de volta ao seu helicóptero. Dravic pôs-se de pé, lentamente, sentindo um estremecimento nas pernas

     dormentes, e encaminhou-se para a saída da tenda, bastante aliviado por estar indo embora.

     — Comunico assim que tiver novidades—disse.—Vou estar em Luxor. Se eles tiverem de aparecer em algum lugar, será lá.

     — Vamos rezar para que assim seja. Tudo aqui está pronto. Podemos atravessar a fronteira e iniciar a operação em questão de horas. Tudo de que precisamos é saber o local.

     O gigante assentiu, e estava prestes a sair da tenda quando a voz de Sayf al-Tha'r o fez voltar-se.

     — Encontre a peça que falta, dr. Dravic. Oportunidades como esta acontecem apenas uma vez na vida. Precisamos aproveitá-la, enquanto é possível fazê-lo. Encontre a peça.

     Dravic soltou um grunhido em resposta e saiu. Dois minutos depois, ouviu-se um som agudo, seguido do ruído de rotores, no que o helicóptero decolou e descreveu uma curva no ar desaparecendo sobre o deserto.

     Uma vez sozinho, Sayf al-Tha'r pôs-se de pé e dirigiu-se a uma grande arca nos fundos da tenda. Retirando uma chave de dentro da túnica, destrancou o cadeado e abriu a tampa.

     Envergonhava-o precisar se associar a um Kufr como Dravic, mas não tinha escolha. Seria muito arriscado atravessar a fronteira pessoalmente. Os inimigos estavam vigilantes. A sua espera. Sempre a sua espera. Mais adiante, talvez, quando o fragmento houvesse sido encontrado. Mas ainda não. Se pudesse usar qualquer outra pessoa, o teria feito, mas Dravic era o único que possuía as qualificações e, mais do que isso, a falta de escrúpulos requerida. Assim, dependia dele. Da imundície sobre a terra, do refugo da humanidade. Os caminhos de Alá eram de fato misteriosos.

     Ele curvou-se e, do escuro interior da arca, que mais parecia um poço, retirou um pequeno colar. Foi só erguê-lo para a tênue luminosidade e o objeto reluziu. Ouro. Balançou-o e as delicadas cânulas de que era feito tilintaram musicalmente. Ele o recolocou na arca e foi retirando outros objetos. Um par de sandálias. Uma adaga. Um adorno para o peito finamente trabalhado, ainda com suas tiras de couro. Um amuleto de prata com o formato de um gato. Um por um, ergueu-os à luz, admirando-os fascinado.

     Não havia dúvidas de que eram autênticos. No início, quando Dravic trouxera as primeiras informações sobre o túmulo, ele se recusara a acreditar. E era de fato inacreditável. Era pedir demais. E Dravic havia cometido erros anteriormente. Seu julgamento, nessas questões, nem sempre era confiável.

     Somente quando teve em mãos aqueles objetos, como os tinha naquele exato momento, e quando os examinou com seus próprios olhos, teve a certeza de que era verdade. Que o túmulo era exatamente o que Dravic alegava que fosse. Que Alá havia de fato sorrido para eles. E sorrido para eles com todo o poder de sua graça.

     Ele recolocou os objetos na arca e fechou a tampa, enfiando o cadeado de volta nas golilhas e pressionando-o para fechá-lo. À distância, ainda podia escutar o ruído compassado do rotor do helicóptero.

     O túmulo fora o começo de tudo. Mas seria também o final de tudo, se encontrassem a peça que faltava.

     Ele deixou a tenda, os olhos se estreitando sob o brilho do sol, mas sem sentir nenhum desconforto com o calor abrasador. Margeando o acampamento, rumou para o topo de uma duna mais baixa e, olhando para o leste, por sobre as colinas arredondadas de areia, parecia uma solitária mancha negra no vazio em toda a sua volta. "Em algum lugar nessa imensidão", pensou. "Em algum lugar, nesse mar infinito, ermo e ardente. Em algum lugar..." Ele fechou os olhos e tentou imaginar como tudo acontecera.

    

CAIRO

     O trajeto de Luxor ao Cairo demorou dez horas. O trem estava lotado e Khalifa passou toda a viagem espremido contra o canto de um vagão, exposto a correntes de vento, entre uma mulher que carregava uma cesta cheia de pombos e um homem idoso que sofria acessos convulsivos de tosse. A despeito do ambiente apertado e do balanço asmático do trem, ele adormeceu profundamente, seu paletó enrolado por trás da cabeça, servindo de travesseiro, os pés descansando sobre um enorme saco de tâmaras secas. Quando despertou, por causa de um sacolejo especialmente violento que fez sua cabeça bater nas barras da janela do compartimento, sentia-se bem descansado e com as forças restauradas. Proferiu então suas orações matinais, acendeu um cigarro e pôs-se a devorar o pão e o queijo de cabra que Zenab havia embrulhado para que levasse na viagem, repartindo-os com o homem idoso ao seu lado.

     Alcançaram a periferia do Cairo por volta de seis da manhã. Havia marcado para se encontrar com Mohammed Tauba, o detetive encarregado pelo caso Iqbar, às nove horas, o que lhe deixava três horas de tempo livre. Portanto, em vez de prosseguir de trem até o centro do Cairo, desceu em Gizé e, deixando a estação, pegou um táxi até Nazlat al-Sammam, seu vilarejo natal.

     Desde que partira, treze anos atrás, tinha voltado ao lugar em somente duas outras ocasiões. Quando criança, pensava que viveria lá para sempre. Entretanto, depois da morte de Ali e, mais tarde, de sua mãe, tudo pareceu ter ficado diferente no vilarejo. Todas as ruas agora lembravam as coisas ruins que tinham acontecido, assim como todas as casas e árvores. Já não conseguia passear por ali sem ser tomado por uma sensação de vazio e de perda. Assim, aceitara o cargo em Luxor e se mudara. Suas duas visitas anteriores haviam sido motivadas por funerais.

     Ele saltou do microônibus num congestionado entroncamento de estradas e, levantando a vista para a pirâmide de Queops, semi-encoberta por trás de uma cortina de névoa matinal, tomou a estrada principal que seguia até o vilarejo, acometido de nervosa excitação.

     O lugar mudara muito desde os dias de sua infância. Na época, era um vilarejo tradicional — um minúsculo aglomerado de lojas e casas disposto em torno do platô de Gizé, sob o olhar silencioso da Esfinge.

     Agora, com o crescimento da indústria de turismo e o inchamento inexorável das periferias a leste da cidade, havia perdido muito da sua identidade original. As ruas eram ladeadas por lojas de suvenires e as antigas habitações de tijolos de barro tinham cedido lugar a uma explosão de prédios de concreto descaracterizados. Ele percorreu os arredores por algum tempo, observando os prédios, alguns familiares, a maioria novos, sem muita certeza de por que havia vindo até ali, apenas sabendo que, por alguma razão, sentira necessidade de rever o seu antigo lar. Passou diante da casa onde morara, ou melhor, do local onde estava situada — fazia muito, fora demolida e substituída por um hotel de concreto de quatro andares — e deu uma olhada no curral de camelos onde ele e seu irmão haviam trabalhado, quando garotos. Vez por outra, cruzava com algum rosto familiar, e trocavam cumprimentos. Mas eram cumprimentos polidos, não calorosos. E distantes, até mesmo frios, em alguns casos. O que não chegava a surpreender, considerando o que acontecera com Ali.

     Ficou por lá por aproximadamente uma hora, sentindo uma crescente melancolia, perguntando-se se não teria sido um erro ter vindo, quando então, depois de consultar de relance o seu relógio, encaminhou-se para o extremo do vilarejo, penetrando nas areias do platô. O sol estava alto, agora, dissolvendo a névoa, permitindo à silhueta das pirâmides que ficassem mais e mais definidas, a cada minuto. Ficou parado, contemplando-as por alguns momentos, depois tomou a esquerda, encaminhando-se para um cemitério cercado por um muro, encravado no sopé de uma escarpa de calcário oposta à Esfinge.

     A parte mais baixa do cemitério situava-se em terreno plano, com seus túmulos ornamentados sombreados por pinheiros e eucaliptos. Mais perto da escarpa, o terreno começava a subir e os túmulos se tornavam mais modestos, amarronzados, sem arborização para protegê-los dos elementos, como se fossem subúrbios pobres às margens de uma cidade rica.

     Era para essa área do cemitério que Khalifa subia agora, buscando o caminho entre um apinhado de túmulos planos e retangulares, até que afinal alcançou o topo da área, já perto do muro, em frente a duas sepulturas bastante simples, pouco mais do que duas lajes de concreto cobertas por uma camada de gesso, sem outra ornamentação que uma pedra cimentada em cima de cada uma e dois ou três versos quase apagados do Corão pintados em suas superfícies. Eram os túmulos de seus pais.

     Ficou observando-os por alguns instantes, depois ajoelhou-se, beijou-os, primeiro o de sua mãe e depois o do seu pai, sussurrando uma prece sobre cada um. Ficou algum tempo ali parado, a cabeça inclinada, então levantou-se e, devagar, como se suas pernas tivessem ficado subitamente mais pesadas, avançou até o extremo superior do cemitério, onde o muro fora destruído e o solo em volta estava coberto de lixo e de dejetos de cabras.

     Havia um único túmulo nesse canto, colado ao muro como se tivesse sido afastado pelas sepulturas, ainda mais simples do que os de seus pais, apenas um retângulo de cimento barato, sem adornos, sem inscrições nem versos tirados do Corão. Khalifa lembrava ainda o quanto tivera de implorar aos administradores do cemitério para que permitissem que aquele túmulo fosse aberto; lembrava que tivera de escavá-lo com suas próprias mãos, em meio à madrugada, quando ninguém do vilarejo pudesse testemunhá-lo; lembrava do quanto chorara, enquanto cumpria a tarefa. Meu Deus, ele chorara tanto.

     Ele se ajoelhou junto ao túmulo e, curvando-se à frente, encostou a face contra a superfície fria.

     — Oh, Ali — murmurou. — Meu irmão, minha vida. Por quê? Por quê? Por favor, apenas me explique por quê.

     Mohammed Abd el-Tauba, o detetive encarregado do caso Iqbar, parecia uma múmia. Sua pele era seca como um pergaminho, as bochechas chupadas para dentro, a boca permanentemente travada num ricto que era meio sorriso, meio esgar.

     Ele trabalhava num escritório sujo em Sharia Bur Sa'id, onde tinha uma escrivaninha num dos cantos de uma sala impregnada de fumaça de cigarro que dividia com quatro outros detetives. Khalifa chegou pouco depois das nove e, depois de trocar cortesias e tomar uma xícara de chá, os dois homens foram direto ao assunto.

     — Então, está interessado nesse homem idoso, Iqbar — disse Tauba, esmagando um cigarro num cinzeiro que já transbordava, de tão cheio, e imediatamente acendendo outro, cuja brasa fez brilhar, ao tragá-lo.

     — Acho que pode estar ligado a um caso que estou investigando lá em Luxor — explicou Khalifa.

     Tauba lançou dois jatos de fumaça das narinas.

     — Foi uma coisa muito feia. Temos um bocado de assassinatos por aqui, mas nada semelhante a este caso. Eles trincharam o pobre desgraçado.

     Ele esticou o braço para uma gaveta, de onde puxou uma pasta, abrindo-a sobre a mesa.

     — Olhe o relatório do patologista. Múltiplas lacerações no rosto, braços e no torso. E queimaduras também.

     — Queimaduras de charutos?

     Tauba soltou um grunhido, confirmando.

     — E os cortes? — perguntou Khalifa. — O que causou os cortes?

     — Esquisito — disse Tauba. — O patologista não pôde determinar isso. Um objeto de metal de algum tipo, mas rombudo demais para ser uma faca. Ele acha que poderia ser uma pá.

     — Uma pá?

     — Isso mesmo, como essas ferramentas de pedreiros, você sabe? Dessas que usam para assentar argamassa, cimentar rachaduras, coisas assim. Está aí no relatório.

     Khalifa folheou a pasta, examinando as fotos do homem idoso, caído no chão de sua loja, e a seguir as que mostravam seu corpo despido, deitado na mesa mortuária, como um peixe, e que lhe provocaram uma careta. Os comentários do patologista eram quase textualmente idênticos aos feitos por Anwar, em seu relatório sobre Abu Nayar.

     "A natureza do instrumento que causou as lesões mencionadas acima é incerta", concluiu, na linguagem resumida, desumanizada de documentos desse tipo. "A patologia das lacerações é inconsistente com lesões infligidas por uma faca. O formato e o ângulo dos ferimentos, sugere que tenham sido provocadas por uma pá de algum tipo, como as que são utilizadas por pedreiros, arqueólogos etc., embora não haja nenhuma evidência conclusiva de uma ou outra.

     Khalifa fixou-se na palavra arqueólogo por um momento, antes de levantar a vista para Tauba outra vez. — Quem encontrou o corpo?

     — O dono da loja ao lado. Começou a desconfiar porque Iqbar não abriu sua loja para trabalhar. Daí, tentou a porta e a encontrou aberta, entrou e o resto está nas fotos.

     — E quando foi isso?

     — Na manhã de sábado. Só Deus sabe como os jornais ficaram sabendo de tudo tão depressa. Aposto como eles próprios cometem metade dos crimes do Cairo, para terem o que noticiar. Khalifa sorriu:

     — Iqbar comerciava com antigüidade?

     — É provável. Mas, todos eles fazem esse tipo de negócio, certo? Não tínhamos nada nos arquivos sobre ele, mas isso também não quer dizer coisa alguma. Só dispomos de recursos para investigar os atravessadores maiores. Quando se trata de apenas uns poucos objetos, temos de deixar para lá, do contrário vamos superlotar todas as prisões daqui até Abu Simbel.

     Khalifa percorreu por alto toda a pasta mais uma vez, detendo-se na palavra "arqueólogo".

     — Vocês não escutaram rumores sobre nada fora do comum chegando ao mercado de antigüidades, recentemente?

     — Algo fora do comum?

     — Algo valioso, entende? Algo pelo qual valha a pena matar. Tauba deu de ombros:

     — Nada de que eu me lembre, no momento. Teve um sujeito grego por aqui exportando artefatos disfarçados de reproduções, mas isso foi há uns dois meses. E não lembro de nada mais recente, a não ser o tal incidente em Saqqara.

     Khalifa levantou a vista, de repente:

     — Saqqara?

     — Ontem à tarde. Um casal de ingleses meteu-se num tiroteio e fugiu de lá roubando um táxi. Ao que parece, a garota pegou alguma coisa de um dos alojamentos.

     Ele chamou em voz alta um de seus colegas, na outra extremidade da sala, um homem obeso com grandes manchas de suor na camisa, por baixo das axilas.

     — Ei, Helmi! Você, que tem um amigo na polícia de Gizé, quais são as novidades sobre aquele tiroteio em Saqqara?

     — Quase nada — grunhiu Helmi, dando uma mordida numa enorme fatia de bolo. — Parece que ninguém sabe o que foi aquela coisa, a não ser que a garota fugiu com um objeto qualquer. Uma caixa, algo assim.

     — Tem idéia de quem ela era? — perguntou Khalifa.

     Helmi enfiou mais um naco de bolo na boca, a calda pegando-se em toda a volta dos seus lábios e no queixo.

     — Filha de um arqueólogo, ao que parece. Um dos inspetores na teftish a reconheceu. Murray, ou algo parecido.

     Murray, pensou Khalifa. Murray.

     — Não é Mullray? Michael Mullray?

     — Esse mesmo. Morreu a uns dois dias. Ataque do coração. A filha encontrou o corpo.

     Khalifa puxou o caderno de notas do bolso e uma caneta.

     — Bem, vamos ver se peguei tudo... A garota encontrou o corpo do pai dois dias atrás, então retornou ontem, pegou o tal objeto do alojamento da escavação e...

     — O motorista do táxi acha que ela pegou a tal coisa de um dos túmulos

     — corrigiu Helmi. — Ele disse que eles entraram no deserto, pegaram essa coisa, numa caixa desse papelão em que entregam pizzas...

     — Sabia que você ia dar um jeito de enfiar comida nessa história, Helmi

     — berrou um dos colegas.

     — Vá à merda, Aziz... Bem, então ela pegou a tal caixa, voltou, e daí começaram a atirar neles. Mas o pessoal no vilarejo mais abaixo disse que era o cara que estava com a garota quem estava atirando. Como eu disse, ninguém até agora sabe o que houve por lá.

     — E vocês sabem o nome do homem?

     Helmi balançou a cabeça, negativamente. Khalifa ficou um momento pensando em silêncio.

     — Existe alguma chance de eu conversar com esse seu amigo de Gizé?

     — Claro, mas ele não vai lhe contar nada mais do que lhe contei. Seja como for, ele foi afastado do caso. A al-Mukhabarat assumiu a investigação ontem à noite.

     — O serviço secreto? — a voz de Khalifa soou surpresa.

     — Acho que eles querem manter a coisa toda confidencial. É má

     publicidade para o Egito, você sabe, ainda mais com uma turista metida na história. Nem sequer saiu nos jornais.

     Khalifa rabiscou qualquer coisa em seu caderno de notas.

     — Existe mais alguém com quem eu possa falar? — perguntou, depois de uma pausa.

     Helmi tirava fora com a mão as migalhas que haviam caído em sua escrivaninha.

     — Acho que tem um sujeito na embaixada britânica que conhece a garota. Orts, algo assim, adido júnior. É só o que sei.

     Khalifa anotou o nome e guardou seu caderno.

     — Acha mesmo que existe alguma ligação entre os casos?

     — Não sei — respondeu Khalifa. — Não consigo enxergar nenhuma conexão óbvia, mas... bem, é só uma espécie de sensação de que... — Ele interrompeu-se, sem se preocupar em concluir a frase, apanhando o arquivo do caso Iqbar. — Pode me dar uma cópia disto aqui?

     — Claro.

     — E eu gostaria de visitar a loja da vítima. É possível?

     — Nenhum problema.

     Tauba vasculhou sua escrivaninha e encontrou um envelope.

     — Endereço e chaves. É para os lados de Khan al-Khalil. Já terminamos de recolher todas as digitais e de fazer os exames técnicos.

     Ele jogou o envelope para Khalifa, que o apanhou e se pôs de pé.

     — Volto em algumas horas.

     — Não precisa ter pressa. Vou ficar por aqui até bem tarde. Eu sempre fico nesta merda até bem tarde.

     Trocaram um aperto de mãos e Khalifa encaminhou-se para a saída do escritório. Já estava quase na porta, quando Tauba chamou-o:

     — Ei, esqueci de perguntar, Khalifa... sua família não é de Nazlat al-Sammam, é?

     Houve uma pausa, e então ele respondeu:

     — Port Said — e apressou-se a ganhar o corredor.

    

LUXOR

     O maior arrependimento de Dravic, seu único arrependimento, de fato, foi não ter matado a garota. Depois de tê-la estuprado, deveria ter cortado a garganta dela e tê-la enterrado numa vala qualquer. Mas não o fez. Deixou-a escapulir. E, claro, ela foi imediatamente dar parte na polícia, contou o que ele havia feito e bang.

     Isso foi o fim da sua carreira.

     Certo, ele arrumou um bom advogado e conseguiram persuadir o júri de que foi sexo consensual. No entanto, a sujeira respingou. O mundo da egiptologia é muito pequeno e, logo, todo mundo ficou sabendo que Casper Dravic havia estuprado uma de suas escavadoras voluntárias e, para piorar o caso, que havia conseguido se safar. Os convites para dar aulas pararam, as concessões para escavações começaram a ser negadas, os editores já não atendiam seus telefonemas. Com trinta anos, sua carreira terminara. Por que, ora, por que simplesmente não havia matado a garota? Foi um erro que ele jamais repetiria. Um erro que jamais repetiu.

     Ele agitou a cabeça para trazer a si mesmo de volta ao presente e acenou para o dono do bar, indicando que queria mais café. Ao seu lado, um jovem casal de escandinavos estava curvado sobre um guia de viagens, fazendo marcas com uma caneta. A garota era atraente, com lábios cheios, pernas longas e pálidas. Ele se permitiu, por um momento, deliciar-se com o pensamento dela berrando, num êxtase doloroso, enquanto ele se enfiava em seu ânus rosado e apertado, mas logo a seguir forçou sua mente a ocupar-se novamente com o túmulo.

     Haviam passado a maior parte da noite anterior removendo os últimos artefatos — a estela funerária, o Anúbis de basalto, os vasos canópicos de alabastro. Tudo o que restava era o próprio sarcófago, com seus painéis reluzentes pintados e seu texto grosseiramente cunhado em hieróglifos. O sarcófago seria retirado logo mais à noite. Tudo o mais havia sido encaixotado e enviado para o sul, para o Sudão, de onde sairia para os mercados clandestinos da Europa e do Extremo Oriente.

     Era um butim e tanto. Um dos melhores que já vira. Último Período. Vigésima Sétima Dinastia, uma centena de objetos diferentes, artesanato tosco, mas em boas condições de preservação — deveria render algumas centenas de milhares de dólares, talvez mais. Seus 10% de comissão iriam significar um bom ganho pelo trabalho que tivera. Mas, comparado ao tesouro maior, não passava de ninharia. Comparado ao tesouro maior, qualquer objeto que ele já roubara não passava de ninharia. Esse era o maior de todos. A chance que ele aguardara a vida inteira. O fim de seus problemas.

     Mas somente, é claro, se ele encontrasse a peça que faltava. Essa era a chave. Lacage e a tal Mullray tinham o futuro dele nas mãos. E onde haviam se metido? O que estariam planejando fazer? Quanto já sabiam?

   O seu receio, a princípio, era que levassem a peça direto para as autoridades. Não terem feito isso era ao mesmo tempo um alívio e uma preocupação para ele. Alívio porque significava que ainda haveria a chance de recuperá-la. Preocupação porque sugeria que os dois estivessem, agora, atrás do tesouro.

     E esse era o seu maior medo, agora. O tempo estava se esgotando, como dissera Sayf al-Tha'r. Não poderiam ficar esperando para sempre. Quanto mais a peça permanecesse em poder daqueles dois, maiores as chances de que o butim maior escapasse por entre suas garras. Todas as suas esperanças, todos os seus sonhos...

     — Mas o que estarão fazendo agora? — murmurou para si mesmo. — Que merda estarão fazendo neste momento?

     Dravic escutou um muxoxo de desaprovação junto a si. Levantando a vista, deu com o casal escandinavo encarando-o.

     O que foi? — grunhiu. — Algum problema?

     O casal pagou a conta e apressou-se a deixar o bar.

     O café de Dravic chegou e ele sorveu-o, observando, ao longe, as colinas de Tebas bem diante dele, maciças e amarronzadas, contra o fundo azul-claro do céu.

     O que ele não conseguia entender era o que, caso Lacage e a garota estivessem agora caçando o tesouro, poderiam fazer com apenas aquele fragmento. Claro que Lacage era tido como um dos melhores egiptólogos do mundo. Era sempre possível que ele conseguisse decifrar tudo, a partir de uma única peça. Mas, Dravic duvidava que conseguisse. Iam precisar de mais. E, para conseguir mais, teriam de vir para Luxor. Era por isso que estava à espera deles por lá, e não no Cairo. Era onde eles iam surgir de repente. Tinha certeza disso. Seria apenas questão de tempo. O que, mais uma vez, era algo de que não dispunha tão folgadamente assim.

   Terminou seu café e, pegando o paletó, puxou um charuto de um dos bolsos. Rolou-o um pouco entre o indicador e o polegar, deliciando-se com o crepitar das folhas secas de tabaco, então colocou-o na boca e o acendeu, avivando a brasa com uma tragada. A carícia quente da fumaça em seu palato acalmou-o, e chegou até mesmo a melhorar o seu estado de ânimo. Esticou as pernas e voltou os pensamentos para a garota Mullray, sua imaginação percorrendo o corpo dela — os quadris estreitos, os seios firmes, a bunda empinada. Tantas coisas ele gostaria de fazer com ela... Tantas coisas ele faria com ela... O pensamento o fez ronronar de prazer. Algo que certamente a garota não sentiria, quando estivesse montado em cima dela. Dravic baixou os olhos para o grosseiro volume por dentro de suas calças e explodiu numa gargalhada.

    

CAIRO

     A loja de Iqbar ficava numa rua estreita do Sharia al-Muizz, uma rua movimentada, bastante extensa, que corria quase como uma artéria, atravessando o coração do bairro islâmico do Cairo. Khalifa demorou algum tempo até conseguir encontrar a rua, e mais tempo ainda para encontrar a loja, que tinha um gradeado de segurança feito de ferro, bastante sujo, baixado na frente, e ficava praticamente oculta, atrás de uma enorme barraca que vendia nozes e confeitos. Finalmente, conseguiu descobri-la e, erguendo o gradeado, destrancou a porta e entrou, com sinos tocando acima de sua cabeça.

     O interior era sujo e caótico, com quinquilharias de todos os tipos penduradas do chão ao teto, fieiras de lâmpadas de latão, móveis e miudezas diversas empilhadas nos cantos. Das paredes, máscaras de madeira o observavam; um pássaro empalhado estava pendurado do teto. O ar cheirava a couro, metal envelhecido e, pelo menos assim pareceu a Khalifa, a morte.

     Ele olhou em volta por alguns momentos, seus olhos se ajustando à penumbra, então moveu-se em direção ao balcão nos fundos da loja, onde uma área no assoalho havia sido delimitada com um círculo feito a giz, as tábuas ainda manchadas pelo sangue escuro, amarronzado, de Iqbar. Diversos círculos menores orbitavam o maior como um planeta e suas luas, destacando vestígios de nacos acinzentados de cinzas de charuto. Ele se deteve, remexeu num deles, e então, pondo-se novamente ereto, dirigiu-se às costas do balcão.

     Khalifa tinha poucas esperanças de encontrar alguma coisa. Se, como suspeitava, Iqbar houvesse comprado antigüidades de Nayar, o mais provável é que tivessem sido vendidas, ou levadas dali pelas pessoas que o haviam matado. E mesmo que ainda houvesse alguma coisa, duvidava que pudesse encontrá-la. Os atravessadores de antigüidades do Cairo eram notórios pela sua habilidade em ocultar suas mercadorias. Mesmo assim, valia a pena dar uma olhada na loja.

     Abriu algumas gavetas e remexeu no que havia dentro delas. Afastou da parede a moldura de um grande espelho, pendurado, pensando na possibilidade de haver um cofre ali atrás, mas não havia nada do gênero. Espremendo-se por entre duas enormes cestas de vime, penetrou num quarto nos fundos da loja, descobrindo um interruptor atrás da porta, no qual acendeu a luz.

     Era um quarto pequeno, tão entulhado como o restante da loja, com uma fileira de fichados velhos encostados à parede e, no canto, uma estátua em tamanho natural, feita de madeira pintada em preto e dourado, uma reprodução barata das estátuas dos guardiães do túmulo de Tutankâmon. Khalifa parou junto a ela e cravou os olhos, diretamente, nos olhos da estátua.

     — Buuu! — exclamou.

     Os fichados estavam entupidos de papéis velhos e, depois de vinte minutos, ele desistiu de entender qualquer coisa do que estava anotado neles e voltou para a parte da frente da loja.

     — É como procurar agulha num palheiro — murmurou para si mesmo, percorrendo com os olhos as prateleiras abarrotadas de quinquilharias. — E o pior é que nem ao menos tenho certeza se há uma agulha por aqui.

     Por mais uma hora, ele continuou remexendo aleatoriamente por toda a loja, abrindo uma caixa aqui, uma gaveta ali, até que finalmente desistiu. Se havia pistas do assassinato do velho a ser descobertas, estariam soterradas em meio a toda aquela balbúrdia de objetos e, a não ser que estivesse disposto a esvaziar inteiramente a loja, não havia outra maneira de encontrá-las. Ele deu uma última olhada por trás do balcão, desligou a luz do quarto dos fundos e, com um suspiro de resignação, tirou as chaves do bolso e encaminhou-se para a porta.

     Havia um rosto olhando para ele, do outro lado da vidraça.

     Era um rosto miúdo, sujo, tão pressionado contra o vidro que seu nariz ficara achatado. Khalifa adiantou-se e abriu a porta. Uma menina maltrapilha, de não mais de cinco ou seis anos, estava de pé, parada na soleira, com seu olhar cravado no interior da loja às costas dele. Ele se agachou junto a ela.

     — Olá — disse.

     A garota parecia mal ter se dado conta da presença dele, tão concentrada estava olhando para dentro da loja. Ele pegou sua mão.

     — Olá — repetiu. — Meu nome é Khalifa. E o seu?

     Os olhos castanhos da menina passaram de relance pelo rosto dele, e a seguir voltaram a fixar-se na cena às costas de Khalifa. Ela ergueu a mão e apontou para dentro da penumbra.

     — Tem um crocodilo ali — disse, indicando uma velha arca de madeira fechada por um cadeado de latão com um intricado ornamento gravado nele.

     — É mesmo? — Khalifa sorriu, lembrando-se que, em criança, acreditava convictamente que um dragão vivia debaixo da cama de seus pais. — E como é que você sabe disso?

     — Ele é verde — disse ela, ignorando a pergunta — e de noite ele sai para comer as pessoas.

     Os braços dela eram tristemente finos, tinha a barriga inchada. Uma criança das ruas, ele adivinhou, mandada pelos seus pais para cavoucar as lixeiras, já que não tinham como alimentá-la. Ele afastou uma mecha de cabelos dos olhos dela, cheio de compaixão. "Não é de se estranhar por que os fundamentalistas conseguem tanto apoio", pensou."Seus métodos podem ser medonhos, mas pelo menos eles tentam chegar a essas pessoas e lhes oferecer alguma esperança num futuro melhor.

     Khalifa ergueu-se.

     — Você gosta de doces? — perguntou.

     Pela primeira vez, a menina voltou sua atenção inteiramente para ele.

     — Gosto — respondeu.

     — Espere aqui um instante.

     Ele foi até a barraca de doces em frente à loja, onde comprou duas grandes fatias de um bolo açucarado cor-de-rosa. Quando voltou, descobriu que a menina havia se aventurado alguns passos para o interior da loja. Ele lhe entregou os pedaços de bolo, que ela começou a mordiscar.

     — Você sabe o que tem ali dentro? — perguntou ela, apontando para uma grande lâmpada de bronze.

     — Não, não sei.

     — Um gênio — replicou ela de boca cheia. — Ele se chama al-Ghul. Tem dez milhões de anos de idade e pode se transformar em várias coisas. Quando aqueles homens entraram aqui, fiz um desejo, pedi a ele que ajudasse o sr. Iqbar, mas o gênio não fez nada.

   A menina falava de um modo tão inocente que Khalifa demorou um pouco para se dar conta da importância de suas palavras. Pousando a mão gentilmente no ombro dela, a fez virar-se e olhar para ele.

     — Onde você estava quando chegaram os homens que machucaram o sr. Iqbar?

     A garota estava concentrada em seu bolo e não respondeu. Em vez de pressioná-la, Khalifa preferiu ficar imóvel e em silêncio, esperando ela terminar de comer.

     — Qual é mesmo o seu nome? — perguntou ela, levantando os olhos, finalmente.

     — Yusuf— respondeu. — E o seu?

     — Maia.

     — Mas que nome bonito.

     Ela examinou por alguns momentos sua segunda fatia de bolo...

     — Posso guardar isso para mais tarde? — perguntou.

     — Claro que pode.

     Ela fez a volta até as costas do balcão, onde arranjou um pedaço de papel de seda, que usou para embrulhar a fatia de bolo, enfiando-a depois num bolso do vestido.

     — Quer ver uma coisa? — perguntou.

     — Quero.

     — Então, feche os olhos.

    Khalifa fez o que ela pediu. Escutou então o leve rumor de passos, no que a menina saiu de detrás do balcão e correu para os fundos da loja.

     — Pode abrir agora — disse ela.

     Ele abriu os olhos, e ela havia desaparecido.

     Khalifa aguardou um momento e então, com cuidado, moveu-se na direção de onde viera a voz dela, olhando em volta, em meio à penumbra, até que finalmente enxergou o topo da cabeça da menina saindo de uma das velhas cestas de vime.

     — Aí é um bom esconderijo — disse, debruçando-se para dentro da cesta.

     Ela levantou os olhos para ele e sorriu. Logo, entretanto, o sorriso pareceu se apagar, e de repente ela começou a chorar convulsivamente, lágrimas quentes abrindo trilhas na sujeira do seu rosto, seu corpo miúdo tremendo como se fosse uma folha de árvore. Ele esticou os braços para ela, ergueu-a e a apertou contra seu ombro.

     — Pronto, pronto... — sussurrou, alisando seus cabelos emaranhados.

     — Vai ficar tudo bem, Maia. Vai ficar tudo bem.

     Com ela no colo, ele começou a caminhar pela loja, cantarolando baixinho uma música de ninar que sua mãe costumava cantar para ele.

     Depois de alguns momentos, o tremor do corpo da menina foi passando e sua respiração voltou ao normal.

     — Você estava escondida por trás das cestas, quando os tais homens chegaram, não é, Maia? — disse, gentilmente.

     Ela assentiu com um movimento leve de cabeça.

     — E o que foi que aconteceu? Você consegue me contar? Fez-se então uma longa pausa e, então, ela falou:

     — Foram três homens — sussurrou no ouvido dele. — Um deles tinha um buraco na cabeça.

     Ela afastou alguns centímetros seu corpo de Khalifa...

     — Aqui! — disse, tocando na testa do detetive. — E tinha um outro, que era um gigante, um homem branco, com uma cara esquisita.

     — Esquisita por quê?

     — Era púrpura — respondeu Maia, correndo os dedos por uma de suas faces. — Aqui, era púrpura. E aqui, era branca. Ele tinha uma coisa parecida com uma faca, e machucou o sr. Iqbar com ela. Os outros dois homens ficaram segurando o sr. Iqbar. E foi aí que pedi ajuda a al-Ghul

     mas ele não veio ajudar.

     Ela estava falando muito depressa agora, a história saindo aos borbotões, numa mixórdia de palavras sem pausa para tomar fôlego. Maia contou que Os homens malvados chegaram, começaram a fazer perguntas a Iqbar, e que ela assistiu a tudo de seu esconderijo secreto; então, eles começaram a desferir cortes no velho Iqbar, e continuaram cortando e cortando, mesmo depois de ele já lhes ter contado tudo o que eles queriam saber; e depois, quando já haviam ido embora, ela estava apavorada porque havia fantasmas na loja, mas ela fugiu, e não havia contado nada para ninguém porque se a mãe dela soubesse que ela estava na loja de Iqbar, em vez de estar pedindo esmolas, ela levaria uma surra.

     Khalifa escutou tudo sem dizer uma palavra sequer, sempre alisando os cabelos da menina, deixando-a contar a história do seu próprio jeito, aos poucos ligando os pontos da narrativa desordenada que ela ia fazendo. Quando finalmente ela terminou de falar, interrompendo-se de súbito no meio de uma frase, como um brinquedo cuja bateria houvesse terminado, ele colocou-a sobre o balcão e, tirando o seu lenço, secou os olhos dela. A menina tirou do bolso seu segundo pedaço de bolo e começou a mordiscá-lo pela ponta.

     — Sabe de uma coisa? Você não deve ficar aborrecida com o al-Ghul

     — disse o detetive, limpando também o catarro que escorria do nariz dela.

     — Tenho certeza de que ele teve vontade de ajudar. Mas não conseguiu sair da lâmpada, entende?

     — Por que não? — perguntou ela, tirando os olhos do seu bolo e erguendo a vista para ele.

     — Porque um gênio só consegue sair da lâmpada quando alguém a esfrega. É preciso chamá-lo para o nosso mundo.

     As sobrancelhas da menina contraíram-se, no que ela foi absorvendo a informação, e então um sorriso emoldurou sua boca, como se um amigo que ela pensava que a tivesse traído houvesse, de algum modo, provado que, no final das contas, sempre foi leal a ela.

     — Vamos esfregar a lâmpada agora? — pediu ela.

     — Bem, poderíamos fazer isso, sim — respondeu Khalifa —, mas você tem de lembrar que só pode chamar um gênio três vezes. E ia ser uma pena chamá-lo sem motivo, não ia?

     De novo, as sobrancelhas dela se contraíram.

     — É mesmo! — respondeu afinal. E, como se fosse um pensamento que lhe ocorreu em conseqüência do anterior, disse: — Gosto de você.

     — E eu gosto de você também, Maia. Você é uma garota muito corajosa. — Ele esperou ainda um momento e continuou: — Maia, preciso perguntar algumas coisas a você.

     Ela não respondeu de imediato, apenas deu outra mordida no bolo e começou a balançar as pernas, seus calcanhares batendo repetidamente na frente do balcão.

     — Você entende? Quero pegar as pessoas que feriram o sr. Iqbar. E acho que você pode me ajudar. Você me ajuda?

     Seus calcanhares continuaram a bater no balcão, quase com a pressão rítmica de um metrônomo.

     — Ajudo — disse ela.

     — Você disse que esses homens malvados queriam uma coisa do sr. Iqbar. Consegue lembrar o que era, Maia?

     Ela pensou por um momento e a seguir fez que não com a cabeça.

     — Tem a certeza?

     A menina balançou de novo a cabeça.

     — E consegue se lembrar o que o sr. Iqbar disse aos tais homens? O que contou a eles, enquanto o iam machucando?

     — Ele disse que tinha vendido a tal coisa — respondeu ela.

     — E ele disse a quem a vendeu? Você lembra?

     Ela baixou os olhos, esfregando o rosto, pensando, fixando os pés e o movimento deles de encontro ao balcão. Quando afinal levantou a vista outra vez, seu olhar era quase um pedido de desculpas.

     — Tudo bem — disse o detetive, alisando os cabelos da menina. — Você está indo bem. Muito bem.

     Ele precisava ajudá-la mais, dar a ela algumas pistas para ativar sua memória. Khalifa recordou então sua conversa com Tauba e decidiu um tiro no escuro.

     — Por acaso o sr. Iqbar disse que tinha vendido a tal coisa a um senhor inglês?

     E, de repente, um assentimento vigoroso de cabeça.

     — E será que ele disse que a vendeu a um senhor inglês que estava trabalhando num lugar chamado Saqqara? — Ele pronunciou o nome do lugar muito lentamente, quase soletrando-o. Depois de uma breve pausa, a menina assentiu novamente. Khalifa decidiu tentar voltar um pouco mais para trás. — Maia, você consegue se lembrar de um homem, que deve ter passado aqui pela loja alguns dias antes?

     Ele havia assistido a algumas palestras do professor Mullray na American University, anos atrás, e revirava a mente agora tentando recuperar a figura do homem.

     — Ele era um homem alto, Maia. Já velho. Muitos cabelos brancos, óculos engraçados, bem redondos e...

     Ela o interrompeu, excitada, gritando:

     — Ele fazia uma mágica, tirava fora o polegar. Era engraçado.

     Já fazia vários dias que ele havia passado pela loja, Maia contou, e enquanto Iqbar tinha ido procurar alguma coisa no quarto dos fundos, lhe perguntara se ela queria ver um truque de mágica. A menina respondeu: "Quero!" então, ele agarrou o polegar e o puxou fora. Maia disse que riu muito com o truque.

     — E ele comprou alguma coisa do sr. Iqbar? — perguntou Khalifa. Ela enfiou um dedo no nariz e disse:

     — Uma pintura!

     Ela tirou o dedo do nariz e, com a ponta brilhando de muco, desenhou um quadrado na tampa do balcão.

     — Era... mais ou menos assim! Havia umas cobras na parte de baixo. E... — ela se deteve por um instante, procurando a palavra certa — uns desenhos — disse afinal.

     "Desenhos", pensou Khalifa. "Desenhos... Talvez fossem hieróglifos. Um objeto com hieróglifos desenhados."

     — Eu ajudei o sr. Iqbar a embrulhá-lo — prosseguiu a garota. — Numa caixa. Eu sempre ajudava ele a embrulhar as coisas.

     Ela deu outra mordida em seu bolo. Khalifa afastou-se do balcão e começou a andar de um lado para o outro pela loja.

     "São como peças de um quebra-cabeça", ele refletia. "Nayar vem para o Cairo e vende um artefato para Iqbar. Mullray o compra de Iqbar e o leva para Saqqara. Nayar é assassinado. Iqbar é assassinado. Mullray morre de Um ataque cardíaco, o que pode ser uma coincidência. Mas também pode não ser. A filha de Mullray vem para Saqqara e encontra o tal objeto. Pessoas desconhecidas tentam detê-la."

     Longe de ter esclarecido qualquer coisa, o caso todo parecia mais intrincado do que nunca. Por que Mullray compraria uma antigüidade roubada? E o que teria exatamente acontecido, no dia anterior, em Saqqara?

     "O tal objeto", pensou. "Aí está a chave. O que é esse objeto que todos querem tão desesperadamente? O que é? O quê? O quê?"

     Ele voltou-se para a garota. Não daria nenhum resultado fazer a ela mais perguntas sobre a tal pintura. Era evidente que Maia lhe havia contado tudo o que sabia. A única outra possibilidade era que ela soubesse de outros objetos que Iqbar teria comprado de Nayar e que poderiam, ou não, estar ainda naquela loja.

     — Maia — falou gentilmente —, o sr. Iqbar tinha algum esconderijo secreto aqui na loja? Um lugar onde ele escondia coisas muito especiais?

     Ela não respondeu, os olhos da menina desviaram-se dele e resvalaram para seus joelhos. Mas, alguma coisa na sua postura — a boca muito apertada, os punhos cerrados — disse a ele que a pergunta havia atingido um ponto sensível.

     — Por favor, me ajude, Maia. Por favor. Ela permaneceu calada.

     — Acho que o sr. Iqbar ia querer que você me contasse — arriscou o detetive, segurando as mãos da menina. — Porque, se você não me contar, não vou conseguir pegar as pessoas que fizeram essa maldade com ele.

     Ela ficou em silêncio por um intervalo mais longo do que os anteriores, mas em seguida levantou a vista para ele.

     — Se eu mostrar, você me dá a lâmpada de al-Ghul? Khalifa sorriu e baixou-a para o chão.

     — Isso está me parecendo um acordo muito justo. Você me mostra o esconderijo secreto e pode ficar com o gênio.

     A garota soltou uma pequena risada, satisfeita com a barganha feita, e, pegando Khalifa pela mão, conduziu-o ao quarto dos fundos.

     — Sou a única pessoa no mundo que sabe disso... — disse ela, dirigindo-se à estátua de madeira do guardião, no canto do quarto. — Nem mesmo os fantasmas sabem, é segredo.

     A estátua era negra, tinha um ornamento dourado na cabeça, um bastão, sandálias e um saiote de corte diagonal dourado. A garota colocou a mão por debaixo do saiote, que parecia ser feito de madeira maciça, e puxou firmemente. Ouviu-se um estalido baixo e uma gaveta secreta, com tampo, saiu lentamente, como o carregador deslizando fora de uma pistola. A garota puxou a gaveta dos trilhos e colocou-a sobre o chão, então, voltou-se de novo para a estátua e, com todo o cuidado, desparafusou um de seus polegares, revelando uma cavidade de onde ela tirou uma chave de metal. A seguir, inseriu a chave numa fechadura na parte frontal da gaveta, dando duas voltas para abri-la.

     — Muito bom, não é? — disse ela.

     — Sem dúvida — respondeu Khalifa, ajoelhando-se junto a ela. — Muito bom mesmo.

     A gaveta estava dividida em dois compartimentos. Num deles, havia um maço volumoso de recibos bancários, alguns documentos legais, e um vaso cheio de pepitas de turquesas não lapidadas. Na outra, havia um embrulho amarrado com um cordão. Khalifa tirou fora o embrulho e desatou o cordão, deixando escapar um assovio baixo, quando viu seu conteúdo.

     Havia sete objetos: uma adaga de ferro com uma tira de couro toscamente passada em volta do cabo, um amuleto de prata com a forma de uma pilastra Djed, um peitoral de ouro, um pequeno vaso para ungüentos feito de terracota com a face do deus-anão Bes pintada nele, e três shabits de porcelana azul-clara. O detetive examinou-os, um por um, virando-os e revirando-os em suas mãos, e, então, voltou-se para a garota. Mas ela havia sumido.

     — Maia — ele chamou, erguendo-se. E, como ela não respondeu, encaminhou-se de novo para a parte da frente da loja.

     — Maia!

     Ela havia ido embora. Assim como, ele reparou, a lâmpada de bronze de al-Ghul. Ele saiu para a rua, olhou em volta, mas a menina não estava mais à vista.

     — Adeus, Maia — murmurou ele — Que Alá sorria sempre para você.

    

LUXOR

     Suleiman al-Raschid estava cochilando num catre, na sombra atrás do seu toalete móvel, quando escutou o som de pisadas metálicas, como se alguém estivesse subindo os degraus e entrando no trailer, acima dele.

     Normalmente, ele teria dado a volta para verificar se a pessoa precisava de papel higiênico e para garantir que estaria posicionado adequadamente caso, quando ela saísse, quisesse lhe dar uma baksheesh. O calor do meio-dia estava muito forte, no entanto, e assim ele ficou onde estava, a cabeça aninhada sobre o braço, enquanto, vindo de cima dele, escutava os passos, ressoando no vão por baixo do piso do trailer.

     Ele não registrou, de imediato, nada ameaçador. Se bem que escutasse um som de água batendo, bastante estranho, mas presumiu que o cliente estivesse apenas jogando a água do balde que ficava no canto do trailer no urinol da parede, para limpá-lo. Seria algo desnecessário, já que Suleiman fazia questão de manter o trailer o mais limpo possível, mas sempre havia pessoas, especialmente os alemães, obsessivas com certas coisas. Virando de lado com um resmungo, ele se dispôs a simplesmente deixar por isso mesmo.

     Então, de repente, sentiu cheiro de gasolina e, quase ao mesmo tempo, ouviu um som alto de gotejamento, como se algo, vazando do trailer, estivesse pingando na areia perto dele. Suleiman se pôs de pé de um pulo.

     — Ei — gritou, dando a volta até a frente do trailer. — O que... Uma pancada violenta por detrás atirou-o para a frente, sobre os degraus do trailer.

     — Traga-o aqui! — sibilou uma voz vinda de cima.

     Dois braços bastante fortes enlaçaram a cintura de Suleiman e ele se sentiu erguido do chão. Outra pessoa segurou-o de cima e ele foi meio empurrado, meio puxado para dentro do trailer. Tentou se soltar, mas ainda estava um tanto zonzo por causa da pancada em sua cabeça e tudo o que conseguiu foi um arremedo de resistência. O odor de gasolina lhe provocou um engulho.

     — Algeme-o — disse a voz. — Ali, nos canos.

     Suleiman escutou um estalido e uma coisa fechou-se em torno de seu pulso. Seu braço foi violentamente torcido para cima e então houve outro estalido. Ele soltou um gemido quando as algemas morderam sua pele.

     — Agora, a gasolina.

     Algo foi despejado em seu rosto e no seu djellaba. Tentou afastá-lo de si, fosse o que fosse aquilo, mas seu braço estava imobilizado pelas algemas. O líquido provocou uma ferroada nos seus olhos cegos e queimou seus lábios. Não podia enxergar seus agressores, mas não precisava ver. Já sabia quem eles eram.

     Pararam de despejar gasolina sobre ele e ouviu-se o barulho da lata vazia, ao ser jogada fora, batendo no assoalho. A seguir, os passos apressados de seus agressores, deixando o trailer. Por um momento, fez-se silêncio, e então ele escutou o riscar de um fósforo. Estranhamente, não sentiu medo. Raiva, sim, e pena de sua família. Como iriam se sustentar sem ele? Mas nenhum medo.

     — Ibn sharmouta! Ya kha-in! — sibilou uma voz vinda de fora. — Filho da puta! Traidor! Isto é o que acontece àqueles que denunciam Sayf alTha'r.

     Outro silêncio breve, e Suleiman escutou o rumor súbito da chama inflando-se, sentindo quase instantaneamente o calor intenso avançando sobre ele, lambendo rapidamente o assoalho de madeira compensada.

     — Deus possa ter piedade de suas almas — murmurou, tentando desesperadamente soltar-se das algemas. — Possa o Todo-Poderoso perdoar vocês!

     Mas, então, o fogo o cobriu e tudo o que se pôde escutar foram seus gritos.

    

CAIRO

   Uma hora depois de deixar a loja de Iqbar, Khalifa estava sentado diante de Crispin Oates, no escritório dele, na embaixada britânica. Não tivera o cuidado de telefonar, pedindo para ser recebido, apenas apareceu lá, sem nenhum aviso. Oates estava visivelmente contrariado com aquela intrusão, mas não teve muita escolha a não ser permitir a entrada do detetive. Agora, estava dando o troco, mostrando-se tão senhorial e pouco cooperativo quanto possível, acobertando-se de uma impecável polidez britânica.

   — Então, não tem idéia de para onde foi a srta. Mullray? — perguntou Khalifa.

     Oates suspirou, enfadado:

     — Absolutamente nenhuma, sr. Khalifa. Como já expliquei ao senhor, alguns minutos atrás, a última vez em que vi a srta. Mullray foi anteontem, quando a apanhei no hotel e a trouxe à embaixada. Desde então, não tivemos contato. Hum... Receio que seja proibido fumar neste escritório.

     Khalifa tinha acabado de tirar os cigarros do bolso do paletó. Ele os devolveu para onde estavam, inclinando-se ligeiramente à frente, com os artefatos da loja de Iqbar pesando no bolso interno.

     — Percebeu algo estranho no seu modo de agir? — perguntou.

     — Fala da srta. Mullray?

     — Sim, da srta. Mullray.

     — O que quer dizer com "estranho"?

     — Quero dizer que ela poderia parecer... preocupada?

     — Ela tinha recentemente encontrado o cadáver do pai. Eu esperaria que ela se mostrasse preocupada em tais circunstâncias. Você não?

     — O que eu quero dizer é... Por favor, me desculpe se meu inglês é...

     — Pelo contrário, sr. Khalifa, seu inglês é excelente. Muito melhor do que o meu árabe.

     — O que quero dizer é que, quando viu a srta. Mullray pela última vez, ela agia como se estivesse com algum tipo de problema? Parecia amedrontada, talvez? Sob ameaça?

     Não, respondeu Oates, pelo que se lembrava, não demonstrava nem uma coisa nem outra.

   — Mas já contei tudo isso aos homens de Gizé, como lhe disse. Claro que estou contente em poder cooperar, mas parece tudo um tanto... repetitivo.

     — Sinto muito — disse Khalifa.—Vou tentar ocupar o mínimo possível do seu tempo.

     No entanto, ele prosseguiu com o interrogatório por mais vinte minutos. E quanto mais perguntas fazia, mais convencido ficava de que Oates sabia mais do que revelava. Finalmente, Khalifa concluiu que já tirara tudo o que era possível dali e, empurrando a cadeira para trás, pôs-se de pé.

     — Muito obrigado, sr. Orts. Sinto tê-lo incomodado.

     — De modo algum, sr. Khalifa. Foi um prazer. Mas é Oates. E ele soletrou: O-A-T-E-S.

     — Claro. Mil desculpas. E eu sou o inspetor Khalifa. Apertaram-se as mãos com firmeza e Khalifa encaminhou-se para a porta. Mas, dois passos adiante, deteve-se e, puxando seu caderno de notas, fez alguns rabiscos numa página em branco.

     — Uma última pergunta. Isto aqui significa alguma coisa para você? Ele mostrou a página a Oates. Khalifa desenhara nela um esboço de um quadrado, exatamente como fizera a garota, para ele, na loja de Iqbar, com alguns toscos hieróglifos no seu interior e, ao longo da borda inferior, uma fileira de serpentes. Oates examinou o desenho e seus lábios se contraíram sutilmente.

     — Não — respondeu depois de uma pausa. — Receio que não. "Mentiroso", pensou Khalifa.

     Ele encarou Oates por um instante e então fechou seu caderno de notas e devolveu-o ao bolso do paletó.

     — Ora, então... — disse —, bem, foi só um tiro no escuro. Mais uma vez, obrigado por sua ajuda.

     — Não creio que tenha ajudado em coisa alguma — disse Oates.

     — Pelo contrário... o senhor me deu muitas informações. Khalifa sorriu e fechou a porta atrás de si, ao sair do escritório.

     Em seu escritório, Charles Squire desligou o intercomunicador pelo qual estivera escutando a conversa e reclinou-se na poltrona. Por um momento, manteve-se imóvel, fitando o teto, uma contração hostil em seu rosto, e então, sentando-se de volta à frente, ergueu o fone e discou sem hesitar.

     — Jemal... — disse. — Creio que estamos com problemas.

    

LUXOR

     Alcançaram Luxor já na metade da tarde, depois de uma viagem de quase vinte horas.

     Poderiam ter feito o percurso em um terço do tempo, mas Daniel insistira para que fizessem um trajeto mais comprido, evitando assim atravessar a parte central do Egito.

     — Todo o sul de Beni Suef está apinhado de fundamentalistas — explicou.—Não se pode sequer espirrar sem que Sayf al-Tha'r fique sabendo. Além do mais, há bloqueios policiais em todos os entroncamentos. Não se permite que estrangeiros transitem por ali sem guias. Seríamos pegos antes dos primeiros dez quilômetros.

     Em vez de tomarem diretamente rumo sul, em linha reta, seguindo, portanto a auto-estrada do Nilo, e direto para Luxor, tomaram rumo leste em al-Wasta, atravessando o deserto.

     — Vamos até o mar Vermelho — disse-lhe Daniel, traçando a rota que pretendia seguir num mapa — e depois seguir pelo litoral rumo sul até al-Quseir. Daí, entramos de novo pelo interior até chegarmos ao Nilo, aqui, em Q'us, logo ao norte de Luxor. Dessa maneira, evitamos todo esse trecho pelo centro.

     — É uma volta e tanto.

     — Tem razão — assentiu ele. — Mas há uma vantagem nisso. Por exemplo, teremos uma chance de chegar a Luxor vivos.

     Curiosamente, dadas as circunstâncias, Tara gostou muito da viagem. Não encontraram muito tráfego na rodovia leste e Daniel pôde pisar o acelerador à vontade, alcançando 140 quilômetros por hora, com o sol descendo suavemente às suas costas até que, subitamente, ficou escuro e eles se viram sozinhos no meio do deserto. O ar estava limpo e gélido, e acima dele piscava uma multidão de estrelas.

     — É lindo! — gritou ela, num momento em que estavam atravessando a imensidão. — Nunca vi tantas estrelas!

     Daniel reduziu um pouco a velocidade.

     — Os egípcios acreditavam que as estrelas eram filhos de Nut — explicou —, a deusa do céu. Ela as paria a cada noite e as engolia de volta pela manhã. Também acreditavam que eram as almas dos mortos, aguardando na escuridão pelo retorno do deus-Sol Rá.

     Ela apertou-se ainda mais à cintura dele, apreciando a solidez e o calor de seu corpo. De repente, tudo o que havia acontecido nos últimos dois dias pareceu desaparecer.

     Pararam para passar a noite numa pequena aldeia de pescadores junto ao litoral, encontrando um quarto no andar acima de um café, com duas camas e uma janela dando vista para o mar.

   Daniel pegou no sono quase imediatamente. Tara ficou acordada até muito tarde, escutando o murmúrio do mar e contemplando o rosto de Daniel, iluminado pelo luar, um rosto bronzeado, forte, as sobrancelhas sempre contraídas, como se pensamentos tormentosos estivessem passando por sua mente. Ele começou a murmurar alguma coisa e, incapaz de conter-se, ela aproximou-se dele para escutar. Era um nome. Um nome de mulher. Mary, algo assim. E repetia, várias vezes. Mary. O estômago dela começou a doer e, virando-se de lado, ficou olhando para fora da janela, inexplicavelmente entristecida.

     Mas Tara não comentou coisa alguma na manhã seguinte e, depois de um rápido desjejum, tomaram a direção sul, seguindo o nascer do sol, passaram por Hurghada, Port Dafaga e El-Hamarawein, até finalmente chegarem a al-Quseir, daí, viraram rumo oeste de novo, com o vento açoitando seus rostos, a paisagem rochosa do deserto passando velozmente de ambos os lados. Daniel manteve a Jawa rodando a toda velocidade e Tara enterrou o rosto em suas costas, temendo chegar o momento em que a viagem terminaria e que eles novamente se defrontariam com a realidade da situação que viviam.

     Alcançaram Q'us às duas, e a parte ocidental de Luxor meia hora mais tarde. Enquanto os carros e os prédios iam cada vez mais se aglomerando em torno deles, e as ruas se enchiam de pessoas, a cabeça de Tara recostou-se contra as costas de Daniel, como se um grande peso tivesse descido sobre ela. Emitiu um profundo suspiro, seus pulmões desejando ardentemente um cigarro.

     — E agora? — perguntou ela quando saltaram da moto na calçada em frente a um posto de gasolina, no extremo da cidade.

     — Agora, vamos ver Omar.

     — Omar?

     — Um velho amigo. Omar Abd el-Farouk. Ele era o meu melhor amigo no vale. Um século atrás, sua família era composta dos mais famosos ladrões de túmulos do Egito. Agora trabalham para as missões arqueológicas e têm duas ou três lojas de suvenires. Muito pouca coisa acontece por aqui sem que fiquem sabendo.

     O frentista chegou junto deles e começou a encher o tanque da moto.

     — E se ele não puder nos ajudar? — indagou Tara. — E se a gente não descobrir coisa alguma por aqui?

     — Não se preocupe. — Daniel pegou a mão dela.—Vai dar tudo certo. Vamos nos livrar dessa confusão. Confie em mim.

     Ele não soou nada convincente.

     Omar vivia numa casa de tijolos de barro cujos fundos davam diretamente para as ruínas do que fora, no passado, o grande palácio de Malqata. Ele estava trabalhando no jardim, quando Tara e Daniel chegaram, juntando com um ancinho talos de palmeiras, no chão, e empilhando-os num canto onde um burrico velho mordiscava letargicamente as folhas queimadas de sol. Assim que os viu surgir, soltou um grito de contentamento e aproximou-se deles correndo.

     — Ya Doktora! — gritou. — Quanto tempo! Bem-vindo! Os dois homens se abraçaram, beijando-se duas vezes em cada face. Daniel apresentou Tara, explicando quem ela era.

     — Fiquei sabendo sobre o seu pai — disse Omar. — Lastimo muito. Que ele descanse em paz.

     — Obrigada!

     Ele gritou alguma coisa para o interior da casa e conduziu-os a uma mesa à sombra de uma bananeira.

     — Escavei muitos anos com o dr. Daniel — disse ele ao sentarem-se. — Trabalhei com outros arqueólogos também, mas o dr. Daniel sempre foi o melhor. Ninguém sabe mais sobre o Vale dos Reis do que ele.

     — Omar diz isso a todos com quem trabalha — replicou Daniel, sorrindo.

     — É verdade — confirmou o egípcio. — Mas só é sincero quando é sobre o dr. Daniel.

     Uma bela garota saiu da casa, trazendo três garrafas de refrigerante, que colocou sobre a mesa. Ela olhou de relance para Daniel, ficou ruborizada e correu de volta para dentro da casa.

     — Minha filha mais velha—disse Omar, orgulhoso. — Já recebeu duas propostas de casamento. Rapazes daqui, boas famílias. Mas ela só tem pensamentos para uma única pessoa.

     Ele indicou Daniel com um movimento de cabeça e soltou uma risada.

     — Deixe de histórias e vamos beber essa merda de refrigerante, Omar. Conversaram sobre amenidades por alguns minutos: sobre os filhos de Omar, a viagem deles, vindo do Cairo, outras expedições trabalhando na área. A garota bonita reapareceu com terrinas de sopa de lentilhas e, quando terminaram, trouxe uma travessa de frango frito, arroz e molochia, verde e oleoso. Depois de tudo, a mulher de Omar chegou com um cachimbo shisha, que colocou entre os dois homens. Ela agradeceu os cumprimentos pela refeição, recolheu os pratos e, com uma olhada para trás cheia de curiosidade, examinou rapidamente Tara, antes de desaparecer dentro de casa.

     — Mas então... — disse Omar, exalando a fumaça pelas narinas —, você deve estar aqui por alguma razão, creio eu, Daniel. Não é somente a visita a um amigo.

     — Não se pode esconder nada dos el-Farouk.

     — Minha família trabalha para arqueólogos britânicos há mais de um século. — Omar sorriu, dando uma piscadela para Tara. — Meu tataravô esteve com Petrie. Meu bisavô, com Carter. Meu tio-avô trabalhou com Pendlebury, em Amarna. Vemos através deles como se fossem de vidro. — Ele passou o cachimbo para Daniel. — Assim sendo, pode falar, meu amigo. Se houver alguma coisa que eu possa fazer por você, farei. Você é da família.

     Fez-se silêncio por alguns instantes, e então Daniel voltou-se para Tara:

     — Mostre para ele — disse Daniel.

     Tara hesitou por alguns momentos e então, curvando-se sobre a mochila, puxou a caixa de papelão e entregou-a a Omar. Ele removeu a tampa e ergueu o fragmento decorado, revirando-o sobre a mão.

     — Creio que isso veio de algum lugar aqui na região — disse Daniel. — Provavelmente, de um túmulo. Já viu isso antes? Sabe de alguma coisa a respeito?

     Omar não respondeu de imediato, apenas continuou revirando a peça em suas mãos. A seguir, devolveu-a para dentro da caixa e recolocou a tampa.

     — Onde conseguiu isso? — perguntou afinal.

     — Meu pai comprou para mim — explicou Tara. Ela fez uma pausa e então acrescentou: — Sayf al-Tha'r está querendo essa peça para si. E também o pessoal da embaixada britânica.

     Ela sentiu o desconforto de Daniel, ao seu lado, e percebeu que ele não queria que isso fosse mencionado. Omar apenas assentiu de cabeça e, pegando de volta o cachimbo, puxou lentamente uma tragada da ponteira de bronze.

     — Foi por isso que você pegou um trajeto tão longo do Cairo até aqui?

     — Foi — reconheceu Daniel. Achamos melhor evitar a região central do Egito. Você sabe de alguma coisa, não sabe?

     O egípcio soltou uma espessa baforada de fumaça, dando-se tempo para pensar.

     — Ontem de manhã, a polícia me chamou para fazer perguntas — disse ele. — Nada fora do comum. Toda vez que se comete um crime envolvendo antigüidades, a primeira coisa que a polícia consegue imaginar é ir em cima de um el-Farouk. Não adianta repetir mil vezes que não fazemos mais essas coisas, e isso há mais de cem anos. Não, não adianta. A polícia vem sempre em cima de nós.

     Outra pausa e ele prosseguiu:

     — Só que desta vez, não eram as mesmas perguntas idiotas. Havia um assassinato na história. Um homem daqui. O detetive achava que ele poderia ter descoberto um novo túmulo. E pegado alguns objetos. Então, pessoas poderosas ficaram contrariadas. Ele queria descobrir o que eu sabia a respeito.

     Ele inclinou-se à frente, para atiçar a brasa do shisha.

     — É claro que não contei nada à polícia. São todos uns cães e eu preferia morrer a ajudá-los. Mas a verdade é que andei escutando coisas. Sobre um novo túmulo, descoberto lá em cima, nas colinas. Não sei onde, mas é alguma coisa bem grande. Alguma coisa que, segundo se diz, Sayf al-Tha'r quer, e quer bastante.

     — E você acha que esta peça pode vir de lá? — perguntou Daniel. Omar deu de ombros:

     — Talvez sim, talvez não. Não sei. O que posso lhes dizer é que vocês dois estão em grande perigo. Não faz bem a ninguém se opor à Espada da Vingança.

     Seus olhos passaram de Daniel para Tara, e de novo para Daniel. O burrico havia parado de ruminar entre os talos de palmeira e estava farejando o terreno em volta do forno de barro para pães, numa das esquinas externas da casa. Fez-se um longo silêncio.

     — Preciso descobrir de onde veio esta peça — disse Daniel. — Preciso descobrir por que é tão importante. Por favor, nos ajude, Omar.

     Por um longo intervalo, o egípcio manteve-se calado, apenas soltando baforadas de seu cachimbo. Então, muito lentamente, pôs-se de pé e encaminhou-se para a casa. Por um momento, Tara chegou a pensar que ele os estava abandonando. Na soleira da porta, entretanto, ele se voltou:

     — É claro que vou ajudá-lo, dr. Daniel. Você é meu amigo, e quando um amigo pede ajuda, Abd el-Farouk não o desaponta. Vou perguntar por aí. Nesse meio tempo, vocês ficam aqui em casa. São meus hóspedes.

     E ele estendeu o braço, convidando-os a entrar na casa.

    

CAIRO

     De pé em frente ao foyer do Museu do Cairo de Antigüidades Egípcias, contemplando a grande cúpula de vidro no teto e as colossais estátuas no extremo oposto do átrio, Khalifa desejou ter mais tempo disponível. Já fazia dois anos desde sua última visita à coleção e ele gostaria de, pelo menos, dar uma volta pelo museu e rever suas peças favoritas: os sarcófagos de Yuya e Tjuju, os artefatos de Tutankâmon, a escultura em pedra calcária do anão Seneb.

     A tarde já estava bastante avançada, no entanto, ele tinha de pegar o trem. Assim, sem mais demora, ele virou à esquerda e, com passos apressados, atravessou a galeria do Antigo Reinado e subiu uma larga escadaria no final, sempre com uma olhada de passagem para os objetos expostos, mas resistindo à tentação de deter-se para uma apreciação mais demorada.

     No topo da escadaria, abriu uma porta com uma placa pendurada dizendo "Privativo" e subiu outra escadaria, esta de madeira, descendo por um corredor comprido e amplo até chegar a uma porta com os dizeres, impressos na vidraça: "Professor Mohammed al-Habibi". Ele bateu duas vezes à porta e uma voz alegre o convidou a entrar.

     Seu ex-professor estava de pé, costas voltadas para ele, curvado sobre sua escrivaninha, muito concentrado, examinando alguma coisa com uma lente de aumento.

     — Só um segundo — disse ele sem se voltar. — Fique à vontade.

     Khalifa fechou a porta, recostando-se nela, observando carinhosamente o senhor idoso de costas. Sabia que seria inútil tentar atrair sua atenção. Quando o professor estava fixado num artefato, nem mesmo uma manada de elefantes selvagens seria capaz de distraí-lo.

     Ele tinha a mesma aparência de sempre: a mesma figura rotunda, um cardigã com pontos já frouxos, a bainha dos jeans dez centímetros acima dos tornozelos. Os ombros estavam um pouco mais encurvados e seu crânio calvo um pouco mais enrugado, mas isso era de se esperar já que, afinal de contas, ele devia estar com quase oitenta anos.

     Khalifa ainda se lembrava do dia em que se conheceram, quase 25 anos atrás. Fora ali, no museu. Ele e Ali estavam parados junto a uma mesa de libação de alabastro, perguntando-se o que seriam libações, e o professor, passando por eles, deteve-se para explicar.

     Ficaram gostando dele logo no primeiro momento — sua aparência desleixada, seus modos gentis, a maneira como se referia à mesa, reverentemente, como se fosse uma pessoa e não um objeto inanimado. O professor também gostara deles, comovido, talvez, pelo interesse deles no passado, pela pobreza que evidenciavam e, quem sabe — se bem que isso somente ocorreu a Khalifa anos depois —, pelo fato de que seu filho tinha a idade de Ali quando foi morto num acidente de carro, muitos anos antes.

     O professor tornara-se seu guia não-oficial, mantendo encontros com eles todas as sextas-feiras e levando-os para passear pelo museu por uma hora ou duas, depois pagando um refrigerante para cada um ou uma fatia de basbousa, num quiosque em Midan Tahrir. Já mais crescidos, o refrigerante e a basbousa deram lugar a um almoço, toda sexta-feira, na residência do professor, feito por sua esposa, que era ainda mais rotunda e desleixada do que ele, se é que isso fosse possível. Ele lhes emprestava livros e lhes passava artefatos para que os manuseassem, além de deixá-los assistir à tevê que, embora nenhum dos dois jamais admitisse, era a coisa de que mais gostavam daquelas visitas ao apartamento dele.

     De certo modo, ele preenchera o vazio deixado pela morte do pai dos dois irmãos E, sem dúvida, havia uma inclinação paternal na maneira como tratava os garotos. O orgulho que sentira quando Khalifa conquistou uma vaga na universidade fora muito mais de um pai pelo filho do que de um amigo pelo outro. Assim como as lágrimas que vertera, quando soube do que aconteceu a Ali.

     Passaram-se vários minutos até que ele afinal deixou de lado sua lente de aumento e voltou-se. Expantou-se ao dar com Khalifa, um largo sorriso tomando todo o seu rosto. — Mas por que diabo não disse que era você que estava aí, seu boboca!

     — Não queria atrapalhar.

     — Tolice!

     Khalifa adiantou-se e os dois se abraçaram.

     - Como estão Zenab e as crianças?

     Muito bem, obrigado. Mandaram lembranças para você.

     — O pequeno Ali? Ele está indo bem na escola?

     O professor era padrinho de seu filho e interessava-se carinhosamente pela educação do garoto.

     Ele está indo muito bem.

     — Sempre soube que seria assim. Ao contrário do pai, aquele garoto tem cérebro — Ele deu uma piscadela marota para Khalifa e, contornando a mesa, pegou o telefone. - Vou avisar à Arwa que você vai jantar conosco.

     — Sinto muito, mas não posso. Preciso voltar para Luxor esta noite.

     — E não tem tempo nem para um lanche rápido?

     Khalifa sorriu. Na casa do professor al-Habibi não existia tal coisa como um lanche rápido. A idéia que a mulher dele fazia de fast food era pôr na mesa cinco pratos em vez dos dez habituais.

     — Também não. É uma visita rápida.

     Habibi produziu um som dentro da boca, um tsc-tsc desconsolado, recolocando o fone no lugar.

     — Ela vai ficar uma fera por não ter visto você. E vou levar a culpa. Ela vai dizer que não me empenhei para levar você para casa. Que eu deveria tê-lo arrastado, se necessário. Você não tem idéia da encrenca em que está me metendo.

     — Sinto muito. Esta vinda ao Cairo não foi nada planejado. O professor soltou um muxoxo:

     — Bem, só espero que você passe por aqui sem ter planejado com mais freqüência. Sentimos muito a sua falta.

     Ele abriu uma gaveta e tirou dela uma garrafa de xerez, servindo-se de uma generosa dose, num copo sobre a mesa.

     — Se estou bem informado, as leis de Alá não se tornaram mais flexíveis desde a última vez em que nos vimos.

     — Receio que não.

     — Então, não vou lhe causar o constrangimento de lhe oferecer uma bebida. — O professor ergueu seu copo para Khalifa. — É bom ver você, Yusuf. Já faz muito tempo desde a última vez.

     Ele tomou todo o xerez de um único gole, arrotou discretamente e então, pondo um braço em torno de Khalifa, conduziu-o à mesa.

     — Dê uma olhada nisto — disse.

     Sobre o mata-borrão, havia um fragmento de papiro amarelado, já bastante puído, com seis colunas de texto em hieróglifos negros e, num dos cantos, quase apagado, parte de uma cabeça de falcão com o disco solar por cima. Habibi entregou a Khalifa sua lente de aumento.

     — Sua opinião, por favor.

     Era um jogo que sempre acontecia entre eles. O professor apresentava um artefato qualquer e Khalifa teria que descobrir do que se tratava. O detetive curvou-se e examinou o papiro.

     — Já não consigo ler hieróglifos tão bem quanto antigamente — disse ele. — Não há muita utilidade para isso no trabalho policial.

     Ele esquadrinhou as linhas do texto.

     — Um dos livros sobre a vida após a morte? — ele arriscou.

     — Muito bem. Mas qual?

     Khalifa examinou outra vez o texto e perguntou, hesitante:

     — Amduat? — Mas logo a seguir, antes mesmo que Habibi fizesse algum comentário: — Não, o Livro dos Mortos.

     — Bravo, Yusuf! Estou impressionado. Mas você é capaz de datá-lo? Isso já era bem mais difícil. As orações e os rituais contidos no Livro dos Mortos haviam aparecido pela primeira vez nos túmulos da realeza da Décima Oitava Dinastia, e pouco haviam mudado nos mil e quinhentos anos seguintes. Apenas os próprios hieróglifos poderiam dar alguma indicação da data — mas, se assim fosse, Khalifa não tinha conhecimentos suficientes para decifrá-la. A única pista possível seria a cabeça de falcão encimada pelo disco solar e um nome no texto: Amenemheb.

     — Novo Reinado — disse, mas era apenas um palpite.

     — E por quê?

     — Por causa da figura do Re-Harakhty.

     O Re-Harakhty era o deus oficial do Novo Reinado. E Amenemheb era um típico nome do Novo Reinado.

     Habibi assentiu com a cabeça, aprovando.

     — Argumento impecável. Resposta errada, mas assim mesmo com uma base impecável. Tente de novo, vamos.

     — Não tenho a menor idéia, professor. Terceiro Intermediário?

     — Errado.

     — Último Período?

     — Errado! — O professor estava se divertindo. — Última chance — ele anunciou com uma risadinha.

     — Só Deus sabe. Greco-romano?

     — Receio que não — ele riu mais um pouco, dando palmadas carinhosas no ombro de Khalifa. — Na verdade, vinte é o número.

     — Vigésima Dinastia? Mas eu já tinha dito que era do Novo Reinado.

     — Vigésima Dinastia, não, Yusuf. Século XX. Khalifa ficou boquiaberto:

     — É falso?

     — Sem dúvida. Mas uma falsificação muito boa.

     — Mas como o senhor descobriu? Parece absolutamente genuína. Habibi soltou uma gargalhada:

     — Você ia se surpreender ao ver como esses vigaristas são habilidosos. Não apenas com o trabalho artístico, mas também com a escolha dos materiais. Eles têm recursos para envelhecer a tinta e o papiro de modo a fazê-los parecer como tendo mil anos. Que talento eles têm. Pena que o usem para ludibriar as pessoas.

     Ele esticou o braço, pegou a garrafa e serviu-se de mais um copo.

     — Mas como o senhor pôde identificar a falsificação? — perguntou Khalifa outra vez. — O que tinha de errado?

     Como da vez anterior, o xerez desapareceu num único gole.

     — Bem, há inúmeros testes que podem ser feitos. Por exemplo, o do carbono-14, nos filamentos do papiro. E análises microscópicas da tinta. Mas, neste caso, não precisei recorrer aos cientistas. Foi só examinar. Vamos, dê outra olhada.

     Khalifa curvou-se sobre o papiro outra vez e examinou-o minuciosamente com a lente de aumento. No entanto, mesmo usando todo o seu poder de observação, não encontrou coisa alguma que lhe sugerisse que o papiro fosse falsificado.

     — Essa me pegou — disse ele, endireitando o corpo e devolvendo a lente ao professor. — É absolutamente perfeito.

     — Exatamente! E é por isso que se pode dizer que é falso. Observe qualquer manuscrito egípcio, ou inscrições, pinturas de parede... nunca são perfeitas. Sempre há uma pequena falha... um pingo de tinta, um hieróglifo desalinhado, uma figura voltada para o lado errado. Mesmo que seja uma coisa minúscula, sempre se encontra pelo menos uma falha. Mas não nessas falsificações. Elas nunca têm falhas. E é isso que as põe a perder. São boas demais. Os antigos nunca tinham toda essa precisão. É a atenção aos detalhes que denuncia os falsificadores.

     Ele se inclinou à frente de Khalifa e, apanhando o papiro, amassou-o até transformá-lo numa bola e atirou-o à cesta de lixo. A seguir, rodeou a mesa e arriou-se pesadamente em sua velha poltrona de couro, pegando um cachimbo de urze-branca de uma prateleira às suas costas, encheu-o de tabaco e acendeu-o. Khalifa acendeu um cigarro e, enfiando a mão no bolso, tirou o pacote com os artefatos, embrulhados num pedaço de pano, sobre a escrivaninha de Habibi.

     — Muito bem, então. Agora é a sua vez — sorriu o detetive. — O que pode me dizer sobre isto aqui?

     Habibi levantou os olhos para ele, em meio às baforadas da fumaça azulada de seu cachimbo e, com uma expressão intrigada no rosto, desfez o embrulho. Diante dele, estavam os sete objetos que Khalifa encontrara na loja de Iqbar. O professor inclinou-se um pouco para examiná-los e deslizou suas mãos enrugadas sobre eles, delicadamente, amorosamente, como se estivesse tentando tranqüilizá-los, ganhar a confiança deles.

     — Interessantes — disse ele. — Muito interessantes. De onde são?

     — Isso é o senhor que tem de me dizer — disse Khalifa.

     Habibi emitiu uma risadinha e retornou sua atenção aos objetos. Ele acendeu uma lâmpada às suas costas e apanhou a lupa. Um por um, ergueu os artefatos e os examinou, revirando-os sob a luz, trazendo-os junto ao rosto, seus olhos injetados de sangue ora inchando-se ora retrocedendo por trás da espessura das lentes. Sua respiração áspera ecoava por todo o escritório.

     — Então? — indagou Khalifa, após um intervalo de quase cinco minutos.

     Habibi colocou sobre a escrivaninha o shabti que estava examinando e recostou-se em sua poltrona. Seu cachimbo havia se apagado e ele demorou mais um instante para, sem a menor pressa, reenchê-lo e acendê-lo de novo. Estava degustando aquele momento, como alguém a quem se pedira para identificar um vinho particularmente raro e, depois de prová-lo meticulosamente, no íntimo sentia-se confiante em poder dizer do que se tratava.

   — Ocupação persa — disse, afinal.

     — Ocupação persa? — admirou-se Khalifa, erguendo as sobrancelhas.

     — Isso mesmo.

     — Primeira ou segunda? — perguntou o detetive, depois de uma pausa. Habibi soltou uma risadinha:

     — Mas que examinador sem piedade você seria! Não me deu pista alguma, não foi? Eu diria que a primeira, embora não possa lhe dar uma data exata. Algo entre 525 e 404 a.C. Os shabtis, no entanto, parecem um pouco mais recentes.

     — Mais recentes?

     — Da Segunda Ocupação Persa, embora possam ser da Trigésima Dinastia. É praticamente impossível determinar a data específica de objetos como esses, principalmente estes assim, tão simples, sem nenhuma legenda ou inscrição. Não existem indicações de estilo óbvias. A gente tem de se guiar pela intuição.

     — E sua intuição sobre eles diz que são do Segundo Período Persa?

     — Ou da Trigésima Dinastia.

     Khalifa ficou em silêncio por alguns instantes, refletindo, antes de perguntar:

     — São autênticos?

     — Ah, sim — respondeu Habibi. — Sem dúvida alguma. São autênticos, sim.

     Ele tirou uma baforada comprida de seu cachimbo. Em algum lugar abaixo deles, o sistema de alto-falante anunciou que o museu fecharia em dez minutos.

     — Mais alguma coisa? — perguntou Khalifa.

     — Depende do que você quer saber. O vaso de ungüentos de terracota provavelmente pertenceu a um soldado. Temos aqui muitos semelhantes. Parece que eram um utensílio do equipamento militar padrão da época. A adaga também sugere alguma conexão com uso militar. Pode ver aqui, a lâmina está denteada e gasta, assim não era utilizada para fins apenas cerimoniais ou votivos. Era usada como uma arma mesmo. O peitoral é interessante. Parece ter pertencido a alguém importante. É de melhor qualidade do que os demais objetos.

     — O que nos diz alguma coisa?

     — Bem — refletiu um pouco o professor, sugando seu cachimbo —, ou veio de uma fonte diferente da dos outros itens, ou a pessoa que possuía o vaso de ungüento e a adaga teve uma substancial melhora de nível de vida.

     Khalifa riu.

     — O senhor deveria entrar para a polícia. Com tal poder de dedução, a esta altura seria o inspetor-chefe.

     — Quem sabe? — Habibi fez um gesto com o cachimbo de quem descarta a idéia. — Mas daí eu iria estar falando um bando de besteiras. Isso é o bom de trabalhar com o passado antigo. A gente pode inventar a teoria mais maluca que quiser, e ninguém vai poder jamais provar que você está errado. Tudo se resume a interpretação.

     Ele apanhou novamente a garrafa de xerez e serviu-se de uma terceira dose. Desta vez, entretanto, não engoliu tudo num único gole, limitando-se a sorver de leve a bebida.

     — Agora, me conte, Yusuf. De onde vieram?

     Khalifa deu a última tragada em seu cigarro e amassou-o no cinzeiro.

     — Acho que de Luxor. Um novo túmulo. Habibi assentiu de cabeça, muito vagarosamente.

     — Alguma relação com o caso que está investigando?

     Foi a vez de Khalifa confirmar com a cabeça.

     — Não vou pedir detalhes.

     — É melhor mesmo não pedir.

     Habibi apanhou uma caneta da escrivaninha e revirou o bojo do cachimbo, empurrando para baixo as cinzas. Mais uma vez, o anúncio ressoou lá embaixo. Eles ficaram sentados, imóveis e em silêncio, por alguns instantes.

     — Tem a ver com Ali, não tem? — arriscou Habibi.

     — Como?

     — O caso, estes objetos... têm a ver com Ali?

     — O que fez você pensar...?

     — Posso ler em seu rosto, Yusuf. Na sua voz. Ninguém passa a vida estudando pessoas mortas sem entender um pouco as que estão vivas. Eu sei, Yusuf. Isso tem a ver com o seu irmão.

     Khalifa não respondeu. O professor pôs-se de pé e contornou lentamente a mesa. Passou às costas do detetive e, por um momento, Khalifa chegou a pensar que ele estivesse se encaminhando para uma estante de livros no extremo oposto da sala. Então, sentiu a mão do professor em seu ombro. Apesar da idade, o aperto da sua mão era bastante firme.

     — Arwa e eu — começou a dizer o professor, com a voz trêmula —, quando você e Ali apareceram em nossas vidas...

   Ele se deteve no meio da frase. Khalifa voltou-se e pegou nas suas mãos as do senhor idoso.

     — Eu sei — disse o detetive, em voz baixa.

     — Tenha cuidado, Yusuf. É só o que lhe peço. Seja cuidadoso. Ficaram parados, exatamente na posição em que estavam, por alguns momentos, e então Habibi recuou um passo e dirigiu-se novamente para sua poltrona.

     — Vamos dar outra olhada nesses objetos, certo? — disse, tentando soar animado. — Deixe eu ver se há algo mais que possa lhe contar. Onde foi que larguei a merda da minha lente de aumento?

    

LUXOR

     Omar conduziu-os a um quarto bastante simples, no andar de cima de sua casa, com chão de concreto bruto e sem vidraças nas janelas. Enquanto sua mulher e a filha mais velha traziam travesseiros e lençóis, as três outras crianças postaram-se na soleira da porta, observando os recém-chegados. O caçula, um garoto, parecia fascinado pelos cabelos de Tara. Ela o pegou no colo e ele enrolou um cacho deles em seus dedos, sussurrando algo para sua mãe.

     — O que foi que ele disse? — perguntou Tara.

     — Que, pegando no seu cabelo, parece crina de cavalo — respondeu Omar.

     — É a falta que faz o condicionador — retrucou Tara sorrindo, apertando a ponta do nariz do garoto e colocando-o no chão. Sentiu-se surpreendentemente aliviada por ter a família ao seu redor, como se eles pudessem formar uma barreira invisível de carinho e inocência entre ela e o mundo exterior. Ao assegurar-se de que tinham tudo do que precisavam, Omar conduziu a mulher e os filhos para fora do quarto.

     — Vou dar uma volta por aí e ver o que posso descobrir — disse ele. Enquanto isso, esta casa é sua. Estarão seguros aqui. Em Luxor, pelo menos, o nome el-Farouk ainda oferece alguma proteção.

     Dizendo isso, Omar saiu do quarto. Tara e Daniel tomaram banho, subindo a seguir para o telhado da casa, onde havia roupas postas para secar num varal e uma pilha de tâmaras vermelho-acastanhadas, secando sobre um lençol. Ficaram contemplando por alguns instantes as colinas de Tebas, que assomavam sobre eles como se fosse uma gigantesca onda amarronzada, depois voltaram-se para o rio. Havia fumaça elevando-se dos campos, onde os agricultores queimavam os restolhos da colheita de milho e cana-de-açúcar; uma carroça transportando uma pilha bastante alta de palha atravessou lentamente a linha de visão deles, puxada por uma parelha de búfalos-d'água. Duas garças brancas descreviam um vôo rasante ao longo da superfície turva do canal; um grupo de crianças brincava no topo de um monte de areia, atirando gravetos sobre um cachorro acorrentado abaixo delas. De algum lugar distante, chegou a eles a batida fraca de uma bomba de irrigação.

     — Detesto ficar aqui sem fazer nada — disse ela depois de prolongado silêncio.

     — Fazer o quê, por exemplo?

     — Não sei. Só acho que não está certo fazer toda essa viagem até aqui para ficarmos parados vendo a paisagem, depois de tudo o que aconteceu.

     — Não há muito para se fazer, Tara. Pelo menos, não até Omar retornar. Nosso próximo movimento depende do que ele conseguir descobrir.

     — Eu sei, eu sei. Mas fico me sentindo inútil, aqui, esperando sem fazer nada. Com se estivéssemos à mercê dos acontecimentos. Meu pai está morto. Há pessoas tentando nos matar. Quero fazer alguma coisa. Quero encontrar respostas.

     Ele colocou o braço sobre os ombros dela.

     — Sei como se sente. Fico tão frustrado quanto você. Mas estamos de mãos amarradas.

     Ficaram ali parados, em silêncio, por algum tempo, observando um homem idoso conduzindo um camelo pela estrada abaixo deles. Daniel voltou-se de novo para as colinas, perdido em seus pensamentos, os olhos passeando pela parede ondulada de rocha. De repente, como se tivesse tomado uma decisão, pegou a mão dela e puxou-a para as escadas.

     — Vamos. Pode não resolver nossos problemas, mas pelo menos vai nos manter ocupados.

     — Aonde estamos indo?

     — Para lá! — e apontou para a crista plana das colinas, correndo como uma lâmina pelo topo dos morros. — É o melhor lugar para se apreciar um pôr-do-sol no Egito.

     Foram descendo as escadas, quando Daniel disse:

     — É melhor levar a caixa com você.

     — Por quê? Tem medo de que Omar a roube?

     — Não. Só não quero que ele seja morto por causa dela. É problema nosso, Tara. Devemos mantê-la sempre conosco.

     Demorou quase uma hora para chegarem ao topo da crista, seguindo a princípio por um caminho de lajes de concreto cada vez mais esparsas e, depois, por uma trilha de terra em ziguezague, subindo sempre até chegarem a uma ravina estreita, saindo daí para o cume das colinas. Fora uma escalada árdua e, no final, estavam ambos encharcados de suor. Pararam por um momento para recuperar o fôlego, então Daniel sentou-se numa grande pedra e acendeu um cheroot, tamborilando os dedos sobre a coxa, como se estivesse aguardando alguém. Tara tirou do ombro sua mochila e foi para um ponto um pouco acima dele, fascinada pela vista extraordinária. O pôr-do-sol, um sol enorme e avermelhado, uma jóia colossal pendurada num céu turquesa; ao longe, a faixa prateada do curso do Nilo, reluzindo sob a névoa do entardecer; a interminável cadeia de morros, silenciosos, desertos, misteriosos.

     — Chamam este pico de el-Qurn — disse Daniel —, o chifre. Visto da maioria dos lugares, parece apenas um espinhaço, correndo ao longo das colinas. Mas, visto do Vale dos Reis, do norte, tem a forma de uma pirâmide. Os egípcios antigos o chamavam de Dehenet. A testa. Foi por causa dele que escolheram o vale como local para seus sepultamentos.

     — É tão tranqüilo — observou Tara.

     — Três mil e quinhentos anos atrás, foi exatamente isso o que sentiram. O pico é consagrado à deusa Meret-Seger: "Ela, que ama o silêncio..."

     Ele pôs-se de pé, dando uma olhada rápida para trás, na direção do caminho pelo qual haviam subido até ali.

     — Olhe, bem ali — disse ele, apontando. — Aquela área retangular, fechada, à direita, É o Medinet Habu, o templo mortuário de Ramsés III. Um dos mais lindos monumentos do Egito. E mais ali, onde você vê aquelas palmeiras, é a casa do Omar. Está vendo?

     Tara olhou para baixo, acompanhando a linha traçada pelo dedo de Daniel:

     — Acho que estou.

     — A seguir, se você virar para a esquerda, lá onde fica a estrada, aquela que desce para o rio, aqueles ali são os Colossos de Mêmnom. E, se você continuar mais para a esquerda — ele se inclinou sobre ela, a ponto de suas faces praticamente se tocarem —, onde está aquele conjunto de construções, aquele é o Ramesseum, o templo mortuário de Ramsés II.

     Tara podia sentir a respiração de Daniel em sua orelha, e curvou-se um pouco para trás, levantando os olhos para ele. Havia uma espécie de perturbação nos olhos dele, refletindo o que ia em seu íntimo.

     — O que foi? — perguntou.

     — Eu... — ele interrompeu o que ia dizendo, incapaz de encontrar as palavras. Seu olhar desviou-se.

     — O que foi, Daniel?

     Eu queria-

     Subitamente, escutaram um som como algo aproximando-se rastejando, por trás deles. Viraram-se abruptamente e, ladeado pelas paredes da ravina pela qual haviam subido até onde estavam, minutos antes, deram com um rosto desgrenhado, selvagem, de faces chupadas, olhos sombrios e avermelhados.

     — Minha nossa — murmurou Daniel.

     — Olá, por favor, olá — balbuciou o recém-chegado, avançando um passo ou dois, além da saída da ravina, o que lhes permitiu ver seu djellaba, tão puído e rasgado que era um milagre que ainda se mantivesse inteiro sobre o homem. — Esperem, esperem, esperem, vou mostrar a vocês uma coisa muito boa. Aqui, aqui, aqui. Vejam!

     Saindo para o cume, a figura correu para eles e esticou a mão esquelética, na qual segurava um escaravelho esculpido em pedra negra.

     — Vi vocês subindo... — gaguejou ele. — Muita subida. Muita subida. Aqui, olhem, olhem, o melhor artesanato. Muito, muito bom, quanto me dão por ele?

     — La — disse Daniel, balançando a cabeça. — Mish delwa'tee. Agora, não.

     — Boa qualidade. Boa. Quanto me dão?

     — Ana mish aayiz. Não queremos.

     — Preço, preço. Pode dar preço. Vinte libras egípcias. Muito barato.

     — La — repetiu Daniel, com voz áspera. — Ana mish aayiz.

     — Quinze. Dez. Daniel balançou a cabeça.

     — Antika — disse o homem, baixando a voz. — Tenho antika. Você vão gostar. Muito boa. Autêntica.

     — La — exclamou Daniel com toda firmeza. — Imish. Vá embora.

     O homem começou a ficar desesperado. Ajoelhou-se aos pés de Tara e Daniel.

     — Pessoas boas. Pessoas boas. Tentem entender. Sem dinheiro, sem comida, fome, fome, como um cão. — Ele atirou a cabeça para trás e subitamente emitiu um uivo de ferir os ouvidos.—Estão vendo? — grunhiu. — Sou um cão. Não homem. Cão. Animal. Cão — e soltou outro uivo.

     — Khalas! — berrou Daniel. — Chega!

     Daniel enfiou a mão no bolso e tirou algumas notas, que entregou ao homem. Ele as pegou, seus soluços de repente dando lugar a um sorriso largo, exibindo dentes manchados. E ele começou a rodopiar tropegamente pela crista da montanha.

   — Homem bom homem bom homem bom — ele cantava. — Meu amigo tão bom para mim. — Ele levantou a vista para Tara, atirando-se com uma pirueta aos pés dela. — Bela moça, quer ver túmulos? Quer ver Hatshepsut? Vale dos Reis. Vale das Rainhas. Túmulos preciosos. Túmulos secretos. Posso guiar. Muito barato.

     — Já chega — exclamou Daniel. — Você já ganhou sua baksheesh. Vá embora. Imshi.

     — Mas posso mostrar a vocês coisas muito preciosas. Muitos segredos.

     — Imshi!

     O homem parou de dançar e, dando de ombros, voltou-se para a passagem, esfregando o dinheiro com os dedos e resmungando para si mesmo.

     — Dinheiro, vá embora, dinheiro, vá embora, dinheiro, vá embora.

     Ele enfiou-se pelo desfiladeiro estreito e foi descendo devagar. Quando somente sua cabeça ainda estava à vista, voltou-se de súbito, olhando diretamente nos olhos de Tara.

     — Não é aquilo que você pensa — disse apenas, sua voz subitamente calma e lúcida. — Os fantasmas me mandam avisar você. Não é aquilo que você pensa. Muitas mentiras.

     E então ele desapareceu de vez, e tudo o que se podia escutar era o som triturante das pedras, à medida que ele descia tropegamente a encosta da montanha.

     — O que ele quis dizer? — reagiu Tara, inexplicavelmente atordoada pelas palavras do homem. — Não é aquilo que penso?

     — Só Deus sabe — disse Daniel. Ele pulou da rocha onde estava e andou até a beira do despenhadeiro, observando o Vale lá embaixo. — É um louco, obviamente. Pobre coitado. Pela aparência dele, faz um mês que não come.

     Ficaram em silêncio, imóveis, Daniel olhando na direção do Vale, Tara olhando para Daniel, pouco abaixo dela.

     — Você ia me dizer alguma coisa — falou Tara, afinal.

     — Como?... — Ele voltou-se para Tara. — Ah, nada importante. Venha dar uma olhada. É a melhor hora do dia para ver o Vale, quando está deserto. Bem como devia ser, nos tempos antigos.

     Ela pulou para junto dele, os dedos dos dois se encontrando de leve. Abaixo deles, o Vale estava silencioso e deserto, com seus vales tributários saindo dele como os dedos de uma mão espalmada.

     — Onde é o túmulo de Tutankâmon? — perguntou ela.

     — Está vendo aquele gargalo do Vale, no centro? — ele apontou. — Adiante, mais para a esquerda, aquilo parecendo um portal, na encosta da colina. É o KV9, o túmulo de Ramsés VI. O de Tutankâmon é logo depois.

     — E onde fica o seu sítio de escavação?

     A resposta veio somente depois de um sutil engasgo.

     — Não dá para ver daqui. É mais para cima, no Vale, na direção de Tutmés III.

     — Eu me lembro de quando vim aqui, uma vez, com mamãe e papai — disse Tara. — Eu era criança, ainda. Papai estava dando palestras num cruzeiro pelo Nilo e tivemos de acompanhá-lo. Ele estava tão animado, nos levando para conhecer os túmulos, e tudo o que eu queria era voltar para a piscina do navio. Acho que foi quando me dei conta de que não ia ser a filha que ele queria.

     Daniel olhou para ela. Seu ombro se moveu ligeiramente, como se ele tivesse a intenção de pegar a mão dela, mas não fez isso. E, após um segundo instante, desviou seus olhos novamente, terminou de fumar seu cheroot e o jogou fora.

     — Seu pai amava muito você, Tara — disse ele, em voz baixa. Ela deu de ombros:

     — Pode ser.

     — Acredite em mim, Tara, ele a amava. Acontece que algumas pessoas têm dificuldade de dizer as coisas. De falar de seus sentimentos.

     E então, de repente, ele estava segurando a mão dela. Nenhum dos dois disse nada, nem se mexeram, como se o contato entre eles fosse tão frágil que se romperia a qualquer pequeno abalo. O sol já estava bem baixo no horizonte e a luminosidade começava a esmaecer. Algumas poucas estrelas saíram no céu e, na planície abaixo, as luzes das casas já iam se acendendo. Oposto a eles, num platô de rocha distante, podiam divisar a silhueta de alguns soldados movimentando-se em torno de uma guarita, um dos postos de vigilância instalados pelas montanhas depois do massacre de Deir el-Bahri. O vento estava soprando mais forte, agora.

     — Você está com outra pessoa? — perguntou ela, quase murmurando.

     — Uma namorada? — ele sorriu. — Não, na verdade, não. Houve algumas pessoas. Mas nenhuma... — ele ficou buscando o adjetivo apropriado — ..ninguém importante. E você?

     — A mesma coisa.

     Ela fez uma pausa, então perguntou:

     — E quem é Mary? — perguntou a contragosto, mas sem conseguir se conter.

     — Mary?

     — Na noite passada, enquanto você dormia, continuava repetindo o nome dela.

     — Não conheço nenhuma Mary. Ele parecia sinceramente surpreso.

     — Você repetiu esse nome várias vezes. Mary... alguma coisa. Mary. Mary.

     Ele refletiu por alguns instantes, repetindo o nome para si mesmo, e de repente girou nos calcanhares, dando uma gargalhada.

     — Mary! Mas que maravilha! Você ficou com ciúmes, Tara? Por favor, diga que você ficou com ciúmes.

     — Não — replicou ela, na defensiva. — Apenas interessada.

     — Pelo amor de Deus! Mery. Era isso o que eu estava dizendo. Não era Mary. Mery. Mery-amun. Bem-amado Amun. Ninguém com quem você tenha de se preocupar, garanto. Ela é um homem, aliás. E está morto faz dois mil e quinhentos anos.

     Ele continuava rindo, e agora Tara ria junto, embaraçada com o erro que cometera, mas também deliciada. A mão dele apertou a dela, a dela apertou a dele, e então, antes mesmo que soubessem o que estava acontecendo, ele a girou em seus braços e a beijou.

     Por um segundo, Tara tentou resistir, uma voz na sua cabeça alertando para o perigo que ele representava, que ele terminaria magoando-a novamente. Mas não passou de um segundo, entretanto, então ela entreabriu a boca, enlaçou o seu pescoço com os braços e apertou-o contra si, a despeito do que ele havia feito, ou talvez por causa disso. As mãos dele acariciaram-lhe o pescoço, as costas, os seios dela pressionados com força contra o peito de Daniel. Ela havia esquecido como o contato do corpo dele lhe dava prazer.

     Ela não poderia dizer por quanto tempo ficaram abraçados, mas quando, finalmente, se soltaram, foi para descobrir que a noite havia subitamente tomado o mundo em volta deles. Sentaram-se numa rocha e ele protegeu-a do vento com seus braços. Bem à direita deles, uma cadeia de luzes se acendeu na encosta da colina, sinalizando o caminho de lajes de concreto pelo qual vieram subindo. Havia mais luzes se acendendo na planície abaixo deles, na maioria luzes claras, mas também algumas com uma cintilação esverdeada, marcando o minarete de uma mesquita.

     — Mas, então, quem é essa Mary? — perguntou ela, aninhando o rosto no ombro dele.

     Ele sorriu.

     — Um dos filhos do faraó Amasis. Ele era o Príncipe Mery-amun Sethep-ib-re. Viveu por volta do ano 550 a.C. Minha teoria de estimação é que ele foi enterrado aqui, no Vale dos Reis. É nisso que estou trabalhando nos últimos cinco anos. Venho tentando encontrá-lo. Estou convencido de que o túmulo dele continua intacto.

     Ele tirou outro cheroot do bolso de sua camisa, curvando-se às costas dela para proteger a chama do isqueiro contra o vento.

     — E quando você vai recomeçar a escavar? — perguntou ela.

     Ele curvou-se à frente, tragando o cheroot, depois soltando lentamente uma baforada, deixando o vento carregar a fumaça e levá-la embora, como uma tira com partes esgarçadas. Houve uma longa pausa, então, e quando ele tornou a falar sua voz estava alterada. Subitamente, havia uma ponta de amargura nela, de ressentimento.

     — Não vou retomar a escavação.

     — Como assim?

     — É exatamente o que eu disse. Não vou voltar a escavar.

     — Quer dizer que vai escavar em outro lugar?

     — Talvez. Mas não no Egito.

     Ele estava olhando agora para a ponta de seus pés, os lábios retesados e pálidos. Sua mão livre estava cerrada, o punho transformado numa bola, como se estivesse prestes a esmurrar alguém. Ela soltou-se de seus braços e girou de modo a ficar de frente para ele, sentada na pedra, observando o perfil do seu rosto.

     — Não estou entendendo, Daniel. Como assim, não vai mais escavar no Egito?

     — O que quero dizer, Tara — disse ele — é que, em todos os sentidos, minha carreira como arqueólogo egiptologista está encerrada. Acabou. Kaput. Eu me fodi.

     A amargura no seu tom de voz era indisfarçável. Ele levantou os olhos para ela, os olhos escurecidos como se toda a vida e luz tivessem sido tirados dele, então deixou cair a cabeça.

     — Tomaram minha concessão — murmurou ele. — Aqueles filhos da puta tiraram minha concessão. E, dadas as circunstâncias, é pouco provável que eu a obtenha de volta.

     — Oh, meu Deus!

     Tara cresceu cercada de arqueólogos e sabia o golpe que isso representava para ele. Ela pegou a mão dele nas suas, acariciando-a, consolando-o.

     — O que aconteceu? Me conte!

     Ele puxou outra baforada do cheroot, depois o descartou, seu rosto contraindo-se numa careta, como se estivesse com um gosto horrível na boca.

     — Na verdade, há pouco para contar. Encontramos pistas do que parecia ser um antigo muro de contenção em nosso sítio e eu queria escavar ao longo dele para descobrir até onde ia. Infelizmente, avançava para fora dos limites de nossa concessão, entrando no sítio pegado ao nosso, uma equipe polonesa. É rigorosamente proibido invadir a concessão alheia por aqui, mas ainda ia demorar duas semanas até que os poloneses iniciassem a escavação, então, pensei, foda-se, e comecei a escavar. O que eu deveria ter feito era entrar em contato com eles, ou pelo menos com as autoridades egípcias, para discutir o assunto, mas... ora, eu não poderia esperar. Precisava saber até onde ia o muro, entende? Não consegui me controlar.

     Os dedos de sua mão livre começaram a tamborilar freneticamente sobre a superfície da rocha.

     — Quando os polacos chegaram, foi uma merda de uma confusão. O chefe da missão deles me chamou de irresponsável, acusou-me de não ter respeito pelo passado. Devotei toda a minha vida ao Egito, Tara. Ninguém tem mais respeito pela sua história do que eu. Quando ele falou essas coisas, não consegui me controlar. Eu o agredi. Literalmente. Tiveram de me arrancar de cima dele. Achei que ia matá-lo, e claro que ele me denunciou. A embaixada polonesa fez uma queixa formal, levou-a direto às altas esferas. Resultado: minha concessão foi revogada. E não foi só isso. Estou proibido de trabalhar em qualquer outra missão, no Egito. "Desequilibrado". Foi como me classificaram. "Um perigo para si mesmo e para seus colegas." "Uma ameaça. Filhos da puta! Idiotas! Gostaria de matar todos eles a tiros. Todos aqueles canalhas!

     Ele falava aceleradamente, agora, sua respiração aos solavancos, seus ombros estremecendo. Ele soltou sua mão da dela e, ficando de pé, deu alguns passos à frente em direção à borda do despenhadeiro, contemplando o vale. A despeito da escuridão, o solo descorado lá embaixo ainda estava claro, com o vento soprando em direção norte transformando-o num rio leitoso. Gradualmente, a respiração dele foi voltando ao normal, e seus ombros pararam de tremer.

     — Sinto muito — murmurou. — É só que eu fico...

     Ele começou a massagear as têmporas, suspirando profundamente. Fez-se um longo silêncio, quebrado apenas pelo crepitar do vento.

     — Isso aconteceu há dezoito meses — disse ele, afinal. — Permaneci por aqui guiando excursões, vendendo algumas aquarelas, sempre com a esperança de que as coisas mudassem, mas não mudaram. E não vão mudar. Em algum lugar, lá embaixo, há um túmulo intacto, esperando para ser descoberto e não vão me deixar procurar por ele. Tem idéia do que isso representa para mim? A frustração que estou sentindo? Meu Deus!

     Ele deixou a cabeça pender.

     — Não sei o que dizer — falou ela, desolada. — Lamento tanto. Sei muito bem o que o Egito significa para você.

     Ele deu de ombros.

     — Aconteceu a mesma coisa com Carter, você sabe. Em 1905. Ele foi expulso do Serviço de Antigüidades por ter se metido numa briga com turistas franceses lá em Saqqara. Terminou trabalhando como guia turístico e pintor. Assim, em certo sentido, meu sonho de me tornar um novo Carter tornou-se realidade. Se bem que não exatamente do jeito como eu havia visualizado a coisa.

     A amargura havia se dissipado agora, e também a raiva, dando lugar a um desconsolo exausto. Tara se pôs de pé e veio para o lado dele, enlaçando-lhe pela cintura. Ele deixou-se abraçar.

     — Sabe o que é engraçado nisso tudo? — sussurrou. — O tal muro de contenção, no final das contas, havia sido erguido por Belzoni, no século XIX. Tudo o que eu queria da vida destruído por causa de um muro construído duzentos anos atrás por um outro merda de um arqueólogo. — Ele deu uma gargalhada, na verdade um som frio, vazio, privado de qualquer humor.

     — Lamento muito — repetiu ela.

     — Lamenta mesmo? — Ele se voltou, seu rosto e o dela frente a frente. — Eu juraria que você ia ficar feliz com isso. Algo como justiça poética, no final das contas.

     — Mas é claro que não fiquei satisfeita, Daniel. Nunca quis mal a você. Ela elevou a vista, sustentando o olhar dele, então ficou na ponta dos pés e o beijou docemente nos lábios.

     — Eu quero você — disse ela simplesmente. — Quero você agora, aqui, sob as estrelas. Enquanto ainda podemos fazer isso.

     Ele baixou os olhos para ela e então abraçou-a e pressionou os lábios contra os dela, beijando-a apaixonadamente, sua língua movendo-se dentro da boca de Tara, as mãos dele deslizando pelas costas dela. Tara podia senti-lo endurecer-se contra ela, a pressão produzindo uma efervescência que atravessou seu estômago. Ele afastou-se um pouco, pegou a mão dela e disse:

     — Sei onde pode ser.

     Daniel recolheu a mochila dela e tomaram uma trilha estreita que corria ao longo do topo do desfiladeiro, levando-os a penetrar ainda mais nas colinas. A planície desapareceu, atrás deles. Tudo ao redor estava em silêncio, a não ser pela trituração de pedras sob seus pés. Depois de vinte minutos, atingiram um ponto em que a trilha, abruptamente, dava numa área plana e muito ampla, coberta de cascalho, na qual sobressaíam quatro vultos curvos, como vírgulas numa página, de resto, totalmente em branco. No que se aproximaram, Tara se deu conta de que eram pequenos muros de aproximadamente trinta metros de extensão e que batiam na altura de seus joelhos.

     — Quebra-ventos — explicou Daniel. — Nos tempos antigos, as patrulhas de guarda nestas colinas se abrigavam por trás deles.

     Ele se deteve e apanhou do chão o que parecia ser uma pedra achatada.

     — Veja — disse ele, segurando o objeto ao luar. — Cerâmica. Caminharam até o maior dos muros e, sem uma palavra, se ajoelharam

     um diante do outro. A parte superior de seus corpos recebia uma brisa suave. Da cintura para baixo, o ar mantinha-se quente e parado, como se estivessem de joelhos numa piscina. Ficaram se olhando por um momento e, então, tocaram-se, Daniel lentamente desabotoando a blusa dela, seus seios se libertando e reluzindo, pálidos, ao luar, os mamilos intumescidos. Ele inclinou-se à frente e beijou-os. Ela jogou a cabeça para trás, fechou os olhos e gemeu de prazer, tudo o mais, naquele instante, esquecido.

 

CAIRO

     Já eram quase sete horas quando Khalifa voltou finalmente ao escritório de Tauba. O detetive estava sentado à escrivaninha, sob a luz de uma lâmpada, batendo com apenas dois dedos numa máquina de escrever manual já bastante velha, o assoalho ao seu redor coberto por uma fina camada de cinzas de cigarro, como se tivesse havido uma leve precipitação de flocos de neve naquele seu canto do escritório.

     Khalifa lhe entregou de volta a chave da loja de Iqbar e informou-o sobre a garota e...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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