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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O FACTOR HUMANO / Graham Greene
O FACTOR HUMANO / Graham Greene

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

Desde que tinha entrado para a organização, como jovem elemento, havia mais de trinta anos, Castle almoçava todos os dias num pub por trás de St. James’s Street, não muito longe do escritório. Se alguém lhe perguntasse por que razão ia àquele sítio, ele invocaria a excelente qualidade das salsichas; talvez preferisse outra cerveja à do Watney’s, mas a excelência das salsichas compensava. Tinha sempre uma explicação para todas as suas acções, mesmo as mais inocentes, e era extremamente pontual.

Assim, quando o relógio dava a uma hora estava pronto para sair. Arthur Davis, o seu assistente, com quem partilhava o escritório, saía para almoçar ao meio-dia em ponto e regressava, em teoria apenas, uma hora depois. Estava combinado que, como a qualquer altura podia chegar um telegrama urgente, um deles tinha que estar no escritório para receber a descodificação, mas ambos sabiam que na subdivisão em que trabalhavam nunca nada era verdadeiramente urgente. A diferença horária entre Inglaterra e as várias regiões da África Oriental e Meridional de que os dois se encarregavam era, em geral, suficientemente ampla mesmo no caso de Joanesburgo, em que ultrapassava um pouco a hora - para que ninguém, fora do departamento, precisasse de se preocupar com atrasos na entrega de uma mensagem: o destino do mundo, costumava declarar Davis, nunca se decidia no continente deles, por mais Embaixadas que a China ou a Rússia abrissem entre Adis Abeba e Conacri, ou por mais cubanos que lá aterrassem. Castle escreveu um memorando para Davis: «Se o Zaire responder à n.º 172, enviar cópias ao Ministério das Finanças e dos NE.» Consultou o seu relógio. Davis estava dez minutos atrasado.

Castle começou a guardar as suas coisas na pasta juntou uma lista das coisas que a mulher lhe encomendara da mercearia de Jermyn Street, um presente para o filho, com quem tinha sido desagradável nessa manhã (dois pacotes de Maltesers) e um livro, Clarissa Harlowe, que nunca conseguira ler para além do capítulo LXXIX do primeiro volume. Assim que ouviu a porta do elevador fechar-se e os passos de Davis no corredor, saiu. O intervalo para o seu almoço de salsichas já fora roubado em onze minutos. Ao contrário de Davis, ele regressava sempre a horas. Virtudes da idade.

 

 

 

 

 

 

No escritório sereno e imperturbável Arthur Davis sobressaía pela sua excentricidade. Lá vinha ele no outro extremo do longo corredor branco, vestido como se tivesse acabado de chegar de um fim-de-semana equestre no campo, talvez mesmo de uma corrida de cavalos. Usava um colete desportivo de tweed esverdeado e um lenço às pintas escarlates no bolso do peito: podia muito bem ser um corretor de apostas. Mas lembrava um daqueles actores a quem dão sempre o papel errado: quando tentava representar à altura do guarda-roupa, em geral negligenciava a interpretação. Se em Londres parecia acabado de chegar do campo, no campo, quando visitava Castle, era um autêntico turista citadino.

- Pontual, como sempre - comentou Davis com o seu habitual sorriso comprometido.

- O meu relógio adianta-se um bocadinho - replicou Castle, como que pedindo desculpa por uma crítica que não chegara a ser expressa. - Deve ser da ansiedade, penso eu.

- A contrabandear segredos de Estado, como de costume? - perguntou Davis, na brincadeira, fingindo que agarrava a pasta de Castle. O seu hálito tinha um cheiro doce: o seu vício era o vinho do Porto.

- Deixei esses para tu venderes. Vais conseguir um preço muito melhor, com os teus contactos clandestinos.

- Muito amável da tua parte.

- Ainda por cima, és solteiro. Precisas de mais dinheiro do que um homem casado. Eu sempre posso reduzir despesas...

- Sim, mas aqueles restos deprimentes - interrompeu Davis -, a carne assada transformada em empadão, a tão suspeita almôndega! Valerá a pena? Um homem casado nem sequer se pode dar ao luxo de beber um bom porto. - Entrou no gabinete que partilhavam e tocou a campainha para mandar chamar Cynthia. Davis há dois anos que andava a atirar-se a Cynthia, mas à filha de um major só interessa caça mais grossa. Mesmo assim, ainda não perdera a esperança; era sempre mais seguro, dizia, ter uma aventura dentro do departamento, nunca seria considerada uma ameaça à segurança, mas Castle sabia que ele gostava mesmo de Cynthia. Como qualquer homem solitário, ansiava pela monogamia e defendia-se por detrás do humor. Uma vez Castle visitara-o no apartamento que dividia com dois homens do Departamento do Ambiente, por cima duma loja de antiguidades não muito longe do Claridges’s: verdadeiramente central e Wl.

- Devias mudar-te para o centro - aconselhara Davis a Castle na sala atafulhada onde revistas para todos os gostos, a New Statesman, a Penthouse, a Nature, se espalhavam pelo sofá, e onde os copos sujos da festa que um deles dera na véspera tinham sido empurrados para os cantos, à espera que a mulher-a-dias os viesse a encontrar.

- Sabes muito bem quanto é que nos pagam - disse Castle -, e que eu sou casado.

- Um erro grave.

- Não acho - respondeu Castle -, amo a minha mulher.

- E depois, claro, há o bastardozinho - continuou Davis. - Eu não podia ter filhos e vinho do Porto ao mesmo tempo.

- Acontece que também amo o bastardozinho. Castle estava prestes a descer os quatro degraus de pedra

para Picadilly quando o porteiro lhe disse:

- O brigadeiro Tomlinson deseja falar consigo.

- O brigadeiro Tomlinson?

- Sim. Sala A Três.

Castle só se encontrara com o brigadeiro Tomlinson uma vez, muitos anos atrás, já nem sabia dizer quantos, no dia em que fora nomeado - no dia em que inscreveu o seu nome no Official Secrets Act e o brigadeiro era um oficial muito jovem, se é que já era oficial. Só se lembrava de um bigodinho preto planando, como um objecto voador não identificado, sobre uma pista de papel mata-borrão imaculadamente branco, talvez por razões de segurança. O seu nome, após ter assinado o Act, era a única mancha à sua superfície e essa folha fora decerto rasgada e enviada para o incinerador. O caso Dreyfus revelara como um cesto de papéis pode ser perigoso, havia quase um século.

- Ao fundo do corredor à esquerda - recordou-lhe o porteiro quando o viu preparar-se para tomar o rumo errado.

- Entre, entre, Castle - convidou o brigadeiro Tomlinson. O seu bigode estava agora tão branco como o mata-borrão e com os anos crescera-lhe uma barriga por baixo do colete assertoado; só o seu posto duvidoso permanecia o mesmo. Ninguém sabia a que regimento ele havia pertencido antes, nem se esse regimento existia mesmo, pois ali os títulos militares eram todos um pouco suspeitos. Podiam muito bem fazer parte do encobrimento universal.

- Creio que ainda não conhece o coronel Daintry.

- Não, creio que não... Muito prazer.

Daintry, apesar do impecável fato escuro e do rosto fino e comprido, dava muito mais a impressão de ser um homem do ar livre do que Davis. Se à primeira vista Davis podia ser confundido com um corretor de apostas, Daintry estaria indiscutivelmente à vontade numa propriedade abastada ou numa coutada de tetrazes. Castle gostava de fazer o retrato-relâmpago dos seus colegas: havia alturas em que até os punha em papel.

- Creio que conheci um primo seu na Faculdade, na Corpus - disse Daintry. Falava num tom agradável, mas parecia um tanto impaciente; provavelmente tinha de ir apanhar o comboio para o Norte em King’s Cross.

- O coronel Daintry - explicou o brigadeiro Tomlinson - é o nosso caloiro. - Castle reparou que Daintry estremeceu ao ouvir a descrição. - Vem suceder a Meredith na chefia da segurança. Aliás, penso que não chegou a conhecer o Meredith.

- Creio que se refere ao meu primo Roger - disse Castle a Daintry. - Há anos que não o vejo. Formou-se com distinção em Oxford. Julgo que agora está no Ministério das Finanças.

- Estou a fazer as honras da casa aqui ao coronel Daintry. - O brigadeiro Tomlinson continuou a papaguear, sem sair da sua própria onda.

- Pois eu formei-me em Direito. Sem distinção - disse Daintry. - Tirou História, não foi?

- Sim. Sem qualquer distinção.

- Na Christ Church de Oxford, não é assim?

- Sim.

- Já expliquei ao coronel Daintry que só o senhor e o Davis é que tocam nos telegramas ultra-secretos, no que diz respeito à Secção Seis A.

- Partindo do princípio de que há coisas ultra-secretas na nossa secção. Claro que o Watson também os lê.

- Davis... frequentou a Universidade de Reading, não foi? - Daintry fez a pergunta com o que se poderia chamar um toque de desdém.

- Vejo que fez os trabalhos de casa.

- Por acaso tive agora mesmo uma conversa com o Davis.

- Então foi por isso que o almoço dele demorou mais dez minutos.

O sorriso de Daintry pareceu a dolorosa reabertura de umaferida. Tinha uns lábios muito vermelhos, que se abriam aos cantos com dificuldade. Disse:

- Falei com o Davis a seu respeito e agora falo consigo sobre o Davis. Deram-me um cheque em branco. Tem que ter paciência para o caloiro. Preciso de saber com que linhas me vou coser - acrescentou, ficando um pouco baralhado com tanta metáfora. - Queremos ter tudo sob controlo, embora tenhamos plena confiança em vocês, claro. A propósito, ele falou-lhe nalguma coisa?

- Não. Mas não confie em mim. Podemos estar combinados.

A ferida voltou a abrir-se um pouco para logo se fechar com força.

- Pelo que percebi, politicamente ele é todo esquerdista. Estou certo?

- E membro do Partido Trabalhista. Ele próprio deve ter-lho dito.

- O que não faz mal nenhum, claro - disse Daintry.

- E o senhor...?

- Eu não ligo à política. Davis também lho deve ter dito.

- Mas de vez em quando vota, suponho?

- Acho que não votei uma única vez desde a guerra. As questões dos nossos dias parecem-me... bem, um pouco mesquinhas.

- Um ponto de vista interessante - disse Daintry com um ar reprovador. Casde compreendeu que dizer a verdade tinha sido um erro, embora, exceptuando as ocasiões realmente importantes, preferisse sempre a verdade. A verdade pode ser verificada. Daintry olhou para o relógio. - Não lhes vou roubar mais tempo. Tenho que apanhar o comboio em King’s Cross.

- Um fim-de-semana de caça?

- Sim. Como é que adivinhou?

- Intuição - respondeu Castle e mais uma vez se arrependeu do que tinha dito. Era sempre mais seguro não dar nas vistas. Havia alturas, cada vez mais frequentes com o passar dos anos, em que sonhava com a imparcialidade total, como um personagem diferente podia ter sonhado fazer um século dramático no Lord’s.

- Deve ter reparado no meu estojo de espingarda que está à porta?

- Sim - disse Castle que ainda não o tinha visto -, foi esse o indício. - Ficou contente quando viu que Daintry parecia mais tranquilo.

Daintry explicou:

- Não há nada de pessoal nisto. E pura rotina. São tantos os regulamentos que por vezes alguns ficam esquecidos. Como é próprio da natureza humana. Por exemplo, o regulamento que diz que não se pode levar trabalho para casa...

Lançou um olhar eloquente à pasta de Castle. Um oficial e um cavalheiro abri-la-ia nesse mesmo instante, enquanto dizia uma piada qualquer, mas Castle não era oficial nem nunca se intitulara um cavalheiro. Queria ver até onde era capaz de ir o caloiro. Disse:

- Não vou para casa. Vou só almoçar.

- Não se importa...? - Daintry indicou a pasta com a mão. - Pedi o mesmo ao Davis.

- Davis não levava pasta - disse Castle -, quando o encontrei.

Daintry corou com o seu engano. Parecia tão envergonhado como se tivesse caçado um batedor.

- Ah, deve ter sido aquele outro tipo - desculpou-se -, não me lembro do nome dele.

- Watson? - sugeriu o brigadeiro.

- Sim, o Watson.

- Quer dizer que andou a vigiar o nosso chefe?

- Faz tudo parte das minhas funções - respondeu Daintry.

Castle abriu a pasta. Retirou um exemplar da Berkhamstead Gazette.

- Que é isso? - perguntou Daintry.

- O jornal da minha região. Ia lê-lo ao almoço.

- Oh, sim, com certeza. Tinha-me esquecido. Vive bastante longe daqui. Não é um bocado incómodo?

- Não chega a uma hora de comboio. Preciso de uma casa e de um jardim. Tenho um filho, compreende, e um cão. Não se pode ter uma coisa nem outra num andar. Pelo menos com suficiente conforto.

- Reparei que anda a ler o Clarissa Harlowe. Está a gostar?

Sim, por enquanto. Mas ainda faltam quatro volumes.

- Que é isto?

- Uma lista de coisas para eu não esquecer.

- Não esquecer?

- Uma lista de compras - explicou Castle. Escrevera-a em papel timbrado com a sua morada, 129 King’s Road.

- Dois Maltesers. Duzentas e cinquenta de ear I grey. Queijo wensleydale. Ou double gloucester? Loção para a barba Yardley ’s.

- O que são Maltesersl

- Chocolates. Devia provar, são uma delícia. Quanto a mim, muito superiores aos Kit Kats.

- Acha que seria boa ideia oferecer uns à minha anfitriã? Gostava de lhe levar um presente original. - Olhou para o relógio. - Talvez pudesse mandar o porteiro comprar, o tempo aperta. Onde costuma comprá-los?

- Ele pode ir a um ABC no Strand.

- ABC? - perguntou Daintry.

- Aerated Bread Company.

- Aerated Bread... que raio...? Bem não temos tempo para perder com isso. Tem a certeza de que esses... teasers são uma oferta apropriada?

- Claro que os gostos diferem.

- A Fortnum’s fica a poucos passos daqui.

- Lá não os encontra. São demasiado baratos.

- Mas não quero parecer forreta.

- Então aposte na quantidade. Ele que lhe compre quilo e meio.

- Diga lá o nome outra vez! Talvez pudesse pedir por mim ao porteiro, à saída.

- Então já estou despachado? Está tudo bem?

- Claro. Eu disse que se tratava apenas de uma formalidade, Castle.

- Boa caçada.

- Muito obrigado.

Castle deu o recado ao porteiro.

- Quilo e meio, diz o senhor?

- Sim. ,

- Quilo e meio de Maltesers*

- Isso mesmo.

- E melhor levar a camioneta das mudanças!

O porteiro chamou o seu assistente que estava a ler uma revista com mulheres nuas e disse-lhe:

- Quilo e meio de Maltesers para o coronel Daintry.

- Isso deve dar cento e vinte embalagens ou coisa que o valha - disse o homem depois de pensar um pouco.

- Não, não - disse Castle -, não devem ser assim tantas. De qualquer maneira, ele faz questão que seja uma coisa de peso.

Deixou-os entregues aos seus cálculos. Como chegou ao pub do costume quinze minutos mais tarde, o seu canto habitual estava já ocupado. Comeu e bebeu rapidamente e pareceu-lhe que recuperara três minutos. Depois comprou o Yardley’s na farmácia de St. James’s Arcade e o earl grey no Jackson’s, onde também comprou o double gloucester, para poupar tempo, embora costumasse comprar o queijo na queijaria de Jermyn Street, mas os Maltesers, que tencionava comprar no ABC, estavam esgotados quando lá chegou a empregada explicou que tinha havido uma procura inesperada e que não teria outro remédio senão levar Kit Kats. Chegou junto de Davis com apenas três minutos de atraso.

- Não me avisaste que nos iam passar revista.

- Obrigaram-me a jurar sigilo. Apanharam-te com alguma coisa?

- Não propriamente.

- Pois eu fui apanhado. Ele perguntou o que é que eu tinha no bolso da gabardina e estava lá aquele relatório do cinquenta e nove mil e oitocentos. Queria voltar a lê-lo ao almoço.

- Que disse ele?

- Oh, fez-me apenas um aviso. Disse que os regulamentos eram para ser cumpridos. Pensar que aquele tipo, o Blake (de que raio queria ele fugir?) apanhou quarenta anos livres de impostos sobre o rendimento, esgotamento intelectual e responsabilidades a mais, e nós é que temos que pagar as favas.

- O coronel Daintry não me chateou muito - disse Castle. - Conheceu um primo meu na Faculdade. Esse género de coisas faz toda a diferença.

Castle conseguia geralmente apanhar o comboio das seis e trinta e cinco em Euston. Isso permitia-lhe chegar a Berkhamstead pontualmente às sete e doze. A sua bicicleta aguardava-o na estação. Conhecia o homem da bilheteira há muitos anos e deixava-a sempre ao cuidado dele. Depois pedalava até casa, pelo caminho mais comprido para fazer exercício - atravessava a ponte do canal, passava pela escola Tudo r, entrava na High Street, contornava a igreja paroquial de pedra cinzenta onde estava exposto o capacete de um cruzado, depois subia a encosta dos Chilterns até à sua pequena moradia geminada na King’s Road. Chegava sempre, quando não telefonava de Londres a avisar que se atrasara, por volta das sete e meia. Mesmo a tempo de dar as boas noites ao rapaz e tomar um uísque ou dois antes do jantar às oito.

Para quem tem uma profissão bizarra, tudo o que faça parte da rotina quotidiana tem grande valor - foi talvez por isso que, no regresso da África do Sul, optou por ir para a sua terra natal: para o canal sob os chorões, para a escola e as ruínas de um castelo outrora famoso que resistira ao cerco feito pelo príncipe Luís de França, onde, segundo diziam, Chaucer trabalhara como encarregado de obras e quem sabe? - talvez um Gastei ancestral entre os artesãos. Agora consistia apenas nuns tufos de erva e nuns metros de paredes de pedra, frente ao canal e à linha do caminho-de-ferro. Daí uma longa estrada ladeada por sebes de cardos e castanheiros partia da cidade em direcção à liberdade do baldio. Muitos anos atrás, os habitantes da cidade tinham lutado pelo direito de apascentar o seu gado nos prados do baldio, mas no século xx era pouco provável que qualquer animal, excepto um coelho ou uma cabra, encontrasse o seu sustento no meio de fetos, tojo e samambaias.

Quando Castle era pequeno ainda se viam no baldio vestígios de velhas trincheiras escavadas na argila vermelha durante a Primeira Guerra Mundial pelos membros dos Inns of Court OTC, jovens advogados que aí praticavam antes de irem morrer à Bélgica ou à França incorporados em unidades mais ortodoxas. Era perigoso passear por esses lados sem os conhecer bem, visto que as velhas valas tinham vários metros de profundidade e haviam sido cavadas à imagem das trincheiras originais dos Old Contemptibles1 em Ypres, e um forasteiro arriscava-se a cair de repente e partir uma perna. As crianças que tinham ali crescido e conheciam bem a terra que pisavam passeavam livremente, até a memória lhes começar a falhar. Castle, por qualquer razão, nunca a tinha esquecido e por vezes, nos dias em que não ia ao escritório, levava Sam pela mão e apresentava-lhe os esconderijos esquecidos e os diversos perigos do baldio. Quantas campanhas de guerrilha ali empreendera, em criança, contra forças esmagadores. Pois bem, o tempo da guerrilha estava de volta, as suas fantasias infantis haviam-se tornado realidades. Viver assim, num meio que há muito lhe era familiar, fazia-o sentir-se tão seguro como um velho penitenciário que volta à sua bem conhecida prisão.

Castle empurrou a sua bicicleta King’s Road acima. Comprara a sua casa com um empréstimo duma sociedade construtora, depois de regressar a Inglaterra. Podia ter poupado

 

1 Veteranos da Força Expedicionária Britânica enviada para França em 1914, assim chamados por os alemães se lhes terem referido como o «exercitozinho desprezível» que tinham à sua frente. (N. da T.)

 

algum dinheiro pagando a pronto, mas não queria ser diferente dos professores que moravam dum lado e doutro da mesma rua - com o salário que lhes pagavam, era impossível fazerem economias. Pela mesma razão, deixara ficar o horroroso vitral do Cavaleiro Sorridente na porta da rua. Detestava-o: fazia-o pensar em dentistas - tantas vezes, nas cidades provincianas, o vitral esconde dos forasteiros a agonia do professorado -, mas, mais uma vez por causa dos vizinhos, que não se desfaziam dos seus, deixara-o incólume. Os professores que habitavam King’s Road eram fortes defensores dos princípios estéticos de North Oxford, onde muitos deles haviam tomado chá com os tutores e também aí, na Banbury Road, a sua bicicleta teria ficado bem no hall, debaixo das escadas.

Abriu a porta com a sua chave Yale. Tinha pensado comprar uma fechadura de segurança ou qualquer coisa muito especial no Chubb’s de James’s Street, mas reconsiderou a tempo - os seus vizinhos estavam satisfeitos com as Yales e nos últimos três anos os assaltos em volta de Boxmoor tinham sido tão raros que não se justificava. O vestíbulo estava vazio; igual aspecto tinha a sala de estar, que se via através da porta aberta: da cozinha não vinha uni único som. Reparou imediatamente que a garrafa de uísque não se encontrava no seu posto ao lado do sifão, no aparador. O hábito antigo fora desrespeitado e Castle sentiu-se ansioso, como se tivesse sido mordido por um insecto. Chamou Sarah, mas ninguém respondeu. Ficou de pé à porta do vestíbulo, junto ao bengaleiro, registando com olhares rápidos o cenário familiar onde notou a importante falha - a garrafa de uísque - e susteve a respiração. Nunca - desde que tinham chegado - o largara a sensação de que eram perseguidos por uma qualquer desgraça que acabaria por alcançá-los, e sabia que, no dia em que isso acontecesse, não podia deixar que o pânico o traísse: teria de partir depressa, sem pensar em apanhar um caco que fosse da sua vida familiar. «Aqueles que estão na Judeia têm que procurar refúgio nas montanhas...» Sem saber porquê, lembrou-se do primo do Ministério das Finanças, como se ele fosse um amuleto capaz de protegê-lo, uma pata de coelho que desse sorte, e logo voltou a conseguir respirar, aliviado, assim que ouviu vozes no andar de cima e os passos de Sarah descendo as escadas.

- Querido, não te ouvi chegar. Estava a falar com o doutor Barker.

O doutor Barker seguia-a - um homem de meia-idade com um sinal cor de morango na face esquerda, de fato cinzento-escuro com duas canetas de tinta permanente no bolso do peito; uma delas podia ser uma daquelas lanternas para olhar para dentro das gargantas.

- Algum problema?

- O Sam está com sarampo, querido.

- Vai ficar óptimo - disse o doutor Barker. - Vejam se conseguem que ele fique sossegado. Com pouca luz.

- Aceita um uísque, doutor?

- Não, obrigado. Ainda tenho que fazer dois domicílios e já estou atrasado para o jantar.

- Onde o terá apanhado?

- Anda por aí uma epidemia. Mas não se preocupem. Não está muito atacado.

Depois do médico sair, Castle beijou a mulher. Passou a mão pelo seu cabelo preto e forte; acariciou-lhe as maçãs do rosto altas. Sentiu os contornos negros do seu rosto como se estivesse a mexer numa escultura negra de uma série que se aglomerava na escadaria de um hotel para turistas brancos; queria certificar-se de que a coisa mais valiosa na sua vida se encontrava intacta. Ao fim do dia tinha sempre a impressão de que estivera muitos anos fora, deixando-a indefesa. No entanto, naquela terra ninguém se importava com o seu sangue africano. Não havia lei nenhuma que pusesse em perigo a sua vida de casal. Estavam a salvo - ou o mais a salvo que alguma vez estariam.

- Que se passa? - perguntou ela.

- Assustei-me. Pareceu-me que estava tudo de pernas para o ar quando cheguei a casa. Não te vi aqui. Nem sequer o uísque...

- És mesmo uma criatura de hábitos.

Castle começou a despejar a pasta enquanto Sarah servia o uísque.

- Não há realmente problema nenhum? - perguntou Castle. - Não gosto nada da maneira como os médicos falam, em especial quando querem tranquilizar-nos.

- Nenhum.

- Posso ir vê-lo?

- Agora está a dormir. É melhor não o acordares. Dei-lhe uma aspirina.

Voltou a colocar na estante o primeiro volume do Clarissa Harlowe.

- Acabaste?

- Não, nem sei quando o vou conseguir. A vida é muito curta.

- Mas pensava que gostavas de livros compridos.

- Talvez me decida a ler o Guerra e Paz antes que seja tarde de mais.

- Não temos esse livro.

- Vou comprá-lo amanhã.

Sarah serviu meticulosamente um uísque, quádruplo pelos padrões de qualquer pub inglês, e agora acabava de lho entregar, fechando o copo na mão do marido, como se se tratasse de uma mensagem que mais ninguém podia ler. De facto, o quanto ele bebia só eles dois sabiam: em geral, não tomava nada mais forte do que uma cerveja, quando estava com um colega, ou mesmo um estranho, num bar. O mínimo sinal de alcoolismo seria olhado com desconfiança na sua profissão. Apenas Davis era capaz de beber copo atrás de copo com total descontracção, sem se importar que alguém estivesse a observá-lo, mas ele tinha a audácia que costuma acompanhar a inocência. Castle perdera tanto a audácia como a inocência para sempre na África do Sul, enquanto esperava que o golpe se desse.

- Não te importas, pois não, de comer um jantar frio? Estive a tratar do Sam toda a tarde.

- Claro que não.

Pôs um braço em volta dela. A intensidade do seu amor era tão secreta como a dose quádrupla de uísque. Falar do assunto com estranhos podia ser perigoso. O amor era um imenso risco. A literatura sempre o proclamara. Tristão e Isolda, Anna Karenina, mesmo a luxúria de Lovelace passara os olhos pelo último volume de Clarissa. «Amo a minha mulher» era o mais que alguma vez confiara a Davis.

- Não sei que faria sem ti - disse Castle.

- Exactamente o que estás a fazer agora. Dois duplos e jantar às oito.

- Quando cheguei e vi que não estavas cá, nem tu nem o uísque, tive medo.

- Medo de quê?

- De ficar sozinho. Pobre Davis, esse é que não tem nada à espera dele, em casa.

- Se calhar é muito mais feliz.

- É isto que me faz feliz. Uma sensação de segurança.

- A vida lá fora é assim tão perigosa? - Sarah bebeu um gole do copo dele e tocou-lhe a boca com uns lábios molhados em J&B. Castle comprava sempre J&cB por causa da cor - um grande uísque com soda parecia tão fraco como uma dose pequena de outra marca.

O telefone tocou na mesa ao lado do sofá. Castle pegou no auscultador e atendeu:

- Estou? - Mas ninguém respondeu. - Estou? Contou até quatro e ao desligar ouviu a chamada cair.

- Ninguém?

- Devia ser engano.

- Ê o terceiro este mês. E sempre quando ficas a trabalhar até tarde. Achas que pode ser um ladrão a verificar se estamos em casa?

- Não há aqui nada que valha a pena roubar.

- Lêem-se histórias tão horríveis, querido. Homens com meias de vidro na cara. Detesto quando o Sol se põe e tu ainda não estás cá.

Por isso é que te comprei o Buller. Onde é que ele estar

- No jardim, a comer ervas. Alguma coisa o perturbou. Seja como for, sabes como ele é com estranhos. Adora-os.

Mesmo assim, se vir um rosto mascarado com uma meia é capaz de se atirar a ele.

- Havia de pensar logo que era uma brincadeira. Lembras-te como foi no Natal... com os chapéus de papel...

- Estava convencido, antes de o comprar, que os boxers eram cães ferozes.

- E são... para os gatos.

A porta rangeu e Castle voltou-se de repente: o focinho negro e quadrado de Buller empurrou a porta e depois o cão atirou-se, como uma saca de batatas, à sua cintura. Castle afastou-o:

- Para baixo, Buller, para baixo. - Um longo fio de baba escorreu pela perna de Castle. - Se isso é adoração, vou ali e já venho. - Buller começou a ladrar espasmodicamente e a agitar-se, como se tivesse lombrigas, aproximando-se às arrecuas da porta.

- Quieto, Buller.

- Só quer ir à rua.

- A esta hora? Pensava que tinhas dito que ele estava doente.

- Fartou-se de comer ervas.

- Quieto, Buller, meu chato. Hoje não há passeio. Buller deixou-se cair pesadamente e rastejou pelo soalho, para se consolar.

- O homem que veio contar o gás esta manhã teve mede dele, mas o Buller só queria brincar.

- Mas o homem do gás conhece-o.

- Este era novo.

- Novo? Porquê?

- O que costuma vir estava com gripe.

- Pediste-lhe que se identificasse?

- Claro, querido, agora andas com medo de ladrões? Quieto, Buller, quieto. - Buller lambia as suas partes pudicas com o entusiasmo de um vereador a beber sopa.

Castle passou por cima dele e foi até ao vestíbulo. Examinou cuidadosamente o contador e, não notando nada de especial, regressou.

- Estás mesmo preocupado com alguma coisa?

- Não é nada. Aconteceu uma coisa no escritório. Um novo homem da segurança que andou por lá a passear a sua arrogância. Irritou-me; há mais de trinta anos que estou na organização e por esta altura já deviam confiar em mim. Qualquer dia revistam-nos os bolsos quando sairmos para almoçar. Ele chegou a pedir para ver a minha pasta.

- Não sejas injusto, querido. Eles não têm culpa. Estão a fazer o trabalho deles.

- Já é tarde para mudar as coisas.

- Nunca é tarde - disse Sarah e Castle desejou poder acreditar nela. Beijou-o quando passou por ele a caminho da cozinha, onde foi buscar as carnes frias.

Quando se sentaram e Castle se serviu de outro uísque, Sarah disse:

- Agora a sério, estás mesmo a beber de mais.

- Apenas em casa. Só à tua frente.

- Não é de mais para o trabalho. É de mais para a tua saúde. Estou-me nas tintas para o trabalho.

- Estás?

- Um departamento do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Toda a gente sabe o que isso é, mas tens que andar de bico calado, como um criminoso. Se me contasses, a mim, que sou tua mulher, o que fizeste hoje, eras despedido. Tomara eu que te despedissem. Mas afinal o que fizeste hoje?

- Estive à conversa com o Davis, escrevi apontamentos em meia dúzia de fichas, enviei uns telegramas, e fui entrevistado pelo tal novo agente de segurança. Andou com o meu primo na Faculdade.

- Qual primo?

- O Roger.

- Aquele presunçoso do Ministério das Finanças?

- Sim.

Antes de ir para a cama, Castle perguntou:

- Posso ir espreitar o Sam?

- Claro. Mas a estas horas deve estar a dormir profundamente.

Buller seguiu-o e deixou uma esfera de baba sobre os lençóis, como um bombom.

- Oh, Buller!

Abanou o que lhe restava da cauda como se tivesse acabado de receber um elogio. Para um boxer, não era nada inteligente. Custara muito dinheiro e talvez o seu pedigree fosse demasiado perfeito.

O rapaz dormia na diagonal, na sua cama de teca, com a cabeça em cima de uma caixa de soldadinhos de chumbo, a fazer de travesseiro. Um pé negro saía dos lençóis, com um oficial da artilharia pesada entre os dedos. Castle observou Sarah enquanto ela o ajeitava, retirava o oficial e descobria um pára-quedista debaixo de uma coxa. Manuseava o corpo do filho com a habilidade de uma especialista e a criança não chegou a acordar.

- Parece muito quente e seco - disse Castle.

- Tal como tu, se estivesses com quarenta graus de febre.

Tinha um ar mais africano do que a mãe e a memória de uma imagem famélica surgiu no espírito de Castle um pequeno cadáver espalmado na areia do deserto, vigiado por um abutre.

- Isso é muita febre.

- Numa criança, é normal.

A segurança dela não deixava de o surpreender: era capaz de confeccionar um prato novo sem precisar de nenhum livro de receitas e nunca nada se partia nas suas mãos. Agora colocava o rapaz de lado e entalava firmemente os cobertores, sem pestanejar.

- Ele dorme bem.

- Excepto quando tem pesadelos.

- Teve outro?

- E sempre o mesmo. Nós partimos ambos de comboio e ele fica sozinho. Na plataforma, uma pessoa, não sabe quem, agarra-lhe num braço. Está na idade dos pesadelos. Li algures que os pesadelos surgem quando a escola começa a ser uma ameaça. Quem me dera que ele não tivesse que ir para a primária. Pode ter problemas. Por vezes, quase que tenho pena que não haja apartheid aqui.

- Ele corre muito. Em Inglaterra não há problema se fores bom num desporto qualquer.

Nessa noite, na cama, Sarah acordou do seu primeiro sono e disse, como se a ideia lhe tivesse ocorrido a meio de um sonho:

- E curioso, realmente, que gostes assim tanto do Sam.

- Claro que gosto. Porque não? Pensei que estavas a dormir.

- «Claro», não. Ele é um bastardozinho.

- E o que o Davis está sempre a chamar-lhe.

- Davis? Não me digas que ele sabe? - perguntou Sarah, com medo. - Tens a certeza de que ele não sabe?

- Não, não te preocupes. Isso é o que ele chama a qualquer miúdo.

- Fico contente por o pai dele estar debaixo da terra.

- Também eu, pobre diabo. Podia ter acabado por casar contigo.

- Não. Eu já estava apaixonada por ti. Mesmo quando engravidei do Sam era por ti que eu estava apaixonada. É mais teu filho do que dele. Pensava em ti quando ele fazia amor comigo. Era um peixe de águas mornas. Na Universidade chamavam-lhe um Uncle Tom1. Sam não vai ser assim, pois não? Quente ou frio, mas não morno.

Porque é que estamos para aqui a falar dessa história tão antiga?

Porque Sam está doente. E tu estás preocupado.

Quando estou insegura lembro-me do que senti quando tive que te falar nele. Aquela primeira noite além-fronteiras, em Lourenço Marques, no Hotel Polana. Pensei: «Ele vai vestir-se e partir para sempre.» Mas não. Ficaste. E fizemos amor apesar de eu ter Sam dentro de mim.

Ficaram deitados lado a lado muito quietos, depois de tantos anos, só os ombros se tocavam. Castle pensou se seria assim a felicidade da velhice, que tantas vezes vira estampada em rostos desconhecidos, só que quando Sarah chegasse a velha já ele teria morrido há muito tempo. A velhice era algo que não iam poder partilhar.

- Nunca lamentas - perguntou Sarah - não termos tido um filho?

- O Sam já é uma grande responsabilidade.

- Não estou a brincar. Não gostavas de ter um filho nosso?

Desta vez, viu que não podia dar à pergunta uma resposta evasiva.

- Não.

- Porque não?

- Estás sempre a querer remexer nas coisas, Sarah. Amo Sam porque é teu filho. Porque não é meu filho. Porque não sou obrigado a ver nada da minha pessoa quando olho para ele. Só vejo coisas tuas. Eu não quero viver para sempre. Não quero passar o testemunho a ninguém.

 

1 Designação dada ao negro servil, que bajula o branco, e que tem origem no nome do herói de A Cabana do Pai Tomás, obra de H. B. Stowe de 1852. (N. da T.)

 

- Um bom desporto matinal - comentou o coronel Daintry sem grande entusiasmo, enquanto batia com os pés no chão para sacudir a lama das botas antes de entrar em casa. - Os pássaros deram luta.

Os seus convidados esvaziavam os carros atrás dele com a jovialidade forçada de uma equipa de futebol que tenta mostrar-se feliz por ter estado a praticar desporto, em vez de farta de apanhar frio e lama.

- As bebidas estão à espera - disse Lady Hargreaves.

- Sirvam-se. O almoço vai para a mesa daqui a dez minutos.

Um carro subia a colina serpenteando através do parque, ao longe. Alguém libertou uma gargalhada para o ar húmido e gelado e outra pessoa exclamou:

- Lá vem o Buffy, finalmente. A horas de almoçar, evidentemente.

- E o seu famoso empadão de rim? - perguntou Daintry. - Ouvi falar tanto nele.

- A minha empada, quer dizer. Passou mesmo uma manhã agradável, coronel? - A voz dela tinha um leve sotaque americano, e essa leveza tornava-a agradável, como a nota de um perfume caro.

- Não havia muitos faisões - respondeu Daintry -, mas de resto foi muito agradável.

- Harry - chamou Lady Hargreaves, olhando para trás dele -, Dicky. - E depois: - Onde está o Dodo? Perdeu-se? - A Daintry ninguém tratava pelo seu primeiro nome pela simples razão de que ninguém sabia qual era. Com um sentimento de solidão, ele observava a silhueta graciosa e esguia da sua anfitriã enquanto ela descia os degraus de pedra para cumprimentar Harry com um beijo em cada face. Daintry seguiu sozinho para a sala de jantar onde as bebidas aguardavam sobre o aparador.

Um homem baixo, forte e corado, com um casaco de tweed, que ele teve a impressão de que conhecia de qualquer lado, preparava um martini seco. Usava óculos de aros prateados que cintilavam ao sol.

- Prepare mais um - disse Daintry -, se for mesmo seco.

- Dez para um - respondeu o homenzinho. - Um cheirinho, hem? Eu uso sempre apenas um cheirinho. E o Daintry, não é? Já não se lembra de mim. Sou o Percival. Medi-lhe a tensão um dia.

- Oh, claro, o doutor Percival. Pode dizer-se que trabalhamos na mesma firma, não é assim?

- Exacto - respondeu Percival. - O C queria que nos encontrássemos discretamente, mas aqui não é preciso usarmos «empasteladores»1. Nunca consigo pôr o meu a trabalhar como deve ser. Bem, mas o problema é que a caça não me diz nada. Sou um pescador. É a primeira vez que aqui vem?

- Sim. Quando chegou?

- Cedo. Por volta do meio-dia. Sou um fanático do Jaguar. Não consigo andar a menos de cem à hora.

Daintry olhou para a mesa. Uma garrafa de cerveja estava colocada junto a cada prato. Não gostava de cerveja, mas por alguma razão ela era considerada própria para uma caçada. Talvez ligasse bem com o tom juvenil da ocasião, como

 

Aparelho utilizado para prejudicar a utilização de equipamentos e tornar uma emissão de rádio ou um telefonema ininteligíveis. (N. da T.)

 

o ginger beer no Lord’s. Daintry não era juvenil. Para ele um tiro era estritamente um exercício competitivo - já ficara em segundo lugar na Taça do Rei. Em volta do centro de mesa havia pequenas taças de prata com os seus Maltesers. Ficara um pouco embaraçado na noite anterior ao oferecer quase um caixote deles a Lady Hargreaves. Pela expressão dela, era óbvio que não fazia a mínima ideia do que eram nem do que fazer com eles. Sentiu que fora deliberadamente enganado por aquele tal Castle. Ficou satisfeito ao ver que nas tigelas de prata sempre tinham um ar mais sofisticado do que dentro dos sacos de plástico.

- Gosta de cerveja? - perguntou a Percival.

- Gosto de tudo o que seja alcoólico, excepto Fernet-Branca. - E em seguida a rapaziada entrou ruidosamente: Buffy e Dodo, Harry, Dicky, todos. Daintry ficou contente por Percival se encontrar ali, pois parecia que também ninguém sabia qual era o seu primeiro nome.

Infelizmente, ficou longe dele à mesa. Percival esvaziou num instante a sua primeira garrafa de cerveja e encetou uma segunda. Daintry sentiu-se traído ao ver Percival tão à vontade com os seus vizinhos, como se eles também tivessem pertencido à velha firma. Tinha começado a contar uma cena de pesca que fizera rir o homem chamado Dicky. Daintry estava sentado entre o tipo que lhe pareceu ser Buffy e um senhor de idade, magro, com cara de advogado. Apresentara-se e o apelido não lhe era estranho. Devia ser o procurador-geral ou o assistente do procurador-geral, Daintry não se lembrava bem, e a sua incerteza inibiu a conversa.

Até que Buffy exclamou, de repente:

- Meu Deus! Não me digam que aquilo são Maltesers.

- Gosta de Maltesers? - perguntou Daintry.

- Não como um já nem sei há quanto tempo. Comprava-os sempre quando ia ao cinema, em miúdo. São uma delícia. Não me digam que também há um cinema nas redondezas?

Por acaso trouxe-os de Londres.

Então vai muito ao cinema? Há uns dez anos que não ponho os pés num. Quer dizer que ainda se vendem Maltesers nos cinemas?

Também se vendem em lojas.

Não fazia ideia. Onde os comprou?

- Num ABC.

- ABC?

Daintry repetiu, desconfiado, o que Castle lhe dissera:

- Aerated Bread Company1.

- Espantoso! O que é «pão arejado?

- Não sei - respondeu Daintry.

- As coisas que eles inventam! Não me admirava que o pão deles fosse feito por computadores. - Inclinou-se para a frente, pegou num Maltesers e fê-lo estalar junto ao ouvido dele, como se fosse um charuto.

- Buffy! - repreendeu Lady Hargreaves da outra ponta da mesa. - Antes da empada de rim, não!

- Desculpa, querida. Não resisti. Não comia um desde a minha infância. - E, virando-se para Daintry: - Uma coisa extraordinária, os computadores. Uma vez dei a um cinco libras para que me arranjasse uma esposa.

- Não é casado? - perguntou Daintry, olhando para a aliança de ouro no dedo de Buffy.

- Não. Uso isto para disfarçar. Foi a brincar, sabe. E que gosto de experimentar todas as engenhocas novas que aparecem. Bem, mas tive de preencher um impresso que nunca mais acabava. Habilitações, interesses pessoais, profissão, eu sei lá. - Tirou outro Maltesers. - Sou guloso. Sempre fui.

- E teve muitas candidatas?

- Mandaram-me uma rapariga. Rapariga! Trinta e cinco anos, com boa vontade. Tive de ir tomar chá com ela. Eu, que não tomo chá desde que a minha mãe morreu!

 

Traduzido à letra, seria Companhia de Pão Arejado. (N. da T.)

 

Disse-lhe logo: «Minha querida, e se em vez de chá fosse uísque? Conheço o criado. Ele traz-nos um sem ninguém dar por isso!» Mas ela respondeu que não bebia. Não bebia, imagine-se!

- O computador enganou-se?

- Era formada em Economia pela Universidade de Londres. Uns grandes óculos. Lisa de peito. Contou-me que era uma excelente cozinheira. Respondi que comia sempre no White’s.

- Não voltou a vê-la?

- Nunca mais saímos juntos, mas uma vez ela acenou-me de um autocarro quando eu ia a sair do clube. Uma vergonha! Porque eu ia com o Dicky. Era um problema, quando deixavam os autocarros passar pela Saint James’s Street. Ninguém estava seguro.

Depois da empada de rim veio um bolo de mel, um grande queijo stilton e Sir John Hargreaves fez circular o porto. Pairava uma atmosfera de agitação à mesa, como quando as férias se alongam demasiado. As pessoas começaram a olhar pelas janelas para o céu cinzento: daí a poucas horas a luz desapareceria. Beberam rapidamente o porto, sentindo-se culpados - a verdade é que não se encontravam ali para gozar os prazeres do ócio - excepto Percival, que não se preocupava com essas coisas. Estava a contar outra história de pesca e tinha quatro garrafas de cerveja vazias junto ao prato.

O procurador-geral - ou seria o assistente do procurador-geral? - disse, num tom austero:

- E melhor irmos andando. O Sol está quase a pôr-se.

- Ele é que de certeza não estava ali pelos prazeres do ócio, mas sim para cumprir um dever, e Daintry solidarizou-se com a sua ansiedade. Hargreaves devia ter tomado a iniciativa, mas Hargreaves estava quase a dormir. Ao fim de muitos anos no Serviço Colonial (em tempos fora um jovem chefe de distrito na então Costa do Ouro), adquirira a capacidade de dormir a sesta em quaisquer circunstâncias,

por mais desfavoráveis que fossem, mesmo enquanto os chefes discutiam calorosamente, o que costumava fazer mais barulho do que Buffy.

- John - chamou Lady Hargreaves da outra ponta da mesa -, acorda!

Abriu uns olhos azuis serenos e imperturbáveis e disse:

- Estava a passar pelas brasas.

Dizia-se que, na sua juventude, comera inadvertidamente carne humana, algures na India, mas a sua digestão decorrera sem qualquer problema. Segundo rezava a história, explicara ao governador: «Não pude fazer nada. Foi uma grande honra para mim terem-me convidado para comer do rancho deles.»

- Bem, Daintry - disse -, creio que está na hora de continuarmos o massacre. - Levantou-se da cadeira e bocejou: - A tua empada de rim, querida, é demasiado boa.

Daintry observou-o com inveja. Em primeiro lugar, invejava-lhe a sua posição. Era um dos raros que tinham sido nomeados C sem terem alguma vez pertencido aos serviços. Ninguém na organização sabia por que razão fora escolhido (as mais suspeitas influências tinham sido alvitradas), já que a sua experiência em serviços secretos fora adquirida em África durante a guerra. Daintry também lhe invejava a mulher; era tão rica, tão decorativa, tão impecavelmente americana. Um casamento americano, ao que parecia, não podia ser classificado como um casamento estrangeiro: para casar com uma estrangeira era preciso obter uma autorização especial, que era muitas vezes recusada, mas um casamento com uma americana talvez fosse considerado a confirmação de uma relação especial. Mesmo assim, não compreendia por que motivo Lady Hargreaves tinha sido rigorosamente investigada pelo MI5 e aprovada pelo FBI.

- Esta noite - disse Hargreaves a Daintry - vamos conversar um bocado, está bem? Nós dois e o Percival. Depois de esta malta toda se ir embora.

Sir John Hargreaves coxeava de um lado para o outro, a oferecer charutos, a servir uísques, a atiçar o fogo da lareira.

- Cá por mim não gosto muito de caçar - disse. Em África nunca disparava, a não ser a máquina fotográfica, mas a minha mulher aprecia os velhos hábitos ingleses. Quando uma pessoa tem terras, diz ela, tem que ter pássaros. Lamento que não tenham aparecido muitos faisões.

- Passei um dia esplêndido - respondeu Daintry -, em todos os aspectos.

- Foi pena não termos passado por um ribeiro com trutas - disse o doutor Percival.

- Ah, sim, o seu desporto é a pesca, não é? Bem, pode-se dizer que estamos a tentar pescar alguma coisa agora.

- Partiu um tronco ao meio com o atiçador. - Isto não serve para nada, mas adoro ver as faúlhas voar. Parece que há alguém a passar informações na Secção Seis.

- Em casa ou no terreno? - perguntou Percival.

- Não tenho a certeza, mas temo que seja em casa. Numa das secções africanas, a Seis A.

- Acabei de revistar a Secção Seis - disse Daintry. Só uma revista de rotina. Para conhecer as pessoas.

- Sim, foi o que me disseram. Por isso é que lhe pedi que viesse até cá. Também tive muito gosto em que participasse na caçada, claro. Não notou nada?

- A segurança é um pouco frouxa. Mas isso também acontece nas outras secções. Fiz uma busca grosseira ao que as pessoas levam nas pastas, à hora do almoço. Nada de especial, só fiquei surpreendido com a quantidade de pastas... Foi um simples aviso, claro. Mas um aviso pode ser o bastante para assustar um homem nervoso. Não podemos propriamente pedir-lhes que se dispam.

- É o que se faz nas minas de diamantes, mas concordo que em Londres pareceria estranho.

- Alguma irregularidade? - perguntou Percival.

Nada de grave. O Davis da Seis A levava um relatório, disse que queria lê-lo durante o almoço. Avisei-o, claro, e obriguei-o a deixá-lo com o brigadeiro Tomlinson. Também investiguei os passados. As investigações têm sido muito minuciosas desde o caso Blake, mas ainda temos connosco homens dessa época. Alguns são mesmo do tempo do Burgess e do Maclean. Podíamos voltar a verificar os passados deles, mas é difícil dar com a pista certa.

- É possível - disse C -, mas apenas possível, que a fuga tenha sido no estrangeiro e as suspeitas desviadas cá para dentro. Seria uma maneira de nos trocarem as voltas, de nos arrasarem o moral e deixarem ficar mal perante os americanos. Saber que havia uma fuga, se o caso viesse a público, seria muito pior do que a fuga em si.

- Estava a pensar nisso mesmo - disse Percival. Perguntas no Parlamento. Todos os nomes antigos viriam à baila: Vassall, o caso Portland, Philby. Mas se o que eles querem é publicidade, pouco podemos fazer.

- E depois nomeavam uma Comissão Real para pôr trancas na porta depois da casa roubada - disse Hargreaves. - Mas vamos partir do princípio de que estão mesmo à procura de informações e não de escândalos. A Secção Seis não parece o departamento mais adequado para isso. Não há segredos atómicos em África: guerrilhas, lutas tribais, mercenários, ditadorzecos, más colheitas, corrupção na construção civil, minas de oiro, nada de muito secreto. Por isso é que eu me pergunto se o motivo não será simplesmente o escândalo, para provarem que se infiltraram mais uma vez nos serviços secretos britânicos.

- Trata-se de uma fuga importante, C? - perguntou Percival.

- Chamemos-lhe uma brecha minúscula, de carácter maioritariamente económico, mas o interessante é que se relaciona não só com a política económica, mas também com os chineses. Será que (os russos são tão incipientes no que diz respeito à África) eles querem utilizar o nosso serviço para obter informações sobre os chineses?

- Não têm praticamente nada a aprender connosco nesse campo - comentou Percival.

- Mas sabe como as coisas acontecem sempre nos centros. Ninguém suporta um cartão branco... em branco.

- E se lhes enviássemos cópias, com os melhores cumprimentos, de tudo o que enviamos aos americanos? Não é suposto vivermos um período de detente1 ? Poupava uma data de chatices a muita gente. - Percival retirou um pequeno tubo da algibeira e borrifou com ele os óculos, limpando-os em seguida com um lenço branco e lavado.

- Sirvam-se de mais uísque - disse C. - Custa-me andar dum lado para o outro. Que nos diz, Daintry?

- A maioria das pessoas da Secção Seis é pós-Blake. Se não podemos confiar neles, então ninguém é insuspeito.

- Seja como for a fonte parece ser a Secção Seis e provavelmente a Seis A. Quer cá dentro, quer lá fora.

- O chefe da Secção Seis, o Watson, é uma aquisição relativamente recente - disse Daintry. - Foi rigorosamente investigado. Depois há o Castle, está connosco há muito tempo, trouxemo-lo de Pretória há sete anos porque precisavam dele na Seis A, mas também por razões pessoais: problemas com a rapariga com quem ele queria casar. Bem, ele é do tempo em que as investigações não eram lá muito rigorosas, mas eu diria que o tipo está limpo. Um homem pacato, muito competente, claro, e, em geral, os brilhantes e ousados é que são perigosos. O Castle tem um casamento seguro, o segundo, porque a primeira mulher morreu. Uma criança, uma casa comprada com um empréstimo da Metroland. Seguro de vida, pagamentos em dia. Uma vida modesta. Nem sequer tem carro. Acho que vai todos os dias para a estação de bicicleta. Foi o terceiro num curso de História. Muito cuidadoso, escrupuloso. É primo do Roger Castle das Finanças.

- Acha então que ele é insuspeito?

1 Em francês ho original: diminuição da tensão no circo de um conflito. (N.da T.)

Tem as suas excentricidades, mas nada de perigoso.

Por exemplo, sugeriu que eu oferecesse Maltesers a Lady Hargreaves.

Maltesersí

É uma longa história. Não vou maçá-lo com isso

agora. Depois há o Davis. Não sei se estou muito contente com o Davis, apesar do resultado positivo das investigações.

Sirva-me outro uísque, Percival, faça-me esse favor.

Todos os anos digo que é a minha última caçada.

- Mas as empadas de carne e rim da sua mulher são uma especialidade. Não as perderia por nada deste mundo

- disse Percival.

Daintry sentiu de novo uma pontinha de inveja; mais uma vez posto de lado. Não tinha nada em comum com os seus companheiros, para lá das fronteiras da segurança. Com a espingarda, só tinha uma relação profissional. Dizia-se que Percival coleccionava quadros, e C? Uma intensa vida social abrira-lhe as portas depois de casar com uma americana rica. A empada de carne e rim era tudo o que Daintry podia partilhar com eles fora do horário de trabalho - pela primeira, e talvez última, vez.

- Fale-me mais do Davis - pediu C.

- Universidade de Reading. Matemática e Física. Esteve em Aldermaston. Nunca apoiou, pelo menos às claras, os manifestantes. Partido Trabalhista, claro.

- Tal como quarenta e cinco por cento da população

- comentou C.

- Sim, sim, claro, mas mesmo assim... E solteiro. Vive sozinho. Bastante gastador. Gosta de bom porto. Aposta nas corridas. A explicação clássica para se ter dinheiro...

- E onde é que ele o gasta? Fora o porto?

- Bem, tem um Jaguar.

- Isso também eu - replicou Percival. - Suponho que não pode dizer-nos como se detectou a fuga?

- Não vos traria aqui se não pudesse. O Watson sabe, mas mais ninguém da Secção Seis. A fonte é invulgar: um dissidente soviético que continua fiel.

- Não poderá a fuga vir de uma delegação estrangeira da Secção Seis?

- Poder, pode, mas não acredito. É verdade que um dos relatórios que eles tinham parecia vir directo de Lourenço Marques. Tal e qual, como escreveu o sessenta e nove mil e trezentos. Parecia uma cópia a papel químico do relatório verdadeiro, o que levaria a pensar que a fuga ocorrera lá, não fossem algumas emendas e omissões. Inexactidões que só podiam ser detectadas aqui, comparando o relatório com as fichas.

- Um secretário? - sugeriu Percival.

- Daintry começou por aí, não foi? São investigados mais minuciosamente do que os outros. De fora só ficam Watson, Castle e Davis.

- Uma coisa que me preocupa - disse Daintry - é que foi precisamente Davis que levou um relatório para fora do gabinete. Um de Pretória. Aparentemente sem importância, mas continha a exposição sobre a China. Disse que queria lê-lo ao almoço. Ele e o Castle iam discuti-lo à tarde com o Watson. Confirmei o caso com Watson.

- Que acha que devemos fazer? - perguntou C.

- Podíamos fazer uma operação segurança máxima com a ajuda da Cinco e da Segurança Interna. A toda a gente da Secção Seis. Cartas, telefonemas, púnhamos-lhes escutas em casa, alguém a segui-los.

- Se as coisas fossem assim tão simples, Daintry, não o obrigaria a vir até aqui. Foi apenas uma caçada de segunda e eu sabia que os faisões o decepcionariam.

Hargreaves levantou a perna doente com as duas mãos e aproximou-a da lareira.

- Suponhamos que provávamos que o culpado era Davis, ou Castle, ou Watson. Que faríamos depois?

- Depois era com os tribunais - respondeu Daintry.

- Títulos nos jornais. Outro julgamento à porta fechada. Ninguém de fora ficaria a conhecer a pequena dimensão e importância das fugas. Quem quer que ele seja, não levaria quarenta anos, como o Blake. Aí uns dez, se a prisão for segura.

Isso já não é connosco.

Pois não, Daintry, mas não gosto de pensar nesse julgamento nem um bocadinho. Que cooperação poderíamos esperar dos americanos depois de uma coisa dessas? E há o problema da nossa fonte. Como disse, continua fiel. Não queremos estragar isso, enquanto ele for sendo útil.

- De certo modo - disse Percival -, o melhor era fecharmos os olhos, como um marido complacente. Transferir o tipo para um departamento inócuo. Esquecer.

- E sermos cúmplices de um crime? - protestou Daintry.

- Oh, o crime... - disse Percival, sorrindo a C como a um colega de conspiração. - De uma maneira ou outra, passamos a vida a praticar crimes, ou não? E a nossa profissão.

- O problema - disse C - é que a situação é de facto muito semelhante a um casamento infiel. Num casamento, quando o amante se chateia com o marido complacente, pode sempre provocar um escândalo. Tem o trunfo na mão. Pode escolher a altura que lhe é mais conveniente. Eu não quero provocar qualquer escândalo.

Daintry odiava a leviandade. Era como se a leviandade fosse um código secreto de que ele não conhecia a chave. Tinha o direito de ler telegramas e relatórios marcados «Ultra Secreto», mas aquele tipo de leviandade era tão secreta que ele não possuía a chave para entendê-la.

- Pessoalmente, preferiria demitir-me a encobrir disse. Pousou o copo de uísque com tanta força que rachou o cristal. Outra coisa da Lady Hargreaves, pensou. Deve ter insistido em usar os copos de cristal. - Peço desculpa acrescentou.

- Claro que tem razão, Daintry - disse Hargreaves.

- Não se preocupe com o copo. Peço-lhe que não pense que os obriguei a vir até aqui para vos convencer a esquecer o caso, quando temos provas suficientes... Mas a resposta certa não tem que ser um julgamento. Os russos não costumam levar os deles a tribunal. O julgamento de Penkovsky foi muito bom para o nosso moral, eles até exageraram a sua importância, tal como a CIA. Ainda estou para perceber porque o fizeram. Quem me dera saber jogar xadrez. Joga xadrez, Daintry?

- Não, só brídege.

- Os russos não jogam brídege, que eu saiba.

- Isso é importante?

- Passamos a vida a jogar, Daintry, todos nós. Não se deve levar um jogo muito a peito, ou arriscamo-nos a perdê-lo. Temos de manter a flexibilidade, mas claro que é importante jogar o jogo como deve ser.

- Desculpe - interrompeu Daintry -, mas não percebo o que está a dizer.

Sabia que tinha bebido de mais e reparara que C e Percival evitavam olhar um para o outro - não queriam humilhá-lo. Tinham cabeças de pedra, pensou, pedra.

- Bebemos um último uísque - perguntou C -, ou será melhor não? Foi um dia muito molhado. Percival...?

- Eu aceito outro - disse Daintry. Percival serviu as bebidas.

- Desculpem se estou a ser difícil, mas gostaria de perceber melhor as coisas antes de me ir deitar, ou não vou conseguir dormir.

- Na verdade, é muito simples - respondeu C. Trate lá da sua operação segurança máxima, se quiser. Talvez o pássaro levante voo, sem mais problemas. Ele há-de perceber o que se está a passar, se for culpado, claro. Pode inventar uma espécie de teste, a velha técnica da rasteira nunca falha. Quando tivermos a certeza de que ele é o nosso homem, parece-me que pouco mais nos resta senão eliminá-lo. Sem julgamento, sem publicidade. Se conseguirmos informações sobre os seus contactos primeiro, tanto melhor, mas não podemos arriscar uma fuga pública e depois uma conferência de imprensa em Moscovo. Prendê-lo também está fora de questão. Visto ele pertencer à Secção Seis, pouca informação poderá dar que seja tão escandalosa como um caso em tribunal.

- Eliminar? Quer dizer...?

- Bem sei que a eliminação é uma novidade para nós. É mais do género KGB ou CIA. Por isso quis que conhecesse o Percival. Pode precisar da ajuda dos cientistas dele. Nada de espectacular. Certidão de óbito. Sem interrogatório, de preferência. Um suicídio parece demasiado fácil, além de que um suicídio implica sempre um inquérito, o que pode levar a perguntas na Câmara. Hoje em dia toda a gente sabe o que é um «departamento do Ministério dos Negócios Estrangeiros». «Teve a ver com a segurança?» Está-se mesmo a ver que um deputado qualquer da última bancada vai fazer esse tipo de perguntas. E nunca ninguém acredita na resposta oficial. Muito menos os americanos.

- Sim - disse Percival -, percebo perfeitamente. Ele tem que morrer sem alarido, em paz, e sem sofrer, coitado. O sofrimento às vezes vê-se e pode haver familiares a ter em conta. Uma morte natural...

- É um pouco difícil, na verdade, com tantos antibióticos que há agora - disse C. - Partindo do princípio, por instantes, de que é mesmo o Davis, ele pouco mais de quarenta anos tem. Ainda é uma criança.

- Concordo. Mas talvez se pudesse arranjar um enfarte. A não ser... Alguém sabe se ele se mete nos copos?

- Não falou em vinho do Porto, Daintry?

- Mas não disse que o culpado era ele - retorquiu Daintry.

- Nenhum de nós disse - disse C. - Estamos só no campo das hipóteses... para ser mais fácil examinar o problema.

- Gostaria de ver a história médica dele - disse Percival -, e de conhecê-lo, com um pretexto qualquer. De certo modo ele seria meu doente, não é verdade? Quero dizer, se...

- Trate disso com o Daintry. Não há pressa. Temos de ter a certeza de que ele é o nosso homem. E agora (foi um dia cansativo, muitas lebres e poucos faisões) durmam bem. O pequeno-almoço será servido no quarto. Ovos com presunto? Salsichas? Chá ou café?

Percival respondeu:

- De tudo. Café, presunto, ovos e salsichas, se for possível.

- Às nove? :

- Às nove.

- E para si, Daintry?

- Só café e torradas. E às oito, se não se importa. Não estou habituado a dormir até tarde e tenho muito trabalho à minha espera.

- Não devia levar as coisas tão a peito - disse C.

O coronel Daintry tinha o vício de fazer a barba. Já se tinha barbeado antes do jantar, mas voltou a rapar o queixo com a sua Remington. Em seguida, sacudiu um pouco de pó para o lavatório e ao senti-lo com os dedos considerou-se justificado. Depois ligou a escova de dentes eléctrica. O zumbido surdo foi o suficiente para não ouvir que lhe estavam a bater à porta, de maneira que foi com surpresa que viu, no espelho, a porta abrir-se e o doutor Percival entrar, hesitante.

- Desculpe interromper, Daintry.

- Entre, por favor. Esqueceu-se de alguma coisa? Quer que eu lha empreste?

- Não, não. Queria só dar-lhe uma palavrinha, antes de me deitar. É engraçado essa sua engenhoca. E moderna, também. Deve ser bem melhor do que uma escova de dentes vulgar.

- O jacto de água passa no meio dos dentes - explicou Daintry. - Foi recomendação do meu dentista.

- Por essas e por outras trago sempre um palito comigo - disse Percival. Tirou da algibeira um pequeno estojo Carrier vermelho. - Bonito, não é? Dezoito quilates. Era do meu pai.

- Creio que isto é mais higiénico - disse Daintry.

- Olhe que não sei. Este é fácil de lavar. Fiz clínica geral, sabe, Harley Street e essa treta toda, antes de me meter nisto. Não sei porque é que me quiseram, talvez para assinar certidões de óbito. - Passeou pelo quarto, mostrando-se interessado em tudo. - Espero que não vá na conversa do flúor. - Parou junto a uma fotografia que estava numa moldura dobrável, sobre o toucador. - E a sua mulher?

- Não. É a minha filha.

- Que bela rapariga.

- A minha mulher e eu estamos separados.

- Pois eu nunca casei - disse Percival. - Para lhe dizer a verdade, nunca me interessei muito por mulheres. Não me interprete mal, por homens também não. Agora um rio cheio de trutas... Conhece o Aube?

- Não.

- Um rio muito pequeno com trutas muito grandes.

- Na verdade, a pesca não é coisa que me interesse muito - respondeu Daintry, enquanto começava a arrumar o seu aparelho.

- Falo pelos cotovelos, não é? Nunca consigo ir direito ao assunto. Lá está, é como a pesca. Às vezes é preciso deitar a linha cem vezes até acertar com o isco.

- Não sou um peixe - disse Daintry - e já passa da meia-noite.

- Meu caro amigo, peço imensa desculpa. Prometo que não lhe roubo nem mais um minuto. Só não queria que se deitasse preocupado.

- E eu estava preocupado?

- Pareceu-me que ficou um pouco chocado com a atitude do C para com os problemas em geral.

- Sim, talvez tenha ficado.

- Vê-se logo que ainda está connosco há pouco tempo, senão já tinha percebido que vivemos todos em caixas, percebe, caixas.

- Não, não percebo.

- Sim, já o tinha dito. Mas nem sempre é preciso perceber, na nossa profissão. Vejo que lhe reservaram o quarto Ben Nicholson.

- Eu não...

- Eu estou no quarto Miro. Excelentes gravuras, não acha? Por acaso, a ideia até foi minha, destas decorações. Lady Hargreaves queria cenas desportivas. Para condizer com os faisões.

- Não entendo a pintura moderna - disse Daintry.

- Olhe para aquele Nicholson. Um equilíbrio notável. Quadrados de cores diferentes. E no entanto convivem de forma tão feliz. Não chocam. O homem tem cá um olho. Bastava mudar uma das cores, ou mesmo o tamanho dos quadrados, e ficava uma porcaria. - Percival apontou para um quadrado amarelo. - Aquela é a sua Secção Seis. Este é o seu quadrado, de agora em diante. Não precisa de se preocupar com o azul nem com o vermelho. Só lhe compete descobrir o nosso homem e depois participar-me. Não tem nada a ver com o que se vai passar no quadrado azul ou no vermelho. Vendo bem, nem sequer no amarelo. Só tem que participar. O resto não é consigo.

- Uma acção não tem nada a ver com as suas consequências. é isso que está a tentar dizer-me?

- As consequências decidem-se noutro sítio, Daintry. Não leve a conversa desta noite muito a sério. C gosta de atirar ideias ao ar e ficar a vê-las cair. Gosta de chocar. Conhece a história do canibal. Tanto quanto sei, o criminoso, se houver um criminoso, será entregue à polícia à velha maneira conservadora. Nada que tire o sono a um homem. Peço-lhe que procure compreender aquele quadro. Em especial o quadrado amarelo. Se fosse capaz de vê-lo com os meus olhos, dormiria que nem um anjinho.

 

Um jovem com ar de velho, o cabelo despenteado a cair-lhe nos ombros e o olhar beatífico de um abbé do século XVIII saiu de uma discoteca na esquina da Little Compton Street quando Castle ia a passar.

Castle tinha apanhado o comboio mais cedo do que o costume e só precisava de estar no gabinete daí a três quartos de hora. Aquela hora, o Soho ainda possuía um pouco do brilho e da inocência da sua juventude. Naquela esquina tinha ouvido pela primeira vez uma língua estrangeira, no restaurante barato da porta ao lado bebera o seu primeiro copo de vinho; nessa época, atravessar a Old Crompton Street era para ele quase como atravessar o canal da Mancha. As nove da manhã os clubes de striptease já tinham fechado e apenas as charcutarias da sua memória estavam abertas. Só os nomes por cima das campainhas das portas

Lulu, Mimi e outros do género - deixavam adivinhar as actividades nocturnas da Old Crompton Street. Nos canos corria água fresca e as donas de casa mais madrugadoras cruzavam-se com ele sob o céu pálido e turvo, carregando sacos volumosos cheios de salame e salsichas de fígado com um ar feliz e triunfante. Não se via um único polícia, emora ao entardecer eles surgissem aos pares. Castle atravessou a pacífica rua e entrou numa livraria que frequentava havia já alguns anos.

Era uma livraria invulgarmente respeitável para aquela zona do Soho, muito diferente da que ficava do outro lado da rua e que dizia simplesmente «Livros» a letras vermelhas. A montra por baixo do letreiro escarlate exibia revistas pornográficas que nunca vira ninguém comprar - uma espécie de mensagem num código que há muito deixara de ser secreto; indicavam a natureza dos artigos e interesses privados do seu interior. Mas a casa Halliday e Filho enfrentava a escarlate «Livros» com uma montra cheia de Penguins, Everymans e exemplares em segunda mão da colecção Clássicos de Todo o Mundo. O filho nunca lá o tinha visto, só Mr. Halliday, curvado e de cabelo branco, ostentando um ar cortês como se ele fosse o velho fato com o qual gostaria de ser sepultado. Era ele próprio quem escrevia à mão todas as cartas comerciais: naquele momento estava ocupado com uma delas.

- Está uma bela manhã de Outono, Mister Castle observou Mr. Halliday, enquanto desenhava com cuidado a expressão «afectuosamente seu».

- Caiu geada esta manhã na província.

- Mas ainda não está na altura - disse Mr. Halliday.

- Não tem por aí um exemplar do Guerra e Paz’. Nunca o li. Está na altura de começar.

- Já acabou o Clarissa!

- Não, mas, sabe, acho que nem vou conseguir. Só de pensar nos volumes todos que faltam... Preciso de variar.

- A edição da Macmillan está esgotada, mas acho que tenho um exemplar em segunda mão da Clássicos de Todo o Mundo em muito bom estado, num único volume. Tradução de Aylmer Maude. Ninguém traduz melhor Tolstoi do que ele. Aliás, não era um simples tradutor, era amigo pessoal do autor. - Pousou a caneta e olhou, pesaroso, para o «afectuosamente seu». A caligrafia não estava, de facto, à altura da fórmula.

__ É exactamente essa a tradução que quero. Dois exemplares, claro.

Como vão as coisas, se me permite a pergunta?

Q meu filho está doente. Sarampo. Nada de preocupante. Não houve complicações.

Fico feliz em sabê-lo, Mister Castle. O sarampo pode causar muitos problemas. Tudo bem no escritório, espero? Nenhuma crise nos Negócios Estrangeiros?

- Que eu saiba, não. Tudo calmo. Estou a pensar seriamente na reforma.

- Lamento muito. Precisamos de homens viajados como o senhor para lidar com os assuntos internacionais. Vão dar-lhe uma boa pensão, não?

- Duvido. E como vai o seu negócio?

- Parado, muito parado. Não é como dantes. Ainda me lembro da década de quarenta, quando as pessoas faziam bicha para comprar um clássico. Hoje não há muita procura para os grandes escritores. Os velhos envelhecem e os jovens... bem, parece que permanecem jovens durante muito tempo e têm um gosto diferente do nosso... O meu filho está a sair-se muito melhor do que eu, naquela loja do outro lado da rua.

- Deve ter uns clientes esquisitos.

- Prefiro não pensar nisso, Mister Castle. As duas empresas continuam distintas, sempre insisti nisso. Nenhum polícia seria capaz de entrar aqui à espera do que, cá para nós, eu chamaria um suborno. Não que venha algum mal ao mundo das coisas que o rapaz vende. É como pregar aos convertidos, como eu costumo dizer. Não se pode corromper o corrupto.

- Um dia destes tenho que conhecer o seu filho.

- Ele aparece sempre ao fim do dia para me ajudar com a contabilidade. Falamos muitas vezes de si. Ele interessa-se pelo que o senhor compra. Acho que tem inveja do seu tipo de clientes, embora sejam poucos. Os dele são mais do género furtivo. Não são pessoas com quem se possa discutir um livro, como eu faço consigo.

- Pode dizer-lhe que eu tenho uma edição do Monsieur Nicolas que quero vender. Penso que não é livro que lhe interesse a si.

- Não sei se lhe interessará a ele. No fundo, é um clássico, convenhamos, além disso o título não é suficientemente sugestivo para a clientela dele e é um livro caro. Num catálogo viria na secção da literatura erótica e não na da pornografia. Claro que ele pode arranjar quem o queira levar por troca. Quase todos os livros dele acabam por ser trocados, compreende. As pessoas compram-nos e depois vão trocá-los. Não são livros para guardar, como uma boa colecção do Sir Walter Scott.

- Não se esquece de lhe perguntar, então? Monsieur Nicolas.

- Esteja descansado. Restif de Ia Bretonne. Edição limitada. Publicado pela Rodker. A minha memória é como uma enciclopédia, no que toca a livros antigos. Sempre leva o Guerra e Paz?. Se me deixar procurar na cave, são só cinco minutos.

- Pode enviar-mo para Berkhamstead. Hoje não vou ter tempo para ler. Mas não se esqueça de dizer ao seu filho...

- Nunca me esqueci de dar um recado, pois não? Depois de sair, Castle atravessou a rua e espreitou para dentro da outra loja. Viu apenas um jovem borbulhento a percorrer tristemente uma estante de Men Onlys e Penthouses... Um cortinado verde cobria o fundo da loja. Provavelmente atrás dele escondiam-se artigos de qualidade e preço mais elevados, juntamente com clientes mais tímidos, talvez mesmo o próprio Halliday que Castle nunca tivera a sorte de conhecer - se é que se podia falar em «sorte».

Para variar, Davis chegara antes dele ao escritório. Dirigiu-se a Castle, como quem pede desculpa:

Hoje cheguei cedo. Disse para comigo: «Se calhar a

vassoura nova ainda anda a varrer.» Portanto pensei... dá um ar de zelo... Não prejudica ninguém.

Daintry nunca vem às segundas de manhã. Vai sempre passar o fim-de-semana fora, nalguma caçada. Ainda não veio nada do Zaire?

- Nada. Os americanos pedem mais informações sobre a missão chinesa em Zanzibar.

- Não temos nada a dizer-lhes. Isso é com o MI5.

- Pelo espalhafato que eles fazem, dir-se-ia que Zanzibar fica tão perto deles como Cuba.

- E fica quase, na era do jacto.

Cynthia, a filha do major-general entrou com duas chávenas de café e um telegrama. Vestia calças castanhas e uma camisola de gola alta. Tinha qualquer coisa em comum com Davis, pois também ela não era o que parecia. Se o leal Davis tinha o ar pouco fiável de um corretor de apostas, Cynthia, recatada e doméstica, era arrojada como um jovem comando. Só era pena escrever com tantos erros, no entanto havia algo de isabelino na ortografia dela, tal como no seu nome. Provavelmente andava à procura de um Philip Sydney, mas por enquanto só tinha encontrado um Davis.

- De Lourenço Marques - disse Cynthia a Castle.

- Então é contigo, Davis.

- Verdadeiramente arrebatador - disse Davis. «Vosso duzentos e cinquenta e três de Setembro mutilado, ravor repetir.» É mas é contigo, Cynthia. Vai lá e escreve tudo outra vez, como uma menina bonita, mas desta vez sem erros. Convém. Sabes, Castle, quando vim para aqui eu era um romântico. Pensava em segredos atómicos. Admitiram-me porque eu era bom em Matemática e a minha Física também não era má.

- Segredos atómicos é com a Secção Oito.

- Pensei que ao menos ia aprender umas coisas giras como usar tinta invisível. Tenho a certeza de que percebes imenso de tinta invisível.

- Já percebi, até usei caca de pássaro. Tirei um curso sobre o assunto antes de ser enviado em missão, no fim da guerra. Deram-me uma caixinha de madeira muito bonita, cheia de frascos, como aqueles dos estojos de química das crianças. E uma chaleira eléctrica, com uma data de agulhas de tricô em plástico.

- Mas para quê?

- Para abrir cartas.

- E chegaste a fazê-lo? A abrir uma carta, quero dizer;

- Não, embora tenha feito uma tentativa. Ensinaram-me que não se abre um sobrescrito pelo bico das costas, mas sim pelo lado e que para fechá-lo se deve usar a mesma cola. O problema foi que eu não tinha cola igual, portanto tive que queimar a carta depois de lê-la. Mas não dizia nada de importante. Era uma simples carta de amor.

- E uma Lugerí Sempre esperei que tivesses uma Luger. Ou uma caneta que afinal fosse uma bomba?

- Não. Nós não temos nada de James Bond. Não tinha autorização para andar armado e o único carro que tive foi um Morris Minor.

- Podiam ao menos ter arranjado uma Luger para os dois. Sempre estamos na era do terrorismo.

- Mas temos um «empastelador» de ondas de rádio disse Castle, na esperança de acalmar Davis. Reconheceu o tipo de azedume que surgia sempre que Davis estava de mau humor. Um copo de porto a mais, uma decepção com Cynthia...

- Alguma vez trabalhaste com microimagem, Castle?

- Nunca.

- Um veterano de guerra como tu? Qual foi a informação mais secreta que tiveste na vida?

- Uma vez soube a data aproximada de uma invasão.

A da Normandia?

Não, não. Dos Açores

Os Açores foram invadidos? Não me lembro, ou se

calhar nunca soube. Bem, meu caro, acho que temos que arregaçar as mangas e ir tratar da chatice do Zaire. Es capaz de me dizer por que raio os americanos estão tão interessados nas nossas previsões para a produção de cobre?

- Creio que afecta o orçamento. O que pode afectar os programas de auxílio. Talvez o governo do Zaire se sinta tentado a completar a sua ajuda com reforços de outro lado qualquer. Compreendes, nós estamos aqui, Relatório Três Nove Sete, e alguém com um nome eslavo almoçou com o presidente no dia vinte e quatro.

- Até isso temos que passar à CIA?

- Claro.

- E há hipótese de em troca eles nos darem um missilzinho secreto?

Era sem dúvida um dos piores dias de Davis. Nos seus olhos havia uma sombra amarelada. Só Deus sabia que mistura teria bebido na noite anterior, no seu apartamento de solteiro em Davies Street. Num tom lúgubre, disse:

- O James Bond já teria conquistado Cynthia há muito tempo. Numa praia, sob um sol escaldante. Passa-me a ficha do Phillip Dibba, por favor.

- Qual é o número?

- Cinquenta e nove mil e oitocentos barra três.

- Que é feito dele?

- Dizem que foi obrigado a reformar-se dos correios de Kinshasa. Tinha demasiados selos mal impressos na sua colecção particular. Lá se foi o nosso homem mais influente no Zaire. - Davis escondeu o rosto nas mãos e soltou um uivo de sincero pesar.

- Sei o que sentes, Davis. Às vezes eu próprio gostaria de me reformar... ou mudar de emprego.

-Já é tarde para isso.

-- Não sei. A Sarah está sempre a dizer que eu devia escrever um livro.

 

- Segredos Oficiais.

- Não seria sobre o trabalho. Sobre o apartheid. Davis parou de preencher a ficha de Dibba.

- Espero que estejas a brincar, meu velho, não penses nisso, por favor. Não suportaria este emprego sem a tua companhia. Dava em doido se não tivesse com quem rir das coisas. Com os outros, até de sorrir tenho medo. Mesmo a Cynthia. Amo-a, claro, mas ela é tão leal que era capaz de me considerar um risco. Para o coronel Daintry. Como quando o James Bond mata a miúda com quem foi para a cama. Só que ela ainda nunca dormiu comigo.

- Eu não estava a falar a sério - respondeu Castle. É impossível. Que faria eu quando saísse daqui? Só podia ir para casa. Tenho sessenta e dois anos, Davis. Já passei a idade das promoções. Às vezes julgo que eles se esqueceram de mim, ou que perderam a minha ficha.

- Aqui pedem informações sobre um tipo chamado Agbo, funcionário da Rádio Zaire. O cinquenta e nove mil e oitocentos propõe-no para subagente.

- Para quê?

- Tem um contacto na Radio Gana.

- Isso não parece de grande valor. De qualquer maneira, o Gana não é território nosso. Passa-o para a Seis B, a ver se lhes serve para alguma coisa.

- Não sejas precipitado, Castle, não queremos perder um tesouro. Quem sabe que surpresas o agente Agbo nos reserva? A partir do Gana até podemos penetrar na Rádio Guiné. Isso colocaria o Penkovsky na sombra. Que vitória. A CIA nunca conseguiu chegar tão longe, à África profunda.

Era um dos piores dias de Davis.

- Se calhar só vemos o lado mau da Seis A - disse Castle.

Cynthia entrou com um sobrescrito para Davis.

- Assina aqui e acusa a recepção.

- Que é que está lá dentro?

- Como é que eu sei? É da administração. - E retirou do tabuleiro dos envios uma única folha de papel. -

Só isto?

- Não andamos propriamente cheios de trabalho, Cynthia. Queres vir almoçar comigo?

- Não, tenho que ir fazer compras para o jantar. - E fechou a porta com firmeza.

- Não faz mal, fica para a próxima. Há sempre uma próxima vez. - Davis abriu o sobrescrito. - De que é que eles se vão lembrar a seguir?

- O que é isso?

- Não recebeste uma coisa destas?

- O quê, o check-up médico? Recebi, claro. Não sei quantos já tive que fazer. Deve ser por causa do seguro, ou da reforma. Antes de me enviarem para a África do Sul, o doutor Percival, talvez não o conheças, tentou provar que eu tinha diabetes. Mandaram-me a um especialista que descobriu que eu tinha açúcar a menos, em vez de açúcar a mais... Pobre Percival. Acho que perdeu a prática desde que veio trabalhar connosco. Aqui a segurança é mais importante do que um diagnóstico correcto.

- Esta merda está assinada por um Percival, Emmanuel Percival. Que raio de nome. Emmanuel não era o portador de boas novas? Achas que também me querem mandar para o estrangeiro?

- Gostavas?

- O meu sonho foi sempre ir para Lourenço Marques. O nosso homem de lá deve estar quase a ser substituído. Devem ter bom vinho do Porto, não achas? Acho que lá até os revolucionários o bebem. Se ao menos pudesse levar a Cynthia comigo...

- Pensei que gostasses da vida de solteiro.

- Quem é que falou em casamento? O Bond nunca precisou de casar. Gosto da comida portuguesa.

- Por esta altura já deve ser comida africana. O que é que sabes do local, fora o que lês nos telegramas do sessenta e nove mil e trezentos?

- Fiz um ficheiro sobre restaurantes e vida nocturna antes da maldita revolução. Agora devem estar todos fechados. Seja como for, não acredito que o sessenta e nove mil e trezentos saiba metade do que eu sei sobre o que lá se passa. Não tem os ficheiros e por outro lado é tão sério... deve ser dos que levam o trabalho para a cama. Pensa só no que nós os dois podíamos fazer em ajudas de custo.

- Dois?

- A Cynthia e eu.

- Es mesmo um sonhador, Davis. Ela nunca iria nisso. Lembra-te de que o pai dela é o major-general.

- Cada pessoa tem o seu sonho. Qual é o teu, Castle?

- Oh, creio que às vezes sonho com segurança. Não me refiro ao tipo de segurança do Daintry. Reformar-me. Com uma boa pensão. Que chegue para mim e para a minha mulher...

- E para o teu bastardozinho?

- Sim, e para o meu bastardozinho, claro.

- Não são muito generosos com as pensões neste departamento.

- Pois não. Creio que nenhum de nós vai conseguir realizar o seu sonho.

- Mesmo assim... este check-up médico tem que significar alguma coisa, Castle. Quando estive em Lisboa, o nosso homem de lá levou-me a uma espécie de gruta, a seguir ao Estoril, onde se ouvia o barulho das ondas por baixo da mesa... Nunca comi lagostas tão boas como aquelas. Li um artigo sobre um restaurante em Lourenço Marques... eu até do vinho verde deles gosto, Castle. Eu é que devia estar lá, em vez do sessenta e nove mil e trezentos. Ele não aprecia a boa vida. Conheces a cidade?

- Passei lá duas noites com a Sarah, há sete anos. No Hotel Polana.

- Só duas noites?

- Tinha saído à pressa de Pretória, tu sabes a história, imediatamente antes da BOSS1. Não me sentia muito seguro tão perto da fronteira. Queria pôr um oceano entre a BOSS e a Sarah.

- Sim, estavas com a Sarah. No Hotel Polana. Com o Oceano Índico lá fora.

Castle lembrou-se do apartamento de solteiro - os copos sujos, a Penthouse, a Nature.

- Se estás mesmo a falar a sério, Davis, posso dar uma palavrinha ao Watson. Proponho-te para substituíres o outro.

- Claro que estou a falar a sério. Preciso de sair daqui, Castle. Desesperadamente.

- É assim tão grave?

- Levamos os dias a escrever telegramas insignificantes. Sentimo-nos importantes porque sabemos um bocadinho mais do que os outros sobre amendoins ou o que o Mobutu disse em certo jantar... Sabias que vim para aqui pela emoção? Emoção, Castle. Como fui estúpido. Não sei como tens aguentado estes anos todos...

- Talvez o facto de ser casado ajude.

- Se alguma vez me casasse não quereria passar aqui a vida. Estou farto desta porcaria deste velho país, Castle, dos cortes de electricidade, das greves, da inflação. Quero lá saber do preço da comida, é o preço do bom vinho do Porto que me deprime. Vim para aqui na esperança de ir para o estrangeiro, até aprendi português, mas aqui estou eu a responder a telegramas do Zaire sobre amendoins.

- Sempre pensei que te estavas a divertir, Davis.

- Bem, eu divirto-me quando estou um bocadinho bêbedo. Adoro aquela miúda, Castle. Não consigo tirá-la da minha cabeça. Portanto, brinco para lhe agradar e quanto mais eu brinco menos ela gosta de mim. Se eu fosse para Lourenço Marques, talvez... Um dia ela disse-me que também gostaria de ir para fora.

 

Iniciais do Bureau of State Security, espécie de polícia política da África do Sul. (N. da T.)

 

O telefone tocou.

- Cynthia? - Mas não era. Era Watson, o chefe da Secção 6.

- Castle?

- E o Davis.

- Passe-me o Castle.

- Sim - disse Castle. - Sou eu. Que foi?

- C quer falar consigo. Passa por aqui quando descer?

Foi preciso descer muito, pois o gabinete de C ficava na cave, instalado no que na década de 1890 fora a adega de um milionário. A sala onde Castle e Watson esperavam que a lâmpada por cima da porta de C ficasse verde era o local onde antigamente se amontoava o carvão e a madeira e no gabinete de C guardavam-se os melhores vinhos que havia em Londres. Dizia-se que, quando o departamento ocupou as instalações em 1946 e o arquitecto começou a reconstruir o edifício, descobriram uma parede falsa na adega, atrás da qual jaziam, como múmias, fabulosos vintages, o tesouro secreto do milionário. Segundo rezava a lenda, um funcionário ignorante do Ministério das Obras Públicas vendera-os à marinha e seus armazéns, ao preço de vinhos de mesa vulgares. A história era provavelmente falsa, mas sempre que um vinho histórico aparecia num leilão da Christie’s, Davis murmurava, desgostoso:

- Aquele era um dos nossos.

A lâmpada continuava vermelha. Parecia que estavam dentro de um automóvel parado, à espera que retirassem da estrada os vestígios de um acidente.

- Sabe o que é que se passa? - perguntou Castle.

- Não. Ele pediu-me que lhe apresentasse todos os homens da Secção Seis que ainda não conhece. Fez o mesmo com a Seis B e agora é a sua vez. Eu devo apresentá-lo e depois sair. É o procedimento. A mim cheira-me a restos de colonialismo.

Conheci o velho C. Antes de ir para o estrangeiro a primeira vez. Tinha um olho de vidro. Aquele vidro preto a fitar-me metia medo, mas ele limitou-se a apertar-me a mão e a desejar-me boa sorte. Eles não estão a pensar mandar-me para fora, pois não?

- Não. Porquê?

- Depois queria falar consigo sobre o Davis. A luz ficou verde.

- Devia ter-me barbeado melhor esta manhã - disse Castle.

Sir John Hargreaves, ao contrário do antigo C, não metia medo a ninguém. Tinha um par de faisões em cima da secretária e estava a falar ao telefone.

- Trouxe-os esta manhã. A Mary achou que ia gostar

- com um aceno, indicou duas cadeiras.

Então foi aí que o coronel Daintry passou o fim-de-semana, pensou Castle. A caçar faisões ou a falar de segurança? Puxou a cadeira mais pequena e desconfortável, levado por um forte sentido do protocolo.

- Ela está óptima. Umas dores na perna do reumático, mas mais nada - disse Hargreaves e desligou.

- Apresento-lhe Maurice Castle - disse Watson. É o responsável pela Seis A.

- «Responsável» dá um ar muito importante - disse Castle. - Somos só dois.

- Lida com fontes ultra-secretas, não é assim? O senhor e... o Davis, chefiado por si.

- E pelo Watson.

- Claro. Mas Watson tem sob as suas ordens toda a JÊIS. Você delega muitas tarefas, suponho, Watson?

- Julgo que apenas a Seis C necessita de toda a minha Atenção. Wilkins ainda não está connosco há muito tempo. Primeiro precisa de se adaptar.

- Bem, não lhe roubo mais tempo, Watson. Obrigado Por ter acompanhado o Castle até aqui.

 

Hargreaves passou a mão pelas penas de uma das aves mortas e disse:

- Tal como Wilkins, estou a adaptar-me. E pelo que vejo as coisas pouco mudaram desde que eu era um jovem na África Ocidental. Watson é uma espécie de governador de província e o senhor o chefe de distrito com alguma autonomia no seu território. Também conhece África, claro, não é verdade?

- Só a África do Sul - esclareceu Castle.

- Sim, tem razão. Sempre achei que a África do Sul tinha pouco a ver com a verdadeira África. Como a do Norte. Essa é com a Seis C, não é? Daintry esteve a explicar-me as coisas. Durante o fim-de-semana.

- A caçada foi boa? - perguntou Castle.

- Média. Não me parece que Daintry tenha ficado muito satisfeito. O senhor tem que experimentar, no próximo Outono.

- Faria uma fraca figura. Nunca cacei nada na vida, nem sequer um ser humano.

- De facto, são o melhor dos alvos. Para lhe dizer a verdade, os pássaros chateiam-me.

C olhou para um papel que estava sobre a secretária.

- Fez um bom trabalho em Pretória. Aqui é descrito como um administrador de primeira. Reduziu as despesas da colónia consideravelmente.

- Sucedi a um homem que era brilhante a recrutar agentes, mas que não percebia muito de finanças. Para mim foi fácil. Trabalhei uns tempos num banco, antes da guerra.

- Daintry diz aqui que teve um problema pessoal em Pretória.

- Não lhe chamaria problema. Apaixonei-me.

- Sim, é o que parece. Por uma africana. O que aqueles tipos chamam «banto» sem distinção. Infringiu as leis raciais deles.

- Casámos e agora está tudo bem. Mas passámos um mau bocado.

Sim. Foi o que o senhor nos comunicou. É pena que

Ja a nossa gente não proceda com a mesma correcção quando tem problemas. Teve medo que a polícia da África do Sul fosse atrás de si e tentasse desfazê-lo aos bocados. Não me pareceu correcto deixar-vos com um representante vulnerável.

Como vê, conheço bem a sua ficha. Dissemos-lhe

para partir imediatamente, só que nunca pensámos que trouxesse a rapariga consigo.

- A sede investigou-a. Não encontraram nada. Não fiz bem, do seu ponto de vista, em tirá-la de lá também? Tinha-a utilizado como contacto com os agentes africanos. A minha história de cobertura era que eu estava a planear fazer um estudo crítico do apartheid no meu tempo livre, mas a polícia podia descobrir a verdade. Por isso levei-a para a Suazilândia e depois para Lourenço Marques.

- Fez muito bem, Castle. E agora é casado e tem um filho. Está tudo a correr bem, espero?

- Bem, neste momento o meu filho está com sarampo.

- Ah, então tem de tomar cuidado com os olhos dele. Os olhos são o ponto fraco. Mas a razão pela qual quis falar consigo, Castle, é a visita que vamos receber, daqui a umas semanas, de Cornelius Muller, um dos tipos importantes da BOSS. Creio que o conheceu quando esteve em Pretória.

- Conheci, sim.

- Vamos deixá-lo ver algum do material com que o senhor trabalha. Claro, apenas o suficiente para ele verificar que estamos a cooperar, por assim dizer.

- Ele deve saber mais do que nós sobre o Zaire.

- E em Moçambique que ele está interessado.

- Nesse caso, Davis é o seu homem. Está mais a par do que lá se passa do que eu.

- Oh, sim, o Davis, claro. Ainda não conheço o Davis.

- Outra coisa, se me permite. Quando estive em Pretoria não me dei nada bem com esse tal Muller. Se ler o princípio da minha ficha, foi ele que tentou chantajear-me com as leis raciais. Foi por essa razão que o seu antecessor me ordenou que regressasse o mais depressa possível. Creio que isso não ajudaria em nada as nossas relações. Era preferível ser Davis a lidar com ele.

- Mas o senhor é superior hierárquico do Davis e quem devia, pela ordem natural das coisas, recebê-lo. Não será fácil, eu sei. Estão ambos de pé atrás, mas ele é que vai ser apanhado desprevenido. O senhor sabe exactamente o que não deve mostrar-lhe. E muito importante salvaguardar os nossos agentes, mesmo que isso implique manter material importante escondido; Davis não tem a sua experiência da BOSS, e de Mister Muller.

- Mas porque havemos de lhe mostrar seja o que for?

- Alguma vez pensou, Castle, no que seria do Ocidente se as minas de ouro da África do Sul fossem fechadas devido a uma guerra racial? Uma guerra perdida, claro, como no Vietname. Antes de os políticos encontrarem um substituto para o ouro. Sendo a Rússia a fonte principal. Seria um pouco mais complicado do que a crise do petróleo. E as minas de diamantes... A De Beers é mais importante do que a General Motors. Os diamantes não envelhecem, como os carros. E há aspectos ainda mais sérios do que o ouro e os diamantes, há o urânio. Creio que ainda não lhe falaram num documento secreto da Casa Branca sobre uma operação a que chamam «Uncle Remus».

- Não. Têm havido rumores...

- Quer queiram quer não, nós, a África do Sul e os Estados Unidos somos parceiros na Uncle Remus. O que significa que temos de ser agradáveis para com Mister Muller, muito embora ele o tenha chantajeado.

- E é mesmo preciso mostrar-lhe...?

- Informação acerca de guerrilhas, navios que furaram bloqueios à Rodésia, os novos tipos do poder em Moçambique, a penetração russa e cubana... informações económicas...

Isso não deixa muita coisa de fora, pois não?

Vá com calma no que disser respeito aos chineses

Os sul-africanos têm a mania de os misturar com os russos. Podemos vir a precisar dos chineses. A Uncle Remus agrada-me tanto como ao senhor. é o que os políticos chamam uma política realista e o realismo nunca trouxe grande proveito a ninguém no tipo de África que conheci. A minha Africa era uma África sentimental. Eu amava mesmo a África, Castle. Mas os chineses não, nem os russos, nem os americanos, no entanto temos que alinhar com a Casa Branca, a Uncle Remus e Mister Muller. Como tudo era fácil, no tempo em que lidávamos com chefes, feiticeiros, escolas do mato e rainhas da chuva. A minha África ainda era um bocado como a África de Rider Haggard. Não era um mau lugar. O imperador Chaka era muito melhor do que o marechal de campo Amin Dada. Olhe, faça o melhor que puder em relação ao Muller. Ele é o representante da grande BOSS. Sugiro que comece por recebê-lo em casa, seria um choque muito salutar para ele.

- Não sei se a minha mulher estará de acordo.

- Diga-lhe que sou eu quem lho pede. Deixo isso com ela. Se for demasiado doloroso...

Junto à porta, Castle voltou-se, lembrando-se da sua promessa.

- Posso dar-lhe uma palavra sobre Davis?

- Claro. Que se passa?

- Está farto de estar em Londres, sentado a uma secretaria. Creio que devíamos enviá-lo para Lourenço Marques, assim que houver oportunidade. Trocá-lo com o sessenta e nove mil e trezentos que já deve estar a precisar de mudar de clima.

- Foi Davis quem o sugeriu?

- Não propriamente, mas penso que ele gostava de sair daqui, seja para onde for. Anda muito nervoso.

- Porquê?

- Problemas com uma rapariga. E está farto de burocracia.

- Compreendo que esteja farto de burocracia. Veremos o que é que se arranja.

- Estou bastante preocupado com ele.

- Prometo que vou pensar no assunto, Castle. A propósito, esta visita do Muller é estritamente secreta. Mais ninguém tem conhecimento. Nem sequer o Watson sabe. Não deve contar nada ao Davis.

 

Na segunda semana de Setembro, Sam ainda estava oficialmente de quarentena. Não tinha havido qualquer complicação, portanto daí não viriam ameaças ao seu futuro aquele futuro que sempre pareceu a Castle uma imprevisível emboscada. Enquanto descia a High Street num domingo de manhã, sentiu o desejo súbito de agradecer, nem que fosse a um mito, por Sam estar livre de perigo, de maneira que entrou, por uns minutos, pela porta das traseiras da igreja paroquial. O serviço religioso estava quase a terminar e a congregação dos bem vestidos, dos de meia-idade e dos idosos estava de pé e atenta, cantando com um ar quase de desafio, como se no fundo duvidassem dos factos: «Há uma colina verde lá longe, sem muralhas como as das cidades.» As palavras simples e precisas, com a sua mancha de cor, recordaram a Castle o pano de fundo local tão frequente nas pinturas primitivas. A muralha da cidade era como as ruínas da torre que ficava para lá da estação e ao cimo da encosta verde da mata municipal, no topo dos alvos abandonados, erguera-se outrora um alto poste no qual se enrorcavam homens. Por instantes, esteve quase a partilhar a incrível fé deles - não fazia mal nenhum murmurar uma oração de agradecimento ao Deus da sua infância, ao Deus da mata e do castelo, por nenhuma doença se ter ainda Apoderado do filho de Sarah. Nisto, um estrondo sónico Dispersou as palavras do hino e abanou a velha vidraça da janela voltada a oeste, fazendo chocalhar o capacete do cruzado que estava pendurado num pilar, e Casde regressou ao mundo dos adultos. Saiu rapidamente e comprou os jornais de domingo. O Sunday Express trazia um grande título na primeira página - «Corpo de Criança Encontrado no Bosque».

De tarde, levou Sam e Buller a passear na mata, deixando Sarah a dormir. Gostaria de ter deixado o cão em casa, mas receou que os seus sonoros protestos acordassem Sarah, portanto consolou-se com a ideia de que era pouco provável que Buller encontrasse um gato vadio no parque. O medo nunca mais o largara desde aquele Verão, havia três anos, quando a providência lhe pregara uma partida fazendo aparecer de repente entre as faias um grupo de pessoas, a fazer um piquenique, que tinham trazido com elas um gato caro com uma coleira azul ao pescoço, presa a uma trela de seda escarlate. Sem dar tempo ao gato - siamês - para soltar um grito de fúria ou dor, Buller agarrou-o pelo pescoço e lançou o corpo do animal por cima do dorso, como um homem a carregar uma saca para dentro de uma camioneta. Depois partiu, trotando entre as árvores, voltando a cabeça para um lado e para o outro - onde havia um gato era mais que certo haver outro - deixando Castle a enfrentar sozinho o furioso e inconsolável grupo.

Em Outubro, porém, os piqueniques não eram habituais. Mesmo assim, Castle esperou quase até ao pôr do Sol e levou Buller pela trela enquanto desciam a King’s Road e caminhavam frente à esquadra da polícia, na esquina com a High Street. Depois de passarem o canal, a ponte ferroviária e as casas novas (estavam ali há um quarto de século, mas tudo o que não existia quando Castle era criança, parecia-lhe novo), soltou Buller que imediatamente, como um cão bem treinado, tratou de se aliviar, à beira do caminho, com toda a calma. Olhava fixamente em frente, atento. Só nestas ocasiões sanitárias Buller parecia um cão dotado de inteligência. Castle não gostava de Buller - tinha-o comprado com uma finalidade, tranquilizar Sarah, mas Buller evelara-se um péssimo cão de guarda e passara a ser apenas mais uma responsabilidade, embora, com o seu instinto canino, amasse Castle mais do que qualquer ser humano. Os fetos começavam a adquirir o belo tom dourado do Outono e poucas flores restavam no tojo. Castle e Sam procuraram em vão os alvos que outrora ali tinham existido um penhasco de barro vermelho - destacando-se na desolação do baldio. Agora estavam afogados em verde.

- Disparavam contra espiões aqui? - perguntou Sam.

- Não, não. Que ideia a tua! Isto era simplesmente para praticar tiro. Na primeira guerra.

- Mas existem espiões, não existem, espiões verdadeiros?

- Acho que sim. Porquê?

- Era só para saber.

Castle lembrou-se de, com a mesma idade, ter perguntado ao pai se existiam mesmo fadas e de a resposta ter sido menos verdadeira do que a sua. O seu pai era um homem sentimental; queria a todo o custo garantir ao filho que a vida valia a pena. Teria sido injusto acusá-lo de mentir: uma fada, como ele decerto argumentaria, era, no mínimo, um símbolo de alguma coisa mais ou menos verdadeira. Também ainda havia pais que diziam aos filhos que Deus existia.

- Espiões como o zero zero sete?

- Bem, não exactamente. - Castle tentou mudar de assunto: - Quando eu era pequeno, pensava que morava aqui um dragão, num velho abrigo cavado na rocha entre aquelas trincheiras.

- Onde estão as trincheiras?

- Agora não as consegues ver por causa dos fetos.

- O que é um dragão?

- Tu sabes, uma daquelas criaturas couraçadas que cospem fogo.

-- Como um tanque?

- Sim, como um tanque, mais ou menos. - A falta de contacto entre as suas imaginações desanimava-o. - Ou como um lagarto gigante - disse. Depois lembrou-se que o rapaz tinha já visto muitos tanques, mas eles tinham deixado a terra dos lagartos antes de ele nascer.

- Alguma vez viste um dragão?

- Uma vez vi fumo sair de uma trincheira e pensei que fosse um dragão.

- Tiveste medo?

- Não, nessa altura tinha medo de outras coisas. Detestava a escola e tinha poucos amigos.

- Porque é que detestavas a escola? Eu vou detestar a escola? Quero dizer, a escola a sério.

- Nem todos temos os mesmos inimigos. Se calhar tu não precisas que um dragão te ajude, mas eu precisei. Toda a gente odiava o meu dragão e queria matá-lo. Tinham medo do fumo e das labaredas que lhe saíam da boca quando ele se zangava. Eu costumava fugir do dormitório à noite, sem ninguém ver, e levar-lhe latas de sardinha da minha caixa. Ele aquecia-as sem as tirar da lata, com o hálito. Gostava delas quentes.

- Mas isso aconteceu mesmo?

- Não, claro que não, mas agora parece mesmo que sim. Uma vez fiquei deitado na cama a chorar, debaixo dos lençóis, porque era a primeira semana do período e as doze semanas que faltavam para as férias nunca mais passavam e eu tinha medo de tudo. Era Inverno e de repente vi que a janela do meu cubículo estava toda embaciada. Limpei o vapor de água com os dedos e olhei para baixo. Lá estava o dragão, deitado na rua preta e húmida, como um crocodilo dentro de um rio. Nunca tinha saído da mata antes porque as pessoas estavam todas contra ele tal como eu pensava que estavam contra mim. Os polícias até tinham espingardas guardadas num armário para lhe darem um tiro, caso ele viesse à cidade. No entanto ali estava ele, muito quieto, a soprar baforadas de fumo quente na minha direcção. Sabes, é que ele tinha ouvido dizer que a escola recomeçara e sabia

que eu me sentia triste e sozinho. Era mais inteligente do que um cão, muito mais inteligente do que o Butter. __ Estás a brincar comigo - disse Sam. Não, estou apenas a recordar.

- E depois?

- Fiz-lhe um sinal secreto. Significava: «Perigo. Vai-te embora», porque eu não sabia se ele tinha visto a polícia e as espingardas.

- E ele foi-se embora?

- Foi. Muito devagar. De vez em quando olhava para trás, como se não quisesse sair de perto de mim. Mas nunca mais tive medo nem me senti sozinho. Pelo menos que me lembre. Sabia que bastava eu fazer um sinal que ele saía do seu esconderijo e vinha ajudar-me. Tínhamos muitos sinais secretos, códigos, cifras...

- Como os espiões... - disse Sam.

- Sim - concordou Castle, decepcionado. - Acho que tens razão. Como os espiões.

Castle lembrou-se de ter feito um mapa da mata onde assinalara todas as trincheiras e os caminhos ocultos pelos fetos. Também isso era como os espiões.

- Horas de ir para casa - disse. - A tua mãe deve estar ansiosa...

- Não está nada! Ela sabe que estou contigo. Quero ver o esconderijo do dragão.

- Não havia dragão nenhum.

- Mas não tens a certeza, pois não?

Com dificuldade, Castle encontrou a velha trincheira. O esconderijo onde o dragão vivera estava tapado por silvas cheias de amoras. Quando tentou atravessá-las, o seu pé bateu numa lata ferrugenta, que rolou.

- Vês - disse Sam -, trazias-lhe mesmo comida. Avançou, mas nem dragão, nem esqueleto. - Se calhar a polícia acabou mesmo por apanhá-lo. - Depois apanhou a lata. - E de tabaco, não é de sardinhas.

Nessa noite, quando estavam deitados na cama, Castle disse a Sarah:

- Tens a certeza de que não é tarde de mais?

- Para quê?

- Para eu deixar o meu emprego.

- Claro que não é. Tu ainda não és velho.

- Talvez tivéssemos que sair daqui.

- Porquê? Este lugar é tão bom como qualquer outro.

- Não gostavas de ir embora? Esta casa... não é lá grande coisa. Se eu arranjasse um emprego no estrangeiro, talvez...

- Gostaria que o Sam se fixasse num lugar para ter para onde voltar, quando partisse. Que pudesse um dia regressar ao lugar da sua infância. Como tu regressaste. A uma coisa antiga. Uma coisa segura.

- Um monte de ruínas à beira da linha de caminho-de-ferro?

- Sim.

Recordou as vozes burguesas, tão soporíferas como os seus donos nos seus fatos domingueiros, a cantar na igreja de pedra, dando voz ao seu instante de fé semanal. «Uma colina verde lá longe, sem muralhas.»

- São bonitas as ruínas - disse Sarah.

- Mas tu nunca poderás voltar à tua infância.

- Isso é diferente, nunca me senti segura. Até te conhecer. E lá não havia ruínas, só escombros.

- Muller vem cá, Sarah.

- Cornellius Muller?

- Sim. Agora é um homem importante. Tenho que ser simpático com ele. São ordens.

- Não te preocupes. Já não pode fazer-nos mal.

- Pois não. Mas não te quero perturbada.

- E porque havia de ficar?

- C quer que eu o traga cá a casa.

- Então traz. Deixa-o ver como tu e eu... e Sam..-

- Não te importas?

- Claro que não. Uma anfitriã negra para o senhor Cornelius Muller. E uma criança negra. - E desataram os dois a rir, com um pouco de medo.

 

- Como vai o bastardozinho? - perguntou Davis, como fizera todos os dias nas últimas três semanas.

- Já passou. Ele está óptimo outra vez. No outro dia perguntou quando é que vais fazer-nos uma visita. Gosta de ti, não percebo porquê. Fala muitas vezes daquele piquenique que fizemos no Verão passado e do jogo das escondidas. Parece que ele acha que ninguém se sabe esconder tão bem como tu. Acha que és um espião. Fala de espiões como as crianças do meu tempo falavam de fadas. Ou não falavam?

- Posso pedir-lhe o pai emprestado esta noite?

- Porquê? Que se passa?

- O doutor Percival esteve cá ontem, enquanto saíste, e conversámos um bocado. Sabes que acho que eles estão mesmo a pensar mandar-me para fora? Perguntou se eu me importava de fazer mais alguns testes... sangue, urina, radiografia aos rins, etecétera, etecétera. Disse que era preciso muito cuidado com os trópicos. Gostei dele. Parece ser um tipo desportivo.

- Corridas?

- Não, pesca, por sinal. E um desporto terrivelmente solitário. Percival é como eu, não tem mulher. Combinámos um encontro esta noite, para darmos uma volta pela cidade. Não vou à cidade há muito tempo. Aqueles tipos do Ministério do Ambiente são uns chatos. Importavas-t e de fazer de ama-seca só por uma noite?

- O meu último comboio parte de Euston às vinte e três e trinta.

- Esta noite tenho o apartamento por minha conta Os tipos do Ambiente foram passar uns dias a uma zona poluída. Podes escolher a cama. De casal, de solteiro, como quiseres.

- De solteiro, por favor. Estou a ficar velho, Davis, Não sei quais são os vossos planos...

- Pensei que podíamos jantar no Café Grill e depois ir ver um pouco de striptease. Raymond’s Revuebar. Têm a Rita Rolls...

- Achas que o Percival gosta desse tipo de coisas?

- Andei a sondá-lo e não vais acreditar! Nunca viu striptease na vida. Disse que adorava dar uma espreitadela, na companhia de colegas de confiança. Sabes como é na nossa profissão. Ele sente o mesmo. Vamos a uma festa e não podemos conversar por questões de segurança. John Thomas nunca tem uma oportunidade para levantar a cabeça. É moroso, a palavra assenta que nem uma luva. Mas se o John Thomas morrer, valha-te Deus, é melhor morreres também. Claro que contigo é diferente... és um homem casado. Podes sempre conversar com a Sarah e...

- Nem com as nossas mulheres é suposto falarmos.

- Aposto que tu falas.

- Não falo, Davis. E se estás a pensar engatar umas miúdas, não penses que falo com elas. Muitas são funcionárias do MI5. Oh, estou sempre a esquecer-me de que nos mudaram os nomes. Agora somos todos DL Porque será? Devem ter um departamento de semântica...

- Pareces um bocado chateado, também.

- Pois estou. Talvez esteja mesmo a precisar de me divertir. Vou telefonar à Sarah e dizer... o quê?

- Diz-lhe a verdade. Vais jantar com um dos grandes^ E importante para o teu futuro na empresa. E eu ofereço-te uma cama. Ela confia em mim. Sabe que não te levo para a má vida.

Sim, creio que confia.

E tem razão, ou não?

Vou telefonar-lhe quando sair para almoçar

Porque não telefonas daqui se te sai mais barato?

Não gosto de fazer daqui chamadas particulares.

Achas que eles se dão ao trabalho de escutar?

No lugar deles não o farias?

Talvez. Mas nesse caso faço ideia as porcarias que eles têm gravadas.

A noite foi apenas um êxito parcial, embora tenha começado bastante bem. A sua maneira lenta e pouco empolgante, o doutor Percival era uma boa companhia. Não fez nem Castle nem Davis sentir que era seu superior hierárquico. Quando o nome do coronel Daintry veio à baila, fez-lhe algumas críticas elegantes:

- Não aprecia arte abstracta e pareceu decepcionado comigo. Mas isso é porque eu não caço - explicou Percival. - Gosto é de pesca.

Estavam no Raymond’s Revue Bar, acotovelando-se em volta de uma mesa pequena, onde cabiam à justa três copos de uísque, enquanto uma bela jovem fazia curiosas piruetas numa rede.

- Gostava que o meu anzol a apanhasse.

A rapariga bebeu de uma garrafa de High and Dry que estava suspensa por um fio sobre a rede e após cada gole retirava uma peça de roupa com um ar de abandono, cheia de gim. Por fim lá conseguiram ver as suas nádegas nuas contra a rede, como um frango apertado na malha do saco ”e compras de uma dona de casa do Soho. Um grupo de empresários de Birmingham aplaudiu com alguma violência e um deles chegou mesmo a acenar com um cartão do Diers Club, provavelmente para mostrar a sua capacidade financeira.

- Costuma pescar o quê? - perguntou Castle.

- Quase sempre trutas ou timalos.

- Qual é a diferença?

- Caro amigo, pergunte a um caçador se há diferença entre um leão e um tigre.

- Quais prefere?

- Não é uma questão de preferência. Acontece que adoro pescar, qualquer peixe. O timalo é menos inteligente do que a truta, mas isso não quer dizer que seja mais fácil. Exige é uma técnica diferente. E é um lutador, luta até não poder mais.

- E a truta?

- É o rei, não há dúvida. Assusta-se facilmente: o barulho de passos, um ramo seco, qualquer ruído e ela foge, E é preciso colocar a mosca com precisão, logo à primeira. Senão... - Percival fez um gesto com a mão, como se estivesse a lançar a linha agora na direcção de outra jovem nua, que as luzes faziam parecer às riscas pretas e brancas, como as zebras.

- Que rabo! - exclamou Davis, abismado. Estava sentado com o copo de uísque a caminho dos lábios, vendo as bochechas rodarem com a precisão da engrenagem de um relógio suíço: um movimento diamantino.

- Isto não lhe está a fazer bem nenhum à tensão arterial.

- Tensão arterial?

- Já lhe disse que está alta.

- Hoje ninguém me consegue aborrecer - retorquiu Davis. - É a própria Rita Rolls em carne e osso. A inimitável Rita.

- Devia fazer um check-up mais completo se está mesmo a pensar em ir para o estrangeiro.

- Sinto-me bem, Percival. Nunca me senti melhor-

- Aí é que está o perigo.

- Está quase a conseguir assustar-me - disse DavisPassos e um ramo seco... Agora vejo por que razão a truta-

Bebeu um pouco de uísque, como se estivesse a tomar medicamento desagradável, e voltou a pousar o copo. O doutor Percival apertou-lhe o braço e disse:

Estava a brincar. Acho-o mais do género timalo.

Quer dizer que sou um peixe estúpido?

Não menospreze o timalo. Tem um sistema nervosa muito delicado. E é um lutador.

- Então devo ser é um bacalhau.

- Não me fale de bacalhau. Não aprecio esse tipo de

pesca.

As luzes acenderam-se. O espectáculo chegara ao fim. Qualquer coisa, decidira a gerência, serviria de anticlimax à Rita Rolls. Davis demorou-se algum tempo no bar, tentando a sorte numa slot-machine. Gastou todas as moedas que trazia e ainda pediu duas a Castle.

- Não é a minha noite de sorte - disse, de novo de mau humor. Era óbvio que o doutor Percival o transtornara.

- Que tal um último copo em minha casa? - sugeriu o doutor Percival.

- Julguei que queria que eu cortasse com a bebida.

- Meu caro amigo, estava a exagerar. De qualquer modo, o uísque é a bebida mais inócua que há.

- Mesmo assim, acho que vou para a cama.

Na Great Windmill Street as prostitutas das ombreiras das portas, debaixo dos abajures vermelhos, chamavam:

- Queres subir, querido?

- Suponho que quer que eu corte com isto também?

- Bem, a regularidade do casamento é mais segura. Menos pressão.

O porteiro da noite começou a lavar os degraus do Albany quando o doutor Percival os deixou. Os seus aposentos no Albany eram designados por uma letra e um número

D6 - como se fossem mais uma secção da velha firma. Castle e Davis viram-no entrar com cuidado para não mouar os sapatos - precaução curiosa para alguém que costumava atravessar ribeiros frios com água até aos joelhos.

- Desculpa tê-lo convidado - disse Davis. - Podíamos ter-nos divertido à grande sozinhos.

- Pensei que gostavas dele.

- Gostava, mas hoje irritou-me com as suas malditas histórias de pesca. E aquela conversa sobre a minha tensão arterial. Que tem ele a ver com a minha tensão? Será mesmo médico?

- Penso que deixou de exercer há muito tempo - disse Castle. - É o oficial de ligação de C com a gente da guerra bacteriológica. Suponho que um licenciado em medicina lhes dá jeito.

- Aquele sítio, Porton, dá-me arrepios. Fala-se tanto da bomba atómica mas ninguém pensa no nosso pequeno país. Nunca ninguém se deu ao trabalho de fazer lá uma manifestação. Não há botões antibacteriológicos, mas se a bomba fosse abolida, ainda haveria aquele tubinho de ensaio mortal...

Dobraram a esquina junto ao Claridge’s. Uma mulher alta e magra de vestido comprido entrou para um Rolls-Royce seguida de um homem sério de casaca que consultava furtivamente o seu relógio de pulso - pareciam actores numa peça eduardiana; eram duas da manhã. Um linóleo amarelo, esburacado como um queijo gruyère, cobria as escadas íngremes que levavam ao apartamento de Davis. Com a na morada, ninguém reparava em pormenores desse género. A porta da cozinha estava aberta e Castle viu uma pilha de pratos sujos no lava-loiça. Davis abriu a porta de um armário; as prateleiras estavam cheias de garrafas quase todas vazias - a protecção do ambiente não começava em casa. Davis procurou uma garrafa de uísque que contivesse o suficiente para servir dois copos.

- Ora, misturamos. E tudo uísque, afinal. - Juntou os restos de uma garrafa de Johnnie Walker com o de umade White Horse e obteve um quarto de garrafa.

- Aqui não se lava a loiça?

- Vem uma mulher duas vezes por semana e deixamos tudo para ela.

Davis abriu uma porta.

Este é o teu quarto. Desculpa a cama não estar feita.

Ela só vem amanhã. - Apanhou um lenço sujo do chão e enfiou-o numa gaveta, a bem da arrumação. Depois conduziu Castle à sala e atirou as revistas que estavam em cima de uma poltrona para o chão.

Estou a pensar em fazer um requerimento para mudar o meu nome.

- Para qual?

- Davis com um «e». Davies, como em Davies Street, é muito mais fino. - Estendeu as pernas no sofá. - Sabes que esta minha mistura não está nada má. Vou chamar-lhe White Walker. Esta ideia pode valer uma fortuna: na publicidade aparecia uma fantasma lindíssima. Que achaste do doutor Percival?

- Pareceu-me simpático. Mas não pude deixar de pensar...

- O quê?

- Por que raio se deu ao trabalho de sair connosco. Que queria ele?

- Sair com pessoas com quem pudesse conversar. Não achas que chega? Não estás farto de teres que manter o bico calado quando estás com outras pessoas?

- Ele não abriu muito o dele. Nem connosco.

- Abriu antes de tu chegares.

- Que disse ele?

- Falou de Porton. Parece que estamos muito à frente dos americanos numa série de artigos e eles pediram-nos que nos concentrássemos num objectozinho que possa ser utilizado a determinada altitude e que ao mesmo tempo sobreviva a condições desérticas... Todos os pormenores, temperatura e coisas assim, apontam para a China. Ou talvez a África.

- E porque é que ele te contou isso tudo?

- Bem, é suposto sabermos alguma coisa sobre os chineses através dos nossos contactos africanos. Desde aquele relatório sobre Zanzibar que estamos muito bem-vistos.

- Isso foi há dois anos e o relatório continua por confirmar.

- Ele disse que não devíamos agir abertamente. Nada de interrogatórios a agentes. é demasiado secreto para isso. Basta mantermos os olhos atentos a qualquer indicação, num relatório qualquer, de que os chineses estão interessados em Hell’s Parlour, e depois comunicar-lho a ele.

- Porque falou ele contigo e não comigo?

- Oh, suponho que pensava falar também contigo, se não tivesses chegado atrasado.

- Mas por que raio...?

- Talvez queira pôr a circular um rumor falso.

- Connosco, não. Não somos propriamente mexeriqueiros, tu, eu ou o Watson.

- Ele falou com o Watson?

- Não, por acaso. Disse a piada habitual das caixas herméticas. Ultra-secreto, disse ele, mas isso não se aplica a ti, pois não?

- Seja como for é melhor que eles não saibam que tu me contaste.

- Meu velho, apanhaste a doença da nossa profissão, a desconfiança.

- Sim, é uma doença grave. Por isso é que estou a pensar sair.

- E vais criar hortaliças?

- Vou fazer alguma coisa que não seja secreta, que não tenha importância e seja relativamente inofensiva. Uma vez quase fui trabalhar para uma agência de publicidade.

- Toma cuidado. Esses também têm segredos: os segredos dos negócios.

O telefone tocou ao cimo das escadas.

- A esta hora - reclamou Davis - é anti-socialQuem será. - Com dificuldade, levantou-se do sofá.

- A Rita Rolls - sugeriu Castle.

- Bebe outro White Walker.

Castle ainda nem se tinha servido, quando Davis o chamou.

É a Sarah, Castle.

Eram quase duas e meia e o medo invadiu-o. Seria possível uma criança ter sequelas quase no fim da quarentena? Sarah? - perguntou. - Que foi? Alguma coisa com o Sam?

Desculpa, querido. Não estavas a dormir, espero?

- Não. Que se passa?

- Estou com medo.

- É o Sam?

- Não, não é nada com o Sam. E que o telefone tocou duas vezes desde a meia-noite e quando eu atendo, desligam.

- É engano - disse Castle, aliviado. - Acontece constantemente.

- Alguém sabe que não estás em casa. Estou assustada, Maurice.

- Que podia acontecer em King’s Road? Ainda por cima há uma esquadra da polícia a duzentos metros. E o Buller! O Buller está aí, não?

- Está a dormir profundamente. A ressonar.

- Eu voltava já, se fosse possível. Mas não há comboios. E nenhum táxi me leva aí a esta hora.

- Eu levo-te de carro - disse Davis.

- Não, claro que não.

- Não o quê? - perguntou Sarah.

- Estava a falar com o Davis. Disse que me levava de carro.

- Oh, não, isso não quero. Sinto-me melhor agora, depois de falar contigo. Vou acordar o Buller.

- O Sam está bem?

- Está óptimo.

- Tens aí o número da polícia. Em dois minutos Põem-se aí.

- Sou uma parva, não sou? Uma parva.

- Uma parva que eu adoro.

- Pede desculpa por mim ao Davis. Diverte-te.

- Boa noite, querida.

- Boa noite, Maurice.

O emprego do nome dele era um sinal de amor -. quando estavam juntos era um convite ao amor. Termos carinhosos - querido, amor - eram moeda corrente, usada frente a terceiros, mas um nome era uma coisa estritamente privada, nunca revelada a um estranho que não pertencesse à tribo. No auge do amor ela pronunciava em voz alta o seu nome tribal, secreto. Castle ouviu-a desligar, mas ficou uns instantes com o auscultador encostado ao ouvido.

- Não se passa mesmo nada? - perguntou Davis.

- Não, com a Sarah, não.

Voltou para a sala e serviu-se de outro uísque.

- Acho que tens o telefone sob escuta.

- Como é que sabes?

- Não sei. E um palpite. Estou a ver se me lembro do que me deu essa ideia.

- Não estamos na Idade da Pedra - lembrou Davis. Hoje em dia ninguém percebe quando é que um telefone está sob escuta.

- A não ser que eles tenham sido descuidados. Ou queiram que se saiba.

- Porque haviam de querer que eu saiba?

- Para te assustar, talvez. Quem sabe?

- De qualquer maneira, porquê o meu telefone?

- Por uma questão de segurança - respondeu Castle.

- Eles não confiam em ninguém. Em especial gente com a nossa posição. Somos os mais perigosos. É suposto sabermos aqueles malditos segredos.

- Não me sinto perigoso.

- Põe qualquer coisa a tocar - disse Castle. Davis tinha uma colecção de música pop que guardava

mais cuidadosamente do que qualquer outra coisa naquele apartamento. Estava catalogada de forma tão rigorosa como a biblioteca do Museu Britânico e Davis era capaz de citar os êxitos de cada ano tão prontamente como o vencedor do Derby.

Gostas de coisas antiquadas e clássicas, não é?

pôs Hard Day’s Night a tocar.

Põe mais alto.

Não se deve.

Mas põe na mesma. ;

Já está suficientemente horrível.

- Sinto-me mais à vontade - disse Castle.

- Achas que também puseram escutas aqui?

- Não me admirava.

- Não há dúvida que apanhaste a doença - comentou Davis.

- A conversa de Percival contigo... preocupa-me. É que não consigo acreditar... parece bom de mais. Acho que estão é a investigar uma fuga de informação.

- Por mim, tudo bem. É a obrigação deles, não? Mas não parece muito inteligente, se é assim tão fácil de detectar.

- Sim, mas a história do Percival pode à mesma ser verdadeira. Verdadeira e passada. Um agente, fossem quais fossem as suas suspeitas, sentir-se-ia obrigado a comunicá-la, caso...

- E tu pensas que eles julgam que somos nós as fugas?

- Sim. Um de nós, talvez ambos.

- Mas como não somos, qual é o problema? - rematou Davis. - Já é tarde, Castle. Se puseram um microfone debaixo do meu travesseiro, só vão ouvir os meus roncos.

E desligou a música. - Não nascemos para agentes duplos, tu e eu.

Castle despiu-se e apagou a luz. Estava um ambiente abarado naquele quarto pequeno e desarrumado. Tentou abrir a janela, mas o fecho estava partido. Olhou para a rua, onde amanhecia. Não se via ninguém: nem sequer um políCia- Só um táxi estava estacionado numa praça ao fundo da uavies Street, perto do Claridge’s. Um alarme anti-roubo soou algures na zona da Bond Street e uma chuva miudinha começou a cair. Puxou as cortinas e foi para a cama, mas não dormiu. Um ponto de interrogação manteve-o acordado durante algum tempo: uma praça de táxis ali tão perto da casa de Davis? Tinha a certeza de que uma vez tivera que andar até ao outro lado do Claridge’s para apanhar um. Antes de adormecer, foi assaltado por outra pergunta Seria possível, interrogou-se, estarem a usar Davis para o vigiar? Ou estariam a utilizar um Davis inocente para o apanharem? Não acreditava lá muito na história de Porton contada pelo doutor Percival, no entanto, e como tinha dito a Davis, podia muito bem ser verdadeira.

 

Castle andava muito preocupado com Davis. Era certo que Davis costumava brincar com a sua própria melancolia, o que não impedia que ela existisse, mas era muito mau sinal o facto de Davis ter deixado de gracejar com Cynthia. Estava sempre distraído e cada vez dizia mais coisas completamente irrelevantes para o trabalho que tinham em mãos. Certa vez, quando Castle lhe perguntou: «69 300/4, quem é?», Davis respondeu: «Um quarto de casal no Polana, com vista para o mar.» De qualquer maneira, a sua saúde estava boa - tinha recebido recentemente o resultado do check-up que o doutor Percival lhe fizera.

- Como de costume, aqui estamos à espera de um telegrama do Zaire - disse Davis. - O cinquenta e nove mil e oitocentos nunca se lembra de nós, passa as noites quentes sentado a beber os seus cocktails, sem pensar em mais nada.

- Se calhar é melhor insistirmos - disse Castle. Escreveu num pedaço de papel: «Nosso 185 não repetido sem resposta» e colocou-a no cesto para Cynthia o levar.

Naquele dia, Davis estava com ar de quem ia para uma regata. Um lenço novo de seda escarlate com um padrão de dados amarelos caía-lhe do bolso, como uma bandeira num dia sem vento, e a gravata era verde-garrafa com motivos escarlates. Até o lenço de assoar, enfiado na manga, parecia novo - azul-pavão. Estava de facto vestido ao estilo náutico.

- Tiveste um bom fim-de-semana? - perguntou Castle.

- Oh, sim, tive. De certo modo. Muito pacato. Os rapazes da poluição foram cheirar fumo de fábrica para Gloucester. Uma fábrica de goma.

Uma rapariga chamada Patricia (que sempre se recusara a ser tratada por Pat) veio da sala das secretárias buscar o único telegrama que eles tinham para enviar. Tal como Cynthia, era parente de militar, sobrinha do brigadeiro Tomlinson: contratar familiares próximos de homens que já estavam no departamento era considerado conveniente no aspecto da segurança e talvez facilitasse o trabalho, visto que muitos contactos se veriam naturalmente duplicados.

- Só isto? - perguntou a rapariga, como se estivesse habituada a trabalhar para secções mais importantes do que a 6A.

- Lamento, mas não conseguimos fazer mais nada respondeu Castle e ela saiu batendo a porta.

- Não devias tê-la irritado - disse Davis. - Ela pode ir fazer queixinhas ao Watson e depois ficamos de castigo a escrever telegramas em vez de ir para o recreio.

- Onde está a Cynthia?

- Está de folga.

Davis aclarou a garganta ruidosamente - como se estivesse a dar o sinal para a regata começar - e o seu rosto ficou vermelho como a insígnia da marinha mercante.

- Ia pedir-te... importas-te que eu me ponha a milhas às onze? Estou cá à uma, prometo, e não temos nada para fazer. Se alguém perguntar por mim, diz que fui ao dentista.

- Devias ter vindo de fato escuro - disse Castle -> se queres que o Daintry acredite. Essas roupas e essas cores não condizem com dentistas.

- E evidente que não vou ao dentista. Acontece que Cynthia combinou encontrar-se comigo no zoo para vermos os pandas-gigantes. Achas que ela começa a ceder?

- Estás mesmo apaixonado, Davis, não estás?

Quero, Castle, uma relação séria. Uma relação de

ração indefinida. Um mês, um ano, uma década. Estou morto de aventuras de uma noite. Levá-las de King’s Road casa depois de uma festa, às quatro da manhã com uma grande ressaca. Na manhã seguinte, penso que foi oprimo, a miúda era uma maravilha. E lamento não ter conseguido melhor, se ao menos não tivesse feito misturas... e então penso como teria sido com a Cynthia em Lourenço Marques. Com a Cynthia eu até poderia falar. Faz bem aqui ao John Thomas falar um bocado do trabalho. As miúdas de Chelsea, mal a festa acaba, querem saber coisas. O que é que eu faço, onde trabalho. Dantes eu fingia que ainda estava na Aldermaston, mas toda a gente sabe que agora a maldita firma está fechada. O que é que eu hei-de dizer?

- Que trabalhas na City?

- Isso não tem nada de excitante, além de que essas miúdas conferem os apontamentos. - Começou a arrumar as suas coisas. Fechou à chave o seu ficheiro. As duas páginas dactilografadas que estavam sobre a secretária, meteu-as no bolso.

- Vais levar essas páginas para fora do gabinete? perguntou Castle. - Cuidado com o Daintry. Já te apanhou uma vez.

- Ele já despachou a nossa secção. Agora anda em cima da Sete. Aliás isto tem apenas as idiotices habituais: Só para Ti. Destruir depois de ler. Ou seja, que se lixe. Vou decorá-las enquanto espero pela Cynthia. De certeza que vai chegar atrasada.

- Lembra-te do Dreyfus. Não as deites para o caixote do lixo para o varredor as apanhar.

--Vou queimá-las como oferta em frente da Cynthia.

- Saiu mas voltou rapidamente. - Gostava que me desejasses boa sorte, Castle.

- Claro que desejo. Sinceramente.

A expressão batida surgiu quente e involuntariamente na boca de Castle. Surpreendeu-o, tal como se, ao entrar numa gruta sua conhecida durante umas férias com a família, visse, numa rocha também sua velha conhecida, uma pintura primitiva representando um rosto humano que até então sempre tomara por um desenho formado ao acaso por fungos.

Meia hora depois tocou o telefone. Uma voz feminina disse:

- J. W. deseja falar com A. D.

- Lamento - respondeu Castle. - A. D. não pode falar com J. W.

- Quem fala? - perguntou a mesma voz, desconfiada.

- Alguém chamado M. C.

- Aguarde um momento, por favor. - Do telefone, chegou-lhe aos ouvidos uma espécie de latido. Seguiu-se a voz de Watson, inconfundível entre a banda sonora canina.

- É o Castle?

- Sou, sim.

- Quero falar com o Davis.

- O Davis não está.

- Onde é que ele foi?

- Volta à uma.

- Isso é demasiado tarde. Onde está ele agora?

- No dentista - respondeu Castle, com relutância. Não gostava de se envolver nas mentiras dos outros: complicavam tudo.

- É melhor empastelar o som - disse Watson. Houve a confusão habitual: cada um a carregar no botão certo demasiado cedo e regressando à transmissão normal quando o outro empastelava o som. Por fim lá conseguiram ouvir as vozes um do outro. - Não pode ir buscá-lo? Ele tem que ir a uma reunião.

- Não se pode arrancar uma pessoa da cadeira do dentista. Aliás, nem sei qual é o dentista dele. Não está na ficha.

- Não? - disse Watson, num tom de reprovação. -” Nesse caso ele devia ter deixado a morada escrita.

em tempos, Watson tentara, em vão, ser advogado. Talvez a sua óbvia integridade tivesse ofendido os juizes; ao que parecia, na opinião de muitos deles o moralismo devia ser guardado para a magistratura e não ser utilizado por nessoal menor. Porém, num «departamento do Ministério dos Negócios Estrangeiros» a sua ascensão fora rápida graças, precisamente, à qualidade que tanto o prejudicara no tribunal. Facilmente passava à frente de homens como Castle, de uma geração mais velha.

- Tinha obrigação de me comunicar que precisava de sair - disse Watson.

- Talvez a dor de dentes não lhe tenha dado tempo.

- C fazia questão que ele estivesse presente. Parece que queria discutir com ele um relatório. Sabe se ele recebeu algum?

- De facto, ele falou num relatório. Julgava tratar-se da rotina habitual.

- Rotina? Era ultra-secreto. Onde é que ele o pôs?

- Deve tê-lo guardado no cofre.

- Importa-se de verificar?

- Vou pedir à secretária dele... oh, desculpe, é impossível. Hoje é o dia de folga dela. Mas é assim tão importante?

- C pensa que sim. é melhor ir você à reunião, já que o Davis não está, mas a tarefa era dele. Sala Cento e Vinte e Um, meio-dia em ponto.

A reunião não parecia ter grande importância. Um membro do MI5 que Castle nunca tinha visto antes estava presente, porque o ponto principal em agenda era fazer a distinção, de uma forma mais clara do que até então, entre as responsabilidades do MI5 e as do MI6. Antes da última Perra, o MI6 nunca operara em território britânico, onde a Segurança cabia ao MI 5. O sistema alterou-se em África, com a queda da França e a necessidade de deslocar agentes do território britânico para as colónias de Vichy. A paz regressou, mas o velho sistema nunca foi completamente restabelecido. A Tanzania e o Zanzibar uniram-se oficialmente, formando um único Estado, membro da Comunidade Britânica, mas era difícil considerar a ilha de Zanzibar território britânico, com os seus campos de treino chineses. A confusão nascera porque tanto o MI5 como o MI6 tinham representantes em Dar es-Salam, e as relações entre eles nunca haviam sido boas nem amigáveis.

- A rivalidade - disse C, ao abrir a reunião - é saudável até certo ponto. Mas tem havido muita falta de confiança. Nem sempre trocámos informações sobre agentes. Muitas vezes temos usado o mesmo homem para espionagem e contra-espionagem. - E recostou-se dando a palavra ao homem da MI5.

Dos que ali estavam, Castle conhecia muito poucos, fora Watson. Um homem magro e grisalho, com uma maçã-de-adão proeminente, era, pelo que se dizia, o elemento mais velho da organização. Chamava-se Chilton. Chegara antes da guerra de Hitler e, curiosamente, não tinha granjeado inimigos. Agora ocupava-se principalmente da Etiópia. Era, também, a maior autoridade viva em artigos de comércio do século XVI, sendo o seu parecer frequentemente solicitado pela Sotheby’s. Laker era um ex-guarda com cabelo ruivo e bigode ruivo, que se encarregava das repúblicas árabes do Norte de África.

O homem do MI5 acabou de falar sobre linhas cruzadas. C disse:

- Bem, aí têm. O Tratado da Sala Cento e Vinte e Um. Estou certo de que agora todos conhecemos melhor as nossas posições. Foi muito amável em comparecer, Puller-

- Pullen.

- Perdão, Pullen. Bem, mas se nos desculpar a falta de hospitalidade, temos umas questões internas a resolver... - depois de Pullen fechar a porta, acrescentou: - Nunca fiquei satisfeito com os tipos do MI5. Não sei como, mas onde quer que estejam conseguem sempre instalar uma espécie de atmosfera policial. é natural, claro, lidando eles com contra-espionagem. Para mim a espionagem é mais uma coisa de cavalheiros, mas bem sei que sou um antiquado.

Do seu canto obscuro, Percival falou. Castle ainda nem tinha dado pela presença dele.

- Pessoalmente, sempre preferi o MI9.

- Que faz o MI9? - perguntou Laker, afagando o bigode. Sabia que era um dos poucos militares em todas as variantes do MI.

- Já o esqueci há muito tempo - respondeu Percival -, mas parecem-me sempre os mais simpáticos. Chilton ladrou brevemente, era a sua maneira de rir.

- Não eram eles - perguntou Watson - que lidavam com fugas de informação durante a guerra? Ou seria o MUI? Não sabia que ainda andavam por aí.

- Bem, na verdade não os vejo há muito tempo respondeu Percival, com o seu ar de médico, gentil e estimulante. Podia muito bem estar a descrever os sintomas da gripe. - Provavelmente puseram-se a andar.

- A propósito - perguntou C -, o Davis está cá? Há um relatório que eu queria discutir com ele. Não me parece que o tenha visto na minha peregrinação pela Secção Seis.

- Está no dentista - informou Castle.

- Mas ele não mo comunicou - indignou-se Watson.

- Não se preocupe, não é nada de urgente. Em África nada é urgente. As mudanças ocorrem devagar e, em geral, são pouco permanentes. Tomara que fosse assim na Europa.

C reuniu os seus papéis e escapuliu-se em silêncio, como Um anfitrião que sente que a festa ficará muito mais divertida se ele desaparecer.

E curioso - disse Percival -, quando estive com avis, no outro dia, pareceu-me que tinha a dentadura em grande forma. Disse-me que ela nunca lhe dava problemas Nem sequer tártaro costumava ter. Já agora, Castle, veja se me arranja o nome do dentista dele. Para as minhas fichas médicas. Se ele está com problemas, podia ter-lhe recomendado um dos nossos. Por questões de segurança.

 

O doutor Percival tinha convidado Sir John Hargreaves para almoçar no seu clube, o Reform. Costumavam almoçar juntos uma vez por mês, alternadamente no Reform ou no Travellers, sempre a um sábado, quando a maioria dos sócios estava no campo, a passar o fim-de-semana. Emoldurada pela janela, a Pall Mall, de um tom cinzento metálico, parecia uma gravura vitoriana. O Verão de São Martinho estava no fim, a hora já tinha mudado e sentia-se o Inverno na mais pequena brisa. Começaram com truta fumada, o que levou Sir John Hargreaves a contar ao doutor Percival que estava a pensar criá-las no ribeiro que dividia a sua propriedade em parque e terreno agrícola.

- Vou precisar dos seus conselhos, Emmanuel - disse. Quando estavam em privado, tratavam-se pelos nomes de baptismo.

Durante muito tempo falaram da pesca à truta, ou melhor, o doutor Percival falou - Hargreaves sempre considerara a pesca um tema muito limitado, mas sabia que o doutor Percival era homem para arrastá-lo até à hora do jantar. No entanto, a conversa passou das trutas para outro assunto que lhe era igualmente querido quando, numa inesperada manobra de diversão, falou do seu próprio clube:

- Se eu tivesse consciência - disse o doutor PerciVal -, há muito que tinha deixado de ser sócio disto. Só Continuo cá por causa da comida: a truta fumada, desculpe la’ John, é a melhor de Londres.

- Acho a comida do Travellers tão boa como esta   disse Hargreaves.

- Oh, mas está a esquecer-se do nosso empadão de carne e rim. Sei que não gosta que eu diga isto, mas acho-o melhor do que a empada da sua mulher. A massa não deixa o molho combinar-se com os outros ingredientes. O empadão absorve o molho. O empadão, por assim dizer, colabora,

- Mas o que é que isso tem a ver com a sua consciência, Emmanuel, partindo do princípio que tem uma, o que não me parece lá muito provável?

- Não sei se sabe, mas para me fazer sócio disto tive que assinar uma declaração a favor da Reform Act de mil oitocentos e trinta e dois. Bem sei, não foi uma lei tão má como muitas das suas sucessoras, por exemplo, a que deixa votar aos dezoito anos, mas abriu as portas à perniciosa teoria de um homem, um voto. Até os russos aderiram a isso agora, por razões de propaganda, mas são suficientemente espertos para garantirem que as coisas que vão a votos na terra deles não tenham importância absolutamente nenhuma.

- Mas que grande reaccionário, Emmanuel. No entanto, acho que tem razão quanto ao empadão e à massa. Talvez experimentemos fazer um empadão para o ano, se eu ainda me puder dar ao luxo de organizar uma caçada.

- Se não puder, verá que é por causa de um homem, um voto. Seja honesto, John, e admita a confusão que essa ideia estúpida armou em África.

- Suponho que a democracia verdadeira leva tempo a dar frutos.

- Aquele tipo de democracia nunca dará frutos.

- Gostaria mesmo de regressar ao voto do chefe de família, Emmanuel? - Hargreaves nunca sabia se o doutor Percival estava a falar a sério ou a brincar.

- Gostava, porque não? O rendimento requerido para um homem poder votar devia ser ajustado todos os anos! claro, de acordo com a inflação. Quatrocentos ao ano talvez

ia o nível decente para se votar, hoje em dia. Isso daria o Direito de voto aos estivadores e aos mineiros, o que nos poupava uma data de chatices.

Depois do café desceram a pé, de comum acordo, a grande escadaria de Gladstone que desembocava no frio de Pall Mall. A velha fachada de tijolo do Palácio de St. James brilhava como uma fogueira através da neblina daquele dia cinzento e um clarão escarlate cobria a sentinela - uma última labareda. Quando entraram no parque, o doutor Percival disse:

- Voltando às trutas... - Escolheram um banco de onde podiam ver os patos a deslizar sem esforço, como brinquedos magnéticos, pela superfície do lago. Ambos usavam sobretudos de tweed idênticos e pesados, sobretudos de homens que vivem no campo por opção. Um homem de chapéu de coco passou por eles; levava um chapéu-de-chuva e franzia a testa, decerto absorto nalgum pensamento.

- Aquele é o Browne, com «e» - disse o doutor Percival.

- Conhece tanta gente, Emmanuel.

- E um dos consultores económicos do primeiro-ministro. Por mim, ele não votava, ganhe ele o que ganhar.

- Bem, vamos falar de negócios, está bem? Agora estamos os dois sozinhos. Calculo que tenha medo que o Reform esteja sob escuta.

-- E não havia de ter? Rodeado por um magote de fanáticos de um homem, um voto. Se foram capazes de dar direito de voto a um punhado de canibais...

- Não diga mal dos canibais - disse Hargreaves -, a’guns dos meus melhores amigos são canibais e agora que o tal Browne com «e» já não nos pode ouvir...

- Tenho estudado o caso minuciosamente, John, com o Daintry, e pessoalmente estou convencido de que Davis é o hornem que procuramos.

- O Daintry também está convencido?

- Não. É tudo circunstancial, tem mesmo que ser, e o Daintry tem uma cabeça muito legalista. Não vale a pena fingir que gosto do Daintry. Não tem qualquer sentido de humor mas, claro, é muito consciencioso. Fui sair à noite com o Davis, aqui há uma semana. Não é um alcoólico declarado, como o Burgess ou o Maclean, mas bebe que se farta, e creio que anda a beber mais desde que a nossa investigação começou. Como esses dois e o Philby, anda muito tenso. E um bocado maníaco-depressivo, e um maníaco-depressivo costuma ter aquela pontinha de esquizofrenia indispensável a um agente duplo. Está ansioso por ir para fora. Talvez por saber que está a ser observado e por o terem proibido de tentar escapar. Claro que em Lourenço Marques ficaria fora do nosso controlo e numa posição muito útil para eles.

- Mas e as provas?

- São ainda um bocado frouxas, mas será que podemos esperar por provas consistentes, John? Ao fim e ao cabo, não tencionamos levá-lo a tribunal. A alternativa é o Castle (concordou comigo em eliminar o Watson) e já o investigámos com o mesmo rigor. Segundo casamento feliz, a primeira mulher morta num bombardeamento durante a guerra, passado impecável, o pai era médico, um daqueles médicos de família antiquados, membro do Partido Liberal, mas não, note bem, do Reform, cuidava dos seus doentes do nascimento até à morte e esquecia-se de lhes mandar a conta, a mãe ainda é viva, foi enfermeira-chefe durante a guerra e ganhou a George Medal. Uma grande patriota, vai aos comícios dos Conservadores. Boa cepa, tem que admitir. Não há problemas de bebida com o Castle e ele é muito cuidadoso com os gastos. O Davis gasta imenso dinheiro em porto e uísque, com o seu Jaguar, aposta regularmente nos cavalos, tem a mania que é um grande entendedor e diz que se farta de ganhar, o que é uma desculpa clássica quando se gasta mais do que se pode. Daintry contou-me que um dia ele foi apanhado a levar um relatório do cinquenta e nove mil e oitocentos para fora do escritório. Disse que para o ler durante o almoço. E lembra-se do dia em que Vemos a conferência com o MI5 e queria que ele estivesse presente? finha saído para ir ao dentista: não foi nada ao dentista (por acaso sei que tem uns dentes óptimos) e duas semanas depois tivemos conhecimento de outra fuga.

Onde é que ele foi afinal?

Daintry já o tinha debaixo do olho da Segurança Interna. Foi ao zoo. Entrou pela porta dos sócios. O tipo que o seguia teve de ir para a bicha da entrada normal e perdeu-o de vista. Muito profissional.

- Não se sabe com quem ele se foi encontrar?

- Ele é esperto. Devia saber que estava a ser seguido. Acontece que confessou ao Castle que não tinha ido ao dentista. Disse que se tinha encontrado com a secretária (era o dia de folga dela) junto aos pandas. Mas aquele relatório que queria discutir com ele... nunca esteve no cofre, Daintry verificou isso.

- Não era um relatório muito importante. É tudo um pouco obscuro, admito, mas não chamaria a nada disso prova, Emmanuel. Chegou a encontrar-se com a secretária?

- Sim, encontraram-se. Saiu do zoo com ela, mas sabe-se lá o que aconteceu entretanto.

- Tentou a técnica da rasteira?

- Falei-lhe confidencialmente de umas investigações em Porton, mas até agora não aconteceu nada.

- Não me parece que possamos fazer alguma coisa com material tão pouco sólido.

- E se ele entra em pânico e foge?

- Nesse caso, teríamos que agir depressa. Já decidiu que medidas devemos tomar?

- Tive uma ideia gira, John. Amendoins.

- Amendoins!

Aquelas coisinhas salgadas que se comem nos cocktails.

- Sei muito bem o que são amendoins, Emmanuel. Não se esqueça que fui governador na África Ocidental.

- Pois bem, são a nossa solução. Os amendoins, quail do se estragam, cobrem-se de bolor. A culpa é do AspergiHUs flavus, mas não precisa de decorar o nome. Não é importante e sabe bem que o latim não é o seu forte.

- Despache-se, pelo amor de Deus.

- Para ser mais claro, vou concentrar-me no bolor O bolor produz um grupo de substâncias altamente tóxicas conhecidas pelo nome colectivo de aflatoxina. E a aflatoxina é a solução para o nosso pequeno problema.

- Como é isso?

- Não há certezas quanto aos seres humanos, mas parece que nenhum animal lhe é imune, por conseguinte não é provável que nós o sejamos. A aflatoxina mata as células do fígado. Basta estarem expostas ao produto umas três horas. Nos animais, os sintomas são perda de apetite e letargia. As asas dos pássaros ficam fracas. A autópsia revela hemorragia, necrose no fígado e ingurgitamento renal, se me perdoa o jargão médico. Em geral, a morte dá-se ao fim de uma semana.

- Raios o partam, Emmanuel. Sempre gostei de amendoins, mas agora nunca mais vou conseguir comer um.

- Não se preocupe, John. Os seus amendoins salgados são apanhados à mão, embora calcule que nunca se deve pôr de lado a hipótese de um acidente, à velocidade com que costuma acabar com uma lata não é provável que cheguem a estragar-se.

- Parece que se divertiu imenso com as suas investigações. Às vezes, Emmanuel, chega a causar-me arrepios.

- Confesse que é a solução ideal para o nosso problema. A autópsia revelaria apenas os estragos causados no fígado e creio que o médico legista preveniria o público contra os perigos do abuso do porto.

- Suponho que até já pensou na maneira de arranjar essa acro...

- Aflatoxina, John. Não há qualquer dificuldade. Tenho um homem a prepará-la neste momento Portouesta uma pequena quantidade. Zero vírgula zero zero sesnta e três miligramas por quilo de peso. Como calcula, já avisei o Davis. Zero vírgula cinco miligramas devem chegar, mas por precaução digamos zero vírgula setenta e cinco. Podemos experimentar primeiro uma dose ainda menor. Uma vantagem adicional disto tudo, claro, é que obtemos informações preciosas sobre o efeito da aflatoxina nos seres humanos.

- Nunca se choca a si próprio, Emmanuel?

- Não há nada de chocante nisto, John. Pense em todas as outras possíveis mortes de Davis. A cirrose seria uma morte muito mais lenta. Com uma dose de aflatoxina ele quase não chega a sofrer. Uma letargia crescente, talvez uns problemazitos nas pernas, visto ele não ter asas, e, claro, algumas náuseas. Levar apenas uma semana a morrer é uma sorte, se pensar no que muitas pessoas padecem.

- Fala como se ele já estivesse condenado.

- Bem, John, estou convencido de que ele é o nosso homem. Só me falta ter luz verde da sua parte.

- Se o Daintry também estivesse convencido...

- Ora, John, não podemos perder tempo à espera do tipo de provas que o Daintry exige.

- Dê-me uma só prova concludente.

- Ainda não posso, mas talvez não convenha esperar muito. Lembra-se do que disse na noite da caçada: um marido complacente está sempre à mercê do amante. Não podemos permitir mais um escândalo, John.

Outra figura de chapéu de coco passou por eles, com a gola do casaco virada para cima, e desapareceu no nevoeiro outonal. Uma a uma, as luzes acenderam-se nos Negócios Estrangeiros.

Falemos antes do ribeiro das trutas, Emmanuel. Ah, as trutas. Os outros que se gabem de apanhar Ultos salmões, esses peixes grosseiros, estúpidos e oleosos Orti aquela cegueira de subir os rios, o que os torna incrivelmente fáceis de pescar. Basta umas botas, um braço forte e um ajudante esperto. Mas a truta, oh, a truta, não há dúvida de que é o rei dos peixes.

O coronel Daintry tinha arrendado um apartamento de duas divisões na St. James’s Street através de uma agência que pertencia a um membro da organização. Durante a guerra, fora utilizado pelo MI6 como ponto de encontro para entrevistar potenciais elementos. O edifício tinha só três apartamentos e quem tomava conta dele era uma velha governanta que vivia algures num quarto que nenhum inquilino conhecia, sob o telhado. Daintry morava no primeiro andar, por cima de um restaurante (o barulho das gargalhadas mantinha-o acordado até de madrugada, quando o último táxi arrancava). Por cima da cabeça dele havia um empresário reformado, que em tempos estivera ligado aos serviços rivais SOE, e um general no passivo que combatera no deserto ocidental. O general era demasiado idoso para aparecer com frequência nas escadas, mas o empresário, que sofria de gota, costumava atravessar a rua e ia a pé até ao Carlton Club. Daintry não cozinhava e, para poupar, a uma das refeições comia salsichas frias que comprava no Fortnum’s. Nunca gostara de clubes: quando tinha fome, o que era raro, ia ao Overton’s, mesmo ali por baixo. O seu quarto e a sua casa de banho davam para um pequeno pátio velho, onde havia um relógio de sol e um ourives. Poucas das pessoas que desciam a St. James’s sabiam da existência desse pátio. Era um apartamento muito discreto e apropriado a um homem solitário.

Pela terceira vez, Daintry passou a sua Remington pelo rosto. A preocupação da limpeza proliferava na solidão, como pêlos num cadáver. Preparava-se para ir a um dos seus raros jantares com a filha. Tinha-a convidado para irem ao Overton’s, onde já o conheciam, mas ela declarou que queria comer rosbife. Recusou-se igualmente a ir ao Simpson’s, nde Daintry também era conhecido, porque, nas palavras dela, tinha um ambiente muito masculino. Insistiu em encontrar-se com ele no Stone’s, na Panton Street, onde o aguardaria às oito. Nunca ia a casa dele - temia que fosse uma falta de lealdade para com a sua mãe, embora soubesse que nenhuma mulher lá vivia. Se calhar o próprio Overton’s estava manchado pela proximidade com a casa dele. Daintry ficava sempre irritado quando entrava no Stone’s e um homem com um ridículo chapéu alto lhe perguntava se ele tinha reservado uma mesa. O antigo estabelecimento antiquado que recordava da sua juventude fora destruído na guerra e depois reconstruído com uma decoração requintada. Daintry lembrava-se com saudade dos velhos criados de casaca poeirenta, da serradura no chão e da cerveja forte, feita de encomenda em Burton-on-Trent. Agora, a acompanhar a escadaria, viam-se painéis idiotas representando cartas de jogar gigantes, mais próprios de uma casa de jogo, e havia umas estátuas nuas brancas debaixo da água que caía de uma fonte por detrás de um vidro, ao fundo do restaurante. Faziam o Outono parecer mais frio do que na realidade era. A filha já lá estava à espera dele.

- Desculpa o atraso, Elizabeth - disse Daintry. Sabia que estava três minutos adiantado.

- Não faz mal. Já pedi uma bebida.

- Então também tomo um xerez.

- Tenho uma novidade para te contar. Por enquanto, só a mãe é que sabe.

-- Como está a tua mãe? - perguntou Daintry, muito rorrnal. Era sempre a sua primeira pergunta e ficava satisfeito depois de a ter despachado.

- Vai andando. Vai passar uma ou duas semanas a Drighton, para mudar de ares.

Era como se estivessem a falar de alguém que conheciam apenas vagamente - não podia ser mais estranho Pensar que em tempos ele e a mulher tinham sido suficientemente íntimos ao ponto de partilharem um espasmo sexual que dera origem à bela rapariga sentada à sua frente, a beber o seu Tio Pepe com tanta elegância. A tristeza nunca se afastava muito quando Daintry se encontrava com a filha - como um complexo de culpa. «Culpa porquê?», costumava argumentar contra si próprio. Fora sempre aquilo a que se chama fiel.

- Oxalá apanhe bom tempo - disse. Sabia que tinha aborrecido a mulher, mas isso alguma vez era razão para se sentir culpado? Afinal, quando aceitou casar com ele, ela sabia muito bem o que a esperava; entrara de livre vontade naquele mundo gelado de longos silêncios. Daintry invejava os homens que podiam chegar a casa e conversar acerca do que se tinha passado nos seus empregos banais.

- Não queres saber a minha novidade, pai?

De repente, viu, por cima do ombro dela, Davis. Davis estava sozinho, sentado a uma mesa posta para dois. Enquanto esperava, tamborilava com os dedos, olhos postos no guardanapo. Daintry desejou que ele não se voltasse,

- Novidade?

- Foi o que eu disse. Só a mãe é que sabe. E o outro, claro - acrescentou, com uma gargalhada comprometida. Daintry olhou para as mesas de um e outro lado de Davis. Esperava ver numa delas a sombra de Davis, mas os dois casais de idosos, a meio das suas refeições, não deviam pertencer à Segurança Interna.

- Não pareces nem um bocadinho interessado, pai. Estás a milhas daqui.

- Desculpa. E que vi uma pessoa conhecida. Qual é o grande segredo?

- Vou casar.

- Casar! - exclamou Daintry. - A tua mãe sabe.

- Já te disse que a mãe sabe.

- Desculpa.

- Porque é que pedes desculpa de eu ir casar?

- Não era isso que eu queria dizer... Claro que fico contente, se ele te merecer. És muito bonita, Elizabeth*

Não estou à venda, pai. Acho que no teu tempo,

umas boas pernas faziam subir o preço de mercado.

O que é que ele faz?

Trabalha numa agência de publicidade. Tem a conta

o pó-de-talco Jameson’s.

E isso é bom?

É óptimo. Estão a gastar rios de dinheiro a ver se

põem o pó-de-talco Jameson’s em segundo lugar. O Colin fez uns anúncios maravilhosos para a televisão. Até escreveu uma canção.

- Gostas muito dele? Tens mesmo a certeza?... Davis pedira um segundo uísque. Continuava a olhar

para a ementa - mas já a tinha lido várias vezes.

- Temos ambos a certeza, pai. Afinal, já vivemos juntos há quase um ano.

- Desculpa - voltou a dizer Daintry, o jantar estava a transformar-se numa sessão de desculpas. - Não sabia de nada. Suponho que a tua mãe soubesse disso?

- Calculava, como é natural.

- Ela está contigo mais vezes do que eu.

Daintry sentiu-se como um homem que, do convés do navio prestes a levá-lo para um longo exílio, olha para trás e vê a ténue linha de costa do seu país desaparecer a pouco e pouco no horizonte.

- Ele queria vir hoje jantar connosco, para te ser apresentado, mas eu disse-lhe que desta vez queria estar a sós contigo.

«Desta vez»: tinha o som de um longo adeus; agora via apenas o horizonte, a terra desaparecera.

- E quando é que te casas?

- Sábado, dia vinte e um. No registo. Não convidámos ninguém, a não ser a mãe, claro. E alguns amigos. u Colin já não tem pais.

Colin, pensou Daintry, quem é o Colin? Mas, claro, era

o homem do talco Jameson’s.

_ Gostava que fosses... mas fico sempre com a impressão de que não gostas de encontrar a mãe.

Davis tinha desistido, fosse do que fosse. Quando pagou os uísques, levantou os olhos e viu Daintry. Pareciam dois emigrantes que tinham subido ao convés para ver o seu país pela última vez e não sabiam se haviam de falar um com o outro. Davis voltou-se e dirigiu-se à porta. Daintry olhou-o decepcionado - afinal não era preciso travarem já conhecimento, se iam fazer juntos uma longa viagem.

Daintry pousou o copo bruscamente e entornou um pouco de xerez. Sentiu-se subitamente irritado com Percival. O homem não tinha contra Davis provas que servissem de alguma coisa num julgamento. Não confiava em Percival. Recordou Percival durante a caçada. Percival nunca estava sozinho, ria com a mesma facilidade com que falava, percebia de pintura, estava à vontade entre desconhecidos. Não tinha uma filha que vivesse com um estranho num apartamento que ele não conhecia - nem sequer sabia onde ficava.

- Estamos a pensar ir depois beber uns copos e comer qualquer coisa num restaurante, ou talvez em casa da mãe. A mãe a seguir volta para Brighton. Se quiseres aparecer...

- Não me parece. Vou para fora nesse fim-de-semana

- mentiu Daintry.

- Marcas coisas com muita antecedência.

- Tem que ser - mentiu de novo, infeliz. - Tenho tanto que fazer. Sou um homem muito ocupado, Elizabeth. Se me tivesses dito...

- Quis fazer-te uma surpresa.

- É melhor fazermos o pedido, não achas? Queres o rosbife, não preferes o carneiro?

- Para mim, rosbife.

- E depois vão em lua-de-mel?

- Bem, passamos o fim-de-semana em casa. Talvez, na Primavera... Neste momento Colin está muito ocupado com o talco Jameson’s.

- Acho que devemos festejar - disse Daintry. -’ Uma garrafa de champanhe? - Não gostava de chanpanhe, mas um homem tem que cumprir o seu dever.

Por mim, preferia um copo de vinho tinto

Temos que pensar nesse presente de casamento.

__ O melhor é dares um cheque, e é mais fácil para ti. Não tens que ir às compras. A mãe vai dar-nos um tapete

lindo.

Não trouxe o livro de cheques. Eu faço-to chegar na

segunda-feira.

Depois do jantar, despediram-se na Pan ton Street - ele ofereceu-se para levá-la a casa de táxi, mas ela disse que lhe apetecia andar a pé. Daintry não fazia ideia de onde ficava o apartamento que ela partilhava. A vida privada da filha era um segredo tão grande como a sua, só que no seu caso não havia muito a esconder. Era raro comerem juntos porque tinham tão pouco para dizer um ao outro, mas quando se lembrou de que nunca mais estariam os dois sozinhos, Daintry sentiu-se abandonado. E disse:

- Talvez consiga desmarcar aquele fim-de-semana.

- O Colin ia gostar muito, pai.

- Posso levar alguém comigo?

- Claro. Quem quiseres. Estás a pensar em quem?

- Ainda não sei. Talvez uma pessoa do escritório.

- Seria óptimo. Mas sabes... não tenhas medo de encontrar a mãe. A mãe gosta de ti.

Ficou a vê-la desaparecer na direcção de Leicester Square. E a seguir? Não fazia ideia. Depois voltou para oeste, rumo à St. James’s Street.

 

O Verão de São Martinho voltou por um dia e Castle concordou em fazer um piquenique - Sam estava impaciente, por causa da longa quarentena, e Sarah tinha a impressão fantástica de que qualquer vestígio de micróbio que ainda existisse desapareceria entre as faias, juntamente com as folhas do Outono. Preparara um termo com sopa de cebola quente, meio frango frio para ser desmembrado à mão, bolos de passas, um osso de borrego para Buller e um outro termo, com café. Castle acrescentou o seu frasco de uísque. Havia duas mantas para se sentarem e Sam até tinha concordado em levar um sobretudo, para o caso de o vento se levantar.

- E uma loucura fazer um piquenique em Outubro disse Castle, a quem a imprudência do acto dava algum prazer. O piquenique era uma oportunidade para não pensar em trabalho, cautela, boca calada, capacidade de previsão. Mas é claro que o telefone tocou, retinindo como um alarme da polícia enquanto arrumavam os sacos nas bicicletas.

- São outra vez aqueles homens das máscaras - disse Sarah. - Vão estragar o nosso piquenique. Vou pensar o tempo todo no que se estará a passar cá em casa.

Castle respondeu, pesaroso, com a mão a tapar o auscultador:

- Não, não te preocupes. E o Davis.

O que é que ele quer?

Está em Boxmoor, de carro. Como estava um dia bonito, resolveu vir ter comigo.

Maldito Davis. Agora que estava tudo preparado.

não há mais nada para comer em casa. Só o nosso jantar. não chega para quatro.

Se quiseres, vai tu com o Sam. Eu almoço no Swan com o Davis.

- O piquenique não tem graça nenhuma - disse Sarah - sem ti.

- É Mister Davis? - perguntou Sam. - Quero que Mister Davis venha. Podíamos jogar às escondidas. Nunca estamos com Mister Davis.

- Podíamos convidar o Davis... - disse Castle.

- Meio frango para quatro pessoas...?

- Mas os bolos de passas chegam para um regimento.

- Ele não vai querer fazer um piquenique em Outubro, só se for doido.

Mas Davis revelou-se tão doido como eles. Disse que adorava piqueniques, mesmo nos dias quentes de Verão, quando havia vespas e moscas, mas preferia-os no Outono. Como no seu Jaguar não havia lugar para todos, combinou encontrar-se com eles num dado local do parque e ao almoço arrecadou o «osso dos desejos», graças a um gesto ágil do pulso. Depois ensinou-lhes um jogo novo. Os outros tinham que lhe fazer perguntas até adivinharem o desejo dele e só se o não conseguissem o desejo se realizaria. Sarah adivinhou-o, por intuição. Desejara um dia estar em primeiro ’ugar nas tabelas de discos.

Não faz mal, eu também não esperava que o meu desejo se realizasse. Não sei escrever uma nota.

quando os últimos bolos de passas desapareceram, o sol a tarde estava abaixo dos tufos de tojo e o vento começara soprar. Folhas cor de cobre esvoaçavam e caíam por cima as bolotas do ano anterior.

Vamos jogar às escondidas - propôs Davis e Castle viu que Sam o olhava com admiração, como se ele fosse um herói.

Tiraram à sorte para saber quem seria o primeiro a esconder-se e calhou a Davis. Caminhando entre as árvores dentro do seu sobretudo de pêlo de camelo, parecia um ut. só fugido do zoo. Depois de contarem até sessenta, os outros começaram a procurá-lo, Sam no extremo do parque Sarah na direcção de Ashridge e Castle na mata onde Davis se embrenhara. Buller seguiu-o, provavelmente na esperança de encontrar algum gato. Um assobio baixo guiou Castle até ao esconderijo de Davis, numa depressão rodeada por fetos.

- Este esconderijo é frio como o raio - disse Davis -, mais a mais à sombra.

- Tu é que sugeriste este jogo. Estava tudo pronto para regressarmos a casa. Para baixo, Buller. Para baixo, vá,

- Eu sei, mas percebi que o bastardozinho estava morto por jogar a isto.

- Pareces perceber mais de crianças do que eu. Acho melhor chamá-los. Ainda apanhamos uma doença fatal...

- Não, espera aí. Estava com esperança que fosses o primeiro a aparecer. Queria falar contigo a sós. É importante.

- Não podemos falar amanhã no escritório?

- Não, fizeste-me desconfiar do escritório. Castle, acho que estou mesmo a ser seguido.

- Eu bem te disse que me pareceu que o teu telefone estava sob escuta.

- E eu não acreditei. Mas desde essa noite... Na quinta-feira fui com a Cynthia ao Scott’s. Quando descemos, estava um homem no elevador. E mais tarde vi o mesmo homem no Scott’s a beber um Black Velvet. E hoje, a caminho de Berkhamstead, reparei que vinha um carro atrás do menem Marble Arch, e, por instantes, pareceu-me que conheci o condutor. Não conhecia, mas voltei a vê-lo atrás de mim em Boxmoor. Num Mercedes preto.

- O mesmo homem que estava no Scott’s?

Claro que não. Eles não são assim tão estúpidos.

o meu Jaguar acelerou e a estrada estava com o trânsito dos

d•mingos. Despistei-o antes de chegar a Berkhamstead.

Não confiam em nós, Davis, ninguém confia, mas

que importa, se estamos inocentes?

Sim, eu sei isso tudo. Como a velha canção, não é?

«Que importa? Estou inocente. Se me apanharem desprevenido, Direi apenas que fui, Comprar pêras e maçãs...» Se calhar ainda consigo o tal primeiro lugar.

Despistaste-o mesmo antes de Berkhamstead?

- Sim. Tanto quanto sei. Mas o que se passa, Castle? Será apenas rotina, como a conversa com Daintry pareceu ser? Estás nisto há muito mais tempo do que eu. Deves saber.

- Eu disse-te, na noite em que saímos com o Percival. Julgo que houve uma fuga qualquer e eles desconfiam que alguém seja um agente duplo. Portanto, andam a investigar e se alguém der por isso, é-lhes indiferente. Pensam que se nos assustarmos podemos denunciar-nos, se formos culpados.

- Eu, um agente duplo? Tu acreditas nisso, Castle?

- Claro que não. Não te preocupes. Só precisas de um pouco de paciência. Quando acabarem com as investigações ficarão a saber que não és. Também devem andar a vigiar-me -, e ao Watson.

Lá longe, Sarah gritava:

- Desistimos! Desistimos!

Uma voz fininha ouviu-se à distância:

- Não desistimos coisa nenhuma! Continue escondido, Mister Davis. Por favor, Mister Davis...

Buller ladrou e Davis espirrou.

- As crianças são implacáveis - disse.

Ouviu-se um restolhar entre os fetos em volta do esconderijo e apareceu Sam.

-Apanhado - disse e a seguir viu Castle. - Fizeste batota.

- É que eu não podia chamar-vos - disse Castle. ^ Ele apontou-me uma arma.

- E onde está a arma?

- Procura no bolso do casaco dele.

- Só vejo uma caneta de tinta permanente - disse Sam.

- é uma bomba de gás - explicou Davis -, disfarçada de caneta. Vês este botão? Esguicha uma coisa que parece mesmo tinta, mas não é, é gás asfixiante. O James Bond nunca teve categoria para usar uma coisa destas, é demasiado secreta. Mãos ao ar.

Sam obedeceu.

- é mesmo um espião verdadeiro?

- Sou um agente duplo, ao serviço da Rússia - respondeu Davis -, e se tens amor à vida, dá-me uns metros de avanço. - Atravessou os fetos e começou a correr desajeitadamente, por causa do pesado sobretudo, pelo bosque de faias. Sam foi atrás dele, subiu uma rampa, desceu outra, Davis chegou a uma ribanceira junto à estrada para Ashridge, onde deixara o carro. Apontou a caneta a Sam e gritou uma mensagem tão mutilada como os telegramas de Cynthia: «Piquenique... amor... Sarah» e daí a nada partia, com um forte estrondo do seu tubo de escape.

- Pede-lhe para voltar - disse Sam -, por favor, pede-lhe para voltar.

- Claro. Porque não? Quando chegar a Primavera,

- Ainda falta muito para a Primavera - refilou Sam.

- E nessa altura já estou na escola.

- Mas há os fins-de-semana - replicou Castle, sem grande convicção. Lembrava-se bem de como o tempo passa devagar durante a infância. Um carro passou por eles, na direcção de Londres, um carro preto, talvez fosse um Mertt dês, mas Castle percebia muito pouco de automóveis.

- Gosto muito de Mister Davis - disse Sam.

- Eu também.

- Ninguém joga às escondidas tão bem como ele, Nem mesmo tu.

Acho que não estou a fazer grandes progressos aqui com o Guerra e Paz, Mister Halliday.

- Mas que pena. É uma grande obra, para quem tiver paciência. Já chegou à retirada de Moscovo?

- Não.

É uma história terrível.

Hoje parece-nos muito menos terrível, não é verdade? Afinal, os franceses eram soldados, e a neve não é como o napalm. Adorrnece-se, é o que dizem, não se é queimado vivo.

- Sim, quando penso naquelas crianças todas do Vietname... Quis participar nalgumas das manifestações que se fizeram por cá, mas o meu filho nunca me deixou. Ganhou medo à polícia, naquela lojazita dele, embora eu não veja que mal pode ele fazer com meia dúzia de livros picantes. Como sempre digo, os homens que os compram não podem ficar piores do que já são antes de lê-los, não acha?

- Pois não, eles não são jovens americanos e bons a cumprirem a sua missão, como os das bombas de napalm

- disse Castle. Às vezes era impossível não mostrar uma lasca do icebergue submerso que era a sua vida.

- E no entanto não houve nada que pudéssemos fazer

- disse Halliday. - O governo fala em democracia, mas alguma vez quis saber dos nossos cartazes e das nossas palavras de ordem? Só em tempo de eleições. Foram úteis para eles saberem que promessas quebrar, mais nada. No dia seguinte, lia-se nos jornais que mais uma aldeia inocente tinha sido arrasada por engano. Oh, não tarda muito estão a razer o mesmo na África do Sul. Primeiro, eram as criancinhas amarelas, não eram mais amarelos do que nós, e qualquer dia são as criancinhas pretas...

- Mudemos de assunto - disse Castle. – Recomende-me um livro que não seja sobre guerra.

- Há sempre o Trollope - disse Mr. Halliday. - O meu filho é um apreciador do Trollope. Embora não tenha nada a ver com as coisas que ele vende.

- Nunca li Trollope. Não é um tanto eclesiástico? Olhe, peça ao seu filho que escolha um e envie-mo pelo correio.

- O seu amigo também não gostou do Guerra e Paz.

- Não. Na verdade, ainda se fartou primeiro do que eu. Talvez seja guerra a mais para ele.

- Eu podia dar um pulinho ao outro lado e perguntar ao meu filho. Sei que ele prefere romances políticos, ou sociológicos, como ele diz. Ouvi-o falar do The Way We Live Now. Um título excelente. Nunca deixa de ser contemporâneo. Quer levá-lo hoje?

- Não, hoje não.

- Dois exemplares, como de costume? Invejo-o por ter um amigo com quem pode falar de literatura. Hoje em dia, são poucas as pessoas que se interessam por literatura.

Depois de deixar a loja de Mr. Halliday, Castle foi a pé até à estação de Picadilly Circus e procurou um telefone. Escolheu a última cabina e olhou, através do vidro, a sua única vizinha: uma rapariga gorda, com borbulhas, que ria e mastigava pastilha elástica enquanto escutava qualquer coisa agradável. Quando uma voz disse: «Está lá», Castle respondeu: «E engano» e saiu da cabina. A rapariga estacionava a sua pastilha nas costas da linha telefónica enquanto empreendia uma longa e agradável conversa. Castle parou junto a uma máquina de bilhetes e ficou algum tempo a observá-la, até ter a certeza de que ela não estava minimamente interessada nele.

- Que estás a fazer? - perguntou Sarah. - Não me ouviste chamar?

Olhou para o livro que estava em cima da secretária dele e disse:

Guerra e Paz. Julgava que te tinhas fartado do Guerra e Paz. ele pegou numa folha de papel, dobrou-a e enfiou-a no bolso.

Estou a ver se consigo escrever um ensaio.

Mostra-me.

__ Não. Só se sair bem. Para onde vais mandá-lo?

- Para o New Statesman... o Encounter... um desses.

- Há muito tempo que não escreves nada. Fico contente por teres decidido recomeçar.

- Sim. Parece que o meu destino é recomeçar.

 

Castle serviu-se de mais um uísque. Sarah estava há muito tempo lá em cima com Sam e ele sozinho, à espera que a campainha tocasse, a escrever... Os seus pensamentos divagaram até àquela outra ocasião em que esperara pelo menos três quartos de hora, no gabinete de Cornelius Muller. Tinham-lhe dado um exemplar do Rand Daily Mail para ler - o que não deixava de ser curioso, já que o jornal era contra quase tudo o que a BOSS, a organização para a qual Muller trabalhava, defendia. Já tinha lido o número daquele dia ao pequeno-almoço, mas releu cada página com o único propósito de passar o tempo. Sempre que olhava para cima, para o relógio, o seu olhar cruzava-se com o dos dois oficiais que estavam sentados, muito direitos, atrás das suas secretárias, provavelmente vigiando-o à vez. Estariam à espera que ele puxasse de uma lâmina de barbear e cortasse as veias? Mas a tortura, disse para consigo, competia à polícia política - pelo menos era o que ele pensava. E neste caso, afinal de contas, não havia razão para temer torturas perpetradas por qualquer dos serviços - estava protegido pela imunidade diplomática; era um dos intorturáveis. Não havia, porém, qualquer imunidade diplomática que abrangesse Sarah; no ano anterior, na Africa do Sul, aprendera a lição ancestral de que o medo e o amor são indivisíveis. Castle terminou o uísque e serviu-se de mais um poucoTinha de ser cuidadoso.

Sarah chamou-o do andar de cima:

Que estás aí a fazer, querido?

-À espera de Mister Muller - respondeu - e a beber outro uísque

Não bebas de mais, querido

Tinham resolvido que ele receberia Mister Muller sozinho. Muller decerto viria de Londres num automóvel da Embaixada. Um Mercedes preto, como todos os grandes oficiais usavam na África do Sul? «Despache as formalidades iniciais», dissera-lhe C, «e deixe as questões importantes para o escritório, claro. Em casa, é mais fácil reparar numa indicação que talvez venha a ser útil... Quero dizer, sobre o que nós temos e eles não. Mas pelo amor de Deus, Castle, mantenha a calma.» E agora esforçava-se por manter a calma com a ajuda de um terceiro uísque, enquanto aguçava os ouvidos à espera do ruído de um carro, qualquer carro, mas àquela hora o trânsito era pouco em King’s Road - os trabalhadores da zona já se encontravam há muito na segurança dos seus lares.

Se o medo e o amor são indivisíveis, também o medo e o ódio o são. O ódio é uma resposta automática ao medo, pois o medo humilha. Quando lhe foi por fim possível largar o Rand Daily Mail e interromper a quarta leitura do artigo de fundo, com o seu inútil e rotineiro protesto contra os males do apartheid, estava plenamente consciente da sua cobardia. Três anos de vida na África do Sul e seis meses de amor por Sarah tinham-no transformado, sabia-o bem, num cobarde.

Dois homens esperavam por ele no gabinete interior:

Mister Muller estava sentado atrás de uma grande secretária da melhor madeira sul-africana, sobre a qual se via apenas um bloco de papel mata-borrão por estrear, um suporte para canetas extraordinariamente lustroso e um dossiê sugestivamente aberto. Era um homem um pouco mais novo do que ele, andava talvez na casa dos cinquenta, e tinha o tipo de rosto que, em circunstâncias normais, Castle classificaria como fácil de esquecer. Um rosto que pouco saía à rua, de pele macia e pálida como o de um caixa de um banco ou funcionário público, sem as marcas dos tormentos de umafé, humana ou religiosa, uma cara pronta a receber ordens e a obedecê-las, sem as pôr em questão, um rosto conformista. Não era, decerto, rosto que metesse medo - embora a expressão descrevesse bem as feições do segundo homem fardado que estava sentado, com as pernas insolentemente apoiadas no braço da poltrona, como se quisesse dizer que era capaz de desafiar qualquer homem; esse rosto não evitara o sol: exibia uma vermelhidão quase infernal como se tivesse estado longamente exposto a um calor demasiado feroz para um homem vulgar. Os óculos de Muller tinham aros dourados; era um país debruado a ouro.

- Sente-se - disse Muller a Castle, com apenas a delicadeza necessária para passar por bem-educado, mas o único lugar livre era uma cadeira estreita, confortável como um escabelo, só que, se ele quisesse ajoelhar-se, não havia uma almofada para receber os seus joelhos. Ficou sentado em silêncio e os dois homens, o pálido e o encalorado, olharam-no sem dizer nada. Castle perguntou a si próprio durante quanto tempo iria aquele silêncio continuar. Cornelius Muller retirou uma folha de papel do dossiê que estava à sua frente e ao fim de algum tempo começou a bater nela com a ponta da sua esferográfica dourada, sempre no mesmo ponto, como se estivesse a martelar um alfinete. O leve tap, tap, tap registava a duração do silêncio como o tiquetaque de um relógio. O outro homem coçava a pele por cima da peúga e assim continuaram, tap, tap, tap e scratch, scratch, scratch.

Por fim, Muller dignou-se a falar.

- Fico contente por ter conseguido passar por cá, Mister Castle.

- Sim, não me deu muito jeito, mas aqui estou.

- Queríamos evitar o escândalo desnecessário que seria uma carta ao seu embaixador.

Foi a vez de Castle guardar silêncio, enquanto tentava descobrir que queriam eles dizer com «escândalo».

O capitão Van Donck, apresento-lhe o capitão Van Donck, é que nos falou do assunto. Achou mais apropriado ser tratado por nós do que pela polícia política, tendo em conta a sua posição na Embaixada britânica. Tem estado a ser observado, Mister Castle, há algum tempo, mas, no seu caso, uma detenção não teria, creio eu, qualquer efeito: a sua Embaixada alegaria imunidade diplomática. Claro que podíamos sempre expor a questão diante de um magistrado e então teriam com certeza que enviá-lo para casa. O que provavelmente seria o fim da sua carreira, não é assim?

Castle não respondeu.

- Foi muito imprudente, diria mesmo estúpido - disse Cornelius Muller -, mas na minha opinião a estupidez não deve ser castigada como o crime. O capitão Van Donck e a polícia política têm, contudo, uma opinião diferente, uma opinião legalista, e talvez estejam certos. Eles preferiam ir para a frente com a detenção e levá-lo a tribunal. Pensam que a imunidade diplomática é, muitas vezes, indevidamente alargada, beneficiando o pessoal menor de uma Embaixada. Gostariam de ir para a frente com o processo, por uma questão de princípio.

A madeira dura do assento começava a ser dolorosa e Castle quis descruzar as pernas, mas receou que o movimento fosse considerado um sinal de fraqueza. Esforçava-se o mais que podia por descobrir o que é que eles realmente sabiam. Quantos dos seus agentes, pensou, seriam incriminados? Sentiu vergonha da sua própria relativa segurança. Numa guerra a sério o oficial pode sempre morrer com os seus homens e, desse modo, não perder o respeito por si Próprio.

Fale, Castle - ordenou o capitão Van Donck. Retirou as pernas do braço da poltrona e preparou-se para se levantar, ou assim pareceu, talvez fosse bluff. Abriu e fechou a mão e fitou o seu anel com sinete. Começou, então, a polir o anel dourado com um dedo, como se fosse uma arma que tinha de estar sempre bem oleada. Naquele país, o ouro estava em toda a parte. Pairava no pó das cidades, os artistas usavam-no para pintar, era perfeitamente natural que a pólícia se lembrasse de usá-lo para desfigurar a cara de alguém.

- Falo de quê? - perguntou Castle.

- O senhor é tal e qual os outros ingleses que vêm para a República - disse Muller -, sente uma espécie de simpatia automática para com os africanos pretos. Compreendemos muito bem. Ainda por cima, também somos africanos. Há trezentos anos que estamos aqui. Os Bantos são recém-chegados, como vocês. Mas não preciso de lhe dar aulas de História. Como já disse, compreendemos o seu ponto de vista, embora seja um ponto de vista muito ignorante, mas quando ele transforma um homem num sentimental, torna-se perigoso e quando se chega ao ponto de infringir a lei...

- Que lei?

- Julgo que sabe muito bem qual é a lei.

- É verdade que penso fazer um estudo sobre o apartheid, a Embaixada não se opõe a isso, mas é um estudo sério, sociológico, bastante objectivo, e por enquanto existe apenas na minha cabeça. De qualquer modo, penso que não será publicado neste país.

- Se quer ir para a cama com uma pega preta - interrompeu o capitão Van Donck, impaciente -, porque não vai a uma casa de putas no Lesoto ou na Suazilândia? Ainda fazem parte da vossa Comunidade Britânica.

Foi então que Castle se apercebeu, pela primeira vez, de que era Sarah, e não ele, que estava em perigo.

- Já não tenho idade para ir às putas - respondeu.

- Onde estava nas noites de quatro e sete de Fevereiro. E na tarde de vinte e um de Fevereiro?

- É óbvio que sabem, ou pensam que sabem - respondeu Castle. - Deixei a minha agenda no escritório-

Não via Sarah havia quarenta e oito horas. Estaria nas mãos de homens como o capitão Van Donck? O seu medo e o seu ódio cresceram ao mesmo tempo. Esqueceu-se de que, em teoria, era um diplomata, se bem que menor.

- De que raio está a falar? E o senhor? - acrescentou, dirigindo-se a Cornelius Muller. - Sim, o senhor, também, que quer de mim?

O capitão Van Donck era um homem bruto e simples que acreditava nalguma coisa, se bem que fosse uma coisa repugnante - era um daqueles a quem é possível perdoar. Mas Castle nunca conseguiu perdoar ao impassível e educado oficial da BOSS. Eram homens como aquele - homens com educação para perceberem o que se passa - que transformavam o céu em inferno. Lembrou-se do que o seu amigo comunista Carson lhe dissera tantas vezes, «Os nossos piores inimigos não são os ignorantes e os simples, por mais cruéis que sejam, os nossos piores inimigos são os inteligentes e os corruptos.»

- Sabe com certeza que infringiu a Lei das Relações Raciais com a sua banta - disse Muller. Falava num tom de repreensão muito ligeiro, como um empregado bancário a recordar a um cliente pouco importante que tem a conta a descoberto. - Sabe com certeza que se não gozasse de imunidade diplomática estaria preso neste momento.

- Onde é que a escondeu? - quis saber o capitão Van Donck e a pergunta trouxe enorme alívio a Castle.

- Escondi-a?

O capitão Van Donck estava de pé, acariciando o anel de ouro. Até cuspiu nele.

- Chega, capitão - disse Muller. - Eu trato de Mister Castle. Não vos vou fazer perder mais tempo. Muito obrigada pela ajuda que prestaram ao nosso departamento. quero falar com Mister Castle a sós.

Quando a porta se fechou, Castle encontrou-se frente a frente com o verdadeiro inimigo, como diria Carson. Mul’er continuou:

- Não ligue ao capitão Van Donck. Os homens como ele não vêem um palmo diante do nariz. Há outras formas de resolver este assunto mais razoáveis do que uma acusação que acabaria consigo e só nos prejudicaria.

- Estou a ouvir um carro - disse-lhe uma voz feminina, vinda do presente.

Era Sarah quem lhe falava do cimo das escadas. Castle foi até à janela. Um Mercedes preto subia a King’s Road, ao longo da fila de casas todas iguais umas às outras. Era óbvio que o condutor procurava um número, mas, como de costume, alguns dos candeeiros da rua tinham as lâmpadas fundidas.

- É Mister Muller - respondeu Castle. Pousou a sua bebida e reparou que a sua mão estava a tremer, tanta era a força com que tinha agarrado o copo.

Quando a campainha tocou, Buller começou a ladrar mas, depois de Castle ter aberto a porta, encheu o desconhecido de mimos, mostrando que não discriminava ninguém e deixando um fio de baba carinhosa nas calças de Cornelius Muller.

- Cão lindo, cão lindo - disse Muller, desconfiado.

Os anos haviam trazido mudanças notórias a Muller o seu cabelo estava agora quase todo branco e o rosto muito menos suave. Já não parecia um funcionário público que sabia sempre o que devia dizer. Desde a última vez que se tinham encontrado, alguma coisa mudara nele: o seu ar era mais humano - talvez com a promoção tivesse adquirido mais responsabilidades e, com elas, incertezas e perguntas sem respostas.

- Boa noite, Mister Castle. Desculpe o atraso. Estava um trânsito terrível em Watford... acho que aquela terra se chamava Watford.

Agora quase se podia considerar um homem tímido, ou talvez se sentisse perdido fora do seu gabinete, sem a sua secretária de bela madeira e a presença de dois subalternos na sala ao lado. O Mercedes preto desapareceu silenciosamente | o motorista tinha ido à procura de um sítio onde jantar, i fulker estava sozinho numa terra estrangeira, onde os marcos do correio exibiam as iniciais de um soberano e não havia uma estátua de Kruger em nenhuma praça.

Castle encheu dois copos de uísque.

- Há muito tempo que não nos víamos - disse Muller- Sete anos?

-- Foi muito amável em convidar-me para jantar em sua casa.

- C achou melhor. Para quebrar o gelo. Parece que vamos ter que trabalhar juntos. Na Uncle Remus.

Os olhos de Muller demoraram-se no telefone, no candeeiro de mesa, numa jarra de flores.

- Não há problema. Não se preocupe. Se alguém nos estiver a ouvir, é a minha gente - disse Castle -, mas tenho a certeza de que aqui não há escutas - acrescentou, erguendo o copo. - Ao nosso último encontro? Lembra-se de ter sugerido que eu talvez viesse a trabalhar para si? Ora bem, aqui estou. Estamos a trabalhar juntos. Ironia ou predestinação? Parece que a sua igreja holandesa acredita nisso.

- E óbvio que naquela altura eu não conhecia a sua posição - disse Muller. - Se soubesse, não o teria ameaçado por causa daquela banta. Hoje sei que ela era um dos seus agentes. Eu pensava que o senhor era mais um desses sentimentais obcecados com o apartheid. Foi uma surpresa para mim quando o seu chefe me disse que era consigo que eu tinha que ir discutir a Uncle Remus. Espero que não me guarde qualquer rancor. Afinal, somos dois profissionais e agora estamos do mesmo lado.

- Sim, suponho que estamos.

- Gostaria muito que me dissesse, já não tem importância, com certeza, como se viu livre da rapariga banta?

Calculo que a tenha mandado para a Suazilândia?

- Sim.

Pensava que tínhamos essa fronteira bem fechada, há trinta anos. Sabe, Castle, é realmente um prazer para mim estar a trabalhar com uma pessoa que não é o que a BOSS diz. Que é por alguns contactos comunistas, mas achei que isso era por causa daquele livro sobre o apartheid que andava a escrever e nunca chegou a ser publicado. Aí, conseguiu enganar-me Para não falar no Van Donck. Lembra-se do capitão Van Donck?

- Claro que sim. Perfeitamente.

Van

- pensava, que um daqueles idealistas que querem mudar a natureza dos seres humanos. Conhecemos as pessoas com quem está em contacto, pelo menos a maioria, e sabemos os disparates que deve ter ouvido dizer. Mas conseguiu passar-nos a perna, portanto de certeza que também o fez com os bantos e os comunistas. Suponho que também eles pensavam, de modo que me vi obrigado a pedir a despromoção dele por causa do livro que estava a escrever um livro que servia à causa deles. Note-se, sobre política, depois do seu caso. Fez tudo mal. Eu estava convencido de que, com a rapariga na prisão, o senhor concordaria em trabalhar para nós. Mas ele deixou-a fugir. Sabe, não se ria, mas eu pensava que a sua era uma história de amor verdadeira. Conheci tantos ingleses que foram combater o apartheid e acabaram na cama de uma banta. A ideia romântica de pôr fim a uma lei que eles julgam injusta é-lhes tão irresistível como o traseiro de uma negra. Não me passava pela cabeça que a rapariga, Sarah MaNkosi, creio que era esse o nome, era afinal agente do MI6.

- Nem ela sabia. Também ela acreditou no meu livro. Beba outro uísque.

- Obrigado, aceito. - Castle encheu dois copos, apostando na sua maior lucidez. - Sob todos os aspectos, era uma rapariga inteligente. Investigámos bastante bem o passado dela. Frequentou a Universidade Africana no Transval, onde os professores pretos produzem sempre estudantes perigosos. Pessoalmente, porém, sempre disse que quanto mais esperto for o africano mais fácil é dar-lhe a volta, de uma maneira ou outra. Se tivéssemos conseguido enfiar a rapariga na prisão durante um mês de certeza que a tínhamos virado. Ela agora dava-nos jeito para esta operação Uncle Remus. Ou talvez não. Esquecemo-nos de que o tempo é implacável. Entretanto já não deve interessar a ninguém, penso eu. As bantas envelhecem depressa. Em geral ficam arrumadas, pelo menos para um branco, antes mesmo dos bem, não sou anti-africano, como o capitão Van Donck. Eu próprio considero-me cem por cento africano. | Não era de modo algum o Cornelius Muller da delegação de Pretória que estava agora a falar, o empregado pálido que fazia, submisso, o seu trabalho não teria falado com tanta confiança e à-vontade. Até a incerteza e a desconfiança dos primeiros minutos tinham desaparecido. O uísque encarregara-se disso. Agora era um alto funcionário da BOSS encarregado de uma missão internacional, que não recebia ordens de ninguém abaixo de general. Podia estar descansado. Podia ser - uma ideia desagradável - igual a si próprio e pareceu-lhe que se assemelhava cada vez mais, na vulgaridade e na brutalidade do seu discurso, ao capitão Van Donck que tanto desprezava.

- Passei os fims-de-semana muito agradáveis no Lesoto disse Muller -, lado a lado com os irmãos pretos no casino do Holiday Inn. Confesso que cheguei a ter um... bem um encontrozinho - aqui já pareceu muito diferente -, mas claro que não fui contra a lei. Não foi na República.

Castle chamou:

- Sarah! Traz o Sam cá abaixo para cumprimentar Mister Muller.

”- E casado? - perguntou Muller.

- Sou.

Mais lisonjeado fico por me ter convidado para sua

Casa- Trouxe umas lembranças da África do Sul e talvez a

sua mulher me desse o prazer de aceitar alguma. Mas ainda não respondeu à minha pergunta. Agora que vamos trabalhar^ juntos, como eu sempre quis, recordo, não me vai dizer como se livrou daquela rapariga? Agora já não pode prejudicar nenhum dos seus antigos agentes e a verdade é que se trata de uma informação importante para a Uncle Remus e para os problemas que vamos ter de resolver juntos. O seu país e o meu, e os Estados Unidos, claro, têm hoje uma fronteira comum.

- Talvez ela própria lho possa dizer. Permita-me que lha apresente, mais ao meu filho, Sam. - Desciam as escadas juntos quando Cornelius Muller se voltou.

- Mister Muller estava a perguntar como consegui que fosses para a Suazilândia, Sarah.

Tinha subestimado Muller. A surpresa que planeara falhou redondamente.

- Muito prazer em conhecê-la, Mistress Castle - disse Muller, estendendo-lhe a mão.

- Quase nos encontrámos há sete anos - disse Sarah.

- Sim, um desperdício. Tem uma mulher muito bela, Castle.

- Obrigada - disse Sarah. - Sam, dá um aperto de mão a Mister Muller.

- Apresento-lhe o meu filho, Mister Muller - disse Castle. Sabia que Muller era um conhecedor de tons de pele e Sam era muito negro.

- Como passaste Sam? Já andas na escola?

- Vai começar dentro de duas semanas. Agora podes ir para a cama, Sam.

- Sabe jogar às escondidas? - perguntou Sam.

- Dantes sabia, sim, mas estou disposto a aprender as regras novas.

- é um espião como Mister Davis?

- Disse-te para ires para a cama, Sam.

- Tem uma caneta-bomba?

- Sam! Já lá para cima!

Responde lá à pergunta de Mister Muller, Sarah - interrompeu Castle. - Quando e como passaste a fronteira para a Suazilândia?

Acho melhor não lhe contar, e tu?

Oh, deixem lá estar a Suazilândia. São coisas que já lá vão e aconteceram noutro país.

Castle viu-o adaptar-se, com a naturalidade de um camaleão, à cor da terra. Deve ter-se adaptado exactamente assim no tal fim-de-semana no Lesoto. Talvez conseguisse gostar mais de Muller se ele não fosse tão adaptável. Durante todo o jantar Muller continuou a fazer conversa de salão. Sim, pensou Castle, teria preferido mil vezes o capitão Van Donck. O capitão Van Donck teria saído de casa mal visse Sarah. Um preconceito tem muitas semelhanças com um ideal. Cornelius Muller não tinha preconceitos e não tinha ideal.

- Como se tem dado com este tempo, Mistress Castle, tão diferente do da África do Sul?

- Quer dizer o clima?

- Sim, o clima.

- é mais temperado - respondeu Sarah.

- Não tem saudades de África? Quando vim, fiz escala em Madrid e em Atenas, de modo que já estou fora há umas semanas e sabe do que sinto já falta? Das minas em volta de Joanesburgo. Da cor da terra enquanto o Sol se Põe. E a senhora?

Castle nunca pensou que Muller fosse capaz de ter Qualquer sentimento estético. Seria um dos interesses trazidos pela promoção ou seria um interesse talhado para a ocasião e o país, tal como a sua cortesia?

Tenho recordações diferentes - respondeu Sarah. ~~~ A minha África era diferente da sua.

” Não diga isso, somos ambos africanos. A propósito,

trouxe uns presentes para os meus amigos de cá. Não sabia

que era dos nossos e trouxe-lhe um xaile. Como sabe, no Lesoto há excelentes tecelões, os Tecelões Reais. Aceita u^ xaile, do seu ex-inimigo?

- Claro. E muito amável da sua parte.

- Acha que Lady Hargreaves vai gostar de uma maza em pele de avestruz?

- Não a conheço. Tem que perguntar ao meu marido É mais do estilo pele de crocodilo, pensou Castle, mas

respondeu:

- Com certeza... mais a mais sendo um presente seu.

- O meu interesse pelas avestruzes é de família, sabe - explicou Muller. - O meu avô era aquilo a que hoje se chama milionário das avestruzes; fechou o negócio por altura da guerra de mil novecentos e catorze. Tinha uma grande casa na província do Cabo. Era esplêndida, mas hoje está em ruínas. As penas de avestruz nunca mais voltaram a estar na moda, na Europa, e o meu pai foi à falência. No entanto, os meus irmãos ainda têm algumas.

Castle lembrou-se de ter visitado uma dessas enormes casas, preservada como uma espécie de museu e ocupada pelo gerente do que restava do negócio. O gerente quase pedia desculpa pela ostentação e pelo mau gosto. A casa de banho era o ponto alto da visita - sempre a última divisão a ser mostrada -, com uma banheira que parecia uma cama de casal branca, torneiras folheadas a ouro e, na parede, uma cópia de um primitivo italiano: nos halos, a folha de ouro verdadeiro começava a descascar-se.

No final do jantar, Sarah retirou-se e Muller aceitou u cálice de porto. A garrafa estava por abrir desde o ultimo Natal - fora um presente de Davis.

- Falando a sério - disse Muller -, gostava de saber pormenores sobre a ida da sua mulher para a Suazilândia. Pois Não é preciso mencionar nomes. Sei que tinha amigos comunistas: hoje vejo que fazia parte do seu trabalho. Tomaram-no por um viajante sentimental: também nós.   exemplo, o Carson estava convencido disso, pobre Carson.

Pobre Carson porquê?

Foi longe de mais. Tinha contactos com os guerrilheiros. Era um bom tipo, à sua maneira, e um excelente advogado. Deu um trabalhão à polícia política, com os salvo-condutos.

E já não dá?

- Não. Morreu o ano passado, na cadeia.

- Não sabia.

Castle dirigiu-se ao armário e serviu-se de mais um uísque duplo. Com bastante soda, que parecia fraquíssimo.

- Não gosta de vinho do Porto? - perguntou Muller.

- Costumávamos arranjar um porto admirável em Lourenço Marques. Infelizmente, esse tempo já lá vai.

- E morreu de quê?

- Pneumonia - respondeu Muller. E acrescentou: Olhe, livrou-se de um julgamento difícil.

- Eu gostava do Carson - disse Castle.

- Sim. Foi uma pena ele ter sempre identificado os africanos com a cor. E um erro muito comum nos homens da segunda geração. Recusam-se a admitir que um branco possa ser tão bom africano como um preto. A minha família, por exemplo, chegou em mil e setecentos. Já lá estamos há muito tempo. - Olhou para o relógio: - E eu também já cá estou há muito tempo. O meu motorista deve estar à espera há uma hora. Peço que me desculpe. Não dei pelo tempo passar.

- Talvez fosse melhor conversarmos antes de começar a Uncle Remus - disse Castle.

- Deixemos isso para o escritório - respondeu Muller- Junto à porta, virou-se: - Lamento muito o que sucedeu com Carson. Se me passasse pela cabeça que não sabia de nada não tinha falado de forma tão abrupta.

Buller lambeu-lhe os fundilhos das calças com uma afeição indiscriminada.

- Cão lindo - disse Muller. - Cão lindo. Não há lealdade como a do cão.

À uma da manhã, Sarah quebrou um longo silêncio

- Ainda estás acordado. Não finjas. Foi assim tão horrível ver o Muller? Ele até foi educado.

- Sem dúvida. Em Inglaterra, adopta os costumes ingleses. Ele adapta-se muito depressa.

- Queres que te vá buscar um Mogadoril?

- Não. Já adormeço. Só que... tenho que te dizer umacoisa. O Carson morreu. Na prisão.

- Mataram-no?

- Muller disse que ele morreu de pneumonia. Encostou a cabeça ao braço dele e voltou a cara para a almofada. Castle percebeu que ela chorava.

- Não pude deixar de pensar toda a noite - disse Castle -, no último bilhete que recebi dele. Estava à minha espera na Embaixada, quando regressei do encontro com o Muller e o Van Donck. Dizia: «Não te preocupes com a Sarah. Toma o primeiro avião para LM e vai ter com ela ao Polana. Sarah está em segurança.»

- Sim, também me lembro desse bilhete. Eu estava ao lado dele quando o escreveu.

- Nunca pude agradecer-lhe, foram sete anos de silêncio e...

- Oh, nem sei o que ia dizer. - E repetiu o que dissera a Muller. - Eu gostava do Carson.

- Também eu. Confiava nele. Muito mais do que nos amigos dele. Durante a semana em que estiveste à minha espera em Lourenço Marques tivemos tempo para conversar. Disse-lhe que ele não era um comunista verdadeiro’

- Porquê? Ele era do partido. Um dos membros mais antigos que permaneceu no Transval.

- Claro. Eu sei. Mas há membros e membros, não e verdade? Falei-lhe do Sam antes de te falar a ti.

- Ele tinha qualquer coisa que atraía as pessoas.

Quase todos os comunistas que conheci forçavam as pessoas, não as atraíam.

Mesmo assim, ele era um comunista verdadeiro, Sabes?

L Sobreviveu ao Estaline como os católicos romanos sobreviveram aos Bórgias. Fez-me gostar do partido.

- Mas só até certo ponto, não?

Oh, há coisas que eu nunca engoli. Ele costumava

dizer que eu me preocupava com insignificâncias e não ligava ao que verdadeiramente importava. Sabes que nunca fui um homem religioso, deixei Deus na capela do colégio, mas conheci alguns padres em África que me fizeram voltar a ter fé, por instantes, o tempo de uma bebida. Se todos os padres fossem assim e eu tivesse passado mais tempo com eles, talvez engolisse a Ressurreição, a Virgindade de Maria, Lázaro, essa história toda. Lembro-me de um que encontrei em duas ocasiões, quis usá-lo como agente, como fiz contigo, mas ele não era utilizável. Chamava-se Conolly, ou seria o Connell? Trabalhava nos bairros pobres do Soweto. Disse-me precisamente o mesmo que Carson: que eu me preocupava com coisas insignificantes e não ligava... Durante uns tempos quase acreditei no Deus dele, tal como quase acreditei no de Carson. Talvez esteja condenado a ser um quase-crente. Quando as pessoas falam de Praga e Budapeste e dizem que não se encontra um rosto humano em todo o comunismo, fico calado. Porque eu vi, uma vez, esse rosto humano. Não me canso de repetir para mim próprio que se não fosse Carson, Sam teria nascido na prisão e tu provavelmente morrias lá. Um certo tipo de comunismo, ou de comunista, salvou a tua vida e a do Sam. Confio tanto em Marx ou Lenine como em São Paulo, mas não achas que tenho razões para me sentir agradecido?

”- Mas porque te preocupas tanto com isso? Não faz ^a* nenhum sentires-te agradecido. Eu também me sinto. A gratidão está certa se...

- Se?

Acho que ia dizer: se não passar disso.

Demorou várias horas a adormecer. Ficou acordado pensar em Carson, Cornelius Muller, Uncle Remus e Não queria adormecer sem que a respiração de Sarah ^ garantisse que ela já estava a dormir. Então deixou-se embalar, tal como o herói da sua infância, Allan Quaterrnain por um longo e lento rio subterrâneo cuja corrente o levaria ao interior do continente negro, onde tinha esperança de encontrar um lar permanente, numa cidade onde seria aceite como cidadão, um cidadão que não precisasse de fazer um juramento de fé, não a cidade de Deus ou de Marx, mas uma cidade chamada Consciência Tranquila.

 

Uma vez por mês, no seu dia de folga, Castle costumava levar Sarah e Sam num passeio pelos areais semeados de pinheiros do East Sussex, a fim de visitarem a sua mãe. Ninguém punha em causa a necessidade da visita, mas Castle não sabia bem se a sua mãe a apreciava, apesar de, diga-se em abono da verdade, a senhora fazer sempre os possíveis por lhes ser agradável - de acordo com a ideia dela do que eles consideravam agradável. Invariavelmente, a mesma dose de gelado de baunilha aguardava Sam no congelador - ele preferia o de chocolate - e, embora vivesse a um quilómetro da estação, contratava um táxi para ir buscá-los. Castle, que nunca quisera ter automóvel desde que regressara a Inglaterra, tinha a impressão de que a mãe considerava que o filho não conseguira vingar na vida - e quanto a Sarah, ela própria já tinha dito como se sentia - como uma convidada negra numa festa contra o apartheid a quem era dada tanta atenção que ela não conseguia sentir-se à vontade. A outra causa de tensão nervosa era Butter. Castle desistira de tentar deixá-lo em casa. Sarah estava certa de que, Sem a protecção deles, o cão seria assassinado por mascarados, embora Castle lhe recordasse que o adquirira para proteger e não para ser protegido. Acabou por achar mais fácil ceder, se bem que a sua mãe detestasse cães e tivesse um galo persa cuja aniquilação era o grande objectivo de Buller.

Antes de eles entrarem, o gato tinha de ser trancado no quarto de Mrs. Castle e esse triste destino, o ficar privado da companhia humana, era de vez em quando recordado pela sua mãe, ao longo do interminável dia. Numa das visitas, tinham ido dar com Buller especado à porta do quarto, cheio de esperança, respirando pesadamente como um assassino shakespeariano. Depois disso, Mrs. Castle abordou o assunto numa longa carta recriminatória que escreveu a Sarah. Parece que o gato ficou doente dos nervos durante mais de uma semana. Recusava-se a comer os seus Friskies e aceitava apenas leite - uma espécie de greve de fome. Em geral, o desalento apoderava-se deles assim que o táxi penetrava na sombra cerrada da rua ladeada de loureiros que ia dar à casa alta, de estilo eduardiano e com telhado de duas águas, que o seu pai comprara depois de se ter reformado, porque ficava perto de um campo de golfe. (Pouco depois teve uma trombose e nunca chegou sequer a caminhar até ao clube de golfe.)

Mrs. Castle esperava-os de pé no alpendre, uma figura alta e hirta, com uma saia fora de moda, que lhe deixava à vista os tornozelos finos, e uma gola alta como a da rainha Alexandra, que escondia as rugas próprias da sua idade. Para disfarçar o seu pouco entusiasmo, Castle adoptava uma falsa euforia e dava à mãe um abraço exagerado ao qual ela mal correspondia. Na opinião dela, as emoções expressas abertamente eram necessariamente emoções falsas. Devia ter casado com um embaixador ou governador e nunca com um médico de província.

- Estás com um aspecto maravilhoso, mãe.

- Estou bem para a minha idade. - Tinha oitenta e cinco anos. Ofereceu a Sarah a face limpa e branca, que cheirava a água-de-colónia de alfazema, para o beijo da praxe. - Espero que Sam já esteja bom.

- Está melhor do que nunca.

- Acabou a quarentena?

- Claro.

Sossegada, Mrs. Castle concedeu-lhe o privilégio de um beijo rápido.

- Deves estar quase a ir para a escola, não? Sam fez que sim com a cabeça.

- Vais gostar de ter outros meninos para brincar. Onde está o Buller?

- Foi lá para cima à procura do Tinker Bell - respondeu Sam, com satisfação.

Depois do almoço, Sarah levou Sam e Buller para o jardim, a fim de deixar Castle a sós com a mãe por uns instantes. Era assim todos os meses. Sarah era movida pela melhor das intenções, mas Castle achava que a mãe ficava feliz quando o momento íntimo chegava ao fim. Invariavelmente, instalava-se um pesado silêncio enquanto Mrs. Castle servia mais dois cafés indesejados; depois introduzia um tema de conversa que Castle sabia ter sido escolhido com antecedência para preencher aquele desagradável intervalo.

- Foi um horror aquele acidente de avião da semana passada - disse Mrs. Castle enquanto tratava dos cubos de açúcar, um para ela, dois para ele.

- Sim, pois foi. Terrível. - Castle não conseguia lembrar-se de que companhia era o avião, onde se tinha despenhado... TWA? Calcutá?

- Pensei logo que seria do Sam se tu e a Sarah fossem a bordo.

Mas Castle lembrou-se mesmo a tempo:

- Foi no Bangladesh, mãe. Porque é que nós havíamos de...?

- Estás no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Podem mandar-te para lá.

- Não podem nada, mãe. Estou acorrentado à minha secretária em Londres. Seja como for, sabe muito bem que a escolhi como tutora, caso aconteça alguma coisa.

- Uma velhota com quase noventa anos.

- Oitenta e cinco, mãe.

- Todas as semanas os jornais trazem histórias de velhotas que morrem em desastres de autocarro.

- A mãe nunca anda de autocarro.

- Não sei porque é que estabeleceste esse princípio de que eu não ando de autocarro.

- Se lhe acontecer alguma coisa, pode ter a certeza que escolho outra pessoa de confiança.

- Nessa altura pode ser tarde de mais. Temos de estar preparados para acidentes simultâneos. E no caso do Sam... bem, não é fácil.

- Julgo que se refere à cor dele.

- Nunca poderá ser deixado sob a custódia do tribunal. Muitos dos juízes que andam por aí, o teu pai estava sempre a dizer, são racistas. E além disso... nunca te passou pela cabeça, querido, que se nós morrermos todos pode haver pessoas, lá, a reclamá-lo?

- A Sarah não tem família.

- O que cá deixares, por menos que seja, para certas pessoas pode ser muito. Em caso de mortes simultâneas, presume-se ter sido o mais velho a morrer primeiro, segundo o que me disseram. O meu dinheiro seria então acrescentado ao teu. A Sarah deve ter pelo menos parentes afastados e eles de certeza que vão reclamar...

- A mãe não acha que também está a ser racista?

- Não, querido. Não sou racista, posso ser é antiquada e patriota. O Sam é inglês por nascimento, digam o que disserem.

- Vou pensar no assunto, mãe. - Era assim que terminava a maioria das conversas deles, embora também se tentasse mudar de assunto. - Sabe, mãe, tenho andado a pensar em reformar-me.

- Não te vão dar uma grande pensão, pois não?

- Fiz algumas economias. Vivemos sem luxos.

- Mais uma razão para escolheres um tutor suplente. Para o que der e vier. Não sou tão liberal como o teu pai mas ficava tristíssima se visse alguém pegar no Sam e levá-lo para a África do Sul.

- Mas nessa altura como é que vais ver seja o que for, se já estás morta!

Olha que não sei, querido. Não sou propriamente ateia...

Estava a ser umas das visitas mais penosas, o que valeu foi Bullw chegar, determinado, do jardim e cavalgar escadas acima em busca do encarcerado Tinker Bell.

Espero, pelo menos - disse Mrs. Castle -, nunca ter de tomar conta do Buller.

Quanto a isso pode estar descansada, mãe. Na eventualidade de um acidente fatal no Bangladesh que coincida com um acidente da carrinha do sindicato das avozinhas, no Sussex, deixei instruções para que o Buller seja abatido, com o mínimo de sofrimento.

- Não é o tipo de cão que eu pessoalmente teria escolhido para o meu neto. Os cães de guarda como o Buller são muito sensíveis à cor. E Sam é uma criança nervosa. Faz-me lembrar como tu eras na idade dele, tirando a cor, claro.

- Fui uma criança nervosa?

- Tinhas a mania de ficar muito agradecido à mínima atenção que recebias. Era uma manifestação de insegurança, embora não compreenda porque te sentias inseguro com uns pais como nós... Uma vez deste a tua caneta de tinta permanente a uma pessoa qualquer da escola só porque ela te tinha oferecido um bolo com um bocado de chocolate lá dentro.

- Mas hoje, mãe, não gasto o meu dinheiro à toa.

- Não tenho tanta certeza.

- E já me deixei de gratidões. - Mas ao falar pensou em Carson, morto, na prisão, e lembrou-se do que Sarah dissera. - Pelo menos, tenho mais cuidado. Hoje em dia não me contento com um bolinho de chocolate.

Há uma coisa que eu acho muito esquisita. Desde que conheceste a Sarah, nunca mais falaste na Mary. Lamento que não tenhas um filho dela.

- Tento esquecer os mortos - respondeu, mas não a verdade. Soubera, logo após o seu casamento, que era estéril e que portanto nunca teriam filhos, mas mesmo a sim viviam felizes. Foi quase como perder um filho único quando a mulher morreu devido ao rebentamento de uma bomba em Oxford Street, enquanto ele estava bem seguro em Lisboa, a fazer um contacto. Falhara a missão de protegê-la, deixara-a morrer. Por isso é que nunca falava dela nem mesmo mm Sarah

- O que me surpreende sempre na tua mãe - disse Sarah, quando, já na cama, começaram a passar em revista o seu dia no campo - é ela aceitar tão bem o São de Sara ser teu filho. Será que ela nunca reparou que ele é demasiado preto para ter um pai branco?

- Ela repara lá nas tonalidades!

- Mister Muller reparou. Tenho a certeza.

O telefone tocou no piso inferior. Era quase meia-noite.

- Diabo - disse Castle -, quem será a uma hora destas? Os teus amigos mascarados?

- Não vais atender?

O telefone parou de tocar.

- Se forem os teus mascarados - disse Castle -, talvez possamos apanhá-los.

o telefone tocou pela segunda vez. Castle olhou para o relógio.

- Por favor, atende.

- O mais certo é ser engano.

- Eu atendo, se tu não queres.

- Veste o roupão. Vais apanhar frio. - Mas assim que Sarah saltou da cama, o telefone parou de tocar.

- Vais ver que volta a tocar - disse Sarah. - Não te lembras como foi no mês passado, três vezes, à uma da manhã? - Mas desta vez o telefone ficou silencioso.

Ouviu-se um choro ao fundo do corredor.

Malditos - disse Sarah -, acordaram Sam. Sejam eles quem forem.

Eu vou lá. Estás a tremer de frio. Volta para a cama.

Sam perguntou:

Eram ladrões? Porque é que o Buller não ladrou?

__ O Buller sabe o que faz. Não eram ladrões. Foi um amigo meu que resolveu telefonar tarde.

Foi aquele Mister Muller?

- Não. Esse não é meu amigo. Agora, dorme. O telefone não volta a tocar.

- Como é que sabes?

- Sei.

- Tocou mais do que uma vez.

- Pois foi.

- Mas nunca atendeste. Então como é que sabes que era um amigo?

- Fazes demasiadas perguntas, Sam.

- Era um sinal secreto?

- Tens segredos, Sam?

- Tenho. Uma data deles.

- Conta-me um.

- Não conto. Se contasse, deixava de ser segredo.

- Pois então, eu também tenho os meus. Sarah ainda estava acordada.

- Ele já está bem - disse Castle. - Pensou que fossem ladrões a telefonar.

- E talvez fossem. O que é que lhe respondeste? -- Oh, disse que eram sinais secretos.

- Sabes sempre o que fazer para acalmá-lo. Gostas muito dele, não gostas?

- Gosto.

- E estranho. Não consigo perceber. Gostava que ele fosse mesmo teu filho.

Mas eu não. Sabes bem.

Mas nunca percebi porquê.

” Expliquei-te muitas vezes. Já basta ver a minha cara todos os dias ao espelho, quando faço a barba.

- Vês a cara de um homem bom, querido.

- Eu não diria tanto.

- Para mim, um filho teu seria uma razão para viver quando já cá não estiveres. Não vais durar eternamente

- Pois não, graças a Deus. - As palavras vieram sem ele pensar e depois lamentou tê-las proferido. Era a solidariedade dela que o fazia sempre comprometer-se demasiado’ por mais que tentasse ser duro, sentia-se tentado a contar-lhe tudo. Por vezes, fazia uma comparação cínica entre ela e um interrogador inteligente, que se mostra simpático e oferece um cigarrinho na altura certa.

- Sei que estás preocupado - disse Sarah. - Gostava que me contasses porquê... mas sei que não podes. Talvez um dia... quando fores livre... - E acrescentou, triste: Se alguma vez fores livre, Maurice.

 

Castle deixou a sua bicicleta ao cuidado do cobrador da estação de Berkhamstead e subiu para a plataforma onde se apanhava o comboio para Londres. Conhecia todos os passageiros de vista - até já cumprimentava muitos com um gesto de cabeça. Uma fria neblina de Outono cobria o lago verde do castelo e pingava dos salgueiros para o canal, do outro lado da linha. Caminhou até ao fim da plataforma e voltou para trás; julgou reconhecer todos os rostos excepto o de uma mulher que trazia uma estola de coelho maltrapilha - era raro ver mulheres naquele comboio. Viu-a subir para um compartimento e escolheu o mesmo para poder observá-la mais de perto. Os homens abriram os seus jornais e a mulher um romance de Denise Robins. Castle começou a ler o segundo livro de Guerra e Paz. Era um desafio à segurança, uma irreverência, ler aquele livro em público, pelo simples prazer de ler. «A um passo da fronteira) que parece a linha que separa os vivos dos mortos, fica a incerteza, o sofrimento e a morte. E o que está lá? Quem esta lá? Ali, depois daquele campo, daquela árvore...» Olhou Pela janela e pareceu-lhe ver, com os olhos do soldado de Tolstoi, o espírito do canal imóvel apontando na direcção de Boxmoor. «Aquele telhado iluminado pelo sol? Não se Sabe, mas deseja-se saber. Sente-se receio, mas no entanto anseia-se atravessar aquela linha...»

Quando o comboio parou em Watford, Castle foi o único a deixar o compartimento. De pé junto ao horári das partidas, viu o último passageiro atravessar a barreira   mas não viu passar nenhuma mulher. Fora da estação, espreitou no fim da bicha para o autocarro e mais uma vez reparou nos rostos. Depois consultou o seu relógio e, com um gesto de impaciência que não passaria despercebido a quem estivesse a observá-lo, resolveu ir a pé. Ninguém o seguiu, tinha a certeza, mas mesmo assim estava preocupado com a mulher do comboio e o seu insignificante desafio às regras Era preciso ser escrupulosamente cuidadoso. Na primeira estação dos correios pela qual passou, telefonou para o escritório e mandou chamar Cynthia - chegava sempre pelo menos meia hora antes de Watson, Davis, ou ele próprio. Disse-lhe:

- Importa-se de dizer ao Watson que vou chegar um pouco mais tarde? Tive de sair em Watford para ir ao veterinário. Buller está com uma doença de pele estranha. Informe também o Davis. - Por momentos pensou se não deveria ir mesmo ao veterinário, para reforçar o seu álibi, mas chegou à conclusão de que ser cauteloso de mais era tão perigoso como sê-lo de menos. A simplicidade era sempre a melhor opção, do mesmo modo que se deve dizer a verdade sempre que possível, visto que a verdade é tão mais fácil de memorizar do que a mentira. Entrou no terceiro café da lista que tinha na cabeça e aguardou. Não reconheceu o homem alto e magro que o seguia e usava um sobretudo que já vira melhores dias. O homem dirigiu-se à mesa dele e perguntou:

- Desculpe, não é William Hatchard?

- Não. o meu nome é Castle.

- Peço desculpa. A semelhança é extraordinária. Castle bebeu dois cafés e leu o The Times. Confiava no ar respeitável que um jornal empresta sempre ao seu leitorViu o homem apertar os atacadores a poucos metros dali e teve uma sensação de segurança igual à daquela vez, quando o foram buscar à enfermaria para fazer uma operação importante - era de novo um objecto num tapete rolante que levaria a um determinado destino, sem que fosse ele o responsável por nada nem por ninguém, nem sequer pelo seu próprio corpo. Tudo dependeria, para o bem e para o mal de outra pessoa qualquer. Uma pessoa com as mais altas qualificações profissionais. Era assim que a morte devia surgir no fim, pensou, enquanto se movia, devagar e feliz, no rasto do desconhecido. Sempre desejara dirigir-se para a morte com a mesma impressão de que já não faltava muito para se ver livre da ansiedade de uma vez por todas.

A estrada que agora percorriam, reparou, chamava-se Caminho dos Ulmeiros, embora não se vissem essas, nem quaisquer outras árvores, e a casa para onde foi conduzido era tão anónima e desinteressante como a sua. A porta da frente até tinha uns vitrais parecidos com os da sua. Talvez ali também tivesse funcionado em tempos o consultório de um dentista. O homem magro à sua frente parou por momentos junto a um portão de ferro que dava para um espaço ajardinado mais ou menos com a área de uma mesa de bilhar e depois entrou. Havia três campainhas ao lado da porta, mas só uma tinha um cartão-de-visita - muito gasto, com um texto ilegível que acabava com «ção Limitada». Castle tocou à campainha e viu que o seu guia tinha atravessado o Caminho dos Ulmeiros e voltava para trás, do outro lado da estrada. Quando estava mesmo à frente da casa tirou um lenço da manga e assoou o nariz. Tratava-se, sem dúvida, de um sinal para informar que estava tudo a Postos, pois Castle ouviu imediatamente o ranger de escadas no interior da casa. Pensou se «eles» teriam tomado as Precauções necessárias para protegê-lo de um possível seguidor, ou se protegerem de uma possível traição da sua parte ou das duas coisas, claro. Era-lhe indiferente - estava n° tal tapete rolante.

A porta abriu-se e surgiu um rosto que conhecia bem e não esperava ver - olhos de um azul impressionante por cima de um sorriso acolhedor, uma pequena cicatriz na face esquerda que ele sabia estar ali desde que uma criança fora ferida, em Varsóvia, pouco antes de a cidade ser tomada DO Hitler.

- Boris - exclamou Castle. - Pensava que nunca mais te voltaria a ver.

- É bom ver-te, Maurice.

Reparou como era curioso que Sarah e Boris fossem as únicas pessoas do mundo que o tratavam por Maurice. Para a mãe era apenas «querido» em momentos de afeição e no escritório vivia-se no reino dos apelidos e das iniciais. Sentiu-se imediatamente à vontade, naquele lugar estranho onde nunca tinha estado antes: uma casa em mau estado com uma passadeira toda gasta nas escadas. Sem saber por que razão, lembrou-se do pai. Na sua infância talvez um dia tivesse ido com ele visitar um doente numa casa igual àquela. Chegados ao primeiro patamar, entrou atrás de Boris numa sala pequena e quadrada com uma secretária, duas cadeiras e um quadro grande, onde se via uma família numerosa a comer num jardim, sentada a uma mesa posta com uma invulgar variedade de comida. Parecia que todos os pratos tinham sido servidos ao mesmo tempo - uma tarte de maçã ao lado de uma peça de carne assada, um salmão e uma taça com maçãs junto a uma terrina de sopa. Havia um jarro com água, uma garrafa de vinho e uma cafeteira com café. Viam-se alguns dicionários numa prateleira e um ponteiro encostado a um quadro preto onde estava escrita uma palavra meio apagada, numa língua que não conseguiu identificar.

- Resolveram chamar-me depois do teu último relatório - disse Boris. - Aquele sobre o Muller. Estou ansioso por estar de volta. Gosto muito mais de Inglaterra do que da França. Como te deste com o Ivan?

- Bem. Mas não foi a mesma coisa. - Enfiou a mão no bolso, à procura de um maço de cigarros, que não encontrou. - Sabes como são os russos. Fiquei com a impressão de que ele não confiava em mim. E queria sempre que eu fizesse mais do que o que prometi a qualquer de vocês Até quis que eu tentasse mudar a minha secção. Ainda fumas Marlboro! - perguntou Boris, estendendo um maço. Castle tirou um cigarro.

Boris, quando vieste para cá sabias que o Carson estava morto?

- Não. Disseram-me há umas semanas. Ainda nem sei como foi.

- Morreu na prisão. De pneumonia. É o que eles dizem. O Ivan deve ter sabido, mas quiseram que fosse o Cornelius Muller a dizer-me.

- E ficaste assim tão chocado? Dadas as circunstâncias. Uma vez preso não restam muitas esperanças.

- Eu sei, mas mesmo assim sempre achei que havia de voltar a vê-lo um dia, num qualquer lugar seguro, longe da África do Sul, talvez em minha casa, e então iria poder agradecer-lhe por ter salvo a Sarah. Agora está morto sem uma palavra de reconhecimento da minha parte.

- O que fizeste por nós serviu de agradecimento. Ele compreendeu isso. Não deves sentir remorsos.

- Não? É difícil expulsar o remorso, é um bocado como ficar apaixonado, ficar arrependido.

Pensou, revoltado: «E uma situação insustentável, não há ninguém no mundo com quem eu possa falar de tudo, excepto este Boris cujo verdadeiro nome desconheço completamente.» Não podia falar com Davis, de quem escondia metade da sua vida, nem com Sarah, que nem sequer sabia da existência de Boris. Um dia tinha mesmo contado a Boris a noite no Hotel Polana, quando soube a verdade sobre artl. Um controlo era um pouco como um padre para um católico - um homem que ouvia outro confessar, fosse o

que fosse, sem emoção. Disse:

” Quando substituíram o meu controlo e o Ivan tomou o teu lugar, senti uma solidão insuportável. Nunca consegui falar senão de trabalho com o Ivan.

” Tive pena de partir. Ainda tentei dissuadi-los. Fiz o possível por ficar. Mas sabes como é no teu serviço. No nosso é exactamente a mesma coisa. Vivemos dentro de caixas e eles é que escolhem a caixa. - Ouvira tantas vezes a mesma comparação no seu escritório. Todos usavam os mesmos clichés.

- Está na altura de mudar de livro - disse Castle

- Pois está. É só isso? Parecias tão aflito ao telefone Houve mais novidades de Porton?

- Não. Não sei se acredito na história deles. Estavam ambos sentados em cadeiras desconfortáveis,

um de cada lado da secretária, como um professor e um aluno. Só que, neste caso, o aluno era muito mais velho do que o professor. Também no confessionário, pensou Castle, muitos velhos contam os seus pecados a padres com idade para serem seus filhos. Nos raros encontros com Ivan, os diálogos tinham sido sempre curtos, davam-se informações, recebiam-se questionários, era tudo cumprido à risca. Com Boris, conseguia descontrair-se.

- A França foi uma promoção para ti? - E tirou mais um cigarro.

- Não sei. Nunca se sabe, não é? Talvez regressar aqui seja uma promoção. Pode querer dizer que levaram muito a sério o teu relatório e pensaram que eu podia tratar do assunto melhor do que o Ivan. Ou que o Ivan estava comprometido...? Tu não acreditas na história de Porton, mas tens mesmo provas sólidas de que a tua gente suspeita de umafuga?

- Não, mas no nosso jogo aprendemos a confiar nos nossos instintos e a verdade é que fizeram uma investigação de rotina à secção toda.

- Tu próprio o disseste, «de rotina».

- Sim, foi tudo muito às claras, mas creio que foi mais do que isso. Estou convencido de que o telefone do DalS está sob escuta e se calhar o meu também, embora me custe a acreditar. Seja como for, é melhor acabarmos com aqueles toques de aviso para minha casa. Leste o relatório que escrevi sobre a visita de Muller e a operação Uncle Remus. Espero bem que tenha sido encaminhada de modo diferente do teu lado, se houver realmente uma fuga. Ando com a impressão de que me quiseram passar uma rasteira.

Não há razão para teres medo. Temos sido muito cuidadosos com esse relatório. Apesar de eu não pensar que a missão do Muller seja uma rasteira. Porton talvez, mas Muller não. Recebemos uma confirmação de Boston. Levamos a Uncle Remus muito a sério e queremos que te concentres nela. Pode afectar as nossas posições no Mediterrâneo, no Golfo, no Indico. Até no Pacífico. A longo prazo...

- Para mim não há longos prazos, Boris. Já passei a idade da reforma.

- Bem sei.

- Quero reformar-me quanto antes.

- Isso não nos agradaria. Os próximos dois anos podem ser importantes.

- Também para mim. Gostaria de vivê-los à minha maneira.

- A fazer o quê?

- Cuidar de Sarah e Sam. Ir ao cinema. Envelhecer em paz. Seria mais seguro dispensarem-me, Boris.

- Porquê?

- O Muller foi lá a casa, sentou-se à minha mesa, comeu da minha comida e foi muito educado com a Sarah. Condescendente. A fingir que a cor não era problema. Detesto aquele homem! E detesto toda a BOSS. Odeio os homens que mataram o Carson e agora dizem que foi pneumonia. Odeio-os por terem tentado calar Sarah e permitido que Sam nascesse na prisão. Seria melhor contratarem um

honem que não odeie, Boris. Cometem-se muitos erros por ódio. O ódio é tão perigoso como o amor. Sou duplamente rigoroso, Boris, porque também amo. O amor é uma desvantagem nos nossos serviços.

Sentiu um tremendo alívio por ter falado sem rodeios a alguém que ele tinha a certeza que o compreendia. Os olhos azuis ofereciam uma amizade incondicional, o sorris incentivava-o a pousar por algum tempo o fardo do secretismo.

- Isto da Uncle Remus é a gota de água - disse do facto de, às escondidas, nos termos aliado aos Estados Unidos para ajudar os bandalhos do apartheid. Os vossos piores crimes, Boris, pertencem sempre ao passado e o futuro ainda não chegou. Não posso continuar a papaguear: «Lembrem-se de Praga! Lembrem-se de Praga!», isso foi há séculos. Temos que nos preocupar com o presente e o presente é a Uncle Remus. Naturalizei-me preto quando me apaixonei por Sarah.

- Então porque dizes que és perigoso?

- Porque há sete anos que mantenho a calma, mas estou a perdê-la. Cornelius Muller está a fazer-me perdê-la, Talvez o C o tenha mandado ter comigo por alguma razão. Talvez o C queira abrir-se.

- Só te pedimos para aguentares um pouco mais. Claro que os primeiros anos deste jogo são os mais fáceis, não é assim? As contradições não são tão óbvias e o secretismo ainda não se tornou insuportável, como a histeria ou a menopausa. Não te preocupes tanto, Maurice. Toma o teu valium e Manda-o deitar. Vem ter comigo sempre que te sentires deprimido e precisares de falar com alguém. E o perigo menor.

- Já fiz o suficiente, não achas, para pagar a minha divida ao Carson?

- Claro que sim, mas ainda não podemos perder-te> por causa da Uncle Remus. Como tu próprio disseste, agora estás naturalizado preto.

Castle sentiu que saía de uma anestesia, de uma operação bem-sucedida.

- Desculpa - disse. - Fiz figura de parvo - não me lembrava bem do que tinha dito. - Dá-me um uísque, Boris.

Boris abriu a secretária e tirou uma garrafa e um copo.

Sei que gostas deuísque - disse. Serviu uma dose generosa e reparou na velocidade a que Castle a bebeu. - Andas a beber muito, Castle.

Sim. Mas ninguém sabe. Só bebo em casa. A Sarah já reparou.

- E como vão as coisas lá em casa?

- A Sarah anda preocupada com os toques do telefone. Pensa sempre que são ladrões mascarados. E o Sam tem tido pesadelos porque está quase a entrar para a escola, uma escola de brancos. Preocupa-me o futuro deles se eu desaparecer. No fim, acontece sempre alguma coisa, não é?

- Deixa isso connosco. Prometo-te, temos a tua fuga muito bem planeada. Para uma emergência...

- A minha fuga? E a da Sarah, a do Sam?

- Irão ter contigo. Confia em nós, Maurice. Olharemos por eles. Também sabemos mostrar o nosso reconhecimento. Lembra-te do Blake: tomamos conta dos nossos. Boris caminhou até à janela. - Então está tudo bem. Podes ir para o escritório. O meu primeiro aluno chega daqui a um quarto de hora.

- Que língua lhe ensinas?

- Inglês. Não te rias.

- O teu inglês é quase perfeito.

- O meu primeiro aluno de hoje é polaco como eu. Fugiu de nós, não dos alemães. Gosto dele, é um feroz inimigo de Marx. Estás a sorrir. Ainda bem. Nunca te deixes ir abaixo.

- E esta investigação. Até o Davis está a apanhar e é inocente.

- Não te preocupes. Hei-de arranjar uma maneira de desviar a atenção deles.

- Vou procurar não pensar nisso.

- De hoje em diante passamos-te para o terceiro nível e se houver problemas, faz-me logo sinal, estou aqui para te ajudar. Confias em mim, não confias?

- Claro que confio, Boris. Só queria que a tua gente confiasse mesmo em mim. Este código do livro é uma forma extremamente lenta e antiquada de comunicar e sabes como é perigosa.

- Não é por não confiarmos em ti. E para o teu próprio bem. A qualquer altura podem fazer uma busca a tua casa. Verificação de rotina. No início quiseram dar-te microfilmes, mas eu não deixei. O teu desejo está satisfeito?

- Tenho outro.

- Conta lá.

- Desejo o impossível. Gostava que todas as mentiras fossem desnecessárias. E que estivéssemos do mesmo lado.

- Estivéssemos?

- Tu e eu.

- Mas não estamos?

- Sim, neste caso... por enquanto. Sabes que uma vez o Ivan tentou fazer chantagem comigo?

- Ele é estúpido. Deve ter sido por isso que o mandaram para trás.

- Entre tu e eu foi sempre tudo muito claro. Forneço-te todas as informações de que precisas sobre a minha secção. Mas nunca disse que era da tua cor: nunca serei um comunista.

- Claro. Sempre compreendemos a tua posição. Só precisamos de ti por causa da África.

- Mas quanto às informações que te forneço, o juiz sou eu. Luto ao vosso lado em África, Boris, mas não na Europa.

- De ti só queremos o que conseguires saber da Uncle j Remus.

- O Ivan queria mais do que isso. Ameaçou-me.

- O Ivan já cá não está. Esquece-o.

- Ficavas melhor sem mim.

- Não. O Muller e os seus amigos é que ficavam disse Boris.

Como um maníaco-depressivo, Castle teve a sua crise, os furúnculos recorrentes desapareceram e seguiu-se um alívio que ele nunca sentira em lado nenhum.

Era a vez do Travellers, onde, como fazia parte da direcção, Sir John Hargreaves se sentia em casa, o que não acontecia no Reform. Fazia muito mais frio do que no último dia em que tinham almoçado juntos e por isso não lhe apeteceu ir conversar para o parque.

- Sei muito bem o que está a pensar, Emmanuel, mas aqui conhecem-me bem de mais - disse ao doutor Percival. - Vão deixar-nos a sós ao café. A esta altura já perceberam que o meu amigo só fala de peixes. A propósito, que achou da truta fumada?

- Um pouco seca - disse o doutor Percival -, comparada com a do Reform.

- E o rosbife?

- Talvez demasiado passado?

- E impossível agradar-lhe, Emmanuel. Aceite um charuto.

- Se for um havano genuíno.

- Claro que é.

- Será fácil arranjá-los em Washington?

- Duvido que a detente tenha chegado aos charutos. Seja como for, a questão dos raios laser terá prioridade. E tudo um jogo, Emmanuel. Às vezes desejava voltar a África.

- À velha África.

- Sim. Tem razão. À velha África.

- Desapareceu para sempre.

- Não sei. Se destruirmos o resto do mundo, talvez a vegetação invada as estradas, os hotéis de luxo desabem e as florestas voltem a nascer, com os seus chefes, feiticeiros... ainda há uma rainha da chuva no Nordeste do Transval.

- Também vai dizer isso aos de Washington?

- Não. Mas vou falar-lhes com entusiasmo da Uncle Rernus.

- É contra?

- Os Estados Unidos, nós e África somos aliados in. compatíveis. Mas o plano irá por diante porque o Pentágono gosta de brincar à guerra agora que não tem guerras a sério. Bem, deixo cá o Castle para jogar com o Mister Muiler deles. A propósito, ele foi para Bona. Espero que a Alemanha do Leste não entre também no jogo.

- Quanto tempo vai estar fora?

- Não mais de dez dias, espero. Não gosto do clima de Washington, em todos os sentidos da palavra. - Com um sorriso de prazer, deixou cair no cinzeiro uma razoável coluna de cinza. - Os charutos do doutor Castro - acrescentou - são tão bons como os do sargento Batista.

- Gostava que não precisasse de sair, John, agora que parece estar um peixe na linha.

- Tenho a certeza que vai conseguir pescá-lo sem a minha ajuda... além de que pode ser apenas uma bota velha.

- Não creio. Com o tempo, aprende-se a reconhecer o peso de uma bota velha.

- Deixo o assunto inteiramente nas suas mãos, Emmanuel. E nas do Daintry, claro.

- E se não estivermos de acordo?

- Nesse caso, a decisão é sua. E o meu representante nesta questão. Mas pelo amor de Deus, Emmanuel, não seja precipitado.

- Só sou precipitado quando vou no meu Jaguar, Quando pesco, tenho imensa paciência.

 

O comboio de Castle chegou quarenta minutos atrasado a Berkhamstead. Estavam a proceder a reparações na linha, algures antes de Tring, e quando chegou ao escritório a sua sala pareceu-lhe invulgarmente deserta. Davis não estava lá, mas isso não explicava a sensação de vazio; Castle ficava muitas vezes sozinho no gabinete - quando Davis ia almoçar, quando Davis ia à casa de banho, quando Davis ia ao zoo ter com Cynthia. Só ao fim de meia hora reparou que havia um bilhete no seu cesto, escrito por Cynthia. «Arthur não está bem. O coronel Daintry quer falar consigo.» Por instantes, Castle perguntou a si próprio quem seria Arthur; não estava habituado a tratar Davis sem ser por Davis. Estaria Cynthia finalmente a ceder ao interminável cerco? Seria por isso que agora o tratava pelo nome próprio? Telefonou-lhe e perguntou:

- Que se passa com Davis?

- Não sei. Um dos homens do Ambiente telefonou por ele. Falou em cólicas gástricas.

- Ressaca?

- Se fosse só isso ele próprio teria telefonado. Não sabia que havia de fazer, como ainda não tinha chegado. De Janeira que telefonei ao doutor Percival.

- O que é que ele disse?

-A mesma coisa: ressaca. Parece que estiveram juntos ontem à noite e abusaram do porto e do uísque. Ele vai vê”lo no intervalo do almoço. Só a essa hora é que está livre.

- Não deve ser grave, pois não?

- Não sei se é grave, mas tenho a certeza de que não se trata de uma ressaca. Se fosse grave, o doutor Percival teria ido imediatamente vê-lo, não acha?

- Com o C em Washington duvido que ele tenha tempo para a medicina - respondeu Castle. - Vou falar com o Daintry. Em que sala?

Abriu a porta com o número 72. Lá estava Daintry, mais o doutor Percival - pareceu-lhe que tinha interrompido uma discussão.

- Sim, entre, Castle - disse Daintry. - Queria falar consigo.

- Eu vou andando - disse o doutor Percival.

- Depois falamos, Percival. Não concordo consigo. Desculpe, mas é assim mesmo. Não posso concordar.

- Lembre-se do que eu disse sobre caixas, e Ben Nicholson.

- Não sou pintor - respondeu Daintry -, e não percebo nada de arte abstracta. Bem, encontramo-nos mais tarde.

Daintry permaneceu em silêncio uns instantes depois de a porta se fechar. Depois, disse:

- Não gosto de pessoas que tiram conclusões precipitadas. Fui ensinado a acreditar só em provas, provas conclusivas.

- Está preocupado com alguma coisa?

- Tratando-se de uma doença, ele devia fazer análises ao sangue, radiografias... Um diagnóstico não se adivinha.

- Refere-se ao doutor Percival?

- Não sei por onde começar. Não é suposto discutir isto consigo.

- Isto, o quê? Havia uma fotografia de uma bela rapariga sobre a secretária de Daintry. Os olhos de Daintry acabavam sempre por se fixarem nela.

- Às vezes não se sente terrivelmente só neste maldito escritório?

Castle hesitou.

Sabe, dou-me muito bem com o Davis – respondeu - Isso ajuda muito.

Davis? Sim. Queria falar-lhe sobre o Davis.

Daintry levantou-se e dirigiu-se à janela. Parecia um prisioneiro encurralado num cubículo. Olhou demoradamente o céu proibido, mas isso não o tranquilizou.

- Está um dia cinzento. O Outono chegou finalmente.

- «Mudança e decadência, é só o que vejo» - citou Castle.

- Que é isso?

- Uma canção que eu cantava na escola.

Daintry regressou à secretária e voltou a olhar a fotografia.

- É a minha filha - disse, como se sentisse que tinha a obrigação de explicar quem era aquela rapariga.

- Parabéns. E muito bonita.

- Casa-se este fim-de-semana, mas acho que não vou poder ir.

- Não gosta do homem?

- Oh, não, creio que não é má pessoa. Nunca o vi na vida. Mas também de que é que íamos conversar? Do pó-de-talco Jameson i?

- Pó-de-talco?

- A Jameson’s quer acabar com a Johnson, foi o que ela me disse. - Sentou-se e caiu num silêncio triste.

- Parece que o Davis está doente - disse Castle. Hoje cheguei atrasado. Escolheu um mau dia. Tenho que tratar da mala do Zaire.

- Desculpe. Nesse caso é melhor não lhe tomar muito tempo. Não sabia que o Davis estava doente. Nada grave, espero?

- Penso que não. O doutor Percival vai vê-lo à hora do almoço.

- O Percival? Ele não tem o seu próprio médico?

- Bem, se for o Percival, a firma é que paga, não é verdade?

- Sim mas é que... estando a trabalhar connosco... ele deve estar um pouco desactualizado... como médico, quer dizer.

- Deve ser um diagnóstico relativamente simples.   Castle ouviu o eco de uma outra conversa.

- Castle, só queria fazer-lhe uma pergunta. Está mesmo satisfeito com o Davis?

- Satisfeito como? Damo-nos muito bem.

- As vezes sou obrigado a fazer perguntas idiotas, demasiado simples, mas como sabe a segurança é a minha profissão. Não são necessariamente significativas. O Davis joga, não é verdade?

- Um pouco. Gosta de falar de cavalos. Duvido que ganhe muito, ou perca muito.

- E bebe?

- Não creio que beba mais do que eu.

- Então tem realmente inteira confiança nele?

- Inteira. Claro que nenhum de nós está livre de cometer um erro. Houve alguma queixa? Não gostaria que o transferissem, a não ser que fosse para LM.

- Esqueça a minha pergunta - disse Daintry. - Pergunto sempre o mesmo acerca de toda a gente. Nem você escapa. Conhece um pintor chamado Nicholson?

- Não. É dos nossos?

- Não, não. Por vezes - continuou Daintry -, sinto que não pertenço a este mundo. Estava a pensar... mas suponho que ao fim do dia vá sempre para casa ter com a sua família?

- Sim... é verdade.

- Se, por qualquer razão, um dia precisar de ficar na cidade... podíamos ir jantar juntos.

- Não é muito frequente.

- Não, calculo que não.

- Sabe, é que a minha mulher fica nervosa quando está sozinha.

- Claro. Compreendo. Foi só uma coisa que me passou pela cabeça. - Estava mais uma vez a fitar a fotografia. Costumávamos jantar juntos de vez em quando. Só peço a Deus que ela seja feliz. Não há nada que uma pessoa possa fazer, não é verdade?

O silêncio envolveu-os como um nevoeiro espesso, separando-os um do outro. Nenhum deles conseguia ver o passeio: tinham de esticar a mão, para reconhecerem o caminho.

- O meu filho ainda não está em idade casadoira. Felizmente não tenho de me preocupar com isso.

- Trabalha aos sábados, não é assim? Será que podia ficar mais uma ou duas horas... Não conheço nenhuma das pessoas que vai ao casamento, excepto a minha filha, e a mãe dela, claro. Ela disse, a minha filha, quero dizer, que eu podia levar comigo alguém do escritório, se me apetecesse. Para ter companhia.

- Terei muito prazer - disse Castle -, se realmente pensa...

Raramente resistia a um pedido de auxílio, por mais subtil que fosse.

Por uma vez na vida, Castle não foi almoçar. Não tinha fome - precisava era de fazer uma quebra na sua rotina, estava enervado. Queria certificar-se de que Davis estava bem.

Quando deixou o edifício grande e anónimo à uma em ponto, depois de ter fechado todos os seus papéis no cofre, ’icluindo um bilhete sem graça nenhuma de Watson, encontrou Cynthia à porta.

- Vou ver como está o Davis. Quer vir?

- Não. Para quê? Tenho que ir às compras. Mas porque é que vai? O caso não é grave, pois não?

Não, mas acho simpático visitá-lo. Não tem quem trate dele, só aqueles tipos do Ambiente. E eles nunca lá estão durante o dia.

- O doutor Percival prometeu que ia vê-lo.

- Bem sei, mas a esta hora já se deve ter ido embora Lembrei-me que podia querer vir comigo... só para ver

- Está bem, se não demorarmos muito. Não é preciso levar flores, pois não? Como quando se vai ao hospital

Era uma mulher directa.

Davis abriu-lhes a porta de roupão. O rosto dele iluminou-se assim que viu Cynthia, mas em seguida reparou que ela não vinha sozinha. Comentou sem entusiasmo:

- Oh, és tu.

- Que se passa, Davis?

- Não sei. Nada de especial. O fígado pregou-me uma partida.

- Pareceu-me ouvir o teu amigo falar em dores de estômago ao telefone - observou Cynthia.

- Bem, o fígado fica perto do estômago, não fica? Ou será dos rins? Sou bastante ignorante quanto à minha própria geografia.

- Vou fazer-te a cama, Arthur, enquanto vocês conversam - disse Cynthia.

- Não é preciso. Só está levemente desfeita. Senta-te e toma uma bebida.

- Tu e o Castle ficam a tomar uma bebida e eu vou fazer a cama.

- É uma mulher determinada - disse Davis. - Que tomas, Castle? Uísque?

- Pequeno, por favor. Davis serviu dois copos.

- É melhor tu não beberes se o teu fígado não esta bem. Que disse o doutor Percival?

- Oh, tentou assustar-me. É o que os médicos costumam fazer, não é?

- Não me importo de beber sozinho.

- Disse que se eu não abrandasse podia arranjar uma cirrose. tenho que ir tirar uma radiografia amanhã. Respondi-lhe que não bebia mais do que o normal, mas ele insistiu que há fígados e fígados. Os médicos têm a mania que sabem tudo.

Se eu fosse a ti, não tomava esse uísque.

-- Ele disse-me: «Corte» e eu cortei este uísque ao meio. E prometi deixar o porto. E vou fazê-lo durante uma semana ou duas. Ainda bem que vieste, Castle. Sabes que o doutor Percival conseguiu assustar-me um pouco? Fiquei com a impressão de que não me contou tudo o que sabia. Era horrível se eles finalmente quisessem que eu fosse para Lourenço Marques e ele não deixasse. E há outra razão para eu estar com medo... Já te falaram de mim?

- Não. Só o Daintry é que me perguntou esta manhã se eu estava satisfeito contigo e eu disse que sim, inteiramente.

- És um bom amigo, Castle.

- Só há aquela estúpida investigação de segurança. Lembras-te do dia em que foste encontrar-te com Cynthia no zoo... Disse-lhes que estavas no dentista, mas mesmo assim...

- Eu sei. Sou o tipo de homem que é sempre descoberto. E no entanto cumpro quase sempre as regras. É a minha forma de lealdade. Tu tens mais sorte. Se um dia decido levar um relatório para ler à hora do almoço, sou logo apanhado. Mas já te vi fazer o mesmo vezes sem conta. Tu arriscas, como dizem que os padres têm que fazer. Se alguma vez fosse o responsável por uma fuga de informação, sem querer, claro, ia logo confessar-me, a ti.

- À espera da absolvição?

- Não. À espera de um pouco de justiça.

- Então fazias mal, Davis. Não faço a mínima ideia do que significa a palavra «justiça».

Então condenavas-me?

Não, absolvo sempre as pessoas de quem gosto. Então tu é que constituis um grande risco para a segurança - disse Davis. - Quanto tempo achas que este raio deste controlo vai durar?

- Até descobrirem a fuga, penso eu, ou concluiren que afinal nunca houve fuga nenhuma. Talvez um homem do MI5 tenha lido mal a prova.

- Ou uma mulher, Castle. Porque não há-de ser uma mulher? Pode ser uma das nossas secretárias, já que não sou eu, nem tu, nem Watson. Só de pensar nisso fico arrepiado A Cynthia prometeu jantar comigo uma noite destas. Enquanto a esperava no Stone’s, na mesa ao lado estava umabela rapariga, também à espera de alguém. Sorrimos um ao outro porque nos encontrávamos ambos na mesma situação. Companheiros de infortúnio. Apeteceu-me falar com ela, afinal, Cynthia não apareceu, mas depois pensei... se calhar foi ali colocada para me espiar, podem ter-me ouvido reservar a mesa pelo telefone do escritório. E talvez a Cynthia tenha recebido ordens para não comparecer. Mas sabes quem é que entrou e foi ter com a rapariga? O Daintry!

- Devia ser a filha dele.

- Usam as filhas no nosso serviço, não usam? Que estúpida profissão a nossa. Não se pode confiar em ninguém. Agora até da Cynthia desconfio. Quis fazer a minha cama e só Deus sabe o que ela espera lá descobrir. Mas só vai encontrar migalhas de pão duro. Talvez as analisem. Uma migalha pode conter um microdot.

- Tenho que me ir embora. A mala do Zaire já deve ter chegado.

Davis pousou o copo:

- O estupor do uísque parece que tem um sabor diferente desde que o Percival me meteu aqueles macaquinhos na cabeça. E tu, achas que estou com uma cirrose?

- Não. Mas não bebas durante uns tempos.

- Falar é fácil. Quando estou chateado, bebo. Tu tens a sorte de ter a Sarah. Como está o Sam?

- Pergunta muito por ti. Diz que ninguém brinca às escondidas tão bem como tu.

é Um bastardozinho simpático. Quem me dera também

ter um bastardozinho... mas só se fosse da Cynthia. | Que esperança a minha!

O clima de Lourenço Marques não é muito bom...

Oh, dizem que é óptimo para crianças até aos seis anos.

Bem, talvez a Cynthia acabe por ceder. Afinal, está a fazer a tua cama.

- Sim, ia logo querer fazer de minha mãe, estou mesmo a ver, mas é daquelas mulheres que precisam de um homem por quem sintam admiração. Ela gostaria de uma pessoa séria, como tu. O problema é que quando estou sério não consigo parecer sério. Parecer sério deixa-me embaraçado. És capaz de imaginar alguém a admirar-me?

- O Sam admira-te.

- Duvido que a Cynthia goste de brincar às escondidas. Cynthia chegou.

- A tua cama estava uma vergonha. Quando é que foi feita pela última vez?

- A empregada vem às segundas e sextas, hoje é quinta.

- Mas porque não a fazes tu?

- Eu ajeito-a sempre antes de me deitar.

- E os ambientalistas? O que é que eles fazem?

- Oh, foram ensinados a só reparar na poluição de que têm conhecimento oficial.

Davis acompanhou-os à porta.

-Até amanhã - disse Cynthia e, enquanto descia as escadas, voltou-se e disse que tinha compras a fazer. Davis citou:

«Ela nunca devia ter olhado para mim

Se não queria que eu a amasse»

Castle ficou surpreendido. Nunca lhe passara pela cabeça que Davis lesse Browning - excepto na escola, claro. Bem - disse -, lá vou eu tratar da mala.

- Desculpa, Castle, sei como aquela mala te irrita Não estou a fingir-me doente, acredita. E também não é uma ressaca. São as minhas pernas, os meus braços - parecem gelatina.

- Volta para a cama.

- É o que vou fazer. Se o Sam me visse agora ia achar que eu nem para jogar às escondidas prestava - acrescentou Davis, encostado à balaustrada, vendo Castle partir. Assim que Castle chegou às escadas, chamou-o:

- Castle?

- Sim? - Castle olhou para cima.

- Achas que isto pode ser um impedimento?

- Impedimento?

Seria um homem diferente se pudesse ir para Lourenço Marques.

- Fiz o que pude. Falei com o C.

- és um bom tipo, Castle. Fico-te agradecido, aconteça o que acontecer.

- Volta para a cama e descansa.

- É o que vou fazer. - Mas continuou ali de pé, até Castle desaparecer.

 

Castle e Daintry foram os últimos a chegar à conservatória e sentaram-se na última fila da austera sala castanha. Quatro filas de cadeiras vazias separavam-nos dos outros convidados que eram cerca de uma dúzia, divididos em clãs rivais, como nos casamentos religiosos, cada clã olhando o outro com curiosidade e algum desdém. Só o champanhe seria capaz de os levar a fazer, mais tarde, as pazes.

- Suponho que aquele seja o Colin - disse o coronel Daintry, apontando um jovem que acabara de ir ter com a filha à frente da mesa do conservador. E acrescentou: Nem sei o apelido dele.

- Quem é a senhora que não larga o lenço? Parece transtornada com alguma coisa.

- E a minha mulher. Espero conseguir sair sem ela reparar.

- Não faça isso. Assim a sua filha não chega a saber

que veio.

O conservador começou a falar. Alguém disse «Psiu!»

como se estivessem no teatro e a cortina tivesse subido.

- O apelido do seu genro é Clutters? - segredou Castle

Tem a certeza?

 

A palavra clutter significa «desordem, barafunda». (N. da T.)

 

- Não, mas foi o que me pareceu ouvir.

O conservador pronunciou os habituais e breves desejos de felicidades sem Deus, geralmente descrito como sermão leigo, e algumas pessoas saíram, usando o adiantado da hora como desculpa.

- Não acha que também devíamos ir? - Perguntou Daintry.

- Não.

De qualquer maneira, ninguém reparou neles e já estavam na Victoria Street. Os táxis passavam por eles como aves de rapina, mas Daintry esforçava-se por escapar-lhes.

- Não está certo fazer isto à sua filha - argumentou Castle.

- Nem sequer sei para onde eles vão - respondeu Daintry. - Com certeza para algum hotel.

- Podemos segui-los.

E seguiram-nos - até muito depois do Harrodes, sempre envoltos por uma leve neblina outonal.

- Não sei qual será o hotel... - disse Daintry. Olhe, perdemo-los. - Inclinou-se para ver melhor o carro que seguia à frente deles. - Afinal não tivemos essa sorte. Estou a ver a nuca da minha mulher.

- Não me parece um dado muito seguro.

- Tenho a certeza absoluta. Fomos casados quinze anos. - E acrescentou, melancólico: - Não nos falamos há sete.

- O champanhe vai ajudar - disse Castle.

- Não gosto de champanhe. Foi muito amável, Castle, em ter vindo comigo. Sozinho não seria capaz.

- Bebemos um copo e despedimo-nos.

- Não faço ideia para onde vamos. Há anos que não vinha para estes lados. Parece que há muitos hotéis novos-

E o «pára-arranca continuou pela Brompton Road-

- O costume é ir para a casa da noiva - disse CaStle-, quando não se vai para um hotel.

- Ela não tem casa. Oficialmente, partilha um apartamento barato com uma amiga, mas parece que vive há já bastante

tempo com esse tal Clutters. Clutters! Que raio de nome.

__ Se calhar não é Clutters. Não se percebia bem o que o conservador dizia.

Os outros táxis começaram a entregar os outros convidados, como se fossem presentes em embrulhos vistosos, numa casa pequena e toda enfeitada que ficava numa praceta Felizmente não eram muitos - aquelas casas não tinham sido construídas para nelas se fazerem grandes festas. Bastavam duas dúzias de pessoas para se temer que as paredes ruíssem e o chão cedesse.

- Já sei onde estamos: na casa da minha mulher sse Daintry. - Ouvi dizer que ela comprou qualquer coisa em Kensington.

Conseguiram subir as escadas apinhadas e entraram numa sala de estar. De todos os lados, das estantes, do piano, da cornija da lareira, mochos de porcelana deitavam aos convidados olhares predadores, atentos, com os seus cruéis bicos recurvados.

- Sim, é mesmo a casa dela - confirmou Daintry. Sempre teve uma paixão por mochos... só que a paixão cresceu muito desde o meu tempo.

Não viram a filha dele entre a multidão que se aglomerara frente ao bufete. Ouviam-se continuamente rolhas de garrafas de champanhe a saltar. Havia um bolo de noiva e um mocho de gesso encarrapitava-se no topo de um andaime em açúcar cor-de-rosa. Um homem alto com um bigode igualzinho ao de Daintry aproximou-se deles e disse:

-- Não vos conheço, mas há champanhe a rodos. a expressão utilizada o homem devia ser contemporâneo da Primeira Guerra Mundial. Tinha o ar distraído dos anfitriões. - Só poupámos na criadagem.

”- O meu nome é Daintry.

- Daintry?

E o casamento da minha filha - disse Daintry, Um tom seco como uma bolacha.

- Então deve ser o marido da Sylvia!

- Sim. Desculpe, mas não percebi o seu nome. O homem desapareceu aos gritos:

- Sylvia! Sylvia!

- Vamos embora - disse Daintry, desesperado.

- Tem de cumprimentar a sua filha.

Uma mulher atravessou a multidão junto ao bufete Castle reconheceu a mulher que estava a chorar na conservatória, só que agora parecia muito mais alegre.

- Querido, o Edward disse-me que estavas cá. Que simpático da tua parte. Sei que estás sempre muito ocupado.

- Pois é, e temos que ir andando. Apresento-te Mister Castle. Trabalha comigo.

- Naquele maldito escritório. Muito prazer, Mister Castle. Tenho de ir chamar a Elizabeth, e o Colin.

- Não os incomodes. Temos mesmo que ir embora.

- Eu vim de propósito para o casamento. De Brighton. O Edward trouxe-me de automóvel.

- Quem é o Edward?

- Tem ajudado imenso. Encomendou o champanhe e assim. Nestas alturas um homem faz muita falta. Tu estás na mesma, querido. Há quanto tempo...?

- Seis... sete anos?

- O tempo voa.

- Tens cada vez mais mochos.

- Mochos? - afastou-se, chamando: - Colin, beth, venham cá. - Chegaram de mãos dadas. Daintry não imaginava que a sua filha podia ser tão meiga, mas devia ter pensado que num casamento era suposto andar de mãos dadas.

- Que bom ter vindo, pai. Sei como detesta estas coisas

- Nunca tinha passado por uma. - Olhou para o companheiro dela, de cravo e fato às riscas acabado de estrear. O cabelo era negro de azeviche e estava penteado para trás das orelhas.

Muito prazer. Elizabeth falou-me muito do senhor.

_-Já eu não posso dizer o mesmo - respondeu Daintry - Então você é que é o Colin Clutters?

Não é Clutters, pai. Que ideia foi essa? O apelido dele é Clough. Quero dizer, o nosso apelido.

Castle tinha sido afastado do coronel Daintry por uma invasão de atrasados que não tinham estado na conservatória. Um homem de colete assertoado disse-lhe:

- Não conheço nenhuma destas pessoas, excepto o Colin, claro.

Houve um barulho de louça a partir-se. A voz de Mrs. Daintry sobressaiu do clamor:

- Valha-me Deus, Edward, foi um mocho?

- Não, não te preocupes, querida. Foi um cinzeiro.

- Ninguém - repetiu o homem do colete assertoado.

- A propósito, o meu nome é Joiner.

- O meu é Castle.

- Conhece o Colin?

- Não. Vim com o coronel Daintry.

- Quem é esse?

- O pai da noiva.

Algures um telefone começou a tocar. Ninguém lhe prestou atenção.

- Devia conhecer o Colin. é um jovem brilhante.

- Tem é um apelido estranho.

- Estranho?

- Bem... Clutters...

- O nome dele é Clough.

- Ah, então ouvi mal.

Partiu-se mais qualquer coisa. A voz tranquilizadora de Edward distinguiu-se imediatamente.

Não te preocupes, Sylvia. Não foi nada. Os mochos estão todos bem.

Ele revolucionou a nossa publicidade. Trabalham juntos? ’- Digamos que eu sou o pó-de-talco Jameson’s.

O homem que se chamava Edward puxou pelo braço de Castle e perguntou:

- O seu nome é Castle?

- sim.

- Chamam-no ao telefone.

- Mas ninguém sabe que eu estou aqui.

- é uma senhora. Está muito aflita. Diz que é urgente Castle pensou imediatamente em Sarah. Ela sabia que

ele tinha ido àquele casamento, mas nem o próprio Daintry fazia ideia de onde seria a festa. Estaria Sam doente outra vez?

- Onde está o telefone? - perguntou.

- Venha comigo. - Mas quando chegaram ao pé dele, um telefone branco ao lado de uma cama de casal branca, guardado por um mocho branco, já alguém tinha pousado o auscultador.

- Lamento - disse Edward -, espero que volte a ligar.

- Ela não disse o nome?

- Com este barulho todo, não percebi qual era. Dava a impressão de que estava a chorar. Venha beber mais um pouco de champanhe.

- Se não se importa, fico aqui à espera.

- Nesse caso, desculpe eu não lhe fazer companhia. Tenho de olhar por estes mochos todos, compreende. A Sylvia ficaria inconsolável se acontecesse alguma coisa a um deles. Eu bem disse para ela os guardar num local seguro, mas são mais de cem. A casa ficaria um pouco vazia sem eles. E amigo do coronel Daintry?

- Somos colegas de trabalho.

- Um daqueles empregos misteriosos, não é? Foi um pouco embaraçoso para mim conhecê-lo logo hoje. A Sylvia nunca pensou que ele aparecesse. Eu é que não devia ter vindo. Foi falta de tacto. Mas depois quem é que tomava conta dos mochos?

Castle sentou-se na borda da grande cama branca o mocho branco fitou-o, ao lado do telefone branco, como se ctivesse a reconhecer um emigrante clandestino que acabava de se empoleirar no extremo daquele estranho continente coberto de neve - até as paredes eram brancas e havia um tapete branco por baixo dos pés dele. Sentiu medo - medo por Sam, medo por Sarah, medo por si próprio - o medo escapava-se, como um gás invisível, do bocal daquele telefone silencioso. Tanto ele como tudo o que ele amava estavam sob a ameaça daquela misteriosa chamada. O clamor de vozes que vinha da sala já não parecia mais do que o rumor de tribos longínquas localizadas para lá do deserto de neve. Foi então que o telefone tocou. Empurrou o mocho branco para o lado e pegou no auscultador. Para seu grande alívio, ouviu a voz de Cynthia:

- M. C?

- Sim. Como é que me encontrou?

- Falei para a conservatória, mas já tinham saído portanto fui à lista procurar em Mistress Daintry.

- Que se passa, Cynthia? Está com uma voz esquisita.

- M. C., aconteceu uma coisa horrível. O Arthur morreu.

Mais uma vez, ficou a pensar quem seria Arthur.

- Davis? Morto? Mas ele ia voltar a trabalhar para a semana.

- Eu sei. A empregada é que descobriu, quando foi lá... fazer a cama dele. - A voz de Cynthia tremia.

- Vou já para o escritório, Cynthia. Falou com o doutor Percival?

- Ele é que me telefonou a dar a notícia.

- Tenho de contar ao coronel Daintry.

- Oh, M. C., estou tão arrependida de não ter sido mais simpática com ele. Nunca fiz nada por ele, só... só a cama. -- Castle ouvia-a suster a respiração, para não chorar.

- Vou assim que puder. - E desligou.

A sala continuava cheia e barulhenta. O bolo já tinha Sido cortado e as pessoas procuravam onde esconder as suas doses sem dar nas vistas. Daintry estava sozinho, de fatia na mão, por trás de uma mesa pejada de mochos.

- Por favor - disse -, vamos pôr-nos a milhas, Castle. Não compreendo estas coisas.

- Daintry, recebi um telefonema do escritório. O Davis morreu.

- Davis?

- Morreu. O doutor Percival...

- Percival! - exclamou Daintry. - Oh, meu Deus, aquele homem... - Empurrou a sua fatia para o meio dos mochos, fazendo um deles, grande e cinzento, cair ao chão.

- Edward - guinchou uma voz de mulher -, o John partiu o mocho cinzento.

Edward abriu caminho imediatamente até junto deles,

- Não posso estar em toda a parte ao mesmo tempo, Sylvia.

Mrs. Daintry apareceu atrás dele.

- Maldito John, és um idiota, nunca te perdoarei, nunca. Porque é que havias de vir a minha casa?

- Vamos, Castle. Eu compro-te outro mocho, Sylvia.

- Não podes, aquele é insubstituível.

- Morreu um homem - disse Daintry. - Também ele é insubstituível.

- Não esperava nada que isto acontecesse - disse-lhes o doutor Percival.

A Castle pareceu uma forma extremamente insensível de se referir ao assunto, uma expressão tão fria como o pobre cadáver esticado na cama, de pijama amarrotado, com o casaco aberto, deixando à vista o peito onde há muito todos tinham deixado de ouvir, e de procurar em vão, os batimentos cardíacos. O doutor Percival parecera-lhe até então um homem genial, mas a genialidade congelara na presença da morte e havia uma nota incongruente, de embaraço e culpa, na estranha frase que acabava de pronunciar.

A súbita mudança de ambiente foi um choque para Castle, quando se viu naquele quarto silencioso e desarrumado, depois de ter estado no meio de tantas vozes desconhecidas, tantos mochos de porcelana e tantas rolhas a saltar em casa de Mrs. Daintry. O doutor Percival, depois daquela frase infeliz, não voltara a abrir a boca e mais ninguém falou. Olhava para a cama, como se tivesse acabado de mostrar um quadro a um grupo de críticos e aguardasse, apreensivo, a opinião deles. Daintry também ficou silencioso. Olhava para o doutor Percival como se lhe coubesse explicar um defeito evidente que ele deveria encontrar no quadro. Castle teve vontade de quebrar o longo silêncio.

- Quem são os homens que estão na sala? Que estão ali a fazer?

O doutor Percival desviou, com relutância, o olhar da cama.

- Quais homens? Ah, aqueles. Pedi à Segurança Interna que viesse dar uma vista de olhos.

- Porquê? Acha que ele foi assassinado?

- Não. Claro que não. Nada disso. Tinha o fígado num estado lastimoso. Tirou uma radiografia aqui há dias.

- Então porque é que disse que não esperava...

- Não esperava que a situação se agravasse tão depressa.

- Penso que irão fazer uma autópsia?

- Claro. Claro.

Os «claros» multiplicavam-se, como moscas em volta do cadáver.

Castle voltou para a sala. Em cima da mesa baixa estavam uma garrafa de uísque, um copo sujo e um exemplar da Playboy.

- Avisei-o que tinha que deixar de beber - disse o Doutor Percival, dirigindo-se a Castle. - Mas ele não quis saber.

Estavam dois homens na sala. Um deles pegou na Playboy, folheou-a e abanou as páginas. O outro passava revista às gavetas da secretária.

- Está aqui o livro de telefones dele - disse ao colega -, é melhor veres os nomes. E verifica os números, a ver se estão certos.

- Continuo sem perceber de que andam à procura - é só uma formalidade de segurança - explicou o doutor Percival. - Tentei encontrá-lo, Daintry, porque na verdade o empregado é seu, mas parece que estava num casamento.

- Estava.

- Houve alguma falta de cuidado ultimamente no escritório. O C está fora mas vai gostar de saber que nos certificámos de que ele não deixou nada por aí à solta.

- Como números de telefone que não correspondem aos nomes? - perguntou Castle. - Eu não chamaria a isso falta de cuidado.

- Estes tipos seguem sempre o mesmo esquema. Não é verdade, Daintry?

Mas Daintry não respondeu. Ficou à porta do quarto, a fitar o corpo.

- Anda cá dar uma olhadela, Taylor - disse um dos homens, e estendeu ao outro uma folha de papel.

- «Bonne Chance, Kalamazoo, Viúva Twanky.»

- Um pouco esquisito, não? Taylor respondeu:

- «Bonne Chance» é francês, Piper. E «Kalamazoo» parece o nome de uma cidade africana.

- África, é? Pode ser importante.

- E melhor consultarem o Evening News. Provavelmente vão chegar à conclusão de que são os nomes de três cavalos. Ele aposta sempre nas corridas ao fim-de-semana’

- Ah - fez Piper, desiludido.

- Penso que devemos deixar os nossos amigos da Segurança Interna trabalhar em paz - disse o doutor Percival

- E quanto à família do Davis? - perguntou Castle.

O escritório já está a tratar disso. Parece que o único parente próximo é um primo que vive em Droitwich. Um dentista.

Aqui está uma coisa que me cheira a esturro – disse piper. Estendeu um livro ao doutor Percival e Castle interceptou-o. Era uma pequena selecção de poemas de Robert Browning. Na folha de rosto estava colada uma estampa com um brasão e o nome de uma escola, a Droitwich Royal Grammar School. O prémio da melhor composição tinha sido atribuído em 1910 a um aluno de nome William Davis, que tinha escrito com uma letra miúda e cheia de floreados: «Para o meu filho Arthur, do seu pai, por ter passado com distinção em Física, a 29 de Junho de 1953.» Browning, Física e um jovem de dezasseis anos parecia, sem duvida, uma estranha conjugação, mas naturalmente não era a isso que Piper se referia quando falou em «esturro».

- Qual é o problema? - perguntou Percival.

- Poemas de Browning. Na minha opinião cheiram a tudo menos a esturro.

No entanto, tinha que confessar que o livrinho não condizia com Alderston, as apostas, a Playboy, a monótona rotina do escritório e a mala do Zaire; será que mesmo nas vidas mais simples se descobrem inevitavelmente indícios de complexidade quando se vasculha a morte? Claro que Davis podia ter guardado o livro apenas por devoção filial, mas era óbvio que o tinha lido. Não era verdade que citara Browning na última vez que Castle o vira com vida?

- Se procurar, há passagens que estão marcadas - disse Piper ao doutor Percival. - Percebe mais de código em wros do que eu. Achei que devia chamar a atenção.

- Que pensa, Castle?

Na verdade existem marcas - voltou as páginas. -

O livro pertenceu ao pai dele, portanto as marcas podem ter sido feitas por ele... só que a tinta parece fresca: e ele fá-as acompanhar sempre de um «c».

- Será elucidativo?

Castle nunca levara Davis a sério, o seu gosto pela bebida, as suas apostas, nem sequer o seu amor não correspondido por Cynthia, mas um corpo morto não podia ser ignorado. Pela primeira vez Davis despertou realmente a sua curiosidade. A morte tornara-o importante. A morte conferira-lhe uma espécie de estatuto. Os mortos talvez sejam mais sábios do que nós. Voltou as páginas do pequeno volume como se fosse um membro da Associação Browning interessado na interpretação de um texto.

Daintry afastou-se com relutância da porta do quarto.

- Não descobre nada... nessas marcas?

- Nada como?

- Nada de elucidativo - repetiu a pergunta de Percival.

- Elucidativo? Julgo que sim. De um estado de espírito.

- Que quer dizer? - perguntou Percival. - Acha mesmo...? - Parecia esperançoso, como se desejasse à viva força que o homem que estava morto na sala ao lado tivesse constituído um risco o que, bem, de certo modo era verdade, pensou Castle. O amor e o ódio são ambos perigosos, como ele prevenira Boris. Uma cena veio-lhe à ideia: um quarto de dormir em Lourenço Marques, o zumbido de um aparelho de ar condicionado e a voz de Sarah ao telefone. «Estou aqui», e em seguida uma súbita sensação de alegria. O seu amor por Sarah conduzira-o até Carson e Carson a Boris. Um homem apaixonado percorre o mundo como um anarquista, levando consigo uma bomba-relógio.

- Está a dizer que isso pode ser uma prova...? - continuou o doutor Percival. - Você é que aprendeu a decifrar códigos, eu não.

- Escute esta passagem. Está assinalada com um traço vertical e a letra «c». «No entanto direi apenas o que um simples amigo diria, / ou algo ligeiramente mais forte: segurarei a tua mão mas só enquanto tudo...»

- Faz alguma ideia do que pode significar esse «c»? - perguntou Percival. E mais uma vez com aquela nota de esperança que irritava Castle. - Poderá querer dizer «código 20», Para me recordar que essa passagem já tinha sido utilizada? Num código de livro suponho que não convenha usar a mesma passagem duas vezes.

«É tal o valor desses olhos cinzento-escuros, Desse cabelo tão escuro e querido, é tal o valor, Que um homem deve sofrer e agonizar E viver o inferno neste mundo...»

- Parece-me poesia - disse Piper.

- De novo, uma linha vertical e um «c», doutor Percival.

- Então acha mesmo que...?

- Davis disse-me um dia: «Não sei falar a sério.» Por conseguinte, penso que, quando precisava de o fazer, ia buscar palavras a Browning.

- E o «c»?

- Deve representar o nome da rapariga, doutor Percival, Cynthia. A secretária dele. A mulher que ele amava. Da organização. Não é caso para a Segurança Interna.

Até então, Daintry não passara de uma figura fantasmagórica, muda, absorto nos seus próprios pensamentos. Mas de repente disse, num tom acusador:

- Devia fazer-se uma autópsia.

- Claro - respondeu o doutor Percival -, se o seu médico assim entender. Eu não sou o seu médico. Sou apenas um colega, embora ele me tivesse consultado e eu o tivesse mandado fazer as radiografias.

- O médico dele devia estar aqui agora.

-Vou mandá-lo chamar assim que estes homens acabarem o seu trabalho. Sabe melhor do que ninguém que são precauções indispensáveis. A segurança antes de tudo.

Qual será o resultado da autópsia, doutor Percival?

”- Quanto a isso, não tenho dúvidas, o fígado dele está quase completamente destruído.

- Destruído?

- Pela bebida, claro, coronel. Porque havia de ser? ouviu o que eu disse a Castle?

Castle deixou-os a sós no seu duelo subterrâneo. Estava na altura de dar uma última olhadela a Davis, antes que o médico patologista iniciasse o seu trabalho. Ficou satisfeito por o rosto não mostrar sinais de sofrimento. Fechou o casaco do pijama, cobrindo o peito nu. Faltava um botão. Coser botões não competia a uma empregada doméstica. O telefone ao lado da cama soltou um tinido preliminar, que afinal não teve continuação. Talvez, longe dali, um microfone e um gravador estivessem a ser retirados da linha. Já não era preciso vigiar Davis. Estava safo.

 

Castle sentou-se a escrever o que tencionava que fosse o seu último relatório. Com a morte de Davis, a informação da secção africana iria certamente terminar. Se as fugas de informação continuassem, não restariam dúvidas quanto à respectiva fonte, mas se elas cessassem a culpa seria atribuída com toda a certeza ao morto. Davis já estava livre de sofrimento; a sua ficha pessoal seria fechada e enviada para um qualquer centro de armazenamento de dados, onde nunca mais ninguém perderia tempo com ela. E se ela encerrasse uma história de traição? Como qualquer segredo de Estado, ficaria bem guardada durante trinta anos. De certo e triste modo, aquela fora uma morte providencial.

Castle ouvia Sarah a ler em voz alta a Sam, antes de ele adormecer. Passavam trinta minutos da hora habitual de ir para a cama. Mas naquela noite o rapaz precisava daquele conforto infantil suplementar pois a primeira semana na escola não tinha sido feliz.

Que tarefa tão morosa, transcrever um relatório em código. Agora é que nunca chegaria ao fim do Guerra e paz. No dia seguinte, juntaria o seu exemplar, por questões de segurança, à fogueira onde ia queimar as folhas secas do Outono, sem esperar que chegasse o Trollope. Sentia ao mesmo tempo alívio e pena - alívio porque tinha pago, da forma possível, a sua dívida de gratidão para com Carson, e Pena por nunca ter conseguido fechar o dossiê sobre a Unc e Remus e vingar-se completamente de Cornelius Muller.

Quando terminou o relatório, foi lá para baixo esperar por Sarah. O dia seguinte era um domingo. Teria de deixar o relatório na vala, aquela terceira vala que não voltaria a ser usada: assinalara a sua presença lá através de um telefonema que fizera em Picadilly Circus, antes de apanhar o comboio em Euston. Era anormalmente lenta, essa maneira de proceder à sua última comunicação, mas a via mais rápida e mais perigosa tinha que ser reservada para uma derradeira emergência. Serviu-se de um Brandy triplo e o murmúrio de vozes no andar de cima transmitiu-lhe uma sensação temporária de paz. Uma porta fechou-se devagar, passos percorreram o corredor; as escadas rangiam sempre quando alguém as descia - pensou que, para algumas pessoas, aquilo seria uma rotina monótona, doméstica, insuportável mesmo. Para ele representava uma segurança que receava a todo o momento perder. Sabia exactamente o que Sarah diria quando chegasse à sala, tal como conhecia de cor a sua própria resposta. A familiaridade era um escudo protector contra a escuridão da King’s Road e a luz acesa da esquadra da polícia, à esquina. Sempre imaginara um polícia fardado, que provavelmente conhecia de vista, a acompanhar o homem da Segurança Interna quando o momento chegasse.

- Já bebeste o teu uísque?

- Posso servir-te um?

- Pequenino, querido.

- O Sam está bem?

- Adormeceu antes de eu entalar os lençóis. Como num telegrama não mutilado, nem uma só letra fora mal transcrita.

Estendeu-lhe o copo: ainda não fora capaz de contar o que se tinha passado.

- Como foi o casamento, querido?

- Horrível. Cheguei a ter pena do pobre do Daintry

- Pobre porquê?

- Perdeu uma filha e duvido que tenha quaisquer amigos.

Parece que só há gente solitária no teu escritório.

É verdade. Tudo gente que não encontrou companhia. Bebe, Sarah.

- Qual é a pressa?

- Quero ir buscar mais uma bebida para cada um.

- Porquê?

- Tenho más notícias, Sarah. Não quis falar em frente ao Sam. E sobre o Davis. O Davis morreu.

- Morreu? O Davis?

- Sim.

- Como?

- O doutor Percival diz que foi o fígado.

- Mas o fígado não mata assim, de um dia para o outro.

- Foi o que disse o doutor Percival.

- Não acreditas nele?

- Não, não completamente. E creio que Daintry também não.

Sarah deitou dois dedos de uísque no seu próprio copo

- nunca o tinha feito antes.

- Pobre Davis, coitado.

- Daintry quer uma autópsia feita fora. Percival concordou logo. Parece ter a certeza absoluta de que o seu diagnóstico vai ser confirmado.

- E se ele tem a certeza é porque é verdade?

- Não sei. Sinceramente não sei. Conseguem tantas coisas lá na organização. Até uma certidão de óbito.

- Que vamos contar ao Sam?

- A verdade. Não vale a pena esconder uma morte a uma criança. Estão sempre a acontecer.

- Mas ele gostava tanto do Davis. Querido, deixa-me não contar nada durante uma ou duas semanas. Até ele se adaptar à escola.

- Se achas melhor.

- Quem me dera que te afastasses daquela gente.

- E o que vou fazer... daqui a uns anos.

- Mas eu queria agora. Neste instante. Tirávamos o Sam da cama e íamos para o estrangeiro. Apanhávamos o primeiro avião, para onde quer que ele fosse.

- Espera até chegar a minha reforma.

- Eu podia trabalhar, Maurice, íamos para França. Lá seria mais fácil. Estão habituados à minha cor.

- Não pode ser, Sarah, por enquanto.

- Porquê? Dá-me uma boa razão, só uma. Castle tentou falar com leveza:

- Bem, é preciso preveni-los com alguma antecedência.

- E eles costumam prevenir? - Ficou assustado com a rapidez do raciocínio dela, quando acrescentou: - Preveniram o Davis?

- Se foi o fígado... - respondeu Castle.

- Não acreditas nisso, pois não? Não te esqueças de que já trabalhei para ti... para eles. Já fui tua agente. Pensas que não reparei o mês passado como andaste ansioso, como tudo te enervava? Houve uma fuga, não foi? Na tua secção?

- Penso que sim.

- E culparam o Davis. Acreditas que Davis era o culpado?

- Pode não ter sido de propósito. Ele não era muito cuidadoso.

- E achas que o iam matar por um descuido?

- No nosso trabalho há uma coisa que se chama descuido criminoso.

- Podiam ter desconfiado de ti, em vez do Davis. E então terias sido tu a morrer. Por beberes demasiado.- Eu fui sempre extremamente cuidadoso. - E acrescentou, como uma piada triste: - Excepto quando me apaixonei por ti.

- Onde vais?

- Preciso de apanhar ar e o Buller também.

Do outro lado do caminho que atravessava o parque, e que por alguma razão se chamava Porto Frio, começava o bosque de faias, que descia até à estrada para Ashridge. Castle sentou-se numa elevação da berma enquanto Buller inspeccionava as folhas do ano anterior. Sabia que não devia continuar ali. A curiosidade não servia de desculpa. Já se devia ter posto a milhas. Um automóvel subia lentamente a estrada, vindo de Berkhamstead. Castle consultou o seu relógio. Tinham passado quatro horas desde que dera o seu sinal em Picadilly Circus. Apenas distinguia a matrícula do carro mas, tal como seria de esperar, era-lhe tão desconhecida como o próprio carro, um pequeno Toyota vermelho. Junto à entrada para o parque de Ashridge, o automóvel parou. Não se via qualquer outro carro, nem sequer um peão. O condutor acendeu os faróis e em seguida, como se tivesse pensado melhor, voltou a apagá-los. Um ruído atrás de Castle fez o seu coração saltar, mas era apenas Buller entre os tufos de fetos.

Castle subiu a ladeira, por entre as árvores altas, cor de azeitona, que pareciam negras contra a última luz. Já lá iam mais de cinquenta anos desde que descobrira aquele tronco oco... na quarta, quinta, sexta árvore a contar da estrada. Nesse tempo, tinha de esticar completamente o corpo para chegar ao buraco, mas o seu coração batia de forma tão errática como agora. Aos dez anos, o seu objectivo era deixar Umamensagem para alguém que amava: uma menina de sete anos. Tinham descoberto aquele esconderijo durante um Picnique e ele prometeu-lhe deixar lá uma coisa importante quando por ali voltasse a passar.

Na primeira vez, deixou um grande chupa de hortelã-Pimenta embrulhado em papel vegetal e quando voltou ao lugar ele tinha desaparecido. A seguir, deixou um bilhete onde declarava o seu amor - em maiúsculas, porque ela aprendera a ler havia muito pouco tempo - mas quando regressou pela terceira vez o bilhete ainda estava lá, se bem que desvirtuado por um desenho obsceno. Alguém devia ter descoberto o esconderijo; não queria acreditar que fosse ela a responsável até que um dia a miúda lhe deitou a língua de fora quando passou por ele, do outro lado da High Street mostrando-lhe que estava furiosa por não ter encontrado antes outro chupa. Foi a sua primeira experiência de sofrimento sexual e só voltou à árvore quase cinquenta anos mais tarde, porque um dia, no átrio do Regent Palace, um desconhecido, que ele nunca mais voltou a ver, lhe pediu que indicasse um esconderijo seguro.

Pôs a trela a Buller e espreitou, escondido entre os fetos. O homem do carro teve de usar uma lanterna para encontrar o buraco. Castle viu o corpo dele, da cintura para baixo, à luz da lanterna que investigava a parte inferior do tronco: barrigudo, braguilha aberta. Uma medida inteligente - tinha armazenado uma considerável quantidade de urina. Quando a lanterna se virou e iluminou a descida para a Ashridge Road, Castle foi para casa. Disse para consigo: «Foi o meu último relatório» e os seus pensamentos regressaram à criança de sete anos. Ela parecia muito só no piquenique, onde a tinha visto pela primeira vez, era tímida e feia e talvez tivesse sido por essas razões que ele se sentiu tão atraído.

Porque será que muitas pessoas são incapazes de amar o sucesso, ou o poder, ou a beleza? Porque sentimos que não os merecemos, porque nos sentimos mais à vontade na presença do fracasso? Castle não acreditava que fosse essa a razão. Talvez as pessoas ansiassem pelo equilíbrio certo, tal como Cristo, essa figura lendária na qual gostaria tanto de acreditar. «Vinde a mim todos os que trabalham e carregam fardos pesados.» Apesar de muito novinha, a menina daquele piquenique em Agosto carregava o pesado fardo da sua timidez e da sua vergonha. Talvez ele apenas quisesse fazê-lo sentir que alguém a amava e, por isso mesmo, tivesse decidido amá-la ele próprio. Não foi por pena, tal como não foi por pena que se apaixonou por Sarah grávida de outro homem. Cabia-lhe equilibrar as coisas. Mais nada. .- Demoraste muito - disse Sarah.

- Precisava desesperadamente de dar uma volta. O Sam?

- Está a dormir, claro. Queres outro uísque? - Sim. Pequeno.

- Pequeno? Porquê?

- Não sei. Para mostrar que consigo beber pouco, se calhar. Talvez porque me sinto mais feliz. Não me perguntes porquê, Sarah. A felicidade foge quando falamos muito dela.

A desculpa pareceu bastante razoável a ambos. Sarah, durante o último ano que eles tinham passado na África do Sul, aprendera a não fazer demasiadas perguntas, mas nessa noite, na cama, ele demorou muito tempo a adormecer, repetindo para consigo vezes sem fim as palavras finais do último relatório que congeminara com o auxílio do Guerra e Paz. Abrira o livro ao acaso várias vezes, em busca de inspiração, até escolher as frases nas quais se baseava o seu código. «Dizes: não sou livre. Mas ergui a minha mão e deixei-a cair.» Foi como se, ao escolher essa passagem, estivesse a lançar um desafio a ambos os serviços. A última palavra da mensagem, depois de descodificada por Boris ou outro qualquer, seria «adeus».

 

As noites que se seguiram à morte de Davis foram, para Castle, ricas em sonhos, sonhos compostos por fragmentos dispersos de um passado que o perseguia até às primeiras horas da manhã. Davis não entrava neles - talvez porque a recordação dele, no que era agora uma secção diminuta e triste - preenchia muitas das horas que passava acordado. O fantasma de Davis pairava sobre a mala do Zaire e os telegramas que Cynthia codificava andavam agora mais mutilados do que nunca.

Assim, de noite, Castle sonhava com uma África do Sul reconstruída com ódio, embora por vezes os pedaços soltos se misturassem com uma África que ele esquecera como amava. Num sonho, de repente dava com Sarah num parque de Joanesburgo com o chão coberto de lixo, sentada num banco só para negros: ele voltava-se, à procura de outro banco. Carson separava-se dele à porta de uma casa de banho pública e escolhia a porta reservada a negros, deixando-o de fora, envergonhado com a sua falta de coragem, à terceira noite começou a ter uns sonhos completamente diferentes.

Quando acordou, comentou com Sarah:

- Curioso. Sonhei com Rougemont. Não pensava nele há anos.

- Rougemont?

- Esqueço-me que não conheceste o Rougemont.

- Quem era?

- Um agricultor do Estado Livre. De certo modo, gostava tanto dele como do Carson.

- Um comunista? Bem, não devia ser, se era agricultor

- Não. Era um daqueles que vão ter de morrer quando os teus assumirem o comando.

- Os meus?

- Os nossos, claro - apressou-se a corrigir, como se estivesse em risco de quebrar uma promessa.

Rougemont vivia no extremo de uma espécie de deserto, não muito distante de um antigo campo de batalha da Guerra dos Bóeres. Os seus antepassados huguenotes tinham fugido de França na altura das perseguições, mas ele não falava francês, apenas afrikaans e inglês. Fora, já antes de nascer, assimilado pelo estilo de vida holandês - mas não pelo apartheid. Mantinha-se afastado dele - não votava no Partido Nacional, desprezava o Partido Unido e um sentimento de lealdade para com os seus antepassados impedia-o de votar no pequeno grupo de progressistas. A atitude não era heróica, mas talvez lhe parecesse, como parecera ao seu avô, que o heroísmo começava onde terminava a política. Tratava os seus trabalhadores de forma amável e compreensiva, mas sem condescendência. Um dia, Castle ouviu-o discutir com o seu capataz o estado das colheitas - falavam um com o outro de igual para igual. A família de Rougemont e a tribo do capataz tinham chegado à África do Sul mais ou menos ao mesmo tempo. O avô de Rougemont não fora um milionário das avestruzes do Cabo, como o de Cornelius Muller; aos sessenta anos, o avô Rougemont cavalgara junto com os homens de De Wet contra os invasores ingleses e ficara ferido na colina que se debruçava com as nuvens do Inverno sobre a fazenda, onde os bosquímanos, centenas de anos atrás, tinham esculpido na pedra figuras de animais.

- Imagina, subir uma falésia daquelas, debaixo de fogo e de carga às costas - contara Rougemont a Castle.

A os soldados ingleses pela coragem e resistência demonstradas numa terra distante, como se fossem piratas lendários num livro de História, tal e qual os viquingues que um dia desembarcaram na costa saxónica. Não tinha nada contra os viquingues que lá tinham ficado, sentia mesmo uma certa pena de um povo sem raízes naquela terra velha, cansada e bela, onde a sua família se instalara havia cem anos. Um dia, enquanto bebiam um uísque, disse a Castle:

- Dizes que estás a fazer um estudo sobre o apartheid, mas nunca serás capaz de entender as nossas complexidades. Odeio o apartheid tanto como tu, mas és-me mais estranho do que qualquer dos meus trabalhadores. Esta é a nossa terra, e tu és um forasteiro, como os turistas que vão e vêm.

Castle ficou com a certeza de que, quando chegasse o momento, ele pegaria na espingarda que estava pendurada na parede da sala para defender aquela zona tão difícil de cultivar, à beira de um deserto. Não morreria a combater pelo apartheid nem pela raça branca, mas por tantos morgiTz que chamava seus, sujeitos à seca, às cheias, aos tremores de terra e às epidemias que devastavam o gado, para não falar nas cobras que considerava um problema menor, como os mosquitos.

- O Rougemont foi um dos teus agentes? - perguntou Sarah.

- Não, mas por estranho que pareça foi por intermédio dele que conheci o Carson. - E podia ter acrescentado: «E por intermédio do Carson juntei-me aos inimigos do Rougemont.» - Rougemont tinha contratado o Carson para defender um dos seus trabalhadores acusados pela polícia local de um acto de violência de que estava inocente.

- Às vezes tenho pena de já não ser tua agente. Dantes contavas-me muito mais coisas.

- Nunca contei muito; talvez pensasses que sim, mas

Nome dado na África do Sul a uma parcela de terreno com cerca de cem ares- (N. da T.)

falava o mínimo contigo, para nosso próprio bem, e no outro lado era quase tudo mentira. Como o livro que e andava a escrever sobre o apartheid...

- Pensei que ia ser diferente - disse Sarah - em Inglaterra. Pensei que deixaria de haver segredos. - Respirou fundo e num instante adormeceu. Mas Castle continuou acordado muito tempo. Em momentos como aquele, sentia-se tentado a confiar nela, a contar-lhe tudo, como um homem que em tempos teve um caso com outra mulher, um caso já terminado, deseja de repente contar à mulher essa história triste: explicar-lhe de uma vez por todas os silêncios inexplicáveis, as pequenas decepções, as preocupações que não puderam partilhar mas, tal como esse homem, acabava sempre por concluir: «Para quê incomodá-la, se está tudo acabado?», pois estava mesmo convencido, ainda que por pouco tempo, de que tudo tinha acabado.

Era muito esquisito para Castle estar na sala que partilhara durante tantos anos com Davis e ver, à sua frente, do lado de lá da mesa, o homem chamado Cornelius Muller - um Muller curiosamente transformado, um Muller que lhe disse:

- Fiquei muito abalado com a notícia que recebi quando regressei de Bona... Claro, não cheguei a conhecer o seu colega... mas para si deve ter sido um grande choque... - Um Muller que começava a parecer um ser humano normal, não o agente da BOSS mas um homem que ele podia muito bem ter conhecido por acaso, no comboio para Euston. Impressionou-o o tom simpático da voz de Mui’ ler: parecia estranhamente sincero. «Em Inglaterra», pensou «somos cada vez mais cínicos em relação a mortes que não têm grande significado para nós e, mesmo quando têm, e de bom tom aparentarmos indiferença na presença de estranhos;

190 a morte não vai bem com negócios.» Mas na Igreja neformista Holandesa a que Muller pertencia, a morte continuava a ser o acontecimento mais importante na vida de uma família. Castle assistira uma vez a um enterro no fransval e o que recordava da ocasião não era tristeza, mas sim dignidade, ou mesmo protocolo. A morte ainda era socialmente importante para Muller, muito embora ele fosse um representante da BOSS.

- Bem - observou Castle -, de facto, ninguém esperava. - E acrescentou: - Pedi à minha secretária que me trouxesse os ficheiros do Zaire e de Moçambique. No caso do Malawi, temos que depender do MI5 e não posso mostrar-lhe o material sem autorização deles.

- Vou falar com eles quando sair daqui - esclareceu Muller. - Gostei tanto daquela noite em sua casa. De conhecer a sua mulher... - hesitou um pouco antes de terminar a frase - e o seu filho.

Castle calculou que aquele comentário fosse uma maneira agradável de introduzir uma nova série de perguntas acerca do modo como Sarah fora parar à Suazilândia. Um inimigo não pode deixar de ser uma caricatura, se queremos mantê-lo convenientemente à distância: um inimigo nunca deve ganhar vida. Os generais tinham razão - não se devem dar as boas-festas numa trincheira. Respondeu:

- Sarah e eu também tivemos muito prazer em recebê-lo, claro. - Tocou à sua campainha. - Desculpe. Não há meio de trazerem os tais ficheiros. A morte de Davis veio perturbar um pouco o serviço.

Uma rapariga que ele não conhecia respondeu à chamada.

- Telefonei há cinco minutos a pedir os ficheiros Aclamou Castle. - A Cynthia?

- Não veio hoje.

E porque não? A rapariga olhou-o com uma expressão gelada.

Faltou - respondeu.

Está doente?

- Não exactamente.

- Como se chama?

- Penélope.

- Então importa-se de me explicar, Penélope, o que quis exactamente dizer com «não exactamente»?

- Está transtornada. É natural, não lhe parece? O funeral é hoje. O funeral do Arthur.

- Hoje? Peço-lhe desculpa, tinha-me esquecido. De qualquer maneira, Penélope, gostava que me trouxesse os ficheiros.

Depois de ela sair, Castle disse a Muller:

- Desculpe toda esta confusão. Deve estar com muito má impressão da nossa maneira de trabalhar. Mas tinha-me esquecido completamente, o Davis é enterrado hoje, e o serviço fúnebre é às onze. Foi atrasado por causa da autópsia. A rapariga não se esqueceu, mas eu sim.

- Lamento - disse Muller. - Se eu soubesse, não tinha vindo hoje.

- A culpa não é sua. Acontece que eu tenho uma agenda pessoal e uma profissional. Nesta marquei, está a ver, a sua visita às dez, quinta-feira. A outra deixo-a sempre em casa e devo ter marcado o funeral nela. Estou sempre a esquecer-me de comparar as duas.

- Mesmo assim... esquecer um funeral... não é estranho?

- é. Freud diria que quis esquecê-lo.

- Marque-me outra data e eu saio já. Amanhã, depois de amanhã?

- De maneira nenhuma. Afinal, o que é mais importante? Uncle Remus ou ouvir orações pelo pobre Davis. A propósito, onde foi que enterraram o Carson?

- Na terra dele. Uma aldeia perto de Kimberley. Suponho que vai ficar admirado se eu lhe disser que estive lá.

- Não, creio que teve de ir observar, ver quem lá estava.

- Tem razão, alguém tinha de observar. Mas eu é que quis ir.

- Em vez do capitão Van Donck?

Sim, ele teria sido reconhecido.

Que se passará com aqueles ficheiros...

- Esse tal Davis... provavelmente não era muito importante para si? - perguntou Muller.

Não tanto como o Carson. Que a sua gente matou.

mas o meu filho gostava muito dele.

- O Carson morreu de pneumonia.

- Sim, claro. Foi o que me contou. Também me tinha esquecido disso.

Quando os ficheiros apareceram finalmente, Castle consultou-os para responder às perguntas de Muller, mas só com metade da sua atenção.

- Não temos informações fidedignas acerca disso, por enquanto - deu consigo a dizer, pela terceira vez. Evidentemente que se tratava de uma mentira deliberada, estava a proteger uma fonte de Muller, pois começavam a pisar solo perigoso, os dois a trabalhar juntos até ao ponto em que a cooperação cessasse, ponto esse que nenhum deles tinha ainda decidido qual seria. Perguntou a Muller: - A Uncle Remos é realmente praticável? Não me parece que os americanos queiram voltar a envolver-se, quero dizer, militarmente, num continente estranho. São tão ignorantes no que respeita a África como o eram em relação à Ásia, à excepção, claro, do que aprenderam nos livros do Hemingway. Ele costumava fazer safaris de um mês, organizados por agências de viagens, e depois escrevia sobre caçadores brancos a caçar leões... os pobres bichos, semimortos de fome, para turista ver.

- O objectivo que a Uncle Remus tem em mente disse Muller - é tornar quase desnecessária a utilização de tropas. Pelo menos, em grande número. Alguns técnicos, claro, mas isso já temos. À América mantém na República ^a base de detecção de mísseis teleguiados e uma base de detecção aérea e foram-lhes concedidos direitos que lhes Permitem deter essas bases, com certeza já sabe isso tudo.

Ninguém protestou, nem uma única manifestação. Nada de revoltas estudantis em Berkeley, perguntas no Congresso Até agora, a segurança interna tem sido excelente. Como vê, as nossas leis raciais estão de certo modo, justificadas’ forneceram uma óptima cobertura. Não precisamos de acusar ninguém de espionagem, o que só chamaria as atenções O seu amigo Carson era perigoso, mas teria sido ainda mais perigoso se o acusássemos de espionagem. Está muita coisa em curso nas bases de detecção... por isso é que queremos colaborar estreitamente com a sua gente. Vocês podem apontar os perigos e nós tratamos deles calmamente. De certa maneira, estão muito melhor colocados do que nós para penetrarem nos elementos liberais, ou mesmo nos nacionalistas negros. Por exemplo. Estamos-lhes muito gratos pelas informações que nos passaram sobre Mark Ngambo... claro que já as conhecíamos. Mas tivemos a satisfação de saber que não nos falhou nada de importante. Daí não pode vir qualquer perigo, pelo menos por enquanto. Mas os próximos cinco anos são de uma importância vital... para a nossa sobrevivência, claro.

- Mas e você, Muller... vai conseguir sobreviver? Tem uma longa fronteira aberta, demasiado longa para campos de minas.

- Das antiquadas, sim - respondeu Muller. - Tanto nos faz se a bomba de hidrogénio transformou a bomba atómica numa simples arma táctica. Táctica é uma palavra tranquilizadora. Ninguém dará início a uma guerra nuclear só por alguém ter usado uma arma táctica algures num quase-deserto.

- E as radiações?

- Temos sorte com os nossos ventos dominantes e desertos. Aliás, a bomba táctica praticamente não causa estragos. Muito menos do que a de Hiroxima e todos sabemos como o efeito dessa foi limitado. Nas áreas que poderão ficar radioactivas durante uns anos há poucos africanos brancos. Tencionamos canalizar as nossas invasões para essas zonas.

- Começo a ter uma ideia - disse Castle. Lembrou-se Sam, da mesma maneira que pensou nele quando olhou para a fotografia da seca no jornal: o corpo amarrado e o abutre, só que o abutre também morreria com as radiações.

Foi por isso mesmo que aqui vim, para lhe dar uma ideia não é preciso entrar em pormenores, para que possa avaliar devidamente todas as informações que conseguir. Neste momento, as bases de detecção são o ponto sensível.

- Tal como as leis raciais, podem encobrir uma quantidade de pecados?

- Exactamente. Não há razão para brincarmos um com o outro. Sei que recebeu instruções para não me revelar certas coisas e compreendo perfeitamente. Foram-me dadas precisamente as mesmas ordens. O importante é termos ambos a mesma ideia; vamos lutar do mesmo lado, por conseguinte, temos que ter a mesma ideia.

- E estamos de facto metidos na mesma caixa? - perguntou Castle, gozando à sua maneira com eles todos, com a BOSS, com o seu próprio serviço, até com Boris.

- Caixa? Sim, creio que pode chamar-lhe assim. Olhou para o relógio. - Não disse que o funeral era às onze? É melhor ir andando.

- O funeral passa bem sem mim. Se houver um Davis na outra vida, ele vai compreender e se não houver...

- Eu acredito plenamente numa outra vida - disse Cornelius Muller.

- Acredita? E isso não o assusta nem um bocadinho?

- Porque havia de assustar? Sempre cumpri o meu dever.

- Por causa das suas armazinhas tácticas. Pense nos Pretos todos que podem morrer antes de si e estar lá em cima à sua espera.

- São terroristas - respondeu Muller. - Não espero voltar a vê-los.

- Não me referia aos guerrilheiros. Referia-me às famíias que habitam a área infectada. Crianças, mulheres, avozinhas.

- Penso que irão para o céu deles.

- Apartheid no céu?

- Sei muito bem que está a brincar comigo. Mas não creio que eles gostassem do nosso tipo de céu. Seja como for, os teólogos que resolvam essas questões. Mas deixe lá que você também não poupou as crianças em Hamburgo pois não?

- Felizmente, não participei em nada, como agora.

- Se não vai ao funeral, Castle, devíamos continuar a trabalhar.

- Tenho muita pena, mas não vou. Vamos trabalhar.

- E de facto tinha pena; tinha até medo, o mesmo que sentira nos outros escritórios da BOSS naquela manhã, em Pretória. Durante sete anos pisara com um cuidado infatigável os campos minados e agora Cornelius Muller fizera-o dar o primeiro passo em falso. Seria possível ele ter caído numa armadilha montada por alguém que conhecia o seu temperamento?

- Sei, claro - disse Muller -, que vocês, ingleses, gostam de discutir só por discutir. Até o vosso C quis brincar comigo acerca do apartheid, mas no caso da Uncle Remus... bem, nem você nem eu nos podemos pôr com brincadeiras.

- Sim, voltemos à Uncle Remus.

- Tenho autorização para lhe contar, em linhas gerais, claro, o que se passou comigo em Bona.

- Teve dificuldades?

- Não muito grandes. Os alemães, ao contrário das outras potências coloniais, nutrem por nós uma simpatia secreta. Digamos que vem do tempo do telegrama do Kaiser ao presidente Kruger. Estão preocupados com o Sudoeste Africano; preferiam ver-nos a dominar o Sudoeste Africano do que sabê-lo dominado pelo vácuo. Ao fim e ao cabo> eles governaram o Sudoeste Africano com uma brutalidade muito maior do que a nossa e o Ocidente precisa do nosso urânio.

- E conseguiu um acordo?

- Não se lhe devia chamar acordo. Já lá vai o tempo dos tratados secretos. Só contactei com o meu correspondente e não com o secretário dos Negócios Estrangeiros ou o chanceler. Tal como o vosso C tem falado com a CIA em Washington. O que espero é que tenhamos, os três, chegado a um entendimento mais claro.

- Um entendimento claro em vez de um tratado secreto?

- Justamente.

- E os franceses?

- Não levantarão problemas. Se nós somos calvinistas, eles são cartesianos. Descartes não se preocupou com as perseguições religiosas do seu tempo. Os franceses têm um grande ascendente sobre o Senegal, a Costa do Marfim, até têm um subtil entendimento com Mobutu em Kinshasa. Cuba não voltará a interferir seriamente em África (a América já tratou disso) e Angola nunca constituirá um perigo por várias razões. Hoje ninguém é apocalíptico. Até os russos querem morrer nas suas camas e não num forte. Na pior das hipóteses, usando meia dúzia de bombas atómicas, das pequenas e tácticas, claro, conseguiremos uns cinco anos de paz, se formos atacados.

- E depois?

- Essa é a razão fundamental do nosso entendimento com a Alemanha. Precisamos de uma revolução técnica, das mais modernas máquinas nas minas, embora, sozinhos, já tenhamos chegado mais longe do que muita gente pensa. Num prazo de cinco anos será possível reduzir o pessoal das minas para menos de metade; poderemos aumentar para mais do dobro o salário da mão-de-obra qualificada e comeÇar a produzir o que eles têm na América, uma classe média negra.

- E os desempregados?

- Que voltem para as suas terras. é para isso que servem as terras. Sou um optimista, Castle.

- E o apartheid continua?

- Há-de haver sempre um certo apartheid, como aqui, entre os ricos e os pobres.

Cornelius Muller tirou os seus óculos de aros dourados e poliu o dourado até reluzir.

- Espero - disse -, que a sua mulher tenha gostado do xaile. Sabe que, se quiser regressar, será sempre bem-vindo, agora que conhecemos a sua verdadeira posição E trazer a família, claro. Pode ter a certeza de que serão tratados como brancos honorários.

Castle teve vontade de responder: «Mas eu sou um negro honorário.» No entanto, desta vez preferiu ser prudente:

- Obrigado.

Muller abriu a sua pasta e dela tirou uma folha de papel.

- Tem aqui alguns apontamentos sobre os meus encontros em Bona - disse retirou ainda uma esferográfica, dourada também. - Talvez tenha informações úteis acerca destes pontos quando nos voltarmos a encontrar. Segunda-feira está bem para si? À mesma hora? - E acrescentou:

- Por favor, destrua depois de ler. A BOSS não gostaria que nada disso fosse parar nem ao mais secreto dos seus ficheiros.

- Claro. Como queira.

Depois de Muller sair, enfiou o papel no bolso.

 

Viam-se muito poucas pessoas na Igreja de St. George, em Hanover Square, quando o doutor Percival chegou com Sir John Hargreaves, regressado de Washington na noite anterior.

Um homem de fumo negro no braço estava sozinho, de pé junto à coxia, na primeira fila; provavelmente, pensou o doutor Percival, era o dentista de Droitwich. Recusou-se a deixar passar fosse quem fosse - era como se estivesse a salvaguardar o seu direito à primeira fila, no seu posto de único parente vivo. O doutor Percival e C ocuparam os seus lugares ao fundo da igreja. A secretária de Davis, Cynthia, encontrava-se duas filas atrás deles. O coronel Daintry estava sentado ao lado de Watson do outro lado da coxia e viam-se uma série de rostos que o doutor Percival conhecia vagamente. Cruzara-se com eles num corredor ou numa reunião do MI5, alguns talvez fossem intrusos - os funerais, tal como os casamentos, atraem desconhecidos. Os dois homens desgrenhados da última fila eram, quase de certeza, os colegas de apartamento de Davis, os do Ministério do Ambiente. Alguém começou a tocar uma música suave no órgão.

O doutor Percival segredou a Hargreaves:

- Fez boa viagem?

- Cheguei três horas atrasado a Heathrow - respondeu Hargreaves. - A comida era intragável. - Soltou um suspiro, talvez estivesse a recordar, com saudade, a empada da sua mulher, ou a truta fumada do seu clube. O órgão lançou uma última nota e emudeceu. Umas pessoas ajoelharam-se e outras puseram-se de pé. Ninguém parecia saber ao certo o que fazer de seguida.

O padre, provavelmente desconhecido de todos os presentes, até mesmo do morto que jazia no caixão, recitou «Afastai de mim a Vossa peste; até a Vossa mão pesada me consome.»

- Qual foi a peste que consumiu Davis, Emmanuel?

- Não se preocupe, John. A certidão de óbito está em ordem.

O serviço fúnebre pareceu ao doutor Percival, que não ia a um funeral há muitos anos, repleto de informações irrelevantes. O reitor começara por ler a Primeira Carta aos Coríntios: «Toda a carne não é a mesma carne; há, sim, um tipo de carne humana, o tipo de carne das feras, outro dos peixes, outro das aves.» A afirmação era incontestavelmente verdadeira, pensou o doutor Percival. O caixão não continha um peixe; o seu interesse seria muito maior se fosse esse o caso - podia ser uma enorme truta. Olhou em volta. Uma lágrima enredara-se nas pestanas da rapariga. O coronel Daintry exibia uma expressão zangada, ou talvez carrancuda, que podia não augurar nada de bom. Também Watson estava nitidamente preocupado com alguma coisa - provavelmente pensava em quem iria promover ao lugar de Davis.

- Quero ter uma palavrinha consigo depois do serviço - disse Hargreaves, e isso também podia ser aborrecido.

- «Olhai, pois vou revelar um segredo» - leu o reitor. «Se matei ou não o homem certo?», interrogou-se o doutor Percival, mas isso nunca se saberia, a não ser que as fugas continuassem, sugerindo sem qualquer dúvida que ele tinha cometido um erro infeliz. C ficaria muito incomodado, Daintry também. Era uma pena não se poder voltar a lançar um homem ao rio vivificador, como se faz com os peixes.

A voz do reitor, que se elevara para recitar uma passagem famosa da literatura inglesa, «Oh, Morte, onde está a a garra?», como um mau actor que, ao fazer de Hamlet, etira do contexto o famoso solilóquio, voltou a descer, para tirar a conclusão monótona e académica: «A garra da morte o pecado e a força do pecado é a lei.» Parecia uma proposição de Euclides.

- Que foi que disse? - sussurrou C.- qed

- - respondeu Percival.

- Afinal, o que quis dizer com aquilo do QED? perguntou Sir John Hargreaves quando conseguiram sair da igreja.

- Pareceu-me um final muito melhor para o que o reitor estava a dizer do que «Amem.

Em seguida, os dois seguiram calados rumo ao Travellers Club. Por mútuo, e silencioso, acordo decidiram que, naquele dia, o Travellers era um local mais adequado para almoçarem do que o Refom - Davis passara a ser um viajante honorário, depois da viagem que fizera a regiões inexploradas, e não havia dúvida que perdera a sua campanha pelo um homem um voto.

- Não me lembro qual foi o último funeral a que assisti - disse o doutor Percival. - Deve ter sido de alguma tia-avó, aí há uns quinze anos. Uma cerimónia muito formal, não é?

- Em África, eu gostava muito de ir a funerais. Havia sempre música, nem que os instrumentos fossem tachos e Panelas e latas de sardinha vazias. Fica-se com a impressão de que a morte afinal é uma coisa divertida. Quem era a rapariga que estava a chorar?

Quod erat demonstrandum: «o que era preciso demonstrar». (N. da T.)

- A secretária de Davis. Ao que parece ele estava apaixonado por ela.

- Isso é normal, suponho. É inevitável numa organização como a nossa. O Daintry investigou o passado dela, espêro?

- Claro. De facto, e sem dar por isso, ela forneceu-nos uma informação útil: recorda-se do caso do zoo?

- Zoo?

- Quando Davis...

- Ah, sim, já sei.

Como era habitual aos fins-de-semana, o clube estava praticamente vazio. Teriam começado o almoço - era quase um reflexo condicionado - com truta fumada, mas não havia. Em sua substituição, o doutor Percival aceitou com relutância salmão fumado. Comentou:

- Gostava de ter conhecido melhor Davis. Era capaz de gostar bastante dele.

- E no entanto acredita que ele era a fonte?

- Desempenhava o papel de homem simples com muita inteligência. Admiro a inteligência, e a coragem. Precisou de uma grande coragem.

- Para a causa errada.

- John, John! Nenhum de nós está em situação para falar de causas. Não somos cruzados, o nosso século não e esse. Há muito que Saladino foi expulso de Jerusalém. Não quer dizer que Jerusalém tenha ganho muito com isso.

- Mesmo assim, Emmanuel... Não posso defender a traição.

- Há trinta anos, quando eu era estudante universitário, considerava-me uma espécie de comunista. Agora..- Quem é o traidor, eu ou o Davis? Eu acreditava firmemente no internacionalismo e agora estou metido numa guerra clandestina pelo nacionalismo.

- Está mais crescido, Emmanuel. É só isso. Que quer beber? Clarete ou borgonha?

- Clarete, se estiver de acordo. - Sir John Hargreave encolheu-se na sua cadeira e enfiou a cabeça na lista de vinhos. Parecia triste, talvez só porque não conseguia decidir, entre Si. Émilion e Médoc. Finalmente chegou a uma conclusão e fez o pedido. - Às vezes, pergunto a mim mesmo porque será que está connosco, Emmanuel.

- Acabou de dar a resposta. Cresci. Não creio que o comunismo dê, a longo prazo, resultados melhores do que o cristianismo, e olhe que não sou do tipo cruzado. Capitalismo ou comunismo? Talvez Deus seja capitalista. Quero ficar do lado com maiores probabilidades de vencer enquanto eu estiver vivo. Não fique chocado, John. Julga-me um cínico, mas eu só não quero perder tempo. O lado que ganhar é o que vai poder construir hospitais melhores e dar mais dinheiro para a investigação sobre o cancro... quando se deixarem destes disparates atómicos. Entretanto, vou-me divertindo com o jogo que estamos a jogar. Divertir. Só divertir. Nunca disse que era um entusiasta de Deus ou Marx. Cuidado com os crentes. Não são jogadores em que se possa confiar. Aliás, qualquer pessoa gosta de encontrar um bom jogador do outro lado do tabuleiro, dá mais gozo.

- Ainda que seja um traidor?

- «Traidor»! Mas que palavra tão antiquada, John. O jogador é tão importante como o jogo. Não me divertiria nada com um mau jogador sentado à minha frente.

- E no entanto... matou o Davis? Ou não?

- O fígado dele é que o matou. John. Leia a certidão de óbito.

- Uma coincidência feliz?

- A rasteira, você é que a sugeriu, apareceu, bem vê, o mais antigo de todos os truques. Só ele e eu conhecíamos a minha fantasia de Porton.

- Devia ter esperado até eu voltar. Falou com o Daintry?

- Deixou o assunto nas minhas mãos, John. Quando Sentimos o peixe morder não ficamos à espera que alguém nos diga o que devemos fazer.

- Este Chateau Talbot, acha que está à altura?

- E excelente.

- Penso que deram cabo do meu paladar em Washington. Todos aqueles dry martinis - voltou a provar o vinho -, ou então a culpa é sua. Nunca se preocupa com nada, Emmanuel?

- Bem, preocupo-me, estou um pouco preocupado com o serviço fúnebre, há-de ter reparado que até meteu órgão, e depois há o enterro. Tudo isso deve ter custado uma fortuna e não creio que o Davis tenha cá deixado muito dinheiro. Acha que aquele desgraçado do dentista pagou tudo, ou foram os nossos amigos do Leste? Não me parece bem.

- Não se preocupe, Emmanuel. O escritório paga. Não temos que dar contas dos fundos secretos. - Hargreaves empurrou o copo para o lado e disse: - Este Talbot não parece nada de setenta e um.

- Eu próprio fiquei estupefacto, John, com a reacção rápida do Davis. Tinha feito cálculos rigorosos baseados no peso dele e dei-lhe o que pensava ser um pouco menos do que letal. Compreende, a aflatoxina nunca tinha sido testada num ser humano e eu queria ter a certeza, não fosse haver uma emergência, de que lhe dávamos a dose certa. Se calhar o fígado dele estava mesmo em mau estado.

- Como é que lha deu?

- Fui fazer-lhe uma visita e ele serviu-me um uísque inacreditavelmente mau a que chamava White Walker. O sabor era tão terrível que ninguém dava pela aflatoxina.

- Só peço a Deus que tenha apanhado o peixe certo

- comentou Sir John Hargreaves.

Dassinel VolTOU Para a St’ JameS’S Street e ao passar pelo White, a caminho de casa, ouviu uma voz chamá-lo dos degraus. Reconheceu o rosto, mas não conseguiu recordar-lhe um nome, nem sequer recordar em que circunstâncias o vira antes. Por fin veio-lhe à cabeça. Ou seria Buffer?

- Não tem um Malteser, amigo?

Então, a recordação de um encontro anterior deixou-o embaraçado.

- Vamos comer qualquer coisa, coronel?

Era Buffy o nome absurdo. Claro que o homem devia ter outro, mas Daintry não sabia qual era.

- Lamento muito. Mas tenho o almoço pronto em casa à minha espera - respondeu, o que não era propriamente mentira. Tinha aberto uma lata de sardinhas antes de ir para Hanover Square e sobrara pão e queijo do dia anterior.

- Então vamos beber um copo. Em casa, as refeições não têm hora marcada - disse Buffy e Daintry não se lembrou de uma desculpa para recusar.

Como ainda era cedo, só estavam duas pessoas no bar. Pareciam conhecer muito bem Buífy, pois cumprimentaram-no sem entusiasmo. Buffy não se importou. Cumprimentou-os com um gesto largo que incluía o barman.

- Apresento-vos o coronel. - Ambos resmungaram qualquer coisa a Daintry, querendo ser bem-educados. Não consegui ouvir o seu nome - disse Buffy -, durante aquela caçada.

- Nem eu o seu.

- Conhecemo-nos - explicou Buffy -, em casa de Hargreaves. O coronel é um espião. Tipo James Bond.

Um dos homens disse:

- Nunca gostei desses livros do Ian.

- Sexo a mais para o meu gosto - continuou o outro. ” Um exagero. Também gosto de comê-las, mas não é a coisa mais importante do mundo. Quero dizer, o modo de o fazer.

-- Que toma? - perguntou Buffy.

- Um dry martini - respondeu o coronel Daintry e, lembrando-se do seu encontro com o doutor Percival, acrescentou: - Muito seco.

- Um grande muito seco, Joe e um gim verrnelho grande. Mas grande mesmo, pá, não sejas forreta.

Um silêncio pesado encheu a sala como se cada um estivesse a pensar numa coisa diferente - um livro de Ian Fleming, uma caçada, um funeral. Buffy foi o primeiro a falar:

- O coronel e eu temos uma paixão comum: Maltesers.. Um dos homens deixou os seus pensamentos e disse’

- Maltesers, Eu cá prefiro Smarties.

- Smarties? Que é isso, Dicky?

- São umas coisinhas de chocolate de todas as cores. Sabem todas ao mesmo mas, não sei porquê, prefiro as vermelhas e as amarelas. Detesto as lilases.

- Vi-o dobrar a esquina, coronel - disse Buffy. Parecia vir a falar com os seus botões, se me permite o comentário. Segredos de Estado? Para onde ia?

- Para casa - respondeu Daintry. - Moro aqui perco.

- Estava com um ar mesmo chateado e eu pensei: o coronel deve estar cheio de problemas. Os espiões devem ter muitos.

- Venho de um funeral.

- Ninguém de família, espero?

- Não. Um colega de trabalho.

- Mas olhe que para mim um funeral é muito melhor do que um casamento. Não suporto casamentos. Um funeral é definitivo. Um casamento... bem é apenas uma fase infeliz que antecede outra. Acho que se deviam celebrar eram os divórcios, embora também não passem de fases, que antecedem outros casamentos. As pessoas habituam-se e depois não conseguem viver de outra maneira.

- Não me lixes, Buffy - disse Dicky, o que gostava de Smarties -, tu também já estiveste para casar. Sabemos tudo sobre o assunto. Tiveste foi a sorte de escapar. Joe, aí outro dry martini ao coronel.

Daintry, sentindo-se perdido entre tantos estranhos, bebeu o primeiro de um trago. Depois disse, como se estivesse a citar uma máxima retirada de um livro escrito numa língua desconhecida:

Também estive num casamento. E não foi há muito Tempo

- Secreto? Quero dizer, de espiões?

- Não. Foi a minha filha que se casou.

- Que engraçado - exclamou Buffy. - Nunca pensei que fosse desses, quero dizer, um desses tipos casados.

- Não é obrigatório que seja - lembrou Dicky.

O terceiro homem, que até então praticamente não abrira a boca, disse:

- Não digas isso, Buffy. Eu também já fui desses, embora há uma data de tempo. Por acaso até foi através da minha mulher que Dicky soube da existência dos Smarties. Lembras-te daquela tarde, Dicky? Foi um almoço um bocado triste, porque sabíamos que o nosso casamento tinha chegado ao fim, e de repente ela disse: «Smarties», assim mesmo, «Smarties»... Não sei porquê. Acho que ela sentiu que alguém devia dizer alguma coisa. Para ela, manter as aparências era tudo.

- Não me lembro de nada disso, Willie. A impressão que eu tenho é que os Smarties me têm acompanhado a vida toda. Achava que eu é que os tinha descoberto sozinho. Outro seco para o coronel, Joe.

- Não, desculpem, mas... tenho de ir para casa.

- E a minha vez - disse o que se chamava Dicky. Enche-lhe o copo, Joe. Vem de um funeral. Precisa de ser animado.

- Comecei muito cedo a ir a funerais -- disse Daintry, Para seu próprio espanto, depois de beber um gole do seu terceiro martini. Reparou que estava a falar mais abertamente do que era seu hábito, quando na presença de desconhecidos, e para ele o mundo era habitado quase exclusivamente por desconhecidos. Ele próprio gostaria de pagar Uma rodada, mas o clube era deles. Sentiu uma grande simpatia por aqueles homens, para quem, no entanto, continuava a ser, tinha a certeza, um estranho. Queria contar-lhes coisas interessantes, mas eram tantos os assuntos que não podia falar.

- Porquê? Morria muita gente na sua família? - perguntou Dicky, com uma curiosidade alcoólica.

- Não, não era bem isso - respondeu Daintry, depois de o terceiro martini ter afundado a sua timidez. Por alguma razão, lembrou-se de uma estação de caminho-de-ferro algures na província, onde chegara com o seu pelotão havia trinta anos... as tabuletas com o nome do lugar tinham sido todas retiradas depois de Dunquerque, devido à possibilidade de uma invasão alemã. Era como se, mais uma vez, se estivesse a ver livre de um duro fardo, deixando-o cair pesadamente no chão do White’s. - Compreendem, o meu pai era clérigo, por isso tive que assistir a muitos funerais quando era criança.

- Não me passava pela cabeça - disse Buffy. - Julguei que viesse de uma família de militares... filho de um general, do velho regimento, e essa treta toda. Joe, o meu copo está a chamar por ti. Mas claro, pensando bem, o facto de ter um pai clérigo explica muita coisa.

- Explica o quê? - perguntou Daintry. Parecia irritado, com vontade de pôr tudo em questão. - Os Maltesers*.

- Não. Os Maltesers são outra história. Agora não lhe posso falar deles. O que eu quis dizer foi que o coronel é da espionagem e de certo modo os clérigos também são, se pensarmos bem no assunto... Sabe, o segredo da confissão e essas tretas, vem tudo a dar ao mesmo, coisas de que não se pode falar.

- O meu pai não era católico romano. Nem sequer da High Church. Foi capelão da marinha. Na Primeira Guerra Mundial. Na Igreja Anglicana que se reconhece na continuidade histórica de igreja solene.

- A Primeira Guerra Mundial - disse o homem lento que já fora casado - foi entre Abel e Caim - terminou a sua declaração num tom monocórdico, como se quisesse encerrar uma conversa fútil.

-- O pai do Willie também era eclesiástico - explicou Buffy- - Dos importantes. Bispo contra capelão da marinha. O trunfo é dele.

- O meu pai esteve na batalha de Jutlândia - contou-lhes Daintry. Não queria ganhar a vasa, ao opor a Jutlândia a um bispado. Fora apenas invadido por uma outra recordação.

- Mas não combateu. Por isso não conta - disse Buffy. - Pelo menos contra Abel e Caim.

- Não parece tão velho como isso - comentou Dicky. Falava num tom desconfiado, beberricando do seu copo.

- Nessa altura o meu pai ainda não era casado. Casou com a minha mãe depois da guerra. Nos anos vinte. Daintry apercebeu-se de que a conversa estava a tornar-se absurda. o gim agia como uma droga da verdade. Sabia que tinha falado de mais.

- Casou com a sua mãe? - perguntou Dicky num tom ríspido, como se estivesse a fazer um interrogatório.

- Claro que casou. Eram os anos vinte.

- Ela ainda vive?

- Morreram os dois há muito tempo. Tenho mesmo de ir andando. O meu almoço deve estar estragado a estas horas - acrescentou Daintry, lembrando-se das sardinhas a secar no prato. Já não se sentia entre estranhos simpáticos. A conversa ameaçava azedar.

- Mas o que é que isto tudo tem a ver com um funeral? Foi o funeral de quem?

- Deixa lá, Dicky - disse Buffy. - Ele gosta de fazer Perguntas. Esteve no MI5 durante a guerra. Mais gins, Joe. kle já explicou. Foi um bufo qualquer lá do trabalho.

- Viu se ele ficou bem enterrado?

- Não, não. Só estive no serviço fúnebre. Em Hanover Square.

- Então foi na Igreja de Saint George - observou o filho do bispo. Estendeu o copo a Joe, como um padre estende a taça durante a eucaristia.

Só daí a muito tempo Daintry conseguiu deixar o balcão do White’s. Buffy teve de o amparar até aos degraus da entrada. Passou um táxi.

- Vê o que eu estava a dizer? - disse Buffy. - Autocarros em Saint James’s. Ninguém estava safo.

Daintry não percebeu o que ele quis dizer. Ao descer a rua em direcção ao palácio percebeu que tinha bebido como há muito tempo não fazia àquela hora. Aquilo era gente simpática, mas precisava de ter cuidado. Não havia dúvida de que falara de mais. Do pai, da mãe. Passou a Chapelaria Lock; passou o Overton’s; parou no passeio na esquina com a Pall Mall. Tinha pisado o risco - apercebera-se disso a tempo. Virou-se e voltou para trás, até chegar à porta do apartamento onde o seu almoço o aguardava.

O queijo estava em boas condições, assim como o pão e a lata de sardinhas que afinal deixara por abrir. Não era muito jeitoso de mãos e a pequena argola metálica partiu-se antes de um terço da lata estar aberto. Mesmo assim, com a ajuda de um garfo, conseguiu tirar as sardinhas, mas todas desmanchadas. Para a fome que tinha, aquilo servia perfeitamente. Pensou se devia ou não continuar a beber, depois de tantos dry martinis, e acabou por ir buscar uma garrafa de Tuborg.

O almoço ficou despachado em menos de quatro minutos, que lhe pareceram uma eternidade, de tanto meditar. Os seus pensamentos balouçavam como os de um bêbado. Primeiro lembrou-se do doutor Percival e de Sir John Hargreaves, descendo juntos a rua à frente dele quando o serviço terminou, de cabeças inclinadas, como dois conspiradoresA seguir pensou em Davis. Não que tivesse uma simpatia particular por Davis, mas a morte dele preocupava-o. Disse em voz alta ao seu único interlocutor, um rabo de sardinha, pendurado no seu garfo:

- Um júri não condenaria ninguém com aquelas provas.

Condenar? Não podia provar que Davis tinha sido morto e, a julgar pela certidão de óbito, fora uma morte natural. morrer de cirrose é o que se chama morte natural. Tentou recordar o que o doutor Percival lhe dissera, na noite da caçada. Bebera demasiado nessa noite, tal como naquela manhã, porque não se sentia à vontade entre gente que não compreendia, e Percival aparecera de surpresa no seu quarto, a falar de um pintor chamado Nicholson.

Daintry não tocou no queijo; levou-o, mais o prato sujo de azeite, para a cozinha - kitchenette parecia um termo mais adequado, visto que só lá cabia uma pessoa de cada vez. Lembrou-se da vastidão da cave onde ficava a cozinha, na reitoria de Suffolk, onde o seu pai fora enfiado depois da batalha da Jutlândia, e recordou as palavras infelizes de Buffy acerca da confissão. O seu pai nunca fora a favor da confissão, nem dos confessionários que um sacerdote solteiro, adepto da High Church, instalara na paróquia vizinha. As confissões chegavam-lhe, quando chegavam, em segunda mão, pois as pessoas gostavam de se confessar à sua mãe, muito estimada na aldeia, e ele ouvira-a transmitir essas confissões ao marido, depois de desprovidas de quaisquer grosseria, malícia ou crueldade.

- Acho que deves saber o que Mistress Baines me contou ontem.

Daintry falou em voz alta - aquilo estava a tornar-se um hábito - com o lava-loiça:

- Não havia qualquer prova conclusiva contra Davis. Sentiu-se o culpado por um fracasso - um homem de terceira-idade, prestes a reformar-se - reformar-se de quê? Ia trocar uma solidão por outra. Oxalá pudesse voltar à reitona de Suffolk. Desejou percorrer o caminho orlado de loureiros que nunca floriam e entrar pela porta principal. Só o vestíbulo era maior do que a sua casa toda. Havia uma Quantidade de chapéus pendurados num bengaleiro, à esquerda, e, à direita, um recipiente de latão guardava os chapéus-de-chuva. Atravessou o vestíbulo e, depois de abrir muito devagar a porta à sua frente, surpreendeu os pais sentados no sofá estofado de chintz, de mãos dadas, convencidos de que estavam sozinhos. «Peço a demissão», perguntou-lhes, «ou espero pela reforma?» Sabia muito bem a resposta de um e de outro: «Não», do pai, porque o homem que o comandava gozava do direito divino dos reis - o seu filho não podia saber melhor do que o oficial seu superior que medidas tomar, e da mãe, bem, ela percebia muito bem quais as raparigas da aldeia que tinham problemas com os seus patrões. «Não te precipites. Não é fácil encontrar outro emprego.» O seu pai, o ex-capelão da marinha, que acreditava no seu comandante e no seu Deus, ter-lhe-ia dado o que se podia chamar a resposta cristã e a sua mãe a resposta prática, a do bom senso. Se pedisse a demissão, tinha tantas hipóteses de encontrar um emprego novo como uma mulher-a-dias na pequena aldeia onde vivera.

O coronel Daintry voltou para a sua sala sem reparar que levava na mão o garfo oleoso. Pela primeira vez desde há muito tempo sabia o número de telefone da filha - ela própria lho enviara após o casamento, num cartão impresso. Era o único laço que o unia ao quotidiano dela. Talvez conseguisse, pensou, ser convidado para jantar. Não ia sugeri-lo descaradamente, mas se ela falasse nisso...

Não identificou a voz que atendeu. Perguntou:

- É do seis sete três um zero sete cinco?

- Sim. Com quem deseja falar?

Perdeu a paciência e a memória para nomes. Respondeu:

- Mistress Clutter.

- E engano.

- Desculpe. - E desligou. É claro que devia ter dito: «Quero dizer, Mistress Clough», mas era tarde de maisA voz, calculou, devia ser a do seu genro.

- Não ficaste chateado - perguntou Sarah -, por eu

não ir?

- Claro que não. Eu também não fui, tive uma reunião com o Muller.

- Tive medo de não estar em casa antes do Sam voltar da escola. Ia logo perguntar onde eu tinha ido.

- De qualquer maneira, vamos ter que lhe dizer.

- Sim, mas há tempo. Estava muita gente?

- Nem por isso, pelo que a Cynthia disse. O Watson, claro, sempre é chefe da secção. O doutor Percival, o C. O C foi muito amável em ter ido. Porque o Davis não era um funcionário assim tão importante. E estava o primo dele, a Cynthia achou que era o primo, porque estava de fumo preto.

- E que aconteceu depois do serviço fúnebre?

- Não sei.

- Quero dizer, ao corpo.

- Julgo que o levaram para Golders Green, para ser cremado. A família é que tratou disso.

- O primo?

- Sim.

- Em África, os funerais eram melhores - disse Sarah.

- Claro, mudam os países, mudam os costumes.

- O vosso é suposto ser uma civilização mais antiga.

- Sim, mas nem todas as civilizações antigas mostram grande respeito pelos mortos. Não somos piores do que os romanos.

Castle terminou o uísque e disse:

- Vou lá acima ler qualquer coisa ao Sam, durante uns Cinco minutos, senão ele vai estranhar.

- Jura que não lhe vais contar nada.

- Não confias em mim?

- Claro que confio, mas... - O «mas» perseguiu-o escadas acima. Vivera demasiado tempo com «mas». Confiamos em si, mas... Daintry a inspeccionar a sua pasta, é estranho em Watford, com a missão de se certificar de que fora sozinho ao encontro com Boris. Até Boris. Pensou «Será que um dia a vida vai ser simples como a infância que os mas” vão acabar, que toda a gente vai confiar incondicionalmente em mim, como Sarah, como Sam?»

Sam esperava-o, o rosto negro sobre a fronha branca do travesseiro. Os lençóis deviam ter sido mudados naquele dia, intensificando o contraste, como num anúncio do uísque Black and White.

- Como vai isso? - perguntou, porque não se lembrou de mais nada para dizer, mas Sam não respondeu, também tinha os seus segredos.

- Como correu a escola?

- Correu bem.

- Que fizeram hoje?

- Aritmética.

- E como foi? ’

- Foi bom.

- E mais?

- Composi...

- Composição. E que tal?

- Foi bom.

Castle sabia que estava prestes a perder a criança para sempre. Cada «Foi bom» chegou-lhe ao ouvido como umaexplosão longínqua, destinada a demolir as pontes entre eles. Se perguntasse a Sam: «Confias em mim?», ele talvez respondesse, «Sim, mas...»

- Queres que eu te leia uma história?

- Quero, por favor.

- Qual há-de ser?

- Aquela sobre um jardim.

Por instantes, Castle ficou atrapalhado. Olhou para a prateleira de volumes velhos amparados por dois cães de loiça que faziam lembrar Buller. Alguns daqueles livros tinham sido seus; os outros fora ele próprio a escolher, pois Sarah chegara muito tarde à literatura e a que conhecia era para adultos. Tirou um volume em verso que guardava desde a sua infância. Não havia qualquer laço de sangue entre ele e Sam, nenhuma garantia de que iriam partilhar os mesmos gostos, mas ele tinha esperança - um simples livro pode ser uma ponte. Abriu o volume ao acaso, ou julgou abrir, mas um livro é como um chão de areia, onde os passos ficam marcados. Nos últimos dois anos lera muitas passagens daquele a Sam, mas as pegadas da sua infância tinham-se tornado mais profundas e o livro abriu-se num poema que até àquele dia nunca lera em voz alta. Ao fim de uma ou duas linhas reparou que já quase o sabia de cor. Quando somos crianças, pensou, há versos que são mais determinantes para a nossa vida do que as Escrituras.

«Atravessar as fronteiras é pecado E rastejarmos sob os ramos caídos, Saltarmos o muro do jardim esburacado Descermos as margens do rio, fugidos.»

- Que são fronteiras?

- é onde termina um país e começa outro. - Ao responder, a definição pareceu-lhe difícil, mas Sam entendeu.

- E o que é um pecado? Eles são espiões?

- Não, não são espiões. O rapaz desta história estava proibido de sair do jardim e...

- Proibido por quem?

- Pelo pai, julgo eu, ou pela mãe.

- E isso é que é um pecado?

- Isto foi escrito há muitos anos. Nesse tempo, as pessoas eram mais severas, mas de qualquer maneira nada disto aconteceu mesmo.

- Pensava que um crime é que era um pecado.

- E tens razão, não se devem praticar crimes. -- Como sair do jardim?

Castle começou a lamentar ter acertado naquele poema, ter tropeçado logo naquela pegada do seu próprio e longo» passeio.

- Não queres que eu leia mais? - Passou os olhos pelas linhas que se seguiam; pareciam inócuas.

- Esse não. Não percebo esse.

- Bem, então qual é que queres?

- Há um sobre um homem...

- O acendedor de lampiões?

- Não, não, não é esse.

- O que é que faz o homem?

- Não sei. E de noite.

- Isso não ajuda muito. - Castle voltou as páginas, à procura de um homem às escuras.

- Vai montado num cavalo.

- Será este? - Castle leu:

«Quando há lua e estrelas luminosas E o vento sopra lá no alto, Durante as noites frias e chuvosas.»

- Sim, sim, é esse mesmo.

«Um homem passa num cavalo, <

Mal as luzes se começam a apagar, Porque será que ele vai a galopar?»

- Continua, porque é que paraste?

«Quando as árvores começam a chorar E os navios balouçam no mar alto Lá vai ele pela estrada a galopar Lá vai ele a galopar num sobressalto Lá vai ele a galopar e a seguir Passa a galope pela casa, a fugir.»

- E esse mesmo. é o que eu prefiro.

- é um bocado assustador.

- Por isso é que eu gosto dele. Leva uma meia na cara.

Não diz que ele é um ladrão, Sam.

- Então porque é que passa pela casa a fugir? Tem a era branca, como tu e Mister Muller?

- Não diz.

- Acho que ele é preto, preto como o meu gato, preto como o meu chapéu.

- Mas porquê?

- As pessoas brancas têm todas medo dele e fecham as casas à chave, para ele não entrar com um facalhão e cortar os pescoços delas. Devagarinho - acrescentou, empolgado.

Sam nunca lhe parecera tão negro, pensou Castle. Pôs um braço em volta dele, num gesto de protecção, mas era impossível protegê-lo da violência e da vingança que começavam a crescer no coração do rapazinho.

Foi para o seu escritório, abriu uma gaveta que estava fechada à chave e retirou dela os apontamentos que Muller lhe passara. Havia um cabeçalho: «Solução Final.» Ao que parecia, Muller não hesitara um segundo em murmurar aquelas palavras a um ouvido alemão e era óbvio que a solução não fora rejeitada - estava ainda em discussão. A mesma imagem voltou como uma obsessão - a da criança moribunda e do abutre.

Sentou-se e copiou cuidadosamente as notas de Muller. Nem se deu ao trabalho de as dactilografar. A anonimidade de uma máquina de escrever, como o caso ali demonstrava, era bastante relativa e aliás não lhe apetecia tomar precauções triviais. Quanto ao código do livro, despedira-se dele com a sua última mensagem, a que terminava com «adeus». Agora, enquanto escrevia «Solução Final» e copiava as palavras que se seguiam com atenção, pela primeira vez identificava-se verdadeiramente com Carson. Com uma atitude igual a esta, Carson teria corrido o maior dos riscos, estava, como Sarah um dia tão bem dissera, «a ir longe de mais».

As duas da manhã, Castle, ainda acordado, foi surpreendido pelos gritos de Sarah:

- Não! Não! - gritava ela.

- Que foi?

Não teve resposta, mas quando acendeu a luz viu nue ela tinha os olhos esbugalhados de medo.

- Tiveste outro pesadelo. Foi só um pesadelo.

- Foi horrível - disse Sarah.

- Conta-mo. Os sonhos não voltam se os contarmos depressa, antes de os esquecermos.

Sentia Sarah tremer encostada a ele.

- Estava numa estação de comboio - contou ela. Ele começou a andar. Tu ficaste na plataforma. Eu segui sozinha. Tu é que tinhas os bilhetes. Sam estava contigo. Não parecia nada preocupado. Nem sequer sei onde íamos. Ouvia o cobrador no compartimento ao lado. Sabia que estava na carruagem errada, reservada a brancos.

- Pronto, agora vais ver que o sonho não volta.

- Eu sabia que ele ia dizer: «Já daqui para fora. Não tens nada que estar aqui. Esta carruagem é para brancos.»

- Foi só um sonho, Sarah.

- Bem sei. Desculpa ter-te acordado. Precisas de dormir.

- Foi parecido com o sonho do Sam. Lembras-te?

- Sam e eu sabemos que temos esta cor. Ela persegue-nos durante o sono. Às vezes pergunto-me se não gostarás de mim só por causa da minha cor. Se fosses preto não ias gostar de uma branca só por ela ser branca, pois não?

- Não. Mas não sou um sul-africano de férias na Suazilândia. Já te conhecia há quase um ano quando me apaixonei por ti. Aconteceu a pouco e pouco. Durante todos aqueles meses em que trabalhámos juntos secretamente, tu era o que se chama um diplomata, sólido como uma casa. Correste muitos riscos. Não tinha pesadelos, mas passava noites acordado, a pensar se tu ias comparecer ou faltar ao encontro que tínhamos marcado, que podias nunca mais voltar e eu perder-te de vista. Receberia uma mensagem a dizer que a linha estava cortada.

-- Quer dizer que te preocupavas com a linha.

- Não. Preocupava-me contigo. Já te amava nessa altura. Sabia que não conseguiria viver se tu desaparecesses. Agora estamos em segurança.

- Tens a certeza?

- Claro que tenho. Não tenho dado provas disso nestes sete anos?

- Não estava a perguntar se tens a certeza de que me amas. Estava a perguntar se tens a certeza de que estamos em segurança?

Para tal pergunta, a resposta não era fácil. O último relatório codificado que terminava com «adeus» fora prematuro e a passagem que escolhera. «Ergui a minha mão e deixei-a cair» não era uma garantia de liberdade no mundo da Uncle Remus.

 

O dia já escurecera, com a ajuda da neblina e dos aguaceiros de Novembro, quando saiu da cabina telefónica. Nenhum dos seus sinais tinha obtido resposta. Na Old Compton Street, a mancha de luz vermelha do letreiro «Livros», assinalando o local onde Halliday júnior exercia a sua nebulosa actividade, reflectia-se no passeio com metade do atrevimento habitual; na loja em frente, Halliday sénior curvava-se, como sempre, sob uma lâmpada solitária, a fim de poupar combustível. Quando Castle entrou na loja o velho carregou, sem levantar a cabeça, num interruptor que encheu de luz as prateleiras laterais, as dos Clássicos de Todos os Tempos.

- Vejo que desperdiçar electricidade não é consigo comentou Castle.

- Ah, é o senhor. Sim, faço o que posso para ajudar o governo, de qualquer maneira não entram aqui muitos clientes depois das cinco. Um vendedor ou outro, mas os livros deles raramente estão em condições e acabam por sair daqui decepcionados, julgam que qualquer livro com mais de cem anos vale uma fortuna. As minhas desculpas pelo atraso do Trollope, se é isso que o traz cá. Ainda não consegui arranjar um segundo exemplar, deu uma vez na televisão, o problema é esse, até os Pinguins se esgotaram.

-Já não é preciso. Basta-me um exemplar. Era isso que queria dizer-lhe. O meu amigo foi para o estrangeiro.

- Oh, mas vai ter saudades dos seus serões literários. Ainda no outro dia disse ao meu filho...

- É curioso, Mister Halliday, mas nunca conheci o seu filho. Ele está? Queria falar com ele acerca duns livros que posso dispensar. A literatura erótica já não me interessa. Deve ser da idade. Acha que ele está lá agora?

- Agora não. Para falar com franqueza, ele arranjou um grande sarilho. Por causa da mania de expandir o negócio. Abriu outra loja o mês passado, em Newington Butts mas acontece que os polícias de lá não são tão compreensivos como os de cá, ou são mais caros, se me permite o cinismo. Teve de ir ao tribunal esta tarde, por causa daquelas revistas idiotas, e ainda não voltou.

- Espero que o sarilho dele não lhe traga problemas a si, Mister Halliday.

- Oh, não há perigo. Os polícias são muito simpáticos. Julgo mesmo que têm pena de mim, por ter um filho nesse ramo. Estou sempre a dizer-lhes que, se fosse mais novo, talvez fizesse o mesmo e eles riem.

Castle sempre achou estranho que «eles» tivessem escolhido um intermediário tão inconsistente como o jovem Halliday, cuja loja podia ser revistada pela polícia a qualquer momento. Talvez, pensou, fosse uma espécie de bluff duplo. Era difícil a polícia de investigação conhecer os meandros da secreta. Era até possível que o jovem Halliday ignorasse, tal como o seu pai, que estava a ser usado. Era isso que ele queria a todo o custo tirar a limpo, pois preparava-se para lhe confiar o que restava da sua vida.

Olhou para o outro lado da rua, para o letreiro escarlate e as revistas da montra, e perguntou a si próprio que estranho sentimento estaria a impeli-lo a correr um risco tão grande. Boris não teria aprovado, mas agora que já «lhes» tinha enviado o seu último relatório e a sua demissão sentia um desejo irresistível de comunicar directamente, boca a boca, sem ter de permeio esconderijos, livros de código e complicados sinais em telefones públicos.

- Não faz a mínima ideia de quando ele volta? - perguntou a Mister Halliday.

-- Nenhuma. Não posso ser eu a ajudá-lo?

- Não, não, deixe estar. - Não dispunha de um código telefónico para atrair a atenção de Halliday júnior. Tinham sido tão escrupulosamente impedidos de se conhecerem que às vezes pensava que o seu único encontro talvez estivesse agendado para a emergência final.

- Por acaso o seu filho tem um Toyota vermelho?

- Não, mas às vezes leva o meu, quando tem que ir fora da cidade, vender. De vez em quando dá-me uma ajuda, visto que isto já não é o que era. Mas porque pergunta?

- Pareceu-me ver um estacionado à porta da loja, uma vez.

- Não devia ser o nosso. Aqui na cidade, não me parece. Com tantos engarrafamentos, seria uma grande despesa. Economizamos o mais que nos é possível, sempre que o governo pede.

- Bem, espero que o magistrado não seja demasiado severo com ele.

- Agradeço o cuidado. Dir-lhe-ei que o senhor deseja falar com ele.

- Trago aqui um bilhete que gostaria que lhe entregasse. Mas olhe que é confidencial. Não gostaria que soubessem que tipo de livros eu coleccionava quando era novo.

- Pode confiar em mim. Creio que nunca o decepcionei. E o Trollope?

- Oh, esquecia-me do Trollope.

Em Euston, Castle comprou um bilhete para Watford. não queria mostrar o seu passe para Berkhamstead. os revisores têm excelente memória para passes. No comboio leu, para manter a cabeça ocupada, um jornal diário que alguém deixara esquecido no assento do lado. Trazia Uma entrevista com uma estrela de cinema que ele nunca tinha visto (o cinema de Berkhamstead fora transformado numa sala de bingo). Ao que parecia, o actor casara pela segunda vez. Ou seria a terceira? Contou ao repórter, durante uma entrevista concedida anos antes, que não voltaria a casar. «Então mudou de ideias?», perguntava, imprudente, o indiscreto jornalista.

Castle leu a entrevista até à última palavra. Ali estava um homem a quem era possível falar com um repórter acerca dos aspectos mais íntimos da sua vida: «Eu era muito pobre quando casei com a minha primeira mulher. Ela não compreendia... a nossa vida sexual não podia correr pior. É diferente com a Naomi. A Naomi sabe que, quando volto estafado do estúdio... Sempre que podemos, tiramos uma semana de férias sozinhos, num local tranquilo como Saint-Tropez, e resolvemos o assunto.» Sou um hipócrita em culpá-lo, pensou Castle; vou tentar falar com Boris: chega uma altura em que um homem tem que falar.

Em Watford repetiu cuidadosamente os passos anteriores, hesitando na paragem de autocarro, avançando finalmente, detendo-se na esquina, a certificar-se de que não estava a ser seguido. Chegou ao café, mas em vez de entrar continuou. Da última vez fora conduzido pelo homem do atacador desapertado, mas agora ninguém o guiava. Deveria virar à direita ou à esquerda, quando chegasse à esquina? Naquela zona de Watford, as ruas pareciam todas iguais filas de casas com telhado de duas águas, pequenos jardins cheios de roseiras cobertas de gotas de humidade na parte da frente e garagens para um carro a separá-las.

Escolheu uma direcção ao acaso, depois outra, mas encontrava sempre as mesmas casas, umas vezes em ruas, outras em pracetas, sendo a sua tarefa dificultada pela semelhança entre aqueles nomes - Caminho dos Loureiros, Carvalhal, Matagal - e o que procurava: Caminho dos Ulmeiros. A certa altura, um polícia, vendo-o atrapalhado, perguntou-lhe se precisava de ajuda. As notas de Muller pesavam-lhe no bolso, como um revólver, e respondeu que não, que estava só a ver se descobria por ali uma casa com um letreiro a dizer «Aluga-se. O polícia disse-lhe que havia realmente duas nessas condições, se virasse três ou quatro vezes à esquerda e, por coincidência, a terceira transversal levou-o ao Caminho dos Ulmeiros. Não se lembrava do número, mas um candeeiro de iluminação pública projectava o seu clarão sobre uma porta com um vitral, que ele reconheceu. Não havia luzes nas janelas e foi sem grande esperança que, ao aproximar-se, encontrou o cartão mutilado «ição Limitada» e tocou à campainha. Não era provável que Boris estivesse ali àquela hora; o mais natural era nem estar em Inglaterra. Tinha cortado a sua ligação com eles, portanto por que razão iam manter aberto um perigoso canal? Tocou uma segunda vez, mas ninguém respondeu. Naquele instante, até teria ficado contente por ver Ivan, o tal que tentara fazer chantagem com ele. Mas já não havia ninguém

- literalmente ninguém - com quem pudesse falar.

No caminho tinha passado por uma cabina telefónica e foi à procura dela. Numa casa do outro lado da rua, viu, através da janela sem cortina, uma família preparar-se para um lanche atrasado, ou um jantar adiantado: um pai e duas crianças adolescentes, um rapaz e uma rapariga, tomaram os seus lugares, a mãe entrou com uma travessa na mão e pareceu-lhe que o pai estava a dizer uma oração de agradecimento, pois as crianças baixaram as cabeças. Lembrava-se desse hábito da sua infância mas pensava que tinha sido abandonado há muito tempo - talvez fossem católicos, os católicos pareciam apegar-se mais a velhos hábitos. Começou a marcar o único número que lhe faltava experimentar, um número a utilizar apenas em caso de emergência, pousando o auscultador a intervalos que cronometrava com o seu relógio. Depois de marcar o número cinco vezes sem obter resposta, saiu da cabina. Foi como se tivesse gritado por socorro cinco vezes no meio da rua deserta - não fazia ideia se alguém o ouvira. Depois do seu derradeiro relatório talvez todas as linhas de comunicação tivessem sido cortadas Para sempre. Olhou para o outro lado. O pai disse uma piada e a mãe sorriu, a rapariga piscou o olho ao rapaz, como se estivesse a dizer: «Lá está o velhote outra vez.» Castl continuou a descer a rua em direcção à estação - ninguém ia atrás dele, ninguém o espreitou de nenhuma janela, ninguém passou por ele. Sentiu-se invisível, colocado num mundo desconhecido onde ninguém o reconhecia como igual.

Parou no fim da rua que se chamava Matagal, ao lado de uma igreja muito feia e tão nova que podia muito bem ter sido construída na véspera, com os tijolos luzidios de um kit faça-você-mesmo. Havia luz lá dentro e o mesmo sentimento de solidão que o fez ir ter com Halliday levou-o até ao edifício. Pelo altar arrebicado e pelas imagens plangentes percebeu logo que se tratava de uma igreja católica. Não se via um grupo compacto de burgueses estoicamente de pé cantando uma canção sobre uma colina verde e distante. Um velhote passava pelas brasas, apoiado ao cabo do seu chapéu-de-chuva, não muito longe do altar, e duas mulheres, que podiam ser irmãs devido à grande semelhança entre as suas roupas cinzentas, aguardavam junto ao que pensou ser um confessionário. Uma mulher com uma gabardina saiu de trás de um cortinado e outra, sem gabardina, entrou. Parecia um barómetro a indicar chuva. Castle sentou-se perto. Estava cansado - já tinha passado há muito a hora do seu triplo; Sarah devia estar ansiosa e, enquanto escutava o sussurrar da conversa no confessionário, o desejo de falar abertamente, sem reservas, após sete anos de silêncio, foi crescendo dentro dele. «Boris desapareceu completamente», pensou, «nunca mais vou poder falar com ele - a não ser, claro, que eu acabe por ser julgado.» Podia fazer o que se chama uma «confissão» - à porta fechada, claro, o julgamento seria à porta fechada.

A segunda mulher saiu e a terceira entrou. As duas primeiras tinham-se visto livres dos seus segredos num instante

- à porta fechada. Agora ajoelhavam-se, cada uma à frente do seu altar, com um ar de satisfação por um dever cumprido, e bem. Quando a terceira mulher se despachou, já não havia mais ninguém à espera excepto ele. O velhote tinha acordado e saído com uma das mulheres. Pela cortina entreaberta, viu parte de um rosto branco e alongado; ouviu umagarganta expelir a humidade de Novembro. «Quero falar; porque não hei-de falar? Um padre como este tem que guardar o meu segredo.» Boris dissera-lhe: «Vem ter comigo sempre que precisares de falar: é um risco menor», mas Castle estava convencido de que Boris partira para sempre. Falar era uma actividade terapêutica - dirigiu-se lentamente para o confessionário como um doente que vai pela primeira vez ao psiquiatra, a tremer como varas verdes.

Um doente na primeira consulta. Correu a cortina atrás de si e hesitou perante a exiguidade do espaço que o aguardava. Como começar? O leve cheiro a água-de-colónia devia ter sido deixado por uma das mulheres. Abriu-se uma portinhola e viu um perfil bem desenhado, como o dos detectives. O perfil tossiu e murmurou qualquer coisa. Castle disse:

- Preciso de falar consigo.

- Não fique de pé - disse o perfil. - Não consegue ajoelhar-se?

- Só quero falar consigo.

- Não está aqui para falar comigo - respondeu o perfil. Ouviu-se um tilintar. O homem tinha um terço no colo e parecia manipulá-lo como um colar contra o stresse. Está aqui para falar com Deus.

- Não, nada disso. Estou aqui só para falar.

O padre olhou em volta com relutância. Os seus olhos estavam vermelhos. Castle teve a impressão de que, por uma infeliz coincidência, fora precisamente dar com outra vitima da solidão e do silêncio.

- Ajoelhe-se, homem, que raio de católico é você? -- Não sou católico.

- Então o que é que está aqui a fazer?

- Preciso de falar, mais nada.

- Se deseja juntar-se a nós, deixe o nome e a morada na sacristia.

- Não quero juntar-me a vós.

- Está a fazer-me perder tempo - protestou o padre

- O segredo da confissão não se aplica aos não-católicos.

- Devia procurar um sacerdote da sua igreja.

- Não tenho igreja.

- Nesse caso, acho que precisa é de um médico - disse o padre. Bateu a portinhola com força e Castle saiu do confessionário. Era um final absurdo, pensou, para um acto absurdo. Por que razão se tinha convencido de que o homem ia compreendê-lo, caso tivesse conseguido falar? A história que tinha para contar era demasiado longa, começara havia muito tempo num país estrangeiro.

Sarah apareceu enquanto ele pendurava o casaco no vestíbulo.

- Aconteceu alguma coisa? - perguntou.

- Não.

- Nunca te atrasaste tanto sem teres telefonado a avisar.

- Tive que ir a vários sítios, procurar algumas pessoas. Nenhuma delas estava em casa. Devem ter antecipado o fim-de-semana.

- Vais beber o teu uísque? Ou queres jantar já?

- Um uísque. E grande.

- Maior do que o costume?

- Sim, e sem soda.

- Aconteceu mesmo alguma coisa.

- Nada de especial. Mas está frio, muita humidade, parece Inverno. O Sam está a dormir?

- Está.

- E o Duller?

- No jardim, atrás dos gatos.

Sentou-se na cadeira habitual e o silêncio habitual instalou-se entre eles. Normalmente, sentia que aquele silêncio era uma manta confortável em volta dos seus ombros. O silêncio era a descontracção, o silêncio significava que as palavras eram desnecessárias entre eles - o amor que sentiam um pelo outro era demasiado firme para precisar de ser recordado; tinham feito um seguro de vida do seu amor. Mas naquela noite, com as notas originais de Muller no seu bolso e, àquelas horas, a sua cópia delas nas mãos do jovem Halliday, o silêncio era como um vácuo no qual não conseguia respirar: o silêncio era a ausência de tudo, até da confiança, era um antegosto do túmulo.

- Outro uísque, Sarah.

- Estás a beber muito. Lembra-te do pobre Davis.

- Não morreu por causa disto.

- Mas pensei...

- Pensaste tu e pensaram os outros. Mas estás enganada. Se te dá muito trabalho servires-me outro uísque, diz que eu próprio vou buscar.

- Eu só disse para te lembrares do Davis...

- Não preciso que tomem conta de mim, Sarah. Es a mãe do Sam e não a minha.

- Sim, realmente sou a mãe dele e tu nem o pai és. Olharam um para o outro atónitos, consternados.

- Eu não queria... - disse Sarah.

- Não tens culpa.

- Desculpa.

- E assim que o futuro vai ser se não pudermos falar. Perguntaste o que aconteceu. Estive toda a tarde à procura de uma pessoa com quem falar, mas não encontrei nenhuma.

- Falar de quê?

A pergunta silenciou-o.

- Porque não podes falar comigo? Porque eles to proibiram, suponho. Os segredos oficiais e essa estupidez toda.

- Não foram eles.

- Então quem foi?

- Quando viemos para Inglaterra, Sarah, o Carson mandou alguém ter comigo. Tinha acabado de salvar a vida a ti e ao Sam. Em troca pediu uma pequena ajuda. Sentia-me tão reconhecido que aceitei.

- Onde está o mal?

- A minha mãe diz que quando eu era pequeno retribuía sempre de forma exagerada, mas nada era exagero para o homem que te tinha salvo da BOSS. Portanto aí tens, tornei-me aquilo que se chama um agente duplo, Sarah. Arrisco-me a passar o resto da vida na prisão.

Sempre soubera que um dia aquela cena teria de ser representada, mas nunca conseguira imaginar quais as palavras que iriam dizer um ao outro. Sarah disse:

- Passa-me o teu uísque. Estendeu-lhe o copo e ela deu um gole.

- Corres perigo? - perguntou. - Agora, esta noite?

- Corro perigo desde que vivemos juntos.

- Mas agora as coisas pioraram?

- Sim. Penso que eles descobriram que há fugas de informação e pensaram que o responsável era o Davis. Não acredito que ele tenha morrido de morte natural. Qualquer coisa que o doutor Percival disse...

- Achas que o mataram?

- Sim.

- Tal como podiam ter feito contigo?

- Sim.

- E mesmo assim não desistes?

- Escrevi o que pensei ser o meu último relatório. Onde me despedia de tudo. Mas depois... aconteceu uma coisa. Com Muller. Tive de lhes comunicar. Espero ter comunicado. Não sei.

- Como descobriram a fuga?

- Suponho que têm um dissidente algures, talvez no local, que teve acesso aos meus relatórios e os transmitiu a Londres.

- Mas e se ele transmitir este?

- Oh, já sei o que vais dizer. Davis está morto. Sou a única pessoa do escritório que lida com Muller.

- Porque é que o escreveste, Maurice? é um suicídio.

- Pode salvar muitas vidas... vidas do teu povo.

- Não me venhas falar do meu povo. Já não tenho povo. Tu és o «meu povo».

Castle pensou: «Isto é uma frase da Bíblia. Já a ouvi antes. Bem, não esquecer que ela frequentou uma escola metodista.»

Sarah pôs-lhe um braço em volta dos ombros e levou o copo de uísque à boca dele.

- Gostava que não tivesses esperado tantos anos para me contar tudo.

- Tinha medo, Sarah. - O Antigo Testamento veio-lhe à memória ao pronunciar o nome dela. Uma mulher chamada Rute é que tinha dito a frase que ela acabara de dizer, ou outra muito parecida.

- Medo de mim e não deles?

- Medo por ti. Não sabes o que foi aquele tempo todo à tua espera no Hotel Polana. Pensei que nunca mais viesses. Durante o dia, verificava as matrículas dos carros com uns binóculos. Os números pares significavam que Muller te tinha apanhado. Os ímpares que vinhas a caminho. Desta vez não haverá Hotel Polana nem Carson. Essas coisas não acontecem duas vezes.

- Que queres que eu faça?

- O melhor era pegares no Sam e ires para casa da minha mãe. Separares-te de mim. Fingir que tínhamos tido uma discussão terrível e que te querias divorciar. Se não Acontecer nada, eu fico aqui e poderemos voltar a viver juntos.

- E que faço durante esse tempo todo? Olho para as Matrículas dos carros? Diz-me o que devo fazer.

-- Se ainda se propuserem ajudar-me, não sei se querem, prometeram que me safavam, mas terei de ir sozinho, ^ortanto, também nessa eventualidade deves ir com o Sam para casa da minha mãe. A única diferença é que não poderemos comunicar. Ficarás sem saber o que se passa, talvez durante muito tempo. Acho que preferia que a polícia me apanhasse. Assim, ao menos víamo-nos no tribunal.

- Mas Davis não chegou a ir a tribunal, pois não? Não, Maurice, se eles te ajudarem, aceita. Ao menos saberei que estás em segurança.

- Não disseste uma única palavra acusadora, Sarah.

- Que tipo de palavra?

- Bem, sou o que se chama um traidor.

- E depois? - disse Sarah. Colocou a mão sobre a dele: um gesto mais íntimo do que um beijo, um beijo pode dar-se a um desconhecido. - Nós temos o nosso próprio país. Tu, eu e o Sam. Nunca traíste esse país, Maurice.

- Não vale a pena preocuparmo-nos mais hoje. Ainda temos tempo e precisamos de dormir.

Mas quando chegaram à cama, fizeram amor imediatamente, sem pensar, sem falar, como se tivessem combinado fazê-lo uma hora atrás e toda a conversa fosse apenas uma maneira de adiá-lo. Há meses que não se uniam daquela maneira. Com o seu segredo revelado, o seu amor libertou-se e ele adormeceu praticamente assim que acabou. O seu último pensamento foi: «Ainda há tempo... só daqui a uns dias, talvez umas semanas, chegará a comunicação de uma possível fuga. Amanhã é sábado. Temos um fim-de-semana à nossa frente para tomar uma decisão.»

 

Sir John Hargreaves estava sentado no escritório da sua casa de campo a ler Trollope. Estava tudo combinado para ser um período de paz quase perfeita - um fim-de-semana sem visitas, o oficial de serviço só podia interrompê-lo se ouvesse uma mensagem urgente, e mensagens urgentes eram extremamente raras nos serviços secretos - à hora do adeus a sua mulher respeitaria a sua ausência, sabendo que carl grey à tarde lhe estragava o uísque das seis. Durante a sua comissão na África Ocidental aprendera a apreciar os romances de Trollope, embora não fosse leitor de romances. Em momentos de irritação, encontrara tranquilidade em livros como The Warden e Barchester Towers, eles davam-lhe a paciência que a África requeria. Mr. Slope fazia-lhe lembrar um chefe de distrito importuno e hipócrita, Mrs. Proudie a mulher do governador. Agora estava perturbado por uma obra de ficção que era suposto apaziguá-lo em Inglaterra, tal como em África. O romance chamava-se The Way We Live Now - alguém, não se lembrava quem, tinha-lhe dito que do livro tinham feito uma óptima série de televisão. Não gostava de televisão, mas tinha a certeza de que gostaria da série de Trollope.

Assim, nessa tarde sentiu, por algum tempo, o mesmo Prazer suave que Trollope sempre lhe transmitia - o ambiente calmo de um mundo vitoriano, onde bom era bom, mau era mau e era fácil distinguir um do outro. Não tínhamos culpa que lhe tivessem ensinado o contrário - nunca quisera tê-los e a mulher também não; nesse capítulo estavam de acordo, embora talvez por razões diferentes. Não quisera acrescentar às suas responsabilidades públicas responsabilidades particulares (as crianças teriam sido uma fonte de ansiedade em África) e a sua mulher... bem - costumava pensar no assunto com ternura - não queria perder a elegância nem a independência. A sua mútua indiferença por crianças reforçava o amor que tinham um pelo outro. Enquanto lia Trollope com um uísque ao lado, ela bebia chá no quarto com igual satisfação. Era para ambos um fim-de-semana tranquilo - nada de caçadas, nada de convidados, o dia escurecia cedo no parque, visto ser Novembro -, podia mesmo imaginar-se em África, numa hospedaria no mato, num dos longos percursos que tanto apreciava, longe da sede. O cozinheiro estaria a depenar uma galinha atrás da casa enquanto os cães vadios se aproximavam, à cata de restos... à distância, as luzes no local onde passava a auto-estrada podiam muito bem ser as luzes de uma aldeia onde as raparigas haviam de estar a catar piolhos umas às outras. Estava a ler sobre o velho Melmotte - o vigarista, como os colegas lhe chamavam. Melmotte tomou o seu lugar no restaurante da Câmara dos Comuns - «Expulsá-lo era quase tão difícil como sentar-se perto dele. Os próprios criados tinham pouca vontade de servi-lo; mas com paciência e perseverança, lá conseguiu jantar.»

Hargreaves sentia, sem querer, uma certa atracção por Melmotte e pelo seu isolamento e recordou, arrependido, o que dissera ao doutor Percival, quando o médico exprimiu a sua simpatia por Davis. Usara a palavra «traidor» do mesmo modo que os colegas de Melmotte empregavam a palavra «vigarista». Continuou a ler: «Eles tinham-no visto ter a audácia de afirmar que era feliz - quando na verdade ele era, naquele momento, o homem mais desgraçado e infeliz de Inglaterra.» Nunca conhecera Davis - não o reconheceria se se tivessem cruzado num corredor do escritório. Pensou: «Posso ter falado demasiado cedo, reagido estúpidamente, mas foi Percival quem o eliminou - eu não devia ter deixado o caso nas mãos de Percival...» Continuou a ler: «Mas até ele, para quem o mundo agora se acabava, a quem nada restava a não ser a maior miséria que a indignação causada pela ofensa da lei podia infligir, podia gastar os últimos instantes da sua liberdade a construir uma reputação de, pelo menos, audácia.» Pobre diabo, pensou, temos que admitir que é corajoso. Terá Davis adivinhado qual foi a porção que o doutor Percival deitou no seu uísque enquanto ele se ausentou por um segundo?

Foi então que o telefone tocou. Ouviu-o ser atendido pela mulher, no quarto. Ela procurava salvaguardar a paz dele melhor do que Trollope mas mesmo assim, devido a alguma urgência do outro lado da linha, não teve outro remédio senão passar a chamada. Com relutância, Hargreaves pegou no auscultador. Uma voz que não reconheceu disse:

- Fala Muller.

Hargreaves, que ainda se encontrava no mundo de Trollope, perguntou:

- Muller?

- Cornelius Muller.

Houve uma pausa desagradável até a voz explicar:

- De Pretória.

Por instantes, Sir John Hargreaves ainda pensou que aquele desconhecido lhe estava a falar da remota cidade, mas depois lembrou-se:

- Sim, sim. Claro. Posso ser-lhe útil? - E acrescentou: - Espero que Castle...

- Gostaria de falar consigo, Sir John, acerca de Castle.

- Estarei no escritório na segunda-feira. Telefone à minha secretária... - olhou para o relógio - ela ainda lá deve estar.

- Amanhã não vai lá?

- Não. Este fim-de-semana fico em casa.

- Posso ir até aí, Sir John?

-É assim tão urgente?

- Creio que sim. Tenho a forte impressão de que cometi um erro grave. Preciso urgentemente de falar consigo Sir John.

«Lá se vai o Trollope», disse Hargreaves para consigo «coitada da Mary - faço os possíveis por não pensar em trabalho, quando estamos aqui, no entanto ele não nos deixa em paz.» Recordou-se da noite da caçada, em que Daintry se mostrara tão renitente... Perguntou:

- Tem automóvel?

- Tenho, claro.

«Ainda posso ter o sábado livre se hoje for razoavelmente hospitaleiro.» Disse:

- São menos de duas horas de caminho, se quiser aparecer para jantar.

- Com certeza. Agradeço a sua amabilidade, Sir John. Não o incomodaria se não estivesse convencido de que é importante. Eu...

- Pode ser é que não se arranje mais do que uma omeleta, assim à última hora - acrescentou.

Pousou o auscultador, recordando a história apócrifa que se contava sobre ele e os canibais. Dirigiu-se à janela e olhou para fora. A África desvanecera-se. As luzes eram as luzes da auto-estrada para Londres e para o escritório. Sentiu que se aproximava o suicídio de Melmotte - não havia outra saída. Foi até à sala: Mary enchia uma chávena com o carl grey contido no bule de prata que comprara num leilão da Christie’s.

- Desculpa, Mary, mas temos um convidado para o jantar.

- Já estava à espera. Quando ele insistiu em falar contigo... Quem é?

- O homem que a BOSS mandou de Pretória.

- Não pode esperar por segunda-feira?

- Disse que é muito urgente.

- Não gosto desses chatos do apartheid. - A linguagem corrente ficava estranha com sotaque americano.

- Nem eu, mas temos que trabalhar com eles. Suponho que se arranje qualquer coisa para comer.

- Há carne assada fria.

- Isso é melhor do que a omeleta que lhe anunciei. Foi uma refeição incómoda, pois não se podia falar de

nada, embora Lady Hargreaves fizesse os possíveis, com a ajuda do beaujolais, para encontrar um tema de conversa. Confessou que ignorava completamente a arte e a literatura africânder, mas ao que parecia Muller partilhava essa ignorância. Admitiu que havia por lá alguns poetas e romancistas - referiu mesmo o Prémio Herzog, mas acrescentou que não lera nenhum.

- Não são de confiança - declarou -, pelo menos a maioria.

- Não são de confiança?

- Meteram-se na política. Há um poeta que está agora na prisão por ter ajudado uns terroristas. - Hargreaves tentou mudar de assunto, mas não lhe ocorreu nada que se relacionasse com a África do Sul a não ser ouro e diamantes... também eles estavam metidos na política, tal e qual como os escritores. A palavra diamantes sugeriu-lhe Na memória e lembrou-se que Oppenheimer, o milionário, apoiava o Partido Progressista. A sua África fora a África pobre do mato, mas a política ficava, como os detritos de uma mina, mais para o Sul. Foi um alívio quando ficaram sozinhos com uma garrafa de vinho e dois cadeirões cómodos, era mais fácil falar de coisas incómodas comodamente sentado, sempre lhe fora difícil zangar-se quando estava sentado numa cadeira cómoda.

- Tem que me desculpar - disse Hargreaves - por não me encontrar em Londres quando chegou. Tive de ir a Washington. Uma daquelas visitas de rotina que não se podem evitar. Espero que a minha gente tenha tratado bem de si.

- Também tive que sair - respondeu Muller -, até Bona.

- Mas não propriamente uma visita de rotina, pois não? O Concorde tornou Londres e Washington de tal maneira próximas, quase que se pode ir lá almoçar. Espero que tudo tenha corrido de forma satisfatória em Bona... dentro do razoável, claro. Mas suponho que já tenha falado disso tudo com o seu amigo Castle.

- Seu amigo, creio, mais do que meu.

- Sim, sim. Sei que houve um desentendimento entre os dois há uns anos. Mas isso pertence ao passado.

- Será possível esquecer verdadeiramente o passado? Não é essa a opinião dos irlandeses e a chamada Guerra dos Bóeres é, no fundo, a nossa guerra, embora lhe chamem guerra da independência. Estou preocupado com Castle. Por isso é que me atrevi a incomodá-lo. Deixei-lhe uns apontamentos meus sobre a visita a Bona. Nada de muito secreto, claro, mas para quem saiba ler nas entrelinhas...

- Meu caro amigo, pode confiar no Castle. Não lhe teria pedido que trabalhasse consigo se ele não fosse o homem de maior confiança...

- Fui jantar a casa dele. Fiquei admirado quando vi que estava casado com uma negra, precisamente aquela que esteve na origem do nosso, como o senhor disse, desentendimento. Parece que até tem um filho dela.

- Aqui não é proibido, Muller, e ela foi rigorosamente investigada.

- Não obstante, foram os comunistas que organizaram a fuga dela. O Castle era muito amigo do Carson. Como deve saber.

- Sabemos tudo acerca do Carson, e da fuga. A função do Castle era ter contacto com comunistas. O Carson ainda é um problema para si?

- Não. O Carson morreu na prisão. De pneumonia. Reparei que o Castle ficou perturbado quando lho contei.

- E porque não havia de ficar? Se eram amigos? -~~ Hargreaves olhou com pena para o Trollope que estava atrás da garrafa de Cutty Sark. Muller levantou-se repentinamente e atravessou a sala. Deteve-se diante da fotografia de um negro de chapéu preto, dos que os missionários costumavam usar. Com uma das faces desfigurada pelo lúpus, o homem sorria a quem segurava na máquina fotográfica com um dos lados da boca.

- Desgraçado - comentou Hargreaves -, estava a morrer quando tirei essa fotografia. E sabia. Era um homem corajoso. Como todos os krus. Quis ficar com uma recordação dele.

- Não fiz - disse Muller - uma confissão completa. Dei ao Castle os apontamentos errados, por engano. Tinha feito uma série para lhe mostrar e outra para usar nos meus relatórios e troquei-as. É certo que não se tratava de nada de muito secreto, ou não o teria passado para o papel, mas continha algumas indiscrições...

- Então não vale a pena preocupar-se, Muller.

- é mais forte do que eu. Neste país a atmosfera é de tal modo diferente. Vocês têm tão pouco medo em comparação connosco. O preto da fotografia, gostava dele?

- Era um amigo, um amigo que eu estimava muito.

- Pois não há um único preto de quem eu possa dizer o mesmo - replicou Muller. Voltou-se. No outro lado da sala, pendurada na parede, estava uma máscara africana.

- Não confio no Castle - disse. - Não posso provar nada, é intuição... Tomara que tivesse escolhido outro para trabalhar comigo.

- Só dois homens lidavam com o seu material. O Davis e o Castle.

- Davis é o que morreu?

- Justamente.

- Aqui não dão importância a nada. Por vezes invejo-Vos. Coisas como uma criança negra. Sabe, de acordo com a nossa experiência não há ninguém mais vulnerável do que Um agente dos serviços secretos. Tivemos uma fuga de informação, aqui há uns anos, na BOSS, na secção que se ocupa dos comunistas. Um dos nossos homens mais inteligentes. Também ele cultivava a amizade, e a amizade venceu. O Carson esteve ligado a esse caso, também. E houve ainda outro: um dos nossos agentes era um brilhante jogador de xadrez. Os serviços secretos tornaram-se, para ele em mais um jogo de xadrez. Só se interessava quando era escalonado para defrontar um verdadeiro campeão. No fim, começou a andar insatisfeito. Os jogos eram demasiado fáceis, de maneira que tomou o seu próprio partido. Acho que foi feliz enquanto o jogo durou.

- Que lhe aconteceu?

- Já morreu.

Hargreaves voltou a pensar em Melmotte. Falava-se de coragem como uma grande virtude. E a coragem de um vigarista declarado e falido que toma o seu lugar na sala de banquetes da Câmara dos Comuns? Seria a coragem uma justificação? Seria a coragem sempre uma virtude?

- Estamos convencidos - disse - que o Davis era a fonte a secar.

- Uma morte oportuna?

- Cirrose no fígado.

- Já lhe disse que o Carson morreu de pneumonia.

- Acontece que o Castle não joga xadrez.

- Existem outros motivos. Amor ao dinheiro.

- Isso decerto não se aplica ao Castle.

- Ele ama a mulher - disse Muller -, e o filho.

- E depois?

- São ambos negros - replicou Muller, lacónico, olhando para o fundo da sala, para a fotografia do chefe kru pendurada na parede. «Parece que, pensou Hargreaves, «nem eu estou acima da sua suspeita», a qual, como um farol no cabo, esquadrinhava o mar perigoso em baixo, em busca de embarcações inimigas.

- Espero bem - disse Muller - que tenha razão e a fonte fosse efectivamente o Davis. Eu não acredito nisso.

Hargreaves viu Muller atravessar o parque ao volante do seu Mercedes preto. As luzes enfraqueceram e imobilizaram-se; devia ter atingido a cabana para onde, desde o início do rebentamento de bombas irlandesas, fora destacado um homem da Segurança Interna. O parque já não parecia uma continuação do mato africano - apenas uma pequena parcela da paisagem da sua terra, que aliás Hargreaves nunca sentira sua. Era quase meia-noite. Subiu as escadas até ao seu quarto de vestir, mas não despiu a camisa. Enrolou uma toalha à volta da cintura e começou a fazer a barba. Tinha-o feito antes do jantar, por conseguinte não era uma manobra necessária, mas pensava com maior clareza enquanto se barbeava. Tentou rever uma a uma as razões que Muller invocara para que desconfiasse de Castle - a sua relação com Carson, isso não significava nada. Esposa e filho negros - Hargreaves recordou com tristeza e saudade a amante negra que conhecera anos antes do seu casamento. Morrera de complicações causadas pela malária e com a morte dela sentiu que uma grande parte do seu amor por África fora também enterrada. Muller falara em pressentimento. «Não posso provar nada, é intuição...» Hargreaves seria o último a troçar da intuição. Em África vivera por intuição, era habitual escolher os seus homens por intuição - e não pelos cadernos imundos que eles traziam, com referências ilegíveis. Um dia a sua vida fora salva pela intuição. Enxugou o rosto e decidiu: «Vou telefonar ao Emmanuel.» O doutor Percival era o único verdadeiro amigo que tinha em toda a organização. Abriu a porta do quarto e espreitou. O quarto estava às escuras e convenceu-se de que a mulher já dormia, até que ela falou:

- Porque é que não te deitas, querido?

- Vou já. Quero só telefonar ao Emmanuel.

- Aquele Muller já se foi embora? -Já.

- Não gosto dele.

- Nem eu.

 

Castle acordou e olhou para o relógio, embora tivesse um na sua cabeça - deviam faltar poucos minutos para as oito, o que lhe dava tempo para ir ao escritório ouvir o noticiário, sem acordar Sarah. Ficou espantado quando viu que eram oito e cinco - como o seu relógio interior nunca o decepcionara, duvidou do que tinha no pulso, mas quando chegou ao quarto, as notícias importantes já tinham passado - estavam a ler as outras, pouco interessantes, com que o locutor preenchia o tempo: um acidente grave na M4, uma entrevista breve com Mrs. Whitehouse, a aplaudir uma qualquer campanha contra livros pornográficos e, talvez para ilustrar as palavras dela, uma trivialidade sobre um obscuro livreiro chamado Holliday - «Perdão, Halliday» - que respondeu perante o magistrado, em Newington Butts, por ter vendido um filme pornográfico a um rapaz de catorze anos. Foi-lhe dada ordem de prisão até ao julgamento, no Tribunal Criminal, e estabelecida uma fiança de duzentas libras.

«Então ele saiu em liberdade», pensou Castle, com a cópia dos apontamentos de Muller no bolso, presumivelmente debaixo do nariz dos polícias. Deve estar com medo de os ir deixar ao esconderijo escolhido por eles, pode mesmo estar com medo de os destruir; o mais provável é guardá-los para mais tarde os utilizar como meio de negociação com a polícia. «Sou muito mais importante do que vocês pensam: se este pequeno incidente for esquecido, posso mostrar-vos umas coisas... deixem-me falar com alguém da Segurança Interna.» Castle não tinha dificuldade em imaginar o tipo de conversa que podia estar a decorrer naquele momento; o cepticismo do polícia local, Halliday a mostrar a primeira página das notas de Muller só para lhe aguçar o apetite.

Castle abriu a porta do seu quarto: Sarah continuava a dormir. Disse para consigo que chegara o momento pelo qual sempre esperara, aquele em que teria de pensar com clareza e agir com determinação. A esperança não era para ali chamada, nem o desespero. Tratavam-se de emoções que podiam baralhar-lhe as ideias. Não podia esquecer que Boris desaparecera, a linha fora cortada e agora tinha de agir por sua conta.

Foi até à sala, para Sarah não o ouvir, e marcou pela segunda vez o número que lhe tinham dado para usar numa emergência final. Não sabia onde estaria o aparelho a tocar

- pelos primeiros algarismos devia ser algures em Kensington: marcou três vezes, com intervalos de dez segundos, e teve a impressão de que o seu SOS tocava num quarto vazio, mas não tinha a certeza... Não havia outro modo de pedir ajuda, nada a fazer senão abandonar o terreno. Sentado junto ao telefone, fez os seus planos, ou melhor, reviu-os e confirmou-os, pois eles já estavam feitos. Não havia nada de importante que precisasse de destruir primeiro, tinha quase a certeza absoluta, nenhum livro que tivesse utilizado para os códigos... estava convencido de que não havia papéis a queimar... deixaria a casa em segurança, trancada e vazia... não se podia, claro, queimar um cão... que iria fazer? Que absurdo, num momento como aquele, estar a preocupar-se com um cão, um cão de que nunca tinha gostado, mas a sua mãe nunca permitiria que Sarah levasse Duller para a casa de Sussex como inquilino permanente. Deixá-lo-ia, pensou, num canil, mas não fazia ideia onde... Aí estava um problema em que nunca tinha pensado. Disse para consigo que não era assim tão importante e subiu para acordar Sarah.

Porque é que o sono dela havia de ser tão pesado logo naquela manhã? Lembrou-se, quando olhou para ela, com a ternura com que se olha para alguém, mesmo um inimigo que está a dormir, como, depois de fazer amor, ele caíra no mais profundo dos sonos, como há meses não lhe acontecia só porque tinham falado francamente, porque tinham deixado de ter segredos. Quando a beijou e ela abriu os olhos, ela percebeu logo que não havia tempo a perder; não podia, como era seu costume, acordar a pouco e pouco, espreguiçar-se e dizer: «Estava a sonhar...» Disse-lhe:

- Telefona já à minha mãe. E mais fácil acreditarem que tivemos uma discussão se fores tu a telefonar. Pergunta se podes ir para lá uns dias com o Sam. Podes mentir um bocadinho. Não faz mal ela perceber que estás a mentir. Será mais fácil, quando lá estiveres, ires contando a verdade a pouco e pouco. Explica que eu fiz uma coisa inaceitável... Falámos disso ontem à noite.

- Mas disseste que teríamos tempo...

- Estava enganado.

- Aconteceu alguma coisa?

- Sim. Tens que partir imediatamente com o Sam.

- Tu ficas aqui?

- Ou eles me ajudam a fugir ou a polícia vem buscar-me. Se isso acontecer não podes estar aqui.

- Então é o fim, para nós?

- Claro que não é o fim. Um dia voltaremos a juntar-nos. Não sei como. Não sei onde.

Quase não falaram um com o outro enquanto se vestiam o mais depressa possível, como dois estranhos numa viagem em que tinham sido obrigados a partilhar a mesma carruagem-cama. Só quando foi buscar Sam é que Sarah parou junto à porta e disse:

- E a escola? Acho que ninguém se vai importar...

- Deixa isso agora. Telefona na segunda-feira e diz que ele está doente. Quero-vos aos dois fora daqui o mais depressa possível. Não vá a polícia aparecer.

Ao fim de cinco minutos, Sarah voltou e disse: -- Falei com a tua mãe. Não foi lá muito hospitaleira, pisse que tinha convidados para o almoço. E o Bullert

- Deixa isso comigo.

Às dez para as nove estava pronta a partir com Sam. O táxi chegou. Tudo aquilo parecia mentira a Castle.

- Se não acontecer nada, podes voltar. Explicas que fizemos as pazes - disse. Pelo menos Sam parecia feliz. Castle ficou a olhar enquanto ele conversava e ria com o motorista.

- Se...

- Foste para o Polana.

- Sim, mas disseste que as coisas nunca se repetem.

Junto ao táxi, até se esqueceram de dar um beijo e quando se lembraram fizeram-no desajeitadamente, um beijo sem significado, vazio, contendo apenas a sensação de que aquela partida não podia ser verdade, não passava de um sonho que ambos estavam a ter. Toda a vida tinham partilhado os seus sonhos, esses códigos privados mais indecifráveis do que um enigma.

- Posso telefonar?

- É melhor não. Se tudo correr bem, telefono-te daqui a uns dias, de uma cabina.

Quando o táxi se afastou, nem conseguiu voltar a vê-la por causa do vidro fumado da janela traseira. Foi para dentro e começou a preparar uma pequena mala, adequada tanto à prisão como à fuga. Pijamas, artigos de casa de banho, uma toalha - após alguma hesitação, acrescentou o passaporte. Depois sentou-se e começou a aguardar. Ouviu o carro de um vizinho arrancar e depois o silêncio dos sábados instalou-se.

Sentia-se como se fosse a única pessoa viva em King’s Road, à excepção do polícia da esquina. A porta abriu-se e Buller entrou. Sentou-se e fixou em Castle uns olhos esbugalhados e hipnóticos.

- Buller - murmurou Castle -, Buller, foste sempre um raio de um estorvo, Buller. - Butter continuava a acusá-lo, era a sua maneira de conversar.

Ao fim de um quarto de hora, estava Butter ainda especado a olhar para ele, o telefone tocou. Castle não atende? Tocou e tocou como uma criança a chorar. Aquilo não Do dia ser o sinal que aguardava - nenhum controlo continuaria a chamar tanto tempo. _ devia ser alguém à procura de Sarah, pensou Castle. De qualquer maneira, para ele não era de certeza. Não tinha amigos.

O doutor Percival aguardava, sentado, no vestíbulo do Reform, junto à grande escadaria que parecia ter sido construída para suportar o peso dos velhos estadistas do partido liberal, esses homens de barba ou bigode e integridade perpétua. Só se via um outro sócio quando Hargreaves chegou, um sócio pequeno, insignificante e míope - estava a ter dificuldade em ler as cotações da bolsa de valores.

- Sei que era a minha vez, Emmanuel, mas o Travellers está fechado. Espero que não se importe que eu tenha dito ao Daintry para vir ter connosco.

- Bem, não se pode dizer que seja uma companhia muito alegre - respondeu o doutor Percival. - Problemas de segurança?

- Sim.

- Pensava que ia ter alguma paz, depois de Washington.

- Neste trabalho não podemos esperar uma paz duradoura. Nem eu gostava, senão já me tinha reformado.

- Nem me fale em reforma, John. Só Deus sabe o que o Ministério nos reserva. O que é que o preocupa?

- Deixe-me tomar uma bebida primeiro. - Subiram a escada e escolheram uma mesa no patamar, fora do restaurante. Hargreaves bebeu o seu Cutty Sark de um só trago e disse:

- E se você matou o homem errado, Emmanuel?

O olhar do doutor Percival não denunciou surpresa. Examinou atentamente a cor do seu dry martini, cheirou-o, retirou com a ponta da unha a pequena casca de limão, como se estivesse a seguir a sua própria receita.

- Tenho a certeza de que não me enganei - respondeu.

- O Muller não está tão confiante.

- Oh, o Muller! O que é que o Muller sabe do assunto?

- Não sabe nada. Só intuição.

- Se é só isso...

- Nunca esteve em África, Emmanuel. Em África, aprende-se a confiar na intuição.

- O Daintry vai querer muito mais do que intuição. Nem os factos acerca do Davis o satisfizeram.

- Factos?

- Aquela história do dentista e do zoo, só para dar um exemplo. E Porton. Porton foi decisivo. Que vai dizer ao Daintry?

- A minha secretária tentou falar com o Castle ao telefone hoje, de manhã cedo. Ninguém respondeu.

- Provavelmente foi passar o fim-de-semana fora com a família.

- Sim, mas mandei abrir o cofre dele. Os apontamentos do Muller não estão lá. Já sei o que vai dizer. Qualquer pessoa pode ter um descuido. Mas eu pensei que, se o Daintry fosse até Berkhamstead, bem, e se não estivesse ninguém em casa, era uma boa oportunidade para revistar discretamente a casa, e se ele estiver lá... ficará admirado por ver o Daintry, e se ele for culpado... vai ficar um bocado aflito...

- Falou com o MI5?

- Sim, falei com o Philips. Vai pôr outra vez o telefone do Castle sob escuta. Espero bem que isto não dê em nada. Dignificaria que o Davis estava inocente.

- Não se preocupe tanto com o Davis. Não se perdeu grande coisa, John. Nunca o devíamos ter recrutado. Era ineficaz, descuidado e bebia de mais. Mais cedo ou mais tarde ia dar problemas. Mas se o Muller tiver razão, o Castle vai ser uma grande dor de cabeça. Não se pode recorrer à aflatoxina. Toda a gente sabe que ele bebe pouco. Terá que ser o tribunal, John, a não ser que tenhamos outra ideia. Advogado de defesa. Provas apresentadas à porta fechada. Os jornalistas detestam essas coisas! Títulos sensacionais. Suponho que o Daintry fique satisfeito, se mais ninguém ficar. É um fervoroso adepto das coisas feitas como deve ser.

- E lá vem ele, finalmente - disse Sir John Hargreaves.

Daintry subia a grande escadaria devagar. Talvez quisesse avaliar o piso de cada degrau, um a um, como se fossem provas circunstanciais.

- Nem sei como começar.

- Porque não como fez comigo, à bruta?

- Ah, mas ele não tem a sua resistência, Emmanuel.

 

As horas pareciam intermináveis. Castle tentou ler, mas nenhum livro aliviava a sua tensão. Entre um parágrafo e outro assaltava-o a ideia de que deixara algures naquela casa qualquer coisa que iria incriminá-lo. Revistara cada livro de cada prateleira - não havia um só que tivesse sido usado para código: o Guerra e Paz já fora destruído. Tinha tirado do escritório todas as folhas de papel químico - por mais inocentes que fossem - e também as queimara: a lista de telefones da sua secretária não continha nada mais secreto do que o número do talho e o do médico e no entanto tinha a certeza de que devia ter esquecido uma pista importante nalgum lugar. Lembrou-se dos dois homens da Segurança Interna a revistar o apartamento de Davis; recordou as linhas que Davis assinalara com um «c» no Browning do pai. Não havia vestígios de amor naquela casa. Ele e Sarah nunca tinham trocado cartas - na África do Sul, uma carta de amor podia ser prova de um crime.

Nunca vivera um dia tão longo e tão solitário. Não tinha fome, apesar de Sam ter sido o único a tomar pequeno-almoço, mas disse para consigo que ninguém sabia o que estava para acontecer nem quando voltaria a comer uma refeição. Sentou-se na cozinha, diante de um prato com presunto frio, mas só tinha conseguido comer uma fatia quando reparou que estava na hora do noticiário da uma. Ouviu-o do princípio ao fim - incluindo a última palavra das notícias sobre futebol, porque nunca se sabe - podiam dar uma notícia de última hora.

Mas claro que não havia nada que lhe dissesse minimamente respeito. Nem qualquer referência ao jovem Halliday. Não era natural que houvesse; daí em diante a sua vida decorreria toda «à porta fechada». Para um homem que trabalhara tantos anos com aquilo a que se chama informações secretas, sentia-se estranhamente clandestino. Estava tentado a fazer novamente o seu SOS urgente mas já tinha sido uma imprudência fazê-lo uma segunda vez, e de casa. Não fazia ideia de onde o seu sinal fora ouvido, mas os que escutavam o seu telefone podiam localizar as chamadas. A impressão que sentira na noite anterior de que uma linha fora cortada, de que tinha sido abandonado, era cada vez maior.

Deu o resto do presunto a Buller, que o recompensou com um fio de baba nas calças. Já devia ter ido com ele à rua, mas não tinha vontade de deixar aquelas quatro paredes, nem que fosse para ir ao jardim. Se a polícia viesse, queria ser detido dentro de sua casa e não ao ar livre, com as vizinhas a espreitar pelas janelas. Tinha um revólver lá em cima, numa gaveta à cabeceira da cama, um revólver que nunca confessara a Davis possuir, um revólver completamente legal, do tempo da África do Sul. Lá, quase todos os brancos possuíam uma arma. Quando o comprou, já trazia uma câmara carregada, a segunda, para evitar um tiro irreflectido, e assim ficou, intacto, sete anos. «Podia usá-lo para disparar sobre mim próprio assim que a polícia arrombar a porta», pensou, mas sabia muito bem que para ele o suicídio estava fora de questão. Prometera a Sarah que voltariam a estar juntos um dia.

Leu, ligou a televisão, voltou a ler. Uma ideia louca apoderou-se dele - apanhar o comboio para Londres, ir ter com o pai de Halliday e pedir-lhe notícias. Mas talvez a sua casa e a estação já estivessem a ser vigiadas. Às quatro e meia, enquanto a escuridão crescia lá fora, o telefone tocou de novo e desta vez, contra toda a lógica, ele atendeu. No seu íntimo, esperava ouvir a voz de Boris, muito embora soubesse bem de mais que Boris nunca se arriscaria a telefonar-lhe para casa.

A voz implacável da sua mãe ouvia-se como se estivesse ali ao lado.

- Maurice?

- Sim.

- Ainda bem que estás aí. A Sarah parece convencida de que te foste embora.

- Não, ainda aqui estou.

- Que disparate vem a ser este entre vocês?

- Não é disparate, mãe.

- Disse-lhe que o que ela devia fazer era deixar o Sam comigo e ir já para aí.

- Mas não vem, pois não? - perguntou, receoso. Uma segunda despedida seria insuportável.

- Recusa-se. Diz que não a deixavas entrar. É absurdo, claro.

- Não é nada absurdo. Se ela vier, desapareço.

- Mas o que é que aconteceu convosco?

- Um dia saberás.

- Estás a pensar no divórcio? Seria muito mau para o Sam.

- De momento é apenas uma separação. Deixe passar algum tempo, mãe.

- Não compreendo. Detesto coisas que não compreendo. Sam manda perguntar se deste comida ao Buller.

- Diz-lhe que sim.

Ela desligou. Castle pensou que um gravador qualquer podia ter gravado a conversa deles. Precisava de um uísque, mas a garrafa estava vazia. Desceu à cave que em tempos servira para armazenar carvão e onde agora guardava o uísque e as outras bebidas. A rampa por onde entrava o carvão fora transformada numa espécie de janela inclinada. Olhou para cima e viu no passeio o reflexo do clarão de um candeeiro de iluminação pública e as pernas de alguém que se encontrava mesmo ao lado.

As pernas não estavam fardadas, mas podiam pertencer a um agente à paisana da Segurança Interna. Fosse quem fosse, colocara-se ostensivamente diante da sua porta, mas claro que a intenção do observador podia ser assustá-lo, obrigando-o a cometer qualquer imprudência. Buller seguira-o escadas abaixo; também ele viu as pernas e desatou a ladrar. Tinha um ar contente, sentado nos quadris, de focinho no ar, mas se as pernas estivessem mais perto tê-las-ia babado e não mordido. Enquanto os dois olhavam, as pernas moveram-se e desapareceram e Buller rosnou de decepção - perdera uma oportunidade de fazer mais um amigo. Castle encontrou uma garrafa de J&cB (ocorreu-lhe que a cor do uísque deixara de ter importância) e subiu as escadas com ela na mão. Pensou: «Se não me tivesse visto livre do Guerra e Paz, agora poderia ler alguns capítulos.»

A inquietação conduziu-o de novo ao quarto, onde procurou entre as coisas de Sarah cartas antigas, mas duvidava que alguma das que lhe escrevera pudesse ser incriminatória, embora soubesse que nas mãos da Segurança Interna a mais inocente seria com certeza distorcida até servir de prova contra a cumplicidade dela. Nada lhe garantia que isso não acontecesse - em casos como o dele há sempre o feio desejo de vingança. Não encontrou nada - quando duas pessoas se amam e estão juntas, as cartas antigas sujeitam-se a perder o seu valor. Alguém tocou à campainha da porta. De pé, pôs-se à escuta, ouviu-a tocar uma segunda vez e depois uma terceira. Estava visto que o silêncio não ia demover aquela visita, era uma idiotice não abrir a porta. Se afinal de contas a linha não tivesse sido cortada, podia haver uma mensagem, uma instrução... Sem saber porquê, tirou da gaveta da mesa-de-cabeceira o revólver e guardou-o, com a sua munição única, no bolso.

No vestíbulo, ainda hesitou. O vitral da parte de cima da porta projectava no chão losangos amarelos, verdes e azuis. Lembrou-se que, se tivesse o revólver na mão ao abrir a porta, a polícia teria o direito de disparar sobre ele em legítima defesa - seria uma solução fácil; nada poderia ser provado publicamente contra um morto. Mas repreendeu-se a si próprio, nenhum dos seus actos devia ser ditado pelo desespero nem pela esperança. Deixou a arma no bolso e abriu a porta.

- Daintry - exclamou. Não esperava ver uma cara conhecida.

- Posso entrar? - perguntou Daintry numa voz tímida.

- Claro.

Buller emergiu de repente do seu refúgio.

- Não é perigoso - disse Castle, ao ver Daintry recuar. Segurou Buller pela coleira e o cão deixou cair um fio de baba entre eles, como uma noiva atrapalhada poderia deixar cair a aliança. - Que o traz aqui, Daintry?

- Ia a passar por acaso e lembrei-me de fazer-lhe uma visita.

A desculpa era tão obviamente mentira que Castle teve pena de Daintry. Não parecia um daqueles interrogadores calmos, simpáticos e fatais criados pelo MI5. Era um simples agente de segurança a quem se podia confiar o cumprimento das regras e a fiscalização das pastas.

- Toma uma bebida?

- Sim, obrigado. - A voz de Daintry estava roucaDepois, como se tivesse que arranjar desculpas para tudo, disse: - A noite está fria e húmida.

- Não saí todo o dia.

- Não?

Castle disse para consigo: «Se o telefonema desta manhã foi do escritório, já me espalhei», e acrescentou:

- Fui só passear o cão.

Daintry pegou no copo de uísque e ficou a olhar longamente para ele, depois para a sala, instantâneos pequenos e rápidos, como um repórter fotográfico. Quase se ouvia o clique das pálpebras.

- Espero sinceramente não incomodar. A sua mulher...

- Saiu. Estou completamente sozinho. Se não contarmos com o Buller.

- Buller?

- O cão.

O silêncio total da casa era realçado pelas duas vozes. Quebravam-no à vez, murmurando frases sem importância.

- Espero não ter deitado água a mais no seu uísque disse Castle. Daintry ainda não o provara. - Não esperava...

- Não, não, está mesmo como eu gosto. - O silêncio voltou a cair como a pesada cortina numa peça de teatro.

Castle começou por fazer uma confidência:

- Na verdade, estou com um grande problema. - Pareceu-lhe uma boa altura para estabelecer a inocência de Sarah.

- Problema?

- A minha mulher deixou-me. Levou o meu filho. Foi para casa da minha mãe.

- Quer dizer que discutiram?

- Sim.

- Lamento muito - disse Daintry. - E horrível quando essas coisas acontecem. - Parecia que estava a falar de uma coisa tão inevitável como a morte. E acrescentou:

Lembra-se da última vez que estivemos juntos, no casamento da minha filha? Foi muito amável em acompanhar~me a casa da minha mulher. Apreciei muito a sua companhia. Mas depois parti um dos mochos dela.

- Sim. Estou recordado.

- Creio que nunca lhe agradeci devidamente. Também era sábado. Como hoje. Ela ficou furiosa. A minha mulher quero dizer, com a história do mocho.

- Tivemos de sair de repente por causa do Davis.

- Sim, pobre diabo. - A cortina de segurança caiu de novo, como se obedecesse a uma deixa antiquada. O último acto começaria em breve. Estava na altura de ir até ao bar. Ambos beberam ao mesmo tempo.

- Que pensa da morte dele? - perguntou Castle.

- Não sei o que pensar. Para dizer a verdade nem quero pensar.

- Eles consideram-no o responsável pelas fugas na minha secção, não é?

- Não fazem confidências a um agente de segurança. Mas porque diz isso?

- Não é o procedimento de rotina mandar homens da Segurança Interna revistar a nossa casa, quando um de nós morre.

- Não, julgo que não.

- Também achou que aquela morte foi estranha?

- Porque diz isso?

«Será que se inverteram os papéis? Eu é que vou interrogá-lo?», pensou Castle.

- Disse agora mesmo que preferia nem pensar na morte dele.

- Disse? Não sei porquê. Talvez seja do seu uísque. Afinal não pôs lá muita água, sabia?

- O Davis nunca passou nenhuma informação a ninguém - disse Castle. Teve a impressão de que Daintry fitava o bolso que, com o peso da arma, se enterrava na almofada da cadeira onde estava sentado.

- Acredita que isso é verdade?

- Sei que é verdade.

Não podia ter dito nada que o prejudicasse mais. Talvez Daintry não fosse, afinal, um péssimo interrogador, e a timidez, a confusão e a surpresa que tinha aparentado fizessem parte de um novo método que colocava a sua competência técnica acima da do MI 5.

- Sabe?

- Sim.

Que iria Daintry fazer agora? Não tinha autoridade para proceder a detenções. Teria de procurar um telefone e comunicar com o escritório. O mais próximo ficava na esquadra da polícia, ao fundo da King’s Road - decerto não iria ter a ousadia de pedir para usar o de Castle? Teria identificado o volume que pesava no bolso? Estaria com medo? «Quando ele sair, terei tempo para fugir», se é que havia para onde fugir; mas fugir sem destino, simplesmente para atrasar o instante da captura, era uma manifestação de pânico. Preferia ficar onde estava e esperar - isso seria pelo menos uma manifestação de dignidade.

- Sempre tive as minhas dúvidas - disse Daintry -, para ser sincero.

- Então afinal confiaram em si?

- Só para os testes de segurança. Eu é que tratava deles.

- Foi um dia terrível, não foi? Primeiro, partiu o mocho, depois viu o Davis morto em cima da cama.

- Não gostei do que disse o doutor Percival.

- Que foi que ele disse?

- Disse: «Não esperava nada que isto acontecesse.»

- Sim, já me lembro.

- Fez-me abrir os olhos - continuou Daintry. - E ver o que eles andavam a tramar.

- Tiraram conclusões muito precipitadas. Nem observaram devidamente as alternativas.

- Quer dizer, o senhor?

«Não vou facilitar-lhes a vida. Não vou confessá-lo com todas as letras, por mais eficaz que seja esta nova técnica», pensou Castle e respondeu:

- Ou o Watson.

- Sim, tinha-me esquecido do Watson.

- Tudo, na nossa secção, passa pelas mãos dele. E depois, claro, há o sessenta e nove mil e trezentos em Laza Mas não podem propriamente verificar as contas bancárias dele. Sabe-se lá se ele não tem uma na Rodésia ou na África do Sul?

- Tem toda a razão.

- Depois há as nossas secretárias. E não são só as nossas secretárias pessoais que podem estar envolvidas. Pertencem todas ao mesmo grupo. Não acredito que uma mulher não vá às vezes à casa de banho sem fechar à chave o telegrama que estava a descodificar ou o relatório que estava a passar à máquina.

- Também acho. Eu próprio observei o grupo. Há muita falta de cuidado.

- A falta de cuidado começa muitas vezes por cima. A morte do Davis pode ter sido um exemplo de uma falta de cuidado criminosa.

- Se ele não era culpado, foi crime - declarou Damtry. - Não teve hipótese de se defender, de chamar um advogado. Recearam o efeito que um julgamento pudesse ter sobre os americanos. O doutor Percival falou-me de caixas...

- Oh, sim, conheço bem essa piada. Ouvi-a muitas vezes. Bem, neste momento o Davis está numa caixa.

Castle reparou que Daintry não tirava os olhos do seu bolso. Estaria a fingir que concordava com ele para depois escapar em segurança para o seu carro?

- Estamos os dois - disse Daintry - a cometer o mesmo erro, tirar conclusões precipitadas. Davis podia muito bem ser culpado. Porque é que tem tanta certeza que não era?

- É preciso pensar nos motivos - disse Castle. Tinha hesitado, tinha recorrido a subterfúgios, mas sentia-se fortemente tentado a responder: «Porque a fonte sou eu.» Agora já não duvidava de que a linha tinha sido cortada e não podia esperar qualquer ajuda, portanto para quê ganhar tempo? Gostava de Daintry, simpatizava com ele desde o dia do casamento da filha. Tornara-se humano de repente a seus olhos, por causa de um mocho desfeito, da solidão de um casamento desfeito. Se alguém tinha que ficar com os louros da sua confissão, gostaria que essa pessoa fosse Daintry. Assim, porque não desistir e levar as coisas com calma, como a polícia tantas vezes dizia. Pensou se não estaria a prolongar o jogo pelo prazer de ter companhia, para evitar a solidão da casa e a solidão de uma cela.

- Suponho que o motivo do Davis pode ter sido dinheiro.

- O Davis não ligava muito ao dinheiro. Bastava-lhe ter o suficiente para uma aposta ou outra nos cavalos e um bom porto. É preciso sermos mais perspicazes do que isso.

- Onde quer chegar?

- Se suspeitaram da nossa secção foi porque as fugas só diziam respeito a África.

- Porquê?

- Há informações que passam pela minha secção, e que nós encaminhamos, e que interessam muito mais aos russos, mas se a fuga fosse aí, compreende, as outras secções também seriam suspeitas. Assim, a fuga só pode ter a ver com o nosso trabalho particular sobre África.

- Sim - disse Daintry. - Compreendo.

- Ora isso parece apontar, não uma ideologia, não é preciso procurar um comunista, mas uma forte ligação a África, ou aos africanos. Duvido que Davis tenha alguma vez conhecido um africano. - Fez uma pausa e depois acrescentou, com determinação e aquele prazer que o perigo do jogo dá: - Excepto, claro, a minha mulher e o meu filho. - Sabia que precisava de ser cauteloso, mas que ninguém lhe pedisse para ser cauteloso de mais. Continuou: O sessenta e nove mil e trezentos está há muito tempo em LM. Ninguém sabe que tipo de amizades anda a fazer por lá, tem agentes africanos, quase todos comunistas. – Ao fim de tantos anos de secretismo, aquele jogo da glória começava a diverti-lo. - Como eu tinha, quando estava em Pretória - continuou. - Mesmo o C tem um certo amor por África - disse a sorrir.

- Foram todos cuidadosamente investigados.

- Acredito que sim. Hão-de estar nas fichas os nomes das amantes deles, pelo menos as amantes de determinado ano, mas há mulheres que mudam de homem como quem muda de roupa.

- Referiu vários suspeitos - disse Daintry -, no entanto parece tão seguro acerca do Davis. - E prosseguiu, infeliz: - Tem sorte em não ser um agente de segurança. Pensei em demitir-me depois do funeral do Davis. Foi pena não o ter feito.

- Porque não o fez?

- E depois como é que eu passava o tempo?

- Podia coleccionar matrículas de automóveis. Já fiz isso.

- Porque foi que discutiu com a sua mulher? Desculpe. Não tenho nada a ver com isso.

- Ela reprovou o que eu estava a fazer.

- Quer dizer, na organização?

- Mais ou menos.

Castle percebeu que o jogo estava a chegar ao fim. Reparou que Daintry consultara sub-repticiamente o relógio. Seria um relógio verdadeiro, ou um microfone disfarçado de relógio? Talvez pensasse que a cassete estava no fim. Será que ia querer ir à casa de banho, para a substituir?

- Tome outro uísque.

- E melhor não. Tenho de ir a conduzir para casa. Castle acompanhou-o à porta, bem como Buller. Bullf

estava com pena de ver um novo amigo partir.

- Obrigado pela bebida - disse Daintry.

- Obrigado pela oportunidade de falar sobre várias coisas.

- Não saia. Está uma noite desgraçada. - Mas Castle seguiu-o através do aguaceiro gelado. Viu os faróis traseiros de um carro estacionado a uns cinquenta metros, diante da esquadra da polícia.

- Aquele é o seu carro?

- Não. O meu está ali para cima. Tive de descer a rua a pé, porque com esta chuva não conseguia ler os números dentro do carro.

- Então boa noite.

- Boa noite. Espero que tudo se resolva, com a sua mulher, quero dizer.

Castle deixou-se estar ali à chuva o tempo suficiente para acenar a Daintry, quando ele passou. Reparou que o carro, em vez de parar na esquadra da polícia, virou à direita e tomou a estrada para Londres. Claro que podia parar no King’s Arms ou no Swan e fazer um telefonema, mas mesmo que o fizesse não teria um grande relatório a fazer. Provavelmente iriam querer ouvir a gravação antes de decidirem fosse o que fosse - por esta altura Castle estava completamente convencido de que o relógio era um microfone. Claro que a estação de caminho-de-ferro já devia estar sob observação e os funcionários da imigração dos aeroportos avisados. Um facto ficara comprovado com a visita de Daintry. O jovem Halliday já devia ter falado, ou não teriam enviado Daintry a sua casa.

Antes de entrar, olhou para um e outro lado da estrada. A primeira vista, não estava ali ninguém, mas as luzes do carro estacionado frente à esquadra da polícia cintilavam entre os pingos de chuva. Não parecia uma viatura da polícia. A polícia - e, tanto quanto sabia, a Segurança Interna - eram obrigadas a usar marcas britânicas e aquilo parecia mesmo um Toyota, embora não pudesse jurar. Lembrou-se do Toyota na estrada para Ashridge. Tentou distinguir a cor, mas era impossível com a chuva que começava a transformar-se em granizo. Entrou e, pela primeira vez, atreveu-se a ter esperança.

Levou os copos para a cozinha e lavou-os meticulosamente. Como se quisesse apagar as marcas do seu desespero. Em seguida colocou outros dois copos na sala e deixou a sua esperança crescer. Era uma planta sensível, que precisava de ser bem alimentada, mas resolveu acreditar que o carro era de facto um Toyota. Era impossível saber quantos Toyotas existiriam na região, mas esperou pacientemente que a campainha tocasse. Imaginou quem surgiria no lugar de Daintry, quando abrisse a porta. Não seria Boris - tinha a certeza disso -, nem o jovem Halliday, que estava sob custódia, por consentimento tácito, e com certeza muito ocupado com os homens da Segurança Interna.

Voltou à cozinha e deu a Buller um prato com biscoitos - talvez só daí a muito tempo lhe fosse possível voltar a comer. O sonoro tiquetaque do relógio da cozinha fazia parecer que o tempo passava ainda mais devagar. Se era verdade que havia um amigo dentro daquele Toyota, ele estava a demorar muito tempo a aparecer.

O coronel Daintry estacionou no pátio do King’s Arms. Só lá estava um carro e ele ficou algum tempo sentado ao volante, a decidir se ia ou não telefonar e, caso fosse, que havia de dizer. Sentira-se secretamente irritado durante o almoço no Reform, com C e o doutor Percival. Em certos momentos, tivera vontade de empurrar o prato de truta fumada para o lado e dizer: «Demito-me. Não quero mais nada com a vossa maldita organização.» Estava mais do que farto de segredos e de erros que tinham que ser encobertos em vez de assumidos. Um homem saiu do WC exterior, atravessou o pátio a assobiar uma melodia muito pouco melódica, aproveitando a escuridão para abotoar a braguilha, e seguiu para o bar. Daintry pensou: «Deram cabo do meu casamento com os seus segredinhos.» Durante a guerra havia uma causa única - muito mais simples do que a que o seu pai conhecera. O Kaiser não era um Hitler, mas na guerra-fria que agora combatiam era possível, tal como na guerra do Kaiser, ver o bem e o mal. Não havia nada na causa que fosse suficientemente claro para justificar um assassínio por engano. Imaginou-se, mais uma vez, na casa fria da sua infância, atravessando o vestíbulo, entrando na sala onde o seu pai e a sua mãe estavam sentados de mãos dadas. «Seja o que Deus quiser», disse o seu pai, lembrando-se da Jutlândia e do almirante Jellicoe. E a mãe: «Querido, na tua idade é difícil arranjar outro emprego.» Desligou os faróis, atravessou a forte chuvada e foi para o bar. Pensou: «A minha mulher tem dinheiro, a minha filha está casada, eu havia de me amanhar com a minha reforma.» Naquela noite fria e chuvosa só estava um homem no bar - a beber uma imperial - que disse:

- Boa noite - como se fossem velhos conhecidos.

- Boa noite. Um uísque duplo - pediu Daintry.

- Se é que se pode chamar boa - disse o homem, enquanto o empregado se voltou para pôr um copo debaixo de uma garrafa de Johnnie Walker.

- Chamar boa a quem?

- À noite. Embora esteja na altura dele, deste tempo, digo, já que estamos em Novembro.

- Posso telefonar? - perguntou Daintry ao empregado. O empregado colocou o copo à frente dele com um ar desinteressado. Com um gesto de cabeça, indicou o telefone. Era, claramente, um homem de poucas palavras: estava ali para ouvir o que os clientes quisessem dizer, mas não para comunicar mais do que o estritamente necessário, até que chegasse o momento - sem dúvida de grande prazer - de pronunciar a frase: «Está na hora de fechar, meus senhores.» Daintry marcou o número do doutor Percival e enquanto escutava o sinal de interrompido, aproveitou para ensaiar as palavras que queria utilizar. «Fui a casa do Castle... Está sozinho.... Discutiu com a mulher... Mais nada a declarar...» Depois pousaria bruscamente o auscultador, como acabara de fazer, após o que voltou ao balcão, ao seu uísque e ao homem que teimava em conversar.

- Hum... - dizia’ o empregado - hum... Pois.

O cliente voltou-se para Daintry e incluiu-o na conversa:

- Já nem aritmética ensinam hoje em dia. Perguntei ao meu sobrinho, de nove anos, quanto era quatro vezes sete e pensam que ele sabia?

Daintry bebeu o seu uísque de olho no telefone, ainda a decidir que palavras utilizar.

- Já percebi que concorda comigo - disse o homem a Daintry. - E o senhor? - perguntou ao empregado. O seu negócio ia por água abaixo, não ia, se não soubesse quanto é quatro vezes sete?

O empregado limpou um pouco de cerveja que tinha pingado para cima do balcão e murmurou:

- Hum...

- Deixe-me ver, vou adivinhar qual é a sua profissão. Não me pergunte como. Tenho este dom. E de estudar os rostos, penso eu, e a natureza humana. Por isso é que estava a falar de aritmética quando o senhor veio do telefone. É um assunto, tinha eu acabado de dizer aqui a Mistrer Barker, de que aquele senhor deve perceber. Não foi o que eu disse?

- Hum... - respondeu Mr. Barker.

- Dê-me outra imperial, se fizer favor. Mr. Barker encheu-lhe o copo.

- Os meus amigos estão sempre a pedir-me para adivinhar as profissões das pessoas. Chegam a fazer apostas. E professor primário, digo eu, acerca de alguém que vai no metropolitano, por exemplo, ou é farmacêutico, depois pergunto com toda a delicadeza, nunca se ofendem, porque eu explico-lhes, e nove vezes em cada dez eu acerto. Aqui Mister Barker já tem assistido, não é verdade, Mister Barker?

- Hum...

- Ora bem, se me dá licença, eu adivinhava a sua, só para entreter Mister Barker nesta noite tão má... Trabalha para o governo. Acertei?

- Sim - respondeu Daintry. Terminou o uísque e pousou o copo. Estava na altura de voltar ao telefone.

- Então estou morno, hem? - O cliente fitou-o com olhos pequeninos. - Uma espécie de emprego confidencial. Sabe muito mais sobre as coisas do que qualquer de nós.

- Preciso de fazer um telefonema - disse Daintry.

- Dê-me um minuto. Só para mostrar a Mister Barker... - Limpou um pouco de cerveja que tinha na boca com um lenço e encostou o rosto ao de Daintry. - O senhor lida com números. É dos impostos.

Daintry dirigiu-se ao telefone.

- Viu? - disse o cliente. - Irritadiço. Eles não gostam nada de ser reconhecidos. Deve ser algum inspector.

Desta vez Daintry ouviu tocar e logo a seguir a voz do doutor Percival, afável, tranquilizador, como se não tivesse perdido o jeito para falar com doentes, tanto tempo depois de deixar de tratar deles.

- Está? É o doutor Percival. Quem fala?

- Daintry.

- Boa noite, caro amigo. Alguma novidade? Onde está?

- Em Berkhamstead. Fui a casa do Castle.

- Ah, sim? E com que impressão ficou?

A indignação pegou nas palavras que ele queria dizer e rasgou-as em pedaços, como uma carta que se decide não enviar.

- Com a impressão de que assassinou o homem errado.

- Não assassinei - disse o doutor Percival numa voz suave -, enganei-me na receita. O produto nunca tinha sido experimentado em seres humanos. Mas porque pensa que o Castle...?

- Porque ele tem a certeza de que o Davis estava inocente.

- Ele disse isso? Com todas as letras?

- Sim.

- E que vai ele fazer?

- Aguardar.

- Aguardar o quê?

- Que aconteça alguma coisa. A mulher deixou-o e levou a criança. Diz ele que tiveram uma discussão.

- Já pusemos a circular um aviso - disse o doutor Percival - nos aeroportos e nos portos marítimos, claro. Se ele for para lá, teremos provas à vista, mas vamos precisar de coisas mais sólidas.

- Não ficou à espera de provas sólidas no caso do Davis.

- Desta vez, C insiste. Que vai fazer agora?

- Vou para casa.

- Perguntou-lhe pelos apontamentos do Muller? - não.

- Porquê?

- Não foi preciso.

- Fez um excelente trabalho, Daintry. Mas porque se terá ele aberto consigo?

Daintry pousou o auscultador sem responder e saiu da cabina. O cliente disse:

- Acertei, não foi? O senhor é inspector dos impostos.

- Sou, sim.

- Está a ver, Mister Barker? Nunca falha!

O coronel Daintry caminhou devagar até ao seu carro. Ficou uns instantes sentado, com o motor a trabalhar, a ver os pingos de chuva descer os vidros atrás uns dos outros. Depois saiu do pátio e virou para Boxmoor, Londres e o apartamento em St. James’s Stret, onde tinha o camembert da véspera à sua espera. Conduziu lentamente. Os chuviscos de Novembro tinham-se transformado em chuva a sério, misturada com granizo. «Bem, fiz o que se chama a minha obrigação», pensou, mas embora se encontrasse na estrada para sua casa e para a mesa à qual se sentaria a comer o seu camembert, e a escrever a sua carta, não tinha pressa de chegar. Disse para consigo que era um homem livre, que já não tinha deveres nem obrigações, mas nunca se sentira tão profundamente só como naquele momento.

 

A campainha tocou. Castle estava farto de esperar, mas mesmo assim hesitou em ir à porta; parecia-lhe que tinha sido absurdamente optimista. Àquelas horas já o jovem Halliday devia ter falado, o Toyota era um entre mil, a Segurança Interna tinha provavelmente esperado que ele estivesse sozinho, e fora muito imprudente com Daintry. A campainha tocou uma segunda vez e depois uma terceira; não tinha outro remédio senão ir abrir. Caminhou até à porta com a mão no revólver que estava no seu bolso, mas que não lhe seria mais útil do que uma pata de coelho. Não podia abrir o caminho aos tiros, numa ilha. Buller rosnava, parecendo apoiá-lo, mas ele sabia que, mal a porta se abrisse, o cão se renderia a quem quer que aparecesse. Não se via nada através do vitral batido pela chuva. E quando abriu a porta continuou sem distinguir nada - apenas uma figura encurvada.

- Que noite desgraçada - queixou-se, na escuridão, uma voz conhecida.

- Mister Halliday... não esperava vê-lo.

Castle pensou: «Veio pedir-me para ajudar o filho, mas que posso eu fazer?»

- Bonito cão, bonito cão - disse o quase invisível Mr. Halliday a Buller, num tom nervoso.

- Entre. Ele não faz mal.

- Sim. é um belo cão.

Mr. Halliday entrou, cauteloso, encostado à parede, enquanto Buller abanava a cauda que lhe restava e se babava.

- Como vê, Mister Halliday, ele gosta de toda a gente. Tire o casaco. Venha tomar um copo.

- Não sou muito de beber, mas não recuso.

- Ouvi na rádio o que sucedeu ao seu filho. Lamento muito. O senhor deve estar ansioso.

Mas Halliday seguiu Castle até à sala e disse:

- Estava-se mesmo a ver, Mister Castle, talvez ele desta vez aprenda. A polícia passava a vida a levar-lhe coisas da loja. O inspector mostrou-me uma ou duas e de facto eram repugnantes. Mas, como disse ao inspector, ele próprio não lia aquilo.

- Espero que a polícia não o tenha incomodado?

- Oh, não. Como lhe contei, creio que até têm pena de mim. Sabem que a minha loja é completamente diferente.

- Chegou a entregar-lhe a minha carta?

- Aí está, Mister Castle. Achei mais prudente não a entregar. Dadas as circunstâncias. Mas não se preocupe. Passei-a a quem de direito.

Pegou num livro que Castle andava a ler e olhou para o título.

- Que raio quer dizer com isso?

- Bem, Mister Castle, o senhor andou sempre, creio eu, um pouco equivocado. O meu filho nunca esteve metido nos mesmos negócios que o senhor. Mas eles pensaram que não era má ideia, caso as coisas se complicassem, o senhor achar que sim... - Inclinou-se e aqueceu as mãos no calorífero a óleo, com uma expressão manhosa e divertida nos olhos. - Ora bem, tal como as coisas estão, temos que o pôr a milhas o mais depressa possível.

Foi um choque para Castle verificar como desconfiavam dele aqueles que mais razão tinham para confiar nele.

- Desculpe a pergunta, mas onde estão exactamente a sua mulher e o seu rapaz? São ordens...

- Esta manhã, quando ouvi as notícias sobre o seu filho, mandei-os embora. Para casa da minha mãe. Ela pensa que nos zangámos.

- Sim senhor, é um problema a menos.

O velho Mr. Halliday, depois de ter aquecido suficíentemente as mãos, começou a andar de um lado para o outro, inspeccionando os livros das estantes.

- Pago-lhe um bom preço por eles - disse -, como qualquer outro livreiro. Vinte e cinco libras, é tudo o que pode levar do país. Tenho aqui as notas. Dão-me muito jeito. Os Clássicos de Todo o Mundo e os Everymans. Não fazem as reedições que deviam e quando as fazem, é cá um preço!

- Pensava - interrompeu Castle - que estávamos com pressa.

- Se há coisa que eu aprendi - respondeu Mr. Halliday -, nos últimos cinquenta anos, foi a levar as coisas com calma. Quando fazemos tudo à pressa é mais que certo cometermos erros. Se tivermos meia hora o melhor é fingir que temos três. Pareceu-me ouvi-lo oferecer-me uma bebida?

- Se tivermos tempo... - Castle serviu dois copos.

- Temos tempo. Creio que terá preparado uma mala com o essencial?

- Sim.

- Que vai fazer com o cão?

- Deixá-lo aqui. Não pensei nisso... Talvez o senhor o possa levar ao veterinário.

- Não é aconselhável. Uma ligação entre nós dois, não pode ser, se eles se puserem à procura dele. De qualquer maneira vai ter que ficar calado nas próximas horas. Ele ladra muito quando está sozinho?

- Não sei. Não está habituado a estar sozinho.

- Eu estava a pensar nos vizinhos. Um deles pode resolver telefonar à polícia e não queremos que percebam que a casa está vazia.

- Vão acabar por perceber, de qualquer maneira.

- Depois de o senhor estar a salvo no estrangeiro já não faz mal. Foi uma pena a sua mulher não ter levado o cão com ela.

- Era impossível. A minha mãe tem um gato. O Butter mata todos os gatos que lhe aparecem à frente.

- Sim, são uns marotos, esses boxers, no que diz respeito a gatos. Eu também tenho um gato. - Mr. Halliday puxou as orelhas de Buller e o cão encostou-se a ele. - É como digo. Quando estamos com pressa, esquecemo-nos de tudo. Como lhe aconteceu com o cão. Tem uma cave?

- Não é à prova de som. Se estava a pensar fechá-lo lá.

- Reparei, Mister Castle, que tem uma arma aí no bolso esquerdo, ou estou enganado?

- Pensei que, se a polícia aparecesse... Só tem uma bala.

- Decisão desesperada?

- Não tinha ainda decidido usá-la.

- Achava melhor entregar-ma. Se alguém nos mandar parar, pelo menos eu tenho licença, por causa dos roubos todos que há hoje em dia nas lojas. Qual é o nome? Do cão, quero dizer.

- Buller.

- Anda cá, Buller, anda cá. Cão bonito. - Buller encostou o focinho aos joelhos de Mr. Halliday. - Muito bem, Buller, muito bem. Não queres arranjar problemas, pois não, a um dono bom como o teu. - Buller abanou o coto da cauda. - Eles percebem logo quem é que gosta deles - disse Mr. Halliday. Fez-lhe festas atrás das orelhas e Buller manifestou o seu contentamento. - Agora se não se importa, Mister Castle, passava-me a arma... Com que então matas gatos, meu malandro...

- Vão ouvir o tiro.

- Damos um pulinho até à cave. Um tiro só não faz mal nenhum. Vão pensar que é um motor.

- Ele não lhe obedece.

- E o que vamos ver. Anda cá, Buller, meu velho. Anda passear. Passear, Buller.

- Está a ver? Ele não vai.

- O tempo aperta, Mister Castle. É melhor vir comigo. É para o poupar.

- Não quero ser poupado.

Castle desceu as escadas para a cave e Buller foi atrás dele, seguido por Mr. Halliday.

- Se fosse a si não acendia a luz, Mister Castle. Um tiro e uma luz a apagar-se, isso é que podia parecer suspeito.

Castle fechou o que outrora fora a rampa do carvão.

- Agradecia então que me passasse a arma, se faz favor...

- Não. Eu trato disto. - Pegou na arma, apontou-a a Buller e o cão, pronto para mais uma brincadeira e provavelmente pensando que o cano era um osso de borracha, abocanhou-o e puxou-o para si. Castle carregou no gatilho duas vezes, a contar com a câmara vazia. Sentiu náuseas.

- Preciso de outro uísque - disse -, antes de partirmos.

- E merece-o, Mister Castle. E curioso como nos afeiçoamos a um simples animal. O meu gato...

- Eu antipatizava profundamente com Buller. Mas... bem, nunca tinha matado fosse o que fosse.

- é difícil conduzir com esta chuva - disse Mr. Halliday, quebrando um longo silêncio. A morte de Buller prendera-lhes a língua.

- Para onde vamos? Heathrow? O serviço de imigração já deve estar avisado.

- Vou levá-lo para um hotel. Se abrir o porta-luvas, encontrará uma chave. Quarto quatrocentos e vinte e três. Quando chegar, meta-se no elevador e suba. Não vá à recepção. Fique no quarto à espera que alguém o vá buscar.

- E se uma criada...

- Coloque o cartão que diz «Não incomodar» à porta.

- E depois...

- Não sei. Foram estas as instruções que recebi. Castle pensou em como receberia Sam a notícia da morte de Buller. Sabia que ele nunca lhe perdoaria.

- Como é que se meteu nisto? - perguntou.

- Não me meti. Sou do Partido, na clandestinidade como se diz, desde rapaz. Fiz a tropa com dezassete anos, como voluntário. Menti acerca da idade. Pensava que ia para França, mas fui parar a Archangel. Fiquei quatro anos prisioneiro. Vi muito e aprendi muito nesses quatro anos.

- Como o trataram?

- Foi duro, mas os jovens aguentam tudo e havia sempre alguém simpático. Aprendi russo, o suficiente para lhes servir de intérprete e davam-me livros para ler quando não me davam comida.

- Livros comunistas?

- Claro. Os missionários distribuem Bíblias, não é?

- Então é um dos fiéis.

- Tem sido uma vida muito solitária, reconheço. Bem vê, eu nunca pude ir a reuniões nem manifestações. Nem o meu filho sabe. Usam-me de vez em quando para pequenos serviços, como este. Fui várias vezes o seu receptador. E era uma alegria vê-lo na minha loja. Sentia-me menos só.

- Alguma vez teve dúvidas, Halliday? Quero dizer, Estaline, a Hungria, a Checoslováquia?

- Vi muita coisa na Rússia quando era novo, e na Inglaterra também, com a Depressão, quando regressei, e fiquei vacinado contra esse tipo de coisinhas.

- Coisinhas?

- Se me permite a impertinência, Mister Castle, a sua consciência é muito selectiva. Podia falar-lhe em Hamburgo, Dresden, Hiroxima. Não abalaram um pouco a sua fé na chamada democracia? Devem ter abalado, ou não estaria comigo agora.

- Mas isso era a guerra.

- A minha gente está em guerra desde mil novecentos e dezassete.

Castle espreitou a noite chuvosa, entre os movimentos do limpa-pára-brisas:

- Está mesmo a levar-me para Heathrow.

- Não exactamente. - Mr. Halliday colocou uma mão, leve como uma folha do Outono de Ashridge, sobre o joelho de Castle. - Não se preocupe. Eles olham por si. Invejo-o. Vai conhecer Moscovo com toda a certeza.

- Nunca lá foi?

- Nunca. Não passei da prisão de Archangel. Não viu as Três Irmãs*. Eu só vi uma vez, mas nunca mais esqueci uma fala de uma delas e repito-a para comigo quando tenho dificuldade em adormecer: «Vender a casa, resolver todos os assuntos que me prendem aqui e partir para Moscovo...»

- A Moscovo que encontraria é muito diferente da de Tchekov.

- Há outra frase de uma das irmãs: «As pessoas felizes não reparam se é Inverno ou Verão. Se eu vivesse em Moscovo, queria lá saber de como estava o tempo.» Quando estou em baixo, digo para comigo: «Ora, o Marx também nunca esteve em Moscovo», olho para a Old Compton Street e imagino que Londres ainda é a Londres de Marx. O Soho é o Soho de Marx. Foi aqui que o Manifesto do Partido Comunista se publicou pela primeira vez. - Umacamioneta saiu repentinamente da chuva, guinou, quase embatendo com eles, e seguiu, indiferente, pela noite. - Malditos camionistas - observou Mr. Halliday -, sabem que para eles nunca há perigo, dentro daqueles autênticos tanques. As multas para manobras perigosas deviam ser mais pesadas. Sabe qual foi o verdadeiro problema na Hungria e na Checoslováquia? A condução perigosa. Dubscek era um condutor perigoso, tão simples como isso.

- Para mim não é simples. Nunca quis ir parar a Moscovo.

- Sim, deve ser um pouco estranho, não sendo o senhor um dos nossos, mas se fosse a si não me preocupava. Não sei que serviço nos prestou, mas foi com certeza importante, e eles vão tomar conta de si, pode ter a certeza. Não me admirava nada se lhe dessem a Medalha Lenine ou o pusessem num selo, como fizeram a Sorge.

- Sorge era comunista.

- Tenho muito orgulho em saber que vai a caminho de Moscovo neste meu velho carro.

- Mesmo que ficássemos um século aqui dentro, Halliday, não conseguiria converter-me.

- Olhe que não sei. Ao fim e ao cabo, ajudou-nos muito.

- Ajudei-vos em África, mais nada.

- Precisamente. Está no bom caminho. África é a tese, como diria Hegel. O senhor pertence à antítese, mas é uma parte activa da antítese... é um daqueles que ainda virá a ser da síntese.

- Tudo isso é chinês para mim. Não sou filósofo.

- Nenhum militante precisa de o ser, e o senhor é um militante.

- Não do comunismo. Agora sou apenas uma baixa.

- Eles curam-no em Moscovo.

- Num hospital psiquiátrico?

A frase silenciou Mr. Halliday. Teria encontrado uma pequena falha na dialéctica de Hegel, ou seria aquele silêncio sinónimo de dor e dúvida? Nunca o saberia, pois o hotel surgiu à sua frente, com as luzes obscurecidas pela chuva.

- Agora, saia - disse Mr. Halliday. - É melhor não me verem.

Quando pararam, os carros passaram por eles numa longa fila de luzes, em que os faróis de um iluminavam a traseira do outro. Um Boeing 707 inclinou-se ruidosamente em direcção ao aeroporto de Londres. Mr. Halliday procurou no banco de trás.

- Ia-me esquecendo de uma coisa. - Puxou de um saco de plástico que um dia devia ter transportado artigos duty free. - Despeje para aqui as coisas que tem na mala. De mala de viagem na mão dá mais nas vistas.

- Não cabem.

- Então ponha só o que couber.

Castle obedeceu. Mesmo após tantos anos de secretismo, percebeu que, numa emergência, o jovem recruta de Archangel era o especialista. Deixou para trás, com relutância, o pijama, pensando que na prisão lhe arranjariam um, e a camisola. «Se lá chegar, terão de me dar roupas quentes.»

- Tenho um presentinho para si - disse Mr. Halliday. - O livro de Trollope que encomendou. Já não precisa de dois exemplares. E uma obra volumosa, mas vai ter muito que esperar. Como sempre acontece nas guerras. Intitula-se The Way We Live Now.

- O livro que o seu filho recomendou?

- Bem, aí menti um bocadinho. Eu é que aprecio Trollope e não o meu filho. O autor preferido dele é um homem chamado Robbins. Tem que me desculpar esta mentirinha, queria que tivesse uma boa impressão dele, apesar daquela loja. Não é mau rapaz.

Castle apertou a mão de Mr. Halliday.

- Acredito. Espero que tudo corra bem com ele.

- Não se esqueça. Vá directo para o quarto quatrocentos e vinte e três e aguarde.

Castle caminhou na direcção das luzes do hotel, de saco de plástico na mão. Sentia que já perdera o contacto com tudo o que conhecera em Inglaterra - Sarah e Sam estavam fora do seu alcance na casa da sua mãe, que nunca fora a sua. «Sentia-me mais em casa, em Pretória. Lá, tinha que fazer. Mas agora já não há nada que eu possa fazer.» Uma voz chamou-o do meio da chuva:

- Boa sorte. Felicidades. - E ouviu o carro partir.

 

Ficou desnorteado - quando passou a porta do hotel, pareceu-lhe que entrava nas Caraíbas. Não chovia. Havia palmeiras em volta de uma piscina e o sol brilhava rodeado de estrelas minúsculas; cheirou o ar quente, abafado, húmido, que lhe recordava umas férias longínquas logo após a guerra; estava cercado - o que era inevitável - por vozes americanas. Não havia o perigo de alguém, no enorme balcão da recepção, dar por ele - estavam todos extremamente atarefados com a invasão de passageiros americanos, acabados de desembarcar em qual aeroporto? Seria Kingston? Bridgetown? Um criado negro foi levar dois ponches de rum a um casal que estava sentado à beira da piscina. O elevador estava ali ao seu lado, à espera, de portas abertas, e no entanto ele demorou-se, boquiaberto... O jovem casal começou a beber o ponche, com uma palhinha, sob as estrelas. Esticou uma mão para ter a certeza de que não estava a chover e, atrás dele, alguém disse:

- Olha o Maurice! Que estás a fazer nesta espelunca?

- Imobilizou a mão, que se dirigia ao bolso, e olhou em redor. Ficou satisfeito por já não ter consigo o revólver.

O seu interlocutor era um tal Blit que fora o seu contacto, anos atrás, na Embaixada americana, até ser transferido para o México - talvez por não saber falar espanhol.

- Blit! - exclamou, com falso entusiasmo. Fora sempre assim. Blit tratava-o por Maurice desde o seu primeiro encontro, mas ele nunca passara de Blit.

- Para onde é que vais? - perguntou Blit, mas não esperou pela resposta. Preferiu falar sobre a sua pessoa. - Eu vou para Nova Iorque. Tinha que mudar aqui de avião, mas ele ainda não chegou. Passo aqui a noite. Nada má, esta espelunca. Parece mesmo as ilhas Virgens. Eu vestia as minhas bermudas, mas não as trouxe.

- Julgava-te no México.

- Isso já passou à história. Agora estou outra vez no secretariado europeu. E tu continuas na obscura África?

- Sim.

- Também te retiveram aqui?

- Tenho que aguardar - respondeu Castle, esperando que a sua ambiguidade passasse despercebida.

- Que me dizes de um planter’s punch? Disseram-me que são óptimos aqui.

- Vou ter contigo daqui a meia hora.

- Está bem. Na piscina.

- Na piscina.

Castle entrou no elevador e Blit foi atrás dele.

- Sobes? Eu também. Que andar?

- O quarto.

- Também eu. Dou-te uma boleia.

Seria possível que também os americanos estivessem a vigiá-lo? Dadas as circunstâncias, não era aconselhável atribuir tudo à coincidência.

- Jantas aqui? - perguntou Blit.

- Não sei. Sabes, depende...

- És mesmo obcecado com a segurança - disse Blit.

- O velho Maurice.

Percorreram juntos o corredor. O quarto 423 apareceu primeiro e Castle demorou o suficiente a abrir a porta para ver Blit continuar sem parar até ao 427 - não, 429. Castle sentiu-se mais tranquilo depois de fechar a porta à chave e pendurar o «Não incomodar» do lado de fora.

O termostato do aquecedor indicava vinte e cinco graus. Apropriado às Caraíbas. Dirigiu-se à janela e olhou para fora. Em baixo via-se o bar redondo e em cima o céu artificial. Uma mulher forte de cabelo azul cambaleava ao longo da piscina: já devia ter a sua conta de ponches de rum. Examinou atentamente o quarto em busca de pistas sobre o futuro, tal como fizera na sua própria casa em busca de pistas sobre o passado. Duas camas de casal, uma poltrona, um guarda-fato, uma cómoda, uma secretária sobre a qual só havia um bloco de papel de carta, uma televisão, uma porta que dava para a casa de banho. Uma tira de papel atravessava a tampa da sanita, a atestar o seu bom estado de higiene: os copos de dentes estavam dentro de embalagens de plástico. Voltou para o quarto, abriu o bloco e soube, pelo papel timbrado, que se encontrava no Hotel Starflight. Num cartão enumeravam-se os bares e restaurantes disponíveis - um deles oferecia música para dançar e tinha o nome Pizarro. O grill, em contraste, chamava-se Dickens e o terceiro, um self-service, Oliver Twist. «Sirva-se quantas vezes quiser.» Outro cartão informava que havia autocarros de meia em meia hora para o aeroporto de Heathrow.

Por baixo da televisão, descobriu um frigorífico com miniaturas de garrafas de uísque, gim, brande, água tónica e soda, duas qualidades de cerveja e garrafas de dois decilitros e meio de champanhe. Tirou uma de J&B. Por hábito, e preparou-se para esperar. «Vai ter muito que esperar», dissera Mr. Halliday ao entregar-lhe o Trollope e como não tinha mais nada para fazer abriu o livro: «Que ao leitor seja apresentada Lady Carbury, de cujo carácter e de cujas acções vai depender muito do interesse que estas páginas possam suscitar, sentada à sua escrivaninha, no seu quarto de dormir na sua casa em Welbeck Street.» Concluiu que não era livro para distraí-lo do tipo de vida que era agora o seu.

Voltou a olhar pela janela. O criado negro passou por baixo e a seguir Blit, que olhou em volta. Era impossível que já tivesse passado meia hora. Tranquilizou-se: dez minutos. Blit não podia estar já à sua procura. Apagou as luzes do quarto para que Blit, se olhasse para cima, não o visse. Blit sentou-se junto ao bar circular e fez o seu pedido. Sim, um planter’s punch. O criado estava a pôr lá dentro a fatia de laranja e a cereja. Blit tinha tirado o casaco e estava de camisa de mangas curtas, o que acentuava a ilusão criada pelas palmeiras, a piscina e a noite estrelada. Castle viu-o usar o telefone do bar, marcar um número. Seria só imaginação, ou Blit erguia os olhos na direcção do quarto 423 enquanto falava? Comunicava o quê? A quem?

A porta do seu quarto abriu-se e as luzes acenderam-se. Voltou-se num pulo e viu uma imagem passar instantaneamente pelo espelho da porta do guarda-fato, como se alguém não quisesse ser visto - a imagem de um homem baixo, de bigode preto, fato escuro, com uma pasta de executivo preta na mão.

- Atrasei-me por causa do trânsito - disse o homem num inglês claro mas incorrecto.

- Veio buscar-me?

- Temos pouco tempo. Há necessidade de o senhor apanhar o próximo autocarro para o aeroporto. - Começou a esvaziar a pasta em cima da secretária: primeiro, um bilhete de avião, depois um passaporte, uma garrafa que parecia conter cola, um saco de plástico cheio, uma escova de cabelo, um pente, uma máquina de barbear.

- Trouxe tudo o que é preciso - disse Castle, também de forma clara.

O homem ignorou-o.

- Verá que o seu bilhete é só até Paris. Isso é uma coisa que lhe vou explicar.

- Com certeza eles revistarão os aviões todos, seja qual for o destino.

- Vão revistar principalmente o avião para Praga que parte à mesma hora do que o que vai para Moscovo, que está atrasado devido a problemas nos motores. Uma ocorrência pouco habitual. Talvez a Aeroflot esteja à espera de um passageiro importante. A polícia prestará muita atenção a Praga e a Moscovo.

- A busca começa antes, no balcão dos serviços de imigração. Não vão começar nas portas.

- Está tudo previsto. Esteja no balcão, deixe-me ver o seu relógio, dentro de cinquenta minutos. O autocarro parte daqui a meia hora. Este é o seu passaporte.

- Que faço em Paris, se lá chegar?

- Vão esperá-lo à saída do aeroporto e dão-lhe outro bilhete. Terá o tempo suficiente para apanhar outro avião.

- Para onde?

- Não faço ideia. Vão dizer-lhe tudo em Paris.

- A estas horas já a Interpol preveniu a polícia de lá.

- Não. A Interpol não trata de casos políticos. é contra as normas.

Castle folheou o passaporte.

- Partridge - disse -, escolheram bem o nome A época da caça ainda não terminou. - Depois olhou para a fotografia. - Mas esta fotografia não serve. Não se parece comigo.

- Tem razão. Por isso vamos fazê-lo parecer-se com a fotografia.

Levou os seus instrumentos de trabalho para a casa de banho. Encostou aos copos de dentes uma ampliação da fotografia do passaporte.

- Sente-se nesta cadeira, por favor. - Começou por aparar as sobrancelhas de Castle e depois passou ao cabelo, o homem do passaporte tinha-o cortado à escovinha. Castle viu os movimentos da tesoura reflectidos no espelho e ficou espantado ao verificar como um corte daqueles alterava todo o rosto, aumentava a testa; parecia mesmo modificar a expressão dos olhos.

- Tirou-me aí uns dez anos - disse Castle.

- Não se mexa, por favor.

O homem começou então a colar um bigode fino - o bigode de um homem tímido, com pouca confiança em si.

- Uma barba ou um bigode espesso levantam sempre suspeitas - disse. Era um estranho, o homem que olhava Castle do espelho. - Ora aí tem. Já está. Acho que não ficou mal. - Foi à pasta buscar um tubo branco que esticou até o transformar numa bengala. - O senhor é cego disse. - Todos vão ser atenciosos consigo, Mister Partridge. Uma hospedeira da Air France foi avisada de que deve ir buscá-lo ao autocarro do hotel para o acompanhar ao balcão da imigração e depois ao avião. Em Paris, em Rissy, quando sair do aeroporto, será levado para Orly, outro avião com problemas no motor. Talvez deixe de ser Mister Partridge, lhe dêem outro visual no carro, outro passaporte. O rosto humano é infinitamente adaptável. E um

1 Palavra que, além de ser um apelido inglês comum, significa «perdiz»- (N. da T.)

bom argumento contra a importância da hereditariedade. Nascemos todos com um rosto muito parecido, basta pensar nos bebés, o meio ambiente é que os muda.

- Parece simples - respondeu Castle -, acha que vai correr bem?

- Pensamos que sim - disse o homenzinho enquanto arrumava a pasta. - Pode ir, agora, e não se esqueça da bengala. Por favor, não mexa os olhos, mexa a cabeça toda se alguém falar consigo. Procure manter os olhos inexpressivos.

Castle não disse nada e pegou no The Way We Live Now.

- Não, não, Mister Partridge. Vão achar esquisito ver um cego com um livro na mão. E não leve essa mala.

- Tem só uma camisa lavada, uma máquina de barbear...

- A camisa lavada tem a marca da lavandaria.

- Mas não vai parecer estranho eu não levar bagagem?

- O funcionário da imigração só saberá isso se lhe pedir o bilhete.

- É natural que peça.

- Não se preocupe, o senhor vai para casa. Vive em Paris. A morada está no passaporte.

- Qual é a minha profissão?

- Reformado.

- Ao menos isso é verdade - observou Castle. Finalmente saiu do elevador e começou a tactear rumo à entrada onde estava o autocarro. Ao passar pelas portas que davam para o bar e a piscina, viu Blit. Blit olhava para o relógio com um ar impaciente. Uma senhora de idade pegou no braço de Castle e perguntou:

- Vai apanhar o autocarro?

- Sim.

- Eu também vou. Deixe-me ajudá-lo. Ouviu uma voz chamar por ele.

- Maurice! - Não podia apressar o passo porque a senhora andava muito devagar. - Maurice!

- Acho que estão a chamá-lo - disse a senhora.

- Deve ser engano.

Ouviu passos atrás de si. Soltou-se da mão da mulher voltou-se e fitou com olhos inexpressivos o espaço ao lado de Blit. Este olhou-o surpreendido:

- Desculpe. Pensei...

- O condutor está a fazer-nos sinal. Temos que nos despachar.

Depois de estarem já sentados no autocarro, um ao lado do outro, a senhora olhou pela janela e comentou:

- Deve ser muito parecido com o amigo dele. Ainda está a olhar para si.

- Dizem que todas as pessoas -- replicou Castle têm um sósia num canto qualquer do mundo.

 

Voltou-se para olhar pela janela traseira do táxi, mas não distinguiu nada através do vidro cinzento: foi como se Maurice se tivesse afogado deliberadamente, sem um grito sequer, nas águas de um lago de cor metálica. Viu-se desprovida, e sem esperança de recuperação, do único som e da única imagem que queria e recusava tudo que lhe era caridosamente oferecido em troca, como quando o homem do talho sugere uma peça de carne em substituição da melhor que guardou para outro cliente.

O almoço na casa entre os loureiros foi um martírio. A sua sogra tinha feito um convite que não podia cancelar

- um padre com o nome repelente de Bottomley, ela chamava-lhe Ezra, acabado de regressar de uma missão em África. Sarah sentiu-se uma curiosidade a ilustrar uma das palestras com projecção de slides que ele tinha decerto organizado. Mrs. Castle não a apresentou. Disse apenas: «Esta é a Sarah», como se ela tivesse saído de um orfanato, o que por acaso até era verdade. Mr. Bottomley foi insuportavelmente simpático com Sam e a ela tratou-a como mais um elemento da sua congregação de cor, com um interesse calculado. Tinker Bell, que tinha fugido assim que eles apareceram, com medo de Buller, mostrava-se agora muito terno, arranhando-lhe a saia.

- Conte lá como é realmente viver no Soweto - pediu Mr. Bottomley. - A minha zona, compreende, era a Rodésia. Os jornais ingleses exageram muito. Não somos tão pretos como nos pintam - e depois corou, ao reparar no que acabara de dizer. Mrs. Castle voltou a encher-lhe o copo de água. - Quero dizer, é possível criar lá uma criança em condições? - O seu olhar vivo incidiu sobre Sam, como um projector numa discoteca.

- Como é que a Sarah há-de saber, Ezra? - interveio Mrs. Castle. E explicou, com relutância: - Sarah é a minha nora.

Mr. Bottomley estava cada vez mais vermelho.

- Ah, então está de visita? - perguntou.

- Sarah veio viver comigo. Por uns tempos. O meu filho nunca viveu no Soweto. Trabalhava na Embaixada.

- Para o menino deve ser uma alegria - disse Mr. Bottomley -, estar em casa da avozinha.

«É assim que a vida vai ser, daqui para a frente?», pensou Sarah.

Depois de Mr. Bottomley partir, Mrs. Castle disse-lhe que precisavam de ter uma conversa.

- Telefonei ao Maurice - disse -, estava num estado lastimoso. - Virou-se para Sam: - Vai para o jardim, querido, brincar.

- Está a chover - respondeu Sam.

- Tinha-me esquecido, querido. Então vai lá para cima brincar com o Tinker Bell.

- Vou lá para cima - respondeu Sam -, mas não brinco com o seu gato. O Buller é meu amigo. Ele é que sabe o que se faz aos gatos.

Quando ficaram sozinhas, Mrs. Castle falou:

- Maurice disse-me que se voltasses para casa, saía ele. O que é que tu fizeste, Sarah?

- Prefiro não falar no assunto. Maurice disse-me que viesse para aqui e eu vim.

- Qual dos dois é... bem, o culpado?

- Tem que haver sempre um culpado?

- Vou telefonar-lhe outra vez.

- Não posso impedi-la, mas não vai servir de nada. Mrs. Castle marcou o número e Sarah pediu a Deus, em que não acreditava, que ao menos a deixasse ouvir a voz de Maurice.

- Não atende - disse Mrs. Castle.

- Talvez esteja no escritório.

- Sábado à tarde?

- O trabalho dele não tem horas.

- Pensava que o Ministério dos Negócios Estrangeiros estava melhor organizado.

Sarah esperou pela noite e, depois de Sam estar na cama, foi a pé até à cidade. Entrou no Crown e pediu um J&B. Um duplo, em memória de Maurice, depois dirigiu-se à cabina telefónica. Maurice tinha-lhe pedido para não o contactar. Se ele ainda estivesse em casa, com o telefone sob escuta, teria de fingir-se zangado e continuar uma discussão que nunca existira, mas ao menos ela ficaria a saber que ele estava lá e não numa cadeia ou a atravessar uma Europa que ela não conhecia. Deixou o telefone tocar várias vezes antes de pousar o auscultador - estava a facilitar-lhes a tarefa de localizar a chamada, mas não se importou. Se eles a procurassem, ao menos poderia ter notícias dele. Saiu da cabina, bebeu o seu J&B e voltou para casa de Mrs. Castle.

- Sam chamou por ti. Sarah subiu as escadas.

- Que foi, Sam?

- Achas que o Buller está bem?

- Claro que está bem! Porque não havia de estar?

- Tive um sonho.

- Que sonho?

- Não me lembro. O Buller deve ter saudades minhas. Só queria que ele estivesse aqui.

- Não pode ser. Sabes bem. Mais dia menos dia dava cabo do Tinker Bell.

- Eu não me importava.

Sarah desceu, relutante, as escadas. Mrs. Castle estava a ver televisão.

- Houve alguma notícia importante? - perguntou Sarah.

- Raramente ouço o noticiário. As notícias gosto de as ler no The Times.

Na manhã seguinte não havia nada de interesse nos jornais de domingo. Domingo - ele nunca trabalhava ao domingo. Ao meio-dia voltou ao Crown, telefonou para casa e mais uma vez deixou o telefone tocar algum tempo - ele podia estar no jardim com Buller, mas por fim até dessa hipótese teve de desistir. Para se consolar a si própria pensou que ele tinha conseguido fugir, mas depois lembrou-se que eles tinham autoridade para detê-lo - por três dias, não era? - sem uma acusação formal.

Mrs. Castle serviu o almoço - carne assada - à uma hora em ponto.

- E se ouvíssemos as notícias? - sugeriu Sarah.

- Não brinques com a argola do guardanapo, Sam disse Mrs. Castle. - Tira o guardanapo e deixa a argola sossegada ao lado do prato, querido. - Sarah encontrou a Rádio 3. - Nunca há notícias de jeito aos domingos - e claro que ela tinha razão.

Nunca um domingo lhe tinha custado tanto a passar. A chuva parou e o sol tímido espreitou por uma nesga entre as nuvens. Sarah foi com Sam dar um passeio num local a que chamavam - não percebia porquê - floresta. Não tinha árvores - só pequenos arbustos e vegetação rasteira (numa área tinham arrancado tudo para construir um campo de golfe).

- Prefiro Ashridge - disse Sam. E daí a nada: - Passear não tem graça nenhuma sem o Buller.

«Quanto tempo vai isto durar?», pensou Sarah. Atravessaram um canto do campo de golfe para cortarem caminho e um jogador que obviamente tinha almoçado bem gritou-Ihes que saíssem dali. Como Sarah não respondeu logo, ele insistiu:

- Ouça lá! Estou a falar consigo, Topsy! - Sarah lembrou-se que Topsy era o nome de uma rapariga negra num livro que os metodistas lhe tinham dado para ler quando era pequena.

Nessa noite, Mrs. Castle chamou-a:

- Precisamos de falar, querida.

- Sobre quê?

- Ainda perguntas? Francamente, Sarah! Sobre ti e o meu neto, claro, e o Maurice. Nenhum de vocês me quer explicar o que se passa. Tu ou o Maurice têm um motivo para querer o divórcio?

- Talvez. Abandono conta, ou não?

- Quem abandonou quem? Ir viver com a sogra não é abandono. E Maurice também não te abandonou, continua em casa.

- Não está em casa.

- Então onde é que ele está?

- Não sei, não sei, Mistress Castle. Não pode simplesmente aguardar sem dizer nada?

- Esta é a minha casa, Sarah. Dava-me jeito saber quanto tempo pensas cá ficar. O Sam tem que ir à escola. E a lei que o diz.

- Prometo, se nos deixar ficar uma semana...

- Não estou a correr contigo, querida, só quero que te portes como uma adulta. Acho que devias ir consultar um advogado, se não queres falar comigo. Posso telefonar a Mister Bury amanhã. O que tratou do meu testamento.

- Dê-me só uma semana, Mistress Castle. - Em tempos, Mrs. Castle sugerira que Sarah a tratasse por «mãe», mas foi um alívio constatar que a nora continuava a tratá-la por Mrs. Castle.

Segunda-feira de manhã, Sarah levou Sam até à cidade e deixou-o numa loja de brinquedos enquanto foi ao Crown. Telefonou para o escritório - uma estupidez, pois se Maurice ainda estivesse em Londres decerto já lhe teria telefonado. Na África do Sul, muito tempo atrás, quando trabalhava para ele, nunca teria sido tão imprudente, mas naquela pacífica cidade provinciana que não sabia o que era um tumulto racial, ou a campainha da porta tocar à meia-noite, o perigo parecia demasiado fantástico para ser verdade. Pediu para falar com a secretária de Mr. Castle e quando ouviu uma voz feminina, perguntou:

- É a Cynthia? - conhecia-lhe o nome, embora nunca se tivessem visto nem falado. Houve uma longa pausa, suficientemente longa para a mulher ter estabelecido contacto com alguém, mas logo pensou que isso era impossível, naquela terra pequena de reformados, enquanto via dois camionistas acabar a sua cerveja.

- A Cynthia não está - respondeu a voz fina e seca.

- Quando posso falar com ela?

- Lamento, mas não sei.

- E Mister Castle?

- Quem fala, por favor?

«Ia denunciando Maurice», pensou, e pousou o auscultador. Sentiu que também traíra o seu próprio passado os encontros secretos, as mensagens em código, o cuidado com que, em Joanesburgo, Maurice lhe dera instruções e os mantivera aos dois fora do alcance da BOSS. Tanta coisa e agora Muller estava em Inglaterra - sentara-se até à mesa com ela.

Quando voltou a casa viu um carro desconhecido no caminho ladeado por loureiros e Mrs. Castle foi ao encontro dela.

- Está aqui uma pessoa que quer falar contigo, Sarah. Levei-o para o escritório. - Em voz baixa, e num tom de desagrado, Mrs. Castle acrescentou: - Parece um polícia.

O homem tinha um bigode farto e louro que afagava nervosamente. Decididamente, não era o tipo de polícia que Sarah conhecera na sua juventude e perguntou a si própria como lhe teria Mrs. Castle adivinhado a profissão parecia mais um daqueles pequenos comerciantes que conhecem todas as famílias da cidade. Tinha um ar tão simpático e inofensivo como o escritório do doutor Castle, onde nada mudara de lugar desde a morte do médico: o suporte do cachimbo sobre a secretária, a taça chinesa para a cinza, a cadeira de balouço onde o desconhecido não ousara sentar-se. Estava de pé junto à estante, tapando, com a sua figura corpulenta, os volumes escarlates da colecção de clássicos Loeb e a Encyclopedia Britannica em couro verde, décima primeira edição.

- Mistress Castle? - perguntou e ela ia respondendo «Não, essa é a minha sogra», tão estrangeira se sentia naquela casa.

- Sim, sou eu, porquê?

- Inspector Butler.

- Sim?

- Recebi um telefonema de Londres. Pediram-me para vir falar consigo, isto é, se a encontrasse aqui.

- Porquê?

- Pensaram que talvez nos pudesse dizer como havemos de contactar o seu marido.

Sentiu um alívio enorme - afinal ele não estava preso - mas depois pensou que podia tratar-se de uma armadilha - a simpatia e a timidez do inspector Butler podiam ser uma armadilha, o tipo de armadilha que a BOSS costumava utilizar.

- Não, não posso - respondeu. - Não sei. Porquê?

- Bem, Mistress Castle, é a respeito de um cão.

- Buller? - exclamou.

- Bem... se é esse o nome.

- É o nome. Por favor, diga-me o que se passa.

- Tem uma casa em King’s Road, Berkhamstead. Correcto?

- Sim - soltou uma gargalhada de alívio. - Não me diga que o Buller matou outro gato? Mas eu estou a viver aqui. Não tenho culpa. É com o meu marido que deve falar e não comigo.

- Tentámos, Mistress Castle, mas não o encontrámos. No escritório, dizem que não tem ido trabalhar. Parece que se foi embora e deixou o cão, embora...

- Era um gato de estimação?

- Não é de um gato que se trata, Mistress Castle. Os vizinhos queixaram-se do barulho, ouviam uma espécie de ganido, e um deles telefonou para a esquadra. Bem vê, têm havido muitos roubos em Boxmoor ultimamente. A polícia mandou lá um homem e ele encontrou a janela da cave aberta, nem foi preciso partir o vidro... e o cão...

- Não lhe mordeu? Nunca vi o Buller morder a uma pessoa.

- O pobre cão não podia morder, no estado em que estava. Seja lá quem for fez um lindo serviço. Mistress Castle, lamento muito mas o seu cão teve que ser abatido.

- Meu Deus, e o Sam?

- Sam?

- O meu filho. Adorava o Buller.

- Eu também gosto muito de animais. - Os dois minutos de silêncio que se seguiram pareceram uma eternidade, como a homenagem aos mortos no aniversário do dia do Armistício. - Lamento ter-lhe trazido más notícias disse finalmente o inspector Butler, regressando ao seu mundo de tráfego pedonal e motorizado.

- Não sei que hei-de dizer ao Sam.

- Diga-lhe que o cão foi atropelado e teve morte imediata.

- Sim. Creio que é o melhor. Não gosto de mentir às crianças.

- Há a chamada mentira piedosa - disse o inspector Butler. Sarah pensou se as mentiras que era obrigada a dizer seriam piedosas. Olhou para o bigode farto e louro e para os olhos bondosos e não percebeu como é que aquele homem tinha ido para polícia. Era tão estranho como mentir a uma criança.

- Não quer sentar-se, inspector?

- Sente-se a senhora, Mistress Castle, muito obrigado. Estive sentado toda a manhã. - Concentrou-se na fila de cachimbos que estavam no suporte: era uma bela colecção cujo valor, sendo um entendido, sabia calcular.

- Obrigada por ter vindo pessoalmente e não me ter dado a notícia pelo telefone.

- Mistress Castle, tive mesmo que vir porque os problemas não ficam por aqui. A polícia de Berkhamstead pensa que pode ter havido roubo. A janela da cave estava aberta e o gatuno pode ter disparado sobre o cão. Parece que não chegou a mexer em nada, mas isso só a senhora ou o seu marido podem dizer, e não há meio de encontrarem o seu marido. Ele tinha inimigos? Não há sinais de luta, mas a verdade é que se o homem estava armado não precisou de lutar.

- Não lhe conheço nenhum inimigo.

- Um vizinho disse que tinha ideia que ele trabalhava no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Esta manhã, com muita dificuldade, lá descobriram o departamento certo, só que disseram que ele não aparece desde sexta-feira. Estavam à espera dele, disseram. Quando foi a última vez que o viu, Mistress Castle?

- Sábado de manhã.

- Veio para aqui no sábado?

- Sim.

- E ele ficou?

- Sim. Decidimos que era melhor separarmo-nos. De vez.

- Discutiram?

- Tomámos uma decisão, inspector. Estivemos casados sete anos. Não se tomam atitudes precipitadas ao fim de sete anos.

- Ele tinha um revólver, Mistress Castle?

- Que eu saiba, não. Mas é possível.

- Ele ficou muito abalado? Com a... decisão?

- Nenhum de nós ficou feliz, se é isso que quer saber.

- Está disposta a ir a Berkhamstead, ver a casa?

- Não tenho vontade nenhuma, mas suponho que podem obrigar-me, não é verdade?

- Ninguém a quer obrigar a fazer nada. Mas, bem vê... como podem saber se houve roubo? Como é que vão saber se falta alguma coisa de valor? Uma jóia...

- Não tenho jóias. Não somos ricos, inspector.

- Talvez um quadro?

- Também não.

- Então existe a possibilidade de ele ter feito um disparate, fora de si. Se estava infeliz e a arma for a dele... Pegou na taça chinesa e examinou o desenho, depois começou a examiná-la a ela. Aqueles olhos simpáticos não eram, afinal os de uma criança. - Não parece preocupada com essa possibilidade, Mistress Castle.

- Não estou. Não é pessoa para essas coisas.

- Sim, sim. Claro que a senhora o conhece melhor do que ninguém e acredito que tenha razão. Bem, informa-nos imediatamente, não é verdade, se ele entrar em contacto com a senhora?

- Claro.

- Sob tensão, as pessoas são capazes de tudo. Até de perder a memória. - Deitou um último e longo olhar aos cachimbos, como se lhe custasse separar-se deles. - Vou ligar para Berkhamstead, Mistress Castle. Espero que não a incomodem. E se eu tiver notícias, participo-lhe.

Já estavam à porta quando Sarah perguntou:

- Como soube que eu estava aqui?

- Os vizinhos com filhos sabem tudo, Mistress Castle. Seguiu-o com o olhar, até o ver seguro dentro do carro,

e depois voltou para casa. «Não vou contar nada ao Sam por enquanto. Vou esperar que ele se habitue a viver sem o Buller», pensou Sarah. Encontrou a outra Mrs. Castle, a verdadeira Mrs. Castle, à porta da sala.

- O almoço está quase frio. Era um polícia, não era?

- Era, sim.

- Que queria ele? ,

- A morada do Maurice.

- Para quê?

- Sei lá!

- Deste-lha?

- Ele não está em casa. Como é que eu sei por onde ele anda?

- Espero que aquele homem não volte cá.

- Não me admirava nada que voltasse.

Mas os dias sucederam-se sem inspector Butler e sem notícias. Sarah não voltou a telefonar para Londres. Já não valia a pena. Um dia, ao telefonar para o talho, a pedido da sogra, para encomendar umas costeletas de borrego, teve a impressão de que o telefone estava sob escuta. Provavelmente foi imaginação sua. As escutas tinham-se transformado numa arte, demasiado perfeita para um amador detectar. Pressionada por Mrs. Castle, teve uma reunião com a direcção da escola local e ficou combinado que Sam passaria a frequentá-la; regressou desse encontro muito deprimida era como se estivesse a oficializar a sua nova vida, a selá-la com lacre, como um documento. No caminho para casa passou pela mercearia, pela biblioteca, pela farmácia Mrs. Castle tinha feito uma lista: uma lata de ervilhas, um romance de Georgette Heyer, uma embalagem de aspirinas para as dores de cabeça causadas por - Sarah tinha certeza

- ela própria e Sam. Não sabia porquê, mas pensava constantemente nas grandes pirâmides de terra cinzento-esverdeada que rodeavam Joanesburgo, até o Muller tinha falado na cor delas naquela noite, e sentia-se mais próxima de Muller, o inimigo, o racista, do que de Mrs. Castle. Trocaria aquela cidade do Sussex, com os seus habitantes liberais que a tratavam com tanta amabilidade e simpatia, até pelo Soweto. Afinal a amabilidade constituía uma barreira maior do que a agressividade. Não era com amabilidade que queria viver - mas com amor. Amava Maurice, amava o cheiro a pó e a degradação do seu país - agora não tinha uma coisa nem outra. Se calhar foi por isso que lhe soube tão bem ouvir a voz de um inimigo ao telefone. Percebeu de imediato que ele era um inimigo, muito embora se tivesse apresentado como «um colega e amigo do seu marido».

- Se calhar telefonei numa má altura, Mistress Castle.

- Não, mas não percebi o seu nome.

- Doutor Percival.

O nome era-lhe vagamente familiar.

- Sim, creio que o Maurice já me falou de si.

- Passámos uma noite memorável em Londres.

- Sim, já me lembro. Com o Davis.

- Exactamente. Pobre Davis - fez uma pausa. Lembrei-me, Mistress Castle, que talvez pudéssemos conversar.

- Não é o que estamos a fazer?

- Bem, uma conversa mais privada do que uma conversa telefónica.

- Estou muito longe de Londres.

- Nós podemos mandar um carro buscá-la, se é esse o problema.

«Nós», pensou Sarah, «nós». Ele cometera o erro de falar em nome de uma organização. «Nós» e «eles» eram termos incómodos. Constituíam um aviso, punham as pessoas de pé atrás. A voz continuou:

- Gostaria de convidá-la para almoçar, num dia qualquer desta semana...

- Não sei se é possível.

- Gostava de falar consigo acerca do seu marido.

- Sim. Já calculava.

- Estamos todos muito ansiosos em relação ao Maurice.

Sarah detectou alguma exaltação. «Nós» não o tinham enfiado num esconderijo desconhecido do inspector Butler. Ele estava bem longe - a Europa inteira separava-os. Era como se, tal como Maurice, ela também tivesse fugido - já se encontrava a caminho de casa, essa casa onde estava Maurice. Mesmo assim, precisava de ser extremamente cuidadosa, como nos velhos tempos de Joanesburgo. Disse:

- Já não tenho nada a ver com o Maurice. Separámo-nos.

- Creio, porém, que gostaria de ter notícias dele? Então tinham notícias dele. Foi como quando Carson

lhe disse: «Ele está a salvo, em LM à tua espera. Agora só falta pôr-te lá.» Se ele estava livre, em breve estariam juntos. Percebeu que sorria ao telefone, felizmente ainda não tinham inventado um telefone visual, mas pelo sim pelo não apagou o sorriso do seu rosto.

- Lamento, mas não me interessa saber onde ele está. Não podia escrever? Tenho que ir tratar do meu filho.

- Não, Mistress Castle, sabe que há coisas que não se devem escrever. Se estiver de acordo, mandamos um carro buscá-la amanhã...

- Amanhã é impossível.

- Quinta-feira, então.

Sarah hesitou tanto quanto foi capaz:

- Bem...

- Mandamos um carro buscá-la às onze.

- Mas eu não preciso de carro. Há um comboio óptimo às onze e quinze.

- Nesse caso, encontramo-nos no restaurante, o Brummell’s, perto da estação de Victoria.

- Em que rua?

- Isso é que eu não lhe sei dizer... Walton... Wilton... Não importa, qualquer motorista de táxi sabe onde fica o BrummeH’s. E muito sossegado - acrescentou, numa voz tranquilizadora, como se estivesse a recomendar, com conhecimento de causa, um bom lar da terceira idade, e Sarah fez um retrato mental do seu interlocutor: um médico reputado, um grande especialista, cheio de prosápia, com um monóculo que só usava quando chegava a altura de passar a receita, sinal, como quando a rainha se levantava, de que a consulta chegara ao fim.

- Até quinta-feira - disse. Ela nem respondeu. Pousou o auscultador e foi ter com Mrs. Castle; estava outra vez atrasada para o almoço, mas não se importou.

- Que foi? Aconteceu alguma coisa? Era outra vez aquele polícia?

- Não. Era um médico. Um amigo do Maurice. Não aconteceu nada. Importa-se que eu vá a Londres na quinta-feira? De manhã deixo o Sam na escola e à tarde ele vem sozinho.

- Importar, não me importo, claro, mas tinha pensado convidar novamente Mister Bottomley.

- Oh, mas o Sam e o Mister Bottomley dão-se muito bem.

- Prometes que aproveitas para falar com um advogado?

- Talvez. - Uma meia mentira era um preço barato para a sua nova felicidade.

- Onde vais almoçar?

- Como uma sanduíche num sítio qualquer.

- Só é pena teres escolhido a quinta-feira. Encomendei um lombo. No entanto - Mrs Castle via um lado positivo em tudo -, se fosses almoçar ao Harrods podias trazer-me umas coisas que me estão a fazer falta.

Nessa noite ficou muito tempo deitada na cama sem conseguir adormecer. Era como se tivesse comprado um calendário e começado a riscar os dias que faltavam. O homem com quem falara era inimigo - tinha a certeza mas não era da polícia política, não era da BOSS, não lhe iam tirar os dentes nem um olho no BrummeH’s: não havia razão para ter medo.

De qualquer maneira, sentiu-se um pouco decepcionada quando o viu, à espera dela ao fundo de uma sala com vidros cintilantes, no BrummelFs. Não era, afinal de contas, um especialista de renome: parecia mais um velho médico de família, com os seus óculos de aros prateados e uma barriguinha redonda que pareceu ocupar a borda da mesa quando ele se levantou para cumprimentá-la.

- Ainda bem que teve a coragem de vir até aqui.

- Coragem?

- Bem, este é um dos lugares onde os irlandeses gostam de pôr bombas. Já cá houve uma, pequena, mas, ao contrário do que acontecia na guerra, as bombas deles costumam explodir no mesmo local duas vezes. - Deu-lhe uma ementa: uma página inteira era dedicada ao que se chama entradas. No conjunto, a ementa, que ostentava o título «Preçário» sobre um retrato, era quase tão comprida como a lista telefónica regional que havia em casa de Mrs. Castle. O doutor Percival procurou ser útil: - Não lhe recomendo a truta fumada: costuma ser um pouco seca, aqui.

- Estou sem apetite.

- Então vamos abri-lo, enquanto escolhemos. Um copo de xerez?

- Preferia um uísque, se não se importa. - Quando ele lhe pediu que escolhesse, respondeu: - J&B.

- Escolha por mim - implorou ao doutor Percival. Quanto mais depressa terminassem aqueles preliminares, mais depressa ela receberia as notícias que desejava mais do que qualquer alimento. Enquanto ele tomava uma decisão, Sarah olhou em volta. Havia um retrato indefinível e lustroso pendurado na parede, com uma etiqueta onde se lia George Bryan Brummell - o retrato era igual ao da ementa - e a decoração era de um bom gosto impecável, extremo, sentia-se que não se tinham poupado despesas nem se aceitavam críticas: os poucos clientes eram todos homens e iguais uns aos outros, como se tivessem saído do coro de uma comédia musical muito antiga: cabelo preto, nem curto nem comprido, fato escuro e colete. Sentavam-se discretamente em mesas afastadas, deixando as duas mesas mais próximas do doutor Percival vazias - seria de propósito ou por acaso? Sarah reparou então que todas as janelas tinham grades.

- Num restaurante como este - disse o doutor Percival -, o melhor é ficar pela cozinha inglesa e eu sugeria o cozido à moda de Lancashire.

- O que quiser.

Mas durante algum tempo ele não quis nada a não ser trocar algumas palavras sobre o vinho com o criado. Por fim, concentrou nela a sua atenção e os seus óculos de aros prateados, e respirou fundo.

- Bem, o mais difícil já está. Agora é com eles - e deu um gole no seu xerez. - Deve ter vivido dias de grande ansiedade, Mistress Castle. - Estendeu a mão e pousou-a no braço dela, como se fosse realmente o seu médico de família.

- Ansiedade?

- Dias e dias sem saber...

- Se está a falar de Maurice...

- Todos gostávamos muito do Maurice.

- Fala como se ele estivesse morto. Com o verbo no passado.

- Foi sem querer. Claro que continuamos a gostar dele, mas ele escolheu outro caminho e receio que muito perigoso. Todos desejamos que não seja afectada.

- Como, se estamos separados?

- Sim, tem razão. Foi o melhor. Teria dado muito nas vistas se fugissem os dois juntos. Acho que os serviços de imigração podiam ter cometido essa loucura... E uma mulher muito bonita e depois a sua cor... Claro que sabemos que ele não lhe tem telefonado para casa, mas há tantas maneiras de enviar mensagens, uma cabina telefónica, um intermediário, seria impossível vigiarmos todos os amigos dele, mesmo que os conhecêssemos - empurrou o copo de xerez para o lado e fez espaço para o cozido. Ela começou a sentir-se mais à vontade, depois de o assunto ter sido posto na mesa, como a travessa.

- Pensa que também sou uma traidora? - perguntou Sarah.

- Sabe, lá na organização não empregamos palavras como essa, traidora. Isso é para os jornais. E africana, não digo sul-africana, e o seu filho também. Isso deve ter influenciado bastante o Maurice. Digamos que ele escolheu uma outra lealdade - provou o cozido. - Cuidado.

- Cuidado?

- As cenouras estão quentíssimas. - Se aquilo era realmente uma pergunta, tratava-se de um método muito diferente do utilizado pela polícia política em Joanesburgo ou Pretória. - Minha cara - perguntou -, que tenciona fazer... quando ele comunicar realmente consigo?

Sarah deixou-se de cautelas. Enquanto fosse cautelosa não conseguiria saber nada.

- Farei o que ele disser para eu fazer.

- Fico tão contente por ouvi-la dizer isso. Significa que podemos ser francos um com o outro. E evidente que sabemos, e talvez também saiba, que ele chegou são e salvo a Moscovo.

- Graças a Deus!

- Bem, quanto a Deus não posso dizer nada, mas foi certamente graças ao KGB (não sejamos dogmáticos, claro que podem ambos estar do mesmo lado). Calculo que, mais cedo ou mais tarde, lhe vá pedir para ir ter com ele.

- E eu vou.

- Com a criança?

- Claro.

O doutor Percival voltou a mergulhar na travessa. Era sem dúvida um homem que gostava de comer. Sarah sentiu-se mais afoita, aliviada por saber que Maurice estava bem:

- Não podem impedir-me de ir.

- Não tenha tanta certeza. Sabe, lá no escritório temos um dossiê muito completo a seu respeito. Na África do Sul era muito amiga de um homem chamado Carson. Um agente comunista.

- Claro que era. Eu trabalhava com o Maurice, ao vosso serviço, embora na altura não o soubesse. Ele disse-me que era tudo por causa de um livro que estava a escrever sobre o apartheid.

- E na altura o Maurice talvez também estivesse a ajudar o Carson. E o Maurice está agora em Moscovo. Não me refiro só ao nosso trabalho, claro, mas o MI5 pode achar que é melhor investigá-la, rigorosamente. Se quer seguir o conselho de um velho, um velho que era amigo do Maurice...

Uma recordação invadiu subitamente o seu espírito, uma figura vestindo um espesso sobretudo a brincar às escondidas com Sam, entre as árvores vestidas de Inverno.

- E do Davis - interrompeu Sarah -, foi também amigo do Davis, não foi?

Uma colher cheia de molho deteve-se a caminho da boca do doutor Percival:

- Sim, coitado do Davis. Foi uma triste morte para um homem ainda novo.

- Eu não bebo vinho do Porto.

- Minha querida, a que propósito vem isso? Deixemos o porto para quando chegarmos ao queijo: têm um excelente wensleydale. Eu só queria pedir-lhe que fosse razoável. Fique quietinha no campo, com a sua sogra e o seu filho...

- O filho do Maurice.

- Talvez.

- Talvez, como?

- Deve lembrar-se de um tal Cornelius Muller, aliás um tipo nada simpático, da BOSS. E que raio de nome! Ora ele tem a impressão de que o verdadeiro pai, perdoe-me a franqueza, eu não quero cair nos mesmos erros do Maurice...

- Não está a ser nada franco.

- O Muller acha que o pai é alguém da sua gente.

- Ah, sei a que alguém ele se refere, mesmo que fosse verdade, já morreu.

- Não morreu.

- Claro que morreu. Foi morto num confronto.

- Viu o corpo dele?

- Não, mas...

- O Muller diz que ele está fechado a sete chaves. A cumprir pena de prisão perpétua, é o que o Muller diz.

- Não acredito.

- O Muller diz que o homem se prepara para pôr um processo de paternidade.

- O Muller está a mentir.

- Sim, é muito possível. O homem pode muito bem estar só a ver se pega. Ainda não estudei bem o caso, nos aspectos legais, mas duvido que ele tenha alguma hipótese nos nossos tribunais. O miúdo está averbado no seu passaporte?

- Não.

- Tem o seu próprio passaporte?

- Não.

- Então vai precisar de pedir um, para sair com ele do país. Isso implica uma data de burocracia. A gente dos passaportes às vezes é de uma lentidão terrível.

- Que grandes sacanas. Mataram o Carson. Mataram o Davis. E agora...

- O Carson morreu de pneumonia. O Davis, coitado, de cirrose.

- O Muller disse que foi pneumonia. O senhor disse que foi cirrose e agora está a ameaçar-me a mim e ao Sam.

- Não estou a ameaçar, minha querida, estou a aconselhar.

- Os seus conselhos...

Teve de calar-se. O criado veio tirar os pratos. O do doutor Percival estava vazio, mas o dela estava quase intacto.

- Que me diz de uma tarte de maçã à inglesa, com cravinho, e um pouco de queijo? - perguntou o doutor Percival, inclinando-se, insinuante, para a frente e falando em voz baixa como se estivesse a revelar o preço que estava disposto a pagar por certos favores.

- Não. Nada. Não quero mais nada.

- Sendo assim, traga então a conta - disse o doutor Percival ao criado e quando este se afastou, repreendeu-a:

- Mistress Castle, não se zangue. Não há nada de pessoal nisto tudo. E apenas uma questão de caixas - começou, para logo desistir, como se, uma vez sem exemplo, achasse a metáfora pouco adequada.

- Sam é meu filho e eu levo-o para onde eu quiser. Seja Moscovo, Tombuctu, ou...

- Não o pode levar se ele não tiver passaporte e estou disposto a impedir que o MI5 tome alguma medida contra si. Se souberem que requereu um passaporte... e eles sabem sempre essas coisas...

Sarah abandonou o restaurante, abandonou tudo, deixando o doutor Percival à espera da conta. Se ficasse mais um só minuto que fosse, não respondia pela utilização que era capaz de dar à faca que continuava no seu lugar, para o queijo. Uma vez tinha visto um homem branco, tão bem nutrido com o doutor Percival, ser apunhalado num jardim público em Joanesburgo. Parecera uma coisa tão fácil. Junto à porta, voltou-se e olhou para ele. Por causa da grade na janela atrás dele, parecia que estava sentado à secretária de uma esquadra da polícia. Obviamente que a tinha seguido com o olhar e agora levantara o indicador e agitava-o de um lado para o outro na direcção dela. Tanto podia ser uma recriminação como uma advertência. A ela tanto lhe fazia.

 

Da janela do décimo segundo andar do grande edifício cinzento, Castle conseguia ver a estrela vermelha sobre a universidade. Tinha uma certa beleza, aquela vista, como acontece em todas as cidades, de noite. De dia é que são insípidas. Tinham-lhe deixado bem claro, sobretudo Ivan, que o fora buscar ao aeroporto de Praga e acompanhara a um interrogatório num sítio qualquer próximo de Irkutsk, com um nome impossível de pronunciar, que era uma sorte extraordinária estar naquele apartamento. Pertencera, com as suas duas divisões, cozinha e chuveiro independente, a um camarada recentemente falecido que tinha conseguido mobilá-lo quase todo antes de morrer. Regra geral, um apartamento vazio continha apenas um aquecedor - tudo o resto, inclusivamente a sanita, tinha que ser comprado. Ora isso não era fácil e exigia quantidades enormes de tempo e energia. Às vezes Castle perguntava a si próprio se teria sido essa a causa da morte do camarada, consumido pela estafante procura da cadeira de verga verde, do sofá castanho, duro que nem uma tábua, sem almofadas, da mesa onde as nódoas de gordura eram tantas que quase lhe davam uma cor uniforme. O aparelho de televisão, o mais recente modelo a preto e branco, tinha sido oferta do governo. Ivan tivera o cuidado de lhe dar essa informação, a primeira vez que foram ao apartamento. À sua maneira, deu a entender que, pessoalmente, duvidava que se tratasse de um presente merecido. Ali, Ivan não parecia mais simpático do que em Londres. Talvez não lhe agradasse o facto de o terem voltado a convocar e atirasse as culpas para cima de Castle. O objecto mais valioso daquele apartamento parecia ser o telefone. Estava coberto de pó e desligado, mas mesmo assim tinha um valor simbólico. Um dia, talvez em breve, podia vir a ser usado. Falaria através dele com Sarah - ouvir-lhe a voz era tudo para ele, fosse qual fosse a farsa que tivessem de representar para os ouvintes, que decerto não faltariam. Ouvi-la tornaria a longa espera suportável. Uma vez falou no assunto a Ivan. Tinha reparado que Ivan preferia falar fora de portas, mesmo que estivesse um frio de rachar, e como competia a Ivan mostrar-lhe a cidade, aproveitou a oportunidade, à entrada dos grandes armazéns DUM (um lugar onde se sentia praticamente em casa, porque lhe recordava fotografias que vira do Crystal Palace). Perguntou:

- Achas que será possível mandar ligar o meu telefone?

- Tinham ido ao GUM procurar um casaco forrado a pele para Castle, a temperatura era negativa.

- Vou saber - respondeu Ivan -, mas de momento penso que querem manter em segredo a tua presença aqui.

- Irá demorar muito?

- Com o Bellamy demorou, mas o teu caso não é tão importante. Não vai dar muito que falar.

- Quem é o Bellamy?

- Deves lembrar-te dele. Um homem muito importante do vosso British Council. Em Berlim Ocidental. No fundo era um disfarce, não era, como os Peace Corps?

Castle não se deu ao trabalho de contradizê-lo - não lhe dizia respeito.

- Ah, sim, creio que já sei quem é. - Tudo acontecera numa época de enorme ansiedade, quando aguardava notícias de Sarah em Lourenço Marques, por isso não recordava os pormenores da deserção de Bellamy. O que leva uma pessoa a desertar do British Council e como pode essa deserção ser útil ou prejudicial seja a quem for? Perguntou: Ele ainda está vivo? - Parecia ter passado já tanto tempo.

- Porque não havia de estar?

- O que é que ele faz?

- Vive da nossa gratidão. Como tu. Bem, mas inventámos um emprego para ele. E conselheiro na nossa divisão de publicações. Tem uma dacha1. Vive melhor do que se estivesse na terra dele a viver de uma pensão. Acho que vão fazer o mesmo contigo.

- Vão pôr-me a ler livros numa dacha no campo?

- Sim.

- E há muitos de nós... a viver assim, da vossa gratidão?

- Que eu saiba, pelo menos seis. O Cruickshank e o Bates, lembras-te deles, eram do teu serviço. Vais encontrá-los com certeza no Aragvi, o nosso restaurante georgiano, dizem que o vinho é óptimo, mas nunca lá fui, é muito caro para mim, e vais vê-los no Bolchoi, quando saíres do esconderijo. - Passaram pela Biblioteca Lenine. - Também podes encontrá-los aqui. - E acrescentou, com veneno:

- A ler jornais ingleses.

Ivan arranjara-lhe uma mulher forte, de meia-idade, para tratar da casa e, também, ensinar-lhe algum russo. Dizia o nome russo de tudo o que havia no apartamento, apontando um dedo roliço a um objecto de cada vez, e era muito exigente quanto à pronúncia. Embora fosse uns anos mais nova do que Castle, tratava-o como se ele fosse uma criança, com uma firmeza que a pouco e pouco foi dando lugar a uma espécie de afecto maternal, à medida que ele ia ficando mais educado. Quando Ivan estava ocupado com alguma outra coisa, ela alargava o âmbito das suas aulas e levava-o com ela ao mercado central, procurar comida, e a passear de metro. (Escrevia algarismos em tiras de papel para explicar os preços das coisas e dos bilhetes.) Ao fim de

1 Casa de campo na Rússia. (N, da T.)

algum tempo, começou a mostrar-lhe fotografias da família

- numa via-se o marido, um jovem fardado, num jardim público com um cartaz do Kremlin por detrás da cabeça. O uniforme não parecia muito aprumado (via-se que ainda não estava habituado a usá-lo) e sorria à câmara com um olhar terno - talvez ela se encontrasse atrás do fotógrafo. Fora morto, contou-lhe ela, em Estalinegrado. Em troca, ele mostrou-lhe um instantâneo de Sarah e Sam que ele nunca confessara a Mr. Halliday ter escondido no sapato. A mulher mostrou-se muito surpreendida por eles serem negros e depois disso pareceu distante durante algum tempo - mais do que chocada, estava perdida, ele perturbara a sua noção de ordem. Nisso, era parecida com a mãe dele. Ao fim de uns dias tudo ficou bem outra vez, mas enquanto esse tempo não passou sentiu-se um exilado dentro do seu exílio e as saudades de Sarah intensificaram-se.

Fazia já duas semanas que estava em Moscovo e com o dinheiro que Ivan lhe tinha dado comprara umas coisas para a casa. Encontrou mesmo edições escolares em inglês das peças de Shakespeare, dois romances de Dickens, o Oliver Twist e o Tempos Difíceis, o Tom Jones e o Robinson Crusoe. A neve chegava à altura dos tornozelos nas estradas secundárias e cada vez lhe apetecia menos ir fazer turismo com Ivan ou dar passeios educativos com Anna - ela chamava-se Anna. À noite, aquecia uma sopa, enroscava-se junto ao aquecedor, com o telefone poeirento e por ligar a seu lado, e lia o Robinson Crusoe. As vezes parecia-lhe ouvir Crusoe a falar com a sua voz, como numa fita gravada: «Registei por escrito o estado dos meus haveres; não tanto para deixá-los aos meus herdeiros, pois hão-de ser poucos, mas antes para distrair a minha imaginação dos pensamentos dolorosos que me assaltavam continuamente.»

Crusoe dividiu os confortos e as adversidades da sua situação em Bem e Mal e debaixo do cabeçalho Mal escreveu: «Não tenho com quem falar, nem ninguém que me console.» Sob Bem enunciou: «O indispensável para viver» que recolhera dos destroços e «que satisfará as minhas necessidades e permitirá que eu não morra de fome.» Ora bem, Castle tinha a cadeira verde de verga, a mesa das nódoas, o sofá desconfortável e o radiador que agora o aquecia. Seriam suficientes se Sarah ali se encontrasse - estava habituada a viver em condições muito piores e ele recordou os quartos sórdidos em que eram obrigados a encontrar-se e fazer amor, em hotéis suspeitos, sem bar para negros, nos bairros mais pobres de Joanesburgo. Lembrava-se em particular de um quarto sem qualquer espécie de mobília onde fora tão feliz no chão. No dia seguinte, quando Ivan fez as suas referências indirectas à «gratidão», enfureceu-se:

- Chamas a isto gratidão.

- Nem todos os que vivem sozinhos dispõem de uma cozinha e um duche só para eles... mais dois quartos.

- Não estou a queixar-me disso. Prometeram-me que eu não ficaria sozinho. Prometeram-me que a minha mulher e o meu filho viriam ter comigo.

A intensidade da sua fúria inquietou Ivan.

- Leva o seu tempo - disse.

- Nem sequer trabalho tenho. Vivo do subsídio de desemprego. Isso é que é a porcaria do vosso socialismo?

- Calma, calma - disse Ivan. - Espera mais um bocado. Quando já não precisares de estar escondido...

Castle quase agrediu Ivan e Ivan percebeu. Ivan murmurou qualquer coisa e depois saiu pelas escadas de cimento.

 

Foi um microfone que levou aquela cena até a uma alta autoridade, ou terá Ivan contado o que se passou? Castle nunca viria a saber, mas de qualquer modo a sua fúria surtiu efeito. Varreu o secretismo e varreu, como mais tarde se aperceberia, o próprio Ivan. Tal como quando foi afastado de Londres, decerto porque perceberam que não tinha o melhor dos temperamentos para ser o controlo de Castle, também desta vez teve apenas mais uma aparição - uma aparição bastante secreta - e depois desapareceu para sempre. Talvez eles possuíssem um grupo de controlos, tal como em Londres tinham um de secretárias, e Ivan tivesse para lá voltado. Naquele tipo de serviço, ninguém era despedido, para não haver revelações.

Ivan teve o seu canto do cisne como intérprete num edifício não muito distante da prisão de Lubianka, que ele mostrou, orgulhoso, a Castle num dos seus passeios turísticos. Nessa manhã, Castle perguntara-lhe onde iam e ele dera uma resposta evasiva:

- Já se decidiram quanto ao teu trabalho.

A sala onde aguardavam estava forrada de livros com encadernações feias e baratas. Castle leu os nomes Estaline, Lenine e Marx escritos em alfabeto russo - agradava-lhe pensar que começava a entendê-lo. Havia uma secretária grande com um luxuoso tampo de cabedal e um bronze do século XIX representando um homem a cavalo, demasiado grande e pesado para servir de pisa-papéis - só podia ser um objecto decorativo. De uma porta por trás da secretária surgiu um homem entroncado, de uma certa idade, com um tufo de cabelo grisalho e um bigode fora de moda amarelecido pelo fumo de cigarro. Atrás dele vinha um jovem bem vestido, com um dossiê. Lembrava um acólito a assistir um sacerdote da sua religião e, apesar do grande bigode, havia mesmo qualquer coisa de sacerdotal no velhote, no seu sorriso bondoso e na mão que estendia como para benzer. Uma grande conversa - perguntas e respostas - teve lugar entre os três, depois Ivan fez o seu papel de tradutor.

- O camarada - disse - quer que saibas que o teu trabalho foi muito apreciado. Que te apercebas da sua importância, alertando-nos para problemas que tiveram de ser resolvidos ao mais alto nível. Por isso tiveste que ficar isolado estas duas semanas. O camarada não quer que penses que foi por falta de confiança. Era desejável que a tua presença aqui só chegasse ao conhecimento da imprensa ocidental na devida altura.

- A estas horas já devem saber que estou aqui. Onde mais podia estar? - Ivan traduziu, o outro respondeu e o jovem acólito sorriu ao ouvir a resposta, baixando os olhos.

- O camarada diz que saber não é o mesmo que divulgar. A imprensa só pode publicar a notícia depois de estares cá oficialmente. A censura trata disso. Uma conferência de imprensa será realizada muito em breve, nessa altura dizemos-te o que deves responder aos jornalistas. Talvez seja melhor ensaiarmos primeiro.

- Diz ao camarada - interrompeu Castle -, que quero ganhar o meu sustento aqui.

- O camarada diz que já o ganhaste e muito merecidamente.

- Nesse caso, espero que ele cumpra a promessa que me fizeram em Londres.

- Que promessa?

- Disseram-me que a minha mulher e o meu filho viriam ter comigo. Diz-lhe que me sinto tremendamente sozinho, Ivan. Diz-lhe que quero poder usar o meu telefone. É só para telefonar à minha mulher, não quero falar com a Embaixada nem com jornalistas. Se já estou às claras, deixem-me falar com ela.

A tradução levou imenso tempo. Qualquer tradução é sempre mais longa do que o texto original, mas aquela parecia interminável. Até o acólito acrescentou mais do que uma ou duas frases. O importante camarada raramente se dava ao trabalho de intervir - continuava com o ar benévolo de um bispo.

Ivan voltou-se finalmente para Castle. A sua expressão era amarga, mas os outros não a conseguiam ver.

- Esperam - disse - poder contar com a tua colaboração no serviço de imprensa, secção africana - fez um gesto de cabeça, dirigido ao acólito, que se permitiu um sorriso estimulante, igualzinho ao do seu superior. - O camarada diz que gostaria que trabalhasses como consultor de literatura africana. Diz que há muitos escritores africanos e que gostariam de seleccionar alguns para tradução, e claro que os melhores romancistas (apontados por ti) seriam convidados a visitar-nos, através do Sindicato dos Escritores. Trata-se de um cargo da maior importância e têm muito prazer em oferecer-to.

O velhote fez com a mão um gesto na direcção das estantes, como se estivesse a pedir a Estaline, Lenine e Marx - sim, também lá estava o Engels - que aplaudissem os romancistas por ele escolhidos.

- Não responderam à minha pergunta - disse Castle.

- Quero a minha mulher e o meu filho comigo. Prometeram-me. Boris prometeu-me.

- Não vou traduzir o que acabaste de dizer. Isso é com outro departamento. Seria um erro grave misturar as coisas. Estão a oferecer-te...

- Diz-lhe que não discuto nada antes de falar com a minha mulher.

Ivan encolheu os ombros e falou. Desta vez a tradução não foi mais comprida do que o texto - resumiu-se a uma frase abrupta e indignada. Foi o comentário do camarada idoso que ocupou o resto do espaço, como as notas de rodapé numa edição exageradamente cuidada. Para mostrar o carácter definitivo da sua decisão, Castle virou as costas e olhou pela janela para um pequeno beco entre dois muros de cimento cujo topo não se conseguia ver por causa da neve que caía abundante, como se estivesse a ser vertida lá de cima, de um gigantesco balde sem fundo. Aquela não era a neve da sua infância, das bolas de neve e dos contos de fadas, dos tobogãs. Aquela era uma neve implacável, interminável, aniquiladora, uma neve que ninguém se admiraria de ver trazer consigo o fim do mundo.

Furioso, Ivan declarou:

- Vamos embora.

- Que dizem eles?

- Não percebo porque te estão a tratar desta maneira. Em Londres bem via o lixo que nos mandavas. Vamos.

O velho camarada estendeu uma mão cortês; quanto ao jovem, parecia perturbado. Lá fora, na rua coberta de neve, o silêncio era tão profundo que Castle hesitou em rompê-lo. Os dois caminharam rapidamente, como inimigos à procura do local apropriado para uma última discussão. Por fim, não suportando mais a incerteza, Castle perguntou:

- Bem, qual foi o resultado de toda aquela conversa?

- Disseram-me que não estava a saber lidar contigo. Exactamente o que me disseram quando me tiraram de Londres. «Mais psicologia, camarada, mais psicologia.» Estaria muito melhor se fosse um traidor como tu. - A sorte fez aparecer um táxi e entraram, silenciosos. (Castle já tinha reparado que nunca falavam dentro dos táxis.) À porta do prédio de apartamentos, Ivan resmungou a informação por que Castle esperava.

- O lugar fica à tua espera. Não precisas de ter medo. O camarada é muito simpático. Falará com os outros sobre o telefone e a tua mulher. Implora-te, implora, foi a palavra que utilizou, que tenhas um pouco mais de paciência. Diz que terás notícias muito em breve. Ele compreende, compreende, nota bem, a tua ansiedade. Eu não compreendo coisa nenhuma. A minha psicologia é obviamente má.

Deixou Castle à entrada e partiu, por entre a neve, para nunca mais lhe aparecer à frente.

Na noite seguinte, enquanto lia o Robinson Crusoe junto ao radiador, Castle ouviu alguém bater à porta (a campainha estava avariada). O sentimento de desconfiança que se desenvolvera dentro dele ao longo de tantos anos fê-lo perguntar antes de abrir:

- Quem é?

- Bellamy - respondeu uma voz aguda e Castle destrancou a porta. Um homem baixo e grisalho, com um casaco cinzento de pele e um chapéu cinzento de astracã, entrou, tímido e comprometido. Parecia um actor a fazer de rato numa peça infantil, à espera de ouvir palmas batidas por mãos pequeninas.

- Vivo aqui muito perto - disse -, de maneira que pensei em encher-me de coragem e fazer-lhe uma visita. Olhou para o livro que Castle tinha nas mãos. - Desculpe, interrompi a sua leitura.

- Não faz mal. Não me vai faltar tempo para ler o Robinson Crusoe.

- Ah, o grande Daniel. Era dos nossos.

- Dos nossos?

- Bem, o Defoe talvez fosse mais do género MI5 Despiu as luvas de pele cinzenta, aqueceu-se ao radiador e olhou em volta. - Vejo que ainda está na fase do vazio. Todos passamos por ela. Eu próprio não sabia onde arranjar o que faltava, mas o Cruickshank ensinou-me. E mais tarde, fui eu quem ensinou o Bates. Ainda não os conheceu?

- Não.

- Porque será que ainda não apareceram? Já sei que não precisa de continuar escondido e que vai dar uma conferência de imprensa, mais dia menos dia.

- Como é que soube?

- Disse-me um amigo russo - explicou Bellamy, com um risinho nervoso. Tirou uma garrafa pequena de uísque das entranhas do casaco. - Um pequeno cadeau1 para o novo membro.

- E muito amável. Sente-se. A cadeira é mais confortável do que o sofá.

- Vou «destapar-me» primeiro, se me dá licença. Destapar. E uma boa expressão. - O destapar levou algum tempo, havia uma data de botões. Quando se instalou na

Em francês no original: presente. (N. da T.)

cadeira verde de verga, voltou a rir. - Que tal o seu amigo russo?

- Não é nada simpático.

- Então ponha-o a andar. Não vá nisso. Eles querem ver-nos satisfeitos.

- E como é que o ponho a andar?

- Faça-lhes ver que ele não é o seu género. Basta uma indiscrição que seja, apanhada por uma dessas engenhocas para onde provavelmente estamos a falar agora. Sabe, quando aqui cheguei, confiaram-me, nem vai acreditar, a uma velhota do Sindicato dos Escritores! Foi porque eu pertencia ao British Council, suponho. Bem, depressa aprendi a lidar com essa situação. Sempre que Cruickshank e eu estávamos juntos referia-me a ela sarcasticamente, como «a minha governanta» de maneira que não durou muito tempo. Desapareceu antes do Bates chegar e, é uma maldade da minha parte fazer troça, o Bates veio a casar com ela.

- Não sei o que aconteceu, quero dizer, porque o trouxeram para aqui. Eu não estava em Inglaterra quando tudo se passou. Não vi o que veio nos jornais.

- Meu caro, os jornais foram horrorosos. Fritaram-me vivo. Li-os mais tarde, na Biblioteca Lenine. Até parecia que eu era uma espécie de Mata Hari.

- Mas de que é que lhes servia tê-lo no British Council?

- Bem vê, eu tinha um amigo alemão e parece que ele tinha muitos agentes no Leste. Nunca lhe passou pela cabeça que eu, tão insignificante, andasse a observá-lo e a tomar notas, depois o palerma deixou-se seduzir por uma mulher horrível. Merecia bem um castigo. Ele estava safo, eu nunca faria nada que o pusesse em perigo, mas os agentes dele... Claro que percebeu logo quem o tinha denunciado. Na verdade, também não era difícil. Mas eu tive que desaparecer depressa porque ele resolveu ir fazer queixinhas à Embaixada. Foi um descanso quando pus o Checkpoint Charlie atrás de mim.

- E está feliz aqui?

- Sim, estou. A felicidade para mim depende das pessoas e não dos lugares, e tenho um excelente amigo. É contra a lei, claro, mas quando é preciso eles abrem excepções e ele é agente do KGB. Claro que o pobre rapaz de vez em quando tem que ser desleal, no desempenho das suas funções, mas é diferente do meu amigo alemão, não se trata de amor. De vez em quando, fartamo-nos de rir com isso. Olhe, quando se sentir sozinho, ele conhece muitas miúdas...

- Não me sinto sozinho. Enquanto tiver o meu livro para ler.

- Hei-de ensinar-lhe um sítio onde se arranjam livros em inglês pela porta do cavalo.

À meia-noite tinham acabado o uísque e Bellamy despediu-se. Levou muito tempo a vestir outra vez as suas peles, sem se calar um minuto.

- Tem que conhecer o Cruickshank um dia destes, vou contar-lhe que estive consigo, e o Bates, claro, mas isso implica conhecer a Dona Sindicata Bates. - Aqueceu bem as mãos antes de enfiar as luvas. Tinha ar de quem estava bem, embora: - No princípio, senti-me bastante infeliz confessou. - Sentia-me perdido até que encontrei o meu amigo... como naquele coro de Swinburne «os rostos desconhecidos, a vigília sem palavras e (como é o resto?) toda a dor». Dei muitas conferências sobre Swinburne, um poeta subestimado. - Já à porta, disse ainda: - Tem de vir conhecer a minha dacha, quando chegar a Primavera...

Castle descobriu passados alguns dias que até de Ivan tinha saudades. Sentia a falta de alguém com quem antipatizar - não podia dizer que antipatizava com Anna, que parecia ter compreendido que ele nunca se sentira tão só. Saía mais tarde todas as manhãs e obrigava-o a aprender mais nomes russos com o seu dedo esticado. Tornou-se mais exigente quanto à pronúncia e decidiu introduzir verbos no vocabulário dele, a começar pelo que significava «correr», imitando os gestos de quem corre, dobrando os cotovelos e um joelho de cada vez. Alguém devia pagar-lhe um salário, porque ele não lhe dava um tostão; a pequena provisão de rublos que Ivan lhe dera à chegada minguara bastante.

Um dos aspectos dolorosos da sua solidão era o facto de não ganhar dinheiro. Até já ansiava por sentar-se a uma secretária a estudar listas de autores africanos - podiam distraí-lo da sua permanente preocupação com Sarah. Porque não tinham ela e Sam ido ter com ele? De que forma iriam eles cumprir o que lhe tinham prometido?

Às nove e meia de certa noite chegou ao fim da empreitada Robinson Crusoe - também resolvera marcar o tempo, como o próprio Crusoe. «E desse modo deixei a ilha, a dezanove de Dezembro, no ano de 1686, conforme pude confirmar no navio, após lá ter permanecido durante vinte e oito anos, dois meses e dezanove dias...» Foi até à janela: naquele momento não caía neve e via-se nitidamente a estrela vermelha sobre a universidade. Àquela hora ainda havia mulheres a trabalhar, varrendo a neve; vistas de cima pareciam tartarugas enormes. Alguém tocou à porta deixá-lo, não iria abrir, o mais provável era tratar-se de Bellamy ou de alguém ainda mais indesejável, como o desconhecido Cruickshank ou o desconhecido Bates, mas depois lembrou-se de que a campainha não funcionava. Voltou-se e fitou, atónito, o telefone. Era o telefone que estava a tocar.

Pegou no auscultador e uma voz falou com ele em russo. Não percebeu uma só palavra. Depois a voz calou-se e deu lugar a um som metálico, mas Castle continuou com o auscultador estupidamente encostado ao ouvido, à espera. Talvez lhe tivessem dito para não desligar. Ou teria sido: «Desligue, voltaremos a ligar»? Talvez lhe fossem passar uma chamada de Inglaterra. Contrariado, pousou o auscultador e sentou-se ao lado do telefone, na esperança de que ele voltasse a tocar. Tinham-no «destapado» e agora talvez o quisessem «ligar». Se ao menos tivesse aprendido com Anna a estabelecer contacto - mas nem sequer sabia ligar para a telefonista. No apartamento não havia lista telefónica certificara-se disso havia duas semanas.

A telefonista tinha com certeza dito alguma coisa. A qualquer momento o telefone ia tocar outra vez. Adormeceu junto a ele e sonhou, coisa inédita nos últimos doze anos, com a primeira mulher. No sonho discutiam como nunca o tinham feito quando ela era viva.

De manhã, Anna deu com ele a dormir na cadeira verde de verga. Acordou-o e ele disse:

- Anna, ligaram o telefone - mas como ela não percebeu, acenou na direcção do aparelho a fazer «trrim, trrim» e ambos riram a bom rir com aquele som infantil na boca de um homem de idade. Mostrou-lhe uma fotografia de Sarah enquanto apontava para o telefone, ela fez que sim com a cabeça e sorriu, a encorajá-lo, e ele pensou que Anna ia dar-se muito bem com Sarah, indicar-lhe onde fazer compras, ensinar-lhe russo, ia gostar tanto de Sam.

Quando, ao fim do dia, o telefone tocou, Castle teve a certeza de que era Sarah - em Londres alguém devia ter-lhe ensinado o número do telefone, talvez Boris. Tinha a boca seca quando atendeu e mal conseguiu dizer:

- Quem fala?

- Boris.

- Onde estás?

- Aqui, em Moscovo.

- Tens visto a Sarah?

- Falei com ela.

- Está bem?

- Sim, sim, está óptima.

- E o Sam?

- Também.

- Quando vêm para cá?

- É sobre isso que quero falar contigo. Deixa-te estar em casa. Não saias. Vou aí agora.

- Mas quando vou poder vê-los?

- É disso que precisamos de falar. Surgiram dificuldades.

- Que dificuldades?

- Espera até eu chegar.

Não conseguia estar quieto: pegou num livro e voltou a largá-lo; foi à cozinha, onde Anna estava a fazer sopa. Ela disse «trrim, trrim», mas desta vez ele não achou graça nenhuma. Voltou para junto da janela - neve, outra vez. Quando ouviu bater à porta, pareceu-lhe que tinham passado horas.

Boris estendeu-lhe um saco de plástico onde estava escrito duty free.

- A Sarah pediu-me para te trazer J&B. Uma garrafa dela e outra do Sam.

- Quais são as dificuldades? - perguntou Castle.

- Deixa-me tirar o casaco primeiro.

- Estiveste mesmo com ela?

- Falei com ela ao telefone. Numa cabina. Está no campo, com a tua mãe.

- Eu sei.

- Teria dado muito nas vistas se fosse lá visitá-la.

- Então como sabes que ela está bem?

- Foi ela que me disse. ..

- E pareceu-te bem?

- Claro, Maurice, tenho a certeza...

- Que dificuldades são essas? A mim conseguiram trazer-me.

- Foi muito fácil. Um passaporte falso, o truque do ceguinho e aquela desordem na imigração enquanto eras conduzido para o avião pela hospedeira da Air France. Um homem muito do teu género, a caminho de Praga. O passaporte dele não estava completamente em ordem...

- Ainda não me disseste quais foram as dificuldades.

- Sempre soubemos que, assim que estivesses instalado e a salvo, eles não conseguiriam impedir que Sarah viesse ter contigo.

- E não podem.

- Sam não tem passaporte. Devias tê-lo averbado no da mãe. Parece que é coisa que leva muito tempo a arranjar. E outra coisa: a tua gente sugeriu que, se Sarah tentar partir, pode ser presa por cumplicidade. Foi amiga do Carson, foi tua agente em Joanesburgo... Meu caro Maurice, as coisas não são tão simples como gostaríamos, nada simples.

- Prometeram-me.

- Sei que prometemos. De boa-fé. Ainda havia uma hipótese de a tirarmos de lá se ela deixasse o miúdo ficar, mas ela recusa-se a fazê-lo. Ele não gosta da escola. Não gosta da tua mãe.

O saco de plástico onde estava escrito duty free aguardava sobre a mesa. Havia sempre o uísque - o remédio contra o desespero.

- Porque me tiraram de lá? Eu ainda não corria perigo. Pensei que sim, mas devem ter sabido...

- Enviaste o sinal de emergência. Nós respondemos. Castle rasgou o plástico, pegou no uísque e o rótulo feriu-o como uma má recordação. Serviu duas grandes doses.

- Não tenho soda.

- Não faz mal.

- Senta-te na cadeira. O sofá é duro como um banco de madeira. - Bebeu um gole. Até o gosto do JôcB o feriu. Boris podia ao menos ter-lhe trazido outro uísque, Haig, White Horse, Vat 69, Grant’s, recitou mentalmente os nomes dos uísques que nada significavam, para manter a mente ocupada e o desespero ao largo até o JôcB começar a produzir efeito: Johnnie Walker, Queen Anne, Teacher’s.

Boris interpretou mal o seu silêncio:

- Não precisas de te preocupar com microfones. Aqui, em Moscovo, pode dizer-se que estamos seguros no centro do ciclone. - E acrescentou: - Para nós era muito importante tirar-te de lá.

- Porquê? As notas do Muller estavam seguras com o velho Halliday.

- Nunca te explicaram as coisas como deve ser, pois não? Essas informaçõezinhas de carácter económico não tinham em si qualquer valor.

- Então...?

- Sei que não fui claro. Não estou habituado a beber uísque. Deixa-me ver se consigo explicar. A tua gente estava convencida de que tinha um agente aqui em Moscovo. Mas nós é que tínhamos um entre os deles. O que nos transmitias ele voltava a enviar-lhes. Os teus relatórios permitiam que eles o considerassem de toda a confiança, podiam conferi-los, e ao mesmo tempo passava-lhes informações em que queríamos que eles acreditassem. Era para isso que serviam os teus relatórios. Para os enganarmos. Mas depois vieram o caso Muller e a Uncle Remus. Concluímos que a melhor maneira de reagir à Uncle Remus era a publicidade, ora não podíamos fazer isso e deixar-te continuar em Londres. Tinhas de ser a nossa fonte, trouxeste as notas do Muller contigo.

- Vão saber que trouxe também notícias da fuga de informação.

- Exactamente. Não podíamos continuar com o jogo muito mais tempo. O agente deles em Moscovo vai mergulhar num profundo silêncio. Talvez daqui a uns meses a tua gente oiça falar de um julgamento secreto. Mais certos ficarão de que todas as informações que ele lhes passava eram verdade.

- Pensava que estava apenas a ajudar o povo de Sarah.

- Estavas a fazer muito mais do que isso. E amanhã vais enfrentar a imprensa.

- E se eu me recusar a falar a não ser que tragam a Sarah...

- Havíamos de nos arranjar sozinhos, mas nesse caso não te resolvíamos o problema da Sarah. Estamos-te muito agradecidos, Maurice, mas a gratidão, como o amor, tem que ser renovada diariamente ou acaba por esmorecer.

- Falas como o Ivan costumava falar.

- Não, não é como o Ivan. Sou teu amigo. Quero continuar teu amigo. Um amigo faz muita falta quando se recomeça a vida num país diferente.

A oferta de amizade parecia uma ameaça ou uma advertência. A noite em Watford veio-lhe à memória, ele a procurar em vão o decrépito apartamento com a fotografia de Berlitz na parede. Pareceu-lhe que, desde que entrara para a organização, aos vinte e tal anos, nunca mais pudera falar. Como os trapistas, escolhera o silêncio e era demasiado tarde para reconhecer que errara a vocação.

- Bebe outro copo, Maurice. As coisas não estão assim tão más. Basta teres paciência, mais nada.

Castle aceitou a bebida.

 

O médico confirmou os receios de Sarah em relação a Sam, embora Mrs. Castle tivesse sido a primeira a identificar aquela tosse. As pessoas mais velhas não precisam de estudar medicina - vão acumulando diagnósticos pela vida fora e não em seis anos de ensino intensivo. O médico não passava de um requisito legal - para acrescentar a sua assinatura à receita escrita por ela. Era ainda jovem e tratava Mrs. Castle com o maior respeito, como se ela fosse uma especialista eminente com quem só tinha a aprender. Perguntou a Sarah:

- Há muita tosse convulsa... quero dizer, na sua terra?

- Era óbvio que se referia a África.

- Não sei. E perigoso?

- Perigoso não é - respondeu o médico. - Mas exige uma longa quarentena - frase nada tranquilizadora. Sem Maurice era mais difícil disfarçar a sua ansiedade, pois não podia partilhá-la. Mrs. Castle estava bastante calma, apenas um pouco irritada com a perturbação da rotina. Se não fosse aquela estúpida discussão, devia estar ela a pensar, Sam teria a sua doença bem longe, em Berkhamstead, e ela dava os seus indispensáveis conselhos pelo telefone. Deixou-os a sós, enviou um beijo a Sam com uma mão semelhante a uma folha velha e foi lá para baixo ver televisão.

- Não posso estar doente em casa? - perguntou Sam.

- Não. Tens que ficar internado.

- Só queria poder falar com o Buller. - Tinha mais saudades do cão do que de Maurice.

- Queres que te leia uma história?

- Sim, por favor.

- Mas depois tens que dormir.

Metera uns livros na mala à pressa, na aflição da partida, entre os quais um a que Sam chamava o livro do jardim. Gostava muito daquele livro, mas ela não - nas suas recordações de infância não havia jardins: uma luz crua incidia sobre telhados de chapa ondulada ou pátios de terra barrenta. Nem nos metodistas havia relva. Abriu o livro. Ouvia-se o murmúrio da televisão no andar de baixo. Era um som que não podia ser confundido, nem ao longe, com o de uma voz ao vivo - um som de lata de sardinhas. Enlatado.

Antes mesmo de ela abrir o livro já Sam dormia, com um braço fora da cama, como era seu costume, para Buller o lamber. Sarah pensou: «Oh, sim, amo-o, claro que o amo, mas é como ter as algemas da polícia política a prender-me os pulsos.» Só daí a muitas semanas estaria livre e mesmo assim... Estava de novo no BrummelPs, olhando em redor do restaurante reluzente e de decoração requintada onde o doutor Percival lhe apontara um dedo avisador. «Será que também isto foi tramado por eles?»

Fechou a porta devagar e desceu para a sala. A voz enlatada fora emudecida e Mrs. Castle aguardava-a ao fundo das escadas.

- Não ouvi as notícias - disse Sarah. - Queria que eu lhe lesse uma história, mas adormeceu. - Mrs. Castle olhou-a como quem acabara de assistir a um espectáculo monstruoso visível apenas aos seus olhos.

- O Maurice está em Moscovo.

- Sim, eu sei.

- Apareceu no ecrã, rodeado de jornalistas. A justificar-se. Teve a ousadia, o descaramento... Afinal porque foi que discutiste com ele? Ah, fizeste muito bem em deixá-lo.

324

- Não foi por isso - respondeu Sarah. - Fingimos que tivemos uma discussão. Ele não quis envolver-me.

- Estavas envolvida?

- Não.

- Graças a Deus. Não queria pôr-te na rua com o teu filho doente.

- Teria posto o Maurice na rua se soubesse o que se passava?

- Não. Suportava-o só até a polícia chegar.

Virou as costas e voltou para a sala, que atravessou até embater na televisão, como uma cega. E não devia ver nada pois Sarah reparou que estava de olhos fechados. Agarrou Mrs. Castle por uni braço.

- Sente-se. Foi um grande choque.

Mrs. Castle abriu os olhos. Sarah esperava vê-los marejados de lágrimas, mas estavam secos, secos e impiedosos.

- O Maurice é um traidor.

- Tente compreender, Mistress Castle. A culpa é minha e não do Maurice.

- Disseste que não estavas envolvida.

- Ele queria ajudar o meu povo. Se não me amasse, a mim e ao Sam... Foi o preço que teve de pagar pelas nossas vidas. Aqui em Inglaterra ninguém imagina de que tipo de horrores ele nos salvou.

- Um traidor!

Sarah descontrolou-se com a reiteração.

- Está bem. Um traidor, seja. Quem é que ele traiu? Muller e os seus amigos? A polícia política?

- Não faço ideia de quem seja o Muller. Ele traiu o seu país.

- O seu país... - disse Sarah, desesperada perante a facilidade com que as pessoas fundamentam os seus juízos em clichés. - Um dia ele disse que o seu país era eu... e o Sam.

- Ainda bem que o pai dele já morreu.

Outro cliché. Talvez, no meio das crises, as pessoas se agarrem a clichés, como as crianças aos pais.

- Talvez o pai o compreendesse melhor do que a senhora. - Era uma discussão sem sentido, como a que tivera com Maurice, naquela última noite. - Desculpe. Não quis ofendê-la. - Estava disposta a ceder em tudo em troca de um pouco de paz. - Vou-me embora assim que o Sam melhorar.

- Para onde?

- Para Moscovo. Se me deixarem.

- Não levas o Sam, é meu neto. Sou a tutora dele.

- Só se o Maurice e eu morrermos.

- O Sam é um súbdito britânico. Vou pô-lo sob a protecção do tribunal. Amanhã mesmo falarei com o meu advogado.

Sarah não fazia ideia do que aquilo queria dizer. Tratava-se, tinha a certeza, de mais um obstáculo que nem a voz que lhe falara de uma cabina telefónica levara em consideração. A voz pedira desculpa; a voz proclamara-se, tal como o doutor Percival, amiga de Maurice, mas Sarah confiava mais nela, apesar da sua desconfiança, da sua ambiguidade, da nota estrangeira no seu tom.

A voz pedira que lhe desculpasse o facto de não estar ainda junto do marido. A questão ficaria resolvida praticamente de um momento para o outro se ela fosse sozinha por causa da criança era quase impossível ela passar despercebida, por mais eficaz que fosse o passaporte que lhe arranjassem.

Sarah respondera no tom firme do desespero:

- Não posso deixar o Sam sozinho. - A voz disse-lhe então que «a seu tempo» se descobriria uma solução para Sam. Ela que confiasse nele... O homem começou a dar-lhe instruções sobre como e quando se iriam encontrar, apenas alguma bagagem de mão, um casaco quente, tudo o que fizesse falta poderia comprar depois do outro lado, mas ela insistiu: - Não. Não vou sem o Sam. - E pousou o auscultador. Agora havia a doença dele e aquela expressão tenebrosa que a perseguiu até ao seu quarto «custódia do tribunal». Fazia lembrar o hospital. Seria possível obrigar uma criança a viver num hospital, como as obrigavam a frequentar a escola?

Não tinha ninguém a quem perguntar. Em Inglaterra só conhecia Mrs. Castle, o homem do talho, o merceeiro, o bibliotecário, a professora - e, claro, Mr. Bottomley que estava sempre a aparecer, à porta, na rua principal, até ao telefone. Vivera tanto tempo na sua missão africana que talvez só se sentisse verdadeiramente à vontade na companhia dela. Era muito simpático, muito conversador e dizia muitas gracinhas pias. Qual seria a reacção dele se ela lhe pedisse que a ajudasse a sair de Inglaterra?

Na manhã a seguir à conferência de imprensa o doutor Percival telefonou com o que pareceu a Sarah um pretexto curioso. Ao que parecia, tinham ficado a dever dinheiro a Maurice e queriam saber o número da conta bancária dele a fim de lhe poderem pagar: pareciam escrupulosamente honestos nas pequenas coisas, embora mais tarde Sarah pensasse se não estariam com medo que as dificuldades financeiras a levassem a algum acto desesperado. Podia tratar-se de uma espécie de suborno, para a manterem na linha, sugeriu o doutor Percival com a sua voz de médico de família. «Ainda bem que está a ser sensata. Continue assim», no mesmo tom em que diria: «Continue com o antibiótico.»

Então, às sete da tarde, enquanto Sam estava a dormir e Mrs. Castle no seu quarto, «a compor-se», como ela dizia, para o jantar, o telefone tocou. Àquela hora podia muito bem ser Mr. Bottomley, mas era Maurice. Ouvia-se tão bem que parecia que ele estava no quarto ao lado.

- Maurice, onde estás? - exclamou, espantada.

- Sabes muito bem onde estou. Amo-te, Sarah.

- Amo-te, Maurice.

- Temos de falar depressa, nunca se sabe quando resolvem cortar a ligação. Como está o Sam?

- Adoentado, mas não é grave.

- O Boris disse que ele estava óptimo.

- Não lhe contei nada. Seria mais uma dificuldade. Já há muitas dificuldades.

- Sim, eu sei. Dá um grande beijo ao Sam.

- Dou, sim.

- Já não precisamos de fingir. Eles vão ouvir sempre. Houve uma pausa. Sarah pensou que ele tinha desligado ou que a linha fora cortada. Mas ele continuou:

- Sinto tanto a tua falta, Sarah.

- Também eu, também eu, mas não posso ir sem o Sam.

- Claro que não. Eu compreendo.

Num impulso de que imediatamente se arrependeu, Sarah disse:

- Quando ele for mais crescido... - Parecia a promessa de um futuro distante, quando os dois já fossem velhos.

- Tens que ter paciência.

- Sim. Foi o que disse o Boris. Como está a minha mãe?

Prefiro não falar dela. Falemos de nós. Diz-me como - São todos muito simpáticos. Arranjaram-me uma espécie de emprego. Estão muito reconhecidos. Por coisas que nunca pensei que tinha feito - disse mais alguma coisa que ela não entendeu por causa de ruídos na linha, mas que tinha a ver com uma caneta de tinta permanente e um bolo com chocolate lá dentro. - A minha mãe não estava longe da verdade.

- Tens amigos aí?

- Sim, não estou sozinho, não te preocupes. Há um inglês que trabalhava no British Council. Convidou-me para ir à sua dacha no campo, quando chegar a Primavera. Quando chegar a Primavera - repetiu, numa voz quase irreconhecível, a voz de um velho que já não conta com a próxima Primavera.

- Maurice, Maurice, por favor, não percas a esperança

- disse Sarah, mas durante o longo silêncio que se seguiu percebeu que a linha para Moscovo estava cortada.

   

  

                                                                  Graham Greene

 

 

 

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