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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O EXILIO / Pearl S. Buck
O EXILIO / Pearl S. Buck

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

De quantas recordações me deixou, escolho uma, aquela que melhor a identifica: de pé, no jardim americano, que ela própria plantara no coração sombrio de uma cidade chinesa, à beira do rio Iansequião. A flor da maturidade concede-lhe ao rosto uma expressão correcta e forte e ao corpo uma atitude bela e livre, realçada pelo sol esplendoroso e quente do Verão. Não é alta nem exageradamente baixa, mas tem um porte altivo e erecto. Na mão, segura o ancinho com que estivera a tratar do jardim.
Essa mão, bondosa e forte, evidencia a prática de toda a espécie de trabalho, o que não impede que seja delgada e bem feita e termine por dedos inesperadamente fusiformes e delgados nas extremidades.
Toda ela está banhada pelo sol dos trópicos, mas ergue, despreocupada, a cabeça, mostrando uns olhos abertos e vivos, uns olhos salpicados de ouro e sombreados por sobrancelhas escuras e cuja luminosidade franca é coada por cílios, curtos, espessos, igualmente escuros. Nessa época da sua vida não se poderia dizer se era bonita ou não. O que nela atraía era a vida vigorosa e ardente emanada do rosto, o nariz direito e levemente comprido, o largo intervalo entre os olhos, a boca móvel, expressiva, de lábios carnudos, o queixo bem modelado e a linha bela do pescoço e dos ombros. O sol dardejava impiedosamente sobre a cabeleira espessa e macia que lhe emoldurava a face em ondas fartas. Era de um castanho-escuro, listrado já por uns fios grisalhos e nas têmporas deixava ver nitidamente duas grandes madeixas brancas.
Como deveria parecer uma personagem estranha e forte, nesse jardim americano, situado no coração sombrio daquela cidade chinesa! Embora esse sol estrangeiro lhe tivesse queimado extraordinariamente a pele, não podia ter passado senão por americana. Ali perto, um jardineiro chinês com as calças e o casaco de algodão azul descuidadamente atados à cinta e um largo chapéu de palha cobrindo-lhe a cabeça rapada, apoiava-se num bambu arrancado a um canavial próximo.

 

 

 

 

Todavia, nem o maciço de bambus nem o jardineiro conseguiam conferir-lhe um aspecto exótico. Era dotada realmente de uma personalidade inconfundível. A bem dizer, o trabalho do chinês limitava-se ao transporte de regadores cheios de água para a rega do jardim. Fora ela quem plantara as flores americanas, goivos amarelos, anémonas e pinheiros, encostados aos muros de tijolos; fora ela quem cuidara do belo relvado macio, quem podara as árvores, quem plantara canteiros de violetas, junto aos degraus da varanda; fora ela quem convencera uma trepadeira da Virgínia a subir pelas linhas feias e angulosas da casa da Missão, que ostentava já dois lados revestidos de verde. Ao fim da comprida varanda, uma roseira inclinava os ramos sob o peso das flores. Se alguém tentasse aproximar-se destas, era severamente repreendido, pois abrigava-se ali um ninho de rolas que ela protegia mais zelosamente que a própria mãe-rola. Certa vez, vi-a zangada - o que nela era um estado frequente - porque o maroto do jardineiro fora ao ninho. Despejou sobre o homem uma torrente de chinês bem articulado que o levou a fugir apavorado. Depois, num impulso cheio de compaixão, voltou-se para a pobre rola, despojada dos filhos, e dirigiu-se-lhe numa voz inteiramente diferente da que usara para com o homem; acarinhou a avezinha, puxou o ramo da roseira, colocou ternamente a rola no ninho vazio e, ainda zangada, apanhou as cascas dos ovos quebrados, que enterrou tristemente. Que alegria a sua quando tempos depois viu que a rola os substituíra por outros quatro pequeninos ovos!
- A rolinha foi muito linda! - dizia ela, com os olhos a brilharem.
Mas a história nao começa com esta descrição da sua pessoa porque trata-se de um retrato que não explica
por que motivo essa mulher, continuando eternamente americana, viera construir o seu jardim na China - se é que isso pode realmente ser explicado. Seja como for, a história deve ser contada pelo princípio.
As origens da sua família enraizavam num abastado e independente tronco holandês. O avô fora um próspero comerciante da cidade de Utreque, na Holanda. Na época do trabalho manufacturado, fora considerado rico por possuir uma fábrica onde empregava uma centena de artífices e de onde saíam móveis luxuosos, talhados em madeira de importação. Era indubitavelmente da sua fábrica que saíam muitas das secretárias de pau-rosa, mesas embutidas e móveis de mogno, daquele tempo.
Esse holandês, Mynheer Stulting, era um apaixonado dos lavores finos e da perfeição nos pormenores. Vivia com a família, em Utreque, numa casa típica, ampla, confortável, recheada de belos móveis maciços, cuja limpeza e polimento excediam qualquer imaginação. Era essencialmente um tipo da cidade, mas, nas traseiras da casa, possuía um jardim quadrado, onde plantara túlipas e se sentava, à tarde, com um comprido cachimbo entre os dentes e uma caneca de vinho à frente.
Ao Sabbath, como sempre chamava ao dia do Senhor, dirigia-se acompanhado pela mulher e pelo filho - o mais novo de todos e o único que com eles vivia - à igreja. Nunca se lembrariam de dirigir-se a outro sítio, pois que, de entre as trezentas almas que a sustentavam, não havia nenhuma outra para quem fosse mais importante do que para Mynheer Stulting. Quando o holandês entoava os seus salmos preferidos, a sua voz majestosa ressoava fortemente por toda a igreja e o filho, um rapaz franzino, sempre a seu lado, acompanhava-o. Era mais baixo que o pai, de compleição muito mais fraca e muito cuidadoso no traje. A mãe, corpulenta, meiga e bondosa, sentava-se do outro lado
do banco, murmurando suavemente a toada do salmo, sem no entanto conseguir abstrair-se completamente do jantar de domingo que deixara a aquecer no fogão de porcelana da sua cozinha imaculada.
Durante as manhãs de domingo, nessa igreja, havia realmente religião. O pastor, alto, de rosto magro e ascético, onde brilhavam uns olhos fuzilantes, esíorçava-se tanto quanto podia. Às vezes, nos olhares dos trezentos fiéis que invariavelmente ali se reuniam para escutá-lo, sentia uma espécie de desafio: era um olhar subtil, penetrante, equilibrado, tranquilo, pensativo, ávido, critico. Essas almas sabiam muito bem se um homem estava ou não com Deus no momento de compor o sermão e esperavam um alimento substancial que lhes nutrisse o cérebro e fortalecesse o espírito. E o pastor não se poupava a esforços para dar-lhes alimento e força.
Começou então, na Holanda, a época da intolerância religiosa e o peso dessa intolerância fez-se sentir sobre esses devotos. No domingo imediato à proclamação do édito que lhes proibia a liberdade de culto, aqueles trezentos fiéis voltaram a reunir-se. Porém, desta vez, não o fizeram para ouvir o pastor, mas sim para combinar entre si o que deveriam fazer. Quando essa amena discussão, em que todos tinham emitido a sua opinião, findou, era evidente que uma coisa, pelo menos, estava certa: aqueles homens e mulheres não suportariam qualquer interferência na sua liberdade religiosa. Fora Mynheer Stulting quem por último falara, erguendo-se pesadamente do banco, inclinando para trás o pescoço forte e fuzilando a assistência com o fulgor dos seus olhos escuros, de pálpebras pesadas. A sua voz vibrara como o som de uma trombeta, nestas palavras:
- Quanto a mim e aos da minha casa continuaremos a servir o Senhor! Se não pudermos servi-Lo no nosso país, iremos então para outra parte!
Fez uma pausa e olhou penetrantemente à sua volta. Todos os presentes sabiam bem que ninguém como ele, o burguês rico, teria tantos interesses valiosos a abandonar. Depois Mynheer trovejou:
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- Vamos para outro país! Quem quer ir?
Tão leve como uma labareda, o pastor de cabelos brancos, ergueu-se sorrindo numa espécie de êxtase. Um grupo de rapazes pôs-se também de pé, com os lábios apertados numa linha fina e os olhos reluzentes. Lentamente, os homens mais velhos acompanharam-nos. Estes, sem dúvida, tinham mais a perder que os jovens: negócios estabelecidos, interesses prósperos, casas, terras... Por último, ergueram-se as mulheres; aqui e além, uma rapariga, acompanhando com os olhos o gesto dum rapaz, erguia-se também, não com a mesma pressa, mas timidamente. As mães foram as últimas a levantar-se, apertando ao peito os filhos pequeninos, mostrando-se desorientadas e uns olhos perturbados e temerosos. Por fim, todos aqueles fiéis se acharam de pé e o pastor, ao vê-los, sentiu as lágrimas deslizarem-lhe ao longo das faces, perante o triunfo do que considerava o seu reino. Ergueu os braços para orar e todos caíram de joelhos sob o poder daquele olhar. Uma grande prece elevou-se então por toda a igreja, inundando-a com a sua força e presença. Aquela gente ia partir, abandonando tudo por amor de Deus e da liberdade.
Aquela mulher americana nascera desse tronco.
Embora a profunda emoção daquele dia se tivesse extinguido, a resolução manteve-se. Mynheer, com o seu sólido bom-senso holandês, vendeu por bom preço a fábrica e liquidou todos os haveres.
Procurou que tudo aquilo não fosse demasiado duro para a mulher. Esta, enquanto andava de um lado para o outro da casa, chorava, mas fazia-o silenciosamente, com o rosto escondido, porque não queria fazer nada que pudesse afastar o marido do dever e porque estava absolutamente certa de que o marido conhecia muito melhor do que ela a vontade de Deus. Vivendo, como vivia, sempre ocupada, cozinhando ou lavando, nas limpezas ou guiando as criadas, pouco tempo tinha para pensar em Deus e, por conseguinte, deveria deixar esse cuidado ao marido. Além disso, tinha tanta dificuldade em soletrar alguns versículos da Bíblia, que
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confiava a leitura santa ao marido, quer pela manhã, quer à noite, o que não impedia que a pobre senhora sentisse verdadeira vergonha ao verificar que, aquando da leitura da manhã, os seus pensamentos se detinham com muito mais frequência nos bolos do pequeno almoço e nas salsichas do que na palavra sagrada que fingia escutar. Porém, mais vergonha sentia ainda quando dormitava, enquanto o dono da casa lia, e este acabava por despertá-la para que se ajoelhasse à hora da prece. Isso tornava-a humilde, mais humilde ainda porque o marido nunca a censurava e limitava-se a dizer-lhe com a sua voz forte e bondosa:
- Como estás cansada, minha querida Huldah!
- Ach, Jahann - respondia ela, contritamente - gostaria tanto de ouvir a Sagrada Escritura! Por quenão consigo escutá-la?
Portanto, se ele dizia agora que precisava de partir, evidentemente que era uma medida precisa. O maridonão se mostrou severo para com ela e permitiu-lhe que levasse consigo todos os objectos de estimação. Arrumou grandes caixotes com colchões de penas, pratos de porcelana azul e branca, talheres de prata e todos os móveis de que careciam.
Os dois filhos mais velhos estavam casados e tinham também que desfazer-se das suas casas, visto pertencerem à mesma igreja. Em casa de Mynheer Stultingsó ficara Hermanus, o mais novo de todos, aquele que, apesar de jovem, se conservava tão rígido e erecto. Em contraste com os outros, não fora iniciado cedo no negócio, porque nascera quando a mãe já era idosa,, depois da morte de vários outros filhos e era de compleição débil e doentia. Além disso, durante a sua? adolescência a casa nadava em prosperidade e, atendendo a que o rapaz era orgulhoso e sensível, cheio de amor pelas coisas belas, o pai e a mãe tinham-no deixado escolher um meio de vida. Optou pelo ofício de joalheiro, porque gostava da cor e do contacto dos. metais e das pedras preciosas. Aprendeu também as fazer e a consertar relógios, porque a minúcia e a delicada precisão do maquinismo mágico fascinavam-no_
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Hermanus era um filho absolutamente surpreendente para aqueles pais, corpulentos e abastados. De pé, a seu lado no banco reservado da igreja ou junto aos irmãos robustos, acompanhados pelas mulheres e filhos, parecia um estranho, pequeno, franzino e sonhador, que apenas no orgulho e na independência era grande. Era tão cioso dessa independência que os irmãos nunca ousavam intrometer-se na sua vida. De resto, era melhor educado que os outros, porque quisera aprender muitas coisas. Falava vários idiomas, escrevia música, era muito hábil no manejo do pincel e com pena e tintas desenhava maravilhosamente. Além desses dons, possuía uma admirável voz para o canto e um ouvido fino e entoado. Ainda muito pequeno, já os outros lhe tinham reconhecido esse talento e, quando pouco mais era que um garoto, segurava o diapasão da igreja, dando já então o tom para os salmos.
O mesmo estofo que dera esse rapaz delicado, ardente, orgulhoso, amante apaixonado da beleza, fizera também aquela mulher americana porque esse homem fora seu pai.
Mynheer Stulting mandava frequentemente o rapaz em viagem a outras cidades, o que muito lhe agradava. Quando andava por fora, tornava-se um pouco pedante; comprava em Amsterdão um garrido colete bordado ou uma alta cartola de seda, gostava de ostentar camisas imaculadas e era exigente na escolha dos perfumes e no corte das casacas. Não obstante, era merecedor de toda a confiança, e, embora levasse consigo um criado fiel, mantinha-se sempre afastado dos sórdidos pecados <ia rapaziada, graças ao seu intenso amor-próprio.
Mynheer Stulting, ao ultimar os negócios preparatórios da partida, verificou que algumas casas lhe deviam dinheiro. Muitas delas eram lojas de móveis de diversas cidades que gostavam de adquirir as peças perfeitas do seu fabrico, não só por ele próprio proceder à fiscalização da sua manufactura como por muitas vezes fazer por suas mãos o polimento final. Mandou chamar o nino e disse-lhe:
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- Hermanus, volta a Amsterdão, procura pessoalmente o chefe desta casa e trata da liquidação das contas. Dize-lhe que parto do meu país porque preciso e devo ser livre e que isto é o fim e o começo.
O proprietário da casa em cuja procura Mynheer mandava o filho era um francês de sangue huguenote que herdara uma grande fortuna paterna. Hermanus já anteriormente o visitara e conhecera-lhe a filha mais nova. De cada vez que a via sentia-se mais fascinado pelos seus olhos profundos e escuros, pela sua figura mais leve e mais frágil do que a de todas as jovens holandesas que conhecia e que mal lhe chegava ao ombro, embora ele próprio fosse de pequena estatura. Naquele tempo, os costumes do país eram tão severos que nunca tinham podido falar a sós. Todavia, nas últimas três vezes em que se haviam encontrado, tinham-se mirado intensamente um ao outro, os olhos de ambos tinham-se perturbado e Hermanus compreendera que chegaria o dia em que muito mais seria dito entre ambos.
Sabia agora que estava a vê-la pela última vez. Sentada, com a cabeça de cabelos escuros e ondeados inclinada sobre o toucador, manteve-se imóvel e silenciosa, enquanto o ouvia dar conta da mensagem do pai; porém, quando o ouviu dizer que partia para o estrangeiro, ergueu os olhos, anelante, e Hermanus viu-a pousar a mão sobre o peito. Subitamente, o sentimento que até aí lhe entravara a respiração e a que ele mal ousava chamar amor, cresceu-lhe no peito, dominou-o, e o rapaz compreendeu que a francesinha devia pertencer-lhe.
Então, balbuciando, tremendo, sofrendo um orgulho receoso, pediu permissão ao pai para dirigir-se à jovem. O velho ordenou à filha que se retirasse imediatamente da sala e o seu espanto perante o acontecido manifestava-se bem nas negras sobrancelhas que lhe barravam a fronte, nos olhos que se abriam e fechavam, nos ombros que se encolhiam e nos dedos que passeavam indecisos pelo colete. Não queria ainda pronunciar-se
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definitivamente, pois sabia que o pai do rapaz era rico;
nrocurou contemporizar e falou num acordo futuro.
-_ Mas eu vou partir do país - recalcitrou Hermanus
num ápice, subitamente ousado. -O caso tem de ser
resolvido já.
Ah nesse caso era impossível, proclamaram os cenhos cerrados os olhos fuzilantes. Hermanus virou-lhe as costas, com o coração a pulsar loucamente sob o peito altivo'e a face orgulhosa.
Quando chegou à rua, teve de apelar para todo o seu orgulho e encaminhou-se às cegas em direcção ao hotel, com os olhos toldados pelas lágrimas. Visto que o negócio já estava liquidado, era-lhe impossível adiar a partida para além daquela noite. Então, mal podendo acreditar, ouviu passos delicados atrás de si e virando-se viu que ela o seguira com os cabelos escondidos numa mantilha de renda, que lhe agarrava os braços e lhe falava com voz entrecortada. Ia-se então embora? Ah... para a América? Ah... era assim tão longe? Ah... era muito longe! E os seus olhos ergueram-se subitamente lindos, francos, como uns olhos de criança, castanhos, palhetados de ouro. Hermanus olhou-a, desesperado. Talvez, no fim de contas, aquele momento lhe pudesse valer por longos e lentos meses de corte. A sua franqueza de holandês veio-lhe em auxílio e perguntou simplesmente:
- Aceita-me por marido?
Ela olhou-o também, com rectidão e franqueza:
- Sim, aceito-o.
Planearam tudo rapidamente. Vivia só em casa, à parte o pai e a aia - a mãe morrera-lhe há muitos anos. Sim, poderia fugir com grande facilidade. Sim, poderia vir buscá-la, daí a meia-hora, para tomarem a diligência juntos. Sim, estava absolutamente certa de que lhe responderia sim, se ele perguntasse se o amava e também se queria acompanhar seus pais para a América.
Hermanus ficou à sua espera, naquela rua silenciosa e tortuosa, dominado por uma febre de amor e receio, nao despida de embaraço. Ela apareceu-lhe mais cedo
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do que prometera, envolta numa capa e capuz. Levou-a para o hotel, onde o criado o esperava; apesar do horror manifestado por este fleumático sujeito, os dois souberam convencê-lo a poder de lisonjas e, na manhã seguinte, apresentaram-se diante de Mynheer Stulting e de sua esposa, pálidos e exaustos pela viagem nocturna, mas decididos e indomáveis.
De forma que o pendor para o amor e a paixão entraram também na composição daquela mulher americana, pois esse casal eram seu pai e sua mãe.
A congregação não pôde sair de Utreque tão rapidamente como planeara. Trezentas pessoas não podem transplantar-se assim tão facilmente. Além disso, entre os seus componentes havia os que tinham esperanças numa mudança do governo. Porém, a mudança não se verificou e um ano depois todos os preparativos estavam feitos. Esse ano deu tempo a que se realizasse o casamento de Hermanus com a jovem francesa e permitiu também que nascesse o filho do casal a quem chamaram Cornelius. Quando a hora da partida soou, havia já três gerações da família Stulting prontas a velejarem para longe da pátria.
Com o pastor à sua frente, trezentos fiéis navegavam então através do Oceano Atlântico. Haviam fretado um navio que os levasse a todos juntos e nele viviam sossegadamente, encarando com firmeza o futuro desconhecido, traçando planos sobre o que deveriam fazer na nova terra. Gastaram vinte dias a cruzar o Oceano e, durante a travessia, oito pessoas morreram devido a influença. Foram sepultadas no mar e, enquanto os corpos eram atirados às vagas, o pastor orava com a espessa cabeleira grisalha agitada pelas fortes brisas marítimas.
Para Hermanus e para a mulher esses dias foram um tempo de exaltação. Pouco lhes importou que o velho francês mandasse dizer-lhes que embora perdoasse à filha não desejava voltar a vê-la em casa.
- Como poderia eu desejar voltar para casa! - exclamara alegremente, ao receber o recado do pai. - Além
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disso nunca gostei dele! É um velho mau, cruel! Ah,
"Ermanus"!
Hermanus adorava verificar que o sotaque francês da mulher não lhe permitia pronunciar o nome sem aquela sua eliminação do H aspirado. Agora, iam a caminho do desconhecido. Nisso como em tudo o mais confiava em seu pai... e, enquanto navegavam, tinha a seu lado a sua amada e o seu filhinho.
As dificuldades começaram mal chegaram às praias da América. Não eram um povo sentimental e agora pensavam mais nos problemas práticos referentes à vida do que no impulso que os arrastara em busca da liberdade. Talvez este sentimento se devesse também a terem verificado que o povo de Nova Iorque era ganancioso
e astuto.
Quando o navio, carregado de prósperos comerciantes e artífices holandeses, ancorou no porto, consideraram-no uma presa fácil e os ricos holandeses viram-se obrigados a exibir uma moeda de ouro na mão em troca do mínimo serviço.
Defrontaram, pois, a situação com firmeza e prosseguiram a sua viagem até à Pensilvânia, ponto do seu destino. Ao chegarem, verificaram que a terra, inteiramente pantanosa, não se adaptava a nada e era inteiramente imprópria para a agricultura. Os peregrinos desejavam estabelecer-se todos juntos no mesmo trecho de terra e erigirem aí os seus lares e a sua igreja. Mas, ante a decepção que a terra lhes causara, alguns, desanimados, dirigiram-se para as cidades, onde encontrariam um ambiente a que estavam mais habituados. Mynheer Stulting não se incluiu no número destes últitnos.. Ficou de pé, firme, na terra húmida e pantanosa, tal como ficara na igreja; chamou todos que o quisessem seguir e ao seu pastor, propondo-lhes a compra de novas terras no Sul com o que restava do ouro; permaneceriam assim juntos. Mais de cem peregrinos ficaram de pé, silenciosos, prontos a segui-lo. Compraram então a terra na Virgínia e para lá se dirigiram, tristes, com o coração roído de nostalgia.
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Dessa vez a terra era boa e ficava um planalto fértil rodeado de montanhas. Em todo o caso, como tudo aquilo devia ser estranho e duro para aqueles homens e mulheres, acostumados à fácil existência na opulenta cidade holandesa, e que nada conheciam da vida do campo, nem sequer no seu pequeno país, compacto e bem cultivado! Ali, viam-se rodeados por todos os lados de montanhas selvagens e, para além da terra onde deveriam viver, adensavam-se florestas imensas. Próximo ficava uma feitoria inglesa, mas os índios rondavam-na constantemente e atravessavam-lhe os campos em todas as direcções. Embora esses selvagens não fossem ostensivamente hostis, bastava vê-los para se ficar assustado e sentir uma impressão de intensa barbárie.
Todavia, os holandeses eram resolutos. Conseguiram adquirir machados, machadinhas e facas, e derrubaram árvores, seguindo as instruções que os ingleses lhes davam. Cada família construiu para si uma tosca cabana e depois, reunindo-se os esforços de todos, levantaram a igreja. No primeiro domingo celebrado nessa igreja, cujos bancos eram toros rústicos ainda munidos de casca e cujo púlpito era um grosseiro tronco, aquela gente reuniu-se sob o céu estrangeiro, que de futuro seria o seu, para adorarem a Deus por amor do qual tinham abandonado tudo.
Nos dois anos imediatos, muitos dos peregrinos mudaram-se para outras terras, porque as dificuldades e privações da nova vida eram realmente excessivas para os velhos e para os de constituição mais delicada. De entre os que ficaram para orar a Deus, poucos se contavam que tivessem entre cinquenta a sessenta anos e muitos ficavam com o rosto sulcado por lágrimas, enquanto oravam. Porém, o velho pastor continuava ali, mais magro e terrivelmente velho, mas de espírito ainda indomável. Morreu no ano seguinte.
Quanto trabalho tiveram de realizar nos primeiros anos! Tinham de arar os campos e semear colheitas para proverem à própria manutenção. Primeiramente, derrubavam as árvores, depois, arrastavam-nas com
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correntes puxadas por homens e cavalos e deixavam então os toros de lado à espera que os trabalhos mais prementes da sementeira e colheita ficassem terminados. Depois, durante o Inverno, as correntes voltavam a cingir os grandes troncos e os homens e cavalos tornavam a arrastá-los com grande alarido. Serviram para a construção das primeiras paliçadas e barreiras, mas era um trabalho exaustivo. Decorrera ainda pouco tempo e era já impossível distinguir de entre eles um único homem criado na cidade, com excepção talvez de Hermanus, cujo corpo delgado era demasiado franzino para ser de alguma serventia quando se impunha o trabalho pesado. Deste modo, manteve, apesar de tudo, o seu ar esquivo e levemente aperaltado. Mesmo ali, em pleno mato, continuava a exercer o seu ofício e era frequente levarem-lhe de enormes distâncias relógios que requeriam conserto.
Hermanus vivia com a mulher e o filho numa cabana de toros, construída junto à dos pais. A intrépida jovem parisiense transformara-se numa admirável pioneira. Alegre, apesar de todas as privações, com passo ligeiro e mão sempre activa, de espírito prático e ardente, desempenhava-se com ligeireza da sua tarefa, mantendo a cabana num asseio impecável e cuidando dos pequenos que todos os anos iam nascendo - três raparigas, em seguida a Cornelius, e depois mais um rapaz.
Aquela jovem continuava a adorar o marido. Achava-o delicado, demasiado delicado para aquela vida. Quanto a si, sentia-se capaz de suportar tudo. Alguém deveria cozinhar, lavar, tratar das crianças. Em toda a parte cabem à mulher esses encargos e ela também podia tomá-los sobre si.
Plantou laboriosamente o seu jardim, percorreu dez milhas a pé para arranjar uma galinha choca e seis ovos galados e iniciou um aviário. Lamentava-se por ter uma pequena lagoa e não ter ovos de pata - em França os patos eram tão lindos! Todos os dias, lavava e engomava uma camisa de linho branco, que ela própria fizera para o marido. Este não se levantava antes das oito da manhã e, antes do pequeno almoço, já ela
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lhe levava à cama uma chávena de chocolate. Não lhe ocorria que, antes do marido sentar-se à mesa para tomar o café e os bolos, já ela consagrara à família meio-dia de trabalho. Adorava-o, deliciava-se com as suas atitudes de "gentleman", e comprazia-se em contemplar-lhe o aspecto fino, o rosto barbeado e a camisa branca de colarinho imaculado. No povoado não havia nenhum outro homem que se assemelhasse a Hermanus.
Talvez mais rapidamente do que as mais sólidas matronas holandesas, a francesinha adaptou-se à rusticidade e selvajaria daquela vida e transformou o seu terreno num lindo jardim francês. Aqui e acolá colhia rebentos e galhos. Dava a impressão de não poder ir visitar ninguém sem trazer no regresso uma raiz escondida no xale.
Via a família engordar à custa de legumes, frangos e ovos e conseguiu negociar uma vaca com um inglês vizinho em troca de trabalhos de costura que lhe fizera, de forma que foi uma das primeiras a ter leite para o seu consumo pessoal.
Era tão activa e tão alegre que se ficava com a convicção de que a selvajaria daquele deserto e o trabalho, que ali tinha, em nada a afectavam.
Um dia, porém, quando regressava do batatal, entrou na cabana para ver se o filhito mais novo continuava sossegado como o deixara, no berço de madeira escavado num grande toro inteiriço. O pequeno dormia, mas, com grande horror, a pobre mãe viu uma cascavel enroscar-se ao lado da criança, enrolando e desenrolando, lenta e tranquilamente, os seus anéis.
A mãe apoiou-se ao umbral da porta. A sua viva inteligência ordenava-lhe que não fizesse qualquer movimento, que não emitisse qualquer som. Mas se a criança se movesse ou se voltasse? Agachou-se junto ao umbral da porta e, trémula de pavor, sem deixar de vigiar o filho, pôs-se a rezar desesperadamente. Sentou-se ali e a cobra continuou à vontade, desenrolada. O Sol ia subindo no céu e os outros chegariam em breve para tomarem a refeição do meio-dia. Continuava a rezar.
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Por fim, indiferente, o réptil começou a mover-se e, deixando-se escorregar pela borda do berço, atingiu o chão de terra batida e encaminhou-se para a fenda existente entre dois troncos da parede.
O furor apoderou-se então daquela mãe, pequenina e valente; agarrou na enxada com que cavava o jardim e caiu sobre a cobra, apanhada de surpresa, golpeando-a, esmagando-a. Quando Hermanus entrou em casa encontrou-a exausta e num pranto, estendida no chão ao lado da cobra morta; mas a criança fora poupada e brincava pacificamente. Era a primeira vez que o marido a via chorar.
A primeira criança que depois disso nasceu foi Carie. Tudo quanto a maturidade da mãe produziu foi empregue no futuro dessa filha que lhe herdou a alegria, a sensatez, a coragem e adaptabilidade.
A vida da comunidade holandesa começou então a identificar-se com a vida da nação americana. Essa identificação foi voluntariamente procurada pelos colonos, embora alguns dos mais velhos, às vezes até Mynheer Stulting, sentissem saudades do bem-estar e da segurança da pátria abandonada.
Custou-lhes saber que, seis meses após a sua partida da pátria, o Governo modificara a sua atitude, permitindo plena liberdade de crenças. Se tivessem tido um pouco mais de paciência não se teriam visto obrigados a defrontar uma necessidade imperiosa de partir - não lhes seria imposto aquele árduo labor, aquela solidão selvagem. Muitos acusaram Mynheer Stulting de impetuoso. Este lançou-lhes um olhar contrito e humilde, aturdido com o que fizera, e murmurou com a garganta seca:
- Mas o que fiz foi por amor de Deus e da liberdade.
Acudiu-lhe então a mulher que, falando pela primeira e última vez à congregação, enfrentou com a sua voz branda os acusadores:
- Quem é que, naquele tempo, poderia prever isto? O bom Deus compreendeu o nosso propósito de abandonar tudo para segui-Lo. Depois dessa prova a que nos prestámos, Ele ficou a saber quem somos. E qual
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de entre vós abandonou mais riquezas do que meu marido? E qual das vossas mulheres renunciou a mais coisas do que eu - a uma boa casa de doze quartos com uma lareira de porcelana em cada um?
Tudo isso era verdade e ninguém o contestou ou prosseguiu nas acusações. Por fim, Mynheer declarou resolutamente:
- Voltar atrás é impossível. Agora só nos resta ir para a frente e contribuir com as nossas próprias mãos para a construção desta jovem nação. Devemos procurar que os filhos aprendam a língua da sua nova pátria e nós próprios devemos aprendê-la, por muito difícil que nos pareça. Respeitemos as suas leis, tornemo-nos seus cidadãos e renunciemos à nossa antiga pátria.
Foi isso que todos começaram a fazer.
O sonho de Mynheer era construir uma casa igual à que deixara na Holanda, pois pensava que, quando a possuísse, lhe seria mais fácil sufocar as saudades. Além disso, sabia que a mulher desejava ardentemente uma casa, uma verdadeira casa, pois nunca se habituara às toscas cabanas de toros.
A terra dos Stulting era boa. Os filhos mais velhos de Mynheer cultivavam-na bem e ao fim de vários anos conseguiram amealhar boa maquia em dinheiro. A madeira abundava e, como existia no povoado uma pequena serração, pertencente aos ingleses, Mynheer resolveu construir a casa com que há muito sonhava.
Fez o seu traçado e ele próprio trabalhou activamente na construção, secundado pelos filhos que ali empregavam todo o tempo disponível. Deliciava-se vendo a boa e velha esposa, que tudo suportara tão pacientemente apesar da sua timidez, regozijar-se com a casa nova.
Construíram-na no meio do povoado. Era uma grande e bonita casa de madeira, com doze divisões de soalhos lustrosos e de paredes forradas de papel... enfim, uma verdadeira casa de cidade. As suas terras tinham fornecido a madeira e o trabalho que eles próprios não puderam executar trocavam-no por dias de serviço.
Todavia, a construção levou muito tempo, mais de dois anos. O segundo Inverno, o Inverno intenso e rude das montanhas, voltou antes da casa estar concluída. Mynheer apanhou um resfriamento enquanto trabalhava na construção e, antes mesmo de compenetrar-se de que estava doente, ficou mortalmente enfermo e não resistiu.
No mesmo Inverno, a mulher, que já não pensava na casa, morreu também, mansa e delicadamente.
Esses dois, que haviam morrido na nova pátria - demasiado nova para eles - vigiaram no berço a netinha Carie, embora esta não conservasse deles a menor recordação. Porém, na sua inteligência e em todo o seu ser, ficara gravada a influência dos avós.
Nesse Inverno de 1858, o povoado dos holandeses foi assolado por uma vaga de desânimo. As colheitas foram más, o que levou muitos dos colonos a abandonarem a agricultura e a procurarem as cidades em busca de negócios. Entre estes, contavam-se os dois filhos mais velhos de Mynheer, que reuniram as famílias e puseram-se a caminho, deixando atrás de si apenas a casa inacabada, Hermanus, a mulher e os filhos.
Porém, o rapazinho que ainda nascera na antiga pátria, contava já quinze anos e era muito ajuizado e trabalhador para a idade. Com o seu auxílio e o de outros colonos, Hermanus terminou a casa e foi habitá-la com a família.
Carie contava então dois anos e as suas lembranças mais antigas datavam já da casa nova, de grandes divisões vazias e rectangulares.
Essa casa, espaçosa, altiva, bela, concebida pela inteligência do avô Mynheer e terminada pelas mãos juvenis do irmão, contribuiu também para a formação dessa mulher americana.
Carie começava a contar a própria história, a partir desse ponto. Do ponto em que começavam as suas recordações. Foi a partir daí que ma contou, embora já se houvessem passado muitos anos desde que fora
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para a China. Raramente dispunha de tempo para gastar em histórias; vivia sempre demasiado ocupada para poder perder tempo com conversas. Mas, lançando um olhar aos trinta anos que vivi em sua companhia, e reunindo tudo quanto me foi dado conhecer a seu respeito, obtenho uma pintura fiel da sua infância e adolescência, decorridas durante uma outra adolescência - a da pequena cidade da Virgínia, construída nos férteis planaltos das montanhas conhecidas pelo nome de "Little Leveis".
Em geral, nas noites de domingo consentia conversar comigo mais tempo do que de costume. O domingo avivava-lhe as lembranças da cidade natal. Nas manhãs de domingo acordava com uma expressão diferente no rosto, em que se notava uma maior paz e menos disposição para o trabalho e para a luta. A fronte larga mostrava-se sem rugas e, nos olhos brilhantes, em geral mais activos que serenos, repousava então a tranquilidade.
Nessas manhãs de domingo, o pequeno almoço, na assoalhada sala de jantar da casa da Missão, tinha sempre um aspecto alegre. Recordo a toalha alvíssima que cobria a mesa, uma jarra contendo as últimas flores desabrochadas, frutos, café quente, torradas, conservas, presunto com ovos. Um criado chinês ficava de pé, junto à mesa, pronto a servir e ela dava-lhe ordens rápidas, movendo as mãos activas entre as chávenas azuis e as cafeteiras.
Às vezes, olhava carinhosamente para o jardim. Lançava-lhe sempre um olhar carinhoso quer estivesse cheio de flores, quer sob um pesado céu de Inverno. Exclamava então:
- Que coisa linda!
Algumas vezes, a meio da refeição, confessava:
- Estas manhãs calmas de domingo recordam-me sempre a casa. Se ao menos pudesse ouvir um sino a tocar! Lembro-me de que, todas as manhãs de domingo, meu pai dirigia-se à igreja, levando a Bíblia debaixo do braço, sempre muito direito como um fuso, embora já tivesse oitenta anos!
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Sinos de igreja... recordava-os sempre com saudade e à clara simplicidade com que ressoavam sobre quietos lares de aldeia. Às vezes, durante o dia e até durante a noite ouvia-se pairando sobre os bambus do vale que se estendia aos pés da casa da Missão, o som profundo e mórbido do sino do pagode, batendo uma única e
desolada nota.
Odiava-o. Para ela, esse sino representava as sombras, todo o mistério e escuridão da vida oriental, que a cercava e Carie odiava o mistério e a escuridão.
Depois de construída uma pequenina capela cristã na cidade, não sossegou enquanto não conseguiu persuadir o povo da sua aldeia natal a comprar-lhe um sino, um sino pequeno e adorável, feito na América, um sino vivaz, cujo som ressoasse através das ruas chinesas, um sino como só uma americana poderia imaginar. Era frequente ver algum cavalheiro idoso chinês deter-se a meio do caminho para averiguar o que tocava tão alegremente por sobre a sua cabeça e esticar o pescoço para descobrir o instrumento. Na cidade, não havia nada tão alegre e tão claro como aquele sino. Carie, quando nas manhãs de domingo o ouvia, nunca deixava de sorrir e de exclamar:
- Que lindo! Parece que estou a ouvi-lo em casa! Era, todavia, nas tardes de domingo, que gostava de conversar connosco. Já por duas vazes fora à igreja; de uma delas, para assistir ao serviço da manhã na capela chinesa e, de outra, à tarde, ocasião daquela patética reunião de homens e mulheres brancos, exilados da pátria que ali se juntavam para venerarem o Deus das suas lembranças. Tanto de uma vez como da outra, Carie tocava o órgão, conseguindo milagres musicais daquele instrumento. Conhecia todos os hinos e a sua voz de soprano, sonora e bela, enchia toda a capelinha - era uma voz alegre e adorável, que mais tarde, quando todo o seu corpo se curvava já ao peso da moléstia, se mantinha cheia e clara.
Nas noites de domingo, cantava também ao órgão que tinha em casa. Fora um presente de Cornelius, o seu irmão preferido, que exercia na família as vezes
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de chefe, porque Hermanus mantivera-se durante toda a vida uma criatura delicada, que mais necessitava de amparo do que poderia incutir autoridade paternal.
Creio ter dito no começo deste livro que a recordo melhor no seu jardim americano. Todavia, penso que ainda a recordo melhor na pequena sala de estar da casa da Missão, uma salinha que ela embelezara e americanizara com cortinas nas janelas, flores nas jarras e cadeiras de baloiço, e onde, nas noites de domingo, se sentava ao órgão para cantar. No meio das sombrias casas chinesas que se comprimiam em volta daquele lar americano, por entre os pregões dos vendedores ambulantes, dos gritos das crianças e dos variadíssimos ruídos da multidão que enchia as ruas, Carie sentava-se e cantava velhos hinos como "Até muito junto de Vós, SenHor", "Deixai-me morar Convosco", "Jesus amante da minha alma", que nos transportavam a milhares de milhas, sobre o mar e a terra. Cantava estes hinos e muitos outros; porém, escolhia sempre os mais triunfantes. De resto, como o timbre da sua voz era naturalmente mais propício à alegria e ao triunfo do que à tristeza, preferíamos ouvi-la cantar "Sei que o meu Redentor está vivo!" ou "Alegra-te; coração puro!", que eram também os seus cânticos favoritos. Já no fim da vida, quando se achava prostrada, moribunda, voltava a cabeça no travesseiro, com os olhos indomáveis iluminando-lhe o pequeno rosto emaciado e pedia:
- Não cantem nada triste! Quando morrer, cantem o hino da Glória!
Essa voz clara tinha na sua essência algo de realmente triunfante, apesar de todo o ambiente sombrio que exteriormente nos rodeava. Houve uns tempos em que não lhe era possível erguer a voz, e então a casa pareceu-nos a todos algo sombria. Quando voltou a poder cantar, naquela salinha acolhedora, senti-me de novo transportada à aldeia de "Little Leveis" e vi nos seus olhos a singela nobreza daquela vida de americanos primitivos.
Depois de ter cantado e aliviado o coração das saudades, quando todos nos encontrávamos ainda domi-
nados pela magia dos seus cânticos, sentava-se a nosso lado em frente da lareira, se era Inverno, ou na comprida varanda, debruçada sobre o jardim, se era Verão. Contava-nos então coisas da sua vida e nós imaginávamo-la criança, depois rapariga e finalmente mulher.
Fazia-nos imaginar a grande e bela casa. As suas primeiras recordações jaziam sob aqueles tectos. Era uma grande casa branca, com três andares, cujas proporções nos descrevia com um gesto da mão. Incluía uma adega fria e subterrânea, onde se guardavam os alguidares de leite e se batia a manteiga.
Também aí ficavam as prateleiras onde se alinhavam os queijos redondos, fabricados à moda da Holanda, e as vasilhas cheias de amoras e de cachos de uvas. As amoras eram apanhadas no Verão e havia-as de todas as qualidades. Interrompia, nesse ponto, a narrativa para contar:
. - Todos os verões costumávamos ir colher amoras nos bosques. Lembro-me dos medronhos cobertos por uma espécie de orvalho prateado. Quando serviam vinho, eu preferia beber o de amoras por me parecer que ainda conservava alguma coisa de prateado e o achar mais doce do que os outros. Não calculam como eu arranhava as pernas nuas pelos silvados!
Interrompia-se, sorria, e, enquanto ali ficava sentada e calada, imaginávamo-la como uma pequenita de pernas arranhadas, metida pelas silvas das amoras, com uma touca a proteger-lhe o rosto contra o sol.
- Mas a touca não servia de nada - explicava. - Quando andava ao sol, queimava-me como uma castanha na brasa e, em casa, troçavam terrivelmente de mim por causa disso, o que me enchia de vergonha. Depois, nasceu Greta, que era ainda mais morena do que eu e deixaram de troçar de mim para troçarem dela. Mas era linda, com uns olhos muito grandes e negros, como os de um pequeno potro.
Mais tarde conheci essa casa, que correspondia exactamente à descrição que Carie dela fizera. Tinha em frente um grande pátio, rodeado por uma cerca com um enorme portão a meio e quando alguém chegava
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de carroça ou de coche tinha de descer-se para abri-lo. Havia ali uma enorme árvore-de-açúcar e, à sua sombra, uma escadinha de montar, para onde Carie, quando rapariga, levava o cavalo, sempre que queria montar, pois o vestido demasiado comprido embaraçava-lhe os pés ao andar. Quando era garota, agarrava-se à crina de qualquer cavalo, entretido a pastar, saltava-lhe para o lombo e galopava, montada em pêlo, com os cabelos
ao vento.
- Que deliciosa liberdade! - murmurava. - Quando me lembro de que montava em pêlo nos cavalos e que galopava por montes e vales, sinto pena desses velhos búfalos enlameados que andam pelas estradas como se estivessem doentes!
Enquanto Carie dizia isto, percorria com os olhos os telhados chineses que se amontoavam em volta dos muros do jardim.
Em torno da grande casa em que passara a infância estendiam-se vários campos abertos; em frente à porta principal via-se um jardim florido e um caminho empedrado que levava ao pátio quadrado da frente, onde havia bancos e cadeiras de madeira à sombra verde de caramanchões. À entrada, ficava um grande portão que se mantinha aberto em todas as estações, excepto no Inverno. Pregada à porta, havia uma aldraba de cobre e, acima desta, uma pequena janela envidraçada em forma de leque. Quando lá cheguei a porta estava aberta. Mergulhei o olhar por um longo e amplo corredor até à porta das traseiras, que deixava ver um campo cheio de árvores e, para lá de uma sebe, um pomar cheio de macieiras.
À esquerda e à direita ficavam os quartos de dormir e as salas. Menciono-os porque, muito antes de os vermos, já lhes conhecíamos todas as disposições... Para nós representavam a América. À esquerda de quem entrasse ficava a sala de entrada - uma divisão fria e sombria, com poltronas estofadas com crina, várias estantes e uma bonita mesa de centro em pau-rosa. Havia também um piano e, sobre este, caixas de violinos e de flautas. Dependurados nas paredes, viam-se
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belos desenhos à pena, feitos por Hermanus, uma ou duas paisagens e, sobre a escarpa da chaminé de madeira esculpida, sobressaía um retrato a óleo de Mynheer Stulting, em tons sombrios. Um tapete com motivos floridos cobria todo o soalho e grandes portas envidraçadas davam para o jardim.
À direita ficava o quarto que Hermanus e a mulher compartilharam durante muitos anos; porém, quando lá estive, era ocupado por Cornelius, o filho mais velho. Hermanus, um velhinho magro e alquebrado, com uma cabeleira de um branco prateado e brilhante, vivia num quarto ao fim do corredor. Quando a porta deste aposento estava aberta, podiam ouvir-se os infinitos tiquetaques dos velhos relógios, grandes e pequenos, de que Hermanus se cercava. Embora o pequeno almoço da família fosse às sete horas, Hermanus saía do quarto, todas as manhãs, pontualmente às oito horas. Quando o vi pela primeira vez, contava já oitenta e sete anos, mas trajava impecavelmente e penteava os abundantes cabelos brancos para trás, pondo a descoberto uma ampla fronte quadrada, exactamente igual à de Carie.
Essa mulher americana dava de passagem um bom-dia amável e rápido e entrava na casa de jantar que ficava no extremo posterior do corredor e cujas janelas abriam para o pomar. Era uma sala nua, comprida, fria, com algumas cadeiras bonitas e uma mesa oval ornamentada por um maravilhoso trabalho de talha.
Essa mesa explicou-nos a alegria com que Carie descobriu uma mesa oval numa velha loja de móveis em segunda mão, em Xangai. O lojista chinês disse-nos que fora comprada em leilão, no dia anterior, que pertencera a um comandante de um navio de nacionalidade inglesa que lhe garantira ser feita de madeira de teca, ter sido importada da índia para Inglaterra e trabalhada por marceneiros ingleses. O comandante trouxera-a no navio, de Inglaterra para a sua casa de Xangai, mas, depois do falecimento da mulher, vendera os móveis e a mesa fora parar-lhe às mãos. Ali estava, pois, escondida naquela lojeca, cheia de pó, graciosa e com per-
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gaminhos, no meio de cadeiras de vime, de mesas de junco quebradas e de velhas peças de bambu.
Carie adquiriu-a a troco de alguns dólares, mandou-a polir, achou-a maravilhosa e, consequentemente, levou-a consigo em todas as suas viagens. Às vezes, as instalações situavam-se num primeiro andar com uma escada de acesso tão estreita que não permitia a passagem da mesa. Carie mandava então que a içassem por meio de cordas, pela janela, o que interrompia o trânsito da estreita rua chinesa. Todavia, conheci sempre Carie sentada junto a essa mesa e só compreendi a razão disso quando conheci a mesa oval da Casa Grande. Foi com todos esses laços que conseguiu ligar-nos ao seu país
natal.
No primeiro andar da Casa Grande, a que dava acesso uma escada de mogno com balaustrada branca, ficavam os seis quartos de cama. O primeiro da direita era o de Carie. Das suas janelas, avistavam-se os bosques verdes de "Little Leveis" que se estendiam até às montanhas distantes e logo abaixo da janela ficava o jardim, seguido dos campos. Uma das paredes do quarto estava oculta por enormes armários tão profundos que guardavam, sem as amarrotar, as saias rodadas usadas por Carie, quando era rapariga, e os gavetões onde se arrumavam as toucas engomadas. Ao centro do quarto ficava a grande cama branca, escondida por cortinados de musselina com florinhas. Nas paredes, forradas com papel estampado, tendo por motivo rosinhas de delgados pedúnculos juntos a raminhos de fetos de um verde pálido, pendiam três quadros: uma Madona, muito velha e. desbotada, numa moldura dourada que Hermanus comprara ainda em França; um daguerreotipo da mãe de Carie e uma pintura representando um pastor conduzindo o rebanho, ao pôr-do-Sol, através de uma estrada que serpeava entre colinas. Carie gostou sempre de ver pastores conduzindo ovelhas. No seu quarto da casa da Missão tinha também um quadro com o mesmo motivo de uma revista e que ela própria emoldurara. À cabeceira do berço dos filhos pequeninos gravara estas palavras do Pastor: "Ele transportará as ovelhas
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no regaço". Aquele quarto ajudou-me a compreender diversas coisas que eu notara nessa outra casa que ela arranjara tão longe, em solo estrangeiro.
A cobrir o soalho do seu quarto de rapariga, via-se uma esteira garrida e por cima desta um tapete ornamentado com rosas. Das altas janelas pendiam cortinados brancos, com folhos cor-de-rosa, e junto a elas ficavam duas cadeiras - uma delas de baloiço, pintada de branco e a outra, pequena e baixa, estofada a vermelho. Continha ainda um toucador de pau-rosa com um tampo oval de madeira primorosamente entalhado. Em tempos houvera ali uma jarra de flores, um livro aberto e um bordado iniciado. Era um quarto indiscutivelmente arejado, simples e puro.
Descrevo-o com toda esta minúcia porque foi nele que Carie viveu, dormiu e sonhou.
No terceiro andar, ficavam as águas-furtadas, de janelinhas estreitas, que abriam para os prados planos e escuros. Guardavam-se aí as malas, os pequenos baús de tampos convexos, trazidos da Holanda, montes de revistas, como "Godey Books" e "Pearson's Magazine" e malas de velhas roupas de lã. Do telhado pendiam molhos de ervas secas, colhidas ainda pela avòzinha francesa e destinadas a tisanas e a mezinhas.
Nessas águas-furtadas nunca fazia calor. Eram muito altas e, nessa região, mesmo no Estio, a uma certa altitude o ar é sempre fresco. Muitas vezes, as névoas prateadas da noite pairavam sobre os campos até ao meio-dia e ao pôr-do-Sol descia um vento gelado que causava arrepios.
Depois de me surpreender com o vigor daquele ar penetrante espantei-me com a resistência que Carie evidenciara durante longos anos de verões tórridos e de outonos doentios. Nascida sob aquele sol frio e cortante, naquelas puras e prateadas névoas da Aménca, não seria de admirar que desfalecesse frequentemente sob o espesso e sufocante calor de uma tarde de Agosto, numa cidade do Sul da China, no meio de uma atmosfera saturada da respiração e do cheiro a suor de milhares de criaturas.
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Porém, naquela límpida planície visitada por frias névoas, por ventos cortantes e por luminosos raios de sol, Carie cresceu forte e sadia. Havia acres de terra por cultivar, animais de toda a espécie para alimentar e tratar, vacas que estiravam os pescoços compridos para os celeiros cheios, cavalos que era necessário afastar das cercanias do pomar, pintos e perus que tinham de enxotar dos campos semeados, onde os rebentos verdes despontavam e onde os atraíam minhocas gordas que gostavam de catar na terra arada de fresco. Havia a vida doméstica, a casa cheia de crianças, a mãe, pequenina, atarefada, inquieta, o pai franzino e exigente, e o irmão mais velho, grave e bondoso. Toda a gente vivia muito azafamada e feliz.
À noite, ouviam um pouco de música: um tocava violino; outro flauta; outro piano e todos juntos cantavam. Um dia, perguntei a Carie:
- Qual é a lembrança mais antiga dos seus tempos
de criança?
Os olhos de Carie iluminaram-se com um brilho meigo, enquanto procurava recordar-se.
- Lembro-me de ajudar minha mãe a lavar a louça, quando ainda só tinha três anos. Estava a enxugar um grande prato de porcelana azul trazido da Holanda pelo avô. Peguei-lhe com cuidado e fui guardá-lo no armário da casa de jantar. Era um prato tão grande que quando o tinha nas mãos não via o chão a meus pés. Tropecei em qualquer coisa e, como era uma garota gorda e pesada, caí. O prato ficou feito em pedaços. Lembro-me de que, por causa disso, meu pai me deu uns açoites. Eu gritava com quantas forças tinha, não por causa das pancadas, mas porque não me sentia culpada, visto ter querido simplesmente ajudar. Nunca me conformei com as pancadas que levei nesse dia. Ainda hoje, já com cinquenta anos, me magoa a injustiça daqueles açoites.
Enquanto falava ia amassando uma grande massa de pão mole. Costumava fazer o pão do consumo da família na cozinha chinesa. A janela ficava aberta e da rua
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hegava por vezes, o som dos címbalos de alguma procissão que passava e, através do clamor da multidão, distinguiam-se também os sons penetrantes das flautas. Dessa vez dirigi-me indolentemente à janela a ver o que ia a passar. Era a procissão de um ídolo - não uma grande procissão com um grande ídolo num andor, mas a procissão de um deus pequenino, vestido com traje colorido de papel. À frente do andor caminhava um sacerdote andrajoso, tocando os címbalos, e, atrás, seguiam outros dois padres, um dos quais tocava flauta desconsoladamente. O terceiro padre transportava um tambor de madeira com o feitio de uma cabeça de peixe e de vez em quando, nos momentos que achava oportuno, batia com um malho no tambor. O povo da rua mal se dignava voltar a cabeça para ver a procissão que um cortejo de garotos seguia obstinadamente.
Carie continuava a amassar o pão, mas estava a centenas de milhas dali. Acrescentava:
- Na Casa Grande, a vida era feliz. As minhas lembranças mais antigas - mal sabem vocês o que essa flauta me lembra! - recordam-me a nossa casa, sempre cheia de música. Os mais velhos tocavam qualquer instrumento e nós, os pequenos, cantávamos. Cornelius era um esplêndido professor de canto. Anos depois, na escola, em que tive os melhores professores, pouco tiveram de ensinar-me. Cornelius já me instruíra a emitir suavemente a voz, como um fio de água. Costumávamos cantar o "Messias"! Como me lembro bem dele!' Erguendo as mãos da massa branca, endireitou-se e cantou o coro da Aleluia com a voz ampla que tremulava nas notas agudas. O cozinheiro chinês deixou cair das mãos a panela e ficou-se pasmado a olhá-la, incapaz de fazer qualquer coisa, pois nunca a vira começar subitamente a cantar. O rumor dos címbalos perdia-se no ruído distante da multidão e eu, ao olhar para Carie, imaginava-a de pé no coro da igreja da América - o belo templo que substituiu a primitiva casa de orações dos pioneiros. Quando alguns anos depois fui até lá, as macieiras cresciam junto às janelas abertas da igreja, enchendo-a com q seu aroma. No coro, havia uma rapariga,
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filha de Cornelius, que também cantava. Porém, não possuía a mesma voz sonora e forte da mulher que cantava na cidade chinesa.
De repente, Carie calou-se e, enquanto a atmosfera da cozinha parecia ainda vibrar com os ecos da sua voz, voltou a amassar o pão.
- Bem - continuou, pouco depois - a vida foi feliz até ao dia em que rebentou a guerra civil! Que tempo aquele!
Que tempo, realmente! Quando a guerra estalou, a família Stulting residia na parte da Virgínia que se juntou ao Norte e que passou a ser chamada "Virgínia Ocidental". Nesse tempo, Hermanus já não era um rapaz; completara quarenta anos e mostrava .um rosto frágil, severo, de linhas bem feitas e coroado pelos cabelos já prateados. A francesinha também já exibia no rosto os sinais da vida dura que levara. Estava franzina e débil e evidenciava já os sinais da tuberculose que mais tarde a levaria. Cornelius era um rapagão de vinte anos, aparentando ter mais idade. Era de carácter paciente, de modos extraordinariamente delicados, apaixonado pelos livros e pela música e possuía olhos e cabelos escuros. Porém, não se recusara a trabalhar na terra e achava justo que o fardo da família recaísse de preferência sobre os seus ombros do que sobre os do pai. Que estranha e mágica personalidade a de Hermanus que nunca pensou em partilhar das responsabilidades familiares e que nunca se lembrou de que, com a sua índole fidalga, sobrecarregara prematuramente o filho mais velho com o peso dessas mesmas responsabilidades e que, ainda por cima, conseguira que todos os seus o adorassem e se unissem para garantir-lhe a vida de cavalheiro que levara desde que nascera. Acaso teria alguma vez ocorrido a Cornelius
- quando, ainda rapaz, ao começar logo de manhã cedo, coberto de andrajos, a sua faina no campo - que o pai ainda dormia, que o faria durante mais três horas, depois de todos terem tomado o café e que, mesmo então, lhe levariam o chocolate ao quarto para que o
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tomasse enquanto se vestia? Perguntei isso a Carie e respondeu-me:
.Creio que, naqueles tempos, o pai representava
algo de especial para as nossas vidas. Todos nós apreciávamos as coisas belas e finas e, depois da guerra, não havia muitas. Além disso, nunca nenhum de nós lhe tocou no assunto. A mãe convencera-nos de que não tinha constituição física capaz de aguentar trabalhos pesados e, por conseguinte, nunca lhe falámos em nada. Cuidou sempre das colmeias, das parreiras e das roseiras. Sabia tratar maravilhosamente das abelhas e tivemos sempre um mel excelente. Creio que nunca em toda a sua vida .qualquer abelha o picou. Tinha um modo especial de tratá-las e possuía as mãos mais hábeis e destras que jamais vi. Nada do que era belo lhe passava despercebido. Junto à cerca, crescia uma parreira de uvas brancas. Recordo-me ainda dos grandes cachos prateados a luzirem por entre as parras verdes. Meu pai levava-nos consigo para que o víssemos cortar os cachos. Dizia que as uvas eram tão lindas que pareciam pedras de ágata. Ensinava-nos a descobrir a beleza e creio que era por isso que o amávamos.
"Sim, Cornelius era por natureza o homem da casa. Passava com minha mãe horas inteiras a fazer contas, a combinar despesas. Quando queria qualquer coisa, dirigia-me sempre a ele. Por esta razão, não lhe foi possível casar enquanto éramos pequenos. Não me lembro de, nesse tempo, o ter visto olhar alguma vez para uma rapariga. Só pôde casar, muitos anos depois da guerra, quando já todos nós éramos crescidos.
"Em todo o caso, o pai serviu-nos de muito. Éramos diferentes da maioria dos fazendeiros que viviam nas vizinhanças. Tínhamos livros, música, quadros pintados por meu pai e o seu trabalho como joalheiro. Era meu pai quem estabelecia essa diferença, quem nos elevava.
"Lembro-me do orgulho que sentia por meu pai usar
um capote negro e mudar diariamente de camisa branca
e de colarinhos engomados, pois nenhum dos vizinhos
azia o mesmo. Só há poucos anos me ocorreu que nesse
luxo havia algo de cruel, pois alguém tinha de lavar
3 - O Exílio
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e de engomar diariamente uma camisa e um colarinho, pouco importando a quantidade de serviço que tivesse a seu cargo. Minha mãe fê-lo enquanto pôde e, quando as forças já não lho permitiam, essa obrigação passou para uma das minhas irmãs mais velhas".
Quando rebentou a guerra, discutiu-se acerbamente o que se faria, no caso de Cornelius ser chamado. Resolvera não se apresentar como voluntário. Hermanus incutira-lhes o horror à escravidão e, embora na vizinhança muita gente rica tivesse escravos e as suas terras carecessem de mão de obra, Hermanus nunca permitiu a compra de negros. O amor à liberdade que lhe estava no sangue impedia-o não só de comprar seres humanos como também de violentar-lhes a vontade. Quando utilizava trabalhadores negros, pagava-lhes escrupulosamente em dinheiro e não admitia a ideia de possuir um que fosse. Todos os filhos lhe herdaram essa paixão pela liberdade e, quando a guerra os chamou, nada havia que os estimulasse a enviar Cornelius a combater em defesa do Sul. Ao mesmo tempo, a sua lealdade para com esses mesmos do Sul, que era a sua pátria adoptiva, tornava-lhes intolerável a ideia de lutarem contra a Virgínia. A neutralidade que naquele tempo era muito difícil, parecia-lhes, todavia, a única conveniente. Por conseguinte, Hermanus e Cornelius declararam-se neutros. Dada a exaltação de ânimos, que então lavrava, não se tratava de uma posição própria a torná-los populares, mas Hermanus não se preocupou com isso.
Na realidade, possuía um temperamento que o levava a preferir a oposição. Nesse tempo, segundo me contaram, apresentava-se com um aparato levemente ostensivo e assumia um andar exageradamente empertigado quando se dirigia à igreja, onde, com excessiva arbitrariedade, dava o tom para que se cantassem os salmos.
Murmurava-se um pouco contra ele, especialmente os senhores de escravos, mas a sua integridade era tão conhecida, a sua altivez e coragem tão respeitadas que ninguém ousou afrontá-lo abertamente.
Porém com Cornelius as coisas eram absolutamente diferentes. Quando o convidavam a aliar-se para um lado ou para outro, respondia que tinha a seu cargo a existência da mãe e dos irmãos mais pequenos e que se os abandonasse ficariam sem ter quem os cuidasse. Ouvia pacientemente e em silêncio os insultos e troças com que o mimavam no povoado e continuava a trabalhar afincadamente nas suas terras.
Chegou uma fase em que a escassez de homens que defendiam o Sul era tão aflitiva que Cornelius teve de imaginar outro meio que lhe evitasse o recrutamento forçado. A princípio, não se tinham lembrado de que poderiam forçá-lo a entrar para o exército. Mas, uma tarde, ao meio-dia, quando o rapaz regressava do campo, um oficial e três soldados, envergando a farda cinzenta da milícia do Sul, seguiu-o discretamente até casa. Um deles declarou-lhe:
- Tens de vir para a guerra, meu rapaz, quer queiras quer não! Andamos a recrutar homens.
- Terão então de levar-me à força - respondeu simplesmente Cornelius, encarando-os.
- Pois bem, então será à força!-decidiu o oficial, virando-se para os seus subordinados. - Agarrem-no e amarrem-no ao cavalo!
Os três soldados aproximaram-se do rapaz, agarraram-no pelos pulsos e, empurrando-o, levaram-no para junto do cavalo que já o esperava. A mãe francesinha estava na horta a apanhar feijões quando os gritos das crianças lhe chamaram a atenção. Compreendeu imediatamente o que se passava. Correu para junto do filho e agarrou-se-lhe a uma perna.
- Os senhores não podem levá-lo! É o amparo da família! - gritava, sem fôlego.
O oficial levou a mão à pala do boné e declarou:
- Sinto muito, minha senhora. São ordens, e tenho de as cumprir.
- Não, não, os senhores não podem levá-lo! É meu filho!
- Ordinário, marche! -• comandou subitamente o oficial.
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Montaram a cavalo e partiram, levando Cornelius consigo. A francesinha corria agarrada à perna do filho, que gritava:
- Hei-de voltar, minha mãe. Não podemos... a mãe não pode resistir. Hei-de desertar...
- Sim, para que depois te fuzilem! - arquejou ela, energicamente. - Não, não consentirei que te levem!
Andavam agora num passo mais rápido, pois o cavalo começara a galopar. A pobre mãe era praticamente arrastada através dos campos, mas não abandonava o filho. A certa altura, o oficial não pôde suportar por mais tempo aquele espectáculo. Parou para procurar
convencê-la.
- Não adianta nada com isso, minha senhora. Ele tem de vir. São ordens. Sinto muito, mas neste mundo todos os rapazes têm de lutar.
- Oh, mas o meu filho não! - gritou ela obstinadamente.
A touca escorregara-lhe para as costas e os cabelos crespos e grisalhos tinham-se despenteado e caíam-lhe um pouco para a cara. Os olhos pareciam querer saltar-lhe das órbitas e a respiração ofegante agitava-lhe fortemente o peito.
- Se ele for, também eu vou. Nós não defendemos a escravidão. O nosso país é partidário da liberdade. Como podem obrigá-lo a lutar por uma coisa que desaprovamos?
O oficial olhou para Cornelius. Depois, embora um pouco comovido, repetiu a ordem:
- Ordinário, marche!
O cavalo tornou a galopar e o oficial procurou não ver o pequeno vulto ofegante que gemia agarrado à perna do rapaz, tropeçando, ao longo da estrada áspera. Os lábios da mulher abriam-se para soltarem gemidos dolorosos e os seus olhos castanhos esgazeavam-se numa agonia infinita.
O filho tentava acalmá-la, suplicando-lhe:
- Mãe, mãe, mãe...
Era demais. O oficial deixou-a correr mais uma milha
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depois parou, apeou-se, tirou o chapéu e curvou-se numa vénia.
. Venceu, minha senhora. É seu!
E voltando-se para os soldados, ordenou-lhes:
- Desamarrem-no e deixem-no ir.
Pouco depois mãe e filhos achavam-se sós na estrada, enquanto a escolta de cavaleiros desaparecia, levando um cavalo desmontado. Cornelius fitou a mãe com uma ternura indizível. Ela enxugou os olhos e, com mãos trémulas, começou a arranjar o cabelo. Depois, encostou-se quase desfalecida ao ombro do filho e murmurou-lhe com os lábios descorados:
- Eu sabia que havia de vencê-los!
Porém, aquilo fora um aviso e não deveriam expor-se a outro risco. Talvez um segundo oficial não fosse tão condescendente como o primeiro. Era necessário esconder Cornelius. Nessa mesma noite, o rapaz saiu da casa paterna, montado num cavalo e, levando consigo um cobertor enrolado e um cesto com mantimentos, dirigiu-se para uma montanha que se avistava ao longe e a que chamavam Droop Mountain. Conhecia uma caverna situada no alto da montanha, debruçada sobre um pequeno vale, aberto em forma de taça, onde também havia uma casa em ruínas e um ou dois prados abandonados.
O rapaz viveu aí isolado durante dois anos, findos os quais terminou a guerra.
Cultivou os prados, plantou milho, feijão e trigo. Quando colhia o produto das suas sementeiras, viajava às escondidas até à Casa Grande, para entregá-lo à mãe, para vê-la e para trazer o que precisasse para si próprio. Quando "Little Leveis" foi varrido pelos exércitos tanto do Norte como do Sul, que iam e vinham deixando os campos devastados, os celeiros e paióis saqueados, aquelas provisões plantadas por Cornelius foram a salvação da família e mais uma vez todos dependeram dele para poderem subsistir.
Ao contar a vida de Carie, decorrida nesse período da guerra civil, não incluí propositadamente todos os factos que vêm já descritos nos compêndios de História.
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Narro apenas o que ela me contava. Eu era uma garota americana, uma estrangeira numa cidade chinesa, que via a América através dos seus olhos e que procurava, através das suas narrativas, conhecer a minha pátria... a pátria que nunca vira.
Em matéria de guerras, sou muito entendida. Nesse tempo, nós, os brancos residentes na China, passávamos pelas incertezas e pelos perigos da Rebelião dos Boxers. Todas as noites me deitavam, pondo-me a roupa ao lado, para vestir-me imediatamente em caso de alarme e de fuga. Carie ensinou-me a vestir-me depressa, o modo mais rápido de atar os sapatos, de apanhar o chapéu do chão, pois se fugíssemos provavelmente teríamos de andar durante o dia sob o terrível sol do Oriente. Eu tinha de fazer tudo isso sozinha porque Carie tinha de cuidar de outra criança mais pequena. Junto à porta, num sítio onde facilmente podia ser agarrado de passagem, estava sempre pronto, tanto de dia como de noite, um cesto com latas de leite condensado para o bebé. Carie vivia preparada, sem ter descurado os mínimos pormenores, pronta a partir sem sentir medo nem permitir que nós o sentíssemos. Ela saberia cuidar de nós. Além da coragem natural que herdara por nascimento adquirira essa intrepidez durante os quatro anos de guerra civil decorridos no seu tempo de infância. Durante o longo e terrível Verão de 1900, costumávamos pedir-lhe:
- Conte-nos algumas histórias da nossa guerra na América!
Falava-nos da guerra, repetia-nos o ponto de vista de uma rapariguinha que vivia nas terras altas da Virgínia Ocidental, o Estado que marcava a fronteira entre o Norte e o Sul, fronteira que os dois exércitos em guerra atravessavam continuamente num sentido e noutro, no decurso da luta. Mais tarde, quando tive de estudar esse período da História, vi que já o aprendera através de Carie e de uma maneira infinitamente mais viva, mais real... de uma maneira por que nenhum livro seria capaz de ensinar-ma.
Ajudou-me a compreender o espírito dos exércitos
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Do Sul, a princípio alegres e confiantes; mais tarde, inquietos, surpresos, amargurados; depois, vingativos e desesperados e por fim desiludidos e vencidos.
Mais terríveis do que estes eram os exércitos dos vencedores, varrendo triunfalmente os campos férteis numa devastação de conquistadores.
Uma vez, contou-me, com os olhos marejados de lágrimas pela recordação:
Os ianques costumavam gritar-nos que Sherman
prometera abrir um caminho para a Geórgia, tão direito, tão largo e tão desimpedido que nem um corvo seria capaz de descobrir nele um grão de milho. E reconheço que cumpriu a palavra.
Acrescentava com muita simplicidade:
- Sherman comparava a guerra ao inferno. Agora deve saber se o é ou não, pois deve estar no Profundo há muito tempo.
Ou então dizia:
- Na minha família ninguém era partidário da escravatura. Odiávamo-la tanto como Lincoln. Éramos americanos e não podíamos admitir que no nosso país houvesse escravos e ainda menos podíamos apoiar tal facto. Porém, achávamos que não era uma boa maneira de libertar os escravos, deixá-los abandonados aos bandos. Depois de terminada a guerra não nos atrevíamos a andar afastados de casa, apesar de não termos muitos negros na nossa zona. Lembro-me de que Cornelius se viu obrigado a entrar na Ku-Klux-Kan para garantir-se contra qualquer agressão dos escravos libertos.
Por vezes, começava de súbito a rir loucamente até os olhos se lhe encherem de lágrimas.
- Nunca poderei esquecer uma manhã em que os ianques acamparam, durante a noite, no pomar. Era no Inverno e as árvores estavam despidas de folhas. Saí de casa para espreitar os homens através da cerca, porque contavam muitas coisas a seu respeito, havendo até quem afirmasse que tinham chifres como demónios. Ora, quando espreitei, vi que as árvores do pomar estavam cheias de uns frutos esquisitos. Não fazia a mínima ideia do que seriam e, quando me aproximei
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para ver melhor, descobri 'que eram broas! Tinham-lhes dado broas de fubá fermentada. Os homens não quiseram comê-las e, por brincadeira, foram-nas enfiando nos galhos até que as árvores ficaram cheias delas. Era um espectáculo engraçadíssimo! Os passarinhos tiveram comida durante meses.
- E os ianques tinham realmente chifres? - perguntava eu, de respiração suspensa.
- Não - respondeu ela com os olhos a brilharem. - Eram pessoas iguais às outras - e fiquei muito desapontada.
Uma outra das suas histórias favoritas e que nunca nos cansávamos de pedir-lhe que nos contasse era esta:
Certo dia, Hermanus soube que se aproximava um exército ianque. Acontecia que nessa ocasião tinha em casa uma quantidade de jóias finíssimas, pertencentes a uma família rica da vizinhança e que lhe haviam sido confiadas para conserto. Ficou muito assustado principalmente com o receio de que lhas roubassem, porque, se isso acontecesse, não tinha meios para indemnizar o dono do valor das jóias. Por conseguinte, resolveu escondê-las dentro de um cestinho com tampa. Levou este para o prado contíguo ao jardim e meteu-o debaixo de uma grande pedra lisa. À tarde, chegaram os ianques e, com grande desespero de Hermanus, escolheram para acampar precisamente o prado em que escondera as jóias. Para cúmulo das suas apreensões, serviram-se da pedra como mesa e, à noite, armaram-lhe uma tenda em cima. Hermanus observava tudo aquilo da janela. Enquanto houve claridade permaneceu ali, não fosse alguém lembrar-se de ir ver se haveria alguma coisa por baixo da pedra. Pelo que lhe fora dado ver, parecia que, até à noite, essa ideia não ocorrera a ninguém. Depois do escurecer e embora no acampamento tivessem acendido grandes archotes, as sombras movimentavam-se de um modo misterioso de forma que ninguém podia fazer uma ideia do que estavam ali a fazer.
Hermanus passou toda a noite a andar de um lado para o outro dentro de casa, rezando e ordenando a
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todos que o fizessem. Enquanto se censurava por ainda não ter entregue as jóias, tentava confusamente calcular o que faria se lhas roubassem, pois o dono era um homem orgulhoso, reconhecidamente duro e exigente, além de que se tratava de jóias de família, de impossível substituição.
Quando o dia despontou, o exército partiu e Hermanus correu ao prado, cheio de ansiedade. Levantou a pedra. O cestinho das jóias ainda lá se encontrava, tal como o deixara, intacto, sem que pessoa alguma o tivesse visto.
Quando chegava a este feliz remate da história, que Carie tornava ainda mais excitante, baixando a voz e arregalando os olhos, já estávamos todos de respiração suspensa. Em geral, contava-nos as suas histórias ao começo da noite, enquanto passávamos o serão sentados na varanda, repousando o olhar nos campos de arroz e nos telhados de colmo das plantações, no vale, ou mais ao longe, na silhueta elegante de um pagode que parecia suspenso nos bambus da encosta da colina. Porém, não víamos nada disso. Com maior nitidez de que se os víssemos na realidade, víamos os campos e os montes ásperos do nosso país por onde passavam cavalos ajaezados, montados por homens vestidos de cinzento e azul, levando nas mãos bandeiras desfraldadas ao vento.
A essa história seguia-se a do dia terrível em que as tropas do Norte e do Sul se defrontaram na batalha de Droop Mountain e em que, tanto de dia como de noite, o canhão troou incessantemente de ambos os lados da montanha, enquanto a família rezava, apavorada, certa de que Cornelius seria atingido no seu esconderijo. Porém, chegada a madrugada o rapaz apareceu em casa dos pais, cambaleando, com as mãos e a roupa dilaceradas e as pernas nuas, terrivelmente arranhadas. Passara todo o dia escondido numa gruta e, quando escurecera, arrastara-se pelo lado penhascoso da montanha. Achava-se vivo e ileso, mas a plantação que já estava pronta para a colheita ficara completamente devastada pelos canhões.
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Uma outra história referia-se ao dia em que, na Casa Grande, não houvera nada para comer, a não ser uma vasilha com feijão seco. Ora, justamente nesse dia chegou um pequeno grupo de soldados do Sul, que vinham desesperados, fugitivos, maltratados, descalços, famintos.
A francesinha viu-os, cozinhou toda a reserva de feijão e deu a cada um deles uma tigela de sopa. À tarde, as crianças foram para o campo procurar sementes de dentes-de-leão para a ceia.
Contava-nos estas histórias e muitas outras durante os quentes dias de Verão que passávamos nos arredores da cidade chinesa. Como éramos estrangeiros, vivíamos rodeados por uma atmosfera de denso ódio, mas eu não a sentia porque, enquanto ouvia as suas histórias, fortalecia o espírito, vendo o meu próprio país e o heroísmo do meu povo. Carie não tinha medo. Aprendera desde pequenina a olhar sem tremer para homens feridos e a escorrer sangue, a passar fome e a fazer o possível por combatê-la, a descobrir algum recurso quando parecia que já mais nenhum restava, glorificando tudo isso com o bom-humor com que o fazia.
Quando a guerra civil terminou, Carie contava oito anos e a família, assim como todas as outras da cidade, teve de adaptar-se às novas condições de vida. Depois de aceite a derrota, sobreveio uma verdadeira febre de recomeçar a vida. Durante aqueles quatro anos não funcionara qualquer escola. Carie aprendeu a ler sozinha, perguntando o nome de uma letra a um e o nome de outra letra a outro. Todavia, à parte a leitura, nada mais sabia e a irmãzita mais nova nem sequer sabia ler. Havia muitas outras crianças nas mesmas condições porque os pais andavam completamente transtornados: os homens lutando como uns desesperados e as mães tratando das terras e dos negócios e procurando ao mesmo tempo fazer também as vezes do pai ausente. Por conseguinte, acabada a guerra, todos pensaram na necessidade de muitas escolas para reparar o colapso provocado pelos anos de guerra. Cornelius, profundamente impressionado com a
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ignorância dos irmãos e das irmãs, foi o primeiro da cidade a organizar uma escola. Ele próprio ensinava, roubando para isso o tempo necessário ao trabalho do campo. A escola foi instalada numa sala do edifício da igreja, mas, pouco tempo depois, em virtude do rápido aumento de frequência, teve de ser transferida para edifício próprio, chegando até um dia em que passou a chamar-se Academia.
Para Carie, isso representou a porta aberta para a vida. Durante os dois últimos anos ansiara por adquirir conhecimentos que lhe explicassem certas coisas que começavam a intrigá-la. Sob certos aspectos era uma criança estranha, imaginativa, ardente, com um excesso de sensibilidade que muitas vezes a fazia sofrer - era um misto estranho de senso prático e de profundo misticismo. Gostava de deitar-se à noite, ao ar livre, esticando as pernas nuas sobre a erva do prado, fronteiro à casa branca, e, contemplando então o céu, pensava nas estrelas, no que elas eram, sentindo um desejo quase doloroso de penetrar os mistérios do universo. As estrelas fascinaram-na sempre. Recordo-me de vê-la, nas noites de calor, passadas na cidade chinesa, chegar-se à janela que dava para a rua ruidosa e ficar-se a contemplar as estrelas que luziam, enormes e douradas, no céu negro e purpúreo. Dizia então:
- Custa a acreditar que sejam as mesmas estrelas para que costumava olhar nos meus tempos de garota, lá no nosso prado. Eram frias e prateadas e pareciam-me extraordinariamente distantes e etéreas. Aqui, acho-as sólidas, ardentes e até demasiado próximas. Agradava-me pensar que eram habitadas por criaturas... por umas criaturas transparentes, delicadas, parecidas com fadas. Mas aqui sentimos que são habitadas por criaturas humanas, por gente perversa e ardente. Olhem para Orion, com uma luz de um vermelho tão intenso, por cima do pagode!
Recebeu as primeiras lições de cosmografia na escola do povoado, o que constituía um dos seus estudos favoritos sempre que não incluía questões de matemática, em que fracassava. Carie tinha uma imaginação
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demasiado viva que realçava qualquer facto singelo, dando-lhe consistência e vida. Cornelius era um professor inato e ela uma discípula atenta, embora não possuísse uma memória tão boa quanto rápida a compreensão. Em breve, os simples laços de afeição fraternal existentes entre ambos transformaram-se no amor de um professor pela aluna predilecta e no apaixonado respeito da discípula pelo mestre.
Na pequena cidade de Virgínia Ocidental, o período do após-guerra caracterizou-se por um profundo ardor espiritual, associado à necessidade de uma vida ascética. Foi nessa atmosfera que se desenrolou a sua adolescência e foi essa mesma atmosfera que lhe impregnou para sempre a natureza terna e amante da beleza. Porém, isso deu-lhe também oportunidade para diversas espécies de experiências com as quais o seu espírito mutável se deliciava. Lembro-me de certa vez ter-lhe ouvido declarar:
- Já executei toda a espécie de trabalho necessário à manutenção da vida e sinto orgulho com isso. Depois da guerra civil, não havia lojas nem nada que se comparasse. Éramos nós quem plantávamos o linho, quem o fiávamos e quem tecíamos camisas, roupa de cama e roupa de mesa; éramos nós também quem fazíamos os vestidos com o algodão e linho, por nós próprias plantados e tecidos. Aprendi as cores que se podem obter a partir das várias espécies de ervas, cascas e raízes. As nossas experiências fracassavam muitas vezes e víamo-nos então obrigadas a usar roupa coçada como se fosse nova. Criávamos também carneiros que nós próprias tosquiávamos e cuja lã cardávamos, fiávamos e tecíamos.
Gostava de aprender a fazer tudo aquilo.
Tinham de fazer também as anquinhas que, naquele tempo, se usavam nas saias - faziam-nas com longos ramos de roseiras bravas. A princípio, davam bom resultado, mas depois de secas rebentavam. Lembro-me de pedir-lhe constantemente que me contasse e repetisse uma história, que narrava sempre com uns olhos muito alegres.
__Como é que a minha anquinha rebentou? Bem, um domingo dirigi-me à igreja - está claro que íamos à igreja todos os domingos, mas tratava-se de um domingo especial, pois vinha um missionário pregar e a igrejinha estava cheia de gente. A boa e querida Mrs Dunlop, a mulher do sacerdote, estava a meu lado Era muito boa e eu gostava bastante dela, mas era também demasiado gorda e, naquele lugar estreito, esmagava-me praticamente com o seu peso. Porém, quanto mais me encolhia mais ela se alargava. Ainda por cima, estava um dia de Verão muito quente. A certa altura, a minha anquinha - que, aliás, não era das maiores porque meu pai não gostava que usássemos as anquinhas enormes que então estavam em moda - a minha anquinha, dizia eu, levantou-se à frente, fazendo-me o mesmo à saia. Foi uma vergonha; eu bem procurava baixá-la, mas era inútil. Por fim, senti-me desesperada porque um rapaz que estava sentado mesmo atrás de mim, começou a rir. Dei então um puxão violento e ouviu-se um estalo fortíssimo: era a minha anquinha de roseira brava! A saia baixou imediatamente, mas gostava que vissem a minha figura de pé, no meio da igreja. A saia, sem a armação da anquinha, arrastava tanto que varria o chão como se fosse uma cauda. A boa Mrs. Dunlop pôs-se à minha frente e eu pude então consertar rapidamente a anquinha. Mais tarde, rimo-nos muito do acontecido, mas naquele dia quase morri de vergonha, embora não pudesse deixar de rir. Meu pai disse-me que fora um castigo à minha vaidade. Talvez fosse, mas do que não resta dúvida é que o ramo da silva estava demasiado seco e não pôde suportar a força expansiva das banhas da Mrs. Dunlop.
Para nós, crianças americanas, criadas naquela cidade chinesa, nada poderia ser mais excitante na absorvente narração da sua vida passada na nossa pátria do que a história da árvore-de-açúcar. Naquele tempo, na época que se seguiu à guerra, na Casa Grande, tudo tinha de ser feito em casa, nada se comprava além do chá, do
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café e do chocolate que todas as manhãs era levado a Hermanus.
Até então eu nunca vira fazer açúcar, nunca vira uma árvore golpeada para deixar escorrer o suco açucarado, mas possuía como que uma experiência espiritual de tudo isso; naquele Oriente, onde eu vivera, jamais crescera uma árvore-de-açúcar, a não ser nos nossos sonhos. Todavia, sabia que nos frios fins de Inverno, quando a Primavera é ainda mais uma esperança do que uma realidade, é necessário golpear as grandes árvores que são douradas no Outono. É preciso fazer um entalhe, enfiar um tubo de madeira pelo corte e colocar junto à árvore um recipiente destinado a recolher a seiva doce. Quando os recipientes estão cheios e já se recolheu o líquido suficiente, junta-se a colheita obtida de todas as árvores e levam-na a refinar no grande caldeirão de ferro destinado a purificar o açúcar. As crianças apanham lenha, o caldeirão ferve e o açúcar vai apurando.
É então altura para grande brincadeira; todos os garotos e garotas da cidade reúnem-se ali, lavam a refinaria, tomam parte no reboliço, metem toros de lenha por baixo do caldeirão e, se ainda resta alguma neve onde possam brincar, deixam-se escorregar por ela, entregues, durante horas, a uma alegria doida. As faces de todos eles ficam afogueadas e por toda a parte reina a alegria.
Quando o líquido xaroposo adquire um grau de consistência suficiente, lançam-no para dentro de pequenos barris. Já então serve para adoçar bolos, broas, bolachas e panquecas, durante o resto do ano. Quem desejar fazer açúcar tem de deixar o xarope a ferver durante mais tempo e é necessário que se trate de uma pessoa muito habituada e competente para saber qual o momento propício de lançar a calda quente nas formas grandes e pequenas.
Para o uso doméstico de todo o ano, guarda-se o açúcar em grandes formas redondas; mas é preciso também encher centenas de pequenas formas, com feitio de coração, de estrela e de crescente. Uma das
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oisas mais deliciosas e divertidas é arremessar um
ouço de calda grossa sobre a neve e comer ao mesmo temoo punhados de gelo juntamente com pedacinhos de açúcar quente. Quando tudo está acabado e se fecha a refinaria, toda a gente volta para casa, cantando através do ar suave e ninguém adoece por ter comido açúcar demais - tanto quanto lhe apetecer. Isso é assim porque os campos são sadios, porque a neve que cobre tudo é puríssima e porque o ar são torna toda a gente robusta e forte. Ah, Carie, como nos fazias sonhar com a pátria!
Neve! Como nos recomendava que víssemos a neve, quando fôssemos à América! Algumas vezes, de longe em longe, víamos uma pequena amostra de neve naquela cidade do Sul da China, onde vivíamos - nalgum dia mais frio, mais húmido, mais invernoso. Encostávamos o rosto aos vidros da janela e víamos cair farrapos brancos do céu cinzento, dissolvendo-se imediatamente, mal tocava nas telhas negras das casas. Lembro-me ainda de que, a um canto do pátio, o vento reunira um pequeno monte cinzento de poeira e de lixo, mas que afinal ainda era neve. Corremos para fora, gritando "Neve, neve!".
Num Inverno de frio excessivo, caiu neve em abundância fora das muralhas da cidade. Na zona árida das sepulturas, o solo estava coberto por uma camada de neve com cerca de três centímetros de espessura. Se não olhássemos de muito próximo para os restolhos que a perfuravam, a terra parecia coberta por um lençol todo branco. Os bambus mostravam-se feèricamente cobertos e os rebentos novos do trigo pareciam extraordinariamente verdes entre as manchas brancas dos túmulos. Carie pregara várias tábuas de caixotes de leite condensado, juntas umas às outras, fazendo assim uma espécie de tobogã, sobre o qual deslizávamos, ziguezagueando entre os túmulos chineses e sonhando com os verdadeiros tobogãs da América.
Anos mais tarde, quando vi verdadeira neve nas florestas da Virgínia, nas Montanhas Azuis, compreendi que já vira tudo aquilo espiritualmente' através dos
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olhos daquela que me contara histórias na infância. Via os prados escondidos pela neve) dormindo sob o seu manto branco o sono hibernal; via os telhados cobertos por espessas camadas de neve, perfuradas pelo caixilho quadrado das janelas e a fumaça alegre que subia para o céu. Era tudo exactamente como ela contara. Antes de entrar na curva da estrada que serpenteia entre as colinas, o coração dizia-me que as sombras na neve do lado das colinas seriam azuis e quando dei a curva verifiquei que não me enganara. Carie fizera-me ver tudo aquilo dez anos antes, a dez mil milhas de distância.
Nos anos que decorreram entre a infância e os vinte anos - idade em que partiu da pátria - Carie apreendeu toda a beleza do seu país. Se; de facto, o maior dote que seu pai lhe dera, fora mostrar-lhe onde a beleza existe, Carie pouco esforço lhe exigira, pois era dotada desde nascença de olhos que sabiam ver. Compreendia com um instinto infalível a ampla beleza dos campos, dos vales e das montanhas, em cada estação do ano. Apercebia-se ainda melhor das pequenas belezas- minúsculas belezas escondidas nos pauis fechados, em pequenas flores e insectos. Uma vez inclinou-se para observar uma aranha colorida - de um alegre tom de vermelho e preto - e acabou por tocar-lhe com o dedo para sentir-lhe a cor. Como é natural, a aranha mordeu-lhe e o veneno inflamou-lhe todo o braço. A partir de então contentou-se com olhá-las, mas - é característico esse seu traço do sentimento da justiça - reconheceu sempre que, no fim de contas, a culpa fora sua por tê-la provocado e essa agressão não fez diminuir o seu apreço pela beleza do insecto.
Esse amor pela beleza e a instantânea repercussão que ela lhe provocava, estavam-lhe entranhados no sangue e na carne e de igual modo a emoção e o abandono a tudo quanto era belo.
Amava também a beleza das coisas limpas, simples, firmes. Descobria a beleza não só num lago da montanha ao luar como também numa sala fresca e clara ou até em pratos bem lavados e luzentes de asseio.
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mbro-me de ouvi-la contar um dos seus prazeres, durante os austeros tempos que se seguiram à guerra
. quando não se podia comprar louça nova e eram
obrigados a usar diariamente os grandes pratos de porcelana azul e branca e os copos de fino cristal que os avós tinham trazido da Holanda. Insistia em que a deixassem levá-los e punha esse trabalho à frente de aualquer outra tarefa diária, porque a deliciava sentir nas mãos a delicadeza da louça e do cristal. Esse trabalho perdurou-lhe na memória até ao fim da vida como uma recordação de beleza.
Possuía uma natureza sensual no sentido mais puro da expressão: gostava de sentir as coisas, o contacto da seda, da porcelana, do linho e do veludo, o contacto das pétalas de rosa ou da aspereza das pinhas. Recordo-me de vê-la segurar uma seca e esbelta folha de bambu e de esfregá-la nos dedos, murmurando:
- É, ao mesmo tempo, áspera, macia e delicada. Tinha um olfacto extraordinariamente apurado. Uma
das torturas da sua vida no Oriente era o cheiro de estrume e de imundícies humanas que lhe invadia o jardim, atravessando os muros da cidade, pois era justamente o lixo desta que usavam para adubar a terra e obter uma safra rica e rápida.
Hei-de lembrar-me sempre da primeira vez em que voltou à terra natal. Queria ficar ajoelhada no meio do mato, inspirando grandes lufadas de ar fresco da floresta ou então resfolegava rapidamente como que bebendo rápidos goles do seu perfume.
- O que é? - gritávamos ansiosos por não perdermos nada.
Ela respondia-nos alegremente:
- Estou a cheirar tudo isto! Sabem, uma das melhores coisas da América é o cheiro, delicioso, mil vezes delicioso!
Carie gostava de apanhar um punhado de caruma, de esfregá-la nas mãos e de levá-la ao nariz. Ficava então de olhos fechados, em êxtase, parecendo embriagada pelo cheiro das agulhas de pinheiro. Todavia, só gostava desses cheiros rústicos e simples, puros, quase
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pungentes ou da ténue fragrância da rosa-chá. Repelia grande número de flores orientais por lhe repugnar o seu perfume intenso , almiscarado, demasiado doce. Em música, Carie tinha um gosto intelectual, excelente, mas a música era-lhe ao mesmo tempo e principalmente uma sensação e uma emoção. Quando eu era ainda uma adolescente impaciente, irritava-me um pouco que não pudesse ouvir música de concerto sem que as lágrimas lhe rolassem pelas faces - não se tratava de lágrimas de dor, mas de lágrimas que eram a manifestação de um coração sensível e demasiado requintado para receber impasslvelmente o embate da beleza da música. Na arrogância da minha juventude, observava-lhe:
- Se não pode ouvir música sem chorar, por que insiste em ouvir concertos?
Lançava-me o seu olhar profundo e límpido e replicava:
- Ainda não podes compreender. Que hei-de fazer? És ainda muito nova, não viveste o suficiente. Um dia virá em que ouvirás esta música e hás-de sentir que não é só técnica e melodia, mas que se trata também do próprio sentido da vida, infinitamente triste e extraordinariamente belo. Então, sim, compreenderás.
Em todo o caso, no grande amor que dedicava às flores, havia uma curiosa contradição. Escolhia sempre tons sombrios e friamente combinados. Meditei muitas vezes a esse respeito, porque me parecia mais próprio à sua natureza ardente uma preferência por cores mais berrantes.
Eu possuía a teoria, verdadeira ou não, segundo a qual as pessoas se revelam verdadeiramente no gosto pelas cores. Os vermelhos e amarelos da velha China Imperial foram-lhe sempre desagradáveis. Creio que a assustavam por significarem um abandono que a apavorava - o abandono à carne. Digo assustavam, porque Carie sentia-se já por nascimento demasiado ardente e amedrontava-a justamente o receio de si própria. Carie preferia o tom frio, pálido e amarelado da rosa-chá - porque uma dessas roseiras crescia junto aos
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degraus de acesso à varanda da Casa Grande, na América e, por reminiscência da infância, gostava também a& delicadeza, um pouco fora de moda, dos tons de rosa-velho e de salmão. Mais tarde, quando os cabelos já eram brancos e começou a trajar singelos vestidos cinzentos, enfeitava-os sempre com alguma coisa em rosa-chá ou salmão. Creio que Carie reconhecia a existência íntima de certa predisposição pagã, de uma paixão, de um temperamento demasiado vigoroso e insolente acerbamente combatidos pelo puritanismo que lhe circulava nas veias e que os costumes do seu tempo haviam fortificado.
Se Carie pudesse erguer-se da sepultura longínqua onde descansa, creio que não gostaria destas palavras que acabo de escrever.
Olhar-me-ia perturbada, e dir-me-ia:
- Não lutei, durante toda a minha vida, contra essas coisas de que falas agora, depois de eu ter morrido?
E, se me fosse possível, responder-lhe-ia:
- Sim, sem dúvida. Assistimos à luta, mas não sabe que a amávamos justamente por causa dessas coisas que lhe eram odiosas?
Quando a evocamos devemos pensar sempre em duas pessoas distintas: uma delas, a mulher ardente, sensual, cheia de temperamento; uma mulher que descobria rapidamente o ridículo com uma mímica de actriz inata, fazendo-nos rir com um simples gesto e capaz de imitar a voz ou o andar de qualquer pessoa; vencendo qualquer concorrente num alegre coro de cantigas, abandonando subitamente o trabalho num dia de Verão para ir para o jardim ou para fazer um piquenique na montanha próxima.
A outra pessoa é a puritana, a mística praticante, correndo atrás de Deus, sem, todavia, nunca o avistar, planeando sempre aumentar as horas de oração, numa maior consagração, numa devoção mais profunda, mas nunca chegando a realizar plenamente o que projectara e, precisamente devido à compreensão dessa falha reliÉHosa, mais apaixonadamente rígida para consigo pró-
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pria pelo outro lado, o lado emocional e apaixonado, como se quisesse desse modo oferecer a Deus uma
compensação.
Por isso, travava-se nela continuamente uma luta
íntima.
Quando meditei no período de vida que a formou, comecei a compreender esse conflito inerente à sua verdadeira natureza. De Hermanus, herdara o amor à beleza, que era inseparável do seu ser; dos avós holandeses, herdara a capacidade de resoluções práticas que não lhe permitiam ficar inactiva, uma propensão para o sacrifício, para a rectidão que lhe estava na massa do sangue. Nascera ouvindo contar como os avós tinham abandonado tudo, esquecido tudo e fugido para uma nova pátria, movidos apenas pelo amor de Deus. Em virtude disso, adquiriu uma alma de peregrina. Ao mesmo tempo, todavia, havia-se constituído no seu espírito uma mistura incongruente, feita da parte que herdara da mãe francesa, a alegria, o espírito prático, a pouca religiosidade, o coração da francesinha que se dedicara apaixonadamente não a Deus, mas a Hermanus em primeiro lugar e depois dele aos filhos, só se dirigindo a Deus para pedir-lhe o bem dos seus entes
queridos.
Mais tarde, quando conheci melhor o meu país e o seu povo, fiquei a conhecer melhor Carie. A maior parte da América é feita nessa verdadeira desunião, nessa riqueza de variedade, que se origina nas diferentes fontes do seu sangue, na sua herança de pioneiros, nas duras e elementares experiências da vida.
Porque apesar de toda a felicidade da existência vivida na Casa Grande, apesar da música que tocava, da escola e das festas no povoado, Carie nem sempre se sentia feliz. Talvez que ninguém, no seu tempo, pudesse ser inteiramente feliz, porque entre aquela gente e a felicidade interpunha-se sempre o problema da salvação das suas almas.
Lembrava-se da alma nos seus mais alegres momentos. Às vezes, no auge de um divertimento, enquanto os amigos a ouviam gracejar, rir, inventar coisas, parava
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de repente, como se uma mão gelada lhe comprimisse o coração é pensava, cheia de pânico:
"O que será da minha alma?"
Muitas vezes, quando trabalhava em casa, parava um momento para contemplar o jardim através da porta aberta e perguntava a si própria se o céu poderia ser mais bonito do que aquilo. Então, sentia-se repentinamente dominada por um vivo terror:
"Mas ainda não estou salva. Quem sabe se não irei
para o céu!"
Ser-lhe-ia muito difícil não pensar nessas coisas. Assistia todos os domingos a longas cerimónias no templo, rezava em casa duas vezes por dia, e as amáveis e sagazes perguntas do sacerdote, aliadas ao veemente desejo dos pais de verem os filhos "salvos" e ligados à igreja, tudo isso se conjugava para impedi-la de ser inteiramente feliz.
Todavia, não foi o medo do Inferno que levou Carie a tomar os caminhos que conduzem ao Senhor. Realmente nunca a vi ter medo de nada e nem por um instante sou capaz de imaginar um pavor do inferno tão grande capaz de compeli-la a agir contra a sua vontade. Não, Carie desejava ardentemente praticar o bem! Dizia-nos frequentemente:
- É tão bonito ser-se bom! Sejam bons, meus filhos, porque a bondade é a coisa mais bela que existe na terra.
Desejava encontrar Deus, porque lhe haviam ensinado ser esse o único meio de ser-se bom, porque "toda a bondade do mundo não passa de fingimento quando não se dirige a Deus", diz a Bíblia.
Certa vez, contou-me que a sua adolescência fora prejudicada pela inquietação dessa procura. Um após outro, incluindo os mais débeis de coração, todos os seus amigos "convertiam-se" e recebiam a comunhão. Carie mantinha-se na pequena igreja, com a alma entregue a uma rebeldia angustiada, mas abanando a cabeça, recusando o pão e o vinho. Não queria decepcionar-se a si própria nem a ninguém. Por isso, rezava cada vez mais.
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No seu diário encontrei este texto referente àquela
época:
"Durante o tempo decorrido entre os meus doze e quinze anos, costumava ir várias vezes por semana ao bosque que ficava por trás do eirado e aí, atirando-me de bruços sobre o chão, por baixo de uma moita de framboesas, prostrava-me e chamava por Deus, pedindo-lhe um sinal - qualquer coisa que me fizesse acreditar nele. Às vezes, jurava como Jacob não sair dali enquanto não me mandasse um sinal. Porém, ainda não o recebi. O chocalho das vacas, que voltavam do pasto, anunciava-me que já era noite e lembrava-me então de que devia ir para casa e pôr a mesa para
a ceia".
Falou muitíssimas vezes dessa inquietação à sua professora da escola dominical, Mrs. Dunlop, esposa do sacerdote, e essa meiga senhora procurava arrastar aquele coração apaixonado e recto para o "caminho da salvação".
- Basta entregar-se a Deus, minha querida, basta isso - dizia, cheia de afecto para com aquela pequena, sisuda e ardente, que nunca chegou a compreender muito bem. - É uma coisa bastante fácil entregar o coração a Deus.
Carie desejava mais alguma coisa do que isso.
- Quero sentir que Deus me aceita - gritava. - Posso entregar-me, mas por que não me mostra Ele que me aceita? Por que não me envia um sinal?
Esta argumentação excedia todas as possibilidades de Mrs. Dunlop, que nada mais podia fazer do que repetir-lhe:
- Basta que se entregue a Deus; entregue-se a Ele,
minha filha!
Foram uns dias tempestuosos para Carie. Muitas vezes o desespero que sentia por não ter uma certeza a respeito de Deus, lançava-a numa indiferença e numa alegria demasiado excessivas para exprimirem felicidade. Outras vezes, compreendendo, horrorizada, o tumulto em que se debatia o seu sangue jovem, sentia-se
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irremediàvelmente perdida. Ficou apavorada quando sentiu despertarem dentro de si os desejos naturais. Nesse tempo, Carie era uma rapariga morena e bonita, desenvolvida para a idade, bem disposta e alegre, embora soubesse ser grave nos momentos sérios. Tinha uns lábios vermelhos e faces coradas e uma cabeleira castanha e abundante despenhava-se-lhe pelas costas abaixo como uma "cascata".
A experiência que nesse tempo adquiriu nunca a contou a ninguém. Sei apenas que se apaixonou loucamente por um rapaz, possuidor de uma riquíssima voz de barítono, pelo mesmo que em tempos se rira dela, na igreja, quando a armação da anquinha rebentou. Crescera e tornara-se um homem alto, loiro e garboso, que fazia parte de um grupo de descrentes, mas que frequentava a igreja para cantar e quero crer que também para a salvação de Carie. Encontravam-se ambos uma vez por semana na escola de canto.
- Ele conseguia cantar com o coração preocupado com coisas bem diferentes - dizia Carie, de má vontade, com olhos esquivos.
Dizia isto quando já tinha os cabelos grisalhos, mas eu conseguia ler-lhe nos olhos que essa recordação ainda a perturbava. Contudo, nunca nos revelou nada a esse respeito. Suponho que o corpo forte e belo do rapaz impressionava terrivelmente o sangue de Carie e a puritana que nela existia temia-o mortalmente. Nunca consegui saber se ele realmente a amou.
Tenho a certeza, porém, de que a mirava com olhos especiais, pois ela própria o considerava "gentil" e teve de fazê-lo "parar" porque não queria casar com ele.
- Mas por que não? - perguntávamos nós> já que o rapaz nos parecia romântico.
- Porque... porque não daria bom resultado. Bebia e era de uma família em que todos bebiam. Quando se possui esses antecedentes, torna-se difícil praticar o bem e eu receava que., no caso de nos casarmos, me tornasse parecida com ele.
Não sei se Carie teria conseguido afastar-se dele, se tivesse continuado só. Todavia, foi justamente nesse ano
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que a mãe adoeceu, de modo que se viu arrancada à convivência dos jovens da sua idade para se consagrar inteiramente ao tratamento da enferma. Então, enquanto via a mãe morrer aos poucos, jurou a si própria preferir o bem ao mal, dar preferência às suas inclinações tristes e manter durante toda a vida uma luta acesa contra a sensualidade que estava absolutamente certa de trazer no sangue.
Queria praticar o bem, queria dedicar-se à procura da perfeição, queria entregar-se a Deus.
De que modo poderia dedicar-se-lhe mais inteiramente?
Se Lhe consagrasse toda a sua vida, sem restrições, talvez Deus se dignasse dar-lhe um sinal da Sua existência que lhe permitisse segui-Lo e encontrá-Lo.
Aquela súbita doença levara Carie a esquecer-se da própria alma, graças a um novo terror que a afligia. A mãe sempre a preferira francamente a qualquer dos outros filhos. Carie ria com a mesma facilidade que ela, tinha as mesmas mãos ágeis; sabia cozinhar como ela e era igualmente cuidadosa e económica; era também a única que gostava de tratar da horta e do jardim. Além disso, era igualmente forte e sadia. Pegava muitas vezes na mãe ao colo e erguia-a como se fosse uma criança. Ameaçava-a então de só a largar se lhe prometesse trabalhar menos e comer mais.
- Sua tonta! - gritava a mãe, fingindo-se ultrajada. - Ponha-me imediatamente no chão, ouviu? Sou sua mãe!
Carie sabia bem que ela achava graça à brincadeira e cada dia a adorava mais. Admirava-a extraordinariamente e ambas sentiam-se livres e unidas; tranquilas em tudo, excepto na sombria questão de Deus. Neste assunto, Carie sentia-se só porque a mãe não conseguia compreender a angústia que dilacerava o coração da filha. Ir à igreja ajoelhar-se quando o padre rezava, cuidar do asseio da casa e cozinhar o melhor possível eram, na opinião da francesinha, obrigações de sobra para uma mulher. Carie não lhe respondia e ainda mais a adorava por ser assim tão inocente.
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Com a enfermidade a mãe tornava-se ainda mais infantil e apegava-se cada vez mais à filha.
A doença declarara-se subitamente. Num dia de grande invernia, a mãe fora à adega buscar pickles a um boião; como este estivesse vazio, demorou-se a abrir outro e, entretanto, apanhou um resfriamento. Este tornou-se em breve numa tísica galopante. Apesar da relutância íntima em acreditar que a mãe ia morrer, Carie era demasiado honesta para não enxergar a verdade cruel.
Não quer isto dizer que a morte a assustasse. Soube suportar tudo corajosamente. Mostrava-se alegre à cabeceira da doente e mantinha o quarto claro e enfeitado com flores; lavava e engomava as lindas toucas de renda que a mãe usava, vestia-lhe bonitas camisas bordadas e empregava todo o seu antigo prazer de vestir bonecas, cuidando da pequena mulher de olhos sumidos, prostrada na grande cama.
Por essa ocasião, Hermanus mudou-se para outro quarto e Carie passou a dormir ao lado da mãe, aquecendo-lhe o pequeno corpo frio com o calor da sua juventude robusta, servindo-lhe tudo de motivos para brincadeira e nunca consentindo que a sua querida mãe tivesse medo.
Um dia a doente foi de súbito sacudida por um terrível ataque de tosse e Carie ergueu-se para amparar-lhe a cabeça.
A pobre senhora, apavorada, balbuciou:
- Minha filha... é a m-or-te?
Subitamente, Carie sentiu-se incapaz de suportar o medo que lia nos olhos da mãe. Oh, se ao menos conhecesse a verdade a respeito de Deus - se ao menos pudesse dizer-lhe "Eu sei"!
Tinha de receber um sinal... Imolaria toda a sua vida para receber esse sinal.
- Prometo entregar-me inteiramente a Deus... consagrar-lhe a minha vida inteira - murmurou fervorosamente.
O seu espírito esforçava-se desesperadamente por penetrar o que não compreendera. Não devia haver
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meias medidas... nenhum sacrifício que não fosse completo.
- Serei missionária. Não há certamente melhor maneira de consagrar-me inteiramente a Deus.
E, de repente, o fim chegou. A mãe gritou dèbilmente e Carie ergueu-a nos braços. Viu anuviarem-se os olhos da enferma. Um fraco sorriso de surpresa entreabriu-lhe os lábios pálidos e murmurou:
-'Porque... tudo é verdade!
Durante um instante; fixou intensamente as paredes do quarto como se procurasse enxergar aquele outro mundo em que entrava... e morreu.
Carie, ao ouvir-lhe o grito e ao notar-lhe o olhar, sentiu o coração parar. Seria esse o sinal de Deus? Tomada de um terror respeitoso, recostou delicadamente o corpo da morta.
Foi desta maneira que Carie fez os seus votos. Procurou imediatamente cumpri-los. Sentia tragicamente a perda da mãe; nunca mais foi capaz de cantar com a antiga plenitude, porque aquela presença pequena e serena desaparecera e não conseguia apagar-se-lhe da memória a hora em que ela própria se dera a Deus.
Porém, Deus não lhe dava qualquer sinal de tê-la aceite. Teve de esperar algum tempo para saber como deveria agir e, entretanto, passava os dias como anteriormente entregue aos trabalhos escolares. Simplesmente, andava mais calada e mais activa. Recusava-se a tomar parte nas festas da vila. Nunca mais voltou a querer passear com Neale Cárter. Estudava muito, preparando-se para a carreira que se propusera seguir.
Para ela, a ideia das Missões não era nova. Era frequente aparecerem na igreja homens magros e bronzeados pelo sol, que eram missionários em terras distantes e que contavam as suas histórias com palavras cheias de ardor. Carie escutava-os, sentindo-se, sem
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querer, fascinada pelas temerárias aventuras empreendidas pelo amor de Deus. Porém, nunca sentira uma "chamada"- Isso significaria a partida para longe da América e era-lhe impossível abandodoná-la. Saía sempre da alegre igrejinha com uma sensação de alívio, procurando evitar o olhar dos missionários.
Agora, tudo havia mudado. Deveria estar - e estava-o, de facto - pronta para partir. Ocupava-se pouco dos assuntos domésticos, sem que ninguém compreendesse a razão dessa mudança e diziam:
Carie tem-se ressentido bastante com a morte da
mãe.
Todavia, tratava-se de muito mais do que isso. Começava a desligar-se da vida passada, preparando-se para enveredar pelo caminho que escolhera.
Passaram-se dois anos. Hermanus vivia prosperamente, pois o seu antigo passatempo tornara-se num ofício lucrativo. Os tempos de reconstrução, que se haviam seguido à guerra, há muito tinham passado; os fazendeiros enriqueciam e toda a gente lhe trazia relógios para consertar ou jóias para lapidar. Começou também a fazer relógios de algibeira, que eram muito procurados. Nos seus dedos magros e ágeis havia algo de mágico que obrigava o maquinismo mais obstinado a trabalhar como que por encanto. E, pela primeira vez na vida, contribuiu realmente para o bem-estar da família.
Entretanto, Cornelius continuava a ser o amparo de todos, com a escola e as colheitas. As duas irmãs mais velhas encarregavam-se competentemente do arranjo da casa e dos irmãos pequenos. O grande problema da família era Luther, o filho mais novo, o que se parecia mais com Carie tanto física como moralmente. Aquilo que existia dentro de Carie e que esta conseguira dominar, mercê de uma grande força de vontade e amor do Bem, grassava nele à vontade, assenhoreando-se completamente da sua carne jovem. Cresceu rebelde e queria viajar para o Oeste, a fim de explorar os campos de ouro que constituíam então o sonho de todos os rapazes em cujo sangue circulava uma gota
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de instinto vagabundo. A família unia-se toda, esforçando-se por dominá-lo, mas ele só amara realmente a mãe que o compreendia e, depois que esta morrera, era difícil dominá-lo. Hermanus, furioso, tentou açoitá-lo, mas o rapaz tinha quase o dobro da sua estatura, era alto, de olhos e de cabelos negros e o pai, arrogante mas baixo, não teve forças para dominá-lo. Certa vez, por ordem do pai, Cornelius deu-lhe uma sova, mas segurou de má vontade o chicote e nunca mais repetiu o gesto. Depois da morte da mãe, parecia que nada corria bem. Porém, a vida familiar continuava de qualquer forma e Carie aguardava, sentindo-se movida pela sua determinação secreta e irrevogável.
Quando tinha dezoito anos, o Dr. Dunlop, o sacerdote da sua infância procurava conseguir aposentar-se, pois ao envelhecer engordara demasiadamente e cabeceava com sono durante o serviço divino. Era evidente que precisava de um novo sacerdote. Hermanus, como sempre que se deparava a necessidade de resolver um caso importante da localidade, encarregou-se do assunto. Depois de muitas experiências respeitantes às diferentes doutrinas professadas pelos jovens que iam fazer sermões, foi escolhido um rapagão sério que, embora jovem de idade, era idoso em experiência que - diga-se de passagem - adquirira por ocasião dos duros tempos de guerra. Era, sem dúvida, uma experiência prematura e notava-se-lhe no rosto. Era oriundo do mesmo Estado e vinha do vizinho concelho de Greenbrier. Seu pai possuía terras e, acabada a guerra, o rapaz, depois de frequentar o colégio, ingressara no seminário. Tanto neste como naquele obtivera muitas aprovações "cum laudes", com menção especial à sua admirável facilidade para os idiomas estrangeiros - entre eles, o sânscrito, o árabe, o hebreu e o grego. Na pequena vila existia um certo gosto especial pelo ensino liberal e Hermanus seguia a tradição da cultura na família, que mantivera muito bem na sua prole. Além disso, o jovem sacerdote era de aparência agradável, alto, amável, com uma bela cabeleira e possuía uma mulher pequena e delicada, sempre enfeitada de rendas e que ele
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transportava pendurada no braço como uma pasta de trabalho O seu primeiro sermão foi profundamente doutrinário e explicou satisfatoriamente os tradicionais aspectos da predestinação e do livre arbítrio. Foi um sermão longo e semeado de trechos substanciais, na verdade um pouco acima da compreensão dos membros mais jovens da congregação. Era o bastante. O homem era aquele.
Nesse mesmo Verão, depois de ter-se mudado e instalado na casa revestida de trepadeiras e contígua à igrejinha branca, foi visitá-lo um irmão mais novo que ainda frequentava o colégio. Devo mencionar este rapaz por causa de Carie. Andava ainda a preparar-se para receber ordens; era alto, magro, com olhos azuis, muito próximo um do outro, evidenciando uma expressão vaga e mística e possuidor de uma voz amável e de um sorriso meigo. Era de um temperamento muito arisco e reservado e declinou lacònicamente todos os convites que lhe foram feitos para que tomasse parte no coro e na escola de canto. Alegava, com um sorriso, que andava muito ocupado, pois tinha de estudar com o irmão. Aos domingos, sentava-se um pouco à parte, aparentando não ver ninguém e no rosto espelhava-se-lhe uma leve expressão de êxtase. Carie raramente o olhava, mas quando o fazia achava-o um santo a quem faltasse talvez um pouco de sentido do humor, mas apesar disso muito bondoso. Uma das suas dificuldades residia exactamente no seu sentido de humor. Envergonhava-se de que ainda lhe fosse possível achar alguma coisa engraçada, mesmo que se encontrasse num funeral, e, com grande atrapalhação sua, isso sucedera-lhe mais de uma vez na igreja. Sentia-se desgostosa, mesmo quando isso se devia a pequenas coisas como, por exemplo, quando tocava órgão e via as moscas aglomerarem-se em volta do tule do chapéu da baixinha Miss Nelson. As moscas, atraídas pela substância doce com que o tule era engomado, prendiam-se nas dobras leves deste e formavam ali um enxame zumbidor, frenético,
o que deixava Miss Nelson, que era uma senhora de
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meia-idade, rubra de desespero, no seu assento. Uma vez, durante o serviço divino, essa senhora tentou fugir no intervalo de dois hinos e livrar-se assim da praga dos insectos; porém, ao erguer-se, o cheiro da goma atraiu mais moscas que começaram a voar directamente da janela em direcção à desgraçada Miss Nelson. Durante verões seguidos, aquele chapéu serviu de engodo às moscas e de divertimento aos membros mais novos da congregação.
O jovem irmão do pastor, uma vez na igreja, nunca seria capaz de aperceber-se de tal coisa. Os seus pensamentos estavam algures - indubitavelmente, onde deveriam estar. Carie, embora se sentisse humilhada pela discrepância entre as suas capacidades e os seus desejos, sentia-se ao mesmo tempo fascinada pela devoção que lia na face austera e pálida do jovem. Contudo, mal lhe dirigia a palavra. Parecia-lhe um ente à parte, devido à sua verdadeira natureza e vocação. Respeitava-o, mas pensava muito pouco nele. Não a esperava uma missão?
Aos dezanove anos já aprendera tudo quanto Cornelius lhe poderia ensinar, mas ainda não atingira a sapiência com que o seu espírito vivo e brilhante sonhava. Depois de terminada a guerra, a casa recuperara a antiga prosperidade; não havia qualquer necessidade especial que requeresse a presença de Carie, em casa; Luther amansara e acabara por concordar em frequentar a escola e "receber instrução". Por conseguinte, Cornelius foi de opinião que Carie saísse da vila, a fim de frequentar um seminário para raparigas, de forma a ter oportunidade de desenvolver não só a inteligência como também a voz forte e bela que possuía.
Isso não poderia ser conseguido num colégio qualquer. Além do curriculum de estudos regulares, Hermanus exigia também profundos conhecimentos de doutrina religiosa, de fundamentos presbiterianos, pois desejava que a filha recebesse rígidos princípios morais. Depois de muita procura, encontraram o colégio ideal: o Seminário Bellewood, próximo de Louisville, no Kentucky. Carie entrou, pois, para esse colégio aos dezanove
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anos e com o coração loucamente excitado. Levava um vestido novo de casimira castanha, feito propositadamente para a viagem, realizada num navio a vapor.
O vestido era enfeitado com pregas miudinhas e botões e possuía, além disso, uma renda creme, franzida em torno do decote e dos punhos. A mesma renda enfeitava também o chapéu pequeno que lhe cobria os cabelos crespos. Sentia-se deveras satisfeita com a sua aparência, embora achasse a boca grande demais. Nesse tempo, tinha uns lábios surpreendentemente vermelhos e as faces extremamente coradas. Muitos anos mais tarde uma filha perguntou-lhe:
- Mãezinha, eras bonita quando eras rapariga?
Os seus olhos castanhos, salpicados de ouro, iluminaram-se e respondeu:
- Quando saí do colégio, Neale Cárter achava que sim.
Os dois anos seguintes, passados no Seminário Bellewood, foram uns anos felizes, ricos em amizades. Na sua turma contavam-se dezassete raparigas e Carie tornou-se entre elas uma espécie de chefe e conquistou-lhes extraordinariamente a sua afeição. Possuía um coração tão grande que nele podia abrigar qualquer ser humano e a diversidade das suas amizades era notável.
O amor que dedicava a alguém era proporcional à necessidade que esse alguém sentisse de amor ou de auxílio. Graças a essa sua tendência, julgo que Neale Cárter esteve mais próximo de vencê-la do que qualquer outro, pois necessitava de Carie para tornar-se bom. Uma vez confessou-nos que estivera quase a aceitá-lo, mas que a sua perspicácia e sentido humorístico em breve descobriram que Neale voltava sistematicamente a beber - e que apreciava especialmente pecar para ser perdoado - e foi devido a isso que a perdeu.
Tenho, a meu lado, algumas recordações do seu tempo de colégio: dois trabalhos escritos com a bela caligrafia floreada daqueles tempos. Um deles intitula-se "A Rainha Ester". É uma dissertação sobre o sacrifício da rainha judia pelo seu povo - já aqui se manifestava
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a sedução que para ela representava o sacrifício! - e o sacrifício da sua vida por Ele, se tal fosse necessário. Porém, o trabalho termina com uma deliciosa e ingénua afirmação, segundo a qual todos os que depõem em Deus o seu direito e a sua confiança, serão indiscutivelmente premiados.
O outro ensaio valeu a Carie o prémio de uma medalha de ouro armada em "pendentif" e destinada a ser usada numa fita estreita passada em volta do pescoço. Este trabalho é ainda mais primorosamente copiado, sem uma única rasura. Foi feito evidentemente para um debate na aula de Filosofia Moral. Está impregnado de férvido dogmatismo religioso. Através dele pode ver-se que, aos vinte anos, Carie já se desfizera de todo o amor pelos prazeres da vida que a adolescência lhe suscitara e que se tornara numa jovem resolvida a ser uma nobre e boa cristã. Se não conhecesse o outro lado do seu carácter, quase me sentiria inclinada a dizer que aquelas páginas tinham sido escritas pela mão de uma beata. Mas a sua vivacidade e o seu bom-humor, o seu temperamento caprichoso, salvaram-na de tal acusação. Efectivamente, até ao fim da vida, sempre que Carie pegava numa pena, a solenidade apoderava-se dela, fazendo-a escrever toda a espécie de severas advertências que constituíam, na realidade, advertências para si própria. Até no seu pequeno diário o que ela apenas faz é encorajar as próprias resoluções. Julgo realmente que o segredo da existência desse diário reside exactamente na necessidade em que se sentia de estimular constantemente a sua alma rebelde. Vivia numa contínua pregação íntima a si própria, receando sempre que o seu irónico e risonho coração acabasse por sair vencedor do combate.
Se fosse a pessoa que transparece naquele trabalho excelente e absurdo, acerca de "As evidências do cristianismo", certamente nunca teria podido conquistar o universal amor das suas condiscípulas, muitas das quais mantiveram correspondência com ela durante toda a vida. Vinte e cinco anos depois da formatura, as raparigas que haviam sido suas colegas mandaram a Carie,
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que se encontrava então na China, uma linda colcha de retalhos, feita de pedaços de seda e de veludo; em cada um desses retalhos, as doadoras haviam bordado o próprio nome, de forma que a colcha reunia-os a todos por assim dizer de "próprio punho".
Ao receber o presente, Carie apertou-o ao peito com os olhos marejados de lágrimas e, sorrindo, murmurou comovida: "Aquelas pequenas", embora "as pequenas" já tivessem todas cabelos brancos tal como ela própria. Lembro-me de que uma vez; pelo menos, deu largas ao seu amor às cores e debruou a colcha com um alegre brocado chinês, dum escarlate vivo. A colcha, assim ornamentada, tornou-se para todos nós uma riqueza e um trofeu glorioso.
Exibia-se na cama do quarto de hóspedes. Porém, quando Carie estava moribunda, lá, naquela velha cidade chinesa, reclamou a colcha e pediu que a envolvessem nela, depois de morta, em sinal de amor e de homenagem às antigas companheiras. E, de certo modo, prefiro que tenha morrido exactamente na época em que morreu, pois que, pelo menos, não assistiu aos dias da revolução em que essa colcha caiu nas mãos sanguinárias dos soldados saqueadores. Estes estavam ocupados a partilhar as nossas coisas, quando um homem escuro e selvagem descobriu o estofo rico e se lhe atirou com uma ferocidade que nunca vi em ninguém, envolvendo nele os imundos ombros nus.
Aos vinte e dois anos, Carie concluiu o curso e voltou para casa, considerando-se uma jovem senhora. Os anos de restrição no internato e a ênfase do estudo da religião haviam intensificado ainda mais o seu propósito de tornar-se missionária. Comunicou ao pai as suas intenções. Hermanus ficou completamente atónito, desolado até, e ridicularizou a ideia. Que ideia era aquela de uma jovem bonita ir para um país povoado de pagãos, cujo maior desejo era devorar cristãos? Nunca uma filha sua daria tal passo!
Carie, extraordinariamente surpresa, porque supusera que o seu projecto estivesse de acordo com os sentimentos profundamente religiosos do pai, perdeu
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imediatamente a sua precária placidez; discutiu ardentemente com o pai, dizendo-lhe que deveria vencer as suas relutâncias e apoiá-la. Mas Hermanus, sem se impressionar com a obstinada resolução da filha, declarou com incisiva dignidade que havia um limite sensível para tudo, até mesmo para a adoração a Deus e que não era conveniente que uma rapariga solteira de vinte e dois anos partisse como missionária para uma terra
de pagãos.
Era a primeira vez que Carie ouvia o pai exprimir tão heréticas opiniões e, ao mesmo tempo que se desfazia em ardentes lágrimas, aquilo que nela fora apenas um desígnio fervoroso transformou-se numa invencível
resolução.
Durante as férias de Natal daquele ano o jovem irmão do pastor voltou à vila. Estava mais alto do que nunca, mais pálido, mais distante. A Carie, no seu exaltado estado de espírito de então, parecia realmente maravilhoso. Neale Cárter e o seu grupo pareciam-lhe grosseiros e horríveis. Foi então que ouviu murmurar entre as raparigas da sua idade que o austero rapaz pretendia fazer-se missionário. Sentiu o coração estremecer. Seria aquele o caminho?
Um dia conseguiu uma oportunidade de falar-lhe, sentindo, todavia, a sua alegre sem-cerimónia subitamente paralisada. Era depois do ofício divino, quando os fiéis costumavam dirigir-se para a sombra das árvores e para o jardim da igreja. O rapaz inclinou cortesmente a cabeça mostrando igual constrangimento que ela. Carie perguntou-lhe, com toda a alma resplandecendo-lhe nos olhos dourados:
- É certo que pretende partir como missionário para
a China? Aguardou ansiosamente a resposta do rapaz.
- Sim, creio que é esse o meu dever - respondeu ele, com simplicidade. A fronte alta e branca mantinha-se pura e lisa, enquanto ali permanecia de chapéu na mão, e os seus olhos azuis mostravam-se serenos.
Carie exclamou então ardentemente:
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. Oh, há anos que desejo também fazer a mesma
coisa!
Pela primeira vez, o rapaz olhou-a com interesse. No seu olhar azul e vago brilhou um rápido fulgor, enquanto lhe procurava o ardente e escuro olhar.
Também quer ir?
Nos anos posteriores em que já o conhecia bem, compreendeu que aquelas simples palavras "Creio que é esse o meu dever" representavam toda a chave da sua natureza, a explicação de cada um dos seus actos, o irrefutável argumento da sua vida inteira.
O rapaz não se esqueceu daquelas palavras. Voltou a procurá-la cerimoniosamente e, juntos, falaram exaltadamente de religião e dos seus mútuos propósitos. Ela contemplava-lhe o rosto enquanto o ouvia falar, explicando-lhe doutrinas que ela não tivera paciência de ler nos empoeirados livros da sacristia da igreja. Carie pensava que fora desígnios de Deus aproximá-los um do outro. Quando estavam juntos não sentiam nenhum ardor febril no sangue. Falavam natural e facilmente de boas obras. A resolução de Carie tornou-se mais elevada e mais pura. A sua antiga natureza excitável e panteísta ia batendo em retirada. Depois do rapaz partir sentia-se mais calma, mais fria e mais religiosa. Não sentia nada daquela louca alegria que a deixara sorridente e envergonhada nos tempos em que Neale Cárter a cortejava.
Um dia, muito cedo, foi-lhe entregue uma carta. Era uma proposta de casamento, cuidadosamente redigida em rígidas fórmulas religiosas. Já que tinham na vida um propósito comum, já que tinham um mesmo espírito, parecia que seria da vontade de Deus que se reunissem. Além disso, sua mãe não lhe consentia que partisse para terras pagãs sem que fosse acompanhado de uma esposa. Não seria fácil descobrir uma mulher que consentisse em partir para tão longe. Aguardara, pois, uma intervenção do Senhor e parecia-lhe que essa intervençao providencial já se realizara. Carie leu reverentemente a carta. Ao lado de um
homem como aquele não poderia seguir outro caminho
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que não fosse o do Bem. A sua imaginação viva fantasiou logo como seria os anos que ambos passariam, lado a lado, a rígida dependência da vontade de Deus em que os dois viveriam, auxiliando-se mutuamente a aperfeiçoar-se. Ele não possuía o dom natural da palavra e ela, que tinha facilidade e riqueza de expressão, poderia auxiliá-lo a fazer os seus sermões. Ele forneceria os conhecimentos profundos; ela, a eloquência, numa combinação invencível! Carie antevia uma grande messe de pagãos, vestidos com a túnica branca do baptismo, acompanhando-os com olhares de adoração - uma vida de triunfo - e a sua antiga, tempestuosa, apaixonada natureza, amante dos prazeres ficaria dominada para sempre. Com Neale Cárter, perderia a sua alma imortal e, nem ao menos, salvaria a dele. Mas com aquele outro homem não só o céu ficava garantido como também lhe seria dado alcançá-lo, acompanhada de muitas outras almas. E, se no seu coração, houve um momento de mágoa e de luta, quando encarou a necessidade de abandonar o lar e a pátria bem-amados, no momento imediato sabe afirmar a si própria que sabia muito bem o que queria: queria o bem, o dever, acima de tudo. Certamente que, se sacrificasse tudo, tudo, algum dia Deus lhe mandaria um sinal. Quando falou ao jovem missionário, parecia-lhe que esse sinal estava multo prestes a aparecer.
Porém, Carie não respondeu imediatamente à carta. Procurou o pai e falou-lhe calmamente, escondendo a exaltação interior sob uma calma aparente. Disse-lhe que Deus lhe apontara um caminho e que decidira casar com o rapaz que ia ser missionário e que partiria com ele para o estrangeiro.
Nesse tempo, Hermanus era um velho de cabelos brancos, extremamente irritável e extraordinariamente estrito nas práticas religiosas. Agarrou na bengala de passeio e encaminhou-se para a porta. Quis a sorte que fossem três horas da tarde, exactamente a hora em que o jovem missionário costumava visitar Carie. Chegou no habitual passo suave e hesitante. O velho, pequenino
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e indignado, correu na sua direcção, brandindo-lhe a bengala.
O rapaz recuou, atónito.
- Cavalheiro, conheço muito bem as suas intenções! gritou-lhe Hermanus, numa voz desmedidamente desproporcionada à sua pequena altura. - O senhor nunca se apossará de minha filha!
O jovem missionário possuía um diminuto senso de humor, que só muito raramente lhe aparecia. Encarou o homenzinho e respondeu-lhe com certa calma:
- Oh, estou absolutamente certo de que me apossarei, senhor!
Dito isto, continuou o seu caminho.
Carie esperava-o junto à porta e o seu último vestígio de dúvida desvanecera-se. A oposição de Hermanus servira muito à causa do rapaz.
Carie aceitou-o.
Cornelius decidiu então vencer a oposição do pai e, embora ele próprio não aprovasse inteiramente a decisão da irmã, reconhecia que era uma mulher feita e que devia saber o que queria. Além disso, o rapaz era um homem excelente e o ofício de missionário era uma nobre profissão, principalmente quando se tem vocação e o desejo de segui-la. Mas o principal factor que influenciou a sua atitude foi ter a certeza de que Carie faria de qualquer modo o que decidira e achar que era preferível deixá-la partir com uma aparente aprovação do que vê-la sair de casa contra a vontade de todos. Depois de repetidas conferências com o filho, Hermanus, de muito má vontade, acabou por dar o consentimento. Desde então todas as tardes, às três horas, o jovem missionário chegava à Casa Grande e conversava sozinho com Carie, durante uma hora inteira, na sala de entrada. Chamou-a "Miss Carie" até ao dia em que se casaram. Às quatro horas tomava chá com a família, refeição essa durante a qual se serviam vinhos e bolos, de acordo com a tradição familiar. Casaram no dia 8 de Julho de 1880. Carie trajava um
vestido escuro de viagem, porque lhe parecia impróprio
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para missionários o uso de frívolos véus de tule, cetim branco e flores de laranjeira.
Na estação houve um ligeiro momento de confusão quando se descobriu que o noivo comprara apenas uma passagem para o comboio.
- Lembre-se de que tem mulher - fez-lhe notar numa censura o irmão mais velho.
A verdade é que maior do que a excitação do seu dia de núpcias era para aquele rapaz a ideia de que o seu sonho se realizava e que partia para se entregar ao trabalho da sua vida. A "Obra" como então lhe chamava e sempre chamou, removera o último obstáculo, a única imposição que a mãe lhe fizera: a escolha de esposa. Já a tinha. Mas nunca pôde realmente compenetrar-se bem desse facto.
Haviam vivido sempre naquelas calmas paragens, sem nunca terem ido mais longe do que a caminho da escola. E agora partiam confiantes e em êxtase, sabendo apenas que viajariam primeiro por terra e depois por mar. Andrew levava no bolso quinhentos dólares em papel moeda, recebidos da instituição de missionário sob cuja dependência partia e transportava toda a sua fortuna no bolso duplo do comprido casaco. Durante toda a travessia do continente viajaram sentados, porque ignoravam que havia leitos. Quando chegaram a São Francisco tiveram que esperar vários dias para obter passagens num navio. Finalmente, um dia, Andrew foi até ao cais e descobriu o "City of Tokio", um velho calhambeque quase incapaz de navegar, que partiria no dia seguinte. Reservou uma cabina e o casal preparou-se para a nova etapa da jornada.
Carie não precisou mais do que três dias de casada para compreender que, nos assuntos práticos da vida de ambos, seria ela quem deveria tomar a direcção.
Rezando e pregando, Andrew poderia ser um homem de valor, mas em matéria de negócios era tão ingénuo e fácil de enganar como uma criança. Acreditava implicitamente na natureza humana e, embora pregasse contra a maldade, só poderia considerar maus os homens que divergissem dele doutrinàriamente. Foi, portanto,
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Carie quem cuidou do transporte das bagagens e da acomodação no navio e quem procurou suprir as necessidades que teriam durante a travessia.
Quem compreende o que eram as distâncias naqueles tempos, há quase meio século, há-de calcular o que sentiria o coração de Carie ao velejar para longe da costa americana, naquele dia de Verão. Ouvi da sua própria boca que tivera um momento de terrível pânico quando se compenetrou de que deixava a pátria. Correu então para o camarote, porque preferia não ver o navio afastar-se e aumentar a distância entre ela e as praias da terra querida. Nesse momento sentiu um impulso de hostilidade contra aquele santo com quem se casara - e outro, apenas por um instante, de hostilidade, imediatamente reprimida - contra o próprio Deus que até naquela hora de separação não se dignara fazer-lhe lá do céu, onde vivia, um sinal qualquer que provasse à sua serva Carie que procedera bem.
As águas sobre as quais o pequeno e velho navio os transportou, durante todo o mês seguinte, transformaram-se para Carie, até ao fim da vida, num oceano de horror. Uma hora depois de ter embarcado descobriu que não havia nascido para a vida do mar. O enjoo revestiu-se nela de um aspecto particularmente violento - não eram só náuseas, mas dores violentas na cabeça e nas costas, piorando continuamente à medida que o tempo melhorava. Nascera nas montanhas e amara-as sempre. Descobria poucas belezas no mar e nele só via um elemento terrível e invencível. Porém, creio que isso se devia parcialmente ao facto de ter sido o mar o sinal da sua separação da terra, da sua terra que amava mais profundamente à medida que os anos se iam passando. E tão grandes e invencíveis lhe pareciam aquela separação e o oceano que, até nos últimos anos de vida, não quis voltar à pátria, preferindo resignar-se a morrer em terra estranha, perante a perspectiva de arriscar-se a mais uma travessia por mar. Uma vez em que nos achávamos todos na coberta de um navio, Carie,, vacilante, tonta, sem uma gota de sangue na
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face, olhou-nos e disse com um olhar risonho, apesar
de tudo:
- Sinto cada vez mais desejos de ir para o céu, principalmente depois que li o que diz a Bíblia: "E então aí não haverá mais mar!".
Para uma recém-casada adoecer durante a lua-de-mel era uma circunstância particularmente penosa, mas Andrew mostrava-se indiferente, como se nada de extraordinário se houvesse passado. Carie notava-o e conseguia sorrir, embora certamente se sentisse magoada. Lembro-me de ouvi-la dizer-nos, muitos anos depois, quando já perdera quase toda a sua beleza:
- Andrew nunca olhou para mim nem para o que eu vestia. A única vez em que me disse alguma coisa a respeito da minha aparência foi quando estive quase à morte, depois do nascimento de um dos pequenos. Pensava que eu não escaparia e ficou extraordinariamente impressionado. Nessa ocasião, sentou-se na borda da cama e disse-me com o modo mais tímido possível: "Ainda não tinha reparado como os teus olhos castanhos são bonitos, Carie". Descobriu isso depois de estar casado comigo dezoito anos e justamente quando eu dava à luz o meu sétimo filho! Ora vejam lá o que é ser-se casada com um santo! E depois, com o modo vivo e caprichoso que lhe era
habitual, acrescentou:
- Ora, prefiro ter casado com um santo que nunca olhou para mim, do que tê-lo feito com um pecador que olhasse para todas as outras mulheres!
No Japão, logo após os primeiros passos que deram em terra, ficaram ambos espantados com a civilização e evidente cultura desse país. Para Carie, especialmente, que se deleitava na observação da delicada beleza de miniatura daquele povo, parecia-lhe incrível que fossem capazes de construir uma nação tão perfeita. Andrew não se deixava facilmente impressionar pela beleza e o seu entusiasmo esfriou logo que viu templos por toda a parte cheios de fiéis das seitas locais. Tratava-se evidentemente de um país de "pagãos".
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A carreira do velho "City of Tokio" terminava no Japão, de forma que tiveram de atravessar os mares da China noutro barco. Foram mais cinco terríveis dias de viagem. É verdade que antes de atravessarem aqueles mares conhecidamente bravios, gozaram de dois dias de maravilhosa travessia no mar do Japão. Aqui, as águas do oceano encontravam os obstáculos das ilhas e das montanhas e, todavia, mostravam-se serenas, como se se alongassem pacificamente, satisfeitas com a sua beleza. Para Carie aquele mar permaneceu-lhe sempre na memória como uma pacífica maravilha e sempre se alegrou de todas as mais vezes que teve de atravessá-lo.
Quando se aproximaram da China, procurou baldadamente as pitorescas praias semeadas de recifes que tornam tão memorável a entrada no Japão, mas não se lhe deparou nenhuma praia à vista. O rio Yangtsé, denso e sombrio, entrava pelo mar dentro, traçando com as águas amarelas e barrentas uma nítida linha de separação. Dava até a impressão de que o próprio navio hesitava em transpor a linha onde as duas águas se encontravam sem se misturarem. Do outro lado do navio ficava a terra à vista, longínqua, lamacenta, plana.
O coração de Carie bateu com mais força. Acaso toda a sua vida decorreria numa terra despida de beleza? Ancoraram na China e desembarcaram em Xangai, nesse tempo tal como agora, o principal porto da costa chinesa.
Esperava-os no cais um grupo de velhos missionários e Carie perscrutou-lhes os rostos para ver que espécie de homens e mulheres seriam. Sentiu-se intimamente um tanto desapontada ao verificar que não diferiam grandemente das outras criaturas deste mundo. Não lhes via nenhum sinal de especial nobreza, nem aliás nenhum sinal de nada que não fosse bom.
Formavam um grupo de boa gente, vulgar, um pouco
atrasada em matéria de vestuário, tal como poderia
ej*contrar com facilidade na sua terra. As muiheres
olhavam com secreta avidez os pormenores do seu fato
e v*agem e pareceu-lhe patético que as suas primeiras
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perguntas fossem todas a respeito da América. Eram, porém, afectuosas e delicadas e era bom encontrá-
-las ali.
Para aqueles velhos missionários constituía um novo estímulo ver dois americanos jovens e fortes, recém-chegados da pátria. Ao todo, contavam-se apenas onze missionários e havia já sete anos que não chegava nenhum. Na primeira noite da chegada do casal, foi-lhes oferecido um jantar de boas-vindas na casa de um dos missionários que vivia em Xangai; lá se reuniram novamente todos, falando com entusiasmo, saboreando as últimas notícias da América e dando conselhos.
Nunca posso pensar nesse jantar sem recordar o modo por que Carie se lhe referia e o que ali sucedeu. Depois do jantar, Andrew, repleto de bons petiscos e exausto e sonolento pela viagem, adormeceu na sua cadeira com grande horror e consternação da jovem esposa, que se achava no lado oposto da sala e que nada podia fazer para acordá-lo. Era a primeira vez que isso acontecia, embora Carie depressa o reconhecesse como uma das características de Andrew, que manteria durante toda a vida: quando estava cansado ou maçado, caía num sono suave e obstinado para acordar algum tempo depois bem disposto e bem humorado. Essa capacidade serviu-lhe indubitavelmente de muito quando atravessava os árduos anos do seu trabalho de pioneiro e desempenhou um papel importante na manutenção do seu equilíbrio físico, sem contudo deixar de afligir Carie. Passou a sentar-se sempre a seu lado e a acordá-lo com um rápido e suave movimento da mão, mas, embora esse seu gesto fosse o mais discreto possível, o marido ao despertar soltava sempre um pequeno grunhido que chamava a atenção geral.
Um dos momentos em que a vi indignada foi uma vez em que Andrew estava sentado no estrado da igreja, com um grupo de professores de doutrina de que fazia parte e que deveriam todos discursar. Possivelmente, achando o discurso do seu predecessor excessivamente
soporífero, Andrew adormeceupropositada e tranquilamente.
Carie, que o observava bem de frente, num relance apercebeu-se do que acontecia. Porém, ao passo que ela se revolvia na cadeira, ele continuava a dormir calmamente e dormia ainda no próprio momento em que deveria ser apresentado. Todavia, abriu milagrosamente os olhos no instante preciso, olhou esgazeado em frente, viu o púlpito vazio, subiu e começou a falar. Depois, perante as censuras a que ela o não poupou, limitou-se a sorrir, o que ainda era mais exasperante' para Carie por ser realmente verdade que despertara no momento preciso.
O pequeno grupo de missionários demorou-se mais uma semana em Xangai, a fim de fazer compras para o Inverno. Nesse tempo, aquele porto era o único lugar em que se podia adquirir géneros estrangeiros; compraram, pois, todas as suas provisões de Inverno, até mesmo carvão, e partiram em seguida para o interior nos juncos indígenas.
Andrew comprou em Xangai o seu primeiro ulster inglês, porque os invernos, nos vales do Yangtsé, costumavam ser húmidos e gelados. Compraram também roupas de cama e móveis para o quarto. Carie adquiriu uma peça de musselina cor-de-rosa, apesar de ler algum receio nos olhos de Andrew.
Depois o pequeno grupo dividiu-se, seguindo uma
metade para Sucheu e a outra, na qual figuravam os
recém-chegados, em direcção a Hancheu. Embarcaram
nos lentos, velhos e pesados juncos e gastaram sete dias
na jornada de Xangai a Hancheu - o que actualmente
parece incrível, se pensarmos que a ligação entre as
duas cidades se faz em meio dia de viagem e que muitos
comerciantes ricos de Xangai costumam passar o fim
de semana à beira do lago do Oeste, em Hancheu.
Porém, naqueles tempos, em Hancheu, a população
branca limitava-se àquele pequeno grupo: Andrew,
Carie e a velha Mrs. Randolph, que viajavam num dos grupos e os Stuarts que
viajavam com os garotos no outro. Os juncos achavam-se na embocadura do Sucheu; os passageiros embarcavam e os barqueiros empurravam-nos através da cidade chinesa, enquanto
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nas margens se apinhava enorme multidão, ansiosos para assistirem à passagem dos estrangeiros brancos. Carie, enquanto fitava as caras morenas, sentia o coração dolorosamente didivido. Ali estavam os "pagãos", o povo pelo qual abandonara a pátria e a quem dedicara a vida - oh, queria entregar-se a eles, consagrar toda a vida ao seu amor! E, ao mesmo tempo, sentia uma sensação de repulsa. Como eram terríveis, vistos assim de dentro dos barcos; como os seus olhos estreitos eram cruéis; como era fria a sua curiosidade! Os juncos deslizavam já fora da escuridão da cidade, onde as casas se comprimiam tão próximo das águas dos canais que pareciam ter sido construídas sobre o lodo das margens e manterem-se sobre a água nos seus
pontões.
Ao chegarem à região campestre, o canal começou a correr suavemente entre pequenos campos silenciosos e Carie suspirou mais uma vez profundamente. A vastidão do céu azul, o aspecto familiar das árvores - salgueiros semelhantes aos que cresciam nos arredores de sua casa - tudo aquilo a pacificava.
Fora uma felicidade para Carie ter tido, como primeiro contacto com o novo país, aqueles longos e belos dias em que deslizara nos canais, por entre campos prontos para a colheita. A beleza acabava sempre por dominá-la e havia ali muita beleza, talvez estranha, mas nem por isso menos bela. Estava-se no fim de Setembro, perto dos começos de Outubro e o céu não mostrava uma única nuvem. No vale do Yangtsé nunca o sol é tão bonito como nessa época em que o período mais quente do Verão já passou e os primeiros sinais do Outono reduzem os perigos do sol, deixando-lhes apenas o extraordinário encanto. Viu as grandes moitas de bambus, plumosas e ondulantes, as colinas baixas e verdes, as águas do canal sinuosas e douradas, os campos amarelos plantados de arroz, as pequenas aldeias de casas cobertas de colmo a meia milha uma da outra; escutava o lento ritmo dos mongóis malhando o cereal nos eirados e sentia o tépido e suave ar do Outono. Para os intentos de Carie fora uma sorte que os seus
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primeiros dias na China tivessem decorrido em condições tão favoráveis. Sentava-se à proa do junco e olhava intensamente em torno, fascinada, maravilhando-se na simplicidade do seu coração por um país de pagãos poder ser tão belo.
Às vezes, os passageiros pediam aos barqueiros que encostassem às margens por desejarem caminhar um pouco. Os juncos, a não ser que icem as velas e o vento os impulsione, nunca se deslocam mais depressa que o passo de um homem.
Ora, aqueles dias do começo de Outono eram tão calmos, tão brilhantes e tão desprovidos do mínimo sopro de vento que, para andar, o junco tinha que ser arrastado a reboque com uma ponta do cabo amarrada a um dos mastros e a outra puxada aos ombros dos homens, por terra.
À medida que penetravam no interior do país. Carie perscrutava com mais interesse o rosto das pessoas que a encaravam. Não tinham as mesmas feições carregadas nem os mesmos olhares rudes do povo que habitara a cidade. Eram tostadas pelo sol, era uma boa gente dos campos, que olhava curiosamente para os estranhos, sem dúvida, mas que retribuía prontamente um sorriso... e Carie era sempre pródiga em sorrisos. Pais, mães e garotada alegre e endiabrada - constituíam famílias organizadas, entregues ao cultivo da terra e que lhe pareciam absolutamente humanas. Creio que, daí por diante, para Carie deixaram de ser "pagãos". Foi essa a tendência que durante toda a sua vida predominou entre aquela gente, embora seja verdade que possuía uma certa porção de preconceitos de raça, que eram decerto resultantes dos tempos em que vivera na América. Porém, o sofrimento, a necessidade ou o encanto natural das criaturas faziam-na esquecer inconscientemente os seus preconceitos e ensinaram-na a considerar toda a gente, brancos e amarelos, apenas como criaturas humanas.
Lembro-me de uma história que gostava de contar-nos, ocorrida na sua infância, quando, embora seu pai não possuísse escravos, não permitia que os filhos
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brincassem com crianças de cor. No extremo de um dos campos havia uma casa de colono na qual morava um negro livre que cuidava da terra. Tinha uma família enorme, filhos e filhas, e Hermanus mandara construir uma cerca alta que limitasse o quintal da casa. Era uma cerca que os negros não tinham permissão de
transpor.
Carie contava:
- Costumávamos brincar nesse campo, mas eu não gostava de ir para lá. Os negrinhos empoleiravam-se na cerca e olhavam-nos tão fixamente! Um dia, Luther gritou-lhes: "Não podemos brincar convosco!" e os pequenos responderam num coro uníssono: "Já sabemos que somos filhos de negro!". Nunca esqueci o que senti naquele momento e, desde então, compreendi o que representa para alguém ser um negro na comunidade de brancos. Lembro-me de que ralhei com Luther, em parte por ter sido tão cruel e em parte para que nunca se esquecesse daquilo.
Enquanto falava, os olhos de Carie mostravam-se ternos e trágicos, pois sofria realmente quando via
alguém infeliz.
Quantas vezes a vi atravessando a pé uma aldeia chinesa, parar como Cristo parou uma vez à entrada de Jerusalém para soltar aquela exclamação dolorida "Oh, Jerusalém, Jerusalém!".
Exclamava apaixonadamente, contemplando a opressão sob a qual vivia o povo:
- Não precisava de uma grande mudança. Pouca coisa há a modificar nestas aldeias: as casas, as ruas e os campos já são razoavelmente bons. Gostaria que as deixassem assim como estão. Se ao menos o povo deixasse de matar as pequeninas recém-nascidas, se deixasse de manter as mulheres ignorantes, se deixasse de lhes deformar os pés, se essa gente não fosse cegamente idólatra, se varressem as imundícies das ruas e se matassem metade desses cães vagabundos!... Que país lindo seria se soubessem aproveitar o que
possuem! Exclamava ainda:
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- Não queria que adquirissem nenhum dos nossos costumes. Se continuassem a viver nas suas aldeiazinhas e nas suas cidades, da mesma maneira como vivem, mas se ao menos procurassem ser limpos e bons... como tudo isto seria lindo!
Nunca na sua longa vida passada entre eles a vi ensinar-lhes outras coisas que não fossem a simplicidade, o asseio e a bondade. Era uma alegria para o seu senso prático agarrar um produto nativo e mostrar-lhes como deveriam aproveitá-lo.
- Não precisam de nenhuma coisa estrangeira nem de muito dinheiro - dizia ela a uma mulher. - Terão tudo o que precisarem se souberem utilizar aquilo de que dispõem.
Quando atravessava as cidades do interior, nunca deixava de murmurar:
- Têm tudo e em quantidade suficiente, excepto duas coisas: asseio e probidade.
Eram estas as duas rochas sobre as quais se edificavam os alicerces da sua vida.
À medida que atravessava aquele lindo país, naquele primeiro período da sua nova vida, sentia o coração transbordar do desejo de ensinar àquela gente as duas bases que julgava essenciais à vida. Na realidade, o facto de considerar o país belo e a sua gente amável aqueceu-lhe o coração, enchendo-o de um novo zelo. Numa terra tão bonita não deveria ser difícil pregar o nome de Deus ao povo. Iniciou aqueles anos com um tremendo entusiasmo pela vida - a vida que escolhera. Havia tantas coisas que podia fazer! Crianças de olhos doentes, mulheres que não sabiam ler - oh, uma imensidade de coisas a fazer! E, na agitação dessas tarefas, quase esquecia a sua secreta perturbação - o facto de Deus jamais lhe ter mandado realmente um sinal.
Chegaram a Hancheu num sábado de manhã e caminharam através das ruas estreitas e apinhadas de gente até chegarem ao grupo de casas da Missão.
Carroças, cadeirinhas, vendedores com as cestas pendentes das extremidades de um pau que transporta-
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vam aos ombros, mágicos e faquires das ruas, lojas ao ar livre, mulheres que lavavam roupas nos poços e tagarelavam com as vizinhas, garotos esfarrapados, circulando agilmente por entre os veículos e as pernas dos transeuntes - era incrível como podia haver ruas tão estreitas e tanta gente junta. Mas, mal se saía do congestionamento da rua, paravam junto a um estreito portão de entrada, onde tudo estava mergulhado em silêncio. Ali, no meio dum relvado verde, erguiam-se as duas casas da Missão, caiadas de branco, de construção quadrada e atarracadas, mas limpas, cheias de janelas e rodeadas de varandas. Havia também uma capelinha caiada como as casas, com o seu portão principal que dava para a rua. Era ali, na residência da Missão, que ia ser o seu lar.
A casa mais próxima da rua fora destinada a Carie e a Andrew que logo naquele dia levaram para lá tudo quanto possuíam. Carie pendurou na janela cortinas cor-de-rosa.
O dia seguinte era domingo e todos se dirigiram à igreja. Carie e Andrew sentiam grande excitação nessa sua primeira oportunidade de adorarem a Deus numa terra onde não era conhecido. À entrada, separaram-se; Andrew para dirigir-se à secção dos homens e Carie, em companhia de duas outras senhoras americanas, à secção das mulheres. Um alto parapeito separava as duas secções. Carie sentou-se e esperou enquanto uma das mulheres brancas falava à outra e esta às mulheres de pele escura. Cumprimentos afectuosos chegavam de todos os lados e Mrs. Stuart conversava fluentemente com todas. Carie sentiu a sua própria língua inútil e teve inveja de não saber também falar. Porém, Mrs. Stuart voltou-se para ela dizendo-lhe:
- Estão a fazer diversas perguntas a seu respeito. Sentem-se contentes por a senhora ter olhos e cabelos
escuros!
Carie sorriu também, sentindo-se de repente nui" meio amigo e olhou com maior interesse para aquelas mulheres chinesas de todas as idades, a maioria daS quais trazia crianças nos braços. Observou-lhes os
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sacos de algodão de largas mangas, as amplas calças e descobriu com horror os pequeninos pés deformados. Com ilimitada fé nos seus recursos e propósitos, decidiu que aquilo deveria acabar. Cada mulher trazia consigo um livro de hinos e num saco de algodão azul, pendurado na parede, vários outros livros estavam guardados. Quando o ofício divino começou, Mrs. Stuart dirigiu-se ao harmónio e ouviu-se imediatamente um apressado folhear dos livros de hinos. Muitas das mulheres andavam ainda a aprender a ler - como Carie o descobriu - e consideravam um ponto de honra descobrirem por si próprias o hino que ia ser cantado. O pastor, que era o Dr. Stuart, esperava pacientemente, piscando os olhos, que as mulheres acertassem com a página depois de aturadas buscas nos livros umas das outras. O pastor deu então o sinal e Mrs. Stuart começou a tocar no extenuado instrumento que por vezes se mostrava rebelde.
Ninguém se lembrara de preparar Carie para cantar esse hino. Na pequena igrejinha branca da sua infância, o canto de hinos e salmos fora considerado sempre a parte mais importante e mais bela do ofício divino. Esperava ouvir ali melodias familiares e aguardava ansiosamente, enquanto Mrs. Stuart tocava a introdução de "Eis uma fonte de onde emana o sangue". Os rostos de todas as chinesas mostravam-se tensos e excitados. E, no momento em que Mrs. Stuart abriu a boca, começou a corrida coral. Cada mulher cantava tão rapidamente e tão alto quanto podia e, de acordo com o eco que chegava através do tabique de separação, percebia-se que o mesmo acontecia do lado dos homens. Era tal a tempestade de sons que enchia a pequena capela que se ficava com a impressão de que o estrépito rebentaria o tecto.
Ninguém se preocupava com o tom e cantava o que lhe aprazia. Carie ouvia cheia de pânico, atónita, reprimindo o riso. A idosa senhora, a seu lado, balançava-se . um lado para o outro, guinchando num falsete altíssinio, numa espantosa velocidade, acompanhando a letra
o livro com a longa unha do dedo. Acabou antes de
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todas as outras cantoras, fechou o livro com ruído e, depois de guardá-lo no saco azul, sentou-se com modo triunfante. Lia-se a inveja no rosto das outras, que redobravam de esforços, enquanto a velha as contemplava do seu assento com um ar de vitória.
Aquilo era demais para Carie. Levou o lenço à boca e saiu da capela. Então, a salvo atrás da parede da capela, riu até chorar. Quando o silêncio voltou a reinar lá dentro, depois de as últimas vozes isoladas terem atingido definitivamente o fim do hino, Carie voltou a entrar e olhou para Mrs. Stuart a fim de descobrir qual seria a sua impressão, mas para ela aquilo era uma velha história. Fechara o livro e sentara-se preparando-se para ouvir o sermão.
Na manhã seguinte, Carie e Andrew receberam a primeira lição de língua chinesa. O professor era um homenzinho ressequido, velho, vestido numa espécie de capa preta que lhe flutuava em torno das pernas; porém, o que nele havia de mais notável era o olhar vazio e espantadiço. A sua única palavra inglesa era "yes", mas não lhe devia conhecer o significado, pois os discípulos depressa verificaram que era uma espécie de estribilho e não parte do seu vocabulário.
Tinham diante de si uma folha de papel, contendo os diferentes sons do dialecto de Hancheu, preparado por algum americano e um volume do Novo Testamento traduzido em chinês. Eram esses os seus livros de aula. Porém, o professor começou a ensinar e ao meio-dia já tinham aprendido diversas frases. Desde então, das oito às doze e das duas às cinco, estudavam com o velho e, à noite, reviam tudo o que tinham estudado
durante o dia.
Carie evidenciou imediatamente uma espantosa facilidade em aprender o idioma, facto que, por vezes, parecia enervar Andrew; irritava-se em virtude de ter sido educado na crença da superioridade do homem sobre a mulher. Contudo, a sua paciência permitia-lhe assimilar mais rapidamente a sequência dos caracteres e isso consolava-o porquanto permitia-lhe atribuir-se certa erudição.
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Carie tinha bom ouvido e conseguia dar às palavras uma pronúncia natural. Andrew, receando errar e tornar-se ridículo, não se arriscava a construir frases. Sem qualquer espécie de orgulho e sem a menor timidez, Carie servia-se das palavras que aprendia quando falava fosse com quem fosse: com o velho porteiro, sempre disposto a rir, com a cozinheira ou com a criada de casa. Quando se enganava, ria-se com vontade e divertia-se tanto como os outros. Apreciava demasiadamente a alegria para emparedar-se num complexo de dignidade; os seus olhos castanhos, vivos, e o seu sorriso pronto, facilmente lhe granjeavam o apreço das damas chinesas. Havia nela qualquer coisa de humano, de comunicativo, que encantava. Quando se apercebeu de que essas chinesas se emocionavam tal como ela, passou a tratá-las como se fossem da sua própria raça. Essa atitude não era produto de um esforço consciente, mas sim de uma simpatia natural e ardente que dela transbordava. Apenas a sujidade e a desonestidade a indignavam e, às vezes, receava desencorajar perante defeitos tão frequentes.
Depois das horas de estudo quotidiano, o casal costumava dar largos passeios pela cidade e pelo campo. As ruas estreitas, tortuosas, cheias de mendigos, e a ausência de higiene causavam a Carie uma opressão insuportável. Incomodava-a a multidão que se aglomerava curiosa atrás de si. Notei, muitas vezes, que os olhos se lhe marejavam de lágrimas quando se afastava para dar passagem a um cego e, procurando algumas moedas na algibeira, murmurava:
- É desesperador! São tantos! Jamais poderem ver o céu e a terra... Jamais poderem ver!
A sua digressão predilecta era passar sobre o grande muro da cidade. Do alto das muralhas abrangia-se o lago, a ocidente, e os rios que serpenteiam e confluem, mas mesmo aí receava olhar directamente para baixo, a fim de não avistar junto aos muros os pequenos cadáveres de crianças assassinadas.
Depressa a China se lhe desvendou tal como era e ainda é, hoje em dia: um grande país contraditório,
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oferecendo tudo quanto de mais belo o homem pode conceber, inextrincàvelmente misturado a quanto existe de mais repugnante sobre a terra.
Essa aliança de beleza e horror aproximava-a estranhamente do seu país de adoração. Por vezes, sentia-se aterrorizada e então refugiava-se no seu quarto, cheia de nostalgia do antigo lar na pátria.
Por essa data, descobriu que o marido era, além de santo, um homem; engravidara ao cabo de três meses após a chegada a Hangchow. Nos seus projectos não incluíra o advento de filhos e na sua inocência - a fatal inocência da sua geração - não compreendeu imediatamente o natural mal-estar. Encheu-se de quinino, de comprimidos para o fígado; e foi necessário Mrs. Stuart esclarecê-la do estado em que se achava. Acolheu a notícia com surpresa e grande variedade de emoções. Consagrara a vida a uma causa e não incluíra nela os filhos, mas era demasiado mulher para deixar de se alegrar. Modificou o plano antes concebido e sonhou atingir o seu fim por outros meios, dedicando-se ao lar e às crianças, em vez de seguir Andrew por todo o lado. Persistiu em estudar chinês embora frequentemente recolhesse ao leito por sentir-se indisposta. A vivacidade do seu temperamento sujeitava-a naturalmente a períodos de reacção e depressão; nessas horas, com um sentimento próximo do medo, perguntava-se como educar os filhos num meio tão diferente do seu e nelas conservar os princípios da raça e a sua crença, assim como preservá-los da tristeza perante a morte, ali sempre presente. Magoava-a a desgraça desse povo, ao mesmo tempo que a fraqueza física e a saudade da pátria - daqueles que conhecera na aldeia, de olhar direito, de acções rectas, de vida limpa e simples - a enchiam de nostalgia.
Não havia médico em Hangchow e, quando se apr<> ximou o nascimento, partiu com Andrew para Xangai onde nasceu o seu primeiro filho. Quando o sentiu nos braços esqueceu os sofrimentos do corpo e da alma e de novo transbordou alegria porque nascera um
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um rapazinho gordo, de olhos azuis e cabelos ouro-pálido.
Um profundo sentimento de maternidade despertou no íntimo de Carie, impelindo-a a devotar-se ao filho apaixonadamente. Durante os anos seguintes, enquanto teve que cuidar dos filhos pequeninos, todos os impulsos do seu temperamento convergiram para o lar. O entusiasmo missionário passara então para segundo plano.
Quando a criança completou três anos, Andrew foi mandado para Soochow. Tal deslocação representava o corte das raízes que tinham começado a estender-se em Hangchow e também a necessidade de adaptação a um novo dialecto. Porém, Carie achou nessa mudança uma compensação: teria a sua casa em vez de um quarto único. Esta nova habitação dispunha apenas de três divisões, por cima da escola dos rapazes. O casal considerou-se bem instalado nessas três dependências, ligadas ao piso inferior por uma escada de caracol. As janelas dominavam a vila, de telhados de ardósia, desalinhados por canais tortuosos.
Ao lado da escola, mesmo em face da janela de Carie, erguia-se um velho pagode secular, que ainda hoje existe, em memória dos esplendores da antiga China. Carie sabia ser um templo pagão, todavia sentia-se conquistada pela sua beleza, pela pureza das linhas, a nobreza da alta coroa de bronze e pela doçura levemente selvagem das campainhas metálicas suspensas dos cantos revirados. Foi à sombra desse velho pagode que o pequenino americano, loiro, cresceu, primeiro só, na sua cadeirinha, depois gatinhando ao longo do sobrado até que pôde erguer-se e assistir, da janela sobranceira ao pátio, ao recreio dos estudantes.
Quando deixou de andar ao colo, Carie colaborou com o marido nos trabalhos da escola. A questão do asseio preocupou-a imediatamente. Inspeccionava as longas tranças pendentes dos crânios dos garotos e descobria algo que a levava a friccioná-las com insecticida, a lavá-las com um esmero impiedoso alheia a gritos e protestos. Por fim, examinava-lhes as camas
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e os fatos, fazia fumigações e, à força de limpeza, conseguia que todos andassem asseados, embora contra vontade.
Andrew ocupava-se da imortalidade da alma e não pensava em piolhos. Absorvida na sua luta pela limpeza, Carie viu o marido rezando ao lado de um garoto. Interrompendo o trabalho, sentiu remorsos e murmurou:
- Ele é bem melhor do que eu! Por que razão esqueço
tão facilmente as almas? Dirigiu ao céu uma das suas breves orações:
- Ajuda-me, Senhor, a recordar de que a alma vale mais do que o corpo!
Mas, no instante imediato, toda se atarefava no arranjo da cozinha, encomendando arroz e legumes; convencendo um chinesito pálido a beber um trago de leite, apesar da sua repugnância oriental pelos lacticínios; untando com pomada de enxofre a impigem das mãos de outra criança. Acreditava firmemente serem as almas mais importantes do que os corpos, mas estes estavam tão próximo... tão patentes!
O desejo de ajudar levou-a, nessa época, a estudar medicina em quantos livros da matéria pôde encontrar em Xangai, e manteve uma pequena clínica onde tratava as doenças mais simples, pensava úlceras, cuidava de infecções da pele e dava conselhos às mães no tratamento dos filhos. Isso fazia parte do seu trabalho quotidiano. Aprendeu a lancetar furúnculos medonhos e a tratar de pés mutilados, gangrenados. Muitas vezes sentia a pele arrepiar-se e náuseas ao ponto de não poder comer, mas salvava-a o seu bom-humor.
Nunca deixava de sorrir quando via uma mulher hesitar perante um comprimido de quinino.
- Como poderia uma coisinha tão pequena curar tão grandes males: tremuras, febre e doenças que tornavam a pele flácida e amarela?
Sem proferir palavra, mas com um brilho de malícia no olhar, acabou certo dia por descobrir o método eficaz: desfez o comprimido numa gamela de água
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quente, a transbordar, e estendeu-a à paciente; era uma velha chinesa que, achando a beberagem amarga e abundante, considerou-a remédio eficiente, e a bebeu até ao fim, convencida de que se curava em pouco tempo.
A alegria de ver a saúde restaurada aos corpos pálidos e macilentos fazia-lhe bem. Era um triunfo que compensava a repugnância da carne e o horror inspirado por essas enfermidades negligenciadas.
Nesse ano, o irmão Cornelius enviou-lhe um pequeno órgão, da casa Mason e Hamlin, semelhante ao da sua sala, na América. Tinha um som notavelmente suave. Cornelius escolhera-o com cuidado e o seu ouvido apurado não se enganara. O instrumento levou seis meses a chegar ao seu destino, visto ter sido expedido pelo Mediterrâneo. Chegou num sábado à tarde, e Carie não conseguiu comer nem dormir enquanto Andrew não pôde ajudá-la a retirá-lo da embalagem. Aí estava ele, bem seu! Carie sentou-se, com o coração emocionado e, cheia de veneração, tocou uma das músicas dos coros que antes cantavam em sua casa: "Eu sei que o Redentor está vivo!".
Em breve a sua voz triunfal ergueu-se alegremente transpondo o pátio e a rua; os transeuntes paravam, ao crepúsculo, para escutar, pela primeira vez, essa voz melodiosa. Depois cantou um cântico em chinês e o criado veio colocar-se na "sombra da porta entreaberta. Carie notou-lhe a fisionomia atenta e, num sobressalto de alegria, pensou que esse dom seria o seu meio pessoal de cumprir a missão que se impusera. A partir desse dia, considerou o órgão, como que um ser vivo e ainda hoje há quem a recorde sentada em frente dele, vestida de qualquer modo e às vezes de avental, extraindo acordes de poderosa harmonia que logo faziam fundo à sua voz magnífica. Através das numerosas peregrinações que mais tarde empreendeu, esse órgão foi inseparável companheiro e, quando a sua casa não era mais do que uma poça de lama, colocaram-no sobre um estrado que o protegesse da humidade do
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chão de terra batida, de forma a que Carie pudesse, várias vezes por dia, correr para ele e fazê-lo falar.
No Verão imediato, ficou novamente grávida. Passou, com Andrew, toda a estação em Xangai, para estar mais perto do médico. Carie não se sentia bem. Quando tencionavam regressar, Andrew sofreu uma insolação e tiveram que prolongar a estadia.
O médico declarou que a vida de Andrew dependia dos cuidados que lhe dispensassem, e Carie encarregou-se de tratá-lo pessoalmente. Mandou o filho, Edwin, para casa de uma amiga e entregou-se resolutamente à missão de salvar o marido.
Durante seis semanas, esteve este entre a vida e a morte e Carie não se despiu para dormir uma só vez, limitando-se a banhar-se e a refrescar-se de manhã à noite. Não deixou a cabeceira do marido e ocupou-se dele exclusivamente. O médico mostrou-se surpreendido com tal vitalidade. Durante os dias ardentes do fim do Verão até ao início do Outono, Carie manteve uma aparência de frescura com os seus vestidos brancos, um laço ao pescoço, os cabelos brilhantes e ondulados impecáveis e um espírito calmo e resoluto. Decidira que Andrew não deveria morrer ao princípio da carreira que escolhera. Tinha também que pensar na criança esperada e não queria deixar-se arrastar pelo medo ou pela angústia de que nascesse órfã. Na maior parte do tempo, Andrew delirava; teve de aceitar o auxílio de um criado para poder sustê-lo e banhá-lo em água fresca, até lhe restabelecer a calma. Carie foi recompensada com a cura do marido; porém os músculos dos braços e dos ombros de Andrew tinham sido de tal forma afectados que jamais recuperou a antiga ligeireza de movimentos.
Nos dias frescos do fim de Outono, regressaram todos a Soochow e nasceu uma menina, Maude. Era pequena e redonda, um lindo bebé de pele muito branca, olhos castanhos e caracóis loiros. As duas crianças tiveram um Inverno bastante feliz. Edwin crescera muito e começara a falar e a cantar. Carie mostrava-se encan-
tada quando deitava a pequena no berço e mantinha Edwin a seu lado, enquanto tocava órgão. A garotinha escutava, com os olhos muito abertos, e Edwin erguia a vozita clara e afinada.
Carie era a mais alegre das mães. Recolhia, aqui e além, canções, inventava letras ou escolhia-as em livros e revistas para encher de alegria a vida dos filhos. Estes, mais tarde, na idade madura, quando olharam para o passado, compreenderam o grau de solidão em que tinham crescido e a tacanhês do meio que os rodeara mas que jamais tinham sofrido graças à presença constante e animadora da mãe. Parte da sua alegria resultava da vida que a sua alma transbordava, mas havia também nela uma vontade consciente de proteger os filhos do ambiente oriental que os envolvia. Achava esse meio demasiado triste para os seus corações de criança. O Oriente sempre a oprimira pela superabundância do sentimento humano: a aceitação do sofrimento e as paixões. Não queria que os filhos o compreendessem, demasiado cedo. Entretanto, ía-os familiarizando com a beleza. Levava a garota à janela, para mostrar-lhe o lindo tilintar das sinetas do pagode, mas tivera o cuidado de tapar o vidro inferior com uma cortina plissada, a fim de evitar que Edwin visse o mendigo que se sentava, mesmo em frente, com as faces roídas pela lepra.
Nesse Inverno consagrou-se inteiramente aos filhos e, conforme a experiência da maternidade se desenvolvia, começou a viver mais intimamente. Preocupava-se então com a questão de Deus - desse Deus que não se dignara ainda enviar-lhe um sinal, ao cabo de tantos anos de espera. Nunca se apercebeu se os rápidos impulsos da sua alma vinham do exterior ou se eram simplesmente fruto do seu coração ou dos seus desejos.
Deus nunca a visitava de forma perceptível. Cedo notou que os filhos lhe ensinavam muita coisa acerca desse Deus cujo sinal esperava - pequeninos rostos erguidos para o dela, procurando adivinhar o seu
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estado de espírito. Durante toda a vida, Carie repetia-nos:
- Ensinaram-me muito mais coisas do que eu lhes
ensinei. Mergulhava na sua meditação e concluía:
- Creio que não compreendemos os desejos de Deus mais do que as crianças compreendem os nossos. Os meus filhos confiavam-se a mim, no sentido da própria existência, certos do meu amor e, por essa razão, prontos a acreditar que eu saberia melhor do que ninguém o que era bom para eles. Penso que assim devemos encarar a questão divina - apenas crer que Deus existe e olha por nós.
Na verdade foi sempre essa a sua fé.
Quando a Primavera chegou, apercebeu-se de que estava novamente grávida. Isso implicaria o desmame da pequena Maude pouco tempo antes do insuportável calor do Verão. Carie fez quanto pôde, sem livros especializados nem as múltiplas facilidades ao alcance das mães dos nossos dias.
A despeito de todos os seus cuidados, a mudança de alimentação tornou o bebé doente e Carie, angustiada, declarou que a criança apenas resistiria se fugissem ao calor, procurando uma casa noutra região mais fresca. Partiram, num barco à vela, para o Japão através do Mar da China e passaram o resto do Estio numa pequena ilha. Andrew, sempre absorvido no seu zelo religioso, percorria o país com um missionário japonês enquanto que Carie se dedicava aos filhos.
Viviam todo o dia na praia e as ondas transparentes desenrolavam-se suavemente sobre a areia até à borda do pinhal. Edwin chapinhava na água, tisnava-se e fortalecia, e a própria Maude, sentada com as mãos cheias de areia, consentia que as vagazinhas tépidas lhe banhassem os pés. Melhorava, embora não houvesse leite fresco que pudesse curá-la visto não conseguir digerir o leite concentrado e doce. No fim do Verão, Carie, reconhecida por vê-la ainda viva, preparou-se para regressar à China. Andrew mostrava-se impaciente para retomar o seu trabalho.
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A viagem, através dos mares encapelados, a bordo de um barquinho de rodas, tornou-se-lhes ainda mais difícil ao levantar-se um terrível tufão.
Parecia que o barco iria soçobrar nas vagas alterosas antes que rompesse a madrugada. Carie achava-se terrivelmente doente e angustiada, mas o seu terror e o seu mal desvaneciam-se perante a inquietação que lhe suscitava a pequenita Maude, vítima, desde a primeira noite, de uma indigestão violenta que ameaçava ser fatal. Carie, atormentada pelas náuseas e receosa pela criança que trazia dentro de si, tropeçava na cabina do navio balouçado pelas vagas, segurando nos braços o bebé doente. Andrew era incapaz de ajudá-la, pois a pequenita recusava-se a ir-lhe para o colo. Limitava-se a sofrer e a rezar. Na cabina fechada, o calor era sufocante; com a continuação, Carie acabou por gritar que preferia ser arremessada pela borda fora do que ouvir o arquejar do bebé, e trepou as escadas que levavam à coberta. Encontrou nesta um passageiro que se apercebeu do seu estado. Tratava-se dum velho missionário, o Dr. Martin, que lhe tirou a criança dos braços e começou a passeá-la dum lado para o outro. Percebeu imediatamente que a pequenita estava moribunda e contemplou com olhar triste o rostozinho que se ia acalmando e tornando inconsciente.
A bordo daquele pequeno barco japonês não havia médico e Carie, prevendo o que iria acontecer, sentiu um desespero mortal. Desceu correndo à cabina, ajoelhou-se e orou angustiadamente. Se Deus devia falar-lhe, que o fizesse então - imediatamente! Andrew, que rezava tranquilamente, não pôde suportar as súplicas febris da mulher e a maneira como importunava Deus. Repreendeu-a meigamente, porém ela encarou-o, encolerizada:
- Não és tu quem gera estas crianças - gritou-lhe - não compreendes o que é dar a própria vida para formar uma outra e depois vê-la perder-se, é como se eu própria morresse! - e, num acesso de furor, acrescentou: - Se esta que trago dentro de mim não tivesse
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aparecido tão depressa, teria amamentado Maude durai>te todo o Verão e ter-se-ia salvo. Oh, Maude... Maude! Voltou à coberta onde o bom ancião se achava imóvel, apoiado à amurada, enquanto o vento projectava o barco para um e outro lado. Cobrira o rosto da criança com uma ponta do cobertor e aguardava numa atitude de recolhimento que a mãe se aproximasse. Então, foi ao seu encontro e restituiu-lhe o fardozinho imóvel.
- Minha filha - disse-lhe docemente - a pequenina voltou para o seio de Deus, que a enviara.
Sem proferir palavra, Carie recolheu a criança nos braços. Era o primeiro golpe directo que a vida lhe trazia e sentia-se indefesa. Precisava estar só. Não podia suportar a presença de ninguém, nem mesmo de Andrew. Caminhou até ao fundo do convés e abriu a pequena porta de acesso à popa do barco. Deixou-se cair, sentada sobre um rolo de cordas. O mar erguia-se em grandes vagas negras que, por vezes, a luz incerta da madrugada iluminava com uma claridade plúmbea e lívida. O rebentar das ondas cobria Carie com uma névoa de espuma; envolveu a filha na saia e soergueu a ponta do cobertor para ver-lhe o rostozinho, branco e tranquilo, já esculpido pela quietude eterna.
- Morreu realmente de fome! Morreu de inanição! - murmurou.
Um jacto de gotas de água caiu sobre ela e Carie tornou a cobrir a criança. Como detestava esse mar, essa coisa enorme, movediça e insensata! Em todo o caso, não consentiria que o corpozinho fosse tragado, perdido naquela imensidão. Levá-lo-ia para Xangai onde repousaria entre as outras campas brancas.
O céu cinzento pesava sobre o mar pardacento e rugidor. No meio de tudo aquilo, onde se achava Deus? Envolveu a filha nos braços e, num gesto de desafio, olhou fixamente o oceano. Abafou um soluço violento; apesar de todo o sofrimento, sentia novamente o enjoo. Sentada, com a filha morta nos braços, as náuseas atormentavam-na sem piedade e compreendeu a necessidade de se acautelar em atenção à criança que estava para nascer.
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Levantou-se, cheia de vertigens, tacteou em frente, procurando a escada, e, segurando a filha com uma mão e o corrimão com a outra, arrastou-se penosamente para a cabina. O vento despenteara-lhe o cabelo que a rebentação molhara. Através do vidro verde da vigia, fechada devido à tempestade, Andrew fixava o convés que os vagalhões por vezes encobriam, dando a impressão de que caminhavam sobre o mar.
Voltou o rosto tranquilo para a mulher e murmurou docemente:
- É a vontade de Deus!
Carie lançou com um gesto de cabeça os cabelos para trás e retorquiu:
- Não me fales de Deus! Bruscamente, rompeu em soluços.
Com o tempo, Carie sentiu apaziguar-se a sua dor violenta e acabou por aceitar a fatalidade, mas experimentando sempre aquela sensação de vácuo que lhe magoava o peito. Voltou para casa, à sombra do pagode e empenhou-se a encarar, de novo, corajosamente, a vida. Ensinou Edwin a ler, ocupou-se maternalmente dos alunos, ensinou-os a cantar, a estudar a sua história, aritmética, geografia e outras matérias de importância actual que distinguiam esse colégio das velhas e clássicas escolas do país. Conservava o aspecto fresco e cuidado da sua casa, cozendo pão escuro, fazendo manteiga com leite de búfalo que conseguira por fim obter, e preenchia os dias, completamente, de cem maneiras diferentes. Não podia, porém, suportar o tilintar das sinetas do pagode e, quando o vento as sacudia, interrompia bruscamente o trabalho para fechar a janela. Sentiu-se reconhecida quando, dois meses depois, Andrew foi inesperadamente chamado a Hangchow. Era um alívio regressar para um local onde Maude nunca vivera e onde Carie não encontraria qualquer recordação dessa vida tão curta.
Passou a colaborar um pouco no trabalho de Andrew. Apenas o passado a aproximava de Deus, mas deixara de sentir a revolta desse período de cólera cuja futili-
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dade compreendera. Por vezes, chegava a murmurar: "Seja feita a Tua vontade", sem que um sentimento de rebelião, brotando-lhe do fundo da alma, viesse abafar essa resignação. Esforçava-se novamente por vencer a sua natureza apaixonada e veemente. Recomeçava a sua luta íntima, sonhava, procurava vislumbrar nessa prova espiritual a disciplina necessária que lhe indicasse um sentido de vida. Talvez Deus tivesse querido ajudá-la, arrebatando-lhe a filha para que ela O não esquecesse enlevada na sua felicidade maternal. Talvez se tivesse tornado necessário conduzi-la por meio da dor já que o não pudera ser pela alegria? Esse pensamento humilhava-a e passou a frequentar mais assiduamente a pequena capela de paredes caiadas que dava para a rua tumultuosa; falava às mulheres e procurava ensiná-las a ler. Algumas tinham-na reconhecido e os seus rostos corajosos reanimavam-lhe o coração. Quando alguma lhe dizia: "Este ano, perdi o meu filho", os olhos de Carie enchiam-se de lágrimas, pegava-lhe na mão morena e apertava-lha cheia de compreensão.
Em Carie, a constituição física e o moral achavam-se estreitamente ligados. Quando se sentia infeliz, o corpo perdia força e, nesse Inverno, emagreceu sentindo-se esgotada. O nascimento de uma filhinha na Primavera imediata não lhe devolveu a alegria. Era demasiado cedo para ter outra criança nos braços. Aceitou-a com doçura, mas sem o mesmo júbilo. O bebé a que chamaram Edith parecia ressentir-se do estado de alma da mãe. Era grave, calmo e paciente para a idade, e, desde os primeiros dias, mostrava um ar sério e resignado.
No Verão, partiram para a montanha sem se afastarem muito de uma vila onde Andrew continuava a pregar e a ensinar, permitindo-se fruir de uma mudança de ar e escapar ao calor húmido dos arrozais que estagnavam ao sol. No topo da montanha, havia um templo chinês onde puderam alugar dois quartos. Foi uma nova experiência para Carie. A profunda calma dos ensombrados bosques de bambus, os padres
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silenciosos, imponentes nos seus hábitos cinzentos, as salas frescas e sombrias do templo, às paredes das quais .se apoiavam, venerando os deuses imóveis, tudo aquilo lhes desvendou um aspecto desconhecido desse país tão vasto e complexo. Os deuses formidáveis alinhavam-se ao longo das galerias principais do templo, mas no quarto onde Carie dormia com as crianças apenas presidia uma pequena imagem da deusa da misericórdia, dourada, que, no fundo do seu nicho, tinha os olhos docemente baixados. Edwin chamava-lhe a "linda senhora de ouro" e Carie inventava histórias sobre a elegante figurinha que parecia uma boneca de saias flutuantes. Acabou por ganhar uma benevolente simpatia por essa deusa paciente que analisava tranquilamente o rosto branco dos estrangeiros.
Quando os filhos dormiam e Carie não lograva conciliar o sono, meditava na sua estranha vida. Outrora, o seu quarto dava para as campinas ondulantes, para estradas orladas por pastagens, para montes longínquos, varridos pelos ventos sob o vasto céu. Presentemente, encontrava-se sentada entre os filhos adormecidos, num recanto sombrio de um templo chinês e avistava, através da janela redonda, ao fundo do caminho sinuoso, uma enorme urna de incenso que se recortava na verdura espessa dos bambus. Durante o dia e a noite, a intervalos regulares, a nota solitária do sino do templo, repercutia-se nos planos da montanha cujo eco respondia - uma música simplesmente mística, saturada de tristeza humana.
Bruscamente, Carie sentia-se tomada de pânico. Pegava o filho ao colo e gritava intimamente que não consentiria que esta criança americana fosse assombrada por essa terra estranha - nem ela nem nenhum dos seus. Doravante, o seu primeiro cuidado seria falar-lhes da pátria, desse belo e alegre país onde se acreditava ser Deus um espírito livre e não um mito prisioneiro dessas formas terrificantes e grotescas de argila pintada.
Ao nascer e ao pôr-do-Sol, os sacerdotes salmodiavam os seus cânticos tristes e, quando o pequeno Edwin
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ouvia aquele coro de vo&es humanas ressoar em melodias lentas e melancólicas, corria a refugiar-se no regaço maternal. Carie confortava-o então dum modo natural e simples: "É a sua maneira de cantar", explicava. "Não sabes como nós fazemos?". '
Encostava o rosto ao do filho e cantava suavemente: "Gosto de falar do amor de Jesus"; depois, entoava uma alegre canção infantil. Naquele quarto do templo chinês pasmam a ressoar sons alegres que envolviam as crianças, dando-lhes uma reconfortante sensação de segurança. Passaram a considerar os tristes salmos um simples acompanhamento, dificilmente perceptível através da voz ardente e feliz de Carie. Esta, antes de termina1"" entoava sempre; "A minha pátria és tu, doce país da liberdade". Edwin fazia coro, entusiasmado com a mãe. Foi o primeiro canto que decorou
por inteiro-
Todavia, o desgosto corroerá manhosamente a saúde de Carie e, apesar de toda a sua força de vontade, não conseguia readquirir o antigo passo elástico. O ar, muito pesado era depauperante e das águas estagnadas dos arrozais elevavam-se nuvens sucessivas de mosquitos. Naquele tempo, ignorava-se que esses insectos fossem portadores de malária e, por conseguinte, Carie não se preocupava com os arrepios e acessos de febre que sentia Além disto, Edwin teve uma desinteria que o enfraqueceu durante algumas semanas.
No ano imediato ao do nascimento da terceira criança, surgiram outras dificuldades. Andrew e Carie foram chamados a Soochow. Durante a sua estadia nesta cidade, o jovem médico da Missão, que estava ali havia pouco tempo aterrado com o espectáculo horrível dos sofrimentos que lne cabia mitigar e com a enormidade da tarefa que ° esperava, evidenciou sintomas de alienação mental. Carie, com a sua percepção subtil, foi a primeira a notá-lo, passando então a viver num desassossego constante, receosa de alguma desgraça.
Um dia. quando se preparavam para levantar da mesa o Pr- Fische tirou uma caixa de pílulas da algibeira' e pô-la diante de Carie.
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- Mrs. Stone - disse, em tom persuasivo-durante estes ^últimos tempos, não tem passado bem. Tome isto e ficará imediatamente curada - acrescentou, acompanhando as palavras dum riso estridente e bizarro que a impressionou.
- Mas agora sinto-me muitíssimo bem, Dr. Fiche - respondeu, surpreendida, soerguendo-se.
O médico agarrou-a pelo pulso e articulou em voz baixa e rude:
- Engula estas pílulas, imediatamente.
Carie reconheceu que se achava perante um louco e, embora Andrew, que fora o primeiro a acabar a refeição, estivesse ausente, não perdeu a habitual presença de espírito e respondeu:
- Um momento, vou buscar um copo de água. Saiu da sala, muito calma, levando um copo vazio
na mão.
Mal se encontrou só, correu em busca de Andrew. Este estava a pregar numa dependência do andar inferior. Quando Carie, com a voz entrecortada lhe contou o que se passava e o receio que sentia por causa dos filhos, que tinham ficado sós com o louco, Andrew seguiu-a imediatamente. Era felizmente mais alto e mais forte que o médico. Encontrou este agachado debaixo da mesa e armado duma faca. Após breve luta, acabou por dominá-lo.
No dia seguinte, levou-o para bordo dum junco chinês e acompanhou-o até Xangai, sem deixar de o vigiar noite e dia. Depois, confiou-o a um americano que regressava aos Estados Unidos. O jovem médico tinha momentos de inteira lucidez durante os quais compreendia o seu estado. Ouviu o americano explicar a alguns passageiros que o Dr. Fische não estava no uso das suas faculdades e que, por conseguinte, não deveriam estranhar se, por vezes, parecesse bizarro. Por sua vez, o médico apressou-se a contar-lhes que estava incumbido de acompanhar o americano ao seu país natal, pois que enlouquecera. A tripulação e os passageiros, perplexos, andaram intrigados durante alguns
7 - O Exílio
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dias sem saberem qual dos dois era realmente o doente de espírito.
Aquele incidente acabara por esgotar Carie. Sentia-se fatigada e apercebeu-se, pela primeira vez, de que tossia e tinha febre. Acompanhada por Andrew foi consultar um médico de Xangai que diagnosticou tuberculose e considerou indispensável o seu regresso imediato à América.
Carie tornou a ocupar o quarto pequeno e sórdido da pensão missionária, onde reflectiu no que deveria fazer. Por momentos, entusiasmara-se ao pensar: "Posso voltar à minha terra, sem qualquer escrúpulo de consciência!". Mas vira imediatamente o rosto pálido e convulso do marido. Vendo-o sentado, com os ombros descaídos numa atitude de desalento, Carie declarou:
- Não partirei para a América. Passado um momento, ele inquiriu:
- Que outra coisa podemos fazer?
Mas a mulher replicara com arrebatamento;
- Não te afastarei da tua obra. Não quero que se diga que te prejudiquei. Iremos para o Norte da China, para Chefoo. Arranjaremos uma casa e poderás pregar. Quanto a mim... acabarei por curar-me.
Viu-o endireitar os ombros, manifestar na expressão e na voz uma sensação de alívio, ao murmurar:
- Pois sim, Carie, se assim o desejas...
Ela limitou-se a olhá-lo, ferida no âmago da alma, mas demasiado orgulhosa para fazer comentários.
Andrew não saberia avaliar o sacrifício que tal decisão representava. Carie estava disposta a lutar sozinha. Sentiu então claramente que entre ambos nada existia de comum a não ser o ensino da religião e os filhos, mas mesmo estes eram apenas um elo carnal, pois Andrew nunca os compreendera ou amara, do mesmo modo que não lhes era hostil. Limitava-se a não lhes atribuir uma existência real. A sua vida decorria no seio de uma união mística com Deus e com as almas humanas - pois a seus olhos os homens e as mulheres raramente passavam de uma alma. Mas para Carie os sentidos eram reais, a vida resumia-se quase por
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completo a carne e sangue - e Deus. Onde estaria Ele e quem seria?
Carie meditava sobre o seu futuro. Se afastasse Andrew da obra missionária, que lhes restaria? Como poderiam viver, lado a lado, numa cordialidade aparente? Não acreditava que o marido jamais lho perdoasse nem sequer chegasse a renunciar ao trabalho que empreendera. Carie pertencia a uma época em que o casamento, pelo menos entre pessoas religiosas e respeitáveis, era tão irrevogável como a morte. Prometera viver com ele e cumpriria essa promessa. Por conseguinte, a todas as propostas de regresso à terra natal, respondia:
- Iremos para o Norte da China e veremos aí se consigo curar-me. Por ora, não cederei.
Uma vez magoada, Carie era de uma independência intratável. E( assim, não consentiu que Andrew dispusesse de mais de metade do seu magro salário, pois que ela própria já não podia trabalhar para a Missão. Em seguida, depois de se ter despedido do pequeno grupo de amigos, alugaram um junco e fizeram-se à vela, rumo à costa. Carie perguntava-se se voltaria a ver aqueles rostos que, com o convívio diário, se lhe .tinham tornado familiares. Tinha o seu orgulho e a força de decisão que tomara tornava-a grave.
Recordo-me que me contou que aquele junco, como muitos outros, estava infestado de ratazanas enormes que corriam durante a noite inteira pelas vigas do tecto. Certa vez, foi acordada bruscamente por um desses roedores que se esforçava por soltar-se das espessas madeixas do seu longo cabelo onde ficara preso. Teve de o agarrar com a mão e atirá-lo para longe. A sensação daquele corpo liso debatendo-se entre os seus dedos repugnou-a e, horrorizada, quis cortar os cabelos.
Depois de haverem alcançado a costa, embacaram para Chefoo, porto de mar situado numa baía do Norte da China. Na véspera da partida, Carie descobriu a mesa oval numa loja de móveis usados de Xangai. Seduzida pelas proporções delicadas e aparente solidez do móvel, comprou-o imediatamente ao velho que o
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tinha em sua posse. Esta aquisição surpreendeu e contrariou Andrew, pois, a seus olhos, uma mesa não passa de uma mesa e já levavam consigo muitos móveis.
Se pudesse teria viajado somente com um alforge, um livro e algum dinheiro. Contudo, Carie achava que um belo móvel era uma fonte de alegria e, quando o balanço do barco a enjoava, animava-a o pensamento de que, no porão, por baixo dos seus pés, estava aquela mesa de madeira polida e curvas graciosamente torneadas.
Mal chegaram a Chefoo, foram à procura de casa. Andrew pretendia alugar uma que se situasse perto da cidade chinesa, na curva delimitada pelo sopé das colinas, mas Carie recusou-se. Sentia-se a tal ponto doente e fraca que não lhe restava qualquer ilusão. Sabia que teria de lutar pela própria vida e só acharia auxílio no ambiente que a rodeasse. Edwin, também magro e pálido, a custo se aguentava de pé e ainda não conseguira curar-se por completo da forte desinteria que contraíra seis meses antes.
O olhar de Carie, ao contar-me isto, enterneceu-se repleto de piedade. "Coitadinho do meu filho! Sofreu tanto com fome, em virtude do regime alimentar a que teve de se sujeitar! Um dia, viu uns pontos brancos no soalho da casa de jantar. Baixou-se e molhou o dedo para agarrá-los. Julgava que eram migalhas de biscoito e chorou ao descobrir que não passavam de partículas de cal caídas da parede".
Ela teria gostado de levar o filho consigo para o outro lado do oceano, para a casa da sua infância, de grandes quartos perfumados! Porém, já que era impossível, escolheu uma casa situada no cimo de uma colina sobranceira ao mar. A brisa proveniente do oceano era pura e não se achava poluída pelo contacto com uma população fétida. Quanto a Andrew, teria
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de fazer um trajecto mais longo para se dirigir ao trabalho.
A casa, de um só andar, mas comprida, em pedra, erguia-se numa falésia que se afundava no mar azul e transparente, sob as vagas de cristas brancas. Dispunha de um pequeno jardim saibrado rodeado por um muro suficientemente alto para proteger as crianças, mas ao qual Carie se podia encostar para mergulhar a vista no horizonte longínquo, sonhando avistar, a milhares de milhas, a terra desejada.
Decidiu com firmeza salvar a própria vida. Andrew nunca imaginou a gravidade do seu mal, todavia ela conhecia bem a razão da dor que sentia no peito, do tossir seco e contínuo que a atormentava e da febre diária e constante. Instalou o leito a um canto do pórtico, sobre tijolos, para poder contemplar desse modo, o mar e O céu, para além do muro.
À sua direita, erguiam-se colinas arenosas de flancos nus em cuja base haviam edificado uma cidade. De onde estava, Carie podia vê-la. Isso correspondia ao seu desejo, pois para poder viver carecia de olvidar as ruas obstruídas, os mendigos cegos e as misérias que lhe confrangiam o coração, por não poder mitigá-las. Em todo o caso, quando estava deitada, pensava ainda nelas, muitas vezes.
Andrew podia suportar o espectáculo da miséria doe infelizes porque se confortava rezando por eles, e estava certo de que Deus salvaria as suas almas, concedendo-lhes a felicidade eterna. Carie também rezava, mas fazia-o com veemência, com uma espécie de cólera, pois sentia que tais sofrimentos jamais deveriam existir à face da terra, e o céu não poderia apagar a recordação da miséria passada.
Ainda que Deus permitisse tais martírios em cumprimento dos Seus sábios desígnios, como afirmava Andrew, isso não diminuía as crispações da carne, nem dava vista aos olhos cegos, nem tão-pouco solucionava circunstâncias da vida, amarguradas e confrangedoras. Carie, não achando resposta para os seus pensamentos,
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aplicava-se à obediência com toda a energia adquirida durante os seus anos de aprendizagem na capela da aldeia.
- Cumpre-me apenas ter confiança e obedecer - murmurava plena de remorso.
Era-lhe impossível imitar Andrew que, depois de se isolar para rezar, alcançava uma satisfação tranquila, inteiramente entregue ao cuidado das almas humanas. Mas era essa mesma angústia que impelia Carie a lavar chagas, a cuidar de doentes e, quando todo o esforço se tornava supérfluo, dada a impossibilidade de evitar o sofrimento e a morte, chorava como se lhe doesse a própria carne. A vida quebrantara-a. Certa noite, vi-a fazer companhia a uma mãe que velava o filho moribundo. Carie rezava em voz alta, ao mesmo tempo que lhe prestava a possível assistência; porém, ao amanhecer, quando a criança morreu, agarrou no seu corpito moreno e, sentindo-se vencida, chorou de cólera e desespero, Contou isto ao marido e este, surpreendido, observou-lhe com- brandura:
- É a vontade do Senhor. A criança está, certamente, no Céu.
Carie retorquiu, indignada:
- Supões, acaso, que essa ideia pode satisfazer o coração e os braços de uma mãe? - Em seguida, acrescentou, desolada: - Reconheço que procedo mal ao falar desta .maneira. Deveria, antes, dizer: "Seja feita a vontade de Deus".
Certa vez, ouvi alguém dizer-lhe- ao referir-se a uma criança que morrera:
- Depois da alma ter partido, o corpo já nada é! Carie, no entanto, replicou com simplicidade:
- O corpo já não conta? Pois eu amava o dos meus filhos e nunca pude suportar a ideia de os ver sepultar. Pui quem os formou, estava ligada a eles, lavava-os, vestia-os, cuidava-os. Para mim, os seus corpos eram preciosos.
Para Carie, cuja sensibilidade jamais lhe permitiria ferir fosse quem fosse, o sofrimento e a morte
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surgiam-lhe como incompreensíveis. Dificilmente podia assimilar a ideia de Deus da sua época; na realidade, creio que nunca chegou a consegui-lo.
Um dia, levou para casa uma mulher que passou a ser sua criada e a segui-la para todo o lado até que a velhice a impossibilitou de o fazer. Essa mulher vivia com um homem, que não era seu marido e despedaçara o crânio da filhita na própria manhã em que a criança nascera. Nessa ocasião, Carie passava pela cabana miserável que o casal habitava e ouviu gemer com desespero. Pressentiu tratar-se de um sofrimento invulgar e imediatamente se achou no dever de observar o que ocorria. Entrou e deparou com o pobre ser morto, deitado sobre os joelhos da mãe, ressudando os miolos através do crânio fendido. Deitado no leito de tábuas, o homem praguejava e a mulher mostrava-se vencida pela apatia. Era de crer que a criança, demasiado magra, não vivesse durante muito tempo. Carie interrogou vivamente o homem no dialecto local. Este ficara tão espantado com a sua aparição, tão aterrado com o fulgor dos seus olhos, que saiu sem proferir palavra. Então, Carie interpelou a infeliz de tez bronzeada e, ajoelhando-se-lhe em frente, procurou saber o que sucedera. Ao inteirar-se, invadiu-a uma intensa revolta contra quem pudera cometer semelhante crime.
- Pobre inocente!-exclamou emocionada. A mulher, que fitava com fixidez o pequenino cadáver, começou, de súbito, a chorar. - Este homem merecia a morte! - acrescentou Carie num tom feroz.
- Quem pode levantar a mão contra um homem? - balbuciava a mulher por entre soluços. - Tem até o direito de matar um filho, se tal lhe apetecer. Melhor fora que me tivesse dado igual sorte.
- Não vai, certamente, continuar a viver com ele? - inquiriu Carie.
- Para onde hei-de ir? - lastimou-se a mulher. - Os homens são todos iguais. Vivi em vários lados e todos eles são a mesma coisa.
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Carie, impressionada com a simplicidade e sinceridade daquela mulher, respondeu espontaneamente:
- Venha viver comigo. Preciso de uma pessoa que me ajude a tomar conta da minha filha.
A mulher levantou-se lentamente e, depois de envolver a criança num bocado de esteira, aceitou a proposta.
Carie não voltou a falar-lhe no terrível acontecimento. Recebeu-a em sua casa e procurou até, mas em vão, ensiná-la a ler. Devido ao amor que tributava a Carie, a chinesa acabou por dedicar-se com ternura a Edwin e à pequenita branca. Ao ouvir falar de Maude, comentou, chorando:
- Mas, ao menos, o amo não lhe esmagou a cabeça com uma pedra enquanto mamava!
Plena de piedade, Carie explicou a meia-voz:
- Não fazemos isso no nosso país, pois acreditamos num Deus que nos ensina a praticar o Bem.
- Gostaria de conhecer tudo isso! - respondeu a mulher.
Carie principiou então a falar-lhe, embora hesitando. Todavia, Deus devia existir, porquanto, onde não chegara a Sua Divina palavra, os seres humanos pareciam animais. Perante semelhantes exemplos, sentia renascer a sua esperança.
A partir desse dia, a mulher seguiu-a em todas as suas peregrinações. Passou a fazer parte da casa e cuidou de todas as crianças que nasceram seguidamente a Carie e Andrew. Recordo o olhar terno com que Carie contemplava a velha serva, anos mais tarde, quando essas mesmas crianças, já crescidas, lhe patenteavam o seu afecto. Por vezes, arreliavam a velha Wang Amah, chamando-lhe "Ama-seca". Tinha então a cabeça completamente branca, o rosto sulcado de rugas e o corpo ressequido. Uma vez, Carie disse-me:
- Julgo que Wang Amah não era o que se chama uma mulher virtuosa e receio que nunca haja compreendido muito bem o Evangelho, mas jamais a vi ser rude para uma criança, nem proferir uma palavra
censurável. Se não houver no céu lugar para ela, ceder-lhe-ei metade do meu... se eu o tiver!
Wang Amah acompanhou-os para Chefoo. Tratou das crianças, o que permitiu a Carie ficar deitada sem a necessidade de se preocupar com Edith ou Edwin. Andrew continuava a pregar, com mais fervor que nunca, tão alheio a tudo o mais como São Paulo. O ar vivo e puro da montanha fortificava Carie. Dormia, lia, comia e ganhava energia. Ao fim de seis meses, a tosse desaparecera. Pôde, então, levantar-se e dedicar algumas horas a pequenos trabalhos caseiros ou de jardinagem, sem que a febre a atormentasse. Estes meses de convalescença, passados naquela casinha sobranceira ao mar, tendo a separá-la da pátria apenas a extensão do oceano, constituíram durante aqueles anos um dos períodos mais felizes da sua vida. Gozava a satisfação de ver Andrew entregue a um trabalho do seu agrado; sentia o sangue correr-lhe nas veias com um novo vigor e deixava-se embriagar pela ardente beleza do céu, das colinas e do mar.
Todos experimentámos uma grande satisfação quando recomeçou a cantar, a princípio baixinho, mais tarde, a plenos pulmões.
Para as crianças, essa doença teve o seu lado bom. Carie via-as brincar, admirava-as e encantava-se. Contava-lhes histórias e proibia-as de imitar certas coisas que viam fazer à sua volta. Lembrava-lhes amiúde:
- Somos americanos! Não podemos proceder dessa maneira.
Festejávamos sempre o dia 4 de Julho. Carie arvorava uma bandeira que ela própria fizera. Lançava-se petardos e, em redor do órgão, cantava-se o hino americano. Muito antes de conhecerem a América, as crianças, pensando nos meses de férias, anunciavam:
- Iremos à pátria!
Por vezes, ao pôr-do-Sol, sentadas na praia, contemplavam o oceano enquanto a mãe lhes falava dessa terra, que era a sua pátria. Referia-se à enorme casa branca, ao prado, ao pomar, aos frutos que era possível
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apanhar do chão e comer crus, de doces e limpos que ficavam sob a acção da chuva e do sol. Para aquelas crianças, sempre vigiadas de perto, pelo receio de que adoecessem como sucedera a Edwin, por ingerirem algo infeccioso, a terra de que a mãe lhes falava parecia-lhes um paraíso. Até ao fim da vida, consideraram a pátria um país mágico, onde era possível beber água e comer maçãs, pêras e pêssegos acabados de colher das árvores.
Iam todos os dias banhar-se à praia, excepto quando o tufão ou o mar bravo de tal os impediam. Certo dia, ocorreu a Carie uma aventura. Tinha a mão ainda muito delgada e, numa manhã, sem que se desse conta, a aliança de casamento escorregou-lhe do dedo para a água, só mais tarde notando o seu desaparecimento.
Voltou imediatamente à praia. Todos a ajudaram a procurar, mas em vão. Carie chamou um dos garotinhos, que viviam à beira-mar, e pediu-lhe que mergulhasse no local em que tomara banho. Porém, o pequeno nada encontrou. Pelo fim da tarde, quando quase perdera já as esperanças, passeou lentamente pela praia. De súbito, os derradeiros raios oblíquos do sol penetraram nas águas tranquilas e qualquer coisa brilhou o anel, que Carie colocou triunfalmente no dedo. Ao contar o,sucedido ao marido, este comentou com placidez:
- Estava seguro de que o recuperarias. Rezei para que assim fosse.
Mais tarde, quando as crianças ouviam contar este episódio, exclamavam:
- É realmente verdade que o encontraste porque o pai rezou para isso?
Pelos olhos de Carie perpassava um fulgor de malícia, ao replicar:
- Talvez, mas se não tivesse lá voltado ficaria sem ele. Claro que se deve rezar... mas é sempre bom tentarmos só por nós resolver as dificuldades!
Carie sentia-se curada e viu-se compelida a procurar ganhar dinheiro enquanto esperava readquirir a robustez
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necessária para sair da beira-mar e retomar a obra missionária no campo de acção do marido. Acolheu em casa um pequeno grupo de estrangeiros, que vinham passar o Verão no litoral, e instalou-se com os filhos nos quartos da mansarda. Deste modo, conseguiu amealhar uma quantia equivalente à parte do salário de que se privara.
A ânsia de pôr à prova todas as suas forças era mais imperiosa que o desejo de ganhar dinheiro. Amassava o pão, lavava, cozinhava e tratava de doze hóspedes, apenas com o auxílio de um criado e de Wang Amah, que cuidava das crianças. Embora estivesse novamente grávida, Carie lograva desempenhar-se dessa tarefa. Como não voltasse a ter febre ou a tossir, considerou-se curada. No fim do Verão, quando os estrangeiros se foram embora, fechou a casinha sobranceira ao mar, tranquila e rodeada pelo jardim saibrado, e tomou com a família o caminho da China do Sul.
Carie suplicou a Andrew que não voltasse para a foz do Yangtsé, onde tinham vivido. Apesar de curada, não se sentia forte. Enviaram-nos então para um porto fluvial, Sinquião, já célebre nas descrições de Marco Pólo pelos templos grandiosos e grande movimento comercial consequente da situação* da cidade que se erguiam nas duas margens. A cidade era demasiado cosmopolita para satisfazer um verdadeiro- pioneiro, como Andrew. Aspirava trabalhar nos grandes espaços isolados e não entre multidões já contactadas por outros missionários. Carie não procurou- arranjar um jardim, uma vez que o marido se mostrava descontente. A Missão acabou por compreender que Andrew poderia servi-la melhor nos postos avançados e autorizou-o a ir para onde entendesse. Alugou para a família um apartamento de três divisões, sobre uma loja chinesa e, a bordo de um junco, rumou para as regiões superiores do grande canal, ao norte da província de Kiangsu.
Carie esforçou-se, uma vez mais, por criar um lar para õs filhos. As janelas dos três quartos davam para o grande rio Yangtsé, rápido e amarelado pela terra
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arrancada às margens desde a nascente, num percurso torrencial de milhares de léguas. Durante os meses que se seguiram, Carie aprendeu a odiar e recear aquela imensa corrente trepidante, implacável, rápida nas gargantas e preguiçosa ao espraiar-se na planície. Via nela o símbolo da vida oriental, insensata, transbordante, que oprime e parece tragar tudo quanto se lhe depara
no caminho.
Sentava-se à janela, costurando, e contemplava as águas do rio remoinharem com lentidão. Via as enormes barcaças de passageiros cruzarem o rio, de uma margem para a outra, e as leves sampanas que vogavam como folhas caídas ao sabor da corrente. Por vezes, achavam-se no meio de direcções contrárias e os homens necessitavam de toda a sua perícia para evitar o naufrágio no encadeamento das vagas.
Na Primavera, o volume das águas aumentava com o degelo da neve das montanhas; o rio tornava-se terrível, tormentoso. Carie vira soçobrar de uma vez, barcos repletos de passageiros que acabavam por se debaterem na torrente sem possibilidade de salvação. Por duas ocasiões, observou uma barcaça, regurgitando de gente, virar-se e erguer-se, arquejante, como um animal enorme para, por fim, flutuar com a quilha de lado. Algumas cabeças negras surgiram, por momentos, à tona dessa água amarelada enquanto braços procuravam apoio com desespero; depois o rio devorou-os e, na paisagem calma, apenas a embarcação rodopiava, à deriva. Dizia-se que não havia possibilidade de salvar os que mergulhavam, devido à violência e rapidez das correntes contrárias. Periodicamente, apenas com o intervalo de alguns dias, uma sampana era tragada e arrastada para o fundo. Todavia, mercê do estranho fatalismo oriental, os nativos continuavam a atravessar as águas perigosas servindo-se de qualquer embarcação, por muito frágil que fosse. Carie começou a odiar o rio cuja voracidade de vidas humanas a oprimia.
Tinha de vigiar constantemente Edwin e Edith, pois receava que, quando estivessem à janela entretidos a ver os barcos, testemunhassem a luta angustiosa de
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homens e mulheres a afogarem-se, debatendo-se numa horrível agonia.
Aprendera a construir um lar em qualquer parte. Instalara-se à beira do rio que detestava. Caiou as paredes e os tectos dos três quartos e mandou pintar os sobrados e os madeiramentos a um indígena. Depois, numa loja chinesa, comprou musselina branca e com ela confeccionou bonitos cortinados para substituírem os primeiros, rosados, há muito gastos. Cortou-os grandes de modo a encobrir o rio. Como não dispunha de espaço para um jardim, pregou por fora da janela uma caixa de leite vazia. Em seguida, com Wang Amah e os filhos foi até às colinas que envolvem a cidade e recolheu uma porção de terra sã e negra com a qual encheu a caixa onde plantou estacas de gerânio levadas do pequeno jardim saibrado de Chefoo e as roseiras que nunca abandonava. Em breve, entre ela e o curso de água, ergueu-se uma divisória colorida.
Por baixo daqueles três quartos, os únicos que Andrew pudera alugar, achava-se o armazém do comprador onde o proprietário chinês vendia, além dos produtos do país, vários géneros estrangeiros em conserva e, em especial, whisky e aguardente. A freguesia habitual limitava-se a meia dúzia de brancos e, muito raramente, alguns chineses. Contudo, os principais clientes eram marinheiros e soldados de navios de guerra americanos ou europeus, que de vez em quando faziam escala nas docas do porto. O rio era de tal modo largo e profundo que os navios de grande tonelagem podiam subi-lo para além de Sinquião. A vista da bandeira americana, ondulando sobre as águas sombrias e perigosas, confortava Carie.
Lamentava, sobretudo, os compatriotas. Aqueles rapazes novos desembarcavam plenos de entusiasmo. Eram jovens, alguns ainda adolescentes, oriundos de todos os estados da União, risonhos, vigorosos, desejosos de se divertirem. Porém, não descobrindo diversões, acabavam por invadir a lojeca sórdida do comprador, onde adquiriam chocolate rançoso, biscoitos ingleses e, prin-
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cipalmente, garrafas de whisky escocês. Carie ouvia-os, do seu quarto, quando, durante toda a tarde e noite, até ao romper da manhã, gritavam e lamuriavam na sua embriaguez. Despedaçavam garrafas de encontro às paredes e no meio da algazarra distinguia-se, como um zumbido de mosquito, a voz aguda das cantoras das casas públicas. Por vezes, eclodiam berros e choros, mas Carie não procurava inteirar-se do que se passava, pois nutria imensa lástima por aqueles rapazes tão longe da pátria. Sentia vergonha porque eram compatriotas e procediam de maneira condenável perante um povo estranho, por natureza inclinado ao orgulho e ao desprezo.
Após uma dessas noites tumultuosas ia por vezes de manhã fazer compras à loja e via disseminados por toda a parte pedaços de porcelana e mercadorias. O dono do armazém, um amarelo de rosto enrugado, contemplava os estragos com olhar sombrio. Um dia, Carie perguntou-lhe:
- Por que lhes vende esse licor, se isso os torna maus?
O chinês esclareceu, com ar velhaco:
- Se os brancos fazem estragos, obrigo-os a pagá-los. Magoada com a humilhação daqueles rapazes, Carie
teve uma ideia que pôs em prática durante muitos anos. Quando um navio estrangeiro entrava no porto, começava em seguida a fazer bolos - bolos grandes nevados, de coco ou de chocolate, de uma massa muito leve cuja receita aprendera na cozinha fresca e lajeada da sua infância. Fazia ainda tortas e bolachas e depois convidava os marinheiros para o chá. Entre aqueles homens rudes, que com um sorriso tímido se comprimiam nas pequenas divisões da casa, e a mulher graciosa e culta, pouco existia de comum. Quando todos se achavam saciados, tocava-lhes órgão e cantava, ou sentava-se com simplicidade a escutar o que esses jovens privados de mulher desejavam contar. Quando partiam, Carie sentia-se triunfante por tê-los salvaguardado - ao memenos, de uma vez - concedendo-lhes ao mesmo tempo umas breves horas de ambiente caseiro.
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Naquele Inverno nasceu-lhe um rapazinho ao qual chamou Arthur. Era também loiro e tinha olhos azuis. Carie alegrou-se com essa nova vida despontada, pois acolhia os filhos sempre com grande júbilo, apesar dos encargos que o seu advento representava. Wang Amah desta vez ficou encantada por se tratar de um rapaz. O bebé tinha já dois meses quando o pai o viu pela primeira vez. Era uma criança bonita, mas franzina, desde os primeiros dias.
No diário de Carie, muito irregular durante esses anos, encontro constantemente esta exclamação: "Como me sinto rica com os meus filhos!".
Não obstante a falta de amigos que muito naturalmente granjearia se vivesse no seu próprio ambiente e as longas ausências de Andrew, sentia-se feliz entre os filhos e esse prazer era recíproco. Quando, uma vez, escutava uma mulher contar-lhe o grande romance de amor da sua vida, notei uma expressão de desgosto nos olhos de Carie, que depressa desvaneceu, enquanto declarava com serenidade.
- O meu grande romance de amor foram os meus filhos.
Edith e Edwin evidenciaram muito cedo excepcionais dotes de inteligência e Carie sentia uma enorme alegria em satisfazer-lhes a sua avidez de leitura e de canto.
Ignorava o que o futuro lhe reservaria, porém durante o Inverno de espera consagrou-se exclusivamente aos filhos. Estes não dispunham de um jardim onde brincar e a rua, além de suja, estava sempre obstruída. Em face disto, resolveu ir todas as manhãs com os pequenos e Wang Amah para as colinas próximas. Para não despertarem a atenção, seguiam por ruas estreitas até atingirem o caminho da montanha. Felizmente, o percurso não era longo. Depressa chegavam a uma estrada que serpenteava sob árvores e bambus até aos terrenos verdejantes das tumbas.
Essas encostas eriçadas de túmulos entristeciam-na. O solo era verde na Primavera e no Verão; no entanto, quando chegava o Inverno e cortavam a erva para a queimar em casa, a paisagem tomava um aspecto árido
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e escuro. Carie meditava na vida daqueles que haviam encontrado ali um derradeiro refúgio. As tumbas dos soldados mortos em combate eram pequenas, muito próximas umas das outras; as mais destacadas, de homens ricos e suas famílias, estavam circundadas por um muro; cada sepultura possuía o seu significado. Mas Carie preservava os filhos desta tristeza e estes brincavam com alegria sobre os túmulos, colhendo flores silvestres e correndo pelas encostas íngremes. Mais tarde, quando visitaram a pátria, surpreenderam-se ao avistar as colinas sucedendo-se, umas após outras, sem qualquer edificação, e compreenderam, pela primeira vez, que tinham brincado durante toda a vida por cima dos mortos. Desse modo, aquela mãe americana conseguia conservar a alegria natural dos filhos.
O flanco da colina onde costumavam brincar estendia-se à sombra de um forte construído no cume. Nas cercanias, existia um campo de exercícios militares e as crianças gostavam de ver os soldados, de uniforme azul e vermelho, manejarem a lança e a espada e de ouvir, troar o único canhão, atolado na lama junto ao muro que rodeava o forte.
Pelo sopé do monte serpenteava o rio. Quando as águas baixavam, ficava a descoberto uma planície rica, da qual se erguia abruptamente uma ilha cónica, em forma de agulha, ainda hoje chamada Ilha de Ouro. Um pagode exótico, que Marco Pólo outrora já descrevera, elevava-se acima dos telhados recurvados do templo da ilha.
Assim como as crianças se divertiam com as manobras dos soldados vistosos e com o troar violento do canhão, Carie deliciava-se na contemplação das longínquas cristas montanhosas escalonadas ao longo da margem do rio. Afeiçoara-se a essa paisagem, quer se mostrasse límpida no azul da tarde, quer velada pela bruma matinal ou do anoitecer. Recordava-lhe uma outra linha de montanhas recortadas no céu da sua pátria, rodeando a casa onde vivera, a dez mil léguas dali.
Aproximava-se o Verão, essa época que Carie tanto temia devido à característica humidade. O ar fétido das
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ruas cobertas de detritos de toda a natureza, invadia os três quartos. Os gerânios murcharam e morreram com o calor, o mesmo acontecendo às rosas. As moscas pululavam, provenientes de montes de lixo, que secavam sob o Sol escaldante. O ar quente pesava como uma nuvem de vapor nauseabunda. Carie considerou que deviam forçosamente levar as crianças para a montanha.
Numa das colinas, próximo do forte, erguia-se um antigo cerrado das Missões, Vencidas algumas dificuldades, Carie conseguiu alugar uma casa de um único piso, que durante o Verão se mantinha vazia. Era uma habitação quadrada, baixa, apenas com seis divisões separadas por um corredor. Duas das paredes exteriores abriam para uma varanda. Em comparação com o apartamento da tumultuosa rua de Sinquião, esta nova morada parecia um paraíso. Carie instalou-se ali durante todo o Estio. Por vezes, quando durante a noite caçava centopeias, receando que subissem às camas das crianÇas, Carie impacientava-se.
Os pântanos e arrozais dos vales eram viveiros de mosquitos e dos enormes potes de excrementos com que os lavradores adubavam as culturas subiam nuvens de varejeiras. Todavia, podiam contemplar os vales férteis e as colinas cobertas de bambus. À distância de uma légua, o rio cruel reduzia-se a uma simples linha amarelada de aspecto inofensivo. De manhã muito cedo, a bruma espessa dormia ainda sobre os vales e o cume dos montes emergia da névoa lembrando ilhotas verdes. Constituía um espectáculo esplêndido que recordava o alvorecer na América. Porém, aqueles nevoeiros eram quentes e pesados, ao passo que em Virgínia traziam consigo o picante do gelo.
Um pequeno prado para recreio das crianças e um eantinho ajardinado alegravam o ambiente. Carie plantou flores e todas as manhãs levantava-se cedo para cyidá-las e ajudá-las a desabrochar antes de partir. Foi este o seu primeiro jardim na China.
Findo o Verão, Andrew regressou, anunciando que arranjara uma casa num ponto mais elevado do grande
8 - O Exílio
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canal. Situava-se numa cidade chamada Tsingkianpu, que constituíra a base do seu trabalho durante os últimos meses. Partia desse centro e percorria muitas terras, montado num macho, de carroça ou a pé, para pregar e ensinar a sua fé nas aldeias e lugares mais afastados. Estava suficientemente familiarizado com Tsingkianpu para estabelecer ali a sua residência e alugara já uma habitação chinesa, que mandara reparar devidamente.
Carie sentia mágoa por abandonar aquela casa. Já se lhe afeiçoara e as flores que plantara estavam ainda em botão. Não obstante, pegou nas malas, nos móveis e nas crianças e, acompanhada por Wang Amah, embarcou num junco. Ao cabo de dez dias de navegação lenta ao longo do plácido canal, chegaram à antiga cidade chinesa que não contava um único habitante de raça branca. Andrew descobrira uma casa de dimensões excepcionais, ao fundo de um grande pátio. Dizia-se que era visitada pelo fantasma de uma mulher a quem o marido maltratara quando ali vivera e agora, sob a forma de uma doninha, fazia a sua aparição. Por tal motivo, ninguém queria alugá-la e o proprietário sentia-se feliz por poder cedê-la a um estrangeiro.
De qualquer modo, Carie gostou dela e principiou, uma vez mais, a construir um lar. Repetia sempre a mesma fórmula - paredes lavadas e caiadas, as vastas janelas protegidas por amplos cortinados e esteiras limpas sobre o soalho. Nq pátio plantou relva e flores - crisântemos comprados no mercado e rosinhas simples, muito alegres, vermelhas, amarelas e rosadas. Depois do órgão e da mesa oval ocuparem os seus lugares, instalado o restante mobiliário e arrumada a cozinha, reconstituíra o lar. Lá fora, o tráfico principal fazia-se na rua barulhenta que atravessava, de um extremo a outro, a cidade. O ruído da multidão, os gritos dos vendedores, dos corredores de richó, o rangido dos carrinhos de mão, não chegavam ao interior desse lar que ela tornara limpo e confortável para que os seus filhos pudessem desfrutar dalgum sossego e um pouco de ambiente americano. Muitas vezes, convidava a
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entrar mulheres chinesas, que se mostravam maravilhadas com o arranjo da casa.
Andrew abrira numerosas capelas e pregava por toda a região. Possuía o dom da palavra e consumia parte do tempo a escrever livros para os seus ouvintes.
Nessa época, Carie não o podia acompanhar para longe de casa e dos filhos, no entanto visitava com frequência as capelas, onde tocava órgão, dirigindo os cânticos com a sua voz clara. Após o sermão de Andrew, catequizava pequenos grupos de mulheres, na sua maioria criaturas infelizes, desiludidas, cansadas da vida e alquebradas pelo peso de desgostos, que se sentiam amarguradas com as exigências dos sacerdotes da sua rebelião. Algumas não compreendiam a nova doutrina e, sem dúvida, as palavras proferidas por Carie nem sempre transmitiam a mensagem desejada.
Contudo, depois de as ouvir desabafar, a sua simpatia natural produzia ainda maior efeito do que toda a sua loquacidade. O seu primeiro impulso era "remediar", pelo que acabaram por lhe chamar "a americana das boas obras". Era procurada por muitas chinesas; por vezes, mulheres desconhecidas que tinham ouvido apenas falar dela, terminavam invariavelmente as suas histórias, arriscando baixinho: "Dizem que a senhora arranja sempre solução...".
Revejo-a sentada à janela da saleta, com o rosto transtornado pela compaixão e escutando com infinita paciência uma longa lamentação. As crianças brincavam e gritavam no jardim; uma vez por outra, Carie sorria-lhes sem desviar a atenção da conversa nem perder a expressão triste. Em geral, essas mulheres eram seres oprimidos que jamais haviam encontrado na vida alguém com disposição para ouvir as suas queixas, motivo por que lhas confiavam, repetidas vezes, consoladas por falarem a uma pessoa que as atendia com plena compreensão. Um dia, ouvi uma mulher rogarlhe: "Explique-me o que devo fazer e fá-lo-ei. Diga-me no que devo acreditar e acreditarei. Nunca na minha vida encontrei quem prestasse atenção a uma só das minhas palavras, a uma só das minhas lágrimas. Meu
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pai não me estimava por eu ser rapariga; meu marido não se importava comigo; meu filho despreza-me. Sempre fui alvo de desprezo por não passar de mulher, feia e ignorante. Mas a senhora, apesar de estrangeira, interessou-se por mim. Portanto, a sua fé será a minha. Deve tratar-se de uma religião verdadeira, visto que a torna generosa... até para comigo".
Esse Inverno foi um dos mais felizes da vida de Carie. A casa chinesa era muito confortável. Tinham mandado fazer a um latoeiro um fogão de sala, em zinco, e as duas janelas estavam guarnecidas de flores. Carie possuía o dom de as fazer crescer. Aqueles quartos que, com o escasso mobiliário, teriam parecido nus, revestiam-se de um ar hospitaleiro e confortável devido às plantas que os adornavam.
A Primavera aproximava-se e, depois desta, o Verão achava-se de novo à porta. Oh; como seria bom que aquela estação não existisse!, meditava Carie. Porém, esse Estio revelou-se pior que qualquer outro, pois durante a Primavera verificou-se uma seca invulgar que persistiu durante muitos dias. Os lavradores que na época das chuvas contavam com as inundações para alagar os arrozais, viram as culturas perdidas. Acabaram por renunciar à esperança da colheita de arroz e plantaram trigo a fim de não ficarem desprovidos de recursos.
Carie, sempre pronta a notar com intuição os sentimentos de quem a rodeava, observou uma mudança nos habitantes da cidade: quase ninguém frequentava já a capela de Andrew. A multidão que a princípio ali acorria, rareava agora e, em determinado domingo, a sala manteve-se vazia. No dia seguinte, Wang Amah, ao voltar do mercado, aconselhou Carie a não sair à rua. Instada com perguntas, a criada respondeu contrafeita:
- Dizem que os deuses estão encolerizados. É a primeira vez que há estrangeiros na cidade e até hoje nunca se verificou uma tão grande seca. Por isso, julgam que a vossa presença é reprovada.
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O próprio Andrew, sempre alheio ao que se passava não relacionado com a sua obra, notou, quando falava na rua ou distribuía folhetos religiosos, que as pessoas assumiam expressões hostis. Por uma ou duas vezes um homem pegara numa dessas brochuras e rasgara-lhe em pleno rosto. Tratava-se de um gesto significativo num país em que os caracteres da imprensa são sagrados. Contudo, a oposição incutia uma maior firmeza em Andrew. Quando sentiu tornar-se impossível continuar a trabalhar na cidade, empreendeu uma das suas habituais excursões pelo campo, que duravam semanas, deixando Carie sozinha com as crianças e Wang Amah.
Numa tarde escaldante de Agosto, Carie achava-se sentada perto da janela, a costurar. A atmosfera estava pesada, sufocante, e a sua densidade dir-se-ia dar relevo a cada ruído que emergia da rua. Ouvindo cochichar por baixo da janela aberta, apurou os ouvidos com apreensão. Eram dois homens a conspirar.
- Hoje à meia-noite - dizia um deles - arrombamos a porta e matamo-los a todos. Depois, lançaremos os corpos aos pés dos deuses para que nos mandem chuva.
Carie ergueu-se em seguida e procurou Wang Amah, contando-lhe o que escutara.
- Vai infornar-te do que se diz pela rua - recomendou-lhe. - Procura descobrir o que preparam para esta noite.
Sem uma palavra, Wang Amah envergou o seu casaco mais usado e saiu. Não tardou a reaparecer, com uma expressão de alarme. Fechou cuidadosamente todas as portas e colou os lábios ao ouvido de Carie.
- Minha querida ama - articulou - esta noite, vêm matá-la a si e às crianças. Querem fazer desaparecer todos os brancos.
- Crês que conseguirão fazê-lo? - inquiriu Carie.
- Por que não? - murmurou a criada, angustiada, limpando com lentidão os olhos com o auxílio de uma ponta do avental. - De entre todos para quem a senhora foi boa, não haverá agora um só que se atreva a ajudá-la. Se o tentassem, seriam também massacrados. - Carie manteve-se imóvel e silenciosa, procurando reflec-
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tir. Wang Amah fitou a mulher branca bem nos olhos e declarou: - Mas tem-me a mim.
Carie pegou-lhe na mão, morena e áspera.
- Não tenho medo - assegurou-lhe. - Vou rezar ao
meu Deus.
Retirou-se para o quarto, fechou a porta e ajoelhou-se junto à cama. Por um instante, o pulsar violento do coração causou-lhe tonturas. Seria esse o seu último dia? O fim de tão curta existência de seus filhos? Ergueu os pensamentos para onde lhe haviam ensinado que era o reino de Deus e orou: "Se for da Tua vontade, salva-nos. Mas, de qualquer modo, ajuda-me a não ter medo". Depois de uma longa pausa, continuou: "Se é chegado o momento de morrer, faz com que os meus filhos me precedam nesse fim".
Conservou-se ajoelhada durante muito tempo, tentando tomar uma decisão. Depois, aguardou em silêncio. Tal como das outras vezes, não obteve resposta. Terminou por levantar-se, confortada pela própria coragem e pela cólera forte e salutar que lhe inundava a
alma.
"Não consentirei que uma matilha de ignorantes supersticiosos me massacre e maltrate os filhos" - prometeu a si própria com firmeza, ao mesmo tempo que se espantava com a serenidade que a invadira.
Apesar do silêncio de Deus, confiaria n'Ele e não temeria os homens.
Naquela noite, deitou as crianças mais cedo, dedicando-se em seguida a coser tranquilamente. Durante todo o dia, sentira-se amparada pêlo sentimento da
cólera. - Não tenho vontade de morrer - animava-se em
voz alta.
Gradualmente, impusera-se um plano de acção. Aproximou-se da janela e escutou o ambiente, enquanto cosia. O murmúrio da cidade palpitava no ar sufocante e poeirento. Carie vigiava-o, atenta à menor variação de ritmo. Cerca da meia-noite, deu-se a mudança.
0 murmúrio aumentou, parecendo crescer em direcção à casa. Aproximava-se o momento. Carie levantou-se
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e chamou a' meia-voz por Wang Amah, sentada em silêncio na sombra do pátio. •
- Wang Amah, prepara agora o chá, por favor. Desceu as escadas, colocou chávenas e pires em redor
da mesa oval e encheu-a de pratos com bolos. Depois de tudo arranjado com o cuidado habitual exigido para uma recepção, varreu o soalho e dispôs as cadeiras como se esperasse a chegada de convidados. Feito isto, desceu ao pátio e escancarou o portão.
Uma guarda avançada de alguns homens achava-se no limiar da entrada, com os rostos ocultos pela escuridão da noite sufocante. Recuaram nas trevas. Carie simulou não os haver visto, não experimentando o menor receio. Voltou para casa, deixando a porta aberta atrás de si. Espevitou a torcida da lamparina de azeite cuja claridade se expandiu para o exterior e em seguida subiu as escadas para despertar os filhos. Vestindo-os, levou-os para baixo. Espantadas com o que se passava, as crianças nada diziam. Para tranquilizá-las, a mãe falou-lhes em tom natural, sentou-as no chão sobre a esteira e deu-lhes os brinquedos de domingo. Pouco depois distraíam-se alegremente e Carie voltou a entregar-se à costura. Entretanto, Wang Amah trouxera bules cheios de chá, postando-se imóvel atrás das crianças com uma expressão impassível.
Em redor da casa, o murmúrio recrudescia, formando-se vozearia excitada. Quando se aproximou, Carie dirigiu-se com ar indiferente até à porta e gritou:
- Queiram entrar!
Os homens encontravam-se já no meio do pátio e, ao som da voz dela, precipitaram-se para diante. Era um grupo de gente irada, pertencente às mais baixas classes operárias. Vinham armados de varapaus e facas. Carie, amável e cordial, tornou a chamá-los, graças a um poderoso esforço de vontade.
- Entrem, amigos! Preparei chá para os meus vizinhos.
Naquele momento, os assaltantes hesitaram, indecisos. Alguns entraram. Carie verteu chá numa chávena e segurando-a com as duas mãos, segundo as regras de
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cortesia, avançou para oferecê-la àquele que devia ser o cabecilha, um homem enorme, de aspecto rude e seminu. Este, a princípio, quedou-se boquiaberto. Por fim, incapaz de outro gesto, pegou na chávena. Carie distribuía os seus melhores sorrisos pelos rostos que brilhavam, iluminados pela claridade da porta.
- Queiram entrar e tomar chá - insistiu. - Sentem-se. Lamento que a minha humilde casa não tenha cadeiras suficientes, mas são todos bem-vindos.
Recuou, fingindo ocupar-se no arranjo da mesa. As crianças interromperam as brincadeiras e Edwin correu para junto da mãe. Carie tranquilizou-as com meiguice.
- Não há razão para terem medo, meus amores. São pessoas que nos querem conhecer melhor; pessoas estranhas que nunca viram americanos e desejam saber como são feitos.
Começaram a penetrar no quarto, olhando com fixidez em frente, boquiabertos, momentaneamente distraídos. Um deles observou em voz baixa:
- É estranho que ela não tenha medo! Ouvindo-o, Carie perguntou com bem simulada surpresa:
- Por que deveria eu ter medo dos meus vizinhos? Os outros principiaram a examinar os móveis, os
cortinados, o órgão. Um, pousou a mão nas teclas e Carie mostrou-lhe como se produziam sons. Em seguida, instalou-se no tamborete e tocou suavemente, cantando em chinês: "Jesus, o teu nome é amor".
Reinou um silêncio de morte até que terminou a canção. No final, os homens entreolharam-se, hesitantes. Um deles, comentou:
- Aqui só há esta mulher e as crianças.
- Eu volto para casa - decidiu outro, saindo da saleta.
Com os semblantes ainda carrancudos, a maioria ficou. O que parecia chefe estendeu a mão para Arthur. O pequenito, de tez rosada e que toda a vida se vira rodeado por gente de pele morena, sorriu e agarrou no dedo escuro e magro do homem, o qual, encantado, principiou a rir e exclamou:
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- Vejam! Está a brincar comigo!
O grupo reuniu-se em redor das crianças, examinando-as com comentários ruidosos. Apanhavam os brinquedos do chão para os verem melhor e divertiam-se com eles. Angustiada, Carie observava algum movimento brusco susceptível de assustar os filhos e alterar a boa-disposição daqueles homens. Wang Amah, de rosto sombrio e severo, velava, junto à porta. Por fim, o cabecilha levantou-se e declarou em voz alta:
- Nada mais temos a fazer aqui. Vou para casa. Foi o sinal de partida. Um após outro, lançando
olhadelas para trás, os chineses transpuseram o pátio e saíram para a rua. Carie sentou-se, sentindo uma súbita fraqueza nas pernas, e, pegando no bebé, embalou-o docemente sobre os joelhos. Os homens que por um instante se haviam detido no limiar do portão, levaram consigo essa última visão daquela mulher americana.
Depois de todos se terem retirado, Wang Amah aproximou-se dela, agarrou na criança e apertou-a ao peito, num gesto selvagem.
- Teria morto o monstro que se atrevesse a fazer-lhe mal! - murmurou.
Carie riu-se com certo nervosismo ao notar o cabo de uma faca que emergia da jaqueta da criada. Pegando em Edith ao colo e em Edwin pela mão, foram todos para cima. Voltou a banhar as crianças em água fresca e meteu-as na cama.
Seguidamente, tornou a descer as escadas para fechar o portão do pátio que dava para a rua, agora silenciosa e deserta na escuridão que precede o amanhecer. Carie parou no limiar da casa, sentindo bater-lhe no rosto o vento proveniente de sueste, que parecia pressagiar um tufão. Escutou com atenção. De súbito, uma rajada forte penetrou pelas janelas, levando os cortinados a uma posição horizontal. Era um vento puro impregnado da frescura do mar longínquo.
Carie foi deitar-se, não adormecendo, porém, imediatamente. Aquele vento traria chuva? Depois de uma hora de expectativa, caiu num sono leve do qual em
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breve foi despertada pelo ruído de bátegas de água que tombavam sobre o telhado de ardósia. Aquele som invadia-lhe os ouvidos como verdadeira música. A água escorria dos ângulos dos telhados, enlameando o pátio. Carie sentia-se embriagada de alegria. Por fim, o seu corpo distendeu-se no ar fresco e húmido. A noite terrível... a noite atroz findara.
Levantou-se e acercou-se da janela. Uma claridade cinzenta estendia-se por cima das casas, mas não se notava ainda qualquer indício de vida. A cidade continuava a dormir, deprimida pelo calor. Pelas ruas desertas, a chuva escorria em longos riachos regulares. Estavam salvos... Seria aquilo, finalmente * um sinal
do Céu?
Com a aproximação do fim do Estio, Carie sentia-se mais alegre e aliviada. Porém, como se não pudesse ser feliz por muito tempo, Arthur adoeceu vítima de uma febre súbita, no começo de Setembro. A criança dera uma queda sobre os tijolos do esgoto no pátio e mostrava tal abatimento que Carie se inquietou seriamente. Contudo, nessa mesma noite, o pequeno readquiria a alegria habitual.
No dia seguinte, recaiu no langor da véspera, apresentando o rosto rubro de febre. A mãe administrou-lhe os remédios simples de que dispunha, banhou-o em água fresca e Wang Amah não parava de o abanar. Mau grado estes cuidados, a febre continuou a subir e, à noite, a criança estava inconsciente. Queixara-se durante todo o dia; no entanto, devido à sua tenra idade não sabia indicar com precisão onde se magoara, conquanto sua mãe lhe examinasse todo o corpo por diversas vezes. Por fim, mergulhou numa profunda prostração. Carie, aterrada e impotente, observava-lhe os lábios exangues enquanto Wang Amah lhe afagava os pèzinhos.
- Está a morrer! - choramingava num murmúrio a chinesa.
Na cidade, não existia médico algum branco, mas aquela mãe não podia permitir que o filho perecesse sem qualquer assistência. Virando-se, como louca, para a criada, ordenou-lhe:
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- Vai procurar o melhor médico chinês da cidade e pede-lhe que venha imediatamente. Diz-lhe que... tenho um filho a morrer!
Wang Amah desapareceu em seguida para regressar depois acompanhada do médico, um velho baixo e encarquilhado, metido numa vestimenta negra e suja, com uns óculos enormes encavalitados no nariz. Entrou no quarto, silencioso e impassível, sem olhar para a direita ou para a esquerda e dirigiu-se ao leito da criança. Estendeu a mão escura de unhas enormes, semelhantes a garras, e segurou com delicadeza entre o polegar e o indicador o frágil pulso escaldante. Permaneceu assim, de olhos cerrados, durante um longo momento. Por fim, ergueu-se, retirou debaixo da vestimenta um pedaço de papel dobrado e do cinto tinta e um pincel, traçando com rapidez alguns hieróglifos.
- Leve isto à farmácia - indicou a Wang Amah. - Depois ponham as plantas e infusão em água quente e dêem de beber à criança um copo cheio, de duas em duas horas.
Recebeu os honorários e saiu. Wang Amah afastou-se com o papel e reapareceu pouco depois com um molho de ervas -e um grande aro de cobre "velho coberto de verdete. Estava a preparar" a: bebida quando Carie a chamou.
- Amah! Amah! - Era um grito angustiado e a serva acorreu ao quarto do enfermo. - O meu bebé! O meu bebé!
Carie segurava nos braços o pequenino corpo que se agitava numa última convulsão. Wang Amah, soltando um leve grunhido de compreensão, tirou de cima da cama uma peça de roupa que a criança vestira e saiu de casa a correr, levando na mão uma lanterna acesa, que apanhou de passagem. Carie ouviu-a gritar na rua:
- Filho, volta... volta para tua casa!
O apelo repetiu-se, cada vez mais fraco à medida que a mulher se afastava.
Carie já escutara muitas vezes aquele grito, que sempre a fizera estremecer de tristeza. Também, por diversas ocasiões, se cruzara na rua com uma mãe lavada
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em lágrimas, transportando na mão uma lanterna acesa e um vestidinho. Esses encontros haviam-na sempre confrangido, pois sabia que estava uma criança moribunda, cuja mãe, num derradeiro raio de esperança, tentava fazer regressar a almita errante.
Agora, essa almita errante era a de seu próprio filho. Estreitou contra o peito o corpinho frágil, que estremeceu e depois se imobilizou.
No dia seguinte, mandou procurar Andrew por um corredor, visto naquela época não existir outro serviço postal. Wang Amah comprara um pequeno esquife que Carie forrou com uns restos de seda azul. As duas mulheres banharam o garotinho loiro e, ao colocarem o corpito no caixão, choraram tanto que se tornava difícil adivinhar qual delas era a mãe. Como o ar conservava o calor de Verão, o caixão foi fechado quase imediatamente.
Uma vez tudo terminado, Carie sentou-se e aguardou a chegada do marido. Este surgiu na noite seguinte, extenuado pela viagem forçada. Carie foi ao seu encontro, de olhos enxutos, encolerizada.
- Tenho de partir - anunciou-lhe. - Preciso de ver uma mulher branca... alguém da minha raça. Quero o corpito de meu filho para Xangai, para junto do outro. O meu bebé não ficará aqui sozinho, nesta cidade pagã!
Perante o desespero que sentia nas palavras da mulher, Andrew cedeu. No dia imediato alugaram um junco e seguiram para a costa, numa viagem de catorze dias ao longo do rio.
Como não havia jornais nem sequer correio, ignoravam que a cólera grassava em Xangai. Alcançaram a sórdida pensão de família da Missão, através de ruas sombreadas pela morte. No primeiro dia, Carie viu passar cinquenta esquifes defronte da janela. O facto aterrorizou-a e, logo que depuseram o pequeno caixão no cemitério de Xangai, apressaram a partida.
Ao amanhecer do dia em que poderiam regressar, Carie foi atacada de vómitos violentos e diarreia, o mesmo sucedendo, uma hora mais tarde, a Edith, que contava quase quatro anos. Andrew procurou, balda-
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damente, um médico, pois era o dia das corridas de Outono e todos os homens de raça branca se achavam reunidos no campo às portas da cidade. Carie jazia prostrada no leito, moribunda. O médico, logo que chegou, procurou reanimá-la, indicando a Andrew e a Wang Amah como tratar da criança doente.
Carie tombara num estado inconsciente, mas a sua compleição robusta triunfou uma vez mais e à noite recuperara já a lucidez. Teve então forças para murmurar:
- Edith, Edith...
Andrew, que jamais lhe pudera ocultar coisa alguma, balbuciou:
- Tem fé...
- Não morreu, pois não? - perguntou a pobre mãe, ofegante.
- Morreu, sim, morreu - acabou Andrew por confirmar.
No dia seguinte, compraram um segundo esquife, que Andrew acompanhou ao cemitério. A sepultura fresca em que Maude repousava foi reaberta para receber a terceira criança. Carie, estendida na cama, incapaz de verter uma lágrima, num estado de amargura profunda, tentava humilhar-se perante esse poder terrível que assim a despojava dos filhos.
- Eu creio... serei melhor... quero ter confiança... Não obstante, no fundo do coração que se recusava
a ser esmagado, chorava e gritava: "Ter confiança em quem?"
Depois da longa e penosa convalescença de Carie, regressaram de junco à cidade do centro. Edwin, agora com nove anos, era o único filho e Carie achava a casa enorme e vazia. Era difícil distraí-lo e alegrá-lo. Carie desejava torná-lo um ser forte e vigoroso. No meio daquela atmosfera enervante, só ela podia valer-lhe, mas sentia-se demasiado triste para o conseguir. Já que apenas lhe restava aquele filho, vigiava-o com um receio e uma ternura arrebatados que sabia prejudiciais para a criança.
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Passava os dias e as noites com o coração a sangrar, chorando os filhos que perdera. Andrew voltara ao trabalho, como era seu dever, e deixara-a só. Wang Amah continuava a auxiliá-la, mas a simplicidade da chinesa já não satisfazia Carie.
Entregou-se de novo à sua obra, procurando, sempre que podia, consolar os aflitos e voltando a frequentar a capelinha. Não obstante tudo isso, quando tentava falar de Deus, sentia o coração árido e silencioso. Que sabia ela a Seu respeito, além das palavras ocas que lhe haviam ensinado? Os seus lábios negavam-se a transmitir qualquer mensagem. Só as suas mãos obedientes persistiam no trabalho.
Já não conseguia sequer entoar os antigos cânticos, sem chorar. Com a continuação, o esforço dispendido em dominar-se acabou por esgotar-lhe as forças. Lutava agora, não só para abafar o desgosto que a consumia, mas também para encontrar Deus. Orava com frequência, firmando-se a uma esperança religiosa, por desconhecer outro socorro. A sua natureza positiva exigia uma fé de bondade tangível, mas todas as suas orações lhe pareciam vãs, como um eco lançado no deserto.
Wang Amah notava o seu enfraquecimento e, um dia em que Andrew se encontrava em casa, observou-lhe que perderia também a mulher se não descobrisse rapidamente um remédio para o mal que a consumia. Andrew olhou para Carie e só então se apercebeu da tristeza do seu aspecto. A expressão melancólica dos olhos da mulher assustou-o.
- Carie - aventurou com hesitação - gostarias de passar um tempo em tua casa, na América?
Ela encarou-o, sem falar; bruscamente, os olhos alagaram-se-lhe de lágrimas. A sua terra... a sua casa... era esse o único remédio capaz de a salvar.
Haviam estado ausentes durante dez anos e, conforme o uso das Missões, Andrew tinha direito a um ano de licença. Passado um mês, seguiriam rumo à costa.
Ao chegarem a Xangai, a ideia do regresso à pátria afigurou-se subitamente intolerável a Carie. Tinha o
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coração em chaga, a ferida ainda sangrava e sentia-se incapaz de suportar a vista de rostos familiares, plenos de simpatia, que acabariam por lhe reavivar a dor. Andrew, confundido por esta estranha mudança, consultou um médico que prescreveu mudança de cenário - um país que a mulher desconhecesse. Escolheram o Mediterrâneo e a Europa.
Durante os três meses que levaram a percorrer os diversos países do Velho Continente, Carie manteve uma passibilidade de que jamais dera provas. Desembarcaram na Itália, donde seguiram para a Suíça. Permaneceram um mês na requintada cidade de Lucerna, na qual comeram mel dourado, enquanto o olhar se espraiava desde o maravilhoso azul dos lagos às montanhas resplandecentes da neve. Aquilo constituía o melhor remédio. A beleza resultava benéfica para Carie e a vista dos espaços frescos, das pessoas calmas e asseadas, das igrejinhas de campanários pontiagudos ou das grandes catedrais sombrias, restituíam a saúde à alma de Carie. De novo voltou a sentir a impressão vaga de que restava algo de bom na vida e, se esta era agradável, Deus devia, de facto, existir. Num futuro distante, Carie saberia reconciliar a dor com essa noção; mas, por enquanto, sentia-se demasiado cansada para a mínima luta. Da primeira vez, revoltara-se; perante o segundo golpe, invadira-a o desespero; porém, quando a sua linda filhinha Edith também lhe fora arrebatada, apenas com quatro anos, emudecera, com o coração despedaçado. A tristeza do ambiente em que vivia, no meio das pessoas entre as quais trabalhava, acentuara essa sensação de imensa infelicidade. Tinha necessidade de ver países calmos e prósperos, onde o sofrimento não é aparente.
Acabaram por partir para o norte em direcção à Holanda, onde procurou activamente a antiga fábrica de móveis de Mynher, em Utreque, agora modernizada e ainda uma casa importante. Carie sentiu um prazer enorme em levar Edwin consigo e poder mostrar-lhe o edifício e toda a cidade. Mais se alegrou ao notar no filho o despertar de um sentimento de orgulho, a obra
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dos seus dignos e corajosos antepassados. Carie emergia assim do isolamento em que vivera durante dez anos e voltava a lançar raízes entre os seus.
Decorridas duas semanas, agora em Inglaterra, já no fim do Verão, inundou-se-lhe a alma de beleza, tornando a sentir-se forte e, moralmente, mais sã. Pelo menos, a recordação do passado conseguia suavizar-lhe a dor; embora não dispusesse de coragem para enfrentar o futuro, lograva distrair-se e pensar com certa alegria na pátria e na sua velha casa.
Seria possível que aquela planície tranquila se houvesse conservado tão bela durante aqueles dez anos? Carie, de novo sentada à janela do seu quarto de solteira, contemplava a paisagem de outros tempos. Nunca se cansava de permanecer assim a desfrutar do encanto daquela tranquilidade. A vista das montanhas arborizadas, que se erguiam do solo fértil, conseguia exercer sobre o seu espírito um efeito mais benéfico que a própria música. Agradava-lhe percorrer a rua da vila, abrigada por enormes olmos e áceres, e entrar na igrejinha branca onde o irmão de Andrew ainda oficiava. O seu modo de pregar tornara-se talvez mais vago e a mulher mais roliça; no entanto, à parte isso, e os rostos conhecidos nos quais tinham ficado impressos dez anos de vida, nada mudara.
Em casa, Carie voltara a encontrar aqueles que amava; o pai, com a cabeça alva de neve, o mesmo despotismo e exteriorizando sempre a mesma atitude um pouco rígida para com Andrew; Cornelius, agora casado com uma bonita morena, muito mais nova do que ele, e por quem se deixava guiar. Todas as suas irmãs estavam casadas, à excepção da mais nova e da mais velha; Luther... como esse garoto aventureiro pudera transformar-se num comerciante prudente e próspero, bom marido e com filhos!
Achavam-se todos ali, felizes por tornarem a vê-la, por a acolherem com uma simpatia carinhosa na velha casa. Contudo, como era grande a fenda que separava as suas vidas da dela! A divergência de sentimentos
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entre eles perturbava Carie incessantemente, a recordação de outros rostos, de outras paisagens. Falava com todos; continuavam os agradáveis serões de música; visitava as irmãs e partilhava de todos os pormenores das suas vidas: da cozinha, da barreia, do arranjo da casa e dos longos passeios pela bela paisagem outonal, no carro puxado por dois velhos cavalos. Porém, ao mesmo tempo, estava longe dali e acabou por compreender quão profundamente as suas noções de vida, as suas experiências diferiam das dela.
As irmãs mantinham uma existência segura num país jovem, rico e fértil, ao passo que ela aprendera a conhecer um outro país, muito antigo, superlotado de seres sofredores, deteriorado por uma vida abundante em excesso - que nasce demasiado depressa e morre prematuramente; uma vida sombria e fervilhante.
Carie foi-se apercebendo gradualmente que apesar das raízes que a uniam à terra onde nascera se achava ligada à China, por tudo quanto dela conhecia, por almas como a de Wang Amah, pelos três corpinhos que dormiam naquela terra antiga, misturando a sua poeira pálida com a escuridão do solo. Essa terra jamais lhe pareceria estranha, e encarava a ideia de lá voltar um dia, pois deixara nela amortalhados um pouco da sua alma e da sua carne.
No entanto, antes de três meses não tinham que pensar no regresso. O magnífico Outono passou. Alguma vez fora tão belo? Os áceres seriam capazes de flamejar daquela maneira durante dez anos sucessivos? O Inverno chegou e sob o telhado da grande casa branca reuniam-se garotas com o que Edwin rejubilava. Demasiado excitado para falar de uma maneira coerente, entregava-se a jogos que se prolongavam por todo o dia, no seio de uma liberdade que nunca teria julgado possível, dentro de casa, nos bosques, nos prados, na neve, em corridas sobre patins e de tobogã.
- Oh, mãezinha, adoro a América! - repetia sem cessar.
Esta exclamação impressionava vivamente Carie. Se
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regressasse à China, iria privá-lo daquele belo país, do seu património... Por um lado, um laço doloroso e silencioso unia Carie ao país distante e, por conseguinte, adiava o mais possível essa decisão.
Depois das festividades do Natal, foram todos visitar a família de Andrew, que vivia numa grande herdade à beira do rio Greenbrier. Era uma família assaz diferente da de Carie. Nessa casa, a comida abundava e o que se desperdiçava ofendia o senso económico legado àquela mulher pelos antepassados holandeses. Os produtos da quinta e do pomar perdiam-se e, por outro lado, o dinheiro escasseava. O pai de Andrew era um homem alto e magro, taciturno, de olhos profundos impregnados de fervor religioso e dotado da natureza severa de um místico. Possuía uma voz solene que parecia provir de um túmulo.
Em contrapartida, a mãe de Andrew, uma mulher idosa, sarcástica e mordaz, tinha uma maneira de falar bastante acerba. Retirara-se voluntariamente da vida activa aos sessenta anos e, desde então, embora ainda capaz, passava o tempo entre a cadeira de baloiço e a cama. Destes dois pontos de mira observava o mundo. O principal interesse da sua vida residia num querelar perpétuo com o marido. Começava a atormentá-lo até que ele, destituído do dom de réplica da mulher, a fazia calar, acabrunhando-a com palavras atroadoras.
O velho exigia todas as noites a lareira acesa na grande chaminé de pedra. Estendia-se ao comprido na sua frente, sobre uma pele de animal, e ali ficava silencioso, contemplando as chamas com um olhar fixo. Ninguém sabia o que sonhava, mas na época em que todas as pessoas receavam as correntes de ar expunha-se a esse perigo, em frente do lume. Sua velha esposa, sempre trocista, nunca deixava de lhe gritar: "Hás-de morrer aí". Ou, se ele não prestava atenção a este aviso demasiado inofensivo, acrescentava: "Portas-te como uma criança".
Só ficava satisfeita depois de o haver atormentado ao ponto de o obrigar a encará-la com o cenho franzido e gritar: "Cala-te, mulher!". Readquiria então a
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sua boa disposição e não voltava a ser atormentado. A mulher contentava-se em soltar pequenos grunhidos durante todo o serão, sempre que lhe dirigia o olhar. Desse matrimónio, tinham nascido naquela casa severa e sem alegria, sete rapazes e duas raparigas. Todos os filhos haviam enveredado pela carreira de padre. Carie achou aquele lar estranho, desprovido de todas as graças da cortesia simples que conferia tanto encanto ao seu. Durante a sua visita, que tornou tão curta quanto possível, compreendeu ainda melhor Andrew, a sua austeridade, o seu receio, o seu ardor tão estranhamente inato, o vigor místico que orientava toda a sua vida.
No Outono, verificou que estava de novo grávida e achou preferível ficar na sua velha casa até essa pequenina vida se desenvolver um pouco.
Voltou, pois, ao seu antigo quarto, passando deste modo a Primavera na terra natal, recusando-se a pensar no futuro, partilhando com Edwin a alegria das sementeiras e dos frutos temporãos, encontrando um prazer de sonho em apanhar maçãs em Junho, e em comer morangos e cerejas húmidos de orvalho, prateados e frescos pela manhã.
Entregou-se por completo à perfeição daquela vida simples, satisfeita por se negar a qualquer espécie de reflexões até ao nascimento do filho. Sentia, mesmo, prazer com os trabalhos daquela existência: a barreia sob as árvores do pátio, por trás da casa, onde as selhas eram colocadas à sombra dos grandes áceres, a caldeira suspensa de barras de ferro cruzadas e a água límpida extraída do fundo do poço próximo, o engomar da roupa branca como a neve, na frescura da copa, com a grande porta aberta para a horta, enquanto uma abelha zumbia em volta; gostava de bater a manteiga e de ver os grãos dourados formarem-se naquela superfície cremosa, depois aglomerarem-se numa massa espessa; adorava moldar os montículos frescos, salgámos e imprimir em cada um a marca representativa de um morango.
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Edwin tomava parte em tudo. Insistia em ajudar nos diversos trabalhos, mas interrompia-se a cada instante para correr com os primos, descalço, pelo pomar e pelos prados. Carie sentia-se feliz por vê-los perder a palidez do Oriente e desenvolver-se, adquirindo uma tez rosada e um brilho no olhar - um aspecto de alegria ruidosa de que não o suspeitava capaz.
O melhor de tudo, afinal, era a manhã calma de domingo e o almoço na vasta sala de jantar, fresca a uma hora tão tardia que o próprio Hermanus os acompanhava. Toda a casa, reluzente de asseio após a limpeza de sábado, achava-se impregnada de uma atmosfera de tranquilidade, de respeito. Depois, vinha a hora do passeio lento até à igreja, cada um envergando as suas melhores roupas, com a visão da estremecida cabeça branca do pai precedendo a família na rua sombreada da vila, os cumprimentos reverentes dos vizinhos, a música dos sinos - de todas a mais doce para os ouvidos de Carie - e a beleza serena a santidade da igreja plena de repouso. Na verdade, Deus estava ali quase visível.
Carie achou a cura que procurava nos atalhos repletos de paz e de beleza da terra. De súbito, sem qualquer sinal precursor, sem qualquer visão brusca, compenetrou-se das suas antigas intenções. Aqui, tanta magnificência, tanta higiene, tanta virtude; lá longe, mãos tisnadas e vazias, corpos quebrados, o apelo patético e irresistível da miséria ao seu coração sempre compadecido.
Não foi, pois, qualquer sinal directo ou visão enviada por Deus, mas simplesmente o apelo de infelizes que, segundo a sua crença, estavam privados da salvação eterna, que lhe impuseram a ideia do regresso.
A pequenita nasceu num dia de Verão sem nuvens. Decorridos aqueles momentos dolorosos, Carie virou-se no leito para contemplar as montanhas que se erguiam para lá das planícies, sentindo afluir ao coração um pouco da bondade da vida. De novo a vida - aquela pequena vida deitada a seu lado. Que nome caberia
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melhor à criança que Consolação? Assim decidiu chamar-lhe.
Permaneceram ainda quatro meses ali para que o bebé adquirisse forças. Consolação tornara-se o centro das atenções da casa; todos os dias, as primitas lavavam as suas roupas, trazendo-as depois triunfalmente bem dobradas e engomadas, perfumadas de sol e de vento. Todos se orgulhavam da linda criança loira, no seio de uma família em que, por regra, todos os olhos eram negros. Para Carie, aquela filha tornou-se também um símbolo de esperança. Aquela filha americana, nascida na sua velha casa, dava-lhe coragem para enfrentar o regresso a outro país. Contudo, por vezes sentia-se atormentada por receios, recordando as outras pequenas existências que tão depressa lhe haviam sido dadas e retiradas. Não obstante, sabia que devia partir, ainda que fosse apenas por Andrew, ansioso por continuar o seu trabalho naquela terra.
Sim, tinha esse dever. Acaso haveria sido necessária a morte de três seus filhos para ver-se vergada à obediência, à vontade de Deus, à Sua vontade muda? Sentia o coração despedaçado, mas obedeceria. Já não tornaria a reclamar qualquer sinal divino. Seria confiante e submissa; escutaria o apelo, se não de Deus, pelo menos dos habitantes daquela terra, o apelo dos menos felizes, dos menos afortunados, dos oprimidos da vida. Talvez em última análise Deus lhe falasse dessa maneira. Mas, quer falasse quer não, estava decidida a obedecer e ir "pelo mundo fora".
De novo, o regresso por terra e por mar. Carie temia o oceano e, quando os vómitos voltaram a atormentá-la, sentiu-se assediada, uma vez mais, por terríveis lembranças que lhe secaram o leite. Viu-se assim forçada a recorrer a uma alimentação artificial que a criança não aceitou bem. Começou por recusar o biberão, e uma das facetas divertidas da viagem foi o espectáculo de Andrew, segurando o bebé nas manápulas desajeitadas e esforçando-se por alimentá-lo de uma maneira bastante perigosa, com uma tigela e uma colher. Foi deste
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modo que" Consolação escapou à fome durante a travessia do Oceano Pacífico, com os esforços combinados de Andrew e da empregada de bordo, afortunadamente deveras carinhosa e que se afeiçoou ao pequeno ser, sorridente e obstinado.
A criança triunfou e desembarcou em Xangai, risonha, vigorosa e sem aparentar ter efectuado um percurso de milhares de milhas, ainda com seis meses incompletos. Era exactamente o bebé de que Carie necessitava, uma criança roliça e engraçada, plena de bom-humor e de pequeninas exigências. Wang Amah, prevenida da chegada, viera à costa esperá-los. Carie, mal pisou o cais, descobriu o seu rosto radioso, com o lábio inferior pendente. A boa e idosa criatura bronzeada precipitou-se para Edwin e apertou-o ao coração, revoltando com este gesto a masculinidade incipiente do garoto. Em seguida, tomou nos braços a pequenita, loira e gorducha e, relembrando as duas crianças mortas, agarrou-se a esta num pranto misturado de riso. Carie quis pegar em Consolação e ser ela própria a transportá-la no richó até ao hotel, mas Wang Amah recusou-se a entregar-lha. Quanto a Consolação, aceitou este novo afecto como um preito. Fitou, por um instante, a serva e acabou por adoptá-la.
Demoraram-se apenas um dia na costa, porquanto, já no fim do Outono, o tempo estava fresco; além disto, Andrew mostrava-se ansioso por recomeçar o mais depressa possível as suas viagens pelo país. Não obstante, Carie dispôs de uma hora para se dirigir ao terreno cercado onde seus três filhos repousavam. Plantou nele uma roseira que trouxera da entrada de sua casa na América. Arrancara-a na própria manhã da partida, envolvera-a cuidadosamente em terra e musgo colocados dentro de um pedaço de serapilheira e durante a travessia humedecera-a com frequência. - Estas criancinhas nunca viram a América, a sua pátria!-dizia tristemente a Edwin que a ajudava a plantar a roseira. - Nasceram e morreram em solo estrangeiro. Consola-me a ideia de que terão alguma
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coisa do meu país e da minha pátria a fazer-lhe um belo abrigo.
Uma enorme palmeira se erguia acima das campas e foi à sua sombra que a roseira americana cresceu e floriu.
Voltaram a embarcar, primeiro a bordo de um barco a vapor que subiu o rio Yangtsé e depois passaram para um junco que seguia pelo grande canal até à antiga morada de Tsingkianpu.
A casa e o pátio evocavam horríveis recordações a Carie, que não podia suportar a vista do terrível esgoto causador da morte de Arthur. Encheu-o de terra e cobriu-o com um maciço de flores. Acabou por se recusar a pensar no passado. Esse novo pequenino ser, alegre e absorvente, necessitava dela e, além do mais, urgia que ministrasse instruções a Edwin. Esperavam também uma família americana que deveria ir residir perto deles. Então, Edwin teria um pequeno camarada de jogos e ela, uma boa e gentil compatriota como amiga. Mas, acima de tudo, havia aquelas multidões sombrias que a reclamavam; o próprio silêncio da miséria em que viviam a chamara. Da primeira vez, viera por amor de Deus; desta fizera-o por amor daquelas pobres criaturas.
Posso agora principiar a descrever uma parte dos factos pelo que eu própria presenciei, pois travei então conhecimento com essa americana. As primeiras recordações que dela conservo remontam à data em que vivia em Tsingkianpu. São recordações muito ténues, imagens que se vão aclarando lentamente. Duvidaria da sua realidade se não estivessem vincadas com tanta veemência no meu espírito.
Revejo uma manhã de Primavera, no pátio, onde floriam roseiras em grinalda sobre as paredes de tijolos cinzentos, contrastando vivamente com um rebordo de relva verde. Agarro-me à mão de Edwin e caminho com hesitação sobre as lajes de pedra do velho pátio. A nossa frente, ergue-se o enorme portão, sempre cerrado à circulação do mundo exterior. Entre o solo
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e este portão existe um intervalo de quinze centímetros, por onde se vê desfilar uma procissão ininterrupta de pés - pés descalços ou calçados em sandálias de palha ou sapatos de veludo. Para mim( representam a vida desconhecida do exterior. Paro e, muito devagarinho, por ser um pouco gorducha, estendo-me no chão e espreito por baixo dos enormes batentes. Apesar dos meus esforços nada mais vislumbro que fatos largos que param por altura dos joelhos ou descem até aos pés e pernas morenas e nuas, nas quais os músculos sobressaem como cordas. Sem nada compreender de tudo aquilo, levanto-me e sacudo a poeira que me sujou.
É neste momento que ela aparece, ela em cuja volta o nosso pequeno mundo interior se concentra. Traz um vestido branco com machos, que varre a relva quando anda, e um velho chapéu de palha de abas grandes, apertado sobre as madeixas onduladas e castanhas por uma fita vermelha. Segura na mão uma tesoura de jardineiro com que corta rosas, ainda húmidas de orvalho, até fazer um grande ramo.
Admira, extasiada, uma magnífica rosa, que segura com o braço esticado e me parece do tamanho de um prato. Depois, aspira-a delicadamente. Fico tão impressionada com a sua expressão que pretendo imitá-la. Estende-me a flor e, sem a menor precaução, encosto-a ao rosto. É maior e está muito mais húmida do que eu pensara. Afasto-a, espirrando com as faces molhadas e a respiração retida, tendo a sensação de haver contactado com um charco gelado.
Durante um longo Estio raras vezes me parece ter visto Carie. Repousava, de dia e de noite, na cama, encarquilhada, pequena e magra, com olhos enormes. Wang Amah leva-me todas as manhãs e todas as noites até ela. Começa sempre por enfiar-me um vestido branco e limpo e por fazer-me o comprido caracol loiro em forma de túnel, no alto da cabeça. Enrola-o em volta do dedo escuro, deitando a língua de fora enquanto se acha embrenhada na sua tarefa. Quando a recolhe, sei que já terminou e posso mexer-me. Wang Amah parece-me a personagem mais importante da casa, nessa
época. Dá-me banho, dá-me de comer, canta-me árias chinesas, enche-me o espírito de pequenas poesias, ralha-me e invoca o céu quando me mostro independente. Duas vezes por dia prepara-me para a entrevista ritual com a dama branca que está no outro quarto.
Muito tempo depois, quando a própria Carie me falou desses tempos, soube que ela fora uma vez mais vítima desses germes de desinteria tão temidos e que se vira forçada a estar de cama durante três longos meses de Verão escaldante. Tivera então de confiar os filhos a Wang Amah. Edwin era já um rapaz crescido, mas Consolação contava apenas dois anos, e esta ideia preocupava Carie. Por esse motivo a criada lha levava duas vezes por dia, fresca e bem disposta, com os cabelos bem penteados.
Naquela época, na cidade não havia médico. No entanto, uma inglesa amiga de Carie, uma das numerosas pessoas a quem esta fizera bem, e formada em Medicina, pediu autorização no emprego e cuidou de Carie durante todo o Verão. Salvou-lhe a vida, pois esta achava-se grávida uma vez mais.
Após os grandes calores de Setembro, numa manhã em que soprava brisa fresca, Carie deu à luz um outro filho, um rapagão de cabelos negros e olhos azuis a que chamou Clyde. Enquanto admirava a bela criança, Carie espantava-se de que tivesse nascido tão forte e vigorosa dum corpo tão consumido como o seu. A estação menos quente permitiu a cura de Carie, de novo, a sua soberba saúde triunfou.
Esses anos constituíram, na verdade, uma época feliz da vida de Carie. Gradualmente, recomeçou a sua assistência, reabriu a clínica para as mães e crianças, retomou as aulas de leitura e recebeu inúmeras mulheres que vinham implorar-lhe auxílio. Porém, tal actividade não a afastava dos filhos. Instalara a clínica na varanda do porteiro e ensinava a ler numa sala da casa, cuja janela lhe permitia vigiar os seus garotos, que brincavam no pátio. Só durante a tarde se entregava a esses afazeres. Dedicava as manhãs ao ensino de Edwin, que
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se tornara um rapazinho deveras adiantado para a idade, e Consolação, sem que ela esperasse, manifestou o desejo de aprender a ler. As três crianças cresciam a olhos vistos; eram robustas e inteligentes e adoravam a música e as cores. Carie via-se na obrigação de improvisar entretimentos para ocupar-lhes o tempo e proporcionar-lhes um ambiente americano. Inquietava-se em especial quando via que Edwin terminava com prontidão os seus estudos diários, pois desgostava-a sabê-lo, nas horas de ócio, a vaguear pelas ruas. Desesperava-a não poder educá-los numa atmosfera de acordo com o código de vida do seu país e receava, apesar dos seus esforços, que a fatal indolência do Oriente penetrasse nas almas de seus filhos, suprimindo-lhes o natural vigor.
Esse assunto constituiu o seu único desentendimento com Wang Amah. Pretendendo que Edwin tivesse uma qualquer ocupação física, Carie encarregou-o de transportar diariamente os toros de lenha que alimentavam o fogão e as braseiras, assim como de arrumar o seu próprio quarto. Ora tais incumbências surgiram aos olhos da criada como um sacrilégio. O filho mais velho obrigado a fazer o trabalho de um servo! Era inconcebível! Enquanto a família almoçava, Wang Amah penetrava clandestinamente no quarto de Edwin e ordenava-o com rapidez de forma que, quando o rapaz af vcltava, encontrara tudo limpo e reluzente. Resolveu, pois, guardar a esse respeito um silêncio discreto até que um dia Carie a descobriu entretida no seu furtivo mas afectuoso serviço. Carie possuía um carácter vivo e por vezes uma língua mordaz. Nessa época dominava já magistralmente o dialecto chinês, e, como não pudesse suportar qualquer interferência no que respeitava à educação dos filhos, as palavras que dirigiu a Wang Amah não primaram, de modo algum, pela moderação. A bondosa velhota respondeu com doçura, em ar de desculpa:
- Entre nós é uma vergonha obrigar a trabalhar o filho mais velho. Estaria certo se se tratasse de uma rapariga, mas Edwin é um rapaz.
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Indignada, Carie retorquiu:
- Sim, é verdade! Por isso, os vossos homens crescem na preguiça e tornam-se monstros como aquele de quem te libertei.
A observação era justa e Wang Amah retirou-se com humildade, abatida. Pouco depois, Carie, que depressa se arrependia da sua exaltação, procurou explicar-lhe que na América se dedicava a mesma consideração, tanto aos rapazes como às raparigas e que é necessário ensinar as crianças a trabalhar a fim de que se tornem úteis no futuro. Todavia, esse sistema social achava-se para além da compreensão da velha chinesa; mas, desde então, deixou de protestar.
Carie esforçava-se por formar o carácter de Edwin. Este era por natureza altivo e os criados tratavam-no com uma deferência exagerada. A mãe dificilmente podia contrabalançar tal situação e Andrew, quase sempre ausente, não tinha paciência, durante as suas breves estadias no lar, para se ocupar do carácter do filho.
Guardo ainda como recordação um jornalzinho que Edwin redigia semanalmente sob a orientação da mãe. Era um folheto ilustrado com um junco que navegava inclinado, de velas desfraldadas. O rapaz acabou por arranjar um certo número de subscritores, que se sentiam satisfeitos por animá-lo; dessa maneira, conseguia juntar algum dinheiro com que adquiria guloseimas chinesas, frituras, rebuçados de sésamo e bolinhos de vendedores ambulantes.
Carie ensinou Edwin a cantar e a tocar violino, embora não deixasse de ser uma crítica severa quando ele esboçou os seus primeiros poemas épicos e romances. Usava, no entanto, de uma severidade simpática, sem nunca o encorajar no campo da literatura. A religião havia-a ensinado a considerar os romances como sendo coisa perniciosa, assim como a dança e o jogo de cartas. Contudo, Carie saboreava o livro de Dickens The Pickick Papers que a fazia rir com vontade. Não tardava a arrepender-se de se ter divertido. Isto representava uma prova da dualidade do seu carácter.
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Resolveu que, em sua casa, apenas entrariam livros considerados clássicos, o que contribuiu para formar, muito cedo, o gosto literário dos filhos. Aos sete anos, Edwin mergulhava nos escritos de Dickens, Thackeray e Scott. As outras crianças imitavam-no e, havendo provado essa literatura sólida, jamais apreciaram os autores medíocres cujas obras lhes pareceram, mais tarde, insípidas e vazias.
Apesar de ter sido pai de sete filhos, Andrew nunca aprendeu a pegar numa criança ao colo nem a vestir-lhe um casaco. Nascera profeta, um santo colocado à margem da vida corrente dos humanos. Mesmo em casa, conservava uma atitude distante. Jamais um dos seus filhos se lembrava de pedir-lhe ajuda para atar os cordões dos sapatos ou abotoar um bibe. Por vezes, Carie recordava com ar risonho:
- Quando eu estava doente, Andrew via-se obrigado a ajudar Wang Amah a vestir os filhos. Trazia-mos depois abotoados de trás para diante! Ficavam com um aspecto bizarro e era cómico não se perceber se iam a entrar ou sair...
Muitas vezes, compararam Andrew a São Paulo. Lembrava o apóstolo: era um homem religioso por natureza, empreendedor, corajoso sob muitos aspectos, fiel ao dever, tal como o concebia e, para tudo o mais, completamente cego. Mostrava-se reservado para com os filhos, a quem surgia como um ser brtímoso e estranho ao seu mundo infantil. Quando se apercebia de que eles existiam, procurava principalmente torná-los exemplares, mas por falta de compreensão nunca conseguiu mostrar-lhes a virtude sob um aspecto atraente. As crianças preferiam a impetuosidade da mãe, o seu enervamento e rápido enternecimento, à perfeição fria do pai.
Carie nunca duvidou da importância da missão de Andrew. Insurgia-se algumas vezes contra as duras consequências que sofria, mas confessava que o misticismo do marido ultrapassava o seu entendimento e aconselhava-nos a segui-lo... embora um pouco
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afastados. Nessa época, começámos todos a sentir pesar sobre nós aquilo a que chamávamos "O Novo Testamento do Pai". Com o seu justo sentido de crítica literária, Andrew lamentava existir uma única edição da Bíblia em língua chinesa. Havia alguns anos que se impusera traduzir directamente do grego para chinês o Novo Testamento. Excelente erudito no que se referia a línguas mortas, lia diariamente o Evangelho em hebraico e grego, nas suas meditações pessoais. Lembro-me do exemplar de bolso, de lombada dourada e gasta, que sempre trazia consigo. Conforme iam decorrendo os anos, as páginas manuscritas, cobertas de longos traços de escrita chinesa, um pouco angulosa, empilhavam-se sobre a secretária de Andrew e o velho sábio chinês, que ele consultava habitualmente para esclarecimento de certas frases de sentido complexo, tornou-se visita assídua de nossa casa.
Quando terminou o seu trabalho foi necessário publicá-lo e não dispunha de dinheiro para o fazer. Não podíamos economizar mais, de um salário tão escasso, e Carie discutiu o assunto com o marido, defendendo os filhos enquanto ele apenas sonhava com a sua obra.
- Não vejo meio de gastar menos com as roupas das crianças - objectava ela. - Viro-as, remendo-as, refaço-as e, quanto à alimentação, não ouso reduzi-la.
Desesperado, Andrew murmurava:
- Bem sei!
Em certa ocasião, no decurso de uma dessas trocas de palavras, Carie, fitando-o, compreendeu a que ponto esse sonho dominava o marido. Foi ela que acabou por ceder.
- Arranjar-nos-emos como pudermos. Porei de parte todos os meses cinco dólares e teremos de nos governar com o que restar. Ao mesmo tempo, tentarei economizar alguns cêntimos em tudo quanto for possível.
Andrew sentiu-se novamente feliz. Entretanto, esse Novo Testamento passou a ser considerado pelas crianças como um poço no qual mergulhavam todos os brinquedos desejados. Perguntavam inquietas:
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- Mãezinha, poderemos comprar qualquer coisa que desejamos quando o pai terminar o seu Novo Testamento?
A mãe mostrava uma expressão irritada e replicava com firmeza:
- Sim! Cada um de nós comprará aquilo que melhor lhe aprouver!
Esse momento nunca chegou, porquanto Carie faleceu antes que Andrew editasse definitivamente o seu Novo Testamento. Imprimia uma edição após outra, revia-a, corrigia-a incessantemente na ânsia de obter uma obra perfeita. Esse Novo Testamento arruinou Carie durante toda a sua vida; no entanto, não permitiu que destruísse a margem que separa a miséria de uma pobreza confortável. Obrigou os filhos a respeitarem o sonho do pai, embora algumas vezes se revoltasse quase abertamente.
As crianças não podiam deixar de notar a diferença existente entre os pais. Consolação mostrou-se um dia muito intrigada com três sinais vermelhos gravados na testa do pai enquanto almoçava. Durante a tarde, desapareciam; todavia, à hora da refeição tornavam a aparecer. Reunindo toda a sua coragem, um dia aventurou:
- Por que tem o pai, às vezes, três marcas vermelhas na testa?
Carie respondeu a meia-voz:
- São a marca dos dedos, quando apoia a testa sobre as mãos para rezar. O vosso pai reza, durante uma hora, todas as manhãs.
Tal santidade inspirava respeito. As crianças procuravam, em vão, sinais idênticos no rosto da mãe. Uma delas perguntou-lhe:
- Por que razão tu não rezas, também? Não sem certa rispidez, Carie justificou-se:
- Quem vos poderia vestiri alimentar e ensinar a trabalhar além de arranjar a casa? Tem de haver quem trabalhe e quem reze!
Emergindo do seu meditar habitual, Andrew, que surpreendera este diálogo, observou com suavidade:
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- Se consagrasses mais algum tempo às tuas orações, talvez o trabalho te corresse melhor!
Com obstinação, Carie retorquiu:
- O tempo escasseia e o Senhor deve compreender que uma mãe com filhos pequenos é forçada a abreviar as suas orações.
Na realidade Carie era incapaz de meditar durante muito tempo. Acabou por resumir a sua religião em duas palavras: confiança e obediência. Se, efectivamente, Deus existia, tornava-se necessário confiar-se-Lhe. Creio que era nesse contraste entre a dúvida do seu espírito, a incerteza da sua crença teórica e as reacções rápidas da sua generosa natureza que ela se mostrava essencialmente americana.
Um dia, desencorajada por um período em que Edwin se revelara bastante enervado e irrequieto, Carie pediu ao marido que levasse o filho consigo numa das suas digressões missionárias. Só então o rapaz se aproximou do pai, por alguns dias. Viajaram através da região, de junco, e também cavalgando muares. Essas horas de camaradagem forçada, comendo em comum e conversando sós ao cair da noite, permitiram a Edwin compreender a verdadeira razão da actividade do pai e pela primeira vez, embora vagamente, assimilar essa paixão pela salvação das almas que lhe pareceu ser uma coisa meritória.
A dupla influência do pai - com o seu amor pelas almas humanas - e da mãe - que lhes transmitia um animoso interesse pela vida - fez com que Edwin se desgostasse de qualquer trabalho que se limitasse a um simples ganha-pão.
O cepticismo natural da mãe - que ela, num esforço de vontade, tentava abafar - renasceu nele com tal firmeza que não conseguia decidir-se a voltar às Missões. Porém, simultaneamente, uma outra faceta do carácter materno levou-o, durante toda a vida, a interessar-se pela humanidade e a responder com prontidão aos seus apelos.
Certo dia Andrew, tomando uma das suas súbitas decisões, declarou a Carie que teria de ir mais longe,
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penetrar no interior da região e pregar o Evangelho aos povos isolados: "Ouvira a chamada do Senhor",
Carie escutou-o abismada. Aquela casa tornara-se o seu lar. Possuía aí o seu jardinzinho e espaço onde as crianças podiam brincar e crescer saudàvelmente. A cidade sombria rodeava-a por todo o lado, mas ela soubera criar um oásis, um cantinho do seu país. Além dessas raízes, haviam brotado outras não menos fortes: contraía amizades - algumas chinesas atraídas pela sua simpatia e compreensão das misérias que as afligiam, ou pela sua cordealidade que lhes permitia percorrer a casa, admirar a magia do fogão moderno, da máquina de costura, do órgão de sala e todas as maravilhas de um país estrangeiro. Carie aprendera a amar essas mulheres porque facilmente esquecia as diferenças de raça e de classe. Além disso, aguardava a chegada de duas famílias de raça branca e Carie regozijava-se com a ideia de poder vir a ter amigas iguais a si própria. Todos esses elos que a prendiam ao lar apenas aumentavam a agitação de Andrew. Considerava que havia demasiados servidores de Deus numa só região e sentia necessidade de levar a Palavra Divina a locais mais distantes.
Carie protestou, suplicou, encolerizou-se, chegando ao ponto de chorar; mas, de súbito, capitulou. Capacitou-se de que nada é mais flexível do que um servidor de Deus que julga ter ouvido o apelo do Senhor. Num silêncio de morte, emalou quanto possuía e arrancou as raízes das suas roseiras. Por seu turno, Wang Amah enrolou as suas coisas num colchão e num grande lenço azul. Estavam prontas a segui-lo.
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Andrew escolhera como nova base de acção uma pequena cidade do norte. Os habitantes mostraram-se hostis para os estrangeiros e não quiseram alugar-lhes casa. Viram-se forçados a instalar-se na estalagem local.
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Ocuparam três quartos miseráveis, de paredes de terra batida, chão de argila e tecto de colmo. Tinham apenas essas paredes a separá-los da multidão grosseira que se apinhava num ambiente de sórdida sujidade.
Carie plantou as suas inseparáveis roseiras em vasos de barro e uma vez mais esforçou-se por criar um lar que lhes recordasse o seu país, mas perdera a habitual energia. Andrew parecia revigorar nesse meio por ele desconhecido, mas Carie sofria com a mudança, com as paredes deterioradas, com a ausência de jardim e com a doença que rondava a casa, no meio de uma indescritível imundície, sem falar na pressentida hostilidade que os envolvia. De novo, a ideia dos três filhos mortos a obcecava. As suas vidas ceifadas tão cedo pareciam-lhe nessa altura haverem constituído outros tantos sacrifícios humanos oferecidos a Andrew e ao seu Deus. Velava ciosamente pela vida das crianças que lhe restavam. Três vítimas bastavam.
Andrew entusiasmava-se com as possibilidades de acção missionária que se lhe ofereciam, apesar das afrontas sofridas. Era a época da guerra com o Japão e, nesses distritos afastados, os estrangeiros passavam por japoneses. Após uma ausência de muitas semanas, Andrew regressou, certa manhã, e entrou subitamente em casa no momento em que sua mulher e as crianças almoçavam. Trazia apenas no corpo as roupas de baixo, vinha descalço e sangrava de diversos ferimentos, nos ombros e nas costas. Haviam-no despojado de tudo quanto levara consigo, a mula, os livros e até as próprias provisões para a viagem. Um bando de soldados errantes, que persistira em julgá-lo japonês, não obstante os seus protestos, tinha-o atacado. Todavia, Andrew media quase dois metros de altura, possuía olhos azuis e barba ruiva.
Durante o Inverno, a casa de argila e tecto de colmo tornou-se tão húmida e insalubre que o garoto Clyde contraiu um resfriado que degenerou em pneumonia. Como de costume, Andrew achava-se ausente e não havia médicos, a muitos quilómetros em redor, pelo que Carie se viu de novo assolada pelo terror da morte.
10 - O Exílio
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Cobriu um canto do quarto com roupas de lã, de forma a evitar a menor corrente de ar e, durante dez dias intermináveis, velou a criança na companhia de Wang Amah. Por fim, o rapazinho restabeleceu-se. Carie apertou-o contra o peito e ciosamente jurou a si própria, em nome do Deus de Andrew - desse mesmo Deus que não se interessava por ela e pelos seus - que não Lhe sacrificaria nenhum outro filho.
Começou com uma expressão severa a emalar as suas coisas, preparando-se para deixar aquele local. Havia muito que chovia sem interrupção e a água penetrava em casa, enlameando o chão e banhando os pés dos móveis. Para poderem caminhar sem se molharem tinham feito passadeiras de tábuas e tijolos, e o pequeno órgão erguia-se sobre um estrado, a salvo da água. Quando tudo se achava pronto para a partida, Carie aguardou o regresso do marido. Ao vê-lo chegar, certa manhã, no começo da Primavera, apressou-se a pôr o xaile e o chapéu.
Quando Andrew entrou, admirou-se de a ver assim trajada, rodeada de todos os seus móveis e objectos já preparados para uma mudança. Dessa vez, Carie não lhe concedeu tempo para pronunciar uma só palavra. Impôs-lhe silêncio e ele leu-lhe, nos olhos cintilantes, um vestígio de cólera.
- Podes rezar, se te aprouver, desde Pequim a Cantão- declarou numa voz seca e impressionante -desde o Pólo Norte ao Pólo Sul, mas jamais os meus filhos e eu te seguiremos. Levo-os comigo para Chinkiang. Se a casa da colina estiver desabitada, ocupá-la-emos, pois poderemos encontrar aí um pouco de paz e de ar puro. De contrário, regressarei à pátria. Já perdi três dos meus filhos e não tenho mais para oferecer a Deus.
Escandalizado, Andrew não descobriu palavras para dissuadi-la da sua decisão. De resto, ela já franqueara a cancela da cerca, levando Edwin consigo, enquanto Wang Amah, com Clyde ao colo, dava a mão a Consolação. Andrew não teve outra alternativa senão segui-la. Alugaram um junco nas margens do canal e voltaram para o Sul. Durante as três semanas da viagem, Carie
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manteve-se obstinadamente calada. Por feliz acaso, a casa de Chinkiang estava desocupada e puderam instalar-se nela em seguida. Nos vinte e sete anos que se sucederam, ninguém conseguiu arrastá-la para outro local.
Contudo, a mudança de residência não libertou Carie da sua principal preocupação no que se referia a Edwin. Embora se houvessem instalado tranquilamente na colina, o pequeno, privado de companheiros da mesma idade e raça, dava indícios de enervamento. Amadurecera com demasiada rapidez e; aos quinze anos, terminara a sua preparação escolar. Carie compreendeu que teria de o enviar, sozinho, para a América. Com amargura, decidiu-se a esse novo sacrifício e Edwin partiu para a pátria na companhia de pessoas amigas.
Carie escreveu então longas recomendações a seu irmão Cornelius, confiando-lhe o filho, rogando-lhe que o acolhesse na família durante os períodos de férias.
Quando se inteirou de que Edwin fumava, ficou consternada com o receio de que houvesse adquirido outros costumes que considerava imorais. Cornelius endereçava-lhes relatórios excelentes sobre a conduta do rapaz. Carie lia-os com orgulho e comentava com certa circunspecção: "Parece um pouco preguiçoso!".
Regozijou-se por verificar que a vida activa americana corrigia a indolência sonhadora que a atmosfera do Oriente incute ao carácter dos seus habitantes. Sabia que essa vida nova era salutar para Edwin, mas a casa sem ele parecia-lhe vazia.
Carie não permaneceu muito tempo na colina. O proprietário da casa voltou com a família para passar ali as férias e tornou-se imperiosa nova mudança. Andrew descobriu uma casinha, no extremo da vila, sendo assim fácil para Carie levar diariamente as crianças a tomarem o ar puro da colina.
Essa habitação situava-se ao lado do cais concedido aos ingleses pelo tratado que ultimara a Guerra do ópio, e o local estava repleto de casas mal afamadas. Carie
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constrangia-se ao passar com os filhos pela rua, em cujas portas abertas se viam, recostadas, mulheres seminuas, de várias raças. Ao mesmo tempo, regozijava-se por Edwin - agora distante - não poder assistir àquele espectáculo. Homens de raça branca, desembarcados de navios ancorados, estacionavam em volta dessas casas públicas, e Carie teria preferido que fossem chineses em vez de americanos, bêbados e lascivos, com a boca inundada de blasfémias. Entre eles viam-se rapazes quase da idade de seu filho, juntamente com velhos marinheiros que, ao cabo de tão longo exílio, já não possuíam qualquer lar sobre a terra.
Voltou, então, à sua antiga iniciativa de cozinhar e fazer bolos para os marítimos, que convidava a vir a sua casa, onde escutava os seus relatos e confissões, parecendo todos sair com o coração inundado de felicidade.
Clyde herdara o espírito corajoso da mãe e nunca vi Carie tão emocionada como no dia em que Andrew o sovou duramente por um pecadilho próprio da sua idade. A criança quase não chorou e principiou a cantar com animação: "Marchemos, soldados de Cristo!", de olhos marejados de lágrimas.
Esse garoto adorado, apenas com cinco anos, foi atacado por uma febre terrível e adoeceu gravemente. Além de um mestiço indiano que residia na vila, homem de maneiras bondosas e agradáveis, mas sem conhecimentos amplos de Medicina, não havia outro médico acessível, à excepção do facultativo inglês que vivia no porto, sempre em tal estado de embriaguez que ninguém podia avaliar a sua capacidade.
O indiano diagnosticou uma bronquite; desde o primeiro instante, Carie havia receado que se tratasse de difteria. Passou a vigiar o filho constantemente e enviou um chinês à procura de Andrew, que partira havia três dias para os lados de Chinkiang. A criança sufocava e tornava-se evidente que já nada a salvaria. Antes que o pai regressasse, Clyde morreu; e, uma vez mais, Carie viu-se com o cadáver de um ente querido nos
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braços. Andrew chegou apenas a tempo de o contemplar no caixão. No dia seguinte, durante o funeral, o vento soprou tempestuosamente e a chuva não cessou de cair. Carie, esgotada e doente, trazendo dentro de si uma nova vida, não pôde seguir o pequeno cortejo até ao cercado onde repousavam os mortos de raça branca. Quanta tristeza infinita incutiam esses rectângulos de terra espalhados pelas vilas chinesas, onde os estrangeiros iam abrindo pelas próprias mãos o seu derradeiro abrigo! Rodeavam-nos de muros brancos, altos e encimados por ferros aguçados, como se desejassem proteger-se das enormes multidões em seu redor.
Lembro-me que no dia da morte de Clyde, Carie ficou de pé, junto à janela, seguindo a diminuta procissão que se estendia ao longo do pátio. As suas lágrimas caíram na minha alma simples. Deslizei até ela, enquanto lá fora a chuva tombava continuamente. Carie chorou, dessa vez sem cólera nem paixão, como se não lhe restasse já a mais pequena esperança. Quisera sepultar todos os filhos na cidade internacional de Xangai, mas agora não tivera coragem de separar-se de Clyde. Já que a mãe deveria viver naquele rincão distante, o filho morto far-lhe-ia companhia.
No dia seguinte ao do funeral, Consolação adoeceu também. De novo aterrorizada, Carie notou-lhe os mesmos sintomas da enfermidade que vitimara Clyde. Não podendo suportar a presença do médico indiano, saiu, ao vento e à chuva, em busca do inglês bêbado do porto. Encontrou-o num bordel, tendo ao colo uma chinesa que ria às gargalhadas. Carie agarrou-o por um ombro a fim de o fazer voltar à realidade.
- Minha filha está a morrer - declarou simplesmente. - Tem difteria. Quer vir vê-la?
Um vago vislumbre do dever, há muito olvidado, pareceu percorrer os olhos do médico, injectados de sangue. Erguendo-se sem proferir palavra e, cambaleando, seguiu Carie, enquanto lhe comunicava:
- Possuo uma droga recente... Provou bem em diver-
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sos casos de difteria... Descobri-a em Xangai. Poderíamos experimentá-la...
Gradualmente, Carie foi descobrindo que, nos seus momentos lúcidos, ele era um médico de regular competência e trouxera, na realidade, de Xangai, no dia anterior, certa quantidade da nova antitoxina. Ela não se atreveu a largá-lo um só instante com medo de que caísse em prostração e ordenou aos cules que se encaminhassem para o local onde morava o médico. Chegados aí, seguiu-o até dentro de casa, ergueu-o quando o viu sentar-se cabeceando e revolveu o laboratório em busca das ampolas que ele procurava à toa. Quando as achou, agarrou na agulha hipodérmica e arrastou-o até casa para junto da criança doente.
Chegado aí, o homem recompôs-se subitamente, tornando-se ajuizado; e, com mãos firmes, ministrou o remédio. No dia seguinte, Consolação estava melhor. Com mais duas doses, ficou fora de perigo. Carie, depois de passada a crise, achou-se esgotada e sem ninguém que cuidasse da criança convalescente. Andrew, que ficara em casa até o perigo passar, considerou que podia voltar a viajar e a cuidar da sua obra; aliás, ainda que tivesse ficado, de nada poderia servir, porquanto Consolação não queria saber do pai.
Nesse momento, apareceu uma daquelas amigas de que Carie sempre parecia dispor, para quem já fora útil e boa. Agora, era uma rapariga inglesa, ignorante e feliz, que viera como governanta para casa da família de um empregado da alfândega e que se vira envolvida num dos inúmeros casos sórdidos da vida do porto. Correra a pedir socorro a Carie quando tivera de sair da casa onde trabalhava.
Carie abrigou-a, ajudou-a a compreender a sua própria loucura e a desprezar o homem que a cobrira de vergonha, e conseguiu arranjar-lhe uma passagem de regresso a Inglaterra. Mas a rapariga adiou a viagem para cuidar de Consolação, o que não constituía tarefa fácil porque a pequenita, durante toda a convalescença, chorava pela mãe e exibia em toda a plenitude a sua reserva de teimosia e de mau génio. Carie
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mostrou-se afectuosamente grata por esse auxílio e, com o decorrer do tempo, a amizade das duas mulheres confirmou-se cada vez mais e continuou ainda quando Consolação já era mulher feita.
Segundo parecia, Carie nunca mais se fortaleceria nem tornaria a recuperar a antiga alegria. Durante o Inverno, manteve-se inactiva e ainda tiritava de frio por ocasião das húmidas neblinas que subiam do rio no início da Primavera. A casa ficara sombria e triste com uma única criança e Edwin vivia agora muito longe, absorvido pela própria vida. O pensamento no filho que ia nascer não bastava para animá-la, porque lhe parecia inútil, frívolo, dar à luz filhos que depressa morreriam - terrível, desolador desperdício de vidas.
Voltou-lhe o antigo e mórbido receio de que deveria existir algum pecado na sua vida por via do qual perdera os filhos - e tal pecado devia ser a sua rebelião íntima. Não abandonara a antiga e ansiosa procura de Deus e não se contentara com simples serviços materiais prestados às criaturas? Jamais, na verdade, procurara sacrificar-se para descobrir Deus. E agora parecia que Deus queria vergá-la, uma vez mais, até que se Lhe submetesse. Carie iniciou a sua luta para submeter-se a Deus, com medo de ser novamente punida, pois enquanto possuísse um filho vivo, Deus tinha meio de a castigar.
Começou a dedicar mais tempo às suas tentativas para orar e tentou reavivar o velho desejo de que Deus lhe mandasse um sinal de que a ouvia. Lia livros de devoção e procurou seguir certas regras, pregando e lendo a Bíblia. O seu espírito impaciente e prático ultrapassava sempre os frios textos sagrados e, sempre que lia, fazia comentários sobre coisas muito diversas.
Pensava numa espécie de desespero que só a beleza poderia cicatrizar a sua dor. A nunca esquecida beleza da neblina cobrindo os vales e o cimo das montanhas, os pequenos canteiros de flores que plantara nas diversas casas onde morara; a beleza da música e da poesia também lhe proporcionavam uma paz relativa. Mas Carie receava um pouco essa paz abençoada por Deus
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- não tinha muito a certeza de que aquilo não fosse uma ramificação da sua tendência para o prazer; velha tendência por cuja subjugação vinha lutando há tantos anos. O Deus no qual lhe tinham falado, durante todos os dias da sua existência, era um Deus austero e nela não havia austeridade nem tão-pouco a austeridade lhe poderia cicatrizar as feridas.
Quando em Maio lhe nasceu uma filha - uma pequenita de olhos azuis e cabelos loiros - Carie mal conseguiu dormir. Os dias sucediam-se e não dava mostras de convalescer do parto. Por fim, declarou-se-lhe uma febre intensa e tornou-se evidente que contraíra uma infecção no sangue. Secou-se-lhe o peito e ouviam-se, pela casa silenciosa, os gritos famintos da recém-nascida. Andrew e Wang Amah procuraram alimentá-la com uma mistura de leite, que a pequenita recusava com grandes gritos, apesar da fome. Durante esses dias, a mãe mal se apercebia do que se passava com a filha.
Foi então que Wang Amah previu angustiadamente a catástrofe que se aproximava. Via com o maior desagrado os caldos ralos e os mingaus de leite que o médico prescrevia à patroa. Mais tarde, Carie contou-me que, certa noite, sentira um estranho sabor a peixe na sopa do jantar. Era um pouco enjoativo, mas a doente supôs que tivessem posto a panela da sopa perto de um prato com peixe, o que não poderia fazer-lhe mal; e, como tinha fome, comeu a sopa toda. Depois sentiu um estranho estímulo. Dormiu logo a seguir num sono repousado, como já não fazia há muitos dias; pela manhã sentiu-se melhor e desde então começou a convalescer.
Semanas depois, quando Carie já estava de pé, Wang Amah contou-lhe que não pudera vê-la morrer, o que teria sucedido se continuasse a seguir as prescrições do médico branco. Por isso, preparara-lhe, às escondidas, um prato de caldo especial, feito com uma certa quantidade de peixe e de ervas, que os chineses usam para tratar a febre puerperal e substituíra-o pelo
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habitual prato de sopa. Fora esse caldo medicinal que Carie ingerira.
- Não posso dizer se foi aquilo que me salvou ou não - comentava ela. - Talvez a febre já estivesse a baixar. Mas, de qualquer modo, o caldo de Wang Amah não me fez mal. Aliás, ela sabe muitas coisas úteis; a natural sabedoria que a vida lhe ensinou.
Fosse como fosse, Carie estava curada e isso para nós era o essencial.
No Verão seguinte, o bangaló da montanha estava de novo vazio. A família que nele vivia voltara definitivamente para a América, de forma que Andrew e Carie puderam instalar-se aí, de vez. Para qualquer outra pessoa, isso teria representado uma precária alegria, pois tratava-se de uma pequena e velha casa de tijolos, cujo chão irregular estava cheio de centopeias e de escorpiões. Lembro-me de ver, quase todas as noites, como um rito vulgar durante o tempo quente, Andrew segurando uma lanterna pela mão e Carie com o braço ágil erguido, esmagando os insectos venenosos com o salto de um chinelo velho. As centopeias ocultavam-se nos lugares mais incríveis e, certa vez, Carie encontrou uma sob o travesseiro e Andrew descobriu outra, enorme, enroscada na esponja do banho. Porém, para Carie, o bangaló representava uma bênção e uma vitória. Tinha um calmo jardim com velhas árvores, e uma roseira trepava pela varanda. Quando se mudaram para lá, no mês de Maio, a trepadeira estava cheia de botões e de lindas rosas brancas desabrochadas, impregnadas de um perfume suave. Um casal de rolinhas fizera ninho nos seus ramos.
Havia ainda a pequenina Faith. Tornava-se necessário ministrar-lhe uma educação adequada à sua condição de jovem americana. Carie poderia viver agora de coração sereno, cercada pela beleza das colinas e dos vales, semelhantes a jardins onde os homens tisnados, ajudados pelas mulheres, trabalhavam nos campos de arroz. Para Carie, a beleza constituía uma espécie de oxigénio que lhe dava vida e energia. Ali a neblina subia do rio durante a madrugada e cobria os bambus
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de folhas farfalhantes e a erva alta prateada que escalava a encosta da colina. Nos vales, grandes charcos redondos luziam no meio dos campos, tendo nas margens salgueiros e pereiras. A Primavera era um espectáculo inigualável.
As cartas de Edwin contribuíam também para a sua tranquilidade, pois o filho sentia-se agora mais satisfeito do que nunca. A princípio, tivera desesperadas saudades e aquela terra nova, que lhe haviam ensinado a considerar como sua, parecera-lhe inteiramente estranha. Perante isso, Carie desanimara mas, todavia, pensara:
"Foi bom tê-lo mandado embora quando o pude fazer porque, mais tarde, nunca consentiria em voltar à pátria verdadeira".
A consciência de que agira bem em relação ao filho consolava-a e sentiu renascer o seu amor pela terra natal quando o filho começou a aclimatar-se e, por si próprio, a descobrir a América.
Quanto aos quatro que haviam morrido nunca estariam longe dela. Em Xangai, sempre que podia, visitava os três, e a pequena cerca de flores onde Clyde repousava estava bem perto, permitindo-lhe acercar-se-lhe com facilidade e sentar-se para meditar algum tempo junto à pequenina lousa.
Tornou a criar un? lar, mas, agora, com um novo sentido de permanência. Os seus compartimentos eram amplos, tinham grandes janelas que davam para o jardim, para o vale e para as colinas, e tornava-se uma doce tarefa preparar o ninho.
Recordo-me dessa nova casa, como de um recanto de felicidade no seu arranjo simples, no asseio, na beleza das flores; e o doce perfume das estrelas, feitas de fibras aromáticas, estendidas sobre o chão, ainda me vem às narinas. Ali cresceu Consolação e tornou-se uma mulher e aí também cresceu Faith, aprendendo a andar e a falar. Daquela casa, Andrew saía mais retemperado, mais fortalecido, para as longas excursões de catequese; também ali acorriam hóspedes, atraídos pelo refulgente empório da abundante hospitalidade de
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Carie. Muitos jovens casais de americanos, assustados pelos seus primeiros dias de Oriente, iniciavam a vida no nosso quarto de hóspedes. Missionários fatigados também ali descansavam. Criaturas errantes, peregrinos, dormiam ali - estranhos destroços da raça branca que por qualquer acaso haviam sido levados aos mares do Oriente, gente que mal parecia saber donde vinha e que certamente ignorava para onde ia - todos sem lar, famintos ou doentes, e que vinham através de caminhos desconhecidos bater à porta de Carie, eram recebidos, agasalhados e confortados.
O assunto das conversas que com eles tinha não estava decerto muito acima dum singelo sentido prático- eram apenas alegres palestras acerca de assuntos comuns, pois ela nunca fora boa pregadora. Se Carie desejava transmitir a alguém qualquer mensagem espiritual, preferia fazê-lo por intermédio da música, cantando alguns dos seus hinos favoritos.
Sabia dizer tudo através da música - ternamente, prodigamente, e escolhia para tal as horas calmas da noite, quando a casa estava silenciosa, cheia de cismas e de sonhos e nenhum outro trabalho lhe solicitava a atenção.
Uma vez chegou-nos a casa um estranho viajante que se demorou uma semana. Ninguém sabia quem era. Disse ser americano e, de facto, a sua pronúncia lembrava a de um comerciante ianque. Porém, a vida deixara-lhe tais cicatrizes, que mal poderia ser reconhecido como um ser humano. Sentava-se, comia vorazmente, escutava o que se dizia, mantendo-se geralmente em silêncio, porque a custo podia falar sem intercalar pragas e uma intuição secreta segredava-lhe que aquela não seria a maneira apropriada de conversar naquele local. Quando nos deixou, limpo, refeito, coberto dos pés à cabeça com roupas e uns sapatos de Andrew, hesitou antes de transpor a porta e, por fim, murmurou:
- Nunca teria pensado rever a América! E, contudo, voltei a vê-la aqui em sua casa, Ma'am!
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Mais ou menos nessa época, Carie recebeu aquela a quem chamava a sua filha chinesa. Uma mulher, uma viúva chinesa que ela socorrera certa vez numa terrível necessidade, morreu, deixando uma filhinha de dez anos, chamada Nuvem Preciosa. Quando a mulher faleceu, Carie estava a seu lado e recebeu-lhe as últimas palavras.
- Nunca ninguém se preocupou comigo a não ser a senhora. Meu pai nunca me quis bem porque, quando nasci, a casa já estava cheia de raparigas. Meu marido nunca me estimou. Desposou-me como segunda mulher para cuidar-lhe da casa, depois de lhe ter morrido a primeira esposa. Meu filho nunca me teve amor. Por que me estima a senhora, a mim, que não sou do seu sangue nem da sua raça?
Carie, obrigando-se a sorrir apesar da compaixão que sentia, respondeu com brandura:
- Sei apenas que o anseio do seu coração falou ao meu; além disso, todos nós somos filhos do mesmo Pai Celeste.
A mulher continuou:
- Nada tenho que possa deixar-lhe, a não ser minha filha. Leve-a e ensine-a a ser mulher como a senhora.
Carie tomou conta da pequenita e, durante anos, Nuvem Preciosa fez parte da casa e da família. Durante o ano lectivo frequentava uma escola cristã chinesa para que se educasse, pois Carie não queria desligar a pequena do próprio povo, porquanto não considerava nenhum isolamento maior do que esse. Trazia Nuvem Preciosa vestida com roupas chinesas, mas não consentiu que atrofiasse os pés. A princípio, a pequena sentia-se envergonhada por ter os pés tão grandes, visto que naquele tempo todas as pequenitas chinesas os atrofiavam. Carie fazia tudo quanto podia para trazê-la sempre calçada com bonitos sapatos que ela própria bordava primorosamente a fim de lhe mostrar que os pés de tamanho natural também podem ser bonitos.
Quando Nuvem Preciosa fez dezassete anos e acabou o curso escolar, Carie, seguindo as tradições da raça da
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pequena, casou-a com um jovem chinês de boa educação e cujo carácter conhecia. Procurou, contudo, saber primeiramente se a chinesinha aceitava de bom grado o casamento e para isso preparou em sua casa uma entrevista para o jovem par apesar de nesse tempo um tal encontro constituir uma quebra dos costumes. Nuvem Preciosa era uma bonita e meiga rapariga; o rapaz era simpático e inteligente, e gostaram um do outro. Carie estudou cuidadosamente o génio de ambos, sentindo-se decerto divertida com o novo papel de casamenteira e ficou convencida de que seriam felizes, como na realidade veio a suceder depois das bodas a que ela procurou dar todo o carácter tradicional chinês. Nuvem Preciosa tratava-a por mãe e, mais tarde, os seus filhos chamavam-lhe avó. O grande coração de Carie, sempre sedento de ternura, acolheu essas crianças como se fossem suas.
Teria criado outras ainda, se tivesse possuído meios para tal. Às vezes, havia ocasiões verdadeiramente trágicas. Um dia, um homem entrou na capela, enquanto Carie conversava com algumas mulheres amigas. Trazia nos braços uma criatura que depôs no chão de ladrilhos, ao pé de Carie.
- Aqui tem o meu filho - disse asperamente. - Pouco lhe resta senão morrer, mas se a senhora o receber talvez o salve. Sempre é um rapaz.
Carie contemplou a pobre criaturinha. Era um pequenito idiota, absolutamente incurável. E, por mais que o seu coração se comovesse, não podia ficar com ele. Abanou tristemente a cabeça e tentou convencer o homem da responsabilidade que tinha para com o filho. Ele, porém, não respondeu e, retomando nos braços o corpo comprido, pálido e inerte da criança, saiu. Nos últimos dias da sua vida, Carie, ao meditar nesse assunto, costumava dizer perturbada:
- Pergunto-me muitas vezes se não deveria ter recolhido aquele desgraçadinho. Talvez assim o tivesse poupado!
E, aos poucos, essa fase da vida de Carie, à medida que se tornava mais ocupada, apresentava-se também
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mais feliz, embora a antiga jovialidade que lhe animava os olhos se houvesse transformado numa plácida expressão de repouso. Vira, neste mundo, muita coisa que não podia compreender de forma que conseguira, mais ou menos, resignar-se, alhear-se da antiga busca ansiosa de Deus. As filhas vigiavam-na constantemente, procurando despontar-lhe um sorriso e a alegria da mãe era para elas a maior recompensa. Quando sorria, parecia irradiar luz e as crianças ficavam com a respiração suspensa à espera das palavras que se seguiriam. Possuía uma facilidade natural para rimar e muitas vezes entretinha-se a compor versos criticando com ingénua malícia os ridículos de uma ou de outra pessoa.
As crianças choravam de tanto rir, mas a extravagância desse espectáculo era penosa para Andrew. Erguia a mão em sinal de protesto e suplicava, a prin-' cípio com suavidade e depois em tom revoltado:
- Carie, Carie, por favor!
Não sei, todavia, que perverso divertimento se apoderava de Carie perante esses protestos, pois começava a improvisar mais brilhantemente do que antes com o rosto animado, terminando apenas quando o via realmente desesperado. Outras vezes, ao regressar a casa depois de ter encontrado uma pessoa de fala afectada, de modos ridículos e de frases pomposas, imitava-a maravilhosamente, para horror de Andrew e alegria das crianças, porque os filhos lhe haviam herdado o génio malicioso e o senso humorístico. Tinha um dom mímico inato e sabia imitar qualquer pessoa, até na sua mais ligeira expressão.
Nunca dava por findos esses divertimentos sem uma certa mágoa. Em geral, quando as filhas batiam palmas e davam gritos de alegria, parava, levemente perturbada, dizendo com súbita gravidade:
- Estou a ser muito feia por troçar do irmão Jones, um homem tão bondoso! Minhas filhas, nunca imitem a pateta da vossa mãe.
Era a velha luta entre a sua natureza jovial e a impressão que a religião puritana, aprendida na adolescência, lhe gravara na alma. Estava destinada a
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lutar eternamente consigo própria para se transformar no que chamava "mulher bondosa" e aproximar-se da mística relação com Deus que Andrew havia conseguido.
Essa mulher americana estava destinada a não gozar de paz durante muito tempo em todo o decurso da sua vida. Começara então, em 1900, na China, essa rebelião que se chamou guerra dos Boxers. Num íntimo esforço para manter a integridade da nação, a imperatriz tentou limpar o país de estrangeiros pelo método sumário de mandar matar todos quantos já lá viviam e não permitir a entrada a mais algum vindo de fora.
O édito real foi destruído secretamente em cada província e no Verão desse ano começaram a circular notícias assustadoras de que grupos de residentes brancos tinham sido assassinados. O coração de Carie preparou-se para defender as duas únicas filhas que lhe restavam. Aguardou com a mais viva ansiedade a atitude do vice-rei da província em que viviam.
O vice-rei de Kiangsu era um homem inteligente que não podia deixar de compreender a loucura do édito real. A imperatriz era uma mulher ignorante, de mentalidade estreita e provinciana. Contrariando-lhe os desejos, o vice-rei não acatou a ordem de matar os homens brancos residentes na sua jurisdição e assinou um pacto com os cônsules estrangeiros, segundo o qual não seriam enviados navios para as suas águas, comprometendo-se, por sua parte, a proteger a população branca.
Tratava-se de uma pausa, mas apenas parcial porque ninguém podia saber até que ponto lograria o vice-rei cumprir a promessa feita, ou se seria somente uma armadilha para conseguir mais facilmente exterminar os residentes brancos, indefesos. Andrew e Carie consultaram amiudadas vezes os seus chineses. Andrew confiava inteiramente em Deus e deixava-se estar sem agir. Carie recordava-se das quatro vezes em que a fé não lhe salvara os filhos, mas decidiu igualmente aguardar.
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Andrew combinou com um velho sacristão chinês, que possuía um junco, que mantivesse o barco sempre pronto num desembarcadouro do rio que se situava no extremo de uma das ruas. Carie planeou então um caminho secreto e rápido que os conduziria ao desembarcadouro. Ela, as crianças e Wang Amah estavam sempre prontas para deslizar, em qualquer altura, por entre os bambus das traseiras, a caminho do junco.
Noite e dia, durante todo esse Verão, estiveram sempre prontos, com um pequeno cesto de alimentos para a pequenita, um par de sapatos e uma muda de roupa para cada pessoa. Carie meteu também numa lata algumas coisas a que dava valor - uma pequena bandeja de prata que pertencera ao avô, um broche de ametistas encastoadas em prata, feito pelo pai, alguns livros que haviam pertencido à mãe - e com o auxílio do criado enterrou-a no chão da adega.
Estava portanto decidida a não permitir que a sombra do medo naqueles dias terríveis, afectasse as crianças. Não queria que nos seus espíritos juvenis ficasse a marca de um sentimento de horror àquela terra onde deveriam viver. Por isso, procurava tornar-lhes a infância tão alegre e feliz quanto seria na sua pátria. Brincava alegremente com elas, preenchendo-lhes as manhãs com jogos que inventava, enquanto se ocupava com os afazeres domésticos. Dispunha agora de mais tempo porque já não apareciam visitas. O povo receava os acontecimentos futuros e, uma vez que a imperatriz manifestava aversão pelos estrangeiros, não seria bom mostrarem-se junto de americanos.
Contudo, surgiam ainda alguns fiéis e Carie dava um extremo valor a esses poucos porque o que ela apreciava acima de tudo era a coragem. Despertava nela uma certa nobreza hereditária quando lhes dizia simplesmente que se deviam manter firmes na sua fé, se a hora das perseguições os atingisse, como muitos cristãos haviam feito antes. Ela própria fornecia o exemplo e a energia de pioneiro que lhe corria nas veias tornava-a calma, silenciosa e temerária.
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O cônsul americano, que residia na "Bund", tinha razão em recear uma traição e .ordenou a Andrew e à família que prestassem atençã.0 à bandeira do consulado, visível da varanda. Se o perigo fosse iminente faria disparar um tiro de canhão e a bandeira americana do consulado desceria três vezes seguidas. Seria esse o sinal. Deveriam abandonar imediatamente a casa do morro, encaminharem-se para a margem do rio e embarcarem num navio que os aguardaria. Todos os outros residentes brancos já aí se encontrariam.
O coração atormentado de Carie achou-se perante um dilema. O impulso do seu coração dizia-lhe que as filhas da sua carne e do seu sangue deviam ser postas imediatamente a salvo. Porém, o pequeno círculo de chineses, amigos e cristãos, estava tomado de verdadeiro pânico. Tinham sido separados espiritualmente do seu próprio povo e ignoravam agora o que lhes aconteceria. Carie ouviu novamente o antigo apelo à sua compaixão.
Ficou, contudo, combinado que quando fosse dado o sinal correria com as filhas e com Wang Amah para o navio, ao passo que Andrew se deixaria ficar na cidade para exortar o povo. Carie concordou com este plano, sentindo, creio eu, que no fundo Andrew era "melhor" do que ela, com frequência impetuosa e impaciente, mesmo quando desejava ser boa.
Aquelas semanas, passadas na possível presença da morte, exerceram sobre ela um efeito pacificador. Compreendeu que a sua antiga natureza estava ainda muito forte dentro de si, mau grado todos os sofrimentos passados e que a busca ansiosa de Deus ainda não terminara. Tornou-se muito humilde e silenciosa porque desejava poder indicar aos outros o Deus que ela não julgara suficientemente compreensivo para si própria.
Quando o sinal soou, numa húmida tarde de Agosto, reuniu as duas filhas e Wang Amah e, acompanhada de Andrew, caminharam pelas ruas escuras, tão rapidamente quanto lhes foi possível, em direcção ao navio. Assim que entrou a bordo, Carie voltou-se para ver Andrew de pé na praia. Naquele momento sentiu mais
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respeito do que nunca por esse vulto longínquo, alto, vestido de branco, que sobressaía da multidão de rostos morenos que o cercavam no desembarcadouro. Ignorava se o tornaria a ver.
Passaram-se oito meses, durante os quais Andrew permaneceu no seu posto e ela e as filhas viveram num quartinho de pensão, em Xangai. Dava aulas às pequenitas, com regularidade todas as manhãs e como divertimento levava-as a um pequeno parque à beira do rio Whangpoo. As crianças brincavam, respirando do melhor ar da cidade fechada, e a sua alegria consistia em verem passar os navios, os juncos e as sampanas, deslizando na água. Às vezes, um grande vapor saía majestosamente da doca, o que constituía um grande momento para todas elas. Carie puxava as filhas para junto de si e mostrava-lhes um navio que ia para a América, que ia para casa! Wang Amah e as duas pequenitas arregalavam os olhos. Nenhuma delas sabia o que era a América senão através de sonhos de uma beleza sem fim - róseas flores de macieira, desabrochando sob um céu azul, frescos cachos de uva de Outono, que podiam ser colhidos e comidos "tal e qual" sem serem lavados, cavalos para montar, prados onde disputar corridas, árvores-de-açúcar, grandes árvores que se douravam no Outono - tudo aquilo era a pátria! Nos dias em que os navios passavam, punham de lado os brinquedos, perguntando quando se iriam embora do quartinho estreito da pensão, e a mãe dava largas aos seus sonhos a respeito desse grande país que era a sua terra.
Passaram-se dez meses e a expedição enviada pelas nações ocidentais contra os chineses tornou possível e seguro o regresso de Carie ao bangaló do morro. Foi um dia feliz o do regresso. A casa e o jardim estavam intactos, embora a caixa de lata onde Carie guardara os seus tesouros tivesse desaparecido. Isso fora certamente obra do próprio criado, que a ajudara a enterrá-la na adega. Carie sentiu profunda indignação, mas terminou por dizer:
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- Coitado! Decerto pensou que alguém acabaria por levá-la e, nesse caso, por que não seria ele?
Odiava o roubo; no entanto, uma inata largueza de vistas levava-a a compreender essa aversão e, enquanto dava livre curso à sua irritação, ia descobrindo desculpas que a acalmavam. Lembro-me do que se passou com um ajudante chinês de Andrew que, no Inverno imediato ao seu regresso, veio receber o salário. Andrew não estava em casa e Carie declarou ao homem que ela própria lhe pagaria. Subiu ao quarto, onde conservava o mealheiro, agarrou em alguns dólares de prata e entregou-os ao homem. Nesse momento, uma das pequenas chamou-a e ela ausentou-se da sala por um instante. Quando voltou, o homem observou:
- Um dos dólares que a senhora me deu é falso. Quer trocá-lo, por favor?
Estendeu-lhe a moeda, evidentemente falsa. Rápida como o pensamento, Carie apertou-a na mão. O dólar estava quente e os que entregara ao homem estavam frios, pois eram guardados num compartimento frigidíssimo. Não havia dúvida que aquela moeda fora aquecida pelo corpo do homem.
- Está equivocado - redarguiu com serenidade. - Este dólar trouxe-o consigo.
Fitou-o e os olhos encheram-se-lhe de piedade.
- Meu amigo - acrescentou - por um simples dólar queria destruir a sua própria honestidade?
O homem baixou a vista, muito calado, e depois saiu. Carie sentiu-se magoada porque nunca esperara que esse ajudante praticasse tal acto.
Andei, contudo, depressa demais ao falar no Inverno antes de me referir ao Outono, pois esta quadra trouxera-nos mais uma provação. Todos os anos após o Verão uma praga de cólera varria a região e Carie vivia num terror constante, enquanto não passava, vigiando sempre com o maior cuidado a preparação dos alimentos e a esterilização da água. A cólera, naqueles tempos em que ainda se ignorava como combatê-la
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eficazmente, era uma peste de efeitos tão rápidos e tão mortais que quando alguém a contraía, morria antes de poder receber qualquer auxílio.
No Outono daquele ano, Wang Amah foi atacada subitamente, durante a noite, por um acesso de peste e deixou-se estar, sem chamar a patroa, por lhe custar interromper-lhe o sono.
Mas o som da respiração ofegante da criada e os seus gemidos abafados despertaram Carie, que tinha o sono leve e aprendera naquela terra de surpresas a dormir "com um olho aberto e o outro fechado", como ela própria dizia. Ergueu-se imediatamente e correu, descalça como estava, ao quarto de Wang Amah - fazia sempre o mesmo à noite por ser demasiado impetuosa para procurar as chinelas, embora constituísse um perigo num lugar onde abundavam escorpiões e centopeias. O que viu inundou-a de um pavor profundo. A chinesa mergulhara já num estado de semi-inconsciência. Então, como sempre em momentos semelhantes, veio em seu socorro uma corajosa reacção. Não podia consentir que Wang Amah morresse! Correu ao fogão da cozinha e aqueceu uma enorme vasilha cheia de água. Depois, despejou uma mistura de água quente com whisky pela garganta da doente, friccionou-lhe as mãos até aquecê-las e ministrou-lhe os remédios que possuía. Mal o banho ficou quente, mergulhou Wang Amah até ao pescoço e obrigou-a a engolir algum leite. O enérgico tratamento conseguiu finalmente estimular as fracas forças da criada e mantê-la viva, passado o acesso.
Só então Carie chamou Andrew, pois com a pressa não se detivera para despertar ninguém. Mantendo-o a uma distância prudente para não o contaminar, deu-lhe instruções a respeito das crianças e pediu-lhe que as cuidasse, pondo nisso toda a boa vontade e toda a prática de que dispusesse.
- Não percas tempo a rezar hoje de manhã, Andrew - rogou-lhe. - As crianças, se ficarem sozinhas, farão as maiores extravagâncias antes do pequeno almoço.
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Ele lançou-lhe um olhar de censura, mas silencioso - deve ser dito para honra sua - durante uma semana inteira procurou fielmente cumprir à risca as instruções que a mulher lhe gritava do fim do jardim, dum quartinho em que guardavam os utensílios de jardinagem e para onde removera Wang Amah.
Passada uma semana, esta pôde ser desinfectada e voltar para casa. Carie pôde tornar a dedicar-se às filhas. Desde então o laço que ligava aquelas duas mulheres tornou-se mais estreito do que nunca. Wang Amah nunca pôde esquecer que Carie abandonara as filhas para tratá-la e que arriscara a própria vida, expondo-se ao contágio da peste.
Admirada, perguntava:
- Que mulher é a senhora, que coração é o seu capaz de arriscar a vida por uma pobre como eu para quem nunca ninguém se deu ao trabalho de olhar duas vezes?
Carie sentia-se sempre envergonhada perante a adoração dos outros e na sua humildade confessou a Andrew que se houvesse pensado no contágio talvez jamais tivesse feito o que fizera; mas enfurecera-se ao ver uma doença imunda como a cólera levar Wang Amah e não se detivera para pensar. Para ela, a ira era um clarim de batalha.
- Receio não ser capaz de fazer nada disso por amor de Deus - murmurou com os olhos perturbados.
Quando chegava a oportunidade de agir, esquecia-se sempre de que deveria fazê-lo por amor de Deus.
- Se procurasses realmente fazer tudo em Seu nome... - sugeria Andrew, inquieto pela salvação da alma da mulher.
- Mas, Andy, não tenho tempo. Quando alguém está a morrer, não dispomos de tempo para pensar por que motivo corremos a salvá-lo... Vamos apenas fazer o que é preciso!
Um mundo inteiro os separava e jamais se compreenderiam. O pensamento de Andrew nunca se afastava de Deus. Quanto a Carie, a vida, com todas as suas riquezas e encargos, absorvia-a inteiramente.
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Devo nesta altura fazer uma referência a Kulling. Creio que esta parte da minha narrativa pertence à época imediata à doença de Wang Amah, porque Carie disse mais de uma vez:
- Em cada Verão acontece-nos qualquer coisa terrível. Se ao menos durante parte do Estio pudéssemos fugir deste pavoroso vale do Yangtsé, libertar-me-ia do maior terror da minha vida: o receio de perder um dos pequenos.
Outras famílias brancas espalhadas ao longo do vale receavam o mesmo por causa dos filhos. Certo dia um inglês, numa das suas caçadas pelas Montanhas Lu, encontrara um sítio ideal para veraneio, um maravilhoso vale sombreado, cavado no alto da cadeia de elevações.
Mesmo em pleno Verão, o ar era aí refrescado ao amanhecer e ao pôr-do-Sol, pelo nevoeiro, e, ao meio-dia, pelos ventos frios do alto das montanhas. Em breve essa notícia espalhou-se entre os brancos e formou-se um grupo para arrendar a terra e construir pequenas vivendas com a abundante pedra dos vales. Carie não descansou enquanto não decidiu Andrew a fazer uma visita ao vale. No regresso, o marido declarou:
- Nunca vi um lugar mais parecido com a nossa terra.
Com o dinheiro que conseguiram reunir - e quero crer que Carie, desta vez, desviou a verba do "Novo Testamento" - compraram uma nesga de terra. No Verão seguinte, Carie e as filhas embarcaram num navio que as levou ao longo do rio, até à base das montanhas; daí viajaram um dia inteiro em cadeirinha, através de longos campos de arroz e colinas cobertas de moitas de bambus; por fim, começaram a subir a montanha.
O ar das encostas era húmido e excitante; mas quando os carregadores principiaram a subir as ladeiras com passo seguro e ritmado, uma névoa suave e fina veio misturar-se com o ar, enchendo Carie de entusiasmo.
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Aquele ar era exactamente o mesmo que se sentia nos morros da Virgínia Ocidental e nunca aspirara coisa igual desde que saíra da pátria. Havia duas horas que subiam rapidamente, ao longo do caminho que serpeava pelo flanco da montanha, e viram as gargantas rochosas através das quais as torrentes vindas dos cimos se precipitavam em cachoeiras prateadas, ou adormeciam em profundos poços verdes.
Nem sequer na América contemplara flores como aquelas. Na sua pátria, as flores das montanhas eram pequenas e sem perfume; porém, as de ali roçavam-se pela cadeirinha quando esta passava e abriam-se em grandes lírios de caule vermelho - grandes flores semelhantes a trombetas, debruadas de púrpura nas pétalas brancas. Enormes fetos, longos e delicados, espalhavam-se por toda a parte e, sob os pinheiros e as moitas de bambu, a terra estava coberta de líquenes miúdos como musgo. Aqui, as trepadeiras despenhavam-se em cascatas de flores do alto das árvores - flores de intenso perfume. Ej de súbito, cortando o silêncio, o profundo e musical apelo dum pássaro ressoava claramente no ar suave.
Carie jamais sonhara ser possível encontrar tal beleza naquele país onde a humanidade se apinhava em multidões compactas. Às vezes, comentava:
- Aqui vive gente de mais e morre gente de mais! Reclinada na cadeirinha, contemplava extasiada o
profundo céu azul e as brancas névoas que os altos picos dilaceravam.
Os carregadores continuavam a subir, parecendo escalar o próprio céu; depois, uma pequena curva descobriu uma estreita passagem. Aí as duas encostas das montanhas comprimiram-nos e o frio que emanava das cachoeiras geladas encheu-os de alegria e de vigor.
Os cules depuseram então as cadeirinhas e, deixando o vento envolver-lhes os corpos suados e seminus, soltaram de repente um grito estranho e agudo, que ecoou repetidas vezes por entre os picos:
- Da la-la>-la hoo^oo!
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Carie, ouvindo-o, sentiu vontade de soltar também um grito idêntico, alegre e estridente, numa estranha e selvagem resposta ao apelo da montanha.
Começou então a ascensão final que levaria ao vale, uma rápida e curta ascensão finda a qual as depuseram numa planura em forma de taça, bem próxima dos picos que encimavam a cadeia de montanhas. De um dos lados dessa taça ficava a vivendazinha de pedra, composta de três divisões, construída por Andrew.
Ninguém poderá avaliar o que representou para Carie, tanto naquele ano como nos seguintes, o alívio trazido pelo ar fresco da montanha, a água pura da fonte que brotava de uma rocha, pronta a beber-se sem ser necessário esterilizá-la, a libertação durante dois meses do pavor da peste, a alegria de ver as crianças tornarem-se rosadas, sadias e robustas, no fim do Verão, época em que estava acostumada a vê-las pálidas, enfezadas, devido às noites de calor e à alimentação difícil. A satisfação que sentia quase a sufocava e precisava desabafar em orações agradecidas de que compartilhavam as crianças - aquelas orações rápidas, à sua moda, que representavam mais uma explosão do coração do que palavras expressas pelos lábios. Tais palavras endereçava-as a Deus, lá no alto, e quer Ele as acolhesse quer não, sentia-se feliz em exprimi-las para dar vazão à volumosa onda de emoção que a possuía.
Fazia com as filhas excursões pela montanha, acampando à toa, aqui e além. Gostava tanto como as crianças de comer fora de casa e sempre que Andrew se ausentava à hora das refeições, dizia-lhes alegremente:
- Pegue cada uma no seu prato e vamos comer lá para fora!
Nos degraus de entrada ou a meio caminho da encosta, onde o capricho lhes ditava, sentavam-se e comiam, contemplando o pôr-do-Sol por trás da montanha- rápido como todos os crepúsculos nas regiões de altitude. Faziam-no, porém, apenas quando Andrew ia para fora. A ele não lhe agradavam propostas repentinas e extravagantes nem o desconforto de comer sem mesa com um prato nos joelhos. Detestava tudo
quanto estivesse fora dos hábitos regulares, de forma que, quando estava em casa, as filhas tinham de se sentar ajuizadamente à mesa, fazer uma oração de graças antes de principiar a refeição e Carie devia contentar-se com a cadeira colocada de modo a poder ver o céu e a paisagem através da janela aberta de par em par.
Andrew, embora de vez em quando subisse até à vivenda da montanha para entregar-se a um rápido descanso de um dia ou dois, não parecia sofrer tanto o calor como a mulher e as filhas. Tornava-se cada vez mais magro e dir-se-ia mais imperturbavelmente sadio à medida que os anos passavam. A sua alma não sentia como a da mulher a repercussão do sofrimento dos outros na carne e no sangue. A música nada lhe dizia nem tão-pouco os poetas e raramente se sentia interessado pela beleza da natureza. Muitas vezes a voz do sofrimento humano parecia-lhe apenas a voz dos que se rebelavam contra a justa punição dos pecados cometidos contra um Deus justo.
Era inevitável que tais diferenças entre marido e mulher se fossem tornando maiores e mais evidentes, com o transcorrer do tempo. Carie nunca estaria disposta a reconhecer conscientemente a desunião do casal, mas o seu inconsciente rebelava-a através de todos os pequenos gestos e palavras de impaciência, que Andrew suportava silencioso, embora as considerasse visivelSmente uma provação imposta por Deus. E essa sua maneira de lhe suportar a irritação, essa perpétua {paciência, imensa e muda, dificultava a situação moral de Carie, porquanto fazia com que se sentisse inferior, obrigando-a a considerá-lo "melhor" do que ela.
Contudo, essa divergência pouco transparecia enquanto as crianças dependiam ainda dos cuidados de Carie. Nunca houve mulher mais inteiramente maternal do que ela, capaz de inventar uma centena de pequenas cantigas e alegres brincadeiras para consolar um filho que chorasse. Embora fosse caprichosa e de génio arrebatado, as suas mãos achavam-se sempre prontas para a carícia, para o consolo. Nunca foi mãe
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mais perfeita do que durante os verões passados no alto da montanha, quando se podia entregar livremente às crianças. Levava-as para toda parte, à procura de coisas bonitas, ensinava-as a apreciar a beleza doa penhascos e das rochas rugosas, erguidas contra o céu ou, ao contrário, pequenas grutas revestidas de musgo ou ainda os fetos à beira de um poço. Trazia a beleza também para dentro de casa, enchendo esta de lírios selvagens, de folhas de feto e de outras flores.
Quero crer que a preocupação da busca de Deus, que jamais a abandonou, lhe era mais fácil ali na montanha, porque Deus sempre parece mais próximo quando não há nenhum sofrimento humano interposto entre Ele e os nossos olhos. Nos domingos de manhã ia até à pequena igreja de pedra, que fora erguida quando a comunidade começara a desenvolver-se e o som convidativo de um pequeno sino alegre aumentava a alacridade do dia. Penso que Carie jamais o ouviu sem pensar no sino da sua terra. Quando caminhava para a igreja, acorrendo ao seu apelo, pensava cruzar o mar até à sua cidade. Em parte, ia também à igreja para cantar e adorar a Deus, embora nunca chegasse a compreender o significado de "adorar".
Aquela mulher americana aprendera, graças à intuição e à experiência, que todas as alegrias a conduziam irresistivelmente para junto de Alguma Coisa colocada muito mais alto do que ela própria e que a essa Coisa ou a esse Alguém eram devidas orações e agradecimentos quando a vida se lhe apresentava boa. Carie era do grupo daqueles a quem a felicidade e a paz. fazem surgir o que têm de melhor nas suas almas e a quem o sofrimento torna mórbidos e desconfiados.
Passaram-se nove anos. Mais uma vez lhes seria permitida uma estadia na pátria, durante um ano, se assim quisessem. Prepararam-se para viajar em Junho, cedendo a vivenda da montanha a uns amigos que careciam muito de repouso, e velejaram ao longo da costa para embarcar no navio que os levaria através, do Pacífico. Durante os intermináveis anos que Carie
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atravessou, pensando constantemente no filho, apreensiva e desperta, durante noites incontáveis, Edwin completara o curso secundário e estava pronto a ingressar na Universidade. Por tal razão, os pais contavam passar aquele ano de férias não na Casa Grande, mas na Cidade Universitária onde Edwin morava - a mesma universidade que o pai frequentara. Esse centro de estudos situava-se na pequena cidade de Lexington, na Virgínia, plena de recordações históricas e Carie contava fortemente com essa atmosfera tradicional para, durante todo o ano, incutir no espírito das filhas um mais forte sentimento amistoso para com a pátria, que já haviam aprendido a amar, embora ainda não a conhecessem.
Contudo, foi primeiramente necessário atravessar o oceano e Carie sofreu com isso mais do que nunca. Passou tão mal, ficou tão fraca que mal se podia aguentar de pé quando pisou o solo bem-amado de São Francisco. Todavia, mesmo assim, apontava tudo às duas pequenas, que esgazeavam os olhos para as maravilhas ocidentais, orgulhosas com as instalações de água corrente, com a luz eléctrica, com os enormes edifícios de muitos andares. Não era a América a pátria de todos eles?
Uma única coisa as decepcionou: a vista de homens brancos guiando camiões e carregando bagagens.
- Mãezinha - inquiriu Consolação, horrorizada - aqui os cules são homens brancos?
Carie riu e respondeu:
- No nosso país não temos cules e é por isso que o povo é feliz. Toda a gente trabalha e não é vergonha nenhuma fazê-lo com as próprias mãos.
Aquelas perguntas haviam-na convencido de que, mau grado todos os seus esforços, as filhas não tinham escapado à marca do Oriente. Sentiu-se perturbada e resolveu que, nesse mesmo ano, Consolação teria de aprender a costurar, a cozinhar, a lavar a loiça e a realizar qualquer trabalho doméstico. Carie depositava uma profunda fé no trabalho manual como remédio para curar as mágoas das mulheres insatisfeitas.
- Toda a mulher deve aprender a cuidar de uma
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casa, a fazer pão, a cozinhar e a costurar - declarava ela. - Por mais criadas que se tenham, isso não deve desviar-nos da obrigação de aprender tais coisas quando se é mulher.
Mais tarde, quando Consolação se queixava da aplicação prática dessa teoria, a mãe objectava:
- Chegará o dia em que terás de fazer isso sozinha. De resto, todos nós americanos "trabalhamos"!
Era essa a palavra definitiva, a tradição da raça que devia ser mantida. Ej realmente, no seu sangue vigoroso não existia uma única gota de indolência.
A viagem de caminho de ferro através dos Estados Unidos constituiu também uma alegria e uma experiência nova para Carie. Ver o país desenrolar-se diante dos olhos, ver a beleza das montanhas, dos campos e das planícies, ver à noite acenderem-se luzes nas pequenas casas à beira da via férrea, percorrer a vida buliçosa das ruas das povoações e das cidades, era como uma música para os seus ouvidos saudosos e de olhos brilhantes, e não se afastava da janela da carruagem. Notava todas as mudanças; todos os sinais de prosperidade a regozijavam e apontava-os alegremente às filhas.
Nessa data a América tinha para ela outra atracção especial: o filho Edwin, agora um homem feito.
Voltava a ver a cidade natal, o portão branco, o grande carvalho, a Casa Grande, que seria para sempre o Lar. Voltava a ver o pai, magro, desempenado como um rapaz, com a cabeça branca de neve, requintado como sempre na camisa engomada e no casaco preto. Talvez Hermanus, apenas por vaidade, nunca chegasse a envelhecer completamente. Aquele outro vulto de cabelos brancos seria Cornelius... tão envelhecido e curvado? Seriam aquelas pequenas e aquele rapagão seus filhos - um homenzarrão de ombros quadrados, de queixo rude - e aquela severa e avantajada matrona seria sua mulher? Na realidade, tinham-se passado nove anos. Quando se olhou ao espelho do antigo quarto, verificou que ostentava também por cima das têmporas
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duas madeixas de cabelos brancos e que as sadias cores da mocidade já lhe haviam fugido da face.
Cada uma das irmãs morava agora em casa própria e a Casa Grande pareceu-lhe estranha sem elas à porta. Porém, divisou um rapaz alto e magro, com ar tímido e pensativo. Era Edwin. Quando quis lançar os braços ao pescoço do filho viu que estava tão alto que lhe foi necessário curvar-se para ela o beijar. Usava lunetas, um colarinho gomado e parecia ter muito mais do que vinte anos. Apertou-o contra si com todas as forças dos seus braços para senti-lo inteiramente, e o filho contemplava-a com um olhar feliz, um pouco sonhador talvez, mas gentil, franco e inteligente. Carie teria de descobrir de novo o que havia por trás daqueles olhos míopes, porque fora certamente através deles que o seu antigo rapazinho desaparecera.
Foi outra felicidade para Carie levar as suas filhas através da granja e da vila, mostrando-lhes cada lugar, contando-lhes velhas recordações, encontrando todos os antigos amigos. Ali, naquelas casas silenciosas e tranquilas, encontrava o coração da América. Aos domingos, a caminhada para a igreja constituía uma renovação de alegria. Hermanus, já muito velho, nessa altura, chefiava ainda a família e caminhava à frente do grupo através das ruas da povoação. Agora, ela, Andrew e os três filhos tomavam parte no bem-amado ritual. O irmão de Andrew, já muito frágil e encanecido, ainda pregava na igreja. Nunca se restabelecera por completo dos sofrimentos passados durante a guerra civil e a coxa ferida ainda lhe causava dores, de vez em quando. Continuava, porém, os seus sermões calmos, lacónicos, doutrinários, e Carie sentia-se feliz por ouvir de novo aquela voz.
América, América, como poderia abandoná-la, uma vez mais?
Depois desse período estival de felicidade, depois de ter gozado toda a antiga alegria das tarefas domésticas, da lavagem de roupa sob as árvores, do engomado na queijaria fresca, da apanha das frutas; depois da visita às irmãs casadas e aos irmãos (Quem imaginaria Greta
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tão estouvada e indomável, transformada em mãe de família?! Quem adivinharia naquele abastado comerciante, pai de quatro filhos, o pequeno Luther da sua infância?); depois de tudo isso foram para Lexington e conseguiram alugar uma casa nos arredores da cidade, cheia de móveis antiquados. Era a sua primeira habitação na América.
A casa datava do período anterior à guerra civil. A cozinha estava construída fora do corpo central do edifício, junto à sanzala dos escravos. Para qualquer outra pessoa aquilo seria extenuante, mas para Carie representava um privilégio poder contemplar as colinas azuladas por trás de um bosque, para além da cerca do quintal. Trabalhava rapidamente, caminhando em passos ligeiros e cantarolando canções antigas. Todo aquele serviço lhe parecia suave comparado com a vida que levara. Tinha apenas de cuidar da família, cozinhar, tratar de distrair somente os seus. Não havia mais ninguém a solicitar-lhe constantemente socorro, como na China - pedidos vindos da miséria, da doença, de todas as formas de desgraça humana. E a libertação daquele fardo de compaixão, durante essa temporada, curta que fosse, representava já verdadeiro repouso.
Não tinha sequer de ensinar as filhas, porque Consolação durante esse ano já deveria frequentar a escola; Edwin estava na Universidade, alegrando-se com os seus sucessos escolares, e Faith passava o tempo a puxar-lhe as saias desafiando-a para a brincadeira. Contudo, havia uma hora dedicada às reuniões da família. À noite, sentavam-se em torno da velha lareira de pedra onde Andrew ateava o fogo com grandes toros e à ceia bebiam leite de uma só vaca, conforme explicava gravemente Faith, todas as noites. Comiam bolinhos de gengibre e frutas que não podiam arranjar na China.
Era nessa ocasião que Carie contemplava o filho, procurando reencontrá-lo e restabelecer o estreito vínculo que os ligara outrora. Desejava com ardor voltar a ser tudo o que já fora para ele, mas achava evasiva a sua extrema amabilidade. O filho mostrava-se
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condescendente, simples e era decerto bom, mas sentia-o afastado de si. Por fim, embora contra vontade, resignou-se, consciente dessa separação. Edwin já não era o mesmo rapazinho de antes. Durante os anos em que vivera só, nascera nele o homem, que não podia continuar a depender da mãe.
Talvez essa independência de Edwin facilitasse a Carie o regresso ao Oriente. Havia vinte e dois anos que partira pela primeira vez do seu país. Durante esse tempo, guardara no coração a mais bonita e a melhor das terras, abençoadas por Deus. Aliás, o seu antigo ninho estava agora fechado. Os irmãos tinham-se habituado a viver sem ela, se bem que ainda a amassem sinceramente. Vinte anos... As filhas de Cornelius eram já umas raparigas que viviam naquele mesmo quarto que fora seu, quando menina. Os longos vestidos de mangas de presunto ocupavam agora o mesmo sítio onde tinham estado pendurados os seus vestidos de crinolina e, no prego de onde pendera outrora uma Madona morena, via-se a fotografia de um grupo de alunas de um intei Aato. Cornelius e a mulher dormiam há tanto tempo no luarto onde morrera a mãe que Hermanus parecia já haver esquecido a mulher que tão ardentemente o amara. Na vila, o velho casal Dunlop falecera havia muitos anos. As suas antigas colegas tinham-se casado e partido. Só o velho Neale Cárter, ainda solteirão, vivia sonolento e sozinho no meio dos negros. O seu aspecto agigantado, sanguíneo e paspalhão, entre acessos de sonolência, pôs para sempre fim ao romance que pudera ter havido. Esquecera tudo, excepto a comida e a bebida.
Na verdade, Carie deixara a América e a América olvidara-a. Se voltasse à pátria, teria de construir um novo ninho.
Porém, não valia a pena pensar naquilo porque, muito antes do ano acabado, já Andrew estava impaciente para regressar à sua obra. Vendera a casa dos pais, pois os velhos tinham morrido e todo o seu coração estava com os catecúmenos amarelos. Além disso, sentia que a América não precisava dos seus serviços.
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Havia pregadores e igrejas por toda a parte e aquele "que quisesse ouvir seria salvo". Mas sentia que os irmãos dessa terra distante o chamavam, de forma que, no Verão - quando Edwin, findo o ano universitário, cheio de prémios e de menções honrosas, já se adaptara à Universidade e se tornara inteiramente independente - prepararam-se para regressar à China.
Uma profunda tristeza se apoderou do coração de Carie quando teve de despedir-se do filho. Alguma coisa o prendia já à América e, embora ela gostasse que se sentisse afeiçoado à pátria, não podia evitar de pensar que por isso mesmo ela própria o perdera. Estava agora um homem e devia escolher um rumo de vida. Poderia Carie censurá-lo por optar pela terra que lhe ensinara a amar como a sua desde o nascimento? Todavia, essa escolha significava também que teria de viver exilada do filho, vendo-o talvez apenas uma ou duas vezes mais, antes de morrer. Por conseguinte, deixou a América com lágrimas escorrendo-lhe pelas faces e com o coração inundado de saudade. Daquela vez era mais do que a separação física: era o começo de uma separação espiritual e Carie regressou à China sentindo-se despatriada.
Voltou mais uma vez ao velho bangaló erguido no morro sobranceiro à cidade chinesa, que se estendia ao longo da margem do rio. Entregou-se de novo a uma grande serenidade de espírito, que era o ponto mais próximo do desespero para aquela criatura exuberante. Passou a cuidar da casa e do jardim. A idade principiava a assinalá-la. Os cabelos embranqueciam, embora continuassem crespos e sedosos, coroando-a de uma estranha beleza. As curvas maduras do seu corpo iam-se tornando de uma magreza severa.
Creio que, nessa fase da vida, sentia ter-se já despedido inteiramente das coisas da infância, excepto da saudade. A América crescera, esquecera-a e preenchera o seu lugar. Pode-se crescer com um país dentro de si e pertencer-lhe sempre. Sentia-se satisfeita por haver dado o filho à sua pátria. Entregava-se comple-
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tamente, pela primeira vez, à própria vida, sem compreender que levava a América consigo para onde quer que fosse, em tudo o que fizesse.
E mais uma vez se entregou ao amor das criaturas que a cercavam. Mais uma vez se dedicou à tarefa de arranjar um ambiente propício a suas filhas. Consolação estava agora uma rapariga alta, voluntariosa, apaixonada e - ignoro se Carie o notara - muito parecida com a mãe. Talvez Carie visse apenas com medo e tristeza que a filha estava destinada tal como ela a sofrer muito na vida, pois a natureza fizera-a demasiado sensível e emotiva. Por isso, Carie procurava ensiná-la a dominar-se - ela que, nesse terreno, jamais lograra ganhar uma batalha completa contra si própria! No entanto, destinava-lhe tarefas diárias, ensinava-lhe música e pintura e todas as semanas exigia-lhe a entrega de uma longa composição. Fez pelas suas filhas tudo quanto estava ao seu alcance e realizou isso absolutamente só, sem qualquer dos auxílios de que hoje as mães dispõem. Educou-lhes os corpos, tornou-os belos e fortes, corrigindo-lhes as atitudes, animando toda a espécie de exercício físico.
Lembro-me de que oferecia uma moeda de prata por cada ninho de corvo que Consolação lhe trouxesse. Os corvos construíam os ninhos nos altos das árvores e uma das sensações que essa garota - hoje já mulher de meia-idade - nunca poderá esquecer é a de subir, num ventoso dia de Março, alto, sempre mais alto, a uma árvore esguia, balançada pelo vento forte, e aí chegar ao ninho. O desígnio era apenas subir, porque o coração amorável de Carie jamais permitiria a destruição do ninho. Pretendia somente ensinar a filha a enfrentar o risco.
Não era, contudo, igualmente fácil obrigar Consolação a suportar a rotina diária. Sabia resistir com energia e até mesmo com prazer e Carie terminava por concluir que, se quisesse vencê-la, teria de lhe estimular a ambição, uma vez que a pequena detestava ser forçada a coisa alguma. Com a rápida intuição de que se achava dotada acabou por aprender, estudando-se a si
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própria, como lograria convencer a filha, de modo que o tempo difícil de adolescência decorreu facilmente para ambas.
Apesar da sua natureza apaixonada soube formar da melhor maneira possível o "habitat" das filhas e encheu-lhes a vida com o que existia de melhor na cultura do próprio país; ensinou-as a palmilhar desassombradamente o caminho que conduz ao desejo das coisas boas e das coisas belas. Para esse fim, dispôs apenas de alguns livros e da natural beleza das coisas do mundo.
Além dessas preocupações a sua vida era, mais do que nunca, preenchida com a gente que a cercava. E isso acentuou-se em especial depois de um dos anos de maior fome. O ano de 1905 foi pavoroso, pois as plantações morreram até mesmo as do vale do Yangtsé, tão fértil e irrigado; os alimentos escasseavam e mais rarearam quando chegou a onda de flagelados, vindos do Norte.
Com a entrada do Inverno a cidade e os arredores achavam-se repletos de míseras criaturas; homens, mulheres e crianças que vinham a pé, esmolando um pouco de comida, morriam aos montes, ao longo dos caminhos. Sobreveio o tempo frio e esses desgraçados surgiram em maior número ainda, esfarrapados, ferozes, ceifados pela morte. Carie, já exausta de assistir a esses terríveis espectáculos, sentiu-se tomada de uma onda de angústia e de piedade e punha em actividade todas as forças para socorrê-los. Nesse ano, não tivemos sobremesa às refeições e a mãe poupava todas as migalhas que podia. Até o "Novo Testamento" teve de esperar pelo ano seguinte.
Carie não ousava, à luz do dia, ir oferecer o escasso alívio das suas esmolas, tão desproporcionado o sabia para as necessidades dos míseros, pois para os milhares de criaturas disseminadas pela cidade aquilo de nada valeria e a sua vida corria perigo porque todos caíam em cima do pouco que havia para dar, lutando por obter alguma coisa. Portanto, durante o dia Carie caminhava de mãos vazias por entre as choças improvisadas pelos
flagelos, prestava atenção aos piores casos e à noite, enfiando o casaco velho de Wang Amah e acompanhada por esta, metia-se entre o povo, deixando aqui um dólar ou uma lata de comida além.
Andrew esteve longe de casa durante todo esse Verão. Andava pelo Norte, onde a fome era pior, ministrando socorros adquiridos com o dinheiro mandado da América. Dessas somas enviava um pouco a Carie, para quem o dinheiro parecia ainda mais precioso, pois fora dado pelo coração generoso do seu próprio povo. - Foi a América quem nos mandou isto! Ouvi-a repetir estas palavras muitíssimas vezes. Ela própria se tornou, para muitos daqueles desgraçados sem esperança, a própria incarnação da pátria.
Às vezes, em vez de dinheiro chegavam da América navios carregados de géneros. Aliás, estes nem sempre eram de desejar. Recordo-me de um navio que descarregou centenas de queijos, levemente deteriorados. O queijo é uma das poucas coisas que aquele povo não consegue comer - um alimento geralmente repugnante para todos os chineses, desde que não possuam o estômago educado para recebê-lo. Carie contemplava com um olhar trágico todo aquele carregamento amontoado no cais, à beira do rio, e de súbito tornou-se negociante de queijo. Com os seus argumentos fáceis e modos simpáticos persuadiu toda a comunidade branca - que aliás não era numerosa - a adquirir a excessiva quantidade de queijos. Ela própria encheu a sua despensa, comprando tudo o que não pôde vender e deste modo tivemos durante muito tempo em casa esses "queijos de fome". Com o dinheiro adquirido comprou, triunfa fante, arroz e farinha para sustento de muitos flagelados.
No entanto, os horríveis espectáculos a que assistia diariamente pesavam-lhe no espírito de tal modo que piacabou por sentir-se vergar ao peso da tristeza e da impotência por fazer tão pouco em face das necessidades. Apesar de haver já assistido a muito sofrimento nunca supusera 'que a condição humana pudesse suportar tais misérias, tão lenta tortura na vizinhança da
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morte, tanta magreza nos olhos encovados e desesperados das crianças, tanta luta feroz pela comida, em que às vezes se engalfinhavam mãe e filho, mulher e marido.
Passado algum tempo foi impossível continuar ocultar ao povo, que se aglomerava nos ranchos, a sua identidade. Seguiam-na até casa e, enlouquecidos pela fome, subiam até ao morro onde se erguia o bangaló, agarravam-se às grades do portão em pavorosas e ameaçadoras hordas, debatendo-se contra os muros. Creio que nesse tempo ninguém sofreu tanto como Carie. A comida sabia-lhe mal e custava-lhe a engolir qualquer coisa, pensando em todos aqueles que morriam de fome. Não os deixava entrar por recear que, depois de devorarem tudo, se tornassem ainda mais ferozes do que antes.
O som das súplicas, dos gemidos e o apelo do seu nome, em gritos, durante todo o dia e toda a noite; os mortos, que caíam ali mesmo e tinham de arrastar para fora,' fizeram-na adoecer de piedade desesperada e de amarga tristeza. E toda a antiga cólera contra o Deus que permitia tais horrores tornou a lavrar no seu coração. Aprendera, contudo, que não se deve interrogar a Deus, pois Ele sabe o que é melhor. Tudo era feito por Sua vontade. Entregou-se com desespero à resolução de fazer tudo o que pudesse e dedicou-se inteiramente à procura de recursos, dia e noite, visitando as casas"dos ricos, indo a lugares que nunca ousara pisar, como se a sua vida não tivesse outro fim além de socorrer a miséria dos infelizes.
Não procurou continuar a defender a sensibilidade das filhas. Na realidade, não o podia fazer. Que parede conseguiria abafar o rumor da multidão faminta, aqueles desesperados gritos de pranto e de solidão, a dramática e frágil vozita das criancinhas? Não, as filhas deveriam ver tudo o que a vida pode conter. Fazia-as trabalhar consigo, tentando esconder-lhes apenas os espectáculos mais terríveis e dolorosos.
Naquele ano não houve celebração de Natal. Em todos os anos da nossa vida Carie tornara essa quadra
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num período de felicidade e alegria. A ornamentação da casa com palmas e ramos, o pudim de Natal, rescendente e magnífico, constituíam como que ritos da vida familiar. Ali, como em todos os outros lugares, tinha de arranjar tudo sozinha, pois não havia lojas de brinquedos. Mas lograva fazer verdadeiros batalhões de minúsculos homens e mulheres de massa de gengibre, fabricava bonecas e brinquedos absurdos e cómicos, e com eles enchia as meias penduradas na lareira, ou na árvore simbólica, enfeitada de papel prateado e pedaços de fita, que economizava durante o ano inteiro. Era aquela uma fase do ano em que se dedicava por completo à alegria. Nada poderia esfriar o doce mistério da Véspera, nem a história do presépio contada ao calor da lareira ou os cânticos do Natal entoados ao órgão antes de se deitarem. De manhã cedo, ainda de madrugada, a sua voz radiosa irrompia através da casa, cantando: "Que o mundo se alegre, pois o Senhor nasceu!".
Preocupava-se em fazer com que os filhos compreendessem que aquela época era uma ocasião de dádivas e cada criança aprendia a preparar presentes não só para os pais e para os irmãos como para os criados e para os amiguinhos chineses que soubessem carecerem de auxílio. Conhecia bem o prazer de dar e o contentamento que se segue a essa acção.
Naquele ano, todavia, não teve ânimo para celebrar. Como seria possível alegrarem-se, como seria possível bater o pudim de Natal e fazer doces de frutas quando lá fora a turba clamava, morrendo de fome?
- Minhas filhas, este ano não teremos Natal - declarou simplesmente. - Tudo o que pudéssemos gastar e tudo o que pudermos poupar deve ser dispendido em comida para estes desgraçados.
Foi um estranho dia de Natal, passado a cozinhar grandes gamelas de arroz e a distribuí-lo, de tigela em tigela, no meio do estrépito que quase derrubava o portão. Quando a tarde findou, já tínhamos dado tudo o que havia. Foi um dia longo, tristíssimo. À noite, não conseguiu sequer cantar. Como recompensa, ao
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deitar-se, estava menos chorosa e pôde dormir algumas horas.
Felizmente Faith era ainda muito pequenina para poder compreender a situação; porém, esta perdurou durante anos no espírito de Consolação. Quando veio a Primavera e todos aqueles que tinham escapado à morte no Inverno se espalharam pelos caminhos, de regresso às suas terras, na esperança de plantar alguma coisa, a pequenita sentia-se ainda nervosa e apavorada. Carie considerou que a deveria levar para fora durante algum tempo. Existia em Xangai um internato dirigido por uma senhora de Nova Inglaterra e Carie resolveu mandar a filha para esse colégio durante os dois anos que faltavam para a pequena seguir para a América, a fim de cursar uma escola superior.
Consolação tinha vivido sempre muito só e tornara-se tímida e indolente. O isolamento de uma criança, em terra estrangeira, estava a fazer-se sentir demasiadamente e a mãe preparou-se para mandá-la para o colégio.
Tinha a impressão de que nunca encontraria o menor consolo nos filhos. O seu trabalho naquele país exigia-lhe que os sacrificasse, se não pela morte, ao menos pelo afastamento. Porém, soube ocultar esse desgosto e para Consolação aquela separação significou apenas um alegre passeio a lugares onde encontraria amigas da própria idade e da própria raça. A mãe arranjou-lhe um pequeno enxoval de vestidos simples. Arrumou-o na velha mala de tampo redondo que já dera tantas voltas através do mundo, por terra e por mar, e Andrew acompanhou a filha. Em casa ficou apenas a pequenita Faith, sempre silenciosa, grave e sossegada.
Os rigores do Inverno foram compensados por outra abençoada estadia na pequena vivenda das montanhas. Muitas outras famílias brancas, em número sempre crescente, reuniam-se aí, o que representou para Carie não só uma revitalização como também o renovamento das amizades com criaturas da sua própria raça e cultura. Isso regozijava-a. Para ela significava muito ter uma possibilidade de se evadir, durante algumas semanas,
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das coisas que lhe pungiam o coração - fuga que não podiam intentar quando voltava a viver entre as pobres amigas chinesas.
Era-lhe igualmente de grande benefício retirar-se para um lugar onde pudesse passear com tranquilidade, entre a paz e a beleza das coisas, como fazia na montanha. Passou todo esse Verão no jardim, plantando fetos e flores silvestres, árvores e arbustos que cresciam braviamente como as plantas nativas. Era aquela a melhor maneira de curar a alma.
Durante todos esses anos, Andrew viajara através do país a pé ou montado num pequeno burro cor de cinza. Tinha já igrejas em muitas aldeias e fiéis demasiado orgulhosos da sua fé para não se envergonharem de um Pastor que lhes surgia sobre um burrico. De modo que, certo dia, apareceu em casa montado num lindo cavalo branco que os seus paroquianos lhe haviam oferecido. Ante as atónitas perguntas de Carie, replicou, embaraçado mas contente:
- Talvez não devesse montá-lo... Nosso Senhor viajou num burro!...
Carie gostou do animal, começou a acariciar-lhe o focinho escuro e volveu pressurosa:
- Estou certa de que Ele também teria andado a cavalo, se alguém Lho houvesse dado.
Nessa época, apenas com uma filha em casa, Carie voltou a dedicar-se ao trabalho das igrejas e fez grandes projectos em relação às mulheres chinesas. Viajou muitas vezes em companhia do marido, compraram um pequeno junco e percorriam os estreitos canais que marginavam cidades e aldeias, levando Fâith consigo. Entre as lições que dava à filha e os trabalhos de cuidar do junco, ensinava ainda mulheres e raparigas. Ela e Andrew travavam, por vezes, ardentes discussões a respeito da doutrina cristã, pois as opiniões de ambos divergiam em muitos pontos. Por exemplo: havia o caso de Mr. Ling, que pretendia filiar-se na Igreja, mas possuía duas mulheres. Para Andrew, a única solução era mandar embora a concubina. Carie
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conversou com esta, testemunhou o seu desespero e argumentou perante Andrew:
- Mas a pobre mulher não tem para onde ir... e a culpa, não é dela!
Andrew firmou-se no seu direito e não admitiu qualquer transigência aos seus princípios.
- Se Mr. Ling continuar a ter uma concubina, não entrará para a Igreja - declarou, peremptoriamente.
- Isso é uma crueldade! - censurou Carie no seu habitual ardor contra a injustiça. - Diria a mesma coisa se se tratasse de Deus.
Andrew preferiu não responder. De resto, surgiram outras complicações. Carie descobriu que um Pastor da confiança de Andrew fumava ópio. A extraordinária intuição de que era dotada levara-a, há muito tempo, a suspeitar do facto, mas o marido recusava-se sempre -a escutar qualquer palavra desfavorável a esse homem. Um dia Carie viu um papel cair de dentro da Bíblia do Pastor. Apanhando-o, verificou tratar-se de uma factura de ópio.
De outra vez ouviu murmurar um ajudante de Andrew, que este muito estimava, e obteve a prova de que obrigava os fiéis a pagar a entrada na igreja. Em certas épocas, as igrejas enchiam-se, pois os indígenas achavam que ganhariam em converter-se, dado os estrangeiros serem poderosos e partilharem com esses "cristãos" dos privilégios dos seus tratados. A natureza demasiado humana de Andrew fazia-o sentir-se incomodado com a sagacidade da mulher.
Contudo, Carie só podia agir conhecendo a verdade. Quando a segunda mulher de Ling lhe confessou os desgostos que sofria, na sua qualidade de concubina, escutou-a atentamente e declarou-lhe:
- Compreendo isso muito bem. Que remédio poderá haver?
Dirigiu então ao céu uma das suas breves súplicas familiares: "Meu Deus, não vês esta mulher e as dificuldades criadas pela sua situação? Ela nada pode fazer. Se não acharmos qualquer solução para este caso, teremos de a aceitar tal como é".
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Depois sentiu-se invadida por remorsos; procurou confortar-se imediatamente, reflectindo: "Se eu compreendi, julgo que Deus também pode compreender".
Todavia, não ficou completamente tranquilizada. Andrew sustentava uma opinião diferente e talvez Deus partilhasse da mesma.
Durante esses anos a casa de Carie tornou-se cada vez mais procurada pelos infelizes. Carie, com a sua voz simpática, o seu amor pelo Sol, pelas flores e pelos quartos alegres, com o seu olhar brilhante e ar são e bondoso, tinha uma atitude tão confortante que, uma vez na sua presença, as pessoas se persuadiam de que tudo melhoraria. Era visitada muitas vezes por uma mulher alta e bela, de cabelos negros e olhos sombrios, de tez macia e azeitonada, que envergava apenas lindos vestidos vindos de Paris. Era filha de um rico comerciante inglês do porto, de posição elevada e boa educação.
Na sua juventude, como muitos outros, esse homem tivera em sua casa uma chinesa, uma linda rapariga ignorante por quem se apaixonara numa casa de chá e da qual teve dois filhos: um rapaz e uma rapariga. O filho era um indivíduo pouco recomendável, esbanjador, quase sempre embriagado. De todas as vezes que o pai conseguia libertá-lo duma situação crítica, Carie lamentava:
- Coitado do Harry Evans, acha-se tão só! Ninguém quer andar com ele; nem brancos nem chineses. Não tem pátria e isto é a maior solidão que pode existir!
A irmã, a bela e altiva Ella, sentia-se ainda mais isolada que ele. Tornara-se a dona de casa de seu pai, pois a chinesa, à medida que envelhecia, adquiria uma atitude de alheamento, nunca aparecendo em público.
O pai era comovedor no orgulho que sentia perante a beleza altiva e dignidade serena da filha, quando esta presidia aos seus jantares requintados, no seu lugar, a uma das extremidades da mesa. Naquela casa não tinha entrada qualquer indígena, salvo como subalterno, e a rapariga jamais se encontrava com chineses
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que, de resto, a haveriam desprezado. Assemelhava-se em tudo a uma inglesa, mas as suas mãos admiráveis de dedos afilados e a tez levemente escura, indícios da raça amarela, bastavam para afastar qualquer inglês que tivesse desejado desposá-la. Vivia, por conseguinte, com pessoas de raça branca, para as quais, não obstante, era uma estrangeira. Esta mulher sofria crises de desespero que ocultava ao pai, pois amava-o sinceramente e não lhe podia perdoar o mal que ele lhe causara dando-lhe aquele sangue misto. Quando estava mal disposta e o pai o notava, este lamentava com amargura a loucura a que fora levado por uma cara bonita e por um desejo físico, condenando, desse modo, a viver aquela altiva criatura.
Ella Evans conheceu Carie. Recordo-a quando chegava em frente ao nosso portão, no seu belo richó, em regra pelo crepúsculo, e esperando depois na sala que Carie pudesse conversar com ela. Ignoro do que falavam por a porta ficar sempre fechada e ouvir apenas murmúrios. Um dia vi Miss Evans à saída inclinar-se e olhar gravemente para Carie, sem proferir palavra. Nessa noite, à mesa, Carie mostrou-se excepcionalmente triste e calada.
Por vezes, procurava-a uma pequena silhueta metida num quimono, uma japonesa casada com um velho inglês excêntrico que vivia numa casa construída ao modo das do Japão e situada ao longe, no vale entre duas montanhas. No porto, corria uma história acerca desse velho. Conheci-o quando já tinha os cabelos brancos e estava enfraquecido pela idade. Mas, apesar disso, mantinha o porte erecto, com esse ar cortês e reservado, muito independente do gentleman britânico. Era filho de um baronete enviado, como tantos outros, para o Oriente em busca de fortuna. Começara por ser funcionário da Alfândega. Amava uma jovem inglesa que deveria reunir-se-lhe logo que fosse promovido. Dizia-se que era uma loira de cabelos vaporosos. Ao fim de três anos intermináveis ganhara o suficiente para montar-lhe casa, e escreveu-lhe a mandá-la vir.
Circulavam os boatos mais estranhos acerca dessa
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casa e das compras que ele efectuou em Xangai - tapetes dispendiosos, móveis forrados de cetim e um piano em pau-rosa. Para adquirir tudo isso, o inglês sofrera privações e chegara mesmo a contrair dívidas. Dirigiu-se ao litoral ao encontro da noiva, a custo dissimulando o enorme ardor que o animava sob um aspecto calmo. Mas, quando o navio chegou, trazia-lhe apenas uma breve carta:
SintcHne desolada, querido Ronald, mas enganámos-nos. Não te amo... Não posso amar-te.
Fugira com um oficial de Marinha. Ronald Stearns dobrou a missiva, rasgou-a em pedaços e lançou-os às águas lodosas e agitadas do Whangpoo. Nessa mesma noite dirigiu-se a uma das casas públicas mais afamadas, onde comprou uma mulher mais velha que as outras e desprovida de beleza, mas conscienciosa, delicada e asseada.
Pediu-a cerimoniosamente em casamento e levou-a ao Consulado Britânico. Completamente atónita por esta mudança de situação, a mulher seguiu-o, ansiosa, em passinhos curtos, pelos corredores fora, envolvida no seu getaL E aí, mau grado as admoestações do cônsul, Ronald Stearns desposou a pequena japonesa e levou-a para o porto.
Construiu-lhe uma casa japonesa na encosta da montanha, suficientemente afastada para evitar o aparecimento de visitantes e vendeu em hasta pública o piano em pau-rosa, o mobiliário forrado de cetim e todos os bibelots acumulados. Quando o conheci, havia já muitos anos que levava uma vida honesta e digna, sem se imiscuir na estreita vida social das pessoas de raça branca da cidade, com as quais apenas mantinha relações de trabalho. Por morte do pai, herdou-lhe a fortuna, e jamais voltou a Inglaterra. Vivia com a mulher japonesa, mostrando-se para com ela sempre cortês e bondoso. Nunca tiveram filhos.
Ignoro por que razão Mrs. Stearns procurava Carie. Talvez apenas para conversar amigavelmente com um
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semelhante, pois achava-se muito só, não obstante os seus alegres enfeites, os seus quimonos floridos e as suas faixas de cores vistosas. Mal falava o inglês, o que provava as relações existentes entre ela e o marido. Todas as condições de existência os afastavam um do outro. Ele lia muito e fora das horas de trabalho passava o tempo a estudar, embora considerasse ponto de honra levá-la à noite a passear pelo jardim japonês que mandara plantar para lhe dar prazer. Caminhavam em silêncio, pois pouco possuíam para dizer-se. Ela não vislumbrava sequer o mundo cultural e a educação do marido. A sua acanhada vida pessoal era simples e demasiado primitiva para o marido. Carie devia preencher um vazio na existência daquela mulher, privada de qualquer companheira.
Muitos membros da colónia estrangeira do porto vinham procurar Carie. Havia a pobre inglesa, maluca, que chegava à noite no seu richó, uma mulher apaixonada e ciumenta dum marido frio e cruel. Despejava sem reservas ao ouvido de Carie o relato do drama da sua vida e, depois de se retirar, os olhos de Carie mostravam-se cheios de tristeza, cansada pelo horror de saber muitas coisas que preferia ignorar. Havia também a antiga missionária, uma escocesa magra e tuberculosa que desposara, no intuito de convertê-lo, o capitão de um vapor em serviço no rio, igualmente escocês. Era um ébrio inveterado de whisky, que não abandonara o álcool logo que terminara a sua lua-de-mel. A mulher vinha contar a Carie todos os esforços pueris que tentava desesperadamente para distraí-lo ou avivar o seu amor, para mantê-lo numa disposição que lhe permitisse fortificar uma vontade fraquejante. Todavia, essa mulher não possuía beleza nem encanto e por isso não lograria reter qualquer homem. Tossia e chorava, dizendo a Carie:
- Se ao menos eu pudesse ter um filho! Ele desejava uma rapariga...
Mas o seu corpo magro e alquebrado era incapaz de frutificar e ela acabou por adoptar uma criança, proveniente dum orfanato da Austrália. O casal tentou
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reconstruir a sua vida sobre novas bases, mas, por desgraça, a pequenita contraiu varíola, transmitida por um servente indígena, e morreu antes do fim do ano. O pai adoptivo, que acabara por amar a pequenita loira, afundou-se então na bebida e a pobre Mrs. Gibbs faleceu vítima da doença que há muito a minava.
Estas pessoas e muitas outras que vão dar aos portos do Oriente, frequentavam a casa de Carie em busca de socorro junto da sua personalidade tão sã. Parecia haver sempre alguém à sua espera. O próprio médico indu, de sangue misto, e a sua adiposa mulher escura, achavam nela uma amiga particular, embora de todas as vezes que os visse Carie sentisse o coração confranger-se-lhe à recordação do rapazinho encantador que perdera.
Nessa época da sua vida, Carie era extraordinariamente atraente e exercia um poder magnético. Perdera um pouco do ardor da juventude e da excitação interior, por vezes tão violenta que não lhe permitia o repouso de espírito. A simpatia que irradiava suavizava esta impressão, sem contudo a destituir por completo do seu vigor; levava consigo o alento vivificante, a sinceridade das mulheres da sua terra. Ao vê-la, era-se induzido a pensar nas coisas boas e simples da existência. Permanecera absolutamente normal e sã, plena de boa disposição, numa atmosfera onde muitas vezes os homens e as mulheres de raça branca se transformam, entristecem e se degradam insensivelmente. Carie, porém, conservou sempre intacta a sua personalidade robusta.
O seu lar reflectia essa personalidade. Tal como na América, dispunha de uma bela horta e à sua mesa comiam-se feijões, tomates, espargos, batatas da Irlanda e alface; enfim, todos os saborosos legumes do Ocidente que só ali se achavam. Não suportava a carne das aves de capoeira chinesa, demasiado fibrosas, e criara algumas apenas no intuito de conseguir ovos frescos. Fazia uns biscoitos macios e saborosos; e os seus bolos de coco e de chocolate eram afamados.
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Recordo-a nesses dias tão ocupados, trabalhando enormes porções de massa .e cozendo grandes pães, cujo aroma inundava a casa.
Era por esses meios tão simples e sãos que curava aqueles que a procuravam. Mantendo a sua personalidade intacta, oferecia aos exilados o lar e a pátria.
Estou persuadida de que esses anos anteriores ao declínio da sua vida foram deveras felizes. Compreendera que o lar e a pátria se encontram no coração de cada um e que podem ser evocados sempre que se quer. A antiga nostalgia, a saudade do solo pátrio e da doce vida de outros tempos desapareceu. Carie conservava tudo isto no seu íntimo, único do passado, pois a família sofrera alterações. O pai, Hermanus, gastrónomo até à última hora, morrera com idade avançada. Essa separação definitiva não lhe foi muito custosa e não a chorou. A sua lembrança foi juntar-se a muitas outras que Carie guardava e que viveriam enquanto ela existisse.
Fiel à sua decisão, não voltou a mudar de domicílio. Andrew percorria a região nos quatro sentidos e regressava, periodicamente, para refazer-se na casa tão repousante que a mulher fizera. Viajava só, o que era preferível, pois não nascera para os cuidados familiares. Livre de aborrecimentos e preocupações de espírito causados pelas mudanças de habitação, pregava o Evangelho em toda a parte por onde a sua alma satisfeita desejasse ir, julgando responder à voz de Deus.
Por seu lado, Carie podia plantar uma árvore e esperar colher os seus frutos. As roseiras trepavam até ao tecto da casa e já não arrastava os filhos de um pardieiro miserável para outro. Esforçava-se por criar-lhes um ambiente agradável e levava-os a piqueniques nas montanhas e nos templos rodeados por bambus. Pergunto a mim própria se alguma vez vi uma pessoa dar a este extremo o efeito de uma estrangeira num templo budista. Mantinha-se muito direita, com ar prático, sem manifestar a menor emoção diante dos sinistros deuses orientais. Raramente tenho observado um c
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contraste semelhante. Recordo-me de observar Carie num pátio, onde milhares de anos haviam deixado a sua marca, distribuindo sanduíches pelos filhos num gesto breve, ao mesmo tempo que examinava os deuses silenciosos, como um vigoroso espírito moderno contempla os mitos do passado.
Carie desenvolvia cuidadosamente a menor manifestação de talento dos filhos. Não se limitava aos piqueniques e aos longos passeios mesclados de estudos de botânica; procurava também organizar pequenas reuniões sociais, a fim de ensinar boas maneiras aos filhos, preparando-os assim para o dia em que sairiam daquele género de existência de limites estreitos. Havia, por exemplo, quatro vezes por ano, sessões musicais em que Carie cantava e arranjava maneira de que os seus filhos tomassem igualmente parte; cabia-lhes escrever e pintar os programas e Carie não negligenciava meio algum que os pudesse preparar para viverem, mais tarde, em qualquer parte do mundo. Naquela época, reinava na China uma paz invulgar. As represálias que o país sofrera após a tentativa de expulsão dos estrangeiros, por ocasião da revolta dos Boxers, tinham tornado os indígenas cônscios da própria fraqueza e os ocidentais adquiriram um poder excepcional. O homem branco circulava por toda a parte com uma tal independência, pois os chineses viam-no protegido por navios de guerra, armas mortíferas e soldados desapiedados que, pelo menos, lhe proporcionavam uma tranquilidade temporária.
Carie já não via morrer os filhos, o que considerava a maior bênção. Sentia-se em segurança, à medida que se desenvolviam. Agora, Edwin estava casado e, conquanto ela não conhecesse a nora nem o primeiro neto, experimentava profunda felicidade por existir alguém que a substituísse junto do filho, organizando-lhe o lar e cuidando de mil pequenos nadas que constituem a ventura e o conforto do homem. Consolação também medrava e, embora nessa época as relações entre mãe e filha fizessem muitas vezes sofrer a primeira, Carie
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orgulhava-se dela. De resto, acercava-se o tempo em que teria de a enviar também para a América.
Quanto à pequenita Faith era talvez, com excepção de Clyde, a preferida dos filhos. Fisicamente assemelhava-se ao irmão, com os caracóis negros e os olhos grandes de um azul sombrio, uns olhos violáceos. Moralmente parecia-se mais com a mãe do que Consolação. Era uma criança simpática, dócil, terna, com um carácter sereno que a tornava encantadora. Consolação herdara por demais os defeitos de Carie: impetuosidade, teimosia, amor sensual pela música e pela beleza. A mãe via com consternação reaparecerem nessa rapariguita voluntariosa todos os lados da sua própria natureza que mais encarniçadamente tentara reprimir. Faith parecia-se mais a Andrew; possuía menos vivacidade que a irmã, mais autodomínio; era calma e calada e por isso Carie tomava-a um pouco como confidente e amiga. Só mais tarde se apercebeu de que isso não era conveniente para aquela criança sensível e grave.
Carie jamais se sentira tão vigorosa como nesse tempo. Já ultrapassara a idade da maternidade e da fadiga que os bebés provocam. O clima da colina, sobranceira ao porto fluvial, fazia-lhe muito bem à saúde e dava-se melhor aí que nas planícies à beira do grande canal. Continuava muito ocupada em virtude das funções que representava nessa comunidade transbordante de chineses de toda a espécie e na outra, um pouco afastada, de homens e de mulheres de raça branca.
Mas, no seio dessa vida tão preenchida, Carie atormentava-se Intimamente ao verificar as relações tão imperfeitas que mantinha com Deus. Por vezes, dizia a si própria que mais tarde acabaria por recolher-se e esforçar-se por realizar as suas aspirações. Leria a Bíblia com maior assiduidade, oraria e procuraria ser "boa". Nunca compreendeu bem a sua própria natureza para se compenetrar de que só a morte conseguiria separá-la dos entes humanos e das suas misérias. A vida lançava-lhe um desafio mais forte que o
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Céu e ela era incapaz de resistir a qualquer apelo ao combate. Gostava de sentir os seus recursos e inteligência postos à prova. Por exemplo, achava-se demasiado ocupada para se entregar a jogos, mas excepcionalmente jogava o xadrez por este lhe estimular o espírito.
Recordo-me de a ver examinar muitas vezes as mãos com desgostos - umas belas mãos úteis, enrugadas, fortes, de dedos estranhamente afilados; mãos grandes de linhas sóbrias, mas bem desenhadas. Fazia sempre o propósito de deixar de mergulhá-las nisto ou naquilo e de usar luvas para os trabalhos de jardinagem, de untá-las com unguentos e de tratá-las. Apreciava as lindas mãos brancas das senhoras, de pele lisa e macia, de unhas rosadas e delicadas. Mas se às vezes se lembrava de calçar luvas, terminava por tirá-las e, enquanto escavava a terra, levantava a cabeça, desculpando-se:
- Preciso de apalpar as raízes para as plantas crescerem e gosto também de sentir o contacto da terra.
Como a conhecíamos, troçávamos, rindo da sua garridice, pois sabíamos que os seus dedos tocariam em tudo, desde a jardinagem até às chagas da pele de uma criança.
- Pois bem, ficará para a velhice, quando já não puder trabalhar - dizia, gracejando para consigo.
Oh! Essa velhice que Carie nunca atingiu e durante a qual deveria fazer tantas coisas: tratar das mãos, ser uma senhora idosa, muito digna... muito digna! Ela que, bruscamente, tinha ataques loucos de riso! Depois, leria a Bíblia e encontraria o seu Deus. Essa velhice que não chegou, que não podia atingir uma criatura plena de vida, tão incuravelmente jovem!
Como poderei dar uma imagem exacta do que foi a sua vida, coagida por uma economia tão rígida que se guardavam todos os jornais por poderem vir a ter qualquer utilidade, uma vida que haveria esmagado uma alma menos indomável que a sua? Conservo a recordação de Carie sempre fresca e bela; contudo, reflectindo bem, vejo que usava os mesmos vestidos durante
13 - O Exílio
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anos seguidos. Possuía o dom de amarfanhar um laço ou de prender ao vestido uma flor que lhe conferia um aspecto novo. E como parecia airosa! Lembro-me de um grande baú de estanho, guardado na mansarda, onde eram metidos todos os chapéus antigos, flores e bocados de fita ou de seda. Duas vezes por ano, exclamava com alegria:
- Vamos a Paris comprar chapéus para a nova estação!
Subíamos então à mansarda, abríamos o baú e Carie retirava com as mãos hábeis tudo quanto era necessário para fazer chapéus para si e para as filhas. Jamais a vi descontente com o seu trabalho. Os seus chapéus eram mais bonitos do que os das outras pessoas e mais graciosos. Carie poderia ter sido uma modista de alta costura, uma cantora, artista ou qualquer outra coisa que quisesse. Em todo o caso, a sua imaginação, a sua fantasia alegre e os seus dedos ágeis davam-nos a ilusão e a excitação da compra dum chapéu novo. Anos mais tarde, quando fui, na verdade, a Paris adquirir um, senti um entusiasmo menor que o das nossas antigas expedições à mansarda, a uma "Paris" encerrada num baú de estanho.
Passaram-se assim sete anos, muito mais rapidamente do que qualquer outro período da vida de Carie e mais felizes, pois a morte não lhe bateu uma única vez à porta. Adquiriu uma experiência humana cada vez mais profunda; apesar dos defeitos que nunca perdeu, possuía uma natureza rica e magnífica. À parte alguns conflitos com as filhas, estas consideravam-na uma companheira alegre, muito divertida, embora os seus momentos de alegria fossem mais raros que noutros tempos. A sua paciência e compreensão aumentavam, mas, não obstante, custava-lhe suportar tudo quanto a indignasse.
O período de licença de um ano voltou. Consolação era uma esbelta rapariga, prestes a entrar para o colégio, uma criatura ardente e tímida, cheia de contradições, infantil em certos aspectos e, noutros, de
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um estranho desenvolvimento. Carie desejava dar-lhe um presente de despedida no momento da separação, alguma coisa que satisfizesse o seu gosto de beleza e de aventura. Depois de muito pensar, resolveu ir à América, através da Europa. Seria esse o seu presente. Queria partilhar com as filhas das recordações que conservava de outros países.
Creio que se verificou nessa altura a grande discussão a respeito do "Novo Testamento" do pai, única vez em que Carie logrou vencer, graças à sua obstinação um pouco encolerizada. Andrew teve de adiar a publicação de uma nova edição, o que permitiu a compra de um enxoval novo para Consolação levar para o colégio. A pequena ouviu o barulho, cuidadosamente abafado, de uma violenta questão por trás da porta fechada do quarto dos pais e notou o ar grave e um tanto deprimido que o seu progenitor apresentava ao sair, ao passo que a mãe, vermelha e de olhos brilhantes, observava com ar decidido:
- Comprar-te-ei outro vestido e percorreremos a Europa.
Atravessaram a Sibéria para poupar Carie à viagem por mar. Subiram o Yangtsé a bordo dum vapor e em seguida tomaram, em Hankow, o caminho de ferro para o norte. Os novos cenários interessaram Carie tão vivamente como as crianças. A Rússia despertou-lhe, em particular, a atenção. Notou aí uma situação humana grave e perigosa, ficando aterrorizada com algumas diferenças existentes entre os poucos ricos educados e a populaça, constituída por milhares de seres que viviam de uma maneira quase animal. Repetia constantemente:
- Esta gente fará um dia uma revolução que abalará o mundo. Não se pode viver em segurança num país onde reina um tal estado de coisas.
Menos de dez anos mais tarde realizou-se essa predição. Carie sentiu tremer o Universo e seguiu com o maior interesse os progressos da revolução russa. Mau
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grado o seu espírito conservador que a levava a detestar os excessos, dedicava toda a sua simpatia ao povo. Durante o Verão, desfrutaram a beleza da Europa, examinando cada um aquilo que preferia. Andrew interessava-se pelas igrejas e catedrais; Consolação mostrava-se ávida de tudo; e Carie, por seu turno, preferia observar as casas, as mulheres e as pessoas em geral. Passaram dois meses à beira de um lago suíço, num pequeno castelo aberto aos turistas e dirigido pela viúva dum homem que ali vivera rico e morrera pobre. Carie admirava a beleza do lago e dos Alpes cobertos de neve e escutava o que a viúva lhe contava. Encontrava sempre alguém pronto a fazer-lhe confidências. As próprias criadas de quarto do hotel passaram a descrever-lhe as suas histórias, a partir do segundo dia
da chegada.
Quando chegou o momento de seguirem para a América, Carie não sentiu a impaciência de outros tempos. À medida que se aproximava da pátria, ressurgiam-lhe as suas dúvidas. A realidade corresponderia às recordações que guardava do seu país? Da última vez que lá estivera não tivera a certeza de achar o seu lugar na Casa Grande e, desde então, haviam decorrido mais sete anos. Que se passaria agora? Ouvia falar de muitas coisas. Diziam que o país regurgitava de novos inventos, automóveis, por exemplo, e máquinas bizarras para uso doméstico. Tudo estava transformado.
Mas, ainda que a América tivesse mudado, restava-lhe Edwin, a mulher e o filho. Isso bastava como alegria antecipada. Toda a família atravessou um oceano encapelado e, em Nova Iorque, tomou o primeiro comboio para o sul.
Nem Carie nem Andrew puderam suportar a estadia na América durante o resto de tempo de licença de que dispunham. Quando Carie chegou à grande Casa Branca, sentiu imediatamente de uma forma intolerável a falta do pai, desse velhinho altivo, de cabelos brancos. No seu quarto, que fora uma verdadeira loja de tesouros de jóias trabalhadas à mão, de pedras
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preciosas estranhamente engastadas, de relógios de todas as espécies, já nada restava e era agora ocupado pelo filho mais velho de Cornelius. Carie, que já não pertencia à antiga casa, achava-se ali na qualidade de visitante rara, que só lá voltava ao fim de longos períodos de exílio. A mulher de Cornelius apossara-se calmamente dessa residência, donde parecia ter-se retirado a vida de outrora, donde parecia haver desaparecido a recordação do passado.
Na vila, na igreja branca, um estranho substituía no púlpito o irmão de Andrew que falecera. Neale Cárter também expirara e a sua casa fora vendida a pessoas que só a habitavam durante o Verão. Quase todas as figuras antigas tinham desaparecido. O próprio nome da povoação mudara. Tudo isto se afigurou tão triste e estranho a Carie que não pôde prolongar ali a sua
estadia.
Restava-lhe Edwin com a sua pequena família e devia também internar Consolação num pensionato. Foi viver seis meses para casa do filho. O bebé enchia-a de alegria, pois o seu coração era suficientemente rico para acolher todas as crianças da terra. Mas, apesar de tudo, igualmente ali, naquela casa de gente nova, invadia-a a impressão de ser uma estranha. Na sua pátria já não dispunha de um lar onde acolher-se, um canto onde se sentisse em casa sua. Foi visitar Consolação ao colégio, onde a encontrou absorvida pela nova vida e pelas camaradas, e compreendeu com tristeza que na velha pátria já ninguém carecia dela, nem seus próprios filhos, cuja existência se achava preenchida por ocupações em que ela não tomava qualquer parte. Tinha de atravessar de novo o oceano, procurar os que necessitavam dela, sofriam com a sua ausência e esperavam com impaciência o seu regresso. Por ocasião de cada uma das viagens anteriores perguntara-se se voltaria à China e julgara ser-lhe impossível deixar uma vez mais a América. No entanto, agora, escolheu deliberadamente, com firmeza, o exílio. Levava consigo, nas suas recordações, a pátria, toda a pátria.
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Creio que a sua alma sensível foi avisada por um pressentimento. Assolou-a a intuição de que atravessaria o oceano pela última vez. Ignoro se já fora atacada pelos germes da doença dos trópicos que, ocasionando-lhe um mal incurável, lhe apressaram a morte, ou se se ressentia de uma demasiada indiferença à sua volta, da falta de um lar. De qualquer modo, despediu-se dos esplendores do seu país.
Durante o longo e luminoso Outono que passou em casa do filho, passeou muito sozinha pela floresta, satisfazendo-se com a vista de árvores de copas vermelhas e douradas, banhando a alma com as derradeiras visões das brumas purpúreas que cobriam os montes. Contemplava com ternura as casas, os tranquilos habitantes, asseados e satisfeitos, as igrejinhas repletas cerimoniosamente ao domingo de famílias inteiras: pai, mãe e filhos. Todavia, o interesse de Carie residia sobretudo nos seres humanos, nesses seres privilegiados que podiam passar toda a vida na América. Gostaria de lhes poder mostrar como eram favorecidos pela sorte, naquele país único no mundo; porém, quando se tratava de assuntos profundos, exprimia-se com dificuldade. Limitava-se a sorrir com amargura quando, cheia de espanto, as pessoas lhe perguntavam se desejava na realidade voltar àquela região pagã. Estou convencida que sentiu até ao fim dos seus dias a nostalgia da América de outros tempos.
Eu própria não compreendi imediatamente como esse ano contava para Carie, mas um dia em que me achava sentada a seu lado, na igreja, entoou-se o cântico que principia assim: "Óh, a beleza dos vastos céus!". Ela cantava-o alegremente, a plena voz, e de súbito interrompeu-se: Olhei-a para averiguar o que lhe ocorria. Vi-lhe o rosto alterado pelas lágrimas e ouvi-a murmurar: "América! Oh, América!".
Carie regressou à China com Andrew, levando apenas a pequena Faith. A travessia do Pacífico prostrou-a como de costume, mas possuía a serena convicção de que seria a última vez.
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Wang Amah aguardava-os em Xangai. O seu rosto amarelo, com a mesma expressão delicada, mostrava-se sulcado de rugas e exibia uma boca sem dentes. A serva fiel e amiga já não trabalhava, mas viveu ainda alguns anos na companhia de Carie antes de se instalar em casa do filho adoptivo, quando reconheceu que precisava de ser tratada e receava tornar-se um fardo para Carie. Esta, quando chegou, ainda a conservava ao seu serviço e estreitou nas suas a pequena mão calosa e escura. Em seguida, encaminharam-se todos para a casa baixa. Carie reflectia que a aguardavam os longos anos tranquilos da idade madura e encarava-os com firmeza.
No entanto, a sua vida não devia desfrutar de paz. Os tempos eram contrários e a catástrofe da revolução chinesa abateu-se sobre eles, arrastando-os na sua voragem. Durante os últimos onze anos, imperara em toda a China uma calma espantosa e estranha - uma tranquilidade indesejável, uma segurança enganosa para todos.
Subitamente, os acontecimentos sucederam-se com uma rapidez comprovativa de que vastas revoltas haviam germinado sob essa superfície uniforme. A dinastia manchu foi destronada em Pequim e o chefe dos revolucionários, Sun Yat-sen, proclamou a república na China.
Carie havia alguns meses que regressara quando o cônsul americano aconselhou todos os compatriotas a refugiarem-se próximo da costa para prevenir o caso dessas turbas incivis, levadas no movimento geral e sem uma autoridade central a guiá-las, atacarem os estrangeiros. Carie e Andrew entreolharam-se. Esperá-los-iam as inquietações anteriores? Andrew, meio convencido, disse à mulher:
- É preferível que partas.
Carie embrulhou de má vontade algumas coisas. Na manhã do dia da partida sentiu-se indisposta - penso que não estava tão enferma como alegava - e declarou ser-lhe impossível viajar. Partiram, pois, sem eles e no dia imediato Carie, já curada, desembrulhou o que
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reunira e preparou-se para assistir à revolução. Já não tinha os filhos agarrados às saias e a ideia de tudo quanto se assemelhava a uma fuga perante o perigo horrorizava-a.
A batalha mais rude travou-se em Nanquim, a algumas léguas a montante do rio. Deitada no leito, Carie ouvia as fortes vibrações dos canhões modernos que os chineses haviam aprendido a manobrar com os ocidentais. Um dia, o barulho seco do tiroteio soou perto da casa e ela, com a sua imprudência habitual, precipitou-se para a janela a fim de verificar o que se passava.
Do lado de fora dos muros da casa distinguiu uns corpos que procuravam dissimular-se entre os bambus. Vestiu-se à pressa e desceu com rapidez as escadas sem dizer nada a ninguém. Mal saiu, reconheceu tratarem-se de refugiadas manchus que trajavam sumptuosos vestidos de seda, com altos penteados e os pés à vontade como mandava a sua moda. Algumas, para se disfarçarem, envergavam o traje chinês, mas as maçãs do rosto salientes e os pés grandes traíam-nas. Carie compreendeu em seguida que se tratava das esposas e filhas dos funcionários manchus da cidade, agora à mercê de uma mudança de governo. Com efeito, na China, o costume é este: os que sobem ao poder exterminam os membros sobreviventes das antigas famílias dirigentes. Por essa razão, aquelas pobres criaturas cumpriam a sua sorte. Carie acenou a uma delas para oferecer-lhe asilo, mas a mulher recuou aterrada na relva alta. Carie voltou para casa, torcendo as mãos pelo desespero de se sentir impotente, o que dificilmente suportava. Na verdade, nada podia tentar. A sua ajuda, na qualidade de estrangeira, ser-lhes-ia mais prejudicial do que benéfica.
É impossível de calcular o número de mulheres, de homens e de crianças da raça manchu que foram massacrados inutilmente naquela região e em toda a China. Carie permanecia no quarto com a filha. Cerravam os olhos e esforçavam-se por não ouvir o ruído que lhes chegava do. exterior. Creio mesmo que Carie,
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habituada como estava a espectáculos penosos, não pôde suportar as crueldades cometidas nesse dia. Jamais esqueceu o espectáculo pungente daquelas mulheres, tão delicadamente criadas, tão protegidas até ali, perseguidas como cervos e jazendo mortas por entre os bambus, com os vestidos de seda manchados de sangue.
No entanto, uma vez passado esse período e instituída a república chinesa, ao menos por formalidade, Carie interessou-se vivamente pelo novo estado de coisas. Era uma revoltada nata e toda a rebelião a cativava. Sendo a sua pátria uma república, esse regime afigurava-se-lhe preferível a qualquer outro. Considerava o futuro com esperança.
- Talvez procedam agora a uma limpeza - considerava.
E aprovou de viva-voz o decreto que ordenava o corte de rabichos que pendiam dos crânios dos homens e eram um sinal de servidão exigido pela antiga dinastia manchu. É certo que por vezes se divertia com o modo por que a ordem se executava e sentia certa simpatia pelo velho chinês grave e conservador que considerava a sua trança uma parte integrante da sua pessoa. Alguns lavradores que certa manhã transpuseram inocentemente as portas da cidade, com os cestos de legumes frescos enfiados numa vara assente sobre os ombros, viram-se detidos por um soldado que os agarrou e os privou dos compridos rabichos com grosseiras tesouras de cortar metal. Mais de um camponês berrou de medo, temendo ver a vida cortada com o mesmo golpe.
Por enquanto, o novo governo mostrava-se enérgico; os soldados achavam-se por toda a parte prontos a suprimir aquele sinal de servidão do passado. Mais de um homem que nessa época se aventurava a sair de manhã, orgulhosos dos seus cabelos, esgueirava-se à noite para casa como um cão envergonhado, com a cabeleira cortada junto à nuca. Na opinião de Carie, tratava-se de uma medida acertada. Interessou-se por que o jardineiro e o criado fizessem o mesmo. Entendia que os seus crânios rasos simbolizavam um passo dado no caminho do asseio e da virtude.
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Ao fim de pouco tempo voltou a imperar o sossego. A revolução dirigiu-se para o norte, deixando atrás de si algumas modificações imediatas, mas pouco mais importantes que essa tonsura geral. Quando a agitação passou, Carie achou-se perante uma existência semelhante àquela que levara no início da sua obra missionária. Faith atingira já a idade escolar. Tendo a filha ausente- de casa, Carie sentia-se desocupada.
Passou a acompanhar Andrew nas suas longas digressões de junco, de carroça ou em cadeirinhas, aos ombros de carregadores chineses. Mais tarde foi instalada uma linha férrea e fizeram, portanto, de comboio, a maior parte do percurso, desviando-se para sul e para norte, unicamente quando se avizinhavam das vilas e aldeias que deviam visitar, o que os forçava com frequência a calcorrear léguas a pé através do campo. Enquanto Andrew pregava, Carie reunia à sua volta grupos de mulheres e crianças a quem ensinava a ler, a costurar e a cantar, ao mesmo tempo que procurava iniciá-los nos princípios essenciais da vida e conduta cristãs.
Fazia tudo isso à sua maneira e não segundo os preceitos de Andrew. Ele anunciava a sua doutrina como um estrangeiro que fala num país que não é o seu e que transmite uma mensagem do rei da sua pátria. Parecia competir-lhe apenas esforçar-se por que todos escutassem as suas palavras. Desempenhada essa missão, ficava salva a sua responsabilidade.
Não obstante trinta anos de vida em comum e os sete filhos, Carie apercebia-se da distância que os separava. Desposara esse homem para satisfazer o sentido rígido da sua natureza puritana e, com o decorrer da vida, desenvolvia-se nela o elemento humano. Nunca conversavam, embora vivessem sob o mesmo tecto, navegassem juntos no mesmo junco, caminhassem sós ao longo das estradas poeirentas do interior, lado a lado, ou através das ruas pavimentadas das vilas chinesas.
Carie, cuja conversação fácil e repleta de humor encantava tanta gente, compreendeu que, mesmo os mais rápidos comentários sobre o que lhe suscitava a atenção, entediavam Andrew, que os considerava
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impertinentes e desnecessários, vivendo unicamente absorvido pelo ascetismo rigoroso da sua missão.
Outrora, Carie sonhara em colaborar com o marido num ambiente de camaradagem inquebrantável. Durante a menoridade dos filhos, as suas ocupações não lhe permitiam pôr em prática essa sua aspiração de actividade comum; contudo, agora que as filhas haviam crescido, decidira-se a comparticipar no trabalho do marido. Projectava lerem juntos a Bíblia, a fim de que ele lhe explicasse muitas passagens cujo significado Carie nem sempre alcançava. Descobriria, certamente, forma de o ajudar. Ocupar-se-ia da parte musical das funções religiosas e auxiliá-lo-ia na escolha dos cânticos, em regra demasiado graves e pesados.
Poderia atenuar o carácter drástico que o marido imprimia à divulgação espiritual e até aligeirar um pouco a secura dos seus habituais sermões.
Estudariam juntos, lado a lado, e ela propor-lhe-ia a recitação de pequenas histórias à maneira de parábolas evangélicas ou fabularias, com analogias e contrastes interessantes.
Mergulhou com todo o seu ardor nessa nova fase da sua vida. Tão alegre se sentia que não pensou sequer se Andrew desejaria a sua colaboração. Ao cabo de tantos anos, longe da pátria, esperava poder receber os frutos do seu sacrifício. O marido sentir-se-ia decerto feliz por poder utilizar a energia da mulher; completar-se-iam.
Carie equivocava-se redondamente. Andrew preferia redigir sozinho os seus discursos, que o satisfaziam plenamente. Duvidava que as sugestões da mulher pudessem melhorá-los, e os cânticos que ela compunha consideravaos bizarros e destituídos de sentido. De resto, o espírito dessas composições pareciam-lhe demasiado alegre para exprimir a dignidade religiosa. Não seria conveniente cantar a alegria e a beleza do mundo, quando se caminhava no limiar do Inferno. Demais, ele estava incumbido da doutrina de São Paulo, que dita a submissão da mulher ao homem. Bastava-lhe ver
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Carie tratar da casa, dar filhos ao mundo e cuidar das suas necessidades pessoais. "O homem é o cérebro da mulher". Segundo as Escrituras, é apenas por intermédio do homem que ela se aproxima de Deus. Caso Carie se julgasse apta, poderia instruir, dentro de certos limites, as mulheres que acorriam à igreja, mas o exame definitivo do conhecimento e da fé dos catecúmenos a Andrew somente competia, como sacerdote de Deus e nessa qualidade escolheria quem deveria admitir entre os fiéis.
Quando Carie se apercebeu do estado de espírito do marido> revoltou-se indignada. Julgou descobrir, pela primeira vez, com clareza, o santo que por Sua virtude desposara. Apesar da bondade que ele lhe testemunhava, considerou-o egoísta, de ideias limitadas e presunçoso. Não teria uma mulher o direito de se aproximar de Deus, directamente? Estava, porém, cônscia de que o seu cérebro não era tão penetrante, pronto e esclarecido, como o da maioria dos homens. Parecer-se-ia Deus realmente com o Deus de Andrew?
Não posso alhear-me do espectáculo dessa mulher, mortalmente ferida na sua alma. Estávamos tão Intimamente ligadas uma à outra, que não podia deixar de a compreender. Por vezes, palavras amargas de revolta brotavam-lhe dos lábios, para logo se arrepender de as haver proferido.
Fora educada numa época em que todos se mostravam severos para com as mulheres, desde o seu nascimento, em especial aqueles que escolhiam a vocação religiosa. Carie jamais admitiria a hipótese de uma dissolução do elo matrimonial. Não obstante os desentendimentos mútuos, a aridez afectiva da sua união, o afastamento das suas almas, jamais conceberia a possibilidade de uma separação. Os elos da religião e o dever sobrepunham-se nela aos do amor.
Sujeitou-se, dominou-se, recalcou uma vez mais a sua natureza ardente, ávida de felicidade, mas nunca saberemos quanto lhe custou tal sacrifício. Regressou à vida habitual, e, tranquila, em silêncio, reatou o seu contacto com as humildes mulheres chinesas. Renunciou à ideia
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de ser condutora espiritual de legiões de mulheres até à igreja de seu marido. Não desejaria, de forma alguma, perturbá-lo na sua alma.
Recentemente, ouvi um professor chinês que a conhecera nessa altura, referir-se-lhe nas seguintes palavras: "Recordo-me dela, em especial pelo facto de cuidar pessoalmente das suas roupas, a fim de poder economizar algum dinheiro para dar aos pobres e infelizes. Jamais encontrei uma mulher como ela".
Carie passou a viver num isolamento moral que desconhecera durante os dias de maternidade activa. Quando Andrew estava em casa, cantava baixinho e tratava do jardim que se tornara num recanto delicioso para quantos nele penetravam. Percorria a pé os caminhos pedregosos do campo que conduziam aos casebres de colmo onde se encontravam mulheres e raparigas chinesas suas protegidas. Mandava algumas ofertas a Wang Amah, demasiado velha para poder trabalhar e que nessa época vivia com o seu filho adoptivo. Escrevia aos filhos extensas missivas, enviava-lhes presentes, que conseguia conforme podia, e sonhava com o seu regresso e o prazer de tornar um dia a vê-los.
Tudo isso não era mais do que um simulacro de vida. Carie definhava. Capaz de grandes empreendimentos, toda a sua energia se achava constrangida. Enquanto os filhos haviam estado ao seu cuidado, a vida não se lhe afigurara tão vazia. Mas, agora, considerava a existência intolerável.
- Seria tão bom - suspirava - ter alguém com quem passear... alguém que me pertencesse!
Dizia-o sobretudo quando a silhueta de Andrew se afastava ao longo da estrada sinuosa, demasiadamente absorvido nos seus pensamentos para convidar a mulher a acompanhá-lo. Ela era também demasiado orgulhosa para propor-lho. Bem estranha seria a alma desse homem, tão certo de ver Deus nas alturas que não vislumbrava sequer a criatura solitária que tinha a seu lado. Desde que vi Carie tão só, tão extinta, passei a devotar no fundo do meu coração um ódio surdo
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a São Paulo. Creio que toda a mulher deve compartilhar dos sentimentos de Carie, se considerar quanto sofreram suas irmãs do passado, nascidas livres, mas malditas devido ao seu sexo. Entendo que toda a mulher deveria congratular-se com a abolição do poder doutrinário desse apóstolo.
Carie envelhecia rapidamente. Emagrecera de modo impressionante, embora conservasse o seu porte erecto. Não havia um só fio negro no seu cabelo branco de neve que a tornava parecida com Hermanus. Não tendo herdado o poder militante do pai, guardava a mesma vitalidade, na fala, no riso e na forma de abordar um gracejo.
Lia ainda as Escrituras, mas desencorajadamente e raras vezes pronunciava o nome de Deus. Suponho que tacteava cegamente em busca de um sentido de divindade. Jamais Deus se lhe revelara - em tantos anos de sacrifício - de uma maneira precisa, e receava confundir um Seu Divino Sinal com um simples fenómeno ocasional. Sentia acercar-se a velhice sem haver realizado o seu sonho. Entretinha-se a recortar poesias de revistas antigas e intercalava-as nas páginas da Bíblia; versos simples e descrições de paisagens que tivera ocasião de admirar. Li tudo isso depois da sua morte e compreendi profundamente o seu estado de espírito. Nesses poemas surgiam referências a crianças que a morte arrebatara e a exilados longe da pátria; também a um Deus que era forçoso amar, embora ninguém tivesse visto.
Aos sessenta anos Carie foi subitamente atacada pela doença dos trópicos que, conforme mais tarde descobriram, já a vinha minando há muito. É uma enfermidade cuja causa e remédio ignoravam.
Sabia-se simplesmente que a observação de certos regimes alimentares por vezes conduzia à cura. Esses casos, raros entre os indígenas, eram contudo frequentes na população branca que habitava a região.
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Repetidos acessos de malária e de disenteria haviam já, nessa data, debilitado a forte constituição física de Carie. A princípio recusou-se a recolher ao leito, mas depressa compreendeu que se tratava de uma questão de vida ou de morte. Tendo completado a sua instrução escolar, Consolação regressou a casa. Já não parecia uma adolescente e dedicou-se, inteiramente, a cuidar da mãe.
Logo que Carie ficou de cama o seu estado piorou. Permaneceu durante vários dias prostrada, sem falar e quase constantemente sonolenta. Só consentira em recolher ao leito quando as pernas se recusaram a andar. Todavia, mau grado tudo, acabou por reanimar-se, graças a um enorme esforço de vontade, resolvida a lutar para salvar a vida. Nada conseguia estimulá-la tanto como a ideia desse combate. Invadiu-a um repentino entusiasmo.
- Decidi não morrer - declarou alegremente, certa manhã. - Não quero ser vencida por este corpo velho... ainda me resta alguma juventude! Pensei em muitas coisas bastante agradáveis. Tenho sido uma tonta. Nestes últimos tempos não aproveitei bem a vida. Mas, a partir de amanhã, tudo mudará.
Empenhou-se em tratar de si própria. O médico mostrou-se estupefacto com a mudança que lhe notou. Carie discutia com ele o seu caso, interessando-se vivamente pela própria cura e considerando-a como se se tratasse da de qualquer outra pessoa. Como o tratamento a que se submetia era muito pouco conhecido, encarregou Consolação de escrever a todas as pessoas de cuja cura ouvira falar.
- É inútil informares-te a respeito das que morreram - acrescentava com jovialidade.
As respostas obtidas tornavam evidente que só o regime alimentar poderia curá-la. Aliás, esse regime diferia com as pessoas, o que complicava o caso. Aparentemente, a sua doença era consequência de uma constituição física fraca.
- Eu própria terei de descobrir os meus pontos fracos - observava, rindo. - Sempre receei possuí-los.
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O leite parecia ser-lhe eficaz, sob muitos aspectos. Submeteu-se ao regime lácteo durante dois meses, bebendo um pouco em períodos de duas em duas horas; mas de nada lhe valeu. Emagreceu tanto que o seu aspecto se tornou impressionante. Apenas se lhe viam os olhos escuros de fulgor indomável, que brilhavam naquele rosto miúdo.
- Não tardarei a parecer-me com "Alice no País das Maravilhas" - comentou, certa manhã, a Consolação que a ajudava a banhar-se. - Farei bem em engolir qualquer coisa antes que definhe por completo.
Experimentou leite coalhado e obteve um ligeiro resultado, deixando de emagrecer durante um mês; com a chegada de Junho e os calores de Verão, que arrastavam a humidade dos arrozais, tornou-se necessário levá-la para Kulling. O trajecto foi penoso, pois tivemos de a transportar envolta num espesso cobertor porquanto os ossos lhe afloravam à pele. O ar da'montanha fez-lhe bem. Alguém lograra curar-se com fígado cozido e caldo de espinafres. Não obstante o gosto nauseabundo de tal preparado, Carie tomava-o com entusiasmo.
Colocámos-lhe a cadeira na varanda. Sabíamos que admirava a beleza da natureza e deixávamo-la entregue ali às suas meditações. Por vezes, confessava:
- Quando estiver curada, tornar-me-ei terrivelmente egoísta. Passarei a ocupar-me apenas de mim mesma.
Como a escutássemos com sorrisos irónicos, acrescentava maliciosamente:
- Verão! Ficarei com umas mãos lindas! Trocávamos dela por sabermos que mal tivesse forças voltaria a cavar a terra do jardim.
- Estou a falar com seriedade - insistia. - Tenho sido estúpida em deixar-me entristecer. Quero amar a vida, mais do que nunca. Trabalhei sempre para os outros, mas a partir de agora não me reconhecerão. No fundo, sempre desejei dispor de vagar para cuidar de mim. Lerei quantos livros e revistas me interessarem. Farei um vestido de seda malva e passarei o tempo a visitar as minhas amigas, tanto mais que até hoje
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nunca o fiz apenas por prazer. Havia, em regra, uma
necessidade qualquer...
Após uma série de melhoras e recaídas dir-se-ia que Carie venceria a batalha. Aproximava-se o Outono e cada um de nós tinha de voltar ao seu campo de acção. Carie decidiu prolongar a sua estadia na montanha. Lamentava a ausência de Wang Amah, já muito velha e fraca para poder fazer-lhe companhia; e assim ficou só, na casa de pedra, apenas com um criado, decidida a prosseguir na sua luta contra a doença.
Durante essa estação pude finalmente reconstituir o que foi a sua vida, por extractos das suas cartas de Kulling. Gradualmente, ao cabo de muitas experiências conseguiu descobrir o regime alimentar que lhe convinha e obteve rápidas melhoras. Acabou por descer os degraus do jardim e efectuar pequenos passeios pela montanha sobranceira à casa. Era visitada por muita gente em troca de cujas confissões fornecia úteis conselhos. Interessou-se enormemente por uma americana de idade madura que tinha uma enfermidade análoga à dela. Estudou o caso com atenção e foi recompensada com a alegria de a ver restabelecer-se. Com o Inverno sentiu regressarem-lhe as forças. Lembrou-se então de reconstruir a casa em que se achava e que o tempo e a humidade haviam deteriorado. Mandou vir um empreiteiro chinês e ambos examinaram, pedra por pedra, trave por trave, todo o material aproveitável. Arranjariam três quartos minúsculos, duas casas de banho, um grande alpendre e uma sala com fogão de pedra. Aproveitariam a inclinação da colina para acrescentarem, em baixo, duas dependências destinadas aos criados. Sem esquecer o "Novo Testamento" de Andrew, o cálculo fora feito com grandes restrições e o preço irrisório. De manhã à noite acompanhou a construção e imitou o melhor que pôde uma habitação americana. Embora não o confessasse, o coração dizia-lhe que não voltaria a ver a pátria no outro extremo do oceano.
Quando regressámos todos, pelas férias de Agosto,
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Carie recebeu-nos na nova casa que decorara alegremente com cortinas de musselina branca, passadeiras no sobrado e jarras de flores por todos os cantos. Não constituía uma casa rica, mas emanava claridade e frescura, varrida pelos ventos e brumas da altitude.
No fim do Verão decidiu voltar para junto de Andrew, ao qual fazia muita falta no arranjo do lar. Por essa data, Consolação estava noiva de um jovem americano e pensava casar dentro de alguns meses. Por outro lado, Faith deveria partir para os Estados Unidos, visto que terminara os seus estudos em Xangai. Carie preparava-se para o casamento de Consolação e sonhava com o futuro de Faith. Sentia-se ocupada e feliz - palavras, para ela, sinónimas.
Na Primavera, presenceou o casamento de Consolação. Levava um vestido cinzento-prateado e, no braço, um grande ramo de cravos rosados que lhe realçavam admiravelmente o cabelo branco de neve. Ao ver a filha, esbelta, avançar com o véu oscilando ao vento ao encontro do noivo, experimentou uma nova emoção. Aqueles dois jovens, que lhe estavam ligados, trar-lhe-iam uma outra vida desconhecida. Como se equivocara pensando que nada mais teria a fazer!
Ela própria confeccionara o bolo de noiva, que a filha cortou.
Contemplando-a, murmurava:
- Nem na America este casamento teria sido mais perfeito.
Haviam decorrido já oito anos desde que Andrew estivera, pela última vez, nos Estados Unidos. Como o médico não considerasse Carie apta a suportar a fadiga de uma deslocação, sentiu-se oprimida pelo desejo de voltar a ver a pátria e o receio de perder irremediavelmente a saúde.
Ignoro quando teria renunciado em definitivo a acompanhar o marido. Resolveu ficar, rogando-lhe que levasse Faith consigo, embora regressasse sozinho antes do fim do ano. Ela ocupar-se-ia da casa e, na medida do possível, da obra do marido, até à sua volta.
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A notícia da morte de Cornelius chegou como que a confirmar-lhe a decisão. O desaparecimento desse que na sua infância considerara mais do que um irmão, a ideia de jamais poder tornar a contemplar-lhe o rosto, facilitou-lhe o intento. O próprio Edwin, casado, absorvido pelo seu trabalho e pelos filhos, parecia-lhe muito afastado, não carecendo dela. Carie continuava a escrever-lhe semanalmente. Andrew nunca se lembraria de ver os netos, mas Carie pediu a Faith que lhos descrevesse, por carta, e consolava-se por saber todos sãos e salvos na América, que ela tanto amava.
Ficou, dessa maneira, só, na velha casa quadrada onde outrora ouvira ressoar a voz dos filhos. Jamais tomei conhecimento de que houvesse sentido medo. O único criado que a auxiliava no trabalho de jardinagem, um velho chinês, dormia em baixo na parte reservada ao pessoal. Carie comprara uma espingarda enferrujada numa loja da vila e, embora não a soubesse manejar, levantava-se duas ou três vezes durante a noite e percorria as dependências de candeia numa mão e a arma na outra.
Durante os anos agitados que se seguiram à primeira revolução, existia um certo perigo em viver numa tal solidão. No entanto, os vizinhos conheciam-na e ela nunca demonstrava temor.
Carie explicava que a assolava uma tal cólera contra quem a pretendesse assustar que a impedia de sentir o menor receio. Recordo-me que, em determinada noite abafada de Verão, ela ouviu um ruído junto da janela do seu quarto. Saltando da cama, deparou com um corpulento chinês que a fitava com ar atrevido, semi-oculto na sombra.
- Põe-te a andar! - bradou-lhe com a sua veemência habitual. - Que fazes no meu quarto?
Precipitou-se para ele, uma silhueta branca a flutuar na sua camisa de dormir fora de moda, e o homem hesitou, acabando por recuar e desaparecer na escuridão do jardim, deixando atrás de si toalhas e fronhas que roubara.
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Andrew, muito nervoso, professava estranho temor pelos ladrões e deixou-se ficar na cama perante a indignação de Carie, a qual, depois de o haver tentado em vão forçado a levantar-se, se lançou, descalça, em perseguição do chinês. Enquanto corria, chamava os criados; mas estes, aterrados, vestiam-se com extrema lentidão, porquanto naquele país cada meliante costuma fazer-se acompanhar de uma aguçada faca. Carie, não obstante, seguiu através do campo banhado pelo luar e orvalho, esquecendo o perigo das centopeias e escorpiões, e alcançou o muro a tempo de segurar um saco prestes a desaparecer no outro lado, enquanto prosseguia as suas recriminações ao desavergonhado chinês, que por fim soltou a outra ponta do saco. Carie reuniu os vários objectos espalhados pelo jardim, no momento em que Andrew vinha ao seu encontro, sereno como compete aos santos, e os criados se moviam com afã, uma vez que o ladrão já se sumira. Carie recuperou quase toda a roupa branca roubada e regressou, triunfante, ao leito.
- Podias ter sido assassinada - censurou-a o marido. - Foste muito imprudente.
Era a primeira vez que ocorria a Carie semelhante possibilidade. Pensativamente, retrucou:
- Talvez tenhas razão. Mas fiquei furiosa quando vi aquele indivíduo invadir-me a casa. Demais, que pensavas tu fazer? Permitir que ele roubasse tudo, sem o mínimo protesto?
Não. Duvido que alguma vez Carie sentisse medo na vida. Na verdade, nutria um profundo desprezo pela cobardia física, o que constituía mais uma incompatibilidade entre ela e Andrew. Este, que sabia afrontar qualquer perigo no cumprimento do dever, era tímido no restante. Carie jamais pôde compreender aquela timidez proveniente de uma natureza desconfiada, que vivia sempre afastada da realidade.
Detestava o isolamento. Passeava diariamente, visitando as pessoas que residiam nas cercanias e regressava a casa fatigada, mas com uma expressão serena
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e satisfeita. Quando um dia lhe perguntei em que se ocupara durante esse tempo, respondeu vagamente:
- Nada fazia de importância.
Penso, aliás, que continuava a sua obra humanitária. Não rezaria, contudo deveria aconselhar a todos que tentassem acreditar em Deus, agissem segundo a sua doutrina e que decerto Ele gostaria de lhes ver os filhos limpos e instruídos, em vez de "ignorantes e vivendo na imundície".
Vi-a, uma vez; dirigir-se a um grupo de chineses muito miseráveis, a quem a existência não compensava senão com a sordidez da carne e da promiscuidade. Carie falou-lhes das estrelas e dos planetas, da vida estranha da terra e do mar, e de outras maravilhas do Universo. Eles escutavam-na boquiabertos, com expressão sonhadora. Sempre se mostrou terna com aquelas do seu sexo para quem o infortúnio do seu nascimento privava de toda a esperança. Indignava-se contra as mães que ligavam os pés das filhas, que choravam no martírio dessa lenta deformação, conseguindo muitas vezes libertá-las. De quando em vez lograva também reabilitar um fumador de ópio e não a posso censurar se, possuída dessa ardente vontade de curar os enfermos, se sentia personificada numa nova religião de Cristo.
Nessa época, Carie era assediada por um grupo de velhas mulheres que, sentindo-se desprezadas, procuravam junto dela um pouco de afeição. Desejavam que alguém se interessasse por alguns dos seus assuntos e, como a vontade de Carie era proverbial, estavam certas de que, mesmo se a Americana começasse a enfadar-se, dar-lhes-ia, quando a zanga abrandasse, algum dinheiro, um cesto com alimentos ou um pouco de tecido para que confeccionassem um vestido.
Sem contar com um grande número de pessoas que vinham consultá-la e com as quais conversava intimamente, Carie tinha também a seu cuidado a rapariga chinesa e os seus seis filhos. Creio que se desejasse tornar-se escritora não lhe haveria escasseado matéria
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para romances; todas aquelas vidas estranhas que nenhuma mulher branca sondara tão profundamente. Embora detestasse as faltas e os vícios dos homens, era generosa e reconhecia-lhes as virtudes. Apreciava sempre um gracejo, ainda que fosse à sua custa. Certo dia comprou, com algum sacrifício, um tapete, cujas cores alegres a tinham cativado. Colocou-o em frente do órgão de sala. Um chinês, conhecido de Andrew, visitou-os uma tarde para lhes falar da Nova Religião, como ele dizia. Quando decidiu sair, Andrew propôs acompanhá-lo e rogou-lhe que aguardasse apenas o tempo suficiente para vestir um casaco e mudar de sapatos. Encontrou Carie no quarto e convidou-a a sair com eles. Na rua, ao cabo de alguns minutos, pretextando qualquer afazer o chinês despediu-se e afastou-se após uma infinidade de vénias. De regresso a casa, Carie verificou que o tapete desaparecera do seu lugar junto do órgão. O visitante havia-o dissimulado na sua ampla vestimenta, enquanto Andrew se fora arranjar para o acompanhar. Se bem que contrariada pela perda, Carie ria com gosto ao recordar o ar piedoso e a voz obsequiosa do homem que lhes furtara o tapete, dobrado sob a roupa. Deixou o marido deveras surpreendido com o comentário:
- Espero que este chinês não represente o tipo dos teus catecúmenos habituais. De contrário, teremos de passar a guardar a casa constantemente.
Carie era muito indulgente para com as palavras proferidas quando não expressavam uma maldade intencional. Lembro-me de que certa vez uma americana protestara com indignação:
- Irrita-me bastante ouvir os indígenas tratar-nos por "demónios estrangeiros!" Deveriam reconhecer que lhes prestamos muitos serviços.
Sorrindo, Carie replicou:
- Talvez ignorem como deverão chamar-nos. Uma velha chinesa, doente, procurou-me certo dia para pedir-me auxílio. Inclinou-se, com a testa quase tocando o solo, e rogou humildemente: "Suplico-vos, mui
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venerável demónio estrangeiro, que me socorrais". - E sentenciou, sem abandonar a expressão risonha: - Tudo depende da forma como se exprimem.
Transcorridos oito meses Andrew regressou dos Estados Unidos deveras confundido com as modificações ali observadas. O país, depois da Grande Guerra, não se assemelhava já a nada quanto anteriormente fora. Uma mudança profunda alterava por completo uma nação que ele supusera tão imutável como o Céu. Os princípios pelos quais seus pais haviam lutado e que os tinham levado a emigrar ao longo de rios desconhecidos, eram agora tratados com cinismo e até postos em dúvida. Pelas palavras do marido, Carie compreendeu que a América atravessava uma época de desordem total. Era o seu país! Lamentou amargamente a sua velhice e impotência para o servir como desejaria, e repetia com frequência:
- Gostaria de poder recomeçar a minha vida. Se fosse nova, sabem o que faria? Iria até Nova Iorque, aos locais por onde os estrangeiros entram no nosso país, e dedicar-me-ia a explicar-lhes o significado de "América". Estou convencida de que uma das razões que impedem os Estados Unidos de ocuparem a sua devida posição é a infiltração de muita gente que ignora o sentido da palavra "Americano". Se pudesse recomeçar de novo a vida, devotá-la-ia ao meu país. Sinto-me satisfeita por ter aí um filho. Estou certa de que cumprirá, por mim, o seu dever.
Incapaz de agir, devido à idade avançada e à distância a que se encontrava da pátria, rezava mais do que nunca. Não se apercebia de que emagrecia continuamente, minada por uma profunda anemia. A antiga enfermidade afectara-lhe o organismo e, sem se dar conta, cada vez comia menos. Quando notava estar mais delgada, atribuía o facto à falta de apetite. Certo dia, porém, verificou que perdera subitamente as forças e não conseguia subir sozinha as escadas do seu quarto. Consolação apressou-se a ajudá-la; a ternura demonstrada pela filha fê-la compreender que o seu estado
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assumia proporções mais graves do que supusera. Consolação chamou prontamente o médico.
Carie achava-se, na verdade, seriamente enferma. Uma fraqueza cardíaca de mau carácter tornava impossível uma intervenção cirúrgica urgente e, não obstante, esta era imprescindível.
Habituada a ler a verdade no rosto daqueles com quem privava, Carie compreendeu pela expressão da filha que poucas esperanças lhe restavam. A sua antiga obstinação veio então em seu auxílio.
- Não morrerei - afirmou, a despeito da enorme debilidade que a invadia. - Não tive ainda tempo para fazer tudo quanto projectei. Existem muitos livros que ainda não li e quero ler... muita gente que precisa de mim. - Piscando os olhos com ar prazenteiro, acrescentou:- De resto, as minhas mãos não estão ainda belas como desejaria. Faltam-me pelo menos dez anos para me tornar numa venerável dama idosa. Terei vestidos lilases e conhecerei os filhos de meus filhos. - Depois, como se uma súbita sensação de fraqueza a martirizasse, pareceu revoltar-se contra a vontade divina e gritou: - De qualquer modo aguardarei o regresso de Faith. Quero tornar a vê-la.
Uma vez mais começou a lutar para viver. Voltámos a habitar a casinha da montanha. Os cules transportaram aos ombros essa criatura pálida, indomável, cujos olhos sombrios, sempre os mesmos, sempre jovens, brilhavam corajosamente no seu rosto emoldurado de cabelos brancos.
Carie esforçou-se com denodo por curar o seu próprio corpo; mas, mau grado toda a sua boa vontade e a sua antiga resistência física, tornava-se notório que desta vez não o conseguiria. Não se referia à morte e parecia mesmo ignorá-la, entregando-se inteiramente ao louvor da beleza da natureza. Falava da alegria que sentia ao escutar o chilrear dos pássaros em redor da casa, ao contemplar as sombras verdes que se alongavam sobre os campos relvados e admirava o esplendor dos lírios do jardim. Ao pôr-do-Sol permanecia imóvel, com os olhos fixos nas nuvens ou no vale. Ignoro se
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pensava no futuro. Era uma mulher intrépida, suficientemente destemida para aguardar os acontecimentos a pé firme.
Deus continuava a não se lhe revelar e ela parecia compreender que neste mundo ninguém pode afirmar o que o espera quando embarca sozinho "para o outro lado". Por vezes, durante a noite, quando a obscuridade a oprimia, volvia os seus enormes olhos para Consolação, que a vigiava, e repetia-lhe a pergunta que sua mãe lhe formulara outrora:
-'Minha querida... é a Morte?
A filha, emocionada, retorquia com ardor:
- Não te deixarei morrer! Carie sorria e observava:
- Como te pareces comigo! Também eu respondi assim a minha mãe.
Um dia, lamentou-se:
- Há tanta coisa que não cheguei a ver nem ouvir! Ninguém calcula como aprecio a alegria. Gostaria de possuir um gramofone para escutar todo o género de músicas que desconheço.
Trouxeram-lhe um gramofone e discos de uma vila próxima e ela ouvia-os durante horas seguidas. Não sabíamos o que pensava. Apenas solicitava que não tocássemos trechos tristes. Um de nós pusera o disco com o cântico: "Confia em Deus, Espera-O com paciência". Com uma amargura profunda e tranquila, Carie rogou:
- Tirem isso. Eu esperei durante uma vida inteira pacientemente... e em vão...
Nunca voltámos a tocar esse disco e ainda hoje não posso suportar-lhe a melodia que me recorda o tom de voz de Carie resignado, embora triste. Ela sabia, ao cabo de uma vida inteira de espera, desde o princípio, que jamais obteria o Seu sinal.
Chegou o momento em que se tornou necessária a presença de uma enfermeira. Nunca esquecerei o dia da sua chegada, vinda de um hospital de Xangai. Senti um choque quando a vi pela primeira vez. Era uma inglesa de meia-idade, muito pintada e de cabelos oxi-
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genados. Carie antipatizava com esse género de mulheres, mas fazia tanta falta uma enfermeira e tornava-se tão difícil obtê-la, em virtude de uma epidemia de cólera que lavrava em Xangai, que a aceitámos.
Com os olhos semicerrados, Carie examinou a recém-chegada. Usando da sua habitual franqueza, inquiriu:
- Por que razão usa um chapéu desses?
- Posso tirá-lo, caso queira - respondeu a enfermeira com amabilidade.
Sem hesitar, Carie volveu:
- Então, tire-o. - Momentos depois acrescentou: - Tem um lindo cabelo! É uma lástima trazê-lo oculto.
Emocionada por esse cumprimento sincero a enfermeira afeiçoou-se à doente, tratando-a sempre com uma dedicação invulgar.
Essa mulher, vinda do pior meio de Xangai, acabaria por assistir aos derradeiros momentos de Carie, em estranha harmonia de espírito e de humanidade.
A enferma, interessando-se por ela, tentou sondar o seu passado. Era uma criatura sem moral, cujo último resíduo de pudor sucumbira em aventuras amorosas durante a Guerra Mundial.
Carie escutou alguns episódios deveras sórdidos da sua história e comentou com doçura:
- Compreendo-a, minha filha. Sei quanto é difícil guardar-se a virtude, especialmente quando nada se obtém em troca, quando não se recebe uma única satisfação do Além.
Em seguida, numa das suas rápidas mudanças de
disposição, disse:
- Falou-me há pouco de bailes. Sempre desejei ver dançar o "fox-trot", de que tantos elogios tenho ouvido. Poderia efectuar-me uma demonstração?
Entrámos no meio dessa cena, ao som de um disco de "jazz". Recostada nas almofadas, Carie era a imagem personificada da Morte. Apenas os seus olhos se mostravam encantados, contemplando o vulto branco e rodopiante da enfermeira. Quando esta, no final da exibição se deixou cair exausta numa cadeira, Carie observou com ar de entendida:
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- É uma dança bonita, graciosa e ligeira. Não me surpreenderia que Andrew andasse enganado com o seu Deus! Creio que deveria escolher todas as coisas felizes e brilhantes da vida: a dança, o riso e a beleza.
Meditou durante alguns instantes e acabou por adormecer. Dessa maneira o lado alegre de uma natureza recalcada durante toda a vida readquiria os seus direitos à hora da velhice e da razão.
Nessa época, libertara-se completamente de Andrew. Não lhe pedia que a deixasse, mas a presença do marido perturbava-a visivelmente. Evidenciava mal-estar com a sua presença e, ao vê-lo entrar, murmurava amiúde:
- Esse livro não está ainda terminado, ao fim de tantos anos?
Víamo-nos na contingência de o afastar da enferma, ao que ele aquiescia, embora admirado com o carácter da mulher, especialmente agora que ela afastava com deliberação de si qualquer pensamento religioso, toda a ideia de Deus, para preferir a beleza da vida e da criação de um mundo cujas riquezas conhecia e amava.
Levámos-lhe o leito para junto da janela. Certo dia confidenciou-nos com ar sonhador:
- Apesar de tudo, a vida concedeu-me bons momentos. Tive filhos e pude trazê-los ao colo; cultivei flores; fiz cortinas de musselina que esvoaçavam nas minhas janelas; contemplei montes, vales e céu; dispus de livros, música e muita gente a quem me dediquei.
A única sombra que lhe invadia o espírito era o receio de morrer antes que Faith regressasse. Esperávamo-la de um dia para o outro até que o momento desejado chegou. Carie estava tão fraca que o seu coração podia parar à menor excitação; por isso ela própria se esforçava por se manter tranquila, como se nada se passasse.
Não queria, porém, que Faith chegasse do colégio e encontrasse a casa entristecida pela sombra da morte. Pediu que a vestissem com o seu mais lindo vestido de seda, bordado a prata, que fora um presente de Consolação, e desejou que a penteassem. Quando se achou preparada, com um ramo de rosas à cabeceira,
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solicitou uma coisa espantosa: uma pastilha de mascar. Conseguimos arranjar-lha num estabelecimento da vila e demos-lha, bastante intrigados, pois nunca provara nada de semelhante em toda a vida.
Quando Faith entrou, encontrou a mãe de grande gala apoiada às almofadas e mastigando vigorosamente chewing-gum.
Piscando-lhe os olhos, inquiriu:
- Então? Que tal achas a tua velha mãe? - Pelo seu tom, dir-se-ia que vira a filha pela última vez na véspera e não três anos antes. - Como vês, masco pastilha elástica como uma garota da moda.
Soltámos uma gargalhada e a tensão do momento desapareceu. Era o que ela desejava. Tornava-se necessário rir para evitar que chorássemos. Carie parecia lutar contra a tristeza com receio que o seu frágil coração deixasse de pulsar. Aceitou com tranquilidade a presença de Faith, demonstrando olvidar o seu prolongado afastamento.
Dia após dia entrava em sonolência e por vezes erguia as mãos inchadas e deformadas, comentando:
- Nunca as pude tratar convenientemente. Talvez mais tarde...
Apenas uma vez se referiu à morte. Acordou bruscamente e disse a Consolação que a vigiava à cabeceira:
- Minha querida filha, se eu mostrar medo nos últimos momentos será unicamente porque o meu miserável corpo se sobrepôs ao espírito. Foi sempre meu inimigo procurando dominar-me. Lembro-te de que a minha alma seguirá em frente. Não tenho medo da morte!
Reanimou-se uma vez mais para fazer algumas recomendações acerca do seu túmulo. Não queria qualquer inscrição laudatória nem alusões à sua qualidade de esposa e mãe, mas simplesmente o nome sob o qual desejaria gravados três textos em inglês e também em chinês. O último seria esta promessa triunfal: "Ao vencedor, darei a coroa de glória".
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Depois, apenas emergiu do seu torpor para recomendar:
- Não cantem coisas tristes junto ao meu caixão. Quero um cântico de glória. Detesto a ideia de morrer. A minha vida ainda não terminou. Fui feita para viver cem anos; se devo partir agora, que seja ao menos na alegria e triunfo, pois continuarei noutro lugar.
Faleceu durante o sono. No fim, o rosto iluminou-se-lhe num largo sorriso para se tornar seguidamente muito grave. Nenhum de nós compreendeu o significado dessa expressão de alegria. Carie pareceu somente afastar-se de nós, solitária, deixando-nos a recordação da sua vida, forte e fecunda, doce e amarga ao mesmo tempo. Envergámos-lhe o vestido de seda de que tanto gostava e rodeámo-la de crisântemos prateados e dourados de Outono. Foi sepultada num dia ventoso, sob um céu cinzento e brumoso. As palavras corajosas do hino que nos pedira que cantássemos ecoaram como um desafio - o desafio de toda a existência humana contra a morte inevitável que a cerca por todos os lados.
Assim terminou a vida de Carie sobre a terra.

 

 

                                                                  Pearl S. Buck

 

 

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