Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O EXPRESSO DO ORIENTE / Graham Greene
O EXPRESSO DO ORIENTE / Graham Greene

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O EXPRESSO DO ORIENTE

 

O comissário pegou o último cartão de desembarque e ficou olhando os passageiros atravessarem o cais cinzento e molhado, por cima de um emaranhado de trilhos e chaves, em volta de truques abandonados. Iam com as golas dos casacos levantadas e os ombros encolhidos; nas mesas dos vagões compridos as lâmpadas estavam acesas, brilhando através da chuva como um colar de contas azuis. Um guindaste gigantesco girava e descia, e o barulho do guincho abafou por um momento os ruídos constantes da água, água caindo do céu nublado, água batendo nos costados do canal e do cais. Eram quatro e meia da tarde.

— Um dia de primavera, meu Deus — disse o comissário em voz alta, procurando livrar-se das impressões das últimas horas, o convés encharcado, o cheiro de vapor e óleo e cerveja choca do bar, o farfalhar de seda preta enquanto a camareira andava de um lado para outro, carregando bacias de metal.

Ele olhou para cima, pelas lanças do guindaste, para a plataforma e a figurinha de macacão azul virando uma grande roda, e sentiu uma inveja desusada. O condutor lá em cima estava separado por 10 metros de névoa e chuva do comissário,dos passageiros, o comprido expresso iluminado. Não consigo livrar-me de suas malditas caras, pensou o comissário, lembrando-se do jovem judeu de pesado casaco de peles, que reclamara por que lhe haviam dada um camarote com dois leitos; por duas míseras horas, apenas.

Ele disse à última passageira da segunda classe:

— Por aí não, senhorita. O galpão da alfândega fica ali.—Seu mau humor cedeu um pouco ao ver aquele rosto jovem e desconhecido; aquela não tinha feito reclamações. — Não quer um carregador, senhorita?

— Não, obrigada — disse ela. — Não entendo o que eles falam. Não está pesada. — Ela fez uma careta para ele, por sobre sua capa de chuva branca, barata. — A não ser que queira carregá-la, Comandante. —A petulância dela o encantou.

—Ah, se eu fosse mocinho, nesse momento você não estaria precisando de carregador. Não sei aonde é que vão parar. — Ele sacudiu a cabeça, vendo o judeu sair da alfândega, abrindo caminho no meio dos trilhos com seu sapatos de camurça cinza acompanhado por dois carregadores cheios de malas. — Vai para longe?

—Até o fim — disse ela, olhando infeliz, por cima dos trilhos, as pilhas de bagagem, as lâmpadas acesas no vagão-restaurante, para os vagões escuros, à espera.

— Tem leito?

— Não.

—Devia ir de leito—disse ele—se vai até o fim, assim. Três noites no trem. Não é brincadeira. Afinal, para que é que quer ir para Constantinopla? Vai se casar?

— Não que eu saiba. — Ela riu-se um pouco, no meio da melancolia da partida e o receio do mundo estranho. — Nunca se sabe, não é?

— Trabalhar?

— Dança. Teatro de revista.

Ela despediu-se e deu-lhe as costas. A capa de chuva revelava a magreza do corpo que, mesmo tropeçado no meio dos trilhos e dormentes, conservava sua naturalidade. Uma luz sinalizadora passou de vermelho a verde e ouviu-se um longo apito de vapor, por um tubo de escape. O rosto dela, simples e picante, o jeito audacioso e deprimido ficaram em sua mente.

— Lembre-se de mim — gritou ele para ela. — Tornarei a vê-la daqui a um ou dois meses.

Mas sabia que não se lembraria dela; nas semanas seguintes, haveria caras demais espiando pelajanelinha de seu gabinete, querendo um camarote, querendo trocar dinheiro, querendo um beliche, para que ele se lembrasse de uma pessoa, e não havia nada de notável nela.

Quando voltou para bordo, os conveses já estavam lavados para a viagem de volta e ele sentiu-se mais contente, ao ver o vapor sem estranhos. Era assim que ele gostaria que as coisas fossem sempre: alguns gringos a quem dar ordens, na língua deles, uma camareira com quem tomar uma cerveja. Ele grunhiu para os marinheiros em francês e eles riram para ele, cantando uma canção obscena de um cocu que fez sua alma familiar e gorducha arrepiar-se um pouco de inveja.

— Má travessia — disse ele em inglês para o camareiro. O sujeito fora garçom em Londres e o comissário nunca falava mais francês do que o estritamente necessário. — Aquele judeu — disse ele — deu-lhe uma boa gorjeta?

O que é que acha? Seis francos.

— Ele enjoou?

— Não. O velho de bigode, esse enjoou o tempo todo. E quero dez francos. Ganhei a aposta. Ele era inglês.

— Sem essa. Tinha um sotaque fortíssimo.

— Vi o passaporte dele. Richardjohn. Professor.

— Engraçado — disse o comissário.

E era engraçado mesmo, pensou ele de novo, pagando os dez francos com relutância e vendo, mentalmente, o homem cansado e apagado, de capa de chuva, afastando-se da amurada do navio, enquanto a prancha de desembarque se levantava e as sirenes tocavam para uma brecha nas nuvens. Ele tinha pedido um jornal, um vespertino. Ainda não teriam sido publicados em Londres àquela hora, disse-lhe o comissário, e quando ele ouviu a resposta, ficou ali num devaneio, mexendo nos bigodes grisalhos e compridos. Enquanto o comissário servia uma cerveja para a camareira, antes de examinar as contas, ele tornou a pensar no professor, imaginando momentaneamente se alguma coisa o estava perturbando, se ele estava vivendo algum drama pessoal, algo digno de uma matéria de jornal. Também ele não reclamara de nada, e por isso era mais fácil esquecê-lo do que ao jovem judeu, o grupo de turistas de Cooks’s, a mulher de lilás, doente, que tinha perdido um anel, o velho que pagara duas vezes pelo leito. A moça já tinha sido esquecida meia hora antes. Foi esta a primeira coisa que ela partilhou com Richardjohn — sob o barulho dos passos, o cheiro de óleo, as luzes de sinais que piscavam, caras preocupadas, o tilintar de copos, filas de algarismos — um escuro na mente do comissário.

O vento passou, por dez segundos, e a fumaça que soprava para trás e para frente no cais e nos quilômetros de metal em rajadas rápidas pairou, por esse tempo, no meio do ar. Para Myatt, a fumaça parecia formar barracas cinzas de nômades, enquanto ele caminhava com cuidado no meio da lama. Esqueceu-se de que seus sapatos de camurça estavam estragados, que o funcionário da alfândega se mostrara impertinente por causa de dois pijamas de seda. Escapando à grosseria e ao desprezo do homem, às sílabas ”Juif, Juif’, ele entrou na sombra daquelas grandes barracas. Ali, por um momento, ele estava em casa e não precisava mais de se lembrar de seu casaco de pele, seu terno de Savile Row, em Londres, seu dinheiro ou posição na firma para animá-lo. Mas quando chegou ao trem, o vento encorpou, as barracas de vapor desarmaram-se, e ele estava de novo no centro de um mundo hostil.

Mas reconhecia com gratidão tudo o que o dinheiro pode comprar. Nem sempre podia comprar a cortesia, mas comprara a rapidez. Ele foi o primeiro a passar pela alfândega e, antes de chegarem os outros passageiros, poderia arrumar com o condutor uma cabina com leito. Tinha horror de se despir defronte de outro homem, mas sabia que aquilo lhe custaria mais por ser ele judeu; não seria apenas um pedido e uma gorjeta. Ele passou pelas vidraças iluminadas do vagão-restaurante, pequenos abajures lilás brilhando sobre as toalhas já postas para o jantar. ”Ostende — Colônia—Viena — Belgrado — Istambul.” Ele passou pela fila de nomes sem sequer olhar; o caminho era conhecido, os nomes andavam para trás, ao nível dos olhos dele, como torres de minaretes, cúpulas ou domos das próprias cidades, sem oferecer uma instalação definitiva para um da raça dele.

O condutor, conforme ele esperava, mostrou-se insolente. O trem estava lotado, disse ele, embora Myatt soubesse que estava mentindo. O mês de abril ainda era muito cedo no ano para os vagões estarem cheios, e ele vira poucos passageiros de primeira classe no vapor do Canal. Enquanto ele discutia, um punhado de turistas apareceu andando pelo corredor, senhoras de meia-idade agarrando xales e mantas e cadernos de desenho, um velho clérigo reclamando que tinha perdido seu Wide World Magazine—Sempre leio o Wide World quando viajo — e, atrás de todos, suando, amável no meio das tripulações, o guia deles, com distintivo da agência.

— Voilà — disse o condutor, parecendo indicar com um gesto que seu trem estava suportando uma carga desusada e cruel.

Mas Myatt conhecia aquele percurso bem demais para poder ser iludido. O grupo, ao que ele pôde deduzir pelo seu aspecto culto e atrapalhado, pertencia ao vagão de baldeação para Atenas. Quando ele dobrou a gorjeta, o condutor cedeu e colou um aviso de reservado na vidraça da cabina. Com um suspiro de alívio, Myatt viu-se sozinho.

Ficou olhando no mar de rostos, isolado por uma segura parede de vidro. Mesmo através do casaco de peles sentiu o frio úmido do dia, e quando girou a roda do aquecimento, seu hálito obscureceu a vidraça, de modo que em breve ele só via, dos que passavam, feições desconexas, um olho irritado que o espiava, um vestido de seda lilás, um colarinho de padre. Só uma vez ele se sentiu tentado a romper essa solidão crescente e limpar a vidraça com os dedos a tempo de vislumbrar uma moça magra de capa de chuva branca desaparecendo pelo corredor em direção à segunda classe. Uma vez abriram a porta e um senhor idoso olhou para dentro. Tinha bigodes grisalhos, usava óculos e um chapéu mole e surrado. Myatt lhe disse, em francês, que a cabina estava ocupada.

— Um lugar — disse o homem.

— Está procurando a segunda classe? — perguntou Myatt, mas o homem sacudiu a cabeça e afastou-se.

O Sr. Opie afundou no canto, sentindo-se num luxo, e olhou, curioso e desapontado, para o homenzinho pálido diante dele. O homem tinha um aspecto extraordinariamente comum; as doenças haviam estragado a pele dele. Nervoso, pensou o Sr. Opie, olhando os dedos agitados do homem, mas eles não demonstravam qualquer outro sintoma de sensibilidade. Eram curtos, rombudos e grossos.

— Sempre achei — disse o Sr. Opie, imaginando se teria tido pouca sorte com o companheiro — que, quando não se consegue um leito, é desnecessário viajar de primeira classe. Esses vagões de segunda classe são extremamente confortáveis.

— É... isso mesmo... é, sim — respondeu o outro, com vivacidade. — Mas como é que sabia que eu sou inglês?

— Tenho o costume — disse o Sr. Opie, com um sorriso — de sempre pensar o melhor das pessoas.

— Claro — disse o homem pálido — o senhor, como padre... Osjornaleiros estavam gritando do lado de fora dajanela, e o Sr.

Opie debruçou-se para fora.

— Les Temps de Londres. Qu’est que c’est que çaf Rien du tout? Le Matin et un Daly Mail. C’est bon. Mera. — O francês dele pareceu ao outro cheio de frases de caderno cheio de exercícios, usadas com vontade e sem exatidão. — Combien est cela? Trois franes. Oh, la-la.

Ao homem de cara pálida ele disse:

— Posso interpretar para o senhor? Há algum jornal que deseje? Não tem importância se quiser La Vie.

—Ah, nada, nada, obrigado. Trouxe um livro. O Sr. Opie olhou para o relógio.

— Daqui a três minutos partiremos.

Durante vários minutos, ela teve medo de que ele fosse falar, ou então a mulher alta e magra, mulher dele. No momento, era o silêncio o que ela mais desejava. Se eu pudesse pagar um leito, pensou, estaria sozinha? Naquele vagão escuro as luzes se acenderam e o gorducho comentou:

—Agora não vai demorar.

O ar estava cheio de pó e umidade, e o piscar das luzes do lado de fora lembraram-lhe, por um momento, coisas conhecidas: as luzes dos cartazes brilhando e mudando sobre o teatro em Nottingham High Street. O rebuliço de vida, a passagem dos carregadores e jornaleiros, por um momento, lhe lembraram o mercado, e ela agarrou-se a essa recordação, procurando exteriorizar sua mente, construir com tijolos e armar as barracas, até elas terem tanta realidade quanto o cais lavado pela chuva, as luzes de avisos que mudavam a cada instante. Então o homem falou com ela e ela foi obrigada a sair de seu mundo oculto e adotar uma pose de alegria e coragem.

—Bem, senhorita, temos uma longa viagem juntos pela frente. Que tal darmos os nossos nomes. O meu é Peters, e esta é a minha mulher, Amy.

— O meu é Coral Musker.

— Peça um sanduíche para mim — implorou a mulher. — Estou com tanta fome que se pode ouvir o meu estômago roncar.

— Podia fazer o favor, senhorita? Não sei a língua.

E por que, ela teve vontade de dizer-lhe, o senhor pensa que eu conheço? Nunca saí da Inglaterra. Mas ela se disciplinara de tal modo a aceitar a responsabilidade onde quer que aparecesse, e sob a forma que viesse, que não protestou, abriu a porta e teria corrido pelo caminho escorregadio e escuro, no meio dos trilhos, para procurar o que eles queriam, se não tivesse visto um relógio.

—Não dá tempo — disse ela—só falta um minuto para a partida.

Virando-se, ela avistou, no fim do corredor, um rosto e um vulto que afizeram prender a respiração, de ânsia: um último toque de pó-dearroz, boa noite ao porteiro, e lá fora, na traição reluzente da noite, o jovem judeu à espera, os bombons, o carro na esquina, o passeio rápido e o abraço furtivo e perigoso. Mas não era ninguém que ela conhecesse.   O trem está atrasado, pensou Myatt, saindo para o corredor. Mexeu no bolso do colete, procurando a caixinha de groselhas que sempre tinha ali. Era dividida em quatro partes e seus dedos escolheram uma ao acaso. Pondo-a na boca, julgou-a pelo paladar. A qualidade está decaindo. São de Stein e Co. Estão ficando pequenas e secas. No final do corredor, uma pequena de capa de chuva branca virou-se e olhou para ele. Bem-feita, pensou. Será que a conheço? Ele escolheu outra groselha e a colocou na boca, sem olhar. Uma das nossas. Myatt, Myatt e Page. Por um momento, com a groselha na língua, ele poderia ser um dos senhores do mundo, levando consigo o destino. Esta é minha e é boa, pensou ele. As portas bateram na fila dos carros e uma buzina tocou.

Richard John, com a capa de chuva virada para cima das orelhas, debruçou-se na janela do corredor e viu os barracões começarem a se mover para trás, em direção à maré lenta do mar. Era o fim, pensou ele, e o começo. As caras foram passando. Um homem com uma machadinha no ombro sacudiu uma lanterna vermelha; a fumaça da locomotiva soprava em volta dele, obscurecendo a luz. Os freios rangeram, as nuvens se desfizeram e o sol poente brilhou sobre a linha, a janela e os olhos dele. Se eu pudesse dormir, pensou ele, com vontade, poderia lembrar-me com mais clareza de todas as coisas que tenho de me lembrar.

A boca da caldeira abriu-se e o clarão e o calor da fornalha subiram por um momento. O maquinista abriu todo o regulador, e o piso estremeceu com o peso dos vagões. Dali a pouco a locomotiva passou a trabalhar suavemente, o maquinista puxou a válvula de cortar o vapor e o sol acabou de se pôr quando o tem passou por Bruges, o regulador fechado, correndo com pouco vapor. O crepúsculo iluminava os altos muros que pingavam, becos com água estagnada, radiosa por um momento, refletindo a luz líquida. Em algum lugar dentro do quadro acanhado estava a cidade antiga, como uma jóia ilustre, por demais contemplada, comentada e negociada. Depois, no meio do vapor viu-se uma selva de loteamentos, a monotonia às vezes interrompida por casas altas e feias, dando frente para todos os lados, decoradas com azulejos coloridos, que agora absorviam a tarde. As fagulhas do expresso tornaram-se visíveis, como enxames de besouros vermelhos tentados ao vôo pela noite; caíam e ficavam ardendo junto dos trilhos, tocando nas folhas, gravetos e talos de couve, virando fuligem. Uma pequena num cavalo de charrete levantou o rosto e riu; no barranco ao lado da linha estavam deitados um homem e uma mulher, abraçados. Depois ficou escuro, lá fora, e os passageiros, através do vido, só podiam ver o reflexo transparente de seus próprios vultos.

 

Premier Service, Premier Service.” A voz seguiu ressoando pelo corredor, mas Myattjá estava sentado no vagão-restaurante. Não queria correr o risco de ter de partilhar uma mesa, de ser obrigado a trocar amabilidades, e, o que não era nada improvável, de ser desfeiteado. Constantinopla, para muitos dos passageiros o fim de uma viagem quase interminável, aproximava-se dele com a velocidade dos postes de telégrafos que passavam voando. Quando terminasse a viagem, teria tempo para pensar: um carro à sua espera, os minaretes precipitando-se, uma escada escura e suja e o Sr. Eckman levantando-se da mesa de trabalho. Sutilezas, cifras, contratos o envolveriam. Ali, de antemão, no carro-restaurante, na cabina com leito, no corredor, ele tinha de planejar cada palavra e ensaiar cada inflexão. Preferia que seus negócios fossem com ingleses ou turcos, mas o Sr. Eckman e, em algum lugar oculto, o enigmático Stein eram homens de sua própria raça, experientes em interpretar um significado num tom de voz, a maneira dos dedos segurarem um charuto.

Os garçons apareceram pelo corredor, com a sopa. Myatt mexeu no bolso do colete e tornou a mascar uma groselha, uma de Stein, pequena e seca, mas, verdade seja dita, barata. A eterna e inevitável guerra entre a qualidade e a quantidade foi travada, sem resultado, em sua mente. De uma coisa ele tinha toda a certeza possível, amarrado a uma secretária em Londres, só conhecendo os representantes de Stein, mas nunca Stein em pessoa, no máximo ouvindo a voz de Stein, ao telefone interurbano, um fantasma de voz, por cujas intonações ele não podia deduzir nada: Stein tinha dado com os burros n’água? Mas que água? O meio do oceano ou perto da costa? Estaria desesperado ou apenas conformado a fazer economias incômodas? O caso seria simples se o agente de Myatt e Page, o valioso Sr. Eckman, não fosse suspeito de ter complexas relações ocultas com Stein, fora do perímetro da lei.

Ele mergulhou a colher na sopa Julienne sem gosto; preferia comidas pesadas, muito temperadas, mas cheias de elementos bem nutritivos. Lá fora, no escuro, não se via nada, salvo o lampejo ocasional de luzes de alguma estaçãozinha, o jato de chamas num túnel, e sempre a imagem transparente de seu próprio rosto, a mão flutuando como um peixe através do qual brilham a água e as algas. Ele irritou-se um pouco com essa ubiqüidade e já ia puxar a cortina quando notou, atrás de sua imagem, a do homem modesto, de capa de chuva, que espiara na sua cabina. As roupas do outro, roubadas de cor, consistência e opacidade, fantasmas de confecção antiga, conservavam uma certa classe forçada; a capa de chuva, aberta, deixava ver o colarinho duro e alto, o jaquetão. O homem esperava o jantar, com paciência — foi o que Myatt pensou primeiro, deixando a sua mente repousar um pouco das sutilezas de Stein e do Sr. Eckman — mas antes que o garçom chegasse perto dele, o estranho adormeceu. O rosto dele desapareceu de vista, por um momento, quando as luzes de uma estação fizeram as paredes do vagão passarem de espelhos a janelas, pelas quais se podia ver um monte de passageiros do interior, esperando com crianças e pacotes e sacolas e barbante por algum trem lento, parador. Com o escuro, o rosto reapareceu, balançando no sono.

Myatt esqueceu-se dele, escolheu um Borgonha médio, um Chambertin 1932, para beber com a vitela, se bem que soubesse que era jogar dinheiro fora comprar um bom vinho, pois nenhum buquê poderia sobreviver ao movimento contínuo. Em todo o vagão ouvia-se o gemido de vidros sacudidos, enquanto o expresso se dirigia a toda velocidade para Colônia. Bebendo o primeiro cálice, Myatt tornou a pensar em Stein, esperando em Constantinopla pela chegada dele, em desespero ou com lábia. Ele venderia, por um bom preço, Myatt tinha certeza, mas diziam que havia outro comprador no mercado. Era nisso que se suspeitava que o Sr. Eckman estivesse fazendo um jogo duplo, tentando aumentar o preço contra sua própria firma perante uma comissão de 15% de Stein como o motivo provável. O Sr. Eckman escrevera dizendo que Moult’s estava oferecendo um preço fantástico a Stein, pela mercadoria dele ou sua clientela; Myatt não acreditava nisso. Um dia ele almoçara com o jovem Moult e mencionara por acaso o nome de Stein. Moult não era judeu; não tinha sutileza, nem conhecia a ciência do disfarce; quando ele quisesse mentir, mentiria, mas a mentira se limitaria às palavras; não sabia que a mão destreinada desmente a boca. Ao tratar com um inglês, Myatt achava que lhe bastava um artifício; quando ele apresentava o assunto importante, ou fazia a pergunta principal, oferecia um charuto; se o homem estivesse mentindo, por mais pronta que fosse a resposta, a mão tremia por um quarto de segundo. Myatt sabia o que os gentios diziam dele: ”Não gosto daquele judeu. Ele nunca encara a pessoa”. Seus idiotas, dizia ele, triunfante, em segredo, conheço truques que valem dois desses. Por exemplo, ele agora sabia que o jovem Mout não tinha mentido. Era Stein quem estava mentindo, ou então o Sr. Eckman.

Ele serviu-se de mais um cálice de vinho. Curioso, pensou, que fosse ele, viajando a 80 km por hora, que estivesse repousando, e não o Sr. Eckman, trancando a secretária, pegando o chapéu do cabide, descendo, como que mastigando o telegrama da firma entre seus dentes afiados e salientes. ”Sr. Carleton Myatt chegará Istambul dia 14. Combine encontro com Stein.” No trem, por mais depressa que ele viajasse, os passageiros estavam repousando, compulsoriamente; era inútil, entre as paredes de vidro, sentir emoção, inútil tentar exercer qualquer atividade a não ser as mentais; e essa atividade podia ser exercida sem receio de interrupção. O mundo agora estava batendo em Eckman e Stein, telegramas chegando, homens interrompendo o fio de seus pensamentos com conversas, mulheres estavam dando jantares. Mas no expresso vibrante e rápido, o barulho era tão igual que eqüivalia ao silêncio, o movimento era tão contínuo que depois de certo tempo a mente o aceitava como quietude. Somente fora do trem era possível a violência da ação, e o trem o encerraria em segurança, com seus planos, durante três dias; ao fim desse tempo ele saberia bem claramente como lidar com Stein e com o Sr. Eckman.

Tendo terminado o sorvete e a sobremesa, e pago a conta, ele parou ao lado de sua mesa para acender um charuto, ficando assim de frente para o estranho e notando que ele novamente adormecera entre dois pratos; entre a partida da vitela, au Talleyrand, e a chagada do pudim gelado, ele caíra vítima do que devia ser uma exaustão profunda.

Sentindo o olhar fixo de Myatt, ele acordou de repente.

— E então? — perguntou ele. Myatt desculpou-se.

— Não quis acordá-lo. — O homem ficou olhando para ele, desconfiado, e alguma coisa na mudança repentina do sono para uma ansiedade mais costumeira, nas roupas bem-intencionadas contrastando com a capa surrada, comoveu Myatt. Ele utilizou-se do seu encontro anterior. — Encontrou uma cabina?

— Sim.

Myatt disse, num impulso:

—Achei que talvez o senhor tivesse dificuldade em descansar. Tenho umas aspirinas em minha valise. Posso ceder-lhe uns comprimidos?

O homem retrucou com aspereza.

— Tenho tudo de que preciso. Sou médico.

Por hábito, Myatt olhou para as mãos do outro, magras, os ossos aparecendo. Tornou a desculpar-se, com um pouco de humildade excessiva de cabeça baixa, desolado.

— Desculpe tê-lo importunado. O senhor parecia doente. Se houver alguma coisa que eu possa fazer...

— Não, nada. Nada. — Mas, quando Myatt se retirou, o outro virou-se e o chamou. — As horas. Qual a hora certa?

— Oito e quarenta. — Myatt respondeu. — Não, quarenta e dois — e viu os dedos do homem acertarem o relógio dele com cuidado no minuto exato.

Quando ele chegou à sua cabina, o trem estava diminuindo a marcha. Os grandes altos-fornos de Liege erguiam-se ao longo da linha como castelos antigos ardendo num ataque de fronteira. O trem deu um solavanco e as chaves fizeram uma mudança. De ambos os lados erguiam-se vigas de aços; bem abaixo uma rua vazia corria em diagonal para o escuro, e uma lâmpada brilhava numa porta de um café. Os trilhos se abriram e locomotivas desengatadas convergiam sobre o expresso, apitando e vomitando fumaça. Os sinais brilharam com luz verde sobre os dormentes, e o arco do telhado da estação ergueu-se acima do vagão. Os jornaleiros gritavam e uma fila de senhores rígidos e distintos, de preto, e mulheres de véu preto esperavam na plataforma; sem interesse, como uma porção de estranhos decorosos num enterro, eles ficaram olhando a fila dos vagões de primeira classe passar por eles, Ostende — Colônia — Viena — Belgrado — Istambul — o vagão de baldeação para Atenas. Depois, com suas sacolas de barbante e os filhos, embarcaram nos vagões de trás, com destino talvez a Pepinster ou Verviers a 24 km de distância.

Myatt estava cansado. Tinha ficado de pé até a uma hora na véspera, conversando com o pai, Jacob Myatt, sobre os negócios de Stein e, como nunca, vendo a barba branca se sacudindo, sentira como os negócios estavam fugindo dos velhos dedos com anéis, que seguravam um copo de leite quente.

— Nunca tiram a nata—queixou-se Jacob Myatt, permitindo que o filho pegasse a colher e tirasse a nata da superfície.

Havia muitas coisas que ele agora permitia que o filho fizesse, e Page não representava nada, seu cargo de diretor não passava de condecoração concedida por 20 anos de serviço fiel, como empregado mais graduado. Eu sou Myatt, Myatt e Page, pensou ele, sem um tremor diante da idéia da responsabilidade; era o primogênito e era uma lei da natureza que o pai cedesse lugar ao filho.

Na véspera eles tinham discordado quanto a Eckman.Jacob Myatt acreditava que Stein tivesse iludido o agente, e o filho achava que o agente estivesse em combinação com Stein.

— O senhor vai ver—prometeu ele, confiante em sua lábia, mas Jacob Myatt disse apenas:

—Eckman é inteligente. Precisamos de um homem inteligente lá.

Myatt sabia que não adiantava querer ir dormir antes de chegar à fronteira em Herbesthal. Ele pegou as cifras que Eckman propunha como base para negociar com Stein, o valor do estoque disponível, o valor da clientela, a importância que ele achava que outro comprador oferecera a Stein. Era verdade que Eckman não falara propriamente sobre o nome de Moult, apenas mencionara o nome, e poderia negar isso. Moult nunca demonstrara qualquer interesse por groselhas; no máximo tinham chagado a um breve flerte com o mercado de tâmaras. Myatt pensou: não posso acreditar nessas cifras. O negócio de Stein vale isso para nós, mesmo que jogássemos o estoque dele dentro do Bósforo, pois conseguiríamos o monopólio; mas para qualquer outra firma, seria apenas a compra de um negócio abalado, vencido por nossa concorrência.

Os números começaram a nadar diante de seus olhos, numa névoa de sono. Os uns, setes e noves se tornaram os dentinhos afiados do Sr. Eckman; os seis, cincos e três se recompunham, como num filme de artifícios, nos olhos escuros e lustrosos do Sr. Eckman. Comissões, na forma de bolas coloridas, flutuavam pelo carro, aumentando de tamanho, e ele queria furá-las, uma a uma. Ele voltou à sua plena consciência com o ruído de passos passando e repassando pelo corredor. Pobre-diabo, pensou ele, vendo uma capa de chuva marrom desaparecer pela janela, e duas mãos postas.

Mas ele não sentia pena alguma do Sr. Eckman, acompanhando-o, em pensamento, do escritório ao seu apartamento muito moderno, o lavatório muito moderno, o banheiro dourado e prateado, a sala com almofadas alegres, onde a mulher dele ficava costurando e costurando, fazendo coletes, calças, toucas e meias para a Missão Anglicana: o Sr. Eckman era cristão. Ao longo de toda a linha os altos-fornos ardiam.

O calor não penetrava pela parede de vidro. Fazia um frio terrível, uma noite de abril que parecia um cartão de Natal antiquado, brilhando com a geada. Myatt pegou seu casaco de pele de um cabide e foi para o corredor. Em Colônia havia uma espera de quase 45 minutos; dava tempo para uma xícara de café quente ou um cálice de conhaque. Até então ele poderia andar de um lado para outro, como o homem de capa de chuva.

Enquanto não havia nada que valesse a pena notar no ar externo, ele sabia quem estaria caminhando com ele em espírito ao longo do corredor, para dentro e para fora dos lavatórios, o Sr. Eckman e Stein. O Sr. Eckman, pensou ele, procurando conseguir um pouco de água quente na pia encardida, tinha uma Bíblia pendurada ao lado da privada. Pelo menos, era o que lhe tinham dito. Grande e surrada e muito ”família” no meio das torneiras e tampas prateadas e douradas, proclamava a todos os homens e mulheres que jantavam em seu apartamento que o Sr. Eckman era cristão. Não havia necessidade de alusões veladas a idas à Igreja, ao capelão da embaixada, mas apenas uma pergunta da esposa, ”Quer lavar as mãos, meu bem?”, e sua própria pergunta afável aos homens depois do café e conhaque. Mas quanto a Stein, Myatt não sabia nada.

— Que pena que você não vai saltar em Buda, já que se interessa tanto por críquete. Estou tentando... ah, com tanto esforço... conseguir na embaixada.

Um homem com uma cara tão fria, branca e impessoal quanto seu colarinho de padre estava falando com um homem que parecia um rato, agachado diante dele, batendo a cabeça e bicando. A voz, despida de suas entonações características pelo vidro fechado, flutuou para o corredor, quando Myatt passou. Era um fantasma de voz e tornou a lembrar a voz de Stein falando através de 3.000 km de fios, dizendo que esperava um dia ter a honra de receber o Sr. Carleton Myatt em Constantinopla, amável, hospitaleira e anônima.

Ele estava passando pelas cabinas sem leito da segunda classe; homens sem colete, esparramados nos assentos, os queixos azulados; mulheres com os cabelos em redes empoeiradas, como as sacolas de barbante nas prateleiras, com as saias metidas debaixo de si e caídas em formas estranhas sobre os assentos, os peitos grandes e coxas estreitas, peitos pequenos e coxas grandes numa grande confusão. Uma mulher alta e magra acordou um momento para reclamar:

—Aquela cerveja que você me deu. Estava horrível. Não consigo acalmar o meu estômago.

No banco dianteiro, o marido estava sorrindo. Passou uma das mãos sobre o queixo áspero, olhando dè lado para a pequena de capa de chuva branca, que estava deitada no banco, os pés encostados em sua outra mão. Myatt parou e acendeu um cigarro. Gostou do corpo magro da pequena e do rosto, os lábios suficientemente pintados para tornar atraente sua simplicidade. Ela não era feia de todo; a pequenês de suas feições, seu crânio, nariz e orelhas davam-lhe um falso refinamento, uma espécie de beleza viva, como a vitrina de uma loja de interior no Natal, cheia de luzinhas e enfeites e presentinhos banais. Myatt lembrou-se de que ela olhara para ele pelo corredor, e pensou um pouco em que recordações ele lhe provocara. Ele dava graças por ela não ter demonstrado qualquer aversão, nem ter tomado conhecimento da inquietação dele vestido com as melhores roupas que se podiam comprar.

O homem sentado no mesmo banco que ela pôs a mão no tornozelo dela, com cuidado, e foi subindo muito devagar em direção ao joelho, vigiando a mulher o tempo todo. A pequena acordou e abriu os olhos.

— Que frio — Myatt a ouviu dizer, e percebeu, pela amabilidade forçada e na defensiva, que ela percebera a mão que se afastara.

Depois ela levantou os olhos para ele, e viu que ele a observava. Ela tinha tato, era paciente, mas para Myatt tinha pouca sutileza; sabia que as qualidades dele, as possibilidades de aborrecimento que ele oferecia estavam sendo pesadas em comparação com as do companheiro dela. Ela não estava procurando encrenca: seria a expressão que ela usaria; e ele achou a coragem, rapidez e decisão dela admiráveis.

— Acho que vou fumar lá fora — disse ela, remexendo na bolsa em busca de um maço; em seguida estava ao lado dele.

— Quer um fósforo?

— Obrigada. — E saindo do campo de visão da cabina dela, eles foram andando juntos para o escuro murmurante.

— Não gosto do seu companheiro — disse Myatt.

— Não se pode escolher muito. Não é assim tão mau. Chama-se

Peters.

Myatt hesitou um instante.

— Eu sou Myatt.

— Eu sou Coral... Coral Musker.

— Dançarina?

— Sou.

— Americana?

— Não. Por que pensou isso?

— Alguma coisa que você falou. Tem um pouco de sotaque. Já esteve lá?

— Se estive lá? Claro que sim. Seis noites por semana e duas tardes. O Jardim do Coutry Club, Long Island; Palm Beach; Um Apartamento de um Solteirão em Riverside Drive. Puxa, se a gente não sabe falar americano não tem chance nas revistas musicais inglesas.

— Você é inteligente — disse Myatt, sério, libertando Eckman e Stein de seus pensamentos.

—Vamos andar — disse a pequena. — Estou com frio.

— Não consegue dormir?

— Não depois daquela travessia. O frio é demais, e aquele sujeito fica mexendo em minhas pernas o tempo todo.

— Por que não dá um tapa na cara dele?

— Antes de chegarmos a Colônia? Não quero fazer escândalos. Temos de conviver até Budapeste.

— E para lá que você vai?

— Ele vai para lá. Eu vou até o fim.

— Eu também — disse Myatt — a negócios.

— Bem, nenhum de nós vai por gosto, não é? — disse ela, num tom tristonho. — Eu o vi quando o trem partiu. Pensei que fosse um conhecido.

— Quem?

— Como é que vou saber? Não me dou ao trabalho de me lembrar como se chamam os rapazes. Não é o nome pelo qual é conhecido no correio.

Pareceu a Myatt que havia algo de paciente e corajoso na sua calma aceitação da ilusão. Ela achatou contra a vidraça um rosto meio azulado do frio; podia ter sido um menino examinando com avidez o conteúdo de uma vitrina, os canivetes, as brincadeiras de levantar pratos, bombas com cheiro, doces que gritam, mas só o que lhe era oferecido era o escuro e suas próprias feições.

—Você acha que vai esquentar um pouco — perguntou ela — à medida que formos indo para o sul? — como se ela se imaginasse destinada a um clima tropical.

— Não vamos assim tão longe, a ponto de fazer diferença — disse ele. —Já tenho visto neve em Constantinopla em abril. Sopra o vento do Mar Negro no Bósforo. Corta pelas esquinas. A cidade é cheia de esquinas.

— Espero que os vestiários sejam aquecidos — disse ela. — No palco a gente não usa roupa que evite o frio. Como eu gostaria de poder beber alguma coisa quente. — Ela encostou na vidraça, o rosto azulado e os joelhos curvos. — Estamos perto da Colônia? Como se diz café em alemão?

A expressão dela alarmou-o. Ele correu pelo corredor e fechou a única vidraça aberta.

— Está-se sentindo bem?

Ela disse devagar, os olhos semicerrados:

— Assim está melhor. Você deixou isso bem abafado. Agora estou mais quente. Sinta aqui. — Ela levantou a mão; ele a encostou no rosto e ficou assustado com o calor.

— Olhe aqui — disse ele. — Volte ao seu vagão que eu vou tentar encontrar um conhaque para você. Você está doente.

— É só que não consigo me esquentar — explicou ela. — Eu estava quente, e agora está frio de novo. Não quero voltar, Vou ficar aqui.

—Você tem de pôr o meu casaco — disse ele, com relutância.

Mas antes de ter tempo de limitar o seu oferecimento de mau grado com uma frase com ”por enquanto” ou ”até você se esquentar”, ela escorregou para o chão. Ele pegou as mãos dela e esfregou-as, olhando para o rosto dela, ansioso, sem saber o que fazer. De repente pareceu-lhe de uma necessidade vital ajudá-la. Se a visse dançar no palco, ou de pé numa rua iluminada junto aos bastidores, ele a teria considerado apenas uma presa para seus sentidos, mas, desamparada e doente à luz trêmula da lâmpada do corredor, o corpo sacudido pela velocidade do trem, ela despertou nele uma compaixão dolorosa. Ela não se queixara do frio; comentara sobre ele com uma espécie de mal necessário, e, num lampejo de percepção, ele vira os inúmeros males necessários de que se compunha a vida para ela. Ele ouviu o passo monótono do homem que vira passar e repassar pela cabina e foi ter com ele.

— O senhor é médico? Uma moça desmaiou. O homem parou e perguntou, com relutância:

— Onde está ela?

Depois viu-a, além do ombro de Myatt. A hesitação dele irritou ojudeu.

— Ela parece estar realmente mal — insistiu ele. O médico suspirou.

— Está bem, já vou — Ele parecia^ estar-se preparando para uma provação.

Mas o temor pareceu abandoná-lo, quando ele se ajoelhou ao lado da moça. Mostrou-se meigo com ela, com a meiguice impessoal e experiente do médico. Sentiu o coração dela e depois levantou suas pálpebras. A moça voltou a si, meio confusa; pensava que era ela que estava debruçada sobre um estranho com bigodes compridos e maltratados. Teve pena da experiência que provocara tanta ansiedade nele, e sua solicitude manifestou-se pela amizade que imaginou ver nos olhos dele. Ela pôs as mãos no rosto dele. Ele está doente, pensou ela, e por um momento tapou as sombras estranhas que caíram do lado errado, o globo de luz brilhando do chão.

— Quem é o senhor? — perguntou ela, procurando lembrar-se como ela tinha ido socorrê-lo. Nunca, pensou, vira um homem mais precisado de ajuda.

— Um médico.

Ela abriu os olhos, espantada, e o mundo clareou. Era ela que estava deitada no corredor, e o estranho que estava debruçado sobre ela.

— Eu desmaiei? — perguntou ela. — Estava muito frio.

Ela percebeu o movimento pesado e lento do trem. As luzes entravam pela vidraça, sobre o rosto do médico e o jovem judeu atrás dele. Myatt, My’at (meu chapéu). Ela riu sozinha, num contentamento súbito. Era como se, no momento, ela tivesse passado a outra pessoa toda a responsabilidade. O trem parou com um solavanco, e o judeu foi lançado contra a parede. O médico nem se mexera. Se balançara, fora junto com o movimento do trem, e não contra ele. Os olhos deles estavam sobre o rosto dela, seu dedo no pulso dela; ele a observava com paixão, tremendo, quase falando, mas ela sabia que não era paixão por ela nem qualquer atributo seu: mesmo que eu tivesse as pernas da Mistinguete, ele não notaria.

— O que é? — ela perguntou a ele, mas perdeu todas as suas respostas no meio das vozes que gritavam na plataforma e a entrada de homens de farda azul,cumprindo   só ”o seu trabalho”.

— Passaportes e bagagens à mão — gritou-lhes uma voz estrangeira, e Myatt falou com ela, perguntando pela bolsa dela:

— Cuido de suas coisas.

Ela entregou-lhe a bolsa e, ajudada pelo médico, sentou-se encostada à parede.

— Passaporte?

O médico disse, devagar, e dessa vez ela percebeu pela primeira vez o sotaque dele:

— Minhas malas estão na primeira classe. Não posso deixar essa senhora. Sou médico.

— Passaporte britânico?

— Sim.

— Está bem. — Outro homem aproximou-se deles — Bagagem? . —Nada a declarar.

O homem seguiu. Coral Musker sorriu.

— Isso é mesmo a fronteira? Puxa, a gente podia contrabandear qualquer coisa. Nem olham nas malas.

— Qualquer coisa — disse o médico — com um passaporte britânico.

Ele olhou o homem desaparecer e não falou mais nada até Myatt voltar.

— Eu agora já podia voltar para o meu vagão — disse ela.

— Tem leito?

— Não. . .

— Vai saltar em Colônia?

— Vou até ao fim.

Ele lhe deu o mesmo conselho que o comissário.— Devia ter tomado um leito.

A inutilidade daquilo irritou-a, e por um momento a fez esquecer da pena que tinha pela idade e angústia dele.

— Como eu podia tomar um leito? Sou corista. Ele comentou com uma amargura espantosa:

— Não, você não tem o dinheiro.

— O que vou fazer? — perguntou-lhe ela — Estou doente?

— Como posso aconselhá-la? — protestou ele. — Se você fosse rica, eu diria: Tire seis meses de férias. Vá para o norte da África. Você desmaiou por causa da travessia, por causa do frio. Ah, sim, eu lhe poderia dizer isso tudo, mas isso não é nada. O seu coração está mal. Há anos que você o vem forçando demais.

Ela lhe implorou, meio assustada:

— Mas o que vou fazer? Ele abriu as mãos:

—Nada. Continuar. Descansar o que puder. Manter-se aquecida. Você está com muito pouca roupa.

Soou um apito, e o trem começou a mexer-se, tremendo. As luzes da estação passaram por eles, para o escuro, e o médico virou-se, para deixá-la.

— Se precisar de mim de novo, estou três carros mais adiante. Meu nome é John. Dr. John.

Ela disse, com uma cortesia intimidada:

— O meu é Coral Musker.

Ele fez uma pequena mesura, cerimoniosa e estrangeira, e afastou-se. Ela viu nos olhos dele outros pensamentos, caindo como chuva. Nunca antes tivera a sensação de ser esquecida tão instantaneamente. ”Uma pequena de quem os homens se esquecem”, cantarolou ela, para conservar a coragem.

Mas o médico teve de parar de se afastar muito. Pisando com cuidado, sem barulho, pelo trem que sacudia, segurando o corrimão do corredor com uma das mãos, veio um homenzinho pálido. Ela o ouviu falando com o médico.

—Aconteceu alguma coisa? Posso ajudar? — Ele era uns 30 cm mais baixo e ela riu alto, ao ver o rosto dele, ávido, espiando para cima. — Não pense que é curiosidade — disse ele, com uma das mãos na manga do outro. — Um padre na minha cabina pensou que havia alguém doente. — E acrescentou, ansioso: — Eu disse que ia verificar.

Para cima e para baixo do corredor, ela vira o médico caminhando, agarrado ao seu vazio, preferindo-o a uma cabina partilhada. E agora, contra a sua vontade, ele se via no meio de gente, com perguntas e apelos agarrando-se à sua mente como carrapichos. Ela esperava alguma explosão, algum comentário crítico e insultuoso que despachasse o sujeito tremendo pelo corredor afora.

A brandura da resposta dele a surpreendeu.

— Você disse um padre?

— Ah, não — desculpou-se o homem. — Ainda não sei de que seita, nem qual o credo. Por quê? Alguém está morrendo?

O Dr. John pareceu sentir o medo dela e falou-lhe, tranqüilizando-a, antes de passar pela mão que o detinha. O homenzinho permaneceu, por um momento, na feliz posse de uma situação. Depois de tê-la saboreado totalmente, aproximou-se.

— De que se trata?

Ela não fez caso dele, apelando apenas para a presença amiga com que ficara.

— Não estou tão doente assim, estou?

— O que me intriga — disse o estranho — é o sotaque dele. Eu diria que é estrangeiro, mas ele deu um nome inglês. Acho que vou segui-lo e conversar com ele.

A cabeça dela estava funcionando com clareza, desde que desmaiara; a visão do mundo invertido, em que o médico é que estava debaixo dela, necessitado de compaixão e cuidados, tornara as velhas imagens do mundo nítidas com o desconhecido; mas as palavras se atrasavam por trás da intuição, e quando ela pediu — Não o incomode — o estranho já se afastara e não a ouviu.

— O que você acha? — perguntou Myatt. — Ele terá razão? Existe algum mistério?

— Todos nós temos os nossos segredos — disse ela.

— Ele pode estar fugindo da polícia. - Ela disse, com uma convicção total:

— Ele é bom.

Ele aceitou a frase; aquilo tirava o médico de seus pensamentos. —Você deve deitar-se e procurar dormir—disse ele, mas não foi preciso a resposta dela, vaga, dizendo:

— Como posso dormir com aquela mulher e o estômago dela? — para lembrar-se do Sr. Peters à espreita no canto, aguardando a volta dela para renovar suas satisfações baratas, fáceis e inofensivas.

— Você pode ficar no meu leito.

— O quê? Na primeira classe?

A descrença dela, a sua vontade o resolveram. Ele decidiu-se a ser principesco em uma escala oriental, concedendo dádivas preciosas e sem exigir, nem querer qualquer retribuição. A parcimônia era a acusação tradicional contra a raça dele, e ele havia de mostrar a uma cristã como era imerecida. Quarenta anos no deserto, longe da fartura do Egito, haviam criado hábitos de sobriedade, a tâmara contada e a água guardada; nem os mil anos na selva do mundo cristão, onde só o tesouro escondido estava seguro, encorajara a exibição; mas o mundo se estava modificando, o deserto florescendo; em cantos esparsos aqui e ali, na Europa ocidental, o judeu podia exibir aquela outra qualidade que ele partilhava com o árabe, a qualidade de anfitrião principesco, que lavava os pés dos mendigos e lhes dava de comer de seu próprio prato; às vezes ele podia deixar de ser o inimigo dos ricos para tornar-se amigo de qualquer pobre que procurasse um teto em nome de Deus. O ronco do trem desapareceu de seu consciente, a luz saiu de seus olhos, enquanto ele construiu para seu próprio orgulho a barraca no oásis, o poço no deserto. Ele abriu as mãos diante dela.

— Sim, você deve dormir lá. Vou combinar com o condutor. E o meu casaco... tem de ficar com ele. Isso a aquecerá. Em Colônia eu lhe arranjo um café, mas será melhor que você durma.

— Mas não posso. Onde você vai dormir?

— Arranjo algum lugar. O trem não está assim tão cheio. Pela segunda vez ela sentiu uma ternura, impessoal, mas não assustadora como a primeira; era uma onda quente em que ela se deixou submergir, não demais, de modo que, se ela tivesse medo, seus pés pudessem sentir a areia, mas o suficiente para ela flutuar sem esforço de sua parte para onde quisesse ir — para uma cama e um travesseiro e uma coberta e o sono. Ela teve a impressão de que a graça voltava a ele com confiança, e ele deixava de se desculpar ou de se afirmar e se tornava apenas uma sombra que providenciava.

Myatt não foi procurar o condutor, mas instalou-se entre as paredes do corredor e da cabina, cruzou os braços e preparou-se para dormir. Mas sem o casaco, estava muito frio. Se bem que as janelas do corredor estivessem fechadas, uma corrente de ar passava pela porta de vaivém e a plataforma que ligava os vagões. E então os ruídos do trem já não eram tão regulares, a ponto de não se distinguirem do silêncio. Havia muitos túneis entre Herbesthal e Colônia, e em cada um deles o ronco do expresso era amplificado. Myatt dormiu um sono agitado, e o jato de vapor e a corrente de ar em seu rosto contribuíram para seu sonho. O corredor tornou-se a comprida Estrada dos Espanhóis com a charneca de ambos os lados. Ele estava sendo conduzido devagar por Isaacs em sua Bentley, e eles olhavam as caras das moças que passavam aos pares do lado leste, iluminado pelas luzes, balconistas oferecendo-se perigosamente por uma bebida na taverna, um passeio a alta velocidade, e o divertimento; do outro lado da estrada, no escuro, em alguns bancos, sentavam-se as prostitutas, disformes, miseráveis e velhas, de costas para as encostas arenosas e as moitas espinhentas, esperando um homem suficientemente velho, cego e burro que lhes oferecesse dez xelins. Isaacs parou a Bentley debaixo de uma lâmpada e eles deixaram passar os rostos anônimos jovens, belos, animalescos. Isaacs queria uma que fosse clara e gorducha, e Myatt uma magra e morena, mas não era fácil escolher, pois ao longo do lado leste estavam alinhados os carros de seus concorrentes, as pequenas debruçadas sobre as portas abertas, rindo e fumando; do outro lado da estrada um único carrinho de dois lugares vigiava, paciente. Myatt estava irritado com o gosto exigente de Isaacs; fazia frio na Bentley, com a corrente de ar no rosto, e dali a pouco, quando viu Coral Musker passando, ele saltou do carro e ofereceu-lhe um cigarro, depois uma bebida e depois um passeio. Essa era uma vantagem com aquelas pequenas, pensou Myatt; todas sabiam o que significava um passeio, e se não gostassem do aspecto da pessoa, diziam que tinham de ir para casa. Mas Coral Musker queria um passeio; ela o aceitaria como companheiro no escuro do carro, as lâmpadas, as tavernas e as casas já longe, e as árvores aparecendo como silhuetas de papel à luz verde dos faróis, e depois os arbustos com o cheiro de folhas molhadas contendo a chuva da manhã e um prazer rápido e bárbaro no restolho. Quanto a Isaacs, tinha de se conformar com a companheira dela, se bem que ela fosse morena e larga e de roupas leves, com um nariz grande e dentes aguçados e salientes. Mas quando ela se sentou ao lado de Isaacs no banco da frente, virou-se e deu-lhe um sorriso, dizendo:

— Não trouxe cartão, mas o meu nome é Stein.

E então, enfrentando o vento, ele estava subindo uma grande escada com um corrimão de prata e ouro, e ela estava ao alto, com um bigode pequeno, apontando para uma mulher que estava costurando, costurando, costurando, e gritou para ele: ”Eu lhe apresento a Sra. Eckman”.

Coral Musker afastou a mão das cobertas, protestando, enquanto dançava e dançava e dançava no clarão das luzes da ribalta e o produtor batia em suas pernas nuas com uma vara, dizendo que ela não prestava, que estava com um mês de atraso, que não cumprira o contrato. E o tempo todo ela dançava e dançava e dançava, nem reparando nele, enquanto ele batia nas pernas dela com uma vara.

A Sra. Peters virou-se e disse ao marido:

—Aquela cerveja. O meu estômago não sossega. Faz tanto barulho, que não posso dormir.

O Sr. Opie sonhou que, de batina, com o bastão de críquete debaixo do braço e a luva de pegar a bola pendurada do punho, ele subia uma grande escadaria de mármore em direção ao altar de Deus.

O Dr. John, dormindo afinal, com um comprimido amargo dissolvido em sua língua, falou uma vez em alemão. Não tinha leito e estava sentado reto num canto de sua cabina, ouvindo, lá fora, começar o canto baixinho: ”Kôln, Kõln, Kõln”.

 

                                        COLÔNIA

 

Mas claro, meu bem, que não me importo que você esteja bêbada — disse Janet Pardoe. O relógio acima da estação de Colônia bateu uma hora e um garçom começou a apagar as luzes da varanda do Excelsior. — Olhe, meu bem, deixe endireitar a sua gravata. — Ela debruçou-se sobre a mesa e arrumou a gravata de Mabel Warren.

— Há três anos que vivemos juntas — começou a dizer a Srta. Warren, com uma voz profunda e melancólica — e nunca lhe falei com aspereza.

Janet Pardoe pôs um pouco de perfume atrás das orelhas.

— Pelo amor de Deus, amor, olhe as horas. O trem parte daqui a meia hora; tenho de pegar a minha bagagem, e você tem a sua entrevista. Acabe o seu gim e vamos embora.

Mabel Warren pegou o copo e bebeu. Depois levantou-se e seu corpo quadrado balançou um pouco; ela estava de gravata e colarinho duro e um costume de lã esporte. As duas sobrancelhas eram pesadas, os olhos escuros, resolutos e vermelhos de chorar.

— Você sabe por que eu bebo — protestou ela.

— Tolices, meu bem — disse Janet Pardoe, verificando no espelhinho da pozeira se seu aspecto estava mesmo bom — você bebia muito antes de me conhecer. Seja razoável. Só vou passar uma semana fora.

— Esses homens — disse a Srta. Warren, num tom sombrio, e depois, quando Janet Pardoe levantou-se para atravessar a praça, ela agarrou o braço da outra com uma força extraordinária. — Prometa que terá cuidado. Se eu ao menos pudesse ir com você.

— Quase chegando à estação, ela tropeçou numa poça d’água. —Ah, veja o que fiz agora. Que brutamontes desajeitada eu sou.

Enlamear o seu lindo costume novo. — Com uma mão grande e áspera, um anel de brasão no dedo mínimo, ela começou a espanar a saia de Janet Pardoe.

— Oh, pelo amor de Deus, vamos, Mabel — disse Janet.

O estado de espírito da Srta. Warren mudou. Ela endireitou-se e barrou o caminho.

—Você diz que estou bêbada. Estou sim. Mas vou ficar mais ainda.

— Ora, vamos.

— Você vai tomar mais uma bebida comigo, senão não a deixarei ir para a plataforma.

Janet Pardoe cedeu.

— Um. Só um, ouviu? — Ela conduziu Mabel Warren por um saguão imenso, preto e reluzente, para uma sala onde alguns homens e mulheres cansados estavam tomando café.

— Mais um gim — disse a Srta. Warren, e Janet o pediu.

Num espelho na parede em frente, a Srta. Warren viu sua imagem, vermelha, despenteada, muito desmazelada, sentada ao lado de outra imagem, muito mais conhecida, esguia, morena e linda. Que importa a minha pessoa?, pensou ela, com a melancolia da bebida. Eu a criei, sou responsável por ela, e, com amargura, paguei por ela. Tudo o que ela está usando fui eu que paguei, com meu suor, pensou ela (se bem que o frio terrível desafiasse os aquecedores do restaurante), levantando-me a qualquer hora, entrevistando donos de bordéis em suas celas, as mães de filhos assassinados, ”cobrindo” isso e ”cobrindo” aquilo. Ela sabia, com certo orgulho, o que se dizia no escritório de Londres: ”Quando vocês quiserem histórias de tragédias, mandem a Tonta da Mabel”. O curso do Reno era seu território; não havia uma cidade entre Colônia e Mainz em que ela não tivesse procurado o interesse humano, forçando as frases dramáticas a aflorarem aos lábios de homens emburrados, palavras patéticas à boca de mulheres tão arrasadas pela dor que não conseguiam falar coisa alguma. Não havia um suicídio, uma mulher assassinada, uma criança estuprada que a tivesse comovido de todo; ela era uma artista que examinava criticamente, observava, escutava; as lágrimas eram para o papel. Mas então ela sentou-se e chorou com grunhidos feios porque Janet Pardoe a estava deixando por uma semana.

— Quem é que você vai entrevistar? — perguntou Janet Pardoe. Ela não estava nada interessada, mas queria distrair Mabel Warren da idéia da separação; as lágrimas dela estavam aparentes demais. — Você devia pentear os cabelos — disse ela.

A Srta. Warren estava sem chapéu e seus cabelos pretos, cortados curtos como de homem, estavam incrivelmente despenteados.

— Savory — disse a Srta. Warren.

— Quem é ele?

— Vendeu 100 mil exemplares. The Great Gay Round. Meio milhão de palavras. Duzentos personagens. O Gênio Cockney. Com sotaque, quando se lembra.

— O que está fazendo no trem?

—Vai ao Oriente para procurar material. Não era minha tarefa, mas como eu ia levar você, aceitei a incumbência. Pediram-me um quarto de coluna, mas vão reduzi-la a alguns itens em Londres. Ele escolheu o momento errado. Na temporada passada teria merecido meia coluna, entre as sereias e cavalos-marinhos.

O lampejo de interesse profissional morreu, quando ela tornou a olhar parajanet Pardoe: não mais veriaJanet de manhã, de pijama, servindo o café; de tarde não mais entraria no apartamento para encontrar Janet preparando coquetéis, de pijama. Ela perguntou, em voz rouca:

— Querida, qual você vai usar esta noite? — A pergunta feminina soou esquisita na voz grossa e masculina da Srta. Warren.

— O que quer dizer?

— Pijamas, querida. Quero pensar em você esta noite como você estiver.

— Acho que vou me despir. Olhe, já são 13:15. Temos de ir andando. Você nem vai conseguir a sua entrevista.

O orgulho profissional da Srta. Warren ficou ferido.

—Você não pensa que preciso fazer perguntas a ele? — disse ela. — Basta olhar para ele, e porei as palavras certas em sua boca. E ele nem vai reclamar. É publicidade.

— Mas tenho de procurar o carregador com minhas malas. Todos estavam saindo do restaurante. Quando a porta se abria e

fechava, os gritos dos carregadores e o apito do vapor chegavam vagamente até onde elas estavam. Janet Pardoe tornou apelar para a Srta. Warren.

— Temos de ir. Se você quiser mais gim, eu a deixarei aí.

Mas a Srta. Warren não disse nada. A Srta. Warren ignorou-a; Janet Pardoe passou a assistir a um dos rituais regulares da carreira jornalística de Mabel Warren, que era livrar-se visivelmente de sua bebedeira. Primeiro uma das mãos arrumava os cabelos, depois um lenço com pó de arroz, sua concessão à feminilidade, disfarçava a vermelhidão das faces e pálpebras. Enquanto isso ela estava focalizando a vista, usando o que estivesse à sua frente, xícaras, garçom, copos e assim até os espelhos distantes e sua própria, imagem como uma espécie de rolo alfabético de um oculista. Naquela ocasião, a primeira letra do alfabeto, o grande A negro, era um homem idoso de capa de chuva, de pé junto de uma mesa espanando suas migalhas antes de sair para tomar o trem.

— Meu Deus — disse a Srta. Warren, cobrindo os olhos com a mão — estou bêbada. Não consigo ver direito. Quem é aquele ali?

— O homem de bigode? É. - Nunca o vi na vida.

— Pois eu vi — disse a Srta. Warren. — Eu vi, mas onde?

Alguma coisa conseguira afastar sua atenção da separação; ela tinha farejado alguma coisa e, deixando meio dedo de gim no fundo do copo, levantou-se e foi andando atrás do homem até à porta. Ele ja tinha saído e estava andando depressa pelo saguão preto e reluzente em direção a uma escada antes que a Srta. Warren conseguisse livrar-se da porta giratória. Ela esbarrou num carregador e caiu de joelhos, sacudindo a cabeça, procurando livrá-la da melancolia, da sensação vaga da bebida. Ele parou para ajudá-la e ela agarrou o braço dele, fazendo-o parar até conseguir controlar sua língua.

— Qual o trem que parte da plataforma cinco?—perguntou ela.

— Viena — disse o homem.

— Belgrado?

— Sim.

Por acaso ela dissera Belgrado e não Constantinopla, mas o som de sua voz lhe trouxe o esclarecimento. Ela chamou Janet Pardoe.

— Tome dois lugares. Vou com você até Viena.

— Sua passagem?

— Tenho o meu passe de repórter. — Agora era ela que estava impaciente. — Depressa. Plataforma cinco. Já são 13:28. Só faltam cinco minutos. — Ela continuava segurando o carregador a seu lado, com um aperto musculoso. — Escute. Quero que você leve um recado para mim. Kaiser Wilhelmstrasse 33.

— Não posso sair da estação — disse ele.

— A que horas você larga o serviço?

— Asseis.

— Não adianta. Você tem de sair escondido. Pode fazer isso, não pode? Ninguém vai notar.

— Posso ser despedido.

—Arrisque — disse a Srta. Warren.—Vinte marcos. «

O homem sacudiu a cabeça.

— O chefe há de notar.

— Eu lhe dou outros vinte para ele.

O chefe não concordaria, disse ele; havia coisas demais em jogo; o superior podia descobrir. A Srta. Warren abriu a bolsa e começou a contar o dinheiro. Acima de sua cabeça um relógio bateu a meia hora. O trem ia partir dali a três minutos, mas nem por um momento ela permitiu que seu desespero aparecesse; qualquer emoção poderia assustar o homem.

— Oitenta marcos — disse ela — e dê ao chefe o que você quiser. Você só estará ausente uns dez minutos.

— O risco é grande — disse o carregador, mas deixou que ela metesse as notas na mão dele.

— Escute bem. Vá a Kaiser Wilhelmstrasse 33. Lá encontrará a redação do Clarion de Londres. Com certeza deve ter alguém lá. Diga que a Srta. Warren pegou o Expresso do Oriente para Viena. Ela não mandará a entrevista esta noite, mas telefonará de Viena amanhã. Diga que ela está na pista de uma notícia de primeira página. Agora repita isso. — Enquanto ele repetia o recado devagar, ela ficava de olho no relógio. Uma e trinta. Uma e trinta e um e meio. — Certo. Vá andando. Se você não chegar lá até 1:50, vou dar queixa de você por receber gorjetas.

Ela riu para ele, com uma malícia brincalhona, mostrando os dentes grandes e quadrados, e depois correu para a escada. Era 1:32. Ela pensou ouvir um apito e galgou os três últimos degraus de uma vez. O trem estava se pondo em movimento e um bilheteiro tentou impedir seu caminho, mas ela o empurrou para o lado e berrou ”Passe” por cima do ombro. Os últimos vagões da terceira classe estavam passando com uma velocidade crescente. Meu Deus, pensou ela, vou deixar de beber. Ela conseguiu pôr a mão na barra do último vagão, enquanto um carregador gritava e corria para ela. Durante dez segundos agoniados, com dores subindo pelo braço, ela pensou que seria arrastada da plataforma contra as rodas do carro do condutor. O degrau alto a apavorou. Não vou conseguir. Mais um momento e seu ombro não agüentaria. Era melhor cair na plataforma e arriscar-se a uma concussão do que quebrar ambas as pernas. Mas que história ia perder, pensou ela, com amargura, e saltou. Caiu de joelhos no degrau no minuto exato, quando a plataforma acabou. A última luz desapareceu, a porta abriu para dentro, cedendo à pressão de seu corpo, e ela caiu de costas no corredor. Apoiou-se com cuidado contra a parede do corredor, por causa do ombro dolorido, e pensou, com um triunfo irônico, a Tonta da Mabel está a bordo.

A luz da manhã penetrou pela fresta da veneziana e tocou no assento dianteiro. Quando Coral Musker acordou, o que viu primeiro foi o assento e uma valise de couro. Ela estava desanimada e apreensiva, pensando no trem que teria de pegar em Viena, o ovo seco e as fatias de pão de anteontem, à sua espera embaixo. Quem me dera nunca ter aceitado esse trabalho, pensou ela, preferindo, agora que chegara o momento da partida, a fila na escada em Shaftesbury Avenue, a animação forçada de longas esperas junto da porta de agentes. Ela levantou a veneziana e por um momento espantou-se ao ver passar um poste de telégrafo, um rio verde, tocado de laranja,pelo sol nascente, e morros verdejantes. Então lembrou-se.

Ainda era cedo, pois o sol estava baixo, ainda subindo por trás dos morros. Uma aldeia na margem oposta brilhava com luzinhas; alguns fiapos de fumaça esvoaçavam no ar parado acima das casinhas de madeira, onde os primeiros fogos estavam sendo acesos, preparando-se o café da manhã dos trabalhadores. A aldeia era tão distante da linha que ficava parada, podendo ser contemplada, enquanto as árvores e cabanas na margem mais próxima, e os barcos amarrados, voavam para trás. Ela levantou a outra veneziana e no corredor viu Myatt dormindo com as costas contra a parede. Seu primeiro impulso foi despertá-lo; o segundo, deixá-lo dormir e aproveitar-se, ela, do sacrifício de outro. Sentiu ternura por ele, como se ele lhe tivesse dado uma nova esperança de uma vida que não era uma luta contínua para sobreviver: talvez o mundo, pensou ela, não fosse assim tão duro. Ela lembrou-se de que o comissário de bordo lhe falara com bondade e lhe dissera ”Lembre-se de mim”; agora, com o rapaz dormindo do lado de fora da porta, pronto para sofrer horas de desconforto por uma estranha, não parecia improvável que o comissário pudesse lembrar-se dela. Ela pensou pela primeira vez, com felicidade: Talvez eu tenha uma vida na cabeça das pessoas quando não estou lá, para me verem e falarem comigo. Tornou a olhar pela janela, mas a aldeia tinha sumido, bem como os morros verdes que ela vira; só o rio era o mesmo. Ela adormeceu.

A Sita. Warren foi cambaleando pelo trem. Não conseguia segurar o corrimão com a mão direita, pois o ombro continuava a doer, se bem que ela tivesse ficado sentada durante quase duas horas no corredor da terceira classe. Ela se sentia massacrada, fraca e bêbada, e com dificuldade concatenou as idéias, mas seu nariz continuava a farejar a caça. Nunca, em dez anos de jornalismo, dez anos de direitos da mulher, estupros e assassinatos, ela chegara tão perto de uma matéria exclusiva de primeira página, não uma história que só os pasquins se dariam ao trabalho de publicar, mas uma história que o próprio correspondente do The Times daria um ano de vida para saber. Nem todo mundo, pensou ela, com orgulho, seria capaz de agarrar aquele momento como ela fizera, estando bêbada. Enquanto ela seguia aos trancos pela fila de compartimentos de primeira classe, o triunfo lhe assentava estranhamente, em sua testa, como uma coroa torta.

A sorte favoreceu-a. Um homem saiu de um compartimento e dirigiu-se para o banheiro e, quando ela se encostou contra uma janela para deixá-lo passar, viu o homem de capa de chuva cochilando num canto, no momento, sozinho. Ele levantou os olhos e viu a Srta. Warren cambaleando um pouco para a frente e para trás, no vão da porta.

— Posso entrar? — perguntou ela. — Tomei o trem em Colônia e não consigo arranjar um lugar.

A voz dela estava baixa, quase meiga: podia estar chamando um cão querido para uma câmara de morte.

— O lugar está ocupado.

— Só um momento—disse a Srta. Warren. — Só para descansar as pernas. Que bom que o senhor fala inglês. Sempre tenho medo de viajar num trem só com uma porção de forasteiros. A gente pode querer qualquer coisa de noite, não é mesmo? — Ela sorriu para ele, com ar de brincadeira. — Imagino que o senhor seja médico.

—Já fui médico — confessou o homem.

— E está viajando para Belgrado?

Ele olhou para ela abruptamente, com uma sensação de malestar, e apanhou-a desprevenida, o vulto quadrado, de lã, debruçado para a frente, o brilho do anel de brasão, o rosto vermelho e ávido,

— Não — disse ele — Não tão longe assim.

— Eu só vou até Viena — disse a Srta. Warren. +’

Ele disse, devagar: V ;

— O que a fez pensar...?

Ele hesitou, não sabia se fazia bem em interrogá-la; não estava acostumado com o perigo sob a forma de uma solteirona inglesa meio alta de gim; sentia o cheiro do outro lado do carro. Os riscos que ele enfrentara antes só exigiam a cabeça abaixada, o dedo rápido, a mentira simples. A Srta. Warren também hesitava, e sua hesitação parecia um sopro de chama a um homem preso. Ela disse:

— Pensei que o tivesse visto em Belgrado.

— Nunca estive lá.

Ela abriu o jogo rudemente, largando os subterfúgios.

— Estive em Belgrado — disse ela — representando o meu jornal no julgamento de Kamnetz.

Mas ela já lhe dera todo o aviso de que precisava e ele encarou-a com uma total falta de interesse.

— O julgamento Kamnetz?

— Quando o General Kamnetz foi julgado por estupro. Czinner foi a principal testemunha da acusação. Mas, claro, o general foi absolvido. O júri foi subornado. O governo nunca permitiria uma condenação. Foi estupidez da parte de Czinner testemunhar. ..•.

— Estupidez? O interesse cortêz dele a irritou.

— Com certeza o senhor ouviu falar de Czinner. Tentaram assassiná-lo uma semana antes, quando ele estava sentado num café. Era chefe dos sociais-democratas. Fez o jogo deles, testemunhando contra Kamnetz; eles conseguiram uma ordem de prisão contra ele, por perjúrio, doze horas antes de terminar o julgamento. Simplesmente ficaram sentados aguardando a absolvição.

— Há quanto tempo aconteceu tudo isso?

— Há cinco anos.

Ele observou-a atentamente, pensando qual resposta a irritaria mais.

— Então é uma velha história. Czinner está em liberdade?

— Ele conseguiu escapar. Eu daria muita coisa para saber como. Daria uma história maravilhosa. Ele simplesmente desapareceu. Todos supuseram que ele tivesse sido assassinado. .

— E não foi?

— Não — disse Mabel Warren. — Ele escapou.

— Homem sabido.

— Não creio — disse ela, furiosa. — Um homem sabido nunca teria testemunhado. Que lhe importavam Kamnetz ou a criança? Ele foi um idiota quixotesco.

Um sopro de ar entrou pela porta aberta e o médico tremeu.

— Foi uma noite muito fria — disse ele.

Ela afastou o comentário com uma mão quadrada e gasta.

— E pensar — disse ela, com assombro — que ele não morreu. Enquanto o júri estava ausente, ele saiu do tribunal diante dos olhos da polícia. Eles ficaram ali, sem poder fazer nada até o júri voltar. Ora, juro que vi a ordem de prisão metida no bolso de Hartep. Ele desapareceu, podia nem ter existido. Tudo continuou exatamente como antes. Até mesmo Kamnetz.

Ele não conseguiu disfarçar um interesse amargo.

— É mesmo? Até mesmo Kamnetz?

Ela aproveitou sua vantagem falando em voz rouca, com uma imaginação inesperada.

— Sim, se ele voltasse agora, encontraria tudo exatamente igual; o relógio podia ter andado para trás. Hartep recebendo as mesmas propinas; Kamnetz de olho nas crianças; as mesmas favelas; os mesmos cafés com os mesmos concertos às seis e onze. Carl não está mais no Moscowa, só isso, o novo garçom é francês. Também há um cinema novo, perto do Parque. Ah, sim, há uma modificação. Construíram sobre a cervejaria de Kruger. Apartamentos para os funcionários públicos.

Ele ficou calado, sem poder enfrentar essa nova manobra de sua adversária. Então Kruger’s tinha acabado, com suas luzes feéricas, guarda-sóis coloridos e ciganos tocando suavemente de mesa em mesa ao crepúsculo. E Carl também se fora. Por um momento ele teria negociado com a mulher toda a sua segurança, e a de seus amigos, para saber de Carl: teria ele juntado suas gorjetas e se retirado para um novo apartamento perto do Parque, dobrando os guardanapos para a sua própria mesa, tirando a rolha para o seu cálice? Ele sabia que devia interromper a mulher bêbada e perigosa diante dele, mas não conseguia dizer coisa alguma, enquanto ela lhe dava notícias de Belgrado, o tipo de notícias que seus amigos em suas cartas semanais codificadas nunca lhe davam.

Havia ainda outras coisas que ele gostaria de perguntar-lhe. Ela dissera que as favelas continuavam as mesmas e ele sentia sob os pés os degraus íngremes descendo as ruelas estreitas; ele se curvava sob os trapos coloridos estendidos no caminho, punha o lenço junto da boca para tapar o cheiro de cachorros, crianças, carne estragada e excrementos humanos. Ele queria saber se ali se lembravam do Dr. Czinner. Ele conhecera todos os moradores com uma intimidade que eles teriam considerado perigosa se não confiassem tanto nele, se ele não fosse um deles, de nascimento. Mas como era, ele fora roubado, recebera confidencias, fora bem-vindo, assaltado e amado. Cinco anos eram muito tempo; eleja podia estar esquecido.

Mabel Warren prendeu a respiração, de repente.

— Falando francamente. Quero uma entrevista exclusiva para o meu jornal. ”Como escapei?” ou ”Por que estou voltando?”

— Uma entrevista?

As repetições dele a aborreciam; ela estava com uma dor de cabeça lancinante e sentia-se ”perversa”. Era a expressão que ela mesma usava: significava um ódio pelos homens, por todas as artimanhas e evasivas que eles tornavam desnecessárias, o modo como eles estragavam a beleza e andavam pelo mundo em sua própria fealdade. Eles se gabavam das mulheres que tinham tido; até mesmo o rosto desbotado, de meia-idade, diante dela, nos tempos dele tinha visto a beleza nua, as mãos que agarravam o joelho tinham sentido, explorado e gozado. E em Viena ela ia perder Janet Pardoe, que ia sozinha para um mundo onde governavam os homens. Elas a haviam de lisonjear e dar objetos brilhantes e baratos, como se ela fosse uma nativa, a ser ludibriada por meio de espelhos e contas de vidro. Mas não era o prazer deles que ela mais temia, era o de Janet. Sem amá-la de todo, ou apenas por uma hora, um dia, um ano, eles poderiam torná-la fraca de prazer, exclamando em voz alta o seu prazer. Enquanto ela, Mabel Warren, que a salvara de uma vida enterrada de governanta, e a tinha alimentado e vestido, que podia amá-la com a mesma paixão até à morte, sem se saciar, não tinha outro meio senão os seus lábios para exprimir o seu amor, e tinha sempre de encarar o fato de que não dava prazer algum, ganhando ela mesma nada mais que uma sensação amargurada de incapacidade. Agora, com a cabeça doendo, o cheiro de gim nas narinas, a consciência de sua feiúra avermelhada, ela detestava os homens com uma intensidade perversa, os homens e suas maneiras brilhantes e espúrias.

— O senhor é o Dr. Czinner.

Ela notou, com uma raiva crescente, que ele não se deu ao trabalho de negar sua identidade, dando-lhe com indiferença o nome que adotara para a viagem.

— Meu nome é John.

— Dr. Czinner—grunhiu ela, fechando os dentes grandes sobre o lábio inferior, num esforço para se controlar.

— Richard John, professor, em férias.

— Para Belgrado.

— Não. — Ele vacilou um momento. — Vou saltar em Viena.

Ela não acreditou, mas conseguiu reassumir a sua amabilidade, com esforço.

— Também vou saltar em Viena. Talvez permita que lhe mostre um pouco a cidade. — Um homem apareceu à porta e ela levantou-se. — Sinto muito. Este lugar é seu. — Ela sorriu para o outro lado da cabina, cambaleou quando o trem atravessou uma chave e não conseguiu conter um arroto que encheu a cabina, por alguns segundos, com o cheiro de gim e pó-de-arroz barato. — Tornarei a vê-lo antes de Viena. — disse ela, e, seguindo pelo corredor, encostou seu rosto vermelho contra o vidro frio e enfarruscado num espasmo de dor por sua bebedeira e sordidez. Ainda hei de pegá-lo, pensou ela, corando por causa do arroto, como se fosse uma mocinha num jantar. Hei de pagá-lo, de algum modo. Maldito seja.

Uma luz suave inundava as cabinas. Por um momento, seria possível acreditar que o sol era a expressão de alguma coisa que amava os homens e sofria por eles. Os seres humanos flutuavam como peixes em águas douradas, livres da ação da gravidade, voando sem asas, transparentes, num aquário de vidro. Rostos feios e corpos disformes eram transformados, se não em beleza, pelo menos em formas grotescas moldadas por uma afeição escaminha. Naquela onda dourada eles subiam e desciam, murmuravam e sonhavam. Não estavam presos, pois durante a hora do amanhecer não sabiam de sua prisão.

Coral Musker despertou pela segunda vez. Ela levantou-se logo e foi até à porta; o homem cochilava, cansado, os olhos abrindo-se com o ritmo do trem. A cabeça dela continuava curiosamente clara; era como se a luz dourada tivesse uma qualidade de penetração, de modo que ela podia compreender motivos que em geral ficavam ocultos, movimentos que em geral para ela não tinham importância nem significado. Então, enquanto o observava e ele tomava conhecimento dela, ela viu as mãos dele se estenderem num gesto que parou a meio do caminho; ela sabia que era um cacoete da raça dele que ele estava conscientemente reprimindo. Ela disse, baixinho:

— Sou uma peste. Você passou a noite toda aí.

Ele deu de ombros, fazendo pouco daquilo; parecia um dono de casa de penhores, avaliando por baixo um relógio ou um vaso.

— Por que não? Eu não queria que a incomodassem. Tinha de falar com o condutor. Posso entrar?

— Claro. O compartimento é seu.

Ele sorriu e não pôde resistir a abrir as mãos, e fazer uma leve mesura.

— Perdão, mas é seu. — Ele pegou um lenço do bolso, enrolou os punhos para cima, fez passes no ar. — Olhe. Veja. Um bilhete de primeira classe. — Um bilhete caiu do lenço e rolou no chão entre eles.

— Seu.

— Não, seu. — Ele começou a rir de prazer diante da consternação dela.

— O que quer dizer? Não posso aceitar. Puxa, deve ter custado várias libras.

— Dez — disse ele, gabando-se. — Dez libras. — Ele endireitou a gravata e disse, com importância: — Isso para mim não é nada.

Mas a confiança dele, seus olhos vaidosos a indispuseram. Ela disse, muito desconfiada:

— Aonde é que você quer chegar? O que pensa que eu sou? — O bilhete estava ali, entre eles; nada a levaria a apanhá-lo. Ele bateu o pé, enquanto o dourado desbotava permanecendo apenas uma mancha amarela no vidro e almofadas. — Vou voltar para o meu lugar.

Ele disse, em tom desafiador:

— Nem penso em você. Tenho mais em que pensar. Se não quiser o bilhete, pode jogá-lo fora.

Ela viu que ele a estava observando, os ombros novamente erguidos, num ar de jactância, descuidados, e começou a chorar quietinha, virando para a janela, o rio e uma ponte que passaram e uma faia despida, cheia de brotos prematuros. Esta é a minha gratidão por uma noite bem dormida; é assim que recebo um presente; e pensou, com vergonha e decepção, em antigos sonhos de cortesãs aceitando presentes de príncipes. E eu o agrido como uma garçonete cansada.

Ela o ouviu mexer-se atrás dela e viu que ele se abaixava para apanhar o bilhete; teve vontade de virar-se para ele e exprimir sua gratidão, dizendo: ”Seria divino sentar nessas almofadas macias a viagem toda, dormir no leito, esquecer que estou a caminho de um emprego, pensar que sou rica. Ninguém jamais foi tão bom para mim quanto você”, mas suas palavras anteriores, a vulgaridade de sua desconfiança interpunham-se como uma barreira de classe entre eles.

— Dê-me a sua bolsa — disse ele. Ela estendeu-a para trás, e sentiu os dedos dele abrirem o fecho. — Pronto — disse ele — eu o pus aí dentro. Não precisa usá-lo. Sente-se onde quiser. E durma aqui quando estiver cansada.

Estou cansada, pensou ela. Podia dormir aqui durante horas seguidas. Ela disse, numa voz que se esforçava por controlar as lágrimas:

— Mas como posso fazer isso?

—Ah — disse ele, eu arranjo outro compartimento. Só dormi aí fora esta noite por que estava preocupado com você, podia precisar de alguma coisa.

Ela recomeçou a chorar, encostando a testa na vidraça, de olhos semicerrados, de modo que suas pestanas formavam uma cortina entre ela e as duras advertências de mulheres velhas e secas, experientes: ”Só há uma coisa que os homens querem”. ”Nunca aceite presentes de um estranho.” O tamanho do presente é que constituía o perigo, diziam-lhe. Bombons e um passeio, mesmo no escuro, depois do teatro, não exigiam mais que beijos na boca e no pescoço, um vestido meio rasgado. A pequena tinha de retribuir, era esse o sentido de todos os conselhos; nunca se conseguia alguma coisa por nada. Romancistas como Ruby M. Ayres podiam dizer que a castidade valia mais do que rubis, mas a verdade é que valia o preço de um casaco de peles, mais ou menos. Não se podia aceitar um casaco de peles sem dormir com o homem. Se isso acontecesse, todas as mulheres mais velhas lhe diriam que o homem tinha motivo de queixa. E o judeu pagara dez libras.

Ele pôs a mão no braço dela.

— O que é que há? Conte-me. Está-se sentindo mal?

Ela lembrou-se da mão que sacudiu a almofada, o ruído de pés se afastando. Tornou a dizer:

— Como posso? — mas dessa vez foi uma súplica para ele falar e negar a experiência da pobreza acumulada.

— Olhe — disse ele — sente-se e deixe que lhe mostre umas coisa. Aquele é o Reno.

Ela viu que estava rindo.

— Isso eu adivinhei.

—Viu o rochedo que acabamos de passar, saindo para dentro do rio? É o rochedo de Lorelei. Heine.

— Como assim, Heine?

Ele disse, com prazer:

— Um judeu.

Ela começou a esquecer da decisão que seria obrigada a tomar e observou-o com interesse, procurando descobrir um estranho por trás das feições por demais conhecidas, os olhos pequenos, o nariz grande, os cabelos pretos e lustrosos. Ela tinha visto aquele homem demais, como um garçom de smoking sentado na primeira fila em teatros do interior, atrás de uma secretária nos escritórios dos agentes, nos bastidores nos ensaios, junto da porta do teatro à meia-noite; o mundo do teatro vibrava com sua voz suave, humilde e imperiosa; ele era mesquinho, com uma mesquinharia comum e habitual, com rompantes de generosidade, nunca de confiança. Um elogio num ensaio não significava nada, no escritório mais tarde ele riria, tomando um uísque: ”Aquela pequena, na fila da frente, não vale o que custa”. Nunca se mostrava zangado ou abusado, nunca falava mal de ninguém além de chamá-las de ”aquela pequena” e a dispensa surgia em forma de um bilhete escrito à máquina deixado num escaninho. Ela disse com brandura, em parte porque nenhuma dessas qualidades a impedia de gostar dos judeus precisamente por serem quietos, e em parte porque era dever das moças ser amável:

— Os judeus são artistas, não são? Puxa, quase toda a orquestra de Atta Girl era de rapazes judeus.

—Sim—disse ele, com uma amargura que ela não compreendeu.

— Gosta de música?

— Toco violino — disse ele — mas não muito bem.

Por um instante foi como se por trás dos olhos conhecidos se movesse uma vida estranha.

— Eu sempre tinha vontade de chorar quando tocavam Smny Boy—disse ela.

Ela sabia a distância que separava sua compreensão de sua expressão; ela sentia muito e podia dizer pouca coisa, e o que dizia muitas vezes era a coisa errada. Então ela viu a vida estranha morrer.

— Olhe — disse ele, com aspereza. —Acabou-se o rio. Deixamos o Reno. Não falta muito para o café da manhã.

Ela ficou um pouco sentida, com uma sensação de injustiça, mas não era dada a discussões.

—Vou ter de buscar a minha mala—disse ela.—Tenho uns sanduíches lá.

Ele fitou-a.

— Não vá me dizer que trouxe comida para três dias.

— Ah, não. Só o jantar de ontem e o café de hoje. Economizo uns oito xelins. .;

—Você é escocesa? Escute aqui. Vai tomar café da manhã comigo.

— O que mais espera que eu tome com você?

Ele riu-se.

— Vou-lhe dizer. Almoço, chá, jantar. E amanhã. Ela interrompeu-o, com um suspiro.

— Acho que você é um pouco biruta. Não fugiu de lugar nenhum, não?

Ele ficou triste e perguntou, com uma humildade súbita: —Você não me tolera? Ficaria aborrecida?

— Não — disse ela. — Não ficaria aborrecida. Mas por que faz tudo isso por mim? Não sou bonita. Acho que não sou inteligente.

Ela esperou, ansiosa, uma contradição. ”Você é linda, brilhante, espirituosa”, as palavras incríveis que a eximiriam de qualquer necessidade de pagar a ele ou recusar os presentes dele; o encanto e o espírito tinham maior valor do que qualquer presente que lhe oferecesse, enquanto que se uma moça fosse amada, até mesmo as velhas experientes e duras admitiriam o seu direito de receber e dar. Mas ele não negou nada. Sua explicação foi quase insultuosa, de tão simples.

—Posso falar com você com tanta facilidade. Sinto que a conheço.

Ela sabia o que isso significava.

— Sim — disse ela, com a dor seca e trivial da decepção — também eu pareço conhecê-lo — e o que queria dizer eram as escadas compridas, a porta do agente, e o jovem judeu amável, explicando com delicadeza e sem interesse que não tinha nada a oferecer-lhe, nada mesmo.

Sim, pensou ela, eles se conheciam; ambos tinham admitido o fato e isso os deixara pobres de palavras. O mundo mudava e passava por eles. As árvores e prédios erguiam-se e caíam contra um céu nublado azulpálido, as faias cedendo lugar aos olmos, e os olmos aos abetos, e os abetos às pedras; um mundo, como chumbo sobre um fogo quente, borbulhando em várias formas, ora como uma chama, ora como uma folha de trevo. Seus pensamentos permaneciam os mesmos, e não havia nada sobre o que falar, pois não havia nada a descobrir.

—Você não quer mesmo que eu tome o café da manhã com você — disse ela, procurando ser sensata e romper o constrangimento do silêncio deles. Mas ele não queria saber da solução dela.

— Quero, sim — disse ele.

Mas em sua voz havia uma franqueza que mostrou a ela que bastava ela ser dominadora, levantar-se, largá-lo e ir para o seu vagão, que ele não resistiria. Mas na mala dela havia sanduíches velhos e um pouco de leite de ontem numa garrafa de vinho, enquanto do corredor vinha o cheiro de café fervendo e pães brancos e frescos.

Mabel Warren serviu café para si, forte, puro e sem açúcar.

— É a melhor história que já desencavei — disse ela. — Há cinco anos eu o vi sair do tribunal enquanto Hartep ficava olhando, com a ordem de prisão no bolso. Campbell, do News, foi logo atrás dele, mas perdeu-o na rua. Ele não voltou para casa e não se ouviu mais falar nele até o dia de hoje. Todo mundo pensava que ele tivesse sido assassinado, mas nunca compreendi por que, se pretendiam assassiná-lo, iam emitir uma ordem de prisão contra ele.

— Suponhamos — disse Janet Pardoe, sem muito interesse — que ele não queira falar.

A Srta. Warren partiu um pãozinho.

— Nunca fracassei na vida.

—Você vai inventar alguma coisa?

— Não, isso serve para Savory, mas não para ele. — Ela continuou, com raiva: — Hei de obrigá-lo a falar. De algum modo. Entre aqui e Viena. Tenho quase doze horas. Vou arranjar um meio. — Ela acrescentou, pensativa: — Diz ele que é professor. Pode ser verdade. Isso seria uma boa história. E para onde vai? Diz que vai saltar em Viena. Se saltar, vou segui-lo. Vou segui-lo até Constantinopla, se necessário. Mas não creio. Ele vai é para a terra dele.

— Para a cadeia?

— Para o julgamento. Talvez esteja confiando no povo. Sempre foi querido nas favelas. Mas é um tolo se pensa que vão se lembrar dele. Cinco anos. Ninguém jamais é lembrado por tanto tempo.

— Querida, como você está mórbida.

Mabel Warren voltou com dificuldade ao seu ambiente, o café balançando na xícara, a mesa mexendo-se um pouco, e Janet Pardoe. Janet Pardoe tinha feito beicinho, protestando e se lastimando, mas agora estava olhando de esguelha para um judeu que estava numa mesa com uma pequena, comum aos olhos da Srta. Warren, mas com uma atração animada. Quanto ao homem, seus únicos atrativos eram a juventude e o dinheiro, mas eram o suficiente, pensou Mabel Warren, com um conhecimento de causa amargo, para prender a atenção de Janet.

—Você sabe que é verdade—disse ela, com uma irritação inútil.

Ela partiu outro pãozinho, com sua mão quadrada e gasta, enquanto a emoção aumentava, como ela sabia daquilo, grotescamente.

—Você me esquecerá em uma semana.

— Mas claro que não, querida. Ora, eu lhe devo tudo.

As palavras não satisfizeram Mabel Warren. Quando eu amo, pensou ela, não penso no que devo. O mundo para ela dividia-se entre os que pensavam e os que sentiam. Os primeiros consideravam os vestidos que lhes tinham sido comprados, as contas pagas, mas depois os vestidos passavam de moda, o vento levava o recibo de cima da mesa, e em todo caso a dívida tinha sido paga com um beijo ou outra gentileza, e os que pensavam se esqueciam; mas os que sentiam lembravam-se; não deviam nem emprestavam, davam o ódio ou o amor. Eu sou desses, pensou Mabel Warren, os olhos enchendo-se de lágrimas e o pão secando em sua garganta, sou dos que amam e se lembram sempre, que guardam a fé no passado com vestidos pretos ou faixas pretas, eu não me esqueço, e seus olhos pousaram por um momento na pequena do judeu, como um motorista cansado pode olhar a hospedaria comum; as cortinas vermelhas e a cerveja aguada, antes de continuar a viagem para o melhor hotel, com sua música e palmeiras. Ela pensou: ”Vou falar com ela. Tem um corpo bonito”. Pois, afinal de contas, não se podia viver sempre com uma voz baixa como música, um corpo alto como uma palmeira. A fidelidade não era o mesmo que a recordação; podia-se esquecer e ser fiel, e lembrar e ser infiel.

Ela amava Janet Pardoe, sempre amaria Janet Pardoe, protestou ela, intimamente; Janet para ela fora uma revelação do que pode ser o amor, desde a primeira noite de seu encontro num cinema na Kaiser Wilhelmstrasse, e no entanto, e no entanto... Elas se tinham unido numa aversão mútua pelo protagonista; pelo menos Mabel Warren dissera em voz alta, em inglês, para desabafar no silêncio tenso do cinema escuro: ”Não suporto esses homens untados”, e ouvira uma concordância baixa e musical. Mas mesmo então Janet Pardoe quisera ficar até o fim, o último abraço, a última luxúria velada. Mabel Warren convidou-a para ir beber alguma coisa, mas Janet Pardoe disse que queria ver o jornal, e ambas ficaram. Aquela primeira noite agora parecia ter revelado toda a personalidade de Janet, tudo o que havia a revelar, a concordância inevitável, que não importava ao que ela fizesse. Palavras ásperas ou desacordos nunca haviam perturbado seu estado de espírito sem expressão até a noite da véspera, quando ela pensara estar livre de Mabel Warren. A Srta. Warren disse com raiva, sem se dar ao trabalho de abaixar a voz de todo:

— Não gosto de judeus.

EJanet Pardoe, virando seus olhos grandes e luminosos para Mabel Warren, concordou:

— Nem eu, querida.

Mabel Warren suplicou-lhe com um desespero súbito: —Janet, depois que você se for, vai lembrar-se de nosso amor mútuo? Não deixará que um homem a toque?

Ela gostaria de uma discordância, a oportunidade de discutir, de dar motivos, afixar alguma espécie de lacre sobre aquela mente fluida, mas mais uma vez só conseguiu uma concordância ausente.

— Mas claro, querida. Como poderia deixar?

Se ela estivesse diante de um espelho, teria tido mais percepção de uma mente estranha da imagem ali, mas não, pensou a Srta. Warren, a satisfação de algo belo. Não adiantava pensar em si, seu cabelo áspero, as pálpebras vermelhas, a voz obstinadamente masculina e discordante; não havia ninguém, nem mesmo o jovem judeu, que não fosse seu rival físico. Depois que ela se fosse, Janet Pardoe permaneceria por pouco tempo um vazio lindo, quase nem existindo, exceto pela necessidade de dormir, de comer, de ser admirada. Mas em breve ela estaria recostada, partindo as torradas, dizendo: ”Mas claro que concordo. Sempre achei isso”. A xícara tremeu na mão de Mabel Warren, o café derramou e algumas gotas caíram na saia dela, já manchada de gordura e cerveja. Que importa, disse ela consigo, o que Janet faz desde que eu não saiba? Que importa se ela deixar um homem levá-la para a cama, contanto que ela volte? Mas essa última especificação a fez torcer-se de uma dor mental, pois será que Janet voltaria para uma mulher feia, apaixonada e já ficando velha? Ela contará a ele sobre mim, pensou Mabel Warren, sobre os dois anos que viveu comigo, os momentos felizes que tivemos, as cenas que fiz, até mesmo os poemas que escrevi para ela; e ele há de rir e ela há de rir, e eles hão de ir para a cama rindo. É melhor eu me convencer de que isso é o fim, que ela nunca voltará dessas férias. Nem sei se é mesmo o tio que ela vai visitar. Há muitos peixes no mar, pensou a Srta. Warren, partindo um pãozinho, notando desesperada as suas mãos maltratadas, como por exemplo a pequena com o judeu. Ela era tão pobre quanto Janet naquela noite no cinema; não era tão linda quanto Janet, pois era uma felicidade ficar sentada uma hora contemplando todos os movimentos do corpo de Janet. Janet penteando os cabelos, Janet trocando de vestido, Janet pondo as meias, Janet preparando uma bebida, mas ela provavelmente tinha o dobro da inteligência, por mais comum e astuciosa que fosse.

— Querida — perguntou Janet Pardoe, divertida—está se apaixonando por aquela coisinha?

O trem balançou e roncou ao entrar num túnel e sair de novo, eliminando a resposta de Mabel Warren, agarrando-a, como uma mão zangada pode pegar uma carta, rasgando-a e espalhando os pedaços, apenas uma frase caindo à vista e para cima: ”Para sempre”, de modo que ninguém a não ser Mabel Warren poderia ter dito qual fora o seu protesto, se ela jurara lembrar-se para sempre ou se declarara que não se podia ser fiel a uma pessoa para sempre. Quando o trem tornou a sair para o sol, os bules de café reluzindo e as toalhas brancas postas no meio de um pasto aberto, onde pastavam algumas vacas, e um bosque cerrado de abetos, a Srta. Warren se esquecera do que tinha querido dizer, pois reconheceu, num homem que entrou no carro-restaurante, o companheiro de Czinner. No mesmo instante a moça levantou-se. Ela e o rapaz tinham falado tão pouco que a Srta. Warren não conseguiu saber se se conheciam ou não; esperava que fossem estranhos, pois estava concebendo um plano que não só lhe permitiria conversar com a moça, como ainda a ajudaria a pegar Czinner de uma vez por todas para a primeira página do jornal, uma crucifícação exclusiva.

—Adeus — disse a pequena.

Mabel Warren, fítando-os com o olho experiente do observador, notou que o judeu estava com os ombros erguidos, como os do gatuno contumaz envergonhado, que, debruçado do banco dos réus, protesta de mansinho, mais por hábito do que por algum verdadeiro sentido de IIIjustiça, que não teve um julgamento justo. O observador displicente poderia ter visto em suas fisionomias o resultado de uma briga de namorados; Mabel Warren sabia que não era isso.

— Eu a verei de novo? — perguntou o homem, e ela respondeu:

— Se quiser, sabe onde me encontrar. Mabel Warren disse a Janet:

—Até logo. Tenho de fazer umas coisas.

Ela acompanhou a moça para fora do carro, por sobre o engate balançante entre os vagões, tropeçando e agarrando-se para se sustentar, mas tendo-se livrado da dor de cabeça com o calor e iluminação de sua idéia. Pois quando ela dissera que tinha de fazer umas coisas, ”coisas” não significava nada de vago, e sim um conceito entronizado e triunfante, do qual seu cérebro era o salão iluminado e uma multidão murmurante e aprovadora. Tudo se encaixava, isso ela sentia acima de tudo, e começou a calcular quanto espaço lhe concederiam em Londres; ela nunca tinha conseguido uma primeira página. Havia a Conferência do Desarmamento, a prisão de um par do reino por fraude, e um baronete que se casara com uma girl de Ziegfeld. Nenhuma dessas histórias era exclusiva; ela as lera na fita da agência de notícias, antes de ir para a estação. Vão colocar a Conferência do Desarmamento e a dançarina de Ziegfeld na última página, pensou ela. Não há dúvida de que a minha matéria há de ser a primeira do jornal, salvo se houver uma guerra na Europa ou morrer o rei, e, com os olhos fitos na pequena à sua frente, ela pensou na imagem do Dr. Czinner, cansado, modesto e antiquado, com seu colarinho duro e gravatinha apertada, sentado no canto de seu compartimento com as mãos agarrando o joelho, enquanto ela lhe contava uma porção de mentiras sobre Belgrado. ”Dr. Czinner Está Vivo”, pensou ela, trabalhando nas manchetes, mas isso não servia para o cabeçalho, pois cinco anos se haviam passado e não havia muita gente que se lembrasse do nome dele. ”A Volta do Homem Misterioso. Como o Dr. Czinner Escapou da Morte. História Exclusiva.”

— Meu bem — disse a Srta. Warren.

Ela estava ofegante, agarrada ao corrimão, aparentemente apavorada com o segundo engate, os metais sacudindo e o ruído dos vagões engatados puxando. A voz dela não se fez ouvir e ela teve de repetir a exclamação, num grito, o que não se coadunava bem com o papel que ela estava representando, o de uma senhora idosa lutando, ofegante. A pequena virou-se e voltou até junto dela, o seu rosto inexperiente branco e triste, sem esconder nada de qualquer estranho.

— O que é que há? Está doente?

A Srta. Warren não se mexeu, pensando intensamente do outro lado das placas de aço sobrepostas.

— Ah, meu bem, que bom que você é inglesa. Estou-me sentindo tão mal. Não consigo atravessar. Sou uma velha tola, eu sei. — Com amargura, mas por necessidade, ela se aproveitou de sua idade. — Se puder me dar a mão.

Ela pensou: para esse jogo eu devia ter cabelos compridos, seria mais feminino. Quem me dera que meus dedos não estivessem amarelados. Graças a Deus que não estou mais com cheiro de bebida.

A pequena voltou. .

— Claro. Não precisa ter medo. Segure o meu braço.

A Srta. Warren segurou, com dedos fortes como se estivesse segurando o pescoço de um cão lutando.

Quando elas chegaram ao outro corredor, ela tornou a falar. O barulho do trem estava reduzido, e ela conseguiu baixar a voz a um sussurro rouco.

— Se ao menos houvesse um médico no trem, meu bem. Sinto-me tão mal.

— Mas há, sim. Chama-se Dr. John. Perdi os sentidos ontem à noite e ele me ajudou. Deixe-me ir procurá-lo.

— Tenho tanto medo de médicos, meu bem — disse a Srta. Warren, com um ar de triunfo; era uma sorte incrível a pequena conhecer Czinner. — Fale um pouco comigo primeiro, até eu me acalmar. Como se chama, meu bem?

— Coral Musker.

— Chame-me de Mabel, Mabel Warren. Tenho uma sobrinha que é a sua cara. Trabalho num jornal em Colônia. Você precisa ir visitar-me, um dia. O apartamento mais bonitinho. Está de férias?

—Sou dançarina. Vou para Constantinopla. Uma pequena adoeceu num espetáculo inglês lá.

Por um momento, com a mão da pequena na dela, Mabel Warren teve vontade de ser generosa de uma maneira absurda e óbvia. Por que não desistir da esperança de conservar Janet Pardoe e convidar a pequena para romper o contrato e tomar o lugar de Janet como sua companheira paga?

—Você é tão bonitinha — disse ela, em voz alta.

— Bonitinha — disse Coral Musker. Sua incredulidade não foi suavizada por qualquer sorriso. — Está brincando comigo.

— Meu bem, você é tão boazinha.

—Se sou. — Ela falava com um toque de vulgaridade que por um momento estragou a visão de Mabel Warren. Coral Musker disse, com ardor: — Deixe para lá esse negócio de bondade. Repita que sou bonitinha.

Mabel Warren fez-lhe a vontade, com toda a convicção.

— Meu bem, você é um encanto.—A avidez espantada com que a moça a olhava era comovente; a palavra ”virgindade” passou pelas trevas urbanas da mente de Mabel Warren. — Ninguém nunca lhe disse isso? —Ansiosa e incrédula, Mabel Warren implorou: — Nem o seu jovem amigo do carro-restaurante?

— Eu mal o conheço.

— Acho que você tem juízo, meu bem. Não se deve confiar nos judeus.

Coral Musker disse, devagar:

— Acha que ele pensou isso? Que eu não gostei dele por ele ser judeu?

— Eles estão acostumados a isso, meu bem.

— Então vou dizer a ele que gosto dele, que sempre gostei de judeus.

Mabel Warren começou a praguejar baixinho, com um veneno obsceno e amargo.

— O que foi que disse?

— Você não vai me deixar assim até encontrar o médico? Olhe. Minha cabina fica no fim do corredor, com a minha sobrinha. Vou para lá se você for buscá-lo.

Ela ficou olhando enquanto Coral Musker desaparecia, e entrou no banheiro. O trem parou de repente e depois começou a andar para trás. A Srta. Warren reconheceu, pala vidraça, as torres de Würzburg, a ponte sobre o Reno; o trem estava desengatando os vagões de terceira classe, passando de uma linha para outra entre as guaritas de sinalização e os desvios. A Srta. Warren deixou a porta um pouco aberta, para poder ver o corredor. Quando Coral Musker e o Dr. Czinner apareceram, ela fechou a porta e esperou acabar o ruído de seus passos. Era uma boa caminhada até o fim do corredor; agora, se ela se apressasse, teria tempo suficiente. Ela saiu e, antes que pudesse fechar a porta, o trem pôs-se em movimento com um arranco e a porta bateu, mas nem Coral Musker nem o Dr. Czinner olharam para trás.

Ela correu estabanadamente, sendo atirada de um lado para outro do corredor pelo movimento do trem, machucando um pulso e um dos joelhos. Os passageiros voltando do café da manhã se comprimiam contra as janelas para deixá-la passar; alguns reclamaram dela em alemão, sabendo que ela era inglesa, e imaginando que ela não os compreendesse. Ela riu para eles com maldade, mostrando os grandes dentes da frente, e continuou a correr. Era fácil localizar a cabina, pois ela reconheceu a capa de chuva pendurada num canto, o chapéu mole, manchado. Sobre o banco estava um jornal que Czinner devia ter comprado um ou dois minutos antes da estação de Würzburg. Durante a breve corrida atrás de Coral Musker pelo corredor, ela pensara em todos os detalhes: o estranho que compartilhava aquela cabina estava tomando o café da manhã, e o Dr. Czinner, procurando-a na outra extremidade do trem, ainda ficaria ausente por três minutos, pelo menos. Durante esse tempo ela teria de descobrir o suficiente para obrigá-lo a falar.

Primeiro, a capa. Não havia nada nos bolsos a não ser uma caixa de fósforos e um maço de cigarros. Ela pegou o chapéu e passou os dedos pela fita e dentro do forro; por vezes já encontrara informações bem valiosas escondidas em chapéus, mas o do médico estava vazio. Depois ela chegou aos momentos perigosos de sua busca, pois o exame de um chapéu, mesmo nos bolsos da capa, podia ser disfarçado, mas tirar a valise da prateleira, abrir a fechadura com o canivete e levantar a tampa, a expunha demais à acusação de roubo. E uma das lâminas do canivete quebrou enquanto ela trabalhava na fechadura. Seu objetivo estava evidente a qualquer pessoa que passasse pelo compartimento, e ela suou um pouco na testa, tornando-se meio frenética, na pressa. Se me pilharem serei despedida, pensou ela; nem o pasquim mais barato da Inglaterra toleraria isso. E se eu for despedida, perco Janet, perco a possibilidade de Coral. Mas se eu conseguir, pensou ela, espiando, empurrando, raspando, não há nada que não me façam por uma história dessas; não seria demais pedir mais quatro libras por semana. Vou poder tomar um apartamento maior; e quando Janet souber, ela voltará, nunca me deixará. É a felicidade, a segurança, pensou ela, que conseguirei com isso; e a fechadura cedeu, a tampa levantou e seus dedos estavam sobre os segredos do Dr. Czinner. Um cinto de lã foi o primeiro.

Ela o levantou com cuidado e encontrou o passaporte dele. Dizia que o nome dele era Richard John e a profissão professor. Idade, 56 anos, Isso não prova nada, pensou ela, esses políticos estrangeiros duvidosos sabem onde comprar um passaporte. Ela o recolocou onde o encontrara e começou a passar os dedos por entre os ternos, no meio e no centro da valise, o lugar que os funcionários da alfândega nunca acham quando reviram o conteúdo de uma mala no fundo e dos lados. Ela esperava encontrar um folheto ou uma carta, mas só havia um velho Baedecker publicado em 1914: Konstantinopel und Kleinasien, Balkanstaaten, Archipel, Cypern, dentro de umas calças. Mas Mabel Warren era meticulosa: calculou que ainda tinha cerca de um minuto de segurança, e como não havia mais nada a examinar, abriu o Baedecker, pois era curioso encontrá-lo tão bem guardado. Ela olhou para a guarda e leu, decepcionada, o nome de Richard John escrito numa caligrafia pequena e complicada, com caneta de pena; embaixo havia um endereço, The School House, Great Birchington-on-

Sea, que valia a pena lembrar; o Clarim poderia mandar alguém para entrevistar o diretor. Ali poderia haver uma boa história oculta.

O guia parecia ter sido comprado num sebo, a capa muito usada e uma etiqueta de uma livraria na Charing Cross Road na guarda. Ela virou as páginas para Belgrado. Havia um mapa de uma página, que se soltara, mas não tinha marcas; examinou todas as páginas sobre Belgrado e depois todas as páginas sobre a Sérvia, todas as páginas sobre todos os estados que hoje fazem parte da Iugoslávia. Não havia sequer um borrão de tinta. Ela teria desistido de procurar se não fosse o lugar em que encontrara o livro. Obstinadamente, e contrariando as provas de seus olhos, acreditava que o livro tivesse sido escondido ali e que portanto devia haver alguma coisa a ocultar. Ela folheou as páginas com o polegar, com dificuldade, por causa dos muitos mapas dobrados, mas em uma das primeiras páginas encontrou algumas linhas, círculos e triângulos desenhados a tinta sobre o texto. Mas este tratava apenas de uma cidade desconhecida da Ásia Menor, e os desenhos poderiam ser os rabiscos de uma criança, com réguas e compassos. Certamente, se as linhas fossem de algum código, só um especialista poderia decifrá-las. Ele me venceu, pensou ela, com ódio, alisando a superfície da valise, não há nada aqui; mas não queria guardar o Baedecker. Ele o escondera, devia haver alguma coisa a ser encontrada. Ela já arriscara tanto que não fazia mal arriscar mais um pouco. Fechou a valise e a recolocou na prateleira, mas guardou o Baedecker dentro da blusa, prendendo-o debaixo do braço.

Mas não adiantava voltar ao seu lugar, pois encontraria o Dr. Czinner, voltando. Foi aí que se lembrou do Sr. Quin Savory, que fora o motivo de sua ida à estação, para ser entrevistado.

Ela conhecia bem a fisionomia dele, pelas fotos do Tatler, as caricaturas do New Yorker, os desenhos a lápis do Mercury. Olhou com cuidado pelo corredor, os olhos piscando um pouco, como míope, e depois afastou-se depressa. O Sr. Quin Savory não foi encontrado nos vagões da primeira classe, mas ela o descobriu num carro-leito da segunda classe. O queixo enterrado no sobretudo, uma das mãos em volta do cachimbo, ele olhava com olhinhos brilhantes as pessoas que passavam pelo corredor. Um padre cochilava no canto oposto.

A Srta. Warren abriu a porta e entrou. Sua atitude era dominadora; sentou-se sem ser convidada. Ela achava que estava oferecendo àquele homem algo que ele desejava, a publicidade, sem ganhar nada de equivalente em troca. Não havia necessidade de lhe falar com delicadeza, nem conduzi-lo a revelações, como ela procurava fazer com o Dr. Czinner; podia insultá-lo impunemente, pois a imprensa tinha o poder de vender os livros dele.

— É o Sr. Quin Savory? — perguntou ela, e, com o canto do olho, viu que a atitude do padre mudava para uma de atenção respeitosa; pobre-diabo, pensou, ficar impressionado com uma vendagem de 100.000, nós vendemos dois milhões, amanhã vinte vezes mais pessoas terão sabido do Dr. Czinner. — Represento o Clarion. Quero uma entrevista.

— Estou um pouco aturdido — disse o Sr. Savory, levantando o queixo e puxando o sobretudo.

— Não precisa ficar nervoso — disse a Srta. Warren, maquinalmente. Ela pegou o bloquinho na bolsa e abriu-o.—Apenas algumas palavras para o público inglês. Viajando incógnito?

—Ah, não, não — protestou o Sr. Savory. — Não sou da realeza. A Srta. Warren começou a escrever.

— Para onde vai?

— Bem, antes de tudo — disse o Sr. Savory, animado, como se estivesse satisfeito com o interesse da Srta. Warren, que já tinha voltado ao Baedecker e ao rabisco dos desenhos geométricos—para Constantinopla. Depois posso ir a Ancara, o Extremo Oriente, Bagdá, China.

— Está escrevendo um livro de viagens?

— Ah, não, não, não. O meu público deseja um romance. Será chamado Viajando no Exterior. Uma aventura no espírito Cockney. Estes países, civilizações — ele descreveu um círculo no ar com a mão — a Alemanha, Turquia, Arábia, todos ficarão em segundo plano com relação ao personagem principal, um dono de charutaria de Londres. Entende?

— Perfeitamente — disse a Srta. Warren, escrevendo depressa. ”O Dr. Richard Czinner, um dos maiores vultos revolucionários do período que se seguiu imediatamente à guerra, está a caminho da pátria, em Belgrado. Durante cinco anos o mundo ojulgou morto, mas durante esse tempo ele viveu na Inglaterra, como professor, dando tempo ao tempo.” Mas para quê? pensou a Srta. Warren. — Qual a sua opinião sobre a literatura moderna? — perguntou. —Joyce, Lawrence, tudo isso?

— Passará — disse o Sr. Savory, prontamente, com o efeito de um epigrama.

— Acredita em Shakespeare, Chaucer, Charles Reade, esse tipo de coisa?

— Eles viverão — declarou o Sr. Savory, com um ar solene.

— A boêmia? Não acredita nisso? Fitzroy Tavern? (”Foi redigida uma ordem de prisão contra ele”, escreveu ela, ”mas não podia ser aplicada até terminar o julgamento. Quando terminou o julgamento, o Dr. Czinner tinha desaparecido. Todas as estações foram vigiadas pela polícia, todos os carros fiscalizados. Não admira que a notícia de seu assassinato por agentes do governo se tivesse espalhado rapidamente.”) — O senhor não acha necessário vestir-se de modo extravagante, de chapéu preto desabado, paletó de veludo e tudo o mais?

— Acho isso fatal — disse o Sr. Savory. Eleja estava bem à vontade e olhava disfarçadamente para o padre, enquanto falava. — Não sou poeta. O poeta é um individualista. Pode vestir-se como quiser; só depende de si. O romancista depende de outros; é um homem comum com o poder de expressão. É um espião — acrescentou o Sr. Savory, com um toque de drama de confundir, caindo no sotaque Cockney. — Tem de observar tudo e passar despercebido. Se as pessoas o reconhecessem, não falariam, fariam pose para ele; ele não descobriria as coisas.

O lápis da Srta. Warren corria. Agora que ela conseguira que ele começasse a falar, podia pensar depressa: não tinha necessidade de apertá-lo com perguntas. Seu lápis descrevia símbolos sem significado, suficientemente parecidos com a taquigrafia para convencer o Sr. Savory de que seus comentários estavam sendo anotados por extenso, mas por trás do disfarce convincente de roscas e linhas, círculos e quadrados, a Srta. Warren estava pensando. Pensou em todos os aspectos possíveis do Baedecker. Fora publicado em 1914, mas estava num estado excelente; nunca fora muito usado, a não ser a parte relativa a Belgrado; o mapa da cidade fora tão manuseado que estava solto.

— A senhora está acompanhando essas opiniões? — perguntou o Sr. Savory, ansioso. — São importantes. Parecem-me a pedra fundamental da integridade literária. Pode-se possuir isso, sabe, e no entanto ainda vender cem mil exemplares.

A Srta. Warren, aborrecida com a interrupção, a custo conseguiu impedir-se de retrucar: ”E acha que venderíamos dois milhões de exemplares se contássemos a verdade?”.

— Muito interessante — disse ela. — O público se interessará. E o que o senhor considera como sua contribuição para a literatura inglesa? — Ela riu para ele, encorajando-o, e pousou o lápis.

— Isso certamente deve ser dito por outra pessoa — disse o Sr. Savory. — Mas seria de esperar, seria de esperar, que seja algo assim, devolver a alegria e a saúde à ficção moderna. Tem havido demais dessa IIItrospecção, tristezas demais. Afinal, o mundo é um lugar bom, de aventuras. — A mão ossuda que segurava o cachimbo bateu no joelho, sem poder fazer nada. — Trazer de volta o espírito de Chaucer — disse ele.

Uma mulher passou pelo corredor, e por um momento toda a atenção do Sr. Savory visivelmente foi captada, navegando atrás dela, pulando, pulando, como sua mão.

— Chaucer — disse ele. — Chaucer — e de repente, diante dos olhos da Srta. Warren, ele desistiu da luta, o cachimbo caiu no chão, e, abaixando-se para encontrá-lo, ele exclamou, irritado:

— Diabo! Que diabo!

Era um homem que trabalhava demais, atormentado por uma personalidade que não era a sua, por curiosidades e desejos, um homem à beira de um colapso nervoso. A Srta. Warren exultou. Não que ela o odiasse, mas o que ela odiava era todo sucesso declarado, quer significasse a venda de 100.000 exemplares, ou alcançar 480.000 km por hora, que faziam dela a entrevistadora e o homem o entrevistado condescendente. O fracasso desse mesmo tipo absoluto já era outro assunto, pois então ela representava o mundo vingador, penetrando nas celas de prisão, nos saguões de hotel, nas salinhas acanhadas. Então, com o homem à sua mercê entre as plantas em vasos e o piano, e quando ele estava acuado contra o retrato do casamento e o relógio de mármore, ela podia quase amar sua vítima, fazendo-lhe perguntinhas íntimas, mal escutando as respostas. Bem, não havia uma distância tão grande assim, pensou ela, com satisfação, entre o Sr. Quin Savory, autor de The Great Gay Round, e um fracassado desses.

Ela atacou a frase dele.

— Saúde — disse ela. — É essa a sua missão? Nada desse negócio de ”impróprio para menores”. Dão seus livros como prêmios escolares.

A ironia dela fora um pouco óbvia demais.

— Eu me orgulho disso — disse ele. — A nova geração foi criada segundo tradições sadias.

Ela notou seus lábios secos, o olhar de esguelha em direção ao corredor. Vou incluir isso sobre tradições sadias, pensou ela, o público há de gostar, James Douglas vai gostar, e gostarão mais ainda quando ele for um caso de Hyde Park, pois é o que será daqui a alguns anos. Estarei viva para lembrar a eles. Ela se orgulhava de seu poder de profetizar, embora ainda não tivesse vivido o suficiente para ver cumpridas as suas profecias. Era só pegar uma expressão do presente, uma linha de saúde precária, um tom de voz, um gesto, que para a pessoa pouco observadora não esclareceria mais que as linhas e círculos no Baedecker, e encaixá-los com o que se sabia do ambiente do indivíduo, seus amigos e mobília, a casa em que morava, e podia-se ver o futuro, seu destino mesquinho à espreita.

— Meu Deus! — disse a Srta. Warren. — Peguei.

O Sr. Savory deu um pulo.

’ — O que é que pegou? — perguntou. — Resfriado?

— Não, não — disse a Srta. Warren. Estava grata a ele pela iluminação que inundava sua mente, sem deixar qualquer canto escuro em que o Dr. Czinner se pudesse esconder. — Uma entrevista tão excelente, é o que eu queria dizer. Já sei como devo apresentá-lo.

— Posso ver uma prova?

— Ah, o nosso jornal não é um semanário. O nosso público não pode esperar. Faminto, sabe, pela parte do leão. Não há tempo para provas. O povo de Londres estará lendo a entrevista quando estiver tomando o café da manhã, amanhã.

Ela o deixou com essa garantia do interesse público, embora preferisse ter semeado na mente fervilhante dele, já se debatendo com o problema de mais meio milhão de palavras populares, a sugestão de como as pessoas esquecem, como compram num dia aquilo de que se riem no dia seguinte. Mas ela não tinha tempo a perder: uma caça mais importante a chamava, pois acreditava ter descoberto o segredo do Baedecker. A consideração de suas profecias é que lhe dera a pista. O mapa estava solto, o papel num Baedecker, ela se lembrava, era fino e não bastante opaco; se a pessoa pusesse o mapa sobre os desenhos à pena na página anterior, as linhas apareceriam.

Meu Deus, pensou ela, não é qualquer pessoa que pensaria nisso. Merece uma bebida. Vou arranjar uma cabina vazia e chamar o garçom. Ela não queria nem que Janet Pardoe partilhasse desse triunfo; preferia ficar a sós com um cálice de Courvoisier, onde pudesse pensar tranqüilamente e planejar o próximo passo. Mas quando encontrou o compartimento vazio, continuou a agir com moderação; só tirou o Baedecker de dentro da blusa depois que o garçom lhe levou o conhaque. E mesmo assim, não o tirou logo. Levou o cálice ao nariz, deixando que as exalações alcançassem o ponto, no fundo do nariz, em que o cérebro parecia ser unido ao nariz. O álcool que ela bebera na noite anterior não estava todo dissipado. Revolveu-se como o vapor na terra num dia quente e úmido. Tonta, pensou ela, sinto-me bem tonta. Através do vidro e do conhaque, viu o mundo exterior, tão plano e regular que nunca parecia mudar, campos arrumados e árvores e sitiozinhos. Seus olhos, míopes e já injetados com os vapores do conhaque, não percebiam os detalhes que mudavam, mas notou o céu, cinza e sem nuvens, e o sol pálido. Não me surpreenderia se nevasse, pensou, e olhou para ver se a roda do aquecimento estava toda virada. Depois tirou o Baedecker de dentro da blusa. Não faltava muito para o trem chegar a Nuremberg, e ela queria estar com tudo resolvido antes de embarcarem novos passageiros.

Ela adivinhara corretamente, isso pelo menos era certo. Quando colocou o mapa e a página marcada na luz, as linhas passavam por certas ruas, os círculos rodeavam edifícios públicos: o correio, a estação da estrada de ferro, os tribunais de justiça, a cadeia. Mas o que significava tudo isso? Ela supusera que o Dr. Czinner estivesse regressando para fazer algum tipo de demonstração pessoal, talvez para submeter-se ao julgamento por perjúrio. Nesse contexto, o mapa não tinha significado algum. Ela tornou a examiná-lo. As ruas não estavam marcadas ao acaso, havia um padrão, um ninho de quadrados equilibrados sobre outro quadrado e este era a zona das favelas. O quadrado seguinte era formado de um lado pela estação da estrada de ferro, de outro pelo correio, do terceiro pelos tribunais de justiça. Dentro disso os quadrados logo se tornavam menores, até cercarem apenas a prisão.

Um barranco ergueu-se íngreme dos dois lados do trem e o sol desapareceu; as fagulhas, vermelhas contra o céu nublado, batiam nas vidraças como granizo, e o escuro envolveu os vagões enquanto o trem comprido entrou rugindo num túnel. Revolução, pensou ela, nada menos que isso, com o mapa ainda erguido para captar a primeira luz que aparecesse.

O ronco diminuiu e a luz voltou devagar. O Dr. Czinner estava de pé no vão da porta, um jornal debaixo do braço. Estava novamente com a capa de chuva, e ela olhou com desprezo os óculos, os cabelos grisalhos e bigodes ensebados, a gravatinha apertada. Ela largou o mapa e riu para ele.

— E então?

O Dr. Czinner entrou e fechou a porta. Sentou-se diante dela, sem qualquer demonstração de hostilidade. Ele sabe que o peguei, pensou ela; será razoável? De repente, ele perguntou:

— O seu jornal aprovaria?

— Claro que não—disse ela. — Eu seria despedida aihanhã. Mas quando tiverem a minha história, serão outros quinhentos. — Ela acrescentou, com uma insolência calculada: —Acho que o senhor vale quatro libras por semana, para mim.

O Dr. Czinner disse, pensativo, sem raiva:

— Não pretendo contar-lhe coisa alguma. Ela fez um gesto com a mão.

—Já me contou muita coisa. Tenho isso aqui. — Ela bateu no Baedecker. — O senhor era professor estrangeiro em Great Birchingtonon-Sea. Conseguiremos a história do seu diretor. — Ele baixou a cabeça. — E depois — disse ela — temos este mapa. E esses rabiscos. Dois e dois são quatro.

Ela esperava alguns protestos de medo ou indignação, mas ele continuava a matutar sobre o primeiro palpite dela. A atitude dele intrigou-a e por um momento angustiado ela pensou: Estarei perdendo a melhor história? Será que o melhor não está aqui, mas sim na escola do litoral sudeste, no meio dos prédios de tijolos vermelhos, mesas de pinho, tinteiros e sinos rachados, e o cheiro de roupas de meninos? A dúvida deixou-a menos segura de si e ela falou com delicadeza, com mais brandura do que pretendia, pois era difícil modular sua voz rouca:

—Vamos nos unir—grunhiu ela, com um jeito cativante. — Não estou aqui para prejudicá-lo. Não quero intrometer-me em sua vida. Se o senhor tiver êxito, a minha matéria terá mais valor ainda. Prometo não liberar nada até o senhor me dar licença. — Ela disse, em tom queixoso, como se fosse uma pintora acusada de depreciar a tinta: — Eu não prejudicaria a sua revolução. Ora, seria um artigo e tanto.

A idade estava avançando rapidamente sobre o Dr. Czinner. Era como se ele tivesse afastado com um sucesso momentâneo cinco anos de cheiros de pinho e o gemido do giz nos quadros-negros, só para sentarse depois num vagão de estrada de ferro e permitir que os anos detidos o dominassem, não um a um, mas todos juntos. No momento ele era um velho, a cabeça balançando, para adormecer, o rosto tão cinzento quanto o céu de neve sobre Nuremberg.

— Em primeiro lugar—disse a Srta. Warren — quais são os seus planos? Estou vendo que o senhor conta muito com as favelas.

Ele sacudiu a cabeça.

— Não conto com ninguém.

— Está controlando tudo? —Eu menos que tudo.

A Srta. Warren bateu asperamente no joelho.

— Quero respostas simples. — Mas teve a mesma resposta:

— Não lhe direi nada.

Ele parece mais ter 70 anos do que 56, pensou ela; está ficando surdo, não compreende o que estou dizendo. Ela estava muito paciente, tinha certeza de que não era o sucesso que ela estava enfrentando, parecia demais com o fracasso, e o fracasso ela podia amar; podia mostrar-se meiga e dizer palavras doces para o fracasso, cortejando-o com palavrinhas macias, contanto que no fim ele falasse. Um homem fraco por vezes se afastara com a impressão de que a Srta. Warren era sua melhor amiga. Ela debruçou-se e bateu no joelho do Dr. Czinner, pondo em seu sorriso toda a amabilidade de que era capaz. — Estamos juntos nisso, Doutor. Não compreende? Podemos até ajudá-lo. A opinião pública é sinônimo do Clarion. Sei que o senhor tem medo de sermos indiscretos, de publicarmos a sua história amanhã e o governo ser avisado. Mas eu lhe garanto que não escreveremos nem um parágrafo na seção literária até o senhor começar a agir. Aí quero poder escrever bem através da página do meio: ”A História Pessoal do Dr. Czinner. Exclusivo para o Clarion”. Veja, isso não é irrazoável.

— Não há nada que eu queira dizer.

A Srta. Warren puxou a mão. Será que o pobre coitado, pensou ela, achava que ia se interpor entre ela e mais quatro libras por semana, entre ela e Janet Pardoe? Ele tornou-se, velho e burro e obstinado, no banco em frente a ela, a imagem de todos os homens que ameaçavam a felicidade dela, que estavam se acercando de Janet com dinheiro, quinquilharias e risos diante da dedicação de uma mulher a outra mulher. Mas a imagem estava em seu poder; ela podia destruir a imagem. Não fora um ato de maldade inútil de Cromwell, destruir as estátuas. Parte do poder da Virgem residia na estátua da Virgem, e depois da cabeça decepada e um membro arrancado e as sete espadas quebradas, menos velas eram acesas e as orações rezadas em seu altar não eram tantas. Um homem como o Dr. Czinner arruinado por uma mulher, e menos pequenas burras como Coral Musker acreditariam que toda a força e astúcia residiam no homem. Mas ela lhe deu mais uma oportunidade, devido à idade dele, e porque para ela ele cheirava a fracasso.

— Nada?

— Nada.

Ela riu-se, zangada.

— O senhor já disse um bocado. — Ele não se impressionou, e ela explicou devagar, como a um débil mental: — Chegaremos a Viena hoje à noite às 20:40. Às nove estarei telefonando para a redação em Colônia. A minha matéria chegará a Londres às 22:00.0 jornal só vai ser impresso para a primeira edição de Londres às 23:00. Mesmo se a mensagem se atrasar, é possível alterar a primeira página para a última edição até às 3:00. O meu artigo será lido amanhã, ao café da manhã. Todos os jornais de Londres mandarão um repórter ao Ministério da Iugoslávia às nove da manhã. Antes do almoço, amanhã, toda a história será conhecida em Belgrado, e o trem só deve chegar lá às 18:00. E não se deixará muito a imaginar. Pense no que poderei dizer: ”O Dr. Richard Czinner, o famoso agitador socialista, que desapareceu de Belgrado há cinco anos, por ocasião do julgamento de Kamnetz, está a caminho de casa. Embarcou no Expresso do Oriente em Ostende na segunda-feira, e o trem deve chegar em Belgrado esta noite. Acredita-se que sua chegada coincida com uma revolta socialista com base nos bairros favelados, onde o nome do Dr. Czinner nunca foi esquecido, e provavelmente será feita uma tentativa para dominar a estação, os correios e a cadeia”. — A Srta. Warren parou. — É essa a história que vou telegrafar. Mas se o senhor disser mais alguma coisa, direi para eles suspenderem a matéria até o senhor dar a ordem. Estou-lhe oferecendo um método honesto.

— Estou-lhe dizendo que vou saltar do trem em Viena.

— Não acredito.

O Dr. Czinner prendeu a respiração, olhando pela vidraça para o céu cinzento e luminoso, um conjunto de chaminés de fábrica, e um grande tambor de metal negro. O compartimento encheu-se do cheiro de gás. Havia repolhos plantados nos loteamentos, no meio do ar poluído, grandes buquês salpicados de geada. Ele disse, tão baixinho que ela teve de debruçar-se para ouvir as palavras:

— Não tenho motivo algum para temê-la.

Ele estava calmo, seguro, e sua calma mexeu com os nervos dela. Ela protestou inquieta e com raiva, como se o criminoso no banco dos réus, o homem que chorava junto das plantas em vasos, de repente tivesse sido dotado de uma reserva de força misteriosa:

— Posso fazer o diabo com o senhor. O Dr. Czinner disse, devagar:

— Vainevar.

O trem estava entrando em Nuremberg, devagar, e as grandes locomotivas enfileiradas de ambos os lados refletiam o aspecto de aço úmido do céu.

— Não — disse ele — não há nada que possa fazer que me prejudique. — Ela tocou no Baedecker e ele comentou, com um rasgo de humor: — Guarde-o como souvenirde nosso encontro.

Ela então teve certeza de que seu receio estava justificado: ele estava fugindo dela, e ela o olhou com raiva. Se eu pudesse prejudicálo, pensou, vendo no espelho atrás dele o sucesso, na pessoa de Janet Pardoe, afastando-se, linda e perdida para sempre, por ruas compridas e os saguões de hotéis caros; se eu pudesse prejudicá-lo.

Ela ficou com mais raiva ainda ao ver que estava muda e o Dr. Czinner controlando a situação. Ele deu-lhe o jornal e perguntou:

— Sabe ler alemão? Então leia isto.

Enquanto o trem ficou na estação de Nuremberg, vinte minutos, ela ficou olhando para aquilo. A mensagem que o jornal continha a enfureceu. Ela estava preparada para algum sucesso extraordinário, a abdicação de um rei, a derrubada de um governo, um clamor popular pela volta do Dr. Czinner, o que o teria elevado à situação do entrevistado condescendente. O que ela leu foi mais extraordinário, um fracasso que o colocava completamente fora do poder dela. Muitas vezes ela fora tiranizada pelos vencedores, mas nunca por um fracassado.

”Levante comunista em Belgrado”, foi o que ela leu. ”Ontem à noite, tarde, foi feita uma tentativa por um bando de comunistas armados para se apossarem da estação e da cadeia em Belgrado. A polícia foi tomada de surpresa, e durante quase três horas os revolucionários ficaram de posse absoluta do correio-geral e dos pátios de mercadorias. Todas as comunicações telegráficas com Belgrado foram interrompidas até esta madrugada. As 2:00, porém, o nosso representante em Viena falou pelo telefone com o Coronel Hartep, o Chefe de Polícia, e soube que a ordem fora restabelecida. Os revolucionários eram pouco numerosos e faltava-lhes um bom líder; seu assalto à cadeia foi rechaçado pelos guardas, e durante algumas horas eles ficaram parados no correio, aparentemente na esperança de que os moradores dos bairros mais pobres da capital corressem em seu auxílio. Enquanto isso o governo pôde convocar reforços policiais, e com a ajuda de um pelotão de soldados, e algumas peças de artilharia, a polícia recapturou os correios depois de um cerco que durou pouco mais de três quartos de hora.” Esse resumo estava impresso em tipos graúdos: embaixo, em tipos pequenos, havia uma descrição detalhada do levante. A Srta. Warren ficou ali sentada, olhando para aquilo: franziu a testa um pouco e sentiu a boca seca. Seu cérebro estava limpo e vazio. O Dr. Czinner explicou:

— Eles estavam três dias adiantados. A Srta. Warren disse bruscamente:

— O que mais o senhor poderia ter feito?

— O povo me teria seguido.

—Já se esqueceram do senhor. Cinco anos é um bocado de tempo. Os rapazes eram crianças quando o senhor fugiu.

Cinco anos, pensou ela, vendo-os caírem sobre ela inevitavelmente, nos dias futuros, como a chuva interminável de um inverno úmido, observando mentalmente o rosto de Janet Pardoe, preocupando-se com a primeira ruga, os primeiros fios grisalhos, ou então a pele lisa, puxada e apertada, e os cabelos escuros tintos de três em três semanas, embranquecendo nas raízes.

— O que vai fazer agora? — perguntou ela.

—Já lhe disse. Vou saltar em Viena — a presteza e a simplicidade da resposta dele encheram-na de suspeitas.

— Que bom — disse ela — estaremos juntos. Podemos conversar. Agora o senhor não terá objeções a uma entrevista. Se estiver sem dinheiro, o nosso escritório em Viena lhe adiantará alguma coisa. — Ela sentiu que ele a examinava mais atentamente do que nunca.

— Sim — disse ele, devagar — talvez possamos conversar.

Dessa vez ela teve certeza de que ele estava mentindo. Ele vai esquivar-se, pensou ela, mas era difícil perceber o motivo. Ele não tinha outra opção senão saltar em Viena ou em Budapeste; não seria seguro viajar mais além. Então ela lembrou-se dele no julgamento de Kamnetz, plenamente convicto de que júri algum condenaria o homem, e no entanto dando o seu testemunho perigoso e inútil, enquanto Hartep esperava com a ordem de prisão. Ele é bastante maluco para fazer qualquer negócio, pensou ela, e imaginou se, por trás de seu silêncio, eleja não estaria no banco dos réus com os companheiros, proferindo a sua defesa de olho no público. Se ele continuar no trem, pensou ela, eu também sigo, grudada a ele, hei de ter essa história, mas ela sentia-se curiosamente fraca e irresoluta, pois não lhe restava mais nenhuma ameaça. Ele estava vencido, recostado em seu canto, velho e sem esperança, o jornal juntando poeira no chão entre eles, e estava triunfante, vendo-a sair do vagão, o Baedecker esquecido no banco, recebendo em silêncio a declaração dela:

— Até Viena.

Depois que a Srta. Warren saiu, o Dr. Czinner abaixou-se para pegar o jornal. A manga dele prendeu num copo vazio e o copo despedaçou-se no chão. A mão dele pousou no jornal e ele fitou o copo no chão, sem conseguir concentrar seus pensamentos, sem poder resolver o que tinha a fazer, pegar o jornal ou juntar os cacos de vidro, afiados e perigosos. Depois colocou o jornal dobrado cuidadosamente sobre os joelhos e fechou os olhos. Em suas trevas pessoais, estava atormentado pelos detalhes da história que a Srta. Warren tinha lido: conhecia todas as voltas da escada dos correios, podia ver o ponto exato onde fora feita a barricada. Os trapalhões idiotas, pensou ele, procurando sentir ódio pelos homens que tinham destruído seus sonhos. Eles o haviam arruinado com eles. Tinham-no deixado numa casa vazia que não conseguia arranjar morador porque os velhos espectros por vezes se faziam ouvir nos aposentos, e o próprio Dr. Czinner agora nem era o espectro mais recente.

Se um rosto espiasse pela janela ou uma voz fosse ouvida do andar de cima, ou um tapete sussurrasse, poderia ter sido o Dr. Czinner procurando voltar a uma vida consciente depois de cinco anos de sepultamento, rodeando os cantos das escrivaninhas, expondo sua transparência diante do quadro-negro das crianças insubordinadas, encolhido na capela num ofício em que o homem vivo nunca acreditara, pedindo a Deus, junto com o povo arquejante e discordante, para dispensá-lo com Sua bênção.

E por vezes parecia que um espectro pudesse retornar à vida, pois ele aprendera que como espectro também podia sofrer. O espectro tinha recordações; sabia lembrar-se do Dr. Czinner que fora tão amado que, por algum tempo, merecera que um assassino pago apontasse um revólver à sua cabeça. Era essa a recordação de que mais se orgulhava, entre todas, de quando, sentado na cervejaria no canto pobre do parque, ouvira o tiro estilhaçar o espelho atrás de si e ver que aquela era a prova final do quanto os pobres o amavam. Mas o espectro de Czinner, encolhido num abrigo enquanto o vento de leste varria a costa e o mar cinzento jogava as pedrinhas, aprendera a chorar com a recordação antes de voltar ao prédio de tijolos vermelhos para o chá e as crianças, que sabiam criar sutis farpas de dor. Mas depois do ofício final e dos hinos e apertos de mão costumeiros, o espectro de Czinner novamente tocou no corpo de Czinner; um toque foi só o que conseguiu. Agora não restava nada senão saltar do trem em Viena e voltar. Dentro de dez dias as vozes estariam cantando: ”Senhor, recebei-nos com Vossa bênção, novamente aqui reunidos”.

O Dr. Czinncr virou uma página e leu um pouco. O máximo que ele conseguia sentir por aqueles homens confusos, em vez do ódio, era a inveja; não podia odiar enquanto se lembrasse de detalhes que nenhum jornalista achava que valesse a pena descrever, como fato do homem que, depois de disparar seu último tiro, fora trespassado pela baioneta junto da sala dos arquivos, ser canhoto e amar a música de Délius, a música idealista de um homem sem fé em nada a não ser a morte. E o outro, que saltou da janela do terceiro andar do posto telefônico, cuja mulher fora ferida e cegada num acidente de fábrica e a quem ele amava e a quem era tristemente e involuntariamente infiel.

Mas o que me resta fazer? O Dr. Czinner largou o jornal e começou a andar pela cabina, três passos até à porta, três passos no outro sentido até à janela, para cima e para baixo. Caíam alguns flocos de neve, mas o vento soprava a fumaça da locomotiva de volta contra a janela, e se os flocos chegavam a tocar no vidro, já estavam cinzentos como pedacinhos de papel. Mas a 200m de altura, nos morros que chegavam até Neumarkt, a neve começou a amontoar-se como canteiros de flores brancas. Se tivessem esperado, se tivessem esperado, pensou o Dr. Czinner e enquanto seus pensamentos passavam dos mortos aos homens que tinham vivido para serem julgados, a impossibilidade de sua própria fuga fácil apresentou-se com tal força que ele exclamou, num sussurro: ”Tenho de ir até eles. Mas de que adiantava? Ele tornou a sentar e começou a argumentar consigo mesmo, alegando que o gesto teria um sentido prático. Se eu me entregar e for julgado com eles, o mundo escutará a minha defesa como nunca escutaria a mim, seguro na Inglaterra. O fortalecimento de sua resolução encorajou-o; ele ganhou mais esperança; o povo, pensou, se levantará para salvar-me, embora não se tenha mexido pelos outros. Novamente o espectro de Czinner sentiu-se perto da vida, um calor tocou sua transparência gelada.

Mas havia muitas coisas a ponderar. Primeiro, ele tinha de fugir da jornalista. Poderia conseguir livrar-se dela em Viena; não devia ser difícil, pois o trem só chegava quase às 21:00, e a essa hora da noite, pensou ele, ela certamente estará bêbada. Ele tremeu um pouco, de frio e diante da idéia de algum outro contato com aquela mulher rouca e perigosa. Bem, pensou ele, pegando o Baedecker e largando o jornal no chão, o veneno dela esgotou-se. Ela parecia odiar-me; por que seria? Algum estranho orgulho da profissão, imagino. Acho melhor voltar para o meu compartimento. Mas quando ele o alcançou, continuou a andar, as mãos atrás das costas e o Baedecker debaixo do braço, absorto com a idéia de que os anos espectrais tinham passado. Estou vivo de novo, pensou ele, porque tenho consciência da morte como uma possibilidade futura, quase uma certeza, pois não é provável que me deixem escapar de novo, mesmo que eu me defenda e aos outros com palavras de ouro. Rostos conhecidos se levantavam quando ele passava, mas não conseguiam interromper seus pensamentos absortos. Estou com medo, pensou ele, estou com medo.

Quem é aquele Savory? — perguntou Janet Pardoe. - Bem—disse o Sr. Savory - não conheço nenhum outro. — TheGreatGayWhirl.

— Round— corrigiu o Sr. Savory, bruscamente. — Great Gay Found. — Ele pôs a mão no cotovelo dela e a foi conduzindo pelo corredor. — Está na hora de tomar um xerez. Imagine, você ser aparentada com a mulher que me entrevistou. Filha? Sobrinha?

— Bem, não sou exatamente parente — disse Janet Pardoe. — Sou acompanhante dela.

— Não vale a pena — e os dedos do Sr. Savory pegaram o braço dela com mais firmeza. —Arranje outro emprego. Você é muito jovem. Não é saudável.

— Como você tem razão — disse Janet Pardoe, parando um instante no corredor, e olhando-o com olhos brilhantes de admiração.

A Srta. Warren estava escrevendo uma carta, mas viu quando eles passaram. Tinha posto o bloco no joelho, e a caneta saltava sobre o papel, espalhando tinta e fazendo furos. Querida Prima Con, escreveu ela, estouIhe escrevendo porque não tenho nada melhor para fazer. Estou no Expresso do Oriente, mas não vou até Constantinopla. Vou saltar em Viena. Mas isso já é um outro assunto. Você pode me arranjar cinco metros de veludo crespo. Cor-de-rosa. Vou mandar redecorar o apartamento de novo, enquanto Janet está fora.

Ela está neste mesmo trem, mas vou deixá-la em Viena. Um trabalho e tanto, na verdade, perseguir um velho detestável pela Europa afora. The Great Gay Round está a bordo, mas claro que você não lê nada. E uma dançarinazinha bonitinha chamada Coral, que, acho, tomarei como companheira. Não consigo me resolver se vou ou não redecorar o apartamento. Dizjanet que só vai passar uma semana fora. De modo nenhum pague mais do que oito e onze o metro. Acho que o azul ficaria bem para mim, mas claro que não marinho. Esse homem de quem lhe falei, escreveu a Srta. Warren, acompanhando Janet Pardoe com os olhos, fincando a pena no papel, acha que é mais esperto do que eu, mas você sabe tão bem quanto eu, não é, Con, que posso fazer o diabo com quem pensa assim. Janet é uma chata. Estou pensando em arranjar uma outra companheira. Há uma artistazinha neste trem que serviria, você devia ver, o corpo mais lindo, Con. Você a admiraria tanto quanto eu. Não muito bonita, mas pernas lindas. Acho que preciso mesmo redecorar o meu apartamento. E por falar nisso, pode dar até dez e onze por aquele veludo crespo. Pode ser que eu vá a Belgrado, portanto espere até receber notícias minhas. Janet parece estar entusiasmada por esse sujeito Savory. Mas também posso fazer o diabo com ele, se quiser. Adeus. Cuide-se bem. Lembranças a Elsie. Espero que ela trate você melhor do que Janet me trata. Você sempre teve mais sorte, mas espere até ver Coral. Pelo amor de Deus não se esqueça desse veludo crespo. Brijos. Mabel. PS. Já soube que o tio John morreu de repente, outro dia, quase na minha porta?

A pena da Srta. Warren terminou a carta com um grande borrão de tinta. Ela traçou uma linha grossa em volta e escreveu Desculpe. Depois limpou a pena na saia e tocou a campainha, chamando um garçom. Estava com a boca terrivelmente seca.

Coral Musker ficou um pouco ali no corredor, olhando para Myatt, imaginando se seria verdade aquilo que Mabel Warren sugerira. Ele estava sentado com a cabeça baixa, sobre um monte de papéis, passando um lápis para cima e para baixo numa coluna de números, sempre voltando ao mesmo número. Dali a pouco ele largou o lápis e pôs a cabeça entre as mãos. Por um instante ela sentiu pena, além de gratidão. Escondidos os olhos sabidos, ele poderia parecer um colegial, trabalhando desesperadamente num dever de casa que não conseguia acertar. Ela viu que ele tinha tirado as luvas para pegar melhor o lápis, e seus dedos estavam azuis de frio; mesmo a ostentação de seu casaco de peles era patética para ela, pois era incrivelmente inútil. Não resolvia as somas dele nem agasalhava seus dedos.

Coral abriu a porta e entrou. Ele levantou o rosto e sorriu, mas estava absorto no trabalho. Ela queria tirar o trabalho das mãos dele, e mostrar-lhe a solução, dizendo para ele não contar ao professor que tinha sido ajudado. Por quem? Pensou ela. Mãe? Irmã? Nada tão distante como uma prima, pensou ela, sentando-se no silêncio confortável que era a medida da intimidade deles.

Cansando-se de olhar a neve que se amontoava, pela janela, ela falou com ele:

—Você disse que eu podia entrar, se quisesse.

— Claro.

— Não pude deixar de me sentir uma peste — disse ela — saindo tão de repente, sem nem lhe agradecer direito. Você foi bom para mim, ontem à noite.

— Não gostei de pensar que você ia ficar no compartimento com aquele homem, não estando passando bem — disse ele, impaciente, batendo com o lápis. — Você tinha de dormir direito.

— Mas por que você se interessou por mim? — e recebeu a resposta fatal e inevitável:

— Eu parecia conhecê-la muito bem.

Ele teria voltado aos seus cálculos, não fosse a natureza infeliz do silêncio dela. Ela via como ele estava preocupado e surpreendido, e um pouco atormentado: ele acha que eu quero que faça amor comigo, pensou ela, e cismou, será que quero? Será? A semelhança com outros homens que ela conhecia seria completa se ele desmanchasse um pouco o cabelo dela, e abrisse o vestido dela ao chegar os lábios ao seu seio. Eu lhe devo isso, pensou ela, e a experiência acumulada de outras mulheres tornou a lhe dizer que ela lhe devia muito mais que isso. Mas como posso pagar, perguntou-se ela, se ele não cobrar? E a simples idéia de realizar aquele ato estranho, não estando bêbada, como ela supunha que ficassem algumas mulheres, nem apaixonada, mas apenas grata, a fazia sentir mais frio do que a neve a cair. Ela nem sabia ao certo como é que se agia, se seria preciso passar a noite toda com ele, despindo-se por inteiro no vagão frio. Mas começou a consolar-se com a idéia de que ele seria igual a outros homens que ela conhecera e que se satisfaria com muito pouco; a única diferença é que ele era mais generoso.

— Ontem — disse ele, observando-a atentamente, ao falar, e sua atitude atenta e o fato dele não interpretar corretamente o silêncio dela lhe disseram que eles afinal não conheciam tudo um sobre o outro —

ontem sonhei com você. — Ele riu, nervoso. — Sonhei que a apanhei na rua e levei para dar uma volta de carro e dali a pouco você ia... — Ele parou e desviou-se do assunto. — Fiquei excitado por você.

Ela ficou assustada, como se um agiota se debruçasse sobre a secretária e abordasse muito delicadamente o assunto do pagamento.

— No seu sonho — disse ela. Mas ele não deu atenção a ela.

—Aí apareceu o condutor, e me acordou. O sonho foi muito vívido. Fiquei tão excitado que comprei o seu bilhete...

— Quer dizer que pensava... que queria...

O agiota ergueu os ombros, o agiota tornou a recostar-se atrás da secretária, e o agiota tocou a campainha, chamando o empregado para acompanhá-la até à rua, para junto dos estranhos e a liberdade de ser desconhecida.

— Eu só lhe disse isso — disse ele — para você não achar que me deve alguma coisa. Foi o efeito de um sonho, e depois que comprei o bilhete achei que mais valia você utilizá-lo. — E ele pegou o lápis e voltou aos seus papéis. Acrescentou cerimoniosamente, sem pensar: — Foi ousadia minha, pensar que por dez libras...

Aquelas palavras a princípio não a atingiram. Ela estava confusa demais por seu alívio, até a vergonha de ser desejável apenas em sonhos, e acima de tudo por sua gratidão. E depois, perseguindo-a de dentro do silêncio, essas últimas palavras com sua sugestão de humildade — isso ela achava estranho. Ela enfrentou o seu pavor daquele acordo, estendendo a mão e tocando no rosto de Myatt com uma gratidão que pedira emprestado esse gesto a um amor desconhecido.

— Se você me quiser — disse ela. — Pensei que você se aborrecesse comigo. Quer que eu venha esta noite?

Ela pôs os dedos sobre os papéis no joelho dele, mãos pequenas e quadradas, o pó entrando nos sulcos dos nós dos dedos, as unhas avermelhadas nas pontas, escondendo as filas de números, os cálculos e subterfúgios e dissimulações ladinas do Sr. Eckman, oferendo-se com uma dubiez cativante e patética. Ele disse devagar, a metade da mente ainda acompanhando o Sr. Eckman para dentro e para fora de aposentos ocultos:

— Pensei que você não gostasse de mim. — Ele levantou as mãos dela dos papéis e disse, distraído: — Talvez por eu ser judeu.

— Você está cansado.

— Há alguma coisa aqui que não consigo acertar.

— Deixe para amanhã — disse ela.

— Não tenho tempo. Tenho de fazer isso. Não estamos parados.

Mas na verdade toda a sensação de movimento lhes fora roubada pela neve, que caía tão pesadamente que até os postes telegráficos estavam escondidos. Ela afastou as mãos e perguntou, ressentida:

— Então não quer que eu venha?—A calma e familiaridade com que ele recebeu a proposta dela esfriou sua gratidão.

— Sim — disse ele — venha. Venha esta noite. — Ele tocou nas mãos dela. — Não pense que sou frio. É porque nós parecemos conhecer-nos tão bem. — Ele apelou para ela: — Seja um pouco estranha.

Mas antes que ela pudesse pensar em disfarçar, confessou:

— Sim, também eu sinto isso.

Não havia mais nada a dizer, e eles ficaram ali sentados em silêncio, pensando, sem emoção, na noite que tinham pela frente. A breve febre de gratidão dela tinha passado, pois agora parecia tão desnecessária quanto indesejável. A gente não sente gratidão por um amigo de tanto tempo; a gente recebe favores e concede favores, e fala um pouco sobre o tempo, sem se indignar com um carinho, nem se amargurar com uma indiferença; e se o visse na platéia, sorria uma ou duas vezes ao dançar, porque era preciso fazer alguma coisa com o rosto, que era feioso, e os homens gostam de ser reconhecidos do palco.

— Está nevando mais.

— É. Vai fazer frio de noite. — E a gente sorria, caso houvesse uma piada implícita, e dizia, o mais tentadoramente possível para um amigo tão antigo: — Nós estaremos quentes — sem poder se esquecer de que a noite se aproximava, lembrando-se de tudo o que as amigas tinham dito, aconselhado e advertido, intrigada e ofendida porque um homem pudesse sentir indiferença e desejo ao mesmo tempo.

Durante toda a manhã, e pela hora do almoço, a neve continuou a cair, em Passau, amontoada sobre o telhado do galpão da alfândega, derretida na linha pelo vapor da locomotiva, formando riachos gelados, cinzentos, e os funcionários austríacos caminhando com cuidado, de botas de borracha, e praguejando um pouco, revistando a bagagem com displicência.

 

                                       VIENA

 

Josef Grünlich passou para o lado abrigado da chaminé, enquanto a neve se acumulava em volta dele sobre o telhado. Embaixo, a estação central estava acesa como uma fogueira, no meio do escuro. Ouviuse um apito e apareceu uma longa fileira de luzes, movendo-se devagar; ele olhou para o relógio, quando ouviu bater as nove horas. É o Expresso de Istambul, pensou ele, com 20 minutos de atraso; pode ter sido detido pela neve. Ele acertou seu relógio de prata chato e recolocou-o no bolso do colete, alisando a dobra sobre a curva da barriga. Bom, pensou ele, é sorte ser gordo numa noite dessas. Antes de abotoar o sobretudo, passou as mãos entre as ceroulas e as calças e ajustou o revólver pendurado entre as pernas por um barbante torcido em volta de um botão. Josef era bom em três coisas, lembrou-se ele, satisfeito, com mulher, a comida e um bom furto. Ele saiu do abrigo da chaminé.

O telhado era muito escorregadio, e havia algum perigo. A neve batia nos olhos dele e se transformava em gelo nos calcanhares de seus sapatos. Uma vez ele escorregou e viu, por um momento, subindo como um peixe no meio de águas escuras, em sua direção, o toldo iluminado de um café. Ele murmurou ”Ave Maria, cheia de graça”, metendo os calcanhares na neve, agarrando com os dedos. Salvo pela borda de uma calha, ele levantou-se e riu baixinho; não adiantava brigar com a natureza. Pouco depois ele encontrou os lados de ferro da escada de incêndio.

A descida que seguiu era, para ele, a parte mais perigosa de todas, pois, se bem que a escada de incêndio descesse pelos fundos dos apartamentos, não sendo vista da rua, dava para o pátio de carga, e esse pátio era o limite da ronda de um policial. Ele aparecia de três em três minutos, a lâmpada fraca do canto de um galpão brilhando sobre suas perneiras pretas e lustrosas, seu cinto de couro, o coldre da pistola. A neve profunda abafava o ruído dos passos, e Josef não podia esperar qualquer aviso de sua aproximação, mas o tique-taque de seu relógio ficava-lhe lembrando o perigo. Ele esperou no topo da escada, agachado, aflito e consciente do fundo branco em que se encontrava, até o guarda aparecer e se afastar de novo. Depois ele começou a descer. Só tinha de passar por um andar desocupado, mas quando chegou à janela de cima uma luz brilhou sobre ele e um apito fez-se ouvir. Não posso ser apanhado, pensou ele, incrédulo. Nunca fui preso, isso não acontece comigo, e esperou, de costas para o pátio, por uma palavra ou uma bala, enquanto seu cérebro começou a mover-se como as engrenagens bem lubrificadas de um relógio, um pensamento encaixando-se no outro e pondo um terceiro em movimento. Quando não aconteceu nada, ele virou o rosto da escada e da parede nua; o pátio estava vazio, a luz brilhava de uma lâmpada que alguém tinha levado para o paiol das mercadorias, e o apito fora um dos muitos ruídos da estação. Seu engano lhe custara minutos preciosos, e ele continuou sua descida com um descaso imprudente por seus sapatos gelados, dois degraus de cada vez.

Quando chegou àjanela seguinte, bateu. Não teve resposta, e praguejou baixinho, mantendo a cabeça virada para o canto do pátio onde o guarda deveria aparecer em breve. Tornou a bater e dessa vez ouviu o arrastar de chinelos soltos. Abriram o trinco da janela, e uma voz de mulher disse:

—Anton, é você?

— Sim — disse Josef— é o Anton. Deixe-me entrar depressa. — A cortina afastou-se e uma mão magra puxou a vidraça de cima. — A de baixo — murmurou Josef— não a de cima. Pensa que sou acrobata? — Depois que a vidraça foi levantada, ele demonstrou grande agilidade para um homem tão gordo, passando da escada para o parapeito, mas teve dificuldade em espremer-se para entrar no quarto. — Não pode levantar mais um pouco?

Uma locomotiva apitou três vezes e seu cérebro automaticamente anotou o significado do sinal: um trem pesado de mercadorias na linha para o interior. Depois estava dentro do quarto, a mulher fechara a janela e o barulho da estação desaparecera.

Josef espanou a neve de seu casaco e bigodes e olhou para o relógio: 21:05; o trem para Passau só partiria dali a 40 minutos, e ele estava com a passagem na mão. De costas para a janela e a mulher, ele olhou o quarto com displicência, mas cada detalhe foi para seu devido lugar na memória dele, o jarro e bacia no lavatório vermelho-escuro, o espelho dourado lascado, a armação da cama de ferro, o urinol, a imagem sacra. Ele disse:

— É melhor deixar a janela aberta. No caso do seu patrão voltar. Uma voz fina e ofendida disse:

— Eu não. Ah, não.

Ele virou-se para ela, zombando amavelmente.

— Ana, a pudica — e olhou para ela com olhos penetrantes, conhecedores.

Ela tinha a mesma idade que ele, mas não a sua experiência, de pé ali aflita e excitada junto da janela; a saia preta estava sobre a cama, mas continuava de blusa preta com gola branca, doméstica, e estava com uma toalha em frente das pernas, para escondê-las.

Ele olhou para ela, com olhar crítico.

— Ana bonitinha.

Ela ficou de boca aberta, olhando para ele, calada e fascinada. Josef notou, com desagrado, os dentes dela, irregulares e manchados: seja o que for que eu tiver de fazer a mais, pensou ele, não vou beijá-la; mas era evidente que ela esperava um abraço: o pudor dela se transformava numa horrível coqueteria de meia-idade, à qual ele era obrigado a corresponder. Ele começou a falar com ela como uma criança, sentando-se na beira da cama e conservando a largura da cama entre eles.

— O que é que a Ana bonitinha tem agora? Um homem grandão? Ah, como ele vai te amarrotar. — Ele agitou o dedo para ela. —Você e eu, Ana. Vamos nos divertir, daqui a pouco, hem?—Ele olhou de esguelha para a porta e viu, com alívio, que estava destrancada; a puta velha podia bem ter trancado a porta e escondido a chave, mas ele não deixou transparecer nada de sua ansiedade ou sua aversão no rosto rosado e gordo. — Hem?

Ela sorriu e soltou a respiração, num assobio prolongado. —Ah.Anton.

Ele levantou-se de um salto e ela largou a toalha, aproximando-se dele, com o passo fino de um passarinho, de meias pretas de algodão.

— Um momento — disse ele. — Um momento — e ergueu as mãos na defensiva, apavorado com o desejo antigo que ele despertara. Nenhum de nós é nenhuma beleza, pensou ele, e a presença de uma Madona rosa e branca dava a toda a situação uma espécie de blasfêmia consciente. Ele a deteve, com seu sussurro urgente:—Tem certeza de que não há ninguém no apartamento?

Ela enrubesceu como se ele tivesse feito algum gesto grosseiro.

— Não, Anton, estamos inteiramente sós.

O cérebro dele recomeçou a funcionar com precisão; eram só os relacionamentos pessoais que o confundiam; quando havia perigo, ou a necessidade de ação, sua mente tinha a segurança de uma máquina testada.

— Está aí com a maleta que lhe dei?

— Sim, Anton, aqui debaixo da cama. — Ela puxou uma bolsinha de médico preta, e ele fez-lhe um agradinho debaixo do queixo, dizendo que ela tinha olhos bonitos.

— Dispa-se — disse ele — e vá para a cama. Volto daqui a um instante.

Antes que ela pudesse discutir ou pedir que ele explicasse, ele passara alegre pela porta, na ponta dos pés, fechando-a. Imediatamente procurou uma cadeira e meteu-a debaixo da maçaneta, de modo que a porta não pudesse ser aberta por dentro.

Por uma visita anterior, ele conhecia a sala em que se encontrava. Era um misto de escritório e sala de estar antiquada. Havia uma escrivaninha, um sofá de veludo vermelho, uma cadeira de girar, várias mesinhas, umas gravuras grandes, do século XIX, de crianças brincando com cachorros e senhoras debruçadas sobre muros de jardim. Uma das paredes estava quase coberta por um grande mapa de enrolar da estação central, com suas plataformas e galpões de mercadorias, chaves e guaritas de sinalização marcadas em cores básicas. As formas dos móveis estavam vagamente visíveis agora no lusco-fusco, as sombras caindo como capas sobre as cadeiras, as luzes da rua refletidas no teto e o brilho de um abajur na secretária. Josef bateu com a canela numa mesinha e quase derrubou um vaso de plantas. Praguejou, e a voz de Ana chamou do quarto:

— O que é, Anton? O que está fazendo?

— Nada — disse ele — nada. Já vou. O seu patrão deixou uma luz acesa. Tem certeza de que ele não vai voltar?

Ela começou a tossir, mas entre os acessos, disse:

— Ele está de serviço até à meia-noite. Anton, não vai demorar? Ele fez uma careta.

— Só estou tirando umas roupas, Ana, meu bem.

Pela janela aberta os ruídos da rua subiam ao quarto: havia uma buzinação constante. Josef debruçou-se para fora e examinou a rua. Os táxis corriam para cima e para baixo, com bagagens e passageiros, mas ele os ignorou, bem como o lampejo dos sinais no céu, e o café barulhento logo abaixo, e foi olhando as calçadas; poucas pessoas passavam, pois era a hora do jantar, teatro ou cinema. Não havia nenhum policial à vista.

— Anton.

— Cale-se — ele retrucou, e puxou o estore.

Para não ser visto de um dos prédios em frente. Sabia exatamente onde o cofre estava, embutido na parede; bastaram uma refeição, um cinema e algumas bebidas para conseguir a informação de Ana. Mas ele temera pedir-lhe o segredo; ela poderia ter percebido que seus encantos não eram suficientes para levá-lo no escuro por cima de um telhado gelado até o quarto dela. De uma estantezinha atrás da escrivaninha ele tirou seis volumes pesados, Railway Working and Railway Management (Trabalho e Administração de Estradas de Ferro), que escondia uma portinhola de aço. A cabeça dejosef Grünlich agora estava clara e concentrada; movia-se sem pressa e sem hesitar. Antes de começar a trabalhar, notou a hora, nove e dez, e calculou que não precisava sair antes de uma meia hora. Tenho muito tempo, pensou ele, e apertou um polegar molhado na porta do cofre, o aço não tem meia polegada de espessura. Ele pôs a bolsa preta na mesa e tirou as ferramentas. Seus formões estavam em perfeito estado, bem polidos, e afiados; ele se orgulhava da perfeição de suas ferramentas, bem como da rapidez de seu trabalho. Poderia quebrar o aço fino com um pé-de-cabra, mas Ana ouviria as batidas e ele não podia confiar nela para ficar calada. Portanto, acendeu seu maçarico menor, tendo primeiro posto os óculos escuros para proteger os olhos do clarão. Os detalhes da sala saltaram das sombras com a primeira chama, o calor crestou seu rosto, e a porta de aço começou a fervilhar como manteiga derretendo.

— Anton. — A mulher sacudiu a maçaneta da porta do quarto. — Anton. O que está fazendo? Por que me fechou aqui?

Por cima do ronco da chama, ele tentou ouvir o que ela dizia.

— Fique quieta. — Ele a ouviu mexendo na fechadura e girando a maçaneta. Depois ela tornou a falar, num tom urgente:

— Anton, deixe-me sair.

Cada vez que ele tirava os lábios do cano para responder, a chama diminuía. Contando com a rapidez tímida da mulher, falou com ela com brutalidade:

— Cale-se, senão lhe torço o pescoço.

Por um momento, houve um silêncio, a chama avivou-se, a porta de aço passou de um calor vermelho ao branco, e depois Ana disse, bem alto:

— Sei o que você está fazendo, Anton. —Josef comprimiu os lábios no tubo e não lhe deu atenção, mas as próximas palavras de Ana o sobressaltaram: — Você está no cofre, Anton.

Ela recomeçou a mexer na maçaneta, até que ele se viu obrigado a deixar a chama baixar e gritar com ela:

— Fique quieta. Eu estava falando sério. Vou-lhe torcer o seu pescoço feio, sua puta velha.

Ela baixou a voz, mas ele a podia ouvir claramente; os lábios dela deviam estar grudados no buraco da fechadura.

— Não, não diga isso, Anton. Escute. Deixe-me sair. Tenho uma coisa a lhe dizer, a lhe prevenir. — Ele não deu resposta, soprando a chama e o aço voltando a um calor branco. — Eu menti, Anton. Deixe-me sair. Herr Kolber vai voltar.

Ele abaixou o tubo e deu um salto.

— O que é isso? O que quer dizer?

— Eu achei que você não viria, se soubesse. Daria tempo para nos amarmos. Meia hora. E se ele voltasse antes, podíamos ter ficado deitados quietos.

O cérebro de Josef funcionou depressa; ele não perdeu tempo em amaldiçoar a mulher, mas apagou o maçarico, guardando-o na bolsa com o formões, o pé-de-cabra, e a chave-mestra e o vidro de pimenta. Desistiu, sem pensar duas vezes, de um dos trabalhos mais fáceis de sua carreira, mas seu orgulho era não correr riscos desnecessários. Nunca fora preso. As vezes trabalhara com companheiros, e os companheiros tinham sido presos, mas eles não lhe guardavam rancor. Reconheciam a natureza extraordinária da ficha de Josef, e iam para a cadeia com orgulho por ter ele escapado, e depois diziam aos amigos, mostrando-o: ”Aquele é o Josef. Trabalha há cinco anos e nunca foi preso”.

Ele fechou a maleta e deu um salto ao ouvir um barulho, do lado de fora, como o zunido de um arco.

Ana cochichou pela porta.

— O elevador. Alguém o chamou para baixo.

Ele pegou um volume de Railway Management, mas o cofre estava vermelho de calor, e ele pôs o livro de volta sobre a mesa. Debaixo ouviu-se o barulho da porta fechando e o zumbido alto do elevador. Josef dirigiu-se para a cortina e puxou o cordão em que estava pendurado o revólver um pouco mais para cima. Pensou se seria possível fugir pela janela, mas lembrou-se de que havia um espaço de dez metros até o toldo do café. Então as portas do elevador se abriram e fecharam. Ana murmurou, pelo buraco da fechadura: — O andar de baixo.

Então está bem, pensou Josef, tenho tempo. Voltar ao quarto de Ana e depois por sobre o telhado. Vou ter de esperar 20 minutos pelo trem para Passau. A cadeira debaixo da maçaneta estava apertada. Ele teve de largar a maleta e usar ambas as mãos. A cadeira deslizou pelo assoalho de madeira e caiu com estrondo. No mesmo momento acendeu-se a luz.

— Fique onde está — disse Herr Kolber — e levante as mãos. Josef Grünlich obedeceu logo. Virou-se muito devagar, e nesses segundos esboçou o seu plano.

— Não estou armado — disse ele, com calma, examinando Herr Kolber com olhos brandos e reprovadores.

Herr Kolber estava com a farda azul e o boné redondo e pontudo de assistente de chefe de estação; era pequeno e magro, com um rosto moreno e enrugado, e a mão que segurava o revólver tremia um pouco com a emoção, a idade e a raiva. Por um momento os olhos mansos de Josef se apertaram e focalizaram o revólver, calculando o ângulo pelo qual seria disparado, e se a bala erraria o alvo. Não, pensou ele, ele vai mirar as minhas pernas e acertar em minha barriga. Herr Kolber estava de costas para o cofre e ainda não pudera ver os livros desarrumados.

— O senhor não está entendendo — disse ele.

— O que está fazendo nessa porta?

O rosto de Josef ainda estava vermelho do calor da chama.

— Eu e Ana... — disse ele. Herr Kolber gritou com ele.

— Fale logo, seu bandido.

— Eu e Ana somos amigos. Sinto muito, Herr Superintendente, ser descoberto assim. Ana convidou-me para entrar.

— Ana? — disse Herr Kolber, incrédulo. — Por quê? Os quadris de Josef se remexeram, em constrangimento.

— Bem, Herr Kolber, o senhor compreende. Eu e Ana somos amigos.

—Ana, venha cá.

A porta abriu-se devagar e Ana saiu. Ela tinha vestido a saia e penteado os cabelos.

— É verdade, Herr Kolber. — Ela olhou apavorada além dele, para o cofre exposto.

— O que é que há com você? O que é que está olhando agora? Que bonito, Ana. Uma mulher de sua idade.

— Sim, Herr Kolber, mas...

Ela vacilou e Josef interrompeu-a antes que |ja pudesse defender-se, ou acusá-lo.

— Gosto muito da Ana.

Ela aceitou as palavras dele com uma gratidão de fazer dó.

— Sim, ele me disse isso. Herr Kolber bateu com o pé.

—Você foi uma idiota, Ana. Revire os bolsos dele. Provavelmente roubou o seu dinheiro.

Ainda não lhe ocorrera examinar seu cofre, ejosef representou o papel que lhe era atribuído, de um gatuno comum. Ele conhecia esse tipo, até o último murmúrio e ganido. Já trabalhara com eles, já os empregara, e os vira irem para a cadeia sem o menor remorso. Gatunos de níqueis, era como os chamava, e com isso queria dizer que eram homens sem ambição ou recursos.

— Não roubei o dinheiro dela—ganiu ele. — Eu não faria uma coisa dessas. Gosto da Ana.

— Revire os bolsos dele. — Ana obedeceu, mas suas mãos passaram pelas roupas dele como um carinho. — Agora o bolso da calça.

— Não estou armado — disse Josef.

— O bolso da calça — repetiu Herr Kolber, e Ana virou o forro. Quando ele viu que também aquele bolso estava vazio, Herr Kolber abaixou o revólver, mas continuava a tremer, com uma raiva senil. — Fazendo do meu apartamento um bordel — disse ele. — O que você tem a dizer, Ana? Que bela situação.

Ana, os olhos fixos no chão, torcia as mãos magras.

— Não sei o que me deu, Herr Kolber — mas enquanto ela falava, pareceu que descobriu. Ela levantou os olhos ejosef Grünlich viu nos olhos dela o afeto virar aversão e a aversão passar a raiva. — Ele me tentou — disse ela, devagar.

Enquanto isso, Josef estava ciente de sua maleta preta na escrivaninha atrás de Herr Kolber, a pilha de livros e o cofre expostos, mas a IIIquietação não atrapalhou seu raciocínio. Mais cedo ou mais tarde Herr Kolber descobriria o que o levara ao apartamento, e eleja vira junto da mão do chefe da estação uma campainha que provavelmente tocava no apartamento do zelador.

— Posso abaixar as mãos, Herr Superintendente?

— Sim, mas não se mexa um centímetro. — Herr Kolber bateu com o pé. — Vou descobrir a verdade nem que tenha de prender vocês aqui a noite toda. Não quero que homens venham aqui seduzir a minha empregada.

A palavra ”homens” por um instante apanhou Josef desprevenido; a idéia de Ana, de meia-idade, ser objeto de conquistas divertiu-o, e ele sorriu. Ana viu o sorriso e adivinhou a origem. Disse ela a Herr Kolben

— Cuidado. Não era a mim que ele queria. Ele... Masjosef Grünlich tirou a acusação da boca da moça.

— Vou confessar. Não foi atrás de Ana que vim aqui. Olhe, Herr Kolber.

Josef fez um gesto com a mão esquerda em direção ao cofre. Herr Kolber virou-se, o revólver apontado para o chão, e Josef deu-lhe dois tiros nas costas.

Ana levou a mão ao pescoço e começou a gritar, afastando os olhos do corpo. Herr Kolber caíra de joelhos, com a testa encostada no chão; estremeceu uma vez, entre os tiros, e depois seu corpo teria caído de lado se não estivesse apoiado em sua posição pela parede.

— Cale a boca—disse Josef, e quando a mulher continuou a berrar, ele pegou-a pelo pescoço e sacudiu-a. — Se não ficar calada por uns dez minutos, eu a mando para baixo da terra também, entendeu?

Ele viu que ela tinha desmaiado e jogou-a numa cadeira; depois fechou e trancou a janela e a porta do quarto, pois tinha medo de que, se ela voltasse ao quarto, seus gritos pudessem ser ouvidos pelo guarda quando sua ronda o levasse ao pátio de carga. Empurrou a chave pela privada com o cabo de uma escovinha. Deu uma última olhada na sala; mas já decidira deixar a maleta preta sobre a escrivaninha: sempre usava luvas e a maleta só teria as impressões digitais de Ana. Era uma pena perder um jogo de ferramentas tão bom, mas ele estava disposto a sacrificar tudo que o pudesse pôr em perigo, até mesmo, pensou, olhando para o relógio, a passagem para Passau. O trem só partiria dentro de mais um quarto de hora, e ele não poderia ficar tanto tempo em Viena. Lembrou-se do expresso que vira do telhado, o expresso para Istambul, e pensou: Será que posso ir nele, sem comprar passagem? Ele não estava disposto a deixar um rastro de suas feições, e chegou a lhe passar pela cabeça cegar Ana com um de seus formões para que ela não o pudesse identificar. Mas foi uma idéia passageira; a violência desnecessária lhe desagradava, não porque ele não gostasse de violência, mas porque gostava de ser preciso em seus métodos, sem omitir nada que fosse necessário e sem acrescentar nada que fosse supérfluo. Então, com muito cuidado, para evitar o sangue, revistou os bolsos de Herr Kolber, em busca da chave do escritório, e depois que a encontrou, parou um instante defronte do espelho para arrumar o cabelo e espanar o chapéu. Depois saiu do quarto, trancando a porta e largando a chave dentro de um porta-guarda-chuva no hall: não pretendia mais trepar pelos telhados, naquela noite.

Só hesitou quando viu o elevador esperando, de porta aberta, mas resolveu quase imediatamente usar a escada, pois o barulho do elevador denunciaria seu rastro, passando por outros apartamentos. O tempo todo, enquanto descia a escada, prestou atenção, para ouvir se Ana gritava, mas só o silêncio o acompanhou.

Lá fora a neve caía, abafando o ruído das rodas dos carros, os passos das pessoas; mas o silêncio de cima da escada pareceu cair mais depressa e mais denso, disfarçando os sinais que ele deixara, a pilha de livros, a maleta preta, o cofre queimado. Ele nunca matara ninguém, mas enquanto durasse o silêncio, ele poderia esquecer que dera o passo final que o alçava ao pico perigoso de sua profissão.

Uma porta no andar térreo estava aberta, e ao passar ele ouviu um voz insolente de mulher:

— Umas calças, vou-lhe contar. Bem, não sou filha do presidente, e disse a ela, dê-me alguma coisa respeitável. Magra! Nunca se viu...

Josef Grünlich torceu os bigodes espessos e grisalhos e saiu para a rua, com coragem, olhando para um lado e para outro, como se estivesse esperando alguém. Não havia guardas à vista, e como as calçadas tinham sido varridas, estavam sem neve e ele não deixou pegadas. Virou logo para a esquerda, em direção à estação, os ouvidos atentos para o som de gritos, mas só ouviu as buzinas dos táxis e o farfalhar da neve. No fim da rua o grande arco da estação o atraiu como a fachada iluminada de um teatro de variedades.

Mas seria perigoso, pensou ele, ficar rondando a entrada como um vendedor de bilhetes de loteria, e de repente, com a sensação de ter descido das alturas do prédio, andar por andar, desde o apartamento de Herr Kolber, com a sensação renovada de seu próprio sangue-frio, a mão apontando para o cofre, o puxão rápido no cordão, o revólver mirando e disparando em um momento, o orgulho encheu-o. Matei um homem. Ele deixou que seu sobretudo se abrisse, esvoaçando à brisa da noite; alisou o colete, mexendo na corrente de prata; para uma amiga imaginária, ergueu seu chapéu cinza, mole, feito pelo melhor chapeleiro de Viena, mas um pouco pequeno para ele, porque fora furtado de um cabide num vestiário. Eu, Josef Grünlich, matei um homem. Sou esperto, pensou ele, não vão poder comigo. Por que hei de me apressar para a estação, como um gatuno qualquer, esgueirar-me nos vãos de portas, esconder-me à sombra dos galpões? Há tempo para um cafezinho, e escolheu uma mesa na calçada, à beira do toldo, que vira erguer-se para ele quando escorregara no telhado. Olhou para cima, pela neve que caía, um andar, dois andares, três andares, e lá estava ajanela acesa do escritório de Herr Kolber; quatro andares, e a sombra do prédio desaparecia no céu cinza carregado. Teria sido uma queda feia.

— Der Kafee mit milch — disse.

Ele mexeu o café, pensativo. Josef Grünlich, o homem do destino. Não havia mais nada a fazer, ele não hesitou. Uma sombra de descontentamento passou por seu rosto quando pensou: Mas não posso contar isso a ninguém, seria perigoso demais. Até mesmo o seu melhor amigo, Anton, cujo nome de batismo ele usara, não podia saber, pois poderiam oferecer uma recompensa pelas informações. Não obstante, mais cedo ou mais tarde, disse ele consigo, adivinhariam e apontariam para mim: ”Aquele é ojosef. Matou Kolber em Viena, mas nunca o pegaram. Nunca o prenderam”.

Ele largou o copo e ficou escutando. Seria um táxi, um barulho da estação ou o grito de uma mulher? Olhou para as mesas em volta; ninguém ouvira nada de estranho, estavam conversando, bebendo, rindo, e um homem estava cuspindo. Mas a sede de Josef Grünlich passou um pouco, enquanto ele ficava ali sentado, escutando. Um guarda apareceu descendo pela rua; provavelmente tinha largado o serviço do trânsito e estava a caminho de casa, mas Josef, levantando o copo, protegeu o rosto e observou-o disfarçadamente por sobre a borda. Depois, ele teve certeza de ouvir um grito. O guarda parou ejosef, olhando em volta, ansioso, procurando o garçom, levantou-se e colocou umas moedas sobre a mesa; o revólver roçando entre suas pernas fizera uma feridinha.

— Guten Abend. — O guarda comprou o jornal da tarde e seguiu pela rua.

Josef levou os dedos enluvados à testa e depois viu que estavam úmidos de suor. Assim não vai, pensou ele, não posso ficar nervoso; devo ter imaginado o grito, e já ia sentar-se para terminar o café quando tornou a ouvi-lo. Era extraordinário que tivesse passado despercebido no café. Quanto tempo falta, pensou ele, para ela destrancar ajanela? Aí vão ouvir. Ele levantou-se e na rua ouviu os gritos com maior clareza, mas os táxis passavam buzinando, alguns porteiros de hotel seguiam cambaleando pela calçada escorregadia carregando malas: ninguém parava, ninguém ouvia.

Alguma coisa bateu na calçada com um tinido de metal e Josef olhou para baixo. Era uma moeda de cobre. Curioso, pensou ele, um sinal de sorte, mas abaixando-se para apanhá-la, viu, de espaço em espaço, desde o café, moedas de cobre e prata no meio da calçada. Pôs a mão no bolso da calça e só encontrou um buraco. Meu Deus, pensou, será que as estou deixando cair desde que sai do apartamento? E ele se viu de pé no fim de um rastro nítido que levava, de pedra em pedra, e depois de degrau em degrau, até à porta do escritório de Herr Kolber. Começou a caminhar depressa pela calçada, apanhando as moedas e metendo-as no bolso do sobretudo, mas ainda não tinha chegado ao café quando o vidro de uma vidraça quebrou-se, ao alto acima de sua cabeça, e uma voz de mulher gritou repetidamente: ”Zm Hülfe! Zu Hülfe!”. Um garçom saiu correndo do café e olhou para cima; um chofer de praça freou e parou o carro junto do meio-fio; dois homens que estavam jogando xadrez largaram seu tabuleiro e saíram correndo para a rua. Josef Grünlich achara que estava tudo muito quieto, sob a neve caindo, mas só agora enfrentava o silêncio de verdade, quando o táxi parou e todos no café pararam de falar e a mulher continuava a gritar: ”Zw Hülfe! Zu Hülfe!”. Alguém disse: ”Die Polizá”, e dois policiais vieram correndo pela rua, os coldres chocalhando. Então tudo voltou ao normal, só que na entrada dos apartamentos formou-se um grupinho de pessoas. Os dois jogadores de xadrez voltaram ao seu jogo; o chofer de praça apertou o botão de partida, e depois, como o frio já tivesse afetado o motor do carro, saltou para girar a manivela. Josef Grünlich caminhou, não depressa demais, para a estação, e um jornaleiro começou a apanhar os níqueis que ele largara na calçada. É certo, pensou Josef, que não posso esperar pelo trem de Passau. Mas tampouco, começou a pensar, posso arriscar-me a ser preso por viajar sem passagem. Mas não tenho dinheiro para comprar outro bilhete; até mesmo os meus trocados se foram. Josef, Josef, ralhou ele consigo, não crie obstáculos. Você tem de arranjar dinheiro. Não vai desistir agora: Josef Grünlich, cinco anos, e nunca preso. Você matou um homem: certamente, por uma vez, você, à testa de sua profissão, pode fazer uma coisa que qualquer batedor de carteiras acha fácil, roubar a bolsa de uma mulher.

Ele ficou com os olhos atentos, ao subir os degraus para a estação. Não podia arriscar-se. Se fosse pilhado, teria de enfrentar uma sentença de prisão perpétua, e não uma semana de cadeia. Ele tinha de escolher com cuidado. Várias bolsas foram quase metidas em suas mãos, no saguão cheio de gente, de tão mal protegidas que eram, mas as donas pareciam pobres demais, ou vagabundas demais. A primeira só devia ter alguns trocados; as outras, provavelmente, não teriam na bolsa nem mesmo uns trocados, mas apenas o pó-de-arroz, um batom, um espelho, talvez uns preservativos.

Por fim ele encontrou o que queria, talvez até melhor do que esperava. Uma estrangeira, provavelmente inglesa, de cabelos curtos, sem chapéu, e olhos vermelhos, lutando com a porta de uma cabina telefônica. A bolsa lhe caíra aos pés, enquanto ela lutava com ambas as mãos na maçaneta. Ela estava meio alta, pensou ele, e, como era estrangeira, devia ter bastante dinheiro na carteira. Para Josef Grünlich, o negócio foi uma brincadeira de criança.

A porta abriu-se e Mabel Warren olhou para o aparelho preto e brilhoso que já havia dez anos consumia seus melhores momentos e suas melhores frases. Ela abaixou-se para pegar a bolsa, mas tinha desaparecido. Estranho, pensou ela, eu podia jurar... será que a deixei no trem? Ela tivera um jantar de despedida no trem comjanet Pardoe. Um cálice de xerez, quase uma garrafa de vinho branco do Reno e dois licores de conhaque. Depois ficara um pouco tonta. Janet pagara o jantar e ela dera um cheque a Janet e guardara o troco; tinha mais de duas libras de trocados austríacos no bolso do casaco de lã, mas na bolsa tinha quase 80 marcos.

Ela teve certa dificuldade em fazer a telefonista de interurbano compreender o número que ela queria em Colônia, pois sua voz estava meio arrastada. Enquanto esperava, equilibrando o corpo pesado no banquinho de aço, ficou olhando para a cancela. Cada vez menos passageiros vinham das plataformas. Não havia sinal do Dr. Czinner. No entanto, quando ela espiara no compartimento dele, dez minutos antes de chegarem a Viena, ele estava de chapéu e capa de chuva e lhe respondera:

—Vou saltar, sim.

Ela não confiara nele, e quando o trem parou, esperou até ele sair da cabina, ficou vigiando enquanto ele remexia no bolso, na plataforma, procurando o bilhete, e mesmo então não o teria deixado desaparecer de suas vistas se não fosse preciso telefonar para a redação. Pois se ele estivesse mentindo, ela estava resolvida a acompanhá-lo até Belgrado, e não teria mais oportunidade de telefonar naquela noite. Será que deixei minha bolsa no trem? Pensou ela de novo, e aí o telefone tocou.

Ela olhou para o relógio de pulso.

—Tenho dez minutos. Se ele não sair dentro de cinco, volto para o trem. Ele não vai se dar bem, mentindo para mim. Alô, É o Clarion de Londres? Edwards? Certo. Anote isso. Não, filho, isso não é a matéria do Savory. Já lhe dou isso num minuto. É a sua matéria de primeira página, e você vai ter de suspender a edição por meia hora. Se eu não tornar a telefonar, pode mandar brasa. O levante comunista em Belgrado, que foi debelado com alguma perda de vidas na noite de quarta-feira, conforme noticiado em nossas últimas edições de ontem, foi planejado pelo conhecido agitador Dr. Richard Czinner, que desapareceu durante o julgamento de Kamnetz (não, Kamnetz, K de Kaiser, A de Ânus, M de Mula, N de Ninho, E de Erótico, T de Tapa, Z de Zebra. Entendeu?), o julgamento Kamnetz. Nota para o sub-redator. Ver os recortes de imprensa de agosto, 1927. Acreditava-se que tivesse sido morto por agentes do governo, mas apesar de haver uma ordem de prisão contra ele, ele fugiu, e, numa entrevista exclusiva com o nosso correspondente especial, descreveu sua vida como professor em Great Birchington-on-Sea. Nota para o redator de noticiário: Não consegui fazê-lo falar sobre isso; consiga a matéria do diretor. O nome dele é John. O levante em Belgrado foi mal sincronizado: fora planejado para a noite de sábado, ocasião em que o Dr. Czinner, que saiu da Inglaterra na noite de quarta-feira, teria chegado à capital e assumido o controle. O Dr. Czinner soube do levante e seu fracasso quando o expresso em que viajava chegou a Würzburg e imediatamente resolveu saltar do trem em Viena. Estava desolado e só conseguia repetir para o nosso correspondente especial: ”Se ao menos tivessem esperado”. Tinha certeza de que se estivesse presente em Belgrado toda a classe trabalhadora da cidade teria apoiado o levante. Com a voz embargada, ele deu ao nosso correspondente a história assombrosa de sua fuga para Belgrado em 1927 e descreveu os planos que foram prematuramente frustrados. Entendeu? Agora escute bem. Se não receber o resto da história daqui a meia hora, corte tudo depois de ”chegou a Würzburg” e continue assim: Depois de uma hesitação prolongada e dolorosa, ele resolveu continuar a viagem para Belgrado. Estava desolado e só conseguia murmurar: ”Aqueles bravos. Como posso abandoná-los?”. Depois de se refazer um pouco, ele explicou ao nosso correspondente especial que resolvera ser julgado com os sobreviventes, desse modo correspondendo à reputação quixotesca que conquistara por ocasião do julgamento de Kamnetz. Sua popularidade com as classes trabalhadoras não é segredo, e a sua atitude pode vir a ser um transtorno considerável para o governo.

A Sita. Warren respirou fundo e olhou para o relógio. Faltavam só cinco minutos para o trem partir.

—Alô. Não fuja. Cá está a água-com-açúcar sobre o Savory. Tem de anotar isso depressa. Pediram meia coluna, mas não tenho tempo. Vou-lhe dar uns tópicos. O Sr. Quin Savory, autor de The Great Gay Round, está a caminho do Extremo Oriente em busca de material para seu novo romance, GoingAbroad. Se bem que o livro tenha um cenário oriental, o grande romancista não terá abandonado Londres, que tanto ama, pois vê todas essas terras distantes através dos olhos de modesto dono de uma charutaria em Londres. O Sr. Savory, figura esguia e bronzeada, recebeu o nosso correspondente na plataforma de Colônia. Ele tem um jeito ríspido, que não consegue ocultar um coração caloroso e compreensivo. Atendendo ao pedido de classificar o seu lugar na literatura, ele disse: ”Assumo a minha posição com a sanidade, em oposição à IIItrospecção mórbida de escritores como Lawrence e Joyce. A vida é bela para os aventurosos com uma mente sã num corpo são”. O Sr. Savory, que se veste discretamente, sem excentricidades, não acredita na boêmia de alguns círculos literários. ”Eles entregam ao sexo”, disse ele, adaptando, de modo divertido, a famosa frase de Burke, ”o que se destina à humanidade.” O nosso correspondente comentou sobre a grande admiração que sentiram inúmeros leitores por Emmy Tod, a diaristazinha de The Great Gay Round (que, aliás, está na casa dos 100.000 exemplares) . ”O senhor tem um maravilhoso conhecimento do coração feminino, Sr. Savory”, disse o repórter. O Sr. Savory, que é solteiro, voltou ao seu vagão com um sorriso jovial. ”Um romancista”, disse ele, ”é um pouco espião”, e acenou alegremente enquanto o trem o levava. Não é segredo, aliás, que a Hon. Carol Delaine, filha de Lorde Garthway, representará o papel de Emmy Tod, a diarista, na produção britânica de The Great Gay Round. Entendeu? Claro que é água-com-açúcar. O que mais se pode fazer com o porquinho?

A Srta. Warren bateu com o fone. O Dr. Czinner não reaparecera. Ela estava zangada, mas satisfeita. Ele pensara deixá-la na estação em Viena, e imaginava com prazer a decepção dele quando levantasse os olhos do jornal e a visse de novo no vão da porta do seu compartimento. Vou-me grudar a ele, murmurou ela, é o que vou fazer.

O funcionário da cancela a fez parar.

— Fahrkarte, bitte. — Ele não estava olhando para ela, pois estava ocupado recebendo as passagens de passageiros que acabavam de chegar em algum trenzinho local, mulheres com bebês no colo e um homem segurando uma galinha viva. A Srta. Warren tentou forçar a passagem.

— Passe de jornalista.

O bilheteiro virou-se para ela, desconfiado.

— Onde está?

— Deixei a minha bolsa no trem — disse a Srta. Warren.

Ele pegou o último bilhete, arrumou os cartões num monte regular em volta do qual, metodicamente, passou um elástico. A senhora, explicou ele, com uma cortesia obstinada, lhe dissera ao sair da plataforma que tinha um passe; agitara um cartão diante dele e passara por ele antes que o pudesse examinar. Ele agora queria ver esse cartão.

— Diabo — disse a Srta. Warren. — Então a minha bolsa foi roubada.

— Mas a senhora acabou de dizer que estava no trem.

A Srta. Warren tornou a praguejar. Sabia que seu aspecto estava contra ela; estava sem chapéu, os cabelos despenteados, e cheirando a bebida.

— Não posso fazer nada — disse ela. — Tenho de voltar para o trem. Mande alguém comigo e eu lhe darei o dinheiro.

O bilheteiro sacudiu a cabeça. Não podia sair da cancela, explicou ele, e seria contrariar o regulamento mandar algum dos carregadores que estavam no saguão para a plataforma cobrar dinheiro por um bilhete. Por que a senhora não comprava um bilhete e depois pedia um reembolso à companhia?

— Porque — disse a Srta. Warren, furiosa — a senhora não tem dinheiro suficiente consigo.

— Nesse caso—disse o bilheteiro, com delicadeza, olhando para o relógio — a senhora vai ter de seguir em outro trem. O Expresso do Oriente já terá partido. Quanto à bolsa, não precisa preocupar-se. Enviarão um recado telefônico à próxima estação.

Alguém na sala das reservas estava assobiando uma melodia. A Srta. Warren já a ouvira com Janet, o ambiente de uma canção leve e voluptuosa, elas de mãos dadas ouvindo no escuro, e a câmara abrangendo toda a extensão de uma rua de estúdio, captando um verso da boca deste homem, debruçado da janela, daquela mulher, vendendo legumes por trás de um carrinho, daquele rapaz que beijava uma moça à sombra de um muro. Ela levou uma das mãos aos cabelos. No meio de seus pensamentos e temores, em companhia de Janet e Q. C. Savory, Coral e Richard Czinner, por um momento intrometeu-se um rosto jovem e rosado, olhos meigos brilhando, querendo ajudar, por trás de óculos de aros de osso.

— Imagino que a senhora esteja tendo dificuldades com esse homem. Terei muito prazer em interpretar para a senhora.

A Srta. Warren virou-se, furiosa.

— Vá plantar batatas — disse ela, e foi para a cabina telefônica. O americano tinha rompido o equilíbrio entre o sentimento e a raiva, entre o pesar e a vingança. Ele pensa que está seguro, pensou ela, que me deu o fora, que não lhe posso fazer coisa alguma só porque ele fracassou. Mas quando a campainha tocou na cabina, ela estava bem calma. Janet podia flertar com Savory, Coral com o judeu dela; por enquanto, Mabel Warren não estava ligando. Quando havia uma escolha entre o amor de uma mulher e o ódio por um homem, sua mente só podia nutrir uma emoção, pois seu amor podia ser objeto de chacota, mas nunca ninguém zombara de seu ódio.

Coral Musker olhava para o cardápio, confusa. — Peça por mim — disse ela, e ficou contente quando ele pediu vinho, pois vai ajudar, pensou ela, hoje à noite. — Gosto do seu anel.

As luzes de Viena passavam por eles para o escuro, e o garçom debruçou-se por sobre a mesa e puxou o estore. Myatt disse:

— Custou 50 libras. — Ele estava de volta em terreno conhecido, estava à vontade, não mais intrigado pela inconsciência do comportamento humano. Com a carta dos vinhos diante de si, o guardanapo dobrado sobre o prato, o ruído dos garçons passando por sua cadeira, tudo isso lhe inspirava confiança. Ele sorriu e mexeu com a mão, de modo que a pedra reluzia de diversas facetas, no teto e nos cálices de vinho.—Vale quase o dobro.

— Conte-me sobre ela — disse o Sr. Q. C. Savory. — É um tipo esquisito. Bebe?

— Tão dedicada a mim.

— Mas quem não seria? — Ele inclinou-se para a frente, partindo o pão, e perguntou, com cuidado:—Nunca consegui entender. O que uma mulher como essa pode fazer?...

— Não, não quero mais dessa cerveja estrangeira. Meu estômago não agüenta. Pergunte se não tem uma Guinness. Estou louca por uma Guinness.

— Claro que estão tendo um grande renascimento dos esportes na Alemanha—disse o Sr. Opie. —Agente vê uns magníficos espécimes de rapazes. Mas assim mesmo não é a mesma coisa que o críquete. Veja HobbseSuttcliífe...

— Beijos. Sempre beijos.

— Mas não falo a língua, Amy.

— Você diz sempre quanto vale uma coisa? Sabe quanto eu valho?—A perplexidade e o medo dela transformaram-se em irritação. — Claro que sim. Dez libras por uma passagem.

—Já expliquei — disse Myatt — tudo sobre isso.

— Se eu fosse aquela pequena lá...

Myatt virou-se e viu a mulher esguia, de peles, e foi percebido e julgado, e novamente abandonado por seus olhos suaves e luminosos.

— Você é mais bonita — disse ele, com uma insinceridade declarada, tentando encontrar de novo o olhar da mulher e saber qual o veredicto.

Não é mentira, disse ele consigo, pois Coral, no máximo, é bonita, enquanto que com a desconhecida nunca se poderia usar a medida IIIsignificante de ser ou não ”bonita”. Mas eu ficaria burro diante dela, pensou ele. Não poderia conversar com ela com a mesma facilidade com que converso com Coral; ficaria consciente de minhas mãos, minha raça; e com uma onda de gratidão, virou-se para Coral.

—Você é boa para mim.

Ele debruçou-se por sobre a sopa, os pãezinhos e o galheteiro:

— Você vai ser boa para mim.

—Sim — disse ela—hoje à noite.

— Por que só hoje à noite? Quando chegarmos a Constantinopla, por que você, por que nós não... — Ele vacilou. Havia alguma coisa nela que o intrigava: uma alamedazinha não visitada no meio de todos os hectares de seu velho conhecimento. .

— Viver lá com você?

— Por que não?

Mas não eram os motivos contra a proposta dele que tumultuavam a mente dela, que de tal forma coloriam seus pensamentos que ela tinha de focalizar os olhos com mais clareza sobre a realidade, o trem balançante, homens e mulheres até onde a vista alcançava, comendo e bebendo entre os estores baixados, fragmentos das conversas dos outros.

” Sim, só isso. Beijos. Só beijos.”

”Hobbs e Zudgliffe?”

Eram todos os argumentos a favor: em vez da volta fria, ao amanhecer, para um quarto sujo e uma senhoria estrangeira, que não a compreenderia se ela pedisse um saco de água quente ou uma xícara de chá, e que oferecesse para uma cabeça cansada um substituto estrangeiro de aspirina, ela poderia voltar para um apartamento elegante, com torneiras reluzentes e muita água quente, e uma cama macia com uma colcha de seda estampada, e isso na verdade valeria qualquer dor, qualquer IIIcômodo de uma noite. Mas é bom demais para ser verdade, pensou ela, e hoje à noite, quando vir que sou fria e assustada e nada acostumada com certas coisas, não vai mais me querer.

— Espere — disse ela. — Você pode não me querer.

— Mas quero, sim.

— Espere até o café da manhã. Peça ao café da manhã. Ou apenas não peça.

— Não, não o críquete. Não o etiquete — disse Josef Grünlich, limpando o bigode. — Na Alemanha aprendemos a correr—e o pitoresco da expressão dele fez o Sr. Opie sorrir.

— O senhor já foi corredor?

— Nos meus tempos — disse Josef Grünlich — fui um grande corredor. Ninguém corria como eu. Ninguém conseguia me pegar.

— Diabo.

— Nãoblasfamejim.

— É a cerveja. Experimente esta. Não tem gás. A que você tomou antes eles chamam de Dunkel.

”Que bom que você gosta.”

”Aquela diaristazinha. Não me lembro do nome dela, era um encanto.”

”Volte para conversar um pouco depois do jantar.” ”O senhor vai se comportar, Sr. Savory?”

, —Vou-lhe prometer.

— Não prometa. Não prometa nada. Fale de outra coisa. Diga-me o que vai fazer em Constantinopla.

— São só negócios. Difíceis. Da próxima vez que você vir um cão pintado, pense em mim. Groselhas. Eu sou groselhas — acrescentou ele, com um orgulho divertido.

— Então vou chamá-lo de cão pintado. Não posso chamá-lo de Carleton, posso? Que nome!

— Olhe, tome uma groselha. Sempre tenho algumas comigo. Tome uma dessa divisão. Boa, não é?

— Suculenta.

— É uma das nossas, Myatt. Myatt e Page. Agora experimente uma destas. O que é que acha?

— Olhe para lá na primeira classe, Amy. Não está vendo? Melhor do que nós, é o que pensa que é.

— Com aquele judeu? Bem, a gente sabe o que pensar.

— Tenho o maior respeito, claro, pela Igreja Católica Romana — disse o Sr. Opie. — Não tenho preconceitos. Como exemplo de organização...

— E então?

— Estou me comportando agora.

— Suculenta.

— Não, não, esta não é suculenta.

— Disse alguma coisa errada?

— Essa era uma do Stein. Uma groselha barata e inferior. Os vinhedos ficam do lado errado dos morros. Isso as torna secas. Tome outra. Não percebe a diferença?

— Sim, esta é seca. É bem diferente. Mas a outra era suculenta. Pode não acreditar, mas era mesmo. Deve tê-las misturado.

— Não, eu mesmo escolhi a amostra. Estranho. Muito estranho.

Sobre os carros-restaurantes caia um silêncio conjunto, que, dizem, significa que um anjo passou por ali. Mas no meio do silêncio humano os copos tiniam nas mesas, as rodas roncavam pelos trilhos de ferro, as vidraças tremiam e as fagulhas faiscavam como cabeças de fósforo no meio do escuro. Atrasado para o último serviço, o Dr. Czinner chegou ao vagãorestaurante no meio do silêncio, os joelhos um pouco curvados, como um marinheiro mantendo-se firme num mar de tempestade. Um garçom ia na frente dele, mas ele não notou que estava sendo conduzido. As palavras brilhavam em sua mente e se tornavam frases. Vocês dizem que sou traidor da minha pátria, mas não reconheço a minha pátria. A escada que desce, escura, os detritos contra as paredes sem janelas, as caras famintas. Estes não são eslavos, pensou ele, que devem obediência a esse ou àquele vulto de fraque: são os pobres de todo o mundo. Ele encarou o tribunal militar sentado sob as águas e as espadas cruzadas. Vocês é que são antiquados com as suas metralhadoras, seu gás e seus discursos patrióticos. Sem querer, caminhando pelo corredor de mesa em mesa, ele tocou e endireitou a gravata de nó apertado e o alfinete vitoriano: eu sou do presente. Mas por um momento, no seu sonho grandioso, intrometeram-se as recordações de filas compridas de maliciosos rostos de adolescentes, o escárnio oculto, os apelidos, as caricaturas, os bilhetes passados nos livros, debaixo das escrivaninhas, os cochichos ubíquos, impossíveis de localizar e castigar. Ele sentou-se e ficou olhando o cardápio, sem entender.

Sim, eu não me importaria de ser aquele judeu, pensou o Sr. Peters, durante a oração, ele está com um belo rabo de saia mesmo, mesmo. Não é bonita. Não diria bonita, mas um corpo bem feito, e isso, disse o Sr. Peters consigo mesmo, olhando a angularidade alta da mulher, lembrando-se de seu estômago queixoso, é o mais importante.

Estranho. Ele tinha escolhido as amostras com muito cuidado. Era natural, claro, que nem mesmo as groselhas de Stein fossem todas de má qualidade, mas quando já se suspeitava de tanta coisa, mais uma era fácil. Suponhamos, por exemplo, que o Sr. Eckman estivesse negociando um pouco por sua conta, e que tivesse cedido a Stein parte da remessa de groselhas da firma, a fim de melhorar a qualidade provisoriamente, e, baseado sobre essa melhoria de qualidade, tivesse induzido Moult’s a fazer uma oferta pelo negócio. O Sr. Eckman devia estar passando maus momentos, agora, pegando o horário de trens, olhando para o relógio, pensando que já se passara a metade da viagem de Myatt. No dia seguinte, pensou ele, vou mandar um telegrama, entregando os negócios ajoyce; o Sr. Eckman terá um mês de férias. Joyce ficará de olho nos livros, e ele imaginou as idas e vindas, como num formigueiro agitado pelo pé de um homem, um telefonema de Eckman a Stein ou de Stein a Eckman, um táxi pedido aqui e dispensado ali, um almoço sem vinho, uma vez na vida, e depois a escada íngreme do escritório, e no topo Joyce, fiel e meio burro, de olho nos livros. E o tempo todo, no apartamento moderno, a Sra. Eckman sentada em seu sofá de aço, tricotando roupas de bebê para a missão anglicana, e a grande Bíblia surrada, o primeiro logro do Sr. Eckman, ficando empoeirada em sua página fechada.

  1. C. Savory tocou no botão do estore de mola e o luar bateu em seu rosto e na faca de peixe e prateou os trilhos de aço na linha tranqüila. A neve parará de cair e estava empilhada sobre os barrancos e entre os dormentes, aliviando o escuro. A alguns metros de distância o Danúbio piscava como mercúrio. Ele via árvores altas caindo para trás e postes telegráfícos, que captavam o luar em seus braços de metal, ao passarem. Enquanto o silêncio envolvia o vagão, ele afastou de si o pensamento de Janet Pardoe; pensou que termos poderia usar para descrever a noite. É tudo uma questão de seleção e disposição; não devo mostrar de todo que só vejo alguns determinados pontos de visão escolhidos. Não devo mencionar as sombras sobre a neve, pois sua cor e forma são indefinidas, mas posso destacar a lâmpada sinalizadora vermelha brilhando sobre o solo branco, a chama do fogo da sala de espera na estação do interior, a conta de luz de uma barca batendo contra a corrente.

Josef Grünlich tocou na ferida de sua perna, onde o revólver a comprimia, e pensou: Quantas horas faltam até à fronteira? Será que os guardas da fronteira tiveram notícia do assassinato? Mas estou seguro. O meu passaporte está em ordem. Ninguém me viu pegar a bolsa. Não há nada que me ligue ao apartamento de Kolber. Será que eu devia ter largado a arma em algum lugar?, pensou ele, mas tranqüilizou-se: poderia ter sido investigada e descobrirem que era dele. Hoje em dia descobrem coisas milagrosas, por algum arranhão na boca da arma. A cada ano o crime se tornava menos seguro; ele ouvira falar num novo artifício para as impressões digitais, algum meio pelo qual podiam descobrir a impressão mesmo de uma mão enluvada. Mas com toda a sua ciência, ainda não me pegaram.

Uma coisa que os filmes haviam ensinado à vista, pensou Savory, era a beleza da paisagem em movimento, como uma torre de igreja se movia por trás e acima das árvores, como mergulhava e se alterava com o passo humano irregular, o encanto de uma chaminé erguendo-se para uma nuvem e afundando além dos outros chapéus de chaminés. Esse sentido de movimento devia ser transmitido em prosa, e a urgência dessa necessidade impressionou-o, de modo que ele desejou ter papel e lápis enquanto estava naquele estado de espírito, e arrependeu-se do convite que fizera a Janet Pardoe para voltar para conversar com ele depois do jantar. Ele queria trabalhar; durante uma ou duas horas, queria estar livre da intromissão de qualquer mulher. Não a quero, pensou ele, mas ao baixar de novo o estore, tornou a sentir o latejar do desejo. Ela era elegante; falava ”como uma dama”; e lera seus livros e os admirava; esses três fatos o conquistaram, pois ele ainda tinha consciência de ter nascido em Balham, e da leve entonação Cockney em sua voz. Depois de seis anos de sucessos acumulados, um sucesso representado pelas cifras das vendas, 2.000, 4.000, 10.000, 25.000, 100.000, ele ainda se admirava ao ver-se em companhia de mulheres bem vestidas, em vez de estar separado delas por uma grossa parede de vidro num restaurante ou a largura de um balcão. Escreviam-se, dia a dia, com trabalho e muitas vezes infelicidade, mas com alguma alegria, 100.000 palavras; um escrivão escrevia outro tanto em um livro de escritório, e no entanto as palavras que ele, Q. C. Savory, ex-assistente de loja, escrevia tinham resultados que nem o trabalho mais árduo num banco de escritório conseguia obter; e, enquanto comia o peixe, sem vontade, e observava Janet Pardoe disfarçadamente, não pensou em contas correntes, direitos autorais e participações, nem nos leitores que choravam com a sua tragédia ou riam diante do seu humor de Cockney, e sim nas compridas escadas para os salões de Londres, as portas duplas se abrindo, seu nome sendo anunciado, os rostos de mulheres virando-se para ele com interesse e respeito.

Breve, daqui a uma ou duas horas, ele será meu amante; e diante dessa idéia e um toque de receio de um relacionamento estranho, o rosto conhecido perdeu sua intimidade. Quando ela desmaiara no corredor, ele se mostrara bondoso, suas mãos puseram um casaco quente em volta dela, sua voz lhe oferecera repouso e luxo; a gratidão lhe fazia arderem os olhos, e, se não fosse o silêncio em todo o vagão, ela teria dito: ”Eu te amo”. Ela guardou as palavras nos lábios, para poder romper o silêncio particular deles quando o silêncio público passasse.

A imprensa estará lá, pensou Czinner, vendo o recinto dos jornalistas como estava no dia do julgamento de Kamnetz, cheio de homens escrevendo e um dos homens desenhando a figura do general. Será a minha figura. Será a justificação das longas horas frias na esplanada, enquanto eu andava de um lado para o outro, pensando se teria feito bem em fugir. Tenho de saber todas as palavras perfeitamente, lembrar-me claramente do objetivo de minha fuga, lembrar-me que não são apenas os pobres de Belgrado que interessam, mas os pobres de todos os países. Muitas vezes ele protestara contra o ponto de vista nacionalista da seção militante do partido social-democrata. Até mesmo seu grande hino era nacional: Marchem, Eslavos, Marchem; e fora adotado contra os desejos dele. Agradava-lhe o fato do passaporte em seu bolso ser inglês, e a planta em sua valise ser alemã. Ele comprara o passaporte numa pequena papelaria perto do British Museum, de um polonês. Foi-lhe entregue numa mesa de chá na sala dos fundos, e o homem magro e sardento, de cujo nome eleja se esquecera, se desculpara pelo.preço.

— A despesa é muito grande — dissera ele, queixando-se, e enquanto ajudava o cliente a vestir o sobretudo, perguntara, maquinalmente e sem interesse: — Como vai o seu negócio?

Era óbvio que ele pensara que Czinner fosse ladrão. Depois teve de ir para dentro da loja para vender um Almanach Gaulois a um colegial, às escondidas. Marchem, Eslavos, Marchem. O homem que escrevera a música fora morto à baioneta do lado de fora da sala do arquivo.

”Frango grelhado! Vitela assada... — Os garçons foram gritando pelo vagão e rompendo o minuto de silêncio. Todos começaram a falar ao mesmo tempo.”

”Acho que os húngaros têm muita facilidade para o críquete. No ano passado tivemos seis partidas.”

”Esta cerveja não é nada melhor. Eu gostaria mesmo era de um copo de Guinness.”

”Acho mesmo que essas groselhas...”

”Eu te amo.”

”O nosso agente... o que foi que você disse?”

”Eu disse que te amo.”

O anjo se fora e, barulhento e animado, com o ronco das rodas e o barulho dos pratos, de vozes falando e espelhos tinindo, o expresso passou por uma fila comprida de abetos e o Danúbio reluzente. No vagão o ponteiro da pressão subiu, o maquinista abriu o regulador e a velocidade do trem foi aumentada de oito quilômetros por hora.

Coral Musker parou sobre as placas de metal entre o carro-restalrante e os vagões de segunda classe. Ela foi abalada e sacudida pelo movimento do trem, e por um momento não conseguiu prosseguir para ir buscar a mala do compartimento onde o Sr. Peters estava sentado com a mulher, Amy. Afastando-se do metal barulhento, o pistão que batia, ela caminhava, mentalmente, embrulhada num casaco de peles, subindo a escada para seu apartamento. Sobre a mesa da sala havia uma cesta de rosas de estufa e um cartão ”com amor, de Carl”, pois ela resolvera chamá-lo assim. Não era possível dizer ”Eu te amo, Carleton”; mas ”Eu te adoro, Carl” era bem fácil. Ela riu alto e bateu palmas, sentindo de repente que o amor era uma coisa simples, feita de gratidão, presentes e brincadeiras conhecidas, um apartamento, nenhum trabalho e uma empregada.

Ela começou a correr pelo corredor, empurrada de um lado para o outro, mas sem ligar a mínima. Vou chegar ao teatro com três dias de atraso, e direi: ”Pode-se falar com o Sr. Sidney Dunn?”. Mas claro que o porteiro será turco e se limitará a resmungar, com os bigodes, e eu terei de achar o caminho pela passagem até os camarins, por cima de uma porção de mangueiras de incêndio, e direi: ”Boa tarde” ou ”Bongjour”, e porei a cabeça para dentro do camarim principal dizendo: ”Onde está o Sid?”. Ele há de estar ensaiando na frente, de modo que vou sair dos bastidores de repente e ele dirá: ”Quem é você, que diabo?”, marcando o compasso enquanto as Dunn’s Babies dançam, dançam e dançam. ”Coral Musker.” ”Você está com três dias de atraso. Que diabo quer dizer com isso?” E eu direi: ”Só passei por aqui para me demitir”. Ela repetiu a frase em voz alta para ver como soava: ”Só passei por aqui para me demitir”, mas o barulho do trem transformou a sua bravata num ruído que mais parecia um gemido trêmulo.

— Com licença — disse ela ao Sr. Peters, que estava cochilando em seu canto, um pouco untuoso depois da refeição. As pernas dele estavam esticadas na cabina e impediam a entrada dela. — Com licença — repetiu ela, e o Sr. Peters acordou e desculpou-se.

— Vai voltar para cá? Muito bem.

— Não — disse ela — vim buscar a minha mala.

Amy Peters, enrascada num banco, com uma hortelã dissolvendo na boca, disse, com um veneno súbito:

— Não fale com ela, Herbert. Ela que pegue a mala. Pensa que é melhor do que nós.

— Só quero a minha mala. O que é que a está chateando? Eu não disse nada...

— Não se aborreça, Amy — disse o Sr. Peters. — Não é da nossa conta o que essa moça faz. Tome outra hortelã. É o estômago dela — disse para Coral. — Tem má digestão.

— Moça. Ela é uma vagabunda, isso sim.

Coral tinha puxado a mala debaixo do banco, mas ela então a colocou de novo com firmeza sobre os dedos do pé do Sr. Peters. Pôs as mãos nas cadeiras e enfrentou a mulher, sentindo-se muito velha, confiante e segura, pois a natureza da discussão lhe trouxe à mente a figura da mãe, as mãos nos quadris e os cotovelos para fora, trocando palavras com uma vizinha, que sugerira que ela estaria ”andando” com o inquilino. Naquele momento ela era a mãe; ela se despojara de suas próprias experiências com a facilidade com que tiraria um vestido, a educação falsa do teatro, a fala cuidadosa.

— E quem é que vocês pensam que são?

Ela sabia a resposta: donos de loja em férias, indo até Budapeste num excursão da Cook, porque era um pouco mais longe do que Ostende, porque em casa poderiam gabar-se de terem viajado e mostrar as etiquetas berrantes de um hotel barato em suas malas. Antigamente ela mesma poderia ter-se impressionado, mas aprendera a levar as coisas na flauta, nunca admitindo a ignorância, fingindo que sabia das coisas.

— Com quem pensam que estão falando? Não sou uma de suas vendedoras. Não que tenham alguma, na sua ruazinha escondida.

— Ora, vamos — disse o Sr. Peters, sentindo-se ferido com a descoberta dela — não precisa se zangar.

—Ah, não? Ouviu o que ela me chamou? Imagino que ela tenha visto você dando em cima de mim.

— Nós sabemos que ele não está à sua altura. O que você quer é dinheiro fácil. Não pense que a queremos aqui neste vagão. Sei bem onde é o seu lugar.

— Tire esse troço da sua boca quando falar comigo.

—Arbuckle Avenue. Pode pegá-los assim que saltam do trem em Paddington.

Coral riu-se. Era o riso histriônico da mãe, chamando os vizinhos para assistirem à briga. Seus dedos, nos quadris, vibravam de entusiasmo. Ela passara tanto tempo sendo boazinha, falando direito, nem mencionando um namorado, ou dizendo tolices. Durante anos ela tinha pairado, indecisa, entre as classes, sem pertencer a nenhuma a não ser ao teatro, tendo perdido o seu bom senso nativo e sendo-lhe impossível um refinamento natural. Agora, ela reverteu ao seu verdadeiro tipo, e com prazer.

— Eu não queria ser um espantalho como você nem que me pagassem. Não admira que esteja com dor de barriga, com uma cara dessas. Não admira que o seu velho queira mudar.

— Ora, vamos, senhoras — disse o Sr. Peters.

— Ele não havia de sujar as mãos com você. Um judeuzinho nojento, é só para isso que você presta.

De repente Coral começou a chorar, se bem que suas mãos ainda estivessem em posição de lutar, e ela conseguisse responder:

— Não o meta nisto.

Mas as palavras da Sra. Peters permaneceram borradas, como a fumaça se dissolvendo, num anúncio aéreo, sobre a paisagem bonita. —Ah, sabemos que ele é seu namorado.

— Meu bem — disse uma voz atrás dela — não deixe que a atormentem.

— Aqui está outro de seus amiguinhos.

— Então? — O Dr. Czinner pôs a mão sob o cotovelo de Coral e a fez sair da cabina.

—Judeus e estrangeiros. Você devia ter vergonha.

O Dr. Czinner pegou a valise e a colocou no corredor. Quando ele voltou-se para a Sra. Peters, não lhe mostrou o rosto abatido do professor estrangeiro, e sim a ousadia e o sarcasmo que os jornalistas haviam notado quando ele se apresentou como testemunha contra Kamnetz.

— E então?

A Sra. Peters tirou a hortelã da boca: o Dr. Czinner, enfiando ambas as mãos nos bolsos da capa, balançava para a frente e para trás, nas pontas dos pés. Parecia estar senhor da situação, mas não sabia bem o que dizer, pois sua mente ainda estava cheia de frases grandiosas, de retórica socialista. Ele se tornara duro diante da opressão, mas no momento faltavam-lhe palavras com as quais contestá-la. Elas existiam, ele sabia, em algum lugar na obscuridade de sua mente, frases brilhantes, sentenças amargas como a fumaça.

— Então?

A Sra. Peters começou a tomar coragem.

— E o que é que você tem de se meter aqui? É demais. Primeiro um intrometido, depois outro. Herbert, faça alguma coisa.

O Dr. Czinner começou a falar. Com seu sotaque carregado, as palavras assumiram certa força poderosa que fez calar a Sra. Peters, se bem que não a convencessem.

— Sou médico.

Ele lhes disse como era inútil esperar que eles tivessem um sentido de vergonha. Aquela moça, na véspera, tinha desmaiado; pela saúde dela, ele dera ordem para ela dormir num leito. As desconfianças só desonravam quem desconfiava. Depois ele foi ter com Coral Musker no corredor. Eles estavam fora das vistas da cabina, mas a voz da Sra. Peters se ouvia perfeitamente:

— Sim, mas quem vai pagar? É o que eu gostaria de saber.

O Dr. Czinner encostou as costas da cabeça contra o vidro e murmurou:

— Bourgeois.

— Obrigada — disse Coral, e acrescentou, ao ver a expressão de decepção dele: — Posso fazer alguma coisa? O senhor está doente?

— Não, não — disse ele. — Mas foi inútil. Não tenho o dom da palavra. — Ele recostou-se na janela e sorriu para ela.—Você foi melhor. Falou muito bem.

— Por que eles foram tão detestáveis? — perguntou ela.

— São sempre a mesma coisa—disse ele. — O proletariado tem suas virtudes, e o cavalheiro muitas vezes é bom, justo e corajoso. É pago por alguma coisa útil, para governar, ensinar ou curar, ou então o dinheiro é do pai. Não o merece, talvez, mas não faz mal a ninguém para ganhálo. Mas os burgueses... compram barato e vendem caro. Compram do trabalhador e vendem de volta ao trabalhador. São inúteis.

A pergunta dela não precisava de uma resposta. Ela ficou olhando para ele, confusa pela torrente da explicação dele e a força de suas convicções, sem ter compreendido uma palavra do que ele dissera.

— Não lhes fiz mal algum.

—Ah, mas lhes fez um grande mal. E eu também. Viemos da mesma classe. Mas ganhamos a nossa vida honestamente, sem fazer mal algum, mas algum bem. Somos um exemplo contra eles, e eles não gostam disso.

De toda essa explicação ela pegou a única frase que compreendeu.

— O senhor não é um cavalheiro?

— Não, nem sou um burguês.

Ela não podia compreender o vago tom de jactância da resposta dele, pois desde que saíra de casa sua ambição fora passar por uma dama. Para isso ela estudara com tanta atenção quanto um subalterno ambicioso estuda para uma equipe de assessoria: todos os meses, o seu curso IIIcluía um número novo de Woman and Beauty, cada semana um Home Notes; em suas páginas ela examinava as fotos de estrelas mais jovens e as filhas dos nobres mais apagados, aprendendo quais os acessórios que estavam sendo usados e quais eram os pós-de-arroz mais em moda.

Ele começou a aconselhá-la delicadamente:

— Se você não puder tirar umas férias, procure repousar o mais possível. Não se zangue, por motivo algum...

— Eles me chamaram de vagabunda.

Ela viu que a palavra não tinha significado algum para ele. Nem por um momento arrepiou a superfície da mente dele. Ele continuou a falar delicadamente sobre a saúde dela, sem olhá-la nos olhos. Ele está pensando em outra coisa, pensou ela, e abaixou-se impaciente para pegar a mala e deixá-lo. Ele impediu-a, dando uma série de instruções sobre sedativos, sucos de frutas e agasalhos. Obscuramente, ela percebeu uma mudança na atitude dele. Na véspera ele queria a solidão, e agora ele se agarrava a qualquer pretexto para ficar com ela mais um pouco.

— O que queria dizer — perguntou ela — quando disse: ”Meu verdadeiro trabalho”?

— Quando foi que eu disse isso? — perguntou ele, rapidamente.

— Ontem, quando eu desmaiei.

— Eu estava sonhando. Só tenho um trabalho.

Ele não disse mais nada e depois de um momento ela pegou a mala e foi-se.

Nada na experiência dela lhe permitiria compreender até que ponto ia a solidão a que ela o abandonara. ”Só tenho um trabalho.” Era uma confissão que o assustava, pois nem sempre fora verdade. Ele não convivera nem se acostumara com a idéia de um único emprego. Um dia sua vida fora iluminada pela multiplicidade de seus deveres. Se ele nascera com um espírito como uma vasta sala despida, coberta pelas marcas de uma casa que decaiu no mundo, com arranhões e papel de parede caindo e pó, os seus deveres, como várias luzes de um candelabro imenso, maciço demais para poder ser empenhado, o haviam iluminado adequadamente. Havia o seu dever para com os pais, que tinham passado fome para que ele pudesse ter uma boa instrução. Ele se lembrava do dia em que se diplomara, e que eles o haviam visitado no seu apartamento conjugado, sentando-se num canto e olhando-o com respeito, com assombro mesmo, mas sem amor, pois não o podiam amar, agora que ele era um homem instruído; uma vez ele ouviu o pai chamá-lo de ”senhor”. Essas velas se apagaram cedo, e ele mal notara a perda de duas luzes entre tantas, pois tinha seu dever para com os pais, seu dever para com os pobres de Belgrado, e a idéia que aos poucos ia-se formando, de seu dever para com a sua própria classe em todos os países. Seus pais tinham passado fome para ele poder ser médico, ele mesmo passara fome e pusera em risco sua saúde para poder ser médico, e só depois de ter clinicado por vários anos é que percebeu a inutilidade de sua habilidade. Não podia fazer coisa alguma por seu povo; não podia receitar repouso para os esgotados, nem IIIsulina para os diabéticos, pois não tinham dinheiro para pagar por isso.

Ele começou a caminhar pelo corredor, murmurando um pouco consigo mesmo. Floquinhos de neve caíam de novo; eram soprados contra as vidraças como o vapor.

Havia o seu dever para com Deus. Ele se corrigiu: para com um deus. Um deus que se inclinava para baixo pelas naves sob um dossel vivo e roído de traças, um deus do tamanho de uma moeda de um coroa encerrado num cercadura de ouro. Era um deus de duas faces, uma divindade que consolava os pobres em sua aflição enquanto erguiam os olhos para a sua vinda no meio das colunas, e uma divindade que os persuadira, em nome de um futuro duvidoso, a suportar a sua dor, de cabeça curvada, enquanto por eles passava a onda dos cantores do coro e padres e cantos. Ele soprara a vela com o seu próprio sopro, dizendo a si mesmo que Deus era uma ficção inventada pelos ricos, para manterem os pobres satisfeitos; ele a apagara com um gesto, um curioso sentimento antiquado de ousadia, e por vezes sentia um ressentimento irracional contra os que hoje nascem sem sentido de religião e que podem rir da seriedade do iconoclasta do século XIX.

E agora só havia uma vela fraca para iluminar o grande salão. Não sou um filho, pensou ele, nem médico, nem crente, sou socialista; a palavra pronunciada pelos políticos em inúmeras plataformas, impressa em tipos malfeitos ou papel ordinário em inúmeros jornais soava rachada. Até aí eu fracassei. Ele estava só e sua luz única estava fraquejando, e ele teria bem-vindo a companhia de qualquer pessoa.

Quando chegou à sua cabina e lá encontrou um desconhecido, ficou satisfeito. O homem estava de costas, mas virou-se logo, em suas pernas curtas e fortes. A primeira coisa que o Dr. Czinner notou foi uma cruz de prata na corrente do relógio dele, e a seguinte, que sua mala não estava no mesmo lugar em que ele a deixara. Perguntou, com tristeza:

— O senhor também é jornalista?

— Ich spreche kein Englisch—respondeu o homem.

O Dr. Czinner disse em alemão, enquanto barrava a saída para o corredor:

— É espião da polícia? Está atrasado.

Seus olhos continuavam pregados na cruz de prata, que balançava para a frente e para trás com os movimento do homem; poderia estar acompanhando o passo humano, e por um momento o Dr. Czinner se achatou contra o muro de uma rua íngreme para deixar passarem os homens armados, as lanças e os cavalos, e o homem cansado e torturado. Ele não morrera para contemplar os pobres, nem para apertar mais as correntes; suas palavras tinham sido deturpadas.

Não sou espião da polícia.

O Dr. Czinner deu pouca atenção ao desconhecido, ao encarar a possibilidade de que, se as palavras tivessem sido distorcidas, algumas delas poderiam ser verdadeiras. Ele argumentou consigo que a dúvida só surgia com a aproximação da morte, pois quando o fardo do fracasso se tornava quase insuportável, o homem inevitavelmente voltava-se para as promessas mais sem fundamentos. ”Eu vos darei sossego.” A morte não dava sossego, pois o sossego não poderia existir sem a consciência do sossego.

— O senhor não me compreendeu, Herr...

— Czinner.

Ele entregou seu nome ao desconhecido sem vacilar; já se acabara a época dos disfarces, e no novo ar de verdade não eram apenas as máscaras de identidade que ele tinha de despir. Havia palavras, que ele não examinara muito atentamente, lemas comuns que aceitara porque ajudavam a causa: ”A religião é amiga do riso”. Ele disse ao desconhecido:

— Se não é espião da polícia, então quem é? O que andou fazendo aqui?

— O meu nome — disse o homenzinho gordo, sacudindo um pouco da cintura para cima, enquanto um dos dedos torcia o botão de baixo do colete, é... — O nome foi lançado na escuridão brilhante, iluminada pela neve, abafado pelo rugido do trem, o clangor de pilares de aço, uma ponte ressonante; o Danúbio, como uma energia prateada, passava de um lado a outro da linha. O homem teve de repetir o nome. — Josef Grünlich. — Ele hesitou e depois continuou: — Eu estava procurando dinheiro, Herr Czinner.

— Você roubou...

— O senhor voltou cedo demais. — Ele começou a explicar devagar. — Fugi da polícia. Nada de vergonhoso, Herr Czinner, posso assegurar-lhe. — Ele torcia e torcia o botão do colete, um discursador estranho e nada convincente no ar iluminado de novo do cérebro do Dr. Czinner, povoado apenas por verdades incontestáveis, um rosto faminto, um farrapo vivo, uma criança sofrendo, um homem cambaleando pela estrada para o calvário. — Foi um crime político, Herr Czinner. Foi pela causa que abri a sua valise. — Ele soprou a palavra ”causa” com um bafo quente e intenso, barateando-a, como um lema, uma emoção fácil. — Vai chamar o condutor? — Ele firmou os joelhos, e seu dedo apertou o botão.

— O que quer dizer com sua causa?

— Sou socialista.

O Dr. Czinner teve a percepção rápida de que um movimento não podia ser julgado por seus funcionários ou adeptos; o socialismo não era condenado pela adesão de Grünlich, mas ele não obstante estava ansioso por esquecer-se de Grünlich.

— Eu lhe darei algum dinheiro. — Pegou a carteira e deu cinco libras esterlinas ao homem. — Boa-noite.

Era fácil despedir Grünlich, e lhe custara pouco, pois em Belgrado o dinheiro não teria valor para ele. Não precisava de um advogado para defendê-lo: sua defesa seria a sua própria língua. Mas era menos fácil fugir da idéia que Grünlich deixara com ele, que um movimento não era condenado pela desonestidade de seus adeptos. Ele mesmo não deixava de ser desonesto, e a verdade de sua crença não se alterava por ele ser culpado de vaidade e de várias mesquinharias; uma vez ele engravidara uma moça. Nem mesmo os seus motivos para viajar de primeira classe deixavam de ser mistos; era mais fácil fugir da polícia da fronteira, mas também era mais confortável, mais condigno com sua vaidade como líder. Ele pilhou-se rezando: ”Perdoa-me, Deus”. Mas ele estava excluído de qualquer garantia de perdão, se é que existia algum poder que perdoasse.

O condutor chegou e olhou para seu bilhete.

— Está nevando de novo — disse. — Está pior mais adiante na linha. Teremos sorte se conseguirmos passar sem atraso.

Ele mostrou-se disposto a ficar e conversar. Três invernos antes, disse ele, tinham tido maus momentos. Ficaram paralisados pela neve durante 48 horas num dos piores trechos da linha, um dos trechos desprotegidos dos Bálcãs; não se podia arranjar alimentos e tiveram de poupar combustível.

— Chegaremos a Belgrado no horário?

— Não se pode saber. Pela minha experiência... se há neve deste lado de Buda, haverá o dobro até Belgrado. É diferente antes de se chegar ao Danúbio. Pode estar nevando em Munique e parecer verão em Buda. Boa-noite, Herr Doktor. Vai ter pacientes neste frio. — O condutor seguiu pelo corredor, batendo as mãos.

O Dr. Czinner não se demorou muito em sua cabina; o homem com que a compartilhara saltara em Viena. Breve seria impossível ver sequer luzes que passavam pela vidraça; a neve se aglomerava em cada fresta e estava-se formando gelo na vidraça. Quando passavam por uma guarita de sinalização ou uma luz de estação, sua imagem era cortada em fatias pelas listras de gelo opaco, de modo que por um momento a vidraça do trem tornava-se um caleidoscópio em que se sacudiam os pedaços misturados de vidro colorido. O Dr. Czinner embrulhou as mãos nas dobras soltas de sua capa, para aquecê-las, e recomeçou a andar pelo corredor. Passou pelo carro do condutor e saiu nos vagões de terceira classe que tinham sido ligados ao trem em Viena. A maioria das cabinas estava às escuras, só havendo um globo fraco aceso no teto. Nos assentos de madeira, os passageiros se instalavam para a noite com os casacos enrolados debaixo da cabeça: algumas cabinas estavam tão cheias que homens e mulheres dormiam em posição vertical, em duas filas, os rostos verdes e impassíveis à luz fraca. Havia um cheiro de vinho tinto ordinário das garrafas vazias debaixo dos bancos, e alguns pedaços de pão azedo rolavam pelo chão. Quando ele se aproximou do banheiro, recuou, pois o cheiro era demais para ele. Atrás dele a porta abriu e fechou com o tremor do expresso.

É lá o meu lugar, pensou ele, sem muita convicção; eu devia estar viajando de terceira classe. Não quero ser igual a um membro trabalhista constitucional, com uma passagem de primeira classe para ir votar num parlamento apinhado. Mas ele se consolou com a idéia de que teria sido detido por baldeações freqüentes e que poderia ter sido preso na fronteira. Não obstante, continuava ciente da misturada de seus motivos; eles só tinham começado a importuná-lo depois que ele soubera do fracasso; todas as suas vaidades, mesquinharias e pecadilhos teriam sido varridos para o nada na emoção e altruísmo da vitória. Mas ele desejava, agora que tudo dependia de suas palavras, poder fazer seu discurso do banco dos réus com uma consciência perfeitamente limpa. Coisinhas do seu passado, que seus inimigos nunca saberiam, poderiam surgir em sua própria cabeça para atrapalhar sua língua. Fracassei completamente com aqueles dois lojistas; terei mais êxito em Belgrado?

Como o seu futuro tinha um limite quase certo, ele começou a pensar, contra o seu costume, no passado. Houve uma época em que uma consciência limpa podia ser comprada pelo preço de um momento de vergonha: desde a minha última confissão, fiz isso e aquilo. Se, pensou ele, com saudade e um pouquinho de amargura, eu pudesse recapturar a minha pureza de motivos com tanta facilidade, seria um tolo se não me aproveitasse disso. Meu remorso pelo que fiz não é menor hoje do que era então, mas não estou convicto do perdão; não tenho convicção de que haja alguém que perdoe. Ele chegava quase a escarnecer dessa última crença: Deverei ir confessar os meus pecados ao tesoureiro do partido social-democrata, aos passageiros da terceira classe? O rosto virado do padre, os dedos erguidos, o sussurro de uma língua morta de repente pareceram-lhe tão belos, tão infinitamente desejáveis e desanimadoramente perdidos como o primeiro amor no canto do muro do viaduto.

Foi aí que o Dr. Czinner avistou o Sr. Opie sozinho numa cabina de segunda classe, escrevendo num caderninho.

Ele olhou para o outro com uma espécie de cobiça envergonhada, pois estava prestes a sucumbir a uma crença que se orgulhara de dominar. Mas se me der paz, protestou, e diante das associações ainda obscuras da palavra ele abriu a porta e entrou na cabina. O rosto comprido e pálido, a impressão de cultura herdada o constrangeram; a seu pedido, ele reconheceria a superioridade do padre; e por um momento voltou a ser o menino de mãos sujas corando na penumbra do confessionário por causa de seus pecados comuns. Disse ele, em seu inglês rígido, que o traía:

— Dá licença? Talvez eu o esteja incomodando. Quer dormir?

— Em absoluto. Vou saltar em Budapeste. Não creio que vá dormir — ele riu, fazendo pouco de si — até à hora de saltar do trem.

— Meu nome é Czinner.

— E o meu é Opie.

Para o Sr. Opie o nome dele não significava nada; talvez só seja lembrado pelos jornalistas. O Dr. Czinner fechou a porta e sentou-se no banco defronte do outro.

— O senhor é padre?

Ele queria dizer a palavra ”pai”, mas não conseguiu; significava demais, um rosto cinzento e faminto, o afeto passando ao respeito, o sacrifício à desconfiança de um filho que crescera e passara a ser um inimigo.

— Não do catolicismo romano — disse o Sr. Opie.

O Dr. Czinner ficou calado por vários minutos, sem saber ao certo como formular seu pedido. Seus lábios estavam secos, com uma verdadeira sede de virtude, que era como um copo de água gelada na mesa do quarto de outro homem. O Sr. Opie pareceu notar o encabulamento dele e comentou, animado: — Estou escrevendo uma pequena antologia.

O Dr. Czinner repetiu, maquinalmente:

— Antologia?

— Sim — disse o Sr. Opie. — Uma antologia espiritual para os espíritos leigos, uma coisa para substituir os livros de contemplação romanos na igreja anglicana. — Sua mão branca e fina afagou a capa de couro acamurçado do seu caderno. — Mas pretendo ir mais fundo. Os livros romanos são, como direi, por demais exclusivamente religiosos. Quero que os meus atendam a todas as circunstâncias da vida quotidiana. O senhor é jogador de críquete?

A pergunta pegou o Dr. Czinner de surpresa; novamente em sua recordação, ele estava ajoelhado no escuro, fazendo o seu ato de contrição.

— Não, não — disse ele.

— Não importa. Há de entender o que quero dizer. Suponhamos que seja o último a entrar; já pôs as suas defesas de perna; oito metas já caíram; devem ser feitas 50 corridas; você pensa se a responsabilidade caberá a você. Não conseguirá a força para essa crise de nenhum dos livros de contemplação comuns; poderá até desconfiar um pouco da religião. Pretendo atender à necessidade desse homem.

O Sr. Opie falara depressa e com entusiasmo; e o Dr. Czinner viu que seus conhecimentos da língua lhe falhavam. Não compreendia o significado das palavras ”defesa de perna”, nem ”metas”, nem ”corridas”; sabia que tinham algo a ver com o jogo inglês do críquete; ele se acostumara com as palavras, nos últimos cinco anos, e em sua cabeça elas estavam ligadas a gramados varridos pelo vento do mar e a supervisão de crianças e jovens empenhados num jogo que ele não dominava; porém o significado religioso das palavras lhe fugia. Supunha que o padre as estivesse usando por metáforas: ”responsabilidade”; ”crise”; ”necessidade do homem”, essas expressões ele entendia, e davam-lhe a oportunidade que ele necessitava para formular o seu pedido.

— Quero falar-lhe da confissão — disse ele. —Ao som daquela palavra ele por um momento voltou a ser jovem.

—E um assunto difícil — disse o Sr. Opie. Ele olhou para as mãos, um instante, e depois começou a falar depressa. — Não sou dogmático nesse ponto. Acho que há muita virtude na atitude da igreja católica romana. A psicologia moderna está trabalhando em sentido paralelo. Existe uma semelhança no relacionamento confessor-penitente e psicanalista-paciente. Claro, existe a diferença, no sentido de que um diz que perdoa os pecados. Mas a diferença — continuou o Sr. Opie depressa, quando o Dr. Czinner tentou falar — afinal não é assim tão grande. Num dos casos dizem que os pecados são perdoados e o penitente sai do confessionário com o espírito tranqüilo e a intenção de recomeçar a vida; no outro, a simples expressão dos vícios do paciente e a exposição de seus motivos inconscientes para praticá-los supostamente acabam com a força do desejo. O paciente sai do psicanalista com o poder, bem como a intenção, de recomeçar a vida. — A porta do corredor abriu-se e entrou um homem. — Desse ponto de vista — disse o Sr. Opie — a confissão ao psicanalista parece mais eficaz do que a confissão ao sacerdote.

— Estão falando sobre a confissão? — perguntou o recém-chegado. — Posso acrescentar mais um elemento à sua discussão? Há o aspecto literário a se considerar.

—Permitam-me apresentá-los—disse o Sr. Opie.—O Dr. Czinner; o Sr. Q. C. Savory. Realmente, temos aqui os elementos para uma conversa muito interessante: o médico; o clérigo e o escritor.

O Dr. Czinner disse, devagar:

— Não deixou de fora o penitente?

— Eu ia apresentá-lo — disse o Sr. Savory. — De certo modo, certamente sou eu o penitente. Partindo-se da premissa de que o romance se baseia sobre a experiência do autor, o romancista faz uma confissão ao público. Isso coloca o público na posição do padre e do analista.

O Sr. Opie contrariou-o com um sorriso.

— Mas o seu romance só é uma confissão desde que o sonho seja uma confissão. O censor freudiano interfere. O censor freudiano — ele foi obrigado a repetir numa voz mais forte, quando o trem passou sob uma ponte. — O que diz o médico?

O olhar deles, atento e esperto, deixou o Dr. Czinner confuso. Ele ficou ali sentado, a cabeça meio baixa, sem conseguir levar aos lábios as frases amargas de seu coração; pela segunda vez naquela noite, a fala lhe falhava; como podia contar com ela quando chegasse a Belgrado?

— E depois — disse o Sr. Savory — temos Shakespeare.

— E onde não o encontramos? — disse o Sr. Opie. — Ele abrange este mundo acanhado como um colosso. Quer dizer...

— Qual era a atitude dele para com a confissão? Nasceu católico romano, claro.

— Em Hamlet—começou o Sr. Opie, mas o Dr. Czinner não esperou mais nada. Levantou-se e fez duas mesuras rápidas.

— Boa-noite — disse ele. Queria exprimir sua raiva e sua desilusão, mas só conseguiu dizer: — Tão interessante.

O corredor, iluminado apenas por uma série de globos fracos, inclinava-se cinzento e vibrante em direção a vagões escuros. Alguém se virou, dormindo, e murmurou, em alemão: ”Impossível. Impossível”.

Quando Coral deixou o médico, começou a correr, o mais depressa possível, com uma valise num trem balançante, de modo que estava sem fôlego e quase bonita quando Myatt a viu puxando a maçaneta de sua porta. Ele guardara a correspondência do Sr. Eckman e a lista dos preços de mercado dez minutos antes, por que verificara que sempre, antes que as frases ou as cifras pudessem transmitir alguma coisa à sua mente, ele ouvia a voz da moça: ”Eu te amo”.

Que piada, pensou, que piada.

Ele olhou para o relógio. Não havia parada alguma, durante as próximas sete horas, e ele dera uma gorjeta ao condutor. Pensou se eles se acostumavam com aquele tipo de caso nos trens internacionais. Quando era mais jovem, lia histórias de mensageiros dos reis seduzidos por belas condessas viajando sozinhas e ficava imaginando se algum dia teria essa sorte. Ele se olhou no espelho e ajeitou os cabelos pretos e oleosos. Não seria tão feio, se a minha pele não fosse tão macilenta; mas quando tirou o casaco de peles não pôde deixar de se lembrar que estava engordando e que viajava a negócios de groselhas e não de documentos selados. Tampouco ela é uma bela condessa, mas gosta de mim e tem um corpo bonito.

Ele sentou-se, olhou para o relógio e tornou a levantar. Estava excitado. Seu idiota, pensou, ela não é nenhuma novidade: bonitinha, boazinha e vulgar, encontra-se esse tipo toda noite na Estrada dos Espanhóis, e no entanto, apesar desses argumentos, não podia deixar de sentir que a aventura tinha em si uma nota de frescor, algo desconhecido. Talvez fosse apenas a situação: viajando a 90 km por hora num leitozinho de pouco mais de 60 cm de largura. Talvez fosse a exclamação dela, ao jantar; as pequenas que ele conhecia não gostavam de usar essa expressão; diriam ”eu te amo”, se lhes pedisse, mas seu tributo espontâneo era mais no gênero de: ”Você é um bom rapaz”. Ele começou a pensar nela de um modo como nunca pensara em uma mulher atingível: ela é querida e doce, gostaria de fazer coisas por ela. Levou vários momentos para se lembrar de que ela já tinha motivos de gratidão.

— Entre — disse ele — entre.

Ele pegou a valise da mão dela e empurrou-a para baixo do assento, e depois pegou as mãos dela.

— Bem — disse ela, com um sorriso. — Estou aqui, não estou? A despeito do sorriso, ele a achou assustada, e não sabia por quê. Ele

soltou as mãos dela para cerrar os estores das vidraças que davam para o corredor, de modo que eles de repente pareceram estar sozinhos numa caixinha vibrante. Ele beijou-a e viu que sua boca era fresca, macia e insegura em sua reação. Ela sentou-se no banco que se convertera em leito e perguntou:

— Ficou pensando se eu viria?

—Você prometeu — lembrou-lhe ele.

— Eu podia ter mudado de idéia.

— Mas por quê? — Myatt estava ficando impaciente. Não queria ficar ali sentado conversando; as pernas dela, balançando sem tocar no chão, o excitavam. — Vamos divertir-nos. — Ele tirou os sapatos dela e passou as mãos subindo pelas meias dela.

— Você sabe muita coisa, não? — disse ela. Ele corou.

— Você se importa com isso?

— Ah, fico contente — disse ela. — Muito contente. Não podia suportar se você não soubesse muito.

Os olhos dela, grandes e assustados, seu rosto pálido sob a lâmpada fraca e azulada a princípio o divertiram e depois o excitaram. Ele teve vontade de provocá-la; fazendo-a passar da reserva à paixão. Tornou a beijá-la e tentou tirar-lhe o vestido por cima dos ombros. O corpo dela tremeu e se mexeu sob o vestido, como um gato atado num saco; de repente ela levantou os lábios para ele e beijou o queixo dele.

— Eu o amo — disse ela. — Amo mesmo.

A sensação de estranheza acentuou-se, em volta dele. Era como se ele tivesse saído de casa por um caminho conhecido, passando pela usina de gás, atravessando a ponte de tijolos sobre o Wimble, e dois campos, e depois se encontrasse não no caminho que subia o morro para a nova estrada e os bangalôs, e sim no limiar de um bosque estranho, diante de uma alameda sombreada por onde nunca andara, que dava sabe Deus onde. Ele tirou as mãos dos ombros dela e disse, sem tocá-la:

—Como você é meiga—e depois, com espanto:—Como é querida.

Ele nunca sentira o desejo dentro de si ser refreado e depois aumentado devido à pausa; sempre se entregara a novas aventuras com um entusiasmo fácil.

— O que vou fazer? Devo tirar a roupa?

Ele fez que sim, tendo dificuldade em falar, e a viu levantar do leito, ir para um canto e começar a despir-se devagar e com muito método, dobrando cada peça de roupa por sua vez e colocando-a arrumada no banco da frente. Olhando os movimentos calmos dela, ele sentiu como o seu próprio corpo era inadequado, e disse:

— Você é linda — e suas palavras saíram aos trancos, numa empolgação desusada.

Quando ela se aproximou, ele viu que se tinha iludido: a calma dela era como uma pele muito esticada; o rosto dela estava corado de emoção e seu olhos, assustados; ela parecia não saber se queria rir ou chorar. Eles se uniram muito simplesmente no espaço apertado entre os bancos.

— Eu queria que a luz se apagasse — disse ela.

Ficou junto dele, enquanto ele a tocava com as mãos, ambos balançando facilmente com o movimento do trem.

— Não — disse ele.

— Seria mais próprio — disse ela, e começou a rir baixinho.

O riso dela ficou ali como um poço de som quase imperceptível, sob o ronco e o martelar do expresso, mas quando eles falaram, em vez de murmurarem, tinham de falar as palavras íntimas em alto e bom som.

A sensação de estranheza sobreviveu até aos gestos habituais; deitada no leito, ela mostrou-se desajeitada de um modo misterioso e inocente que o espantou. O riso dela parou, não acabando naturalmente, mas sumindo, de modo que ele se perguntou se teria imaginado o som ou se teria sido efeito das rodas girando. Ela disse, de repente e com urgência:

— Tenha paciência, não sei muita coisa — e depois soltou uma exclamação de dor.

Ele não poderia ter ficado mais sobressaltado se um fantasma tivesse passado pela cabina vestido com trajes antigos, anteriores à máquina a vapor. Ele a teria largado, se ela não o tivesse segurado com as mãos, enquanto dizia numa voz da qual só alguns trechos escapavam no barulho da locomotiva:

— Não vá embora. Desculpe. Não pretendia... — E então a parada repentina do trem separou-os abruptamente. — O que é? — perguntou ela.

— Uma estação — ele respondeu. Ela protestou de dor:

—Por que agora?

Myatt abriu a janela um pouco e debruçou-se para fora. A tênue cadeia de luzes só iluminava o chão por alguns metros ao lado da linha. A neve já estava com vários centímetros de espessura: a distância, em algum lugar, uma fagulha vermelha brilhava intermitentemente, como uma luz giratória entre as rajadas brancas.

— Não é uma estação — disse ele. — É só um sinal.

O cessar das rodas deixou a noite muito quieta, só interrompendo o silêncio um apito de vapor; aqui e ali os homens acordavam, punham as cabeças para fora das janelas e se falavam. Dos vagões de terceira classe no fim do trem veio o som de um violino. A melodia era seca, espirituosa, matemática, mas ao passar pelo escuro e por sobre a neve, tornou-se menos decidida até arrancar da mente de Myatt um traço de perplexidade e de pesar:

— Eu não sabia. Nem adivinhei.

Havia então um tal calor entre eles que, sem fechar a janela, ele ajoelhou-se ao lado do leito e pôs a mão no rosto dela, tocando suas feições com dedos curiosos. Novamente ele se viu dominado pela idéia nova. ”Tão meiga, tão querida.” Ela estava deitada quieta, um pouco sacudida por arquejos rápidos de dor ou de excitação.

Alguém nos vagões da terceira classe começou a praguejar contra o violinista em alemão, dizendo que não podia dormir por causa do barulho. Não pareceu ocorrer-lhe que tinha dormido com todo o barulho do trem, e que fora o silêncio que cercava as notas precisas e lentas que o despertara. O violinista respondeu com outra praga e continuou a tocar: uma porção de gente começou a falar ao mesmo tempo e alguém riu.

— Ficou decepcionado? — perguntou ela. — Fui tão mal assim?

— Você foi um amor — disse ele. — Mas eu não sabia. Por que concordou?

Ela disse, num tom leve como o do violinista:

— As moças têm de aprender algum dia. Ele tornou a tocar no rosto dela.

— Eu a machuquei.

— Não foi um mar de rosas — disse ela.

— Da próxima vez — começou ele a prometer, mas ela interrompeu-o com uma pergunta que o fez rir, por causa de sua seriedade:

— Vai haver uma outra vez? Eu passei no teste?

— Você quer uma outra vez?

— Quero—disse ela, mas não estava pensando nos abraços dele, e sim no apartamento em Constantinopla, e no seu próprio quarto, em ir para a cama às dez horas. — Quanto tempo você vai passar lá?

— Talvez um mês. Talvez mais.

Ela murmurou, com pesar:

— Tão depressa...

Ele começou a prometer muitas coisas que, sabia perfeitamente, lamentaria de dia.

— Você pode voltar comigo. Eu lhe dou um apartamento na cidade. — O silêncio dela parecia acentuar a loucura das promessas dele. — Não me acredita?

— Ah — disse ela, numa voz da mais completa confiança — é bom demais para ser verdade.

Ele ficou comovido com a ausência total de coqueteria, e tornou a lembrar-se, com um impacto súbito, que fora seu primeiro amante.

— Escute — disse ele. — Você vem amanhã de novo?

Ela protestou, com uma apreensão real, que ele se cansaria dela antes de chegarem a Constantinopla.

Ele não fez caso da objeção dela.

— Eu daria uma festa para comemorar.

— Onde? Em Constantinopla?

—Não—disse ele.—Não tenho ninguém para convidar lá—e por um momento a idéia do Sr. Eckman lançou uma sombra sobre o prazer dele.

— O que, no trem? — Ela recomeçou a rir, mas dessa vez de uma maneira contente e nada assustada.

— Por que não? — ele prosou-se um pouco. — Posso convidar a todos. Será como um jantar de casamento.

Ela implicou com ele:

— Sem o casamento.

Mas ele ficou ainda mais satisfeito com sua idéia.

—Vou convidar todo mundo: o médico, aquela pessoa da segunda classe, o curioso, lembra-se dele? — Ele vacilou um segundo. —Aquela pequena.

— Que pequena?

— A sobrinha da sua amiga.

Mas o seu entusiasmo foi um pouco prejudicado pela idéia de que ela nunca aceitaria o convite; ela não é corista, pensou ele, com vergonha por sua ingratidão, ela não é bonitinha, fácil e comum, ela é bela, é o tipo de mulher com quem eu gostaria de me casar; e por um momento ele contemplou, com um pouco de amargura, a inacessibilidade dela. Depois refez-se.

—Vou chamar o violinista—gabou-se ele — para tocar para nós enquanto comemos.

— Você não teria coragem de convidá-los — disse ela, os olhos brilhando.

— Mas vou. Nunca hão de recusar o tipo de jantar que oferecerei. Vamos beber o melhor vinho que tiverem — disse ele, fazendo cálculos rápidos de custos e preferindo esquecer que o trem reduz todos os vinhos a uma mediocridade comum. — Vai custar duas libras por pessoa.

Ela bateu palmas, aprovando.

— Não vai ter coragem de lhes dizer o motivo. Ele sorriu para ela.

— Direi que é para beber à saúde de minha amante.

Depois, por muito tempo ela ficou deitada, quieta, pensando naquela palavra e sua sugestão de conforto e tranqüilidade, quase respeitabilidade. Depois ela sacudiu a cabeça.

—É bom demais para ser verdade—mas sua expressão de incredulidade perdeu-se no apito do vapor e no ranger das rodas em movimento.

Enquanto o acoplamento entre os vagões se forçava e o sinal com uma luz verde ia passando devagar, Josef Grünlich dizia: ”Eu sou o Presidente da República”. Ele acordou quando um cavalheiro de casaca ia apresentar-lhe uma chave dourada para abrir os novos cofres da caixa-forte da cidade; acordou logo para o pleno conhecimento de onde estava e a plena recordação de seu sonho. Apoiando as mãos sobre os joelhos gordos, começou a rir. Presidente da República, essa era boa, e por que não? Sei contar histórias, direitinho. Kolber e aquele médico, ambos iludidos no mesmo dia. Cinco libras esterlinas ele me deu, porque fui esperto e vi o que ele era quando falou em espião da polícia. Rápido é o que Josef Grünlich é. Olhe ali, Herr Kolber: puxar a arma, mirar, atirar, tudo em um segundo. E safei-me desta, também. Não conseguem pegar o Josef. O que foi que o padre disse? Josef começou a rir bem no fundo da barriga. ”Jogam críquete na Alemanha?” E eu disse: ”Não, nos ensinam a correr. Fui grande corredor, em meus tempos.” Isso foi rápido, sim, e ele nem percebeu a piada, disse alguma coisa como ”Sobs e Hudlich”.

Mas assim mesmo passara um mau momento quando o médico vira que sua mala tinha sido movida, pensou Josef, olhando para a neve que caía. Eu estava com o dedo no gatilho. Se ele tivesse tentado chamar o condutor, eu o teria matado com um tiro na barriga antes de ele poder dar um grito. Josef tornou a rir, feliz, sentindo o revólver esfregar na ferida do lado de dentro do joelho: teria arrancado as tripas dele.

 

                                     SUBOTICA

 

O aparelho receptor do telégrafo no escritório do chefe da estação de Subotica piscou; pontos e traços se derramaram pela sala vazia. Pela porta aberta, Lukitch, o funcionário, sentado num canto da sala das encomendas, maldisse os sons importunos. Mas não fez menção de se levantar.

— Não deve ser importante, a essa hora — explicou ao encarregado das encomendas e a Ninitch, rapaz de farda cinza, um dos guardas da fronteira.

Ele embaralhou um baralho e ao mesmo tempo o relógio bateu as 7:00. Lá fora um sol vago surgia sobre a neve cinza, meio derretida, e os trilhos molhados brilhavam. Ninitch bebericou o seu cálice de rakia: o pesado vinho de ameixas lhe dava lágrimas nos olhos; ele era muito jovem.

Lukitch continuou a embaralhar.

— Em sua opinião, de que se trata? — perguntou o encarregado das encomendas.

Lukitch sacudiu a cabeça, despenteada e encardida.

— Não se pode saber, claro. Mas assim mesmo, eu não me surpreenderia. Será bem-feito para ela.

O encarregado das encomendas começou a rir. Ninitch ergueu seus olhos escuros, que não podiam conter qualquer expressão senão a da simplicidade, e perguntou:

— Quem é ela? — Em sua imaginação, o telégrafo começou a falar de um modo imperioso e feminino.

— Ah, vocês, soldados — disse o encarregado das encomendas — não sabem da metade do que se passa.

— Isso é verdade — disse Ninitch. — Ficamos por aí de pé durante horas seguidas, as baionetas pregadas. Não vai haver outra guerra. Vai? Para o quartel e para a estação. Não temos tempo de ver as coisas.

Ponto, ponto, ponto, traço, fez o telégrafo. Lukitch deu as cartas em três pilhas iguais: as cartas às vezes se grudavam e ele lambia os dedos para separá-las. Ele arrumou as três pilhas lado a lado em sua frente.

— Deve ser a mulher do chefe da estação — explicou. — Quando ela vai passar uma semana fora, manda telegramas para ele nas horas mais estranhas, todos os dias. Tarde da noite ou de manhã cedo. Cheios de frases amorosas. Às vezes em rima: ”Seu amorzinho manda todo seu ardorzinho”. Ou: ”Penso em ti com fidelidade, mas que felicidade”.

— Para que ela faz isso? — perguntou Ninitch.

— Ela tem medo que ele possa estar na cama com uma das empregadas. Acha que ele se arrependerá se receber um telegrama dela justamente nesse momento.

O encarregado das encomendas deu uma risada.

— E, claro, o engraçado é que ele nem olharia para as empregadas. Suas inclinações, se ela ao menos soubesse, são todas na direção oposta.

— Façam as apostas, cavalheiros — disse Lukitch, olhando atentamente, enquanto eles punham moedas de cobre em dois dos montes de cartas. Depois ele deu as cartas de cada monte. No terceiro, no qual nada tinha sido depositado, estava o valete de ouros. Ele parou de dar e embolsou as moedas. — Ganha a banca — disse, e passou as cartas para Ninitch. Fora um jogo muito simples.

O encarregado das encomendas apagou o cigarro e acendeu outro, enquanto Ninitch embaralhava. — Alguma novidade no trem? — Tudo tranqüilo em Belgrado — disse Lukitch. — O telefone já está funcionando?

— Infelizmente. — O telégrafo tinha parado de zumbir, e Lukitch deu um suspiro de alívio. — Isso acabou, pelo menos.

De repente o soldado parou de embaralhar e disse, numa voz intrigada:

— Estou contente por não ter estado em Belgrado.

— Lutando, meu filho — disse o encarregado das encomendas, achando graça.

—Sim — disse Ninitch — mas era, não era, nossa gente? Não era como se fossem búlgaros.

— Matar ou morrer — disse o encarregado das encomendas. — Venha, dê as cartas, Ninitch, meu filho.

Ninitch começou a dar as cartas; por várias vezes, perdeu a conta e era evidente que estava com alguma preocupação.

— E depois, o que queriam? O que queriam conseguir com tudo isso? .


— Eram Vermelhos — disse Lukitch.

— Gente pobre? Façam as apostas, cavalheiros — acrescentou ele, maquinalmente.

Lukitch pôs todas as moedas que tinha ganho no mesmo monte que o encarregado das encomendas; encontrou o olhar do outro e piscou; e o outro aumentou a aposta. Ninitch estava por demais absorto em seus pensamentos lentos e desajeitados para perceber que tinha mostrado a posição do valete ao dar as cartas. O encarregado das encomendas não conseguiu reprimir uma risada.

— Afinal, Ninitch — disse ele — eu também sou pobre.

—Já fizemos as nossas apostas — disse Lukitch, impaciente.

Ninitch foi dando as cartas. Ele arregalou um pouco mais os olhos ao ver que ambas as apostas tinham ganho; por um momento sua atitude demonstrou uma leve suspeita; depois contou as moedas e levantou-se.

— Vai parar? — perguntou Lukitch.

— Tenho de voltar à sala da guarda.

O encarregado das encomendas riu-se.

— Ele perdeu todo e dinheiro. Dê-lhe um pouco de rakia antes de ele ir.

Lukicth serviu outro cálice e ficou ali, a garrafa inclinada. A campainha do telefone estava tocando.

— Que diabo — disse ele. — É aquela mulher. — Ele largou a garrafa e foi até à outra sala. Um sol pálido entrava obliquamente pelajanela e tocava nos caixotes e malas empilhadas atrás do balcão. Ninitch ergueu o cálice e o encarregado de encomendas ficou sentado com um dedo no baralho, escutando. — Alô, alô! — berrou Lukitch, num tom de voz grosseiro. — Com quem quer falar? O telégrafo? Não ouvi nada. Não posso ficar dependurado em cima dele o tempo todo. Tenho muito o que fazer neste posto. Diga à mulher que mande os telegramas dela a uma hora razoável. O que é? — De repente a voz dele mudou. — Sinto muito, senhor. Nem pensei... — O encarregado das encomendas riu-se. — Claro. Imediatamente, senhor, imediatamente. Vou mandar já, senhor. Se não se importar de ficar na linha dois minutos, senhor...

Ninitch deu um suspiro e saiu para o ar frio da pequena estação sem plataforma. Ele se esquecera de calçar as luvas e, antes de poder colocá-las às pressas, seus dedos ficaram crestados do frio. Arrastou os pés devagar pela neve e lama primeiro meio derretida, depois meio congelada. Não, estou contente por não ter estado em Belgrado, pensou ele.

Era tudo muito curioso; eles eram pobres e ele era pobre; tinham mulheres e filhos; ele tinha mulher e uma filhinha; eles deviam esperar conseguir alguma coisa com aquilo, os Vermelhos. O sol subindo acima do telhado do galpão da alfândega tingiu seu rosto com um laivo de calor; uma locomotiva parada parecia um cachorro vadio arquejando vapor na linha para a capital. Nenhum trem passaria para Belgrado antes de chegar ali o expresso do Oriente; durante meia hora haveria barulho e movimento, os funcionários da alfândega chegariam e os guardas se postariam de maneira ostensiva do lado de fora da sala da guarda, e depois o trem partiria, e só haveria mais um trem naquele dia, um trem pequeno, local, para Vinkovce. Ninitch enterrou as mãos nos bolsos vazios: aí teria tempo para mais rakiat outra partida de cartas: mas ele não tinha dinheiro. Novamente por sua cabeça obstinada passou uma leve desconfiança de ter sido logrado.

— Ninitch. Ninitch. — Ele olhou para trás e viu o empregado do chefe da estação correndo atrás dele no meio da lama sem sobretudo nem luvas. Ninitch pensou: Ele me roubou, o coração dele foi tocado por Deus, ele vai restituir meu dinheiro. Ele parou e sorriu para Lukitch, como quem diz: Não temas, não estou zangado contigo. — Seu idiota, pensei que você nunca ia me ouvir — disse o outro, ofegante ao seu lado, pequeno, sujo e mal-humorado. —Vá já procurar o Major Petkovitch. Estão chamando-o ao telefone. Não consigo fazer com que a sala da guarda atenda.

— O telefone enguiçou ontem à noite — explicou Ninitch — enquanto a neve caía.

— Incompetência — irritou-se o funcionário.

— Um homem vinha da cidade para consertá-lo hoje. — Ele hesitou. — O major não vai sair na neve. Ele tem um fogo na lareira dele desse tamanho.

— Idiota. Imbecil — disse o funcionário. — É o Chefe de Polícia falando de Belgrado. Estavam tentando enviar um telegrama, mas você estava falando tão alto, como é que se podia ouvir? Vá já. — Ninitch começou a caminhar para a sala da guarda, mas o funcionário gritou atrás dele: — Corra, seu idiota, corra.

Ninitch começou a trotar, impedido por suas botas pesadas. Engraçado, pensou ele, a gente é tratado como um cachorro, mas um momento depois pensou: Afinal, eles são bons de jogarem cartas comigo, eles devem ganhar em um dia o que ganho em uma semana; e recebem o pagamento, também, disse ele consigo, pensando nas deduções de seu próprio ordenado para o rancho, alojamento, aquecimento.

— O major está? — perguntou ele na sala da guarda, e depois bateu na porta, com timidez.

Ele devia ter dado o recado pelo sargento, mas o sargento não estava na sala, e em todo caso nunca se sabia quando poderia surgir uma oportunidade para um serviço especial, e isso poderia levar a uma promoção, mais comida, um vestido novo para a mulher.

— Entre.

O Major Petkovitch estava sentado à sua secretária, diante da porta. Era baixo, magro, de feições duras e usava pincenê. Provavelmente tinha sangue estrangeiro na família, pois era louro. Estava lendo um livro alemão obsoleto sobre estratégia e dando pedaços de salsicha ao cachorro. Ninitch olhou com inveja para o fogo imenso.

— Então, o que é? — perguntou o major, irritado, como um professor interrompido quando está corrigindo os exercícios dos alunos.

— O Chefe de Polícia telefonou, senhor, e deseja falar com o senhor ao telefone no escritório do chefe de estação.

— O nosso telefone não está funcionando? — perguntou o major, procurando, ao largar o livro, esconder sua curiosidade e entusiasmo, sem grande êxito; ele queria dar a impressão de ser íntimo do Chefe de Polícia.

— Não, senhor, o homem ainda não veio da cidade.

— Que coisa tão aborrecida. Onde está o sargento?

— Saiu um instante, senhor.

O Major Petkovitch puxou as luvas e esticou-as.

— É melhor você ir comigo. Posso precisar de um mensageiro. Sabe escrever?

— Muito pouco, senhor.

Ninitch teve medo de que o major escolhesse outro mensageiro, mas ele só disse: ”Tut”. Ninitch e o cão acompanharam o major de perto pela sala da guarda e por cima dos trilhos. No escritório do chefe da estação Lukitch estava se fazendo de muito ocupado num canto, enquanto o encarregado das encomendas ficavajunto da porta, anotando dados numa folha.

— A ligação está muito boa, senhor — disse Lukitch, fazendo uma careta para Ninitch por trás do major; estava com inveja porque o outro estava perto do aparelho.

—Alô, alô, alô — disse o Major Petkovitch, num tom azedo. O praça inclinou a cabeça um pouco para o telefone. Pelos

compridos fios entre a fronteira e Belgrado veio o espectro de uma voz culta e insolente, com uma entonação tão evidente que até Ninitch, que estava a uns 60 cm do aparelho, entendia as sílabas pausadas. Elas caíam, como uma série de alfinetes, num silêncio profundo: Lukitch e o encarregado das encomendas prenderam a respiração, em vão; a locomotiva parada do outro lado dos trilhos tinha parado de bufar.

— Aqui fala o Coronel Hartep.

É o Chefe de Polícia, pensou Ninitch, eu o ouvir falar; como a minha mulher vai se orgulhar de mim esta noite; a história vai circular pelo quartel, disso ela se encarrega. Ela não tem muito de que se orgulhar de mim, pensou ele com simplicidade, sem se menosprezar, ela aproveita ao máximo o que tem.

— Sim, sim, é o Major Petkovitch.

A voz insolente estava um pouco mais baixa; Ninitch só entendia pedaços das palavras.

— De forma alguma... Belgrado... Reviste o trem. — Devo levá-lo para o quartel?

A voz ergueu-se um pouco, enfática.

— Não. Deve ser visto pelo menor número de pessoas possível... No local.

— Mas, na verdade — protestou o Major Petkovitch — não temos acomodações aqui. O que podemos fazer com ele?

—... apenas algumas horas.

— Por conselho de guerra? É muito irregular. A voz começou a rir baixinho.

— Eu mesmo... com você ao almoço...

— Mas no caso de uma absolvição?

—... eu mesmo — disse a voz, soando confusa — você. Major, o Capitão Alexitch. — Baixou mais ainda. — Discreto... entre amigos — e depois, mais claramente: — Ele pode não estar só... suspeitos... qualquer pretexto... a alfândega. Sem confusão, note bem.

O Major Petkovitch disse num tom de completa reprovação:

— Mais alguma coisa, Coronel Hartep? A voz animou-se um pouco.

—Sim, sim. O almoço. Imagino que vocês não tenham muita escolha aí... Na estação... uma boa lareira... uma coisa quente... os frios no carro e vinho. — Uma pausa. — Lembre-se, é o responsável.

— Por uma coisa tão irregular — começou o Major Petkovitch.

— Não, não, não — disse a voz. — E claro que eu me referia ao almoço.

— Está tudo tranqüilo em Belgrado? — perguntou o Major Petkovitch, com dureza.

— Dormindo profundamente — disse a voz.

— Posso fazer mais uma pergunta?

O Major Petkovitch gritou: ”Alô, alô, alô” com uma voz irritada e depois bateu com o fone:

— Onde está esse homem? Venha comigo.

Novamente acompanhado por Ninitch e o cão ele mergulhou no frio, atravessou os trilhos e a sala da guarda e bateu a porta de sua sala atrás dele. Depois escreveu uma série de bilhetes, muito sucintamente, e entregou-os a Ninitch para serem entregues: estava tão apressado e tão irritado que se esqueceu de lacrar dois deles. Estes, claro, Ninitch leu; a mulher se orgulharia dele, naquela noite. Havia um para o chefe dos funcionários da alfândega, mas esse estava lacrado; havia um para o capitão do quartel, mandando que dobrasse imediatamente a guarda da estação e distribuísse 20 cargas de munição a cada soldado. Aquilo deixou Ninitch inquieto; significava guerra? Os búlgaros vinham? Ou os Vermelhos? Ele lembrouse do que acontecera em Belgrado e ficou muito perturbado. Afinal de contas, pensou, é o nosso próprio povo; eles são pobres, têm mulheres e filhos. Por fim havia um bilhete para o cozinheiro do quartel, com instruções detalhadas para um almoço para três, a ser servido quente na sala do major às 13:30. ”Lembre-se, você é o responsável”, terminava.

Quando Ninitch saiu da sala, o Major Petkovitch estava novamente lendo o livro alemão obsoleto sobre estratégia, enquanto dava pedaços de salsicha ao cachorro.

Coral Musker adormecera muito antes do trem chegar a Budapeste.

Quando Myatt tirou o braço dormente debaixo da cabeça dela, ela acordou e viu uma manhã cinzenta como a maré de um mar de chumbo. Levantou-se depressa do leito e vestiu-se; estava com pressa e empolgada, e não sabia onde punha as coisas. Começou a cantarolar baixinho, o coração leve: Estou tão feliz, feliz de mim. O movimento do trem lançou-a contra a vidraça, mas ela só deu um olhar apressado à manhã cinzenta. As luzes foram sumindo aqui e ali, uma depois da outra, mas ainda não estava suficientemente claro para se ver as casas; uma ponte iluminada sobre o Danúbio reluzia como a fivela de uma liga. Sigo o meu caminho, cantando todo dia. Em algum lugar junto do rio brilhava uma casa branca; poderiam confundi-la com um tronco de árvore num pomar, se não fossem duas luzes acesas nas salas do andar térreo; enquanto ela olhava, as luzes se apagaram. Andaram comemorando até tarde, ela pensou, o que estaria acontecendo lá?, e riu-se um pouco, sentindo-se em comunhão com todas as coisas ousadas, escandalosas e jovens. Aí coisas que te aborrecem nunca me aborrecem. 0 verão segue-se à primavera, eu sorrio... Toda vestida, faltando só os sapatos, ela virou-se para o leito e para Myatt.

Ele dormia um sono agitado e estava barbado; estava deitado com as roupas amarfanhadas e ela custou a relacioná-lo com a emoção e a dor da noite. Aquele homem era um estranho: ele não assumiria a responsabilidade por palavras pronunciadas por um intruso no escuro. Tanta coisa fora prometida a ela. Mas ela disse consigo que esse tipo de boa sorte não era para ela. Tornou a lembrar-se das palavras de mulheres mais velhas e experientes: ”Eles prometem qualquer negócio antes”, e o estranho código moral de sua classe lhe avisava: ”Você não deve lembrar-lhes”. Não obstante, ela se aproximou dele, e com a mão procurou delicadamente arrumar os cabelos dele para se parecerem com o de seu amante. Quando tocou na testa dele, ele acordou, e ela armou-se de coragem para enfrentar o olhar que temia ver momentaneamente ficar vazio, sem qualquer recordação de quem ela fosse ou o que tinham feito juntos. Ela fortaleceu-se com ditados: ”Há mais peixes no mar”, mas, para seu assombro e prazer, ele disse logo, sem qualquer esforço para lembrar-se:

— Sim, temos de chamar o violinista. Ela bateu palmas, aliviada.

— E não se esqueça do médico.

Ela sentou-se na beira do leito e calçou os sapatos. Estou tão feliz. Ele se lembra, vai cumprir as promessas. Ela recomeçou a cantar: Vivendo no sol, amando ao luar, Divertindo-me à grande. O condutor veio pelo corredor, batendo na porta:

— Budapeste.

As luzes se aglomeravam; acima da margem oposta do rio, aparentemente largadas a meio caminho do céu, brilhavam três estrelas.

— O que é aquilo? Lá, está sumindo. Depressa.

— O castelo — disse ele.

— Budapeste.

Josef Grünlich, cochilando no seu canto, acordou sobressaltado e foi até àjanela. Vislumbrou água entre casas cinzentas e altas, luzes acesas nas salas de cima, cortadas abruptamente pelo arco da estação, e depois o trem parou num grande recinto ressonante. O Sr. Opie apareceu logo, eficiente, animado e carregado, largando duas valises no chão, depois um saco de tacos de golfe e uma raquete de tênis em sua armação. Josef riu-se e estofou o peito: vendo o Sr. Opie, lembrou-se do seu crime. Um homem da Cook’s passou, conduzindo uma mulher alta, amarfanhada, e o marido; eles iam tropeçando junto dos calcanhares dele, confusos e infelizes no meio do vapor e do barulho das línguas estrangeiras. Josef achou que podia saltar do trem. Imediatamente, pois aquilo era coisa que dizia respeito à sua segurança, ele parou de achar graça ou sentir-se superior; a engrenagem precisa de seu cérebro começou a funcionar e, como a máquina de auditoria de um banco, começou a registrar com uma exatidão infalível os débitos e créditos. Num trem, ele estava praticamente prisioneiro; a polícia poderia efetuar sua prisão em qualquer ponto da viagem; portanto, quanto mais depressa saísse dali, melhor. Como austríaco, ele poderia passar despercebido em Budapeste. Se continuasse a viagem até Constantinopla, correria o perigo de passar por mais três revistas da alfândega. A máquina automática tornou a passar por seus dedos, somando, verificando, e passou para o lado do débito. A polícia em Budapeste era eficiente. Nos países balcânicos, era corrupta e não havia nada a temer com a alfândega. Ele estaria mais longe do local de seu crime. Tinha amigos em Istambul. Josef Grünlich resolveu continuar. Tomada a sua resolução, recostou-se de novo no seu sonho de triunfo: imagens de revólveres puxados às pressas passavam-lhe pela cabeça, vozes se referiam a ele: ”Lá está o Josef. Já faz cinco anos, e nunca foi preso. Matou Kolber, em Viena”.

— Budapeste.

O Dr. Czinner parou de escrever por pouco mais de um minuto. Aquela pequena pausa foi o tributo que ele prestou à cidade em que nascera seu pai. O pai saíra da Hungria ainda moço, estabelecendo-se na Dalmácia; na Hungria ele fora camponês, lavrando as terras de outros; em Split, e depois em Belgrado, fora sapateiro, trabalhando por conta própria; e no entanto a vida anterior, mais servil, a herança do sangue de camponês húngaro, representava para o Dr. Czinner o sopro de uma cultura mais vasta soprando pelos becos escuros e fedorentos dos Bálcãs. Era como se um escravo ateniense, tornando-se um homem livre em terras bárbaras, sentisse um pouco a falta da estatuária, a poesia, a filosofia de uma cultura de que ele não participara. A estação começou a flutuar, afastando-se dele; foram passando nomes num idioma que o pai nunca lhe ensinara: ”Restoraciqf, ”Posto”, ”Informoj”. Um cartaz passou perto da vidraça do vagão: ”Teatnoj Kaj Amuzejoj”; e maquinalmente ele anotou os nomes desconhecidos, as diversões que estariam começando quando o trem chegasse a Belgrado, a Ópera, o Royal Orfeum, o Tabarin, e o Jardim de Paris. Lembrava-se que o pai comentara muitas vezes, na escura sala do subsolo por trás da sapataria: ”Eles se divertem em Buda”. O pai também se divertira na cidade, um dia, encostando o rosto ao vidro dos restaurantes; olhando, sem inveja, para a comida levada para as mesas, os violinistas movendo-se de grupo em grupo, ele mesmo divertindo-se de um modo simples e pelos outros. Ele se irritara com a satisfação fácil do pai.

Ele escreveu por mais dez minutos, depois dobrou o papel e colocou-o no bolso da capa de chuva. Queria estar preparado para qualquer eventualidade; seus inimigos não tinham escrúpulos, ele sabia bem; prefeririam vê-lo rapidamente assassinado numa ruela escusa a vê-lo vivo no banco dos réus. A força de sua posição consistia em eles ignorarem a sua vinda; ele tinha de proclamar a sua presença voluntária em Belgrado antes de eles saberem que ele estava lá, pois então não poderia haver um assassinato rápido de um estranho não identificado; eles não teriam outra escolha a não ser levá-lo ajulgamento. Ele abriu suas valises e puxou o Baedecker. Depois acendeu um fósforo e encostou-o ao canto do mapa; o papel lustroso ardeu devagar. A estrada de ferro incendiou-se numa chamazinha e ele ficou olhando enquanto a praça dos correios virava cinzas, grossas e negras. Depois o verde do parque, o Kalimagdna, ficou marrom. As ruas da zona das favelas foram as últimas a arderem, e ele soprou a chama, para apressar o processo. Quando o mapa estava completamente queimado, ele jogou as cinzas debaixo do banco, pôs uma pastilha amarga na língua e tentou dormir, mas foi difícil. Era um homem sem humor, do contrário teria rido diante da repentina sensação de leveza que teve ao reconhecer, 80 km além de Buda, uma interrupção repentina na grande planície do Danúbio, um morro em forma de dedal e cheio de abetos. Uma estrada descrevia um grande círculo em volta dele e depois dirigia-se em linha reta para a cidade. Tanto a estrada como o morro estavam agora brancos com a neve, que se dependurava das árvores em grandes calombos parecendo ninhos de gralhas. Ele lembrou-se da estrada, do morro e do bosque porque foram as primeiras coisas que notara com uma sensação de segurança plena depois de fugir pela fronteira, cinco anos antes. Seu companheiro, que dirigia o carro, rompera o silêncio pela primeira vez desde que tinham saído de Belgrado, dizendo: ”Estaremos em Buda daqui a uma hora e quinze”. Até então o Dr. Czinner não se dera conta de que estava salvo. Agora sua leveza de espírito tinha uma causa oposta. Não pensou que só estava a 80 km de Budapeste, e sim que só estava a 120 km da fronteira. Estava quase em casa. No momento, o instinto nele foi mais forte do que a razão. Não adiantava ele se dizer que não tinha mais lar e que seu destino era a cadeia; naquele momento de prazer descuidado, era para a cervejaria ao ar livre de Kruger, ao parque de tarde, nadando à luz esverdeada, às ruas íngremes e aos trapos vivos que ele estava voltando. Afinal, disse ele consigo, verei tudo isso de novo; vão-me levar da cadeia para o tribunal. Foi então que se lembrou, com uma melancolia irracional, que a cervejaria tinha sido transformada em apartamentos.

Por sobre a mesa do café da manhã, Coral e Myatt se olhavam, com um alívio indizível, como estranhos. Ao jantar, tinham sido velhos amigos, sem nada para se dizerem. Durante todo o café da manhã falaram depressa e continuamente, como se o trem estivesse consumindo tempo em vez de quilômetros, e eles tivessem de encher as horas com conversas que dessem para toda uma viagem em comum.

— E quando eu chegar a Constantinopla, o que vou fazer? O meu quarto foi reservado.

— Deixe isso para lá. Já tomei um quarto num hotel. Você vai comigo e passaremos a ter um quarto de casal.

Ela aceitou a solução dele com um prazer ofegante, mas não havia tempo para silêncios, para ficar recostada. Pedras, casas, pastos despidos estavam recuando a 80 km por hora, e havia muita coisa a se dizer.

— Vamos chegar na hora do café da manhã, não? O que vamos fazer o dia todo?

— Vamos almoçar juntos. De tarde terei de ir ao escritório para ver como vão as coisas lá. Você pode ir fazer compras. De tardinha estarei de volta e poderemos jantar e ir ao teatro.

— Sim, e que teatro?

Para ela era extraordinária a transformação causada por aquela noite. O rosto dele não se parecia mais com o de todos os rapazes judeus que ela conhecera com certa intimidade; até mesmo o modo como ele gesticulava, o espalhar instintivo das mãos, era diferente; sua ênfase sobre quanto ele gastaria, e como ele ia agradá-la, era diferente porque ela acreditava nele.

— Vamos comprar os melhores lugares no seu teatro.

— Dunn’s Babies?

— Sim, e depois as levaremos todas para jantar, se você quiser.

— Não. — Ela sacudiu a cabeça; não podia arriscar-se a perdê-lo agora, e muitas das Dunn’s Babies deviam ser mais bonitas do que ela. — Vamos voltar para a cama depois do teatro.

Eles começaram a rir, tomando o café, derramando pingos marrons na toalha de mesa. Não havia apreensão no riso dela; ela estava feliz porque a dor já era coisa do passado.

— Sabe há quanto tempo estamos sentados aqui tomando esse café? — perguntou ela. — Uma hora inteira. É um escândalo. Nunca fiz isso antes. Uma xícara de chá na cama às dez horas é o meu café da manhã. E duas torradas e um pouco de suco de laranja, se tenho uma senhoria simpática.

— E quando você não trabalha? Ela riu.

— Passo sem o suco de laranja. Já estamos perto da fronteira? a — Muito perto. — Myatt acendeu um cigarro. — Quer fumar?

— Não de manhã. Deixo isso para você.

Ela levantou-se, e no mesmo momento o trem passou por uma chave e ela foi lançada contra ele. Agarrou o braço dele para firmar-se por sobre o ombro dele viu uma guarita de sinalização balançar loucamente e desaparecer, e um balcão preto contra o qual a neve se acumulara. Ela segurou o braço dele um instante até passar a tonteira. — Querido, venha logo. Estarei à sua espera.

De repente, teve vontade de lhe dizer ”Venha agora”. Ela tinha medo de ficar sozinha quando o trem estava numa estação. Desconhecidos poderiam entrar e tomar o lugar dele e ela não conseguiria fazê-los entenderem. Não saberia o que os funcionários da alfândega lhe diriam. Mas disse consigo que ele se cansaria logo dela, se exigisse coisas dele. não era prudente amolar os homens; sua felicidade não era assim tão segura que ela ousasse arriscá-la no que quer que fosse. Olhou para trás; ele estava sentado, de cabeça baixa, acariciando com os dedos uma cigarreira de ouro. Mais tarde, ela ficaria feliz por ter dado aquele último olhar, ele lhe serviria de emblema de fidelidade, uma imagem para levar consigo de modo que ela pudesse explicar: ”Nunca o deixei”. O trem parou quando ela chegou ao seu lugar, e ela olhou pela vidraça para uma estaçãozinha enlameada. O nome Subotica estava impresso em letras pretas em algumas lâmpadas; os prédios da estação eram pouco mais que uma série de galpões e havia uma plataforma. Um grupo de funcionários da alfândega, de farda verde, apareceu andando entre os trilhos, com meia dúzia de soldados; não pareciam ter pressa alguma em começar a revista. Riam-se e conversavam e foram para a frente, para o carro do condutor. Uma fila de camponeses estava ali parada, olhando o trem, e uma mulher estava amamentando um bebê. Havia vários soldados por ali, sem fazer nada; um deles enxotou os camponeses dos trilhos, mas eles voltaram uns vinte metros adiante. Os passageiros estavam ficando impacientes; o trem já estava com meia hora de atraso, e ainda não se tinha tomado qualquer providência para revistar a bagagem ou examinar os passaportes. Várias pessoas saltaram para os trilhos, que atravessaram, na esperança de encontrar um lugar onde comer alguma coisa; um alemão alto e magro, com uma cabeça como uma bala, caminhava de um lado para outro. Coral Musker viu o médico saltar do trem, com seu chapéu mole, sua capa e par de luvas de lã cinza. Ele e o alemão se cruzaram e recruzaram várias vezes, mas podiam estar caminhando em mundos diferentes, a julgar pelo que um notava do outro. Em certo momento eles ficaram lado a lado, enquanto um funcionário examinava seus passaportes, mas continuaram a pertencer a mundos diversos, o alemão bufando e impaciente, o médico sorrindo sozinho.

Quando ela se aproximou dele, viu a natureza do seu sorriso, vazio e sentimental. Parecia fora de propósito.

— Desculpe dirigir-me ao senhor — disse ela, com humildade, um pouco intimidada com o jeito dele, duro e respeitoso.

Ele fez uma mesura e colocou as mãos enluvadas de cinza atrás; ela viu de relance um furo no polegar.

— Eu estava pensando... nós estávamos pensando... se o senhor gostaria de jantar conosco esta noite. — O sorriso fora guardado e ela viu que ele estava coligindo uma porção de palavras proibitivas. Ela explicou: — O senhor foi tão bom para mim.

Estava muito frio, ao ar livre, e ambos começaram a andar; a lama congelada rachava em volta dos sapatos dela e marcava suas meias.

— Eu teria grande prazer — disse ele, convocando suas palavras com uma correção terrível—e sinto não poder aceitar. Vou saltar do trem hoje à noite, em Belgrado. Eu gostaria... — Ele parou de andar, a testa franzida, e pareceu esquecer o que ia dizer; enfiou a mão com a luva rota no bolso da capa de chuva. — Eu gostaria...

Dois homens fardados estavam caminhando pela linha em direção a eles.

O médico pôs a mão no braço dela e a fez dar meia-volta, delicadamente; e eles começaram a andar de volta, ao longo do trem. Ele continuava de testa franzida e não terminou a frase. Em vez disso, começou outra:

— Será que se importa... os meus óculos estão embaciados... o que vê em nossa frente?

— Há uns funcionários da alfândega vindo do carro do condutor em nossa direção.

— É só isso? De farda verde? — Não, cinza.

O médico parou.

— É mesmo? — Ele pegou a mão dela e ela sentiu um envelope ser posto em sua palma. — Volte depressa para o seu vagão. Esconda isso. Quando chegar a Istambul, ponha-o no correio. Vá depressa. Mas não demonstre pressa.

Ela obedeceu sem compreendê-lo; com vinte passos, ela estava junto dos homens de cinza e viu que eram soldados; não estavam com carabinas, mas ela o adivinhou pelas bainhas das baionetas. Eles barraram seu caminho, e por um instante ela pensou que eles iam detê-la; estavam falando depressa entre si, mas quando ela chegou perto deles, um dos homens afastou-se para deixá-la passar. Ela estava aliviada, mas ainda um pouco assustada, sentindo a carta dobrada em sua mão. Será que a estavam obrigando a contrabandear alguma coisa? Entorpecentes? E aí um dos soldados começou a acompanhá-la; ela ouviu as botas dele rachando a lama; procurou tranqüilizar-se, dizendo que estava imaginando coisas, que se ele quisesse falar com ela a chamaria, e o silêncio dele encorajou-a. Não obstante, ela caminhou mais depressa. Sua cabina estava a apenas um vagão dali, e seu amante poderia explicar ao homem, em alemão, quem ela era. Mas Myatt não estava na cabina; ainda estava fumando no restaurante. Por um segundo ela vacilou. Vou ao restaurante e bato na vidraça, mas aquele segundo de hesitação já fora demais. Uma mão tocou em seu cotovelo, e uma voz lhe disse alguma coisa com delicadeza em uma língua estrangeira.

Ela virou-se para protestar; para implorar; pronta, se preciso, para sair correndo para o vagão-restaurante, mas seus receios se dissiparam um pouco diante dos olhos grandes e brandos do soldado. Ele sorriu para ela, meneou a cabeça e apontou para os prédios da estação. Ela disse:

— O que deseja? Não fala inglês?

Ele sacudiu a cabeça, tornou a sorrir e apontou, e ela viu o médico encontrar-se com os soldados e ir caminhando com eles em direção aos prédios. Não podia haver nada de errado, ele estava andando na frente deles, eles não estavam usando de violência. O soldado meneou a cabeça, sorriu e depois, com um grande esforço, conseguiu falar três palavras em inglês:

— Tudo bastante bem — disse ele, e tornou a apontar para os prédios.

Posso falar com o meu amigo? — perguntou ela.

Ele meneou a cabeça, sorriu e pegou o braço dela, afastando-a delicadamente do trem.

A sala de espera estava vazia, lá só estava o médico. Havia um fogareiro aceso no meio da sala, e a vista dasjanelas era interrompida por linhas de gelo. Ela estava sempre consciente da carta na mão. O soldado a fez entrar com delicadeza e cortesia, e depois fechou a porta, sem trancá-la.

— O que é que eles querem? — perguntou ela—Não posso perder o trem.

— Não se assuste — disse ele. — Explicarei a eles; eles a deixarão ir em cinco minutos. Deve permitir que a revistem, se quiserem. Tiraramlhe a carta?

— Não.

— É melhor que você me devolva essa carta. Não quero envolvêla em encrencas.

Ela estendeu a mão e no mesmo momento a porta abriu-se. O soldado entrou, deu um sorriso animador e pegou a carta da mão dela. O Dr. Czinner falou com ele e o homem falou depressa: ele tinha olhos ingênuos e infelizes. Depois que ele saiu de novo, o Dr. Czinner disse:

— Ele não está gostando. Mandaram que espiasse pelo buraco da fechadura para ver se nós nos passávamos alguma coisa.

Coral Musker sentou-se num banco de madeira e estendeu os pé para o fogareiro. O Dr. Czinner comentou, assombrado: —Você está muito calma.

— Não adianta ficar nervosa—disse ela. — Eles não entendem, de todo modo. Daqui a pouco o meu amigo vem me procurar.

— Isso é verdade — disse ele, com alívio. Vacilou um momento. —Você deve estar pensando por que não lhe peço desculpas por esse... incômodo. Entende, há uma coisa que considero mais importante do que qualquer incômodo. Imagino que não entenda.

— Se entendo — disse ela, pensando, com um humor amargo, naquela noite. Um apito comprido ressoou no ar frio e ela levantou-se de um salto, apreensiva. — Não é o nosso trem, é? Não posso perdê-lo.

O Dr. Czinner estava junto da janela. Ele limpou a superfície IIIterna do vapor condensado com a palma da mão e espiou por entre as linhas da geada.

—Não—disse ele — é uma locomotiva na outra linha. Acho que estão trocando de máquinas. Vão levar muito tempo. Não se assuste.

— Ah, não estou com medo — disse ela, tornando a instalar-se no banco duro. — Meu amigo deve aparecer daqui a pouco. Aí eles é que vão ficar com medo. Ele é rico, sabe?

— É mesmo? — disse o Dr. Czinner.

— Sim, e também é importante. É o chefe de uma firma. Alguma coisa com groselhas. — Ela começou a rir. — Disse para eu me lembrar dele quando comer um cão pintado.

— É mesmo?

— É. Gosto dele. Foi bonzinho para mim. É bem diferente dos outros judeus. Eles em geral são amáveis, mas ele... bem, ele é sossegado.

— Acho que ele deve ser um rapaz de muita sorte — disse o Dr. Czinner.

A porta abriu-se e dois soldados empurraram um homem para dentro. O Dr. Czinner adiantou-se depressa e pôs o pé junto da porta. Faltou baixinho com os homens. Um deles respondeu, e o outro empurrou-o Ipara trás, fechou e trancou a porta.

— Perguntei — disse o Dr. Czinner — por que a estavam detendo aqui. Disse que você tinha de pegar o trem. Um deles disse que estava tudo certo. Um oficial quer fazer-lhe umas perguntas. O trem só sai daqui a meia hora.

— Obrigada — disse Coral.

— E eu? — disse o recém-chegado, furioso. — E eu?

— Não sei de nada sobre o senhor, Herr Grünlich.

— A alfândega, eles vêm e me revistam. Tiram minha arma. Dizem: ”Por que não declarou que tem uma arma?”. Eu digo: ”Ninguém pode viajar em sua terra sem estar armado”.

Coral Musker começou a rir. Josef Grünlich olhou com maldade para ela, depois alisou seu colete amassado, olhou para o relógio e sentou-se. Com as mãos sobre os joelhos chatos, ficou olhando para a frente, pensando.

Ele já deve ter acabado de fumar o cigarro, pensou Coral. Deve ter voltado à cabina e visto que não estou lá. Talvez espere uns dez minutos antes de perguntar a um dos homens da estação se me viram. Dentro de doze minutos, deve encontrar-me. O coração dela deu um salto quando girou uma chave na fechadura admirada com a velocidade com que ele a encontrara, mas não foi Myatt quem entrou, e sim um oficial louro aflito. Ele deu uma ordem para trás e dois soldados entraram atrás dele Ipostando-se contra a porta.

— Mas o que é tudo isso? — perguntou Coral ao Dr. Czinner. — Pensam que fizemos algum contrabando? — Ela não compreendia o que os lestrangeiros diziam um ao outro, e de repente sentiu-se perdida e com meido, sabendo que por mais que aqueles homens quisessem ajudá-la, não po|diam compreender o que ela dizia nem o que queria. Ela implorou ao Dr. Czinner. — Diga-lhes que tenho de pegar esse trem. Peça para avisarem ao meu amigo. — Ele não fez caso, e ficou rígido junto ao fogareiro, as mãos enfiadas nos bolsos, respondendo às perguntas. Ela virou-se para o alemão no canto, que estava olhando para os dedos dos pés.—Diga-lhes que não fiz nada, por favor.—Ele ergueu os olhos um momento e olhou para ela com ódio.

Por fim o Dr. Czinner disse:

—Já tentei explicar que você não sabe de nada sobre o bilhete que lhe entreguei. Mas ele diz que tem de detê-la um pouco mais, até que o Chefe de Polícia a tenha interrogado.

— Mas o trem? — implorou ela. — O trem?

—Acho que vai dar tudo certo. Ainda vai demorar mais uma meia hora. Pedi para ele mandar avisar ao seu amigo, e ele diz que vai ver o que se pode fazer.

Ela foi para junto do oficial e tocou no braço dele.

— Tenho de seguir neste trem — disse ela — preciso. Compreenda, por favor.

Ele sacudiu o braço, livrando-se, e repreendeu-a num tom áspero e preciso, o pincenê pulando, mas quais foram os termos exatos de sua reprimenda, ela não sabia. Depois ele saiu da sala de espera.

Coral encostou o rosto na vidraça. Entre duas riscas de geada, passou o alemão, andando pela linha de um lado para outro; ela tentou enxergar até o vagão-restaurante.

— Ele está à vista? — perguntou o Dr. Czinner.

— Vai nevar de novo — disse ela, e afastou-se da janela. De repente, não agüentou mais sua perplexidade. — O que querem comigo? Para que me querem deter aqui?

Ele tranqüilizou-a.

— É um engano. Estão assustados. Houve motins em Belgrado.

Eles querem a mim, só isso.

— Mas por quê? É inglês, não é?

c — Não, sou um deles — disse ele; com certa amargura.

— O que é que fez?

— Tentei mudar as coisas. — Ele explicou, com um ar de repugnância pelos rótulos: — Sou comunista.

— Por quê? Por quê? — Ela exclamou logo, olhando para ele com receio, sem poder esconder que sentia a sua fé abalada, sua fé no único homem que, além de Myatt, era capaz e estava disposto a ajudá-la. Até mesmo a bondade que ele lhe demonstrara no trem ela agora olhava com desconfiança. Ela foi para o banco e sentou-se o mais distante possível do alemão.

— Eu levaria muito tempo para lhe dizer por quê — disse ele. Ela não fez caso dele, fechando sua cabeça ao significado de quaisquer palavras que ele pudesse pronunciar. Ela agora pensava nele como um dos homens desleixados que desfilavam nas tardes de sábado por Trafalgar Square com faixas com os dizeres horríveis. ”Trabalhadores do Mundo, Uni-Vos”; ”Velhos Camaradas de Walthamstow”; ”Filial de Balham da Liga dos Trabalhadores juvenis”. Eram os estraga-prazeres, que queriam enforcar os ricos, fechar os teatros e empurrá-la para o amor livre numa colônia de férias e depois fazê-la caminhar numa procissão pela Oxford Street, carregando o bebê atrás de uma faixa: ”Trabalhadoras Britânicas”.

— Mais tempo do que o tempo de que disponho — disse ele. Ela não fez caso. No momento, em seus pensamentos, ela estava imensamente acima dele. Era a amante de um rico, e ele era um trabalhador. Quando por fim ela tomou conhecimento dele, foi com desprezo:

— Imagino que você vá para a prisão.

— Acho que vão me matar — disse ele.

Ela fitou-o, assombrada, esquecendo-se da diferença de classes entre eles.

— Por quê?

Ele sorriu com certo convencimento.

— Estão com medo.

— Na Inglaterra — disse ela — deixam os Vermelhos falarem o que quiserem. A polícia fica por perto.

—Ah, mas há uma diferença. Nós fazemos mais do que falar. ?

— Mas vai haver um julgamento?

— Uma espécie de julgamento. Vão levar-me para Belgrado. Em algum lugar tocou uma buzina, e o ar frio foi rompido por um apito.

— Devem estar fazendo um desvio — disse o Dr. Czinner para tranqüilizá-la.

Uma cortina de fumaça soprou pela janela, escurecendo a sala de espera, e ouviram-se vozes e o barulho de pés correndo do lado de fora, pela linha. Os engates entre os vagões rangiam, empurravam-se e se estendiam, e depois as paredes finas estremeceram com o rangido dos pistões, o bater de rodas pesadas. Quando a fumaça clareou, Coral Musker ficou bem quieta no banco de madeira. Não havia nada a dizer, e ela estava com os pés gelados. Mas depois de certo tempo ela começou a ver no silêncio do Dr. Czinner uma acusação e falou, com ardor:

— Ele vem me buscar — disse ela. — Vai ver como vem. Ninitch deixou que sua carabina caísse na curva do braço e bateu as mãos enluvadas.

— Essa nova locomotiva é barulhenta—disse ele, olhando o trem esticar-se como elástico numa curva e desaparecer.

As chaves rangeram, voltando ao lugar, e o sinal na linha de passageiros em direção à capital levantou. Um homem desceu a escada da guarita, atravessou a linha e desapareceu em direção a uma casinha.

— Foi almoçar — disse o companheiro de Ninitch, com inveja.

— Nunca ouvi uma máquina tão barulhenta como essa — disse Ninitch — em todo o tempo que passei aqui. — Depois o comentário do companheiro penetrou em sua mente. — O major vai mandar vir uma refeição quente do quartel — disse ele. Mas não contou ao amigo que o Chefe de Polícia ia chegar de Belgrado; guardou essa notícia para a mulher.

— Você é que tem sorte — disse o companheiro. — Vai comer mesmo. Muitas vezes já pensei que deve ser bom ser casado, quando vejo a sua mulher aparecendo, de manhã.

— Não é assim tão mau — disse Ninitch, com modéstia.

— Diga, o que é que ela lhe traz?

— Um pão e um pedaço de salsicha. Às vezes um pouco de manteiga. É uma boa moça.

Mas seus pensamentos não eram tão frugais. Não estou à altura dela: queria ser rico e dar-lhe um vestido e um colar e ir a Belgrado, ao teatro. Ele pensou, a princípio com inveja, na pequena estrangeira trancada na sala de espera, nas roupas dela, que lhe pareciam tão caras, e seu colar de contas verdes; mas, comparando-a com a mulher, logo se esqueceu da inveja e começou a pensar na estrangeira também com afeto. A beleza e fragilidade das mulheres dava-lhe uma sensação do patético, e ele bateu suas mãos grandes.

—Acorde — murmurou o amigo.

Os dois se endireitaram e ficaram em posição de descanso, numa atitude rígida, quando um carro surgiu pela estrada em direção à estação, rompendo a superfície gelada e espalhando água. ”Que diabo?” murmurou o amigo, mal movendo os lábios, mas Ninitch sabia, todo orgulhoso; sabia que o oficial alto e condecorado era o Chefe de Polícia, sabia até o nome do outro oficial que saltou do carro como uma bola de borracha e abriu a porta para o Coronel Hartep saltar.

— Que lugar — disse o Coronel Hartep, com uma repugnância divertida, olhando primeiro para a lama e depois para suas botas engraxadas.

O Capitão Alexitch estofou suas bochechas redondas e vermelhas.

— Podiam ter colocado umas tábuas.

— Não, não, nós somos da polícia. Não gostam de nós. Só Deus sabe que espécie de almoço vão nos dar. Você, aí, rapaz — ele fez sinal para Ninitch — ajude o motorista a tirar essas caixas. Cuidado para que o vinho fique firme e para cima.

— O Major Petkovitch, senhor...

— Deixe para lá o Major Petkovitch.

— Desculpe — disse uma voz precisa e zangada, atrás de Ninitch.

— Certamente, Major — disse o Coronel Hartep, sorrindo e fazendo uma mesura — não há necessidade de desculpá-lo.

— Este homem está de guarda aos prisioneiros.

— Prendeu vários. Eu o felicito.

— Dois homens e uma moça.

— Nesse caso imagino que uma boa fechadura, uma guarda, munição, uma baioneta, uma carabina e vinte cargas devem atender aos requisitos.

O Major Petkovitch lambeu os lábios.

— A polícia, claro, é quem sabe como guardar os prisioneiros. Eu me submeto aos conhecimentos superiores. Tire as coisas do carro — disse ele a Ninitch — e leve-as à minha sala.

Ele conduziu os oficiais, dobrando o canto da sala de espera, e desapareceu de vista. Ninitch ficou olhando atrás deles, até que o motorista o chamou.

— Não posso ficar aqui no carro esperando o dia todo. Ande aí. Vocês soldados não estão habituados a trabalhar nada. — Ele começou a tirar as caixas do carro, ao mesmo tempo contando o conteúdo: — Meia caixa de champanha. Um pato frio. Frutas. Duas garrafas de xerez. Salsichas. Bolachas para o vinho. Alface. Azeitonas.

— E então — disse o amigo de Ninitch — a comida é boa? Ninitch ficou parado olhando fixamente, num momento de silêncio. Depois disse, em voz baixa:

— É um banquete.

Eleja tinha levado o xerez, o champanha e o pato para a sala do major quando viu a mulher vindo pela estrada, com o almoço dele embrulhado num pano branco. Ela era miúda e morena, e tinha o xale enroscado justo em volta dos ombros: tinha um rosto malicioso e divertido usava botas grandes. Ele largou a caixa de frutas e foi recebê-la.

— Não vou demorar—disse, em voz baixa, para o motorista não ouvir. — Espere por mim. Tenho uma coisa a lhe dizer.

Muito sério, voltou ao trabalho. A mulher sentou-se à margem da estrada e ficou olhando, mas quando ele voltou do escritório do major, onde a mesa já estava posta e os oficiais estavam entrando no vinho, ela já sumira. Deixara o almoço dele à beira da estrada.

— Onde está ela? — perguntou ao outro guarda.

— Ela falou com o motorista e depois voltou para o quartel. Parecia estar empolgada com alguma coisa.

Ninitch teve uma pontada de frustração. Estava louco para contar à mulher a história da chegada do Coronel Hartep, e agora o motorista se antecipara. Era sempre assim. Vida de soldado era uma vida de cão. Os civis é que ganhavam os bons ordenados, roubavam os soldados no jogo de cartas e os ofendiam e até se metiam entre o soldado e a esposa. Mas seu ressentimento durou pouco. Havia segredos que ele ainda havia de descobrir para a mulher, se ficasse de olhos e ouvidos atentos. Esperou um pouco antes de levar a última caixa à sala do major. O champanha estava borbulhando; os três homens falavam ao mesmo tempo, e os óculos do Major Petkovitch tinham caído no colo.

— Que peitos — dizia o Capitão Alexitch — que coxas. Eu disse a Sua Excelência que se estivesse no lugar dele...

O Major Petkovitch traçava linhas sobre a toalha com um dedo embebido de vinho.

— O primeiro princípio é nunca atacar nos flancos. Arrasar o centro.

O Coronel Hartep estava bem sóbrio. Estava recostado na cadeira, fumando.

— Use só um pouco de mostarda; dois raminhos de salsa.

Mas nenhum de seus subordinados lhe deu atenção. Ele sorriu, de mansinho, e encheu as taças dele.

Estava nevando de novo, e através das rajadas o Dr. Czinner viu os camponeses de Subotica espalhados pela linha, esticando seus corpos torcidos e curiosos em direção à sala de espera. Um dos homens aproximou-se o suficiente para olhar pela janela e examinar a cara do médico. Estavam separados por alguns metros, uma vidraça e o vapor de seu hálito. O Dr. Czinner podia contar as rugas do outro, dizer a cor dos olhos dele e examinar com um breve interesse profissional uma ferida no rosto dele. Mas os camponeses eram sempre enxotados pelos dois soldados, que davam neles com as coronhas das carabinas. Os camponeses cederam e se afastaram, mas dali a pouco estavam de volta, obstinados, estúpidos e sem esperanças.

A sala de espera havia tempos que estava em silêncio. O Dr. Czinner voltou ao fogareiro. A pequena estava sentada de polegares juntos e a cabeça meio inclinada. Ele sabia o que ela estava fazendo: estava rezando para que o amante voltasse para buscá-la logo, e, a julgar pelo seu ar secreto, ele adivinhou que ela não estava acostumada a rezar. Estava muito assustada, e, com uma compreensão fria, ele podia avaliar a extensão do medo dela. Sua experiência lhe dizia duas coisas, que as orações não são atendidas e que um amante tão superficial não se daria ao trabalho de voltar.

Ele tinha pena de tê-la envolvido, mas só o lamentava como poderia lamentar uma mentira necessária. Ele sempre reconhecera a necessidade de sacrificar a sua própria integridade; somente um partido no poder podia ter escrúpulos; escrúpulos nele seriam uma confissão de que ele punha em dúvida o valor de sua causa. Mas essa reflexão, por algum motivo, o deixou amargurado; pilhou-se invejando virtudes que não era nem suficientemente rico nem forte para apreciar. Ele teria gostado de adotar a generosidade, a caridade, meticulosos códigos de honra, se pudesse ter tido êxito, se o mundo tivesse sido novamente moldado segundo o padrão que ele amava e pelo qual ansiava. Ele falou com ela, zangado:

— Você tem sorte de crer que isso adiantará alguma coisa.

— Mas, com assombro, verificou que ela instintivamente sabia sobrepujar a amargura dele, que era fundada sobre teorias arduamente formadas por uma razão falha.

— Não creio — disse ela—mas a gente tem de fazer alguma coisa. Ele ficou chocado com a facilidade da descrença dela, que não

procedia da leitura dolorosa de autores racionalistas e cientistas do século XIX; ela nascera na descrença, com tanta segurança quanto ele nascera na crença. Ele sacrificara a segurança a fim de alcançar a mesma posição, e por um momento ele desejou semear nela alguma planta seca de dúvida, uma meia crença que a levasse a duvidar de seu juízo. Mas deixou passar esse desejo e encorajou-a.

— Ele voltará de Belgrado para buscá-la.

— Talvez não tenha tempo.

— Pode telegrafar ao Cônsul britânico.

— Claro — ela disse, mas sem convicção.

Os acontecimentos da noite, a experiência dos carinhos de Myatt, afastaram-se dela, como um cais aceso, para as trevas. Ela fez um esforço de memória para tentar recuperar a visão dele, mas ele logo tornou-se um membro indistinto numa multidão apinhada para as despedidas. Dentro de pouco tempo ela começou a duvidar da diferença entre ele e todos os outros judeus que ela conhecera. Até mesmo o seu corpo, já são e repousado, com exceção do sentimento de paz que desaparecera com a dor, não sentia diferença alguma.

— Claro — ela repetiu, porque tinha vergonha de sua falta de confiança, porque não adiantava ficar resmungando, porque em todo caso ela não estava em piores condições, a não ser estar com um atraso de um dia para o espetáculo. Há outros peixes no mar, disse ela consigo, sem deixar de se sentir presa a uma recordação que não encerrava convicção alguma.

O alemão estava sentado ereto no seu canto, dormindo; suas pálpebras estremeciam, prontas a se levantarem ao menor ruído. Ele estava habituado a descansar em lugares estranhos e aproveitar qualquer oportunidade de repouso. Quando a porta se abriu, seus olhos imediatamente ficaram atentos.

Um guarda entrou e fez um gesto para eles, gritando. O Dr. Czinner repetiu em inglês o que eles disseram.

— Devemos sair.

A neve foi soprada pela porta aberta, fazendo uma marca ondulada na soleira. Eles viram os camponeses apinhados na linha do trem, Josef Grünlich levantou-se e alisou o colete, enfiando o cotovelo no lado do Dr. Czinner.

— E se corrêssemos agora, hem, pela neve, todos juntos?

— Eles atirariam — disse o Dr. Czinner.

O guarda tornou a gritar e agitar a mão.

— Mas atiram de qualquer forma, hem? O que querem lá fora? O Dr. Czinner virou-se para Coral Musker.

— Não creio que haja alguma coisa a temer. Não vem?

— Claro. — E depois ela implorou: — Espere um instante por mim. Perdi o meu lenço.

O homem alto e magro abaixou-se como um compasso cinzento, ajoelhou-se e pegou o lenço embaixo do banco. Sua falta de jeito a fez sorrir; ela se esqueceu de sua desconfiança e agradeceu com uma gratidão fora de propósito. Lá fora ele caminhou de cabeça baixa para evitar a neve, sorrindo sozinho. Um dos guardas ia na frente e outro atrás deles, a carabina solta e a baioneta pronta. Eles se falavam numa língua que ela não entendia, por sobre as cabeças dos prisioneiros, e ela estava sendo conduzida não sabia para onde. Houve uma confusão de pés espadanando lama sobre os trilhos quando os camponeses se aproximaram ávidos por vê-los, e ela ficou um pouco apavorada com as caras esverdeadas e sua ignorância de tudo o que se passava.

— Por que está sorrindo? — perguntou ao Dr. Czinner, na esperança de ouvi-lo dizer que tinha descoberto um meio de libertá-los a todos, de pegar o expresso, de fazer recuarem os ponteiros do relógio. Ele disse:

Não sei. Estava sorrindo. Talvez porque esteja de volta à minha terra.

Por um momento ele ficou com a boca séria, e depois tornou a armar um sorriso frouxo, e seus olhos, espiando de um lado para outro, através de seus óculos gelados, pareciam úmidos e vazios de tudo, menos de uma felicidade estúpida.

Myatt, olhando para a cinza de seu charuto, que se alongava, estava pensando. Eram esses os momentos que ele apreciava, quando se sentia sozinho consigo mesmo, sem temer qualquer repulsa quando seu corpo estava satisfeito e suas emoções sossegadas. Na noite da véspera ele tentara trabalhar, em vão: o rosto da moça se interpunha entre ele e as cifras; ela agora estava relegada ao seu devido lugar. Com o tempo, ao se aproximar a noite, ele poderia precisar dela e ela estaria ali, e ao pensar nisso ele sentiu uma ternura e até gratidão, sobretudo porque, desaparecendo a sua presença física, ela não deixara um fantasma importuno. Agora, sem olhar para os papéis, ele se lembrava dos números que não conseguira ordenar. Multiplicava, dividia, subtraía, vendo as colunas compridas se ordenarem na janela, pelas quais passavam despercebidos os corpos dos funcionários da alfândega e os carregadores. Dali a pouco alguém pediu para ver o passaporte dele, e então a cinza caiu do charuto e ele voltou à sua cabina para abrir sua bagagem. Coral não estava lá, mas ele imaginou que ela estivesse no banheiro. O funcionário da alfândega bateu na mala dela.

— E isso?

—Está aberta—respondeu.—A senhora não está aqui. Não encontrará nada.

Novamente a sós, ele se deitou em seu canto e fechou os olhos, para pensar melhor nos negócios do Sr. Eckman, mas quando o trem saiu de Subotica, estava dormindo. Sonhou que estava subindo a escada para o escritório do Sr. Eckman. Estreita, sem tapete e apagada, poderia dar para um apartamento obscuro perto de Leicester Square, em vez de para a sede da maior firma importadora de groselhas na Europa. Ele não se lembrava de ter passado pela porta; no momento seguinte, estava diante do Sr. Eckman. Havia uma grande pilha de papéis entre eles, e o Sr. Eckman afagava seus bigodes escuros e batia na escrivaninha com a caneta-tinteiro, enquanto uma aranha tecia sua teia por cima de um tinteiro vazio. A luz elétrica era fraca, a janela estava cheia de fuligem e no sofá a um canto estava sentada a Sra. Eckman, tricotando roupas de bebê.

—Admito tudo — disse o Sr. Eckman. De repente a cadeira dele foi-se levantando, até ele estar sentado bem em cima, batendo com um martelo de leiloeiro. — Responda a essas perguntas — disse o Sr. Eckman. — O senhor prestou um juramento. Não tergiverse. Diga sim ou não. Seduziu a moça?

— De certo modo.

O Sr. Eckman tirou uma folha de papel do meio da pilha, e mais outra e outra, até que a pilha se abalou e caiu ao chão com o barulho de tijolos caindo.

— Esse caso do Jervis. Considero uma astúcia. Já havia combinado com os curadores e só atrasara a assinatura.

— Foi legal.

— E essas 10.000 para Stravog quando já tinha tido uma oferta de 15.000.

— É negócio.

— E apequenaria Estrada dos Espanhóis.

— E as 1.000 ao escriturário de Moult’s, por informações.

— O que foi que eu fiz que você não tenha feito? Responda depressa. Não tergiverse. Diga sim ou não. Meritíssimo e senhores jurados, o prisioneiro no banco dos réus...

— Quero falar. Tenho algo a dizer. Não sou culpado.

— Sob que cláusula? Qual o código? A Lei da Eqüidade? Lei dos Dízimos? Tribunal do Almirantado ou Tribunal Superior de Justiça? Responda logo. Não tergiverse. Diga sim ou não. Três batidas do martelo. Feito, feito. Esse belo e florescente negócio, cavalheiros...

— Espere um momento. Vou-lhe dizer. George. Cap. in. Seção 4.V. 2504. Honra entre Ladrões.

O Sr. Eckman, de repente muito pequenino no escritório miserável, começou a chorar, estendendo as mãos. E todas as lavadeiras que lavavam no riacho afundadas até os joelhos levantaram as cabeças e choraram, enquanto um vento seco levantava a areia das praias, lançando-a chocalhando contra as folhas da mata, e uma voz que poderia ser da Sra. Eckman lhe implorava repetidamente: ”Volte”. Depois o deserto estremeceu sob seus pés e ele abriu os olhos. O trem parará e a neve estava cobrindo a vidraça. Coral não tinha voltado.

Dali a pouco alguém no fim do trem começou a rir e zombar, e outros se juntaram, assobiando e vaiando. Myatt olhou para o relógio. Tinha dormido durante mais de duas horas, e, em parte por se lembrar da voz em seu sonho, ficou preocupado com Coral. A locomotiva estava lançando muita fumaça e um homem de macacão e cara preta estava perto dela, olhando, com uma expressão de desânimo, Várias pessoas gritaram para ele da terceira classe; ele virou-se, sacudiu a cabeça e deu de ombros, com um jeito gracioso e aturdido, O chefde train afastou-se rapidamente da locomotiva, pela linha. Myatt o fez parar.

— O que aconteceu?

— Nada. Nada. Um defeitozinho.

— Vamos ficar presos aqui por muito tempo?

— Ah, uma coisa de nada. Uma hora, uma hora e meia, talvez. Vamos telefonar pedindo outra locomotiva.

Myatt fechou a vidraça e foi ao corredor; não havia sinal de Coral. Ele percorreu toda a extensão do trem, espiando nas cabinas, tentando as portas dos banheiros, até chegar à terceira classe. Lá lembrou-se do violinista e procurou-o no meio das cabinas de madeira, duras e malcheirosas, até encontrá-lo, um sujeitinho mirrado com um olho inchado.

— Vou dar um jantar hoje à noite — disse Myatt, em alemão — É quero que você vá tocar para mim. Dou-lhe 50 paras.

— Setenta e cinco, excelência.

Myatt estava com pressa; queria encontrar Coral.

— Está bem, 75.

—Alguma coisa sonhadora, melancólica, para chorar, excelência?

— Claro que não. Quero uma coisa leve e alegre.

— Ah, sim, claro. Isso é mais caro.

— O que quer dizer? Por que mais caro?

Sua excelência, claro, era estrangeiro. Não compreendia. Era costume da terra cobrar mais pelas melodias leves do que pelas melancólicas. Ah, um costume secular. Um e meio dinar? De repente, afastando sua impaciência e ansiedade, o prazer de pechinchar apoderou-se de Myatt. O dinheiro não era nada; estava em jogo menos de meia coroa, mas aquilo era um negócio; ele não cederia.

— Setenta e cinco paras. Nem mais um para.

O homem sorriu para ele, satisfeito: aquele era um estrangeiro a seu gosto.

— Um dinar e trinta paras. E a última palavra. É a minha última palavra, excelência. Eu estaria envergonhando a minha profissão se aceitasse menos.

O cheiro de pão velho e vinho azedo não perturbava mais Myatt; era o cheiro de um mercado ancestral. Era a pura poesia do negócio: o lucro e perda mal entrava numa transação efetuada em paras, pois cada um valia menos de um quarto de penny. Ele entrou um pouco no vagão, mas não se sentou.

— Oitenta paras.

— Excelência, a gente tem de viver. Um dinar e 25. Seria uma vesgonha eu aceitar menos.

Myatt ofereceu um cigarro ao sujeito. — Um copo de rakia, excelência?

Myatt aceitou e pegou sem aversão o caneco grosso e lascado.

— Oitenta e cinco paras. Pegar ou largar.

Fumando e bebendo juntos numa compreensão íntima, eles se tomaram ferozes, um com o outro.

— O senhor está-me insultando, excelência. Sou músico.

— Oitenta e sete paras, é a minha ultima palavra.


Os três oficiais estavam sentados em volta da mesa, da qual tinham sido tirados os cálices. Dois soldados estavam postados diante da porta, as baionetas preparadas. O Dr. Czinner olhava para o Coronel Hartep com curiosidade; da última vez que o vira, estava no julgamento de Kamnetz arranjando suas testemunhas perjuras com um elegante pouco caso pela justiça. Isso fora cinco anos antes, mas os anos pouco haviam mudado o seu aspecto. Os cabelos estavam de um belo prateado acima das orelhas, e havia algumas rugas bondosas nos cantos dos olhos.

— Major Petkovitch — disse ele — quer ler a acusação contra os prisioneiros? Dê uma cadeira à senhora.

O Dr. Czinner tirou as mãos dos bolsos da capa de chuva e limpou os óculos. Conseguia controlar a emoção na voz, mas não nas mãos, que tremeram um pouco.

— Uma acusação? — perguntou ele. — O que querem dizer? Isso é um tribunal?

O Major Petkovitch, com um papel na mão, retrucou rispidamente:

— Cale-se.

— É uma pergunta razoável, Major — disse o Coronel Hartep. — O doutor esteve fora. Sabe — disse ele, falando delicadamente e muito cortês —, houve necessidade de tomarmos medidas para a sua segurança. A sua vida não estaria segura em Belgrado. O povo está zangado com o levante.

— Continuo a não compreender qual o direito que têm — disse o Dr. Czinner — de fazer mais do que um inquérito preliminar.

O Coronel Hartep disse:

— Este é um Conselho de Guerra. A Lei Marcial foi proclamada ontem de manhã cedo. Prossiga, Major Petkovitch.

O Major Petkovitch começou a ler um documento comprido num manuscrito que ele muitas vezes achava ilegível.

”O prisioneiro, Richard Czinner... conspiração contra o governo... sentença não cumprida por perjúrio... passaporte falso. O prisioneiro, Josef Grünlich, encontrado de posse de armas. A prisioneira, Coral Musker, conspiração com Richard Czinner, contra o governo.” Ele largou o papel e disse ao Coronel Hartep: — Não tenho certeza quanto à legalidade deste tribunal, nessas condições. Os prisioneiros devem ser atendidos por advogados.

— Ora, ora, isso certamente foi um esquecimento. Talvez o senhor, Major...?

— Não. O tribunal deve constar de não menos de três oficiais. O Dr. Czinner interrompeu.

— Não se preocupem. Dispenso o advogado de defesa. Esses outros não entendem uma palavra do que dizem. Não se oporão.

— É irregular — disse o Major Petkovitch. O Chefe de Polícia olhou para o relógio. —Já anotei o seu protesto, Major. Agora podemos começar.

O oficial gordo deu um soluço, pôs a mão na boca e piscou,

— Noventa paras.

— Um dinar.

Myatt apagou o cigarro. Já tinha brincado bastante.

— Um dinar, então. Hoje à noite, às nove.

Ele dirigiu-se depressa para sua cabina, mas Coral não estava lá. Os passageiros estavam saltando do trem, conversando e rindo e esticando os braços. O maquinista era o centro de um grupinho, a quem ele explicava o enguiço, com humor. Embora não houvesse casa alguma avista, já tinham aparecido dois ou três aldeões, oferecendo à venda garrafas de água mineral e doces enfiados em pauzinhos. A estrada era paralela à linha férrea, separada apenas por uma crista de neve; o motorista de um automóvel estava buzinando e gritando, repetidamente: ”Carro rápido para Belgrado. Cento e vinte dinares. Carro rápido para Belgrado”. Era um preço exorbitante, e só um negociante gordo deu atenção ao sujeito. À margem da estrada começou uma prolongada discussão. ”Águas minerais. Águas minerais.” Um alemão de cabeça tosada andava de um lado para o outro, resmungando sozinho, irritado. Myatt ouviu uma voz dizendo em inglês, atrás dele: ”Vai nevar mais”. Ele virou-se, na esperança de que fosse Coral, mas era a mulher que vira no vagão-restaurante.

— Não vai ser divertido ficar enguiçado aqui — disse ele. — Podem levar horas para trazer outra máquina. Que tal tomarmos um carro até Belgrado?

— É um convite?

— Dividindo as despesas — disse Myatt, apressado.

— Mas não tenho um tostão. — Ela virou-se e acenou para alguém. — Sr. Savory, venha alugar um carro de sociedade. Paga a minha parte, não é?

O Sr. Savory abriu caminho para sair do grupo formado em volta do motorista.

—Não entendo o que o sujeito está dizendo. Alguma coisa sobre uma caldeira—disse ele.—Alugar um carro de sociedade? — continuou, mais devagar. — Vai sair meio caro, não vai?

Ele olhou para a mulher com cuidado e ficou esperando, como se imaginasse que ela devesse responder à pergunta; ele está pensando, claro, pensou Myatt, o que vai lucrar com isso. A hesitação do Sr. Savory, o silencio da mulher em expectativa despertaram seus instintos de concorrência. Ele queria exibir a glória da riqueza como uma cauda de pavão diante dela e deslumbrá-la com a beleza de suas posses.

— Sessenta dinares — disse ele — por vocês dois.

—Vou até lá — disse o Sr. Savory — falar com o chefde train. Ele pode ser que saiba quanto tempo...

A primeira neve começou a cair.

— Se quiser me dar o prazer — disse Myatt—Srta...

— Meu nome é Janet Pardoe.

Ela puxou o casaco de pele para cima das orelhas. Suas faces brilhavam nos lugares em que a neve as tocara, e Myatt acompanhava através da pele as curvas de seu corpo escondido, comparando-o com a nudez magra de Coral. Terei de levar Coral também, pensou.

—A senhorita viu—perguntou ele — uma moça de capa de chuva, magra, mais baixa do que a senhorita?

— Vi, sim — disse Janet Pardoe. — Ela saltou do trem em Subotica. Sei de quem está falando. O senhor jantou com ela ontem à noite. — Ela sorriu para ele. — É sua amante, não é?

— Quer dizer que ela saltou com a mala?

— Ah, não. Não levou nada com ela. Eu a vi dirigir-se para a estação com um homem da alfândega. É uma garota engraçada, não é? Uma consta? — perguntou ela, com um interesse cortês.

Mas seu tom pareceu a Myatt uma crítica não da pequena, mas dele mesmo, por gastar seu dinheiro por tão pouca coisa. Aquilo irritou-o tanto quanto se ela tivesse criticado a qualidade de suas groselhas: era um comentário sobre seu discernimento e sua discrição. Afinal de contas, pensou ele, não gastei mais com ela do que gastaria com você, levando-a a Belgrado, e será que você me pagaria tão prontamente, em espécie? Mas a improbabilidade provocou o desejo e a amargura, pois essa pequena era um artigo de prata polida, enquanto Coral era no máximo um pedacinho de vidro colorido bonitinho, valioso por motivos sentimentais; a outra tinha valor intrínseco. Ela é do tipo, pensou ele, que precisa de mais do que o dinheiro: um corpo bem-feito, para satisfazer à sua própria luxúria, e espirito e instrução. Sou judeu, e não aprendi nada a não ser fazer dinheiro. Não obstante, a crítica da moça irritou-o e tornou mais fácil para ele largar o inatingível.

— Ela deve ter perdido o trem. Terei de voltar para apanhá-la. Ele não se desculpou por faltar à palavra, e afastou-se depressa, enquanto ainda era fácil afastar-se.

O negociante estava discutindo com o motorista. Tinha conseguido reduzir o preço até cem dinares, e sua oferta subira a 90. Myatt envergonhou-se por sua interrupção, e pelo desprezo que ambos os homens deviam sentir por seu jeito apressado e nada negocista.

— Eu lhe darei 120 dinares para me levar a Subotica e voltar. — Quando ele viu que o motorista estava-se preparando para iniciar outra discussão, aumentou a oferta. — Cento e cinqüenta dinares se me levar lá e voltar antes do trem partir.

O carro era velho, escangalhado e muito possante. Eles avançaram no meio da tempestade a 90 km por hora, por uma estrada que não era consertada havia anos. As molas estavam quebradas, e Myatt era jogado de um lado para outro, quando o carro caía em buracos, saía e adernava. O veículo gemia e arquejava como um ser humano, levado ao fim de suas forças por um senhor inclemente. A neve começou a cair mais depressa; os postes telegráficos ao longo da linha pareciam vislumbres de espaço escuro nos vãos de um muro branco. Myatt inclinou-se para o motorista e gritou em alemão, acima do ronco do motor antigo:

— Consegue ver?

O carro se contorcia e sacudia pela estrada, e o homem berrou para ele que não havia nada a temer, que nada encontrariam na estrada; não disse que podia ver.

Dali a pouco, o vento aumentou. A estrada, que antes era escondida deles por um muro reto de neve, agora se erguia e caía sobre eles, como uma onda da qual a neve era a espuma branca e cortante. Myatt gritou com o motorista para ir mais devagar; se um pneu estoura agora, pensou ele, estaremos mortos. Ele viu o motorista olhar para o relógio e pisar com mais força no acelerador, e o motor antigo reagir com mais alguns quilômetros por hora, como um desses velhos obstinados e fortes de quem se costuma dizer: ”São os últimos, Não se fazem mais homens como estes”.

— Mais devagar—Myatt tornou a gritar, mas o motorista apontou para o relógio e dirigiu seu carro até o seu limite, gemido, inseguro e gigantesco. Ele era um homem para quem 30 dinares, a diferença entre pegar e perder o trem significavam meses de conforto; teria arriscado sua vida e a do seu passageiro por muito menos dinheiro. De repente, enquanto o vento pegava a neve e a soprava de lado, apareceu uma carroça no vazio, a dez metros e bem na frente deles. Myatt teve apenas tempo de ver os olhos bestificados dos bois e calcular onde seus chifres haviam de despedaçar o vidro do pára-brisa; um homem idoso gritou, largou o aguilhão e pulou. O motorista girou o volante, o carro subiu por um barranco, continuando loucamente sobre duas rodas, enquanto as outras zuniam e giravam entre o vento e a terra, inclinando-se cada vez mais, até que Myatt podia ver a terra subindo como leite fervendo; saiu do barranco, tocou a terra com duas rodas, tocou com as quatro, e continuou disparado pela estrada afora a 90 km por hora, enquanto a neve se fechava atrás deles, escondendo os bois, a carroça e o velho apavorado e abismado.

— Dirija mais devagar—exclamou Myatt, mas o motorista virouse, riu e gesticulou com uma mão que nem tremia.

Os oficiais sentados em fila à mesa, os guardas à porta, o doutor respondendo a perguntas e mais perguntas, tudo isso se afastou. Coral Musker adormeceu. A noite a deixara cansada; não compreendia uma palavra do que se dizia; não sabia por que estava ali; estava assustada e começando a desesperar-se. Primeiro ela sonhou que era criança e tudo era muito simples e muito certo, e tudo tinha uma explicação e uma moral. E depois sonhou que era muito velha e estava revendo sua vida; sabia tudo, sabia o que era o certo e o que era o errado; e por que era o errado; e por que isso e aquilo tinham acontecido, e tudo era muito simples e tinha uma moral. Mas esse segundo sonho não era como o primeiro, pois ela estava quase acordada e regulava o sonho conforme os seus desejos, e sempre, nos fundos, continuava a falação. Nesse sonho ela começou a lembrar-se da segurança da idade, dos acontecimentos da noite e do dia; de como tudo tinha saído bem, e que Myatt voltara de Belgrado para buscá-lâ.

Também tinham dado uma cadeira ao Dr. Czinner. Ele via, pela expressão do oficial gordo, que a farsa estava quase terminando, pois ele parará de prestar qualquer atenção às perguntas, meneando a cabeça e tendo soluços, e depois meneando a cabeça de novo. O Coronel Hartep manteve a aparência de justiça com uma bondade sincera. Ele não tinha escrúpulos, mas não queria infligir um sofrimento desnecessário. Se possível, teria deixado alguma esperança ao Dr. Czinner até o final. O Major Petkovitch passou o tempo todo apresentando objeções; ele sabia tão bem quanto os outros qual seria o resultado do julgamento, mas estava resolvido a dar àquilo uma legalidade superficial, e que tudo fosse feito perfeitamente de acordo com os regulamentos do manual de 1929.

As mãos dobradas na frente, tranqüilas, e o chapéu mole e surrado no chão aos seus pés, o Dr. Czinner lutava contra eles, sem esperança. A única satisfação que esperava obter era a admissão da falsidade de seu julgamento; ele seria enterrado na fronteira, na calada da noite, sem publicidade.

— Quanto à acusação de perjúrio — disse ele — ainda não fui julgado. Está fora da jurisdição de um Conselho de Guerra.

— O senhor foi julgado durante sua ausência — disse o Coronel Hartep — e condenado a cinco anos de prisão.

— Creio que verificará que ainda assim devo ser apresentado a um juiz civil para ser condenado.

— Ele tem toda a razão — disse o Major Petkovitch.—Nesse ponto não temos jurisdição. Se consultar a Seção 15...

— Acredito, Major. Vamos deixar de lado a sentença por perjúrio. Resta ainda o passaporte falso.

O Dr. Czinner disse depressa:

— O senhor tem de provar que não me naturalizei súdito britânico. Onde estão suas testemunhas? Quer telegrafar ao Embaixador britânico?

O Coronel Hartep sorriu.

— Levaria tanto tempo. Vamos deixar de lado o passaporte falso. Concorda, Major?

— Não — disse o Major Petkovitch. — Creio que seria mais correto adiar o julgamento pelo crime menor até que seja dada a sentença... isto é, o veredicto, do maior.

— Para mim, tanto faz — disse o Coronel Hartep. — E você, Capitão?

O Capitão meneou a cabeça, concordando, sorriu e fechou os olhos.

—E agora—disse o Coronel Hartep—a acusação de conspiração. O Major Petkovitch interrompeu.

— Estive pensando sobre isso. Creio que ”traição” devia ser a palavra usada na acusação.

— Traição, então.

—Não, não, Coronel. É impossível alterar a acusação agora. ”Conspiração” vai ter de ficar.

—A penalidade máxima... ?

— É a mesma.

— Bem, então, Dr. Czinner, deseja confessar-se culpado ou não? O Dr. Czinner ficou ali sentado pensando um momento. Depois disse:

— Faz alguma diferença?

O Coronel Hartep olhou para o relógio e depois tocou numa carta que estava sobre a mesa.

— Na opinião do tribunal, isto basta para condená-lo.

Ele tinha o ar de quem deseja educadamente mas energicamente pôr um fim a uma entrevista.

— Imagino que eu tenha o direito de pedir que seja lida, e de IIIterrogar o soldado que se apossou dela. , .

— Sem dúvida — disse o Major Petkovich, vivamente. O Dr. Czinner sorriu.

— Não lhes darei trabalho. Confesso-me culpado.

Mas se aquilo fosse um tribunal em Belgrado, disse ele consigo, com os jornalistas escrevendo em seu recinto, eu teria lutado cada palmo. Agora que ele não tinha ninguém a quem se dirigir, sua cabeça estava cheia de eloqüência, palavras que podiam ferir e palavras que provocariam lágrimas. Não era mais o homem zangado e de língua presa que não conseguira impressionar a Sra. Peters.

— O tribunal suspende os trabalhos — disse o Coronel Hartep. No breve silêncio podia-se ouvir o vento rondando como um

cão de guarda furioso, em volta dos prédios da estação. Foi um intervalo muito breve, o suficiente para que o Coronel Hartep escrevesse umas frases numa folha de papel e a passasse pela mesa para ser assinada pelos colegas. Os dois guardas puseram-se um pouco mais à vontade.

— O tribunal julga todos os prisioneiros culpados — leu o Coronel Hartep. — O prisioneiro Josef Grünlich é condenado a um mês de prisão, depois do qual será repatriado. A prisioneira Coral Musker é condenada à prisão por 24 horas e depois será repatriada. O prisioneiro...

O Dr. Czinner interrompeu-o.

— Posso falar ao tribunal antes de ser dada a sentença?

O Coronel Hartep olhou depressa para a janela: estava fechada; para os guardas: suas fisionomias disciplinadas mostravam incompreensão e estavam vazias.

— Sim — disse ele.

O Major Petkovitch ficou vermelho.

— Impossível — disse ele.—Totalmente impossível. Regulamento 27S. O prisioneiro devia ter falado antes de ser suspensa a sessão.

O Chefe de Polícia olhou além do perfil nítido do major, para onde estava sentado o Dr. Czinner, encolhido na cadeira, as mãos dobradas dentro das luvas de lã cinza. Uma locomotiva apitou lá fora, movendo-se devagar pela linha. A neve sussurrava najanela. Ele viu as tiras compridas do casaco e o furo na luva do Dr. Czinner.

— Seria muito irregular — continuou o Major Petkovitch, enquanto com uma mão, distraidamente, procurava o cão debaixo da mesa, puxando-lhe as orelhas.

—Tomei conhecimento do seu protesto—disse o Coronel Hartep, e depois falou ao Dr. Czinner. — O senhor sabe tão bem quanto eu—disse ele, com simpatia—que nada do que disser poderá alterar o veredicto. Mas se isso lhe dá prazer, se ficar mais feliz falando, pode falar.

O Dr. Czinner esperava uma oposição ou desprezo, e suas palavras teriam jorrado diante disso. Mas a bondade e a consideração deixaram-no momentaneamente mudo. Ele tornou a invejar as qualidades que só poderiam ser adquiridas por meio da confiança e do poder. Diante do silêncio bondoso, em expectativa, do Coronel Hartep, ele se viu sem palavras. O Capitão Alexitch abriu os olhos e tornou a fechá-los. O doutor disse, devagar:

— Essas medalhas o senhor ganhou servindo o seu país durante a guerra. Eu não tenho medalhas, mas amo demais a minha pátria. Não matarei outros homens porque também eles amam sua pátria. Luto não por novos territórios, mas por um mundo novo. —As palavras lhe faltaram; não tinha platéia para apoiá-lo; e ele teve a sensação do som artificial de suas palavras, que não davam testemunho do grande amor e do grande ódio que o impeliam. Rostos tristes e belos, magros da má alimentação, envelhecidos precocemente, resignados ao desespero, passaram-lhe pela cabeça: eram as pessoas que ele conhecera, a quem atendera e que não conseguira salvar. O mundo estava num caos, deixando sem uso tanta nobreza, enquanto os grandes financistas e os militares prosperavam. Ele disse: —Vocês são empregados para sustentar um mundo velho, cheio de injustiças e confusões. Para pessoas como Vuskovitch, que rouba as pequenas poupanças dos pobres e durante dez anos levam vidas cheias, seguras e estúpidas, e depois se suicidam. E, no entanto, vocês são pagos para defenderem o único sistema que protegeria homens como ele. Vocês põem na cadeia o pequeno ladrão, mas o grande ladrão mora num palácio. O Major Petkovich disse:

— O que o prisioneiro está dizendo não tem nada a ver com o caso. É um discurso político.

— Deixe que ele continue.

O Coronel Hartep protegeu o rosto com as mãos e fechou os olhos. O Dr. Czinner achou que ele estava fingindo estar dormindo, para esconder sua indiferença, mas o outro tornou a abrir os olhos quando o Dr. Czinner lhe disse, zangado:

— Como vocês são antiquados com as suas fronteiras e seu patriotismo. O avião não conhece fronteiras; nem mesmo os seus financistas reconhecem fronteiras.

O Dr. Czinner viu que alguma coisa entristecia o outro, e a idéia de que talvez o Coronel Hartep não desejasse a sua morte novamente deixou-o sem palavras. Ele moveu os olhos, inquieto, de um ponto a outro, do mapa na parede à prateleirazinha abaixo do relógio, cheia de livros sobre estratégia e história militar, em capas surradas. Por fim seus olhos pousaram sobre os dois guardas; um deles estava olhando além dele, sem prestar atenção, com cuidado para manter a vista sobre um ponto e a arma no ângulo correto. O outro o observava com olhos grandes, infelizes. Esse rosto uniu-se à triste procissão em sua cabeça, e por um momento ele sentiu que tinha uma platéia melhor do que a de jornalistas, que ali estava um pobre homem que poderia ser convertido do serviço errado ao direito, e acorreram-lhe palavras, as palavras vagas e sentimentais que um dia o haviam impressionado e haviam de impressionar o outro. Mas então ele revelou-se ladino, com a lábia de sua classe, desviando os olhos do homem ali presente, só deixando que seus olhos o olhassem uma vez de esguelha, como a cauda de um lagarto. Dirigiu-se a ele no plural, como ”Irmãos”. Disse que não havia vergonha alguma na pobreza, para eles quererem ser ricos, e que não havia crime algum na pobreza, para serem oprimidos. Quando todos fossem pobres, ninguém seria pobre. A riqueza do mundo pertencia a todos. Se fosse dividida, não haveria ricos, mas cada um teria o que comer, e não teria motivos para se sentir envergonhado junto de seu vizinho.

O Coronel Hartep perdeu o interesse. O Dr. Czinner estava perdendo a individualidade das luvas de lã cinza e o furo no polegar; estavase tornando um orador de praça pública, nada mais. Ele olhou para o relógio e disse:

— Creio que já lhe concedi tempo suficiente.

O Major Petkovich resmungou alguma coisa baixinho e, irritando-se de repente, deu um pontapé nas costelas do cachorro e disse:

— Saia daí. Sempre querendo atenção.

O Capitão Alexitch acordou e disse, num tom de grande alívio:

— Bom, acabou-se.

O Dr. Czinner, olhando para o chão a cinco metros à esquerda do guarda, disse devagar:

— Isto não foi um julgamento. Já me haviam condenado à morte antes de começarem. Lembre-se, estou morrendo para lhes mostrar o caminho. Não me importa morrer. A vida não tem sido assim tão boa. Acho que serei mais útil morto. — Mas enquanto falava, sua mente mais esclarecida lhe dizia que era pouco provável que sua morte tivesse algum efeito.

— O prisioneiro Richard Czinner é condenado à morte — leu o Coronel Hartep — devendo a sentença ser executada pelo oficial comandante da guamição em Subotica dentro de três horas.

Aí já estará escuro, pensou o médico. Ninguém ficará sabendo disso.

Por um momento, todos ficaram ali imóveis, como se estivessem num conceito e tivesse acabado um movimento, e eles não soubessem se deviam ou não aplaudir. Coral Musker acordou. Não compreendia o que estava acontecendo. Os oficiais estavam falando juntos, arrumando papéis. Depois um deles deu uma ordem, os guardas abriram a porta e fizeram um gesto em direção ao vento, à neve e aos prédios velados e esbranquiçados.

Os prisioneiros saíram. Caminhavam bem juntos, na tempestade de neve que os atingiu. Não tinham andado muito quando Josef Grünlich agarrou a manga da capa do Dr. Czinner.

— Não me diz nada. O que vai acontecer comigo? Vai andando e não diz nada. — Ele resmungou, arquejando.

— Um mês de cadeia—disse o Dr. Czinner—e depois vão mandá-lo para a sua terra.

— Estão pensando isso, é? Pensam que são muito espertos. — Ele calou-se, examinando atentamente a posição dos prédios. Tropeçou na beira da linha e resmungou, zangado.

— E eu? — perguntou Coral. — O que vai me acontecer? —Você vai ser recambiada amanhã.

— Mas não posso. Tenho o meu trabalho. Vou perder o emprego. E o meu amigo.

Ela tivera medo daquela viagem, por não entender o que lhe diziam os carregadores, a comida estranha e a insegurança no final: houve um momento, quando o imediato a chamou no cais molhado em Ostende, em que ela de bom grado teria voltado. Mas desde então tinham acontecido ”coisas”: ela teria de voltar à mesma moradia, a torrada e suco de laranja ao café da manhã, a longa espera nas escadas do agente com Ivy e Fio e Phil e Dick, todas as pessoas afetuosas que a gente beijava e chamava pelo nome de batismo e não conhecia de todo. A intimidade com uma pessoa podia fazer isso: despir o mundo de amizades, criar uma aversão pelos beijos de mulheres e sua tagarelice animada, tornar o mundo comum um pouco irreal e muito desinteressante. Nem mesmo o médico importava, andando ali num mundo diferente, mas, ao chegarem à porta da sala de espera, ela se lembrou de perguntar-lhe:

— É o senhor? O que vai lhe acontecer?

Ele disse, de um modo vago, esquecendo-se de se afastar para ela entrar:

— Vão-me prender aqui.

— Para onde vão me levar? — perguntou Josef Grünlich, quando a porta se fechou.

— Para o quartel, imagino, por hoje. Não há nenhum trem para Belgrado. Deixaram apagar o fogo. —Através da janela ele tentou avistar os camponeses, mas parecia que se tinham cansado de esperar e tinham ido para casa. Ele disse, com alívio: — Não há nada a fazer — e, com um humor obscuro: —Já é alguma coisa estar em casa.

Por um momento ele se imaginou diante de um deserto de escrivaninhas de pinho, filas e filas de caras maldosas, lembrando-se das ocasiões em que sentira em volta do coração as correntezinhas de ar frio da desobediência, os sinais secretos de explosões de risos disfarçados ameaçando o seu meio de vida, pois um professor que não consegue manter a disciplina tem de acabar sendo despedido. Seus inimigos lhe ofereciam a única coisa que ele nunca conhecera, a segurança. Não havia necessidade de resolver coisa alguma. Ele estava em paz.

O Dr. Czinner começou a cantarolar. Disse a Coral Musker:

— É uma velha canção. O amante diz: ”Não posso vir de dia, pois sou pobre e seu pai me lançará os cães. Mas de noite virei à sua janela e você me fará entrar”. E a moça diz: ”Se os cães latirem, fique muito quieto à sombra do muro, e irei ter com você e juntos iremos para o pomar no fundo do jardim”.

Ele cantou o primeiro verso numa voz meio áspera, por falta de uso; Josef Grünlich, sentado num canto, fez uma careta para o cantor, e Coral ficou junto do fogareiro frio e escutou, com surpresa e prazer, porque ele parecia mais moço e cheio de esperança. ”De noite irei à suajanela e você me fará entrar.” Ele não se dirigia a uma namorada: as palavras não tinham o poder de evocar a imagem de um rosto de mulher, dos seus anos políticos, trabalhosos e áridos, mas seus pais apareceram, meneando seus rostos enrugados para ele, não mais assombrados diante de um homem instruído, um médico, um quase cavalheiro. Depois, em voz mais baixa, ele cantou a parte da moça. Sua voz estava menos áspera e podia ter sido bonita; um dos guardas chegou à janela e espiou para dentro, e Josef Grünlich começou a chorar, de um modo teutônico e sem sentido, pensando em órfãos na neve e princesas com corações de gelo e nem por um instante em Herr Kolber, cujo corpo estava sendo conduzido pela neve cinzenta da cidade, acompanhado por dois funcionários num carro e uma pessoa num táxi, um solteirão, um grande jogador de damas. ”Fique muito quieto à sombra do muro e irei ter com você.” O mundo estava um caos; os pobres morriam de fome e os ricos por isso eram mais felizes; o ladrão podia ser punido ou recompensado com honrarias; o trigo era queimado no Canadá e o café no Brasil, e os pobres em sua pátria não tinham dinheiro para comprar pão e morriam de frio em quartos sem aquecimento; o mundo estava desarvorado e ele fizera o que podia para indireitá-lo, mas isso se acabara. Ele agora estava impotente e feliz. ”Iremos ao pomar no fundo do jardim.” Mais uma vez, não era a recordação de uma mulher que o consolava, mas os olhos tristes e belos dos pobres que lhe prometiam o repouso. Ele fizera tudo o que podia fazer; nada mais era esperado dele; eles lhe entregavam sua desesperança, o segredo de sua beleza e sua felicidade, bem como de seu sofrimento, e o conduziam para as trevas farfalhantes e folhudas. O guarda grudou o rosto na vidraça e o Dr. Czinner parou de cantar.

— Está na sua vez — disse ele a Coral.

—Ah, não conheço canções que lhe possam agradar—disse ela. séria, enquanto procurava na memória alguma coisa antiquada e melancólica, alguma coisa que tivesse a qualidade de um idílio triste como a canção que ele cantara.

—Temos de passar o tempo de algum modo—disse ele, e de repente ela começou a cantar com uma vozinha cristalina como o tinir de uma caixa de música:

 

         Eu estava sentada num carro

         Com Michael: Olhei para uma estrela

         Com john; Bebi aguardente

         Com Peter ...

 

Num bar: Mas as pintas estavam erradas; nunca estão certas.

Este ano, ano que vem, (Vocêpode ter contado errado, conte de novo, bem).

Algum dia, nunca. Serei boazinha para todo o sempre.

— Isto aqui é Subotica? — gritou Myatt, quando viu aparecerem algumas cabanas no meio da tempestade. O motorista fez que sim e um gesto para a frente com a mão. Uma criancinha correu para o meio da rua e o carro deu uma guinada, para se desviar; uma galinha cacarejou e punhados de penas cinzentas voaram pela neve. Uma velha saiu de uma cabana correndo e gritou atrás deles. — O que é que ela está dizendo?

O motorista riu por sobre o ombro: —Judeu imundo.

O ponteiro do velocímetro vacilou e retrocedeu: 80 km, -65 km, 50 km, 30 km.

— Há soldados por aí — disse o homem.

— Quer dizer que há limite de velocidade?

— Não, não. Esses malditos soldados, se vêem um carro bom, o requisitam. A mesma coisa com cavalos. — Ele apontou para os campos, no meio da neve. — Os camponeses estão todos morrendo de fome. Já trabalhei aqui, mas pensei: não, para mim é a cidade. O interior está morto, em todo caso. — Ele fez um gesto para a linha férrea, que desapareceria na tempestade. — Um ou dois trens por dia, só isso. Não se pode culpar os Vermelhos por se revoltarem.

— Houve alguma revolta?

— Se houve? Devia ter visto. O pátio de carga todo em chamas; os correios destruídos. A polícia ficou apavorada. Belgrado está em estado de sítio.

— Eu queria mandar um telegrama de lá. Será que vai passar? O carro foi lutando em segunda para subir uma ladeira e chegou a uma das acanhadas casas de tijolos cheias de anúncios.

—Se quiser passar um telegrama—disse o motorista—eu mandaria daqui. Em Belgrado há filas de jornalistas, o correio está arrasado e tiveram de requisitar o restaurante do velho Nikola. Sabe o que isso significa; mas não sabe, não, porque é estrangeiro. Não são as baratas, ninguém liga para umas baratas, é sadio, mas os cheiros...

—Dá tempo para mandar um telegrama daqui e ainda pegar o trem?

— Aquele trem — disse o motorista — só vai partir daqui a horas e horas. Mandaram buscar uma máquina mas ninguém vai fazer caso disso na cidade. Devia ver a estação, que confusão... É melhor deixar que o leve até Belgrado. Também posso mostrar-lhe a cidade. Conheço as melhores casas.

Myatt interrompeu-o.

— Primeiro vou ao correio. Depois vamos procurar a moça nos hotéis.

— Só há um.

— E depois na estação.

Ele levou algum tempo para mandar o telegrama; primeiro teve de escrever o recado para Joyce de jeito que o Sr. Eckman não pudesse fazer uma ação por calúnia. Por fim resolveu-se: ”Concedidas férias um mês Eckman iniciando imediatamente. Favor assumir cargo já. Chego amanhã”. Isso devia mostrar o que ele queria, mas depois teve de ser codificado no código do escritório, e quando o telegrama em código foi entregue no balcão, o funcionário recusou-se a aceitá-lo. Todos os telegramas estavam sujeitos à censura, e não podiam ser transmitidas mensagens em código. Por fim ele terminou, e verificou que não sabiam de Coral no hotel, que tinha cheiro de plantas secas e inseticidas. Ela ainda deve estar na estação, pensou. Ele saltou do carro a uns 100 m da estação para se livrar do motorista, que se revelara falador demais e prestativo demais, e seguiu sozinho no meio do vento e da neve.

Passou por duas sentinelas do lado de fora de um prédio e indagou o caminho para a sala de espera. Um deles disse que no momento não havia nenhuma sala de espera.

— Onde posso me informar?

O mais alto dos guardas sugeriu o chefe da estação.

— E onde é o escritório dele?

O homem apontou para um segundo prédio, mas acrescentou, delicadamente, que o chefe da estação estava fora; estava em Belgrado. Myatt dominou sua impaciência, pois o homem era obviamente tão bemhumorado. O companheiro dele cuspiu, mostrando seu desprezo, e resmungou alguma coisa sobre judeus, baixinho.

— Então onde posso ir para me informar?

— Há o major — disse o sujeito, em dúvida — ou então o auxiliar do chefe da estação.

— Não pode falar com o major. Foi para o quartel — disse o outro guarda.

Myatt, distraído, aproximou-se um pouco da porta; lá dentro ele ouvia vozes baixas. O guarda rabugento de repente ficou zangado e violento; bateu nas pernas de Myatt com a coronha da espingarda.

— Vá embora. Não queremos espiões por aqui. Vá embora, seu judeu.

Com a calma de sua raça, Myatt afastou-se; era uma calma superficial, mantida inconscientemente como um traço herdado; por baixo ele sentia o ressentimento de um homem jovem, que conhece sua própria importância. Inclinou-se para o soldado, com a intenção de ferir aquela cara animalesca e vermelha com alguma farpa verbal, mas parou a tempo, sentindo, com assombro e pavor, a presença de perigo: nos olhinhos famintos brilhavam o ódio e um desejo de matar; era como se todas as opressões, os pogroms, as cadeias, a inveja e a superstição que os provocassem tivessem sido arrebanhados numa escura taça da terra e ele agora os contemplasse da borda. Ele afastou-se, os olhos pregados no soldado, enquanto o sujeito mexia os dedos no gatilho.

—Vou falar com o assistente do chefe da estação — disse ele, mas seu instinto lhe dizia para caminhar para o carro e voltar ao trem.

— Não é por aí — gritou o guarda simpático para ele. — Por ali. Do outro lado da linha.

Myatt sentiu-se grato pela tempestade que rugia pela linha férrea, soprando rajadas fortes entre ele e os soldados. No lugar em que ele estava, não havia um vento predominante, pois o ar era preso nas travessas entre os prédios e soprava rodopiando pelos cantos em direções opostas. Ele se admirou com sua própria persistência, que o levava a permanecer na estação vazia e perigosa. Disse consigo mesmo que não devia nada à pequena e sabia que ela concordaria com ele. ”Você me deu a passagem e eu lhe dei uns bons momentos.” Mas ele estava preso pela concordância dela, sua recusa de fazer qualquer exigência. Diante de uma humildade tão completa, não se podia deixar de ser generoso. Ele abriu caminho pela linha e abriu uma porta. Um homem descabelado estava sentado a uma escrivaninha, bebendo vinho. Estava de costas, e Myatt disse, num tom que esperava ser autoritário e intimidante.

— Desejo uma informação.

Ele não tinha motivo para ter medo de um civil, mas quando o homem se virou e ele viu os olhos se tornarem ladinos e insolentes quando o avistaram, ele se desesperou. Havia um espelho pendurado acima da mesa, e nele Myatt viu o reflexo de sua própria imagem bem nitidamente, por um instante, baixo, gordo e nasal, com seu pesado sobretudo de peles, e ocorreu-lhe que talvez essa gente o odiasse não só por ser ele judeu, mas porque ele levava os traços do dinheiro para o ambiente resignado deles.

— E então? — disse o funcionário.

— Desejo uma informação—disse Myatt—sobre uma moça que ficou aqui, tendo perdido o Expresso do Oriente, hoje de manhã.

— O que quer dizer? — perguntou o funcionário, com insolêntía. — Se alguém salta do trem, saltou. Não perde o trem. Ora, o trem ficou parado aqui esperando hoje por mais de meia hora.

— Bem, e uma moça saltou?

— Não.

— Quer examinar os seus bilhetes e verificar isso?

— Não. Já disse que ninguém saltou, não disse? Para que está esperando aqui? Sou um homem ocupado.

De repente Myatt viu que não se importaria de acreditar na palavra do sujeito e encerrar a sua busca; teria feito tudo que estava em seu poder, e estaria livre. Pensou em Coral por um momento como um becozinho, que atrai os passos de um homem, mas no fim é sem saída, com um muro sem janelas; havia outras, e por um momento ele pensou em Janet Pardoe, que era como ruas margeadas de lojas cheias de brilho e caloi, ruas que levavam a algum lugar. Ele estava chegando a uma idade em que queria casar-se e ter filhos, instalar a sua tenda e aumentar a sua tribo. Mas seus pensamentos tinham sido por demais precisos; despertaram sua consciência a favor de alguém que não demonstrara a menor esperança de casamento, mas que fizera questão apenas de um pagamento honesto e o seu próprio afeto. Como um grito estranho e inesperado, voltou-lhe novamente a exclamação dela: ”Eu te amo”. Ele voltou da porta à mesa do funcionário, resolvido a fazer tudo o que pudesse, a não poupar esforços: ela agora podia estar em algum lugar, desconfortável, sozinha, sem dinheiro, talvez com medo.

— Ela foi vista saltando do trem. O funcionário grunhiu para ele.

— O que quer que eu faça? Sair pela neve à procura dela? Estoulhe dizendo que não sei nada sobre ela. Não vi moça alguma. — A voz dele sumiu, quando viu Myatt puxar a carteira. Myatt tirou uma nota de cinco dinares e alisou-a entre os dedos.

— Se puder me dizer onde ela está, pode ganhar duas dessas. O funcionário gaguejou um pouco, seus olhos se encheram de lágrimas, e ele disse, com um pesar pungente:

— Se eu pudesse, se eu ao menos pudesse. Com certeza eu gostaria de ajudar. — Sua fisionomia iluminou-se e ele sugeriu, esperançoso: — Devia experimentar o hotel.

Myatt guardou a carteira no bolso; fizera tudo o que podia fazer; saiu e foi procurar o carro.

Nas últimas horas o sol estivera coberto, mas sua presença se fizera sentir no brilho da neve caindo, na brancura dos montes de neve; agora ele estava-se pondo e a neve absorvia o cinza do céu; ele não chegaria de volta ao trem antes do anoitecer. Mas até mesmo a esperança de pegar o trem se tornou vaga, pois ao chegar ao carro, verificou que o motor congelara, a despeito das cobertas colocadas sobre o radiador.

IosefGrünlich disse:

— Podem cantar à vontade. — Embora ele reclamasse da futilidade deles, seus olhos estavam vermelhos de chorar, e foi com esforço que afastou da mente a imagem das pequeninas vendedoras de fósforos e as princesas de coração de gelo. — Não me pegarão assim tão facilmente. —Ele começou a andar junto às paredes da sala de espera, apertando um polegar molhado à madeira. — Nunca fui preso. Podem espantar-se, mas é verdade. Na minha idade, não se pode começar uma coisa dessas. E vão me mandar de volta à Áustria.

— E procurado, lá?

Josef Grünlich puxou para baixo o colete e começou a balançar a cruzinha de prata.

— Não me importo de lhes contar. Estamos todos no mesmo barco, não é? — Ele torceu o pescoço um pouco, numa crise de modéstia. — Matei um homem em Viena.

Coral disse, horrorizada:

— Quer dizer que é um assassino?

Josef Grünlich pensou: Eu gostaria de contar a eles. É bom demais para ser guardado em segredo. Rapidez? Ora. Olhe ali, Herr Kolber: puxar a arma, apontar, atirar duas vezes, contorções, o homem morto, tudo em dois segundos; mas era melhor não. Ele encorajou-se com o lema cauteloso de sua profissão, a necessidade rigorosa de controlar o seu orgulho. Nunca se sabe. Ele passou o dedo por dentro do colarinho e disse, com displicência:

— Fui obrigado. Um caso de honra. — Sua hesitação foi infinitesimal. — Ele tinha... como se diz?... feito mal à minha filha. — Com dificuldade ele controlou o riso, pensando em Herr Kolber, pequenino e mirrado, e sua exclamação insolente: ”Muito bonito”.

— Quer dizer que o matou — perguntou Coral, assombrada — só porque ele seduziu a sua filha?

Josef Grünlich ergueu as mãos e perguntou, distraído, os olhos indo até à janela e medindo sua altura do solo:

— O que eu podia fazer? A honra dela, a minha honra...

— Deus! — disse Coral. — Que bom que não tenho pai. Josef Grünlich disse de repente.

— Um grampo de cabelo, talvez.

— Como assim, um grampo de cabelo?

— Ou um canivete.

— Não tenho grampos. Para que havia de querer grampos?

— Tenho uma faca de papel — disse o Dr. Czinner. E depois de lhe entregar a faca, acrescentou:—Meu relógio parou. Pode me dizer há quanto tempo estamos aqui?

— Há uma hora — disse Josef. . .

— Mais duas horas, então — comentou o Dr. Czinner, pensativo. Os outros não o ouviram. Josef foi até à porta nas pontas dos pés, a faca de papel na mão, e Coral ficou olhando para ele.

— Venha cá, Frãukin — disse Josef, e quando ela estava ao lado dele, perguntou-lhe: — Tem alguma pomada?

Ela deu-lhe um pote de creme de limpeza que tirou da bolsa e ele espalhou o creme sobre a fechadura da porta, deixando um espaçozinho limpo. Começou a rir baixinho, quase dobrado ao meio, o olho na fechadura.

— Que fechadura — murmurou, feliz. — Que fechadura.

— Para que quer o creme?

— Silêncio — disse ele — vai tornar mais silencioso o que tenho a fazer. — Ele voltou ao fogareiro frio e fez um gesto convocando os outros. — Aquela fechadura — disse ele, em tom baixo — não é nada. Se conseguíssemos mandar um dos guardas embora, podíamos dar uma corrida.

— Levará um tiro — disse o Dr. Czinner.

— Não podem atirar nos três ao mesmo tempo—disse Grúnlich. Ele deu duas sugestões no meio do silêncio deles: ”O escuro. A neve”, e depois recuou, aguardando a decisão deles. Seu próprio raciocínio funcionava lindamente. Ele seria o primeiro a sair, o primeiro a fugir; corria mais depressa do que um velho ou uma moça; o guarda atiraria no fugitivo mais próximo.

—Eu a aconselharia a ficar—disse o Dr. Czinner a Coral.—Não está correndo perigo algum aqui.

Grünlich abriu a boca para protestar, mas não disse nada. Os três ficaram olhando para a janela e a passagem de um dos guardas, a espingarda sobre o ombro.

— Quanto tempo você leva para abrir a porta? — perguntou o Dr. Czinner.

— Cinco minutos.

— Então vá trabalhar.

O Dr. Czinner bateu na vidraça e o outro guarda aproximou-se. Seus olhos grandes e simpáticos se aproximaram da vidraça e ele olhou para dentro da sala de espera. A sala estava mais escura do que o ar livre, e ele não via nada a não ser vultos vagos movendo-se de um lado para outro, procurando aquecer-se. O Dr. Czinner encostou a boca ao vidro e falou na língua do outro.

— Como se chama? — enquanto a faca de papel raspava, mas quando falhava, o barulho era abafado pela camada de creme.

— Ninitch — disse uma sombra de voz pela vidraça.

— Ninitch — repetiu o Dr. Czinner, devagar. — Ninitch. Acho que conheci o seu pai, em Belgrado.

Ninitch não demonstrou desconfiança alguma daquela mentira fácil, achatou o nariz contra a vidraça, mas toda a sua visão da sala de espera estava bloqueada pelas feições do médico.

— Ele morreu há seis anos — disse ele.

O Dr. Czinner correu um risco diminuto para quem conhecia os pobres de Belgrado e sua alimentação.

—Sim, eleja estava doente quando o conheci. Câncer do estômago.

— Câncer?

— Dores.

—Sim, sim, na barriga. Era ele. Vinham de noite, e ele ficava com a cara muito quente. Minha mãe se deitava ao lado dele com um pano para enxugar a pele dele. Imagine, o senhor tê-lo conhecido. Quer que eu abra ajanela para podermos conversar melhor?

A faca de Grünlich raspava e raspava; um parafuso saiu e caiu no chão, com um tinido de agulha.

— Não — disse o Dr. Czinner. — O seu companheiro pode não gostar.

— Ele foi até à cidade, ao quartel, para falar com o major. Um estrangeiro esteve aqui querendo informações. Ele acha que há alguma coisa errada.

— Um estrangeiro? — perguntou o Dr. Czinner. Sua boca ficou seca, com a esperança. — Foi embora?

—Acabou de voltar para o carro, lá na estrada. s A sala de espera estava cheia de sombras. O Dr. Czinner virou-se um momento da janela e perguntou baixinho:

— Como vão as coisas? Pode fazer isso depressa?

— Mais dois minutos — disse Grünlich.

— Há um estrangeiro com um carro na estrada. Andou tomando informações.

Coral juntou as mãos e disse baixinho:

— Ele voltou para me buscar. Está vendo. Disse que ele não voltaria. — Ela começou a rir baixinho, e quando o Dr. Czinner lhe disse para ficar calma, falou: — Não estou histérica. Só estou feliz — pois lhe ocorrera que essa aventura apavorante afinal fora um benefício: mostrara que ele gostava dela, senão nunca se teria dado ao trabalho de voltar. Ele deve ter perdido o trem, pensou ela, e teremos de passar a noite juntos em Belgrado, talvez duas noites, e ela começou a sonhar com hotéis de luxo, jantares e a mão dele no braço dela.

O Dr. Czinner voltou-se para a janela.

— Estamos com muita sede — disse ele. — Tem algum vinho? Ninitch sacudiu a cabeça.

— Não. — Ele acrescentou, na dúvida: — Lukitch tem uma garrafa de rakia, lá do outro lado.

O crepúsculo já tornara o caminho mais comprido; não havia lua para iluminar a rua de trilhos e a lâmpada no escritório do chefe de estação podia estar a cem metros de distância, em vez de 30 metros.

— Seja bonzinho e nos arranje o que beber. Ele sacudiu a cabeça.

— Não posso sair de junto da porta.

O Dr. Czinner não lhe ofereceu dinheiro; em vez disso, disse através da vidraça, que tinha atendido ao pai de Ninitch. !

— Dei-lhe uns comprimidos para tomar, quando a dor fosse muito forte.

— Pastilhas redondinhas? — perguntou Ninitch.

— É. Pastilhas de morfina.

Ninitch, o rosto apertado contra a vidraça, pensou. Podiam-se ver as idéias movendo-se como peixes nos olhos translúcidos. Disse ele:

— Imagine, o senhor dar aquelas pastilhas para ele. Ele tomava uma sempre que tinha dor, e uma de noite também. Faziam-no dormir.

— É.

— Quanta coisa terei para contar à minha mulher. —As bebidas — insistiu o Dr. Czinner.

Ninitch disse, devagar:

— Se vocês tentassem fugir enquanto eu estivesse ausente, eu estaria numa encrenca.

O Dr. Czinner disse:

— Como poderíamos fugir? A porta está trancada e a janela é muito pequena.

— Está bem, então.

O Dr. Czinner o viu afastar-se e virou-se para os outros, com um suspiro de infelicidade.

— Pronto — disse ele. Seu suspiro era pela perda de sua segurança. A luta fora reiniciada. Era seu dever desagradável fugir, se conseguisse.

— Um momento — disse Grünlich, raspando na porta.

— Não há ninguém lá fora. O guarda está do outro lado da linha. Quando saírem pela porta, virem à esquerda e depois de novo à esquerda entre os prédios. O carro está mais abaixo na estrada.

— Sei de tudo isso — disse Grünlich, e mais um parafuso caiu ao chão. — Pronto.

—Eu ficaria aqui se fosse você — disse o Dr. Czinner a Coral.

— Mas não posso. O meu amigo está lá na estrada.

—Pronto—repetiu Grünlich, de cara fechada para eles. Eles se juntaram junto da porta.

— Se atirarem — disse o Dr. Czinner — corram em zigue-zague.

Grünlich puxou a porta e abriu-a, e a neve foi soprada para dentro. Lá fora não estava tão escuro quanto na sala; a lâmpada do chefe da estação do outro lado dos trilhos iluminava o vulto do guarda à janela. Grünlich foi o primeiro a mergulhar na tempestade; com a cabeça dobrada quase até os joelhos, ele lançou-se para a frente como uma bola. Os outros o seguiram. Não era fácil correr. O vento e a neve eram inimigos aliados para repeli-los: o vento atrapalhava sua velocidade e a neve cegava. Coral soltou uma exclamação de dor quando esbarrou numa alta coluna de ferro com uma tromba como a de um elefante usada para pôr água nas locomotivas. Grünlich estava bem na frente dela; o Dr. Czinner estava um pouco atrás; ela ouvia o esforço doloroso dos pulmões dele. Os passos deles não faziam ruído algum na neve, e eles não ousavam gritar para o motorista do carro.

Antes de Grünlich chegar ao espaço entre os prédios, uma porta bateu, alguém gritou e ouviu-se o disparo de uma arma. O primeiro esforço de Grünlich o havia deixado exausto. A distância entre ele e Coral diminuiu. O guarda atirou duas vezes, e Coral ouviu o zumbido das balas ao alto. Ela pensou se ele estaria propositadamente atirando para o alto. Mais dez segundos e eles dobrariam a esquina e estariam escondidos das vistas dele e visíveis do carro. Ela ouviu uma porta tornar a abrir-se, uma bala levantou neve ao seu lado e ela correu mais depressa. Estava quase ao lado de Grünlich quando chegaram à esquina. O Dr. Czinner soltou uma exclamação, atrás dela, e ela pensou que ele a estivesse incitando a correr mais depressa, mas antes de chegar à esquina, olhou para trás e viu que ele estava agarrado à parede com ambas as mãos. Ela parou e gritou:

— Herr Grünlich.

Ele não lhe deu atenção, dobrando o canto do prédio e desaparecendo de vista.

— Continue — disse o Dr. Czinner.

A luz brilhando do horizonte por trás das nuvens mais ralas desapareceu.

— Pegue o meu braço — disse ela.

Ele obedeceu, mas o peso era demais para ela, se bem que ele tentasse aliviá-lo com uma mão apoiada na parede. Eles chegaram ao canto. O farol traseiro do carro brilhava na penumbra e a neve a cem metros de distância, e ela parou.

— Não agüento — disse ela.

Ele não respondeu, e quando ela afastou a mão, ele escorregou, caindo na neve.

Por alguns segundos, ela se perguntou se devia deixá-lo ali. Disse consigo mesma, sem convicção, que ele não teria esperado por ela. Mas depois, ela não estava no perigo em que ele estava. Ela ficou ali vacilando, abaixada para olhar para o rosto pálido dele; notou que havia sangue nos bigodes dele. Ela ouviu vozes do outro lado do canto, e viu que não tinha tempo para resolver. O Dr. Czinner estava sentado de costas para uma porta de madeira que estava apenas encostada, e ela o puxou para dentro e tornou a fechá-la, mas teve medo de passar a tranca. Alguém passou por eles, um motor roncou. Depois o carro pegou, ruidosamente, e a distância pegou o som abafando-o até um murmúrio. O galpão não tinha janelas; estava bem escuro e era tarde para ela abandoná-lo.

Ela procurou nos bolsos do Dr. Czinner e encontrou uma caixa de fósforos. Quando acendeu um deles, viu que o teto se erguia atrás dela como um pé de feijão. Alguma coisa bloqueava o galpão numa das pontas, algo empilhado quase até o teto. Outro fósforo mostrou-lhe sacos gordos empilhados até o dobro da altura de um homem. No bolso direito do Dr. Czinner ela encontrou um jornal dobrado. Arrancou uma página e fez uma torcida, para ter luz suficiente para puxá-lo pelo galpão, pois tinha medo de que a qualquer momento o guarda abrisse a porta. Mas o peso dele era demais para ela. Ela aproximou a torcida dos olhos dele, para ver se ele estava consciente, e a fumaça o despertou. Ele abriu os olhos e a olhou, perplexo. Ela cochichou para ele:

— Quero escondê-lo no meio dos sacos,

Ele não pareceu compreender e ela repetiu a frase muito devagar e distintamente. Ele disse:

— Ich spreche kein Englisch.

Ah, pensou ela, eu devia tê-lo largado; quem me dera estar naquele carro agora. Ele deve estar morrendo; não entende uma palavra do que digo, e ela ficou apavorada diante da idéia de ficar sozinha no galpão com um morto. Depois a chama apagou-se, abafada em suas próprias cinzas. Ela tornou a procurar o jornal, de gatinhas, arrancou outra página e fez outra torcida. Aí viu que tinha perdido os fósforos, e de quatro procurou em volta pelo chão. O Dr. Czinner começou a tossir, e alguma coisa moveu-se no chão junto de suas mãos. Ela quase gritou, com medo de ratos, mas quando afinal encontrou os fósforos e acendeu a torcida, viu que era o médico que se tinha mexido. Ele estava engatinhando, meio torto, em direção ao fundo do galpão. Ela procurou guiá-lo, mas ele não parecia estar tomando conhecimento dela. Durante todo esse tempo ela se perguntou por que ninguém aparecia para procurar no galpão.

O Dr. Czinner estava totalmente exausto quando chegou até os sacos e deitou-se com a cara enterrada neles; estava sangrando pela boca. Mais uma vez, toda a responsabilidade era dela. Ela pensou se ele estaria morrendo, e juntou a boca no ouvido dele.

— Quer que eu busque socorro?

Ela teve medo de que ele lhe respondesse em alemão, mas dessa vez ele disse, bem distintamente:

— Não, não.

Afinal, pensou ela, ele é médico, deve saber. Perguntou-lhe:

— O que posso fazer pelo senhor?

Ele sacudiu a cabeça e fechou os olhos. Não estava mais sangrando, e ela achou que ele estava melhor. Ela puxou os sacos do monte e fez uma espécie de toca, de um tamanho que desse para abrigá-los, empilhando os sacos na entrada, para que não fossem vistos da porta. Os sacos estavam pesados, de cereias, e ela ainda não acabara a tarefa quando ouviu vozes. Ela agachou-se bem no buraco, cruzando os dedos para dar sorte, e a porta abriu-se e uma lanterna brilhou sobre a cabeça dela. Depois a porta fechou-se e tudo voltou ao silêncio. Passou-se muito tempo até que ela tivesse coragem de terminar o trabalho.

— Vamos perder o trem — disse Myatt, olhando o motorista virar e virar a manivela do arranque; o automático estava imprestável.

— Eu o levarei de volta mais depressa—disse o homem. Por fim o motor começou a pegar, grunhir, falhar e pegar de novo. — Lá vamos nós — disse ele. Sentou-se em seu assento e acendeu os faroletes, mas enquanto estava tentando fazer o carro pegar com firmeza, ouviu-se uma explosão no escuro atrás deles.

— O que foi isso? — perguntou Myatt, pensando que era a descarga do carro. Depois ouviu-se outra e pouco depois um outro som, como o pipocar de uma rolha.

— Estão atirando na estação — disse o motorista, empurrando o automático.

Myatt empurrou a mão dele.

— Vamos esperar. O homem repetiu:

— Esperar? — explicou, com pressa: — São os soldados. E melhor irmos.

Ele não podia saber como Myatt partilhava de sua opinião. Myatt estava assustado; vira na atitude dos soldados o espírito que tornava possíveis os pogroms; mas continuava obstinando-se: ainda não estava bem convencido de ter feito todo o possível para encontrar a pequena em Subotica.

— Estão chegando — disse o homem.

Havia alguém correndo pela estrada, vindo da estação. A princípio, não se distinguia bem, na neve que caía. Depois conseguiram ver um homem esquivando-se de um lado para outro. Com uma velocidade surpreendente, ele chegou junto deles, baixo e gordo, agarrando a porta, querendo entrar.

— O que é que há? — perguntou Myatt. O homem estava com a boca espumando um pouco.

— Parta depressa.

A porta estava presa, ele entrou pela janela e caiu sem fôlego no banco de trás.

— Há mais alguém? — perguntou Myatt. — Está sozinho?

—Sim, sim, sozinho—garantiu-lhe o homem.—Vamos depressa. Myatt recostou-se e procurou ver a cara do outro.

— Não viu uma moça?

— Não. Moça nenhuma.

Houve um lampejo junto dos prédios da estação e uma bala raspou o pára-lama. O motorista, sem esperar ordem alguma, baixou o pé e fez o carro disparar, ricocheteando de buraco em buraco pela estrada. Myatt a examinar a cara do desconhecido.

— Você não estava no expresso de Istambul? — O homem fez que sim. — E não viu uma moça na estação?

O homem tornou-se loquaz.

— Vou-lhe contar a história toda.

A fala dele era confusa; muitas frases eram roubadas de sua boca pelo carro instável; disse que tinha sido detido por não ter declarado um pedacinho de renda, um pedacinho de renda à-toa, e que fora tratado com brutalidade pelos soldados, que tinham atirado nele quando ele fugiu.

— E não viu uma moça?

— Não. Moça nenhuma.

Ele enfrentou o olhar de Myatt com uma sinceridade total. Teria sido necessário um interrogatório prolongado para vislumbrar no fundo dos olhos vazios a centelha de maldade, o brilhozinho de astúcia.

Se bem que as paredes de madeira tremessem com o vento, estava quente ali no meio dos sacos, no escuro, no galpão sem janelas. O Dr. Czinner virou-se, para livrar-se da dor no peito, e tornou a virar-se, mas ela o perseguia; só no momento em que se virava é que conseguia algum alívio: enquanto ficava parado, a dor o atormentava. E assim, durante a noite toda, ele se virava e revirava. Havia ocasiões em que tomava conhecimento do vento lá fora e confundia o farfalhar da neve com os movimentos das pedrinhas à beira-mar. Nesses momentos, uma recordação de seus anos no exílio se concretizava no celeiro, de modo que ele começou a recitar as declinações e os verbos irregulares em francês. Mas sua resistência estava enfraquecida, e em vez de exibir uma frente obstinada e sarcástica aos seus algozes, ele chorou.

Coral Musker colocou a cabeça dele numa posição mais cômoda, mas ele tornou a movê-la, virando e virando-a, murmurando ritmadamente, as lágrimas caindo pelo seu rosto e nos bigodes. Ela desistiu da tentativa de ajudá-lo e procurou fugir para o passado, do seu próprio medo, de modo que se os pensamentos deles tivessem assumido uma forma visível a um e outro, uma estranha mistura teria enchido o celeiro. Sob luzes coloridas que deixavam passar ”É um Bebê”, um clérigo amarfanhava a batina sobre o braço e o mergulhava num quadro-negro com um pedaço de giz; várias crianças se perseguiam, implicando, para dentro e para fora dos bastidores, subindo e descendo as escadas dos agentes. Num abrigo de vidro num litoral cinzento uma mulher descompunha um vizinho enquanto um sino tocava chamando ao chá ou à capela.

— Wasser. — murmurou o Dr. Czinner.

— O que quer? — Ela debruçou-se e procurou ver o rosto dele.

— Wasser.

— Quer que eu chame alguém? Ele não a ouviu.

— Quer beber alguma coisa? — Ele não deu atenção, repetindo wasser várias vezes. Ela sabia que ele não estava consciente, mas estava nervosa e irritada porque ele não lhe respondia. — Está bem, então, fique aí deitado. Já fiz tudo o que podia, tenho certeza disso.

Ela arrastou-se para o mais longe dele possível e procurou dormir, mas o tremor das paredes a mantinha acordada, o gemido do vento lhe dava a consciência da desolação, e ela voltou para o lado do Dr. Czinner, para ter companhia e consolo.

— Wasser— repetiu ele.

A mão dela tocou no rosto dele e ela se espantou ao ver como a pele estava quente e seca. Talvez ele queira água, pensou ela, e por um momento não sabia como consegui-la, até que se deu conta de que a água estava caindo em volta dela e amontoando-se contra as paredes do galpão. Ela sentiu uma vaga dúvida: devia-se dar água a uma pessoa com febre? Mas lembrando-se da secura da pele dele, cedeu à compaixão.

Se bem que houvesse água em volta dela, por todos os lados, não era fácil de ser alcançada, nem podia ser obtida com pressa. Teve de acender duas torcidas para conseguir sair do buraco entre os sacos, sem apagá-las. Ela abriu com coragem a porta do galpão, pois a essa altura acharia até bom ser descoberta, mas a noite estava escura e não havia ninguém à vista. Pegou um punhado de neve e voltou para o galpão, fechando a porta; a corrente de ar formada quando fechou a porta apagou a luz.

Ela chamou o Dr. Czinner, mas ele não respondeu, e ela se assustou com a idéia de que poderia estar morto. Com uma das mãos diante do rosto, caminhou para a frente, e esbarrou na parede. Esperou um momento antes de tentar de novo e ficou satisfeita de ouvir um movimento. Dirigiu-se para lá e novamente esbarrou na parede. Pensou, com mais medo: deve ter sido um rato que se mexeu. A neve em sua mão estava começando a derreter. Tornou a chamar e dessa vez foi respondida por um sussurro. Ela deu um salto, pois estava tão perto dela, e, tateando de lado, sua mão logo tocou na barricada de sacos. Começou a rir, mas controlouse: Pare de histeria. Tudo depende de você; e procurou consolar-se com a idéia de que aquele era o seu primeiro desempenho como estrela. Mas era difícil representar no escuro, e sem aplausos.

Quando conseguiu encontrar o buraco no meio dos sacos, a maior parte da neve se tinha derretido ou derramado, mas ela forçou o que sobrou na boca do médico. Aquilo pareceu aliviá-lo. Ele ficou deitado, parado, enquanto a neve em seus lábios se derretia e escorria por entre os dentes. Ele estava tão quieto que ela acendeu uma torcida para ver o rosto dele e ficou assombrada ao ver o olhar consciente e penetrante que ele lhe dava. Falou com ele, mas ele estava por demais absorto em seus pensamentos para poder responder.

Ele estava assimilando a sua posição, a força do seu segundo fracasso. Sabia que estava morrendo: tinha recuperado os sentidos com o frio em seus lábios; e depois de um momento de aturdimento, lembrouse de tudo. Pela dor, sabia onde levara o tiro; tinha consciência de sua febre e a hemorragia interna. Por um momento, pensou ser seu dever tirar a neve dos lábios, mas depois percebeu que não tinha mais deveres com ninguém, só para consigo.

Quando a pequena acendeu a torcida, ele estava pensando: Grünlich conseguiu escapar. Divertiu-o pensar como seria difícil um cristão conciliar essa fuga com a sua própria morte. Sorriu um pouco, com malícia; mas depois, o seu aprendizado cristão teve uma vingança irônica, pois também ele começou a tentar conciliar os fatos dos últimos dias e a pensar em que teria errado e como é que outros tinham vencido. Viu o expresso em que eles tinham viajado rompendo o céu escuro como um foguete. Eles se agarravam a ele com todos os recursos em seu poder, inclinando-se para um lado e para outro, alterando o equilíbrio ora nessa direção, ora naquela. Era preciso ser-se muito vivo, muito flexível, muito oportunista. Toda a neve em seus lábios tinha derretido e o efeito estava passando. Antes de a torcida se apagar, a vista dele fraquejara e o grande galpão com sua carga de sacos flutuara para longe dele, nas trevas. Ele não tinha idéia de estar dentro do galpão; achava que tinha sido deixado para trás e o estava vendo desaparecer. Suas idéias se atrapalharam; em breve ele estava caindo no espaço infinito, sem respirar, com um vazio ventoso no peito e na cabeça, porque não conseguira manter-se de pé no que por vezes era um navio e por vezes um cometa, o próprio mundo ou apenas um trem rápido de Ostende a Istambul. A mãe e o pai meneavam para ele as caras magras e enrugadas, acompanhando-o pelo éter, passando pelo fluxo de estrelas, dizendo-lhe que eles estavam satisfeitos e gratos, que ele fizera o que podia, que fora fiel. Ele estava ofegante e não podia responder-lhes, com muita dor, puxado para baixo pela gravidade. Queria dizer-lhes que fora condenado pela sua fidelidade, que a pessoa tem de inclinar-se de um lado e de outro, mas teve de escutar o tempo todo o consolo falso deles, caindo e caindo em muito sofrimento.

No celeiro era impossível saber o quanto estava escurecendo; quando Coral acendeu um fósforo para olhar o relógio, ficou decepcionada ao ver como o tempo passava devagar. Depois de algum tempo os fósforos foram-se acabando e ela não ousou acender mais um. Não sabia se devia abandonar o galpão e entregar-se, pois já começara a perder as esperanças de rever Myatt. Ele ja fizera mais do que podia esperar dele, voltando ali; não era provável que tornasse a voltar. Mas ela tinha medo do mundo exterior, não os soldados, mas os agentes, as escadas compridas, as senhorias, a velha vida. Enquanto ficasse ali ao lado do Dr. Czinner, conservava alguma coisa de Myatt, uma recordação que ambos possuíam.

Claro, pensou ela, posso escrever a ele, mas meses podiam-se passar até ele estar de volta a Londres, e ela não podia esperar que o afeto ou o desejo dele durassem, enquanto ela estivesse longe. Sabia também que poderia fazer com que a visse, quando ele voltasse. Ele acharia que tinha o dever pelo menos de almoçar com ela. — Mas não estou querendo o dinheiro dele—murmurou ela em voz alta, no celeiro escuro ao lado do moribundo. Sua sensação de desolação — sabendo que, por algum motivo que só Deus sabia, ela o amava—por um momento tornou-se um protesto. Por que não? Por que não hei de escrever-lhe? Ele pode gostar; pode ser que ainda me queira, e se não quiser, por que não hei de lutar? Estou cansada de ser direita, de fazer o que é certo. Seus pensamentos estavam muito semelhantes aos do Dr. Czinner quando exclamou para si que não compensava.

Mas ela sabia bem demais que era de sua natureza, que nascera assim e que tinha de se conformar. Ela se atrapalharia toda no outro jogo; inclemente na hora de ser fraca, perdoando quando devia ser dura. Mesmo então ela não conseguia pensar muito com inveja ou admiração em Grünlich partindo no escuro ao lado de Myatt: seus pensamentos voltavam, com uma fidelidade estúpida, ao próprio Myatt, na última vez em que ela o vira no carro-restaurante, os dedos acariciando a cigarreira de ouro. Mas o tempo todo ela sabia que em Myatt não havia qualidades que justificassem sua fidelidade; era só que ela era feita assim e ele fora bondoso. Pensou, um momento, se o caso do Dr. Czinner não seria o mesmo: ele fora fiel demais para com pessoas que teriam sido mais bem servidas pela astúcia. Ela ouviu a respiração difícil dele no escuro e pensou de novo, sem amargura ou crítica: não compensa mesmo.

A encruzilhada avançou no meio dos faróis. O motorista hesitou por uma fração de segundo a mais, depois girou o volante e fez o carro rodar em duas rodas. Josef Grünlich caiu de uma ponta do banco à outra, perdendo o fôlego de tanto medo. Só ousou tornar a abrir os olhos depois que as quatro rodas estavam de novo no chão. Eles tinham saído da estrada principal e o carro estava correndo pelos sulcos de uma estradinha de interior, despejando uma luz brutal sobre as árvores que brotavam e fazendo-as parecerem de papelão. Myatt debruçou-se para trás, de seu lugar ao lado do motorista, e explicou:

— Ele vai circundar Subotica e atravessar a linha férrea por um caminho de gado. É bom segurar-se bem.

As árvores desapareceram e de repente eles estavam descendo desabaladamente no meio de campos despidos e cobertos de neve. O caminho fora revolvido pelo gado, formando um lamaçal que se congelara. Duas luzes vermelhas saltaram em direção a eles, de mais abaixo, e brilharam em um trecho curto de trilhos. As luzes balançavam para a frente e para trás e ouviu-se uma voz acima do ronco do motor, gritando.

— Quer que eu avance? — perguntou o homem, o pé já pronto para pisar o acelerador.

— Não, não! — exclamou Myatt.

Ele não via por que havia de se meter em encrencas por causa de um estranho. Via os homens segurando as lanternas. Estavam de farda cinza e armados de revólveres. O carro parou entre eles, saltando por cima do primeiro trilho e vindo a adernar como um barco encalhado. Um dos soldados disse alguma coisa que o motorista traduziu para o alemão.

— Quer examinar os nosso documentos.

Josef Grünlich recostou-se quieto contra as almofadas, as pernas cruzadas. Uma das mãos brincava distraída com a corrente de prata. Quando um dos soldados o encarou, ele deu um leve sorriso, e meneou a cabeça. Qualquer pessoa o tomaria por um homem de negócios rico e simpático, viajando com seu secretário. Myatt é que estava afobado, mergulhado em seu casaco de pele, lembrando-se do grito da mulher, ”judeu imundo”, os olhos da sentínela, a insolência do funcionário. Era nessas longínquas paragens do mundo, no meio de campos gelados e gado magro, que se podia esperar encontrar ainda vivos velhos ódios que o mundo estava começando a vencer. Um soldado pôs a luz na cara dele e repetiu o pedido, com impaciência e desprezo. Myatt pegou o passaporte, o homem segurou-o de cabeça para baixo e examinou atentamente o leão e o unicórnio; depois produziu a única palavra que conhecia em alemão:

—Englander?

Myatt fez que sim e o homem atirou o passaporte de volta no assento, absorvendo-se nos documentos do motorista, que se abriram numa fita comprida como um livro de criança. Josef Grünlich inclinou-se para a frente, com cuidado, e pegou o passaporte de Myatt no assento da frente. Ele riu quando a luz vermelha brilhou em sua cara e brandiu o passaporte. O guarda chamou o companheiro, eles ficaram examinando-o sob a luz, falando juntos em voz baixa e sem ligar para o gesto dele.

— O que é que eles querem? — reclamou ele, sem alterar seu sorriso fixo, de gordo. Um dos homens deu uma ordem, que o motorista traduziu:

— Levante-se.

Com o passaporte de Myatt em uma das mãos, a outra na corrente de prata, ele obedeceu, e eles passaram as luzes dos pés à cabeça dele. Ele estava sem sobretudo e tremendo de frio. Um dos homens riu e cutucou-o com o dedo na barriga.

— Querem ver se é de verdade — explicou o motorista.

— O que é de verdade? —A sua gordura.

Josef Grünlich teve de fingir que achava engraçado o insulto e sorriu e sorriu. Seu amor-próprio fora ferido por dois idiotas anônimos que ele nunca mais veria. Outra pessoa teria de sofrer por essa indignidade, pois era seu orgulho, e seu sofrimento, que ele nunca se esquecia de uma injúria. Ele fez o que pôde, pedindo ao motorista em alemão:

— Não pode atropelá-los?

Ele sorria para os homens e brandia o passaporte, e eles o comentavam, ponto por ponto. Depois recuaram e fizeram um gesto, e o motorista deu a partida. O carro passou por cima dos trilhos, depois subiu devagar um caminho comprido e sulcado, e Josef Grünlich, olhando para trás, viu duas lâmpadas vermelhas balançando como lanternas de papel na escuridão.

— O que é que eles queriam?

— Estão à procura de alguém — disse o motorista.

Mas isso Josef sabia bem. Ele não matara Kolber em Viena? Não escapara havia apenas uma hora de Subotica, sob os olhos de uma sentinela? Ele não era o espertinho, o sabidão, que era ligeiro e nunca hesitava? Eles bloquearam todas as estradas aos carros, e no entanto ele tinha passado. Porém lhe veio uma idéia, como uma corrente de ar escondida, de que se o estivessem procurando, eles o teriam encontrado. Estavam procurando outra pessoa. Achavam outra pessoa mais importante. Tinham distribuído a descrição do velho médico molenga, e não de Josef Grünlich, que tinha matado Kolber e que se gabava ”há cinco anos, e nunca me pegaram”. O medo da velocidade o abandonou. Enquanto eles disparavam no carro antigo e barulhento, ele ficou ali quieto, pensando na injustiça de tudo aquilo.

Coral Musker acordou sentindo uma sensação estranha, diferente. Sentou-se e o saco de cereais rangeu debaixo dela. Era o único ruído: o sussurro da neve caindo tinha parado. Ela escutou, e percebeu, com medo, que estava só. O Dr. Czinner se fora; não ouvia mais a respiração dele. Em algum lugar distante, o barulho de um carro fazendo mudança alcançou-a no meio da penumbra. Aquilo lhe chegou como um cão amigo, agradando, cheirando.

Se o Dr. Czinner se foi, pensou ela, não há nada que me prenda aqui. Vou ver se encontro aquele carro. Se forem os soldados, não me farão nada; pode ser... O desejo conservou a frase aberta como o bico de uma ave faminta. Ela estendeu uma das mãos para se firmar, enquanto se punha de joelhos, e tocou no rosto do médico. Ele não se mexeu, e, embora o rosto dele estivesse morno, ela sentia o sangue duro e seco em volta da boca dele como pele velha. Ela gritou uma vez e depois ficou quieta e calma, procurando os fósforos com o tato, acendendo uma torcida. Mas sua mão tremia. Seus nervos dobravam-se, se bem que não tivessem cedido, sob o peso de suas responsabilidades. Parecia-lhe que cada dia, na última semana, a carregara de alguma coisa a resolver, algum receio que ela tinha de disfarçar. ”Tem esse trabalho em Constantinopla. É pegar ou largar. Há uma dúzia de pequenas na escada.” Myatt pondo o bilhete em sua bolsa, a senhoria aconselhando isso e aquilo; o pavor repentino do desconhecido no cais em Ostende com o imediato chamando-a, dizendo que se lembrasse dele.

À luz da torcida, ela surpreendeu-se de novo com o olhar de sabedoria do médico, mas era uma sabedoria congelada, que não mudava nunca. Afastou o olhar e olhou de novo, e era sempre o mesmo. Eu nem sabia que ele estava assim tão mal, pensou. Não posso ficar aqui. Chegou a pensar se a acusariam da morte dele. Esses estrangeiros, cuja língua ela não compreendia, eram capazes de tudo. Mas ela se demorou demais, enquanto a torcida queimava, por causa de uma estranha curiosidade. Será que ele também tinha tido uma namorada, um dia? A idéia roubou-lhe o aspecto impressionante, ele não era mais um morto apavorante e ela examinou o rosto dele com mais atenção do que jamais ousara antes. As boas maneiras se acabavam com a vida. Notou pela primeira vez que o rosto dele tinha feições curiosamente grosseiras; se não fosse tão magro, poderia ser repulsivo; talvez fosse apenas a angústia e má alimentação que lhe emprestaram a inteligência e certa sensibilidade. Mesmo na morte, sob a trêmula luz azul de um pedacinho de jornal, o rosto era notável por sua falta de humor. Talvez, ao contrário da maioria dos homens, ele nunca tivesse tido uma mulher. Se ele tivesse vivido com alguém que se risse um pouco dele, pensou, não estaria agora aqui assim; não teria levado as coisas tão a sério; teria aprendido a não se afligir, a deixar o barco correr; é o único meio. Tocou nos bigodes compridos. Eram cômicos; eram patéticos; nunca poderiam fazer com que ele parecesse trágico. Aí a torcida apagou-se e eleja poderia estar enterrado, pelo que ela podia ver dele, a sua mente foi distraída por leves ruídos de um carro andando e de passos. Seu grito não passara despercebido.

Uma estreita réstia de luz surgiu debaixo da porta mal-encaixada: vozes falando; e o carro zumbindo suavemente pela estrada lá fora. Os passos se afastaram, uma porta abriu-se, e através das finas paredes do celeiro ela ouviu alguém remexendo nos sacos no compartimento vizinho; um cão estava farejando. Aquilo lhe trouxe a recordação dos campos de Nottingham, planos e chãos, no domingo, o punhado de mineiros com quem uma vez ela foi caçar ratos, um cachorro chamado Spot. O cão entrava e saía dos celeiros, enquanto eles todos ficavam num círculo, armados de paus. Lá fora havia uma discussão, mas ela não reconhecia nenhuma das vozes. O carro parou, mas o motor ficou funcionando baixinho.

Então, abriu-se a porta do galpão e a luz saltou para cima, para os sacos. Ela ergueu-se num cotovelo e viu, por uma fresta da barricada, o oficial pálido, de pincenê, e o soldado que estivera de guarda na sala de espera. Eles atravessaram o galpão em direção a ela e seus nervos cederam; não suportava passar o tempo lentamente até ser descoberta. Eles estavam meio de costas para ela, e quando ela se pôs de pé e gritou: ”Cá estou eu”, o oficial deu um salto e virou-se, puxando o revólver. Depois ele viu quem era e fez uma pergunta, parado no meio do chão, o revólver apontado. Ela pensou entender e disse: — Ele está morto.

O oficial deu uma ordem, o soldado avançou e começou a puxar os sacos, devagar. Era o mesmo que a tinha feito parar a caminho do carro-restaurante, e por um momento ela o odiou, até que ele levantou o rosto e sorriu para ela, com tristeza e um ar de desculpa, enquanto o oficial o bombardeava por trás com pequeninas impaciências ferinas. De repente, quando ele puxou o último saco na boca da toca, seus rostos quase se tocaram, e nesse instante ela teve tanto dele quanto de uma conversa com um homem calado.

O Major Petkovitch, ao ver que o médico não se movia, atravessou o galpão e apontou a luz bem no rosto do morto. Os bigodes compridos ficaram claros naquele clarão, e os olhos abertos refletiam a luz como lâminas. O major deu o revólver ao soldado. O bom humor, os restos de felicidade simplória, que tinham restado em algum lugar por trás da fachada de sofrimento, tudo caiu por terra. Era como se todos os andares de uma casa caíssem e deixassem as paredes de pé. Ele estava horrorizado, mudo e imóvel; e o revólver ficou na palma da mão do major. O Major Petkovitch não se irritou; observou o outro com curiosidade e determinação através de seu pincenê de ouro. Ele tinha toda a sensibilidade do quartel na ponta dos dedos; além de seus livros usados sobre a estratégia alemã, havia em suas estantes uma fileirazinha de livros sobre psicologia; conhecia cada um de seus praças com a intimidade de um confessor, até que ponto eram brutais, ou bondosos, ou ladinos ou ingênuos; sabia quais os seus prazeres — rakia, jogo e mulheres; suas ambições, embora estas pudessem não passar de uma história emocionante ou feliz para contar à mulher. Sabia, mais que tudo, adaptar a punição ao caráter, e como domar a vontade. Ficara impaciente com o soldado quando ele puxara os sacos tão devagar, mas agora não; deixou que o revólver ficasse na palma da sua mão e repetiu a ordem com muita calma, olhando através dos aros de ouro.

j O soldado abaixou a cabeça, enxugou o nariz com a mão e apertou os olhos, olhando com dificuldade para o chão. Depois pegou o revólver e levou-o à boca do Dr. Czinner. Novamente ele hesitou, Pôs uma das mãos no braço de Coral, e com um empurrão a fez cair de cara no chão, e ela, deitada ali, ouviu o tiro. O soldado lhe poupara aquela visão, mas não podia poupá-la de sua imaginação. Ela levantou-se e fugiu para a porta, vomitando enquanto corria. Esperava encontrar o alívio das trevas, e o clarão dos faróis do lado de fora veio como um golpe na cabeça. Encostou-se à porta e procurou firmar-se, sentindo-se infinitamente mais sozinha do que quando acordara para encontrar o Dr. Czinner morto: desejou Myatt desesperadamente, dolorosamente. As pessoas continuavam a discutir, ao lado do carro, e no ar havia um leve cheiro de bebida.

— Que diabo está havendo aqui? — disse uma voz. O grupo de pessoas dividiu-se em dois, e a Srta. Warren apareceu entre elas. Estava com o rosto vermelho, inflamado e triunfante. Ela agarrou o braço de Coral. — O que está acontecendo? Não, não me conte agora. Você está doente. Vai sair já de tudo isso comigo. — Os soldados estavam entre ela e o carro, e o oficial veio do galpão e se juntou a eles. A Srta. Warren disse depressa, em voz baixa: — Prometa qualquer coisa. Não se importe com o que disser.

Ela pôs uma mão grande e quadrada na manga do oficial e começou a falar, agradando-o. Ele quis interrompê-la, mas suas palavras foram varridas. Ele tirou os óculos, limpou-os e ficou perdido. As ameaças teriam sido em vão, ela poderia passar a noite toda protestando, mas ofereceu-lhe a única isca que seria contra a sua natureza recusar: a razão. E por trás da razão que ela apresentava, permitiu que ele vislumbrasse um motivo diferente, mais valioso, um motivo de alta diplomacia. Ele tornou a limpar os óculos, concordou com a cabeça e cedeu. A Srta. Warren pegou a mão dele e apertou-a, imprimindo fundo no dedo dele a marca de seu anel de brasão.

Coral foi caindo ao chão. A Srta. Warren tocou nela e ela procurou livrar-se. Depois de todo aquele barulhão a terra estava nadando, subindo para envolvê-la em silêncio. De muito longe uma voz disse: ”O seu coração é fraco”, e ela tornou a abrir os olhos, esperando ver um rosto velho embaixo dela. Mas ela estava estirada no banco de trás de um carro e a Srta. Warren a estava cobrindo com uma manta. Ela pôs conhaque num copo e levou-o à boca de Coral; o carro, dando a partida, sacudiu-as, fazendo-as se juntarem e o conhaque derramar no queixo dela; Coral sorriu para a cara vermelha, carinhosa e meio bêbada,

— Escute, querida — disse a Srta. Warren — primeiro vou levá-la de volta a Viena comigo. Posso telegrafar a história de lá. Se algum patife tentar aproximar-se de você, não diga nada. Nem sequer abra a boca para dizer não.

As palavras não diziam nada a Coral. Ela estava sentindo uma dor no peito. Viu as luzes da estação se apagarem quando o carro virou para Viena e pensou, com uma fidelidade obstinada, onde estaria Myatt. A dor lhe dificultava a respiração, mas ela estava resolvida a não falar. Falar, descrever sua dor, pedir ajuda seria esvaziar sua mente por um instante do rosto dele; seus ouvidos perderiam o som da voz dele, sussurrando-lhe o que fariam juntos em Constantinopla. Não serei a primeira a esquecer, pensou ela, obstinada, lutando contra todas as outras imagens que tentavam obter supremacia, o brilho vermelho do carro na estrada escura, o olhar do Dr. Czinner à luz da torcida; por fim lutando desesperadamente contra a dor, a falta de ar, contra um desejo de gritar, contra um escuro do cérebro que lhe roubava até as imagens que ela evitava.

Eu me lembro. Não me esqueci. Mas ela não conseguiu reprimir um grito. Foi tão baixo que o motor o abafou. Nem chegou aos ouvidos da Srta. Warren, como não chegou o sussurro renovado que se seguiu a ele: não me esqueci.

— Exclusiva — disse a Srta. Warren, tamborilando com os dedos nas mantas. — Quero exclusividade. A história é minha — declarou ela, com orgulho, permitindo formar-se em algum lugar, no fundo de sua mente, por trás das manchetes e as entrelinhas, um sonho em forma de Coral de pijama servindo o café, Coral de pijama preparando um coquetel, Coral dormindo no apartamento redecorado e rejuvenescido.

 

                                   CONSTANTINOPLA

 

Alô, alô. O Sr. Carleton Myattjá chegou? , O armênio pequeno e animado, de flor na lapela, e num inglês tão preciso e bem talhado quanto o fraque, respondeu:

— Não. Receio que não. Algum recado?

— O trem chegou, com certeza?

— Não. Está com um atraso de três horas. Parece que a máquina enguiçou perto de Belgrado.

— Diga que o Sr. Joyce...

— E agora—disse o recepcionista, inclinando-se com um ar confidencial sobre o balcão para duas americanas extasiadas, que olhavam para ele de lábios entreabertos, as sobrancelhas lindas e bem-feitas — o que posso recomendar para as duas senhoras esta tarde? Deviam ter um guia para os bazares.

—Talvez o senhor, Sr. Kalebdjian — disseram elas, quase ao mesmo tempo; seus olhos, grandes, virginais e cobiçosos, o acompanharam quando ele se virou ao ouvir o telefone.

—Alô, alô. Ligação interurbana para determinada pessoa? Certo. Alô. Não, o Sr. Carleton Myatt ainda não chegou. É esperado a qualquer momento. Quer que dê algum recado? Ligará às seis horas. Obrigado.

—Ah — disse ele às duas americanas — se eu pudesse, seria um grande prazer. Mas o dever me obriga a ficar aqui. Mas tenho um primo, e vou providenciar para que esteja aqui amanhã de manhã para levá-las ao bazar. Esta tarde, sugiro que tomem um táxi até a Mesquita Azul, pelo caminho do Hipódromo, e depois visitem as cisternas romanas. Depois, se tomarem chá no restaurante russo em Pera, e voltarem para jantar aqui, posso recomendar um teatro para a noite. Agora, se isso lhe convier, vou pedir um táxi para a tarde, de uma garagem de confiança.

As duas abriram a boca ao mesmo tempo e disseram:

— Ótimo, Sr. Kalebdjian.

Enquanto ele estava tocando para a garagem de outro primo distante em Pera, elas foram andando pelo saguão até o empoeirado balcão de balas, pensando se deviam comprar-lhe uma caixa de bombons. O grande hotel ostentoso, com seus pisos de azulejos e empregados internacionais, e o restaurante imitando a Mesquita Azul, fora construído antes da guerra; agora que o governo passara para Ancara e Constantinopla sentia a concorrência do Pireu, o hotel tinha decaído um pouco. O quadro do pessoal fora reduzido e era possível passear pelo grande saguão vazio sem encontrar um mensageiro, e as campainhas eram conhecidas por não tocarem. Mas no balcão da recepção o Sr. Kalebdjian lutava contra a inércia geral em seu fraque bem talhado.

— O Sr. Carleton Myatt está, Kalebdjian?

— Não, senhor. O trem está atrasado. Gostaria de esperar?

— Ele reservou uma suíte com sala de estar?

—Ah, claro. Oh, menino, conduza este cavalheiro ao apartamento do Sr. Myatt.

— Dê-lhe o meu cartão quando ele chegar.

As duas americanas resolveram não dar ao Sr. Kalebdjian uma caixa de bombons de gelatina, mas ele era tão bonzinho e bonitinho que elas queriam fazer alguma coisa por ele, e ficaram ali absortas em seus pensamentos, até que ele de repente apareceu ao lado delas:

— O seu táxi está aqui, senhoras. Darei todas as instruções ao chofer. Verão que ele é de toda a confiança.

Ele as conduziu para fora e viu que partissem, em segurança. O pequeno movimento terminou, e o Sr. Kalebdjian voltou ao saguão silencioso. Por um momento, chegara quase a parecer os velhos tempos, no auge da temporada.

Ninguém chegou durante um quarto de hora; uma mosca prematura, crestada pelo frio, morreu ruidosamente de encontro a uma vidraça. O Sr. Kalebdjian ligou para a governanta para certificar-se se a calefação estava ligada nos quartos e depois ficou sentado com as mãos entre os joelhos, sem ter o que fazer nem em que pensar.

As portas giratórias viraram e viraram, e entrou um grupo de pessoas. Myatt foi o primeiro. Seguiam-no Janet Pardoe e o Sr. Savory, e três carregadores com a bagagem deles. Myatt estava feliz. Aquele era terreno seu. O pesadelo de Subotica foi-se desfazendo e perdeu toda a realidade diante do Sr. Kalebdjian que se adiantava para recebê-lo. Ele ficou satisfeito porque Janet Pardoe viu que ele era reconhecido nos melhores hotéis bem longe de casa.

— Como está passando, Sr. Carleton Myatt? É um grande prazer. — O Sr. Kalebdjian apertou a mão dele, fazendo uma mesura profunda, seus dentes incrivelmente brancos brilhando com um prazer sincero.

— Prazer em vê-lo, Kalebdjian. O gerente está fora, como sempre? Esses são meus amigos, a Srta. Pardoe e o Sr. Savory. Este hotel inteiro está sobre os ombros de Kalebdjian — explicou ele. — Vai-nos acomodar bem? Isso mesmo. Mande uma caixa de balas para o quarto da Srta. Pardoe.

Janet Pardoe começou, baixinho:

— Meu tio vem me receber... Mas Myatt não quis dar ouvidos.

— Ele pode esperar um dia. Hoje tem de ser minha convidada aqui. — Ele estava recomeçando a abrir a sua cauda de pavão com uma confiança que tomava emprestada das plantas e colunas e o respeito do Sr. Kalebdjian.

— Há duas ligações para o senhor, Sr. Carleton Myatt, e um cavalheiro está esperando-o em seu apartamento.

— Bem. Dê-me o cartão. Atenda aos meus amigos. O meu apartamento é o mesmo de sempre?

Ele dirigiu-se depresa para o elevador, os lábios apertados de exultaçáo, pois nos últimos dias houvera muita coisa incerta e difícil de entender, e ele agora estava de volta ao trabalho. Deve ser o Sr. Eckman, pensou ele, sem se dar ao trabalho de olhar para o cartão, e de repente teve toda a certeza do que lhe diria. O elevador subiu com dificuldade ao primeiro andar e o pajem conduziu-o por um corredor empoeirado e abriu a porta. O sol entrou no quarto e ele viu o barulho de carros pela janela aberta. Um homem louro e troncudo de terno de lã levantou-se do sofá.

— Sr. Carleton Myatt? — perguntou ele.

Myatt ficou surpreendido. Não conhecia aquele homem. Olhou para o cartão que tinha na mão e leu: Sr. Leo Stein.

— Ah, Sr. Stein.

— Está surpreendido por me ver? — disse o Sr. Stein. — Espero que não me julgue precipitado.

Ele mostrou-se muito expansivo e cordial. Muito inglês, pensou Myatt, mas o nariz tinha sido modificado por uma operação e tinha uma cicatriz. A hostilidade entre o judeu declarado e o judeu disfarçado manifestou-se logo nos sorrisos do adjurador, o aperto de mãos efusivo, o evitar de encarar o outro.

— Eu estava esperando o nosso agente — disse Myatt.

— Ah, pobre Eckman, pobre Eckman — suspirou Stein, sacudindo a cabeça loura.

— O que quer dizer?

— É por isso que estou aqui, na verdade. Para pedir que vá ver a Sra. Eckman. Está muito preocupada.

— Quer dizer que ele se foi?

—Desapareceu. Não foi para casa ontem à noite. Muito misterioso.

Estava fazendo frio. Myatt fechou ajanela e, com as mãos nos bolsos do casaco de peles, ficou andando de um lado para o outro na sala, três passos para cá, três passos para lá. Disse devagar:

— Não me surpreendo. Não podia encarar-me, imagino.

a — Há alguns dias ele me disse que sentia que o senhor não confiava nele. Estava magoado, muito magoado. Myatt disse, devagar e com cuidado: — Nunca confio em um judeu que virou cristão.

— Ora, vamos, Sr. Myatt, não está sendo um pouco dogmático? — disse Stein, com certo desconforto.

— Talvez. Suponho — disse Myatt, parando no meio da sala, de costas para Stein, mas estando o corpo de Stein refletido até os joelhos num espelho dourado — que ele tenha avançado mais nas negociações do que me deixou supor.

— Ah, as negociações — a imagem de Stein no espelho estava menos confortável do que sua voz —, essas, claro, estão concluídas.

— Ele lhe disse que não compraríamos?

— Eleja comprou.

Myatt meneou a cabeça. Não estava surpreendido. Devia haver muita coisa por trás do desaparecimento de Eckman. Stein disse devagar:

— Estou realmente preocupado com o pobre Eckman. Não posso suportar a idéia de que ele se possa ter suicidado.

— Não creio que precise preocupar-se. Ele apenas aposentou-se dos negócios, imagino. Um pouco precipitadamente.

— Sabe — disse Stein — ele tinha problemas?

— Problemas?

— Bem, essa impressão de que o senhor não confiava nele. E depois não tinha filhos. Queria ter filhos. Tinha muitos problemas, Sr. Myatt. Devemos ser caridosos.

— Mas eu não sou cristão, Sr. Stein. Não acredito que a caridade seja a principal virtude. Posso ver o documento que ele assinou?

— Claro.

O Sr. Stein puxou um envelope comprido, dobrado ao meio, do bolso do paletó de lã. Myatt sentou-se, espalhou as folhas sobre uma mesa e leu-as com cuidado. Não fez comentário algum e sua expressão não revelou nada. Ninguém poderia dizer como ele estava feliz por estar novamente lidando com números, com uma coisa que ele entendia e que não tinha sentimentos. Depois que acabou de ler, recostou-se e olhou para as unhas; tinham sido feitas antes dele partir de Londres, mas já estavam precisando de trato.

O Sr. Stein perguntou, com delicadeza:

— Fez boa viagem? Imagino que o problema em Belgrado não tenha afetado.

— Não — disse Myatt, ausente. Era verdade. Parecia-lhe que todo o incidente não explicado de Subotica fora irreal. Muito breve ele o teria esquecido, porque era isolado de sua vida normal e porque não tinha explicação. Ele disse: — Claro que o senhor sabe que poderíamos impugnar esse acordo.

— Não creio — disse o Sr. Stein. — O pobre do Sr. Eckman era o seu representante legal. O senhor o encarregou das negociações.

— Ele não tinha autoridade para assinar isso. Não, Sr. Stein, receio que isso de nada lhe adiante.

O Sr. Stein sentou-se no sofá e cruzou as pernas. Tinha cheiro de fumo de cachimbo e lã inglesa.

— Naturalmente, Sr. Myatt, não quero obrigá-lo a fazer nada à força. O meu lema é: Nunca decepcione um companheiro de negócios. Eu rasgaria esse acordo já, Sr. Myatt, se isso fosse justo. Mas, sabe, desde que o pobre Eckman assinou isso, Moult’s desistiu. Agora não reabririam sua oferta.

— Sei até que ponto Moult’s estava interessado em groselhas — disse Myatt.

— Bem, sabe, nas circunstâncias, e com toda a amizade, Sr. Myatt, se o senhor anular esse acordo, terei de brigar. Importa-se se eu fumar?

— Aceite um charuto.

— Incomoda-se se eu fumar um cachimbo? — Ele começou a encher o cachimbo com um fumo claro e doce.

— Imagino que Eckman tenha ganho uma comissão por isso?

— Ah, pobre Eckman — disse o Sr. Stein, enigmático. — Eu gostaria mesmo que o senhor fosse ver a Sra. Eckman. Ela está muito preocupada.

— Não tem por que se preocupar se a comissão dele foi bastante grande.

O Sr. Stein sorriu e acendeu o cachimbo. Myatt começou a ler o acordo de novo. Era verdade que ele poderia ser anulado, mas os tribunais são um negócio arriscado. Um bom advogado podia dar muito trabalho. Havia cifras que seria preferível não serem publicadas. Afinal, o negócio de Stein tinha valor para a firma. O que lhe desagradava era o preço e o cargo de diretor concedido a Stein. Nem mesmo o preço era absurdo, mas ele não podia suportar a intromissão de um estranho no negócio da família. Disse:

—Vou-lhe dizer o que vou fazer. Vamos anular esse acordo e fazer-lhe uma nova proposta.

O Sr. Stein sacudiu a cabeça.

— Ora vamos, isso não seria muito justo para comigo, não é, Sr. Myatt?

Myatt resolveu o que faria. Não queria preocupar o pai com um processo legal. Aceitaria o acordo, desde que Stein renunciasse ao cargo de diretor. Mas ainda não ia colocar as cartas na mesa; Stein poderia fraquejar.

— Pense a respeito, Sr. Stein — aconselhou ele.

— Bem, isso — disse o Sr. Stein, alegre — duvido que eu possa fazer. Se é que conheço as moças de hoje. Vou receber uma sobrinha esta tarde. Veio de Colônia no mesmo trem que o senhor. A filha do coitado do Pardoe.

Myatt pegou sua cigarreira, e enquanto escolhia e cortava um charuto, resolveu o que havia de fazer. Começou a desprezar Stein. Falava demais e dava informações desnecessárias. Não admira que o negócio dele não tivesse prosperado. Ao mesmo tempo, cristalizou-se a vaga atração que Myatt sentia pela sobrinha de Stein. Saber que a mãe dela era judia o levou a sentir-se de repente à vontade com ela. Ela tornou-se atingível, e ele envergonhou-se da rigidez que demonstrara na noite da véspera. Eles tinham jantado juntos no trem quando ele voltara de Subotica, mas passara o tempo todo muito comportado. Ele disse devagar:

— Ah, sim, conheci a Srta. Pardoe no trem. Aliás, ela está lá embaixo agora. Viemos juntos da estação.

Agora era a vez do Sr. Stein pesar suas palavras. Quando falou, foi numa ligeira tangente, e de modo significativo.

— Coitada, não tem pai nem mãe. Minha mulher achou que devíamos convidá-la para passar uns tempos conosco. Sou guardião dela.

Eles estavam sentados lado a lado, a mesa entre eles. Sobre ela estava o acordo assinado pelo Sr. Eckman. Eles não o mencionaram; o negócio parecia estar de lado, mas Stein e Myatt sabiam que toda a discussão tinha sido reiniciada. Cada qual sabia os pensamentos que passavam pela cabeça do outro, mas falavam por evasivas.

— A sua irmã — disse Myatt — deve ter sido uma bela mulher.

— Ela herdou a beleza do meu pai — disse o Sr. Stein. Nenhum dos dois admitiria que estavam interessados na beleza de Janet Pardoe. Até mesmo os avós foram mencionados antes dela.

— Sua família é de Leipzig? — indagou Myatt.

— Isso mesmo. Foi meu pai quem trouxe o negócio para cá.

— O senhor achou que fosse um erro?

— Ora, vamos, Myatt, já viu as cifras. Não foi tão mau assim. Mas quero vender enquanto ainda posso gozar a vida.

— O que quer dizer? — perguntou Myatt, com curiosidade. — Gozar a vida, como?

— Bem, não me interesso muito pelos negócios—disse o Sr. Stein. Myatt repetiu, assombrado:

— Não se interessa pelos negócios?

— O golfe — disse o Sr. Stein — e uma casinha no campo. É isso o que desejo.

O choque passou e Myatt tornou a notar que Stein dava informações demais. Os modos expansivos de Stein foram a sua oportunidade; ele fez voltar a conversa para o acordo.

— Então por que deseja esse cargo de diretor? Acho que talvez eu pudesse chegar mais facilmente a um acordo quanto ao preço se o senhor desistisse do cargo de diretor.

— Não o desejo para mim, propriamente — disse o Sr. Stein, tirando baforadas entre as frases, olhando de lado para a cinza cada vez maior no charuto de Myatt—mas gostaria... por causa da tradição, sabe... de ter uma pessoa da família na diretoria. — Ele deu uma risada comprida e sincera. — Mas não tenho filhos. Nem mesmo sobrinhos.

Myatt disse, pensativo:

— Terá de encorajar sua sobrinha — e ambos riram e desceram juntos. Janet Pardoe não estava à vista.

—A Srta. Pardoe saiu? — perguntou ele ao Sr. Kalebdjian.

— Não, Sr. Myatt, a Srta. Pardoe acabou de ir para o restaurante com o Sr. Savory.

— Peça que eles aguardem 20 minutos e o Sr. Stein e eu almoçaremos com eles.

Houve uma ligeira fita para ver quem era o último a passar pela porta giratória; a amizade entre Myatt e o Sr. Stein se fortalecia rapidamente.

Quando estavam no táxi a caminho do apartamento do Sr. Eckman, Stein falou:

— Esse Savory — disse ele — quem é?

— Apenas um escritor — disse Myatt.

— Está querendo namorar aJanet?

— São amigos — disse Myatt. — Conheceram-se no trem. — Ele dobrou as mãos sobre os joelhos e ficou calado, contemplando seriamente o assunto casamento. Ela é muito linda, pensou ele, é fina, daria uma boa dona-de-casa, é meio judia.

— Sou responsável por ela — disse o Sr. Stein. — Será que devo falar com ele?

— Ele é rico.

— Sim, mas um escritor — disse o Sr. Stein. — Não gosto dessa idéia. Eles não têm uma situação estável. Eu gostaria de vê-la casada com um sujeito estabelecido nos negócios.

— Creio que foi apresentada a ele por essa mulher com quem ela vivia em Colônia.

—Ah, sim — disse o Sr. Stein, incomodado—ela teve de ganhar a vida, depois que os pobres pais morreram. Eu não me meti. É bom para as moças, mas minha mulher achou que devíamos vê-la um pouco, de modo que a convidei para vir aqui. Pensei que talvez pudéssemos encontrar um trabalho melhor para ela perto de nós.

Eles deram a volta em torno de um policial em miniatura de pé numa guarita, dirigindo o tráfego, e subiram um morro. Abaixo deles, entre um cortiço alto e despido e um poste telegráfico, as cúpulas da Mesquita Azul flutuavam como um punhado de bolhas de sabão azuis.

O Sr. Stein continuava inquieto.

— Faz bem às moças — repetiu ele. — E a firma tem tomado todo o meu tempo, ultimamente. Mas quando essa venda estiver concluída — acrescentou, animado — vou dar alguma coisa a ela.

O táxi entrou num patiozinho escuro, contendo uma única lata de lixo, mas a escada comprida que eles subiram era iluminada por grandes janelas, e Istambul inteiro parecia flutuar debaixo deles. Podiam ver Sta. Sofia e a Torre de Gaiata, e um grande trecho de água pelo lado ocidental do Corno de Ouro em direção a Eiub.

— Uma bela localização — disse o Sr. Stein. — Não existe um apartamento melhor em Constantinopla — e tocou a campainha, mas Myatt estava pensando no preço e quanto a firma teria contribuído para avista do Sr. Eckman.

A porta abriu-se. O Sr. Stein não se deu ao trabalho de dar o nome à empregada, mas foi seguindo na frente por uma galeria com painéis brancos que prendiam o sol como uma fera dourada entre suas janelas.

— E amigo da família? — sugeriu Myatt.

— Ah, o pobre Eckman e eu já somos íntimos há algum tempo —disse o Sr. Stein, abrindo uma porta que dava para uma grande sala de visitas, em que um piano, um jarro de flores e algumas cadeiras de aço flutuavam num ar de primavera.

— Bem, Emma — disse o Sr. Stein — trouxe o Sr. Carleton Myatt para vê-la.

Não havia cantos escuros na sala, nenhum abrigo da luz suave e benévola, mas a Sra. Eckman fizera o que pudera para esconder-se atrás do piano, que se estendia como um assoalho encerado entre eles. Ela era miúda e grisalha, e vestida na moda, mas suas roupas não lhe iam bem. Ela lembrou a Myatt uma velha empregada da família que usa as roupas que a patroa não quer mais. Estava com uma pilha de costuras debaixo do braço e murmurou suas boas-vindas de onde estava, sem se aventurar mais para diante sobre o chão cheio de sol.

— Então, Emma—disse o Sr. Stein — teve alguma notícia do seu marido?

—Não. Ainda não. Não—disse ela, e acrescentou, com uma tristeza animada: — Ele não gosta nada de escrever cartas — e disse que eles se sentassem. Ela começou a esconder as agulhas, linha, novelos de lã e pedaços de flanela numa grande sacola de trabalhos. O Sr. Stein olhava, com desprazer, para as cadeiras de aço, uma depois da outra.

— Não sei por que o pobre Eckman comprou todas essas coisas — disse ele baixinho a Myatt.

Myatt disse:

—A senhora não precisa preocupar-se, Sra. Eckman. Tenho certeza de que terá notícias de seu marido ainda hoje.

Ela parou no meio da arrumação e ficou olhando para os lábios de Myatt.

— E, Emma — disse o Sr. Stein — assim que o coitado do Eckman souber como o Sr. Myatt e eu estamos de acordo, ele virá para casa depressa.

—Ah — murmurou a Sra. Eckman, de seu canto, do outro lado do assoalho lustroso — não me importo se ele não voltar para cá. Eu iria ter com ele em qualquer lugar. Isto não é um lar— disse ela, com um gestinho enfático, e deixou cair uma agulha e dois botões de pérola.

— Bem, concordo com isso — comentou o Sr. Stein, estofando as bochechas. — Não entendo o que é que o seu marido vê em todo esse negócio de aço. Prefiro umas boas peças de mogno e umas boas poltronas em que o sujeito possa adormecer.

—Ah, mas meu marido tem muito bom gosto—murmurou a Sra. Eckman, sem esperanças, os olhos assustados espiando debaixo do chapéu elegante como os de um camundongo perdido num guarda-roupa.

— Ora — disse Myatt, impaciente — tenho certeza de que não precisa preocupar-se com o seu marido. Ele ficou preocupado com os negócios, só isso. Não há motivo para supor que ele... que lhe tenha acontecido alguma coisa.

A Sra. Eckman saiu de trás do piano e atravessou o espaço de assoalho, torcendo as mãos nervosamente.

— Não tenho medo disso — disse ela. Parou entre eles, depois virou-se e voltou quieta para seu canto. Myatt ficou assustado.

— Então de que tem medo? — perguntou.

Ela fez um gesto com a cabeça para mostrar a sala alegre e cheia de aço.

— O meu marido é tão moderno — disse ela, com medo e orgulho. Depois seu orgulho apagou-se e, com as mãos afundadas na cesta de trabalhos, no meio dos botões e os novelos de lã, disse: — Pode ser que ele não queira voltar para me buscar.

— Bem, e o que acha disso? — comentou o Sr. Stein, quando desciam.

— Pobre mulher — disse Myatt.

— E, sim, pobre mulher — repetiu o Sr. Stein, assoando o nariz de um modo honesto e emotivo.

Ele estava com fome, mas Myatt ainda tinha o que fazer antes do almoço, e o Sr. Stein ficou agarrado a ele. Sentia que a cada táxi que partilhavam sua intimidade crescia, e, mesmo sem pensar em seus planos para Janet Pardoe, a intimidade com Myatt valia vários milhares de libras por ano para ele. O táxi foi chacoalhando por uma rua íngreme de pedras redondas e saiu na praça acanhada junto do correio geral, depois novamente desceu o morro para Gaiata e o cais. No alto de uma escada acanhada eles chegaram ao pequeno escritório, cheio de arquivos e caixas de documentos, com apenas uma janela que dava para um muro alto e o topo da chaminé de um vapor. A poeira estava grossa no parapeito. Era a sala que dera origem à grande sala de visitas de espelhos, assim como pode ser um artista o último filho de uma mãe idosa. Um relógio de parede, que, com a escrivaninha, ocupava a maior parte do espaço restante, bateu as duas horas, mas, embora fosse cedo, Joyce já estava lá. Uma datilógrafa desapareceu numa espécie de armário de sapatos nos fundos da peça.

— Alguma notícia de Eckman?

— Não, senhor—disse Joyce. Myatt olhou para algumas cartas e depois deixou-o, agachado como um cão fiel sobre a mesa de Eckman e os pecados de Eckman.

— E agora vamos almoçar — disse ele. O Sr. Stein molhou os lábios. — Está com fome? — perguntou Myatt.

— Tomei café cedo — disse o Sr. Stein, sem qualquer reprovação. Mas Janet Pardoe e o Sr. Savory não tinham esperado por eles.

Estavam tomando café e licores no restaurante de azulejos azuis quando Myatt e o Sr. Stein exclamaram como era bom que a sobrinha dele e Myatt já se conhecessem e fossem amigos. Janet Pardoe não disse nada, ficou olhando com os olhos pacatos e sorriu uma vez para Myatt. A este ela parecia estar dizendo: ”Como ele nos conhece pouco”, e ele sorriu de volta antes de se lembrar que não havia nada a saber.

— Então, suponho que vocês dois — disse o Sr. Stein — se fizeram companhia de Colônia até aqui.

O Sr. Savory afirmou-se.

— Bem, creio que sua sobrinha passou mais tempo comigo. Mas o Sr. Stein continuou, eliminando-o.

— Vieram a se conhecer bem, hem?

Janet Pardoe abriu um pouco seus lábios macios e marcados e disse baixinho.

—Ah, o Sr. Myatt tinha outra amiga que ele conhecia melhor do que a mim.

Myatt virou a cabeça para pedir o almoço e quando tornou a prestar atenção a eles, Janet Pardoe estava dizendo, com uma malícia branda:

— Ah, ela era amante dele. O Sr. Stein riu-se a valer.

— Vejam só esse camarada levado. Está corando.

— E ela fugiu dele — disse Janet Pardoe.

— Fugiu dele? Ele bateu nela?

— Bem, se perguntarem a ele, vai tentar fazer disso um mistério. Quando o trem enguiçou, ele foi de carro até à estação anterior, para procurar por ela. Levou horas nisso. E o mistério que ele tenta fazer disso... Ajudou alguém a fugir da alfândega.

— Mas e a pequena? — perguntou o Sr. Stein, olhando para Myatt com um ar maroto.

— Ela fugiu com um médico — disse o Sr. Savory,

— Ele nunca vai admitir isso — disse Janet Pardoe, com um gesto da cabeça para Myatt.

— Bom, na verdade, estou um pouco aflito com isso — disse Myatt. — Vou telefonar para o cônsul em Belgrado.

—Telefone para a sua avó—exclamou o Sr. Savory, e olhou com um nervosismo vivo de um para o outro.

Era costume dele, quando tinha bastante certeza de seus companheiros, apresentar alguma expressão familiar de desarmar, que chamasse a tenção para o balcão de loja, o dormitório do aprendiz do seu passado. Por vezes ele ainda era acometido de uma felicidade inebriante por ser aceito, por encontrar-se no melhor hotel, conversando em termos de igualdade com gente que ele antes pensava que nunca chegaria a conhecer a não ser por cima das peças de fazendas, as pilhas de papel de seda. As grandes damas que o convidavam para suas reuniões literárias ficavam encantadas com as expressões que ele usava. De que adiantava exibir um romancista que viera do balcão das pechinchas se ele não levasse consigo algum traço de suas origens, alguns remanescentes das vendas?

O Sr. Stein olhou para ele furioso.

— Acho que o senhor faria muito bem — disse ele a Myatt.

O Sr. Savory ficou encabulado. Essa gente era da minoria que nunca lera seus livros, que não conheciam seu direito à atenção. Achavam-no apenas vulgar. Ele afundou-se um pouco na cadeira e disse a Janet Pardoe:

— O médico. A sua amiga não estava interessada no médico? Ela, porém, sentira a desaprovação dos outros e não se deu ao

trabalho de procurar na memória a história maçante e comprida que a Srta. Warren lhe contara. Interrompeu-o:

— Não posso tomar nota de todas as pessoas por quem Mabel se interessa. Não me lembro de nada sobre o médico. m.-

Foi somente a vulgaridade da expressão do Sr. SavorjEâ ijttè a Sr.

Stein se opôs. Ele era bem a favor de um pouco de brincadeiras limpas sobre a pequena. Isso selaria sua intimidade com Myatt. Quando serviram o primeiro prato, ele tornou a mencionar o assunto.

—Agora conte mais do que o Sr. Myatt andou fazendo.

— Ela é muito bonitinha—disseJanet Pardoe, com uma caridade que se podia quase ouvir.

O Sr. Savory olhou de relance para Myatt, para ver se ele se ofendia, mas Myatt estava com muita fome; estava apreciando aquele almoço tão tarde.

— Trabalha no teatro, não é?

— Sim, de revista.

— Eu disse que ela era corista — comentou Janet Pardoe. — Havia alguma coisa um pouquinho vulgar. Você já a conhecia?

— Não, não — disse Myatt, depressa. — Foi um simples encontro por acaso.

— As coisas que se passam nesses trens internacionais — exclamou o Sr. Stein, com gosto. — Ela lhe custou muito caro?

Ele pescou o olhar da sobrinha e piscou o olho. Quando ela lhe sorriu, ele ficou satisfeito. Seria enjoado se ela fosse dessas pequenas antiquadas em frente de quem não se pode falar abertamente; não havia nada de que ele gostasse tanto quanto um pouco de pornografia em companhias femininas; contanto, claro, pensou ele, olhando com reprovação para o Sr. Savory, que fosse bem fina.

— Dez libras — disse Myatt, com um gesto para o garçom.

— Meu Deus, mas que coisa cara — disse Janet Pardoe, olhando-o com respeito.

— Estou brincando — disse Myatt. — Não dei dinheiro algum a ela. Só paguei uma passagem. Além disso, foi apenas amizade. E boa pessoa.

— Ah, ah — disse o Sr. Stein. Myatt esvaziou o cálice. Por sobre os azulejos azuis aproximou-se um garçom, empurrando uma mesinha.

— A comida aqui é muito boa — disse o Sr. Savory.

Myatt expandiu-se no ar conhecido, levemente aromatizado com a preparação dos alimentos; numa das salas estavam tocando um concerto de Rachmaninoff. Parecia que estavam em Londres. Ao som da música, uma recordação surgiu em sua mente, estourando em luzes vermelhas; as pessoas punham as cabeças para fora das janelas, rindo, falando, zombando do violinista. Ele disse consigo, devagar: ”Ela me amava”. Não pretendia que as palavras caíssem para serem ouvidas no restaurante azul e despido; ele ficou encabulado e um pouco chocado ao ouvi-las: pareciam de quem está-se jactando, e ele não tinha intenção de se gabar; não havia de que se gabar, por ser amado por uma corista. Ele corou quando todos se riram dele.

—Ah, essas pequenas — disse o Sr. Stein, sacudindo a cabeça. — Elas sabem engabelar o homem. É o brilho do palco. Lembro-me quando eu era rapaz, que ficava horas esperando do lado da porta dos bastidores só para ver alguma dona da primeira fila. Bombons, ceias. — Ele parou um momento ao ver o peito cinzento de um pato no prato. — As luzes de Londres — disse ele.

— E falando de teatros, Janet — disse Myatt — quer ir a um espetáculo comigo hoje? — Ele usou o nome de batismo dela, sentindo-se bem à vontade agora que sabia que a mãe dela era judia e que o tio estava no papo.

— Gostaria muito, mas prometi jantar com o Sr. Savory.

— Podíamos ir a um cabaré mais tarde.

Ele não tinha a menor intenção de permitir que elajantasse com o Sr. Savory. Passou a tarde toda muito ocupado para estar com ela; teve de passar várias horas no escritório, endireitando os negócios que o Sr. Eckman emaranhara tão engenhosamente; tinha de fazer umas visitas. Às três e meia, passando de carro pelo Hipódromo, ele viu o Sr. Savory tirando fotos no meio de um grupo de crianças; trabalhava depressa: por três vezes ele apertou a ampola enquanto o táxi passava, e todas as vezes as crianças riram dele. Eram seis e meia quando Myatt voltou ao hotel.

— A Srta. Pardoe está por aí, Kalebdjian?

O Sr. Kalebdjian sabia de tudo que se passava no hotel. Só a sua movimentação podia explicar as minúcias de suas informações: ele saía de repente do saguão deserto, corria para cima e voltava correndo, penetrava em salas distantes e dali a pouco estava de volta à mesa, sem fazer nada.

— A Srta. Pardoe está mudando de roupa para o jantar, Sr. Carleton Myatt.

Uma vez, quando um membro do governo estava hospedado no hotel, o Sr. Kalebdjian tinha espantado uma pessoa da Embaixada britânica que queria detalhes:

—Sua Excelência está na privada. Mas não vai demorar mais que uns três minutos.

Trotando pelos corredores, escutando às portas dos banheiros, de volta ao seu lugar sem nada fazer senão revirar mentalmente um maço de informações, era essa a vida do Sr. Kalebdjian. Myatt bateu à porta de Janet Pardoe.

— Quem é?

— Posso entrar?

—A porta não está trancada.

Janet Pardoe tinha acabado de se vestir. O vestido estava sobre a cama e ela estava diante da penteadeira, empoando os braços.

— Vai mesmo jantar com o Sr. Savory? — perguntou Myatt.

— Bem, prometi a ele — disse Janet.

— Poderíamos jantar no Pera Palace e depois ir ao Petits Champs.

— Seria ótimo, não? — disse Janet Pardoe. Ela começou a escovar os cílios.

— Quem é essa? — Myatt apontou para uma foto grande, num porta-retratos de dobrar, do rosto quadrado de uma mulher. Os cabelos estavam crespos e o fotógrafo tinha tentado dissolver em névoa a linha dura do queixo.

— É Mabel. Ela veio no trem comigo até Viena.

— Não me lembro de tê-la visto.

— Ela agora está de cabelos curtos. É uma foto velha. Ela não gosta de ser fotografada.

— Ela parece severa.

— Coloquei isso aí para me controlar. Ela escreve poesia. Nas costas há alguma coisa escrita. Muito ruim, eu acho. Não sei nada sobre poesia.

— Posso ler?

— Claro. Imagino que você ache muito engraçado que alguém escreva poesias para mim. —Janet Pardoe ficou olhando fixamente para o espelho.

Myatt virou a foto e leu:

”Náiade, esguia, frescor de água,

Nascida para o rio, . ’

Correndo para o mar:

Suporte mais um ano

0 sal, o poço estreito e rochoso.”

— Não rima. Ou será que rima? — perguntou Myatt — O que quer dizer, afinal?

—Acho que pretende ser um elogio — disse Janete Pardoe, polindo as unhas.

Myatt sentou-se na beira da cama e ficou observando-a. O que é que ela faria, pensou, se eu tentasse seduzi-la? Ele sabia a resposta: ela havia de rir. O riso era a defesa perfeita da castidade. Disse ele:

— Você não vai jantar com Savory. Não me pilhavam nem morto com um homem daqueles. Um novo-rico.

— Meu bem — disseJanet Pardoe — eu prometi. Além disso, ele é um gênio.

—Você vai descer comigo, tomar um táxi e jantar no Pera Palace. „, — Coitado, nunca há de me perdoar. Seria divertido.

É isso aí, pensou Myatt, puxando a gravata preta, tudo está fácil, agora que sei que a mãe dela era judia. Foi fácil falar sem parar durante todo o jantar e passar o braço em volta dela quando eles caminharam do Pera Palace ao Petits Champs perto da Embaixada britânica. A noite estava quente, pois o vento amainara e as mesas no jardim estavam apinhadas. Subotica tornou-se mais irreal ainda quando ele se lembrou da neve soprando em seu rosto. No palco, uma francesa de smoking dançava para lá e para cá com uma bengala debaixo do braço, cantando uma canção sobre Ma Tante, que Spinelli tornara conhecida em Paris mais de cinco anos antes. Os cavalheiros turcos, tomando café, riam, conversavam e sacudiam suas cabecinhas emplumadas como barulhentas aves domésticas, mas suas esposas, só recentemente libertadas dos véus, ficavam sentadas caladas, olhando fixamente para a cantora, os rostos pastosos e sem expressão. Myatt e Janet Pardoe caminharam pela beira do jardim, procurando uma mesa, enquanto a francesa se esganiçava, ria e dançava, lançando suas indecências desesperadas aos inatentos e aos que não se divertiam. Pera estendia-se sonolenta abaixo deles, as luzes dos barcos pesqueiros no Corno Dourado luziam como lanternas de bolso e os garçons passavam servindo café.

— Creio que não há uma mesa. Teremos de ir para dentro do teatro.

Um homem gordo acenou com a mão e riu.

— Você o conhece?

Myatt pensou um momento, continuando a andar.

— Sim, creio que sim... Um homem chamado Grünlich.

Ele só o vira claramente duas vezes, uma vez quando ele entrara nó carro e outra quando saltara, à luz do trem parado. Sua recordação portanto era fraca, como de alguém que ele tivesse conhecido melhor havia muito tempo, em outro país. Depois que passaram pela mesa do outro, ele o esqueceu.

— Lá está uma mesa vazia.

Debaixo da mesa, suas pernas se tocaram. A francesa desapareceu, requebrando-se, e um homem fazia acrobacias de rodas dos bastidores para o palco. Ele levantou-se, tirou o chapéu e disse alguma coisa em turco, o que fez todos rirem.

— O que ele disse?

— Não consegui ouvir — disse Myatt.

O homem jogou o chapéu para o alto, apanhou-o, inclinou-se para a frente até estar dobrado ao meio e disse uma palavra. Todos os cavalheiros turcos tornaram a rir, e até mesmo as caras pastosas sorriram.

— O que ele disse?

— Deve ter sido dialeto. Não compreendi.

— Eu gostaria de alguma coisa romântica — disse Janet Pardoe. — Bebi demais no jantar. Estou-me sentindo sentimental.

— A comida é boa lá, não é? — disse Myatt com orgulho.

— Por que você não se hospeda lá? Dizem que é o melhor hotel.

— Ah, bem, sabe, o nosso é muito bom, e gosto de Kalebdjian. Ele sempre me trata muito bem.

— Mas as melhores pessoas...

Um grupo de pequenas de shorts apareceu dançando no palco. Estavam de boné de guardas e com apitos pendurados dos pescoços, mas o significado perdeu-se com a platéia turca, que não estava acostumada com guardas vestidos de shorts.

— Creio que são inglesas — disse Myatt, e de repente inclinouse para a frente.

— Conhece algumas delas?

— Eu pensava... esperava...

Ele não estava certo se não fora medo o que ele sentira ao aparecerem as Dunn’s Babies. Coral não lhe dissera que ia dançar no Petits Champs, mas o provável é que não o soubesse. Ele se lembrava dela olhando com um aturdimento corajoso para o escuro ruidoso.

— Gosto do Pera Palace.

— Bem, eu me hospedei lá uma vez — disse Myatt—mas aconteceu uma coisa constrangedora. E por isso que não voltei. A

— Conte-me. Não seja bobo, tem de contar.

— Bem, eu estava com uma amiga. Pareda uma moça boaânha.

— Consta?

As Dunn’s Babies começaram a cantar:

Se você quer exprimir . Aquele sentimento que tem, Quando às vezes está frio, e às vezes quente.”

— Não, não. Era secretária de um amigo meu. Navegação. ”Venham para cá”, cantavam as Dunn’s Babies. ”Venhampara cá”, e uns marinheiros ingleses sentados nos fundos dojardim batiam palmas e gritavam:

— Esperem por nós. Já vamos.

Um dos marinheiros começou a abrir caminho na meio das mesas para o palco.

”Se você quer exprimir Esse tipo de tristeza Ficará sozinho num quarto de casal...”

O homem caiu de costas e todos riram. Ele estava muito bêbado. ”’ Myatt disse:

— Foi horrível. Ela de repente endoideceu às duas horas da madrugada. Gritando e quebrando tudo. O porteiro da noite subiu e todo mundo ficou pelos corredores. Pensavam que eu estivesse fazendo alguma coisa a ela.

— E estava?

—Não. Eu estava dormindo a sonosolto. Foi horrível. Desde então nunca mais passei uma noite lá.

”Venha para cá. Venha para cá.”

— Como era ela?

— Não me lembro nada dela. Janet Pardoe disse baixinho:

— Você nem pode imaginar como estou cansada de viver com uma mulher.

As mãos deles se tocaram por acaso, sobre a mesa e depois ficaram lado a lado. As luzes feéricas penduradas dos arbustos se refletiam sobre ele, do colar dela, e no fim do jardim por sobre o ombro dela Myatt viu o Sr. Stein abrindo caminho no meio das mesas, de cachimbo na mão. Era um ataque maciço. Ele sabia que naquele momento bastava-lhe inclinar-se e pedi-la em casamento, e teria conseguido arrumar muito mais do que o seu futuro doméstico; teria comprado o negócio do Sr. Stein pelo preço deste, e o Sr. Stein teria um sobrinho na diretoria e ficaria satisfeito. O Sr. Stein aproximou-se e acenou com o cachimbo; teve de se desviar para evitar o bêbado no chão, e nesse momento de folga Myatt convocou para ajudá-lo quaisquer pensamentos que pudessem lutar contra esse futuro suave e resolvido. Lembrou-se de Coral e a estranheza repentina de seu encontro, quando ele pensava que tudo era tão conhecido quanto a fumaça de um cigarro, mas o rosto dela lhe fugiu, talvez porque o trem naquele momento estivesse quase no escuro. Ela era loura, magra, mas ele não conseguia lembrar-se de suas feições. Fiz tudo o que pude por ela, disse ele consigo: em todo caso, nós nos despediríamos em algumas semanas. Já é tempo de me estabelecer.

O Sr. Stein tornou a acenar com o cachimbo, e as Dunn’s Babies batiam com os pés a apitavam.

Esperando na estação Por um parente próximo.

Myatt disse:

— Não volte para ela. Fique comigo.

Tuf,puf,puf,puf, O trem de Istambul.

Ela concordou e suas mãos se juntaram. Efe pensou se o Sr. Stein estaria com o contrato no bolso.

 

                                                                                Graham Greene  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Voltar à Página do Autor