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Series & Trilogias Literarias
O monstro avançava lentamente pelos silenciosos corredores da Antípoda Escura, esfregando contra sua pedra oito patas cobertas de escamas. Não se espantava do eco dos roce nem o preocupava descobrir sua presença. Não corria a ficar a coberto, atento ao ataque de outro depredador. Porque, inclusive nos perigos da Antípoda Escura, esta criatura só conhecia a segurança, confiava na capacidade de derrotar a qualquer adversário. Seu fôlego emprestava a veneno, os bordos duros de suas mandíbulas abriam sulcos nas rochas, e as fileiras de dentes como serras podiam rasgar a pele mais grossa. Mas o pior de tudo era o olhar do monstro, o olhar do alfavaca, capaz de transmutar em pedra qualquer ser vivo que observava. Esta criatura, enorme e terrível, figurava entre as maiores de sua espécie. Não conhecia o medo. O caçador vigiou o passado do alfavaca tal como tinha feito umas horas antes. O monstro de oito patas era um intruso nos domínios do caçador. Tinha visto a alfavaca caçar com seu fôlego venenoso a várias de suas vitelas --uns animais um pouco maiores que um gato que formavam parte de sua dieta--, e o resto da manada tinha escapado pelos túneis, possivelmente para sempre. O caçador estava furioso. O monstro penetrou em um passadiço mais estreito, precisamente a rota que o caçador tinha suspeitado que tomaria. Este desembainhou as armas, e o contato dos punhos aumentou sua confiança. Possuía-as da infância, e, inclusive depois de quase três décadas de um uso quase constante, apenas se tinham alguma rastro de desgaste. Agora as poria a prova outra vez. O caçador embainhou as armas e esperou o som que o faria entrar em ação. O alfavaca se deteve o escutar um rugido profundo e espiou na escuridão alerta, embora seus míopes olhos só alcançavam a ver uns passos de distância. Uma vez mais soou o rugido, e o alfavaca se escondeu à espera de que aparecesse o desafiante, a próxima vítima, para matá-lo no ato. Muito atrás, o caçador saiu de seu esconderijo e correu a grande velocidade quase pego às paredes do passadiço cheias de gretas e rebordos. Envolto na capa mágica, o piwafwi, resultava invisível contra a pedra, e, graças à agilidade e à prática de seus movimentos, não fazia nenhum ruído. Avançava como o raio no mais absoluto silêncio. ouviu-se outra vez o rugido na distância; ao parecer não tinha trocado de posição. O monstro avançou impaciente por conseguir a presa. Quando o alfavaca passou por debaixo de um arco de pouca altura, um globo de escuridão impenetrável lhe rodeou a cabeça. A besta se deteve de repente e deu um passo atrás, tal como tinha suposto seu perseguidor. Então o caçador iniciou o ataque. Saltou da parede do túnel e executou três ações distintas antes de chegar a seu objetivo. Primeiro lançou um feitiço singelo que envolveu a cabeça do alfavaca em um halo de chamas azuis e púrpura. A seguir se cobriu o rosto com o capuz porque não precisava ver para lutar, e as conseqüências de um olhar do alfavaca eram mortais. Por último desembainhou as cimitarras. Só então se plantou sobre o lombo da besta e subiu pelas escamas para chegar à cabeça. O alfavaca reagiu no momento em que as chamas lhe envolveram a cabeça.
Não queimavam mas marcavam a silhueta do monstro e o convertiam em uma presa fácil. Tentou voltar-se, mas só tinha conseguido girar pela metade a cabeça quando a primeira cimitarra se cravou em um dos olhos. A criatura se encabritou com o propósito de jogar no chão ao caçador com a violência de suas sacudidas. Lançou uma nuvem de gás venenoso e sacudiu a cabeça como um látego. O caçador era muito mais rápido, e se manteve detrás da boca, onde o veneno não podia alcançá-lo. A segunda cimitarra arrebentou o outro olho, e então o caçador atacou com toda sua fúria. O alfavaca era um intruso que tinha matado a suas vitelas! Descarregou cutiladas a torto e a direito contra a cabeça couraçada para quebrar as escamas e alcançar a carne. O alfavaca compreendeu o perigo mas confiava em ganhar. Sempre tinha saído vitorioso. Só tinha que jogar o fôlego venenoso contra seu atacante. Então se somou ao ataque o segundo inimigo que com seus rugidos tinha tendido a ceva. O felino se lançou contra a cabeça envolta em chamas sem preocupar-se da nuvem tóxica, porque se tratava de um ser mágico e, portanto, imune a seus efeitos. As garras da pantera rasgaram as mandíbulas do alfavaca, e o sangue fechou o passo à peçonha. detrás da cabeça, o caçador descarregou um centenar ou mais de golpes selvagens que conseguiram primeiro abrir uma brecha na couraça de escamas e depois hendir o crânio do alfavaca. Mas o caçador não deteve o ataque até bastante depois da morte do monstro. Por fim o vencedor se tirou o capuz para observar os despojos do alfavaca e o estado das armas. Depois levantou bem alto as cimitarras manchadas de sangue e proclamou seu triunfo com um grito de alegria. Ele era o caçador e esse era seu lar! Entretanto, depois de esgotar sua ira com aquele grito primitivo, o caçador olhou a sua companheira e se envergonhou. Os grandes olhos amarelos o julgavam, embora não fora esta sua intenção. O felino era o único vínculo com o passado, com a civilização que o caçador tinha conhecido em outros tempos. --Vêem, Guenhwyvar --sussurrou enquanto embainhava as cimitarras. Desfrutou com o som das palavras ao as pronunciar. A sua era a única voz que tinha escutado em mais de uma década. Mas agora, quando falava em voz alta, resultava-lhe cada vez mais difícil as recordar e lhe soavam desconhecidas. Também perderia a capacidade de falar da mesma maneira que tinha perdido tantas outras coisas da vida passada? Esta possibilidade o preocupava muitíssimo, porque sem voz não poderia chamar à pantera. Então se encontraria realmente sozinho. Pelos silenciosos corredores da Antípoda Escura, o caçador e a pantera seguiram seu caminho sem fazer nenhum ruído, sem mover nenhuma pedra. Juntos tinham chegado a conhecer os perigos deste mundo em silêncio. Juntos tinham aprendido a sobreviver. Apesar da vitória contra o monstro, o caçador não sorria. Não temia a nenhum inimigo, mas já não tinha muito claro se era pela coragem e a confiança em si mesmo ou pela apatia de sua vida. Possivelmente não bastava sobrevivendo.
PRIMEIRA PARTE
O caçador
Recordo com toda claridade o dia em que abandonei a cidade onde nasci, a cidade de minha raça. Ante mim se abria a imensidão da Antípoda Escura, uma vida de emoções
e aventuras que me entusiasmava. Mas sobre tudo o resto, tinha deixado Menzoberranzan convencido de que poderia viver minha vida de acordo com meus princípios. Tinha
ao Guenhwyvar a meu lado e as cimitarras enganchadas ao cinturão. Era dono de meu destino. Mas aquele drow, o jovem Drizzt Dou'Urdem que abandonou Menzoberranzan
naquela data assinalada, logo que entrado na quarta década de vida, não compreendia a verdade do tempo, de como seu passo parece cada vez mais lento quando não se
compartilha com outros. Em meu entusiasmo juvenil, pensava nos séculos de vida que tinha por diante. Como pode medir os séculos quando uma só hora parece um dia
e um só dia parece um ano? além das cidades da Antípoda Escura, há comida para aqueles que sabem como encontrá-la e segurança para aqueles que sabem onde ocultar-se.
E, por cima de todo o resto, além das populosas cidades da Antípoda Escura há solidão. À medida que me convertia em uma criatura dos túneis desertos, conseguir os
meios para sobreviver resultou mais fácil mas se fez mais difícil em outros aspectos. Adquiri a habilidade e experiência necessárias para defender minha vida. Era
capaz de derrotar a quase todas as criaturas que penetravam em meu território, e de escapar ou me esconder dos poucos monstros aos que não podia vencer. De todos
os modos, não demorei muito em descobrir ao único inimigo invencível do que não me era possível escapar nem me esconder. Seguia-me ali aonde ia e, quanto mais me
afastava, mais perto a tinha. Meu inimigo era a solidão, o silêncio eterno dos túneis em trevas. Ao recordar aqueles anos, surpreendem-me e assombram as muitas mudanças
que sofri por efeito da solidão. A própria identidade de um ser racional está definida pela linguagem, a comunicação, entre aquele ser e os que o rodeiam. Sem aquele
vínculo, estava perdido. Quando deixei Menzoberranzan, tinha decidido viver segundo meus princípios: a força surgiria da lealdade inquebrável a minhas crenças. Em
troca, aos poucos meses de solidão na Antípoda Escura, o único fim de minha vida era a sobrevivência em si mesmo. Tinha-me convertido em uma criatura instintiva,
calculadora e ardilosa que não pensava, que só utilizava a mente para escolher a seguinte presa. Acredito que Guenhwyvar foi minha salvação. A mesma companheira
que me tinha salvado de uma morte segura entre as garras de uma infinidade de monstros também me resgatou da morte por solidão, possivelmente muito menos heróica
mas não por isso menos mortal. Descobri que vivia só para os momentos em que a pantera caminhava a meu lado, quando tinha a outro ser vivo para escutar minhas palavras
por muito que me custasse as pronunciar. além de seus muitos outros méritos, Guenhwyvar se converteu em meu relógio, porque sabia que a pantera podia retornar do
plano astral a dias alternos e durante meio-dia. Só depois do final daquela odisséia compreendi quão terrível tinha sido. Sem o Guenhwyvar, não teria mantido a decisão
de seguir adiante, jamais teria conservado as forças para sobreviver.
Inclusive quando ela estava a meu lado, duvidava cada vez mais de minha posição ante o combate. Em segredo tinha começado a desejar que algum feto da Antípoda Escura
resultasse ser mais forte que eu. Acaso a dor de umas presas ou de umas garras cravadas na carne podia ser mais forte que o suplício da solidão e o silêncio? Acredito
que não.
DRIZZT DOU'URDEM
1
Um presente de aniversário
A matrona Malícia Dou'Urdem se moveu inquieta no trono de pedra instalado na pequena e escura hall da grande capela da casa Dou'Urdem. Para os elfos escuros, que
mediam o passado do tempo por décadas, o presente era um dia famoso nos anais da casa de Malícia, o décimo aniversário da guerra encoberta que mantinham a família
Dou'Urdem e a casa Hun'ett. A matrona Malícia, que nunca se perdia uma celebração, tinha preparado um presente especial para seus inimigos. Briza Dou'Urdem, a filha
maior de Malícia, uma fêmea forte, fornida e de muito mau caráter, passeava-se impaciente acima e abaixo pela hall. --Já teria que ter acabado --protestou propinando
um chute a um pequeno tamborete, que voou pelos ares e foi a estelar se contra o chão. O assento, feito de caule de cogumelo, abriu-se em dois. --Paciência, minha
filha --aconselhou-lhe Malícia com um ligeiro tom de recriminação, embora compartilhava o nervosismo da Briza. Jarlaxle é muito precavido. Briza se voltou para
escutar a menção do presunçoso mercenário e caminhou para as portas de pedra decorada da sala. Malícia não passou por cima o significado das ações de sua filha.
--Não aprova ao Jarlaxle e a sua banda --declarou a mãe matrona. --São uns trapaceiros ingratos --afirmou Briza, sem olhar a sua mãe. Não há lugar no Menzoberranzan
para gente como eles. Perturbam a ordem natural de nossa sociedade! E são todos varões! --Servem-nos bem --recordou-lhe Malícia. Briza fez um esforço para não mencionar
o elevado custo que representava alugar mercenários. Não queria provocar a ira da matrona. Do começo da guerra com os Hun'ett, ela e Malícia não tinham feito outra
coisa que discutir. --Sem Brigam D'aerthe, não poderíamos lutar contra nossos inimigos --acrescentou Malícia. Utilizar os serviços dos mercenários..., os trapaceiros
ingratos, como os chamaste..., permite-nos combater sem comprometer a nossa casa como participante no conflito. --E por que não acabamos de uma vez com tudo isto?
--perguntou Briza ao tempo que se aproximava do trono. Matamos a uns quantos soldados Hun'ett, e eles matam a um punhado dos nossos. E enquanto isso as duas casas
se dedicam a contratar a quem quer substitui-los. Não se acabará nunca! Os únicos beneficiados neste conflito são os mercenários de Brigam D'aerthe... e a banda
que tenha contratado a matrona SiNafay Hun'ett..., que se alimentam das arcas das duas casas! --Vigia o tom, minha filha! --grunhiu Malícia, zangada. Fala com
uma mãe matrona! --Teríamos que ter atacado a casa Hun'ett imediatamente, a mesma noite do sacrifício do Zaknafein! --atreveu-se a protestar Briza, enquanto dava
meia volta.
--Se esquece das ações de seu irmão menor durante aquela noite -- replicou Malícia, mais sossegada. Mas a matrona Malícia se equivocava. Até no caso de que vivesse
mil anos, Briza jamais esqueceria as ações do Drizzt a noite em que tinha desertado da família. Treinado pelo Zaknafein, o amante favorito de Malícia, reputado como
o melhor professor de armas em todo Menzoberranzan, Drizzt tinha conseguido uma perfeição no manejo das armas muito por cima da norma. Mas Zak também lhe tinha inculcado
umas atitudes blasfemas que Lloth, a deidade dos elfos escuros, não tolerava. Por fim, o comportamento sacrílego do Drizzt tinha provocado a cólera do Lloth, e a
reina aranha tinha reclamado o sacrifício do jovem. A matrona Malícia, impressionada pelas aptidões do Drizzt para a guerra, tinha atuado com decisão em defesa do
jovem e tinha entregue ao Lloth o coração do Zaknafein como compensação pelos pecados do filho. Tinha perdoado ao Drizzt com a esperança de que, desaparecidas as
más influências do Zaknafein, emendaria a conduta e substituiria ao professor de armas sacrificado. Em troca, o ingrato Drizzt os tinha traído e tinha escapado às
regiões desconhecidas da Antípoda Escura; um ato que não só tinha privado à casa Dou'Urdem de seu candidato a professor de armas mas sim além disso tinha feito perder
o favor do Lloth à matrona Malícia e ao resto da família Dou'Urdem. Como desastrosa conclusão de todos seus esforços, a casa Dou'Urdem tinha perdido ao professor
de armas, a seu suposto substituto, e o favor do Lloth. Aquele não tinha sido um bom dia. Por sorte, a casa Hun'ett também tinha sofrido desce na mesma data: a morte
de dois magos que tinham tentado assassinar ao jovem guerreiro. Com as duas casas debilitadas e sem contar com o favor do Lloth, a guerra iminente se transformou
em uma interminável série de ataques encobertos. Briza nunca o esqueceria. Uma chamada à porta da hall arrancou a Malícia e a Briza das lembranças daquele dia desgraçado.
abriu-se a porta e Dinin, o filho maior da casa, entrou na sala. --Saúde, mãe matrona --saudou com todo respeito enquanto fazia uma reverência. Dinin queria lhe
dar uma surpresa, mas o sorriso que lhe iluminava o rosto o descobriu. --Jarlaxle tornou! --exclamou Malícia, exultante. Dinin se voltou para a porta aberta, e o
mercenário, que tinha esperado pacientemente no corredor, fez sua entrada. Briza, que não deixava de surpreender-se ante a extravagância do patife, sacudiu a cabeça
quando Jarlaxle passou junto a ela. Quase todos os elfos escuros do Menzoberranzan vestiam com discrição e praticamente: adornavam os objetos com símbolos da rainha
arranha ou utilizavam uma cota de malha oculta debaixo dos piwafwi, as capas mágicas. Jarlaxle, arrogante e descarado, seguia muito poucas dos costumes dos habitantes
do Menzoberranzan. Não constituía precisamente um modelo do que a sociedade drow exigia, e sentia prazer em ressaltar as diferenças, em uma atitude insolente. Não
vestia uma túnica ou um penhoar, a não ser uma capa resplandecente que refletia tudas as cores do espectro da luz normal e a infravermelha. A magia do objeto só
se podia intuir, mas os mais amealhados à líder mercenário comentavam que era muito poderosa. O colete do Jarlaxle não tinha mangas e era tão curto que seu magro
e musculoso estômago ficava à vista. Levava um olho coberto por um emplastro, embora um observador atento podia ver que só servia de adorno, porque o mercenário
o trocava de um olho a outro com certa freqüência.
--Minha querida Briza --disse Jarlaxle por cima do ombro, ao ver a expressão de desgosto da grande sacerdotisa ante sua aparência. Deu meia volta e fez uma reverência
que acompanhou com um empolado movimento de seu chapéu, outra excentricidade, e mais inclusive quando o chapéu estava adornado com as enormes plumas de um diatryma,
um pássaro gigante da Antípoda Escura. Briza soprou zangada e se girou para não ver a cabeça inclinada do mercenário. Os elfos drows utilizavam suas espessas cabeleiras
brancas como um emblema de sua fila, com um corte destinado a mostrar sua categoria e a filiação da casa. Em troca Jarlaxle não tinha cabelo e, a Briza, a cabeça
barbeada lhe parecia uma bola de ônix. Jarlaxle riu discretamente do aborrecimento da filha maior dos Dou'Urdem e voltou sua atenção à matrona Malícia. As numerosas
jóias tilintavam, e os saltos de suas botas reluzentes soavam com cada passo. Briza também notou estes detalhes, porque sabia que as botas e as jóias só pareciam
fazer ruído a vontade do patife. --Parece? --perguntou a matrona Malícia antes de que o mercenário tivesse tempo de saudá-la. --Minha querida matrona Malícia --respondeu
com um suspiro quejumbroso, consciente de que podia saltá-las formalidades à vista da importância das notícias--, é que duvidastes que mim? Sinto-me muito doído.
Malícia abandonou seu trono de um salto e levantou um punho em sinal de vitória. --Dipree Hun'ett está morto! --proclamou. O primeiro nobre morto nesta guerra!
--Se esquece do Masoj Hun'ett --comentou Briza--, ao que matou Drizzt faz dez anos. --E, contra toda prudência, acrescentou--: E do Zaknafein Dou'Urdem, morto por
sua própria mão. --Zaknafein não era nobre de nascimento --replicou Malícia, zangada pela insolência da filha. As palavras da Briza lhe picaram a consciência. Malícia
tinha decidido sacrificar ao Zaknafein em lugar da o Drizzt com a oposição da Briza. Jarlaxle pigarreou em um intento de dissuadir às duas mulheres de prolongar
a discussão. O mercenário sabia que devia acabar seus assuntos e sair da casa Dou'Urdem o antes possível. Estava advertido --embora os Dou'Urdem não sabiam-- de
que faltava pouco para a hora assinalada. --Ainda está por resolver o tema do pagamento --recordou a Malícia. --Dinin se ocupará de te pagar --repôs Malícia, que
se despediu do mercenário com um gesto sem desviar o olhar do rosto da Briza. --Então me retiro --disse Jarlaxle e, com um movimento de cabeça, indicou ao Dinin
que o acompanhasse. antes de que o mercenário desse um passo em direção à saída, Vierna, a segunda filha de Malícia, entrou na sala, com o rosto brilhante pelo calor
do entusiasmo. --Maldição --sussurrou Jarlaxle pelo baixo. --O que ocorre? --perguntou a matrona Malícia. --A casa Hun'ett! --gritou Vierna. Soldados no pátio!
Atacam-nos! No pátio de armas, mais à frente do edifício principal, quase quinhentos soldados da casa Hun'ett --cem mais dos calculados pelos informe dos espiões--
penetraram na casa Dou'Urdem depois do estalo de um raio contra os portões de adamantita. Os trezentos e cinqüenta soldados da guarnição dos Dou'Urdem saíram à carreira
das estalagmites que lhes serviam de quartéis para responder ao ataque. Superadas em número mas treinadas pelo Zaknafein, as tropas se agruparam nas posições defensivas
que tinham como principal objetivo proteger aos magos e as
sacerdotisas para que pudessem lançar seus feitiços. Todo um contingente de soldados Hun'ett, que podiam voar graças a um feitiço, lançaram-se em picado contra o
setor da parede da caverna que albergava os aposentos principais da casa Dou'Urdem. Os defensores utilizaram com grande eficácia as pequenas molas de suspensão de
mão e dizimaram aos soldados voadores com seus dardos envenenados. Mas os invasores aéreos tinham conseguido surpreender aos defensores, e estes não demoraram para
ver-se em uma situação comprometida. --Hun'ett não tem o favor do Lloth! --chiou Malícia. Jamais se atreveria a atacar abertamente! Enrugou o gesto quando o estrondo
dos raios lhe deram a réplica. --Não? --disse Briza. Malícia lhe dirigiu um olhar de ameaça mas já não tinha tempo para continuar a discussão. O plano normal de
ataque de uma casa drow compreendia o assalto dos soldados em combinação com uma barreira mental a cargo das somas sacerdotisas da casa. Entretanto, Malícia não
captava nenhuma onda do ataque mental, e isto lhe confirmou convincentemente que os atacantes pertenciam à casa Hun'ett. Ao parecer, as sacerdotisas inimizades,
separada-se da graça da rainha aranha, não podiam utilizar os poderes outorgados pelo Lloth para lançar o ataque mental. Desde não ser assim, Malícia e as filhas,
também privadas do favor da rainha aranha, não teriam tido nenhuma esperança de salvação. --O que os terá impulsionado ao ataque? --pensou Malícia em voz alta.
--Certamente são muito ousados --respondeu Briza, que tinha compreendido o raciocínio da matrona--, ao pensar que só com os soldados podiam eliminar a todos os membros
de nossa casa. Todos os presentes na sala sabiam, igual a todos os drows do Menzoberranzan, o castigo brutal e inexorável que recebia qualquer casa incapaz de eliminar
totalmente a outra. Os ataques estavam permitidos de uma forma encoberta mas não se perdoava o fracasso. Rizzen, o atual patrão da casa Dou'Urdem, entrou na sala
com uma expressão muito grave no rosto. --Dobram-nos em número e perdemos posições --informou. Não demoraremos muito em cair derrotados. Malícia não quis aceitar
a má nova. Esbofeteou ao Rizzen com tanta força que o fez cair ao chão, e depois se voltou para o mercenário. --Deve chamar a sua banda! --gritou a matrona. Depressa!
--Matrona--gaguejou Jarlaxle, surpreso--, Brigam D'aerthe é um grupo secreto. Não participamos das guerras abertas. Fazê-lo significaria provocar a ira do conselho
regente! --Pagarei-te o que seja --prometeu a mãe matrona, desesperada-se. --Mas o custo... --O que seja! --repetiu Malícia. --Dita ação... --começou Jarlaxle. Uma
vez mais, Malícia não o deixou acabar a frase. --Salva minha casa, mercenário --gritou. Seus lucros serão enormes mas lhe advirto isso, muito mais te custará o
fracasso! Ao Jarlaxle não gostava das ameaças e muito menos de uma mãe matrona necessitada cujo mundo se desabava a seu redor. Não obstante, o doce som da palavra
"lucros" valia aos ouvidos do mercenário mais que um milhar de ameaças. depois de conseguir durante dez anos consecutivos uns benefícios extraordinários do conflito
entre os Dou'Urdem e os Hun'ett, Jarlaxle não duvidava da vontade nem da capacidade de Malícia para pagar o prometido, nem tampouco duvidava de que este acerto resultaria
muito mais lucrativo que o outro estabelecido com a matrona SiNafay Hun'ett a
princípios de semana. --Como querem --respondeu à oferta da matrona Malícia, e acompanhou a resposta com uma reverência e um floreio de seu ridículo chapéu. Verei
o que posso fazer. Dirigiu uma piscada ao Dinin, e o filho maior se apressou a segui-lo fora da sala. Quando os dois saíram ao balcão que dominava o recinto Dou'Urdem,
puderam ver que a situação tinha piorado sensivelmente. Os soldados da casa Dou'Urdem --aqueles que ainda estavam vivos-- encontravam-se apanhados ao redor de uma
das imensas estalagmites que formavam parte da entrada. Um dos soldados voadores descendeu ao balcão ao descobrir a presença de um nobre Dou'Urdem, mas Dinin o despachou
em um abrir e fechar de olhos. --Bem feito --comentou Jarlaxle, com um olhar de aprovação. aproximou-se disposto a aplaudir o ombro do filho maior, mas este se apartou.
--Temos que nos ocupar de assuntos mais urgentes --recordou-lhe Jarlaxle. Chama a suas tropas, e depressa, porque se não a vitória será para a casa Hun'ett. --Tranqüilo,
amigo Dinin --respondeu o mercenário com uma gargalhada, e agarrando um pequeno apito que tinha pendurado do pescoço, soprou nele. Dinin não ouviu nenhum som porque
os assobios do mágico instrumento só podiam ser escutados pelos membros de Brigam D'aerthe. O filho maior dos Dou'Urdem observou assombrado enquanto Jarlaxle soprava
as ordens, e seu assombro não teve limites quando mais de um centenar de soldados da casa Hun'ett começaram a atacar a seus camaradas. Brigam D'aerthe só era leal
a si mesmo. --Não podem nos atacar --insistiu Malícia, passeando-se de cima abaixo pela sala. Não contam com a ajuda da rainha aranha. --em que pese a não contar
com sua ajuda estão a um passo de conseguir a vitória --recordou-lhe Rizzen do rincão mais afastado da habitação, onde se tinha refugiado com toda prudência. --Você
disse que jamais se atreveriam a atacar! --reprovou-lhe Briza à mãe. Inclusive quando tentava justificar as razões para não realizar nosso próprio ataque! Briza
recordava aquela conversação com todo detalhe, porque tinha sido sua idéia atacar abertamente à casa Hun'ett. Malícia a tinha repreendido publicamente, e agora Briza
pretendia lhe devolver a humilhação. Sua voz soava carregada de sarcasmo enquanto respondia à matrona. --É possível que a matrona Malícia tenha cometido um engano?
A réplica de Malícia foi um olhar onde se combinavam a cólera e o terror. Briza lhe devolveu o olhar sem acovardar-se, e de repente a mãe matrona da casa Dou'Urdem
não se sentiu tão invencível e segura de suas ações. Deu um coice quando Maia, a menor das filhas, apareceu na sala. --entraram na casa! --gritou Briza, convencida
de que tinha chegado o momento final, e empunhou o látego de cabeças de serpente. E nem sequer temos feito os preparativos para a defesa! --Não! --corrigiu-a Maia.
O inimigo não cruzou o balcão. A casa Hun'ett está a ponto de perder a batalha! --Sabia --exclamou Malícia, que se ergueu encorajada com o olhar posto na Briza.
A casa que ataca sem contar com o favor do Lloth comete uma loucura! Apesar de suas afirmações, Malícia adivinhava que havia algo mais que o favor da rainha aranha
no imprevisto resultado do combate. Seu raciocínio a levou indevidamente ao Jarlaxle e a sua banda de trapaceiros.
Jarlaxle saltou do balcão e utilizou as habilidades inatas dos drows para levitar até o chão da caverna. Ao ver que não precisava envolver-se em uma batalha que
estava controlada, Dinin permaneceu no lugar e observou a marcha do mercenário enquanto pensava no que acabava de acontecer. Jarlaxle tinha servido aos dois bandos,
e uma vez mais o mercenário e sua banda tinham sido os autênticos ganhadores. Certamente, os integrantes de Brigam D'aerthe não tinham escrúpulos, mas Dinin reconheceu
que eram muito efetivos e descobriu que o mercenário lhe era simpático. --A acusação foi entregue à matrona Baenre segundo todos os requisitos? --perguntou- Malícia
a Briza quando a luz do Narbondel, a estalagmite aquecida magicamente que servia de relógio no Menzoberranzan, começou sua ascensão para marcar o alvorada do novo
dia. --A casa regente esperava a visita --respondeu Briza em tom burlam. Toda a cidade comenta o ataque e o êxito da casa Dou'Urdem ante os invasores da casa Hun'ett.
A matrona Malícia tentou dissimular sem consegui-lo um sorriso vaidoso. Desfrutava com a atenção e a glória que de agora em diante mereceria sua casa. --O conselho
regente se reunirá hoje mesmo --acrescentou Briza. Sem dúvida para desespero da matrona SiNafay Hun'ett e sua família. Malícia assentiu. A destruição de uma casa
rival no Menzoberranzan era uma prática legítima entre os drows. Mas se fracassava no intento, se só ficava vivo uma testemunha de sangue nobre para apresentar a
acusação, então o conselho regente ordenava a eliminação definitiva da casa agressora. Uma chamada fez que ambas se voltassem para a porta. --Chamam-lhe, matrona
--anunciou Rizzen assim que entrou na sala. A matrona Baenre enviou uma limusine. Malícia e Briza intercambiaram um olhar nervoso e esperançado. Quando impor o
castigo à casa Hun'ett, a casa Dou'Urdem passaria a ocupar o oitavo lugar dentro da hierarquia da cuidem, uma posição invejável, pois unicamente as mães matronas
das primeiras oito casas ocupavam um assento no conselho regente do Menzoberranzan. --Já? --perguntou Briza. Malícia encolheu os ombros como única resposta; saiu
da sala detrás do Rizzen e chegou até o balcão. Rizzen tendeu uma mão para ajudá-la, mas Malícia a apartou com violência. Transbordante de orgulho, a matrona se
encarapitou à balaustrada e descendeu lentamente até o pátio de armas, onde se agrupavam os soldados da casa. O disco voador com a insígnia da casa Baenre flutuava
a uns passados do portão destroçado ao começo da batalha. A mãe matrona desfilou com a cabeça bem alta entre as tropas que se empurravam para lhe deixar passo. Hoje
era seu dia de glória, o dia em que tinha conseguido um assento no conselho regente, o sonho de toda sua vida. --Mãe matrona, acompanharei-te através da cidade --ofereceu-se
Dinin, que a esperava na entrada. --Permanecerá aqui com o resto da família --ordenou-lhe Malícia. Só me chamaram . --Como sabe? --perguntou Dinin, mas se deu
conta de que tinha cometido um engano logo que as palavras saíram de sua boca. Quando Malícia voltou a cabeça para fulminá-lo com o olhar, Dinin já tinha desaparecido
entre os soldados. --Insolente --murmurou pelo baixo, e ordenou a quão soldados retirassem os restos do portão reparado pela metade. Com um último olhar triunfal
a seus súditos, Malícia cruzou a grade e se instalou no disco voador.
Esta não era a primeira vez que Malícia respondia a um convite da matrona Baenre, assim não se surpreendeu quando várias sacerdotisas Baenre saíram das sombras para
formar um escudo de amparo ao redor do disco e sua passageira. A vez anterior, Malícia não as tinha tido todas consigo porque desconhecia os motivos do convite.
Agora, em troca, cruzou os braços sobre o peito em um gesto de desafio e deixou que os curiosos a contemplassem no esplendor da vitória. Malícia aceitou com orgulho
as olhadas, convencida de sua superioridade. Inclusive quando o disco chegou à fabulosa grade em forma de telaraña da casa Baenre, com os mil guardas e as fantásticas
edificações que abrangiam estalagmites e estalactites, o orgulho de Malícia não diminuiu nem um ápice. Agora formava parte do conselho regente, ou o faria dentro
de muito pouco; já não tinha razões para sentir-se intimidada em nenhum lugar da cidade. Ao menos era o que acreditava. --Esperam sua presença na capela --informou-lhe
uma das sacerdotisas Baenre assim que o disco se deteve o pé da escada que conduzia ao grande edifício com forma de cúpula. Malícia desembarcou do veículo e subiu
os degraus de pedra polida. logo que entrou na capela advertiu a presença de uma figura sentada em uma das cadeiras instaladas no altar central. A drow, a única
pessoa visível na sala, não parecia haver-se dado conta da entrada da mãe matrona. Permanecia sentada comodamente, muito entretida em contemplar a enorme imagem
mágica no teto da cúpula que primeiro mostrava uma aranha gigante e depois uma formosa mulher drow. Quando se aproximou, Malícia reconheceu as vestimentas de uma
mãe matrona, e deu por sentado, como tinha feito do primeiro momento, que se tratava da matrona Baenre, o ser mais capitalista de toda Menzoberranzan, que a esperava.
Malícia subiu a escada do altar, e se aproximou da drow pelas costas. Sem esperar o convite, avançou com toda ousadia para saudar a outra mãe matrona. Entretanto,
não se tratava da figura anciã e encolhida da matrona Baenre a que Malícia Dou'Urdem encontrou no altar da capela Baenre. A mãe matrona sentada não tinha superado
a longevidade habitual dos drows nem era tão enrugada e seca como uma múmia. De fato, esta drow tinha mais ou menos a mesma idade de Malícia e era bastante pequena.
Malícia a conhecia muito bem. --SiNafay! --gritou e a ponto esteve de cair pela surpresa. --Malícia --respondeu a outra, muito tranqüila. Um sem-fim de possibilidades
desagradáveis desfilaram pela mente de Malícia. SiNafay Hun'ett teria que ter estado refugiada em sua casa junto ao resto da família à espera da aniquilação. Em
troca, aparecia sentada o mar de feliz no recinto sagrado da família mais importante do Menzoberranzan. --Não tem nenhum direito a estar aqui! --protestou Malícia,
com os punhos apertados contra os quadris. Por um instante pensou em atacar a seu rival ali mesmo, em estrangular ao SiNafay com suas próprias mãos. --te tranqüilize,
Malícia --recomendou-lhe SiNafay, despreocupada. Como você, estou aqui convidada pela matrona Baenre. A menção desta e o aviso do lugar onde se encontravam sossegaram
a Malícia. Esta era a capela da casa Baenre e não sua casa! Malícia se dirigiu ao lado oposto do altar circular e tomou assento, sem apartar o olhar nem por um instante
da presumido sorriso do SiNafay Hun'ett. depois de uns minutos de silêncio que lhe pareceram eternos, Malícia não pôde conter-se mais. --Foi a casa Hun'ett a que
atacou a minha família na última escuridão do Narbondel --afirmou. Tenho numerosas testemunhas do fato. Não pode haver nenhuma
dúvida! --Nenhuma --respondeu SiNafay, e seu assentimento pilhou a Malícia com o guarda baixo. --Admite o fato? --exclamou Malícia, frustrada. --Certamente --disse
SiNafay. Nunca o neguei. --Mesmo assim está viva --disse Malícia, com desprezo. As leis do Menzoberranzan exigem que o peso da justiça caia sobre ti e sua família.
--Justiça? --SiNafay soltou a gargalhada ante uma idéia tão estúpida. A justiça nunca tinha sido mais que uma fachada e uma maneira de simular uma certa ordem no
caos do Menzoberranzan. Atuei de acordo com o mandato da rainha aranha. --Se a reinar aranha aprovava seus méritos, teria conseguido a vitória -- raciocinou Malícia.
--Não necessariamente --interrompeu outra voz. Malícia e SiNafay se voltaram quando a matrona Baenre apareceu por arte de magia em seu trono, localizado-se no lado
mais afastado do altar. Malícia desejou poder descarregar sua ira contra a anciã mãe matrona por espiar a conversação e pela aparente negativa às acusações contra
SiNafay. Mas se Malícia tinha conseguido sobreviver aos perigos do Menzoberranzan durante quinhentos anos, era porque compreendia os riscos de provocar a cólera
de alguém como a matrona Baenre. --Reclamação o direito de acusação contra a casa Hun'ett --disse Malícia, sem elevar a voz. --Concedido --repôs a matrona Baenre.
Como há dito, e SiNafay esteve de acordo, não há nenhuma dúvida. Malícia se voltou triunfante para o SiNafay, mas a mãe matrona da casa Hun'ett permanecia tão tranqüila
e sorridente como antes. --Então, por que está aqui? --protestou Malícia, com um tom quase histérico. SiNafay está fora da lei. Não... --Não pusemos nenhuma objeção
a suas palavras --interrompeu-a a matrona Baenre. A casa Hun'ett atacou e fracassou. O castigo que merecem suas ações é bem conhecido e aceito por todos, e o conselho
regente se reunirá hoje mesmo para ocupar-se de que se faça justiça. --Então, por que está aqui SiNafay? --repetiu Malícia. --Dúvidas da sabedoria de meu ataque?
--perguntou-lhe SiNafay a Malícia, quase sem poder conter a risada. --Foi derrotada --recordou-lhe Malícia. Aí tem a resposta. --Lloth exigiu o ataque --disse
a matrona Baenre. --Então, por que foi derrotada a casa Hun'ett? --insistiu Malícia, teimada. Se a reinar aranha... --Não hei dito que a reina aranha tivesse dado
a bênção à casa Hun'ett -- afirmou a matrona Baenre sem lhe deixar acabar a frase e um tanto zangada. Malícia se moveu inquieta em sua cadeira, ao recordar onde
estava e sua situação. --Só hei dito que Lloth exigiu o ataque --acrescentou a matrona Baenre. Durante dez anos Menzoberranzan suportou o espetáculo de sua guerra
privada. Asseguro-lhes que já não interessava a ninguém. Tinha que acabar-se de uma vez por todas. --E se acabou --declarou Malícia e ficou de pé. A casa Dou'Urdem
conseguiu a vitória, e reclamação o direito de acusação contra SiNafay Hun'ett e sua família! --Sente-se, Malícia --interveio SiNafay. Em tudo isto há algo mais
que seu direito de acusação. Malícia olhou à matrona Baenre em busca da confirmação, embora dadas as
circunstâncias não podia duvidar das palavras do SiNafay. --Assim é --respondeu-lhe a matrona Baenre. A casa Dou'Urdem ganhou e a casa Hun'ett deixará de existir.
Malícia se sentou outra vez e dirigiu um sorriso de satisfação ao SiNafay. Entretanto, a mãe matrona da casa Hun'ett não parecia preocupada no mais mínimo. --Presenciarei
a destruição de sua casa com enorme prazer --comunicou-lhe Malícia a seu rival. voltou-se para o Baenre. Quando se executará o castigo? --Já se cumpriu --respondeu
lacónicamente a matrona Baenre. --SiNafay vive! --gritou Malícia. --Não --corrigiu-a a anciã mãe matrona. Vive a que foi SiNafay Hun'ett. Por fim Malícia começava
a compreender. A casa Baenre sempre tinha sido oportunista. Cabia supor que a matrona Baenre se deu procuração das somas sacerdotisas da casa Hun'ett para as incorporar
a suas filas? --Protegerá-a? --atreveu-se a perguntar Malícia. --Não --respondeu a matrona Baenre com calma. Essa tarefa recairá sobre ti. Os olhos de Malícia
se abriram como pratos. Jamais nos centenares de anos que levava a serviço do Lloth como grande sacerdotisa lhe tinham encomendado uma tarefa mais desagradável.
--É minha inimizade! Como pode pedir que lhe dê asilo? --Ela é sua filha --replicou a matrona Baenre. Com um tom mais suave, e um leve sorriso de picardia acrescentou--:
Sua filha maior que retornou que o Ched Nasad, ou de qualquer outra cidade de nossa raça. --por que faz isto? --quis saber Malícia. É algo sem precedentes! --Não
de tudo --disse a matrona Baenre. Seus dedos repicaram sobre os braços do trono enquanto recordava algumas das estranhas conseqüências da interminável série de batalhas
liberadas na cidade dos drows. --Não nego que sua observação é correta na aparência --acrescentou a matrona. Mas sem dúvida sabe muito bem que as aparências ocultam
muitas das coisas que acontecem no Menzoberranzan. É inevitável que se destrua a casa Hun'ett e se execute a todos seus nobres. depois de tudo, é a forma civilizada
de fazer as coisas. --Fez uma pausa para assegurar-se de que Malícia compreendia sua explicação. Ao menos, tem que parecer que são executados. --E te encarregará
de fazê-lo? --inquiriu Malícia. --Já parece --afirmou a matrona Baenre. --E qual é o sentido de tudo isto? --Quando a casa Hun'ett iniciou o ataque contra sua casa,
te ocorreu implorar a ajuda da rainha aranha? --perguntou de improviso a matrona Baenre. Pergunta-a surpreendeu a Malícia, e ter que dar uma resposta a inquietava
ainda mais. --E quando fracassou o ataque da casa Hun'ett, rezou acaso à rainha aranha para dar as obrigado? --prosseguiu a matrona Baenre, com um tom gelado.
Chamou a alguma das donzelas do Lloth no momento da vitória, Malícia Dou'Urdem? --É que sou a acusada? --protestou Malícia. Sabe a resposta, matrona Baenre. --Inquieta,
olhou ao SiNafay enquanto respondia, ante o risco de revelar alguma informação valiosa. Está inteirada de minha situação em relação à rainha aranha. Não me atrevi
a invocar a uma donzela sem ter alguma sinal de que tivesse recuperado o favor do Lloth. --E não viu nenhum sinal --interveio SiNafay. --Nenhuma, além da derrota
de meu rival --replicou Malícia, com aversão. --O triunfo não foi um sinal da rainha aranha --informou-lhes a matrona
Baenre. Lloth não se envolveu em sua briga. Só exigiu que se acabasse. --Está satisfeita com o resultado? --perguntou Malícia sem nenhum rodeio. --Ainda está por
ver-se --respondeu a matrona Baenre. Faz muitos anos, Lloth manifestou claramente seu desejo de que Malícia Dou'Urdem tivesse um assento no conselho regente. Com
a próxima luz do Narbondel, cumprirá-se seu desejo. Malícia elevou o queixo, orgulhosa. --Mas deve compreender seu dilema --reprovou-lhe a matrona Baenre, levantando
do trono. Malícia se encolheu, inquieta. --perdeste a mais da metade de seus soldados --acrescentou Baenre. E não tem uma família numerosa que te dê seu apoio.
Governa a oitava casa da cidade, mas todos sabem que não conta com o favor da rainha aranha. Quanto tempo crie que a casa Dou'Urdem poderá sustentar sua posição?
Ainda não ocupaste seu posto no conselho regente e este já corre perigo! Malícia não podia refutar a lógica da velha matrona. As duas sabiam como eram as coisas
no Menzoberranzan. Com a casa Dou'Urdem quase desprotegida, qualquer casa menor não demoraria para aproveitar a oportunidade para escalar posições. O ataque da casa
Hun'ett não seria a última batalha liberada no pátio da casa Dou'Urdem. --portanto dou ao SiNafay Hun'ett..., Shi'nayne Dou'Urdem: uma nova filha, outra grande sacerdotisa...
--disse a matrona Baenre. voltou-se para o SiNafay disposta a prosseguir a explicação, mas Malícia se distraiu súbitamente quando uma voz soou em sua mente, uma
mensagem telepática. Manténla a seu lado só o tempo que a necessite, Malícia Dou'Urdem --disse a voz. Malícia olhou a seu redor ao adivinhar a fonte da comunicação.
Na visita anterior à casa Baenre, tinha conhecido ao desolador mental da matrona Baenre, uma besta telepática. A criatura não se encontrava à vista, mas tampouco
o tinha estado sua ama quando Malícia tinha entrado na capela. Malícia olhou as cadeiras vazias no altar sem descobrir nenhum indício de ocupantes nos móveis de
pedra. Uma segunda mensagem telepática dissipou suas dúvidas. Quando chegar o momento saberá. ... e os cinqüenta soldados restantes da casa Hun'ett --prosseguia
a matrona Baenre. Está de acordo, Malícia? Malícia olhou ao SiNafay com uma expressão que podia entender-se como de assentimento ou de mordaz ironia. --Sim--respondeu.
--Então vê, Shi'nayne Dou'Urdem --ordenou- a matrona Baenre ao SiNafay. Reúne a seus soldados no pátio. Meus feiticeiros se encarregarão de te levar em segredo
à casa Dou'Urdem. SiNafay dirigiu um olhar de suspeita a Malícia e depois abandonou a capela. --Entendi-o --manifestou Malícia assim que saiu SiNafay. --Não entendeste
nada! --gritou-lhe a matrona Baenre, feita uma fúria. Fiz tudo o que pude por ti, Malícia Dou'Urdem! Era o desejo do Lloth que tivesse um assento no conselho regente,
e o consegui a base de um grande sacrifício pessoal. Malícia compreendeu então, sem dúvida nenhuma, que a casa Baenre tinha empurrado à ação à casa Hun'ett. pergunto-se
até onde chegaria a influência da matrona Baenre. Possivelmente a mãe matrona tinha previsto, e provavelmente arrumado, a conduta do Jarlaxle e os soldados de Brigam
D'aerthe, que tinham decidido o resultado da batalha. Teria que ocupar-se de averiguar isto último. Jarlaxle tinha dizimado os tesouros da casa Dou'Urdem.
--Nunca mais --acrescentou a matrona Baenre. Agora depende de seus próprios meios. Não tem o favor do Lloth, e é a única maneira em que você e a casa Dou'Urdem
poderão sobreviver. A mão de Malícia apertou com tanta força o braço de sua cadeira que quase esperou ouvir o ruído da pedra ao romper-se. Tinha esperado que, com
a derrota da casa Hun'ett, ficassem perdoados os atos sacrílegos cometidos por seu filho menor. --Já sabe o que deve fazer --concluiu a matrona Baenre. Corrige
o mal, Malícia. Arrisquei-me em sua defesa. Não tolerarei mais fracassos! Dinin recebeu a Malícia quando o disco voador a deixou diante do de adamantita da casa
Dou'Urdem. --Já nos informaram que os acertos --disse Dinin, que seguiu a Malícia através do pátio de armas e levitou a seu lado até o balcão entrada aos aposentos.
Toda a família se encontra na hall, incluído seu membro mais recente -- acrescentou Dinin, com uma piscada. Malícia não respondeu ao intento humorístico de seu filho.
Separou-o de um tranco e avançou furiosa pelo corredor central. Com uma ordem que soou como um latido, mandou que se abrissem as portas da hall. A família se separou
do caminho enquanto ela se dirigia a ocupar seu trono à cabeceira da mesa com forma de aranha. Pressente-os esperavam manter uma larga reunião em que seriam informados
das mudanças na situação e os desafios do futuro. Em troca só tiveram um breve espiono da cólera que abrasava a matrona Malícia. Esta olhou a cada um deles para
lhes fazer entender claramente que não estava disposta a aceitar desobediências nem fracassos, e, com uma voz que parecia o chiado do roce das pedras, exigiu: --Procurem
o Drizzt e tragam aqui! Briza abriu a boca para protestar, mas Malícia a silenciou com um olhar terrível. A filha maior, tão obcecada como a mãe e sempre disposta
à discussão, desviou o olhar. E ninguém mais entre os pressente, apesar de que compartilhavam a preocupação da Briza, atreveu-se a dizer nada em contra. Malícia
deixou que se ocupassem em pensar a maneira de cumprir a ordem. Os detalhes não lhe interessavam. A única parte que se reservava para si mesmo era a de empunhar
a adaga de cerimônias e cravá-la no peito de seu filho menor.
2
Vozes na escuridão
Drizzt estirou os músculos doloridos e se forçou a si mesmo a ficar de pé. Os esforços do combate contra o alfavaca a noite passada, ao haver-se deixado levar pelos
instintos primitivos tão necessários para sobreviver, tinham-no deixado exausto. De todos os modos, não podia permitir dormir mais; o rebanho de vitelas, sua reserva
de mantimentos, dispersou-se entre o labirinto de túneis e tinha que recuperá-lo. O jovem jogou uma rápida olhada à pequena e singela cova onde vivia para assegurar-se
de que tudo estava em ordem. Deteve o .olhar na estatueta da pantera. Jogava muito de menos a companhia do Guenhwyvar. Durante a luta contra o alfavaca, Drizzt tinha
retido à pantera a seu lado muito tempo --quase toda a noite-- e Guenhwyvar precisava descansar no plano astral. Teria que esperar um dia inteiro para invocar sua
presença; seria uma insensatez chamá-la sem a justificação de uma situação realmente se desesperada. Com um gesto de resignação, Drizzt guardou a figura em um bolso
e tratou em vão de esquecer a solidão. depois de inspecionar a barreira de pedras que fechava a entrada do corredor principal, Drizzt se dirigiu a um túnel mais
pequeno no fundo da cova. Observou as marcas na parede junto à entrada, os entalhes que marcavam o passo dos dias. Em um gesto quase automático riscou outra raia
embora compreendeu que não tinha importância. Quantas vezes se esqueceu de fazê-lo? Quantos dias tinham passado sem dar-se conta, entre os centenares de entalhes
na parede? De todas maneiras, já não lhe parecia importante. O dia e a noite eram um, e todos os dias eram o mesmo, na vida do caçador. Entrou no túnel e se arrastou
durante muitos minutos em direção a débil luminosidade que aparecia no outro extremo. Embora a presença daquela luz, produzida pelo resplendor de uma estranha variedade
de cogumelos, teria sido normalmente uma moléstia para os olhos de um elfo escuro, Drizzt experimentava uma autêntica sensação de segurança enquanto percorria o
passadiço que desembocava em uma grande caverna. O estou acostumado a tinha dois níveis; no mais baixo, talher de musgo, havia um arroio, no outro, um bosquecillo
de cogumelos gigantes. Drizzt caminhou para o bosquecillo, embora sua presença não estava acostumada ser bem recebida. Sabia que os micónidos, os homens-hongo, um
muito estranho cruzamento entre humanoides e amanitas venenosas, vigiavam-no inquietos. O alfavaca tinha chegado até ali em suas primeiras incursões pela região,
e os micónidos tinham sofrido grandes perdas. Sem dúvida agora desconfiavam de qualquer, mas Drizzt suspeitava que sabiam que ele tinha matado ao monstro. Os micónidos
não eram seres estúpidos; se ele não desembainhaba as armas e não fazia nenhum movimento inesperado, não se oporiam a seu passo pelo bosquecillo. A parede até o
nível
superior tinha uns três metros de altura e era quase vertical. Mesmo assim, não era um obstáculo para o jovem, que subiu por ela como quem sobe uma escalinata. Um
grupo de micónidos se desdobrou a seu redor assim que chegou acima; alguns só lhe chegavam ao peito, mas a maioria o dobrava em altura. Drizzt
cruzou os braços sobre o peito, um gesto aceito em toda a Antípoda Escura como sinal de paz. Para os homens-hongo, o aspecto do drow era repugnante --igual a acontecia
com ele respeito a eles--, embora compreendiam que o guerreiro tinha destruído à alfavaca. Durante muitos anos os micónidos tinham sido vizinhos do drow vagabundo,
todos ocupados em proteger a caverna que era seu refúgio comum. Os lugares como este --um oásis provido de planta comestíveis, um arroio com peixes e um rebanho
de vitelas-- não abundavam nas enormes e desertas cavernas da Antípoda Escura, e os depredadores que rondavam pelos túneis exteriores acabavam por descobrir a entrada.
Então ficava a cargo dos homens-hongo e do Drizzt defender os domínios. O maior dos micónidos avançou para situar-se diante do elfo escuro. Drizzt não se moveu,
atento à importância de estabelecer um contato amistoso com o novo rei da colônia, mas esticou os músculos, disposto a apartar-se de um salto se as coisas ficavam
feias. O micónido cuspiu um punhado de esporos. Drizzt as estudou na fração de segundo que demoraram para posar-se sobre ele, consciente de que os micónidos adultos
podiam lançar muitas classes de esporos, algumas bastante perigosas. Mas reconheceu a cor da nuvem e não se apartou. Rei morto. Eu rei --transmitiu o homem-cogumelo
através do vínculo telepático estabelecido. Você é rei --respondeu Drizzt, telepáticamente. Quanto desejava que estes seres pudessem falar em voz alta!-- Igual a
antes? Fundo para elfo escuro, bosquecillo para micónidos --respondeu o rei. De acordo. Bosquecillo para micónidos!--pensou outra vez o homem-cogumelo, enfático.
Drizzt desceu em silencio até o nível inferior. Tinha conseguido renovar o acordo com os homens-hongo: nem ele nem o novo rei tinham nenhum desejo de continuar a
reunião. O jovem cruzou de um salto o arroio, que tinha um metro e meio de largura, e caminhou depressa pelo musgo espesso. A caverna era mais larga que larga e
se estendia durante muitos metros; quase ao final havia uma pequena curva antes de chegar à saída que comunicava com o labirinto de túneis da Antípoda Escura. Quando
chegou à curva, viu a destruição causada pelo alfavaca. Havia várias vitelas ao meio comer --Drizzt teria que ocupar-se dos cadáveres antes de que o aroma atraíra
a mais visitantes indesejáveis-- e outras permaneciam absolutamente imóveis, convertidas em pedra pelo olhar do terrível monstro. Diante mesmo da saída se erguia
o antigo rei dos micónidos, um gigante de quatro metros de altura, transformado em estátua. Drizzt fez uma pausa para contemplá-lo. Jamais tinha sabido o nome do
homem-cogumelo e nunca lhe havia dito o seu, embora supunha que aquela coisa tinha sido como mínimo seu aliado, possivelmente inclusive um amigo. Tinham vivido como
vizinhos durante muitos anos, embora quase nunca se encontravam, e os dois se haviam sentido mais seguros só com a presença do outro. De todos os modos, Drizzt não
experimentou nenhuma pena ao ver o aliado petrificado. Na Antípoda Escura só sobreviviam os mais fortes, e nesta ocasião o rei dos micónidos não tinha tido sorte.
Nas profundidades da Antípoda Escura não existia a segunda oportunidade para os perdedores. De volta nos túneis, Drizzt notou que aumentava sua cólera. Recebeu-a
de bom grau, com o pensamento posto na destruição de seus domínios e aceitando-a como uma aliada. Percorreu uma série de corredores e tomou pelo mesmo onde a noite
anterior tinha colocado a esfera de escuridão, e onde Guenhwyvar se havia
escondido, lista para saltar sobre o alfavaca. O feitiço se esfumou fazia horas e, graças a infravisión, pôde ver vários corpos quentes que se moviam sobre o cadáver
do monstro. Ver o corpo daquela coisa incrementou a cólera do caçador. Involuntariamente jogou mão a uma das cimitarras e, como se estivesse dotada de vontade própria,
a arma fendeu de um golpe os miolos do alfavaca quando Drizzt passou junto à cabeça. Os ratos cegos tentaram escapar para ouvir o ruído e uma vez mais Drizzt, sem
pensá-lo, utilizou a segunda cimitarra para caçar a um dos roedores. Sem deter-se, recolheu o rato e a guardou na bolsa. Encontrar as vitelas podia lhe levar muito
tempo, e precisava comer. Durante o resto daquele dia e parte do seguinte, o caçador se afastou de seu domínio. A carne do rato não era um bocado muito apetitoso,
mas era suficiente para alimentá-lo e lhe permitiu continuar a marcha, permitiu-lhe sobreviver. Para um caçador na Antípoda Escura não havia nada mais importante.
Ao segundo dia de marcha, Drizzt advertiu que se aproximava de um grupo de cabeças de gado extraviadas. Chamou o Guenhwyvar e, com sua ajuda, não teve maiores problemas
em dar com as vitelas. Tinha crédulo em encontrar a toda a manada, mas só havia seis naquela região. Seis era melhor que nada, e Drizzt utilizou à pantera para arriar
às vitelas de volta à caverna. O jovem partiu sem descanso, consciente de que a tarefa seria muito mais fácil e segura com o Guenhwyvar a seu lado. Quando a pantera
esgotou as forças e teve que retornar ao plano astral, as vitelas pastavam outra vez no musgo junto ao arroio. O drow voltou a partir em seguida, nesta ocasião com
dois ratos no embornal. Chamou o Guenhwyvar quando necessitou seus serviços e a despediu quando foi o momento de fazê-lo. Repetiu o processo outra vez, mas logo
passaram os dias sem encontrar nenhum rastro das vitelas. Mesmo assim não renunciou à busca. As vitelas assustadas podiam percorrer grandes distancia, e necessitaria
semanas antes de que pudesse as recuperar a todas no labirinto de túneis e cavernas. Drizzt conseguia comida quando se apresentava a ocasião; caçava morcegos com
um lançamento de adaga --depois de jogar no ar um punhado de calhaus para despistar à presa-- e caranguejos gigantes esmagando-os com uma pedra. Por fim, Drizzt
se cansou de procurar e teve saudades a segurança da pequena cova. Duvidava da capacidade das vitelas para sobreviver depois de tanto tempo nos túneis, sem água
nem musgo, e aceitou a perda do resto do rebanho. Decidiu retornar e tomou uma rota que o conduziria até a caverna desde outra direção. Só se encontrava alguma rastro
fresca da manada perdida trocaria de rumo, mas ao passar por uma curva a metade de caminho de volta, um som estranho captou sua atenção. Drizzt apoiou as mãos contra
a pedra e sentiu as sutis e rítmicas vibrações. Não muito longe, algo golpeava a pedra; pareciam os golpes compassados de um martelo. O caçador desencapou as cimitarras
e avançou pelos túneis guiado pelas vibrações. escondeu-se ao ver as oscilações das chamas de uma fogueira, mas não escapou, atraído pelo conhecimento de que ali
havia um ser inteligente. Embora era lógico supor que o estranho resultaria ser uma ameaça, Drizzt rogava para que esta vez não fosse assim. Então os viu. Havia
dois ocupados em golpear a pedra com picos, um terceiro recolhia as pedras em um carrinho de mão, e outros dois montavam guarda. O caçador compreendeu no ato que
tinha que haver mais sentinelas na zona; provavelmente tinha passado entre eles sem vê-los. Utilizando um de seus dons inatos, Drizzt levitou sem apartar as mãos
da pedra para poder guiar-se. Por sorte, o teto do túnel
ficava bastante alto, por isso pôde observar aos mineiros sem muito risco. Eram mais baixos que ele e calvos, com torsos largos como barris e muito musculosos, perfeitamente
adequados para o trabalho de mineiros que era a finalidade de suas vidas. Drizzt tinha tido um contato prévio com esta raça e tinha aprendido muito sobre eles nos
anos passados na Academia do Menzoberranzan. Eram svirfneblis, pequenos das profundidades, os inimigos mais odiados pelos drows em toda a Antípoda Escura. Uma vez,
fazia muitos anos, Drizzt tinha guiado a uma patrulha drow no combate contra um grupo de svirfneblis e ele mesmo tinha derrotado a um elementar terrestre invocado
pelo chefe dos pequenos. O jovem recordou aquele encontro, e, como lhe acontecia cada vez que rememorava algo de seu passado, invadiu-o a tristeza. Tinha sido capturado
pelos pequenos, pacote sem olhares, e mantido prisioneiro em uma câmara secreta. Entretanto os svirfneblis não o tinham maltratado, embora suspeitavam --e assim
o
explicaram-- que possivelmente se veriam obrigados a matá-lo. O chefe do grupo lhe tinha prometido atuar com a maior misericórdia possível dadas as circunstâncias.
Mas a patrulha do Drizzt, ao mando do Dinin, seu irmão, tinha ido em seu resgate, e quando assaltaram a câmara não tiveram compaixão com os pequenos. Drizzt tinha
podido convencer a seu irmão para que perdoasse ao chefe dos svirfneblis, mas Dinin, em uma demonstração da típica crueldade dos drows, tinha ordenado que lhe cortassem
as mãos antes de deixá-lo ir. Drizzt reprimiu as lembranças e concentrou sua atenção no presente. Os pequenos das profundidades podiam ser uns rivais formidáveis,
e sem dúvida não lhes faria nenhuma graça encontrar-se com um elfo escuro durante suas atividades mineiras. Tinha que manter-se alerta. Ao parecer os mineiros tinham
dado com um bom filão, porque comentavam o achado muito excitados. Drizzt desfrutou com os sons dos vocábulos, embora não entendia nenhuma só palavra da estranha
linguagem dos pequenos. Um sorriso, que por uma vez não estava inspirada pela vitória em algum combate, apareceu no rosto do Drizzt enquanto os svirfneblis corriam
entre as pedras, carregavam os carrinhos de mão e chamavam a outros para que participassem do bulício. Tal como tinha suspeitado, mais de uma dúzia de pequenos apareceram
na cena. Drizzt se instalou em uma cornija alta e observou aos mineiros até muito depois de desaparecer os efeitos do feitiço de levitação. Quando por fim os pequenos
acabaram de carregar os carrinhos de mão até os batentes, formaram uma coluna e abandonaram a caverna. Drizzt compreendeu que o mais prudente era esperar a que se
afastassem e a seguir reemprender o caminho de volta a casa. Não obstante, contra a lógica imposta pela sobrevivência, o drow descobriu que não era fácil deixar
que as vozes desaparecessem na distância. Descendeu até o chão do túnel e seguiu à caravana dos svirfneblis, perguntando-se aonde o levaria. Durante muitos dias
Drizzt partiu detrás dos pequenos. Resistiu à tentação de chamar o Guenhwyvar, consciente de que à pantera viria bem um descanso prolongado e que ele por agora tinha
suficiente ouvindo o bate-papo dos pequenos, embora fora de longe. Todos os instintos indicavam ao caçador que devia abandonar a perseguição, mas pela primeira vez
em muito tempo, Drizzt dominou a sua parte mais primitiva. Nesses momentos, escutar as vozes dos pequenos era uma necessidade que se impunha a todas as demais. Por
fim chegou a uma zona onde os túneis se viam trabalhados e soube que se aproximava do país dos svirfneblis. Uma vez mais apareceu a sombra do perigo, e tampouco
esta vez fez conta. Caminhou mais depressa até ter a caravana à vista. Suspeitava que os svirfneblis tinham algumas armadilhas muito engenhosas montadas. Viu como
os pequenos contavam os passos e evitavam alguns setores. Drizzt
repetiu os movimentos com precisão e assentiu ao ver uma pedra solta aqui e um arame quase a ras do chão mais à frente. de repente outras vozes se somaram às dos
mineiros, e Drizzt se ocultou depressa detrás de umas pedras. O grupo tinha chegado a uma escada muito larga e larga que subia entre duas paredes cortadas a pico
e sem nenhuma greta. A um lado da escada havia uma abertura com as medidas justas para permitir a entrada dos carrinhos de mão, e Drizzt observou admirado como os
mineiros levavam os carrinhos de mão até a abertura e enganchavam a primeira a uma cadeia. Uma série de golpes na pedra serviram de sinal a um operário invisível,
e a cadeia se esticou, com o que arrastou o carrinho de mão ao buraco. Uma atrás de outra, as demais seguiram o mesmo caminho, e também diminuiu o número de pequenos
que subiam a escada depois de entregar a carga. No momento em que os dois últimos anões engancharam o carrinho de mão e deram o sinal, Drizzt atuou levado pelo desespero.
Esperou a que os pequenos lhe dessem as costas; então correu até o carrinho de mão, e se montou nela quando já entrava no buraco. Drizzt compreendeu o alcance de
sua
tolice quando um pequeno, ao parecer sem advertir sua presença, fechou o buraco com uma pedra. Tinha-lhe talhado a retirada. A cadeia atirou do carrinho de mão e
a
fez subir em um ângulo com o mesmo pendente da escada. Drizzt não conseguia ver nada diante, porque o carrinho de mão, desenhada para um encaixe perfeito, ocupava
todo o alto e o largo do túnel. O drow observou que o veículo tinha umas rodas pequenas nos lados para facilitar o passo. Parecia-lhe fantástico estar outra vez
ante a obra de seres inteligentes mas não podia passar por cima o perigo em que se encontrava. Os svirfneblis não tolerariam a presença de um elfo escuro; utilizariam
as armas antes de fazer perguntas. depois de vários minutos, o túnel chegou ao nível superior, onde se alargava. Um svirfnebli se encarregava de dar voltas à manivela
que arrastava os carrinhos de mão. Atento a seu trabalho, o pequeno não viu a sombra escura que saltava do último veículo e se deslizava em silencio por uma porta
lateral. Drizzt ouviu vozes assim que abriu a porta. Seguiu adiante porque não tinha outra opção, e se tendeu de barriga para baixo em uma cornija estreita. Os pequenos,
mineiros e guardas, achavam-se mais abaixo, no patamar da escada. Ao menos havia uma vintena que escutavam o relato dos mineiros sobre o filão. Ao fundo do patamar,
através das enormes lâminas entreabiertas de uma porta de pedra com cantos e dobradiças metálicas, Drizzt pôde espionar a cidade dos svirfneblis. O drow só podia
ver uma parte, e não muito bem, mas calculou que a caverna além da porta não era tão grande como a que albergava ao Menzoberranzan. Queria entrar! Desejava descer
da cornija e atravessar aquela porta, entregar-se aos pequenos das profundidades e aceitar a sentença que estimassem conveniente. Possivelmente o aceitariam. Possivelmente
veriam o Drizzt Dou'Urdem como era de verdade. O grupo do patamar, sem deixar de conversar e rir, entrou na cidade. Tinha chegado o momento. Tinha que saltar e segui-los
além da porta. Mas o caçador, o ser que tinha sobrevivido mais de uma década no entorno selvagem da Antípoda Escura, não podia mover-se da cornija. O caçador, o
ser que tinha derrotado à alfavaca e a outro milhar de monstros, não podia confiar na misericórdia da civilização. O caçador não compreendia estes conceitos. A porta
se fechou com grande estrépito, e se apagou a luz de esperança que tinha surto no coração do Drizzt. depois de um comprido e atormentado momento, Drizzt Dou'Urdem
abandonou a cornija e saltou até o patamar. de repente lhe nublaram os olhos, quando baixava para afastar-se da vida buliçosa ao outro lado da porta, e só foram
os instintos primitivos do caçador os que advertiram a presença dos guardas. O caçador esquivou aos pequenos com um salto prodigioso e correu em busca da liberdade
oferecida pelos túneis da Antípoda Escura.
Quando esteve bem longe da cidade dos svirfneblis, Drizzt colocou uma mão no bolso e tirou a estatueta disposto a chamar a sua companheira. Mas a guardou ao cabo
de um segundo. negou-se a chamar à pantera como uma forma de castigo por seu momento de covardia. Se tivesse sido mais forte e tivesse atravessado a porta poderia
ter posto fim a seu calvário, de uma maneira ou outra. Os instintos do caçador lutaram por impor-se enquanto Drizzt partia pelos túneis que o conduziam até a caverna
onde tinha sua casa. À medida que entrava na Antípoda Escura e os perigos aumentavam a cada passo, os instintos se separaram de sua mente qualquer pensamento sobre
os svirfneblis e sua cidade. Estes instintos primitivos eram a salvação e ao mesmo tempo a maldição do Drizzt Dou'Urdem.
3
Cimitarras e serpentes
--Quantas semanas passaram? --perguntou- Dinin a Briza através do código mudo dos drows. Quantas semanas faz que percorremos estes túneis à caça de nosso irmão,
o renegado? A expressão do Dinin revelava o sarcasmo da pergunta enquanto a transmitia. Briza franziu o sobrecenho sem lhe responder. Tinha ainda menos interesse
que ele nesta tediosa tarefa. Era uma das somas sacerdotisas do Lloth e tinha sido até fazia pouco a filha maior, pelo qual merecia uma posição proeminente dentro
da hierarquia familiar. Jamais a teriam enviado em uma missão deste tipo. Mas agora, por algum motivo inexplicável, SiNafay Hun'ett se tinha unido à família e Briza
se viu relegada a uma fila inferior. --Cinco? --acrescentou Dinin, cada vez mais furioso à medida que movia os dedos. Seis? Quanto tempo passou, irmã? --insistiu.
Quanto tempo leva Shi'na..., Shi'nayne... sentada junto à matrona Malícia? Briza empunhou o látego de cabeças de serpente, e se voltou colérica para seu irmão. Dinin,
ao compreender que se passou da raia com tantos comentários irônicos, desembainhou a espada e tentou esquivar o açoite. O golpe da Briza foi como um raio que atravessou
a ridícula defesa do Dinin, e três das seis cabeças cravaram as presas no peito e um ombro do filho maior dos Dou'Urdem. Uma dor gelada sacudiu o corpo do Dinin,
e a seqüela foi um intumescimento que o deixou inerme. Baixou o braço que sustentava a espada e começou a cair de bruces. A grande sacerdotisa tendeu uma mão, agarrou-o
pela garganta, E o manteve erguido nas pontas dos pés. Depois, olhou aos outros cinco membros do grupo para assegurar-se de que nenhum tinha a intenção de ajudar
ao Dinin, e estrelou a seu irmão contra a parede de pedra. Briza se apoiou com todas suas forças contra Dinin, sem afrouxar a pressão na garganta. --Um varão prudente
teria mais cuidado com as coisas que diz --repreendeu-o em voz alta, apesar de que ela e outros tinham recebido instruções específicas por parte da matrona Malícia
de que só deviam empregar o código mudo assim que deixassem atrás os limites do Menzoberranzan. Dinin demorou um momento em compreender a gravidade de sua situação.
À medida que desaparecia o intumescimento, descobriu que quase não podia respirar e, embora ainda empunhava a espada, Briza, que pesava uns dez quilogramas mais,
mantinha-a pega a seu flanco. Para cúmulo, a mão livre da mulher sustentava o temível látego. A diferença dos látegos normais, este terrível instrumento não necessitava
espaço de manobra. As cabeças de serpente podiam enrolar-se e golpear em distâncias curtas como uma extensão da mão do possuidor. --A matrona Malícia não fará perguntas
se morrer --sussurrou Briza, desumana. Seus filhos não têm feito mais que lhe criar problemas! Dinin olhou por cima do ombro da irmã aos soldados do grupo.
--Testemunhas? --burlou-se Briza, que adivinhou seus pensamentos. De verdade crie que falarão contra uma grande sacerdotisa em benefício de um vulgar varão? --Briza
entreabriu as pálpebras e aproximou seu rosto até quase tocar ao Dinin. Pelo cadáver de um varão? Soltou uma gargalhada e de repente apartou a mão da garganta
do Dinin, que caiu de joelhos quase asfixiado. --Vamos! --assinalou Briza aos soldados. Percebo que meu irmão menor não está nesta zona. Voltaremos para a cidade
em busca de provisões. Dinin contemplou as costas de sua irmã enquanto ela se ocupava dos preparativos para a viagem de volta. Não pensava em outra coisa que lhe
cravar a espada entre os omoplatas, embora não era tão parvo para tentá-lo. Fazia mais de trezentos anos que Briza era soma sacerdotisa e agora contava com o favor
do Lloth, mesmo que a matrona Malícia e o resto da casa Dou'Urdem o tivessem perdido. Inclusive sem o amparo da deusa, Briza era uma inimizade formidável, perita
em feitiços e no manejo daquele maldito látego que nunca abandonava. --Irmã --chamou Dinin, e Briza se voltou para olhá-lo, surpreendida de que lhe dirigisse a palavra
em voz alta. Aceita minhas desculpas --disse e fez um gesto aos soldados para que partissem, e depois se comunicou outra vez com sua irmã por meio do código mudo.
Estou aborrecido pela incorporação do SiNafay Hun'ett à família --explicou. Os lábios da Briza se curvaram em um de seus típicos sorrisos ambíguos: Dinin não sabia
se estava de acordo ou se era uma brincadeira. --Crie-te tão preparado para pôr em dúvida as decisões da matrona Malícia? --perguntou. --Não! --transmitiu Dinin.
A matrona Malícia faz o correto e sempre pelo bem da casa Dou'Urdem. Mas não confio no SiNafay. Presenciou imperturbável a destruição de sua casa. Aceitou a morte
de toda sua família e da maioria dos soldados. Como pode ser leal à casa Dou'Urdem depois de semelhante perda? --Estúpido varão --assinalou Briza em resposta.
As sacerdotisas sabem que a lealdade só se deve ao Lloth. A casa do SiNafay já não existe, e portanto tampouco existe SiNafay. Agora é Shi'nayne Dou'Urdem, e, por
ordem da rainha aranha, aceitará todas as responsabilidades que acompanham no nome. --Não confio nela --repetiu Dinin. Nem tampouco me agrada ver minhas irmãs,
as autênticas Dou'Urdem, deslocadas na hierarquia para lhe fazer um oco. Shi'nayne teria que ter sido situada por debaixo de Maia, ou albergada entre os comuns.
Briza lhe dirigiu um olhar feroz, embora estava de acordo de todo coração com as opiniões do Dinin. --A fila do Shi'nayne na família não é coisa de sua incumbência
--afirmou Briza. Contar com outra grande sacerdotisa fortalece a casa Dou'Urdem. Isto é quão único deve te interessar! Dinin assentiu em resposta ao raciocínio
da irmã e prudentemente embainhou a espada antes de ficar de pé. Briza enganchou o látego ao cinturão, embora não deixou de vigiar ao imprevisível varão com a extremidade
do olho. A partir de agora Dinin teria que obrar com mais cuidado. Sabia que sua sobrevivência dependia de sua capacidade para manter-se junto à irmã maior, porque
Malícia tinha ordenado que atuassem juntos nestas missões. Briza era a mais forte das filhas Dou'Urdem, e a melhor dotada para encontrar e capturar ao Drizzt. Por
sua parte, Dinin tinha sido chefe de patrulhas durante mais de dez anos e conhecia a fundo os túneis fora dos limites do Menzoberranzan. Dinin amaldiçoou sua má
sorte e seguiu a sua irmã pelos túneis que conduziam à cidade. Uma curta pausa, não mais de um dia, e outra vez sairiam em busca
do escorregadio e perigoso irmão, ao que Dinin não tinha nenhum desejo de encontrar. Guenhwyvar voltou a cabeça bruscamente e permaneceu imóvel como uma estátua,
com uma pata levantada e lista para pôr-se a correr. --Você também o ouviste --sussurrou Drizzt, com a boca quase pega à orelha da pantera. Vêem, amiga minha.
Vejamos que novo inimigo entrou em nossos domínios. Partiram a grande velocidade e absoluto silêncio pelos túneis que conheciam a perfeição. Para ouvir o eco de
um roce, Drizzt se deteve de repente, e Guenhwyvar o imitou. Não o tinha produzido nenhum monstro da Antípoda Escura a não ser uma bota. Drizzt assinalou uma pilha
de escombros que dava pelo outro lado a uma caverna com muitas cornijas, e a pantera o guiou até ali, onde desfrutariam de um bom posto de observação. A patrulha
drow apareceu à vista ao cabo de uns segundos, um grupo de sete, embora estavam muito longe para que pudesse reconhecê-los. Surpreendia-o o fato de que tivesse podido
ouvi-los com tanta facilidade, porque recordava os dias em que tinha atuado como guia das patrulhas. Que solo se havia sentido então, à frente de mais de uma dúzia
de elfos escuros perfeitamente treinados que não faziam nenhum ruído e se confundiam entre as sombras tão bem que nem sequer a aguda visão do Drizzt era capaz de
localizá-los! Entretanto, o caçador em que se converteu Drizzt, este ser primário e instintivo, tinha descoberto a presença do grupo sem nenhuma dificuldade. Briza
deteve a marcha sem prévio aviso e fechou os olhos para concentrar-se nas vibrações do feitiço de localização. --O que ocorre? --perguntaram os dedos do Dinin quando
a sacerdotisa o olhou. A expressão de surpresa e entusiasmo no rosto de sua irmã lhe antecipou a resposta. --Drizzt? --sussurrou Dinin, incrédulo. --Silêncio! --gritaram
as mãos da Briza. Jogou um olhar ao entorno, e depois assinalou à patrulha que a seguisse até as sombras da parede da imensa caverna. --Está segura de que é Drizzt?
--inquiriu Dinin, tão excitado que quase não podia formar as palavras com os dedos. Possivelmente se trata de algum depredador... --Sabemos que vive --interrompeu-o
Briza. Desde não ser assim, a matrona Malícia já desfrutaria de outra vez do favor do Lloth. E, se Drizzt viver, então podemos supor que está em posse do objeto.
O súbito movimento evasivo da patrulha pilhou ao Drizzt por surpresa. Não era possível que o grupo o tivesse visto detrás da pilha de escombros, e estava seguro
de que nem ele nem a pantera tinham feito nenhum ruído. em que pese a isso, não duvidava que a patrulha se ocultava dele. Havia algo muito estranho neste encontro.
Os elfos escuros não se aventuravam tão longe do Menzoberranzan. Possivelmente só era o efeito da paranóia necessária para sobreviver nas profundidades da Antípoda
Escura, pensou Drizzt, embora suspeitava que o grupo não tinha entrado em seus domínios por acaso. --Vê, Guenhwyvar --ordenou-lhe à pantera. Averigua quem som
nossos visitantes. O animal desapareceu entre as sombras da caverna, e Drizzt se tendeu entre as pedras com o ouvido atento. Guenhwyvar retornou ao cabo de um minuto,
que ao Drizzt pareceu uma eternidade. --Sabe quem som? --perguntou-lhe o drow. O felino arranhou a pedra com uma
pata. Nossa velha patrulha? --acrescentou Drizzt. Os guerreiros que nos acompanhavam? A pantera parecia insegura e não fez nenhum movimento definido. --Então
são Hun'ett--afirmou Drizzt, convencido de ter resolvido o mistério. Por fim a casa Hun'ett tinha ido em sua busca para vingar as mortes do Alton e Masoj, os dois
magos Hun'ett que tinham pago com a vida o intento de assassinar ao Drizzt. Ou possivelmente pretendiam recuperar ao Guenhwyvar, o ser mágico que em um tempo tinha
pertencido ao Masoj. Drizzt fez uma pausa para estudar a reação do Guenhwyvar e compreendeu que se equivocava. A pantera tinha dado um passo atrás e parecia inquieta
por suas palavras. --Então, quem? --inquiriu Drizzt. Guenhwyvar se levantou em duas patas, apoiou uma garra no ombro do jovem e com a outra tocou a bolsa que lhe
pendurava do pescoço. Sem entender o que pretendia o felino, Drizzt agarrou a bolsa e esvaziou o conteúdo sobre a palma de uma mão; umas poucas moedas de ouro, uma
pedra preciosa pequena e o emblema da casa, um medalhão de prata gravado com as iniciais do Daermon N'a'shezbaernon, da casa Dou'Urdem. O guerreiro compreendeu por
fim a mensagem do Guenhwyvar. --Minha família --sussurrou Drizzt, com aspereza. A pantera se apartou e uma vez mais arranhou o chão, excitada. Um milhar de lembranças
desfilaram pela mente do Drizzt naquele momento, mas todos, bons e maus, assinalaram-lhe ineludiblemente uma só possibilidade: a matrona Malícia não tinha perdoado
nem esquecido suas ações naquele dia fatídico. Drizzt tinha rechaçado a sua mãe e o culto da rainha aranha, e sabia o suficiente a respeito da maldade do Lloth
para entender que, a conseqüência de seu comportamento, Malícia tinha perdido o favor da deusa. O drow observou o interior da caverna; depois fez um gesto ao Guenhwyvar
e pôs-se a correr pelos túneis. A decisão de abandonar Menzoberranzan tinha sido muito dolorosa, e agora não queria encontrar-se com a família e reviver todas aquelas
dúvidas e temores. Os companheiros correram durante mais de uma hora ao longo de corredores secretos e pelas zonas onde o labirinto de túneis era um autêntico quebra-cabeças.
Drizzt conhecia a fundo esta região e não duvidava que conseguiria despistar à patrulha sem muito esforço. Entretanto, quando por fim fez uma pausa para recuperar
o fôlego, o drow pressentiu --e teve suficiente olhando ao Guenhwyvar para confirmar a suspeita-- que a patrulha seguia seu rastro, possivelmente mais perto que
antes. Compreendeu que o rastreavam ajudados pela magia; não podia haver outra explicação. --Mas como? --perguntou-lhe à pantera. Já não sou o irmão que conheciam,
nem física nem mentalmente. Qual entre os objetos em meu poder pode servir de atração aos feitiços rastreadores? Drizzt inspecionou suas posses e se fixou primeiro
nas armas. As cimitarras tinham poderes mágicos mas isto não as distinguia da maioria das armas do Menzoberranzan. Além disso, as suas nem sequer as tinham fabricado
na casa Dou'Urdem e o desenho não correspondia com o preferido pela família. Seria a capa? O piwafwi era como o uniforme da casa, com os bordados e desenhos característicos
da família; mas o objeto estava tão rasgado e suja que nem sequer um feitiço teria podido reconhecê-la como pertencente à casa Dou'Urdem. --Pertencente à casa Dou'Urdem
--murmurou Drizzt em voz alta. Olhou ao Guenhwyvar e assentiu bruscamente; tinha a resposta. Agarrou outra vez a
bolsa e tirou o medalhão, o emblema do Daermon N'a'shezbaernon. Criado pela magia, possuía a sua própria, um duomer específico da casa. Só um nobre da casa Dou'Urdem
podia levá-lo. Drizzt pensou um momento; depois guardou o medalhão na bolsa e a pendurou do pescoço do Guenhwyvar. --É hora de que a presa se converta em caçador
--sussurrou-lhe à pantera. --Sabe que o seguimos --transmitiu Dinin a Briza, que não se dignou rubricar a afirmação com uma resposta. Certamente que Drizzt estava
informado e também era óbvio que tentava despistá-los. Briza não se preocupava. Os sinais do medalhão do Drizzt eram para ela como um farol. De todos os modos, a
sacerdotisa fez um alto quando o grupo chegou a uma bifurcação do túnel. O sinal chegava desde além da bifurcação embora sem definir qual dos dois braços. --Esquerda
--assinalou Briza a três dos soldados. Direita --indicou aos outros dois. Reteve a seu irmão; permaneceriam na bifurcação para servir de reserva ao primeiro dos
grupos que pedisse reforços. por cima da patrulha, escondo entre as sombras do teto coberto de estalactites, Drizzt sorriu agradado por sua astúcia. A patrulha podia
seguir seu ritmo de marcha, mas não tinha nenhuma possibilidade de apanhar ao Guenhwyvar. O plano tinha dado um resultado perfeito, porque Drizzt só pretendia afastar
à patrulha a maior distancia possível de seus domínios e convencer a da inutilidade da missão. Mas agora, enquanto levitava nas alturas, com o olhar posto nos irmãos,
descobriu que ansiava algo mais. Drizzt esperou um momento até convencer-se de que os soldados se encontravam bem longe. Desembainhou as cimitarras e pensou que
não
estaria mal ter uma reunião com os irmãos. --afasta-se cada vez mais --informou- Briza ao Dinin, sem preocupar do som de sua voz, segura de que o renegado estava
muito longe. A grande velocidade. --Drizzt nunca teve problemas para mover-se nas profundidades da Antípoda Escura --opinou Dinin. Será muito difícil apanhá-lo.
--Cansará-se muito antes de que meus feitiços percam eficácia --presumiu Briza. Encontraremo-lo esgotado em algum buraco escuro. Mas a petulância da Briza se transformou
em assombro quando uma silhueta escura apareceu entre ela e Dinin. O irmão maior quase nem teve tempo de surpreender-se. Viu o jovem só por uma fração de segundo,
e depois seus olhos ficaram vesgos ao seguir o movimento descendente do punho de uma cimitarra. Dinin se desabou como abatido por um raio, e seu rosto golpeou contra
o chão. Enquanto com uma mão se ocupava do Dinin, Drizzt aproximou a ponta da segunda cimitarra à garganta da Briza com o propósito de conseguir sua rendição. Mas
a sacerdotisa não se deixou surpreender. Retrocedeu com grande agilidade, levantou o látego, e as seis cabeças de serpente se enrolaram sobre si mesmos listas para
lançar seu ataque à primeira oportunidade. Drizzt se voltou para a Briza e moveu as duas cimitarras em uma finta defensiva para manter a raia às serpentes. Recordava
a terrível dor das mordidas; como todos os varões drows tinha sido açoitado infinidade de vezes. --Irmano Drizzt! --gritou Briza, com a esperança de que a patrulha
escutasse o grito e compreendesse a chamada de ajuda. Aparta suas armas. Não há necessidade de nos comportar desta maneira.
O som das palavras, vocábulos drows, emocionou ao Drizzt. Que formoso era as escutar, recordar que não sempre tinha sido um caçador cuja vida só consistia em sobreviver!
--Baixa suas armas --repetiu Briza, com maior insistência. --Por..., por que vieste? --gaguejou Drizzt. --Para te buscar, irmano meu, por que se não? --replicou
Briza, com um tom de carinho exagerado. Por fim concluiu a guerra contra os Hun'ett. É hora de que retorne a casa. Uma parte do Drizzt desejava acreditar, desejosa
de esquecer aqueles fatos da vida drow que o tinham forçado a abandonar a cidade onde tinha nascido; desejava deixar que as cimitarras caíssem ao chão e voltar para
refúgio --e à companhia-- de sua vida anterior. O sorriso da Briza era tão tentadora... --Volta para casa, querido Drizzt --sussurrou Briza, que utilizava em suas
palavras um singelo feitiço de atração, consciente de que tinha dado com o ponto fraco de seu irmão. Necessitamo-lhe. Agora é o professor de armas da casa Dou'Urdem.
A súbita mudança na expressão do Drizzt advertiu a Briza de seu engano. Zaknafein, professor e amigo íntimo do Drizzt, tinha sido o professor de armas da casa Dou'Urdem,
mas o tinham devotado em sacrifício à rainha aranha. Drizzt jamais esqueceria este acontecimento. Naquele momento, o jovem recordou muito mais que as comodidades
de sua casa. Rememorou com toda claridade os males de sua vida passada, a maldade que seus princípios não podiam tolerar. --Não teria que ter vindo --manifestou
Drizzt com uma voz parecida com um rugido. Nunca mais te ocorra voltar por aqui! --Querido irmão --disse Briza, mais para ganhar tempo que por emendar o engano,
e permaneceu imóvel, com o rosto gelado em um de seus sorrisos de dobro fio. Drizzt olhou detrás dos lábios da Briza, mais grossos do habitual entre os drows. A
sacerdotisa não pronunciava nenhuma palavra, mas Drizzt podia ver com toda claridade que os lábios se moviam detrás da geada sorriso. Um feitiço! Briza sempre tinha
sido muito hábil neste tipo de enganos. --Retorna a casa! --gritou Drizzt, e lançou um ataque. Briza o esquivou sem problemas, porque as cimitarras não pretendiam
feri-la a não ser interromper a letanía. --Maldito seja, renegado --exclamou a sacerdotisa, que renunciou à dissimulação e levantou o látego. Rende as armas agora
mesmo, se não querer morrer! Drizzt se afiançou sobre os pés. Seus olhos lilás se acenderam com um fogo estranho à medida que o caçador se dispunha a fazer frente
ao desafio. Briza vacilou, surpreendida pela súbita ferocidade desdobrada por seu irmão. Esta vez não tinha diante um guerreiro vulgar. Drizzt se tinha convertido
em outra coisa, muito mais formidável. Mas Briza era uma grande sacerdotisa do Lloth, nos degraus mais altos da hierarquia drow. Não se deixaria assustar por um
varão. --te renda! --gritou. Drizzt nem sequer entendeu a palavra, porque o caçador que fazia frente a Briza já não era Drizzt Dou'Urdem. O guerreiro selvagem e
primitivo que as lembranças do defunto Zaknafein tinham invocado não entendia de palavras e mentiras. Briza descarregou um açoite, e as seis cabeças de serpente
se formaram redemoinhos por vontade própria em busca do melhor ângulo de ataque. As cimitarras do caçador responderam com uma velocidade surpreendente. Briza nem
sequer pôde seguir o movimento dos aços e, quando acabou de baixar o braço, descobriu que nenhuma das cabeças tinha mordido a presa e que agora só ficavam
cinco. Dominada por uma fúria quase igual a do oponente, Briza reatou o ataque e lançou uma chuva de açoites. Serpentes, cimitarras e braços se confundiram em uma
dança mortal. Uma cabeça mordeu a perna do caçador, e uma descarga de dor gelada correu pelas veias. Uma cimitarra desviou outro ataque e cortou a cabeça do ofídio
pela metade. Outra cabeça mordeu ao caçador. Outra cabeça caiu ao chão. Os oponentes se apartaram, para medir o um ao outro. A Briza custava trabalho respirar depois
de uns poucos minutos de luta; em troca, o peito do caçador subia e baixava com toda normalidade. A sacerdotisa não apresentava nenhuma ferida; Drizzt tinha recebido
duas mordidas. Fazia muito tempo que o caçador tinha aprendido a não fazer caso da dor, de modo que se manteve erguido preparado para prosseguir o combate. Briza,
com seu látego reduzido a três cabeças, insistiu em atacar. Vacilou uma fração de segundo ao ver que Dinin parecia voltar em si. Seria capaz de ir em sua ajuda?
Dinin se moveu e tentou levantar-se, mas as pernas não tinham a força suficiente para sustentá-lo. --Maldito seja --grunhiu Briza, dedicando o insulto aos dois varões.
Invocou o poder da rainha aranha e descarregou uma chicotada com todas suas forças. As três cabeças de serpente restantes caíram ao chão com um só golpe da cimitarra.
--Maldito seja! --repetiu a grande sacerdotisa, que esta vez dirigiu a maldição ao rival. Empunhou a maça sujeita ao cinto e com o braço estendido lançou a arma
em uma trajetória circular contra a cabeça do Drizzt. As cimitarras cruzadas detiveram o torpe golpe muito antes de que chegasse ao objetivo. O caçador levantou
uma perna e descarregou três chutes contra o rosto da sacerdotisa antes de voltar a baixá-la. Briza retrocedeu com o rosto banhado com o sangue que emanava do nariz
rota. Assim que alcançou a ver a silhueta do Drizzt entre o sangue que lhe rabiscava a visão, lançou outro ataque desesperado em um gancho aberto. O caçador levantou
uma cimitarra para deter o golpe e, girando o aço, deixou-o deslizar sobre o porrete até se chocar com a mão da Briza. A mulher uivou de dor e soltou a arma. A maça
caiu ao chão junto com dois dedos da Briza. Naquele momento Dinin conseguiu levantar-se e empunhar a espada. Briza empregou toda sua força de vontade para não apartar
o olhar do Drizzt. Se conseguia distrai-lo uns segundos mais... O caçador pressentiu o perigo e se voltou. Quão único viu Dinin nos olhos lilás do irmão menor foi
sua própria morte. Arrojou a espada ao chão e cruzou os braços sobre o peito para render-se. O caçador grunhiu uma ordem, quase ininteligível, embora Dinin captou
o significado com toda claridade. Sem perder nem um instante pôs-se a correr como alma que leva o diabo. Briza deu um passo com a intenção de seguir o exemplo do
Dinin, mas uma cimitarra enganchada debaixo do queixo a deteve e lhe forçou a cabeça para trás até que só pôde ver a pedra escura do teto. A dor era como um ferro
incandescente nos membros do caçador, uma dor causada pelo látego deste ser maligno. Agora o caçador desejava acabar com a dor e a ameaça. Estava em seus domínios!
Briza
pronunciou uma última oração ao Lloth quando sentiu que o aço começava a cortar a carne. Mas naquele instante um relâmpago escuro lhe devolveu a liberdade. Olhou
ao chão e viu o Drizzt esmagado por uma enorme pantera negra. Sem
perder tempo em fazer perguntas, a sacerdotisa correu pelo túnel em detrás do Dinin. O caçador conseguiu escapar do corpo do felino e se levantou de um salto. --Guenhwyvar!
--gritou. Vê atrás dela! Mata-a! A pantera se sentou e respondeu à ordem com um bocejo; continuando, enganchou com uma pata o cordão da bolsa pendurada do pescoço
e o cortou. --O que faz? --chiou o caçador, cego de raiva ao tempo que recolhia a bolsa. Guenhwyvar havia se tornado em seu contrário? Drizzt retrocedeu um passo
e, vacilante, levantou as cimitarras como se acreditasse que a pantera fora a atacá-lo. O animal não se moveu e continuou sentado sem deixar de observar ao jovem.
Um momento mais tarde, o estalo de uma mola de suspensão lhe demonstrou que estava em um engano. O dardo teria acertado em seu corpo de não ter sido porque Guenhwyvar
deu um salto e interceptou o vôo do projétil. O veneno drow não tinha nenhum efeito nos animais mágicos. Três guerreiros drows apareceram por um lado da bifurcação
e dois mais pelo outro. Drizzt se esqueceu no ato de perseguir a Briza e, escoltado pelo Guenhwyvar, empreendeu a fuga pelos túneis. Sem a guia da soma sacerdotisa
e a magia, os soldados nem sequer tentaram persegui-lo. depois de muitos minutos de carreira, Drizzt e Guenhwyvar se refugiaram em uma passagem lateral, atentos
a qualquer ruído de perseguição. --Vêem --ordenou Drizzt, e pôs-se a andar sem pressa, convencido de que tinha repelido a ameaça do Dinin e Briza. Uma vez mais a
pantera se sentou. --Hei dito que me acompanhe --grunhiu Drizzt, um tanto desconcertado. Guenhwyvar o olhou de uma maneira que despertou uma sensação de culpa no
drow. Então o felino se levantou e caminhou pouco a pouco para seu amo. Drizzt assentiu, seguro da obediência da pantera. Voltou-lhe as costas e reatou a marcha,
mas o felino passou junto a ele e lhe impediu o passo. Guenhwyvar descreveu um círculo ao tempo que aparecia a típica névoa que acompanhava suas aparições e desaparecimentos.
--O que faz? --perguntou Drizzt. Guenhwyvar não se deteve. --Não te ordenei que desapareça! --chiou o drow enquanto se esfumava o corpo da pantera. O guerreiro correu
e tendeu as mãos em um intento inútil por retê-la. Não hei dito que vá! --repetiu, desesperado. Guenhwyvar tinha desaparecido. Aquela última imagem do Guenhwyvar
acompanhou ao Drizzt no comprido caminho de volta à cova que era sua casa. Parecia-lhe sentir o olhar da pantera cravada nas costas. Compreendeu que sua amiga o
tinha julgado e encontrado em falta. Levado pela cólera tinha estado a ponto de matar a Briza, e o teria feito de não ter sido pela intervenção do Guenhwyvar. Por
fim, Drizzt se arrastou pelo túnel que comunicava com o pequeno recinto de pedra. As preocupações não o abandonaram. Uma década antes, Drizzt tinha matado ao Masoj
Hun'ett, e naquela ocasião tinha jurado que nunca mais mataria a um drow. Para o Drizzt, sua palavra era o sustento de seus princípios, aqueles princípios pelos
que tinha renunciado a tantas coisas. Sem dúvida, esse dia teria faltado à palavra de não ter sido pelas ações do Guenhwyvar. Se era assim, o que o diferenciava
de outros elfos escuros? Drizzt tinha vencido no encontro contra seus irmãos e tinha confiança em que seria capaz de esconder-se da Briza e de qualquer outro inimigo
enviado pela matrona Malícia. Mas na solidão da pequena cova, Drizzt compreendeu algo muito mais grave.
Não podia esconder-se de si mesmo.
4
Fugir do caçador
Drizzt não pensou em suas ações enquanto continuava com a rotina da sobrevivência. O caçador não teria aceito outra coisa. Mas o custo emocional cada vez maior desta
sobrevivência provocava uma profunda angústia no coração do Drizzt Dou'Urdem. Se a repetição das tarefas diárias ajudava a dissimular a dor, quando chegava a hora
do descanso Drizzt se encontrava desprotegido. O encontro com seus irmãos o perseguia; cada noite aparecia em seus sonhos com uma claridade meridiana. O jovem despertava
aterrorizado e solitário, entre as garras dos monstros surtos dos pesadelos. Compreendia --e este conhecimento aumentava ainda mais a angústia-- que a perícia no
manejo das armas não era suficiente para derrotá-los. Não o preocupava que a matrona Malícia pudesse insistir no intento de capturá-lo e acabar com sua vida. Este
era seu mundo, muito distinto das sinuosas avenidas do Menzoberranzan, e nele imperavam umas leis que os drows da cidade desconheciam totalmente. Não havia nada
a disposição de Malícia que ele não pudesse derrotar. Também se tinha liberado da culpa por suas ações contra Briza. Tinham sido seus irmãos os que tinham forçado
o encontro, e Briza, com o intento de lançar um feitiço, a primeira em atacar. De todos os modos, Drizzt era consciente de que passaria dias dedicado a achar respostas
às perguntas que suas ações tinham exposto em relação à natureza de seu caráter. converteu-se em um caçador selvagem e desumano obrigado pelas duras condições do
entorno? Ou o caçador era a expressão de seu verdadeiro ser? Estas perguntas não tinham uma resposta singela, embora, nesse momento, não eram as mais importantes.
Daquele encontro com os irmãos, o que não podia esquecer era o som das vozes, a melodia das palavras que entendia e podia responder. Em suas lembranças, o mais importante
daqueles minutos passados com a Briza e Dinin eram as palavras e não os golpes. Drizzt se aferrava a elas com desespero, escutava-as uma e outra vez em sua mente
e pensava no dia em que desapareceriam da memória. Então voltaria a estar sozinho. Pela primeira vez da marcha do Guenhwyvar, Drizzt tirou do bolso a figura de ônix.
Deixou-a no chão e olhou as marcas na parede para saber quanto tempo tinha passado da última vez que tinha chamado à pantera. No ato compreendeu que era um cálculo
inútil. Quando tinha esboçado a última raia? Do que serviam as marcas? Como podia estar seguro da conta incluso se não tivesse esquecido alguma vez riscar uma raia
depois de cada um de seus períodos de sonho? --O tempo é algo que pertence a aquele outro mundo --murmurou o jovem, como um lamento, mas aproximou a adaga à pedra
como uma negativa a sua própria afirmação. "Que importância tem? --perguntou-se em voz alta, deixando cair a adaga.
O som do metal contra a pedra sacudiu ao Drizzt como se fosse o toque de um sino que anunciava a rendição. de repente lhe custou trabalho respirar. O suor cobriu
sua negra frente, e notou as mãos geladas. A seu redor, as paredes da cova que durante tantos anos o tinham resguardado dos muitos perigos da Antípoda Escura, pareciam
a ponto de esmagá-lo. Pareceu-lhe ver rostos zombadores nas gretas e os contornos da pedra, rostos que se mofavam e riam de seu ridículo orgulho. voltou-se, disposto
a escapar, mas tropeçou com uma pedra e caiu ao chão. A conseqüência do golpe machucou um joelho e apareceu outro buraco nos farrapos do piwafwi. Drizzt olhou atônito
a pedra causador da queda sem pensar no joelho machucado ou o objeto rota, porque acabava de ocorrer algo extraordinário. O caçador tinha tropeçado. Pela primeira
vez em mais de uma década, o caçador tinha tropeçado! --Guenhwyvar! --gritou Drizzt, frenético. Vêem mim! Ai, por favor, meu Guenhwyvar! Não sabia se a pantera
responderia à chamada. depois daquela separação pouco amistosa, Drizzt nem sequer se sentia seguro de que Guenhwyvar queria caminhar a seu lado. arrastou-se para
a estatueta, e cada centímetro resultou uma luta por superar a debilidade do desespero. Pouco a pouco apareceu a névoa. A pantera não abandonaria a seu amo, não
guardaria rancor contra o drow que tinha sido seu amigo. Drizzt se relaxou ao ver que a névoa tomava corpo, e se concentrou nela como uma maneira de evitar as alucinações
dos rostos malignos nas pedras. Ao cabo de uns momentos, Guenhwyvar se encontrava a seu lado entretida em lamber uma pata. Drizzt olhou os grandes olhos amarelos
da pantera e não viu neles nenhum rechaço. Era a mesma Guenhwyvar de sempre, sua amiga e sua salvação. O jovem ficou de joelhos e passou os braços ao redor do musculoso
pescoço do felino para abraçá-lo com autêntico desespero. Guenhwyvar aceitou o abraço e depois se apartou só o suficiente para poder continuar lambendo-a pata. Se
a pantera, em sua inteligência sobrenatural, tinha compreendido a importância do abraço, não o demonstrou de maneira nenhuma. A inquietação dominou ao Drizzt nos
dias seguintes a aquele episódio. mantinha-se em movimento e percorria os túneis ao redor de seu refúgio, sem deixar de repetir-se que a matrona Malícia pretendia
capturá-lo. Não podia permitir nenhuma falha nas defesas. No mais íntimo de seu ser, além dos raciocínios, o jovem sabia a verdade de seus movimentos. Podia justificá-los
com a desculpa da vigilância, mas de fato só pretendia escapar. Fugia das vozes e das paredes da pequena cova. Escapava do Drizzt Dou'Urdem em um intento por recuperar
ao caçador. Pouco a pouco, os percursos ganharam em extensão e permanecia afastado da cova durante muitos dias. Em segredo, desejava encontrar-se com algum inimigo
capitalista. Necessitava uma prova tangível da necessidade de uma existência primitiva, uma batalha contra algum monstro horrível que o devolvesse a uma sobrevivência
puramente instintiva. Em troca, o que encontrou um dia foi a vibração de um tamborilar distante na parede, os golpes rítmicos e constantes de um pico de mineiro.
Drizzt se apoiou na parede e pensou com muito cuidado qual seria seu próximo movimento. Sabia aonde o conduziria o som, pois se achava nos mesmos túneis que tinha
percorrido em busca das cabeças de gado perdidas, os mesmos onde tinha encontrado ao grupo de mineiros anões umas poucas semanas antes. Não queria admiti-lo, mas
não era uma pura coincidência ter ido até ali pela segunda vez. O subconsciente
tinha-o conduzido para ouvir os golpes dos martelos dos svirfneblis, e, sobre tudo, para ouvir as risadas e o bate-papo dos pequenos das profundidades. Agora, apoiado
contra a parede do túnel, Drizzt se enfrentava a um dilema. Sabia que espiar aos svirfneblis só serviria para aumentar o tortura; ouvir as vozes o faria ainda mais
vulnerável aos aguilhões da solidão. Os pequenos acabariam por retornar à cidade, e ele voltaria a perambular pelos túneis desertos. Mas Drizzt tinha ido ali para
ouvir o martilleo, e as vibrações na pedra o atraíam com uma força irresistível. A parte racional lutava contra o impulso de avançar para a origem do som, mas a
decisão a tinha tomado quando tinha dado os primeiros passos nesta região. reprovou-se a si mesmo pela tolice e sacudiu a cabeça em sinal de rechaço. Entretanto,
apesar dos raciocínios, as pernas atuavam por vontade própria, e o levavam para o ruído dos picos, martelos e pás. Os instintos do caçador protestaram contra a imprudência
de permanecer perto dos mineiros incluso enquanto Drizzt observava aos svirfneblis de uma cornija, mas não fez conta. Durante vários dias ficou na vizinhança, atento
às conversações, e entretido em ver como trabalhavam ou desfrutavam dos momentos de descanso. Quando por fim chegou o dia em que os mineiros começaram a preparar
os carrinhos de mão e a recolher as coisas, Drizzt compreendeu a gravidade de seu equívoco. Tinha negado a terrível verdade de sua existência. Agora teria que voltar
para aquele buraco escuro e vazio, onde as lembranças destes últimos dias ressaltariam ainda mais a solidão. Quando os carrinhos de mão se perderam nos túneis que
levavam para a cidade dos svirfneblis, Drizzt deu os primeiros passos de volta a seu refúgio, à caverna coberta de musgo e o arroio. Em todos os séculos de vida
que tinha por diante, Drizzt Dou'Urdem jamais voltaria a ver aquele lugar. Mais tarde, não pôde recordar em que momento tinha trocado de direção; não tinha sido
uma decisão consciente. Algo o tinha miserável --possivelmente o eco dos carrinhos de mão carregados de mineral-- e só quando ouviu o golpe das grandes leva exteriores
do Blingdenstone compreendeu qual era seu propósito. --Guenhwyvar --chamou Drizzt, e torceu o gesto para ouvir sua própria voz, que lhe soou como um grito. Por sorte
os guardas svirfneblis apostados na ampla escada estavam muito entretidos conversando e não havia perigo de que o ouvissem. Apareceu a névoa cinza ao redor da estatueta,
e a pantera respondeu à chamada do amo. Guenhwyvar esmagou as orelhas contra o crânio e olisqueó o ar desconfiada ao ver-se em um entorno desconhecido. Por sua parte,
Drizzt fez um grande esforço por dominar a emoção que o embargava. --Quero te dizer adeus, amiga minha --sussurrou, quase sem poder pronunciar as palavras. Guenhwyvar
levantou as orelhas, e as pupilas dos brilhantes olhos amarelos escrutinaram ao jovem com muita atenção. --Já não posso agüentar mais a vida nos túneis, Guenhwyvar
acrescentou Drizzt. Tenho medo de perder todo aquilo que dá sentido à vida. Tenho medo de perder meu próprio ser. --O drow jogou um olhar por cima do ombro à escada
que conduzia ao Blingdenstone. E isto é algo mais precioso que a vida material. Entende-o, Guenhwyvar? Necessito algo mais, algo mais que a pura sobrevivência.
Necessito uma vida definida por algo mais que os instintos selvagens da criatura em que me converti. --O jovem se apoiou contra a parede do túnel. A explicação
lhe
soava clara e singela, embora sabia que cada degrau da escada até a cidade dos pequenos
seria uma prova de decisão e coragem. Recordou o dia em que tinha estado a uns metros das portas do Blingdenstone. Apesar do muito que o desejava, Drizzt tinha sido
incapaz das atravessar detrás dos pequenos. Uma paralisia lhe tinha convertido os músculos em pedra assim que pensou na possibilidade de cruzar o portal da cidade.
--Quase nunca me julgaste, amiga minha --prosseguiu Drizzt-- e, quando o tem feito, sempre foi com justiça. Pode me entender? dentro de uns momentos, possivelmente
nos separaremos para sempre. Pode entender por que devo fazê-lo? Guenhwyvar se aproximou do Drizzt e esfregou o focinho contra as costelas do drow. --Amiga minha
--sussurrou Drizzt ao ouvido da pantera--, vete agora antes de que perca a coragem. Retorna a seu lar e roga para que voltemos a nos encontrar alguma vez. Guenhwyvar
se apartou obediente e foi até a estatueta. Drizzt teve a sensação de que a pantera só tinha demorado uma décima de segundo em desaparecer. O guerreiro recolheu
o talismã e pensou na provocação que se dispunha a confrontar. Então, impulsionado pelas mesmas necessidades inconscientes que o tinham levado até ali, correu até
a escada e começou a subir. Os sentinelas apostados no patamar interromperam a conversação; ao parecer tinham pressentido que algo ou alguém se aproximava. Mesmo
assim, os guardas se levaram uma surpresa maiúscula quando o elfo escuro apareceu ante seus olhos diante mesmo das portas da cidade. Drizzt cruzou os braços sobre
o peito, o gesto que os drows utilizavam como sinal de paz. O jovem só podia confiar em que os svirfneblis conhecessem o significado da postura, porque sua súbita
aparição tinha provocado um revôo tremendo. Tropeçavam entre eles enquanto corriam pelo patamar sem saber o que fazer primeiro; alguns correram a proteger as portas
da cidade, outros rodearam ao Drizzt lhe apontando com suas armas, enquanto um grupo baixava uns quantos degraus para averiguar se este drow era o primeiro de uma
legião disposta ao assalto do Blingdenstone. Um pequeno, o chefe do guarda, decidido a averiguar o que acontecia, formulou ao Drizzt umas quantas perguntas que soavam
como latidos. O guerreiro encolheu os ombros para expressar seu desconhecimento da linguagem, e meia dúzia de pequenos deram um passo atrás alarmados pelo gesto.
O
svirfnebli repetiu as perguntas, quase a gritos, e sacudiu a lança de ferro em direção do Drizzt, que não as entendia nem podia responder a elas. Pouco a pouco e
bem à vista, deslizou uma mão sobre o estômago até chegar à fivela do cinturão. O chefe anão apertou com força o cabo da lança atento a cada um dos movimentos do
elfo escuro. Um leve movimento de pulso foi suficiente para soltar a fivela, e as cimitarras caíram ao chão com grande estrépito. Os svirfneblis deram um coice,
mas se recuperaram no ato e se aproximaram. A uma ordem do chefe, dois guardas se desprenderam das armas e apalparam sem muitos olhares ao intruso. Drizzt se zangou
consigo mesmo quando descobriram a adaga oculta na bota. Pensou que era um estúpido por haver-se esquecido da arma e não havê-la entregue em um princípio. Um momento
mais tarde, quando um dos svirfneblis colocou a mão no bolso mais profundo do piwafwi do Drizzt e tirou a estatueta de ônix, a angústia do Drizzt aumentou. Em um
movimento involuntário, Drizzt tendeu uma mão para recuperar o talismã, com uma expressão de súplica no rosto. Por toda resposta recebeu o golpe de uma lança contra
as costas. Os pequenos não eram uma raça maligna, mas não sentiam nenhuma avaliação pelos elfos escuros. Os svirfneblis tinham sobrevivido durante milênios na Antípoda
Escura com um punhado
de aliados e uma legião de inimigos. Entre estes últimos, os elfos escuros ocupavam o primeiro lugar. Da fundação da antiga cidade do Blingdenstone, a maioria das
baixas sofridas pelos pequenos tinham sido causadas pelas armas dos elfos escuros. Agora, sem mediar nenhum motivo, um destes elfos escuros tinha aparecido ante
as
portas da cidade e tinha entregue as armas por própria vontade. Os pequenos ataram as mãos do Drizzt à costas, e quatro guardas apoiaram as pontas das lanças no
corpo
do guerreiro, dispostos às cravar ao mais leve movimento suspeito. O grupo que tinha baixado a escada retornou com o relatório que não havia mais elfos escuros nas
imediações. O chefe dos pequenos, ainda receoso, apostou sentinelas nos pontos estratégicos e depois fez um gesto aos dois guardas que esperavam junto às portas.
Estas
se abriram, e Drizzt seguiu ao chefe. Naquele momento de excitação e angústia, só podia confiar em que tivesse conseguido deixar ao caçador nas profundidades da
Antípoda Escura.
5
Zin-Carla
Sem pressa por enfrentar-se à cólera de sua mãe, Dinin caminhou lentamente para a hall da capela da casa Dou'Urdem. A matrona Malícia o tinha chamado, e ele não
podia recusar a convocatória. No corredor, diante das portas, encontrou a Vierna e Maia que tampouco as tinham todas consigo. --O que ocorre? --perguntou Dinin através
do código mudo. --A matrona Malícia esteve reunida todo o dia com a Briza e Shi'nayne -- responderam as mãos da Vierna. --Sem dúvida planejam alguma outra missão
em busca do Drizzt --assinalou Dinin sem muito entusiasmo porque sabia que lhe tocaria participar dela. As duas sacerdotisas interpretaram perfeitamente a expressão
desdenhosa do varão. --De verdade foi tão terrível? --inquiriu Maia. Briza não se mostrou muito explícita. --Os dedos amputados e a perda do látego falam por si
só --opinou Vierna com um sorriso de complacência enquanto movia os dedos. Ao igual a seus irmãos, sentia muito pouco afeto pela filha maior da matrona Malícia.
De todos os modos, o sorriso não encontrou eco no Dinin, que recordava o enfrentamento com o Drizzt. --As duas puderam ver sua habilidade com as armas enquanto residia
conosco --respondeu Dinin com as mãos. Sua capacidade se multiplicou por dez nos anos que leva fora da cidade. --Mas como é? --perguntou Vierna. Intrigada pela
capacidade de sobrevivência do Drizzt, desde que a patrulha tinha retornado com a notícia de que seguia vivo, Vierna tinha alimentado a esperança de voltar a ver
o irmão menor. dizia-se que eram filhos do mesmo pai, e Vierna mostrava uma avaliação pelo Drizzt além do prudente, à vista dos sentimentos de Malícia respeito a
ele. Ao notar a expressão excitada, e recordar a humilhação sofrida à mãos do Drizzt, Dinin dirigiu um olhar de recriminação a Vierna. --Não tema, querida irmã --disse-lhe
a toda pressa. Se Malícia enviar aos túneis, como suspeito que fará, terá ocasião de ver o Drizzt tudo o que te agrade. Dinin uniu as mãos para dar mais ênfase
às palavras; depois passou entre as duas mulheres e entrou na hall. --Seu irmão esqueceu que antes de entrar se deve bater na porta -- comentou a matrona Malícia
a Briza e Shi'nayne, que se encontravam junto a ela. Rizzen, de joelhos diante do trono, olhou ao Dinin por cima do ombro. --Não te dei permissão para olhar! --chiou-lhe
Malícia ao patrão. Golpeou o punho contra um dos braços do trono, e Rizzen se tornou sobre a
pança aterrorizado. As palavras seguintes da matrona levavam a força de um feitiço. --te arraste! --ordenou, e Rizzen se arrastou até seus pés. Malícia estendeu
uma mão ao varão, sem deixar de olhar ao Dinin. O filho maior entendeu perfeitamente a intenção da matrona. --Beija! --disse Malícia ao Rizzen, que se apressou a
cobrir de beijos a mão oferecida. Te levante. Rizzen apenas se teve tempo de incorporar-se pela metade antes de que a matrona o propinara um murro em pleno rosto.
O patrão se desabou feito um novelo sobre o chão de pedra. --Se te mover, matarei-te --prometeu Malícia, e Rizzen permaneceu imóvel, sem duvidar da validez da promessa.
Dinin sabia que todo este espetáculo tinha como objetivo impressioná-lo. Sem piscar, Malícia o observou atentamente. --Falhaste-me --declarou, depois de uma larga
pausa. Dinin aceitou a reprimenda em silêncio, sem atrever-se sequer a respirar até que Malícia se voltou para a Briza. --E você! --gritou Malícia. Uma grande
sacerdotisa com a ajuda de seis guerreiros de primeira e não foste capaz de apanhar ao Drizzt. Briza fechou e abriu a mão para exercitar os dedos que Malícia tinha
feito crescer graças à magia em substituição dos amputados durante o combate. --Sete contra um --protestou Malícia--, e retornam com o rabo entre as pernas anunciando
desastres! --Eu o apanharei, mãe matrona! --prometeu Maia enquanto ocupava seu lugar junto ao Shi'nayne. Malícia olhou a Vierna, mas a segunda filha não se atreveu
a imitar à irmã na afirmação. --É muito atrevida --disse Dinin a Maia. Imediatamente, o olhar incrédulo de Malícia se fixou nele como um aviso de que não era seu
turno de falar. --Muito atrevida --grunhiu Briza, apressando-se a completar a opinião do Dinin. Malícia olhou a Briza, que como grande sacerdotisa agraciada com
o favor do Lloth estava em seu direito de falar. Não sabe nada de nosso irmão menor --acrescentou Briza, dirigindo-se tanto a Malícia como a Maia. --Não é mais
que um varão --replicou Maia. Eu poderia... --Acabaria atalho em partes! --chiou Briza. Deixa de dizer tolices e de formular falsas promessas, irmã. Nos túneis
além do Menzoberranzan, Drizzt te mataria em um abrir e fechar de olhos. Malícia não se perdia palavra. Tinha escutado o relato do encontro com o Drizzt várias vezes,
e conhecia o valor e os poderes da filha maior o suficiente para saber que Briza não falava em vão. Maia optou por não seguir a discussão porque não queria criar
rancores com a Briza. --Poderia derrotá-lo agora que compreende melhor no que se converteu? -- perguntou- Malícia a Briza. A resposta da Briza foi flexionar os dedos
da mão ferida; demoraria várias semanas em recuperar a força. A matrona interpretou seu gesto como uma resposta definitiva. --E você? --interrogou ao Dinin. Dinin
se moveu inquieto, sem saber o que devia responder à suscetível Malícia. A verdade podia deixá-lo em situação desprezada, mas uma mentira significaria voltar para
os túneis em busca do fugitivo. --me diga a verdade! --rugiu Malícia. Está disposto a capturar ao Drizzt e assim
recuperar meu favor? --Eu... --gaguejou Dinin, e baixou o olhar ao compreender que Malícia utilizava um feitiço de detecção. Não podia mentir porque o descobriria
no ato. Não --respondeu. Embora perca seu favor, mãe matrona, não quero ir em busca do Drizzt. Maia e Vierna --inclusive Shi'nayne-- ficaram estupefatas ante
uma resposta tão sincera, convencidas de que não podia existir nada pior que a ira de uma mãe matrona. Em troca, Briza assentiu porque tampouco queria voltar a enfrentar-se
com o Drizzt. Malícia tomou nota do gesto de sua filha. --Peço-te perdão, mãe matrona --continuou Dinin, em um intento de arrumar um pouco as coisas. Vi ao Drizzt
em combate. Derrubou-me como a um boneco, algo que ninguém mais poderia conseguir. Derrotou a Briza em uma briga limpa, e a ela jamais a tinham vencido. Não quero
sair a caçar a meu irmão porque acredito que o resultado provocaria sua cólera e expor mais problemas à casa Dou'Urdem. --Tem medo? --perguntou-lhe Malícia, com
astúcia. --Sim --reconheceu Dinin--, e também sei que voltaria a te desiludir, mãe matrona. Nos túneis que ele chama sua casa, Drizzt é imbatível. Não posso aspirar
a derrotá-lo. --Posso aceitar a covardia em um varão --disse Malícia, depreciativa. Dinin, que não podia fazer outra coisa, aceitou o insulto estoicamente. --Mas
você é uma grande sacerdotisa do Lloth! --jogou-lhe em cara Malícia a Briza. Não é possível que um vulgar varão esteja por cima dos poderes que te deu a rainha
arranha! --Escuta as palavras do Dinin, matrona! --respondeu Briza. --Lloth está contigo! --interveio Shi'nayne. --Mas Drizzt está fora do alcance da rainha aranha
--replicou Briza. Acredito que Dinin há dito uma verdade que se aplica a todos nós. Não podemos apanhar ao Drizzt. As profundidades da Antípoda Escura são seus
domínios, e nós somos uns estranhos. --Então, o que podemos fazer? --perguntou Maia. Malícia se recostou no trono e descansou a afiado queixo na palma de uma mão.
Tinha tentado coagir ao Dinin com a ameaça de ficar em seu contrário, e em que pese a todo ele tinha recusado aventurar-se a uma nova perseguição. Briza, cheia de
ambições e poderosa, e com o respaldo do Lloth, embora a casa Dou'Urdem e Malícia não o tivessem, tinha retornado sem o látego nem os dedos de uma mão. --por que
não empregar ao Jarlaxle e sua banda de mercenários? --propôs Vierna ao ver o dilema de Malícia. Brigam D'aerthe nos emprestou grandes serviços durante muitos
anos. --O chefe mercenário não aceitará a proposta --respondeu Malícia, porque já tinha tentado contratá-lo anos antes para esta mesma missão. Todos os membros
de Brigam D'aerthe obedecem as decisões do Jarlaxle, e toda nossa fortuna não é suficiente para tentá-lo. Suspeito que Jarlaxle acata as ordens estritas da matrona
Baenre. Drizzt é nosso problema, e a reina aranha quer que nós sejamos os que lhe demos solução. --Se me ordenar que vá, irei --anunciou Dinin--, embora possa te
desiludir. Não tenho medo às espadas do Drizzt nem à própria morte se for a seu serviço. Dinin tinha interpretado o mau humor de sua mãe o suficiente para saber
que não tinha a intenção de mandá-lo à caça e captura do Drizzt, e considerou que não lhe custava nada mostrar-se generoso. --Agradeço-lhe isso, meu filho --disse
Malícia, satisfeita. Dinin fez um esforço para não burlar-se do olhar furioso que lhe dirigiram suas irmãs. Agora faz o favor de nos deixar --acrescentou a matrona,
com um tom altivo que roubou ao Dinin seu momento
de glória. Temos que atender assuntos que não concernem a um varão. Dinin fez uma reverência e se encaminhou à porta. As irmãs não passaram por cima a facilidade
com que Malícia o tinha posto em seu sítio. --Recordarei suas palavras --prosseguiu Malícia, que desfrutava com o jogo de poder e o aplauso silencioso. Dinin fez
uma pausa, com a mão apoiada no trinco da decorada porta. Algum dia terá que provar a lealdade que me tem, ten por seguro. As cinco grandes sacerdotisas riram
a costas do Dinin enquanto ele saía da sala a toda pressa. No chão, Rizzen se encontrou enfrentado a um perigoso dilema. Malícia tinha despachado ao Dinin porque
os varões não tinham direito a permanecer na hall. Entretanto, a matrona não lhe tinha dada permissão para mover-se. Afiançou as pontas das botas e apertou os dedos
contra a pedra, preparado para levantar-se e sair assim que o ordenassem. --Ainda está aqui? --gritou-lhe Malícia, e Rizzen correu para a porta. Alto! --chiou
Malícia ao tempo que lançava um feitiço. Rizzen se deteve no ato, incapaz de opor-se à força do duomer do feitiço. --Não te dei permissão para que te mova! --exclamou
a matrona a suas costas. --Mas... --começou a protestar Rizzen. --Agarrem! --ordenou Malícia às duas filhas menores. Vierna e Maia se apressaram a cumprir a ordem
e sujeitaram ao Rizzen. --Encerrem em uma das masmorras --acrescentou Malícia. Mantenham vivo. Necessitaremo-lo mais tarde. Vierna e Maia se levaram a apavorado
varão, que não se atreveu a oferecer resistência. --Tem um plano --disse-lhe Shi'nayne a Malícia, consciente de que havia um propósito definido em cada uma das ações
da matrona da casa Dou'Urdem. Conhecia perfeitamente bem as obrigações de uma mãe matrona e compreendia que o aborrecimento de Malícia contra Rizzen, que não tinha
feito nada mau, não era real mas sim mascarava algum outro fim. A matrona se voltou para a Briza. --Estou de acordo com sua análise --declarou. Drizzt está fora
de nosso alcance. --Mas como há dito a matrona Baenre, não podemos fracassar --recordou-lhe Briza. Sua posição no conselho regente deve ser fortalecida a toda
costa. --Não fracassaremos --disse-lhe Shi'nayne a Briza com o olhar posto em Malícia, que lhe devolveu o olhar com uma expressão desanimada. Nos dez anos de luta
contra a casa Dou'Urdem cheguei a entender os métodos da matrona Malícia. Sua mãe encontrará a maneira de apanhar ao Drizzt. --Fez uma pausa ao ver o sorriso da
matrona. Possivelmente já sabe como fazê-lo. --Já o veremos --presumiu Malícia, ufana ante a amostra de respeito de seu antiga rival. Já o veremos. mais de duzentos
plebeus da casa Dou'Urdem se apinhavam na grande capela, e o rumor dos comentários sobre os motivos desta reunião ia em contínuo aumento. Os plebeus tinham muito
poucas oportunidades de visitar o lugar sagrado, salvo nas festas de culto à rainha aranha ou para os ofícios prévios a uma batalha. Mas esta vez não havia nenhuma
guerra a ponto de estalar e a data não correspondia a nenhum dos dias sagrados do calendário drow. Dinin Dou'Urdem, tão nervoso e excitado como outros, movia-se
entre a
multidão, dedicado a acomodar aos elfos escuros nas filas de assentos que rodeavam o altar central. O fato de ser varão lhe impedia de participar da cerimônia no
altar, e a matrona Malícia não o tinha posto em antecedentes de seus planos. De todos os modos, pelas ordens recebidas, Dinin sabia que os resultados da cerimônia
tinham uma importância crítica para o futuro da família. Como professor do coro teria que mover-se entre os congregados e dirigir aos plebeus nas letanías e orações
à rainha aranha. Dinin já tinha desempenhado este papel em numerosas ocasiões, mas esta vez a matrona Malícia lhe tinha advertido que uma só falha nas rezas lhe
custaria a vida. Havia outro feito que preocupava ao filho maior da casa Dou'Urdem. Pelo general, o outro varão nobre da casa, o atual companheiro de Malícia, ajudava-o
nesta tarefa. Mas ninguém tinha visto o Rizzen da reunião mantida por toda a família na hall para discutir como capturar ao Drizzt. Dinin suspeitava que Rizzen tinha
os dias contados como patrão da casa. Não era nenhum secreto que a matrona Malícia tinha devotado em sacrifício ao Lloth a mais de um amante. Assim que os plebeus
estiveram sentados, umas luzes vermelhas mágicas começaram a brilhar brandamente em todo o recinto. A iluminação aumentou pouco a pouco para permitir aos pressente
acontecer do espectro infravermelho à visão normal sem alterações. Uma nuvem de vapor apareceu debaixo dos assentos, estendeu-se por todo o chão, e começou a encher
a sala. Dinin dirigiu aos reunidos em um cantarolo surdo: a chamada da matrona Malícia. Esta apareceu no ponto mais alto da cúpula, com os braços estendidos e as
dobras da túnica negra bordada com desenhos de aranhas sacudidos por uma brisa mágica. Descendeu lentamente sobrevoando em círculos para observar aos reunidos e
deixar que eles contemplassem a magnificência da mãe matrona. Quando Malícia se posou no altar central, Briza e Shi'nayne apareceram no teto e descenderam da mesma
maneira. Aterrissaram e ocuparam seus postos, Briza junto à caixa tampada por um pano que havia ao lado do ara com forma de aranha e Shi'nayne detrás da matrona
Malícia. A matrona deu uma palmada, e o cantarolo cessou no ato. Com um rugido, elevaram-se as chamas dos oito braseiros dispostos sobre o altar, e o brilho do fogo
não foi tão doloroso para os olhos dos drows graças à névoa e o resplendor avermelhado das luzes mágicas. --Entrem, minhas filhas! --gritou Malícia. Todas as olhadas
se dirigiram à porta principal da capela. Vierna e Maia entraram escoltando ao Rizzen, quem ao parecer ia drogado, e seguidas por um féretro que flutuava no ar.
Dinin não foi o único surpreso ao ver este estranho acerto. Dava por feito que Rizzen seria sacrificado, mas nunca tinham utilizado um féretro na cerimônia. As duas
filhas menores subiram ao altar e sem perder um segundo ataram ao Rizzen à pedra do sacrifício, Shi'nayne se fez cargo do féretro e o desviou para o extremo oposto
a Briza. --Chamem à donzela! --ordenou Malícia, e imediatamente Dinin dirigiu aos plebeus na letanía. As chamas cresceram nos braseiros, enquanto Malícia e as demais
grandes sacerdotisas incitavam aos pressente com gritos mágicos nas palavras chaves da chamada. de repente soprou um vento muito forte que dispersou a névoa. As
chamas dos oito braseiros superaram em altura a Malícia e às demais, e se uniram em um estalo furioso no centro da plataforma circular. Os braseiros cuspiram fogo
uma vez mais em uma explosão comum, lançando todas as chamas na invocação; depois quase se apagaram enquanto as línguas de fogo formavam primeiro
uma bola e a seguir uma coluna ígnea. O assombro dominou aos plebeus, que prosseguiram com a salmodia enquanto a coluna passava por tudas as cores do espectro e
se esfriava. Quando se apagaram as chamas apareceu uma criatura dotada de tentáculos, mais alta que um drow, parecida com uma vela médio derretida e com o rosto
alargado como se as feições estivessem a ponto de fundir-se. Todos os pressente reconheceram à criatura, embora eram muito poucos quão plebeus tinham visto uma alguma
vez, exceto possivelmente nas ilustrações de algum livro religioso. De todos os modos, reunido-los compreenderam naquele momento a importância do ato porque nenhum
drow podia passar por cima o significado da presença de uma yochlol, uma donzela pessoal do Lloth. --Salve, donzela --manifestou Malícia. Bendita seja sua presença
na casa do Daermon N'a'shezbaernon. A donzela observou aos pressente durante um bom momento, surpreendida de que a casa Dou'Urdem se tivesse atrevido a invocá-la,
quando Malícia não contava com o favor do Lloth. Só as grandes sacerdotisas escutaram a pergunta telepática. Como te atreve a me invocar? --Para corrigir nossos
enganos! --respondeu Malícia em voz alta, e os congregados captaram a tensão do momento. Para recuperar o favor de sua senhora, o favor que é o único propósito
de nossa existência! Malícia olhou ao Dinin, e ele ordenou a canção adequada, o hino de louvor à rainha aranha. Agrada-me a exibição, matrona Malícia --transmitiu
a donzela, esta vez unicamente para Malícia. Mas não te ajudará para fazer frente aos perigos! Sei; isto é só o princípio --pensou Malícia, segura de que a donzela
podia lhe ler o pensamento. Este conhecimento lhe inspirou confiança porque não mentia. Só desejava recuperar o favor do Lloth. Meu filho menor faltou à rainha
arranha. Deve pagar por seus pecados. As demais sacerdotisas, excluídas da conversação telepática, uniram-se ao canto ao Lloth. Drizzt Dou'Urdem vive --manifestou
a donzela. E não está submetido a sua custódia. Isto resolverá muito em breve --prometeu Malícia. O que quer de mim? --Zin-Carla! --gritou Malícia, em voz alta.
A donzela se sacudiu, assombrada por um momento da ousadia da petição. Malícia se manteve firme, convencida de que o plano não podia fracassar. A seu redor, as outras
sacerdotisas contiveram a respiração. Tinha chegado o momento da verdade e agora tudo pendia de um fio. É nosso melhor presente --respondeu a donzela. M sequer
se está acostumado a outorgar às matronas que têm o favor da rainha aranha. E você, que desagrada ao Lloth, atreve-te a pedi-lo? É justo e correto --afirmou Malícia.
Depois, como necessitava o apoio da família, acrescentou em voz alta: --Que meu filho conheça as conseqüências de suas faltas e o poder dos inimigos que se criou.
Que meu filho seja testemunha da horrível glorifica do Lloth para que caia de joelhos e suplique perdão. Malícia voltou para a comunicação telepática. Só então o
espectro cravará a espada em seu coração! A donzela pôs os olhos em branco enquanto entrava em contato com seu plano de existência em busca de uma resposta à petição.
Ao cabo de um bom momento -- minutos de agonia para a matrona Malícia e todos os reunidos-- a yochlol formulou
uma pergunta. Tem o corpo? Malícia fez um gesto a Maia e a Vierna, e as duas correram até o féretro para tirar a tampa de pedra. Naquele instante, Dinin descobriu
que o ataúde não era para o Rizzen mas sim tinha um ocupante. O cadáver, reanimado pela magia, saiu do féretro e trastabilló até chegar junto a Malícia. O corpo
aparecia mal conservado e tinha perdido parte das feições, mas Dinin e a maioria dos pressente o reconheceram no ato: era Zaknafein Dou'Urdem, o legendário professor
de armas. Pretende utilizar ao professor de armas que sacrificou à rainha aranha para emendar os enganos cometidos por seu filho menor? --perguntou a donzela.
É este seu zin-Carla? É apropriado --replicou Malícia. Tal como tinha previsto, a donzela parecia agradada. Zaknafein, o tutor do Drizzt, era em grande parte culpado
do comportamento blasfemo do jovem. Ao Lloth, reina do caos, agradavam-lhe as ironias, e nada mais irônico que empregar ao Zaknafein como verdugo. O zin-Carla requer
grandes sacrifícios --declarou a donzela. A criatura olhou a pedra de sacrifícios onde jazia Rizzen, que não tinha consciência do que acontecia a seu redor. A donzela
franziu o sobrecenho, se é que podia fazer este gesto, ao ver o pouco valor da vítima. Então voltou sua atenção a Malícia e leu seus pensamentos. Adiante --disse,
de repente muito interessada. Malícia levantou os braços e iniciou outro hino ao Lloth. Fez um gesto ao Shi'nayne, que caminhou até a caixa junto à Briza e tirou
a adaga de cerimônias, a jóia mais apreciada da casa Dou'Urdem. Briza torceu o gesto ao ver como a flamejante "irmana" sujeitava o objeto com surripio em forma de
aranha e uma lâmina formada por oito cuchillas que reproduziam as patas. Durante séculos a missão de afundar a adaga no coração das vítimas tinha sido encomendada
a Briza. Shi'nayne mostrou uma expressão de brincadeira quando se apartou com a adaga, consciente da cólera da Briza. aproximou-se de Malícia, que esperava junto
ao Rizzen, e levantou a adaga sobre o coração do homem, lista para cravá-la. Mas não pôde completar o movimento porque Malícia a sujeitou pelo pulso. --Esta vez
o farei eu --explicou a matrona Malícia para desgosto do Shi'nayne, que olhou por cima do ombro e viu o depreciativo sorriso da Briza ante o desprezo. Malícia esperou
o final do hino e, quando reinou o silêncio, iniciou sozinha a reza adequada. --Takken bres duis bres --rezou enquanto empunhava a adaga com as duas mãos. Prosseguiu
a oração e levantou a adaga. Congregado-los contiveram a respiração, atentos ao momento de êxtase, ao prazer selvagem de entregar uma vida à rainha aranha. Malícia
descarregou o golpe, mas no último instante desviou a trajetória e cravou a arma no coração do Shi'nayne, a matrona SiNafay Hun'ett, a rival mais odiada. --Não!
--gritou SiNafay. Muito tarde. As oito lâminas lhe atravessaram o coração. SiNafay tentou falar, fechar a ferida com um feitiço ou amaldiçoar a Malícia, mas em seus
lábios só apareceu uma baforada de sangue. Em um último estertor caiu sobre o corpo do Rizzen. Todos os pressente estalaram em gritos de assombro e alegria ao ver
como Malícia arrancava a adaga do peito do SiNafay Hun'ett e com ela o coração de sua inimizade. --Genial! --chiou Briza a todo pulmão para fazer-se ouvir entre
o tumulto, porque nem sequer ela conhecia as intenções de Malícia.
Agora voltava a ocupar a posição de honra que lhe correspondia por ser a filha maior da casa Dou'Urdem. Muito ardiloso! --transmitiu a donzela à mente de Malícia.
Agradaste-nos! Naquele instante, o cadáver animado caiu ao chão como se não tivesse ossos. Malícia olhou à donzela e pôs mãos à obra. --Depressa! Ponham ao Zaknafein
no ara! --ordenou às filhas menores. Sem perder um segundo, as duas apartaram sem olhares os corpos do Rizzen e SiNafay para colocar em seu sítio ao Zaknafein. Por
sua parte, Briza começou a ordenar com muito cuidado os numerosos frascos de ungüentos preparados para a ocasião. A fama dos ungüentos de Malícia se enfrentava a
uma dura prova. --Zin-Carla? --perguntou a mãe matrona com o olhar posto na donzela. Não recuperaste o favor do Lloth! --respondeu a donzela, com tanta força que
Malícia caiu de joelhos. levou-se as mãos à cabeça, convencida de que o crânio lhe estalaria pela pressão. Pouco a pouco diminuiu a dor. Mas hoje agradaste à rainha
arranha, Malícia Dou'Urdem --acrescentou a yochlol. E se aceita que os planos para acabar com seu filho sacrílego são apropriados. Te outorga o zin-Carla, mas
tem que saber que é a última oportunidade, matrona Malícia Dou'Urdem. O castigo pelo fracasso será terrível! A donzela desapareceu em uma explosão de fogo que sacudiu
a capela da casa Dou'Urdem. Reunido-los gritaram frenéticos ante a amostra de poder da deidade, e Dinin os dirigiu em outro hino de louvor ao Lloth. Dez semanas!
O último aviso da donzela ressonou com tanta força que os plebeus se acurrucaron com as mãos sobre as orelhas. De modo que, durante dez semanas --setenta ciclos
do Narbondel, o relógio do Menzoberranzan--, toda a casa Dou'Urdem se reuniu na grande capela. Dinin e Rizzen dirigiam aos plebeus nas preces e letanías à rainha
arranha, enquanto Malícia e suas filhas esfregavam o cadáver do Zaknafein com os ungüentos mágicos. A reanimación de um cadáver era um feitiço singelo para uma sacerdotisa,
mas o zin-Carla era muito mais complicado. O resultado desta operação seria um espectro dotado com todas as habilidades da vida anterior e submetido ao controle
da mãe matrona designada pelo Lloth. Era o presente mais precioso da rainha aranha, algo que muito poucos se atreviam a suplicar e que quase nunca se concedia,
porque o zin-Carla--a devolução do espírito à matéria-- era uma prática muito perigosa. Só através da força de vontade da sacerdotisa se podiam separar as aptidões
do espectro das memórias e emoções. Manter o controle nesta fina linha divisória resultava difícil inclusive para a disciplinada mente de uma grande sacerdotisa.
Além disso, a rainha aranha unicamente outorgava o zin-Carla para realizar umas tarefas específicas, por isso apartar-se delas conduziria ao desastre. Lloth não
tolerava
o fracasso.
6
Blingdenstone
Drizzt não tinha visto jamais nada parecido ao Blingdenstone. Tinha esperado encontrar algo não muito diferente do Menzoberranzan, embora a menor escala, mas quando
os guardas o fizeram passar através das enormes leva de pedra e ferro, comprovou que suas expectativas não tinham nada que ver com a realidade. Menzoberranzan ocupava
o interior de uma caverna imensa; em troca, Blingdenstone se compunha de uma série de cavernas comunicadas por túneis de baixa altura. A maior do complexo, logo
que passada a porta, ocupava-a o guarda da cidade, e o recinto tinha sido acondicionado exclusivamente para uma posição defensiva. Havia dúzias de cornijas e o dobro
de escadas e rampas que baixavam e subiam, de forma tal que um atacante podia estar a só três metros de um defensor e entretanto ter que baixar vários níveis e subir
outros tantos antes de poder aproximá-lo suficiente para combater. As baixas paredes de selaria que marcavam as passarelas rodeavam uns muros mais altos e grossos
capazes de manter encaixado a um exército invasor nas partes abertas da caverna durante muito tempo. Um grande número de svirfneblis abandonaram as posições para
poder ver o elfo escuro que tinha entrado na cidade. Observavam-no desde todas as cornijas, e Drizzt não sabia se as expressões nos rostos dos pequenos eram de curiosidade
ou de ira. Em qualquer caso, os pequenos guerreiros estavam preparados para qualquer eventualidade, pois todos mantinham as molas de suspensão e as lanças listas
para atacar. Os svirfneblis guiaram ao Drizzt através da caverna. Subiram muitas escadas enquanto baixavam, sem apartar-se das passarelas e sempre por lugares onde
havia muitos guardas. O caminho dava voltas e baixava, subia bruscamente, e tinha mil e uma revoltas. A única maneira de manter a orientação era observar o teto,
que resultava visível do nível mais desço da caverna. O drow sorriu para seus adentros ao pensar que, inclusive sem a presença dos guardas, qualquer grupo invasor
podia demorar horas em encontrar o caminho correto. Ao final de um corredor baixo e estreito, que os pequenos percorreram em fila a Índia e Drizzt quase a gatas,
o
grupo entrou na zona habitada. Esta caverna, mais larga mas não tão larga como a primeira, também tinha cornijas, embora com muitos menos nivele. Nas paredes do
recinto se viam dúzias de entradas de covas, e ardiam fogueiras em vários lugares, coisa pouco habitual na Antípoda Escura dada a escassez de combustível. Blingdenstone
resultava um lugar quente e luminoso comparado com o resto do mundo subterrâneo. Drizzt conservou a calma, apesar da gravidade da situação, enquanto observava aos
svirfneblis dedicados às tarefas da vida diária. Os habitantes o olhavam com curiosidade, mas só por uns instantes; eram gente muito trabalhadora e não podiam perder
tempo em distrações. Uma vez mais, Drizzt foi guiado por caminhos bem riscados, mas agora com muitas menos voltas e dificuldades. Todas as ruas, bastante largas
e de pavimento
liso, pareciam conduzir a um grande edifício central. O chefe do grupo que escoltava ao Drizzt se adiantou à carreira para falar com os dois sentinelas armados com
lanças apostados diante do edifício. Um dos guardas correu ao interior, enquanto o outro mantinha aberta a porta de ferro para dar passo à patrulha e ao prisioneiro.
Pela primeira vez desde que tinham entrado na cidade, os svirfneblis fizeram partir ao Drizzt a toda pressa por um labirinto de passadiços que acabava em uma câmara
circular de pouco mais de dois metros de diâmetro e teto muito baixo para o drow. Não havia nada na habitação exceto uma cadeira de pedra e, assim que o fizeram
sentar, Drizzt compreendeu sua função; tinha grilhões de ferro nos braços e patas para sujeitar ao prisioneiro pelos pulsos e os tornozelos. Os pequenos não o trataram
com muitos olhares, mas quando o jovem fez uma careta de dor porque os elos lhe beliscaram a carne da cintura ao retorcer-se, um dos guardas se apressou a acomodá-los
para que não lhe fizessem mal. depois de encadeá-lo, os pequenos deixaram ao Drizzt a sós no quarto escuro e vazio. A porta de pedra se fechou com um golpe detestável,
e o silêncio foi total. Passaram as horas. Drizzt flexionou os músculos em um intento de afrouxar a pressão dos grilhões. Retorceu e atirou com uma mão, e só a dor
do ferro ao morder o pulso o alertou sobre o que fazia. Estava a ponto de recuperar a personalidade do caçador, que tinha como única meta sobreviver. --Não! --gritou
Drizzt. Esticou todos os músculos do corpo disposto a recuperar o controle racional. É que o caçador podia dominar sua mente? Tinha ido a esse lugar voluntariamente
e até o momento todo tinha resultado melhor do que esperava. Esse não era o momento para ações se desesperadas, mas talvez o caçador tivesse força suficiente para
desobedecer suas decisões racionais. Drizzt não teve tempo para responder a suas dúvidas, porque um segundo mais tarde se abriu a porta de pedra e um grupo de sete
anciões --a julgar pela extraordinária quantidade de rugas em seus rostos-- entrou na cela e se situou diante da cadeira de pedra. O jovem reconheceu a evidente
importância do grupo. Os guardas levavam jaquetas de couro sujeitas com argolas de mithril; em troca, os visitantes vestiam túnicas de fino tecido. Começaram a dar
voltas ao redor do Drizzt, sem deixar de fazer comentários em seu incompreensível idioma. --Menzoberranzan? --perguntou um dos pequenos enquanto lhe ensinava o emblema
da casa do Drizzt. O drow assentiu até onde lhe permitia o corda de ferro, ansioso por estabelecer algum tipo de comunicação com os captores. Mas não era essa a
intenção dos pequenos, pois reataram a conversação entre eles, muito mais excitados. A discussão se prolongou durante vários minutos, e Drizzt advertiu pelo tom
das
vozes que a dois dos anciões parecia lhes desgostar profundamente ter prisioneiro a um elfo escuro procedente da cidade de seus mais próximos e odiados inimigos.
Pela forma em que discutiam, Drizzt quase esperava que algum deles decidisse lhe cortar o pescoço sem mais demora. Certamente, não foi assim; os pequenos não eram
criaturas atordoadas nem cruéis. Um dos integrantes do grupo se separou de outros para ir situar se diante do jovem e lhe dirigir a palavra no idioma dos drows.
--Pelas pedras, elfo escuro! por que vieste? --inquiriu o pequeno, com uma pronúncia hesitante mas clara. Drizzt não soube o que responder a esta pergunta tão singela.
Como podia começar a explicar os anos de solidão na Antípoda Escura? Ou falar da decisão de abandonar a maligna sociedade drow e viver de acordo com seus próprios
princípios morais?
--Amigo --respondeu por fim, e depois se moveu inquieto, convencido de que tinha dado uma resposta absurda e inadequada. Mas, ao parecer, o svirfnebli opinava de
outro modo, pois se arranhou o queixo raspado e considerou a resposta durante um bom momento. --Há..., vieste aqui desde o Menzoberranzan? --interrogou-o. O pequeno
franzia o nariz com cada uma das palavras. --Assim é --respondeu Drizzt, mais crédulo. O pequeno inclinou a cabeça para um lado como uma indicação de que esperava
uma explicação mais ampla. --Abandonei Menzoberranzan faz muitos anos --acrescentou Drizzt, com o olhar perdido na distância ao recordar a vida que tinha deixado
atrás. Nunca foi meu lar. --Ah, memore, elfo escuro! --chiou o pequeno, que sacudiu o emblema da casa Dou'Urdem sem dar-se conta das conotações da resposta do Drizzt.
--vivi muitos anos na cidade dos drows --continuou o jovem, sem perder um segundo. Sou Drizzt Dou'Urdem, em outros segundo tempos filho da casa Dou'Urdem. --Olhou
o medalhão que sustentava o pequeno, estampado com o emblema familiar, e tentou explicar-se. Daermon N'a'shezbaernon. O svirfnebli se voltou para outros, que começaram
a falar com uníssono. Um deles assentia muito excitado; ao parecer tinha reconhecido o nome antigo da casa drow, coisa que surpreendeu ao Drizzt. O pequeno que tinha
interrogado ao jovem olhou ao prisioneiro enquanto se golpeava os lábios franzidos com as pontas dos dedos indicadores e estalava a língua com um som irritante.
--Segundo nossas informações, a casa Dou'Urdem sobrevive fomentou, atento à reação do Drizzt. Ao ver que não respondia, acrescentou com tom acusador--: Você não
é um emparelha! Como podia o pequeno estar informado de sua situação?, perguntou-se Drizzt, assombrado. --Sou um emparelha por escolha... --tentou explicar. --Ah,
elfo escuro --interrompeu-o o svirfnebli, mais tranqüilo. Sei que vieste por sua própria vontade, e te acredito. Mas um emparelha? Pelas pedras, elfo escuro! --O
rosto do pequeno se contorsionó em uma súbita expressão de fúria. Você é um espião! Então, com a mesma rapidez, o pequeno recuperou a serenidade e adotou uma postura
relaxada. Drizzt o observou atentamente. As mudanças de humor do pequeno tinham o propósito de desconcertar aos prisioneiros? Ou formavam parte do caráter da raça?
O jovem recordou aquele único encontro anterior com os svirfneblis em busca de algum antecedente que lhe permitisse dissipar as dúvidas. Naquele momento, seu interlocutor
colocou a mão no bolso mais profundo de sua túnica e tirou a estatueta da pantera. --me escute bem, elfo escuro. Quero que responda a verdade. Se o fizer, evitará-te
sofrimentos inúteis --disse com calma o pequeno. O que é isto? Drizzt notou o tremor nos músculos. O caçador queria chamar o Guenhwyvar, recorrer à pantera para
que esquartejasse a toda essa turma de anões anciões. Possivelmente algum deles tinha a chave dos grilhões; então recuperaria a liberdade Y... Drizzt descartou estas
idéias ridículas e afastou ao caçador de sua mente. encontrava-se em uma situação se desesperada, mas isto sabia do momento em que tinha decidido ir ao Blingdenstone.
Se os pequenos acreditavam de verdade que era um espião, sem dúvida o matariam. Inclusive se não podiam prová-lo, como se atreveriam a mantê-lo vivo? --Foi uma loucura
vir aqui --murmurou Drizzt quase para si mesmo, ao compreender que o dilema não só o afetava a ele mas também também envolvia aos pequenos.
O caçador tentou colocar vaza em seus pensamentos. Uma palavra, e a pantera apareceria a seu lado. --Não! --gritou Drizzt pela segunda vez no dia, para resistir
ao lado mais escuro de sua pessoa. Os pequenos se separaram de um salto ante a possibilidade de um feitiço. Um dardo se chocou contra o peito do jovem e deixou escapar
uma nuvem de gás. Drizzt se enjoou ao respirar o gás. Escutou aos svirfneblis que se moviam ao redor da cadeira, discutindo o que fazer com ele em uma língua que
não entendia. Viu a silhueta de um, só uma sombra, que se aproximava e lhe abria os dedos em busca de componentes mágicos. Quando por fim Drizzt recuperou a claridade
mental, viu que tudo seguia igual. O talismã de ônix apareceu outra vez ante seus olhos. --O que é isto? --perguntou o anão intérprete, com um tom um pouco mais
insistente. --Um companheiro --sussurrou Drizzt. Minha única amiga. O drow fez uma larga pausa para refletir em suas seguintes palavras. Não podia culpar aos svirfneblis
se decidiam matá-lo, e Guenhwyvar se merecia algo mais que ser um adorno no suporte de algum pequeno. --chama-se Guenhwyvar --acrescentou Drizzt. Invoca seu nome
e virá a pantera, uma aliada e uma amiga. Cuida-a muito, porque é muito valiosa e de grande poder. O pequeno olhou o amuleto e depois ao Drizzt, com uma expressão
em que se mesclavam a curiosidade com a cautela. Entregou a figura a um dos companheiros e o enviou fora do calabouço, porque não confiava no drow. Se o elfo escuro
havia dito a verdade, e o pequeno não o punha em dúvida, Drizzt acabava de revelar o segredo de um objeto mágico muito poderoso. Mas resultava ainda mais surpreendente
o fato de que, ao dizer a verdade, o drow tinha renunciado a sua única possibilidade de escapar. O svirfnebli tinha quase duzentos anos de idade e sabia tanto como
qualquer de seu povo sobre a natureza dos elfos escuros. Se algum deles atuava de uma forma imprevisível, como era o caso presente, rompiam-se os esquemas. Os elfos
escuros se ganharam em pulso a fama de cruéis e assassinos, e quando os pequenos apanhavam a um que encaixava no molde, sabiam qual era a solução e a aplicavam sem
remorso. Mas o que podiam fazer com um drow que mostrava um comportamento moral sem precedentes? Os svirfneblis voltaram a conversar entre eles, sem fazer caso do
Drizzt. Depois partiram, exceto o pequeno que podia falar o idioma dos elfos escuros. --O que ides fazer? --perguntou Drizzt. --A decisão é privilégio exclusivo
do
rei --respondeu o pequeno, muito sério. Possivelmente tarde vários dias em decidir qual será seu destino, depois de estudar as considerações do conselho assessor,
o grupo que acaba de conhecer. --O svirfnebli fez uma reverência, e a seguir olhou ao Drizzt aos olhos e acrescentou bruscamente--: Suspeito, elfo escuro, que será
executado. Drizzt assentiu, resignado à lógica que motivava a sentença. --De todos os modos acredito que não é como outros, elfo escuro --prosseguiu o pequeno. Suspeito
que recomendarei clemência ou, ao menos, piedade na execução. O svirfnebli encolheu os ombros, deu meia volta e caminhou para a porta. O tom das palavras do interlocutor
despertou uma lembrança na mente do Drizzt. Outro svirfnebli lhe tinha falado da mesma maneira, em términos quase iguais, muitos anos atrás. --Espera --chamou Drizzt.
O pequeno se deteve e se voltou, enquanto o drow tratava de fazer memória, de recordar o nome do prisioneiro que ele tinha salvado naquela ocasião.
--O que quer? --perguntou o pequeno, impaciente. --Um pequeno --respondeu Drizzt. Acredito que desta cidade. Sim, tinha que ser daqui. --Conhece alguém de minha
gente,
elfo escuro? --inquiriu o svirfnebli, aproximando-se da cadeira de pedra. Me diga o nome. --Não sei --respondeu o drow. Eu formava parte de uma patrulha, faz
anos, possivelmente uma década. Lutamos contra um grupo de svirfneblis que tinham entrado em nossa região. --Fez uma careta ao ver que o pequeno franzia o sobrecenho
mas não calou, consciente de que aquele supervivente podia ser a única esperança de salvação. Lembrança que só sobreviveu um pequeno e que retornou ao Blingdenstone.
--Como se chamava? --insistiu o svirfnebli, colérico, com os braços cruzados sobre o peito e golpeando o chão com a ponteira da bota. --Não o recordo --admitiu Drizzt.
--Então a que vem tudo isto? --grunhiu o pequeno. Pensava que foi diferente de... --Perdeu as mãos na batalha --interrompeu-o Drizzt, teimado. Por favor, tem que
conhecê-lo. --Belwar? --respondeu o pequeno, no ato. O nome refrescou a memória do drow. --Belwar Dissengulp! --gritou Drizzt. Então está vivo! Possivelmente ele
possa recordar... --Jamais esquecerá aquele dia desgraçado, elfo escuro! --afirmou o pequeno quase sem poder controlar a fúria. Ninguém do Blingdenstone esquecerá
aquele dia tão funesto! --Chama-o. Procura o Belwar Dissengulp --suplicou Drizzt. O pequeno caminhou para a porta sem deixar de sacudir a cabeça ante as contínuas
surpresas do elfo escuro. A porta se fechou com o ruído de uma lápide, e Drizzt voltou a estar sozinho. Enquanto refletia sobre a mortalidade tentou não fazer-se
muitas esperanças. --Pensava que podia te fazer algum mal? --dizia Malícia ao Rizzen quando Dinin entrou na hall da capela. Aquilo não foi mais que um engano para
não despertar as suspeitas do SiNafay Hun'ett. --Muito obrigado, mãe matrona --respondeu Rizzen, muito mais tranqüilo. separou-se do trono de Malícia sem deixar
de fazer reverências a cada passo. --Nossas semanas de trabalho deram seu fruto --anunciou Malícia a todos os pressente. Zin-Carla está acabado! Dinin se esfregou
as mãos, entusiasmado. Só as mulheres da família tinham visto o produto de seu trabalho. A um gesto de Malícia, Vierna se aproximou de uma cortina no extremo da
sala e a correu. Ali se erguia Zaknafein, o professor de armas; já não era um cadáver em decomposição mas sim mostrava o mesmo aspecto viçoso que tinha tido em vida.
Dinin se balançou sobre os talões quando o professor de armas avançou para colocar-se diante da matrona Malícia. --Tão bonito como sempre, meu querido Zaknafein
--disse-lhe Malícia, agradada. O espectro não respondeu. --E mais obediente --acrescentou Briza. O comentário provocou as gargalhadas das demais mulheres. --Isto...,
ele... perseguirá o Drizzt? --atreveu-se a perguntar Dinin embora sabia muito bem que não tinha permissão para falar. Malícia e as demais estavam muito interessadas
no Zaknafein e passaram por cima a falta do filho maior.
--Zaknafein se encarregará de aplicar o castigo que se merece seu irmão -- prometeu Malícia, com um brilho de alegria nos olhos. Mas falta algo --acrescentou a
matrona, coquete, enquanto olhava primeiro ao Zak e depois ao Rizzen. É muito bonito para inspirar medo a aquele renegado. Outros se olharam os uns aos outros,
intrigados pela atitude da matrona. Acaso pretendia compensar ao Rizzen pelo mau momento que lhe tinha feito passar? --Vêem, algemo meu --disse Malícia ao Rizzen.
Agarra a espada e marca o rosto de seu rival morto. Sentirá-se melhor, e servirá para inspirar terror ao Drizzt quando vir a seu velho professor. Rizzen vacilou
mas ganhou confiança à medida que se aproximava do espectro. Zaknafein permanecia imóvel, sem respirar nem piscar, ao parecer alheio ao que ocorria a seu redor.
Rizzen apoiou uma mão no pomo da espada e olhou a Malícia para pedir uma confirmação. Esta assentiu. Com uma careta feroz, Rizzen desembainhou a espada e lançou
um
cutilada contra o rosto do Zaknafein. Nem sequer conseguiu aproximar-se dele. O espectro entrou em ação com tanta rapidez que os pressente quase nem viram os movimentos.
Empunhou as duas espadas e parou o golpe ao tempo que atacava. A espada do Rizzen voou pelos ares e, antes de que o desafortunado patrão da casa Dou'Urdem pudesse
expressar uma palavra de protesto, um dos aços do Zaknafein lhe cortou a garganta e o outro lhe atravessou o coração. Rizzen já estava morto quando caiu ao chão,
mas o espectro não se deu por satisfeito com a rapidez e a limpeza do ataque. Zaknafein continuou com os cutiladas e estocadas disposto a reduzir a partes o cadáver
do rival, até que Malícia, agradada com a demonstração, ordenou-lhe parar. --Aborrecia-me --explicou a matrona ao ver o incrédulo olhar dos filhos. Já escolhi
um novo patrão entre os plebeus. Entretanto, não era a morte do Rizzen o que motivava as expressões de assombro dos filhos de Malícia; não lhes interessava no mais
mínimo nenhum dos amantes que a mãe pudesse escolher como patrão da casa, uma posição sempre temporária, a não ser a habilidade e a rapidez do espectro no manejo
das armas. --Tão magnífico como quando vivia --comentou Dinin. --Melhor! --afirmou Malícia. Zaknafein conserva intactas e exclusivamente as qualidades de guerreiro
e não há nada que o distraia de seu encargo. Olhem bem, meus filhos. Zin-Carla, o presente do Lloth. voltou-se para o Dinin e lhe sorriu com picardia. --Não penso
me aproximar dessa coisa --exclamou Dinin, ao supor que sua mãe podia desejar uma segunda demonstração. --Não tema, primeiro filho --tranqüilizou-o Malícia, com
uma gargalhada. Não tenho nenhum motivo para te desejar mau. Dinin não fez caso do conselho. Malícia não necessitava razões. O corpo despedaçado do Rizzen era
a melhor demonstração. --Encarregará-te de guiar ao espectro ao exterior --acrescentou a matrona. --Ao exterior? --À região onde encontrou a seu irmão --explicou
Malícia. --Terei que ir diante da coisa? --perguntou Dinin. --Só tem que guiá-lo até ali--respondeu sua mãe. Zaknafein conhece a presa. Está imbuído com feitiços
que o ajudarão na caça. Briza, que se mantinha a um lado, parecia preocupada. --O que ocorre? --quis saber a matrona ao ver a expressão de sua filha. --Não ponho
em dúvida o poder do espectro, ou a magia com que o dotaste --
manifestou Briza, vacilante ao saber que Malícia não aceitaria discussões em um assunto tão importante. --Ainda tem medo de seu irmão menor? --interrogou-a Malícia.
Briza não soube o que responder. --Esquece seus temores por muito válidos que lhe possam parecer --acrescentou Malícia, muito tranqüila. Digo-lhes isso a todos:
Zaknafein é o presente de nossa rainha. Não há nada nem ninguém na Antípoda Escura que possa detê-lo! --Olhou ao espectro. Você não me falhará, professor de armas,
não é assim? Zaknafein permaneceu impassível, com as espadas tintas em sangue embainhados, as mãos contra as coxas, e sem pestanejar, parecia uma estátua, um ente
sem vida. Mas bastava olhar o corpo mutilado do patrão da casa Dou'Urdem tendido aos pés do Zaknafein para compreender que o professor de armas não era um monstro
inanimado.
SEGUNDA PARTE
Belwar
Amizade: esta palavra chegou a significar muitas coisas diferentes entre as diversas raças e culturas da Antípoda Escura e na superfície dos Reino. No Menzoberranzan,
a amizade nasce pelo general inspirada pelo benefício mútuo. Enquanto as partes se aproveitam da união, esta se mantém firme. Mas a lealdade não é uma das características
da vida drow, e, logo que um dos amigos acredita que ganhará mais sem o outro, o vínculo --e provavelmente a vida do outro-- tem um final súbito. tive poucos amigos
na vida, e, se vivesse mil anos, penso que seguiria igual. Não me lamento deste fato porque aqueles que me chamaram amigo foram pessoas de grande valia e enriqueceram
minha existência, deram-lhe valor. O primeiro foi Zaknafein, meu pai e professor, que me ensinou que não estava sozinho e que não havia nada de mau em defender meus
princípios. Zaknafein me salvou tanto da espada como da caótica, maligna e fanática religião que condena a minha gente. Também me encontrava perdido quando um pequeno
sem mãos entrou em minha vida, um svirfnebli ao que tinha resgatado de uma morte segura, muitos anos antes, pela implacável espada de meu irmão Dinin. Meu gesto
foi pago com acréscimo, porque quando ele e eu nos voltamos a encontrar, esta vez prisioneiro de sua gente, me teriam matado --e eu teria preferido morrer-- de não
ter sido pelo Belwar Dissengulp. O tempo que passei no Blingdenstone, a cidade dos pequenos, foi curto em relação com a duração de minha vida. Lembrança bem a cidade
do Belwar e sua gente, e nunca os esquecerei. Foi a primeira sociedade que conheci apoiada na força da comunidade, e não na paranóia do egoísmo individualista. Juntos,
os pequenos sobrevivem aos perigos da Antípoda Escura, dedicam-se à mineração, e participam de jogos que apenas se diferenciam de qualquer outro aspecto de suas
vidas
plenas. O prazer é muito maior quando se compartilha.
DRIZZT DOU'URDEM
7
Muito honorável capataz
--Muito obrigado por ter vindo, muito honorável capataz --disse um dos pequenos reunidos fora da pequena habitação que encerrava ao prisioneiro drow. Todo o grupo
de anciões saudou com uma reverência a chegada do capataz. Belwar Dissengulp fez uma careta ante o gracioso recebimento. Não conseguia acostumar-se às muitas honras
que sua gente lhe dispensava desde aquele dia infausto fazia mais de uma década, quando os elfos escuros tinham descoberto ao grupo de mineiros nos corredores ao
leste do Blingdenstone, perto do Menzoberranzan. Mutilado e quase morto pela perda de sangue, Belwar tinha conseguido retornar ao Blingdenstone como o único supervivente
da expedição. O grupo se apartou para deixar passo ao Belwar, de modo que pudesse ver o interior da habitação e ao drow. Para os prisioneiros encadeados à cadeira,
a habitação circular era como uma cova de pedra sem outra abertura que a porta reforçada com ferros. Mas em realidade havia uma janela, invisível graças a um feitiço
que tampouco deixava passar nenhum som, que permitia aos svirfneblis manter submetidos aos prisioneiros a uma vigilância constante. --É um drow --declarou o capataz
com voz ressonante, embora com uma certa preocupação no tom, depois de observar ao Drizzt durante uns momentos. Não tinha muito claro para que o tinham feito acudir.
É igual a qualquer outro elfo escuro. --O prisioneiro afirma que lhes conheceu na Antípoda Escura --informou-lhe um dos anciões. Sua voz logo que era um sussurro,
e olhou ao chão enquanto completava a frase. O dia da grande perda. Belwar franziu o sobrecenho ao escutar a menção. Até quando teria que revivê-lo? --Possivelmente
--disse Belwar sem lhe dar importância. Não distingo a um elfo escuro de outro, e tampouco me interessa tentá-lo. --De acordo --manifestou o ancião. Todos se
parecem. Enquanto falava o ancião, Drizzt se voltou para a janela e os olhou de frente, embora não podia ver nem ouvir mais à frente do feitiço. --Talvez recordam
seu nome, capataz --assinalou outro svirfnebli, que fez uma pausa ao ver o súbito interesse do Belwar pelo drow. A habitação circular estava às escuras e, nestas
condições, os olhos de uma criatura que utilizava a visão infravermelha brilhavam com toda claridade. Pelo general, os olhos apareciam como pontos de luz vermelha,
mas não era este o caso do Drizzt Dou'Urdem. Inclusive no espectro infravermelho, os olhos do drow tinham um brilho lilás. Belwar recordava esses olhos. --Magga
cammara --exclamou Belwar. Drizzt --murmurou em resposta à pergunta do pequeno. --Conhecem-no! --gritaram vários svirfneblis. Belwar levantou os braços; um dos cotos
tinha a cabeça implantada de uma lança, o outro a cabeça de um martelo.
--Este drow, este Drizzt... --gaguejou pela pressa de explicar-se--, é o responsável por minha condição, foi ele! Alguns dos pressente murmuraram uma oração pelo
drow condenado, convencidos de que o capataz ansiava vingar-se. --Então se mantém a decisão do rei Schnicktick --disse um deles. O drow será executado no ato.
--Mas se for Drizzt o que me salvou a vida! --protestou Belwar, a gritos. Outros o olharam incrédulos. --Não foi decisão do Drizzt o que me cortassem as mãos --acrescentou
o capataz. Ele pediu que me permitissem retornar ao Blingdenstone. "Como um exemplo", disse Drizzt, mas inclusive então compreendi que o dizia só para aplacar
a outros. detrás de suas palavras se escondia outra coisa: a piedade. Uma hora mais tarde, um dos conselheiros, o mesmo que tinha falado antes com o Drizzt, apresentou-se
na habitação do prisioneiro. --É decisão do rei que seja executado --declarou o pequeno bruscamente enquanto se aproximava da cadeira de pedra. --Compreendo-o --repôs
Drizzt, com a maior calma possível. Não me oporei ao veredicto. --O jovem olhou os grilhões e acrescentou--: Embora tampouco poderia. O svirfnebli se deteve e
observou ao surpreendente prisioneiro, convencido da sinceridade de suas palavras. antes de que pudesse acrescentar nada mais sobre o que ia ocorrer, o drow lhe
adiantou. --Só peço um favor --disse Drizzt. O pequeno o deixou acabar, interessado em conhecer as intenções do condenado. A pantera --explicou este. Descobrirá
que Guenhwyvar é uma companheira muito valiosa e uma grande amiga. Quando eu já não esteja, deve te ocupar de que tenha um amo como se merece, possivelmente Belwar
Dissengulp. Por favor, bom pequeno, promete-o. O svirfnebli sacudiu a rapada cabeça, não para negar a petição do Drizzt mas sim por pura incredulidade. --O rei,
por
muito que o apesar, não pode correr o risco de te manter vivo --manifestou o pequeno com ar sombrio. Depois, um sorriso lhe iluminou o rosto e acrescentou--: Mas
a
situação trocou! Drizzt levantou a cabeça, quase sem atrever-se a respirar. --O capataz te recorda, elfo escuro! --exclamou o pequeno. O muito honorável capataz
Belwar Dissengulp falou em seu favor e aceita a responsabilidade de te manter. --Então... não vou morrer? --Não, a menos que procure sua própria morte. --E poderei
viver entre sua gente? --perguntou Drizzt, quase sem poder articular as palavras. No Blingdenstone? --Ainda não se resolveu --respondeu o svirfnebli. Belwar
Dissengulp intercedeu por ti, e isto é muito importante. Mas se lhe autorizarão ou não... O pequeno fez uma pausa e acabou a resposta encolhendo-se de ombros. depois
de abandonar a cela, o percurso através das cavernas do Blingdenstone resultou uma experiência inesquecível para o drow. Drizzt observou cada um dos detalhes da
cidade dos pequenos e os comparou com o Menzoberranzan. Os elfos escuros tinham trabalhado a grande caverna que ocupava a cidade para transformá-la a seu gosto.
A
cidade dos svirfneblis também era formosa, mas respeitava as formas naturais das pedras. Enquanto que os drows tinham talhado e esculpido, os pequenos se acomodaram
ao desenho da natureza.
Com seu teto fora do alcance da vista, Menzoberranzan dispunha de uma amplitude a que Blingdenstone não podia aspirar. A cidade drow a formavam uma série de castelos
individuais, cada um dos quais era fortaleza e casa de uma vez. Em troca, na cidade dos pequenos, havia um sentido geral de lar, como se todo o complexo detrás das
enormes leva de pedra e ferro fosse uma estrutura singular, um refúgio comunitário ante os constantes perigos da Antípoda Escura. Também eram diferentes os ângulos
da cidade. Ao igual ao aspecto físico da raça anã, as fortificações e cornijas do Blingdenstone eram arredondadas, polidas e de curvas suaves. No Menzoberranzan
todo era anguloso, tão afiado como a ponta de uma estalactite, um lugar cheio de ruelas e terraços. Drizzt viu que as diferenças entre as cidades eram tão notórias
como as das raças que albergavam, e se atreveu a imaginar que também o eram os sentimentos dos habitantes. Em um compartimento rincão de uma das cavernas exteriores
se encontrava a casa do Belwar, uma singela estrutura de pedra construída dentro de outra caverna mais pequena. A diferença da maioria das casas dos svirfneblis,
a casa do Belwar tinha porta. Um dos cinco guardas que escoltavam ao Drizzt bateu na porta com o punho da maça. --Saúde, muito honorável capataz! --gritou o pequeno.
Por ordem do rei Schnicktick, trouxemo-lhes para o drow! Drizzt tomou nota do tom respeitoso do guarda. Tinha tido medo pelo Belwar o dia aquele fazia já mais de
uma década, e muitas vezes tinha pensado se lhe amputar as mãos não tinha sido muito mais cruel que matar a pobre vítima. A Antípoda Escura não era um lugar propício
para os deficientes. abriu-se a porta de pedra, e Belwar saudou os visitantes. Imediatamente olhou ao Drizzt com o mesmo olhar que tinham compartilhado tantos anos
atrás, quando se tinham separado. Drizzt viu uma nota sombria nos olhos do capataz mas o orgulho se mantinha, embora um tanto diminuído. O jovem não queria ver os
cotos do pequeno, porque os associava a uma multidão de lembranças desagradáveis. Entretanto, sem poder evitá-lo, baixou o olhar pelo torso de barril do Belwar até
fixar-se no extremo dos braços. Contra o que esperava, Drizzt ficou atônito quando viu as "mãos" do Belwar. Na direita, ajustada para que encaixasse exatamente no
coto, havia a cabeça de um martelo forjada em mithril e gravada com intrincadas runas mágicas e a figura de um elementar terrestre junto às de outras criaturas que
Drizzt não conhecia. O apêndice esquerdo do Belwar não era menos espetacular. O anão blandía uma lança, também de mithril e com runas e gravuras, entre eles o de
um dragão que voava pela superfície da lâmina. Drizzt podia notar a magia nas mãos do Belwar, e compreendeu que muitos outros svirfneblis, artesãos e feiticeiros,
tinham intervindo na confecção das peças. --Muito úteis --comentou Belwar depois de esperar uns instantes a que Drizzt acabasse de olhar as mãos metálicas. --Formosas
--sussurrou Drizzt, que via nelas algo mais que um martelo e uma lança. As mãos em si mesmos eram maravilhosas, mas ainda o era mais o que representavam. Se um drow,
em particular um elfo varão, tivesse retornado ao Menzoberranzan com as mãos amputadas, a família o teria condenado imediatamente a viver como um emparelha até que
algum outro drow ou um escravo acabasse para sempre com sua desgraça. Não havia lugar para as debilidades na cultura drow. Em troca aqui era óbvio que os svirfneblis
tinham aceito ao Belwar e o tinham atendido com todos os meios. Drizzt voltou o olhar ao rosto do capataz. --Recordava-me --disse. Tinha medo...
--Já falaremos, Drizzt Dou'Urdem --interrompeu-o Belwar. Depois se dirigiu aos guardas, no idioma dos svirfneblis que Drizzt não compreendia. Se tiverem acabado
com sua missão, podem ir. --Estamos a suas ordens, muito honorável capataz --respondeu um dos soldados. Drizzt observou o leve tremor do Belwar ao escutar o tratamento.
O rei nos enviou como escolta e também de guardas. Devemos permanecer a seu lado até que se conheçam as verdadeiras intenções deste drow. --Então, parte ! --exclamou
Belwar, colérico. Olhou aos olhos do Drizzt enquanto acabava a frase. Sei quais são as intenções deste elfo escuro. Não corro nenhum perigo. --Com seu perdão,
muito honora... --Pode ir --cortou-o Belwar com brutalidade ao ver que o soldado queria seguir a discussão. Vete. falei em seu favor. Está a meu cuidado e não
lhe tenho nenhum medo. Os guardas fizeram uma reverência e se afastaram sem pressa. Belwar acompanhou ao Drizzt ao interior da casa e, assim que cruzaram a porta,
voltou-se para lhe assinalar os dois guardas que se apostaram nas casas vizinhas. --preocupam-se muito por minha saúde --manifestou desanimado em língua drow. --Teria
que estar agradecido portanto interesse --disse Drizzt. --Não sou um ingrato! --respondeu Belwar, zangado. Drizzt descobriu a verdade oculta detrás da resposta.
Belwar não era um ingrato, mas sim não se acreditava merecedor de tantas cuidados. O jovem não fez nenhum comentário para não envergonhar ainda mais ao orgulhoso
svirfnebli. O mobiliário da casa do Belwar era escasso; uma mesa de pedra e um tamborete, várias prateleiras com potes e jarras, e um fogão com uma churrasqueira
de ferro. além da rústica entrada havia outro quarto que servia de dormitório, provido unicamente com uma rede pendurada de parede a parede. Havia outra rede enrolada
no chão, destinada ao Drizzt, e uma jaqueta de couro com argolas de mithril pendurada na parede do fundo, onde se amontoavam umas quantas bolsas e mochilas. --Penduraremo-la
nesta habitação --disse Belwar, assinalando com a manomartelo a segunda rede. Drizzt quis ir recolher a, mas Belwar o deteve com a mão-de-lança e o fez dar meia
volta.
--Mais tarde --explicou o pequeno. Primeiro deve me dizer por que vieste. --Belwar observou os desastrados objetos e o rosto, sujo e arranhado, do Drizzt. Resultava
óbvio que o drow levava algum tempo nas profundidades da Antípoda Escura. E também quero que me diga de onde vem. --vim porque não tinha nenhum outro lugar aonde
ir --respondeu com toda franqueza enquanto se sentava no chão com as costas apoiada na parede. --Quanto tempo leva fora de sua cidade, Drizzt Dou'Urdem? --perguntou
Belwar brandamente. Inclusive nos tons graves, a voz do pequeno ressonava com a claridade de um sino. Drizzt se maravilhou ante a variedade de tons da voz e de como
podia transmitir compaixão ou inspirar temor só com uma sutil mudança de volume. Drizzt encolheu os ombros e jogou a cabeça para trás de forma tal que podia contemplar
o teto. Sua mente procurava um caminho para o passado. --Anos. perdi a conta. --Olhou ao svirfnebli. O tempo não significa muito nos túneis da Antípoda Escura.
Pela aparência do Drizzt, Belwar não podia duvidar da veracidade da resposta, embora de todas maneiras o surpreendeu. Caminhou até a mesa e tomou assento no tamborete.
Belwar tinha visto combater ao Drizzt, tinha-o visto derrotar a um elementar terrestre, toda uma proeza! Mas se Drizzt dizia a verdade, se havia
sobrevivido nas profundidades da Antípoda Escura durante anos, então teria que considerá-lo um herói. --Terá que me contar suas aventuras, Drizzt Dou'Urdem --animou-o
o pequeno. Quero sabê-lo tudo para poder entender melhor os motivos que lhe impulsionaram a vir à cidade de seus inimigos raciais. Drizzt permaneceu em silencio
durante um bom momento, sem saber muito bem por onde e como começar. Confiava no Belwar --o que outra coisa podia fazer?-- mas não tinha muito claro se o svirfnebli
seria capaz de entender o dilema que o tinha forçado a abandonar a segurança do Menzoberranzan. Podia Belwar, que vivia em uma comunidade onde reinavam a cooperação
e a amizade, compreender a tragédia de viver na cidade dos drows? Drizzt o duvidava, mas o que podia fazer? Em voz baixa, Drizzt recapitulou para o Belwar a história
da última década de sua vida; falou-lhe da guerra em florações entre a casa Dou'Urdem e a casa Hun'ett; da briga contra Masoj e Alton, quando tinha conseguido ao
Guenhwyvar; do sacrifício do Zaknafein, pai, professor e amigo; e da decisão de abandonar para sempre a sua gente e à deidade maligna, Lloth. Belwar compreendeu
que Drizzt se referia à deusa escura que os pequenos chamavam Lolth, mas não o corrigiu. Se Belwar tinha tido alguma suspeita sobre as verdadeiras intenções do jovem
o dia em que se conheceram tantos anos atrás, o capataz não demorou para convencer-se de que suas hipóteses tinham sido corretas. O pequeno se sacudia e tremia de
emoção enquanto Drizzt lhe falava de sua vida na Antípoda Escura, da briga contra o alfavaca, e do combate contra seus irmãos. antes de que Drizzt pudesse mencionar
os motivos que o tinham impulsionado a procurar os svirfneblis --a agonia da solidão e o medo a perder a verdadeira identidade na luta selvagem por sobreviver--
Belwar já os tinha adivinhado. Quando Drizzt relatou os últimos dias diante das portas do Blingdenstone, escolheu as palavras com muito cuidado. Ainda não tinha
muito claro quais eram seus verdadeiros sentimentos, e não estava preparado para divulgar suas dúvidas, por muito que confiasse no novo companheiro. O capataz permaneceu
em silêncio, e se limitou a olhar ao Drizzt quando este acabou o relato. Belwar compreendia a dor provocada pela recapitulação. Não pediu mais informação nem detalhes
íntimos que o drow não tinha querido compartilhar. --Magga cammara --sussurrou o pequeno. Drizzt torceu a cabeça. --Pelas pedras --traduziu Belwar. Magga cammara.
--Assim é. Pelas pedras --assentiu Drizzt. Durante uns minutos nenhum adicionou palavra até que o silêncio se fez insuportável. --Um bom relato --manifestou Belwar,
por fim. Aplaudiu ao Drizzt em um ombro, e depois caminhou até o dormitório em busca da segunda rede. antes de que o jovem pudesse reagir, o pequeno tinha sujeito
a rede aos ganchos. --Dorme em paz, Drizzt Dou'Urdem --disse o pequeno, enquanto se dirigia ao dormitório. Aqui não tem inimigos. Ao outro lado da porta não há nenhum
monstro à espreita. Belwar desapareceu no dormitório, e Drizzt ficou a sós com o torvelinho de seus pensamentos e a emoção da esperança renovada.
8
Estranhos
Drizzt contemplou através da porta aberta da casa do Belwar as atividades habituais da cidade dos svirfneblis, como tinha feito cada dia durante as últimas semanas.
Tinha a impressão de estar no limbo, como se o tempo se paralisou. Não tinha visto o Guenhwyvar desde que era hóspede do Belwar, nem tampouco esperava recuperar
a curto prazo o piwafwi, as cimitarras e a armadura. Drizzt o aceitava tudo com estoicismo, na hipótese de que tanto ele como Guenhwyvar estavam agora muito melhor
do que tinham estado em anos, e confiava em que os svirfneblis não danificariam a estatueta nem nenhuma outra de seus pertences. O drow passava as horas dedicado
a observar a rotina diária enquanto esperava que as coisas seguissem o curso devido. Belwar tinha saído, em uma das contadas ocasiões em que o capataz deixava a
casa. Apesar de que o pequeno e Drizzt conversavam muito pouco --Belwar não era dos que esbanjavam as palavras--, o jovem descobriu que o sentia falta de. Tinham
estreitado
a amizade embora as conversações fossem esporádicas. Um grupo de jovens svirfneblis passou por diante da casa e lhe gritaram ao drow que se encontrava no interior.
Isto se tinha repetido com muita freqüência, em particular durante os primeiros dias da chegada do Drizzt à cidade. Nas ocasiões anteriores, Drizzt não tinha sabido
se o saudavam ou o insultavam. Em troca agora compreendia o significado amistoso das palavras porque Belwar se preocupou de lhe ensinar um vocabulário básico do
idioma dos pequenos. O capataz retornou ao cabo de várias horas e encontrou ao Drizzt sentado no tamborete de pedra sem fazer outra coisa que olhar. --me diga, elfo
escuro --perguntou o pequeno com sua voz profunda e melodiosa--, o que vê quando nos miras? Tão estranhos lhe parecemos? --Vejo esperança --respondeu Drizzt. E também
desespero. Belwar compreendeu a resposta. Sabia que a sociedade svirfnebli se acomodava aos princípios do drow, mas observar o bulício do Blingdenstone sem participar
dele só podia despertar dolorosas lembranças em seu novo amigo. --Hoje me reuni com o rei Schnicktick --disse o capataz. Está muito interessado em ti. --Curioso
seria mais azeitado --replicou Drizzt sorridente, e Belwar se perguntou quanto dor ocultava aquele sorriso. O capataz se desculpou com uma reverência, desarmado
pela sinceridade sem disfarces do jovem. --Curioso, se o preferir. Deve saber que não encaixa na idéia que temos dos elfos escuros. Rogo-te que não tome como uma
ofensa. --Absolutamente --respondeu Drizzt, honestamente. Você e sua gente me destes muito mais do que podia esperar. Se me tivessem matado assim que cheguei à
cidade, teria aceito meu destino sem culpar aos svirfneblis.
Belwar seguiu o olhar do Drizzt até o grupo de jovens reunidos a uns metros da porta. --por que não vais reunir te com eles? --perguntou-lhe o pequeno. Drizzt o
olhou,
surpreso. Em todo o tempo que levava na casa, o svirfnebli jamais lhe tinha proposto nada parecido. O drow tinha dado por feito que era convidado do capataz, e que
Belwar tinha assumido a responsabilidade pessoal de vigiar seus movimentos. Belwar moveu a cabeça em direção à porta, para insistir no convite. Drizzt olhou uma
vez mais ao exterior. Ao outro lado da caverna, os jovens, ao redor de uma dúzia, tinham começado um jogo que consistia em lançar pedras contra a efígie de um alfavaca,
construída a escala natural com pedras e armaduras velhas. Os pequenos eram peritos em criar ilusionismos, e com um encantamento menor tinham gentil os detalhes
mais
ásperos para que a efígie parecesse real. --Elfo escuro, algum dia terá que sair --comentou Belwar. Até quando te conformará olhando as paredes vazias de minha
casa? --lhe bastam --replicou Drizzt, com um tom mais cortante do que pretendia. Belwar assentiu e se voltou sem pressa para contemplar a habitação. --Assim é --disse
o pequeno em voz baixa, e Drizzt advertiu sua profunda dor. Quando Belwar olhou outra vez ao drow, sua redonda cara mostrava uma expressão resignada. Magga cammara,
elfo escuro. Que esta seja sua lição. --por que? --inquiriu Drizzt. por que Belwar Dissengulp, o muito honorável capataz --Belwar torceu o gesto ao escutar o título--,
permanece na sombra de sua própria porta? --Sal --respondeu Belwar com um grunhido sonoro, os olhos entrecerrados e o queixo firme. É jovem, elfo escuro, e tem
todo mundo ante ti. Eu, em troca, sou velho. Meu tempo já passou. --Não tão velho --afirmou Drizzt, disposto a não ceder até poder averiguar os motivos da preocupação
do Belwar. O pequeno lhe voltou as costas, caminhou em silencio até o dormitório e correu a manta que fazia de porta. Drizzt sacudiu a cabeça e descarregou um murro
contra a palma de sua mão em sinal de frustração. Belwar fazia muito por ele; primeiro o tinha salvado do veredicto do rei, e depois lhe tinha dada proteção em sua
casa, onde lhe tinha ensinado os rudimentos do idioma dos svirfneblis e os costumes dos pequenos. Drizzt não tinha podido lhe devolver o favor, embora via claramente
que Belwar suportava uma pesada carga. Neste momento o jovem não desejava outra coisa que apartar a cortina, aproximar-se do capataz, e conseguir que lhe confiasse
os motivos de seu abatimento. Entretanto, Drizzt não podia comportar-se de forma tão atrevida com seu novo amigo. prometeu-se a si mesmo que ao seu devido tempo
encontraria a chave para resolver as penas do pequeno, mas antes tinha que superar seu próprio dilema. Belwar lhe tinha dada permissão para percorrer Blingdenstone!
Drizzt olhou outra vez ao grupo ao outro lado da caverna. Três moços permaneciam absolutamente imóveis diante da efígie, como se se tivessem convertido em pedra.
Curioso, Drizzt se aproximou da porta, e então, sem dar-se conta do que fazia, saiu da casa e se aproximou dos pequenos. O jogo chegou a seu fim assim que o drow
se
aproximou, porque os svirfneblis tinham um grande interesse por conhecer elfo escuro que tinha sido motivo de comentários durante tantas semanas. Correram a seu
encontro e o rodearam, sem deixar de sussurrar alvoroçados. Drizzt sentiu a tensão involuntária dos músculos quando os pequenos se moveram a seu redor. Os instintos
primários do caçador lhe advertiam de uma vulnerabilidade que não podia tolerar. O jovem fez um grande esforço para controlar a seu
outro eu, repetindo mentalmente que os svirfneblis não eram seus inimigos. --Saúde, drow amigo do Belwar Dissengulp --disse um dos pequenos. Sou Seldig, por agora
um novato, e futuro mineiro expedicionário daqui a três anos. Drizzt demorou bastante em entender as palavras do jovem, pois este falava muito depressa. De todos
os modos, compreendeu a importância da futura ocupação do Seldig, porque Belwar lhe tinha explicado que os mineiros expedicionários, os svirfneblis que entravam
na Antípoda Escura em busca de minerais preciosos e gemas, gozavam de grande prestígio. --Saúde, Seldig --respondeu o drow, por fim. Sou Drizzt Dou' Urdem. Sem
saber muito bem o que devia fazer a seguir, cruzou os braços sobre o peito. Para o elfo escuro, este era um gesto de paz, embora não tinha muito claro se o significado
era válido no resto da Antípoda Escura. Os svirfneblis se olharam os uns aos outros, imitaram o gesto, e sorriram ao escutar o suspiro de alívio do Drizzt. --Dizem
que estiveste na Antípoda Escura --acrescentou Seldig, enquanto convidava ao Drizzt com um gesto a que o seguisse até o lugar do jogo. --Durante muitos anos --respondeu
Drizzt, que acomodou seu passo ao do moço. O caçador voltou a aparecer ante a incômoda proximidade dos pequenos, mas Drizzt podia controlar a paranóia. Quando o
grupo
chegou junto à efígie do alfavaca, Seldig se sentou em uma pedra e pediu ao drow que lhes relatasse algumas de suas aventuras. Drizzt vacilou, consciente de que
não dominava o idioma svirfnebli o bastante bem para poder narrar uma história, mas Seldig e outros insistiram. Por fim, o drow assentiu e ficou de pé. Pensou durante
uns momentos em algum relato que pudesse ser de interesse para os reunidos. Seu olhar percorreu a caverna em busca de alguma idéia e se deteve por um instante na
efígie do monstro. --Alfavaca --explicou Seldig. --Sei --respondeu Drizzt com ligeireza. Conheci uma dessas criaturas. voltou-se então para os pequenos e o surpreendeu
ver as expressões. Seldig e todos outros o olhavam com a boca aberta e o corpo jogado para diante, em um gesto onde se mesclavam a intriga, o medo e o deleite. --Elfo
escuro! Viu a um alfavaca? --perguntou um deles, incrédulo. Um alfavaca de verdade? Drizzt sorriu ao compreender os motivos do assombro. Os svirfneblis, a diferença
dos elfos escuros, protegiam aos membros mais jovens da comunidade. Embora estes pequenos tinham quase a mesma idade que Drizzt, virtualmente nenhum --se é que havia
algum-- tinha saído nunca do Blingdenstone; a sua mesma idade, os elfos escuros levavam anos dedicados a vigiar os túneis que se estendiam além do Menzoberranzan.
De ter tido mais experiência, o fato de que Drizzt tivesse encontrado um alfavaca não lhes teria parecido algo tão extraordinário, embora estes monstros eram uma
presença muito pouco habitual inclusive na Antípoda Escura. --E você dizia que os alfavacas não existiam! --reprovou-lhe um dos moços a outro, enquanto lhe dava
um empurrão no ombro. --Não é verdade! --protestou este, respondendo ao tranco. --Meu tio viu um --interveio um terceiro. --Quão único viu seu tio foram arranhões
na pedra! --exclamou Seldig, zombador. Ele mesmo disse que eram rastros de um alfavaca! Drizzt sorriu risonho. Os alfavacas eram criaturas mágicas, mais habituais
em outros planos de existência. Os drows as conheciam bem pois estavam acostumados a entrar em contato com esses outros planos, mas para os svirfneblis eram uma
figura quase mítica. Eram pouquíssimos quão anões tinham visto um alfavaca. O drow soltou a gargalhada. Sem dúvida ainda eram menos quão anões tinham podido relatar
a experiência.
--Se seu tio tivesse seguido o rastro e encontrado ao monstro --prosseguiu Seldig--, ainda seguiria convertido em uma estátua de pedra em algum corredor. Que eu
saiba as estátuas não contam histórias! --Drizzt Dou'Urdem viu um! --protestou o outro pequeno. E não se converteu em pedra! Todas as olhadas se voltaram para o
drow. --De verdade viu a um, elfo escuro? --perguntou Seldig. Por favor, me diga a verdade. --Vi-o --respondeu Drizzt. --E pôde te escapulir antes de que te olhasse?
--quis saber Seldig, embora considerava que a pergunta não necessitava resposta. --me escapulir? --Drizzt repetiu a palavra em língua anã porque não tinha muito
claro o significado. --te escapulir..., em..., pôr-se a correr --esclareceu-lhe Seldig. Olhou a um dos companheiros, que se apressou a fingir uma expressão de horror
e a dar uns quantos passos como se corresse. Outros pequenos celebraram a imitação, e Drizzt compartilhou as gargalhadas. --Escapou do alfavaca antes de que pudesse
te olhar --afirmou Seldig. Drizzt encolheu os ombros, um tanto envergonhado, e Seldig adivinhou que lhe ocultava alguma coisa. --Não escapou? --Não podia... me escapulir
--respondeu Drizzt. O alfavaca tinha invadido minha casa e tinha matado grande parte de meu gado. Uma casa --fez uma pausa para procurar a palavra correta em svirfnebli--,
um refúgio não é fácil de encontrar nas profundidades da Antípoda Escura. Quando encontra um e é teu, terá que defendê-lo a toda costa. --Lutou contra ele? --perguntou
uma voz anônima. --Atirou-lhe pedras de longe? --interrogou-o Seldig. Dizem que é o método correto. Drizzt jogou um olhar às pedras que os pequenos tinham lançado
contra a efígie e depois olhou seu magro corpo. --Nem sequer poderia levantar umas pedras tão grandes --respondeu com uma gargalhada. --Então, como? --insistiu Seldig.
Tem que nos dizer o Drizzt já tinha a história. Permaneceu em silencio durante uns instantes para ordenar as lembranças. Compreendeu que as limitações impostas pelo
escasso conhecimento do idioma não lhe permitiriam fazer um relato muito detalhado e decidiu apelar à mímica. Agarrou dois paus que os pequenos tinham levado consigo
para utilizá-los a modo de cimitarras e a seguir examinou a efígie para comprovar que podia resistir seu peso. Os jovens se acurrucaron ansiosos enquanto Drizzt
explicava a situação prévia ao ataque: o feitiço de escuridão --colocou um um pouco além da cabeça do alfavaca-- e a posição do Guenhwyvar, sua companheira felina.
Os svirfneblis não perdiam detalhe e acompanhavam as palavras do relato com exclamações de assombro. A efígie pareceu cobrar vida em suas mentes, como um monstro
à espreita, enquanto Drizzt, o estranho forasteiro, vigiava-o oculto nas sombras. Drizzt prosseguiu com o relato até que chegou o momento de reproduzir os movimentos
do combate. Ouviu o grito de assombro dos moços quando saltou sobre o lombo do alfavaca e começou a subir para a cabeça com precaução. O drow se deixou contagiar
pelo entusiasmo do auditório, e isto refrescou as lembranças. de repente foi como voltar a viver a realidade. Os pequenos se aproximaram, dispostos a presenciar
uma
impressionante exibição
de esgrima por parte do drow que tinha aparecido procedente das profundidades da Antípoda Escura. Então ocorreu algo terrível. Em um instante era Drizzt o narrador,
que entretinha aos novos amigos com uma história de aventuras, e ao seguinte, enquanto levantava um pau para golpear ao boneco, tinha deixado de ser ele mesmo. No
lombo da efígie se erguia o caçador, quão mesmo aquele dia nos túneis da caverna coberta de musgo. Os paus golpearam contra os olhos do monstro e amassaram a cabeça
de pedra. Os svirfneblis retrocederam, alguns assustados, outros só por precaução. O caçador prosseguiu com os golpes, e a pedra se esquartejou e gretou. O pedra
bruta que servia de cabeça da criatura se desabou e arrastou ao elfo escuro com ele. O caçador rodou pelo chão um par de vezes, levantou-se de um salto, e voltou
para ataque. A fúria dos golpes fez lascas os paus, e as mãos do Drizzt se cobriram de sangue, mas o caçador não queria ceder. As fortes mãos de uns pequenos o sujeitaram
pelos braços, em um intento de acalmá-lo, e o caçador se voltou contra os novos adversários. Eram mais fortes que ele e o apertavam com firmeza, mas com um par de
retorcimientos conseguiu lhes fazer perder o equilíbrio. O caçador os chutou nos joelhos e se deixou cair sobre as suas, enquanto girava de forma tal que lançou
aos dois svirfneblis de cabeça ao chão. Imediatamente se ergueu com os paus quebrados em posição para defender do solitário inimigo que se aproximava. Não havia
medo na expressão do Belwar, que avançava com os braços abertos. --Drizzt! --gritou o capataz uma e outra vez. Drizzt Dou'Urdem! O caçador viu a lança e o martelo
do svirfnebli, e a visão das mãos de mithril despertou em sua mente umas lembranças tranqüilizadoras. de repente voltou a ser Drizzt. Surpreso e envergonhado, deixou
cair os paus e contemplou as mãos rasgadas. Belwar sujeitou ao drow quando se cambaleou a ponto de cair. Levantou-o em braços e o levou de volta à rede. Os pesadelos
invadiram o sonho do Drizzt, lembranças da Antípoda Escura e daquele outro ser interior do que não podia escapar. --Como posso explicá-lo? --perguntou ao Belwar
quando o capataz o encontrou sentado no bordo da mesa de pedra aquela mesma noite. O que posso dizer para me desculpar? --Não diga nada --respondeu Belwar. --Você
não o entende --repôs Drizzt, assombrado, enquanto se perguntava como poderia conseguir que o pequeno compreendesse a gravidade do que tinha ocorrido. --passaste
muitos
anos na Antípoda Escura --acrescentou Belwar--, e sobreviveste ali onde quase todos morreram. --Mas é que isto é sobreviver? --pensou Drizzt em voz alta. A mão-de-martelo
do Belwar tocou brandamente o ombro do drow, e o capataz se sentou a seu lado. Ali permaneceram o resto da noite. Drizzt não pronunciou palavra e Belwar não insistiu,
consciente de que bastava com a companhia. Nenhum dos dois sabia quanto tempo tinha passado quando ouviram a voz do Seldig que chamava do exterior. --Sal, Drizzt
Dou'Urdem --gritou o jovem. Sal e nos conte mais histórias da Antípoda Escura. Drizzt olhou ao Belwar inquisitivamente, temeroso de que o convite fora parte de
um engano ou uma brincadeira, mas trocou de ideia ao ver o sorriso do capataz.
--Magga cammara, elfo escuro --disse Belwar, com uma risada sonora. Não deixarão que te esconda. --Faz que se vão --pediu-lhe Drizzt. --Acaso está disposto a te
render sem mais? --replicou Belwar, um tanto irritado. Você que foste capaz de sobreviver às provas da Antípoda Escura? --É muito perigoso --exclamou Drizzt, desesperado
por não saber como explicar-se melhor. Não posso controlá-lo..., não posso me liberar... --Vê com eles, elfo escuro --disse Belwar. Esta vez serão mais precavidos.
--Esta... besta... persegue-me --insistiu Drizzt. --Possivelmente durante um tempo --afirmou o capataz sem lhe dar muita importância. Magga cammara, Drizzt Dou'Urdem!
Cinco semanas é um prazo muito curto se o comparar com os sofrimentos que suportaste nos últimos dez anos. Já conseguirá te liberar da... besta. Os olhos lilás do
Drizzt procuraram o olhar franco do Belwar Dissengulp. --Mas só se te empenhar --acabou o capataz. --Sal, Drizzt Dou'Urdem --voltou a chamar Seldig. Esta vez, e
em todas as sucessivas, Drizzt, e unicamente Drizzt, respondeu à chamada. O rei micónido observou ao elfo escuro que rondava pelo nível inferior da caverna coberta
de musgo. A criatura sabia que não era o mesmo drow que se partiu, mas Drizzt, um aliado, tinha sido o único contato do rei com os elfos escuros. Sem advertir o
perigo, o gigante de três metros de altura saiu ao passado do estranho. O espectro do Zaknafein nem sequer tentou escapar ou esconder do hombrehongo. As mãos do
Zaknafein empunhavam com firmeza as espadas. O rei micónido lançou uma nuvem de esporos, disposto a estabelecer uma comunicação telepática com o recém-chegado. Mas
os monstros não mortos existiam em dois planos diferentes, e suas mentes eram inacessíveis a estes intentos. O corpo material do Zaknafein se enfrentava ao micónido
enquanto que a mente do espectro se encontrava muito longe, unida ao corpo através da vontade da matrona Malícia. O espectro percorreu os últimos metros que o separavam
do adversário. O micónido lançou uma segunda nuvem, esta vez de esporos capazes de tranqüilizar a um inimigo, e tampouco deu resultado. Ao ver que o espectro continuava
a marcha, o gigante levantou os braços disposto a tombá-lo. Zaknafein parou os golpes com as espadas afiadas como navalhas e lhe cortou as mãos ao micónido. Depois,
com uma velocidade impressionante, afundou as armas no torso do rei uma e outra vez até que este se desabou. Do nível superior, várias dúzias dos micónidos maiores
e mais fortes avançaram para resgatar ao rei ferido. O espectro os observou sem preocupar do perigo. Acabou de rematar ao rei e a seguir se voltou para rechaçar
o ataque. Os homens-hongo lançaram diversos tipos de esporos contra o espectro. Zaknafein não fez caso das nuvens, que não podiam lhe causar nenhum dano, e concentrou
a atenção nos braços que tentavam golpeá-lo. Agora os micónidos o rodeavam. E morreram a seu redor. Tinham atendido o horta durante séculos, ocupados só em seus
assuntos e em paz com outros. Mas o espectro que saiu do túnel, procedente da cova deserta onde uma vez tinha residido Drizzt, estava cheio de fúria e não tolerava
nem o menor gesto de paz. Zaknafein escalou a parede até o horta de cogumelos e acabou com tudo o que encontrou a seu passo. Os cogumelos gigantes caíam como árvores
destruídas. No nível inferior, o pequeno
rebanho de vitelas, nervosas por natureza, espantou-se e se dispersou pelos túneis que davam a Antípoda Escura. Os poucos homens-hongo que ficavam vivos tentaram
afastar-se ao ver a destruição provocada pelo elfo escuro, mas os micónidos eram criaturas pesadas, e Zaknafein lhes deu caça em questão de minutos. Seu reinado
na caverna coberta de musgo, e o horta de cogumelos que tinham cuidado durante tanto tempo, chegaram a um brusco e definitivo final.
9
Sussurros nos túneis
A patrulha svirfnebli avançou pouco a pouco pelos vericuetos do túnel, com as maças e as lanças preparadas. Os pequenos não se encontravam muito longe do Blingdenstone
--a menos de um dia de marcha--mas avançavam em formação de combate como era habitual cada vez que penetravam na Antípoda Escura. O túnel cheirava a morte. O líder
do grupo, consciente de que estava muito perto da massacre, espiou com muito cuidado por cima de um penhasco. Goblins! --gritaram seus sentidos a outros, uma voz
clara na telepatia racial dos svirfneblis. Quando os perigos da Antípoda Escura cercavam aos pequenos, estes quase nunca falavam e se comunicavam através de um vínculo
telepático comunitário que podia transmitir conceitos básicos. Outros svirfneblis empunharam as armas e começaram a elaborar um plano de batalha no excitado murmúrio
das comunicações mentais. O líder, o único que tinha espiado por cima do penhasco, deteve-os com outra mensagem: Goblins mortos! O resto da patrulha o seguiu ao
redor da rocha, e uma horrível cena apareceu ante seus olhos. Uma vintena de goblins jaziam mortos e despedaçados. --Drows --sussurrou um dos svirfneblis, depois
de ver a precisão das feridas e a facilidade com que as espadas tinham talhado a grossa pele das desafortunadas criaturas. Entre as raças da Antípoda Escura, só
os
drows tinham armas capazes de fazer este tipo de cortes. Muito perto--respondeu outro pequeno telepáticamente, tocando ao primeiro no ombro. --Estes levam mortos
um
dia ou mais --disse um terceiro em voz alta, sem fazer caso das precauções de seu companheiro. Os elfos escuros já não estão por aqui à espreita. Não é seu modo
de atuar. --Tampouco têm o costume de matar aos goblins --respondeu o que tinha insistido na comunicação telepática. Preferem fazê-los prisioneiros! --O teriam
feito no caso de ter a intenção de retornar diretamente ao Menzoberranzan --comentou o primeiro. voltou-se para o líder. Capataz Krieger, devemos voltar agora
mesmo para o Blingdenstone e informar desta massacre. --Não serviria de nada --respondeu Krieger. Goblins mortos nos túneis? É algo bastante comum. --Não é o primeiro
sinal de atividade drow na região --assinalou o outro. O capataz não podia negar a veracidade das palavras do companheiro nem a sabedoria do conselho. Outras duas
patrulhas tinham retornado ao Blingdenstone com informe de monstros mortos --ao parecer à mãos de elfos escuros-- nos corredores
da Antípoda Escura. --Olhem --acrescentou o pequeno, ao tempo que se agachava para recolher a bolsa de um dos goblins, enche com moedas de ouro e prata. Quem entre
os elfos escuros teria tanta pressa para deixar atrás semelhante bota de cano longo? --Podemos estar seguros de que tudo isto é obra dos drows? --perguntou Krieger,
embora ele mesmo não tinha nenhuma dúvida. Possivelmente alguma outra criatura entrou em nosso reino. Bem poderia ser que algum inimigo menor, um goblin ou um
orco, feito-se com armas drows. São drows! --gritaram telepáticamente vários membros da patrulha. --Os cortes são limpos e precisos --assinalou um. E não vejo
rastros de mais feridas exceto as sofridas pelos goblins. Quem a não ser os elfos escuros são tão eficazes na matança? O capataz Krieger se separou do grupo e caminhou
uns metros pelo corredor em busca de alguma pista na rocha que lhe permitisse esclarecer o mistério. Os pequenos possuíam uma afinidade com a rocha superior à maioria
das criaturas, mas as paredes de pedra não lhe revelaram nada. A morte dos goblins tinha sido causada por armas, não pelas garras de algum monstro e entretanto não
lhes tinham roubado. Os mortos jaziam em um espaço reduzido, o que indicava que as vítimas não tinham tido tempo de tentar a fuga. Que se pudesse assassinar a uma
vintena de goblins com tanta rapidez apontava a uma patrulha drow bastante numerosa, e, inclusive no caso de que tivesse sido só um punhado de elfos escuros, ao
menos algum deles poderia ter despojado aos cadáveres. --O que fazemos, capataz? --perguntou-lhe um dos pequenos. Seguimos adiante para explorar a nervura de mineral
ou retornamos ao Blingdenstone para informar da massacre? Krieger era um veterano ardiloso que se considerava a si mesmo como bom conhecedor de todos os truques
da Antípoda Escura. Não gostava dos mistérios, e este o tinha desconcertado. Retornamos --transmitiu a outros telepáticamente. Ninguém discutiu a decisão porque
os pequenos faziam sempre todo o possível por evitar aos drows. Sem perder um segundo, a patrulha adotou uma formação defensiva e ficou em marcha de volta a casa.
Escondo entre as sombras das estalactites, o espectro do Zaknafein Dou'Urdem vigiou a partida dos pequenos. O rei Schnicktick se inclinou no trono e refletiu sobre
as palavras do capataz. Os conselheiros do monarca, sentados a seu redor, mostravam a mesma inquietação e curiosidade, porque este relatório não fazia mais que confirmar
os dois anteriores em relação às supostas atividades dos drows nos túneis orientais. --Que razão pode ter Menzoberranzan para aproximar-se de nossas fronteiras?
--perguntou um dos conselheiros quando Krieger acabou o relato. Nossos agentes não têm feito nenhuma menção a uma possível invasão. Sem dúvida teríamos recebido
algum aviso se o conselho regente do Menzoberranzan planejasse uma guerra. --Assim é --assentiu Schnicktick para sossegar os murmúrios nervosos provocados pela grave
advertência do conselheiro. De todos os modos, vos lembrança que não temos sabor de ciência certa que os autores destas mortes sejam elfos escuros. --Com sua permissão,
alteza... --tentou replicar Krieger. --Sim, capataz --interrompeu-o Schnicktick no ato, levantando uma mão gordeta diante de seu enrugado rosto para silenciar qualquer
protesto. Estão muito seguro de suas observações. E sei que posso confiar em seu julgamento. Entretanto, até que não tenhamos provas concretas da presença da patrulha
drow,
não adiantarei nenhuma decisão. --Ao menos podemos estar de acordo em que algo perigoso entrou em nossa zona oriental --apontou outro dos conselheiros. --Sim --respondeu
o rei dos svirfneblis. Teremos que nos ocupar em descobrir a verdade. portanto, os túneis orientais ficam fechados a qualquer nova exploração mineira. --Uma vez
mais, Schnicktick levantou uma mão para tranqüilizar aos pressente. Estou informado dos relatórios referentes às novas nervuras de minerais; ocuparemo-nos das
explorar logo que possamos. Mas por agora, só as patrulhas de combate poderão penetrar nas regiões do este, nordeste e sudeste. Dobraremos o número de patrulhas
e de efetivos, e deverão aumentar os percursos até um rádio de três dias de marcha desde o Blingdenstone. Devemos resolver o mistério sem mais demora. --E o que
fazemos com os agentes infiltrados na cidade drow? --perguntou um conselheiro. Estabelecemos comunicação com eles? --por agora não --repôs Schnicktick. Manteremos
os ouvidos bem abertos, mas evitaremos informar ao inimigo que suspeitamos de seus movimentos. O soberano não fez menção de que não se podia confiar de tudo nos
agentes que possuíam no Menzoberranzan. Os espiões podiam aceitar as gemas dos pequenos em troca de informações sem muita importância; mas se os poderes do Menzoberranzan
planejavam algo mais sério contra Blingdenstone, o mais lógico era supor um dobro jogo. --Se recebermos algum relatório extraordinário do Menzoberranzan --acrescentou
Schnicktick-- ou se descobrirmos que os intrusos são de verdade os elfos escuros, então apelaremos aos espiões. Até então, deixemos que as patrulhas averigúem tudo
o que possam. O rei se despediu dos conselheiros, pois desejava estar a sós para refletir sobre os últimos acontecimentos. A princípios de semana se inteirou do
selvagem ataque do Drizzt contra a efígie do alfavaca. O rei Schnicktick do Blingdenstone começava a estar um pouco farto de tantas histórias de drows. As patrulhas
svirfneblis ampliaram os percursos pelos túneis orientais. Inclusive aqueles grupos que não tinham encontrado nada retornavam ao Blingdenstone carregados de suspeitas,
porque tinham percebido na Antípoda Escura uma quietude que não era normal. até agora nem um solo anão tinha resultado ferido, mas ninguém mostrava o menor entusiasmo
por integrar as patrulhas. Intuíam que havia algo maligno nos túneis, algo que matava sem motivos e sem compaixão. Uma das patrulhas encontrou a caverna coberta
de musgo que tinha sido o refúgio do Drizzt. O rei Schnicktick se causar pena ao receber a notícia de que os pacíficos micónidos e sua precioso horta de cogumelos
tinham sido destruídos. Não obstante, apesar da infinidade de horas que os svirfneblis passavam nos túneis, não viram nem a um solo inimigo, e em conseqüência continuaram
acreditando que os elfos escuros, sempre tão sigilosos e brutais, estavam envoltos. --E agora temos a um drow em nossa cidade --recordou-lhe ao soberano um dos conselheiros
durante uma das reuniões diárias. --causou algum problema? --perguntou Schnicktick. --Poucos e sem importância --respondeu o conselheiro. E Belwar Dissengulp,
o muito honorável capataz, não deixa de falar com seu favor e o mantém em sua casa como convidado, não como prisioneiro. O capataz Dissengulp não aceita que os guardas
se aproximem do drow. --Ordena que vigiem ao drow --manifestou o rei depois de uma breve pausa. Mas de longe. Se for um amigo, tal como crie o capataz Dissengulp,
então não tem
por que sofrer nenhuma moléstia. --E o que fazemos com as patrulhas? --inquiriu outro conselheiro, que era o representante da caverna de entrada onde vivia o guarda
da cidade. Meus soldados se aborrecem. Até o momento só viram alguns rastros de combates e não escutaram outra coisa que o ruído de suas próprias botas. --Devemos
nos manter alertas --recordou-lhe o rei Schnicktick. Se os elfos escuros se estão agrupando... --Não estão fazendo-o --replicou o conselheiro com voz firme.
Não encontramos nenhum acampamento, nem rastros de nenhum. A patrulha do Menzoberranzan, se é que é uma patrulha, ataca e depois se retira a algum refúgio que não
podemos localizar; possivelmente está protegido magicamente. --E, se de verdade os elfos escuros pretendem atacar Blingdenstone --comentou outro--, deixariam tantas
amostras de suas atividades? A primeira matança, os goblins que encontrou a expedição do capataz Krieger, ocorreu faz coisa de uma semana, e a tragédia dos micónidos
pouco antes da massacre. Por isso sei dos elfos escuros, nunca rondam uma cidade inimizade, nem deixam indícios como os cadáveres dos goblins, dias antes de realizar
o ataque. O rei pensava o mesmo desde fazia tempo. Quando despertava pelas manhãs e encontrava ao Blingdenstone intacta, a ameaça de uma guerra contra Menzoberranzan
lhe parecia muito longínqua. Mas embora ao Schnicktick alegrava ver que alguém mais pensava como ele, não podia esquecer as horríveis matanças que os soldados tinham
descoberto nos túneis orientais. Algo, provavelmente drow, rondava por lá abaixo, muito perto para seu gosto. --Suponhamos que esta vez Menzoberranzan não planeja
a guerra contra nós --propôs Schnicktick. Então, por que estão os elfos escuros tão perto de nossas portas? Que motivo têm os drows para rondar pelos túneis orientais
do Blingdenstone, tão longe de sua casa? --Procuram expansão? --disse um dos conselheiros. --São renegados? --sugeriu outro. Nenhuma das duas possibilidades parecia
provável. Então um terceiro conselheiro propôs uma terceira, tão singela que surpreendeu a outros. --Procuram alguma coisa. O rei dos svirfneblis apoiou o queixo
sobre as mãos entrelaçadas, convencido de que acabava de escutar a possível solução ao mistério e sentindo-se um pouco parvo por não havê-lo pensado antes. --Mas
o que? --quis saber outro conselheiro, que compartilhava os sentimentos do monarca. Os elfos escuros quase nunca trabalham na mineração... e devo acrescentar que
são bastante maus quando o tentam... e não precisam afastar-se muito do Menzoberranzan para encontrar metais preciosos. O que há perto do Blingdenstone que tanto
lhes interessa? --Algo que perderam --respondeu o rei com o pensamento posto no drow que tinha ido viver entre sua gente. Era uma coincidência muito evidente para
passá-la por alto. Ou a alguém --acrescentou Schnicktick. E outros compreenderam a quem se referia. --Criem que chegou o momento de convidar a nosso drow a que
participe das reuniões do conselho? --inquiriu um conselheiro. --Não --respondeu Schnicktick--, mas possivelmente vigiar ao tal Drizzt de longe não baste. Avisem
ao Belwar Dissengulp que deve controlar todos os movimentos do drow. E você, Firble --disse-lhe ao conselheiro que tinha mais perto--, à vista de que chegamos à
conclusão de que não há uma situação de guerra iminente com os elfos escuros, chama a nossos espiões. Quero ter informação do Menzoberranzan o antes possível. Eu
não gosto de ter aos drows rondando a porta de minha casa. Desmerecem o
vizinhança. O conselheiro Firble, chefe dos serviços secretos do Blingdenstone, assentiu, embora não o alegrava a petição. Conseguir informação do Menzoberranzan
não era barato, e muitas vezes só obtinham dados de escasso valor quando não alguma mentira bem urdida. Ao Firble não gostava de tratar com ninguém que pudesse ser
mais preparado que ele, e muito menos com os elfos escuros. O espectro observou à patrulha svirfnebli a seu passo pelos vericuetos do túnel. A sabedoria tática do
ser que tinha sido uma vez o melhor professor de armas de todo Menzoberranzan tinha mantido controladas as ânsias assassinas do monstro durante os últimos dias.
Zaknafein não compreendia o significado da crescente atividade dos pequenos, mas pressentia que poria em perigo a missão se atacava aos soldados. Como mínimo, o
ataque
a um inimigo organizado provocaria o alarme nos corredores e acabaria por pôr sobre aviso ao esquivo Drizzt. Com o mesmo critério, o espectro tinha sublimado os
desejos de matar a outros seres vivos, e nos últimos dias não tinha deixado nem um só rastro às patrulhas svirfneblis, com o fim de evitar conflitos com os moradores
da região. A vontade maligna da matrona Malícia Dou'Urdem seguia cada um dos movimentos do Zaknafein e fustigava implacavelmente seus pensamentos, impulsionando-o
a procurar a meta fixada. Qualquer crime cometido pelo Zaknafein saciava temporalmente à vontade dominante, mas a experiência tática do espectro podia mais que as
ordens selvagens. A pequena faísca racional que ainda ficava do velho Zaknafein tinha muito claro que a única maneira de retornar à paz dos defuntos era conseguir
que Drizzt Dou'Urdem se unisse a ele no sonho eterno. O espectro deixou as espadas nas bainhas enquanto contemplava à patrulha dos pequenos. Então, quando outro
grupo
de fatigados svirfneblis desfilou caminho para o oeste, outra idéia surgiu na mente do Zaknafein. Se havia tantos pequenos na região, bem podia pensar que Drizzt
Dou'Urdem
também se encontrou com eles. Esta vez, Zaknafein não deixou que os pequenos se perdessem de vista. Descendeu desde seu esconderijo entre as estalactites e seguiu
à patrulha. O nome do Blingdenstone, uma lembrança da vida passada, agitou-se nos limites de sua consciência. --Blingdenstone --tentou pronunciar o espectro. Era
a primeira palavra que proferia o monstro da saída da tumba. Mas o nome soou como um grunhido indecifrável.
10
A culpa do Belwar
Drizzt saiu muitas vezes com o Seldig e os novos amigos durante os dias seguintes. Os jovens pequenos, aconselhados pelo Belwar, passavam as horas com o elfo escuro
dedicados a jogos mais tranqüilos, e deixaram de lhe pedir ao Drizzt que lhes relatasse as aventuras vividas na Antípoda Escura. Nas primeiras saídas, Belwar o vigiou
da porta. O capataz confiava no Drizzt, mas também compreendia os sofrimentos padecidos pelo drow. Uma vida tão selvagem e brutal como a que tinha conhecido o jovem
não resultava fácil de esquecer. Muito em breve, Belwar e outros que observavam ao Drizzt puderam comprovar que o drow se integrou sem problemas ao grupo de anões
e que não expor nenhuma ameaça para os habitantes do Blingdenstone. Inclusive o rei Schnicktick, preocupado pelos episódios ocorridos além dos limites da cidade,
aceitou que se podia confiar no Drizzt. --Tem uma visita --disse Belwar ao Drizzt uma manhã. O drow seguiu ao capataz até a porta, convencido de que Seldig ia para
buscá-lo antes da hora habitual. Entretanto, quando Belwar abriu a porta, Drizzt ficou atônito, porque não foi um svirfnebli o que entrou na casa a não ser um enorme
felino negro. --Guenhwyvar! --gritou Drizzt ficando de joelhos para agarrar entre seus braços à pantera. O animal o tombou e começou a arranhá-lo com uma das grandes
zarpa. Quando por fim o drow conseguiu sair de debaixo da pantera e sentar-se, Belwar se aproximou e entregou a estatueta de ônix. --Estou seguro de que o conselheiro
encarregado da pantera lamenta separar-se dela --disse o capataz. Mas Guenhwyvar é sua amiga. Drizzt não soube o que dizer. Inclusive antes da volta da pantera,
considerava que os pequenos do Blingdenstone o tinham tratado melhor do que se merecia. Agora, o fato de que os svirfneblis lhe devolvessem um amuleto mágico tão
capitalista
como uma amostra de absoluta confiança, comovia-o profundamente. --Quando quiser pode ir à casa central, o edifício onde lhe levaram a primeira vez --acrescentou
Belwar--, e recuperar suas armas e a armadura. Drizzt mostrou sua inquietação ante o oferecimento porque não podia esquecer sua conduta na batalha fictícia contra
a efígie do alfavaca. Quais teriam sido as conseqüências se em vez de estar armado com fortificações tivesse tido as magníficas cimitarras drows? --Guardaremo-las
aqui a boa cobrança --manifestou Belwar ao ver a preocupação de seu amigo. Se as necessitar, estarão a sua disposição. --Estou em dívida contigo --declarou Drizzt.
Em dívida com todos os habitantes do Blingdenstone. --Não consideramos a amizade como uma dívida --afirmou Belwar com uma piscada.
Depois se encerrou no dormitório para que Drizzt e Guenhwyvar pudessem estar a sós. Seldig e outros jovens desfrutaram enormemente quando Drizzt se reuniu com eles
acompanhado pelo Guenhwyvar. Ao ver como jogava a pantera com os svirfneblis, Drizzt não pôde evitar a lembrança do dia trágico, uma década antes, quando Masoj tinha
utilizado ao felino para perseguir os últimos superviventes da expedição do Belwar. Ao parecer, Guenhwyvar não recordava o episódio, porque a pantera e os pequenos
não deixaram de jogar durante todo o dia, e ele desejou esquecer os horrores do passado com a mesma facilidade. --Muito honorável capataz --chamou uma voz um par
de dias mais tarde, enquanto Belwar e Drizzt tomavam o café da manhã. Belwar ficou em tensão, e Drizzt não passou por cima a inesperada expressão de dor que apareceu
nas feições do anfitrião. O drow tinha chegado a conhecer svirfnebli muito bem, e sabia que quando Belwar franzia o largo nariz aquilino, isto era um sinal de angústia.
--O rei há reabierto os túneis orientais --acrescentou a voz. Os rumores falam de uma nervura riquíssima a tão somente um dia de marcha. Seria uma grande honra
para minha expedição que Belwar Dissengulp aceitasse nos acompanhar. Um sorriso esperançado apareceu no rosto do Drizzt, não porque o entusiasmasse a idéia de sair,
mas sim porque tinha notado que Belwar vivia muito encerrado, um pouco pouco habitual em uma comunidade tão aberta. --É o capataz Brickers --informou- Belwar ao
Drizzt em um tom desanimado, sem compartilhar para nada o entusiasmo do drow. tomaram o costume de vir a me convidar cada vez que sai uma expedição. --E você nunca
vai --concluiu seu amigo. --Não é mais que uma cortesia --replicou Belwar, carrancudo, fazendo chiar os dentes. --Não é digno de ir com eles --acrescentou Drizzt,
sarcástico. Por fim tinha descoberto o motivo da frustração do capataz. Belwar se encolheu de ombros. --Vi-te trabalhar com as mãos de mithril --afirmou Drizzt,
franzindo o sobrecenho. Não seria um estorvo! Ao contrário, qualquer grupo estaria orgulhoso de te ter em suas filas! por que te considera como um inválido quando
outros pensam o contrário? O capataz descarregou um golpe tão forte com a mão-de-martelo que abriu uma greta na mesa de pedra. --Posso cortar rochas mais rápido
que qualquer deles! --gritou o pequeno, com um tom feroz. E se os monstros tentam nos atacar... Moveu a mão-de-lança em um gesto ameaçador, e Drizzt não duvidou
que
o capataz sabia como utilizar o instrumento. --Que passem um bom dia, muito honorável capataz --despediu-se a voz. como sempre, respeitamos sua decisão, mas como
sempre também, lamentaremos sua ausência. Drizzt olhou com curiosidade ao Belwar durante um bom momento enquanto pensava em como vencer a resistência do pequeno.
--Então,
por que? --perguntou ao cabo. Se souber que é tão competente como todos acreditam, por que fica aqui? Sei que aos svirfneblis lhes entusiasmam as expedições, e
em troca você não mostra nenhum interesse. Tampouco falas de suas aventuras fora do Blingdenstone. É meu presencia o que te retém em casa? Tem a obrigação de me
vigiar? --Não --respondeu Belwar, com um vozeirão que ensurdeceu ao drow. Hão-lhe devolvido as armas, elfo escuro. Não duvide de nossa confiança.
--Mas... --começou Drizzt, que se interrompeu ao compreender súbitamente a verdadeira razão para as negativas do pequeno. A batalha --disse brandamente, quase como
uma desculpa. Daquele dia horrível faz mais de uma década. Belwar franziu o nariz ao máximo e lhe voltou as costas. --Culpa a ti mesmo pela morte dos companheiros!
--acrescentou o drow com mais confiança, embora não as tinha todas consigo por medo a ofender ao pequeno. Entretanto, quando Belwar o olhou outra vez, o capataz
parecia
a ponto de tornar-se a chorar, e Drizzt compreendeu que suas palavras o tinham comovido. O drow passou uma mão por sua espessa cabeleira branca sem saber muito bem
como responder ao dilema do Belwar. Drizzt tinha dirigido à patrulha contra os mineiros svirfneblis, e sabia que não se podia culpar aos pequenos pelo desastre.
Mas
como podia explicar-lhe ao Belwar? --Lembrança aquele dia desafortunado --manifestou Drizzt, com voz tremulosa. Recordo-o com toda claridade, como se aquele terrível
episódio estivesse gravado a fogo em minha memória. --Ninguém o recorda melhor que eu --afirmou o capataz. --De acordo --assentiu o drow--, mas deve saber que eu
também compartilho a mesma culpa. Belwar o olhou intrigado, sem compreender muito bem o que pretendia dizer o jovem. --Fui eu quem dirigiu a patrulha drow --explicou
Drizzt. Rastreei a seu grupo, na crença errônea de que pretendiam realizar uma incursão contra Menzoberranzan. --Desde não ter sido você, nos teria descoberto
algum outro --replicou o capataz. --Ninguém teria sido capaz de fazê-lo tão bem como eu --afirmou o elfo escuro. Ali fora --dirigiu um olhar à porta--, nas profundidades,
estava como em minha casa. Eram meus domínios. Agora Belwar não se perdia nenhuma só de suas palavras, que era precisamente o que pretendia Drizzt. --E não esqueça
que venci ao elementar terrestre --disse o drow sem vangloriar-se; simplesmente relatava um fato. Desde não ter sido por minha presença, a batalha teria sido igualada.
Muitos svirfneblis teriam sobrevivido para retornar ao Blingdenstone. Belwar não pôde dissimular o sorriso. Havia parte de verdade nas palavras do Drizzt, porque
tinha sido um fator muito importante no êxito do ataque drow. De todos os modos, pareceu-lhe que seu amigo exagerava um pouco com o propósito de fazê-lo sentir melhor.
--Não sei como pode te culpar pelo ocorrido --acrescentou Drizzt com um tom despreocupado, que pretendia tirar ferro à situação. Com o Drizzt Dou'Urdem como guia
da patrulha drow, não tinham nenhuma possibilidade de escapar --adicionou sorridente. --Magga cammara! Não é coisa de tomar a chacota --exclamou Belwar, embora não
pôde evitar rir inclusive enquanto falava. --Não o duvido --disse Drizzt, outra vez sério. Mas tomar a brincadeira uma tragédia é tão grave como viver fundo na
culpa por um fato do que não fomos responsáveis. Se alguém tiver a culpa, esta deve recair no Menzoberranzan e seus habitantes. Foram os elfos escuros os que causaram
a tragédia. Foi sua maldade a que condenou aos pacíficos mineiros de sua expedição. --Ao capataz lhe corresponde assumir a responsabilidade do grupo --objetou Belwar.
Só um capataz pode organizar expedições e, portanto, é responsável por sua decisão. --Escolheu você levar aos pequenos tão perto do Menzoberranzan? --perguntou Drizzt.
--Sim. --Por própria vontade? --insistiu o jovem. Acreditava conhecer os costumes dos pequenos o suficientemente bem como para
saber que a maioria das decisões importantes, se não todas, tomavam pela via democrática. --Desde não ter sido a vontade do Belwar Dissengulp, os mineiros jamais
teriam penetrado naquela região? --Tínhamos informem do achado --explicou Belwar. Uma nervura de mineral muito rica. decidiu-se em conselho que devíamos aceitar
o risco de nos aproximar tanto ao Menzoberranzan. Eu escolhi dirigir a expedição. --Desde não ter sido você, a teria dirigido algum outro --retrucou o drow, valendo-se
das mesmas palavras do Belwar. --Um capataz deve aceitar as respon... Belwar se interrompeu e olhou em outra direção. --Eles não lhe culpam --interveio Drizzt, que
seguiu o olhar do capataz até a porta de pedra. Respeitam-lhe e se preocupam com ti. --Compadecem-me! --gritou Belwar. --Necessita sua compaixão? --replicou Drizzt.
Acaso é menos que eles? Um inválido inútil? --Nunca o fui! --Então vê com eles! --vociferou Drizzt. Averigua se de verdade têm piedade de ti. Não acredito; mas
se me equivoco, se sua gente tiver piedade do "muito honorável capataz", então lhes demonstre quem é Belwar Dissengulp. Se seus companheiros não lhe culparem nem
têm piedade, não tem por que te inventar cargas! Belwar olhou a seu amigo durante um bom momento sem dizer uma palavra. --Todos os mineiros que lhe acompanharam
sabiam o risco de aventurar-se tão perto do Menzoberranzan --recordou-lhe Drizzt, e, com um sorriso, acrescentou--: Nenhum deles sabia que Drizzt Dou'Urdem guiava
à patrulha dos elfos escuros, nem você tampouco, porque nesse caso lhes teriam ficado em casa. --Magga cammara --murmurou Belwar. Sacudiu a cabeça incrédulo, tanto
pela atitude jocosa do Drizzt como pelo fato de que, pela primeira vez em mais de uma década, sentia-se melhor respeito a aquele trágico episódio. Abandonou a mesa
de pedra, sorriu ao Drizzt, e se dirigiu ao dormitório. --Aonde vai? --perguntou o drow. --A descansar --respondeu o capataz. Tanto bate-papo me esgotou. --A expedição
mineira partirá sem ti. Belwar deu meia volta e olhou ao Drizzt, assombrado. Acaso o elfo escuro acreditava sinceramente que ele podia esquecer tantos anos de sofrimentos
como se nada e sair correndo a unir-se à expedição? --Pensava que Belwar Dissengulp era mais valente --comentou o jovem. A expressão doída no rosto do pequeno lhe
revelou que tinha descoberto uma brecha na autocompasión do Belwar. --Fala com muita ousadia --grunhiu Belwar. --Só um covarde o consideraria assim --replicou Drizzt,
sem assustar-se ante a atitude ameaçadora que adotou o pequeno. Se você não gosta de ser chamado assim, demonstra que não o é! --acrescentou o drow. Vê com os
mineiros. lhes mostre de verdade quem é Belwar Dissengulp e de passagem descobre-o você também! --Corre a procurar suas armas! --ordenou-lhe o pequeno golpeando
as
mãos de mithril entre si. Drizzt vacilou. Acabava de desafiá-lo? Tinha ido muito longe no intento de arrancar ao capataz da apatia? --vá procurar suas armas, Drizzt
Dou'Urdem --repetiu Belwar--, porque, se for com os mineiros, você virá comigo. Entusiasmado, Drizzt sujeitou com suas delicadas mãos a cabeça do pequeno e
apoiou a frente contra a do Belwar, enquanto ambos intercambiavam olhares de profundo afeto e admiração. Depois, Drizzt saiu da casa à carreira para ir recolher
as cimitarras, o piwafwi e a cota de malha. Assombrado de sua própria decisão, Belwar se propinó um golpe na cabeça com tanta força que a ponto esteve de cair desacordado.
Assim que se repôs observou ao Drizzt que corria para a casa central. Pensou que seria uma experiência interessante. O capataz Brickers recebeu agradado ao Belwar
e ao Drizzt, embora interrogou ao pequeno com o olhar para assegurar-se de que podia confiar no drow. Nem sequer Brickers podia duvidar da valiosa ajuda que representava
contar com um drow nas profundidades da Antípoda Escura, sobre tudo se era certa a atividade dos elfos escuros nos túneis orientais. Mas a expedição não teve nenhum
tropeço na viagem para a região assinalada pelos exploradores. Informe-os sobre a riqueza da nervura demonstraram não ser exagerados, e os vinte e cinco mineiros
se dedicaram a trabalhar com um entusiasmo invejável. Drizzt se sentia feliz ao ver a habilidade do Belwar, que dirigia o martelo e a lança com uma precisão e uma
força que superavam a de todos outros. O capataz não demorou muito em compreender que seus camaradas não lhe tinham compaixão. Era um membro da expedição --um membro
destacado e não um lastro-- que enchia os carrinhos de mão com tanto ou mais mineral que qualquer de seus companheiros. Durante os dias que passaram nos túneis,
Drizzt se ocupou de montar guarda nos arredores do acampamento, acompanhado do Guenhwyvar quando a pantera estava disponível. À manhã seguinte do início dos trabalhos,
o capataz Brickers mandou a um pequeno para que fizesse guarda junto com o drow e a pantera, e Drizzt suspeitou corretamente que o novo companheiro tinha a missão
suplementar de vigiá-lo. Mas à medida que passava o tempo e os mineiros se acostumavam à presença do camarada de pele escura, Drizzt pôde perambular a seu desejo.
Foi uma expedição tranqüila e rentável, como gostava aos pequenos, e, graças a não ter encontrado nenhum monstro, logo tiveram os carrinhos de mão carregados até
os
batentes com minerais preciosos. Alegres e satisfeitos recolheram as equipes, formaram uma coluna com os carrinhos de mão e iniciaram o caminho de volta a casa,
uma viagem que lhes levaria dois dias devido à carga que arrastavam. Ao cabo de umas poucas horas de marcha, um dos exploradores se uniu à caravana. Seu rosto mostrava
uma expressão grave. --O que ocorre? --perguntou o capataz Brickers, dominado pela suspeita de que se acabou a boa sorte. --Uma tribo goblin --respondeu o explorador.
ao redor de quarenta. Ocupam uma pequena cova para o oeste e um túnel em pendente. O capataz Brickers deu um murro contra um dos carrinhos de mão. Não duvidava da
capacidade dos mineiros para enfrentar-se à banda de goblins, mas não queria problemas, e lhe resultaria difícil evitá-los com o ruído dos carrinhos de mão que se
podia ouvir desde muito longe. --Corre a voz. Ficaremos aqui --decidiu por fim. Se tivermos que brigar, deixemos que os goblins venham para nós. --Qual é o problema?
--perguntou- Drizzt ao Belwar assim que se uniu à caravana. Até então se ocupou de vigiar a retaguarda. --Uma banda de goblins --respondeu Belwar. Brickers diz
que devemos esperar e confiar em que aconteçam comprido. --E se nos descobrem? --Só são goblins --replicou o pequeno, entrechocando as mãos metálicas--,
mas tanto eu como minha gente confiamos em que o caminho fique espaçoso sem ter que brigar. Drizzt se sentiu agradado ao ver que os novos companheiros não se desesperavam
por combater, inclusive frente a um inimigo ao que podiam derrotar com facilidade. Se tivesse sido uma patrulha drow, o mais provável teria sido que a banda de goblins
já estivesse morta ou capturada. --Vêem comigo --pediu- Drizzt ao Belwar. Necessito sua ajuda para me entender com o capataz Brickers. Tenho um plano, mas temo
que meus pobres conhecimentos de seu idioma não me permitam explicar com claridade as sutilezas. Belwar enganchou ao Drizzt de um braço com a mão-de-lança e o fez
girar com mais força do previsto. --Não queremos conflitos --explicou o pequeno. Preferimos que os goblins se vão em paz. --Não procuro briga --assegurou-lhe Drizzt
com uma piscada. Satisfeito com a resposta, Belwar acompanhou ao drow. Brickers mostrou um sorriso de orelha a orelha quando Belwar traduziu o plano do elfo escuro.
--Valerá a pena ver a cara que põem os goblins --afirmou Brickers com uma gargalhada. Acredito que irei contigo! --Será melhor que eu vá --interveio Belwar.
Conheço a língua dos goblins e também o idioma dos drows. Além disso, você tem outras responsabilidades, em caso de que as coisas não saiam como esperamos. --Eu
também sei falar a língua dos goblins --replicou Brickers. E posso entender a nosso companheiro elfo escuro bastante bem. Quanto às obrigações com a caravana,
não são tantas como cria, porque agora nos acompanha outro capataz. --Um que não esteve nas profundidades da Antípoda Escura durante muitos anos --recordou-lhe Belwar.
--De acordo, mas era o melhor de todos --insistiu Brickers. A caravana fica a seu mando, capataz Belwar. Eu acompanharei ao drow no encontro com os goblins. Drizzt
tinha entendido as palavras suficientes para ter uma idéia das intenções do Brickers. Sem dar tempo ao Belwar a seguir a discussão, apoiou uma mão sobre o ombro
do pequeno e assentiu. --Se não enganarmos aos goblins e necessitamos sua ajuda, vêem depressa disposto a tudo. Então Brickers abandonou a equipe de mineiro e as
armas,
e seguiu ao Drizzt. Belwar se voltou para outros com certa cautela, sem saber como reagiriam, mas assim que jogou uma olhada aos mineiros, descobriu que todos o
apoiavam e se mostravam muito dispostos a cumprir suas ordens. O capataz Brickers não se desiludiu ao ver as expressões de assombro e espanto nas caras retorcidas
e dentuças quando ele e o elfo escuro apareceram ante eles. Um dos goblins soltou um alarido e levantou a lança com intenção de lançá-la, mas Drizzt utilizou as
habilidades mágicas inatas para criar um globo de escuridão diante do agressor e lhe impedir a visão. O goblin lançou a lança; Drizzt desembainhou uma cimitarra
e
a deteve em pleno vôo. Brickers, com as mãos atadas, porque simulava ser um prisioneiro naquela farsa, ficou boquiaberto ao ver a velocidade e a facilidade com que
o drow tinha derrubado a lança. Depois, olhou à banda de goblins e viu que compartilhavam seu assombro. --Um passo mais e morrerão --prometeu Drizzt no idioma goblin,
uma linguagem gutural de grunhidos e choramingações. Brickers compreendeu um segundo depois a que se referia o jovem quando ouviu o ruído de botas e uma choramingação
a suas costas. voltou-se e viu um casal de goblins,
rodeada pelas avermelhadas chamas do fogo dos drows, que escapava a toda pressa. Uma vez mais o svirfnebli olhou ao drow, assombrado. Como tinha descoberto que foram
atacar o a traição? Certamente Brickers não sabia nada do caçador, o outro eu do Drizzt Dou'Urdem que lhe permitia ter vantagem em situações como aquela. Tampouco
podia saber o capataz que agora o jovem fazia um grande esforço por dominar ao perigoso alter ego. Drizzt contemplou a cimitarra e depois à banda de goblins. Eram
quase quarenta dispostos a combater, mas o caçador pressionava ao Drizzt para que atacasse, a que se lançasse contra aqueles monstros covardes e os pusesse em fuga
pelos corredores que saíam da pequena caverna. Entretanto, um olhar às mãos atadas do companheiro anão lhe recordou o plano original e o ajudou a controlar ao caçador.
--Quem é o chefe? --perguntou. O cacique goblin não tinha nenhum interesse em identificar-se, embora não teve mais remedeio quando uma dúzia de subordinados, comportando-se
com a habitual falta de coragem e lealdade goblin, deram meia volta e o assinalaram com seus gordinhos dedos. Sem outra escolha, o cacique goblin tirou peito, ergueu
os ombros ossudos e avançou para enfrentar-se ao drow. --Bruck! --anunciou o chefe, ao tempo que se golpeava o peito com um punho. --O que faz aqui? --interrogou-o
Drizzt, depreciativo. Bruck não soube o que responder a esta pergunta. Jamais tinha tido que pedir permissão para os movimentos da tribo. --Esta região pertence
aos drows! --grunhiu Drizzt. Não tem nada que fazer aqui! --Cidade drow muito longe --protesto Bruck, assinalando por cima da cabeça do elfo. Drizzt advertiu que
o goblin tinha famoso a direção incorreta, mas preferiu não fazer nenhum comentário. Esta terra svirfnebli. --por agora --replicou Drizzt, que empurrou ao Brickers
com o pomo da cimitarra. Minha gente decidiu tomar esta região como própria. --Apareceu uma faísca de cólera nos olhos lilás do Drizzt, e um sorriso arteiro lhe
iluminou a expressão. Acaso Bruck e a tribo goblin se oporão a nós? Bruck estendeu as mãos, de dedos largos, em um gesto de indefensión. --Vete! --ordenou o drow.
Não necessitamos escravos, nem tampouco queremos chamar a atenção com os ruídos de uma batalha nos túneis! te considere afortunado, Bruck. Sua tribo poderá escapar
e viver... por esta vez! Bruck se voltou para outros em busca de ajuda. Só se tratava de um elfo escuro, enquanto que eles eram quase quarenta e bem armados. Levavam
todas as de ganhar. --Vete! --repetiu Drizzt, assinalando com a cimitarra uma das passagens laterais. Corre até que os pés não lhe possam levar! O cacique goblin,
desafiante, enganchou os polegares na parte de corda que sujeitava o tanga. de repente se ouviu um grande estrépito. Os golpes rítmicos contra a pedra estremeceram
as paredes da caverna. Bruck e outros goblins intercambiaram olhadas ansiosas, e Drizzt aproveitou a ocasião. --Atreve-te a nos desafiar? --gritou o drow ao tempo
que rodeava ao cacique nas chamas do fogo fátuo. Então que seja Bruck o primeiro em morrer! antes de que Drizzt pudesse acabar a frase, o chefe goblin já tinha
escapado, e corria desesperado pelo túnel que lhe tinha famoso o elfo. Como uma amostra de lealdade ao cacique, o resto da tribo correu atrás dele, e alguns que
corriam ainda mais depressa que o próprio Bruck o deixaram atrás. Ao cabo de uns segundos, Belwar e os mineiros apareceram pelos outros túneis.
--Pensei que te viria bem um pouco de ajuda --explicou o capataz ao tempo que golpeava a pedra da parede com a mão-de-martelo. --No momento mais conveniente e preciso,
muito honorável capataz --disse-lhe Brickers, quando deixou de rir. Perfeito, tal qual esperávamos do Belwar Dissengulp. A caravana svirfnebli não demorou muito
em reatar a marcha, e os mineiros comentavam alvoroçados as incidências do episódio. Os pequenos se consideravam muito preparados pela maneira em que tinham evitado
o combate. A alegria se converteu em uma festa de primeira quando chegaram ao Blingdenstone, porque os pequenos, apesar de ser gente séria e trabalhadora, também
gostavam
das festas como qualquer outra raça dos Reino. Drizzt Dou'Urdem, face às diferenças físicas que o separavam dos svirfneblis, sentia-se mais a gosto e feliz com eles
do que tinha estado em suas quatro décadas de vida. E nunca mais Belwar Dissengulp voltou a zangar-se quando alguém de sua gente o tratava de "muito honorável capataz".
O espectro estava confuso. Quando Zaknafein começava a acreditar que a presa se encontrava na cidade svirfnebli, os feitiços mágicos com que Malícia o tinha dotado
advertiram a presença do Drizzt nos túneis. Por sorte para este e os mineiros svirfneblis, o espectro rondava muito longe quando captou o rastro. Zaknafein iniciou
o caminho de volta através dos túneis, evitando às patrulhas anãs. Evitar os combates tinha resultado muito difícil, porque a matrona Malícia, sentada em seu trono
no Menzoberranzan, mostrava-se cada vez mais impaciente e nervosa. Malícia desejava o sabor do sangue, mas Zaknafein não retrocedeu no propósito de cortar a distância
que o separava do objetivo. Então, sem mais, esfumou-se o rastro. Bruck soltou um gemido quando outro elfo escuro apareceu no acampamento ao dia seguinte. Ninguém
hasteou as lanças ou tentou situar-se a costas do drow. --Partimo-nos tal qual nos ordenou! --protestou Bruck, adiantando-se sem que o pedissem. O cacique sabia
que, se não o fazia, outros o assinalariam. O espectro não deu nenhuma amostra de ter entendido as palavras em idioma goblin. Zaknafein avançou para o cacique com
as espadas preparadas. --Nós... --alcançou a dizer Bruck antes de que o degolassem. Zaknafein apartou a espada da garganta do goblin e se lançou contra o resto do
grupo. Os goblins puseram-se a correr em todas direções. uns quantos, apanhados entre o enlouquecido drow e a parede de pedra, levantaram as lanças para defender-se.
O espectro passou entre eles ao tempo que destroçava corpos e armas com cada cutilada. Uma das vítimas alcançou a passar a lança entre as espadas e cravou a ponta
no quadril do Zaknafein. O monstro não morto nem sequer pestanejou. Zak se voltou para o atacante e descarregou uma série de golpes velocísimos e de tanta precisão
que amputaram os braços do goblin e o decapitaram. Ao acabar o combate, quinze goblins jaziam esquartejados no chão da caverna e outros corriam por todos os túneis
da região. O espectro, talher com o sangue dos inimigos, saiu da caverna pela passagem oposto ao que tinha entrado, para seguir a busca do escorregadio Drizzt Dou'Urdem.
No Menzoberranzan, na sala de espera da capela da casa Dou'Urdem, a matrona Malícia descansava, exausta e saciada. Tinha participado de cada uma das mortes conseguidas
pelo Zaknafein, e havia sentido uma explosão de êxtase cada vez que o
espectro afundava a espada em uma nova vítima. Malícia esqueceu as frustrações e a impaciência, com a confiança renovada pelos prazeres da cruel matança do Zaknafein.
Quão grande seria o prazer quando o espectro encontrasse por fim ao filho traidor!
11
O mexeriqueiro
O conselheiro Firble do Blingdenstone entrou inquieto na pequena caverna onde teria lugar o encontro. Um exército svirfnebli, entre eles vários magos providos de
talismãs que poderiam chamar os elementares terrestres, ocupavam posições defensivas ao longo dos corredores do lado oeste. Apesar destas precauções, Firble não
as tinha todas consigo. Olhou para o túnel oriental, a única outra entrada à caverna, preocupado pela informação que o agente poderia subministrar e pelo preço que
lhe custaria. Então apareceu o drow e fez uma entrada espetacular; o estrépito dos taconazos das botas de cano alta negros se podia ouvir desde muito longe. O olhar
do visitante percorreu rapidamente o recinto para assegurar-se de que Firble estava sozinho --o acerto habitual-- e depois se aproximou do conselheiro, ao que saudou
com uma profunda reverência. --Saúde, pequeno amigo da bolsa grande --disse o drow com uma gargalhada. Seu domínio da língua e o dialeto svirfnebli, com as inflexões
e pausas de um pequeno que tivesse vivido um século no Blingdenstone, sempre eram para o Firble um motivo de assombro. --Poderia ser um pouco mais precavido --respondeu
Firble, inquieto pelo descaramento do recém-chegado. --Ora --exclamou o drow, que acompanhou a interjeição com um sonoro taconazo. Tem detrás de ti a todo um exército
de guerreiros e magos, e eu... bom, digamos que também estou bem protegido. --Não o duvido, Jarlaxle --replicou Firble. De todos os modos, prefiro manter nossos
assuntos tão privados e seguros como é possível. --Todos os assuntos de Brigam D'aerthe são privados, meu querido Firble -- afirmou o drow, e uma vez mais fez uma
reverência, roçando o chão com o chapéu de asa larga que sustentava na mão. --Já está bem de reverências --disse Firble. Nos ocupemos do nosso para que possa retornar
a casa. --Então pergunta --convidou-o Jarlaxle. --houve um aumento da atividade drow perto do Blingdenstone --explicou o pequeno. --Seriamente? --repôs o mercenário,
com uma surpresa fingida. Mas o sorriso satisfeito do drow revelava seus pensamentos. Isto prometia ser um bom negócio para o Jarlaxle, porque a mesma mãe matrona
do Menzoberranzan que o tinha contratado fazia pouco tinha muito que ver nas preocupações do Blingdenstone. Ao Jarlaxle gostava das coincidências que beneficiavam
seus interesses. --Sim --manifestou Firble, que conhecia muito bem as artimanhas de seu interlocutor. --E quer saber o motivo? --raciocinou o drow, sem deixar de
simular ignorância.
--por que se não te mandei chamar? --protestou o conselheiro, cansado dos jogos do Jarlaxle. Firble tinha muito claro que o mercenário estava à corrente da atividade
drow na região do Blingdenstone, e de seu propósito. Jarlaxle era um patife sem casa, coisa muito mal considerada no mundo dos elfos escuros. Mesmo assim, este personagem
tinha sobrevivido e inclusive prosperado. A arma secreta do Jarlaxle era a informação: o drow tinha informação de tudo o que ocorria no Menzoberranzan e as regiões
que rodeavam a cidade. --Quanto demorará para nos dar a resposta? --perguntou Firble. Meu rei deseja acabar com este tema o antes possível. --Tem o pagamento?
--replicou o drow, com a mão tendida. --Receberá o pagamento quando trouxer a informação --respondeu Firble. Esse é o acordo. --Assim é --afirmou Jarlaxle. Mas
esta vez já disponho da informação. Se tiver minhas gemas, podemos acabar nosso assunto agora mesmo. Firble agarrou a bolsa com as gemas que levava sujeita ao cinturão
e a jogou no drow. --Cinqüenta ágatas, perfeitamente esculpidas --grunhiu o conselheiro, doído pelo preço. Tinha esperado não ter que recorrer aos serviços do mercenário
esta vez. Como qualquer outro pequeno, ao Firble doía desprender-se de grandes somas. Jarlaxle jogou uma olhada ao conteúdo da bolsa e a guardou em um bolso. --Descansa
tranqüilo, pequeno pequeno --disse--, porque os poderes que governam Menzoberranzan não planejam nenhum ataque contra sua cidade. Só uma casa drow se interessa por
esta região, ninguém mais. --por que? --inquiriu Firble depois de uma larga pausa. O svirfnebli era resistente a perguntar porque sabia qual era a conseqüência inevitável.
Jarlaxle tendeu a mão, e outras dez ágatas trocaram de dono. --A casa procura um dos seus --explicou o mercenário. Um renegado cujas ações têm feito que a família
perdesse o favor da rainha aranha. Uma vez mais reinou o silêncio. Firble tinha muito claro a identidade do drow açoitado, mas o rei Schnicktick poria o grito no
céu se não levava uma informação confirmada. Tirou outras dez gemas da bolsa. --me diga o nome da casa --pediu. --Daermon N'a'shezbaernon --respondeu Jarlaxle, enquanto
guardava as gemas no bolso. Firble cruzou os braços em sinal de desgosto. O ladino drow o tinha pilhado outra vez. --Não quero saber o nome antigo! --protestou o
conselheiro. Com um gesto furioso procurou outras dez ágatas. --Por favor, Firble --burlou-se Jarlaxle. Tem que aprender a ser mais concreto nas perguntas. Estes
enganos lhe custam muito! --me diga o nome da casa em términos compreensíveis --pediu Firble. E quero saber também o nome do renegado. Já te paguei mais que suficiente
pela informação. Jarlaxle levantou uma mão e lhe sorriu ao pequeno. --De acordo --disse com uma gargalhada, mais que satisfeito com o que tinha cobrado. A casa Dou'Urdem,
a casa oitava do Menzoberranzan procura a seu segundo filho. Pela expressão do conselheiro, o mercenário advertiu que este conhecia o nome. Acaso este encontro lhe
daria uma informação que poderia vender com uma
ganho adicional à matrona Malícia? --chama-se Drizzt --acrescentou o drow, atento à reação do svirfnebli. Uma pista sobre seu paradeiro seria muito bem recompensada
no Menzoberranzan. Firble observou ao drow durante um bom momento sem dizer uma palavra Se teria delatado quando tinha escutado o nome do açoitado? Se Jarlaxle tinha
adivinhado que Drizzt se encontrava na cidade dos pequenos, as conseqüências podiam ser graves. Firble se encontrava enfrentado a um dilema. Devia admitir o engano
e tratar de emendá-lo? Quanto lhe custaria comprar o silêncio do Jarlaxle? Mas por muito alto que fora o preço, podia confiar neste mercenário sem escrúpulos? --Não
temos nada mais que tratar --anunciou Firble, disposto a confiar em que Jarlaxle não tinha conseguido nada concreto para vender à casa Dou'Urdem. O conselheiro se
voltou e caminhou para a saída. Jarlaxle aplaudiu para seus adentros a decisão do Firble. Sempre tinha tido ao svirfnebli por um bom negociador, e agora não o tinha
decepcionado. Firble lhe tinha revelado muito pouco, nada que pudesse oferecer à matrona Malícia, e, se o conselheiro sabia algo mais, a decisão de acabar a entrevista
era muito sensata. Apesar das diferenças raciais, o mercenário reconheceu que Firble lhe caía bem. --Pequeno pequeno --disse Jarlaxle--, quero te fazer uma advertência.
Firble deu meia volta com uma mão posta sobre a bolsa carregada de gemas. --É grátis --exclamou o drow com uma gargalhada ao tempo que sacudia a calva cabeça. Mas
depois a expressão do mercenário se voltou séria, quase grave. Se souber um pouco do Drizzt Dou'Urdem --acrescentou--, faz que se mantenha bem longe. A própria
Lloth pediu à matrona Malícia Dou'Urdem a morte do Drizzt, e Malícia fará o que seja para agradar à deusa. Inclusive se Malícia falha, haverá outros que o tentarão,
conscientes de que sua morte lhes outorgasse o favor do Lloth. Está condenado, Firble, e também o estará todo aquele o bastante parvo para ajudá-lo. --Uma advertência
desnecessária --disse Firble, que tentou manter uma expressão serena. Ninguém no Blingdenstone sabe nada do renegado. E também te asseguro que ninguém no Blingdenstone
tem o menor interesse em congraçar-se com a rainha aranha dos elfos escuros. Jarlaxle sorriu sem deixar-se enganar pelas palavras do svirfnebli. --Certamente --replicou,
com uma profunda reverência acompanhada pelo habitual varrido do chapéu. Firble fez uma pausa para considerar a resposta e a reverência, e se perguntou uma vez mais
se devia tentar comprar o silêncio do mercenário. antes de que pudesse tomar uma decisão, Jarlaxle partiu fazendo soar os saltos das botas com cada passo, e o pobre
Firble teve que resignar-se a suas dúvidas. Mas estas não estavam justificadas. Enquanto se afastava, Jarlaxle reconheceu que Firble lhe caía bem, e decidiu que
não confiaria à matrona Malícia suas suspeitas sobre o paradeiro do Drizzt. A menos, claro está, que a oferta fosse irresistível. Por sua parte, Firble permaneceu
na caverna deserta durante um bom momento, refletindo se haveria ou não obrado corretamente. Para o Drizzt, os dias transcorriam em um ambiente de amizade e de alegria.
converteu-se quase em um herói entre os mineiros svirfneblis aos que tinha acompanhado nos túneis, e o relato de como tinha conseguido enganar à tribo de goblins
era embelezado com cada nova repetição. O drow e Belwar saíam juntos freqüentemente, e, cada vez que se apresentavam em um botequim ou em locais de reunião, recebiam-nos
com grandes aplausos e os convidavam a comer e a beber. Por fim os dois amigos tinham encontrado a paz que tanto tinham desejado. O capataz Brickers e Belwar já
tinham começado os preparados para uma
nova expedição mineira. A maior dificuldade era reduzir a lista de voluntários, porque se tinham apresentado pequenos de todos os rincões da cidade, entusiasmados
por participar de uma aventura em companhia do elfo escuro e o muito honorável capataz. Uma manhã, quando chamaram com insistência à porta do Belwar, os amigos pensaram
que se tratava de mais voluntários em busca de um posto na expedição. surpreenderam-se ao abrir a porta e encontrar-se com o guarda da cidade que os esperava, com
a ordem de levar ao Drizzt, a ponta de lança, a uma audiência com o rei. --Uma precaução habitual --assegurou- Belwar ao Drizzt, ao parecer despreocupado. O pequeno
apartou o prato de cogumelos com molho de musgo e foi procurar a capa, mas se Drizzt tivesse afastado o olhar das lanças e se fixou nos nervosos movimentos do Belwar,
sem dúvida não teria estado tão seguro. O percurso através da cidade o fizeram a passo vivo porque os guardas deram amostras de uma pressa inusitada. Belwar não
deixou de insistir em que tudo era "normal", e em realidade o pequeno fez todo o possível para mostrar-se tranqüilo. De todos os modos, Drizzt não se fez nenhuma
ilusão
quando entrou na sala de audiências. Durante toda sua vida não tinha conhecido outra coisa que fracassos por muito prometedor que fosse o início. O rei Schnicktick
parecia molesto no trono, e os conselheiros que o rodeavam eram incapazes de dissimular a inquietação que os dominava. Ao monarca lhe desagradava ter que aplicar
as recomendações de seus assessores --os svirfneblis se consideravam amigos leais--, mas não podia fazer caso omisso do relatório do conselheiro Firble em relação
às ameaças ao Blingdenstone. Especialmente se só era em benefício de um elfo escuro. Drizzt e Belwar se detiveram diante do trono; o drow, intrigado pela chamada,
embora disposto a aceitar o resultado sem protestos, e o capataz, visivelmente zangado. --Agradeço-lhes que tenham vindo tão logo --saudou-os o rei, que se esclareceu
garganta e olhou aos conselheiros em busca de apoio. --As lanças lhe fazem mover os pés depressa --replicou Belwar, sarcástico. O rei dos svirfneblis voltou a pigarrear,
muito molesto, e se moveu no trono, incômodo. --Meus guardas pecam às vezes de um excesso de zelo --desculpou-se. Por favor, não tomem como uma ofensa. --Certamente
que não --afirmou Drizzt. --desfrutaste que a estadia em nossa cidade? --perguntou-lhe o rei, que conseguiu esboçar um sorriso. --Sua gente se comportou com uma
generosidade por cima da que podia pedir ou esperar --respondeu Drizzt. --E você demonstraste ser um amigo leal, Drizzt Dou'Urdem --manifestou o soberano. Nossas
vidas se enriqueceram com sua presença. Drizzt fez uma reverência, agradecido pelas bondosas palavras do rei. Mas Belwar entrecerró as pálpebras e franziu o farpado
nariz, porque começava a adivinhar os propósitos do soberano. --Por desgraça --disse o rei Schnicktick, que em vez de olhar ao elfo dirigiu um olhar de súplica aos
conselheiros--, surgiu um problema... --Magga cammara! --gritou Belwar, para surpresa de todos os pressente. Não! O rei e Drizzt olharam ao capataz, incrédulos.
--Pretendem jogá-lo! --disse Belwar ao Schnicktick, em um tom acusador. --Belwar! --protestou Drizzt. --Muito honorável capataz --interveio o rei svirfnebli, com
expressão severo--,
não têm direito a interromper. Guardem silêncio ou mandarei que lhes expulsem da sala. --Então é verdade --gemeu Belwar, que desviou o olhar. Drizzt olhou alternativamente
ao rei e a seu amigo, sem compreender muito bem a que vinha a discussão. --Suponho que ouviste falar das presuntas atividades dos drows nos túneis próximos a nossas
fronteiras orientais, verdade? --perguntou- o rei ao Drizzt. O jovem assentiu. --Inteiramo-nos que propósito destas atividades --explicou Schnicktick. A pausa que
se produziu enquanto o rei svirfnebli olhava outra vez aos conselheiros fez correr um suor frio pelas costas do Drizzt. Tinha muito claro o que escutaria a seguir,
mas mesmo assim as palavras lhe fizeram mal. Você, Drizzt Dou'Urdem, são a causa. --Minha mãe me busca --declarou o drow. --Mas não te encontrará! --rugiu Belwar
em um desafio dirigido tanto ao soberano como à mãe desconhecida de seu amigo. Não, enquanto seja hóspede dos pequenos do Blingdenstone! --Belwar, já é suficiente!
--reprovou-lhe o rei Schnicktick. Olhou ao Drizzt com uma expressão mais tranqüila. Por favor, amigo Drizzt, deve compreendê-lo. Não posso me arriscar a uma guerra
com o Menzoberranzan. --Compreendo-o --disse Drizzt, de todo coração. irei recolher minhas coisas. --Não! --protestou Belwar. aproximou-se do trono. Somos svirfneblis.
Não abandonamos aos amigos quando se apresenta um perigo! --O capataz foi de conselheiro em conselheiro, reclamando justiça. Drizzt Dou'Urdem nos deu sua amizade,
e nós o jogamos! Magga cammara! Se tão dispostos estivermos a renunciar à lealdade, como podemos nos considerar melhores que os drows do Menzoberranzan? --Silêncio,
muito honorável capataz! --gritou o rei com um tom que nem sequer o teimado Belwar podia passar por cima. Não foi fácil tomar a decisão, mas é definitiva! Não
arriscarei a segurança do Blingdenstone em benefício de um elfo escuro, por muito amigo que seja. --Schnicktick olhou ao Drizzt. Lamento-o de todo coração. --Não
têm por que lamentá-lo --repôs o drow. Atuam segundo seu dever, tal como fiz eu quando decidi abandonar a minha gente. Aquela decisão foi coisa exclusivamente
minha, e nunca pedi a aprovação nem a ajuda de ninguém. Você, meu bom rei svirfnebli, e seu povo me compensastes com acréscimo a perda. me acreditem quando digo
que não desejo provocar a ira do Menzoberranzan contra Blingdenstone. Não teria consolo se por minha culpa sobreviesse uma tragédia. Abandonarei sua formosa cidade
agora mesmo. E ao partir, só lhes posso dar minha gratidão. O rei svirfnebli se sentiu comovido pelas palavras do drow, embora não por isso trocou a decisão. Fez
um sinal aos soldados para que acompanhassem ao Drizzt, que aceitou a escolta armada com um suspiro de resignação. Olhou uma vez mais ao Belwar, que permanecia com
expressão compungida junto aos conselheiros, e deixou a sala. Um centenar de anões, entre eles o capataz Brickers e outros mineiros da única expedição em que tinha
participado Drizzt, despediram-se do drow quando atravessou as enormes leva do Blingdenstone. Chamava a atenção a ausência do Belwar Dissengulp; Drizzt não havia
tornado a ver seu amigo desde que tinha abandonado a sala do trono. De todos os modos, Drizzt agradecia a despedida que lhe oferecia este nutrido grupo de svirfneblis.
As palavras de ânimo e as amostras de afeto o consolaram e lhe deram as forças que necessitaria para agüentar as duras provas de nos próximos anos. Entre as melhores
lembranças que Drizzt se levava do Blingdenstone, a despedida seria o mais importante. Entretanto, quando Drizzt deixou atrás a multidão, atravessou a pequena
plataforma e baixou a escada, só ouviu o eco estrondoso das portas ao fechar-se. Tremeu ao olhar para os túneis da Antípoda Escura, e se perguntou se seria capaz
de sobreviver às experiências que lhe aguardavam. Blingdenstone o tinha salvado do caçador; durante quanto tempo poderia evitar que aquele outro eu lhe arrebatasse
a identidade? Mas o que outra escolha tinha a seu alcance? Deixar Menzoberranzan tinha sido decisão dela e não se equivocou. Agora que conhecia melhor as conseqüências
da escolha, perguntou-se se havia valido a pena. Se lhe davam a oportunidade de repeti-la, teria o valor de renunciar à vida entre os seus? Pensou que não vacilaria
em adotar a mesma decisão. Um ruído o pôs alerta. Se acurrucó e desembainhou as cimitarras, convencido de que os agentes da matrona Malícia tinham esperado o momento
da expulsão para apresentar-se. Uns segundos mais tarde apareceu uma sombra, mas não era um assassino drow o que se aproximou do Drizzt. --Belwar! --gritou agradado.
Acreditava que não viria a me despedir. --E não o farei --respondeu o svirfnebli. Drizzt olhou ao capataz e advertiu a mochila que o pequeno carregava à costas.
--Não,
Belwar, não posso... --Não recordo te haver pedida permissão --interrompeu-o este. Faz tempo que desejo sair em busca de aventuras e pensei que este era o momento
mais apropriado para descobrir o que me oferece o mundo. --Não tanto como esperas --disse o jovem, muito sério. Você tem sua gente. Aceitam-lhe e se preocupam
com ti. É a coisa mais importante que se possa desejar. --De acordo --assentiu o capataz. E você, Drizzt Dou'Urdem, têm um amigo que te aceita e se preocupa com
ti. E que está a seu lado O que diz? Saímos em busca de aventuras ou ficamos aqui à espera de que se presente essa maligna tua mãe e nos mate? --Nem sequer pode
imaginar os perigos que nos aguardam-- advertiu Drizzt, mas Belwar pôde ver que o drow estava a ponto de ceder a sua oferta. --E você, elfo escuro, nem sequer pode
imaginar minha capacidade para fazer frente a ditos perigos! --exclamou o capataz, entrechocando as mãos metálicas. Não vou permitir que parta sozinho pelas regiões
selvagens da Antípoda Escura. Tire-lhe o da cabeça. Magga cammara! Iniciemos a marcha de uma vez por todas. Drizzt encolheu os ombros sem saber que mais dizer,
olhou outra vez a expressão decidida no rosto de seu amigo, e avançou por um dos túneis, com o Belwar a seu lado. Ao menos, esta vez Drizzt tinha um companheiro
com o que podia falar, um amparo contra a aparição do caçador. Colocou uma mão no bolso e acariciou a estatueta de ônix do Guenhwyvar. Possivelmente entre os três
poderiam conseguir algo mais que sobreviver na Antípoda Escura. Durante muito tempo, Drizzt se perguntou se não tinha atuado egoístico ao aceitar muito depressa
o oferecimento do Belwar. Mas a profunda alegria que sentia ao ver o muito honorável capataz partindo a seu lado apagava de sua mente qualquer idéia de culpa.
TERCEIRA PARTE
Amigos e inimigos
Viver ou sobreviver? Sem a segunda saída para as profundidades da Antípoda Escura, depois de minha estadia no Blingdenstone, jamais teria chegado a compreender a
importância desta pergunta tão singela. Quando saí do Menzoberranzan, pensava que bastava sobrevivendo, acreditava que podia me encerrar em mim mesmo, agasalhado
em meus princípios e satisfeito de ter tomado o único caminho correto. A alternativa era a terrível realidade do Menzoberranzan e a obediência às cruéis normatiza
que guiavam a minha gente. Acreditava que, se aquilo era viver, resultava preferível contentar-se com a sobrevivência. Entretanto, o mero feito de sobreviver quase
me matou. Ou, o que é pior, esteve a ponto de me roubar o que mais valorava. Os svirfneblis do Blingdenstone me ensinaram outra coisa diferente. A sociedade svirfnebli,
estruturada e sustentada pela unidade e os valores comuns, resultou ser todo aquilo que tinha sonhado para o Menzoberranzan. Os svirfneblis faziam muito mais que
sobreviver: viviam, riam e trabalhavam, e as lucros obtidas as compartilhavam entre todos, da mesma maneira que compartilhavam a dor das perdas que indevidamente
sofriam no mundo hostil das profundidades. A alegria se multiplica quando se compartilha com os amigos, mas a pena é menor em companhia. Assim é a vida. E assim,
quando saí do Blingdenstone, de retorno às cavernas solitárias da Antípoda Escura, fiz-o com esperança. A meu lado caminhava Belwar, meu novo amigo, e no bolso levava
o amuleto mágico para chamar o Guenhwyvar, meu leal amiga. Em minha breve estadia com os pequenos, tinha conhecido a vida que sempre tinha desejado, e já não podia
voltar a me conformar só sobrevivendo. Ao dispor da companhia de meus amigos, atrevi-me a pensar que não seria necessário.
DRIZZT DOU'URDEM
12
Aventuras, aventuras, aventuras
--Preparaste-o? --perguntou- Drizzt ao Belwar quando o capataz se reuniu com ele na sinuosa passagem. --Fiz o fossa do fogão --respondeu Belwar, golpeando orgulhoso
as mãos de mithril sem fazer muito ruído. Deixei as mantas enrugadas em um rincão e arranhei com as botas por toda parte. Sua bolsa está em um lugar onde não custará
muito encontrá-la. Inclusive deixei umas quantas moedas de prata entre as mantas; não acredito que vá necessitar as. O pequeno acompanhou estas últimas palavras
com
uma risita, mas Drizzt pôde ver que a seu amigo doía haver-se desprendido do metal precioso. --Um bom engano --felicitou-o Drizzt, para lhe fazer esquecer o sacrifício.
--E você o que tem feito, elfo escuro? --disse Belwar. ouviste ou viu algo? --Nada --respondeu Drizzt. Assinalou um dos túneis. enviei ao Guenhwyvar para que
explore a zona. Se houver alguém, não demoraremos para sabê-lo. --Boa idéia --comentou Belwar. Montar um falso acampamento bem longe do Blingdenstone manterá a
sua mãe se separada de minha gente. --E possivelmente convença a minha família de que ainda estou na região e que não tenho a intenção de partir --acrescentou Drizzt,
esperançado. pensaste aonde iremos? --Dá igual qualquer caminho --repôs o pequeno, abrindo os braços. Não há nenhuma cidade próxima, exceto as nossas. Ao menos,
que eu saiba. --Então, vamos para o oeste --propôs Drizzt. Rodearemos Blingdenstone e entraremos nas profundidades, na direção oposta ao Menzoberranzan. --Bem
pensado --disse o capataz. Belwar fechou os olhos e se concentrou nas emanações da pedra. Como muitas outras raças da Antípoda Escura, os pequenos podiam distinguir
as variações magnéticas da pedra, uma capacidade que lhes permitia seguir o rumo com tanta precisão como um habitante da superfície que se guiasse pelo sol. Ao cabo
de uns instantes, Belwar assentiu e assinalou o túnel adequado. --por ali se vai ao oeste --manifestou o pequeno. Vamos, depressa. Quanta mais distancia nos separe
de sua mãe, mais seguros estaremos todos. Fez uma pausa para olhar ao Drizzt durante um momento enquanto pensava se a próxima pergunta não seria uma intromissão
nos assuntos privados de seu novo amigo. --O que ocorre? --perguntou-lhe este ao ver a inquietação do pequeno. Belwar decidiu arriscar-se, só para descobrir até
que
ponto tinha chegado a intimidade entre eles dois. --Quando se inteirou de que você foi a causa da atividade drow nos túneis orientais --disse o pequeno, sem rodeios--,
pareceu-me ver que lhe tremiam os joelhos. Eles são sua família, elfo escuro. De verdade são tão terríveis?
A gargalhada do Drizzt convenceu ao Belwar de que não o tinha ofendido com a pergunta. --Vêem --respondeu Drizzt, ao ver que Guenhwyvar retornava da exploração.
Se tivermos acabado de preparar o acampamento falso, já é hora de dar os primeiros passos de nossa vida. O caminho que nos aguarda é muito comprido e teremos tempo
de sobra para as histórias a respeito de minha casa e minha família. --Espera! --disse Belwar. Colocou uma mão na bolsa e tirou um cofre pequeno. Um presente do
rei Schnicktick--explicou enquanto levantava a tampa e tirava um broche resplandecente, cuja suave luz alcançava para iluminar o terreno a seu redor. --Converterá-te
em um branco perfeito --comentou o drow, olhando assombrado ao capataz. --Converterá aos dois em brancos perfeitos --corrigiu-o o pequeno, com um tom de ironia.
Mas não tema, elfo escuro; a luz manterá mais inimigos a raia dos que pode atrair. Eu não gosto de pisar em caranguejos nem qualquer outro inseto que se arraste
pelo chão! --Quanto tempo brilhará? --perguntou Drizzt, e Belwar compreendeu pelo tom que o elfo desejava que se apagasse quanto antes. --O duomer é eterno --respondeu
Belwar, com um sorriso. A menos que algum sacerdote ou mago o apague. Deixa de preocupar-se. Conhece alguma criatura da Antípoda Escura capaz de entrar voluntariamente
em uma zona iluminada? Drizzt encolheu os ombros e decidiu confiar na experiência do capataz. --Muito bem --assentiu, sacudindo a larga juba branca. É hora de
iniciar nossa marcha. --É hora de caminhar e contar histórias --afirmou Belwar, ao tempo que punha-se a andar mais depressa do habitual para poder acomodar o passo
às largas e ágeis pernadas do drow. Caminharam durante muitas horas, fizeram um alto para comer, e voltaram a caminhar muitas mais. Algumas vezes Belwar utilizava
a luz do broche; outras vezes os amigos caminhavam na escuridão se percebiam a presença de algum perigo na zona. Guenhwyvar os acompanhava, embora não a viam com
freqüência porque a pantera fazia as funções de exploradora. Durante toda uma semana, os companheiros só se detiveram quando o cansaço ou a fome lhes impunham uma
pausa, pois desejavam afastar-se do Blingdenstone --e dos perseguidores do Drizzt-- todo o possível. Entretanto, demoraram uma semana mais em chegar a uma região
desconhecida para o pequeno. Belwar tinha sido capataz quase cinqüenta anos, e tinha dirigido as expedições mineiras que mais se afastaram do Blingdenstone. --Conheço
este lugar --comentava Belwar freqüentemente quando entravam em uma caverna, e acrescentava--: aqui encontramos ferro. E depois mencionava outros minerais preciosos
que Drizzt nunca tinha escutado mencionar. E, embora os intermináveis relatos do capataz sobre as expedições eram quase todos iguais (quantas maneiras de cortar
a pedra conheciam os pequenos?), Drizzt os escutava com muita atenção, sem perder-se nenhuma palavra. Conhecia a alternativa. Por sua parte, Drizzt lhe narrou as
aventuras
vividas na Academia do Menzoberranzan e compartilhou com ele suas afetuosas lembranças do Zaknafein e seu treinamento com as armas. Mostrou ao Belwar como se executava
o duplo golpe baixo e a parada que tinha descoberto para responder ao ataque, para surpresa e dor do professor. O jovem lhe explicou o complicado código de gestos
e movimentos manuais utilizado pelos elfos para comunicar-se em silêncio, e chegou a pensar em lhe ensinar ao pequeno a linguagem, mas descartou a idéia assim que
Belwar soltou uma gargalhada estentórea
e lhe mostrou as mãos metálicas. Provido com um martelo e uma lança em lugar de dedos era impossível que o capataz pudesse empregar o código. De todos os modos,
Belwar agradeceu a boa intenção do Drizzt, e os companheiros celebraram o absurdo do propósito com muitas risadas. Guenhwyvar e o pequeno não demoraram para fazer-se
amigos. Freqüentemente, quando Belwar dormia, a pantera se tornava com todo o peso sobre as pernas do pequeno, que despertava ao sentir o comichão da pele do animal.
O capataz sempre protestava e pegava ao Guenhwyvar na garupa com a mão-de-martelo --coisa que acabou convertendo-se em um jogo para os dois--, mas a verdade era
que ao Belwar não o incomodava absolutamente a companhia da pantera. De fato, a presença do Guenhwyvar o ajudava a conciliar o sonho porque o protegia dos muitos
perigos imprevistos da Antípoda Escura. Uma vez Drizzt sussurrou ao Guenhwyvar: --Entendeste-o? um pouco mais à frente, Belwar dormia muito tranqüilo, deitado no
chão e com uma pedra por travesseiro. O drow sacudiu a cabeça assombrado enquanto contemplava a seu amigo. Começava a acreditar que os pequenos se excediam um pouco
em sua afinidade com a terra. --Adiante --ordenou-lhe à pantera. Guenhwyvar avançou com passo elástico e se deixou cair sobre as pernas do capataz. Por sua parte,
Drizzt se ocultou na entrada de um túnel e espiou ao casal. Ao cabo de uns poucos minutos, Belwar despertou queixoso. --Magga cammara, pantera! --grunhiu o pequeno.
por que sempre te deita em cima de mim em lugar de fazê-lo a meu lado? Guenhwyvar só se moveu um pouco e respondeu ao protesto do Belwar com um sonoro suspiro. --Magga
cammara, animal! --rugiu o capataz. Moveu os dedos dos pés em um intento inútil por manter a circulação e aliviar o intumescimento das pernas. Te largue! Belwar
se incorporou apoiado em um cotovelo e lançou um golpe com a mão-de-martelo contra a garupa da pantera. antes de que o golpe pudesse chegar a tocá-la, Guenhwyvar
se afastou de um salto fingindo que fugia. Mas assim que o capataz se descuidou um instante, a pantera deu meia volta e se jogou sobre o pequeno, que se viu sepultado
debaixo do animal. depois de umas segundas de resistências, Belwar conseguiu tirar a cabeça ao ar livre. --te aparte de mim se não querer sofrer as conseqüências!
--chiou o pequeno. Sem preocupar-se da suposta ameaça, Guenhwyvar se acomodou melhor sobre o capataz. --Elfo escuro! --chamou Belwar sem atrever-se a gritar muito
forte. Elfo escuro, vêem aqui e te leve sua pantera. Elfo escuro! --Olá --respondeu Drizzt, que saiu do túnel como se acabasse de chegar. Outra vez estão jogando?
Acreditava que era hora de que me relevasse... --Agora mesmo vou substituir te --declarou Belwar, embora as palavras ficaram afogadas em parte pela espessa pele
da pantera quando esta se moveu uma vez mais. Drizzt viu como o pequeno franzia o farpado nariz irritado. --Não, não --apressou-se a dizer o drow. Não estou cansado,
e por nada do mundo interromperia seu jogo. Sei que o passam de maravilha --adicionou e, passando junto ao casal, aplaudiu ao Guenhwyvar na cabeça ao tempo que o
fazia uma piscada de cumplicidade. --Elfo escuro! --protestou Belwar a costas do Drizzt, mas este não lhe fez
caso e desapareceu no túnel. A pantera, com a bênção do drow, dormiu em questão de segundos. Drizzt se escondeu e permaneceu muito quieto, à espera de que seus olhos
passassem da infravisión --que lhe permitia ver as ondas de calor dos objetos no espectro infravermelho-- à visão normal no reino da luz. Inclusive antes de acabar
a mudança, Drizzt sabia que sua hipótese era correta. Adiante, além de uma arcada natural não muito alta, havia um resplendor avermelhado. O drow aguardou pequeno
antes de averiguar do que se tratava. Quase imediatamente, o suave brilho do broche encantado do capataz apareceu à vista. --Apaga a luz --sussurrou Drizzt, e o
brilho do broche desapareceu. Belwar avançou com muita cautela pelo túnel para reunir-se com seu companheiro. Ele também tinha visto o resplendor avermelhado além
da arcada e compreendia a precaução do elfo escuro. --Pode chamar à pantera? --perguntou Belwar. --A magia está limitada por períodos de tempo --respondeu Drizzt.
Guenhwyvar só pode mover-se no plano material durante umas horas. Depois precisa descansar. --Poderíamos retornar por onde viemos --propôs Belwar. Possivelmente
haja outro túnel que nos permita salvar o obstáculo. --percorremos oito quilômetros da última bifurcação --replicou Drizzt. São muitos para fazê-los outra vez.
--Então vejamos o que temos diante --decidiu o capataz, e pôs-se a andar. Drizzt, agradado pela atitude resolvida do pequeno, apressou-se a segui-lo. Ao outro lado
da arcada, que Drizzt teve que cruzar agachado, encontraram uma caverna muito grande, com as paredes e o chão estofados com algo que parecia musgo. Este era a origem
da luz vermelha. O elfo se deteve, intrigado, mas Belwar sabia o que era. --Baruchas! --gritou o capataz, divertido. voltou-se para o Drizzt e, ao ver que seguia
sério, explicou--: Escupidores granadas, elfo escuro. Fazia décadas que não via um grupo tão grande. Sabe?, não é algo muito corrente. Drizzt, sem advertir o perigo,
relaxou os músculos e avançou. Emano-pica-a do Belwar lhe enganchou um braço, e o pequeno o obrigou a voltar com um puxão brusco. --Escupidores granadas --repetiu
o capataz, pondo muita ênfase na primeira palavra. Magga cammara, elfo escuro, como pudeste sobreviver todos estes anos? Belwar se voltou e descarregou a mão-de-martelo
contra a parede da arcada; uma parte de rocha bastante grande caiu ao chão. Recolheu-a com a parte plaina da manopica e a jogou por volta de um dos flancos da caverna.
A pedra golpeou o musgo avermelhado com um som suave, e uma nuvem de fumaça e esporos se elevou no ar. --Cospem e lhe afogam com os esporos! --explicou Belwar.
Se tiver a intenção de passar por aqui, caminha com cuidado, meu valente e tolo amigo. Drizzt se arranhou a cabeça enquanto pensava no problema. Não gostava de caminhar
os oito quilômetros de volta pelo túnel, mas tampouco tinha a intenção de atravessar esse campo de morte vermelha. Sem apartar-se da arcada, olhou a sua redor em
busca de uma solução. Várias rochas, que podiam servir de passarela, elevavam-se entre as baruchas, e mais à frente havia um atalho de pedra de uns três metros de
largura que corria perpendicular à arcada através da caverna. --Podemos passar --disse-lhe ao capataz. Ali há um atalho espaçoso. --Sempre há um nos campos de
baruchas --resmungou Belwar quase para si mesmo, mas Drizzt ouviu o comentário. --O que quer dizer? --perguntou, enquanto saltava agilmente sobre a primeira das
pedras.
--por aqui ronda um manducador --explicou o pequeno. Ou pelo menos esteve aqui. --Um manducador? Drizzt, prudentemente, desceu da pedra para retornar junto ao capataz.
--Uma larva gigante --respondeu Belwar. Aos manducadores adoram as baruchas. Ao parecer são os únicos a quem não os incomoda as baruchas. --Como são de grandes?
--Que largo tem o atalho? --inquiriu Belwar. --Uns três metros --respondeu Drizzt, que se encarapitou outra vez à pedra para ver melhor. --O largo suficiente para
um manducador grande, dois como máximo --afirmou Belwar, depois de uma pausa. Drizzt abandonou o posto de observação e voltou junto ao pequeno, depois de assegurar-se
de que não havia mais perigos à vista. --Um verme muito grande --comentou. --Mas com a boca pequena --disse Belwar. Os manducadores só comem musgos, líquenes...
e baruchas, se as encontrarem. Em geral, são umas criaturas bastante pacíficas. Pela terceira vez, Drizzt escalou a pedra. --Há alguma coisa mais que deva saber
antes de seguir? --perguntou, irritado. Belwar sacudiu a cabeça. Drizzt encabeçou a marcha pelas pedras, e muito em breve os dois companheiros se encontraram no
meio do atalho, que atravessava a caverna e acabava com a entrada a uma passagem a cada lado. Drizzt assinalou a esquerda e direita, interessado em saber qual das
duas preferiria o pequeno. Belwar caminhou para a esquerda, mas se deteve bruscamente e olhou à frente. Drizzt compreendeu o hesitação do capataz, porque ele também
sentia as vibrações da pedra sob os pés. --Um manducador --anunciou Belwar. Não te mova e observa, meu amigo. É algo digno de ver. Drizzt sorriu com alegria e
se agachou, disposto a desfrutar de do entretenimento. Mas então ouviu uns passos apressados a suas costas, e suspeitou que algo não ia bem. --Aonde...? --começou
a perguntar Drizzt quando deu meia volta e descobriu que Belwar fugia para a outra saída. O drow se calou quando um ruído ensurdecedor como o de um desmoronamento
soou na entrada oposta. --É digno de ver! --ouviu que gritava Belwar, e não pôde negar a verdade das palavras do pequeno ao ver aparecer ao manducador. Era enorme
--maior que o alfavaca que ele tinha matado--e tinha o aspecto de um gigantesco verme cinza, exceto pela multidão de pequenas patas que se sobressaíam com o passar
do torso. Drizzt comprovou que Belwar não lhe tinha mentido, porque o monstro não tinha quase boca, nem garras nem nada capaz de fazer mal. Mas o gigante avançava
em linha reta para o Drizzt com má intenção, e o elfo se imaginou a si mesmo esmagado como uma lâmina contra o chão. Procurou uma das cimitarras, e então compreendeu
o absurdo de sua idéia. Onde tinha que ferir o verme para deter sua marcha? Abriu os braços em um gesto de renúncia e depois deu meia volta e pôs-se a correr desesperado
atrás do capataz. O chão se sacudia com tanta violência sob os pés do Drizzt que o drow se perguntou se não cairia fora do atalho para acabar entre as baruchas.
Naquele instante descobriu que ficava muito pouco para chegar ao final do túnel e pôde ver uma pequena passagem lateral, muito pequeno para o manducador, um pouco
além da caverna
das baruchas. Percorreu como uma exalação os últimos metros e se lançou de cabeça ao túnel pequeno, onde rodou pelo chão para diminuir o impacto, embora de todos
os modos se chocou com força contra a parede. Um segundo depois, o manducador investiu a boca do túnel, e uma chuva de pedras soltas castigou ao Drizzt. Quando se
dissipou a poeirada, o verme permanecia fora da passagem; emitia um gemido rouco e, de vez em quando, golpeava a cabeça contra a entrada. Belwar se encontrava um
pouco mais para o interior e contemplava ao Drizzt com os braços cruzados e um sorriso agradado no rosto. --De maneira que pacíficos, né? --grunhiu-lhe Drizzt, enquanto
ficava em pé e se sacudia o pó. --São-o --respondeu Belwar. Mas aos manducadores adoram as baruchas e não gostam das compartilhar. --Quase consegue que me esmague!
--protestou o drow. --Não o esqueça, elfo escuro --respondeu o capataz, sem negar a acusação--, porque a próxima vez que envie a sua pantera a me aporrinhar enquanto
durmo a vingança será terrível. Drizzt fez todo o possível para ocultar seu sorriso. O coração ainda lhe pulsava desbocado como conseqüência da descarga de adrenalina,
mas o jovem não estava zangado com seu companheiro. Recordou os enfrentamentos que tinha vivido uns poucos meses atrás, quando não tinha a ninguém. Que distinta
era a vida agora que contava com o Belwar Dissengulp! E muito mais agradável! Drizzt espiou por cima do ombro ao enfurecido e teimado manducador. E muito mais interessante!
--Vêem --acrescentou o svirfnebli, internando-se no túnel. Só conseguiremos enfurecê-lo ainda mais se permanecermos aqui. O túnel se estreitava e descrevia uma
curva fechada uns metros mais à frente. Assim que passaram a curva se encontraram com um novo problema; havia uma parede cega. Belwar se aproximou para inspecioná-la,
e esta vez foi o turno do Drizzt para cruzar os braços E burlar do pequeno. --Colocaste-nos em uma boa confusão, amiguito --disse o drow. Apanhados em um túnel sem
saída e com um manducador na entrada! O capataz apoiou uma orelha na pedra e fez um gesto ao Drizzt com a manomartelo para sossegar seus comentários. --Um estorvo
sem importância --assegurou-lhe o pequeno. Há outro túnel ao outro lado a uns dois mestros. --Dois metros de pedra --assinalou Drizzt. --Um dia --afirmou Belwar,
despreocupado. Estendeu os braços e começou a cantarolar em voz baixa. Drizzt não conseguia entender as palavras, embora compreendeu que o pequeno preparava um feitiço.
--Bivrip --gritou Belwar. Não ocorreu nada. O capataz se voltou para o Drizzt, ao parecer satisfeito com o resultado conseguido. --Um dia --repetiu. --O que tem
feito? --perguntou Drizzt. --Fiz zumbir as mãos --respondeu o pequeno. Ao ver que Drizzt não entendia nada, Belwar girou sobre os talões e descarregou a mão-de-martelo
contra a parede. Uma chuva de faíscas iluminou a estreita passagem e cegou ao Drizzt. Quando os olhos do drow se acomodaram à mudança, pôde ver que o svirfnebli
tinha escavado um buraco de quase um palmo de profundidade na rocha. --Magga cammara, elfo escuro! --gritou Belwar, com uma piscada. Não pensaria que minha gente
se tomaria o trabalho de me fazer umas mãos tão extraordinárias sem pôr
um pingo de magia nelas, verdade? --É uma caixa de surpresas, meu amigo --respondeu Drizzt com um suspiro resignado enquanto se apartava para sentar-se junto à parede.
--Assim é --rugiu Belwar e continuou com o trabalho. Tal como tinha prometido o capataz, ao dia seguinte conseguiram sair do fechamento, e reataram a marcha em direção
aproximada do norte, conforme estimou Belwar. A sorte os tinha acompanhado até agora, e ambos sabiam, porque tinham acontecido duas semanas nas profundidades sem
ter nenhum tropeço mais sério que o de topar com um manducador que protegia seus baruchas. Uns poucos dias depois, a sorte lhes deu as costas. --Chama à pantera
--urgiu Belwar ao Drizzt enquanto se escondiam no amplo túnel por onde caminhavam. O drow não vacilou em atender a petição do pequeno: a ele também o preocupava
o
resplendor verde que acabavam de ver. Ao cabo de uns segundos, apareceu a névoa negra e Guenhwyvar se uniu a eles. --Eu irei primeiro --disse Drizzt. Vós dois
me sigam, uns vinte passos mais atrás. Belwar assentiu, e Drizzt se voltou para iniciar a exploração. O elfo não se assombrou quando a mão-de-lança do pequeno lhe
enganchou
um braço e o fez girar. --Vê com cuidado --recomendou-lhe o capataz. Drizzt respondeu com um sorriso, comovido pela preocupação do amigo, e pensou uma vez mais em
quão maravilhoso era contar com um companheiro. Depois se afastou, deixando-se guiar pelo instinto e a experiência. Descobriu que o resplendor surgia de um buraco
no chão do túnel. um pouco mais à frente, havia uma curva tão fechada que o túnel parecia voltar sobre si mesmo. Drizzt se tornou de barriga para baixo e espiou
o interior do buraco. Outro corredor, a uns três metros de profundidade, corria paralelo ao superior, e se abria uns metros mais adiante no que parecia uma caverna
bastante grande. --O que é? --perguntou-lhe Belwar, assim que chegou a seu lado. --Outro túnel que comunica com uma caverna --respondeu Drizzt. O resplendor sai
dali. --Apartou a cabeça do buraco e olhou a escuridão do túnel superior. Nosso túnel continua --acrescentou. Poderíamos segui-lo. Belwar seguiu o olhar do Drizzt
e viu a curva. --Mas volta para trás --disse. É provável que desemboque naquele passadiço lateral que vimos faz questão de uma hora. O pequeno se tendeu no chão
e olhou pelo buraco. --Qual será a origem do resplendor? --inquiriu Drizzt, convencido de que Belwar compartilhava sua curiosidade. Algum outro mofo? --Nenhum
que eu conheça. --Averiguamo-lo? Belwar lhe sorriu; depois enganchou a mão-de-lança no bordo do buraco e se desprendeu, para cair agilmente no túnel inferior. Drizzt
e Guenhwyvar o seguiram em silêncio; o drow, com as cimitarras preparadas, tomou uma vez mais a dianteira enquanto caminhavam para o resplendor. Entraram em uma
caverna muito larga e tão alta que não alcançavam a ver o teto, com um lago de um líquido espesso, borbulhante e fedido a uns seis metros mais abaixo. Dezenas de
estreitas passarelas de pedra, com um largo que ia dos trinta centímetros aos três metros, formavam uma rede sobre o lago, e a maioria acabavam em saídas que comunicavam
com outros corredores laterais. --Magga cammara --sussurrou o svirfnebli pasmado. Drizzt compartilhava seu assombro. --É como se o estou acostumado a tivesse estalado
--comentou o drow quando recuperou a
voz. --Fundido --corrigiu-o Belwar, que tinha adivinhado a natureza do líquido. Agarrou uma pedra e, depois de tocar ao Drizzt no ombro para chamar sua atenção,
jogou-a no verde lago. O líquido vaiou ao receber o impacto, como se o embargasse a fúria, e a pedra se derreteu antes de chegar a inundar-se. --Ácido --explicou
o pequeno. Drizzt o olhou com curiosidade. Conhecia o ácido do tempo passado com os magos do Sorcere na Academia. Os magos freqüentemente preparavam estes líquidos
para utilizá-los nos experimentos de feitiçaria, mas o drow ignorava que o ácido pudesse existir em forma natural, ou em quantidades tão grandes. --Suponho que é
obra de algum mago --opinou Belwar. Um experimento fora de controle. Provavelmente, leva aqui um centenar de anos, liquidificando a pedra, centímetro a centímetro.
--De todos os modos, o que fica do estou acostumado a parece bastante seguro --manifestou Drizzt, assinalando as passarelas. E temos muitíssimos túneis onde escolher.
--Então escolhamos agora mesmo --disse Belwar. Eu não gosto de nada este lugar. Qualquer pode nos ver com esta luz, e não queria ter que correr por umas pontes
tão estreitas, sobre tudo com um lago de ácido debaixo! Drizzt assentiu e deu um primeiro passo por uma das passarelas, mas Guenhwyvar se apressou a adiantá-lo.
O elfo compreendeu a atitude da pantera e a agradeceu. --Guenhwyvar nos guiará --explicou ao Belwar. Pesa mais e a velocidade de reflexos lhe permitirá apartar-se
se houver algum desprendimento. --O que acontecerá Guenhwyvar não consegue ficar a salvo?--perguntou o capataz, preocupado pela segurança da pantera. Quais seriam
as conseqüências para uma criatura mágica se cair no ácido? --Guenhwyvar não teria por que sofrer nenhum dano --respondeu o elfo, não muito seguro da resposta. Tirou
a estatueta de ônix do bolso. Além disso, tenho o talismã de entrada a seu plano astral. A pantera já tinha avançado uma dúzia de metros, e a passarela parecia
resistente, de modo que Drizzt a seguiu. --Magga cammara, rogo para que esteja no certo --ouviu que dizia o pequeno a suas costas enquanto avançava pela passarela.
A caverna era enorme, e terei que percorrer vários centenares de metros para chegar à saída mais próxima. Os companheiros tinham caminhado pouco mais da metade --Guenhwyvar
já tinha cruzado-- quando ouviram uma estranha letanía. detiveram-se e olharam em redor, em busca da origem do som. Uma criatura muito estranho saiu de um dos numerosos
túneis laterais. Era bípede e de pele escura, com cabeça de pássaro e o torso de um homem, sem plumas nem asas. Os braços musculosos acabavam em garras de grande
tamanho, e os pés tinham três dedos como as aves. Uma segunda criatura apareceu na abertura e em seguida uma terceira. --São parentes? --perguntou- Belwar ao Drizzt,
porque a criatura parecia o produto do cruzamento entre o elfo escuro e um pássaro. --Não acredito --respondeu Drizzt. Em toda minha vida, jamais ouvi falar de
uns seres tão estranhos. --Morte, morte! --dizia o canto, e os amigos viram que mais homens-- pássaro saíam dos outros túneis. Eram os horrendos corbis das profundidades,
uma antiga raça mais comum nos limites sulinos da Antípoda Escura --embora estranhos inclusive ali-- e quase desconhecidos nesta parte do mundo. Os corbis nunca
tinham causado muitos problemas às outras raças da Antípoda Escura, porque eram primitivos e escassos em número. Entretanto, para uns aventureiros de passagem, um
bando de corbis selvagens significava um grande perigo.
--Eu tampouco os conhecia --disse Belwar. Mas acredito que não os agrada nossa presença. O cântico se transformou em um grito arrepiante enquanto os corbis se
dispersavam pelas passarelas, primeiro ao passo e logo ao trote, à medida que aumentava seu nervosismo. --Equivoca-te, meu amigo --comentou Drizzt. Penso que estão
muito contentes de ver que chegou a comida. Belwar olhou a seu redor sem saber o que fazer. Quase não ficavam passarelas livres e não podiam esperar sair dali sem
brigar. --Elfo escuro, me ocorrem um milhar de lugares mais apropriados para uma batalha --disse o capataz com tom resignado e um tremor enquanto jogava uma olhada
ao lago de ácido. Respirou com força para acalmar os nervos, e começou a letanía para enfeitiçar as mãos mágicas. --Caminha enquanto canta --aconselhou-lhe Drizzt.
Temos que nos aproximar todo o possível a uma saída antes de que comece a luta. Um grupo de corbis se dirigiu depressa para os companheiros, mas Guenhwyvar, com
um poderoso salto por cima de duas das passarelas, cortou-lhes o passo. --Bivrip! --gritou Belwar, completando o feitiço, e se voltou disposto para o combate. --Guenhwyvar
se ocupará daquele grupo --indicou Drizzt, sem deixar de correr para a parede mais próxima. O capataz compreendeu o raciocínio do drow; naquele instante, outro grupo
de homens--pássaro apareceu na saída que pretendiam alcançar. O impulso do salto do Guenhwyvar levou a pantera diretamente contra o grupo de corbis, e dois caíram
ao vazio. Os homens-pássaro gritaram se desesperados enquanto caíam para a morte, mas outros não mostraram nenhuma reação ante a perda. Sem deixar de gritar "Morte,
morte!" lançaram-se sobre o Guenhwyvar dispostos a afundar as afiadas garras no felino. A pantera contava com armas formidáveis, e cada zarpazo destroçava a um corbi
ou o fazia cair da passarela ao lago de ácido. Mas se Guenhwyvar era capaz de lutar sem quartel, o mesmo ocorria com os corbis, e cada vez eram mais os que se somavam
ao combate. Um segundo grupo de homens-pássaro apareceu pelo outro extremo da ponte e rodeou à pantera. Belwar se colocou em um lance muito estreito da passarela
e deixou que os corbis avançassem. Drizzt tomou uma rota paralela por outro das pontes situada a cinco metros de seu amigo, e desembainhou as cimitarras com certa
relutância. O drow podia sentir os instintos selvagens do caçador que tentavam dominá-lo à medida que se aproximava o momento de lutar, e os rechaçou com toda sua
força de vontade. Ele era Drizzt Dou'Urdem, não o caçador, e queria combater ao inimigo com o controle total de cada um de seus movimentos. Então os corbis lhe jogaram
em cima, dispostos a destroçá-lo com as garras, sem deixar de proferir seus gritos frenéticos. Drizzt se limitou a esquivá-los, e empregou o plano das cimitarras
para desviar os ataques. As cimitarras subiam, baixavam e giravam, mas o elfo, disposto a não ceder aos impulsos do caçador, não conseguia progressos na luta. depois
de vários minutos de combate ainda se batia com o primeiro corbi. Belwar não tinha tantas contemplações. Os corbis se lançavam um após o outro contra o pequeno svirfnebli,
só para ser detidos bruscamente pelos tremendos golpes da mão-de-martelo. A descarga elétrica e a potência do golpe eram
suficientes para matar ao atacante no ato, mas Belwar nunca se atrasava o suficiente para comprová-lo. depois de cada martelada, o pequeno utilizava a manopica para
varrer a sua última vítima da passarela. O svirfnebli tinha derrubado a meia dúzia de homens-pássaros antes de ter a ocasião de ver como foram as coisas ao Drizzt.
Imediatamente compreendeu o conflito interior que afetava a seu companheiro. --Magga cammara! --gritou Belwar. Luta, elfo escuro, e luta para ganhar! Não terão
piedade de nós! Não pense em uma trégua! Mata-os..., faz-os pedaços ou lhe esquartejarão! Drizzt apenas se escutou as palavras do Belwar. Tinha os olhos alagados
pelo pranto, embora não por isso diminuía a velocidade de suas armas mágicas. Surpreendeu ao rival fora de equilíbrio e investiu a cimitarra para golpear ao homem-pássaro
na cabeça com o punho. O corbi se desabou como uma pedra e rodou pelo chão. A ponto esteve de cair ao vazio, mas Drizzt se adiantou para sujeitá-lo. Belwar sacudiu
a cabeça assombrado e rechaçou a outro adversário. O corbi deu um passo atrás, com o peito queimado e fumegante pelo brutal impacto da mão-de-martelo. O homem-pássaro
olhou ao pequeno atônito, e não chiou nem se moveu quando a mão-de-lança o enganchou pelo ombro e o jogou de cabeça ao lago de ácido. Guenhwyvar deixou com as vontades
aos famintos atacantes. Quando os corbis estreitaram o círculo, convencidos de que tinham à presa, a pantera se escondeu e saltou. O animal sulcou o ar, tenuemente
iluminado de verde, como se voasse e aterrissou em outra passarela uns dez metros mais à frente. Guenhwyvar escorregou na pedra polida, mas no último instante conseguiu
frear justo no bordo. Os corbis a contemplaram atônitos e em silêncio só por um segundo, e depois voltaram a chiar e a gemer enquanto corriam pelas passarelas para
lhe dar alcance. Um corbi solitário, que se encontrava perto do lugar onde tinha aterrissado Guenhwyvar, avançou em um ataque suicida que concluiu quando a pantera
lhe afundou os dentes no pescoço. Mas enquanto o animal permanecia ocupado, os corbis puseram em prática uma armadilha sinistra. De uma cornija situada muito perto
do teto da caverna, um corbi viu que tinha a uma vítima em posição e, rodeando com os braços uma rocha de grande tamanho, jogou-a no vazio sem soltá-la. No segundo
último, Guenhwyvar advertiu a queda do projétil e se apartou. O corbi, dominado pelo êxtase suicida, não se preocupou. O homem-pássaro se estrelou contra o chão,
e o impacto da pedra fez pedacinhos a passarela. A pantera tentou saltar, mas a pedra se desintegrou antes de que pudesse afirmar as patas. As garras do Guenhwyvar
procuraram inutilmente um ponto de apoio enquanto seguia ao corbi e à rocha na queda até o lago de ácido. Para ouvir os gritos triunfais dos homens-pássaro a suas
costas, Belwar se voltou a tempo para ver a queda da pantera. Em troca Drizzt, muito ocupado naquele momento porque outro corbi o atacava enquanto o desacordado
começava a recuperar o conhecimento entre seus pés, não advertiu a tragédia. Mas o drow não precisava ver. A estatueta no bolso do Drizzt se esquentou ao vermelho
vivo, e uma voluta de fumaça se desprendeu do piwafwi. Drizzt compreendeu no ato o destino da querida Guenhwyvar. Entreabriu os olhos, e o fogo que apareceu neles
evaporou as lágrimas. Cedeu com gosto aos instintos do caçador. Os corbis lutavam com sanha. A maior glorifica de sua existência era morrer em combate, e os mais
próximos ao Drizzt descobriram muito em breve que tinha chegado o momento de cobrir-se de honras. O drow cravou suas cimitarras nos olhos do corbi que tinha diante,
e em seguida as afundou no corpo do homem-pássaro cansado na passarela. Tirou os aços das
feridas para descarregar outro cutilada, e sentiu com satisfação como se abria a carne da vítima. Então o drow avançou contra os corbis, lançando estocadas desde
todos os ângulos possíveis. Ferido uma dúzia de vezes antes de ter podido lançar uma patada, o primeiro corbi morreu antes de tocar o chão. Depois caíram um segundo
e um terceiro. Quando Drizzt os obrigou a retroceder até uma parte mais larga da passarela, atacaram-no em grupos de três. Morreram em grupos de três. --Acaba com
eles, elfo escuro --murmurou Belwar, ao ver que por fim seu amigo entrava em ação. O corbi que se dispunha a lançar-se sobre o capataz voltou a cabeça para ver o
que tinha chamado a atenção do rival. Quando olhou outra vez à frente, recebeu no rosto o golpe da mão-de-martelo. Partes do pico saltaram em todas as direções,
e o desafortunado corbi foi o primeiro de sua espécie em voar em vários milênios de evolução. Em sua curta excursão aérea empurrou a seus companheiros, apartando-os
do pequeno, e logo aterrissou morto, a vários metros do Belwar. O enfurecido pequeno não tinha acabado ainda com o rival. Pôs-se a correr e lançou ao vazio ao único
corbi que saiu a seu encontro. Quando chegou junto ao homem-pássaro sem pico, Belwar lhe cravou a mão-de-lança no peito e o levantou no ar com um só braço, ao tempo
que soltava um grito estremecedor. Outros corbis vacilaram. Belwar olhou ao Drizzt, e o coração lhe deu um tombo. Uma vintena de corbis se amontoavam na parte mais
larga da passarela onde o elfo se feito forte. Uma dúzia de mortos jaziam a seus pés, e o sangue que se derramava pelo bordo provocava estalos no lago de ácido cada
vez que uma gota tocava a superfície. Mas não era o número de inimigos o que preocupava ao Belwar, pois resultava evidente que Drizzt, graças a sua incrível perícia
no manejo das armas, levava as de ganhar. Entretanto, nas alturas outro corbi e sua pedra tinham iniciado um descida suicida. Belwar compreendeu que Drizzt estava
a ponto de morrer. O caçador advertiu o perigo. Um corbi tentou sujeitar ao drow, mas as cimitarras relampejaram, e os dois braços do homem-pássaro caíram ao chão.
No mesmo movimento, Drizzt devolveu as armas ensangüentadas às bainhas e correu para o bordo da plataforma. Com um salto prodigioso voou para o Belwar, enquanto
o
corbi suicida montado na rocha se estrelava no chão e arrastava com ele ao lago de ácido boa parte da passarela junto com uma vintena de seus congêneres. Belwar
lançou seu troféu aos corbis que tinha diante e se deixou cair de joelhos, com a mão-de-lança estendida em um intento por ajudar ao amigo. Drizzt conseguiu sujeitar-se
da mão do capataz e do bordo ao mesmo tempo, embora não pôde evitar que seu rosto me chocasse contra a pedra. O golpe rasgou o piwafwi, e Belwar observou impotente
como a estatueta de ônix saltava do bolso e caía para o ácido. Drizzt a apanhou entre os pés. Belwar quase pôs-se a rir ante a inutilidade de tantos esforços. Olhou
por cima do ombro e viu os corbis que reatavam o avanço. --me balance! --grunhiu Drizzt com tal tom de mando que Belwar o obedeceu antes de dar-se conta do que fazia.
O drow se separou da parede e depois, impulsionado pelo movimento pendular, aproximou-se a grande velocidade à passarela. Ao aproximar-se do bordo utilizou todos
os músculos do corpo para acrescentar potência ao salto. Assim que conseguiu encarapitar-se, rodou pelo chão para situar-se atrás do
anão. Para o momento em que Belwar advertiu a manobra do Drizzt e pensou em voltar-se, o elfo já tinha empunhado as cimitarras e derrubava ao primeiro corbi. --isto
sustento --pediu-lhe Drizzt a seu amigo, lhe lançando a estatueta com a ponta do pé. Belwar se apressou a agarrá-la e a guardou em um bolso. Depois o pequeno se
apartou
para vigiar a retaguarda, enquanto Drizzt se ocupava de limpar o caminho até a saída mais próxima. Cinco minutos mais tarde, para grande assombro do capataz, corriam
por um túnel às escuras e os gritos de "Morte, morte!" soavam cada vez mais longe.
13
Em busca de lar
--Basta, basta! --ofegou o pequeno enquanto tentava que seu companheiro deixasse de correr. Magga cammara, elfo escuro. Faz muito que os perdemos de vista. Drizzt
se voltou para o capataz, com as cimitarras preparadas e um brilho furioso em seus olhos lilás. Belwar, precavido, apartou-se depressa. --Tranqüilo, meu amigo --disse
o svirfnebli sem elevar a voz, com as mãos de mithril levantadas se por acaso era necessário defender-se. Já não há ninguém que nos ameace. Drizzt respirou com
força para acalmar-se e, ao ver que ainda empunhava as cimitarras, apressou-se às embainhar. --Está bem? --perguntou-lhe Belwar, aproximando-se outra vez ao Drizzt.
O sangue das feridas que se feito ao golpear-se contra o bordo da passarela manchava o rosto do drow. --É culpa da briga --justificou-se Drizzt. A excitação. Tinha
que... --Não precisa dar explicações --interrompeu-o Belwar. Tem-no feito muito bem, elfo escuro. Estupendo. Desde não ter sido por suas ações, os três teríamos
cansado ao lago de ácido. --Dominou-me --gemeu Drizzt, procurando as palavras que pudessem expressar melhor os sentimentos. É a parte escura de minha personalidade.
Pensava que tinha desaparecido para sempre. --E assim é --afirmou o capataz. --Não --replicou Drizzt. Aquela besta cruel em que me tinha convertido me possuiu
totalmente na luta contra os homens-pássaro. Guiou minhas espadas, com selvageria e sem nenhuma piedade. --Você guiou as espadas --assegurou-lhe Belwar. --Mas a
fúria
me dominava --disse Drizzt. Uma fúria cega. Quão único desejava era matá-los, fazê-los pedaços. --Se o que diz fosse certo, ainda estaríamos ali--declarou o svirfnebli.
Graças a suas ações, pudemos escapar. Ainda ficam ali muitos hombrespássaro vivos, e entretanto você saiu da caverna. Fúria? Possivelmente, mas não cega. Fez o que
devia, e sem falhas, elfo escuro. Melhor que qualquer que conheça. Não tem que te desculpar, nem ante mim nem ante ti mesmo! Drizzt se apoiou na parede e refletiu
nas palavras do pequeno. Consolavam-no e agradecia os esforços do capataz, mas o remoía a raiva que tinha experiente quando Guenhwyvar caiu no lago de ácido, uma
emoção
tão assustadora que não conseguia sobrepor-se. perguntou-se se o faria alguma vez. Apesar de seu desassossego, Drizzt se sentiu reanimado pela presença do svirfnebli.
Recordou os episódios dos últimos anos, as batalhas que tinha liberado a sós. Então, como agora, o caçador tinha passado a primeiro plano e tinha guiado os golpes
mortais das cimitarras. Mas esta vez se produziu uma diferença que Drizzt não podia deixar de ver. Antes, quando estava sozinho, não tinha podido afastar ao
caçador. Agora, com o Belwar a seu lado, Drizzt tinha recuperado o controle sem problemas. Sacudiu a larga cabeleira branca, em um intento por afastar os últimos
vestígios da personalidade do caçador. pontuou-se a si mesmo de parvo pela maneira em que tinha iniciado a batalha contra os homens-pássaro, atacando-os com as cimitarras
de plano. Belwar e ele ainda teriam estado na caverna de não ter sido porque seus instintos o tinham guiado, de não haver-se informado da queda da pantera. de repente
olhou ao Belwar, ao recordar o motivo da fúria. --A estatueta! --gritou. Tem-na você. --Magga cammara! --exclamou o svirfnebli, com a voz dominada por um pânico
repentino, enquanto tirava o objeto do bolso. Crie que estará ferida? O ácido teria sido capaz de machucar ao Guenhwyvar? Terá conseguido escapar ao plano astral?
Drizzt agarrou o talismã com mãos trementes e o examinou. consolou-se em parte para ver que não tinha nenhuma marca. O drow pensou que não devia chamar à pantera;
se estava ferida, sem dúvida se recuperaria melhor em seu próprio plano de existência. Mas Drizzt desejava saber qual tinha sido o destino do Guenhwyvar. Depositou
a figura no chão junto aos pés e chamou brandamente. O drow e o svirfnebli suspiraram aliviados quando a névoa se formou ao redor da estatueta de ônix. Belwar tirou
o broche encantado para poder ver melhor ao felino. Esperava-lhes um espetáculo lamentável. Obediente e leal, Guenhwyvar respondeu à chamada do Drizzt, mas assim
que o elfo viu a pantera, compreendeu que não deveria havê-la chamado, para que tivesse podido curar suas feridas em paz. A sedosa pele do Guenhwyvar aparecia queimada,
e se viam mais partes de epiderme abrasada que cabelo. Os músculos penduravam destroçados, queimados até o osso, e parecia ter perdido um olho. Guenhwyvar trastabilló
quando tentou aproximar-se do Drizzt, quem, ao vê-la em semelhante estado, correu para ela e lhe rodeou o pescoço com os braços. --Guen --murmurou. --Curará-se?
--perguntou Belwar em voz baixa, quase a ponto de tornar-se a chorar com cada palavra. Drizzt sacudiu a cabeça sem saber o que dizer. Em realidade sabia muito poucas
coisas da pantera além de seus méritos como jaqueta. Tinha visto o animal ferido em outras ocasiões, mas nunca de tanta gravidade. Agora só podia confiar em que
as propriedades mágicas do plano original lhe permitissem uma recuperação rápida. --Volta para sua casa --disse Drizzt. Descansa e te cure, amiga minha. Chamarei-te
dentro de uns dias. --Possivelmente possamos fazer algo para ajudá-la --sugeriu Belwar. --A melhor padre para o Guenhwyvar é o descanso --respondeu o drow, enquanto
a pantera se esfumava na névoa. Não podemos fazer nada por ela que lhe sirva no outro plano. Consome grande quantidade de energia cada vez que entra em nosso mundo.
Pagamento um pesado tributo por cada minuto que está conosco. Guenhwyvar tinha desaparecido. Drizzt recolheu a estatueta e a observou durante um momento muito comprido
antes de resignar-se a guardá-la no bolso. Uma espada lançou a manta ao ar, e depois, ajudada pela outra, cortou-a e atravessou até reduzi-la a farrapos. Zaknafein
jogou um olhar às moedas de prata no chão. Um simulacro áspero, mas o acampamento, e a possibilidade de que Drizzt voltasse ali, tinham retido o Zaknafein durante
vários dias. Drizzt Dou'Urdem se tinha ido, e se tinha tomado muitas moléstias para anunciar que deixava Blingdenstone. O espectro fez uma pausa para considerar
esta nova informação, e a necessidade de pensar, de apelar ao ser racional que Zaknafein tinha sido e não limitar-se ao nível instintivo, produziu o inevitável conflito
entre o ser não morto e
o espírito que o mantinha cativo. Em sua hall, a matrona Malícia Dou'Urdem sentia a luta no interior de sua criação. No zin-Carla, o controle do espectro era responsabilidade
da mãe matrona que tinha recebido o presente da rainha aranha. Malícia devia trabalhar muito duro para manter o domínio, tinha que utilizar uma sucessão de feitiços
e letanías para interpor-se entre os processos mentais do espectro e as emoções e a alma do Zaknafein Dou'Urdem. O espectro se sacudiu ao perceber a intrusão da
poderosa vontade de Malícia, sem poder fazer nada para opor-se. Em questão de segundos, o espectro começou a inspecionar a pequena caverna que Drizzt e outro ser,
provavelmente um pequeno, tinham preparado como se fosse um acampamento. Fazia semanas que se partiram, e sem dúvida se afastavam do Blingdenstone a toda pressa.
O
mais lógico, pensou o espectro, era supor que também se afastavam do Menzoberranzan. Zaknafein deixou a caverna e entrou no túnel principal. Cheirou para o este,
em direção ao Menzoberranzan; depois deu meia volta, ficou em cuclillas e voltou a cheirar. Os feitiços de localização dos que o tinha imbuído Malícia não podiam
cobrir distâncias tão grandes, mas o débil rastro que percebeu o espectro foi suficiente para confirmar as suspeitas. Drizzt se dirigia ao oeste. Zaknafein se afastou
pelo túnel, sem a mais mínima claudicação pela ferida infligida pela lança do goblin, uma lesão que teria incapacitado de por vida a um ser humano. Drizzt levava
uma vantagem de uma semana, possivelmente dois, mas isto não representava um inconveniente para o espectro. A presa precisava dormir, tinha que descansar e comer.
Era um ser vivo, mortal e, portanto, débil. --Que classe de ser é aquele? --sussurrou- Drizzt ao Belwar enquanto observavam à estranha criatura bípede que enchia
cubos na rápida corrente de um arroio. Todos os túneis do setor apareciam iluminados por uma luz mágica, embora Drizzt e Belwar se consideravam seguros entre as
sombras de um saliente rochoso a uns cinqüenta metros da figura encurvada. --Um homem --respondeu Belwar. Um humano da superfície. --Está muito longe de sua casa
--comentou Drizzt. Entretanto, parece encontrar-se a gosto com o entorno. Jamais tivesse acreditado que um habitante pudesse sobreviver na Antípoda Escura. Vai
contra tudo o que aprendi na Academia. --É provável que seja um bruxo --opinou Belwar. Isto explicaria a iluminação na zona, e o fato de que esteja aqui. Drizzt
olhou ao svirfnebli, intrigado. --Os magos são uma gente muito estranha --explicou o pequeno, como se fosse uma verdade evidente. E, conforme ouvi dizer, os magos
humanos mais que qualquer outro. Os feiticeiros drows procuram o poder. Seus colegas svirfneblis estudam para melhorar os conhecimentos das pedras. Mas os magos
humanos..., Magga cammara, elfo escuro, os magos humanos são uma panda muito estranho! --acrescentou o pequeno, com um evidente tom de desdém na voz. --Qual é o
propósito
que guia aos magos humanos? --perguntou o drow. --Não acredito que ninguém tenha podido ainda descobrir a razão --repôs Belwar, com toda sinceridade. Os humanos
som uma raça estranha e imprevisível, e o melhor é não meter-se com eles. --conheceste a algum? --A uns quantos. --Belwar tremeu como se a lembrança não fosse muito
agradável. Traficantes da superfície. Gente feia e arrogante. Pensam que o mundo
pertence-lhes. Sem dar-se conta, Belwar tinha falado mais alto do que pretendia, e a figura junto ao arroio moveu a cabeça na direção onde se encontravam os companheiros.
--Saiam daí, pequenos roedores! --gritou o humano em uma linguagem incompreensível para os dois amigos. O mago repetiu as palavras em outro idioma, depois em drow,
a seguir em outros dois também desconhecidos, e logo em svirfnebli. Ao não ter resposta provou vários mais, enquanto Drizzt e Belwar se olhavam incrédulos. --É um
homem culto --comentou-lhe Drizzt ao pequeno. --Malditos ratos --murmurou o humano, que olhou em redor procurando a maneira de fazer sair aos roedores de seu esconderijo,
na crença de que podiam lhe proporcionar uma boa comida. --Averigüemos se for amigo ou inimigo --sussurrou Drizzt, e se moveu para sair do esconderijo. Belwar o
deteve, vacilante, mas ao fim, deixando-se levar pela intuição, encolheu os ombros e deixou ir ao elfo escuro. --Saúde, humano que está tão longe de seu lar --disse
Drizzt em sua língua nativa, ao tempo que se separava das rochas. O humano mostrou uma expressão de assombro e se mesó violentamente a espaçada barba branca. --Não
é um rato! --chiou o mago utilizando um drow afetado mas compreensível. --Não --respondeu Drizzt. Olhou ao Belwar, que o seguia para reunir-se com ele. --Ladrões!
--gritou o humano. viestes para roubar minha casa, não é assim? --Não --repetiu Drizzt. --Parte ! --vociferou o homem, movendo as mãos como um granjeiro que espanta
às galinhas. Parte. Vamos, depressa! Drizzt e Belwar intercambiaram um olhar de desconcerto. --Não --insistiu Drizzt. --Esta é minha casa, estúpido elfo escuro!
--afirmou o humano. Pedi-te que viesse? Enviei-te uma carta te convidando a vir? Ou é que você e seu horrível amigo lhes criem obrigados a me dar a bem-vinda à
vizinhança? --Cuidado, drow --sussurrou Belwar enquanto o humano continuava com seus disparates. Não há dúvida de que é um mago, e que não está em seus cabais.
--Acaso os drows e os pequenos me têm medo? --acrescentou o homem quase para si mesmo. Sim, certamente. inteiraram-se de que eu, Brister Fendlestick, decidi viver
nas profundidades da Antípoda Escura e uniram forças para proteger-se de minha presença. Sim, sim, agora está claro e é verdadeiramente lamentável. --Enfrentei-me
outras vezes aos magos --informou- Drizzt ao Belwar. Confiemos em poder arrumar este assunto sem violência. Em qualquer caso, advirto-te que não tenho intenção
de retornar por onde viemos. --Belwar assentiu muito sério enquanto Drizzt se voltava para o homem. Talvez possamos convencer o de que nos deixe passar. O mago
se sacudiu como se estivesse a ponto de estalar. --Muito bem! --gritou de repente. Pois não vão! Drizzt compreendeu que era impossível raciocinar com este personagem
e avançou, disposto a aproximar-se todo o possível antes de que o mago pudesse atacá-lo. Mas o humano tinha aprendido a sobreviver na Antípoda Escura, e as defesas
já estavam dispostas muito antes de que Drizzt e Belwar saíssem do esconderijo. Moveu as mãos e pronunciou uma palavra que os companheiros não
entenderam. Um dos anéis que levava resplandeceu com força e soltou uma pequena bola de fogo que flutuou entre ele e os intrusos. --Bem-vindos a minha casa! --vociferou
o mago, em um tom de brincadeira. A ver o que lhes parece isto! Estalou os dedos e desapareceu. Drizzt e Belwar puderam sentir como a esfera luminosa se carregava
de energia. --Corre! --gritou o capataz, e deu meia volta para fugir. No Blingdenstone, a magia consistia em sua maior parte em truques de ilusionismo, pensados
para a defesa. Mas no Menzoberranzan, onde Drizzt tinha aprendido os rudimentos do ofício, os feitiços tinham um caráter ofensivo. O elfo conhecia o perigo que representava
aquela bola, e sabia que era inútil pretender esquivá-la nos túneis. --Não! --disse ao tempo que agarrava ao Belwar pelas costas da jaqueta de couro e o arrastava
em linha reta para a esfera. O pequeno confiava no Drizzt, assim deu meia volta e correu junto a seu amigo. O capataz compreendeu o plano do drow assim que apartou
o olhar da bola de fogo. Drizzt corria para o arroio. Os amigos se mergulharam na água, sem preocupar-se dos golpes contra as pedras, no mesmo momento em que estalava
o projétil mágico. Um instante depois, saíram da água fervendo, com os objetos chamuscados nas partes que não tinham ficado inundadas. Durante uns segundos tossiram
e tiveram problemas para respirar porque as chamas tinham consumido quase todo o ar da caverna e o calor residual das pedras resultava insuportável. --Humanos --resmungou
Belwar, zangado. Caminhou até a borda e se sacudiu vigorosamente. Drizzt saiu detrás dele e pôs-se a rir, coisa que ao pequeno não lhe fez muita graça. --Recorda
ao
mago --disse-lhe ao drow, que imediatamente se agachou e olhou a seu redor, inquieto. ficaram em marcha sem perder nem um segundo. --Nosso lar! --proclamou Belwar
um par de dias mais tarde. Os dois amigos contemplaram de uma cornija estreita a ampla e alta caverna que albergava um lago subterrâneo. detrás deles havia outra
caverna com três câmaras e uma só entrada muito pequena, fácil de defender. Drizzt subiu os três metros ou pouco mais que o separavam do capataz. --Possivelmente
--disse sem comprometer-se--, embora o mago só está a uns poucos dias de marcha. --te esqueça do humano --grunhiu Belwar, com o olhar posto na parte chamuscado da
jaqueta que tanto apreciava. --E tampouco me entusiasma ter um lago tão grande a uns passos da porta --acrescentou Drizzt. --Cheio de peixes! --assinalou o pequeno.
E com musgos e novelo que nos encherão a barriga, e água bastante pura. --Mas um oásis como este atrairá visitantes --sustentou Drizzt. Penso que não desfrutaremos
de muito descanso. Belwar jogou um olhar à parede atalho a pico até o chão da grande caverna. --Isso nunca foi um problema --disse com uma risita. Os grandes não
poderão chegar até aqui, e quanto aos pequenos... bom, vi como cortam suas espadas, e você viu a força de minhas mãos. Eu não me preocuparia dos pequenos! Ao Drizzt
gostava da confiança do svirfnebli, e devia admitir que não havia
encontrado outro lugar adequado para instalar-se. A água, escassa e a maioria das vezes não potável, era um bem precioso na aridez da Antípoda Escura. Com o lago
e a vegetação nos arredores, Drizzt e Belwar não teriam que caminhar muito para conseguir comida. Drizzt estava a ponto de manifestar sua aprovação quando um movimento
na borda do lago chamou a atenção dos companheiros. --E caranguejos! --exclamou o svirfnebli, com um entusiasmo que o elfo não compartilhava. Magga cammara, elfo
escuro! Caranguejos! O bocado mais delicioso que possa imaginar! Um caranguejo tinha saído das águas do lago; um monstro gigantesco de quase quatro metros de comprimento
e pinzas capazes de partir em dois a um humano, quão mesmo a um elfo ou um pequeno. Drizzt olhou ao Belwar, incrédulo. --Um bocado? --perguntou. Um sorriso de orelha
a orelha iluminou o rosto do capataz, que golpeou as mãos metálicas com grande estrépito. Aquela noite jantaram carne de caranguejo, e também ao dia seguinte, e
ao outro, e ao outro, e Drizzt acabou por reconhecer que a cova junto ao lago subterrâneo era um lar magnífico. O espectro se deteve para contemplar o campo iluminado
pelo resplendor avermelhado. Em vida, Zaknafein Dou'Urdem teria evitado o lugar, consciente do perigo das cavernas luminosas e os musgos fosforescentes. Mas ao espectro
só lhe interessava o rastro; Drizzt tinha passado por aqui. O ser caminhou entre as baruchas, sem fazer caso das nuvens de esporos tóxicos que levantava cada passo,
esporos que envenenavam os pulmões de qualquer que respirasse. Mas Zaknafein não precisava respirar. Então se escutou o retumbar de um trovão quando o manducador
apareceu para proteger seus domínios. Zaknafein adotou uma postura defensiva porque seus instintos lhe advertiram do perigo. O manducador percorreu o campo de musgo
sem notar a presença do intruso. De todos os modos não se retirou; já que agora desfrutaria de uma boa ração de baruchas. Quando o verme gigante chegou ao centro
da caverna, o espectro deixou que se dissipasse o feitiço de levitação. Zaknafein aterrissou no lombo do monstro, e apertou bem as pernas. O manducador se encabritou
e correu de um lado para outro para tirar-se de cima ao atacante, mas Zaknafein nem se moveu. A pele do manducador era grossa e dura, capaz de repelir todo tipo
de
armas exceto as espadas do Zak. --O que foi isso? --perguntou Belwar um dia, interrompendo a construção de uma porta nova para a caverna. Drizzt, que se achava na
borda do lago, também devia ter ouvido o ruído, porque tinha deixado cair o casco que empregava para recolher água, e tinha empunhado as cimitarras. Levantou uma
mão como sinal para que o capataz permanecesse em silêncio; depois subiu à cornija para falar com seu companheiro. O som, um toco castanholas muito forte, soou outra
vez. --Sabe o que é, elfo escuro? --sussurrou Belwar. --Oseogarfíos --respondeu. Têm o ouvido mais fino de toda a Antípoda Escura. Drizzt não fez nenhum comentário
referente ao único encontro que tinha tido com esta classe de monstros. Tinha sido durante um exercício de vigilância, quando ele guiava a sua classe da Academia
pelos túneis dos subúrbios do Menzoberranzan. A
patrulha tinha encontrado a um grupo das enormes criaturas bípedas, com exoesqueletos duros como o aço e dotados com picos e garras poderosas. Graças às façanhas
do Drizzt, tinham saído vitoriosos, mas o jovem recordava sobre tudo o convencimento de que os professores da Academia tinham planejado o encontro como parte do
exercício e que não tinham vacilado em sacrificar a um pobre menino drow para acrescentar realismo à prova. --Vamos buscá-los --acrescentou Drizzt, decidido. Belwar
conteve o fôlego ao ver o brilho nos olhos lilás do drow. --Os oseogarfios são rivais de cuidado --explicou o elfo, atento à inquietação do pequeno. Não podemos
permitir que permaneçam na região. Guiado pelo toco castanholas, Drizzt não teve dificuldades para encontrá-los. Em silêncio passou pela última curva com o Belwar
quase pego aos talões. Em uma parte mais larga do túnel havia um oseogarfio solitário que golpeava as garras ritmicamente contra a pedra como se fosse um mineiro
svirfnebli utilizando o pico. Drizzt conteve ao Belwar e lhe indicou que ele se bastava para acabar com o monstro se conseguia aproximar-se sem ser descoberto. O
pequeno assentiu, embora se manteve alerta se por acaso era necessária sua intervenção. O oseogarfio, muito entretido com o jogo, não ouviu nem viu o cauteloso avanço
do drow. Drizzt se situou detrás mesmo do monstro, e procurou a forma mais rápida e segura de matá-lo. Só descobriu uma fresta no exoesqueleto, uma greta entre o
peitoral e o pescoço. Entretanto, colocar a espada por ali não seria coisa fácil porque o ser media três metros de estatura. Mas o caçador encontrou a solução. lançou-se
com todas as forças contra a parte de atrás dos joelhos do oseogarfio; assim que os ombros entraram em contato, levantou as cimitarras para procurar as virilhas.
Ao monstro lhe dobraram as pernas e caiu de costas sobre o drow que, com a agilidade de um gato, rodou sobre si mesmo e se levantou para montar-se sobre o cansado;
um segundo depois, as pontas das cimitarras se deslizaram pela greta da armadura. Poderia ter acabado com o oseogarfio no ato; só bastava empurrar as cimitarras
para que se afundassem no pescoço. Mas Drizzt viu algo --terror?-- no rosto do oseogarfio, algo na expressão da criatura que não deveria ter estado ali. Conteve
o instinto do caçador, tomou o controle das armas, e vacilou um instante, o suficiente para que o oseogarfio, para assombro do Drizzt, dissesse claramente e em correto
idioma drow: --Por favor..., não... me... mate!
14
Clak
As cimitarras se apartaram lentamente do pescoço do oseogarfio. --Não... sou... o que pareço --tratou de explicar o monstro. Com cada palavra que pronunciava, o
oseogarfio parecia dominar melhor o idioma. Sou um... pek. --Um pek? --exclamou Belwar, aproximando-se do Drizzt. O svirfnebli olhou ao prisioneiro, desconcertado.
É um pelín grande para ser um pek --comentou. Drizzt se voltou para o pequeno para pedir uma explicação. Não tinha escutado nunca aquele nome. --Criaturas da rocha
--disse-lhe Belwar. Uns seres pequenos e bastante curiosos, duros como a pedra, que não vivem mais que para trabalhá-la. --Soa a svirfnebli --opinou Drizzt. Belwar
fez uma pausa para pensar em se se tratava de um completo ou de um insulto. Incapaz de distingui-lo, o capataz acrescentou com um pouco mais de cautela: --Não há
muitos peks, e muito menos que se pareçam com este! Olhou ao oseogarfio com desconfiança, e depois dirigiu o olhar ao Drizzt como um aviso para que mantivesse preparadas
as cimitarras. --Já não mais... pek --gaguejou o oseogarfio, com um evidente tom de pesar em sua grossa voz. Já não mais pek. --Como te chama? --perguntou-lhe Drizzt,
disposto a encontrar alguma pista que lhe permitisse saber a verdade. O oseogarfio pensou durante um bom momento até que por fim renunciou ao esforço e sacudiu a
cabeça sem saber o que responder. --Já não mais... pek --repetiu o monstro. Jogou a cabeça para trás para ampliar a greta no exoesqueleto como um convite a que o
elfo lhe cortasse o pescoço. --Não pode recordar seu nome? --inquiriu Drizzt, pouco disposto a matar à criatura. O oseogarfio não respondeu e permaneceu imóvel.
O elfo olhou ao Belwar em busca de conselho, mas o capataz se limitou a encolher os ombros. --O que ocorreu? --insistiu o drow. Tem que me dizer o que te aconteceu.
--MA... --O oseogarfio pôs toda sua vontade em dar uma resposta. Maa... mago. Mago maligno. Drizzt, que tinha aprendido os rudimentos da magia na Academia e conhecia
a falta de escrúpulos de muitos feiticeiros na hora de praticá-la, vislumbrou a explicação e deu crédito às palavras da estranha criatura. --Isto é obra de um mago?
--disse, seguro de qual seria a resposta. Olhou ao Belwar, que não saía de seu assombro. ouvi falar desta classe de feitiços. --Eu também --afirmou o pequeno.
Magga cammara, elfo escuro! Vi aos magos do Blingdenstone utilizar uma magia parecida quando precisávamos entrar em...
O capataz se interrompeu bruscamente ao recordar de onde provinha o drow. --Menzoberranzan. --Drizzt acabou a frase por ele com uma risita. Belwar pigarreou, um
tanto envergonhado, e se voltou para o monstro. --Foi um pek --disse, porque precisava escutar a explicação resumida em uma só frase bem clara--, e um mago te transformou
em um oseogarfio. --Sim --respondeu o monstro. Já não mais pek. --Onde estão seus companheiros? --perguntou o svirfnebli. Se for verdade o que me hão dito de
sua gente, os peks não acostumam a viajar sozinhos. --Mortos --respondeu a criatura. Mago MA... malv... --Um mago humano? --quis saber Drizzt. --Sim, homem --confirmou
o monstro, sacudindo o pico. --E o mago te abandonou convertido em um oseogarfio --concluiu Belwar. O capataz e Drizzt intercambiaram um olhar, e o drow se apartou
para permitir que o prisioneiro se levantasse. --De... desejaria que me MA... MA... matasse --disse então o monstro, que se ajudou com os braços para sentar-se.
Olhou as mãos convertidas em garras, sem dissimular seu desgosto. A pé... pedra, já não posso trabalhar a pedra. Belwar levantou os braços para lhe mostrar o martelo
e a lança colocados nos cotos. --Eu também pensava igual a você --afirmou. Mas está vivo e tem companhia. nos acompanhe até o lago, onde poderemos conversar mais
tranqüilos. O oseogarfio aceitou o convite e começou, com muito esforço, a levantar sua mole de um quarto de tonelada. Em meio dos ruídos produzidos pelo exoesqueleto
ao roçar contra o chão, Belwar sussurrou ao Drizzt uma advertência. --Mantén as cimitarras preparadas! Por fim o monstro conseguiu erguer-se em sua imponente altura
de três metros, e o drow compreendeu que o conselho do pequeno estava justificado. Durante muitas horas, o oseogarfio relatou suas aventuras aos dois amigos. Seu
progressivo
domínio da linguagem resultou tão assombroso como a história. Este fato, e as descrições de sua vida anterior --dedicada a trabalhar a pedra com um ardor quase religioso--
convenceram ao Belwar e ao Drizzt de que dizia a verdade. --É agradável poder voltar a falar, embora não seja em minha língua--manifestou a criatura. Sinto-me
como se tivesse recuperado uma parte do que fui. Drizzt, que tinha passado pela mesma experiência não fazia tanto, entendeu perfeitamente os sentimentos do monstro.
--Quanto tempo leva assim? --inquiriu Belwar. O oseogarfio encolheu os ombros, e seu enorme torso rangeu com o movimento. --Semanas, me... meses --respondeu. Não
o recordo. perdi a noção do tempo. Drizzt se levou as mãos à cara e suspirou com força, tido piedade da desgraçada criatura. Ele também se havia sentido só e perdido
nas profundidades. Conhecia muito bem a amarga verdade de semelhante destino. Belwar aplaudiu brandamente ao drow com a mão-de-martelo. --Aonde pensa ir agora? --perguntou-lhe
o pequeno ao oseogarfio. De onde vem? --Persigo o MA... MA... --respondeu o oseogarfio, lutando inutilmente com a última palavra como se a só menção do maligno feiticeiro
lhe causasse uma profunda dor. Mas perdi muito. Encontraria-o facilmente se ainda fosse um pek. As pedras me diriam onde procurar se pudesse falar com elas como
fazia antes. --O monstro se levantou. Parto-me --anunciou. Não estão seguros comigo. --Você fica --afirmou Drizzt bruscamente em um tom que não admitia
discussão. --Não... não posso me controlar --tentou explicar o oseogarfio. --Não se preocupe! --disse Belwar. Assinalou para a porta na cornija ao lado da caverna.
Lá encima está nossa casa, e a porta é muito pequena para que possa passar. Pode ficar aqui junto ao lago até que decidamos entre todos o que podemos fazer. O oseogarfio
não podia mais de cansaço e a oferta do svirfnebli parecia lógica. O monstro se deitou sobre a pedra e procurou acomodá-lo melhor possível dado seu tamanho. Drizzt
e Belwar o deixaram sozinho, embora sem abandonar a precaução de vigiá-lo enquanto caminhavam. --Clak! --gritou de repente Belwar, detendo-se. Com grande esforço,
o oseogarfio ficou de flanco e olhou ao pequeno, consciente de que se dirigia a ele. --Esse será seu nome, se estiver de acordo --explicou o capataz. Clak! --Um
nome muito apropriado! --opinou Drizzt. --É um bom nome --reconheceu o oseogarfio, embora para seus adentros desejava recordar seu nome pek; o nome que se deslizava
como um canto rodado em um pendente e acariciava as pedras com cada sílaba. --Ampliaremos a porta --disse Drizzt ao Belwar assim que chegaram à cova. Assim Clak
poderá entrar e descansar conosco. --Não, elfo escuro --replicou o capataz. Não faremos tal coisa. --Não está seguro junto ao lago --insistiu Drizzt. Estará
a mercê de qualquer monstro. --Não corre nenhum perigo --bufou Belwar. Que monstro seria capaz de atacar voluntariamente a um oseogarfio? --Belwar compreendia
muito bem a preocupação do Drizzt, mas também era consciente dos riscos da proposta do drow. Conheço os efeitos destes feitiços --prosseguiu com tom sombrio.
Denominam-se polimórficos. A modificação do corpo é imediata, mas a mudança mental leva tempo. --O que quer dizer? Uma nota de pânico apareceu na voz do elfo escuro.
--Clak ainda é um pek --explicou Belwar--, encerrado no corpo de um oseogarfio. Mas acredito que, dentro de pouco, Clak deixará de ser um pek. Converterá-se em um
oseogarfio, em corpo e alma, e por muito amigos que possamos chegar a ser acabará por nos considerar só como uma comida mais. Drizzt começou a protestar, mas Belwar
o silenciou com um raciocínio mais convincente. --Você gostaria de ter que matá-lo, elfo escuro? --Sua história me resulta conhecida --disse Drizzt, desviando o
olhar. --Não tanto como imagina --afirmou o capataz. --Eu também estava perdido --recordou-lhe Drizzt. --É o que crie --respondeu o svirfnebli. Entretanto o que
você foi permaneceu dentro de ti, meu amigo. Foi como tinha que ser, tal como te obrigava a situação. Isto é diferente. Clak acabará por converter-se física e mentalmente
em um oseogarfio. Pensará como um oseogarfio e, magga cammara, não terá contigo a mesma piedade quando te vir no chão. Drizzt não podia dar-se por satisfeito, embora
tampouco sabia como refutar a lógica do pequeno. Entrou na câmara da caverna que tinha escolhido para dormitório e se deitou na rede. --Sinto-o por ti, Drizzt Dou'Urdem
--murmurou Belwar enquanto observava ao drow, abatido pela pena. E o sinto por nosso desgraçado amigo pek. O capataz entrou em seu dormitório e se tendeu na rede,
desconsolado pela
situação mas disposto a manter-se firme na decisão, por muito que lhe doesse. Belwar compreendia os sentimentos do Drizzt para a desgraçada criatura, sua compaixão
pela perda de identidade do Clak, mas sabia que era um vínculo perigoso. Não tinham transcorrido mais de um par de horas quando Drizzt, excitado, despertou ao svirfnebli.
--Temos que ajudá-lo --sussurrou o drow, com um tom áspero. Belwar se passou uma mão pela cara enquanto tratava de orientar-se. Seu sonho tinha sido intranqüilo,
cheio de pesadelos nas que tinha vociferado "bivrip" para depois acabar golpes com a vida do novo companheiro. --Temos que ajudá-lo! --repetiu Drizzt, com mais força.
Belwar podia ver pelas olheiras no rosto do drow que o jovem não tinha pego olho. --Não sou mago --disse o capataz--, e tampouco... --Então conseguiremos um --grunhiu
Drizzt. Procuraremos o humano que amaldiçoou ao Clak e o obrigaremos a que invista o duomer!. Vimo-lo recentemente junto ao arroio. Não pode estar muito longe.
--Um mago com tanto poder não será um inimigo fácil --objetou Belwar. Já esqueceste a bola de fogo? --O pequeno olhou para a parede onde pendurava a jaqueta chamuscada,
como se precisasse convencer-se a si mesmo. Acredito que o mago poderá conosco --acrescentou, mas Drizzt advertiu a pouca fé do Belwar em suas afirmações. --Tanta
pressa tem por condenar ao Clak? --perguntou-lhe Drizzt, bruscamente. Um amplo sorriso apareceu no rosto do elfo ao ver que o svirfnebli começava a ceder. É este
o mesmo Belwar Dissengulp que cobriu a um drow perdido? O muito honorável capataz que não vacilou em ajudar a um elfo escuro ao que todos outros consideravam perigoso
e pouco digno de compaixão? --Vete a dormir, elfo escuro --replicou Belwar, apartando ao Drizzt com a manomartelo. --Sábio conselho, meu amigo --disse Drizzt.
Que durma bem. Possivelmente nos espera um comprido caminho que percorrer. --Magga cammara --bufou o svirfnebli, teimado em mostrar-se duro. Voltou- as costas ao
Drizzt e, ao cabo de uns segundos, roncava. O elfo comprovou que esta vez o pequeno desfrutava de um sonho profundo e tranqüilo. Clak golpeava a parede com as garras,
amassando a pedra sem descanso. --Outra vez não! --grunhiu Belwar, aborrecido. Drizzt correu pelo sinuoso corredor, guiado pelo monótono martilleo. --Clak! --chamou
brandamente assim que viu o oseogarfio. O monstro se voltou para fazer frente ao drow, com as garras listas para o ataque, e soltou um assobio furioso através do
enorme pico. Um segundo depois, Clak se deu conta do que fazia e se deteve. --por que tem que fazer tanto ruído? --perguntou-lhe Drizzt, simulando não ter visto
a postura de combate do Clak. Estamos nas profundidades, meu amigo. Os sons podem atrair a algum convidado indesejável. O oseogarfio agachou a cabeça compungido
ante a suave recriminação do elfo. --Não teriam que me haver trazido com vós --repôs. Não posso... Ocorrerão muitas coisas que não posso controlar. Drizzt apoiou
uma mão no ossudo cotovelo do Clak. --foi minha culpa --disse o drow, compreendendo que o monstro acabava de lhe pedir desculpas por haver-se voltado agressivamente.
Não teríamos que nos haver partido em direções opostas e não teria que me haver aproximado tão depressa e sem advertência. A partir de agora nos manteremos juntos,
embora demoremos mais. Belwar
e eu lhe ajudaremos a manter o controle. --Resulta tão agradável martelar a pedra... --manifestou Clak animado ao tempo que golpeava a rocha como se queria refrescar
a memória. A voz e o olhar se apagaram enquanto pensava na vida passada, aquela que lhe tinha arrebatado o mago. Os dias como pek os tinha dedicado a trabalhar a
pedra, a lhe dar forma, a falar com ela. --Voltará a ser pek --prometeu Drizzt. Belwar, que se aproximava pelo túnel, ouviu as palavras do drow e duvidou que pudesse
cumprir o prometido. Levavam nos corredores mais de uma semana sem encontrar nem um só rastro do mago. O capataz se consolou um tanto dizendo-se que Clak parecia
ter recuperado algo de si mesmo, algo de sua personalidade pek. Fazia só umas semanas que Belwar tinha observado a mesma transformação no Drizzt, e, debaixo dos
instintos de sobrevivência impostos pelo caçador, tinha descoberto a seu melhor amigo. Mas o svirfnebli não podia dar por feito que se produziriam os mesmos resultados
com o Clak. A mudança a oseogarfio era obra de uma magia poderosa, e a amizade não era suficiente para investir o efeito do duomer do mago. Graças a seu encontro
com o Drizzt e Belwar, Clak tinha conseguido um atraso temporário --e unicamente temporário-- de seu penoso e inexorável destino. Percorreram os túneis da Antípoda
Escura durante vários dias sem nenhum resultado. A personalidade do Clak não tinha piorado, mas inclusive Drizzt, que tinha iniciado a busca com grandes iluda, começava
a sentir o peso da realidade. Então, precisamente quando Belwar e Drizzt tinham começado a discutir a conveniência de retornar a sua casa, o grupo chegou a uma caverna
bastante ampla com o chão coberto pelos escombros de um desprendimento no teto. --esteve aqui! --gritou Clak, que levantou uma pedra enorme e a jogou contra a parede
mais longínqua com tanta força que se partiu em mil pedaços. esteve aqui! O oseogarfio correu de um lado para outro descarregando sua fúria contra as pedras que
encontrava a seu passo. --Como sabe? --perguntou-lhe Belwar, em um intento por apaziguar a seu amigo gigante. --É... isto é obra dela --respondeu Clak, assinalando
o teto. Isto o fez o MA... mago! Drizzt e Belwar se olharam, preocupados. O teto da caverna, a uns cinco metros do chão, aparecia gretado e quebrado, e no centro
se abria um buraco enorme que quase dobrava a altura anterior. Se estes destroços os tinha feito a magia, devia tratar-se de uma magia muito poderosa. --Isto é obra
do mago? --inquiriu o capataz, que dirigiu ao elfo um olhar de incredulidade. --Seu to... torre --respondeu Clak. Uma vez mais percorreu a caverna com a intenção
de descobrir por onde tinha saído o mago. Drizzt e Belwar estavam confundidos, coisa que ao fim advertiu Clak quando se tomou uma pausa. --O MA... --Mago --disse
Belwar, impaciente. --O MA... mago tem uma to... torre --explicou o oseogarfio, excitado. Uma grande to... torre de ferro que leva com ele, e a instala onde lhe
parece mais conveniente. --Clak olhou o teto destroçado. Inclusive quando não cabe. --Leva uma torre? --sentiu saudades Belwar, que enrugou o nariz em um gesto
de dúvida.
Clak assentiu nervoso, mas não acrescentou nada mais; tinha encontrado o rastro do mago, o rastro de uma bota marcada em um leito de musgo que apontava por volta
de um dos túneis. Drizzt e Belwar tiveram que conformar-se com a direta explicação, e reataram a busca. O drow avançou primeiro; utilizava todos os conhecimentos
aprendidos na Academia drow reforçados pela experiência da década passada a sós na Antípoda Escura. Belwar, dotado com a compreensão racial inata do mundo subterrâneo
e o broche mágico, encarregava-se de manter o rumo, e Clak, nos momentos em que recuperava totalmente a personalidade anterior, pedia a guia das pedras. Passaram
por outra caverna destroçada, e por uma em que havia sinais da presença da torre, embora o teto era o bastante alto para alojar a estrutura. Ao cabo de uns dias,
os companheiros chegaram a uma caverna muito ampla, e viram ao longe, junto a um arroio, a casa do mago. Uma vez mais, Drizzt e Belwar se olharam sem saber o que
fazer, porque a torre tinha dez metros de altura e seis de largura, e as paredes de metal gentil frustravam seus planos. aproximaram-se da torre por caminhos separados,
e seu assombro foi maior ainda ao advertir que as paredes eram de adamantita pura, o metal mais duro do mundo. Encontraram uma só porta, pequena e tão bem ajustada
que o perfil apenas se era visível. Não tiveram necessidade de comprová-lo para saber que era infranqueável. --O MA... MA... Ele está aqui--rugiu Clak, passando
as garras sobre a porta, desesperado. --Então terá que sair em algum momento --afirmou Drizzt. E, quando o fizer, aqui estaremos. O plano não satisfez ao pek.
Com um terrível rugido que ressonou por toda a região, Clak lançou seu enorme corpo contra a porta; depois retrocedeu de um salto e o tentou outra vez. A porta nem
sequer se sacudiu com os golpes, e não demorou para ficar claro que o corpo do Clak perderia a batalha. Drizzt tentou em vão acalmar ao gigante, enquanto Belwar
se apartava para preparar o feitiço de poder. Por fim, Clak se deixou cair ao chão; apenas se podia respirar por culpa do esgotamento, a dor e a raiva. Então entrou
em ação Belwar, com as mãos de mithril chispando cada vez que se tocavam. --lhes aparte! --ordenou o pequeno. vim desde muito longe para permitir que uma vulgar
porta me detenha! Belwar se colocou diante de seu objetivo e descarregou um golpe muito poderoso com a mão-de-martelo. Uma resplandecente chuva de faíscas azuis
saltou em todas direções. Os musculosos braços do svirfnebli trabalharam com fúria mas, quando Belwar esgotou as energias, o metal só mostrava uns pequenos entalhes
e pequenos pontos chamuscados. Belwar entrechocó as mãos aborrecido, e por um instante ficou rodeado de faíscas. Clak compartilhou sinceramente sua frustração. Drizzt,
em troca, estava mais preocupado que zangado. A torre não só os tinha detido, mas também além disso o mago encerrado no interior sabia que o esperavam. O drow deu
uma volta ao redor da estrutura e observou que havia numerosas ballesteras. Escondido, situou-se debaixo de uma delas, e ouviu um cantarolo suave; apesar de que
não entendia o significado das palavras, não lhe custou muito adivinhar as intenções do humano. --Corram! --gritou a seus companheiros, e então, levado pelo desespero,
agarrou uma pedra e a lançou contra a ballestera. A sorte esteve de sua parte, porque o projétil golpeou na abertura no preciso instante em que o mago completava
o feitiço. Um raio saiu do buraco, pulverizou a pedra, e jogou no Drizzt pelos ares, mas a descarga, desviada da trajetória, ricocheteou e foi dar contra a torre.
--Maldição! Maldição! --chiou o mago. Ódio que passem estas coisas!
Belwar e Clak correram em ajuda do amigo cansado. O drow só estava um pouco atordoado e, antes de que pudessem chegar junto a ele, já se tinha recuperado. --Ah,
ides pagar muito caro pelo que têm feito --gritou o humano do interior. --Fujamos! --propôs o capataz. Inclusive o oseogarfio se mostrou de acordo, mas logo que
Belwar olhou os olhos lilás do drow, compreendeu que seu amigo não escaparia. Também Clak retrocedeu um pouco ao ver a cólera do Drizzt Dou'Urdem. --Magga cammara,
elfo escuro, não podemos entrar --recordou-lhe o svirfnebli, prudentemente. Drizzt tirou a estatueta de ônix e, sustentando-a contra a ballestera, cobriu-a com o
corpo. --Já o veremos --grunhiu, e chamou o Guenhwyvar. Apareceu a névoa negra, e não encontrou mais que um único passo livre do talismã. --Matarei-lhes a todos!
--gritou o mago invisível. Então, do interior da torre lhes chegou o rugido da pantera e, continuando, escutou-se outra vez a voz do humano. --Possivelmente estou
em um engano! --Abre a porta! --vociferou Drizzt. Vai a vida nisso, mago! --Nunca! Um novo rugido do Guenhwyvar, outro grito do mago, e a porta se abriu de par
em par. Entraram na torre, com o Drizzt à cabeça, e se encontraram em uma habitação circular. Uma escada de ferro no centro comunicava com uma trampilla, a saída
de emergência pela que o mago tinha tentado escapar. Não o tinha conseguido e agora pendurava cabeça abaixo pela parte posterior da escada, com uma perna enganchada
à altura do joelho em um dos degraus. Guenhwyvar, recuperada de tudo do mergulho no lago de ácido e com um aspecto soberbo, sujeitava a outra perna entre as fauces.
--Por favor, passem --gritou o mago, que abriu os braços e depois voltou a fechá-los depressa para apartá-la túnica do rosto. O objeto ainda fumegava como conseqüência
do raio. Sou Brister Fendlestick. Bem-vindos a minha humilde morada! Belwar conteve ao Clak na porta, sujeitando a seu furioso amigo com a manomartelo, enquanto
Drizzt se fazia carrego do prisioneiro. O drow se entreteve durante uns instantes em contemplar a sua querida companheira felina, porque não tinha chamado ao Guenhwyvar
desde dia em que a pantera tinha resultado ferida. --Você fala drow --comentou Drizzt, que agarrou ao mago pelo pescoço e o desceu da escada. O elfo observou ao
homem com receio. Nunca tinha visto um humano antes do encontro no túnel junto ao arroio e, até o momento, não lhe produzia boa impressão. --Domino muitas línguas
--respondeu o mago, pondo em ordem seus objetos. E depois, como se fosse algo muito importante, acrescentou--: Sou Brister Fendlestick! --Figura o pek entre os idiomas
que sabe? --perguntou Belwar da porta. --Pek? --exclamou o mago, como se lhe desse asco a palavra. --Pek --repetiu Drizzt, aproximando o fio da cimitarra ao pescoço
do mago para dar mais ênfase à pergunta. Clak avançou um passo sem preocupar do pequeno que tentava sujeitá-lo. --Meu amigo era antes um pek--explicou-lhe Drizzt.
Você teria que sabê-lo. --Pek! --disse o mago. Uns insetos inúteis que sempre estão pelo meio. Clak deu outro passo.
--Date pressa, drow --rogou Belwar, apoiado contra a mole do oseogarfio como quem tenta evitar o desmoronamento de uma parede. --lhe devolva seu verdadeiro ser --exigiu
Drizzt. Faz que nosso amigo volte a ser um pek. E faz-o agora mesmo. --Ora! --soprou o mago. Assim está muito melhor! Que motivos pode ter alguém para desejar
ser um pek? A respiração do Clak se converteu em um ofego de angústias. A força de seu terceiro passo fez cair ao Belwar. --Agora, mago --advertiu-lhe Drizzt. Da
escada, Guenhwyvar proferiu um rugido estremecedor. --Bom, está bem, de acordo --respondeu o mago, com uma careta de desgosto. Condenado pek! Tirou um livro enorme
de um bolso que era muito pequeno para contê-lo. Drizzt e Belwar intercambiaram um sorriso, convencidos de que se sairiam com a sua. Então o mago cometeu um engano
fatal. --Teria que havê-lo matado como fiz com outros --murmurou em voz tão baixa que nem sequer o drow escutou as palavras. Mas os oseogarfios tinham o ouvido mais
fino entre todas as criaturas da Antípoda Escura. Um sopapo das enormes garras do Clak lançou ao Belwar ao outro lado da habitação. Drizzt, que se voltou para ouvir
o ruído dos passos, acabou no chão depois da investida do gigante. E o mago, em um ato de suprema estupidez, tentou opor-se ao impacto do Clak protegendo-se com
a escada; o golpe foi tão tremendo que a escada de ferro se dobrou como um arame e a pantera voou pelos ares. Se o primeiro golpe descarregado pelos duzentos e cinqüenta
quilogramas do oseogarfio tinha sido ou não suficiente para matar ao mago, era uma questão sem importância quando Drizzt e Belwar se recuperaram o suficiente para
chamar a seu amigo. Clak utilizava o pico e as garras para destroçar o corpo do humano, e havia momentos em que se via algum relâmpago ou uma nuvem de fumaça quando
se rompiam os objetos mágicos que o feiticeiro guardava na túnica. Quando o oseogarfio se serenou e olhou aos três companheiros, que o rodeavam dispostos para o
combate, o corpo aos pés do Clak era uma massa irreconhecível. Belwar se dispunha a comentar que o mago tinha aceito devolver ao Clak sua forma original, mas desistiu
ao ver que não tinha sentido. O monstro ficou de joelhos e ocultou o rosto entre as garras, incapaz de acreditar o que tinha feito. --Saiamos deste lugar --disse
Drizzt, embainhando as cimitarras. --Terei que registrá-lo --sugeriu Belwar ao pensar nos muitos tesouros que podiam estar ocultos. Mas ao Drizzt resultava impossível
ficar ali. O espetáculo da fúria desatada de seu amigo e o aroma do cadáver destroçado despertavam nele umas frustrações e uns medos que não podia tolerar. Abandonou
a torre escoltada pela pantera. Belwar ajudou ao Clak a levantar-se e o acompanhou até a saída. Depois, incapaz de resistir a seu praticamente, pediu aos amigos
que o esperassem enquanto ele revisava a torre, em busca de objetos que pudessem ser úteis, ou da chave que lhe permitisse levá-la torre. Mas ou o mago era um homem
pobre --coisa que Belwar punha em dúvida-- ou tinha os tesouros bem ocultos, talvez em algum outro plano de existência, porque o svirfnebli só encontrou um cantil
e um par de botas velhas. Se existia uma chave para mover a maravilhosa torre de adamantita, o mago a tinha levado a tumba. A viagem de volta a casa o fizeram quase
em silêncio, ensimismados em suas preocupações e problemas. Drizzt e Belwar não precisavam falar de seu temor mais
urgente. Nas conversações com o Clak tinham aprendido o suficiente da pacífica raça dos peks para saber que o impulso assassino do Clak não tinha nenhuma relação
com a criatura que tinha sido uma vez. O svirfnebli e o drow tinham que admitir que as ações do Clak eram próprias do ser em que acabaria por transformar-se.
15
Avisos sinistros
--O que é o que sabe? --perguntou- a matrona Malícia ao Jarlaxle, que a acompanhava através do pátio da casa Dou'Urdem. Em outras circunstâncias, Malícia não teria
sido tão direta com o infame mercenário, mas estava preocupada e impaciente. Os rumores que corriam entre as famílias governantes do Menzoberranzan não pressagiavam
nada bom para a casa Dou'Urdem. --Saber? --replicou Jarlaxle, com uma surpresa mau fingida. Malícia o olhou desgostada, e o mesmo fez Briza, que caminhava ao outro
lado do desavergonhado mercenário. Jarlaxle se esclareceu garganta, embora o pigarro soou como uma gargalhada. Não podia informar a Malícia dos rumores; não era
tão parvo para trair às casas mais capitalistas da cidade. Mas sim podia burlar-se de Malícia com uma singela declaração lógica que só confirmava o que ela já tinha
suposto. --Zin-Carla, o espectro, leva muito tempo a seu serviço. Malícia fez um esforço para manter uma expressão de calma. Compreendia que Jarlaxle sabia muito
mais do que dizia, e o fato de que o mercenário só lhe houvesse dito o óbvio confirmava suas suspeitas. O espectro do Zaknafein demorava mais da conta em dar com
o Drizzt. A matrona não necessitava que lhe recordassem a pouca paciência da rainha aranha. --Tem algo mais que me dizer? --perguntou Malícia. Jarlaxle encolheu
os ombros como única resposta. --Então sal de minha casa --ordenou a mãe matrona. Jarlaxle vacilou um instante; não sabia se devia exigir um pagamento pela escassa
informação que tinha dado. Decidiu que não era necessário e, depois de fazer uma de suas profundas reverências acompanhadas com um varrido de seu chapéu, dirigiu-se
para a saída. Não demoraria para cobrar. Uma hora mais tarde, na sala de espera da capela, a matrona Malícia ocupou o trono e dirigiu os pensamentos para os túneis
nas profundidades da Antípoda Escura. A telepatia com o espectro era limitada; pelo general se reduzia só a uma transmissão das emoções mais intensas. Mas das lutas
internas do Zaknafein, que tinha sido o pai do Drizzt e seu melhor amigo em vida e que agora se converteu em seu pior inimigo, Malícia podia deduzir os progressos
da missão. As ansiedades provocadas pela luta interior do Zaknafein eram mais intensas cada vez que o espectro se aproximava do Drizzt. Agora, depois do desagradável
encontro com o Jarlaxle, Malícia precisava saber que fazia Zaknafein. Ao cabo de uns minutos obteve o que procurava.
--A matrona Malícia insiste em que o espectro foi para o oeste, além da cidade svirfnebli --explicou-lhe Jarlaxle à matrona Baenre. O mercenário tinha ido diretamente
da casa Dou'Urdem até o horta de cogumelos da parte sul do Menzoberranzan, onde residiam as famílias drows mais poderosas. --O espectro segue o rastro --murmurou
a matrona Baenre, quase para si mesmo. Isso é bom. --Mas a matrona Malícia acredita que Drizzt leva uma vantagem de vários dias, possivelmente semanas --acrescentou
Jarlaxle. --Há-lhe isso dito? --perguntou a matrona Baenre, incrédula, surpreendida de que Malícia tivesse revelado uma informação que a prejudicava. --Há coisas
que se podem saber sem necessidade de palavras--respondeu o mercenário, com astúcia. O tom da matrona Malícia revelava muitas coisas que não desejava me comunicar.
A matrona Baenre assentiu e fechou os olhos, cansada de tantas complicações. Tinha sido coisa dela que Malícia conseguisse entrar no conselho regente, mas agora
não podia fazer outra coisa que esperar e ver se Malícia era capaz de manter o cargo. --Devemos confiar na matrona Malícia --disse a matrona Baenre, depois de uma
larga pausa. Ao outro extremo da sala, O-viddinvelp, o desolador mental companheiro da matrona Baenre, apartou seus pensamentos da conversação. O mercenário drow
havia dito que Drizzt partia para o oeste, além do Blingdenstone, e esta notícia tinha uma importância que não podia passar por cima. O desolador mental projetou
seus pensamentos para o ocidente, para transmitir um aviso ao longo dos túneis que não estavam tão desertos como pareciam. Assim que Zaknafein viu o lago soube que
tinha alcançado à presa. Ao amparo das gretas e curvas das paredes percorreu a caverna, até que encontrou a porta e a cova que protegia. Velhos sentimentos se reavivaram
no espectro, sentimentos da relação mantida com o Drizzt. Mas quando a matrona Malícia penetrou em sua mente, dominaram-no outras emoções muito mais selvagens.
O
espectro derrubou a porta, com as espadas em alto, e percorreu o refúgio como um vendaval. Uma manta voou pelos ares e caiu ao chão feita migalhas pelos selvagens
cutiladas do Zaknafein. Assim que se dissipou o ataque de fúria, o monstro da matrona Malícia ficou em cuclillas e examinou a situação. Drizzt não estava em casa.
O espectro não demorou muito em chegar à conclusão de que Drizzt, e um companheiro, possivelmente dois, tinham deixado a cova uns poucos dias antes. Os conhecimentos
táticos do Zaknafein lhe aconselharam esperar porque saltava à vista que aquele não era um acampamento falso, como o tinha sido o outros nos subúrbios da cidade
dos pequenos. Não duvidava que a presa retornaria. Zaknafein percebeu que a matrona Malícia, sentada em seu trono na cidade drow, não toleraria mais demoras. Lhe
acabava
o tempo --os rumores de perigo eram cada vez mais intensos-- e esta vez os medos e a impaciência de Malícia lhe custariam muito caro. Só umas poucas horas depois
de que Malícia enviasse ao espectro outra vez aos túneis em busca de seu filho renegado, Drizzt, Belwar e Clak retornaram à caverna por outra via. Drizzt notou no
ato que algo não ia bem. Desembainhou as cimitarras, correu por
a cornija e subiu de um salto até a porta da cova antes de que Belwar e Clak pudessem lhe perguntar o que acontecia. Quando chegaram à cova, compreenderam a preocupação
do elfo escuro. O lugar aparecia destroçado; as redes e mantas, feitas pedaços; os boles e uma caixa pequena onde guardavam a reserva de mantimentos, esmagados,
e as partes dispersas por todos os rincões. Clak, que não podia passar pelo oco, afastou-se da entrada e percorreu a caverna para assegurar-se de que não havia nenhum
inimigo oculto. --Magga cammara! --rugiu Belwar. Que monstro terá feito isto? Drizzt recolheu os restos de uma manta e assinalou os cortes limpos no tecido. Belwar
compreendeu o significado destes. --O corte de uma espada --manifestou o capataz, muito sério. Uma espada afiada e bem temperada. --A espada de um drow --acrescentou
Drizzt. --Estamos muito longe do Menzoberranzan --recordou-lhe Belwar. Nas profundidades mais remotas. Duvido que sua gente possa saber onde está. A experiência
do Drizzt não lhe permitia aceitar essa hipótese. Durante a maior parte de sua vida tinha sido testemunha do fanatismo que guiava às malignas sacerdotisas do Lloth.
Ele mesmo tinha participado de uma incursão de muitos quilômetros até a superfície dos Reino, que só perseguia agradar à rainha aranha com o assassinato dos elfos.
--Não subestime à matrona Malícia --replicou o drow com tom sombrio. --Se isto for em realidade um anúncio da visita de sua mãe --grunhiu Belwar, golpeando as mãos--,
levará-se uma boa surpresa. Terá que as ver-se com três e não com um só como pensa. --Não subestime à matrona Malícia --repetiu o elfo escuro. Este encontro não
é uma mera casualidade, e ela estará preparada para responder a qualquer imprevisto. --Como sabe? --protestou Belwar, mas quando o capataz viu o temor refletido
nos olhos lilás do drow, convenceu-se de que as coisas podiam acabar muito mal. Recolheram os poucos objetos que se salvaram da destruição e partiram imediatamente,
uma vez mais em direção ao oeste para aumentar a distância que os separava do Menzoberranzan. Clak partia primeiro porque havia muito poucos monstros capazes de
sair ao passo de um oseogarfio. Seguia-o Belwar, e Drizzt ia na retaguarda, bastante atrasado, disposto a proteger aos companheiros no caso de que os agentes de
sua mãe lhes dessem alcance. O svirfnebli opinava que levavam uma boa vantagem sobre aqueles que tinham destruído a casa. Se os autores tinham iniciado a perseguição
da cova e seguido o rastro até a torre do mago morto, passariam muitos dias antes de que lhes ocorresse retornar até a caverna do lago. Drizzt não estava tão convencido.
Conhecia sua mãe muito bem. depois de vários dias que lhes fizeram intermináveis, o grupo chegou a uma região infestada de gretas, paredes abruptas, e tetos cheios
de estalactites que pareciam monstros à espreita. Caminharam unidos, porque necessitavam da companhia de outros. A pesar do risco que significava, Belwar tirou seu
talismã luminoso e o enganchou na jaqueta de couro, embora a luz só contribuiu a que as sombras parecessem ainda mais ameaçadoras. O silêncio nesta zona era inclusive
mais profundo do habitual na Antípoda Escura. Em muito poucas ocasiões aqueles que percorriam o mundo subterrâneo dos Reino escutavam os sons de outras criaturas,
mas aqui a quietude resultava opressiva, como se tivesse desaparecido todo rastro de vida. O ruído dos passos de
Clak e o roce das botas do Belwar ressonavam como marteladas entre as pedras. O svirfnebli foi o primeiro em sentir a aproximação do perigo. As vibrações sutis nas
rochas lhe avisaram que ele e os companheiros não estavam sozinhos. Deteve o Clak com a mão-de-lança, e a seguir olhou ao Drizzt para saber se o drow compartilhava
sua inquietação. Drizzt assinalou para o teto e levitou na escuridão, em busca de um lugar onde emboscar-se entre as numerosas estalactites. O elfo desencapou uma
das cimitarras enquanto subia e pôs a outra emano na estatueta de ônix que guardava no bolso. Belwar e Clak se ocultaram detrás de uma crista, e o pequeno começou
a recitar a letanía para enfeitiçar as mãos metálicas. Ambos se sentiam mais seguros ao saber que o guerreiro drow flutuava nas alturas para vigiar a zona. Mas Drizzt
não era o único que tinha pensado nas estalactites para tender uma emboscada. logo que se viu entre as pedras bicudas como lanças, advertiu que havia alguém mais.
Uma forma, um humanoide um pouco maior que Drizzt, flutuou da estalactite mais próxima. Drizzt apoiou um pé em uma das pedras para propulsar-se, ao tempo que desembainhaba
a outra cimitarra. Soube quem era o inimigo assim que viu a cabeça, que parecia um polvo de quatro tentáculos. O drow nunca tinha visto antes a uma destas criaturas,
mas sabia o que era: um illita, um desolador mental, o monstro mais cruel e temido em toda a Antípoda Escura. O desolador atacou primeiro, muito antes de que Drizzt
pudesse aproximar-se para utilizar as cimitarras. Os tentáculos do monstro se moveram como látegos, e um cone de energia mental açoitou ao Drizzt. O elfo lutou com
toda sua vontade contra a escuridão que se abatia sobre ele. Tentou concentrar-se no objeto, enfocar a cólera, mas o illita lançou um novo ataque. Um segundo desolador
se somou ao primeiro e lhe efetuou uma descarga pelo flanco. Belwar e Clak não podiam ver o combate porque Drizzt se movia fora da zona iluminada pelo broche do
pequeno. De todos os modos, notaram que algo ocorria nas alturas, e o capataz se atreveu a chamar a seu amigo. --Drizzt? --sussurrou. A resposta a teve um segundo
depois, quando as cimitarras se estrelaram contra o chão. Belwar e Clak, atônitos, deram um passo para as armas, e então retrocederam. Ante eles, o ar se ondulava
como se tivessem aberto uma porta invisível a outro plano de existência. Um illita cruzou a soleira e, plantando-se diante dos amigos, descarregou seu raio mental
antes de que qualquer dos dois pudesse reagir. O svirfnebli caiu de bruces ao chão, mas Clak, com a mente confundida pelo conflito entre suas identidades de oseogarfio
e pek, não resultou tão afetado. O desolador soltou outra vez uma descarga paralisante; o oseogarfio atravessou o cone de energia e esmagou ao illita com um só
golpe de suas enormes garras. Clak olhou em redor, e a seguir para cima. Outros quantos desoladores baixavam do teto, e dois sujeitavam ao Drizzt pelos tornozelos.
abriram-se mais leva invisíveis. Em um instante, as descargas se abateram sobre o Clak desde todos os ângulos, e a defesa proporcionada pelo conflito entre as duas
personalidades começou a fraquejar. O desespero e a fúria dominaram suas ações. Naquele momento, Clak só era um oseogarfio, que atuava com o instinto e a ferocidade
característicos destes monstros. Mas inclusive a dura couraça dos oseogarfios resultava insuficiente contra as insidiosas e contínuas descargas dos desoladores.
Clak se lançou contra os dois que sujeitavam ao Drizzt. A escuridão o apanhou a meio caminho. Estava ajoelhado no chão; isto era quão único sabia. arrastou-se, disposto
a não render-se, impulsionado só pela raiva. Depois se tendeu sobre a pedra, sem pensar mais no Drizzt, no Belwar, ou em sua própria raiva. Só havia escuridão.
QUARTA PARTE
Indefeso
Em muitas ocasiões ao longo de minha vida me hei sentido indefeso. É possivelmente a dor mais aguda que uma pessoa pode conhecer, apoiado na frustração e a raiva
inútil. A espetada de uma espada no braço do soldado em combate não pode comparar-se com a angústia do prisioneiro quando escuta o estalo do látego. Inclusive se
o látego não açoita o corpo do prisioneiro indefeso, sem dúvida provoca uma profunda ferida em sua alma. Todos somos prisioneiros em um momento ou outro de nossas
vidas, prisioneiros de nós mesmos ou das expectativas daqueles que nos rodeiam. É uma carga que suportamos todos, que todos odiamos e que muito poucos conseguem
evitar. Considero-me afortunado a este respeito, porque minha vida seguiu uma trajetória de contínua melhora. Se se tiver em conta que se iniciou no Menzoberranzan,
submetida a implacável vigilância das somas sacerdotisas da maligna reina aranha, suponho que minha situação só podia melhorar. Em meu obcecamiento juvenil, acreditei
que poderia me valer sozinho, que tinha a força suficiente para conquistar aos inimigos com a espada e os princípios. A arrogância me convenceu de que a vontade
era bastante para superar a indefensión. Reconheço que foi uma idéia errônea, porque, quando rememoro aqueles anos, vejo claramente que quase nunca estive sozinho
e quase nunca tive que estar sozinho. Sempre houve amigos, leais e queridos, que me deram apoio incluso quando acreditava que não o necessitava, e inclusive quando
não me dava conta. Zaknafein, Belwar, Clak, Mooshie, Bruenor, Regis, Catti-brie, Wulfgar e, certamente, Guenhwyvar, minha querida Guenhwyvar: estes foram os companheiros
que justificaram meus princípios, que me deram forças para lutar contra qualquer inimigo, real ou imaginário. Estes foram os companheiros que lutaram contra a indefensión,
a raiva e a frustração. Estes foram os companheiros que me deram a vida.
DRIZZT DOU'URDEM
16
Cadeias insidiosas
Clak olhou para o extremo mais longínquo da larga e estreita caverna, onde se elevava um edifício com numerosas torres que servia de castelo à comunidade dos desoladores
mentais. Apesar de que via mau, o oseogarfio podia distinguir as silhuetas que se moviam ao redor do castelo, e podia ouvir claramente o ruído das ferramentas. Compreendeu
que eram escravos --duergars, goblins, pequenos das profundidades, e várias outras raças que não conhecia--que serviam a seus amos com suas habilidades para trabalhar
a pedra, ajudando-os a melhorar a rocha imensa que os desoladores tinham escolhido como casa. Possivelmente Belwar, tão bem dotado para estes misteres, já trabalhava
na enorme construção. Estes pensamentos desapareceram quase no ato, substituídos pelos instintos mais primários do oseogarfio. As descargas paralizantes dos desoladores
tinham reduzido a resistência mental do Clak e o feitiço polimórfico do mago tinha seguido seu processo, com o qual nem sequer advertiu a mudança. Agora suas identidades
estavam igualadas, e o pobre Clak se encontrava sumido em um estado de confusão mental absoluta. Se tivesse sido capaz de compreender o dilema, e se tivesse sabido
o destino de seus amigos, possivelmente se teria considerado afortunado. Os desoladores mentais suspeitavam que Clak não era um oseogarfio como outros. A sobrevivência
da comunidade se apoiava no conhecimento e na leitura do pensamento, e, embora não conseguiam penetrar no caos da mente do Clak, podiam ver que as funções intelectuais
que tinham lugar atrás de seu enorme exoesqueleto não se correspondiam com as de um simples monstro da Antípoda Escura. Tampouco eram tolos, e sabiam o perigo que
representava tentar decifrar e controlar uma besta couraçada de um quarto de tonelada. Clak era muito perigoso e imprevisível para o ter metido em um recinto fechado.
Entretanto, na sociedade esclavista dos desoladores havia lugar para todos. Clak se encontrava em uma ilha de pedra, um promontório rochoso de uns cinqüenta metros
de diâmetro rodeado por um profundo e largo abismo. Com ele havia diversas criaturas, incluído um pequeno rebanho de vitelas e vários duergars idiotizados depois
de permanecer submetidos durante muito tempo à influência mental dos desoladores. Os pequenos cinzas, com os rostos vazios de toda expressão e os olhos em branco,
não faziam outra coisa que esperar o turno de converter-se em alimento de seus cruéis amos. O oseogarfio percorreu a ilha em busca de uma saída, embora a parte pek
considerava com resignação que era inútil. Uma única ponte cruzava o abismo, um artefato mágico e mecânico que se rendia no outro lado quando não o utilizavam. Um
grupo de desoladores acompanhado por um ogro escravo se aproximou da alavanca que controlava a ponte. Imediatamente, Clak recebeu uma surriada de ordens
telepáticas. Uma meta bem definida se abriu passo no torvelinho de seus pensamentos, e então se inteirou para que o tinham conduzido à ilha. Era o pastor do rebanho
dos desoladores. Queriam um pequeno cinza e uma vitela, e o escravo pastor pôs mãos à obra. Nenhuma das vítimas opôs resistência. Clak lhe retorceu o pescoço ao
pequeno
e matou à vitela de um golpe no crânio. Notava que os desoladores estavam agradados, e isto despertou nele algumas emocione, entre elas uma intensa satisfação. Carregado
com os dois corpos, Clak se aproximou do bordo do abismo para situar-se em frente do grupo de desoladores. Um illita atirou da alavanca que fazia funcionar a ponte.
Clak observou que o mecanismo ficava fora de seu alcance; um fato importante, embora naquele momento o oseogarfio não compreendeu o motivo. A ponte de metal e pedra
rangeu com grande estrépito e a seguir se estendeu até a ilha para ficar bem sujeito aos pés do Clak. Vêem mim--ordenou-lhe um dos desoladores. Clak teria podido
negar-se a cumprir a ordem de ter tido alguma razão. Avançou pela ponte, que se sacudiu por culpa do peso. Alto! Deixa cair as presas!--disse outra voz, quando o
oseogarfio tinha chegado quase na metade do trajeto. Deixa cair as presas!--repetiu a voz telepática. Retorna à ilha! Clak considerou as alternativas. A fúria
do oseogarfio crescia em seu interior, e sua parte pek, raivosa pela perda dos amigos, coincidia com a primeira. Uns poucos passos mais o levariam até o inimigo.
A uma ordem dos desoladores, o ogro se aproximou da entrada da ponte. Era um pouco mais alto que Clak e quase igual de largura, mas ia desarmado e não poderia lhe
impedir o passo. Mas um pouco mais à frente do guarda, Clak advertiu uma defesa mais eficaz. O desolador que tinha movido a alavanca permanecia no posto com a mão
--um curioso apêndice de quatro dedos-- sobre a manga, atento aos acontecimentos. Clak não poderia percorrer o que faltava e superar ao guarda antes de que a ponte
se enrolasse sob seus pés e o precipitasse às profundidades do abismo. A contra gosto, o oseogarfio deixou as presas na ponte e retornou à ilha de pedra. O ogro
não perdeu o tempo e recolheu ao pequeno e à vitela para seus amos. O illita atirou da alavanca, e, em um abrir e fechar de olhos, a ponte mágica voltou para a posição
original, isolando ao Clak uma vez mais. Come --ordenou-lhe um dos desoladores. Uma vitela passou junto ao oseogarfio no instante em que o pensamento surgia em sua
mente, e Clak a matou de um tapa. Os desoladores se retiraram, e Clak se sentou a comer. Sua personalidade de oseogarfio o dominou de tudo enquanto devorava, desfrutando
com o gosto da carne e do sangue, mas cada vez que olhava mais à frente do precipício para a caverna estreita e o castelo illita no fundo, uma vocecita pek manifestava
sua preocupação por um svirfnebli e um drow. De todos os escravos capturados recentemente nos túneis nos subúrbios do castelo illita, Belwar Dissengulp era o que
despertava maior interesse. Além da curiosidade provocada pelas mãos de mithril do pequeno, Belwar era o melhor equipado para as duas atividades mais apreciadas
em
um escravo dos desoladores: trabalhar a pedra e as brigas de gladiadores. No mercado de escravos se produziu uma grande gritaria quando o svirfnebli saiu à venda.
Interessado-los em comprá-lo ofereceram objetos de ouro e mágicos, feitiços particulares e livros de estudos de grande valor. Ao final da luta, o capataz
foi adjudicado a um grupo de três desoladores, quão mesmos o tinham capturado. Belwar, certamente, não se inteirou da venda; antes de que acabasse, o pequeno foi
levado
por um túnel estreito e escuro até uma pequena habitação sem nenhuma característica especial. Pouco depois, três vozes falaram em sua mente, três vozes telepáticas
que o pequeno não esqueceria: as vozes dos novos amos. Uma poterna de ferro se levantou diante do Belwar, deixando ver uma habitação circular de paredes altas e
filas
de assentos na parte superior. Sal --pediu-lhe um dos amos, e o capataz, que só desejava agradá-lo, não vacilou. Quando saiu pela abertura, viu várias dúzias de
desoladores sentados nos assentos de pedra, que o assinalavam com as estranhas mãos de quatro dedos embora em suas caras de polvos não se refletia nenhuma expressão.
De todos os modos, graças ao vínculo telepático, Belwar não teve problemas para encontrar a seu amo entre os espectadores, ocupado em fazer apostas com um pequeno
grupo. Ao outro lado do recinto se abriu outra poterna e apareceu um ogro gigantesco. Imediatamente, os olhos da criatura procuraram entre o público a seu amo, a
única coisa importante de sua existência. Este ogro cruel e bestial me ameaçou, meu valente campeão svirfnebli --transmitiu-lhe o amo do Belwar assim que acabou
com as apostas. Destrói-o por mim. Belwar não necessitava mais estímulos, nem tampouco os necessitava o ogro, que tinha recebido uma mensagem idêntica de seu amo.
Os gladiadores se lançaram o um contra o outro possuídos por uma sanha feroz, mas enquanto que o ogro era jovem e um tanto estúpido, Belwar era um veterano muito
ardiloso. No último momento freou a carreira e se jogou em um lado. O ogro, que pretendia rechaçá-lo com um chute ao final da carga, cambaleou-se por um momento.
Um momento muito comprido. A mão-de-martelo do Belwar golpeou o joelho do ogro, e um estalo tão capitalista como o do raio de um mago ressonou na areia. O ogro se
inclinou para diante até quase dobrar-se em dois, e Belwar afundou a mão-de-lança no lombo da besta. O monstro se balançou para um flanco, perdido o equilíbrio,
e
o pequeno se tornou a seus pés para fazê-lo cair ao chão. O capataz se levantou no ato, saltou sobre o gigante cansado e correu para a cabeça. O ogro se recuperou
com a rapidez suficiente para agarrar ao svirfnebli pelo peitilho da jaqueta, mas no segundo em que o monstro se dispunha a lançá-lo pelos ares, Belwar lhe cravou
a mão-de-lança no peito. Com um rugido de fúria e dor, o estúpido ogro não retrocedeu no empenho e lançou ao pequeno. Afiada-a lâmina da lança se manteve cravada,
e
o
impulso do pequeno abriu uma ferida enorme no peito do ogro. A besta se revolveu de um lado para outro até que por fim conseguiu livrar-se da terrível emano metálica.
Um joelho gigantesco golpeou ao Belwar no traseiro, e o jogou pelos ares a vários metros de distância. O capataz se levantou depois de dar vários rebotes, enjoado
e dolorido mas sem ceder na vontade de agradar a seu amo. Escutou os vítores silenciosos e a gritaria telepática dos espectadores; por cima do estrondo mental chegou
uma ordem com grande claridade. Mata-o! --transmitiu o amo do Belwar. O svirfnebli não vacilou. Ainda tendido de costas, o ogro se apertava o peito, em um vão intento
por deter a hemorragia que lhe arrebatava a vida. Ferida-las provavelmente eram mortais, mas Belwar não se deu por satisfeito. O monstro tinha ameaçado a seu amo!
O capataz carregou diretamente contra a cabeça do ogro, com a mão-de-martelo por diante. Três golpes seguidos feriram o crânio do
monstro, e então descarregou a mão-de-lança para rematá-lo. O agonizante ogro se sacudiu enlouquecido em um último espasmo, mas isso não comoveu ao Belwar. Tinha
agradado
a seu amo; nada mais tinha importância nesse momento. Nas escadarias, o orgulhoso proprietário do campeão svirfnebli recolheu o ouro e as bebidas ganhas nas apostas.
Satisfeito por ter eleito bem no leilão, o desolador olhou ao Belwar, que ainda amassava ao cadáver. Apesar de que desfrutava com a fúria do escravo, o illita lhe
ordenou deter-se. depois de tudo, o ogro também formava parte da aposta. Não tinha sentido danificar o jantar. No coração do castelo illita se levantava uma torre
imensa, uma estalagmite gigantesca esvaziada e esculpida para albergar aos membros mais importantes da estranha comunidade. O interior da enorme estrutura de pedra
estava rodeado de balcões e escadas; cada nível acolhia a vários desoladores. Na habitação da planta baixa, circular e sem nenhum adorno, residia o ser supremo,
o cérebro central. Media seis metros de diâmetro, e esta massa de carne palpitante mantinha unida à comunidade de desoladores através de uma simbiose telepática.
O cérebro central era o núcleo de seu conhecimento, o olho mental que vigiava as cavernas exteriores e tinha escutado os gritos de aviso do illita na cidade drow,
a muitos quilômetros de distância para o este. Para os desoladores, o cérebro central era o coordenador de toda sua existência e quase seu deus. portanto, só permitiam
a entrada nesta torre especial a um punhado de escravos, cativos com dedos sensíveis e delicados que podiam massagear o cérebro e acalmá-lo com escovas suaves e
líquidas quentes. Drizzt Dou'Urdem figurava neste grupo. Ajoelhando-se na ampla passarela que rodeava a sala, o drow tendeu as mãos para acariciar a massa amorfa,
e sentiu seus prazeres e desgostos. Quando o cérebro se intranqüilizava, Drizzt percebia as agudas espetadas e a tensão nas malhas. Então aumentava a pressão das
massagens para devolver a serenidade a seu amo. Se o cérebro estava a gosto, também o estava Drizzt. Não havia para ele nada mais importante no mundo; o renegado
drow tinha encontrado um propósito em sua vida. Drizzt Dou'Urdem tinha um lar. --Uma captura muito rentável --disse o desolador mental, com sua voz débil e sobrenatural.
A criatura mostrou as bebidas que tinha ganho na areia. Os outros dois desoladores moveram suas mãos de quatro dedos para manifestar sua aprovação. Um campeão
--comentou um, telepáticamente. --E equipado para cavar --acrescentou o terceiro em voz alta. Uma idéia surgiu em sua mente e, portanto, na mente de outros. Possivelmente
para esculpir? Os três desoladores olharam ao outro lado da cova, onde tinham começado os trabalhos para construir novos quartos. --Poremos ao svirfnebli a trabalhar
a pedra quando for o momento oportuno --declarou o primeiro illita movendo os dedos. Mas primeiro quero que me consiga mais bebidas e ouro. Um escravo o mar
de rentável! --Como todos outros que capturamos na emboscada --disse o segundo. --O oseogarfio se ocupa do rebanho --explicou o terceiro. --E o drow atende ao cérebro
--disse o primeiro. Vi-o quando vinha para
aqui. Será um massagista excelente para prazer do cérebro e benefício de todos nós. --Também está isto --interveio o segundo, que estirou um tentáculo para tocar
ao terceiro. O terceiro desolador mostrou a estatueta de ônix. Magia? --perguntou o primeiro. Certamente --respondeu o segundo, mentalmente. Vinculado ao plano
astral. Acredito que é um ente da pedra. --Chamaste-o? --interrogou-o o primeiro em voz alta. Os outros dois desoladores fecharam as mãos ao uníssono, o sinal equivalente
a "não". --Possivelmente se trate de um inimigo muito perigoso --explicou o terceiro. Pensamos que seria mais prudente observar à besta em seu próprio plano antes
de chamá-la. --Uma decisão muito sábia --comentou o primeiro. Quando lhes partem? --Agora mesmo --respondeu o segundo. Acompanha-nos? O primeiro illita fechou
os punhos e depois mostrou um dos frascos de bebidas. --Não terá que desperdiçar a ocasião de obter novas lucros -- respondeu. Os outros dois moveram os dedos,
excitados. Depois, enquanto seu companheiro se retirava a outra habitação para contar as lucros, instalaram-se comodamente em umas poltronas bem amaciadas e se prepararam
para a viagem. Flutuaram juntos, abandonando os corpos nas poltronas, e ascenderam seguindo o vínculo da estatueta com o plano astral, que viam como um magro cordão
prateado. Agora se encontravam além da caverna onde viviam, além das pedras e os sons do plano material, e flutuavam na vasta serenidade do mundo astral. Aqui não
havia mais ruído que o produzido pelo ulular constante do vento astral. Tampouco havia estruturas sólidas --nenhuma em términos do mundo material-- e a matéria ficava
definida pelas variações de luz. Os desoladores se separaram do cordão prateado da estatueta quando faltava pouco para completar a ascensão astral. Entrariam em
um plano próximo à entidade da grande pantera, mas não tão perto para ser descobertos. Os desoladores não estavam acostumados a ser bem recebidos, pois eram desprezados
por quase todas as criaturas de quão planos visitavam. Penetraram no plano astral sem incidentes e não demoraram para encontrar à entidade representada pela estatueta.
Guenhwyvar corria através de um bosque de luz estelar perseguindo a entidade de um cervo, em um ciclo eterno. O cervo, tão soberbo como a pantera, saltava e corria
com um equilíbrio perfeito e uma graça inconfundível. Guenhwyvar e o cervo tinham interpretado esta cena um milhão de vezes e a voltariam a repetir um milhão mais.
Este era a ordem e a harmonia que governavam a existência da pantera, quão mesmos regiam os planos de todo o universo. Mas algumas criaturas, como os fetos dos planos
inferiores e quão desoladores agora contemplavam à pantera de longe, não podiam aceitar a singela perfeição desta harmonia nem reconheciam a beleza da interminável
caçada. Enquanto olhavam à maravilhosa pantera no jogo da vida, os desoladores só pensavam em como tirar proveito do felino.
17
Um delicado equilíbrio
Belwar estudou a seu último inimigo com muita atenção, porque alguma coisa lhe resultava conhecida na aparência da besta couraçada. "fui em alguma ocasião amigo
desta criatura?", perguntou-se. Entretanto, as dúvidas do gladiador svirfnebli não podiam penetrar na consciência do pequeno, porque o amo illita continuava com
a
insidiosa transmissão de enganos telepáticos. Mata-o, meu grande campeão --rogou-lhe o desolador desde seu assento nas escadarias. É seu inimigo mais perigoso,
e me fará mal se não acabar com ele. O oseogarfio, muito maior que o amigo perdido do Belwar, carregou contra o svirfnebli, porque não tinha nenhum reparo em comer-se
ao pequeno. Belwar dobrou os joelhos e esperou o momento preciso. Quando o oseogarfio se inclinou sobre ele, com as garras bem separadas para lhe impedir de escapar,
saltou para diante, com a mão-de-martelo como um aríete contra o peito do monstro. No exoesqueleto do gigante apareceram um milhar de gretas provocadas pelo tremendo
golpe, e o monstro se desabou para diante, sem conhecimento. O pequeno tentou apartar-se para não ficar prejudicado pelo peso e o impulso do oseogarfio, mas não
foi
o bastante rápido. Sentiu que lhe desconjuntava um ombro, e ele também esteve a ponto de perder o conhecimento por culpa da terrível dor. Uma vez mais as chamadas
do amo do Belwar dominaram sua mente e inclusive o sofrimento. Os gladiadores caíram ao mesmo tempo, e Belwar ficou sepultado pela mole do monstro. O tamanho do
oseogarfio impedia a este alcançar com os braços ao capataz, mas dispunha de outras armas. O pico procurou o Belwar. O pequeno conseguiu pôr a mão-de-lança na trajetória,
embora não foi suficiente para detê-lo e acabou com o braço retorcido. O bicada não alcançou o rosto do Belwar por um par de centímetros. Nas escadarias, os desoladores
saltavam de entusiasmo e comentavam as alternativas do combate, empregando indistintamente a telepatia ou seus gorgoteantes vozes. As mãos se transformavam em punhos
à medida que alguns tentavam cobrar as apostas por considerar que tinha acabado o espetáculo. O amo do Belwar, preocupado pela possibilidade de perder a seu campeão,
chamou o dono do oseogarfio. Rende-te?--perguntou-lhe, com um tom de confiança que não sentia. O outro illita lhe voltou as costas e fechou os canais telepáticos.
O amo do pequeno não podia fazer outra coisa que olhar. O oseogarfio não podia aproximar-se mais ao svirfnebli, pois este tinha o cotovelo apoiado no chão e a mão-de-lança
sujeitava com firmeza o pico mortal do monstro, de modo que trocou de tática; levantou a cabeça bruscamente, com o qual conseguiu escapar da mão do Belwar. A intuição
jaqueta do capataz lhe salvou a vida, porque o oseogarfio voltou a investir o movimento e lançou o bicada. A reação normal e a defesa esperada
teria sido desviar a cabeça do monstro com um golpe da mão-de-lança. Isto era o que esperava o oseogarfio, e Belwar sabia. O svirfnebli moveu o braço por diante,
mas
cortou o alcance de forma tal que a mão-de-lança passasse por debaixo do pico do oseogarfio. Este, por sua parte, convencido de que Belwar tentava lhe dar um golpe,
freou em seco o ataque. Mas a mão-de-lança de mithril trocou de direção muito mais rápido do que tinha esperado o monstro. O reverso do Belwar alcançou ao oseogarfio
justo atrás do pico e lhe desviou a cabeça a um lado. Então, sem fazer caso da terrível dor no ombro desconjuntado, Belwar dobrou o outro braço e lançou um golpe.
Não tinha forças, mas naquele momento o oseogarfio girou a cabeça e abriu o pico para morder o rosto do pequeno. No instante preciso para tragar-se em troca um martelo
de mithril. A mão do Belwar se afundou na boca do oseogarfio forçando-o a abrir o pico além do que permitiam os músculos. O monstro se sacudiu enlouquecido para
conseguir livrar-se, e cada sacudida era uma tortura para o braço ferido do capataz. Belwar respondeu com idêntica fúria, descarregando um golpe atrás de outro contra
o parietal da cabeça do oseogarfio com a mão livre. O sangue emanava pelo enorme pico enquanto a mão-de-lança se cravava uma e outra vez. --Rende-te? --gritou-lhe
o amo do Belwar ao dono do oseogarfio. Uma vez mais a pergunta era prematura, porque, na areia, o oseogarfio não se dava por vencido e tinha posto em prática outra
de suas armas: o peso. O monstro apoiou o peito sobre o pequeno tendido, disposto a esmagá-lo. --Rende-te você? --replicou o amo do oseogarfio, ao ver a mudança
inesperada
da situação. Emano-pica-a do Belwar se cravou em um olho do oseogarfio, e o monstro uivou de dor. Os desoladores se levantaram uma e assinalaram para a areia, com
os dedos estendidos ou abrindo e fechando os punhos. Os donos dos gladiadores compreenderam o muito que tinham em jogo. Parecia pouco provável que os combatentes
pudessem voltar a brigar se permitiam a continuação da luta. Possivelmente teríamos que considerá-lo um empate --propôs telepáticamente o amo do Belwar. O outro
illita aceitou no ato, e os amos enviaram mensagens a seus campeões. Demoraram para conseguir acalmá-los e acabar o duelo, mas finalmente, as ordens puderam dominar
os selvagens instintos de sobrevivência dos gladiadores. de repente, o pequeno e o oseogarfio sentiram avaliação pelo rival, e, quando o monstro se levantou, tendeu-lhe
uma garra ao svirfnebli para ajudá-lo a ficar de pé. Ao cabo de um momento, Belwar se encontrava outra vez sentado no banco de pedra da pequena cela comunicada com
a areia por um túnel. Tinha o braço da manomartelo intumescido e um arroxeado enorme lhe cobria o ombro. Teriam que passar muitos dias antes de que Belwar pudesse
voltar para circo, e o preocupava muitíssimo não poder agradar a seu amo. O illita entrou na cela para ver as lesões do pequeno. Levava com ele bebidas para curar
a ferida, mas inclusive com a ajuda da magia, Belwar necessitaria uma temporada de repouso. Mesmo assim, o desolador tinha outras ocupações para o svirfnebli. Precisava
acabar a construção de um quarto em seus aposentos. Vêem --disse-lhe o illita, e o capataz se apressou a seguir a seu amo, mantendo um passo atrás em sinal de respeito.
Um drow ajoelhado chamou a atenção do Belwar enquanto o desolador o guiava através do nível inferior da torre central. Que sorte tinha esse elfo escuro de poder
tocar e dar prazer ao cérebro da comunidade! Mas se esqueceu dele em uns segundos quando chegou ao terceiro piso do edifício e às habitações que compartilhavam seus
três amos. Os outros dois desoladores permaneciam nas poltronas, imóveis e com um aspecto de mortos. O dono do Belwar nem sequer se fixou neles porque sabia que
os companheiros estavam muito longe, em uma viagem astral, e que os corpos não corriam perigo. De todos os modos, o illita se perguntou, só por um instante, como
iria naquele plano distante. Como todos os desoladores, o amo do Belwar desfrutava das viagens astrais, mas o pragmatismo, um rasgo illita muito acentuado, fez que
os pensamentos da criatura se mantivessem centrados nos assuntos mais urgentes. Tinha investido muito na compra do svirfnebli, e queria obter o máximo de benefício.
O desolador levou ao Belwar até uma das habitações e o fez sentar a uma mesa de pedra. Então, de repente, o illita bombardeou ao Belwar com sugestões telepáticas
e perguntas, ao tempo que lhe colocava o ombro em seu lugar e lhe enfaixava as feridas. Os desoladores podiam invadir os pensamentos de outro ser, por meio dos ataques
paralizantes ou as comunicações telepáticas, mas demoravam semanas, inclusive meses, em submeter totalmente a um escravo. Cada encontro reduzia a resistência natural
de este às insinuações mentais do illita e revelava ao amo mais coisas de suas memórias e emoções. O amo do Belwar tinha a intenção de sabê-lo tudo deste curioso
svirfnebli, de suas mãos artificiais, e dos motivos para ter uns companheiros tão pouco habituais. Esta vez o illita enfocou a investigação nos apêndices metálicos,
porque tinha a intuição de que Belwar não utilizava o máximo de suas possibilidades. Os pensamentos do illita sondaram uma e outra vez até que por fim encontrou
uma letanía nas profundidades da mente do Belwar. Bivrip? --perguntou-lhe. Em uma resposta reflete, o capataz golpeou as mãos metálicas entre si, e gemeu de dor
pela sacudida do impacto. Os dedos e tentáculos do desolador se moveram entusiasmados. Tinha encontrado algo importante, algo que podia fazer mais capitalista a
seu campeão, embora devia atuar com cuidado. Para lhe permitir recordar o feitiço também teria que devolver parte da memória consciente dos dias anteriores à escravidão.
O desolador aplicou ao Belwar outra bebida. Se o pequeno continuava a carreira de gladiador, teria que enfrentar-se outra vez ao oseogarfio; segundo as regras,
correspondia um novo encontro depois de um empate. O amo do Belwar duvidada que o svirfnebli pudesse sobreviver a outro combate contra o monstro. A menos que...
Dinin Dou'Urdem conduziu seu lagarto através do setor do Menzoberranzan onde viviam os familiares inferiores, a parte mais povoada da cidade. Mantinha o capuz do
piwafwi bem rodeada sobre o rosto e não levava nenhuma insígnia que o identificasse como nobre de uma casa regente. O segredo era o aliado do Dinin, tanto dos olhares
vigilantes nesta perigosa zona da cidade como dos olhos de sua mãe e sua irmã. Dinin tinha a idade suficiente para compreender os riscos da autosatisfacción. Vivia
em um estado vizinho na paranóia, pois nunca sabia quando Malícia e Briza podiam estar vigiando-o. Um grupo de peludos se atravessou no caminho do lagarto, e a fúria
dominou ao orgulhoso filho maior da casa Dou'Urdem ante a pouca pressa dos escravos por apartar-se. Involuntariamente, levou a mão ao látego sujeito ao cinturão.
Mas Dinin controlou o aborrecimento, consciente das conseqüências de ser descoberto. Deu a volta por uma das numerosas esquinas e seguiu a marcha através de uma
série de estalagmites conectadas. --Assim que me encontraste --disse uma voz conhecida detrás dele, a sua direita. Surpreso e assustado, Dinin reprimiu ao lagarto
e permaneceu imóvel na
cadeira. Sabia que ao menos uma dúzia de molas de suspensão pequenas lhe apontavam. Dinin voltou lentamente a cabeça para observar ao Jarlaxle. Nas sombras, o mercenário
parecia muito diferente do cortês e complacente drow que Dinin tinha conhecido na casa Dou'Urdem. Ou possivelmente era só o efeito da presença dos guardas armados
com duas espadas e de saber que não tinha à matrona Malícia para que o protegesse. --acostuma-se a pedir permissão antes de entrar em casa alheia --comentou Jarlaxle
com voz pausada mas ominosa. É a cortesia habitual. --Estou em uma rua pública --recordou-lhe Dinin. --Minha casa --afirmou Jarlaxle com um sorriso que negava
o valor da resposta. Dinin recordou sua posição, e isto reanimou em parte sua coragem. --É que um nobre de uma casa regente tem que pedir permissão ao Jarlaxle antes
de sair de sua própria casa? --grunhiu o filho maior. E o que me diz da matrona Baenre, que não entraria na casa mais inferior do Menzoberranzan sem pedir permissão
da mãe matrona? Acaso a matrona Baenre também tem que pedir a autorização do Jarlaxle, o patife? Dinin compreendeu que talvez se excedeu, mas o orgulho exigia estas
palavras. Jarlaxle se relaxou, e o sorriso que apareceu em seu rosto quase parecia sincera. --Assim que me encontraste --repetiu, e esta vez fez a reverência de
rigor. Me diga o que te traz por aqui. Dinin cruzou os braços sobre o peito em uma atitude beligerante, mais seguro de si mesmo ante as evidentes concessões do
mercenário. --Como é que está tão seguro de que te buscava? Jarlaxle intercambiou um sorriso com os dois guardas. As risitas dos soldados ocultos entre as sombras
foram como um cubo de água fria para a confiança do Dinin. --Dava a que vieste, filho maior --insistiu Jarlaxle, impaciente--, e acabemos com isto. Dinin estava
mais que disposto a dar por finalizado o encontro o antes possível. --Procuro informação referente ao zin-Carla --disse, sem mais rodeios. O espectro do Zaknafein
percorre as profundidades da Antípoda Escura há muitos dias. Muitos, possivelmente... O mercenário entreabriu as pálpebras enquanto analisava o raciocínio do filho
maior. --A matrona Malícia te enviou aqui? --manifestou com um tom que era tanto de pergunta como de afirmação. Dinin sacudiu a cabeça, e Jarlaxle não duvidou de
sua sinceridade. É tão sábio como destro com a espada --acrescentou Jarlaxle com uma segunda reverência que pareceu um pouco desconjurado no escuro mundo do soldado.
--vim por minha própria iniciativa --respondeu Dinin com voz firme. Preciso saber umas respostas. --Tem medo, filho maior? --Estou preocupado --respondeu Dinin,
sinceramente, sem fazer caso do tom provocador do mercenário. Nunca cometo o engano de subestimar a meus inimigos, ou a meus aliados. Jarlaxle o olhou com estranheza.
--Sei no que se converteu meu irmão --explicou Dinin. E também sei o que foi Zaknafein. --Zaknafein é agora um espectro --afirmou Jarlaxle--, submetido ao controle
da matrona Malícia. --passaram muitos dias --disse Dinin em voz baixa, convencido de que as implicações de suas palavras lhe davam força suficiente.
--Sua mãe pediu o zin-Carla --exclamou Jarlaxle, irritado. É o maior presente do Lloth, e só se dá para que a reina aranha obtenha em troca um grande prazer. A
matrona Malícia conhecia o risco quando solicitou o zin-Carla. Sem dúvida compreende, filho maior, que os espectros se concedem para o cumprimento de uma tarefa
específica. --E quais são as conseqüências do fracasso? --perguntou Dinin com brutalidade, quase tão alterado como o mercenário. O incrédulo olhar do Jarlaxle foi
uma resposta o mar de eloqüente. --De quanto tempo dispõe Zaknafein? --insistiu Dinin. Jarlaxle encolheu os ombros sem comprometer-se e respondeu com outra pergunta.
--Quem pode saber os planos do Lloth? --disse. Reina-a aranha pode ser muito paciente, se o ganho justificar a espera. Tanto vale Drizzt? --Uma vez mais o mercenário
encolheu os ombros. Isso é algo que unicamente Lloth pode decidir. Dinin observou ao Jarlaxle durante um bom momento, até convencer-se de que o mercenário não
tinha nada mais que adicionar. Então procurou suas arreios e se cobriu a cabeça com o capuz. Assim que se acomodou na cadeira, voltou a cabeça com a intenção de
fazer um último comentário, mas o mercenário e os guardas se esfumaram. --Bivrip! --gritou Belwar para completar o feitiço. O capataz golpeou as mãos metálicas entre
si, e esta vez quase não sentiu dor. Uma chuva de faíscas voou pelos ares quando chocaram as mãos, e o amo do Belwar aplaudiu entusiasmado. Não podia esperar um
segundo mais para ver seu gladiador em ação. Procurou um objetivo e viu o oco da nova habitação ao meio escavar. Uma série de instruções telepáticas invadiram a
mente do svirfnebli quando o illita lhe transmitiu as dimensões e o desenho que desejava para a habitação. Belwar não perdeu nem um instante. Pouco seguro da força
do ombro ferido, que guiava a mão-de-martelo, empregou a mão-de-lança. A pedra estalou em uma nuvem de pó como conseqüência do golpe mágico, e o desolador alagou
de
prazer os pensamentos do pequeno. Nem a couraça de um oseogarfio podia resistir semelhante impacto! O amo do Belwar reforçou as instruções que lhe tinha dado, e
depois
se retirou a outro quarto a estudar. Abandonado a seu trabalho, tão parecido ao que tinha realizado durante quase um século de vida, Belwar começou a pensar. Não
surgiu nada especial nos poucos pensamentos coerentes do capataz; a necessidade de satisfazer ao amo illita era o mais importante de seus movimentos. Não obstante,
pela primeira vez da captura, Belwar pensou. Quem era? ou que propósito tinha? A canção mágica de suas mãos de mithril soou outra vez em sua mente e se converteu
no foco de sua decisão inconsciente de escapar da confusão provocada pelas insinuações dos captores. --Bivrip? --repetiu. A palavra despertou uma lembrança mais
recente: a imagem de um elfo escuro, de joelhos e dedicado a massagear ao cérebro-deus dos desoladores. --Drizzt? --murmurou Belwar, mas o nome se perdeu no estrondo
da seguinte martelada dada para cumprir com as ordens do amo. A habitação devia ser perfeita. Uma parte de carne se sacudiu debaixo da mão negra, e uma quebra de
onda de angústia originada pelo cérebro central da comunidade esfolamento invadiu ao Drizzt. A única resposta emocional do drow foi uma profunda tristeza, porque
não podia suportar o mais mínimo sofrimento do cérebro. Seus dedos massagearam e acariciaram; Drizzt agarrou
um bol de água morna e o derramou lentamente sobre a carne. Então o drow recuperou a paz, porque a carne se acalmou graças à habilidade de seu tato, e a angústia
do cérebro foi substituída por uma sensação de gratidão. Atrás do drow ajoelhado, ao outro lado da ampla passarela, dois desoladores observaram seu trabalho e assentiram
agradados. Os elfos escuros eram os melhores para este tipo de encargos, e este último cativo era o melhor de todos. Os desoladores moveram os dedos entusiasmados
ante as implicações do pensamento compartilhado. O cérebro central tinha detectado a presença de outro drow intruso nas redes que formavam os túneis além da larga
e estreita caverna; outro escravo para massagear e tranqüilizar. Assim pensava o cérebro central. Quatro desoladores saíram da caverna, guiados pelas imagens transmitidas
pelo cérebro central. Um drow solitário tinha penetrado em seus domínios, uma presa fácil. Assim pensavam os desoladores.
18
O elemento surpresa
O espectro avançava em silencio pelo labirinto de túneis, com o passo rápido e elástico de um veterano guerreiro drow. Mas os desoladores mentais, guiados pelo cérebro
central, sabiam perfeitamente qual era o rumo do Zaknafein e o esperavam emboscados. Quando Zaknafein chegou junto ao mesmo penhasco onde tinham apanhado ao Belwar
e Clak, um illita lhe saiu ao encontro e disparou uma descarga de energia paralisante. Em distâncias curtas, poucas criaturas teriam resistido um golpe tão potente,
mas Zaknafein era um ser não morto, um ser ultraterreno. A proximidade da mente do Zaknafein, encadeada a outro plano de existência, não podia ser medida em passos.
Impenetrável aos ataques mentais, as espadas do espectro lançaram suas estocadas e cada uma trespassou um olho leitoso e sem pupila do assombrado illita. Os outros
três desoladores flutuaram do teto, descarregando os cones de energia. Zaknafein os esperou tranqüilamente, espadas em mão, enquanto os desoladores prosseguiam o
descida. Os ataques mentais sempre tinham dado resultado; não podiam acreditar que nesta ocasião não servissem de nada. Os desoladores dispararam uma dúzia de vezes
sem que o espectro resultasse afetado. Os atacantes começaram a preocupar-se e tentaram chegar aos pensamentos do Zaknafein para descobrir o que o protegia. O que
encontraram foi uma barreira que superava sua capacidade de penetração, uma muralha que transcendia seu plano de existência atual. Tinham visto a mestria da esgrima
do Zaknafein aplicada contra seu desafortunado companheiro e não tinham a intenção de travar um combate corpo a corpo contra um guerreiro tão hábil. Telepáticamente
acordaram trocar de direção. Mas tinham descendido muito. Ao Zaknafein não interessavam os desoladores e teria seguido seu caminho sem lhes fazer caso. Por desgraça,
os instintos do espectro e o conhecimento que tinha Zaknafein da vida passada referente aos desoladores, levaram-no a uma conclusão inevitável: se Drizzt tinha passado
por aqui --e Zaknafein não o punha em dúvida--, provavelmente se tinha encontrado com os desoladores. Um ser não morto podia derrotá-los, mas um drow mortal, embora
fosse Drizzt, não era rival para eles. Zaknafein embainhou uma espada e se encarapitou ao penhasco de pedra. Com um segundo salto, o espectro sujeitou a um illita
pelo tornozelo. A criatura disparou um cone de energia, mas era um ser condenado sem nenhuma defesa contra a espada do Zaknafein. Com uma força incrível, o espectro
se elevou, abrindo-se caminho com a espada. O desolador pretendeu desviar a lâmina, mas as mãos nuas não serviam de nada contra a certeira arma do espectro. A espada
do Zaknafein atravessou a barriga do desolador e lhe perfurou os pulmões e o coração. Com as mãos apertadas na enorme ferida do ventre, o illita não pôde fazer outra
coisa que olhar como Zaknafein encontrava um apoio e a seguir descarregava
um tremendo chute contra seu peito. O desolador moribundo saiu despedido e voou dando tombos sobre si mesmo até que se estrelou contra uma parede. Ali ficou flutuando
no ar enquanto o sangue formava um atoleiro no chão. O seguinte salto do Zaknafein o levou contra o segundo illita, e o impulso do choque fez que ambos alcançassem
ao terceiro. Os dedos e tentáculos dos desoladores se sacudiram enlouquecidos em busca de um ponto onde sujeitar-se à carne do drow. Mas a arma era muito mais eficaz,
e em questão de segundos o espectro se separou das duas últimas vítimas. Com seu próprio feitiço de levitação, baixou brandamente até o chão e se afastou tranqüilamente,
deixando detrás de si os quatro cadáveres: três que flutuariam no ar até que se esgotassem seus feitiços de levitação, e um quarto no chão. O espectro não se preocupou
em limpar o sangue das espadas, pois sabia que muito em breve as utilizaria de novo. Os dois desoladores continuaram com a observação da entidade da pantera. Não
sabiam, mas Guenhwyvar tinha descoberto sua presença. No plano astral, onde os sentidos materiais como o aroma e o gosto não tinham aplicação, a pantera gozava de
outros sentidos mais sutis. Aqui Guenhwyvar caçava valendo-se de outro sistema que convertia as emanações de energia em imagens mentais, e a pantera podia distinguir
no ato entre a auréola de um cervo e a de um coelho sem necessidade de ver a criatura. Os desoladores não eram uns desconhecidos no plano astral, e Guenhwyvar reconheceu
suas emanações. A pantera ainda não tinha decidido se sua presença era uma casualidade ou se estava relacionada de algum modo com o fato de que Drizzt não a tinha
chamado em vários dias. O evidente interesse que os desoladores mostravam por ela sugeria esta última possibilidade, algo que preocupava profundamente à pantera.
Em qualquer caso, Guenhwyvar não queria fazer o primeiro movimento contra um inimigo tão perigoso, de modo que continuou com sua rotina diária, sem perder de vista
aos visitantes. Guenhwyvar notou uma mudança nas emanações dos desoladores quando as criaturas iniciaram um rápido descida para o plano material. A pantera não podia
esperar mais. Com um formidável salto das estrelas, Guenhwyvar se lançou contra os desoladores. Ocupados com seus esforços por iniciar a viagem de volta, os desoladores
não reagiram até que foi muito tarde. A pantera se mergulhou por debaixo de um deles e apanhou o cordão prateado entre seus dentes de luz. Guenhwyvar sacudiu a cabeça
de um lado a outro e cortou o cordão prateado. O illita indefeso se afastou, perdido para sempre no plano astral. O outro desolador, interessado unicamente em salvar
a vida, não fez caso das súplicas do companheiro e continuou o descida para o túnel entre planos que o devolveria a seu corpo material. O illita quase conseguiu
evitar ao Guenhwyvar, mas as garras da pantera o sujeitaram no instante de entrar no túnel. Guenhwyvar o acompanhou na viagem. Da pequena ilha de pedra, Clak viu
a comoção que se estendia por toda a caverna. Os desoladores corriam daqui para lá ao tempo que ordenavam telepáticamente a quão escravos fossem às posições de defesa.
Os vigias se dispersaram por todas as saídas, e outros desoladores se elevaram pelos ares para manter uma vigilância global da situação. Clak compreendeu que uma
crise motivada por uma causa que desconhecia afetava à comunidade, e um pensamento lógico se abriu passo na mente do oseogarfio: se os
desoladores se enfrentavam a um novo inimigo, esta poderia ser a oportunidade para escapar. O olhar do Clak se posou na alavanca da ponte, e depois em seus companheiros
na ilha. A ponte era retrátil, e a alavanca se inclinava para a ilha. Um projétil bem dirigido poderia jogá-la para trás. Clak entrechocó as garras --um gesto que
lhe fez recordar ao Belwar-- e agarrou a um pequeno cinza como se fosse uma pedra. A desafortunada criatura voou para a alavanca mas lhe faltou alcance. estrelou-se
contra a parede do abismo e se desabou para a morte. Clak chutou furioso e se voltou em busca de outro projétil. Não sabia como chegaria até o Drizzt e Belwar, e
naquele instante nem sequer pensou neles. Agora mesmo o problema principal era sair de sua prisão. Esta vez lhe tocou o turno a uma vitela. Não houve sutilezas nem
secretos na entrada do Zaknafein. Como não tinha medo dos primitivos métodos de ataque dos desoladores, o espectro avançou sem mais pela caverna larga e estreita,
sem ocultar-se de ninguém. Um grupo de três desoladores descenderam sobre ele imediatamente, lançando seus cones paralizantes. Uma vez mais o espectro atravessou
as descargas de energia sem alterar-se, e os três desoladores sofreram a mesma sorte que os quatro que se enfrentaram ao Zaknafein nos túneis. Então chegaram os
escravos. Dispostos a agradar aos amos, goblins, pequenos cinzas, orcos e inclusive um punhado de ogros carregaram contra o drow invasor. Alguns blandían arma, mas
outros só contavam com as mãos e os dentes, confiados em que a força do número seria suficiente para acabar com o guerreiro solitário. As espadas e os pés do Zaknafein
resultaram muito rápidos para umas táticas tão diretas. O espectro se moveu com a destreza de um esgrimista consumado, fazendo fintas em uma direção para depois
trocar de movimento e atacar aos oponentes mais próximos. além de onde se livrava o combate, os desoladores formaram suas próprias linhas de defesa, enquanto reconsideravam
as virtudes de suas táticas. Os tentáculos fustigavam o ar à medida que fluíam as comunicações telepáticas que tentavam encontrar alguma explicação aos acontecimentos.
Não confiavam o suficiente nos escravos para lhes dar armas, mas à medida que as baixas aumentavam, os desoladores começaram a lamentar tantas perdas. De todos os
modos, acreditavam que podiam obter a vitória. Não demorariam para somar-se à briga novos grupos de escravos. O guerreiro acabaria por cansar-se, diminuiriam suas
forças, e a horda acabaria impondo-se. Os desoladores desconheciam a verdade do Zaknafein. Não podiam saber que era uma entidade não morta, um ser movido pela magia
e dotado de uma energia inesgotável. Belwar e seu amo observaram os movimentos espasmódicos de um dos corpos, o sinal inconfundível de que o espírito retornava da
viagem astral. O pequeno não compreendia o significado dos movimentos convulsivos, mas notava o prazer de seu dono, e isto o agradava. Entretanto, o amo do Belwar
também estava um tanto preocupado porque só retornava um dos companheiros e as chamadas do cérebro central tinham a máxima prioridade e não se podiam passar por
cima. O desolador viu que os espasmos do companheiro adotavam um ritmo regular, e então aumentou sua confusão ao ver que uma névoa negra aparecia ao redor do corpo.
Naquele mesmo instante o illita entrou no plano material, e o dono do
svirfnebli compartilhou telepáticamente sua dor e seu medo. antes de que tivesse tempo de reagir, Guenhwyvar se materializou sobre o illita sentado, e o atacou a
batidas os dentes e zarpazos. Belwar ficou de uma peça quando uma lembrança fugaz passou por sua mente. --Bivrip? --sussurrou, e depois--: Drizzt? A imagem do drow
ajoelhado voltou para sua memória. Mata-a, meu bravo campeão! Mata-a! --implorou o amo do Belwar, mas já era muito tarde para o desafortunado companheiro do illita.
O desolador sentado se sacudiu, frenético, e seus tentáculos sujeitaram a cabeça do Guenhwyvar em um intento por chegar ao cérebro. A pantera respondeu com uma patada
que arrancou dos ombros a cabeça de polvo. O capataz, com as mãos ainda encantadas de seu trabalho na habitação, avançou lentamente para a pantera, com passos retardados
não pelo medo mas sim pela confusão. voltou-se para o amo e perguntou: --Guenhwyvar? O desolador sabia que lhe havia devolvido muito ao svirfnebli. A lembrança do
feitiço tinha estimulado no escravo outras memórias muito mais perigosas. Já não podia confiar no Belwar. Adivinhando as intenções do illita, a pantera se separou
de um salto do desolador morto uma fração de segundo antes de que a criatura disparasse contra Belwar. Guenhwyvar se levou por diante ao capataz e o fez cair escancarado.
Os músculos felinos se flexionaram e estiraram quando o animal aterrissou, e o animal girou e ficou encarado para a porta da habitação. A descarga do desolador roçou
ao Belwar enquanto caía, mas a confusão e raiva do pequeno o protegeram do insidioso ataque. Naquele instante, o pequeno recuperou a liberdade e, ficando de pé,
contemplou
ao illita como a coisa horrível e cruel que era. --Adiante, Guenhwyvar! --gritou o capataz, embora a pantera não necessitava que a animassem. Graças a sua natureza
astral, Guenhwyvar compreendia muito bem a sociedade illita e sabia qual era a chave para ganhar qualquer batalha contra a guarida destas criaturas. A pantera se
lançou contra a porta com todo seu peso, derrubou-a e saiu ao balcão que dava à câmara onde estava o cérebro central. O amo do Belwar, preocupado pela segurança
do cérebro-deus, tentou segui-la, mas a fúria do pequeno tinha centuplicado suas forças, e seu braço ferido não sentiu nenhuma dor quando estrelou a mão-de-martelo
na fofa carne da cabeça do illita. As faíscas da mão metálica queimaram o rosto do desolador, e a criatura se desabou contra a parede, enquanto seus olhos leitosos
e sem pupilas olhavam ao svirfnebli, estupefatos. Quinze metros mais abaixo, o drow ajoelhado advertiu o medo e a cólera de seu amo e olhou para as alturas no preciso
momento em que a pantera negra voava pelos ares. Totalmente submetido ao cérebro central, Drizzt não reconheceu ao Guenhwyvar como sua velha companheira e querida
amiga; naquele instante só viu uma ameaça ao ser que mais queria. Mas Drizzt e outros escravos massagistas não puderam fazer outra coisa que olhar indefesos enquanto
a poderosa pantera, com as fauces abertas e as garras estendidas, caía no centro da massa de carne palpitante que governava a comunidade dos desoladores.
19
Dores de cabeça
Uns cento e vinte desoladores viviam no castelo de pedra ou em seus arredores, e cada um deles sentiu a mesma terrível dor de cabeça quando a pantera caiu sobre
o cérebro central da comunidade. Guenhwyvar se moveu como um arado através da indefesa massa de carne, abrindo grandes sulcos com suas afiadas garras. O cérebro
central transmitiu sensações de terror aos escravos para animá-los a sair em sua ajuda. Ao compreender que não podia contar com eles, a coisa optou por suplicar
à pantera. Entretanto, a ferocidade primitiva do Guenhwyvar era como uma tela ao intrusismo mental. A pantera continuou com a destruição, afundando-se cada vez mais
nas sanguinolentas malhas. Drizzt gritou furioso e correu ao longo da passarela, tentando encontrar a maneira de chegar até o animal. Percebia a angústia de seu
querido amo e rogava que alguém --qualquer-- fizesse algo. Os outros escravos se comportavam da mesma maneira, e os desoladores foram daqui para lá, mas Guenhwyvar
se encontrava no centro dos miolos, fora do alcance de qualquer arma a disposição dos telépatas. Uns segundos depois, Drizzt deixou de correr e de gritar. perguntou-se
quem era e onde estava, e que demônios podia ser aquela coisa repugnante que tinha diante. Olhou a seu redor e viu as expressões de confusão nos rostos de vários
escravos duergars, outro elfo escuro, dois goblins e um peludo. Os desoladores continuavam com as carreiras, empenhados em atacar à pantera, que era a ameaça principal,
e não emprestaram nenhuma atenção aos cativos. Guenhwyvar apareceu de repente entre as dobras do cérebro. A pantera apareceu sobre um penhasco carnudo só por um
instante, para desaparecer imediatamente. Vários desoladores dispararam contra o branco fugaz, mas o animal desapareceu antes de que os cones de energia pudessem
alcançá-lo. Assim e tudo, Drizzt alcançou a vê-lo. --Guenhwyvar! --gritou o drow enquanto uma multidão de pensamentos apareciam em sua mente. A última coisa que
recordava era estar entre as estalactites de um túnel onde espreitavam umas sombras sinistras. Um illita passou ao lado mesmo do drow, muito preocupado pelo ataque
da pantera para dar-se conta de que Drizzt já não era um escravo. O elfo escuro não tinha mais arma que seu corpo, mas levado pela fúria lhe dava igual. Deu um salto
atrás do monstro e descarregou um chute contra a nuca da cabeça de polvo. O illita foi cair sobre o cérebro central e ricocheteou várias vezes nas dobras escorregadias
antes de poder sujeitar-se. Na passarela, os escravos compreenderam que tinham recuperado a liberdade. Rapidamente os pequenos cinzas se agruparam e se lançaram
contra
dois desoladores, sobre os que descarregaram uma chuva de murros e de ferozes golpes propinados com suas pesadas botas.
ouviu-se o ruído de uma descarga, e Drizzt se voltou a tempo para ver o outro elfo escuro alcançado pelo cone de energia. Um desolador correu para o drow e se abraçou
a ele. Quatro tentáculos se cravaram no rosto da vítima e se afundaram na carne em busca do cérebro. Drizzt desejou poder ajudá-lo, mas um segundo illita se interpôs
entre eles e tomou pontaria. O jovem se mergulhou a um lado quando se produziu a descarga; levantou-se depressa e pôs-se a correr para afastar-se todo o possível
do inimigo. O grito do outro drow o reteve por um instante, e jogou um olhar por cima do ombro. Umas linhas inflamadas e grotescas sulcavam o rosto do drow, um rosto
contorsionado por uma angústia terrível. Drizzt viu a sacudida da cabeça do illita, e como os tentáculos, enterrados debaixo da pele do drow, alcançavam e sorviam
os miolos. O pobre drow gritou por última vez e então cessou toda resistência, enquanto a criatura acabava com seu repugnante festim. Sem dar-se conta, o peludo
salvou ao Drizzt de um destino similar. Em sua fuga, a criatura de dois metros de estatura se interpôs entre o Drizzt e o perseguidor quando o illita repetia a descarga.
O golpe atordoou ao peludo durante os segundos que demorou o desolador em aproximar-se. No momento em que este se dispunha a apanhar à vítima supostamente inerme,
o peludo o tombou de uma patada. Mais desoladores apareceram nos balcões que davam ao recinto circular. Drizzt não sabia onde podiam estar seus amigos, ou como podia
escapar, mas a porta que viu junto à passarela parecia ser a única oportunidade para consegui-lo. Correu para ali disposto a jogá-la abaixo; não teve ocasião porque
a porta se abriu sozinha. Drizzt foi dar entre os braços do desolador que se encontrava ao outro lado. Se no interior do castelo de pedra reinava a confusão, o exterior
era um caos. Os escravos já não carregavam contra Zaknafein. Ferida-las do cérebro central os tinham liberado das sugestões dos desoladores, e agora os goblins,
os pequenos cinzas e todos outros só pensavam em escapar. Os que se encontravam perto das saídas da caverna fugiram por elas; outros corriam de um lado para outro
para manter-se fora do alcance das descargas mentais dos desoladores. Como um autômato, Zaknafein se abria passo a golpes de espada. Abateu a um goblin que passou
junto a ele e depois avançou para a criatura que tinha estado perseguindo o goblin. Sem fazer caso do cone de energia, Zaknafein estripou ao desolador. No castelo
de pedra, Drizzt tinha recuperado a identidade, e os feitiços mágicos imbuídos no espectro se centraram nos patrões mentais do objetivo. Com um grunhido, Zaknafein
caminhou em linha reta para o castelo, deixando a seu passado uma multidão de mortos e feridos, escravos e desoladores por igual. Outra vitela mugiu assustada enquanto
voava pelos ares. Três cabeças de gado mancavam ao outro lado do abismo, e uma quarta tinha seguido ao duergar até o fundo. Esta vez, Clak não falhou a pontaria,
e o animal golpeou contra a alavanca e a moveu para trás. A ponte mágica se desdobrou no ato, e o extremo se assegurou aos pés do Clak. O oseogarfio sujeitou a outro
pequeno cinza, no caso de, e avançou pela ponte. encontrava-se quase na metade quando apareceu o primeiro desolador, que corria para a alavanca. Clak compreendeu
que
não podia alcançar o outro extremo antes de que o illita desenganchasse a ponte. Só tinha um tiro. Clak levantou o pequeno cinza --quem permanecia alheio à realidade--
bem alto por cima da cabeça, e continuou a travessia, ao tempo que deixava aproximar-se do
desolador. No momento em que este tendeu a mão para a alavanca, o duergar se estrelou contra seu peito e o tombou. Clak correu para salvar a vida. O illita se recuperou
e empurrou a alavanca. A ponte se rendeu rapidamente. Um último salto quando a ponte de metal e pedra desaparecia debaixo de seus pés permitiu ao Clak alcançar a
parede do abismo. Conseguiu pôr os braços e os ombros no bordo do precipício e teve a inteligência de encarapitar-se a toda pressa. O illita acionou a alavanca na
outra direção, e a ponte se desdobrou outra vez, roçando ao Clak. Por fortuna, o oseogarfio se apartou o suficiente e estava bem sujeito, assim que a ponte só raspou
o couraçado assumo. O desolador amaldiçoou, jogou a alavanca para trás, e correu ao encontro do oseogarfio. Esgotado e ferido, Clak não tinha tido tempo de levantar-se
quando chegou o illita, e o cobriram ondas de energia paralisante. Agachou a cabeça e se deslizou um palmo antes de que as garras pudessem sujeitar-se. A cobiça
do desolador foi sua perdição. Em lugar de continuar com as descargas e empurrar ao Clak ao vazio, pensou aproveitar a oportunidade para devorar os miolos do oseogarfio.
ajoelhou-se diante do Clak e os quatro tentáculos procuraram ansiosos uma abertura na couraça facial. A dobro personalidade do Clak lhe tinha permitido resistir
as descargas nos túneis, e agora a energia mental paralisante tampouco lhe fez muito efeito. Assim que a cabeça de polvo do illita apareceu diante de seu rosto,
Clak se recuperou de tudo. De um bicada cortou dois dos tentáculos, e depois alcançou com uma garra o joelho do illita. Os ossos se converteram em pó pela pressão
da garra, e o desolador gritou de agonia, telepáticamente e também com seu gorgoteante voz. Um segundo mais tarde, seus gritos se apagaram enquanto caía às profundidades
do abismo. Um feitiço de levitação poderia havê-lo salvado, mas para consegui-lo precisava concentrar-se e a dor da cara ferida e o joelho destroçado o impediram.
O illita pensou na levitação no mesmo instante em que a ponta de uma estalagmite lhe atravessava o peito. A mão-de-martelo destroçou a porta de outro armário de
pedra. Belwar soltou uma maldição ao ver que não havia no interior nada mais que roupas dos desoladores. O capataz sabia que sua equipe não podia estar muito longe,
embora até o momento tinha revisado a metade das habitações de seu antigo amo sem conseguir resultados. Belwar retornou à estadia principal e se aproximou das poltronas
de pedra. Entre os assentos, viu a figurinha da pantera. Guardou-a em uma bolsa, e a seguir esmagou com a mão-de-lança a cabeça do outro illita, o perdido no plano
astral, como quem mata a uma mosca; na confusão, o svirfnebli quase se esqueceu deste monstro. Belwar apartou o cadáver, que caiu ao chão. --Magga cammara --murmurou
o pequeno quando olhou a poltrona e viu as frestas de uma trampilla no assento. Sempre expedito, destroçou o assento a marteladas e por fim encontrou as mochilas.
Seguindo o curso lógico, ocupou-se da outra poltrona, onde estava o desolador decapitado pela pantera. Também ali havia um baú secreto. --Ao drow lhe farão falta
--comentou o svirfnebli enquanto tirava os escombros para retirar o cinturão com as cimitarras. Correu para a saída, onde tropeçou com outro desolador, embora seria
mais exato dizer que este tropeçou com a mão-de-martelo do Belwar. O monstro recebeu o impacto em metade do peito e com tanta força que voou por cima da balaustrada
e se precipitou ao vazio. Belwar seguiu seu caminho sem incomodar-se em averiguar se o desolador havia
conseguido frear a queda ou tinha morrido. Podia ouvir o tumulto na planta baixa, os ataques mentais e os gritos, e os rugidos da pantera, que soavam como música
celestial nos ouvidos do capataz. Com os braços pegos ao corpo pelo abraço do illita, que parecia possuir uma força superior a habitual, Drizzt só podia menear a
cabeça para demorar o avanço dos tentáculos. A gente conseguiu sujeitar-se, depois outro, e começaram a afundar-se na negra pele do elfo. Drizzt sabia muito pouco
da anatomia dos desoladores, mas eram criaturas bípedas, por isso deu por sentadas algumas costure. moveu-se um pouco de lado para não ficar diante daquele ser espantoso,
e o propinó um joelhada nas virilhas. Pelo súbito afrouxamento dos braços e a maneira em que se abriram os leitosos olhos, o jovem compreendeu que tinha acertado.
Descarregou um segundo e um terceiro joelhada. O drow empurrou com todas suas forças e se livrou do debilitado abraço do illita. Mesmo assim, os tentáculos prosseguiram
seu obstinado avanço pela cara do Drizzt em busca do cérebro. Explosões de dor ardente sacudiram ao Drizzt até quase lhe fazer perder o sentido, e a cabeça caiu
para diante como morta. Mas o caçador não estava disposto a render-se. Quando o drow levantou a cabeça, o fogo dos olhos lilás caiu sobre o illita como um raio.
O caçador agarrou os tentáculos e atirou deles com tanta violência que torceu a cabeça do desolador. O monstro disparou sua carga mental, mas o ângulo era errôneo
e a energia não conteve ao caçador. Uma mão sujeitou os tentáculos enquanto a outra golpeava a branda cabeça do illita com a potência de um martelo de mithril. As
marcas dos golpes, moradas e azuis, apareceram na pele do desolador; um olho sem pupila se inflamou até ficar fechado. Um tentáculo se cravou no pulso do drow,
em tanto o frenético illita se defendia a murros. O caçador nem sequer se deu conta, e continuou com os golpes à cabeça até que a criatura se desabou. Drizzt apartou
o braço das ventosas do tentáculo, e reatou o ataque até que os olhos do illita se fecharam para sempre. O drow deu meia volta para ouvir um som metálico. No chão,
a uns passos de distância, havia uns objetos familiares que lhe viriam muito bem. Satisfeito ao ver que as cimitarras tinham cansado muito perto de seu amigo, Belwar
se lançou escada abaixo contra o illita mais próximo. O monstro se voltou e lançou sua descarga. O pequeno replicou com um grito furioso --um grito que o protegeu
em parte do efeito paralizador-- e depois se atirou de cabeça diretamente em meio das ondas de energia. Embora um pouco enjoado pelo assalto mental, o capataz se
chocou contra o illita e os rivais caíram sobre um segundo desolador que ia para ajudar a seu companheiro. Belwar apenas se conseguia orientar-se, mas tinha muito
claro que os braços e as pernas entre os que se debatia não eram os membros de gente amiga. As mãos de mithril descarregaram golpes a torto e a direito, e assim
que pôde correu pelo segundo balcão em busca de outra escada. Quando os dois desoladores feridos se repuseram, o svirfnebli já se encontrava muito longe. Belwar
surpreendeu a outro illita e lhe esmagou a cabeça contra a parede enquanto descendia ao seguinte nível. Uma dúzia de desoladores ocupavam este balcão, dedicados
a vigiar as duas escadas que conduziam à planta baixa da torre. O pequeno optou pelo caminho mais rápido: subiu ao corrimão metálico e se deixou cair até o chão,
que
estava quase cinco metros mais abaixo.
Uma descarga de energia paralisam golpeou ao Drizzt enquanto tentava agarrar as armas. O caçador resistiu porque seus pensamentos eram muito primitivos para um ataque
tão sutil. Em um único movimento, tão rápido que o adversário nem sequer pôde fazer uma ameaça de resistência, desembainhou uma cimitarra, girou-se e lançou a estocada
em um ângulo ascendente. A lâmina atravessou de lado a lado a cabeça do desolador. O caçador sabia que o monstro tinha morrido, mas arrancou a arma da ferida e descarregou
outro cutilada contra o cadáver, só pelo prazer de fazê-lo. Então o drow se levantou e pôs-se a correr com as cimitarras desembainhadas, uma manchada de sangre illita
e a outra ansiosa por prová-la. O jovem teria que ter procurado uma rota de escapamento --isto é o que teria feito Drizzt Dou'Urdem--, mas o caçador queria mais,
exigia vingança contra o cérebro que o tinha escravizado. Um grito salvou ao drow, pois o fez sair da espiral de violência a que o arrastava a fúria instintiva.
--Drizzt! --chamou-o Belwar, que se aproximava de seu amigo caminhando com dificuldade. Me ajude, elfo escuro! Torci-me um tornozelo na queda! Os desejos de vingança
caíram no esquecimento enquanto Drizzt Dou'Urdem corria ao encontro de seu companheiro. Agarrados do braço, os dois amigos abandonaram a habitação circular. Uns
segundos mais tarde, Guenhwyvar, suja de sangue e restos do cérebro central, somou-se ao grupo. --nos tire daqui --rogou-lhe Drizzt à pantera, e Guenhwyvar ocupou
imediatamente a posição de guia. Puseram-se a correr pelos corredores, sinuosos e mau acabamentos, e Belwar não pôde evitar fazer um comentário a respeito. --Isto
não o tem feito nenhum svirfnebli --disse ao Drizzt com uma piscada de picardia. --Eu acredito que sim --respondeu o drow, lhe devolvendo a piscada. E acrescentou
depressa--: Dominados pelos encantamentos de um desolador, certamente. --Nunca! --insistiu Belwar. Jamais o trabalho de um svirfnebli poderia parecer-se com isto
nem que lhe tivessem derretido os miolos! A pesar do perigo que corriam, o pequeno soltou uma gargalhada e Drizzt o acompanhou na risada. Os ruídos dos combates
soavam
nos túneis laterais de todas as intercessões. Os agudos sentidos do Guenhwyvar lhes permitiam seguir a rota mais limpa, embora a pantera não podia saber qual era
o caminho de saída, mas algo era melhor que os horrores que tinham deixado atrás. Um desolador apareceu no corredor, proveniente de um túnel lateral, imediatamente
depois do passo do Guenhwyvar pela intercessão. A criatura não tinha visto a pantera e se enfrentou ao casal. Drizzt lançou ao Belwar ao chão de um tranco e se jogou
de cabeça contra o adversário, convencido de que receberia uma descarga antes de poder alcançá-lo. Mas ao voltar a olhar ao illita respirou aliviado. O desolador
jazia de barriga para baixo sobre a pedra, com o Guenhwyvar montada nas costas. Drizzt se aproximou da pantera enquanto esta liquidava de uma patada à criatura.
Belwar se apressou a reunir-se com eles. --A fúria, elfo escuro --comentou o svirfnebli e Drizzt o olhou com curiosidade. Acredito que a fúria diminui os efeitos
das descargas --explicou Belwar. Alguém me atacou na escada, mas eu estava tão furioso que nem me dava conta. Possivelmente estou equivocado... --Não --interrompeu-o
Drizzt ao recordar que a energia paralisante não lhe tinha feito efeito, inclusive a pouca distância, quando tinha ido recuperar as cimitarras. Naquela ocasião
o dominava seu outro eu, aquela parte escura e maníaca da que
tentava livrar-se com autêntico desespero. O assalto mental do desolador tinha sido inútil contra o caçador. Não te equivoca --assegurou a seu amigo. A fúria
pode derrotá-los, ou ao menos reduzir os efeitos dos assaltos mentais. --Então, te enfureça! --grunhiu Belwar, de uma vez que indicava ao Guenhwyvar que partisse
diante. Drizzt voltou a sujeitar o braço do capataz e assentiu à sugestão do Belwar. De todos os modos, o drow compreendeu que a fúria cega a que se referia o pequeno
não podia ser motivada conscientemente. O medo e a fúria instintivos podiam derrotar aos desoladores, mas Drizzt sabia, pelas experiências com seu outro eu, que
fortes emoções só eram provocadas pelo desespero e o pânico. O pequeno grupo percorreu uns quantos corredores, atravessou um amplo salão deserto, e a seguir outro
corredor. Atrasados pela claudicação do svirfnebli, não demoraram para ouvir o ruído de pegadas que os perseguiam. --Muito fortes para ser desoladores --comentou
Drizzt, espiando por cima do ombro. --Escravos --afirmou Belwar. detrás deles soaram as descargas paralizantes, seguidas por gemidos e o ruído dos corpos que caíam.
--Outra vez escravos --disse Drizzt com tom sombrio. Uma vez mais ouviram as pisadas, embora agora soavam como um trote ligeiro. --Depressa! --gritou Drizzt, e não
fez falta repetir-lhe ao Belwar. Puseram-se a correr, agradecidos pelas voltas e revoltas do corredor, porque pensavam que tinham aos desoladores muito perto. Ao
fim entraram em uma sala muito ampla e alta. Havia várias saídas, mas uma em especial --uma série de portas de ferro de grandes dimensione-- atraiu sua atenção.
Entre eles e as portas havia uma escada de caracol de ferro, e em um balcão não muito alto estava apostado um illita. --Corta-nos a retirada! --disse Belwar, advertindo
que as pisadas soavam agora mais fortes. Ao voltar-se para seu amigo, viu o sorriso no rosto do drow, e imediatamente também sorriu ele. Guenhwyvar se tinha lançado
para a escada de caracol e a subia em três saltos. O illita optou prudentemente por abandonar o balcão e desapareceu na escuridão dos corredores. A pantera não o
perseguiu mas sim permaneceu onde estava para poder vigiar do alto. O drow e o svirfnebli lhe deram as obrigado quando passaram junto à escada, mas lhes azedou a
alegria ao chegar às portas. Drizzt empurrou com todas suas forças sem conseguir as mover. --Trancadas! --gritou. --Não por muito tempo! --prometeu Belwar. Embora
se tinha esgotado a magia das mãos de mithril não vacilou em descarregar a mão-de-martelo contra o metal. Drizzt se colocou atrás do capataz para cobrir a retaguarda,
consciente de que os desoladores podiam aparecer em qualquer momento. --Date pressa, Belwar! --rogou-lhe. As mãos de mithril amassaram as portas com autêntica fúria.
Pouco a pouco cedeu a fechadura e as comporta se abriram um par de centímetros. --Magga cammara, elfo escuro! --gritou o capataz. Há uma barra de ferro que as
trava! Pelo outro lado! --Maldição! --exclamou Drizzt. Naquele preciso instante, um grupo de desoladores entrou na sala. Belwar não retrocedeu no empenho e seguiu
esmurrando a porta com a mão-de-martelo.
Os desoladores passaram por diante da escada e, de um salto, Guenhwyvar caiu entre eles e derrubou a todo o grupo. Foi então quando o drow descobriu que não tinha
a estatueta de ônix. A mão-de-martelo continuou com o trabalho para ampliar a separação das portas. Belwar deslizou a lâmina da mão-de-lança e de um golpe tirou
a barra
dos apoios. Comporta-as se abriram de par em par. --Venha, vamos! --gritou- o pequeno ao Drizzt. Enganchou a mão-de-lança no pulso do drow para arrastá-lo, mas o
jovem
se apartou. --Guenhwyvar!--vociferou Drizzt. O ruído das descargas mentais soou repetidamente entre o montão de corpos. A resposta do Guenhwyvar foi um uivo lastimero
mais que um rugido. Os olhos lilás do Drizzt arderam de fúria. Deu um passo para a escada antes de que Belwar recordasse a solução. --Espera! --exclamou o svirfnebli,
sem dissimular o alívio ao ver que Drizzt dava meia volta disposto a escutá-lo. Belwar aproximou sua bolsa e a abriu. Utiliza isto! Drizzt agarrou a estatueta
de ônix e a deixou cair a seus pés. --Vete, Guenhwyvar! --ordenou. Vete, retorna à segurança de sua casa! O drow e Belwar nem sequer podiam ver a pantera entre
o grupo de desoladores, mas perceberam a súbita angústia das criaturas incluso antes de que a névoa negra rodeasse o amuleto. Como se fossem um sozinho, os desoladores
se voltaram em sua direção e se lançaram sobre eles. --te encarregue da porta! --gritou Belwar. Drizzt já tinha recolhido a estatueta e corria naquela direção. As
portas de ferro se fecharam com grande estrépito e o drow se apressou a voltar a colocar a barra. Vários dos suportes estavam quebrados por causa dos golpes do capataz
e a barra se torceu, mas Drizzt as arrumou para sujeitá-la-o suficiente para demorar aos desoladores. --Os outros escravos não poderão escapar --assinalou Drizzt.
--Em sua maioria são goblins e pequenos cinzas --respondeu Belwar. --E Clak? O svirfnebli abriu os braços em um gesto de resignação. --Dão-me muita pena --gemeu
Drizzt,
horrorizado pelo destino daquelas criaturas. Não existe no mundo uma tortura equiparável às tenazes mentais dos desoladores. --É verdade, elfo escuro --sussurrou
Belwar. Os desoladores golpearam as portas, e Drizzt se apoiou no metal para ajudar à barra. --Aonde iremos? --perguntou Belwar detrás dele. Quando o drow se voltou
e olhou a larga e estreita caverna, compreendeu a confusão do capataz. Pelo menos havia uma dúzia de saídas, mas entre eles e cada uma destas se moviam uma multidão
de escravos aterrorizados ou um grupo de desoladores. A suas costas soou um golpe muito forte, e as portas cederam uns quantos centímetros. --Põe-se a correr! --respondeu
Drizzt, arrastando ao Belwar. Desceram por uma ampla escalinata e atravessaram um corredor de chão desigual, em busca de um caminho que os afastasse o máximo possível
do castelo. --Cuidado com os perigos que nos rodeiam! --recomendou-lhe Belwar. Sejam escravos ou desoladores! --Que se eles cuidem! --replicou Drizzt com as cimitarras
preparadas. Com um golpe do punho, tombou a um goblin que se interpôs no
caminho, e um segundo depois cortou os tentáculos da cabeça de um illita quando começava a sorver os miolos de um duergar recapturado. Então outro ex-escravo, um
gigante, apareceu diante do drow. Drizzt se lançou sobre ele, mas com a precaução de apartar as cimitarras. --Clak! --gritou o capataz detrás do Drizzt. --Ao fon...
fundo de... a... caverna --ofegou o oseogarfio com tanta dificuldade que suas palavras quase não se entendiam. A me... melhor saída. --lhes guiem --disse Belwar
entusiasmado e com novas esperanças. Nada nem ninguém poderia detê-los agora que estavam os três juntos. Entretanto, quando o capataz seguiu ao gigante observou
que Drizzt não os acompanhava. Seu primeiro pensamento foi que uma descarga paralisante devia ter afetado ao drow, mas ao voltar junto ao Drizzt, comprovou que
a causa era outra. No alto de uma das muitas escadas que uniam as cornijas, uma figura solitária fazia estragos entre os desoladores e os escravos. --Por todos os
deuses --murmurou o svirfnebli, incrédulo, porque a habilidade do guerreiro com as espadas lhe inspirou um profundo temor. Os cortes precisos e a destreza nos movimentos
das duas espadas não tinham o mesmo significado para o Drizzt Dou'Urdem. Ao contrário, para o jovem elfo escuro representavam algo familiar que o encheu de dor.
Olhou ao Belwar com ar ausente e pronunciou o nome do único guerreiro possuidor de tanta perícia, o único nome que podia acompanhar a aquela magnífica exibição de
esgrima. --Zaknafein.
20
Pai
Quantas mentiras lhe tinha contado a matrona Malícia? É que havia algo que fosse verdade na telaraña de enganos da sociedade drow? Seu pai não tinha sido sacrificado
à rainha aranha! Zaknafein estava ali, combatendo ante seus olhos, utilizando as espadas com mais habilidade que alguma vez. --Quem é? --perguntou Belwar. --Um
guerreiro drow --sussurrou Drizzt, quase sem poder falar. --Vem de sua cidade, elfo escuro? --quis saber o pequeno. Enviaram-no detrás de ti? --É do Menzoberranzan
--replicou Drizzt. Belwar esperou mais informação, mas o jovem estava muito emocionado pela aparição do Zaknafein para entrar em detalhes. --Devemos ir --disse
o capataz depois de uma pausa. --Depressa --acrescentou Clak, que havia tornado junto a seus amigos. A voz do oseogarfio soava muito mais controlada, como se a presença
dos companheiros tivesse ajudado à personalidade pek na luta interna. Os desoladores preparam novas defesas. Têm cansado muitos escravos. --Não --exclamou Drizzt,
ao tempo que se separava do alcance da mão-de-lança do Belwar. Não o deixarei! --Magga cammara, elfo escuro! --vociferou Belwar. Quem é? --Zaknafein Dou'Urdem
--chiou Drizzt, com uma raiva igual ou maior que a do svirfnebli. Entretanto, a voz se converteu em um murmúrio afogado quando acrescentou--: Meu pai. Belwar e Clak
não tinham tido tempo de recuperar do assombro quando Drizzt já subia pela escada. No alto, o espectro se erguia entre os corpos sem vida de escravos e desoladores
que tinham tido a desgraça de cruzar-se em seu caminho. um pouco mais à frente, em uma confisca mais elevada, vários desoladores fugiam do monstro não morto. Zaknafein
começou a persegui-los, porque corriam para o castelo de pedra, na mesma direção que o espectro tinha escolhido desde o começo. Mas um alarme mágica soou no interior
do espectro e o obrigou a voltar-se para a escada. Drizzt vinha para ele. Por fim tinha chegado a oportunidade do zin-Carla. O propósito da animação do Zaknafein
estava a ponto de cumprir-se. --Professor de armas! --gritou Drizzt, sem deixar de correr para seu pai. O jovem drow não cabia em si de alegria, sem compreender
a realidade do monstro que tinha diante. Mesmo assim, quando Drizzt se aproximou do Zak pressentiu que havia alguma coisa estranha. Possivelmente foi a luz estranha
nos olhos do espectro o que demorou o passado do jovem. Possivelmente foi o fato de que Zaknafein não respondeu à chamada. Um segundo depois, uma estocada procurou
seu corpo. Em um ato reflito conseguiu parar o golpe com uma cimitarra. Confuso, pensou
que Zaknafein não o tinha reconhecido. --Pai! --gritou. Sou Drizzt! Uma espada se lançou a fundo enquanto a segunda iniciava uma trajetória circular para depois
lançar-se bruscamente contra o flanco do Drizzt. Com idêntica rapidez, Drizzt parou o ataque da primeira espada e moveu a outra horizontalmente para desviar à segunda.
--Quem é? --perguntou Drizzt desesperado, furioso. A resposta foi uma chuva de golpes. Drizzt se moveu com a velocidade do raio para rechaçá-los, mas então Zaknafein
o surpreendeu com um reverso que conseguiu apartar as cimitarras do jovem ao mesmo tempo. A segunda espada do espectro a seguiu de perto, em uma estocada direta
ao coração, que Drizzt não podia evitar de maneira nenhuma. Do chão, ao pé da escada, Belwar e Clak gritaram angustiados, convencidos de que seu amigo estava a ponto
de morrer. Mas o momento de glória do Zaknafein se viu frustrado pelos instintos do caçador. Drizzt saltou a um lado antecipando-se à espada, e depois se retorceu
para mergulhar-se por debaixo da estocada mortal. A ponta da espada abriu uma ferida muito dolorosa no queixo do jovem. Quando Drizzt completou o mergulho e ficou
de pé nos degraus, não demonstrou nenhuma preocupação pela ferida. O jovem se enfrentou outra vez à encarnação de seu pai com olhos chamejantes de fúria. A agilidade
do Drizzt surpreendeu inclusive a seus amigos, que já o tinham visto combater. Zaknafein avançou sem perder um segundo, mas Drizzt já estava preparado antes de que
o espectro chegasse junto a ele. --Quem é? --repetiu Drizzt, esta vez com voz absolutamente tranqüila. O que é? O espectro grunhiu e reatou o ataque sem parar
memore. Convencido de que este não era Zaknafein, Drizzt não desperdiçou a oportunidade. Recuperou a posição anterior, desviou uma espada, e deslizou a cimitarra
pelo oco enquanto deixava passar ao adversário. A lâmina do Drizzt cortou a cota de malha e se afundou nos pulmões do Zaknafein, uma ferida que teria detido a qualquer
oponente mortal. Mas Zaknafein não se deteve. O espectro não precisava respirar nem sentia dor. Zak se voltou para o Drizzt e o obsequiou com um sorriso tão maligna
que teria arrancado o aplauso da matrona Malícia. Uma vez mais no alto da escada, Drizzt não saía de seu assombro. Via com toda claridade as dimensões do corte e
também via como, contra toda lógica, Zaknafein avançava sem sequer piscar. --te afaste! --gritou Belwar do pé da escada. Um ogro se lançou contra o pequeno mas Clak
o deteve e lhe esmagou a cabeça de uma patada. --Devemos ir --disse Clak com tanta claridade que o capataz se voltou assombrado. Belwar olhou a seu companheiro.
Naquele instante crítico, Clak se tinha recuperado quase totalmente do feitiço polimórfico do mago e voltava a ser um pek. --As pedras me dizem que os desoladores
se reagrupam no castelo -- explicou Clak, e o svirfnebli não se surpreendeu de que Clak pudesse escutar as vozes das pedras. Não demorarão para sair . --acrescentou
o oseogarfio--, e acabarão com todos quão escravos encontrem na caverna. Belwar não duvidava da veracidade da informação, mas para ele a lealdade pesava mais que
a segurança pessoal. --Não podemos abandonar ao drow --resmungou entre dentes. Clak assentiu e perseguiu um grupo de pequenos cinzas que avançava para eles. --Corre,
elfo escuro! --chiou Belwar. Nos acaba o tempo! Drizzt não ouviu a chamada de seu amigo. Tinha posta toda sua atenção no
professor de armas, o monstro que personificava a seu pai. Das muitas crueldades cometidas pela matrona Malícia, aquela era a pior de todas. Malícia tinha pervertido
a única coisa no mundo do Drizzt que tinha chegado a estimar. Já tinha sofrido o inexprimível quando soube que Zaknafein estava morto. E agora isto. Era mais do
que o jovem drow podia suportar. Queria lutar contra este monstro com todas suas forças, e o espectro, cujo único fim era esta batalha, compartilhava seus desejos.
Nenhum dos dois advertiu que um desolador, amparado na escuridão ao final da plataforma, tinha descendido detrás do Zak. --Vêem, monstro da matrona Malícia --grunhiu
Drizzt, afiando as cimitarras-- Vêem e prova meus aços. Zaknafein se deteve uns poucos passos de distância e voltou a sorrir. Com as espadas em alto, o espectro
deu outro passo. O desolador soltou sua descarga. O cone de energia alcançou aos dois rivais. Zaknafein não resultou afetado; em troca Drizzt recebeu o impacto de
cheio. Envolveu-o a escuridão, e lhe fecharam os olhos. Quão último ouviu foi o ruído das cimitarras ao se chocar contra o chão. Zaknafein rugiu vitorioso, entrechocó
as espadas, e avançou disposto a rematar ao drow cansado. Belwar gritou, mas foi o monstruoso uivo de protesto do Clak o que soou mais forte, por cima do estrépito
da batalha. Tudo o que Clak sabia como pek voltou para ele quando viu que a morte se abatia sobre o drow. A identidade pek surgiu possivelmente com mais força que
nunca em toda sua vida anterior. Ao ver que tinha à vítima indefesa ao alcance de suas espadas, Zaknafein se equilibrou... e se estrelou de cabeça contra uma parede
de pedra surta de um nada. O espectro retrocedeu com o rosto mudado pela ira. Arranhou a parede e a golpeou com as espadas; era sólida e absolutamente real. O muro
lhe impedia de chegar à escada e a sua presa. Ao pé da escada, Belwar olhou ao Clak, estupefato. Tinha ouvido comentar que alguns peks eram capazes de criar paredes
de pedra. --foste...? --gaguejou o capataz. O pek apanhado no corpo do oseogarfio não se incomodou em responder. Clak subiu a escada em quatro pernadas e levantou
o Drizzt entre seus enormes braços. Inclusive se ocupou de recolher as cimitarras antes de descender à carreira. --Corre! --ordenou-lhe Clak ao svirfnebli. Se
quer salvar a vida, Belwar Dissengulp, corre! O pequeno pôs-se a correr sem protestar. Clak se encarregou de limpar o caminho para a saída do fundo --ninguém se
atreveu
a interpor-se ante o monstro enfurecido--, e o capataz, com suas curtas pernas de svirfnebli e uma delas ferida, viu-se em dificuldades para segui-lo. Enquanto isso,
detrás da parede, Zaknafein só podia pensar que o desolador, o mesmo que tinha disparado contra Drizzt, era responsável pelo obstáculo. Com um grito de ódio se voltou
para o illita. Soou uma segunda descarga mental. Zaknafein deu um salto e cortou os pés do desolador. O ferido levitou mais alto e enviou uma mensagem telepática
a seus companheiros pedindo ajuda. O professor de armas não podia lhe dar alcance e, rodeado agora por outros desoladores que tinham ido em auxílio do primeiro,
não podia preparar seu feitiço de levitação. Zaknafein culpava ao illita de seu fracasso e não estava disposto a deixá-lo escapar. Arrojou a espada com a mesma precisão
de uma lança. O illita olhou ao Zaknafein, incrédulo, depois à lâmina cravada em seu peito e
compreendeu que sua vida tinha chegado ao final. Os desoladores correram para o Zaknafein, sem deixar de disparar os cones de energia paralisante. Ao espectro
só ficava uma espada, mas acabou com seus oponentes, descarregando suas frustrações contra suas horríveis cabeças de polvo. Drizzt tinha escapado... por agora.
21
Perdido e achado
--Elogiada seja Lloth --gaguejou a matrona Malícia, ao sentir o longínquo entusiasmo do espectro. encontrou ao Drizzt! A mãe matrona olhou a um lado e depois ao
outro, e as três filhas retrocederam ante o tremendo poder das emoções que lhe desfiguravam o rosto. --Zaknafein encontrou a seu irmão! Maia e Vierna intercambiaram
um sorriso, agradadas de que por fim estivesse a ponto de concluir a terrível experiência. Da reanimación do zin-Carla, quase não se atendiam as atividades normais
e necessárias na casa Dou'Urdem, e a nervosa mãe se tornou cada vez mais introvertida, preocupada unicamente pela caçada do espectro. No outro extremo da sala de
espera Briza também sorria, mas qualquer teria podido ver que em realidade era uma careta de desilusão. Para sorte da filha maior, a matrona Malícia estava muito
absorta nos episódios que ocorriam a centenares de quilômetros do Menzoberranzan para fixar-se nela. A mãe matrona se afundou no transe meditativo e saboreou cada
mendrugo de raiva que emanava do espectro, no conhecimento de que o filho blasfemo era seu destinatário. A respiração de Malícia se converteu em um ofego enquanto
Zaknafein e Drizzt liberavam o duelo, e de repente a mãe matrona quase deixou de respirar. Algo tinha detido ao Zaknafein --Não! --gritou Malícia, que abandonou
o trono de um salto. Olhou a seu redor, procurando a alguém a quem golpear ou algo que lançar. Não! --repetiu. Não pode ser! --Drizzt escapou? --perguntou Briza,
esforçando-se por não descobrir sua satisfação ante um possível fracasso. O furioso olhar de Malícia a pôs sobre aviso de que seu tom podia havê-la traído. --O espectro
foi destruído? --gritou Maia, angustiada. --Não, destruído não --respondeu Malícia, com um ligeiro tremor na voz. Mas uma vez mais, seu irmão escapou! --Ainda
é prematuro dizer que o zin-Carla fracassou! --proclamou Vierna, com a intenção de consolar à mãe. --O espectro o segue de perto! --acrescentou Maia, ao compreender
o propósito da Vierna. Malícia se deixou cair no trono e se enxugou o suor dos olhos. --me deixem --ordenou às filhas. Não queria que a vissem em um estado tão lamentável.
Sabia que o zin-Carla lhe roubava a vida, pois todos os pensamentos e as esperanças de sua existência dependiam do êxito do espectro. Quando a deixaram sozinha,
Malícia acendeu uma vela e procurou seu valioso espelho. Em
o transcurso das últimas semanas tinha adquirido um aspecto cadavérico. Apenas se tinha comido, e as profundas rugas provocadas pelo desgosto marcavam a pele que
antes tinha sido tersa e suave como a seda. Por sua aparência se podia pensar que tinha envelhecido um século em um par de meses. --Converterei-me em outra matrona
Baenre --sussurrou desgostada--, feia e murcha. Possivelmente pela primeira vez em toda sua vida, Malícia se perguntou se tinha sentido a busca incessante do poder
e o favor da desumana rainha aranha. Mas descartou estas reflexões imediatamente porque não era momento de começar a lamentar-se por tolices. Graças a sua força
e devoção, Malícia tinha conseguido converter sua casa em uma das famílias governantes e tinha conseguido um assento no conselho regente. De todos os modos, encontrava-se
ao bordo do desespero, quase destroçada pelas tensões dos últimos anos. Uma vez mais se limpou o suor dos olhos e se olhou no espelho. converteu-se em uma ruína.
A culpa a tinha Drizzt, recordou-se a si mesmo. As ações de seu filho menor tinham zangado à rainha aranha; seu comportamento sacrílego tinha significado a desgraça
de Malícia. --Apanha-o, espectro --murmurou a mãe matrona com uma careta de ódio. Naquele momento, não pensava no futuro que podia lhe proporcionar a rainha aranha.
Mais que nenhuma outra costure no mundo, a matrona Malícia Dou'Urdem queria ver morto ao Drizzt. Correram às cegas pelos arrevesados túneis, confiados em que não
encontrariam mais monstros que lhes cortassem o passo. Com um perigo tão real a suas costas, os três companheiros não podiam permiti-las precauções habituais. Passaram
as horas sem que deixassem de correr. Belwar, mais velho que seus amigos e obrigado por suas curtas pernas a dar dois passos por cada um do Drizzt e três por um
do Clak, cansou-se primeiro, mas isto não demorou ao grupo. Clak carregou a ombros com o capataz e prosseguiram a marcha. Não sabiam quantos quilômetros tinham percorrido
quando por fim fizeram uma primeira parada para descansar. Drizzt, silencioso e melancólico durante toda a carreira, apostou-se na entrada da pequena cova que tinha
escolhido como refúgio. Ao ver a profunda dor de seu amigo, Belwar se aproximou para consolá-lo. --Não era o que esperava, elfo escuro? --perguntou-lhe o capataz
com voz suave. Não obteve resposta, mas consciente de que Drizzt precisava desafogar-se, Belwar insistiu--: Conhecia drow da caverna. Acreditava que era seu pai?
Drizzt olhou furioso ao svirfnebli, e ao cabo de um segundo suavizou sua expressão ao compreender a preocupação do Belwar. --Zaknafein --explicou Drizzt. Zaknafein
Dou'Urdem, meu pai e professor. Foi ele quem me ensinou tudo o que sei de esgrima e da vida. Zaknafein foi meu único amigo no Menzoberranzan, o único drow que compartilhou
minhas crenças. --Tentou te matar --afirmou Belwar, sem mais. Drizzt torceu o gesto, e o capataz se apressou a lhe oferecer uma pequena esperança. Possivelmente
não te reconheceu. --Ele era meu pai --repetiu Drizzt--, meu companheiro mais íntimo durante duas décadas. --Então, por que, elfo escuro? --Aquele não era Zaknafein
--replicou Drizzt. Zaknafein está morto; minha mãe o deu em sacrifício à rainha aranha. --Magga cammara --sussurrou Belwar, horrorizado pela revelação referente
aos pais do Drizzt. A franqueza com que o jovem tinha explicado o espantoso crime levou a capataz a acreditar que o sacrifício de Malícia não era algo pouco habitual
na cidade drow.
Um calafrio sacudiu ao pequeno, mas dominó a repulsão pelo bem do amigo atormentado. --Ainda não sei que monstro reencarnou a matrona Malícia no corpo do Zaknafein
--prosseguiu Drizzt, sem fixar-se no desconforto de seu amigo. --Em qualquer caso, é um guerreiro formidável --comentou o pequeno. Isto era exatamente o que preocupava
ao Drizzt. O drow contra o que tinha lutado na caverna dos desoladores tinha a precisão e o estilo inconfundível do Zaknafein Dou'Urdem. Racionalmente, Drizzt podia
negar que Zaknafein tivesse sido capaz de atacá-lo, mas no fundo de seu coração sabia que aquele monstro era seu pai. --Como acabou? --perguntou Drizzt depois de
uma larga pausa. Belwar o olhou intrigado. --A briga --acrescentou Drizzt. Só recordo a aparição do desolador. O svirfnebli encolheu os ombros e olhou em direção
ao Clak. --lhe pergunte a ele --respondeu o capataz. Uma parede de pedra apareceu de repente entre você e o inimigo, mas não me pergunte como chegou até ali. Clak
escutou a conversação dos companheiros e se aproximou. --Eu a pus ali --disse, com a voz ainda bem clara. --Utilizando os poderes dos peks? --inquiriu Belwar. O
pequeno conhecia as habilidades dos peks com a pedra, embora não com suficiente detalhe para compreender do tudo o que tinha feito Clak. --Somos uma raça pacífica
--manifestou Clak, convencido de que talvez esta era a última oportunidade para lhe falar com os amigos de como era sua gente. por agora mantinha a personalidade
pek, mas já começava a notar que os instintos básicos do oseogarfio implantados pelo feitiço polimórfico voltavam por seus foros. Nosso único desejo é trabalhar
a pedra. É nosso único objetivo na vida. E esta simbiose com a terra vem acompanhada de um certo poder. As pedras nos falam e nos ajudam no trabalho. --Como o elementar
terrestre que uma vez lançou contra mim--recordou- Drizzt ao Belwar, com gesto severo. O pequeno riu envergonhado. --Não --disse Clak, disposto a não desviar do
tema.
Os pequenos das profundidades também podem utilizar os poderes da terra, embora sua relação é diferente. O amor que os svirfneblis sentem pela terra é só uma de
suas
várias definições da felicidade. --Clak desviou o olhar e observou a parede de pedra. Os peks são irmãos da terra. Ajudamo-nos como uma amostra de carinho. --Falas
da terra como se fosse um ser vivo --comentou Drizzt, não em um tom de brincadeira mas sim de curiosidade. --É-o, elfo escuro --interveio Belwar, imaginando-se como
devia ser Clak antes de seu encontro com o mago--, para aqueles que podem escutá-la. Clak moveu o enorme pico para expressar seu assentimento. --Os svirfneblis podem
ouvir o canto longínquo da terra --disse. Os peks falam com ela diretamente. Tudo isto ultrapassava a capacidade de compreensão do Drizzt. Não duvidava da sinceridade
das palavras dos companheiros, mas os elfos escuros não tinham uma relação com as pedras da Antípoda Escura equiparável a dos svirfneblis e peks. Em qualquer caso,
se Drizzt necessitava alguma prova do dito pelo Belwar e Clak, não tinha mais que recordar a batalha contra o elementar terrestre invocado pelo capataz, ou imaginar
a parede que tinha surto de um nada para impedir o passo a seus inimigos na caverna dos desoladores. --O que lhe dizem agora as pedras? --perguntou- Drizzt ao Clak.
deixamos atrás a nossos perseguidores? Clak se aproximou da parede e apoiou uma orelha contra a pedra.
--As palavras soam confusas --respondeu, com um tom quejumbroso. Os companheiros compreenderam o que aquilo significava. A terra falava com a claridade de sempre;
era o ouvido do Clak o que perdia capacidade ante o iminente retorno do oseogarfio. --Não escuto ruídos de perseguição --acrescentou Clak--, mas não posso confiar
em meus ouvidos. de repente soltou um grunhido e se retirou ao extremo mais afastado da cova. Drizzt e Belwar intercambiaram um olhar de preocupação e depois o seguiram.
--O que ocorre? --atreveu-se a lhe perguntar o pequeno ao oseogarfio embora sabia a resposta. --Afundo-me --respondeu Clak, e o chiado em sua voz acentuou a verdade
do fato. Na caverna dos desoladores, era pek mais pek que nunca em toda minha vida. Era pek total. Era a terra. O oseogarfio advertiu que Belwar e Drizzt não lhe
compreendiam --A p... parede --tentou explicar Clak. Criar uma parede como aquela é algo que só um grupo de peks anciões pode conseguir, trabalhando unidos ao
longo de um ritual muito complexo. --Clak fez uma pausa e sacudiu a cabeça violentamente como se queria lançar fora a personalidade do oseogarfio. Golpeou a parede
com uma de suas garras e se forçou a continuar--: Fui capaz de fazê-lo sozinho. Converti-me em pedra e não tive mais que levantar uma mão para fechar o passo aos
inimigos do Drizzt! --E agora o perde --disse o drow com suavidade. O pek se perde outra vez, sepultado pelos instintos do oseogarfio. Clak desviou o olhar e golpeou
a parede como única resposta. O gesto lhe deu um pouco de consolo, e o repetiu uma e outra vez, em uma cadência, como se assim pudesse conservar algo de sua autêntica
personalidade. Drizzt e Belwar saíram da cova e esperaram no túnel para que o gigante pudesse estar sozinho. Ao cabo de um momento, notaram que tinha cessado o tamborilar,
e Clak apareceu a cabeça, com os olhos alagados pelo pranto. Suas palavras balbucientes estremeceram aos companheiros porque não podiam negar sua razão nem seu desejo.
--Por... favor, MA... me matem.
QUINTA PARTE
Espírito
O espírito não se pode esmagar nem destruir. Uma vítima nas garras do desespero pode sentir o contrário, e certamente ao "amo" da vítima gostaria de acreditar que
é assim. Mas o certo é que o espírito permanece, algumas vezes enterrado mas nunca eliminado de tudo. Este é o falso suposto do zin-Carla e o perigo de semelhante
animação emocional. cheguei ou seja que as sacerdotisas o consideram o maior presente que pode oferecer a rainha aranha, a deidade que adoram os drows. Opino o
contrário. O correto quer dizer que o zin-Carla é a maior mentira do Lloth. Os poderes físicos do corpo não podem ser separados da racionalidade da mente e das emoções
do coração. Formam uma unidade, a integração em um único ser. É na harmonia destas três coisas --mente, corpo e coração-- aonde encontramos ao espírito. Quantos
tiranos o tentaram? Quantos governantes pretenderam reduzir a seus súditos a meros instrumentos para seu benefício pessoal? Roubam o amor e as crenças de sua gente.
Pretendem lhe roubar o espírito. Sua pretensão está indevidamente condenada ao fracasso. Isto é o que quero acreditar. Se se apagar a luz do espírito, só fica a
morte, e o tirano não tira nenhum proveito de um reino semeado de cadáveres. Mas a chama do espírito é algo resistente, indômita, instada. Para desilusão do tirano,
sempre conseguirá sobreviver, ao menos em alguns. Então, onde estava Zaknafein, meu pai, quando iniciou a busca para me destruir? Onde estava eu nos anos de solidão
passados nas profundidades da Antípoda Escura, quando o caçador em que me tinha convertido cegava meu coração e guiava minha espada freqüentemente contra meus pensamentos
conscientes? Agora compreendo que estivemos ali todo o tempo, sepultados mas não mortos. Espírito. Em todos os idiomas dos Reino, na superfície e na Antípoda Escura,
em todo tempo e lugar, a palavra soa a força e decisão. É a força do herói, a mãe da resistência, e a armadura do pobre. Não pode ser esmagado nem destruído. Isto
é o que quero acreditar.
DRIZZT DOU'URDEM
22
Sem rumo
A estocada foi tão rápida que o escravo goblin nem sequer pôde gritar de terror. Caiu de bruces, morto antes de tocar o chão. Zaknafein passou sobre o cadáver e
seguiu adiante; o caminho até a saída traseira da estreita caverna, a uns dez metros de distância, aparecia espaçoso. Enquanto o guerreiro não morto deixava atrás
à última vítima, um grupo de desoladores entrou na caverna diante mesmo do espectro. Zaknafein soltou um grunhido mas não se desviou nem demorou o passo. Sua lógica
e suas pernadas eram diretas; Drizzt tinha passado por essa saída, e ele o seguiria. Algo que se interpusesse cairia ante sua espada. Deixem que este siga seu caminho!
--disse uma mensagem telepática desde vários pontos da caverna, procedente de outros desoladores que tinham visto o Zaknafein em ação. Não podem derrotá-lo! Deixem
que o drow parta! Os desoladores já tinham muitas provas da eficácia mortal das espadas do espectro: mais de uma dúzia de seus camaradas tinham morrido à mãos do
Zaknafein. O novo grupo que se enfrentava ao Zaknafein respondeu imediatamente aos avisos telepáticos. Os integrantes se apartaram a toda pressa, exceto um. A raça
illita apoiava sua existência no pragmatismo baseado em enormes fontes de conhecimentos comuns. Os desoladores consideravam que as emoções primárias como o orgulho
eram um defeito mortal, e não se equivocavam. O desolador solitário lançou uma descarga mental contra o espectro, decidido a não permitir que ninguém escapasse.
Um segundo depois, o tempo que demorou a estocada, Zaknafein pisou no peito do illita cansado e atravessou a saída. Nenhum só de outros desoladores fez nada por
impedi-lo. Zaknafein ficou em cuclillas e escolheu cuidadosamente o rumo a seguir. Drizzt tinha passado por este túnel; o rastro era fresco. Mas mesmo assim, em
sua conscienciosa perseguição, teria que deter-se com freqüência a comprovar os rastros. Zaknafein não podia mover-se tão depressa como sua presa. Em troca, a diferença
do Zaknafein, Drizzt precisava descansar. --Alto! O tom da ordem do Belwar não deu lugar a discussão. Drizzt e Clak se detiveram no ato, se perguntando a que poderia
devê-la alarme do capataz. O pequeno se adiantou e apoiou uma orelha contra a parede de pedra. --Botas --sussurrou, assinalando a rocha. No túnel paralelo.
Drizzt se uniu a seu amigo e escutou atentamente, mas apesar de que seus sentidos eram mais agudos do habitual entre os elfos escuros, não estava tão capacitado
como o pequeno para entender as vibrações da pedra. --Quantas? --perguntou. --Poucas --respondeu Belwar, que se encolheu de ombros para dar a entender que só era
um
cálculo aproximado. --Sete --disse Clak desde uns passos mais à frente, com voz clara e firme. Duergars..., pequenos cinzas que escapam dos desoladores como nós.
--Como pode...? Drizzt se interrompeu ao recordar o que Clak lhe havia dito referente aos poderes dos peks. --Os túneis se cruzam? --perguntou-lhe Belwar ao oseogarfio.
Podemos evitar aos duergars? Clak se voltou para a pedra para procurar as respostas. --Os túneis se juntam um pouco mais adiante --repôs--, e depois continuam como
um sozinho. --Então, se ficarmos aqui, é provável que os pequenos cinzas passem de comprimento --opinou Belwar. Drizzt não ficou muito convencido do raciocínio do
svirfnebli. --Os duergars e nós temos um inimigo comum --assinalou Drizzt. de repente lhe iluminaram os olhos, ao ocorrer-se o uma idéia. Não poderíamos ser aliados?
--Embora freqüentemente os duergars e os drows viajam juntos, os pequenos cinzas não revistam aliar-se com os svirfneblis --recordou-lhe Belwar. E acredito que tampouco
com os oseogarfios! --Esta situação não tem nada de normal --apressou-se a dizer o elfo. Se os duergars escaparem dos desoladores, então é provável que estejam
mal equipados e desarmados. Possivelmente agradeceriam formar uma aliança, para benefício dos dois grupos. --Não acredito que se mostrem tão amistosos como pensa
--manifestou Belwar com um tom sarcástico--, embora reconheça que não é fácil defender-se neste túnel estreito, mais apropriado para o tamanho de um duergar que
para as espadas de lâmina larga dos drows ou dos braços ainda mais compridos de um oseogarfio. Se os duergars retrocederem quando chegarem ao cruzamento, teríamos
que brigar em um terreno favorável para eles. --Então vamos ao lugar onde se cruzam os túneis --propôs Drizzt--, e vejamos o que acontece. Os três companheiros não
demoraram para chegar a uma pequena caverna ovalada. Outro túnel, que percorriam os pequenos cinzas, desembocava quase unido ao dos companheiros, e um terceiro passadiço
se abria ao final do recinto. Os amigos atravessaram a caverna e procuraram o amparo das sombras do túnel mais longínquo enquanto o ruído das botas soava cada vez
mais perto. Ao cabo de uns instantes, os sete duergars entraram na câmara oval. Tinham um aspecto lamentável, tal como tinha suspeitado o elfo escuro, mas não foram
desarmados. Três levavam paus, dois esgrimiam espadas, outro uma adaga, e o último duas grandes pedras. Drizzt conteve a seus amigos e saiu ao encontro dos estranhos.
Embora nenhuma das duas raças sentia muita avaliação pela outra, os drows e os duergars freqüentemente formavam alianças para benefício mútuo. Drizzt pensou que
as conversações seriam mais fáceis se atuava sozinho. A súbita aparição surpreendeu aos cansados pequenos cinzas. Correram frenéticos de um lado para outro, preocupados
só em formar uma linha de defesa. Esgrimiram as espadas e os paus, e o duergar das pedras levantou um braço, preparado para lançar o projétil.
--Saúde, duergars --disse Drizzt, com a esperança de que os pequenos cinzas compreendessem a língua drow. Suas mãos descansavam nos punhos das cimitarras embainhadas;
sabia que podia as desencapar com tempo de sobra se era necessário. --Quem é você? --perguntou um dos duergars armado com espada em uma linguagem drow vacilante
mas compreensível. --Um refugiado como vós --respondeu Drizzt--, que escapa dos malignos desoladores mentais. --Então sabe que temos pressa --grunhiu o pequeno.
Te aparte de nosso caminho! --Ofereço-te uma aliança --disse Drizzt, sem mover-se. Sem dúvida quantos mais sejamos, melhor poderemos nos defender quando chegarem
os desoladores. --Um mais não significa grande coisa --replicou o duergar, obcecado. detrás dele, o pequeno das pedras balançou o braço em um gesto de ameaça. --Mas
três fazem uma diferença --comentou Drizzt sem perder a calma. --Tem amigos? --perguntou o duergar, em um tom mais conciliador. Olhou em todas direções, preocupado
pela possibilidade de uma emboscada. São drows? --Não --respondeu Drizzt. --Vi-o! --gritou alguém do grupo, em língua drow, antes de que Drizzt pudesse acrescentar
mais detalhes. Escapou acompanhado do monstro com pico e o svirfnebli! --Um pequeno das profundidades! --O líder dos duergars cuspiu aos pés do Drizzt. Esse não
é amigo dos duergars nem dos drows! Drizzt não teria tido nenhum inconveniente em aceitar o fracasso da oferta, e que cada um seguisse seu caminho em paz. Mas os
pequenos cinzas estavam dispostos a fazer honra a sua bem merecida fama de belicosos e pouco inteligentes. Com os desoladores atrás, o que menos necessitava este
grupo
de duergars era buscar-se mais inimigos. Uma rocha voou em direção à cabeça do Drizzt. elevou-se uma cimitarra e a desviou da trajetória. --Bivrip! --gritou o capataz
no túnel. Belwar e Clak apareceram à carreira, sem surpreender-se pela súbita mudança da situação. Na Academia drow, Drizzt, como todos os elfos escuros, tinha passado
meses estudando o comportamento e as técnicas de combate dos pequenos cinzas. Aquela preparação o salvou agora, porque foi o primeiro em passar à ofensiva: com um
feitiço singelo envolveu aos sete oponentes nas inofensivas chamas do fogo fátuo. Quase ao mesmo tempo, três anões desapareceram da vista, graças a seus talentos
inatos para a invisibilidade. Entretanto, as chamas púrpuras marcavam as silhuetas dos duergars invisíveis. Uma segunda rocha atravessou o espaço para estelar se
contra o peito do Clak. O monstro couraçado teria sorrido ante o ridículo ataque se os picos lhe tivessem permitido fazê-lo, e Clak continuou sua carga em linha
reta contra os pequenos. O lançador da pedra e o possuidor da adaga se apartaram a toda pressa porque não tinham armas capazes de deter o gigante. Como havia outros
inimigos mais à mão, Clak os deixou ir. O casal rodeou a caverna e foi em busca do Belwar, convencidos de que seria um rival menos difícil. O golpe da mão-de-lança
deteve bruscamente o arremesso. O duergar desarmado se lançou para diante em um intento por sujeitar o braço antes de que pudesse iniciar o reverso. Belwar prévio
o intento e atacou com a mão-de-martelo, golpeando ao pequeno cinza em pleno rosto. Voaram faíscas, os ossos se quebraram, e ardeu a pele cinza. O duergar deu um
salto
e se retorceu, desesperado, com as mãos na cara destroçada.
O pequeno da adaga perdeu todo o entusiasmo. Os duergars invisíveis procuraram o Drizzt. Graças às chamas púrpura, Drizzt podia ver os movimentos destes dois que
levavam
espadas. Mas Drizzt se encontrava em uma clara desvantagem, pois não alcançava a distinguir as fintas e as estocadas. Retrocedeu para separar-se de seus companheiros.
Pressentiu um ataque e moveu uma cimitarra para parar o golpe. Sorriu satisfeito quando ouviu o ruído dos aços. O pequeno cinza se fez visível por um instante, para
lhe mostrar ao drow seu perverso sorriso, e desapareceu outra vez. --Quantas mais crie que poderá deter? --perguntou-lhe o outro duergar invisível, em tom de mofa.
--mais das que você crie --replicou Drizzt, e então foi seu turno para sorrir. Lançou um globo de escuridão que envolveu aos três combatentes, com o que privou aos
duergars de sua vantagem. No furor da batalha, os instintos do oseogarfio dominaram totalmente ao Clak. O gigante não compreendia o significado da auréola púrpura
que marcava o terceiro duergar invisível, e portanto carregou contra os outros dois pequenos cinzas armados com paus. antes de que o oseogarfio pudesse alcançá-los,
um pau lhe golpeou o joelho, e o duergar invisível riu satisfeito. Os outros dois começaram a esfumar-se, mas Clak não lhes emprestou atenção. O fortificação invisível
descarregou um segundo golpe, esta vez na coxa. Possuído pelos instintos de uma raça pouco dada às sutilezas, o oseogarfio uivou e se deixou cair para enterrar as
chamas púrpuras sob seu enorme peito. Clak utilizou o torso como um martelo até que se convenceu de que tinha esmagado ao inimigo invisível. Naquele instante uma
chuva de pauladas se abateu contra a nuca do oseogarfio. O duergar da adaga não era um novato nestas lides. Controlava os ataques para obrigar ao Belwar, com suas
armas mais pesadas, a tomar a iniciativa. Os pequenos das profundidades odiavam aos duergars tanto como estes os odiavam a eles, mas o capataz não era tolo. Movia
a mão-de-lança só o suficiente para manter a raia a seu rival, ao tempo que mantinha preparada a mão-de-martelo. Assim, os dois se limitaram às fintas, dispostos
a
esperar que fosse o outro quem cometesse o primeiro engano. Quando o oseogarfio gritou de dor, e com o Drizzt fora da vista, Belwar se viu forçado a atuar. equilibrou-se,
simulando um tropeço, e lançou um golpe com a mão-de-martelo ao tempo que baixava a mão-de-lança. O duergar advertiu a estratagema, mas não podia desperdiçar o oco
na defesa do svirfnebli. A adaga se deslizou por cima da mão-de-lança em linha reta à garganta do Belwar. O capataz se tornou para trás com idêntica rapidez e levantou
uma perna para descarregar um chute que roçou o queixo do duergar. O pequeno cinza não se deteve e se mergulhou sobre o pequeno que caía, com a adaga sempre adiante.
Belwar levantou a mão-de-lança só uma fração de segundo antes de que a arma encontrasse sua garganta. O svirfnebli conseguiu apartar o braço do atacante, mas o maior
peso do duergar os manteve unidos, com os rostos separados por um par de centímetros. --Já te tenho! --gritou o duergar. --Toma isto! --replicou Belwar, liberando
a mão-de-martelo o suficiente para esmurrar as costelas do rival. O duergar respondeu com um cabaçada na cara do Belwar, e este lhe mordeu o nariz. Os combatentes
rodaram pelo chão, em meio de grandes gritos, e valendo-se de qualquer arma disponível. Pelo ruído das espadas, qualquer observador se localizado fora do globo de
escuridão do Drizzt teria acreditado que se enfrentavam uma dúzia de rivais, mas o ritmo frenético era só obra do Drizzt Dou'Urdem. Neste tipo de situações, na luta
às cegas, o drow sabia que o melhor método de combate era manter as espadas o mais apartadas possível do corpo. As cimitarras cortavam o ar implacáveis e em perfeita
harmonia, pressionando constantemente aos dois pequenos cinzas. Cada braço se ocupava de um oponente, de forma tal que mantinham aos duergars cravados em seu sítio
diante do Drizzt. O drow sabia que, se deixava que algum dos dois se situasse em um flanco, teria graves dificuldades. Com cada passe de cimitarras havia um tangido
metálico, e à medida que transcorriam os segundos, Drizzt conseguia mais informação referente às habilidades e estratégias de ataque dos rivais. Nas profundidades
da Antípoda Escura, Drizzt tinha lutado às cegas muitas vezes, e inclusive tinha empregado um capuz em seu duelo contra um alfavaca. Surpreendidos pela incrível
velocidade dos ataques do drow, os duergars não podiam fazer outra coisa que mover as espadas de um lado a outro e rogar que uma cimitarra não penetrasse pelos ocos.
O ruído do choque das espadas era incessante enquanto os dois pequenos cinzas se esforçavam nas paradas e fintas. Então se ouviu o som que esperava Drizzt, o de
uma
cimitarra afundada na carne. Um instante depois, uma espada repicou sobre a pedra e seu dono ferido cometeu o engano fatal de gritar de dor. O eu caçador do Drizzt
saiu à superfície. centrou-se no grito, e a cimitarra lançou uma estocada que destroçou os dentes do pequeno cinza e lhe atravessou a cabeça. O caçador se voltou
furioso
para o outro duergar. As cimitarras iniciaram uma série de molinetes e então uma se lançou a fundo, tão rápido que resultava impossível desviá-la. Alcançou ao pequeno
no ombro e lhe abriu uma ferida muito profunda. --Rendo-me! Rendo-me! --chiou o pequeno cinza, que não queria correr a sorte de seu companheiro. Drizzt ouviu como
caía a espada ao chão. Por favor, elfo escuro! As palavras do duergar aplacaram os instintos do caçador. --Aceito sua rendição --respondeu Drizzt. aproximou-se
de seu oponente e apoiou a ponta da cimitarra contra o peito do pequeno cinza. Juntos, saíram da escuridão criada pelo feitiço do Drizzt. Clak já não podia suportar
mais a terrível dor na cabeça, aumentado por cada novo paulada. O oseogarfio soltou um uivo bestial e, apartando do duergar esmagado, procurou a seus torturantes.
Um pau duergar o golpeou outra vez, mas Clak já não sentia a dor. Afundou uma garra no contorno púrpura e destroçou o crânio do pequeno invisível. Quase imediatamente
este se fez visível, porque a agonia da morte lhe impedia de manter a concentração necessária para conservar a invisibilidade. O último duergar tentou escapar, mas
o oseogarfio o superou em rapidez. Clak sujeitou ao pequeno cinza com uma garra e o levantou por cima da cabeça. Com um chiado que parecia o grasnido de um ave de
rapina furiosa, o oseogarfio lançou ao rival invisível contra a parede. O cadáver do duergar apareceu destroçado ao pé do muro. Já não ficavam rivais para o oseogarfio,
mas Clak não tinha suficiente. Naquele instante, Drizzt e o duergar ferido emergiram da escuridão, e o gigante se jogou sobre eles. Atento ao combate que mantinha
Belwar, Drizzt não advertiu as intenções do Clak até que ouviu o grito aterrorizado do prisioneiro. Para então, já era muito tarde. Drizzt viu como a cabeça do pequeno
cinza voava de retorno ao globo de escuridão. --Clak! --protestou o drow, irado. Depois se agachou e retrocedeu de um salto para salvar a vida ante o imprevisto
ataque por parte de seu amigo. Ao ver outra presa próxima, o oseogarfio não seguiu ao Drizzt ao globo de escuridão onde tinha procurado refúgio. Belwar e o duergar
da adaga estavam muito entretidos com seu combate e não se deram conta da presença do gigante enlouquecido. Clak tendeu os braços, sujeitou aos opositores e os lançou
ao ar. O pequeno cinza teve a desgraça de baixar primeiro e, de um murro, Clak o enviou a estelar se contra o outro extremo da caverna. Belwar teria deslocado a
mesma
sorte de não ter sido porque as cimitarras cruzadas interceptaram o segundo golpe do oseogarfio. A força descomunal do Clak arrastou ao Drizzt, mas a parada demorou
o golpe o suficiente como para que Belwar chegasse ao chão. De todos os modos, o capataz chocou violentamente contra a pedra e demorou um bom momento em reagir.
--Clak! --gritou Drizzt outra vez ao ver que o gigante se dispunha a esmagar ao svirfnebli de um pisão. O drow apelou a toda sua agilidade e rapidez para rodear
ao oseogarfio, atirar-se ao chão, e procurar os joelhos do Clak, como tinha feito no primeiro encontro. Em seu intento por pisotear ao pequeno cansado, Clak já estava
um pouco fora de equilíbrio e Drizzt o tombou sem muita dificuldade. Imediatamente, o guerreiro drow se montou sobre o peito do monstro e deslizou a ponta da cimitarra
entre os couraçados dobras do pescoço do Clak. Drizzt evitou um tapa torpe do Clak, que seguia em seu empenho de lutar. O drow odiava o que tinha que fazer, mas
então o oseogarfio se serenou de repente e lhe dirigiu um olhar pormenorizado. --Faz... o --gemeu. Drizzt, horrorizado, procurou o apoio do Belwar. O capataz, já
recuperado, olhou em outra direção. --Clak? --perguntou-lhe o drow ao oseogarfio. Volta a ser Clak? O monstro vacilou; depois moveu o pico para assentir. Drizzt
se apartou e contemplou o açougue na caverna. --Saiamos daqui--disse. Clak permaneceu tendido uns segundos mais, com os pensamentos postos nas graves implicações
do atraso de sua morte. Com o final da batalha, a personalidade do oseogarfio tinha passado outra vez a segundo plano. Mas Clak sabia que os instintos selvagens
o espreitavam, apenas debaixo do nível consciente, à espera de uma nova oportunidade de fazer-se com o controle total de sua mente. Até quando poderia seu lado pek
resistir o avanço da besta? O oseogarfio descarregou um murro contra a pedra, um golpe tão capitalista que abriu gretas em todo o chão da caverna. Com um grande
esforço, o gigante ficou de pé. Envergonhado, afastou-se pelo túnel sem olhar a seus companheiros; o ruído de seus passos eram como pregos afundados a marteladas
no coração do Drizzt Dou'Urdem. --Possivelmente teria que havê-lo feito, elfo escuro --opinou Belwar, enquanto caminhava ao lado do drow. --Salvou-me na caverna
illita --replicou Drizzt, zangado. E foi um amigo leal. --Tentou me matar, e a ti também --afirmou o pequeno, severo. Magga cammara. --Sou seu amigo! --grunhiu
Drizzt, sujeitando ao svirfnebli por um ombro. Quer que o mate? --Peço-te que atue como seu amigo --disse Belwar e, livrando-se da mão do Drizzt, foi depois dos
passos do Clak. O drow voltou a sujeitar ao capataz pelo ombro e o obrigou a dá-la volta. --Cada vez será pior, elfo escuro --comentou Belwar, sem alterar-se ante
o
gesto do Drizzt. O feitiço do mago ganha força cada dia que passa. Clak tentará nos matar à primeira oportunidade e, se o conseguir, o sofrimento pelo crime será
muito pior que morrer por sua mão. --Não posso matá-lo --disse Drizzt, apagada sua fúria. Nem você. --Então devemos deixá-lo --manifestou o pequeno. Temos que
deixá-lo livre na Antípoda Escura, para que viva como um oseogarfio. É no que se converterá em corpo e alma. --Não --insistiu Drizzt. Não podemos deixá-lo. Somos
sua única oportunidade. Temos que ajudá-lo. --O mago está morto --recordou-lhe Belwar, que lhe voltou outra vez as costas e se afastou em busca do Clak. --Há outros
magos --murmurou Drizzt, sem interpor-se na marcha do capataz. O drow entrecerró os olhos e embainhou as cimitarras. Agora sabia o que devia fazer, qual era o preço
que devia pagar pela amizade do Clak, mas lhe preocupava muito para poder aceitá-lo sem mais. Certamente que havia outros magos na Antípoda Escura, embora não era
fácil encontrá-los por acaso, e os feiticeiros capazes de eliminar o encantamento polimórfico do Clak deviam ser ainda mais escassos. Não obstante, sabia onde dar
com eles. A idéia de retornar a sua terra natal acossou ao Drizzt com cada passo que ele e seus companheiros deram aquele dia. depois de ter conhecido as conseqüências
da decisão de abandonar Menzoberranzan, Drizzt não queria voltar a ver aquele lugar nunca mais, não queria ver o mundo escuro que o tinha amaldiçoado. Mas se agora
escolhia não retornar, Drizzt sabia que não demoraria para ser testemunha de um pouco mais perverso que Menzoberranzan. Veria o Clak, um amigo que o tinha salvado
de uma morte segura, convertido de tudo em um oseogarfio. Belwar tinha sugerido abandonar ao Clak, e esta opção parecia preferível à batalha que teriam que sustentar
se se encontravam perto do Clak quando se completasse a transformação. Entretanto, até no caso de que Clak estivesse longe, Drizzt sabia que seria testemunha da
mudança. Seus pensamentos permaneceriam fixos no Clak, o amigo abandonado, pelo resto de sua vida: um sofrimento mais para o atormentado drow. Drizzt não podia pensar
em nada pior que ver Menzoberranzan ou ter que tratar outra vez com a gente de sua raça. De ter tido escolha, teria preferido morrer antes que retornar à cidade
drow, mas as coisas não eram tão singelas. Havia em jogo algo mais que as preferências pessoais do Drizzt. Tinha apoiado sua vida em uns princípios, e agora suas
convicções exigiam lealdade. Exigiam que pusesse as necessidades do Clak por cima das suas, porque Clak era seu amigo e porque o conceito de amizade superava os
desejos pessoais. Mais tarde, quando os amigos acamparam para ter umas horas de descanso, Belwar se deu conta do conflito que afligia ao drow. O svirfnebli deixou
ao Clak, que se entretinha amassando a parede de pedra, e se aproximou do Drizzt. --No que pensa, elfo escuro? --perguntou Belwar, curioso. Drizzt, muito aflito
pelo tumulto emocional, não olhou ao capataz. --Minha cidade se orgulha de sua escola de magos --respondeu o drow com tom firme. Ao princípio o svirfnebli não compreendeu
a que se referia Drizzt, mas ao ver que o drow olhava ao Clak, entendeu as implicações da direta resposta. --Menzoberranzan? --inquiriu o pequeno. Seria capaz de
retornar ali, confiando em que algum mago drow tenha piedade de nosso amigo pek? --Penso retornar unicamente porque não há outra possibilidade para o Clak -- afirmou
Drizzt, zangado. --Então não há nenhuma oportunidade para o Clak --disse Belwar. Magga
cammara, elfo escuro! Menzoberranzan não te receberá com os braços abertos. --Possivelmente seu pessimismo está justificado --disse Drizzt. Estou de acordo em
que os elfos escuros não são jogo de dados à compaixão, mas pode haver outras opções. --Querem sua cabeça --afirmou Belwar. Seu tom refletia a esperança de que a
resposta fora suficiente para fazer entrar em razão ao companheiro. --Só a matrona Malícia --manifestou Drizzt. Menzoberranzan é uma cidade muito grande, meu amigo,
e as lealdades a minha mãe não têm nenhum peso em qualquer encontro que possamos ter com alguém que não pertença a minha família. Asseguro-te que não penso me encontrar
com nenhum de meus parentes! --E, se me permitir a pergunta, elfo escuro, o que podemos oferecer em troca de liberar ao Clak da maldição? --perguntou Belwar, sarcástico.
O que podemos oferecer a qualquer mago drow do Menzoberranzan que possa ser de valor para ele? A resposta do Drizzt começou com uma cimitarra cortando o ar, seguida
pelo fogo nos olhos lilás do drow, e acabou com uma afirmação que nem sequer o obstinado Belwar soube como rebater. --Sua própria vida.
23
Murmúrios
A matrona Baenre observou durante um bom momento e com muita atenção a Malícia Dou'Urdem, para estimar até que ponto as exigências do zin-Carla tinham afetado à
mãe matrona. Profundas rugas de preocupação marcavam o rosto em outros tempos terso, e os cabelos níveos, que tinham sido a inveja de sua geração, apareciam --talvez
pela primeira vez em cinco séculos-- sujos e mau penteados. Mas o mais surpreendente eram os olhos de Malícia, sempre radiantes e alertas, convertidos agora em dois
discos opacos afundados nas órbitas. --Zaknafein quase o tinha --explicou Malícia, com um gemido pouco habitual em sua voz. Drizzt estava em seu poder e, não sei
como, meu filho as arrumou para escapar. "Embora o espectro o segue de perto --apressou-se a acrescentar Malícia ao ver o gesto de desaprovação da matrona Baenre.
além de ser a pessoa mais capitalista de todo Menzoberranzan, a anciã mãe matrona da casa Baenre era considerada como a representante pessoal do Lloth na cidade.
A aprovação da matrona Baenre era a aprovação do Lloth, e, pela mesma lógica, sua desaprovação significava a maioria das vezes o desastre para uma casa. --Zin-Carla
exige paciência, matrona Malícia --disse a matrona Baenre com voz calma. Não aconteceu tanto tempo. Malícia se tranqüilizou um pouco até que voltou a olhar a seu
redor. Odiava a capela da casa Baenre, tão enorme e degradante. A totalidade da casa Dou'Urdem cabia neste só recinto, e, embora a família de Malícia e seus soldados
se multiplicassem por dez, não seriam suficientes para ocupar todas as fileiras de bancos. Sobre o altar central, por cima mesmo da matrona Malícia, abatia-se a
imagem ilusória de uma aranha gigantesca, que se transformava em um formoso rosto de mulher para depois voltar para a figura anterior. Estar ali com a única companhia
da matrona Baenre, debaixo da impressionante imagem, fazia que Malícia se sentisse ainda mais insignificante. A matrona Baenre notou a inquietação da convidada e
tentou consolá-la. --recebeste um grande presente --disse-lhe, com toda sinceridade. Reina-a aranha não te teria dado o zin-Carla, nem teria aceito o sacrifício
do SiNafay Hun'ett, uma mãe matrona, se não tivesse aprovado seus métodos e seus propósitos. --É uma prova --afirmou Malícia, de improviso. --Uma prova em que não
fracassará! --replicou a matrona Baenre. E então conhecerá a glória, Malícia Dou'Urdem! Quando o espectro daquele que foi Zaknafein acabe seu encargo e seu filho
renegado esteja morto, ocupará um sítio de honra no conselho regente. Prometo-te que passarão muitos anos antes de que alguém se atreva a ameaçar à casa Dou'Urdem.
Reina-a aranha te concederá seu favor pelo êxito do zin-Carla. Terá a sua casa na mais alta estima e te defenderá de seus inimigos. --E o que passará se o zin-Carla
fracassa? --ousou perguntar Malícia.
Suponhamos que... Sua voz se apagou enquanto os olhos da matrona Baenre se abriam assombrados. --Não diga essas coisas! --reprovou-lhe Baenre. E não pense coisas
impossíveis! O medo te distrai, e isto é suficiente para conduzir sua perdição. Zin-Carla é um exercício de vontade e uma amostra de devoção à rainha aranha. O
espectro é uma prolongação de sua fé e de sua força. Se sua confiança se debilitar, então o espectro do Zaknafein fracassará em sua missão! --Não vacilarei! --rugiu
Malícia, com as mãos obstinadas aos braços da cadeira. Aceito a responsabilidade do sacrilégio de meu filho, e com a ajuda e a bênção do Lloth darei ao Drizzt
o castigo que se merece. A matrona Baenre se relaxou na cadeira e assentiu. Tinha que dar seu apoio a Malícia nesta empresa, por ordem do Lloth, e sabia o suficiente
sobre o zin-Carla para compreender que a confiança e a decisão eram os dois ingredientes principais do êxito. Uma mãe matrona envolta no zin-Carla tinha que proclamar
freqüentemente e com sinceridade sua fé no Lloth e seu desejo de agradar à rainha aranha. Entretanto, agora Malícia tinha outro problema, uma distração que não
se podia permitir. Tinha ido à casa Baenre por vontade própria em busca de ajuda. --me fale deste outro assunto --disse a matrona Baenre, já um pouco farta do encontro.
--Sou vulnerável --explicou Malícia. O zin-Carla me rouba a energia e a atenção. Preocupa-me que outra casa possa aproveitar a oportunidade. --Nenhuma casa atacou
a uma mãe matrona ocupada com o zin-Carla -- assinalou a matrona Baenre, e Malícia compreendeu que a anciã drow falava por experiência própria. --O zin-Carla é um
presente único --insistiu Malícia--, outorgado a matronas de casas poderosas e que contam com todas as bênções do Lloth. Quem ousaria atacar em tais circunstâncias?
Mas a casa Dou'Urdem não está nas melhores condicione. Acabamos de sofrer as conseqüências de uma guerra e, inclusive com a incorporação de alguns soldados da casa
Hun'ett, somos poucos. É bem sabido que ainda não recuperei a graça do Lloth, mas minha casa é a oitava da cidade e portanto ocupo um posto no conselho regente,
uma posição invejável. --Seus temores são injustificados --assegurou-lhe a matrona Baenre, mas Malícia se desabou na cadeira, frustrada apesar das palavras. A matrona
Baenre sacudiu a cabeça sem saber o que fazer. Vejo que minhas afirmações não bastam para te tranqüilizar. Sua atenção deve estar dedicada unicamente ao zin-Carla.
Compreende-o, Malícia Dou'Urdem. Não tem tempo para distrações menores. --Não se vão --disse Malícia. --Então eu acabarei com elas --ofereceu a matrona Baenre.
Retornará a sua casa em companhia de duzentos soldados Baenre. Encarregarão-se de custodiar suas muralhas, e levarão o emblema da casa Baenre. Ninguém na cidade
se atreverá a te atacar contando com estes aliados. Um amplo sorriso apareceu no rosto de Malícia e conseguiu dissimular algumas das rugas de preocupação. Aceitou
a generosa oferta da matrona Baenre como um sinal de que possivelmente Lloth ainda favorecia à casa Dou'Urdem. --Retorna a sua casa e te concentre em sua tarefa
--acrescentou a matrona Baenre. Zaknafein tem que encontrar ao Drizzt e matá-lo. Este é o trato que ofereceu à rainha aranha. Mas não sofra pelo último fracasso
do espectro nem pela perda de tempo. Uns poucos dias, ou semanas, não são grande coisa aos olhos do Lloth. A conclusão correta do zin-Carla é o único importante.
--Encarregará-te de minha escolta? --perguntou Malícia, levantando-se da cadeira. --Já te espera --assegurou-lhe a matrona Baenre. Malícia descendeu a escada do
altar central e cruzou as numerosas fileiras de
bancos da capela gigante. O recinto estava em penumbra e, enquanto saía, Malícia apenas se alcançou a vislumbrar a outra figura que se aproximava do altar do lado
oposto. Pensou que se tratava do illita amigo da matrona Baenre, uma presença habitual na capela. Se Malícia tivesse sabido que o desolador mental da matrona Baenre
tinha deixado a cidade para atender uns assuntos privados no oeste, possivelmente teria emprestado mais atenção ao personagem. O qual teria multiplicado o número
de suas rugas. --Lamentável --comentou Jarlaxle enquanto se sentava junto à matrona Baenre no altar. Esta não é a mesma matrona Malícia Dou'Urdem que conheci faz
só uns meses atrás. --O zin-Carla não é um presente comum --replicou a matrona Baenre. --O preço é muito grande --assentiu Jarlaxle. Olhou o rosto da matrona Baenre,
e leu neles a resposta à próxima pergunta. Fracassará? A matrona Baenre soltou uma gargalhada como o chiado de uma serra. --Nem sequer a reina aranha conhece a
resposta. Acredito que a presença de meus soldados..., nossos soldados dará à matrona Malícia a tranqüilidade que necessita para completar a missão. Isto ao menos
é o que espero. Malícia Dou'Urdem gozou em outros tempos da maior consideração do Lloth. Seu assento no conselho regente foi exigido pela rainha aranha. --Os fatos
parecem indicar que se cumprirá a vontade do Lloth --manifestou Jarlaxle com um tonillo zombador, ao recordar a batalha entre as casas Dou'Urdem e Hun'ett, em que
Brigam D'aerthe tinha tido uma importância decisiva. As conseqüências daquela vitória, o desaparecimento da casa Hun'ett, tinha levado a casa Dou' Urdem a ocupar
a oitava posição na cidade e tinha dado à matrona Malícia seu lugar no conselho regente. --A sorte sorri aos afortunados --comentou a matrona Baenre. O sorriso do
Jarlaxle foi substituída de repente por uma expressão severo. --E Malícia, a matrona Malícia --apressou-se a corrigir ao ver o aborrecimento instantâneo do Baenre--,
goza agora do favor da rainha aranha? A fortuna sorrirá à casa Dou'Urdem? --Penso que o presente do zin-Carla deixa de lado esta questão--explicou a matrona Baenre.
O destino da matrona Malícia é algo que só podem determinar ela e o espectro. --Ou que pode destruir seu filho, o infame Drizzt Dou'Urdem--completou Jarlaxle.
Tão capitalista é este jovem guerreiro? por que Lloth não acabou com ele? --repudiou à rainha aranha com todo seu coração --respondeu Baenre. Lloth não tem poder
sobre o Drizzt e resolveu que é um problema da matrona Malícia. --Um problema bastante grande --mofou-se o mercenário, com uma rápida sacudida de sua calva cabeça.
Imediatamente advertiu que a matrona Baenre não compartilhava a brincadeira. --Certamente --replicou Baenre, sombria. Sua voz se apagou enquanto se afundava em seus
pensamentos. Conhecia os perigos e as possíveis lucros do zin-Carla melhor que ninguém na cidade. Em duas ocasiões, a matrona Baenre tinha pedido o maior presente
da rainha aranha, e em ambas tinha conseguido que a missão do zin-Carla concluíra com êxito. O esplendor da casa Baenre era o testemunho daqueles triunfos. Mesmo
assim, cada vez que se olhava ao espelho, recordava com toda claridade o preço tremendo que tinha pago. Jarlaxle não se entremeteu nas reflexões da mãe matrona.
O mercenário tinha suficiente pensando em seus próprios assuntos. Em tempos de crise e confusão como estes, um oportunista inteligente só podia obter benefícios.
Considerou que Brigam D'aerthe tinha muito que ganhar com a concessão do zin-Carla à matrona Malícia. Se Malícia conseguia seu objetivo e reforçava sua posição no
conselho regente,
Jarlaxle contaria com outra capitalista aliada na cidade. Se o espectro falhava, com o conseguinte desmoronamento da casa Dou'Urdem, o preço pela cabeça do jovem
Drizzt chegaria a uma cifra que seria tentadora incluso para a banda de mercenários. Como tinha ocorrido durante o trajeto de ida à primeira casa da cidade, Malícia
imaginou que os olhares de inveja vigiavam sua volta através do labirinto formado pelas ruas do Menzoberranzan. A matrona Baenre tinha sido muito generosa e gentil.
Se aceitava a premissa de que a anciã mãe matrona era a voz do Lloth na cidade, Malícia com muita dificuldade podia conter o sorriso. De todos os modos, os temores
não tinham desaparecido. Até quando poderia contar com a ajuda da matrona Baenre se Zaknafein não podia matar ao Drizzt, se o zincarla fracassava? A posição de Malícia
no conselho regente estaria em perigo e também a existência da casa Dou'Urdem. A comitiva passou por diante da casa Fey-Branche, a casa novena do Menzoberranzan
e provavelmente a maior ameaça para a debilitada casa Dou'Urdem. Sem dúvida a matrona Halavin Fey-Branche observava a procissão detrás das grades de adamantita,
contemplava à mãe matrona que agora ostentava a cobiçado oitava poltrona do conselho regente. Malícia olhou ao Dinin e aos dez soldados da casa Dou'Urdem, que caminhavam
a seu lado enquanto ela viajava sentada no disco voador. Deixou que seu olhar se dirigisse aos duzentos soldados, que exibiam orgulhosos o emblema da casa Baenre,
que partiam em formação detrás de sua modesta escolta. O que pensaria a matrona Halavin Fey-Branche ante este espetáculo?, perguntou-se Malícia. Uma vez mais sorriu
agradada. --dentro de muito pouco desfrutaremos de nossos maiores momentos de glória --assegurou-lhe Malícia a seu filho guerreiro. Dinin assentiu e respondeu ao
sorriso da mãe, pouco disposto a lhe azedar a festa. Entretanto, Dinin não podia deixar de lado as suspeitas de que muitos dos soldados Baenre, guerreiros drows
aos que nunca tinha tido ocasião de conhecer, resultavam-lhe familiares. Um deles inclusive lhe piscou os olhos um olho ao filho maior da casa Dou'Urdem. A imagem
do Jarlaxle tocando o apito mágico no balcão da casa Dou'Urdem apareceu com toda claridade na mente do Dinin.
24
Fé
Drizzt e Belwar não tiveram necessidade de recordar-se mutuamente o que indicava o resplendor verde que se via o final do túnel. Aceleraram o passo para alcançar
e advertir ao Clak, que caminhava mais depressa estimulado pela curiosidade. O oseogarfio ocupava agora a posição de líder; resultava muito perigoso para os companheiros
deixar que se situasse a suas costas. Clak se voltou de repente para ouvir que se aproximavam da carreira, ameaçou-os com uma garra, e soltou um assobio. --Pek --sussurrou
Belwar, pronunciando a palavra que conseguia manter vivos as lembranças na consciência de seu amigo. O grupo se dirigiu para o este, em direção ao Menzoberranzan,
assim que Drizzt convenceu ao capataz de sua decisão de ajudar ao Clak. Belwar, que não tinha mais opções, finalmente aceitou o plano do drow como a única esperança
do Clak, mas embora tinham iniciado a viagem de volta sem perder um minuto e a bom passo, agora pensavam que não chegariam a tempo. A mudança no Clak tinha sido
impressionante da briga contra os duergars. O oseogarfio apenas se podia falar e freqüentemente se voltava ameaçador contra os companheiros. --Pek --repetiu Belwar,
enquanto se aproximava com o Drizzt ao inquieto monstro. O oseogarfio fez uma pausa, confuso. --Pek! --grunhiu o capataz pela terceira vez, e golpeou a parede de
pedra com a mão-de-martelo. Como se de repente se acendeu uma luz no tumulto de seus pensamentos, Clak se tranqüilizou e baixou os braços. Drizzt e Belwar olharam
mais à frente do oseogarfio para o resplendor verde e depois intercambiaram olhares de preocupação. comprometeram-se a seguir este rumo e agora não podiam desviar-se.
--Os corbis vivem naquela caverna --disse Drizzt em voz baixa e com muita claridade para que Clak os pudesse entender. Temos que atravessá-la e chegar ao outro
lado o mais rápido possível se queremos evitar uma batalha. Não podemos nos permitir mais demora. Olhe bem onde pisa. As passarelas são estreitas e escorregadias.
--C... C... Cl... --gaguejou o oseogarfio, inutilmente. --Clak --ajudou-o Belwar. --Ad... ade... Clak se interrompeu e assinalou com uma garra em direção à caverna
do resplendor verde. --Clak adiante? --perguntou Drizzt, sem poder suportar os esforços do amigo. Clak fará de guia --repetiu ao ver que a cabeça se movia para
assentir. Belwar não estava muito seguro da sabedoria da proposta. --Nós já lutamos contra os homens-pássaro e conhecemos seus truques --assinalou o svirfnebli.
Em troca, Clak não.
--O tamanho do oseogarfio bastará para contê-los --replicou o jovem. A só presença do Clak possivelmente nos permita evitar o combate. --Não contra os corbis,
elfo escuro --advertiu-lhe o capataz. Atacam o que seja e não se arredam ante ninguém. Já viu seu frenesi, o desprezo por suas próprias vidas. Nem sequer sua pantera
foi capaz de fazê-los desistir. --Possivelmente tenha razão --reconheceu Drizzt--, mas inclusive se os corbis atacarem, que armas possuem capazes de atravessar a
couraça de um oseogarfio? Que defesa têm os homens-pássaro contra as grandes garras do Clak? Nosso amigo gigante os varrerá de um tapa. --Se esquece dos que montam
as pedras --recordou-lhe Belwar. Não demorarão nem um segundo em lançar-se desde a primeira cornija e arrastar ao Clak até o lago. Clak se cansou de escutá-los
e olhou a parede de pedra em um esforço inútil por recuperar parte de seu antigo ser. Sentia uma leve necessidade de golpear a pedra mas não era mais intensa que
o desejo permanente de afundar as garras no rosto do drow ou do svirfnebli. --Eu me encarregarei dos corbis apostados nas cornijas --respondeu Drizzt. Você te
limite a seguir ao Clak, uma dúzia de passos mais atrás. Belwar olhou ao oseogarfio e advertiu a tensão no monstro. Compreendeu que não podiam permitir-se mais atrasos,
assim que se encolheu de ombros e empurrou ao Clak, lhe assinalando o túnel para o resplendor verde. Clak abriu a marcha; Drizzt e Belwar o seguiram. --E se chamas
à pantera? --sussurrou-lhe o pequeno ao drow quando passaram pela última curva do túnel. Drizzt sacudiu a cabeça com energia, e Belwar, que recordou os terríveis
momentos
vividos pelo Guenhwyvar na caverna dos corbis, preferiu não insistir. O elfo escuro aplaudiu o ombro do Belwar para lhe desejar sorte, e se adiantou ao Clak para
entrar primeiro na silenciosa caverna. Com uns poucos movimentos singelos, o drow pôs em prática o feitiço de levitação e se elevou silenciosamente para o teto.
Clak, surpreso por este estranho lugar com o resplandecente lago de ácido, apenas se se fixou no Drizzt. O oseogarfio permaneceu imóvel, observando a caverna ao
tempo que utilizava seu agudo sentido do ouvido para localizar a qualquer possível inimigo. --Adiante --sussurrou Belwar detrás dele. As demoras nos podem levar
a desastre! Clak mediu o chão, e depois caminhou mais depressa ao ganhar confiança na resistência da estreita passarela pendente. Escolheu o rumo mais direto possível,
embora inclusive este dava muitas voltas antes de chegar à arcada de saída no lado oposto ao da entrada. --Vê algo, elfo escuro? --arriscou-se a perguntar o pequeno
quando passaram uns quantos segundos sem novidades. Clak já tinha cruzado a metade da caverna sem incidentes, e o capataz não podia conter mais a ansiedade. Não
tinham visto os corbis nem tinham ouvido som algum além das fortes pisadas do Clak e o arrastar das velhas botas do Belwar. Drizzt descendeu até a passarela, bastante
longe dos companheiros. --Nada --respondeu. O drow compartilhava as suspeitas do Belwar de que não havia corbis. O silêncio na caverna era absoluto e inquietante.
Drizzt correu para o centro da câmara, e levitou outra vez para ter uma visão panorâmica do lugar. --O que vê? --inquiriu Belwar um segundo mais tarde. Drizzt olhou
ao capataz e encolheu os ombros. --Nada absolutamente. --Magga cammara --grunhiu Belwar, quase desejando que aparecesse um corbi e os
atacasse. Enquanto Belwar conversava com o Drizzt, pouco mais à frente do centro da caverna, Clak tinha contínuo a marcha e estava a ponto de alcançar a saída. Quando
por fim o capataz se voltou para seguir ao oseogarfio, este tinha desaparecido além da arcada. --Alguma coisa? --gritou Belwar, e esperou a resposta dos dois companheiros.
Drizzt sacudiu a cabeça ao tempo que subia. Deu uma volta pela caverna, incapaz de acreditar que não houvesse corbis emboscados. --Sem dúvida os espantamos --murmurou
Belwar para si mesmo com o olhar posto na saída. Mas apesar de suas palavras, o capataz não era tão parvo para acreditá-lo. Quando Drizzt e ele tinham escapado da
caverna um par de semanas antes, tinham deixado atrás várias dúzias de homens-pássaro. Era evidente que a morte de uns poucos corbis não era motivo suficiente para
espantar ao resto do clã. Por alguma razão desconhecida, os corbis não saíam a seu encontro. Belwar acelerou o passo, convencido de que era melhor não duvidar de
sua boa sorte. Estava a ponto de chamar o Clak, para assegurar-se de que o oseogarfio não tinha tido problemas, quando um chiado de espanto soou no túnel de saída,
seguido de um golpe forte. Ao cabo de uns instantes, Belwar e Drizzt tiveram a resposta. O espectro do Zaknafein Dou'Urdem cruzou a arcada e se deteve no saliente.
--Elfo escuro! --gritou o capataz. Drizzt já tinha visto o espectro e começou a descender o mais rápido que podia para a passarela, quase no meio da caverna. --Clak!
--chamou Belwar, embora não esperava resposta, e tampouco a teve, das sombras além da arcada. O espectro prosseguiu o avanço. --Besta assassina! --espetou-lhe o
svirfnebli, que separou os pés e entrechocó as mãos metálicas. Te prepare a receber seu castigo! Belwar iniciou a letanía para dotar de poder mágico às mãos, mas
Drizzt o interrompeu. --Não! --gritou o drow das alturas. Zaknafein vem por mim. te aparte de seu caminho! --E o que me diz do Clak? --vociferou o pequeno. Não
é mais que uma besta assassina, e tenho uma conta pendente com ele! --Não sabe o que diz --replicou Drizzt, aumentando a velocidade do descida tudo o que podia para
reunir-se com o temerário capataz. O elfo sabia que Zaknafein chegaria antes ao Belwar, e podia adivinhar quais seriam as conseqüências. --Confia em mim, rogo-lhe
isso --suplicou Drizzt. Não tem nenhuma possibilidade de superar a este guerreiro drow. Belwar voltou para entrechocar as mãos, mas não podia negar que Drizzt
tinha razão. Tinha visto o Zaknafein combater na caverna dos desoladores, e a velocidade do monstro o tinha deixado sem fôlego. O pequeno retrocedeu uns passos e
se
meteu por uma passagem lateral, em busca de outro caminho que o conduzisse até a arcada e assim poder averiguar o que tinha sido do Clak. Com o Drizzt à vista, o
espectro não emprestou atenção ao svirfnebli. Zaknafein passou de comprimento por diante da passagem lateral e avançou disposto a cumprir o propósito de seu reanimación.
Por um momento, Belwar pensou em seguir ao estranho drow, aproximar-se todo o possível pelas costas e ajudar ao Drizzt na batalha, mas ouviu outro grito procedente
da arcada, um grito tão lastimero que o capataz não podia ignorá-lo. deteve-se logo que chegou à passarela principal, e depois olhou a um e outro lado, sem saber
a quem ajudar.
--Vê! --gritou-lhe Drizzt. Te ocupe do Clak. Este é Zaknafein, meu pai. Drizzt observou um leve hesitação no avanço do espectro ao escutar estas palavras, um hesitação
que lhe deu uma pista da verdade. --Seu pai? Magga cammara, elfo escuro! --protestou Belwar. Na caverna dos desoladores... --Não corro perigo --interrompeu-o Drizzt.
Belwar não compartilhava a opinião do elfo, mas em que pese a seu orgulho e cabezonería, o capataz reconheceu que a iminente batalha superava com muito suas habilidades
para o combate. Seria de muito pouca ajuda contra o capitalista guerreiro drow, e sua presença no duelo poderia resultar um estorvo para seu amigo. Drizzt já tinha
suficientes problemas para ter que preocupar-se da segurança do Belwar. O svirfnebli entrechocó as mãos de mithril em gesto de frustração e correu para a arcada,
onde não deixavam de ouvi-los ayes de dor do companheiro cansado. O grito primitivo de Malícia e a forma em que abriu os olhos avisou às filhas, que a acompanhavam
na hall, que o espectro tinha encontrado ao Drizzt. Briza olhou às sacerdotisas Dou'Urdem e lhes ordenou retirar-se. Maia obedeceu no ato, mas Vierna vacilou. --Vete
--grunhiu Briza, com uma mão no látego de cabeças de serpente sujeito ao cinturão. Agora. Vierna olhou a sua mãe em busca de ajuda, sem resultado. Malícia estava
ensimismada com o espetáculo dos fatos distantes. Tinha chegado a hora do triunfo do zin-Carla, e a matrona Malícia Dou'Urdem não se distrairia com as discussões
sem importância das filhas. Briza ficou a sós com a mãe, de pé atrás do trono, e observou a Malícia com tanta atenção como ela observava ao Zaknafein. logo que entrou
na pequena caverna além da arcada, Belwar compreendeu que Clak tinha morrido, ou não demoraria para está-lo. O oseogarfio jazia no chão, sangrando pelo talho que
quase o tinha decapitado. O pequeno lhe voltou as costas, e então pensou que o menos que podia fazer por seu amigo era consolá-lo. ajoelhou-se junto a ele e contemplou
dolorido como Clak sofria uma série de violentas convulsões. A agonia tinha eliminado o feitiço polimórfico, e Clak recuperava pouco a pouco sua entidade anterior.
Os enormes braços com garras se estremeciam e retorciam, estiravam-se e contraíam à medida que apareciam os braços de pele amarela dos peks. O cabelo cresceu entre
a couraça gretada da cabeça do Clak, e o pico se rompeu em várias partes para converter-se em pó. O mesmo ocorreu com o peito, e o resto do exoesqueleto se desfez
com um som lhe chiem que provocou calafrios no calejado capataz. Desapareceu o oseogarfio, e, na morte, Clak voltou a ser como antes. Era um pouco mais alto que
Belwar, embora não tão robusto, com feições largas e estranhas; os olhos não tinham pupilas e o nariz era achatado. --Como te chamava, meu amigo? --sussurrou o capataz,
embora sabia que Clak jamais lhe daria a resposta. agachou-se e sujeitou a cabeça do pek entre os braços, consolando-se sabendo que por fim seu amigo descansava
em paz. --Quem é você que tomadas a aparência de meu pai? --perguntou Drizzt enquanto o espectro percorria os últimos metros que os separavam. Zaknafein soltou um
grunhido animal e deu a resposta com uma estocada.
Drizzt parou o ataque e deu um salto atrás. --Quem é? --perguntou outra vez. Você não é meu pai! Um sorriso de orelha a orelha apareceu no rosto do espectro. --Não
--respondeu com voz tremente, pois a resposta era transmitida de uma hall a muitos quilômetros de distância. Sou você... mãe! As espadas atacaram com uma velocidade
de vertigem. Drizzt, confundido pela resposta, respondeu ao ataque com a mesma ferocidade, e os contínuos golpes dos aços soavam como se fossem um. Briza vigiava
cada um dos movimentos da mãe. O suor corria pela frente de Malícia e seus punhos golpeavam os braços da poltrona de pedra com tanta força que sangravam. Malícia
tinha sonhado que seria assim, que o momento de triunfo brilharia com toda claridade em sua mente através da distância. Podia escutar cada uma das palavras do Drizzt
e perceber sua angústia como se fosse própria. Malícia nunca tinha experiente um prazer tão intenso! Então notou uma leve pontada quando a consciência do Zaknafein
tentou opor-se a seu controle. Malícia apartou ao Zaknafein com um rugido gutural. O cadáver animado era exclusivamente dele! Briza tomou boa nota do súbito grunhido
de sua mãe. Drizzt já não tinha nenhuma dúvida de que o rival não era Zaknafein Dou'Urdem, embora tampouco podia negar que possuía o inconfundível estilo de seu
antigo professor. Zaknafein estava ali --em alguma parte-- e Drizzt teria que chegar até ele se desejava conseguir respostas. O duelo se acomodou rapidamente a um
ritmo contido e fácil de manter; os oponentes faziam fintas e executavam os ataques com muita cautela, sempre atentos a não perder pé na estreita passarela. Então
entrou Belwar na caverna, carregado com o corpo do Clak. --Mata-o, Drizzt! --gritou o capataz. Magga...! Belwar se interrompeu, assustado pelo combate que presenciava.
Drizzt e Zaknafein pareciam mover-se entrelaçados; as armas giravam e lançavam estocadas, que nunca davam no branco. Os dois elfos escuros, que para o Belwar tinham
sido tão diferentes, agora pareciam um, e este pensamento perturbou ao pequeno. Quando se produziu a seguinte interrupção na briga, Drizzt olhou em direção ao capataz
e seu olhar se cravou no pek morto. --Maldito seja! --rugiu, e reatou o ataque lançando cutiladas a torto e a direito contra o monstro que tinha assassinado ao Clak.
O espectro parou sem problemas o assalto descontrolado e empurrou as cimitarras do Drizzt para cima, com o que desequilibrou ao jovem. Esta manobra lhe resultou
muito conhecida o Drizzt, porque se tratava de uma preparação que Zaknafein tinha utilizado contra ele muitas vezes durante as sessões de treinamento no Menzoberranzan.
Zaknafein o obrigaria a levantar os braços, para depois baixar repentinamente as espadas. Nos primeiros encontros, Zaknafein tinha conseguido derrotar ao Drizzt
graças a esta manobra, o duplo golpe baixo; mas em seu último duelo na cidade drow, Drizzt tinha encontrado a parada de resposta e tinha conseguido devolver o ataque
do professor. Agora Drizzt se perguntou se o oponente seguiria o mesmo procedimento, e qual seria a reação do Zaknafein. O monstro que tinha diante conservaria alguns
das lembranças do Zak? O espectro acabou com a primeira parte da manobra e, assim que as cimitarras chegaram ao ponto mais alto, deu um passo atrás e atacou baixando
as duas espadas.
Drizzt respondeu com as cimitarras em uma "X" para baixo, a parada correta que detinha o duplo golpe baixo, ao tempo que descarregava um chute entre os punhos contra
o rosto do rival. Mas o espectro se adiantou ao contra-ataque e se situou fora do alcance da bota. Drizzt acreditou que por fim tinha uma resposta, porque só Zaknafein
Dou'Urdem podia conhecer esta réplica. --Você é Zaknafein! --gritou Drizzt. O que tem feito contigo a matrona Malícia? As mãos do espectro tremeram quase até soltar
as espadas, e sua boca se retorceu como se queria dizer algo. --Não! --chiou Malícia, e recuperou violentamente o controle do monstro, enquanto se movia pela perigosa
e sutil linha que separava as habilidades físicas do Zaknafein da consciência do ser que tinha sido uma vez. "É meu, espectro --vociferou Malícia--, e pela vontade
do Lloth que cumprirá sua missão! Drizzt viu a súbita regressão do espectro assassino. As mãos do Zaknafein deixaram de tremer, e sua boca mostrou o mesmo gesto
cruel e desumano de antes. --O que ocorre, elfo escuro? --perguntou-lhe Belwar, confundido pelas alternativas deste estranho duelo. Drizzt observou que o pequeno
tinha
deixado o corpo do Clak no saliente e que se aproximava pouco a pouco. Saltavam faíscas das mãos metálicas do Belwar cada vez que se roçavam. --Manténte afastado!
--avisou-lhe Drizzt. A presença de um inimigo desconhecido podia danificar os planos que começavam a forjar em sua mente. É Zaknafein --tentou lhe explicar ao
pequeno. Ao menos o é em parte! --Depois, em um murmúrio que Belwar não alcançou a escutar, acrescentou--: E acredito que sei como chegar até essa parte. Drizzt
lançou outra série de ataques mesurados que Zaknafein podia rechaçar sem esforço. Não pretendia destruir ao rival, mas sim procurava lhe inspirar lembranças de outras
táticas de esgrima conhecidas pelo Zaknafein. Conseguiu que Zaknafein seguisse os passos de uma das sessões de treinamento típica, sem deixar de falar tal como ele
e o professor de armas estavam acostumadas fazê-lo no Menzoberranzan. O espectro governado por Malícia respondeu ao tom familiar do Drizzt com selvageria e respondeu
a suas palavras amistosas com grunhidos bestiais. Se o jovem acreditava que podia distrair ao oponente com tolices, estava em um grave engano. As espadas atacavam
ao Drizzt por dentro e por fora, sempre em busca de um oco nas defesas. As cimitarras respondiam com rapidez e precisão; alcançavam e detinham os golpes em arco
e desviavam todas as estocadas. Uma espada encontrou uma fresta e alcançou ao Drizzt nas costelas. A cota de malha impediu que o fio cortasse a carne, mas a força
do impacto lhe deixaria um hematoma enorme. Surpreso, compreendeu que seu plano não seria fácil de executar. --Você é meu pai! --gritou-lhe ao monstro. Sua inimizade
é a matrona Malícia, não eu! O espectro se burlou de suas palavras com uma risada maligna e se lançou sem mais ao ataque. Do primeiro instante da batalha, Drizzt
tinha temido este momento, e teve que fazer um esforço para recordar que diante não tinha a seu pai real. Descuidada-a ofensiva do Zaknafein criou os inevitáveis
ocos na defesa, e as cimitarras do Drizzt os encontraram, primeiro um e depois outro. Uma lâmina abriu o
ventre do espectro, outra se afundou no pescoço. Zaknafein soltou outra gargalhada mais forte, sem deter o ataque. Drizzt começou a lutar dominado pelo pânico, com
menos confiança. Suas cimitarras não podiam frear a aquela coisa! Não demorou para expor-se outro problema: o tempo corria em seu contrário. Não sabia exatamente
contra o que brigava, mas tinha a suspeita de que o monstro não precisava descansar. O jovem pressionou com toda sua habilidade e rapidez. O desespero multiplicou
sua capacidade como espadachim. Belwar avançou, disposto a intervir; depois se conteve, assombrado pela exibição. Drizzt alcançou ao Zaknafein várias vezes mais,
mas o espectro não acusava os efeitos das feridas, e, à medida que o jovem acelerava o ritmo, o espectro fazia o mesmo. Drizzt não podia conceber que não se enfrentava
ao Zaknafein Dou'Urdem; reconhecia cada um dos movimentos de seu pai e antigo professor. Ninguém que não fosse ele podia mover os músculos do corpo com tanta precisão.
Drizzt retrocedeu para ter um pouco mais de espaço e esperou pacientemente as novas oportunidades de ataque. recordou-se a si mesmo uma e outra vez que não se enfrentava
ao Zaknafein a não ser a um monstro criado pela matrona Malícia com o único propósito de destrui-lo. Tinha que estar preparado; a única possibilidade de sobreviver
a este encontro era conseguir tombar a seu rival da passarela. Entretanto, esta possibilidade parecia remota dada a capacidade para a esgrima que demonstrava o espectro.
A passarela tinha uma pequena curva, e Drizzt mediu com o pé para não pisar em falso. Então se desprendeu uma rocha do bordo. O jovem trastabilló e a perna se deslizou
no vazio até o joelho. Zaknafein se equilibrou no ato. O molinete das espadas fez cair de costas ao Drizzt, e o drow ficou atravessado na ponte, com a cabeça pendurando
sobre o lago de ácido. --Drizzt! --chiou Belwar, levado pelo desespero. O pequeno pôs-se a correr, embora não tinha nenhuma oportunidade de chegar a tempo ou de
derrotar
ao monstro. Drizzt! Possivelmente foi o nome do Drizzt, ou talvez só foi o momento de matar, mas a consciência anterior do Zaknafein voltou para a vida naquele
instante, e o braço da espada, preparado para descarregar a estocada mortal que Drizzt não podia deter, vacilou. O jovem não esperou uma segunda oportunidade. Lançou
um golpe à mandíbula do espectro com o punho de uma cimitarra, depois com a outra, e conseguiu fazê-lo retroceder. Em um abrir e fechar de olhos, Drizzt se levantou,
ofegante e com um tornozelo torcido. --Zaknafein! --gritou Drizzt, confuso e frustrado pelas vacilações de seu oponente. --Driz... --tentou dizer o espectro. Então
o monstro de Malícia voltou para a carga com as espadas em alto. Drizzt rechaçou os golpes e se apartou. Podia sentir a presença de seu pai; sabia que o verdadeiro
Zaknafein se encontrava encerrado nesta criatura, mas como podia liberar seu espírito? Era evidente que não podia resistir muito mais este ritmo de combate. --É
você --sussurrou Drizzt. Não há ninguém mais capaz de lutar com tanta mestria. Zaknafein está aqui, e Zaknafein não me matará. O jovem teve um pressentimento,
uma idéia em que precisava acreditar. Uma vez mais, a verdade de suas convicções se submeteram a uma prova terrível. Drizzt embainhou as cimitarras. O espectro rugiu.
Suas espadas iniciaram uma dança mortal e fenderam o ar ameaçadoras, mas Zaknafein não atacou. --Mata-o, mata-o! --vociferou Malícia exultante, convencida de que
tinha a vitória ao alcance da mão.
Mas as imagens do combate se esfumaram de repente, e se encontrou inundada na escuridão. Havia- devolvido muito ao Zaknafein quando Drizzt tinha aumentado a velocidade
do combate. viu-se obrigada a deixar que a consciência do Zaknafein tivesse um pouco mais de controle sobre o corpo ressuscitado, porque necessitava de todas suas
habilidades jaquetas para derrotar ao filho. Agora Malícia não tinha outra coisa que escuridão, e o peso do fracasso era como uma espada pendurada por cima de sua
cabeça. Jogou um olhar à filha, que vigiava todos seus movimentos, e depois voltou para transe, em um último intento por recuperar o controle. --Drizzt? --disse
Zaknafein, e a palavra lhe pareceu dotada de um som maravilhoso. As espadas do Zak voltaram para as bainhas, embora para consegui-lo-as mãos tiveram que lutar contra
as ordens da matrona Malícia. Drizzt se aproximou, disposto a abraçar ao que acreditava seu pai e mais querido amigo, mas Zaknafein tendeu uma mão para mantê-lo
afastado. --Não --explicou o espectro. Não sei quanto mais poderei resistir. O corpo lhe pertence. --Então, você está...? --perguntou Drizzt, sem acabar de entender
a explicação do pai. --Morto --afirmou Zaknafein, bruscamente. Em paz, asseguro-lhe isso. A matrona Malícia reparou meu corpo para seus malignos fins. --Mas a
venceste --exclamou Drizzt, com uma nota de esperança na voz. Uma vez mais estamos juntos. --Só temporalmente. --Como se queria recalcar o comentário, a mão do
Zaknafein se disparou involuntariamente para o punho da espada. Torceu o gesto e grunhiu, até que com um esforço tremendo conseguiu separar pouco a pouco os dedos
da arma. Já volta outra vez, meu filho. Ela sempre volta! --Não posso suportar te perder outra vez! --gritou Drizzt. Quando te vi na caverna dos desoladores...
--Não era eu a quem viu --tentou lhe explicar Zaknafein--, a não ser o zombi da vontade maligna de Malícia. Eu não existo, meu filho. Deixei de existir faz muitos
anos. --Está aqui --protestou Drizzt. --Por vontade de Malícia, não... minha. --Zaknafein grunhiu, e seu rosto se retorceu em uma careta horrível enquanto tratava
de apartar a Malícia só uns segundos mais. Quando recuperou o controle, Zaknafein observou ao guerreiro em que se converteu o filho. Brigas bem --comentou. Melhor
ainda do que esperava. Isto é bom, e também é bom que tenha tido a coragem de aban... O rosto do Zaknafein se transformou outra vez, lhe roubando as palavras. Nesta
ocasião, empunhou as duas espadas e as desembainhou. --Não! --suplicou-lhe Drizzt enquanto aparecia um véu sobre seus olhos lilás. Luta contra ela. --Não... posso
--respondeu o espectro. Foge deste lugar, Drizzt. Escapa à outra... ponta do mundo! Malícia nunca te perdoará. Jamais... deixará de... O espectro avançou, e Drizzt
não teve mais escolha que desembainhar as armas. Mas Zaknafein se desviou de repente antes de chegar ao alcance das cimitarras do Drizzt. --Por nós! --gritou Zak
com uma claridade surpreendente. Um brinde que soou como a trompetista da vitória na caverna do resplendor verde e que ressonou através da distância no coração da
matrona Malícia como o repique dos tambores tocando a morte. Zaknafein tinha conseguido fazer-se uma vez mais com o controle por um instante, o suficiente para que
o corpo ressuscitado se precipitasse no lago de ácido.
25
Conseqüências
A matrona Malícia nem sequer pôde gritar seu rechaço. Um milhar de explosões lhe amassaram o cérebro quando Zaknafein se afundou no lago de ácido, um milhar de avisos
de iminente e inevitável desastre. Abandonou de um salto o trono de pedra, e suas esbeltas mãos se encurvaram como garras que tentassem apanhar no ar alguma coisa
tangível, algo que não estava ali. Sua respiração se converteu em um ofego rouco acompanhado de sons guturais. depois de uns instantes nos que não conseguiu acalmar-se,
Malícia ouviu um ruído mais claro que o estrépito de suas próprias contorções. detrás dela soou o leve sussurro das pequenas e malignas cabeças de serpente sujeitas
ao látego de uma grande sacerdotisa. Malícia deu meia volta e se encontrou cara a cara com a Briza, que a observava com gesto duro e desumano, com o látego de seis
cabeças de serpente viva em alto. --Supunha que ainda me faltavam muitos anos para ocupar seu posto --disse a filha maior com voz serena. Mas é débil, Malícia,
muito fraco para manter unida à casa Dou'Urdem e confrontar as conseqüências de nosso fracasso, de seu fracasso. Malícia quis rir da estupidez de sua filha. Os látegos
de serpentes eram um presente pessoal da rainha aranha e não podiam utilizar-se contra as mães matronas. Entretanto, sem saber o motivo, Malícia não teve naquele
momento a coragem nem a convicção para refutar as pretensões da Briza. Permaneceu como hipnotizada enquanto Briza jogava o braço para trás e descarregava a chicotada.
As seis cabeças de serpente se desenrolaram para Malícia. Era impossível! Ia contra todos os princípios da doutrina do Lloth! As cabeças avançaram ansiosas, e as
presas se afundaram na carne de Malícia impulsionados por toda a fúria da rainha aranha. Uma dor indescritível percorreu o corpo de Malícia, que se retorceu como
uma folha entre as chamas, e a deixou envolta em um intumescimento gelado. Malícia se cambaleou no bordo da consciência, em um intento por manter-se firme ante
sua
filha, disposta a lhe demonstrar a inutilidade e a estupidez de seguir o ataque. O látego estalou outra vez, e o chão se elevou para engolir à mãe matrona. Malícia
ouviu que Briza murmurava umas palavras, possivelmente uma maldição ou uma oração à rainha aranha. Depois chegou o terceiro açoite, e as trevas rodearam a Malícia.
Estava morta antes do quinto golpe, mas Briza a açoitou durante um bom momento, descarregando toda sua fúria para que a reina aranha soubesse que a casa Dou'Urdem
tinha castigado o fracasso da mãe matrona. Quando Dinin entrou de repente e sem chamar na hall, encontrou a Briza instalada no trono de pedra. O filho maior jogou
um olhar ao machucado cadáver da mãe, depois a Briza, e a seguir sacudiu a cabeça em um gesto de incredulidade enquanto um amplo sorriso lhe iluminava o rosto.
--O que tem feito, her..., matrona Briza? --perguntou Dinin, que se apressou a corrigir o deslize antes de que Briza pudesse reagir. --O zin-Carla fracassou --grunhiu
Briza, com um olhar furioso. Lloth não podia aceitar mais a Malícia. A gargalhada sarcástica do Dinin foi como uma punhalada nas vísceras da Briza. Entrecerró
os olhos e deixou que Dinin visse como movia a mão para o punho do látego. --escolheste o momento ideal para a ascensão --explicou-lhe tranqüilamente o filho maior,
ao parecer muito pouco preocupado pela ameaça da Briza. Atacam-nos. --Fey-Branche? --gritou Briza, que abandonou o trono, entusiasmada. Cinco minutos como mãe
matrona e já se enfrentava à primeira prova. Demonstraria seu valor à rainha aranha e redimiria à casa Dou'Urdem do dano causado pelos fracassos de Malícia. --Não,
irmã --respondeu Dinin com toda franqueza. Não é a casa FeyBranche. O tom frio do irmão fez que Briza voltasse a sentar-se no trono e que o sorriso de entusiasmo
se transformasse em uma expressão de temor. --Baenre --acrescentou Dinin, muito sério. Vierna e Maia contemplaram do balcão da casa Dou'Urdem o avanço das forças
ao outro lado dos portões de adamantita. As irmãs, a diferença do Dinin, não conheciam inimigo; mas ao ver a tropa tão numerosa, compreenderam que devia ser alguma
das casas grandes. De todos os modos, a casa Dou'Urdem contava com duzentos e cinqüenta soldados, muitos deles treinados pelo Zaknafein em pessoa. Com o reforço
de outros duzentos veteranos bem armados cedidos pela matrona Baenre, Vierna e Maia chegaram à conclusão de que havia um equilíbrio de forças. Demoraram muito pouco
em planejar as estratégias defensivas, e Maia passou uma perna por cima da balaustrada, para baixar ao pátio e comunicar as ordens aos capitães. Certamente, quando
ela e Vierna advertiram de repente que já tinham a duzentos inimigos dentro da casa --os soldados oferecidos pela matrona Baenre-- seus planos eram inúteis. Maia
ainda cavalgava sobre a balaustrada quando os primeiros soldados Baenre subiram ao balcão. Vierna empunhou o látego e gritou a Maia que fizesse o mesmo. Mas Maia
não se moveu e Vierna, ao olhá-la com atenção, viu vários dardos pequenos cravados no corpo de sua irmã. de repente, as cabeças de serpente de seu próprio látego
se voltaram contra ela, e, ao sentir a espetada das presas nas bochechas, Vierna soube que a queda da casa Dou'Urdem tinha sido ordenada pela própria Lloth. --O
zin-Carla --murmurou Vierna, ao descobrir a causa do desastre. O sangue lhe nublou a visão, e se cambaleou enjoada enquanto a envolvia a escuridão. --Isto é impossível!
--gritou Briza. A casa Baenre nos ataca? Lloth não me deu... --Tivemos nossa oportunidade! --vociferou Dinin. Zaknafein foi nossa oportunidade... --Dinin olhou
o corpo destroçado da mãe. E devo supor que o espectro fracassou. Briza grunhiu e lançou um açoite. Dinin esperava o golpe --conhecia sua irmã muito bem-- e se
separou do alcance da arma. Briza avançou um passo. --Acaso sua ira necessita mais inimigos? --perguntou-lhe Dinin, com as espadas desembainhadas. Sal ao balcão,
querida irmã, onde encontrará a um milhar
te esperando. Briza soltou um grito de frustração e, voltando as costas ao Dinin, abandonou a hall depressa, com a esperança de poder salvar algo desta terrível
situação. Dinin não a acompanhou. agachou-se sobre o corpo da matrona Malícia e olhou por última vez os olhos da tirana que tinha regido toda sua vida. Malícia tinha
sido uma figura poderosa, segura e maligna, mas que frágil tinha resultado ser seu poder, destruído pelas travessuras de um menino renegado! O filho maior ouviu
gritos no corredor, seguidos do estrondo das portas da hall ao abrir-se de par em par. Dinin não precisou olhar para saber que era o inimigo. Manteve o olhar na
mãe morta, consciente de que não demoraria para correr a mesma sorte. Mas a estocada não chegou e, depois de uns momentos de agonia, Dinin se atreveu a espiar por
cima do ombro. Jarlaxle ocupava o trono de pedra. --Não te surpreende? --perguntou-lhe o mercenário ao ver que Dinin não se alterava. --Brigam D'aerthe estava entre
as tropas Baenre, possivelmente constituía toda a tropa Baenre --respondeu Dinin, sem alterar-se. Olhou de esguelha à dúzia ou mais de soldados que acompanhavam
ao Jarlaxle, e se perguntou se poderia chegar à líder mercenário antes de que o matassem. Acabar com a vida do traidor Jarlaxle seria ao menos uma compensação pelo
desastre. --É muito observador --disse Jarlaxle. Tinha a suspeita de que sabia do primeiro momento que sua casa estava condenada. --Se fracassava o zin-Carla --particularizou
Dinin. --E você sabia que fracassaria, verdade? Pergunta-a do mercenário não necessitava resposta. Dinin assentiu. --Há dez anos --manifestou Dinin, sem saber muito
bem por que o comentava ao Jarlaxle. Quando presenciei o sacrifício do Zaknafein à rainha aranha. Nunca na história do Menzoberranzan se viu maior desperdício.
--O professor de armas da casa Dou'Urdem gozava de uma grande reputação -- assinalou o mercenário. --E bem merecida --assinalou Dinin. Então Drizzt, meu irmão...
--Outro grande guerreiro. Dinin assentiu uma vez mais. --Drizzt desertou quando tínhamos a guerra em nossa porta. O engano da matrona Malícia foi imperdoável. Então
soube que a casa Dou'Urdem estava condenada. --Sua casa derrotou à casa Hun'ett, que não quer dizer pouco --recordou-lhe Jarlaxle. --Só com a ajuda de Brigam D'aerthe
--replicou Dinin. Durante quase toda minha vida observei como a casa Dou'Urdem, sob a guia da matrona Malícia, escalava posições na hierarquia da cidade. Nosso
poder e influência crescia ano detrás ano. Entretanto, ao longo da última década, vi como nos afundávamos. Vi como se derrubavam os alicerces da casa Dou'Urdem.
Era lógico supor que também se afundaria a estrutura. --É tão sensato como hábil com a espada --comentou o mercenário. Essa era a opinião que me merecia, e ao
parecer acredito que não me equivocava. --Se te agradei, peço-te um favor --disse Dinin, ficando de pé. Conceda-me isso se quiser. --Que lhe mate depressa e sem
dor? --perguntou Jarlaxle com um amplo sorriso. Dinin assentiu pela terceira vez. --Não --respondeu Jarlaxle.
Surpreso pela resposta, Dinin desembainhou a espada disposto a forçar os acontecimentos. --Não tenho a intenção de te matar --explicou Jarlaxle. Dinin manteve a
espada
em alto e observou o rosto do mercenário, tratando de adivinhar seus propósitos. --Sou um dos nobres da casa --assinalou Dinin. Uma testemunha do ataque. A eliminação
de uma casa não é completa se ficar vivo algum de seus nobres. --Uma testemunha? --Jarlaxle soltou uma gargalhada. Contra a casa Baenre? Do que serviria? Dinin
baixou a espada. --Então, qual será meu destino? --perguntou. A matrona Baenre me acolherá entre os seus? O tom do Dinin indicava o pouco entusiasmo que lhe provocava
esta possibilidade. --A matrona Baenre não necessita varões --respondeu Jarlaxle. Se tiver sobrevivido alguma de suas irmãs..., e acredito que é o caso da Vierna...,
é provável que acabe na capela da matrona Baenre. Mas a anciã mãe matrona da casa Baenre nunca apreciará o valor de um varão como Dinin. --Então, o que? --perguntou
este. --Eu aprecio seu valor --declarou Jarlaxle com tom despreocupado, ao tempo que assinalava aos soldados presentes na hall. --Brigam D'aerthe? --protestou Dinin.
Eu, um nobre, convertido em um rufião? Com a velocidade do raio, Jarlaxle lançou uma adaga contra o cadáver a seus pés. A lâmina se afundou até o punho nas costas
de Malícia. --Um rufião ou um cadáver --disse lacónicamente Jarlaxle. A escolha não era difícil. Uns poucos dias mais tarde, Jarlaxle e Dinin se encontravam outra
vez diante das destroçadas portas da casa Dou'Urdem. Em outros tempos se levantaram fortes e orgulhosas, com suas intrincadas talhas de aranhas e as duas formidáveis
estalagmites que serviam de torres de guarda. --Que mudança tão rápida --comentou Dinin. Vejo toda minha vida anterior e entretanto já não existe. --te esqueça
do passado --sugeriu Jarlaxle. A piscada ardilosa do mercenário indicou ao Dinin que lhe tinha preparado algo especial. Exceto daquilo que possa te ajudar no futuro.
Dinin olhou para as ruínas e depois a si mesmo. --De minha equipe de combate? --perguntou, sem saber a que se referia o mercenário. Minha preparação? --De seu
irmão. --Drizzt? Uma vez mais aparecia o nome maldito para angustiar ao Dinin! --Se não me equivocar, ainda está por resolver o assunto do Drizzt Dou'Urdem -- explicou
Jarlaxle. Tem um grande valor aos olhos da rainha aranha. --Drizzt? --repetiu Dinin, sem dar crédito às palavras do Jarlaxle. --A que vem tanta surpresa? --sentiu
saudades o mercenário. Seu irmão segue vivo. O que outro motivo havia para a destruição da casa Dou'Urdem e a morte da matrona Malícia? --O que outra casa poderia
estar interessada nele? --perguntou Dinin, diretamente. Outra missão para a matrona Baenre? A gargalhada do Jarlaxle desconcertou ao Dinin. --Brigam D'aerthe pode
atuar sem a guia... ou a bolsa de uma casa nobre --
respondeu. --Pensa capturar a meu irmão? --Poderia ser a oportunidade perfeita para que Dinin demonstrasse seu valor a minha pequena família --manifestou Jarlaxle,
sem dirigir-se a ninguém em particular. Quem melhor para apanhar ao renegado que conduziu a desgraça da casa Dou'Urdem? O valor de seu irmão se centuplicou com
o fracasso do zin-Carla. --Vi no que se converteu Drizzt --disse Dinin. O custo será muito alto. --Meus recursos são ilimitados --afirmou Jarlaxle, pago de si
mesmo--, e nenhum custo é muito alto se o ganho ainda é maior. O excêntrico mercenário permaneceu em silencio por uns instantes, enquanto Dinin contemplava as ruínas
de sua casa. --Não --disse Dinin, sem mais. Jarlaxle o olhou com receio. --Não irei detrás do Drizzt --explicou Dinin. --Serve ao Jarlaxle, o chefe de Brigam D'aerthe
--recordou-lhe o mercenário com voz tranqüila. --Como em outros tempos servi a Malícia, matrona da casa Dou'Urdem -- replicou Dinin com a mesma tranqüilidade.
Não persegui o Drizzt quando me ordenou isso minha mãe --declarou olhando ao Jarlaxle à cara, sem ter medo às conseqüências-- e tampouco o farei por ti. Jarlaxle
estudou a seu companheiro durante um bom momento. Normalmente, o chefe mercenário não teria tolerado uma insubordinação tão descarada, mas não havia nenhuma dúvida
da sinceridade e firmeza do Dinin. Jarlaxle o tinha aceito em Brigam D'aerthe porque valorava a experiência e a capacidade do filho maior; agora não podia rechaçar
seus julgamentos. --Posso ordenar que submetam a uma morte lenta --disse Jarlaxle, mais que nada por ver a reação do Dinin à ameaça. Não tinha intenção de matar
a alguém tão valioso. --Não será pior que a morte e a desonra que sofreria à mãos do Drizzt -- afirmou Dinin, sem perder a calma. Transcorreu outra larga pausa enquanto
Jarlaxle pensava nas implicações das palavras do Dinin. Possivelmente Brigam D'aerthe teria que replantear seus planos de capturar ao renegado; talvez depois de
todo o custo poderia ser muito alto. --Vêem, soldado --disse por fim Jarlaxle. Retornemos a nosso lar, às ruas, onde possivelmente possamos descobrir que aventuras
nos reserva o futuro.
26
Luz no teto
Belwar correu pelas passarelas para ir reunir se com seu amigo. Drizzt nem sequer o advertiu. ajoelhou-se na ponte estreita, com o olhar posto nas fervuras que se
produziam na superfície do lago verde no ponto onde tinha cansado Zaknafein. No meio do ácido fumegante, apareceu a queimada punho de uma espada para desaparecer
imediatamente debaixo do opaco véu verde. --Estava ali todo o tempo --sussurrou- Drizzt ao Belwar. Meu pai. --Arriscaste-te muitíssimo, elfo escuro --respondeu
o capataz. Magga cammara! Quando embainhou as cimitarras, acreditei que acabaria contigo. --Estava ali todo o tempo --repetiu Drizzt. Olhou a seu amigo svirfnebli.
Você me ensinou isso. No rosto do Belwar apareceu um olhar de estranheza. --O espírito não pode ser separado do corpo --disse Drizzt, em um esforço por explicar-se.
Não enquanto vive. --Olhou os ondulações na superfície do lago de ácido. Nem tampouco nos não mortos. Durante os anos de solidão que passei nas profundidades,
cheguei a acreditar que me tinha perdido mesmo. Mas você me ensinou a verdade. O coração do Drizzt nunca abandonou este corpo, assim que o mesmo era válido para
o Zaknafein. --Esta vez havia outras forças envoltas --assinalou Belwar. Eu não teria estado tão seguro. --Você não conhecia o Zaknafein --replicou Drizzt. ficou
de pé, e o sorriso que lhe iluminou o rosto diminuiu a dor de seus chorosos olhos. Eu sim. É o espírito e não os músculos o que guia a espada de um guerreiro,
e só aquele que era de verdade Zaknafein podia mover-se com tanta graça. O momento de crise deu ao Zaknafein a força para opor-se à vontade de minha mãe. --E você
lhe proporcionou o momento de crise --raciocinou Belwar. Derrota à matrona Malícia ou arbusto a seu próprio filho. --Belwar sacudiu a calva cabeça e franziu o
nariz. Magga cammara, é muito valente, elfo escuro! --Lhe piscou os olhos um olho e acrescentou--: Ou muito estúpido. --Nenhuma coisa nem a outra --repôs o drow.
Só confiava no Zaknafein. Olhou outra vez o lago de ácido e não disse nada mais. Belwar permaneceu em silêncio e esperou pacientemente a que seu amigo acabasse sua
apologia privada. Quando por fim Drizzt deixou de olhar o lago, Belwar lhe indicou que o seguisse e pôs-se a andar para a saída. --Vêem --disse-lhe o capataz por
cima do ombro. Tem que ver o aspecto real de nosso amigo morto. Drizzt pensou que o pek era formoso, com o sorriso beatífica que por fim tinha aparecido no atormentado
rosto do amigo. Belwar e ele pronunciaram umas poucas palavras, murmuraram orações aos deuses que pudessem ter os peks, e entregaram o corpo do Clak ao lago de ácido,
para que não acabasse nos estômagos dos
comilões de carniça que rondavam pelos túneis da Antípoda Escura. Os dois amigos reataram outra vez a marcha sozinhos, como tinham feito ao deixar a cidade svirfnebli,
e chegaram ao Blingdenstone ao cabo de uns poucos dias. Os guardas apostados nas enormes leva da cidade se mostraram sentidos saudades ante sua volta, embora não
por isso menos alegres de poder vê-los sãs e salvos. Permitiram-lhes passar depois de que o capataz prometesse que iria ver o rei Schnicktick imediatamente. --Esta
vez, poderá ficar --disse Belwar ao Drizzt. Você acabou com o monstro. Deixou ao Drizzt em sua casa, jurando que não demoraria para voltar com boas notícias.
Drizzt não compartilhava o otimismo de seu amigo. Não podia esquecer a advertência final do Zaknafein referente a que a matrona Malícia jamais abandonaria a perseguição,
porque era verdade. Tinham ocorrido muitas coisas nas semanas que ele e Belwar tinham estado ausentes do Blingdenstone, mas nenhuma delas, ao menos a seu julgamento,
diminuía a ameaça contra a cidade svirfnebli. Drizzt tinha aceito acompanhar ao Belwar só porque lhe parecia o mais adequado para pôr em prática seu novo plano.
--Até quando teremos que lutar, matrona Malícia? --perguntou-lhe Drizzt à parede de pedra quando o capataz deixou a casa. Precisava escutar seus pensamentos em voz
alta para convencer-se a si mesmo de que tinha tomado a decisão correta. Ninguém ganha neste duelo, mas assim é como atuam os drows, verdade? O drow se sentou
em um dos tamboretes junto à mesa pequena e pensou na validez de suas palavras. --Perseguirá-me até que um dos dois esteja morto, cegada pelo ódio que rege sua vida.
Não pode haver perdão no Menzoberranzan. Iria contra os decretos de sua repugnante rainha aranha. "E esta é a Antípoda Escura, seu mundo de sombras e tristezas,
mas este não é todo mundo, matrona Malícia, e me proponho descobrir até onde pode chegar sua maligna mão. Drizzt permaneceu em silencio durante muito tempo, recordando
as primeiras lições na Academia drow. Tentava procurar algumas pistas que lhe permitissem acreditar que as histórias referentes ao mundo da superfície só eram patranhas.
As mentiras nas lições da Academia drow tinham sido aperfeiçoadas ao longo dos séculos, e resultava impossível encontrar uma falha. O drow não demorou para compreender
que teria que confiar em seus sentimentos. Quando Belwar retornou à casa, com ar sombrio, o jovem já tinha tomado uma decisão. --Cabezotas, miolos de orco... --resmungou
o capataz enquanto cruzava a porta de pedra. Drizzt o deteve com uma sonora gargalhada. --Não querem nem ouvir falar de que fique! --chiou Belwar, molesto pela brincadeira.
--De verdade esperava outra coisa? --perguntou-lhe Drizzt. Minha luta ainda não acabou, querido Belwar. Pensava que a minha família a pode derrotar com tanta facilidade?
--Iremos daqui --grunho Belwar. Agarrou um tamborete e se sentou junto ao companheiro. Meu generoso... --pronunciou a palavra com sarcasmo-- rei permite que fique
uma semana na cidade. Uma semana! --Quando for, irei sozinho --interrompeu-o Drizzt. Tirou a estatueta de ônix da bolsa e emendou suas palavras--: Quase sozinho.
--Já discutimos antes o tema --recordou-lhe o pequeno. --Aquilo era outra coisa. --Era-o? --replicou o capataz. É que agora está em melhores condicione
que antes para sobreviver a sós nas profundidades da Antípoda Escura? esqueceste o risco da solidão? --Não estarei na Antípoda Escura --manifestou Drizzt. --Acaso
pensa voltar com sua gente? --gritou Belwar, tão surpreso e fora de si, que ficou de pé e lançou o tamborete contra a parede. --Não, nunca! --respondeu Drizzt,
com uma gargalhada. Nunca mais voltarei para o Menzoberranzan a menos que me levem sujeito pelas cadeias da matrona Malícia. O capataz procurou o tamborete e se
sentou, intrigado. --Tampouco ficarei na Antípoda Escura --explicou Drizzt. Este é o mundo de Malícia, mais adequado para o negro coração de um autêntico drow.
Belwar intuiu os propósitos do companheiro, mas não podia dar crédito a seus ouvidos. --De que falas? --perguntou. Aonde pretende ir? --À superfície --respondeu
Drizzt muito tranqüilo. Belwar voltou a levantar-se e esta vez o tamborete voou ainda mais longe. --Já estive ali uma vez --acrescentou Drizzt, sem alterar-se pelo
comportamento do Belwar. Participei de uma incursão drow que acabou em uma massacre. Recordar as ações de meus companheiros ainda me produz uma dor muito profunda.
Os aromas do mundo da superfície e a frescura do vento não me assustam. --A superfície --murmurou Belwar, com a cabeça encurvada e a voz convertida em um gemido.
Magga cammara, nunca me ocorreu ir ali. Não é lugar para um svirfnebli. --de repente Belwar descarregou um murro contra a mesa e olhou a seu companheiro, com um
sorriso decidido. Mas se Drizzt for, então Belwar estará a seu lado. --Drizzt irá sozinho --replicou o drow. Como você mesmo acaba de dizer, a superfície não
é lugar para um svirfnebli. --Nem para um drow --assinalou o pequeno. --Não encaixo no que se supõe que é um drow --replicou Drizzt. Meu coração não é o seu, nem
sua casa é a minha. Até quando terei que percorrer os túneis para ver-me livre do ódio de minha família? E se, ao escapar do Menzoberranzan, tropeço com alguma das
outras grandes cidades dos elfos escuros, Ched Nasad ou qualquer das demais, não se somarão à caça para cumprir os desejos da rainha aranha que quer minha cabeça?
Não, Belwar, não encontrarei paz debaixo dos tetos deste mundo fechado. Você, em troca, nunca seria feliz afastado da pedra da Antípoda Escura. Seu lugar está aqui,
um lugar de honra entre sua gente. Belwar permaneceu em silêncio um bom momento, digiriendo tudo o que Drizzt havia dito. Teria seguido a seu amigo ao fim do mundo
se ele o tivesse desejado, mas de verdade não queria abandonar a Antípoda Escura. Tampouco podia opor-se às intenções do Drizzt. Um elfo escuro poderia passar muitas
penúrias na superfície, mas seriam mais terríveis que os sofrimentos que lhe aguardavam na Antípoda Escura? O svirfnebli colocou uma mão no bolso e tirou o broche
luminoso. --Leva-o contigo, elfo escuro --disse com voz suave, lançando-lhe e não se esqueça de mim. --Nem por um só dia dos séculos que me toquem viver --prometeu
o drow. Nenhum sozinho. A semana transcorreu muito rápida para o Belwar, que não queria ver partir a seu amigo. O capataz sabia que nunca mais voltaria a ver o
Drizzt, mas compreendia a sensatez da decisão. Como correspondia a um amigo, Belwar assumiu a responsabilidade de abastecer ao Drizzt. Levou-o aos melhores artesãos
do Blingdenstone e pagou as provisões de seu próprio bolso.
Depois Belwar lhe fez um presente ainda mais valioso. Os pequenos tinham viajado à superfície em algumas ocasione, e o rei Schnicktick possuía mapas onde apareciam
os túneis de saída da Antípoda Escura. --A viagem te levará várias semanas --disse-lhe Belwar, enquanto lhe entregava o pergaminho--, mas acredito que nunca encontraria
o caminho sem isto. Ao Drizzt tremeram as mãos quando desenrolou o mapa. Agora sim que era verdade. Chegaria à superfície. Naquele instante teve o desejo de lhe
pedir ao Belwar que o acompanhasse; como podia lhe dizer adeus a um amigo tão querido? Mas os princípios lhe tinham permitido chegar até ali, e esses mesmos princípios
lhe exigiam que não fora egoísta. Abandonou Blingdenstone ao dia seguinte, com a firme promessa de que, se algum dia retornava a Antípoda Escura, iria visitar o.
Os dois sabiam que nunca mais voltariam a ver-se. Os quilômetros e os dias passaram sem incidentes. Algumas vezes Drizzt empregava o broche mágico que lhe tinha
agradável Belwar; outras caminhava na escuridão. Já fosse por coincidência ou sorte, não encontrou nenhum monstro na rota assinalada no mapa. Poucas coisas trocavam
na Antípoda Escura, e, embora o pergaminho era muito antigo, não tinha dificuldades para seguir suas orientações. Ao trigésimo terceiro dia de marcha, pouco depois
de levantar o acampamento, Drizzt notou uma mudança no ar, uma sensação que antecipava a frescura do vento da superfície que recordava com tanta claridade. Procurou
a estatueta de ônix e chamou o Guenhwyvar. Juntos caminharam ansiosos, atentos a que o teto desaparecesse atrás da próxima curva. Chegaram a uma pequena cova, e
a escuridão além da saída não era tão intensa como a que tinham detrás. Drizzt conteve o fôlego e guiou ao Guenhwyvar ao exterior. As estrelas brilhavam entre as
rasgadas nuvens do céu noturno, chapeada-a luz da lua aparecia como um resplendor mortiço detrás de um nubarrón, e o vento uivava uma canção montanhesa. Drizzt se
encontrava nas alturas dos Reino, na ladeira de uma das montanhas mais altas de uma cordilheira gigantesca. Não o incomodava o açoite do vento, e permaneceu imóvel
durante muito momento com o olhar posto nas nuvens, que voavam silenciosas para a lua.
O monstro avançava lentamente pelos silenciosos corredores da Antípoda Escura, esfregando contra sua pedra oito patas cobertas de escamas. Não se espantava do eco dos roce nem o preocupava descobrir sua presença. Não corria a ficar a coberto, atento ao ataque de outro depredador. Porque, inclusive nos perigos da Antípoda Escura, esta criatura só conhecia a segurança, confiava na capacidade de derrotar a qualquer adversário. Seu fôlego emprestava a veneno, os bordos duros de suas mandíbulas abriam sulcos nas rochas, e as fileiras de dentes como serras podiam rasgar a pele mais grossa. Mas o pior de tudo era o olhar do monstro, o olhar do alfavaca, capaz de transmutar em pedra qualquer ser vivo que observava. Esta criatura, enorme e terrível, figurava entre as maiores de sua espécie. Não conhecia o medo. O caçador vigiou o passado do alfavaca tal como tinha feito umas horas antes. O monstro de oito patas era um intruso nos domínios do caçador. Tinha visto a alfavaca caçar com seu fôlego venenoso a várias de suas vitelas --uns animais um pouco maiores que um gato que formavam parte de sua dieta--, e o resto da manada tinha escapado pelos túneis, possivelmente para sempre. O caçador estava furioso. O monstro penetrou em um passadiço mais estreito, precisamente a rota que o caçador tinha suspeitado que tomaria. Este desembainhou as armas, e o contato dos punhos aumentou sua confiança. Possuía-as da infância, e, inclusive depois de quase três décadas de um uso quase constante, apenas se tinham alguma rastro de desgaste. Agora as poria a prova outra vez. O caçador embainhou as armas e esperou o som que o faria entrar em ação. O alfavaca se deteve o escutar um rugido profundo e espiou na escuridão alerta, embora seus míopes olhos só alcançavam a ver uns passos de distância. Uma vez mais soou o rugido, e o alfavaca se escondeu à espera de que aparecesse o desafiante, a próxima vítima, para matá-lo no ato. Muito atrás, o caçador saiu de seu esconderijo e correu a grande velocidade quase pego às paredes do passadiço cheias de gretas e rebordos. Envolto na capa mágica, o piwafwi, resultava invisível contra a pedra, e, graças à agilidade e à prática de seus movimentos, não fazia nenhum ruído. Avançava como o raio no mais absoluto silêncio. ouviu-se outra vez o rugido na distância; ao parecer não tinha trocado de posição. O monstro avançou impaciente por conseguir a presa. Quando o alfavaca passou por debaixo de um arco de pouca altura, um globo de escuridão impenetrável lhe rodeou a cabeça. A besta se deteve de repente e deu um passo atrás, tal como tinha suposto seu perseguidor. Então o caçador iniciou o ataque. Saltou da parede do túnel e executou três ações distintas antes de chegar a seu objetivo. Primeiro lançou um feitiço singelo que envolveu a cabeça do alfavaca em um halo de chamas azuis e púrpura. A seguir se cobriu o rosto com o capuz porque não precisava ver para lutar, e as conseqüências de um olhar do alfavaca eram mortais. Por último desembainhou as cimitarras. Só então se plantou sobre o lombo da besta e subiu pelas escamas para chegar à cabeça. O alfavaca reagiu no momento em que as chamas lhe envolveram a cabeça.
Não queimavam mas marcavam a silhueta do monstro e o convertiam em uma presa fácil. Tentou voltar-se, mas só tinha conseguido girar pela metade a cabeça quando a primeira cimitarra se cravou em um dos olhos. A criatura se encabritou com o propósito de jogar no chão ao caçador com a violência de suas sacudidas. Lançou uma nuvem de gás venenoso e sacudiu a cabeça como um látego. O caçador era muito mais rápido, e se manteve detrás da boca, onde o veneno não podia alcançá-lo. A segunda cimitarra arrebentou o outro olho, e então o caçador atacou com toda sua fúria. O alfavaca era um intruso que tinha matado a suas vitelas! Descarregou cutiladas a torto e a direito contra a cabeça couraçada para quebrar as escamas e alcançar a carne. O alfavaca compreendeu o perigo mas confiava em ganhar. Sempre tinha saído vitorioso. Só tinha que jogar o fôlego venenoso contra seu atacante. Então se somou ao ataque o segundo inimigo que com seus rugidos tinha tendido a ceva. O felino se lançou contra a cabeça envolta em chamas sem preocupar-se da nuvem tóxica, porque se tratava de um ser mágico e, portanto, imune a seus efeitos. As garras da pantera rasgaram as mandíbulas do alfavaca, e o sangue fechou o passo à peçonha. detrás da cabeça, o caçador descarregou um centenar ou mais de golpes selvagens que conseguiram primeiro abrir uma brecha na couraça de escamas e depois hendir o crânio do alfavaca. Mas o caçador não deteve o ataque até bastante depois da morte do monstro. Por fim o vencedor se tirou o capuz para observar os despojos do alfavaca e o estado das armas. Depois levantou bem alto as cimitarras manchadas de sangue e proclamou seu triunfo com um grito de alegria. Ele era o caçador e esse era seu lar! Entretanto, depois de esgotar sua ira com aquele grito primitivo, o caçador olhou a sua companheira e se envergonhou. Os grandes olhos amarelos o julgavam, embora não fora esta sua intenção. O felino era o único vínculo com o passado, com a civilização que o caçador tinha conhecido em outros tempos. --Vêem, Guenhwyvar --sussurrou enquanto embainhava as cimitarras. Desfrutou com o som das palavras ao as pronunciar. A sua era a única voz que tinha escutado em mais de uma década. Mas agora, quando falava em voz alta, resultava-lhe cada vez mais difícil as recordar e lhe soavam desconhecidas. Também perderia a capacidade de falar da mesma maneira que tinha perdido tantas outras coisas da vida passada? Esta possibilidade o preocupava muitíssimo, porque sem voz não poderia chamar à pantera. Então se encontraria realmente sozinho. Pelos silenciosos corredores da Antípoda Escura, o caçador e a pantera seguiram seu caminho sem fazer nenhum ruído, sem mover nenhuma pedra. Juntos tinham chegado a conhecer os perigos deste mundo em silêncio. Juntos tinham aprendido a sobreviver. Apesar da vitória contra o monstro, o caçador não sorria. Não temia a nenhum inimigo, mas já não tinha muito claro se era pela coragem e a confiança em si mesmo ou pela apatia de sua vida. Possivelmente não bastava sobrevivendo.
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PRIMEIRA PARTE
O caçador
Recordo com toda claridade o dia em que abandonei a cidade onde nasci, a cidade de minha raça. Ante mim se abria a imensidão da Antípoda Escura, uma vida de emoções
e aventuras que me entusiasmava. Mas sobre tudo o resto, tinha deixado Menzoberranzan convencido de que poderia viver minha vida de acordo com meus princípios. Tinha
ao Guenhwyvar a meu lado e as cimitarras enganchadas ao cinturão. Era dono de meu destino. Mas aquele drow, o jovem Drizzt Dou'Urdem que abandonou Menzoberranzan
naquela data assinalada, logo que entrado na quarta década de vida, não compreendia a verdade do tempo, de como seu passo parece cada vez mais lento quando não se
compartilha com outros. Em meu entusiasmo juvenil, pensava nos séculos de vida que tinha por diante. Como pode medir os séculos quando uma só hora parece um dia
e um só dia parece um ano? além das cidades da Antípoda Escura, há comida para aqueles que sabem como encontrá-la e segurança para aqueles que sabem onde ocultar-se.
E, por cima de todo o resto, além das populosas cidades da Antípoda Escura há solidão. À medida que me convertia em uma criatura dos túneis desertos, conseguir os
meios para sobreviver resultou mais fácil mas se fez mais difícil em outros aspectos. Adquiri a habilidade e experiência necessárias para defender minha vida. Era
capaz de derrotar a quase todas as criaturas que penetravam em meu território, e de escapar ou me esconder dos poucos monstros aos que não podia vencer. De todos
os modos, não demorei muito em descobrir ao único inimigo invencível do que não me era possível escapar nem me esconder. Seguia-me ali aonde ia e, quanto mais me
afastava, mais perto a tinha. Meu inimigo era a solidão, o silêncio eterno dos túneis em trevas. Ao recordar aqueles anos, surpreendem-me e assombram as muitas mudanças
que sofri por efeito da solidão. A própria identidade de um ser racional está definida pela linguagem, a comunicação, entre aquele ser e os que o rodeiam. Sem aquele
vínculo, estava perdido. Quando deixei Menzoberranzan, tinha decidido viver segundo meus princípios: a força surgiria da lealdade inquebrável a minhas crenças. Em
troca, aos poucos meses de solidão na Antípoda Escura, o único fim de minha vida era a sobrevivência em si mesmo. Tinha-me convertido em uma criatura instintiva,
calculadora e ardilosa que não pensava, que só utilizava a mente para escolher a seguinte presa. Acredito que Guenhwyvar foi minha salvação. A mesma companheira
que me tinha salvado de uma morte segura entre as garras de uma infinidade de monstros também me resgatou da morte por solidão, possivelmente muito menos heróica
mas não por isso menos mortal. Descobri que vivia só para os momentos em que a pantera caminhava a meu lado, quando tinha a outro ser vivo para escutar minhas palavras
por muito que me custasse as pronunciar. além de seus muitos outros méritos, Guenhwyvar se converteu em meu relógio, porque sabia que a pantera podia retornar do
plano astral a dias alternos e durante meio-dia. Só depois do final daquela odisséia compreendi quão terrível tinha sido. Sem o Guenhwyvar, não teria mantido a decisão
de seguir adiante, jamais teria conservado as forças para sobreviver.
Inclusive quando ela estava a meu lado, duvidava cada vez mais de minha posição ante o combate. Em segredo tinha começado a desejar que algum feto da Antípoda Escura
resultasse ser mais forte que eu. Acaso a dor de umas presas ou de umas garras cravadas na carne podia ser mais forte que o suplício da solidão e o silêncio? Acredito
que não.
DRIZZT DOU'URDEM
1
Um presente de aniversário
A matrona Malícia Dou'Urdem se moveu inquieta no trono de pedra instalado na pequena e escura hall da grande capela da casa Dou'Urdem. Para os elfos escuros, que
mediam o passado do tempo por décadas, o presente era um dia famoso nos anais da casa de Malícia, o décimo aniversário da guerra encoberta que mantinham a família
Dou'Urdem e a casa Hun'ett. A matrona Malícia, que nunca se perdia uma celebração, tinha preparado um presente especial para seus inimigos. Briza Dou'Urdem, a filha
maior de Malícia, uma fêmea forte, fornida e de muito mau caráter, passeava-se impaciente acima e abaixo pela hall. --Já teria que ter acabado --protestou propinando
um chute a um pequeno tamborete, que voou pelos ares e foi a estelar se contra o chão. O assento, feito de caule de cogumelo, abriu-se em dois. --Paciência, minha
filha --aconselhou-lhe Malícia com um ligeiro tom de recriminação, embora compartilhava o nervosismo da Briza. Jarlaxle é muito precavido. Briza se voltou para
escutar a menção do presunçoso mercenário e caminhou para as portas de pedra decorada da sala. Malícia não passou por cima o significado das ações de sua filha.
--Não aprova ao Jarlaxle e a sua banda --declarou a mãe matrona. --São uns trapaceiros ingratos --afirmou Briza, sem olhar a sua mãe. Não há lugar no Menzoberranzan
para gente como eles. Perturbam a ordem natural de nossa sociedade! E são todos varões! --Servem-nos bem --recordou-lhe Malícia. Briza fez um esforço para não mencionar
o elevado custo que representava alugar mercenários. Não queria provocar a ira da matrona. Do começo da guerra com os Hun'ett, ela e Malícia não tinham feito outra
coisa que discutir. --Sem Brigam D'aerthe, não poderíamos lutar contra nossos inimigos --acrescentou Malícia. Utilizar os serviços dos mercenários..., os trapaceiros
ingratos, como os chamaste..., permite-nos combater sem comprometer a nossa casa como participante no conflito. --E por que não acabamos de uma vez com tudo isto?
--perguntou Briza ao tempo que se aproximava do trono. Matamos a uns quantos soldados Hun'ett, e eles matam a um punhado dos nossos. E enquanto isso as duas casas
se dedicam a contratar a quem quer substitui-los. Não se acabará nunca! Os únicos beneficiados neste conflito são os mercenários de Brigam D'aerthe... e a banda
que tenha contratado a matrona SiNafay Hun'ett..., que se alimentam das arcas das duas casas! --Vigia o tom, minha filha! --grunhiu Malícia, zangada. Fala com
uma mãe matrona! --Teríamos que ter atacado a casa Hun'ett imediatamente, a mesma noite do sacrifício do Zaknafein! --atreveu-se a protestar Briza, enquanto dava
meia volta.
--Se esquece das ações de seu irmão menor durante aquela noite -- replicou Malícia, mais sossegada. Mas a matrona Malícia se equivocava. Até no caso de que vivesse
mil anos, Briza jamais esqueceria as ações do Drizzt a noite em que tinha desertado da família. Treinado pelo Zaknafein, o amante favorito de Malícia, reputado como
o melhor professor de armas em todo Menzoberranzan, Drizzt tinha conseguido uma perfeição no manejo das armas muito por cima da norma. Mas Zak também lhe tinha inculcado
umas atitudes blasfemas que Lloth, a deidade dos elfos escuros, não tolerava. Por fim, o comportamento sacrílego do Drizzt tinha provocado a cólera do Lloth, e a
reina aranha tinha reclamado o sacrifício do jovem. A matrona Malícia, impressionada pelas aptidões do Drizzt para a guerra, tinha atuado com decisão em defesa do
jovem e tinha entregue ao Lloth o coração do Zaknafein como compensação pelos pecados do filho. Tinha perdoado ao Drizzt com a esperança de que, desaparecidas as
más influências do Zaknafein, emendaria a conduta e substituiria ao professor de armas sacrificado. Em troca, o ingrato Drizzt os tinha traído e tinha escapado às
regiões desconhecidas da Antípoda Escura; um ato que não só tinha privado à casa Dou'Urdem de seu candidato a professor de armas mas sim além disso tinha feito perder
o favor do Lloth à matrona Malícia e ao resto da família Dou'Urdem. Como desastrosa conclusão de todos seus esforços, a casa Dou'Urdem tinha perdido ao professor
de armas, a seu suposto substituto, e o favor do Lloth. Aquele não tinha sido um bom dia. Por sorte, a casa Hun'ett também tinha sofrido desce na mesma data: a morte
de dois magos que tinham tentado assassinar ao jovem guerreiro. Com as duas casas debilitadas e sem contar com o favor do Lloth, a guerra iminente se transformou
em uma interminável série de ataques encobertos. Briza nunca o esqueceria. Uma chamada à porta da hall arrancou a Malícia e a Briza das lembranças daquele dia desgraçado.
abriu-se a porta e Dinin, o filho maior da casa, entrou na sala. --Saúde, mãe matrona --saudou com todo respeito enquanto fazia uma reverência. Dinin queria lhe
dar uma surpresa, mas o sorriso que lhe iluminava o rosto o descobriu. --Jarlaxle tornou! --exclamou Malícia, exultante. Dinin se voltou para a porta aberta, e o
mercenário, que tinha esperado pacientemente no corredor, fez sua entrada. Briza, que não deixava de surpreender-se ante a extravagância do patife, sacudiu a cabeça
quando Jarlaxle passou junto a ela. Quase todos os elfos escuros do Menzoberranzan vestiam com discrição e praticamente: adornavam os objetos com símbolos da rainha
arranha ou utilizavam uma cota de malha oculta debaixo dos piwafwi, as capas mágicas. Jarlaxle, arrogante e descarado, seguia muito poucas dos costumes dos habitantes
do Menzoberranzan. Não constituía precisamente um modelo do que a sociedade drow exigia, e sentia prazer em ressaltar as diferenças, em uma atitude insolente. Não
vestia uma túnica ou um penhoar, a não ser uma capa resplandecente que refletia tudas as cores do espectro da luz normal e a infravermelha. A magia do objeto só
se podia intuir, mas os mais amealhados à líder mercenário comentavam que era muito poderosa. O colete do Jarlaxle não tinha mangas e era tão curto que seu magro
e musculoso estômago ficava à vista. Levava um olho coberto por um emplastro, embora um observador atento podia ver que só servia de adorno, porque o mercenário
o trocava de um olho a outro com certa freqüência.
--Minha querida Briza --disse Jarlaxle por cima do ombro, ao ver a expressão de desgosto da grande sacerdotisa ante sua aparência. Deu meia volta e fez uma reverência
que acompanhou com um empolado movimento de seu chapéu, outra excentricidade, e mais inclusive quando o chapéu estava adornado com as enormes plumas de um diatryma,
um pássaro gigante da Antípoda Escura. Briza soprou zangada e se girou para não ver a cabeça inclinada do mercenário. Os elfos drows utilizavam suas espessas cabeleiras
brancas como um emblema de sua fila, com um corte destinado a mostrar sua categoria e a filiação da casa. Em troca Jarlaxle não tinha cabelo e, a Briza, a cabeça
barbeada lhe parecia uma bola de ônix. Jarlaxle riu discretamente do aborrecimento da filha maior dos Dou'Urdem e voltou sua atenção à matrona Malícia. As numerosas
jóias tilintavam, e os saltos de suas botas reluzentes soavam com cada passo. Briza também notou estes detalhes, porque sabia que as botas e as jóias só pareciam
fazer ruído a vontade do patife. --Parece? --perguntou a matrona Malícia antes de que o mercenário tivesse tempo de saudá-la. --Minha querida matrona Malícia --respondeu
com um suspiro quejumbroso, consciente de que podia saltá-las formalidades à vista da importância das notícias--, é que duvidastes que mim? Sinto-me muito doído.
Malícia abandonou seu trono de um salto e levantou um punho em sinal de vitória. --Dipree Hun'ett está morto! --proclamou. O primeiro nobre morto nesta guerra!
--Se esquece do Masoj Hun'ett --comentou Briza--, ao que matou Drizzt faz dez anos. --E, contra toda prudência, acrescentou--: E do Zaknafein Dou'Urdem, morto por
sua própria mão. --Zaknafein não era nobre de nascimento --replicou Malícia, zangada pela insolência da filha. As palavras da Briza lhe picaram a consciência. Malícia
tinha decidido sacrificar ao Zaknafein em lugar da o Drizzt com a oposição da Briza. Jarlaxle pigarreou em um intento de dissuadir às duas mulheres de prolongar
a discussão. O mercenário sabia que devia acabar seus assuntos e sair da casa Dou'Urdem o antes possível. Estava advertido --embora os Dou'Urdem não sabiam-- de
que faltava pouco para a hora assinalada. --Ainda está por resolver o tema do pagamento --recordou a Malícia. --Dinin se ocupará de te pagar --repôs Malícia, que
se despediu do mercenário com um gesto sem desviar o olhar do rosto da Briza. --Então me retiro --disse Jarlaxle e, com um movimento de cabeça, indicou ao Dinin
que o acompanhasse. antes de que o mercenário desse um passo em direção à saída, Vierna, a segunda filha de Malícia, entrou na sala, com o rosto brilhante pelo calor
do entusiasmo. --Maldição --sussurrou Jarlaxle pelo baixo. --O que ocorre? --perguntou a matrona Malícia. --A casa Hun'ett! --gritou Vierna. Soldados no pátio!
Atacam-nos! No pátio de armas, mais à frente do edifício principal, quase quinhentos soldados da casa Hun'ett --cem mais dos calculados pelos informe dos espiões--
penetraram na casa Dou'Urdem depois do estalo de um raio contra os portões de adamantita. Os trezentos e cinqüenta soldados da guarnição dos Dou'Urdem saíram à carreira
das estalagmites que lhes serviam de quartéis para responder ao ataque. Superadas em número mas treinadas pelo Zaknafein, as tropas se agruparam nas posições defensivas
que tinham como principal objetivo proteger aos magos e as
sacerdotisas para que pudessem lançar seus feitiços. Todo um contingente de soldados Hun'ett, que podiam voar graças a um feitiço, lançaram-se em picado contra o
setor da parede da caverna que albergava os aposentos principais da casa Dou'Urdem. Os defensores utilizaram com grande eficácia as pequenas molas de suspensão de
mão e dizimaram aos soldados voadores com seus dardos envenenados. Mas os invasores aéreos tinham conseguido surpreender aos defensores, e estes não demoraram para
ver-se em uma situação comprometida. --Hun'ett não tem o favor do Lloth! --chiou Malícia. Jamais se atreveria a atacar abertamente! Enrugou o gesto quando o estrondo
dos raios lhe deram a réplica. --Não? --disse Briza. Malícia lhe dirigiu um olhar de ameaça mas já não tinha tempo para continuar a discussão. O plano normal de
ataque de uma casa drow compreendia o assalto dos soldados em combinação com uma barreira mental a cargo das somas sacerdotisas da casa. Entretanto, Malícia não
captava nenhuma onda do ataque mental, e isto lhe confirmou convincentemente que os atacantes pertenciam à casa Hun'ett. Ao parecer, as sacerdotisas inimizades,
separada-se da graça da rainha aranha, não podiam utilizar os poderes outorgados pelo Lloth para lançar o ataque mental. Desde não ser assim, Malícia e as filhas,
também privadas do favor da rainha aranha, não teriam tido nenhuma esperança de salvação. --O que os terá impulsionado ao ataque? --pensou Malícia em voz alta.
--Certamente são muito ousados --respondeu Briza, que tinha compreendido o raciocínio da matrona--, ao pensar que só com os soldados podiam eliminar a todos os membros
de nossa casa. Todos os presentes na sala sabiam, igual a todos os drows do Menzoberranzan, o castigo brutal e inexorável que recebia qualquer casa incapaz de eliminar
totalmente a outra. Os ataques estavam permitidos de uma forma encoberta mas não se perdoava o fracasso. Rizzen, o atual patrão da casa Dou'Urdem, entrou na sala
com uma expressão muito grave no rosto. --Dobram-nos em número e perdemos posições --informou. Não demoraremos muito em cair derrotados. Malícia não quis aceitar
a má nova. Esbofeteou ao Rizzen com tanta força que o fez cair ao chão, e depois se voltou para o mercenário. --Deve chamar a sua banda! --gritou a matrona. Depressa!
--Matrona--gaguejou Jarlaxle, surpreso--, Brigam D'aerthe é um grupo secreto. Não participamos das guerras abertas. Fazê-lo significaria provocar a ira do conselho
regente! --Pagarei-te o que seja --prometeu a mãe matrona, desesperada-se. --Mas o custo... --O que seja! --repetiu Malícia. --Dita ação... --começou Jarlaxle. Uma
vez mais, Malícia não o deixou acabar a frase. --Salva minha casa, mercenário --gritou. Seus lucros serão enormes mas lhe advirto isso, muito mais te custará o
fracasso! Ao Jarlaxle não gostava das ameaças e muito menos de uma mãe matrona necessitada cujo mundo se desabava a seu redor. Não obstante, o doce som da palavra
"lucros" valia aos ouvidos do mercenário mais que um milhar de ameaças. depois de conseguir durante dez anos consecutivos uns benefícios extraordinários do conflito
entre os Dou'Urdem e os Hun'ett, Jarlaxle não duvidava da vontade nem da capacidade de Malícia para pagar o prometido, nem tampouco duvidava de que este acerto resultaria
muito mais lucrativo que o outro estabelecido com a matrona SiNafay Hun'ett a
princípios de semana. --Como querem --respondeu à oferta da matrona Malícia, e acompanhou a resposta com uma reverência e um floreio de seu ridículo chapéu. Verei
o que posso fazer. Dirigiu uma piscada ao Dinin, e o filho maior se apressou a segui-lo fora da sala. Quando os dois saíram ao balcão que dominava o recinto Dou'Urdem,
puderam ver que a situação tinha piorado sensivelmente. Os soldados da casa Dou'Urdem --aqueles que ainda estavam vivos-- encontravam-se apanhados ao redor de uma
das imensas estalagmites que formavam parte da entrada. Um dos soldados voadores descendeu ao balcão ao descobrir a presença de um nobre Dou'Urdem, mas Dinin o despachou
em um abrir e fechar de olhos. --Bem feito --comentou Jarlaxle, com um olhar de aprovação. aproximou-se disposto a aplaudir o ombro do filho maior, mas este se apartou.
--Temos que nos ocupar de assuntos mais urgentes --recordou-lhe Jarlaxle. Chama a suas tropas, e depressa, porque se não a vitória será para a casa Hun'ett. --Tranqüilo,
amigo Dinin --respondeu o mercenário com uma gargalhada, e agarrando um pequeno apito que tinha pendurado do pescoço, soprou nele. Dinin não ouviu nenhum som porque
os assobios do mágico instrumento só podiam ser escutados pelos membros de Brigam D'aerthe. O filho maior dos Dou'Urdem observou assombrado enquanto Jarlaxle soprava
as ordens, e seu assombro não teve limites quando mais de um centenar de soldados da casa Hun'ett começaram a atacar a seus camaradas. Brigam D'aerthe só era leal
a si mesmo. --Não podem nos atacar --insistiu Malícia, passeando-se de cima abaixo pela sala. Não contam com a ajuda da rainha aranha. --em que pese a não contar
com sua ajuda estão a um passo de conseguir a vitória --recordou-lhe Rizzen do rincão mais afastado da habitação, onde se tinha refugiado com toda prudência. --Você
disse que jamais se atreveriam a atacar! --reprovou-lhe Briza à mãe. Inclusive quando tentava justificar as razões para não realizar nosso próprio ataque! Briza
recordava aquela conversação com todo detalhe, porque tinha sido sua idéia atacar abertamente à casa Hun'ett. Malícia a tinha repreendido publicamente, e agora Briza
pretendia lhe devolver a humilhação. Sua voz soava carregada de sarcasmo enquanto respondia à matrona. --É possível que a matrona Malícia tenha cometido um engano?
A réplica de Malícia foi um olhar onde se combinavam a cólera e o terror. Briza lhe devolveu o olhar sem acovardar-se, e de repente a mãe matrona da casa Dou'Urdem
não se sentiu tão invencível e segura de suas ações. Deu um coice quando Maia, a menor das filhas, apareceu na sala. --entraram na casa! --gritou Briza, convencida
de que tinha chegado o momento final, e empunhou o látego de cabeças de serpente. E nem sequer temos feito os preparativos para a defesa! --Não! --corrigiu-a Maia.
O inimigo não cruzou o balcão. A casa Hun'ett está a ponto de perder a batalha! --Sabia --exclamou Malícia, que se ergueu encorajada com o olhar posto na Briza.
A casa que ataca sem contar com o favor do Lloth comete uma loucura! Apesar de suas afirmações, Malícia adivinhava que havia algo mais que o favor da rainha aranha
no imprevisto resultado do combate. Seu raciocínio a levou indevidamente ao Jarlaxle e a sua banda de trapaceiros.
Jarlaxle saltou do balcão e utilizou as habilidades inatas dos drows para levitar até o chão da caverna. Ao ver que não precisava envolver-se em uma batalha que
estava controlada, Dinin permaneceu no lugar e observou a marcha do mercenário enquanto pensava no que acabava de acontecer. Jarlaxle tinha servido aos dois bandos,
e uma vez mais o mercenário e sua banda tinham sido os autênticos ganhadores. Certamente, os integrantes de Brigam D'aerthe não tinham escrúpulos, mas Dinin reconheceu
que eram muito efetivos e descobriu que o mercenário lhe era simpático. --A acusação foi entregue à matrona Baenre segundo todos os requisitos? --perguntou- Malícia
a Briza quando a luz do Narbondel, a estalagmite aquecida magicamente que servia de relógio no Menzoberranzan, começou sua ascensão para marcar o alvorada do novo
dia. --A casa regente esperava a visita --respondeu Briza em tom burlam. Toda a cidade comenta o ataque e o êxito da casa Dou'Urdem ante os invasores da casa Hun'ett.
A matrona Malícia tentou dissimular sem consegui-lo um sorriso vaidoso. Desfrutava com a atenção e a glória que de agora em diante mereceria sua casa. --O conselho
regente se reunirá hoje mesmo --acrescentou Briza. Sem dúvida para desespero da matrona SiNafay Hun'ett e sua família. Malícia assentiu. A destruição de uma casa
rival no Menzoberranzan era uma prática legítima entre os drows. Mas se fracassava no intento, se só ficava vivo uma testemunha de sangue nobre para apresentar a
acusação, então o conselho regente ordenava a eliminação definitiva da casa agressora. Uma chamada fez que ambas se voltassem para a porta. --Chamam-lhe, matrona
--anunciou Rizzen assim que entrou na sala. A matrona Baenre enviou uma limusine. Malícia e Briza intercambiaram um olhar nervoso e esperançado. Quando impor o
castigo à casa Hun'ett, a casa Dou'Urdem passaria a ocupar o oitavo lugar dentro da hierarquia da cuidem, uma posição invejável, pois unicamente as mães matronas
das primeiras oito casas ocupavam um assento no conselho regente do Menzoberranzan. --Já? --perguntou Briza. Malícia encolheu os ombros como única resposta; saiu
da sala detrás do Rizzen e chegou até o balcão. Rizzen tendeu uma mão para ajudá-la, mas Malícia a apartou com violência. Transbordante de orgulho, a matrona se
encarapitou à balaustrada e descendeu lentamente até o pátio de armas, onde se agrupavam os soldados da casa. O disco voador com a insígnia da casa Baenre flutuava
a uns passados do portão destroçado ao começo da batalha. A mãe matrona desfilou com a cabeça bem alta entre as tropas que se empurravam para lhe deixar passo. Hoje
era seu dia de glória, o dia em que tinha conseguido um assento no conselho regente, o sonho de toda sua vida. --Mãe matrona, acompanharei-te através da cidade --ofereceu-se
Dinin, que a esperava na entrada. --Permanecerá aqui com o resto da família --ordenou-lhe Malícia. Só me chamaram . --Como sabe? --perguntou Dinin, mas se deu
conta de que tinha cometido um engano logo que as palavras saíram de sua boca. Quando Malícia voltou a cabeça para fulminá-lo com o olhar, Dinin já tinha desaparecido
entre os soldados. --Insolente --murmurou pelo baixo, e ordenou a quão soldados retirassem os restos do portão reparado pela metade. Com um último olhar triunfal
a seus súditos, Malícia cruzou a grade e se instalou no disco voador.
Esta não era a primeira vez que Malícia respondia a um convite da matrona Baenre, assim não se surpreendeu quando várias sacerdotisas Baenre saíram das sombras para
formar um escudo de amparo ao redor do disco e sua passageira. A vez anterior, Malícia não as tinha tido todas consigo porque desconhecia os motivos do convite.
Agora, em troca, cruzou os braços sobre o peito em um gesto de desafio e deixou que os curiosos a contemplassem no esplendor da vitória. Malícia aceitou com orgulho
as olhadas, convencida de sua superioridade. Inclusive quando o disco chegou à fabulosa grade em forma de telaraña da casa Baenre, com os mil guardas e as fantásticas
edificações que abrangiam estalagmites e estalactites, o orgulho de Malícia não diminuiu nem um ápice. Agora formava parte do conselho regente, ou o faria dentro
de muito pouco; já não tinha razões para sentir-se intimidada em nenhum lugar da cidade. Ao menos era o que acreditava. --Esperam sua presença na capela --informou-lhe
uma das sacerdotisas Baenre assim que o disco se deteve o pé da escada que conduzia ao grande edifício com forma de cúpula. Malícia desembarcou do veículo e subiu
os degraus de pedra polida. logo que entrou na capela advertiu a presença de uma figura sentada em uma das cadeiras instaladas no altar central. A drow, a única
pessoa visível na sala, não parecia haver-se dado conta da entrada da mãe matrona. Permanecia sentada comodamente, muito entretida em contemplar a enorme imagem
mágica no teto da cúpula que primeiro mostrava uma aranha gigante e depois uma formosa mulher drow. Quando se aproximou, Malícia reconheceu as vestimentas de uma
mãe matrona, e deu por sentado, como tinha feito do primeiro momento, que se tratava da matrona Baenre, o ser mais capitalista de toda Menzoberranzan, que a esperava.
Malícia subiu a escada do altar, e se aproximou da drow pelas costas. Sem esperar o convite, avançou com toda ousadia para saudar a outra mãe matrona. Entretanto,
não se tratava da figura anciã e encolhida da matrona Baenre a que Malícia Dou'Urdem encontrou no altar da capela Baenre. A mãe matrona sentada não tinha superado
a longevidade habitual dos drows nem era tão enrugada e seca como uma múmia. De fato, esta drow tinha mais ou menos a mesma idade de Malícia e era bastante pequena.
Malícia a conhecia muito bem. --SiNafay! --gritou e a ponto esteve de cair pela surpresa. --Malícia --respondeu a outra, muito tranqüila. Um sem-fim de possibilidades
desagradáveis desfilaram pela mente de Malícia. SiNafay Hun'ett teria que ter estado refugiada em sua casa junto ao resto da família à espera da aniquilação. Em
troca, aparecia sentada o mar de feliz no recinto sagrado da família mais importante do Menzoberranzan. --Não tem nenhum direito a estar aqui! --protestou Malícia,
com os punhos apertados contra os quadris. Por um instante pensou em atacar a seu rival ali mesmo, em estrangular ao SiNafay com suas próprias mãos. --te tranqüilize,
Malícia --recomendou-lhe SiNafay, despreocupada. Como você, estou aqui convidada pela matrona Baenre. A menção desta e o aviso do lugar onde se encontravam sossegaram
a Malícia. Esta era a capela da casa Baenre e não sua casa! Malícia se dirigiu ao lado oposto do altar circular e tomou assento, sem apartar o olhar nem por um instante
da presumido sorriso do SiNafay Hun'ett. depois de uns minutos de silêncio que lhe pareceram eternos, Malícia não pôde conter-se mais. --Foi a casa Hun'ett a que
atacou a minha família na última escuridão do Narbondel --afirmou. Tenho numerosas testemunhas do fato. Não pode haver nenhuma
dúvida! --Nenhuma --respondeu SiNafay, e seu assentimento pilhou a Malícia com o guarda baixo. --Admite o fato? --exclamou Malícia, frustrada. --Certamente --disse
SiNafay. Nunca o neguei. --Mesmo assim está viva --disse Malícia, com desprezo. As leis do Menzoberranzan exigem que o peso da justiça caia sobre ti e sua família.
--Justiça? --SiNafay soltou a gargalhada ante uma idéia tão estúpida. A justiça nunca tinha sido mais que uma fachada e uma maneira de simular uma certa ordem no
caos do Menzoberranzan. Atuei de acordo com o mandato da rainha aranha. --Se a reinar aranha aprovava seus méritos, teria conseguido a vitória -- raciocinou Malícia.
--Não necessariamente --interrompeu outra voz. Malícia e SiNafay se voltaram quando a matrona Baenre apareceu por arte de magia em seu trono, localizado-se no lado
mais afastado do altar. Malícia desejou poder descarregar sua ira contra a anciã mãe matrona por espiar a conversação e pela aparente negativa às acusações contra
SiNafay. Mas se Malícia tinha conseguido sobreviver aos perigos do Menzoberranzan durante quinhentos anos, era porque compreendia os riscos de provocar a cólera
de alguém como a matrona Baenre. --Reclamação o direito de acusação contra a casa Hun'ett --disse Malícia, sem elevar a voz. --Concedido --repôs a matrona Baenre.
Como há dito, e SiNafay esteve de acordo, não há nenhuma dúvida. Malícia se voltou triunfante para o SiNafay, mas a mãe matrona da casa Hun'ett permanecia tão tranqüila
e sorridente como antes. --Então, por que está aqui? --protestou Malícia, com um tom quase histérico. SiNafay está fora da lei. Não... --Não pusemos nenhuma objeção
a suas palavras --interrompeu-a a matrona Baenre. A casa Hun'ett atacou e fracassou. O castigo que merecem suas ações é bem conhecido e aceito por todos, e o conselho
regente se reunirá hoje mesmo para ocupar-se de que se faça justiça. --Então, por que está aqui SiNafay? --repetiu Malícia. --Dúvidas da sabedoria de meu ataque?
--perguntou-lhe SiNafay a Malícia, quase sem poder conter a risada. --Foi derrotada --recordou-lhe Malícia. Aí tem a resposta. --Lloth exigiu o ataque --disse
a matrona Baenre. --Então, por que foi derrotada a casa Hun'ett? --insistiu Malícia, teimada. Se a reinar aranha... --Não hei dito que a reina aranha tivesse dado
a bênção à casa Hun'ett -- afirmou a matrona Baenre sem lhe deixar acabar a frase e um tanto zangada. Malícia se moveu inquieta em sua cadeira, ao recordar onde
estava e sua situação. --Só hei dito que Lloth exigiu o ataque --acrescentou a matrona Baenre. Durante dez anos Menzoberranzan suportou o espetáculo de sua guerra
privada. Asseguro-lhes que já não interessava a ninguém. Tinha que acabar-se de uma vez por todas. --E se acabou --declarou Malícia e ficou de pé. A casa Dou'Urdem
conseguiu a vitória, e reclamação o direito de acusação contra SiNafay Hun'ett e sua família! --Sente-se, Malícia --interveio SiNafay. Em tudo isto há algo mais
que seu direito de acusação. Malícia olhou à matrona Baenre em busca da confirmação, embora dadas as
circunstâncias não podia duvidar das palavras do SiNafay. --Assim é --respondeu-lhe a matrona Baenre. A casa Dou'Urdem ganhou e a casa Hun'ett deixará de existir.
Malícia se sentou outra vez e dirigiu um sorriso de satisfação ao SiNafay. Entretanto, a mãe matrona da casa Hun'ett não parecia preocupada no mais mínimo. --Presenciarei
a destruição de sua casa com enorme prazer --comunicou-lhe Malícia a seu rival. voltou-se para o Baenre. Quando se executará o castigo? --Já se cumpriu --respondeu
lacónicamente a matrona Baenre. --SiNafay vive! --gritou Malícia. --Não --corrigiu-a a anciã mãe matrona. Vive a que foi SiNafay Hun'ett. Por fim Malícia começava
a compreender. A casa Baenre sempre tinha sido oportunista. Cabia supor que a matrona Baenre se deu procuração das somas sacerdotisas da casa Hun'ett para as incorporar
a suas filas? --Protegerá-a? --atreveu-se a perguntar Malícia. --Não --respondeu a matrona Baenre com calma. Essa tarefa recairá sobre ti. Os olhos de Malícia
se abriram como pratos. Jamais nos centenares de anos que levava a serviço do Lloth como grande sacerdotisa lhe tinham encomendado uma tarefa mais desagradável.
--É minha inimizade! Como pode pedir que lhe dê asilo? --Ela é sua filha --replicou a matrona Baenre. Com um tom mais suave, e um leve sorriso de picardia acrescentou--:
Sua filha maior que retornou que o Ched Nasad, ou de qualquer outra cidade de nossa raça. --por que faz isto? --quis saber Malícia. É algo sem precedentes! --Não
de tudo --disse a matrona Baenre. Seus dedos repicaram sobre os braços do trono enquanto recordava algumas das estranhas conseqüências da interminável série de batalhas
liberadas na cidade dos drows. --Não nego que sua observação é correta na aparência --acrescentou a matrona. Mas sem dúvida sabe muito bem que as aparências ocultam
muitas das coisas que acontecem no Menzoberranzan. É inevitável que se destrua a casa Hun'ett e se execute a todos seus nobres. depois de tudo, é a forma civilizada
de fazer as coisas. --Fez uma pausa para assegurar-se de que Malícia compreendia sua explicação. Ao menos, tem que parecer que são executados. --E te encarregará
de fazê-lo? --inquiriu Malícia. --Já parece --afirmou a matrona Baenre. --E qual é o sentido de tudo isto? --Quando a casa Hun'ett iniciou o ataque contra sua casa,
te ocorreu implorar a ajuda da rainha aranha? --perguntou de improviso a matrona Baenre. Pergunta-a surpreendeu a Malícia, e ter que dar uma resposta a inquietava
ainda mais. --E quando fracassou o ataque da casa Hun'ett, rezou acaso à rainha aranha para dar as obrigado? --prosseguiu a matrona Baenre, com um tom gelado.
Chamou a alguma das donzelas do Lloth no momento da vitória, Malícia Dou'Urdem? --É que sou a acusada? --protestou Malícia. Sabe a resposta, matrona Baenre. --Inquieta,
olhou ao SiNafay enquanto respondia, ante o risco de revelar alguma informação valiosa. Está inteirada de minha situação em relação à rainha aranha. Não me atrevi
a invocar a uma donzela sem ter alguma sinal de que tivesse recuperado o favor do Lloth. --E não viu nenhum sinal --interveio SiNafay. --Nenhuma, além da derrota
de meu rival --replicou Malícia, com aversão. --O triunfo não foi um sinal da rainha aranha --informou-lhes a matrona
Baenre. Lloth não se envolveu em sua briga. Só exigiu que se acabasse. --Está satisfeita com o resultado? --perguntou Malícia sem nenhum rodeio. --Ainda está por
ver-se --respondeu a matrona Baenre. Faz muitos anos, Lloth manifestou claramente seu desejo de que Malícia Dou'Urdem tivesse um assento no conselho regente. Com
a próxima luz do Narbondel, cumprirá-se seu desejo. Malícia elevou o queixo, orgulhosa. --Mas deve compreender seu dilema --reprovou-lhe a matrona Baenre, levantando
do trono. Malícia se encolheu, inquieta. --perdeste a mais da metade de seus soldados --acrescentou Baenre. E não tem uma família numerosa que te dê seu apoio.
Governa a oitava casa da cidade, mas todos sabem que não conta com o favor da rainha aranha. Quanto tempo crie que a casa Dou'Urdem poderá sustentar sua posição?
Ainda não ocupaste seu posto no conselho regente e este já corre perigo! Malícia não podia refutar a lógica da velha matrona. As duas sabiam como eram as coisas
no Menzoberranzan. Com a casa Dou'Urdem quase desprotegida, qualquer casa menor não demoraria para aproveitar a oportunidade para escalar posições. O ataque da casa
Hun'ett não seria a última batalha liberada no pátio da casa Dou'Urdem. --portanto dou ao SiNafay Hun'ett..., Shi'nayne Dou'Urdem: uma nova filha, outra grande sacerdotisa...
--disse a matrona Baenre. voltou-se para o SiNafay disposta a prosseguir a explicação, mas Malícia se distraiu súbitamente quando uma voz soou em sua mente, uma
mensagem telepática. Manténla a seu lado só o tempo que a necessite, Malícia Dou'Urdem --disse a voz. Malícia olhou a seu redor ao adivinhar a fonte da comunicação.
Na visita anterior à casa Baenre, tinha conhecido ao desolador mental da matrona Baenre, uma besta telepática. A criatura não se encontrava à vista, mas tampouco
o tinha estado sua ama quando Malícia tinha entrado na capela. Malícia olhou as cadeiras vazias no altar sem descobrir nenhum indício de ocupantes nos móveis de
pedra. Uma segunda mensagem telepática dissipou suas dúvidas. Quando chegar o momento saberá. ... e os cinqüenta soldados restantes da casa Hun'ett --prosseguia
a matrona Baenre. Está de acordo, Malícia? Malícia olhou ao SiNafay com uma expressão que podia entender-se como de assentimento ou de mordaz ironia. --Sim--respondeu.
--Então vê, Shi'nayne Dou'Urdem --ordenou- a matrona Baenre ao SiNafay. Reúne a seus soldados no pátio. Meus feiticeiros se encarregarão de te levar em segredo
à casa Dou'Urdem. SiNafay dirigiu um olhar de suspeita a Malícia e depois abandonou a capela. --Entendi-o --manifestou Malícia assim que saiu SiNafay. --Não entendeste
nada! --gritou-lhe a matrona Baenre, feita uma fúria. Fiz tudo o que pude por ti, Malícia Dou'Urdem! Era o desejo do Lloth que tivesse um assento no conselho regente,
e o consegui a base de um grande sacrifício pessoal. Malícia compreendeu então, sem dúvida nenhuma, que a casa Baenre tinha empurrado à ação à casa Hun'ett. pergunto-se
até onde chegaria a influência da matrona Baenre. Possivelmente a mãe matrona tinha previsto, e provavelmente arrumado, a conduta do Jarlaxle e os soldados de Brigam
D'aerthe, que tinham decidido o resultado da batalha. Teria que ocupar-se de averiguar isto último. Jarlaxle tinha dizimado os tesouros da casa Dou'Urdem.
--Nunca mais --acrescentou a matrona Baenre. Agora depende de seus próprios meios. Não tem o favor do Lloth, e é a única maneira em que você e a casa Dou'Urdem
poderão sobreviver. A mão de Malícia apertou com tanta força o braço de sua cadeira que quase esperou ouvir o ruído da pedra ao romper-se. Tinha esperado que, com
a derrota da casa Hun'ett, ficassem perdoados os atos sacrílegos cometidos por seu filho menor. --Já sabe o que deve fazer --concluiu a matrona Baenre. Corrige
o mal, Malícia. Arrisquei-me em sua defesa. Não tolerarei mais fracassos! Dinin recebeu a Malícia quando o disco voador a deixou diante do de adamantita da casa
Dou'Urdem. --Já nos informaram que os acertos --disse Dinin, que seguiu a Malícia através do pátio de armas e levitou a seu lado até o balcão entrada aos aposentos.
Toda a família se encontra na hall, incluído seu membro mais recente -- acrescentou Dinin, com uma piscada. Malícia não respondeu ao intento humorístico de seu filho.
Separou-o de um tranco e avançou furiosa pelo corredor central. Com uma ordem que soou como um latido, mandou que se abrissem as portas da hall. A família se separou
do caminho enquanto ela se dirigia a ocupar seu trono à cabeceira da mesa com forma de aranha. Pressente-os esperavam manter uma larga reunião em que seriam informados
das mudanças na situação e os desafios do futuro. Em troca só tiveram um breve espiono da cólera que abrasava a matrona Malícia. Esta olhou a cada um deles para
lhes fazer entender claramente que não estava disposta a aceitar desobediências nem fracassos, e, com uma voz que parecia o chiado do roce das pedras, exigiu: --Procurem
o Drizzt e tragam aqui! Briza abriu a boca para protestar, mas Malícia a silenciou com um olhar terrível. A filha maior, tão obcecada como a mãe e sempre disposta
à discussão, desviou o olhar. E ninguém mais entre os pressente, apesar de que compartilhavam a preocupação da Briza, atreveu-se a dizer nada em contra. Malícia
deixou que se ocupassem em pensar a maneira de cumprir a ordem. Os detalhes não lhe interessavam. A única parte que se reservava para si mesmo era a de empunhar
a adaga de cerimônias e cravá-la no peito de seu filho menor.
2
Vozes na escuridão
Drizzt estirou os músculos doloridos e se forçou a si mesmo a ficar de pé. Os esforços do combate contra o alfavaca a noite passada, ao haver-se deixado levar pelos
instintos primitivos tão necessários para sobreviver, tinham-no deixado exausto. De todos os modos, não podia permitir dormir mais; o rebanho de vitelas, sua reserva
de mantimentos, dispersou-se entre o labirinto de túneis e tinha que recuperá-lo. O jovem jogou uma rápida olhada à pequena e singela cova onde vivia para assegurar-se
de que tudo estava em ordem. Deteve o .olhar na estatueta da pantera. Jogava muito de menos a companhia do Guenhwyvar. Durante a luta contra o alfavaca, Drizzt tinha
retido à pantera a seu lado muito tempo --quase toda a noite-- e Guenhwyvar precisava descansar no plano astral. Teria que esperar um dia inteiro para invocar sua
presença; seria uma insensatez chamá-la sem a justificação de uma situação realmente se desesperada. Com um gesto de resignação, Drizzt guardou a figura em um bolso
e tratou em vão de esquecer a solidão. depois de inspecionar a barreira de pedras que fechava a entrada do corredor principal, Drizzt se dirigiu a um túnel mais
pequeno no fundo da cova. Observou as marcas na parede junto à entrada, os entalhes que marcavam o passo dos dias. Em um gesto quase automático riscou outra raia
embora compreendeu que não tinha importância. Quantas vezes se esqueceu de fazê-lo? Quantos dias tinham passado sem dar-se conta, entre os centenares de entalhes
na parede? De todas maneiras, já não lhe parecia importante. O dia e a noite eram um, e todos os dias eram o mesmo, na vida do caçador. Entrou no túnel e se arrastou
durante muitos minutos em direção a débil luminosidade que aparecia no outro extremo. Embora a presença daquela luz, produzida pelo resplendor de uma estranha variedade
de cogumelos, teria sido normalmente uma moléstia para os olhos de um elfo escuro, Drizzt experimentava uma autêntica sensação de segurança enquanto percorria o
passadiço que desembocava em uma grande caverna. O estou acostumado a tinha dois níveis; no mais baixo, talher de musgo, havia um arroio, no outro, um bosquecillo
de cogumelos gigantes. Drizzt caminhou para o bosquecillo, embora sua presença não estava acostumada ser bem recebida. Sabia que os micónidos, os homens-hongo, um
muito estranho cruzamento entre humanoides e amanitas venenosas, vigiavam-no inquietos. O alfavaca tinha chegado até ali em suas primeiras incursões pela região,
e os micónidos tinham sofrido grandes perdas. Sem dúvida agora desconfiavam de qualquer, mas Drizzt suspeitava que sabiam que ele tinha matado ao monstro. Os micónidos
não eram seres estúpidos; se ele não desembainhaba as armas e não fazia nenhum movimento inesperado, não se oporiam a seu passo pelo bosquecillo. A parede até o
nível
superior tinha uns três metros de altura e era quase vertical. Mesmo assim, não era um obstáculo para o jovem, que subiu por ela como quem sobe uma escalinata. Um
grupo de micónidos se desdobrou a seu redor assim que chegou acima; alguns só lhe chegavam ao peito, mas a maioria o dobrava em altura. Drizzt
cruzou os braços sobre o peito, um gesto aceito em toda a Antípoda Escura como sinal de paz. Para os homens-hongo, o aspecto do drow era repugnante --igual a acontecia
com ele respeito a eles--, embora compreendiam que o guerreiro tinha destruído à alfavaca. Durante muitos anos os micónidos tinham sido vizinhos do drow vagabundo,
todos ocupados em proteger a caverna que era seu refúgio comum. Os lugares como este --um oásis provido de planta comestíveis, um arroio com peixes e um rebanho
de vitelas-- não abundavam nas enormes e desertas cavernas da Antípoda Escura, e os depredadores que rondavam pelos túneis exteriores acabavam por descobrir a entrada.
Então ficava a cargo dos homens-hongo e do Drizzt defender os domínios. O maior dos micónidos avançou para situar-se diante do elfo escuro. Drizzt não se moveu,
atento à importância de estabelecer um contato amistoso com o novo rei da colônia, mas esticou os músculos, disposto a apartar-se de um salto se as coisas ficavam
feias. O micónido cuspiu um punhado de esporos. Drizzt as estudou na fração de segundo que demoraram para posar-se sobre ele, consciente de que os micónidos adultos
podiam lançar muitas classes de esporos, algumas bastante perigosas. Mas reconheceu a cor da nuvem e não se apartou. Rei morto. Eu rei --transmitiu o homem-cogumelo
através do vínculo telepático estabelecido. Você é rei --respondeu Drizzt, telepáticamente. Quanto desejava que estes seres pudessem falar em voz alta!-- Igual a
antes? Fundo para elfo escuro, bosquecillo para micónidos --respondeu o rei. De acordo. Bosquecillo para micónidos!--pensou outra vez o homem-cogumelo, enfático.
Drizzt desceu em silencio até o nível inferior. Tinha conseguido renovar o acordo com os homens-hongo: nem ele nem o novo rei tinham nenhum desejo de continuar a
reunião. O jovem cruzou de um salto o arroio, que tinha um metro e meio de largura, e caminhou depressa pelo musgo espesso. A caverna era mais larga que larga e
se estendia durante muitos metros; quase ao final havia uma pequena curva antes de chegar à saída que comunicava com o labirinto de túneis da Antípoda Escura. Quando
chegou à curva, viu a destruição causada pelo alfavaca. Havia várias vitelas ao meio comer --Drizzt teria que ocupar-se dos cadáveres antes de que o aroma atraíra
a mais visitantes indesejáveis-- e outras permaneciam absolutamente imóveis, convertidas em pedra pelo olhar do terrível monstro. Diante mesmo da saída se erguia
o antigo rei dos micónidos, um gigante de quatro metros de altura, transformado em estátua. Drizzt fez uma pausa para contemplá-lo. Jamais tinha sabido o nome do
homem-cogumelo e nunca lhe havia dito o seu, embora supunha que aquela coisa tinha sido como mínimo seu aliado, possivelmente inclusive um amigo. Tinham vivido como
vizinhos durante muitos anos, embora quase nunca se encontravam, e os dois se haviam sentido mais seguros só com a presença do outro. De todos os modos, Drizzt não
experimentou nenhuma pena ao ver o aliado petrificado. Na Antípoda Escura só sobreviviam os mais fortes, e nesta ocasião o rei dos micónidos não tinha tido sorte.
Nas profundidades da Antípoda Escura não existia a segunda oportunidade para os perdedores. De volta nos túneis, Drizzt notou que aumentava sua cólera. Recebeu-a
de bom grau, com o pensamento posto na destruição de seus domínios e aceitando-a como uma aliada. Percorreu uma série de corredores e tomou pelo mesmo onde a noite
anterior tinha colocado a esfera de escuridão, e onde Guenhwyvar se havia
escondido, lista para saltar sobre o alfavaca. O feitiço se esfumou fazia horas e, graças a infravisión, pôde ver vários corpos quentes que se moviam sobre o cadáver
do monstro. Ver o corpo daquela coisa incrementou a cólera do caçador. Involuntariamente jogou mão a uma das cimitarras e, como se estivesse dotada de vontade própria,
a arma fendeu de um golpe os miolos do alfavaca quando Drizzt passou junto à cabeça. Os ratos cegos tentaram escapar para ouvir o ruído e uma vez mais Drizzt, sem
pensá-lo, utilizou a segunda cimitarra para caçar a um dos roedores. Sem deter-se, recolheu o rato e a guardou na bolsa. Encontrar as vitelas podia lhe levar muito
tempo, e precisava comer. Durante o resto daquele dia e parte do seguinte, o caçador se afastou de seu domínio. A carne do rato não era um bocado muito apetitoso,
mas era suficiente para alimentá-lo e lhe permitiu continuar a marcha, permitiu-lhe sobreviver. Para um caçador na Antípoda Escura não havia nada mais importante.
Ao segundo dia de marcha, Drizzt advertiu que se aproximava de um grupo de cabeças de gado extraviadas. Chamou o Guenhwyvar e, com sua ajuda, não teve maiores problemas
em dar com as vitelas. Tinha crédulo em encontrar a toda a manada, mas só havia seis naquela região. Seis era melhor que nada, e Drizzt utilizou à pantera para arriar
às vitelas de volta à caverna. O jovem partiu sem descanso, consciente de que a tarefa seria muito mais fácil e segura com o Guenhwyvar a seu lado. Quando a pantera
esgotou as forças e teve que retornar ao plano astral, as vitelas pastavam outra vez no musgo junto ao arroio. O drow voltou a partir em seguida, nesta ocasião com
dois ratos no embornal. Chamou o Guenhwyvar quando necessitou seus serviços e a despediu quando foi o momento de fazê-lo. Repetiu o processo outra vez, mas logo
passaram os dias sem encontrar nenhum rastro das vitelas. Mesmo assim não renunciou à busca. As vitelas assustadas podiam percorrer grandes distancia, e necessitaria
semanas antes de que pudesse as recuperar a todas no labirinto de túneis e cavernas. Drizzt conseguia comida quando se apresentava a ocasião; caçava morcegos com
um lançamento de adaga --depois de jogar no ar um punhado de calhaus para despistar à presa-- e caranguejos gigantes esmagando-os com uma pedra. Por fim, Drizzt
se cansou de procurar e teve saudades a segurança da pequena cova. Duvidava da capacidade das vitelas para sobreviver depois de tanto tempo nos túneis, sem água
nem musgo, e aceitou a perda do resto do rebanho. Decidiu retornar e tomou uma rota que o conduziria até a caverna desde outra direção. Só se encontrava alguma rastro
fresca da manada perdida trocaria de rumo, mas ao passar por uma curva a metade de caminho de volta, um som estranho captou sua atenção. Drizzt apoiou as mãos contra
a pedra e sentiu as sutis e rítmicas vibrações. Não muito longe, algo golpeava a pedra; pareciam os golpes compassados de um martelo. O caçador desencapou as cimitarras
e avançou pelos túneis guiado pelas vibrações. escondeu-se ao ver as oscilações das chamas de uma fogueira, mas não escapou, atraído pelo conhecimento de que ali
havia um ser inteligente. Embora era lógico supor que o estranho resultaria ser uma ameaça, Drizzt rogava para que esta vez não fosse assim. Então os viu. Havia
dois ocupados em golpear a pedra com picos, um terceiro recolhia as pedras em um carrinho de mão, e outros dois montavam guarda. O caçador compreendeu no ato que
tinha que haver mais sentinelas na zona; provavelmente tinha passado entre eles sem vê-los. Utilizando um de seus dons inatos, Drizzt levitou sem apartar as mãos
da pedra para poder guiar-se. Por sorte, o teto do túnel
ficava bastante alto, por isso pôde observar aos mineiros sem muito risco. Eram mais baixos que ele e calvos, com torsos largos como barris e muito musculosos, perfeitamente
adequados para o trabalho de mineiros que era a finalidade de suas vidas. Drizzt tinha tido um contato prévio com esta raça e tinha aprendido muito sobre eles nos
anos passados na Academia do Menzoberranzan. Eram svirfneblis, pequenos das profundidades, os inimigos mais odiados pelos drows em toda a Antípoda Escura. Uma vez,
fazia muitos anos, Drizzt tinha guiado a uma patrulha drow no combate contra um grupo de svirfneblis e ele mesmo tinha derrotado a um elementar terrestre invocado
pelo chefe dos pequenos. O jovem recordou aquele encontro, e, como lhe acontecia cada vez que rememorava algo de seu passado, invadiu-o a tristeza. Tinha sido capturado
pelos pequenos, pacote sem olhares, e mantido prisioneiro em uma câmara secreta. Entretanto os svirfneblis não o tinham maltratado, embora suspeitavam --e assim
o
explicaram-- que possivelmente se veriam obrigados a matá-lo. O chefe do grupo lhe tinha prometido atuar com a maior misericórdia possível dadas as circunstâncias.
Mas a patrulha do Drizzt, ao mando do Dinin, seu irmão, tinha ido em seu resgate, e quando assaltaram a câmara não tiveram compaixão com os pequenos. Drizzt tinha
podido convencer a seu irmão para que perdoasse ao chefe dos svirfneblis, mas Dinin, em uma demonstração da típica crueldade dos drows, tinha ordenado que lhe cortassem
as mãos antes de deixá-lo ir. Drizzt reprimiu as lembranças e concentrou sua atenção no presente. Os pequenos das profundidades podiam ser uns rivais formidáveis,
e sem dúvida não lhes faria nenhuma graça encontrar-se com um elfo escuro durante suas atividades mineiras. Tinha que manter-se alerta. Ao parecer os mineiros tinham
dado com um bom filão, porque comentavam o achado muito excitados. Drizzt desfrutou com os sons dos vocábulos, embora não entendia nenhuma só palavra da estranha
linguagem dos pequenos. Um sorriso, que por uma vez não estava inspirada pela vitória em algum combate, apareceu no rosto do Drizzt enquanto os svirfneblis corriam
entre as pedras, carregavam os carrinhos de mão e chamavam a outros para que participassem do bulício. Tal como tinha suspeitado, mais de uma dúzia de pequenos apareceram
na cena. Drizzt se instalou em uma cornija alta e observou aos mineiros até muito depois de desaparecer os efeitos do feitiço de levitação. Quando por fim os pequenos
acabaram de carregar os carrinhos de mão até os batentes, formaram uma coluna e abandonaram a caverna. Drizzt compreendeu que o mais prudente era esperar a que se
afastassem e a seguir reemprender o caminho de volta a casa. Não obstante, contra a lógica imposta pela sobrevivência, o drow descobriu que não era fácil deixar
que as vozes desaparecessem na distância. Descendeu até o chão do túnel e seguiu à caravana dos svirfneblis, perguntando-se aonde o levaria. Durante muitos dias
Drizzt partiu detrás dos pequenos. Resistiu à tentação de chamar o Guenhwyvar, consciente de que à pantera viria bem um descanso prolongado e que ele por agora tinha
suficiente ouvindo o bate-papo dos pequenos, embora fora de longe. Todos os instintos indicavam ao caçador que devia abandonar a perseguição, mas pela primeira vez
em muito tempo, Drizzt dominou a sua parte mais primitiva. Nesses momentos, escutar as vozes dos pequenos era uma necessidade que se impunha a todas as demais. Por
fim chegou a uma zona onde os túneis se viam trabalhados e soube que se aproximava do país dos svirfneblis. Uma vez mais apareceu a sombra do perigo, e tampouco
esta vez fez conta. Caminhou mais depressa até ter a caravana à vista. Suspeitava que os svirfneblis tinham algumas armadilhas muito engenhosas montadas. Viu como
os pequenos contavam os passos e evitavam alguns setores. Drizzt
repetiu os movimentos com precisão e assentiu ao ver uma pedra solta aqui e um arame quase a ras do chão mais à frente. de repente outras vozes se somaram às dos
mineiros, e Drizzt se ocultou depressa detrás de umas pedras. O grupo tinha chegado a uma escada muito larga e larga que subia entre duas paredes cortadas a pico
e sem nenhuma greta. A um lado da escada havia uma abertura com as medidas justas para permitir a entrada dos carrinhos de mão, e Drizzt observou admirado como os
mineiros levavam os carrinhos de mão até a abertura e enganchavam a primeira a uma cadeia. Uma série de golpes na pedra serviram de sinal a um operário invisível,
e a cadeia se esticou, com o que arrastou o carrinho de mão ao buraco. Uma atrás de outra, as demais seguiram o mesmo caminho, e também diminuiu o número de pequenos
que subiam a escada depois de entregar a carga. No momento em que os dois últimos anões engancharam o carrinho de mão e deram o sinal, Drizzt atuou levado pelo desespero.
Esperou a que os pequenos lhe dessem as costas; então correu até o carrinho de mão, e se montou nela quando já entrava no buraco. Drizzt compreendeu o alcance de
sua
tolice quando um pequeno, ao parecer sem advertir sua presença, fechou o buraco com uma pedra. Tinha-lhe talhado a retirada. A cadeia atirou do carrinho de mão e
a
fez subir em um ângulo com o mesmo pendente da escada. Drizzt não conseguia ver nada diante, porque o carrinho de mão, desenhada para um encaixe perfeito, ocupava
todo o alto e o largo do túnel. O drow observou que o veículo tinha umas rodas pequenas nos lados para facilitar o passo. Parecia-lhe fantástico estar outra vez
ante a obra de seres inteligentes mas não podia passar por cima o perigo em que se encontrava. Os svirfneblis não tolerariam a presença de um elfo escuro; utilizariam
as armas antes de fazer perguntas. depois de vários minutos, o túnel chegou ao nível superior, onde se alargava. Um svirfnebli se encarregava de dar voltas à manivela
que arrastava os carrinhos de mão. Atento a seu trabalho, o pequeno não viu a sombra escura que saltava do último veículo e se deslizava em silencio por uma porta
lateral. Drizzt ouviu vozes assim que abriu a porta. Seguiu adiante porque não tinha outra opção, e se tendeu de barriga para baixo em uma cornija estreita. Os pequenos,
mineiros e guardas, achavam-se mais abaixo, no patamar da escada. Ao menos havia uma vintena que escutavam o relato dos mineiros sobre o filão. Ao fundo do patamar,
através das enormes lâminas entreabiertas de uma porta de pedra com cantos e dobradiças metálicas, Drizzt pôde espionar a cidade dos svirfneblis. O drow só podia
ver uma parte, e não muito bem, mas calculou que a caverna além da porta não era tão grande como a que albergava ao Menzoberranzan. Queria entrar! Desejava descer
da cornija e atravessar aquela porta, entregar-se aos pequenos das profundidades e aceitar a sentença que estimassem conveniente. Possivelmente o aceitariam. Possivelmente
veriam o Drizzt Dou'Urdem como era de verdade. O grupo do patamar, sem deixar de conversar e rir, entrou na cidade. Tinha chegado o momento. Tinha que saltar e segui-los
além da porta. Mas o caçador, o ser que tinha sobrevivido mais de uma década no entorno selvagem da Antípoda Escura, não podia mover-se da cornija. O caçador, o
ser que tinha derrotado à alfavaca e a outro milhar de monstros, não podia confiar na misericórdia da civilização. O caçador não compreendia estes conceitos. A porta
se fechou com grande estrépito, e se apagou a luz de esperança que tinha surto no coração do Drizzt. depois de um comprido e atormentado momento, Drizzt Dou'Urdem
abandonou a cornija e saltou até o patamar. de repente lhe nublaram os olhos, quando baixava para afastar-se da vida buliçosa ao outro lado da porta, e só foram
os instintos primitivos do caçador os que advertiram a presença dos guardas. O caçador esquivou aos pequenos com um salto prodigioso e correu em busca da liberdade
oferecida pelos túneis da Antípoda Escura.
Quando esteve bem longe da cidade dos svirfneblis, Drizzt colocou uma mão no bolso e tirou a estatueta disposto a chamar a sua companheira. Mas a guardou ao cabo
de um segundo. negou-se a chamar à pantera como uma forma de castigo por seu momento de covardia. Se tivesse sido mais forte e tivesse atravessado a porta poderia
ter posto fim a seu calvário, de uma maneira ou outra. Os instintos do caçador lutaram por impor-se enquanto Drizzt partia pelos túneis que o conduziam até a caverna
onde tinha sua casa. À medida que entrava na Antípoda Escura e os perigos aumentavam a cada passo, os instintos se separaram de sua mente qualquer pensamento sobre
os svirfneblis e sua cidade. Estes instintos primitivos eram a salvação e ao mesmo tempo a maldição do Drizzt Dou'Urdem.
3
Cimitarras e serpentes
--Quantas semanas passaram? --perguntou- Dinin a Briza através do código mudo dos drows. Quantas semanas faz que percorremos estes túneis à caça de nosso irmão,
o renegado? A expressão do Dinin revelava o sarcasmo da pergunta enquanto a transmitia. Briza franziu o sobrecenho sem lhe responder. Tinha ainda menos interesse
que ele nesta tediosa tarefa. Era uma das somas sacerdotisas do Lloth e tinha sido até fazia pouco a filha maior, pelo qual merecia uma posição proeminente dentro
da hierarquia familiar. Jamais a teriam enviado em uma missão deste tipo. Mas agora, por algum motivo inexplicável, SiNafay Hun'ett se tinha unido à família e Briza
se viu relegada a uma fila inferior. --Cinco? --acrescentou Dinin, cada vez mais furioso à medida que movia os dedos. Seis? Quanto tempo passou, irmã? --insistiu.
Quanto tempo leva Shi'na..., Shi'nayne... sentada junto à matrona Malícia? Briza empunhou o látego de cabeças de serpente, e se voltou colérica para seu irmão. Dinin,
ao compreender que se passou da raia com tantos comentários irônicos, desembainhou a espada e tentou esquivar o açoite. O golpe da Briza foi como um raio que atravessou
a ridícula defesa do Dinin, e três das seis cabeças cravaram as presas no peito e um ombro do filho maior dos Dou'Urdem. Uma dor gelada sacudiu o corpo do Dinin,
e a seqüela foi um intumescimento que o deixou inerme. Baixou o braço que sustentava a espada e começou a cair de bruces. A grande sacerdotisa tendeu uma mão, agarrou-o
pela garganta, E o manteve erguido nas pontas dos pés. Depois, olhou aos outros cinco membros do grupo para assegurar-se de que nenhum tinha a intenção de ajudar
ao Dinin, e estrelou a seu irmão contra a parede de pedra. Briza se apoiou com todas suas forças contra Dinin, sem afrouxar a pressão na garganta. --Um varão prudente
teria mais cuidado com as coisas que diz --repreendeu-o em voz alta, apesar de que ela e outros tinham recebido instruções específicas por parte da matrona Malícia
de que só deviam empregar o código mudo assim que deixassem atrás os limites do Menzoberranzan. Dinin demorou um momento em compreender a gravidade de sua situação.
À medida que desaparecia o intumescimento, descobriu que quase não podia respirar e, embora ainda empunhava a espada, Briza, que pesava uns dez quilogramas mais,
mantinha-a pega a seu flanco. Para cúmulo, a mão livre da mulher sustentava o temível látego. A diferença dos látegos normais, este terrível instrumento não necessitava
espaço de manobra. As cabeças de serpente podiam enrolar-se e golpear em distâncias curtas como uma extensão da mão do possuidor. --A matrona Malícia não fará perguntas
se morrer --sussurrou Briza, desumana. Seus filhos não têm feito mais que lhe criar problemas! Dinin olhou por cima do ombro da irmã aos soldados do grupo.
--Testemunhas? --burlou-se Briza, que adivinhou seus pensamentos. De verdade crie que falarão contra uma grande sacerdotisa em benefício de um vulgar varão? --Briza
entreabriu as pálpebras e aproximou seu rosto até quase tocar ao Dinin. Pelo cadáver de um varão? Soltou uma gargalhada e de repente apartou a mão da garganta
do Dinin, que caiu de joelhos quase asfixiado. --Vamos! --assinalou Briza aos soldados. Percebo que meu irmão menor não está nesta zona. Voltaremos para a cidade
em busca de provisões. Dinin contemplou as costas de sua irmã enquanto ela se ocupava dos preparativos para a viagem de volta. Não pensava em outra coisa que lhe
cravar a espada entre os omoplatas, embora não era tão parvo para tentá-lo. Fazia mais de trezentos anos que Briza era soma sacerdotisa e agora contava com o favor
do Lloth, mesmo que a matrona Malícia e o resto da casa Dou'Urdem o tivessem perdido. Inclusive sem o amparo da deusa, Briza era uma inimizade formidável, perita
em feitiços e no manejo daquele maldito látego que nunca abandonava. --Irmã --chamou Dinin, e Briza se voltou para olhá-lo, surpreendida de que lhe dirigisse a palavra
em voz alta. Aceita minhas desculpas --disse e fez um gesto aos soldados para que partissem, e depois se comunicou outra vez com sua irmã por meio do código mudo.
Estou aborrecido pela incorporação do SiNafay Hun'ett à família --explicou. Os lábios da Briza se curvaram em um de seus típicos sorrisos ambíguos: Dinin não sabia
se estava de acordo ou se era uma brincadeira. --Crie-te tão preparado para pôr em dúvida as decisões da matrona Malícia? --perguntou. --Não! --transmitiu Dinin.
A matrona Malícia faz o correto e sempre pelo bem da casa Dou'Urdem. Mas não confio no SiNafay. Presenciou imperturbável a destruição de sua casa. Aceitou a morte
de toda sua família e da maioria dos soldados. Como pode ser leal à casa Dou'Urdem depois de semelhante perda? --Estúpido varão --assinalou Briza em resposta.
As sacerdotisas sabem que a lealdade só se deve ao Lloth. A casa do SiNafay já não existe, e portanto tampouco existe SiNafay. Agora é Shi'nayne Dou'Urdem, e, por
ordem da rainha aranha, aceitará todas as responsabilidades que acompanham no nome. --Não confio nela --repetiu Dinin. Nem tampouco me agrada ver minhas irmãs,
as autênticas Dou'Urdem, deslocadas na hierarquia para lhe fazer um oco. Shi'nayne teria que ter sido situada por debaixo de Maia, ou albergada entre os comuns.
Briza lhe dirigiu um olhar feroz, embora estava de acordo de todo coração com as opiniões do Dinin. --A fila do Shi'nayne na família não é coisa de sua incumbência
--afirmou Briza. Contar com outra grande sacerdotisa fortalece a casa Dou'Urdem. Isto é quão único deve te interessar! Dinin assentiu em resposta ao raciocínio
da irmã e prudentemente embainhou a espada antes de ficar de pé. Briza enganchou o látego ao cinturão, embora não deixou de vigiar ao imprevisível varão com a extremidade
do olho. A partir de agora Dinin teria que obrar com mais cuidado. Sabia que sua sobrevivência dependia de sua capacidade para manter-se junto à irmã maior, porque
Malícia tinha ordenado que atuassem juntos nestas missões. Briza era a mais forte das filhas Dou'Urdem, e a melhor dotada para encontrar e capturar ao Drizzt. Por
sua parte, Dinin tinha sido chefe de patrulhas durante mais de dez anos e conhecia a fundo os túneis fora dos limites do Menzoberranzan. Dinin amaldiçoou sua má
sorte e seguiu a sua irmã pelos túneis que conduziam à cidade. Uma curta pausa, não mais de um dia, e outra vez sairiam em busca
do escorregadio e perigoso irmão, ao que Dinin não tinha nenhum desejo de encontrar. Guenhwyvar voltou a cabeça bruscamente e permaneceu imóvel como uma estátua,
com uma pata levantada e lista para pôr-se a correr. --Você também o ouviste --sussurrou Drizzt, com a boca quase pega à orelha da pantera. Vêem, amiga minha.
Vejamos que novo inimigo entrou em nossos domínios. Partiram a grande velocidade e absoluto silêncio pelos túneis que conheciam a perfeição. Para ouvir o eco de
um roce, Drizzt se deteve de repente, e Guenhwyvar o imitou. Não o tinha produzido nenhum monstro da Antípoda Escura a não ser uma bota. Drizzt assinalou uma pilha
de escombros que dava pelo outro lado a uma caverna com muitas cornijas, e a pantera o guiou até ali, onde desfrutariam de um bom posto de observação. A patrulha
drow apareceu à vista ao cabo de uns segundos, um grupo de sete, embora estavam muito longe para que pudesse reconhecê-los. Surpreendia-o o fato de que tivesse podido
ouvi-los com tanta facilidade, porque recordava os dias em que tinha atuado como guia das patrulhas. Que solo se havia sentido então, à frente de mais de uma dúzia
de elfos escuros perfeitamente treinados que não faziam nenhum ruído e se confundiam entre as sombras tão bem que nem sequer a aguda visão do Drizzt era capaz de
localizá-los! Entretanto, o caçador em que se converteu Drizzt, este ser primário e instintivo, tinha descoberto a presença do grupo sem nenhuma dificuldade. Briza
deteve a marcha sem prévio aviso e fechou os olhos para concentrar-se nas vibrações do feitiço de localização. --O que ocorre? --perguntaram os dedos do Dinin quando
a sacerdotisa o olhou. A expressão de surpresa e entusiasmo no rosto de sua irmã lhe antecipou a resposta. --Drizzt? --sussurrou Dinin, incrédulo. --Silêncio! --gritaram
as mãos da Briza. Jogou um olhar ao entorno, e depois assinalou à patrulha que a seguisse até as sombras da parede da imensa caverna. --Está segura de que é Drizzt?
--inquiriu Dinin, tão excitado que quase não podia formar as palavras com os dedos. Possivelmente se trata de algum depredador... --Sabemos que vive --interrompeu-o
Briza. Desde não ser assim, a matrona Malícia já desfrutaria de outra vez do favor do Lloth. E, se Drizzt viver, então podemos supor que está em posse do objeto.
O súbito movimento evasivo da patrulha pilhou ao Drizzt por surpresa. Não era possível que o grupo o tivesse visto detrás da pilha de escombros, e estava seguro
de que nem ele nem a pantera tinham feito nenhum ruído. em que pese a isso, não duvidava que a patrulha se ocultava dele. Havia algo muito estranho neste encontro.
Os elfos escuros não se aventuravam tão longe do Menzoberranzan. Possivelmente só era o efeito da paranóia necessária para sobreviver nas profundidades da Antípoda
Escura, pensou Drizzt, embora suspeitava que o grupo não tinha entrado em seus domínios por acaso. --Vê, Guenhwyvar --ordenou-lhe à pantera. Averigua quem som
nossos visitantes. O animal desapareceu entre as sombras da caverna, e Drizzt se tendeu entre as pedras com o ouvido atento. Guenhwyvar retornou ao cabo de um minuto,
que ao Drizzt pareceu uma eternidade. --Sabe quem som? --perguntou-lhe o drow. O felino arranhou a pedra com uma
pata. Nossa velha patrulha? --acrescentou Drizzt. Os guerreiros que nos acompanhavam? A pantera parecia insegura e não fez nenhum movimento definido. --Então
são Hun'ett--afirmou Drizzt, convencido de ter resolvido o mistério. Por fim a casa Hun'ett tinha ido em sua busca para vingar as mortes do Alton e Masoj, os dois
magos Hun'ett que tinham pago com a vida o intento de assassinar ao Drizzt. Ou possivelmente pretendiam recuperar ao Guenhwyvar, o ser mágico que em um tempo tinha
pertencido ao Masoj. Drizzt fez uma pausa para estudar a reação do Guenhwyvar e compreendeu que se equivocava. A pantera tinha dado um passo atrás e parecia inquieta
por suas palavras. --Então, quem? --inquiriu Drizzt. Guenhwyvar se levantou em duas patas, apoiou uma garra no ombro do jovem e com a outra tocou a bolsa que lhe
pendurava do pescoço. Sem entender o que pretendia o felino, Drizzt agarrou a bolsa e esvaziou o conteúdo sobre a palma de uma mão; umas poucas moedas de ouro, uma
pedra preciosa pequena e o emblema da casa, um medalhão de prata gravado com as iniciais do Daermon N'a'shezbaernon, da casa Dou'Urdem. O guerreiro compreendeu por
fim a mensagem do Guenhwyvar. --Minha família --sussurrou Drizzt, com aspereza. A pantera se apartou e uma vez mais arranhou o chão, excitada. Um milhar de lembranças
desfilaram pela mente do Drizzt naquele momento, mas todos, bons e maus, assinalaram-lhe ineludiblemente uma só possibilidade: a matrona Malícia não tinha perdoado
nem esquecido suas ações naquele dia fatídico. Drizzt tinha rechaçado a sua mãe e o culto da rainha aranha, e sabia o suficiente a respeito da maldade do Lloth
para entender que, a conseqüência de seu comportamento, Malícia tinha perdido o favor da deusa. O drow observou o interior da caverna; depois fez um gesto ao Guenhwyvar
e pôs-se a correr pelos túneis. A decisão de abandonar Menzoberranzan tinha sido muito dolorosa, e agora não queria encontrar-se com a família e reviver todas aquelas
dúvidas e temores. Os companheiros correram durante mais de uma hora ao longo de corredores secretos e pelas zonas onde o labirinto de túneis era um autêntico quebra-cabeças.
Drizzt conhecia a fundo esta região e não duvidava que conseguiria despistar à patrulha sem muito esforço. Entretanto, quando por fim fez uma pausa para recuperar
o fôlego, o drow pressentiu --e teve suficiente olhando ao Guenhwyvar para confirmar a suspeita-- que a patrulha seguia seu rastro, possivelmente mais perto que
antes. Compreendeu que o rastreavam ajudados pela magia; não podia haver outra explicação. --Mas como? --perguntou-lhe à pantera. Já não sou o irmão que conheciam,
nem física nem mentalmente. Qual entre os objetos em meu poder pode servir de atração aos feitiços rastreadores? Drizzt inspecionou suas posses e se fixou primeiro
nas armas. As cimitarras tinham poderes mágicos mas isto não as distinguia da maioria das armas do Menzoberranzan. Além disso, as suas nem sequer as tinham fabricado
na casa Dou'Urdem e o desenho não correspondia com o preferido pela família. Seria a capa? O piwafwi era como o uniforme da casa, com os bordados e desenhos característicos
da família; mas o objeto estava tão rasgado e suja que nem sequer um feitiço teria podido reconhecê-la como pertencente à casa Dou'Urdem. --Pertencente à casa Dou'Urdem
--murmurou Drizzt em voz alta. Olhou ao Guenhwyvar e assentiu bruscamente; tinha a resposta. Agarrou outra vez a
bolsa e tirou o medalhão, o emblema do Daermon N'a'shezbaernon. Criado pela magia, possuía a sua própria, um duomer específico da casa. Só um nobre da casa Dou'Urdem
podia levá-lo. Drizzt pensou um momento; depois guardou o medalhão na bolsa e a pendurou do pescoço do Guenhwyvar. --É hora de que a presa se converta em caçador
--sussurrou-lhe à pantera. --Sabe que o seguimos --transmitiu Dinin a Briza, que não se dignou rubricar a afirmação com uma resposta. Certamente que Drizzt estava
informado e também era óbvio que tentava despistá-los. Briza não se preocupava. Os sinais do medalhão do Drizzt eram para ela como um farol. De todos os modos, a
sacerdotisa fez um alto quando o grupo chegou a uma bifurcação do túnel. O sinal chegava desde além da bifurcação embora sem definir qual dos dois braços. --Esquerda
--assinalou Briza a três dos soldados. Direita --indicou aos outros dois. Reteve a seu irmão; permaneceriam na bifurcação para servir de reserva ao primeiro dos
grupos que pedisse reforços. por cima da patrulha, escondo entre as sombras do teto coberto de estalactites, Drizzt sorriu agradado por sua astúcia. A patrulha podia
seguir seu ritmo de marcha, mas não tinha nenhuma possibilidade de apanhar ao Guenhwyvar. O plano tinha dado um resultado perfeito, porque Drizzt só pretendia afastar
à patrulha a maior distancia possível de seus domínios e convencer a da inutilidade da missão. Mas agora, enquanto levitava nas alturas, com o olhar posto nos irmãos,
descobriu que ansiava algo mais. Drizzt esperou um momento até convencer-se de que os soldados se encontravam bem longe. Desembainhou as cimitarras e pensou que
não
estaria mal ter uma reunião com os irmãos. --afasta-se cada vez mais --informou- Briza ao Dinin, sem preocupar do som de sua voz, segura de que o renegado estava
muito longe. A grande velocidade. --Drizzt nunca teve problemas para mover-se nas profundidades da Antípoda Escura --opinou Dinin. Será muito difícil apanhá-lo.
--Cansará-se muito antes de que meus feitiços percam eficácia --presumiu Briza. Encontraremo-lo esgotado em algum buraco escuro. Mas a petulância da Briza se transformou
em assombro quando uma silhueta escura apareceu entre ela e Dinin. O irmão maior quase nem teve tempo de surpreender-se. Viu o jovem só por uma fração de segundo,
e depois seus olhos ficaram vesgos ao seguir o movimento descendente do punho de uma cimitarra. Dinin se desabou como abatido por um raio, e seu rosto golpeou contra
o chão. Enquanto com uma mão se ocupava do Dinin, Drizzt aproximou a ponta da segunda cimitarra à garganta da Briza com o propósito de conseguir sua rendição. Mas
a sacerdotisa não se deixou surpreender. Retrocedeu com grande agilidade, levantou o látego, e as seis cabeças de serpente se enrolaram sobre si mesmos listas para
lançar seu ataque à primeira oportunidade. Drizzt se voltou para a Briza e moveu as duas cimitarras em uma finta defensiva para manter a raia às serpentes. Recordava
a terrível dor das mordidas; como todos os varões drows tinha sido açoitado infinidade de vezes. --Irmano Drizzt! --gritou Briza, com a esperança de que a patrulha
escutasse o grito e compreendesse a chamada de ajuda. Aparta suas armas. Não há necessidade de nos comportar desta maneira.
O som das palavras, vocábulos drows, emocionou ao Drizzt. Que formoso era as escutar, recordar que não sempre tinha sido um caçador cuja vida só consistia em sobreviver!
--Baixa suas armas --repetiu Briza, com maior insistência. --Por..., por que vieste? --gaguejou Drizzt. --Para te buscar, irmano meu, por que se não? --replicou
Briza, com um tom de carinho exagerado. Por fim concluiu a guerra contra os Hun'ett. É hora de que retorne a casa. Uma parte do Drizzt desejava acreditar, desejosa
de esquecer aqueles fatos da vida drow que o tinham forçado a abandonar a cidade onde tinha nascido; desejava deixar que as cimitarras caíssem ao chão e voltar para
refúgio --e à companhia-- de sua vida anterior. O sorriso da Briza era tão tentadora... --Volta para casa, querido Drizzt --sussurrou Briza, que utilizava em suas
palavras um singelo feitiço de atração, consciente de que tinha dado com o ponto fraco de seu irmão. Necessitamo-lhe. Agora é o professor de armas da casa Dou'Urdem.
A súbita mudança na expressão do Drizzt advertiu a Briza de seu engano. Zaknafein, professor e amigo íntimo do Drizzt, tinha sido o professor de armas da casa Dou'Urdem,
mas o tinham devotado em sacrifício à rainha aranha. Drizzt jamais esqueceria este acontecimento. Naquele momento, o jovem recordou muito mais que as comodidades
de sua casa. Rememorou com toda claridade os males de sua vida passada, a maldade que seus princípios não podiam tolerar. --Não teria que ter vindo --manifestou
Drizzt com uma voz parecida com um rugido. Nunca mais te ocorra voltar por aqui! --Querido irmão --disse Briza, mais para ganhar tempo que por emendar o engano,
e permaneceu imóvel, com o rosto gelado em um de seus sorrisos de dobro fio. Drizzt olhou detrás dos lábios da Briza, mais grossos do habitual entre os drows. A
sacerdotisa não pronunciava nenhuma palavra, mas Drizzt podia ver com toda claridade que os lábios se moviam detrás da geada sorriso. Um feitiço! Briza sempre tinha
sido muito hábil neste tipo de enganos. --Retorna a casa! --gritou Drizzt, e lançou um ataque. Briza o esquivou sem problemas, porque as cimitarras não pretendiam
feri-la a não ser interromper a letanía. --Maldito seja, renegado --exclamou a sacerdotisa, que renunciou à dissimulação e levantou o látego. Rende as armas agora
mesmo, se não querer morrer! Drizzt se afiançou sobre os pés. Seus olhos lilás se acenderam com um fogo estranho à medida que o caçador se dispunha a fazer frente
ao desafio. Briza vacilou, surpreendida pela súbita ferocidade desdobrada por seu irmão. Esta vez não tinha diante um guerreiro vulgar. Drizzt se tinha convertido
em outra coisa, muito mais formidável. Mas Briza era uma grande sacerdotisa do Lloth, nos degraus mais altos da hierarquia drow. Não se deixaria assustar por um
varão. --te renda! --gritou. Drizzt nem sequer entendeu a palavra, porque o caçador que fazia frente a Briza já não era Drizzt Dou'Urdem. O guerreiro selvagem e
primitivo que as lembranças do defunto Zaknafein tinham invocado não entendia de palavras e mentiras. Briza descarregou um açoite, e as seis cabeças de serpente
se formaram redemoinhos por vontade própria em busca do melhor ângulo de ataque. As cimitarras do caçador responderam com uma velocidade surpreendente. Briza nem
sequer pôde seguir o movimento dos aços e, quando acabou de baixar o braço, descobriu que nenhuma das cabeças tinha mordido a presa e que agora só ficavam
cinco. Dominada por uma fúria quase igual a do oponente, Briza reatou o ataque e lançou uma chuva de açoites. Serpentes, cimitarras e braços se confundiram em uma
dança mortal. Uma cabeça mordeu a perna do caçador, e uma descarga de dor gelada correu pelas veias. Uma cimitarra desviou outro ataque e cortou a cabeça do ofídio
pela metade. Outra cabeça mordeu ao caçador. Outra cabeça caiu ao chão. Os oponentes se apartaram, para medir o um ao outro. A Briza custava trabalho respirar depois
de uns poucos minutos de luta; em troca, o peito do caçador subia e baixava com toda normalidade. A sacerdotisa não apresentava nenhuma ferida; Drizzt tinha recebido
duas mordidas. Fazia muito tempo que o caçador tinha aprendido a não fazer caso da dor, de modo que se manteve erguido preparado para prosseguir o combate. Briza,
com seu látego reduzido a três cabeças, insistiu em atacar. Vacilou uma fração de segundo ao ver que Dinin parecia voltar em si. Seria capaz de ir em sua ajuda?
Dinin se moveu e tentou levantar-se, mas as pernas não tinham a força suficiente para sustentá-lo. --Maldito seja --grunhiu Briza, dedicando o insulto aos dois varões.
Invocou o poder da rainha aranha e descarregou uma chicotada com todas suas forças. As três cabeças de serpente restantes caíram ao chão com um só golpe da cimitarra.
--Maldito seja! --repetiu a grande sacerdotisa, que esta vez dirigiu a maldição ao rival. Empunhou a maça sujeita ao cinto e com o braço estendido lançou a arma
em uma trajetória circular contra a cabeça do Drizzt. As cimitarras cruzadas detiveram o torpe golpe muito antes de que chegasse ao objetivo. O caçador levantou
uma perna e descarregou três chutes contra o rosto da sacerdotisa antes de voltar a baixá-la. Briza retrocedeu com o rosto banhado com o sangue que emanava do nariz
rota. Assim que alcançou a ver a silhueta do Drizzt entre o sangue que lhe rabiscava a visão, lançou outro ataque desesperado em um gancho aberto. O caçador levantou
uma cimitarra para deter o golpe e, girando o aço, deixou-o deslizar sobre o porrete até se chocar com a mão da Briza. A mulher uivou de dor e soltou a arma. A maça
caiu ao chão junto com dois dedos da Briza. Naquele momento Dinin conseguiu levantar-se e empunhar a espada. Briza empregou toda sua força de vontade para não apartar
o olhar do Drizzt. Se conseguia distrai-lo uns segundos mais... O caçador pressentiu o perigo e se voltou. Quão único viu Dinin nos olhos lilás do irmão menor foi
sua própria morte. Arrojou a espada ao chão e cruzou os braços sobre o peito para render-se. O caçador grunhiu uma ordem, quase ininteligível, embora Dinin captou
o significado com toda claridade. Sem perder nem um instante pôs-se a correr como alma que leva o diabo. Briza deu um passo com a intenção de seguir o exemplo do
Dinin, mas uma cimitarra enganchada debaixo do queixo a deteve e lhe forçou a cabeça para trás até que só pôde ver a pedra escura do teto. A dor era como um ferro
incandescente nos membros do caçador, uma dor causada pelo látego deste ser maligno. Agora o caçador desejava acabar com a dor e a ameaça. Estava em seus domínios!
Briza
pronunciou uma última oração ao Lloth quando sentiu que o aço começava a cortar a carne. Mas naquele instante um relâmpago escuro lhe devolveu a liberdade. Olhou
ao chão e viu o Drizzt esmagado por uma enorme pantera negra. Sem
perder tempo em fazer perguntas, a sacerdotisa correu pelo túnel em detrás do Dinin. O caçador conseguiu escapar do corpo do felino e se levantou de um salto. --Guenhwyvar!
--gritou. Vê atrás dela! Mata-a! A pantera se sentou e respondeu à ordem com um bocejo; continuando, enganchou com uma pata o cordão da bolsa pendurada do pescoço
e o cortou. --O que faz? --chiou o caçador, cego de raiva ao tempo que recolhia a bolsa. Guenhwyvar havia se tornado em seu contrário? Drizzt retrocedeu um passo
e, vacilante, levantou as cimitarras como se acreditasse que a pantera fora a atacá-lo. O animal não se moveu e continuou sentado sem deixar de observar ao jovem.
Um momento mais tarde, o estalo de uma mola de suspensão lhe demonstrou que estava em um engano. O dardo teria acertado em seu corpo de não ter sido porque Guenhwyvar
deu um salto e interceptou o vôo do projétil. O veneno drow não tinha nenhum efeito nos animais mágicos. Três guerreiros drows apareceram por um lado da bifurcação
e dois mais pelo outro. Drizzt se esqueceu no ato de perseguir a Briza e, escoltado pelo Guenhwyvar, empreendeu a fuga pelos túneis. Sem a guia da soma sacerdotisa
e a magia, os soldados nem sequer tentaram persegui-lo. depois de muitos minutos de carreira, Drizzt e Guenhwyvar se refugiaram em uma passagem lateral, atentos
a qualquer ruído de perseguição. --Vêem --ordenou Drizzt, e pôs-se a andar sem pressa, convencido de que tinha repelido a ameaça do Dinin e Briza. Uma vez mais a
pantera se sentou. --Hei dito que me acompanhe --grunhiu Drizzt, um tanto desconcertado. Guenhwyvar o olhou de uma maneira que despertou uma sensação de culpa no
drow. Então o felino se levantou e caminhou pouco a pouco para seu amo. Drizzt assentiu, seguro da obediência da pantera. Voltou-lhe as costas e reatou a marcha,
mas o felino passou junto a ele e lhe impediu o passo. Guenhwyvar descreveu um círculo ao tempo que aparecia a típica névoa que acompanhava suas aparições e desaparecimentos.
--O que faz? --perguntou Drizzt. Guenhwyvar não se deteve. --Não te ordenei que desapareça! --chiou o drow enquanto se esfumava o corpo da pantera. O guerreiro correu
e tendeu as mãos em um intento inútil por retê-la. Não hei dito que vá! --repetiu, desesperado. Guenhwyvar tinha desaparecido. Aquela última imagem do Guenhwyvar
acompanhou ao Drizzt no comprido caminho de volta à cova que era sua casa. Parecia-lhe sentir o olhar da pantera cravada nas costas. Compreendeu que sua amiga o
tinha julgado e encontrado em falta. Levado pela cólera tinha estado a ponto de matar a Briza, e o teria feito de não ter sido pela intervenção do Guenhwyvar. Por
fim, Drizzt se arrastou pelo túnel que comunicava com o pequeno recinto de pedra. As preocupações não o abandonaram. Uma década antes, Drizzt tinha matado ao Masoj
Hun'ett, e naquela ocasião tinha jurado que nunca mais mataria a um drow. Para o Drizzt, sua palavra era o sustento de seus princípios, aqueles princípios pelos
que tinha renunciado a tantas coisas. Sem dúvida, esse dia teria faltado à palavra de não ter sido pelas ações do Guenhwyvar. Se era assim, o que o diferenciava
de outros elfos escuros? Drizzt tinha vencido no encontro contra seus irmãos e tinha confiança em que seria capaz de esconder-se da Briza e de qualquer outro inimigo
enviado pela matrona Malícia. Mas na solidão da pequena cova, Drizzt compreendeu algo muito mais grave.
Não podia esconder-se de si mesmo.
4
Fugir do caçador
Drizzt não pensou em suas ações enquanto continuava com a rotina da sobrevivência. O caçador não teria aceito outra coisa. Mas o custo emocional cada vez maior desta
sobrevivência provocava uma profunda angústia no coração do Drizzt Dou'Urdem. Se a repetição das tarefas diárias ajudava a dissimular a dor, quando chegava a hora
do descanso Drizzt se encontrava desprotegido. O encontro com seus irmãos o perseguia; cada noite aparecia em seus sonhos com uma claridade meridiana. O jovem despertava
aterrorizado e solitário, entre as garras dos monstros surtos dos pesadelos. Compreendia --e este conhecimento aumentava ainda mais a angústia-- que a perícia no
manejo das armas não era suficiente para derrotá-los. Não o preocupava que a matrona Malícia pudesse insistir no intento de capturá-lo e acabar com sua vida. Este
era seu mundo, muito distinto das sinuosas avenidas do Menzoberranzan, e nele imperavam umas leis que os drows da cidade desconheciam totalmente. Não havia nada
a disposição de Malícia que ele não pudesse derrotar. Também se tinha liberado da culpa por suas ações contra Briza. Tinham sido seus irmãos os que tinham forçado
o encontro, e Briza, com o intento de lançar um feitiço, a primeira em atacar. De todos os modos, Drizzt era consciente de que passaria dias dedicado a achar respostas
às perguntas que suas ações tinham exposto em relação à natureza de seu caráter. converteu-se em um caçador selvagem e desumano obrigado pelas duras condições do
entorno? Ou o caçador era a expressão de seu verdadeiro ser? Estas perguntas não tinham uma resposta singela, embora, nesse momento, não eram as mais importantes.
Daquele encontro com os irmãos, o que não podia esquecer era o som das vozes, a melodia das palavras que entendia e podia responder. Em suas lembranças, o mais importante
daqueles minutos passados com a Briza e Dinin eram as palavras e não os golpes. Drizzt se aferrava a elas com desespero, escutava-as uma e outra vez em sua mente
e pensava no dia em que desapareceriam da memória. Então voltaria a estar sozinho. Pela primeira vez da marcha do Guenhwyvar, Drizzt tirou do bolso a figura de ônix.
Deixou-a no chão e olhou as marcas na parede para saber quanto tempo tinha passado da última vez que tinha chamado à pantera. No ato compreendeu que era um cálculo
inútil. Quando tinha esboçado a última raia? Do que serviam as marcas? Como podia estar seguro da conta incluso se não tivesse esquecido alguma vez riscar uma raia
depois de cada um de seus períodos de sonho? --O tempo é algo que pertence a aquele outro mundo --murmurou o jovem, como um lamento, mas aproximou a adaga à pedra
como uma negativa a sua própria afirmação. "Que importância tem? --perguntou-se em voz alta, deixando cair a adaga.
O som do metal contra a pedra sacudiu ao Drizzt como se fosse o toque de um sino que anunciava a rendição. de repente lhe custou trabalho respirar. O suor cobriu
sua negra frente, e notou as mãos geladas. A seu redor, as paredes da cova que durante tantos anos o tinham resguardado dos muitos perigos da Antípoda Escura, pareciam
a ponto de esmagá-lo. Pareceu-lhe ver rostos zombadores nas gretas e os contornos da pedra, rostos que se mofavam e riam de seu ridículo orgulho. voltou-se, disposto
a escapar, mas tropeçou com uma pedra e caiu ao chão. A conseqüência do golpe machucou um joelho e apareceu outro buraco nos farrapos do piwafwi. Drizzt olhou atônito
a pedra causador da queda sem pensar no joelho machucado ou o objeto rota, porque acabava de ocorrer algo extraordinário. O caçador tinha tropeçado. Pela primeira
vez em mais de uma década, o caçador tinha tropeçado! --Guenhwyvar! --gritou Drizzt, frenético. Vêem mim! Ai, por favor, meu Guenhwyvar! Não sabia se a pantera
responderia à chamada. depois daquela separação pouco amistosa, Drizzt nem sequer se sentia seguro de que Guenhwyvar queria caminhar a seu lado. arrastou-se para
a estatueta, e cada centímetro resultou uma luta por superar a debilidade do desespero. Pouco a pouco apareceu a névoa. A pantera não abandonaria a seu amo, não
guardaria rancor contra o drow que tinha sido seu amigo. Drizzt se relaxou ao ver que a névoa tomava corpo, e se concentrou nela como uma maneira de evitar as alucinações
dos rostos malignos nas pedras. Ao cabo de uns momentos, Guenhwyvar se encontrava a seu lado entretida em lamber uma pata. Drizzt olhou os grandes olhos amarelos
da pantera e não viu neles nenhum rechaço. Era a mesma Guenhwyvar de sempre, sua amiga e sua salvação. O jovem ficou de joelhos e passou os braços ao redor do musculoso
pescoço do felino para abraçá-lo com autêntico desespero. Guenhwyvar aceitou o abraço e depois se apartou só o suficiente para poder continuar lambendo-a pata. Se
a pantera, em sua inteligência sobrenatural, tinha compreendido a importância do abraço, não o demonstrou de maneira nenhuma. A inquietação dominou ao Drizzt nos
dias seguintes a aquele episódio. mantinha-se em movimento e percorria os túneis ao redor de seu refúgio, sem deixar de repetir-se que a matrona Malícia pretendia
capturá-lo. Não podia permitir nenhuma falha nas defesas. No mais íntimo de seu ser, além dos raciocínios, o jovem sabia a verdade de seus movimentos. Podia justificá-los
com a desculpa da vigilância, mas de fato só pretendia escapar. Fugia das vozes e das paredes da pequena cova. Escapava do Drizzt Dou'Urdem em um intento por recuperar
ao caçador. Pouco a pouco, os percursos ganharam em extensão e permanecia afastado da cova durante muitos dias. Em segredo, desejava encontrar-se com algum inimigo
capitalista. Necessitava uma prova tangível da necessidade de uma existência primitiva, uma batalha contra algum monstro horrível que o devolvesse a uma sobrevivência
puramente instintiva. Em troca, o que encontrou um dia foi a vibração de um tamborilar distante na parede, os golpes rítmicos e constantes de um pico de mineiro.
Drizzt se apoiou na parede e pensou com muito cuidado qual seria seu próximo movimento. Sabia aonde o conduziria o som, pois se achava nos mesmos túneis que tinha
percorrido em busca das cabeças de gado perdidas, os mesmos onde tinha encontrado ao grupo de mineiros anões umas poucas semanas antes. Não queria admiti-lo, mas
não era uma pura coincidência ter ido até ali pela segunda vez. O subconsciente
tinha-o conduzido para ouvir os golpes dos martelos dos svirfneblis, e, sobre tudo, para ouvir as risadas e o bate-papo dos pequenos das profundidades. Agora, apoiado
contra a parede do túnel, Drizzt se enfrentava a um dilema. Sabia que espiar aos svirfneblis só serviria para aumentar o tortura; ouvir as vozes o faria ainda mais
vulnerável aos aguilhões da solidão. Os pequenos acabariam por retornar à cidade, e ele voltaria a perambular pelos túneis desertos. Mas Drizzt tinha ido ali para
ouvir o martilleo, e as vibrações na pedra o atraíam com uma força irresistível. A parte racional lutava contra o impulso de avançar para a origem do som, mas a
decisão a tinha tomado quando tinha dado os primeiros passos nesta região. reprovou-se a si mesmo pela tolice e sacudiu a cabeça em sinal de rechaço. Entretanto,
apesar dos raciocínios, as pernas atuavam por vontade própria, e o levavam para o ruído dos picos, martelos e pás. Os instintos do caçador protestaram contra a imprudência
de permanecer perto dos mineiros incluso enquanto Drizzt observava aos svirfneblis de uma cornija, mas não fez conta. Durante vários dias ficou na vizinhança, atento
às conversações, e entretido em ver como trabalhavam ou desfrutavam dos momentos de descanso. Quando por fim chegou o dia em que os mineiros começaram a preparar
os carrinhos de mão e a recolher as coisas, Drizzt compreendeu a gravidade de seu equívoco. Tinha negado a terrível verdade de sua existência. Agora teria que voltar
para aquele buraco escuro e vazio, onde as lembranças destes últimos dias ressaltariam ainda mais a solidão. Quando os carrinhos de mão se perderam nos túneis que
levavam para a cidade dos svirfneblis, Drizzt deu os primeiros passos de volta a seu refúgio, à caverna coberta de musgo e o arroio. Em todos os séculos de vida
que tinha por diante, Drizzt Dou'Urdem jamais voltaria a ver aquele lugar. Mais tarde, não pôde recordar em que momento tinha trocado de direção; não tinha sido
uma decisão consciente. Algo o tinha miserável --possivelmente o eco dos carrinhos de mão carregados de mineral-- e só quando ouviu o golpe das grandes leva exteriores
do Blingdenstone compreendeu qual era seu propósito. --Guenhwyvar --chamou Drizzt, e torceu o gesto para ouvir sua própria voz, que lhe soou como um grito. Por sorte
os guardas svirfneblis apostados na ampla escada estavam muito entretidos conversando e não havia perigo de que o ouvissem. Apareceu a névoa cinza ao redor da estatueta,
e a pantera respondeu à chamada do amo. Guenhwyvar esmagou as orelhas contra o crânio e olisqueó o ar desconfiada ao ver-se em um entorno desconhecido. Por sua parte,
Drizzt fez um grande esforço por dominar a emoção que o embargava. --Quero te dizer adeus, amiga minha --sussurrou, quase sem poder pronunciar as palavras. Guenhwyvar
levantou as orelhas, e as pupilas dos brilhantes olhos amarelos escrutinaram ao jovem com muita atenção. --Já não posso agüentar mais a vida nos túneis, Guenhwyvar
acrescentou Drizzt. Tenho medo de perder todo aquilo que dá sentido à vida. Tenho medo de perder meu próprio ser. --O drow jogou um olhar por cima do ombro à escada
que conduzia ao Blingdenstone. E isto é algo mais precioso que a vida material. Entende-o, Guenhwyvar? Necessito algo mais, algo mais que a pura sobrevivência.
Necessito uma vida definida por algo mais que os instintos selvagens da criatura em que me converti. --O jovem se apoiou contra a parede do túnel. A explicação
lhe
soava clara e singela, embora sabia que cada degrau da escada até a cidade dos pequenos
seria uma prova de decisão e coragem. Recordou o dia em que tinha estado a uns metros das portas do Blingdenstone. Apesar do muito que o desejava, Drizzt tinha sido
incapaz das atravessar detrás dos pequenos. Uma paralisia lhe tinha convertido os músculos em pedra assim que pensou na possibilidade de cruzar o portal da cidade.
--Quase nunca me julgaste, amiga minha --prosseguiu Drizzt-- e, quando o tem feito, sempre foi com justiça. Pode me entender? dentro de uns momentos, possivelmente
nos separaremos para sempre. Pode entender por que devo fazê-lo? Guenhwyvar se aproximou do Drizzt e esfregou o focinho contra as costelas do drow. --Amiga minha
--sussurrou Drizzt ao ouvido da pantera--, vete agora antes de que perca a coragem. Retorna a seu lar e roga para que voltemos a nos encontrar alguma vez. Guenhwyvar
se apartou obediente e foi até a estatueta. Drizzt teve a sensação de que a pantera só tinha demorado uma décima de segundo em desaparecer. O guerreiro recolheu
o talismã e pensou na provocação que se dispunha a confrontar. Então, impulsionado pelas mesmas necessidades inconscientes que o tinham levado até ali, correu até
a escada e começou a subir. Os sentinelas apostados no patamar interromperam a conversação; ao parecer tinham pressentido que algo ou alguém se aproximava. Mesmo
assim, os guardas se levaram uma surpresa maiúscula quando o elfo escuro apareceu ante seus olhos diante mesmo das portas da cidade. Drizzt cruzou os braços sobre
o peito, o gesto que os drows utilizavam como sinal de paz. O jovem só podia confiar em que os svirfneblis conhecessem o significado da postura, porque sua súbita
aparição tinha provocado um revôo tremendo. Tropeçavam entre eles enquanto corriam pelo patamar sem saber o que fazer primeiro; alguns correram a proteger as portas
da cidade, outros rodearam ao Drizzt lhe apontando com suas armas, enquanto um grupo baixava uns quantos degraus para averiguar se este drow era o primeiro de uma
legião disposta ao assalto do Blingdenstone. Um pequeno, o chefe do guarda, decidido a averiguar o que acontecia, formulou ao Drizzt umas quantas perguntas que soavam
como latidos. O guerreiro encolheu os ombros para expressar seu desconhecimento da linguagem, e meia dúzia de pequenos deram um passo atrás alarmados pelo gesto.
O
svirfnebli repetiu as perguntas, quase a gritos, e sacudiu a lança de ferro em direção do Drizzt, que não as entendia nem podia responder a elas. Pouco a pouco e
bem à vista, deslizou uma mão sobre o estômago até chegar à fivela do cinturão. O chefe anão apertou com força o cabo da lança atento a cada um dos movimentos do
elfo escuro. Um leve movimento de pulso foi suficiente para soltar a fivela, e as cimitarras caíram ao chão com grande estrépito. Os svirfneblis deram um coice,
mas se recuperaram no ato e se aproximaram. A uma ordem do chefe, dois guardas se desprenderam das armas e apalparam sem muitos olhares ao intruso. Drizzt se zangou
consigo mesmo quando descobriram a adaga oculta na bota. Pensou que era um estúpido por haver-se esquecido da arma e não havê-la entregue em um princípio. Um momento
mais tarde, quando um dos svirfneblis colocou a mão no bolso mais profundo do piwafwi do Drizzt e tirou a estatueta de ônix, a angústia do Drizzt aumentou. Em um
movimento involuntário, Drizzt tendeu uma mão para recuperar o talismã, com uma expressão de súplica no rosto. Por toda resposta recebeu o golpe de uma lança contra
as costas. Os pequenos não eram uma raça maligna, mas não sentiam nenhuma avaliação pelos elfos escuros. Os svirfneblis tinham sobrevivido durante milênios na Antípoda
Escura com um punhado
de aliados e uma legião de inimigos. Entre estes últimos, os elfos escuros ocupavam o primeiro lugar. Da fundação da antiga cidade do Blingdenstone, a maioria das
baixas sofridas pelos pequenos tinham sido causadas pelas armas dos elfos escuros. Agora, sem mediar nenhum motivo, um destes elfos escuros tinha aparecido ante
as
portas da cidade e tinha entregue as armas por própria vontade. Os pequenos ataram as mãos do Drizzt à costas, e quatro guardas apoiaram as pontas das lanças no
corpo
do guerreiro, dispostos às cravar ao mais leve movimento suspeito. O grupo que tinha baixado a escada retornou com o relatório que não havia mais elfos escuros nas
imediações. O chefe dos pequenos, ainda receoso, apostou sentinelas nos pontos estratégicos e depois fez um gesto aos dois guardas que esperavam junto às portas.
Estas
se abriram, e Drizzt seguiu ao chefe. Naquele momento de excitação e angústia, só podia confiar em que tivesse conseguido deixar ao caçador nas profundidades da
Antípoda Escura.
5
Zin-Carla
Sem pressa por enfrentar-se à cólera de sua mãe, Dinin caminhou lentamente para a hall da capela da casa Dou'Urdem. A matrona Malícia o tinha chamado, e ele não
podia recusar a convocatória. No corredor, diante das portas, encontrou a Vierna e Maia que tampouco as tinham todas consigo. --O que ocorre? --perguntou Dinin através
do código mudo. --A matrona Malícia esteve reunida todo o dia com a Briza e Shi'nayne -- responderam as mãos da Vierna. --Sem dúvida planejam alguma outra missão
em busca do Drizzt --assinalou Dinin sem muito entusiasmo porque sabia que lhe tocaria participar dela. As duas sacerdotisas interpretaram perfeitamente a expressão
desdenhosa do varão. --De verdade foi tão terrível? --inquiriu Maia. Briza não se mostrou muito explícita. --Os dedos amputados e a perda do látego falam por si
só --opinou Vierna com um sorriso de complacência enquanto movia os dedos. Ao igual a seus irmãos, sentia muito pouco afeto pela filha maior da matrona Malícia.
De todos os modos, o sorriso não encontrou eco no Dinin, que recordava o enfrentamento com o Drizzt. --As duas puderam ver sua habilidade com as armas enquanto residia
conosco --respondeu Dinin com as mãos. Sua capacidade se multiplicou por dez nos anos que leva fora da cidade. --Mas como é? --perguntou Vierna. Intrigada pela
capacidade de sobrevivência do Drizzt, desde que a patrulha tinha retornado com a notícia de que seguia vivo, Vierna tinha alimentado a esperança de voltar a ver
o irmão menor. dizia-se que eram filhos do mesmo pai, e Vierna mostrava uma avaliação pelo Drizzt além do prudente, à vista dos sentimentos de Malícia respeito a
ele. Ao notar a expressão excitada, e recordar a humilhação sofrida à mãos do Drizzt, Dinin dirigiu um olhar de recriminação a Vierna. --Não tema, querida irmã --disse-lhe
a toda pressa. Se Malícia enviar aos túneis, como suspeito que fará, terá ocasião de ver o Drizzt tudo o que te agrade. Dinin uniu as mãos para dar mais ênfase
às palavras; depois passou entre as duas mulheres e entrou na hall. --Seu irmão esqueceu que antes de entrar se deve bater na porta -- comentou a matrona Malícia
a Briza e Shi'nayne, que se encontravam junto a ela. Rizzen, de joelhos diante do trono, olhou ao Dinin por cima do ombro. --Não te dei permissão para olhar! --chiou-lhe
Malícia ao patrão. Golpeou o punho contra um dos braços do trono, e Rizzen se tornou sobre a
pança aterrorizado. As palavras seguintes da matrona levavam a força de um feitiço. --te arraste! --ordenou, e Rizzen se arrastou até seus pés. Malícia estendeu
uma mão ao varão, sem deixar de olhar ao Dinin. O filho maior entendeu perfeitamente a intenção da matrona. --Beija! --disse Malícia ao Rizzen, que se apressou a
cobrir de beijos a mão oferecida. Te levante. Rizzen apenas se teve tempo de incorporar-se pela metade antes de que a matrona o propinara um murro em pleno rosto.
O patrão se desabou feito um novelo sobre o chão de pedra. --Se te mover, matarei-te --prometeu Malícia, e Rizzen permaneceu imóvel, sem duvidar da validez da promessa.
Dinin sabia que todo este espetáculo tinha como objetivo impressioná-lo. Sem piscar, Malícia o observou atentamente. --Falhaste-me --declarou, depois de uma larga
pausa. Dinin aceitou a reprimenda em silêncio, sem atrever-se sequer a respirar até que Malícia se voltou para a Briza. --E você! --gritou Malícia. Uma grande
sacerdotisa com a ajuda de seis guerreiros de primeira e não foste capaz de apanhar ao Drizzt. Briza fechou e abriu a mão para exercitar os dedos que Malícia tinha
feito crescer graças à magia em substituição dos amputados durante o combate. --Sete contra um --protestou Malícia--, e retornam com o rabo entre as pernas anunciando
desastres! --Eu o apanharei, mãe matrona! --prometeu Maia enquanto ocupava seu lugar junto ao Shi'nayne. Malícia olhou a Vierna, mas a segunda filha não se atreveu
a imitar à irmã na afirmação. --É muito atrevida --disse Dinin a Maia. Imediatamente, o olhar incrédulo de Malícia se fixou nele como um aviso de que não era seu
turno de falar. --Muito atrevida --grunhiu Briza, apressando-se a completar a opinião do Dinin. Malícia olhou a Briza, que como grande sacerdotisa agraciada com
o favor do Lloth estava em seu direito de falar. Não sabe nada de nosso irmão menor --acrescentou Briza, dirigindo-se tanto a Malícia como a Maia. --Não é mais
que um varão --replicou Maia. Eu poderia... --Acabaria atalho em partes! --chiou Briza. Deixa de dizer tolices e de formular falsas promessas, irmã. Nos túneis
além do Menzoberranzan, Drizzt te mataria em um abrir e fechar de olhos. Malícia não se perdia palavra. Tinha escutado o relato do encontro com o Drizzt várias vezes,
e conhecia o valor e os poderes da filha maior o suficiente para saber que Briza não falava em vão. Maia optou por não seguir a discussão porque não queria criar
rancores com a Briza. --Poderia derrotá-lo agora que compreende melhor no que se converteu? -- perguntou- Malícia a Briza. A resposta da Briza foi flexionar os dedos
da mão ferida; demoraria várias semanas em recuperar a força. A matrona interpretou seu gesto como uma resposta definitiva. --E você? --interrogou ao Dinin. Dinin
se moveu inquieto, sem saber o que devia responder à suscetível Malícia. A verdade podia deixá-lo em situação desprezada, mas uma mentira significaria voltar para
os túneis em busca do fugitivo. --me diga a verdade! --rugiu Malícia. Está disposto a capturar ao Drizzt e assim
recuperar meu favor? --Eu... --gaguejou Dinin, e baixou o olhar ao compreender que Malícia utilizava um feitiço de detecção. Não podia mentir porque o descobriria
no ato. Não --respondeu. Embora perca seu favor, mãe matrona, não quero ir em busca do Drizzt. Maia e Vierna --inclusive Shi'nayne-- ficaram estupefatas ante
uma resposta tão sincera, convencidas de que não podia existir nada pior que a ira de uma mãe matrona. Em troca, Briza assentiu porque tampouco queria voltar a enfrentar-se
com o Drizzt. Malícia tomou nota do gesto de sua filha. --Peço-te perdão, mãe matrona --continuou Dinin, em um intento de arrumar um pouco as coisas. Vi ao Drizzt
em combate. Derrubou-me como a um boneco, algo que ninguém mais poderia conseguir. Derrotou a Briza em uma briga limpa, e a ela jamais a tinham vencido. Não quero
sair a caçar a meu irmão porque acredito que o resultado provocaria sua cólera e expor mais problemas à casa Dou'Urdem. --Tem medo? --perguntou-lhe Malícia, com
astúcia. --Sim --reconheceu Dinin--, e também sei que voltaria a te desiludir, mãe matrona. Nos túneis que ele chama sua casa, Drizzt é imbatível. Não posso aspirar
a derrotá-lo. --Posso aceitar a covardia em um varão --disse Malícia, depreciativa. Dinin, que não podia fazer outra coisa, aceitou o insulto estoicamente. --Mas
você é uma grande sacerdotisa do Lloth! --jogou-lhe em cara Malícia a Briza. Não é possível que um vulgar varão esteja por cima dos poderes que te deu a rainha
arranha! --Escuta as palavras do Dinin, matrona! --respondeu Briza. --Lloth está contigo! --interveio Shi'nayne. --Mas Drizzt está fora do alcance da rainha aranha
--replicou Briza. Acredito que Dinin há dito uma verdade que se aplica a todos nós. Não podemos apanhar ao Drizzt. As profundidades da Antípoda Escura são seus
domínios, e nós somos uns estranhos. --Então, o que podemos fazer? --perguntou Maia. Malícia se recostou no trono e descansou a afiado queixo na palma de uma mão.
Tinha tentado coagir ao Dinin com a ameaça de ficar em seu contrário, e em que pese a todo ele tinha recusado aventurar-se a uma nova perseguição. Briza, cheia de
ambições e poderosa, e com o respaldo do Lloth, embora a casa Dou'Urdem e Malícia não o tivessem, tinha retornado sem o látego nem os dedos de uma mão. --por que
não empregar ao Jarlaxle e sua banda de mercenários? --propôs Vierna ao ver o dilema de Malícia. Brigam D'aerthe nos emprestou grandes serviços durante muitos
anos. --O chefe mercenário não aceitará a proposta --respondeu Malícia, porque já tinha tentado contratá-lo anos antes para esta mesma missão. Todos os membros
de Brigam D'aerthe obedecem as decisões do Jarlaxle, e toda nossa fortuna não é suficiente para tentá-lo. Suspeito que Jarlaxle acata as ordens estritas da matrona
Baenre. Drizzt é nosso problema, e a reina aranha quer que nós sejamos os que lhe demos solução. --Se me ordenar que vá, irei --anunciou Dinin--, embora possa te
desiludir. Não tenho medo às espadas do Drizzt nem à própria morte se for a seu serviço. Dinin tinha interpretado o mau humor de sua mãe o suficiente para saber
que não tinha a intenção de mandá-lo à caça e captura do Drizzt, e considerou que não lhe custava nada mostrar-se generoso. --Agradeço-lhe isso, meu filho --disse
Malícia, satisfeita. Dinin fez um esforço para não burlar-se do olhar furioso que lhe dirigiram suas irmãs. Agora faz o favor de nos deixar --acrescentou a matrona,
com um tom altivo que roubou ao Dinin seu momento
de glória. Temos que atender assuntos que não concernem a um varão. Dinin fez uma reverência e se encaminhou à porta. As irmãs não passaram por cima a facilidade
com que Malícia o tinha posto em seu sítio. --Recordarei suas palavras --prosseguiu Malícia, que desfrutava com o jogo de poder e o aplauso silencioso. Dinin fez
uma pausa, com a mão apoiada no trinco da decorada porta. Algum dia terá que provar a lealdade que me tem, ten por seguro. As cinco grandes sacerdotisas riram
a costas do Dinin enquanto ele saía da sala a toda pressa. No chão, Rizzen se encontrou enfrentado a um perigoso dilema. Malícia tinha despachado ao Dinin porque
os varões não tinham direito a permanecer na hall. Entretanto, a matrona não lhe tinha dada permissão para mover-se. Afiançou as pontas das botas e apertou os dedos
contra a pedra, preparado para levantar-se e sair assim que o ordenassem. --Ainda está aqui? --gritou-lhe Malícia, e Rizzen correu para a porta. Alto! --chiou
Malícia ao tempo que lançava um feitiço. Rizzen se deteve no ato, incapaz de opor-se à força do duomer do feitiço. --Não te dei permissão para que te mova! --exclamou
a matrona a suas costas. --Mas... --começou a protestar Rizzen. --Agarrem! --ordenou Malícia às duas filhas menores. Vierna e Maia se apressaram a cumprir a ordem
e sujeitaram ao Rizzen. --Encerrem em uma das masmorras --acrescentou Malícia. Mantenham vivo. Necessitaremo-lo mais tarde. Vierna e Maia se levaram a apavorado
varão, que não se atreveu a oferecer resistência. --Tem um plano --disse-lhe Shi'nayne a Malícia, consciente de que havia um propósito definido em cada uma das ações
da matrona da casa Dou'Urdem. Conhecia perfeitamente bem as obrigações de uma mãe matrona e compreendia que o aborrecimento de Malícia contra Rizzen, que não tinha
feito nada mau, não era real mas sim mascarava algum outro fim. A matrona se voltou para a Briza. --Estou de acordo com sua análise --declarou. Drizzt está fora
de nosso alcance. --Mas como há dito a matrona Baenre, não podemos fracassar --recordou-lhe Briza. Sua posição no conselho regente deve ser fortalecida a toda
costa. --Não fracassaremos --disse-lhe Shi'nayne a Briza com o olhar posto em Malícia, que lhe devolveu o olhar com uma expressão desanimada. Nos dez anos de luta
contra a casa Dou'Urdem cheguei a entender os métodos da matrona Malícia. Sua mãe encontrará a maneira de apanhar ao Drizzt. --Fez uma pausa ao ver o sorriso da
matrona. Possivelmente já sabe como fazê-lo. --Já o veremos --presumiu Malícia, ufana ante a amostra de respeito de seu antiga rival. Já o veremos. mais de duzentos
plebeus da casa Dou'Urdem se apinhavam na grande capela, e o rumor dos comentários sobre os motivos desta reunião ia em contínuo aumento. Os plebeus tinham muito
poucas oportunidades de visitar o lugar sagrado, salvo nas festas de culto à rainha aranha ou para os ofícios prévios a uma batalha. Mas esta vez não havia nenhuma
guerra a ponto de estalar e a data não correspondia a nenhum dos dias sagrados do calendário drow. Dinin Dou'Urdem, tão nervoso e excitado como outros, movia-se
entre a
multidão, dedicado a acomodar aos elfos escuros nas filas de assentos que rodeavam o altar central. O fato de ser varão lhe impedia de participar da cerimônia no
altar, e a matrona Malícia não o tinha posto em antecedentes de seus planos. De todos os modos, pelas ordens recebidas, Dinin sabia que os resultados da cerimônia
tinham uma importância crítica para o futuro da família. Como professor do coro teria que mover-se entre os congregados e dirigir aos plebeus nas letanías e orações
à rainha aranha. Dinin já tinha desempenhado este papel em numerosas ocasiões, mas esta vez a matrona Malícia lhe tinha advertido que uma só falha nas rezas lhe
custaria a vida. Havia outro feito que preocupava ao filho maior da casa Dou'Urdem. Pelo general, o outro varão nobre da casa, o atual companheiro de Malícia, ajudava-o
nesta tarefa. Mas ninguém tinha visto o Rizzen da reunião mantida por toda a família na hall para discutir como capturar ao Drizzt. Dinin suspeitava que Rizzen tinha
os dias contados como patrão da casa. Não era nenhum secreto que a matrona Malícia tinha devotado em sacrifício ao Lloth a mais de um amante. Assim que os plebeus
estiveram sentados, umas luzes vermelhas mágicas começaram a brilhar brandamente em todo o recinto. A iluminação aumentou pouco a pouco para permitir aos pressente
acontecer do espectro infravermelho à visão normal sem alterações. Uma nuvem de vapor apareceu debaixo dos assentos, estendeu-se por todo o chão, e começou a encher
a sala. Dinin dirigiu aos reunidos em um cantarolo surdo: a chamada da matrona Malícia. Esta apareceu no ponto mais alto da cúpula, com os braços estendidos e as
dobras da túnica negra bordada com desenhos de aranhas sacudidos por uma brisa mágica. Descendeu lentamente sobrevoando em círculos para observar aos reunidos e
deixar que eles contemplassem a magnificência da mãe matrona. Quando Malícia se posou no altar central, Briza e Shi'nayne apareceram no teto e descenderam da mesma
maneira. Aterrissaram e ocuparam seus postos, Briza junto à caixa tampada por um pano que havia ao lado do ara com forma de aranha e Shi'nayne detrás da matrona
Malícia. A matrona deu uma palmada, e o cantarolo cessou no ato. Com um rugido, elevaram-se as chamas dos oito braseiros dispostos sobre o altar, e o brilho do fogo
não foi tão doloroso para os olhos dos drows graças à névoa e o resplendor avermelhado das luzes mágicas. --Entrem, minhas filhas! --gritou Malícia. Todas as olhadas
se dirigiram à porta principal da capela. Vierna e Maia entraram escoltando ao Rizzen, quem ao parecer ia drogado, e seguidas por um féretro que flutuava no ar.
Dinin não foi o único surpreso ao ver este estranho acerto. Dava por feito que Rizzen seria sacrificado, mas nunca tinham utilizado um féretro na cerimônia. As duas
filhas menores subiram ao altar e sem perder um segundo ataram ao Rizzen à pedra do sacrifício, Shi'nayne se fez cargo do féretro e o desviou para o extremo oposto
a Briza. --Chamem à donzela! --ordenou Malícia, e imediatamente Dinin dirigiu aos plebeus na letanía. As chamas cresceram nos braseiros, enquanto Malícia e as demais
grandes sacerdotisas incitavam aos pressente com gritos mágicos nas palavras chaves da chamada. de repente soprou um vento muito forte que dispersou a névoa. As
chamas dos oito braseiros superaram em altura a Malícia e às demais, e se uniram em um estalo furioso no centro da plataforma circular. Os braseiros cuspiram fogo
uma vez mais em uma explosão comum, lançando todas as chamas na invocação; depois quase se apagaram enquanto as línguas de fogo formavam primeiro
uma bola e a seguir uma coluna ígnea. O assombro dominou aos plebeus, que prosseguiram com a salmodia enquanto a coluna passava por tudas as cores do espectro e
se esfriava. Quando se apagaram as chamas apareceu uma criatura dotada de tentáculos, mais alta que um drow, parecida com uma vela médio derretida e com o rosto
alargado como se as feições estivessem a ponto de fundir-se. Todos os pressente reconheceram à criatura, embora eram muito poucos quão plebeus tinham visto uma alguma
vez, exceto possivelmente nas ilustrações de algum livro religioso. De todos os modos, reunido-los compreenderam naquele momento a importância do ato porque nenhum
drow podia passar por cima o significado da presença de uma yochlol, uma donzela pessoal do Lloth. --Salve, donzela --manifestou Malícia. Bendita seja sua presença
na casa do Daermon N'a'shezbaernon. A donzela observou aos pressente durante um bom momento, surpreendida de que a casa Dou'Urdem se tivesse atrevido a invocá-la,
quando Malícia não contava com o favor do Lloth. Só as grandes sacerdotisas escutaram a pergunta telepática. Como te atreve a me invocar? --Para corrigir nossos
enganos! --respondeu Malícia em voz alta, e os congregados captaram a tensão do momento. Para recuperar o favor de sua senhora, o favor que é o único propósito
de nossa existência! Malícia olhou ao Dinin, e ele ordenou a canção adequada, o hino de louvor à rainha aranha. Agrada-me a exibição, matrona Malícia --transmitiu
a donzela, esta vez unicamente para Malícia. Mas não te ajudará para fazer frente aos perigos! Sei; isto é só o princípio --pensou Malícia, segura de que a donzela
podia lhe ler o pensamento. Este conhecimento lhe inspirou confiança porque não mentia. Só desejava recuperar o favor do Lloth. Meu filho menor faltou à rainha
arranha. Deve pagar por seus pecados. As demais sacerdotisas, excluídas da conversação telepática, uniram-se ao canto ao Lloth. Drizzt Dou'Urdem vive --manifestou
a donzela. E não está submetido a sua custódia. Isto resolverá muito em breve --prometeu Malícia. O que quer de mim? --Zin-Carla! --gritou Malícia, em voz alta.
A donzela se sacudiu, assombrada por um momento da ousadia da petição. Malícia se manteve firme, convencida de que o plano não podia fracassar. A seu redor, as outras
sacerdotisas contiveram a respiração. Tinha chegado o momento da verdade e agora tudo pendia de um fio. É nosso melhor presente --respondeu a donzela. M sequer
se está acostumado a outorgar às matronas que têm o favor da rainha aranha. E você, que desagrada ao Lloth, atreve-te a pedi-lo? É justo e correto --afirmou Malícia.
Depois, como necessitava o apoio da família, acrescentou em voz alta: --Que meu filho conheça as conseqüências de suas faltas e o poder dos inimigos que se criou.
Que meu filho seja testemunha da horrível glorifica do Lloth para que caia de joelhos e suplique perdão. Malícia voltou para a comunicação telepática. Só então o
espectro cravará a espada em seu coração! A donzela pôs os olhos em branco enquanto entrava em contato com seu plano de existência em busca de uma resposta à petição.
Ao cabo de um bom momento -- minutos de agonia para a matrona Malícia e todos os reunidos-- a yochlol formulou
uma pergunta. Tem o corpo? Malícia fez um gesto a Maia e a Vierna, e as duas correram até o féretro para tirar a tampa de pedra. Naquele instante, Dinin descobriu
que o ataúde não era para o Rizzen mas sim tinha um ocupante. O cadáver, reanimado pela magia, saiu do féretro e trastabilló até chegar junto a Malícia. O corpo
aparecia mal conservado e tinha perdido parte das feições, mas Dinin e a maioria dos pressente o reconheceram no ato: era Zaknafein Dou'Urdem, o legendário professor
de armas. Pretende utilizar ao professor de armas que sacrificou à rainha aranha para emendar os enganos cometidos por seu filho menor? --perguntou a donzela.
É este seu zin-Carla? É apropriado --replicou Malícia. Tal como tinha previsto, a donzela parecia agradada. Zaknafein, o tutor do Drizzt, era em grande parte culpado
do comportamento blasfemo do jovem. Ao Lloth, reina do caos, agradavam-lhe as ironias, e nada mais irônico que empregar ao Zaknafein como verdugo. O zin-Carla requer
grandes sacrifícios --declarou a donzela. A criatura olhou a pedra de sacrifícios onde jazia Rizzen, que não tinha consciência do que acontecia a seu redor. A donzela
franziu o sobrecenho, se é que podia fazer este gesto, ao ver o pouco valor da vítima. Então voltou sua atenção a Malícia e leu seus pensamentos. Adiante --disse,
de repente muito interessada. Malícia levantou os braços e iniciou outro hino ao Lloth. Fez um gesto ao Shi'nayne, que caminhou até a caixa junto à Briza e tirou
a adaga de cerimônias, a jóia mais apreciada da casa Dou'Urdem. Briza torceu o gesto ao ver como a flamejante "irmana" sujeitava o objeto com surripio em forma de
aranha e uma lâmina formada por oito cuchillas que reproduziam as patas. Durante séculos a missão de afundar a adaga no coração das vítimas tinha sido encomendada
a Briza. Shi'nayne mostrou uma expressão de brincadeira quando se apartou com a adaga, consciente da cólera da Briza. aproximou-se de Malícia, que esperava junto
ao Rizzen, e levantou a adaga sobre o coração do homem, lista para cravá-la. Mas não pôde completar o movimento porque Malícia a sujeitou pelo pulso. --Esta vez
o farei eu --explicou a matrona Malícia para desgosto do Shi'nayne, que olhou por cima do ombro e viu o depreciativo sorriso da Briza ante o desprezo. Malícia esperou
o final do hino e, quando reinou o silêncio, iniciou sozinha a reza adequada. --Takken bres duis bres --rezou enquanto empunhava a adaga com as duas mãos. Prosseguiu
a oração e levantou a adaga. Congregado-los contiveram a respiração, atentos ao momento de êxtase, ao prazer selvagem de entregar uma vida à rainha aranha. Malícia
descarregou o golpe, mas no último instante desviou a trajetória e cravou a arma no coração do Shi'nayne, a matrona SiNafay Hun'ett, a rival mais odiada. --Não!
--gritou SiNafay. Muito tarde. As oito lâminas lhe atravessaram o coração. SiNafay tentou falar, fechar a ferida com um feitiço ou amaldiçoar a Malícia, mas em seus
lábios só apareceu uma baforada de sangue. Em um último estertor caiu sobre o corpo do Rizzen. Todos os pressente estalaram em gritos de assombro e alegria ao ver
como Malícia arrancava a adaga do peito do SiNafay Hun'ett e com ela o coração de sua inimizade. --Genial! --chiou Briza a todo pulmão para fazer-se ouvir entre
o tumulto, porque nem sequer ela conhecia as intenções de Malícia.
Agora voltava a ocupar a posição de honra que lhe correspondia por ser a filha maior da casa Dou'Urdem. Muito ardiloso! --transmitiu a donzela à mente de Malícia.
Agradaste-nos! Naquele instante, o cadáver animado caiu ao chão como se não tivesse ossos. Malícia olhou à donzela e pôs mãos à obra. --Depressa! Ponham ao Zaknafein
no ara! --ordenou às filhas menores. Sem perder um segundo, as duas apartaram sem olhares os corpos do Rizzen e SiNafay para colocar em seu sítio ao Zaknafein. Por
sua parte, Briza começou a ordenar com muito cuidado os numerosos frascos de ungüentos preparados para a ocasião. A fama dos ungüentos de Malícia se enfrentava a
uma dura prova. --Zin-Carla? --perguntou a mãe matrona com o olhar posto na donzela. Não recuperaste o favor do Lloth! --respondeu a donzela, com tanta força que
Malícia caiu de joelhos. levou-se as mãos à cabeça, convencida de que o crânio lhe estalaria pela pressão. Pouco a pouco diminuiu a dor. Mas hoje agradaste à rainha
arranha, Malícia Dou'Urdem --acrescentou a yochlol. E se aceita que os planos para acabar com seu filho sacrílego são apropriados. Te outorga o zin-Carla, mas
tem que saber que é a última oportunidade, matrona Malícia Dou'Urdem. O castigo pelo fracasso será terrível! A donzela desapareceu em uma explosão de fogo que sacudiu
a capela da casa Dou'Urdem. Reunido-los gritaram frenéticos ante a amostra de poder da deidade, e Dinin os dirigiu em outro hino de louvor ao Lloth. Dez semanas!
O último aviso da donzela ressonou com tanta força que os plebeus se acurrucaron com as mãos sobre as orelhas. De modo que, durante dez semanas --setenta ciclos
do Narbondel, o relógio do Menzoberranzan--, toda a casa Dou'Urdem se reuniu na grande capela. Dinin e Rizzen dirigiam aos plebeus nas preces e letanías à rainha
arranha, enquanto Malícia e suas filhas esfregavam o cadáver do Zaknafein com os ungüentos mágicos. A reanimación de um cadáver era um feitiço singelo para uma sacerdotisa,
mas o zin-Carla era muito mais complicado. O resultado desta operação seria um espectro dotado com todas as habilidades da vida anterior e submetido ao controle
da mãe matrona designada pelo Lloth. Era o presente mais precioso da rainha aranha, algo que muito poucos se atreviam a suplicar e que quase nunca se concedia,
porque o zin-Carla--a devolução do espírito à matéria-- era uma prática muito perigosa. Só através da força de vontade da sacerdotisa se podiam separar as aptidões
do espectro das memórias e emoções. Manter o controle nesta fina linha divisória resultava difícil inclusive para a disciplinada mente de uma grande sacerdotisa.
Além disso, a rainha aranha unicamente outorgava o zin-Carla para realizar umas tarefas específicas, por isso apartar-se delas conduziria ao desastre. Lloth não
tolerava
o fracasso.
6
Blingdenstone
Drizzt não tinha visto jamais nada parecido ao Blingdenstone. Tinha esperado encontrar algo não muito diferente do Menzoberranzan, embora a menor escala, mas quando
os guardas o fizeram passar através das enormes leva de pedra e ferro, comprovou que suas expectativas não tinham nada que ver com a realidade. Menzoberranzan ocupava
o interior de uma caverna imensa; em troca, Blingdenstone se compunha de uma série de cavernas comunicadas por túneis de baixa altura. A maior do complexo, logo
que passada a porta, ocupava-a o guarda da cidade, e o recinto tinha sido acondicionado exclusivamente para uma posição defensiva. Havia dúzias de cornijas e o dobro
de escadas e rampas que baixavam e subiam, de forma tal que um atacante podia estar a só três metros de um defensor e entretanto ter que baixar vários níveis e subir
outros tantos antes de poder aproximá-lo suficiente para combater. As baixas paredes de selaria que marcavam as passarelas rodeavam uns muros mais altos e grossos
capazes de manter encaixado a um exército invasor nas partes abertas da caverna durante muito tempo. Um grande número de svirfneblis abandonaram as posições para
poder ver o elfo escuro que tinha entrado na cidade. Observavam-no desde todas as cornijas, e Drizzt não sabia se as expressões nos rostos dos pequenos eram de curiosidade
ou de ira. Em qualquer caso, os pequenos guerreiros estavam preparados para qualquer eventualidade, pois todos mantinham as molas de suspensão e as lanças listas
para atacar. Os svirfneblis guiaram ao Drizzt através da caverna. Subiram muitas escadas enquanto baixavam, sem apartar-se das passarelas e sempre por lugares onde
havia muitos guardas. O caminho dava voltas e baixava, subia bruscamente, e tinha mil e uma revoltas. A única maneira de manter a orientação era observar o teto,
que resultava visível do nível mais desço da caverna. O drow sorriu para seus adentros ao pensar que, inclusive sem a presença dos guardas, qualquer grupo invasor
podia demorar horas em encontrar o caminho correto. Ao final de um corredor baixo e estreito, que os pequenos percorreram em fila a Índia e Drizzt quase a gatas,
o
grupo entrou na zona habitada. Esta caverna, mais larga mas não tão larga como a primeira, também tinha cornijas, embora com muitos menos nivele. Nas paredes do
recinto se viam dúzias de entradas de covas, e ardiam fogueiras em vários lugares, coisa pouco habitual na Antípoda Escura dada a escassez de combustível. Blingdenstone
resultava um lugar quente e luminoso comparado com o resto do mundo subterrâneo. Drizzt conservou a calma, apesar da gravidade da situação, enquanto observava aos
svirfneblis dedicados às tarefas da vida diária. Os habitantes o olhavam com curiosidade, mas só por uns instantes; eram gente muito trabalhadora e não podiam perder
tempo em distrações. Uma vez mais, Drizzt foi guiado por caminhos bem riscados, mas agora com muitas menos voltas e dificuldades. Todas as ruas, bastante largas
e de pavimento
liso, pareciam conduzir a um grande edifício central. O chefe do grupo que escoltava ao Drizzt se adiantou à carreira para falar com os dois sentinelas armados com
lanças apostados diante do edifício. Um dos guardas correu ao interior, enquanto o outro mantinha aberta a porta de ferro para dar passo à patrulha e ao prisioneiro.
Pela primeira vez desde que tinham entrado na cidade, os svirfneblis fizeram partir ao Drizzt a toda pressa por um labirinto de passadiços que acabava em uma câmara
circular de pouco mais de dois metros de diâmetro e teto muito baixo para o drow. Não havia nada na habitação exceto uma cadeira de pedra e, assim que o fizeram
sentar, Drizzt compreendeu sua função; tinha grilhões de ferro nos braços e patas para sujeitar ao prisioneiro pelos pulsos e os tornozelos. Os pequenos não o trataram
com muitos olhares, mas quando o jovem fez uma careta de dor porque os elos lhe beliscaram a carne da cintura ao retorcer-se, um dos guardas se apressou a acomodá-los
para que não lhe fizessem mal. depois de encadeá-lo, os pequenos deixaram ao Drizzt a sós no quarto escuro e vazio. A porta de pedra se fechou com um golpe detestável,
e o silêncio foi total. Passaram as horas. Drizzt flexionou os músculos em um intento de afrouxar a pressão dos grilhões. Retorceu e atirou com uma mão, e só a dor
do ferro ao morder o pulso o alertou sobre o que fazia. Estava a ponto de recuperar a personalidade do caçador, que tinha como única meta sobreviver. --Não! --gritou
Drizzt. Esticou todos os músculos do corpo disposto a recuperar o controle racional. É que o caçador podia dominar sua mente? Tinha ido a esse lugar voluntariamente
e até o momento todo tinha resultado melhor do que esperava. Esse não era o momento para ações se desesperadas, mas talvez o caçador tivesse força suficiente para
desobedecer suas decisões racionais. Drizzt não teve tempo para responder a suas dúvidas, porque um segundo mais tarde se abriu a porta de pedra e um grupo de sete
anciões --a julgar pela extraordinária quantidade de rugas em seus rostos-- entrou na cela e se situou diante da cadeira de pedra. O jovem reconheceu a evidente
importância do grupo. Os guardas levavam jaquetas de couro sujeitas com argolas de mithril; em troca, os visitantes vestiam túnicas de fino tecido. Começaram a dar
voltas ao redor do Drizzt, sem deixar de fazer comentários em seu incompreensível idioma. --Menzoberranzan? --perguntou um dos pequenos enquanto lhe ensinava o emblema
da casa do Drizzt. O drow assentiu até onde lhe permitia o corda de ferro, ansioso por estabelecer algum tipo de comunicação com os captores. Mas não era essa a
intenção dos pequenos, pois reataram a conversação entre eles, muito mais excitados. A discussão se prolongou durante vários minutos, e Drizzt advertiu pelo tom
das
vozes que a dois dos anciões parecia lhes desgostar profundamente ter prisioneiro a um elfo escuro procedente da cidade de seus mais próximos e odiados inimigos.
Pela forma em que discutiam, Drizzt quase esperava que algum deles decidisse lhe cortar o pescoço sem mais demora. Certamente, não foi assim; os pequenos não eram
criaturas atordoadas nem cruéis. Um dos integrantes do grupo se separou de outros para ir situar se diante do jovem e lhe dirigir a palavra no idioma dos drows.
--Pelas pedras, elfo escuro! por que vieste? --inquiriu o pequeno, com uma pronúncia hesitante mas clara. Drizzt não soube o que responder a esta pergunta tão singela.
Como podia começar a explicar os anos de solidão na Antípoda Escura? Ou falar da decisão de abandonar a maligna sociedade drow e viver de acordo com seus próprios
princípios morais?
--Amigo --respondeu por fim, e depois se moveu inquieto, convencido de que tinha dado uma resposta absurda e inadequada. Mas, ao parecer, o svirfnebli opinava de
outro modo, pois se arranhou o queixo raspado e considerou a resposta durante um bom momento. --Há..., vieste aqui desde o Menzoberranzan? --interrogou-o. O pequeno
franzia o nariz com cada uma das palavras. --Assim é --respondeu Drizzt, mais crédulo. O pequeno inclinou a cabeça para um lado como uma indicação de que esperava
uma explicação mais ampla. --Abandonei Menzoberranzan faz muitos anos --acrescentou Drizzt, com o olhar perdido na distância ao recordar a vida que tinha deixado
atrás. Nunca foi meu lar. --Ah, memore, elfo escuro! --chiou o pequeno, que sacudiu o emblema da casa Dou'Urdem sem dar-se conta das conotações da resposta do Drizzt.
--vivi muitos anos na cidade dos drows --continuou o jovem, sem perder um segundo. Sou Drizzt Dou'Urdem, em outros segundo tempos filho da casa Dou'Urdem. --Olhou
o medalhão que sustentava o pequeno, estampado com o emblema familiar, e tentou explicar-se. Daermon N'a'shezbaernon. O svirfnebli se voltou para outros, que começaram
a falar com uníssono. Um deles assentia muito excitado; ao parecer tinha reconhecido o nome antigo da casa drow, coisa que surpreendeu ao Drizzt. O pequeno que tinha
interrogado ao jovem olhou ao prisioneiro enquanto se golpeava os lábios franzidos com as pontas dos dedos indicadores e estalava a língua com um som irritante.
--Segundo nossas informações, a casa Dou'Urdem sobrevive fomentou, atento à reação do Drizzt. Ao ver que não respondia, acrescentou com tom acusador--: Você não
é um emparelha! Como podia o pequeno estar informado de sua situação?, perguntou-se Drizzt, assombrado. --Sou um emparelha por escolha... --tentou explicar. --Ah,
elfo escuro --interrompeu-o o svirfnebli, mais tranqüilo. Sei que vieste por sua própria vontade, e te acredito. Mas um emparelha? Pelas pedras, elfo escuro! --O
rosto do pequeno se contorsionó em uma súbita expressão de fúria. Você é um espião! Então, com a mesma rapidez, o pequeno recuperou a serenidade e adotou uma postura
relaxada. Drizzt o observou atentamente. As mudanças de humor do pequeno tinham o propósito de desconcertar aos prisioneiros? Ou formavam parte do caráter da raça?
O jovem recordou aquele único encontro anterior com os svirfneblis em busca de algum antecedente que lhe permitisse dissipar as dúvidas. Naquele momento, seu interlocutor
colocou a mão no bolso mais profundo de sua túnica e tirou a estatueta da pantera. --me escute bem, elfo escuro. Quero que responda a verdade. Se o fizer, evitará-te
sofrimentos inúteis --disse com calma o pequeno. O que é isto? Drizzt notou o tremor nos músculos. O caçador queria chamar o Guenhwyvar, recorrer à pantera para
que esquartejasse a toda essa turma de anões anciões. Possivelmente algum deles tinha a chave dos grilhões; então recuperaria a liberdade Y... Drizzt descartou estas
idéias ridículas e afastou ao caçador de sua mente. encontrava-se em uma situação se desesperada, mas isto sabia do momento em que tinha decidido ir ao Blingdenstone.
Se os pequenos acreditavam de verdade que era um espião, sem dúvida o matariam. Inclusive se não podiam prová-lo, como se atreveriam a mantê-lo vivo? --Foi uma loucura
vir aqui --murmurou Drizzt quase para si mesmo, ao compreender que o dilema não só o afetava a ele mas também também envolvia aos pequenos.
O caçador tentou colocar vaza em seus pensamentos. Uma palavra, e a pantera apareceria a seu lado. --Não! --gritou Drizzt pela segunda vez no dia, para resistir
ao lado mais escuro de sua pessoa. Os pequenos se separaram de um salto ante a possibilidade de um feitiço. Um dardo se chocou contra o peito do jovem e deixou escapar
uma nuvem de gás. Drizzt se enjoou ao respirar o gás. Escutou aos svirfneblis que se moviam ao redor da cadeira, discutindo o que fazer com ele em uma língua que
não entendia. Viu a silhueta de um, só uma sombra, que se aproximava e lhe abria os dedos em busca de componentes mágicos. Quando por fim Drizzt recuperou a claridade
mental, viu que tudo seguia igual. O talismã de ônix apareceu outra vez ante seus olhos. --O que é isto? --perguntou o anão intérprete, com um tom um pouco mais
insistente. --Um companheiro --sussurrou Drizzt. Minha única amiga. O drow fez uma larga pausa para refletir em suas seguintes palavras. Não podia culpar aos svirfneblis
se decidiam matá-lo, e Guenhwyvar se merecia algo mais que ser um adorno no suporte de algum pequeno. --chama-se Guenhwyvar --acrescentou Drizzt. Invoca seu nome
e virá a pantera, uma aliada e uma amiga. Cuida-a muito, porque é muito valiosa e de grande poder. O pequeno olhou o amuleto e depois ao Drizzt, com uma expressão
em que se mesclavam a curiosidade com a cautela. Entregou a figura a um dos companheiros e o enviou fora do calabouço, porque não confiava no drow. Se o elfo escuro
havia dito a verdade, e o pequeno não o punha em dúvida, Drizzt acabava de revelar o segredo de um objeto mágico muito poderoso. Mas resultava ainda mais surpreendente
o fato de que, ao dizer a verdade, o drow tinha renunciado a sua única possibilidade de escapar. O svirfnebli tinha quase duzentos anos de idade e sabia tanto como
qualquer de seu povo sobre a natureza dos elfos escuros. Se algum deles atuava de uma forma imprevisível, como era o caso presente, rompiam-se os esquemas. Os elfos
escuros se ganharam em pulso a fama de cruéis e assassinos, e quando os pequenos apanhavam a um que encaixava no molde, sabiam qual era a solução e a aplicavam sem
remorso. Mas o que podiam fazer com um drow que mostrava um comportamento moral sem precedentes? Os svirfneblis voltaram a conversar entre eles, sem fazer caso do
Drizzt. Depois partiram, exceto o pequeno que podia falar o idioma dos elfos escuros. --O que ides fazer? --perguntou Drizzt. --A decisão é privilégio exclusivo
do
rei --respondeu o pequeno, muito sério. Possivelmente tarde vários dias em decidir qual será seu destino, depois de estudar as considerações do conselho assessor,
o grupo que acaba de conhecer. --O svirfnebli fez uma reverência, e a seguir olhou ao Drizzt aos olhos e acrescentou bruscamente--: Suspeito, elfo escuro, que será
executado. Drizzt assentiu, resignado à lógica que motivava a sentença. --De todos os modos acredito que não é como outros, elfo escuro --prosseguiu o pequeno. Suspeito
que recomendarei clemência ou, ao menos, piedade na execução. O svirfnebli encolheu os ombros, deu meia volta e caminhou para a porta. O tom das palavras do interlocutor
despertou uma lembrança na mente do Drizzt. Outro svirfnebli lhe tinha falado da mesma maneira, em términos quase iguais, muitos anos atrás. --Espera --chamou Drizzt.
O pequeno se deteve e se voltou, enquanto o drow tratava de fazer memória, de recordar o nome do prisioneiro que ele tinha salvado naquela ocasião.
--O que quer? --perguntou o pequeno, impaciente. --Um pequeno --respondeu Drizzt. Acredito que desta cidade. Sim, tinha que ser daqui. --Conhece alguém de minha
gente,
elfo escuro? --inquiriu o svirfnebli, aproximando-se da cadeira de pedra. Me diga o nome. --Não sei --respondeu o drow. Eu formava parte de uma patrulha, faz
anos, possivelmente uma década. Lutamos contra um grupo de svirfneblis que tinham entrado em nossa região. --Fez uma careta ao ver que o pequeno franzia o sobrecenho
mas não calou, consciente de que aquele supervivente podia ser a única esperança de salvação. Lembrança que só sobreviveu um pequeno e que retornou ao Blingdenstone.
--Como se chamava? --insistiu o svirfnebli, colérico, com os braços cruzados sobre o peito e golpeando o chão com a ponteira da bota. --Não o recordo --admitiu Drizzt.
--Então a que vem tudo isto? --grunhiu o pequeno. Pensava que foi diferente de... --Perdeu as mãos na batalha --interrompeu-o Drizzt, teimado. Por favor, tem que
conhecê-lo. --Belwar? --respondeu o pequeno, no ato. O nome refrescou a memória do drow. --Belwar Dissengulp! --gritou Drizzt. Então está vivo! Possivelmente ele
possa recordar... --Jamais esquecerá aquele dia desgraçado, elfo escuro! --afirmou o pequeno quase sem poder controlar a fúria. Ninguém do Blingdenstone esquecerá
aquele dia tão funesto! --Chama-o. Procura o Belwar Dissengulp --suplicou Drizzt. O pequeno caminhou para a porta sem deixar de sacudir a cabeça ante as contínuas
surpresas do elfo escuro. A porta se fechou com o ruído de uma lápide, e Drizzt voltou a estar sozinho. Enquanto refletia sobre a mortalidade tentou não fazer-se
muitas esperanças. --Pensava que podia te fazer algum mal? --dizia Malícia ao Rizzen quando Dinin entrou na hall da capela. Aquilo não foi mais que um engano para
não despertar as suspeitas do SiNafay Hun'ett. --Muito obrigado, mãe matrona --respondeu Rizzen, muito mais tranqüilo. separou-se do trono de Malícia sem deixar
de fazer reverências a cada passo. --Nossas semanas de trabalho deram seu fruto --anunciou Malícia a todos os pressente. Zin-Carla está acabado! Dinin se esfregou
as mãos, entusiasmado. Só as mulheres da família tinham visto o produto de seu trabalho. A um gesto de Malícia, Vierna se aproximou de uma cortina no extremo da
sala e a correu. Ali se erguia Zaknafein, o professor de armas; já não era um cadáver em decomposição mas sim mostrava o mesmo aspecto viçoso que tinha tido em vida.
Dinin se balançou sobre os talões quando o professor de armas avançou para colocar-se diante da matrona Malícia. --Tão bonito como sempre, meu querido Zaknafein
--disse-lhe Malícia, agradada. O espectro não respondeu. --E mais obediente --acrescentou Briza. O comentário provocou as gargalhadas das demais mulheres. --Isto...,
ele... perseguirá o Drizzt? --atreveu-se a perguntar Dinin embora sabia muito bem que não tinha permissão para falar. Malícia e as demais estavam muito interessadas
no Zaknafein e passaram por cima a falta do filho maior.
--Zaknafein se encarregará de aplicar o castigo que se merece seu irmão -- prometeu Malícia, com um brilho de alegria nos olhos. Mas falta algo --acrescentou a
matrona, coquete, enquanto olhava primeiro ao Zak e depois ao Rizzen. É muito bonito para inspirar medo a aquele renegado. Outros se olharam os uns aos outros,
intrigados pela atitude da matrona. Acaso pretendia compensar ao Rizzen pelo mau momento que lhe tinha feito passar? --Vêem, algemo meu --disse Malícia ao Rizzen.
Agarra a espada e marca o rosto de seu rival morto. Sentirá-se melhor, e servirá para inspirar terror ao Drizzt quando vir a seu velho professor. Rizzen vacilou
mas ganhou confiança à medida que se aproximava do espectro. Zaknafein permanecia imóvel, sem respirar nem piscar, ao parecer alheio ao que ocorria a seu redor.
Rizzen apoiou uma mão no pomo da espada e olhou a Malícia para pedir uma confirmação. Esta assentiu. Com uma careta feroz, Rizzen desembainhou a espada e lançou
um
cutilada contra o rosto do Zaknafein. Nem sequer conseguiu aproximar-se dele. O espectro entrou em ação com tanta rapidez que os pressente quase nem viram os movimentos.
Empunhou as duas espadas e parou o golpe ao tempo que atacava. A espada do Rizzen voou pelos ares e, antes de que o desafortunado patrão da casa Dou'Urdem pudesse
expressar uma palavra de protesto, um dos aços do Zaknafein lhe cortou a garganta e o outro lhe atravessou o coração. Rizzen já estava morto quando caiu ao chão,
mas o espectro não se deu por satisfeito com a rapidez e a limpeza do ataque. Zaknafein continuou com os cutiladas e estocadas disposto a reduzir a partes o cadáver
do rival, até que Malícia, agradada com a demonstração, ordenou-lhe parar. --Aborrecia-me --explicou a matrona ao ver o incrédulo olhar dos filhos. Já escolhi
um novo patrão entre os plebeus. Entretanto, não era a morte do Rizzen o que motivava as expressões de assombro dos filhos de Malícia; não lhes interessava no mais
mínimo nenhum dos amantes que a mãe pudesse escolher como patrão da casa, uma posição sempre temporária, a não ser a habilidade e a rapidez do espectro no manejo
das armas. --Tão magnífico como quando vivia --comentou Dinin. --Melhor! --afirmou Malícia. Zaknafein conserva intactas e exclusivamente as qualidades de guerreiro
e não há nada que o distraia de seu encargo. Olhem bem, meus filhos. Zin-Carla, o presente do Lloth. voltou-se para o Dinin e lhe sorriu com picardia. --Não penso
me aproximar dessa coisa --exclamou Dinin, ao supor que sua mãe podia desejar uma segunda demonstração. --Não tema, primeiro filho --tranqüilizou-o Malícia, com
uma gargalhada. Não tenho nenhum motivo para te desejar mau. Dinin não fez caso do conselho. Malícia não necessitava razões. O corpo despedaçado do Rizzen era
a melhor demonstração. --Encarregará-te de guiar ao espectro ao exterior --acrescentou a matrona. --Ao exterior? --À região onde encontrou a seu irmão --explicou
Malícia. --Terei que ir diante da coisa? --perguntou Dinin. --Só tem que guiá-lo até ali--respondeu sua mãe. Zaknafein conhece a presa. Está imbuído com feitiços
que o ajudarão na caça. Briza, que se mantinha a um lado, parecia preocupada. --O que ocorre? --quis saber a matrona ao ver a expressão de sua filha. --Não ponho
em dúvida o poder do espectro, ou a magia com que o dotaste --
manifestou Briza, vacilante ao saber que Malícia não aceitaria discussões em um assunto tão importante. --Ainda tem medo de seu irmão menor? --interrogou-a Malícia.
Briza não soube o que responder. --Esquece seus temores por muito válidos que lhe possam parecer --acrescentou Malícia, muito tranqüila. Digo-lhes isso a todos:
Zaknafein é o presente de nossa rainha. Não há nada nem ninguém na Antípoda Escura que possa detê-lo! --Olhou ao espectro. Você não me falhará, professor de armas,
não é assim? Zaknafein permaneceu impassível, com as espadas tintas em sangue embainhados, as mãos contra as coxas, e sem pestanejar, parecia uma estátua, um ente
sem vida. Mas bastava olhar o corpo mutilado do patrão da casa Dou'Urdem tendido aos pés do Zaknafein para compreender que o professor de armas não era um monstro
inanimado.
SEGUNDA PARTE
Belwar
Amizade: esta palavra chegou a significar muitas coisas diferentes entre as diversas raças e culturas da Antípoda Escura e na superfície dos Reino. No Menzoberranzan,
a amizade nasce pelo general inspirada pelo benefício mútuo. Enquanto as partes se aproveitam da união, esta se mantém firme. Mas a lealdade não é uma das características
da vida drow, e, logo que um dos amigos acredita que ganhará mais sem o outro, o vínculo --e provavelmente a vida do outro-- tem um final súbito. tive poucos amigos
na vida, e, se vivesse mil anos, penso que seguiria igual. Não me lamento deste fato porque aqueles que me chamaram amigo foram pessoas de grande valia e enriqueceram
minha existência, deram-lhe valor. O primeiro foi Zaknafein, meu pai e professor, que me ensinou que não estava sozinho e que não havia nada de mau em defender meus
princípios. Zaknafein me salvou tanto da espada como da caótica, maligna e fanática religião que condena a minha gente. Também me encontrava perdido quando um pequeno
sem mãos entrou em minha vida, um svirfnebli ao que tinha resgatado de uma morte segura, muitos anos antes, pela implacável espada de meu irmão Dinin. Meu gesto
foi pago com acréscimo, porque quando ele e eu nos voltamos a encontrar, esta vez prisioneiro de sua gente, me teriam matado --e eu teria preferido morrer-- de não
ter sido pelo Belwar Dissengulp. O tempo que passei no Blingdenstone, a cidade dos pequenos, foi curto em relação com a duração de minha vida. Lembrança bem a cidade
do Belwar e sua gente, e nunca os esquecerei. Foi a primeira sociedade que conheci apoiada na força da comunidade, e não na paranóia do egoísmo individualista. Juntos,
os pequenos sobrevivem aos perigos da Antípoda Escura, dedicam-se à mineração, e participam de jogos que apenas se diferenciam de qualquer outro aspecto de suas
vidas
plenas. O prazer é muito maior quando se compartilha.
DRIZZT DOU'URDEM
7
Muito honorável capataz
--Muito obrigado por ter vindo, muito honorável capataz --disse um dos pequenos reunidos fora da pequena habitação que encerrava ao prisioneiro drow. Todo o grupo
de anciões saudou com uma reverência a chegada do capataz. Belwar Dissengulp fez uma careta ante o gracioso recebimento. Não conseguia acostumar-se às muitas honras
que sua gente lhe dispensava desde aquele dia infausto fazia mais de uma década, quando os elfos escuros tinham descoberto ao grupo de mineiros nos corredores ao
leste do Blingdenstone, perto do Menzoberranzan. Mutilado e quase morto pela perda de sangue, Belwar tinha conseguido retornar ao Blingdenstone como o único supervivente
da expedição. O grupo se apartou para deixar passo ao Belwar, de modo que pudesse ver o interior da habitação e ao drow. Para os prisioneiros encadeados à cadeira,
a habitação circular era como uma cova de pedra sem outra abertura que a porta reforçada com ferros. Mas em realidade havia uma janela, invisível graças a um feitiço
que tampouco deixava passar nenhum som, que permitia aos svirfneblis manter submetidos aos prisioneiros a uma vigilância constante. --É um drow --declarou o capataz
com voz ressonante, embora com uma certa preocupação no tom, depois de observar ao Drizzt durante uns momentos. Não tinha muito claro para que o tinham feito acudir.
É igual a qualquer outro elfo escuro. --O prisioneiro afirma que lhes conheceu na Antípoda Escura --informou-lhe um dos anciões. Sua voz logo que era um sussurro,
e olhou ao chão enquanto completava a frase. O dia da grande perda. Belwar franziu o sobrecenho ao escutar a menção. Até quando teria que revivê-lo? --Possivelmente
--disse Belwar sem lhe dar importância. Não distingo a um elfo escuro de outro, e tampouco me interessa tentá-lo. --De acordo --manifestou o ancião. Todos se
parecem. Enquanto falava o ancião, Drizzt se voltou para a janela e os olhou de frente, embora não podia ver nem ouvir mais à frente do feitiço. --Talvez recordam
seu nome, capataz --assinalou outro svirfnebli, que fez uma pausa ao ver o súbito interesse do Belwar pelo drow. A habitação circular estava às escuras e, nestas
condições, os olhos de uma criatura que utilizava a visão infravermelha brilhavam com toda claridade. Pelo general, os olhos apareciam como pontos de luz vermelha,
mas não era este o caso do Drizzt Dou'Urdem. Inclusive no espectro infravermelho, os olhos do drow tinham um brilho lilás. Belwar recordava esses olhos. --Magga
cammara --exclamou Belwar. Drizzt --murmurou em resposta à pergunta do pequeno. --Conhecem-no! --gritaram vários svirfneblis. Belwar levantou os braços; um dos cotos
tinha a cabeça implantada de uma lança, o outro a cabeça de um martelo.
--Este drow, este Drizzt... --gaguejou pela pressa de explicar-se--, é o responsável por minha condição, foi ele! Alguns dos pressente murmuraram uma oração pelo
drow condenado, convencidos de que o capataz ansiava vingar-se. --Então se mantém a decisão do rei Schnicktick --disse um deles. O drow será executado no ato.
--Mas se for Drizzt o que me salvou a vida! --protestou Belwar, a gritos. Outros o olharam incrédulos. --Não foi decisão do Drizzt o que me cortassem as mãos --acrescentou
o capataz. Ele pediu que me permitissem retornar ao Blingdenstone. "Como um exemplo", disse Drizzt, mas inclusive então compreendi que o dizia só para aplacar
a outros. detrás de suas palavras se escondia outra coisa: a piedade. Uma hora mais tarde, um dos conselheiros, o mesmo que tinha falado antes com o Drizzt, apresentou-se
na habitação do prisioneiro. --É decisão do rei que seja executado --declarou o pequeno bruscamente enquanto se aproximava da cadeira de pedra. --Compreendo-o --repôs
Drizzt, com a maior calma possível. Não me oporei ao veredicto. --O jovem olhou os grilhões e acrescentou--: Embora tampouco poderia. O svirfnebli se deteve e
observou ao surpreendente prisioneiro, convencido da sinceridade de suas palavras. antes de que pudesse acrescentar nada mais sobre o que ia ocorrer, o drow lhe
adiantou. --Só peço um favor --disse Drizzt. O pequeno o deixou acabar, interessado em conhecer as intenções do condenado. A pantera --explicou este. Descobrirá
que Guenhwyvar é uma companheira muito valiosa e uma grande amiga. Quando eu já não esteja, deve te ocupar de que tenha um amo como se merece, possivelmente Belwar
Dissengulp. Por favor, bom pequeno, promete-o. O svirfnebli sacudiu a rapada cabeça, não para negar a petição do Drizzt mas sim por pura incredulidade. --O rei,
por
muito que o apesar, não pode correr o risco de te manter vivo --manifestou o pequeno com ar sombrio. Depois, um sorriso lhe iluminou o rosto e acrescentou--: Mas
a
situação trocou! Drizzt levantou a cabeça, quase sem atrever-se a respirar. --O capataz te recorda, elfo escuro! --exclamou o pequeno. O muito honorável capataz
Belwar Dissengulp falou em seu favor e aceita a responsabilidade de te manter. --Então... não vou morrer? --Não, a menos que procure sua própria morte. --E poderei
viver entre sua gente? --perguntou Drizzt, quase sem poder articular as palavras. No Blingdenstone? --Ainda não se resolveu --respondeu o svirfnebli. Belwar
Dissengulp intercedeu por ti, e isto é muito importante. Mas se lhe autorizarão ou não... O pequeno fez uma pausa e acabou a resposta encolhendo-se de ombros. depois
de abandonar a cela, o percurso através das cavernas do Blingdenstone resultou uma experiência inesquecível para o drow. Drizzt observou cada um dos detalhes da
cidade dos pequenos e os comparou com o Menzoberranzan. Os elfos escuros tinham trabalhado a grande caverna que ocupava a cidade para transformá-la a seu gosto.
A
cidade dos svirfneblis também era formosa, mas respeitava as formas naturais das pedras. Enquanto que os drows tinham talhado e esculpido, os pequenos se acomodaram
ao desenho da natureza.
Com seu teto fora do alcance da vista, Menzoberranzan dispunha de uma amplitude a que Blingdenstone não podia aspirar. A cidade drow a formavam uma série de castelos
individuais, cada um dos quais era fortaleza e casa de uma vez. Em troca, na cidade dos pequenos, havia um sentido geral de lar, como se todo o complexo detrás das
enormes leva de pedra e ferro fosse uma estrutura singular, um refúgio comunitário ante os constantes perigos da Antípoda Escura. Também eram diferentes os ângulos
da cidade. Ao igual ao aspecto físico da raça anã, as fortificações e cornijas do Blingdenstone eram arredondadas, polidas e de curvas suaves. No Menzoberranzan
todo era anguloso, tão afiado como a ponta de uma estalactite, um lugar cheio de ruelas e terraços. Drizzt viu que as diferenças entre as cidades eram tão notórias
como as das raças que albergavam, e se atreveu a imaginar que também o eram os sentimentos dos habitantes. Em um compartimento rincão de uma das cavernas exteriores
se encontrava a casa do Belwar, uma singela estrutura de pedra construída dentro de outra caverna mais pequena. A diferença da maioria das casas dos svirfneblis,
a casa do Belwar tinha porta. Um dos cinco guardas que escoltavam ao Drizzt bateu na porta com o punho da maça. --Saúde, muito honorável capataz! --gritou o pequeno.
Por ordem do rei Schnicktick, trouxemo-lhes para o drow! Drizzt tomou nota do tom respeitoso do guarda. Tinha tido medo pelo Belwar o dia aquele fazia já mais de
uma década, e muitas vezes tinha pensado se lhe amputar as mãos não tinha sido muito mais cruel que matar a pobre vítima. A Antípoda Escura não era um lugar propício
para os deficientes. abriu-se a porta de pedra, e Belwar saudou os visitantes. Imediatamente olhou ao Drizzt com o mesmo olhar que tinham compartilhado tantos anos
atrás, quando se tinham separado. Drizzt viu uma nota sombria nos olhos do capataz mas o orgulho se mantinha, embora um tanto diminuído. O jovem não queria ver os
cotos do pequeno, porque os associava a uma multidão de lembranças desagradáveis. Entretanto, sem poder evitá-lo, baixou o olhar pelo torso de barril do Belwar até
fixar-se no extremo dos braços. Contra o que esperava, Drizzt ficou atônito quando viu as "mãos" do Belwar. Na direita, ajustada para que encaixasse exatamente no
coto, havia a cabeça de um martelo forjada em mithril e gravada com intrincadas runas mágicas e a figura de um elementar terrestre junto às de outras criaturas que
Drizzt não conhecia. O apêndice esquerdo do Belwar não era menos espetacular. O anão blandía uma lança, também de mithril e com runas e gravuras, entre eles o de
um dragão que voava pela superfície da lâmina. Drizzt podia notar a magia nas mãos do Belwar, e compreendeu que muitos outros svirfneblis, artesãos e feiticeiros,
tinham intervindo na confecção das peças. --Muito úteis --comentou Belwar depois de esperar uns instantes a que Drizzt acabasse de olhar as mãos metálicas. --Formosas
--sussurrou Drizzt, que via nelas algo mais que um martelo e uma lança. As mãos em si mesmos eram maravilhosas, mas ainda o era mais o que representavam. Se um drow,
em particular um elfo varão, tivesse retornado ao Menzoberranzan com as mãos amputadas, a família o teria condenado imediatamente a viver como um emparelha até que
algum outro drow ou um escravo acabasse para sempre com sua desgraça. Não havia lugar para as debilidades na cultura drow. Em troca aqui era óbvio que os svirfneblis
tinham aceito ao Belwar e o tinham atendido com todos os meios. Drizzt voltou o olhar ao rosto do capataz. --Recordava-me --disse. Tinha medo...
--Já falaremos, Drizzt Dou'Urdem --interrompeu-o Belwar. Depois se dirigiu aos guardas, no idioma dos svirfneblis que Drizzt não compreendia. Se tiverem acabado
com sua missão, podem ir. --Estamos a suas ordens, muito honorável capataz --respondeu um dos soldados. Drizzt observou o leve tremor do Belwar ao escutar o tratamento.
O rei nos enviou como escolta e também de guardas. Devemos permanecer a seu lado até que se conheçam as verdadeiras intenções deste drow. --Então, parte ! --exclamou
Belwar, colérico. Olhou aos olhos do Drizzt enquanto acabava a frase. Sei quais são as intenções deste elfo escuro. Não corro nenhum perigo. --Com seu perdão,
muito honora... --Pode ir --cortou-o Belwar com brutalidade ao ver que o soldado queria seguir a discussão. Vete. falei em seu favor. Está a meu cuidado e não
lhe tenho nenhum medo. Os guardas fizeram uma reverência e se afastaram sem pressa. Belwar acompanhou ao Drizzt ao interior da casa e, assim que cruzaram a porta,
voltou-se para lhe assinalar os dois guardas que se apostaram nas casas vizinhas. --preocupam-se muito por minha saúde --manifestou desanimado em língua drow. --Teria
que estar agradecido portanto interesse --disse Drizzt. --Não sou um ingrato! --respondeu Belwar, zangado. Drizzt descobriu a verdade oculta detrás da resposta.
Belwar não era um ingrato, mas sim não se acreditava merecedor de tantas cuidados. O jovem não fez nenhum comentário para não envergonhar ainda mais ao orgulhoso
svirfnebli. O mobiliário da casa do Belwar era escasso; uma mesa de pedra e um tamborete, várias prateleiras com potes e jarras, e um fogão com uma churrasqueira
de ferro. além da rústica entrada havia outro quarto que servia de dormitório, provido unicamente com uma rede pendurada de parede a parede. Havia outra rede enrolada
no chão, destinada ao Drizzt, e uma jaqueta de couro com argolas de mithril pendurada na parede do fundo, onde se amontoavam umas quantas bolsas e mochilas. --Penduraremo-la
nesta habitação --disse Belwar, assinalando com a manomartelo a segunda rede. Drizzt quis ir recolher a, mas Belwar o deteve com a mão-de-lança e o fez dar meia
volta.
--Mais tarde --explicou o pequeno. Primeiro deve me dizer por que vieste. --Belwar observou os desastrados objetos e o rosto, sujo e arranhado, do Drizzt. Resultava
óbvio que o drow levava algum tempo nas profundidades da Antípoda Escura. E também quero que me diga de onde vem. --vim porque não tinha nenhum outro lugar aonde
ir --respondeu com toda franqueza enquanto se sentava no chão com as costas apoiada na parede. --Quanto tempo leva fora de sua cidade, Drizzt Dou'Urdem? --perguntou
Belwar brandamente. Inclusive nos tons graves, a voz do pequeno ressonava com a claridade de um sino. Drizzt se maravilhou ante a variedade de tons da voz e de como
podia transmitir compaixão ou inspirar temor só com uma sutil mudança de volume. Drizzt encolheu os ombros e jogou a cabeça para trás de forma tal que podia contemplar
o teto. Sua mente procurava um caminho para o passado. --Anos. perdi a conta. --Olhou ao svirfnebli. O tempo não significa muito nos túneis da Antípoda Escura.
Pela aparência do Drizzt, Belwar não podia duvidar da veracidade da resposta, embora de todas maneiras o surpreendeu. Caminhou até a mesa e tomou assento no tamborete.
Belwar tinha visto combater ao Drizzt, tinha-o visto derrotar a um elementar terrestre, toda uma proeza! Mas se Drizzt dizia a verdade, se havia
sobrevivido nas profundidades da Antípoda Escura durante anos, então teria que considerá-lo um herói. --Terá que me contar suas aventuras, Drizzt Dou'Urdem --animou-o
o pequeno. Quero sabê-lo tudo para poder entender melhor os motivos que lhe impulsionaram a vir à cidade de seus inimigos raciais. Drizzt permaneceu em silencio
durante um bom momento, sem saber muito bem por onde e como começar. Confiava no Belwar --o que outra coisa podia fazer?-- mas não tinha muito claro se o svirfnebli
seria capaz de entender o dilema que o tinha forçado a abandonar a segurança do Menzoberranzan. Podia Belwar, que vivia em uma comunidade onde reinavam a cooperação
e a amizade, compreender a tragédia de viver na cidade dos drows? Drizzt o duvidava, mas o que podia fazer? Em voz baixa, Drizzt recapitulou para o Belwar a história
da última década de sua vida; falou-lhe da guerra em florações entre a casa Dou'Urdem e a casa Hun'ett; da briga contra Masoj e Alton, quando tinha conseguido ao
Guenhwyvar; do sacrifício do Zaknafein, pai, professor e amigo; e da decisão de abandonar para sempre a sua gente e à deidade maligna, Lloth. Belwar compreendeu
que Drizzt se referia à deusa escura que os pequenos chamavam Lolth, mas não o corrigiu. Se Belwar tinha tido alguma suspeita sobre as verdadeiras intenções do jovem
o dia em que se conheceram tantos anos atrás, o capataz não demorou para convencer-se de que suas hipóteses tinham sido corretas. O pequeno se sacudia e tremia de
emoção enquanto Drizzt lhe falava de sua vida na Antípoda Escura, da briga contra o alfavaca, e do combate contra seus irmãos. antes de que Drizzt pudesse mencionar
os motivos que o tinham impulsionado a procurar os svirfneblis --a agonia da solidão e o medo a perder a verdadeira identidade na luta selvagem por sobreviver--
Belwar já os tinha adivinhado. Quando Drizzt relatou os últimos dias diante das portas do Blingdenstone, escolheu as palavras com muito cuidado. Ainda não tinha
muito claro quais eram seus verdadeiros sentimentos, e não estava preparado para divulgar suas dúvidas, por muito que confiasse no novo companheiro. O capataz permaneceu
em silêncio, e se limitou a olhar ao Drizzt quando este acabou o relato. Belwar compreendia a dor provocada pela recapitulação. Não pediu mais informação nem detalhes
íntimos que o drow não tinha querido compartilhar. --Magga cammara --sussurrou o pequeno. Drizzt torceu a cabeça. --Pelas pedras --traduziu Belwar. Magga cammara.
--Assim é. Pelas pedras --assentiu Drizzt. Durante uns minutos nenhum adicionou palavra até que o silêncio se fez insuportável. --Um bom relato --manifestou Belwar,
por fim. Aplaudiu ao Drizzt em um ombro, e depois caminhou até o dormitório em busca da segunda rede. antes de que o jovem pudesse reagir, o pequeno tinha sujeito
a rede aos ganchos. --Dorme em paz, Drizzt Dou'Urdem --disse o pequeno, enquanto se dirigia ao dormitório. Aqui não tem inimigos. Ao outro lado da porta não há nenhum
monstro à espreita. Belwar desapareceu no dormitório, e Drizzt ficou a sós com o torvelinho de seus pensamentos e a emoção da esperança renovada.
8
Estranhos
Drizzt contemplou através da porta aberta da casa do Belwar as atividades habituais da cidade dos svirfneblis, como tinha feito cada dia durante as últimas semanas.
Tinha a impressão de estar no limbo, como se o tempo se paralisou. Não tinha visto o Guenhwyvar desde que era hóspede do Belwar, nem tampouco esperava recuperar
a curto prazo o piwafwi, as cimitarras e a armadura. Drizzt o aceitava tudo com estoicismo, na hipótese de que tanto ele como Guenhwyvar estavam agora muito melhor
do que tinham estado em anos, e confiava em que os svirfneblis não danificariam a estatueta nem nenhuma outra de seus pertences. O drow passava as horas dedicado
a observar a rotina diária enquanto esperava que as coisas seguissem o curso devido. Belwar tinha saído, em uma das contadas ocasiões em que o capataz deixava a
casa. Apesar de que o pequeno e Drizzt conversavam muito pouco --Belwar não era dos que esbanjavam as palavras--, o jovem descobriu que o sentia falta de. Tinham
estreitado
a amizade embora as conversações fossem esporádicas. Um grupo de jovens svirfneblis passou por diante da casa e lhe gritaram ao drow que se encontrava no interior.
Isto se tinha repetido com muita freqüência, em particular durante os primeiros dias da chegada do Drizzt à cidade. Nas ocasiões anteriores, Drizzt não tinha sabido
se o saudavam ou o insultavam. Em troca agora compreendia o significado amistoso das palavras porque Belwar se preocupou de lhe ensinar um vocabulário básico do
idioma dos pequenos. O capataz retornou ao cabo de várias horas e encontrou ao Drizzt sentado no tamborete de pedra sem fazer outra coisa que olhar. --me diga, elfo
escuro --perguntou o pequeno com sua voz profunda e melodiosa--, o que vê quando nos miras? Tão estranhos lhe parecemos? --Vejo esperança --respondeu Drizzt. E também
desespero. Belwar compreendeu a resposta. Sabia que a sociedade svirfnebli se acomodava aos princípios do drow, mas observar o bulício do Blingdenstone sem participar
dele só podia despertar dolorosas lembranças em seu novo amigo. --Hoje me reuni com o rei Schnicktick --disse o capataz. Está muito interessado em ti. --Curioso
seria mais azeitado --replicou Drizzt sorridente, e Belwar se perguntou quanto dor ocultava aquele sorriso. O capataz se desculpou com uma reverência, desarmado
pela sinceridade sem disfarces do jovem. --Curioso, se o preferir. Deve saber que não encaixa na idéia que temos dos elfos escuros. Rogo-te que não tome como uma
ofensa. --Absolutamente --respondeu Drizzt, honestamente. Você e sua gente me destes muito mais do que podia esperar. Se me tivessem matado assim que cheguei à
cidade, teria aceito meu destino sem culpar aos svirfneblis.
Belwar seguiu o olhar do Drizzt até o grupo de jovens reunidos a uns metros da porta. --por que não vais reunir te com eles? --perguntou-lhe o pequeno. Drizzt o
olhou,
surpreso. Em todo o tempo que levava na casa, o svirfnebli jamais lhe tinha proposto nada parecido. O drow tinha dado por feito que era convidado do capataz, e que
Belwar tinha assumido a responsabilidade pessoal de vigiar seus movimentos. Belwar moveu a cabeça em direção à porta, para insistir no convite. Drizzt olhou uma
vez mais ao exterior. Ao outro lado da caverna, os jovens, ao redor de uma dúzia, tinham começado um jogo que consistia em lançar pedras contra a efígie de um alfavaca,
construída a escala natural com pedras e armaduras velhas. Os pequenos eram peritos em criar ilusionismos, e com um encantamento menor tinham gentil os detalhes
mais
ásperos para que a efígie parecesse real. --Elfo escuro, algum dia terá que sair --comentou Belwar. Até quando te conformará olhando as paredes vazias de minha
casa? --lhe bastam --replicou Drizzt, com um tom mais cortante do que pretendia. Belwar assentiu e se voltou sem pressa para contemplar a habitação. --Assim é --disse
o pequeno em voz baixa, e Drizzt advertiu sua profunda dor. Quando Belwar olhou outra vez ao drow, sua redonda cara mostrava uma expressão resignada. Magga cammara,
elfo escuro. Que esta seja sua lição. --por que? --inquiriu Drizzt. por que Belwar Dissengulp, o muito honorável capataz --Belwar torceu o gesto ao escutar o título--,
permanece na sombra de sua própria porta? --Sal --respondeu Belwar com um grunhido sonoro, os olhos entrecerrados e o queixo firme. É jovem, elfo escuro, e tem
todo mundo ante ti. Eu, em troca, sou velho. Meu tempo já passou. --Não tão velho --afirmou Drizzt, disposto a não ceder até poder averiguar os motivos da preocupação
do Belwar. O pequeno lhe voltou as costas, caminhou em silencio até o dormitório e correu a manta que fazia de porta. Drizzt sacudiu a cabeça e descarregou um murro
contra a palma de sua mão em sinal de frustração. Belwar fazia muito por ele; primeiro o tinha salvado do veredicto do rei, e depois lhe tinha dada proteção em sua
casa, onde lhe tinha ensinado os rudimentos do idioma dos svirfneblis e os costumes dos pequenos. Drizzt não tinha podido lhe devolver o favor, embora via claramente
que Belwar suportava uma pesada carga. Neste momento o jovem não desejava outra coisa que apartar a cortina, aproximar-se do capataz, e conseguir que lhe confiasse
os motivos de seu abatimento. Entretanto, Drizzt não podia comportar-se de forma tão atrevida com seu novo amigo. prometeu-se a si mesmo que ao seu devido tempo
encontraria a chave para resolver as penas do pequeno, mas antes tinha que superar seu próprio dilema. Belwar lhe tinha dada permissão para percorrer Blingdenstone!
Drizzt olhou outra vez ao grupo ao outro lado da caverna. Três moços permaneciam absolutamente imóveis diante da efígie, como se se tivessem convertido em pedra.
Curioso, Drizzt se aproximou da porta, e então, sem dar-se conta do que fazia, saiu da casa e se aproximou dos pequenos. O jogo chegou a seu fim assim que o drow
se
aproximou, porque os svirfneblis tinham um grande interesse por conhecer elfo escuro que tinha sido motivo de comentários durante tantas semanas. Correram a seu
encontro e o rodearam, sem deixar de sussurrar alvoroçados. Drizzt sentiu a tensão involuntária dos músculos quando os pequenos se moveram a seu redor. Os instintos
primários do caçador lhe advertiam de uma vulnerabilidade que não podia tolerar. O jovem fez um grande esforço para controlar a seu
outro eu, repetindo mentalmente que os svirfneblis não eram seus inimigos. --Saúde, drow amigo do Belwar Dissengulp --disse um dos pequenos. Sou Seldig, por agora
um novato, e futuro mineiro expedicionário daqui a três anos. Drizzt demorou bastante em entender as palavras do jovem, pois este falava muito depressa. De todos
os modos, compreendeu a importância da futura ocupação do Seldig, porque Belwar lhe tinha explicado que os mineiros expedicionários, os svirfneblis que entravam
na Antípoda Escura em busca de minerais preciosos e gemas, gozavam de grande prestígio. --Saúde, Seldig --respondeu o drow, por fim. Sou Drizzt Dou' Urdem. Sem
saber muito bem o que devia fazer a seguir, cruzou os braços sobre o peito. Para o elfo escuro, este era um gesto de paz, embora não tinha muito claro se o significado
era válido no resto da Antípoda Escura. Os svirfneblis se olharam os uns aos outros, imitaram o gesto, e sorriram ao escutar o suspiro de alívio do Drizzt. --Dizem
que estiveste na Antípoda Escura --acrescentou Seldig, enquanto convidava ao Drizzt com um gesto a que o seguisse até o lugar do jogo. --Durante muitos anos --respondeu
Drizzt, que acomodou seu passo ao do moço. O caçador voltou a aparecer ante a incômoda proximidade dos pequenos, mas Drizzt podia controlar a paranóia. Quando o
grupo
chegou junto à efígie do alfavaca, Seldig se sentou em uma pedra e pediu ao drow que lhes relatasse algumas de suas aventuras. Drizzt vacilou, consciente de que
não dominava o idioma svirfnebli o bastante bem para poder narrar uma história, mas Seldig e outros insistiram. Por fim, o drow assentiu e ficou de pé. Pensou durante
uns momentos em algum relato que pudesse ser de interesse para os reunidos. Seu olhar percorreu a caverna em busca de alguma idéia e se deteve por um instante na
efígie do monstro. --Alfavaca --explicou Seldig. --Sei --respondeu Drizzt com ligeireza. Conheci uma dessas criaturas. voltou-se então para os pequenos e o surpreendeu
ver as expressões. Seldig e todos outros o olhavam com a boca aberta e o corpo jogado para diante, em um gesto onde se mesclavam a intriga, o medo e o deleite. --Elfo
escuro! Viu a um alfavaca? --perguntou um deles, incrédulo. Um alfavaca de verdade? Drizzt sorriu ao compreender os motivos do assombro. Os svirfneblis, a diferença
dos elfos escuros, protegiam aos membros mais jovens da comunidade. Embora estes pequenos tinham quase a mesma idade que Drizzt, virtualmente nenhum --se é que havia
algum-- tinha saído nunca do Blingdenstone; a sua mesma idade, os elfos escuros levavam anos dedicados a vigiar os túneis que se estendiam além do Menzoberranzan.
De ter tido mais experiência, o fato de que Drizzt tivesse encontrado um alfavaca não lhes teria parecido algo tão extraordinário, embora estes monstros eram uma
presença muito pouco habitual inclusive na Antípoda Escura. --E você dizia que os alfavacas não existiam! --reprovou-lhe um dos moços a outro, enquanto lhe dava
um empurrão no ombro. --Não é verdade! --protestou este, respondendo ao tranco. --Meu tio viu um --interveio um terceiro. --Quão único viu seu tio foram arranhões
na pedra! --exclamou Seldig, zombador. Ele mesmo disse que eram rastros de um alfavaca! Drizzt sorriu risonho. Os alfavacas eram criaturas mágicas, mais habituais
em outros planos de existência. Os drows as conheciam bem pois estavam acostumados a entrar em contato com esses outros planos, mas para os svirfneblis eram uma
figura quase mítica. Eram pouquíssimos quão anões tinham visto um alfavaca. O drow soltou a gargalhada. Sem dúvida ainda eram menos quão anões tinham podido relatar
a experiência.
--Se seu tio tivesse seguido o rastro e encontrado ao monstro --prosseguiu Seldig--, ainda seguiria convertido em uma estátua de pedra em algum corredor. Que eu
saiba as estátuas não contam histórias! --Drizzt Dou'Urdem viu um! --protestou o outro pequeno. E não se converteu em pedra! Todas as olhadas se voltaram para o
drow. --De verdade viu a um, elfo escuro? --perguntou Seldig. Por favor, me diga a verdade. --Vi-o --respondeu Drizzt. --E pôde te escapulir antes de que te olhasse?
--quis saber Seldig, embora considerava que a pergunta não necessitava resposta. --me escapulir? --Drizzt repetiu a palavra em língua anã porque não tinha muito
claro o significado. --te escapulir..., em..., pôr-se a correr --esclareceu-lhe Seldig. Olhou a um dos companheiros, que se apressou a fingir uma expressão de horror
e a dar uns quantos passos como se corresse. Outros pequenos celebraram a imitação, e Drizzt compartilhou as gargalhadas. --Escapou do alfavaca antes de que pudesse
te olhar --afirmou Seldig. Drizzt encolheu os ombros, um tanto envergonhado, e Seldig adivinhou que lhe ocultava alguma coisa. --Não escapou? --Não podia... me escapulir
--respondeu Drizzt. O alfavaca tinha invadido minha casa e tinha matado grande parte de meu gado. Uma casa --fez uma pausa para procurar a palavra correta em svirfnebli--,
um refúgio não é fácil de encontrar nas profundidades da Antípoda Escura. Quando encontra um e é teu, terá que defendê-lo a toda costa. --Lutou contra ele? --perguntou
uma voz anônima. --Atirou-lhe pedras de longe? --interrogou-o Seldig. Dizem que é o método correto. Drizzt jogou um olhar às pedras que os pequenos tinham lançado
contra a efígie e depois olhou seu magro corpo. --Nem sequer poderia levantar umas pedras tão grandes --respondeu com uma gargalhada. --Então, como? --insistiu Seldig.
Tem que nos dizer o Drizzt já tinha a história. Permaneceu em silencio durante uns instantes para ordenar as lembranças. Compreendeu que as limitações impostas pelo
escasso conhecimento do idioma não lhe permitiriam fazer um relato muito detalhado e decidiu apelar à mímica. Agarrou dois paus que os pequenos tinham levado consigo
para utilizá-los a modo de cimitarras e a seguir examinou a efígie para comprovar que podia resistir seu peso. Os jovens se acurrucaron ansiosos enquanto Drizzt
explicava a situação prévia ao ataque: o feitiço de escuridão --colocou um um pouco além da cabeça do alfavaca-- e a posição do Guenhwyvar, sua companheira felina.
Os svirfneblis não perdiam detalhe e acompanhavam as palavras do relato com exclamações de assombro. A efígie pareceu cobrar vida em suas mentes, como um monstro
à espreita, enquanto Drizzt, o estranho forasteiro, vigiava-o oculto nas sombras. Drizzt prosseguiu com o relato até que chegou o momento de reproduzir os movimentos
do combate. Ouviu o grito de assombro dos moços quando saltou sobre o lombo do alfavaca e começou a subir para a cabeça com precaução. O drow se deixou contagiar
pelo entusiasmo do auditório, e isto refrescou as lembranças. de repente foi como voltar a viver a realidade. Os pequenos se aproximaram, dispostos a presenciar
uma
impressionante exibição
de esgrima por parte do drow que tinha aparecido procedente das profundidades da Antípoda Escura. Então ocorreu algo terrível. Em um instante era Drizzt o narrador,
que entretinha aos novos amigos com uma história de aventuras, e ao seguinte, enquanto levantava um pau para golpear ao boneco, tinha deixado de ser ele mesmo. No
lombo da efígie se erguia o caçador, quão mesmo aquele dia nos túneis da caverna coberta de musgo. Os paus golpearam contra os olhos do monstro e amassaram a cabeça
de pedra. Os svirfneblis retrocederam, alguns assustados, outros só por precaução. O caçador prosseguiu com os golpes, e a pedra se esquartejou e gretou. O pedra
bruta que servia de cabeça da criatura se desabou e arrastou ao elfo escuro com ele. O caçador rodou pelo chão um par de vezes, levantou-se de um salto, e voltou
para ataque. A fúria dos golpes fez lascas os paus, e as mãos do Drizzt se cobriram de sangue, mas o caçador não queria ceder. As fortes mãos de uns pequenos o sujeitaram
pelos braços, em um intento de acalmá-lo, e o caçador se voltou contra os novos adversários. Eram mais fortes que ele e o apertavam com firmeza, mas com um par de
retorcimientos conseguiu lhes fazer perder o equilíbrio. O caçador os chutou nos joelhos e se deixou cair sobre as suas, enquanto girava de forma tal que lançou
aos dois svirfneblis de cabeça ao chão. Imediatamente se ergueu com os paus quebrados em posição para defender do solitário inimigo que se aproximava. Não havia
medo na expressão do Belwar, que avançava com os braços abertos. --Drizzt! --gritou o capataz uma e outra vez. Drizzt Dou'Urdem! O caçador viu a lança e o martelo
do svirfnebli, e a visão das mãos de mithril despertou em sua mente umas lembranças tranqüilizadoras. de repente voltou a ser Drizzt. Surpreso e envergonhado, deixou
cair os paus e contemplou as mãos rasgadas. Belwar sujeitou ao drow quando se cambaleou a ponto de cair. Levantou-o em braços e o levou de volta à rede. Os pesadelos
invadiram o sonho do Drizzt, lembranças da Antípoda Escura e daquele outro ser interior do que não podia escapar. --Como posso explicá-lo? --perguntou ao Belwar
quando o capataz o encontrou sentado no bordo da mesa de pedra aquela mesma noite. O que posso dizer para me desculpar? --Não diga nada --respondeu Belwar. --Você
não o entende --repôs Drizzt, assombrado, enquanto se perguntava como poderia conseguir que o pequeno compreendesse a gravidade do que tinha ocorrido. --passaste
muitos
anos na Antípoda Escura --acrescentou Belwar--, e sobreviveste ali onde quase todos morreram. --Mas é que isto é sobreviver? --pensou Drizzt em voz alta. A mão-de-martelo
do Belwar tocou brandamente o ombro do drow, e o capataz se sentou a seu lado. Ali permaneceram o resto da noite. Drizzt não pronunciou palavra e Belwar não insistiu,
consciente de que bastava com a companhia. Nenhum dos dois sabia quanto tempo tinha passado quando ouviram a voz do Seldig que chamava do exterior. --Sal, Drizzt
Dou'Urdem --gritou o jovem. Sal e nos conte mais histórias da Antípoda Escura. Drizzt olhou ao Belwar inquisitivamente, temeroso de que o convite fora parte de
um engano ou uma brincadeira, mas trocou de ideia ao ver o sorriso do capataz.
--Magga cammara, elfo escuro --disse Belwar, com uma risada sonora. Não deixarão que te esconda. --Faz que se vão --pediu-lhe Drizzt. --Acaso está disposto a te
render sem mais? --replicou Belwar, um tanto irritado. Você que foste capaz de sobreviver às provas da Antípoda Escura? --É muito perigoso --exclamou Drizzt, desesperado
por não saber como explicar-se melhor. Não posso controlá-lo..., não posso me liberar... --Vê com eles, elfo escuro --disse Belwar. Esta vez serão mais precavidos.
--Esta... besta... persegue-me --insistiu Drizzt. --Possivelmente durante um tempo --afirmou o capataz sem lhe dar muita importância. Magga cammara, Drizzt Dou'Urdem!
Cinco semanas é um prazo muito curto se o comparar com os sofrimentos que suportaste nos últimos dez anos. Já conseguirá te liberar da... besta. Os olhos lilás do
Drizzt procuraram o olhar franco do Belwar Dissengulp. --Mas só se te empenhar --acabou o capataz. --Sal, Drizzt Dou'Urdem --voltou a chamar Seldig. Esta vez, e
em todas as sucessivas, Drizzt, e unicamente Drizzt, respondeu à chamada. O rei micónido observou ao elfo escuro que rondava pelo nível inferior da caverna coberta
de musgo. A criatura sabia que não era o mesmo drow que se partiu, mas Drizzt, um aliado, tinha sido o único contato do rei com os elfos escuros. Sem advertir o
perigo, o gigante de três metros de altura saiu ao passado do estranho. O espectro do Zaknafein nem sequer tentou escapar ou esconder do hombrehongo. As mãos do
Zaknafein empunhavam com firmeza as espadas. O rei micónido lançou uma nuvem de esporos, disposto a estabelecer uma comunicação telepática com o recém-chegado. Mas
os monstros não mortos existiam em dois planos diferentes, e suas mentes eram inacessíveis a estes intentos. O corpo material do Zaknafein se enfrentava ao micónido
enquanto que a mente do espectro se encontrava muito longe, unida ao corpo através da vontade da matrona Malícia. O espectro percorreu os últimos metros que o separavam
do adversário. O micónido lançou uma segunda nuvem, esta vez de esporos capazes de tranqüilizar a um inimigo, e tampouco deu resultado. Ao ver que o espectro continuava
a marcha, o gigante levantou os braços disposto a tombá-lo. Zaknafein parou os golpes com as espadas afiadas como navalhas e lhe cortou as mãos ao micónido. Depois,
com uma velocidade impressionante, afundou as armas no torso do rei uma e outra vez até que este se desabou. Do nível superior, várias dúzias dos micónidos maiores
e mais fortes avançaram para resgatar ao rei ferido. O espectro os observou sem preocupar do perigo. Acabou de rematar ao rei e a seguir se voltou para rechaçar
o ataque. Os homens-hongo lançaram diversos tipos de esporos contra o espectro. Zaknafein não fez caso das nuvens, que não podiam lhe causar nenhum dano, e concentrou
a atenção nos braços que tentavam golpeá-lo. Agora os micónidos o rodeavam. E morreram a seu redor. Tinham atendido o horta durante séculos, ocupados só em seus
assuntos e em paz com outros. Mas o espectro que saiu do túnel, procedente da cova deserta onde uma vez tinha residido Drizzt, estava cheio de fúria e não tolerava
nem o menor gesto de paz. Zaknafein escalou a parede até o horta de cogumelos e acabou com tudo o que encontrou a seu passo. Os cogumelos gigantes caíam como árvores
destruídas. No nível inferior, o pequeno
rebanho de vitelas, nervosas por natureza, espantou-se e se dispersou pelos túneis que davam a Antípoda Escura. Os poucos homens-hongo que ficavam vivos tentaram
afastar-se ao ver a destruição provocada pelo elfo escuro, mas os micónidos eram criaturas pesadas, e Zaknafein lhes deu caça em questão de minutos. Seu reinado
na caverna coberta de musgo, e o horta de cogumelos que tinham cuidado durante tanto tempo, chegaram a um brusco e definitivo final.
9
Sussurros nos túneis
A patrulha svirfnebli avançou pouco a pouco pelos vericuetos do túnel, com as maças e as lanças preparadas. Os pequenos não se encontravam muito longe do Blingdenstone
--a menos de um dia de marcha--mas avançavam em formação de combate como era habitual cada vez que penetravam na Antípoda Escura. O túnel cheirava a morte. O líder
do grupo, consciente de que estava muito perto da massacre, espiou com muito cuidado por cima de um penhasco. Goblins! --gritaram seus sentidos a outros, uma voz
clara na telepatia racial dos svirfneblis. Quando os perigos da Antípoda Escura cercavam aos pequenos, estes quase nunca falavam e se comunicavam através de um vínculo
telepático comunitário que podia transmitir conceitos básicos. Outros svirfneblis empunharam as armas e começaram a elaborar um plano de batalha no excitado murmúrio
das comunicações mentais. O líder, o único que tinha espiado por cima do penhasco, deteve-os com outra mensagem: Goblins mortos! O resto da patrulha o seguiu ao
redor da rocha, e uma horrível cena apareceu ante seus olhos. Uma vintena de goblins jaziam mortos e despedaçados. --Drows --sussurrou um dos svirfneblis, depois
de ver a precisão das feridas e a facilidade com que as espadas tinham talhado a grossa pele das desafortunadas criaturas. Entre as raças da Antípoda Escura, só
os
drows tinham armas capazes de fazer este tipo de cortes. Muito perto--respondeu outro pequeno telepáticamente, tocando ao primeiro no ombro. --Estes levam mortos
um
dia ou mais --disse um terceiro em voz alta, sem fazer caso das precauções de seu companheiro. Os elfos escuros já não estão por aqui à espreita. Não é seu modo
de atuar. --Tampouco têm o costume de matar aos goblins --respondeu o que tinha insistido na comunicação telepática. Preferem fazê-los prisioneiros! --O teriam
feito no caso de ter a intenção de retornar diretamente ao Menzoberranzan --comentou o primeiro. voltou-se para o líder. Capataz Krieger, devemos voltar agora
mesmo para o Blingdenstone e informar desta massacre. --Não serviria de nada --respondeu Krieger. Goblins mortos nos túneis? É algo bastante comum. --Não é o primeiro
sinal de atividade drow na região --assinalou o outro. O capataz não podia negar a veracidade das palavras do companheiro nem a sabedoria do conselho. Outras duas
patrulhas tinham retornado ao Blingdenstone com informe de monstros mortos --ao parecer à mãos de elfos escuros-- nos corredores
da Antípoda Escura. --Olhem --acrescentou o pequeno, ao tempo que se agachava para recolher a bolsa de um dos goblins, enche com moedas de ouro e prata. Quem entre
os elfos escuros teria tanta pressa para deixar atrás semelhante bota de cano longo? --Podemos estar seguros de que tudo isto é obra dos drows? --perguntou Krieger,
embora ele mesmo não tinha nenhuma dúvida. Possivelmente alguma outra criatura entrou em nosso reino. Bem poderia ser que algum inimigo menor, um goblin ou um
orco, feito-se com armas drows. São drows! --gritaram telepáticamente vários membros da patrulha. --Os cortes são limpos e precisos --assinalou um. E não vejo
rastros de mais feridas exceto as sofridas pelos goblins. Quem a não ser os elfos escuros são tão eficazes na matança? O capataz Krieger se separou do grupo e caminhou
uns metros pelo corredor em busca de alguma pista na rocha que lhe permitisse esclarecer o mistério. Os pequenos possuíam uma afinidade com a rocha superior à maioria
das criaturas, mas as paredes de pedra não lhe revelaram nada. A morte dos goblins tinha sido causada por armas, não pelas garras de algum monstro e entretanto não
lhes tinham roubado. Os mortos jaziam em um espaço reduzido, o que indicava que as vítimas não tinham tido tempo de tentar a fuga. Que se pudesse assassinar a uma
vintena de goblins com tanta rapidez apontava a uma patrulha drow bastante numerosa, e, inclusive no caso de que tivesse sido só um punhado de elfos escuros, ao
menos algum deles poderia ter despojado aos cadáveres. --O que fazemos, capataz? --perguntou-lhe um dos pequenos. Seguimos adiante para explorar a nervura de mineral
ou retornamos ao Blingdenstone para informar da massacre? Krieger era um veterano ardiloso que se considerava a si mesmo como bom conhecedor de todos os truques
da Antípoda Escura. Não gostava dos mistérios, e este o tinha desconcertado. Retornamos --transmitiu a outros telepáticamente. Ninguém discutiu a decisão porque
os pequenos faziam sempre todo o possível por evitar aos drows. Sem perder um segundo, a patrulha adotou uma formação defensiva e ficou em marcha de volta a casa.
Escondo entre as sombras das estalactites, o espectro do Zaknafein Dou'Urdem vigiou a partida dos pequenos. O rei Schnicktick se inclinou no trono e refletiu sobre
as palavras do capataz. Os conselheiros do monarca, sentados a seu redor, mostravam a mesma inquietação e curiosidade, porque este relatório não fazia mais que confirmar
os dois anteriores em relação às supostas atividades dos drows nos túneis orientais. --Que razão pode ter Menzoberranzan para aproximar-se de nossas fronteiras?
--perguntou um dos conselheiros quando Krieger acabou o relato. Nossos agentes não têm feito nenhuma menção a uma possível invasão. Sem dúvida teríamos recebido
algum aviso se o conselho regente do Menzoberranzan planejasse uma guerra. --Assim é --assentiu Schnicktick para sossegar os murmúrios nervosos provocados pela grave
advertência do conselheiro. De todos os modos, vos lembrança que não temos sabor de ciência certa que os autores destas mortes sejam elfos escuros. --Com sua permissão,
alteza... --tentou replicar Krieger. --Sim, capataz --interrompeu-o Schnicktick no ato, levantando uma mão gordeta diante de seu enrugado rosto para silenciar qualquer
protesto. Estão muito seguro de suas observações. E sei que posso confiar em seu julgamento. Entretanto, até que não tenhamos provas concretas da presença da patrulha
drow,
não adiantarei nenhuma decisão. --Ao menos podemos estar de acordo em que algo perigoso entrou em nossa zona oriental --apontou outro dos conselheiros. --Sim --respondeu
o rei dos svirfneblis. Teremos que nos ocupar em descobrir a verdade. portanto, os túneis orientais ficam fechados a qualquer nova exploração mineira. --Uma vez
mais, Schnicktick levantou uma mão para tranqüilizar aos pressente. Estou informado dos relatórios referentes às novas nervuras de minerais; ocuparemo-nos das
explorar logo que possamos. Mas por agora, só as patrulhas de combate poderão penetrar nas regiões do este, nordeste e sudeste. Dobraremos o número de patrulhas
e de efetivos, e deverão aumentar os percursos até um rádio de três dias de marcha desde o Blingdenstone. Devemos resolver o mistério sem mais demora. --E o que
fazemos com os agentes infiltrados na cidade drow? --perguntou um conselheiro. Estabelecemos comunicação com eles? --por agora não --repôs Schnicktick. Manteremos
os ouvidos bem abertos, mas evitaremos informar ao inimigo que suspeitamos de seus movimentos. O soberano não fez menção de que não se podia confiar de tudo nos
agentes que possuíam no Menzoberranzan. Os espiões podiam aceitar as gemas dos pequenos em troca de informações sem muita importância; mas se os poderes do Menzoberranzan
planejavam algo mais sério contra Blingdenstone, o mais lógico era supor um dobro jogo. --Se recebermos algum relatório extraordinário do Menzoberranzan --acrescentou
Schnicktick-- ou se descobrirmos que os intrusos são de verdade os elfos escuros, então apelaremos aos espiões. Até então, deixemos que as patrulhas averigúem tudo
o que possam. O rei se despediu dos conselheiros, pois desejava estar a sós para refletir sobre os últimos acontecimentos. A princípios de semana se inteirou do
selvagem ataque do Drizzt contra a efígie do alfavaca. O rei Schnicktick do Blingdenstone começava a estar um pouco farto de tantas histórias de drows. As patrulhas
svirfneblis ampliaram os percursos pelos túneis orientais. Inclusive aqueles grupos que não tinham encontrado nada retornavam ao Blingdenstone carregados de suspeitas,
porque tinham percebido na Antípoda Escura uma quietude que não era normal. até agora nem um solo anão tinha resultado ferido, mas ninguém mostrava o menor entusiasmo
por integrar as patrulhas. Intuíam que havia algo maligno nos túneis, algo que matava sem motivos e sem compaixão. Uma das patrulhas encontrou a caverna coberta
de musgo que tinha sido o refúgio do Drizzt. O rei Schnicktick se causar pena ao receber a notícia de que os pacíficos micónidos e sua precioso horta de cogumelos
tinham sido destruídos. Não obstante, apesar da infinidade de horas que os svirfneblis passavam nos túneis, não viram nem a um solo inimigo, e em conseqüência continuaram
acreditando que os elfos escuros, sempre tão sigilosos e brutais, estavam envoltos. --E agora temos a um drow em nossa cidade --recordou-lhe ao soberano um dos conselheiros
durante uma das reuniões diárias. --causou algum problema? --perguntou Schnicktick. --Poucos e sem importância --respondeu o conselheiro. E Belwar Dissengulp,
o muito honorável capataz, não deixa de falar com seu favor e o mantém em sua casa como convidado, não como prisioneiro. O capataz Dissengulp não aceita que os guardas
se aproximem do drow. --Ordena que vigiem ao drow --manifestou o rei depois de uma breve pausa. Mas de longe. Se for um amigo, tal como crie o capataz Dissengulp,
então não tem
por que sofrer nenhuma moléstia. --E o que fazemos com as patrulhas? --inquiriu outro conselheiro, que era o representante da caverna de entrada onde vivia o guarda
da cidade. Meus soldados se aborrecem. Até o momento só viram alguns rastros de combates e não escutaram outra coisa que o ruído de suas próprias botas. --Devemos
nos manter alertas --recordou-lhe o rei Schnicktick. Se os elfos escuros se estão agrupando... --Não estão fazendo-o --replicou o conselheiro com voz firme.
Não encontramos nenhum acampamento, nem rastros de nenhum. A patrulha do Menzoberranzan, se é que é uma patrulha, ataca e depois se retira a algum refúgio que não
podemos localizar; possivelmente está protegido magicamente. --E, se de verdade os elfos escuros pretendem atacar Blingdenstone --comentou outro--, deixariam tantas
amostras de suas atividades? A primeira matança, os goblins que encontrou a expedição do capataz Krieger, ocorreu faz coisa de uma semana, e a tragédia dos micónidos
pouco antes da massacre. Por isso sei dos elfos escuros, nunca rondam uma cidade inimizade, nem deixam indícios como os cadáveres dos goblins, dias antes de realizar
o ataque. O rei pensava o mesmo desde fazia tempo. Quando despertava pelas manhãs e encontrava ao Blingdenstone intacta, a ameaça de uma guerra contra Menzoberranzan
lhe parecia muito longínqua. Mas embora ao Schnicktick alegrava ver que alguém mais pensava como ele, não podia esquecer as horríveis matanças que os soldados tinham
descoberto nos túneis orientais. Algo, provavelmente drow, rondava por lá abaixo, muito perto para seu gosto. --Suponhamos que esta vez Menzoberranzan não planeja
a guerra contra nós --propôs Schnicktick. Então, por que estão os elfos escuros tão perto de nossas portas? Que motivo têm os drows para rondar pelos túneis orientais
do Blingdenstone, tão longe de sua casa? --Procuram expansão? --disse um dos conselheiros. --São renegados? --sugeriu outro. Nenhuma das duas possibilidades parecia
provável. Então um terceiro conselheiro propôs uma terceira, tão singela que surpreendeu a outros. --Procuram alguma coisa. O rei dos svirfneblis apoiou o queixo
sobre as mãos entrelaçadas, convencido de que acabava de escutar a possível solução ao mistério e sentindo-se um pouco parvo por não havê-lo pensado antes. --Mas
o que? --quis saber outro conselheiro, que compartilhava os sentimentos do monarca. Os elfos escuros quase nunca trabalham na mineração... e devo acrescentar que
são bastante maus quando o tentam... e não precisam afastar-se muito do Menzoberranzan para encontrar metais preciosos. O que há perto do Blingdenstone que tanto
lhes interessa? --Algo que perderam --respondeu o rei com o pensamento posto no drow que tinha ido viver entre sua gente. Era uma coincidência muito evidente para
passá-la por alto. Ou a alguém --acrescentou Schnicktick. E outros compreenderam a quem se referia. --Criem que chegou o momento de convidar a nosso drow a que
participe das reuniões do conselho? --inquiriu um conselheiro. --Não --respondeu Schnicktick--, mas possivelmente vigiar ao tal Drizzt de longe não baste. Avisem
ao Belwar Dissengulp que deve controlar todos os movimentos do drow. E você, Firble --disse-lhe ao conselheiro que tinha mais perto--, à vista de que chegamos à
conclusão de que não há uma situação de guerra iminente com os elfos escuros, chama a nossos espiões. Quero ter informação do Menzoberranzan o antes possível. Eu
não gosto de ter aos drows rondando a porta de minha casa. Desmerecem o
vizinhança. O conselheiro Firble, chefe dos serviços secretos do Blingdenstone, assentiu, embora não o alegrava a petição. Conseguir informação do Menzoberranzan
não era barato, e muitas vezes só obtinham dados de escasso valor quando não alguma mentira bem urdida. Ao Firble não gostava de tratar com ninguém que pudesse ser
mais preparado que ele, e muito menos com os elfos escuros. O espectro observou à patrulha svirfnebli a seu passo pelos vericuetos do túnel. A sabedoria tática do
ser que tinha sido uma vez o melhor professor de armas de todo Menzoberranzan tinha mantido controladas as ânsias assassinas do monstro durante os últimos dias.
Zaknafein não compreendia o significado da crescente atividade dos pequenos, mas pressentia que poria em perigo a missão se atacava aos soldados. Como mínimo, o
ataque
a um inimigo organizado provocaria o alarme nos corredores e acabaria por pôr sobre aviso ao esquivo Drizzt. Com o mesmo critério, o espectro tinha sublimado os
desejos de matar a outros seres vivos, e nos últimos dias não tinha deixado nem um só rastro às patrulhas svirfneblis, com o fim de evitar conflitos com os moradores
da região. A vontade maligna da matrona Malícia Dou'Urdem seguia cada um dos movimentos do Zaknafein e fustigava implacavelmente seus pensamentos, impulsionando-o
a procurar a meta fixada. Qualquer crime cometido pelo Zaknafein saciava temporalmente à vontade dominante, mas a experiência tática do espectro podia mais que as
ordens selvagens. A pequena faísca racional que ainda ficava do velho Zaknafein tinha muito claro que a única maneira de retornar à paz dos defuntos era conseguir
que Drizzt Dou'Urdem se unisse a ele no sonho eterno. O espectro deixou as espadas nas bainhas enquanto contemplava à patrulha dos pequenos. Então, quando outro
grupo
de fatigados svirfneblis desfilou caminho para o oeste, outra idéia surgiu na mente do Zaknafein. Se havia tantos pequenos na região, bem podia pensar que Drizzt
Dou'Urdem
também se encontrou com eles. Esta vez, Zaknafein não deixou que os pequenos se perdessem de vista. Descendeu desde seu esconderijo entre as estalactites e seguiu
à patrulha. O nome do Blingdenstone, uma lembrança da vida passada, agitou-se nos limites de sua consciência. --Blingdenstone --tentou pronunciar o espectro. Era
a primeira palavra que proferia o monstro da saída da tumba. Mas o nome soou como um grunhido indecifrável.
10
A culpa do Belwar
Drizzt saiu muitas vezes com o Seldig e os novos amigos durante os dias seguintes. Os jovens pequenos, aconselhados pelo Belwar, passavam as horas com o elfo escuro
dedicados a jogos mais tranqüilos, e deixaram de lhe pedir ao Drizzt que lhes relatasse as aventuras vividas na Antípoda Escura. Nas primeiras saídas, Belwar o vigiou
da porta. O capataz confiava no Drizzt, mas também compreendia os sofrimentos padecidos pelo drow. Uma vida tão selvagem e brutal como a que tinha conhecido o jovem
não resultava fácil de esquecer. Muito em breve, Belwar e outros que observavam ao Drizzt puderam comprovar que o drow se integrou sem problemas ao grupo de anões
e que não expor nenhuma ameaça para os habitantes do Blingdenstone. Inclusive o rei Schnicktick, preocupado pelos episódios ocorridos além dos limites da cidade,
aceitou que se podia confiar no Drizzt. --Tem uma visita --disse Belwar ao Drizzt uma manhã. O drow seguiu ao capataz até a porta, convencido de que Seldig ia para
buscá-lo antes da hora habitual. Entretanto, quando Belwar abriu a porta, Drizzt ficou atônito, porque não foi um svirfnebli o que entrou na casa a não ser um enorme
felino negro. --Guenhwyvar! --gritou Drizzt ficando de joelhos para agarrar entre seus braços à pantera. O animal o tombou e começou a arranhá-lo com uma das grandes
zarpa. Quando por fim o drow conseguiu sair de debaixo da pantera e sentar-se, Belwar se aproximou e entregou a estatueta de ônix. --Estou seguro de que o conselheiro
encarregado da pantera lamenta separar-se dela --disse o capataz. Mas Guenhwyvar é sua amiga. Drizzt não soube o que dizer. Inclusive antes da volta da pantera,
considerava que os pequenos do Blingdenstone o tinham tratado melhor do que se merecia. Agora, o fato de que os svirfneblis lhe devolvessem um amuleto mágico tão
capitalista
como uma amostra de absoluta confiança, comovia-o profundamente. --Quando quiser pode ir à casa central, o edifício onde lhe levaram a primeira vez --acrescentou
Belwar--, e recuperar suas armas e a armadura. Drizzt mostrou sua inquietação ante o oferecimento porque não podia esquecer sua conduta na batalha fictícia contra
a efígie do alfavaca. Quais teriam sido as conseqüências se em vez de estar armado com fortificações tivesse tido as magníficas cimitarras drows? --Guardaremo-las
aqui a boa cobrança --manifestou Belwar ao ver a preocupação de seu amigo. Se as necessitar, estarão a sua disposição. --Estou em dívida contigo --declarou Drizzt.
Em dívida com todos os habitantes do Blingdenstone. --Não consideramos a amizade como uma dívida --afirmou Belwar com uma piscada.
Depois se encerrou no dormitório para que Drizzt e Guenhwyvar pudessem estar a sós. Seldig e outros jovens desfrutaram enormemente quando Drizzt se reuniu com eles
acompanhado pelo Guenhwyvar. Ao ver como jogava a pantera com os svirfneblis, Drizzt não pôde evitar a lembrança do dia trágico, uma década antes, quando Masoj tinha
utilizado ao felino para perseguir os últimos superviventes da expedição do Belwar. Ao parecer, Guenhwyvar não recordava o episódio, porque a pantera e os pequenos
não deixaram de jogar durante todo o dia, e ele desejou esquecer os horrores do passado com a mesma facilidade. --Muito honorável capataz --chamou uma voz um par
de dias mais tarde, enquanto Belwar e Drizzt tomavam o café da manhã. Belwar ficou em tensão, e Drizzt não passou por cima a inesperada expressão de dor que apareceu
nas feições do anfitrião. O drow tinha chegado a conhecer svirfnebli muito bem, e sabia que quando Belwar franzia o largo nariz aquilino, isto era um sinal de angústia.
--O rei há reabierto os túneis orientais --acrescentou a voz. Os rumores falam de uma nervura riquíssima a tão somente um dia de marcha. Seria uma grande honra
para minha expedição que Belwar Dissengulp aceitasse nos acompanhar. Um sorriso esperançado apareceu no rosto do Drizzt, não porque o entusiasmasse a idéia de sair,
mas sim porque tinha notado que Belwar vivia muito encerrado, um pouco pouco habitual em uma comunidade tão aberta. --É o capataz Brickers --informou- Belwar ao
Drizzt em um tom desanimado, sem compartilhar para nada o entusiasmo do drow. tomaram o costume de vir a me convidar cada vez que sai uma expedição. --E você nunca
vai --concluiu seu amigo. --Não é mais que uma cortesia --replicou Belwar, carrancudo, fazendo chiar os dentes. --Não é digno de ir com eles --acrescentou Drizzt,
sarcástico. Por fim tinha descoberto o motivo da frustração do capataz. Belwar se encolheu de ombros. --Vi-te trabalhar com as mãos de mithril --afirmou Drizzt,
franzindo o sobrecenho. Não seria um estorvo! Ao contrário, qualquer grupo estaria orgulhoso de te ter em suas filas! por que te considera como um inválido quando
outros pensam o contrário? O capataz descarregou um golpe tão forte com a mão-de-martelo que abriu uma greta na mesa de pedra. --Posso cortar rochas mais rápido
que qualquer deles! --gritou o pequeno, com um tom feroz. E se os monstros tentam nos atacar... Moveu a mão-de-lança em um gesto ameaçador, e Drizzt não duvidou
que
o capataz sabia como utilizar o instrumento. --Que passem um bom dia, muito honorável capataz --despediu-se a voz. como sempre, respeitamos sua decisão, mas como
sempre também, lamentaremos sua ausência. Drizzt olhou com curiosidade ao Belwar durante um bom momento enquanto pensava em como vencer a resistência do pequeno.
--Então,
por que? --perguntou ao cabo. Se souber que é tão competente como todos acreditam, por que fica aqui? Sei que aos svirfneblis lhes entusiasmam as expedições, e
em troca você não mostra nenhum interesse. Tampouco falas de suas aventuras fora do Blingdenstone. É meu presencia o que te retém em casa? Tem a obrigação de me
vigiar? --Não --respondeu Belwar, com um vozeirão que ensurdeceu ao drow. Hão-lhe devolvido as armas, elfo escuro. Não duvide de nossa confiança.
--Mas... --começou Drizzt, que se interrompeu ao compreender súbitamente a verdadeira razão para as negativas do pequeno. A batalha --disse brandamente, quase como
uma desculpa. Daquele dia horrível faz mais de uma década. Belwar franziu o nariz ao máximo e lhe voltou as costas. --Culpa a ti mesmo pela morte dos companheiros!
--acrescentou o drow com mais confiança, embora não as tinha todas consigo por medo a ofender ao pequeno. Entretanto, quando Belwar o olhou outra vez, o capataz
parecia
a ponto de tornar-se a chorar, e Drizzt compreendeu que suas palavras o tinham comovido. O drow passou uma mão por sua espessa cabeleira branca sem saber muito bem
como responder ao dilema do Belwar. Drizzt tinha dirigido à patrulha contra os mineiros svirfneblis, e sabia que não se podia culpar aos pequenos pelo desastre.
Mas
como podia explicar-lhe ao Belwar? --Lembrança aquele dia desafortunado --manifestou Drizzt, com voz tremulosa. Recordo-o com toda claridade, como se aquele terrível
episódio estivesse gravado a fogo em minha memória. --Ninguém o recorda melhor que eu --afirmou o capataz. --De acordo --assentiu o drow--, mas deve saber que eu
também compartilho a mesma culpa. Belwar o olhou intrigado, sem compreender muito bem o que pretendia dizer o jovem. --Fui eu quem dirigiu a patrulha drow --explicou
Drizzt. Rastreei a seu grupo, na crença errônea de que pretendiam realizar uma incursão contra Menzoberranzan. --Desde não ter sido você, nos teria descoberto
algum outro --replicou o capataz. --Ninguém teria sido capaz de fazê-lo tão bem como eu --afirmou o elfo escuro. Ali fora --dirigiu um olhar à porta--, nas profundidades,
estava como em minha casa. Eram meus domínios. Agora Belwar não se perdia nenhuma só de suas palavras, que era precisamente o que pretendia Drizzt. --E não esqueça
que venci ao elementar terrestre --disse o drow sem vangloriar-se; simplesmente relatava um fato. Desde não ter sido por minha presença, a batalha teria sido igualada.
Muitos svirfneblis teriam sobrevivido para retornar ao Blingdenstone. Belwar não pôde dissimular o sorriso. Havia parte de verdade nas palavras do Drizzt, porque
tinha sido um fator muito importante no êxito do ataque drow. De todos os modos, pareceu-lhe que seu amigo exagerava um pouco com o propósito de fazê-lo sentir melhor.
--Não sei como pode te culpar pelo ocorrido --acrescentou Drizzt com um tom despreocupado, que pretendia tirar ferro à situação. Com o Drizzt Dou'Urdem como guia
da patrulha drow, não tinham nenhuma possibilidade de escapar --adicionou sorridente. --Magga cammara! Não é coisa de tomar a chacota --exclamou Belwar, embora não
pôde evitar rir inclusive enquanto falava. --Não o duvido --disse Drizzt, outra vez sério. Mas tomar a brincadeira uma tragédia é tão grave como viver fundo na
culpa por um fato do que não fomos responsáveis. Se alguém tiver a culpa, esta deve recair no Menzoberranzan e seus habitantes. Foram os elfos escuros os que causaram
a tragédia. Foi sua maldade a que condenou aos pacíficos mineiros de sua expedição. --Ao capataz lhe corresponde assumir a responsabilidade do grupo --objetou Belwar.
Só um capataz pode organizar expedições e, portanto, é responsável por sua decisão. --Escolheu você levar aos pequenos tão perto do Menzoberranzan? --perguntou Drizzt.
--Sim. --Por própria vontade? --insistiu o jovem. Acreditava conhecer os costumes dos pequenos o suficientemente bem como para
saber que a maioria das decisões importantes, se não todas, tomavam pela via democrática. --Desde não ter sido a vontade do Belwar Dissengulp, os mineiros jamais
teriam penetrado naquela região? --Tínhamos informem do achado --explicou Belwar. Uma nervura de mineral muito rica. decidiu-se em conselho que devíamos aceitar
o risco de nos aproximar tanto ao Menzoberranzan. Eu escolhi dirigir a expedição. --Desde não ter sido você, a teria dirigido algum outro --retrucou o drow, valendo-se
das mesmas palavras do Belwar. --Um capataz deve aceitar as respon... Belwar se interrompeu e olhou em outra direção. --Eles não lhe culpam --interveio Drizzt, que
seguiu o olhar do capataz até a porta de pedra. Respeitam-lhe e se preocupam com ti. --Compadecem-me! --gritou Belwar. --Necessita sua compaixão? --replicou Drizzt.
Acaso é menos que eles? Um inválido inútil? --Nunca o fui! --Então vê com eles! --vociferou Drizzt. Averigua se de verdade têm piedade de ti. Não acredito; mas
se me equivoco, se sua gente tiver piedade do "muito honorável capataz", então lhes demonstre quem é Belwar Dissengulp. Se seus companheiros não lhe culparem nem
têm piedade, não tem por que te inventar cargas! Belwar olhou a seu amigo durante um bom momento sem dizer uma palavra. --Todos os mineiros que lhe acompanharam
sabiam o risco de aventurar-se tão perto do Menzoberranzan --recordou-lhe Drizzt, e, com um sorriso, acrescentou--: Nenhum deles sabia que Drizzt Dou'Urdem guiava
à patrulha dos elfos escuros, nem você tampouco, porque nesse caso lhes teriam ficado em casa. --Magga cammara --murmurou Belwar. Sacudiu a cabeça incrédulo, tanto
pela atitude jocosa do Drizzt como pelo fato de que, pela primeira vez em mais de uma década, sentia-se melhor respeito a aquele trágico episódio. Abandonou a mesa
de pedra, sorriu ao Drizzt, e se dirigiu ao dormitório. --Aonde vai? --perguntou o drow. --A descansar --respondeu o capataz. Tanto bate-papo me esgotou. --A expedição
mineira partirá sem ti. Belwar deu meia volta e olhou ao Drizzt, assombrado. Acaso o elfo escuro acreditava sinceramente que ele podia esquecer tantos anos de sofrimentos
como se nada e sair correndo a unir-se à expedição? --Pensava que Belwar Dissengulp era mais valente --comentou o jovem. A expressão doída no rosto do pequeno lhe
revelou que tinha descoberto uma brecha na autocompasión do Belwar. --Fala com muita ousadia --grunhiu Belwar. --Só um covarde o consideraria assim --replicou Drizzt,
sem assustar-se ante a atitude ameaçadora que adotou o pequeno. Se você não gosta de ser chamado assim, demonstra que não o é! --acrescentou o drow. Vê com os
mineiros. lhes mostre de verdade quem é Belwar Dissengulp e de passagem descobre-o você também! --Corre a procurar suas armas! --ordenou-lhe o pequeno golpeando
as
mãos de mithril entre si. Drizzt vacilou. Acabava de desafiá-lo? Tinha ido muito longe no intento de arrancar ao capataz da apatia? --vá procurar suas armas, Drizzt
Dou'Urdem --repetiu Belwar--, porque, se for com os mineiros, você virá comigo. Entusiasmado, Drizzt sujeitou com suas delicadas mãos a cabeça do pequeno e
apoiou a frente contra a do Belwar, enquanto ambos intercambiavam olhares de profundo afeto e admiração. Depois, Drizzt saiu da casa à carreira para ir recolher
as cimitarras, o piwafwi e a cota de malha. Assombrado de sua própria decisão, Belwar se propinó um golpe na cabeça com tanta força que a ponto esteve de cair desacordado.
Assim que se repôs observou ao Drizzt que corria para a casa central. Pensou que seria uma experiência interessante. O capataz Brickers recebeu agradado ao Belwar
e ao Drizzt, embora interrogou ao pequeno com o olhar para assegurar-se de que podia confiar no drow. Nem sequer Brickers podia duvidar da valiosa ajuda que representava
contar com um drow nas profundidades da Antípoda Escura, sobre tudo se era certa a atividade dos elfos escuros nos túneis orientais. Mas a expedição não teve nenhum
tropeço na viagem para a região assinalada pelos exploradores. Informe-os sobre a riqueza da nervura demonstraram não ser exagerados, e os vinte e cinco mineiros
se dedicaram a trabalhar com um entusiasmo invejável. Drizzt se sentia feliz ao ver a habilidade do Belwar, que dirigia o martelo e a lança com uma precisão e uma
força que superavam a de todos outros. O capataz não demorou muito em compreender que seus camaradas não lhe tinham compaixão. Era um membro da expedição --um membro
destacado e não um lastro-- que enchia os carrinhos de mão com tanto ou mais mineral que qualquer de seus companheiros. Durante os dias que passaram nos túneis,
Drizzt se ocupou de montar guarda nos arredores do acampamento, acompanhado do Guenhwyvar quando a pantera estava disponível. À manhã seguinte do início dos trabalhos,
o capataz Brickers mandou a um pequeno para que fizesse guarda junto com o drow e a pantera, e Drizzt suspeitou corretamente que o novo companheiro tinha a missão
suplementar de vigiá-lo. Mas à medida que passava o tempo e os mineiros se acostumavam à presença do camarada de pele escura, Drizzt pôde perambular a seu desejo.
Foi uma expedição tranqüila e rentável, como gostava aos pequenos, e, graças a não ter encontrado nenhum monstro, logo tiveram os carrinhos de mão carregados até
os
batentes com minerais preciosos. Alegres e satisfeitos recolheram as equipes, formaram uma coluna com os carrinhos de mão e iniciaram o caminho de volta a casa,
uma viagem que lhes levaria dois dias devido à carga que arrastavam. Ao cabo de umas poucas horas de marcha, um dos exploradores se uniu à caravana. Seu rosto mostrava
uma expressão grave. --O que ocorre? --perguntou o capataz Brickers, dominado pela suspeita de que se acabou a boa sorte. --Uma tribo goblin --respondeu o explorador.
ao redor de quarenta. Ocupam uma pequena cova para o oeste e um túnel em pendente. O capataz Brickers deu um murro contra um dos carrinhos de mão. Não duvidava da
capacidade dos mineiros para enfrentar-se à banda de goblins, mas não queria problemas, e lhe resultaria difícil evitá-los com o ruído dos carrinhos de mão que se
podia ouvir desde muito longe. --Corre a voz. Ficaremos aqui --decidiu por fim. Se tivermos que brigar, deixemos que os goblins venham para nós. --Qual é o problema?
--perguntou- Drizzt ao Belwar assim que se uniu à caravana. Até então se ocupou de vigiar a retaguarda. --Uma banda de goblins --respondeu Belwar. Brickers diz
que devemos esperar e confiar em que aconteçam comprido. --E se nos descobrem? --Só são goblins --replicou o pequeno, entrechocando as mãos metálicas--,
mas tanto eu como minha gente confiamos em que o caminho fique espaçoso sem ter que brigar. Drizzt se sentiu agradado ao ver que os novos companheiros não se desesperavam
por combater, inclusive frente a um inimigo ao que podiam derrotar com facilidade. Se tivesse sido uma patrulha drow, o mais provável teria sido que a banda de goblins
já estivesse morta ou capturada. --Vêem comigo --pediu- Drizzt ao Belwar. Necessito sua ajuda para me entender com o capataz Brickers. Tenho um plano, mas temo
que meus pobres conhecimentos de seu idioma não me permitam explicar com claridade as sutilezas. Belwar enganchou ao Drizzt de um braço com a mão-de-lança e o fez
girar com mais força do previsto. --Não queremos conflitos --explicou o pequeno. Preferimos que os goblins se vão em paz. --Não procuro briga --assegurou-lhe Drizzt
com uma piscada. Satisfeito com a resposta, Belwar acompanhou ao drow. Brickers mostrou um sorriso de orelha a orelha quando Belwar traduziu o plano do elfo escuro.
--Valerá a pena ver a cara que põem os goblins --afirmou Brickers com uma gargalhada. Acredito que irei contigo! --Será melhor que eu vá --interveio Belwar.
Conheço a língua dos goblins e também o idioma dos drows. Além disso, você tem outras responsabilidades, em caso de que as coisas não saiam como esperamos. --Eu
também sei falar a língua dos goblins --replicou Brickers. E posso entender a nosso companheiro elfo escuro bastante bem. Quanto às obrigações com a caravana,
não são tantas como cria, porque agora nos acompanha outro capataz. --Um que não esteve nas profundidades da Antípoda Escura durante muitos anos --recordou-lhe Belwar.
--De acordo, mas era o melhor de todos --insistiu Brickers. A caravana fica a seu mando, capataz Belwar. Eu acompanharei ao drow no encontro com os goblins. Drizzt
tinha entendido as palavras suficientes para ter uma idéia das intenções do Brickers. Sem dar tempo ao Belwar a seguir a discussão, apoiou uma mão sobre o ombro
do pequeno e assentiu. --Se não enganarmos aos goblins e necessitamos sua ajuda, vêem depressa disposto a tudo. Então Brickers abandonou a equipe de mineiro e as
armas,
e seguiu ao Drizzt. Belwar se voltou para outros com certa cautela, sem saber como reagiriam, mas assim que jogou uma olhada aos mineiros, descobriu que todos o
apoiavam e se mostravam muito dispostos a cumprir suas ordens. O capataz Brickers não se desiludiu ao ver as expressões de assombro e espanto nas caras retorcidas
e dentuças quando ele e o elfo escuro apareceram ante eles. Um dos goblins soltou um alarido e levantou a lança com intenção de lançá-la, mas Drizzt utilizou as
habilidades mágicas inatas para criar um globo de escuridão diante do agressor e lhe impedir a visão. O goblin lançou a lança; Drizzt desembainhou uma cimitarra
e
a deteve em pleno vôo. Brickers, com as mãos atadas, porque simulava ser um prisioneiro naquela farsa, ficou boquiaberto ao ver a velocidade e a facilidade com que
o drow tinha derrubado a lança. Depois, olhou à banda de goblins e viu que compartilhavam seu assombro. --Um passo mais e morrerão --prometeu Drizzt no idioma goblin,
uma linguagem gutural de grunhidos e choramingações. Brickers compreendeu um segundo depois a que se referia o jovem quando ouviu o ruído de botas e uma choramingação
a suas costas. voltou-se e viu um casal de goblins,
rodeada pelas avermelhadas chamas do fogo dos drows, que escapava a toda pressa. Uma vez mais o svirfnebli olhou ao drow, assombrado. Como tinha descoberto que foram
atacar o a traição? Certamente Brickers não sabia nada do caçador, o outro eu do Drizzt Dou'Urdem que lhe permitia ter vantagem em situações como aquela. Tampouco
podia saber o capataz que agora o jovem fazia um grande esforço por dominar ao perigoso alter ego. Drizzt contemplou a cimitarra e depois à banda de goblins. Eram
quase quarenta dispostos a combater, mas o caçador pressionava ao Drizzt para que atacasse, a que se lançasse contra aqueles monstros covardes e os pusesse em fuga
pelos corredores que saíam da pequena caverna. Entretanto, um olhar às mãos atadas do companheiro anão lhe recordou o plano original e o ajudou a controlar ao caçador.
--Quem é o chefe? --perguntou. O cacique goblin não tinha nenhum interesse em identificar-se, embora não teve mais remedeio quando uma dúzia de subordinados, comportando-se
com a habitual falta de coragem e lealdade goblin, deram meia volta e o assinalaram com seus gordinhos dedos. Sem outra escolha, o cacique goblin tirou peito, ergueu
os ombros ossudos e avançou para enfrentar-se ao drow. --Bruck! --anunciou o chefe, ao tempo que se golpeava o peito com um punho. --O que faz aqui? --interrogou-o
Drizzt, depreciativo. Bruck não soube o que responder a esta pergunta. Jamais tinha tido que pedir permissão para os movimentos da tribo. --Esta região pertence
aos drows! --grunhiu Drizzt. Não tem nada que fazer aqui! --Cidade drow muito longe --protesto Bruck, assinalando por cima da cabeça do elfo. Drizzt advertiu que
o goblin tinha famoso a direção incorreta, mas preferiu não fazer nenhum comentário. Esta terra svirfnebli. --por agora --replicou Drizzt, que empurrou ao Brickers
com o pomo da cimitarra. Minha gente decidiu tomar esta região como própria. --Apareceu uma faísca de cólera nos olhos lilás do Drizzt, e um sorriso arteiro lhe
iluminou a expressão. Acaso Bruck e a tribo goblin se oporão a nós? Bruck estendeu as mãos, de dedos largos, em um gesto de indefensión. --Vete! --ordenou o drow.
Não necessitamos escravos, nem tampouco queremos chamar a atenção com os ruídos de uma batalha nos túneis! te considere afortunado, Bruck. Sua tribo poderá escapar
e viver... por esta vez! Bruck se voltou para outros em busca de ajuda. Só se tratava de um elfo escuro, enquanto que eles eram quase quarenta e bem armados. Levavam
todas as de ganhar. --Vete! --repetiu Drizzt, assinalando com a cimitarra uma das passagens laterais. Corre até que os pés não lhe possam levar! O cacique goblin,
desafiante, enganchou os polegares na parte de corda que sujeitava o tanga. de repente se ouviu um grande estrépito. Os golpes rítmicos contra a pedra estremeceram
as paredes da caverna. Bruck e outros goblins intercambiaram olhadas ansiosas, e Drizzt aproveitou a ocasião. --Atreve-te a nos desafiar? --gritou o drow ao tempo
que rodeava ao cacique nas chamas do fogo fátuo. Então que seja Bruck o primeiro em morrer! antes de que Drizzt pudesse acabar a frase, o chefe goblin já tinha
escapado, e corria desesperado pelo túnel que lhe tinha famoso o elfo. Como uma amostra de lealdade ao cacique, o resto da tribo correu atrás dele, e alguns que
corriam ainda mais depressa que o próprio Bruck o deixaram atrás. Ao cabo de uns segundos, Belwar e os mineiros apareceram pelos outros túneis.
--Pensei que te viria bem um pouco de ajuda --explicou o capataz ao tempo que golpeava a pedra da parede com a mão-de-martelo. --No momento mais conveniente e preciso,
muito honorável capataz --disse-lhe Brickers, quando deixou de rir. Perfeito, tal qual esperávamos do Belwar Dissengulp. A caravana svirfnebli não demorou muito
em reatar a marcha, e os mineiros comentavam alvoroçados as incidências do episódio. Os pequenos se consideravam muito preparados pela maneira em que tinham evitado
o combate. A alegria se converteu em uma festa de primeira quando chegaram ao Blingdenstone, porque os pequenos, apesar de ser gente séria e trabalhadora, também
gostavam
das festas como qualquer outra raça dos Reino. Drizzt Dou'Urdem, face às diferenças físicas que o separavam dos svirfneblis, sentia-se mais a gosto e feliz com eles
do que tinha estado em suas quatro décadas de vida. E nunca mais Belwar Dissengulp voltou a zangar-se quando alguém de sua gente o tratava de "muito honorável capataz".
O espectro estava confuso. Quando Zaknafein começava a acreditar que a presa se encontrava na cidade svirfnebli, os feitiços mágicos com que Malícia o tinha dotado
advertiram a presença do Drizzt nos túneis. Por sorte para este e os mineiros svirfneblis, o espectro rondava muito longe quando captou o rastro. Zaknafein iniciou
o caminho de volta através dos túneis, evitando às patrulhas anãs. Evitar os combates tinha resultado muito difícil, porque a matrona Malícia, sentada em seu trono
no Menzoberranzan, mostrava-se cada vez mais impaciente e nervosa. Malícia desejava o sabor do sangue, mas Zaknafein não retrocedeu no propósito de cortar a distância
que o separava do objetivo. Então, sem mais, esfumou-se o rastro. Bruck soltou um gemido quando outro elfo escuro apareceu no acampamento ao dia seguinte. Ninguém
hasteou as lanças ou tentou situar-se a costas do drow. --Partimo-nos tal qual nos ordenou! --protestou Bruck, adiantando-se sem que o pedissem. O cacique sabia
que, se não o fazia, outros o assinalariam. O espectro não deu nenhuma amostra de ter entendido as palavras em idioma goblin. Zaknafein avançou para o cacique com
as espadas preparadas. --Nós... --alcançou a dizer Bruck antes de que o degolassem. Zaknafein apartou a espada da garganta do goblin e se lançou contra o resto do
grupo. Os goblins puseram-se a correr em todas direções. uns quantos, apanhados entre o enlouquecido drow e a parede de pedra, levantaram as lanças para defender-se.
O espectro passou entre eles ao tempo que destroçava corpos e armas com cada cutilada. Uma das vítimas alcançou a passar a lança entre as espadas e cravou a ponta
no quadril do Zaknafein. O monstro não morto nem sequer pestanejou. Zak se voltou para o atacante e descarregou uma série de golpes velocísimos e de tanta precisão
que amputaram os braços do goblin e o decapitaram. Ao acabar o combate, quinze goblins jaziam esquartejados no chão da caverna e outros corriam por todos os túneis
da região. O espectro, talher com o sangue dos inimigos, saiu da caverna pela passagem oposto ao que tinha entrado, para seguir a busca do escorregadio Drizzt Dou'Urdem.
No Menzoberranzan, na sala de espera da capela da casa Dou'Urdem, a matrona Malícia descansava, exausta e saciada. Tinha participado de cada uma das mortes conseguidas
pelo Zaknafein, e havia sentido uma explosão de êxtase cada vez que o
espectro afundava a espada em uma nova vítima. Malícia esqueceu as frustrações e a impaciência, com a confiança renovada pelos prazeres da cruel matança do Zaknafein.
Quão grande seria o prazer quando o espectro encontrasse por fim ao filho traidor!
11
O mexeriqueiro
O conselheiro Firble do Blingdenstone entrou inquieto na pequena caverna onde teria lugar o encontro. Um exército svirfnebli, entre eles vários magos providos de
talismãs que poderiam chamar os elementares terrestres, ocupavam posições defensivas ao longo dos corredores do lado oeste. Apesar destas precauções, Firble não
as tinha todas consigo. Olhou para o túnel oriental, a única outra entrada à caverna, preocupado pela informação que o agente poderia subministrar e pelo preço que
lhe custaria. Então apareceu o drow e fez uma entrada espetacular; o estrépito dos taconazos das botas de cano alta negros se podia ouvir desde muito longe. O olhar
do visitante percorreu rapidamente o recinto para assegurar-se de que Firble estava sozinho --o acerto habitual-- e depois se aproximou do conselheiro, ao que saudou
com uma profunda reverência. --Saúde, pequeno amigo da bolsa grande --disse o drow com uma gargalhada. Seu domínio da língua e o dialeto svirfnebli, com as inflexões
e pausas de um pequeno que tivesse vivido um século no Blingdenstone, sempre eram para o Firble um motivo de assombro. --Poderia ser um pouco mais precavido --respondeu
Firble, inquieto pelo descaramento do recém-chegado. --Ora --exclamou o drow, que acompanhou a interjeição com um sonoro taconazo. Tem detrás de ti a todo um exército
de guerreiros e magos, e eu... bom, digamos que também estou bem protegido. --Não o duvido, Jarlaxle --replicou Firble. De todos os modos, prefiro manter nossos
assuntos tão privados e seguros como é possível. --Todos os assuntos de Brigam D'aerthe são privados, meu querido Firble -- afirmou o drow, e uma vez mais fez uma
reverência, roçando o chão com o chapéu de asa larga que sustentava na mão. --Já está bem de reverências --disse Firble. Nos ocupemos do nosso para que possa retornar
a casa. --Então pergunta --convidou-o Jarlaxle. --houve um aumento da atividade drow perto do Blingdenstone --explicou o pequeno. --Seriamente? --repôs o mercenário,
com uma surpresa fingida. Mas o sorriso satisfeito do drow revelava seus pensamentos. Isto prometia ser um bom negócio para o Jarlaxle, porque a mesma mãe matrona
do Menzoberranzan que o tinha contratado fazia pouco tinha muito que ver nas preocupações do Blingdenstone. Ao Jarlaxle gostava das coincidências que beneficiavam
seus interesses. --Sim --manifestou Firble, que conhecia muito bem as artimanhas de seu interlocutor. --E quer saber o motivo? --raciocinou o drow, sem deixar de
simular ignorância.
--por que se não te mandei chamar? --protestou o conselheiro, cansado dos jogos do Jarlaxle. Firble tinha muito claro que o mercenário estava à corrente da atividade
drow na região do Blingdenstone, e de seu propósito. Jarlaxle era um patife sem casa, coisa muito mal considerada no mundo dos elfos escuros. Mesmo assim, este personagem
tinha sobrevivido e inclusive prosperado. A arma secreta do Jarlaxle era a informação: o drow tinha informação de tudo o que ocorria no Menzoberranzan e as regiões
que rodeavam a cidade. --Quanto demorará para nos dar a resposta? --perguntou Firble. Meu rei deseja acabar com este tema o antes possível. --Tem o pagamento?
--replicou o drow, com a mão tendida. --Receberá o pagamento quando trouxer a informação --respondeu Firble. Esse é o acordo. --Assim é --afirmou Jarlaxle. Mas
esta vez já disponho da informação. Se tiver minhas gemas, podemos acabar nosso assunto agora mesmo. Firble agarrou a bolsa com as gemas que levava sujeita ao cinturão
e a jogou no drow. --Cinqüenta ágatas, perfeitamente esculpidas --grunhiu o conselheiro, doído pelo preço. Tinha esperado não ter que recorrer aos serviços do mercenário
esta vez. Como qualquer outro pequeno, ao Firble doía desprender-se de grandes somas. Jarlaxle jogou uma olhada ao conteúdo da bolsa e a guardou em um bolso. --Descansa
tranqüilo, pequeno pequeno --disse--, porque os poderes que governam Menzoberranzan não planejam nenhum ataque contra sua cidade. Só uma casa drow se interessa por
esta região, ninguém mais. --por que? --inquiriu Firble depois de uma larga pausa. O svirfnebli era resistente a perguntar porque sabia qual era a conseqüência inevitável.
Jarlaxle tendeu a mão, e outras dez ágatas trocaram de dono. --A casa procura um dos seus --explicou o mercenário. Um renegado cujas ações têm feito que a família
perdesse o favor da rainha aranha. Uma vez mais reinou o silêncio. Firble tinha muito claro a identidade do drow açoitado, mas o rei Schnicktick poria o grito no
céu se não levava uma informação confirmada. Tirou outras dez gemas da bolsa. --me diga o nome da casa --pediu. --Daermon N'a'shezbaernon --respondeu Jarlaxle, enquanto
guardava as gemas no bolso. Firble cruzou os braços em sinal de desgosto. O ladino drow o tinha pilhado outra vez. --Não quero saber o nome antigo! --protestou o
conselheiro. Com um gesto furioso procurou outras dez ágatas. --Por favor, Firble --burlou-se Jarlaxle. Tem que aprender a ser mais concreto nas perguntas. Estes
enganos lhe custam muito! --me diga o nome da casa em términos compreensíveis --pediu Firble. E quero saber também o nome do renegado. Já te paguei mais que suficiente
pela informação. Jarlaxle levantou uma mão e lhe sorriu ao pequeno. --De acordo --disse com uma gargalhada, mais que satisfeito com o que tinha cobrado. A casa Dou'Urdem,
a casa oitava do Menzoberranzan procura a seu segundo filho. Pela expressão do conselheiro, o mercenário advertiu que este conhecia o nome. Acaso este encontro lhe
daria uma informação que poderia vender com uma
ganho adicional à matrona Malícia? --chama-se Drizzt --acrescentou o drow, atento à reação do svirfnebli. Uma pista sobre seu paradeiro seria muito bem recompensada
no Menzoberranzan. Firble observou ao drow durante um bom momento sem dizer uma palavra Se teria delatado quando tinha escutado o nome do açoitado? Se Jarlaxle tinha
adivinhado que Drizzt se encontrava na cidade dos pequenos, as conseqüências podiam ser graves. Firble se encontrava enfrentado a um dilema. Devia admitir o engano
e tratar de emendá-lo? Quanto lhe custaria comprar o silêncio do Jarlaxle? Mas por muito alto que fora o preço, podia confiar neste mercenário sem escrúpulos? --Não
temos nada mais que tratar --anunciou Firble, disposto a confiar em que Jarlaxle não tinha conseguido nada concreto para vender à casa Dou'Urdem. O conselheiro se
voltou e caminhou para a saída. Jarlaxle aplaudiu para seus adentros a decisão do Firble. Sempre tinha tido ao svirfnebli por um bom negociador, e agora não o tinha
decepcionado. Firble lhe tinha revelado muito pouco, nada que pudesse oferecer à matrona Malícia, e, se o conselheiro sabia algo mais, a decisão de acabar a entrevista
era muito sensata. Apesar das diferenças raciais, o mercenário reconheceu que Firble lhe caía bem. --Pequeno pequeno --disse Jarlaxle--, quero te fazer uma advertência.
Firble deu meia volta com uma mão posta sobre a bolsa carregada de gemas. --É grátis --exclamou o drow com uma gargalhada ao tempo que sacudia a calva cabeça. Mas
depois a expressão do mercenário se voltou séria, quase grave. Se souber um pouco do Drizzt Dou'Urdem --acrescentou--, faz que se mantenha bem longe. A própria
Lloth pediu à matrona Malícia Dou'Urdem a morte do Drizzt, e Malícia fará o que seja para agradar à deusa. Inclusive se Malícia falha, haverá outros que o tentarão,
conscientes de que sua morte lhes outorgasse o favor do Lloth. Está condenado, Firble, e também o estará todo aquele o bastante parvo para ajudá-lo. --Uma advertência
desnecessária --disse Firble, que tentou manter uma expressão serena. Ninguém no Blingdenstone sabe nada do renegado. E também te asseguro que ninguém no Blingdenstone
tem o menor interesse em congraçar-se com a rainha aranha dos elfos escuros. Jarlaxle sorriu sem deixar-se enganar pelas palavras do svirfnebli. --Certamente --replicou,
com uma profunda reverência acompanhada pelo habitual varrido do chapéu. Firble fez uma pausa para considerar a resposta e a reverência, e se perguntou uma vez mais
se devia tentar comprar o silêncio do mercenário. antes de que pudesse tomar uma decisão, Jarlaxle partiu fazendo soar os saltos das botas com cada passo, e o pobre
Firble teve que resignar-se a suas dúvidas. Mas estas não estavam justificadas. Enquanto se afastava, Jarlaxle reconheceu que Firble lhe caía bem, e decidiu que
não confiaria à matrona Malícia suas suspeitas sobre o paradeiro do Drizzt. A menos, claro está, que a oferta fosse irresistível. Por sua parte, Firble permaneceu
na caverna deserta durante um bom momento, refletindo se haveria ou não obrado corretamente. Para o Drizzt, os dias transcorriam em um ambiente de amizade e de alegria.
converteu-se quase em um herói entre os mineiros svirfneblis aos que tinha acompanhado nos túneis, e o relato de como tinha conseguido enganar à tribo de goblins
era embelezado com cada nova repetição. O drow e Belwar saíam juntos freqüentemente, e, cada vez que se apresentavam em um botequim ou em locais de reunião, recebiam-nos
com grandes aplausos e os convidavam a comer e a beber. Por fim os dois amigos tinham encontrado a paz que tanto tinham desejado. O capataz Brickers e Belwar já
tinham começado os preparados para uma
nova expedição mineira. A maior dificuldade era reduzir a lista de voluntários, porque se tinham apresentado pequenos de todos os rincões da cidade, entusiasmados
por participar de uma aventura em companhia do elfo escuro e o muito honorável capataz. Uma manhã, quando chamaram com insistência à porta do Belwar, os amigos pensaram
que se tratava de mais voluntários em busca de um posto na expedição. surpreenderam-se ao abrir a porta e encontrar-se com o guarda da cidade que os esperava, com
a ordem de levar ao Drizzt, a ponta de lança, a uma audiência com o rei. --Uma precaução habitual --assegurou- Belwar ao Drizzt, ao parecer despreocupado. O pequeno
apartou o prato de cogumelos com molho de musgo e foi procurar a capa, mas se Drizzt tivesse afastado o olhar das lanças e se fixou nos nervosos movimentos do Belwar,
sem dúvida não teria estado tão seguro. O percurso através da cidade o fizeram a passo vivo porque os guardas deram amostras de uma pressa inusitada. Belwar não
deixou de insistir em que tudo era "normal", e em realidade o pequeno fez todo o possível para mostrar-se tranqüilo. De todos os modos, Drizzt não se fez nenhuma
ilusão
quando entrou na sala de audiências. Durante toda sua vida não tinha conhecido outra coisa que fracassos por muito prometedor que fosse o início. O rei Schnicktick
parecia molesto no trono, e os conselheiros que o rodeavam eram incapazes de dissimular a inquietação que os dominava. Ao monarca lhe desagradava ter que aplicar
as recomendações de seus assessores --os svirfneblis se consideravam amigos leais--, mas não podia fazer caso omisso do relatório do conselheiro Firble em relação
às ameaças ao Blingdenstone. Especialmente se só era em benefício de um elfo escuro. Drizzt e Belwar se detiveram diante do trono; o drow, intrigado pela chamada,
embora disposto a aceitar o resultado sem protestos, e o capataz, visivelmente zangado. --Agradeço-lhes que tenham vindo tão logo --saudou-os o rei, que se esclareceu
garganta e olhou aos conselheiros em busca de apoio. --As lanças lhe fazem mover os pés depressa --replicou Belwar, sarcástico. O rei dos svirfneblis voltou a pigarrear,
muito molesto, e se moveu no trono, incômodo. --Meus guardas pecam às vezes de um excesso de zelo --desculpou-se. Por favor, não tomem como uma ofensa. --Certamente
que não --afirmou Drizzt. --desfrutaste que a estadia em nossa cidade? --perguntou-lhe o rei, que conseguiu esboçar um sorriso. --Sua gente se comportou com uma
generosidade por cima da que podia pedir ou esperar --respondeu Drizzt. --E você demonstraste ser um amigo leal, Drizzt Dou'Urdem --manifestou o soberano. Nossas
vidas se enriqueceram com sua presença. Drizzt fez uma reverência, agradecido pelas bondosas palavras do rei. Mas Belwar entrecerró as pálpebras e franziu o farpado
nariz, porque começava a adivinhar os propósitos do soberano. --Por desgraça --disse o rei Schnicktick, que em vez de olhar ao elfo dirigiu um olhar de súplica aos
conselheiros--, surgiu um problema... --Magga cammara! --gritou Belwar, para surpresa de todos os pressente. Não! O rei e Drizzt olharam ao capataz, incrédulos.
--Pretendem jogá-lo! --disse Belwar ao Schnicktick, em um tom acusador. --Belwar! --protestou Drizzt. --Muito honorável capataz --interveio o rei svirfnebli, com
expressão severo--,
não têm direito a interromper. Guardem silêncio ou mandarei que lhes expulsem da sala. --Então é verdade --gemeu Belwar, que desviou o olhar. Drizzt olhou alternativamente
ao rei e a seu amigo, sem compreender muito bem a que vinha a discussão. --Suponho que ouviste falar das presuntas atividades dos drows nos túneis próximos a nossas
fronteiras orientais, verdade? --perguntou- o rei ao Drizzt. O jovem assentiu. --Inteiramo-nos que propósito destas atividades --explicou Schnicktick. A pausa que
se produziu enquanto o rei svirfnebli olhava outra vez aos conselheiros fez correr um suor frio pelas costas do Drizzt. Tinha muito claro o que escutaria a seguir,
mas mesmo assim as palavras lhe fizeram mal. Você, Drizzt Dou'Urdem, são a causa. --Minha mãe me busca --declarou o drow. --Mas não te encontrará! --rugiu Belwar
em um desafio dirigido tanto ao soberano como à mãe desconhecida de seu amigo. Não, enquanto seja hóspede dos pequenos do Blingdenstone! --Belwar, já é suficiente!
--reprovou-lhe o rei Schnicktick. Olhou ao Drizzt com uma expressão mais tranqüila. Por favor, amigo Drizzt, deve compreendê-lo. Não posso me arriscar a uma guerra
com o Menzoberranzan. --Compreendo-o --disse Drizzt, de todo coração. irei recolher minhas coisas. --Não! --protestou Belwar. aproximou-se do trono. Somos svirfneblis.
Não abandonamos aos amigos quando se apresenta um perigo! --O capataz foi de conselheiro em conselheiro, reclamando justiça. Drizzt Dou'Urdem nos deu sua amizade,
e nós o jogamos! Magga cammara! Se tão dispostos estivermos a renunciar à lealdade, como podemos nos considerar melhores que os drows do Menzoberranzan? --Silêncio,
muito honorável capataz! --gritou o rei com um tom que nem sequer o teimado Belwar podia passar por cima. Não foi fácil tomar a decisão, mas é definitiva! Não
arriscarei a segurança do Blingdenstone em benefício de um elfo escuro, por muito amigo que seja. --Schnicktick olhou ao Drizzt. Lamento-o de todo coração. --Não
têm por que lamentá-lo --repôs o drow. Atuam segundo seu dever, tal como fiz eu quando decidi abandonar a minha gente. Aquela decisão foi coisa exclusivamente
minha, e nunca pedi a aprovação nem a ajuda de ninguém. Você, meu bom rei svirfnebli, e seu povo me compensastes com acréscimo a perda. me acreditem quando digo
que não desejo provocar a ira do Menzoberranzan contra Blingdenstone. Não teria consolo se por minha culpa sobreviesse uma tragédia. Abandonarei sua formosa cidade
agora mesmo. E ao partir, só lhes posso dar minha gratidão. O rei svirfnebli se sentiu comovido pelas palavras do drow, embora não por isso trocou a decisão. Fez
um sinal aos soldados para que acompanhassem ao Drizzt, que aceitou a escolta armada com um suspiro de resignação. Olhou uma vez mais ao Belwar, que permanecia com
expressão compungida junto aos conselheiros, e deixou a sala. Um centenar de anões, entre eles o capataz Brickers e outros mineiros da única expedição em que tinha
participado Drizzt, despediram-se do drow quando atravessou as enormes leva do Blingdenstone. Chamava a atenção a ausência do Belwar Dissengulp; Drizzt não havia
tornado a ver seu amigo desde que tinha abandonado a sala do trono. De todos os modos, Drizzt agradecia a despedida que lhe oferecia este nutrido grupo de svirfneblis.
As palavras de ânimo e as amostras de afeto o consolaram e lhe deram as forças que necessitaria para agüentar as duras provas de nos próximos anos. Entre as melhores
lembranças que Drizzt se levava do Blingdenstone, a despedida seria o mais importante. Entretanto, quando Drizzt deixou atrás a multidão, atravessou a pequena
plataforma e baixou a escada, só ouviu o eco estrondoso das portas ao fechar-se. Tremeu ao olhar para os túneis da Antípoda Escura, e se perguntou se seria capaz
de sobreviver às experiências que lhe aguardavam. Blingdenstone o tinha salvado do caçador; durante quanto tempo poderia evitar que aquele outro eu lhe arrebatasse
a identidade? Mas o que outra escolha tinha a seu alcance? Deixar Menzoberranzan tinha sido decisão dela e não se equivocou. Agora que conhecia melhor as conseqüências
da escolha, perguntou-se se havia valido a pena. Se lhe davam a oportunidade de repeti-la, teria o valor de renunciar à vida entre os seus? Pensou que não vacilaria
em adotar a mesma decisão. Um ruído o pôs alerta. Se acurrucó e desembainhou as cimitarras, convencido de que os agentes da matrona Malícia tinham esperado o momento
da expulsão para apresentar-se. Uns segundos mais tarde apareceu uma sombra, mas não era um assassino drow o que se aproximou do Drizzt. --Belwar! --gritou agradado.
Acreditava que não viria a me despedir. --E não o farei --respondeu o svirfnebli. Drizzt olhou ao capataz e advertiu a mochila que o pequeno carregava à costas.
--Não,
Belwar, não posso... --Não recordo te haver pedida permissão --interrompeu-o este. Faz tempo que desejo sair em busca de aventuras e pensei que este era o momento
mais apropriado para descobrir o que me oferece o mundo. --Não tanto como esperas --disse o jovem, muito sério. Você tem sua gente. Aceitam-lhe e se preocupam
com ti. É a coisa mais importante que se possa desejar. --De acordo --assentiu o capataz. E você, Drizzt Dou'Urdem, têm um amigo que te aceita e se preocupa com
ti. E que está a seu lado O que diz? Saímos em busca de aventuras ou ficamos aqui à espera de que se presente essa maligna tua mãe e nos mate? --Nem sequer pode
imaginar os perigos que nos aguardam-- advertiu Drizzt, mas Belwar pôde ver que o drow estava a ponto de ceder a sua oferta. --E você, elfo escuro, nem sequer pode
imaginar minha capacidade para fazer frente a ditos perigos! --exclamou o capataz, entrechocando as mãos metálicas. Não vou permitir que parta sozinho pelas regiões
selvagens da Antípoda Escura. Tire-lhe o da cabeça. Magga cammara! Iniciemos a marcha de uma vez por todas. Drizzt encolheu os ombros sem saber que mais dizer,
olhou outra vez a expressão decidida no rosto de seu amigo, e avançou por um dos túneis, com o Belwar a seu lado. Ao menos, esta vez Drizzt tinha um companheiro
com o que podia falar, um amparo contra a aparição do caçador. Colocou uma mão no bolso e acariciou a estatueta de ônix do Guenhwyvar. Possivelmente entre os três
poderiam conseguir algo mais que sobreviver na Antípoda Escura. Durante muito tempo, Drizzt se perguntou se não tinha atuado egoístico ao aceitar muito depressa
o oferecimento do Belwar. Mas a profunda alegria que sentia ao ver o muito honorável capataz partindo a seu lado apagava de sua mente qualquer idéia de culpa.
TERCEIRA PARTE
Amigos e inimigos
Viver ou sobreviver? Sem a segunda saída para as profundidades da Antípoda Escura, depois de minha estadia no Blingdenstone, jamais teria chegado a compreender a
importância desta pergunta tão singela. Quando saí do Menzoberranzan, pensava que bastava sobrevivendo, acreditava que podia me encerrar em mim mesmo, agasalhado
em meus princípios e satisfeito de ter tomado o único caminho correto. A alternativa era a terrível realidade do Menzoberranzan e a obediência às cruéis normatiza
que guiavam a minha gente. Acreditava que, se aquilo era viver, resultava preferível contentar-se com a sobrevivência. Entretanto, o mero feito de sobreviver quase
me matou. Ou, o que é pior, esteve a ponto de me roubar o que mais valorava. Os svirfneblis do Blingdenstone me ensinaram outra coisa diferente. A sociedade svirfnebli,
estruturada e sustentada pela unidade e os valores comuns, resultou ser todo aquilo que tinha sonhado para o Menzoberranzan. Os svirfneblis faziam muito mais que
sobreviver: viviam, riam e trabalhavam, e as lucros obtidas as compartilhavam entre todos, da mesma maneira que compartilhavam a dor das perdas que indevidamente
sofriam no mundo hostil das profundidades. A alegria se multiplica quando se compartilha com os amigos, mas a pena é menor em companhia. Assim é a vida. E assim,
quando saí do Blingdenstone, de retorno às cavernas solitárias da Antípoda Escura, fiz-o com esperança. A meu lado caminhava Belwar, meu novo amigo, e no bolso levava
o amuleto mágico para chamar o Guenhwyvar, meu leal amiga. Em minha breve estadia com os pequenos, tinha conhecido a vida que sempre tinha desejado, e já não podia
voltar a me conformar só sobrevivendo. Ao dispor da companhia de meus amigos, atrevi-me a pensar que não seria necessário.
DRIZZT DOU'URDEM
12
Aventuras, aventuras, aventuras
--Preparaste-o? --perguntou- Drizzt ao Belwar quando o capataz se reuniu com ele na sinuosa passagem. --Fiz o fossa do fogão --respondeu Belwar, golpeando orgulhoso
as mãos de mithril sem fazer muito ruído. Deixei as mantas enrugadas em um rincão e arranhei com as botas por toda parte. Sua bolsa está em um lugar onde não custará
muito encontrá-la. Inclusive deixei umas quantas moedas de prata entre as mantas; não acredito que vá necessitar as. O pequeno acompanhou estas últimas palavras
com
uma risita, mas Drizzt pôde ver que a seu amigo doía haver-se desprendido do metal precioso. --Um bom engano --felicitou-o Drizzt, para lhe fazer esquecer o sacrifício.
--E você o que tem feito, elfo escuro? --disse Belwar. ouviste ou viu algo? --Nada --respondeu Drizzt. Assinalou um dos túneis. enviei ao Guenhwyvar para que
explore a zona. Se houver alguém, não demoraremos para sabê-lo. --Boa idéia --comentou Belwar. Montar um falso acampamento bem longe do Blingdenstone manterá a
sua mãe se separada de minha gente. --E possivelmente convença a minha família de que ainda estou na região e que não tenho a intenção de partir --acrescentou Drizzt,
esperançado. pensaste aonde iremos? --Dá igual qualquer caminho --repôs o pequeno, abrindo os braços. Não há nenhuma cidade próxima, exceto as nossas. Ao menos,
que eu saiba. --Então, vamos para o oeste --propôs Drizzt. Rodearemos Blingdenstone e entraremos nas profundidades, na direção oposta ao Menzoberranzan. --Bem
pensado --disse o capataz. Belwar fechou os olhos e se concentrou nas emanações da pedra. Como muitas outras raças da Antípoda Escura, os pequenos podiam distinguir
as variações magnéticas da pedra, uma capacidade que lhes permitia seguir o rumo com tanta precisão como um habitante da superfície que se guiasse pelo sol. Ao cabo
de uns instantes, Belwar assentiu e assinalou o túnel adequado. --por ali se vai ao oeste --manifestou o pequeno. Vamos, depressa. Quanta mais distancia nos separe
de sua mãe, mais seguros estaremos todos. Fez uma pausa para olhar ao Drizzt durante um momento enquanto pensava se a próxima pergunta não seria uma intromissão
nos assuntos privados de seu novo amigo. --O que ocorre? --perguntou-lhe este ao ver a inquietação do pequeno. Belwar decidiu arriscar-se, só para descobrir até
que
ponto tinha chegado a intimidade entre eles dois. --Quando se inteirou de que você foi a causa da atividade drow nos túneis orientais --disse o pequeno, sem rodeios--,
pareceu-me ver que lhe tremiam os joelhos. Eles são sua família, elfo escuro. De verdade são tão terríveis?
A gargalhada do Drizzt convenceu ao Belwar de que não o tinha ofendido com a pergunta. --Vêem --respondeu Drizzt, ao ver que Guenhwyvar retornava da exploração.
Se tivermos acabado de preparar o acampamento falso, já é hora de dar os primeiros passos de nossa vida. O caminho que nos aguarda é muito comprido e teremos tempo
de sobra para as histórias a respeito de minha casa e minha família. --Espera! --disse Belwar. Colocou uma mão na bolsa e tirou um cofre pequeno. Um presente do
rei Schnicktick--explicou enquanto levantava a tampa e tirava um broche resplandecente, cuja suave luz alcançava para iluminar o terreno a seu redor. --Converterá-te
em um branco perfeito --comentou o drow, olhando assombrado ao capataz. --Converterá aos dois em brancos perfeitos --corrigiu-o o pequeno, com um tom de ironia.
Mas não tema, elfo escuro; a luz manterá mais inimigos a raia dos que pode atrair. Eu não gosto de pisar em caranguejos nem qualquer outro inseto que se arraste
pelo chão! --Quanto tempo brilhará? --perguntou Drizzt, e Belwar compreendeu pelo tom que o elfo desejava que se apagasse quanto antes. --O duomer é eterno --respondeu
Belwar, com um sorriso. A menos que algum sacerdote ou mago o apague. Deixa de preocupar-se. Conhece alguma criatura da Antípoda Escura capaz de entrar voluntariamente
em uma zona iluminada? Drizzt encolheu os ombros e decidiu confiar na experiência do capataz. --Muito bem --assentiu, sacudindo a larga juba branca. É hora de
iniciar nossa marcha. --É hora de caminhar e contar histórias --afirmou Belwar, ao tempo que punha-se a andar mais depressa do habitual para poder acomodar o passo
às largas e ágeis pernadas do drow. Caminharam durante muitas horas, fizeram um alto para comer, e voltaram a caminhar muitas mais. Algumas vezes Belwar utilizava
a luz do broche; outras vezes os amigos caminhavam na escuridão se percebiam a presença de algum perigo na zona. Guenhwyvar os acompanhava, embora não a viam com
freqüência porque a pantera fazia as funções de exploradora. Durante toda uma semana, os companheiros só se detiveram quando o cansaço ou a fome lhes impunham uma
pausa, pois desejavam afastar-se do Blingdenstone --e dos perseguidores do Drizzt-- todo o possível. Entretanto, demoraram uma semana mais em chegar a uma região
desconhecida para o pequeno. Belwar tinha sido capataz quase cinqüenta anos, e tinha dirigido as expedições mineiras que mais se afastaram do Blingdenstone. --Conheço
este lugar --comentava Belwar freqüentemente quando entravam em uma caverna, e acrescentava--: aqui encontramos ferro. E depois mencionava outros minerais preciosos
que Drizzt nunca tinha escutado mencionar. E, embora os intermináveis relatos do capataz sobre as expedições eram quase todos iguais (quantas maneiras de cortar
a pedra conheciam os pequenos?), Drizzt os escutava com muita atenção, sem perder-se nenhuma palavra. Conhecia a alternativa. Por sua parte, Drizzt lhe narrou as
aventuras
vividas na Academia do Menzoberranzan e compartilhou com ele suas afetuosas lembranças do Zaknafein e seu treinamento com as armas. Mostrou ao Belwar como se executava
o duplo golpe baixo e a parada que tinha descoberto para responder ao ataque, para surpresa e dor do professor. O jovem lhe explicou o complicado código de gestos
e movimentos manuais utilizado pelos elfos para comunicar-se em silêncio, e chegou a pensar em lhe ensinar ao pequeno a linguagem, mas descartou a idéia assim que
Belwar soltou uma gargalhada estentórea
e lhe mostrou as mãos metálicas. Provido com um martelo e uma lança em lugar de dedos era impossível que o capataz pudesse empregar o código. De todos os modos,
Belwar agradeceu a boa intenção do Drizzt, e os companheiros celebraram o absurdo do propósito com muitas risadas. Guenhwyvar e o pequeno não demoraram para fazer-se
amigos. Freqüentemente, quando Belwar dormia, a pantera se tornava com todo o peso sobre as pernas do pequeno, que despertava ao sentir o comichão da pele do animal.
O capataz sempre protestava e pegava ao Guenhwyvar na garupa com a mão-de-martelo --coisa que acabou convertendo-se em um jogo para os dois--, mas a verdade era
que ao Belwar não o incomodava absolutamente a companhia da pantera. De fato, a presença do Guenhwyvar o ajudava a conciliar o sonho porque o protegia dos muitos
perigos imprevistos da Antípoda Escura. Uma vez Drizzt sussurrou ao Guenhwyvar: --Entendeste-o? um pouco mais à frente, Belwar dormia muito tranqüilo, deitado no
chão e com uma pedra por travesseiro. O drow sacudiu a cabeça assombrado enquanto contemplava a seu amigo. Começava a acreditar que os pequenos se excediam um pouco
em sua afinidade com a terra. --Adiante --ordenou-lhe à pantera. Guenhwyvar avançou com passo elástico e se deixou cair sobre as pernas do capataz. Por sua parte,
Drizzt se ocultou na entrada de um túnel e espiou ao casal. Ao cabo de uns poucos minutos, Belwar despertou queixoso. --Magga cammara, pantera! --grunhiu o pequeno.
por que sempre te deita em cima de mim em lugar de fazê-lo a meu lado? Guenhwyvar só se moveu um pouco e respondeu ao protesto do Belwar com um sonoro suspiro. --Magga
cammara, animal! --rugiu o capataz. Moveu os dedos dos pés em um intento inútil por manter a circulação e aliviar o intumescimento das pernas. Te largue! Belwar
se incorporou apoiado em um cotovelo e lançou um golpe com a mão-de-martelo contra a garupa da pantera. antes de que o golpe pudesse chegar a tocá-la, Guenhwyvar
se afastou de um salto fingindo que fugia. Mas assim que o capataz se descuidou um instante, a pantera deu meia volta e se jogou sobre o pequeno, que se viu sepultado
debaixo do animal. depois de umas segundas de resistências, Belwar conseguiu tirar a cabeça ao ar livre. --te aparte de mim se não querer sofrer as conseqüências!
--chiou o pequeno. Sem preocupar-se da suposta ameaça, Guenhwyvar se acomodou melhor sobre o capataz. --Elfo escuro! --chamou Belwar sem atrever-se a gritar muito
forte. Elfo escuro, vêem aqui e te leve sua pantera. Elfo escuro! --Olá --respondeu Drizzt, que saiu do túnel como se acabasse de chegar. Outra vez estão jogando?
Acreditava que era hora de que me relevasse... --Agora mesmo vou substituir te --declarou Belwar, embora as palavras ficaram afogadas em parte pela espessa pele
da pantera quando esta se moveu uma vez mais. Drizzt viu como o pequeno franzia o farpado nariz irritado. --Não, não --apressou-se a dizer o drow. Não estou cansado,
e por nada do mundo interromperia seu jogo. Sei que o passam de maravilha --adicionou e, passando junto ao casal, aplaudiu ao Guenhwyvar na cabeça ao tempo que o
fazia uma piscada de cumplicidade. --Elfo escuro! --protestou Belwar a costas do Drizzt, mas este não lhe fez
caso e desapareceu no túnel. A pantera, com a bênção do drow, dormiu em questão de segundos. Drizzt se escondeu e permaneceu muito quieto, à espera de que seus olhos
passassem da infravisión --que lhe permitia ver as ondas de calor dos objetos no espectro infravermelho-- à visão normal no reino da luz. Inclusive antes de acabar
a mudança, Drizzt sabia que sua hipótese era correta. Adiante, além de uma arcada natural não muito alta, havia um resplendor avermelhado. O drow aguardou pequeno
antes de averiguar do que se tratava. Quase imediatamente, o suave brilho do broche encantado do capataz apareceu à vista. --Apaga a luz --sussurrou Drizzt, e o
brilho do broche desapareceu. Belwar avançou com muita cautela pelo túnel para reunir-se com seu companheiro. Ele também tinha visto o resplendor avermelhado além
da arcada e compreendia a precaução do elfo escuro. --Pode chamar à pantera? --perguntou Belwar. --A magia está limitada por períodos de tempo --respondeu Drizzt.
Guenhwyvar só pode mover-se no plano material durante umas horas. Depois precisa descansar. --Poderíamos retornar por onde viemos --propôs Belwar. Possivelmente
haja outro túnel que nos permita salvar o obstáculo. --percorremos oito quilômetros da última bifurcação --replicou Drizzt. São muitos para fazê-los outra vez.
--Então vejamos o que temos diante --decidiu o capataz, e pôs-se a andar. Drizzt, agradado pela atitude resolvida do pequeno, apressou-se a segui-lo. Ao outro lado
da arcada, que Drizzt teve que cruzar agachado, encontraram uma caverna muito grande, com as paredes e o chão estofados com algo que parecia musgo. Este era a origem
da luz vermelha. O elfo se deteve, intrigado, mas Belwar sabia o que era. --Baruchas! --gritou o capataz, divertido. voltou-se para o Drizzt e, ao ver que seguia
sério, explicou--: Escupidores granadas, elfo escuro. Fazia décadas que não via um grupo tão grande. Sabe?, não é algo muito corrente. Drizzt, sem advertir o perigo,
relaxou os músculos e avançou. Emano-pica-a do Belwar lhe enganchou um braço, e o pequeno o obrigou a voltar com um puxão brusco. --Escupidores granadas --repetiu
o capataz, pondo muita ênfase na primeira palavra. Magga cammara, elfo escuro, como pudeste sobreviver todos estes anos? Belwar se voltou e descarregou a mão-de-martelo
contra a parede da arcada; uma parte de rocha bastante grande caiu ao chão. Recolheu-a com a parte plaina da manopica e a jogou por volta de um dos flancos da caverna.
A pedra golpeou o musgo avermelhado com um som suave, e uma nuvem de fumaça e esporos se elevou no ar. --Cospem e lhe afogam com os esporos! --explicou Belwar.
Se tiver a intenção de passar por aqui, caminha com cuidado, meu valente e tolo amigo. Drizzt se arranhou a cabeça enquanto pensava no problema. Não gostava de caminhar
os oito quilômetros de volta pelo túnel, mas tampouco tinha a intenção de atravessar esse campo de morte vermelha. Sem apartar-se da arcada, olhou a sua redor em
busca de uma solução. Várias rochas, que podiam servir de passarela, elevavam-se entre as baruchas, e mais à frente havia um atalho de pedra de uns três metros de
largura que corria perpendicular à arcada através da caverna. --Podemos passar --disse-lhe ao capataz. Ali há um atalho espaçoso. --Sempre há um nos campos de
baruchas --resmungou Belwar quase para si mesmo, mas Drizzt ouviu o comentário. --O que quer dizer? --perguntou, enquanto saltava agilmente sobre a primeira das
pedras.
--por aqui ronda um manducador --explicou o pequeno. Ou pelo menos esteve aqui. --Um manducador? Drizzt, prudentemente, desceu da pedra para retornar junto ao capataz.
--Uma larva gigante --respondeu Belwar. Aos manducadores adoram as baruchas. Ao parecer são os únicos a quem não os incomoda as baruchas. --Como são de grandes?
--Que largo tem o atalho? --inquiriu Belwar. --Uns três metros --respondeu Drizzt, que se encarapitou outra vez à pedra para ver melhor. --O largo suficiente para
um manducador grande, dois como máximo --afirmou Belwar, depois de uma pausa. Drizzt abandonou o posto de observação e voltou junto ao pequeno, depois de assegurar-se
de que não havia mais perigos à vista. --Um verme muito grande --comentou. --Mas com a boca pequena --disse Belwar. Os manducadores só comem musgos, líquenes...
e baruchas, se as encontrarem. Em geral, são umas criaturas bastante pacíficas. Pela terceira vez, Drizzt escalou a pedra. --Há alguma coisa mais que deva saber
antes de seguir? --perguntou, irritado. Belwar sacudiu a cabeça. Drizzt encabeçou a marcha pelas pedras, e muito em breve os dois companheiros se encontraram no
meio do atalho, que atravessava a caverna e acabava com a entrada a uma passagem a cada lado. Drizzt assinalou a esquerda e direita, interessado em saber qual das
duas preferiria o pequeno. Belwar caminhou para a esquerda, mas se deteve bruscamente e olhou à frente. Drizzt compreendeu o hesitação do capataz, porque ele também
sentia as vibrações da pedra sob os pés. --Um manducador --anunciou Belwar. Não te mova e observa, meu amigo. É algo digno de ver. Drizzt sorriu com alegria e
se agachou, disposto a desfrutar de do entretenimento. Mas então ouviu uns passos apressados a suas costas, e suspeitou que algo não ia bem. --Aonde...? --começou
a perguntar Drizzt quando deu meia volta e descobriu que Belwar fugia para a outra saída. O drow se calou quando um ruído ensurdecedor como o de um desmoronamento
soou na entrada oposta. --É digno de ver! --ouviu que gritava Belwar, e não pôde negar a verdade das palavras do pequeno ao ver aparecer ao manducador. Era enorme
--maior que o alfavaca que ele tinha matado--e tinha o aspecto de um gigantesco verme cinza, exceto pela multidão de pequenas patas que se sobressaíam com o passar
do torso. Drizzt comprovou que Belwar não lhe tinha mentido, porque o monstro não tinha quase boca, nem garras nem nada capaz de fazer mal. Mas o gigante avançava
em linha reta para o Drizzt com má intenção, e o elfo se imaginou a si mesmo esmagado como uma lâmina contra o chão. Procurou uma das cimitarras, e então compreendeu
o absurdo de sua idéia. Onde tinha que ferir o verme para deter sua marcha? Abriu os braços em um gesto de renúncia e depois deu meia volta e pôs-se a correr desesperado
atrás do capataz. O chão se sacudia com tanta violência sob os pés do Drizzt que o drow se perguntou se não cairia fora do atalho para acabar entre as baruchas.
Naquele instante descobriu que ficava muito pouco para chegar ao final do túnel e pôde ver uma pequena passagem lateral, muito pequeno para o manducador, um pouco
além da caverna
das baruchas. Percorreu como uma exalação os últimos metros e se lançou de cabeça ao túnel pequeno, onde rodou pelo chão para diminuir o impacto, embora de todos
os modos se chocou com força contra a parede. Um segundo depois, o manducador investiu a boca do túnel, e uma chuva de pedras soltas castigou ao Drizzt. Quando se
dissipou a poeirada, o verme permanecia fora da passagem; emitia um gemido rouco e, de vez em quando, golpeava a cabeça contra a entrada. Belwar se encontrava um
pouco mais para o interior e contemplava ao Drizzt com os braços cruzados e um sorriso agradado no rosto. --De maneira que pacíficos, né? --grunhiu-lhe Drizzt, enquanto
ficava em pé e se sacudia o pó. --São-o --respondeu Belwar. Mas aos manducadores adoram as baruchas e não gostam das compartilhar. --Quase consegue que me esmague!
--protestou o drow. --Não o esqueça, elfo escuro --respondeu o capataz, sem negar a acusação--, porque a próxima vez que envie a sua pantera a me aporrinhar enquanto
durmo a vingança será terrível. Drizzt fez todo o possível para ocultar seu sorriso. O coração ainda lhe pulsava desbocado como conseqüência da descarga de adrenalina,
mas o jovem não estava zangado com seu companheiro. Recordou os enfrentamentos que tinha vivido uns poucos meses atrás, quando não tinha a ninguém. Que distinta
era a vida agora que contava com o Belwar Dissengulp! E muito mais agradável! Drizzt espiou por cima do ombro ao enfurecido e teimado manducador. E muito mais interessante!
--Vêem --acrescentou o svirfnebli, internando-se no túnel. Só conseguiremos enfurecê-lo ainda mais se permanecermos aqui. O túnel se estreitava e descrevia uma
curva fechada uns metros mais à frente. Assim que passaram a curva se encontraram com um novo problema; havia uma parede cega. Belwar se aproximou para inspecioná-la,
e esta vez foi o turno do Drizzt para cruzar os braços E burlar do pequeno. --Colocaste-nos em uma boa confusão, amiguito --disse o drow. Apanhados em um túnel sem
saída e com um manducador na entrada! O capataz apoiou uma orelha na pedra e fez um gesto ao Drizzt com a manomartelo para sossegar seus comentários. --Um estorvo
sem importância --assegurou-lhe o pequeno. Há outro túnel ao outro lado a uns dois mestros. --Dois metros de pedra --assinalou Drizzt. --Um dia --afirmou Belwar,
despreocupado. Estendeu os braços e começou a cantarolar em voz baixa. Drizzt não conseguia entender as palavras, embora compreendeu que o pequeno preparava um feitiço.
--Bivrip --gritou Belwar. Não ocorreu nada. O capataz se voltou para o Drizzt, ao parecer satisfeito com o resultado conseguido. --Um dia --repetiu. --O que tem
feito? --perguntou Drizzt. --Fiz zumbir as mãos --respondeu o pequeno. Ao ver que Drizzt não entendia nada, Belwar girou sobre os talões e descarregou a mão-de-martelo
contra a parede. Uma chuva de faíscas iluminou a estreita passagem e cegou ao Drizzt. Quando os olhos do drow se acomodaram à mudança, pôde ver que o svirfnebli
tinha escavado um buraco de quase um palmo de profundidade na rocha. --Magga cammara, elfo escuro! --gritou Belwar, com uma piscada. Não pensaria que minha gente
se tomaria o trabalho de me fazer umas mãos tão extraordinárias sem pôr
um pingo de magia nelas, verdade? --É uma caixa de surpresas, meu amigo --respondeu Drizzt com um suspiro resignado enquanto se apartava para sentar-se junto à parede.
--Assim é --rugiu Belwar e continuou com o trabalho. Tal como tinha prometido o capataz, ao dia seguinte conseguiram sair do fechamento, e reataram a marcha em direção
aproximada do norte, conforme estimou Belwar. A sorte os tinha acompanhado até agora, e ambos sabiam, porque tinham acontecido duas semanas nas profundidades sem
ter nenhum tropeço mais sério que o de topar com um manducador que protegia seus baruchas. Uns poucos dias depois, a sorte lhes deu as costas. --Chama à pantera
--urgiu Belwar ao Drizzt enquanto se escondiam no amplo túnel por onde caminhavam. O drow não vacilou em atender a petição do pequeno: a ele também o preocupava
o
resplendor verde que acabavam de ver. Ao cabo de uns segundos, apareceu a névoa negra e Guenhwyvar se uniu a eles. --Eu irei primeiro --disse Drizzt. Vós dois
me sigam, uns vinte passos mais atrás. Belwar assentiu, e Drizzt se voltou para iniciar a exploração. O elfo não se assombrou quando a mão-de-lança do pequeno lhe
enganchou
um braço e o fez girar. --Vê com cuidado --recomendou-lhe o capataz. Drizzt respondeu com um sorriso, comovido pela preocupação do amigo, e pensou uma vez mais em
quão maravilhoso era contar com um companheiro. Depois se afastou, deixando-se guiar pelo instinto e a experiência. Descobriu que o resplendor surgia de um buraco
no chão do túnel. um pouco mais à frente, havia uma curva tão fechada que o túnel parecia voltar sobre si mesmo. Drizzt se tornou de barriga para baixo e espiou
o interior do buraco. Outro corredor, a uns três metros de profundidade, corria paralelo ao superior, e se abria uns metros mais adiante no que parecia uma caverna
bastante grande. --O que é? --perguntou-lhe Belwar, assim que chegou a seu lado. --Outro túnel que comunica com uma caverna --respondeu Drizzt. O resplendor sai
dali. --Apartou a cabeça do buraco e olhou a escuridão do túnel superior. Nosso túnel continua --acrescentou. Poderíamos segui-lo. Belwar seguiu o olhar do Drizzt
e viu a curva. --Mas volta para trás --disse. É provável que desemboque naquele passadiço lateral que vimos faz questão de uma hora. O pequeno se tendeu no chão
e olhou pelo buraco. --Qual será a origem do resplendor? --inquiriu Drizzt, convencido de que Belwar compartilhava sua curiosidade. Algum outro mofo? --Nenhum
que eu conheça. --Averiguamo-lo? Belwar lhe sorriu; depois enganchou a mão-de-lança no bordo do buraco e se desprendeu, para cair agilmente no túnel inferior. Drizzt
e Guenhwyvar o seguiram em silêncio; o drow, com as cimitarras preparadas, tomou uma vez mais a dianteira enquanto caminhavam para o resplendor. Entraram em uma
caverna muito larga e tão alta que não alcançavam a ver o teto, com um lago de um líquido espesso, borbulhante e fedido a uns seis metros mais abaixo. Dezenas de
estreitas passarelas de pedra, com um largo que ia dos trinta centímetros aos três metros, formavam uma rede sobre o lago, e a maioria acabavam em saídas que comunicavam
com outros corredores laterais. --Magga cammara --sussurrou o svirfnebli pasmado. Drizzt compartilhava seu assombro. --É como se o estou acostumado a tivesse estalado
--comentou o drow quando recuperou a
voz. --Fundido --corrigiu-o Belwar, que tinha adivinhado a natureza do líquido. Agarrou uma pedra e, depois de tocar ao Drizzt no ombro para chamar sua atenção,
jogou-a no verde lago. O líquido vaiou ao receber o impacto, como se o embargasse a fúria, e a pedra se derreteu antes de chegar a inundar-se. --Ácido --explicou
o pequeno. Drizzt o olhou com curiosidade. Conhecia o ácido do tempo passado com os magos do Sorcere na Academia. Os magos freqüentemente preparavam estes líquidos
para utilizá-los nos experimentos de feitiçaria, mas o drow ignorava que o ácido pudesse existir em forma natural, ou em quantidades tão grandes. --Suponho que é
obra de algum mago --opinou Belwar. Um experimento fora de controle. Provavelmente, leva aqui um centenar de anos, liquidificando a pedra, centímetro a centímetro.
--De todos os modos, o que fica do estou acostumado a parece bastante seguro --manifestou Drizzt, assinalando as passarelas. E temos muitíssimos túneis onde escolher.
--Então escolhamos agora mesmo --disse Belwar. Eu não gosto de nada este lugar. Qualquer pode nos ver com esta luz, e não queria ter que correr por umas pontes
tão estreitas, sobre tudo com um lago de ácido debaixo! Drizzt assentiu e deu um primeiro passo por uma das passarelas, mas Guenhwyvar se apressou a adiantá-lo.
O elfo compreendeu a atitude da pantera e a agradeceu. --Guenhwyvar nos guiará --explicou ao Belwar. Pesa mais e a velocidade de reflexos lhe permitirá apartar-se
se houver algum desprendimento. --O que acontecerá Guenhwyvar não consegue ficar a salvo?--perguntou o capataz, preocupado pela segurança da pantera. Quais seriam
as conseqüências para uma criatura mágica se cair no ácido? --Guenhwyvar não teria por que sofrer nenhum dano --respondeu o elfo, não muito seguro da resposta. Tirou
a estatueta de ônix do bolso. Além disso, tenho o talismã de entrada a seu plano astral. A pantera já tinha avançado uma dúzia de metros, e a passarela parecia
resistente, de modo que Drizzt a seguiu. --Magga cammara, rogo para que esteja no certo --ouviu que dizia o pequeno a suas costas enquanto avançava pela passarela.
A caverna era enorme, e terei que percorrer vários centenares de metros para chegar à saída mais próxima. Os companheiros tinham caminhado pouco mais da metade --Guenhwyvar
já tinha cruzado-- quando ouviram uma estranha letanía. detiveram-se e olharam em redor, em busca da origem do som. Uma criatura muito estranho saiu de um dos numerosos
túneis laterais. Era bípede e de pele escura, com cabeça de pássaro e o torso de um homem, sem plumas nem asas. Os braços musculosos acabavam em garras de grande
tamanho, e os pés tinham três dedos como as aves. Uma segunda criatura apareceu na abertura e em seguida uma terceira. --São parentes? --perguntou- Belwar ao Drizzt,
porque a criatura parecia o produto do cruzamento entre o elfo escuro e um pássaro. --Não acredito --respondeu Drizzt. Em toda minha vida, jamais ouvi falar de
uns seres tão estranhos. --Morte, morte! --dizia o canto, e os amigos viram que mais homens-- pássaro saíam dos outros túneis. Eram os horrendos corbis das profundidades,
uma antiga raça mais comum nos limites sulinos da Antípoda Escura --embora estranhos inclusive ali-- e quase desconhecidos nesta parte do mundo. Os corbis nunca
tinham causado muitos problemas às outras raças da Antípoda Escura, porque eram primitivos e escassos em número. Entretanto, para uns aventureiros de passagem, um
bando de corbis selvagens significava um grande perigo.
--Eu tampouco os conhecia --disse Belwar. Mas acredito que não os agrada nossa presença. O cântico se transformou em um grito arrepiante enquanto os corbis se
dispersavam pelas passarelas, primeiro ao passo e logo ao trote, à medida que aumentava seu nervosismo. --Equivoca-te, meu amigo --comentou Drizzt. Penso que estão
muito contentes de ver que chegou a comida. Belwar olhou a seu redor sem saber o que fazer. Quase não ficavam passarelas livres e não podiam esperar sair dali sem
brigar. --Elfo escuro, me ocorrem um milhar de lugares mais apropriados para uma batalha --disse o capataz com tom resignado e um tremor enquanto jogava uma olhada
ao lago de ácido. Respirou com força para acalmar os nervos, e começou a letanía para enfeitiçar as mãos mágicas. --Caminha enquanto canta --aconselhou-lhe Drizzt.
Temos que nos aproximar todo o possível a uma saída antes de que comece a luta. Um grupo de corbis se dirigiu depressa para os companheiros, mas Guenhwyvar, com
um poderoso salto por cima de duas das passarelas, cortou-lhes o passo. --Bivrip! --gritou Belwar, completando o feitiço, e se voltou disposto para o combate. --Guenhwyvar
se ocupará daquele grupo --indicou Drizzt, sem deixar de correr para a parede mais próxima. O capataz compreendeu o raciocínio do drow; naquele instante, outro grupo
de homens--pássaro apareceu na saída que pretendiam alcançar. O impulso do salto do Guenhwyvar levou a pantera diretamente contra o grupo de corbis, e dois caíram
ao vazio. Os homens-pássaro gritaram se desesperados enquanto caíam para a morte, mas outros não mostraram nenhuma reação ante a perda. Sem deixar de gritar "Morte,
morte!" lançaram-se sobre o Guenhwyvar dispostos a afundar as afiadas garras no felino. A pantera contava com armas formidáveis, e cada zarpazo destroçava a um corbi
ou o fazia cair da passarela ao lago de ácido. Mas se Guenhwyvar era capaz de lutar sem quartel, o mesmo ocorria com os corbis, e cada vez eram mais os que se somavam
ao combate. Um segundo grupo de homens-pássaro apareceu pelo outro extremo da ponte e rodeou à pantera. Belwar se colocou em um lance muito estreito da passarela
e deixou que os corbis avançassem. Drizzt tomou uma rota paralela por outro das pontes situada a cinco metros de seu amigo, e desembainhou as cimitarras com certa
relutância. O drow podia sentir os instintos selvagens do caçador que tentavam dominá-lo à medida que se aproximava o momento de lutar, e os rechaçou com toda sua
força de vontade. Ele era Drizzt Dou'Urdem, não o caçador, e queria combater ao inimigo com o controle total de cada um de seus movimentos. Então os corbis lhe jogaram
em cima, dispostos a destroçá-lo com as garras, sem deixar de proferir seus gritos frenéticos. Drizzt se limitou a esquivá-los, e empregou o plano das cimitarras
para desviar os ataques. As cimitarras subiam, baixavam e giravam, mas o elfo, disposto a não ceder aos impulsos do caçador, não conseguia progressos na luta. depois
de vários minutos de combate ainda se batia com o primeiro corbi. Belwar não tinha tantas contemplações. Os corbis se lançavam um após o outro contra o pequeno svirfnebli,
só para ser detidos bruscamente pelos tremendos golpes da mão-de-martelo. A descarga elétrica e a potência do golpe eram
suficientes para matar ao atacante no ato, mas Belwar nunca se atrasava o suficiente para comprová-lo. depois de cada martelada, o pequeno utilizava a manopica para
varrer a sua última vítima da passarela. O svirfnebli tinha derrubado a meia dúzia de homens-pássaros antes de ter a ocasião de ver como foram as coisas ao Drizzt.
Imediatamente compreendeu o conflito interior que afetava a seu companheiro. --Magga cammara! --gritou Belwar. Luta, elfo escuro, e luta para ganhar! Não terão
piedade de nós! Não pense em uma trégua! Mata-os..., faz-os pedaços ou lhe esquartejarão! Drizzt apenas se escutou as palavras do Belwar. Tinha os olhos alagados
pelo pranto, embora não por isso diminuía a velocidade de suas armas mágicas. Surpreendeu ao rival fora de equilíbrio e investiu a cimitarra para golpear ao homem-pássaro
na cabeça com o punho. O corbi se desabou como uma pedra e rodou pelo chão. A ponto esteve de cair ao vazio, mas Drizzt se adiantou para sujeitá-lo. Belwar sacudiu
a cabeça assombrado e rechaçou a outro adversário. O corbi deu um passo atrás, com o peito queimado e fumegante pelo brutal impacto da mão-de-martelo. O homem-pássaro
olhou ao pequeno atônito, e não chiou nem se moveu quando a mão-de-lança o enganchou pelo ombro e o jogou de cabeça ao lago de ácido. Guenhwyvar deixou com as vontades
aos famintos atacantes. Quando os corbis estreitaram o círculo, convencidos de que tinham à presa, a pantera se escondeu e saltou. O animal sulcou o ar, tenuemente
iluminado de verde, como se voasse e aterrissou em outra passarela uns dez metros mais à frente. Guenhwyvar escorregou na pedra polida, mas no último instante conseguiu
frear justo no bordo. Os corbis a contemplaram atônitos e em silêncio só por um segundo, e depois voltaram a chiar e a gemer enquanto corriam pelas passarelas para
lhe dar alcance. Um corbi solitário, que se encontrava perto do lugar onde tinha aterrissado Guenhwyvar, avançou em um ataque suicida que concluiu quando a pantera
lhe afundou os dentes no pescoço. Mas enquanto o animal permanecia ocupado, os corbis puseram em prática uma armadilha sinistra. De uma cornija situada muito perto
do teto da caverna, um corbi viu que tinha a uma vítima em posição e, rodeando com os braços uma rocha de grande tamanho, jogou-a no vazio sem soltá-la. No segundo
último, Guenhwyvar advertiu a queda do projétil e se apartou. O corbi, dominado pelo êxtase suicida, não se preocupou. O homem-pássaro se estrelou contra o chão,
e o impacto da pedra fez pedacinhos a passarela. A pantera tentou saltar, mas a pedra se desintegrou antes de que pudesse afirmar as patas. As garras do Guenhwyvar
procuraram inutilmente um ponto de apoio enquanto seguia ao corbi e à rocha na queda até o lago de ácido. Para ouvir os gritos triunfais dos homens-pássaro a suas
costas, Belwar se voltou a tempo para ver a queda da pantera. Em troca Drizzt, muito ocupado naquele momento porque outro corbi o atacava enquanto o desacordado
começava a recuperar o conhecimento entre seus pés, não advertiu a tragédia. Mas o drow não precisava ver. A estatueta no bolso do Drizzt se esquentou ao vermelho
vivo, e uma voluta de fumaça se desprendeu do piwafwi. Drizzt compreendeu no ato o destino da querida Guenhwyvar. Entreabriu os olhos, e o fogo que apareceu neles
evaporou as lágrimas. Cedeu com gosto aos instintos do caçador. Os corbis lutavam com sanha. A maior glorifica de sua existência era morrer em combate, e os mais
próximos ao Drizzt descobriram muito em breve que tinha chegado o momento de cobrir-se de honras. O drow cravou suas cimitarras nos olhos do corbi que tinha diante,
e em seguida as afundou no corpo do homem-pássaro cansado na passarela. Tirou os aços das
feridas para descarregar outro cutilada, e sentiu com satisfação como se abria a carne da vítima. Então o drow avançou contra os corbis, lançando estocadas desde
todos os ângulos possíveis. Ferido uma dúzia de vezes antes de ter podido lançar uma patada, o primeiro corbi morreu antes de tocar o chão. Depois caíram um segundo
e um terceiro. Quando Drizzt os obrigou a retroceder até uma parte mais larga da passarela, atacaram-no em grupos de três. Morreram em grupos de três. --Acaba com
eles, elfo escuro --murmurou Belwar, ao ver que por fim seu amigo entrava em ação. O corbi que se dispunha a lançar-se sobre o capataz voltou a cabeça para ver o
que tinha chamado a atenção do rival. Quando olhou outra vez à frente, recebeu no rosto o golpe da mão-de-martelo. Partes do pico saltaram em todas as direções,
e o desafortunado corbi foi o primeiro de sua espécie em voar em vários milênios de evolução. Em sua curta excursão aérea empurrou a seus companheiros, apartando-os
do pequeno, e logo aterrissou morto, a vários metros do Belwar. O enfurecido pequeno não tinha acabado ainda com o rival. Pôs-se a correr e lançou ao vazio ao único
corbi que saiu a seu encontro. Quando chegou junto ao homem-pássaro sem pico, Belwar lhe cravou a mão-de-lança no peito e o levantou no ar com um só braço, ao tempo
que soltava um grito estremecedor. Outros corbis vacilaram. Belwar olhou ao Drizzt, e o coração lhe deu um tombo. Uma vintena de corbis se amontoavam na parte mais
larga da passarela onde o elfo se feito forte. Uma dúzia de mortos jaziam a seus pés, e o sangue que se derramava pelo bordo provocava estalos no lago de ácido cada
vez que uma gota tocava a superfície. Mas não era o número de inimigos o que preocupava ao Belwar, pois resultava evidente que Drizzt, graças a sua incrível perícia
no manejo das armas, levava as de ganhar. Entretanto, nas alturas outro corbi e sua pedra tinham iniciado um descida suicida. Belwar compreendeu que Drizzt estava
a ponto de morrer. O caçador advertiu o perigo. Um corbi tentou sujeitar ao drow, mas as cimitarras relampejaram, e os dois braços do homem-pássaro caíram ao chão.
No mesmo movimento, Drizzt devolveu as armas ensangüentadas às bainhas e correu para o bordo da plataforma. Com um salto prodigioso voou para o Belwar, enquanto
o
corbi suicida montado na rocha se estrelava no chão e arrastava com ele ao lago de ácido boa parte da passarela junto com uma vintena de seus congêneres. Belwar
lançou seu troféu aos corbis que tinha diante e se deixou cair de joelhos, com a mão-de-lança estendida em um intento por ajudar ao amigo. Drizzt conseguiu sujeitar-se
da mão do capataz e do bordo ao mesmo tempo, embora não pôde evitar que seu rosto me chocasse contra a pedra. O golpe rasgou o piwafwi, e Belwar observou impotente
como a estatueta de ônix saltava do bolso e caía para o ácido. Drizzt a apanhou entre os pés. Belwar quase pôs-se a rir ante a inutilidade de tantos esforços. Olhou
por cima do ombro e viu os corbis que reatavam o avanço. --me balance! --grunhiu Drizzt com tal tom de mando que Belwar o obedeceu antes de dar-se conta do que fazia.
O drow se separou da parede e depois, impulsionado pelo movimento pendular, aproximou-se a grande velocidade à passarela. Ao aproximar-se do bordo utilizou todos
os músculos do corpo para acrescentar potência ao salto. Assim que conseguiu encarapitar-se, rodou pelo chão para situar-se atrás do
anão. Para o momento em que Belwar advertiu a manobra do Drizzt e pensou em voltar-se, o elfo já tinha empunhado as cimitarras e derrubava ao primeiro corbi. --isto
sustento --pediu-lhe Drizzt a seu amigo, lhe lançando a estatueta com a ponta do pé. Belwar se apressou a agarrá-la e a guardou em um bolso. Depois o pequeno se
apartou
para vigiar a retaguarda, enquanto Drizzt se ocupava de limpar o caminho até a saída mais próxima. Cinco minutos mais tarde, para grande assombro do capataz, corriam
por um túnel às escuras e os gritos de "Morte, morte!" soavam cada vez mais longe.
13
Em busca de lar
--Basta, basta! --ofegou o pequeno enquanto tentava que seu companheiro deixasse de correr. Magga cammara, elfo escuro. Faz muito que os perdemos de vista. Drizzt
se voltou para o capataz, com as cimitarras preparadas e um brilho furioso em seus olhos lilás. Belwar, precavido, apartou-se depressa. --Tranqüilo, meu amigo --disse
o svirfnebli sem elevar a voz, com as mãos de mithril levantadas se por acaso era necessário defender-se. Já não há ninguém que nos ameace. Drizzt respirou com
força para acalmar-se e, ao ver que ainda empunhava as cimitarras, apressou-se às embainhar. --Está bem? --perguntou-lhe Belwar, aproximando-se outra vez ao Drizzt.
O sangue das feridas que se feito ao golpear-se contra o bordo da passarela manchava o rosto do drow. --É culpa da briga --justificou-se Drizzt. A excitação. Tinha
que... --Não precisa dar explicações --interrompeu-o Belwar. Tem-no feito muito bem, elfo escuro. Estupendo. Desde não ter sido por suas ações, os três teríamos
cansado ao lago de ácido. --Dominou-me --gemeu Drizzt, procurando as palavras que pudessem expressar melhor os sentimentos. É a parte escura de minha personalidade.
Pensava que tinha desaparecido para sempre. --E assim é --afirmou o capataz. --Não --replicou Drizzt. Aquela besta cruel em que me tinha convertido me possuiu
totalmente na luta contra os homens-pássaro. Guiou minhas espadas, com selvageria e sem nenhuma piedade. --Você guiou as espadas --assegurou-lhe Belwar. --Mas a
fúria
me dominava --disse Drizzt. Uma fúria cega. Quão único desejava era matá-los, fazê-los pedaços. --Se o que diz fosse certo, ainda estaríamos ali--declarou o svirfnebli.
Graças a suas ações, pudemos escapar. Ainda ficam ali muitos hombrespássaro vivos, e entretanto você saiu da caverna. Fúria? Possivelmente, mas não cega. Fez o que
devia, e sem falhas, elfo escuro. Melhor que qualquer que conheça. Não tem que te desculpar, nem ante mim nem ante ti mesmo! Drizzt se apoiou na parede e refletiu
nas palavras do pequeno. Consolavam-no e agradecia os esforços do capataz, mas o remoía a raiva que tinha experiente quando Guenhwyvar caiu no lago de ácido, uma
emoção
tão assustadora que não conseguia sobrepor-se. perguntou-se se o faria alguma vez. Apesar de seu desassossego, Drizzt se sentiu reanimado pela presença do svirfnebli.
Recordou os episódios dos últimos anos, as batalhas que tinha liberado a sós. Então, como agora, o caçador tinha passado a primeiro plano e tinha guiado os golpes
mortais das cimitarras. Mas esta vez se produziu uma diferença que Drizzt não podia deixar de ver. Antes, quando estava sozinho, não tinha podido afastar ao
caçador. Agora, com o Belwar a seu lado, Drizzt tinha recuperado o controle sem problemas. Sacudiu a larga cabeleira branca, em um intento por afastar os últimos
vestígios da personalidade do caçador. pontuou-se a si mesmo de parvo pela maneira em que tinha iniciado a batalha contra os homens-pássaro, atacando-os com as cimitarras
de plano. Belwar e ele ainda teriam estado na caverna de não ter sido porque seus instintos o tinham guiado, de não haver-se informado da queda da pantera. de repente
olhou ao Belwar, ao recordar o motivo da fúria. --A estatueta! --gritou. Tem-na você. --Magga cammara! --exclamou o svirfnebli, com a voz dominada por um pânico
repentino, enquanto tirava o objeto do bolso. Crie que estará ferida? O ácido teria sido capaz de machucar ao Guenhwyvar? Terá conseguido escapar ao plano astral?
Drizzt agarrou o talismã com mãos trementes e o examinou. consolou-se em parte para ver que não tinha nenhuma marca. O drow pensou que não devia chamar à pantera;
se estava ferida, sem dúvida se recuperaria melhor em seu próprio plano de existência. Mas Drizzt desejava saber qual tinha sido o destino do Guenhwyvar. Depositou
a figura no chão junto aos pés e chamou brandamente. O drow e o svirfnebli suspiraram aliviados quando a névoa se formou ao redor da estatueta de ônix. Belwar tirou
o broche encantado para poder ver melhor ao felino. Esperava-lhes um espetáculo lamentável. Obediente e leal, Guenhwyvar respondeu à chamada do Drizzt, mas assim
que o elfo viu a pantera, compreendeu que não deveria havê-la chamado, para que tivesse podido curar suas feridas em paz. A sedosa pele do Guenhwyvar aparecia queimada,
e se viam mais partes de epiderme abrasada que cabelo. Os músculos penduravam destroçados, queimados até o osso, e parecia ter perdido um olho. Guenhwyvar trastabilló
quando tentou aproximar-se do Drizzt, quem, ao vê-la em semelhante estado, correu para ela e lhe rodeou o pescoço com os braços. --Guen --murmurou. --Curará-se?
--perguntou Belwar em voz baixa, quase a ponto de tornar-se a chorar com cada palavra. Drizzt sacudiu a cabeça sem saber o que dizer. Em realidade sabia muito poucas
coisas da pantera além de seus méritos como jaqueta. Tinha visto o animal ferido em outras ocasiões, mas nunca de tanta gravidade. Agora só podia confiar em que
as propriedades mágicas do plano original lhe permitissem uma recuperação rápida. --Volta para sua casa --disse Drizzt. Descansa e te cure, amiga minha. Chamarei-te
dentro de uns dias. --Possivelmente possamos fazer algo para ajudá-la --sugeriu Belwar. --A melhor padre para o Guenhwyvar é o descanso --respondeu o drow, enquanto
a pantera se esfumava na névoa. Não podemos fazer nada por ela que lhe sirva no outro plano. Consome grande quantidade de energia cada vez que entra em nosso mundo.
Pagamento um pesado tributo por cada minuto que está conosco. Guenhwyvar tinha desaparecido. Drizzt recolheu a estatueta e a observou durante um momento muito comprido
antes de resignar-se a guardá-la no bolso. Uma espada lançou a manta ao ar, e depois, ajudada pela outra, cortou-a e atravessou até reduzi-la a farrapos. Zaknafein
jogou um olhar às moedas de prata no chão. Um simulacro áspero, mas o acampamento, e a possibilidade de que Drizzt voltasse ali, tinham retido o Zaknafein durante
vários dias. Drizzt Dou'Urdem se tinha ido, e se tinha tomado muitas moléstias para anunciar que deixava Blingdenstone. O espectro fez uma pausa para considerar
esta nova informação, e a necessidade de pensar, de apelar ao ser racional que Zaknafein tinha sido e não limitar-se ao nível instintivo, produziu o inevitável conflito
entre o ser não morto e
o espírito que o mantinha cativo. Em sua hall, a matrona Malícia Dou'Urdem sentia a luta no interior de sua criação. No zin-Carla, o controle do espectro era responsabilidade
da mãe matrona que tinha recebido o presente da rainha aranha. Malícia devia trabalhar muito duro para manter o domínio, tinha que utilizar uma sucessão de feitiços
e letanías para interpor-se entre os processos mentais do espectro e as emoções e a alma do Zaknafein Dou'Urdem. O espectro se sacudiu ao perceber a intrusão da
poderosa vontade de Malícia, sem poder fazer nada para opor-se. Em questão de segundos, o espectro começou a inspecionar a pequena caverna que Drizzt e outro ser,
provavelmente um pequeno, tinham preparado como se fosse um acampamento. Fazia semanas que se partiram, e sem dúvida se afastavam do Blingdenstone a toda pressa.
O
mais lógico, pensou o espectro, era supor que também se afastavam do Menzoberranzan. Zaknafein deixou a caverna e entrou no túnel principal. Cheirou para o este,
em direção ao Menzoberranzan; depois deu meia volta, ficou em cuclillas e voltou a cheirar. Os feitiços de localização dos que o tinha imbuído Malícia não podiam
cobrir distâncias tão grandes, mas o débil rastro que percebeu o espectro foi suficiente para confirmar as suspeitas. Drizzt se dirigia ao oeste. Zaknafein se afastou
pelo túnel, sem a mais mínima claudicação pela ferida infligida pela lança do goblin, uma lesão que teria incapacitado de por vida a um ser humano. Drizzt levava
uma vantagem de uma semana, possivelmente dois, mas isto não representava um inconveniente para o espectro. A presa precisava dormir, tinha que descansar e comer.
Era um ser vivo, mortal e, portanto, débil. --Que classe de ser é aquele? --sussurrou- Drizzt ao Belwar enquanto observavam à estranha criatura bípede que enchia
cubos na rápida corrente de um arroio. Todos os túneis do setor apareciam iluminados por uma luz mágica, embora Drizzt e Belwar se consideravam seguros entre as
sombras de um saliente rochoso a uns cinqüenta metros da figura encurvada. --Um homem --respondeu Belwar. Um humano da superfície. --Está muito longe de sua casa
--comentou Drizzt. Entretanto, parece encontrar-se a gosto com o entorno. Jamais tivesse acreditado que um habitante pudesse sobreviver na Antípoda Escura. Vai
contra tudo o que aprendi na Academia. --É provável que seja um bruxo --opinou Belwar. Isto explicaria a iluminação na zona, e o fato de que esteja aqui. Drizzt
olhou ao svirfnebli, intrigado. --Os magos são uma gente muito estranha --explicou o pequeno, como se fosse uma verdade evidente. E, conforme ouvi dizer, os magos
humanos mais que qualquer outro. Os feiticeiros drows procuram o poder. Seus colegas svirfneblis estudam para melhorar os conhecimentos das pedras. Mas os magos
humanos..., Magga cammara, elfo escuro, os magos humanos são uma panda muito estranho! --acrescentou o pequeno, com um evidente tom de desdém na voz. --Qual é o
propósito
que guia aos magos humanos? --perguntou o drow. --Não acredito que ninguém tenha podido ainda descobrir a razão --repôs Belwar, com toda sinceridade. Os humanos
som uma raça estranha e imprevisível, e o melhor é não meter-se com eles. --conheceste a algum? --A uns quantos. --Belwar tremeu como se a lembrança não fosse muito
agradável. Traficantes da superfície. Gente feia e arrogante. Pensam que o mundo
pertence-lhes. Sem dar-se conta, Belwar tinha falado mais alto do que pretendia, e a figura junto ao arroio moveu a cabeça na direção onde se encontravam os companheiros.
--Saiam daí, pequenos roedores! --gritou o humano em uma linguagem incompreensível para os dois amigos. O mago repetiu as palavras em outro idioma, depois em drow,
a seguir em outros dois também desconhecidos, e logo em svirfnebli. Ao não ter resposta provou vários mais, enquanto Drizzt e Belwar se olhavam incrédulos. --É um
homem culto --comentou-lhe Drizzt ao pequeno. --Malditos ratos --murmurou o humano, que olhou em redor procurando a maneira de fazer sair aos roedores de seu esconderijo,
na crença de que podiam lhe proporcionar uma boa comida. --Averigüemos se for amigo ou inimigo --sussurrou Drizzt, e se moveu para sair do esconderijo. Belwar o
deteve, vacilante, mas ao fim, deixando-se levar pela intuição, encolheu os ombros e deixou ir ao elfo escuro. --Saúde, humano que está tão longe de seu lar --disse
Drizzt em sua língua nativa, ao tempo que se separava das rochas. O humano mostrou uma expressão de assombro e se mesó violentamente a espaçada barba branca. --Não
é um rato! --chiou o mago utilizando um drow afetado mas compreensível. --Não --respondeu Drizzt. Olhou ao Belwar, que o seguia para reunir-se com ele. --Ladrões!
--gritou o humano. viestes para roubar minha casa, não é assim? --Não --repetiu Drizzt. --Parte ! --vociferou o homem, movendo as mãos como um granjeiro que espanta
às galinhas. Parte. Vamos, depressa! Drizzt e Belwar intercambiaram um olhar de desconcerto. --Não --insistiu Drizzt. --Esta é minha casa, estúpido elfo escuro!
--afirmou o humano. Pedi-te que viesse? Enviei-te uma carta te convidando a vir? Ou é que você e seu horrível amigo lhes criem obrigados a me dar a bem-vinda à
vizinhança? --Cuidado, drow --sussurrou Belwar enquanto o humano continuava com seus disparates. Não há dúvida de que é um mago, e que não está em seus cabais.
--Acaso os drows e os pequenos me têm medo? --acrescentou o homem quase para si mesmo. Sim, certamente. inteiraram-se de que eu, Brister Fendlestick, decidi viver
nas profundidades da Antípoda Escura e uniram forças para proteger-se de minha presença. Sim, sim, agora está claro e é verdadeiramente lamentável. --Enfrentei-me
outras vezes aos magos --informou- Drizzt ao Belwar. Confiemos em poder arrumar este assunto sem violência. Em qualquer caso, advirto-te que não tenho intenção
de retornar por onde viemos. --Belwar assentiu muito sério enquanto Drizzt se voltava para o homem. Talvez possamos convencer o de que nos deixe passar. O mago
se sacudiu como se estivesse a ponto de estalar. --Muito bem! --gritou de repente. Pois não vão! Drizzt compreendeu que era impossível raciocinar com este personagem
e avançou, disposto a aproximar-se todo o possível antes de que o mago pudesse atacá-lo. Mas o humano tinha aprendido a sobreviver na Antípoda Escura, e as defesas
já estavam dispostas muito antes de que Drizzt e Belwar saíssem do esconderijo. Moveu as mãos e pronunciou uma palavra que os companheiros não
entenderam. Um dos anéis que levava resplandeceu com força e soltou uma pequena bola de fogo que flutuou entre ele e os intrusos. --Bem-vindos a minha casa! --vociferou
o mago, em um tom de brincadeira. A ver o que lhes parece isto! Estalou os dedos e desapareceu. Drizzt e Belwar puderam sentir como a esfera luminosa se carregava
de energia. --Corre! --gritou o capataz, e deu meia volta para fugir. No Blingdenstone, a magia consistia em sua maior parte em truques de ilusionismo, pensados
para a defesa. Mas no Menzoberranzan, onde Drizzt tinha aprendido os rudimentos do ofício, os feitiços tinham um caráter ofensivo. O elfo conhecia o perigo que representava
aquela bola, e sabia que era inútil pretender esquivá-la nos túneis. --Não! --disse ao tempo que agarrava ao Belwar pelas costas da jaqueta de couro e o arrastava
em linha reta para a esfera. O pequeno confiava no Drizzt, assim deu meia volta e correu junto a seu amigo. O capataz compreendeu o plano do drow assim que apartou
o olhar da bola de fogo. Drizzt corria para o arroio. Os amigos se mergulharam na água, sem preocupar-se dos golpes contra as pedras, no mesmo momento em que estalava
o projétil mágico. Um instante depois, saíram da água fervendo, com os objetos chamuscados nas partes que não tinham ficado inundadas. Durante uns segundos tossiram
e tiveram problemas para respirar porque as chamas tinham consumido quase todo o ar da caverna e o calor residual das pedras resultava insuportável. --Humanos --resmungou
Belwar, zangado. Caminhou até a borda e se sacudiu vigorosamente. Drizzt saiu detrás dele e pôs-se a rir, coisa que ao pequeno não lhe fez muita graça. --Recorda
ao
mago --disse-lhe ao drow, que imediatamente se agachou e olhou a seu redor, inquieto. ficaram em marcha sem perder nem um segundo. --Nosso lar! --proclamou Belwar
um par de dias mais tarde. Os dois amigos contemplaram de uma cornija estreita a ampla e alta caverna que albergava um lago subterrâneo. detrás deles havia outra
caverna com três câmaras e uma só entrada muito pequena, fácil de defender. Drizzt subiu os três metros ou pouco mais que o separavam do capataz. --Possivelmente
--disse sem comprometer-se--, embora o mago só está a uns poucos dias de marcha. --te esqueça do humano --grunhiu Belwar, com o olhar posto na parte chamuscado da
jaqueta que tanto apreciava. --E tampouco me entusiasma ter um lago tão grande a uns passos da porta --acrescentou Drizzt. --Cheio de peixes! --assinalou o pequeno.
E com musgos e novelo que nos encherão a barriga, e água bastante pura. --Mas um oásis como este atrairá visitantes --sustentou Drizzt. Penso que não desfrutaremos
de muito descanso. Belwar jogou um olhar à parede atalho a pico até o chão da grande caverna. --Isso nunca foi um problema --disse com uma risita. Os grandes não
poderão chegar até aqui, e quanto aos pequenos... bom, vi como cortam suas espadas, e você viu a força de minhas mãos. Eu não me preocuparia dos pequenos! Ao Drizzt
gostava da confiança do svirfnebli, e devia admitir que não havia
encontrado outro lugar adequado para instalar-se. A água, escassa e a maioria das vezes não potável, era um bem precioso na aridez da Antípoda Escura. Com o lago
e a vegetação nos arredores, Drizzt e Belwar não teriam que caminhar muito para conseguir comida. Drizzt estava a ponto de manifestar sua aprovação quando um movimento
na borda do lago chamou a atenção dos companheiros. --E caranguejos! --exclamou o svirfnebli, com um entusiasmo que o elfo não compartilhava. Magga cammara, elfo
escuro! Caranguejos! O bocado mais delicioso que possa imaginar! Um caranguejo tinha saído das águas do lago; um monstro gigantesco de quase quatro metros de comprimento
e pinzas capazes de partir em dois a um humano, quão mesmo a um elfo ou um pequeno. Drizzt olhou ao Belwar, incrédulo. --Um bocado? --perguntou. Um sorriso de orelha
a orelha iluminou o rosto do capataz, que golpeou as mãos metálicas com grande estrépito. Aquela noite jantaram carne de caranguejo, e também ao dia seguinte, e
ao outro, e ao outro, e Drizzt acabou por reconhecer que a cova junto ao lago subterrâneo era um lar magnífico. O espectro se deteve para contemplar o campo iluminado
pelo resplendor avermelhado. Em vida, Zaknafein Dou'Urdem teria evitado o lugar, consciente do perigo das cavernas luminosas e os musgos fosforescentes. Mas ao espectro
só lhe interessava o rastro; Drizzt tinha passado por aqui. O ser caminhou entre as baruchas, sem fazer caso das nuvens de esporos tóxicos que levantava cada passo,
esporos que envenenavam os pulmões de qualquer que respirasse. Mas Zaknafein não precisava respirar. Então se escutou o retumbar de um trovão quando o manducador
apareceu para proteger seus domínios. Zaknafein adotou uma postura defensiva porque seus instintos lhe advertiram do perigo. O manducador percorreu o campo de musgo
sem notar a presença do intruso. De todos os modos não se retirou; já que agora desfrutaria de uma boa ração de baruchas. Quando o verme gigante chegou ao centro
da caverna, o espectro deixou que se dissipasse o feitiço de levitação. Zaknafein aterrissou no lombo do monstro, e apertou bem as pernas. O manducador se encabritou
e correu de um lado para outro para tirar-se de cima ao atacante, mas Zaknafein nem se moveu. A pele do manducador era grossa e dura, capaz de repelir todo tipo
de
armas exceto as espadas do Zak. --O que foi isso? --perguntou Belwar um dia, interrompendo a construção de uma porta nova para a caverna. Drizzt, que se achava na
borda do lago, também devia ter ouvido o ruído, porque tinha deixado cair o casco que empregava para recolher água, e tinha empunhado as cimitarras. Levantou uma
mão como sinal para que o capataz permanecesse em silêncio; depois subiu à cornija para falar com seu companheiro. O som, um toco castanholas muito forte, soou outra
vez. --Sabe o que é, elfo escuro? --sussurrou Belwar. --Oseogarfíos --respondeu. Têm o ouvido mais fino de toda a Antípoda Escura. Drizzt não fez nenhum comentário
referente ao único encontro que tinha tido com esta classe de monstros. Tinha sido durante um exercício de vigilância, quando ele guiava a sua classe da Academia
pelos túneis dos subúrbios do Menzoberranzan. A
patrulha tinha encontrado a um grupo das enormes criaturas bípedas, com exoesqueletos duros como o aço e dotados com picos e garras poderosas. Graças às façanhas
do Drizzt, tinham saído vitoriosos, mas o jovem recordava sobre tudo o convencimento de que os professores da Academia tinham planejado o encontro como parte do
exercício e que não tinham vacilado em sacrificar a um pobre menino drow para acrescentar realismo à prova. --Vamos buscá-los --acrescentou Drizzt, decidido. Belwar
conteve o fôlego ao ver o brilho nos olhos lilás do drow. --Os oseogarfios são rivais de cuidado --explicou o elfo, atento à inquietação do pequeno. Não podemos
permitir que permaneçam na região. Guiado pelo toco castanholas, Drizzt não teve dificuldades para encontrá-los. Em silêncio passou pela última curva com o Belwar
quase pego aos talões. Em uma parte mais larga do túnel havia um oseogarfio solitário que golpeava as garras ritmicamente contra a pedra como se fosse um mineiro
svirfnebli utilizando o pico. Drizzt conteve ao Belwar e lhe indicou que ele se bastava para acabar com o monstro se conseguia aproximar-se sem ser descoberto. O
pequeno assentiu, embora se manteve alerta se por acaso era necessária sua intervenção. O oseogarfio, muito entretido com o jogo, não ouviu nem viu o cauteloso avanço
do drow. Drizzt se situou detrás mesmo do monstro, e procurou a forma mais rápida e segura de matá-lo. Só descobriu uma fresta no exoesqueleto, uma greta entre o
peitoral e o pescoço. Entretanto, colocar a espada por ali não seria coisa fácil porque o ser media três metros de estatura. Mas o caçador encontrou a solução. lançou-se
com todas as forças contra a parte de atrás dos joelhos do oseogarfio; assim que os ombros entraram em contato, levantou as cimitarras para procurar as virilhas.
Ao monstro lhe dobraram as pernas e caiu de costas sobre o drow que, com a agilidade de um gato, rodou sobre si mesmo e se levantou para montar-se sobre o cansado;
um segundo depois, as pontas das cimitarras se deslizaram pela greta da armadura. Poderia ter acabado com o oseogarfio no ato; só bastava empurrar as cimitarras
para que se afundassem no pescoço. Mas Drizzt viu algo --terror?-- no rosto do oseogarfio, algo na expressão da criatura que não deveria ter estado ali. Conteve
o instinto do caçador, tomou o controle das armas, e vacilou um instante, o suficiente para que o oseogarfio, para assombro do Drizzt, dissesse claramente e em correto
idioma drow: --Por favor..., não... me... mate!
14
Clak
As cimitarras se apartaram lentamente do pescoço do oseogarfio. --Não... sou... o que pareço --tratou de explicar o monstro. Com cada palavra que pronunciava, o
oseogarfio parecia dominar melhor o idioma. Sou um... pek. --Um pek? --exclamou Belwar, aproximando-se do Drizzt. O svirfnebli olhou ao prisioneiro, desconcertado.
É um pelín grande para ser um pek --comentou. Drizzt se voltou para o pequeno para pedir uma explicação. Não tinha escutado nunca aquele nome. --Criaturas da rocha
--disse-lhe Belwar. Uns seres pequenos e bastante curiosos, duros como a pedra, que não vivem mais que para trabalhá-la. --Soa a svirfnebli --opinou Drizzt. Belwar
fez uma pausa para pensar em se se tratava de um completo ou de um insulto. Incapaz de distingui-lo, o capataz acrescentou com um pouco mais de cautela: --Não há
muitos peks, e muito menos que se pareçam com este! Olhou ao oseogarfio com desconfiança, e depois dirigiu o olhar ao Drizzt como um aviso para que mantivesse preparadas
as cimitarras. --Já não mais... pek --gaguejou o oseogarfio, com um evidente tom de pesar em sua grossa voz. Já não mais pek. --Como te chama? --perguntou-lhe Drizzt,
disposto a encontrar alguma pista que lhe permitisse saber a verdade. O oseogarfio pensou durante um bom momento até que por fim renunciou ao esforço e sacudiu a
cabeça sem saber o que responder. --Já não mais... pek --repetiu o monstro. Jogou a cabeça para trás para ampliar a greta no exoesqueleto como um convite a que o
elfo lhe cortasse o pescoço. --Não pode recordar seu nome? --inquiriu Drizzt, pouco disposto a matar à criatura. O oseogarfio não respondeu e permaneceu imóvel.
O elfo olhou ao Belwar em busca de conselho, mas o capataz se limitou a encolher os ombros. --O que ocorreu? --insistiu o drow. Tem que me dizer o que te aconteceu.
--MA... --O oseogarfio pôs toda sua vontade em dar uma resposta. Maa... mago. Mago maligno. Drizzt, que tinha aprendido os rudimentos da magia na Academia e conhecia
a falta de escrúpulos de muitos feiticeiros na hora de praticá-la, vislumbrou a explicação e deu crédito às palavras da estranha criatura. --Isto é obra de um mago?
--disse, seguro de qual seria a resposta. Olhou ao Belwar, que não saía de seu assombro. ouvi falar desta classe de feitiços. --Eu também --afirmou o pequeno.
Magga cammara, elfo escuro! Vi aos magos do Blingdenstone utilizar uma magia parecida quando precisávamos entrar em...
O capataz se interrompeu bruscamente ao recordar de onde provinha o drow. --Menzoberranzan. --Drizzt acabou a frase por ele com uma risita. Belwar pigarreou, um
tanto envergonhado, e se voltou para o monstro. --Foi um pek --disse, porque precisava escutar a explicação resumida em uma só frase bem clara--, e um mago te transformou
em um oseogarfio. --Sim --respondeu o monstro. Já não mais pek. --Onde estão seus companheiros? --perguntou o svirfnebli. Se for verdade o que me hão dito de
sua gente, os peks não acostumam a viajar sozinhos. --Mortos --respondeu a criatura. Mago MA... malv... --Um mago humano? --quis saber Drizzt. --Sim, homem --confirmou
o monstro, sacudindo o pico. --E o mago te abandonou convertido em um oseogarfio --concluiu Belwar. O capataz e Drizzt intercambiaram um olhar, e o drow se apartou
para permitir que o prisioneiro se levantasse. --De... desejaria que me MA... MA... matasse --disse então o monstro, que se ajudou com os braços para sentar-se.
Olhou as mãos convertidas em garras, sem dissimular seu desgosto. A pé... pedra, já não posso trabalhar a pedra. Belwar levantou os braços para lhe mostrar o martelo
e a lança colocados nos cotos. --Eu também pensava igual a você --afirmou. Mas está vivo e tem companhia. nos acompanhe até o lago, onde poderemos conversar mais
tranqüilos. O oseogarfio aceitou o convite e começou, com muito esforço, a levantar sua mole de um quarto de tonelada. Em meio dos ruídos produzidos pelo exoesqueleto
ao roçar contra o chão, Belwar sussurrou ao Drizzt uma advertência. --Mantén as cimitarras preparadas! Por fim o monstro conseguiu erguer-se em sua imponente altura
de três metros, e o drow compreendeu que o conselho do pequeno estava justificado. Durante muitas horas, o oseogarfio relatou suas aventuras aos dois amigos. Seu
progressivo
domínio da linguagem resultou tão assombroso como a história. Este fato, e as descrições de sua vida anterior --dedicada a trabalhar a pedra com um ardor quase religioso--
convenceram ao Belwar e ao Drizzt de que dizia a verdade. --É agradável poder voltar a falar, embora não seja em minha língua--manifestou a criatura. Sinto-me
como se tivesse recuperado uma parte do que fui. Drizzt, que tinha passado pela mesma experiência não fazia tanto, entendeu perfeitamente os sentimentos do monstro.
--Quanto tempo leva assim? --inquiriu Belwar. O oseogarfio encolheu os ombros, e seu enorme torso rangeu com o movimento. --Semanas, me... meses --respondeu. Não
o recordo. perdi a noção do tempo. Drizzt se levou as mãos à cara e suspirou com força, tido piedade da desgraçada criatura. Ele também se havia sentido só e perdido
nas profundidades. Conhecia muito bem a amarga verdade de semelhante destino. Belwar aplaudiu brandamente ao drow com a mão-de-martelo. --Aonde pensa ir agora? --perguntou-lhe
o pequeno ao oseogarfio. De onde vem? --Persigo o MA... MA... --respondeu o oseogarfio, lutando inutilmente com a última palavra como se a só menção do maligno feiticeiro
lhe causasse uma profunda dor. Mas perdi muito. Encontraria-o facilmente se ainda fosse um pek. As pedras me diriam onde procurar se pudesse falar com elas como
fazia antes. --O monstro se levantou. Parto-me --anunciou. Não estão seguros comigo. --Você fica --afirmou Drizzt bruscamente em um tom que não admitia
discussão. --Não... não posso me controlar --tentou explicar o oseogarfio. --Não se preocupe! --disse Belwar. Assinalou para a porta na cornija ao lado da caverna.
Lá encima está nossa casa, e a porta é muito pequena para que possa passar. Pode ficar aqui junto ao lago até que decidamos entre todos o que podemos fazer. O oseogarfio
não podia mais de cansaço e a oferta do svirfnebli parecia lógica. O monstro se deitou sobre a pedra e procurou acomodá-lo melhor possível dado seu tamanho. Drizzt
e Belwar o deixaram sozinho, embora sem abandonar a precaução de vigiá-lo enquanto caminhavam. --Clak! --gritou de repente Belwar, detendo-se. Com grande esforço,
o oseogarfio ficou de flanco e olhou ao pequeno, consciente de que se dirigia a ele. --Esse será seu nome, se estiver de acordo --explicou o capataz. Clak! --Um
nome muito apropriado! --opinou Drizzt. --É um bom nome --reconheceu o oseogarfio, embora para seus adentros desejava recordar seu nome pek; o nome que se deslizava
como um canto rodado em um pendente e acariciava as pedras com cada sílaba. --Ampliaremos a porta --disse Drizzt ao Belwar assim que chegaram à cova. Assim Clak
poderá entrar e descansar conosco. --Não, elfo escuro --replicou o capataz. Não faremos tal coisa. --Não está seguro junto ao lago --insistiu Drizzt. Estará
a mercê de qualquer monstro. --Não corre nenhum perigo --bufou Belwar. Que monstro seria capaz de atacar voluntariamente a um oseogarfio? --Belwar compreendia
muito bem a preocupação do Drizzt, mas também era consciente dos riscos da proposta do drow. Conheço os efeitos destes feitiços --prosseguiu com tom sombrio.
Denominam-se polimórficos. A modificação do corpo é imediata, mas a mudança mental leva tempo. --O que quer dizer? Uma nota de pânico apareceu na voz do elfo escuro.
--Clak ainda é um pek --explicou Belwar--, encerrado no corpo de um oseogarfio. Mas acredito que, dentro de pouco, Clak deixará de ser um pek. Converterá-se em um
oseogarfio, em corpo e alma, e por muito amigos que possamos chegar a ser acabará por nos considerar só como uma comida mais. Drizzt começou a protestar, mas Belwar
o silenciou com um raciocínio mais convincente. --Você gostaria de ter que matá-lo, elfo escuro? --Sua história me resulta conhecida --disse Drizzt, desviando o
olhar. --Não tanto como imagina --afirmou o capataz. --Eu também estava perdido --recordou-lhe Drizzt. --É o que crie --respondeu o svirfnebli. Entretanto o que
você foi permaneceu dentro de ti, meu amigo. Foi como tinha que ser, tal como te obrigava a situação. Isto é diferente. Clak acabará por converter-se física e mentalmente
em um oseogarfio. Pensará como um oseogarfio e, magga cammara, não terá contigo a mesma piedade quando te vir no chão. Drizzt não podia dar-se por satisfeito, embora
tampouco sabia como refutar a lógica do pequeno. Entrou na câmara da caverna que tinha escolhido para dormitório e se deitou na rede. --Sinto-o por ti, Drizzt Dou'Urdem
--murmurou Belwar enquanto observava ao drow, abatido pela pena. E o sinto por nosso desgraçado amigo pek. O capataz entrou em seu dormitório e se tendeu na rede,
desconsolado pela
situação mas disposto a manter-se firme na decisão, por muito que lhe doesse. Belwar compreendia os sentimentos do Drizzt para a desgraçada criatura, sua compaixão
pela perda de identidade do Clak, mas sabia que era um vínculo perigoso. Não tinham transcorrido mais de um par de horas quando Drizzt, excitado, despertou ao svirfnebli.
--Temos que ajudá-lo --sussurrou o drow, com um tom áspero. Belwar se passou uma mão pela cara enquanto tratava de orientar-se. Seu sonho tinha sido intranqüilo,
cheio de pesadelos nas que tinha vociferado "bivrip" para depois acabar golpes com a vida do novo companheiro. --Temos que ajudá-lo! --repetiu Drizzt, com mais força.
Belwar podia ver pelas olheiras no rosto do drow que o jovem não tinha pego olho. --Não sou mago --disse o capataz--, e tampouco... --Então conseguiremos um --grunhiu
Drizzt. Procuraremos o humano que amaldiçoou ao Clak e o obrigaremos a que invista o duomer!. Vimo-lo recentemente junto ao arroio. Não pode estar muito longe.
--Um mago com tanto poder não será um inimigo fácil --objetou Belwar. Já esqueceste a bola de fogo? --O pequeno olhou para a parede onde pendurava a jaqueta chamuscada,
como se precisasse convencer-se a si mesmo. Acredito que o mago poderá conosco --acrescentou, mas Drizzt advertiu a pouca fé do Belwar em suas afirmações. --Tanta
pressa tem por condenar ao Clak? --perguntou-lhe Drizzt, bruscamente. Um amplo sorriso apareceu no rosto do elfo ao ver que o svirfnebli começava a ceder. É este
o mesmo Belwar Dissengulp que cobriu a um drow perdido? O muito honorável capataz que não vacilou em ajudar a um elfo escuro ao que todos outros consideravam perigoso
e pouco digno de compaixão? --Vete a dormir, elfo escuro --replicou Belwar, apartando ao Drizzt com a manomartelo. --Sábio conselho, meu amigo --disse Drizzt.
Que durma bem. Possivelmente nos espera um comprido caminho que percorrer. --Magga cammara --bufou o svirfnebli, teimado em mostrar-se duro. Voltou- as costas ao
Drizzt e, ao cabo de uns segundos, roncava. O elfo comprovou que esta vez o pequeno desfrutava de um sonho profundo e tranqüilo. Clak golpeava a parede com as garras,
amassando a pedra sem descanso. --Outra vez não! --grunhiu Belwar, aborrecido. Drizzt correu pelo sinuoso corredor, guiado pelo monótono martilleo. --Clak! --chamou
brandamente assim que viu o oseogarfio. O monstro se voltou para fazer frente ao drow, com as garras listas para o ataque, e soltou um assobio furioso através do
enorme pico. Um segundo depois, Clak se deu conta do que fazia e se deteve. --por que tem que fazer tanto ruído? --perguntou-lhe Drizzt, simulando não ter visto
a postura de combate do Clak. Estamos nas profundidades, meu amigo. Os sons podem atrair a algum convidado indesejável. O oseogarfio agachou a cabeça compungido
ante a suave recriminação do elfo. --Não teriam que me haver trazido com vós --repôs. Não posso... Ocorrerão muitas coisas que não posso controlar. Drizzt apoiou
uma mão no ossudo cotovelo do Clak. --foi minha culpa --disse o drow, compreendendo que o monstro acabava de lhe pedir desculpas por haver-se voltado agressivamente.
Não teríamos que nos haver partido em direções opostas e não teria que me haver aproximado tão depressa e sem advertência. A partir de agora nos manteremos juntos,
embora demoremos mais. Belwar
e eu lhe ajudaremos a manter o controle. --Resulta tão agradável martelar a pedra... --manifestou Clak animado ao tempo que golpeava a rocha como se queria refrescar
a memória. A voz e o olhar se apagaram enquanto pensava na vida passada, aquela que lhe tinha arrebatado o mago. Os dias como pek os tinha dedicado a trabalhar a
pedra, a lhe dar forma, a falar com ela. --Voltará a ser pek --prometeu Drizzt. Belwar, que se aproximava pelo túnel, ouviu as palavras do drow e duvidou que pudesse
cumprir o prometido. Levavam nos corredores mais de uma semana sem encontrar nem um só rastro do mago. O capataz se consolou um tanto dizendo-se que Clak parecia
ter recuperado algo de si mesmo, algo de sua personalidade pek. Fazia só umas semanas que Belwar tinha observado a mesma transformação no Drizzt, e, debaixo dos
instintos de sobrevivência impostos pelo caçador, tinha descoberto a seu melhor amigo. Mas o svirfnebli não podia dar por feito que se produziriam os mesmos resultados
com o Clak. A mudança a oseogarfio era obra de uma magia poderosa, e a amizade não era suficiente para investir o efeito do duomer do mago. Graças a seu encontro
com o Drizzt e Belwar, Clak tinha conseguido um atraso temporário --e unicamente temporário-- de seu penoso e inexorável destino. Percorreram os túneis da Antípoda
Escura durante vários dias sem nenhum resultado. A personalidade do Clak não tinha piorado, mas inclusive Drizzt, que tinha iniciado a busca com grandes iluda, começava
a sentir o peso da realidade. Então, precisamente quando Belwar e Drizzt tinham começado a discutir a conveniência de retornar a sua casa, o grupo chegou a uma caverna
bastante ampla com o chão coberto pelos escombros de um desprendimento no teto. --esteve aqui! --gritou Clak, que levantou uma pedra enorme e a jogou contra a parede
mais longínqua com tanta força que se partiu em mil pedaços. esteve aqui! O oseogarfio correu de um lado para outro descarregando sua fúria contra as pedras que
encontrava a seu passo. --Como sabe? --perguntou-lhe Belwar, em um intento por apaziguar a seu amigo gigante. --É... isto é obra dela --respondeu Clak, assinalando
o teto. Isto o fez o MA... mago! Drizzt e Belwar se olharam, preocupados. O teto da caverna, a uns cinco metros do chão, aparecia gretado e quebrado, e no centro
se abria um buraco enorme que quase dobrava a altura anterior. Se estes destroços os tinha feito a magia, devia tratar-se de uma magia muito poderosa. --Isto é obra
do mago? --inquiriu o capataz, que dirigiu ao elfo um olhar de incredulidade. --Seu to... torre --respondeu Clak. Uma vez mais percorreu a caverna com a intenção
de descobrir por onde tinha saído o mago. Drizzt e Belwar estavam confundidos, coisa que ao fim advertiu Clak quando se tomou uma pausa. --O MA... --Mago --disse
Belwar, impaciente. --O MA... mago tem uma to... torre --explicou o oseogarfio, excitado. Uma grande to... torre de ferro que leva com ele, e a instala onde lhe
parece mais conveniente. --Clak olhou o teto destroçado. Inclusive quando não cabe. --Leva uma torre? --sentiu saudades Belwar, que enrugou o nariz em um gesto
de dúvida.
Clak assentiu nervoso, mas não acrescentou nada mais; tinha encontrado o rastro do mago, o rastro de uma bota marcada em um leito de musgo que apontava por volta
de um dos túneis. Drizzt e Belwar tiveram que conformar-se com a direta explicação, e reataram a busca. O drow avançou primeiro; utilizava todos os conhecimentos
aprendidos na Academia drow reforçados pela experiência da década passada a sós na Antípoda Escura. Belwar, dotado com a compreensão racial inata do mundo subterrâneo
e o broche mágico, encarregava-se de manter o rumo, e Clak, nos momentos em que recuperava totalmente a personalidade anterior, pedia a guia das pedras. Passaram
por outra caverna destroçada, e por uma em que havia sinais da presença da torre, embora o teto era o bastante alto para alojar a estrutura. Ao cabo de uns dias,
os companheiros chegaram a uma caverna muito ampla, e viram ao longe, junto a um arroio, a casa do mago. Uma vez mais, Drizzt e Belwar se olharam sem saber o que
fazer, porque a torre tinha dez metros de altura e seis de largura, e as paredes de metal gentil frustravam seus planos. aproximaram-se da torre por caminhos separados,
e seu assombro foi maior ainda ao advertir que as paredes eram de adamantita pura, o metal mais duro do mundo. Encontraram uma só porta, pequena e tão bem ajustada
que o perfil apenas se era visível. Não tiveram necessidade de comprová-lo para saber que era infranqueável. --O MA... MA... Ele está aqui--rugiu Clak, passando
as garras sobre a porta, desesperado. --Então terá que sair em algum momento --afirmou Drizzt. E, quando o fizer, aqui estaremos. O plano não satisfez ao pek.
Com um terrível rugido que ressonou por toda a região, Clak lançou seu enorme corpo contra a porta; depois retrocedeu de um salto e o tentou outra vez. A porta nem
sequer se sacudiu com os golpes, e não demorou para ficar claro que o corpo do Clak perderia a batalha. Drizzt tentou em vão acalmar ao gigante, enquanto Belwar
se apartava para preparar o feitiço de poder. Por fim, Clak se deixou cair ao chão; apenas se podia respirar por culpa do esgotamento, a dor e a raiva. Então entrou
em ação Belwar, com as mãos de mithril chispando cada vez que se tocavam. --lhes aparte! --ordenou o pequeno. vim desde muito longe para permitir que uma vulgar
porta me detenha! Belwar se colocou diante de seu objetivo e descarregou um golpe muito poderoso com a mão-de-martelo. Uma resplandecente chuva de faíscas azuis
saltou em todas direções. Os musculosos braços do svirfnebli trabalharam com fúria mas, quando Belwar esgotou as energias, o metal só mostrava uns pequenos entalhes
e pequenos pontos chamuscados. Belwar entrechocó as mãos aborrecido, e por um instante ficou rodeado de faíscas. Clak compartilhou sinceramente sua frustração. Drizzt,
em troca, estava mais preocupado que zangado. A torre não só os tinha detido, mas também além disso o mago encerrado no interior sabia que o esperavam. O drow deu
uma volta ao redor da estrutura e observou que havia numerosas ballesteras. Escondido, situou-se debaixo de uma delas, e ouviu um cantarolo suave; apesar de que
não entendia o significado das palavras, não lhe custou muito adivinhar as intenções do humano. --Corram! --gritou a seus companheiros, e então, levado pelo desespero,
agarrou uma pedra e a lançou contra a ballestera. A sorte esteve de sua parte, porque o projétil golpeou na abertura no preciso instante em que o mago completava
o feitiço. Um raio saiu do buraco, pulverizou a pedra, e jogou no Drizzt pelos ares, mas a descarga, desviada da trajetória, ricocheteou e foi dar contra a torre.
--Maldição! Maldição! --chiou o mago. Ódio que passem estas coisas!
Belwar e Clak correram em ajuda do amigo cansado. O drow só estava um pouco atordoado e, antes de que pudessem chegar junto a ele, já se tinha recuperado. --Ah,
ides pagar muito caro pelo que têm feito --gritou o humano do interior. --Fujamos! --propôs o capataz. Inclusive o oseogarfio se mostrou de acordo, mas logo que
Belwar olhou os olhos lilás do drow, compreendeu que seu amigo não escaparia. Também Clak retrocedeu um pouco ao ver a cólera do Drizzt Dou'Urdem. --Magga cammara,
elfo escuro, não podemos entrar --recordou-lhe o svirfnebli, prudentemente. Drizzt tirou a estatueta de ônix e, sustentando-a contra a ballestera, cobriu-a com o
corpo. --Já o veremos --grunhiu, e chamou o Guenhwyvar. Apareceu a névoa negra, e não encontrou mais que um único passo livre do talismã. --Matarei-lhes a todos!
--gritou o mago invisível. Então, do interior da torre lhes chegou o rugido da pantera e, continuando, escutou-se outra vez a voz do humano. --Possivelmente estou
em um engano! --Abre a porta! --vociferou Drizzt. Vai a vida nisso, mago! --Nunca! Um novo rugido do Guenhwyvar, outro grito do mago, e a porta se abriu de par
em par. Entraram na torre, com o Drizzt à cabeça, e se encontraram em uma habitação circular. Uma escada de ferro no centro comunicava com uma trampilla, a saída
de emergência pela que o mago tinha tentado escapar. Não o tinha conseguido e agora pendurava cabeça abaixo pela parte posterior da escada, com uma perna enganchada
à altura do joelho em um dos degraus. Guenhwyvar, recuperada de tudo do mergulho no lago de ácido e com um aspecto soberbo, sujeitava a outra perna entre as fauces.
--Por favor, passem --gritou o mago, que abriu os braços e depois voltou a fechá-los depressa para apartá-la túnica do rosto. O objeto ainda fumegava como conseqüência
do raio. Sou Brister Fendlestick. Bem-vindos a minha humilde morada! Belwar conteve ao Clak na porta, sujeitando a seu furioso amigo com a manomartelo, enquanto
Drizzt se fazia carrego do prisioneiro. O drow se entreteve durante uns instantes em contemplar a sua querida companheira felina, porque não tinha chamado ao Guenhwyvar
desde dia em que a pantera tinha resultado ferida. --Você fala drow --comentou Drizzt, que agarrou ao mago pelo pescoço e o desceu da escada. O elfo observou ao
homem com receio. Nunca tinha visto um humano antes do encontro no túnel junto ao arroio e, até o momento, não lhe produzia boa impressão. --Domino muitas línguas
--respondeu o mago, pondo em ordem seus objetos. E depois, como se fosse algo muito importante, acrescentou--: Sou Brister Fendlestick! --Figura o pek entre os idiomas
que sabe? --perguntou Belwar da porta. --Pek? --exclamou o mago, como se lhe desse asco a palavra. --Pek --repetiu Drizzt, aproximando o fio da cimitarra ao pescoço
do mago para dar mais ênfase à pergunta. Clak avançou um passo sem preocupar do pequeno que tentava sujeitá-lo. --Meu amigo era antes um pek--explicou-lhe Drizzt.
Você teria que sabê-lo. --Pek! --disse o mago. Uns insetos inúteis que sempre estão pelo meio. Clak deu outro passo.
--Date pressa, drow --rogou Belwar, apoiado contra a mole do oseogarfio como quem tenta evitar o desmoronamento de uma parede. --lhe devolva seu verdadeiro ser --exigiu
Drizzt. Faz que nosso amigo volte a ser um pek. E faz-o agora mesmo. --Ora! --soprou o mago. Assim está muito melhor! Que motivos pode ter alguém para desejar
ser um pek? A respiração do Clak se converteu em um ofego de angústias. A força de seu terceiro passo fez cair ao Belwar. --Agora, mago --advertiu-lhe Drizzt. Da
escada, Guenhwyvar proferiu um rugido estremecedor. --Bom, está bem, de acordo --respondeu o mago, com uma careta de desgosto. Condenado pek! Tirou um livro enorme
de um bolso que era muito pequeno para contê-lo. Drizzt e Belwar intercambiaram um sorriso, convencidos de que se sairiam com a sua. Então o mago cometeu um engano
fatal. --Teria que havê-lo matado como fiz com outros --murmurou em voz tão baixa que nem sequer o drow escutou as palavras. Mas os oseogarfios tinham o ouvido mais
fino entre todas as criaturas da Antípoda Escura. Um sopapo das enormes garras do Clak lançou ao Belwar ao outro lado da habitação. Drizzt, que se voltou para ouvir
o ruído dos passos, acabou no chão depois da investida do gigante. E o mago, em um ato de suprema estupidez, tentou opor-se ao impacto do Clak protegendo-se com
a escada; o golpe foi tão tremendo que a escada de ferro se dobrou como um arame e a pantera voou pelos ares. Se o primeiro golpe descarregado pelos duzentos e cinqüenta
quilogramas do oseogarfio tinha sido ou não suficiente para matar ao mago, era uma questão sem importância quando Drizzt e Belwar se recuperaram o suficiente para
chamar a seu amigo. Clak utilizava o pico e as garras para destroçar o corpo do humano, e havia momentos em que se via algum relâmpago ou uma nuvem de fumaça quando
se rompiam os objetos mágicos que o feiticeiro guardava na túnica. Quando o oseogarfio se serenou e olhou aos três companheiros, que o rodeavam dispostos para o
combate, o corpo aos pés do Clak era uma massa irreconhecível. Belwar se dispunha a comentar que o mago tinha aceito devolver ao Clak sua forma original, mas desistiu
ao ver que não tinha sentido. O monstro ficou de joelhos e ocultou o rosto entre as garras, incapaz de acreditar o que tinha feito. --Saiamos deste lugar --disse
Drizzt, embainhando as cimitarras. --Terei que registrá-lo --sugeriu Belwar ao pensar nos muitos tesouros que podiam estar ocultos. Mas ao Drizzt resultava impossível
ficar ali. O espetáculo da fúria desatada de seu amigo e o aroma do cadáver destroçado despertavam nele umas frustrações e uns medos que não podia tolerar. Abandonou
a torre escoltada pela pantera. Belwar ajudou ao Clak a levantar-se e o acompanhou até a saída. Depois, incapaz de resistir a seu praticamente, pediu aos amigos
que o esperassem enquanto ele revisava a torre, em busca de objetos que pudessem ser úteis, ou da chave que lhe permitisse levá-la torre. Mas ou o mago era um homem
pobre --coisa que Belwar punha em dúvida-- ou tinha os tesouros bem ocultos, talvez em algum outro plano de existência, porque o svirfnebli só encontrou um cantil
e um par de botas velhas. Se existia uma chave para mover a maravilhosa torre de adamantita, o mago a tinha levado a tumba. A viagem de volta a casa o fizeram quase
em silêncio, ensimismados em suas preocupações e problemas. Drizzt e Belwar não precisavam falar de seu temor mais
urgente. Nas conversações com o Clak tinham aprendido o suficiente da pacífica raça dos peks para saber que o impulso assassino do Clak não tinha nenhuma relação
com a criatura que tinha sido uma vez. O svirfnebli e o drow tinham que admitir que as ações do Clak eram próprias do ser em que acabaria por transformar-se.
15
Avisos sinistros
--O que é o que sabe? --perguntou- a matrona Malícia ao Jarlaxle, que a acompanhava através do pátio da casa Dou'Urdem. Em outras circunstâncias, Malícia não teria
sido tão direta com o infame mercenário, mas estava preocupada e impaciente. Os rumores que corriam entre as famílias governantes do Menzoberranzan não pressagiavam
nada bom para a casa Dou'Urdem. --Saber? --replicou Jarlaxle, com uma surpresa mau fingida. Malícia o olhou desgostada, e o mesmo fez Briza, que caminhava ao outro
lado do desavergonhado mercenário. Jarlaxle se esclareceu garganta, embora o pigarro soou como uma gargalhada. Não podia informar a Malícia dos rumores; não era
tão parvo para trair às casas mais capitalistas da cidade. Mas sim podia burlar-se de Malícia com uma singela declaração lógica que só confirmava o que ela já tinha
suposto. --Zin-Carla, o espectro, leva muito tempo a seu serviço. Malícia fez um esforço para manter uma expressão de calma. Compreendia que Jarlaxle sabia muito
mais do que dizia, e o fato de que o mercenário só lhe houvesse dito o óbvio confirmava suas suspeitas. O espectro do Zaknafein demorava mais da conta em dar com
o Drizzt. A matrona não necessitava que lhe recordassem a pouca paciência da rainha aranha. --Tem algo mais que me dizer? --perguntou Malícia. Jarlaxle encolheu
os ombros como única resposta. --Então sal de minha casa --ordenou a mãe matrona. Jarlaxle vacilou um instante; não sabia se devia exigir um pagamento pela escassa
informação que tinha dado. Decidiu que não era necessário e, depois de fazer uma de suas profundas reverências acompanhadas com um varrido de seu chapéu, dirigiu-se
para a saída. Não demoraria para cobrar. Uma hora mais tarde, na sala de espera da capela, a matrona Malícia ocupou o trono e dirigiu os pensamentos para os túneis
nas profundidades da Antípoda Escura. A telepatia com o espectro era limitada; pelo general se reduzia só a uma transmissão das emoções mais intensas. Mas das lutas
internas do Zaknafein, que tinha sido o pai do Drizzt e seu melhor amigo em vida e que agora se converteu em seu pior inimigo, Malícia podia deduzir os progressos
da missão. As ansiedades provocadas pela luta interior do Zaknafein eram mais intensas cada vez que o espectro se aproximava do Drizzt. Agora, depois do desagradável
encontro com o Jarlaxle, Malícia precisava saber que fazia Zaknafein. Ao cabo de uns minutos obteve o que procurava.
--A matrona Malícia insiste em que o espectro foi para o oeste, além da cidade svirfnebli --explicou-lhe Jarlaxle à matrona Baenre. O mercenário tinha ido diretamente
da casa Dou'Urdem até o horta de cogumelos da parte sul do Menzoberranzan, onde residiam as famílias drows mais poderosas. --O espectro segue o rastro --murmurou
a matrona Baenre, quase para si mesmo. Isso é bom. --Mas a matrona Malícia acredita que Drizzt leva uma vantagem de vários dias, possivelmente semanas --acrescentou
Jarlaxle. --Há-lhe isso dito? --perguntou a matrona Baenre, incrédula, surpreendida de que Malícia tivesse revelado uma informação que a prejudicava. --Há coisas
que se podem saber sem necessidade de palavras--respondeu o mercenário, com astúcia. O tom da matrona Malícia revelava muitas coisas que não desejava me comunicar.
A matrona Baenre assentiu e fechou os olhos, cansada de tantas complicações. Tinha sido coisa dela que Malícia conseguisse entrar no conselho regente, mas agora
não podia fazer outra coisa que esperar e ver se Malícia era capaz de manter o cargo. --Devemos confiar na matrona Malícia --disse a matrona Baenre, depois de uma
larga pausa. Ao outro extremo da sala, O-viddinvelp, o desolador mental companheiro da matrona Baenre, apartou seus pensamentos da conversação. O mercenário drow
havia dito que Drizzt partia para o oeste, além do Blingdenstone, e esta notícia tinha uma importância que não podia passar por cima. O desolador mental projetou
seus pensamentos para o ocidente, para transmitir um aviso ao longo dos túneis que não estavam tão desertos como pareciam. Assim que Zaknafein viu o lago soube que
tinha alcançado à presa. Ao amparo das gretas e curvas das paredes percorreu a caverna, até que encontrou a porta e a cova que protegia. Velhos sentimentos se reavivaram
no espectro, sentimentos da relação mantida com o Drizzt. Mas quando a matrona Malícia penetrou em sua mente, dominaram-no outras emoções muito mais selvagens.
O
espectro derrubou a porta, com as espadas em alto, e percorreu o refúgio como um vendaval. Uma manta voou pelos ares e caiu ao chão feita migalhas pelos selvagens
cutiladas do Zaknafein. Assim que se dissipou o ataque de fúria, o monstro da matrona Malícia ficou em cuclillas e examinou a situação. Drizzt não estava em casa.
O espectro não demorou muito em chegar à conclusão de que Drizzt, e um companheiro, possivelmente dois, tinham deixado a cova uns poucos dias antes. Os conhecimentos
táticos do Zaknafein lhe aconselharam esperar porque saltava à vista que aquele não era um acampamento falso, como o tinha sido o outros nos subúrbios da cidade
dos pequenos. Não duvidava que a presa retornaria. Zaknafein percebeu que a matrona Malícia, sentada em seu trono na cidade drow, não toleraria mais demoras. Lhe
acabava
o tempo --os rumores de perigo eram cada vez mais intensos-- e esta vez os medos e a impaciência de Malícia lhe custariam muito caro. Só umas poucas horas depois
de que Malícia enviasse ao espectro outra vez aos túneis em busca de seu filho renegado, Drizzt, Belwar e Clak retornaram à caverna por outra via. Drizzt notou no
ato que algo não ia bem. Desembainhou as cimitarras, correu por
a cornija e subiu de um salto até a porta da cova antes de que Belwar e Clak pudessem lhe perguntar o que acontecia. Quando chegaram à cova, compreenderam a preocupação
do elfo escuro. O lugar aparecia destroçado; as redes e mantas, feitas pedaços; os boles e uma caixa pequena onde guardavam a reserva de mantimentos, esmagados,
e as partes dispersas por todos os rincões. Clak, que não podia passar pelo oco, afastou-se da entrada e percorreu a caverna para assegurar-se de que não havia nenhum
inimigo oculto. --Magga cammara! --rugiu Belwar. Que monstro terá feito isto? Drizzt recolheu os restos de uma manta e assinalou os cortes limpos no tecido. Belwar
compreendeu o significado destes. --O corte de uma espada --manifestou o capataz, muito sério. Uma espada afiada e bem temperada. --A espada de um drow --acrescentou
Drizzt. --Estamos muito longe do Menzoberranzan --recordou-lhe Belwar. Nas profundidades mais remotas. Duvido que sua gente possa saber onde está. A experiência
do Drizzt não lhe permitia aceitar essa hipótese. Durante a maior parte de sua vida tinha sido testemunha do fanatismo que guiava às malignas sacerdotisas do Lloth.
Ele mesmo tinha participado de uma incursão de muitos quilômetros até a superfície dos Reino, que só perseguia agradar à rainha aranha com o assassinato dos elfos.
--Não subestime à matrona Malícia --replicou o drow com tom sombrio. --Se isto for em realidade um anúncio da visita de sua mãe --grunhiu Belwar, golpeando as mãos--,
levará-se uma boa surpresa. Terá que as ver-se com três e não com um só como pensa. --Não subestime à matrona Malícia --repetiu o elfo escuro. Este encontro não
é uma mera casualidade, e ela estará preparada para responder a qualquer imprevisto. --Como sabe? --protestou Belwar, mas quando o capataz viu o temor refletido
nos olhos lilás do drow, convenceu-se de que as coisas podiam acabar muito mal. Recolheram os poucos objetos que se salvaram da destruição e partiram imediatamente,
uma vez mais em direção ao oeste para aumentar a distância que os separava do Menzoberranzan. Clak partia primeiro porque havia muito poucos monstros capazes de
sair ao passo de um oseogarfio. Seguia-o Belwar, e Drizzt ia na retaguarda, bastante atrasado, disposto a proteger aos companheiros no caso de que os agentes de
sua mãe lhes dessem alcance. O svirfnebli opinava que levavam uma boa vantagem sobre aqueles que tinham destruído a casa. Se os autores tinham iniciado a perseguição
da cova e seguido o rastro até a torre do mago morto, passariam muitos dias antes de que lhes ocorresse retornar até a caverna do lago. Drizzt não estava tão convencido.
Conhecia sua mãe muito bem. depois de vários dias que lhes fizeram intermináveis, o grupo chegou a uma região infestada de gretas, paredes abruptas, e tetos cheios
de estalactites que pareciam monstros à espreita. Caminharam unidos, porque necessitavam da companhia de outros. A pesar do risco que significava, Belwar tirou seu
talismã luminoso e o enganchou na jaqueta de couro, embora a luz só contribuiu a que as sombras parecessem ainda mais ameaçadoras. O silêncio nesta zona era inclusive
mais profundo do habitual na Antípoda Escura. Em muito poucas ocasiões aqueles que percorriam o mundo subterrâneo dos Reino escutavam os sons de outras criaturas,
mas aqui a quietude resultava opressiva, como se tivesse desaparecido todo rastro de vida. O ruído dos passos de
Clak e o roce das botas do Belwar ressonavam como marteladas entre as pedras. O svirfnebli foi o primeiro em sentir a aproximação do perigo. As vibrações sutis nas
rochas lhe avisaram que ele e os companheiros não estavam sozinhos. Deteve o Clak com a mão-de-lança, e a seguir olhou ao Drizzt para saber se o drow compartilhava
sua inquietação. Drizzt assinalou para o teto e levitou na escuridão, em busca de um lugar onde emboscar-se entre as numerosas estalactites. O elfo desencapou uma
das cimitarras enquanto subia e pôs a outra emano na estatueta de ônix que guardava no bolso. Belwar e Clak se ocultaram detrás de uma crista, e o pequeno começou
a recitar a letanía para enfeitiçar as mãos metálicas. Ambos se sentiam mais seguros ao saber que o guerreiro drow flutuava nas alturas para vigiar a zona. Mas Drizzt
não era o único que tinha pensado nas estalactites para tender uma emboscada. logo que se viu entre as pedras bicudas como lanças, advertiu que havia alguém mais.
Uma forma, um humanoide um pouco maior que Drizzt, flutuou da estalactite mais próxima. Drizzt apoiou um pé em uma das pedras para propulsar-se, ao tempo que desembainhaba
a outra cimitarra. Soube quem era o inimigo assim que viu a cabeça, que parecia um polvo de quatro tentáculos. O drow nunca tinha visto antes a uma destas criaturas,
mas sabia o que era: um illita, um desolador mental, o monstro mais cruel e temido em toda a Antípoda Escura. O desolador atacou primeiro, muito antes de que Drizzt
pudesse aproximar-se para utilizar as cimitarras. Os tentáculos do monstro se moveram como látegos, e um cone de energia mental açoitou ao Drizzt. O elfo lutou com
toda sua vontade contra a escuridão que se abatia sobre ele. Tentou concentrar-se no objeto, enfocar a cólera, mas o illita lançou um novo ataque. Um segundo desolador
se somou ao primeiro e lhe efetuou uma descarga pelo flanco. Belwar e Clak não podiam ver o combate porque Drizzt se movia fora da zona iluminada pelo broche do
pequeno. De todos os modos, notaram que algo ocorria nas alturas, e o capataz se atreveu a chamar a seu amigo. --Drizzt? --sussurrou. A resposta a teve um segundo
depois, quando as cimitarras se estrelaram contra o chão. Belwar e Clak, atônitos, deram um passo para as armas, e então retrocederam. Ante eles, o ar se ondulava
como se tivessem aberto uma porta invisível a outro plano de existência. Um illita cruzou a soleira e, plantando-se diante dos amigos, descarregou seu raio mental
antes de que qualquer dos dois pudesse reagir. O svirfnebli caiu de bruces ao chão, mas Clak, com a mente confundida pelo conflito entre suas identidades de oseogarfio
e pek, não resultou tão afetado. O desolador soltou outra vez uma descarga paralisante; o oseogarfio atravessou o cone de energia e esmagou ao illita com um só
golpe de suas enormes garras. Clak olhou em redor, e a seguir para cima. Outros quantos desoladores baixavam do teto, e dois sujeitavam ao Drizzt pelos tornozelos.
abriram-se mais leva invisíveis. Em um instante, as descargas se abateram sobre o Clak desde todos os ângulos, e a defesa proporcionada pelo conflito entre as duas
personalidades começou a fraquejar. O desespero e a fúria dominaram suas ações. Naquele momento, Clak só era um oseogarfio, que atuava com o instinto e a ferocidade
característicos destes monstros. Mas inclusive a dura couraça dos oseogarfios resultava insuficiente contra as insidiosas e contínuas descargas dos desoladores.
Clak se lançou contra os dois que sujeitavam ao Drizzt. A escuridão o apanhou a meio caminho. Estava ajoelhado no chão; isto era quão único sabia. arrastou-se, disposto
a não render-se, impulsionado só pela raiva. Depois se tendeu sobre a pedra, sem pensar mais no Drizzt, no Belwar, ou em sua própria raiva. Só havia escuridão.
QUARTA PARTE
Indefeso
Em muitas ocasiões ao longo de minha vida me hei sentido indefeso. É possivelmente a dor mais aguda que uma pessoa pode conhecer, apoiado na frustração e a raiva
inútil. A espetada de uma espada no braço do soldado em combate não pode comparar-se com a angústia do prisioneiro quando escuta o estalo do látego. Inclusive se
o látego não açoita o corpo do prisioneiro indefeso, sem dúvida provoca uma profunda ferida em sua alma. Todos somos prisioneiros em um momento ou outro de nossas
vidas, prisioneiros de nós mesmos ou das expectativas daqueles que nos rodeiam. É uma carga que suportamos todos, que todos odiamos e que muito poucos conseguem
evitar. Considero-me afortunado a este respeito, porque minha vida seguiu uma trajetória de contínua melhora. Se se tiver em conta que se iniciou no Menzoberranzan,
submetida a implacável vigilância das somas sacerdotisas da maligna reina aranha, suponho que minha situação só podia melhorar. Em meu obcecamiento juvenil, acreditei
que poderia me valer sozinho, que tinha a força suficiente para conquistar aos inimigos com a espada e os princípios. A arrogância me convenceu de que a vontade
era bastante para superar a indefensión. Reconheço que foi uma idéia errônea, porque, quando rememoro aqueles anos, vejo claramente que quase nunca estive sozinho
e quase nunca tive que estar sozinho. Sempre houve amigos, leais e queridos, que me deram apoio incluso quando acreditava que não o necessitava, e inclusive quando
não me dava conta. Zaknafein, Belwar, Clak, Mooshie, Bruenor, Regis, Catti-brie, Wulfgar e, certamente, Guenhwyvar, minha querida Guenhwyvar: estes foram os companheiros
que justificaram meus princípios, que me deram forças para lutar contra qualquer inimigo, real ou imaginário. Estes foram os companheiros que lutaram contra a indefensión,
a raiva e a frustração. Estes foram os companheiros que me deram a vida.
DRIZZT DOU'URDEM
16
Cadeias insidiosas
Clak olhou para o extremo mais longínquo da larga e estreita caverna, onde se elevava um edifício com numerosas torres que servia de castelo à comunidade dos desoladores
mentais. Apesar de que via mau, o oseogarfio podia distinguir as silhuetas que se moviam ao redor do castelo, e podia ouvir claramente o ruído das ferramentas. Compreendeu
que eram escravos --duergars, goblins, pequenos das profundidades, e várias outras raças que não conhecia--que serviam a seus amos com suas habilidades para trabalhar
a pedra, ajudando-os a melhorar a rocha imensa que os desoladores tinham escolhido como casa. Possivelmente Belwar, tão bem dotado para estes misteres, já trabalhava
na enorme construção. Estes pensamentos desapareceram quase no ato, substituídos pelos instintos mais primários do oseogarfio. As descargas paralizantes dos desoladores
tinham reduzido a resistência mental do Clak e o feitiço polimórfico do mago tinha seguido seu processo, com o qual nem sequer advertiu a mudança. Agora suas identidades
estavam igualadas, e o pobre Clak se encontrava sumido em um estado de confusão mental absoluta. Se tivesse sido capaz de compreender o dilema, e se tivesse sabido
o destino de seus amigos, possivelmente se teria considerado afortunado. Os desoladores mentais suspeitavam que Clak não era um oseogarfio como outros. A sobrevivência
da comunidade se apoiava no conhecimento e na leitura do pensamento, e, embora não conseguiam penetrar no caos da mente do Clak, podiam ver que as funções intelectuais
que tinham lugar atrás de seu enorme exoesqueleto não se correspondiam com as de um simples monstro da Antípoda Escura. Tampouco eram tolos, e sabiam o perigo que
representava tentar decifrar e controlar uma besta couraçada de um quarto de tonelada. Clak era muito perigoso e imprevisível para o ter metido em um recinto fechado.
Entretanto, na sociedade esclavista dos desoladores havia lugar para todos. Clak se encontrava em uma ilha de pedra, um promontório rochoso de uns cinqüenta metros
de diâmetro rodeado por um profundo e largo abismo. Com ele havia diversas criaturas, incluído um pequeno rebanho de vitelas e vários duergars idiotizados depois
de permanecer submetidos durante muito tempo à influência mental dos desoladores. Os pequenos cinzas, com os rostos vazios de toda expressão e os olhos em branco,
não faziam outra coisa que esperar o turno de converter-se em alimento de seus cruéis amos. O oseogarfio percorreu a ilha em busca de uma saída, embora a parte pek
considerava com resignação que era inútil. Uma única ponte cruzava o abismo, um artefato mágico e mecânico que se rendia no outro lado quando não o utilizavam. Um
grupo de desoladores acompanhado por um ogro escravo se aproximou da alavanca que controlava a ponte. Imediatamente, Clak recebeu uma surriada de ordens
telepáticas. Uma meta bem definida se abriu passo no torvelinho de seus pensamentos, e então se inteirou para que o tinham conduzido à ilha. Era o pastor do rebanho
dos desoladores. Queriam um pequeno cinza e uma vitela, e o escravo pastor pôs mãos à obra. Nenhuma das vítimas opôs resistência. Clak lhe retorceu o pescoço ao
pequeno
e matou à vitela de um golpe no crânio. Notava que os desoladores estavam agradados, e isto despertou nele algumas emocione, entre elas uma intensa satisfação. Carregado
com os dois corpos, Clak se aproximou do bordo do abismo para situar-se em frente do grupo de desoladores. Um illita atirou da alavanca que fazia funcionar a ponte.
Clak observou que o mecanismo ficava fora de seu alcance; um fato importante, embora naquele momento o oseogarfio não compreendeu o motivo. A ponte de metal e pedra
rangeu com grande estrépito e a seguir se estendeu até a ilha para ficar bem sujeito aos pés do Clak. Vêem mim--ordenou-lhe um dos desoladores. Clak teria podido
negar-se a cumprir a ordem de ter tido alguma razão. Avançou pela ponte, que se sacudiu por culpa do peso. Alto! Deixa cair as presas!--disse outra voz, quando o
oseogarfio tinha chegado quase na metade do trajeto. Deixa cair as presas!--repetiu a voz telepática. Retorna à ilha! Clak considerou as alternativas. A fúria
do oseogarfio crescia em seu interior, e sua parte pek, raivosa pela perda dos amigos, coincidia com a primeira. Uns poucos passos mais o levariam até o inimigo.
A uma ordem dos desoladores, o ogro se aproximou da entrada da ponte. Era um pouco mais alto que Clak e quase igual de largura, mas ia desarmado e não poderia lhe
impedir o passo. Mas um pouco mais à frente do guarda, Clak advertiu uma defesa mais eficaz. O desolador que tinha movido a alavanca permanecia no posto com a mão
--um curioso apêndice de quatro dedos-- sobre a manga, atento aos acontecimentos. Clak não poderia percorrer o que faltava e superar ao guarda antes de que a ponte
se enrolasse sob seus pés e o precipitasse às profundidades do abismo. A contra gosto, o oseogarfio deixou as presas na ponte e retornou à ilha de pedra. O ogro
não perdeu o tempo e recolheu ao pequeno e à vitela para seus amos. O illita atirou da alavanca, e, em um abrir e fechar de olhos, a ponte mágica voltou para a posição
original, isolando ao Clak uma vez mais. Come --ordenou-lhe um dos desoladores. Uma vitela passou junto ao oseogarfio no instante em que o pensamento surgia em sua
mente, e Clak a matou de um tapa. Os desoladores se retiraram, e Clak se sentou a comer. Sua personalidade de oseogarfio o dominou de tudo enquanto devorava, desfrutando
com o gosto da carne e do sangue, mas cada vez que olhava mais à frente do precipício para a caverna estreita e o castelo illita no fundo, uma vocecita pek manifestava
sua preocupação por um svirfnebli e um drow. De todos os escravos capturados recentemente nos túneis nos subúrbios do castelo illita, Belwar Dissengulp era o que
despertava maior interesse. Além da curiosidade provocada pelas mãos de mithril do pequeno, Belwar era o melhor equipado para as duas atividades mais apreciadas
em
um escravo dos desoladores: trabalhar a pedra e as brigas de gladiadores. No mercado de escravos se produziu uma grande gritaria quando o svirfnebli saiu à venda.
Interessado-los em comprá-lo ofereceram objetos de ouro e mágicos, feitiços particulares e livros de estudos de grande valor. Ao final da luta, o capataz
foi adjudicado a um grupo de três desoladores, quão mesmos o tinham capturado. Belwar, certamente, não se inteirou da venda; antes de que acabasse, o pequeno foi
levado
por um túnel estreito e escuro até uma pequena habitação sem nenhuma característica especial. Pouco depois, três vozes falaram em sua mente, três vozes telepáticas
que o pequeno não esqueceria: as vozes dos novos amos. Uma poterna de ferro se levantou diante do Belwar, deixando ver uma habitação circular de paredes altas e
filas
de assentos na parte superior. Sal --pediu-lhe um dos amos, e o capataz, que só desejava agradá-lo, não vacilou. Quando saiu pela abertura, viu várias dúzias de
desoladores sentados nos assentos de pedra, que o assinalavam com as estranhas mãos de quatro dedos embora em suas caras de polvos não se refletia nenhuma expressão.
De todos os modos, graças ao vínculo telepático, Belwar não teve problemas para encontrar a seu amo entre os espectadores, ocupado em fazer apostas com um pequeno
grupo. Ao outro lado do recinto se abriu outra poterna e apareceu um ogro gigantesco. Imediatamente, os olhos da criatura procuraram entre o público a seu amo, a
única coisa importante de sua existência. Este ogro cruel e bestial me ameaçou, meu valente campeão svirfnebli --transmitiu-lhe o amo do Belwar assim que acabou
com as apostas. Destrói-o por mim. Belwar não necessitava mais estímulos, nem tampouco os necessitava o ogro, que tinha recebido uma mensagem idêntica de seu amo.
Os gladiadores se lançaram o um contra o outro possuídos por uma sanha feroz, mas enquanto que o ogro era jovem e um tanto estúpido, Belwar era um veterano muito
ardiloso. No último momento freou a carreira e se jogou em um lado. O ogro, que pretendia rechaçá-lo com um chute ao final da carga, cambaleou-se por um momento.
Um momento muito comprido. A mão-de-martelo do Belwar golpeou o joelho do ogro, e um estalo tão capitalista como o do raio de um mago ressonou na areia. O ogro se
inclinou para diante até quase dobrar-se em dois, e Belwar afundou a mão-de-lança no lombo da besta. O monstro se balançou para um flanco, perdido o equilíbrio,
e
o pequeno se tornou a seus pés para fazê-lo cair ao chão. O capataz se levantou no ato, saltou sobre o gigante cansado e correu para a cabeça. O ogro se recuperou
com a rapidez suficiente para agarrar ao svirfnebli pelo peitilho da jaqueta, mas no segundo em que o monstro se dispunha a lançá-lo pelos ares, Belwar lhe cravou
a mão-de-lança no peito. Com um rugido de fúria e dor, o estúpido ogro não retrocedeu no empenho e lançou ao pequeno. Afiada-a lâmina da lança se manteve cravada,
e
o
impulso do pequeno abriu uma ferida enorme no peito do ogro. A besta se revolveu de um lado para outro até que por fim conseguiu livrar-se da terrível emano metálica.
Um joelho gigantesco golpeou ao Belwar no traseiro, e o jogou pelos ares a vários metros de distância. O capataz se levantou depois de dar vários rebotes, enjoado
e dolorido mas sem ceder na vontade de agradar a seu amo. Escutou os vítores silenciosos e a gritaria telepática dos espectadores; por cima do estrondo mental chegou
uma ordem com grande claridade. Mata-o! --transmitiu o amo do Belwar. O svirfnebli não vacilou. Ainda tendido de costas, o ogro se apertava o peito, em um vão intento
por deter a hemorragia que lhe arrebatava a vida. Ferida-las provavelmente eram mortais, mas Belwar não se deu por satisfeito. O monstro tinha ameaçado a seu amo!
O capataz carregou diretamente contra a cabeça do ogro, com a mão-de-martelo por diante. Três golpes seguidos feriram o crânio do
monstro, e então descarregou a mão-de-lança para rematá-lo. O agonizante ogro se sacudiu enlouquecido em um último espasmo, mas isso não comoveu ao Belwar. Tinha
agradado
a seu amo; nada mais tinha importância nesse momento. Nas escadarias, o orgulhoso proprietário do campeão svirfnebli recolheu o ouro e as bebidas ganhas nas apostas.
Satisfeito por ter eleito bem no leilão, o desolador olhou ao Belwar, que ainda amassava ao cadáver. Apesar de que desfrutava com a fúria do escravo, o illita lhe
ordenou deter-se. depois de tudo, o ogro também formava parte da aposta. Não tinha sentido danificar o jantar. No coração do castelo illita se levantava uma torre
imensa, uma estalagmite gigantesca esvaziada e esculpida para albergar aos membros mais importantes da estranha comunidade. O interior da enorme estrutura de pedra
estava rodeado de balcões e escadas; cada nível acolhia a vários desoladores. Na habitação da planta baixa, circular e sem nenhum adorno, residia o ser supremo,
o cérebro central. Media seis metros de diâmetro, e esta massa de carne palpitante mantinha unida à comunidade de desoladores através de uma simbiose telepática.
O cérebro central era o núcleo de seu conhecimento, o olho mental que vigiava as cavernas exteriores e tinha escutado os gritos de aviso do illita na cidade drow,
a muitos quilômetros de distância para o este. Para os desoladores, o cérebro central era o coordenador de toda sua existência e quase seu deus. portanto, só permitiam
a entrada nesta torre especial a um punhado de escravos, cativos com dedos sensíveis e delicados que podiam massagear o cérebro e acalmá-lo com escovas suaves e
líquidas quentes. Drizzt Dou'Urdem figurava neste grupo. Ajoelhando-se na ampla passarela que rodeava a sala, o drow tendeu as mãos para acariciar a massa amorfa,
e sentiu seus prazeres e desgostos. Quando o cérebro se intranqüilizava, Drizzt percebia as agudas espetadas e a tensão nas malhas. Então aumentava a pressão das
massagens para devolver a serenidade a seu amo. Se o cérebro estava a gosto, também o estava Drizzt. Não havia para ele nada mais importante no mundo; o renegado
drow tinha encontrado um propósito em sua vida. Drizzt Dou'Urdem tinha um lar. --Uma captura muito rentável --disse o desolador mental, com sua voz débil e sobrenatural.
A criatura mostrou as bebidas que tinha ganho na areia. Os outros dois desoladores moveram suas mãos de quatro dedos para manifestar sua aprovação. Um campeão
--comentou um, telepáticamente. --E equipado para cavar --acrescentou o terceiro em voz alta. Uma idéia surgiu em sua mente e, portanto, na mente de outros. Possivelmente
para esculpir? Os três desoladores olharam ao outro lado da cova, onde tinham começado os trabalhos para construir novos quartos. --Poremos ao svirfnebli a trabalhar
a pedra quando for o momento oportuno --declarou o primeiro illita movendo os dedos. Mas primeiro quero que me consiga mais bebidas e ouro. Um escravo o mar
de rentável! --Como todos outros que capturamos na emboscada --disse o segundo. --O oseogarfio se ocupa do rebanho --explicou o terceiro. --E o drow atende ao cérebro
--disse o primeiro. Vi-o quando vinha para
aqui. Será um massagista excelente para prazer do cérebro e benefício de todos nós. --Também está isto --interveio o segundo, que estirou um tentáculo para tocar
ao terceiro. O terceiro desolador mostrou a estatueta de ônix. Magia? --perguntou o primeiro. Certamente --respondeu o segundo, mentalmente. Vinculado ao plano
astral. Acredito que é um ente da pedra. --Chamaste-o? --interrogou-o o primeiro em voz alta. Os outros dois desoladores fecharam as mãos ao uníssono, o sinal equivalente
a "não". --Possivelmente se trate de um inimigo muito perigoso --explicou o terceiro. Pensamos que seria mais prudente observar à besta em seu próprio plano antes
de chamá-la. --Uma decisão muito sábia --comentou o primeiro. Quando lhes partem? --Agora mesmo --respondeu o segundo. Acompanha-nos? O primeiro illita fechou
os punhos e depois mostrou um dos frascos de bebidas. --Não terá que desperdiçar a ocasião de obter novas lucros -- respondeu. Os outros dois moveram os dedos,
excitados. Depois, enquanto seu companheiro se retirava a outra habitação para contar as lucros, instalaram-se comodamente em umas poltronas bem amaciadas e se prepararam
para a viagem. Flutuaram juntos, abandonando os corpos nas poltronas, e ascenderam seguindo o vínculo da estatueta com o plano astral, que viam como um magro cordão
prateado. Agora se encontravam além da caverna onde viviam, além das pedras e os sons do plano material, e flutuavam na vasta serenidade do mundo astral. Aqui não
havia mais ruído que o produzido pelo ulular constante do vento astral. Tampouco havia estruturas sólidas --nenhuma em términos do mundo material-- e a matéria ficava
definida pelas variações de luz. Os desoladores se separaram do cordão prateado da estatueta quando faltava pouco para completar a ascensão astral. Entrariam em
um plano próximo à entidade da grande pantera, mas não tão perto para ser descobertos. Os desoladores não estavam acostumados a ser bem recebidos, pois eram desprezados
por quase todas as criaturas de quão planos visitavam. Penetraram no plano astral sem incidentes e não demoraram para encontrar à entidade representada pela estatueta.
Guenhwyvar corria através de um bosque de luz estelar perseguindo a entidade de um cervo, em um ciclo eterno. O cervo, tão soberbo como a pantera, saltava e corria
com um equilíbrio perfeito e uma graça inconfundível. Guenhwyvar e o cervo tinham interpretado esta cena um milhão de vezes e a voltariam a repetir um milhão mais.
Este era a ordem e a harmonia que governavam a existência da pantera, quão mesmos regiam os planos de todo o universo. Mas algumas criaturas, como os fetos dos planos
inferiores e quão desoladores agora contemplavam à pantera de longe, não podiam aceitar a singela perfeição desta harmonia nem reconheciam a beleza da interminável
caçada. Enquanto olhavam à maravilhosa pantera no jogo da vida, os desoladores só pensavam em como tirar proveito do felino.
17
Um delicado equilíbrio
Belwar estudou a seu último inimigo com muita atenção, porque alguma coisa lhe resultava conhecida na aparência da besta couraçada. "fui em alguma ocasião amigo
desta criatura?", perguntou-se. Entretanto, as dúvidas do gladiador svirfnebli não podiam penetrar na consciência do pequeno, porque o amo illita continuava com
a
insidiosa transmissão de enganos telepáticos. Mata-o, meu grande campeão --rogou-lhe o desolador desde seu assento nas escadarias. É seu inimigo mais perigoso,
e me fará mal se não acabar com ele. O oseogarfio, muito maior que o amigo perdido do Belwar, carregou contra o svirfnebli, porque não tinha nenhum reparo em comer-se
ao pequeno. Belwar dobrou os joelhos e esperou o momento preciso. Quando o oseogarfio se inclinou sobre ele, com as garras bem separadas para lhe impedir de escapar,
saltou para diante, com a mão-de-martelo como um aríete contra o peito do monstro. No exoesqueleto do gigante apareceram um milhar de gretas provocadas pelo tremendo
golpe, e o monstro se desabou para diante, sem conhecimento. O pequeno tentou apartar-se para não ficar prejudicado pelo peso e o impulso do oseogarfio, mas não
foi
o bastante rápido. Sentiu que lhe desconjuntava um ombro, e ele também esteve a ponto de perder o conhecimento por culpa da terrível dor. Uma vez mais as chamadas
do amo do Belwar dominaram sua mente e inclusive o sofrimento. Os gladiadores caíram ao mesmo tempo, e Belwar ficou sepultado pela mole do monstro. O tamanho do
oseogarfio impedia a este alcançar com os braços ao capataz, mas dispunha de outras armas. O pico procurou o Belwar. O pequeno conseguiu pôr a mão-de-lança na trajetória,
embora não foi suficiente para detê-lo e acabou com o braço retorcido. O bicada não alcançou o rosto do Belwar por um par de centímetros. Nas escadarias, os desoladores
saltavam de entusiasmo e comentavam as alternativas do combate, empregando indistintamente a telepatia ou seus gorgoteantes vozes. As mãos se transformavam em punhos
à medida que alguns tentavam cobrar as apostas por considerar que tinha acabado o espetáculo. O amo do Belwar, preocupado pela possibilidade de perder a seu campeão,
chamou o dono do oseogarfio. Rende-te?--perguntou-lhe, com um tom de confiança que não sentia. O outro illita lhe voltou as costas e fechou os canais telepáticos.
O amo do pequeno não podia fazer outra coisa que olhar. O oseogarfio não podia aproximar-se mais ao svirfnebli, pois este tinha o cotovelo apoiado no chão e a mão-de-lança
sujeitava com firmeza o pico mortal do monstro, de modo que trocou de tática; levantou a cabeça bruscamente, com o qual conseguiu escapar da mão do Belwar. A intuição
jaqueta do capataz lhe salvou a vida, porque o oseogarfio voltou a investir o movimento e lançou o bicada. A reação normal e a defesa esperada
teria sido desviar a cabeça do monstro com um golpe da mão-de-lança. Isto era o que esperava o oseogarfio, e Belwar sabia. O svirfnebli moveu o braço por diante,
mas
cortou o alcance de forma tal que a mão-de-lança passasse por debaixo do pico do oseogarfio. Este, por sua parte, convencido de que Belwar tentava lhe dar um golpe,
freou em seco o ataque. Mas a mão-de-lança de mithril trocou de direção muito mais rápido do que tinha esperado o monstro. O reverso do Belwar alcançou ao oseogarfio
justo atrás do pico e lhe desviou a cabeça a um lado. Então, sem fazer caso da terrível dor no ombro desconjuntado, Belwar dobrou o outro braço e lançou um golpe.
Não tinha forças, mas naquele momento o oseogarfio girou a cabeça e abriu o pico para morder o rosto do pequeno. No instante preciso para tragar-se em troca um martelo
de mithril. A mão do Belwar se afundou na boca do oseogarfio forçando-o a abrir o pico além do que permitiam os músculos. O monstro se sacudiu enlouquecido para
conseguir livrar-se, e cada sacudida era uma tortura para o braço ferido do capataz. Belwar respondeu com idêntica fúria, descarregando um golpe atrás de outro contra
o parietal da cabeça do oseogarfio com a mão livre. O sangue emanava pelo enorme pico enquanto a mão-de-lança se cravava uma e outra vez. --Rende-te? --gritou-lhe
o amo do Belwar ao dono do oseogarfio. Uma vez mais a pergunta era prematura, porque, na areia, o oseogarfio não se dava por vencido e tinha posto em prática outra
de suas armas: o peso. O monstro apoiou o peito sobre o pequeno tendido, disposto a esmagá-lo. --Rende-te você? --replicou o amo do oseogarfio, ao ver a mudança
inesperada
da situação. Emano-pica-a do Belwar se cravou em um olho do oseogarfio, e o monstro uivou de dor. Os desoladores se levantaram uma e assinalaram para a areia, com
os dedos estendidos ou abrindo e fechando os punhos. Os donos dos gladiadores compreenderam o muito que tinham em jogo. Parecia pouco provável que os combatentes
pudessem voltar a brigar se permitiam a continuação da luta. Possivelmente teríamos que considerá-lo um empate --propôs telepáticamente o amo do Belwar. O outro
illita aceitou no ato, e os amos enviaram mensagens a seus campeões. Demoraram para conseguir acalmá-los e acabar o duelo, mas finalmente, as ordens puderam dominar
os selvagens instintos de sobrevivência dos gladiadores. de repente, o pequeno e o oseogarfio sentiram avaliação pelo rival, e, quando o monstro se levantou, tendeu-lhe
uma garra ao svirfnebli para ajudá-lo a ficar de pé. Ao cabo de um momento, Belwar se encontrava outra vez sentado no banco de pedra da pequena cela comunicada com
a areia por um túnel. Tinha o braço da manomartelo intumescido e um arroxeado enorme lhe cobria o ombro. Teriam que passar muitos dias antes de que Belwar pudesse
voltar para circo, e o preocupava muitíssimo não poder agradar a seu amo. O illita entrou na cela para ver as lesões do pequeno. Levava com ele bebidas para curar
a ferida, mas inclusive com a ajuda da magia, Belwar necessitaria uma temporada de repouso. Mesmo assim, o desolador tinha outras ocupações para o svirfnebli. Precisava
acabar a construção de um quarto em seus aposentos. Vêem --disse-lhe o illita, e o capataz se apressou a seguir a seu amo, mantendo um passo atrás em sinal de respeito.
Um drow ajoelhado chamou a atenção do Belwar enquanto o desolador o guiava através do nível inferior da torre central. Que sorte tinha esse elfo escuro de poder
tocar e dar prazer ao cérebro da comunidade! Mas se esqueceu dele em uns segundos quando chegou ao terceiro piso do edifício e às habitações que compartilhavam seus
três amos. Os outros dois desoladores permaneciam nas poltronas, imóveis e com um aspecto de mortos. O dono do Belwar nem sequer se fixou neles porque sabia que
os companheiros estavam muito longe, em uma viagem astral, e que os corpos não corriam perigo. De todos os modos, o illita se perguntou, só por um instante, como
iria naquele plano distante. Como todos os desoladores, o amo do Belwar desfrutava das viagens astrais, mas o pragmatismo, um rasgo illita muito acentuado, fez que
os pensamentos da criatura se mantivessem centrados nos assuntos mais urgentes. Tinha investido muito na compra do svirfnebli, e queria obter o máximo de benefício.
O desolador levou ao Belwar até uma das habitações e o fez sentar a uma mesa de pedra. Então, de repente, o illita bombardeou ao Belwar com sugestões telepáticas
e perguntas, ao tempo que lhe colocava o ombro em seu lugar e lhe enfaixava as feridas. Os desoladores podiam invadir os pensamentos de outro ser, por meio dos ataques
paralizantes ou as comunicações telepáticas, mas demoravam semanas, inclusive meses, em submeter totalmente a um escravo. Cada encontro reduzia a resistência natural
de este às insinuações mentais do illita e revelava ao amo mais coisas de suas memórias e emoções. O amo do Belwar tinha a intenção de sabê-lo tudo deste curioso
svirfnebli, de suas mãos artificiais, e dos motivos para ter uns companheiros tão pouco habituais. Esta vez o illita enfocou a investigação nos apêndices metálicos,
porque tinha a intuição de que Belwar não utilizava o máximo de suas possibilidades. Os pensamentos do illita sondaram uma e outra vez até que por fim encontrou
uma letanía nas profundidades da mente do Belwar. Bivrip? --perguntou-lhe. Em uma resposta reflete, o capataz golpeou as mãos metálicas entre si, e gemeu de dor
pela sacudida do impacto. Os dedos e tentáculos do desolador se moveram entusiasmados. Tinha encontrado algo importante, algo que podia fazer mais capitalista a
seu campeão, embora devia atuar com cuidado. Para lhe permitir recordar o feitiço também teria que devolver parte da memória consciente dos dias anteriores à escravidão.
O desolador aplicou ao Belwar outra bebida. Se o pequeno continuava a carreira de gladiador, teria que enfrentar-se outra vez ao oseogarfio; segundo as regras,
correspondia um novo encontro depois de um empate. O amo do Belwar duvidada que o svirfnebli pudesse sobreviver a outro combate contra o monstro. A menos que...
Dinin Dou'Urdem conduziu seu lagarto através do setor do Menzoberranzan onde viviam os familiares inferiores, a parte mais povoada da cidade. Mantinha o capuz do
piwafwi bem rodeada sobre o rosto e não levava nenhuma insígnia que o identificasse como nobre de uma casa regente. O segredo era o aliado do Dinin, tanto dos olhares
vigilantes nesta perigosa zona da cidade como dos olhos de sua mãe e sua irmã. Dinin tinha a idade suficiente para compreender os riscos da autosatisfacción. Vivia
em um estado vizinho na paranóia, pois nunca sabia quando Malícia e Briza podiam estar vigiando-o. Um grupo de peludos se atravessou no caminho do lagarto, e a fúria
dominou ao orgulhoso filho maior da casa Dou'Urdem ante a pouca pressa dos escravos por apartar-se. Involuntariamente, levou a mão ao látego sujeito ao cinturão.
Mas Dinin controlou o aborrecimento, consciente das conseqüências de ser descoberto. Deu a volta por uma das numerosas esquinas e seguiu a marcha através de uma
série de estalagmites conectadas. --Assim que me encontraste --disse uma voz conhecida detrás dele, a sua direita. Surpreso e assustado, Dinin reprimiu ao lagarto
e permaneceu imóvel na
cadeira. Sabia que ao menos uma dúzia de molas de suspensão pequenas lhe apontavam. Dinin voltou lentamente a cabeça para observar ao Jarlaxle. Nas sombras, o mercenário
parecia muito diferente do cortês e complacente drow que Dinin tinha conhecido na casa Dou'Urdem. Ou possivelmente era só o efeito da presença dos guardas armados
com duas espadas e de saber que não tinha à matrona Malícia para que o protegesse. --acostuma-se a pedir permissão antes de entrar em casa alheia --comentou Jarlaxle
com voz pausada mas ominosa. É a cortesia habitual. --Estou em uma rua pública --recordou-lhe Dinin. --Minha casa --afirmou Jarlaxle com um sorriso que negava
o valor da resposta. Dinin recordou sua posição, e isto reanimou em parte sua coragem. --É que um nobre de uma casa regente tem que pedir permissão ao Jarlaxle antes
de sair de sua própria casa? --grunhiu o filho maior. E o que me diz da matrona Baenre, que não entraria na casa mais inferior do Menzoberranzan sem pedir permissão
da mãe matrona? Acaso a matrona Baenre também tem que pedir a autorização do Jarlaxle, o patife? Dinin compreendeu que talvez se excedeu, mas o orgulho exigia estas
palavras. Jarlaxle se relaxou, e o sorriso que apareceu em seu rosto quase parecia sincera. --Assim que me encontraste --repetiu, e esta vez fez a reverência de
rigor. Me diga o que te traz por aqui. Dinin cruzou os braços sobre o peito em uma atitude beligerante, mais seguro de si mesmo ante as evidentes concessões do
mercenário. --Como é que está tão seguro de que te buscava? Jarlaxle intercambiou um sorriso com os dois guardas. As risitas dos soldados ocultos entre as sombras
foram como um cubo de água fria para a confiança do Dinin. --Dava a que vieste, filho maior --insistiu Jarlaxle, impaciente--, e acabemos com isto. Dinin estava
mais que disposto a dar por finalizado o encontro o antes possível. --Procuro informação referente ao zin-Carla --disse, sem mais rodeios. O espectro do Zaknafein
percorre as profundidades da Antípoda Escura há muitos dias. Muitos, possivelmente... O mercenário entreabriu as pálpebras enquanto analisava o raciocínio do filho
maior. --A matrona Malícia te enviou aqui? --manifestou com um tom que era tanto de pergunta como de afirmação. Dinin sacudiu a cabeça, e Jarlaxle não duvidou de
sua sinceridade. É tão sábio como destro com a espada --acrescentou Jarlaxle com uma segunda reverência que pareceu um pouco desconjurado no escuro mundo do soldado.
--vim por minha própria iniciativa --respondeu Dinin com voz firme. Preciso saber umas respostas. --Tem medo, filho maior? --Estou preocupado --respondeu Dinin,
sinceramente, sem fazer caso do tom provocador do mercenário. Nunca cometo o engano de subestimar a meus inimigos, ou a meus aliados. Jarlaxle o olhou com estranheza.
--Sei no que se converteu meu irmão --explicou Dinin. E também sei o que foi Zaknafein. --Zaknafein é agora um espectro --afirmou Jarlaxle--, submetido ao controle
da matrona Malícia. --passaram muitos dias --disse Dinin em voz baixa, convencido de que as implicações de suas palavras lhe davam força suficiente.
--Sua mãe pediu o zin-Carla --exclamou Jarlaxle, irritado. É o maior presente do Lloth, e só se dá para que a reina aranha obtenha em troca um grande prazer. A
matrona Malícia conhecia o risco quando solicitou o zin-Carla. Sem dúvida compreende, filho maior, que os espectros se concedem para o cumprimento de uma tarefa
específica. --E quais são as conseqüências do fracasso? --perguntou Dinin com brutalidade, quase tão alterado como o mercenário. O incrédulo olhar do Jarlaxle foi
uma resposta o mar de eloqüente. --De quanto tempo dispõe Zaknafein? --insistiu Dinin. Jarlaxle encolheu os ombros sem comprometer-se e respondeu com outra pergunta.
--Quem pode saber os planos do Lloth? --disse. Reina-a aranha pode ser muito paciente, se o ganho justificar a espera. Tanto vale Drizzt? --Uma vez mais o mercenário
encolheu os ombros. Isso é algo que unicamente Lloth pode decidir. Dinin observou ao Jarlaxle durante um bom momento, até convencer-se de que o mercenário não
tinha nada mais que adicionar. Então procurou suas arreios e se cobriu a cabeça com o capuz. Assim que se acomodou na cadeira, voltou a cabeça com a intenção de
fazer um último comentário, mas o mercenário e os guardas se esfumaram. --Bivrip! --gritou Belwar para completar o feitiço. O capataz golpeou as mãos metálicas entre
si, e esta vez quase não sentiu dor. Uma chuva de faíscas voou pelos ares quando chocaram as mãos, e o amo do Belwar aplaudiu entusiasmado. Não podia esperar um
segundo mais para ver seu gladiador em ação. Procurou um objetivo e viu o oco da nova habitação ao meio escavar. Uma série de instruções telepáticas invadiram a
mente do svirfnebli quando o illita lhe transmitiu as dimensões e o desenho que desejava para a habitação. Belwar não perdeu nem um instante. Pouco seguro da força
do ombro ferido, que guiava a mão-de-martelo, empregou a mão-de-lança. A pedra estalou em uma nuvem de pó como conseqüência do golpe mágico, e o desolador alagou
de
prazer os pensamentos do pequeno. Nem a couraça de um oseogarfio podia resistir semelhante impacto! O amo do Belwar reforçou as instruções que lhe tinha dado, e
depois
se retirou a outro quarto a estudar. Abandonado a seu trabalho, tão parecido ao que tinha realizado durante quase um século de vida, Belwar começou a pensar. Não
surgiu nada especial nos poucos pensamentos coerentes do capataz; a necessidade de satisfazer ao amo illita era o mais importante de seus movimentos. Não obstante,
pela primeira vez da captura, Belwar pensou. Quem era? ou que propósito tinha? A canção mágica de suas mãos de mithril soou outra vez em sua mente e se converteu
no foco de sua decisão inconsciente de escapar da confusão provocada pelas insinuações dos captores. --Bivrip? --repetiu. A palavra despertou uma lembrança mais
recente: a imagem de um elfo escuro, de joelhos e dedicado a massagear ao cérebro-deus dos desoladores. --Drizzt? --murmurou Belwar, mas o nome se perdeu no estrondo
da seguinte martelada dada para cumprir com as ordens do amo. A habitação devia ser perfeita. Uma parte de carne se sacudiu debaixo da mão negra, e uma quebra de
onda de angústia originada pelo cérebro central da comunidade esfolamento invadiu ao Drizzt. A única resposta emocional do drow foi uma profunda tristeza, porque
não podia suportar o mais mínimo sofrimento do cérebro. Seus dedos massagearam e acariciaram; Drizzt agarrou
um bol de água morna e o derramou lentamente sobre a carne. Então o drow recuperou a paz, porque a carne se acalmou graças à habilidade de seu tato, e a angústia
do cérebro foi substituída por uma sensação de gratidão. Atrás do drow ajoelhado, ao outro lado da ampla passarela, dois desoladores observaram seu trabalho e assentiram
agradados. Os elfos escuros eram os melhores para este tipo de encargos, e este último cativo era o melhor de todos. Os desoladores moveram os dedos entusiasmados
ante as implicações do pensamento compartilhado. O cérebro central tinha detectado a presença de outro drow intruso nas redes que formavam os túneis além da larga
e estreita caverna; outro escravo para massagear e tranqüilizar. Assim pensava o cérebro central. Quatro desoladores saíram da caverna, guiados pelas imagens transmitidas
pelo cérebro central. Um drow solitário tinha penetrado em seus domínios, uma presa fácil. Assim pensavam os desoladores.
18
O elemento surpresa
O espectro avançava em silencio pelo labirinto de túneis, com o passo rápido e elástico de um veterano guerreiro drow. Mas os desoladores mentais, guiados pelo cérebro
central, sabiam perfeitamente qual era o rumo do Zaknafein e o esperavam emboscados. Quando Zaknafein chegou junto ao mesmo penhasco onde tinham apanhado ao Belwar
e Clak, um illita lhe saiu ao encontro e disparou uma descarga de energia paralisante. Em distâncias curtas, poucas criaturas teriam resistido um golpe tão potente,
mas Zaknafein era um ser não morto, um ser ultraterreno. A proximidade da mente do Zaknafein, encadeada a outro plano de existência, não podia ser medida em passos.
Impenetrável aos ataques mentais, as espadas do espectro lançaram suas estocadas e cada uma trespassou um olho leitoso e sem pupila do assombrado illita. Os outros
três desoladores flutuaram do teto, descarregando os cones de energia. Zaknafein os esperou tranqüilamente, espadas em mão, enquanto os desoladores prosseguiam o
descida. Os ataques mentais sempre tinham dado resultado; não podiam acreditar que nesta ocasião não servissem de nada. Os desoladores dispararam uma dúzia de vezes
sem que o espectro resultasse afetado. Os atacantes começaram a preocupar-se e tentaram chegar aos pensamentos do Zaknafein para descobrir o que o protegia. O que
encontraram foi uma barreira que superava sua capacidade de penetração, uma muralha que transcendia seu plano de existência atual. Tinham visto a mestria da esgrima
do Zaknafein aplicada contra seu desafortunado companheiro e não tinham a intenção de travar um combate corpo a corpo contra um guerreiro tão hábil. Telepáticamente
acordaram trocar de direção. Mas tinham descendido muito. Ao Zaknafein não interessavam os desoladores e teria seguido seu caminho sem lhes fazer caso. Por desgraça,
os instintos do espectro e o conhecimento que tinha Zaknafein da vida passada referente aos desoladores, levaram-no a uma conclusão inevitável: se Drizzt tinha passado
por aqui --e Zaknafein não o punha em dúvida--, provavelmente se tinha encontrado com os desoladores. Um ser não morto podia derrotá-los, mas um drow mortal, embora
fosse Drizzt, não era rival para eles. Zaknafein embainhou uma espada e se encarapitou ao penhasco de pedra. Com um segundo salto, o espectro sujeitou a um illita
pelo tornozelo. A criatura disparou um cone de energia, mas era um ser condenado sem nenhuma defesa contra a espada do Zaknafein. Com uma força incrível, o espectro
se elevou, abrindo-se caminho com a espada. O desolador pretendeu desviar a lâmina, mas as mãos nuas não serviam de nada contra a certeira arma do espectro. A espada
do Zaknafein atravessou a barriga do desolador e lhe perfurou os pulmões e o coração. Com as mãos apertadas na enorme ferida do ventre, o illita não pôde fazer outra
coisa que olhar como Zaknafein encontrava um apoio e a seguir descarregava
um tremendo chute contra seu peito. O desolador moribundo saiu despedido e voou dando tombos sobre si mesmo até que se estrelou contra uma parede. Ali ficou flutuando
no ar enquanto o sangue formava um atoleiro no chão. O seguinte salto do Zaknafein o levou contra o segundo illita, e o impulso do choque fez que ambos alcançassem
ao terceiro. Os dedos e tentáculos dos desoladores se sacudiram enlouquecidos em busca de um ponto onde sujeitar-se à carne do drow. Mas a arma era muito mais eficaz,
e em questão de segundos o espectro se separou das duas últimas vítimas. Com seu próprio feitiço de levitação, baixou brandamente até o chão e se afastou tranqüilamente,
deixando detrás de si os quatro cadáveres: três que flutuariam no ar até que se esgotassem seus feitiços de levitação, e um quarto no chão. O espectro não se preocupou
em limpar o sangue das espadas, pois sabia que muito em breve as utilizaria de novo. Os dois desoladores continuaram com a observação da entidade da pantera. Não
sabiam, mas Guenhwyvar tinha descoberto sua presença. No plano astral, onde os sentidos materiais como o aroma e o gosto não tinham aplicação, a pantera gozava de
outros sentidos mais sutis. Aqui Guenhwyvar caçava valendo-se de outro sistema que convertia as emanações de energia em imagens mentais, e a pantera podia distinguir
no ato entre a auréola de um cervo e a de um coelho sem necessidade de ver a criatura. Os desoladores não eram uns desconhecidos no plano astral, e Guenhwyvar reconheceu
suas emanações. A pantera ainda não tinha decidido se sua presença era uma casualidade ou se estava relacionada de algum modo com o fato de que Drizzt não a tinha
chamado em vários dias. O evidente interesse que os desoladores mostravam por ela sugeria esta última possibilidade, algo que preocupava profundamente à pantera.
Em qualquer caso, Guenhwyvar não queria fazer o primeiro movimento contra um inimigo tão perigoso, de modo que continuou com sua rotina diária, sem perder de vista
aos visitantes. Guenhwyvar notou uma mudança nas emanações dos desoladores quando as criaturas iniciaram um rápido descida para o plano material. A pantera não podia
esperar mais. Com um formidável salto das estrelas, Guenhwyvar se lançou contra os desoladores. Ocupados com seus esforços por iniciar a viagem de volta, os desoladores
não reagiram até que foi muito tarde. A pantera se mergulhou por debaixo de um deles e apanhou o cordão prateado entre seus dentes de luz. Guenhwyvar sacudiu a cabeça
de um lado a outro e cortou o cordão prateado. O illita indefeso se afastou, perdido para sempre no plano astral. O outro desolador, interessado unicamente em salvar
a vida, não fez caso das súplicas do companheiro e continuou o descida para o túnel entre planos que o devolveria a seu corpo material. O illita quase conseguiu
evitar ao Guenhwyvar, mas as garras da pantera o sujeitaram no instante de entrar no túnel. Guenhwyvar o acompanhou na viagem. Da pequena ilha de pedra, Clak viu
a comoção que se estendia por toda a caverna. Os desoladores corriam daqui para lá ao tempo que ordenavam telepáticamente a quão escravos fossem às posições de defesa.
Os vigias se dispersaram por todas as saídas, e outros desoladores se elevaram pelos ares para manter uma vigilância global da situação. Clak compreendeu que uma
crise motivada por uma causa que desconhecia afetava à comunidade, e um pensamento lógico se abriu passo na mente do oseogarfio: se os
desoladores se enfrentavam a um novo inimigo, esta poderia ser a oportunidade para escapar. O olhar do Clak se posou na alavanca da ponte, e depois em seus companheiros
na ilha. A ponte era retrátil, e a alavanca se inclinava para a ilha. Um projétil bem dirigido poderia jogá-la para trás. Clak entrechocó as garras --um gesto que
lhe fez recordar ao Belwar-- e agarrou a um pequeno cinza como se fosse uma pedra. A desafortunada criatura voou para a alavanca mas lhe faltou alcance. estrelou-se
contra a parede do abismo e se desabou para a morte. Clak chutou furioso e se voltou em busca de outro projétil. Não sabia como chegaria até o Drizzt e Belwar, e
naquele instante nem sequer pensou neles. Agora mesmo o problema principal era sair de sua prisão. Esta vez lhe tocou o turno a uma vitela. Não houve sutilezas nem
secretos na entrada do Zaknafein. Como não tinha medo dos primitivos métodos de ataque dos desoladores, o espectro avançou sem mais pela caverna larga e estreita,
sem ocultar-se de ninguém. Um grupo de três desoladores descenderam sobre ele imediatamente, lançando seus cones paralizantes. Uma vez mais o espectro atravessou
as descargas de energia sem alterar-se, e os três desoladores sofreram a mesma sorte que os quatro que se enfrentaram ao Zaknafein nos túneis. Então chegaram os
escravos. Dispostos a agradar aos amos, goblins, pequenos cinzas, orcos e inclusive um punhado de ogros carregaram contra o drow invasor. Alguns blandían arma, mas
outros só contavam com as mãos e os dentes, confiados em que a força do número seria suficiente para acabar com o guerreiro solitário. As espadas e os pés do Zaknafein
resultaram muito rápidos para umas táticas tão diretas. O espectro se moveu com a destreza de um esgrimista consumado, fazendo fintas em uma direção para depois
trocar de movimento e atacar aos oponentes mais próximos. além de onde se livrava o combate, os desoladores formaram suas próprias linhas de defesa, enquanto reconsideravam
as virtudes de suas táticas. Os tentáculos fustigavam o ar à medida que fluíam as comunicações telepáticas que tentavam encontrar alguma explicação aos acontecimentos.
Não confiavam o suficiente nos escravos para lhes dar armas, mas à medida que as baixas aumentavam, os desoladores começaram a lamentar tantas perdas. De todos os
modos, acreditavam que podiam obter a vitória. Não demorariam para somar-se à briga novos grupos de escravos. O guerreiro acabaria por cansar-se, diminuiriam suas
forças, e a horda acabaria impondo-se. Os desoladores desconheciam a verdade do Zaknafein. Não podiam saber que era uma entidade não morta, um ser movido pela magia
e dotado de uma energia inesgotável. Belwar e seu amo observaram os movimentos espasmódicos de um dos corpos, o sinal inconfundível de que o espírito retornava da
viagem astral. O pequeno não compreendia o significado dos movimentos convulsivos, mas notava o prazer de seu dono, e isto o agradava. Entretanto, o amo do Belwar
também estava um tanto preocupado porque só retornava um dos companheiros e as chamadas do cérebro central tinham a máxima prioridade e não se podiam passar por
cima. O desolador viu que os espasmos do companheiro adotavam um ritmo regular, e então aumentou sua confusão ao ver que uma névoa negra aparecia ao redor do corpo.
Naquele mesmo instante o illita entrou no plano material, e o dono do
svirfnebli compartilhou telepáticamente sua dor e seu medo. antes de que tivesse tempo de reagir, Guenhwyvar se materializou sobre o illita sentado, e o atacou a
batidas os dentes e zarpazos. Belwar ficou de uma peça quando uma lembrança fugaz passou por sua mente. --Bivrip? --sussurrou, e depois--: Drizzt? A imagem do drow
ajoelhado voltou para sua memória. Mata-a, meu bravo campeão! Mata-a! --implorou o amo do Belwar, mas já era muito tarde para o desafortunado companheiro do illita.
O desolador sentado se sacudiu, frenético, e seus tentáculos sujeitaram a cabeça do Guenhwyvar em um intento por chegar ao cérebro. A pantera respondeu com uma patada
que arrancou dos ombros a cabeça de polvo. O capataz, com as mãos ainda encantadas de seu trabalho na habitação, avançou lentamente para a pantera, com passos retardados
não pelo medo mas sim pela confusão. voltou-se para o amo e perguntou: --Guenhwyvar? O desolador sabia que lhe havia devolvido muito ao svirfnebli. A lembrança do
feitiço tinha estimulado no escravo outras memórias muito mais perigosas. Já não podia confiar no Belwar. Adivinhando as intenções do illita, a pantera se separou
de um salto do desolador morto uma fração de segundo antes de que a criatura disparasse contra Belwar. Guenhwyvar se levou por diante ao capataz e o fez cair escancarado.
Os músculos felinos se flexionaram e estiraram quando o animal aterrissou, e o animal girou e ficou encarado para a porta da habitação. A descarga do desolador roçou
ao Belwar enquanto caía, mas a confusão e raiva do pequeno o protegeram do insidioso ataque. Naquele instante, o pequeno recuperou a liberdade e, ficando de pé,
contemplou
ao illita como a coisa horrível e cruel que era. --Adiante, Guenhwyvar! --gritou o capataz, embora a pantera não necessitava que a animassem. Graças a sua natureza
astral, Guenhwyvar compreendia muito bem a sociedade illita e sabia qual era a chave para ganhar qualquer batalha contra a guarida destas criaturas. A pantera se
lançou contra a porta com todo seu peso, derrubou-a e saiu ao balcão que dava à câmara onde estava o cérebro central. O amo do Belwar, preocupado pela segurança
do cérebro-deus, tentou segui-la, mas a fúria do pequeno tinha centuplicado suas forças, e seu braço ferido não sentiu nenhuma dor quando estrelou a mão-de-martelo
na fofa carne da cabeça do illita. As faíscas da mão metálica queimaram o rosto do desolador, e a criatura se desabou contra a parede, enquanto seus olhos leitosos
e sem pupilas olhavam ao svirfnebli, estupefatos. Quinze metros mais abaixo, o drow ajoelhado advertiu o medo e a cólera de seu amo e olhou para as alturas no preciso
momento em que a pantera negra voava pelos ares. Totalmente submetido ao cérebro central, Drizzt não reconheceu ao Guenhwyvar como sua velha companheira e querida
amiga; naquele instante só viu uma ameaça ao ser que mais queria. Mas Drizzt e outros escravos massagistas não puderam fazer outra coisa que olhar indefesos enquanto
a poderosa pantera, com as fauces abertas e as garras estendidas, caía no centro da massa de carne palpitante que governava a comunidade dos desoladores.
19
Dores de cabeça
Uns cento e vinte desoladores viviam no castelo de pedra ou em seus arredores, e cada um deles sentiu a mesma terrível dor de cabeça quando a pantera caiu sobre
o cérebro central da comunidade. Guenhwyvar se moveu como um arado através da indefesa massa de carne, abrindo grandes sulcos com suas afiadas garras. O cérebro
central transmitiu sensações de terror aos escravos para animá-los a sair em sua ajuda. Ao compreender que não podia contar com eles, a coisa optou por suplicar
à pantera. Entretanto, a ferocidade primitiva do Guenhwyvar era como uma tela ao intrusismo mental. A pantera continuou com a destruição, afundando-se cada vez mais
nas sanguinolentas malhas. Drizzt gritou furioso e correu ao longo da passarela, tentando encontrar a maneira de chegar até o animal. Percebia a angústia de seu
querido amo e rogava que alguém --qualquer-- fizesse algo. Os outros escravos se comportavam da mesma maneira, e os desoladores foram daqui para lá, mas Guenhwyvar
se encontrava no centro dos miolos, fora do alcance de qualquer arma a disposição dos telépatas. Uns segundos depois, Drizzt deixou de correr e de gritar. perguntou-se
quem era e onde estava, e que demônios podia ser aquela coisa repugnante que tinha diante. Olhou a seu redor e viu as expressões de confusão nos rostos de vários
escravos duergars, outro elfo escuro, dois goblins e um peludo. Os desoladores continuavam com as carreiras, empenhados em atacar à pantera, que era a ameaça principal,
e não emprestaram nenhuma atenção aos cativos. Guenhwyvar apareceu de repente entre as dobras do cérebro. A pantera apareceu sobre um penhasco carnudo só por um
instante, para desaparecer imediatamente. Vários desoladores dispararam contra o branco fugaz, mas o animal desapareceu antes de que os cones de energia pudessem
alcançá-lo. Assim e tudo, Drizzt alcançou a vê-lo. --Guenhwyvar! --gritou o drow enquanto uma multidão de pensamentos apareciam em sua mente. A última coisa que
recordava era estar entre as estalactites de um túnel onde espreitavam umas sombras sinistras. Um illita passou ao lado mesmo do drow, muito preocupado pelo ataque
da pantera para dar-se conta de que Drizzt já não era um escravo. O elfo escuro não tinha mais arma que seu corpo, mas levado pela fúria lhe dava igual. Deu um salto
atrás do monstro e descarregou um chute contra a nuca da cabeça de polvo. O illita foi cair sobre o cérebro central e ricocheteou várias vezes nas dobras escorregadias
antes de poder sujeitar-se. Na passarela, os escravos compreenderam que tinham recuperado a liberdade. Rapidamente os pequenos cinzas se agruparam e se lançaram
contra
dois desoladores, sobre os que descarregaram uma chuva de murros e de ferozes golpes propinados com suas pesadas botas.
ouviu-se o ruído de uma descarga, e Drizzt se voltou a tempo para ver o outro elfo escuro alcançado pelo cone de energia. Um desolador correu para o drow e se abraçou
a ele. Quatro tentáculos se cravaram no rosto da vítima e se afundaram na carne em busca do cérebro. Drizzt desejou poder ajudá-lo, mas um segundo illita se interpôs
entre eles e tomou pontaria. O jovem se mergulhou a um lado quando se produziu a descarga; levantou-se depressa e pôs-se a correr para afastar-se todo o possível
do inimigo. O grito do outro drow o reteve por um instante, e jogou um olhar por cima do ombro. Umas linhas inflamadas e grotescas sulcavam o rosto do drow, um rosto
contorsionado por uma angústia terrível. Drizzt viu a sacudida da cabeça do illita, e como os tentáculos, enterrados debaixo da pele do drow, alcançavam e sorviam
os miolos. O pobre drow gritou por última vez e então cessou toda resistência, enquanto a criatura acabava com seu repugnante festim. Sem dar-se conta, o peludo
salvou ao Drizzt de um destino similar. Em sua fuga, a criatura de dois metros de estatura se interpôs entre o Drizzt e o perseguidor quando o illita repetia a descarga.
O golpe atordoou ao peludo durante os segundos que demorou o desolador em aproximar-se. No momento em que este se dispunha a apanhar à vítima supostamente inerme,
o peludo o tombou de uma patada. Mais desoladores apareceram nos balcões que davam ao recinto circular. Drizzt não sabia onde podiam estar seus amigos, ou como podia
escapar, mas a porta que viu junto à passarela parecia ser a única oportunidade para consegui-lo. Correu para ali disposto a jogá-la abaixo; não teve ocasião porque
a porta se abriu sozinha. Drizzt foi dar entre os braços do desolador que se encontrava ao outro lado. Se no interior do castelo de pedra reinava a confusão, o exterior
era um caos. Os escravos já não carregavam contra Zaknafein. Ferida-las do cérebro central os tinham liberado das sugestões dos desoladores, e agora os goblins,
os pequenos cinzas e todos outros só pensavam em escapar. Os que se encontravam perto das saídas da caverna fugiram por elas; outros corriam de um lado para outro
para manter-se fora do alcance das descargas mentais dos desoladores. Como um autômato, Zaknafein se abria passo a golpes de espada. Abateu a um goblin que passou
junto a ele e depois avançou para a criatura que tinha estado perseguindo o goblin. Sem fazer caso do cone de energia, Zaknafein estripou ao desolador. No castelo
de pedra, Drizzt tinha recuperado a identidade, e os feitiços mágicos imbuídos no espectro se centraram nos patrões mentais do objetivo. Com um grunhido, Zaknafein
caminhou em linha reta para o castelo, deixando a seu passado uma multidão de mortos e feridos, escravos e desoladores por igual. Outra vitela mugiu assustada enquanto
voava pelos ares. Três cabeças de gado mancavam ao outro lado do abismo, e uma quarta tinha seguido ao duergar até o fundo. Esta vez, Clak não falhou a pontaria,
e o animal golpeou contra a alavanca e a moveu para trás. A ponte mágica se desdobrou no ato, e o extremo se assegurou aos pés do Clak. O oseogarfio sujeitou a outro
pequeno cinza, no caso de, e avançou pela ponte. encontrava-se quase na metade quando apareceu o primeiro desolador, que corria para a alavanca. Clak compreendeu
que
não podia alcançar o outro extremo antes de que o illita desenganchasse a ponte. Só tinha um tiro. Clak levantou o pequeno cinza --quem permanecia alheio à realidade--
bem alto por cima da cabeça, e continuou a travessia, ao tempo que deixava aproximar-se do
desolador. No momento em que este tendeu a mão para a alavanca, o duergar se estrelou contra seu peito e o tombou. Clak correu para salvar a vida. O illita se recuperou
e empurrou a alavanca. A ponte se rendeu rapidamente. Um último salto quando a ponte de metal e pedra desaparecia debaixo de seus pés permitiu ao Clak alcançar a
parede do abismo. Conseguiu pôr os braços e os ombros no bordo do precipício e teve a inteligência de encarapitar-se a toda pressa. O illita acionou a alavanca na
outra direção, e a ponte se desdobrou outra vez, roçando ao Clak. Por fortuna, o oseogarfio se apartou o suficiente e estava bem sujeito, assim que a ponte só raspou
o couraçado assumo. O desolador amaldiçoou, jogou a alavanca para trás, e correu ao encontro do oseogarfio. Esgotado e ferido, Clak não tinha tido tempo de levantar-se
quando chegou o illita, e o cobriram ondas de energia paralisante. Agachou a cabeça e se deslizou um palmo antes de que as garras pudessem sujeitar-se. A cobiça
do desolador foi sua perdição. Em lugar de continuar com as descargas e empurrar ao Clak ao vazio, pensou aproveitar a oportunidade para devorar os miolos do oseogarfio.
ajoelhou-se diante do Clak e os quatro tentáculos procuraram ansiosos uma abertura na couraça facial. A dobro personalidade do Clak lhe tinha permitido resistir
as descargas nos túneis, e agora a energia mental paralisante tampouco lhe fez muito efeito. Assim que a cabeça de polvo do illita apareceu diante de seu rosto,
Clak se recuperou de tudo. De um bicada cortou dois dos tentáculos, e depois alcançou com uma garra o joelho do illita. Os ossos se converteram em pó pela pressão
da garra, e o desolador gritou de agonia, telepáticamente e também com seu gorgoteante voz. Um segundo mais tarde, seus gritos se apagaram enquanto caía às profundidades
do abismo. Um feitiço de levitação poderia havê-lo salvado, mas para consegui-lo precisava concentrar-se e a dor da cara ferida e o joelho destroçado o impediram.
O illita pensou na levitação no mesmo instante em que a ponta de uma estalagmite lhe atravessava o peito. A mão-de-martelo destroçou a porta de outro armário de
pedra. Belwar soltou uma maldição ao ver que não havia no interior nada mais que roupas dos desoladores. O capataz sabia que sua equipe não podia estar muito longe,
embora até o momento tinha revisado a metade das habitações de seu antigo amo sem conseguir resultados. Belwar retornou à estadia principal e se aproximou das poltronas
de pedra. Entre os assentos, viu a figurinha da pantera. Guardou-a em uma bolsa, e a seguir esmagou com a mão-de-lança a cabeça do outro illita, o perdido no plano
astral, como quem mata a uma mosca; na confusão, o svirfnebli quase se esqueceu deste monstro. Belwar apartou o cadáver, que caiu ao chão. --Magga cammara --murmurou
o pequeno quando olhou a poltrona e viu as frestas de uma trampilla no assento. Sempre expedito, destroçou o assento a marteladas e por fim encontrou as mochilas.
Seguindo o curso lógico, ocupou-se da outra poltrona, onde estava o desolador decapitado pela pantera. Também ali havia um baú secreto. --Ao drow lhe farão falta
--comentou o svirfnebli enquanto tirava os escombros para retirar o cinturão com as cimitarras. Correu para a saída, onde tropeçou com outro desolador, embora seria
mais exato dizer que este tropeçou com a mão-de-martelo do Belwar. O monstro recebeu o impacto em metade do peito e com tanta força que voou por cima da balaustrada
e se precipitou ao vazio. Belwar seguiu seu caminho sem incomodar-se em averiguar se o desolador havia
conseguido frear a queda ou tinha morrido. Podia ouvir o tumulto na planta baixa, os ataques mentais e os gritos, e os rugidos da pantera, que soavam como música
celestial nos ouvidos do capataz. Com os braços pegos ao corpo pelo abraço do illita, que parecia possuir uma força superior a habitual, Drizzt só podia menear a
cabeça para demorar o avanço dos tentáculos. A gente conseguiu sujeitar-se, depois outro, e começaram a afundar-se na negra pele do elfo. Drizzt sabia muito pouco
da anatomia dos desoladores, mas eram criaturas bípedas, por isso deu por sentadas algumas costure. moveu-se um pouco de lado para não ficar diante daquele ser espantoso,
e o propinó um joelhada nas virilhas. Pelo súbito afrouxamento dos braços e a maneira em que se abriram os leitosos olhos, o jovem compreendeu que tinha acertado.
Descarregou um segundo e um terceiro joelhada. O drow empurrou com todas suas forças e se livrou do debilitado abraço do illita. Mesmo assim, os tentáculos prosseguiram
seu obstinado avanço pela cara do Drizzt em busca do cérebro. Explosões de dor ardente sacudiram ao Drizzt até quase lhe fazer perder o sentido, e a cabeça caiu
para diante como morta. Mas o caçador não estava disposto a render-se. Quando o drow levantou a cabeça, o fogo dos olhos lilás caiu sobre o illita como um raio.
O caçador agarrou os tentáculos e atirou deles com tanta violência que torceu a cabeça do desolador. O monstro disparou sua carga mental, mas o ângulo era errôneo
e a energia não conteve ao caçador. Uma mão sujeitou os tentáculos enquanto a outra golpeava a branda cabeça do illita com a potência de um martelo de mithril. As
marcas dos golpes, moradas e azuis, apareceram na pele do desolador; um olho sem pupila se inflamou até ficar fechado. Um tentáculo se cravou no pulso do drow,
em tanto o frenético illita se defendia a murros. O caçador nem sequer se deu conta, e continuou com os golpes à cabeça até que a criatura se desabou. Drizzt apartou
o braço das ventosas do tentáculo, e reatou o ataque até que os olhos do illita se fecharam para sempre. O drow deu meia volta para ouvir um som metálico. No chão,
a uns passos de distância, havia uns objetos familiares que lhe viriam muito bem. Satisfeito ao ver que as cimitarras tinham cansado muito perto de seu amigo, Belwar
se lançou escada abaixo contra o illita mais próximo. O monstro se voltou e lançou sua descarga. O pequeno replicou com um grito furioso --um grito que o protegeu
em parte do efeito paralizador-- e depois se atirou de cabeça diretamente em meio das ondas de energia. Embora um pouco enjoado pelo assalto mental, o capataz se
chocou contra o illita e os rivais caíram sobre um segundo desolador que ia para ajudar a seu companheiro. Belwar apenas se conseguia orientar-se, mas tinha muito
claro que os braços e as pernas entre os que se debatia não eram os membros de gente amiga. As mãos de mithril descarregaram golpes a torto e a direito, e assim
que pôde correu pelo segundo balcão em busca de outra escada. Quando os dois desoladores feridos se repuseram, o svirfnebli já se encontrava muito longe. Belwar
surpreendeu a outro illita e lhe esmagou a cabeça contra a parede enquanto descendia ao seguinte nível. Uma dúzia de desoladores ocupavam este balcão, dedicados
a vigiar as duas escadas que conduziam à planta baixa da torre. O pequeno optou pelo caminho mais rápido: subiu ao corrimão metálico e se deixou cair até o chão,
que
estava quase cinco metros mais abaixo.
Uma descarga de energia paralisam golpeou ao Drizzt enquanto tentava agarrar as armas. O caçador resistiu porque seus pensamentos eram muito primitivos para um ataque
tão sutil. Em um único movimento, tão rápido que o adversário nem sequer pôde fazer uma ameaça de resistência, desembainhou uma cimitarra, girou-se e lançou a estocada
em um ângulo ascendente. A lâmina atravessou de lado a lado a cabeça do desolador. O caçador sabia que o monstro tinha morrido, mas arrancou a arma da ferida e descarregou
outro cutilada contra o cadáver, só pelo prazer de fazê-lo. Então o drow se levantou e pôs-se a correr com as cimitarras desembainhadas, uma manchada de sangre illita
e a outra ansiosa por prová-la. O jovem teria que ter procurado uma rota de escapamento --isto é o que teria feito Drizzt Dou'Urdem--, mas o caçador queria mais,
exigia vingança contra o cérebro que o tinha escravizado. Um grito salvou ao drow, pois o fez sair da espiral de violência a que o arrastava a fúria instintiva.
--Drizzt! --chamou-o Belwar, que se aproximava de seu amigo caminhando com dificuldade. Me ajude, elfo escuro! Torci-me um tornozelo na queda! Os desejos de vingança
caíram no esquecimento enquanto Drizzt Dou'Urdem corria ao encontro de seu companheiro. Agarrados do braço, os dois amigos abandonaram a habitação circular. Uns
segundos mais tarde, Guenhwyvar, suja de sangue e restos do cérebro central, somou-se ao grupo. --nos tire daqui --rogou-lhe Drizzt à pantera, e Guenhwyvar ocupou
imediatamente a posição de guia. Puseram-se a correr pelos corredores, sinuosos e mau acabamentos, e Belwar não pôde evitar fazer um comentário a respeito. --Isto
não o tem feito nenhum svirfnebli --disse ao Drizzt com uma piscada de picardia. --Eu acredito que sim --respondeu o drow, lhe devolvendo a piscada. E acrescentou
depressa--: Dominados pelos encantamentos de um desolador, certamente. --Nunca! --insistiu Belwar. Jamais o trabalho de um svirfnebli poderia parecer-se com isto
nem que lhe tivessem derretido os miolos! A pesar do perigo que corriam, o pequeno soltou uma gargalhada e Drizzt o acompanhou na risada. Os ruídos dos combates
soavam
nos túneis laterais de todas as intercessões. Os agudos sentidos do Guenhwyvar lhes permitiam seguir a rota mais limpa, embora a pantera não podia saber qual era
o caminho de saída, mas algo era melhor que os horrores que tinham deixado atrás. Um desolador apareceu no corredor, proveniente de um túnel lateral, imediatamente
depois do passo do Guenhwyvar pela intercessão. A criatura não tinha visto a pantera e se enfrentou ao casal. Drizzt lançou ao Belwar ao chão de um tranco e se jogou
de cabeça contra o adversário, convencido de que receberia uma descarga antes de poder alcançá-lo. Mas ao voltar a olhar ao illita respirou aliviado. O desolador
jazia de barriga para baixo sobre a pedra, com o Guenhwyvar montada nas costas. Drizzt se aproximou da pantera enquanto esta liquidava de uma patada à criatura.
Belwar se apressou a reunir-se com eles. --A fúria, elfo escuro --comentou o svirfnebli e Drizzt o olhou com curiosidade. Acredito que a fúria diminui os efeitos
das descargas --explicou Belwar. Alguém me atacou na escada, mas eu estava tão furioso que nem me dava conta. Possivelmente estou equivocado... --Não --interrompeu-o
Drizzt ao recordar que a energia paralisante não lhe tinha feito efeito, inclusive a pouca distância, quando tinha ido recuperar as cimitarras. Naquela ocasião
o dominava seu outro eu, aquela parte escura e maníaca da que
tentava livrar-se com autêntico desespero. O assalto mental do desolador tinha sido inútil contra o caçador. Não te equivoca --assegurou a seu amigo. A fúria
pode derrotá-los, ou ao menos reduzir os efeitos dos assaltos mentais. --Então, te enfureça! --grunhiu Belwar, de uma vez que indicava ao Guenhwyvar que partisse
diante. Drizzt voltou a sujeitar o braço do capataz e assentiu à sugestão do Belwar. De todos os modos, o drow compreendeu que a fúria cega a que se referia o pequeno
não podia ser motivada conscientemente. O medo e a fúria instintivos podiam derrotar aos desoladores, mas Drizzt sabia, pelas experiências com seu outro eu, que
fortes emoções só eram provocadas pelo desespero e o pânico. O pequeno grupo percorreu uns quantos corredores, atravessou um amplo salão deserto, e a seguir outro
corredor. Atrasados pela claudicação do svirfnebli, não demoraram para ouvir o ruído de pegadas que os perseguiam. --Muito fortes para ser desoladores --comentou
Drizzt, espiando por cima do ombro. --Escravos --afirmou Belwar. detrás deles soaram as descargas paralizantes, seguidas por gemidos e o ruído dos corpos que caíam.
--Outra vez escravos --disse Drizzt com tom sombrio. Uma vez mais ouviram as pisadas, embora agora soavam como um trote ligeiro. --Depressa! --gritou Drizzt, e não
fez falta repetir-lhe ao Belwar. Puseram-se a correr, agradecidos pelas voltas e revoltas do corredor, porque pensavam que tinham aos desoladores muito perto. Ao
fim entraram em uma sala muito ampla e alta. Havia várias saídas, mas uma em especial --uma série de portas de ferro de grandes dimensione-- atraiu sua atenção.
Entre eles e as portas havia uma escada de caracol de ferro, e em um balcão não muito alto estava apostado um illita. --Corta-nos a retirada! --disse Belwar, advertindo
que as pisadas soavam agora mais fortes. Ao voltar-se para seu amigo, viu o sorriso no rosto do drow, e imediatamente também sorriu ele. Guenhwyvar se tinha lançado
para a escada de caracol e a subia em três saltos. O illita optou prudentemente por abandonar o balcão e desapareceu na escuridão dos corredores. A pantera não o
perseguiu mas sim permaneceu onde estava para poder vigiar do alto. O drow e o svirfnebli lhe deram as obrigado quando passaram junto à escada, mas lhes azedou a
alegria ao chegar às portas. Drizzt empurrou com todas suas forças sem conseguir as mover. --Trancadas! --gritou. --Não por muito tempo! --prometeu Belwar. Embora
se tinha esgotado a magia das mãos de mithril não vacilou em descarregar a mão-de-martelo contra o metal. Drizzt se colocou atrás do capataz para cobrir a retaguarda,
consciente de que os desoladores podiam aparecer em qualquer momento. --Date pressa, Belwar! --rogou-lhe. As mãos de mithril amassaram as portas com autêntica fúria.
Pouco a pouco cedeu a fechadura e as comporta se abriram um par de centímetros. --Magga cammara, elfo escuro! --gritou o capataz. Há uma barra de ferro que as
trava! Pelo outro lado! --Maldição! --exclamou Drizzt. Naquele preciso instante, um grupo de desoladores entrou na sala. Belwar não retrocedeu no empenho e seguiu
esmurrando a porta com a mão-de-martelo.
Os desoladores passaram por diante da escada e, de um salto, Guenhwyvar caiu entre eles e derrubou a todo o grupo. Foi então quando o drow descobriu que não tinha
a estatueta de ônix. A mão-de-martelo continuou com o trabalho para ampliar a separação das portas. Belwar deslizou a lâmina da mão-de-lança e de um golpe tirou
a barra
dos apoios. Comporta-as se abriram de par em par. --Venha, vamos! --gritou- o pequeno ao Drizzt. Enganchou a mão-de-lança no pulso do drow para arrastá-lo, mas o
jovem
se apartou. --Guenhwyvar!--vociferou Drizzt. O ruído das descargas mentais soou repetidamente entre o montão de corpos. A resposta do Guenhwyvar foi um uivo lastimero
mais que um rugido. Os olhos lilás do Drizzt arderam de fúria. Deu um passo para a escada antes de que Belwar recordasse a solução. --Espera! --exclamou o svirfnebli,
sem dissimular o alívio ao ver que Drizzt dava meia volta disposto a escutá-lo. Belwar aproximou sua bolsa e a abriu. Utiliza isto! Drizzt agarrou a estatueta
de ônix e a deixou cair a seus pés. --Vete, Guenhwyvar! --ordenou. Vete, retorna à segurança de sua casa! O drow e Belwar nem sequer podiam ver a pantera entre
o grupo de desoladores, mas perceberam a súbita angústia das criaturas incluso antes de que a névoa negra rodeasse o amuleto. Como se fossem um sozinho, os desoladores
se voltaram em sua direção e se lançaram sobre eles. --te encarregue da porta! --gritou Belwar. Drizzt já tinha recolhido a estatueta e corria naquela direção. As
portas de ferro se fecharam com grande estrépito e o drow se apressou a voltar a colocar a barra. Vários dos suportes estavam quebrados por causa dos golpes do capataz
e a barra se torceu, mas Drizzt as arrumou para sujeitá-la-o suficiente para demorar aos desoladores. --Os outros escravos não poderão escapar --assinalou Drizzt.
--Em sua maioria são goblins e pequenos cinzas --respondeu Belwar. --E Clak? O svirfnebli abriu os braços em um gesto de resignação. --Dão-me muita pena --gemeu
Drizzt,
horrorizado pelo destino daquelas criaturas. Não existe no mundo uma tortura equiparável às tenazes mentais dos desoladores. --É verdade, elfo escuro --sussurrou
Belwar. Os desoladores golpearam as portas, e Drizzt se apoiou no metal para ajudar à barra. --Aonde iremos? --perguntou Belwar detrás dele. Quando o drow se voltou
e olhou a larga e estreita caverna, compreendeu a confusão do capataz. Pelo menos havia uma dúzia de saídas, mas entre eles e cada uma destas se moviam uma multidão
de escravos aterrorizados ou um grupo de desoladores. A suas costas soou um golpe muito forte, e as portas cederam uns quantos centímetros. --Põe-se a correr! --respondeu
Drizzt, arrastando ao Belwar. Desceram por uma ampla escalinata e atravessaram um corredor de chão desigual, em busca de um caminho que os afastasse o máximo possível
do castelo. --Cuidado com os perigos que nos rodeiam! --recomendou-lhe Belwar. Sejam escravos ou desoladores! --Que se eles cuidem! --replicou Drizzt com as cimitarras
preparadas. Com um golpe do punho, tombou a um goblin que se interpôs no
caminho, e um segundo depois cortou os tentáculos da cabeça de um illita quando começava a sorver os miolos de um duergar recapturado. Então outro ex-escravo, um
gigante, apareceu diante do drow. Drizzt se lançou sobre ele, mas com a precaução de apartar as cimitarras. --Clak! --gritou o capataz detrás do Drizzt. --Ao fon...
fundo de... a... caverna --ofegou o oseogarfio com tanta dificuldade que suas palavras quase não se entendiam. A me... melhor saída. --lhes guiem --disse Belwar
entusiasmado e com novas esperanças. Nada nem ninguém poderia detê-los agora que estavam os três juntos. Entretanto, quando o capataz seguiu ao gigante observou
que Drizzt não os acompanhava. Seu primeiro pensamento foi que uma descarga paralisante devia ter afetado ao drow, mas ao voltar junto ao Drizzt, comprovou que
a causa era outra. No alto de uma das muitas escadas que uniam as cornijas, uma figura solitária fazia estragos entre os desoladores e os escravos. --Por todos os
deuses --murmurou o svirfnebli, incrédulo, porque a habilidade do guerreiro com as espadas lhe inspirou um profundo temor. Os cortes precisos e a destreza nos movimentos
das duas espadas não tinham o mesmo significado para o Drizzt Dou'Urdem. Ao contrário, para o jovem elfo escuro representavam algo familiar que o encheu de dor.
Olhou ao Belwar com ar ausente e pronunciou o nome do único guerreiro possuidor de tanta perícia, o único nome que podia acompanhar a aquela magnífica exibição de
esgrima. --Zaknafein.
20
Pai
Quantas mentiras lhe tinha contado a matrona Malícia? É que havia algo que fosse verdade na telaraña de enganos da sociedade drow? Seu pai não tinha sido sacrificado
à rainha aranha! Zaknafein estava ali, combatendo ante seus olhos, utilizando as espadas com mais habilidade que alguma vez. --Quem é? --perguntou Belwar. --Um
guerreiro drow --sussurrou Drizzt, quase sem poder falar. --Vem de sua cidade, elfo escuro? --quis saber o pequeno. Enviaram-no detrás de ti? --É do Menzoberranzan
--replicou Drizzt. Belwar esperou mais informação, mas o jovem estava muito emocionado pela aparição do Zaknafein para entrar em detalhes. --Devemos ir --disse
o capataz depois de uma pausa. --Depressa --acrescentou Clak, que havia tornado junto a seus amigos. A voz do oseogarfio soava muito mais controlada, como se a presença
dos companheiros tivesse ajudado à personalidade pek na luta interna. Os desoladores preparam novas defesas. Têm cansado muitos escravos. --Não --exclamou Drizzt,
ao tempo que se separava do alcance da mão-de-lança do Belwar. Não o deixarei! --Magga cammara, elfo escuro! --vociferou Belwar. Quem é? --Zaknafein Dou'Urdem
--chiou Drizzt, com uma raiva igual ou maior que a do svirfnebli. Entretanto, a voz se converteu em um murmúrio afogado quando acrescentou--: Meu pai. Belwar e Clak
não tinham tido tempo de recuperar do assombro quando Drizzt já subia pela escada. No alto, o espectro se erguia entre os corpos sem vida de escravos e desoladores
que tinham tido a desgraça de cruzar-se em seu caminho. um pouco mais à frente, em uma confisca mais elevada, vários desoladores fugiam do monstro não morto. Zaknafein
começou a persegui-los, porque corriam para o castelo de pedra, na mesma direção que o espectro tinha escolhido desde o começo. Mas um alarme mágica soou no interior
do espectro e o obrigou a voltar-se para a escada. Drizzt vinha para ele. Por fim tinha chegado a oportunidade do zin-Carla. O propósito da animação do Zaknafein
estava a ponto de cumprir-se. --Professor de armas! --gritou Drizzt, sem deixar de correr para seu pai. O jovem drow não cabia em si de alegria, sem compreender
a realidade do monstro que tinha diante. Mesmo assim, quando Drizzt se aproximou do Zak pressentiu que havia alguma coisa estranha. Possivelmente foi a luz estranha
nos olhos do espectro o que demorou o passado do jovem. Possivelmente foi o fato de que Zaknafein não respondeu à chamada. Um segundo depois, uma estocada procurou
seu corpo. Em um ato reflito conseguiu parar o golpe com uma cimitarra. Confuso, pensou
que Zaknafein não o tinha reconhecido. --Pai! --gritou. Sou Drizzt! Uma espada se lançou a fundo enquanto a segunda iniciava uma trajetória circular para depois
lançar-se bruscamente contra o flanco do Drizzt. Com idêntica rapidez, Drizzt parou o ataque da primeira espada e moveu a outra horizontalmente para desviar à segunda.
--Quem é? --perguntou Drizzt desesperado, furioso. A resposta foi uma chuva de golpes. Drizzt se moveu com a velocidade do raio para rechaçá-los, mas então Zaknafein
o surpreendeu com um reverso que conseguiu apartar as cimitarras do jovem ao mesmo tempo. A segunda espada do espectro a seguiu de perto, em uma estocada direta
ao coração, que Drizzt não podia evitar de maneira nenhuma. Do chão, ao pé da escada, Belwar e Clak gritaram angustiados, convencidos de que seu amigo estava a ponto
de morrer. Mas o momento de glória do Zaknafein se viu frustrado pelos instintos do caçador. Drizzt saltou a um lado antecipando-se à espada, e depois se retorceu
para mergulhar-se por debaixo da estocada mortal. A ponta da espada abriu uma ferida muito dolorosa no queixo do jovem. Quando Drizzt completou o mergulho e ficou
de pé nos degraus, não demonstrou nenhuma preocupação pela ferida. O jovem se enfrentou outra vez à encarnação de seu pai com olhos chamejantes de fúria. A agilidade
do Drizzt surpreendeu inclusive a seus amigos, que já o tinham visto combater. Zaknafein avançou sem perder um segundo, mas Drizzt já estava preparado antes de que
o espectro chegasse junto a ele. --Quem é? --repetiu Drizzt, esta vez com voz absolutamente tranqüila. O que é? O espectro grunhiu e reatou o ataque sem parar
memore. Convencido de que este não era Zaknafein, Drizzt não desperdiçou a oportunidade. Recuperou a posição anterior, desviou uma espada, e deslizou a cimitarra
pelo oco enquanto deixava passar ao adversário. A lâmina do Drizzt cortou a cota de malha e se afundou nos pulmões do Zaknafein, uma ferida que teria detido a qualquer
oponente mortal. Mas Zaknafein não se deteve. O espectro não precisava respirar nem sentia dor. Zak se voltou para o Drizzt e o obsequiou com um sorriso tão maligna
que teria arrancado o aplauso da matrona Malícia. Uma vez mais no alto da escada, Drizzt não saía de seu assombro. Via com toda claridade as dimensões do corte e
também via como, contra toda lógica, Zaknafein avançava sem sequer piscar. --te afaste! --gritou Belwar do pé da escada. Um ogro se lançou contra o pequeno mas Clak
o deteve e lhe esmagou a cabeça de uma patada. --Devemos ir --disse Clak com tanta claridade que o capataz se voltou assombrado. Belwar olhou a seu companheiro.
Naquele instante crítico, Clak se tinha recuperado quase totalmente do feitiço polimórfico do mago e voltava a ser um pek. --As pedras me dizem que os desoladores
se reagrupam no castelo -- explicou Clak, e o svirfnebli não se surpreendeu de que Clak pudesse escutar as vozes das pedras. Não demorarão para sair . --acrescentou
o oseogarfio--, e acabarão com todos quão escravos encontrem na caverna. Belwar não duvidava da veracidade da informação, mas para ele a lealdade pesava mais que
a segurança pessoal. --Não podemos abandonar ao drow --resmungou entre dentes. Clak assentiu e perseguiu um grupo de pequenos cinzas que avançava para eles. --Corre,
elfo escuro! --chiou Belwar. Nos acaba o tempo! Drizzt não ouviu a chamada de seu amigo. Tinha posta toda sua atenção no
professor de armas, o monstro que personificava a seu pai. Das muitas crueldades cometidas pela matrona Malícia, aquela era a pior de todas. Malícia tinha pervertido
a única coisa no mundo do Drizzt que tinha chegado a estimar. Já tinha sofrido o inexprimível quando soube que Zaknafein estava morto. E agora isto. Era mais do
que o jovem drow podia suportar. Queria lutar contra este monstro com todas suas forças, e o espectro, cujo único fim era esta batalha, compartilhava seus desejos.
Nenhum dos dois advertiu que um desolador, amparado na escuridão ao final da plataforma, tinha descendido detrás do Zak. --Vêem, monstro da matrona Malícia --grunhiu
Drizzt, afiando as cimitarras-- Vêem e prova meus aços. Zaknafein se deteve uns poucos passos de distância e voltou a sorrir. Com as espadas em alto, o espectro
deu outro passo. O desolador soltou sua descarga. O cone de energia alcançou aos dois rivais. Zaknafein não resultou afetado; em troca Drizzt recebeu o impacto de
cheio. Envolveu-o a escuridão, e lhe fecharam os olhos. Quão último ouviu foi o ruído das cimitarras ao se chocar contra o chão. Zaknafein rugiu vitorioso, entrechocó
as espadas, e avançou disposto a rematar ao drow cansado. Belwar gritou, mas foi o monstruoso uivo de protesto do Clak o que soou mais forte, por cima do estrépito
da batalha. Tudo o que Clak sabia como pek voltou para ele quando viu que a morte se abatia sobre o drow. A identidade pek surgiu possivelmente com mais força que
nunca em toda sua vida anterior. Ao ver que tinha à vítima indefesa ao alcance de suas espadas, Zaknafein se equilibrou... e se estrelou de cabeça contra uma parede
de pedra surta de um nada. O espectro retrocedeu com o rosto mudado pela ira. Arranhou a parede e a golpeou com as espadas; era sólida e absolutamente real. O muro
lhe impedia de chegar à escada e a sua presa. Ao pé da escada, Belwar olhou ao Clak, estupefato. Tinha ouvido comentar que alguns peks eram capazes de criar paredes
de pedra. --foste...? --gaguejou o capataz. O pek apanhado no corpo do oseogarfio não se incomodou em responder. Clak subiu a escada em quatro pernadas e levantou
o Drizzt entre seus enormes braços. Inclusive se ocupou de recolher as cimitarras antes de descender à carreira. --Corre! --ordenou-lhe Clak ao svirfnebli. Se
quer salvar a vida, Belwar Dissengulp, corre! O pequeno pôs-se a correr sem protestar. Clak se encarregou de limpar o caminho para a saída do fundo --ninguém se
atreveu
a interpor-se ante o monstro enfurecido--, e o capataz, com suas curtas pernas de svirfnebli e uma delas ferida, viu-se em dificuldades para segui-lo. Enquanto isso,
detrás da parede, Zaknafein só podia pensar que o desolador, o mesmo que tinha disparado contra Drizzt, era responsável pelo obstáculo. Com um grito de ódio se voltou
para o illita. Soou uma segunda descarga mental. Zaknafein deu um salto e cortou os pés do desolador. O ferido levitou mais alto e enviou uma mensagem telepática
a seus companheiros pedindo ajuda. O professor de armas não podia lhe dar alcance e, rodeado agora por outros desoladores que tinham ido em auxílio do primeiro,
não podia preparar seu feitiço de levitação. Zaknafein culpava ao illita de seu fracasso e não estava disposto a deixá-lo escapar. Arrojou a espada com a mesma precisão
de uma lança. O illita olhou ao Zaknafein, incrédulo, depois à lâmina cravada em seu peito e
compreendeu que sua vida tinha chegado ao final. Os desoladores correram para o Zaknafein, sem deixar de disparar os cones de energia paralisante. Ao espectro
só ficava uma espada, mas acabou com seus oponentes, descarregando suas frustrações contra suas horríveis cabeças de polvo. Drizzt tinha escapado... por agora.
21
Perdido e achado
--Elogiada seja Lloth --gaguejou a matrona Malícia, ao sentir o longínquo entusiasmo do espectro. encontrou ao Drizzt! A mãe matrona olhou a um lado e depois ao
outro, e as três filhas retrocederam ante o tremendo poder das emoções que lhe desfiguravam o rosto. --Zaknafein encontrou a seu irmão! Maia e Vierna intercambiaram
um sorriso, agradadas de que por fim estivesse a ponto de concluir a terrível experiência. Da reanimación do zin-Carla, quase não se atendiam as atividades normais
e necessárias na casa Dou'Urdem, e a nervosa mãe se tornou cada vez mais introvertida, preocupada unicamente pela caçada do espectro. No outro extremo da sala de
espera Briza também sorria, mas qualquer teria podido ver que em realidade era uma careta de desilusão. Para sorte da filha maior, a matrona Malícia estava muito
absorta nos episódios que ocorriam a centenares de quilômetros do Menzoberranzan para fixar-se nela. A mãe matrona se afundou no transe meditativo e saboreou cada
mendrugo de raiva que emanava do espectro, no conhecimento de que o filho blasfemo era seu destinatário. A respiração de Malícia se converteu em um ofego enquanto
Zaknafein e Drizzt liberavam o duelo, e de repente a mãe matrona quase deixou de respirar. Algo tinha detido ao Zaknafein --Não! --gritou Malícia, que abandonou
o trono de um salto. Olhou a seu redor, procurando a alguém a quem golpear ou algo que lançar. Não! --repetiu. Não pode ser! --Drizzt escapou? --perguntou Briza,
esforçando-se por não descobrir sua satisfação ante um possível fracasso. O furioso olhar de Malícia a pôs sobre aviso de que seu tom podia havê-la traído. --O espectro
foi destruído? --gritou Maia, angustiada. --Não, destruído não --respondeu Malícia, com um ligeiro tremor na voz. Mas uma vez mais, seu irmão escapou! --Ainda
é prematuro dizer que o zin-Carla fracassou! --proclamou Vierna, com a intenção de consolar à mãe. --O espectro o segue de perto! --acrescentou Maia, ao compreender
o propósito da Vierna. Malícia se deixou cair no trono e se enxugou o suor dos olhos. --me deixem --ordenou às filhas. Não queria que a vissem em um estado tão lamentável.
Sabia que o zin-Carla lhe roubava a vida, pois todos os pensamentos e as esperanças de sua existência dependiam do êxito do espectro. Quando a deixaram sozinha,
Malícia acendeu uma vela e procurou seu valioso espelho. Em
o transcurso das últimas semanas tinha adquirido um aspecto cadavérico. Apenas se tinha comido, e as profundas rugas provocadas pelo desgosto marcavam a pele que
antes tinha sido tersa e suave como a seda. Por sua aparência se podia pensar que tinha envelhecido um século em um par de meses. --Converterei-me em outra matrona
Baenre --sussurrou desgostada--, feia e murcha. Possivelmente pela primeira vez em toda sua vida, Malícia se perguntou se tinha sentido a busca incessante do poder
e o favor da desumana rainha aranha. Mas descartou estas reflexões imediatamente porque não era momento de começar a lamentar-se por tolices. Graças a sua força
e devoção, Malícia tinha conseguido converter sua casa em uma das famílias governantes e tinha conseguido um assento no conselho regente. De todos os modos, encontrava-se
ao bordo do desespero, quase destroçada pelas tensões dos últimos anos. Uma vez mais se limpou o suor dos olhos e se olhou no espelho. converteu-se em uma ruína.
A culpa a tinha Drizzt, recordou-se a si mesmo. As ações de seu filho menor tinham zangado à rainha aranha; seu comportamento sacrílego tinha significado a desgraça
de Malícia. --Apanha-o, espectro --murmurou a mãe matrona com uma careta de ódio. Naquele momento, não pensava no futuro que podia lhe proporcionar a rainha aranha.
Mais que nenhuma outra costure no mundo, a matrona Malícia Dou'Urdem queria ver morto ao Drizzt. Correram às cegas pelos arrevesados túneis, confiados em que não
encontrariam mais monstros que lhes cortassem o passo. Com um perigo tão real a suas costas, os três companheiros não podiam permiti-las precauções habituais. Passaram
as horas sem que deixassem de correr. Belwar, mais velho que seus amigos e obrigado por suas curtas pernas a dar dois passos por cada um do Drizzt e três por um
do Clak, cansou-se primeiro, mas isto não demorou ao grupo. Clak carregou a ombros com o capataz e prosseguiram a marcha. Não sabiam quantos quilômetros tinham percorrido
quando por fim fizeram uma primeira parada para descansar. Drizzt, silencioso e melancólico durante toda a carreira, apostou-se na entrada da pequena cova que tinha
escolhido como refúgio. Ao ver a profunda dor de seu amigo, Belwar se aproximou para consolá-lo. --Não era o que esperava, elfo escuro? --perguntou-lhe o capataz
com voz suave. Não obteve resposta, mas consciente de que Drizzt precisava desafogar-se, Belwar insistiu--: Conhecia drow da caverna. Acreditava que era seu pai?
Drizzt olhou furioso ao svirfnebli, e ao cabo de um segundo suavizou sua expressão ao compreender a preocupação do Belwar. --Zaknafein --explicou Drizzt. Zaknafein
Dou'Urdem, meu pai e professor. Foi ele quem me ensinou tudo o que sei de esgrima e da vida. Zaknafein foi meu único amigo no Menzoberranzan, o único drow que compartilhou
minhas crenças. --Tentou te matar --afirmou Belwar, sem mais. Drizzt torceu o gesto, e o capataz se apressou a lhe oferecer uma pequena esperança. Possivelmente
não te reconheceu. --Ele era meu pai --repetiu Drizzt--, meu companheiro mais íntimo durante duas décadas. --Então, por que, elfo escuro? --Aquele não era Zaknafein
--replicou Drizzt. Zaknafein está morto; minha mãe o deu em sacrifício à rainha aranha. --Magga cammara --sussurrou Belwar, horrorizado pela revelação referente
aos pais do Drizzt. A franqueza com que o jovem tinha explicado o espantoso crime levou a capataz a acreditar que o sacrifício de Malícia não era algo pouco habitual
na cidade drow.
Um calafrio sacudiu ao pequeno, mas dominó a repulsão pelo bem do amigo atormentado. --Ainda não sei que monstro reencarnou a matrona Malícia no corpo do Zaknafein
--prosseguiu Drizzt, sem fixar-se no desconforto de seu amigo. --Em qualquer caso, é um guerreiro formidável --comentou o pequeno. Isto era exatamente o que preocupava
ao Drizzt. O drow contra o que tinha lutado na caverna dos desoladores tinha a precisão e o estilo inconfundível do Zaknafein Dou'Urdem. Racionalmente, Drizzt podia
negar que Zaknafein tivesse sido capaz de atacá-lo, mas no fundo de seu coração sabia que aquele monstro era seu pai. --Como acabou? --perguntou Drizzt depois de
uma larga pausa. Belwar o olhou intrigado. --A briga --acrescentou Drizzt. Só recordo a aparição do desolador. O svirfnebli encolheu os ombros e olhou em direção
ao Clak. --lhe pergunte a ele --respondeu o capataz. Uma parede de pedra apareceu de repente entre você e o inimigo, mas não me pergunte como chegou até ali. Clak
escutou a conversação dos companheiros e se aproximou. --Eu a pus ali --disse, com a voz ainda bem clara. --Utilizando os poderes dos peks? --inquiriu Belwar. O
pequeno conhecia as habilidades dos peks com a pedra, embora não com suficiente detalhe para compreender do tudo o que tinha feito Clak. --Somos uma raça pacífica
--manifestou Clak, convencido de que talvez esta era a última oportunidade para lhe falar com os amigos de como era sua gente. por agora mantinha a personalidade
pek, mas já começava a notar que os instintos básicos do oseogarfio implantados pelo feitiço polimórfico voltavam por seus foros. Nosso único desejo é trabalhar
a pedra. É nosso único objetivo na vida. E esta simbiose com a terra vem acompanhada de um certo poder. As pedras nos falam e nos ajudam no trabalho. --Como o elementar
terrestre que uma vez lançou contra mim--recordou- Drizzt ao Belwar, com gesto severo. O pequeno riu envergonhado. --Não --disse Clak, disposto a não desviar do
tema.
Os pequenos das profundidades também podem utilizar os poderes da terra, embora sua relação é diferente. O amor que os svirfneblis sentem pela terra é só uma de
suas
várias definições da felicidade. --Clak desviou o olhar e observou a parede de pedra. Os peks são irmãos da terra. Ajudamo-nos como uma amostra de carinho. --Falas
da terra como se fosse um ser vivo --comentou Drizzt, não em um tom de brincadeira mas sim de curiosidade. --É-o, elfo escuro --interveio Belwar, imaginando-se como
devia ser Clak antes de seu encontro com o mago--, para aqueles que podem escutá-la. Clak moveu o enorme pico para expressar seu assentimento. --Os svirfneblis podem
ouvir o canto longínquo da terra --disse. Os peks falam com ela diretamente. Tudo isto ultrapassava a capacidade de compreensão do Drizzt. Não duvidava da sinceridade
das palavras dos companheiros, mas os elfos escuros não tinham uma relação com as pedras da Antípoda Escura equiparável a dos svirfneblis e peks. Em qualquer caso,
se Drizzt necessitava alguma prova do dito pelo Belwar e Clak, não tinha mais que recordar a batalha contra o elementar terrestre invocado pelo capataz, ou imaginar
a parede que tinha surto de um nada para impedir o passo a seus inimigos na caverna dos desoladores. --O que lhe dizem agora as pedras? --perguntou- Drizzt ao Clak.
deixamos atrás a nossos perseguidores? Clak se aproximou da parede e apoiou uma orelha contra a pedra.
--As palavras soam confusas --respondeu, com um tom quejumbroso. Os companheiros compreenderam o que aquilo significava. A terra falava com a claridade de sempre;
era o ouvido do Clak o que perdia capacidade ante o iminente retorno do oseogarfio. --Não escuto ruídos de perseguição --acrescentou Clak--, mas não posso confiar
em meus ouvidos. de repente soltou um grunhido e se retirou ao extremo mais afastado da cova. Drizzt e Belwar intercambiaram um olhar de preocupação e depois o seguiram.
--O que ocorre? --atreveu-se a lhe perguntar o pequeno ao oseogarfio embora sabia a resposta. --Afundo-me --respondeu Clak, e o chiado em sua voz acentuou a verdade
do fato. Na caverna dos desoladores, era pek mais pek que nunca em toda minha vida. Era pek total. Era a terra. O oseogarfio advertiu que Belwar e Drizzt não lhe
compreendiam --A p... parede --tentou explicar Clak. Criar uma parede como aquela é algo que só um grupo de peks anciões pode conseguir, trabalhando unidos ao
longo de um ritual muito complexo. --Clak fez uma pausa e sacudiu a cabeça violentamente como se queria lançar fora a personalidade do oseogarfio. Golpeou a parede
com uma de suas garras e se forçou a continuar--: Fui capaz de fazê-lo sozinho. Converti-me em pedra e não tive mais que levantar uma mão para fechar o passo aos
inimigos do Drizzt! --E agora o perde --disse o drow com suavidade. O pek se perde outra vez, sepultado pelos instintos do oseogarfio. Clak desviou o olhar e golpeou
a parede como única resposta. O gesto lhe deu um pouco de consolo, e o repetiu uma e outra vez, em uma cadência, como se assim pudesse conservar algo de sua autêntica
personalidade. Drizzt e Belwar saíram da cova e esperaram no túnel para que o gigante pudesse estar sozinho. Ao cabo de um momento, notaram que tinha cessado o tamborilar,
e Clak apareceu a cabeça, com os olhos alagados pelo pranto. Suas palavras balbucientes estremeceram aos companheiros porque não podiam negar sua razão nem seu desejo.
--Por... favor, MA... me matem.
QUINTA PARTE
Espírito
O espírito não se pode esmagar nem destruir. Uma vítima nas garras do desespero pode sentir o contrário, e certamente ao "amo" da vítima gostaria de acreditar que
é assim. Mas o certo é que o espírito permanece, algumas vezes enterrado mas nunca eliminado de tudo. Este é o falso suposto do zin-Carla e o perigo de semelhante
animação emocional. cheguei ou seja que as sacerdotisas o consideram o maior presente que pode oferecer a rainha aranha, a deidade que adoram os drows. Opino o
contrário. O correto quer dizer que o zin-Carla é a maior mentira do Lloth. Os poderes físicos do corpo não podem ser separados da racionalidade da mente e das emoções
do coração. Formam uma unidade, a integração em um único ser. É na harmonia destas três coisas --mente, corpo e coração-- aonde encontramos ao espírito. Quantos
tiranos o tentaram? Quantos governantes pretenderam reduzir a seus súditos a meros instrumentos para seu benefício pessoal? Roubam o amor e as crenças de sua gente.
Pretendem lhe roubar o espírito. Sua pretensão está indevidamente condenada ao fracasso. Isto é o que quero acreditar. Se se apagar a luz do espírito, só fica a
morte, e o tirano não tira nenhum proveito de um reino semeado de cadáveres. Mas a chama do espírito é algo resistente, indômita, instada. Para desilusão do tirano,
sempre conseguirá sobreviver, ao menos em alguns. Então, onde estava Zaknafein, meu pai, quando iniciou a busca para me destruir? Onde estava eu nos anos de solidão
passados nas profundidades da Antípoda Escura, quando o caçador em que me tinha convertido cegava meu coração e guiava minha espada freqüentemente contra meus pensamentos
conscientes? Agora compreendo que estivemos ali todo o tempo, sepultados mas não mortos. Espírito. Em todos os idiomas dos Reino, na superfície e na Antípoda Escura,
em todo tempo e lugar, a palavra soa a força e decisão. É a força do herói, a mãe da resistência, e a armadura do pobre. Não pode ser esmagado nem destruído. Isto
é o que quero acreditar.
DRIZZT DOU'URDEM
22
Sem rumo
A estocada foi tão rápida que o escravo goblin nem sequer pôde gritar de terror. Caiu de bruces, morto antes de tocar o chão. Zaknafein passou sobre o cadáver e
seguiu adiante; o caminho até a saída traseira da estreita caverna, a uns dez metros de distância, aparecia espaçoso. Enquanto o guerreiro não morto deixava atrás
à última vítima, um grupo de desoladores entrou na caverna diante mesmo do espectro. Zaknafein soltou um grunhido mas não se desviou nem demorou o passo. Sua lógica
e suas pernadas eram diretas; Drizzt tinha passado por essa saída, e ele o seguiria. Algo que se interpusesse cairia ante sua espada. Deixem que este siga seu caminho!
--disse uma mensagem telepática desde vários pontos da caverna, procedente de outros desoladores que tinham visto o Zaknafein em ação. Não podem derrotá-lo! Deixem
que o drow parta! Os desoladores já tinham muitas provas da eficácia mortal das espadas do espectro: mais de uma dúzia de seus camaradas tinham morrido à mãos do
Zaknafein. O novo grupo que se enfrentava ao Zaknafein respondeu imediatamente aos avisos telepáticos. Os integrantes se apartaram a toda pressa, exceto um. A raça
illita apoiava sua existência no pragmatismo baseado em enormes fontes de conhecimentos comuns. Os desoladores consideravam que as emoções primárias como o orgulho
eram um defeito mortal, e não se equivocavam. O desolador solitário lançou uma descarga mental contra o espectro, decidido a não permitir que ninguém escapasse.
Um segundo depois, o tempo que demorou a estocada, Zaknafein pisou no peito do illita cansado e atravessou a saída. Nenhum só de outros desoladores fez nada por
impedi-lo. Zaknafein ficou em cuclillas e escolheu cuidadosamente o rumo a seguir. Drizzt tinha passado por este túnel; o rastro era fresco. Mas mesmo assim, em
sua conscienciosa perseguição, teria que deter-se com freqüência a comprovar os rastros. Zaknafein não podia mover-se tão depressa como sua presa. Em troca, a diferença
do Zaknafein, Drizzt precisava descansar. --Alto! O tom da ordem do Belwar não deu lugar a discussão. Drizzt e Clak se detiveram no ato, se perguntando a que poderia
devê-la alarme do capataz. O pequeno se adiantou e apoiou uma orelha contra a parede de pedra. --Botas --sussurrou, assinalando a rocha. No túnel paralelo.
Drizzt se uniu a seu amigo e escutou atentamente, mas apesar de que seus sentidos eram mais agudos do habitual entre os elfos escuros, não estava tão capacitado
como o pequeno para entender as vibrações da pedra. --Quantas? --perguntou. --Poucas --respondeu Belwar, que se encolheu de ombros para dar a entender que só era
um
cálculo aproximado. --Sete --disse Clak desde uns passos mais à frente, com voz clara e firme. Duergars..., pequenos cinzas que escapam dos desoladores como nós.
--Como pode...? Drizzt se interrompeu ao recordar o que Clak lhe havia dito referente aos poderes dos peks. --Os túneis se cruzam? --perguntou-lhe Belwar ao oseogarfio.
Podemos evitar aos duergars? Clak se voltou para a pedra para procurar as respostas. --Os túneis se juntam um pouco mais adiante --repôs--, e depois continuam como
um sozinho. --Então, se ficarmos aqui, é provável que os pequenos cinzas passem de comprimento --opinou Belwar. Drizzt não ficou muito convencido do raciocínio do
svirfnebli. --Os duergars e nós temos um inimigo comum --assinalou Drizzt. de repente lhe iluminaram os olhos, ao ocorrer-se o uma idéia. Não poderíamos ser aliados?
--Embora freqüentemente os duergars e os drows viajam juntos, os pequenos cinzas não revistam aliar-se com os svirfneblis --recordou-lhe Belwar. E acredito que tampouco
com os oseogarfios! --Esta situação não tem nada de normal --apressou-se a dizer o elfo. Se os duergars escaparem dos desoladores, então é provável que estejam
mal equipados e desarmados. Possivelmente agradeceriam formar uma aliança, para benefício dos dois grupos. --Não acredito que se mostrem tão amistosos como pensa
--manifestou Belwar com um tom sarcástico--, embora reconheça que não é fácil defender-se neste túnel estreito, mais apropriado para o tamanho de um duergar que
para as espadas de lâmina larga dos drows ou dos braços ainda mais compridos de um oseogarfio. Se os duergars retrocederem quando chegarem ao cruzamento, teríamos
que brigar em um terreno favorável para eles. --Então vamos ao lugar onde se cruzam os túneis --propôs Drizzt--, e vejamos o que acontece. Os três companheiros não
demoraram para chegar a uma pequena caverna ovalada. Outro túnel, que percorriam os pequenos cinzas, desembocava quase unido ao dos companheiros, e um terceiro passadiço
se abria ao final do recinto. Os amigos atravessaram a caverna e procuraram o amparo das sombras do túnel mais longínquo enquanto o ruído das botas soava cada vez
mais perto. Ao cabo de uns instantes, os sete duergars entraram na câmara oval. Tinham um aspecto lamentável, tal como tinha suspeitado o elfo escuro, mas não foram
desarmados. Três levavam paus, dois esgrimiam espadas, outro uma adaga, e o último duas grandes pedras. Drizzt conteve a seus amigos e saiu ao encontro dos estranhos.
Embora nenhuma das duas raças sentia muita avaliação pela outra, os drows e os duergars freqüentemente formavam alianças para benefício mútuo. Drizzt pensou que
as conversações seriam mais fáceis se atuava sozinho. A súbita aparição surpreendeu aos cansados pequenos cinzas. Correram frenéticos de um lado para outro, preocupados
só em formar uma linha de defesa. Esgrimiram as espadas e os paus, e o duergar das pedras levantou um braço, preparado para lançar o projétil.
--Saúde, duergars --disse Drizzt, com a esperança de que os pequenos cinzas compreendessem a língua drow. Suas mãos descansavam nos punhos das cimitarras embainhadas;
sabia que podia as desencapar com tempo de sobra se era necessário. --Quem é você? --perguntou um dos duergars armado com espada em uma linguagem drow vacilante
mas compreensível. --Um refugiado como vós --respondeu Drizzt--, que escapa dos malignos desoladores mentais. --Então sabe que temos pressa --grunhiu o pequeno.
Te aparte de nosso caminho! --Ofereço-te uma aliança --disse Drizzt, sem mover-se. Sem dúvida quantos mais sejamos, melhor poderemos nos defender quando chegarem
os desoladores. --Um mais não significa grande coisa --replicou o duergar, obcecado. detrás dele, o pequeno das pedras balançou o braço em um gesto de ameaça. --Mas
três fazem uma diferença --comentou Drizzt sem perder a calma. --Tem amigos? --perguntou o duergar, em um tom mais conciliador. Olhou em todas direções, preocupado
pela possibilidade de uma emboscada. São drows? --Não --respondeu Drizzt. --Vi-o! --gritou alguém do grupo, em língua drow, antes de que Drizzt pudesse acrescentar
mais detalhes. Escapou acompanhado do monstro com pico e o svirfnebli! --Um pequeno das profundidades! --O líder dos duergars cuspiu aos pés do Drizzt. Esse não
é amigo dos duergars nem dos drows! Drizzt não teria tido nenhum inconveniente em aceitar o fracasso da oferta, e que cada um seguisse seu caminho em paz. Mas os
pequenos cinzas estavam dispostos a fazer honra a sua bem merecida fama de belicosos e pouco inteligentes. Com os desoladores atrás, o que menos necessitava este
grupo
de duergars era buscar-se mais inimigos. Uma rocha voou em direção à cabeça do Drizzt. elevou-se uma cimitarra e a desviou da trajetória. --Bivrip! --gritou o capataz
no túnel. Belwar e Clak apareceram à carreira, sem surpreender-se pela súbita mudança da situação. Na Academia drow, Drizzt, como todos os elfos escuros, tinha passado
meses estudando o comportamento e as técnicas de combate dos pequenos cinzas. Aquela preparação o salvou agora, porque foi o primeiro em passar à ofensiva: com um
feitiço singelo envolveu aos sete oponentes nas inofensivas chamas do fogo fátuo. Quase ao mesmo tempo, três anões desapareceram da vista, graças a seus talentos
inatos para a invisibilidade. Entretanto, as chamas púrpuras marcavam as silhuetas dos duergars invisíveis. Uma segunda rocha atravessou o espaço para estelar se
contra o peito do Clak. O monstro couraçado teria sorrido ante o ridículo ataque se os picos lhe tivessem permitido fazê-lo, e Clak continuou sua carga em linha
reta contra os pequenos. O lançador da pedra e o possuidor da adaga se apartaram a toda pressa porque não tinham armas capazes de deter o gigante. Como havia outros
inimigos mais à mão, Clak os deixou ir. O casal rodeou a caverna e foi em busca do Belwar, convencidos de que seria um rival menos difícil. O golpe da mão-de-lança
deteve bruscamente o arremesso. O duergar desarmado se lançou para diante em um intento por sujeitar o braço antes de que pudesse iniciar o reverso. Belwar prévio
o intento e atacou com a mão-de-martelo, golpeando ao pequeno cinza em pleno rosto. Voaram faíscas, os ossos se quebraram, e ardeu a pele cinza. O duergar deu um
salto
e se retorceu, desesperado, com as mãos na cara destroçada.
O pequeno da adaga perdeu todo o entusiasmo. Os duergars invisíveis procuraram o Drizzt. Graças às chamas púrpura, Drizzt podia ver os movimentos destes dois que
levavam
espadas. Mas Drizzt se encontrava em uma clara desvantagem, pois não alcançava a distinguir as fintas e as estocadas. Retrocedeu para separar-se de seus companheiros.
Pressentiu um ataque e moveu uma cimitarra para parar o golpe. Sorriu satisfeito quando ouviu o ruído dos aços. O pequeno cinza se fez visível por um instante, para
lhe mostrar ao drow seu perverso sorriso, e desapareceu outra vez. --Quantas mais crie que poderá deter? --perguntou-lhe o outro duergar invisível, em tom de mofa.
--mais das que você crie --replicou Drizzt, e então foi seu turno para sorrir. Lançou um globo de escuridão que envolveu aos três combatentes, com o que privou aos
duergars de sua vantagem. No furor da batalha, os instintos do oseogarfio dominaram totalmente ao Clak. O gigante não compreendia o significado da auréola púrpura
que marcava o terceiro duergar invisível, e portanto carregou contra os outros dois pequenos cinzas armados com paus. antes de que o oseogarfio pudesse alcançá-los,
um pau lhe golpeou o joelho, e o duergar invisível riu satisfeito. Os outros dois começaram a esfumar-se, mas Clak não lhes emprestou atenção. O fortificação invisível
descarregou um segundo golpe, esta vez na coxa. Possuído pelos instintos de uma raça pouco dada às sutilezas, o oseogarfio uivou e se deixou cair para enterrar as
chamas púrpuras sob seu enorme peito. Clak utilizou o torso como um martelo até que se convenceu de que tinha esmagado ao inimigo invisível. Naquele instante uma
chuva de pauladas se abateu contra a nuca do oseogarfio. O duergar da adaga não era um novato nestas lides. Controlava os ataques para obrigar ao Belwar, com suas
armas mais pesadas, a tomar a iniciativa. Os pequenos das profundidades odiavam aos duergars tanto como estes os odiavam a eles, mas o capataz não era tolo. Movia
a mão-de-lança só o suficiente para manter a raia a seu rival, ao tempo que mantinha preparada a mão-de-martelo. Assim, os dois se limitaram às fintas, dispostos
a
esperar que fosse o outro quem cometesse o primeiro engano. Quando o oseogarfio gritou de dor, e com o Drizzt fora da vista, Belwar se viu forçado a atuar. equilibrou-se,
simulando um tropeço, e lançou um golpe com a mão-de-martelo ao tempo que baixava a mão-de-lança. O duergar advertiu a estratagema, mas não podia desperdiçar o oco
na defesa do svirfnebli. A adaga se deslizou por cima da mão-de-lança em linha reta à garganta do Belwar. O capataz se tornou para trás com idêntica rapidez e levantou
uma perna para descarregar um chute que roçou o queixo do duergar. O pequeno cinza não se deteve e se mergulhou sobre o pequeno que caía, com a adaga sempre adiante.
Belwar levantou a mão-de-lança só uma fração de segundo antes de que a arma encontrasse sua garganta. O svirfnebli conseguiu apartar o braço do atacante, mas o maior
peso do duergar os manteve unidos, com os rostos separados por um par de centímetros. --Já te tenho! --gritou o duergar. --Toma isto! --replicou Belwar, liberando
a mão-de-martelo o suficiente para esmurrar as costelas do rival. O duergar respondeu com um cabaçada na cara do Belwar, e este lhe mordeu o nariz. Os combatentes
rodaram pelo chão, em meio de grandes gritos, e valendo-se de qualquer arma disponível. Pelo ruído das espadas, qualquer observador se localizado fora do globo de
escuridão do Drizzt teria acreditado que se enfrentavam uma dúzia de rivais, mas o ritmo frenético era só obra do Drizzt Dou'Urdem. Neste tipo de situações, na luta
às cegas, o drow sabia que o melhor método de combate era manter as espadas o mais apartadas possível do corpo. As cimitarras cortavam o ar implacáveis e em perfeita
harmonia, pressionando constantemente aos dois pequenos cinzas. Cada braço se ocupava de um oponente, de forma tal que mantinham aos duergars cravados em seu sítio
diante do Drizzt. O drow sabia que, se deixava que algum dos dois se situasse em um flanco, teria graves dificuldades. Com cada passe de cimitarras havia um tangido
metálico, e à medida que transcorriam os segundos, Drizzt conseguia mais informação referente às habilidades e estratégias de ataque dos rivais. Nas profundidades
da Antípoda Escura, Drizzt tinha lutado às cegas muitas vezes, e inclusive tinha empregado um capuz em seu duelo contra um alfavaca. Surpreendidos pela incrível
velocidade dos ataques do drow, os duergars não podiam fazer outra coisa que mover as espadas de um lado a outro e rogar que uma cimitarra não penetrasse pelos ocos.
O ruído do choque das espadas era incessante enquanto os dois pequenos cinzas se esforçavam nas paradas e fintas. Então se ouviu o som que esperava Drizzt, o de
uma
cimitarra afundada na carne. Um instante depois, uma espada repicou sobre a pedra e seu dono ferido cometeu o engano fatal de gritar de dor. O eu caçador do Drizzt
saiu à superfície. centrou-se no grito, e a cimitarra lançou uma estocada que destroçou os dentes do pequeno cinza e lhe atravessou a cabeça. O caçador se voltou
furioso
para o outro duergar. As cimitarras iniciaram uma série de molinetes e então uma se lançou a fundo, tão rápido que resultava impossível desviá-la. Alcançou ao pequeno
no ombro e lhe abriu uma ferida muito profunda. --Rendo-me! Rendo-me! --chiou o pequeno cinza, que não queria correr a sorte de seu companheiro. Drizzt ouviu como
caía a espada ao chão. Por favor, elfo escuro! As palavras do duergar aplacaram os instintos do caçador. --Aceito sua rendição --respondeu Drizzt. aproximou-se
de seu oponente e apoiou a ponta da cimitarra contra o peito do pequeno cinza. Juntos, saíram da escuridão criada pelo feitiço do Drizzt. Clak já não podia suportar
mais a terrível dor na cabeça, aumentado por cada novo paulada. O oseogarfio soltou um uivo bestial e, apartando do duergar esmagado, procurou a seus torturantes.
Um pau duergar o golpeou outra vez, mas Clak já não sentia a dor. Afundou uma garra no contorno púrpura e destroçou o crânio do pequeno invisível. Quase imediatamente
este se fez visível, porque a agonia da morte lhe impedia de manter a concentração necessária para conservar a invisibilidade. O último duergar tentou escapar, mas
o oseogarfio o superou em rapidez. Clak sujeitou ao pequeno cinza com uma garra e o levantou por cima da cabeça. Com um chiado que parecia o grasnido de um ave de
rapina furiosa, o oseogarfio lançou ao rival invisível contra a parede. O cadáver do duergar apareceu destroçado ao pé do muro. Já não ficavam rivais para o oseogarfio,
mas Clak não tinha suficiente. Naquele instante, Drizzt e o duergar ferido emergiram da escuridão, e o gigante se jogou sobre eles. Atento ao combate que mantinha
Belwar, Drizzt não advertiu as intenções do Clak até que ouviu o grito aterrorizado do prisioneiro. Para então, já era muito tarde. Drizzt viu como a cabeça do pequeno
cinza voava de retorno ao globo de escuridão. --Clak! --protestou o drow, irado. Depois se agachou e retrocedeu de um salto para salvar a vida ante o imprevisto
ataque por parte de seu amigo. Ao ver outra presa próxima, o oseogarfio não seguiu ao Drizzt ao globo de escuridão onde tinha procurado refúgio. Belwar e o duergar
da adaga estavam muito entretidos com seu combate e não se deram conta da presença do gigante enlouquecido. Clak tendeu os braços, sujeitou aos opositores e os lançou
ao ar. O pequeno cinza teve a desgraça de baixar primeiro e, de um murro, Clak o enviou a estelar se contra o outro extremo da caverna. Belwar teria deslocado a
mesma
sorte de não ter sido porque as cimitarras cruzadas interceptaram o segundo golpe do oseogarfio. A força descomunal do Clak arrastou ao Drizzt, mas a parada demorou
o golpe o suficiente como para que Belwar chegasse ao chão. De todos os modos, o capataz chocou violentamente contra a pedra e demorou um bom momento em reagir.
--Clak! --gritou Drizzt outra vez ao ver que o gigante se dispunha a esmagar ao svirfnebli de um pisão. O drow apelou a toda sua agilidade e rapidez para rodear
ao oseogarfio, atirar-se ao chão, e procurar os joelhos do Clak, como tinha feito no primeiro encontro. Em seu intento por pisotear ao pequeno cansado, Clak já estava
um pouco fora de equilíbrio e Drizzt o tombou sem muita dificuldade. Imediatamente, o guerreiro drow se montou sobre o peito do monstro e deslizou a ponta da cimitarra
entre os couraçados dobras do pescoço do Clak. Drizzt evitou um tapa torpe do Clak, que seguia em seu empenho de lutar. O drow odiava o que tinha que fazer, mas
então o oseogarfio se serenou de repente e lhe dirigiu um olhar pormenorizado. --Faz... o --gemeu. Drizzt, horrorizado, procurou o apoio do Belwar. O capataz, já
recuperado, olhou em outra direção. --Clak? --perguntou-lhe o drow ao oseogarfio. Volta a ser Clak? O monstro vacilou; depois moveu o pico para assentir. Drizzt
se apartou e contemplou o açougue na caverna. --Saiamos daqui--disse. Clak permaneceu tendido uns segundos mais, com os pensamentos postos nas graves implicações
do atraso de sua morte. Com o final da batalha, a personalidade do oseogarfio tinha passado outra vez a segundo plano. Mas Clak sabia que os instintos selvagens
o espreitavam, apenas debaixo do nível consciente, à espera de uma nova oportunidade de fazer-se com o controle total de sua mente. Até quando poderia seu lado pek
resistir o avanço da besta? O oseogarfio descarregou um murro contra a pedra, um golpe tão capitalista que abriu gretas em todo o chão da caverna. Com um grande
esforço, o gigante ficou de pé. Envergonhado, afastou-se pelo túnel sem olhar a seus companheiros; o ruído de seus passos eram como pregos afundados a marteladas
no coração do Drizzt Dou'Urdem. --Possivelmente teria que havê-lo feito, elfo escuro --opinou Belwar, enquanto caminhava ao lado do drow. --Salvou-me na caverna
illita --replicou Drizzt, zangado. E foi um amigo leal. --Tentou me matar, e a ti também --afirmou o pequeno, severo. Magga cammara. --Sou seu amigo! --grunhiu
Drizzt, sujeitando ao svirfnebli por um ombro. Quer que o mate? --Peço-te que atue como seu amigo --disse Belwar e, livrando-se da mão do Drizzt, foi depois dos
passos do Clak. O drow voltou a sujeitar ao capataz pelo ombro e o obrigou a dá-la volta. --Cada vez será pior, elfo escuro --comentou Belwar, sem alterar-se ante
o
gesto do Drizzt. O feitiço do mago ganha força cada dia que passa. Clak tentará nos matar à primeira oportunidade e, se o conseguir, o sofrimento pelo crime será
muito pior que morrer por sua mão. --Não posso matá-lo --disse Drizzt, apagada sua fúria. Nem você. --Então devemos deixá-lo --manifestou o pequeno. Temos que
deixá-lo livre na Antípoda Escura, para que viva como um oseogarfio. É no que se converterá em corpo e alma. --Não --insistiu Drizzt. Não podemos deixá-lo. Somos
sua única oportunidade. Temos que ajudá-lo. --O mago está morto --recordou-lhe Belwar, que lhe voltou outra vez as costas e se afastou em busca do Clak. --Há outros
magos --murmurou Drizzt, sem interpor-se na marcha do capataz. O drow entrecerró os olhos e embainhou as cimitarras. Agora sabia o que devia fazer, qual era o preço
que devia pagar pela amizade do Clak, mas lhe preocupava muito para poder aceitá-lo sem mais. Certamente que havia outros magos na Antípoda Escura, embora não era
fácil encontrá-los por acaso, e os feiticeiros capazes de eliminar o encantamento polimórfico do Clak deviam ser ainda mais escassos. Não obstante, sabia onde dar
com eles. A idéia de retornar a sua terra natal acossou ao Drizzt com cada passo que ele e seus companheiros deram aquele dia. depois de ter conhecido as conseqüências
da decisão de abandonar Menzoberranzan, Drizzt não queria voltar a ver aquele lugar nunca mais, não queria ver o mundo escuro que o tinha amaldiçoado. Mas se agora
escolhia não retornar, Drizzt sabia que não demoraria para ser testemunha de um pouco mais perverso que Menzoberranzan. Veria o Clak, um amigo que o tinha salvado
de uma morte segura, convertido de tudo em um oseogarfio. Belwar tinha sugerido abandonar ao Clak, e esta opção parecia preferível à batalha que teriam que sustentar
se se encontravam perto do Clak quando se completasse a transformação. Entretanto, até no caso de que Clak estivesse longe, Drizzt sabia que seria testemunha da
mudança. Seus pensamentos permaneceriam fixos no Clak, o amigo abandonado, pelo resto de sua vida: um sofrimento mais para o atormentado drow. Drizzt não podia pensar
em nada pior que ver Menzoberranzan ou ter que tratar outra vez com a gente de sua raça. De ter tido escolha, teria preferido morrer antes que retornar à cidade
drow, mas as coisas não eram tão singelas. Havia em jogo algo mais que as preferências pessoais do Drizzt. Tinha apoiado sua vida em uns princípios, e agora suas
convicções exigiam lealdade. Exigiam que pusesse as necessidades do Clak por cima das suas, porque Clak era seu amigo e porque o conceito de amizade superava os
desejos pessoais. Mais tarde, quando os amigos acamparam para ter umas horas de descanso, Belwar se deu conta do conflito que afligia ao drow. O svirfnebli deixou
ao Clak, que se entretinha amassando a parede de pedra, e se aproximou do Drizzt. --No que pensa, elfo escuro? --perguntou Belwar, curioso. Drizzt, muito aflito
pelo tumulto emocional, não olhou ao capataz. --Minha cidade se orgulha de sua escola de magos --respondeu o drow com tom firme. Ao princípio o svirfnebli não compreendeu
a que se referia Drizzt, mas ao ver que o drow olhava ao Clak, entendeu as implicações da direta resposta. --Menzoberranzan? --inquiriu o pequeno. Seria capaz de
retornar ali, confiando em que algum mago drow tenha piedade de nosso amigo pek? --Penso retornar unicamente porque não há outra possibilidade para o Clak -- afirmou
Drizzt, zangado. --Então não há nenhuma oportunidade para o Clak --disse Belwar. Magga
cammara, elfo escuro! Menzoberranzan não te receberá com os braços abertos. --Possivelmente seu pessimismo está justificado --disse Drizzt. Estou de acordo em
que os elfos escuros não são jogo de dados à compaixão, mas pode haver outras opções. --Querem sua cabeça --afirmou Belwar. Seu tom refletia a esperança de que a
resposta fora suficiente para fazer entrar em razão ao companheiro. --Só a matrona Malícia --manifestou Drizzt. Menzoberranzan é uma cidade muito grande, meu amigo,
e as lealdades a minha mãe não têm nenhum peso em qualquer encontro que possamos ter com alguém que não pertença a minha família. Asseguro-te que não penso me encontrar
com nenhum de meus parentes! --E, se me permitir a pergunta, elfo escuro, o que podemos oferecer em troca de liberar ao Clak da maldição? --perguntou Belwar, sarcástico.
O que podemos oferecer a qualquer mago drow do Menzoberranzan que possa ser de valor para ele? A resposta do Drizzt começou com uma cimitarra cortando o ar, seguida
pelo fogo nos olhos lilás do drow, e acabou com uma afirmação que nem sequer o obstinado Belwar soube como rebater. --Sua própria vida.
23
Murmúrios
A matrona Baenre observou durante um bom momento e com muita atenção a Malícia Dou'Urdem, para estimar até que ponto as exigências do zin-Carla tinham afetado à
mãe matrona. Profundas rugas de preocupação marcavam o rosto em outros tempos terso, e os cabelos níveos, que tinham sido a inveja de sua geração, apareciam --talvez
pela primeira vez em cinco séculos-- sujos e mau penteados. Mas o mais surpreendente eram os olhos de Malícia, sempre radiantes e alertas, convertidos agora em dois
discos opacos afundados nas órbitas. --Zaknafein quase o tinha --explicou Malícia, com um gemido pouco habitual em sua voz. Drizzt estava em seu poder e, não sei
como, meu filho as arrumou para escapar. "Embora o espectro o segue de perto --apressou-se a acrescentar Malícia ao ver o gesto de desaprovação da matrona Baenre.
além de ser a pessoa mais capitalista de todo Menzoberranzan, a anciã mãe matrona da casa Baenre era considerada como a representante pessoal do Lloth na cidade.
A aprovação da matrona Baenre era a aprovação do Lloth, e, pela mesma lógica, sua desaprovação significava a maioria das vezes o desastre para uma casa. --Zin-Carla
exige paciência, matrona Malícia --disse a matrona Baenre com voz calma. Não aconteceu tanto tempo. Malícia se tranqüilizou um pouco até que voltou a olhar a seu
redor. Odiava a capela da casa Baenre, tão enorme e degradante. A totalidade da casa Dou'Urdem cabia neste só recinto, e, embora a família de Malícia e seus soldados
se multiplicassem por dez, não seriam suficientes para ocupar todas as fileiras de bancos. Sobre o altar central, por cima mesmo da matrona Malícia, abatia-se a
imagem ilusória de uma aranha gigantesca, que se transformava em um formoso rosto de mulher para depois voltar para a figura anterior. Estar ali com a única companhia
da matrona Baenre, debaixo da impressionante imagem, fazia que Malícia se sentisse ainda mais insignificante. A matrona Baenre notou a inquietação da convidada e
tentou consolá-la. --recebeste um grande presente --disse-lhe, com toda sinceridade. Reina-a aranha não te teria dado o zin-Carla, nem teria aceito o sacrifício
do SiNafay Hun'ett, uma mãe matrona, se não tivesse aprovado seus métodos e seus propósitos. --É uma prova --afirmou Malícia, de improviso. --Uma prova em que não
fracassará! --replicou a matrona Baenre. E então conhecerá a glória, Malícia Dou'Urdem! Quando o espectro daquele que foi Zaknafein acabe seu encargo e seu filho
renegado esteja morto, ocupará um sítio de honra no conselho regente. Prometo-te que passarão muitos anos antes de que alguém se atreva a ameaçar à casa Dou'Urdem.
Reina-a aranha te concederá seu favor pelo êxito do zin-Carla. Terá a sua casa na mais alta estima e te defenderá de seus inimigos. --E o que passará se o zin-Carla
fracassa? --ousou perguntar Malícia.
Suponhamos que... Sua voz se apagou enquanto os olhos da matrona Baenre se abriam assombrados. --Não diga essas coisas! --reprovou-lhe Baenre. E não pense coisas
impossíveis! O medo te distrai, e isto é suficiente para conduzir sua perdição. Zin-Carla é um exercício de vontade e uma amostra de devoção à rainha aranha. O
espectro é uma prolongação de sua fé e de sua força. Se sua confiança se debilitar, então o espectro do Zaknafein fracassará em sua missão! --Não vacilarei! --rugiu
Malícia, com as mãos obstinadas aos braços da cadeira. Aceito a responsabilidade do sacrilégio de meu filho, e com a ajuda e a bênção do Lloth darei ao Drizzt
o castigo que se merece. A matrona Baenre se relaxou na cadeira e assentiu. Tinha que dar seu apoio a Malícia nesta empresa, por ordem do Lloth, e sabia o suficiente
sobre o zin-Carla para compreender que a confiança e a decisão eram os dois ingredientes principais do êxito. Uma mãe matrona envolta no zin-Carla tinha que proclamar
freqüentemente e com sinceridade sua fé no Lloth e seu desejo de agradar à rainha aranha. Entretanto, agora Malícia tinha outro problema, uma distração que não
se podia permitir. Tinha ido à casa Baenre por vontade própria em busca de ajuda. --me fale deste outro assunto --disse a matrona Baenre, já um pouco farta do encontro.
--Sou vulnerável --explicou Malícia. O zin-Carla me rouba a energia e a atenção. Preocupa-me que outra casa possa aproveitar a oportunidade. --Nenhuma casa atacou
a uma mãe matrona ocupada com o zin-Carla -- assinalou a matrona Baenre, e Malícia compreendeu que a anciã drow falava por experiência própria. --O zin-Carla é um
presente único --insistiu Malícia--, outorgado a matronas de casas poderosas e que contam com todas as bênções do Lloth. Quem ousaria atacar em tais circunstâncias?
Mas a casa Dou'Urdem não está nas melhores condicione. Acabamos de sofrer as conseqüências de uma guerra e, inclusive com a incorporação de alguns soldados da casa
Hun'ett, somos poucos. É bem sabido que ainda não recuperei a graça do Lloth, mas minha casa é a oitava da cidade e portanto ocupo um posto no conselho regente,
uma posição invejável. --Seus temores são injustificados --assegurou-lhe a matrona Baenre, mas Malícia se desabou na cadeira, frustrada apesar das palavras. A matrona
Baenre sacudiu a cabeça sem saber o que fazer. Vejo que minhas afirmações não bastam para te tranqüilizar. Sua atenção deve estar dedicada unicamente ao zin-Carla.
Compreende-o, Malícia Dou'Urdem. Não tem tempo para distrações menores. --Não se vão --disse Malícia. --Então eu acabarei com elas --ofereceu a matrona Baenre.
Retornará a sua casa em companhia de duzentos soldados Baenre. Encarregarão-se de custodiar suas muralhas, e levarão o emblema da casa Baenre. Ninguém na cidade
se atreverá a te atacar contando com estes aliados. Um amplo sorriso apareceu no rosto de Malícia e conseguiu dissimular algumas das rugas de preocupação. Aceitou
a generosa oferta da matrona Baenre como um sinal de que possivelmente Lloth ainda favorecia à casa Dou'Urdem. --Retorna a sua casa e te concentre em sua tarefa
--acrescentou a matrona Baenre. Zaknafein tem que encontrar ao Drizzt e matá-lo. Este é o trato que ofereceu à rainha aranha. Mas não sofra pelo último fracasso
do espectro nem pela perda de tempo. Uns poucos dias, ou semanas, não são grande coisa aos olhos do Lloth. A conclusão correta do zin-Carla é o único importante.
--Encarregará-te de minha escolta? --perguntou Malícia, levantando-se da cadeira. --Já te espera --assegurou-lhe a matrona Baenre. Malícia descendeu a escada do
altar central e cruzou as numerosas fileiras de
bancos da capela gigante. O recinto estava em penumbra e, enquanto saía, Malícia apenas se alcançou a vislumbrar a outra figura que se aproximava do altar do lado
oposto. Pensou que se tratava do illita amigo da matrona Baenre, uma presença habitual na capela. Se Malícia tivesse sabido que o desolador mental da matrona Baenre
tinha deixado a cidade para atender uns assuntos privados no oeste, possivelmente teria emprestado mais atenção ao personagem. O qual teria multiplicado o número
de suas rugas. --Lamentável --comentou Jarlaxle enquanto se sentava junto à matrona Baenre no altar. Esta não é a mesma matrona Malícia Dou'Urdem que conheci faz
só uns meses atrás. --O zin-Carla não é um presente comum --replicou a matrona Baenre. --O preço é muito grande --assentiu Jarlaxle. Olhou o rosto da matrona Baenre,
e leu neles a resposta à próxima pergunta. Fracassará? A matrona Baenre soltou uma gargalhada como o chiado de uma serra. --Nem sequer a reina aranha conhece a
resposta. Acredito que a presença de meus soldados..., nossos soldados dará à matrona Malícia a tranqüilidade que necessita para completar a missão. Isto ao menos
é o que espero. Malícia Dou'Urdem gozou em outros tempos da maior consideração do Lloth. Seu assento no conselho regente foi exigido pela rainha aranha. --Os fatos
parecem indicar que se cumprirá a vontade do Lloth --manifestou Jarlaxle com um tonillo zombador, ao recordar a batalha entre as casas Dou'Urdem e Hun'ett, em que
Brigam D'aerthe tinha tido uma importância decisiva. As conseqüências daquela vitória, o desaparecimento da casa Hun'ett, tinha levado a casa Dou' Urdem a ocupar
a oitava posição na cidade e tinha dado à matrona Malícia seu lugar no conselho regente. --A sorte sorri aos afortunados --comentou a matrona Baenre. O sorriso do
Jarlaxle foi substituída de repente por uma expressão severo. --E Malícia, a matrona Malícia --apressou-se a corrigir ao ver o aborrecimento instantâneo do Baenre--,
goza agora do favor da rainha aranha? A fortuna sorrirá à casa Dou'Urdem? --Penso que o presente do zin-Carla deixa de lado esta questão--explicou a matrona Baenre.
O destino da matrona Malícia é algo que só podem determinar ela e o espectro. --Ou que pode destruir seu filho, o infame Drizzt Dou'Urdem--completou Jarlaxle.
Tão capitalista é este jovem guerreiro? por que Lloth não acabou com ele? --repudiou à rainha aranha com todo seu coração --respondeu Baenre. Lloth não tem poder
sobre o Drizzt e resolveu que é um problema da matrona Malícia. --Um problema bastante grande --mofou-se o mercenário, com uma rápida sacudida de sua calva cabeça.
Imediatamente advertiu que a matrona Baenre não compartilhava a brincadeira. --Certamente --replicou Baenre, sombria. Sua voz se apagou enquanto se afundava em seus
pensamentos. Conhecia os perigos e as possíveis lucros do zin-Carla melhor que ninguém na cidade. Em duas ocasiões, a matrona Baenre tinha pedido o maior presente
da rainha aranha, e em ambas tinha conseguido que a missão do zin-Carla concluíra com êxito. O esplendor da casa Baenre era o testemunho daqueles triunfos. Mesmo
assim, cada vez que se olhava ao espelho, recordava com toda claridade o preço tremendo que tinha pago. Jarlaxle não se entremeteu nas reflexões da mãe matrona.
O mercenário tinha suficiente pensando em seus próprios assuntos. Em tempos de crise e confusão como estes, um oportunista inteligente só podia obter benefícios.
Considerou que Brigam D'aerthe tinha muito que ganhar com a concessão do zin-Carla à matrona Malícia. Se Malícia conseguia seu objetivo e reforçava sua posição no
conselho regente,
Jarlaxle contaria com outra capitalista aliada na cidade. Se o espectro falhava, com o conseguinte desmoronamento da casa Dou'Urdem, o preço pela cabeça do jovem
Drizzt chegaria a uma cifra que seria tentadora incluso para a banda de mercenários. Como tinha ocorrido durante o trajeto de ida à primeira casa da cidade, Malícia
imaginou que os olhares de inveja vigiavam sua volta através do labirinto formado pelas ruas do Menzoberranzan. A matrona Baenre tinha sido muito generosa e gentil.
Se aceitava a premissa de que a anciã mãe matrona era a voz do Lloth na cidade, Malícia com muita dificuldade podia conter o sorriso. De todos os modos, os temores
não tinham desaparecido. Até quando poderia contar com a ajuda da matrona Baenre se Zaknafein não podia matar ao Drizzt, se o zincarla fracassava? A posição de Malícia
no conselho regente estaria em perigo e também a existência da casa Dou'Urdem. A comitiva passou por diante da casa Fey-Branche, a casa novena do Menzoberranzan
e provavelmente a maior ameaça para a debilitada casa Dou'Urdem. Sem dúvida a matrona Halavin Fey-Branche observava a procissão detrás das grades de adamantita,
contemplava à mãe matrona que agora ostentava a cobiçado oitava poltrona do conselho regente. Malícia olhou ao Dinin e aos dez soldados da casa Dou'Urdem, que caminhavam
a seu lado enquanto ela viajava sentada no disco voador. Deixou que seu olhar se dirigisse aos duzentos soldados, que exibiam orgulhosos o emblema da casa Baenre,
que partiam em formação detrás de sua modesta escolta. O que pensaria a matrona Halavin Fey-Branche ante este espetáculo?, perguntou-se Malícia. Uma vez mais sorriu
agradada. --dentro de muito pouco desfrutaremos de nossos maiores momentos de glória --assegurou-lhe Malícia a seu filho guerreiro. Dinin assentiu e respondeu ao
sorriso da mãe, pouco disposto a lhe azedar a festa. Entretanto, Dinin não podia deixar de lado as suspeitas de que muitos dos soldados Baenre, guerreiros drows
aos que nunca tinha tido ocasião de conhecer, resultavam-lhe familiares. Um deles inclusive lhe piscou os olhos um olho ao filho maior da casa Dou'Urdem. A imagem
do Jarlaxle tocando o apito mágico no balcão da casa Dou'Urdem apareceu com toda claridade na mente do Dinin.
24
Fé
Drizzt e Belwar não tiveram necessidade de recordar-se mutuamente o que indicava o resplendor verde que se via o final do túnel. Aceleraram o passo para alcançar
e advertir ao Clak, que caminhava mais depressa estimulado pela curiosidade. O oseogarfio ocupava agora a posição de líder; resultava muito perigoso para os companheiros
deixar que se situasse a suas costas. Clak se voltou de repente para ouvir que se aproximavam da carreira, ameaçou-os com uma garra, e soltou um assobio. --Pek --sussurrou
Belwar, pronunciando a palavra que conseguia manter vivos as lembranças na consciência de seu amigo. O grupo se dirigiu para o este, em direção ao Menzoberranzan,
assim que Drizzt convenceu ao capataz de sua decisão de ajudar ao Clak. Belwar, que não tinha mais opções, finalmente aceitou o plano do drow como a única esperança
do Clak, mas embora tinham iniciado a viagem de volta sem perder um minuto e a bom passo, agora pensavam que não chegariam a tempo. A mudança no Clak tinha sido
impressionante da briga contra os duergars. O oseogarfio apenas se podia falar e freqüentemente se voltava ameaçador contra os companheiros. --Pek --repetiu Belwar,
enquanto se aproximava com o Drizzt ao inquieto monstro. O oseogarfio fez uma pausa, confuso. --Pek! --grunhiu o capataz pela terceira vez, e golpeou a parede de
pedra com a mão-de-martelo. Como se de repente se acendeu uma luz no tumulto de seus pensamentos, Clak se tranqüilizou e baixou os braços. Drizzt e Belwar olharam
mais à frente do oseogarfio para o resplendor verde e depois intercambiaram olhares de preocupação. comprometeram-se a seguir este rumo e agora não podiam desviar-se.
--Os corbis vivem naquela caverna --disse Drizzt em voz baixa e com muita claridade para que Clak os pudesse entender. Temos que atravessá-la e chegar ao outro
lado o mais rápido possível se queremos evitar uma batalha. Não podemos nos permitir mais demora. Olhe bem onde pisa. As passarelas são estreitas e escorregadias.
--C... C... Cl... --gaguejou o oseogarfio, inutilmente. --Clak --ajudou-o Belwar. --Ad... ade... Clak se interrompeu e assinalou com uma garra em direção à caverna
do resplendor verde. --Clak adiante? --perguntou Drizzt, sem poder suportar os esforços do amigo. Clak fará de guia --repetiu ao ver que a cabeça se movia para
assentir. Belwar não estava muito seguro da sabedoria da proposta. --Nós já lutamos contra os homens-pássaro e conhecemos seus truques --assinalou o svirfnebli.
Em troca, Clak não.
--O tamanho do oseogarfio bastará para contê-los --replicou o jovem. A só presença do Clak possivelmente nos permita evitar o combate. --Não contra os corbis,
elfo escuro --advertiu-lhe o capataz. Atacam o que seja e não se arredam ante ninguém. Já viu seu frenesi, o desprezo por suas próprias vidas. Nem sequer sua pantera
foi capaz de fazê-los desistir. --Possivelmente tenha razão --reconheceu Drizzt--, mas inclusive se os corbis atacarem, que armas possuem capazes de atravessar a
couraça de um oseogarfio? Que defesa têm os homens-pássaro contra as grandes garras do Clak? Nosso amigo gigante os varrerá de um tapa. --Se esquece dos que montam
as pedras --recordou-lhe Belwar. Não demorarão nem um segundo em lançar-se desde a primeira cornija e arrastar ao Clak até o lago. Clak se cansou de escutá-los
e olhou a parede de pedra em um esforço inútil por recuperar parte de seu antigo ser. Sentia uma leve necessidade de golpear a pedra mas não era mais intensa que
o desejo permanente de afundar as garras no rosto do drow ou do svirfnebli. --Eu me encarregarei dos corbis apostados nas cornijas --respondeu Drizzt. Você te
limite a seguir ao Clak, uma dúzia de passos mais atrás. Belwar olhou ao oseogarfio e advertiu a tensão no monstro. Compreendeu que não podiam permitir-se mais atrasos,
assim que se encolheu de ombros e empurrou ao Clak, lhe assinalando o túnel para o resplendor verde. Clak abriu a marcha; Drizzt e Belwar o seguiram. --E se chamas
à pantera? --sussurrou-lhe o pequeno ao drow quando passaram pela última curva do túnel. Drizzt sacudiu a cabeça com energia, e Belwar, que recordou os terríveis
momentos
vividos pelo Guenhwyvar na caverna dos corbis, preferiu não insistir. O elfo escuro aplaudiu o ombro do Belwar para lhe desejar sorte, e se adiantou ao Clak para
entrar primeiro na silenciosa caverna. Com uns poucos movimentos singelos, o drow pôs em prática o feitiço de levitação e se elevou silenciosamente para o teto.
Clak, surpreso por este estranho lugar com o resplandecente lago de ácido, apenas se se fixou no Drizzt. O oseogarfio permaneceu imóvel, observando a caverna ao
tempo que utilizava seu agudo sentido do ouvido para localizar a qualquer possível inimigo. --Adiante --sussurrou Belwar detrás dele. As demoras nos podem levar
a desastre! Clak mediu o chão, e depois caminhou mais depressa ao ganhar confiança na resistência da estreita passarela pendente. Escolheu o rumo mais direto possível,
embora inclusive este dava muitas voltas antes de chegar à arcada de saída no lado oposto ao da entrada. --Vê algo, elfo escuro? --arriscou-se a perguntar o pequeno
quando passaram uns quantos segundos sem novidades. Clak já tinha cruzado a metade da caverna sem incidentes, e o capataz não podia conter mais a ansiedade. Não
tinham visto os corbis nem tinham ouvido som algum além das fortes pisadas do Clak e o arrastar das velhas botas do Belwar. Drizzt descendeu até a passarela, bastante
longe dos companheiros. --Nada --respondeu. O drow compartilhava as suspeitas do Belwar de que não havia corbis. O silêncio na caverna era absoluto e inquietante.
Drizzt correu para o centro da câmara, e levitou outra vez para ter uma visão panorâmica do lugar. --O que vê? --inquiriu Belwar um segundo mais tarde. Drizzt olhou
ao capataz e encolheu os ombros. --Nada absolutamente. --Magga cammara --grunhiu Belwar, quase desejando que aparecesse um corbi e os
atacasse. Enquanto Belwar conversava com o Drizzt, pouco mais à frente do centro da caverna, Clak tinha contínuo a marcha e estava a ponto de alcançar a saída. Quando
por fim o capataz se voltou para seguir ao oseogarfio, este tinha desaparecido além da arcada. --Alguma coisa? --gritou Belwar, e esperou a resposta dos dois companheiros.
Drizzt sacudiu a cabeça ao tempo que subia. Deu uma volta pela caverna, incapaz de acreditar que não houvesse corbis emboscados. --Sem dúvida os espantamos --murmurou
Belwar para si mesmo com o olhar posto na saída. Mas apesar de suas palavras, o capataz não era tão parvo para acreditá-lo. Quando Drizzt e ele tinham escapado da
caverna um par de semanas antes, tinham deixado atrás várias dúzias de homens-pássaro. Era evidente que a morte de uns poucos corbis não era motivo suficiente para
espantar ao resto do clã. Por alguma razão desconhecida, os corbis não saíam a seu encontro. Belwar acelerou o passo, convencido de que era melhor não duvidar de
sua boa sorte. Estava a ponto de chamar o Clak, para assegurar-se de que o oseogarfio não tinha tido problemas, quando um chiado de espanto soou no túnel de saída,
seguido de um golpe forte. Ao cabo de uns instantes, Belwar e Drizzt tiveram a resposta. O espectro do Zaknafein Dou'Urdem cruzou a arcada e se deteve no saliente.
--Elfo escuro! --gritou o capataz. Drizzt já tinha visto o espectro e começou a descender o mais rápido que podia para a passarela, quase no meio da caverna. --Clak!
--chamou Belwar, embora não esperava resposta, e tampouco a teve, das sombras além da arcada. O espectro prosseguiu o avanço. --Besta assassina! --espetou-lhe o
svirfnebli, que separou os pés e entrechocó as mãos metálicas. Te prepare a receber seu castigo! Belwar iniciou a letanía para dotar de poder mágico às mãos, mas
Drizzt o interrompeu. --Não! --gritou o drow das alturas. Zaknafein vem por mim. te aparte de seu caminho! --E o que me diz do Clak? --vociferou o pequeno. Não
é mais que uma besta assassina, e tenho uma conta pendente com ele! --Não sabe o que diz --replicou Drizzt, aumentando a velocidade do descida tudo o que podia para
reunir-se com o temerário capataz. O elfo sabia que Zaknafein chegaria antes ao Belwar, e podia adivinhar quais seriam as conseqüências. --Confia em mim, rogo-lhe
isso --suplicou Drizzt. Não tem nenhuma possibilidade de superar a este guerreiro drow. Belwar voltou para entrechocar as mãos, mas não podia negar que Drizzt
tinha razão. Tinha visto o Zaknafein combater na caverna dos desoladores, e a velocidade do monstro o tinha deixado sem fôlego. O pequeno retrocedeu uns passos e
se
meteu por uma passagem lateral, em busca de outro caminho que o conduzisse até a arcada e assim poder averiguar o que tinha sido do Clak. Com o Drizzt à vista, o
espectro não emprestou atenção ao svirfnebli. Zaknafein passou de comprimento por diante da passagem lateral e avançou disposto a cumprir o propósito de seu reanimación.
Por um momento, Belwar pensou em seguir ao estranho drow, aproximar-se todo o possível pelas costas e ajudar ao Drizzt na batalha, mas ouviu outro grito procedente
da arcada, um grito tão lastimero que o capataz não podia ignorá-lo. deteve-se logo que chegou à passarela principal, e depois olhou a um e outro lado, sem saber
a quem ajudar.
--Vê! --gritou-lhe Drizzt. Te ocupe do Clak. Este é Zaknafein, meu pai. Drizzt observou um leve hesitação no avanço do espectro ao escutar estas palavras, um hesitação
que lhe deu uma pista da verdade. --Seu pai? Magga cammara, elfo escuro! --protestou Belwar. Na caverna dos desoladores... --Não corro perigo --interrompeu-o Drizzt.
Belwar não compartilhava a opinião do elfo, mas em que pese a seu orgulho e cabezonería, o capataz reconheceu que a iminente batalha superava com muito suas habilidades
para o combate. Seria de muito pouca ajuda contra o capitalista guerreiro drow, e sua presença no duelo poderia resultar um estorvo para seu amigo. Drizzt já tinha
suficientes problemas para ter que preocupar-se da segurança do Belwar. O svirfnebli entrechocó as mãos de mithril em gesto de frustração e correu para a arcada,
onde não deixavam de ouvi-los ayes de dor do companheiro cansado. O grito primitivo de Malícia e a forma em que abriu os olhos avisou às filhas, que a acompanhavam
na hall, que o espectro tinha encontrado ao Drizzt. Briza olhou às sacerdotisas Dou'Urdem e lhes ordenou retirar-se. Maia obedeceu no ato, mas Vierna vacilou. --Vete
--grunhiu Briza, com uma mão no látego de cabeças de serpente sujeito ao cinturão. Agora. Vierna olhou a sua mãe em busca de ajuda, sem resultado. Malícia estava
ensimismada com o espetáculo dos fatos distantes. Tinha chegado a hora do triunfo do zin-Carla, e a matrona Malícia Dou'Urdem não se distrairia com as discussões
sem importância das filhas. Briza ficou a sós com a mãe, de pé atrás do trono, e observou a Malícia com tanta atenção como ela observava ao Zaknafein. logo que entrou
na pequena caverna além da arcada, Belwar compreendeu que Clak tinha morrido, ou não demoraria para está-lo. O oseogarfio jazia no chão, sangrando pelo talho que
quase o tinha decapitado. O pequeno lhe voltou as costas, e então pensou que o menos que podia fazer por seu amigo era consolá-lo. ajoelhou-se junto a ele e contemplou
dolorido como Clak sofria uma série de violentas convulsões. A agonia tinha eliminado o feitiço polimórfico, e Clak recuperava pouco a pouco sua entidade anterior.
Os enormes braços com garras se estremeciam e retorciam, estiravam-se e contraíam à medida que apareciam os braços de pele amarela dos peks. O cabelo cresceu entre
a couraça gretada da cabeça do Clak, e o pico se rompeu em várias partes para converter-se em pó. O mesmo ocorreu com o peito, e o resto do exoesqueleto se desfez
com um som lhe chiem que provocou calafrios no calejado capataz. Desapareceu o oseogarfio, e, na morte, Clak voltou a ser como antes. Era um pouco mais alto que
Belwar, embora não tão robusto, com feições largas e estranhas; os olhos não tinham pupilas e o nariz era achatado. --Como te chamava, meu amigo? --sussurrou o capataz,
embora sabia que Clak jamais lhe daria a resposta. agachou-se e sujeitou a cabeça do pek entre os braços, consolando-se sabendo que por fim seu amigo descansava
em paz. --Quem é você que tomadas a aparência de meu pai? --perguntou Drizzt enquanto o espectro percorria os últimos metros que os separavam. Zaknafein soltou um
grunhido animal e deu a resposta com uma estocada.
Drizzt parou o ataque e deu um salto atrás. --Quem é? --perguntou outra vez. Você não é meu pai! Um sorriso de orelha a orelha apareceu no rosto do espectro. --Não
--respondeu com voz tremente, pois a resposta era transmitida de uma hall a muitos quilômetros de distância. Sou você... mãe! As espadas atacaram com uma velocidade
de vertigem. Drizzt, confundido pela resposta, respondeu ao ataque com a mesma ferocidade, e os contínuos golpes dos aços soavam como se fossem um. Briza vigiava
cada um dos movimentos da mãe. O suor corria pela frente de Malícia e seus punhos golpeavam os braços da poltrona de pedra com tanta força que sangravam. Malícia
tinha sonhado que seria assim, que o momento de triunfo brilharia com toda claridade em sua mente através da distância. Podia escutar cada uma das palavras do Drizzt
e perceber sua angústia como se fosse própria. Malícia nunca tinha experiente um prazer tão intenso! Então notou uma leve pontada quando a consciência do Zaknafein
tentou opor-se a seu controle. Malícia apartou ao Zaknafein com um rugido gutural. O cadáver animado era exclusivamente dele! Briza tomou boa nota do súbito grunhido
de sua mãe. Drizzt já não tinha nenhuma dúvida de que o rival não era Zaknafein Dou'Urdem, embora tampouco podia negar que possuía o inconfundível estilo de seu
antigo professor. Zaknafein estava ali --em alguma parte-- e Drizzt teria que chegar até ele se desejava conseguir respostas. O duelo se acomodou rapidamente a um
ritmo contido e fácil de manter; os oponentes faziam fintas e executavam os ataques com muita cautela, sempre atentos a não perder pé na estreita passarela. Então
entrou Belwar na caverna, carregado com o corpo do Clak. --Mata-o, Drizzt! --gritou o capataz. Magga...! Belwar se interrompeu, assustado pelo combate que presenciava.
Drizzt e Zaknafein pareciam mover-se entrelaçados; as armas giravam e lançavam estocadas, que nunca davam no branco. Os dois elfos escuros, que para o Belwar tinham
sido tão diferentes, agora pareciam um, e este pensamento perturbou ao pequeno. Quando se produziu a seguinte interrupção na briga, Drizzt olhou em direção ao capataz
e seu olhar se cravou no pek morto. --Maldito seja! --rugiu, e reatou o ataque lançando cutiladas a torto e a direito contra o monstro que tinha assassinado ao Clak.
O espectro parou sem problemas o assalto descontrolado e empurrou as cimitarras do Drizzt para cima, com o que desequilibrou ao jovem. Esta manobra lhe resultou
muito conhecida o Drizzt, porque se tratava de uma preparação que Zaknafein tinha utilizado contra ele muitas vezes durante as sessões de treinamento no Menzoberranzan.
Zaknafein o obrigaria a levantar os braços, para depois baixar repentinamente as espadas. Nos primeiros encontros, Zaknafein tinha conseguido derrotar ao Drizzt
graças a esta manobra, o duplo golpe baixo; mas em seu último duelo na cidade drow, Drizzt tinha encontrado a parada de resposta e tinha conseguido devolver o ataque
do professor. Agora Drizzt se perguntou se o oponente seguiria o mesmo procedimento, e qual seria a reação do Zaknafein. O monstro que tinha diante conservaria alguns
das lembranças do Zak? O espectro acabou com a primeira parte da manobra e, assim que as cimitarras chegaram ao ponto mais alto, deu um passo atrás e atacou baixando
as duas espadas.
Drizzt respondeu com as cimitarras em uma "X" para baixo, a parada correta que detinha o duplo golpe baixo, ao tempo que descarregava um chute entre os punhos contra
o rosto do rival. Mas o espectro se adiantou ao contra-ataque e se situou fora do alcance da bota. Drizzt acreditou que por fim tinha uma resposta, porque só Zaknafein
Dou'Urdem podia conhecer esta réplica. --Você é Zaknafein! --gritou Drizzt. O que tem feito contigo a matrona Malícia? As mãos do espectro tremeram quase até soltar
as espadas, e sua boca se retorceu como se queria dizer algo. --Não! --chiou Malícia, e recuperou violentamente o controle do monstro, enquanto se movia pela perigosa
e sutil linha que separava as habilidades físicas do Zaknafein da consciência do ser que tinha sido uma vez. "É meu, espectro --vociferou Malícia--, e pela vontade
do Lloth que cumprirá sua missão! Drizzt viu a súbita regressão do espectro assassino. As mãos do Zaknafein deixaram de tremer, e sua boca mostrou o mesmo gesto
cruel e desumano de antes. --O que ocorre, elfo escuro? --perguntou-lhe Belwar, confundido pelas alternativas deste estranho duelo. Drizzt observou que o pequeno
tinha
deixado o corpo do Clak no saliente e que se aproximava pouco a pouco. Saltavam faíscas das mãos metálicas do Belwar cada vez que se roçavam. --Manténte afastado!
--avisou-lhe Drizzt. A presença de um inimigo desconhecido podia danificar os planos que começavam a forjar em sua mente. É Zaknafein --tentou lhe explicar ao
pequeno. Ao menos o é em parte! --Depois, em um murmúrio que Belwar não alcançou a escutar, acrescentou--: E acredito que sei como chegar até essa parte. Drizzt
lançou outra série de ataques mesurados que Zaknafein podia rechaçar sem esforço. Não pretendia destruir ao rival, mas sim procurava lhe inspirar lembranças de outras
táticas de esgrima conhecidas pelo Zaknafein. Conseguiu que Zaknafein seguisse os passos de uma das sessões de treinamento típica, sem deixar de falar tal como ele
e o professor de armas estavam acostumadas fazê-lo no Menzoberranzan. O espectro governado por Malícia respondeu ao tom familiar do Drizzt com selvageria e respondeu
a suas palavras amistosas com grunhidos bestiais. Se o jovem acreditava que podia distrair ao oponente com tolices, estava em um grave engano. As espadas atacavam
ao Drizzt por dentro e por fora, sempre em busca de um oco nas defesas. As cimitarras respondiam com rapidez e precisão; alcançavam e detinham os golpes em arco
e desviavam todas as estocadas. Uma espada encontrou uma fresta e alcançou ao Drizzt nas costelas. A cota de malha impediu que o fio cortasse a carne, mas a força
do impacto lhe deixaria um hematoma enorme. Surpreso, compreendeu que seu plano não seria fácil de executar. --Você é meu pai! --gritou-lhe ao monstro. Sua inimizade
é a matrona Malícia, não eu! O espectro se burlou de suas palavras com uma risada maligna e se lançou sem mais ao ataque. Do primeiro instante da batalha, Drizzt
tinha temido este momento, e teve que fazer um esforço para recordar que diante não tinha a seu pai real. Descuidada-a ofensiva do Zaknafein criou os inevitáveis
ocos na defesa, e as cimitarras do Drizzt os encontraram, primeiro um e depois outro. Uma lâmina abriu o
ventre do espectro, outra se afundou no pescoço. Zaknafein soltou outra gargalhada mais forte, sem deter o ataque. Drizzt começou a lutar dominado pelo pânico, com
menos confiança. Suas cimitarras não podiam frear a aquela coisa! Não demorou para expor-se outro problema: o tempo corria em seu contrário. Não sabia exatamente
contra o que brigava, mas tinha a suspeita de que o monstro não precisava descansar. O jovem pressionou com toda sua habilidade e rapidez. O desespero multiplicou
sua capacidade como espadachim. Belwar avançou, disposto a intervir; depois se conteve, assombrado pela exibição. Drizzt alcançou ao Zaknafein várias vezes mais,
mas o espectro não acusava os efeitos das feridas, e, à medida que o jovem acelerava o ritmo, o espectro fazia o mesmo. Drizzt não podia conceber que não se enfrentava
ao Zaknafein Dou'Urdem; reconhecia cada um dos movimentos de seu pai e antigo professor. Ninguém que não fosse ele podia mover os músculos do corpo com tanta precisão.
Drizzt retrocedeu para ter um pouco mais de espaço e esperou pacientemente as novas oportunidades de ataque. recordou-se a si mesmo uma e outra vez que não se enfrentava
ao Zaknafein a não ser a um monstro criado pela matrona Malícia com o único propósito de destrui-lo. Tinha que estar preparado; a única possibilidade de sobreviver
a este encontro era conseguir tombar a seu rival da passarela. Entretanto, esta possibilidade parecia remota dada a capacidade para a esgrima que demonstrava o espectro.
A passarela tinha uma pequena curva, e Drizzt mediu com o pé para não pisar em falso. Então se desprendeu uma rocha do bordo. O jovem trastabilló e a perna se deslizou
no vazio até o joelho. Zaknafein se equilibrou no ato. O molinete das espadas fez cair de costas ao Drizzt, e o drow ficou atravessado na ponte, com a cabeça pendurando
sobre o lago de ácido. --Drizzt! --chiou Belwar, levado pelo desespero. O pequeno pôs-se a correr, embora não tinha nenhuma oportunidade de chegar a tempo ou de
derrotar
ao monstro. Drizzt! Possivelmente foi o nome do Drizzt, ou talvez só foi o momento de matar, mas a consciência anterior do Zaknafein voltou para a vida naquele
instante, e o braço da espada, preparado para descarregar a estocada mortal que Drizzt não podia deter, vacilou. O jovem não esperou uma segunda oportunidade. Lançou
um golpe à mandíbula do espectro com o punho de uma cimitarra, depois com a outra, e conseguiu fazê-lo retroceder. Em um abrir e fechar de olhos, Drizzt se levantou,
ofegante e com um tornozelo torcido. --Zaknafein! --gritou Drizzt, confuso e frustrado pelas vacilações de seu oponente. --Driz... --tentou dizer o espectro. Então
o monstro de Malícia voltou para a carga com as espadas em alto. Drizzt rechaçou os golpes e se apartou. Podia sentir a presença de seu pai; sabia que o verdadeiro
Zaknafein se encontrava encerrado nesta criatura, mas como podia liberar seu espírito? Era evidente que não podia resistir muito mais este ritmo de combate. --É
você --sussurrou Drizzt. Não há ninguém mais capaz de lutar com tanta mestria. Zaknafein está aqui, e Zaknafein não me matará. O jovem teve um pressentimento,
uma idéia em que precisava acreditar. Uma vez mais, a verdade de suas convicções se submeteram a uma prova terrível. Drizzt embainhou as cimitarras. O espectro rugiu.
Suas espadas iniciaram uma dança mortal e fenderam o ar ameaçadoras, mas Zaknafein não atacou. --Mata-o, mata-o! --vociferou Malícia exultante, convencida de que
tinha a vitória ao alcance da mão.
Mas as imagens do combate se esfumaram de repente, e se encontrou inundada na escuridão. Havia- devolvido muito ao Zaknafein quando Drizzt tinha aumentado a velocidade
do combate. viu-se obrigada a deixar que a consciência do Zaknafein tivesse um pouco mais de controle sobre o corpo ressuscitado, porque necessitava de todas suas
habilidades jaquetas para derrotar ao filho. Agora Malícia não tinha outra coisa que escuridão, e o peso do fracasso era como uma espada pendurada por cima de sua
cabeça. Jogou um olhar à filha, que vigiava todos seus movimentos, e depois voltou para transe, em um último intento por recuperar o controle. --Drizzt? --disse
Zaknafein, e a palavra lhe pareceu dotada de um som maravilhoso. As espadas do Zak voltaram para as bainhas, embora para consegui-lo-as mãos tiveram que lutar contra
as ordens da matrona Malícia. Drizzt se aproximou, disposto a abraçar ao que acreditava seu pai e mais querido amigo, mas Zaknafein tendeu uma mão para mantê-lo
afastado. --Não --explicou o espectro. Não sei quanto mais poderei resistir. O corpo lhe pertence. --Então, você está...? --perguntou Drizzt, sem acabar de entender
a explicação do pai. --Morto --afirmou Zaknafein, bruscamente. Em paz, asseguro-lhe isso. A matrona Malícia reparou meu corpo para seus malignos fins. --Mas a
venceste --exclamou Drizzt, com uma nota de esperança na voz. Uma vez mais estamos juntos. --Só temporalmente. --Como se queria recalcar o comentário, a mão do
Zaknafein se disparou involuntariamente para o punho da espada. Torceu o gesto e grunhiu, até que com um esforço tremendo conseguiu separar pouco a pouco os dedos
da arma. Já volta outra vez, meu filho. Ela sempre volta! --Não posso suportar te perder outra vez! --gritou Drizzt. Quando te vi na caverna dos desoladores...
--Não era eu a quem viu --tentou lhe explicar Zaknafein--, a não ser o zombi da vontade maligna de Malícia. Eu não existo, meu filho. Deixei de existir faz muitos
anos. --Está aqui --protestou Drizzt. --Por vontade de Malícia, não... minha. --Zaknafein grunhiu, e seu rosto se retorceu em uma careta horrível enquanto tratava
de apartar a Malícia só uns segundos mais. Quando recuperou o controle, Zaknafein observou ao guerreiro em que se converteu o filho. Brigas bem --comentou. Melhor
ainda do que esperava. Isto é bom, e também é bom que tenha tido a coragem de aban... O rosto do Zaknafein se transformou outra vez, lhe roubando as palavras. Nesta
ocasião, empunhou as duas espadas e as desembainhou. --Não! --suplicou-lhe Drizzt enquanto aparecia um véu sobre seus olhos lilás. Luta contra ela. --Não... posso
--respondeu o espectro. Foge deste lugar, Drizzt. Escapa à outra... ponta do mundo! Malícia nunca te perdoará. Jamais... deixará de... O espectro avançou, e Drizzt
não teve mais escolha que desembainhar as armas. Mas Zaknafein se desviou de repente antes de chegar ao alcance das cimitarras do Drizzt. --Por nós! --gritou Zak
com uma claridade surpreendente. Um brinde que soou como a trompetista da vitória na caverna do resplendor verde e que ressonou através da distância no coração da
matrona Malícia como o repique dos tambores tocando a morte. Zaknafein tinha conseguido fazer-se uma vez mais com o controle por um instante, o suficiente para que
o corpo ressuscitado se precipitasse no lago de ácido.
25
Conseqüências
A matrona Malícia nem sequer pôde gritar seu rechaço. Um milhar de explosões lhe amassaram o cérebro quando Zaknafein se afundou no lago de ácido, um milhar de avisos
de iminente e inevitável desastre. Abandonou de um salto o trono de pedra, e suas esbeltas mãos se encurvaram como garras que tentassem apanhar no ar alguma coisa
tangível, algo que não estava ali. Sua respiração se converteu em um ofego rouco acompanhado de sons guturais. depois de uns instantes nos que não conseguiu acalmar-se,
Malícia ouviu um ruído mais claro que o estrépito de suas próprias contorções. detrás dela soou o leve sussurro das pequenas e malignas cabeças de serpente sujeitas
ao látego de uma grande sacerdotisa. Malícia deu meia volta e se encontrou cara a cara com a Briza, que a observava com gesto duro e desumano, com o látego de seis
cabeças de serpente viva em alto. --Supunha que ainda me faltavam muitos anos para ocupar seu posto --disse a filha maior com voz serena. Mas é débil, Malícia,
muito fraco para manter unida à casa Dou'Urdem e confrontar as conseqüências de nosso fracasso, de seu fracasso. Malícia quis rir da estupidez de sua filha. Os látegos
de serpentes eram um presente pessoal da rainha aranha e não podiam utilizar-se contra as mães matronas. Entretanto, sem saber o motivo, Malícia não teve naquele
momento a coragem nem a convicção para refutar as pretensões da Briza. Permaneceu como hipnotizada enquanto Briza jogava o braço para trás e descarregava a chicotada.
As seis cabeças de serpente se desenrolaram para Malícia. Era impossível! Ia contra todos os princípios da doutrina do Lloth! As cabeças avançaram ansiosas, e as
presas se afundaram na carne de Malícia impulsionados por toda a fúria da rainha aranha. Uma dor indescritível percorreu o corpo de Malícia, que se retorceu como
uma folha entre as chamas, e a deixou envolta em um intumescimento gelado. Malícia se cambaleou no bordo da consciência, em um intento por manter-se firme ante
sua
filha, disposta a lhe demonstrar a inutilidade e a estupidez de seguir o ataque. O látego estalou outra vez, e o chão se elevou para engolir à mãe matrona. Malícia
ouviu que Briza murmurava umas palavras, possivelmente uma maldição ou uma oração à rainha aranha. Depois chegou o terceiro açoite, e as trevas rodearam a Malícia.
Estava morta antes do quinto golpe, mas Briza a açoitou durante um bom momento, descarregando toda sua fúria para que a reina aranha soubesse que a casa Dou'Urdem
tinha castigado o fracasso da mãe matrona. Quando Dinin entrou de repente e sem chamar na hall, encontrou a Briza instalada no trono de pedra. O filho maior jogou
um olhar ao machucado cadáver da mãe, depois a Briza, e a seguir sacudiu a cabeça em um gesto de incredulidade enquanto um amplo sorriso lhe iluminava o rosto.
--O que tem feito, her..., matrona Briza? --perguntou Dinin, que se apressou a corrigir o deslize antes de que Briza pudesse reagir. --O zin-Carla fracassou --grunhiu
Briza, com um olhar furioso. Lloth não podia aceitar mais a Malícia. A gargalhada sarcástica do Dinin foi como uma punhalada nas vísceras da Briza. Entrecerró
os olhos e deixou que Dinin visse como movia a mão para o punho do látego. --escolheste o momento ideal para a ascensão --explicou-lhe tranqüilamente o filho maior,
ao parecer muito pouco preocupado pela ameaça da Briza. Atacam-nos. --Fey-Branche? --gritou Briza, que abandonou o trono, entusiasmada. Cinco minutos como mãe
matrona e já se enfrentava à primeira prova. Demonstraria seu valor à rainha aranha e redimiria à casa Dou'Urdem do dano causado pelos fracassos de Malícia. --Não,
irmã --respondeu Dinin com toda franqueza. Não é a casa FeyBranche. O tom frio do irmão fez que Briza voltasse a sentar-se no trono e que o sorriso de entusiasmo
se transformasse em uma expressão de temor. --Baenre --acrescentou Dinin, muito sério. Vierna e Maia contemplaram do balcão da casa Dou'Urdem o avanço das forças
ao outro lado dos portões de adamantita. As irmãs, a diferença do Dinin, não conheciam inimigo; mas ao ver a tropa tão numerosa, compreenderam que devia ser alguma
das casas grandes. De todos os modos, a casa Dou'Urdem contava com duzentos e cinqüenta soldados, muitos deles treinados pelo Zaknafein em pessoa. Com o reforço
de outros duzentos veteranos bem armados cedidos pela matrona Baenre, Vierna e Maia chegaram à conclusão de que havia um equilíbrio de forças. Demoraram muito pouco
em planejar as estratégias defensivas, e Maia passou uma perna por cima da balaustrada, para baixar ao pátio e comunicar as ordens aos capitães. Certamente, quando
ela e Vierna advertiram de repente que já tinham a duzentos inimigos dentro da casa --os soldados oferecidos pela matrona Baenre-- seus planos eram inúteis. Maia
ainda cavalgava sobre a balaustrada quando os primeiros soldados Baenre subiram ao balcão. Vierna empunhou o látego e gritou a Maia que fizesse o mesmo. Mas Maia
não se moveu e Vierna, ao olhá-la com atenção, viu vários dardos pequenos cravados no corpo de sua irmã. de repente, as cabeças de serpente de seu próprio látego
se voltaram contra ela, e, ao sentir a espetada das presas nas bochechas, Vierna soube que a queda da casa Dou'Urdem tinha sido ordenada pela própria Lloth. --O
zin-Carla --murmurou Vierna, ao descobrir a causa do desastre. O sangue lhe nublou a visão, e se cambaleou enjoada enquanto a envolvia a escuridão. --Isto é impossível!
--gritou Briza. A casa Baenre nos ataca? Lloth não me deu... --Tivemos nossa oportunidade! --vociferou Dinin. Zaknafein foi nossa oportunidade... --Dinin olhou
o corpo destroçado da mãe. E devo supor que o espectro fracassou. Briza grunhiu e lançou um açoite. Dinin esperava o golpe --conhecia sua irmã muito bem-- e se
separou do alcance da arma. Briza avançou um passo. --Acaso sua ira necessita mais inimigos? --perguntou-lhe Dinin, com as espadas desembainhadas. Sal ao balcão,
querida irmã, onde encontrará a um milhar
te esperando. Briza soltou um grito de frustração e, voltando as costas ao Dinin, abandonou a hall depressa, com a esperança de poder salvar algo desta terrível
situação. Dinin não a acompanhou. agachou-se sobre o corpo da matrona Malícia e olhou por última vez os olhos da tirana que tinha regido toda sua vida. Malícia tinha
sido uma figura poderosa, segura e maligna, mas que frágil tinha resultado ser seu poder, destruído pelas travessuras de um menino renegado! O filho maior ouviu
gritos no corredor, seguidos do estrondo das portas da hall ao abrir-se de par em par. Dinin não precisou olhar para saber que era o inimigo. Manteve o olhar na
mãe morta, consciente de que não demoraria para correr a mesma sorte. Mas a estocada não chegou e, depois de uns momentos de agonia, Dinin se atreveu a espiar por
cima do ombro. Jarlaxle ocupava o trono de pedra. --Não te surpreende? --perguntou-lhe o mercenário ao ver que Dinin não se alterava. --Brigam D'aerthe estava entre
as tropas Baenre, possivelmente constituía toda a tropa Baenre --respondeu Dinin, sem alterar-se. Olhou de esguelha à dúzia ou mais de soldados que acompanhavam
ao Jarlaxle, e se perguntou se poderia chegar à líder mercenário antes de que o matassem. Acabar com a vida do traidor Jarlaxle seria ao menos uma compensação pelo
desastre. --É muito observador --disse Jarlaxle. Tinha a suspeita de que sabia do primeiro momento que sua casa estava condenada. --Se fracassava o zin-Carla --particularizou
Dinin. --E você sabia que fracassaria, verdade? Pergunta-a do mercenário não necessitava resposta. Dinin assentiu. --Há dez anos --manifestou Dinin, sem saber muito
bem por que o comentava ao Jarlaxle. Quando presenciei o sacrifício do Zaknafein à rainha aranha. Nunca na história do Menzoberranzan se viu maior desperdício.
--O professor de armas da casa Dou'Urdem gozava de uma grande reputação -- assinalou o mercenário. --E bem merecida --assinalou Dinin. Então Drizzt, meu irmão...
--Outro grande guerreiro. Dinin assentiu uma vez mais. --Drizzt desertou quando tínhamos a guerra em nossa porta. O engano da matrona Malícia foi imperdoável. Então
soube que a casa Dou'Urdem estava condenada. --Sua casa derrotou à casa Hun'ett, que não quer dizer pouco --recordou-lhe Jarlaxle. --Só com a ajuda de Brigam D'aerthe
--replicou Dinin. Durante quase toda minha vida observei como a casa Dou'Urdem, sob a guia da matrona Malícia, escalava posições na hierarquia da cidade. Nosso
poder e influência crescia ano detrás ano. Entretanto, ao longo da última década, vi como nos afundávamos. Vi como se derrubavam os alicerces da casa Dou'Urdem.
Era lógico supor que também se afundaria a estrutura. --É tão sensato como hábil com a espada --comentou o mercenário. Essa era a opinião que me merecia, e ao
parecer acredito que não me equivocava. --Se te agradei, peço-te um favor --disse Dinin, ficando de pé. Conceda-me isso se quiser. --Que lhe mate depressa e sem
dor? --perguntou Jarlaxle com um amplo sorriso. Dinin assentiu pela terceira vez. --Não --respondeu Jarlaxle.
Surpreso pela resposta, Dinin desembainhou a espada disposto a forçar os acontecimentos. --Não tenho a intenção de te matar --explicou Jarlaxle. Dinin manteve a
espada
em alto e observou o rosto do mercenário, tratando de adivinhar seus propósitos. --Sou um dos nobres da casa --assinalou Dinin. Uma testemunha do ataque. A eliminação
de uma casa não é completa se ficar vivo algum de seus nobres. --Uma testemunha? --Jarlaxle soltou uma gargalhada. Contra a casa Baenre? Do que serviria? Dinin
baixou a espada. --Então, qual será meu destino? --perguntou. A matrona Baenre me acolherá entre os seus? O tom do Dinin indicava o pouco entusiasmo que lhe provocava
esta possibilidade. --A matrona Baenre não necessita varões --respondeu Jarlaxle. Se tiver sobrevivido alguma de suas irmãs..., e acredito que é o caso da Vierna...,
é provável que acabe na capela da matrona Baenre. Mas a anciã mãe matrona da casa Baenre nunca apreciará o valor de um varão como Dinin. --Então, o que? --perguntou
este. --Eu aprecio seu valor --declarou Jarlaxle com tom despreocupado, ao tempo que assinalava aos soldados presentes na hall. --Brigam D'aerthe? --protestou Dinin.
Eu, um nobre, convertido em um rufião? Com a velocidade do raio, Jarlaxle lançou uma adaga contra o cadáver a seus pés. A lâmina se afundou até o punho nas costas
de Malícia. --Um rufião ou um cadáver --disse lacónicamente Jarlaxle. A escolha não era difícil. Uns poucos dias mais tarde, Jarlaxle e Dinin se encontravam outra
vez diante das destroçadas portas da casa Dou'Urdem. Em outros tempos se levantaram fortes e orgulhosas, com suas intrincadas talhas de aranhas e as duas formidáveis
estalagmites que serviam de torres de guarda. --Que mudança tão rápida --comentou Dinin. Vejo toda minha vida anterior e entretanto já não existe. --te esqueça
do passado --sugeriu Jarlaxle. A piscada ardilosa do mercenário indicou ao Dinin que lhe tinha preparado algo especial. Exceto daquilo que possa te ajudar no futuro.
Dinin olhou para as ruínas e depois a si mesmo. --De minha equipe de combate? --perguntou, sem saber a que se referia o mercenário. Minha preparação? --De seu
irmão. --Drizzt? Uma vez mais aparecia o nome maldito para angustiar ao Dinin! --Se não me equivocar, ainda está por resolver o assunto do Drizzt Dou'Urdem -- explicou
Jarlaxle. Tem um grande valor aos olhos da rainha aranha. --Drizzt? --repetiu Dinin, sem dar crédito às palavras do Jarlaxle. --A que vem tanta surpresa? --sentiu
saudades o mercenário. Seu irmão segue vivo. O que outro motivo havia para a destruição da casa Dou'Urdem e a morte da matrona Malícia? --O que outra casa poderia
estar interessada nele? --perguntou Dinin, diretamente. Outra missão para a matrona Baenre? A gargalhada do Jarlaxle desconcertou ao Dinin. --Brigam D'aerthe pode
atuar sem a guia... ou a bolsa de uma casa nobre --
respondeu. --Pensa capturar a meu irmão? --Poderia ser a oportunidade perfeita para que Dinin demonstrasse seu valor a minha pequena família --manifestou Jarlaxle,
sem dirigir-se a ninguém em particular. Quem melhor para apanhar ao renegado que conduziu a desgraça da casa Dou'Urdem? O valor de seu irmão se centuplicou com
o fracasso do zin-Carla. --Vi no que se converteu Drizzt --disse Dinin. O custo será muito alto. --Meus recursos são ilimitados --afirmou Jarlaxle, pago de si
mesmo--, e nenhum custo é muito alto se o ganho ainda é maior. O excêntrico mercenário permaneceu em silencio por uns instantes, enquanto Dinin contemplava as ruínas
de sua casa. --Não --disse Dinin, sem mais. Jarlaxle o olhou com receio. --Não irei detrás do Drizzt --explicou Dinin. --Serve ao Jarlaxle, o chefe de Brigam D'aerthe
--recordou-lhe o mercenário com voz tranqüila. --Como em outros tempos servi a Malícia, matrona da casa Dou'Urdem -- replicou Dinin com a mesma tranqüilidade.
Não persegui o Drizzt quando me ordenou isso minha mãe --declarou olhando ao Jarlaxle à cara, sem ter medo às conseqüências-- e tampouco o farei por ti. Jarlaxle
estudou a seu companheiro durante um bom momento. Normalmente, o chefe mercenário não teria tolerado uma insubordinação tão descarada, mas não havia nenhuma dúvida
da sinceridade e firmeza do Dinin. Jarlaxle o tinha aceito em Brigam D'aerthe porque valorava a experiência e a capacidade do filho maior; agora não podia rechaçar
seus julgamentos. --Posso ordenar que submetam a uma morte lenta --disse Jarlaxle, mais que nada por ver a reação do Dinin à ameaça. Não tinha intenção de matar
a alguém tão valioso. --Não será pior que a morte e a desonra que sofreria à mãos do Drizzt -- afirmou Dinin, sem perder a calma. Transcorreu outra larga pausa enquanto
Jarlaxle pensava nas implicações das palavras do Dinin. Possivelmente Brigam D'aerthe teria que replantear seus planos de capturar ao renegado; talvez depois de
todo o custo poderia ser muito alto. --Vêem, soldado --disse por fim Jarlaxle. Retornemos a nosso lar, às ruas, onde possivelmente possamos descobrir que aventuras
nos reserva o futuro.
26
Luz no teto
Belwar correu pelas passarelas para ir reunir se com seu amigo. Drizzt nem sequer o advertiu. ajoelhou-se na ponte estreita, com o olhar posto nas fervuras que se
produziam na superfície do lago verde no ponto onde tinha cansado Zaknafein. No meio do ácido fumegante, apareceu a queimada punho de uma espada para desaparecer
imediatamente debaixo do opaco véu verde. --Estava ali todo o tempo --sussurrou- Drizzt ao Belwar. Meu pai. --Arriscaste-te muitíssimo, elfo escuro --respondeu
o capataz. Magga cammara! Quando embainhou as cimitarras, acreditei que acabaria contigo. --Estava ali todo o tempo --repetiu Drizzt. Olhou a seu amigo svirfnebli.
Você me ensinou isso. No rosto do Belwar apareceu um olhar de estranheza. --O espírito não pode ser separado do corpo --disse Drizzt, em um esforço por explicar-se.
Não enquanto vive. --Olhou os ondulações na superfície do lago de ácido. Nem tampouco nos não mortos. Durante os anos de solidão que passei nas profundidades,
cheguei a acreditar que me tinha perdido mesmo. Mas você me ensinou a verdade. O coração do Drizzt nunca abandonou este corpo, assim que o mesmo era válido para
o Zaknafein. --Esta vez havia outras forças envoltas --assinalou Belwar. Eu não teria estado tão seguro. --Você não conhecia o Zaknafein --replicou Drizzt. ficou
de pé, e o sorriso que lhe iluminou o rosto diminuiu a dor de seus chorosos olhos. Eu sim. É o espírito e não os músculos o que guia a espada de um guerreiro,
e só aquele que era de verdade Zaknafein podia mover-se com tanta graça. O momento de crise deu ao Zaknafein a força para opor-se à vontade de minha mãe. --E você
lhe proporcionou o momento de crise --raciocinou Belwar. Derrota à matrona Malícia ou arbusto a seu próprio filho. --Belwar sacudiu a calva cabeça e franziu o
nariz. Magga cammara, é muito valente, elfo escuro! --Lhe piscou os olhos um olho e acrescentou--: Ou muito estúpido. --Nenhuma coisa nem a outra --repôs o drow.
Só confiava no Zaknafein. Olhou outra vez o lago de ácido e não disse nada mais. Belwar permaneceu em silêncio e esperou pacientemente a que seu amigo acabasse sua
apologia privada. Quando por fim Drizzt deixou de olhar o lago, Belwar lhe indicou que o seguisse e pôs-se a andar para a saída. --Vêem --disse-lhe o capataz por
cima do ombro. Tem que ver o aspecto real de nosso amigo morto. Drizzt pensou que o pek era formoso, com o sorriso beatífica que por fim tinha aparecido no atormentado
rosto do amigo. Belwar e ele pronunciaram umas poucas palavras, murmuraram orações aos deuses que pudessem ter os peks, e entregaram o corpo do Clak ao lago de ácido,
para que não acabasse nos estômagos dos
comilões de carniça que rondavam pelos túneis da Antípoda Escura. Os dois amigos reataram outra vez a marcha sozinhos, como tinham feito ao deixar a cidade svirfnebli,
e chegaram ao Blingdenstone ao cabo de uns poucos dias. Os guardas apostados nas enormes leva da cidade se mostraram sentidos saudades ante sua volta, embora não
por isso menos alegres de poder vê-los sãs e salvos. Permitiram-lhes passar depois de que o capataz prometesse que iria ver o rei Schnicktick imediatamente. --Esta
vez, poderá ficar --disse Belwar ao Drizzt. Você acabou com o monstro. Deixou ao Drizzt em sua casa, jurando que não demoraria para voltar com boas notícias.
Drizzt não compartilhava o otimismo de seu amigo. Não podia esquecer a advertência final do Zaknafein referente a que a matrona Malícia jamais abandonaria a perseguição,
porque era verdade. Tinham ocorrido muitas coisas nas semanas que ele e Belwar tinham estado ausentes do Blingdenstone, mas nenhuma delas, ao menos a seu julgamento,
diminuía a ameaça contra a cidade svirfnebli. Drizzt tinha aceito acompanhar ao Belwar só porque lhe parecia o mais adequado para pôr em prática seu novo plano.
--Até quando teremos que lutar, matrona Malícia? --perguntou-lhe Drizzt à parede de pedra quando o capataz deixou a casa. Precisava escutar seus pensamentos em voz
alta para convencer-se a si mesmo de que tinha tomado a decisão correta. Ninguém ganha neste duelo, mas assim é como atuam os drows, verdade? O drow se sentou
em um dos tamboretes junto à mesa pequena e pensou na validez de suas palavras. --Perseguirá-me até que um dos dois esteja morto, cegada pelo ódio que rege sua vida.
Não pode haver perdão no Menzoberranzan. Iria contra os decretos de sua repugnante rainha aranha. "E esta é a Antípoda Escura, seu mundo de sombras e tristezas,
mas este não é todo mundo, matrona Malícia, e me proponho descobrir até onde pode chegar sua maligna mão. Drizzt permaneceu em silencio durante muito tempo, recordando
as primeiras lições na Academia drow. Tentava procurar algumas pistas que lhe permitissem acreditar que as histórias referentes ao mundo da superfície só eram patranhas.
As mentiras nas lições da Academia drow tinham sido aperfeiçoadas ao longo dos séculos, e resultava impossível encontrar uma falha. O drow não demorou para compreender
que teria que confiar em seus sentimentos. Quando Belwar retornou à casa, com ar sombrio, o jovem já tinha tomado uma decisão. --Cabezotas, miolos de orco... --resmungou
o capataz enquanto cruzava a porta de pedra. Drizzt o deteve com uma sonora gargalhada. --Não querem nem ouvir falar de que fique! --chiou Belwar, molesto pela brincadeira.
--De verdade esperava outra coisa? --perguntou-lhe Drizzt. Minha luta ainda não acabou, querido Belwar. Pensava que a minha família a pode derrotar com tanta facilidade?
--Iremos daqui --grunho Belwar. Agarrou um tamborete e se sentou junto ao companheiro. Meu generoso... --pronunciou a palavra com sarcasmo-- rei permite que fique
uma semana na cidade. Uma semana! --Quando for, irei sozinho --interrompeu-o Drizzt. Tirou a estatueta de ônix da bolsa e emendou suas palavras--: Quase sozinho.
--Já discutimos antes o tema --recordou-lhe o pequeno. --Aquilo era outra coisa. --Era-o? --replicou o capataz. É que agora está em melhores condicione
que antes para sobreviver a sós nas profundidades da Antípoda Escura? esqueceste o risco da solidão? --Não estarei na Antípoda Escura --manifestou Drizzt. --Acaso
pensa voltar com sua gente? --gritou Belwar, tão surpreso e fora de si, que ficou de pé e lançou o tamborete contra a parede. --Não, nunca! --respondeu Drizzt,
com uma gargalhada. Nunca mais voltarei para o Menzoberranzan a menos que me levem sujeito pelas cadeias da matrona Malícia. O capataz procurou o tamborete e se
sentou, intrigado. --Tampouco ficarei na Antípoda Escura --explicou Drizzt. Este é o mundo de Malícia, mais adequado para o negro coração de um autêntico drow.
Belwar intuiu os propósitos do companheiro, mas não podia dar crédito a seus ouvidos. --De que falas? --perguntou. Aonde pretende ir? --À superfície --respondeu
Drizzt muito tranqüilo. Belwar voltou a levantar-se e esta vez o tamborete voou ainda mais longe. --Já estive ali uma vez --acrescentou Drizzt, sem alterar-se pelo
comportamento do Belwar. Participei de uma incursão drow que acabou em uma massacre. Recordar as ações de meus companheiros ainda me produz uma dor muito profunda.
Os aromas do mundo da superfície e a frescura do vento não me assustam. --A superfície --murmurou Belwar, com a cabeça encurvada e a voz convertida em um gemido.
Magga cammara, nunca me ocorreu ir ali. Não é lugar para um svirfnebli. --de repente Belwar descarregou um murro contra a mesa e olhou a seu companheiro, com um
sorriso decidido. Mas se Drizzt for, então Belwar estará a seu lado. --Drizzt irá sozinho --replicou o drow. Como você mesmo acaba de dizer, a superfície não
é lugar para um svirfnebli. --Nem para um drow --assinalou o pequeno. --Não encaixo no que se supõe que é um drow --replicou Drizzt. Meu coração não é o seu, nem
sua casa é a minha. Até quando terei que percorrer os túneis para ver-me livre do ódio de minha família? E se, ao escapar do Menzoberranzan, tropeço com alguma das
outras grandes cidades dos elfos escuros, Ched Nasad ou qualquer das demais, não se somarão à caça para cumprir os desejos da rainha aranha que quer minha cabeça?
Não, Belwar, não encontrarei paz debaixo dos tetos deste mundo fechado. Você, em troca, nunca seria feliz afastado da pedra da Antípoda Escura. Seu lugar está aqui,
um lugar de honra entre sua gente. Belwar permaneceu em silêncio um bom momento, digiriendo tudo o que Drizzt havia dito. Teria seguido a seu amigo ao fim do mundo
se ele o tivesse desejado, mas de verdade não queria abandonar a Antípoda Escura. Tampouco podia opor-se às intenções do Drizzt. Um elfo escuro poderia passar muitas
penúrias na superfície, mas seriam mais terríveis que os sofrimentos que lhe aguardavam na Antípoda Escura? O svirfnebli colocou uma mão no bolso e tirou o broche
luminoso. --Leva-o contigo, elfo escuro --disse com voz suave, lançando-lhe e não se esqueça de mim. --Nem por um só dia dos séculos que me toquem viver --prometeu
o drow. Nenhum sozinho. A semana transcorreu muito rápida para o Belwar, que não queria ver partir a seu amigo. O capataz sabia que nunca mais voltaria a ver o
Drizzt, mas compreendia a sensatez da decisão. Como correspondia a um amigo, Belwar assumiu a responsabilidade de abastecer ao Drizzt. Levou-o aos melhores artesãos
do Blingdenstone e pagou as provisões de seu próprio bolso.
Depois Belwar lhe fez um presente ainda mais valioso. Os pequenos tinham viajado à superfície em algumas ocasione, e o rei Schnicktick possuía mapas onde apareciam
os túneis de saída da Antípoda Escura. --A viagem te levará várias semanas --disse-lhe Belwar, enquanto lhe entregava o pergaminho--, mas acredito que nunca encontraria
o caminho sem isto. Ao Drizzt tremeram as mãos quando desenrolou o mapa. Agora sim que era verdade. Chegaria à superfície. Naquele instante teve o desejo de lhe
pedir ao Belwar que o acompanhasse; como podia lhe dizer adeus a um amigo tão querido? Mas os princípios lhe tinham permitido chegar até ali, e esses mesmos princípios
lhe exigiam que não fora egoísta. Abandonou Blingdenstone ao dia seguinte, com a firme promessa de que, se algum dia retornava a Antípoda Escura, iria visitar o.
Os dois sabiam que nunca mais voltariam a ver-se. Os quilômetros e os dias passaram sem incidentes. Algumas vezes Drizzt empregava o broche mágico que lhe tinha
agradável Belwar; outras caminhava na escuridão. Já fosse por coincidência ou sorte, não encontrou nenhum monstro na rota assinalada no mapa. Poucas coisas trocavam
na Antípoda Escura, e, embora o pergaminho era muito antigo, não tinha dificuldades para seguir suas orientações. Ao trigésimo terceiro dia de marcha, pouco depois
de levantar o acampamento, Drizzt notou uma mudança no ar, uma sensação que antecipava a frescura do vento da superfície que recordava com tanta claridade. Procurou
a estatueta de ônix e chamou o Guenhwyvar. Juntos caminharam ansiosos, atentos a que o teto desaparecesse atrás da próxima curva. Chegaram a uma pequena cova, e
a escuridão além da saída não era tão intensa como a que tinham detrás. Drizzt conteve o fôlego e guiou ao Guenhwyvar ao exterior. As estrelas brilhavam entre as
rasgadas nuvens do céu noturno, chapeada-a luz da lua aparecia como um resplendor mortiço detrás de um nubarrón, e o vento uivava uma canção montanhesa. Drizzt se
encontrava nas alturas dos Reino, na ladeira de uma das montanhas mais altas de uma cordilheira gigantesca. Não o incomodava o açoite do vento, e permaneceu imóvel
durante muito momento com o olhar posto nas nuvens, que voavam silenciosas para a lua.
R. A. Salvatore
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